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MARI SILLVA
Copyright © 2022 – Mari Sillva
 
 
Capa: Murillo Magalhães
Revisão: Fabiano Queiroz
Diagramação: Denilia Carneiro
 
1ª Edição
 
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.
 
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
 
Todos os direitos reservados.
 
São proibidos o armazenamento e / ou a reprodução de qualquer parte dessa obra, através de quaisquer
meios ─ tangível ou intangível ─ sem o consentimento escrito da autora.
 
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do
Código Penal.
 
 

 
SUMÁRIO
NOTA DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
EPÍLOGO
Livro Promotor Pedro Alcantara
OUTROS LIVROS DA SÉRIE HOMENS DA LEI
SOBRE A AUTORA
AGRADECIMENTOS

 
NOTA DA AUTORA

Primeiramente, quero me desculpar a todos os leitores pela

demora do lançamento deste livro, mas prometi para mim mesma que
daria o meu melhor nessa obra por vocês, e assim eu fiz. Confesso que

foi um grande desafio concluí-la e levou mais tempo que o esperado,


mas no final valeu a pena, cada linha escrita ficou exatamente do jeito
que sonhei para a história do Gonzales e da Solange. Tem romance,
comédia, drama e aquela pitada de suspense que não pode faltar. Uma

aventura que vai te proporcionar fortes emoções.

*Obs: Para adaptar essa nova versão da história do Gonzales, tive


que mudar alguns pequenos detalhes no livro do Juiz Thompson referente a

alguns personagens, principalmente ao Pedro, que terá o seu próprio livro


e será o quarto e último da série Homens da Lei. O arquivo do Juiz
Thompson com as alterações já foi trocado na Amazon e está disponível

para atualização no seu Kindle.

Recado dado, bora para mais uma aventura?

Encontro vocês no final da história, deixei um presentinho logo

depois do epilogo...
 

Beijos de luz da Mari. ❤️


Antes
Solange

12 de junho.

Dia dos Namorados.

Sentada com a postura ereta em frente ao espelho oval pendurado em


cima da penteadeira, meus olhos cheios de lágrimas seguem os movimentos
lineares do batom vermelho-sangue a contornar os lábios grossos e

curvilíneos com maestria. Minha mão se move quase em câmera lenta


prestes a finalizar a maquiagem no rosto razoavelmente bonito, mas sem
vida. Do fundo do quarto vem uma melodia triste que toca no rádio velho

sobre o aparador da janela, que está aberta trazendo uma rajada de vento
gélido da noite que bate nas minhas costas desnudas, me causando arrepios;

trajo apenas uma lingerie branca com meias finas e cinta-liga. Me sinto

sexy. Mas suja.

Giro o pescoço e olho para o relógio em formato de lua crescente

pendurado na parede e respiro pesadamente, estou atrasada. Não posso mais


adiar o inevitável.

— Merda! – Arremesso o batom vermelho na parede na tentativa de


trocar a vontade de chorar pela raiva, porque com essa eu sei lidar melhor
do que com a dor.

Mas a única coisa que ganho com isso é um batom quebrado e um

risco enorme na parede para limpar quando eu chegar amanhã, porque

agora não dá mais tempo. Inclino-me apressada e pego o par de escarpins


vermelho salto agulha debaixo da penteadeira e calço, solto as minhas

tranças longas e fico de pé para me olhar no espelho. Estou visualmente

acima do peso, mas os quilos estão bem distribuídos pelo meu corpo repleto
de tatuagens para todos os gostos. Minha preferida é um dragão feroz de

garras afiadas que começa na minha nuca e passa por toda extensão das

costas e termina com a calda cravada em volta da minha cintura, uma

verdadeira obra de arte.

Comecei a tatuar o meu corpo muito cedo e não era por ato de
rebeldia, eu amo o significado de cada desenho que escolhi para colocar na

minha pele porque eles me fazem sentir única no mundo e bonita do meu

jeito.

— Hora de ir, Solange. – Soluço ao colocar os brincos de pedras

brilhantes que comprei em uma loja de bijuteria qualquer, mas não solto o
choro preso na garganta.

Ele não merece as minhas lágrimas.


Pego o sobretudo preto esticado em cima da cama e visto sobre o
conjunto sexy de lingerie, mas sinto que ainda falta alguma coisa. Abro a

gaveta do guarda-roupa e pego um cinto de couro para valorizar ainda mais

as minhas curvas fartas, agora sim estou pronta. Dou uma bela olhada para

o meu quarto antes de apagar a luz, sabendo que a Solange que passou a

maior parte da sua vida ali está prestes a ser morta por dentro, a mulher que

voltaria na manhã seguinte seria outra completamente diferente. Quebrada e


vazia.

— Você consegue! – Fecho a porta do meu quarto e respiro fundo,

mas não importa quanto ar eu sorvo, parece não ser o suficiente.

Tento caminhar sem fazer barulho para não chamar a atenção da

minha mãe e do meu irmão, que estão sentados no sofá da sala vendo TV.
Seria complicado demais explicar para eles onde eu estou indo vestida

desse jeito. Como uma prostituta.

Mas não é isso que você é, Solange?

Rebate a minha consciência coberta de razão, afinal, por ironia é dia

dos namorados, e enquanto várias mulheres estão se arrumando essa noite


para ficarem bonitas para os seus maridos, noivos e namorados, eu me

arrumei para ficar sexy para o meu cliente com quem farei sexo por

dinheiro. Então sim, mesmo que seja a primeira e a última vez que faço
isso, já faz de mim sim uma garota de programa e das boas, medindo pela

pequena fortuna que receberei em troca.

Nunca imaginei que precisaria fazer algo assim na vida,

principalmente com um homem que odeio com todas as minhas forças. Mas
ele não tem culpa nenhuma, porque fui eu que me aproveitei da sua

obsessão doentia por mim e propus esse acordo absurdo, agora me vejo
nessa situação, em uma briga interna com os meus valores e princípios

porque não tenho mesmo outra saída.

— Ouviu bem, Solange? Você não tem outra saída. – Me encolho no


banco de trás do táxi, precisei dizer em voz alta ou pularia do veículo e
desistiria de fazer tal loucura.

— Você disse alguma coisa, moça? – O motorista me olha com as

sobrancelhas erguidas pelo espelho retrovisor, apenas nego com a cabeça,


mas a minha expressão de choro contradiz o que eu disse.

Com a autorização do porteiro entramos no condomínio de luxo


indicado no endereço enviado pelo meu “cliente”, meu coração perde uma

batida quando o táxi para em frente a um prédio gigante com a fachada toda
espelhada. Em volta do lugar tem um jardim coberto por uma grama

verdinha bem cuidada e algumas palmeiras com as folhas devidamente


aparadas, também há estátuas históricas e uma fonte com dois cavalos, um
de frente para o outro com as patas dianteiras erguidas soltando um jato de

água pela boca.

— Tem certeza de que está tudo bem, moça? Eu posso te levar de


volta para a casa sem nenhum problema – pergunta o motorista gentil ao me

ver sair do seu carro com essa cara de velório.

— Está tudo bem sim, senhor. Muito obrigada pela preocupação, boa

noite. – Forço um sorriso acompanhado de um aceno para o homem de


meia-idade, parece ser uma pessoa boa e honesta.

Diferente de mim.

E assim como um animal indo para o abate, continuo o meu caminho


e entro no prédio luxuoso. Mas eu estava longe de ser a vítima nessa

história. O primeiro passo foi meu. Direto para o inferno. E não teria mais
volta, não depois de vender a minha alma para o diabo espanhol de pele

bronzeada e olhos verdes estonteantes, mas perigosos.

— Você vem ou não, minha filha? — A madame vestida com um


casaco pomposo de pele marrom me olha de baixo para cima com desdém.

A antipática segura a porta do elevador com as pontas dos dedos


exibindo as unhas gigantes esmaltadas de azul-turquesa, tão falsas quanto o

loiro amarelado do seu cabelo cheio de laquê preso atrás da cabeça em


formato espiral. Pelo nariz empinado e a colônia adocicada estilo europeu,
deve ser moradora desse condomínio, que fica em um dos bairros mais
nobres do Rio de Janeiro. Como diz minha mãe, gente rica a gente conhece
pelo cheiro.

— Eu vou. — Engulo as lágrimas antes de entrar no elevador e aperto

o botão do décimo andar com as pernas trêmulas.

Não lembro em nenhum momento da minha vida de ter ficado tão


nervosa assim, logo eu que pensava ser a mulher mais confiante do mundo
e me orgulhava bastante disso.

Que porra você está fazendo da sua vida, Solange?

Encaro o meu reflexo na parede de aço espelhada, estou toda

maquiada parecendo uma stripper prestes a entrar no palco e fazer sua


melhor performance erótica. Não que eu tenha algo contra quem trabalha
como stripper ou profissional do sexo, mas definitivamente não nasci para

isso, estou a ponto de colocar os bofes para fora a cada segundo que passa.
Entretanto, devo admitir que estou bonita, mas de um jeito “chamativo”.

Peguei pesado na maquiagem, escolhi uma combinação perfeita de sombra


em tons fortes sobre os olhos, muito blush e batom vermelho-sangue
chamativo, bem no estilo piranha mesmo.

Porra! Nunca pensei que me colocaria em uma situação tão baixa. Eu

sou só uma riponga vegetariana defensora dos animais, que ama as crianças
e as coisas simples da vida. Mas agora me tornei o que mais repugno na
vida, uma mulher que vendeu a sua essência por uma bagatela de dez mil
reais. Se a minha mãe sequer desconfiar que estou fazendo isso, correta do

jeito que é, nunca mais olha na minha cara.

Corra para bem longe, Solange! Ainda dá tempo.

Grita a minha consciência quando o elevador para no décimo andar,


meu coração bate cada vez mais forte ao ponto de eu conseguir ouvi-lo aos

gritos dentro do peito.

Mas se você não fizer isso, sabe o que vai acontecer depois, não é? E

será tudo por culpa do seu orgulho, então vá em frente e faça o que tem que

fazer e pegue a porra do dinheiro que precisa.

Rebate a razão como um soco no estômago, e de fato não vim até aqui

para desistir agora. O problema é que cada vez que tento impulsionar a
perna para fora do elevador, algo me puxa de volta para dentro.

— Eu não tenho a noite toda, queridinha. Então saia logo desse

elevador. — A madame de nariz empinado ousa mexer comigo de novo.

— Se está com tanta pressa, querida, por que não usa as escadas e

para de encher o meu saco? — Olho feio na sua direção e a vaca não se
atreve a falar mais nada, se tivesse um pouco de empatia perceberia nas

minhas feições que não estou bem e me daria um minuto para me recompor.
Contudo, mesmo debaixo da cara de cu da loira desbotada, tomo o

tempo que preciso e só depois de encher completamente os pulmões de ar


consigo saltar para fora da caixa de aço. Conforme caminho pelo corredor,

sinto como se, a cada passo que dou para frente, deixo algo de bom em mim

para trás, sendo arrancado da minha alma um por um.

O amor-próprio.

          A força.

                A fé nas pessoas.

                           Em mim.

— Eu nunca vou me perdoar por isso. — Engulo mais uma vez o

choro e aperto a campainha, agora não tem mais volta.

Em menos de um segundo ouço o click da porta sendo destrancada,

sinto a minha alma sair do corpo. Como se eu fosse uma espectadora que
chegou na cena mais tensa do filme de terror onde tudo pode acontecer,

porque o monstro está do outro lado da porta prestes a estraçalhar a atriz

principal. Mas não é isso que acontece; assim que a extensa tábua de

madeira se abre, sou envolvida por uma rajada de colônia masculina


traiçoeira, daquela que seduz e faz a gente ir para outra dimensão sem sair

do lugar. Como eu disse, gente rica se conhece pelo cheiro.


Prendo a respiração antes de encarar o peito largo à minha frente,

moldado por uma camisa branca colada nos músculos bem definidos quase

que de maneira afrontosa. Elevo o olhar para o rosto que parece ter sido
esculpido à mão de tão perfeito, uma obra-prima composta por um queixo

quadrado com um leve furinho no meio, lábios grossos e olhos verde-

esmeralda, nesse momento quentes como as labaredas do inferno. Alejandro

Gonzales é o tipo de homem que não passa despercebido aonde chega,


mesmo com o lugar cheio de homens tão bonitos quanto ele, porque o cara

não tem só beleza e muita grana no bolso. Vai muito além disso.

Tudo nesse homem exala masculinidade e autoconfiança, desde a

forma sedutora como sorri e anda. O sotaque espanhol ao falar é a cereja do

bolo que atrai o sexo oposto feito abelha no mel, parece até feitiçaria.

— No faz ideia do prazer que tenho em te ver novamente, Cariño. —

O desgraçado me recebe com um sorriso vitorioso, queria poder tirá-lo do

seu rosto com as minhas próprias unhas afiadas.

Filho da puta!

— Boa noite – cumprimento com uma frieza cortante.

— Melhor agora que você chegou, linda. – Joga uma piscadela.

Todo sedutor, Gonzales desliza os dedos pelo cabelo sedoso castanho-

escuro na altura do queixo, que, pelos fios serem lisos demais, rapidamente
voltam para o mesmo lugar como uma onda e cobrem parcialmente o seu

rosto. Mantenho a postura dura enquanto seus olhos predadores iniciam


uma análise minuciosa que começa nos meus scarpins vermelhos e sobe

lentamente, dando uma atenção mais que especial para o meu decote

generoso com uma pequena amostra visível da ponta da minha lingerie


branca; quando nossos olhares enfim se cruzam, estremeço.

Sua expressão não poderia ser mais profana, tenho certeza de que vai

aproveitar cada centavo que investiu nessa noite. Porra! Eu estou perdida.
Não sei onde estava com a cabeça quando fiz ao Gonzales essa proposta

indecente, foi algo que aconteceu num momento de desespero. Estava

bêbada e sem ter para onde correr. No fundo, me agarrei à esperança de que
esse espanhol, mesmo sendo podre de rico, jamais aceitaria um absurdo

desses. Alguém como ele pode dormir com a mulher que quiser e de graça.

Mulheres muito mais lindas do que eu. E mesmo se não pudesse, porra!

Que maluco paga dez mil reais por uma noite de sexo com uma

pessoa que o despreza? Isso é loucura.

— Por favor, entre e fique à vontade, Cariño. – Me puxa pela mão e

logo se joga em cima de mim vindo em direção à minha boca. Numa

urgência agoniante.
Ainda bem que sou mais ágil do que ele e viro o rosto para o lado

rapidamente. Meu estômago embrulha só de imaginá-lo me tocando, não sei

se vou conseguir sair viva depois dessa noite de horrores.

— Esqueci de dizer, espanhol, mas é sem beijos. Se não for assim, eu

não quero — esclareço de queixo elevado, aquela era a minha única

exigência.

Para minha surpresa, Gonzales concorda com um aceno de cabeça

sem pestanejar. Acho que, apesar de ser um cretino sem coração, entende

que uma coisa é deixar que use o meu corpo por dinheiro, o que já é
bastante humilhante, mas envolver beijos vai para o lado pessoal. E eu não

quero isso de forma nenhuma, não suporto esse homem.

Depois dessa noite então, a única coisa que quero entre mim e

Alejandro Gonzales é um oceano inteiro.

— Como quiser, Solange. — Dá um passo para o lado abrindo


caminho para eu entrar.

Passo pelo espanhol com a postura ereta, cabeça erguida e o peito


cheio de falsa confiança. Estou com um calafrio grudado na espinha que

não me deixa um segundo. Mas não demonstro, tento prestar atenção em

qualquer coisa à minha volta que não seja ele. Discreta, observo a luxuosa

toca onde a raposa astuta se esconde. À minha frente vejo sofás de couro
preto, uma mesinha de centro de vidro com um cinzeiro e um charuto

dentro pela metade, ainda aceso. Na parede branca tem uma tela fina fixada
em quase toda sua extensão, deduzi ser a sua sala de cinema particular.

No fundo da sala à esquerda, está o destaque do cômodo que é um

minibar com uma infinita coleção de garrafas de bebidas caras. O balcão é


uma espécie de aquário com os tipos de peixes mais inusitados que já vi, e

são todos de verdade, tem até águas-vivas.

— Será que podemos acabar logo com isso, Gonzales? — Abro o

sobretudo e mostro a lingerie que estou usando, indo direto ao ponto. —

Onde é o seu quarto? — Olho para todos os lados, nervosa.

Gonzales engole em seco, por um momento penso que vai ter um

troço, nem pisca com os olhos grudados em mim. Mas ele logo se recompõe

e diz:

— Tu no quieres beber alguma coisa antes, Cariño, talvez um vinho?

— Sua voz sai entrecortada, não sei por que está insistindo nessas

formalidades ao invés de ir direto para o ataque.

— Isso não é um encontro, Gonzales. É um negócio. E pare de me

chamar de cariño, porque não suporto. Muito menos de Sol. Para você,
apenas Solange está ótimo! — perco a paciência, sei bem quem esse

homem é.
Não precisa ficar bancando o simpático comigo porque não vai colar,
seu charme fatal não funciona comigo.

— Como você quiser, Solange. Meu quarto fica à primeira porta no


corredor à direita. — Faz sinal para que eu vá na frente.

Me sinto incomodada em saber que ele está vindo atrás de mim, posso
sentir os seus olhos tendo uma boa visão do “produto descartável” que

comprou caríssimo e está prestes a desfrutá-lo da maneira que quiser.

Assim que entramos no quarto, Gonzales se vira para trancar a porta.


O que não faz nenhum sentido, já que estamos apenas ele e eu nesse

apartamento gigantesco. Acho que está com medo de que desista do acordo

e fuja dele. Para deixar bem claro que isso não vai acontecer de maneira
nenhuma, tiro o sobretudo e deixo cair em volta dos meus pés. Quando o

espanhol se vira e me encontra apenas com o conjunto de lingerie


transparente de três peças, seus olhos esverdeados incendeiam sobre cada

pedacinho do meu corpo. Engulo em seco sentindo-me intimidada, não pelo


meu visível excesso de peso porque isso nunca me preocupou, sempre me

achei perfeita como sou.

O que me incomoda de fato nesse momento é o olhar predador do


Gonzales, como se, em um mundo com 7,2 bilhões de pessoas, eu fosse
única.
Para ele.

— Eres muy hermosa! — rosna em espanhol e parte para cima de mim


como um animal faminto indo para cima da sua pobre presa já dominada,
apenas à espera de ser devorada porque não há mais nenhuma chance de

salvação e só me resta desejar que tudo termine logo.

Por impulso, Gonzales esquece do nosso acordo e me puxa pela


cintura para um beijo ardente. Me esquivo novamente e isso o enfurece;

sem nenhuma gentileza, desce os lábios para o meu pescoço em um rastro


de chupões e mordidas. Ágil, conduz as duas mãos para as minhas costas e
desabotoa o sutiã em questão de segundos e a peça vai ao chão, a calcinha

vai embora logo em seguida em um puxão, tudo isso enquanto me empurra


até a cama e me joga de maneira rude em meio ao amontoado de

travesseiros. Já que eu não queria beijo na boca e nenhum tipo de


cordialidade, ele me trataria como uma puta barata de rua.

Parado aos pés da cama e sem quebrar o contato visual, Gonzales tira
toda a sua roupa em questão de segundos. Se vestido ele é lindo, nu é algo

surreal. Musculoso, mas sem exagero. Ombros largos e braços fortes, um


peitoral liso composto por montes bem definidos que minha nossa! Deus
estava mesmo inspirado quando criou esse espanhol. Como se não bastasse,

ainda tem o maior pau que passou por esses olhos e eu já vi vários nessa
vida e nem cheguei aos trinta anos ainda.
— Pronta para a mejor noche da sua vida, muchacha? – Segura a sua
ereção pulsante com um sorriso de canto, ele sabe que é um puto de um
gostoso.

— Cala a boca e vamos logo com isso, Gonzales. – Ergo a


sobrancelha.

Ele rapidamente sobe na cama e engatinha sobre mim como um tigre

selvagem acuando sua presa, desapareço debaixo da montanha de músculos,


eu não conseguiria fugir agora nem se quisesse. Suas mãos estão por todo o
meu corpo. Distribui beijos pelo meu pescoço, morde e chupa o lóbulo da

minha orelha, provocando-me. Quer me ver perder a compostura. Porém,


estou tão furiosa com toda essa situação que permaneço imóvel como uma
boneca inflável.

Não faço isso porque estou enojada com o seu toque como pensei que
ficaria, mas sim porque o meu corpo está respondendo quase que
instantaneamente às investidas desse desgraçado. Contudo, prefiro morrer

do que dar o braço a torcer, aperto os olhos e tento pensar só em coisas


broxantes. Mas, porra! Sou forte, mas não de ferro. A essa altura estou com
a boceta pegando fogo. E o desgraçado não para com a tortura, passa a

língua pela auréola do bico do meu peito antes de sugar violentamente,


primeiro um e depois o outro.
Esfrego as pernas uma na outra para conter a pressão no meio delas.
Gonzales realmente sabe o que está fazendo, sabe onde e como tocar uma

mulher para deixá-la subindo as paredes.

Por favor, Solange, seja forte!

Não se entregue.

Não para ele.

Trinco os dentes para conter um gemido quando o espanhol se enfia


no meio das minhas pernas e me toca com a língua, minha libido aflora e
fico toda molhada. O cretino me chupa, morde, lambe e me fode com os

dois dedos pelo que pareceram horas e mais horas a fio. Vez ou outra ele
olha para cima com aquela expressão devassa que é só dele, suas pupilas
estão dilatadas e em um verde mais escuro. Gonzales quer me ver gemendo

loucamente, mas não solto um grunhido sequer.

O problema é que eu até posso controlar a minha boca, mas a boceta


já é outra história bem diferente. Quando dou por mim, o filho da puta me

faz gozar desenfreadamente. Aperto o lençol da cama com tanta força que
os meus dedos perdem a cor, Gonzales continua a me chupar feito um louco
lambendo cada gota. Me sinto extasiada de prazer, foi o melhor sexo oral da

minha vida. Estou toda mole sobre a cama, sinto como se o meu corpo
fervesse em chamas. Mas não solto nenhum ruído, continuo muda.
Minha relutância em demonstrar prazer deixa Gonzales ainda mais

puto; em um movimento rápido, pega uma camisinha no bolso da sua calça


jogada no chão e coloca apressado, mas com uma técnica de quem fez
aquilo todos os dias da sua vida desde a época da puberdade. O homem

entra em mim em um golpe só, bruto feito um coice de cavalo chucro, indo
o mais fundo que consegue. Ele esperava que com isso eu soltaria pelo
menos algum tipo de ruído, mesmo que fosse um palavrão ou xingamento.

Mas não sai nada, permaneço calada como se os meus lábios estivessem
grudados.

Apesar de que por dentro eu estou gritando ensandecida querendo

mais. Muito mais. Mas prefiro morrer a pedir. Como se Gonzales lesse o
meu pensamento ou por puro ódio, estoca uma vez atrás da outra feito um
louco.

— Porra! Como você é apertadinha. Mal consigo entrar por completo


— rosna em meio às investidas.

Depois disso Gonzales perde o controle, esquecendo todo o seu

orgulho em relação à minha falta de demonstração de prazer e focaliza


apenas no seu. Me fode com força, mas não deixa de me provocar sempre
que possível.
— Com essa marra toda, yo esperava uma mujer mais fogosa na
cama. — Puxa o canto da boca em um sorriso desafiador enquanto me
come com força, o barulho dos nossos sexos se chocando inunda o quarto.

— É mesmo, espanhol? – Meu tom saiu tão irônico quanto o meu


olhar.

— Já comi putas bêbadas de final de festas com o desempenho sexual


muito mejor que o seu, Cariño — me afronta.

Para mim é a mesma coisa que abrir as portas do inferno, agora


Gonzales tocou no meu ponto fraco. Odeio ser desafiada.

— Tudo bem! Se você quer ver o meu lado profano, eu vou te mostrar

— tomo as rédeas da situação.

Já que estou agindo feito uma prostituta, vou fazer o trabalho bem-
feito. Minha avó sempre dizia que, se quer dar uma lição em um homem, é

só dar uma surra de buceta nele que nunca mais vai esquecer na vida. É isso
que farei com esse espanhol metido. Em um giro preciso, troco as posições
e fico por cima do Gonzales, pegando-o de surpresa. Deve estar acostumado

a comandar na hora do sexo. Mas comigo as coisas são diferentes. Sento no


seu pau com gosto e começo a cavalgar em uma velocidade eloquente.

Mexo o corpo de um jeito que obriga Gonzales a permanecer imóvel,

ele me olha feio e tenta segurar na minha cintura para voltar ao controle.
Mas eu o impeço apoiando minhas mãos abertas sobre o seu peito sarado,
agora quem manda nessa porra sou eu. Inclino sobre o espanhol e aproximo

nossas bocas como se fosse beijá-lo, mas, faltando centímetros para nossos
lábios se tocarem, me afasto. Sua expressão de frustração é hilária. Como
castigo, ele dá o troco e ergue o tronco e abocanha o meu peito sugando-o

de um jeito violento e ao mesmo tempo tão gostoso que dessa vez não
contenho um gemido.

— Ahhhhh. – O som agudo sai dos meus lábios e inunda o quarto.

Gonzalez sorri egocêntrico, esse desgraçado sempre consegue mesmo

o que quer.

E eu o odeio por isso!

Nas horas seguintes, faço o meu papel de garota de programa por uma

noite com um desempenho espetacular, com tudo o que tem direito. Quando
digo tudo, é tudo mesmo. Menos beijos. Foi só sexo sujo. De fato, dei uma
surra de boceta das caprichadas, as mulherzinhas que o espanhol costuma

comer vão ter que suar para fazer melhor. Sempre fui uma mulher honesta,
mas entre quatro paredes sou uma verdadeira devassa, ninguém me supera.
Sei melhor do que qualquer biscate agradar um macho na cama, sem

frescuras ou pieguice.
Perco a conta de quantas vezes transamos nas horas seguintes, só
paramos quando o sol nasceu atrás das montanhas. Sei disso porque um raio

de sol entrava pela fresta da janela entreaberta quando o peso do Gonzales


cai sobre mim exausto, sua respiração é ofegante. Eu suguei toda a sua

energia, ele fez o mesmo comigo. Estou toda melada de suor e porra, mole
de exaustão e o coração partido.

Nunca me senti tão suja e imoral antes, só quero ir embora daqui o


mais rápido possível.

— Eu já fiz a minha parte do negócio, agora é a sua vez — digo em


um fio de voz, em uma tentativa fracassada de esconder a vontade de
chorar.

— Nada mais que justo, Cariño. Você merece cada centavo desse
dinheiro. Soube me servir muito bem essa noite — se vangloria, fazendo
com que eu me sinta ainda mais suja.

Não aguento e solto um soluço baixinho, não tenho certeza se o


Gonzales escutou. Porém, ele sai de cima de mim no mesmo instante e deita
ao meu lado na cama e, em total silêncio, estica o braço na minha direção.

Me encolho toda com medo de que me toque novamente. Só que, ao invés


disso, pega o talão de cheques e uma caneta sobre o móvel de cabeceira e
assina o valor de dez mil reais e me entrega com um sorriso de canto

debochado. Ele estava amando me ver naquela situação humilhante.

Arranco o papel da sua mão e me levanto praticamente correndo,


visto as minhas roupas o mais rápido que consigo, mas, antes de ir embora,

encaro o homem mais arrogante do mundo e digo:

— Espero que trate a próxima melhor do que as outras mulheres que


já cruzaram o seu caminho. — Meus lábios tremem. — Adeus, Gonzales.

Acabo soltando outro soluço, desta vez um pouco mais alto. Por toda

a minha vida pensei que o dinheiro não pudesse comprar tudo, mas
Alejandro Gonzales apareceu vindo das profundezas do inferno com todo o

seu poder e riqueza e me provou que estou errada. Como não quero
desmoronar na frente dele, me viro e vou embora a passos deprimentes.
Não vou dar ao Gonzales o gostinho de me ver chorar. Mas é só passar pela

porta que o choro vem com força, havia segurado desde que entrei no seu
apartamento ontem à noite.

Sinto tanto nojo de mim que duvido muito que algum dia eu vá me

perdoar por isso, muito menos Deus. E eu não estou falando só pelo fato de
ter vendido o meu corpo para o diabo.

Mas sim por ter gostado.


 
Um ano depois, quando tudo voltou ao normal.

Dentro do possível.

Agora....
Solange

Termino de organizar os lápis de colorir e as folhas A4 sobre a minha


mesa. Se tem algo que prezo como professora, é manter o meu material
escolar sempre organizado. O sinal toca para avisar que a aula vai começar,

rapidamente pego o frasco da minha medicação antidepressiva escondida


em um bolso secreto no fundo da minha mochila e jogo um comprimido na
boca e engulo a seco sem que ninguém veja. O último ano não foi fácil para

mim. Mas não deixo isso interferir no meu trabalho de ensinar para os meus
lindos alunos. Como faço todos os dias, coloco um sorriso no rosto e fico de

pé na porta próxima à parede com o cartaz que fiz com muito amor e colei

na parede. Nele tem o desenho de uma mão que significa um cumprimento,


o de coração um abraço bem forte e o símbolo da música que é uma

dancinha engraçada e bem divertida.

Os meus alunos já sabem. Quando chegam para a aula ou voltam do

recreio, montam uma fila organizada e escolhem uma das três figuras e,

antes de entrarem na sala, dou o tipo de carinho que eles estão precisando
no momento, porque infelizmente muitas crianças não recebem atenção dos

pais em casa. Sou professora há mais de cincos anos e sempre fiz de tudo
para que os meus alunos se sintam amados o máximo possível.

— Oiiii, tia Sol, hoje eu quero dançar. — Sorri a Lia mostrando a


recém-janelinha do dente que caiu na frente, ela correu muito para pegar o

posto de primeiro lugar da fila hoje e está muito orgulhosa disso.

Lia é uma japonesinha linda dos olhos bem apertadinhos e o cabelo


comprido preto e liso com uma franja reta ao meio da testa, parece essas

bonequinhas de desenhos orientais. A mãe dela a veste como se fosse uma.

O vestido azul e rosa rodado com a saia cheia de pregas e as botas brancas
de cano longo que está usando hoje são a prova disso.

— Que legal, meu amor, ótima escolha! Sabe o que fazer, não é? —
digo no mesmo tom de animação que o dela.

Lia bate a mão sobre o símbolo da música no cartaz, então ela e eu

começamos a fazer nossa dancinha engraçada, balançando o corpo de um

lado para o outro. Ela gargalha e todos da fila também. O bom dessa
brincadeira é que meus alunos se divertem na vez deles e nas dos

coleguinhas. Depois que todos estão dentro da sala, dou continuidade à aula

e tudo transcorre perfeitamente bem. No entanto, quando estou arrumando


minhas coisas para ir embora sou chamada com urgência pelo professor do
quinto ano.

Saio correndo para ver o que ele quer falar comigo de tão urgente,

Roberto é professor do meu irmão caçula Rafael Louis, que é especial.

Minha mãe teve várias complicações durante a gravidez dele, eu tinha treze

anos na época, mas lembro perfeitamente de cada detalhe. No dia do parto,

enquanto esperava na sala de espera com o meu pai, lembro que ele
intercalava entre orar e chorar. Às vezes fazia os dois ao mesmo tempo.

Várias horas depois o médico veio e conversou com o meu pai, disse

que teve muitas complicações no parto e tiveram que fazer uma cesariana

de emergência, por isso meu irmão nasceu com pouco oxigênio no cérebro.

Isso resultaria em uma capacidade mental bem abaixo da média, já era para
ele ter terminado o ensino médio, mas ainda está no quinto ano porque sua

capacidade de aprendizagem é muito limitada. O fato dele ter sido

diagnosticado com autismo aos cinco anos deixou tudo mais delicado.

— O que o meu irmão aprontou dessa vez, Roberto? — Chego à porta

quase sem voz.

Professor Roberto está encostado na sua mesa, com os braços

cruzados sobre o peito, elegante como sempre, de camisa xadrez branca e

azul, calça preta e sapatos sociais brilhando de tão bem engraxados. Gosto
de como covinhas brotam nas suas bochechas quando sorri. Do seu olhar

charmoso. Da voz grossa. Na verdade, gosto de tudo nele. É o tipo de


homem que não se vê muito por aí hoje em dia, cavalheiro e humilde. O

cara é tão inteligente que dá gosto de ouvi-lo falando até de coxinhas de


frango. Fora aquela pele de chocolate provocante que dá vontade de morder
para saber se o gosto é tão bom quanto a imagem aparenta, pena que eu

perdi total interesse nos homens depois que… Bem, prefiro nem lembrar
daquela noite horrível, apesar que a minha psicóloga insiste que falar sobre

o assunto ajuda a superar. Mas sou cética em relação a isso, nada vai me
fazer superar aquela noite maldita com o espanhol que literalmente fodeu

comigo de todas as maneiras possíveis.

Mas, deixando as más lembranças no passado, olho para o lado e vejo

o meu irmão sentado em uma cadeira próxima, balançando o corpo para


frente e para trás constantemente com as mãos sobre os ouvidos.

— Veja com os seus próprios olhos, Solange. — Roberto aponta para

a parede do fundo da sala, meu queixo literalmente cai.

— Meu Deus! — é a única coisa que consigo dizer, não importa

quantas vezes eu seja chamada devido a alguma “arte” que o Rafael


aprontou, ele sempre consegue me surpreender.
— Eu só me virei por quinze minutos para passar a matéria sobre a

origem do quadro da Monalisa. Quando olhei para a turma quase caí para
trás ao colocar os meus olhos nisso. — Eleva um pouco a voz, mas não

parece zangado, só tão surpreso quanto eu.

Mas eu nem escuto direito, estou chocada demais e não consigo parar
de olhar para a réplica perfeita do quadro da Monalisa feita com caneta
preta na parede.

— Você gostou, irmã? — Rafael pergunta inocente.

— Claro, meu amor, como tudo o que você desenha. — Sorrio

orgulhosa, mas morta de vergonha ao mesmo tempo.

O meu irmão tem a síndrome de Asperger, que é considerada o grau

mais leve entre os tipos de autismo, três vezes mais comum em meninos do
que em meninas. Pessoas nessa condição veem, ouvem e sentem o mundo

de forma diferente. No caso do Rafael Louis, ele se comunica com o mundo


através dos seus desenhos. Basta olhar apenas uma vez por alguns segundos

que ele consegue passar para o papel com riqueza de detalhes, como essa
réplica idêntica à de Monalisa.

Mas nem tudo são flores, os portadores dessa patologia têm


comportamentos peculiares e apresentam, com frequência, preocupações

obsessivas. Rafael se senta no mesmo lugar na mesa para comer todos os


dias, usa o mesmo copo, prato e talheres. Sua capacidade de interagir com
as outras pessoas é zero, desde criança tem um comportamento que
caminha no sentido a se distanciar das pessoas.

— Mil perdões por isso, Roberto, já conversei com meu irmão um

milhão de vezes que não pode desenhar em qualquer lugar que sinta
vontade. — Olho feio para o Rafael Louis, mas ele não dá a mínima e ergue
os ombros em uma postura totalmente indiferente.

— Mas, Sol, a mamãe disse que a escola é o melhor lugar para

inspirar as outras pessoas com o nosso talento — justifica o meu irmão


olhando para o nada, ele nunca olha nos olhos das pessoas e odeia que o

toquem.

— Em casa a gente conversa, Louis. Agora peça desculpas para o seu

professor e vem me ajudar a limpar a parede — sou firme.

Fico arrasada por ter que apagar essa obra de arte. Só que se a
implicante da diretora ver, é capaz de suspender o meu irmão pela milésima

vez por desenhar em lugares inapropriados da “minha escola”, como ela


enche a boca para dizer.

— Desculpa, professor Roberto. Apesar de eu não ter feito


absolutamente nada de errado — me afronta e com muita relutância pega o

apagador sobre a mesa.


— Não precisa se desculpar, Rafa, e de jeito nenhum vou deixar que
apague essa obra de arte. Na verdade, caso sua irmã autorize, gostaria que
decorasse o resto da sala. — Arregalo os olhos, ele não pode estar falando

sério.

Rafael não é muito de sorrir, mas nesse momento está com uma
expressão de felicidade interna gigante.

— Não sei se é uma boa ideia, Roberto. Acho que a diretora pode não

gostar muito disso — aviso.

A diretora Helena vive pegando no meu pé e no do meu irmão por ele

ter autismo e tenta colocar a culpa no coitado por tudo o que acontece de

errado nessa escola.

— Eu pensei que fosse o professor Roberto que mandasse na sala

dele, não a diretora Helena — intervém Rafael com a sua sinceridade nua e
crua, doa a quem doer, essa criatura sempre fala o que pensa.

Nos mínimos detalhes.

— Boa, Rafa, é isso aí! Quem manda na minha sala sou eu. Deixa que

com a cobra da diretora me resolvo depois. — Roberto ergue a mão para

bater na do meu irmão, mas ele permanece olhando para o nada, deixando-o
no vácuo.
Se meu irmão não gosta de contato visual, ele odeia o físico, ele quase

nunca abraçou meus pais e a mim, quem dirá terceiros.

— Se é assim tudo bem, meninos. Mas agora preciso ir embora,

preciso bater ponto no meu outro trabalho. – Faço uma careta, estou tão
cansada, por mim ia para casa dormir.

Minha vida ultimamente se resume apenas em trabalhar e trabalhar,

além de ser professora eu ajudo minha mãe no nosso bar vegano todas as
noites e ela é bem exigente como minha chefe, apesar de que eu não ganho

um centavo trabalhando lá. Os lucros mal dão para pagar as contas, mas

amamos esse lugar com todas as nossas forças porque é a realização do


sonho do meu pai que morreu há pouco mais de um ano de maneira trágica.

Ele trabalhou uma vida inteira para construir o seu próprio negócio do jeito

dele e conseguiu, criou um ambiente exótico com cadeiras de praia num

quintal todo gramado e cheio de varões de lâmpadas e um palanque


improvisado onde toda semana tem show ao vivo de bandas de reggae

independentes. Eu também costumo cantar lá às vezes, mas só como hobby

mesmo, para entreter os clientes.

Mas o que faz sucesso mesmo no nosso bar vegano é o menu inteiro

de drinks afrodisíacos criados pelo meu pai, aquele velho hippie maluco
usava todo tipo de frutas cítricas, ervas medicinais, entre outras iguarias nas

suas bebidas. Uma combinação que ele afirmava ter o poder de aflorar os
desejos mais ocultos das pessoas. O senhor Ramon sempre foi um

sonhador, pensava grande. Nós dois éramos muito próximos, por isso

quando morreu uma parte de mim foi junto. Acho que nunca vou superar a
morte dele, a dor que sinto é como se tudo tivesse acontecido ontem. É uma

ferida que nunca fecha.

— Ouvi dizer que a sua família tem um bar vegano em Madureira,


quando vai me convidar para ir lá conhecer, Solange? — Me estonteia com

um sorriso de canto, por um segundo tenho a impressão de que o Roberto

está me paquerando.

Mas essa ideia logo desaparece da minha cabeça, Roberto é um

homem conservador. E eu sou liberal. Enquanto ele vem sempre dar aula

vestido todo social, o cabelo cortado e a barba em um cavanhaque


impecável, eu sou a riponga maluca toda tatuada que faz a maioria das suas

roupas estranhas e adora mudar o cabelo, usa o básico de maquiagem e tem

pavor de salto alto.

— Você é bem-vindo no nosso bar sempre que quiser aparecer,

Roberto. Eu faço show ao vivo lá às terças e quintas, quando passar por lá

me avisa que a bebida será por conta da casa.

— Muito obrigado, Solange, mal posso esperar para te ver cantar.

Mas agora vai lá, não quero te atrasar. Vejo você e o Rafa amanhã. –
Roberto acena para nós ainda com esse sorriso lindo no rosto, como se não

bastasse ainda me joga uma piscadela.

Esse professor Roberto…

É o homem dos sonhos de qualquer mulher. Queria saber mais sobre a

sua vida pessoal, mas ele é muito discreto em relação a isso. A única coisa

que sei é que vem de uma família muito religiosa, mas isso foi a fofoqueira

da diretora Helena que me contou, então não posso afirmar ser cem por
cento verdade.

— Até amanhã. – Aceno de volta de pernas bambas.

Meu irmão e eu vamos direto para o nosso bar, depois que chego lá

nunca tenho hora certa para sair, varia muito do movimento. Que

ultimamente anda de mal a pior, se as coisas não melhorarem rápido vamos


entrar no vermelho de novo.

— Boa tarde, meus amores, como foi o dia de vocês? – Mamãe beija
o meu rosto e me abraça quando chego no bar, ela tenta fazer o mesmo com

o meu irmão, mas ele passa direto igual a um tiro e se enfia no quartinho

dos fundos para passar horas desenhando e vivendo no seu próprio mundo.

Quem perdeu foi ele, porque não existe abraço melhor no mundo que

o da dona Cátia, conhecida por todos carinhosamente como Cacau por

causa dessa pele escura lisinha linda que tive a sorte de herdar dela. Adoro
seu estilo despojado, todas as suas roupas têm estampas tribais e místicas.

Seu cabelo é composto por algumas dúzias de dreads naturais ao meio das

costas bem-feitos e cultivados com muito amor; se eu tenho muita

tatuagem, mamãe tem o dobro. Meu pai então, tinha noventa e cinco por
cento do corpo tatuado, só salvava a área do rosto.

Meu pai era um homem lindo! Usava barba comprida e, assim como a
esposa, dreads longos no cabelo, o dele era mais longo e volumoso tipo o

Bob Marley, que era o seu cantor favorito. Sempre imagino os dois no céu

trocando a maior ideia sobre vários assuntos tabus desse mundo louco,

pensando assim me sinto menos triste quando lembro da morte dele.

— Foi uma manhã corrida, mas muito boa, mãe. Eu amo aquelas

pestinhas, tenho o melhor trabalho do mundo. – Guardo minha bolsa e o


material escolar no armário da cozinha.

— Tenho muito orgulho de você por isso, meu amor, porque escolheu

trabalhar com algo que ama e isso sempre lhe fará sentir realizada mesmo
que não ganhe rios de dinheiro no final do mês. – Toca o meu rosto com

carinho. – Porque pobre mesmo é aquele que tem ouro nas mãos e ferrugem

no coração. – Me presenteia com a luz do seu sorriso.

— Obrigada pelo incentivo de sempre, mãe, eu amo muito a senhora.

– Deito minha cabeça no seu ombro.


— Eu também te amo, querida, mas agora vai colocar o seu uniforme

de trabalho e vem ajudar a mamãe, porque estou sentindo uma energia


positiva de que a casa vai lotar essa noite. — Acende um incenso de folha

de laranjeira e balança no ar enquanto caminha pelo salão, logo o aroma

delicioso se espalha por todo o bar.

Minha mãe faz de tudo para manter o sonho do meu pai vivo através

deste bar. E eu também. Tudo aqui lembra ele e às vezes posso jurar que

sinto a sua presença, o cheiro dele está por toda parte. Ramon era um cara
com uma vibe muito boa, tinha uma energia positiva que alegrava todo o

ambiente aonde chegava. Acreditava que tudo podia ser resolvido com um

chá quente e uma boa conversa. Um riponga desses raiz, sabe? Não é à toa
que deu ao nosso bar o nome de Paz & Amor. A primeira coisa que o

cliente encontra quando vem aqui é uma coleção de discos pendurados na

parede dos melhores cantores de reggae que já existiram em todos os

tempos, temos uma vitrola antiga que todas as noites colocamos para tocar.

Sempre achei o máximo a pegada da decoração do nosso bar, temos

mesas em formato do símbolo dos hippies, do infinito, amor eterno e vários


outros. Grande parte dos objetos são de material reciclável, ajudei meu pai a

fazer todas as luminárias com garrafas de vidro coloridas que quando acesas

com fogo de verdade trazem uma iluminação baixa e charmosa para o


ambiente, impossível entrar aqui e não sentir paz e amor, como o próprio
nome do lugar diz.

— Sim, senhora, volto daqui a pouco para arrumarmos essa bagunça.


— Dou um tapa na bunda da minha mãe e saio correndo, sempre tivemos

uma relação ótima.

— Que isso, menina, deixa o meu pandeiro quieto que só o seu pai

podia tocar nele. — Solta uma gargalhada gostosa.

Faltando uma hora para abrir o bar, o pessoal que trabalha conosco
chega, nossa rotina de trabalho consiste em minha mãe na cozinha fazendo

os petiscos veganos mais deliciosos do Rio de Janeiro. Temos o Valdeci

como barman, ele é o cara mais gente boa que conheço. Como garçonetes,
temos o trio das meninas superpoderosas, a Eloísa, Lety e eu. Antes

tínhamos o dobro de funcionários, mas depois da maré de problemas


financeiros tivemos que, com muito pesar, cortar a equipe pela metade. Foi

muito triste ter que escolher quem despedir, então mantivemos os


funcionários com mais tempo de casa.

— Vocês viram, galera? Tem uma fila enorme lá fora esperando para

abrirmos o bar. – Chego no salão animada já com o caderno de notas e


caneta em mãos, fazia tempo que não víamos fazerem fila em frente do Paz
& Amor.
— Por que a surpresa, filhota? Eu disse que estou sentindo uma
energia boa de que hoje o bar vai bombar. – Mamãe beija a minha testa,
pega as chaves no bolso e abre a porta da frente do bar com um sorriso

rasgando o rosto para receber os clientes.

A partir daí a correria começa para atender aos clientes, todo mundo
me chama ao mesmo tempo, uma verdadeira loucura. Não paro nem para

respirar, essa noite era para ter o meu show ao vivo, mas não tenho tempo
nem fôlego para isso. Porém, confesso que os meus dedos coçam toda vez
que olho para o meu violão no palco. Só que eu desanimo assim que olho

para baixo e vejo os meus pés inchados dentro da sandália implorando por
uma bacia de água morna, por isso quase chorei de alegria quando os
últimos clientes foram embora e iríamos enfim fechar.

Enquanto minha mãe fecha o caixa, as meninas e eu terminamos de


limpar a cozinha que está um verdadeiro caos. Depois de fechar o bar ainda
teríamos que passar no vovô para pegar o Rafael. Meu irmão odeia lugares

barulhentos, então não fica conosco no bar; assim que os clientes começam
a chegar ele vai para a casa do nosso avô paterno, que mora praticamente do
outro lado da rua. Eles se dão muito bem, vovô Manoel é fofo demais e se

dá bem com todo mundo. Depois da morte da vó Margarida, um faz


companhia para o outro.
— Graças a Deus esse é o último copo, minhas pernas estão
latejando. Acho até que vou desmaiar. — Eloísa se joga em cima de mim
fazendo drama, é a pessoa mais descolada da equipe inteira.

Tem mais de trinta e cinco anos e não se importa nem um pouco de


sair por aí com o cabelo pintado de várias cores, parece um arco-íris. Elô
tem a personalidade meio bruta, mas o coração é mole.

— Sai de cima da Sol, amor. Não é só você que está cansada, criatura.
— Leticia puxa a Eloísa, as duas se conheceram trabalhando aqui e se
apaixonaram.

O casamento aconteceu aqui no bar mesmo; acredite ou não, quem


conduziu a cerimônia foi o meu pai. Minha mãe e eu fomos as madrinhas,
foi tudo muito lindo.

— Tudo bem, Lety, meu corpo está tão dormente de tanto andar para

lá e para cá servindo as mesas, que pode cair todo peso do mundo em cima
de mim que não vou sentir nada — brinco e elas acham graça.

— E você ainda precisa levantar cedo amanhã para trabalhar, não é,

amiga? — Assinto com um suspiro, Lety abraça as minhas costas com pena
de mim enquanto enxugo os copos.

Lety é o oposto de Eloísa, novinha e com cara de patricinha e adora se

vestir como uma adolescente. Mas a sua maior característica é o jeito doce,
só vê o lado bom nas pessoas, isso me preocupa um pouco às vezes. Porque
a maioria dos seres humanos não vale porra nenhuma.

— Sinceramente, Sol, não sei como aguenta trabalhar a noite inteira


aqui no bar e no dia seguinte encarar aqueles demoniozinhos catarrentos. —
Valdeci chega na cozinha com mais uma pilha de louça suja, as meninas e

eu resmungamos, parece que o trabalho nesse bar nunca acaba.

— Não fala assim dos meus nenezinhos, Valdeci. — Espirro minha


mão cheia de espuma na cara dele, nosso barman moreno gato e musculoso.

Só de namorada fixa desse cara eu conheço três, fora uma penca de

ficantes, uma em cada rua diferente. Valdeci se acha o alecrim dourado


porque é o único homem que continuou trabalhando aqui no bar, mas a

verdade é que nós acabamos o mimando porque é uma pessoa incrível, do


tipo que você pode ligar a qualquer momento até para pedir ajuda para
enterrar um corpo, que ele aparece em menos de cinco minutos sem te

julgar ou exigir explicações. Só pede as instruções e coloca as mãos à obra


e que se dane o resto.

— Que loucura é essa, mulher? Acho que você me cegou. – Finge que

não está enxergando nada na sua frente batendo em tudo o que vê na frente,
ele é um palhaço mesmo.
Nós começamos a rir na cozinha das palhaçadas dele, aqui no bar

sempre é esse clima divertido.

— Posso saber qual o motivo de tanta graça? – Minha mãe chega na


cozinha e começa a rir também e nem sabe o porquê, alguém coloca a

vitrola velha para tocar e todo mundo começa a dançar na cozinha.

Menos eu, cruzo os braços e fico olhando para a minha mãe e os meus
amigos se divertindo depois de um dia intenso de trabalho. Meu pai tinha

razão quando dizia que a energia desse lugar é tão boa que tem o poder de
fazer as pessoas mais felizes; mesmo depois da sua morte, ainda continua
essa vibe boa aqui no bar.

Por isso eu amo tanto cada pedacinho desse lugar, meu coração aperta

toda vez que lembro que quase o perdemos no ano passado, mas
conseguimos contornar as coisas, mesmo que isso tenha custado a minha

dignidade.

 
Gonzales

Tento abrir os olhos, mas yo no consigo. Pela fresta da persiana que

cobre toda a extensão da parede de vidro da luxuosa suíte escapa um raio de


sol insistente sobre o meu rosto. Minha cabeça dói tanto que parece que vai

explodir. Desde que me mudei para esse lugar incrível, uma mansão no
litoral carioca, que minha rotina se resume a farra e sexo explícito. No tinha
mais condições de continuar vivendo deprimido dentro daquele
apartamento grande e frio. La habitam lembranças de uma única noche que

me marcou por toda uma vida. Lembranças que nem essas três mujeres nuas
na minha cama agarrada a mim, ou as garrafas de uísque que bebi ontem,

me fizeram esquecer.

A impressão que tenho é que no importa onde yo vá ou quantas vadias


coma, as lembranças daquela diaba tatuada no me deixarão em paz nunca.
Solange me enfeitiçou. Sexo nunca foi tão bom como foi com ela. E olha

que já perdi a conta de quantas mujeres comi nessa minha vida mundana;

sinceramente, no conseguiria contar nem as com quem dormi durante o


último ano que passou.

Durante todo esse tempo yo pensei por um milhão de vezes em ir


atrás da Solange e oferecer o valor que quisesse para tê-la na minha cama

novamente, mas sou orgulhoso demais para quebrar a regra de no dormir


com a mesma mujer mais de uma vez. Ainda mais uma oportunista como

ela, que se fez de difícil quando a conheci e por um minuto até acreditei que
fosse diferente, mas no final a filha da puta deu o seu preço como todas as

outras.

— Dios mio! — resmungo zangado com o toque persistente do meu

celular sobre o móvel perto da cama no volume mais alto.

Minha cabeça dói ainda mais, yo passo o braço por cima da loira
siliconada e desligo na cara de quem quer que seja. Volto a dormir, mas no

dura por muito tempo. Menos de dez minutos depois levo um susto com as

cortinas sendo escancaradas, trazendo muita claridade para o cômodo,


quase me cegando.

Entre os raios de sol vejo o rosto da mujer mais linda e sangue quente
que conheço, a única que presta de verdade para mim nesse mundo.

— Mas que pouca vergonha é essa, Alejandro Gonzales? — Dona

Carmem leva as mãos na cintura, suas narinas estão infladas.

Mi madre é elegante e muito jovem para a sua idade, e no é diferente


com mi padre. Antônio Gonzalez parece um galã de novela mexicana,

fazem um casal lindo juntos. Quando meu irmão e yo saímos com eles, as

pessoas pensam que somos irmãos e no padres e filhos.


— Buenos dias, mamá! O que queres tão cedo aqui? — Bocejo
preguiçosamente.

— Buenos dias coisa nenhuma, Cabrón! Tenho um recado importante

para você — grita e a minha cabeça lateja, quando está nervosa é mais

perigosa do que uma manada de touros bravos em dia de tourada.

— Ok, madre, por favor, fala logo e me deixe voltar a dormir. —


Bocejo.

— Yo vou contar até cinco para você sair dessa cama, Alejandro

Gonzales! — ameaça o furacão espanhol com o dedo apontado para o meu

rosto.

Nem me abalo. Viro para o outro lado, lhe ofereço as costas e volto a
dormir. Mi madre no fala mais nada, ouço o barulho dos seus saltos indo em

direção à saída do quarto. Fecho os olhos certo de que ela desistiu de me

atormentar e foi embora, mais tarde ligo para ela e peço desculpas. Porém, a

mujer volta com uma jarra d’água fria e joga sobre nós na cama. Minhas

acompanhantes acordam zangadas, ali vi que a confusão está armada.

— Quem é essa maluca, Gonzales? — resmunga a morena com uma


voz fina irritante, quase perdi o tesão com os gritos agudos dela ontem, tive

que cobrir a sua boca enquanto metia nela sem dó.


— Yo vou te mostrar quem é a maluca, sua putana. — Pronto, o show

vai começar.

Como diz mi padre, agora dona Carmem vai se transformar na própria

encarnação del diablo.

— Sem violência, madre, no quero que os meus vizinhos chamem a


polícia.

— Para o inferno com os seus vizinhos, yo estou farta de você e essas

putas de rua que você come.

Arranca a loira nua da minha cama pelo cabelo e arrasta para fora do
quarto, as outras duas não esperam a vez delas. Juntam as suas roupas e as
da amiga espalhadas pelo chão e vão embora correndo.

— Se quiser outra rodada dessa, me liga, espanhol! — Ouço o grito

de uma delas depois de passar pela porta.

— Vai sonhando, mujer! Figurinha repetida no entra no meu álbum.


— Fecho os olhos e aproveito os meus últimos segundos até que o furacão
espanhol volte, mamá anda pegando no meu pé mais do que o de costume.

Acho que é porque o enforcamento, quero dizer, o casamento do meu

irmão do meio, Luiz Fernando, está chegando e na cabeça dela é inaceitável


o fato de ele ser mais novo do que yo e estar caindo na bobeira de se casar
com aquela insuportável da Camila. No suporto a minha cunhada, Dios
Santo! Ela vive pegando no meu pé porque me acha um cafajeste e trato as

mulheres como lixo e no sei mais o que, ela é feminista ao extremo. Ou


seja, chata pra caralho.

— Quando vai arrumar uma mujer decente como a noiva do seu

irmão e me dar netos? — dramatiza, sabia que ia começar com a mesma


ladainha de sempre.

— Nunca, dona Carmem Gonzales! Yo no presto, e a senhora sabe


bem disso.

— E como yo sei, Alejandro, tanto que passou a noche na farra e nem

atendeu o celular. Foi preciso a esposa do seu amigo, Yudiana, entrar em


contato comigo e deixar recado. — Me enche de tapas.

— Que aviso, mamá? — Sento na cama e tento me esquivar dos seus


golpes.

— Que infelizmente o filho da sua funcionária, Daniele Mendonça,

faleceu ontem à noite. Acho que deveríamos ir ao velório e dar os pêsames


para a família. — Tira um lenço da bolsa e enxuga as lágrimas, é impossível
no se comover quando o assunto é a morte de uma criança.

Yo tenho uma irmãzinha de oito anos, a Maria Guadalupe. Ela foi a

melhor coisa que poderia ter acontecido na nossa família. A notícia da sua
chegada foi inesperada, meu irmão e yo já éramos homens feitos. Nosso
padre desmaiou quando soube, se achava velho demais para encarar a
paternidade novamente, no auge dos cinquenta anos. Mas logo se
acostumou com a ideia de termos um bebê em casa, quando soubemos que

seria uma menina, então, surtamos de tanta alegria. Hoje Lupita é a criança
mais feliz e mimada do mundo, no consigo nem imaginar o que seríamos de

nós se a perdêssemos.

Por isso yo preciso dar o meu apoio à Daniele, até porque, além de

ótima pessoa e mãe, tem se mostrado uma profissional extremamente


competente na minha empresa.

— Yo fico pronto em cinco minutos, dona Carmem. Obrigado por vir

aqui pessoalmente dar o recado e me acompanhar no velório.

— No precisa agradecer, filho. — Beija o meu rosto.

Levanto às pressas com o lençol branco enrolado na cintura e tomo

uma ducha rápida, visto calça e camisa social pretas e calço os sapatos na
velocidade da luz. Enquanto procuro as chaves do carro, penteio o cabelo

com auxílio dos dedos, deslizando-os entre os fios medianos ainda


molhados; preciso de um corte urgente. Mi madre e yo saímos para o
velório, tive que pôr óculos escuros para disfarçar a ressaca que é da brava.

— Por que ficou sério de repente, mi amor?


— Yo havia esquecido o quanto odeio funerais — bufo ao chegarmos
na igreja onde o corpo do garoto está sendo velado.

— Tudo bem, querido, tu madre está aqui com você. — Beija o meu
rosto com carinho.

Saímos do carro e ela agarra o meu braço, entramos na igreja lado a

lado. Tiro os óculos escuros e penduro na gola da camisa. Sinto uma dor no
coração quando vejo o pequeno caixão branco próximo ao altar, os pais do

garoto estão sentados próximos do filho, de mãos dadas e uma expressão


triste de cortar até um corazón frio como o meu.

— Vem, Gonzales, vamos cumprimentar a Daniele e o marido dela.

— Assinto.

Caminhamos pelo corredor do meio na direção do casal, a igreja está

lotada. No banco da frente estão os amigos mais próximos da Dani e o


marido; aceno para o meu melhor amigo, o Juiz Thompson, e a esposa

Yudiana, sentados na ponta à direita.

— Yo sinto muito pela sua perda, Daniele — digo sem jeito, em


momentos como este a gente nunca sabe ao certo quais palavras usar.

Olho para baixo, sobre o ombro de Daniele, e vejo o rosto daquele


anjinho no caixão, vestido com a fantasia do Capitão América. Sua

expresión é tão serena, quase um leve sorriso. Está em paz agora. Pelo
pouco que ouvi sobre esse garoto, ele foi um guerreiro, lutou até o último

segundo. Mas no final, infelizmente, o câncer levou a melhor.

— Muito obrigada por ter vindo, chefe, e por tudo que tem feito por

nós, Léo e eu seremos eternamente gratos. — Ela e o marido trocam olhares


tristes, em seguida ficam de pé para nos cumprimentar.

Daniele me abraça com lágrimas nos olhos. Dios! Deve ser horrível a

perda de um filho.

— Nós no somos apenas um grupo na minha empresa, Daniele.

Somos uma família e devemos ajudar um ao outro sempre. Por isso, tire o
tempo que precisar, já disse que no será descontado um centavo do seu

salário. — Ela sorri com os olhos cheios de lágrimas.

Me sinto mal, queria poder fazer mais do que isso pelos meus
funcionários em momentos como este. Mas tem dor que talvez nem o tempo

seja capaz de curar.

— E se vocês precisarem de alguém para conversar, podem aparecer

na minha casa sempre que quiserem. Serão muito bem-vindos. — Mamá

abraça os dois ao mesmo tempo, ela está se segurando para no chorar na

frente deles.

— Muito obrigada, senhora, é muita gentileza da sua parte. Temos

recebido tanto carinho de todos nesse momento difícil, nosso menino era
muito amado — o pai do garoto fala com a voz embargada, visivelmente

arrasado.

— Está tudo bem, meu amor, nosso menino está em um lugar melhor
agora. — O casal se abraça em lágrimas, mi madre e yo nos entreolhamos e

resolvemos dar privacidade aos pais nesse momento delicado.

— Vem, filho, tem dois lugares vazios ali. — Me puxa para o banco,

realmente sinto muito pela Daniele e o marido, mas o meu plano é ir

embora, realmente no me sinto bem em velórios.

Fora que nessa igreja está fazendo um calor horroroso, yo estou quase

derretendo aqui dentro.

— Só vamos ficar cinco minutos, mamá, nem um segundo a mais. —

Me inclino e cochicho no ouvido dela, que apenas dá de ombros.

— Nós vamos ficar pelo menos para a missa, então vê se no me


amole, menino. — Dá um tapa no meu braço, yo apenas reviro os olhos e

no discuto, já abusei bastante da sua paciência hoje.

Coloco os meus óculos escuros de volta e encosto as costas no banco,

pego o meu celular e aproveito para olhar os meus e-mails. A última vez

que estive em um velório foi no do meu avô, na Espanha. Yo só tinha


dezoito anos na época, lembro de chorar por dois dias seguidos. O amava

demais, uma das melhores pessoas que passaram por esse mundo.
— Nossa, que mujer hermosa! — elogia mi madre com bastante

ênfase olhando para a entrada da igreja, fico curioso.

É muito difícil Carmem Gonzales elogiar alguém sem um forte

motivo para isso, até mesmo quando se refere aos filhos. Obviamente ergo a
cabeça para ver a tal mujer hermosa, sei que aqui no é um lugar para

paquerar e peço perdão a Dios por isso, mas um bom investidor como yo

sempre vê boas oportunidades nos lugares e situações mais inusitados.

— No pode ser! — Mi corazón perde uma batida quando olho na

direção da porta.

Então yo a vejo, Solange. Mi Cariño. Linda como um anjo negro

vindo a passos lentos e elegantes pelo corredor do meio da igreja, em um

vestido preto comprido com mangas três quartos, deixando à mostra o

antebraço coberto por tatuagens. Suas tranças longas estão em um coque


alto e volumoso, seus brincos grandes de argola prateadas se movem

conforme ela caminha. Em frente ao corpo, segura uma rosa vermelha entre

as mãos.

Os raios de sol que invadem a igreja através dos vidros coloridos do

teto que formam desenhos bíblicos em uma espécie de mosaico pairam

sobre Solange, a coisa mais linda que yo com certeza já vi na minha vida,
parece até que estou diante de algo enviado direto do céu.
Para mim…

— Você está se sentindo bem, querido? Está pálido — pergunta

mamá, apenas assinto, no consigo tirar os olhos da Solange.

Ela caminha até a frente do altar e abraça Daniele por um longo

tempo, quase posso sentir sua dor daqui. No sabia que as duas eram tão
íntimas. Lágrimas dolorosas deslizam pelo seu lindo rosto. É estranho dizer,

mas yo queria poder ir lá e enxugar cada uma delas. Depois de dar os

pêsames aos pais do garoto, Solange se inclina e beija o rosto do corpo

frágil e sem vida dentro do caixão branco e diz algumas palavras ao afagar
os seus cabelos castanho-claros quase loiros com carinho e ternura, como se

ele pudesse de fato ouvi-la.

Fico tenso quando Solange se despede e se vira para ir embora, mal

chegou e já está indo. Queria pedir para que ficasse mais, mas no podia. No

depois do jeito horrível que a tratei quando a vi há vários meses em uma

festa na casa do meu amigo John e fiquei fazendo comentários maldosos,


estava muito recente a incrível noche que passamos juntos e yo ainda a

desejava feito um louco e no consegui manter a língua dentro da boca. Hoje

me sinto um idiota por conta disso.

Abaixo a cabeça porque no quero que a Sol me veja ao passar por

mim. Yo a observo indo embora para longe de mim mais uma vez pelo
mesmo caminho por onde chegou, levando mi corazón com ela. No adianta

negar, essa mujer mexe com todas as minhas estruturas de um jeito que no
tem explicación. Pensei que estava começando a superar a sua passagem

pela minha vida, mas foi só vê-la outra vez que minha obsessão por ela

voltou mais forte do que nunca.

Mas no existe mais futuro para nós. Nunca existiu. No após ela pedir

dinheiro para dormir comigo e depois desaparecer da minha vida, yo só fui

um bom negócio para Solange e provavelmente nunca a verei novamente.


Hoje foi só um acaso do destino.

O acaso mais lindo que já aconteceu na minha vida.

Depois que fomos embora do velório do garoto yo deixei mamá em

casa, mas no tive cabeça para ir para o trabalho depois de ver a Solange na
igreja. Me sentia estranho e só conseguia pensar nela; por mais que tente

focar em outra coisa é totalmente em vão. É uma sensação sufocante

demais, preciso desabafar com alguém ou vou morrer, e só existe uma


pessoa no mundo que confio para isso.

Dirijo até o gabinete do Juiz Thompson, ele é o meu melhor amigo e

sempre foi um bom ouvinte e conselheiro.


— Boa tarde, Gonzales, que alegria o senhor por aqui. Se veio ver o
Juiz Thompson, ele está no gabinete dele — sou recepcionado pela mais

antiga funcionária do fórum.

Marta é uma senhora muito amorosa de sessenta e poucos anos que

todos aqui amam muito e respeitam como se fosse a própria mãe.

Quando yo trabalhava neste fórum como assessor do Juiz Thompson,

ela sempre trazia para mim um pedaço de bolo, doces ou algum outro mimo

que fez no dia anterior e levava na minha sala.

— Yo pensei que nem se lembrava mais de mim depois que começou

a trabalhar para o novo assessor do Thompson, Marta. — Beijo o topo da

sua cabeça, ela me abraça com carinho.

— Não é assessor, muchacho. É assessora. Mas o que tem de bonita,

tem o dobro de antipática. — Faz uma careta engraçada.

— Bonita, é? — Arqueio a sobrancelha com segundas intenções.

— Toma jeito, menino, quando vai arrumar uma namorada e sossegar

o facho? — Dá um tapa no meu braço.

— Nunca, Martinha, yo nasci para ser de todas. Acho bom a senhora


e mi madre se conformarem com isso. — Beijo o seu rosto e saio rindo.

Entro no gabinete do John sem bater, já sou de casa e no preciso


seguir essas formalidades. Encontro mi amigo sentado na sua cadeira lendo
alguns documentos, ele leva um susto quando me vê parado na sua frente.

— Yo preciso de um conselho, John. — Começo a andar de um lado


para o outro com as mãos na cabeça.

— Que surpresa você por aqui, Gonzales. Mas eu estou com…

— No quero saber se está ocupado, John, yo preciso de você agora —


o interrompo.

— Mas, Gonzales, me deixa falar uma coisa antes — insiste.

— Quem vai falar sou yo, cala a boca e escuta porque preciso

desabafar com alguém ou vou enlouquecer — falo sem paciência e ele


assente.

— Manda bala então, sou todo ouvidos. — Joga as costas na cadeira

com as mãos juntas frente ao corpo, parece relaxado.

— Lembra daquela mujer que conheci numa boate já faz um tempo e


no consegui mais tirar ela da cabeça? — Pela expressão de confusão dele,

acho que no faz ideia do que estou falando.

— Seja mais específico, Gonzales, você deve conhecer pelo menos


noventa por cento das mulheres em cada festa que vai. — Puxa o ar
profundamente.

— Estou falando da única que me rejeitou em toda a minha vida,


porra! — esbravejo com o meu ego ferido.
A verdade é que, quanto mais a Sol me rejeita, mais obcecado yo fico
por ela.

— Agora lembrei, está falando daquela que só sente atração por

homens da mesma etnia que a dela?

— Essa diaba mesmo, a reencontrei depois de um ano e yo no estou


sabendo lidar com o que estou sentindo desde então. — Deslizo as mãos

pelo rosto, impaciente.

— Eu estou vendo, Gonzales. Entrou aqui agindo feito um maluco. Já


cogitou a possibilidade de estar apaixonado por ela? — pergunta preciso

como o corte de uma navalha afiada.

Solto uma gargalhada na cara do John, ele só pode estar de


brincadeira comigo.

— Yo no me apaixono nunca, yo fodo gostoso e depois passo para a

próxima. Sempre foi assim e deu muito certo.

— Até agora, espanhol — ele constata. – Não lembro de nenhuma


mulher mexer assim com você antes, e eu te conheço quase a minha vida

toda – reforça.

— Assim você no está me ajudando, John. Essa desgraçada me


enfeitiçou, era para yo ter me livrado dela na manhã seguinte da noche que

dormimos juntos. Só que já se passou um ano e ainda no consigo parar de


pensar nessa mujer dos infernos. — Puxo os cabelos de olhos fechados a
beira da insanidade.

— Por que não me contou que vocês transaram? Que decepção! Eu


pensei que essa moça fosse mesmo diferente das outras e resistiria ao seu
charme. — Balança a cabeça, decepcionado.

Yo queria ter contado para o John antes, mas no tive coragem de dizer
para o meu melhor amigo que paguei para dormir com uma mujer. Mas, já
que estou na merda mesmo, vou jogar todas as cartas sobre a mesa.

— Vai ficar ainda mais decepcionado em saber que ela me pediu dez

mil reais para passar uma noche comigo, e o idiota aqui pagou e no me
arrependo. Foi o melhor sexo da minha vida. — O queixo de John cai bem

na minha frente.

— Sério mesmo isso? O maior garanhão do Rio de Janeiro, Alejandro


Gonzales, pagou todo esse dinheiro para dormir com uma mulher! — O
gabinete é tomado por gargalhadas exageradamente altas, mas no são do

John.

Quando me viro para olhar para trás, vejo o promotor Pedro no fundo
da sala, sentado em uma poltrona que fica no canto mais escondido; o

boludo de mierda rola de rir na minha cara, chega a sair lágrimas no canto
dos olhos. John não aguenta e começa a rir também. Pronto, agora yo virei

uma piada para os dois.

— Por que no me disse que no estava sozinho, John? Mas que porra,
cara. — Trinco a mandíbula, cheguei tão ansioso que nem percebi que ele

tinha visita.

— Eu tentei te falar que você invadiu uma reunião minha com o


promotor Pedro sobre o assassino em série de prostitutas que está à solta,

espanhol, mas você não me deixou abrir a boca e já foi entornando tudo em
cima de mim. — Ergue as mãos como se estivesse rendido, mas continua
rindo.

— Pode ficar tranquilo, cara, seu segredo da xoxota de ouro está bem

guardado comigo. — Pedro joga a cabeça para trás e coloca as mãos sobre a
barriga, rindo mais ainda.

— Olha quem está falando, Pedro. O cara que foi seduzido por uma

ladrazinha colombiana e amanheceu no outro dia em um quarto de hotel em


Tijuana só com a cueca no corpo. — John corta o barato do Pedro e ele
fecha a cara, agora é a minha vez de rir dele.

Yo sabia que o promotor Pedro tinha ficado de quatro pela minha


prima em segundo grau, Esmeralda, quando fomos para a Colômbia.
Conheço bem a peça, é uma mulher privilegiada com a beleza fora do
comum, mas no vale o ar que respira, assim como o seu irmão mais velho,
Herus. Um gângster colombiano que é conhecido em toda América Latina
como o rei do crime. Ninguém ousa bater de frente com esse cara, nem

mesmo a polícia.

— Yo te avisei, Pedro, que a Esmeralda era chave de cadeia, no


avisei? — Dou de ombros.

— É, você avisou, espanhol, mas não disse nada sobre ela roubar até

as minhas calças. Aquela filha de uma puta do caralho! — resmunga.

— Desculpa, Pedro, mas yo no consigo parar de ver a cena de você


correndo só de cueca pelas ruas de Tijuana. — Me jogo no sofá ao seu lado,

rindo da sua cara de trouxa.

— Não vem virar o jogo para o meu lado, Gonzales, agora que
começou pode contar tudo sobre essa mulher que está tirando o seu sono, eu

estou curioso para saber mais sobre a xoxota de ouro — propõe Pedro em
tom divertido.

Yo resolvo contar toda a história para os dois detalhadamente desde o

começo, afinal, três cabeças pensam melhor que uma. Os dois me escutam
atentos. Detalhe por detalhe.

— Deixa eu ver se entendi, hoje foi a primeira vez que você viu a

Solange depois de um ano, quando você pagou dez mil reais para dormir
com ela, e agora não consegue parar de pensar nela? — pergunta John meio
confuso.

A essa altura o fórum já fechou e todos os outros funcionários foram

embora, sobraram apenas John, Pedro e yo jogados no carpete vermelho do


chão do gabinete, embriagados com uma garrafa de bebida que no faço
ideia de onde veio.

— Sim, John, exatamente. — Sorvo um gole do uísque direto da


garrafa e passo para o Pedro.

— A resposta é simples para todas as suas dúvidas, mi amigo. Você

ama essa muchacha, no adianta mais mentir para si mesmo – John imita o
meu sotaque, mesmo sabendo que odeio quando faz isso.

— Yo no amo essa golpista coisa nenhuma, só tenho uma forte atração

por ela. – Tomo a garrafa da mão do Pedro de volta e viro quase todo o
líquido. – Algo quase irresistível – concluo em um ranger de dentes.

— Está mais para doentio, não acha, espanhol?

— No enche, Pedro. – Dou uma cotovelada no babaca que no

consegue parar de rir da minha cara.

— Mas, falando sério, Gonzales, essa história está muito estranha.


Mulheres golpistas não dão aulas para criancinhas, até porque se fosse uma

interesseira de verdade, louco por ela do jeito que você está ela teria
arrancado até as suas calças. — Uma ruga brilha no meio da testa do
promotor, yo já tinha ouvido que ele é bom em analisar casos complexos e

por isso anda obcecado pelo tal assassino em série de prostitutas que vem
colocando terror no Rio de Janeiro.

— Se Solange no é uma interesseira, Pedro, por que ela pediu grana

para dormir comigo? Independente da quantia, dinheiro é dinheiro. —


Alinho os ombros em uma postura defensiva.

— Porque talvez ela realmente precisasse da grana, espanhol, e não

tinha mais alternativa. Já parou de julgar a moça por um segundo e pensou


nisso?

— Onde você quer chegar com isso, John?

— Que ela dormiu com você por desespero, Gonzales. Não interesse

— Pedro se adianta e responde à minha pergunta, acertando o meu corazón


em cheio.

Ou melhor, na minha virilidade. Yo posso suportar a Solange ter

dormido comigo por interesse, mas no por desespero.

— Então quer dizer que a Solange virou a pobre coitada da história


agora? No puedo crer. — Sorrio irônico.

— Pedro e eu não estamos defendendo ninguém, irmão, só tenta ouvir


o lado da moça antes de tirar qualquer conclusão. Medo de descobrir a
verdade nunca resolveu problema nenhum. — Como sempre, John é

coerente e está coberto de razão.

Mas sou orgulhoso demais para admitir.

— Pois ambos estão errados sobre essa mujer, ela no presta. Foi um

erro pedir conselho para vocês, dois idiotas bêbados. — Levanto


cambaleando, mais bêbado que os dois juntos.

— Calma, Gonzales, não pode ir embora dirigindo nesse estado –


John tenta me convencer a ficar.

— Até porque fugir do problema não resolve. No seu lugar, depois


que a cachaça passar, procuraria a Solange e ouviria o lado dela. Enquanto
não resolver isso com ela nunca vai ter paz para seguir em frente – discursa

Pedro com a voz arrastada, um bêbado dando conselho a outro.

— Encontrá-la onde? No sei onde a Solange mora, ela bloqueou o


meu número depois daquela noche. Provavelmente nunca mais verei essa

golpista outra vez, pertencemos a mundos totalmente diferentes que nunca


deveriam ter se cruzado. – Vou embora cuspindo fogo pelas ventas.

— Cuidado, Gonzales, porque quando é para acontecer o destino dá

um jeito de mexer os pauzinhos dele. – Ouço a voz do John bater nas


minhas costas e sinto afundar na carne como uma espada afiada, mas
continuo andando mesmo ferido e bato a porta do seu gabinete com força ao
sair.

Preciso tirar a Solange da minha cabeça de uma vez por todas, ela é a

única mujer capaz de me fazer perder o controle e isso no é nada bom. Só a


vi por um instante hoje e já foi o suficiente para me fazer perder a cabeça e
yo odeio me sentir dessa forma. Vulnerável. Por isso vou seguir com a

minha vida. Diferente do que o idiota do John disse, no acredito nessas


aneiras sobre artimanhas do destino.

 
Solange

— Ei, filha, eu sinto tanto pelo seu aluno. — Minha mãe para de

conferir o estoque do bar ao me ver chegar do velório, ela imediatamente


vem e me acalenta dentro dos seus braços.

— Não existe coisa pior para um professor do que perder um aluno,

estou arrasada — suspiro melancólica.

Sou apaixonada pelo meu trabalho, mas infelizmente Marcelinho não


é o primeiro aluno que já perdi e nem será o último. Mesmo sabendo que
ele tinha câncer e o seu caso era terminal e já estava internado há alguns
dias, ainda assim fiquei em estado de choque quando recebi a notícia da sua

morte. Tanto que não consegui ficar no velório mais de dez minutos, só
passei na igreja para me despedir, precisava dizer o quanto o amava e que
não me esqueceria dele.

— Calma, filhota, a vida é assim mesmo. Às vezes as pessoas vão

cedo demais, como no caso do Marcelinho e do seu pai. — Beija o topo da


minha cabeça, afetuosa, depois olha para o quadro enorme que ela pintou

do marido e pendurou bem no meio do salão do bar para que todos que
passem por ali possam ver.
Minha mãe não fala muito sobre a morte do meu pai, foi uma tragédia

que pegou todo mundo de surpresa. Ele ficou até mais tarde no bar
trabalhando e quando estava voltando para a casa foi atropelado por um

motorista bêbado que invadiu a calçada em alta velocidade e depois fugiu

sem prestar socorro. Um filhinho de papai em um carro importado que tinha


acabado de sair de uma festa, caindo de bêbado. Só que o pai do

desgraçado, um senador famoso no Rio de Janeiro, pagou a fiança alta e o

assassino aguarda o julgamento em liberdade até hoje. Anda por aí com


uma vida confortável, mesmo depois de destruir uma família inteira.

Preto e pobre não tem justiça nesse país, parado é suspeito e

correndo é culpado.

Eu lembro perfeitamente quando o policial bateu na porta da nossa


casa para dar a notícia da morte do meu pai, dava para ouvir os gritos da

minha mãe a várias quadras daqui. Aquele foi, com certeza, o dia mais triste

da minha vida. Rafael Louis não foi ao velório e ficou um mês inteiro sem

falar uma palavra.

— Mas no caso do Marcelo ele era só um garotinho, mãe, viveu tão


pouco. — Puxo um banquinho e me sento com os cotovelos fincados sobre

o balcão e a cabeça enfiada nas mãos tentando segurar o choro.


— Não fica assim, Sol. Tenho certeza de que o seu aluno está em um
lugar melhor agora. – Me consola da melhor maneira que pode.

— A senhora tem razão, mãe, preciso me conformar e deixar o

Marcelinho ir. Foi uma honra fazer parte da vida daquele anjinho mesmo

que por tão pouco tempo. — Meus olhos estão cheios de lágrimas, mas com

o coração em paz depois de conversar com a minha mãe.

Enfio a mão no bolso e sinto um objeto estranho dentro dele, só então

me recordo da bola dourada presa a uma correntinha que achei no chão

próximo a um carro preto estacionado na entrada da igreja. Olhei para todos

os lados para ver se encontrava o dono, mas não vi ninguém. Então apenas

guardei sem conferir ao certo o que era.

— Nossa, filha, que relógio de bolso lindo! Onde conseguiu? — Pega


da minha mão e vira a peça de um lado para o outro em uma análise

minuciosa, eu nem sabia que era um relógio. — Será que é de ouro? —

Morde a peça como se fosse uma maçã de amostra na feira.

— Não faz isso, mãe, pode estragar o relógio — me zango com ela,

mas a danada finge que não escuta.

— Olha, Solange, nem arranhou. É ouro sim! E do bom. Deve valer

uma fortuna. – Abriu a bola dourada. – Viu que ele tem uma foto antiga de
um senhor dentro e é todo cravejado de pedras? Com certeza são diamantes,

filha, estou te dizendo — devaneia a coroa riponga.

— Muita calma nessa hora, dona avaliadora de joias. — Pego o

relógio de bolso da sua mão para olhar a foto do tal senhor, é muito antiga
porque a cor é um preto e branco desbotado.

O senhor deveria ter uns cinquenta e poucos anos na época que tirou a

foto, mas é bem-afeiçoado, com uma aparência jovial. Alto e com o físico
em dia, nada de barriguinha de cerveja. A postura é ereta no estilo militar,

mãos juntas atrás do corpo e o cabelo arrumado todo jogado para trás.
Barba farta e olhos penetrantes capazes de causar arrepios. Só pelas roupas
que traja de alta costura, camisa branca, gravata e calça com as pernas

curtas e suspensório, dá para saber que era alguém endinheirado. Chutando


por alto, acho que era um fazendeiro rico, no mínimo.

— Estou falando sério, menina. Temos que achar o dono logo, seja

quem for, o pobre coitado deve estar desesperado atrás do seu relógio de
ouro. — Bate as pestanas longas vagarosamente, preocupada com um
estranho.

Que não faz ideia de que o seu relógio “supostamente de ouro e

cravejado de diamantes” está num bar no coração do Madureira nas mãos


de duas hippies malucas. Nem em sonho minha mãe cogitaria a
possibilidade de tentarmos vender o relógio e descolar uma grana fácil, é

honesta demais para isso. Por esse motivo a amo tanto e morro de medo de
ela descobrir que eu escolhi o caminho mais fácil quando estávamos em

apuros, acho que morreria de desgosto.

— Não se preocupe, mãe, eu farei de tudo para devolver o relógio


pessoalmente nas mãos do dono. — Jogo o relógio dentro da minha bolsa.

— Ótimo, filha, foi assim que eu te ensinei. – Bate a mão na minha,


satisfeita.

Depois disso esquecemos dessa história de relógio e arregaçamos as

mangas e literalmente colocamos a mão na massa na cozinha, preparando


algumas centenas de pastéis veganos para servir aos clientes, estamos mais
que prontas para virar mais uma noite trabalhando no bar. Só que

infelizmente o movimento não está sendo muito bom. Mesmo assim faço
meu show ao vivo. Canto algumas faixas da banda Natiruts e os clientes

vibram, modéstia à parte tenho uma voz bonita.

Eu amo cantar, quando estou tocando o meu violão fecho os olhos e


me sinto como se estivesse sendo transportada para outra dimensão. Sem
dor. Culpa. Ou qualquer sentimento ruim, me sinto normal de novo, mesmo

que só por aquele instante.


— Você arrasou essa noite, amiga! – Eloísa pisca para mim depois
que desço do palco após o show, ela está servindo os pedidos da mesa cinco
com um grupo de rapazes bem animados.

— Obrigada, Elô. – Jogo uma piscadela para ela.

Vou para a cozinha pegar o meu avental para ajudar as meninas a

atender os clientes, aceno para minha mãe grudada no fogão preparando os


pedidos dos clientes. Ela tinha um ajudante na cozinha que é estudante de
gastronomia, mas com o corte de despesas no bar tivemos que dispensar o

Tiago também. Então agora a coitada corre todas as noites para dar conta de
tudo, ainda bem que deixamos os alimentos já pré-prontos, então é rápido

para montar os pratos.

— Um dos rapazes da mesa cinco me pediu para te parabenizar pelo

show, ele te achou a maior gata e me pediu o seu telefone. Posso dar, né,
Sol? Eu não gosto da fruta, mas o cara é um gostoso da porra. – Eloísa

chega animada na cozinha com uma bandeja vazia pendurada debaixo do


braço.

— Eu estou de boa, amiga, diga a ele que fico feliz que tenha gostado
do meu show, mas não estou disponível no momento. – Me enrolo toda para

amarrar as tiras do avental atrás do pescoço, na verdade, só quero fingir


desinteresse na conversa para que não se estenda muito.
Meu desejo sexual depois daquela maldita noite com o Gonzales se
resume a menos que nada, nunca mais deixei outro homem me tocar. Me
sinto suja. Não importa quantos banhos eu tome, essa sensação nunca passa

e talvez tenha que viver com ela para sempre.

— Você não está disponível já faz mais de um ano, Sol. – Me ajuda


com as tiras do avental e dá um nó forte. – Sei que a morte do seu pai te

abalou muito, tem até feito terapia, mas precisa superar isso e seguir em
frente, amiga.

Me abraça rapidamente e volta para o salão decepcionada, se a Elô

soubesse o real motivo da minha depressão…

— A Eloísa tem razão, filha, desde que o seu pai morreu você se
fechou para o mundo. – Mamãe me entrega uma bandeja com uma bela

porção de mini coxinhas de queijo fritas para a mesa dois, estão com um

aroma ótimo.

— Eu poderia dizer o mesmo sobre a senhora, dona Cátia. — Ergui a

sobrancelha.

— Mas o seu pai era a minha alma gêmea, Solange, você ainda

precisa conhecer a sua e não vai conseguir isso dando fora nos caras que se

interessam por você. – Espreme minhas bochechas entre os dedos como se


eu ainda fosse criança, ela sempre faz isso não importa quem esteja perto.
— Talvez eu só não tenha uma alma gêmea e está tudo bem, mãe.

Romance nunca combinou comigo mesmo. – Dou de ombros e olho para a


bandeja de coxinhas, dando a entender que preciso ir logo antes que os

clientes comecem a reclamar.

— Ou talvez tenha acontecido alguma coisa além da morte do seu pai

que é o real motivo desse seu olhar triste, filha. Tem a ver com algum cara

que partiu seu coração? – Ajeita minhas tranças presas em um rabo de

cavalo.

— Para, mãe! Não tem nenhum cara. – Giro os olhos com

impaciência.

— Então me conta o que aconteceu, querida? Você anda tão diferente,

às vezes tenho a impressão de que não sei mais quem você é. Está distante e

fria, sendo que sempre foi o meu sol que tem o poder de aquecer o coração
das pessoas. – Analisa cada detalhe do meu rosto em busca de respostas

através das minhas feições, mas não encontra nada além de puro vazio.

— Eu sempre serei a sua Sol, dona Cátia, mas às vezes também serei

a minha própria lua. Cheia de fases. – Beijo o seu rosto e saio antes que

mais perguntas apareçam.

Assim a noite corre. Quando enfim chegamos em casa de madrugada

eu tomo um banho quente e desabo na cama, totalmente exausta. Essa vida


de trabalho duplo está acabando comigo. Com a morte do meu pai o serviço

dobrou no bar. Mal fecho os olhos e o meu despertador toca, levanto me

arrastando, daria tudo para poder dormir só mais cinco minutinhos. Mas não
posso, começa mais um dia de luta na minha vida.

Me arrumo para ir para o trabalho, mas não antes de tomar um café da

manhã reforçado junto com a minha mãe e o Rafael. Não temos uma casa
chique ou espaçosa, os móveis são da época que os meus pais se casaram.

Mas estão muito bem conservados. O local onde mais passamos tempo é na

cozinha, fazemos todas as refeições juntos, temos uma mesa de quatro


lugares de madeira e armários brancos embutidos na parede. Só o fogão que

é novo, do tipo industrial, minha mãe ama cozinhar e nós amamos comer

tudo o que ela faz. Gostamos de fartura.

— O seu cereal está gostoso, amorzinho? — Minha mãe sorri para o

Rafael.

— Está normal, mãe. — Dá de ombros indiferente.

Isso quer dizer que está bom, porque se não estivesse meu irmão

estaria fazendo um escândalo.

— Que bom, querido, meu café também não está nada mal. – Beija o

rosto do Rafael sentado ao seu lado, ele mais que depressa limpa a
bochecha com a manga da blusa para evitar ser contaminado por algumas

dúzias de milhares de germes salivais.

— O café está bom mesmo, mãe. — Levanto minha caneca preta com

o emblema do Batman, sorrindo, mas ela só me olha de espreita com um


sorriso amarelo.

Mamãe está assim comigo desde a nossa conversa ontem na cozinha

do bar, ela acha que estou escondendo alguma coisa dela, o que é de fato
verdade. Mas contar o que tanto me aflige está totalmente fora de questão,

por isso preciso convencê-la de que está tudo bem.

— Eu fiz uns pãezinhos de queijo porque sei que você adora,

Solange. – Levanta para pegar a bandeja no forno.

— Muito obrigada, mãe! Acabei de ganhar o meu dia só com isso. –


Sorrio para ela já com um plano em mente para tirar sua atenção de mim. –

Eu esqueci de contar, a senhora não sabe o que eu fiquei sabendo da filha da

Dirce.

Disse as palavrinhas mágicas, quem tem mãe fofoqueira em casa sabe

do que estou falando.

— Então conta logo, filha, porque já estou me coçando de tanta

curiosidade. – Arrasta a cadeira para perto da minha, aí a troca de fofoca

começa.
Finjo ser a Solange faladeira de antigamente, até faço piadas e

arranco risadas da minha mãe enquanto comemos. Terminado o café da

manhã, me despeço de uma mãe mais aliviada com um beijo no rosto. Na

cabeça dela, a sua Sol está voltando aos poucos.

— Vejo a senhora à tarde no bar, mãe. Tenha um bom dia!

— Você também, querida, eu te amo! – Me puxa para um abraço. –

Amo você e esse rapazinho aqui. – Puxa o meu irmão à força para fazer

parte do abraço, ele se debate e se contorce de todo jeito, mas não consegue

escapar dela dessa vez.

Como Rafael estuda na escola que eu trabalho, vamos juntos no

Chevette amarelo da dona Cátia caindo aos pedaços, mas que nunca me
deixou na mão. Como precisei vender a minha moto que tanto amava, ela

me empresta o carro dela sempre que preciso. Chegamos na escola e o meu

irmão praticamente pula do veículo e vai direto na direção da sua sala,

quase não consegui acompanhá-lo.

— Tchau, querido, tenha uma boa aula. — Sorrio para o meu irmão

ao deixá-lo na porta da sala de aula, ele não retribui, como de costume.

Mesmo Rafael já sendo um rapazinho, faço questão de deixá-lo e

buscá-lo na porta da sala de aula todos os dias.


— Obrigado, Solange, vejo você ao meio-dia. — Se vira e entra,

conto mentalmente… 1… 2… 3, então ele completa: — Em ponto. —


Balanço a cabeça rindo.

— Com certeza, Rafael Louis — penso alto rindo.

Encontro o professor Roberto no corredor, ele me dá um sorriso

daqueles que me faz pensar que ganhou o seu dia só em me ver.

— Bom dia, professora Solange! – cumprimenta o negro gato ao

passar por mim, nossos braços se roçam.

— Bom dia, professor Roberto – cumprimento tímida, aperto o


material de aula contra o peito.

Ele sempre me deixa dessa forma, toda desconcertada.

— Animada para a reunião dos professores hoje à noite?

— Não muito, mas eu vou, e você?

— Claro que eu vou, vejo você lá. – Pisca para mim e vai dar a sua

aula, eu quase erro a porta da minha sala.

Ali tive certeza de que o Roberto está flertando comigo, isso faz a

minha autoestima dar um salto. Talvez minha mãe estivesse certa e eu

devesse parar de me fechar para o mundo, sou jovem e cheia de vida e


mereço ser feliz. Inicio a minha aula toda animadinha pensando nisso, mas,

assim que começo a passar matéria no quadro, alguém bate na porta.


— Amiga, você tem uma caixa de giz para me emprestar? O meu
acabou e não achei nenhuma na sala dos professores. – Tessiane joga o

cabelo cacheado para trás e sorri com o seu bom humor matinal de sempre,

ela é a professora do quarto ano.

Além de colega de trabalho, Tess é a minha melhor amiga desde que

comecei a lecionar nessa escola cinco anos atrás. Essa mulher é uma das
pessoas mais bondosas, inteligentes e amorosas que conheço no mundo.

Fazemos tudo juntas e minha família meio que a adotou, já que ela é do

interior de Minas Gerais, só se mudou para o Rio de Janeiro em busca de

melhores oportunidades de trabalho. Meus pais a amaram logo de cara e a


trataram como sua filha também, por isso, quando meu pai morreu, minha

amiga sofreu tanto quanto eu.

— Tenho sim, Tess, sempre trago uma caixinha extra na minha

mochila. – Vou buscar, quando volto vejo minha amiga paralisada no vão da
porta, olhando fixamente para o celular tocando na sua mão.

— Não vai atender, mocreia? – pergunto e ela dá um sobressalto

como se tivesse levado um susto com a minha chegada.

— Não! Foi engano. – Enfia o celular no bolso da jaqueta jeans. –


Muito obrigada pela caixa de giz, amanhã mesmo te devolvo. – Me abraça
forte demais para ser só gratidão por um favor tão simples, é como se
precisasse disso nesse momento.

— Me contaria se tivesse algo errado, não é? – pergunto preocupada.

— Claro que sim, Sol. Estou ótima, dá só uma olhadinha. – Dá uma

volta fazendo uma dança gozada.

Fora que, além de engraçada, a mulher é linda! Só que não anda mais
toda arrumada como antes, desistiu da academia e passa a maior parte do

tempo em casa vendo programas de TV estúpidos. Perdeu a graça de curtir


a vida depois de passar por um momento sombrio na sua vida, que deixou
marcas nela para sempre.

— Espero que continue assim, amiga, você merece toda felicidade


desse mundo depois de tudo o que passou.

— Todas nós merecemos ser felizes, Solzita. – Bate a mão na minha.


– Mas agora preciso voltar para as minhas pestinhas, pedi para a tia da

limpeza ficar de olho neles para vir aqui. – Sorri acenando para os meus
alunos antes de ir embora cantarolando pelo corredor, espero que ela tenha

dito a verdade quando disse que tudo está bem.

Continuo com a minha aula. No horário do intervalo Tess e eu


almoçamos juntas e combinamos de beber uma breja lá no bar depois da
reunião de professores hoje à noite. Faz duas semanas que ela prometeu ir
lá visitar a minha mãe, mas nunca sobra tempo. Quando a noite chega
começo a me arrumar, faz muito tempo que não fico animada para sair e
acho que tem a ver com um tal professor bonitão do quinto ano.

Me visto como se estivesse indo para uma festa, escolho uma blusa
branca justa e jogo um colete de couro marrom em cima para dar um
charme. Completo o look com minha saia longa florida favorita, ela tem

uma fenda lateral que mostra as cordas da sandália caramelo de salto baixo
que vão até o joelho. Deixo as tranças soltas e passo um pouco de
maquiagem que estava guardada no fundo da gaveta da penteadeira, faz

tempo que não uso.

Tudo para ficar bonita para um cara que nem sei se está a fim de mim
de verdade, isso quer dizer que enfim estou começando a curar as feridas do

passado. Estou tão empolgada, talvez nem tudo esteja perdido para mim.

— Uau! Olha ela toda gata. – Assobia Valdeci quando estou saindo,
alimentando ainda mais minha autoestima.

— Uau mesmo, minha filha está muito gostosa. – Mamãe segura a


minha mão e me obriga a dar uma voltinha.

— Tudo isso só para ir em uma simples reunião de professores? Sei


não, hein. – Lety assobia fazendo graça.
— Muito obrigada, gente, eu amo vocês! – Jogo um beijo para eles
antes de sair, mas é só chegar na garagem para pegar o carro que sinto uma

sensação estranha.

Sei lá, tipo um mau pressentimento. Entro no carro e jogo a bolsa no


banco do carona, antes de girar a chave peço a todos os deuses que me

protejam de qualquer perigo que cruze o meu caminho. Em seguida coloco


o pé na estrada sem medo, ligo o rádio e canto junto com a música, aos
poucos a minha animação vai voltando. Mas não dura muito.

— Mas que porra é essa? – Desligo o rádio.

Pelo retrovisor vejo que tem uma viatura me seguindo e fazendo sinal
para eu estacionar, e assim faço. Um policial vem falar comigo, fico sem

entender nada, nem estava correndo, não poderia nem se quisesse com essa
lata velha da minha mãe, que tem esse carro desde quando começou a
namorar o meu pai. Ou seja, centenas de anos atrás, quase na época dos

dinossauros.

— Boa noite, policial, algum problema? – Sorri para o homem


bigodudo de cara fechada, sua barriga enorme está a ponto de saltar para

dentro da minha janela que está aberta.

— Além das suas lanternas traseiras quebradas, moça? – responde


uma pergunta com outra enquanto seus olhos deslizam dentro do carro à
procura de algo ilegal, mas não encontra nada, só um monte de bagunça.

— Desculpa por isso, policial, vou levar o carro amanhã mesmo na


oficina para consertar, tudo bem? – Mantenho o sorriso, mesmo ele me
fitando com total indiferença.

— Por que você parece nervosa, moça? E por que esse monte de

tatuagens? Faz parte de alguma gangue? Se eu revistar o seu carro vou


achar drogas? – Cutuca uma das minhas tranças com a ponta dos dedos com

expressão de nojo.

— Eu não estou nervosa, senhor. E a resposta é não para todas as


outras perguntas – respondo ríspida.

— Quero documento do carro e carteira de motorista, agora! – grita

sem nenhuma necessidade.

Pego minha bolsa no banco do carona sem fazer movimentos bruscos


e tiro os meus documentos de dentro dela, certa de que depois disso o

policial me liberaria.

— Aqui está, policial. – Entrego a ele que rapidamente confirma que


está tudo certo, o carro pode ser velho, mas está com toda documentação

em dia.

— Posso saber aonde está indo arrumada dessa forma, senhora? –


continua com o interrogatório sem nenhum fundamento e afunda o olhar
dentro do meu decote, como se fosse algum crime grave uma mulher negra
bem arrumada estar dirigindo um Chevette às sete e meia da noite.

Queria mandar esse policial tomar no cu, dizer que não passa de um

filho da puta racista e preconceituoso do caralho que julga as pessoas pela


aparência. Mas eu sei como o Brasil é um país racista, então me controlo e
tento manter a calma porque posso terminar com um tiro no meio da testa a

qualquer momento.

— Eu sou professora do ensino fundamental, senhor. Estou indo para


uma reunião de professores – explico o mais gentil que posso, respirando a

cada palavra de maneira diafragmática para canalizar a raiva.

— Professora de criancinhas, você? Conta outra. – Olha para as


minhas tatuagens novamente com total descaso.

— Isso mesmo, você é surdo? Cacete! – Não consigo segurar a

língua, quando vi já tinha falado merda e em um tom elevado.

— Saia agora! – Saca a arma da cintura e aponta para mim, fico


apavorada.

— Calma, policial, eu não quis ser rude – tento me explicar, mas o

homem me arranca do carro à força.

— Está presa por desacato à autoridade. – Me algema. – Agora vou


revistar o seu carro, tenho certeza que vou encontrar alguma coisa ilegal.
Você tem cara que adora queimar uma erva. – Me joga no banco de trás da
viatura de qualquer jeito e tranca as portas.

Fico perplexa sem acreditar que isso está mesmo acontecendo, nunca

fui presa antes. Para piorar o filho da puta encontra um pacote de ervas
medicinais da minha mãe no porta-luvas do Chevette e insiste que é
maconha. Não que a dona Cátia não desse os tragos dela de vez em quando

para relaxar, mas não é idiota para deixar a prova do crime em qualquer
lugar. Mas o problema é que não foi só isso que o policial encontrou, ele

acha o bendito relógio que achei e alega ser roubado. Sou levada para a
delegacia, minha vontade é gritar e chorar de tanta raiva, nunca passei por
uma situação tão humilhante antes.

Como nada é tão ruim que não possa piorar, quando chego na

delegacia sou levada para a sala do investigador de plantão. Um moleque


que mal tem barba no rosto, deve ter passado no concurso recentemente.

— Eu sei que tenho direito a pelo menos uma ligação, não podem me

manter aqui algemada como uma criminosa – digo pela milésima vez, mas
o investigador finge que não escuta, só fica mexendo no celular fingindo
que não estou aqui.

É um merdinha que parece ser mais novo do que eu, nem tem barba
direito na cara ainda. Com essa camisa de marca e essa calça jeans justinha
pode saber que é algum filhinho de papai que gosta de brincar de ser
policial, se ele soubesse o quanto esse topete cheio de spray é ridículo

passava no barbeiro hoje mesmo.

— De fato, o policial que fez a sua prisão acabou de me enviar uma


mensagem dizendo que verificou e não é maconha que encontrou no seu

carro, nessa a senhora se safou.

— Eu disse que não era, caralho! Posso ir embora agora, pelo amor de
Deus? – imploro, já é tarde da noite e os meus pulsos estão doendo de tanto

ficar sentada nessa cadeira com as mãos algemadas para trás.

— Não podemos liberá-la até resolvermos a questão do relógio de


ouro cravado de pedras valiosas que encontramos na sua bolsa, que, por

coincidência, bate com os dados de uma joia de herança de família que está
desaparecida, o dono veio à delegacia ontem à noite desesperado fazer um
B.O. Se for confirmado que é a mesma que estava em seu domínio, sinto

muito, moça, mas vai estar em grandes apuros – explica com pouco caso,
checa a bocejar parecendo entediado.

— Eu já disse que achei essa droga de relógio, se for mesmo dessa

pessoa me deixa falar com ela e explicar que não sou nenhuma ladra –
argumento.

— É o que todos dizem, não é mesmo?


Alisa os poucos fios de barba no rosto, é um babaca egocêntrico que

acha que tem poder só porque carrega um distintivo e uma arma na cintura.

— Com licença, investigador. — Alguém bate na porta.

— Pode entrar! – autoriza o pela saco.

— Me ligaram dizendo que vocês talvez tenham encontrado o relógio

que era do meu bisavô. Ele tem muito valor sentimental para mim, por isso
yo vim o mais rápido que pude – finaliza o dono da voz grossa, meu
coração congela porque conheço muito bem esse sotaque.

Puta que partiu!

Não pode ser.

Ele não.

Sentada em frente à mesa do investigador com as mãos algemadas

para trás, eu quase caio da cadeira quando olho para cima e vejo Alejandro
Gonzales com aquela aparência estonteante de sempre de galã
hollywoodiano que acabou de entrar em cena. A barba é de uma semana ou

mais e o cabelo castanho-escuro em um liso perfeito, agora mais longo,


abaixo do queixo jogado sobre os olhos verdes de gato arisco em um
contraste glacial com a pele bronzeada que minha nossa. É uma imagem de

perder o fôlego. O corpo está mais atlético do que da última vez que nos
vimos, lembranças essas que vagam pela minha mente com mais frequência
do que eu gostaria.

Os músculos avantajados e definidos quase explodem o tecido da

camisa social popeline azul bic toda vez que se move, é muita
masculinidade em um homem só. Esse espanhol pode não valer porra
nenhuma, mas é lindo. Muito mesmo. Até o investigador da polícia olha

para ele com um ar invejoso devido à sua postura superior sem fazer
nenhum esforço, não é normal alguém com uma beleza igual a dele e todo
mundo que o conhece pensa a mesma coisa. Chega a ser uma afronta para o

sexo masculino.

Me encolho toda na esperança de que o chão me engula e eu possa


sumir dali antes que o espanhol me veja. De todos os possíveis donos do

relógio, nunca, nem em um milhão de anos imaginaria que pudesse ser ele.
Alejandro Gonzales. Isso só pode ser um pesadelo, ou pior, um castigo de
Deus por todas as escolhas erradas que fiz na vida, a pior de todas elas ter

me vendido para esse homem escroto. Pensei que nunca o veria novamente,
mas o destino resolveu foder comigo e dessa vez ele caprichou.

— Bom dia, senhor, ainda não temos certeza de que é o seu relógio,

mas encontramos a peça no carro dessa moça marrenta. – O cretino aponta


na minha direção.
— Solange? – Os olhos do espanhol saltam para fora, mas logo em
seguida um sorriso malicioso escorrega dos seus lábios.

Fecho a cara no mesmo instante. O investigador divide o olhar entre

mim e o Gonzales, um clima árido se instala no ar.

— O que você está armando para cima de mim dessa vez, Gonzales?
– me exalto, se minhas mãos estivessem soltas teria voado em cima dele e

faria um bom estrago no seu rostinho bonito.

— Só um minuto, vocês dois se conhecem? – pergunta o investigador.

— Sim! Ela é minha ex – diz com a cara mais lavada do mundo.

— Sua ex é o caralho, Gonzales! Já chega dessa palhaçada, tire essas

algemas de mim agora mesmo, investigador. Me recuso a ficar no mesmo


ambiente que esse espanhol. – Me debato na cadeira totalmente fora de
mim, a raiva me dominou.

— A senhora não vai a lugar nenhum até esclarecermos essa história


direitinho, moça, então pode sossegar essa sua bunda gorda na cadeira.
Quem manda aqui sou eu, ouviu bem? – Bate a mão na mesa com o maxilar

trincado, minha vontade foi partir para cima do desgraçado com algema e
tudo, mas isso só pioraria as coisas.

Além de ladra e desacato à autoridade, me acusariam por agressão e o

diabo a quatro.
— Quem você pensa que é para falar assim com ela, rapaz? Acho

bom pedir desculpas e tirar as algemas dela agora mesmo, ouviu bem?

Gonzales bate a mão fechada em punho sobre a mesa, o rosto está


tomado por uma coloração vermelha e os olhos saltados para fora, por
pouco penso que vai quebrar o pescoço do cara.

— E quem é você para exigir alguma coisa, espanhol? Nem desse


país você é. – Ri com deboche sendo xenofóbico, provocando ainda mais
Gonzales.

— Yo soy Alejandro Gonzales, advogado e dono de uma das maiores


empresas de defensoria deste país que perante a lei é tão meu quanto seu.
Conquistei cidadania brasileira e pago os meus impostos em dia, e no é um

merdinha como você que vai me ofender. – Infla os ombros em cima do


investigador, que tenta falar alguma coisa, mas o espanhol faz sinal de que
não terminou ainda.

Então completa no mesmo tom autoritário:

— Por isso te aconselho a tirar as algemas da minha cliente agora


mesmo e peça desculpas pela sua grosseria, ou abro um processo contra

você por abuso de poder e vou fazer questão de revirar a sua vida do avesso
até encontrar todos os seus podres e destruir a sua carreira na polícia ou em
qualquer outro trabalho decente em qualquer parte desse planeta – ameaça

cheio de si, com os ombros eretos numa postura viril e autoritária.

Esfregando na cara do jovem investigador que ele não só tem uma


beleza avassaladora, mas também tem poder e é abastado de inteligência.

Ninguém consegue competir com Gonzales, no final o seu rival sempre sai
perdendo. Eu sou a prova viva disso.

— Sua cliente? – O policial e eu perguntamos na mesma hora, mas

Gonzales responde direto para mim.

— Sim, Solange! Vou defender você desse boçal, que pela clara falta
de experiência no trabalho no sabe como tratar um suspeito de maneira

respeitosa. Apesar de que acredito que a sua falta de tato com as mujeres vai
muito além das paredes dessa delegacia. Estou errado, senhor investigador?
– Cruza os braços realçando ainda mais os músculos e o encara zombeteiro,

colocando o homem que rudemente chamou a minha bunda de gorda


instantes atrás no lugar dele.

— Deixa eu ver se entendi, você está dizendo que tem cidadania

brasileira e é dono de uma das melhores empresas de defensoria desse país


– o investigador fala segurando o riso. – Mas ainda falta a melhor parte,
você é um advogado tão bom que quer defender a mulher que prendemos

suspeita de roubar o seu relógio de ouro da sua família? – Solta enfim a


gargalhada presa na garganta, ele ri a ponto de levar as mãos sobre a barriga
e saírem lágrimas no canto dos olhos.

— Exatamente! – confirma o idiota, mantendo o tom arrogante.

— Então prove tudo o que disse, senhor Gonzales. – Balança os


ombros em um ato involuntário instigando um confronto desnecessário,
parecem dois homens das cavernas em meio a uma briga de testosterona
para ver quem é o mais forte.

— Agora mesmo, investigador. – Leva a mão no bolso à procura da


carteira para mostrar os documentos, mas não encontra. – Maldición! Saí
correndo para vir aqui, acho que deixei a minha carteira e o meu celular em
casa.

— Então o senhor também está detido até eu conseguir conferir se


todas essas informações que disse procedem, essa história está cada vez
mais estranha. Para mim você e essa moça são cúmplices em algum ato

criminoso. – Vira Gonzales de costas e algema suas mãos atrás do corpo,


agora está tão na merda quanto eu.

Quem mandou cantar de galo no quintal dos outros, achei foi é bom

para aprender a ser menos arrogante.

— Você no pode fazer isso, onde está o delegado Avilar? Ele me


conhece e nunca autorizaria um absurdo desses – argumenta em desespero,
agora até baixou o tom.

— O delegado Avilar está fora da cidade em uma missão especial


com quase todo o nosso pessoal, só voltam amanhã. Quem está no comando
dessa delegacia essa noite sou eu. – Chamou dois policiais para nos levarem
para a cela, ele nos foderia o máximo que pudesse por puro despeito.

— Você no pode fazer isso, yo sou advogado e conheço todos os


meus direitos – tenta argumentar, mas a única resposta que recebe de volta é
o rangido da cela se fechando na sua cara.

O lugar até que é limpo, mas fica nos fundos da delegacia e está
cheirando a mofo. É uma cela provisória, pequena, escura e fria. Só tem
uma cama de cimento, um vaso de ferro e uma pia no fundo.

— Você tinha mesmo que se gabar que era isso e aquilo, não é
mesmo, Gonzales? E olha no que deu, só piorou a nossa situação. De
vítima, conseguiu se tornar cúmplice de um crime que nem aconteceu.
Meus parabéns, senhor advogado. — Massageio os meus pulsos vermelhos
e doloridos, pelo menos aqueles dois brutamontes tiveram o bom senso de

tirar nossas algemas antes de nos trancarem nesse lugar.

— Yo no estava me gabando, Solange, estava defendendo você. Então


no seja mal-agradecida. – Ajeita a gola da sua camisa cara, muito calmo

para alguém que acabara de ser preso.


— Como que o seu relógio de ouro foi parar no chão em frente à
igreja? Aposto que você está me seguindo e armou esse circo todo para se
enfiar na minha vida novamente, isso é muito a sua cara, seu psicopata. –
Enfio o dedo na sua cara adentro, é coincidência demais para ser verdade.

Com tantas pessoas no mundo, por que logo esse espanhol


desgraçado? Pensei que nunca mais veria ele novamente, rezei para que
nem precisasse ouvir o seu nome outra vez. Mas aqui estamos nós dois,
presos em uma cela minúscula só Deus sabe por quanto tempo.

— Mas você se acha mesmo, no é, Solange? Yo no armei porra


nenhuma! Fui nessa igreja porque o corpo do filho de uma funcionaria
minha estava sendo velado lá. Provavelmente deixei o relógio cair do bolso
quando saí do carro, sempre o carrego comigo, por isso entrei em desespero

quando no encontrei – explica, mas não acredito em uma palavra proferida.

— A Daniele trabalha para você? – pergunto surpresa.

— Trabalha e ela é uma das minhas melhores funcionárias; se no


acredita, quando sair daqui pode ligar para a Daniele e confirmar toda a
história, porra! – Me fita nos olhos, parece estar dizendo a verdade.

No entanto, logo desvio o olhar. A intensidade dentro dos seus olhos é


grande demais para que eu consiga sustentar por muito tempo.
— Isso tudo é loucura, como com tantas pessoas que passaram por
aquele lugar logo eu tinha que achar o relógio? Isso só pode ser castigo de

Deus, não tem outra explicação. – Sinto vontade de gritar e bater em


alguém de tanta raiva, é azar demais para uma pessoa só.

— Ou talvez Deus queira nos ver juntos, Cariño. – Se aproxima de

mim sorrateiro como uma cobra ardilosa. – Porque fomos feitos para ficar
juntos, yo no paro de pensar em você desde que te vi entrando naquela
igreja, tão linda segurando uma rosa vermelha. – Ergue a mão na direção do
meu rosto, mas me esquivo do seu toque.

— Você acha mesmo que Deus perderia o tempo precioso dele


tentando juntar dois pecadores, um libertino e uma mulher que vendeu o
corpo por dinheiro? Se toca, cara. – Eu ri, mas é de raiva mesmo.

— Seja sincera comigo, Solange. Você iria para a cama outra vez
comigo por dinheiro? Yo pago o que quiser para tê-la nos meus braços pelo
menos uma última vez. – Faz cara de cãozinho abandonado, mas comigo
não cola.

— Desculpa, espanhol, mas eu saí do ramo. Não levo jeito para isso,
foi a primeira vez e a última – afirmo e a sua expressão se alegra, como se
rezasse para que aquela fosse a minha resposta.
— Então você no é uma golpista como pensei, só precisava muito da
grana mesmo. Mas para quê? Para chegar ao ponto de se colocar em uma
situação daquela… sei que no me suporta. – Pude sentir a pena na sua voz e
isso me deixa ainda mais furiosa, não quero nada que venha desse cara,

muito menos compaixão.

— Os meus motivos para fazer aquilo não são da sua conta, eu fiz o
serviço e você pagou. Ponto final! Agora não fale mais comigo, fui presa

por causa da merda do seu relógio estúpido e provavelmente vou ter que
passar a noite nesse lugar horrível. – Meus lábios estremecem, mas engulo
o choro.

— No é um relógio idiota, Solange. Ele é a única lembrança que


restou do meu bisavô, ele era um fazendeiro rico, que teve suas terras
saqueadas e viu quase toda a família inteira ser assassinada na sua frente
antes de ser degolado vivo. – Senta no chão em um canto da cela e abaixa a
cabeça de modo que o cabelo cobre todo o seu rosto, por um momento
penso que vai chorar.

Então a foto do senhor dentro do relógio é do bisavô do Gonzales,


bem que eu achei seu olhar marcante bastante familiar, agora sei por quê.

— Nossa, Gonzales, que história triste. Eu sinto muito! – Me sinto


culpada.
Eu o odiava, mas não precisava ter sido tão grossa. Se o relógio é
relíquia de família, é porque tem um grande valor sentimental, por isso
Gonzales veio pessoalmente na delegacia buscá-lo. Com todo dinheiro que
tem, poderia pedir a um empregado para fazer isso no seu lugar.

— Ninguém gosta muito de falar sobre esse assunto lá em casa, mas


antes de morrer meu avô me contou que ele foi o único sobrevivente do
massacre porque naquela manhã o pai dele ordenou que levasse esse relógio
no joalheiro para arrumar, porque tinha dado defeito. – Contorce as mãos
frente ao corpo, seu pensamento parece distante.

— Quantos anos tinha seu avô na época? – Sento do outro lado da


cela bem longe dele, porém, interessada em ouvir o resto da história.

— Só treze anos, era o filho caçula. No caminho de volta para casa do


relojoeiro, vovô topou com os seus vizinhos fugindo. Contaram a ele que os
seus pais e os quatro irmãos tinham sido assassinados por um grupo de
bárbaros que estavam matando todos os fazendeiros das redondezas e
tomando todas as propriedades, isso era normal na Espanha naquela época.

– Enche o peito de ar e solta vagarosamente enquanto brinca com um anel


prateado no seu dedo mindinho, tento não ficar encarando-o por muito
tempo, mas é mais forte do que eu.
Fico chocada com o seu relato, é impressionante como até nos dias de
hoje as pessoas se acham no direito de matar o próximo para tomar para si

algo fruto do trabalho árduo de outra pessoa. Muito triste isso.

— E o que o seu avô fez depois disso?

— Ele fugiu com os seus vizinhos para bem longe só com a roupa do
corpo e o relógio valioso do pai no bolso, meu avô nunca mais olhou para
trás.

— Minha nossa! Apenas uma criança, tendo que recomeçar do zero –


constato comovida, desde que olhei a foto daquele senhor que senti uma
ligação forte com ele sem sequer imaginar sua história trágica.

— E o meu avô recomeçou com muito trabalho duro, juntou dinheiro


e com vinte anos comprou um pedacinho de terra. Ele, que era filho de
fazendeiro rico, no teve dificuldades para se adaptar a uma vida simples ao
lado da minha avó e logo tiveram o meu pai. Como era o mais velho de
cinco irmãos, ele ganhou o relógio de presente quando completou maior

idade. – Sorri ao contar com os olhos marejados, parecem duas lagoas de


água cristalina.

Gonzales tem muitos defeitos, mas é um homem próximo da família,

dá para perceber isso a quilômetros de distância. Sua postura e até a voz


mudam para algo sensível quando fala deles, acredito que esse é seu único
ponto fraco.

— Deixa eu adivinhar, como você é o primogênito do seu pai ele


também te deu o relógio quanto completou dezoito anos.

— Sim! O mesmo vai acontecer quando eu tiver meu primeiro filho,

quando fizer dezoito anos o relógio passa de mim para o garoto. Virou
tradição da família. — Ajeita as costas na parede, animado só com a ideia
de ser pai.

— E se seu primeiro filho for menina? – Arqueio a sobrancelha.

— Bom, se for menina, espero que ela seja tão bonita quando tu
madre. E além de tatuagens, tranças no cabelo e me afrontar sempre que
pode, ela também goste de relógios de bolso. – Joga à queima-roupa, com o

olhar penetrante que queima até a sua alma.

— Estava demorando para você começar com as suas gracinhas, não


é mesmo, Gonzales? Chega de conversa fiada. – Me viro de costas para ele,

lembrando do quanto o odiava.

— Yo no estou brincando, Cariño, meu avô dizia que esse relógio traz
sorte porque salvou a vida dele. Agora o mesmo relógio trouxe você para
mim, minha futura esposa e madre dos meus filhos. – Não preciso olhar ele
para saber que está sorrindo, realmente acredita nesse monte de besteiras.
— Pois eu prefiro morrer do que ser sua esposa, Alejandro Gonzales

– cuspo as palavras cheia de amargura. – E só para deixar bem claro, eu não


quero ter filhos. Muito menos com você.

— É o que veremos, mi amor. Como você sabe, yo sempre consigo o


que quero – afirma seguro. – E yo quero ser seu marido e te fazer feliz pelo

resto da vida, moraremos numa linda casa que construirei para nós no
interior da Espanha – diz quase que em um juramento, com aquele olhar de
quem consegue prever o futuro.

Não dou a mínima, cubro os ouvidos e lhe ofereço as costas. Mas sei
que isso não será o suficiente para manter Alejandro Gonzales longe de

mim, quando ele coloca uma coisa na cabeça não tira até conseguir.

Merda!

Vai começar tudo de novo...


Gonzales

Yo ainda no posso crer que o destino de fato fez o meu caminho se

cruzar com o da Solange outra vez, e dessa vez ele caprichou, usar o relógio
da sorte do meu avô foi um golpe de mestre, porque só assim me faria

entender que nós dois fomos feitos para ficarmos juntos para sempre. Achei
minha alma gêmea e fui estúpido o suficiente para levar tanto tempo para
perceber e só fiz merda, agora preciso correr atrás do prejuízo. No adianta
mais tentar me enganar, amo essa pantera negra raivosa desde a primeira

vez que nos encontramos, mas o orgulho me cegou, tive medo de dar uma
chance para aquele sentimento lindo e o reprimi. Nunca me apaixonei antes

e confesso que estou bastante assustado e com um frio constante na barriga,


mas é só olhar para a Sol que o meu corpo inteiro se consome em um desejo
avassalador.

Só a Solange tem o poder de me fazer perder a cabeça dessa forma.

Quando estou com ela, mesmo que o tempo todo brigando, sinto como se

não faltasse mais nada para me fazer feliz. Me sinto completo. Ela é
totalmente diferente das mujeres a que estou acostumado, principalmente na

personalidade. Sempre me colocando no meu lugar, me afrontando e

cortando as minhas asinhas sempre que pode. No é submissa, será o tipo de


esposa que vai me buscar no bar com uma vassoura na mão se passar da

hora marcada de beber uma com os amigos.

Sorrio ao imaginar a cena, nós dois brigando o caminho todo até em

casa e depois fazendo amor loucamente num sexo selvagem de


reconciliação. Entretanto, tem um longo caminho até isso acontecer. No

momento, Solange no quer nem olhar na minha cara.

— Você no vai mesmo falar comigo, Cariño? – pergunto, mas no


tenho resposta.

Solange está fazendo o jogo do silêncio comigo, sentada de costas


para mim no outro lado da cela. Já estamos abandonados aqui há horas

nesse lugar frio e nenhum policial veio falar conosco. O que é um absurdo

porque já é tarde da noite, qualquer pessoa detida, independente do motivo,


tem direito a pelo menos uma ligação. Bastaria só isso para nos tirar dessa

enrascada, apesar que devo admitir que, mesmo com Solange evitando

qualquer tipo de contato comigo, estou feliz de passarmos esse tempo

juntos depois de tantos meses longe um do outro.

Sol no é uma interesseira como pensei, ofereci qualquer quantia para

dormir comigo outra vez e ela disse no e com bastante ênfase. O babaca do

John e o Pedro tinham razão, Solange dormiu comigo por desespero e isso

acaba com toda minha virilidade. Me sinto um merda como hombre. Ela no
quer me falar o motivo que a fez engolir todo o orgulho ao ponto de vender
o seu corpo, mas yo vou descobrir sozinho. No quero mais segredos entre

nós, estou decidido a fazer dessa mujer minha esposa e madre dos meus

filhos, nada nem ninguém me impedirá disso.

Farei com que Solange se apaixone perdidamente por mim ou no me

chamo Alejandro Gonzales, meus dias de farra acabaram. A partir de hoje

sou um hombre comprometido, mesmo que minha futura esposa no saiba


ainda que casará comigo.

— Você no pode me ignorar a noite inteira, Cariño, porque pelo jeito

nos esqueceram aqui – tento uma segunda vez, mas não obtenho resposta de

novo.

Percebo que Solange se encolhe toda de frio. Tiro minha camisa e


coloco em volta dos seus ombros, o importante é mantê-la aquecida.

— Está melhor assim, mi vida? – pergunto, mas vejo que está

dormindo com a cabeça toda torta.

Me sento ao lado da Solange e apoio sua cabeça no meu ombro

desnudo e envolvo o meu braço em volta do seu corpo para transmitir calor
humano, é muito bom sentir o seu cheiro assim de pertinho. Dios! Como ela

é linda, mi corazón se derrete todo de amor só de olhar para a Sol. Queria

poder beijá-la com todo o meu amor, estou louco de saudades. Mas se
fizesse isso agora, minha vida estaria em risco. Contudo, não resisto e

acaricio o seu rosto. Amo a sensação da minha mão contra sua pele sedosa,
nossos filhos seriam tão lindos com a mistura das nossas cores.

Aos poucos os meus olhos começam a pesar, as pestanas piscam cada


vem mais lentamente. Acabo cochilando também, estou cansado, passei o

dia todo trabalhando muito na minha empresa. Acordo em meio a gritos,


fico meio perdido até entender o que de fato está acontecendo.

— Tire suas mãos de mim, espanhol safado! – Solange esmurra o

meu peito e salta para longe de mim, levo um susto tremendo. – Até tirou a
camisa, pervertido.

— Santo Dios, mujer! Se acalme. Você estava com frio e dormindo


toda torta, então te emprestei minha camisa e sentei ao seu lado para que

usasse meu ombro com apoio. Só isso. – Tento me defender da maneira que
dá.

Solange olha para os seus ombros e vê minha camisa e a sua


expressão suaviza, percebe que estou falando a verdade.

— Obrigada! Mas não preciso da sua ajuda. – Joga a camisa na minha

cara.

Diabo de mujer difícil.

— Você está com fome, Sol? – indago ao ouvir sua barriga roncar.
— Um pouco, e você? – Faz uma tromba enorme.

— No muito, pode ficar com essa barra de chocolate. – Tiro o pacote

dourado sabor caramelo do bolso.

Yo também estou com fome, mas por ela posso aguentar o tempo que
for preciso.

— Só aceito se você comer a outra metade, não pode ficar a noite


inteira sem comer nada.

— Preocupada comigo, Cariño? – Puxo um sorriso de canto

charmoso enquanto visto minha camisa, ela também me ama que yo sei.

— Esquece, Gonzales! Pode ficar com a sua barra de chocolate

inteira. – Volta a sentar em um canto da cela e abraça as próprias pernas,


ainda está com sono.

— Está bem, Solange. Eu divido com você. – Me sento ao seu lado.

Rasgo a embalagem da barra de chocolate e divido ao meio e entrego


à minha futura esposa, que pela primeira vez hoje me agracia com um

sorriso lindo.

— Muito obrigada, espanhol – agradece de boca cheia.

— Tudo para ver você feliz, mi amor. – Jogo uma piscadela e ela gira
os olhos.
— Só não xingo você porque esse chocolate é uma delícia, nunca
comi nada tão bom. – Solta um gemido que me deixa de pau duro, qualquer
coisa que ela faz me excita, até mesmo quando briga comigo.

— Yo já comi coisa muito melhor. – A fito de cima a baixo, deixando

bem claro a que estou me referindo.

— Minha nossa! Você não desiste mesmo, não é, cara? – Me empurra


com o ombro achando graça da minha cantada barata, mas pelo menos não
está brigando comigo e isso já é um grande avanço.

— De você, Cariño? Nunca! – respondo com outra cantada, dessa vez

acompanhado de um sorriso profano.

— Eu preciso fazer xixi, mas com você olhando não vou conseguir. –
Olha receosa para a privada de ferro no fundo da cela.

— Yo posso fechar os olhos, no se preocupe.

— Mas vai ouvir, então não vou conseguir do mesmo jeito.

— No seja por isso, yo vou cobrir os meus olhos e cantar una


canción, está bem? – Ela assente por fim.

Faço o que prometo, cubro os olhos com as mãos e começo a cantar a


canción “Para tu amor”, do cantor colombiano Juanes, um dos meus

músicos favoritos.

 
“Para tu amor lo tengo todo,

Desde mi sangre hasta la esencia de mi ser.

Y para tu amor que es mi tesoro,

Tengo mi vida toda entera a tus pies.

Y tengo también

Un corazón que se muere por dar amor.

Y que no conoce el fin

Un corazón que late por vos

Para tu amor no hay despedidas

Para tu amor yo solo tengo eternidad…”

Paro de cantar quando sinto a presença da Solange na minha frente,

tinha me empolgado tanto cantando que no percebi que já tinha terminado.

Descubro os olhos e a vejo a um passo de distância de mim, ela me olha de


um jeito estranho examinando cada detalhe do meu rosto. De repente,

começa a cantar a música em espanhol de onde parei. Sorrio ao ouvir a sua


voz maravilhosa, seu sotaque no meu dialeto nativo é muito fofo e me

seduz como o canto de uma sereia.

No resisto e canto junto com mi amor, nossas vozes se misturam em

uma combinação perfeita.

“Y para tu amor que me ilumina

Tengo una luna, un arco iris y un clavel

Y tengo también

Un corazón que se muere por dar amor

Y que no conoce el fin

Un corazón que late por vos

Por eso yo te quiero tanto que no sé como explicar

Lo que siento

Yo te quiero porque tu dolor es mi dolor

Y no hay dudas

Yo te quiero con el alma y con el corazón

Te venero
Hoy y siempre gracias yo te doy a ti mi amor

Por existir…”

Finalizamos a canção tomados por uma emoção sem medida, nossa


respiração é ofegante e podia jurar que o coração da Solange batia tão forte

quanto o meu. Ela sorri e yo vejo uma brecha para roubar um beijo, tudo o

que me impede isso é apenas um passo. Decido arriscar, é tudo ou nada.

— Me desculpa, Gonzales, eu fiquei a noite toda fora e só cheguei na

delegacia agora. – Delegado Avilar aparece dos quintos dos infernos e

estraga o nosso momento romântico, juro que se estivesse do lado de fora


da cela daria um murro na cara nele.

— Só desculpa no é o suficiente para mim, delegado. Vou processar

esse investigador até por ter nascido, a noche que yo e a Solange passamos
aqui injustamente sem comida e com frio vai sair muito cara para ele. –

Fico irritado, o dia já tinha amanhecido e nem percebi.

— Faça como achar melhor, Gonzales, está no seu direito. Mais uma

vez peço desculpas pelo ocorrido. – Destranca a sala envergonhado. – O

investigador é novato, eu não devia ter deixado ele no comando enquanto


estivemos fora. Mas ele já levou uma advertência e foi suspenso – vem com

o discurso pronto.
— Yo vou fazer com que esse rapaz seja demitido e que essa má

conduta vá para a ficha policial dele, no pense que vou aliviar a barra do
seu pessoal, delegado Avilar, só porque é amigo do John.

— Pensei que eu fosse seu amigo também, Gonzales. – Esfrega os


olhos envoltos por bolsas escuras, yo no fui o único que dormiu mal essa

noche.

— Vai sonhando, Ricardo! No máximo somos colegas e olhe lá, mas


depois de hoje vou repensar sobre isso também – digo sério, mas ele me

olha com ar de riso como se no levasse a sério uma palavra do que yo disse.

— E quanto a mim, delegado, posso ir embora agora? – pergunta

Solange contorcendo as mãos frente ao corpo.

— Claro que pode, Solange, peço perdão pelo mal-entendido. Tem


todo o direito de nos processar se quiser, fica ao seu critério.

— Não vou, delegado, mas quero que o policial que fez a minha blitz
seja punido severamente também. Ele foi extremamente rude e racista

comigo – Solange no deixa barato também, essa é a minha garota.

— Eu serei severo na punição dele, não se preocupe. Minha esposa


também é negra e não aceito esse tipo de comportamento dos meus homens

– promete com o maxilar rígido, tenho até pena do que o delegado vai fazer

com esse policial.


— Muito obrigada! Agora só quero ir para a casa, com licença.

Sol sai praticamente correndo, louca para se livrar de mim. Pega os

seus pertences e sai sem ao menos dizer tchau, voltei a deixar de existir para
ela.

— Espera, Cariño, no vá embora assim. Precisamos conversar e


esclarecer as coisas entre nós de uma vez por todas. – Corro atrás dela como

sempre, está muito cedo e quase não tem carros passando na rua, o sol mal

terminou de sair por detrás das montanhas.

— Não existe “nós”, Alejandro Gonzales. Acorda! Você já conseguiu

o que queria de mim, então me deixa em paz de uma vez por todas. – Para

de andar e se vira para mim como uma feiticeira das trevas pronta para
lançar uma maldição maligna.

Não sobrou nada daquele clima cúmplice de quando cantamos juntos,

acho que nunca estivemos tanto em sintonia como naquele momento.

— No posso te deixar em paz porque yo te amo, Solange. Amei desde

a primeira vez que te vi – assumo por fim, é a primeira vez que me declaro
para uma mujer em toda a minha vida.

O que é uma vergonha, já que estou só alguns anos longe de

completar quarenta anos.


— Mas eu não te amo, espanhol. Na verdade, não te suporto. Então

desaparece da minha vida! – diz na intenção de me machucar e vai embora


pisando duro, nem ela acredita no que acabou de dizer, imagina yo.

No me abalo nem um pouco com a sua rejeição, Sol só fala essas

coisas da boca para fora porque está com o corazón ferido. Yo fui um
grande filho da puta com ela desde o dia que nos conhecemos e hoje tenho

seu desprezo, nossa história começou do jeito errado, mas isso no é algo de

todo ruim. Porque quando Solange se apaixonar por mim vai ser de
verdade, afinal, já conhece todos os meus defeitos melhor do que ninguém.

— No ama ainda! Mas vai amar, Cariño. E quando acontecer vai ser

avassalador. – Abro os braços sorrindo e grito para quem quiser ouvir,


exalando amor em cada célula do meu corpo.

Solange escuta minha declaração já do outro lado da rua, ela continua


andando e, ainda de costas, ergue o braço acima da cabeça e mostra o dedo

do meio para mim. Yo acho graça da sua malcriação, porque sei que nós

dois nos reencontraremos mais rápido do que ela imagina.

 
Solange

Chego em casa furiosa, só o Gonzales tem o poder de foder com o

meu psicológico dessa forma. Essa é a segunda vez que passo a noite com
ele por obrigação e nem dinheiro ganhei em troca, foi só para passar raiva

gratuita mesmo. Fui algemada, chamada de ladra, dormi sentada no chão e


passei horas sem comer e beber nada, se o espanhol não tivesse dividido sua
barra de chocolate comigo teria morrido de fome. Mas não compensou o
repertório de cantadas baratas que fui obrigada a ouvir, nem nessa ou em

outra vida casaria com esse homem e teria filhos com ele.

— Deus me livre! – Faço sinal da cruz várias vezes ao entrar em casa.

Encontro minha mãe dormindo no sofá com os longos dreads


grisalhos espalhados sobre as almofadas e o celular preso na mão direita,
passou a noite inteira ali me esperando chegar em casa. Ela deve ter ficado

muito preocupada comigo, me aproximo devagar e a acordo sem muito

alarde, não quero assustá-la mais do que já assustei indo para uma reunião
normal de professores e simplesmente desaparecer. Quando enfim recuperei

o meu celular na delegacia hoje de manhã, havia várias ligações perdidas e

mensagens de voz na caixa postal dela e da Tess.


— Que bom você chegou, querida, Tess e eu estávamos a ponto de

ligar para a polícia e relatar o seu desaparecimento. – Esfrega os olhos


vermelhos em meio a um bocejo, levanta cambaleando e tateia o meu corpo

com as duas mãos de cima a baixo à procura de algo fora do lugar.

— Pois foram eles que me prenderam injustamente em uma blitz

malfeita, passei a noite inteira na prisão por causa daquele bendito relógio

que achei. De fato, é uma peça valiosa e o dono estava desesperado atrás
dele, exatamente como a senhora disse.

Me jogo no sofá recém-reformado cor de abóbora e uso uma das

almofadas para apoiar as costas, estou cansada e com sono acumulado de


uma noite inteira.

— Como assim passou a noite na cadeia, filha? Me explica isso


melhor, estou sentindo até o meu chakra oscilando. – Senta do meu lado e

segura minha mão já chorando antes mesmo de ouvir a história, essa é a

minha mãe, o drama em pessoa.

— Está bem, mãe, mas enquanto isso vou fazer café da manhã para
nós porque estou faminta. Daqui a pouco preciso me arrumar para ir para o

trabalho. – Levo mais tempo que o normal para me levantar, vamos para a

cozinha abraçadas.
Enquanto mamãe e eu montamos a mesa de café da manhã mais cedo
que o normal, conto para ela, ocultando algumas partes do que de fato

aconteceu antes que o Rafael acorde. Não quero que o meu irmão fique

assustado, morre de medo de policiais porque foram eles que vieram dar a

notícia da morte do papai.

— Esse policial insinuou que você faz parte de uma gangue só por

causa das suas tatuagens? Ah, mas eu vou lá agora mesmo jogar um pouco
de luz nessa pessoa das trevas. – Minha mãe pega a bolsa dela feita de tricô

e joga debaixo do braço.

Traduzindo o que minha mãe disse, ia na delegacia fazer barraco e a

luz que jogaria nele com certeza seria algo bem sólido e pesado. Nunca

deixaria ninguém maltratar os filhinhos dela e ficar por isso mesmo, já basta
a morte do papai ficar impune.

— Deixa pra lá, mãe, o delegado Avilar disse que vai punir os

envolvidos na confusão e eu acredito na palavra dele. – Continuo tomando

o meu café da manhã, plena.

— E por que você confia tanto nesse delegado, filha? – Puxa a


cadeira e volta a sentar comigo na mesa.

— A filha dele estuda lá na escola, mãe. Todo mundo sabe que ele

tem a fama de ser um profissional honesto, por isso fica tranquila, mulher. –
Passo geleia de morango numa torrada e faço aviãozinho na boca dela que

não aguenta e começa a rir, a sede de vingança já passou.

Eu realmente acredito no senso de justiça do delegado Avilar, além de

justo é um puto de um gostoso. A mulherada da escola pira quando ele vai


buscar a filha na escola com o uniforme do trabalho, arma na cintura,

distintivo pendurado no pescoço e óculos escuros. Ainda por cima é gentil


com todo mundo e ótimo pai. E a esposa dele, Julia, também é uma mulher

incrível, formam o casal perfeito.

— Está bem, filha, já que é assim tudo bem. – Deixa a bolsa de tricô
sobre o balcão e volta a tomar seu café da manhã.

Mas o assunto não morre aí, assim que viro as costas ela liga para a
delegacia e fala um monte de desaforos para o delegado Avilar. Se não

fizesse isso não conseguiria dormir em paz, essa é a dona Cátia. Depois de
terminar o meu café da manhã, tomo banho e me arrumo para ir para o

trabalho. Chego na escola segurando meu material de aula e bocejando de


sono, estou exausta e com as costas doendo depois de passar a noite sentada
naquele chão duro da cela.

— Graças a Deus você chegou, Solange! Eu quase botei um ovo

ontem à noite quando não apareceu na reunião dos professores, liguei para a
sua mãe e ela disse que também não sabia onde estava. – Tess pula em cima

de mim no pátio da escola e quase derruba nós duas no chão.

— Calma, mulher, estou bem. Por que tanta preocupação? Eu enviei


uma mensagem para você hoje de manhã contando o que aconteceu, passei

a noite na cadeia com um homem que não suporto por um mero acaso do
destino. – Pego minha pasta de desenhos para colorir que caiu no chão,
xingando alguns palavrões durante o ato.

— Mesmo assim, eu queria te ver pessoalmente para ter certeza de

que está de fato bem, amiga. – Desliza a mão pela nuca e desvia o olhar. –
Pensei que outra coisa pior tinha acontecido com você, não sabe o quanto

fiquei preocupada. – O celular da Tess começa a tocar na bolsa dela, mas


ela não atende novamente e começa a suar frio.

— É ele, não é? – A encaro, mas ela continua evitando contato visual,


porque sabe exatamente de quem estou falando.

— Claro que não, Solange. Vira essa boca pra lá! Não tenho notícias

dele há mais de um ano. – Desliga o celular e joga de novo dentro da bolsa.


– Era só a minha operadora me ligando de novo porque cancelei o meu
plano, a internet era péssima. – Dá de ombros.

— Por que eu tenho a impressão de que está mentindo para mim,

Tessinane? –  Franzo o cenho.


— Porque você é muito paranoica, amiga. – Agarra o meu braço
enquanto andamos juntas. – Mas vamos falar de algo mais interessante,
adivinha quem também estava preocupado porque você não apareceu na

reunião de professores ontem, gata? – Mexe as sobrancelhas fazendo


suspense. Tenho a impressão que mudou de assunto só para me tirar do foco

da conversa, e dá certo.

— O professor Roberto? – Minhas bochechas queimam.

— O próprio! Ele perguntou se você viria e ficava o tempo inteiro

olhando para a porta, acho que está a fim de você, Solzita. – Ergue o meu
braço e me rodopia no ar feito um peão.

— E eu acho que também estou a fim dele, Tess – confesso e nós


duas rimos.

Nos despedimos no corredor e cada uma vai para a sua sala de aula,

mas não consigo parar de pensar no Roberto. Nós dois faríamos um lindo
casal juntos.

Os dias vão se passando e minha vida segue à rotina normal, não tive

mais notícias do Gonzales e agradeço a todas as energias cósmicas por isso,


ele deve ter caído em si e seguido seu caminho. Eu ando cada vez mais feliz
e os flertes com o Roberto continuam, até parei com o uso de antidepressivo
de vez. Minha psicóloga mudou minhas sessões semanais para quinzenais,
ela também notou minha melhora, disse que esse reencontro com o

Gonzales me fez bem e talvez seja o ponto final que tanto precisava na
nossa história, me sinto mais leve e segura. Agora posso seguir em frente,

bem longe desse espanhol maluco.

Hoje é segunda-feira e mais uma linda semana se inicia, o dia está


ensolarado e lindo. Chego de bom humor na escola, meus alunos entram na

sala de aula alvoroçados como uma manada de bezerros desmamados.

— Bom dia, meus amores, hoje vamos iniciar a aula com um

trabalhinho em grupo que montei ontem para vocês — digo animada, mas

só ouço resmungos.

Não me abalo, é sempre assim, no começo reclamam, depois que

começam a fazer o trabalho em grupo é a maior festa. Pego o envelope na


minha pasta e começo a distribuir as folhas nas mesas.

— Olha, tia Sol, acho que tem alguém querendo falar com a senhora

— avisa Clarinha, a mais calada da sala apontando na direção da porta.

Deve ser alguém que tenha de fato chamado a sua atenção, porque são

raras as vezes que usa o dom da fala. Quando me viro para ver de quem se
trata, deixo todas as folhas que estão nas minhas mãos caírem, espalhando-

se por todo o chão da sala.

— Yo sabia que cedo ou tarde os nossos caminhos iriam se cruzar

novamente, Cariño. — Um sorriso desliza dos lábios do Gonzales e seus


olhos verdes brilham como dois faróis reluzentes, o cabelo está avulso

sobre o rosto.

Ele está de barba feita e o cabelo bem cortado como se tivesse


acabado de sair de uma barbearia e vindo direto pra cá, ou seja, mais lindo

do que nunca. Os três primeiros botões da sua camisa branca foram

deixados abertos propositalmente para dar uma pequena amostra do seu


peitoral bronzeado cheio de músculos. No começo fico sem reação, abro a

boca e fecho e não sai absolutamente nada. Nadinha. Meus alunos dividem

o olhar entre mim e o estranho parado na porta, nunca me viram perder as

palavras antes. Mas imediatamente me recomponho e ataco.

— Mas o que você está fazendo aqui, Gonzales? – Sou obrigada a

apoiar a mão no quadro negro para não cair dura no chão.

O cretino não me responde nada, fica ali parado me olhando ainda

com o sorriso estampado no rosto. Suas mãos estão casualmente enfiadas

no bolso da calça caqui, o brilho do Rolex no seu pulso quase ofusca minha
visão.
— Eu não vou perguntar de novo, espanhol, o que você quer aqui no

meu local de trabalho, sendo que deixei bem claro para você me deixar em

paz? — Meu tom sai mais rude do que deveria e as crianças começam a
cochichar e trocar olhares.

Para evitar mais escândalo, empurro Gonzales para fora da sala e

deixo a porta entreaberta de maneira que consigo passar os olhos nas


crianças enquanto expulso esse homem da minha vida de uma vez por

todas, nem que para isso eu precise pedir reforço ao exército brasileiro.

— Yo no vim aqui atrás de você como está pensando, Cariño. Nosso

encontro foi outra coincidência, é o universo conspirando ao nosso favor. —

Puxa o canto esquerdo da boca em um ato perigosamente sexy.

Eu analiso o seu rosto bonito à procura de algum vestígio de verdade

na sua palavra, mas não encontro nada além da cara mais deslavada do

mundo. Quase tive um infarto quando o vi parado na minha porta, mas


Gonzales não parecia nada surpreso.

— Ah, é mesmo? Então me explica o que está fazendo em uma

escola, especificamente parado na porta do segundo ano, onde eu


coincidentemente sou professora. — Cruzo os braços sobre o peito, louca

para meter a mão na cara dele na primeira oportunidade que aparecer.


— A resposta é bem simples, Solange. Yo vim trazer minha irmãzinha

no primeiro dia de aula na escola nova. A diretora disse que a sala dela fica
nesse corredor, mas acho que estamos perdidos. No é, Lupita? — Baixa o

olhar para a menininha de sorriso doce segurando a sua mão, muito

parecida com o Gonzales, por sinal.

Uma versão feminina do espanhol em tamanho menor e linda demais.

No entanto, vestida de um modo que eu chamaria de um tanto sério demais

para alguém da idade dela. Não é todo dia que uma criança aparece nessa
escola de blusa social branca debaixo do blazer e saia na altura do joelho.

Os sapatos são pretos com meias de babado da mesma cor. O que acredito

ser a sua mochila é uma pasta de couro marrom tipo aquelas que os CEOs
de empresas multimilionárias usam.

Jamais imaginaria que um homem na idade do Gonzales teria uma

irmã ainda no ensino fundamental, muito menos que seria amoroso e


atencioso com ela a ponto de trazê-la no seu primeiro dia de aula na escola

nova.

Intrigante…

— Olá, professora Solange, yo soy Maria Guadalupe Gonzales e estou

muito animada em fazer parte desta entidade de ensino. — Sorri educada e


aperta a minha mão firmemente, só nisso percebo que tem a personalidade

forte.

Reparo o coque severo feito ao topo de sua cabeça, igual de gente


grande.

— Seja muito bem-vinda, Maria Guadalupe. — Me abaixo para ficar


da sua altura; apesar das roupas sérias, parece uma flor do campo de tão

fofa e delicada com esses cílios compridos sobre os olhos esverdeados e as

bochechas coradas.

— Obrigada, professora Solange, você é muy bela também. — Me

surpreende com um beijo no rosto e fica brincando com as minhas tranças.

Ergo a sobrancelha, tem alguma coisa de muito errada acontecendo

aqui. Primeiro o reencontro casual na delegacia, algumas semanas depois a

irmã fofa do Gonzales começa a estudar na escola que eu trabalho. É muita

coincidência para um intervalo de tempo tão curto, tem alguma coisa de


muito errada no meio disso.

— Obrigada, querida, você também é muito linda. Agora me diz, em


qual ano você foi matriculada?

— Yo tenho oito anos, mas estou no quinto ano — explica bem

instruída.
— Como assim oito anos e já está no quinto ano, querida? — Olho

confusa para o Gonzales, normalmente crianças nessa idade ainda estão no


terceiro ano.

— Sim, Sol, minha irmã pulou duas séries na escola antiga porque é

“evoluída demais” para uma criança da sua idade — Gonzalez diz


orgulhoso.

— Na verdade, yo sou mais inteligente do que muitos adultos por aí


— diz a pequena, sem nenhuma modéstia.

De fato, essa menina sem sombra de dúvidas é irmã do Gonzales.

— Se está no quinto ano, meu amor, essa é a sua nova sala. O nome

do seu professor é Roberto. Tenho certeza de que vai gostar dele, é um

homem incrível. — Aponto para o final do corredor e sorrio debaixo de um


olhar muito feio do Gonzales, cheio de ciúme.

Estou feliz que a Lupita vai estudar na mesma sala do meu irmão,

com muita sorte ela se torna amiga dele. Houve um ano que tive a sorte de
pegar a turma do Rafael para dar aula, então pude ficar de olho nele. Notei

que só um coleguinha de classe, Maximilian, filho do Juiz Thompson e da

Yudiana, interagia com o meu irmão dentro da sala de aula e durante o


intervalo. É um menino incrível.
— Yo vou entrar, Gonzales, no quero chegar atrasada. Tchau, irmão,
te amo — fala de um jeito muito fofo.

Gonzales pega a irmãzinha no colo, pensei que esse homem não


pudesse amar alguém além dele mesmo. Mas pelo jeito que ele olha para a

pequena, cheio de ternura, eu estava muito enganada.

— Yo te amo mais, docinho, seja uma boa menina e respeite o seu

professor. — A abraça forte, fitando-me por cima do ombro da menina.

González a coloca no chão e espera a Lupita entrar na sala para


colocar as manguinhas para fora. Me olha como se pudesse enxergar por

debaixo da minha roupa, com aquela cara de quem está pronto para dar o

bote.

— Enfim a sós, Cariño. No consigo esquecer a noche que passamos

juntos naquela cela, foi tão romântico — sibila em um tom baixo, dando um
passo na minha direção.

Dou dois para trás.

— Eu também não consigo esquecer, infelizmente. — Elevo o olhar,


amarga.

— Foi tão ruim assim para você ficar um tempo comigo?

— Você não faz ideia do quanto, Gonzales — minto, porque o que


tivemos aquela noite está longe de ser algo ruim, eu até me diverti um
pouco para falar a verdade.

Apesar de que não consigo tirar aquela maldita música que cantamos
juntos da cabeça, sua voz sedutora está grudada na minha mente.

— Diga o que quiser, mujer, yo no acredito. É bom se acostumar com

a ideia de que vamos passar o resto de nossas vidas juntos, pode ir


escolhendo o vestido de noiva — afirma.

Como se já tivesse ganhado uma guerra que só existe na cabeça dele,

porque o seu galanteio não cola comigo.

— Essa é a última vez que aviso, Alejandro Gonzales, se não parar


com essa história de casamento vou denunciá-lo por assédio – ameaço com

o dedo dentro do seu rosto.

— Você fica tão sexy quando está nervosa assim, Solange. – Cruza os
braços e me encara com deboche.

— Vai para o inferno! — Jogo minhas tranças longas na cara dele e

entro na sala de aula bancando a durona, mas totalmente desestruturada


com a sua presença.

— Bom trabalho, Cariño. Vejo você em breve. — Ouço sua risada

divertida antes de eu bater a porta na sua cara.

Essa manhã ensolarada de segunda-feira não parece mais tão linda


para mim, uma forte tempestade está para vir e eu não sei se dessa vez
sobreviverei a ela.
Gonzales

— Você me deve trezentas pratas, hermano. — Lupita me dá um tapa

no braço assim que entra no carro, fui buscá-la depois da aula na esperança
de ver Solange novamente, mas nem sinal dela.

Deve estar me evitando aquela diaba, yo quero ver até quando vai

conseguir fugir de mim. Sei ser bastante persuasivo quando quero.

— Como assim, Maria Guadalupe? No banque a esperta comigo,


menina, o combinado foi duzentas pratas. — Olho feio para ela, essa
chiquita sabe muito bem como tirar dinheiro de alguém.

E pensar que o nome dessa malandrinha foi escolhido pelos nossos


padres em homenagem à Santa Maria de Guadalupe porque sempre foram

muito devotos a ela, afinal, havia concedido a eles o milagre da paternidade


mais uma vez no final do segundo tempo. Mas a menina é uma verdadeira

pestinha, dá nó até em gota d´água.

— Os cem a mais são por me fazer mentir para nossos padres que yo

no gostava mais de estudar na minha antiga escola só para me transferirem

para essa em que a sua namoradinha trabalha e me usar como desculpa para
se encontrar com ela. Pensando bem, yo quero quinhentas pratas. —

Estende a mãozinha para mim à espera do seu pagamento.


— No, senhorita! Isso é muito dinheiro para uma criança de oito anos.

Dos três irmãos, Lupita é a melhor no quesito negociação. Se yo e

Luiz Fernando somos dois homens muito bem-sucedidos, ela vai dominar o

mundo quando crescer.

— Tudo bem, Gonzales, quando yo chegar em casa vou contar toda a

verdade para a mamá — ameaça debochada, pega os meus óculos escuros

em cima do porta-luvas e coloca com as perninhas cruzadas.

Essa menina veio de outro planeta, só pode! Vou aceitar a sua

chantagem porque sei muito bem que, se yo no parar por aqui, essa
conversa terminará comigo devendo a metade do meu patrimônio para uma

criança de oito anos.

— Tudo bem, sua ladrazinha, espero que no vá comprar tudo isso em


doces. — Abro a carteira e tiro cinco notas de cem reais e dou a ela, seus

olhinhos chegam a brilhar.

Essa pestinha no tem jeito mesmo e yo a amo muito, no queria

colocar minha irmã no meio do meu plano para conquistar a Solange, mas
foi a única brecha que encontrei para conseguir me aproximar dela de

maneira natural e sem levantar suspeitas. Depois que saí da delegacia

aquele dia fiquei pensando que dessa vez preciso usar uma técnica

diferente, já que ficou bem claro que usar força e poder no funciona com
ela, ao contrário, meu jeito arrogante só serviu para afastá-la ainda mais de
mim.

— Claro que no, cabrón, yo no sou mais criança para comer doces.

Estou juntando dinheiro para criar a minha própria empresa. Quero ser uma

CEO de sucesso, linda, independente e montada na grana — suspira com a

mãozinha no queixo, no sei de onde ela tira essas coisas que fala.

Mamá acredita que Maria Guadalupe nasceu com a alma de uma

pessoa adulta, porque fala e faz coisas que no condizem com a sua idade.

Sendo sincero, as mulheres com quem yo costumo sair no têm nem a

metade da maturidade da minha irmãzinha de oito anos. Ela tem um cofre

gigante onde guarda noventa por cento da sua mesada todo mês para

investir no momento certo, é uma feminista assumida, fala três idiomas e


está aprendendo o quarto.

Faz aula de natação, piano, yoga e capoeira, mais outras coisas que

nem sei o nome. Não faço ideia de onde ela tira tanto tempo para fazer tanta

coisa ao mesmo tempo.

— Yo no sei o que faço com você, chiquita! — Tiro uma mão do


volante e faço cosquinhas nela sem tirar os olhos da estrada, suas

gargalhadas são contagiantes.

Lupita é a melhor parte de mim.


— Mas falando sério agora, Gonzales, qual é o seu lance com a

professora bonitona? Viu aquelas tatuagens no braço dela? Santo Dios mio,
yo mal posso esperar para fazer dezoito anos e tatuar pelo menos cinquenta

por cento do meu corpo. — Estreito os olhos na direção dela, que apenas dá
de ombros e continua tagarelando.

— Yo também amei o cabelo dela, será que a mamá vai me deixar


fazer aquelas tranças incríveis? — pergunta esperançosa.

— No sei, docinho, talvez se pedir a ela com carinho. — Aperto a sua

bochecha.

— Você e a Solange vão se casar? Porque super aprovo, gostei dela. E

no é só yo, meu novo professor, o Roberto, que devo salientar ser um gato,
está a fim dela. Os dois passaram o intervalo inteiro conversando e rindo —

conta e o meu sangue ferve.

Aperto o volante com tanta força que quase arranco fora, no conheço
esse professor Roberto, mas já quero a sua cabeça servida em uma bandeja
no meu jantar. Lembro do jeito meloso que a Solange falou o nome dele

hoje de manhã:

“O nome do seu professor é Roberto. Tenho certeza de que vai gostar


dele, é um homem incrível.”
Na hora fiquei puto devido ao jeito íntimo que a Sol falou o nome

desse cara, logo saquei que tinha algo no meio, mas no quis fazer uma cena
logo de cara. Contudo, de jeito nenhum yo vou deixar esse babaca levar a

melhor.

— Qual é o negócio dessa vez, pestinha? — vou direto ao ponto,


Lupita no tocou nesse assunto por acaso.

— Você me conhece como ninguém, hermano. — Sorri com os olhos


semicerrados. — Agora vamos aos negócios, yo quero mais duzentas pratas

por semana para vigiar o seu rival, sempre que o vir com a sua donzela vou
dar um jeito de cortar o barato dele.

— Trato feito, pestinha. — Bato a minha mão na dela.

Antes de voltar para o trabalho, passo na casa dos nossos padres para
deixar Lupita. Meu irmão e a chata da noiva dele estão lá com a mamá,

ajeitando os últimos preparativos do casamento deles, que será em breve


aqui mesmo na vila só de espanhóis onde os meus pais moram. Nós

amamos o Brasil, mas temos orgulho de onde viemos e mantemos as


tradições do nosso país. Tudo começou com uma pequena comunidade
unida de imigrantes, mas muita coisa mudou por aqui nas últimas décadas,

e as ruas simples se tornaram um bairro só com casas luxuosas.


Tudo é decorado com as cores marcantes amarela e vermelha da
bandeira da Espanha, temos lojas e mercados que vendem produtos vindos
de lá e todo mundo só se comunica na nossa língua nativa. Temos um

pedacinho da Espanha bem no Rio de Janeiro, meu lugar favorito em todo o


mundo, porque foi onde vivi a época mais feliz da minha vida brincando

descalço pelas ruas com o meu irmão e amigos. Mis padres chegaram nesse
país como imigrantes e dois filhos pequenos debaixo do braço e sem
nenhum centavo no bolso, mas foram acolhidos nesta comunidade de

espanhóis com muito carinho.

Logo papá arrumou um emprego na casa dos Thompson como


jardineiro, lá conseguiu emprego para a esposa como cozinheira. Foi assim

que me tornei o melhor amigo do único filho deles, John. Aos poucos mis
padres foram crescendo financeiramente, e Antônio Gonzales abriu sua
própria empresa de jardinagem, que hoje tem várias filiais pelo país. Já

Carmem Gonzales suou para criar os filhos e realizar o sonho de fazer


faculdade de psicologia. Mesmo depois da nossa família ter se tornado

muito rica, ela ainda atende no seu consultório para pessoas carentes que
não têm condições de pagar.

— Upa, upa, cavalinho. Mais rápido! — pede Lupita entre as risadas


altas ao entrarmos na ampla sala da mansão da família Gonzales, desde

pequena ela sempre gostou de ser carregada nos meus ombros.


— Olha quem chegou, a minha bonequinha. Vem aqui dar um beijo
no seu hermano. — Meu irmão levanta do sofá e vem nos receber, Lupita
desce dos meus ombros e corre até Luiz Fernando com os braços abertos.

— Olá, Nando, yo estava com saudades de você. — Abraça a cintura

de Nando, ele a mima tanto quanto yo.

— Yo também, mi amor, como foi seu primeiro dia de aula na escola


nova? — Joga Lupita para cima, se a chegada dessa pestinha foi a melhor

coisa que aconteceu na minha vida, na do meu irmão no foi diferente.

Luiz Fernando é três anos mais novo que yo, muito estudioso e bem-

sucedido no meio da indústria de marketing. É um bom hombre e o amo

demais, tenho muito orgulho dele, porém somos completamente diferentes


em tudo. Ele é branquelo e tem os cabelos ondulados e usa óculos de grau,

um verdadeiro nerd, puxou o lado da família de papá, todo certinho e

romântico sem causa. Enquanto yo sou um putão assumido. Yo fodo


gostoso, ele faz amor e por aí vai.

Apesar de todas as diferenças entre nós, sempre nos demos muito

bem, a única vez que discordamos de algo foi quando ficou noivo da
patricinha da Camila.

— Foi incrível, no é, Gonzales? — A pestinha me fita com os olhos


estreitos.
— Sim, princesa, yo também gostei bastante de tudo o que vi na sua

escola. — Sorrio amarelo.

— Quando nossa madre me disse hoje que você se ofereceu para

levar a Lupita na escola nova, Alejandro, yo sinceramente no acreditei. Está


sempre tão ocupado no trabalho que nunca tem tempo para a família. —

Emburrado, Luiz Fernando empurra os óculos de grau para trás, ele tem alto

grau de miopia.

Mas meu irmão está certo! Depois que yo abri minha própria empresa

de defensoria, tenho aparecido cada vez menos aqui na casa dos nossos

padres. Diferente dele, que mora com a namorada já faz um ano, mas os
dois passam mais tempo aqui do que no apartamento deles.

— Não sei como, mas aposto que tem rabo de saia no meio —

alfineta minha cunhada, sem tirar os olhos do caderno de notas que está nas
suas mãos.

Ignoro a presença dessa sonsa e respondo à pergunta do meu irmão.

— Por isso mesmo, Nando, yo tenho ficado enfiado naquela empresa

e sinto muita falta de passar mais tempo com os meus irmãos — no minto.

De fato, quero voltar a ser mais próximo da minha família, eles são tudo
para mim.
— Yo também sinto saudades de passar mais tempo com você,

cabrón, espero te encontrar mais vezes por aqui. — Luiz Fernando me

abraça com a Lupita no seu colo, quase amassamos a coitadinha entre nós.

Nem acredito que o meu irmãozinho vai se casar de verdade. Mesmo

achando que será o maior erro de sua vida, vou apoiá-lo e fazer deste um

dia inesquecível para ele. Afinal, yo serei o seu padrinho.

— Que cena linda, meus três filhos lindos juntos. — Mamá levanta

emocionada e vem se juntar ao nosso abraço.

— Dale! Que yo quero fazer parte desse abraço em família também.

— Antônio Gonzales aparece na porta da cozinha com a roupa toda suja de

terra, mi padre faz questão dele mesmo cuidar do nosso jardim até hoje.

— Eu preciso registrar esse momento, não se mexam que vou fazer

uma foto. — Camila joga o caderno sobre a mesinha de centro, pega o


celular e tira algumas fotos e depois manda no grupo de WhatsApp da

família, em que a intrometida se enfiou através do meu irmão quando mal

eram namorados ainda.

As fotos que a minha cunhada tirou até ficaram legais, tanto que

escolhi uma para colocar na tela do meu celular, yo tinha me esquecido

como é bom estar em casa. Acabo desmarcando todos os meus


compromissos de trabalho e passo o resto do dia com a minha família para
ajudar nos preparativos finais do casamento do meu irmão. Faço questão de

ir contra tudo o que a Camila fala só para vê-la nervosa e depois rir da cara
dela. Luiz Fernando chama minha atenção, mas acaba rindo e o nosso padre

também. Ela no é uma pessoa ruim, porém moralista demais.

— Então, Gonzales, em vez de ficar criticando tudo o que eu escolho,

me diz se já achou alguma mulher decente para ocupar o posto de madrinha

do seu lado no meu casamento? — Camila cruza as pernas e me encara sem

paciência.

— O Gonzales arrumar uma mulher decente? É mais fácil chover

elefante. — Luiz Fernando rola no tapete de tanto rir da minha cara, chega a
doer a barriga.

— Desculpa, filho, mas yo sou obrigado a concordar com o seu irmão

— papá entra na zoação, só me faltava essa.

Deixo os dois rirem bastante da minha cara, então anúncio:

— Pois yo já achei alguém, se vocês querem saber. — Difícil vai ser

ela aceitar, penso comigo, mas guardo só para mim. – E inclusive, pretendo

me casar com ela muito em breve. Estou apaixonado! – dou a notícia à

queima-roupa.

Todo mundo na sala fica em silêncio. Não se ouve nem uma

respiração. Meu irmão e o nosso padre trocam olhares e depois os dois me


fitam literalmente de queixo caído, eles sabem quando yo estou mentindo e

nesse momento estou falando muito sério.

— E alguma coisa me diz que essa mujer será a nossa nora, Antônio!
— mamá grita lá da cozinha enquanto monta o menu do nosso jantar.

— Gonzales apaixonado, essa é boa. Só acredito quando conhecer


essa pobre moça. – Meu irmão puxa o coral de risadas, ninguém me respeita

nessa casa.

Saio sem dizer nada e me enfio no escritório, no aguento mais no ser


levado a sério por essa família. Logo papá e Luiz Fernando vêm me fazer

companhia com três cervejas. No perguntam nada sobre minha vida

amorosa, apenas bebemos e colocamos a conversa em dia. Camila ajuda a


sogra na cozinha, à noite tivemos um jantar muito agradável em família, no

lembro a última vez que comi tão bem. Cheio feito um porco velho, decido

tomar um banho e passar a noite por aqui mesmo no meu antigo quarto.

Tudo está do mesmo jeitinho que yo deixei quando era apenas um

jovem cheio de sonhos, os quais consegui realizar todos e muito mais, e

ainda assim no consigo me sentir feliz por completo.

É como se faltasse uma parte de mim perdida por aí…

— E o nome dela é Solange, futura senhora Gonzales — digo para o


silêncio do meu quarto sorrindo, queria muito poder estar com ela nesse
momento.

Pego minha guitarra pendurada na estante e jogo minhas costas na

cama de solteiro, eu mal caibo nela agora. Os pôsteres das minhas bandas

de rock favoritas dos anos oitenta estão desbotados, mas bem fixados nas

paredes. Eles me lembram quão bom o meu gosto musical já foi um dia, vai
de Rolling Stones a Cazuza. Resolvo tocar algumas melodias para lembrar

os velhos tempos, mas logo adormeço.

Sonho a noite inteira com a minha Solange, com ela se entregando a

mim de todo o seu coração…

Por iniciativa dela…


Solange

— Por que tanta pressa, professora Solange? – pergunta Roberto ao

me ver sair do carro e entrar praticamente correndo na escola com uma


blusa de moletom cinza e o capuz na cabeça, pareço até uma criminosa.

Tem sido assim agora no trabalho, tudo para evitar encontrar com o

espanhol trazendo ou buscando a irmãzinha na escola só para forçar um


encontro, porque seja lá o que ele está planejando, não vai funcionar. Hoje
vim sozinha porque o Rafael vem só mais tarde no segundo período, minha
mãe vai levá-lo ao dentista e depois vai trazê-lo para a escola.

— Eu só preciso terminar de montar o material da aula de hoje, ontem

o movimento no bar foi intenso e mal tive tempo de respirar. – Tiro o capuz
da cabeça, sem graça, acordei atrasada e parece que acabei de levantar da
cama com a cara toda amassada e as tranças enlaçadas umas às outras,

como um ninho de pombo.

Já Roberto parece que acabou de sair de um catálogo sobre


empresários bem-sucedidos segurando sua pasta de couro. Ele veste camisa

polo vinho engomada e enfiada dentro da calça social, sapatos novos e


óculos de leitura que usa às vezes, deixando-o ainda mais charmoso. Nesse

momento ele me fita desconfiado, acredito que percebeu que acabei de


mentir com a maior cara de pau. O movimento do bar tem ficado cada vez

mais fraco, precisamos pensar em alguma maneira de atrair novos clientes e


rápido.

Ontem à noite passamos a maioria do tempo parados, até fiz as unhas


da Lety e da Elô, deu para colocar a semana de fofoca em dia.

— Pelo que andei pesquisando sobre você, não parece ser o tipo de

professora que deixa para preparar a sua aula em cima da hora, Sol. –
Estende a mão e toca o meu queixo, sou pega totalmente de surpresa pelo

seu ato espontâneo.

Sobre o planejamento de aulas, Roberto está coberto de razão, sempre

deixo um mês inteiro preparado com antecedência.

— Então quer dizer que você anda pesquisando sobre mim, professor
Roberto? – Arqueio a sobrancelha, estamos andando lado a lado pelo

corredor estreito da escola.

— Mais do que você imagina, Solange, pode apostar!

— Sério mesmo? — Meu tom sai mais surpreso do que eu queria

demonstrar.

— Claro! Por que tanta surpresa? Você é a mulher mais interessante

que conheci nos últimos tempos, seu estilo próprio me fascina – elogia e eu
inflo feito um balão de gás, ele sabe exatamente como me fazer sentir
especial.

— Confesso que estou surpresa em ouvir isso, todas as mulheres

dessa escola, entre casadas e solteiras, são fascinadas por você e acredito

que fora daqui não deve ser diferente. – Discretamente, aceno para duas

professoras que passam por nós pelo corredor e ambas torcem o pescoço só

para olhar para ele descaradamente.

— Pode até ser, mas nenhumas delas tem o seu brilho, Solange.

Nunca conheci nenhuma mulher com algo que chegasse nem perto, é algo

só seu. — Para de andar e segura minha mão, sorvo uma lufada de ar mais

profunda e sorrio.

O sinal toca anunciando o início das aulas, aí é aquela correria das


crianças correndo pelo corredor. Somos obrigados a nos despedir

apressados e ir para as nossas salas, mas o sorriso ainda está aqui, grudado

no meu rosto.

Mas meu sorriso desfalece ao chegar na porta da minha sala e

encontrar uma das minhas alunas chorando, a mãe está desesperada com a
filha no colo sem saber o que fazer.

— Bom dia, Paula, está tudo bem? – pergunto para a mãe da minha

aluna, seu choro é tão dolorido que é de partir o coração.


A pequena Maria era a melhor amiga do Marcelinho e não está

aceitando muito bem sua partida, ela não veio na escola desde a morte dele.
Lembro que os dois sentavam lado a lado todos os dias, riam, faziam a lição

e brincavam o tempo todo juntos. Por isso tudo nessa sala a faz lembrar
dele, esse é o motivo de tanta relutância para voltar à escola.

— Bom dia, professora. Está tudo bem, mas não sei o que fazer mais
para a Maria voltar para a escola. — Faz carinho nas costas da filha que

chora ainda mais, ela está a ponto de chorar também.

Paula é uma mulher linda e anda sempre muito bem-arrumada e


maquiada, mas hoje está uma verdadeira bagunça. Os cabelos pretos longos
e lisos presos em um rabo de cavalo e a pele pálida como se não tivesse

andado dormindo direito nos últimos dias; seus olhos estão inchados e
rodeados por bolsas escuras. Faz tempo que eu sei que ela trabalha como

garota de programa e não a julgo por isso, na verdade, sinto muito pela sua
triste realidade. As pessoas dizem que a prostituição significa “ganhar

dinheiro fácil”, mas agora que já estive do outro lado da história, mesmo
que apenas uma vez, senti na pele o quanto esse meio pode ser feio e
devastador para o nosso estado mental e emocional. Fora que agora, com

esse assassino em série de prostitutas à solta fazendo várias vítimas nos


últimos meses, a mãe da minha aluna corre risco de vida também.
Além do mais, acho a Paula uma pessoa incrível e uma mãe

maravilhosa, sempre preocupada em como a filha está indo na escola, e,


dentro das suas possibilidades, faz o que pode para dar uma vida boa para a

Maria.

— Bom dia, florzinha, por que você não quer mais vir para a escola?
— Beijo o rosto da Maria, está tomado por lágrimas.

Se para os adultos é difícil enfrentar o luto, imagina para uma


criança? Elas não entendem ao certo o significado da morte.

— Eu estou com saudades do Marcelinho, tia Sol. A mamãe disse que

ele não vai voltar mais, isso é verdade? — pergunta com os olhinhos
marejados.

Paula e eu trocamos olhares, arrasadas, que situação triste.

— Sinto muito, meu amor, mas o Marcelinho não vai voltar. Mas ele
está em um lugar melhor agora – confirmo e ela fez biquinho para chorar. –

Vem aqui com a tia Solange, vai ficar tudo bem. — Ela ergue os braços e eu
a pego no colo, Maria me abraça e deita a cabeça no meu ombro.

Enquanto a acalento e a balanço de um lado para o outro, faço sinal


para Paula ir embora, eu assumo daqui com a filha dela. Se a Maria vir a

mãe indo embora sem ela, vai chorar de grito.


— Se sente melhor agora, querida? — Ela assente. — Se Marcelinho
estivesse aqui não iria gostar de te ver triste, não é? — Enrolo um dos seus
cachinhos entre os meus dedos.

— Marcelinho dizia que eu sou linda, mas sorrindo sou mais linda

ainda. — Sorri tímida com os olhos cheios de lágrimas.

— Ele tem total razão, querida. Então, toda vez que lembrar dele e
ficar triste, simplesmente sorria, tenho certeza de que Marcelinho verá onde
quer que ele esteja. — Toco a ponta do seu narizinho lindo.

Depois disso a minha pequena fica bem. Desce do meu colo e senta

na sua cadeira de sempre, com a mochila nas costas, olha para o lugar onde
o coleguinha costumava sentar, e, em vez de ficar triste, ela sorri como se o
Marcelinho estivesse lá. Sigo com a aula; quando chega o horário do

intervalo, espero as crianças saírem correndo esfomeadas para o refeitório


para então ir para a sala dos professores ter o meu amado intervalo de trinta

minutos. Minha mãe caprichou ontem no jantar e, como de costume, deixou


a minha marmita pronta para o trabalho hoje, não posso gastar com comida

fora.

Ela fez um dos meus diversos pratos favoritos, lasanha vegana

acompanhado de arroz branquinho e salada. Lá em casa comemos tudo o


que temos vontade sem remorso, meu pai sempre dizia…
“A vida é curta demais para ficarmos presos em dietas malucas ou
padrões hipócritas ditados pela sociedade.”

O resultado disso é uma esposa e uma filha acima do peso, mas isso
nunca foi problema para mim ou para a minha mãe. Temos a autoestima lá

em cima e nos amamos do jeito que somos, quem não gostar que lute. Ao
passar pelo pátio na direção da sala dos professores, vejo Rafael sentado

sozinho em um banco, desenhando no seu caderno, como sempre. Não


muito longe dele, Maria Guadalupe se aproxima de um grupo de alunos

mais velhos do sétimo ano e tenta fazer amizade com eles. Acredito que se
acha inteligente demais para interagir com crianças da sua idade.

— Buenos dias, amigos, yo soy Maria Guadalupe. Mas podem me

chamar de Lupita. Nasci no Brasil, porém mis padres vieram da Espanha


com os meus dois irmãos, Alejandro e Luiz Fernando — faz a sua

apresentação instruída com as mãos juntas atrás do corpo, como se estivesse

em uma entrevista de emprego e não tentando fazer novos amigos.

— O seu nome é estranho, garota, e você fala engraçado — o

engraçadinho da escola, Leandro, que adora implicar com os outros alunos,

principalmente os novatos, puxa o coral de risadas da sua turminha de


bagunceiros.
Fico com o coração partido com a expressão envergonhada da

espanholinha, então vou ao seu socorro.

— Será que eu vou ter que enviar outro bilhetinho para os seus pais

virem aqui na escola conversar com a diretora, Leandro Silva? — Cruzo os


braços e ergo a sobrancelha, ele já é ficha carimbada na diretoria.

Toda vez que tem uma confusão na escola, Leandro é o pivô dela. Por

muito tempo pegou no pé do meu irmão por ele ser diferente, meu jeito de
puni-lo foi chamar a mãe dele para conversar. Alessandra é uma barraqueira

assumida e faz questão de fazer o filho passar vergonha na frente dos

coleguinhas.

— No precisa, professora Solange, está tudo bem. Meu irmão,

Gonzales, me ensinou que é normal as pessoas se assustarem com o que é

diferente. — Dá de ombros e sorri astuta, acho que não é qualquer coisa que
a abala.

— Na sua casa você fala português ou espanhol? — pergunta uma


menina curiosa, estão todos intrigados com as peculiaridades da Maria

Guadalupe.

Até eu estou, essa família é um tanto curiosa.

— Falamos os dois, como mis padres moram em um bairro só de

espanhóis desde que vieram para o Brasil, yo tenho mais contato com o
espanhol do que o português, por isso falo estranho assim. Mas compreendo

bien los dois idiomas, também falo inglês e estou aprendendo francês —

explica como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Meu queixo cai literalmente, assim como de todos, principalmente o

do Leandro. Essa menina não tem nem dez anos e já fala três idiomas e está

aprendendo outro.

Jesus Cristo!

— Você não é diferente, Maria Guadalupe. Só é especial. Igual a


mim. — Rafael olha no rosto da Lupita por alguns raros segundos, então

completa: — Não sou bom com as pessoas, mas se quiser pode ser minha

amiga. — Ergue a mão para que ela aperte.

Fico emocionada, essa é a coisa mais linda que presenciei nos últimos

tempos.

— É claro que eu quero, Rafael, de todas as pessoas que conheci

nesta escola, você é a mais interessante. — Vai até ele e o abraça feliz da

vida e os meus olhos se enchem de lágrimas vendo os dois juntos, sinto que
a amizade entre eles vai ser daquelas para a vida toda.

Ainda não acredito que o meu irmão retribuiu ao abraço da Lupita,


pode ser algo normal para outras pessoas, mas para mim, que o conheço
bem, sei que é um passo imenso para se abrir para o mundo e talvez essa

espanholinha espirituosa seja sua ponte nesse processo.

— Por que você não mostra os seus desenhos para a sua nova amiga,

Rafael? — sugiro e meu irmão assente várias vezes animado, ele ama exibir
os seus desenhos.

— Yo amo desenhar, vem, Rafael. — Lupita sai puxando o meu irmão

para um banquinho no pátio, é incrível como as suas peculiaridades se


encaixam tão bem.

Sigo o meu caminho e chego na porta dos professores rindo sozinha,


no entanto, sou obrigada a parar na porta quando percebo um certo alvoroço

entre os meus colegas de trabalho.

— Aconteceu alguma coisa que eu não estou sabendo, gente? —


Franzo o cenho, são vinte pares de olhos em cima de mim.

— Me diz você, Solange, sua danadinha — insinua Bento, professor


do terceiro ano, tocando o meu ombro com uma intimidade que nunca lhe

dei.

Bento é um ruivo jovem, bonito e com um corpo legal. Mas se veste


como o meu avô e todo santo dia penteia o cabelo todo para trás com meio

pote de gel tipo “boi lambeu”, sempre é o primeiro a saber das tretas aqui
da escola e faz o papel de telejornal, espalhando a notícia como um rastro

de pólvora.

— Como pode imaginar, não faço ideia do que você está falando,
Bento.

Com as pontas dos dedos tiro sua mão suja de mim, se eu não
estivesse no meu local de trabalho seria com um tapa.

— Quando chegamos aqui, Solange, a sala estava assim. — Tess coça

as têmporas.

— Assim como, Tess? — Elevo um pouco a voz, sempre fico de mau

humor quando estou com fome.

— Veja com os seus próprios olhos, amiga. — Tess dá um passo para

o lado com um sorrisinho malicioso e eu posso ver então o motivo de tanto

alvoroço, fico perplexa.

A sala está abarrotada de buquês de flores, rosas de todas as cores e

tamanhos. Começo a rir, mas de nervoso.

— Uau! Mas hoje não é Dia dos Professores nem nada, que estranho.

— Dou de ombros.

Meus colegas de trabalho começam a rir e trocam olhares estranhos,

menos a Tess, que me olha sem graça.


— O cartão está escrito à mão em uma letra elegante que é para você,

Solange. — Uma outra professora com quem não tenho muita intimidade
me entrega o cartão, nem olho na cara dela direito de tanta raiva.

Pela colônia de homem de rua no pequeno pedaço de papel branco, já

sei exatamente quem enviou. Sou tomada por uma mistura de raiva e
vergonha por estar sendo exposta dessa forma no meu local de trabalho,

isso não vai ficar assim.

— Eu vou matar esse espanhol abusado ou não me chamo Solange

Almeida! — grito enfurecida.

No cartão estão as seguintes palavras…

“Mil rosas vermelhas para a mais bonita de todas elas.”

PS: Seu Gonzales.

Seu Gonzalez é o caralho! Minha raiva é tanta que rasgo o cartão em


mil pedaços, eu vou matar esse espanhol desgraçado.

— Você tem cinco minutos para limpar essa bagunça, Solange! –

ordena a diretora Helena, a bruxa aparece do nada.


Ela me olha feio por cima dos óculos de grau fundo de garrafa e os
braços cruzados sobre o terninho verde-água que traja, milagre não ter

gritado comigo. Essa mulher vive à espera de um motivo para me despedir

por justa causa, nunca gostou de mim de graça.

— Sim, senhora, me desculpe! — Fito os meus pés, constrangida.

Começo a levar os buquês de flores para o carro, entulhando um em

cima do outro. Não posso colocar nos latões de lixo da escola, porque

depois a diretora vai encher ainda mais o meu saco por causa dessa merda.

Como são muitas flores, peço ajuda à minha amiga Tess. Quando termino
de enfiar à força o último arranjo de rosas vermelhas no banco de trás,

tenho um acesso de raiva e chuto o pobre Chevette, xingando o espanhol de

todos os palavrões que conheço.

— Espanhol desgraçado, você vai me pagar por isso! — Esmurro a


lataria do pobre Chevette.

— Oh, amiga, o que esse homem fez com você para te deixar nesse
estado? — A voz embargada de Tess me faz cessar a raiva, ela nunca me
viu perder a compostura dessa forma.

— Fui eu mesma que fiz. — Abraço a minha amiga e aperto os olhos


ao lembrar do dia em que destruí a minha vida quando enviei aquela
mensagem para o Gonzales.
“Você ganhou, eu tenho preço. Por dez mil reais, sou sua por uma
noite. Pode fazer o que quiser comigo durante esse período. É pegar ou
largar.”

Eu estava sentada na calçada em frente ao bar depois de tomar a

quarta cerveja, meu coração batia rápido enquanto esperava a resposta do


Gonzales. Com a mão trêmula, limpei as lágrimas silenciosas que

deslizavam pelo meu rosto. Precisava de mais álcool no sangue, então abri a
quinta cerveja. Sorvi um longo gole, com os olhos grudados na tela do
celular.

— Por favor, Gonzales, não aceite a minha proposta! — Soltei o ar

pesadamente, em prece.

Apesar de precisar muito, mas muito mesmo, dos dez mil reais, no
fundo torcia para que Gonzales não aceitasse a minha proposta. No entanto,

minhas esperanças foram embora quando recebi a seguinte resposta do


Gonzales:

“Yo pego! Está livre esta noche?”

Eu apenas respondi de volta:

“Estou. Em qual horário e lugar?”

Lembro de deixar o celular cair no chão e chorar muito, desde então


aquela maldita noite que passei com ele tem me atormentado.
— Eu dormi com esse homem por dinheiro, Tess – desabafo. – Meus
lábios estremecem, sinto muita vergonha de falar nesse assunto com ela. –
Muito dinheiro. – Completo em um desvio de olhar.

— Como assim, Solange? Meu Deus! – O horror domina suas feições.


– Me explica essa história melhor, por favor. — Limpa as minhas lágrimas,
mas outras caem logo em seguida.

Depois de tanto tempo guardando todo o peso desse segredo sozinha


nos ombros, crio coragem não sei de onde e arrasto Tess para um canto
discreto e abro o jogo sobre toda a história por trás do homem que enviou as

flores. Nos mínimos detalhes. Ela fica em choque. Apesar da vergonha, me


sinto mais leve, consigo até respirar melhor agora.

— Oh, amiga, então foi assim que você conseguiu dinheiro para… –

O choro engole as palavras de Tess e ela não consegue completar a frase.

Ela estava lá em casa quando apareci com o dinheiro e viu minha mãe
cair de joelhos no chão da sala, grata pelo milagre concedido por Deus que

resolveria todos os nossos problemas. Me senti ainda pior por isso, porque
consegui aqueles dez mil reais através do pecado, não tinha nada a ver com
obra divina. Para explicar a origem de toda aquela grana, menti que

consegui emprestado com um amigo e todos acreditam nisso até hoje.


— Eu realmente não tive escolha, Tess, era tudo ou nada. Você
melhor que ninguém sabe disso. — Sorrio amarga.

Ouço um barulho estranho próximo a nós e fico em sinal de alerta,


olho para os lados para ver se tem alguém ouvindo a nossa conversa, mas
não encontro ninguém. Respiro até mais aliviada, se essa história que contei

para a Tess se espalha na escola, a diretora me demite sem pensar duas


vezes.

— Você podia ter me pedido dinheiro emprestado, Solange, mas que

merda! Eu venderia a minha casa se fosse preciso — se zanga comigo.

Eu sabia que ela faria qualquer coisa por mim, mas não seria justo
envolver minha amiga nos meus problemas.

— Não fica brava comigo, Tess, já passou. Eu te amo e agradeço por

se preocupar tanto comigo.

— Como conseguiu guardar esse segredo por tanto tempo? Deve ter
te corroído aos poucos. — Balança a cabeça, triste.

Tess me conhece melhor que ninguém, sabe que para alguém tão
orgulhosa quanto eu chegar ao ponto de fazer o que fiz é porque realmente
estava muito desesperada. Na minha situação qualquer um estaria.

— Houve momentos que eu pensei em me matar para fazer essa dor

horrível passar, mas então todo esforço que fiz não significaria nada e ainda
deixaria a minha mãe e o meu irmão sozinhos — constato.

— Não acredito que não percebi nada, eu devia ter desconfiado


quando chegou com todo aquele dinheiro. – Enxuga as lágrimas.

— Não teria como você descobrir, então para com isso. Chega dessa
choradeira, mulher, só quero comer o meu almoço em paz antes de voltar

para a sala e encontrar os meus monstrinhos lindos e cheios de energia. —


Bato com as duas mãos sobre a barriga, faminta.

— Melhor mesmo, amiga, sei como fica de mau humor quando está

com fome — brinca e nós duas rimos, voltamos para a sala dos professores
de braços dados.

Encosto na parede de cara fechada enquanto espero minha marmita

esquentar no micro-ondas, debaixo dos olhares debochados dos outros


professores. Vez ou outra alguém faz alguma piadinha sem graça ou algum
comentário maldoso, mas finjo que não é comigo. Ainda bem que o

professor Roberto não veio almoçar aqui hoje, porque aí sim a vergonha
teria sido ainda maior. Nem consigo comer direito, perdi a fome. Decido
voltar para a minha sala antes do intervalo terminar. Tess disse que iria me

acompanhar, mas precisava ir ao banheiro antes. Ela esquece o celular em


cima da mesa e assim que vira as costas o aparelho começa a tocar em uma
chamada de um número desconhecido. Desconfiada de quem poderia ser,
resolvo atender e escuto a seguinte mensagem:

“Ligação a cobrar do complexo presidiário Ary Franco, deseja

continuar essa chamada?”

— Eu sabia que estava mentindo para mim, Tessiane! – penso alto,

mas finjo que nada aconteceu, apago a ligação e coloco o celular no mesmo
lugar que ela deixou.

Eu iria resolver essa situação pessoalmente e colocar um ponto final


nisso de uma vez por todas, já que pelo jeito minha amiga não consegue

fazer isso. De jeito nenhum que deixaria a minha melhor amiga passar por
todo aquele inferno de novo, mas antes preciso resolver um assunto pessoal

importante. Conto cada segundo até o final da aula. Quando termina, pego o
Rafael e assim que entramos no carro meto o pé no acelerador.

— Por que você não está indo para o nosso bar, Solange? A mamãe
está nos esperando para ajudá-la. — Rafael quebra o silêncio depois de um

tempo, está agitado, odeia sair da rotina.

— Eu preciso passar em um lugar antes, Rafael Louis, prometo que


não vamos demorar — peço com carinho, então o show começa.
— Não, Sol! Nós sempre chegamos no bar às treze horas, quarenta e
oito minutos e trinta e dois segundos. Se não chegarmos nesse horário a

mamãe vai ficar preocupada. — Começa a balançar o corpo batendo as


costas no banco e as mãos na cabeça, ele não lida bem com imprevistos.

— Eu já mandei uma mensagem para a mamãe dizendo que vamos


atrasar um pouquinho, Rafa. Então relaxa!

— Eu já disse que não! Eu odeio atrasos… eu odeio atrasos… eu


odeio atrasos — repete sem parar ao estapear a cabeça, as pessoas passando
na calçada olham para nós, preocupadas.

Depois de passar por isso várias vezes, aprendi a manter a calma e


lidar com o meu irmão em momentos como este. Procuro a primeira vaga
disponível e estaciono, desligo o carro e respiro fundo. Me viro paciente

para o Rafael e digo em um tom bem baixinho:

— Eu te amo, Rafael. Vai ficar tudo bem, querido. Estou aqui com
você. Sempre estarei. — Toco seu ombro bem de leve, respeito as suas

limitações em relação ao contato físico.

Ele para de gritar e olha para fora através do vidro da janela


entreaberta, as mãos agora sobre o colo e os dedos entrelaçados uns aos

outros.

— Para sempre? — pergunta em um fio de voz.


— Sim, meu amor, porque, como o papai te dizia todos os dias,
lembra? Você foi a melhor coisa que aconteceu nas nossas vidas, um

presente de Deus. — Meus olhos enchem de lágrimas, depois que o papai se


foi meu irmão se fechou ainda mais para o mundo.

— Eu sinto tanta falta do papai, Sol. — Respira profundamente.

— Eu também sinto, meu amor, todos os dias. — Aperto os olhos.

— Acho que não tem problema se atrasarmos alguns minutos para ver
a mamãe. Mas só hoje, está bem? — diz no seu tom inocente.

— Está bem, eu prometo! — Dou um beijo de surpresa no seu rosto,

ele faz uma careta engraçada e limpa o local várias vezes com a manga da
blusa.

— Onde você disse que estamos indo mesmo, Sol?

— Eu não disse, Louis, mas estamos indo devolver essas flores para o
dono. Não conta nada para a mamãe, que eu te dou um caderno de colorir
novo — ele concorda, obviamente.

Olho pelo retrovisor para o banco de trás abarrotado de arranjos de

rosas vermelhas. Antes de rasgar o cartão que veio junto com elas, vi o
endereço da pessoa que as enviou. No meu rosto brota um sorriso vingativo,

dentro de mim habitam duas personalidades diferentes. Uma boa e a outra


perversa, a forma como você me trata é que vai definir qual das duas vai

conhecer.

 
Gonzales

Bufo entediado, será que essa reunión chata no vai acabar nunca,

Dios? Estou com os pensamentos em outro lugar, mas no poderia desmarcar


esse encontro de última hora com os investidores mais importantes da

minha empresa. Nem pude buscar a Lupita na escola como havia planejado,
mi padre foi no meu lugar. Yo queria tanto ver a minha Sol, estou curioso,
será que ela gostou das flores que enviei? Com certeza, toda mujer ama
receber essas besteiras.

— Desculpa, Gonzales, mas você ouviu alguma coisa sobre o que eu

acabei de dizer sobre cogitarmos a possibilidade de abrir uma filial da sua


empresa de defensoria em outra cidade? — pergunta o CEO, Paulo Varela,

um dos empresários mais respeitados deste país.

Quando abro a boca para responder, ouço gritos vindos do lado de

fora da sala.

— A senhora não pode entrar, meu chefe está no meio de uma reunião
muito importante. Marque horário e volte outro dia — explica minha

secretária Bianca, com a respiração pesada como se estivesse correndo atrás


de alguém e falando ao mesmo tempo.
— Ah, vai se lascar, minha filha! — Ouço o berro de uma voz que yo

conheço muito bem, engulo em seco e afrouxo o nó da gravata.

— Yo estou fodido! — penso em voz alta.

Todos olham para mim confusos, mas logo entendem quando as


portas da sala de reuniões se abrem bruscamente.

— Mas quem é essa negra maluca? — Paulo aponta com desdém para
a Solange, parada na porta segurando vários buquês de flores ao mesmo

tempo.

Seus olhos raivosos caem sobre mim, minha vontade é socar a cara
dele por falar assim da minha mujer. Mas no tenho tempo de tomar

nenhuma atitude, Solange se defende sozinha do comentário grosseiro desse

babaca.

— Fica na sua, velho metido, ou vai sobrar para você também. O meu

problema é com ele. — Aponta o dedo para mim, faço cara de desentendido

como se no fosse comigo.

Percebo que Solange no está sozinha, tem um garoto com ela, yo já o

vi uma vez em uma festa na casa do John e Yudiana, é o seu irmão mais

novo. Os dois têm os mesmos traços faciais, mas ele é alto e magro. Tem

algo diferente nele. O olhar distante, como se estivesse em qualquer lugar,

menos aqui.
A vista privilegiada da janela panorâmica da sala de reuniões da
empresa parece agradá-lo, porque olha fixamente para ela.

— Me desculpem a todos os presentes pelo transtorno. Yo conheço

essa moça e vou conversar com ela na minha sala, volto em alguns minutos.

— Puxo os cantos da boca e forço um sorriso.

— Não vou a lugar nenhum com você, espanhol. Só vim aqui


devolver isso. — Joga todas as flores em cima de mim, sem nem um pingo

de gentileza, esfregando as pétalas vermelhas na minha cara.

Yo perco a paciência, tudo tem limite. E essa mujer já passou de todos.

— Quem você pensa que é para invadir a minha sala e me

desrespeitar dessa forma, cabrona? — Fico de pé e bato a mão fechada em


punho sobre a mesa.

— Quem você pensa que é para enviar esse monte de flores para o

meu trabalho, seu filho da puta? — Aproxima nossos rostos com um olhar

desafiador.

— Yo só queria te agradar, pensei que gostaria da surpresa.

— Esse é o meu último aviso, Gonzales. Fica longe de mim ou vou te

mostrar quão perigosa posso ser quando me sinto coagida — ameaça com

os olhos estreitos, nunca quis tanto beijar uma mujer em toda a minha vida

como quero beijar a Solange nesse momento.


Meu pau vibra na mesma hora, caramba! Toda essa marra da Solange

me deixa com um tesão da porra, por mim yo jogava esse seu corpo
delicioso em cima dessa mesa e no me importaria nem um pouco em fodê-

la bem gostoso na frente de todos os meus sócios.

— Pois você que tente, Solange Almeida! Yo sou o advogado mais

poderoso desse país e sempre consigo o que quero de um jeito ou de outro,


pensei que já tinha deixado isso bem claro naquela noche que dormiu

comigo — provoco e as consequências logo vêm.

Solange me dá uma bofetada com tanta força que um zumbido ecoa


dentro dos meus ouvidos, mas yo mereci essa.

— Ainda bem que eu nunca cometo o mesmo erro duas vezes,


Gonzales — rebate amarga.

É o que veremos, Cariño!

Sorrio irônico e massageio o lugar onde provavelmente a marca dos


seus cincos dedos está “xerocada” na minha face, se ela veio aqui disposta a

me afastar só conseguiu aumentar ainda mais a minha obsessão para que


seja minha.

— Já terminou, mi amor? — Agora sou yo que me inclino e aproximo

o meu rosto do dela, nossos lábios quase se tocam. — Ou tem mais alguma
ameaça? Porque, como pode ver, estou um pouco ocupado no momento.
Mas podemos continuar essa conversa em um momento mais propício. —

Dou um sorriso de canto, fitando-a de cima a baixo de um jeito imoral.

Solange joga as suas tranças para trás, toda desconcertada. Ponto para
mim, muchacha!

— Não. Nossa conversa termina aqui, Gonzales. Adeus! E dessa vez


é definitivamente. — Gira o corpo e sai rebolando, fico hipnotizado vendo

as pontas das tranças longas batendo na copa da sua bunda grande.

Sento de volta na minha cadeira de couro preta, rindo nem um pouco


preocupado com os olhares feios dos meus sócios, essa diaba me

enlouquece. Esse jogo está começando a ficar interessante.

— No está esquecendo de nada, Solange? — alerto.

Ela para de andar antes de passar pela porta.

— Vem, Rafael Louis, a mamãe está nos esperando — diz sem olhar

para trás.

— Estou indo, irmã. Só preciso de mais um segundo — responde

compenetrado seja lá no que for.

O garoto arranca uma folha do caderno que no percebi que tinha em


suas mãos e deixa sobre a minha mesa; antes de ir embora, diz:

— Essa sala tem uma vista receptiva e agradável, pena que eu não
posso dizer o mesmo das pessoas que estão dentro dela — pontua sem
sarcasmo ou ironia, só compartilha sua constatação conosco.

Dado o seu recado sem olhar para nenhum de nós sentados na mesa

em nenhum momento, permanece parado próximo à mesa. Yo fico sem


graça e espero que o meu sócio que chamou a irmã dele de gorda maluca

também, um hombre de verdade no ofende uma mulher dessa forma.

— Vem logo, Rafael! — grita Solange com mais ênfase, ele sai
correndo para conseguir alcançar a irmã.

Depois que as minhas “visitas” saem o clima fica ainda mais tenso, o
empresário Paulo Varela no tem papas na língua quando está nervoso, e é o

primeiro a se manifestar depois do ocorrido.

— Mas que palhaçada acabou de acontecer aqui, Gonzales? Não sei


como conseguiu construir uma empresa de sucesso como esta, se nem
consegue controlar as putas que come — se exalta, mas com certeza no

mais do que yo.

— Eu concordo com o Paulo, você nos deve um pedido de desculpas,


Gonzales. Essa reunião foi uma baixaria. — Outro sócio eleva a voz, mas
no me dou ao trabalho nem de olhar para ele, sempre foi uma planta que só

concorda com tudo o que o Paulo fala.

Um puxa-saco de galocha.
— Você a chamou de quê, Paulo? — pergunto com veias pulsantes no
pescoço, se ele repetir sou capaz de matá-lo.

— De puta! Tudo bem comer esse tipo de mulher, eu mesmo durmo


com muitas. Porém só as bonitas e novinhas, não essas negrinhas gordas

barraqueiras. Aposto que é favelada. — Solta uma gargalhada debochada;


quando dou por mim já estou socando a cara desse hijo de una putana.

Foi preciso a minha secretária chamar os seguranças da empresa para

me tirar de cima desse crápula, preciso pesquisar as pessoas com quem


ando fazendo negócios.

— Sério mesmo que me agrediu por causa daquela mulherzinha? Eu

vou te denunciar por agressão. — Limpa o sangue escorrendo do seu nariz,


minha vontade é de partir para cima dele de novo.

Mas dois dos meus melhores seguranças estão me segurando antes


que o pior aconteça, estou a um passo disso.

— Quem vai te denunciar por racismo soy yo, seu maldito! Já que é

um dos melhores advogados desse país, deveria saber que esse crime é
inafiançável. E nunca mais fale assim da minha mujer novamente ou mato

você, entendeu bem? Nossa parceria termina aqui! No faço negócios com

gente da sua laia.


Tento me soltar para partir para cima dele novamente, mas os

seguranças entram na minha frente. Descontrolado, expulso todos da sala de


reuniões.

— Esse soco que me deu no rosto não vai ficar assim, Gonzales! —
insiste aos gritos enquanto é arrastado para fora.

— Mas no vai mesmo, Paulo. Vai ficar roxo e inchar. — Rio da cara

desse verme.

Yo nunca vali nada e sempre assumi isso, as mujeres que ficam

comigo sabem exatamente com quem estão lidando. Mas no admito


nenhum tipo de preconceito e racismo com ninguém na minha frente, muito

menos com a minha mujer.

— Desculpa, Gonzales, por eu não ter conseguido segurar a moça que


invadiu a sala, ela parecia um cão raivoso. — Minha secretária começa a

chorar, a coitada nunca me viu perder a compostura como hoje.

— No foi sua culpa, Bianca, só arrume essa bagunça, por favor. —

Olho para aquele monte de flores lindas espalhadas pelo chão, que

desperdício.

— Mas e esse desenho, senhor? É para jogar no lixo também?

— Que desenho, Bianca? — Enrugo a testa.


— Esse, senhor, em cima da sua mesa. — Pega a folha que o irmão da

Solange deixou e me entrega.

Olho para a folha e depois para a vista da janela panorâmica da sala


de reuniões, são idênticas até nos mínimos detalhes. Os traços da copa dos

prédios em riscos que dão uma impressão 3D, é possível ver o Pão de

Açúcar e o mar azul banhado por espumas brancas. Mas nada se compara
ao Cristo Redentor ao fundo, simplesmente magnífico. Sou um admirador

de artes e posso afirmar que nunca vi nada parecido antes, esse garoto tem

um talento nato.

Fazer uma criação dessas em menos de cinco minutos no tem

explicación. Estou de fato impressionado.

— Aquele garoto é um verdadeiro artista! — penso em voz alta.

Guardo o desenho na minha carteira e resolvo sair para arejar um


pouco a minha cabeça, no estou em condições psicológicas de permanecer

nessa empresa agora.

— O senhor vai sair? — Bianca para o que está fazendo para se


intrometer na minha vida.

— Sim, e talvez no volte mais hoje.

— Mas o senhor não pode, chefe, tem outra reunião daqui a meia hora

com o grupo principal de advogados sobre aquele caso importante. — Anda


atrás de mim com o salto fino em atrito com o chão causando um barulho

irritante, que mujer chata, nem acredito que já comi ela em cima da minha
mesa uma vez.

— Cancele, Bianca, e no me atormente mais! — Entro no elevador e


enquanto as portas de aço se fecham yo observo a expressão aflita da minha

secretária me vendo partir, desço até a garagem, pego meu carro e saio

cantando pneu.

Minha vontade é ir atrás daquela desgraçada e continuar a nossa briga

de onde paramos. Estou muito puto com a Solange. Mas procurá-la de

cabeça quente só vai piorar as coisas, yo sou gasolina e ela puro fogo.
Juntos somos pura nitroglicerina.

— Porra! – Soco o volante, furioso.

No entendo por que essa mujer mexe tanto comigo, quanto mais me

rejeita, mais yo me apaixono por ela e tenho certeza de que precisa ser

minha. E será. Mas até lá vou precisar da ajuda de muito álcool no sangue
para conseguir segurar a barra. Solange tem o poder de me deixar à beira da

loucura, nem trabalhar mais como uma pessoa normal consigo. Vou para

casa em plena luz do dia e um monte de assuntos importantes para resolver

na empresa, mas no estou nem aí. Estou uma pilha de nervos, no faço sexo
há semanas.
Estou na seca desde que reencontrei a Solange. Para quem estava

acostumado a fazer sexo todo dia é a mesma coisa que o inferno, mas jurei

para mim mesmo que agora sou hombre de uma única mujer e serei fiel ao

meu amor para sempre.

— Mas fazer isso no vai ser nada fácil, cabrón! – Olho para o meu

pau duro dentro da calça, resolvo tomar um banho frio assim que chego em
casa para acalmar os ânimos.

Acendo as luzes e chuto os sapatos no tapete da sala, jogo minha

maleta em cima do sofá e depois de tirar o paletó ele tem o mesmo destino.
Afrouxo o nó da gravata enquanto escolho uma música relaxante no meu

celular que coloco para tocar no sistema de som moderno instalado por toda

a casa, tudo aqui é de alta tecnologia. Tomo banho e obviamente me


masturbo debaixo do chuveiro pensando nessa mujer infernal, mas quando

yo estou quase lá, prestes a gozar, ouço um barulho vindo da cozinha e saio

do banheiro pelado e molhado para conferir o que foi.

— Que nojo, Gonzales! Vai cobrir essa coisa, cara. – John cobre os

olhos com as mãos para não ter que olhar para o meu pau duro, um pobre

hombre no pode nem se aliviar em paz na sua própria casa hoje em dia.

— Mas que porra você está fazendo na minha casa, no tem trabalho

para fazer no seu gabinete, juiz Thompson? – Coloco as mãos na cintura,


minha ereção ainda está firme e forte apontando para o teto.

— Sua secretária me ligou procurando por você, ela me contou a

confusão que aconteceu na sua reunião e disse que foi embora nervoso no

meio do expediente de trabalho. — Cruza os braços e encosta no balcão de

mármore da cozinha.

— Sabia que essa sonsa estava no meio, ela no tinha nada que ligar

para você e fazer fofoca – resmungo rabugento.

— Ela só estava preocupada com você e eu também, por isso vim

aqui pessoalmente ver como meu amigo está, não posso? A porta estava

destrancada, então entrei. Ouvi o barulho do chuveiro ligado e outros sons


estranhos do tipo:

“Isso, Cariño, chupa o meu pau bem gostoso!”

“Yo estou quase lá, no para.”

“Você me deixa louco, muchacha.”

Sou obrigado a ouvir um homem desse tamanho engravatado no meio

da minha cozinha imitando a minha voz e rindo ao mesmo tempo, o


bastardo invadiu a minha casa e me flagrou em um momento íntimo. E pela
porta escancarada da minha geladeira, também estava roubando a minha
comida.

— Por que você no bateu na porta do banheiro, hombre de Dios?


Ouvi um barulho e pensei que a minha casa estava sendo invadida, nós que

trabalhamos no meio jurídico temos muitos inimigos e devemos sempre

estar de olhos bem abertos.

— Lembre disso quando for deixar a sua porta destrancada outra vez,

espanhol. – Me pega no meu próprio discurso.

— Era só isso, John? Como pode ver yo estou ótimo, pode ir embora

agora. Obrigado! – Tento me livrar dele, no estou com paciência para visitas

hoje.

— Eu não vou embora, cara. Não tive tempo de almoçar hoje e estou

faminto, pode voltar para o seu banho e continuar brincando debaixo do


chuveiro que me viro aqui na sua cozinha sozinho. – Inclina e volta a se

enfiar dentro da minha geladeira sentindo-se em casa, tenho vontade de


chutar a bunda dele.

— Está bem, criatura! Yo vou terminar o meu banho e já volto para

fazer alguma coisa para a gente comer, também no almocei hoje.

— De jeito nenhum que vou comer algo preparado por essas mãos de
piroca espanhola. – Aponta para o meu pau firme e forte, ele é como um
bom soldado que fica de pé até o final da guerra.

— Como se você no tivesse um pau também, só no é grande igual a


esse carinha aqui. – Balanço o meu amigão na direção do meu amigo que
faz cara de nojo e finge que vai vomitar.

— Mas pelo jeito esse carinha aí não anda fazendo o trabalho direito,
não é mesmo? Já que a tal Solange não quer te ver nem pintada de ouro –
faz piada da minha cara. – Aliás, desde quando você manda flores para as

mulheres, Gonzales? Ainda mais mil rosas de uma vez só.

— Desde quando encontrei a mujer da minha vida, com a qual


pretendo me casar e montar uma família ao seu lado – digo apaixonado.

John deixa cair no chão a sacola de pão de sanduíche que acabou de


tirar da geladeira e me olha perplexo, em décadas de amizade é a primeira
vez que me escuta falando sobre casamento.

— Você está se sentindo bem, Gonzales? Se quiser posso chamar um

médico – pergunta sério, deve estar pensando que yo estou delirando.

— Vai se ferrar, John! Yo nunca estive melhor, no tem nada de errado


comigo. Em vez de estar preocupado com a minha vida amorosa, cozinhe

alguma coisa decente para nós. Volto em dez minutos para te ajudar. –
Balanço meu pau mais uma vez na direção do meu amigo que faz uma
careta e saio da cozinha rindo.
Termino de tomar o meu banho, coloco uma roupa confortável, calça
de moletom cinza, camiseta branca de algodão e chinelos de borracha nos
pés. Volto para a cozinha, John fez um macarrão para nós com molho de

tomate e bastante queijo. Ele teve a liberdade de pegar uma garrafa de


vinho na adega e duas taças de cristal no armário e montou uma mesa

bonita para nós, tudo para me fazer sentir melhor. Ele é um ótimo amigo.
Com certeza também tem um monte de compromissos importantes no
trabalho, e mesmo assim veio pessoalmente ver como yo estou e ainda fez o

nosso almoço.

É engraçado ver o impetuoso Juiz Thompson usando o avental florido


da minha mãe em cima do seu terno caro, ela vem aqui direto cozinhar para

mim.

— Pelo jeito a vida de casado está te fazendo muito bem, Yudiana te


ensinou a cozinhar e tudo. O macarrão está com uma cara ótima. – Puxo
uma cadeira e me sento na mesa.

— Minha vida de casado não poderia ser melhor, ser marido da Yudi
e pai dos nossos filhos me faz sentir o homem mais feliz do mundo. Vai
entender quando chegar a sua vez. – Sorri ao falar da família, é sempre

assim, fico muito feliz pelo meu amigo.


John e a Yudi passaram por muita turbulência até encontrarem o final
feliz, mas hoje vivem a vida dos sonhos de todo casal, cheia de amor e

harmonia.

— Mas do jeito que as coisas vão, no sei quando yo terei o meu final
feliz com a Solange tão cedo. – Reviro o macarrão no prato de um lado para

o outro e percebo que perdi a fome, decido apelar para o álcool.

Abro a garrafa de vinho e sirvo nossas taças até transbordar, preciso


clarear um pouco as ideias e não existe maneira melhor de fazer isso.

— Eu estou meio confuso, amigo. Na última vez que te vi você

acreditava fielmente que essa moça era uma golpista, agora quer casar com
ela. O que mudou em tão pouco tempo? – John tira o avental e senta

comigo na mesa, depois que ele casou não temos passado muito tempo
juntos.

— Yo reencontrei Solange por conta de um engano que nos fez passar


a noite na cadeia e na mesma cela, nós mais brigamos do que conversamos.

– Sorri ao lembrar das nossas discussões.

— Que história maluca é essa, Gonzales?

— Longa história, parceiro, mas resumindo a parte mais importante. –

Sorvo um longo gole de vinho. – Ofereci à Solange a quantia que quisesse


para dormir comigo de novo, mas ela deixou claro que isso nunca
aconteceria e mi corazón se encheu de esperança. – Sorrio com cara de

idiota apaixonado, porra, yo estou muito fodido mesmo.

— Como Pedro e eu dissemos, ela não é uma interesseira. Acho que


nos deve um pedido de desculpas – fala de boca cheia.

— Mas nem fodendo vou pedir desculpas para aquele cabrón, ele é

seu amigo, no meu.

— Então não vai gostar de saber que o Pedro se convidou para ir à


despedida de solteiro do seu irmão que você e eu estamos planejando,

comentei por acaso na frente dele. Desculpa! – Sorri amarelo.

— Fala sério, John! Só falta você falar que convidou o delegado


Avilar também, sabia que passei a noite na cadeia por causa de um dos

homens da equipe dele?

— Mas é claro que eu convidei, o delegado é o mais engraçado da


turma, anima qualquer festa. E já adianto que o Léo também vai, ele acabou

de perder o filho e precisa sair para se divertir.

— No quer convidar o Batman e o Robin também? Talvez eles


tenham um tempinho vago na agenda deles de defender a cidade dos crimes

e apareçam na despedida de solteiro do meu irmão – ironizo e John espirra


longe o gole de vinho que tinha acabado de levar à boca, a sua gargalhada
inunda a cozinha.
— Vai se foder, Gonzales, eu estou falando sério. Porra! – Limpa a
bagunça que fez com um guardanapo, ele no consegue parar de rir.

Yo começo a gargalhar também, somos dois idiotas. Passamos uma

tarde muito agradável na minha casa com muitas risadas e conversas


profundas também, como sou novo nisso de amor John me dá vários
conselhos amorosos e alguns puxões de orelha. Envergonhar uma mujer no

seu local de trabalho enviando uma floricultura inteira pra lá no foi uma boa
ideia, meu amigo me explica que preciso conquistar a confiança da Solange
aos poucos. Cuidar dela. Fazer com que se sinta segura, porque é assim que

o amor verdadeiro e duradouro começa, através da confiança e o cuidado


com o outro.

E yo estou disposto a viver para amar e cuidar da Solange com a

minha vida se for preciso, começando a partir de agora.

 
Solange

— Você tem cinco minutos com o prisioneiro, senhora – avisa o

guarda depois de me revistar, eu assinto me sentindo incomodada de estar


nesse lugar com essa energia pesada ao ponto de me revirar o estômago.

Nós, hippies, acreditamos fielmente que tudo no mundo está ligado à

energia que emana, seja ela positiva ou negativa. Todo ser com vida é como
um filtro que pode captá-la desde que esteja aberto para isso de corpo e
alma, o segredo é sempre ouvir a voz do coração.

— Respira fundo, Solange! Você está fazendo a coisa certa. – Entro


na sala e me sento em frente à parede de vidro transparente, onde do outro

lado, de frente para mim, está o embuste, dentro de um macacão laranja,


que quase destruiu a vida da minha melhor amiga.

Sinceramente, não sei o que a Tess viu nesse cara. Com a vida toda

ferrada com a polícia, viciado em drogas e adora bater em mulheres. Um

combo perfeito para o desastre na vida dele e de qualquer um ao seu redor.


Não via esse traste há dois anos, desde o dia do seu julgamento, e desde

então foi jogado nesse lugar, espero que passe o resto da sua vida aqui.

— Quem é vivo sempre aparece, não é mesmo, elefantinha? – Lucas

sorri mostrando os dentes quebrados na frente, seu rosto está todo


machucado, com feridas novas e antigas. Arrogante e debochado como é,

deve viver apanhando dos outros prisioneiros.

Faz tempo que a Tess tenta se livrar desse traste, mas Lucas sempre

arranja um jeito de encontrá-la. Tudo começou com um abuso verbal aqui e


outro ali, depois veio o ciúme obsessivo. Tinha prazer em fazer comentários

rudes na frente das pessoas para envergonhá-la. Nunca gostei dele desde

que o conheci e aconselhei minha amiga a sair fora enquanto ainda dava
tempo porque era chave de cadeia, mas estava apaixonada demais e sempre

deixava passar porque tinha esperança de que com o tempo o embuste

mudaria. Mas uma vez filho da puta, sempre filho da puta.

Um belo dia recebi a ligação do hospital dizendo que Lucas deu uma

surra na Tess que a deixou em coma por uma semana e só não morreu por
milagre. O covarde foi preso por conta disso, e vários outros crimes que

cometeu no passado vieram à tona. Juntando todas as penas passaria a vida

toda na prisão, mas ainda assim não deixa minha amiga em paz. Ele sempre

arruma um jeito de entrar em contato para torturá-la psicologicamente. Se

muda de número de telefone, o cara consegue descobrir de alguma forma.

Manda carta, põe gente vigiando a coitada, um verdadeiro inferno sem fim.
Lucas é obcecado pela Tess, fala dela como se fosse propriedade dele.

— Você nunca vai sair daqui, Lucas. Por que não deixa a minha

amiga em paz de uma vez por todas? – inicio em um tom baixo e


apaziguador, mas minha vontade é quebrar esse vidro e voar no pescoço
dele.

Talvez, depois de tanto tempo preso, Lucas tenha adquirido pelo

menos um pouco de compaixão no coração e pela primeira vez na vida faça

a coisa certa.

— Se a Tess não for minha, não vai ser de mais ninguém. – Aproxima
o rosto da parede transparente entre nós. – E se você ou qualquer pessoa

ficar no meu caminho, Solange, vai pagar com a vida. – Desliza a língua no

vidro, provando que pau que nasce torto, morre torto.

— Eu não tenho medo de você, Lucas – digo valente, de cabeça

erguida.

— Pois devia ter, Solange. Esqueceu que conheço a sua família? A

mamãe elefante, o moleque retardado e aquele velho sonso. Como é mesmo

o nome dele? Vovô Manoel! Está todo mundo na minha lista – ameaça o

desgraçado, sabe que a minha família é o meu ponto fraco.

Na verdade, todo mundo que eu amo é o meu ponto fraco, tenha o

meu sangue ou não. Sou uma pessoa muito complicada, difícil de amar e
confiar nas pessoas, mas quando gosto de alguém é para valer. Morreria ou

mataria pela pessoa, simples assim. Minha mãe diz que esse é o meu maior
defeito, achar que posso proteger todo mundo e esquecer de cuidar de mim

mesma.

— Nunca mais ouse falar na minha família novamente, Lucas. E acho

bom não tentar ligar para a Tess de novo, ela é como uma irmã para mim e
sou capaz de fazer qualquer coisa para mantê-la segura de você. –

Aproximo o rosto da parede de vidro como o verme fez. – Tenho vários


contatos de peixe grande na polícia e posso fazer da sua vida dentro desse

lugar um inferno. – Ergo os cantos da boca lentamente em um sorriso


ameaçador, me levanto e vou embora rebolando de nariz em pé.

Entretanto, minhas pernas começam a tremer assim que saio da sala.


Não tenho contato na polícia bosta nenhuma, na verdade, recentemente

quase fui condenada por causa da porra de um relógio de bolso. Ainda bem
que o Lucas não sabe disso e espero que tenha acreditado no meu blefe e

deixe a Tess em paz. Faz dois anos que essa mulher não tem uma paquera
por puro medo. Ela também vive em uma prisão, só que sem grades.

Não posso contar de jeito nenhum para Tess o que aconteceu aqui
hoje ou ela vai ficar ainda mais paranoica, a visita que fiz ao Lucas será um

segredo que vou guardar só para mim.

— Depois de tanta adrenalina, Solange, você precisa de um milk


shake de 800ml para acalmar os ânimos. – Saio do presídio até tonta e vou
na primeira sorveteria que encontro.

Hoje minha mãe decretou que o bar vai abrir só mais tarde, não faço

ideia do porquê, mas como é a dona Cátia que manda lá, só me resta
obedecer. Aproveito o tempo livre para cuidar um pouquinho de mim, vou

ao salão das nigerianas na Barra para trocar as minhas tranças, Sandra é a


minha cabeleireira há vários anos e tem as mãos de anjo quando o assunto é
cabelo crespo e cacheado.

— Vai ser qual cor hoje, Solange? — pergunta Sandra, ela sempre se

anima na hora de escolher as extensões que as clientes vão usar.

— Pensei em algo do tipo misturar duas cores, escuro em cima e claro


nas pontas, puxado para o dourado – digo animada, estou me sentindo
poderosa depois que fui à empresa do Gonzales e o coloquei no lugar dele.

— Arrasou, mulher, agora que o seu cabelo cresceu bastante vou

fazer as tranças bem longas abaixo da cintura para te deixar ainda mais
poderosa. — Bate a mão na minha.

Como a Sandra disse, quando ela termina saio do salão me sentindo


ainda mais maravilhosa. Jogo as minhas tranças longas para todos os lados,

levou várias horas para fazer, mas valeu a pena. Vou para casa e tomo um
banho gostoso; como sempre, esqueço de levar a toalha, mas como estou
sozinha em casa não tem problema. Com todo calor que faz no Rio de
Janeiro, chego no meu quarto com o corpo já sem nenhuma gota d´água.

Começo a cantarolar distraída enquanto me visto, canto a primeira


música que vem na minha mente.

“Para tu amor lo tengo todo

Desde mi sangre hasta la esencia de mi ser

Y para tu amor que es mi tesoro

Tengo mi vida to da entera a tus pies

Y tengo también

Un corazón que se muere por dar amor

Y que no conoce el fin

Un corazón que late por vos… “

— Logo essa música, Solange? Fala sério! – brigo com o meu reflexo
no espelho da penteadeira após passar o vestido pela cabeça,

consequentemente me lembro de uma certa pessoa indesejada.

Droga!
Minha cabeça só gira em torno dessa música desde que a ouvi na voz
grossa do Gonzales, ele canta muito bem e de um jeito muito sexy. Quando
eu dei por mim já estava cantando junto com ele. Agora não consigo parar

de ouvir, cantar e até sonhei que fui em um show do cantor Juanes em


Madri na Espanha e foi incrível.

— Só no sonho mesmo, porque na realidade, nunca vai rolar. Não

tenho grana nem para ir ao show do Juanes se fosse aqui no Brasil, imagina
em outro país. – Rio de mim mesma.

Prendo minhas tranças em um coque alto que fica gigante, aproveito

que ainda tenho algumas horas de folga e faço pipoca e coloco um filme na

TV. Adoro ficar sozinha em casa, mamãe saiu cedo para resolver não me

explicou ao certo o quê, e o Rafael dormiu na casa do vovô ontem à noite e


está lá desde então. Acabo cochilando no sofá e acordo atrasada para ir para

o bar, visto o uniforme de garçonete correndo e calço os tênis na mesma

velocidade. Antes de sair de casa, jogo a mochila nas costas, ponho os meus
fones de ouvido e deixo uma playlist qualquer do Spotify rolando e vou

para o trabalho.

Chego no bar e imediatamente sinto uma vibe pesada no ar, minha


mãe está com uma expressão estranha. Tem alguma coisa muito errada

acontecendo.
— Está tudo bem, mãe? — Tiro a mochila das costas e jogo sobre

uma das mesas do salão, só preciso tirar o peso dos meus ombros, já basta a
carga pesada no olhar da minha mãe toda vez que o lança na minha direção.

— Eu vou fazer uma reunião de emergência com toda a equipe, o


pessoal acabou de chegar, só estávamos esperando você para começar. —

Fico ainda mais preocupada, reunião surpresa sempre significa que tem

merda da grande vindo.

Vamos andando próximas até o escritório do bar, mamãe calada e eu

muda. Um bilhão de coisas passam pela minha cabeça agora, estou com

mau pressentimento. Minhas mãos começam a suar, espero que não seja
nada grave.

— Oi, galera! — Aceno cabisbaixa para Valdeci, Eloísa e a Lety.

Os três estão sentados espremidos em um sofazinho entre a mesa e a

estante que o meu pai fez, pegando quase toda a parede, e tenho o orgulho

de dizer que a enchi só de livros que achei no lixo e já li cada um deles.


Meus amigos e companheiros de trabalho parecem tão preocupados quanto

eu. Eloísa rói as unhas, Lety bate o pé no chão insistentemente e Valdeci

está com os olhos esbugalhados para fora como se estivesse segurando um

daqueles peidos altos e fedidos em uma sala cheia de pessoas.


Da última vez que mamãe convocou uma reunião assim com o

pessoal do bar foi para dar a notícia que o desgraçado que matou o meu pai

esperaria o julgamento pelo crime em liberdade, o cara nem chegou a ser


preso, só deu o depoimento de duas horinhas e foi embora pela porta da

frente e nós teríamos que engolir tudo calados. Porque eles têm muito

dinheiro e os melhores advogados, e o nosso é um defensor público que

estava trabalhando em mil casos ao mesmo tempo.

— Muito obrigada a todos por estarem aqui, eu sinceramente nem sei

por onde começar. – Mamãe respira pesadamente, gotículas de suor brilham


sobre o seu lábio superior.

— Eu sabia que a tarde de folga não sairia de graça, vem chumbo

grosso aí de novo – Valdeci resmunga e leva uma cotovelada da Eloísa.

— Sim, Valdeci, confesso que deixei que tirassem a tarde de folga

porque queria que estivessem relaxados para quando recebessem essa


notícia. — Sua voz estremece e eu começo a ficar preocupada de verdade,

minha mãe não é de fazer suspense e só tem enrolado até agora.

Fico pensando o que pode ser de tão grave para ela não ter se aberto
para mim antes de falar com o pessoal? Nós duas sempre conversamos

sobre tudo, então não estou entendendo porra nenhuma.


— Ai, meus Deus! Não me diga que decidiu fechar o bar? — Valdeci

se desespera antes da hora, ele não consegue controlar a língua dentro da


boca quando está nervoso.

— Muita calma nessa hora, pessoal, deixem a minha mãe falar —


digo com a voz branda tentando passar falsa calma, mas estou aos gritos por

dentro.

— Estamos devendo ao banco, filha. Mais do que da última vez – diz


por fim e eu quase infarto.

— Como assim devendo ao banco de novo, mãe? Isso só pode ser


uma piada de muito mau gosto da senhora. – Começo a andar de um lado

para o outro pelo escritório, alterada, sinto como se estivesse em um déjà-

vu, já vivi essa mesma cena no ano passado.

— Desculpa, filha, mas é verdade! Depois que pagamos aquela dívida

antiga do seu pai ao banco eu caí na bobeira de fazer outro empréstimo,

agora não sei como vamos pagar — explica a minha mãe, calma, enquanto
eu estou com um turbilhão de sentimentos dentro de mim.

— NÃO! A SENHORA NÃO PODE TER FEITO ISSO COMIGO –

berro descontrolada, minhas mãos estão tremendo.

Depois de tudo o que fiz para salvar o bar no ano passado quando o

papai morreu isso não pode ser verdade, me recuso a acreditar que me
sacrifiquei por nada.

Sim!

Eu me vendi para Gonzales para salvar o negócio da minha família,

era recente a morte do meu pai quando nós recebemos uma ordem de

despejo falando que tínhamos duas semanas para pagar uma dívida alta que
nem sabíamos que existia. Era meu pai que cuidava da parte financeira, ele

foi fazendo um empréstimo atrás do outro desde que construiu o bar e foi

virando uma bola de neve porque não conseguiu pagar as prestações em dia.

Dessa forma, o banco entrou com um recurso judicial solicitando o


pagamento do valor integral da dívida. Caso contrário, a justiça penhoraria

todos os bens do devedor.

Todos nós ficamos em choque porque papai nunca deixou

transparecer nada, só andava pensativo e meio distraído. Contudo, não

havia tempo para lamentações. Mesmo fragilizados devido ao luto, tivemos

que agir rápido. Mamãe vendeu tudo que podia dentro de casa, meu avô se
desfez de um terreno que ele tinha às pressas e bem mais barato do que

valia para achar um comprador logo. Eu fiz o mesmo com a minha moto

novinha que tanto amava, chorei muito quando tive que entregar as chaves
para o novo dono. A amava demais, era minha melhor amiga, íamos para

todo canto juntas. Levei vários anos para juntar dinheiro para comprá-la, era
um sonho realizado que abri mão por algo mais importante e mesmo assim

não foi o suficiente.

Estávamos há um dia para vencer o prazo que o banco nos deu e

mesmo tendo juntado cada centavo que podíamos, ainda faltavam exatos

dez mil reais para completar o valor da dívida e nós não tínhamos mais de
onde tirar e o banco não aceitou nenhum acordo. Mamãe só chorava

enquanto encaixotava as coisas do bar, entrei em desespero vendo aquilo e

acabei mandando mensagem para o Gonzales e foi assim que tudo


começou. Na manhã seguinte apareci com o dinheiro, inventei que consegui

de última hora emprestado com um amigo que dividiu em várias parcelas e

ninguém duvidou da minha palavra. Assim como eu, só queriam resolver o


problema logo.

Porra!

Eu ainda estava em período de luto pela morte do meu pai e tentando

lidar com o fato de que ele escondeu uma dívida tão alta da família, talvez

por vergonha, mas isso não muda o fato de que mentiu para nós e isso
acabou comigo, pensei que nunca haveria segredos entre nós. Só que não

tive tempo para ruminar o meu sofrimento, tinha que dormir com um

homem a quem repugnava por dinheiro para salvar o negócio da família.

Mas em momento nenhum culpei meu pai e nem mesmo o Gonzales por
isso, fazer aquilo foi escolha minha e de mais ninguém.
Por isso viverei com esse trauma para sempre, não importa quanto
tempo de terapia eu faça ou que medicação antidepressiva tome, carregarei

o peso dessa minha escolha para onde for.

— Se acalme, Solange. Vamos conversar direitinho, filha. – Tenta

tocar meu braço, mas não deixo.

— Conversar é o caralho! – Puxo minhas tranças de nervoso. – A

senhora ficou louca, dona Cátia Almeida? Por que fez a porra de outro

empréstimo sem sequer conversar comigo antes? – Fico fora de mim, ela

não podia me colocar em uma situação dessa outra vez.

A única coisa que me consolava de toda a merda que fiz indo contra

todos os meus princípios é que ajudei a salvar o bar, mas agora estamos na
mesma merda de novo e eu ferrei o meu psicológico por porra nenhuma.

Então o mínimo que mereço é uma explicação coerente.

— O motivo não vem ao caso, Solange, eu achei que precisava fazer

outro empréstimo, então fiz. Assunto encerrado. – Desvia o olhar, ela estava
mentindo.

Tem mais coisa por atrás disso e eu iria descobrir.

— Assunto encerrado coisa nenhuma! Quero saber com o que gastou

todo esse dinheiro? Porque no bar que não foi. Está do mesmo jeito que um
ano atrás — a coloquei contra a parede.
Lety, Eloísa e o Valdeci se encolheram e ficaram apenas ouvindo a
nossa discussão. Nenhum deles têm coragem de dizer alguma coisa, sabem
que é uma briga de família.

— Esse dinheiro foi usado para suprir os gastos do bar ou teríamos

que fechar as portas, todo mundo aqui sabe que o movimento não anda
bom. – Deu de ombros.

— Que a clientela não anda boa todo mundo aqui sabe disso desde

que o meu pai era vivo, dona Cátia, mas dá pelo menos para cobrir as
despesas básicas. Então chega de mentira. Para onde foi esse dinheiro do
empréstimo? – Jogo as mãos nos quadris e a encaro, ela tem que me dizer a

verdade porque está sem argumentos.

— Você quer saber a verdade, Solange? Pois bem! – Caminhou até a


mesa do escritório e pegou algumas folhas e jogou na minha direção. –

Com o nome sujo no banco, seu pai fez a besteira de pegar mais dinheiro
emprestado com um agiota que cobrou juros absurdos depois da morte do
Ramon, se aproveitando do luto de uma viúva e dois filhos abalados. –

Solta as lágrimas que, na hora da raiva, eu nem percebi que ela estava
segurando.

O meu queixo, assim como o de todo restante da equipe, vai ao chão,

ninguém nem pisca. Minha mãe só pode estar mentindo.


— Agiota? Isso é impossível – digo em um murmúrio. – Meu pai não
mexia com esse tipo de gente, era um homem íntegro.

Dou um passo para trás com a mão sobre o peito, o impacto de tal

revelação fora grande demais.

— Qualquer homem íntegro num momento de desespero também


comete erros, Solange – Valdeci solta sem querer e ganha outra cotovelada

da Eloísa.

Pior que o Valdeci está certo, uma pessoa, por mais boa e honesta que
seja, é capaz de fazer qualquer coisa pela família num momento de

desespero quando entra em um beco sem saída. Eu melhor do que ninguém


sei disso, fui contra tudo o que acreditava e tomei a decisão que achava
certa e fiz aquela proposta imoral ao Gonzales.

— Eu não acredito que isso está acontecendo! – desmorono.

— Mas está, filha! Na mesma semana que fizemos das tripas coração
para limpar o nosso nome no banco, veio um cara bizarro aqui com esse
contrato no bar e disse que ou eu pagava tudo o que o meu marido devia ou

você e o seu irmão sofreriam as consequências. – Suas mãos tremiam ao


falar, nem conseguia me olhar nos olhos.

— Se o meu pai pegou dinheiro emprestado com agiota, por que não

pagou o que devia ao banco?


— Não sei, Solange, talvez o plano inicial fosse esse, mas então a
obsessão dele por esse bar falou mais alto e acabou investindo nele mais

uma vez na ilusão de que virasse um sucesso e logo pagaria todas as dívidas
que fez em segredo.

— Por isso Ramon estava se esforçando tanto, passando mais horas

aqui no bar do que em casa. – Lety me olhou com os olhos cheios de


lágrimas.

— Pois é, Letícia. Se o meu marido não estivesse trabalhando tanto,

ele não teria ficado até mais tarde no bar e sido atropelado por aquele rapaz
bêbado. – Cobre o rosto com as mãos e começa a chorar.

Solta a verdade entalada na sua garganta há muito tempo, mamãe ama

esse bar porque é a realização do sonho do marido, mas ela sabe que foi o
amor doentio dele por esse lugar que resultou na sua morte. Tudo que é
demais, sempre termina em tragédia.

— Por que a senhora não me disse nada, mãe? – A abraço.

— Porque você já havia vendido a sua moto e pegado dez mil reais
emprestado com um amigo para ajudar da primeira vez, não poderia exigir
mais nada de você. Então dei os meus pulos, pensei que se me esforçasse no

bar e melhorasse um pouco os lucros sobraria para pagar as prestações do


novo empréstimo que dividi em várias vezes e ninguém ficaria sabendo –
conta com as bochechas coradas e os olhos marejados, ela fez o melhor que

pôde.

— Mas não foi isso que aconteceu, e agora estamos em apuros outra
vez. – Deslizo as mãos pelo rosto.

— Exatamente isso, filha!

— Não tem o que fazer dessa vez, mãe, não temos grana para pagar o
banco. O bar já era! – afirmo em lágrimas.

Não tem alternativa, fizemos mais do que o melhor que podíamos,

mas tínhamos que reconhecer que era a hora de parar. Eu amo muito o meu
pai, mas tenho que admitir que ele fez merda e das grandes e envolveu a
família toda nisso.

— É, chefe, a Solange está certa. Temos que entregar os pontos. –


Valdeci abaixa a cabeça, triste.

Elô e a Lety se abraçaram, elas estavam chorando. Não somente


porque perderiam os empregos, mas sim porque todos ali amam esse bar e

seria muito difícil se despedir dele para sempre.

— Que entregar os pontos coisa nenhuma, gente. O bar vai continuar


aberto e com força total, o pessoal que tive que demitir voltará para a

equipe em breve. Também contrataremos mais gente, o bar será todo


reformado, mas sem perder o charme original! — tagarela em meio a
sorrisos, totalmente fora de si.

Minha expressão muda de melancólica para confusa em questão de

segundos, fico sem reação em meio a abraços e assovios dos demais


presentes.

Mas que merda está acontecendo aqui?

— Como assim, mãe? Eu não estou entendendo, como do nada

passamos de fechar o bar para fazer todas essas melhorias que vão custar
uma fortuna? — falo em um tom alto e os quatro pares de olhos presentes
se voltam para mim.

Um silêncio constrangedor se faz presente, mas alguém tem que


colocar um freio na minha mãe, ela só pode ter enlouquecido de vez.

— Calma, filha, o gerente me chamou no banco hoje para fazer uma

proposta muito boa que resolverá todos os nossos problemas financeiros e


ainda vamos poder investir bastante no bar e guardar um pouco. – Segura as
minhas mãos, esperançosa.

— Que proposta, dona Cátia? — berro.

— Vender cinquenta por cento do nosso estabelecimento para um


amigo dele que sempre quis investir em algo exótico no Madureira. Eu
relutei a princípio, mas o valor que ele ofereceu é duas vezes mais do que o
bar inteiro vale. Deu para pagar todas as nossas dívidas, devolver o dinheiro
que o seu avô nos emprestou e ainda guardar bastante como nosso pé de

meia. — Sorri orgulhosa do grande negócio que fez, mas isso está me
cheirando a golpe.

— Duas vezes mais do que o bar inteiro vale? Santo Deus, mãe!
Acorda para a vida. Espero que não tenha assinado nenhum documento sem

consultar o nosso advogado. — Puxo minhas mãos bruscamente, dominada


pela indignação, minha mãe não podia ser tão burra.

Sabia que essa mania de confiar cegamente nas pessoas iria nos ferrar

um dia, já discutimos muito por isso.

— Nosso advogado foi comigo ao banco, eu não nasci ontem, filha.


Nem toquei na caneta até ter o ok dele, na verdade, foi ele que disse que

essa proposta é a mesma coisa que termos ganhado na loteria. — Me sacode


pelos ombros, brincalhona, na tentativa de me fazer sorrir, mas continuo
com a cara azeda.

— Pelo menos a senhora já viu esse tal sócio antes de vender a


metade do sonho do seu marido, mãe? — sibilo venenosa.

Ela não precisou responder.

— Mas é claro que sim, Solange, yo estava presente no momento que

tu madre assinou os papéis da venda. Sempre levo os meus negócios muito


a sério. — Gonzales faz sua entrada triunfal, dentro de um terno preto
impecável e o cabelo todo jogado para trás igual a um lorde, invadindo a

minha reunião do mesmo jeito que eu invadi a dele.

Meu Deus! Isso não pode estar acontecendo.

Meu coração para de bater. Não consigo respirar. Acho que estou

morrendo, e se não estiver que alguém me mate agora mesmo. Aperto os


olhos com força, esperançosa de que quando os abrir esse demônio
espanhol não vai estar na minha frente e tudo vai ficar bem. Talvez isso seja

só um pesadelo ruim. Muito ruim.

E eu vou acordar na minha cama e rir disso tudo, Gonzáles dono da


metade do bar da minha família? Impossível! Deus não seria tão cruel

comigo.

 
 
Gonzales

— Você está se sentindo bem, filha? — pergunta a madre da Solange

com um semblante preocupado.

Desde que cheguei, alguns minutos atrás, que a mujer no se mexe e


mantém os olhos fechados, acho que endoidou de vez ou no aguentou

provar do próprio veneno. Ela invadiu a minha reunião, então yo invadi a


dela e vim para ficar.

— Eu estou bem, mãe, acho que tive uma alucinação demoníaca e


minha pressão baixou. — Respira devagar sem abrir os olhos.

— Uma alucinacíon? Santo Dios mio! Talvez seja caso de


chamarmos um médico. — Meu tom é de falsa preocupação, alguém mais

atento poderia ter notado o leve deboche em cada palavra proferida.

— Meu Deus! — Solange apela para a santidade ao abrir os olhos e

se deparar comigo, seu pior pesadelo, com o meu melhor sorriso cínico.

Mais um ponto para mim, Cariño!

Apesar do gosto de pegar a muchacha de surpresa ser delicioso, no foi

para provocá-la que comprei a metade do bar. Ao contrário, fiz na melhor

das intenções. Pensei muito sobre o que o John disse sobre fazer a mujer
que amo se sentir segura, comecei descobrindo por que a Solange me pediu
dinheiro para dormir comigo. Resolvi investigar a sua vida financeira e

descobri que está uma verdadeira bagunça, bastou uma ligação para um dos
meus informantes no meio jurídico que a verdade veio à tona como uma

bofetada no meu rosto.

Solange vem de uma família boa, mas o pai se enrolou todo em

dívidas com o banco e um agiota no intuito de investir no bar deles. Quando

ele morreu deixou o pepino nas mãos da esposa e os dois filhos em luto,
sendo um deles com necessidades especiais. Senti que precisava ajudá-los

de alguma forma, entrei em contato com o gerente do banco e fiz uma

proposta. Ele entrou em contato com a dona Cátia e marcou uma reunión,

foi quando yo conheci a madre da Solange. Uma pessoa maravilhosa, ela


me contou toda história em lágrimas. Ela e os filhos nem tinham superado a
morte do pai e já tiveram que lidar com a possibilidade de perder o bar que

tanto amavam para o banco por uma dívida que eles nem sabiam que

existia.

Se a minha Sol no tivesse vendido a moto que era tão importante para

ela e conseguido dez mil reais emprestado com um “amigo” em cima da

hora, tudo estaria perdido. Fiquei com um nó na garganta depois de ouvir


isso, não conseguia respirar. Solange ainda estava em luto pela morte do pai

quando dormiu comigo para ajudar a família e yo a tratei muito mal. A

chamei de interesseira e várias outras coisas horríveis. Precisei sair da sala


do gerente, me tranquei no banheiro e lavei o rosto com água fria e tentei
me acalmar para pensar com clareza para saber como agir dali para frente.

Depois de me recompor voltei ainda mais decidido a comprar cinquenta por

cento do bar, eles perderiam tudo em breve se yo no ajudasse.

Fiz um acordo generoso com o gerente do banco e ele foi a ponte na

negociação. Ele só no entendeu o valor alto que yo ofereci pela metade de

um estabelecimento falido. No entanto, no tinha obrigação de explicar nada.


Negócios são negócios. Mas a verdade é que no conseguiria dormir sabendo

que Solange e a sua família estão em uma condição financeira catastrófica,

sem uma reserva extra para alguma emergência no futuro.

Por isso resolvi fazer de tudo para ajudar, no sou nenhum monstro.

Apesar que a Solange está me olhando nesse momento como se yo fosse


um, os dentes estão trincados e o olhar semicerrado. Para ela, comprei a

metade do bar na intenção de provocá-la, mas jamais faria isso, é óbvio que

tem um grande valor emocional para ela e a sua família.

— Seja bem-vindo ao nosso bar, Gonzales. Aqui não somos apenas

uma equipe, mas sim uma grande família. — Dona Cátia parece um pouco

nervosa, mas mantém o sorriso simpático desde a primeira vez que nos
vimos no banco.
Me simpatizei fácil com ela logo de cara, é uma pessoa muito simples

e agradável.

— Muito obrigado, dona Cátia, tenho certeza de que fiz um ótimo

negócio e estou animado com essa parceria — digo sem jeito, de onde estou
posso ouvir a Solange bufando de raiva.

Essa muchacha no é o tipo que se rende tão fácil, por isso yo sou tão

louco por ela.

— Muito prazer, senhor Gonzales, sou Valdeci, o barman. Estou triste


de perder o posto de único bendito fruto entre as mulheres, mas estou muito
grato pelo que está fazendo pelo bar e à família da nossa chefe.

— Que isso, rapaz, no precisa agradecer. — Fico sem jeito, ele está a

ponto de chorar de gratidão bem na minha frente.

Fiz isso apenas por amor a Solange, mas agora vejo que isso também
ajudou outras pessoas que nem sabia que existiam.

— Precisa sim, senhor. Dona Cátia e a Solange são muito boas para
nós, depois de tantos momentos difíceis que elas têm passado, esse bar

continuar aberto é praticamente um milagre. — Ele ergue a mão para me


cumprimentar.

— Sou a Eloísa, chefe número 2. Eu penso o mesmo que o Valdeci,


nosso emprego é importante. Mas saber que esse bar que tanto amamos vai
continuar de portas abertas por sua causa não tem preço. Então, muito

obrigada. — A moça de cabelo colorido dá um passo na minha direção e


trocamos um forte aperto de mão.

— O prazer é todo meu, Eloísa, gostei do seu cabelo — elogio com

sinceridade em um tom divertido para tirar esse clima pesado do ar.

Solange resmunga alguma coisa com os braços cruzados, ela é uma

bomba-relógio pronta para explodir a qualquer momento.

— Sou a Lety, bem-vindo à família, chefe número dois. Acabou de


chegar e já se tornou o nosso herói. — A baixinha loirinha com a voz doce

me rouba um abraço carinhoso, me sinto culpado.

— Já chega dessa palhaçada! A senhora não pode vender a metade do

bar do papai para esse homem de maneira nenhuma, mãe — Solange


explode do nada pegando a todos de surpresa, menos yo.

— Não posso, Solange Almeida? — Coloca as mãos na cintura se

segurando para não gritar com a filha.

— Você não conhece esse cara, mãe, ele não presta! — Aponta o

dedo pra mim com sangue nos olhos, faço cara de santo.

— E como você sabe disso, Solange, por acaso conhece o Gonzales


de algum lugar? — Semicerra os olhos.
Todos os presentes encaram Solange à espera de uma resposta
aceitável, inclusive yo. Quero ver se vai ter mesmo coragem de contar que
fez sexo comigo por dinheiro.

— Não, mãe. Mas como o papai dizia, eu herdei o dom dele de

conhecer quem não presta de longe — cospe as palavras cheia de rancor,


como uma cobra destila o seu veneno.

— Você ficou louca, Solange? Não foi essa educação que eu te dei,
peça desculpa ao nosso sócio agora.

— No precisa, dona Cátia. Está tudo bem, sua filha só está nervosa —

me adianto, no quero cutucar mais a onça com a vara curta.

— Eu prefiro morrer a pedir desculpas para esse bastardo. Já que a


senhora vendeu o bar do papai sem me consultar, ele é seu sócio, e não
meu. Não lhe devo nenhum respeito — troveja, nunca a vi tão brava antes.

— Desculpa, filha, sei que é triste, mas aceite logo que o seu pai que

tanto ama se foi e nos deixou em um mar de dívidas e ainda colocou você e
o seu irmão em risco. – Sua voz falha. – Por isso fiz o que achava certo,
esse bar é meu e sou eu que mando aqui, mocinha – se zanga com a filha.

— Pensei que o bar fosse nosso, mãe. – Sorri amarga com os olhos

inundados por lágrimas.


— E ele é, filha, por isso estou fazendo de tudo para mantê-lo aberto.
Até porque se não vendermos a metade do bar para o Gonzales, o banco vai
tomar nossa casa também porque as coisas estão feias a esse ponto —

revela por fim e o queixo da Solange cai.

Pela expressão de horror da Solange, a dívida com o banco era muito


maior do que ela pensava. De fato, a quantia que o gerente me falou era

consideravelmente alta. Para pagar teriam que entregar todos os seus bens e
ainda ficariam devendo.

— Bem, acho melhor irmos preparar as coisas para abrir o bar —

Eloísa diz educada e sai puxando a Lety e o Valdeci pela mão, viram que o

clima esquentou por aqui.

Decido fazer o mesmo e sair de mansinho, esse assunto tem que ser

resolvido entre dona Cátia e a filha. Estou perdido no meio de todo esse

drama familiar.

— Você fica, Gonzales! Quero te mostrar o bar, minha filha e eu já

terminamos aqui.

— Não terminamos não, senhora! A senhora hipotecou a nossa casa

também sem falar comigo? Meu Deus!

— Sim, filha. Tínhamos acabado de limpar o nosso nome, então não

estávamos com muito crédito no banco, por isso dei o bar e a casa como
garantia e não me arrependo, faria tudo de novo para manter você e o seu

irmão a salvo. Sou capaz de fazer qualquer coisa por essa família.

— Entendo perfeitamente, mãe, porque eu já fiz coisa muito pior do

que isso por essa família. Se eu contasse, a senhora nem acreditaria. –


Solange olha para mim com puro desprezo, sinto vontade de morrer. – Pena

que foi tudo em vão. – Solange sai correndo aos prantos.

Jogo tudo para o alto e, por impulso, vou atrás dela. No aguento vê-la
nesse estado tão vulnerável, prefiro quando está enfurecida me colocando

no meu lugar.

— É melhor deixar ela sozinha, conheço bem a filha que tenho.

Quando está nervosa parece um cavalo chucro dando coice até no vento,

fala o que quer, mas não escuta ninguém, só o avô dela. — Dona Cátia

segura o meu braço.

Concordo a contragosto, no posso insistir e dar mais banheira e piorar

ainda mais a situação que já está delicada.

— Yo sei muito bem disso — deixo escorregar da minha boca sem

querer e ela me olha confusa, quase desconfiada.

— Como? — Enruga o nariz.

— Nada, dona Cátia. Yo gostaria de conhecer melhor o bar, posso? —


mudo de assunto bruscamente, mas meus pensamentos ainda estão em
Solange.

— Claro que sim, Gonzales, será um prazer fazermos um tour para

mostrar tudo. — Agarra o meu braço e começamos um tour pelo


estabelecimento.

Dale!

Esse lugar está a um passo de ser uma grande espelunca, agora yo sei

por que estão perdendo a clientela. Mas o espaço é ótimo, grande e tem um

jardim maravilhoso nos fundos. Com uma bela reforma vai ficar incrível,
podemos colocar janelas grandes de vidro na frente do estabelecimento.

Assim, quem passar na rua verá o movimento aqui dentro e se instigará a

entrar e fazer parte dele. Também vai ajudar na iluminação, que é péssima,
vamos ter que trocar todas as lâmpadas, seria legal colocar algumas

coloridas e montar um jogo de cores de luzes.

A área de montar os drinks no tem nada de atrativo, precisamos

abastecer o estoque do bar com bebidas mais sofisticadas e colocar mais

variedade no menu de refeições. Sendo sincero, teremos um longo trabalho

pela frente, mas depois de pronto podemos fazer uma grande festa de
inauguração e convidar toda a elite carioca. Será um sucesso!

Cacete, Gonzales, você está se ouvindo? Porra!


Esse negócio é só uma fachada para ajudar a Solange, no para ficar se

empolgando de verdade e investir mais dinheiro e o seu precioso tempo


nesse lugar.

— Então, querido, o que achou do lugar? — Me olha esperançosa.

— O espaço é realmente muito bom, mas precisa de uma reforma

urgente. O cardápio de comida e bebida também precisa de melhorias, tudo

aqui precisa, na verdade. — Vejo sua animação se esvaindo aos poucos,


mas preciso ser sincero.

— Nossa, a coisa está tão ruim assim, meu filho?

— Está! Mas nem tudo está perdido, dona Cátia. Podemos contratar

uma ótima equipe de reforma, mi padre tem vários contatos. Seria ótimo se

ampliássemos o palco para shows ao vivo e fazer uma área só para o DJ e


uma pista de dança na frente, com luzes que brotam do chão — me

empolgo novamente, no consigo evitar.

Sou um bom empresário e posso sim, sem sombra de dúvidas, fazer

desse bar algo muito lucrativo para mim e para a dona Cátia. Falando nela,

me escuta atenta anotando tudo em um caderninho que tirou do bolso do

avental.

— Mais alguma coisa? Eu amei todas as suas ideias.


— Por enquanto já é o suficiente, dona Cátia. O resto vamos

conversando e ajeitando aos poucos.

— Está bem, meu filho, mas agora eu vou ter que ir para a cozinha.
Vamos ter que correr para dar conta de tudo sem a Solange, tivemos que

fazer corte de despesas e nisso foi a metade da equipe. Vai demorar uns dias

até reencontrar o pessoal — explica tristonha.

— Yo posso ficar e ajudar a servir os clientes no lugar da Solange, no

tenho muita prática como garçom, mas aprendo rápido — ofereço apenas

por educação.

— De jeito nenhum, Gonzales, um homem tão distinto como o senhor

deve ter coisa mais importante para fazer. Nós damos um jeito aqui, não se
preocupe — é modesta.

Óbvio que tenho e no pretendo cancelar.

— Se a senhora insiste, já vou indo. Tchau! — Viro as costas antes

que ela mude de ideia, mas no chego nem na calçada.

Acabo voltando, no sei de onde esses vestígios de humanidade estão

brotando em mim como água da fonte. Inferno! A festa vip que yo ia em

Copacabana já era.

— Que tipo de sócio seria se deixasse a minha sócia na mão logo no

primeiro dia? Vou ficar e trabalhar no lugar da Solange sem nenhum


problema, é bom que yo vou me familiarizando com o estabelecimento. —

Ela tenta me convencer do contrário, mas acaba cedendo.

Como eles no têm nenhum uniforme masculino extra, yo tiro o paletó

do meu terno — caríssimo, por sinal — e dobro as mangas da minha camisa

até o cotovelo e coloco a mão na massa.

 No é surpresa que faço o maior sucesso entre a clientela feminina,

elas ficam cheias de gracinhas para o meu lado e até colocam gorjeta no
meu bolso.

— A mesa sete disse que quer ser atendida só pelo espanhol gostoso,

então boa sorte. — Eloísa revira os olhos e me entrega a bandeja de


espetinhos de carne de soja.

— Deixa comigo, muchacha. — Yo pisco para ela.

— A mesa dois também só quer você, Gonzales. — Lety chega com

outra bandeja e me ajuda a equilibrar na minha mão livre.

— Obrigado, princesa, ser gostoso dá trabalho. Ainda bem que vocês

são casadas e muito apaixonadas ou também no resistiriam ao meu charme.

— Mordo o lábio de leve e jogo o cabelo para o lado fazendo charme, giro
o corpo e vou servir as mesas rindo.

Estou me divertindo essa noche mais do que yo esperava, o trabalho é

pesado, mas o pessoal da equipe é tão legal e acolhedor que parece que
sempre fiz parte dela. É estranho dizer, mas já me sinto em casa aqui.

Acho que o negócio é como dizem por aí mesmo, a diversão de

verdade no tem nada a ver com dinheiro ou lugar, mas sim com a
companhia…

 
Solange

— Toma, querida, esse chá de erva cidreira vai te fazer bem. Está

chorando há horas. — Obrigo as pestanas inchadas a se abrirem e vejo o


sorriso mais gentil do mundo, meu travesseiro está encharcado de tanto que

chorei.

Quando saí desesperada do bar, atravessei a rua correndo mesmo com


o sinal fechado e me aventurei entre os carros; vim para a casa da única
pessoa que consegue me acalmar quando estou nervosa. Foi só meu avô
querido, senhor Manoel, abrir a porta que me joguei nos seus braços em

meio a um ataque de choro.

— Obrigada, vovô, os seus chás verdes sempre fazem me sentir


melhor. — Tento sorrir, mas a vontade de chorar me impede.

— Tudo bem, filha, vai ficar tudo bem agora. Tem que se acalmar,

seu irmão está agitado na sala desde que te viu chegar naquele estado. —

Afaga os meus cabelos.

Sento na cama, pego a caneca de chá e deito a cabeça no seu ombro.

Sou apaixonada pelo ator Samuel L. Jackson só porque parece muito com
meu avô, ambos têm uma fenda charmosa entre os dois dentes da frente, os
olhos escuros penetrantes e um ótimo porte físico, meus amigos sempre

pedem para tirar foto com ele para postar no Facebook e tirar onda.

Meu pai era o seu único filho homem, ele tem mais duas filhas, todos

adeptos da cultura hippie. Por isso, quando soube que o seu primogênito
morreu, o coitado ficou muito triste, os dois eram muito próximos e

parecidos, tanto no coração bondoso como na paciência para lidar com

qualquer situação.

— Desculpa, eu não queria preocupar vocês dois. — Sorvo um gole

do meu chá.

— Só estamos preocupados porque te amamos muito, querida. Sua

mãe já ligou umas mil vezes perguntando por você. — Beija o topo da

minha cabeça como fazia desde quando eu era criança, não importa quanto
tempo passe, sempre serei a sua menininha.

— A minha mãe fez um empréstimo alto e deu a nossa casa como

garantia, tudo para pagar outra dívida do papai com um agiota e eu fiquei

sabendo disso tudo só agora. Isso não é justo! — Limpo as lágrimas com a
manga da blusa, elas parecem ter vontade própria, não param de cair uma

atrás da outra.

— Não fica zangada comigo, meu amor, mas também já sabia dessa

outra dívida do seu pai com o agiota. Eu hipotequei a minha casa também
para ajudar a pagar, eles se aproveitaram da situação e cobraram juros
absurdos. Sua mãe me ligou na época desesperada porque a sua vida e do

seu irmão estavam em risco e o dinheiro que ela conseguiu no banco não

era o suficiente. – Balança a cabeça triste, ouvir aquilo partiu meu coração.

Até o meu avô se afundou em dívidas por causa do meu pai, fiquei

com muita pena dele. Não estou surpresa da minha mãe ter pedido a ajuda

dele, eles sempre se deram muito bem e ele a ama como se fosse uma de
suas filhas.

— Eu sinto tanto, vovô, deveriam ter me contado que eu teria ajudado

vocês de alguma forma – disse entre os soluços, eu teria vendido o meu

corpo quantas vezes fosse preciso para não ter que deixar os dois lidando

com toda essa merda sozinhos.

— Nós só queríamos te proteger, filha, já bastava sua mãe e eu

decepcionados com o seu pai que se meteu nesse rolo todo por causa

daquela obsessão descabida dele com esse bar. – Me abraça com carinho, eu

estava a ponto de derreter de tanto chorar.

— Obsessão que não deu em nada, vovô. Porque agora metade do bar
foi parar nas mãos de um babaca que não dá a mínima para os sonhos de

ninguém. — Massageio as têmporas, minha cabeça lateja de dor.


— Dê uma chance ao pobre homem, talvez ele tenha sido enviado por

Deus. Melhor perder cinquenta por cento do bar do que ele inteiro e a casa
de vocês. Já parou para pensar nisso, filha? — Ergue as sobrancelhas e

algumas rugas grossas se formam na sua testa, eu acho é graça do que ele
disse.

Gonzales está mais para enviado do diabo, vindo lá bem das


profundezas do inferno. Se a minha mãe e o meu avô soubessem das suas

reais intenções eles seriam os primeiros a querer dar um tiro na cara dele. O
bar que nossa família tanto ama não significa nada para esse espanhol. Não

passa de uma peça no seu jogo doentio.

— Pode dizer o que quiser, vovô. Não gosto desse espanhol, quando a

esmola é demais o santo desconfia — solto por alto.

Paciente, meu avô tira o chapéu da cabeça e deixa sobre a coxa. Está
no auge dos sessenta e poucos anos e quase não tem cabelo branco ou

rugas, bendita seja a santa melanina.

— Como pode dizer que não gosta de uma pessoa que não conhece

direito, menina? Você é igualzinha à sua avó nesse quesito. — Balança a


cabeça rindo.

— Isso seria um elogio ou uma ofensa, senhor Manoel? — brinco,

amava a minha avó, mas ela tinha um gênio do cão.


— Me apaixonei pela Margarida na primeira vez que a vi, mas ela…

Rá! Me deu um fora daqueles de cair o cu da calça na frente de todo mundo,


mas eu não desisti de provar a ela que valia a pena. — Ajeita a gola da

blusa e faz cara de galã de Hollywood.

Solto uma risada e com gosto, eu amo esse velhinho!

— E demorou muito para a vovó Margarida se apaixonar pelo

senhor?

— Pra caramba, filha. Eu era um malandro boa pinta, ficava com


várias mulheres diferentes todo dia até conhecer sua avó, por isso tive que

lutar muito para provar que mudei impondo a minha presença. Mas não foi
fácil, perdi a conta de quantas vezes fui rejeitado.

— Mulherengo o senhor, vovô? Não creio! — Fico passada de


chapinha com essa descoberta.

Jamais imaginaria que o meu avô, o homem mais certo e romântico

que conheço, já foi um demolidor de corações um dia.

É, Solange, vivendo e aprendendo.

— Sim, Sol, mas prefiro dizer que eu era um apreciador das mulheres.

— Disfarça o riso com um pigarreio, nem ele acredita no que acabou de


dizer.
— Como conseguiu conquistá-la e a fazer querer ser sua para sempre?
— continuo com o interrogatório, estou muito curiosa.

— Eu fazia de tudo para ficar perto dela. Tudo mesmo, até comecei a
participar das aulas de balé que ela fazia. — Tenho um ataque de riso.

Imagino como foi a cena do meu avô com esse jeito todo machão com

aquela roupa coladinha dando piruetas no ar, só para ficar perto da vovó.
Isso é tão romântico, daria até um livro.

— Só o senhor para me fazer pular da depressão para um ataque de


risos em minutos, senhor Manoel. — Mal consigo falar em meio às risadas.

— Tem mais, filha, Margarida sempre dizia que no começo não me

suportava e pensava que eu era um doido varrido. Que se o meu amor foi à
primeira vista, o dela foi na décima pra mais — conta.

Eu jogo as costas na cama e coloco a mão na barriga, estou chorando


agora, mas é de rir.

— Desculpa, vô, mas o senhor conta de um jeito muito engraçado.


Estou até vendo a vó Margarida falando isso com aquele jeito xucro dela.

— Limpo as lágrimas que escorrem do canto dos olhos, paro de rir, mas aí
não aguento e começo de novo.

Minha avó era doce feito um coice de mula, falava o que vinha na

cabeça e que se foda o resto. Dizia que o lado romântico dela era meu avô
Manoel. Eu era muito agarrada com ela, meus pais me deixavam aos seus
cuidados quando pequena enquanto viravam a noite trabalhando no bar.
Como vovô Manoel trabalhava à noite como caminhoneiro, éramos só ela e

eu.

Por isso, quando perdemos a vó Margarida há dez anos para o câncer


de mama, foi um golpe muito grande para todos, principalmente o vovô,

que ficou ao seu lado até o último suspiro.

— Sei que pode parecer engraçada a nossa história, mas eu acredito


que talvez por ela ter começado de maneira diferente, nosso casamento

durou por décadas, afinal, diferente da maioria das histórias de amor, a

Margarida conheceu o meu lado feio primeiro.

— Como assim, vovô?

— Quando sua avó enfim resolveu deixar o orgulho de lado e me deu


a chance para mostrar o que tinha de bom para oferecê-la, não nos

separamos mais e fomos felizes a cada segundo que passamos juntos — fica

emocionado ao dizer isso, sente muita saudade do seu grande amor e não

tem vergonha de demonstrar isso.

— Tudo bem, vovô, eu também sinto falta dela. — Abraço meu

velhinho lindo e beijo a sua testa, tenho muita sorte de ter nascido nessa
família incrível. Dinheiro sempre falta, mas amor se tem de sobra.
Ainda estou furiosa pelo fato de o Gonzales ter virado sócio do bar.

Diferente do vovô, sei que não tem nenhum lado bom nele. Mas a minha
mãe só está tentando fazer o melhor que pode para mim e o meu irmão,

devia tê-la apoiado e não feito aquele show todo. Se desfazer de uma parte

do sonho do papai foi horrível para mim, para ela deve ter sido mil vezes
pior. Ele é o grande amor da sua vida e pai dos seus filhos.

Você é uma idiota, Solange!

Preciso voltar ao bar e pedir desculpas à minha mãe, não acredito que

a deixei na mão mesmo sabendo que até o atual momento estamos escassos

de mão de obra. Vou fazer o possível para me redimir e apoiá-la no que


decidir. Quanto ao Gonzales, vou ficar de olho nesse filho da puta, e um

passo em falso que der eu acabo com sua raça. Se ele sabe jogar baixo, eu

também sei.

— O que acha de fazermos pipoca e assistirmos a um filme de terror

como nos velhos tempos, Sol? Aposto que Rafael vai adorar a ideia, apesar

de ele reclamar o tempo todo da péssima qualidade dos efeitos especiais. —


A animação da sua voz é contagiante, mas não posso ficar, tenho que

consertar as coisas.

— Eu queria muito, vovô, mas preciso voltar no bar e pedir desculpas


à minha mãe pela forma como agi e por não ter ficado para ajudar o
pessoal. — Fico arrasada com a sua carinha de desapontado, faz tempo que

não fazemos a nossa sessão do terror.

— Só uma noite de folga não faz mal, filha. Você tem trabalhado feito
uma maluca naquela escola, no bar e ainda dando aulas particulares. Dorme

aqui e esfria a cabeça, amanhã bem cedo levo você e o seu irmão em casa,

então pode conversar com a sua mãe com mais calma e privacidade. —
Fico tentada a aceitar, faz muito tempo que não tiro uma noite de folga só

para relaxar.

— O senhor tem razão, vovô, eles que lutem sem mim no bar hoje.

Faz tempo que não tiro uma noite de folga. — Ele gargalha.

— Você e o Rafael escolhem o filme e eu faço a pipoca, fechado? —


sugere, mas ele e eu sabemos que no final quem vai decidir qual filme

vamos assistir é o Rafa e ai de quem disser o contrário.

Sempre foi assim.

— Fechado, vovô, eu te amo muito! — Agarro o seu braço e beijo o

rosto de uma das pessoas que mais amo no mundo.

— Eu também te amo, filha, toda vez que olho para você lembro da

sua avó quando tinha a sua idade. — Sorrio toda boba.

Sempre admirei muito vovó Margarida e tenho orgulho quando falam

que me pareço com ela, era uma mulher incrível e de pulso forte.
— Ei, Rafael Louis, sua irmã e você vão dormir aqui no vovô. Já

mandei uma mensagem para a sua mãe. — Pisca para mim, ele havia falado
com a minha mãe que eu iria dormir aqui antes de ir ao quarto conversar

comigo, porque não o vi mexendo no celular em momento nenhum.

— Eu escolho o filme, vovô. — Rafael joga o caderno de pintura dele

em qualquer canto, pega a caixa de DVDs na estante e pula no sofá.

— Como é que é, Louis? — Vovô cruza os braços e o encara.

— Quer dizer, Solange e eu escolheremos o filme. Mas só porque ela

está triste hoje. — Dá três tapinhas no sofá do lado dele para que eu sente,
eu amo muito esse moleque.

— E nós teremos visita, crianças – anuncia o vovô e alguém bate na

porta.

— Boa noite, gente, me falaram que vai ter uma sessão de cinema

aqui e eu vim participar e trouxe bastante munição. – Tess chega já de


pijama e com um monte de sacolas com todo tipo de porcaria que eu gosto

de comer, vovô sabe que não existe pessoa melhor para animar alguém.

Por isso a nossa amizade é tão importante para mim, toda vez que
preciso, Tess larga tudo o que está fazendo e vem correndo ao meu socorro,

não importa a situação.


— Muito obrigada por estar aqui, amiga, você é a melhor! – Fico com

vontade de chorar.

— Nada de choradeira, mocinha, vai ficar tudo bem. – Me abraça


com ternura e enxuga minhas lágrimas. – Vamos escolher um filme bem

aterrorizante. – Tess me entrega a caixa de CDs, escolho um filme de zumbi

e começamos a assistir, já me sinto bem melhor.

— Vocês sabem que todo esse sangue é de mentira, não é? Não

existem zumbis de verdade – comenta Rafael olhando fixamente para a tela

da TV.

Enquanto isso, vovô e a Tess cobrem os olhos para não ver a cena de

um grupo de zumbis horrorosos devorarem as entranhas de uma pobre mãe


que se ofereceu como o jantar deles para que o seu filho pudesse fugir. O

garotinho foi embora correndo chorando, mas ele podia ouvir os últimos

gritos da mulher que lhe colocara no mundo.

— Acho que deveríamos ter colocado um filme mais leve para te

animar, amiga. – Tess enche a boca de pipoca com uma mão e a outra

mantém cobrindo o rosto, filmes de terror não são os preferidos dela.

— Eu concordo plenamente, vou escolher um de comédia. Você me

ajuda, Rafael? – Vovô para o filme no mesmo instante, ele também não é fã

de histórias aterrorizantes.
— Ótimo, vovô Manoel! Solange e eu vamos fazer mais pipoca, vem,

amiga. – Tess me puxa pela mão para me obrigar a levantar do sofá, por
mim não sairia daqui nunca mais, estou toda encolhida em um canto e

enrolada em um cobertor quentinho.

— Eu sei que você só quer me animar, Tess. Mas nada do que fizer
vai adiantar dessa vez. – Apoio as costas na geladeira e ajeito o cobertor em

volta do meu corpo.

— Nem mesmo uma travessa inteira de brigadeiro? Você sabe que o

que eu faço é o melhor que já provou. – Chacoalha os ombros com as mãos

na cintura.

— Isso é jogo baixo, sabia? – Começo a rir.

— Vou levar isso como um sim, sua vaca! – Dá um tapa no meu


traseiro.

— Está bem, você faz o brigadeiro e eu, a pipoca. – Dobro o cobertor

e coloco sobre a cadeira. – Enquanto isso te conto toda a história do porquê


o vovô pedir reforço para você.

— Não precisa dizer nada se não quiser, Sol, seu avô já me avisou
que foi um desentendimento familiar, mas não entrou em detalhes. –

Procura uma panela no armário debaixo da pia. – Você sempre cuida de


mim quando preciso e por isso estarei sempre aqui, não importa a situação.
– Levanta sorrindo com uma frigideira grande de ferro na mão.

— Gonzales comprou metade do nosso bar, descobri hoje pela minha


mãe depois do negócio já feito pelas minhas costas.

— O quê? – Fica de boca aberta.

— O espanhol não só comprou metade do bar, como pagou o dobro

do que o negócio inteiro vale só para esfregar o seu poder na minha cara. –

Torço o rosto.

— Que amostrado! Quero dar com essa frigideira na cara dele – rosna

como um cão bravo.

— Você não conseguiria nem chegar perto dele, porque minha mãe

recebeu Gonzales em nossas vidas como se fosse um milagre, já que

estávamos com problemas com dívidas de novo. Mas eu sei que ele fez isso
só para se enfiar na minha vida de novo, agora vou ser obrigada a engoli-lo

na minha vida de um jeito ou de outro. – Rasgo o pacote de pipoca com


mais força que o necessário.

— E eu pensando que era a única que atraía boy tóxico, mas pelo
menos o seu é rico e um puto de um gostoso, pelo que andei pesquisando na

internet – fala rindo a boba.


— Você andou pesquisando sobre o Gonzales, sua traidora? – Dou
uma cutucada nela com o braço.

— Você achou mesmo que eu não ia querer ver a cara do indivíduo


que pagou dez mil reis para dormir com a minha melhor amiga? Fala sério,

mulher! – Gira os olhos na cavidade ocular. – Alejandro Gonzales pode não


valer nada, mas é lindo de fazer chorar, e não é pelos olhos. – Tem um

ataque de risos.

— Você não vale nada mesmo, Tess! – Rio junto com ela.

Terminamos de fazer o brigadeiro e a pipoca e voltamos para a sala


ainda rindo, a vibe pesada à minha volta se dissipou. Nós quatro passamos

uma noite incrível juntos. Rafael dormiu todo torto no sofá antes do final do
filme de comédia, ele tem o costume de dormir cedo. Tess e o vovô
dormiram logo em seguida, já eu quase não prego os olhos pensando em

como as coisas vão ficar daqui para frente, vou ter que engolir o Gonzales à
força. Isso só deixa claro que ele realmente é capaz de fazer qualquer coisa
para conseguir o que quer, mas dessa vez não vou admitir que leve a

melhor.
Vovô Manoel levanta cedo pra cacete e acorda Rafael e eu para nos
levar para casa no seu Impala preto que tem desde a época da brilhantina e
está muito conservado, a parte de dentro com as poltronas todas de couro

bege e o rádio toca-fitas ainda funcionando, e as rodas com os aros


prateados personalizadas. Mas primeiro tomamos café da manhã, Tess foi

embora correndo assim que terminou de comer porque tanto ela quanto eu
ainda tínhamos que nos arrumar para ir para trabalho.

— Posso dirigir o seu Impala, vovô? — tento a sorte ao chegarmos na


garagem.

— Não enquanto eu estiver vivo, filha. Mas depois que a morte vir
me buscar, ele é todinho seu. — Faço carinha de triste, mas não cola.

— Graças a Deus, vovô, Solange no volante é um perigo constante —

Rafael dá o ar da graça.

— Cuida da sua vida, Louis! Se quiser ir andando para a escola, fique


à vontade. — Dou um peteleco na nuca dele.

— Vamos parar vocês dois, eu hein! — vovô se zanga com a gente,

espero ele virar as costas e mostro a língua para o Rafael.

— Vovô, a Sol mostrou a língua para mim.

— Que coisa feia, Solange, por causa disso, mesmo sendo a mais

velha, vai no banco de trás hoje. — Rodo o nariz no ar e entro do Impala


sem pestanejar. Com a preguiça que estou vou me esticar no banco de trás e
ficar de boa.

Ainda mais que o meu avô liga o rádio e vamos cantando Renato
Russo o caminho inteiro, Rafael está tão acostumado com as músicas
antigas que o vô gosta de ouvir que nem reclama mais. Quando chegamos

em casa minha mãe nos espera com uma mesa de café da manhã linda, sorri
o tempo todo, mas mal olha na minha cara, deve estar mesmo muito
chateada comigo.

— Só assim para o senhor vir na minha casa, senhor Manoel, que


coisa feia! — Puxa o meu avô para um abraço terno, ela sempre mimou
demais o sogro.

Sem graça com o seu desprezo, me encosto na parede e finjo estar


vendo algo importante no celular, mas nem está carregado. Já o Rafael se
sentou e foi tomar o seu café da manhã todo pleno, afinal não é o rabo dele

que está preso, nunca é. Às vezes queria viver no mesmo mundo que o dele,
onde tudo se resume a um caderno de desenhos e canetas coloridas. Não faz
ideia do significado da palavra problema, boletos atrasados e corações

partidos. Esse é o sonho de qualquer pessoa.

— Que mentira, Cacau, eu venho aqui pelo menos duas vezes na


semana. — Forja uma expressão zangada.
— Mas eu gosto tanto da sua companhia que queria que morasse

conosco, sabe muito bem disso. O senhor é o pai que eu não tive, me
socorre sempre que preciso. — O conduz até a mesa.

O pai da minha mãe morreu antes de ela nascer, vovó Neuza lutou

para criá-la sozinha e o fez com louvor.

— Eu sei, filha, mas não consigo deixar a minha casinha onde vivi
uma vida toda de muito amor ao lado do amor da minha vida.

— E eu não sei disso, Manoel? Mas agora tome o seu café da manhã

com o Rafael, fiz tudo o que o senhor gosta. Só vou ter uma conversinha
séria com a sua neta e já volto. — Me corta no meio com os olhos afiados e
eu engulo em seco.

Minha mãe é uma ótima pessoa, mas quando está nervosa, sai de
baixo.

— Não pega pesado com ela, Cacau. É uma boa menina. — Vovô

pisca para mim escondido e me arranca um sorriso.

— Tudo bem, vovô, geralmente primeiro a mamãe grita com a


Solange. Depois a Solange grita com a mamãe. Aí as duas começam a

chorar, dizem que se amam e tudo volta ao normal. — Rafael dá de ombros,


falando com a boca cheia de bolo de laranja.
— Toma o seu café de boca fechada, menino, e não me amole, ou vou
ter uma conversinha com você depois também. — Minha mãe eleva a voz
para ele, deve estar realmente nervosa mesmo, porque nunca perde a

paciência com o Louis.

— Mas, mãe, como vou comer de boca fechada?

— Rafael Louis! — minha mãe lhe dá o último aviso, ele abaixa a


cabeça e não insiste.

Vovô e eu rimos escondido, esse Rafael é uma figura mesmo. Sigo


minha mãe até a sala, calada.

— Sente-se, filha, porque essa conversa vai ser longa – diz

emburrada.

— Não, obrigada, eu estou bem de pé. — Não foi uma má resposta,


mas a rispidez no meu tom fez parecer que sim.

— Que seja, Solange! O que você tem a me dizer sobre ontem? —

Leva as mãos nos quadris.

— Desculpa, mãe! Eu agi feito uma adolescente mimada, sei que a


senhora tomou a decisão certa — admito o meu erro encarando-a nos olhos.

— E o que mais? — quase grita.

— Desculpa por não ter ficado ontem para ajudar o pessoal, isso não
vai acontecer mais. — Aperto os lábios e junto as mãos atrás do corpo.
— Presta bem atenção, Solange, esse pedido de desculpa não é para
mim que tem que dar, mas sim para o Gonzales que se matou de trabalhar

até de madrugada servindo mesas no seu lugar. Foi embora com o terno
caro fedendo a fritura e cerveja. — Fica de costas para mim, zangada
demais para me olhar.

Nesse momento perco as forças em cada músculo do meu corpo. Fui

pega de surpresa. Se não fosse a minha mãe que tivesse contado, com
certeza não teria acreditado que o milionário Alejandro Gonzales deixou de

passar a noite na farra rodeado de mulheres deslumbrantes para me cobrir


no bar. Parece até pegadinha, olho para os lados à espera de que o repórter
apareça a qualquer momento com várias câmeras.

— Você escutou alguma coisa do que eu acabei de falar, Solange?

— Sim, senhora, mas não vejo razão para agradecer por esse homem
ter trabalhado para ajudar no bar que agora também é dele. Não fez mais do
que a sua obrigação — digo rancorosa, mas não deixa de ser verdade.

O Gonzales quis virar nosso sócio? Agora que aguente o tranco. Faz
tempo que minha mãe e eu damos a vida naquele bar e mal dá para pagar as
contas, só nós sabemos a luta que é para manter aquele lugar funcionando,

tendo o amor como nossa maior força. A morte já havia levado o meu pai,
não podíamos permitir que o sonho dele morresse também.
— Você tem vinte e quatro horas para se desculpar com o nosso
sócio, Solange, entendeu bem? Não entendo tanta implicância com o pobre

homem, todos o adoraram, inclusive os clientes. — A encaro incrédula,


agora virou puxa-saco do Gonzales.

— Principalmente as mulheres, aposto! — Cubro a boca depois de

falar, assustada com a maneira agressiva que despejei tais palavras.

Ciúmes, talvez?

Jamais!

— Isso faz diferença, Solange? Eu, hein! Só peça desculpa ao

Gonzales e esquecemos esse assunto.

— Eu amo a senhora, mãe. Muito mesmo. Mas eu prefiro morrer a


pedir desculpas para esse homem.

— Por que tem que ser sempre tão cabeça-dura, filha? Tem vinte e
oito anos, mas às vezes age como se tivesse quinze. — O desapontamento
na sua voz acaba comigo, mas não vou ceder.

— Se me der licença, tenho que me arrumar para ir para a escola,

prometo que não faltarei no meu turno no bar essa noite. — Me retiro da
sala cuspindo fogo pelas ventas.

Queria poder contar tudo o que tanto me aflige, dizer que está sendo

usada covardemente para me atingir. Não sei onde Gonzales quer chegar
com isso, mas não estou nem aí. Só sei que a partir de hoje vou fazer da

vida desse espanhol um verdadeiro inferno, não dou um mês para ele pedir
para sair.

 Você que me aguarde, Alejandro Gonzales…

Finjo que tudo está normal e tomo café da manhã com a minha

família antes de ir para o trabalho, mas lá eu desabafo com a Tess durante o


intervalo, estou furiosa com a maneira como a minha mãe defende o
Gonzales, como se fosse um santo. Choro de raiva, xingo aquele espanhol

desgraçado e digo que vou fazer e acontecer sumindo no mundo. Mas, no


final da aula, vou pianinho direto para o bar para o meu segundo turno. O
clima lá não poderia estar mais pesado, minha mãe com uma tromba

enorme de um lado e o restante da equipe só conversa o essencial; a chefe


raramente fica de mau humor, mas quando acontece ninguém se atreve a

cutucar mais a caixa de vespa. Dona Cátia não vai sossegar até que eu peça
desculpas para o seu novo sócio, mal conheceu o cara e já virou a maior
puxa-saco dele.

Respiro fundo em um giro de olhos enquanto sirvo uma mesa, não me

sinto mais à vontade trabalhando nesse bar e alguma coisa me diz que essa
noite vai ser longa. Tudo está diferente por aqui agora, a vibe está oscilando
de estranha para suspeita.

— Movimento está fraco hoje, né? – Valdeci se debruça sobre o

balcão do bar e usa a mão como apoio para o queixo enquanto olha para o
salão com quase todas as mesas vazias, realmente a coisa está foda essa
noite.

— Nem me fale, Val! O novo sócio da sua chefe trouxe azar para o
bar. – Enfio meu caderno de notas no bolso, puxo um banquinho e sento,
agora somos dois preguiçosos encostados no balcão olhando para o salão.

— Você ainda não engoliu o novo sócio da sua mãe, não é, Solange?

– Me empurra com o ombro.

— Não mesmo! Esse espanhol é fria, Valdeci. Depois que a merda


acontecer, não digam que não eu avisei. – Belisco a sua bochecha.

— Mas pelo menos por essa noite você vai ter que engolir o espanhol,
porque ele acabou de chegar e está olhando para cá. – Acena para o
Gonzales aos risos, que acabou de passar pela porta vestido igual a um

garotão com o seu jeans escuro rasgado e camiseta branca debaixo da


jaqueta de couro preta.

Conforme Gonzales caminha na nossa direção com as mãos no bolso,

cabelo caindo sobre rosto e os ombros largos eretos no estilo modelo da


Calvin Klein, os seus olhos incrivelmente verdes estão grudados nos meus.
Não acredito que nem deixou a poeira baixar para dar as caras por aqui de

novo, pensei que depois do golpe que me deu pelas costas me daria pelo
menos alguns dias de folga da sua presença ilustre.

— Boa noche! – Sorri de canto em meio a uma deslizada de mão no

cabelo estratégica. – Yo estava passando aqui perto e decidi perguntar se


estão precisando de uma mãozinha extra de novo, ontem foi uma loucura,
quase no demos conta de atender todos os clientes. – Continua olhando

fixamente para mim.

— Obrigado por ter me coberto ontem no meu turno, chefe. Mas não
precisamos da sua ajuda essa noite. Como pode ver, o bar está vazio. – Abro

um sorriso mais falso do que o do Coringa.

— Na verdade, estava vazio, Solange. – Eloisa vai atender sorridente


um grupo de alunos de uma turma da faculdade que acabou de chegar, seria
o último encontro deles antes da formatura.

O que era uma noite tranquila, virou uma loucura com mais de
quarenta pessoas entre alunos e professores fazendo pedidos ao mesmo
tempo.

— Você chegou na hora certa, chefe número 2. – Valdeci joga um


avental no Gonzales, ele faz questão de tirar a jaqueta de couro na minha
frente em um momento sexy e se prepara para dar início à noite de trabalho.

Depois de ir cumprimentar a minha mãe, que ficou babando ovo em

cima dele como o esperado, veio ajudar a gente a atender no salão. Como
sempre, o espanhol fez o maior sucesso entre as mulheres, teve uma
professora vegana que fez altos elogios sobre o nosso bar e na frente de

todo mundo colocou no bolso do Gonzales uma gorjeta de cem reais com o
número dela escrito na nota, exigindo ser atendida pelo garçom mais bonito

do Rio de Janeiro.

— Vaca oferecida! – resmungo ao servir a mesa do lado da professora


safada, Eloisa escuta ao passar por mim com quatro garrafas de cerveja nas
mãos ao mesmo tempo e dá uma gargalhada quase sem som.

Hoje estamos só ela, Gonzales e eu atendendo os clientes. Como o bar


está lotado, Lety teve que ficar na cozinha ajudando minha mãe a montar os
pratos. Valdeci é o barman responsável por fazer os drinks especiais, ou

seja, se não tivéssemos com mão de obra extra estaríamos em apuros. No


final das contas, foi bom o espanhol ter aparecido.

— Se não soubesse como odeia o nosso novo chefe, diria que está

com ciúmes dele – implica Eloisa ao passar por mim já com outro pedido
em mãos, ela é ligeira em dia de movimento.

— Vai se ferrar, Eloisa! – Mostro o dedo do meio para ela.


Mas confesso que toda essa atenção que o Gonzales está recebendo

das mulheres está me incomodando muito. Para piorar, o filho de uma


rapariga sabe muito bem lidar com o público. É simpático e faz todo mundo

rir e se sentir à vontade, percebi que deu uma atenção especial para os nerds
do grupo sentados em uma mesa mais afastada da galera, tentando se
esconderem do mundo atrás dos óculos fundo de garrafa e os moletons dos

heróis da Marvel. O espanhol conseguiu conquistar todo mundo com o seu


jeito extrovertido, a turma de formandos até pediu para tirar uma foto com
ele, e adivinha a quem pediram para ser a fotógrafa da vez? Pois é, euzinha

aqui.

Tive que ficar de frente para aquele momento de mulheres penduradas


no pescoço do Gonzales, brigando para ver quem tira a casquinha maior

dele. Um cena ridícula de se ver e ainda fui obrigada a eternizá-la em uma


foto.

— Aqui está, senhora, espero que goste das fotos. – Entreguei o

celular da professora oferecida, quando girei o corpo para ir embora ela


agarra o meu braço.

— Aquele seu colega de trabalho, o espanhol gato, ele tem namorada?


– Joga o cabelo loiro para trás ajeitando o decote para que os seios pareçam

ser maiores do que de fato são, está jogando com todas as armas que têm.
— O Gonzales? Ele não é meu colega de trabalho, é um dos donos do
bar e, além de rico, está solteiríssimo. Então só se joga, amiga, ouvi dizer
que o tipo preferido dele são as loiras – encorajo-a tentando esconder o riso,

ela é uma senhora na terceira idade bastante fogosa.

— Então você ouviu errado, Solange. Yo no estou disponível. –


Gonzales surge de trás de mim e fica me encarando como se a professora

não estivesse ali entre nós. – Além do mais, meu tipo favorito são as negras,
se for toda tatuada e afrontosa então, é a minha perdição. – Alisa o queixo
quadrado protagonizando um sorriso maroto, engulo em seco, até com as
pernas bambas.

— É mesmo, Gonzales? – Franzo o cenho a ponto de mandá-lo tomar


no cu.

— Pode apostar que sim, Cariño. – Diminui a distância entre nós. –


Já até tenho a escolhida para ser minha esposa e madre dos meus filhos,
eles vão ter a cor chocolate maravilhosa dela e os meus olhos claros. –
Morde o lábio inferior como se visse na sua mente a imagem dos “nossos”
filhos que acabou de descrever.

— Se me derem licença, preciso voltar ao trabalho. – Saio


praticamente correndo, me tranco no banheiro dos funcionários e jogo um
jato de água fria no rosto.
— Ele é um mentiroso, Solange! Não deixa que mexa assim com
você, respira fundo – falo com o meu reflexo no espelho e sorvo uma longa
lufada de ar.

— Sabe que no pode ficar aí o resto da noche se escondendo de mim,


no é? – Só falar no demônio que ele bate na porta do banheiro.

— Eu não estou me escondendo de você porra nenhuma, cara! – Abro


a porta em um rompante e encaro o seu rosto bonito. – E a propósito, acabei
de descobrir que temos algo em comum. Você prefere as mulheres negras e
eu os homens negros, não é legal? – Vejo o seu sorriso ir morrendo,
percebeu que suas cantadas baratas não funcionam comigo.

Ofereço-lhe as costas para voltar ao salão e continuo a atender os


clientes normalmente, faço questão de ignorar esse babaca completamente,
não olho mais na sua direção uma única vez. Quando o bar fecha, minha

mãe e os meus colegas de trabalho ficam em volta do Gonzales dizendo o


quanto estão impressionados com a sua desenvoltura com os clientes,
parece que tudo que esse cara faz em qualquer área é extraordinário. Nunca
na história deste estabelecimento um garçom ganhou tanta gorjeta como
nessa noite, e ele fez questão de dividir com toda a equipe, e foi de coração,
dava para ver o orgulho de si mesmo. Ainda assim não aceitei a minha

parte, é evidente, peguei minha bolsa e fui embora sem ao menos dizer
tchau para ninguém. Assim diz o Senhor:
“Nunca abra brecha para o inimigo.”

 
 
Gonzales

Dou um longo bocejo ao sair do tribunal, pensei que esse julgamento

no fosse terminar nunca. Apesar de estar exausto, tive um bom desempenho


na defesa do meu cliente e ele foi inocentado da acusação de estelionato.

Agora só quero voltar para a casa e dormir o resto do dia e virar a noite,
trabalhar no bar até tarde ontem pelo segundo dia consecutivo acabou
comigo, meu corpo está todo dolorido, no lembro da última vez que fiquei
tão cansado assim. É inacreditável como Solange consegue trabalhar todas

as noites na correria daquele lugar e ainda levantar cedo para dar aula para
aquele monte de mini arruaceiros, menos com os foras que vive me dando,

essa mujer conquistou o meu respeito só por conta disso.

No acredito, porra!

Falando em mini arruaceiros, yo esqueci que prometi para a Lupita

que iria buscá-la na escola hoje sem falta. Olho no relógio e vejo que já

passa das treze horas e a aula já acabou faz tempo, o estranho é que não tem
nenhuma ligação da diretora. Ando depressa até o meu carro no

estacionamento, entro e ligo para ela. Como é horário de pico devo ficar

preso no trânsito e demorar mais de uma hora para chegar lá, que droga de
irmão mais velho yo sou? Mi madre vai me matar.
— Alô, diretora, diga para a Lupita que yo no esqueci dela. Tive

alguns imprevistos, mas prometo que chego na escola o mais rápido


possível.

— Calma, Gonzales, do que o senhor está falando? A professora


Solange disse que você teve um contratempo no trabalho e pediu a ela para

dar uma carona para a sua irmã — explica, seu tom é totalmente confuso.

A ligação fica muda por alguns instantes, no tenho certeza se entendi


direito. Solange salvando a minha pele? Pensei que yo estava a anos-luz

disso.

— O senhor ainda está aí, Gonzales?

— Estou sim, diretora Helena. Yo no sei onde estou com a cabeça,

esqueci que tinha ligado para a professora Solange e pedido que desse uma
carona para minha irmã — minto atordoado.

Me despeço e encerro a ligação, confiro as minhas mensagens e

encontro uma da Solange.

“Eu disse para a Lupita a mesma história que contei para a diretora,

não queria que se sentisse mal porque o irmão não veio buscá-la. Ela está

segura com a gente aqui no bar, à sua espera.”

Fico rindo sozinho igual a um babaca, saber que a Sol se preocupa

com os sentimentos da minha irmã me comove. Ela é uma pessoa incrível.


Perfeita para mim. Mudo a minha rota e vou para o bar. Como o previsto,
fico de molho no trânsito por horas debaixo desse calor infernal. Quando

enfim consigo chegar sou recebido pela Eloísa; em vez do uniforme de

trabalho, está de biquíni e canga como se estivesse indo para a praia.

— E aí, chefe número 2, beleza? Eu pensei que depois de tanto que

trabalhou nesse bar ontem, não o veria aqui tão cedo — tira sarro da minha

cara, saí desse bar na noite passada dormindo em pé de tão cansado.

— E no ia mesmo, só passei aqui para pegar a minha irmãzinha.

— A Solange disse que a espanholinha estuda na mesma sala que o

irmão dela, não é mesmo? Que coincidência.

— Pois é, Eloísa, quando soube fiquei surpreso — minto na cara dura.

Tento fugir dela, mas a mujer no para de falar.

— Vai aparecer no bar hoje à noite? É dia de show ao vivo.

— Acredito que no, estou cansado.

— Que pena, chefe, é a Solange que vai cantar. A filha da mãe, além
de linda e estilosa, tem uma voz de anjo — joga a isca e yo mordo no

mesmo instante.

Minha mente traidora me leva para a noche em que vi Solange

cantando na boate, naquele momento sabia que estava fodido. Sua voz é

como o canto de uma sereia que te hipnotiza, no dá para tirar os olhos dela
nem por um segundo. Quando se dá conta, já está envolvido na sua rede e

no consegue mais fugir. É exatamente assim que me sinto desde então.

— Se yo no tiver nada mais importante para fazer, talvez apareça por

aqui — me faço de difícil.

— Fechado então, espanhol, o pessoal está fazendo um churrasquinho


vegano improvisado na laje para aproveitar esse calorão. Com direito a

piscina improvisada pelo vovô Manoel. — Aponta na direção do quintal


dos fundos.

Churrasco vegano?

Fico me perguntando como pode funcionar um churrasco sem carne,


mas no julgo, acho a causa dos protetores dos animais bastante nobre. Mas

no faço parte desse grupo, adoro um bife bem grande e malpassado com
bastante cebola e molho de pimenta ardente.

— O pessoal todo está aqui? – pergunto disfarçadamente.

Na verdade, queria perguntar se a Solange está aqui.

— Está faltando só Lety e o Valdeci, eles vão chegar mais tarde.

— Que bacana, Eloísa! Muchas gracias. — Sigo o som das risadas e


por incrível que pareça o cheiro do churrasco vegano está muito bom.

Subo as escadas e vou até a laje e encontro uma verdadeira festa, a tal
piscina improvisada é uma caixa d’água azul redonda grande onde dona
Cátia e o filho mais novo estão se refrescando. Vovô Manoel está tomando

conta da churrasqueira, já Solange está sentada em uma cadeira de praia


com listras azuis e brancas, com Lupita no seu colo tagarelando enquanto

ela termina de fazer a última trança no cabelo da minha pequena, sua


cabeça está cheia delas agora.

Uma cena linda de se ver, as duas ficam lindas demais juntas, poderia
passar o resto do dia aqui olhando para elas. A minha irmãzinha fofa e a

mujer da minha vida.

— Oi, Gonzales, olha que lindo a Solange fez no meu cabelo! —


Lupita corre até mim balançando suas tranças longas e abraça as minhas

pernas, imagino o quanto falou na cabeça da Solange até que arrumasse o


seu cabelo do jeito que ela queria.

— Que lindo, mi amor, onde conseguiu essa roupa de banho? —


Pego-a no colo e a jogo para cima, no importa quanto cresça, continuará

sendo meu bebezinho.

— No é lindo? A Solange que me deu, foi a avó dela que fez para ela
quando tinha a minha idade. — Passa as mãozinhas pelo tecido de múltiplas
cores, em predominância dos tons amarelo, vermelho e azul.

— Que legal, Lupita, você agradeceu a ela? – falo com a pequena,

mas no consigo tirar os olhos da Solange um segundo.


— Claro que sim, mamá disse que no devemos ser mal-agradecidos
com as pessoas que são gentis conosco.

— Ótimo, docinho! Está se divertindo muito, no é?

— Muitoooo! Obrigada por ter pedido à professora Solange para me


trazer para a casa dela, yo amei a família dela — fala rápido, sua euforia é

contagiante.

Solange sorri espontânea ao ouvir o comentário afetuoso da Lupita,

aquele sorriso que me tira do eixo e leva para outra órbita. Ela tenta fingir
que não, mas os seus olhos também estão em mim a todo momento.

— Que bom, Lupita. – Porque em breve todos nós seremos uma única

grande família, completo mentalmente.

— Sim, hermano! Vovô Manoel é o melhor contador de histórias, tia

Cátia é engraçada e cozinha muito bem. E o Rafael, bem, ele é o meu


melhor amigo. — Suas bochechas ficam coradas.

Lupita é muito exigente com as suas amizades, se importa mais com


qualidade do que quantidade. Devo observar que nunca a vi usando as

palavras melhor e amigo na mesma frase.

— Melhor amigo, é? Que legal!

— Sim, Gonzales! Muito legal. Hoje é o melhor dia da minha vida.


— Me abraça novamente, então sai correndo e pula dentro da caixa d´água
junto com a mãe e o irmão da Solange.

Fico tocado com a empolgação da minha irmã, há muito tempo que

no vejo Lupita agindo como uma criança da idade dela ao invés de enfiada
dentro de um livro de ciência ou física quântica.

— Não acha que está muito quente para esse monte de roupa, rapaz?

— Senhor Manoel acena para mim sorrindo enquanto manuseia a


churrasqueira.

— Está sim, senhor, mas yo já estou acostumado a usar terno nesse

calor infernal do Rio de Janeiro todo santo dia. — Aceno de volta.

Solange e yo trocamos olhares nada discretos o tempo todo, se


estivéssemos só nós dois aqui ela estaria com as suas mãos em volta do meu

pescoço nesse momento.

— Mas aqui não precisa usar paletó e gravata, então senta aí e toma

uma cervejinha gelada — dona Cátia no pede, ela manda.

— No se incomode, dona Cátia, nós não vamos demorar muito. Mas


obrigado pela gentileza.

— Nós vamos demorar sim, Gonzales. Mas se você quiser ir mais


cedo, yo no vou — Lupita faz birra.

— Quem manda aqui sou yo, Maria Guadalupe. Então pode parar de

gracinhas — chamo sua atenção.


— É só uma cerveja, espanhol, relaxa! Deixa a sua irmã se divertir.

— Solange gira os olhos.

Quando dou por mim já concordei sem perceber; com ela deitada

nessa cadeira de praia de pernas cruzadas com esse biquíni amarelo cavado
sexy, pularia de uma ponte caso me pedisse.

— Então você quer que yo fique, Cariño? — provoco minha Deusa

de Ébano.

Puxo outra cadeira de praia e coloco do lado da Solange, ela me olha

feio, mas nem ligo.

— Vai para o inferno! — Coloca os óculos escuros e me ignora

totalmente.

No me dou por vencido e puxo assunto.

— Muito obrigado pelo que fez hoje por mim, Solange. Yo ficaria
arrasado se a minha irmã soubesse que esqueci de buscá-la na escola. Isso

nunca aconteceu antes, mas acordei atrasado e fui para o trabalho muito

cansado. — Solto um longo bocejo.

Tiro o paletó e afrouxo o nó da gravata e me dou ao luxo de apoiar as

costas na cadeira e relaxar um pouco, é incrível como me sinto à vontade

nesse lugar, tem uma energia boa.


— Não precisa agradecer, estamos quites agora. Você trabalhou no

meu lugar naquela noite e eu quebrei o seu galho hoje. — Apoia o dedo

entre as lentes dos óculos escuros, puxa para baixo e me olha por cima deles
por um instante.

— Justo! Mas saiba que yo no fiz isso por você, mas sim pela dona

Cátia. Ela é uma pessoa maravilhosa, além do mais preciso ganhar pontos
com a minha sogra. Acha porque fui ajudar no bar ontem de novo? – Pisco

para Solange fazendo charme.

— Você pode ter comprado a metade do bar da minha família, mas

acho bom deixar eles fora do seu plano doentio ou acabo com a sua raça.

Entendeu bem, Gonzales? – ameaça entre os dentes para que ninguém ouça.

— Yo já sei que dormiu comigo para ajudar a sua família e me sinto

muito culpado, Solange. – Num impulso toco sua mão apoiada em cima do

braço da cadeira de praia. – Devia ter me contado na época que estava em


apuros, teria te apoiado no que precisasse sem pedir nada em troca – sou

sincero, mas no é o suficiente para fazê-la confiar em mim.

Solange rapidamente interrompe nosso contato físico, olhando para


todos os lados com medo que alguém tenha visto.

— Me ajudar? – Dá uma risada zombeteira. – Alejandro Gonzales


não pensa em ninguém além dele mesmo. Não entendo essa sua obsessão
por mim, mas a única coisa que sei é que farei da sua vida um inferno nesse

bar. – Seu tom é pura vingança, ela no vai facilitar as coisas para o meu
lado.

— Aqui está a sua cerveja geladinha, meu filho, trouxe também para
você uns espetinhos de legumes, feitos com carne vegetal à base de proteína

de soja e pães com molho de maionese temperado. — Vovô Manoel me

entrega a garrafa e o prato, no me faço de rogado, está com uma cara ótima.

— Muito obrigado, vovô Manoel. Yo posso chamar o senhor assim? –

Mordo o espetinho de legumes, está uma delícia.

— Não, você não pode, Gonzales! Ele é meu avô, não seu. – Solange

se mostra ciumenta, no conhecia esse seu lado.

— Que isso, Solange? – Olha feio para a neta. – Não seja grossa,
todos os seus amigos me chamam de vovô Manoel, então qual o problema?

— Gonzales não é meu amigo, vovô – responde ríspida.

— Mas ainda assim pode me chamar de vovô Manoel, meu filho. –

Toca o meu ombro de maneira acolhedora.

— Obrigado, vovô Manoel, o senhor precisa de ajuda com a

churrasqueira? Pode sentar aqui e descansar um pouco, percebi que está de

pé desde que cheguei. — Tento retribuir sua gentileza, ele pensa por alguns
segundos e depois sorri.
— Como diria o meu velho pai, são nos pequenos detalhes que

medimos o valor de um homem. — Olha para mim e depois para a neta

com um sorrisinho e completa. — Não se preocupe comigo, Gonzales,

aproveite a sua bebida e sinta-se em casa. Está em família aqui.

Levanta e sai assoviando uma música do Roberto Carlos que esqueci

o nome, porra! Vovô Manoel desconfia sobre mim e a sua neta. Pelo jeito
que a Sol está me encarando estranho, também percebeu isso.

— Eu não sei aonde você quer chegar com isso, Gonzales, mas se eu

fosse você parava por aqui. — Aperta os punhos, queria gritar e me encher
de socos, mas no pode com a família dela aqui.

— Você sabe sim, Solange, no se faça de boba. — Sorvo um gole da


minha cerveja gelada sem perder o contato visual com ela.

Solange nem se dá ao trabalho de me responder, vira o rosto para o

lado bufando, mas fica cheia de sorrisos quando o seu celular apita
anunciando a chegada de uma mensagem. Depois outra… outra e outra. Se

levanta toda melosa soltando uns ruídos estranhos para a tela do celular e

sai me deixando sozinho. Sol está falando com outro hombre, yo tenho
certeza. E ela gosta dele. Fico louco de ciúmes, viro o restante da minha

cerveja e o líquido desce rasgando a minha garganta fechada por um nó.


Senhor Manoel percebe minha mudança de humor repentina, deixa a

churrasqueira aos cuidados da Eloísa e se aproxima de mim de mansinho.


Senta onde a neta estava e nós dois pegamos numa conversa pra lá de

divertida, é um homem muito sábio. Por trás de suas metáforas e jogos de

palavras, tem um ensinamento de uma vida toda, é só ouvir com o corazón.

Na hora de ir embora Lupita fez a maior cena, foi preciso dona Cátia

convencer a pestinha que fará uma festa só para ela na sua casa. No vi mais

Solange. Vou embora pensando nela. Passo nos meus pais para deixar a
minha irmã, e encontro papá de joelhos mexendo em um canteiro de

tulipas.

— Oi, papá, olha como o meu cabelo está bonito. — Lupita dá


pulinhos em volta dele.

— Está mui belo, princesa, parece una princesa. — Mexe nas suas
tranças, curioso.

— Obrigada, papá, eu te amo!

— Yo te amo mais, filha. — Beija o seu rosto. — Agora entre,

querida, preciso falar com o seu irmão.

Me olha de cima para baixo e enrola a ponta do bigode, o sol reflete

nos seus olhos cor de mel parecendo mais claros do que são de fato.

— Está bem, tchau, Gonzales. – Me abraça e entra em casa correndo.


— Podemos conversar outra hora, papá, yo tenho muitas coisas para
fazer na empresa.

— Yo sabia que esse dia iria chegar, filho. — Fica de pé e limpa as


mãos sujas de terra na lateral da calça de jardinagem e depois me abraça do

nada.

Sou muito parecido com mi padre fisicamente, temos o mesmo porte

físico, bruto e alto. As pessoas costumam dizer que até as nossas vozes são

parecidas, também temos o mesmo cabelo escuro liso escorrido. Já a

personalidade dele é igual à do Luiz Fernando, dois românticos à moda


antiga.

— Que dia, Antônio Gonzales? — Retribuo o seu abraço, mas no


faço ideia do que está falando.

— Que se apaixonaria, cabrón! — Me segura pelos ombros e balança,


ele nunca falou nada, mas no se orgulhava muito de ter um filho cafajeste.

— Nem me fale, papá! Estou assustado com essa explosão de


sentimentos novos dentro de mim, às vezes parece que essa mujer vai me
deixar louco.

— Yo sei exatamente como é isso, corazón acelerado quando a vê,

mãos suando e sente que faria qualquer coisa para protegê-la e no consegue
ver o seu futuro sem que ela esteja nele. Estou certo? – Enfia as mãos no
bolso à espera da minha resposta, está com aquele sorriso nostálgico
rasgando o rosto, aposto que está pensando na esposa.

Mis padres são casados há quase quarenta anos e ainda continuam


apaixonados, nunca os vi brigando de verdade um com o outro, são um

casal extremamente romântico.

— Está certo em tudo! É exatamente assim que me sinto em relação à


Solange, tudo na minha vida gira em torno dela agora.

— Yo sei que no é fácil, filho, mas você vai tirar de letra. Tenho
certeza que os dois serão muito felizes juntos e me darão muitos netos. —
Dá três tapinhas no meu rosto.

— Obrigado pelo apoio, papá, yo te amo muito. – Abraço meu


espanhol favorito no mundo todo, essa sua serenidade ao falar sempre me
faz sentir melhor.

— Yo também te amo, filho. – Aperta o nó da minha gravata.

Meu velho me chama para entrar e tomar um café com ele, mas no
posso. Volto para a empresa com a cabeça a mil por hora, meu cansaço até
passou, me atolo no trabalho para conseguir esquecer tudo. À noite volto

para a casa praticamente me arrastando, quase dormi no volante. Deveria


tomar um banho e me jogar na cama, mas a tentação fala mais alto e acabo
seguindo outros planos.
 

 
Solange

Não estava mais suportando ficar perto do Gonzales e ter que aturar a

sua simpatia forçada com a minha família, ainda bem que o professor
Roberto me enviou uma mensagem dizendo que vem no bar hoje à noite

para me ver cantar e isso alegrou o meu dia. Me animei na hora e resolvi ir
para a casa me arrumar com calma para o meu show ao vivo. Durante o
caminho, não resisto ao passar em frente a uma loja com queima de
estoque, tudo com cinquenta por cento de desconto. Um vestido em especial

na vitrine me chama atenção, ele é vermelho escuro bem justo na altura do


joelho e com um decote em V ousado.

Acabo comprando, já que agora estamos com dinheiro sobrando na

conta. Com a venda da metade do bar, chega de economizar até a última


moeda no bolso. Também não trabalho mais lá de graça, quero carteira
assinada e receber igualzinho aos outros funcionários e mais um extra por

cada show ao vivo que fizer a partir de hoje. Se não for assim estou fora.

Nem morta que trabalho de graça para aquele espanhol safado, ele é um dos
homens mais ricos dessa cidade.

— Mas chega de pensar nesse bundão, não vou deixar que ele
estrague a minha noite! – prometo para mim mesma.
Pela primeira vez em muito tempo vou passar um tempo de qualidade

com um homem de verdade, que me respeita e admira pelo que sou e não só
porque quer me levar para a cama. Fui obrigada a ligar para Tess e contar a

novidade, ela disse que queria saber de cada detalhe na manhã seguinte na

escola. Tenho uma amiga muito curiosa. 

Chego em casa ansiosa, nunca levei tanto tempo para me arrumar

para ir trabalhar no bar. Tomo um banho demorado, quando termino faço


uma maquiagem legal, puxo um delineado no canto dos olhos para realçar o

meu olhar e alongo os cílios. Um pouco de pó aqui e ali sem muito exagero,

passo batom nude nos lábios e estou pronta. Prendo as tranças, a metade da

frente em um coque alto e deixo o restante solto caindo pelas costas. Giro
feito um pião de um lado para o outro na frente do espelho e gosto do que
vejo, calço as botas e enfim estou pronta para sair.

— Nossa, filha, como você está linda. Tudo isso só para o seu show

ao vivo? — Minha mãe leva um susto quando me vê, seus olhos estão

marejados.

Ela costumava me ver arrumada assim todos os dias até para ir à


padaria da esquina, sempre fui muito vaidosa. Mas de uns tempos para cá

não tenho tido ânimo nem para sair com os amigos no final de semana. Isso

deixa minha mãe triste, ela tem conversado muito comigo. Mas é meio

complicado. A morte do papai e todas as outras coisas que aconteceram em


seguida na minha vida criaram um vazio dento de mim que consumiu a
Solange baladeira que já fui um dia, mas tenho fé que aos pouquinhos ela

voltará firme e forte.

Já está voltando, eu acho…

— Obrigada, mãe. Um colega de trabalho da escola vem me ver

cantar essa noite, nada de mais. — Coloco as mãos na cintura e dou uma
rodadinha.

— Colega de trabalho? Sei! Está até usando roupa nova ao invés do

uniforme. – Sorri cheia de malícia.

— Não começa, mãe, por favor, não me faça passar vergonha na

frente do professor Roberto.

— Aquele homem lindo, professor do Rafael? Ai, que delícia, filha.

Se joga e dá bem gostoso para ele — aconselha abanando o rosto.

— Pode deixar comigo, mãe! Estou há muito tempo sem transar, mas

depois que eu voltar à ativa não paro mais, como nos velhos tempos. —

Umedeço os lábios com a língua dando uma rebolada.

— Essa é a minha garota. — Bate a bunda na minha.

Não conseguimos ficar brigadas por muito tempo, uma completa a

outra.
— Eita que a Solange dona da porra toda voltou! — Valdeci segura a

minha mão e me obriga a dar uma voltinha.

Lety e Eloísa chegam logo atrás dele, então a chuva de elogios

começa. Meus amigos sabem mesmo como fazer alguém se sentir bem.

— Você realmente está linda, Sol. Seu brilho no olhar voltou. — Lety
me abraça, ela se emociona fácil.

— Se eu já não fosse casada com uma gata, você não me escapava,

Solange. — Eloísa aparece no salão do bar de surpresa e aperta a minha


bunda, todo mundo ri.

— O que eu faço com vocês, hein? Vão trabalhar, bando de bobos.

— Agora já chega de babarem em cima da beleza da minha filha e


vamos abrir as portas porque hoje é dia de show ao vivo, meu povo, e

teremos um espectador especial vindo assistir minha filha cantar. — Mamãe


pigarreia me olhando de canto de olho, ela não aguenta guardar a língua
dentro da boca.

— Humm… E nós podemos saber quem é, Solzinha? – Eloísa me

aperta de um lado.

— Eu também quero saber! – Lety aperta do outro.

— Aposto que é algum boy magia, não é, Solange? – E o Valdeci


zomba com as mãos na cintura rebolando, segundo ele, me imitando andar.
Como sempre, o palhaço faz a equipe se acabar de rir. Estou mesmo

perdida com esses meus colegas de trabalho curiosos e uma mãe louca para
ver a filha encontrar a sua alma gêmea. Com muita sorte, talvez eu já tenha

até encontrado, vai depender muito dessa noite.

— Será que podem parar de ser fofoqueiros e vamos trabalhar, por


favor? – Mostro a língua para eles.

Abro a porta da frente, esse é o começo de uma noite incrível. O bar


enche rápido, veio mais gente do que eu esperava. Quero dar aos clientes

um show inesquecível, convidei uns amigos de uma banda que manda super
bem para tocarem hoje comigo um repertório que montei só com músicas

legais. Só que a hora vai passando e nada do Roberto aparecer, começo a


ficar preocupada. Não acredito que me arrumei toda e até comprei um
vestido novo só para levar um bolo, isso será humilhante, ainda mais que

minha mãe fez questão de espalhar para a equipe toda que alguém especial
viria me ver cantar.

Merda!

— Vai quebrar o pescoço de tanto olhar para a porta, Sol. Fica


tranquila que ele vem. – Eloísa toca o meu braço, faltam só cinco minutos

para começar o meu show.


— Não sei não, amiga, talvez tenha desistido de vir. – Sirvo o pedido
da mesa dois, mas os meus olhos estão na porta a todo momento.

— Para de ser pessimista, mulher, me conta mais sobre esse professor


Roberto. Como ele é? – pergunta ao terminar de servir a mesa do lado.

— Veja com os seus próprios olhos porque ele acabou de chegar,

Eloísa. — Meu coração acelera, Roberto acena para mim sorridente.

O homem veio vestido para matar, terno cinza, mas sem a gravata.

Cortou o cabelo baixinho e aparou o cavanhaque, lindo demais.

— Vai ficar a noite toda parada aí feito uma idiota, minha filha, ou vai
lá cumprimentar o gostosão? — Minha amiga me empurra na direção dele.

Caminho envergonhada até Roberto, ele me cumprimenta com um


beijo bem próximo ao canto da minha boca.

— Boa noite, Solange. Você está tão linda! — Beija as costas da

minha mão todo cavalheiro, sinto o seu perfume e é maravilhoso.

— Muito obrigada, Roberto, estou feliz que tenha vindo. Reservei


uma mesa para você.

O conduzo até a mesa de dois lugares em um canto mais discreto já


com uma garrafa de vinho e duas taças de cristal à nossa espera, de lá é

possível ter uma boa visão do palco.


— Quanto tempo tenho antes do show começar? — Cavalheiro, puxa
a cadeira para que eu sente.

— Apenas alguns minutos, então não se empolga, bonitão — brinco


para descontrair.

— Impossível não se empolgar ao lado de uma mulher deslumbrante

como você, preta. — Pega a minha mão sobre a mesa e a beija, fico toda
arrepiada, por mim teria sido na minha boca.

Roberto parece ter lido o meu pensamento, porque aproxima o rosto

do meu, prestes a me beijar. Fecho os olhos à espera de que o momento

mágico aconteça.

— Yo estou atrapalhando alguma coisa aqui?

Engasgo com a própria saliva quando Gonzales se materializa do lado


da nossa mesa com os braços cruzados sobre o peito largo, ele está todo

vestido de preto como uma assombração e o cabelo ainda úmido caindo

sobre o rosto. Sua expressão é de quem acabou de passar uma temporada no

inferno e voltou de lá com sede de vingança.

O que esse homem está fazendo aqui?

E tinha que chegar logo quando o Roberto ia me beijar, caramba!

Planejei uma noite incrível para nós dois, mas com esse espanhol aqui à

espreita não vai rolar.


— Sim, você está nos atrapalhando, pode nos dar licença, por favor?

— sou rude.

Pelo jeito que Gonzales encara Roberto parece que vai matá-lo na

base do soco a qualquer momento. Nem faz questão de cumprimentá-lo, sua


presença é totalmente irrelevante para ele.

— Olá, cara, tudo bom? Você é o irmão da minha aluna Lupita, já te

vi indo buscá-la na escola. Eu o reconheci na hora dos jornais e revistas, é


um dos advogados mais respeitados da atualidade. Sou Roberto, é uma

honra conhecê-lo. — Roberto ergue a mão para cumprimentá-lo, é um

homem muito educado.

— Pena que yo no posso dizer o mesmo, professor Roberto — diz

ríspido.

Roberto disfarça e passa a mão na cabeça, cansou de deixá-la parada

no ar feito trouxa.

— Gonzales! — o advirto morta de vergonha, ele nem se abala.

— Solange? — Ergue a sobrancelha como se me perguntasse.

“Que porra está fazendo com esse cara?”

— Desculpa, Gonzales, mas eu realmente apreciaria se nos deixasse


sozinhos. Será que pode nos dar licença, por favor?
— No, yo no posso, Solange. O pessoal da banda está com um

problema com a passagem de som e pediram para te chamar — explica,

então olho na direção no palco e os meninos da banda estão conversando de


boa, rindo, não parecem estar com algum problema.

Esse espanhol filho da puta do caralho! Puxo o máximo de ar que

posso, depois solto bem devagar, não quero fazer uma cena na frente do
meu convidado.

— Desculpa, Roberto, mas o dever me chama. Mas depois do show


sou toda sua. — Inclino e beijo o seu rosto antes de me levantar.

Gonzales aperta os punhos com o maxilar trincado e vai ficando cada

vez mais vermelho, está a ponto de explodir a qualquer momento e sair me


arrastando pelas tranças.

— Tem certeza de que não pode ficar só mais um minutinho, minha


linda? — Segura a minha mão e a beija.

— Que se dane tudo! — Gonzales perde a cabeça.

Me agarra pelo braço e sai puxando bar afora até o escritório, ainda

bem que o estabelecimento está lotado e ninguém percebe, só o Roberto que

ficou para trás sem entender nada.

— O que você está fazendo, Gonzales? Ficou louco de vez? — Tento

me soltar do seu aperto, mas ele tem o dobro do meu tamanho e o triplo de
força.

— Você me deixa louco, Solange! — Abre a porta e me joga dentro

do escritório sem nenhuma gentileza e gira a chave.

— Se você não me deixar sair vou começar a gritar, Gonzales, e eu

não estou blefando! — ameaço durona.

Mas logo abaixo a crina quando Gonzales se vira e fica de frente para
mim com os olhos tomados por veias vermelhas, parece que está possuído.

— Pois grita então que yo quero ver, Cariño! — Sorri maléfico vindo
para cima de mim, me afasto e consigo fugir dele até minhas costas

colidirem com a estante de livros.

— Eu não tenho medo de você, espanhol! — As palavras são duras,


mas o meu tom saiu trêmulo.

Esse filho da mãe consegue me fazer perder a razão de tudo, não


consigo mais nem lembrar por que estou com raiva dele.

— Pois devia ter, Cariño, yo sou um hombre perigoso quando estou

com ciúmes. — Apoia a mão na estante ao lado da minha cabeça, nossos


rostos estão a apenas milímetros de distância de se tocarem.

Posso sentir o calor da sua respiração a fazer cócegas na minha pele,


cheira a gim e vodca. Gonzales andou bebendo recentemente e não foi

pouco. Me arrependo por não ter feito o mesmo, porque pelo menos o
choque de ter acabado de ouvi-lo assumir em alto e bom tom que está com

ciúmes de mim não teria sido tão grande.

— Você não tem nenhum direito de ficar com ciúmes de mim, porque
sou uma mulher livre e faço o que quero — sou franca.

— Ah, yo no tenho? — solta ríspido entre os dentes, numa mistura de


raiva e ironia. — Toda vez que olho para você toda linda assim e sei que no

se arrumou para mim, fico louco de raiva. – Mostra os caninos como um

pitbull raivoso.

Depois de uma respiração profunda, cerra os lábios nos meus e

sussurra:

— Está tão sexy nesse vestido vermelho que, Santa Madre de Dios!

Minha vontade é voltar lá e matar aquele hijo de una puta. — Soca a fileira

de livros próxima ao meu rosto e alguns exemplares vão ao chão, dois do

Paulo Coelho e a edição especial do Diário de Anne Frank.

Permaneço imóvel.

— Não fala assim dele, Roberto é um bom homem.

— Yo o odeio! — esbraveja.

— Mas você nem o conhece, Gonzales. Para de ser louco! — Tento

ser racional, se é que é possível perante a situação em que me encontro no

presente momento.
— Ele quer a minha mujer, isso é mais do que o suficiente para querê-

lo morto.

— Sua “mujer” o caralho! Você comprou a metade do bar e não a

mim junto, não misture as coisas. Se acha que vou me vender para você de

novo está muito enganado, Gonzales. Dessa vez não vai conseguir o que
quer — sou tão clara quanto possível.

— E quem disse que yo quero te comprar, sua diaba?

Aperta a minha bunda e eu me arrepio toda.

— Não quer? — pergunto desarmada, ele me pegou de surpresa com


essa revelação.

— Nunca quis, Solange, já esqueceu que foi você que me fez aquela
proposta maluca de sexo por dinheiro? – Olha fixamente para a minha boca

como se fosse me beijar, comprimo as pernas para disfarçar a pressão que

sinto entre elas.

— Se não q… quer me comprar, o que quer de mim então? —

gaguejo, não tenho mais controle da minha fala ou coordenação motora.

— Para que te comprar por uma noite se yo posso te conquistar para

uma vida toda, Cariño? — Sorri todo galanteador.

— Uma vida toda? Não me faça rir, Gonzales, você não foi feito para
ser de uma só. Mesmo se fosse, essa mulher não sou eu. — Tento empurrá-
lo para longe de mim forçando as minhas mãos abertas contra a parede de
músculos do seu peitoral, mas não consigo fazer o desgraçado nem se

mover.

Sua pele está pegando fogo debaixo da camisa e o coração bate forte

ao ponto de empurrar a caixa torácica para fora, dando indícios de que vai

pular para fora a qualquer momento. O meu não está em uma condição
muito diferente.

— Você mente muito mal, Solange. Você e yo sabemos que é minha.

Só é orgulhosa demais para admitir isso. — Puxa os cantos da boca em um


sorriso hostil. — Mas quando yo fizer toda essa marra desaparecer, vou te

sequestrar e prender em um quarto de hotel de luxo na Espanha e vamos

fazer amor por uma semana inteira — garante.

Antes que eu consiga raciocinar direito, desliza a mão para a coxa e


ergue a minha perna de maneira que passa em volta da sua cintura,

dominando-me em um estalar de dedos. Sinto sua ereção contra a minha


virilha e chego a perder o fôlego. O clima fica quente. Tenho vontade de

gritar, mas me faltam forças até para mexer os lábios.

Minha mente diz para eu espernear e chutar esse espanhol para bem
longe de mim, porém, o corpo não obedece ao comando do meu cérebro.
— Rá! Você não vai ter energia para dar conta de mim uma semana
inteira presa em um quarto, Gonzales. Eu garanto — provoco para ficar por
cima e não demonstrar o quanto ele mexe comigo, por mais que eu lute

contra isso.

— Você está me desafiando, Solange? — Desliza a língua na lateral


do meu rosto.

Ainda bem que as minhas costas estão apoiadas na estante, porque

estou toda mole nas mãos desse homem. Ele não brinca quando está no
modo ataque.

— Não, Gonzales! Apenas constatando o óbvio — sibilo ardilosa.

— Bem, talvez yo deva te dar uma pequena amostra do que te espera,


Cariño. — Ergue o canto da boca com cara de safado, ele tem alguma coisa
pervertida em mente.

Antes que eu possa raciocinar direito, Gonzales me beija à força. Fico

furiosa porque jurei para mim mesma naquela noite que os meus lábios
nunca seriam dele. Tento lutar o máximo que posso esmurrando o seu peito

e mordo a sua boca, mas ele não desiste. Segura os meus pulsos acima da
cabeça e enfia a língua dentro da minha boca e a sensação é excitante, quase
irresistível. Perco toda a força e acabo me entregando ao inimigo e o nosso

primeiro beijo acontece, intenso como tudo na nossa história.


Sinto algo estranho do tipo borboletas voando no estômago e vai
crescendo cada vez mais, é como se nada mais importasse além de nós. Está
tudo silencioso agora. Gonzáles envolve os braços em volta da minha

cintura, me ergue no ar e me coloca sentada sobre a mesa do escritório, meu


vestido sobe na altura da cintura e ele se enfia no meio das minhas pernas,

tudo sem parar de me beijar um segundo. Minhas mãos agarram o cabelo da


sua nuca e o trago cada vez mais para mim, esqueço tudo e só vivo
momento.

Existe muita energia sexual entre nós, isso não dá para negar, é algo

quase palpável. Pura adrenalina no sangue.

— Você me deixa louco, Solange. – Prende o meu lábio entre os


dentes e puxa, em seguida volta a me beijar com mais intensidade.

Gonzales enfia a mão dentro do meu decote e aperta um seio e depois


o outro, gemo contra a sua boca, sempre tive muita sensibilidade nessa área
do corpo. Sua mão deslisa pela minha cintura e para na parte de dentro da

minha coxa, quando penso que vai seguir em frente e dar o seu melhor e me
levar às estrelas, o bastardo interrompe o beijo e se afasta me deixando no
vácuo. Fico confusa e frustrada em um nível incalculável, primeiro me atiça

e depois pula fora.


— Por que começou o trabalho se não tinha intenção de terminar? —
Desço da mesa e baixo o meu vestido, aliso a lateral da saia na tentativa

falha de não parecer tanto que acabei de quase ser fodida.

— Porque no estou aqui para te satisfazer só quando você quer, seja


com o meu dinheiro ou sexo. Se está com tanto fogo assim, mi amor, pede

para o seu professorzinho metido apagar. — Limpa a boca lambuzada do


meu batom, fez tudo de caso pensado para me dar uma lição.

— Sabe que essa é uma boa ideia, Gonzales? Vou para a casa do

Roberto depois que o bar fechar e vamos trepar várias vezes em sua
homenagem. — Saio do escritório batendo a porta, como eu odeio esse
espanhol.

— Onde você estava, filha? A banda está te esperando para o show.


— Dou de cara com a minha mãe no corredor, mais um minuto e ela tinha
pegado Gonzales e eu em uma situação um tanto constrangedora.

— Eu fui ao banheiro, mãe, mas já estou indo. Me desculpa. — Abro

um sorriso falso e ajeito as minhas tranças.

— Você viu o Gonzales? Ele também sumiu de repente. — A minha


face fecha-se dura, não quero nem escutar o nome desse babaca.

— Não sei e tenho raiva de quem sabe. — Saio pisando duro.


— A cantora apareceu, meu povo, enfim o show vai rolar! — anuncia

Valdeci assim que piso no salão e todos os clientes ficam de pé e batem


palmas.

Queria ter cinco minutos para explicar ao Roberto o que houve,

omitindo as partes mais obscenas, é óbvio. Só que o show não pode atrasar
mais, e sigo direto para o palco onde os meninos da banda já estão à minha
espera faz tempo. E a putiane aqui quase transou com um cara que, até

recentemente, odiava com todas as minhas forças. Mesmo que o homem de


verdade que estou a fim há muito tempo tenha vindo todo lindo aqui só para
me ver, e estava a menos de cinquenta metros de mim e o Gonzales se

pegando no escritório.

Que maravilha, Solange. Você não vale nada mesmo!

— Boa noite a todos, é uma honra imensa ter vocês aqui no nosso bar.

Como os clientes mais antigos sabem, sou Solange Almeida e espero que
curtam o nosso som. — Sorrio ovacionada por uma chuva de assovios e
palmas.

Meus olhos percorrem a multidão atrás do Roberto, encontro na

fileira da frente sorrindo. Jogo um beijo para ele, que apanha no ar e finge
guardar no bolso da camisa.
— Canta uma música especial para mim, linda? — Mexe os lábios
com as mãos juntas como se estivesse orando, olho para aquele negro lindo
e só uma canção me vem à mente.

Sorrio toda boba, amo esse jeito fofo do Roberto e poderia facilmente
montar uma família feliz ao seu lado, com uma penca de filhos levados
correndo para todo lado. Uma vida feliz e tranquila como a dos meus pais.

Mas por que ainda assim não consigo tirar o Gonzales da minha

cabeça? Ainda sinto o gosto dos seus lábios grudado nos meus.

Fecho os olhos e seguro o microfone firmemente, respiro fundo e


esvazio a mente. Sempre faço isso antes de começar a cantar, hoje preciso

me concentrar mais do que nunca. Quando estou nesse palco tento me


esquecer de tudo e todos. É uma das coisas que mais amo fazer na vida,
além de ser professora. Me faz sentir livre de tudo o que me aflige. Nunca

quis ser uma cantora famosa ou nada do tipo, está mais para um hobby.

Comecei cantando no coral da igreja na adolescência e depois que fiz


dezoito anos meu pai enfim autorizou que fizesse show aqui no bar, e dez

anos depois aqui estou eu.

— Eu não gosto de mudar o meu repertório, mas tem uma pessoa


muito especial presente aqui hoje que vale a pena abrir uma exceção. —

Pisco para o Roberto.


— Hummm, sinto cheiro de romance no ar, hein! — grita Eloísa do
fundo do salão, fico morta de vergonha.

Cochicho com o pessoal da banda e eles ficam de boa sobre

improvisarmos de última hora, conheço uma música que tem tudo a ver
com o Roberto.

— Vamos nessa, pessoal, em 1… 2… 3. — O baterista puxa o resto

da banda.

Sem tirar os olhos do Roberto e ele de mim, começo a cantar a música


“Meu ébano”, da grande diva Alcione.

“É, você é um ébano, lábios de mel

Um príncipe negro, feito a pincel

É só melanina cheirando a paixão

É, será que eu caí na sua rede, e ainda não sei

Sei não, mas tô achando que já dancei

Na tentação da sua cor

Pois é, me pego toda hora querendo te ver

Olhando pras estrelas pensando em você


Negão, eu tô com medo de que isso seja amor…”

Recebo uma fervorosa salva de palmas quando termino de cantar,


Roberto não para de sorrir todo alegre. Eu também. Até virar o rosto na
direção do bar e ver Gonzales encostado no balcão com o olhar assassino na

minha direção, segurando um copo de bebida com força até que quebra na
sua mão e a bebida escorre junto com o sangue e ele não esboça nenhuma
reação além da pura raiva.

Engulo em seco morrendo de medo de ele fazer alguma besteira no


meio de toda essa gente, que não para de gritar:

“Mais um… mais um…”

Estão pressionando para que eu cante a próxima música e dê

continuidade ao show, a banda começa a tocar a melodia do repertório


normal de hoje, mas eu não consigo falar mais de uma palavra, a letra da
música foge da minha cabeça. O baterista troca olhares com o cara do

violão sem entender nada, isso nunca aconteceu antes. É como se a minha
existência nesse momento pertencesse apenas ao Gonzales, meus olhos
estão presos aos dele à espera do seu comando.

Mas ele não se manifesta, vira as costas e vai embora sem olhar para
trás e com ódio mortal de mim. Isso não deveria me incomodar, entretanto,
está me corroendo por dentro.

— Você está bem, filha? — Minha mãe se aproxima do palco. Olho


para baixo e avisto seu rosto com rugas de preocupação entre os olhos.

— Não, mãe, está tudo bem, só tive um branco. — Forço um sorriso

na intenção de tranquilizá-la.

Me recomponho e faço sinal para a banda recomeçar a música,


começo a cantar e finjo estar tudo bem. Sigo com o show até o final do jeito
que dá, todos dançaram e se divertiram muito, e o mais importante, não

pararam de consumir, foram pedidos e mais pedidos de comida e bebida.


Me despeço do público e agradeço a presença de todos, inclusive dos

meninos da banda.

Ao descer do palanque, cumprimento alguns clientes e tiro fotos para


enfim conseguir ir até o Roberto.

— Meu Deus, Solange, você foi divina. Não imaginava que cantava

tão bem — elogia fazendo charme.

— Muito obrigada, Roberto, estou feliz que tenha gostado do show.


— Seguro no seu braço e voltamos para a mesa juntos.

— Já pensou em tentar carreira na música? Porque, puta que pariu!

Você leva muito jeito para isso, tem um timbre forte e sexy e ao mesmo
tempo suave. Estou apaixonado pela sua voz e acho que pela dona dela
também. — Desliza a mão sobre a mesa e coloca sobre a minha.

Fico sem saber o que responder, na minha mente só vem a imagem do

Gonzales indo embora furioso. Sinto como se estivesse fazendo alguma


coisa errada por estar aqui com o Roberto, é incrível como nossos
sentimentos podem mudar bruscamente de um segundo para o outro.

Merda! O que está acontecendo comigo?

— Eu nunca pensei na música como profissão, canto por amor. Até


porque não me vejo trabalhando em outra coisa que não seja dando aulas.
Se posso conciliar as duas coisas, por que não? Dinheiro não é tudo. — Dou

de ombros.

— Você não existe mesmo, Solange! — Acaricia o meu rosto olhando


nos meus olhos.

— Existo sim, e infelizmente vou ter que ajudar a servir as mesas


daqui a pouco, mas virei aqui falar com você sempre que tiver uma
folguinha. — Ele faz uma carinha triste.

Na verdade, minha mãe não se importaria de eu ficar um pouco mais


com o meu convidado, mas de alguma forma não estou confortável de
flertar com o Roberto depois de beijar o Gonzales. Tudo mudou agora.
— Não vai nem tomar um drinque comigo antes? — Faz um beicinho
lindo, acabo cedendo.

— Tudo bem, e posso fazer ainda melhor, vou pedir uma bandeja dos

petiscos mais saborosos da casa feitos pela minha mãe, a melhor cozinheira
de todo o Madureira — digo e ele se anima.

— Humm, estou curioso para provar os petiscos da minha futura

sogra. — Coça o cavanhaque de um jeito sexy, fico sem graça com o seu
comentário em relação à minha mãe.

Busco a bandeja de petiscos e duas cervejas para nós, conversamos

sobre várias coisas enquanto comemos. Ele é uma pessoa muito agradável e
divertida.

— Infelizmente agora preciso mesmo ir ajudar as meninas, Roberto.

Essa noite o bar lotou, volto para falar com você assim que der. — Inclino
para beijar o seu rosto, ele vira de propósito e rouba um beijo na boca.

Sua mão vai para a minha nuca me empurrando contra a sua boca,

nossas línguas se misturam em uma dança erótica. Ele beija bem, mas falta
alguma coisa. Falta tudo. Não chega nem perto do beijo que o Gonzales me
roubou no escritório; sendo sincera, fico torcendo para que termine logo.

— Agora você pode ir, linda. — Faz carinho no meu rosto, saio

praticamente correndo de perto dele.


No final não estava tão a fim do Roberto quanto pensei. Mas acho que

ele está de mim, porque me espera até o bar fechar. Todos inventam
desculpa para ir embora, só para me deixar sozinha com o meu convidado
especial para fechar o bar.

— Se forem transar, não esquece de usar camisinha, filha. Estou

muito nova para ser avó — minha mãe alerta antes de ir embora, me
matando de vergonha.

— Pelo amor de Deus, mãe! Vai logo. — A empurro até a saída, me

despeço dela com um beijo no rosto.

Então ficamos só Roberto e eu, me esquivo a todo momento das suas


investidas. Depois que terminamos de limpar o chão e organizar as mesas,

nós tomamos mais duas cervejas e enfim ele me convida para ir para a casa
dele, quer passar a noite inteira comigo. Mas lá estava a energia trabalhando
de novo na minha vida, ouço a voz do meu coração e acabo dizendo não

porque sou uma grande idiota. Estúpida. Trouxa. Que dispensa um homem
maravilhoso desse. Nem aceito a carona que me oferece e percebo que isso
não o agrada e ainda assim continuo firme na minha decisão. Peço um táxi e

vou embora sozinha. Posso estar há muito tempo sem sexo, mas não vou
dormir com um cara que não estou tão a fim assim quanto pensei só por

carência ou gratidão porque ele é um cara legal que veio no bar só para me
ver.
Nós mulheres precisamos entender que não devemos nada aos

homens, serem cavalheiros é o mínimo que se espera e não somos obrigadas


a transar com alguém se não estamos cem por cento certas disso. Minha

mãe me ensinou a me impor assim que entrei na puberdade, isso é algo que
levo para a vida toda e um dia vou passar para as minhas filhas.

Meu corpo, minhas regras e ponto final.


Solange

Estou me sentindo frustrada no táxi indo para a casa quando meu

celular toca, é a minha amiga Tess. Atendo imediatamente, para ela me ligar
nesse horário é porque aconteceu alguma coisa grave.

— O que aconteceu, amiga?

— O Lucas fugiu da cadeia, Solange — é a única coisa que a Tess

consegue dizer em meio ao choro, eu congelo sem acreditar no que acabei


de ouvir.

Como esse filho da mãe conseguiu fugir da cadeia? Aquele é um


presidio de prisão máxima, por isso Lucas foi tão debochado comigo
quando estive lá, deveria estar planejando essa fuga há meses. Mas isso não

importa, estamos todos ferrados com esse bandido a solta.

— Tente se acalmar, amiga, ele ainda está aí?

— Não! Mas disse que vai voltar para terminar o que começou. –
Soluça.

— Eu chegarei o mais rápido que puder. Se esconda no banheiro e

continue na linha falando comigo, vai ficar tudo bem.

— Está bem, por favor, não demora — pede ainda chorando muito.

— Eu não vou, fica tranquila!


Finalizo a ligação e peço para o motorista mudar o endereço da

corrida para a casa da Tess, ele viu que a coisa é séria e mete o pé no
acelerador. Quando chego bato palmas três vezes, esse é o nosso código

para que ela saiba que sou eu. Logo escuto os seus passos desesperados

descendo as escadas. Quando coloco os meus olhos nela, encontro uma


cena que infelizmente já me acostumei a ver.

— Que bom que você veio, Sol, estou muito assustada. — Se joga
nos meus braços tremendo.

O rosto dela está cheio de hematomas, assim como os braços e

pernas. O vestido de seda que ela comprou em uma viagem à Índia e que
tanto amava agora não passa de farrapos presos ao seu corpo, seu cabelo

tem mais fios soltos do que presos no rabo de cavalo preso no topo da
cabeça.

— Isso tem que parar, Tess, antes que eu chegue aqui e encontre você

morta. — Entro e a ajudo a sentar-se no sofá da sala.

— Eu pensei que o Lucas ficaria mais tempo preso dessa vez, mas ele
sempre consegue se safar e volta das profundezas do inferno para

atormentar a minha vida. – Se esvai em lágrimas.

— O Lucas te forçou a ter relações sexuais com ele como da última

vez, Tess? — Ela assente envergonhada, puxa as pernas para cima do sofá e
abraça o próprio corpo sentindo-se exposta.

— Sim! Ele me estuprou de novo. – Seus lábios estremecem.

— Aquele filho da puta! — fico furiosa.

— Você me avisou tanto sobre ele, Solange. Se eu tivesse ouvido

antes, nada disso estaria acontecendo agora. – Desvia o olhar envergonhada.

— Não se culpe assim, amiga. Vai ficar tudo bem!

— Mas se não ficar, Sol? Estou com medo.

— Não pensa negativo, Tessiane, vou te ajudar a tomar banho, depois

vamos à polícia. — Ajudo-a a se levantar.

— Não, Solange, por favor! Ele disse que, se for preso de novo por

minha causa, quando sair vai matar todo mundo que amo. Isso inclui a

minha família e principalmente você, que é a minha melhor amiga e foi na

cadeia afrontá-lo para me defender. — Se agarra em mim tremendo, agora

ela sabe que fui visitar o Lucas.

Como todos os abusadores, esse desgraçado está usando o medo para


dominar a sua vítima. E a melhor forma de fazer isso é ameaçando as

pessoas que ela ama.

— Desculpa amiga, eu devia ter contado para você que fui falar com

o Lucas para pedir que pare te ligar. – Afago seu cabelo. – Só queria ajudar,
mas acho que só piorei as coisas com ele agora solto por aí disposto a tudo,

por isso temos que ir à polícia o quanto antes.

— Acho que não é uma boa ideia ir à polícia, isso só vai deixar o

Lucas mais nervoso.  Mas você não vai desistir fácil disso, não é, Sol?

— Não vou, Tess! Você pode até descansar essa noite. Mas amanhã
cedo vamos na delegacia.

— Mas você vai dormir aqui comigo, não vai? Por favor — implora.

— Não quero ficar sozinha nessa casa, sinto que o Lucas ainda está lá fora
em algum lugar me observando.

— Claro que vou, amiga, não se preocupe. — Enxugo suas lágrimas,


ela precisa ser forte para vencer esse cara.

Ajudo Tess no banho, mal consegue ficar de pé debaixo do chuveiro,

está com o corpo todo dolorido. Escolho um pijama para ela vestir e seguro
a sua mão até que adormeça no seu quarto no segundo andar. Resolvo
descer para cozinhar alguma coisa leve para ela comer quando acordar.

Antes de ir para a cozinha, verifico se todas as portas e janelas estão


trancadas.

— Deixa de paranoia, Solange, aquele covarde não vai ser idiota o

suficiente para voltar aqui essa noite. — Aliso os pelos arrepiados do meu
braço, estou com a mesma impressão que a Tess de que estou sendo

observada.

Tento ignorar o frio na espinha e sigo caminhando para a cozinha,


deve ser só coisa da minha cabeça. Penso, mas logo em seguida todas as

luzes se apagam e acendem por duas vezes, tipo nesses filmes de terror
quando a assombração está prestes a aparecer.

— Mas que porra é essa? — Mexo no interruptor e a luz se acende e


tudo volta ao normal.

Até um segundo depois, quando ouço um estrondo e cacos de vidro

voam por toda parte vindo na direção do meu rosto. Um deles faz um corte
na minha testa, sinto o sangue jorrando e escorrendo pelo meu rosto.

— Agora é a sua vez de apanhar, vadia! Sabia que a sua amiguinha


pediria socorro para você. — Pela janela à minha frente vejo o Lucas do

lado de fora da casa, ele havia jogado uma pedra grande na janela.

Me arrasto para trás do sofá, com a testa sangrando e apavorada. No


momento do desespero, pego o celular no bolso para pedir ajuda e vejo que
está com apenas dois por cento de bateria. Entro em desespero. Não vai dar

para ligar para a polícia e falar o endereço da Tess, resolvo enviar um áudio
para a minha mãe e dizer as palavras certas, ela vai saber o que fazer.
— O Lucas está aqui, mãe! — digo depressa e envio o áudio junto
com a minha localização, um segundo depois o celular desliga.

Tenho certeza de que assim que minha mãe ouvir a mensagem vai
pedir ajuda. Mas enquanto isso, preciso chegar até a Tess antes do Lucas,

vou correr o máximo que posso na direção das escadas. Só que quando
penso em levantar, a porta começa a ser arrombada. Esse louco está
disposto a tudo.

Meu coração parece que vai sair pela boca, preciso pensar rápido e

agir antes que o pior aconteça.

— Está tudo bem, Sol? — grita Tess no topo da escada, ela deve ter
acordado com essa barulheira aqui embaixo.

— O Lucas está aqui, Tess. Corre e se esconde — peço, mas é tarde


demais, a porta da frente vai ao chão com tudo.

Guiada pelo meu instinto protetor, levanto no impulso e parto para

cima do desgraçado disposta a tudo. Para pegar a minha amiga, Lucas vai
ter que passar por cima de mim primeiro.

— Deixa a Tess em paz, maldito! — Jogo todo o meu peso em cima


do Lucas, que não é pouca coisa, e o derrubo no chão.

Encho o covarde de chutes e pontapés sem me importar onde pega,

coloco toda a raiva que tenho dele por tudo de ruim que fez com a Tess em
todos esses anos. Ele está um lixo, cabelo bagunçado, olhos vermelhos e
roupas velhas parece um morador de rua.

— Sai de cima de mim, gorda enxerida. — Tira uma faca escondida


no bolso do casaco, não consigo ver nada além de pura maldade dentro dos

seus olhos avermelhados e fundos.

Saio correndo disparado e subo as escadas sem olhar para trás, apesar
do medo que sinto de levar uma facada nas costas.

— Abre a porta, Tess, sou eu! — Olho para o lado apavorada, se o

Lucas aparecer aqui estou perdida.

Tess destranca rapidamente a porta e eu entro e fecho-a em seguida,


sem saber o que fazer depois disso.

— Ele voltou para terminar o serviço e vai matar nós duas, Solange.
Eu te disse!

— Se acalma, amiga. Antes do meu celular ficar sem bateria consegui

mandar uma mensagem para a minha mãe e avisar que o Lucas está aqui. A
polícia já deve estar a caminho — tento tranquilizá-la.

— Meu Deus, Solange, o seu rosto está machucado.

— Não foi nada grave, Tess. Não liga para isso. – Faço uma análise

rápida ao meu redor. — Precisamos de alguma coisa para usar como arma

quando ele vier atrás de nós.


— Mas o quê?

— Acho que aquilo vai servir. — Aponto para a taça de vidro ao lado

de uma garrafa de vinho tinto pela metade sobre o móvel de cabeceira.

Quebro a garrafa na parede e deixo a ponta bem afiada, Tess faz o

mesmo com a parte redonda da taça.

Ficamos em posição de ataque por vários minutos, mas nem sinal do


Lucas. Pensamos que ele tinha ido embora. Mas ouvimos as tábuas do

corredor rangendo, os passos se aproximam e param em frente à porta. Tess

cobre a boca para não gritar quando a maçaneta começa a girar de um lado
para o outro.

— Fica preparada para tudo, Tess! É ele ou nós. — Ela assente,

ficamos em posição de ataque.

Engulo em seco quando a porta é arrombada, estou apavorada. É

assim que as vítimas de violência doméstica se sentem quando veem o seu


agressor chegando. Completamente acuadas. Sem ter para onde correr, ou

você luta ou morre.

Bem, eu estou disposta a lutar até a morte.

— Onde está esse cabrón? Yo vou acabar com a sua raça agora

mesmo. — Gonzales aparece do nada com um taco de golfe na mão, todo


desalinhado como se tivesse corrido uma volta inteira ao redor do mundo

para chegar até aqui, suado e com o cabelo arrepiado para cima.

Enquanto Gonzales revista todo o quarto, minha amiga e eu caímos


sentadas na cama, chocadas.

— Ele é muito mais bonito pessoalmente, amiga. – Comenta Tess.

Olhamos uma para a outra, depois para o Gonzales e temos um ataque

de riso. Como esse homem veio parar aqui com um taco de golfe? Isso não

faz o menor sentido, da última vez que o vi parecia com ódio mortal de
mim. Sinceramente? Tanto faz! Estou tão aliviada que não é o psicopata do

Lucas. Acredito que ele deve ter visto o espanhol chegando, se assustou e

foi embora.

— Eu nunca pensei que um dia ficaria feliz em te ver, Gonzales.

Muito obrigada! Você salvou as nossas vidas. — Me aproximo dele tomada


pelo sentimento mais puro de gratidão.

— Yo nunca fiquei tão preocupado com alguém na vida, Solange, tive

tanto medo de te perder.

Gonzales deixa o taco de golfe cair no chão e me acolhe dentro dos

seus braços fortes e separa os meus pés do chão, confesso que nunca me
senti segura assim.
— Estou bem, Gonzales, não se preocupe – digo sem graça, toda vez

que lembro do beijo que roubou de mim no escritório do bar sinto um


calafrio.

— Bem como? Você está sangrando, Cariño. Deixa yo ver isso. —


Me coloca no chão com cuidado, tira um lenço do bolso da camisa e coloca

sobre o corte na minha testa.

Trocamos olhares por alguns segundos.

Longos segundos.

— Como sabia que estávamos em perigo? — pergunta Tess

desconfiada.

Me afasto do Gonzales imediatamente, acabo de me lembrar que


minha melhor amiga sabe que transei com esse homem por dinheiro e não

foi pouco. Isso é muito constrangedor para mim, já que ele acabou de me

abraçar de maneira íntima e eu correspondi na mesma intensidade.

— Dona Cátia ficou tão desesperada depois que viu a sua mensagem

que me ligou por engano pensando que era para a polícia, ela me disse que

pensava que você tinha ido para a casa do professor Roberto, já que os dois
ficaram sozinhos no bar em clima de romance depois que fechou. — Faz

uma pausa e me encara de cenho franzido, daquele mesmo jeito que fez no

bar antes de ir embora, como se eu fosse a maior traidora do mundo.


— Eu não fui para a casa do Roberto, pedi um táxi e fui embora

sozinha. Mas a Tess me ligou no meio do caminho e disse que estava com

problemas, por isso vim para cá – esclareço falando depressa como se

minha vida dependesse disso, fico com vergonha de mim mesma por isso.

Não tenho que dar explicação da minha vida para ninguém, muito

menos para o Gonzales.

— Dona Cátia me explicou em resumo a história da Tess com o ex

dela, pedi que ligasse para a polícia e me desse o seu endereço. Dirigi a mil

por hora, sorte de vocês que yo estava saindo de uma boate perto daqui. –
Pigarreia em um desvio de olhar.

Isso explica a leve marca de batom na gola da sua camisa,


provavelmente estava comendo alguma vadia em um canto escuro da boate

quando a minha mãe ligou para ele por engano.

— Você viu o Lucas quando chegou? – Tess pergunta ainda muito


assustada.

— No! Só vi a porta da frente arrombada e entrei em pânico, pensei


que o pior tinha acontecido com vocês duas. — O pavor nubla suas feições,

ele realmente ficou preocupado comigo.

— Você não devia ter entrado aqui dessa forma só com um taco de
golfe, o Lucas poderia estar aqui armado quando chegou e te matado.
— Yo no pensei na hora, Sol, só queria proteger você. — Ergue a mão

e acaricia o meu rosto com carinho, um suspiro escapa da minha boca e eu


me afogo como uma patinha ingênua na imensidão dos seus olhos verdes.

— Agora acho melhor ligarmos para a tia Cátia, ela deve estar

preocupada com a gente. Não é, Solange? — diz o meu nome de maneira


arrastada, cortando o nosso contato visual, em uma advertência clara e

direta.

— Yo acho uma ótima ideia… Hum, como é o seu nome mesmo?

— Meu nome é Tessiane, mas pode me chamar só de Tess. — Analisa

o espanhol de baixo a cima, não confia nele e eu também não.

Tess pegou ranço do Gonzales depois que contei sobre a nossa

história de horrores, se conheço bem a minha amiga, não vai dar uma
brecha para esse espanhol tão cedo.

— Prazer, Tess. – Pigarreia sentindo o clima tenso. –  Vejo que você

está muito machucada e a Solange também tem um ferimento na testa. Se


me permitirem, gostaria de cuidar de vocês duas e levá-las para a delegacia

para ambas fazerem um boletim de ocorrência e depois para um pronto-

socorro — sugere gentil, minha amiga assente sorrindo.

Com aquela carinha de quem já caiu bonitinho no charme do espanhol

em menos de sessenta segundos, e eu pensando que ela não facilitaria as


coisas para ele. Até parece! Nunca vou entender o domínio que esse cara
tem sobre as mulheres. Se eu não for forte, serei laçada também. Acho que

já estou a um passo disso, porque sinceramente não sei como comecei a

noite toda animada com o meu encontro com o professor Roberto e terminei
nos braços do Gonzales. Parece até uma piada mal contada, sem graça e

nenhuma lógica.
Gonzales

— Como sua amiga está, Solange? — pergunto sem esboçar muita

expressão, ainda estou muito zangado com ela por causa do tal
professorzinho Roberto.

— Ela está bem agora, Gonzales. Acabou de dormir. Aproveitei e

tomei um banho. – Solange se senta do meu lado no sofá vestida com um


blusão de time de futebol americano número 13, a uma distância segura de
mim.

Levei Solange e a amiga na delegacia para fazerem um B.O. Foi feito


exame de corpo de delito e depois receberam o atendimento no hospital

para que os seus ferimentos fossem analisados por um médico, para só


então irmos para a casa da dona Cátia. A coitada estava louca de
preocupação à nossa espera. Após ver que todos estavam bem, me

agradeceu mil vezes e se retirou para voltar para a cama. Já era de

madrugada e ela estava cansada.

— Que bom! Yo vou para a minha casa agora, se precisar de mais

alguma coisa me liga. Pedi ao delegado Avilar que deixasse uma viatura de
vigia em frente à casa da sua mãe por prevenção. — Levanto e tiro as
chaves do carro do bolso de trás da calça para ir embora, só esperei para ter

certeza de que está mesmo tudo bem.

Toda vez que olho para a Solange, imagino ela sozinha com aquele

cara no bar de portas fechadas e o meu sangue ferve.

— Não vai, Gonzales. Fica. — Solange segura a minha mão.

— No posso, o dia vai clarear a qualquer momento e yo preciso


descansar, tenho um monte de coisas para fazer na empresa hoje. — Meu

tom é frio.

— Por favor, só um pouco — insiste.

Isso mesmo que yo ouvi? Solange Almeida pedindo por favor para

alguém? Parece até mentira. Acho que ainda está com a adrenalina do susto
que levou e no vai pregar os olhos tão fácil.

— Por que no liga para o seu professorzinho e pede para ele vir te

fazer companhia, Cariño? Vocês dois se merecem. — Foi o que yo pensei,

mas na verdade disse:

— Tudo bem, yo fico, mas só um pouco. — Me sento de volta no

sofá, para minha surpresa Solange se arrasta para mais perto de mim.

— Mais uma vez, muito obrigada, Gonzales. Não tenho palavras para

descrever o quanto estou grata pelo que fez por mim e a Tess — agradece

pela milésima vez.


— Fiz por você — a corrijo.

Fiquei louco quando a dona Cátia me ligou por engano, estava saindo

de uma boate após beber todas. Fui para aquele lugar transtornado depois de

ouvir a Solange cantando para aquele hijo de la puta no bar, ele é tudo o

que ela sonha em um homem. Negro, boa pinta e bom moço que dá aula

para criancinhas, só falta a auréola em cima da cabeça para ser um anjo. No

tenho a mínima chance contra o senhor todo certinho, essa é a verdade.

— Não diz isso, Gonzales, você pode ter a mulher que quiser. Por que

essa insistência com alguém como eu? Não sou uma pessoa fácil de lidar.

— Contorce as mãos sobre o colo. – Mas acho que você já percebeu isso.

— E você acha mesmo que yo no sei, Solange? Só me recebe com

foras e patadas a todo momento. No tenho mais paz, minha vida virou um
inferno depois que te conheci. Você é irritante, orgulhosa e teimosa pra

caralho. Agora no tenho mais o foco no trabalho e no importa quantas

mujeres yo foda, nunca me satisfaz, sabe por quê? — pergunto.

Ela nega com a cabeça.

— Porque nenhuma delas é você — revelo frustrado.

— Não faz isso comigo, Gonzales. Me fazer acreditar que sou

importante de alguma forma para você, porque sei que o seu interesse em
mim é só sexo. Já deixou isso bem claro várias vezes. — Vem com essa

ladainha de novo, mas ela está coberta de razão.

Lembro da noche que nos conhecemos naquela festa, fui tão rude com

a Sol porque me rejeitou logo de cara. Nenhuma mujer fez isso comigo
antes, o que acertou em cheio no meu ego, foi aí que a obsessão doentia por

ela começou e no parei até que a tive na minha cama. Só no esperava que
me apaixonaria perdidamente, caindo na minha própria armadilha.

— Depois que passei a noite com você na cadeia, percebi que o meu

interesse em você está longe de ser apenas sexo — minha sinceridade a


assusta.

Desde a conversa que tive com papá tenho mais certeza disso, porque
quando olho para Solange toda minha linguagem corporal muda. A única

coisa que penso é que faria qualquer coisa para mantê-la segura, nada mais
importa para mim além disso. Quando me pego fazendo planos para o

futuro, todos giram em torno dela. Isso inclui casamento e filhos, quero a
casa cheia, pelo menos cinco, no mínimo.

— Então agora o seu interesse em mim não é só sexo, Gonzales? Me


poupe! Então o que é? — Suas narinas se inflam, está sempre armada para

se defender de mim.

— É amoroso.
Admito por fim e Solange me encara de queixo caído, no esperava

que a minha resposta fosse essa. Ela realmente acha que aguento todos
esses foras dela porque só quero fodê-la.

— No me olha assim, Cariño. Estou tão surpreso quanto você com o

que yo disse, mas no adianta mais negar o óbvio. — Jogo as costas no sofá,
envolvido por uma sensação de alívio.

Porque pela primeira vez, sinto que Solange está levando a sério o
que yo disse sobre querer ter uma relação de verdade com ela.

— Você está me assustando, Solange. No vai dizer nada? — fico

preocupado.

Passaram-se alguns minutos e Solange permanece paralisada, nem

pisca, está em estado de choque.

— E… eu não sei o qu… que dizer — gagueja com o olhar baixo.

— No precisa dizer nada, no quero que se sinta pressionada. Por que


no liga a TV? Yo perdi o sono e acho que você também. — Ela assente em
silêncio.

Rapidamente pega o controle e liga a TV em algum canal aleatório,

está passando um filme de comédia com o Jim Carrey. Graças a Deus


porque se fosse algum romance yo me mataria, de dramática já basta a

minha história com Solange.


— Você está com frio? — Ela quebra o silêncio depois de meia hora
de filme, mas evita olhar nos meus olhos.

— Só um pouco, mas você está tremendo. — Só que acho que no é de


frio, mi amor.

Pigarreio para disfarçar um sorriso que escapou da minha boca, yo

mexo com a Sol tanto quanto ela mexe comigo.

— Vou pegar um cobertor, já volto. — Assinto sério, quando ela sai

da sala começo a rir sozinho.

Solange aparece com um cobertor marrom peludo, pensei que era só


para ela. Mas ao invés disso se enfia debaixo dele comigo e volta a sentar

um pouco mais próxima de mim, de maneira que os nossos corpos se tocam


em uma mútua troca de calor humano. Crio coragem e uso o velho truque
de fingir me espreguiçar e jogo o braço em volta dela. Vendo que não há

nenhuma relutância da sua parte, sorrio sentindo que avancei um passo.

— Gosto do Jim Carrey, é um ótimo ator. — Sua voz sai sonolenta,


vagarosamente Solange apoia a cabeça no meu ombro.

Se eu pudesse me mexer, daria um soco no ar. A bandeira da paz foi


erguida entre nós, mas a existência de um certo professor Roberto, o senhor

todo certinho, ainda me aflige muito. Preciso pensar num jeito de tirá-lo do
meu caminho definitivamente.
— Faz muito tempo que yo no paro para assistir um filme, mas
quando jovem adorava filmes de comédia, e esse cara com certeza era um
dos meus atores favoritos.

— Quando era jovem, Gonzales? Você ainda é, tem muitas coisas

para viver ainda — fala em meio a um bocejo e aconchega mais a cabeça no


meu ombro.

— E yo quero viver todas elas com você, Cariño. — Inclino e

deposito um beijo no seu rosto, mas no tenho certeza se ela escutou porque
acabou dormindo.

Mas tudo bem, essa é a primeira vez que temos uma conversa normal

sem indiretas ou desejo de matar um ao outro. Já é um avanço enorme para


mim e mi corazón se enche de esperança de novo. Faço carinho no seu rosto

por um longo tempo observando-a dormir, até que pego no sono também.

Nós dois encolhidos num sofá minúsculo, tão grudados como se fôssemos
um só.

— Droga! Eu dormi no sofá com o Gonzales. Como minha mão foi

parar aí? — Acordo com Solange falando sozinha, mas finjo que estou
dormindo e mantenho os olhos fechados.

No sei como ou quando mudamos de posição, mas agora estamos


deitados com Solange por cima de mim e a sua mão curiosamente migrou
para dentro da gola da minha camisa, bem sobre o meu peitoral.

— E agora, como vou tirar minha mão e sair daqui sem acordá-lo?

Merda! — resmunga baixinho.

Antes que Solange pense em se mover, passo os braços em volta do

seu corpo bem forte, de maneira que a prendo em um abraço de urso. Ainda

está muito cedo e no quero que vá dormir em outro lugar que no seja nos

meus braços. Ela no insiste mais em sair, estou feliz que a paz esteja
começando a reinar entre nós.

Só no sei até quando isso vai durar, o humor dessa mujer é cheio de
fases e na maioria delas nunca está ao meu favor.

 
Solange
 

Acordo com risadas altas vindas da cozinha, mas ignoro a princípio.

Levanto do sofá meio sonolenta e vou para o banheiro fazer a minha


higiene pessoal. Jogo minhas tranças para trás e lavo o rosto com água fria

para espantar o sono e escovo os dentes, ainda bem que hoje é feriado e não
preciso ir trabalhar na escola.

— Você não vem tomar café, Solange? O irmão da Lupita fez


desayuno español para nós. — Rafael bate na porta do banheiro, animado
de um jeito raro de se ver, ainda mais na parte da manhã, pois sempre

acorda de mau humor.

— Ele fez o quê? — Ergo a sobrancelha.

— Desayuno español, ora essa, já disse! — responde como se fosse

óbvio e vai embora.

Caramba, eu não esperava que o espanhol ainda estivesse aqui em

casa. Pensei que tinha acordado e ido embora, afinal, disse que tinha coisas
importantes para fazer hoje. Não sei como vai ser o nosso encontro depois

da nossa conversa de ontem, sei que é bastante provável que estava só


jogando comigo. Mesmo assim, estou muito mexida depois de ouvir a

palavra:

“Amoroso.”

Porque sei como lidar com o Gonzales cafajeste e egocêntrico sem


coração, que só pensa nele e mais ninguém, mas esse outro, todo atencioso

e protetor, não sei como agir ou falar. Fico sem reação feito uma tonta.

Mesmo assim me preparo para me juntar a eles na mesa da cozinha,


levando mais tempo que o normal para me arrumar para tomar um simples

café da manhã em família.

— Bom dia a todos — cumprimento tímida.

Só apareço na cozinha depois de colocar uma calça jeans nova,

camiseta toda manchada com as cores do arco-íris e passar pelo menos dez
minutos dando um jeito na minha cara amassada de sono. Gonzales deveria

estar dizendo alguma coisa engraçada, porque minha mãe, Tess e o Rafael

Louis estão rindo alto enquanto ele tagarela com o seu sotaque arrastado.

— Bom dia, filha, Gonzales acordou antes de todo mundo, foi no


mercado e fez o nosso desayuno español. Que em português quer dizer

“café da manhã espanhol” — minha mãe fala toda orgulhosa por ter

aprendido algo em outro idioma.


Estão os quatro sentados na mesa de madeira de seis lugares, minha
mãe e a Tess de um lado e o Gonzales sozinho do outro, Rafael está na

ponta à esquerda. Tento ignorar o sorrisinho no rosto da minha amiga

dividindo o olhar entre mim e o espanhol, está na cara que sinto alguma

coisa pelo novo sócio da família.

Só ainda não sei ao certo o que é e não faço questão nenhuma de

descobrir, tenho medo de qual seja a resposta.

— Muito legal da sua parte, Gonzales, não sabia que você cozinhava.

— Nossos olhares se cruzam e borboletas voltam a voar no meu estômago,

ele estuda atento cada gesto meu.

— No fiz nada de mais, Solange! Como mis padres sempre

trabalharam e na época no tinham dinheiro para pagar uma babá, yo cuidava


do meu irmão do meio, Luiz Fernando, e amava cozinhar para ele. Nós nos

divertíamos muito juntos, todo dia era uma aventura diferente — enquanto

fala sorridente, brinca com uma maçã verde que pegou da cesta sobre a

mesa.

É incrível como as feições do Gonzales mudam ao falar da família,


aparece um brilho diferente no seu sorriso e dá para ver o amor jorrando

dos seus olhos. Não sabia que tinha mais um irmão, pensei que fossem só

ele e a Lupita.
— Senta e vem comer com a gente, Sol, está tudo delicioso —

convida Tess, ela aponta para a cadeira ao lado do Gonzales para ter certeza
de que eu não sente na ponta à direita que também está vazia.

— Está mesmo bom, irmã. Acho que comida espanhola é a minha


favorita agora — Louis fala e mastiga ao mesmo tempo.

Gonzales se levanta e puxa a cadeira ao seu lado para eu me sentar,

todo cavalheiro. Minha mãe e a Tess trocam olhares e sorrisos, como se


nunca tivessem visto um homem bonito sendo gentil como uma mulher

antes.

— Bom, yo fiz o tradicional café da manhã espanhol, que começa no

pão com tomate, azeite e alho. Os bocadillos con jamón serrano são
clássicos por lá. Para finalizar, churros de chocolate que, principalmente no

inverno, são muito apreciados na Espanha — explica compenetrado


enquanto monta o meu prato, ele devia parar com todos esses mimos porque

só piora a situação para o meu lado.

Ainda mais com essa aparência sexy toda bagunçada de quem dormiu

de última hora no sofá da casa de outra pessoa, nem consigo ver os seus
lindos olhos verdes direito, estão cobertos pelos amontoados de fios escuros

e grossos caídos sobre o seu rosto de maneira avulsa. Vez o outra Gonzales
joga o cabelo para trás para tirá-lo do seu campo de visão, mas ele sempre

volta para o mesmo lugar como se tivesse vida própria.

— Muito obrigada, Gonzales, realmente parece delicioso. — Começo


pelo pedaço do tal pão com tomate, azeite e não sei mais o quê.

— Fico feliz que tenha gostado, Cariño — me chama de maneira


“íntima” na frente de todo mundo, percebo que foi sem querer porque seu

rosto fica todo vermelho em questão de um segundo.

Minha mãe e Tess trocam olhares novamente e eu quase tenho um


colapso de tanta vergonha, que situação embaraçosa. Parece que agora tudo

o que Gonzales e eu fazemos dá impressão que estamos flertando, mas que


droga.

— Gostaria de ver os meus desenhos, irmão da Lupita? — sem


intenção, Rafael muda o foco da atenção sobre nós.

Graças ao bom Deus!

— Claro, Rafael, será um prazer, aliás, você esqueceu isso quando foi
na minha empresa.

Gonzales pega a carteira no bolso e tira uma folha dobrada, é um

lindo desenho de uma paisagem que reconheço ser da vista da sala de


reuniões na empresa dele. Onde invadi e dei um show lá dentro e não me

arrependo, estava na minha razão naquele momento. Pelo menos pensava


que estava, depois de tudo que vem acontecendo desde então não tenho
certeza de mais nada.

— Quando você esteve na empresa do Gonzales que eu não fiquei


sabendo, Rafael Louis Almeida? — pergunta minha mãe e eu engasgo.

Ela cruza os braços e balança a cabeça feito uma cobra naja na

direção do Rafael, agora ferrou, ele vai jogar toda a merda no ventilador, e
com riqueza de detalhes. Olho para o meu irmão quase chorando, minha
vida está em suas mãos agora.

Coagido, Rafael solta o churro que estava comendo sobre o prato e

fica olhando para o nada por tempo demais, como se estivesse revivendo a
cena na sua cabeça. Fico mais desesperada ainda, quando ele começar a
falar não vai parar mais.

— Eu não quero perder o meu caderno de desenho novo. Então, mãe,

é melhor a senhora perguntar para a Solange. Ela também estava lá. —


Aponta para a minha direção e volta a comer o seu churros, o problema não

era mais dele.

Meu irmão lindo não contou a verdade, mas também não mentiu.

Suspiro mais aliviada, até a dona Cátia lançar sua atenção sobre mim como
um punhal direto no coração.
— Estou esperando uma explicação, Solange. — Fico nervosa e não
me vem nenhuma mentira convincente à mente, não sou boa em agir em
momentos tensos.

— No foi nada de mais, dona Cátia, a Solange só passou na minha

empresa um dia depois da aula com o irmão para saber mais detalhes sobre
o meu real interesse em investir no bar de vocês. Yo expliquei tudo certinho

a ela; se trabalharmos em equipe nisso, podemos fazer dessa parceria um


verdadeiro sucesso — Gonzales mente descaradamente, apesar que senti

um pouco de verdade no final.

— E essa cabeça-dura enfim entendeu? — Minha mãe abre um

sorriso, caindo direitinho na conversa dele.

Fico impressionada com a sua facilidade em levar as pessoas na

conversa, até eu que sei a verdade quase acreditei no que ele disse.

— No estou certo ainda, dona Cátia. Acho melhor sua filha responder

essa. — Franzo a testa e ele apela com um sorriso molha calcinha.

Esse espanhol está claramente me pedindo um voto de confiança para


mostrar que não é o homem desprezível que pintei dele, mas não sei se

fazer isso é uma boa ideia. Tenho medo de me desarmar e dar a ele a

oportunidade perfeita para entrar na minha vida e me destruir por completo


dessa vez, as chances dessa história terminar bem são mínimas. Mesmo

assim resolvo pagar para ver, como vovô Manoel disse:

“Não podemos julgar uma pessoa sem dar a ela a chance de mostrar

quem é de verdade. Acredite, querida, se deixar o seu orgulho de lado pode


se surpreender.”

— Bem, eu ainda tenho as minhas dúvidas sobre essa sociedade

inesperada de vocês dois. Mas estou disposta a ajudar no que for preciso
para que o bar se torne um sucesso, então podem contar comigo no que

precisarem. — Dou o braço a torcer, mas ainda um pouco cética em relação

a essa história.

Gonzales segura a minha mão debaixo da mesa, em gratidão. Fico

tensa e o meu corpo inteiro enrijece, ele percebe isso porque encerra o

contato físico logo em seguida. Não quer forçar a barra.

— Vamos dar glória a todos os deuses por isso. — Mamãe junta as

mãos como se estivesse orando, seus olhos estão marejados.

Para ela é muito importante ter a minha benção nessa parceria com o

Gonzales, afinal, somos uma família e sempre enfrentamos os problemas

juntos.

— Amém, irmãos! — Tess entra na brincadeira, todo mundo está

rindo.
Menos o Gonzales, porém, também não está sério. Apenas me olha de

canto de olho, de um jeito profundo e cheio de promessas.

— O papo está muito bom, meu povo, mas hoje é feriado. Já que
estou de folga, quero aproveitar para ir à feira — digo toda animada, se tem

uma coisa que eu gosto de fazer é compras no meio do povão.

Tem feira todos os dias aqui no Madureira bem cedinho, mas eu quase

não vou mais porque vivo trabalhando. Mas quando era pequena sempre ia

com o meu pai e me divertia muito, esse sempre foi meu programa em
família favorito. Fazemos as compras de produtos orgânicos e tudo mais

que se possa imaginar por preços bastante justos. Por isso aproveitamos

para fazer as compras para toda a semana aqui para a casa e o bar. Ficamos

horas e mais horas escolhendo os melhores legumes, frutas e carnes.

Mas está longe de ser algo entediante, rimos o tempo todo, comemos

tudo o que temos direito na praça de alimentação.

— Eu amaria ir com vocês, mas não vou arriscar sair em público,

pode ser perigoso com o Lucas à solta. — Minha amiga se encolhe toda,

quase some no fundo da cadeira.

É sempre assim, Tess vira um cordeirinho assustado só de falar no

traste do Lucas.
— Você tem razão, querida, eu e o Rafael ficaremos em casa para te

fazer companhia. Faz tempo que não te via, quero matar a saudade da
minha filhinha linda do coração. — Mamãe espreme Tess num abraço de

urso.

— Eu posso ficar sozinha, dona Cátia, não quero atrapalhar o passeio

de vocês. Não é justo a Solange ir fazer as compras na feira sozinha.

— Por que não fazemos assim? O Gonzales me ajuda a fazer as


compras do bar e eu aproveito e apresento a ele o evento mais famoso do

Madureira. — Abro o sorriso mais cínico do mundo, só porque dei um voto

de confiança não quer dizer que facilitarei as coisas para o seu lado.

— Yo vou? — Contrai a mandíbula, já sacou o meu plano.

Quero ver se esse espanhol está mesmo disposto a trabalhar pesado no


bar, porque se ele não entregar as cartas depois de ver a loucura que é fazer

compra na feira lotada de gente debaixo desse sol escaldante do Rio de

Janeiro é porque está mesmo disposto a fazer essa parceria dar certo.

— Vai sim, vou fazer a lista de compras e saímos em dez minutos. —

Pego o caderno de notas na gaveta.

Gonzales rosna um pouco, mas vai para a feira comigo. Como fica

perto da minha casa vamos caminhando, fiz ele arrastar o carrinho de


compras de estampa florida da minha mãe e levei o meu, nas cores da

bandeira da Jamaica.

— Que Nossa Senhora de Guadalupe tenha piedade desse pobre


espanhol! – dramatiza meu companheiro de compras, ele vai morrer de

calor dentro dessa roupa toda preta.

Gonzales beija a medalhinha da santa na corrente dourada no seu

pescoço antes de entrarmos na multidão já formada na feira. Para quem não

está acostumado com isso, é de se assustar mesmo.

— Primeiro vamos comprar os temperos verdes, depois tem os

legumes, verduras e grãos — explico rápido.

— Como a senhora quiser, chefe — diz com deboche.

No percurso até a bancada de temperos, Gonzales vira a sensação da

feira. A grande massa dos clientes que vem aqui são mulheres e estão de
olho nele descaradamente, não é todo dia que se vê um homem igual a ele

por essas bandas. Só pelas roupas caras e a postura ereta esbanjando

superioridade, se nota de longe que é montado na grana.

Ainda tem o quesito beleza, que no caso do Gonzalez não é algo que

se passa despercebido com facilidade aqui ou em qualquer outro lugar do

mundo.
— Como você lida com isso todos os dias? Não sei se eu conseguiria.

— Balanço a cabeça ao procurar na banca o arranjo de salsinhas com as


folhas mais verdinhas na bancada.

— Lidar com o quê, Cariño? — Estufa o peito em meio àquela

jogada de cabelo para trás cheio de charme, três senhoras próximas a nós
suspiram.

Outra moça morena que passava cheia de sacolas torce o pescoço para
olhar para ele e colide com a barraquinha de batatas, quase indo ao chão,

uma cena ridícula de se ver.

— Com isso, espanhol. — Seguro o seu queixo quadrado entre os


meus dedos e giro o seu rosto para que veja que a feira praticamente parou

ao nosso redor, todas as mulheres pararam o que estavam fazendo para

olhar para ele.

Ficam apontando e cochichando entre si, uma baixaria! Se soubesse

que a presença dele aqui causaria todo esse alvoroço teria deixado Gonzales

em casa.

— Ainda no faço ideia do que está falando, seja mais clara, mujer —

se faz de bobo.

Ou talvez Gonzales está tão acostumado a ser o centro das atenções

de todas as mulheres por onde vai que nem percebe mais, para ele é algo
absolutamente normal do seu dia a dia.

— Nada, Gonzales, esquece. Vamos continuar com as compras —

desconverso.

Corto o assunto embaixo, seria complicado demais explicar para o

Gonzales que estou incomodada com esse bando de mulheres oferecidas


dando em cima dele sem parecer que estou com ciúmes. Porque não estou.

De maneira nenhuma. Não mesmo. Pelo menos é no que quero acreditar,

agora se é verdade já não garanto nada.

 
Gonzales

Afrouxo a gola da minha camisa preta e dobro as mangas, yo estou

suando feito um porco nesse lugar. Deve estar fazendo uns quarenta graus
hoje, no mínimo, mas a sensação térmica é de cem ou mais. Minha garganta

está seca, preciso beber alguma coisa gelada ou vou morrer desidratado,
tem tanta gente na feira que estou sufocando. Já Solange continua toda linda
e plena como se estivesse andando nas nuvens, fora que a mujer conhece
todos os donos das barraquinhas. Faz questão de parar e falar com cada um

deles, sempre atenciosa, pergunta como estão suas famílias e no é só por


educação, dá para sentir o carinho na interação com eles.

— Esses tomates estão lindos, senhor José — Solange apalpa os da

fileira do meio.

— Estão mesmo, Sol. – O dono da barraquinha de legumes sorri

simpático para nós.

— Estão bonitos sim, mas no estão bons. Se você olhar com mais
atenção, tem algumas pintinhas escuras no fundo e isso quer dizer que vão

durar dois ou três dias no máximo — explico.

Solange me examina como se yo fosse alienígena.

— Como sabe disso, Gonzales? — indaga um tanto surpresa.


Essa diaba me trouxe aqui só para me testar, mas vai dar com os

burros na água. Quando yo era só um menino humilde na Espanha, sempre


acompanhava o meu avô Joaquim nas compras. Depois que perdeu toda a

família naquele massacre terrível, ele teve que aprender a se virar sozinho

muito cedo e uma delas foi cozinhar, foram anos de prática, era quase um
chefe de comida espanhola. Tudo o que sabia passou para mim, me ensinou

pacientemente como escolher as melhores frutas e legumes, a carne mais

fresca e os temperos certos.

Sua esposa, a vovó Marisol, no sabia nem fritar um ovo, então era o

marido que mandava na cozinha. Ele amava passar horas e horas na frente

do fogão fazendo diversos pratos deliciosos para a família. No via como


obrigação, mas sim como um hobby que passou para os filhos e netos. Na
minha casa quem vai ao mercado fazer as compras sou yo mesmo, gosto de

preparar todas as minhas refeições. Se existe algo que herdei daquele

homem incrível foi o amor pela culinária e a alegria de viver, além da

paixão pelas mujeres, é evidente.

— Yo no sou apenas bonito e gostoso, Solange. Também tenho

conteúdo. — Dou um sorrisinho enquanto examino quais tomates levar.

— E obviamente nada modesto, não é mesmo, espanhol? — Me

empurra com o braço, brincalhona.


— No é questão de modéstia, querida, só estou sendo realista perante
os fatos — digo e ela gira o nariz no ar, debochada.

Estou adorando esse clima descontraído entre nós, sem provocações

ou indiretas. Solange está mais aberta em relação a mim e yo vou agarrar

essa oportunidade com unhas e dentes.

— Deu dois quilos certinho, Solange, o seu amigo entende do


assunto, escolheu só os melhores tomates, essa remessa chegou agora há

pouco da colheita — elogia o dono da barraca, brincalhão.

— No só entendo como prometo vir aqui comprar mais vezes, por

isso acho que seria muito justo se o senhor gentilmente desse um desconto

para a Solange por ela ter lhe trazido um novo cliente — negócio, sou ótimo

nisso.

Grande parte do meu sucesso devo ao fato de que aprendi a

pechinchar com vovô Joaquim na hora de comprar até uma garrafa de água,

sempre conseguia levar os vendedores no bico e pagar pelos produtos bem

menos do que o valor normal.

— Justo, rapaz! Vou cobrar só por um quilo de tomate, o outro é por


conta da casa, Solange.

— Ótimo! Gostei de fazer negócio com o senhor, muito obrigado. —

Aperto sua mão como se estivéssemos fechando a venda de ações de uma


empresa multimilionária.

— Eu estou mesmo impressionada, Gonzales! Vou te trazer mais

vezes para fazer compras comigo.

— Estou sempre ao seu dispor, Cariño. No que precisar. — Uso um


tom agudo, nublado de segundas intenções.

— Bem, acho que fechamos a lista de verduras e legumes. Gostaria


de parar para descansar e comer alguma coisa antes de irmos para os

temperos e grãos?

— Claro, Sol, o que tem em mente para matar a sua fome? Porque yo
já sei o que quero como meu prato principal. – Aqui está o tom nublado de
segundas intenções novamente, quem no arrisca nunca vence o jogo.

— Um lugar que se eu vier à feira sem passar lá, não me sinto

completa. — Segue o assunto como se no tivesse entendido a minha


indireta.

— Hum! E onde seria esse lugar?

— Na barraquinha de pastel e caldo de cana do Rogério, é um lugar


especial para mim porque meu pai costumava me levar lá toda vez que me

trazia na feira. Conversávamos sobre várias coisas enquanto esperávamos


nossos pedidos, era um momento só nosso de pai e filha — devaneia ao
falar do pai cheia de saudade, eles eram muito próximos.
— Se no se importar, posso perguntar como o seu pai morreu?

— Ele ficou trabalhando sozinho até tarde no bar aquela noite,

quando estava indo para casa um carro perdeu o controle e o atropelou na


calçada e o matou na hora. – Olha para uma barraca de artesanatos feito de

tricô ao seu lado para esconder os olhos cheios de lágrimas, falar nesse
assunto mexe muito com o seu emocional.

— E o que aconteceu com o motorista do veículo?

— Nada! Saiu sem nenhum arranhão. É um moleque metido de


dezenove anos filho de um político importante, que saiu bêbado de uma

festa e matou um pai de família e nem chegou a ser preso. – Balança a


cabeça em meio a um sorriso amargo.

Imagino como deve ter sido difícil para uma filha em luto ter que
viver sabendo que a morte dele no teve justiça só porque o assassino tem as

costas quentes. Yo que sou advogado e trabalho no meio jurídico, vejo isso
acontecer no Brasil com mais frequência do que deveria.

— Mas pelo menos esse rapaz já foi julgado, Solange? – indago,


tentando colher mais informações sobre o caso.

— Não foi, o desgraçado continua curtindo a vida com os amigos

enquanto espera o julgamento em liberdade. Que pelo que o advogado


público responsável pelo caso do meu pai disse, não vai acontecer tão cedo.
– Respira pesadamente. – Mas não quero mais falar sobre isso.

— Entendo. Desculpa ter tocado no assunto, Sol. – Enfio as mãos no


bolso, constrangido.

Ela pode até no querer mais falar sobre o caso dela, mas tenho os

meus meios de conseguir mais informações. Quero ver em que pé a situação


está, talvez yo possa ajudar de alguma forma.

— Sem problemas! – Me oferece um sorriso sem vida.

— Vamos na barraquinha do Rogério, então? Estou ansioso para


provar esse tal pastel com caldo de cana — tento parecer animado e

contagiá-la, mas no estou com fome de fato, tenho o costume de almoçar


tarde, isso quando tenho tempo.

O fato é que estou muito feliz de a Solange querer me levar em um


lugar de tanta importância para ela por causa do pai, me faz sentir especial;

no quero me iludir, mas isso me parece um ótimo sinal.

— Essa cena vai ser muito engraçada, o conceituado advogado

Alejandro Gonzales comendo em uma barraquinha na feira do Madureira


— implica comigo, aperto a mandíbula e finjo estar zangado.

Mas no consigo segurar por muito tempo e acabo rindo, Solange tem

esse efeito mágico em mim, de querer sorrir o tempo todo feito um lunático.
— Já comi em lugares que você nem imagina, muchacha. Ficaria
chocada se yo dissesse. — Arqueio a sobrancelha e ela fica curiosa, mas no
pergunta nada.

Seguimos o caminho para a barraca do senhor Rogério. Apesar de yo

ser apaixonado pela culinária brasileira, nunca experimentei pastel com


caldo de cana e estou curioso para conhecer todos os gostos dessa mujer

complicada e ao mesmo tempo encantadora.

Que quanto mais a conheço, mais percebo que é perfeita para mim.

— Chegamos! — Solange vai direto no menu do dia.

A barraquinha do senhor Rogério é pequena e bem simples, mas


muito organizada e limpa. Somos atendidos por ele e a esposa com um

sorriso acolhedor. Reparo que ambos usam uniforme, além do avental,

touca e luvas, tudo dentro das regras de higiene.

— Então, Solange, como estão a sua mãe e o Louis? — pergunta o

dono da barraca.

Ele manuseia ao mesmo tempo duas panelas grandes de óleo fervente,

com uma prática invejável.

— Muito bem, senhor Rogério, graças a Deus. Eles ficaram em casa

porque estamos com visita hoje.


— Então você trouxe o seu namorado para te ajudar a fazer as

compras da semana? — a esposa do senhor Rogério comenta com uma


risadinha nada discreta, Solange fica envergonhada.

— Ele não é o meu namorado, Vanuza. — Suas bochechas ficam


levemente coradas.

— No sou ainda — acrescento seguro e Solange me olha de cenho

franzido por cima do ombro, como se yo tivesse dito algo ofensivo à sua
honra.

— Mandou bem, rapaz de atitude! — Senhor Rogério inclina sobre o


balcão e bate a mão na minha.

— Não dá corda para esse espanhol, Rogério. Ele não passa de um

cafajeste que fica com todas ao mesmo tempo — Sol expõe a minha vida
pessoal para essas pessoas que acabo de conhecer e acha a maior graça,

gosta de me provocar.

— Desculpa, filha, mas o rapaz é boa pinta e gente boa. Investe nele

que vai ser sucesso — Rogério me dá uma forcinha.

— Valeu, Rogério, yo penso o mesmo ao meu respeito. Sou um ótimo


partido! — digo sério e ele solta uma risada muito alta, gosta do meu senso

de humor.
— A verdade tem que ser dita mesmo, cara, eu sempre falo para a

minha esposa que ela tirou a sorte grande quando casou comigo — tira uma

com a cara da esposa, o olhar dela de canto para cima do marido é


impagável.

— Homens. — Ela revira os olhos e todos nós rimos.

— Nunca vi raça mais metida, Vanuza. — Solange me dá um

empurrão no ombro, ela pensa que sou metido porque me acho um bom

partido.

Mas só disse verdades, nunca banquei o falso humilde salvador dos

fracos e oprimidos. Sou lindo sim, charmoso, rico e inteligente. Trabalhei

muito para chegar onde cheguei, no ganhei nada de mão beijada, ralei muito
e mesmo levando muito na cara, nunca desisti dos meus sonhos e me

orgulho disso.

— Então, filha, o que você e o seu futuro namorado bonitão vão

querer hoje? — Rogério no perde a oportunidade de continuar com a piada,

ele e a esposa são muito divertidos.

Você vem para comer na barriquinha deles e acaba com um sorriso no

rosto, agora entendo por que o pai da Solange costumava trazê-la aqui.

— Eu quero dois pastéis de queijo e um de palmito; para beber, um

copo grande de caldo de cana com gelo, gengibre e casca de limão. E você,
Gonzales? — Solange se vira para mim e yo mal consigo processar tudo o

que ela pediu, parei no pastel de palmito.

— Ainda no sei, alguma sugestão? — Passo o olho no menu por alto,

a verdade é que qualquer coisa para mim está ótimo.

Solange acaba pedindo um pastel de queijo para mim também, e para

beber, o mesmo que ela. Sentamos um de frente para o outro em uma

mesinha de dois lugares enquanto aguardamos trazerem os nossos pedidos


em total silêncio. Ela no sabe se mexe nas tranças ou ajeita a blusa, de uns

tempos para cá se sente tímida na minha presença, acho que desde que me

declarei para ela.

— Está calor hoje, não é? — puxa um assunto aleatório só para fugir

do que realmente gostaria de dizer.

— Sabe que no pode fingir para sempre que aquela conversa que

tivemos no sofá da sua casa ontem à noche nunca aconteceu, no é? — vou

direto ao ponto, nunca fui hombre de fazer rodeios.

— Eu não estou fugindo de nada, espanhol. Só acho que não

precisamos falar disso agora. Não é o momento certo. — Empina o peito

tomando uma postura defensiva.

— E quando vai ser, Cariño? Ah, yo esqueci! Você está de namorico

com o professor bonitão, então acho que essa conversa nunca vai acontecer
— ironizo.

Se yo pudesse, fazia esse professor Roberto desaparecer da face da

Terra, ele e a Solange combinam tão bem quando estão juntos, e ter que
admitir isso me deixa com sangue nos olhos.

— E você com a metade das mulheres do Rio de Janeiro, Gonzales —


rebate petulante.

Como duas crianças implicantes, cruzamos os braços e iniciamos uma

briga de olhares. Mas logo iniciamos um ataque de risos, ela no consegue


mais ficar zangada comigo.

— Você é um palhaço mesmo, Alejandro Gonzales! — Pega um


guardanapo sobre a mesa e joga em mim, rindo de um jeito descontraído

que nunca vi antes.

— Aqui estão os pedidos de vocês, divirtam-se. — Rogério põe a


bandeja sobre a mesa, enfeitada com flores e dois brigadeiros como brinde

da casa.

— Droga — xingo ao tentar pegar o pastel sem o guardanapo e

queimo as pontas dos dedos, está muito quente, acabaram de ser fritos.

— Calma! Isso vai aliviar. — Solange pega o meu dedo e leva à boca,
fico excitado na hora quando sinto a língua molhada roçando na pontinha

do meu indicador.
— Acho que no é uma boa ideia fazer isso quando estivermos em

público, Cariño — alerto com a voz rouca e ela tira o meu dedo da sua boca
imediatamente, morta de vergonha, percebeu que estou excitado.

— Desculpa, não estou tentando te seduzir, se é o que pareceu.

— Você já me seduziu há muito tempo, Sol. Só você no percebeu isso

ainda. — Aperto o seu queixo e ela sorri embaraçada.

Essa mujer me deixa fora de órbita só com a porra de um sorriso.

— Para de galanteio e vamos comer, hombre de Dios — se aventura e

pronuncia algumas palavras em espanhol.

— Hablas español, bonita?

— Solo un poquito, pero lo entiendo bien — responde com um

sotaque fofo.

Inferno! Solange fica ainda mais gostosa falando no meu idioma.

— A sua pronúncia é muito boa, Sol. Estou impressionado! – Sorrio

orgulhoso, com o tempo vou ensinar a ela o meu idioma nativo para que
alcance a fluência.

Porque quando os nossos filhos nascerem, quero que eles cresçam

falando a língua dos dois padres, ou seja, português e espanhol.


— Muito obrigada! Mas agora está pronto para comer o melhor pastel
de Madureira? Melhor dizendo, do mundo inteiro?

— Mais que pronto, Cariño. — Me observa atenta ao dar a primeira


mordida generosa, quando afasto o pastel da boca uma camada de queijo

derretido vem junto.

A sensação que sinto degustando essa preciosidade é tão boa que

parece um orgasmo, acho que acabei de provar a oitava maravilha do

mundo.

— Então? — Seus olhinhos brilham.

— Isso está incrível, Cariño! Será que posso pedir mais um? — falo
de boca cheia dando uma mordida atrás da outra no pastel.

Está mesmo uma delícia! Tudo na medida certa, o tempero suave, tem

bastante recheio e a parte de fora é bem crocante.

— Eu sabia que você ia amar! Agora prova o caldo de cana com


gengibre e casca de limão. — Em vez de me entregar o copo, me serve na

boca direto do seu.

Sorrio abobalhado, assim yo vou ficar mal-acostumado, gosto muito


dessa Solange amorosa e divertida.

— Louvado seja Dios, caldo de cana é ainda melhor. — Sorvo outro


gole mais longo.
Sempre achei o gosto exótico do gengibre esplêndido, e junto com o
amargo do limão e o caldo de cana já naturalmente doce, deu uma mistura
um tanto peculiar. O fato de ser servido com cubos de gelo é a melhor parte,

nesse calor horroroso desce pela garganta refrescando até a alma, se yo


soubesse que era tão bom tinha provado antes, com certeza entrou para a
minha lista de bebidas favoritas.

— Pode pedir quantos quiser, espanhol. — Balança a cabeça rindo de


mim.

Saímos da barraquinha só depois que yo pedi mais dois pastéis e outro


caldo de cana do copo maior que eles tinham, acho que no consigo comer

mais nada pelo resto do dia. Seguimos com as compras, andamos e


andamos e os dois carrinhos já estavam lotados e Solange ainda queria

comprar mais coisas na barraquinha de frutos do mar.

— Eu sou o polvo assassino, esses são os meus tentáculos da morte.


— Sorrio vendo Solange distraída brincando com um polvo horroroso na
frente de todo mundo como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Agora que estou a conhecendo um pouco melhor, percebi que é só


uma menina doce que se finge de durona para se proteger do mundo.
Traduzindo, yo estou muito fodido. Se me apaixonei pela Solange casca
dura, por essa amorosa vou morrer de amores e ficar totalmente nas mãos
dela.

— No vai levar esse bicho horroroso para a casa, vai?

— Que bicho horroroso, espanhol, esse daqui? — Aproxima essa


coisa gosmenta do meu rosto gargalhando feito uma maluca.

— Tira esse troço nojento de perto de mim, Solange. — Tento fugir,

mas ela vem atrás de mim.

— Não seja grosseiro com o meu amiguinho, Gonzales, dá só um


beijinho nele, vai?

— Só se você me der outro beijo depois, Cariño — jogo com ela, vai

que cola.

Sei que adora ser desafiada.

— Você não teria coragem! — Ergue o olhar.

A abusada balança o bicho feio para o meu lado, provocando-me.

— Para ganhar um beijo seu, mi amor, faria coisa muito pior do que
isso. — Tomo o polvo da sua mão e tasco um beijo caprichado, minha boca
fica toda cheia de baba, mas o prêmio vale a pena.

— Ai, credo, Gonzales! Você é muito nojento. — Faz cara de nojo.

— No importa, você me deve um beijo. — Faço biquinho.


— De jeito nenhum que vou beijar essa sua boca de polvo gosmento,
meu bem, sai pra lá. — Agora é ela que corre de mim.

Porém, o celular da Solange toca e acaba com a nossa brincadeira,


guardo o polvo no lugar enquanto ela atende à ligação. O dono da barraca
no parece ter gostado muito da voltinha que demos com o bicho porque me

olha feio.

— Eu não posso falar agora, será que poderia me ligar mais tarde? –
Solange fala baixinho, mas no é o suficiente para que yo no escute. – Estou

na feira com um amigo, depois a gente conversa melhor. Um beijo! –


Encerra a ligação rapidamente.

Pelas suas bochechas levemente coradas, já sei quem era.

— Um amigo? – A encaro de braço cruzado.

— E queria que eu me referisse como a você, Gonzales? Eu, hein!


Não começa, porque não quero brigar contigo. – Me oferece as costas e
volta a escolher os frutos do mar.

— Era o professor metido a bom moço, no é? – O sangue sobe para


minha cabeça e quase grito.

— Eu não sou obrigada a te dar satisfação da minha vida, Gonzales.


Mas que droga!
— O que ele tem que yo no tenho, Solange? – Agarro o seu braço e a

obrigo a olhar para mim. – Ah, me lembrei, ele é negro e você só se


interessa por homens com a mesma etnia que a sua – ironizo magoado.

— É assim em todas as gerações das mulheres da minha família e eu

acredito que comigo e com as minhas filhas não será diferente, sinto muito
– joga na minha cara, essa preconceituosa sem corazón.

— Certo, Solange, já entendi muito bem. No importa o que yo faça

para que você se apaixone por mim, nunca haverá lugar para mim na sua
família e muito menos no seu corazón porque sou branco e espanhol. –
Solto o seu braço, incapaz de continuar tocando-a nesse momento.

— Gonzales, eu não sei o que dizer, tudo o que vem acontecendo

entre nós me deixa muito confusa em relação aos meus sentimentos. – Me


olha com pena.

— No precisa dizer mais nada, Solange. Já deixou tudo bem claro

para mim.

No tenho mais condições de lidar com essa situação, giro o corpo e


vou embora arrasado. Deixo Solange sozinha no meio da feira, pego o meu

carro estacionado em frente à casa dela e saio dirigindo puto de raiva, era
para eu ir me arrumar para o trabalho. Mas ao invés disso, passo em frente a
uma clínica de bronzeamento artificial e tenho uma ideia maluca. Meu tom
de pele já é naturalmente bronzeado, se eu conseguir escurecer mais um
pouco talvez seja o suficiente para a Sol me aceitar.

Sem amadurecer a ideia direito, estaciono o carro em frente à clínica e

entro disposto a tudo. Explico à moça que quero escurecer a minha pele o
máximo possível.

— Não sei se entendi direito, senhor. Você quer que eu te coloque na


máquina no volume máximo e deixe lá o dobro do tempo permitido? –

pergunta a atendente loira magricela com a pele bem bronzeada, me


encarando como se yo fosse algum retardado.

— Exatamente! Podemos começar agora? – Começo tirando a camisa

na recepção mesmo.

— Calma, senhor, creio que o que está me pedindo não é possível.

— No estou perguntando se é possível ou não, pago o que for preciso

para que faça o que estou pedindo. – Pego a carteira do bolso.

— Mas, senhor…

— Shiiiiii. – Faço sinal para a moça parar de me encher o saco. – Só


me coloca nessa máquina logo, quando yo achar que a minha pele está no

tom certo te chamo. Está bem, moça? – Tiro uma pilha de notas de cem
reais da carteira e entrego a ela escondido, que no argumenta mais nada.
— Tudo bem, como o senhor quiser! – Com o dinheiro no bolso, ela
faz o trabalho dela de boca fechada, assim que yo gosto.

Coloco os óculos de proteção nos olhos e entro na câmera de

bronzeamento só de cueca, fico meio assustado porque parece um caixão,


mas sigo em frente. É cada coisa que yo faço por você, Solange, se isso não
for amor no sei o que é. A moça coloca no volume máximo como pedi.

Uma luz azul ultravioleta esverdeada cobre todo o meu corpo e fica
piscando o tempo todo, fico sozinho na sala. Fecho os olhos cansado, estou

exausto depois de passar a maior parte da noche acordado na delegacia e


depois no hospital com a Sol e a amiga dela.

Acabo cochilando depois de alguns minutos, logo estou dormindo


mesmo. No sei quanto tempo passou, mas desperto sentindo um

formigamento estranho pelo corpo.

— Mas que cheiro de queimado é esse? – Acordo assustado, quando


olho para baixo está até saindo fumaça do meu corpo que está queimando

ou quebrou alguma peça da máquina.

Seja o que for no é nada bom, sinto como se estivesse em meio a um


incêndio, minha pele parece estar derretendo como manteiga na chapa

quente.
— Socorro! Estou sendo queimado vivo — peço ajuda, mas no
aparece ninguém.

Começo a me debater dentro da cabine e só piora mais as coisas, a dor


é grande demais, só depois de muito escândalo uma moça aparece para me
ajudar.

— Meu Deus! Eu fui almoçar e esqueci do senhor aí dentro. – Aperta


o botão e a câmara se abre, saio de lá imediatamente pisando nas pontas dos
dedos, queimou até a sola dos meus pés.

— Como assim esqueceu de mim aqui dentro, sua irresponsável? –


Abano o rosto com as mãos, sinto como se tivesse sido jogado em uma
banheira com ácido e o meu corpo inteiro está em carne viva.

— Desculpa, senhor, acho melhor ligarmos para um médico

imediatamente. – Evita olhar para minha cara enquanto fala, pela expressão
dela de horror a coisa está muito feia.

— Quão feia está a situação? – pergunto preocupado.

— Não tenho nem palavras para descrever. – Cobre a boca para


conter o riso.

Caminho até um espelho grande fixado na parede e quando paro na

frente dele e olho o meu próprio reflexo, minha nossa.


— Ahhhhhhhhhhh! – solto um grito tão alto que o quarteirão inteiro

ouviu.

Estou todo vermelho igual aquele monstro do filme Hellboy, exceto


pela parte dos óculos de proteção que coloquei que deixou duas bolas

brancas em volta dos meus olhos. Fico irado, o que era para ser uma
simples sessão de bronzeamento terminou comigo no pronto-socorro
levando a maior bronca do meu médico particular.

Porra, Gonzalez! Você só faz merda. Se a Solange no te queria antes,


agora que no vai te querer mesmo nesse estado lamentável.

 
Solange

Chego em casa com as compras me sentindo muito mal pela forma

que a minha conversa terminou com o Gonzales, não queria que se sentisse
ofendido. Ele me olhou como se eu fosse uma racista que odeia pessoas

brancas, mas não é nada disso. Casar apenas com homens negros não é
nenhuma regra da minha família, acontece naturalmente, talvez porque
seguimos os exemplos dos nossos pais ou porque realmente só sentimos
atração por pessoas da mesma etnia que a nossa e não tem nenhum mal

nisso. Não conseguimos escolher por quem vamos nos apaixonar, se


pudesse não existiriam tantos casamentos fracassados.

Se é assim, por que ainda me sinto mal pelo Gonzales mesmo

sabendo que não fiz nada de errado?

Tento entender, porém, não consigo. O pior é que ele colocou na

cabeça que está apaixonado por mim, mas eu sei que isso não é verdade.

Esse homem não é o tipo que se apaixona. Principalmente por alguém como
eu, que não tem nada a ver com o mundo dele. Mas o seu ego é tão grande

que não entra na sua cabeça que uma mulher em todo planeta possa não se

interessar pelo seu charme que até então ele pensava ser infalível. Isso é
coisa para resolver com muita terapia, não tem nada a ver com amor, está

mais para a falta dele.


Por outro lado, não posso mentir que me sinto atraída sexualmente

pelo Gonzales. A energia entre nós nessa área é explosiva, tipo algo
magnético que me puxa para ele com a força de um imã gigante. Mesmo

quando dormimos juntos por dinheiro em meio a todo aquele momento de

drama da minha vida, meu corpo pegava fogo toda vez que me tocava. Só
que o meu interesse por ele não passa disso, totalmente sexual. E nunca, em

hipótese nenhuma, me envolveria com esse espanhol de maneira amorosa,

isso está completamente fora de cogitação.

— Ei, filha, já chegou da feira, onde está o Gonzales?

Mamãe chega na cozinha e me vê guardando as compras da feira na


geladeira, ela está parecendo um girassol gigante iluminando todo o

cômodo com esse vestido longo rodado cor de gema de ovo e um cinto
verde em volta da cintura.

— Ele tinha um compromisso importante e teve que ir embora, mãe –

minto, olho para a sacola de tomates perfeitos e redondinhos que o

Gonzales escolheu e me sinto ainda pior.

— Está bem, querida, vou te ajudar a guardar as compras. – Ela pega

a sacola de verduras e começa a separar uma por uma, mania de

organização é com a dona Cátia mesmo.

— E a Tess, mãe, está mais calma depois do acontecido de ontem?


— Parece que sim, querida, ela está brincando de desenhar com o
Rafael. Os dois se dão muito bem, e você sabe que o seu irmão é difícil de

gostar de alguém.

— Eu sei, mãe, mas a Tess é ótima professora e sabe conquistar até os

alunos mais difíceis com o jeitinho doce dela.

— Essa moça é um ser de luz, Solange. Não podemos deixar que esse
Lucas a arraste para a escuridão outra vez porque o pior pode acontecer,

estou com um mau pressentimento. – Suas pupilas cor de pistache se

dilatam, mamãe sempre foi meio sensitiva.

Quando ela vem com esse papo de mau pressentimento é melhor ficar

de olho porque alguma coisa vai desandar na nossa vida, sempre foi assim.

Uma noite antes do papai morrer, ela havia sonhado com um caixão, me
arrepio só de lembrar disso.

— Nós não vamos deixar esse desgraçado fazer mais nenhuma

maldade com ela, mãe. – Toco o seu braço e sinto todos os pelos arrepiados.

— Estão precisando de ajuda, meninas? – Tess chega na cozinha,

minha mãe e eu mudamos de assunto e fingimos estar conversando sobre


como os pés de alface estão bonitos, e de fato estão mesmo.

— Estamos precisando sim, meu amor, acho que a Solange fez

compras para o ano inteiro – mamãe brinca e consegue arrancar risadas da


minha amiga, que passa os olhos pelo chão da cozinha repleto de sacolas

que tirei do meu carrinho, de fato acho que exagerei um pouquinho nas
compras.

— Então mãos à obra, estou precisando me distrair. – Força um


sorriso, mas não vejo seu olhar triste assim desde que o Lucas a mandou

para o hospital pela primeira vez.

O final de semana passa voando, mesmo perante tal circunstância, é


muito bom ter minha amiga aqui em casa com a gente. Tess ligou para a

diretora Helena e pediu uma licença do trabalho devido aos seus ferimentos,
não quer que os seus alunos a vejam toda roxa daquela forma e eu
concordo, faria o mesmo no lugar dela. A viatura que o Gonzales solicitou

ao delegado Avilar não saiu da frente do nosso portão um segundo e eu nem


pude agradecê-lo direito, tentei ligar e mandei um monte de mensagens,

mas o teimoso só visualiza e não responde. Então desisti, se quer agir como
criança birrenta o problema é dele.

Vou trabalhar normalmente na segunda-feira de manhã, resolvo passar


o intervalo das crianças na minha sala mesmo e como um sanduíche natural

que levei no lugar do almoço. Não estou a fim de encontrar o Roberto na


sala dos professores e ter que encarar aquele climão chato que se instalou

entre nós depois que neguei o seu convite para ir para a casa dele, desde
então tenho evitado nosso reencontro.
Por isso, no final da aula passo na sala do Rafael para buscá-lo

praticamente correndo com medo do professor Roberto vir falar comigo,


meu irmão fica sem entender nada, mas anda depressa junto comigo,

tadinho.

— Ei, Rafael, me espera. – Escuto a vozinha doce da Lupita vindo


atrás de nós, ela consegue nos alcançar do lado de fora da escola.

— Oi, Lupita, quem vem te buscar hoje? – questiona meu irmão e eu


fico de ouvido em pé para saber se é o Gonzalez, ele não deu mais sinal de

vida depois que foi embora da feira zangado comigo e estou incomodada
com isso.

— Vai ser o Gonzales, ele prometeu que vai me levar para tomar
sorvete – conta alegre e o meu coração dá um salto, ele deve chegar a

qualquer momento.

Mas não é bem isso que acontece, quem aparece para buscar a Lupita
é uma mulher muito bonita. Ela é alta e malhada, com cabelo preto

ondulado acima da cintura. Será que é alguma das peguetes do irmão dela?
Não estou nem aí. Deve ser muito íntima para vir buscar a sua irmãzinha na
escola. Não que isso me incomode, é claro, quero mais é que o Gonzales e

as putas que ele come se explodam.

— Mamá! — Lupita corre até a mulher de braços abertos.


Ela disse mamá? Em português quer dizer mamãe. Essa mulher
parece ser irmã do Gonzales e não mãe. Estou chocada! E eu enchendo a
cabeça de conclusões descabidas sobre a coitada, que vergonha. Penso que

poderia ser sua madrasta, mas depois que ela tira os óculos escuros percebo
o quanto se parece com o espanhol, em especial o sorriso que rasga o rosto

inteiro.

— Olá, meu anjinho lindo. — Pega a filha no colo.

— Por que você está encarando a Lupita e a mãe dela desse jeito

estranho, Solange? — Rafael aparece falando alto, quase me matando do


coração de susto, não percebi que estava do meu lado.

— Não estou reparando em ninguém, Rafael. Agora vamos embora


para casa, irmãozinho. — Saio a passos largos na direção do Chevette no

estacionamento da escola antes que essa criatura me faça passar vergonha.

— Estava sim, Solange, eu vi — insiste em um tom elevado, não vai


sair do lugar até eu confirmar que ele está certo.

— Está bem, Rafael, eu estava olhando para a Lupita e a mãe dela.


Feliz agora? — ironizo com as mãos na cintura.

— Bastante — responde sincero.

Respiro fundo três vezes.


— Olha, mamá, aquela é a professora Solange e o irmão dela, Rafael.
O meu novo melhor amigo. — Lupita aponta na nossa direção, tentei
continuar andando e fingir que não ouvi.

Mas quando olho para trás, o Rafael já estava conversando com as

duas. Mas que merda! Sou obrigada a me fazer de sonsa e dar meia-volta e
ir até eles.

— Olá, senhora, muito prazer. Sou Solange, professora do segundo

ano. — Enfio as mãos no bolso da minha jaqueta jeans, nem um pouco à


vontade nessa situação.

— Ela no é linda, mamá? O Gonzales também acha, ele disse que

existem muitas mujeres lindas. Mas você, Solange, é simplesmente


esplêndida — conta a espanholinha mexendo no cabelo preso em uma

trança de cada lado com um sorriso sapeca ao entregar o irmão, ela não dá

ponto sem nó.

— Seu irmão disse isso mesmo, mi amor? Yo sempre soube que o

Gonzales é um homem de bom gosto. — Pisca o olho para mim, minha

bochecha queima de vergonha.

— Muito obrigada, senhora. Foi um prazer conhecê-la. Mas Rafael e

eu precisamos mesmo ir embora agora, estamos atrasados. — Tento trilhar


uma rota de fuga.
— Não estamos não, Solange. A aula acabou um pouco mais cedo

hoje. — Rafael enfia o braço na minha cara para que eu veja no relógio em
seu pulso, cortando o meu barato embaixo.

Devia ter esperado por isso, sempre esqueço que mentir na frente dele
é furada na certa.

— Só um minuto, querida, yo nem me apresentei direito. Meu nome é

Carmem, no sabe o prazer que é conhecê-la. — Estende a mão sendo gentil


e eu agindo feito uma louca mal-educada na frente dela.

— O prazer é todo meu, senhora. — Sorrio sem graça ao apertar sua


mão.

— Quero que saiba que também te achei esplêndida desde a primeira

vez que te vi no velório do filho da Daniele. Gonzales no tirou os olhos de


você um segundo, parecia até hipnotizado. — Me puxa para um abraço e

beija o meu rosto, fico sem reação, dura feito um poste.

— Eu também acho você esplêndida, Solange, mas só às vezes —

elogia Rafael, mas do jeito dele.

— Ei, Rafa, deixa as duas se conhecerem melhor e vamos brincar,


vem. — Lupita agarra o braço do meu irmão e os dois se afastam indo para

o parquinho a alguns metros de nós, fico ainda mais tensa sozinha com a

mãe do Gonzales.
— Estou impressionada como uma mulher tão linda e jovem pode ter

um filho na idade do Gonzales, se a senhora não parecesse tanto com ele

não acreditaria — tento iniciar uma conversa de verdade.

Mas o jeito que essa espanhola astuta me analisa minuciosamente está

me deixando nervosa, minha vontade é sair correndo daqui.

— Humm, então você e o meu filho já se conheciam quando te vi na

igreja? Yo sabia! Agora tudo faz sentido, você é a mujer que ele disse estar

apaixonado e vai levar no casamento do irmão dele como sua


acompanhante. — Bate palminhas toda alegre.

Enquanto eu estou em choque, não acredito que o Gonzales fala sobre

mim com a família dele. Esse cara é mais maluco do que pensei, preciso
colocar um freio nele de uma vez por todas. Isso tem que acabar, está

começando a me assustar de verdade.

— Desculpa, senhora, mas está enganada. Gonzales e eu não somos

nem amigos, que dirá namorados. – Troco o peso de um pé para o outro,

agitada.

— No precisa ficar tímida, querida, yo no sou uma sogra chata. Na

verdade, só consigo pensar como vai ser lindo um netinho ou netinha com

esse seu tom de pele lindo e os olhos verdes do meu filho. — Toca o meu
rosto afetuosamente, como se eu já fosse parte da sua família.
Doidinha de pedra igual ao filho.

— Isso nunca vai acontecer, pode apostar nisso! Gonzales e eu nem

amigos somos — tropeço nas palavras, não sei lidar com as pessoas

excêntricas dessa família.

— Yo disse a mesma coisa quando conheci o pai dele e no final

terminei casada e com três filhos lindos. — Agarra o meu braço, cheia de

intimidades, para ela já somos sogra e nora.

— Bem, a conversa está boa, mas meu irmão e eu precisamos ir

mesmo. Até a próxima, senhora Carmem — digo agoniada.

Dou um sorriso falso que mais parece uma careta do Coringa e vou

até as crianças, agarro a mão do Louis e saio o puxando à força.

— Se no tiver muito ocupada passa na casa do Gonzales mais tarde,

querida. Meu filho está doente, tadinho, por isso no pôde vir buscar a

Lupita na escola como havia prometido – diz dona Carmem e minhas


pernas param de se mover no mesmo instante.

— Como ele está? – Volto praticamente correndo, com uma

preocupação que jamais imaginei que tivesse por ele.

— No muito bem, o médico o proibiu de trabalhar durante uma

semana, mal consegue levantar da cama, tadinho. Mas o teimoso no quer


ver ninguém, está de mau humor. – Rola os olhos da cavidade ocular.
— A senhora já o viu hoje?

— Bem que yo tentei, estive lá hoje e o Gonzales nem me deixou

entrar para ver como está. Só consegui falar com ele pelo interfone, disse
para no me preocupar porque sabe se virar sozinho.

— Pode me dar o endereço dele, por favor? Vou tentar a sorte – peço
deixando a vergonha de lado.

Não lembro mais onde Gonzales mora, só fui lá aquela noite que

passamos juntos e depois apaguei as mensagens que me enviou na época


com o seu endereço.

— Mas é claro, querida, me passa o seu telefone que te mando a


localização por mensagem. – Assinto grata.

Me despeço da Carmem e dirijo correndo até em casa, só deixo meu

irmão lá e vou direto para a casa do Gonzales. Ele não mora mais no
mesmo lugar que estive da última vez, se mudou para o litoral da Barra de

frente para o mar. Fico até com vergonha quando estaciono o velho

Chevette da minha mãe em frente àquela mansão. Só toco o interfone no


grande portão de ferro na entrada e uma das câmeras se vira na minha

direção e ouço o ranger das trancas sendo destravadas. O dono da casa já

sabe que estou aqui.


Ando pelo caminho de pedras redondas que dá na porta da frente, de

madeira maciça e pelo menos seis metros de altura, durante o percurso me


deparo com uma piscina enorme com a água azulzinha. Ajeito a minha

roupa e jogo as tranças de lado antes de tocar a campainha, para não parecer

que vim correndo a mil por hora preocupada com ele.

— O que você veio fazer na minha casa, Solange? No lembro de ter te

convidado.

Gonzalez abre a porta só de cueca boxer branca já me recebendo com

quatro pedras na mão, só não o mando tomar no cu e vou embora porque

quando olho para ele percebo que o seu estado é pior do que pensei.

— Mas o que aconteceu com você, Gonzales? – Toco o seu braço e

um pedaço da pele solta na minha mão, solto um grito assustada.

Esse homem parece um peixe todo cheio de escamas, de branco está

extremamente vermelho da cabeça aos pés, quase em carne viva. Exceto a

parte em volta dos olhos que está branca, coitado.

— No é da sua conta, Solange. Por que no vai ficar com o seu

namoradinho negro e boa pinta e me deixa em paz? Quero ficar sozinho. –

Tenta fechar a porta na minha cara, mas não deixo, segurando a tábua
grossa de madeira com as duas mãos.
— Eu não vou embora e deixar você sozinho nesse estado de maneira
nenhuma. Queira ou não, vou ficar.

— Ah, então agora você se preocupa comigo, Solange? – Desiste de


me expulsar e sai andando para dentro dessa casa enorme, e me deixa

falando sozinha.

— É claro que eu me importo, Gonzales. Não desejo nenhum mal a

você.

— É mesmo? Engraçado, pensei que você só se importasse com


pessoas da mesma etnia que a sua.

— Eu nunca disse isso, Gonzales, não coloca palavras na minha boca.

— Mas foi o que yo entendi, porra! – grita furioso. – Por isso que fui

em uma clínica de bronzeamento artificial e pedi para colocar a máquina no

volume máximo e esqueci da vida lá dentro, quando saí estava todo assado.
– Leva uma eternidade para conseguir sentar de ladinho em cima de uma

almofada no sofá da sala, o coitado deve estar com o rabo em carne viva.

Juro que eu tentei segurar.

Tentei muito mesmo.

Lutei bravamente.

Mas não consegui, acho que soltei a gargalhada mais alta de todos os

tempos. Eu não consigo parar de rir, estou com lágrimas despencando do


canto dos olhos. Esse espanhol não existe. O que passou na cabeça dele?
Que entraria em uma clínica de bronzeamento e sairia de lá negro? Minha
nossa, essa foi a coisa mais estúpida que já ouvi na vida.

— Você não existe, Gonzales, é peça rara nesse mundo. – Me jogo ao

lado dele no sofá e rio mais ainda; mesmo com ele me olhando feio, não
consigo parar.

— Pare de rir de mim, Solange. Isso no tem graça! – se zanga

comigo.

— Desculpa, mas tem sim, e muita. Por acaso já se olhou no espelho?


Está parecendo um camarão gigante ambulante. – Minha barriga dói, acho

que vou ser a primeira pessoa da história a morrer de tanto rir.

— Só no dia, no tive mais coragem de olhar no espelho depois disso,


ok? – Faz uma tromba enorme.

— Pois devia olhar toda hora para aprender a lição, o que fez foi

loucura.

Destravo a tela do meu celular, coloco a câmera no modo de tirar self


e posiciono na frente do rosto do Gonzales para que veja o tamanho da

merda que fez, mas ao invés de entrar em estado de pânico, ele começa a rir
também. Não tem como ficar sério numa situação dessa, agora somos nós
dois rindo.
— Santa madre de Dios! Yo estou parecendo mesmo um camarão
gigante – diz ainda rindo.

Nós dois continuamos rindo por um bom tempo, aí ficávamos sérios,

mas era só um olhar para o outro que iniciávamos mais um ataque de risos.

— Mas agora falando muito sério, Gonzales – digo mais calma. – Isso
que você fez foi burrice e muito perigoso. Sabia que os raios ultravioleta

podem causar câncer de pele? Dez minutos na câmara de bronzeamento


equivalem a cinquenta minutos de exposição ao sol, pensa no risco que
passou todo esse tempo lá dentro dormindo. – Passo um sermão nele que

mantém a cabeça baixa, sabe que está errado.

— Yo sei, Solange, meu médico já me explicou os diversos riscos de


saúde que corri por agir no calor do momento sendo totalmente imprudente.

Só queria fazer você gostar de mim – argumenta como um adolescente


imaturo que não sabe porra nenhuma sobre a vida.

Só que Gonzales já é um homem feito e muito respeitado pela

sociedade e precisa agir como tal. Chega de fazer loucuras para suprir os
seus desejos obsessivos.

— Nunca mais tente mudar para que alguém goste de você, Gonzales.
Porque não é assim que o amor funciona, pelo menos não o de verdade.
— Então me ensina como é, Cariño. Porque sou novo nisso de amor,
no sei lidar com a situação sem fazer besteira. – Seus ombros desmoronam,

a maneira que me olha me parte o coração, parece um menino assustado.

— Não tenho muita experiência nessa área também, mas sei bastante
coisa sobre como ser uma boa amiga. Por isso vou ficar aqui hoje e vou

cuidar de você, porque quando Tess e eu precisamos esteve lá por nós. Isso
se chama reciprocidade. – Seguro sua mão de leve para não machucar.

Posso ser um poço de defeitos, mas mal-agradecida jamais! Gonzales

e eu temos as nossas diferenças, mas que tipo de pessoa seria se fosse


embora e o deixasse dessa forma? Ainda mais sabendo que, mesmo que de
um jeito torto, esse babaca fez essa idiotice sem tamanho por minha causa.

— Tem certeza, Solange? Sei que precisa ajudar sua mãe no bar, no
quero atrapalhar. – Se aconchega no sofá.

— A Tess vai ficar com a gente no bar à noite no período que ficar lá
em casa, não queremos deixá-la sozinha. Assim ela pode ajudar o pessoal

hoje no meu lugar, não se preocupe.

Difícil seria explicar à minha mãe que passaria a noite na casa do


nosso sócio, mas ligaria e inventaria alguma desculpa convincente.

— Humm… Então quer dizer que você é toda minha hoje, Cariño? –
Puxa o canto da boca cheio de malícia mostrando os caninos com a ponta
levemente afiada; mesmo trocando de pele igual a uma cobra, continua um

tesão de homem.

— Apenas como amiga, sim! Uma gracinha sua e vou embora,


entendeu bem?

— Entendido sim, senhora! – Faz continência.

É, Solange, vai ser uma noite bastante longa…

 
Gonzales

— Está confortável assim, Gonzales?

Solange ajeita a pilha de travesseiros nas minhas costas pela terceira

vez, ela está me tratando como se fosse um bebê. Me deu remédio para dor,
fez uma sopa de legumes para mim e agora está me dando na boca.

— Está perfeito, mi vida. – Sinto vontade de beijá-la quando o seu

rosto passa perto do meu, mas me contenho.

Prometi para a Sol que me comportaria e no vou estragar tudo, ainda

no acredito que ela está aqui cuidando de mim e quero aproveitar cada
segundo da sua companhia.

— Termine sua sopa antes que esfrie, precisa ficar forte para melhorar
rápido.

— Yo no quero mais, estou satisfeito. Obrigado!

— Você não gostou da sopa? Se quiser posso cozinhar outra coisa.

— De maneira nenhuma, está uma delícia. Yo só no estou me sentindo


bem, acho que é por causa do calor que está fazendo essa noche. – Abano o

rosto, parece que o meu corpo inteiro está pegando fogo, deve ser por causa

das queimaduras.
Tenho que ficar só de cueca porque vestir roupa nesse estado é

impossível, toda vez que o tecido roça na minha pele parece que um pedaço
do meu corpo está sendo arrancado fora.

— Como assim quente, Gonzales? O ar-condicionado está ligado


quase no zero. – Coloca a mão na minha testa para conferir minha

temperatura. – Você está queimando em febre, por isso está suando assim.

Solange sai correndo e volta com um comprimido e uma toalha


pequena molhada e coloca na minha testa, puxa uma cadeira e senta ao lado

da minha cama.

— No, Sol, deita aqui comigo e segura a minha mão, por favor – peço

quase sem voz, no estou tão mal assim, só quero ela mais pertinho de mim.

Engulo o comprimido com dificuldade, ela pega um copo d´água


sobre o móvel de cabeceira e me entrega para ajudar a tirar o gosto amargo

da boca, mas no adianta muito.

— Acho melhor ligarmos para o seu médico, Gonzales. Estou

preocupada. – Me olha de esguelha.

— No precisa, yo só preciso de você. – Ergo o meu braço na sua

direção com dificuldade, mais uma vez atuando no papel dramático de

moribundo à beira da morte.


No valho nada, yo sei. Mas no jogo e no amor vale tudo, e sempre fui
o tipo de hombre que só joga para ganhar.

— Está bem, Gonzales, mas se você piorar vamos ligar para o seu

médico – decreta e yo assinto.

Depois de tirar as botas de couro escuro, Solange sobe na cama com

as meias cheias de desenhos de bichinhos coloridos e deita de frente para


mim e segura a minha mão. A troca de olhares é inevitável, se yo pudesse

congelava esse momento e o tornaria eterno. Me sinto feliz só de estar ao

lado dela, nunca me senti completo dessa forma. Ela é minha alma gêmea.

— Yo ainda no acredito que você está aqui comigo, amor. – Sorrio e

ela retribui, é animador passar esse tempo de qualidade com a Sol.

— Não fale mais nada, tente dormir um pouco. – Acaricia o meu

rosto de leve com as pontas dos dedos com medo de ferir minha pele

sensível, começo a me sentir sonolento.

— No quero dormir, quero ficar olhando para você pelo resto da

minha vida – digo em um bocejo, mas os meus olhos me traem e vão

ficando pesados.

Acabo adormecendo, um sono tranquilo e relaxante que no tenho há

muito tempo. Sonho que estou casando com a Solange num dia lindo e

ensolarado, toda a nossa família e parentes estão presentes. Mas de repente


acordo assustado com o som alto de um raio, já é noche e a janela está

aberta trazendo o vento frio da chuva forte que cai lá fora, balançando as
cortinas brancas. Olho para o lado e Solange no está mais na cama, me

levanto e vou à sua procura torcendo para que ela no tenha ido embora por
algum motivo.

Já me sinto bem melhor, minha cabeça no dói mais e a febre passou.


Desço para o andar de baixo à procura de mi amor, e a encontro na cozinha

sentada em um banquinho do balcão de mármore, tomando um chá quente


na minha caneca vermelha favorita de porcelana enquanto observa

calmamente pela porta de vidro a tempestade que cai lá fora, forte ao ponto
de tombar o topo das palmeiras do jardim. Solange está de banho tomado e
vestindo uma das minhas camisas brancas que pegou emprestada do meu

closet, que convenientemente para mim deixa a metade da sua bunda à


mostra.

Encosto o ombro na porta de braços cruzados e continuo a admirar

Solange, ela mexe demais comigo. Nunca senti nada parecido por ninguém
antes.

— Você é a mujer mais linda que yo já vi na vida, sabia? – Solange


me olha por cima do ombro, sensualmente.
— Se eu não te conhecesse bem, espanhol, até acreditaria que está

falando a verdade – zomba de mim, ela nunca leva a sério o que falo.

— Yo já seduzi muitas mulheres, Solange. De todas as raças,


nacionalidades e personalidades diferentes. — Vou caminhando a passos

cautelosos até ela. – Mas nem todas elas juntas me deixam louco como você
faz só de olhar para mim, basta só isso para me fazer perder completamente
a razão.

Giro o banco da Solange para que fique de frente para mim e me

enfio ao meio das suas pernas grossas, minha camisa no seu corpo sobe e
mostra que a safada está sem calcinha. Porra! O tecido é transparente e

consigo ver os seus peitos, meu pau endurece mais a ponto de explodir
dentro da cueca.

— E quão louco por mim você está nesse momento, espanhol? –


Desliza a ponta do dedo indicador pelo meu peito, em movimentos leves e

sedutores.

Ela está me provocando.

— Se yo disser, vou quebrar a promessa que fiz de me comportar por

essa noche. – Salivo de vontade de enfiar a minha língua na sua boca.

— Que promessa? Não faço ideia do que está falando. – Dá de


ombros, me dando bandeira branca para entrar em ação.
— Ah, yo adoraria te fazer sentir bem fundo quão louco estou por
você nesse momento, Cariño. – Mordisco o lóbulo da sua orelha.

Desço sua mão que ainda toca o meu peito para minha vigorosa
ereção e a safada aperta e solta um gemido, poderia aproveitar a

oportunidade e fodê-la loucamente do jeito que quero.

— Mas no posso, prometi que vou te respeitar hoje e sou um hombre


de palavra. – Dou um beijo na sua testa e me afasto, até porque comigo todo
queimado dessa forma no daria para fazer muita coisa.

Também no sou mais hombre que vive prazeres momentâneos, com a

Solange quero que dure para sempre. E partir para cima na primeira brecha
que ela abre para mim no é uma boa ideia se penso em algo a longo prazo,
quero que sinta que pode confiar em mim e perceba que sou capaz de

aguentar fortes tentações. Mesmo que a minha vontade nesse momento seja
enterrar o meu pau em todos os buracos do seu corpo.

— Mas, Gonzales… – tenta argumentar, mas cubro seus lábios com

os meus dedos.

— Mas nada, Solange, e nem tente me molestar porque vou ligar para

o 190 e a polícia estará aqui em dez minutos – digo sério e ela acha graça.

— Está bem, espanhol, podemos pelo menos ver TV juntos então?


Com essa chuva forte não vai dar para dormir. Pode confiar em mim,
prometo que não vou te agarrar à força no sofá. – Desce do banquinho
puxando a camisa para baixo.

— Podemos sim, vou escolher um filme legal para a gente assistir. –


Beijo o seu rosto.

— Enquanto isso vou fazer uma pipoca para nós, te encontro na sala.

– Abre os armários e começa a juntar os materiais que vai precisar, é a


primeira vez que Solange vem nessa casa e já sabe onde achar tudo na

minha cozinha.

Yo já moro aqui há meses e no sei encontrar um abridor de garrafas

quando preciso, pensar nisso me faz sorrir. Poderia me acostumar

facilmente em ter a Solange por aqui todos os dias cuidando de mim. Seria
a vida dos sonhos, poder dormir e acordar ao seu lado e poder tocá-la onde

e quando quisesse, viveríamos em uma eterna lua de mel com muito sexo

selvagem em todo canto dessa casa.

— Tem certeza que quer mesmo cumprir a sua promessa, Gonzales? –

A abusada aponta para o meu pau ficando cada vez mais duro dentro da

cueca, o tecido esticou para a frente apontando na direção dela, pronto para
atacar o alvo.

— Quem manda aqui é a cabeça de cima, Sol. No a de baixo. – Cubro


minhas partes íntimas com as duas mãos.
— E desde quando essa ordem mudou? – Arqueia a sobrancelha

intrigada, pega um saquinho de pipoca e coloca no micro-ondas.

— Desde que descobri que estou apaixonado por você, Cariño. –

Jogo uma piscadela antes de sair da cozinha para escolher um filme para
assistirmos, mas antes disso preciso resolver um grande problema.

Passo no banheiro do andar de baixo e fecho a porta. Minha ereção

está a ponto de explodir, sinto as veias em volta do meu pau latejando de


desejo pela Solange, preciso dar um jeito nisso ou no vai abaixar tão cedo.

No posso sentar no sofá para ver um filme com ela nesse estado, estarei em

cima dela antes que a primeira cena termine.

— Vamos lá, Gonzales, você consegue! – Sou incentivado pelo meu

reflexo no espelho em cima da pia, o que no é grande coisa vindo de um

rosto avermelhado e cheio de pele soltando.

Meu pau no está em um estado muito diferente, apesar que yo estava

de sunga na hora do bronzeamento; ele também sofreu leves queimaduras e


está dolorido. Vai ser uma missão quase impossível me masturbar assim,

fico até com pena quando abaixo a minha a cueca e vejo o meu meninão

todo lascado, mas em modo de combate.

— Isso no vai dar certo, porra! – gemo só de segurar meu pau, no

primeiro movimento quase solto um grito de dor, estou até suando.


— Está tudo bem aí, espanhol? – Solange abre a porta do banheiro de

repente e literalmente me pega de pau duro na mão, sua expressão é de pena

por me ver nessa situação constrangedora.

— Está tudo ótimo, só me dê cinco minutos. – Olho para o meu pau

duro feito pedra e suspiro. – Talvez dez.

— Certo, vou te ajudar com isso! – Ela sai e volta com uma pedrinha

de gelo na mão.

— No preciso da sua ajuda, Solange, já disse que no vou quebrar a


minha promessa. – Balanço a cabeça irredutível, no sei quando fiquei tão

moralista e determinado dessa forma.

— Não vai quebrar a promessa se ficar parado e me deixar fazer o

trabalho, prometo que serei rápida. – Joga a pedra de gelo dentro da boca e

agacha na minha frente lentamente sem tirar os olhos dos meus, fico doido
na hora.

Mesmo assim fecho os olhos e respiro fundo, no vou ceder à tentação

do diabo. Quero dizer, dessa diaba gostosa pra cacete me tentando com
todas as forças só para me fazer fraquejar, acho que virou um jogo de

sedução para ela.

— Você no precisa fazer isso, Cariñooo — dou um grito agudo

quando ela segura o meu pau e de cara dá a primeira sugada com jeitinho. –
Yo retiro o que disse, você precisa fazer isso sim, Solange, e no precisa ter

pressa. – Jogo a cabeça para trás em êxtase, esse com certeza vai ser o
melhor boquete de toda a minha vida.

Acontece uma mistura louca de quente e frio toda vez que a Solange
me toca com a língua enquanto a pedra de gelo desliza em volta do meu

pau, meu corpo está todo tomado de prazer. Ainda sinto um pouco de dor,

mas é uma dor prazerosa. Apoio as mãos abertas na parede azulejada do

banheiro para evitar agarrar as suas tranças e meter na sua boca gulosa sem
dó; mesmo enlouquecido de desejo, no quero mesmo quebrar a promessa

que fiz.

Mas quase caio na tentação quando olho para baixo e vejo Solange

agachada na minha frente com as pernas abertas se tocando com uma mão

enquanto me chupa. Ela me olha com uma cara de safada com o meu pau na

boca que, Dios Santo! Yo quase gozo só com essa cena.

— Você fica linda nessa posição de submissa, Solange — digo e ela

me desafia com o olhar, acho que no gostou do que yo disse.

Mas porra! Essa mujer vive batendo de frente comigo, vê-la assim

caída aos meus pés pelo menos uma vez na vida me faz sentir o hombre

mais poderoso desse mundo.


— Submissa, eu, espanhol? Nunca! — Tira o meu pau da boca e dá a

porra de um sorriso provocante, aí em seguida engole todo meu

comprimento até o talo em uma garganta profunda sem tirar os olhos dos

meus.

Faz uma pausa torturante e começa a brincar com as minhas bolas

sugando e massageando-as com os dedos ao mesmo tempo, deslizo as mãos


pelo rosto suando frio. Sem quebrar o contato visual, Solange passa a língua

lentamente por toda extensão do meu pau, como se dissesse que cada

centímetro dele é seu, e em seguida volta a me chupar eloquentemente.

Quer provar que no importa em que posição esteja, quem manda é

ela. No yo. Estou e sempre estive nas suas mãos e acredito que isso no vai

mudar nunca. O que me resta é aceitar o meu destino e aproveitar o


momento.

— Isso, safada, mama gostoso, bem gostoso, vai... — Trinco o

maxilar indo ao ápice do prazer.

A diaba aumenta o ritmo e a potência das sugadas me levando à

loucura. No aguento segurar muito e gozo na boca dela em um urro de


prazer por longos segundos e a Solange engole cada gota com cara de

safada, inferno! Yo estou louco de amores por essa mujer. Como se no


bastasse, ela se levanta limpando a borda da boca com o polegar e me beija

para que sinta o gosto da minha porra nos seus lábios.

Uma experiência insana e única para mim, essa cachorra é ousada na

hora do sexo.

— Você ainda vai acabar me matando, Solange. – Levo a mão sobre o

peito na tentativa de controlar as batidas aceleradas do meu corazón, minha

respiração está ofegante.

— Vou terminar de fazer a pipoca agora, não esqueça de escolher um

filme legal para a gente assistir. – Sai do banheiro normalmente e me deixa

lá, a ponto de ter um ataque cardíaco depois de me proporcionar o orgasmo


mais intenso que já tive.

Resolvo tomar um banho frio, ajudaria a fazer o meu corpo relaxar.


Saio debaixo do chuveiro e levo uma eternidade para me enxugar por causa

das queimaduras, visto uma cueca larga samba-canção azul de seda com

desenhos de estrelas do mar horrorosa que ganhei de papá no último Natal,

mas é muito confortável. Penteio o cabelo molhado com os dedos e vou


para a sala, pensando em como o clima ficará entre mim e a Solange depois

do que aconteceu no banheiro minutos atrás.

Só que quando chego na sala, Sol acabou dormindo agarrada a uma

travessa de pipoca enquanto me esperava na cama improvisada que montou


colocando um colchão na sala em frente da TV. Ela parece cansada, então
resolvo no a acordar.

— Buena noche, Cariño. – Guardo a travessa de pipoca e beijo sua


testa. – Tenha bons sonhos, de preferência comigo. – Me deito junto com

ela na posição de conchinha e durmo com um sorriso gigantesco no rosto.

No final das contas a loucura que fiz do bronzeamento artificial saiu

melhor do que yo esperava, afinal, de um jeito ou de outro Solange

terminou nos meus braços.

— Droga, eu estou atrasada! – Solange acorda de manhã e se assusta

ao ver a hora no relógio no seu pulso.

Ela levanta apressada e veste suas roupas correndo, ainda precisa

passar em casa para pegar o irmão e o seu material de aula. A acompanho

até a porta e roubo um beijo antes que saia, volto para a cama e continuo
dormindo. Horas mais tarde, desperto com a campainha tocando sem parar.

Levanto com preguiça resmungando e esfregando os olhos, quando


abro a porta me arrependo de ter atendido.

— Jesus Cristo! – John leva um susto quando me vê. — O que


aconteceu com a sua pele, Gonzales? – Segura o riso.

Ele está estacado na minha porta, e no está sozinho. Trouxe a tiracolo


o delegado Avilar, o babaca do Pedro e até o Léo, marido da Daniele.
Primeiro um silêncio constrangedor paira no ar, depois vem o coral de
risadas dos quatro babacas que no se escuta mais nada além disso.

— No tem ninguém, voltem outra hora. – Fecho a porta na cara deles


e tranco, mas no adianta, eles começam a tocar a campainha sem parar e a

gritar o meu nome no lado de fora.

Inferno!

Esse povo no tem o que fazer em plena terça-feira de manhã? No

estou com saco para visitas nesse estado, vou despachar todos eles, a
maioria nem é meu amigo.

— Posso saber o que vocês vieram fazer aqui? Cacete! – Abro a porta

em um rompante.

— A tia Carmem ligou para mim, disse que o bebezinho dela está
dodói e seria bom eu passar aqui para dizer oi. – John entra na minha casa
sem ser convidado e a manada vem logo atrás dele, todos em meio a uma

crise de riso.

— E por que você trouxe seus amiguinhos abusados como você,


John? – Me irrito vendo os caras se jogando de qualquer jeito no meu sofá

branco e colocando os pés imundos sobre a mesinha de centro de madeira


importada, são uns brutamontes sem educación.

E abusados também, minha casa está tomada pelas gargalhadas deles.


— Trouxe os “nossos” amigos aqui na sua casa, Gonzales, para
aproveitar que todo mundo está de folga essa manhã para planejarmos como
será a despedida de solteiro do seu irmão que está chegando, só não

sabíamos que encontraríamos aqui um churrasco espanhol à nossa espera e


com uma cueca samba-canção horrorosa – John continua com a chacota,

rindo e falando ao mesmo tempo, o rosto está até vermelho, eles no vão
parar tão cedo com a gozação.

— Se eu soubesse tinha trazido uma caipirinha com limão, desce


muito bem com um churrasquinho espanhol bem passado – delegado Avilar

quase no consegue falar de tanto que ri.

— Rá... Rá... Rá, que engraçado, yo estou me acabando de rir –


ironizo.

— Preciso registrar esse momento, porque se eu contar ninguém vai


acreditar. – Pedro quase me cega com o flash do celular, ele parece uma
criança e no um promotor de justiça.

— Você no vai tirar foto porra nenhuma, Pedro, se contar isso para
alguém yo te mato.

Nós dois começamos a brigar por causa do celular dele, quero apagar
as fotos. Do jeito que esse cara é maluco é bem capaz de postar nas suas
redes sociais, aí vou virar piada no Brasil inteiro. Só que yo acabo pisando
em falso e caio de bunda no chão, nunca senti tanta dor na vida.

— Ai, meu cu, ele está todo assado – gemo em um fio de voz
abanando a bunda.

— Para, Gonzales, porque vou dar um treco de tanto rir. – Léo rola no

tapete felpudo da minha sala com os olhos fechados e as mãos segurando a


barriga de tanto rir das minhas palhaçadas. — Obrigado, rapazes, essa é a
primeira vez que acho graça de alguma coisa depois que o meu filho morreu

– diz e isso me comove.

No só a mim, mas também o John e o Pedro que pararam de rir e


olharam para mim. Fomos os três e abraçamos o Léo ao mesmo tempo,

valeu a pena me queimar todo só para fazer esse pai em luto se divertir um
pouco. No faz nem um mês que o Marcelinho morreu e deve estar sendo
muito difícil para ele e a esposa estarem passando por esse momento.

— Então vocês vão rir mais ainda quando yo contar a história toda de

como fiquei nesse estado, rapazes. – Aponto as duas mãos para o meu corpo
todo lascado. – Mas antes vou pegar uma cervejinha gelada para nós,

fiquem à vontade, meus amigos.

Já que no consigo vencer esses brutamontes, vou me juntar a eles.


— Agora sim está falando a nossa língua, churrasquinho espanhol. –

Delegado Avilar ergue o polegar na minha direção, se esse apelido pegar


estou fodido.

— Vai se ferrar, delegado! – Mostro o dedo do meio para ele antes de

ir para a cozinha, ainda escuto as risadas dos quatro ao abrir a geladeira.

Volto com um engradado de cerveja, sento com eles na sala e


bebemos enquanto conto sobre o bronzeamento do capeta que fiz. Arranco

altas gargalhadas dos rapazes, até yo rio junto com eles. Depois da sessão
comédia, começamos a planejar a despedida de solteiro do Luiz Fernando.
Falta pouco para terminar de organizar os últimos detalhes quando o

telefone do delegado começa a tocar, foi encontrado mais um corpo de uma


prostituta vítima do famoso assassino em série que tem colocado o Rio de
Janeiro em pânico.

Em um curto intervalo de tempo esse psicopata já matou várias


garotas de programa e no deixou nem uma pista sequer, o cara é um
verdadeiro mestre no quesito matar. Posiciona os corpos das mujeres

sempre da mesma forma, como se fosse uma obra de arte para que a polícia
encontre, gosta de brincar com eles.

— A conversa está muito boa, gente, mas o dever me chama. – O

delegado se prepara para sair.


— Eu vou com você, Ricardo. O caso desse assassino em série está
me tirando o sono.

Pela primeira vez, vejo Pedro falando sério de verdade. Para ele, um

promotor, querer ir pessoalmente na cena de um crime é porque está de fato


muito envolvido com esse caso.

— Podem ir lá, rapazes, deixa que nós três terminamos de organizar a


despedida de solteiro do Luiz.

— Valeu, John, depois passa tudo para mim e o Pedro. – Delegado se


despede com um aceno e os dois vão embora.

Ficamos apenas John, Léo e yo. Tomamos mais algumas cervejas e

jogamos conversa fora, num final de manhã agradável entre amigos.

 
Promotor Pedro Alcântara

Delegado Avilar não para de falar um minuto enquanto dirige até a


cena do crime, eu só aceno com a cabeça sem prestar atenção em uma
palavra do que ele está falando. Minha mente só gira em torno do corpo de

mais uma vítima que encontraram, essa é a de número vinte e seis.  Me


sinto culpado, pois mais uma mulher inocente morreu porque nós, homens
da lei, não fizemos o nosso trabalho direito e tem um psicopata à solta
tocando o terror na cidade. Às vezes tenho medo do caso não estar sendo

investigado com a atenção que deveria devido ao fato de todas as vítimas


serem prostitutas, a maioria delas são afastadas da família, viciadas em
drogas e só trabalham nesse ramo para manter o seu vício.

Porque é inaceitável para mim, um promotor de justiça respeitado que

nunca deixou de concluir um caso, ser obrigado a engolir da polícia que,


mesmo depois do cara ter matado tantas mulheres, não deixou nenhuma

pista sequer para trás, nem mesmo um fio de cabelo ou digital. É como se o
assassino fosse invisível. Pode ser qualquer pessoa, camuflada em meio à
sociedade, atuando num disfarce de cordeiro durante o dia, mas quando a

noite cai mata como um leão feroz.

Leão feroz este que não vou deixar escapar, farei justiça por cada vida
que ele tirou dessas mulheres covardemente. Elas, como qualquer ser

humano, independente da área em que atuam ou meio social em que vivem,


merecem justiça e eu farei, meu pai me ensinou que toda mulher merece
respeito e deve ser protegida por nós homens, não devemos feri-las de

maneira nenhuma, e não apenas fisicamente, mas sentimentalmente


também.

— Você ouviu o que eu disse sobre a despedida de solteiro do irmão

do Gonzales? – Delegado Avilar me olha pelo retrovisor de cenho franzido


quando para no sinal vermelho, acho que só reparou agora que estou com a
cabeça no mundo da lua.

— Desculpa, delegado, eu estou muito preocupado com o caso desse


assassino em série à solta. – Afrouxo o nó da gravata me sentindo sufocado.

— Desde que começou a trabalhar nessa comarca, promotor Pedro, eu

nunca te vi tão envolvido em um caso.  Confesso que isso está me


preocupando, você está em toda cena de crime quando aparece um corpo,
faz um monte de perguntas aos peritos e investigadores e fica irritado

quando o pessoal não tem as respostas que precisa. – Coça a nuca sem
graça, está sem jeito de me falar alguma coisa.

— O pessoal já está comentando sobre mim pelas minhas costas, não

é? – Apoio o braço na janela.

O vapor quente do vento devido ao calor constante do Rio de Janeiro,


nessa manhã beirando os quarenta graus, arde os meus olhos.

— Sim, Pedro! Estão falando que você já passou da linha de se

envolver demais e está obcecado por esse assassino em série, se continuar


assim vai acabar enlouquecendo e vão te afastar do caso. Já que
investigação em campo não faz parte do seu trabalho, deixa isso conosco,

policiais. Prometo que te passo de primeira mão tudo o que descobrirmos.


— Me afastar do caso? Mas nem fodendo, Ricardo! – me altero. –

Não vou descansar até pegar esse filho da puta e fazer justiça por cada uma
dessas moças inocentes que matou, tenho vivido só trabalhando nisso. Até
montei um perfil para esse psicopata, assim podemos criar uma lista de

possíveis suspeitos e começar uma linha de investigação – falo rápido


engolindo as palavras, parecendo de fato um maluco obcecado como estão

falando de mim por aí.

Se o delegado visse o escritório da minha casa ele mandaria me


internar em uma clínica psiquiátrica ainda hoje, as paredes estão tomadas
por fotos de cada vítima em ordem, conforme foram mortas. Pesquisei a

vida de cada uma delas, família, companheiros, onde batiam ponto no


calçadão e até mesmo seus amigos. Passei o pente fino em tudo, mas não

achei nada suspeito.

Seja quem for esse assassino, não tem nenhum vínculo com suas
vítimas, como suspeitei desde o início. Ele age de maneira aleatória, sai
para caçar e abate a primeira presa que fica enredada na sua armadilha.

— E qual seria o perfil desse cara na sua opinião? – indaga.

— Para mim ele tem entre trinta e quarenta anos, extremamente


inteligente, faz o tipo nerd, tímido e a voz mansa. Usa óculos fundo de

garrafa e roupa cafona, mas de marca porque trabalha em um emprego


legal. É casado com uma mulher incrível, mas sonsa que não veria a
verdade nem se esfregasse na cara dela. Acredito que tenham dois filhos no
máximo, pelos quais ele se esforça de verdade para ser um bom pai. Esse

cara vive uma vida de mentira tão perfeita que ele criou, que quando está
em casa com a família até ele mesmo acredita nela – explico, tentando ser o
mais claro que consigo.

Delegado Avilar me olha de canto de olho, mais preocupado comigo


do que no início dessa conversa. Envolvido demais com o caso é pouco,
minha vida só gira em torno disso ultimamente. Não durmo ou saio mais

com os amigos, nem tenho me alimentado direito. Sexo? Não sei o que é
isso já faz meses.

— Ok! Vamos supor que esteja certo, promotor Pedro, se esse cara é

tão inteligente como você diz, por que ele mata prostitutas, que são alvos
fáceis? Ele iria querer algo mais emocionante. Não essas pobres moças que
trabalham sozinhas em esquinas escuras e entram no carro de estranhos com

facilidade, muitas vezes a família nem sente falta quando desaparecem –


constata, o que faz muito sentido para o padrão normal de psicopatas, mas
esse assassino em série é diferente.

— Aí que está a charada! Ele gosta de matar, delegado, não importa


quem. Só quer saciar sua sede por sangue, escolheu as prostitutas
exatamente por serem alvos fáceis e consegue terminar o serviço rápido e a
tempo de chegar em casa para jantar com a esposa e os filhos – concluo
minha teoria, foi o melhor perfil que consegui montar até agora.

— Faz sentido, Pedro. Já passou sua teoria para o chefe de

investigação do caso?

— Já sim! Mas ele riu na minha cara, disse que estou maluco e me
mandou ficar na minha e deixar fazerem o trabalho deles – bufo frustrado.

O chefe de investigação Siqueira é o policial mais arrogante dessa


cidade e me odeia, não vai passar nenhuma informação que descobrir, acha
que sou um promotor aproveitador que só quer se promover em cima do

caso dele. Mas não tem nada a ver com isso, me sinto muito ligado a esse
caso de um jeito inexplicável. Já tentei deixar para lá várias vezes, mas não
consigo. Sinto como se precisasse proteger desse monstro uma pessoa que

nem conheço ainda, pelo menos não na vida real. Porque essa mulher
misteriosa aparece nos meus sonhos desde que era garoto, é sempre a
mesma coisa, a imagem embaçada de uma moça morena muito bonita de

batom vermelho e o cabelo longo negro flutuando no fundo de um lago com


os olhos abertos. Eu tento ajudá-la, mas nunca consigo e acordo antes de

chegar até ela.

A frequência dos pesadelos tem aumentado conforme o assassino em


série faz mais vítimas, acordo todo suado e com uma sensação agoniante de
que essa mulher está envolvida nisso tudo de alguma forma, e preciso pegar

esse assassino em série para que não chegue até ela antes de mim. Parece
loucura e eu nunca ousaria contar isso a ninguém, mas é assim que me sinto
e não consigo evitar.

— Eu vou tentar falar com o Siqueira sobre a sua teoria, mas só se

você prometer que vai controlar os seus impulsos em relação a esse caso,
está bem? – Assinto animado.

— Valeu, delegado, prometo não ser tão invasivo.

— Nós policiais já estamos sofrendo muita pressão da mídia e da


população para resolver o caso, não precisamos de um promotor metido
todo engomadinho pegando no nosso pé. – Me dá um tapa na nuca o cuzão

após estacionar o carro, nós acabamos de chegar onde o corpo foi


encontrado.

— Falando da mídia, delegado, eles chegaram na cena do crime antes

de nós. – Aponto na direção do repórter falando com o microfone na mão


de frente à câmera em uma chamada ao vivo.

— Esses caras são uns verdadeiros abrutes, o que eu menos gosto é

daquele alto, forte e arrogante com cara de ator de cinema, está sempre de
topete cheio de spray e se acha o tal só porque trabalha como âncora para o
jornal News em horário nobre. – Coloca os óculos escuros antes de sair do

veículo, ver esse monte de gente na cena do crime o estressou.

— Você está falando do Léo Fontes, esse cara é uma vergonha para
nós, homens. Em toda matéria que faz sobre esse assassino em série,

insinua que as vítimas são culpadas só porque são garotas de programa e se


colocam em risco de propósito quando resolvem trabalhar nas ruas. –
Reviro os olhos enquanto sigo o delegado, passamos pela faixa amarela e

caminhamos até a vala onde o corpo da mulher está coberto por um lençol
branco.

— Um machista escroto, se eu pudesse dava um soco na cara dele. –

Olha na direção do repórter que acena para nós, mas ignoramos fingindo
que não o vimos.

— Ei, delegado Avilar e promotor Pedro, têm alguma coisa a declarar

sobre mais um corpo encontrado essa manhã do assassino em série? – Léo


Fontes vem correndo atrás de nós com aquele microfone redondo enorme
ridículo nas mãos, seu cabelo loiro está com tanto spray que nem se move.

— A única coisa que eu tenho para declarar – o delegado toma o


microfone da mão dele e se vira para a câmera – é que, se você colocar o pé
do lado de cá dessa faixa amarela ou assediar alguns dos meus homens em

busca de informações confidenciais sobre esse caso, a matéria de hoje à


noite exibida no jornal em que você trabalha, Léo Fontes, será da sua prisão
por intervir nas investigações confidenciais da polícia. – Coloca o repórter
de quinta categoria no lugar ao vivo, esse Ricardo Avilar acaba de se tornar

meu herói.

O delegado joga o microfone em cima do repórter até sem cor no


rosto, acabou de passar a maior vergonha da sua vida e em rede nacional.

— Mandou bem, delegado! – Bato a mão nas suas costas.

— Ah, não, você aqui de novo, mauricinho? – O investigador


Siqueira rosna assim que me vê, mesmo sabendo que compareci em todas
as outras vinte e cinco cenas de crime desse assassino, e nessa obviamente
não seria diferente.

Acho que ele não gosta de mim porque, apesar da minha carinha de
bebê, já construí uma carreira sólida como promotor de justiça nessa
comarca e acredito que a maioria das pessoas pensa que o fato da minha

família ser milionária me ajudou muito. Mas só eu sei o quanto trabalhei


para chegar onde cheguei, e só para constar, apesar da minha aparência
jovem, não sou tão novo quanto a maioria pensa, estou próximo dos trinta e
cinco anos.

— Me faça um resumo do que descobriu e para de pegar no pé do


promotor – ordena delegado Avilar. – E seja rápido, Siqueira, porque era
para essa manhã ser minha folga e a minha esposa está me esperando em
casa para o almoço.

— Sim, senhor Delegado. – O investigador me olha feio, ele é um


senhor negro bigodudo careca e fortão de voz grossa que me assusta toda
vez que fala alto comigo.

Siqueira já está há muitos anos trabalhando na polícia e faltam só


alguns meses para se aposentar, graças a Deus. Ele tem uma carreira
invejável, é muito respeitado entre os colegas de trabalho porque tem muita
experiência e é ótimo no que faz.  Assim como eu, está desesperado para
resolver esse caso logo porque é o último em que vai trabalhar e quer sair

com louvor para aproveitar a sua aposentadoria em paz e com aquela


sensação boa de dever cumprido.

— O perito disse que não tem nada de novo nesse caso, sem DNA ou

digitais. Provavelmente o assassino deu banho na vítima depois que a


matou e limpou debaixo das suas unhas, penteou o cabelo da moça e a
maquiou como fez com as outras e deixou uma rosa vermelha entre suas
mãos, que é a sua marca registrada. – Siqueira levanta o lençol branco e lá
está a pobre vítima, a maquiagem não é o suficiente para cobrir todos os
hematomas pelo seu rosto lindo e jovem.
Ela é loira e tem o cabelo liso comprido, se tinha vinte e sete anos é
muito. Seu corpo está tomado por feridas e hematomas de cima a baixo, dá
para ver que foi torturada e espancada por horas até a morte. Sinto o meu
estômago embrulhar, uma mistura de nojo e raiva desse covarde.

— Algum sinal de abuso sexual? – pergunto com os punhos


trincados.

— Como eu disse, mauricinho, não tem nada de novo nesse corpo.


Então a resposta é não, ele não abusou sexualmente dela. Mais alguma
pergunta? – Dá de ombros sem paciência para falar comigo, mas continuo
fazendo perguntas.

— Pelo menos já identificaram a moça?

— Você por acaso acha que temos uma bola de cristal, garoto? Nós
acabamos de achar o corpo da prostituta, então é óbvio que não sabemos

quem ela é, porra! – Tira o boné e me olha sem paciência, ele realmente não
me suporta.

Os outros policiais na cena começam a rir, todo mundo sabe que, se

ama a sua carreira, é melhor não bater de frente com o Siqueira, até os
juízes que são peixe grande preferem ser amigos dele porque está nesse
ramo há muito tempo e tem contatos com gente grande de verdade no meio
jurídico.
— Agora já chega, Pedro, acho melhor você voltar para o carro –
aconselha delegado Avilar, ele foi o único aqui que não riu da minha cara.

Ricardo está preocupado comigo, já tinha me avisado que o pessoal


anda comentando pelas minhas costas sobre essa rixa que começou do nada
entre mim e o investigar Siqueira envolvendo esse caso. Mas não vou

abaixar a cabeça para esse cara, ele pode ser mais velho e ter muito mais
experiência nessa área, mas não tem o direito de me tratar dessa forma
desrespeitosa só porque todo mundo puxa o saco dele.

— Não tenho mais nenhuma pergunta, senhor investigador, apenas


um pedido – digo em um tom baixo e educado. – Só porque o corpo dessa
moça à sua frente está sem vida não quer dizer que pode ser desrespeitoso
com ela, então peço que, enquanto não descobrir a sua identidade, se refira
à vítima como número 26 e não qualquer título que envolva o trabalho dela
antes de ser morta covardemente – concluo e ninguém ri mais.

— “Trabalho” que ela fazia? – diz irônico, cruza os braços sobre a


corda do seu distintivo pendurado no pescoço e me olha com deboche.

— Sim, trabalho! E não era nenhum crime, e mesmo se fosse não


queremos denegrir ainda mais a sua imagem. Acho que esse assassino em
série já fez isso o suficiente por nós todos, homens machistas e escrotos que
tratam as mulheres como lixo até depois da morte – digo e todo mundo fica
literalmente de queixo caído, menos o Siqueira que está com as narinas
inflando de raiva.

Indireta entregue com sucesso!

— Olha como fala comigo, moleque, se gosta do seu trabalho acho


bom ficar pianinho comigo – ameaça o velho carrancudo.

— Eu falo com o senhor como eu quiser, se quer respeito da minha


parte conquiste-o. Porque na base de ameaças, meu caro, não vai rolar. –
Sorrio de canto, confiante.

Olho bem na cara do Siqueira e completo no mesmo grau de deboche


que ele usou comigo instantes atrás:

— E quando eu resolver o seu caso, talvez esse mauricinho aqui lhe


pague uma cerveja para comemorar a sua aposentadoria. – Pego os meus
óculos escuros pendurados na gola da camisa e coloco cheio de estilo, enfio
as mãos no bolso e saio assobiando de cabeça erguida.

Vou pegar esse assassino em série nem que seja a última coisa que
faça na minha vida ou não me chamo Pedro Alcântara. Se eu não conseguir,
entrego o meu cargo de promotor e saio de vez do meio jurídico.
Solange

Saio da casa do Gonzales e dirijo correndo até a minha casa, me

arrumo rapidinho e vou correndo para a escola, deixo Rafael na porta da


sala dele e por pouco não chego atrasada para dar a minha aula. Começo a

passar a matéria para as crianças e não consigo me concentrar, erro coisas


simples que sei de trás para frente e já ensinei para várias classes. Minha
cabeça está uma bagunça depois da noite que passei na casa do espanhol
cuidando dele até mais do que devia, poderia dizer que fiz um boquete nele

porque estava com pena de vê-lo naquela situação constrangedora por ser
um completo idiota, mas piedade não teve nada a ver com aquilo.

Eu fiquei excitada desde que vi esse homem de pau duro dentro da

cueca na cozinha, saber que o deixo dessa forma com tanta facilidade mexe
muito com a minha libido e acabo perdendo a linha ao ponto de me ver
agachada no banheiro de uma mansão na Barra, caindo de boca no

Gonzales.

Você não toma mesmo jeito, Solange! Depois quebra a cara e não

sabe o porquê.

O fato é que, por mais que eu lute, não consigo parar de pensar no

Gonzales o tempo inteiro. Estou preocupada com ele sozinho naquele


estado. É orgulhoso demais para aceitar ajuda das pessoas, tive que

implorar para me deixar cuidar dele ontem. Por isso envio várias mensagens
para ele em meio à minha aula, o palhaço sempre responde com uma foto

fazendo alguma careta engraçada que me faz rir.

Estou gostando dessa trégua entre nós, tenho conhecido um lado

divertido no Gonzales que me faz sentir à vontade na sua presença.

— Posso saber qual é a piada, Solange? Porque eu quero rir também.


– Roberto aparece na minha sala na hora do intervalo com o sorriso

galanteador de sempre, mas não surte o mesmo efeito de antes de nos

beijarmos.

Deixo o meu celular cair no chão com o susto que levei, ele entrou na

porta sem bater. Pelo visto, passar o horário do intervalo na minha sala de
aula para evitar encontrar com o Roberto na sala dos professores não

adiantou muito; agora, querendo ou não, vou ter que encará-lo.

— Nada de mais, só recebi uma foto engraçada de um amigo. – Dou

uma garfada na minha lasanha vegana e enfio na boca, está fria, mas muito
gostosa.

— É. Eu estou vendo. – Sinto ironia no seu tom.

Quando olho para baixo encontro meu celular próximo ao pé dele

com a foto do Gonzales enchendo a tela. Ele está fazendo biquinho com
aquele rosto todo descascado e revirando os olhos. Fico muito sem graça,
me abaixo para pegar o aparelho rapidamente. A vida é mesmo muito

engraçada, antes eu estava fugindo do Gonzales e me sentia à vontade na

companhia do professor Roberto, mas a situação parece ter se invertido

drasticamente de uma hora para outra e isso é muito bizarro.

Bem-feito para mim! Nunca mais digo que dessa água não beberei

mais, porque além de ter bebido ontem à noite, me joguei nela e só não me
afoguei porque o Gonzales estava mesmo decidido a cumprir a promessa de

me respeitar. Porque se dependesse do meu fogo, teria dado até a minha

bunda para ele naquele banheiro.

— Qual é a sua com esse espanhol, hein, Solange? Não gostei do jeito

que ele olhava para você no bar.

— Ele comprou a metade do bar da minha família, então agora é

nosso sócio. Só isso – minto na maior cara de pau.

Roberto é um cara muito legal e não quero magoá-lo de maneira

nenhuma, por isso tenho evitado encontrar com ele porque estou muito

confusa em relação aos meus sentimentos e não quero brincar com os dele.

— E tem alguma coisa a mais entre vocês?

— Olha, confesso que até recentemente não suportava nem olhar para

o Gonzales. Fiquei louca quando soube que a minha mãe vendeu a metade
do bar para ele…

— Mas? – me corta de maneira grosseira, cruza os braços e fica me

encarando.

— Odeio admitir isso, mas Gonzales pode ser um cara legal – assumo
mais para mim do que para ele e com um sorriso estampado no rosto, que
morre assim que vejo a expressão de desapontado do Roberto.

Me sinto muito mal, ainda bem que o sinal toca e a loucura no

corredor começa com as crianças correndo voltando do intervalo para as


suas salas e nós dois temos que voltar ao trabalho.

— Vou nessa, Solange, a gente se fala outra hora. – Acena com a


cabeça antes de ir embora, com uma expressão nada amigável.

Meus alunos voltam e eu dou continuidade à aula, quando termina

vou para o bar ainda com o Gonzales dominando boa parte da minha mente.
Resolvo fazer uma pomada caseira para queimadura que encontrei no livro
de ervas medicinais da minha mãe, aproveito que o movimento do bar está

fraco e invento uma desculpa para dar uma fugidinha rápida e vou até a
casa dele levar.

Apesar que, no fundo, sinto que isso é apenas uma desculpa para vê-

lo. Eu já estou na merda mesmo, então vou deixar o barco descer sem rumo
correnteza abaixo e ver onde vai parar.
— Que surpresa boa você aqui, Cariño! – O sorriso que o Gonzales

me dá ao abrir a porta me convence de que não deveria estar em nenhum


outro lugar que não fosse aqui nesse momento.

Eu não queria estar em outro lugar.

— Eu só passei aqui para te entregar essa pomada para queimadura


que fiz para você, pode passar uma leve camada duas vezes ao dia. – Tiro o

frasco de plástico da minha bolsa e entrego a ele, que está todo enrolado em
um lençol fino de seda com uma cara de sono, acho que o acordei.

— No vai, Solange, entre, por favor, yo também tenho uma coisa para

você. – Abre caminho para eu passar.

— Se for algum presente caro, eu não quero, Gonzales! Não quero

nada relacionado ao seu dinheiro. – Dou um passo para trás já na defensiva.

— Acredito que seja de grande valor sim para você, linda. Mas no
tem nada a ver com dinheiro – explica e eu fico curiosa para saber o que é.

— Está bem, mas só posso ficar cinco minutos. Tenho que voltar para
o bar. – Resolvo entrar, mas com os dois olhos bem abertos para alguma

armadilha que esse espanhol esteja planejando.

— Está bem, no vou tomar muito o seu tempo. Me acompanhe, por


favor. – Estende a mão na minha direção e eu levo alguns segundos para

segurar, começamos a subir as escadas juntos.


Gonzales me guia até o andar de cima da sua mansão, que é tão
luxuoso quanto o de baixo. Móveis modernos e só em tons claros que
transmitem luz, chique, mas sem graça. Se eu morasse em um lugar igual a

esse seria uma loucura de mistura de cores para todo lado.

— Eu não vou entrar no seu quarto, Gonzales. Preciso voltar para o


meu trabalho.

— Calma, mujer, confia em mim só dessa vez. – Abre a porta e


minhas pernas me traem e entram antes que eu possa contestar mais.

— O que são todos esses papéis?

Pego uma folha em meio às centenas de outras que estão espalhadas

sobre sua cama, junto com mais dois notebooks prateados da Apple ligados
e um caderno de notas todo rabiscado.

— Yo aproveitei que estou em casa para dar uma olhada no caso do


acidente do seu pai, li cada linha de todo o processo de mais de cem páginas

e encontrei muita coisa errada na investigação. Já liguei para o meu melhor


amigo que é juiz e com a ajuda dele vamos conseguir marcar o julgamento
do motorista do veículo o mais rápido possível, e juro por Dios, Solange,

vou para cima desse filho da puta com tudo e vou fazer justiça em nome da
sua família – promete todo animado falando e gesticulando ao mesmo

tempo, enquanto eu começo a chorar compulsivamente.


— Você está em casa porque está doente e mesmo assim gastou todo
esse tempo estudando o caso do meu pai?

— Sim. Você no gostou, Cariño? Me desculpa! Pensei que ficaria


feliz quando soubesse e… – Calo sua boca com um beijo, eu não penso, só

ajo no impulso e sigo o que o meu coração está pedindo.

Gonzalez deixa o lençol que está em volta do seu corpo cair no chão e
agarra minha cintura, começamos a nos beijar com mais intensidade e

acabamos caindo na cama.

— Aiiiii – Gonzales geme devido à força do impacto sobre o colchão

na sua pele sensível.

— Desculpe, Gonzales, você todo machucado e eu agarrando você. –

Me afasto dele rapidamente, ajeitando a minha roupa.

— No tem problema, mi amor. Pode me agarrar quando quiser, yo

aguento a dor. – Me beija de novo, mas o interrompo, preciso falar uma

coisa muito importante para ele.

— Eu preciso que me escute, Gonzales. – Seguro o seu rosto dentro

das minhas mãos. – Juro que pensei que a morte do meu pai nunca teria

justiça, porque o playboyzinho que matou ele é filho de um senador


poderoso e eles têm uma equipe inteira com ótimos advogados e minha
família nunca teria chance contra eles. – Soluço, realmente pensava que

essa fosse uma guerra perdida para nós.

Mas com um advogado foda e conhecido como o Gonzales

trabalhando no caso do meu pai a coisa muda de figura, as chances de


conseguirmos fazer justiça é muito grande. E mesmo que ainda assim

saiamos perdendo nessa, saber que tem alguém que se importa e está

disposto a lutar de verdade por mim e a minha família me deixa tão feliz

que tenho vontade de chorar.

— Eles podem ter ótimos advogados, mas agora vocês têm o mejor –

se gaba como sempre e eu sorrio com lágrimas nos olhos, Gonzales sendo
Gonzales. – Vou colocar toda minha empresa trabalhando nisso comigo,

desde os advogados veteranos aos estagiários, e no vamos descansar até

fazermos justiça para o senhor Ramon.

— E eu serei eternamente grata a você por isso, Gonzales. Não sei o

que fazer para retribuir tanto.

— Mas yo sei, Solange. – Enxuga minhas lágrimas com carinho. –

Aceite sair comigo para um encontro de verdade, quero fazer as coisas

certas dessa vez e tudo que preciso é de uma chance para mostrar que sou

um cara legal e pode confiar em mim. – Como um verdadeiro cavalheiro,


beija a minha mão.
Sendo bem sincera, nessa altura do campeonato eu já estava

começando a confiar no Gonzales já faz um tempinho. Por isso minha

resposta ao convite dele só poderia ser uma:

— Sim! Eu aceito sair com você. Mas só quando estiver cem por

cento curado, de jeito nenhum que vou aparecer em público contigo nesse

estado. – Tiro sarro da sua cara.

— Yo aceito a condição, mas só se você me der outro beijo. – Fecha

os olhos e faz um biquinho fofo.

— Está bem, mas só um selinho. – Meus lábios tocam os seus tão

depressa que nem dá para sentir o gosto.

— Assim no vale, Sol. Yo quero um beijo de verdade.

— Vai ficar querendo, espanhol, porque preciso voltar para o bar, já

fiquei tempo demais fora.

— Fica só mais um pouquinho, vai? – implora fazendo charme.

— Só mais cinco minutos, Gonzales. Nem um segundo a mais. –

Aponto o dedo na sua cara.

— Está ótimo, Cariño! Dá para fazer muitas coisas interessantes em


cinco minutos. – Mexe as sobrancelhas de um jeito engraçado.

— Dá mesmo! Como te ajudar a passar a pomada nas suas


queimaduras, vem comigo. — Puxo ele pela mão para o andar de baixo.
Gonzales acaba me fazendo ficar mais meia hora, agora que tirei a

armadura consigo ver quem ele é de verdade. Um verdadeiro palhaço que


me faz rir o tempo todo com as suas gracinhas, são raras as vezes que fala

algo sério. Fora que tem sido tão respeitador comigo, não força mais nada,

todos os sentimentos que têm despertado em mim estão acontecendo de


maneira genuína e natural.

— Você tem que ir mesmo, Sol? Pode dormir aqui de novo se quiser,

essa casa no é a mesma coisa sem você – dramatiza, segura a minha mão
quando me levanto do sofá para impedir que eu vá embora.

— Não precisa de mais nada essa noite, Gonzales. Já tem tudo que
você precisa, então para de drama. – Franzo o cenho.

O espanhol está confortável deitado no sofá com mais uma de suas

cuecas horrorosas e todo branco lambuzado de pomada da cabeça aos pés,


assistindo TV com uma bandeja de petiscos ao seu lado que montei com o

que achei na geladeira. Também fiz uma jarra de suco de laranja e hortelã

para fortalecer o seu organismo para ficar bom logo para o nosso primeiro
encontro.

Confesso que estou ansiosa para esse dia chegar logo, quero conhecer

mais desse lado romântico do Gonzales.


— Você anda me mimando muito, Solange. Assim vou ficar

acostumado. – Suga o suco pelo canudinho do copo cor-de-rosa em formato

de unicórnio da irmãzinha dele que achei no armário da cozinha, achei que

seria mais fácil assim para tomar deitado.

— Pois não se acostume, meu bem, porque assim que melhorar as

coisas voltam ao normal. – Me despeço com um beijo rápido.

Na boca.

Aconteceu instintivamente.

Fico envergonhada e vou embora o mais rápido que posso, mas não

antes de ver o sorrisinho metido estampado no rosto dele. Volto para o bar e
dou de cara com a minha mãe, ela me dá uma bronca daquelas.

— Onde você estava todo esse tempo, Solange? Prometeu que

voltaria rápido. – Leva as mãos na cintura enquanto eu coloco meu avental


apressada. – Agora que exigiu que assinássemos a sua carteira, mocinha,

tem que trabalhar igual aos seus colegas de trabalho, filha.

— Desculpa, mãe, prometo que não vai acontecer de novo. – Beijo o

rosto dela.

Pego meu caderno de notas e vou para o salão ajudar a atender os


clientes com um sorriso do tamanho do mundo, faz muito tempo que não

me sinto tão feliz e esperançosa.


Duas semanas depois
 

Passaram-se duas semanas e muita coisa aconteceu, Gonzales se

curou completamente e volta para o trabalho hoje. Não aguentava mais ficar

sem fazer nada. De sete dias o médico dele o fez ficar quatorze em casa em

total repouso, não podia nem olhar na janela por causa do sol. Nós nos
falamos bastante por telefone e nos vimos com frequência durante esse

período. Como deu a louca na minha mãe e ela resolveu iniciar as obras no

bar com o aval de seu sócio para grandes melhorias, vamos ficar de portas
fechadas por um período, então tive tempo livre de sobra para visitar o

espanhol e lhe fazer companhia.

Estamos em uma espécie de amizade colorida, às vezes rolam uns


beijos aqui e ali, mas nada de sexo de verdade. Concordamos em ir com

calma, porque nossa história começou de maneira muito delicada e os dois

precisam se sentir confortáveis e confiantes para que isso dê certo. O


primeiro passo é o nosso primeiro encontro que vai ser hoje, em pleno

sábado à noite. Estou muito nervosa e ainda não sei o que vou vestir, fui em

várias lojas e não achei nada que me agradasse.


Não aguentei a ansiedade e acabei contando para a Tess tudo o que
vem acontecendo entre mim e o Gonzales, minha amiga está na torcida para

que fiquemos juntos, apesar que eu deixei bem claro que é apenas um

encontro.

Mas por que eu estou tão nervosa?

— Calma, amiga, nós vamos encontrar o look perfeito para você usar

hoje – Tess tenta me animar, mas eu já tinha experimentado tudo do meu

guarda-roupa e não encontrei nada que me agradasse.

Tess já não tem nenhum sinal dos ferimentos da surra que levou do

Lucas, pelo menos na parte física. Porque a ferida que qualquer tipo de

violência causa na alma de uma mulher leva muito mais tempo para curar,
às vezes uma vida inteira. O desgraçado não tentou mais entrar em contato

com ela depois que invadiu a sua casa, mesmo assim decidimos que ficará
com a gente até que esse bandido for preso novamente.

— Não sei não, Tess, o encontro é hoje e eu não me sinto bem em


nada do que visto. – Jogo as mãos nos quadris largos.

— Mas o que está acontecendo aqui, meninas? Parece que passou um

furacão dentro desse quarto.

Minha mãe aparece na porta e se assusta com a bagunça, minhas


roupas estão todas para fora do guarda-roupa, a maior parte em cima da
cama e o restante em toda parte, inclusive no chão, não ficou nem uma
calcinha nas gavetas.

— A Solange tem um encontro, tia Cátia, e não sabe o que vestir,


nunca a vi tão ansiosa assim para sair com um cara.

Tess me entrega logo de cara, olho feio para ela no mesmo instante,
agora minha mãe vai me fazer um milhão de perguntas sobre esse tal cara.

— Arrasou, filha! Aposto que vai sair com o professor bonitão, não

é? Quando vai trazer ele aqui em casa? Vou fazer um jantar especial para
ele. — Dona Cátia senta aos pés da minha cama no único espaço livre e
começa com o interrogatório.

— Não, mãe! Acho que Roberto e eu não vai rolar. — Dou de


ombros, na verdade, tenho certeza mesmo.

— E você já vai sair com outro pretendente, filha? Essa é a minha


garota! A antiga Solange pegadora está de volta. — Bate a mão na minha,

queria que todas as mães tivessem essa mesma vibe boa dela.

Minha mãe nunca encheu a minha cabeça desse moralismo podre que
vem de muitos anos atrás, onde a boa mulher é aquela que dá para um

homem só, mesmo que ele seja um escroto que te enche de pancada para
deixar claro que é ele que manda. Eu trabalho e pago as minhas contas, sou
uma boa pessoa e não faço mal nem a uma mosca.
Então fico sim com quem eu quero e ninguém tem nada a ver com
isso, porque o que importa é a minha felicidade e não o que pensam a meu
respeito.

— Claro, né, tia? A fila não pode parar – brinca Tess.

— Que bom que você sabe disso, não é, Tessiane? – Arqueei a


sobrancelha.

Todo mundo sabe que ela não se relacionou com mais ninguém
depois do ex tóxico dela, passou os últimos dois anos triste e sozinha.

— Quando o cara certo chegar e for capaz de me fazer esquecer todos


os meus traumas, eu vou saber e prometo que não vou deixá-lo escapar –

garante esperançosa.

— É isso aí, querida, tudo tem o momento certo para acontecer. Você
só precisa acreditar na força do nosso Criador. – Mamãe abraça minha

amiga.

Como os pais da Tessiane moram no interior de Minas, mamãe é a


sua referência materna aqui no Rio de Janeiro desde que se mudou para cá

há cinco anos.

— Só um minuto, meninas, preciso ir ao banheiro e já volto. – Pego


meu celular que não para de apitar sobre a cômoda e saio a passos largos,

sabia que era alguma mensagem do Gonzales.


 

“Esteja pronta hoje às 19h para o nosso encontro, Cariño. Mal

posso esperar para te ver essa noche, estou morrendo de saudades.”

Diz a mensagem e eu suspiro ao terminar de ler, rindo sozinha


sentada na privada como uma idiota. Não fazia esse tipo de coisa nem

quando era adolescente, sempre fui muito desenvolta em relação à hora de


flertar e contava para a minha mãe sobre as paqueras da escola e todo
garoto que ficava. Quando perdi minha virgindade, ela foi a primeira a

saber. Mas com o Gonzales tudo tem sido diferente. Ele me faz sentir
diferente. Sinto que posso ser eu mesma quando estamos juntos, não preciso

usar essa armadura de durona o tempo todo.

Por isso esse “namoro” escondido com o Gonzales está sendo tudo
muito novo para mim, o que deixa tudo mais excitante e divertido, estar na
sua companhia é garantia de muitas gargalhadas. Às vezes ainda lembro do

bronzeamento artificial dele que não deu certo e começo um ataque de risos
do nada no meio da minha aula ou não importa onde esteja, fico rindo feito

uma maluca na frente das pessoas, que não entendem nada.

 
“Como já está com saudades de mim se nos vimos não tem nem dois

dias, espanhol?”

Envio a mensagem e fico lembrando da última vez que estive na casa


dele e passamos horas jogando poker com ele roubando toda hora, foi muito

divertido. Começo a roer as unhas quando o Gonzales começa a digitar, em


menos de trinta segundos responde a minha mensagem.

“No posso fazer nada se sou um hombre apaixonado, um minuto


longe de você já é mais do que suficiente para me fazer morrer de
saudades.”

Reponde dramático, como se fosse possível alguém morrer só de


saudade.

“Aguenta só mais um pouquinho, Gonzalez, porque essa noite sou


todinha sua.”

 
Só dá tempo de enviar a mensagem e a minha mãe começa a bater na
porta do banheiro, guardo o celular no bolso de trás do jeans rasgado e abro
a porta.

— Eu acho que tenho algo perfeito para você usar essa noite, filha. –
Me puxa de volta para o meu quarto.

— Olha que perfeição esse vestido da sua mãe, amiga! – Tess ergue o
vestido, como nós duas somos cheinhas sempre dividimos nossas roupas

direitinho.

O vestido é de fato maravilhoso, no modelo sereia com as alças finas,


todo de estampas tribais em laranja, marrom e vermelho escuro. Ele tem

uma abertura sensual na frente que conforme você caminha mostra as


pernas e forma uma cauda atrás, simplesmente lindo! Vai ficar perfeito com
a minha bota de cano alto.

— Que vestido incrível, mãe! Quando comprou? Nunca vi a senhora


usando-o.

— Porque eu nunca usei, querida, ainda está com a etiqueta. – Prendi

os seus dreads para cima enquanto fala. —Comprei ele para usar no jantar
romântico que faria para o seu pai no nosso aniversário de trinta anos de
casamento, mas ele morreu uma semana antes. – Sua voz falha, ela nunca

me contou sobre a existência desse vestido e agora sei o motivo.


— Ah, mãe! Sinto muito, eu perdi o meu pai naquele acidente, mas a
senhora perdeu o grande amor da sua vida. –Abraço minha mãe. – Sua alma

gêmea – digo baixinho no seu ouvido e a aperto bem forte com todo amor
que tenho no coração.

Queria poder contar para a minha mãe que o Gonzales tem trabalhado
no caso do meu pai e ele está certo de que vai conseguir fazer justiça pela

morte dele, mas quero esperar marcarem oficialmente a data do julgamento


para dar a grande notícia a ela em primeira mão.

— E eu estou sentindo uma energia positiva de que essa noite você

vai sair com a sua alma gêmea, filhota, por isso você precisa usar esse
vestido perfeito. Agora ele é seu.

Pega o vestido da mão da Tess e me entrega com os olhinhos

brilhando, mas eu não posso aceitar de maneira nenhuma.

— Esse vestido é lindo, mãe, mas não posso usá-lo. Ele faz parte da
sua história com o papai. – Tento devolver para ela, mas a teimosa não

aceita.

— Infelizmente não deu tempo para esse vestido fazer parte da minha
história de amor com o seu pai, querida, mas pode fazer da sua com esse

rapaz com quem vai sair hoje, e pelo brilho nos seus olhos que nunca vi
antes, ele será meu genro. – Ergue as mãos acima da cabeça mostrando os
braços tatuados e dá uma reboladinha, tirando uma com a minha cara.

— E eu serei a madrinha desse casamento, meu povo. – Tess vai


dançar com a minha mãe sem nenhuma música, essas duas são umas
figuras.

— Está bem, eu aceito o vestido, suas duas bobas! – Abraço a peça


em minhas mãos.

Com o look mais que especial escolhido, é a hora de começar a me

arrumar. Tomo um banho delicioso sem pressa e cantarolando debaixo do


chuveiro, passo creme hidratante em todo o corpo e visto o meu roupão,
vou deixar para colocar o vestido só na última hora, não quero que amasse.

— Esse homem deve ser muito importante mesmo, hein, filha? Faz

horas que você está se emperiquitando na frente desse espelho. — Minha


mãe circula em volta de mim enquanto espalho a base pelo meu rosto com o

auxílio de um pincel, então ela para e se debruça em cima da penteadeira.

Tess foi para a sala ligar para os pais dela, e a fofoqueira ficou aqui
tentando arrancar mais informações de mim sobre o meu encontro.

— Ainda não tenho certeza se ele é importante para mim, mãe,

pretendo ter a confirmação essa noite. – Olho para ela pelo reflexo do
espelho.
Não menti para minha mãe, acredito que esse primeiro encontro com

o Gonzales vai ser o divisor de águas e me fará ver as coisas entre nós com
mais clareza.

— Se transarem me conta depois, quero saber de todos os detalhes

sórdidos!

— Para com isso, mãe! – Estico o braço e dou um tapa na bunda


empinada dela.

— Todo mundo transa, Solange, o acasalamento é a dança mais

bonita entre os seres terrestres.

— Minha nossa, mãe, você e essas suas metáforas ripongas. – Dou


gargalhadas, tento passar lápis na parte de baixo do olho, mas não consigo

cessar o riso.

— Qual o motivo de tanta graça, Solange? — Rafael aparece na porta


segurando a sua caneca preta em formato de cabeça de gato, ele parece

confuso com o nosso momento de diversão.

É complicado para ele entender as emoções, e principalmente


vivenciá-las.

— Nada, filho, vem com a mamãe e deixa a sua irmã se arrumar para

o boy dela. – Agarra o braço do meu irmão e o leva para fora do quarto,
agora sim poderei me arrumar com calma.
Termino minha maquiagem e está impecável, nada de muito
chamativo, não gosto de exageros. Usei só tons neutros no tom da minha
pele. Para realçar o meu rosto, deixo as tranças soltas partidas ao meio e

jogadas para trás sobre minhas costas. Visto o vestido e quando termino de
calçar as botas recebo uma mensagem do Gonzales dizendo que já chegou,
me apresso para terminar de me ajeitar para ir ao seu encontro.

— Só respira e seja elegante, Solange. Vai dar tudo certo! Você está
um arraso. – Dou uma última olhada no espelho e gosto do que vejo, pego
minha bolsa em cima da cama e saio.

Quando passo pela sala Tess e a minha mãe assobiam e dizem que
estou linda, elas me desejam sorte no encontro e eu agradeço duas vezes
porque sei que vou precisar. Como pedi ao espanhol, ele estacionou o carro

uma quadra antes da minha casa para evitar olhares curiosos, hoje é um dia
muito especial para nós dois e não quero que nada e nem ninguém estrague.

Sinto aquele friozinho na barriga quando vejo Gonzales poderoso em

um terno preto de três peças com gravata-borboleta, está tão elegante e é


tudo só para mim. Por Deus! Como esse homem está lindo com as costas
jogadas contra a limusine e os braços cruzados sobre o paletó

impecavelmente alinhado ao seu corpo sarado.

Sim!
Gonzales teve mesmo coragem de aparecer aqui no Madureira nessa
limusine preta com a pintura até brilhando, novinha em folha, acho que

acabou de sair da loja, um veículo desse porte deve custar os olhos da cara.
Através do vidro escuro baixado no lado do motorista, o chofer tira o quepe
e acena para mim, sorridente. Sorrio de volta para ele, mas os meus olhos

estão no Gonzales o tempo todo.

— Você está muy hermosa, Cariño. — Segura a minha mão e beija


todo galante.

— Você também está muy bien, espanhol. — Pisco para ele,

maliciosa.

— Obrigado, linda, mas agora precisamos ir porque um jantar


maravilhoso nos espera. — Me dá um beijo rápido na boca e abre a porta

para eu entrar.

Por dentro a limusine é mais espetacular e maior do que parece nos


filmes, as luzes são coloridas e os bancos são de couro preto. Ao fundo, à

direita, tem um minibar com garrafas de champanhe dentro de baldes de


gelo.

— E para onde estamos indo, espanhol? — pergunto curiosa.

— Para um lugar muito especial para mim, Sol. Acho que vai gostar

— solta no ar cheio de mistério, inclina-se com a mão cravada na minha


coxa e dá uma leve mordida no meu pescoço.

— Podemos beber um pouco de champanhe? – peço morrendo de

vergonha, preciso de um pouco de álcool no sangue ou vou ter um treco


antes que o nosso encontro comece oficialmente.

— Tudo que você quiser, amor, hoje a noche é sua. – Estica o braço e

pega a garrafa dentro de um balde de gelo e abre, serve uma taça para mim
até a espuma despencar das bordas.

Gonzales enche a sua taça e guarda a garrafa de volta no balde de

gelo, o tempo todo me olhando intensamente.

— Um brinde a nós dois, desejo que essa noite seja inesquecível para
ambos. – Encosto minha taça na dele.

— Ele será, yo prometo – garante.

Enlaça o braço em volta do meu e nós dois sorvemos um gole de


champanhe em nossas respectivas taças olhando dentro dos olhos um do
outro, um momento que acontece em silêncio, mas que esconde mil

palavras.

— Chegamos, senhor Gonzales – anuncia o motorista antes de


estacionar a limusine.

— Muito obrigado, Tomas.


— Desejo uma ótima noite ao casal. – Acena para nós sorridente pelo

retrovisor antes de sairmos do veículo.

— Obrigada, Tomas, tenha uma ótima noite você também. Gostei do


seu quepe. – Aceno para ele de volta, é um senhor simpático.

Gonzales me olha interagir com o seu motorista com uma expressão


de satisfação, acho que as mulheres com quem ele costuma sair não são o
tipo que sequer olha na direção dos seus empregados.

— Seja bem-vinda ao Soledá, restaurante espanhol mais antigo do


Rio de Janeiro. – Abre os braços em frente ao estabelecimento, um local
simples para alguém do naipe do advogado Alejandro Gonzales, mas uma

graça de lugar, parece uma cabana gigante com a estrutura toda feita de
madeira de lei escura bem no centro do Rio de Janeiro.

A maior parte da frente do restaurante está tomada por trepadeiras no

ápice da primavera, todas floridas num tom rosado lindo que termina nos
pendões pendurados sobre as janelas grandes de vidro, onde é possível ver
daqui da calçada todo o interior do estabelecimento decorado em cores

fortes, em predominância o vermelho e o amarelo.

Um lugar mais que perfeito para um primeiro encontro, simples,


discreto e aconchegante. Acho legal da parte do Gonzales, ao invés de me

levar em um restaurante grã-fino para me impressionar, ele me trazer nesse


lugar histórico onde vou conhecer um pouco sobre a culinária do seu país
de origem. Estou muito animada, vai ser uma experiência incrível.

— Eu adorei o lugar, Gonzales, mas parece que está fechado porque

não tem ninguém. – Aponto para a janela de vidro, dá para ver que as luzes
estão acesas, mas o lugar está vazio.

— Conheço o dono desse restaurante há muitos anos e yo pedi para


fechar o lugar por essa noche para o nosso encontro, então no haverá
nenhum outro cliente além de nós. – Cata a minha cintura e me puxa para

um beijo ardente. – Espero que no fique brava comigo, mas no quero dividir
a sua atenção com mais ninguém hoje.

— Na verdade, eu acho isso muito romântico. – Limpo com o polegar

um pouco do meu batom nude que migrou para a boca dele.

— No só fecharam o restaurante essa noche só por nossa causa,


Solange, como o chefe fez questão de criar um menu especial só com pratos

espanhóis vegetarianos em sua homenagem. – Segura a minha mão e me


ajuda a subir os degraus antes da porta da frente com a bandeira da Espanha
pendurada.

— Uau! Estou me sentindo muito especial agora.

Estufo o peito pisando na ponta dos pés enquanto caminho sobre o


piso de tábuas já dentro do restaurante, me sentindo uma atriz de cinema,
Gonzales está me proporcionando o meu dia de rainha.

— E você é especial, Cariño. Principalmente para mim. – Entrelaça


os dedos aos meus e me fita nos olhos. – Por isso é a primeira mujer que
trago nesse lugar que faz parte de uma época muito especial da minha vida
que poucas pessoas conhecem – revela emocionado.

Quando ia perguntar por que esse restaurante é tão especial para ele,
um senhor já de idade vem nos recepcionar.

— Buenas noches, sejam bem-vindos ao Soledá – cumprimenta o


homem baixinho de cabelos grisalhos, vestido com um traje de gala
espanhol todo preto e um lenço vermelho amarrado em volta do pescoço,
parecido com aqueles que os toureiros usam.

— Buenas noches, senhor Javier. – Gonzales abraça o senhor cheio de


afeto.

— É sempre uma alegria imensa te ver por aqui, cabrón. Como te

disse há quase vinte anos, é como um filho para mim – se emociona ao


falar.

— Obrigado, senhor Javier, muita coisa que sei hoje aprendi com o

senhor.

— Está bem, Gonzales, vamos parar com essa conversa por aqui antes
que faça esse espanhol velho chorar. – Funga profundamente para conter as
lágrimas. – No vai me apresentar essa moça hermosa? Ela deve ser muito
importante para você, porque é a primeira vez que traz uma mujer aqui.

— Essa é a Solange, a mujer da minha vida – fala e o meu rosto

queima de vergonha.

— Prazer, senhor Javier, eu amei o seu restaurante. – Aperto sua mão,


de fato amei o lugar.

Tem uma lareira acesa ao fundo, música suave tocando e uma


quantidade consideravelmente grande de enfeites de todos os tipos que
lembram a Espanha. Tem muita cor em toda parte, e uma das paredes

principais foi transformada em uma adega de vinho bem no meio do salão


para que os próprios clientes possam se levantar e escolher qual querem
degustar.

— Prazer é todo meu, querida, vai amar ainda mais a comida. – Beija

as costas da minha mão. – Agora venham comigo, vou levá-los até a mesa
que preparei com carinho para vocês.

Nós somos conduzidos a uma mesa linda redonda de dois lugares,

forrada com uma toalha branca e vermelha. A decoração conta com pratos
bonitos, talheres de prata e um candelabro com três velas acesas. Gonzales
puxa a cadeira para eu sentar, e em seguida senta de frente para mim.
— Muito obrigado, Javier, vamos olhar o menu e faremos os nossos
pedidos.

— Yo que agradeço, Gonzales, quando estiverem prontos é só me


chamar.

Javier sai e nos deixa a sós, olho para o homem de beleza abastada à
minha frente e fico intrigada. Ele está tão à vontade nesse lugar, como se
estivesse na sua própria casa, até as suas feições mudaram para algo suave.

— Estou ansiosa para ouvir a sua história com esse restaurante. –


Pego o menu da sua mão para lhe chamar a atenção.

— Trabalhei aqui limpando chão quando era só um garoto, na época


minha família tinha acabado de chegar no Brasil e mal tínhamos o que
comer. Mis padres trabalhavam feito loucos o dia todo em qualquer coisa
que aparecia, enquanto yo ficava em casa cuidando do meu irmão mais
novo, e à noche, quando eles chegavam, yo vinha para cá trabalhar na
limpeza. – Desliza a mãos sobre a mesa, como se lembrasse da época que a

limpava.

— Então o senhor Javier foi o seu chefe? – pergunto surpresa, não


imaginava que o seu passado foi tão difícil.

— Sim, ele foi, e tinha pena de mim vendo o meu esforço. Sempre me
dava toda comida que sobrava na cozinha para levar para casa, assim minha
família tinha o almoço e o jantar garantido no dia seguinte. – Lágrimas
sobem nos seus olhos, quase não conseguiu terminar de falar.

— Nossa, Gonzales! Nem sei o que dizer, não posso nem imaginar
como foi difícil para a sua família chegar em um país novo tendo que
aprender uma língua nova e se adaptar a uma cultura completamente
diferente da sua. – Cubro sua mão com a minha na tentativa de lhe passar
apoio.

— Foi um inferno no começo, vida de imigrante no é fácil em


nenhum país. Tive dificuldade em aprender o português, sofria bullying
dentro e fora da escola por ser estrangeiro e me vestir e falar estranho,

algumas pessoas sabem ser cruéis quando querem. – Desvia o olhar para
que eu não veja a dor dentro dele.

Depois de se recompor, ele continua:

— Mesmo tendo me tornado um homem de sucesso, até hoje passo


por isso, você viu com os seus próprios olhos como aquele investigador me
tratou na delegacia só porque sou espanhol. – Aperta os olhos com força,
talvez mesmo depois de adulto, sendo um homem lindo e milionário,

Gonzales não tenha a vida perfeita que pensei que tinha.

Me sinto muito mal, principalmente porque eu fui uma dessas pessoas


que foi xenofóbica com ele quando nos conhecemos. Estava nervosa devido
à maneira rude que chegou em mim, então disse na cara dele que não ficava
com homens brancos e muito menos estrangeiros.

— Na época você pensou em voltar para a Espanha devido à


dificuldade de adaptação em outro país?

— Yo só pensava nisso, no queria mais ficar no Brasil e chorava todo


dia querendo voltar para o meu país. O único lugar que tinha paz era
quando vinha para esse restaurante e passava a noche inteira limpando, era

o meu lugar favorito e ainda é até hoje.

Gonzales olha para um quadro na parede com uma foto antiga de um


garoto com o cabelo comprido abaixo dos ombros, de short amarelo e

camiseta da seleção de futebol espanhola, sorrindo com um esfregão na


mão.

— Aquele é você? – pergunto e ele assente sorrindo.

— Era meu aniversário e o pessoal do restaurante fez uma festa


surpresa para mim, yo fiquei muito feliz porque mis padres nunca tiveram
condições de comemorar o meu aniversário ou do meu irmão. – Deixa uma

lágrima cair, a infância do Gonzales foi muito mais difícil que a minha. – A
partir desse dia jurei para mim mesmo que ia estudar e trabalhar muito dia e
noche para ser rico e ter tudo que o dinheiro pode comprar e ir em quantas
festas quisesse, só pensava nisso.
— E você conseguiu, Alejandro Gonzales. – Enxugo suas lágrimas.

Agora tudo faz sentido, a vida extravagante de ostentação e festas que


o Gonzales leva é para compensar a infância difícil que teve. Ele tem
dificuldade de aceitar um não porque recebeu muita rejeição quando chegou
nesse país, que eu amo com todas as minhas forças, mas sei que existem
muitas pessoas ignorantes no Brasil que tratam os imigrantes como se

fossem lixo.

— Yo consegui, mas já estou cansado dessa vida de ostentação. Quero


viver uma vida tranquila e feliz como de mis padres, cheia de amor e

companheirismo. – Desliza as costas da mão no meu rosto, como se


quisesse dizer que queria tudo aquilo comigo. – Demorou, mas enfim
entendi que dinheiro ajuda, mas no traz felicidade.

— Sua história é linda, Gonzales! Estou grata por você compartilhá-la


comigo, ganhou todo o meu respeito e admiração depois disso. – Inclino e
beijo a sua boca, tenho muito orgulho do homem que tem se tornado de uns
tempos pra cá, mais sensível e humano.

— Yo te trouxe aqui, Solange, porque quero compartilhar com você


tanto meu passado, como o presente e o futuro. – Segura minhas duas mãos.
– Quero construir uma vida incrível ao seu lado e dar aos nossos filhos tudo
o que no tive na minha infância, podemos fazer uma festa de aniversário
todo mês para eles, o que acha?

— De jeito nenhum, espanhol. Não vou deixar que estrague os nossos


filhos os mimando dessa forma – falo no impulso, indo na onda dele.

— Mas é claro que no vai, por isso te escolhi para ser a madre deles.

– Segura o meu queixo e toma os meus lábios por um longo tempo.

— Acho melhor fazermos os nossos pedidos agora, estou ansiosa para


provar a culinária do seu país. – Devolvo o menu dele, mudando de assunto,

ainda não estou pronta para essa conversa de futuro juntos e filhos.

Como entrada, peço uma paella de verduras, que é uma mistura


deliciosa de frutos do mar. De acompanhamento escolho algo leve,
Gonzales sugere que seja um gaspacho, que é uma sopra fria que vem com

pedaços de pão, uma verdadeira iguaria espanhola. Mas ainda faltava o


prato principal, vou direto em uma tortilha de patatas, que nada mais é do
que fatias finas de batata cozida em uma omelete grossa de ovo servida em
uma travessa bonita.

— Como é o nome dessa bebida mesmo? Nossa! É viciante. – Viro a


metade do líquido avermelhado, já estou na terceira taça.

— Se chama sangria espanhola, é feita com pedaços de frutas, vinho,


licor, entre outros ingredientes especiais. Então pega leve, mocinha, porque
tem álcool. No quero terminar o nosso primeiro encontro com você em

coma alcoólico. – Toma a taça da minha mão.

— Não pode me apresentar uma delícia dessas e me pedir para parar


de beber, com certeza virou o meu drink favorito. – Pego minha taça de

volta e continuo bebendo. – Além do mais, não fico bêbada fácil, não se
preocupe. – Mostro minha língua para ele.

Continuamos o nosso jantar em total clima de romance, Gonzales

como sempre me fazendo rir. Tudo é motivo de piada para ele, quem o
conhece com essa alegria contagiante e humorismo nem imagina o passado
difícil que teve. Quando terminamos de comer, estou tão cheia que não cabe
mais nada.

— Caramba, Gonzales, estava tudo divino! Não acredito que demorei


tanto para comer comida espanhola. – Limpo a boca com o guardanapo, me
sentindo satisfeita.

Mas o prato do Gonzales de Pan con tomate está quase intocável, ele
passou quase o jantar inteiro olhando para mim, dizendo o quanto sou
bonita e como o deixo louco até tomando um prato de sopa.

— No seja por isso, Cariño, a partir de hoje posso cozinhar qualquer


prato do meu país para você. É só escolher que terá na sua mesa.
— Não fala isso porque pode se arrepender, vou ir todos os dias jantar
na sua casa. – Pego o menu de sobremesa, estou cheia, mas acho que ainda
cabe um docinho.

— Pode até mudar para minha casa hoje mesmo se quiser, prometo
que viro o seu chef de cozinha particular. O que acha? – Morde o lábio
inferior no modo sedutor.

— Eu acho é que vou pedir uma sobremesa para finalizar a noite,


espanhol – mudo o rumo da conversa mais uma vez. – Vou arriscar essa
torta de Santiago, parece deliciosa. E você? – pergunto entretida olhando

para o menu de sobremesas.

— Yo estou olhando para minha sobremesa nesse exato momento,


mas vou deixar para comer em casa. Na minha cama. – Enfia a mão no
meio das minhas pernas por debaixo da mesa.

— Gonzales! – o repreendo morrendo de medo de que alguém do


restaurante veja.

— O que foi, Cariño? Pensei que fosse o tipo que gosta de joguinhos
sexuais em público, mas acho que no é corajosa o suficiente para isso – me
provoca.

Enfia a mesma mão que estava no meio das minhas pernas dentro da
jarra de sangria espanhola, tira uma rodela de laranja e lambe bem na minha
frente e chupa até o último caldo como se fosse a minha boceta, é a porra de
um pervertido safado do caralho.

— Se você quer jogar, espanhol, então vamos jogar. – Deslizo a

língua pelos lábios com cara de safada.

Sem nenhum pudor, ergo um pouco o meu vestido e discretamente


deslizo minha calcinha fio-dental pelas pernas e a tiro com facilidade. Faço

questão de jogar na cara dele, que assiste a tudo sentado bem na minha
frente.

— Porra! Yo estou muito excitado agora. – Cheira a minha calcinha

vermelha, seus olhos estão em um tom de verde mais escuro.

Fico excitada também, estou toda molhada e pronta para pular em


cima desse homem na primeira oportunidade que aparecer.

— Acho que não quero mais sobremesa, Gonzales. Se quiser


podemos ir para sua casa – me ofereço sem nenhuma vergonha.

— Vou pedir a conta. – Enfia minha calcinha no bolso de dentro do


paletó e chama o garçom. Parei aqui

Depois de agradecer e nos despedir de todos no restaurante o mais


rápido possível, saímos de lá praticamente correndo. A limusine já está a
postos à nossa espera, Gonzales entra já apertando um dispositivo debaixo
do banco e um vidro preto começa a subir, nos dando total privacidade do

motorista e ele começa a me agarrar com o veículo em movimento.

— Mas o que você está fazendo, Gonzales? — Fico sem acreditar


quando vejo o homem de joelhos à minha frente com aquela cara de que
“vou te foder aqui e agora”.

— Pode ficar tranquila, Sol, o vidro é à prova de som. — Abre um


sorrisinho.

Gonzales ergue o meu vestido lentamente com aquele contato visual


de molhar calcinha, se eu estivesse usando uma. Ele está seduzindo-me
como se já não tivesse feito isso faz tempo.

— Caramba! Eu nunca fiz isso nem nas minhas fantasias sexuais mais
profanas. — Minha voz sai falha.

— Então a sua primeira vez será comigo, Solange. — Assopra o meu


clitóris e massageia em movimentos circulares com o polegar, rebolo na sua
mão ansiando por mais.

Primeiro Gonzales começa deslizando as mãos pelas minhas pernas


sem pressa como se quisesse sentir a maciez da pele, ele deposita um beijo
molhado e desliza a língua na parte de dentro da coxa e dá uma mordida
profunda. Cravo as unhas no couro do banco deliciando-me com o misto de
sensações agridoces de dor e prazer, estou suando frio e o sem-vergonha
mal começou.

— Caralho, Gonzales! — gemo quando sinto ele me tocar com a


língua indo bem fundo em movimentos rápidos, explorando os lábios
internos e externos.

Apoio a cabeça no encosto do banco e me entrego ao momento com


cada centímetro do meu ser em chamas. Saber que o motorista está a
poucos metros de nós imersos em nosso ato pervertido deixa tudo mais
instigante, acho que essa convivência com o Gonzales está me
transformando em uma depravada.

— Yo amo o seu gosto. É embriagante… — Mordisca o clitóris, solto


um gemido alto.

A limusine para no sinal, várias pessoas passam por nós na calçada


sem imaginar o atentado ao pudor que está acontecendo aqui dentro. Eu as
vejo através do vidro escuro, mas elas não nos veem. Isso me deixa com
mais fogo ainda, amo essa sensação de perigo e quero mais.

— Isso… Ahhh… Não para, seu filho da puta! – Perco a classe e


agarro o cabelo dele e rebolo na sua cara com vontade, mas ele não está
com um pingo de pressa para me fazer gozar.
Penetra a minha boceta com a língua e dois dedos ao mesmo tempo,
alternando velocidade e intensidade dos movimentos. Gonzales quer me
levar à loucura. O mais excitante é a expressão dele de prazer enquanto me
chupa insanamente, juntando tudo isso chego ao clímax em um grito agudo
de prazer. Ainda bem que o motorista não pode nos ouvir, ou eu estaria
mais fodida ainda.

— Você é simplesmente deliciosa, Cariño. — Levanta e beija a minha


boca sendo que eu nem conseguia respirar direito, minha respiração ainda
está ofegante e o corpo todo trêmulo.

— Ainda sinto a adrenalina no meu sangue! – falo quase sem ar, a


língua desse homem é mágica, não tem outra explicação.

— Isso foi só uma amostra. O melhor ainda está por vir, mocinha. —
Senta ao meu lado no banco com cara de santo como se não tivesse acabado
de me fazer ver estrelas, tira um lenço do bolso e gentilmente me limpa na
parte íntima.

Gonzales está todo alinhado, não tem um fio de cabelo fora do lugar.
Sua aparência está tão impecável quanto no momento em que nos
encontramos a uma quadra da minha casa, mais cedo. Enquanto eu pareço

que acabei de passar por um vendaval, para não dizer de uma suruba dessas
de filmes pornôs. Meu vestido está suspenso quase acima da cintura e um
emaranhado de tranças cobre meu rosto. Minha maquiagem deve ter ido
para o espaço, estou toda suada e uma bota está no meu pé e a outra

desapareceu.

— Mal posso esperar por isso. – Abano o rosto, ficando excitada de


novo.

— Estão entregues em casa, chefe — diz o motorista simpático ao


estacionar o carro, minha cara vai no chão de vergonha enquanto o
Gonzales tem um ataque de riso.

Eu vou matar esse filho da mãe!

— Caramba, Gonzales! Você disse que o motorista não podia nos


ouvir. — Dou uma cotovelada nele.

— Yo disse isso? No me lembro. — Se faz de bobo rindo da minha

cara, dou um tapa no ombro dele.

— Eu devia chutar a sua bunda, espanhol — brinco rindo também.

— Muito obrigado, Thomas. Vá para casa e descanse, você.

— Sim, senhor, obrigado. – Tomas acena e vai embora.

Pensei que o Gonzales já começaria a me agarrar assim que


passássemos pela porta e continuaria com o fogo de onde paramos na
limusine, mas não. Quando entramos na casa dele está tudo escuro e não dá
para ver nada, ele bate palma três vezes e as luzes se acendem. Então vejo
que estamos sobre um caminho de pétalas de rosas vermelhas que começa
na entrada e passa pela escada e vai para o andar de cima, o que acredito
terminar no quarto dele.

— Você sempre tem uma carta escondida na manga, não é, espanhol?


– Arqueio a sobrancelha.

— Yo quero que a nossa primeira noche de amor seja perfeita, Cariño.


– Inclina e completa no pé do meu ouvido. – Do mesmo jeito que vi nos
meus sonhos. – Segura a minha mão e a beija, ele vai subindo até os seus
lábios encontrarem os meus.

Seguimos juntos pelo caminho de rosas conversando apenas pela


língua dos olhares cúmplices e sorrisos apaixonados, Gonzales está sendo
cuidadoso e um verdadeiro cavalheiro comigo, como nenhum outro homem
que passou pela minha vida foi antes. Sinto que essa noite será inesquecível
para nós dois.
 
Gonzales

Se alguns anos atrás alguém dissesse que Alejandro Gonzales

encontraria a mujer dos seus sonhos e se apaixonaria perdidamente por ela,


responderia para essa pessoa que estava completamente louca, porque o

meu plano sempre foi envelhecer comendo todas as bocetas que


aparecessem na minha frente, até morrer solteiro. Nunca quis me prender a
ninguém. Mas agora aqui estou yo, caminhando de mãos dadas com a
minha futura esposa sobre o caminho de pétalas de rosas vermelhas em

direção ao nosso romântico futuro juntos.

— Hoje yo quero fazer amor com você, Solange – sussurro e ela


estremece. – Lento e bem gostoso – completo, agora ao pé do seu ouvido

com a voz rouca cheia de tesão.

Deslizo a mão pelo seu braço e percebo que os pelos estão ouriçados,

Solange fica nervosa quando chegamos em frente à porta do meu quarto e

confesso que yo também. Até recentemente no era o tipo de cara que fazia
amor, mas sim fodia bruto e selvagem apenas em busca do próprio prazer.

Mas essa noche tudo vai ser diferente, porque envolve apenas sentimentos

bons. Os mais bonitos que existem em todo o universo. Quero que seja
especial para a Solange para tirar a terrível impressão que ficou na primeira
vez que dormimos juntos, porque assim o nosso romance pode começar

oficialmente a partir de agora.

— Nossa, Gonzales, que lindo! Você fez tudo isso para mim? – Os

olhos da Solange brilham quando abro a porta do quarto, minha última


cartada na manga jogada com sucesso.

— Foi sim, Cariño. – Abraço sua cintura por trás, orgulhoso da

surpresa que preparei para ela.

Fiz questão de yo mesmo decorar o quarto com um monte de balões

de gás vermelhos em formato de corações, com a frase “Yo ti amo” escrita


em espanhol; tem buquês de flores por toda parte e vários ursinhos fofos,

cada um deles escolhido por mim especialmente para a Solange. Deixei as

cortinas abertas para que através da extensa janela de vidro que vai do chão
ao teto seja possível ver a lua cheia em meio a um céu estrelado perfeito

para ser admirado por um casal apaixonado, até a natureza está agindo a

favor para que o nosso romance dê certo dessa vez.

— Não sabia que você é um homem romântico, Alejandro. – Vira de


frente para mim e envolve os braços em volta do meu pescoço, gosto de

como o meu nome soa na sua voz.

— Você me transformou em um homem romântico, Solange. – Apoio

minha testa na sua.


— Eu amo quando você me olha assim, sabia? — Sorri ao fazer
carinho no meu rosto.

— Assim como, mi vida? — Esfrego os lábios nos seus, instigando-a.

— Como se eu fosse a sua alma gêmea e nada e nem ninguém nesse

mundo pudesse nos separar, nem mesmo a morte. — Sua boca se curva em

um sorriso acanhado, mas quente como o inferno.

— Na Espanha acreditamos que os olhos são o espelho da alma.

Então, sim! Você é a minha alma gêmea, yo te amei desde a primeira vez

que te vi, mas o meu ego era grande demais e no me deixou enxergar. – 

Respiro pesadamente, é muito bom sentir o seu perfume adocicado assim de

perto.

— Comigo não foi muito diferente, Gonzales — revela em meio a um

sorriso tímido. – Eu nunca te odiei de verdade, mas sim o fato de estar tão

atraída por você mesmo sendo tudo o que mais repugnava em um homem

na época.

Pela primeira vez passando em cima do seu orgulho para assumir que

também foi amor à primeira vista comigo. Somos almas gêmeas e o nosso
destino é ficarmos juntos para sempre.

— Rá! Yo sabia que você tinha me achado irresistível — brinco e ela

sorri.
— Cala a boca e me beija, seu bobo.

Me puxa pela gravata e toma os meus lábios enquanto me ajuda a tirar

o paletó e joga em qualquer canto do quarto, em seguida desabotoa os

botões da minha camisa branca, um por um, sem interromper o beijo e logo
se livra da peça também. Ligeira como uma felina, Solange desce as mãos

para o cós da minha calça e começa a desabotoar o cinto.

— Espera, Cariño, ainda no. – Interrompo o beijo e tiro suas mãos do


meu corpo, ainda falta uma coisa para tornar essa noche inesquecível.

— O que foi? Pensei que você também quisesse fazer amor comigo. –
Me analisa confusa, percebo um pouco de insegurança no seu olhar

também.

— Isso é tudo que yo mais quero, mi amor, mas antes quero que você
faça uma coisa para mim.

— E o que seria, Gonzales? – Ergue a sobrancelha com as mãos na


cintura, imaginando que tem alguma sacanagem no meio.

— Quero que você cante para mim a nossa música, Cariño. –

Caminho até o fundo do quarto onde tem uma poltrona de frente para a
cama e me sento com os braços abertos, pronto para assistir ao meu show

particular.
Só Dios sabe o tamanho da minha ira naquela maldita noche no bar

que a minha Solange cantou para aquele professorzinho de merda, os dois


trocaram olhares intensos durante toda a melodia. Saí de lá furioso

dirigindo a mil por hora e parei na primeira boate que encontrei disposto a
transar com a primeira puta que me desse mole só para extravasar a minha

raiva, a vítima escolhida da vez foi uma japonesa safada de saia jeans curta
que sentou no meu colo e ficou se esfregando em mim. Cheguei a levá-la
para um canto escuro e entrei em ação, mas o meu pau no funcionou na

hora. Foi a primeira vez que broxei, a maior humilhação da minha vida.

Só conseguia pensar na Solange, nem transar com outras mujeres era


capaz mais. Mas ela no me queria, estava de paquera com outro cara que é o

“tipo dela”. Mas isso no me abalou, sabia que cedo ou tarde ela seria minha
e a primeira coisa que faria quando isso acontecesse é pedir que cantasse
exclusivamente para mim. Pois bem, esse dia chegou e quero me deliciar de

cada segundo dele.

— Nossa música, Gonzales? Eu nem sabia que temos uma. – Cruza


os braços sobre os peitos fartos, afrontosa.

— Como no? Se você a cantou junto comigo quando estávamos


presos, por isso ela se tornou a nossa música, mi amor – dou a dica e

Solange se diverte em uma risada que ecoa pelas quatros paredes do quarto,
agora tudo fez sentido para ela.
— Eu nunca esqueceria daquele dia épico, meu bem.

Caminha na minha direção a passos lentos e sedutores e fica de pé

bem na minha frente, ela começa a cantar a canción do Juanes olhando no


fundo dos meus olhos. Prendo a respiração e tento me controlar para no

voar em cima dela, quero aproveitar cada segundo com calma.

“Para tu amor lo tengo todo,

Desde mi sangre hasta la esencia de mi ser.

Y para tu amor que es mi tesoro,

Tengo mi vida toda entera a tus pies.

Enquanto canta, Solange embala o corpo de um lado para o outro


cheia de malemolência em uma dança provocativa. Ela vira de costas para

mim, ergue as tranças acima da cabeça com o auxílio das duas mãos e
rebola me deixando louco de tesão. A safada me olha por cima do ombro
com cara de menina má e leva a mão em uma das alças do vestido e começa

a deslizar para baixo do ombro, lentamente se despindo debaixo do meu


olhar sedento, fico de pau duro e totalmente hipnotizado só com essa cena.

 
Y tengo también

Un corazón que se muere por dar amor.

Y que no conoce el fin

Un corazón que late por vos

Para tu amor no hay despedidas

Para tu amor yo solo tengo eternidad…”

O vestido vai ao chão e a Solange fica completamente nua a menos de

um passo de mim, já que a calcinha fio dental dela está no meu bolso desde

que saímos do restaurante e ela no está usando sutiã. No consigo mais me


controlar. Levanto apressado e a beijo com toda intensidade que emana

dentro de mim por essa mujer maravilhosa, ela é tudo que sempre sonhei

para mim.

— Você é tão linda, Solange! – Pego-a no colo e a deito na cama. –

Quero beijar cada centímetro do seu corpo. – Termino de tirar a minha

roupa rapidamente, percebo que a minha ereção vigorosa chama a atenção


dos olhos gulosos da Solange.

Começo uma trilha de beijos começando pelos seus pés e vou subindo

vagarosamente, arrancando suspiros da minha deusa. Agora que nós dois


estamos nus percebo como nossos corpos combinam tão bem juntos. Sua
linda pele escura faz um belo contraste com a minha, somos como o

símbolo yin-yang, onde um completa o outro com todas as suas qualidades


e, acima de tudo, os defeitos.

— Naquela noche fizemos sexo sujo, mas hoje yo quero te amar —


deposito um beijo no seio esquerdo e depois no outro – sem pressa… –

concluo com a voz rouca.

Mordisco o bico do seu peito e ela geme baixinho, fico ainda mais
excitado.

— Pensei que você fosse o tipo de homem que não faz amor, só trepa
feito um animal enfurecido — provoca com um sorriso sedutor, agarra o

meu pau duro e o masturba vagarosamente me deixando louco.

Quase tenho um orgasmo e penso em desistir de ser romântico e foder


essa diaba com força. Mas no faço isso, como yo disse, nossa segunda

primeira vez vai ser especial.

— Yo também pensava, Cariño. Mas você apareceu e esfregou na

minha cara o quanto estava errado sobre tudo. – Lhe dou um beijo molhado.

– Principalmente sobre o amor.

Me afasto para poder olhar para essa mujer divina, deitada na minha

cama, nua em meio aos lençóis brancos de seda com o seu corpo todo
iluminado pela luz da lua cheia que entra pela extensa janela de vidro do

meu quarto.

— Dios santo! Você é tão linda, Solange. Fico emocionado só de


olhar para você. – Acaricio a maçã do seu rosto e ela sorri lindamente.

— Quero que saiba uma coisa, Gonzales. — Fica séria num


rompante. — Eu não estive na cama com nenhum outro homem depois de

você, acho que no fundo sempre soube que sou sua. — Inicia uma trilha de

beijos na curva do meu pescoço, fecho os olhos extasiado pelo que acabei
de ouvir.

Durante esse último ano que passei longe da Solange yo morria de

ciúmes todos os dias imaginando-a com outro hombre, foi um verdadeiro


inferno. Sendo que a minha amada no teve ninguém durante todo esse

tempo, porque ela sabia que Alejandro Gonzales no desiste nunca e daria

um jeito de voltar para sua vida para que pudéssemos viver nossa linda
história de amor.

— No houve e nunca mais haverá outro hombre na sua vida depois de

mim, Cariño. – Me encaixo no meio das suas pernas numa intensa troca de
olhares. – Yo prometo te fazer a mujer mais feliz desse mundo, começando

a partir de agora – praticamente juro e ela sorri em resposta.


Beijo a boca da Solange enquanto a penetro lentamente, nesse

momento no cabem preliminares ou mais palavras. Só preciso estar dentro


dela. E ela me sentir por completo em cada pedacinho do seu ser.

— Gonzales… — Aperta os olhos e crava as unhas nas minhas costas


quando começo a me movimentar.

Solange está muito apertada, quase uma virgem de novo, mal consigo

entrar e sair.

— Abra os olhos, mi amor, quero olhar dentro deles enquanto esse

momento mágico acontece. – Dou uma estocada mais profunda e sinto o


seu corpo inteiro arfar, no lhe dou tempo para se recuperar e abocanho o seu

seio.

— Eu posso sentir você tão profundo dentro de mim, Gonzales. E é


tão bom. – Seu gemido ecoa entre as quatro paredes do quarto, em um grito

agudo e cheio de prazer.

— Você me enlouquece, sabia? –  Aumento o ritmo das investidas,

ela rebola debaixo de mim erguendo o quadril em busca de todo prazer que

puder arrancar de mim.

É uma safada! E yo amo isso na Solange, por esse motivo nos damos

tão bem na cama, somos uma combinação explosiva.


— Então prova, espanhol! – Enfim abre os olhos cor de folha seca e

suas pupilas dilatam, é como se as nossas almas se fundissem nos tornando

um só.

Posso sentir cada célula do corpo da Solange se unindo às minhas.

Somos um só agora.

— Depois no diga que yo no tentei ser romântico, Cariño. – Viro-a de

costas e a coloco de quatro na cama e dou um tapa na sua bunda, seguro na

sua cintura e meto nela entrando em uma estocada só.

— Ahhhhh… É assim que eu gosto, meu amor. – Mia como uma gata

manhosa e me olha por cima do ombro com cara de puta enquanto a como

por trás, essa mujer é a minha perdição.

— Porra, Solange! Você é muito gostosa. — Apoio o pé em cima do

móvel de cabeceira e aumento o ritmo das investidas, fodendo-a feito um

louco.

— Isso, não para, filho da puta! Eu estou quase lá — ordena

rebolando essa bunda deliciosa contra o meu pau, coloco as mãos na nuca e
deixo a cachorra fazer o trabalho.

— Gonzales… –  geme o meu nome quase sem ar.

Sinto suas paredes vaginais me esmagando cada vez mais e assim nós

dois chegamos ao clímax juntos, tomados por uma onda de sentimentos


avassaladores nunca sentidos antes. No vou deixar que nada nem ninguém

nos separe, ficaremos juntos para sempre, na tristeza e na alegria.

— Yo te amo, Solange! – declaro enquanto ela recupera o fôlego com

a cabeça apoiada sobre o meu peito, minha respiração também está

ofegante.

Sol no diz nada por alguns segundos, permanece imóvel. Então, ela

ergue a cabeça para olhar nos meus olhos e me oferece um sorriso lindo.

— Eu acho que também amo você, seu espanhol maluco, mais do que

pensei que amaria alguém um dia. – Estica o pescoço e conclui sua

declaração com um beijo casto, fazendo de mim o hombre mais feliz desse
mundo.

— Droga! Acho que caiu um cisco no meu olho. – Esfrego a mão no


rosto, Solange está me transformando em um maricas.

— Você está chorando, Gonzales? Não acredito!

Sobe em cima de mim e coloca uma perna de cada lado do meu corpo

e tira a minha mão do meu rosto e vê os meus olhos marejados, agora

Solange sabe que mexe demais com o meu lado emocional de um jeito que
no sei explicar.

— Essa é a primeira vez que uma mujer que no é a minha madre me

faz chorar, então agradeceria se mantivesse esse segredinho entre nós, ok? –
brinco enquanto uma lágrima desliza pelo canto dos meus olhos.

— Está bem, cara, mas se toda vez que eu falar que te amo você

começar a chorar, vai estar fodido! Porque pretendo falar isso várias vezes
daqui para frente. – Enxuga a minha lágrima com a língua, um ato sexy que

me deixa arrepiado.

— Pode falar o tempo todo se quiser, yo no me importo. – Ergo o

tronco com ela sentada no meu colo e abocanho o seu seio, sugando um

enquanto aperto o outro com vontade.

Excitada de novo assim como yo, Solange joga a cabeça para trás e

geme rebolando em cima do meu pau já duro e pronto para meter nessa

cachorra safada novamente.

— Eu quero cavalgar em você agora, Gonzales. – Bate a mão aberta

no meu peito e me obriga a deitar novamente, prende os meus braços para


cima da minha cabeça e me beija.

No sei onde Solange achou o meu cinto em cima da cama, mas o usa
para amarrar meus pulsos na cabeceira.

— Pelo visto meu plano de uma noche romântica foi por água abaixo,
no é mesmo?

Puxo o canto da boca ao olhar para baixo e ver Solange deslizando a


língua por toda a extensão do meu peito, enquanto sua mão caminha
sensualmente para baixo na direção da minha ereção.

— Romantismo é o caralho! –  Senta no meu pau, solto um grunhido


que o Rio de Janeiro inteiro deve ter ouvido.

— Puta que pariu! – Prendo a respiração quando Solange começa a

cavalgar no meu pau como se estivesse em cima do lombo de um cavalo


arisco, ela estica as mãos sobre o meu peito para pegar mais velocidade e
impulso, indo cada vez mais rápido.

Consigo ouvir o barulho dos seus seios fartos chacoalhando a cada


sentada violenta, sinto meu pau indo bem fundo dentro dela. Minha cabeça
parece que vai explodir de tanto prazer, mas de repente Solange para os

movimentos e se inclina sobre mim e sussurra ao pé do meu ouvido:

— Eu te amo. – Desliza lentamente pelo meu pau indo até o talo… –


Eu te amo… – Repete o processo diminuindo ainda mais a velocidade e me

levando à loucura… – Eu te amo…

Repete pela terceira vez e esse é o meu fim, gozo freneticamente tão
intenso que o meu corpo está todo dormente.

— Minha nossa, Solange! – é a única coisa que consigo dizer, meu

rosto está pingando de suor.

— É. Eu sei, espanhol. – Prende o lábio inferior entre os dentes, com


aquela carinha de quem já está pronta para a próxima rodada.
Nossa noche estava só começando, fizemos amor pelas próximas
horas e só fomos dormir com o dia começando a clarear, tanto Solange
quanto yo totalmente sem forças. Acordo preguiçosamente no domingo de

manhã com a minha namorada enchendo o meu rosto de beijos, sorrio tão
feliz que parece que estou em meio a um sonho bom.

— Bom dia, dorminhoco, hora de acordar. – Abre as cortinas e os

raios de sol entram por toda parte e iluminam o quarto. – Estou preparando
o nosso café da manhã, o dia está lindo, então vou montar a mesa no jardim
ao lado da piscina – tagarela animada, agora de pé em volta da cama.

Vejo que a minha garota pegou emprestado no meu closet uma das
minhas camisas, a escolhida dessa vez foi uma azul claro que também deixa
a metade da sua bunda de fora.

Mal acordei e já estou ficando excitado, com a Solange por aqui isso
vai acontecer o tempo todo.

— Bom dia, amor. Esse cheiro está delicioso. – Me sento na cama

esfregando os olhos, ainda estou com sono.

— Espero que esteja com fome, espanhol, porque fiz bastante coisa. –
Pula no meu colo e agarra o meu pescoço. – Mas acho que temos tempo
para uma rapidinha debaixo do chuveiro enquanto a torta de limão que está
no forno termina de assar. – Me beija de um jeito mais ousado enroscando a
língua na minha.

— Então acho melhor corrermos, no quero que o nosso bolo de limão


queime. – A pego no colo e a levo para o banheiro, o que era para ser uma
rapidinha vira uma putaria completa debaixo do chuveiro.

O bolo de limão queimou e quase a casa inteira, mas a Solange de


fato fez tanta coisa para o nosso café da manhã na beira da piscina que no
fez falta. Comemos em total clima de romance, depois deitamos

agarradinhos em uma das cadeiras reclináveis e cochilamos tomando sol.


Um domingo preguiçoso para ninguém colocar defeito, à tarde resolvemos
dar um mergulho.

Como Solange no tem biquíni, entramos na piscina os dois pelados. O


vizinho mais próximo fica a meio quilômetro, então no tem perigo de
sermos vistos. Brincamos na água e obviamente fizemos amor ali e em boa

parte da casa, à noche cozinho um jantar especial para nós só com pratos
espanhóis porque, segundo a minha convidada ilustre, essa é a sua comida
favorita agora.

Depois do jantar ficamos até tarde vendo TV no sofá da sala,


dormimos por ali mesmo. O problema é que segunda-feira de manhã o
despertador no toca e Solange e yo acordamos atrasados para o trabalho, é a
maior correria. Ainda mais que na hora de tomar banho juntos fiquei

agarrando ela o tempo todo como sempre, foi muito divertido.

— Tenha um bom dia de trabalho, Cariño. — Beijo os lábios macios


da minha baixinha afrontosa na frente da escola, é um sonho poder beijá-la

sempre que quero.

— Tenha um ótimo dia de trabalho você também, Gonzales. Obrigada


pelo final de semana maravilhoso. — Ajeita a cabeleira sobre o meu rosto,

cortei no tem nem um mês e já está grande novamente.

— Yo que agradeço, amor. Foi o melhor final de semana da minha


vida.

— Agora preciso mesmo entrar, espanhol, como o meu material de

aula ficou em casa vou ter que improvisar.

— Também preciso ir, tenho muita coisa importante para resolver na


empresa. Mas prometo que assim que der, te ligo para ouvir a sua voz doce.

– Lhe dou um último beijo. — Yo te amo – declaro apaixonado.

— Combinado! Falo com você mais tarde, eu também te amo.

Me abraça forte antes de entrar na escola, fico parado olhando para a


Solange com um sorriso no rosto até que ela passe pelo portão da escola.

— Vocês dois estão juntos? — Levo um tremendo susto com o


abusado do professor Roberto se materializando do meu lado vindo direto
do inferno, yo no suporto mesmo esse cara.

— No que isso seja da sua conta, professor Roberto. Mas sim.


Solange e yo estamos juntos e a coisa é séria — afirmo bastante seguro.

Mesmo ciente de que, apesar de Solange e yo termos nos declarado

um para o outro, no tem nada oficializado entre nós. Mas esse babaca no
precisa saber disso, nem deveria estar falando comigo.

— Espero que seja para valer mesmo, porque Solange é uma mulher

incrível e eu não vou pensar duas vezes em roubá-la de você caso apareça
uma oportunidade. – Tem a cara de pau de me afrontar com a expressão de
deboche, quer me tirar do sério.

— Sim, ela é uma mujer incrível. Mas é minha. Entendeu ou quer que
yo desenhe? — sou curto e grosso.

— É sua até que eu a tome de você, espanhol, porque não pretendo

desistir da Solange assim tão fácil.

— Presta bem atenção porque só vou falar uma vez, cabrón, é por
mim que a Solange está apaixonada. Se no ficar longe dela, vai se
arrepender amargamente — ameaço, mas o verme começa a rir da minha

cara.

— Andei pesquisando sobre você e descobri a sua fama de garanhão,


Gonzales. Logo vai aprontar alguma merda e eu estarei bem aqui com o
meu ombro para a Sol chorar, então vai perceber que eu sou o cara certo
para ela e logo vai terminar na minha cama com o meu pau enterrado nela

em sua homenagem, espanhol. – Alisa o cavanhaque com esse olhar


debochado dos infernos, yo sabia que aquela atuação de cara legal era
perfeita demais para ser verdade.

Quando dei por mim, já tinha dado um soco com tanta força na cara

do filho da puta que o derrubei no chão. Estou pronto para cair em cima
dele de porrada, mas alguém grita o meu nome e me distraio.

— O que está acontecendo aqui, Alejandro Gonzales? — mi madre

grita em desespero.

Giro o pescoço para olhar para ela de mãos dadas com a Lupita, veio
trazê-la na escola. O covarde do professor Roberto aproveita o meu

momento de distração para vir para cima de mim e me derrubar,


começamos a rolar no chão entre socos e chutes na frente da escola.

— No machuca o meu irmão! — Lupita começa a chorar, corre até

nós e tenta me defender puxando a camisa do Roberto.

Sem querer ele acaba empurrando minha irmã, que cai no chão e
chora mais alto ainda, nossa madre faz um escândalo e a coisa sai fora do

controle.

— No chore, docinho, está tudo bem, só respire.


Pego Lupita no colo e a pobrezinha no consegue parar de chorar, está
assustada e com os dois joelhos todo ralados.

— O que deu na sua cabeça para cair no soco em frente à escola da


sua irmã caçula feito um moleque de rua, Alejandro? No foi essa a
educação que yo e su padre te demos. — Analisa cada centímetro do corpo

da Lupita para ver se teve alguma fratura exposta ou algo do tipo,


exagerada como sempre.

— Seu filho é um boçal, senhora! Vou fazer um B.O. contra ele por

agressão. — Roberto limpa o sangue que jorra do seu nariz, o soco que
acertei foi em cheio.

— Pois aproveite e faça um contra mim também, seu boludo de

mierda! Vou te ensinar a nunca mais mexer com o meu filho. — Mamá tira
a bolsa debaixo do braço e bate no Roberto com ela, o covarde até tenta se
defender dos golpes, mas no consegue se livrar da fúria do furacão Carmem

Gonzales.

— Para com isso, sua espanhola maluca! Alguém me ajude, por favor
— pede desesperado, Lupita para de chorar e começa a rir com o rosto

repleto de lágrimas.

Até yo começo a rir, ninguém mexe com os filhos da dona Carmem


Gonzales e sai impune.
— Mas que bagunça é essa na frente da minha escola? — a diretora

aparece aos gritos.

Agora que yo me dou conta que a escola inteira saiu para ver a
confusão, uma multidão formada por pais, alunos, professores e até mesmo

gente que apenas passava pela rua.

E a Solange.

Com uma expressão de dar medo. Estávamos em um clima tão bom


no tem nem dez minutos e yo acabei estragando tudo agindo como um

moleque brigão de rua, porque me deixei levar pelas provocações desse


babaca.

— O professor Roberto tentou matar o meu irmão, como no

conseguiu veio para cima de mim! — Lupita sai em minha defesa


exagerando só um pouquinho, mostra o joelho ralado para a diretora como
prova do seu relato.

— Na minha sala agora, professor Roberto! — grita a diretora Helena


e a multidão se desfaz rapidamente, no vejo mais Solange.

— Espero que dê a advertência que o professor Roberto merece,

diretora. Ou yo coloco essa escola abaixo com a senhora dentro dela,


diretora Helena — ameaça mamá e yo no ousaria duvidar dela, pela cara de
medo da diretora ela também no.
— Pode ficar tranquila, senhora Carmem, eu resolverei essa história
da melhor forma possível. — Engole em seco.

— Assim espero! Quanto a você, Alejandro — puxa a minha orelha a

ponto de quase arrancá-la fora —, quando chegar em casa, yo e tu padre


estaremos lá te esperando para uma conversinha. — Apenas assinto de
cabeça baixa.

No importa quanto tempo passe, mis padres chamam a minha atenção


como se yo fosse uma criança.

— Está bem, mamá — digo baixinho.

Mas a fúria dela ainda é grande, toma Lupita do meu colo e sai

andando a passos fortes em direção ao carro dela, cuspindo fogo pelas


ventas.

— No, mamá, yo quero ficar com o meu irmão. Por favor, Gonzales,

no deixa ela me levar. — Lupita começa a chorar novamente me chamando


com os bracinhos abertos, me sinto horrível em ver a minha irmãzinha
chorando dessa forma.

Quero muito ir atrás da Solange e tentar explicar o que aconteceu,


mas no posso deixar mamá e a minha irmã sozinhas nesse momento.

— Espere, madre, yo sinto muito pelo que aconteceu. Por favor, me


deixa levar as duas para casa. — Ela para de andar e me olha fervorosa, o
rosto está todo vermelho.

— Yo estou muito decepcionada com você, Alejandro. Sua irmã está


tremendo até agora de tanto susto — sibila amarga, me sinto envergonhado.

— Me desculpe, no queria decepcionar a senhora.

— Espera até o Antônio saber disso, dessa vez no vou te defender


como sempre faço quando apronta — finaliza em um tom duro, se ela

puxou minha orelha, papá vai arrancá-la fora com o seu punhal.

— Desculpa a sinceridade, mas yo faria tudo de novo. No podia


deixar aquele babaca falar que vai roubar a Solange de mim.

Pego Lupita de volta do seu colo e acalento a baixinha dentro dos

meus braços, ninando-a como fazia quando era um bebê; ela deita a cabeça
no meu ombro e aos poucos vai se acalmando.

— Então você estava defendendo a honra da sua namorada? Por que

no me disse antes, Gonzales? Yo teria batido com mais força naquele


bundão. — Fica mais furiosa ainda, mas no comigo, graças a Dios.

— A senhora disse uma palavra feia, mamá — Lupita diz em um

soluço, ela está rindo agora.

— No, yo no disse, mocinha — se faz de boba. – Agora vamos para


casa, Maria Guadalupe, vou limpar esses seus arranhões e fazer um

curativo.
— Tem certeza que no quer que yo leve vocês para casa?

— No, querido, vai trabalhar em paz que yo cuido dessa mocinha

aqui. — Toca a ponta do nariz da Lupita.

Coloco minha irmã no banco do carona e ajeito o cinto, limpo


qualquer vestígio de lágrimas de seu rosto e deposito um beijo.

— Sabe que yo te amo, no é, chiquita?

— Claro que sim, você e o Luiz Fernando são os melhores irmãos do


mundo todo. — Abraça o meu pescoço.

— E nós amamos você mais que tudo nesse mundo, docinho, me

desculpa pelo que aconteceu hoje? Yo te amo muito. — Ela assente com um
sorriso.

— Também te amo, Gonzales. – Abraça o meu pescoço novamente.

Me despeço das duas com um beijo no rosto. Depois que vão embora

penso em entrar na escola atrás da Solange para esclarecer, mas alguma


coisa me diz que isso só vai piorar as coisas, então resolvo recuar por ora e

deixar essa mujer se acalmar um pouco.

Entro no meu carro e vou para a empresa e me jogo no trabalho, tem


tanta coisa para resolver que no sei por onde começar. As horas passam
depressa e yo envio várias mensagens para a Solange, mas ela no responde

nenhuma. Fico puto, tento ligar, mas ela também no atende. Está claramente
me evitando. No me resta mais nada além de ir para a casa quando chega o

final do dia, estou frustrado e me sentindo um completo idiota por ter


estragado tudo com o meu amor depois do final de semana romântico que

tivemos.

 
Solange

— Que cara emburrada é essa, filha? — pergunta a minha mãe

quando chego na sala, pelo visto eu não fui a única que perdeu o sono.

Estou furiosa com o Gonzales por causa da briga ridícula na frente da


escola e o motivo sou eu, porque o Roberto fez questão de jogar isso na

minha cara quando saiu furioso da sala da diretora. A senhora Helena ficou
com o diabo no corpo porque um dos professores se envolveu em um
escândalo com a família de uma aluna e todo mundo sabe que os Gonzales
são ricos e de renome na alta sociedade, ou seja, com poder o suficiente

para fazer a direção da escola demiti-lo por justa causa para evitar um
processo gigante.

O Roberto, com raiva, colocou toda a culpa em mim e contou para a


diretora Helena que eu estava saindo com ele, um colega de trabalho, e com

o irmão de uma aluna da escola ao mesmo tempo, me descrevendo como

uma puta. Quando ele saiu da diretoria, veio até mim falar merda.

— Isso é tudo culpa sua, Solange, se fosse uma mulher decente não

estaria saindo com dois homens ao mesmo tempo. – Apontou o dedo na


minha cara, os olhos vermelhos de tanta raiva, por um momento pensei que

fosse me bater no corredor da escola.


— Mas nós nem saímos juntos de fato, Roberto. Você só foi no bar da

minha família me ver cantar e acabou me beijando. Nada além disso —


disse calma.

Não tinha por que ele estar fazendo toda aquela cena por tão pouco,
e agora que acabou perdendo o emprego queria jogar a culpa em mim.

— Nada além disso, não é mesmo? – Deu um sorriso irônico. – Pois

boa sorte para explicar para a diretora, tomara que ela te demita também
por ser uma vagabunda sem coração, como todas as outras que passaram

pelo meu caminho. Pensei que fosse diferente, mas estava enganado. – Foi

embora pisando duro, senti um alívio tremendo por não precisar mais olhar
na cara desse maluco.

Fui imediatamente para a diretoria e expliquei toda a história para a


diretora Helena, mas não adiantou nada. Levei uma advertência severa e fui

tratada como uma puta que abre as pernas para o primeiro cara que aparece

na minha frente, foi muito humilhante. Me interrogaram para saber se já saí

com outros parentes de alunos e isso inclui os pais casados, achei

totalmente desnecessário e grosseiro.

Só não pedi demissão porque amo os meus alunos, mas não sei se vou

continuar muito tempo trabalhando na escola com aquela diretora do capeta.

Apesar que a culpa dessa merda toda não é dela, mas sim do Gonzales que
não consegue controlar as suas emoções e acaba fazendo merda. Estou tão
zangada com ele que não quero saber notícias dele tão cedo.

— Eu só tenho essa cara, mãe, acha mesmo que se tivesse outra

estaria usando essa? — Aponto para o meu rosto.

— Mas que mau humor, Solange. Senta aqui e vem ver televisão com

a mamãe — convida sem tirar os olhos da tela, me sento no sofá e deito a


cabeça no seu colo. —Me conta, como foi o seu encontro? Deve ter sido

bom, porque passou o final de semana fora de casa, sua safadinha.

— Foi perfeito, mãe, amei cada segundo. – Cruzo as pernas em cima

do braço do sofá. – Mas o cara já fodeu com tudo hoje, então... – Giro os

olhos.

— Típico dos homens!  — Mexe nas minhas tranças e eu relaxo os

ombros, amo o seu cafuné.

— Nem me fale — suspiro pesadamente.

— Calma, meu amor, tudo vai se ajeitar.

— Assim espero! Mas agora me conta, o que a senhora está

assistindo?

— Um filme, filha, mas a programação normal foi cortada para dar

uma notícia urgente. Acabaram de encontrar mais dois corpos de prostitutas


mortas de maneira brutal igual às outras, não sei onde isso vai parar se esse

assassino não for pego. — Seu tom sai com uma mistura de tristeza e raiva.

Toda vez que a minha mãe vê uma notícia de morte na televisão, fica

abalada como se fosse alguém da nossa família, por isso não gosto que ela
fique vendo esse tipo de coisa.

— Mais dois corpos? Não tem nem duas semanas que encontraram a

última vítima. — Pego o controle e aumento o volume, o famoso repórter


bonitão Léo Fontes está dando informações sobre as vítimas.

“As duas moças assassinadas tinham vinte e poucos anos, eram


amigas e trabalhavam como prostitutas no mesmo ponto. Ambas foram

torturadas e jogadas nuas na beira de uma estrada qualquer, uma cena


triste de se ver. Segundo a polícia, não foi encontrada nenhuma pista,

como nos outros casos, e o assassino pode agir novamente a qualquer


momento.”

Conta o repórter âncora, dá para ver o horror nas suas feições


enquanto fala.

— Quanta tristeza, que Deus proteja essas pobres moças. — Minha

mãe limpa as lágrimas do rosto, não tem como não se emocionar vendo a
tela da TV estampada com as fotos das duas moças abraçadas sorrindo

cheias de vida.
Logo penso na Paula, mãe da minha aluna, há alguns dias eu a vi no

calçadão inclinada sobre a janela de um carrão importado com o vidro


escuro abaixado, negociando programa com um homem barbudo estranho.

Se ela não se cuidar, pode se tornar a próxima vítima desse assassino em


série. Temo não somente pela sua vida, mas também pelo fato de a pequena

Maria ficar sozinha no mundo.

Já basta a recente perda do Marcelinho, o seu melhor amigo, não

quero nem imaginar como vai ficar a cabeça dessa criança se tiver que lidar
com a morte de mais alguém que ama.

— Estou muito preocupada com essa situação, tenho uma aluna que a

mãe trabalha como prostituta e acredito que não está disposta a parar,
mesmo com esse assassino à solta. A senhora acha que eu deveria tentar
falar com ela? Fico com receio que se sinta ofendida de alguma forma. —

Me sento de maneira correta no sofá.

— Em uma situação como essa vale a pena tentar, meu amor, talvez
como professora da filha dela ela te ouça — aconselha, espero que esteja

certa.

— A senhora tem razão, tenho que tentar. Paula é uma ótima mãe e

faz o melhor que pode pela filha, dentro das suas possibilidades.

— Isso, querida, você tem que tentar e fazer a sua parte.


— Obrigada pelo conselho, mãe. Agora vou dormir. Boa noite! —
Abraço minha riponga favorita.

— Vai lá, filha, dorme com Deus. Não esquece de conferir se a janela
do quarto do seu irmão está fechada, parece que vai chover — pede sem

tirar a atenção da televisão que voltou para sua programação normal.

— Sim, senhora, dona Cátia! — faço continência como se fosse um


soldado.

Dou um longo bocejo enquanto caminho até o quarto do Rafael, toda


vez que entro nele tenho a impressão de que estou dentro de uma revista em

quadrinhos. Não sei como, mas o meu irmãozinho conseguiu a proeza de


desenhar até no teto do cômodo. Ele adora criar personagens inusitados e dá
nomes e poderes peculiares para cada um deles, só nas paredes deve ter

mais de mil deles, o meu favorito é o “Super Cola”, que tem o poder de
consertar até corações partidos.

Louis tem uma estante com uma vasta coleção de caixas de lápis e

canetinhas de colorir, algumas ele encomendou de fora do país e pagou com


o meu cartão de crédito sem falar comigo. Fiquei furiosa quando ele veio
me comunicar só depois da compra já efetuada com sucesso, mas não

cancelei, fiquei com pena da animação dele olhando na janela a cada cinco
minutos para ver se o carteiro estava vindo.
Como a minha mãe imaginou, a janela do Rafa está aberta, nunca vi
ninguém sentir tanto calor à noite igual a esse garoto. Antes de fechar dou
uma bela olhada no céu coberto por nuvens escuras. Sinto aquela brisa

gélida gostosa que sempre vem antes da chuva. Sorrio agradecendo a Deus,
amo dias chuvosos e aqui no Rio isso tem se tornado artigo de luxo.

— Tenha ótimos sonhos, meu amor. — Ajeito o seu cobertor e beijo o

topo da sua cabeça.

Para ter esse tipo de contato físico com o Louis é só com ele
dormindo mesmo, porque acordado é melhor nem tentar a sorte. Com tudo

certo por aqui, vou para o quarto e me enfio debaixo do cobertor. Como

estou sem sono, início a leitura de um romance que comprei em uma banca

na semana passada, amo ler antes de dormir.

Não demora muito e ouço o som da chuva caindo lá fora, suspiro

relaxada. Me aconchego em meio a uma pilha de travesseiros e continuo a


ler o meu livro, mas não consigo me concentrar porque o meu celular

começa a apitar sem parar debaixo do travesseiro e eu sei que são mais

mensagens do Gonzales, ele havia me enviado centenas delas durante o dia

e ligado várias vezes. Resolvo bloqueá-lo do WhatsApp para me deixar em


paz por pelo menos o resto da noite.
Continuo lendo o meu livro, minhas pestanas vão ficando pesadas aos

poucos e acabo cochilando enquanto a chuva começa a cair lá fora.

— Solange… — ouço alguém chamando o meu nome bem de longe e

acordo assustada, penso que foi um pesadelo e tento voltar a dormir.

— Sou yo, Cariño. Abre a janela. — Dessa vez ouço a voz do

espanhol alta e em bom tom, salto da cama quase indo de cara no chão.

Vou até a varandinha que tem no meu quarto e olho para baixo, lá está

Gonzales no meio da chuva, só de camiseta preta, bermuda jeans e

havaianas brancas nos pés como se estivesse saído de casa do jeito que
estava e vindo até aqui no impulso.

— O que você está fazendo aqui a essa hora e debaixo da chuva, ficou

louco de vez, espanhol? — tento dizer o mais baixo possível, se a minha


mãe acordar vai dar mais merda.

— Como teve coragem de me bloquear no WhatsApp, Solange? —


fala e treme ao mesmo tempo, o cabelo todo molhado grudado sobre o

rosto.

— Não estou a fim de falar contigo agora, Gonzales, vai embora


daqui antes que pegue uma pneumonia e acabe morrendo. — Franzo o

cenho.
— No vou a lugar algum sem falar com você, amor. — Cruza os

braços sobre a camisa ensopada, porra de homem teimoso.

— Mas que droga! Você tem cinco minutos, depois vai embora —
concordo a contragosto.

Abro a porta da frente para o teimoso, parece um gato molhado com


os lábios roxos trêmulos. Minha vontade é dar na cara dele, mas fico com

pena desse idiota.

— Por que me bloqueou no WhatsApp, Solange? Quero uma resposta


agora – pergunta pela segunda vez, parece um adolescente falando assim.

— Porque eu quis! Agora cala a boca, criatura, e me segue. Precisa se


livrar dessas roupas molhadas, tem algo no meu quarto que acho que vai

servir. — Pego sua mão e o conduzo escada acima.

— Hum, gostei do seu quarto, é exótico — brinca com a ponta da


pena azul do filtro dos sonhos enorme que tenho pendurado sobre a minha

cama.

— Veste isso aqui, só não sei se combina muito com o seu estilo, mas

pelo menos vai te manter aquecido. — Entrego a camisa masculina longa

branca de mangas compridas e estampa de arabescos indianos na cor


dourada, a calça é verde-água com as pernas bem largas.
— Por que você tem roupas masculinas no seu guarda-roupa,

Solange? — Me fita de cara amarrada.

Mas tenho que admitir que esse cretino está ainda mais lindo vestido

de hippie, é incrível como qualquer roupa fica estonteantemente sexy nesse


espanhol.

— Eram as roupas preferidas do meu pai, por isso guardei como

lembrança. – Pego uma toalha e começo a enxugar a sua cabeleira molhada


como se fosse uma criança sentada aos pés da cama.

— Me desculpa, Sol. Yo sou mesmo um babaca. — Treme os lábios


de frio.

— Tudo bem! Agora se enfia aqui debaixo do meu edredom comigo,

vai te ajudar a se aquecer mais rápido. — Ele faz o que eu peço sem
pestanejar e se agarra em mim, sua pele está muito fria.

— Acho que deveria tomar algo quente, um leite, talvez? — sugiro.

— No precisa, Sol! Você me esquenta. — Se aconchega mais próximo

a mim.

— Eu deveria é colocar fogo em você, Gonzales. Sabia que levei uma

advertência feia da diretora por causa da sua briga com o Roberto? Virei o

assunto dos meus colegas de trabalho, estão dizendo que me envolvi com
dois homens ligados ao meu trabalho ao mesmo tempo – esbravejo furiosa.
— E no é verdade? – diz na minha cara e eu dou uma cotovelada nele.

— Vai se ferrar! Estou com muita raiva de você e o fofoqueiro do

Roberto, ainda bem que ele foi demitido e não vou mais precisar olhar na
cara dele – esbravejo.

Estou com muita raiva do Roberto e acho bem-feito que tenha sido
demitido, sei que estava chateado porque eu não quis mais sair com ele,

mas daí a não ter brio para lidar com a rejeição e ficar de briguinha idiota

na frente do seu local de trabalho foi burrice. Só que, ao invés de assumir o

seu erro, agiu como um covarde e tentou colocar a culpa em mim na hora
que a corda arrebentou, típico de macho escroto que sempre põe a culpa na

mulher e não pensa duas vezes em difamá-la perante a sociedade.

Nunca esperava essa atitude do Roberto, aquela postura de homem

íntegro e confiante é tudo fachada. Devia ter desconfiado, um homem

perfeito demais igual a ele ainda solteiro é porque esconde alguma coisa

muito errada.

— Graças a Dios, menos um para me preocupar! Pode ficar brava o

quanto quiser comigo, Cariño, mas no estou mais arrependido pela briga.
Só por no ter batido mais nesse filho da puta.

— Você não tem mesmo um pingo de vergonha na cara, não é

mesmo?
— E você gosta de mim assim mesmo que yo sei, ou teria fechado a

janela na minha cara e me deixado morrer de frio debaixo da chuva. Mas,


ao invés disso, aqui estou, sendo cuidado pela minha garota. – Começa a

fazer cócegas em mim, rio alto.

— Para com isso, Gonzales, minha mãe vai acordar e descobrir que
você está aqui – digo entre as gargalhadas.

— Está bem, yo paro! Mas isso de ficar escondido tem que acabar,
chega de mentiras. No somos mais adolescentes. Por isso, pode ir pensando

em um modo de contar sobre nós para a minha sogra, quero pedir a sua mão

para ela — dá o veredito e eu assinto, quero fazer as coisas da maneira certa

dessa vez.

Não sei o que a minha mãe vai pensar quando souber que estou

saindo com o sócio dela, espero que não fique muito zangada comigo ou
surte de vez.

— Era só isso ou tem mais alguma coisa, bonitão? — implico com

ele.

— É só isso mesmo, linda, agora pode me beijar se quiser. – Puxa o

lençol sobre nossas cabeças, formando uma cabana improvisada.

— Nós não podemos fazer muito barulho, Gonzales. – Subo em cima

dele.
— Yo vou tentar, mas no prometo nada. – Giro os nossos corpos e ele
fica em cima de mim, sinto a sua ereção roçando contra a minha barriga.

Nos beijamos e acabamos fazendo amor enquanto a chuva cai lá fora,


depois dormimos abraçados de conchinha na minha cama.

 
Solange
 

Acordo só no outro dia, Gonzales não está mais ao meu lado, mas

deixou um bilhete fofo cheio de coraçõezinhos sobre o travesseiro que diz:

“Vou te levar para um passeio incrível no próximo final de semana, Cariño,


então no faça nenhum outro plano.”

Ass: Seu futuro marido e padre dos seus filhos.

Rio sozinha da maneira que ele assinou no final do bilhete, esse


espanhol não existe mesmo. Não consigo mais ficar brava de verdade com o

Gonzales, acho que nunca consegui de fato, era só orgulho ferido da minha
parte.

— Bom dia, família! – Chego na cozinha pronta para ir para o

trabalho com um sorriso do tamanho do mundo.

— Bom dia, amiga – cumprimenta Tess entre as mordidas no seu pão

de mel.

— Pelo jeito o seu bom humor voltou, não é, filha? – Minha mãe me

analisa de esguelha, esperta como uma águia que não deixa passar nada
pelos seus olhos inspetores.

— Eu só tive uma ótima noite de sono, mãe. – Puxo a cadeira e me

sento ao lado do Rafael; sorrio para ele, que vira o rosto para o outro lado

no mesmo instante.

Mesmo assim continuo sorrindo enquanto sirvo uma xícara

caprichada de café, nunca quis que uma semana passasse tão rápido. Estou

ansiosa para saber onde o Gonzales vai me levar no final de semana, tenho
certeza de que vai ser incrível como tudo que temos feito juntos.

Principalmente o sexo, minha nossa! Fico com o corpo em chamas toda vez

que lembro, é só encostar um no outro que a excitação toma conta de tudo e


um segundo depois estamos atracados de tal maneira que parecemos duas

almas habitando apenas um ser, de tão unidos.

— Que bom que você dormiu bem, filhota. Porque eu ouvi uns

barulhos estranhos, acho que pode ser infestação de ratos na casa – comenta

minha mãe cortando um pedaço do queijo branco sobre a mesa e eu

engasgo com o meu café, morta de vergonha.

Falei para o Gonzales ficar quieto, mas o fogo dele não acaba nunca.

Toda hora eu acordava com ele em cima de mim querendo mais, por isso

estava tão exausta que não vi quando ele levantou e foi embora, acredito

que bem cedo para que a minha mãe não o visse saindo de fininho.
— Isso mesmo, devem ser só ratos. – Pigarreio limpando a boca com
um guardanapo.

— Eu acho que não são ratos não, mãe. – Rafael gira o pescoço e me

encara por breves segundos, acho que ele sabe que recebi visita ou

desconfia de alguma coisa.

— Bem, acho melhor irmos para a escola porque preciso chegar um


pouco mais cedo hoje. Te espero no carro, Rafael. – Pego minha bolsa e

saio praticamente correndo.

— Diz para a minha turma que eu os amo e semana que vem a tia está

de volta, estou morrendo de saudades de cada um deles – grita Tess, ela está

contando os dias para terminar a licença que tirou do trabalho.

— Pode deixar que eu passo na sala do quarto ano e dou o recardo,

amiga – grito de volta já da garagem.

Chego na escola entretida conferindo o material de aula do dia, acabo

trombando com uma pessoa na porta da minha sala e quase dou com as

fuças no chão.

— Desculpa, eu não te vi – disse ao me recompor.

— Sem problemas! Bom dia, eu sou o Celso, novo professor do

quinto ano. – Estica a mão sorridente para me cumprimentar.

Caramba!
O substituto do Roberto é um gato. A pele escura como a noite traz

vida aos olhos esverdeados, tento não reparar nos lábios grossos acima do
queixo longo cobertos por uma barba rala, mas é impossível. Como se já

não fosse o suficiente, ele usa dreads longos no cabelo preso em um rabo de
cavalo que mostra as laterais raspadas. Além de gato é estiloso, veste
camisa com estampa de mandalas com a gola baixa e calça saruel preta.

Para completar o look cem por cento hippie, sandálias de couro marrom nos
pés.

Esse professor Celso me lembra muito o meu pai quando era jovem,

principalmente pelas várias tatuagens espalhadas pelo corpo. Confesso que


com ele aqui não vou mais me sentir a única “diferentona” entre os
professores caretas.

— Prazer, eu sou a Solange. Bem-vindo à escola. – Sorrio ainda

embasbacada com a sua beleza. Aperto a sua mão e reparo no bolo de


pulseiras coloridas no seu pulso.

— Muito obrigada, linda. – Me joga uma piscadela que, se o meu


coração no momento já não tivesse dono, ele seria um ótimo pretendente

para ocupar esse lugar.

— Linda e namorada do meu irmão, então tira o olho dela, cabrón. –


Lupita se materializa entre nós dois, seus braços estão cruzados e as
sobrancelhas grossas juntas.

De onde ela tirou isso de namorada do Gonzales? Não lembro de ele

ter me feito o pedido ainda.

— Valeu pelo aviso, espanholinha. — Aperta a bochecha da Lupita,


mas a pequena gira os olhos desdenhosa.

— No foi aviso, cara. É uma ameaça mesmo. Fique longe da Solange,


ou vai ter o mesmo destino que o professor Roberto. – Aponta dois dedos

para os seus olhos e depois para o novo professor e levanta o nariz


petulante, deixando claro que está de olho nele.

Sou obrigada a cobrir a boca com a mão para disfarçar o riso. Pelo
visto Gonzales tem o seu cão de guarda aqui na escola para me vigiar e não

é de agora, a família deles sabe mesmo como cuidar do que é deles. Não sei
se isso é bom para mim ou uma possível dor de cabeça no futuro.

— Era só isso, mocinha? – Lupita assente de cenho franzido. –

Ótimo! Agora volta para a sala porque eu não me lembro de ter dado
permissão a você para sair da sua mesa. – Celso enruga a testa, mas com
uma expressão divertida.

— Yo vou, mas o senhor vai também ou vou contar para a diretora

que está deixando os seus alunos sozinhos para ficar de papo no corredor
bem no seu primeiro dia de trabalho.
Sai puxando o professor pela mão sem ao menos lhe dar a
oportunidade de dizer tchau, eu apenas aceno de longe para ele, me
divertindo com a situação inusitada. Vou para a minha sala e dou início à

aula, que transcorre dentro da normalidade.

— Posso ir ao banheiro, tia Solange? – pede Eduardo esfregando uma


perninha na outra, deve estar apertado o coitadinho.

— Pode ir, meu amor, mas vai correndo porque faltam só cinco
minutos para o final da aula. – Sorrio para ele.

— Está bem, tia. – Sai andando rápido com as pernas juntas como se

os pés estivessem amarrados.

— Hora de guardar os materiais, galerinha. Amanhã termino de ler a


história para vocês.

— Sim, senhora, professora! – gritam em um coral desafinado.

— Tchau, meus amores, vejo vocês amanhã. Não esqueçam de fazer a


lição de casa, porque vale ponto. –Beijo a mão e jogo na direção deles
como sempre no final da aula, eles fingem pegar no ar e guardar dentro da

mochila para me devolverem no rosto na manhã seguinte.

Depois que todas as crianças vão embora, ajeito as minhas coisas e


passo na sala do meu irmão para pegá-lo e irmos para a casa. É estranho

saber que vou passar a tarde e a noite sem fazer nada, me acostumei a ir
trabalhar no bar e encarar aquela rotina corrida. Mas sei que esse tempo que
estamos de portas fechadas será para grandes melhorias, Gonzales contratou
um arquiteto renomado para redesenhar a parte de dentro sem mudar muito

o modelo original para que continue com a cara do meu pai.

A construtora contratada está trabalhando firme nas obras, mal posso


esperar pela reinauguração, todos os funcionários que tivemos que

dispensar voltarão a trabalhar conosco e tenho certeza de que será um


grande sucesso, faremos até uma festa.

— Você também desenha muito bem, professor Celso. Não tão bem

quanto eu, mas muito melhor do que a maioria das pessoas. – Encontro meu

irmão na porta da sua sala folheando um caderno de desenho, acho que

encontrou um rival à altura em matéria de artes.

— Muito obrigado, Rafael, desenho desde garoto, sempre foi a minha

paixão. Me ajuda a me concentrar e deixa a alma mais leve. – Enche o peito


de ar e solta lentamente.

— Que legal, Celso, depois quero ver os seus desenhos. – Sorrio

amigável para o meu novo colega de trabalho.

— No! Você no quer, Solange. – Gonzales aparece do nada com a

cara fechada e quase me mata de susto, não pensei que o veria hoje, ainda
mais no meio do dia.
Ele não está de terno, que é a sua roupa normal de trabalho, mas o seu

visual ainda é sério, traja camisa branca e calça azul-escuro. Cabelo bem
arrumado e barba feita, Rolex novo no pulso e cheiroso ao ponto do seu

perfume ter empesteado todo o corredor na escola.

— Você veio me buscar hoje, irmão, podemos ir tomar sorvete? –

Lupita sai correndo da sala e abraça a cintura dele, nem sabia que a

espanholinha ainda estava aqui.

— Claro que podemos, princesa, mas no posso demorar porque no

quero perder o meu voo. Aconteceu um imprevisto com um cliente

importante, vou ficar o resto da semana fora a trabalho — fala com a irmã,
mas com os olhos fincados em mim.

Como assim viajar e passar o resto da semana fora? Mas que merda!

Sabia que o Gonzales não estava arrumado todo bonitão assim à toa, apesar
que qualquer coisa que ele usa fica absurdamente incrível nele. Esse

pensamento me faz girar os olhos.

— Nós podemos tomar sorvete com eles, Solange? Por favor – pede

Rafael, se convidando para o passeio dos dois.

— Se o Gonzales não se importar podemos ir sim, mas antes quero


apresentar para ele o Celso, novo professor do quinto ano. – Abro um

sorriso tão falso quanto uma nota de três reais.


O jeito que o espanhol olha para o cara é como de quem vai acertar o

meio das têmporas dele a qualquer momento, não faz nem questão de fingir

ser simpático apenas por educação.

— Prazer, professor Celso. – Tira os óculos escuros estilo aviador

pendurados na gola da camisa e coloca no rosto, para só então esticar a mão

para cumprimentá-lo entre os dentes.

— O prazer é todo meu, Gonzales. – Pigarreia sentindo o clima

pesado. – Mas agora que os meus últimos alunos foram entregues, vou indo
nessa. Vejo vocês amanhã! – O cara vai embora praticamente se mijando

todo.

Olho feio para o Gonzales, ele não precisava ter chegado marcando
território dessa forma grotesca.

— Vem, Rafael, vamos escolher qual sorvete vamos tomar? – Lupita


segura a mão do meu irmão e eles vão andando na nossa frente, a sorveteria

fica na esquina da rua da escola.

— Você não precisava ter sido tão frio com o novo professor,
Gonzales. – Ajeito minha bolsa debaixo do braço.

— Ah, no, Cariño? O cara mal chegou e você já está de sorrisinhos


para o lado dele, agora vou viajar para São Paulo incomodado sabendo que

tem outro possível rival na parada. – Enfia as mãos no bolso com a cara
azeda. – É incrível como um hombre apaixonado no tem um segundo de

paz, Roberto boa pinta vai embora e colocam o hippie bonitão tatuado no
lugar dele – bufa frustrado.

— Possível rival? Fala sério, espanhol, pensei que confiasse mais no


seu taco. – Tiro sua mão do bolso sendo discreta para que ninguém veja

quando enlaço os meus dedos nos dele. – Quem deveria estar insegura aqui

sou eu, afinal você vai passar o resto da semana fora do Rio de Janeiro.

Não consigo esconder a tristeza na minha voz, acabamos de nos

acertar e já vamos ter que ficar longe um do outro por vários dias.

— Yo sei, amor, me desculpa. No consigo controlar o ciúmes. – Ergue

nossas mãos juntas e beija a minha. – Essa viagem de última hora está me

enlouquecendo, no quero ficar longe de você. Vim buscar a Lupita hoje

porque queria te ver, me despedir, dizer que te amo e que vou morrer de
saudades. – Passa o olho nas crianças quando elas atravessam a rua e

entram na sorveteria, em seguida me abraça forte.

Queria pedir para o Gonzales não ir e ficar comigo, mas não sou esse

tipo de garota grudenta e carente. Se ele tem um problema no trabalho, que

viaje para onde quer que seja e fique quanto tempo precisar até resolver

tudo. Eu estarei aqui esperando de braços abertos quando voltar, temos todo
tempo pela frente e não precisamos ter pressa.
— Eu também vou morrer de saudades, meu amor, mas esses dias vão

passar rápido. Eu prometo. – Roubo um beijo rápido. – E sobre o novo

professor, pode ficar tranquilo porque você tem uma vigia de um metro e

meio bastante persuasiva em relação ao inimigo. – Aperto sua bochecha


entre os dedos para fazê-lo rir e consigo.

— Lupita é mesmo demais, me passou o perfil completo do novo


professor por mensagem durante a aula e até enviou uma foto do cara

escondido para que yo visse a cara dele – conta a história rindo.

— Você colocou sua irmã nessa escola para me vigiar desde o


começo, não é, seu sem-vergonha? – Envolvo meu braço em volta do seu

pescoço.

— Você nunca saberá a resposta, linda. – Agarra a minha cintura,

tomba o meu corpo e sustenta o peso no ar e me beija de verdade,

protagonizando uma cena romântica de cinema bem no meio da rua.

— Agora já chega, Gonzales, antes que as crianças saiam da

sorveteria e peguem a gente no flagra. – Me afasto dele e me recomponho.

– Agora me conta mais sobre a sua viagem a trabalho. – Corremos para


atravessar a rua antes que o sinal verde feche.

— Um dos meus clientes mais importantes, uma celebridade

brasileira conhecida mundialmente no meio da música, se meteu em uma


confusão das grandes num evento de gala e agora precisa de total apoio

jurídico para evitar que o escândalo se espalhe e suje ainda mais o seu nome
nos canais de fofoca que adoram pegar no pé dela por ser uma cantora

digamos que “ousada” nas suas letras e performances nos palcos. – Tira o

celular do bolso e me mostra um vídeo clipe da tal cantora, fico de boca

aberta.

Ousada é pouco para essa mulher linda e maravilhosa, ela é lacradora

e por isso está no top 1 do Spotify em vários países.

— Você está indo trabalhar fora da cidade para uma cantora

mundialmente conhecida, gostosa pra caralho e famosa por pegar geral e

você com ciúmes do novo professor do quinto ano? Vai se foder, Gonzales!
– Empurro o ombro dele brincando, mas com um fundo de verdade, agora

eu que estou com ciúmes.

— Pode ficar tranquila que no misturo trabalho com vida pessoal,

além do mais, mi corazón é todinho seu agora. No tem espaço para mais

ninguém.

Se aproxima como se fosse me beijar, mas para no meio do caminho

ao lembrar que acabamos de entrar na sorveteria e a irmã dele e o meu

irmão estão pendurados no balcão de olho em nós dois. Gonzales tem razão,
precisamos colocar o nosso relacionamento a público o quanto antes, essa
situação de nos preocuparmos em não sermos vistos em algum momento
íntimo já está ficando insustentável.             

Depois de passar um tempo agradável tomando sorvete com os nossos


irmãos, chegou o momento do Gonzales e eu nos despedirmos, e nem

pudemos nos beijar porque a Lupita e o Rafael não saíram de perto de nós

um segundo. Cheguei em casa já com saudades dele, no primeiro dia até


que fico bem, mas no segundo já entro na bad. Ainda bem que um amigo

meu me chamou para um rolê, como faz tempo que não saio com a galera

resolvo aceitar.

— Vocês têm certeza mesmo que é seguro ir nessa festa, meninas? –

minha mãe pergunta pela milésima vez andando em volta de mim, sentada

no sofá calçando minhas sandálias.

Ela está preocupada porque vou nesse luau na praia e convidei a Tess
para ir comigo, a coitada ficou enfiada nessa casa nas últimas semanas

como uma prisioneira. Vai ser bom para ela sair um pouco e ter contato com
pessoas novas, ficaremos sentados em volta de uma fogueira enorme,

tocando violão e cantando com a galera, bebendo de graça, degustando


comida saudável na companhia de gente com a vibe boa igual à nossa.

— Está sim, mãe, o evento é ao ar livre com várias pessoas e eu


duvido muito que o Lucas vá aparecer lá depois de todo esse tempo sem dar
notícia. E caso aconteça, meus amigos vão dar uma lição nele que nunca vai
esquecer na vida. Então fica tranquila. – Beijo sua testa, minha amiga e eu
estamos prontas para sair já faz meia hora e a dona Cátia não libera a gente.

— Está bem, filha, mas qualquer sinal estranho vocês ligam direto

para a polícia. Combinado, meninas? – Mamãe abraça Tess e eu ao mesmo


tempo.

— Combinado, tia, vamos mandar mensagem para a senhora a cada

trinta minutos. Não se preocupe! – promete Tess, não totalmente certa de


que sair à noite é uma boa ideia, mas disposta a arriscar.

Enfim saímos para o luau, vamos no carro da minha mãe. De longe já

dava para ver a fogueira acesa na praia, Tess e eu ficamos animadas. Somos
muito bem recepcionadas pelo pessoal, desde a morte do meu pai que não
saio para fazer rolê com a galera. Costumávamos acampar, escalar

montanhas, sair para fazer trilha a pé e de moto. Fora as raves malucas nas
férias escolares que duravam até cinco dias direto, era muito da hora.

— E aí, Solange, que bom você veio. – Meu amigo Mario me puxa

para um abraço, nos conhecemos em um retiro de meditação há mais de


uma década e somos amigos desde então.

Mario é um ruivo com o cabelo ondulado tão comprido quanto a

barba que bate na altura do mamilo, seu rosto é uma mistura de fios
vermelhos, sardas e olhos azuis cintilantes. Sua fala é sempre mansa e
suave e ama qualquer ser com vida, principalmente as plantas.

— Claro que eu vim, Mario. Que saudade de você e da Ana! Onde ela

está? Vocês são o casal mais em sintonia que conheço. – Aperto meu amigo
bem forte, ele e a esposa são donos de uma alma pura e bondosa.

— A Ana está na tenda terminando de preparar os aperitivos para

servir para a galera, Solzinha. Ela ficou louca de felicidade quando eu disse
que você vinha essa noite, ela sempre fala que os rolês não são a mesma
coisa sem você.

— Eu sei disso, mas agora estou de volta e ainda trouxe minha amiga
querida comigo. – Puxo a Tess pela mão para a conversa, ela está tímida.

Minha amiga nunca foi muito de festa, ainda mais as malucas que eu
costumo ir, com música eletrônica pesadona.

— Prazer, Tess, é muito bem-vinda aqui, e não precisa ficar tímida


porque não é a única novata no grupo, temos um amigo que acabou de ser
transferido do trabalho para o Rio de Janeiro. — Mario acena para o tal

novato.

Fico surpresa ao ver que é o professor Celso, esse mundo é realmente


pequeno.
— Eu conheço o Celso, ele é o novo professor do quinto ano que te
falei, Tess.

— Eu lembro! Você só não disse que ele é tão lindo, amiga – solta
sem querer e o seu rosto fica vermelho.

— Pelo jeito ele também te achou linda, amiga, porque não está

tirando o olho de você. – Cutuco o braço dela.

Sinto um clima de romance no ar, chega da Tessiane ficar vivendo


com medo de ser feliz por causa do embuste do Lucas.

— Estou sentindo uma energia boa entre vocês dois, Tess, precisam

se conhecer e tem que ser agora. – Mario sai puxando a coitada pela mão e
eu não impeço, quando meu amigo resolve bancar o cupido é casamento na
certa.

Aproveito para ir cumprimentar a esposa do Mario, minha querida


amiga de muitos anos, Ana. Ajudo ela na tenda a preparar os aperitivos
enquanto colocamos a fofoca em dia; quando terminamos levamos as

bandejas e servimos o pessoal. Fico feliz quando vejo a Tess no maior papo
com o Celso, ela sorri o tempo todo, mexe no cabelo a cada cinco segundos
e desvia o olhar, tímida. Sinais claros de quem está flertando.

Deixo os dois pombinhos conversarem e me sento do outro lado da


fogueira para dar espaço ao casal, pego o violão do Mario e toco, cantando
junto com a galera. A noite está incrível, até o Gonzales me enviar a

seguinte mensagem:

“A festa está boa, Solange? Espero que você esteja se divertindo,


mande um oi para o seu amiguinho, o professor hippie bonitão tatuado.”

Fico passada! Como o Gonzales sabe onde estou? Além da

mensagem, envia várias fotos minhas cantando com a galera em volta da


fogueira e o mar iluminado pelo reflexo da lua como imagem de fundo,

também tem fotos do professor Celso. Fico mais puta ainda. Não acredito
que esse filho da mãe colocou gente me seguindo enquanto está fora da
cidade, isso é um absurdo incalculável, mas bem a cara dele. Ligo em

chamada de vídeo para ele porque não tenho capacidade de digitar devido à
raiva, me afasto um pouco do pessoal para que ninguém escute os meus
gritos enfurecidos.

— Seja quem for que mandou me seguir acho bom dispensar agora
mesmo, Alejandro Gonzales! Ou considere tudo terminado entre nós – exijo
assim que o seu rosto bonito enche a tela do celular, dá para ver que está em

um quarto de hotel luxuoso, já na cama, pronto para dormir.

Estou muito brava com esse homem, toda vez que penso que nós dois
estamos bem ele sempre dá um jeitinho de foder com tudo e voltamos um

passo atrás.
— No vou coisa nenhuma, acha mesmo que yo sairia do Rio de
Janeiro e deixaria você e a sua amiga sem proteção com o bandido do Lucas
à solta? Mas nem fodendo! – Levanta da cama em um movimento raivoso,

acende um charuto e vai para a varanda do quarto.

— Eu não vou falar de novo, espanhol, manda os seus homens


embora. Não preciso de babás me seguindo vinte e quatro horas por dia,

ainda mais sem o meu consentimento.

— Por que no quer ser vigiada, Solange? Está com medo de que os
meus seguranças vejam alguma coisa que no deveriam? Afinal, você no me

contou que iria a uma festa essa noche e mal tem respondido as minhas
mensagens. – Chega a câmera bem perto do rosto para poder me analisar
melhor, cheio de acusações sem nenhum sentido.

Fecho os olhos e deixo a brisa fresca do mar tocar o meu rosto na

tentativa de me acalmar.

— Primeiro, isso não é uma festa. É um luau, onde só tem pessoas


conhecidas. Um amigo me chamou para vir em cima da hora, só aceitei

porque queria que Tess saísse um pouco de casa. O que deu muito certo,
porque ela e o professor Celso estão flertando – conto e as suas feições se
suavizam. – Sobre as mensagens, você está trabalhando em um caso

complexo em São Paulo e eu não queria te distrair, entendeu agora?


— Perfeitamente! Mas no quero que pare de falar comigo, no te vejo
já faz dois dias e estou morrendo de saudades. – Sorve uma longa lufada de

ar. – Queria poder estar aí com você agora e conhecer os seus amigos, quero
fazer parte da sua vida.

— Também queria que estivesse aqui, meu amor, e você já faz parte
da minha vida. – Beijo a tela do celular. – Além do mais, no final de semana

a gente compensa esses dias longe um do outro.

— Temos um passeio incrível para ir, você vai amar, Cariño. – Se


livra do que restou do charuto.

Gonzales volta para dentro do quarto e pula na cama de volta, deita de


lado e dá um extenso bocejo, está cansado.

— E eu já posso saber onde será esse passeio? – Me sento na areia de

frente para o mar.

— Só se você fizer sexo virtual comigo quando chegar em casa, quero


te ver nua na sua cama, com as pernas abertas se tocando para o seu
espanhol. – Coloca a língua para fora e balança igual a uma cobra, igual faz

quando me chupa o sem-vergonha.

— Mas você é um pervertido mesmo, não é, Gonzales? – brinco, mas


Gonzales não sorri.

Na verdade, ele está muito sério.


— Que sombra é essa atrás de você, Solange? – pergunta e o meu
coração congela, quando olho para trás vejo o que parece um homem de

moletom preto e capuz na cabeça vindo na minha direção a passos largos.

— Acho que é o Lucas! – Olho ao meu redor para pedir ajuda, mas
não vejo uma alma viva próxima a mim na praia.

Fiquei entretida conversando com o Gonzales no celular e andei para


longe do pessoal no luau e só consigo vê-los distante, com aquela cantoria e
o barulho do mar nunca vão me ouvir. Começo a correr na direção deles

desesperada sem olhar para trás, contudo, consigo ouvir passos rápidos cada
vez mais próximos de mim. Aumento a velocidade e acabo tropeçando em
um tronco e caio de cara na areia, agora esse é o meu fim.

— Tire essas mãos sujas de mim, seu porco nojento. – Começo a me


debater quando alguém tenta me tocar, esse desgraçado pode até me matar,
mas vou dar muito trabalho para ele antes.

— Calma, moça, eu sou o Josué. Chefe de segurança do senhor


Gonzales, vimos o suspeito correndo atrás de você e interviemos. – O
homem alto de terno preto me ajuda a levantar, ainda estou me tremendo

toda.

— Vocês conseguiram pegar ele? – Limpo a areia da minha roupa.


— Não, senhora, sinto muito! Mas acho que acertamos um tiro na

perna dele, não deve ter ido muito longe e nós vamos encontrá-lo e entregar
à polícia. – Aponta na direção de uma pedreira, onde estão vários homens
da sua equipe com lanternas fazendo uma busca no lugar em meio à

escuridão.

— Eu estava em uma chamada de vídeo com o Gonzales, ele deve


estar muito preocupado. – Procuro o meu celular no chão onde caí, mas não

o encontro, devo ter deixado cair quando estava correndo.

— Pode falar com ele do meu celular, moça, depois acho melhor levar
a senhora e a sua amiga para casa. – Me entrega o aparelho e eu assinto.

— Muito obrigada, Josué. Pode me chamar de Solange. – Aperto sua


mão.

Enquanto os seguranças nos escoltam de volta para o luau, ligo para o


Gonzales que está uma fera. Disse que o cara que estava atrás de mim

pegou o meu celular quando deixei cair e a ligação ainda estava ativa, mas
estava muito escuro e não conseguiu ver o rosto do cara antes que ele

encerrasse a ligação. E nem precisava, é óbvio que é o Lucas. Esse tempo


todo e ele ainda está à espreita esperando o momento certo de atacar, se o
Gonzales não tivesse colocado gente vigiando o pior poderia ter acontecido.
Pedi desculpas para o Gonzales e agradeci um milhão de vezes por
continuar cuidando de nós mesmo de longe, o teimoso queria voltar a todo
custo para o Rio de Janeiro para ter certeza de que está tudo bem comigo.

Eu não deixei, é claro, não pode largar a sua vida e sair correndo para me
salvar sempre que eu estiver em apuros. Acho isso muito fofo, não vou
mentir, mas ele tem seus próprios problemas. Devido a isso, o convenci a

seguir o plano original de nos encontrarmos só no final de semana. Apesar


de resmungar um pouco, acabou aceitando.

Aproveito que estou com o celular do chefe de segurança do Gonzales

e ligo para a operadora e bloqueio o meu chip, troco minha senha de e-mail
e os aplicativos do banco para não correr o risco daquele filho da puta me
dar um golpe.

— Lucas não vai parar até me matar, Solange. E o que aconteceu na


praia foi um aviso de que quem ficar no caminho dele, vai ter o mesmo fim.
– Minha amiga desaba quando chegamos em casa.

— Calma Tess, vai dar tudo certo – tento consolá-la, mas acredito que
nada que eu disser vai adiantar.

— Obrigada, amiga, mas agora preciso ficar sozinha. Desculpa por te


puxar para tudo isso. — Se tranca no quarto para chorar, fico com muita

pena dela.
Minha mãe acaba acordando com toda agitação da nossa chegada em
casa e vem falar comigo, conto para ela tudo o que aconteceu e levo um

sermão de mais de uma hora porque cansou de me avisar que sair à noite
para uma festa não era boa ideia e, além de quase ser morta, terei que
comprar um celular novo. Ouvi tudo calada, depois fui para o meu quarto

também. Apesar do susto não demoro a dormir, sonho com o final de


semana com o Gonzales, num dia ensolarado, lindo e romântico.

O despertador toca às seis e meia da manhã, acordo assustada e, como

em qualquer outro dia, vou tomar o meu banho para me arrumar para ir ao
trabalho. Quando saio do banheiro enrolada em uma toalha cantarolando
uma música da Rita Lee, levo um susto tremendo ao ver minha mãe e o

vovô Manoel sentados aos pés da cama do meu quarto me olhando de um


jeito estranho.

— Aconteceu alguma coisa?  –  Tiro a touca de banho que uso para

não molhar minhas tranças e elas caem sobre minhas costas como uma
cascata.

— Aconteceu sim, filha, eu sinto muito. – Mamãe contorce as mãos

sobre o colo, seu tom é choroso.

Fico pensando por que o vovô Manoel apareceria aqui em casa tão
cedo, ainda mais com essa cara de velório como se alguém da família
tivesse morrido.

— Fala logo o que foi, estou ficando preocupada. – Minhas pernas

começam a ceder ao peso do corpo.

— Quando eu fui à barraquinha de jornal bem cedinho comprar o


exemplar do dia, me deparei com essa notícia na capa.

Vovô Manoel tira o jornal dobrado de dentro do casaco e me entrega,


quando leio o que está escrito entendo o olhar preocupado dos dois. Tem
uma foto minha que tirei nua em frente ao espelho, eles embaçaram mais ou

menos as partes íntimas e editaram para parecer que estou mais acima do
meu peso real. Na legenda acima, colocaram bem grande e em letra
maiúscula a seguinte frase de impacto:

“Acreditem ou não, o poderoso advogado Alejandro Gonzales,


famoso por já ter saído com as mulheres mais bonitas desse país, está de
caso com essa moça.”

— Meu Deus! Como conseguiram essa foto?

Deixo o jornal cair no chão me sentindo humilhada de um jeito que


não imaginei que fosse possível. Saber que tem algo tão íntimo seu sendo
espalhado por aí é o pesadelo de qualquer pessoa. Eu nunca enviei para

ninguém esse tipo de foto, tiro para mim mesma porque gosto do meu corpo
e todas as tatuagens dele são como uma obra de arte que gosto de admirar.
— Nós acreditamos que o Lucas achou as fotos no seu celular e as

divulgou ontem à noite mesmo, filha.

— Mas eu não deixo esse tipo de foto no meu celular, sempre mando
para o e-mail pela nuvem. Como mudei todas as senhas ontem quando perdi

meu celular, nem me preocupei com as fotos. — Começo a andar em


círculos pelo quarto, em pânico.

— Ele deve ter conseguido acessar antes de você mudar as senhas,

querida, hoje em dia isso é fácil.  – Vovô me olha com pena.

— Eu não consigo respirar, Lucas conseguiu destruir minha vida. –


Começo a chorar.

— A coisa está realmente feia, Solange. Eu pesquisei o seu nome no

Google, tem vários nudes seus na internet e fotos íntimas suas com o
Gonzales. Nem sabia que estavam juntos, por isso fez tanto mistério sobre o

cara com quem está saindo. – Mamãe me encara decepcionada, fico ainda
mais envergonhada, não queria que ela soubesse da nossa relação dessa
maneira grotesca.

— O Gonzales é um homem conhecido, por isso o assunto se

espalhou pelo país em questão de horas. Sinto muito, querida! – Vovô


Manoel tira um lenço do bolso e enxuga as lágrimas, ele passando por esse

constrangimento nessa idade e tudo por minha causa.


Pego o meu notebook sobre a cômoda e abro os sites de fofoca,
minhas fotos estão espalhadas por toda parte e as pessoas comentando
coisas horríveis sobre minha aparência, que sou uma professora do ensino

fundamental pobretona, me visto como uma maluca e não sou fã de


exercícios físicos. Tem gente dizendo que, além de gorda, pareço uma

bandida com esse monte de tatuagens. Para eles, Gonzales merece coisa
muito melhor. Uma mulher sofisticada do meio social dele, bonita e no seu

peso ideal. Algumas pessoas mais cruéis até me aconselharam que deveria
me matar e deixá-lo em paz de uma vez por todas, um verdadeiro show de
horrores. Ainda bem que não tenho redes sociais, porque estaria sendo
bombardeada de mensagens negativas.

Não aguento mais ler os comentários desses sites, fecho o notebook


com força em prantos, minha vida virou um inferno da noite para o dia. De
pessoa invisível na sociedade, virei o assunto mais comentado do momento.

— E agora mãe, o que vou fazer? Estou fodida! Vou ser demitida
quando a diretora vir esses nudes por aí, nunca mais outra escola vai me
contratar de novo. – Desmorono, Lucas conseguiu me ferir onde mais dói.

Fez isso só porque estou ajudando a minha amiga a se livrar dele, isso
não é justo. Quer fazer a Tess se sentir acuada me prejudicando, quando ela
vir toda essa merda vai desmoronar ainda mais.
— Calma, Solange, entrar em desespero não vai ajudar em nada.
Liguei para a diretora e avisei que você está doente e não vai trabalhar hoje,
assim ganhamos tempo até a bomba estourar. – Mamãe age rápido, ela

sempre age com prudência e sabedoria em momentos tensos como este.

— Muito obrigada, mãe, desculpa por causar todo esse problema a


vocês. – Desvio o olhar, morta de vergonha.

— Tudo vai se resolver, Sol, sua mãe também ligou para o Gonzales e
ele já está a par de toda a situação. Pegou o primeiro voo de volta para o
Rio e vai chegar aqui a qualquer momento, ele prometeu dar um jeito nessa
bagunça.

— Eu não sei se quero falar com o Gonzales agora, vovô, preciso de


um tempo para assimilar tudo que está acontecendo. Não sei como as coisas
vão ficar daqui para frente depois disso, mas sei que não será fácil.  –

Aperto os olhos.

— Você vai me deixar, Cariño? – Gonzales aparece na porta do meu


quarto, seus olhos estão marejados.

Ele está tão arrasado quanto eu com essa situação, não é culpa dele e
muito menos minha.

— Eu não sei o que te dizer agora, Gonzales. Estou confusa com


todas essas pessoas falando tantas coisas horríveis sobre mim. – Abraço o
próprio corpo em um soluço, nunca senti vergonha do meu peso a mais,
mas depois de receber tanta energia negativa gratuita das pessoas é
impossível não me sentir um lixo.

Talvez fosse melhor Gonzales e eu terminarmos, ficarmos juntos só


vai piorar as coisas, essa perseguição da mídia em cima da gente nunca vai
terminar.

— Acho melhor deixarmos os dois conversarem a sós, vem comigo,


Manoel, vou fazer um chá calmante para nós.

Minha mãe e o vovô saem do quarto e fecham a porta, ficamos

Gonzales e eu e um abismo enorme que se instalou entre nós.

— Por favor, Solange, no me deixa. – Se ajoelha aos meus pés, meu


coração quebra em mil pedaços. – Prometo que vou dar um jeito nisso, nem
que tenha que virar o mundo de cabeça para baixo, mas no vou suportar

ficar sem você. – Abraça as minhas pernas, sem vergonha de implorar.

— Acho que eu não conseguiria te deixar nem se eu quisesse,


Gonzales. – Me jogo nos seus braços e choro. Quando disseram que o amor

de verdade dói, não estavam mesmo mentindo.

— No chora, amor. Vai ficar tudo bem, yo sempre vou cuidar de você.
– Me ajuda a sentar na cama, só agora percebi que ainda estou só de toalha.
Mas não me importo, apenas choro. Paciente, Gonzales deita comigo
na cama e, depois de me cobrir com o cobertor, me abraça bem forte. Me

sinto segura com ele por perto.

— As pessoas estão dizendo coisas horríveis sobre mim, Gonzales.


Que não sou boa o suficiente para você –digo entre os soluços, mal consigo

falar de tanto que choro.

— Essas pessoas no sabem nada sobre nós, Solange. Ler esses


comentários maldosos no te faz bem. – Faz carinho no meu rosto. – Minha

equipe já foi acionada e estão entrando em contato com todos os canais de


fofocas que compartilharam as fotos e ameaçando processá-los caso no
tirem, hoje em dia a internet no é mais terra sem lei e yo prometo que até o
fim do dia tudo estará resolvido – garante com a segurança de quem sabe do
que está falando, resolvo acreditar nele.

— Você promete mesmo que vai resolver isso?

— Claro que sim, yo nunca mentiria para você, Cariño. – Beija a

minha testa. – Feche os olhos e tente descansar um pouco, prometo que


quando acordar tudo vai estar resolvido.

Gonzales me acalenta nos seus braços até que adormeço cansada de

tanto chorar, se o Lucas queria me destruir fazendo isso, ele conseguiu com
louvor. Como vou olhar na cara dos pais dos meus alunos depois disso?
Minha carreira como pedagoga está destruída. Choro até pegar no sono
pensando nisso, desperto pouco mais de uma hora depois e o Gonzales não
está mais deitado ao meu lado, mas não estou sozinha na escuridão do meu
quarto.

Ouço ruídos como se tivesse alguém chorando, acendo a luz e vejo a


Tess sentada no chão em um canto do meu quarto, abraçando as próprias
pernas.

— Me desculpa, Solange, o Gonzales precisou sair para fazer


algumas ligações e eu vim aqui ver como você está.

— E por que você está sentada no chão, amiga? Deita aqui comigo –
chamo a Tess com a mão, ela vem toda encolhida e deita de frente para
mim.

— Eu sinto muito por tudo isso, Solange! Lucas está te atacando para
me ferir e ele não vai parar até conseguir o que quer. Por isso decidi que
vou voltar para a minha casa, preciso enfrentar os meus problemas sozinha.
Não quero mais prejudicar você e a sua família. – Cobre o rosto e chora,
está totalmente desestabilizada.

Se o Lucas não consegue matá-la com as mãos, ele vai jogar com o
seu psicológico como está fazendo agora, até destruí-la por completo de
dentro para fora.
— Você não tem culpa do seu ex ser um filho da puta egoísta, que não
consegue ser feliz e não te deixa ser também. – Seguro suas mãos trêmulas,
seus olhos estão vermelhos e inchados. – E você não vai voltar para a sua
casa coisa nenhuma, porque a minha família é como se fosse sua também e
jamais te abandonaríamos.

— Mas eu não vou conseguir ficar aqui e olhar na sua cara e da sua
mãe sabendo que tem fotos suas nua sendo compartilhadas e a culpa é
minha, nunca vou me perdoar por isso. – Enxuga as lágrimas com a manga
da blusa.

— Na verdade, todas as fotos da Solange já estão fora do ar de toda


internet, Tess. – Gonzales chega sorridente no quarto com o celular na mão.
– Acabei de dar a notícia para a dona Cátia, podemos respirar aliviados

agora.

— Como assim estão fora do ar, Gonzales? Pensei que quando


alguém compartilha algo na internet já era.

— Yo tive ajuda de um amigo promotor que tem um contato de um


hacker que trabalha para o governo, o cara é foda e atua na proteção
cibernética do presidente, derrubando sites com mensagens de ódio, fake
news, entre outras coisas. Ele conseguiu tirar todas as suas fotos da rede em

menos de uma hora, quem clicar no link para abrir ou compartilhar vai ter
muitos problemas no seu aparelho com um vírus resistente – conta se
sentindo vitorioso com a conquista, realmente quem tem contatos nesse

mundo, tem tudo.

— Mas e quanto aos canais de fofocas que espalharam a notícia? –


pergunto com o coração batendo forte.

— Eles vão ter que acertar as contas comigo, mexeram com a pessoa
errada! Com apenas uma ligação fiz com que tirassem do mercado todos os
jornais e revistas com você na capa, apagaram as matérias em sites falando
sobre o nosso relacionamento e tiveram que fazer um comunicado se

desculpando. Está tudo aí, pode olhar. Tem muita gente do nosso lado. –
Gonzales me entrega o celular dele.

Nos mesmos sites que há poucas horas me detonavam, há uma página

inteira só de pedido de desculpas a mim e ao Gonzales. Os comentários de


ódio eram poucos, a maioria agora são de apoio dizendo que esses jornais
deveriam se envergonhar de ficar como abutres em cima das pessoas, se
alimentando da dor delas.

— Caramba, Gonzales! Você resolveu mesmo o problema, obrigada,


meu amor. – Abraço meu amor, ele é o cara.

— Esse hacker não conseguiria rastrear o Lucas pelo celular da


Solange mais rápido que a polícia?  – Tess pergunta esperançosa, com as
mãos juntas frente ao corpo como se estivesse orando. De todos nós, ela é a
que mais deseja que esse pesadelo termine logo.

— Ele tentou, Tess, mas a única coisa que conseguiu foi o número do
IP do computador de onde as fotos foram compartilhadas na internet, ainda
ontem à noite, depois que roubou o celular. O Lucas foi em uma lan house
que fica aberta vinte e quatro horas, sendo esperto o suficiente para usar um
computador onde as imagens da câmera no pegavam – explica
decepcionado.

— O Lucas fez tudo isso sozinho em uma lan house, Gonzales? Ainda
foi cuidadoso para o lugar não ter câmeras… Um plano de vingança muito
bem bolado, inteligente demais para ser coisa dele, que mal sabia baixar um

aplicativo, era eu que fazia esse tipo de coisa para ele quando namorávamos
– Tess fica pensativa.

— E quem mais séria, Tess? Só pode ser coisa desse canalha.

— Com certeza foi ele, mas no quero falar sobre o Lucas agora.
Precisamos descer e conversar com a sua madre, Cariño. – Uma veia salta
no pescoço do Gonzales, ele sabe que essa conversa não será fácil.

— Bem, eu vou ficar no meu quarto, não quero atrapalhar a conversa


de vocês em família. – Tess sai praticamente correndo, ela sabe que minha
mãe vai soltar os cachorros em cima de nós por ter escondido nosso

relacionamento dela.

— Se vamos fazer isso, vamos fazer logo. – Seguro a mão do


Gonzales, mas ele não se move.

— Antes quero te entregar uma coisa, amor, era para yo fazer o


pedido quando nos encontrássemos para o nosso passeio no final de
semana, mas já que os planos mudaram, lá vai… – Fica de joelhos na minha

frente, levo a mão sobre a boca em choque, não acredito que isso está
mesmo acontecendo.

— Sério mesmo que você quer fazer isso agora, Gonzales? – Meu

coração acelera.

— Claro que quero, mi amor. – Tira uma caixinha vermelha


aveludada do bolso. – Você quer namorar comigo? – O brilho do diamante
quase nubla minha visão, grande demais para um anel de compromisso, mas

estou tão feliz que aceito feliz da vida.

— É claro que eu aceito, meu amor, te amo! – Pulo no seu pescoço e


nós dois caímos no chão rindo, minha toalha acaba se perdendo nessa

bagunça.

— Também te amo, Cariño. Mas agora se veste, antes que yo desista


de falar com a sua madre. – Aperta o meu seio sem vergonha, mas agora
não é hora para safadeza.

— Senta aí na cama e sossega, espanhol.  Me visto em cinco minutos


para descermos, a hora de enfrentar a sua sogra chegou, meu caro. – Aperto
sua bochecha e ele engole com dificuldade.

Procuro algo para vestir no meu guarda-roupa, tentando não


demonstrar para o meu namorado quão nervosa estou com essa conversa
com a minha mãe. Ela tem a mente aberta, mas odeia quando mentem para
ela. E nós mentimos feio, não sei como explicaremos isso sem darmos
início à terceira guerra mundial.

 
Gonzales

Solange e yo descemos as escadas de mãos dadas e em total silêncio,

sabemos que pisamos feio na bola com a minha sogra e no sei se ela dará a
sua benção para o nosso relacionamento agora.

— Olha, não precisa ficar nervoso, Gonzales. Minha mãe tem um

coração enorme, mas caso ela tente te matar, meu amor, é só você correr –
tenta fazer piada, mas os músculos do meu rosto estão tensos demais para
qualquer ato espontâneo, nunca conheci uma sogra antes e estou apavorado.

— No sei, Solange. E se ela achar que comprei a metade do bar só


para traçar a filha dela?

— Mas não é verdade, Gonzales? – continua fazendo graça.

— Solange! Yo estou falando sério, estou a ponto de infartar. – Ajeito

o cabelo para parecer mais apresentável para minha sogra.

— Eu sei, espanhol, mas agora não temos para onde correr. – Solange
fica tensa quando chegamos no andar de baixo e damos de cara com su

madre, nos esperando sentada no sofá da sala com uma expressão nada
gentil.

Dona Cátia está de roupão verde-água e meia-calça na cabeça, no


posso esquecer das pantufas cafonas de ursinhos nos pés. Ela fica de pé
com as mãos apoiadas na cintura, em sinal de alerta que as coisas não estão

nada boas para o lado da filha, e consequentemente para o meu.

— Mãe… – Solange tenta falar, mas no consegue.

— Mãe coisa nenhuma, Solange Almeida! Tem muitas coisas para me


explicar, mocinha. – Franze o cenho. — Por que não me contou que o cara

com quem está saindo é o nosso sócio? O mesmo homem que você dizia

odiar porque comprou metade do bar. – Lança o olhar agora na minha


direção.

— Tudo aconteceu muito rápido entre nós, mãe. Nós íamos te contar
em breve, só estávamos esperando ter certeza que é coisa séria.

— E é sério, Solange? Porque agora o Brasil inteiro já está sabendo. –

Encara nossas mãos enlaçadas, faço questão de responder à sua pergunta:

— É muito sério, dona Cátia! Sei que pode parecer muito repentino e

estranho, mas yo estou perdidamente apaixonado pela sua filha e quero

pedir a permissão da senhora para cortejá-la. Prometo amar, cuidar e dar à

Solange todo o respeito e amor que ela merece – despejo tudo de uma vez
só sem tomar fôlego.

Estou tremendo de cima a baixo com medo da reação da minha sogra

agora que sabe a verdade. Passam um… dois… três minutos e a mujer

continua me encarando fixamente de boca aberta, ela nem pisca. Um


silêncio constrangedor se faz presente, estou a ponto de correr e me
esconder no primeiro lugar seguro que encontrar.

— Mas é claro que vocês têm a minha benção, meu filho, depois de

uma declaração de amor dessas dou até a minha mão se você quiser. –

Apesar da expressão de surpresa, dona Cátia faz piada e ri alto.

— Graças a Dios! – Solto a respiração com a mão sobre o peito


sentindo o alívio tomar conta de tudo.

— Mas os dois nunca mais mintam para mim novamente, entenderam

bem, crianças?

— Sim, senhora! – nós dois mais que depressa concordamos e

abraçamos minha sogra ao mesmo tempo.

— Santo Deus! Olha esse anel lindo de diamante no seu dedo, filha.

Não me diga que já estão noivos? Porque essa pobre velha hippie vai

enfartar aqui mesmo.

— Não, mãe, isso é só um anel de compromisso. – Gira a peça no

dedo em meio a um sorriso, ela está radiante com o nosso namoro.

— Mas em breve vamos trocar por uma aliança de casamento, Cariño

– garanto em um suspiro apaixonado.

— Que romântico os dois pombinhos! Sabia que tinha algo a mais por

trás de toda sua implicância com o meu sócio, Solange. Era pura atração
sexual mal canalizada, sua danadinha. – Aperta a bochecha da filha.

— Não começa, mãe! – Bate a mão no rosto, com vergonha.

— O que foi, Solange? Sua madre está certíssima, todo aquele rancor

era vontade de possuir esse corpinho aqui. – Deslizo as mãos pelo meu
peito, deixando a Solange mais envergonhada ainda.

Dona Cátia e eu começamos a rir, ela tem a mesma vibe divertida que
yo.

— Meu Deus! Eu estou perdida com vocês dois juntos agora, o bobo

da corte e a hippie língua-solta. – Solange ri também.

— Não seja implicante, filha. Chama seu namorado para tomar café

da manhã com a gente, preparei uma mesa linda para quando você
acordasse. Seu avô foi com o Rafael comprar o seu pão favorito, vou fazer

um cafezinho fresco para nós enquanto eles voltam. Tenho muitas perguntas
para os dois pombinhos. – Puxa nós dois para a cozinha, Solange e yo nos
entreolhamos.

Minha sogra vai querer saber dessa história direitinho com cada

parágrafo, ponto e vírgula. Mas nós já esperávamos por isso, então


escolhemos a dedo o que falar, deixando as partes tensas de fora. Para dona

Cátia, nós nos conhecemos quando comprei a metade do bar.


— O importante disso tudo é que eu já considerava você, Gonzales,

como um membro da nossa família. Então está tudo certo. – Enche minha
xícara de café novamente e serve o terceiro pedaço de pudim de leite para

mim, seu genrinho querido.

Estou amando ser mimado pela minha sogra, e yo com tanto medo da
reação dela quando soubesse do meu relacionamento com a sua filha.

— Obrigado, dona Cátia, para ser sincero yo também já me


considerava da família faz tempo.

— Disso eu tenho certeza, meu amor. – Solange franze o cenho na

minha direção, mas logo em seguida ela se desmancha em um sorriso.

Trocamos olhares provocadores, quando dou por mim já estamos nos

beijando na frente da minha sogra.

— Ai, que romântico, meu Jesus amado! Vou até tirar uma foto.

Dona Cátia quase cega nós dois com o flash da câmera do seu celular,
quase matando a filha de vergonha.

— Para com isso, mãe! – Cobre o rosto para se proteger dos flashes e
a fotógrafa amadora aproveita para dar um close no anel de compromisso.

Já yo me divirto fazendo poses engraçadas para as fotos, colocando

chifrinhos na cabeça da Solange com os dedos e fazendo careta.


— Ficaram lindas as fotos, mais tarde coloco no grupo da família para
compensar aquelas íntimas que foram compartilhadas indevidamente. –
Minha sogra sorri animada.

— Eu não sei o que faço com a senhora, mãe! – As duas se abraçam e

riem, elas se amam muito.

Olho para as duas e me sinto tão bem em fazer parte dessa família
agora, suei a camisa para conquistar a Solange e vou fazer tudo que estiver
ao meu alcance para fazê-la feliz. Mas, para o nosso relacionamento

começar com o pé direito, falta só mais uma coisinha.

— Bem, agora que a sua família já sabe sobre nós, Cariño, agora só
falta te apresentar para mis padres e o meu irmão Luiz Fernando, afinal,
você será madrinha junto comigo no casamento dele. – Jogo suas tranças

para trás e deposito um beijo no seu ombro.

— Eu vou? – Solange enruga a testa.

— Ah, mas a senhorita vai sim! E acho bom ir escolhendo um vestido


bonito, porque na próxima sexta-feira será o jantar de ensaio de casamento
do meu irmão com a família dele e da noiva e os padrinhos. – Volto a comer

o meu pudim que está uma delícia, enquanto a Solange quase cai dura da
cadeira.
Sei que talvez apresentar minha namorada para toda a família
Gonzales de uma vez pode ser um pouco assustador para ela, mas yo a amo
tanto que quero apresentá-la a todos que fazem parte do meu mundo. Além

do mais, estarei ao seu lado o tempo todo, tenho certeza de que vai dar tudo
certo.

Mesmo com todo o tumulto a semana segue, Solange no perdeu o

emprego como pensou que ocorreria, mas a diretora alertou que se ela se
envolver em mais um escândalo será demitida por justa causa. Mesmo fora

de circulação, as fotos ainda são o assunto do momento. Repórteres ficam

atrás de mim e da minha namorada em busca de uma entrevista exclusiva,

mas fugimos deles igual o diabo foge da cruz. Ainda bem que o final de
semana chegou e vamos para o nosso passeio especial fora da cidade,

espero que quando voltarmos a poeira já tenha abaixado e as coisas enfim

voltem ao normal.

Apesar dos pesares, estou feliz pelo fato de que meu namoro com a

Solange no é mais segredo. No precisamos mais sair escondidos da família

dela e isso é uma grande conquista, sinto que as coisas vão fluir entre nós
agora. Se o Lucas queria nos prejudicar expondo nossa vida amorosa,

apenas nos uniu ainda mais.


Valeu, otário!

— Por que tanto suspense sobre onde estamos indo? – Solange entra

no meu carro e joga no banco de trás a mochila com algumas trocas de

roupas que pedi que trouxesse, porque só voltaremos amanhã.

— Quando a gente chegar, amor, você vai saber. – Inclino sobre o

banco da minha namorada e a beijo sem pressa.

— Eu senti tanta saudade, nem parece que ontem passamos a tarde

juntos. – Morde o meu lábio inferior e puxa, amo quando ela faz isso, é tão

provocante.

— No se preocupe, mi amor, yo tenho o final de semana inteiro para

saciar toda a sua saudade. – Aperto sua bunda durinha por cima do vestido e

lhe arranco um gemido, por mim a fodia aqui mesmo dentro desse carro.

— Por que não fazemos isso agora? Podemos ir a esse passeio mais

tarde. – Enfia a mão dentro da minha calça, essa mujer no brinca mesmo em
serviço.

— De jeito nenhum, mocinha! Te prometi um final de semana

incrível e yo sempre cumpro minhas promessas, então vamos nessa porque


estamos indo para Petrópolis e a viagem vai ser longa. – Prendo o seu cinto.

Volto para o meu banco e ajeito o pau semiereto dentro da calça e


dirijo tentando prestar atenção na estrada, e no na Solange me provocando o
tempo inteiro durante o caminho, ela se diverte em me deixar à beira da

loucura só com as mãos e a boca.

— Já chegamos? – Levanta limpando a borda da boca com o polegar,


ela acabou de fazer um boquete em mim enquanto dirigia pela serra

montanhosa.

Solange gosta mesmo de brincar com o perigo, sorte a dela que sou

um ótimo motorista.

— No! Mas falta pouco agora. – Mexo no banco enquanto a


adrenalina baixa no sangue, minhas mãos agarram o volante com tanta

força que parece que vou arrancá-lo fora.

Saio do asfalto e entro em uma estrada estreita de terra que é só ao

alto e avante, quanto mais subimos mais a vista fica bonita. Solange joga a

cabeça para fora da janela e fica sorrindo sozinha, sabia que ia curtir o
passeio em meio à natureza, esse tipo de aventura é bem a cara dela.

— Uma cabana no topo da montanha? Sem sinal de celular,

simplesmente amei! – Bate palminhas de excitação quando estaciono o


carro em frente à pequena casa de madeira, o vento aqui no alto é mais forte

e assobia nos nossos ouvidos.

— Sim! E pode ir trocar de roupa e colocar algo mais confortável

porque vamos fazer uma trilha, espero que no esteja enferrujada porque
vamos de moto.

Aponto para as duas máquinas estacionadas próximas à porta da

frente, quando a Solange vê as motos ela literalmente pula do carro.

— Eu não acredito que você fez isso, Gonzales. Essa é a minha moto

que vendi há um ano, como conseguiu encontrá-la? – Abraça o motor em

lágrimas, sabia que ficaria feliz com o presente.

Dona Cátia me contou que o que mais magoava ela era o fato da filha

ter vendido a moto que tanto amava e levou um tempão para juntar o

dinheiro e comprar à vista por uma mixaria para poder ajudar pagar a dívida
do pai. Isso me deixou destruído e desde então comecei a saga para

conseguir encontrar a moto. Foi difícil pra cacete, o cara que comprou

vendeu para outro que vendeu para outro e virou uma teia de aranha. Mas

consegui encontrar, tive a sorte de que no a danificaram em nada.

Mesmo assim, levei a moto no mecânico para fazer uma revisão e

mandei encher o motor para cortar esse vale de cima a baixo hoje e amanhã,
na melhor trilha que a Solange já fez na vida. Esse lugar onde a trouxe é

próprio para isso, estrada boa e com uma vista esplêndida.

— Deu um pouco de trabalho e levou mais tempo do que esperei para


encontrá-la, Solange. Mas vendo a sua felicidade agora, todo esforço valeu
a pena. – Escondo as mãos nos bolsos e fico olhando-a encher a moto de

beijos, estou começando a ficar com ciúmes das duas juntas.

— Eu amei a surpresa, Gonzales. Muito obrigada, eu te amo muito. –


Pula em cima de mim com tanta intensidade que caímos nós dois no chão e

ela enche meu rosto de beijos, realmente está feliz com a surpresa.

Se tem uma coisa que aprendi com a Solange, é que ela é intensa em

todo tipo de sentimento, vivenciando-os com todas as suas forças. Seja no

ódio, amor ou na felicidade. Ah… E no vamos esquecer da cama. Ela se

entrega totalmente na hora do sexo sem nenhuma reserva.

— Se me ama tanto assim, vem aqui me dar um beijo. – Faço charme

cerrando nossos lábios.

—  Eu te dou quantos beijos quiser, Gonzales! Você tem me feito tão

feliz nas últimas semanas, sinto que estou vivendo um conto de fadas. –

Apoia a cabeça sobre o meu peito.

— Me sinto da mesma forma, Cariño. – Seguro seu queixo e ergo seu

rosto para que olhe para mim. – Mas agora vai se trocar para nós dois nos
embrenharmos nesse vale sem hora para voltar, mas seja paciente com o seu

namorado porque ele no é nenhum mestre em pilotar motos. – Torço o rosto

em uma careta engraçada.


— Está bem! Vou colocar uma calça e uma jaqueta, volto em cinco

minutos. – Prensa os lábios nos meus e sai correndo animada.

Cinco minutos depois Solange está de volta, pula em cima da moto e

acelera. Nos divertimos muito na trilha pelas montanhas, minha namorada é

competitiva e sempre fica na minha frente. Voltamos para a cabana só à


noche, sujos de poeira, exaustos e famintos. Tomamos um banho quentinho

e cozinhamos algo para comer enquanto degustávamos um bom vinho

sentados no tapete em frente à lareira, no topo da montanha em Petrópolis.


Fomos embora só no domingo à tarde, foi muito divertido passar esse

tempo apenas nós dois, longe de tudo e de todos.

Mas como nem tudo na vida é só amor, a segunda-feira veio como um


choque de realidade de duzentos volts. Vou trabalhar bem cedo, nunca

tivemos tantos clientes de uma vez só e yo e a minha equipe vamos ter que

rebolar para dar conta.

— Hoje o dia vai ser bastante longo – resmungo ao entrar na minha

sala, tem uma pilha enorme de relatórios sobre a minha mesa para ler e
assinar folha por folha.

— Bom dia, chefe! Chegaram mais esses relatórios agorinha para o

senhor analisar. – Minha secretária traz mais algumas dúzias de pastas.

— Obrigado, Carina, pode me trazer um café bem forte, por favor?


— Como quiser, senhor, deseja mais alguma coisa? – Pega a
caderneta e a caneta no bolso do paletó do terninho azul pronta para anotar,

ela é chata às vezes, mas é muito eficiente.

— Que no deixe ninguém me incomodar hoje, no saio dessa empresa

enquanto no analisar todos esses relatórios.

— Não vou deixar que ninguém passe por essa porta, chefe. Prometo!

– garante confiante e vai embora ajeitando alguns fios loiros do seu cabelo

preso em um rabo de cavalo.

Menos de cinco minuto depois…

— Então quer dizer que você e a xoxota de ouro se acertaram de vez?


Parabéns, cara. – Promotor Pedro entra no meu escritório desfilando sem ao

menos bater na porta antes, que abusado.

O que esse mala sem alça está fazendo aqui, porra? E como sabe que
yo e a Solange estamos juntos? Aposto que foi o fofoqueiro do John, depois

que saí da casa da Solange liguei para ele e contei as novidades.

— Sim, nós estamos juntos. Aposto que foi o Thompson que passou a
notícia para você.

— O próprio! – Arrasta a cadeira na frente da minha mesa e se senta

totalmente à vontade.
— Posso saber por que deu o ar da graça no meu local de trabalho,
promotor Pedro? – pergunto sem parar de ler o meu relatório, espero que a
ficha dele caia e vá embora logo.

— Pode ficar tranquilo que não é para falar da sua namoradinha, hoje

sou eu que preciso desabafar com alguém. – Coça a nuca em um suspiro


profundo.

— E yo com isso, Pedro? – Arqueio a sobrancelha.

— Nossa, Gonzales, é assim que trata os seus amigos? – dramatiza.

— Yo no sou seu amigo, hombre de Dios, no delira.

— Que espanhol sem coração, fiquei até magoado agora. – Coloca a


mão no peito fingindo estar com os sentimentos feridos.

— Yo até tenho corazón, mas ele já tem dona. Então, cai fora. –
Aponto na direção da porta.

— Ah, vai se ferrar, cara, eu devia ter procurado o Thompson para

desabafar.

— Também acho, quer que yo ligue para ele? – Tiro o telefone do


gancho.

Pedro pega um bloco de notas sobre a minha mesa e joga na minha

cara, no sei por que tanta violência.


— Maldición! Fala logo, porra! Depois vai embora. No tenho o dia
todo. – Marco a página do relatório que estava lendo e guardo na gaveta,
enquanto yo no ouvir esse cara, ele no vai me deixar em paz.

— Valeu, irmão! Não sei o que está acontecendo comigo, sinto como
se estivesse enlouquecendo por causa desse assassino em série. – Desvia o
olhar, sua postura muda drasticamente de brincalhona para tensa.

— Já pensou em procurar uma psicóloga? Mi madre é uma das boas,


se quiser te passo o número dela… – Paro de falar quando ele me fuzila
com o olhar. – Desculpe, Pedro. – Faço sinal para que prossiga.

Ajeito as costas na cadeira sem paciência, alguma coisa me diz que


essa conversa vai ser longa.

— Estou trabalhando junto com a inteligência especial na


investigação desse caso e, sinceramente, não sei se vamos conseguir pegar

esse cara. Ele é bom no que faz. Muito bom. Está sempre um passo à nossa
frente. – Desliza a mão pelo rosto tomado por linhas de puro tormento, ele

realmente no está bem.

— Yo no imaginava que a coisa fosse tão séria, Pedro, no tenho


acompanhado muito as notícias sobre esse caso.

— A polícia tem escondido muita coisa da mídia, principalmente o

número de vítimas. Essa semana mesmo acharam o corpo de número 28 e


não saiu nada nos jornais ainda. – Bate a mão fechada em punho sobre a
mesa extravasando a sua fúria, sua pele está avermelhada, parecendo uma

bomba prestes a explodir.

— Já sabem quem é a vítima?

— Sim, Gonzales. Ela morava nas ruas, só tinha dezesseis anos e já

trabalhava na prostituição. – Baixa o olhar e faz uma pausa.

— Dezesseis anos? Que triste.

— O nome dela era Valentina, cresceu em uma família desestruturada


e sofreu abuso do pai e do tio por pelo menos a metade da sua vida, foi por

isso que fugiu de casa e foi morar nas ruas. — Faz uma pausa e esfrega os
olhos como se quisesse conter as lágrimas, tem cara de ser o tipo que chora
fácil.

— E onde estava a madre dessa chica no meio de toda essa história


bizarra?

— Em qualquer lugar menos cuidando da filha. Quando fui essa

manhã com o delegado Avilar pessoalmente para dar a notícia da sua perda,
encontramos a mulher bêbada, que apenas riu na nossa cara e disse:

“Bem que aquela putinha sempre dizia que não chegaria aos
dezessete anos, mas não vou arcar com as despesas do velório. Se quiserem

podem enterrar como indigente, eu não ligo.”


— La puta madre! – xingo em espanhol, agora entendo toda a raiva

do Pedro.

Essa pobre garota veio ao mundo apenas para sofrer, espero que esteja
em um lugar melhor agora. Mas creio que isso no seja possível até que o

assassino dela seja pego e pague no somente pelo seu assassinato, mas
também de todas as outras mujeres que ele tirou a vida.

— Pois é! Uma filha da puta da pior qualidade, se não fosse uma

mulher tinha dado uma surra nela. Sei que não é certo um promotor se
envolver tanto emocionalmente com um caso, mas o jeito que essa menina
viveu e morreu foi desumano. – Tira um envelope do bolso de dentro do

paletó e me mostra as fotos da cena do crime, no consigo olhar por muito


tempo.

O rostinho angelical da garota fora destruído, tinha mais partes roxas

do que a cor natural da pele. Os olhos dela estavam abertos em uma


expressão perturbadora de medo, ela deve ter sofrido muito nas suas últimas
horas de vida.

— Concordo plenamente com você, Pedro. Ela no merecia isso, era

quase uma criança.

— Exatamente por isso não posso deixar que ela seja enterrada como
indigente, vou pagar todos os custos para que ela tenha um velório decente,
mesmo que só eu, um estranho, seja o único presente para me despedir dela.
– Baixa a cabeça com os olhos cheios de lágrimas.

— No vai ser o único presente no velório, porque yo estarei lá com

você e faço questão de ajudar nas despesas. – Levanto e pego o meu paletó
nas costas da cadeira, visto e saio andando.

Mas o Pedro continua sentado com a mesma cara de sonso de sempre,


ele me irrita demais.

— Você vem ou no, cara? Já disse, no tenho o dia todo – grito já do


corredor.

— E depois ainda diz que não é meu amigo, hein, espanhol? Sabia

que me amava. – Vem correndo atrás de mim e agarra o meu pescoço, agora
que esse mala no vai me deixar em paz mesmo.

Mas sou obrigado a admitir que a sua atitude em relação à morte da

jovem é muito nobre, poucos fariam o mesmo no lugar dele. Por isso, no
poderia deixá-lo sozinho nessa, mesmo que o Pedro seja um pé no saco.
Fizemos questão de passar em uma floricultura e comprar flores para levar

para a Valentina, pensamos que provavelmente ela nunca ganhou uma única
rosa em vida, então compramos dezesseis arranjos, um para cada ano que
viveu.
Deu um pouco de trabalho, mas conseguimos um padre de última
hora para fazer a missa só conosco presentes no velório. Yo só vi o caixão

de longe, no tive coragem de ver a garota e saber de tudo o que essa coitada
passou na vida, mas o Pedro ficou ao lado dela a todo momento e fez um
discurso no improviso que me deixou emocionado.

“Infelizmente não tive a oportunidade de conhecer a Valentina com

vida, mas com o pouco que pesquisei sobre ela descobri que era uma
garota linda de olhos verdes tristes que não conheceu nada desse mundo

além de dor e sofrimento. A família, que deveria tê-la protegido de todo o


mal do mundo, a abandonou até depois da morte. Viraram as costas para
ela, assim como essa sociedade podre que não fez nada para ajudar essa

pobre garota a sair da lama em que a afundaram. Ao contrário, usaram o


seu corpo de todas as maneiras possíveis até ela achar nas drogas o único
acalento para toda a sua dor.

Sinto muito por eu ter chegado tarde demais e não ter mostrado para
essa jovem que a vida pode sim ter cores e ser bela, com pessoas boas de
verdade ao nosso lado. Mas essa história não acaba aqui porque eu,

Promotor Pedro Alcântara, juro que não vou desistir até pegar esse
assassino e fazer justiça pela memória não apenas da Valentina, mas por
todas as mulheres que tiveram suas vidas ceifadas por esse monstro.
Algumas pessoas são honradas em vida, outras infelizmente só depois da
morte.”

E assim ele conclui de punhos cerrados rente ao corpo, até o padre


fica tocado com as suas palavras. No final da missa, ajudamos o pessoal da
funerária a carregar o caixão e só fomos embora depois do enterro, ficamos

com a Valentina até o último segundo.

— Valeu pela força, irmão, eu estava errado quando disse que não
tinha um coração. Você tem sim e dos grandes, só é um pouco rabugento.

Melhor dizendo, muito rabugento. – Me empurra enquanto andamos para


fora do cemitério.

— Agora espero que você me deixe trabalhar em paz, seu cuzão, e no

apareça mais no meu escritório sem avisar antes. – Entro no meu carro e
bato a porta.

— Eu também te amo, espanhol. – Acena para mim, zombeteiro.

Mostro o dedo do meio para o Pedro pela janela do carro, coloco os

meus óculos escuros e giro a chave do carro e acelero, o deixando para trás.
Minha reserva de bondade acabou por hoje, hora de voltar ao trabalho.

 
Paula
 

— Droga, Valentina! Onde você está? Caralho! – Chuto o chão

quando a ligação cai na caixa-postal de novo, faz mais de uma semana que
não consigo falar com essa garota e estou preocupada pra cacete.

Conheci Valentina há alguns meses batendo ponto no mesmo

calçadão que eu. Por ser novata naquela área as outras meninas começaram
a implicar com ela. Sendo novinha e muito bonita, chamaria a atenção de
todos os clientes. Entrei na briga e a defendi daquelas vadias invejosas, o

sol brilha para todo mundo até no mundo da prostituição. Acabamos nos
tornando amigas depois disso, me apeguei à garota quando me contou sua

triste história de vida. A família dela consegue ser pior que a minha, só
viciados em todo tipo de drogas e abusadores. Tanto que uma adolescente
preferiu fugir e morar na rua do que com as pessoas do mesmo sangue.

Fiquei com pena de ver a Valentina morando na rua porque já passei

pelo mesmo, só que no meu caso foram os meus pais que me expulsaram de
casa quando contei que estava grávida. Sem ter para onde ir e com fome, foi

assim que conheci o mundo da prostituição e sigo nele desde então. Sei que
muitos me julgam por ter escolhido o “caminho mais fácil”, como a maioria
enche a boca para jogar na minha cara quase que diariamente. Mas nenhum
deles nunca se ofereceu para pagar um boleto para ajudar. Por isso, que se
dane a opinião dos outros, não faço mal a ninguém e pago todas a minhas
contas em dia.

Quem não gosta de mim? Que enfie a língua no cu e se foda. Odeio


essa vida de calçadão mais do que ninguém, porém não me arrependo de
nada que fiz para criar a minha filha e dar a ela tudo que eu não tive. Faria

tudo novamente um milhão de vezes pela Maria, estou juntando dinheiro


para comprar a nossa casinha e sair daquele prédio caindo aos pedaços.
Falta pouco agora, depois começo a juntar dinheiro para o estudo da minha

garotinha.

Ela ama animais e sonha em ser veterinária, está para completar seis
aninhos em breve e já sabe o que quer da vida.

Essa é a minha garota!

— Você não conseguiu falar com a tia Val, mamãe? Estou com
saudades dela. – Maria para de brincar com a sua boneca e me encara
tristinha, estamos sentadas no ponto de ônibus para ir para a sua escola.

Com a Valentina morando lá em casa nos últimos meses as duas se


tornaram amigas, ela tem muita paciência com a minha filha e a trata e
protege como se fosse sua irmã caçula. É uma boa garota, só está meio

perdida, tenho a aconselhado a largar as drogas e voltar aos estudos. Não é


nem maior de idade ainda e tem a ficha suja na polícia, estou disposta a
ajudá-la no que for preciso para que arrume um emprego decente e tenha

uma vida diferente da minha, que já dura tantos anos.

O meio da prostituição não tem nada a ver com uma vida fácil como
as pessoas pensam, está mais para uma prisão sombria e perigosa que

depois que se entra, são poucos que conseguem sair a tempo, e ainda assim
carregam os traumas para sempre. Para piorar, agora tem esse assassino em
série de prostitutas à solta, continuo trabalhando normalmente porque não

posso ficar parada ou nunca vou ter dinheiro suficiente para comprar a
minha casa.

Sou puta de rua há muito tempo e conheço bem a maldade humana, já

me safei de cada enrascada na mão de cliente maluco que nem sei como
ainda estou viva. Por isso já faço aulas de boxing há três anos, sei defesa
pessoal e pratico exercícios físicos com frequência. Então, sim! Sei muito

bem me cuidar sozinha, tenho uma resistência física para dor invejável. O
que me preocupa mesmo é a Valentina, que não sabe porra nenhuma sobre a
vida, o que faz dela um alvo fácil para esse psicopata. Ela é tão meiga e

delicada, não combina com esse mundo de horrores.

Eu só estou tranquila porque sei que não aconteceu nada de grave


com ela, porque se tivesse acontecido já teria saído no jornal há muito

tempo. Esse assassino é diferente dos outros, ele gosta de mostrar as suas
vítimas ao mundo assim que as mata e não as mantém escondidas. Valentina

deve estar se drogando na casa de algum dos seus amigos, não é a primeira
vez que ela some por dias e depois volta como se nada tivesse acontecido.

Daqui a pouco essa maluquinha dá as caras, mas dessa vez vou dar
uma bronca feia nela. Porra! Podia pelo menos ter enviado uma mensagem.

— Ainda não, querida, mas prometo que logo a tia Val aparece. Está
bem? – Sorrio para o meu nenezinho lindo, tiro um elástico do pulso e
prendo o seu cabelo juntando a montoeira de cachos em um rabo de cavalo

alto.

Sou branca do cabelo preto liso escorrido na altura da cintura, já a


minha filhota puxou o embuste do pai dela que me engravidou na única vez

que fizemos sexo, e foi horrível porque eu era uma virgem idiota, mas evito
pensar ou sequer falar no nome desse ser desprezível. Apesar que toda vez
que olho para o rostinho lindo da Maria vejo ele, ela tem o mesmo tom de

pele escura, cabelo todo enroladinho e olhos castanhos expressivos.

Minha pretinha parece uma boneca de tão linda, quando crescer vai
ser uma mulher bem-sucedida e empoderada que vai me encher de orgulho.

Estou dando o meu melhor para que isso aconteça.

— Olha, mamãe, é o nosso ônibus. – Aponta para o número treze,


essa garota é muito esperta para a idade dela.
Eu a criei para ser assim.

Somos apenas Maria e eu contra o mundo todo, mas não posso ficar
com ela vinte e quatro horas por dia, por isso a ensino a se defender sozinha
caso aconteça algo quando não estou perto.

— Vem, meu amor, fica aqui pertinho da mamãe. –Ajeito a mochila


da Maria nas minhas costas e entro com ela no colo, só tem um banco
vazio, então sentamos juntas.

Tem um grupo de homens no fundo do ônibus que começam a rir e


cochichar quando me veem, um deles já foi meu cliente e deve estar
contando vantagem.

— E aí, Paulinha, se eu indicar os seus trabalhos sexuais para os meus

amigos aqui a gente ganha um desconto? – grita o babaca de mais de trinta


anos com esse visual no estilo Justin Bieber, não sei como consegue

enxergar com a franja sobre os olhos.

Eu nem dou confiança, ajeito o vestidinho rosa da Maria sentada no


meu colo, agindo normalmente como se não tivesse falado comigo, o único
problema é que esse tipo de cara que gosta de contar vantagem não desiste

fácil.

— Vai bancar a difícil agora, piranha? Mas na hora que vê as notinhas


azuizinhas de cem na minha mão fica toda mansinha, faz tudo que o papai
aqui manda. – Joga uma bucha de papel nas minhas costas, logo em seguida
começa o coral de risadas.

Respira fundo, Paula! Faltam só mais dois pontos de ônibus e depois

é a sua parada.

— E essa menininha linda com você, é sua filha? Bonitinha ela, vai
dar uma ótima herdeira do seu lugar no calçadão. – O verme ousa mexer no
meu ponto fraco.

Olho para baixo e vejo o olhar confuso da Maria, sem entender por
que viramos o centro das atenções de todos os passageiros do ônibus.

Mas eu entendi. Perfeitamente!

— O que acha de ouvir música no celular da mamãe, filha? – Coloco


os meus fones de ouvido nela. – Agora fecha os olhinhos e só abra quando

eu mandar, esse é um jogo novo que se ganhar leva um prêmio no final. –


Ela assente animada já de olhinhos fechados, aumento o volume no último.

Abro a mochila da Maria e pego o lápis com a ponta mais fina que

encontro, deixo ela sentadinha no banco virada para frente e vou para cima
do desgraçado no fundo do ônibus. Se ele queria a minha atenção, agora ele
tem.

— Se você até mesmo olhar na direção da minha filha outra vez, eu te


mato!
Finco o lápis no peito dele com toda a minha força, que fura a camisa
e afundo na carne o máximo que consigo, todo mundo fica imóvel porque
esperavam que eu fosse abaixar a cabeça e deixar que esse verme me

humilhasse só porque pagou uma vez para fazer sexo comigo.

Nem morta que isso ia acontecer!

— Você me furou, sua puta maluca, eu estou sangrando! – Entra em


pânico, os amigos dele ficam literalmente de queixo caído e sem reação.

Sou uma ótima pessoa, mas não mexam com a minha filha. Viro o
capeta em pessoa e sou capaz de morrer e matar pela Maria, mas com ela
ninguém mexe.

— Você me chamou de que mesmo? – Afundo mais o lápis no peito

dele, que berra de dor. Aproveito que o ônibus parou em um ponto e pego a
mão da Maria que ainda está ouvindo música de olhos fechados e salto com
ela assim que as portas se abrem.

Sou ovacionada por uma salva dos passageiros, é assim que sobrevivi
trabalhando nas ruas todo esse tempo. Se bater, leva com mais força ainda.
Só não fiz pior porque a Maria está presente.

— Ah! E só para esclarecer, pessoal, o pau dele é do tamanho do meu


dedo mindinho e isso quando está ereto. — Aceno rindo para o trouxa
enquanto as portas do ônibus se fecham. Sim, eu sou vingativa.
Ele tentou fazer de mim a piada da vez, mas agora estão todos rindo
dele e do seu pau pequeno, inclusive os próprios amigos.

— Já terminou o jogo, mamãe?

— Já sim, meu amor, pode abrir os olhos. – Me abaixo para ficar na


altura da minha princesa, tiro os fones do seu ouvido e beijo o seu rostinho
lindo.

— Eu ganhei?

— Ganhou sim, por isso vai poder tomar o tanto de sorvete que quiser
depois do jantar hoje à noite. – A pego no colo.

Vamos ter que terminar o percurso até a escola andando, mas o

motivo valeu muito a pena. E como.

— Eba! Amei esse jogo, amanhã podemos jogar de novo no ônibus? –


pede no seu tom inocente com os bracinhos erguidos sobre a cabeça.

— Espero que não precisemos, querida. – Faço uma careta engraçada


e ela acha a maior graça.

Maria tagarela durante todo o percurso até a escola, me conta como


foi legal passar o final de semana na casa do padrinho Léo, mas que sentiu
saudades do Marcelinho o tempo inteiro. Ela nunca mais foi a mesma
depois da morte do melhor amiguinho.
— Corre, meu amor, estão quase fechando o portão. – Saímos nós
duas correndo.

O segurança não quer me deixar entrar porque estou atrasada, mas


jogo o meu charme em cima dele e ele cai direitinho. Tenho consciência que
sou uma mulher bonita e atraente, isso facilita minha vida em vários

momentos. Estou perto dos trinta, mas o meu corpo é de vinte, nem parece
que tive uma filha. Também sei fazer com perfeição o trabalho que me
solicitam, não tenho nojo ou frescuras na hora do sexo, se me pagar bem
vou realizar todas as suas fantasias sexuais, bebê. Só não rola beijo, nem se
me pagar todo dinheiro do mundo.

Tinha que manter minha dignidade intacta de alguma forma e esse foi
o jeito que escolhi e sigo à risca, tenho os meus motivos para isso.

— Chegamos, mamãe, será que a tia Solange vai deixar eu entrar? –


Aponta para a porta da sua sala fechada.

— Não sei, meu amor, vamos perguntar para ela? — Maria assente

várias vezes.

Bato na porta e a professora mais legal, bonita e estilosa dessa escola


logo abre, sorridente como sempre.

— Olha quem chegou atrasada hoje na aula, de novo. – Toca a ponta


do nariz da Maria, que abre um sorrisinho tímido muito fofo.
Minha filha sempre diz que quando crescer quer fazer um monte de
tatuagens igual à tia Sol, eu respondo que depois dos dezoito anos, desde
que suas atitudes não prejudiquem ninguém, o céu é o limite para realizar
todos os seus desejos. E eu a apoiarei no que precisar.

— Desculpa, professora, se deixar a Maria participar da aula hoje


prometo que é a última vez que chega atrasada. – Junto as mãos quase
implorando.

Tenho um cliente muito importante para atender que paga três vezes
mais do que cobro porque gosta de discrição, como preciso da grana para
comprar minha casa, não posso negar trabalho.

— Claro que a Maria pode participar, Paula. Eu entendo que


imprevistos acontecem, não se preocupe. – Sorri simpática ao alisar a lateral
do vestido cor de laranjeira, essa mulher é mesmo um amor de pessoa.

— Muito obrigada, professora! – suspiro aliviada. – Quanto a você,


mocinha, espero que se divirta muitão na escola hoje. Não esquece que a
mamãe te ama mais que tudo nesse mundo. – Pego minha princesa no colo
e jogo para cima.

— Tchau, mamãe, também te amo! – Entra na sala correndo, percebo


que tem alguma coisa errada quando a professora encosta a porta com ela
ainda do lado de fora.
— Será que eu poderia conversar um minuto com você, Paula? –
Prende as suas tranças longas em um coque alto.

— Pode, sim! Tem alguma coisa errada com a Maria aqui na escola?
– pergunto preocupada, pela expressão dela a coisa é séria.

— Não é sobre ela que quero falar, é sobre você.

— Sobre mim? – Fico confusa, sempre fui uma mãe exemplar e


ninguém nunca poderá falar o contrário.

Venho em todas as reuniões, festinhas e até mesmo em eventos em


que não é necessária a presença dos pais. Faço isso pela Maria, não porque
gosto de vir nessa escola e ter que encarar as mães ciumentas que pensam
que já vou chegar aqui abrindo as pernas para os seus maridos. Depois que
uma mãe de um aluno descobriu que sou garota de programa, ela fez
questão de espalhar para todo mundo e transformou minha vida num

inferno.

— Não é segredo para ninguém em qual área você trabalha e não


estou aqui para te julgar de maneira nenhuma, mas tenho visto nos jornais

as notícias sobre o assassino de garotas de programa. Ele tem aumentado o


número de vítimas a cada semana, e eu tenho muito medo de que algum dia
seja a sua foto sendo exibida no telejornal – diz sem fazer rodeios, sendo
cuidadosa em cada palavra para não me ofender.
Mas eu sei que a professora Solange jamais faria isso, ela me
defendeu das outras mães quando a fofoca de que sou garota de programa

se espalhou por toda escola como um rastro de pólvora. Sei que só está
preocupada com a minha segurança, assim como todos os meus amigos. O
Léo, padrinho da minha filha, e a esposa dele, Daniele, já me imploraram
para ficar fora das ruas por um tempo, mas esse cara já está à solta matando
há mais de um ano e ninguém tem uma pista de quem ele é.

E se nunca o pegarem? Não posso ficar sem trabalhar, tenho uma


filha para criar e infelizmente não é qualquer emprego que paga o que eu
ganho. Nem terminei o ensino médio, nunca tive carteira assinada ou
experiência em nada no mercado de trabalho. Quem vai me contratar?

Ninguém! Essa é a verdade.

— Olha, professora, tenho muito apreço pela senhora e agradeço a


preocupação comigo. Mas, com todo o respeito, da minha vida cuido eu. –

Meu tom não chega a ser rude, porém sou o mais clara que posso.

— Eu entendo, Paula! Me desculpa a indelicadeza. – Me olha


envergonhada. – Só promete que vai se cuidar, por favor. A Maria é uma
menina linda e doce, precisa crescer com a mãe do seu lado.

— E ela vai, não se preocupe. Nem a morte é capaz de me separar da


minha filha – garanto segura.
Maria é a minha vida, meu amor por ela é capaz de mover montanhas.
Não tenho medo de ser pega por esse assassino em série. Ele que deveria ter
medo caso caia na burrice de me escolher para ser a sua próxima vítima,
porque vou fazê-lo provar do seu próprio veneno e torturá-lo até a morte.

 
Solange
 

Virei o assunto principal do grupo da família no WhatsApp desde o

dia que minha mãe fez a graça de enviar fotos de mim com o Gonzales e
contou do nosso namoro, a maioria levou numa boa, mas teve alguns que

implicaram pelo fato dele ser branco, já que os outros caras com quem me
relacionei antes eram todos negros, assim como todos os parceiros das
mulheres da família do lado da minha mãe. Eu respondi que o que importa é

que amo o meu namorado e ele me faz feliz, isso é mais do que suficiente
para mim. Até porque já tenho muitas preocupações no momento com esse
bendito jantar de ensaio de casamento onde vou ter que encarar todos os

Gonzales de uma vez só, sendo que mal dou conta de um.

Estou apavorada em saber que vou ser madrinha do meu cunhado que
nem conheço ainda, me preparei a semana inteira emocionalmente para esse

evento ilustre, e agora que chegou o momento quero voltar para a casa

correndo feito uma menininha assustada. E se os noivos não gostarem de


mim? E se ninguém da família do Gonzales gostar de mim? Já conheci a

mãe dele, mas agora será oficialmente como sua nora. E ainda tem o
problema dos nudes vazados, se alguém tocar no assunto vou morrer de

vergonha.
— Eu tenho mesmo que ir nesse jantar, Gonzales? – tento a sorte.

— Agora é um pouco tarde para me perguntar isso, amor. – Abre a

porta do carro para eu sair com o seu melhor sorriso galante, acabamos de

chegar na casa dos pais dele.

— Então vamos nessa e seja o que Deus quiser, espero não te

envergonhar na frente da sua família. – Respiro pesadamente.

Pela janela do carro do Gonzales, vejo a mansão de três andares onde

os pais dele moram e fico de queixo literalmente caído.

— Relaxa, Cariño, você está deslumbrante neste vestido e vai


conquistar a todos com o seu charme e simpatia. Eles vão cair de amores

por ti, assim como aconteceu comigo. – Me oferece o braço como apoio

para sair do veículo.

Achei melhor colocar um salto alto, não poderia vir em um jantar de

gala como acompanhante do meu namorado em um terno todo preto

importado, usando minhas botas velhas de couro.

Também comprei um vestido bonito de festa longo na cor vinho-

escuro e até paguei uma moça que trabalha num salão perto da minha casa

para me maquiar, ela fez um ótimo trabalho. Tudo isso só porque é apenas

um ensaio de casamento, imagina no dia da cerimônia de verdade? Já estou

até vendo, vou acordar mais cedo que a noiva para começar a me arrumar.
Nunca fui madrinha de ninguém antes, ainda mais em uma cerimônia de
luxo seguindo a cultura espanhola, preciso fazer bonito, quero deixar o meu

namorado orgulhoso de mim.

— Caramba! A casa dos seus pais parece um palácio real, e esse

jardim? Tem até um labirinto feito com cerca viva, muito lindo mesmo. –

Olho para os lados admirada durante o percurso até a entrada da frente, é

tudo bem cuidado nos mínimos detalhes.

— Mi padre que cuida do jardim sozinho, ele é um botânico

respeitado nessa área.

— Nossa! Que da hora isso, Gonzales.

— Sabia que só moram espanhóis nessa região? Antigamente era um


lugar simples só de imigrantes sem um centavo no bolso, hoje se tornou

uma vila apenas com casas de luxo. – Estufa o peito orgulhoso.

— Só hoje, contando com essa, acho que você me contou umas vinte

vezes, amor. – Beijo o seu rosto, acho bonitinho todo esse orgulho que sente

pelas pessoas e a cultura do seu país.

— Eles chegaram! – grita uma sombra na janela que sai correndo,

mas não a tempo de não ser visto por nós.

— Me desculpa por isso, Solange. Todos estão loucos para conhecer a

namorada do solteirão mais cobiçado da família, falei muito de você para


eles. – Gonzales ergue os cantos da boca no que deveria ser um sorriso

encorajador, mas só serve para me deixar mais nervosa.

Fico ainda mais quando ele abre a porta e um silêncio constrangedor

se faz presente, estão todos virados para a nossa direção e ninguém nem
respira, paralisados como se estivessem diante de alguma celebridade ou

uma aparição extraterrestre. Envergonhada, olho para baixo e confiro se tem


alguma coisa errada com a minha roupa, mas está tudo certo com o meu

vestido. Então, penso que talvez o problema esteja nas tranças, deslizo a
mão pelo penteado que fiz em formato de uma flor de outono e logo

percebo que está tudo ok também.

Acho que o problema não está na minha aparência, mas na minha

existência. Medindo pela expressão de chocados de todos os convidados,


não acreditavam que a namorada do Gonzales existia de fato. Mas aqui

estou eu, meus amores, em carne, osso e muitas tatuagens.

— Buena noche! – Pigarreia Gonzales como se estivesse com uma


bola de futebol presa na garganta, para que sua família e os demais
convidados se toquem que estão sendo inconvenientes.

Está óbvio que estavam mais ansiosos com a chegada da nova

namorada do cafajeste da família do que da noiva, isso é o que dá ser um


safado sem-vergonha, quando resolve tomar jeito na vida ninguém leva a

sério e precisam ver para crer.

— Já que temos a atenção de todos, yo quero apresentar a minha


namorada, Solange Almeida. – Enlaça os dedos aos meus, vira o rosto e

olha nos meus olhos e sorri, eu mais que depressa correspondo.

Aí que todos ficam de queixo caído mesmo, basta olhar para nós dois

juntos que se percebe que a coisa é pra valer. Passamos por muitas
provações, mas quando resolvemos aceitar esse sentimento puro ele veio

com tudo. Eu só não esperaria que isso chocasse tanto as pessoas do meio
social do Gonzales, estou começando a ficar sem graça de verdade com essa

situação. Mas já que não tem para onde correr, vou fazer bonito.

— Boa noite a todos! – inicio segura, mas em um timbre doce. – É

um prazer enorme conhecê-los depois de ouvir o meu namorado falar tão


bem de todos vocês, estou honrada de estar aqui hoje e fazer parte desse

momento importante na vida de duas pessoas que se amam – finalizo com


um sorriso gracioso, acho que mandei bem porque o Gonzales estufa o peito

orgulhoso.

— Juro por Deus que não acreditava que você fosse real, Solange. –

Uma moça bonita é a primeira a vir nos cumprimentar. – Eu sou Camila,


noiva do irmão do Gonzales.
— Infelizmente! – implica Gonzales, cheio de graça.

— Para com isso, cunhadinho, o que a sua namorada vai pensar de

mim? – Dá um tapa no ombro dele, mas ela está rindo, deve ser costume
essa implicância entre os dois.

Camila tem a aparência culta do jeito que eu imaginei, cabelo escuro

acima do ombro em cachos largos, traços finos realçados por uma


maquiagem delicada em tons claros puxados para o rosê que combina com
o vestido tomara que caia de grife cor de pele que está usando. Ela

consegue ser mais baixinha do que eu, mas é magrinha feito um palito,
parece tão frágil que se vir um vento mais forte é capaz de parti-la ao meio.

Mas não se engane, a aparência pode ser frágil, porém o olhar da


Camila é felino e cheio de atitude. Gonzales me contou que ela passou por

muitas coisas difíceis, ela é filha única e depois que a mãe morreu o pai a
abandonou quando se apaixonou por uma mulher mais jovem que só quer o

seu dinheiro. A coitada foi criada nas mãos dos outros até ter idade o
suficiente para se virar sozinha, e depois que conheceu o Luiz Fernando a

família do noivo praticamente a adotou.

— Você é tão linda e simpática, Camila. É um prazer enorme te

conhecer. – Eu a abraço e acrescento: — Muito obrigada pelo convite.


— Linda é você, mulher! Adorei seu estilo. Agora sei por que pegou
de jeito esse sem-vergonha do meu cunhado, tenho cada história cabeluda
do passado profano dele para te contar que vai te deixar de boca aberta. –

Agarra o meu braço e nós duas rimos cúmplices, menos o meu espanhol.

— Dios Santo, Camila! Nós acabamos de chegar e já está enchendo a


cabeça da minha namorada contra mim? Deixe Solange em paz, vá

atormentar outros convidados, criatura. – Faz sinal para a cunhada ir


embora, mas nós duas rimos mais ainda da sua cara azeda.

Gonzales está começando a se arrepender de ter me trazido aqui,

porque vou descobrir todos os seus podres através dos membros da sua

família.

— Posso saber por que vocês dois estão brigando dessa vez, amor? –

Um rapaz de camisa azul e calça social clara se aproxima de nós, passa o

braço em volta do ombro da Camila e os dois se beijam apaixonadamente.

Esse é o irmão do meio do meu namorado, eles são completamente

diferentes fisicamente. Luiz Fernando usa óculos de grau, tem o tom de pele

mais claro e o cabelo encaracolado e volumoso. Sua voz é doce e suave e


combina com a sua postura séria e não brincalhona como a do Gonzales,

que faz a gente rir sem precisar abrir a boca.


— Não estamos brigando, Nando, eu só estava me apresentando para

a namorada do seu irmão. Ela é maravilhosa! – elogia Camila e eu fico


constrangida, dou um passo para o lado e seguro a mão do meu namorado.

— Que bom que vocês duas já estão se dando bem, querida. – Beija o
rosto da noiva. – Mas agora é a minha vez de conhecer a minha cunhada,

prazer, Solange, yo soy Luiz Fernando, irmão desse mala aqui. – Aperta

minha mão e me oferece um sorriso acolhedor, ele também não perde a

oportunidade de implicar com o irmão.

Aliás, Luiz Fernando faz sinal com a cabeça para o irmão tipo:

“Gostei dela”, Gonzales desfaz a cara feia e abre um sorriso que mostra
todos os dentes.

— O prazer é todo meu, Luiz Fernando. Você e a Camila fazem um

lindo casal – elogio sincera.

— Assim como você e o Alejandro, bela chica.

Comenta um senhor de boa aparência que aparece em um terno de

gravata borboleta, as mãos estão juntas atrás do corpo e as sobrancelhas

grossas erguidas. No canto da boca, debaixo do bigode enrolado nas pontas,

está o charuto aceso. Ninguém precisou dizer nada, já sabia que é o pai do
Gonzales. Porque os dois são idênticos, principalmente a postura viril ereta,

pele bronzeada e o sorriso charmoso de galã de novela mexicana.


Meu sogro lembra muito aquele ator que fez o Zorro, o Antonio

Banderas. Ou seja, um coroa muito gato, minha sogra está muito bem-

servida.

— Então, Solange, esse é mi padre, Antônio Gonzales.

— Muito prazer, senhor Antônio. – Ergo a mão para cumprimentá-lo,


mas o meu sogro me puxa para um abraço esmagador e facilmente me

ergue do chão.

— Coloca a nossa nora no chão, Antônio, no queremos assustar a


moça logo na primeira visita na nossa casa. – Sua esposa vem ao meu

socorro, tão elegante quanto o esposo em um vestido salmão longo ao ponto

de arrastar no chão.

— Oi, Carmem, que bom vê-la novamente. A sua casa é realmente

linda.

— Obrigada, querida! Bom ver você também, bem-vinda à nossa

família. – Enche meu rosto de beijos.

Não me surpreendo, sei que os espanhóis raiz são assim mesmo,

gostam de saudações acaloradas.

— Muito obrigada, a senhora é um amor.

— Você que é um amor, Solange. – Me abraça com ternura. – O amor

da vida do meu primogênito.


— Que espero estar se casando logo depois do Luiz Fernando, no é,

filho? – Antônio dá três tapinhas nas costas do filho.

— Por mim casamos hoje mesmo, é só a Solange dizer sim. – Meu

namorado pisca para mim com todo o seu charme.

— Gostei da atitude, cunhadinho. – Camila bate palminhas curtas

animada e puxa um coral de risadas, já vi que ela faz o tipo casamenteira.

— E a Lupita, onde está? — Olho para os lados, não a vi desde que

cheguei.

— Yo estou aqui, Sol! – Acena do topo da escada e, ao invés de

descer os degraus como uma pessoa normal, desliza pelo corrimão até o

primeiro andar com o seu vestido rosa pomposo.

— Oi, baixinha, como você está linda com esse vestido de princesa. –

Inclino para falar com a espanholinha, que se pendura no meu pescoço.

— Mamá e a Camila me obrigaram a usar essa coisa cafona, mas me

prometeram um presente depois, então está tudo bem. – Dá de ombros.

— Você está linda assim, Lupita, mas agora solta o pescoço da


Solange porque yo quero apresentar minha namorada para os outros

membros da nossa família. – Gonzales agarra a minha mão e sai me

puxando em meio aos convidados, em um tour pelo evento.


Todo mundo está sendo muito gentil comigo, exceto por uma tia do

Gonzales que não para de me olhar de cima a baixo com uma expressão de

recalque. Ela mora na Espanha e veio para o Brasil só para o casamento, é

aquele tipo de parente chato que comparece aos eventos da família apenas
para reclamar de tudo e todos.

— Gonzales saliendo? Pensé que ese día nunca llegaría.


Especialmente com una chica así – alfineta a tal tia Alba em um espanhol

pesado que eu não entenderia, mas apesar de não falar o idioma fluente,

entendo o suficiente para saber quando estão sendo maldosos comigo.

As palavras da velha bruxa foram as seguintes:

“Gonzales namorando? Nunca pensei que esse dia chegaria. Ainda


mais com uma mulher dessas…”

Não sei o que ela quis dizer com “uma mulher dessas”, mas creio que

o fato de eu ser negra, acima do peso e toda tatuada podem ser os motivos
da sua grosseria. Ah, e também tem o meu penteado afro, ela está olhando

com estranheza para as minhas tranças desde que cheguei.

— No seas grosseira, tía! Para mí Solange es perfecta y estoy

enamorado de ella – responde Gonzales em espanhol dizendo que está

apaixonado por mim, me defendendo da cobra.


— Perfecta? No me hace reir. – Solta uma risada sem graça alguma. –

Siempre sales com las chicas más hermosas como a Paola, y ahora te has
rebajado a eso? Que decepción. – A bruxa velha aponta para mim, rindo de

mim na minha presença.

Resumindo em poucas palavras o que ela disse, está decepcionada


com o sobrinho porque sempre saiu com mulheres bonitas igual essa tal

Paola, e agora se rebaixou namorando comigo. Gonzales chega a abrir a

boca para me defender, está vermelho de raiva. Mas o impeço cobrindo os


seus lábios com os dedos, quem vai colocar essa mulher recalcada no lugar

dela serei eu, e no idioma dela.

— Decepción es una mujer de tu edad que aún no há aprendido que


el contenido vale más que la belleza – respondo em espanhol rezando para

que tenha falado certo, tenho feito aulas online de espanhol desde que

comecei a namorar com o Gonzales.

Mas, por via das dúvidas, agarro o braço do Gonzales e puxo para

longe da tia Alba na intenção de sair por cima.

— Por favor, Gonzales, me diga que não falei nenhuma besteira –

perguntei assim que alcançamos uma distância segura.

— Se você queria dizer para a enxerida da tia Alba que decepção é

uma mujer na idade dela no ter aprendido ainda que conteúdo vale mais que
beleza, pode ter certeza de que ela entendeu direitinho o recado, mi amor. –
Agarra minha cintura e puxa para si, cheio de saliência na frente dos

convidados.

— Então as aulas que tenho feito pela internet para melhorar o meu

espanhol estão valendo muito a pena, muchacho. – Jogo a cabeça para trás

em uma risada alta, sabia que seria um ótimo investimento.

— Dale! Além de linda e sexy, minha namorada é inteligente e está

aprendendo o meu idioma nativo. – Me beija escandalosamente, ele está

excitado, conheço esse espanhol safado melhor que ninguém. – Mas pode
cancelar as aulas online, porque yo serei o seu professor particular e darei

todas as matérias na minha cama – sussurra algumas sacanagens em

espanhol no meu ouvido e aperta a minha bunda.

— Vai com calma aí, bonitão. Não queremos escandalizar a sua


família bem no meio do jantar do seu irmão e a noiva dele. – Me afasto dele

e ajeito o meu vestido, está todo mundo olhando para nós.

Que vergonha!

— Está bem, amor, porém, mais tarde você no me escapa.

— Está bem, seu tarado, mas agora me esclarece uma coisa, quem é

essa Paola que a sua tia me comparou com tanta ênfase? – Ajeito o nó da
sua gravata, apertando mais que o necessário em um claro recado para não
mentir para mim.

— Ninguém importante, Solange – garante, mas a sua carranca diz o


contrário.

— Pode não ser ninguém importante, mas quero saber mais sobre
essa Pao…

— Olha quem acabou de chegar, Cariño, John e a esposa — me

interrompe e acena para o casal.

Juiz Thompson e a esposa Yudiana chegam de mãos dadas chamando


a atenção de todos, ele de terno azulado brilhoso e ela deslumbrante em um

vestido vermelho comprido e justo em suas curvas acentuadas. Primeiro o


casal cumprimenta os noivos, eles também serão padrinhos de casamento
do Luiz Fernando. Fico aliviada que eles estão aqui, assim não vou me

sentir tão perdida no meio desse monte de espanhóis.

— Vem, amor, vamos falar com eles. – Assinto, mas com um gosto
amargo na boca de que fui enrolada.

— Enfim chegamos, tia Carmem, desculpe o atraso. Eu fiquei preso

em um julgamento.

— Que isso, meu filho, o que importa é que você e a sua esposa
vieram. – Carmem recepciona o casal com um abraço carinhoso, ela é um
amorzinho de pessoa, sempre atenciosa com todos.

— Ei, irmão, por um momento yo pensei que vocês no viriam mais.


Por que no trouxeram as crianças? – Gonzales cumprimenta calorosamente

o amigo e a esposa dele, eu faço o mesmo.

— Elas preferiram ficar em casa com o tio Edmilson. Como o irmão


da Yudiana agora é um youtuber famoso e vive viajando, as crianças não o

veem com a frequência de antes e morrem de saudades – explica John.

— Edmilson, um comediante de sucesso no YouTube? Isso no é


nenhuma surpresa para mim. Aquele moleque é uma figura.

— Coloca figura nisso, Gonzales! – Yudiana gira os olhos rindo.

— Eu adoro o canal do seu irmão, Yudiana, minha mãe e eu choramos


de rir com os vídeos engraçados dele – falo em meio a risadas só de lembrar
as palhaçadas do Edmilson, não é à toa que virou um fenômeno na internet.

— Então você precisa ver o novo vídeo que ele acabou de postar
sobre uma viagem que fez pela Europa, Solange. Minha parte favorita é o
tour em Paris. – Tira o celular da bolsa a tiracolo e me mostra, nós duas

damos gargalhadas juntas assistindo.

Meu namorado e o marido dela ficam olhando para nós duas enquanto
conversam em um tom baixo, audível apenas no círculo de conversa dos
dois, fico curiosa para saber o que estavam falando. Mas deve ser algo bom,
porque estão sorrindo.

— A conversa está muito boa, mas o jantar está pronto, gente –


anuncia a noiva e vamos para o salão de festas da casa, onde um verdadeiro
banquete está à espera dos convidados.

Meu namorado e eu sentamos do lado do John e da Yudiana na mesa,


ela é um amor de pessoa, conversando comigo o tempo todo. Fico
totalmente à vontade e depois da primeira taça de vinho me solto ainda

mais, falando o tempo todo e rindo. Meu primeiro contato com a família do
Gonzales está sendo um sucesso, exceto pela tia Alba, que permanece o
evento inteiro me fitando de cara feia. Alguma coisa tem atrás dessa

implicância comigo, e tenho quase certeza que essa tal Paola tem algo a ver
com isso.

Depois do jantar os homens foram jogar pôquer no escritório,


enquanto as mulheres ficaram na sala – onde deveria ser servido um chá –,

mas até agora o que passou por aqui foram duas rodadas de shots de tequila
da boa e um rodízio de drinques de diferentes sabores que só eu já bebi uns
três. Estou com a cabeça até rodando, porém, o meu espanhol está saindo
que é uma beleza, bem que dizem por aí que o álcool te faz falar qualquer

idioma. Yudiana não saiu mais de perto de mim e sentou ao meu lado no
amplo sofá vermelho, me dando suporte com esse bando de mulheres
tagarelas, elas não param de fazer perguntas sobre a minha relação com o

Gonzales.

Teve uma prima dele que insistiu na hipótese de que sou uma
namorada de aluguel contratada para ser apresentada para toda a família no

casamento do irmão, tipo esses filmes de comédia romântica bem clichês, e


tem certeza de que depois da cerimônia nunca mais me verão outra vez. Fui
obrigada a rir na cara da moça e a tia Alba também, mas no caso da

antipática não foi porque achou graça, mas sim por deboche, e não fui só eu
que percebi porque está um clima chato.

Pela cara de cu da tia Alba, está claro para todos que na opinião dela,

se fosse para o sobrinho pagar uma mulher para fingir ser sua noiva, seria
uma sofisticada, de boa aparência e de preferência espanhola.

Velha bruxa!

— Então, Solange, por que não conta para nós como você e o

Gonzales se conheceram?

Camila pega o meu copo vazio e me entrega outro drink amarelo


enfeitado com uma rodela de laranja e uma mini sombrinha vermelha, sorvo
um gole generoso enquanto a noiva coloca as mãos no queixo e fica me
encarando como se eu fosse a estrela desse jantar, e não ela.

— Foi em uma boate, no começo achei seu cunhado meio metido,

mas depois não resisti ao charme dele e aqui estou, sentada no sofá da
minha sogra. – Sorrio para a Carmem, depois de fazer um resumo bem
curto da nossa história.

— E você acredita mesmo que isso vai durar, querida? Todos nós

sabemos que o meu sobrinho no é o tipo de hombre que se contenta com


uma mujer só – tia Alba ataca novamente, sentada na poltrona de frente

para mim com as pernas cruzadas e segurando sua taça de champanhe com
o dedo arrebitado.

Ela não bebe nenhum outro tipo de bebida, só champanhe de uma


marca específica e cara. Fez questão de repetir isso várias vezes, como se

fosse superior aos outros convidados e merecesse tratamento especial. São


evidentes os traços narcisistas nela, quase consigo ver o veneno escorrendo
do canto da sua boca toda vez que olho para ela.

— Isso era antes do seu sobrinho me conhecer, tia Alba. Pode ter
certeza de que eu supro todas as “necessidades” dele de tal maneira que não
sobra espaço nem para lembrar que existem outras mulheres, ele só tem

olhos para mim. – Jogo uma piscadela bem irônica na direção dela, a
melhor parte de ter álcool no sangue é que a gente fala o que pensa e dane-
se o resto.

Porque se eu estivesse sóbria, nem em um milhão de anos daria uma

resposta tão ousada na frente da mãe do meu namorado. Contudo, ela não
demonstra estar nem um pouco incomodada com a minha resposta, ao
contrário, sorri orgulhosa. Percebeu que não sou o tipo que leva desaforo

para casa, quem quiser me provocar vai ter que aguentar o tranco depois.

— Dale chica! Essa é a minha nora, pegou o meu filho de jeito e no


vai deixar escapar. – Carmem ergue a sua taça. – Um brinde à Solange, que

muito em breve também fará parte desta família.

— Se yo fosse você no seria tão otimista assim antes da hora,


Carmem, seu filho por acaso já contou para a namorada dele sobre a…

— Já chega, Alba! Você é irmã mais velha do meu marido e yo


sempre te respeitei muito, mas no acha que já se intrometeu o bastante na
vida amorosa do meu filho? – Carmem eleva a voz e a cunhada contorce o

rosto.

— No precisa ser grossa, Carmem, só estou sendo sincera. – Joga o


cabelo para trás bancando a ofendida.

— No, querida, você está sendo chata. Por isso, peço que pare com

essa implicância com a namorada do Gonzales, nunca o vi tão feliz como


está agora e quero que continue assim. – Carmem vira todo o seu drink em
um gole só, com o rosto vermelho como se estivesse pegando fogo.

— Bem, eu acho que está faltando um pouco de animação por aqui, o


que acham de colocarmos uma música?  – Camila tenta tirar o clima tenso
que se instalou no ar, as madrinhas dela não param de cochichar entre si.

— Yo adorei a ideia, minha linda. Vou pegar a caixa de CDs de


lambada que tenho guardada, volto em um minuto. – Carmem deixa a sua
taça vazia sobre a mesinha de centro e sai apressada escondendo o rosto,

por um segundo penso que está chorando.

Camila sai disparada logo em seguida atrás da sogra também com


uma expressão estranha, isso apenas reforça a minha suspeita de que tem

uma coisa muito estranha acontecendo aqui.

— Não fica preocupada, Solange, meu marido já tinha comentado


comigo que essa tia do Gonzales é uma cobra que adora implicar com as

pessoas. – Yudi toca o meu braço e sorri em sinal de apoio, por mim ia
embora agora mesmo.

— Ela está me provocando desde que cheguei, sem nenhum motivo,


como se quisesse me dizer algo, mas fica fazendo rodeios só para me

torturar. – Olho na direção da tia Alba, ainda com aquele ar de


superioridade, analisando tudo à sua volta cheia de desprezo.
— Olha, Solange, vou ser bem sincera com você. Se ficar bolada

assim toda vez que um parente do seu namorado te olhar torto ou jogar
indiretas, a relação de vocês não vai para a frente nunca. Estou te falando
isso porque algumas pessoas da família de “sangue azul” do meu marido

não aceitaram muito bem o fato de eu já ter sido stripper, até hoje tentam
fazer a cabeça dele contra mim. – Brinca com o mini guarda-chuva na sua

taça, totalmente à vontade falando de um assunto que deveria chateá-la.

— E como você faz para lidar com isso, Yudiana? Parece ser muita
pressão entrar em uma família rica.

— Levo numa boa, sabe? Não deixo isso tirar o meu sono. Se não

gosta de mim, foda-se! Nem Jesus agradou todo mundo. – Dá de ombros.


— E se o John quiser me deixar por dar ouvido a fofocas, já vai tarde. Eu
amo esse homem, mas me amo muito mais para sofrer por alguém que não

confia em mim. – Sorri maquiavélica, essa mulher é muito foda.

— Quando eu crescer quero ser igual a você, Yudi – brinco e ela ri


mais ainda.

— Eu sei que é um peso enorme namorar alguém com a fama de


pegador do Gonzales, mas se vocês não criarem um elo forte de confiança
entre os dois isso nunca vai funcionar.
— Você tem total razão, Yudiana, muito obrigada pelos ótimos
conselhos. Até me sinto melhor agora. – Pego outro drink na bandeja e faço
um brinde com ela, sinto que seremos amigas próximas daqui para frente.

— Estou de volta, animadas para dançar, meninas? – Camila balança


a caixa de CDs debaixo do braço, minha sogra aparece logo em seguida,
mais calma e com a maquiagem retocada.

— Eu estou e a Solange também, vamos colocar para quebrar!


Uhuuu! – Yudi me puxa do sofá e ergue a minha mão me obrigando a girar
o corpo, ela quer me animar.

— Você que entende tudo de dança, Yudiana. Vem aqui na frente

ensinar alguns passinhos para nós. – Camila coloca a lambada para tocar, a
dança proibida famosa nos anos oitenta.

— Mas é claro, Camilinha! Bora lá, adoro esse ritmo quente. – Mexe

o corpo sensualmente e vai até o chão, mas acaba caindo de bunda no tapete
marrom da sala porque está um pouco bêbada.

Todas começamos a rir e a Yudiana também, o clima divertido voltou

novamente. Ainda mais que a tia Alba foi embora de fininho sem que
ninguém visse, até o ar ficou mais leve sem a presença dela no ambiente.

— Vocês jovens no entendem nada de lambada, vou mostrar como se

faz. – Minha sogra pega o meu copo de bebida da minha mão e vira em um
gole só e me devolve vazio, ela amarra a saia do vestido de maneira que
suas pernas ficam livres e vem para o meio da sala.

Carmem dá um verdadeiro show de lambada, com movimentos leves

e sensuais na medida certa. Começamos a bater palmas para ela e assobiar,


fazendo uma verdadeira festa. Acabamos nos juntando à minha sogra, todas

dançando e se divertindo muito juntas. Nossa farra chama a atenção dos


homens que ouviram a música do escritório e pararam com o poker e
vieram para a sala, Gonzales foi o primeiro a chegar.

Meu namorado fica parado na porta com as mãos escondidas no bolso

me olhando dançar lambada, sua expressão não poderia ser mais sexy, olhar
maroto e o bendito sorriso de canto que te faz chorar e não é pelos olhos.

— Vem aqui, bonitão – o chamo com o dedo indicador para vir

dançar comigo.

— Só se for agora, Cariño. – Caminha na minha direção balançando


os ombros de um jeito engraçado, ele não cansa de fazer graça.

Gonzales agarra a minha cintura por trás e mexe o corpo no mesmo


ritmo que o meu, ele manda bem na lambada, acho que está no DNA da
família. Porque o meu cunhado também está mandando super bem

dançando com a sua noiva, meu sogro então, está dando um verdadeiro
show de técnica com a esposa.
— Está se divertindo, linda? – Apoia o queixo no meu ombro sem

parar de se movimentar, embalando nossos corpos unidos de um lado para o


outro.

— Muito! Sua família é incrível. – Menos a vaca da tia Alba, penso


comigo.

— Eles também amaram você, como yo disse, seu charme é infalível,


Solange – fala baixinho ao pé do meu ouvido.

— É. Você disse, meu amor. – Me viro de frente para o meu

namorado gostosão e deito a cabeça no seu peito.

— O que acha de nós aproveitarmos que todos estão entretidos para


dar uma fugidinha, mi amor? Quero te apresentar meu antigo quarto. –

Desliza a mão pela minha coxa de maneira indecente, levantando a barra do


meu vestido  junto, enquanto sua boca passeia pela curva do meu pescoço.

— Pensei que nunca fosse me convidar, espanhol. – Me esfrego nele


de propósito e sinto sua ereção se formando, nós dois sabemos como será

essa visitinha no seu antigo quarto, que vai terminar com ele em cima de
mim ou vice-versa.

Gonzales agarra a minha mão e subimos as escadas correndo e rindo

sem que ninguém veja, começamos a nos agarrar assim que passamos pela
porta, bêbados e cheios de tesão. Antes que eu possa raciocinar direito,
Gonzales agarra a minha cintura e me gira, obrigando-me a ficar de costas

para ele e de frente para a parede, com o rosto grudado na tinta branca.

— Olha como você me deixa, cabrona. — Ergue o meu vestido acima


da cintura e dá um tapa com força na minha bunda, que deve ter ficado a

marca dos seus dedos. Cubro a boca para não soltar um grito e todos na
casa ouvirem.

Não satisfeito, Gonzales segura a sua ereção e bate contra os dois

montes maciços, ele está muito excitado e eu também. Como não


estaríamos? O fato de podermos ser pegos a qualquer momento é algo
instigante.

— Você está usando lingerie vermelha cavadinha, hummm… Que


delícia! — Lambe um lado da minha bunda e depois o outro.

Fecho os olhos e prendo a respiração, Gonzales não para por aí, ouço

os seus joelhos tocarem o chão e então ele arrasta a minha calcinha de renda
para o lado e passa a língua por toda a minha parte íntima, e quando digo
toda, é toda mesmo.

— Ah, Cariño, mal posso esperar para comer essa sua bunda

apertadinha essa noche. — Introduz um dedo.

— Gonzales… — gemo em súplica.


Ele volta a ficar de pé e começa a alisar a minha perna e vai subindo e
subindo pela minha coxa, sem pressa, apalpando cada centímetro de um
jeito obsceno.

— Vamos ver o que temos aqui. — Agarra as minhas tranças e curva


o seu corpo sobre o meu para morder o lóbulo da minha orelha, puxando e
mordiscando de leve.

— Cacete! — solto sem querer. Quando sua mão enfim chega aonde
eu queria, já estou gotejando.

Sem muita cerimônia Gonzales começa a brincar com o meu clitóris


em movimentos circulares com o polegar; arfo de prazer, me esfregando
mais nele sem nenhum pudor. Gonzales resmunga alguns palavrões em

espanhol antes de introduzir dois dedos em mim, giro os olhos em uma


onda de prazer.

— Gosta disso, Cariño? – Me fode rápido com os dedos.

— Muito! – gemo empinando a bunda mais para ele.

— Então vai gostar muito mais disso. – Enfia o pau em mim junto
com os dedos, tudo ao mesmo tempo.

Fico ensandecida. Para eu não berrar feito uma maluca, Gonzales

cobre a minha boca com a mão livre e mete sem dó o filho da puta, me
fodendo de um jeito gostoso que só ele sabe, capaz de me fazer ver uma
constelação inteira de estrelas rodopiando à minha volta.
Gonzales

O jantar de ensaio de casamento do meu irmão foi um verdadeiro

sucesso. Como Solange e yo bebemos além da conta, nós dois passamos a


noche na casa de mis padres, onde era o meu antigo quarto. Depois de um

banho gostoso juntos, dormimos os dois nus e grudadinhos na minha cama


minúscula de solteiro. Na manhã seguinte, mamá nos obrigou a ficar para o
café da manhã em família, Luiz Fernando também dormiu no antigo quarto
dele com a noiva, que precisou ser carregada para a cama ontem, de tão

bêbada. Camila acordou com uma ressaca daquelas, sentada calada na mesa
com a cara toda amassada e os olhos vermelhos.

Já Lupita brincou tanto com as outras crianças que está dormindo até

agora, acho que no vai acordar tão cedo.

— Toma esse analgésico para dor de cabeça, Camila. Você vai se

sentir melhor, yo tomei um e já estou pronta para outra. – Mamá entrega o

comprimido para a nora, ela sempre está cuidando das pessoas.

— Acho que eu não vou estar pronta para outra tão cedo, Carmem.

Exagerei um pouco na tequila. – Solange sorve um gole do seu suco de


laranja, ela se divertiu muito ontem e isso no poderia me deixar mais feliz.
Minha namorada estava com tanto receio de conhecer a minha

família, mas yo sabia que ia tirar de letra. Todo mundo gostou dela, menos a
tia Alba que tentou destilar o seu veneno como em todo lugar que vai, mas

Solange a colocou no seu devido lugar. Estou muito orgulhoso por ela estar

se esforçando para aprender espanhol fluente; inteligente do jeito que é, em


breve vai falar melhor do que yo e poderá se comunicar com a minha

família no nosso idioma nativo.

— Exagerou nada, Cariño. Você é dura na queda. – Beijo as costas da

sua mão.

— Ahhh, que romântico, eles não são lindinhos juntos, amor? –


Camila cutuca o meu irmão.

— Até demais! Nunca imaginei ver o Gonzales nessa melação toda


um dia, o cupido te acertou em cheio, irmão – Nando zomba da minha cara.

— Acertou em cheio nós dois, maninho, esqueceu que você se casa

daqui há duas semanas? E a propósito, meus amigos e yo preparamos uma

despedida de solteiro inesquecível para você. Depois me mande a lista dos


seus amigos que gostaria que convidássemos, quanto mais gente melhor.

— De jeito nenhum, Alejandro Gonzales. Yo no quero despedida de

solteiro coisa nenhuma, ok? – fica irritado do nada.


— Por que não, amor? Achei a ideia maravilhosa, aliás, também vou
fazer a minha e você é a minha primeira convidada, Solange. – Camila bate

a mão na da minha namorada.

— Não perderia isso por nada, amiga – Solange fica animadinha.

— Você pode ter a sua despedida de solteiro se quiser, Camila, mas yo

no quero a minha e ponto final. – Aumenta o tom com a noiva pela primeira
vez.

Luiz Fernando joga o guardanapo branco que estava em sua mão

sobre a mesa, se levanta e sai irritado.

— Mas que diabo deu no Luiz Fernando? Ele no é de fazer esse tipo

de grosseria, ainda mais com visita em casa – papá fica zangado. – Peço
desculpa por isso, senhoras. Vou ir falar com ele.

— No, papá, deixa que yo falo com ele. – Me levanto apressado. – Já

volto para te levar para a casa, amor. – Beijo a boca da Solange antes de

sair.

Encontro Nando fumando um charuto no quintal, agitado, andando de


um lado para o outro, com a mesma cara azeda de quando saiu da mesa.

— Pensei que tinha parado com o charuto porque a sua noiva no gosta

do cheiro, irmão. – Pego o seu charuto e dou uma tragada, aqui em casa é
tradição entre os hombres da família Gonzales, começamos a fumar assim

que começa a nascer barba na cara.

— Camila pensa que parei, mas ainda fumo escondido às vezes,

quando estou estressado.

— E por que ficou estressado só por causa da despedida de solteiro,


cara?

— Porque no tenho nenhum amigo para convidar, Gonzáles. Está

feliz agora? Porra! – Joga o charuto no chão e pisa em cima, meu irmão
raramente perde o controle dessa forma, ainda mais comigo.

— Como assim no tem amigo, Luiz Fernando? Você é o cara mais


legal e bondoso que conheço, é bem-sucedido e vai casar com uma mulher

linda.

— Mas yo no sou extrovertido como você, Gonzales. Muito menos


bonitão e com jeito com as mujeres, as pessoas mal falam comigo desde a
época da escola. Conhecer a Camila no meu trabalho foi um golpe de sorte.

– Seus ombros despencam, ele nem consegue olhar para mim enquanto fala,
no imaginava que tem esse pensamento de si mesmo.

— No tem nada de errado com a sua personalidade, Nando. – Ergo

sua cabeça e o obrigo a olhar para mim, seus olhos estão cheios de
lágrimas. – Você só é seletivo com as pessoas que coloca na sua vida,
prefere qualidade ao invés de quantidade. Por isso nunca se meteu em

problemas e só deu orgulho aos nossos padres. Quanto a mim…

— Só faz merda! – Sorri ao enxugar as lágrimas, ele sabe o trabalho


que dei para nossos padres quando jovem. – Nem sei como virou esse

advogado de sucesso e achou alguém legal como a Solange, que te tirou da


vida de putão sem causa, às vezes ainda penso que ela no é real.

— Depois de tantas vadias interesseiras que comi, encontrar a


Solange sim foi um golpe de sorte, parceiro. – Dou um tapa de leve no seu

rosto. – Perdi tanto tempo da minha vida com mujeres erradas numa
equivocada sensação de prazer e companhia que duravam apenas uma

noche, que hoje me arrependo de ter perdido meu tempo valioso com
pessoas que na maioria das vezes no valiam a pena.

— Então você está dizendo que a minha vida solitária sem mujeres e
amigos foi melhor que a sua de farra? Desculpa, irmão, mas é difícil de

acreditar, está dizendo isso só para me fazer sentir melhor, como sempre.

— Como assim sem amigos? Pensei que yo fosse seu melhor amigo,
cabrón. – Puxo meu irmão para um abraço. – Sobre as mujeres, você só
estava guardando toda sua energia para quando a certa chegasse, e ela

apareceu e vai casar contigo em duas semanas. Então pare de lamentar o


que no tem e comece a agradecer pelo que tem nas mãos agora. – Bagunço
seu cabelo emaranhando um cacho no outro, está gritando um corte urgente.

— Você no é o meu melhor amigo, Gonzales. É o meu herói. –


Começa a chorar, é muito emotivo. — Sempre dá um jeito de me sentir

como se yo fosse especial, por isso te amo muito.

— Yo também te amo, garoto, e acho bom aceitar sua despedida de


solteiro porque já gastei a maior grana na reserva da casa noturna cinco
estrelas que vamos e no tem devolução – brinco o derrubando no chão com

uma rasteira, ele sempre cai no mesmo golpe desde pequeno.

— Yo aceito, mas só se você me ganhar nessa luta, seu idiota. — Me


prende pelo pescoço o boludo de mierda.

— Mamá, corre aqui, Gonzales e o Nando estão brigando no jardim –


Lupita grita da varanda do quarto dela só de pijama, nossos gritos devem tê-

la acordado.

Todos correm para o jardim ver o que está acontecendo, mas Solange,
Camila e nossos padres logo percebem pelas nossas risadas que só estamos
brincando feito quando éramos moleques, rolando na grama para ver quem

é o mais forte.

— Seus irmãos no estão brigando, querida, só estão brincando como


nos velhos tempos. – Mamá abraça o marido e os dois ficam rindo,
provavelmente lembrando da época em que éramos crianças.

— Então yo quero brincar com eles também! – Lupita vem correndo e

pula em cima de nós dois.

— Ah, no, Gonzales, nós no temos chance contra essa mocinha linda
aqui. – Nando pega a Lupita e arremessa no ar na minha direção, pego ela e

jogo de volta para ele.

— Vem brincar com a gente também, papá. – Lupita abre os


bracinhos na direção dele, ela no para de gargalhar e está com o cabelo todo

bagunçado para cima.

— No acham que vocês três já estão grandinhos para esse tipo de


brincadeira? Você no é mais uma bebé, Maria Guadalupe – resmunga papá,

mas vem brincar com a gente e se diverte.

Mi madre e suas duas noras sentam em um banco do jardim em meio

às flores e ficam tomando o sol da manhã enquanto fofocam, está um dia

lindo hoje. O tempo que passamos com a minha família foi incrível, mas

chega a hora de partir. Deixo Solange na porta de casa, nós dois ficamos
nos agarrando no meu carro por pelo menos meia hora antes de yo ir

embora me arrumar porque combinei de almoçar com um cliente mais tarde

e já estou atrasado.
— Santa madre de Dios! O que aconteceu aqui? –Fico assustado

quando abro a porta da minha casa, parece que um furacão passou aqui
dentro.

Minhas coisas estão todas reviradas e os móveis virados de ponta-


cabeça, percebo que tem objetos de valor faltando e as paredes todas

rabiscadas com a mesma frase:

“Você e a sua namoradinha pecadora vão ter o que merecem,


espanhol.”

Diz a frase pintada com uma tinta vermelha brilhante, só no entendi


por que se referiu a Solange como pecadora.

— Yo vou te matar, Lucas! – Fico furioso, tento ligar a lâmpada, mas

no funciona, cortaram a energia da casa e por isso o alarme no tocou.

Esse cara sabe que estou protegendo a Tess e veio aqui se vingar, no

tem outra explicação. Provavelmente conseguiu meu endereço no celular da


Solange e deve ter lido todas as nossas mensagens. Só no faço ideia de

como esse desgraçado conseguiu invadir a minha casa, moro no

condomínio mais nobre do Rio de Janeiro. Yo pensava que esse cara no

passava de um bandidinho de quinta, mas estava enganado. Ele é perigoso e


astuto.
Ligo para o delegado Avilar imediatamente e conto o que houve, ele

chega rápido com os seus homens e me encontra sentado do lado de fora. O

Lucas ainda pode estar escondido em algum cômodo da casa e armado,


então achei melhor sair e só voltar depois da vistoria dos policiais.

— Eu sinto muito pelos estragos, Gonzales.

— Tudo bem, delegado, muito obrigado por ter vindo pessoalmente. –

Olho para a minha sala que está uma verdadeira bagunça e fico mais puto

ainda. – Acho que yo já tenho uma ideia de quem possa ter feito isso.

— O tal ex tóxico da amiga da sua namorada?

— Sim! Tem várias câmeras espalhadas pela casa, mas como


cortaram a energia antes de entrar no gravaram o invasor.

— Calma, Gonzales, nós vamos dar um jeito nisso, cara. Vou colocar

todos os meus homens trabalhando pesado para prender esse tal Lucas. Se
foi ele mesmo, nós vamos descobrir. – Coça a nuca em um pigarreio grave.

– Mas temos que investigar todas as possibilidades, e no seu caso, espanhol,

temos muitas…

— O que você quer dizer com isso, delegado?

— Que depois que você assumiu o seu namoro com a Solange, deve

ter muita ex sua à procura de vingança, não acha? Nenhuma delas chegou

nem perto de conquistar o seu coração.


— Bom, de fato yo andei recebendo algumas mensagens no muito

gentis ultimamente de algumas mujeres malucas com quem nem lembrava


que saí. No falei nada para a Solange para no chateá-la. – Sorri amarelo,

você até sai da vida mundana, mas ela no te deixa facilmente.

— Me encaminhe o contato que tiver de todas as mulheres que já saiu

e de qualquer pessoa referente ao seu trabalho que não ficou muito

satisfeito com os seus serviços prestados. Afinal, na área da advocacia o

que não falta é inimigo.

— O pessoal do trabalho tudo bem, Ricardo, mas enviar o contato de

todas as mujeres com quem já sai é impossível, daria uma ficha de cem
metros – falo sério.

— Problema seu, espanhol, quem mandou ser um cafajeste? Um dia a

conta tinha que chegar, não é mesmo? – Bate a mão no meu ombro. – Agora
dá os seus pulos, porque não é o só o seu que está na reta e pode sobrar para

a sua namorada também.

— Acha que quem fez isso pode ir atrás da Solange?

— Quando se trata de uma pessoa desequilibrada tudo pode

acontecer, temos que descobrir quem fez isso e rápido. Porque, medindo
pela minha experiência na polícia, o que aconteceu aqui foi só um recado. O

pior ainda está por vir e não será boa coisa – alerta e yo congelo.
Sinto uma sensação ruim, como se estivéssemos lidando com algo

muito maior do que possamos imaginar. E yo preciso manter a Solange

protegida, no posso deixar de maneira nenhuma que algo de ruim aconteça

a ela.
Solange

— A tia do Gonzales disse o quê? – pergunta Tess irritada enquanto

tomo o meu suco de couve com hortelã, sentada no balcão da cozinha. Está
muito gostoso.

Mamãe foi ao mercado com o Rafael comprar alguma coisa especial

para cozinhar, porque o vovô Manoel vem almoçar com a gente hoje.

— Que não sou bonita o suficiente para o sobrinho dela, até me


comparou com uma tal Paola, que na opinião da velha bruxa está à altura do
Gonzales. – Brinco com as pedras de gelo no fundo do copo de vidro, não
dando mais tanta importância para o assunto.

Resolvi seguir o conselho da Yudiana e parar de colocar minhoca na

cabeça e confiar no meu namorado, se tivesse algo importante para falar


sobre essa Paola ele teria me contado. Gonzales já me deu muitos motivos

para confiar nele, não vou pisar na bola e estragar essa relação linda que

estamos construindo juntos.

— Olha, amiga, no seu lugar eu teria dado um chute na bunda dessa

tia Alba tão forte que mandaria ela de volta para a Espanha rapidinho. –
Ajeita o cabelo no vidro da janela, ela está toda arrumada como se estivesse

indo para uma festa.


— Pra que salto alto para ficar em casa, dona Tessiane? – Arqueio a

sobrancelha.

— O professor Celso me chamou para irmos num café a menos de

cinquenta metros daqui e os seguranças que o Gonzales deixou vão estar de


olho em nós, por isso pode ficar tranquila. Até porque não vamos demorar

muito, eu prometo – pede minha permissão como se fosse uma adolescente,

ela tem agido como uma desde que conheceu um certo professor bonitão do
quinto ano.

Tessiane não sai do celular e fica rindo sozinha o tempo todo, não a

vejo apaixonada assim desde que conheceu o embuste do Lucas. Como ela
já voltou para o trabalho, os dois têm almoçado juntos todos os dias na sala

dos professores durante o intervalo.

— Acho bom não demorar mesmo, porque se a minha mãe chegar

aqui e não te encontrar, ela sim vai fazer um escândalo. Então vai logo e

aproveita, Celso parece ser um cara legal.

Dou a maior força para a minha amiga, é muito bom ver a sua
autoestima voltando. Fazia tempo que não a via tão vaidosa.

— Obrigada, amiga, quando voltar te conto tudo. – Me abraça e sai

correndo.
Assim que ouço a porta bater, mando mensagem para o chefe de
segurança do Gonzales e peço para ele e os seus homens não tirarem os

olhos da minha amiga um segundo. Porém, peço que sejam discretos para

não constranger o casal. E falando no meu namorado, assim que a Tess sai a

campainha toca e quando abro dou de cara com ele, está agitado olhando

para todos os lados como se estivesse sendo seguido.

Muito estranho!

Ele não mandou nenhuma mensagem avisando que viria, e não faz

nem duas horas que nos vimos.

— Está tudo bem, Gonzales? – Vou beijá-lo, mas em um movimento

rápido ele me puxa para dentro de casa e tranca a porta.

— Aqui dentro é mais seguro, amor. – Beija o topo da minha cabeça e

me abraça apertado, quase me sufocando. – Onde está o resto do pessoal? A

Tess está bem? Espero que sim.

— Mamãe e Rafael estão no mercado, e a Tess foi tomar um café com

o professor Celso pertinho daqui. Por quê?

— Em que lugar eles estão, Solange? Vou ligar para o meu chefe de

segurança e pedir que os escoltem até aqui agora mesmo, nenhum lugar é

seguro com o Lucas lá fora. – Tira o celular do bolso e começa a digitar

apressado, o homem está suando frio.


— Você está começando a me assustar agindo dessa forma, conta

logo o que houve! – Dou um passo para longe dele e analiso o seu rosto
detalhadamente, as linhas formadas ao meio da testa mostrando

preocupação já me fazem pensar o pior.

— Alguém invadiu a minha casa essa noche, fizeram uma bagunça e

roubaram várias coisas de valor. Yo acho que foi o Lucas, mas no acharam
nada que prove. – Senta no sofá da sala com a mão jogada no meio das

têmporas.

— Nem precisa de prova para saber que foi o Lucas, ele só vai parar
quando for pego. – Me sento ao seu lado no sofá, seguro sua mão e apoio
minha cabeça no seu ombro.

— Na verdade, o delegado Avilar também está trabalhando em outras

linhas de investigação. — Se remexe no sofá, incomodado.

— Que outras linhas de investigação, Alejandro Gonzales? – Franzo o


cenho.

— Algum cliente no satisfeito com o meu trabalho ou… – engole em


seco – alguma ex minha com ciúmes por causa do nosso namoro, o que,

sendo honesto, no seria surpresa para mim, já me envolvi com cada maluca.

— Pois eu sou mais maluca do que todas juntas, se alguma dessas


vadias tentar encostar um dedo em você eu arranco a cabeça dela fora. –
Torço as mãos no ar simulando a cena, Gonzales começa a rir.

— Esse seu estilo assassino me excita, sabia? – Me puxa para o seu

colo, sento de frente para ele e agarro seu pescoço.

— Eu sei disso, espanhol. Mas não temos tempo para sacanagem,


minha mãe e o meu irmão podem chegar a qualquer momento.

— Então por que está me provocando dessa forma esfregando no meu


pau? – Dá um tapa na minha bunda.

— Porque quero te pedir um favor, meu amor. – Cerro nossos lábios.

— E o que seria, Cariño? – Baixa a gola da minha blusa e passa a


língua em volta da auréola do meu seio esquerdo, solto um gemido

baixinho.

— Que mantenhamos segredo da Tess sobre a invasão da sua casa,


pelo menos até descobrir se foi o Lucas mesmo. Ela está começando a se

abrir para o mundo depois que conheceu o Celso, não quero que leve outro
susto e volte a se fechar novamente. – Finalmente beijo sua boca,
explorando cada centímetro com a minha língua.

— Mas ela ficar passeando por aí com esse professor Celso no é

seguro, amor. – Geme quando enfio a mão dentro da sua calça e agarro a
sua ereção já formada, esse espanhol não perde tempo.
— Você não confia nos seus seguranças? – Ele assente. – Então, deixa
eles de olho nos dois, que estão a menos de cinco minutos daqui. – Começo
a masturbá-lo lentamente, seu pau vai ficando cada vez mais duro na minha

mão.

— Tudo que você quiser, Cariño. Só no para, por favor – pede com a
voz rouca.

— Ei, filha, cheguei! – Pulo do colo do Gonzales ao ouvir a voz da


minha mãe, quando ela abre a porta nós estamos sentados no sofá como

dois santos.

Meu namorado é obrigado a colocar uma almofada no colo para


cobrir a ereção, tadinho, dessa vez não vou poder ajudá-lo com isso.

— Oi, irmão da Lupita, você está suando. – Meu irmão, como sempre
observador, passa por nós cheio de sacolas do atacadão do Madureira.

— É que está calor hoje, Rafael. – O cínico abre um sorriso falso

enxugando a testa com a manga da camisa, se a minha mãe não estivesse


olhando teria gargalhado na cara dele.

— Que coisa boa encontrar o meu casal favorito em casa, vai ficar
para almoçar conosco, não é, Gonzales?

— É claro que ele vai ficar, mãe, não perderia a sua lasanha

vegetariana por nada nesse mundo, não é mesmo, amor?


— De jeito nenhum, Cariño. – Se inclina e deposita um beijo casto na
minha bochecha. – E depois do almoço, se vocês no tiverem nada
agendado, gostaria de levar todos para uma visita no bar para ver como está

incrível agora que as obras estão praticamente no fim.

— Mesmo se estivéssemos com a agenda cheia hoje, meu filho, nós


desmarcaríamos tudo. Estou contando os dias para terminarmos as obras no

bar para fazer a festa de inauguração, vai ser um verdadeiro sucesso –


mamãe grita já da cozinha, ela comprou comida como se fosse cozinhar

para um exército inteiro.

— Com certeza vai ser sucesso, Cátia. Eu vou ser o primeiro

convidado a chegar. – Vovô Manoel chega com seu chapéu de couro na

cabeça e uma garrafa de vinho nas mãos, ele sempre traz uma quando vem
almoçar aqui em casa.

— A benção, vovô, trouxe meu vinho favorito de novo. – Me levanto


para recepcioná-lo de braços abertos.

— Tudo para ver a minha netinha feliz. – Beija meu rosto.

— Olha quem também vai almoçar com a gente, vovô. – Aceno na

direção do Gonzales.

— Gonzales, meu rapaz, é sempre uma alegria enorme te ver. – Me

entrega a garrafa de vinho e vai paparicar o espanhol, nunca vi maior puxa-


saquismo do que esses dois um com o outro.

— Bom ver o senhor também, vovô Manoel. Senta aqui comigo e

vamos colocar a conversa em dia, o senhor viu o jogo do Corinthians?

Ganharam de lavada do Vasco.

— Eu vi, meu filho, ganhamos de lavada mesmo. – Vovô ri

zombeteiro, ele é corintiano doente. – Mas ainda tem o jogo da final do

Campeonato Brasileiro, vamos ver o que vai dar. Qual o seu palpite? – Tira
o chapéu e senta do lado do meu namorado, agora a conversa vai longe.

Deixo os dois falando sobre futebol e vou ajudar mamãe na cozinha, a


primeira coisa que pergunta é onde está a Tess, mas antes que eu possa

responder, minha amiga chega sorridente na cozinha e diz que estava no

quarto vendo um filme no celular. A espertinha entrou de fininho pela porta

dos fundos, não posso julgá-la porque fazia o mesmo quando era mais nova.
Pelo sorriso enorme rasgando o rosto dela, o encontro com o Celso foi bom.

De jeito nenhum vou acabar com a sua alegria, a deixarei curtir o máximo

que eu puder.

Minha amiga ajuda minha mãe e eu a preparar o almoço, montamos

uma mesa linda e comemos em harmonia. Depois da sobremesa, como

prometido, Gonzales nos leva até o bar para vermos as obras.


— Então, pessoal, o que acharam? Ainda faltam alguns detalhes para

finalizar a obra e os móveis novos que encomendei para o bar ainda no

chegaram, mas já dá para vocês terem uma ideia de como vai ficar quando
estiver pronto. – Gonzales olha ansioso para cada um dos rostos à sua

frente, ele tem se esforçado muito no projeto e eu sei que está dando o seu

melhor nisso por mim.

E o resultado disso tudo está um verdadeiro espetáculo, foram tiradas

as pilastras que havia no meio do salão onde ficavam as mesas, ampliando o

espaço e dando uma visão limpa para o palco de música ao vivo ao lado da
nova pista para o Dj, que foi ideia do meu lindo namorado, assim como

tantas outras ideias criativas, como colocar tudo de mais moderno na

cozinha para termos uma boa infraestrutura e poder oferecer aos clientes um

menu mais sofisticado. No bar serão servidas as cervejas direto das


choperias eletrônicas, drinks dos demais variados preços e estilos, e

queremos atender a todo tipo de público.

Vamos transformar o Paz & Amor em um ponto de encontro para

amigos, da quebrada até os riquinhos da Zona Sul. Aqui todo mundo será

bem-vindo. Viva a diversidade! Esse era o lema do meu pai, queria tanto

que ele estivesse vivo para ver o sonho dele se tornando realidade.

— Eu nem tenho palavras para descrever, Gonzales. Está incrível! –

Corro e pulo no colo do meu espanhol, ainda bem que ele é forte e
consegue me segurar com facilidade.

— Que bom que gostou, Cariño! – Meu amor me gira no ar, esse tipo

de demonstração de afeto tem ficado cada vez mais natural entre nós.

É vergonhoso admitir, mas nos tornamos aquele tipo de casal meloso

que não consegue tirar a mão um do outro nem um segundo.

— Está incrível mesmo, filha, sinto até vontade de chorar. – Mamãe


chora e ri ao mesmo tempo olhando tudo à sua volta, está melhor que

qualquer coisa que ela tenha imaginado.

— Fizeram mesmo um ótimo trabalho, Gonzales. Se o meu filho

puder ver tudo isso de onde ele está agora, deve estar muito feliz. – Vovô

Manoel também fica emocionado.

— Podemos criar uma conta no Instagram para o bar, tirar umas fotos

bonitas e postar para chamar novos clientes. Posso ajudar nisso, será um

prazer – Tess oferece de coração, ela sempre foi boa com marketing.

— E eu posso desenhar um slogan para o bar, mamãe. Usando o

quatro que a senhora pintou do papai como plano de fundo, vai ficar ótimo.

– Rafael levanta o dedo, até ele está animado com a reabertura do negócio
da família.

Não tem como não ficar animado com o bar bonito dessa forma,
estamos começando uma nova fase em nossas vidas e vai ser incrível. Já
está sendo.
Gonzales

Os dias vão se passando e o Lucas desapareceu novamente, no deu

mais sinal de vida desde a invasão na minha casa. Isso trouxe uma certa
tranquilidade para todos. Já yo estou muito preocupado, o silêncio me

assusta mais que o grito. Ele no sumiria do nada, ainda mais agora que a
Tess está de namorico com o professor Celso e a coisa parece séria, o
cupido no está mesmo brincando em serviço. Essa noche é a grande
despedida de solteiro do meu irmão e o pela-saco do Pedro é o único

solteiro do grupo. Chato do jeito que é, vai continuar assim por um bom
tempo.

A noiva também vai ter a sua despedida de solteiro com as suas

convidadas. Como prometi para os rapazes que é segredo onde vamos cair
na farra, minha namorada também no quer contar aonde elas vão e isso está
me tirando o sono. Só sei que a Solange está toda animadinha, perguntei

para o John se ele sabe de alguma coisa, mas a Yudiana também no quis

falar uma palavra sobre o assunto. Com a Julia, esposa do delegado, e a


Dani do Léo também no foi diferente, só nos resta aceitar e seguir em

frente.

Espero que aquelas malucas no exagerem na dose, porque se yo

souber que contrataram algum gogo boy a coisa vai ficar feia para o lado da
Solange. Porque nós só vamos sair para encher a cara, no contratamos nada

que envolve putaria. Apesar que o Pedro insistiu muito, mas os que já são
casados no quiseram arriscar, conhecem bem as esposas carne de pescoço

que têm em casa.

— Pronto para la mejor noche de su vida, Luiz Fernando? – Dou uma

chave de pescoço no meu irmão e saio o arrastando para dentro da casa

noturna mais legal da cidade para quem está a fim de se divertir, com as
melhores bebidas e músicas da atualidade.

A ideia é bebermos até cairmos e que Dios nos proteja e nos leve em

segurança de volta para casa, porque essa noche saímos prontos para o
crime.

— Yo tenho até medo quando você fala assim, Gonzales. – Ajeita a


camisa enfiando a borda para dentro da calça, veio todo engomadinho como

se estivesse indo para a igreja, só faltou a Bíblia debaixo do braço.

— E devia ter mesmo, Nando! Porque essa noite promete. – John

assusta ainda mais o pobre rapaz.

Nando está perdido na nossa mão!

— Ainda bem que vocês chegaram, porque a festa está bombando,

bora beber? – Pedro brota do meio da multidão com uma camisa preta
igualzinha à minha e da mesma marca, sua voz está um pouco arrastada e os
olhos caídos.

O cara já está no grau se remexendo ao som da música igual a uma

lombriga no asfalto quente, uma figuraça mesmo. Ele segura o copo de uma

bebida verde estranha numa mão, e na outra vários cordões havaianos que

começa a colocar nos nossos pescoços, um por um, fiquei com o rosa para

variar.

— Nós acabamos de chegar com o noivo e você já está bêbado,

Pedro? Santo Dios mío!

— Deixa o cara de divertir, espanhol! – John pega o copo de bebida

do Pedro e vira um gole, deve ser forte porque ele faz uma careta quando

engole.

— E o delegado e o Léo, já chegaram? — pergunto olhando para os

lados procurando, a casa noturna está lotada.

— Só o delegado chegou, mas o Léo mandou mensagem e disse que

já está a caminho. – Aponta para a direção do bar, Ricardo está debruçado

sobre o balcão, vestido no estilo motoqueiro com a sua jaqueta preta e o


cabelo cortado curtinho, quase máquina zero.

Assim que nota a nossa presença, ergue o braço e acena para irmos

nos juntar a ele no bar. Yo e os rapazes trocamos olhares e vamos quase


correndo.

Que comience la fiesta!

Começamos com uma rodada de vodca, Léo chega a tempo de

participar do brinde. Isso foi só o começo, depois pedimos tudo o que tinha
no menu de bebidas. Luiz Fernando, que é o mais quieto do grupo e nem
queria fazer a despedida de solteiro, na terceira bebida já fica louco, abre os

botões da camisa e cai na pista de dança com o Pedro ao som do Dj. O


espanhol todo certinho filho da mamãe rebola até o chão, yo me acabo de rir

enquanto gravo tudo no meu celular, quero ver a cara dele quando mostrar
amanhã antes do casamento.

Porque, do jeito que conheço o Luiz Fernando, se yo no tiver provas


ele no vai acreditar quando contarmos o show que está dando essa noche. O

moleque sempre foi fraco para bebida, por isso evita.

— Nando está mesmo se divertindo, não é? – John me pega olhando


emocionado para o meu irmão arrasando com geral na pista de dança, nunca
vi ele se soltando dessa forma.

— Muito, e no é só ele. – Aceno com a cabeça na direção do Léo,

dançando agarrado com uma garrafa de uísque pela metade.

Pedro e o delegado estão abraçados cantando juntos a música em um


inglês terrível, ambos muito bêbados.
— Só estamos faltando nós dois naquela pista de dança, espanhol,

bora nos juntarmos aos caras mais legais dessa cidade? – Me puxa pelo
braço, já chegamos chamando os rapazes para ajudar a jogar o Nando para

o alto, que no para de rir.

Foi uma noche inesquecível, o problema é que acordamos na manhã


seguinte espalhados pelo chão da sala da minha casa sem fazer a mínima
ideia de como viemos parar ali. Acho que exageramos um pouquinho na

bebida, nem sei onde as roupas do Nando foram parar, está dormindo sobre
o tapete em frente ao sofá só de cueca. Sofá este onde o Pedro se encontra

desacordado de um lado e o Léo do outro, ainda abraçado com uma garrafa


de bebida, só que vazia.

Dormindo todo encolhido em posição fetal aos pés da escada está o


delegado; no muito longe vejo John sentado na sala de estar com a metade

do corpo debruçado sobre a mesa. Tento ficar em pé, mas no consigo. Ainda
estou tonto, sou obrigado a me arrastar até a parede mais próxima para usar

como apoio. Quando consigo achar o meu relógio de bolso que era do meu
avô e vejo a hora, santa madre de Dios! Levo um susto, faltam apenas duas
horas para o casamento, passamos quase a manhã inteira dormindo.

— Acorda, galera, nós estamos fodidos! – Abro as cortinas e o sol

está raiando lá fora.


Pelo menos o dia está lindo para a festa de comemoração do
casamento que será ao ar livre, na vila de espanhóis onde mis padres
moram, logo depois da cerimônia na igreja local. Mamá estava morrendo de

medo que chovesse.

— Que horas são? – Luiz Fernando se senta no tapete esfregando os


olhos vermelhos, parece que um caminhão passou em cima dele.

— Já é quase meio-dia, veste a minha roupa e vaza, garoto. – Tiro a


calça e a camisa apressado e dou ao meu irmão, a essa hora a Camila deve

estar tendo um ataque de pelanca sem conseguir falar com o seu noivo.

— Meio-dia? Santo Dios! O casamento está marcado para as quatorze


horas. – Se atrapalha todo para vestir a calça tropeçando uma perna na
outra, sou obrigado a ajudá-lo a se vestir como quando era criança.

— Puta que pariu, a Yudiana vai me matar! – John desperta

massageando as têmporas, aposto que a sua cabeça está doendo tanto


quanto a minha.

— Meu destino não vai ser diferente com a Dani, ela pediu para eu
não chegar muito tarde – gunguna Léo em um bocejo longo ainda de olhos

fechados, depois do Nando ele foi o que mais bebeu.

— E a Julia então? Vai arrancar minhas pernas fora, se eu não


aparecer no casamento já sabem o motivo. – Delegado senta no primeiro
degrau da escada e procura o celular nos bolsos, está com a marca do
desenho do piso na lateral do rosto.

— Se a Julia arrancar só as suas pernas está ótimo, Ricardo. Tem que


tomar cuidado com o carinha aí no meio delas – implica John.

— Minha esposa nunca mexeria nesse carinha aqui debaixo, ela ainda

vai precisar muito dele. – Ricardo fica de pé com as mãos atrás da nuca e
mexe o corpo para frente e para trás simulando um ato sexual, todos nós nos

acabamos de rir.

Menos o Pedro, que continua dormindo, o cara está até roncando feito

um motor.

— Pois tratem de resolver os problemas com as suas esposas, rapazes,

porque yo no vou me casar se todos vocês no estiverem presentes – decreta

Nando terminando de fechar os botões da camisa. – Afinal, agora são meus


amigos também. – Sorri para os rapazes.

Pensei que acordaria fazendo um escândalo porque está atrasado, mas

ele está feliz e animado como se sua energia tivesse renovado.

— Nós não perderíamos o seu casamento por nada nesse mundo,

Nando. Agora você faz parte do grupo e aqui ninguém abandona o outro,
garoto – garante John e o meu irmão assente satisfeito, enfim ele fez novos

amigos.
— Ontem foi a melhor noche da minha vida, nunca me diverti tanto.

Obrigado por isso, galera, vejo vocês na igreja daqui há duas horas,
combinado?

— Combinado, Nando! Nós estaremos todos lá ao seu lado – os


rapazes gritaram juntos, menos o Pedro que ainda está desacordado no meu

sofá.

— Mas agora vai nessa, irmão, yo te amo! – Entrego a chave do meu


carro e o abraço.

— Também te amo, cabrón. – Sai correndo e gritando e rindo sozinho


o espanhol maluco.

— O que aconteceu aqui, gente, perdi alguma coisa? – Pedro acorda

assustado e nós começamos a rir da cara de perdido dele, é um babaca


mesmo.

Se fosse algum assassino de aluguel invadindo a casa o promotor de


justiça respeitado nessa comarca já estaria morto com um tiro no meio da

testa, o cara dorme feito uma pedra.

— Rapazes, eu vou nessa enfrentar a fera me esperando em casa, me


desejem sorte. – John se ajeita para ir embora.

— Eu também vou, quer uma carona, Léo?

— Quero sim, delegado, valeu!


— Valeu, galera, vejo vocês mais tarde na cerimônia. – Os

acompanho até a porta.

— O que você tem de bom para comer nessa casa, espanhol? Estou
com uma larica desgraçada – Pedro grita da cozinha, reviro os olhos sem

paciência.

— Você no vai embora também para se arrumar para o casamento,

Pedro?

— Vou, mas não preciso ter pressa, não tenho nenhuma fera me
esperando em casa para dar satisfação. – Pega uma maçã no cesto sobre o

balcão de mármore e morde. – Já você deveria atender ao telefone, porque

ele não para de tocar em cima do sofá, com a foto de uma mulher gostosa
na tela com o nome de Solange.

— Olha como fala da minha mujer, Pedro! – Dou um tapa na nuca do


folgado, que continua zombando da minha cara.

Saio correndo para atender a ligação e a minha namorada está uma

fera, disse que todo mundo pensou que tinha acontecido alguma coisa grave
com a gente, já que nenhum dos rapazes atendia o celular. Expliquei o que

houve e ela se acalmou, ficou feliz que nos divertimos. Solange no faz o

tipo ciumenta, confia no taco dela e, se está comigo, confia em mim. Já


comigo a coisa muda de figura; apesar de confiar nela também, no confio é
nos hombres que ficam de olho na minha mujer descaradamente na minha

frente e tenho vontade de matar cada um deles na base do soco.

Tanto que fico louco de ciúmes quando tento arrancar da minha

namorada como foi a despedida de solteiro da Camila, mas ela no diz


muitos detalhes, apenas que foi uma noche incrível e então corta o assunto.

Disse que tinha que começar a se arrumar e yo também ou chegaríamos

atrasados para a cerimônia, combino de passar na casa dela para buscá-la

para irmos juntos ao casamento.

— Já terminou de falar com a xoxota de ouro? – provoca Pedro

quando finalizo a ligação com a minha namorada.

— O nome dela é Solange, Pedro, se você chamar minha mujer mais

uma vez de xoxota de ouro quebro os seus dentes.

— Puta que pariu, Gonzales! Precisa ver a sua cara de apaixonado

agora defendendo a sua mujer, mais um soldado do grupo abatido com

sucesso – minha visita indesejável zomba da de mim.

— Vai se foder, Pedro! Yo no tenho tempo para isso, vou tomar

banho. Diria para você se sentir em casa, mas vejo que no é necessário. –

Olho para ele fazendo ovos com bacon no fogão enquanto assobia. – Então,
bom apetite.
— Vai lá, Gonzales, não se preocupa comigo. – Acena e volta a

atenção para a frigideira.

Subo as escadas correndo para tomar banho, me arrumo depressa e


quando desço o pela-saco do Pedro já foi embora. Ele deve ter saído

correndo porque nem comeu, deixou o prato arrumado em cima da mesa ao

lado de um copo de suco de laranja, ambos intocados. Como o combinado,


passo na casa da minha namorada para buscá-la. Dona Cátia, Rafael, Tess e

o vovô Manoel também são convidados especiais do meu irmão.

Mis padres estão ansiosos para conhecê-los, essa união entre nossas
famílias será muito importante para o nosso relacionamento.

— Boa tarde, dona Cátia – cumprimento assim que a minha sogra


atende à porta.

— Boa tarde, meu filho. Dale! Como você está elegante, parece até

um toureiro. – Ajeita o lenço vermelho no meu pescoço.

Estou usando um terno de gala charro, traje tradicional usado em

datas especiais na Espanha. Escolhi um conjunto todo preto, a calça


enfeitada à mão com pregas prateadas na lateral de ambas as pernas e o

paletó curto com belas abotoaduras sobre a camisa branca. Para completar,

uma fita vermelha comprida amarrada na cintura.

— Muito obrigado, sogra, a senhora também está linda.


— Sério, Gonzales? – Ela dá uma voltinha toda feliz com o elogio. –

Minha falecida sogra fez esse vestido para eu ir à formatura da Solange na


faculdade e nunca mais usei de novo, tenho um carinho muito especial por

ele. – Desliza as mãos pela lateral do vestido longo num tom de verde

escuro muito bonito, tons fortes combinam com todo o carisma da minha

sogra.

— Minha cunhada que se cuide para a senhora no tirar o brilho dela

na igreja, realmente está muito elegante, sogrinha.

— Para de graça, menino, vou chamar a sua gatona. – Sento no sofá

da sala e aguardo impaciente para ver minha namorada, toda vez que a vejo

parece mais bonita, é como se fosse a primeira vez.

Para passar o tempo resolvo folhear o caderno de desenhos do Rafael

no sofá, jogado no meio das almofadas. A cada página que passo fico mais
impressionado com o talento desse garoto, ele é um verdadeiro artista. Tiro

algumas fotos com o meu celular dos que mais chamaram a minha atenção,

quero mostrar para o Pierre, um cliente francês meu que mora aqui no
Brasil. Ele é dono de uma galeria de arte famosa no Rio de Janeiro e é

especialista no assunto, ficou milionário ainda jovem trabalhando com isso.

Se Pierre gostar dos desenhos do irmão da Solange, talvez ele possa


ajudá-lo a se lançar nesse meio.
— Espero que eu não tenha feito você esperar muito, espanhol. – Fico
de pé em um salto quando escuto a voz aveludada da Solange vinda do topo

da escada, chego a perder o fôlego quando a vejo.

— Santa madre de Dios! Você está simplesmente perfeita, Cariño. –

Acompanho os movimentos sensuais da mujer mais linda do mundo ao

descer as escadas a passos elegantes, feito uma deusa da sedução.

A cauda do seu magnífico vestido longo dourado arrasta pelos

degraus como uma onda revolta, a peça desce bem justa pelas suas curvas

fartas e abre nas pernas no formato sereia, as mangas são curtas e a gola
mais alta. Conforme Solange se move, parece aquelas cenas de filmes dos

anos oitenta quando a luz bate no tecido brilhoso e dá a impressão de se

estar em meio a uma chuva de pedras valiosas. As tranças estão presas em


um rabo de cavalo alto, deixando seu olhar sexy em evidência. Passou

sombras escuras sobre os olhos, alongou os cílios e finalizou com um batom


vinho seco provocante.

Linda demais! Solange se arrumou para matar todas as outras de

inveja, simplesmente perfeita.

— Que bom que gostou, meu amor. – Inclina e sussurra no meu


ouvido: – Mas tenho certeza de que vai gostar muito mais do que estou
usando por baixo do vestido, comprei especialmente para você. – Ergue a
saia só para que yo veja a ponta da lingerie vermelha que começa ao meio
de suas coxas presa à cinta-liga, é o meu modelo favorito e a safada sabe
disso.

— Presentinho especial, é, sua gostosa? Adoro! Por que no subimos

para o seu quarto e você mostra o resto, hein? – Deslizo as mãos pelo seu
corpo cheio de astúcia, por mim estreávamos o meu presentinho aqui

mesmo no sofá da sala.

— Nem pensar, seu sem-vergonha! Guarda esse fogo todo para a


noite na sua casa, quero fazer loucuras com você. – Apalpa minhas partes
íntimas. – Mas até lá se comporte e seja um bom menino, nem pense em

amassar o meu vestido. – Toma os meus lábios, ela está tão cheirosa que dá
vontade de mordê-la todinha.

— Só à noche? No vai rolar nem uma rapidinha durante o casamento?

Sempre tive essa fantasia sexual. – Passo a língua atrás da sua orelha na
parte mais sensível e ela geme, adoro instigá-la.

— Como se você fosse o tipo de homem que se contenta só com uma

rapidinha, da última que fizemos no seu carro porque estava atrasado para o
trabalho, nós trepamos mais de uma hora. –  Ri ao lembrar do ocorrido.

— Nem me lembra daquele dia que yo fico excitado, temos que

repetir a dose. – Beijo sua boca com malícia.


— Por que as pessoas beijam na boca, mãe? Acho tão nojento. –
Solange se afasta de mim no mesmo instante ao ouvir a voz do irmão, ele
está posto aos pés da escada nos encarando com uma expressão de asco.

Rafael está todo elegante em um terno cinza e o cabelo todo arrumado


com gel, esse estilo social combina muito com ele.

— Pode parecer nojento, filho, mas para quem está apaixonado é a

melhor coisa do mundo – dona Cátia explica paciente para o caçula, mas no
é o suficiente para tirar sua expressão de asco.

Mas minha sogra está certa, se o beijo é bom para um casal

apaixonado, o sexo é coisa de outro planeta. Minha vida sexual nunca


esteve tão prazerosa. Solange me satisfaz na cama de um jeito que me suga
todas as forças, acho que essa é a famosa diferença entre fazer amor e sexo.

Porque quando yo digo “satisfaz”, no me refiro somente de modo físico,


mas também espiritual e principalmente sentimental.

— Eu concordo plenamente com a senhora, tia Cátia. Quando

estamos apaixonados, tudo é mais incrível. – Tess aparece na sala


suspirando, minha namorada me contou que ela e o Celso estão cada vez
mais próximos e tudo indica que vai dar namoro sério.

Ela está elegante em um vestido preto longo e o cabelo preso ao topo

da cabaça com alguns cachos soltos, yo disse que podia convidar o Celso
para ir conosco no casamento do meu irmão, mas ele no pode porque tem
outro compromisso importante.

— Chegou outra romântica sem causa, mas acho melhor irmos


andando pessoal, não quero que cheguemos mais atrasados que a noiva na
cerimônia.

Solange sai me puxando em direção à porta, está um pouco agitada


porque é a primeira vez que vai ser madrinha em um casamento e o fato do
noivo ser seu cunhado só contribui para o seu nervosismo.

— E o vovô Manoel, no vai?

— Não, querido, hoje é dia de bingo no clube da terceira idade que


organiza há mais de vinte anos e o meu sogro não falta um dia sequer. –
Explica minha sogra.

— Entendo perfeitamente, dona Cátia! Mas é uma pena, ele vai


perder um dia inteiro imerso na animada cultura espanhola.

— Eu quero comer e dançar horrores, adoro aquele ritmo de vocês,

como é mesmo o nome, gente? Acho que regação – comenta dona Cátia, no
faço ideia do que ela está falando.

— É ritmo Reggaeton, tia Cátia – Tess a corrige e nós rimos.

— Nem pense em fazer as suas danças malucas, mãe. – Solange a

adverte.
— O quê? Eu vou descer até o chão se as minhas pernas não me

deixarem na mão, filha.

— Isso aí, sogrinha! Bota para quebrar. – Solto uma gargalhada ao


abrir a porta para elas entrarem no meu carro.

Seguimos para o casamento e yo fico surpreso quando chegamos na

vila e vejo como está linda a decoração, toda enfeitada com bandeirinhas
coloridas e flores. Vamos direto para a igreja que fica bem no centro, a

menos de cinco casas da mansão de mis padres, a mãe da Solange no tira a


cabeça da janela no banco de trás do carro, tirando foto de tudo com o
celular.

— Seus pais estão nos esperando na porta da igreja, amor. Que fofo

da parte deles. – Solange acena para os sogros, que correspondem animados


ao nos verem chegando.

— Acho melhor vocês se prepararem para serem muito paparicados

pela dona Carmem e o senhor Antônio, e quando yo digo muito, é muito


mesmo – alerto após estacionar o carro e mis padres correm até nós, eles
são as pessoas mais receptivas que conheço.

— Que bom que vocês chegaram, meus amores. E olha para você,
meu filho, está tão hermoso ao lado da sua bela namorada, os dois fazem
um casal perfeito.
Mi madre aperta a minha bochecha e me envergonha na frente dos
outros, no vai sossegar até me ver com uma aliança enfiada no dedo.

— Então, mamá e papá, essa é a Cátia, madre da minha namorada –

faço as apresentações.

— Muito prazer, yo sou Carmem e esse é o meu marido, Antônio.


Agora entendo de onde a namorada do meu filho herdou essa beleza
marcante. – Nossas madres trocam abraços e beijos.

— O prazer é todo meu, Carmem, você que é linda e tão elegante.


Obrigada por nos convidar para o casamento do filho de vocês, desejo toda
felicidade do mundo ao casal.

— No precisa agradecer, mujer, agora nós somos uma só família e nós


duas muito em breve seremos avós do mesmo netinho. – Mamá e a minha
sogra cochicham entre si, Solange fica roxa de vergonha.

Reviro os olhos. Na cabeça de mi madre, Solange e yo já estamos


praticamente casados, só falta oficializar no papel e parir os netos.

— Yo já conheço o Rafael, irmão da Solange, mas essa moça bonita


com vocês quem é? – Mamá sorri para uma Tess muito tímida.

— É a Tessiane, amiga da Solange – apresento as duas.

— Prazer, Carmem, já ouvi maravilhas sobre a senhora. – As duas se


abraçam.
— Então esse é o famoso Rafael? A Lupita no para de falar em como
o melhor amigo dela é legal, nunca vi a nossa chiquita tão feliz. – Papá

puxa o garoto para um abraço e tasca um beijo na sua bochecha, mesmo yo


tendo explicado a eles várias vezes sobre as suas restrições em relação ao
contato físico.

— E a minha melhor amiga Lupita, onde está? –pergunta Rafael

enquanto limpa várias vezes a bochecha no local onde recebeu o beijo.

— A Maria Guadalupe vai chegar daqui a pouco com a noiva, ela está
muito feliz com o fato de ser daminha de honra do casamento do irmão.

Mi padre sorri amplamente, está radiante por estar casando o primeiro


filho.

— Falando em noiva, tu irmão está em uma sala no fundo da igreja,

muito ansioso. Acho melhor você e o Antônio tentarem acalmá-lo, deixa


que yo cuido da sua namorada e a família dela. – Mamá ajeita o lenço
vermelho no meu pescoço, seu olhar está estranho.

Tem alguma coisa errada aqui.

— Isso, filho, vem com tu padre. – Agarra o meu braço e sai quase
me arrastando para dentro da igreja, nem tenho tempo de falar direito com a
Solange.
— O Luiz Fernando está bem, papá? – Aumento o passo até o local
onde o meu irmão está.

— O problema no é tu irmão, mas sim você, Gonzales.

— Como assim yo? No fiz nada de errado dessa vez.

— Cala a boca e entra aqui, cabrón, porque o assunto é sério. Luiz


Fernando precisa falar contigo. – Abre a porta e me empurra para dentro,

papá está furioso comigo.

Meu irmão também no parece de bom humor, está andando de um


lado para o outro com as mãos na cabeça, meio desesperado. Ele traja um

charro parecido com o meu, porém bem mais formal, todo branco e as
abotoaduras douradas.

— Será que você pode me explicar por que todo mundo está agindo

tão estranho, Luiz Fernando? – Começo a ficar nervoso também.

Ele gira o pescoço na minha direção com os olhos fervorosos. Sim!


Yo fiz alguma coisa muito errada, só no sei o quê. Mas foi muito ruim.

— Por que você mesmo no olha com os seus próprios olhos,

Alejandro? Porque yo no tenho nem coragem de dizer em voz alta. – Agarra


o meu pescoço com força e leva até próximo à cortina grossa que separa o

altar da igreja da salinha onde estamos, basta ele puxar a ponta do tecido
para yo ver o motivo de toda essa tensão.
Ela está dentro de um vestido curto vermelho piranha curto

combinando com a mesma cor do cabelo na altura dos ombros, seu decote é
chamativo e extremamente vulgar, porém, no mais do que a sua maquiagem
barata. Uma maldita intrusa sentada bem no banco da frente com as pernas

cruzadas e o nariz empinado de sempre, como se tivesse algum direito de


estar aqui, presente em um momento tão especial para a minha família.

— No pode ser! O que essa desgraçada está fazendo aqui? – fico

irado.

— Yo no sei, Gonzales. Mas você vai tirar essa vadia daqui antes que
a Camila chegue e a veja, já basta toda decepção que a presença dessa

mujer causou em mim e aos nossos padres no passado por sua causa. – Vira
de costas para mim, decepcionado.

No acredito que o meu irmão está zangado comigo no dia do seu

casamento, parece até um pesadelo.

— No se preocupe, Nando. Paola é problema meu, então yo resolvo.


— Saio pisando duro, se essa cobra não sair daqui agora sou capaz de matá-

la com as minhas próprias mãos dentro dessa igreja.

Paola Martins foi o maior erro da minha vida. No sei o que essa
espanhola desgraçada está tramando ao aparecer aqui com essa cara de pau
depois de jurar nunca mais voltar ao Brasil após o que fez, mas vou me
livrar dela antes que o pior aconteça.

Paola já destruiu a minha vida uma vez, no vou deixar que aquele

filme de terror se repita. Agora tem muita coisa em jogo, custei muito para
conquistar Solange e nada e nem ninguém vai destruir o nosso amor.
 
Promotor Pedro Alcantara

— Vim assim que soube que acharam outro corpo, me disseram que

encontraram algo novo dessa vez. – Chego no local do crime com uma
larica desgraçada da farra que fizemos na despedida de solteiro do Nando,

tive que colocar óculos escuros para conseguir enxergar direito em meio a
toda essa claridade do sol escaldante do meio-dia.

Tinha acabado de sentar para tomar café da manhã quando recebi a


mensagem de um informante que trabalha com o investigador Siqueira de
que acharam o corpo de mais uma garota de programa, a de número trinta, e

dessa vez acharam muitas pistas que podem levar ao assassino. Tive que
deixar o meu café da manhã e saí da casa do Gonzales varado de fome. Fora

que estou mega atrasado para o casamento do irmão dele, mas não podia
deixar de vir conferir com os meus próprios olhos quais são essas pistas que
encontraram do famoso assassino em série que é tão detalhista e cuidadoso

com tudo o que faz. Para mim tem algo de muito errado nessa história e a

polícia está comemorando antes da hora.

— Por que não estou nem um pouco surpreso em te ver aqui,

promotor Pedro? – O investigador Siqueira gira os olhos quando me vê. –


Mas se eu fosse você não cantava muito de galo hoje, porque o delegado
não está aqui para te proteger – tagarela, mas não dou atenção à sua

provocação.

Estou ocupado demais analisando o corpo da moça jogado em um

beco numa rua bem no centro do Rio de Janeiro, nua e deitada no chão com
as pernas propositalmente abertas em uma posição humilhante, a garota foi

tão espancada que um dos seus olhos está pendurado para fora e o outro

aberto olhando para o céu. É possível ter uma ampla visão da sua parte
íntima, cheia de escoriações e vermelhidão na virilha, ela foi brutalmente

estuprada. Debaixo de suas unhas vejo que tem pele do agressor, fora o

tanto de sangue por toda parte com marcas de pegadas de botas grandes

masculinas.

— Essa não é uma vítima do assassino em série, é o trabalho de um


amador. Provavelmente um fã dele que resolveu virar imitador – constato o

óbvio.

Quem cometeu esse crime não fazia a mínima ideia do que estava

fazendo, fez com pressa e, pela forma grotesca que espancou a moça, entrou

em pânico e a matou depressa e a jogou aqui e saiu correndo. O verdadeiro


assassino em série gosta do ritual de tortura, faz com maestria e com calma

porque sente prazer durante cada segundo.


— Mudou de profissão agora, promotor? Deixa os investigadores
fazerem o trabalho deles – debocha um dos policiais, ninguém aqui gosta de

mim.

— Eu não quero atrapalhar o trabalho de ninguém, apenas ajudar a

pegar o assassino em série. Que, obviamente, não foi este que cometeu esse

crime. – Aponto para a pobre moça loira estirada no chão, não sei como

esse pessoal consegue ficar fazendo piada e rindo diante de uma imagem
tão forte.

— Você não tem nada para fazer em pleno sábado à tarde além de me

encher o saco, promotor? – Siqueira fica de pé e me encara nos olhos com

cara de poucos amigos.

— Na verdade, senhor, tenho o casamento de um amigo para ir e


estou bastante atrasado. – Engulo em seco, seu rosto está a um centímetro

do meu.

— Então pode ir embora, deixa que a gente resolve essa bagunça que

é o nosso trabalho. O seu é mexer com a papelada na promotoria, se tem

amor à sua profissão acho bom começar a se lembrar disso – ameaça o


investigador.

— Eu vou embora, mas se fosse você não me animaria muito quando

pegar o cara que fez isso e colocar a culpa nas costas dele por todos os
outros vinte e nove assassinatos só porque quer se aposentar logo com o seu

último caso fechado, porque aí quem vai estar em grandes apuros é você,
senhor investigador. – O encaro de volta, nunca tive medo de cara feia.

— Está me ameaçando, garoto? Trabalho como investigador na


polícia e eu sei exatamente quando vejo o trabalho de um imitador e esse

que encontramos hoje foi o mais grotesco que já peguei em toda a minha
carreira, mas vou deixar sim o povo acreditar que foi o assassino em série

que cometeu esse crime. – Baixou o tom para que fosse auditivo apenas
para nós dois.

— Você tem um plano, não é, Siqueira? Quer espalhar na mídia que o


assassino em série cometeu esse crime para deixá-lo com raiva e meter os

pés pelas mãos, porque um artista na arte de matar jamais aceitaria ter a sua
reputação em jogo por causa de um babaca que fez essa merda toda em

nome dele. – Sorrio, o velho pode ser um turrão, mas realmente é bom no
que faz.

— Sim, eu tenho um plano, playboy, e você está estragando ele.


Então desaparece da minha cena de crime e vai para o casamento do seu

amigo, já disse que resolvo tudo por aqui.

— Mas e quanto ao verdadeiro cara que fez isso? Já basta um


psicopata à solta, temos que pegá-lo antes que mate de novo.
— Com o monte de pistas que o trouxa deixou para trás não será

difícil, cara. Agora vaza daqui. – Me empurra para fora do beco.

— Está bem! Já estou indo, foi ótimo trabalhar com você hoje,
Siqueira. – Jogo um beijo para ele, que mexe o bigode furioso com a minha

implicância.

— Vai se foder, garoto! – Mostra o dedo feio para mim.

Pego o meu carro e saio praticamente voando, ainda bem que moro

perto daqui. Vou tomar um banho rápido e me arrumar correndo, com sorte
chego a tempo na cerimônia para a entrada da noiva.

— Não pode ser! – Me distraio no volante por um segundo quando


uma mulher morena alta e de cabelo preto liso comprido abaixo da cintura

passa por mim na calçada, rebolando distraída enquanto fala no telefone, ela
usa um vestido curto branco mostrando as pernas grossas sustentadas em

cima de um salto fino altíssimo.

Vi o seu rosto de relance, nossos olhos se cruzaram por um milésimo


de segundos, mas tenho certeza de que é a mesma mulher que vejo nos
meus sonhos no fundo de um lago. Meu coração bate forte, sabia que ela

era real. Paro o carro no meio da rua e saio correndo feito um louco atrás
dela, a musa que tem sido minha companhia todas as noites desde que era
um garoto. No entanto, é tarde demais, eu a perdi no meio da multidão do
calçadão de Ipanema.

Paro com as mãos na cabeça e giro o corpo em um ângulo de


trezentos e sessenta graus, em total desespero à procura da mulher dos meus

sonhos, jurando para mim mesmo que vou encontrá-la, nem que isso leve o
resto da minha vida.
Solange

Minha mãe e a Carmem estão se dando bem logo de cara, parece até

que foram amigas de colegial. Só não entendo a relutância da minha sogra


para que não entremos na igreja agora, sinto que tem alguma coisa lá dentro

que não quer que eu veja. Não para de olhar no celular um segundo como se
esperasse alguma mensagem importante, provavelmente algo relacionado
ao casamento.

— Eu estou cansado, Solange. Podemos entrar na igreja? Está muito


calor aqui fora. – Rafael tenta cobrir o sol com a mão erguida sobre o rosto.

— Aguenta só mais um pouquinho, querido, a noiva está quase

chegando. Aí podemos entrar todos juntos – Carmem tenta tranquilizá-lo.

Minha sogra está realmente linda. Assim como o Gonzales e o


marido, ela veste roupas tradicionais da cultura espanhola. Parece uma

cigana com essa blusa branca cheia de babados caindo nos ombros e a saia

longa preta bem rodada, o cabelo está solto enfeitado com rosas vermelhas
naturais.

— Tudo bem, mãe da Lupita, eu espero – Rafael concorda de má


vontade.
Mas basta o carro da noiva apontar na entrada da rua que o meu irmão

logo se anima, sua melhor amiga está chegando. Deus queira que ele não
faça nenhum comentário inapropriado sobre a noiva. No entanto, quando a

Camila sai do banco de trás da limusine branca, percebo que é impossível

alguém sequer insinuar que essa mulher não está simplesmente espetacular.

— Dios mio, Camila, você está mui hermosa! Tu madre ficaria tão

orgulhosa se te visse agora. – Carmem se emociona ao ver a nora dentro do


vestido de noiva mais delicado que já vi, parece que foi feito especialmente

para ela.

Eu andei pesquisando sobre os casamentos espanhóis para não passar


vergonha, descobri que a noiva veste branco em sinal de pureza. No lugar

do véu, é comum que as noivas façam uso da mantilha, que carrega mais
detalhes bordados à mão. A tradição é que elas passem de geração para

geração. A que a Camila usa é toda bordada com linha dourada, ela havia

me dito que a sogra usou no casamento dela, assim como todas as outras

mulheres da família Gonzales.

Ou seja, se tudo der certo um dia serei eu usando essa mantilha no dia
do meu casamento com o meu espanhol lindo.

— Obrigada, Carmem, mas não chora, senão vou chorar também e

vou estragar a minha maquiagem. – As duas se abraçam por longos


minutos, dá para sentir a ternura entre elas de longe.

Ontem, durante a despedida de solteiro da Camila, que foi uma festa

só para mulheres muito animada na casa de uma de suas madrinhas que é

sua melhor amiga, ela começou a chorar do nada quando disse que ninguém

da sua família confirmou presença no casamento, nem mesmo o próprio pai.

Quem vai levá-la ao altar será o senhor Antônio, achei muito gentil da parte

do nosso sogro.

Mas o bom humor da Camila melhorou rapidinho assim que o grupo

de dançarinos marombados chegaram e fizeram uma apresentação de dança

sexy só de cueca, foi muito divertido, mas juramos que nossos homens

nunca saberão disso. Bebemos todas e rimos muito, a Tess foi também e

além de conhecer gente nova se divertiu muito. Agora que está apaixonada
por um cara legal de verdade, está voltando a se abrir para o mundo.

Fizemos amizade com a, Julia esposa do delegado Avilar, e pudemos

conversar com a Dani, mãe do meu aluno Marcelinho, que perdi

recentemente para o câncer. Apesar de ainda haver tristeza nos seus olhos,

está superando muito bem a morte do filho porque sabe que ele está em um

lugar melhor.

— Oi, Rafael, que bom que você veio! Gostou do meu vestido de

daminha? – Lupita dá uma voltinha, o vestido dela é uma réplica idêntica ao

da noiva.
— Você está mesmo linda, Lupita. Parece uma princesa dos contos de

fadas – elogia Rafael.

— Você também está muito elegante de terno, meu amigo, estou tão

feliz que está aqui. – Abraça Louis e ele retribui, com um discreto sorriso,
quase não notável.

Minha mãe fica chocada, olha para mim com lágrimas nos olhos.

Agora ela percebeu o quanto a amizade desses dois é especial para o Rafael
Louis, essa espanholinha é a única pessoa que ele deixa entrar no seu

mundo.

— Eu estou mesmo vendo isso, Solange, ou a sua mãe está tendo

algum tipo de alucinação? – cochicha no meu ouvido, só nós duas sabemos


a importância desse simples ato entre dois melhores amigos.

— Não é alucinação, mãe, seu filho está começando a se abrir para as

pessoas e essa espanholinha espirituosa está sendo a ponte. — Seguro sua


mão esperançosa, a felicidade do nosso menino sempre foi mais importante
que qualquer outra coisa.

— Que bom te ver antes de entrar na igreja, amiga, você está tão

linda. – Camila abre os braços na minha direção, caminho até ela e a


abraço.
— O Luiz Fernando tem tanta sorte de ter encontrado você, Camila.

Posso sentir a sua bondade a quilômetros de distância. – A aperto bem forte.


– Sei que a sua família não está presente, mas saiba que já te considero

como uma irmã que quero na minha vida para sempre, independente de
qualquer coisa. – Fico emocionada.

— Eu me sinto da mesma maneira, Solange, serei eternamente grata


ao Gonzales por ter trazido você para as nossas vidas. – Começamos a pular

abraçadas na frente da igreja feito duas malucas.

Depois que apresento a noiva para minha mãe e a Tess preciso ser
rápida, porque em um segundo virou uma correria para organizar a entrada

da Camila na igreja. O senhor Antônio vem para o seu posto ao lado da


nora, percebo que o seu semblante não é dos melhores, parece contrariado
com alguma coisa. Ele cochicha alguma coisa no ouvido da esposa, que

também fica de rosto torcido.

—  Cátia, Rafael e Tess vêm comigo, vocês vão sentar do meu lado. –
Carmem faz sinal para os três, mas só a minha mãe e o meu irmão a

seguem.

Tess permanece paralisada olhando fixamente para uma rua estreita

em frente à igreja, como se estivesse em algum estado de hipnose, ela nem


pisca.
— Está tudo bem, amiga? – Seguro a sua mão e olho na mesma
direção que ela, mas não tem ninguém, todos da vila estão no casamento.

— Não foi nada, amiga, eu só tive a impressão de que vi alguma coisa


se mexendo. Mas acho que foi só o reflexo do sol. Rafael tem razão, está

muito quente hoje. – Olha mais uma vez para a entrada da rua estreita,
então sorri para mim e entra na igreja, tensa e contorcendo as mãos frente
ao corpo.

Tess nunca vai voltar a ser a mesma pessoa enquanto o Lucas não for

preso, porque onde quer que vá ficará com essa sensação de estar sendo
seguida. Mesmo assim, hoje ficarei com os olhos bem abertos e ambos

sobre minha amiga, espero que aquele idiota não seja tão idiota o suficiente
para aprontar alguma coisa num casamento cheio de pessoas.

— Atenção todos os padrinhos, fiquem a postos em seus devidos


lugares para organizamos a entrada – pede o organizador da cerimônia.

Corro para o meu lugar, outros padrinhos do noivo começam a se

organizar na fila e nada do Gonzales aparecer, fico sem graça sozinha no


meio desse povo falando em espanhol rápido demais, não consigo entender
quase nada. Ainda bem que chegam o John e a Yudiana, pelo menos tenho

com quem conversar.


— Oi, Solange, cadê o Gonzales? Falta só ele, daqui a pouco os
padrinhos vão entrar – pergunta John confuso, mas não mais do que eu,
acredito.

— Não faço ideia, John. Estou preocupada. – Fico constrangida e

aliso o braço com os pelinhos todos arrepiados, isso não é bom sinal.

— Calma, Solange, ele vai aparecer. – Yudiana segura a minha mão


na tentativa de me tranquilizar um pouco.

— Ei, meninas, enfim chegamos. Por pouco não tínhamos vindo

porque o meu excelentíssimo marido chegou em casa de ressaca, mal

conseguia ficar de pé. – Daniele chega apressada ajeitando o cabelo loiro

preso em um rabo de cavalo, encantadora em um vestido cor-de-rosa rodado


muito fofo e cheio de brilho.

Seu marido está ao seu lado com a filhinha deles no colo com um
vestido minúsculo idêntico ao da mãe, ela nem parece que nasceu

prematura porque é um bebê grande, saudável e esperta. É moreninha com

o cabelo preto igual ao do pai, mas os olhos são claros como os da mãe.

Uma bonequinha linda.

— Também não exagera, amor. – Léo beija o rosto da esposa, que

olha feio para ele a princípio, mas logo sorri.


— Não é exagero coisa nenhuma, Léo, porque o seu amigo John

também chegou em casa um verdadeiro bagaço. – Yudiana dá uma


cotovelada no marido, que faz cara de santo, como se não estivesse falando

com ele.

— Com o meu marido não foi diferente, meninas, estamos todas no

mesmo barco. – Julia aparece abraçada com o seu delegado bonitão.

O grupo de casais estaria completo se o meu namorado estivesse aqui,


mas não, Gonzales desapareceu e me deixou sozinha instantes antes do

casamento do irmão dele no qual seremos padrinhos.

— Não temos culpa se planejamos a melhor despedida de solteiro de

todos os tempos para o Luiz Fernando, nós somos os caras! – Delegado bate

a mão nas do John e do Léo, apenas para provocar suas esposas.

— Isso porque eles não viram a que preparamos para a Camila, não é,

meninas? – Dani pisca o olho para nós, pega a filha do colo do marido e

entra na igreja rebolando.

Julia faz o mesmo, o delegado e o Léo vão correndo atrás de suas

esposas resmungando. John e a Yudiana começam a discutir na fila dos

padrinhos, mas de um jeito muito engraçado e eu acabo rindo escondido.

— Desculpa o atraso, Cariño, tive que resolver um problema. –

Gonzales chega correndo quase sem ar e beija o meu rosto, minha vontade é
meter a mão na cara dele, isso não é hora de sumir.

— Qual problema? – Franzo o cenho, ele está estranho, passando a

mão no cabelo toda hora.

— Contratempo de última hora, mas deu tudo certo. A cerimônia vai

começar – responde com aquela maldita mania de desviar o olhar porque


está aprontando algo, eu apenas concordo com um aceno de cabeça, não é o

momento para fazer escândalos, mas estou por um fio.

As portas da igreja se abrem e os padrinhos são os primeiros a entrar,


cada casal vai para o seu devido lugar no altar marcado com os nomes. A

música da entrada da noiva se inicia tocada ao vivo por uma orquestra

sinfônica, Camila vem caminhando lentamente de braços dados com o


sogro e um sorriso gigante no rosto, tanto ela quanto o noivo estão

chorando emocionados. Até eu estou, tinha me esquecido de como os

casamentos são bonitos.

A cerimônia transcorre tranquila e em uma perfeição sem fim, isso até

o padre fazer aquela famosa pergunta e todos ficarem de ouvidos em pé…

— Se alguém tem alguma coisa contra esse casamento, diga agora ou

se cale para sempre. – Os olhos do padre correm atentos por todos os

convidados, e quando pensa que ninguém vai se manifestar… O inesperado


acontece.
— Eu tenho uma coisa muito importante contra esse casamento,

padre! – Uma voz grossa toma conta de toda a igreja e logo em seguida o
silêncio se faz presente, ninguém se atreve nem a respirar.

Um homem muito alto e musculoso, de camiseta preta, todo tatuado


até o pescoço roteado por uma corrente de ouro grossa, aparece na porta da

igreja. Ele vem andando pelo corredor com os punhos trincados em uma

entrada triunfal. Seu cabelo comprido balança no ar conforme caminha, o

cara tem estilo, isso não dá para negar. Vestido com esse jeans escuro justo
rasgado enfiado dentro das botas de camurça de cano alto, além de deixá-lo

um puto de um gostoso, também fica claro que é um problema e dos

grandes.

Sei lá, algo sombrio paira à sua volta que o deixa ainda mais lindo e

atraente. Tem um charme único, mas letal.

— E o que você poderia ter contra esse casamento, meu jovem? –

pergunta o padre engolindo a saliva com dificuldade.

Estão todos assustados diante de toda a marra desse homem com duas

armas penduradas na cintura, a impressão que a sua cara de mau dá é que

vai sair atirando em todo mundo.

— Eu não poderia deixar que o meu priminho se case antes lhe dar

um abraço, porra! Vim ao Brasil só para isso. – Solta uma risada alta que
toma os quatro cantos do local, apesar do sotaque arrastado em espanhol,

seu português é muito bom.

— Olha a boca, rapaz!

— Foi mal aí, padre, falei uma palavra feia. Será que vou para o

inferno por causa disso? – Faz o sinal da cruz com deboche, duvido muito
que alguém como ele faça o tipo temente a Deus.

— Você quase me matou de susto, Heros, no acredito que deixou os

seus “negócios” na Colômbia só para vir ao meu casamento. – Luiz


Fernando abraça o intruso, então todos percebem que foi apenas uma

brincadeira.

— Eu te conheço desde garoto, Nando. Não poderia deixar de vir.  Mi

madre não pôde vir, mas mandou um abraço e deseja felicidade a você e à

sua noiva. – Beija o rosto do primo e faz o mesmo com a noiva de maneira

respeitosa, talvez ele só tenha mesmo a cara de mau.

E que cara de mau, meu Deus!  O homem de perto é ainda mais gato.

O tipo bad boy que toda mulher sonha em ter na sua cama pelo menos uma
vez na vida, senti até um calor agora.

— Se continuar olhando assim para o meu primo em segundo grau, yo

no respondo pelos meus atos, Solange – Gonzales cochicha no meu ouvido,


ele está com o maxilar rígido.
— Não faço ideia do que você está falando, espanhol. – Prendo o riso.

O primo de segundo grau do meu namorado, o tal Heros, se senta no

banco da frente junto com a família e arranca suspiros de todas as mulheres

presentes o tempo inteiro. O casamento segue sem mais imprevistos, no

final da cerimônia os noivos se beijam apaixonadamente debaixo de uma


salva de palmas e assobios. A saída deles da igreja não poderia ser mais

barulhenta, se tem uma coisa que os espanhóis gostam é de uma boa festa.

Os amigos do casal correm para o lado de fora e soltam fogos de

artifício para celebrar o casamento, uma alegria enorme. Enquanto

caminham para fora, Camila e Luiz Fernando são cobertos de arroz e

pétalas de rosas.

— Por que arroz e pétalas de rosas, Gonzales?

Fico curiosa, já que aqui no Brasil usamos apenas arroz.

— Porque simbolizam sorte e fertilidade, Cariño. – Ergue minha mão

e a beija, ele sempre me trata com esses pequenos gestos de carinho.

— Que interessante! – Observo a alegria dos noivos.

— Agora que a festa de verdade vai começar, amor. – Gonzales me

ergue do chão e me roda no ar, enfim o homem parece estar mais relaxado.

Ficou o tempo todo na cerimônia emburrado olhando para todos os


lados ao mesmo tempo como se estivesse à procura de alguém.
— Quero beber todas e dançar horrores, meu amor! – Saímos
correndo e rindo de mãos dadas.

Chegamos na festa na vila e todo mundo está comendo, bebendo e


dançando alegremente. Minha mãe e o Rafael vieram na frente com os pais

do Gonzales e a Lupita, eles já estão de fato se sentindo parte da família.

Durante a comemoração, os noivos vão de mesa em mesa entregando


lembrancinhas para os convidados, como cigarros ou garrafinhas de vinho.

Os amigos retribuem com dinheiro, sempre entregues em envelopes.

Coisas da cultura da família do noivo.

— Eu já imaginava que as nossas mães iriam se dar bem, mas não

imaginava que seria tanto.

Aponto para as duas conversando e rindo, Carmem está fazendo

questão de apresentar minha mãe para todo mundo. Tess está brincando
com o Rafael, Lupita e outras crianças, correndo atrás delas pela festa. Ela

está mais relaxada e se divertindo bastante, não poderia ser de outra forma
estando em uma festa espanhola tão animada como essa.

— Yo estou muito feliz com isso, Cariño. Somos uma família só

agora. – Serve uma taça de sangria e me entrega, estou viciada nesse


coquetel desde que provei no restaurante espanhol que o Gonzales me
levou.
— Isso está uma delícia! – Sorvo um longo gole do líquido
avermelhado gelado que desce pela minha garganta refrescando tudo.

— Você que é uma delícia. – Sorri e ergue a mão como se fosse tocar
o meu rosto, mas fica sério de repente como se estivesse vendo um

fantasma atrás de mim.

Giro o pescoço para olhar na mesma direção, mas Gonzales avança na


minha boca com ferocidade e tira todo o meu foco de tudo e todos.

— Yo preciso ir ao banheiro, Solange, volto daqui a pouco. – Toca o


meu rosto, sinto uma certa tensão no seu olhar.

Gonzales está suando muito e nem está tão quente assim hoje, ele

afrouxa o nó da gravata como se estivesse com dificuldade de respirar.


Talvez tenha comido alguma coisa que fez mal, só isso.

— Tudo bem, meu amor, te esperarei bem aqui.

— Yo no vou demorar, linda, prometo! – Ergue a mão e toca o meu

rosto, seu sorriso não tem emoção alguma.

Abro a boca para perguntar se ele está bem, mas Gonzales sai
depressa em direção à mansão dos pais dele. Sinto uma sensação estranha,

tomara que seja só coisa da minha cabeça.

— Vem, Solange, agora é hora da tradição mais importante. – Lupita


puxa a barra do meu vestido, ela parou de brincar só para vir falar comigo.
— Que tradição, espanholinha? – Me abaixo para ficar da altura da
pequena e ajeito a sua tiara que está toda torta entre o seu cabelo volumoso.

— É quando a noiva presenteia duas pessoas com seus itens mais

valiosos do dia, a liga utilizada no casamento e o buquê de flores que, ao


contrário da tradição de outros lugares, no deve ser arremessado e disputado
por um monte de mujeres desesperadas para casar. – Gira os olhos.

— Se não é arremessado, ele fica com a noiva? – pergunto curiosa.

— No! A noiva entrega o buquê para alguém especial de sua escolha


para transmitir a mesma sorte que ela teve de se casar com a sua alma

gêmea, um amor que dura para sempre – explica enquanto me puxa para o
círculo formado por todos os convidados em volta da noiva, essa tradição
deve ser muito importante mesmo.

Olho para os lados atrás do Gonzales, mas nem sinal dele ainda. Esse

espanhol está muito estranho hoje, tenho certeza que está escondendo
alguma coisa de mim.

— Então, esse é o momento mais esperado por todas as mulheres

presentes nesse casamento, mas infelizmente só uma de vocês vai levar esse
buquê lindo para a casa. – Camila ergue o buquê acima da cabeça para que
todos vejam.
Lupita olha para mim esperançosa, acho que está torcendo para que
seja eu.

— Fala logo para quem vai dar o buquê, Camila! – alguém grita em
meio à multidão.

— Tem muita gente aqui louca para casar, amor, então chega com

esse suspense. – Luiz Fernando apressa a esposa, arrancando risadas dos


convidados.

— Então vamos lá! A pessoa que eu escolho para dar o buquê é


alguém que conheço faz pouco tempo, mas já amo muito. Ela é um ser de

luz que apareceu na vida de um cafajeste de marca maior e está fazendo


dele um homem decente. – Camila sorri na minha direção. – Por isso esse

buquê tem que ser seu, Solange, bem-vinda à nossa família. – Joga um beijo
na minha direção, ela é um amor de pessoa.

— Não acredito! – Fico emocionada.

— Arrasou filha! – Mamãe e Tess acenam para mim e assobiam, elas

estão abraçadas pulando feito duas malucas.

— Vem aqui pegar o seu presente, Sol. – Nem espero a Camila


chamar duas vezes, vou até ela correndo entre os convidados.

Quando passo entre a multidão esbarro na tia Alba, ela não diz nada,

apenas sorri para mim de um jeito irônico que me deixa toda arrepiada.
— Muito obrigada por me escolher, Camila, não sabe o quanto me

sinto honrada por isso. – Fico muito emocionada.

— Espero que esse presente traga muita sorte para você e o Gonzales,
para que em breve seja a sua vez de passar o buquê. – Me entrega o arranjo

de rosas brancas.

— De todo o meu coração, eu desejo para você e o Luiz Fernando


toda felicidade do mundo.

— E eu te desejo tudo em dobro, minha linda! Aliás, onde está o seu

espanhol? Vai logo mostrar o seu buquê, vai que ele se empolga e te pede
em casamento? –  aconselha sorridente.

— Quer saber? Você tem razão. Vou atrás do meu namorado, vai que

dá certo – entro na brincadeira.

Me despeço da Camila e vou para a casa dos meus sogros atrás do


meu namorado fujão, o lugar está deserto, estão todos na vila se divertindo

na festa. Procuro Gonzales no banheiro, mas não o encontro. Penso que


talvez ele já tenha voltado e esteja me procurando. No entanto, ouço vozes
em sussurros vindas do andar de cima e resolvo averiguar, pode ser alguém

precisando de ajuda. Ergo o meu vestido e subo as escadas correndo,


quando chego no último degrau percebo que o barulho vem do antigo
quarto do meu namorado.
Me aproximo a passos leves pelo corredor e noto que a porta está
entreaberta, empurro bem devagar sem saber o que me espera do outro lado.
Meu coração para de bater ao me deparar com a cena bizarra a poucos

metros diante de mim. É como se a minha alma tivesse saído do meu corpo,
uma experiencia pós-morte.

— Gonzales? – Minha voz sai chorosa.

Meu namorado está encostado na parede aos beijos com uma mulher

atracada no pescoço dele, eles parecem muito íntimos.

— Oi, queridinha, perdeu alguma coisa aqui? – profere a vadia


limpando a boca em um tom tão vulgar quanto o vestido vermelho que está

usando, essa vaca.

Ela me olha com deboche por cima do ombro como se já esperasse a


minha chegada, à sua frente está o meu namorado com a boca mais suja de

batom que a dela.

— Como você pôde fazer isso comigo, Gonzales? – Me preparo para


cair de pancada em cima dos dois, não acredito que isso está mesmo

acontecendo.

— No é nada disso que você está pensando, Cariño. – Gonzales tira a


mulher de cima dele de qualquer jeito e tenta se aproximar de mim
abotoando os botões da camisa, mas dou dois passos para atrás e estico o
braço entre nós, impedindo-o que me toque.

— Ah, não? – Dou mais uma bela olhada na vadia atrás dele, seu

vestido está suspenso e o cabelo todo bagunçado. — Pelo visto você decidiu
realizar a sua fantasia sexual de transar durante um casamento sem mim,
não é, espanhol? – Sorrio amarga.

— Só me dê uma chance de explicar, mi amor, por favor, yo te


imploro. – Lágrimas começam a descer pelo seu rosto, mas não me
comovo, quero que ele vá para o inferno e leve essa vadia junto com ele.

Gonzales não passa de um traidor mentiroso, pau que nasce torto


morre torto.

— Explicar o quê? Que estava prestes a trepar com uma estranha no

meio do casamento do seu irmão e na casa dos seus pais, no mesmo quarto
onde fizemos amor na noite que me trouxe para apresentar para sua família,
porra? Nunca esperava isso da sua parte, é baixo demais até para alguém

como você, Gonzales – ataco ferida.

— Yo no sou nenhuma estranha, fofinha, sou Paola Martins. Ex-


mulher do seu namorado – afirma confiante e apoia as mãos nos ombros do

Gonzales, que apenas se cala de cabeça baixa.


Sinto meu estômago embrulhar, como assim Gonzales já foi casado e
com essa mulher vulgar? E a idiota aqui pensando que era a primeira

mulher que de fato significou de verdade alguma coisa na sua vida.

— Cala a porra da boca, Paola! – Gonzales grita furioso.

Agora tudo faz sentido! Essa é a tal famosa Paola que a tia do meu

namorado disse que era linda e maravilhosa, toda vez que tentei fazer
perguntas sobre ela o Gonzales sempre fugia do assunto para não ter que me
contar que é a sua ex-esposa, e obviamente ainda gosta dela ou não teria os

pegado no maior amasso.

— Nunca vou te perdoar por isso, Alejandro Gonzales. Eu te odeio! –


Jogo o buquê na cara do desgraçado, nunca mais quero vê-lo novamente.

A partir de hoje, Gonzales está morto para mim, assim como qualquer

sentimento que tive por ele algum dia.

— Espera, amor, me deixa explicar. Essa mujer é uma maluca, vive


armando para cima de mim coisas que você nem imagina. – Desce as

escadas correndo atrás de mim, quando chego na sala ele consegue me


alcançar e agarra o meu braço, impedindo que eu saia.

— E agora você vai dizer que aquele beijão que eu vi foi a Paola que

te agarrou, não é mesmo, Gonzales? – ironizo enfiando o dedo na sua cara.


— Yo jamais trairia você, Solange. Mas se mesmo depois de tudo o

que vivemos nos últimos meses você no pode me dar nem o benefício da
dúvida, podemos terminar tudo aqui mesmo – tenta virar o jogo se fazendo
de vítima, como se eu fosse a vilã da história.

— Você é um cafajeste mentiroso e nunca vai mudar, Gonzales. Idiota


fui eu quando pensei que me amava de verdade, mas nunca passei de um
mero capricho para o maior pegador do Rio de Janeiro. Pena que para mim

foi real. – Viro as costas e vou embora chorando.

No fundo sempre soube que o Gonzales partiria o meu coração, amá-


lo sempre foi um jogo perdido. Não quero vê-lo nunca mais, queria que esse

espanhol sumisse do mundo para sempre. Eu o odeio com todas as minhas


forças.

 
Solange

Eu havia acabado de passar pela porta da frente da mansão da família

Gonzales, colocando um ponto final definitivamente na minha relação com


o meu namorado, quando o meu celular apita. É uma mensagem de um

número desconhecido. Enxugo as lágrimas com as mãos trêmulas e


destravo a tela, paraliso no mesmo instante quando leio o que está escrito.

“Você deveria ter ouvido o que o seu namoradinho tinha para dizer,
agora é tarde demais.”

Tinha alguém vendo a minha discussão com Gonzales. Por algum


motivo, lembro de quando Tess ficou estranha na frente da igreja e pensou

ter visto algo se mexendo.

— Lucas! – digo em voz alta.

Tenho um pressentimento ruim e volto para dentro da casa correndo,

mas assim que levo a mão na maçaneta da porta, ouço o som de um tiro tão
alto que consigo ouvir mesmo com a música da festa de casamento alta.

Entro correndo e me deparo com a pior cena que poderia imaginar, vejo

todo o meu mundo se desfazer bem diante dos meus olhos e em câmera
lenta.

— Não, Gonzales! – meu grito é desesperador.


O meu espanhol está caído no chão em volta de uma poça de sangue,

ele foi baleado no peito. Corro na sua direção e me jogo sobre o seu corpo
imóvel, confiro o seu pulso e sinto um pouco de alívio quando percebo que

ainda tem sinais vitais. Gonzales está vivo, mas se continuar perdendo

sangue assim não vai durar muito tempo. Choro descontroladamente, se ele
morrer, eu morrerei junto.

Me sinto culpada pelo que aconteceu. Além de não dar a chance do


Gonzales se explicar, na hora da raiva desejei que ele sumisse do mundo

para sempre.

— Socorro! Eu preciso de ajuda – berro o mais alto que consigo.

Para estancar o sangue jorrando do seu peito, rasgo a barra do meu

vestido e pressiono sobre o local do ferimento da bala.

— Dios Santo! Ele prometeu que no ia machucar ninguém, era só

para dar um susto no Gonzales.

A tal Paola desce as escadas pulando dois degraus por vez e entra em

estado de choque quando se depara de perto com esse monte de sangue,


sabia que essa vadia estava envolvida nisso de alguma forma.

— De que homem você está falando, Paola?

— O de moletom preto, ele estava do lado de fora da igreja e viu

quando o Gonzales me expulsou como um cão sarnento antes da cerimônia


começar. Disse que nenhum hombre deveria tratar uma mujer assim e me
ofereceu ajuda para dar uma lição nele, então yo o ajudei a entrar aqui e

armar toda essa farsa para separar vocês dois. – Começa a andar em

círculos feito uma barata tonta.

— Foi esse homem que avisou que eu entrei na casa à procura do

Gonzales, não foi?

— Sim! Ele me mandou uma mensagem quando você estava subindo

as escadas e yo agarrei o Gonzales à força e agora esse cafajeste está

morrendo, isso faz de mim cúmplice de um assassinato. – A covarde foge

correndo com o seu salto agulha, pensando apenas nela.

Então tudo não passou de uma farsa para me separar do Gonzales, ele

tentou me explicar, mas deixei o ciúmes falar mais alto e o abandonei


quando mais precisou de mim. Agora o meu amor está morrendo nos meus

braços, e eu nunca terei a oportunidade de dizer o quanto o amo e quero

passar o resto da minha vida como sua esposa e mãe dos seus filhos.

— Por favor, Gonzales, não me deixa! – Olho para o seu rosto cada

vez mais pálido, não consigo conter as lágrimas.

Nosso dia começou tão feliz, nunca imaginei que terminaria dessa

forma triste.
— O que aconteceu, Solange? Pensei ter ouvido algo parecido com

um tiro e vim averiguar. – O delegado Avilar aparece, agradeço a Deus por


isso.

— Gonzales levou um tiro e está perdendo muito sangue, por favor,


me ajuda! – tropeço uma palavra na outra falando rápido.

— Meu Deus! Precisamos levá-lo para o hospital agora mesmo,

Solange. – Analisa o local de entrada da bala, dá para ver pelo seu olhar
preocupado que a situação não é nada boa.

Delegado Avilar tira o celular do bolso e faz uma ligação, ele se


identifica e pede a ambulância mais próxima com urgência. Ele faz um

resumo rápido da situação do Gonzales, enfatizando que é a vida de um


grande amigo dele que está em risco e exige o melhor tratamento possível.

— Aguenta firme, meu amigo, a ambulância já está a caminho,

prometo que vou pegar quem fez isso com você. – Enfia a mão dentro do
paletó cinza e tira uma arma da cintura, ele olha para todos os lados ao
mesmo tempo.

— Onde você vai, delegado? Por favor, fica aqui com a gente, eu

estou com medo.

— O atirador ainda pode estar na casa e eu preciso revistar todos os


cômodos para ter certeza de que o lugar está seguro, já pedi reforço e eles
vão chegar em breve. – Sobe as escadas com a arma em punho, mas não

fico sozinha por muito tempo.

A ambulância chega em poucos minutos com a sirene ligada e acaba


com a festa de casamento, a notícia de que o Gonzales foi baleado se

espalha rápido e a casa enche de pessoas. Sua família e os amigos ficam


desolados sem entender por que alguém atiraria nele logo no dia do
casamento do irmão, foi uma crueldade sem tamanho. Nunca vou esquecer

os gritos da Carmem ao ver o filho nesse estado caótico enquanto é levado


na maca pelos paramédicos, ela segura uma mão dele e eu a outra.

Como o Rafael ficou muito agitado no meio de toda essa confusão,

minha mãe e a Tess tiveram que ir para casa com ele, os três foram
escoltados pela polícia para evitar mais surpresas desagradáveis.

Tess não queria me deixar de maneira nenhuma, se sentia culpada


pelo que aconteceu com o Gonzales, disse aos berros histérica que era para

ela estar sendo levada para o hospital com uma bala no peito e não o meu
namorado. Como não podia falar com ela naquele momento, pedi ao

delegado Avilar que cuidasse dela e ele a convenceu a ir para casa com a
minha mãe e o Rafael, onde todos ficariam em segurança, aos cuidados dos
seus homens até que o Lucas fosse preso. Para invadir um casamento e

tentar matar o irmão do noivo em plena luz do dia, é porque esse cara está
mais louco do que nunca e todo mundo sabe que o alvo principal dele é a
ex-namorada. Só atacou o Gonzales antes porque sabe que ele e eu somos o
maior impedimento para conseguir o que deseja, agora que o caminho está
limpo vai para cima da minha amiga com tudo.

— No nos deixe, meu filho, mamá no pode viver sem você, mi amor.

– Alisa o rosto do Gonzales quando entramos na ambulância, nós duas o


acompanhamos para o hospital.

Vários carros seguem a ambulância até o hospital, parece uma


carreata, quase todos os convidados do casamento estão indo. Camila veio

com o marido ainda vestida de noiva, ela teve que dirigir porque o Nando
está muito abalado, assim como os pais dele. Eles não deixaram a Lupita

saber de nada sobre o que aconteceu com o Gonzales, a pequena ficou aos
cuidados de um vizinho amigo da família há muitos anos.

— Ele não pode nos deixar, Carmem! O mundo não seria a mesma
coisa sem o Gonzales. – Soluço, quero ser otimista, mas meu amor perdeu

tanto sangue que o vestido dourado que estou usando está vermelho.

— Vamos rezar juntas, Solange. – Minha sogra segura minha mão.

Rezamos durante todo o percurso até o hospital implorando a Deus

por um milagre, quando chegamos já vemos uma equipe enorme entre


médicos e enfermeiros à nossa espera. Eles tiraram Gonzales da ambulância

e levaram às pressas direto para a sala de cirurgia, sigo acompanhando o


meu espanhol até o último segundo, segurando sua mão enquanto a maca é
empurrada às pressas pelos corredores.

— Volte para mim, meu amor. – Me inclino sobre a maca e beijo os


seus lábios cianóticos, sua pele está tão pálida.

— Desculpa, mas a senhora não pode mais seguir daqui para frente –

avisa uma enfermeira na porta da sala de cirurgia; eu, sem alternativa,


apenas assinto.

— Eu te amo, Gonzales! – digo antes que nossas mãos se separem.

Olho para o meu amor ferido sendo levado para longe de mim, sinto

um medo enorme de que essa seja a última vez que eu o veja com vida.

Promotor Pedro

Eu estava paquerando uma garçonete espanhola que me trouxe uma

taça de champanhe no casamento do Nando, quando chegou na vila uma

ambulância do SAMU daquelas grandonas, que geralmente atende os casos


mais graves, com a sirene ligada gritando muito alto. A música foi

desligada, ninguém sabia o que estava acontecendo até o motorista dizer

que um homem foi baleado dentro da mansão dos pais da noiva. Todo
mundo ficou sem entender nada, os paramédicos saíram correndo com uma
maca na mão e eu fui atrás para saber o que estava acontecendo. Quando

passei pela porta vi o meu amigo desfalecido nos braços da namorada, ela
era puro desespero inclinada sobre o corpo ensanguentado do amado. Foi

muito estranho ver o espanhol mais excêntrico que conheço nessa situação

tão frágil, lhe atingiram bem no peito.

Foi de cortar o coração ver a família do Gonzales vendo-o entre a

vida e a morte. Juiz Thompson, que é o seu melhor amigo, teve um surto de

pânico e foi preciso Léo e eu segurá-lo. Conseguimos acalmá-lo com a


ajuda da sua esposa, Yudiana. Quando a ambulância saiu fomos todos

seguindo o veículo até o hospital, a sala de espera não deu conta de todo o

pessoal que estava lá para dar apoio ao nosso ente querido.

— Merda! – Delegado Avilar volta frustrado depois de sair para

atender uma ligação, é a quinta num intervalo de meia hora desde que

chegamos no hospital.

Ele está resolvendo mil coisas ao mesmo tempo, liderando as

investigações daqui da sala de espera mesmo, não vai sossegar até pegar
quem fez essa merda com o nosso amigo.

— Algum problema, delegado?

— O investigador Siqueira não vai poder trabalhar no caso do

Gonzales, ele conseguiu identificar quem é o imitador do assassino em série


e vai invadir a casa dele hoje, com o apoio do BOPE.

— Mas que merda, cara! O Siqueira pode ser um turrão, mas ele é o

melhor em rastrear bandidos, independente do grau de periculosidade.

— Eu sei, parceiro, mas nós vamos achar esse desgraçado do Lucas

ou entrego o meu distintivo de delegado. Ele já causou problemas demais.

Olha para a família do Gonzales chorando abraçada, a namorada dele

está de cabeça baixa sentada em um canto, fitando os pés desde que chegou,

sua roupa está cheia de sangue do namorado.

— Como posso ajudar, delegado?

— Ficando aqui e me deixando informado sobre o estado do

Gonzales, eu vou me juntar aos meus homens na investigação. Só passei

aqui para dar apoio à família nesse momento difícil, mas agora é hora de

entrar em ação. Já avisei para minha esposa que não volto para a casa até
pegar quem fez isso.

— Eu não vou ficar aqui de braços cruzados, quero ir para as ruas


com você e ajudar a pegar quem fez isso com o nosso amigo – digo sem

chance para negociação.

— Eu também quero ajudar a achar esse filho da puta, delegado, e

ninguém vai me impedir. – John se aproxima com os olhos vermelhos,

nunca o vi transtornado dessa forma, com uma sombra escura à sua volta.
— Eu também vou! – Léo vê uma movimentação diferente aqui e

deixa a esposa sentada ao lado da amiga Yudiana e vem se juntar ao nosso


grupo, não poderia ser diferente.

— Ninguém vai comigo a lugar nenhum, pessoal! Estamos todos


muito alterados, vamos nos acalmar e deixar que a polícia faça o seu

trabalho. Prometo manter todos vocês informados. – Delegado Avilar tenta

apaziguar os ânimos, mas perante tais circunstâncias será impossível.

— Ter calma é o caralho, policial! Eu vou achar quem fez isso com o

meu primo e vou cortar a cabeça dele fora e pendurar no canto da minha

sala como enfeite. – Heros entra na conversa sem ser convidado com o
peito cheio de ar e punhos trincados, dá para ver a sede de vingança

gritando nos seus olhos.

O cara é assustador, o tipo que resolve sangue por sangue. Não sei o
que é pior, sua aparência macabra de quase dois metros de altura

distribuídos em uma montanha de músculos cobertos por tatuagens por todo

o corpo até nos dedos das mãos, ou a personalidade cruel, de quem mataria
até uma pobre velhinha indefesa sem nenhum remorso.

— Não é policial, para você delegado Avilar está ótimo. – Ricardo

fecha a cara. – Não é assim que as leis funcionam por aqui, Heros. Você
pode ser um gângster poderoso na Colômbia, mas aqui é a minha área e

fazemos as coisas dentro da lei.

— É exatamente por fazer tudo dentro da lei que o seu amigo está
agora entre a vida e a morte, policial. – Mexe no cabelo longo, provocando

o delegado. – Me disseram que esse Lucas vem aprontando há meses com o

Gonzales e a namorada dele, mas você e os seus homens não fizeram porra
nenhuma e a situação chegou a esse ponto caótico.

Aponta o dedo na cara do Ricardo na frente de todo mundo sem um

pingo de medo, conseguindo calar o homem da lei, que por sensatez não
ousa dizer mais nada, sabe que de certa forma o gângster colombiano está

certo. Não só ele, como nós todos amigos do Gonzales deveríamos ter sido

mais atentos em relação à sua segurança, agora a merda está feita e a única
coisa que podemos fazer é justiça por ele.

— Se te contarmos tudo o que sabemos sobre esse Lucas, acha que

consegue encontrá-lo como fez quando sequestraram o meu filho? –


pergunta John fitando o gângster nos olhos, se entregando ao desespero por

fazer justiça.

— Em menos de vinte e quatro horas estou com o filho da puta nas

minhas mãos, tenho homens leais trabalhando para mim no mundo do crime

em toda América Latina, inclusive aqui no Brasil.


— Então faça o que for preciso, Heros, mas traga esse maldito para

nós e, ao invés de um favor, eu ficarei lhe devendo dois.

— Isso eu farei por conta da casa, Juiz Thompson. Gonzales é da

família e ninguém mexe com um dos nossos, esse verme vai pagar caro

pelo que fez. – Heros puxa os cantos da boca em um sorriso perverso, seu
sotaque espanhol é bastante puxado.

— Só peço que traga ele com vida para nós, Heros, vou garantir que
esse desgraçado viva o resto da vida atrás das grades desejando a morte.

— Agora estamos falando a mesma língua, delegado! Não existe

justiça sem dor... – Os dois trocam um aperto de mãos, enfim entrando em


um consenso. – Acordo feito! Vou lhe entregar esse verme vivo, agora

inteiro é outra conversa. – Sorri perverso.

Delegado Avilar aceita trabalhar com o Heros nessa caçada sangrenta

valendo tudo para encontrar o Lucas, desde que John, Léo e eu

permanecêssemos no hospital ao lado do Gonzales. Porque quando ele

acordar, o que temos certeza que acontecerá em breve, será bom que veja os
seus amigos ao seu lado. Concordamos e permanecemos ali na sala de

espera com o pessoal. Passaram-se horas e mais horas e ninguém aparecia

para dar notícias.


A namorada do Gonzales aborda todo funcionário do hospital que
passa e implora em lágrimas por notícias sobre a cirurgia, mas sempre

repetem a mesma coisa, que quando o médico terminasse de operá-lo, viria

pessoalmente falar conosco. Porém, passam-se mais horas e horas e nada,


essa espera está agoniante para todo mundo.

Levanto várias vezes para esticar as pernas, mas chega uma hora que
o cansaço me vence e eu acabo cochilando sentado.

— Acorda, Pedro, enfim o médico veio falar com a gente. – Léo me

balança pelos ombros.

— Até que enfim, cara! – Levanto esfregando os olhos.

— Boa noite, quem aqui são os acompanhantes do senhor Alejandro

Gonzales? – pergunta o médico e todos na recepção levantam a mão.

O homem de meia-idade com um bom amontoado de cabelos


grisalhos coça a nuca, confuso no meio desse monte de gente, tem até uma

noiva com um vestido longo pomposo no meio da galera.

— Nós somos a família dele, doutor. – Carmem abraça o marido e o


filho Nando, que está de mãos dadas com a esposa.

Mas ainda falta alguém, por isso Carmem ergue a mão na direção da

namorada do Gonzales para ela se juntar a eles.


— A cirurgia foi bastante delicada e demorou mais que o esperado,
porque a bala perfurou o pulmão e…

— Ele vai morrer, doutor? – Solange interrompe o médico, suas mãos


estão tremendo.

— Não, querida, a cirurgia foi um sucesso. Como Alejandro é um


homem jovem e atlético, ele vai se curar completamente em breve – garante
o médico sorridente com as mãos enfiadas no bolso do jaleco branco, é

satisfatório para ele ser o provedor de boas notícias.

A sala de espera que minutos antes parecia um velório, agora virou


uma festa com todos se abraçando e comemorando o fato de o Gonzales

estar fora de perigo. Mando uma mensagem para o delegado Avilar


avisando que o nosso amigo vai sair dessa, ele não responde porque deve
estar ocupado, até agora não enviou nenhuma notícia em relação à busca.

— Quando nós poderemos ver o meu filho, doutor? – pergunta senhor


Antônio, tomado pela emoção.

— Seu filho ainda está sob efeito da medicação, senhor. A cirurgia foi

bastante delicada, por isso acredito que vai demorar a acordar. Hoje
permitirei apenas a permanência de um acompanhante, mas amanhã será
liberada a visita para os demais. Aconselho que vão para casa descansar e
voltem no horário de visita pela manhã – sugere o médico e o pessoal
começa a reclamar, eu entendo de boa.

Estou muito cansado, só quero ir para casa dormir. O que importa é

que o meu amigo está fora de perigo, amanhã volto para visitá-lo. Me
despeço do pessoal e vou embora, tomo banho e desabo na cama. Mas
assim que fecho os olhos e viro para o canto, alguém começa a tocar a

campainha sem parar.

— Mas quem seria tão tarde? Porra!

Desço só de cueca para atender, puto da vida, confesso que fico

surpreso quando vejo de quem se trata.

— Investigador Siqueira? – Esfrego os olhos, sonolento.

E encaro o homem com a cara azeda, parado na minha porta todo


vestido de preto, um distintivo pendurado no pescoço e duas armas na

cintura. Sua expressão mostra cansaço.

— Você sabe onde está a porra do delegado Avilar? Estou tentando


falar com ele há horas sobre algo que descobri envolvendo o amigo dele

que levou um tiro, mas não o achei na delegacia, nem em casa e não
consigo entrar em contato com o filho da puta, a ligação só cai na caixa
postal.
— Pensei que não fosse trabalhar no caso do Gonzales, já que anda
ocupado seguindo o rastro do imitador.

— E não ia mesmo, mas agora não tenho outra opção, já que os dois
casos se interligaram. – Pigarreia trocando o peso do pé de um lado para o
outro.

— Mas como o caso do imitador do assassino em série poderia estar


interligado com o tiro que o advogado Gonzales levou? Não vejo nenhuma
possibilidade de isso acontecer. – E eu sou ótimo em analisar crimes, penso

comigo, mas não falo nada para que o Siqueira não me ache ainda mais
metido.

— Mas estão ligados, promotor! Nós não encontramos o suspeito de

ser o imitador do assassino em série na busca que fizemos na casa dele, mas
achamos isso. – Tira a sacola transparente de dentro do bolso com uma fita
branca escrito “provas”.

Quando vejo do que essas tais provas se tratam, entendo o seu

desespero em achar o delegado Avilar.

— Nós precisamos encontrar o delegado agora mesmo, Siqueira!


Essas provas que você encontrou mudam todo o rumo da investigação.

— Eu sei disso, rapaz. Por isso estou aqui. – Guarda o saco plástico
no mesmo lugar de onde tirou. – Agora se veste logo e vem ajudar a
procurar o seu amiguinho, vou te esperar no meu carro, e não demora

porque não tenho a noite toda – ordena o mandão.

— Eu sei disso, Siqueira, minha avó sempre diz que gente velha
precisa dormir cedo – implico e subo a escada rindo, mas consigo ouvir os

seus resmungos.

Chego no meu quarto e visto a primeira coisa que encontro na minha


frente. Depois que a bomba que o Siqueira encontrou explodir, muitas

dúvidas surgirão, ou talvez novas respostas para solucionar os dois casos


em um tacada só.

 
Solange

Fiquei tão feliz quando o médico disse que o Gonzales vai se

recuperar completamente, eu caí de joelhos no chão com as mãos sobre o


rosto e agradeci a Deus em silêncio enquanto lágrimas deslizavam pelo meu

rosto como a correnteza de um rio. Enviei mensagem para a minha mãe e a


Tess para dar a notícia, disse para minha amiga que tudo ficaria bem e nada
disso era culpa dela, mas sim de quem apertou o gatilho. Tudo o que eu
queria era ver o meu amor e poder tocá-lo e sentir o calor da sua pele contra

a minha mão, beijar os seus lábios e abraçá-lo fortemente de tal maneira


que não soltaria nunca mais. Mas o médico autorizou só a entrada de um

acompanhante para ficar com o Gonzales, e obviamente esse lugar não


poderia ser de mais ninguém além da mãe dele.

Todos foram embora para descansar um pouco e voltar na manhã


seguinte, mas eu me recusei a tirar o pé do hospital e esperaria o tempo que

fosse preciso para ver o meu namorado.

— Agora yo entendo por que o meu filho se apaixonou por você, é

teimosa igualzinho à madre dele. – Meu sogro senta do meu lado e me

entrega um copo de café expresso, comprou um para mim e outro para ele.
Sua aparência ainda é de um galã de novela mexicana, mas um que

acabou de enfrentar um tornado e ainda assim continua de pé porque a sua


família precisa dele. Eu pensei que o senhor Antônio tinha ido embora com

o filho e a nora para descansar, mas por algum motivo mudou de ideia.

— Eu não poderia abandoná-lo, senhor Antônio. Não depois da forma

terrível que tratei o seu filho antes de ser baleado. – Contorço as mãos sobre

o colo, envergonhada. — Vi uma coisa e tirei conclusões precipitadas, não


dei a chance nem para o Gonzales se explicar e já fui logo soltando os

cachorros em cima dele, agindo feito uma idiota.

— No, querida, você no agiu feito uma idiota. Apenas perdeu a


cabeça quando viu o namorado que ama beijando outra mujer. Sendo

sincero, no seu lugar faria a mesma coisa. – Penteia o bigode com a ponta
dos dedos, ele faz isso com frequência. – Yo amo o meu filho, mas Gonzales

merece a fama de cafajeste.

— E como merece! – Sorrio pela primeira nessa noite infernal.

— Então pare de se martirizar, Solange. Quando meu filho acordar,


vocês vão conversar e tudo vai ficar bem. – Segura minha mão com respeito

e carinho. – Mas, se ama o Gonzales de verdade, precisará ser forte,

querida. Porque várias outras Paolas aparecerão para tentar acabar com o

relacionamento de vocês por pura inveja. Uma vez cafajeste, esse carma te
assombra para sempre. – Sorve um gole do seu café em uma respiração
profunda.

— Como o senhor sabe que o motivo da minha briga com o seu filho

é a Paola?

— Porque a minha irmã Alba me ligou e implorou para minha esposa

e yo no denunciarmos a afilhada favorita dela por ter deixado o hombre que


atirou no nosso filho entrar na nossa casa, nem perguntou como o sobrinho

está. Disse que as duas pegaram o primeiro voo e fugiram para a Espanha,

porque Paola contou toda a história e jurou que no fez nada de má fé. – Dá

uma risada irônica. – Como se yo no conhecesse aquela cobra, no é a

primeira vez que ela apronta para cima do Gonzales para prejudicá-lo.

Fico enjoada em saber que a Paola é afilhada da Alba, agora entendo


toda sua implicância comigo durante o jantar de ensaio de casamento. Ela

não tirava os olhos raivosos do anel de diamante que o Gonzales me deu

quando estávamos todos à mesa, como se quisesse deixar claro que não sou

merecedora dele.

— Qual é a história do Gonzales com a Paola? – Senhor Antônio


desliza os dedos pelos fios lisos escuros e joga o cabelo para trás antes de

começar a falar, é evidente que tocar nesse assunto o incomoda.


— Tudo aconteceu quando o Gonzales tinha dezoito anos, estava na

melhor fase da sua vida. Já morávamos legalmente no Brasil, ele fazia o


segundo período de Direito e trabalhava numa ótima vaga no fórum como

estagiário, sempre levou jeito para o meio jurídico. Mas meu filho ainda
sentia muita falta da Espanha, por isso, quando conseguiu conciliar as férias
da faculdade com as do trabalho, a primeira coisa que fez foi comprar uma

passagem para visitar os nossos parentes na nossa cidade natal. – Aperta os


olhos com força como se lembrar dessa época fosse doloroso demais,

entendo o porquê quando ouço toda a história contada do começo ao fim


pelo meu sogro.

Essa vaca quase fodeu com a vida do Gonzales quando ele tinha
dezoito anos e ela dezessete, ele estava tão feliz porque era a primeira vez

que iria para a Espanha desde que se mudaram para o Brasil e poderia ver o
avô que tanto amava, ele morava com a filha mais velha, a Alba. Foi lá que

conheceu a afilhada dela, a linda e traiçoeira Paola.

Que, quando soube que Gonzales morava em uma casa bonita no Rio
de Janeiro, se jogou em cima dele descaradamente. Como era só um garoto
idiota que comia qualquer uma que abria as pernas para ele, os dois

dormiram juntos no mesmo dia que se conheceram. O problema foi que a


desgraçada contou tudo para a tia Alba, disse que era virgem e mesmo

assim o sobrinho dela a obrigou a fazer sexo com ele. Sua madrinha surtou,
tratou Gonzales como se fosse um estuprador e chamou os pais da Paola

para conversar. Eles deram apenas duas alternativas para o coitado, casar
com a filha deles e lavar sua honra, ou ser preso.

Orgulhoso como é, Gonzales escolheu ser preso, é óbvio. Preferia

morrer atrás das grades a se amarrar a alguém, principalmente uma vaca


farsante. O que ele não esperava era que o seu avô fosse infartar vendo o
seu neto favorito sendo acusado de estupro e acabasse internado. No meio

desse caos o senhor Antônio foi correndo para a Espanha resolver a


situação, tinha um filho preso e um pai morrendo na cama de um hospital.

Mas os pais da Paola não queriam conversa, Gonzales casava ou continuava


preso.

Para ter a chance de se despedir do avô, Gonzales aceitou o bendito


acordo e se casou com a Paola. Assinou os papéis praticamente com uma

arma apontada para a cabeça, tudo com a ajuda da tia Alba, que foi
responsável por arrumar a noiva para a cerimônia. Do cartório, Gonzales foi

direto para o hospital ver o avô dele, que disse que só estava esperando para
vê-lo para poder descansar em paz, e assim foi. Senhor Antônio disse que
nunca viu o filho chorar tanto, agarrado com o relógio que foi do avô e

passou para ele quando fez dezoito anos, meu amor havia perdido uma das
pessoas mais importantes de sua vida por conta de uma mentira daquela

vaca.
E para piorar, Gonzales estava casado com a Paola, mas seria por
pouco tempo. Como o marido não conseguiu resolver a situação, Carmem
foi para a Espanha para o velório do sogro com o Nando, furiosa. E ela

trouxe ajuda, pediu reforço ao primo dela que era um gângster colombiano
temido em toda América Latina. Ele trouxe o filho Heros, que era pouco

mais velho que o Gonzales na época, e toda sua gangue, armados até os
dentes. Bastou uma conversa de cinco minutos com o pai da Paola para o
casamento arranjado ser cancelado tão rápido quanto aconteceu, a vadia foi

obrigada a dizer toda a verdade, que não foi obrigada a nada e nem era
virgem quando os dois dormiram juntos.

A armação da Paola se espalhou rápido pela cidade inteira, era um

vilarejo pequeno, acabando assim com a sua reputação e a de sua família.


Todos da comunidade viraram as costas para eles porque o avô do Gonzales
sempre foi muito querido na região, mas perdeu a vida por conta do

egoísmo de uma garota interesseira. O pior nisso tudo foi que a tia Alba
ainda defendeu a Paola mesmo depois de tudo. Alegou que ela fez isso

porque estava cega por uma paixão avassaladora, e acreditava que os dois
poderiam ter sido felizes juntos.

Esse foi o fim para o senhor Antônio, que cortou qualquer contato
com a irmã mais velha, ele voltou para o Brasil com a família e não tiveram

mais contato com a Alba, até o jantar de ensaio de casamento do Luiz


Fernando. Pensaram que, depois de tantos anos afastados, seria uma ótima
oportunidade para deixar as mágoas de lado e juntar toda a família
Gonzales novamente.

No entanto, tia Alba não aprendeu a lição e cometeu o mesmo erro ao

trazer a Paola de volta para a vida do Gonzales, destruindo a sua felicidade


e o colocando nessa situação de vida ou morte. Porque, segundo o senhor

Antônio, a irmã dele confessou que depois que me conheceu, fez a cabeça
da afilhada para aparecer no casamento do Luiz Fernando e tentar uma

última chance com o sobrinho dela, afinal, ele merecia coisa melhor do que
uma mulher estrangeira de cor e acima do peso. Meu sogro não disse

exatamente com essas palavras, mas foi o que entendi.

— Eu vou dar uma lição nessa Paola que ela nunca vai esquecer na
vida, de jeito nenhum vou deixar que saia ilesa dessa vez. – Fico irada, mal

posso esperar para arrancar cada fio do cabelo vermelho desbotado da

piranha.

— Dale chica! No deixa barato mesmo, tem que cuidar do que é seu.

– Meu sogro ri em meio a um bocejo longo.

Ele ficou aqui só para me fazer companhia, porque está exausto e

deveria estar em casa descansando agora.


— Eu vou sim cuidar do que é meu, senhor Antônio. Mas para fazer

isso, antes preciso renovar as forças com um bom banho, uma refeição
reforçada e algumas horas de sono. Não quero que meu namorado me veja

nesse estado. – Aponto para o meu vestido cheio de sangue e rasgado na

barra.

Acabo cedendo e decido ir para casa, mas serei a primeira a chegar no

horário de visita para ver o meu espanhol.

— Yo te darei uma carona, filha.

— Obrigada, senhor Antônio! – Sorrio grata para o meu sogro.

Vamos no carro blindado do senhor Antônio com mais dois veículos

dos seguranças da família nos seguindo até minha casa, eles me observam

entrar em casa em segurança, mesmo com uma viatura da polícia de plantão


fazendo a proteção da minha família e da Tess. Aceno para os dois policiais

antes de entrar em casa, está tudo escuro e silencioso, é muito tarde e já

deve estar todo mundo dormindo.

— Que susto! – dou um grito quando ligo a luz e dou de cara com a

Tess pronta para sair de casa escondida, ela está toda vestida de preto e

usando um boné com a aba baixa cobrindo o rosto.

— Onde você pensa que vai, dona Tessiane? – Puxo-a pelo braço e a

coloco sentada no sofá como se fosse uma criança.


— Procurar o Lucas e deixar que faça o que quiser comigo, Sol. Ele

vai eliminar qualquer pessoa que tentar me ajudar, então é melhor dar o que

ele tanto quer. – Tira o boné da cabeça e começa a chorar, seu rosto está
vermelho e inchado de tanto chorar.

— Desculpa, amiga, mas esse foi o plano mais ridículo que eu já

ouvi. – Começo a rir e a Tess também, nosso melhor passatempo sempre foi
rir dos nossos problemas.

— Pensando bem, agora que você falou, não sei onde estava com a
cabeça quando pensei que isso daria certo. – Joga as costas no sofá aos

risos.

— Hoje foi um dia complicado, Tess, está todo mundo de cabeça


quente. Tenho certeza de que depois de um chá quente e algumas horas de

sono, vai se sentir melhor.

— Você me acompanha no chá? – Enxuga os olhos lacrimejados.

— Claro, amiga, vem comigo. – Vamos abraçadas para a cozinha.

— E o Gonzales, vai ficar bem mesmo?

— Vai sim, Tess, graças a Deus. – Abraço minha amiga sorrindo. –


Mas e você, tem falado com o Celso?

— Celso me ligou várias vezes e mandou mensagens preocupado

após ver as notícias na TV, mas não tive coragem de falar com ele. Sei que
vai terminar comigo, no lugar dele faria o mesmo, sou um risco de vida

para qualquer pessoa.

— Não tire conclusões precipitadas, criatura. Fugir do problema não

o resolve.

— Está bem, amiga, eu vou falar com o Celso. – Nos abraçamos,

ainda bem que vim para casa ou essa maluquinha poderia ter feito alguma

loucura no calor do momento.

Depois de tomar um chá de camomila juntas, minha amiga foi dormir.

Eu tomo um banho e coloco meu pijama a fim de descansar um pouco,


entretanto, rolo na cama de um lado para o outro, mas o sono não vem.

— Eu não posso ficar aqui com o homem da minha vida no hospital.

– Pulo da cama.

Troco de roupa, pego a minha bolsa e chamo um táxi. O dia já está

começando a clarear, peço para o motorista parar na rua que dá no quintal


dos fundos, porque se os policiais me virem saindo sozinha nesse horário,

vão me obrigar a voltar para casa. Contudo, isso não acontece e consigo

voltar para o hospital sem nenhum problema. Me sento na sala de espera

com os olhos grudados no relógio e conto cada segundo para o próximo


horário de visita, que é às oito da manhã. Acabo fazendo amizade com um

casal simpático, Rogerio e Marcia, o filho caçula acabou de entrar em uma


cirurgia de emergência com o quadro de apêndice estourado, se

demorassem mais cinco minutos para chegarem no pronto-socorro o

garotinho de apenas dez anos teria morrido.

Converso com os dois para distrai-los enquanto as próximas horas se

passam, conheço bem essa agonia de esperar o médico vir dar notícias. Aos

poucos o hospital vai enchendo de pessoas e funcionários para a troca de


turno, decido buscar um café bem forte para mim e os meus novos amigos.

Quando volto, eles me dão a notícia de que a cirurgia do filho deles foi um

sucesso e já podem vê-lo, comemoro junto com o Rogerio e a Marcia.

Faltando vinte minutos para começar o horário de visitas, a família do

Gonzales chega animada porque, quando estavam a caminho do hospital, a

Carmem ligou para avisar que o filho havia acordado faminto e muito
falante.

— A moça da recepção disse que só é permitida a entrada de duas

pessoas por vez, quem vai primeiro? – pergunta Nando, dividindo o olhar
entre a esposa, o pai e eu.

— Se a Camila concordar, acho que você e o seu pai devem ir


primeiro. Eu não me importo de esperar mais um pouquinho.

— Nada mais do que justo, Sol. Esse é um momento especial entre

pais e filhos. – Camila agarra o meu braço sorridente, ela é um amor de


pessoa.

— Obrigado por vocês entenderem, amor. – Nando beija o rosto da

esposa.

Ele e o pai entram para ver o Gonzales, ambos estão muito


emocionados. Já eu não me aguento de tanta ansiedade, falta pouco agora

para ver o meu espanhol depois de todo o horror que aconteceu.

— Assim você vai acabar furando o chão, amiga. – Camila ri de mim,

ela está sentada de boa mexendo no celular, enquanto eu estou andando de

um lado para o outro na sala de espera feito uma maluca.

— Eu não consigo evitar, estou muito ansiosa para ver o Gonzales. –

O sorriso vem e toma conta de todo o meu rosto.

— Falta pouco agora para estar com o seu espanhol, Sol. Vai ser lindo

ver o reencontro de vocês dois – suspira romântica.

— Ei, minhas lindas, bom dia! – Carmem aparece com uma expressão
estranha, alguma coisa está errada para largar a sua família e vir falar com a

gente.

— Bom dia, Carmem, está tudo bem? – vou logo perguntando.

— Está sim, querida. Gonzales acordou com uma fome enorme e no

para de falar um segundo, ele lembra de tudo o que aconteceu antes de ser
baleado. Disse que aconteceu muito rápido, que a dor foi insuportável e
tinha certeza de que ia morrer – conta ela e o meu coração aperta.

Mas minha mente parou em:

“Ele lembra de tudo antes de ser baleado.”

Ou seja, meu namorado lembra perfeitamente da forma horrível como


o tratei antes de ir embora batendo a porta na sua cara. Em poucas

palavras…

Estou fodida!

— Ele disse alguma coisa sobre mim? – Engulo em seco, Carmem

assente sem muito ânimo.

— Disse sim, Solange. Meu filho me pediu para vir aqui te dizer que,

já que vocês terminaram antes dele ser baleado, ele no quer te ver. Tentei
conversar para que mudasse de ideia, mas está irredutível. – Carmem me

fita com pena. – Sinto muito, querida. – Segura a minha mão, passando
força.

Ela viu o meu desespero na sala de espera do hospital enquanto


Gonzales era operado, só chorava e orava de cabeça baixa, implorando para
que ele sobrevivesse.

— Eu que peço desculpas por isso, Carmem, mas não saio desse
hospital sem ver o meu amor. – Solto a mão dela e saio disparada pelos
corredores do hospital e invado a ala de cirurgia, encontro o quarto do
Gonzales e entro sem bater.

O pai e o irmão estão em volta da cama dele, eles levam um susto


quando me veem entrando em um rompante sem ao menos bater na porta

antes.

— O que você está fazendo aqui, Solange? Yo pedi para te avisar que
no quero te ver. – Lança os olhos cansados sobre mim, sua pele está muito

pálida e ressecada por ter perdido muito sangue.

Parece que um caminhão passou em cima do Gonzales, sua aparência


não poderia ser mais abatida. Tem tantas máquinas ligadas ao seu corpo,

uma cena difícil para uma mulher apaixonada ver.

— Desculpa, meu amor, só queria ter certeza de que está tudo bem. –
Ameaço me aproximar, mas ele ergue a mão e me impede que dê mais um

passo na sua direção.

Sinto vontade de chorar, tudo o que quero fazer é correr e abraçar o


Gonzales e enchê-lo de beijos. Mas tem um muro de gelo enorme entre nós

impedindo nossa aproximação, eu estraguei tudo de um jeito que talvez não


tenha conserto.

— Vem, Luiz Fernando, vamos deixar o seu irmão e a namorada dele


a sós. – Senhor Antônio faz sinal para o filho, que assente com a cabeça.
— Solange no é mais minha namorada, papá. Agora que ela viu que
estou bem, já pode ir embora. – Vira o rosto para o outro lado para não ter
que olhar para mim.

— Por favor, Gonzales, não faz isso, vamos conversar a sós.

— Quem fez isso foi você quando decidiu passar por aquela porta,
Solange, preferindo no confiar em mim – grita furioso.

— Eu sei, meu amor, por favor, me perdoa – imploro em lágrimas.

— Yo te perdoo, mas depois de tantos foras e corações partidos, estou


cansado. – Fita o teto em uma respiração pesada.

— O que você quer dizer com estar cansado, Gonzales? – O medo se

instala em mim.

— Que yo desisto de nós, Solange! Definitivamente – diz frio como


um iceberg. – Está livre para encontrar um hombre bom o suficiente para

ser merecedor da sua confiança, com muita sorte ele será da mesma etnia
que a sua e poderá seguir a tradição da sua família. No é isso que sempre
sonhou para você? – ironiza apenas no intuito de me ferir como eu o feri na

última vez que nós conversamos.

Senhor Antônio e o Nando me olham chocados, com aquela mesma


expressão de horror de quando eu disse ao Gonzales que só me relacionava
com homens negros. Agora eles acham que sou preconceituosa, fico muito
envergonhada.

— Eu sei que está muito magoado comigo, meu amor – falo


engolindo o choro. – Mas nada do que disser vai me fazer desistir de você,
Gonzales, nós vamos nos casar e ter um monte de filhos. Moraremos em

uma casa grande no interior da Espanha e seremos muito felizes, para


sempre – repito as palavras que ele me disse quando estávamos presos
naquela cela, mas nem isso parece comovê-lo, continua com a face dura.

— Por favor, vai embora, Solange, no quero te ver nunca mais. – Sua
voz falha.

Resolvo sair para não causar mais problemas do que já causei. Tudo o

que menos quero agora é piorar o estado de saúde do Gonzales. Se ele não
quer me ver, eu irei para o mais longe possível.

— Olá, Solange, está tudo bem, querida? – Carmem tenta tocar o meu
braço quando passo andando sem rumo pela sala de espera, que já está

lotada de pessoas para visitar o Gonzales, mas ignoro todo mundo e


continuo andando em frente.

A dor da rejeição é maior que tudo, agora entendo o que o Gonzales

passou em todas as vezes que o rejeitei cruelmente. E mesmo assim não


desistiu de mim, continuou lutando. Agora eu fiz merda e fodi com tudo

mais uma vez, ele nunca vai me dar outra chance.

— Porra, Solange! Você estragou tudo – digo para o meu próprio


reflexo no vidro da fachada do hospital do lado de fora e sigo caminho,

andando desorientada em qualquer direção.

Meu celular toca, penso em não atender, porque a única pessoa com
quem gostaria de falar agora não quer me ver. Mas mudo de ideia quando

vejo que é o delegado Avilar, ele me prometeu não parar até pegar quem fez
isso com o Gonzales e eu acredito nele.

— Oi, delegado, tem alguma novidade do paradeiro do Lucas?

— Sim, Solange, queria te ligar antes, mas fiquei sem bateria. – Faz

uma pausa longa. – Como prometido, o primo gângster do Gonzales usou


os seus contatos no mundo do crime e conseguiu encontrar o Lucas em
menos de vinte e quatro horas.

— Graças a Deus! – Respiro aliviada, espero que esse desgraçado


apodreça na cadeia pelo resto da vida.

— Calma, Solange! Nós encontramos o Lucas, mas não foi bem como

eu esperava. – Pigarreia, logo percebo que tem algo errado.

— Como assim, delegado? – Paro de andar em um rompante.


— Nós encontramos os restos mortais do Lucas em uma casa
abandonada onde estava se escondendo da polícia. Pelo que disseram,
morreu de overdose.

— Tem certeza de que é ele? – pergunto chocada.

— Sim! Ele foi reconhecido pelo seu registro de arcada dentária. O


legista que examinou o corpo disse que, devido ao estado de decomposição,
Lucas morreu na mesma noite em que agrediu a sua amiga – explica e fico

ainda mais chocada.

— Mas isso já faz meses, delegado. Se ele está morto desde o dia que
invadiu a casa da Tess, quem está perseguindo ela todo esse tempo?

— Não era a sua amiga que estava sendo perseguida esse tempo todo,
Solange, mas sim você – revela e o meu coração dispara.

— Eu? – digo mais para mim mesma do que para o delegado.

— Sim, Solange! E tem uma coisa que você precisa saber, acabei de

conversar com o investigador Siqueira, que está trabalhando em outro caso


que parece estar ligado ao seu – completa, deixando a história ainda mais
esquisita. Quando o delegado vai dizer alguma coisa, escuto o ranger do

motor de um carro vindo de trás de mim.

Giro o pescoço e olho para trás e vejo um SUV preto com o vidro
escuro a poucos metros de distância de mim, ele está parado, mas com o
motor ligado.

— Você? – digo surpresa quando os faróis baixam de propósito para


que eu consiga ver quem está no volante rindo psicótico, ele acelera na

minha direção sem ao menos me dar tempo para pensar.

O SUV preto acerta o meu corpo e me joga para fora da calçada.


Apesar de não conseguir me mexer devido à dor, ainda estou consciente e

ouço quando o veículo dá a ré, volta e estaciona próximo a mim bem no


meio da rua movimentada e ninguém faz nada, só ficam olhando e
gravando. O covarde abre a porta e sai assobiando, se abaixa sem pressa e

sussurra no meu ouvido:

“Enfim sua hora chegou, vadia, não sabe há quanto tempo estou
esperando por isso.”

— Você não vai conseguir se safar dessa – sussurro sem forças


enquanto meu corpo é colocado no banco de trás do carro, o homem
continua assobiando enquanto dirige.

Eu caio em uma escuridão sem fim, onde por mais que eu grite

ninguém poderá me ouvir. Agora está tudo perdido. Esse é o começo do


fim.
Gonzales

Respiro com dificuldade, dói até para falar. Ainda no caiu a ficha que

levei um tiro. Tudo aconteceu num piscar de olhos. Yo estava de corazón


partido depois que a Solange saiu batendo a porta na minha cara desistindo

de nós, sabia que tudo estava perfeito demais para ser verdade. Mas havia
alguém que era culpado por estragar a minha felicidade logo no dia do
casamento do meu irmão. Quando me virei furioso para colocar a Paola
para fora da minha vida de uma vez por todas, olhei para baixo e vi uma

pequena luz vermelha sobre o tecido da minha camisa.

Primeiro veio o estrondo, depois senti uma dor forte e aguda e o


sangue começou a jorrar logo em seguida enquanto meu corpo caía

lentamente no chão e no lembro de mais nada depois disso. Quando yo


acordei, já estava nessa cama de hospital e o lindo rosto de mamá foi a
primeira coisa que vi, com o sorriso mais lindo do mundo. Apesar de estar

feliz por estar vivo, a dor das últimas palavras que a Solange me disse ainda

queimava no meu peito mais do que o local da ferida da bala.

— Yo espero que você esteja certo do que acabou de fazer, Alejandro

Gonzales. – Papá me olha de esguelha assim que a Solange vai embora, ele
pensa que yo cometi um erro, mas sei que fiz a coisa certa.
Essa mujer deixou claro que nunca vai confiar em mim de verdade,

desistiu de nós na primeira oportunidade que teve e foi embora sem ao


menos me dar o benefício da dúvida. Nem me deixou falar. A impressão

que tenho é que esteve esperando esse tempo todo que yo pisasse na bola

para poder sair fora da dor de cabeça que é namorar alguém com a fama de
mulherengo como a minha.

— Nosso relacionamento nunca daria certo, papá. Solange no confia


em mim, mesmo depois de todas as provas de amor que dei correndo atrás

dela e me humilhando feito um louco. – Ajeito a cabeça no travesseiro,

estou sentindo uma dor da porra.

— Se yo fosse a Solange, também no confiaria em você, irmão. –

Começo a tossir, Nando pega um copo de água e me ajuda a beber um


pouco.

— E por que no, Luiz Fernando? Yo soy praticamente um santo. –

Sorvo mais um gole do copo d´água, minha boca está seca.

— Deve ser um peso enorme ser a primeira namorada do maior


cafajeste do Rio de Janeiro, você tem a má fama que criou com as mujeres e

agora no pode exigir confiança da parte delas da noche para o dia. Precisa

dar o seu melhor e ser paciente. Conforme a relação de vocês for


amadurecendo, as coisas vão acontecendo naturalmente – filosofa, só está
há um dia casado e já virou um especialista em romance.

— Primeiro, Nando, no existe mais um relacionamento entre mim e a

Solange. Já me conformei que nasci para ser um lobo solitário. – Faço uma

pausa, dizer isso em voz alta foi mais difícil do que pensei. – Segundo, no

era para você estar nas Ilhas Maldivas agora na sua lua de mel, cabrón?

Tento distrai-lo daquela conversa sobre minha vida amorosa, falar

sobre a minha namorada, quero dizer, ex-namorada, é uma ferida aberta que

vai levar muito tempo para curar. Yo amo a Solange, mas estou muito

cansado de lutar. Quando penso que o meu final feliz enfim chegou,

acontece alguma merda e ferra com tudo. Estou ferido física e

emocionalmente.

Preciso me curar de tudo isso sozinho o mais rápido possível, para

quando a polícia pegar o filho da puta que fez isso comigo, yo possa foder

com a vida dele nos tribunais de um jeito que vai desejar nunca ter nascido.

Perguntei à mamá como vão as investigações do meu caso, ela no tinha

muitas informações, disse que a última vez que falou com o delegado Avilar

foi na sala de espera enquanto me operavam. Ele disse que o suspeito


principal de ter feito isso é o Lucas, prometeu que no ia descansar até

colocar as mãos nele e fazê-lo pagar por todo mal que me fez.
Está tão decidido a capturar o Lucas que até aceitou a ajuda do meu

primo Heros, e para um delegado respeitado e extremamente honesto como


o Ricardo aceitar a ajuda do chefe de uma facção criminosa, é porque ele

está de fato envolvido emocionalmente no caso, isso só demonstra que é


realmente meu amigo e se importa comigo.

— Meu irmão favorito levou um tiro e você acha mesmo que yo ia


viajar para fora do país? Nem fodendo! – Faz uma careta como se minha

pergunta fosse ridícula. – Além do mais, as Ilhas Maldivas nem são tão
bonitas assim, aquelas fotos são tudo photoshop. – Dá de ombros o babaca,

no quer me fazer sentir mal por ter destruído a sua festa de casamento e
consequentemente a lua de mel.

— Está certo, filho, yo e a sua madre já viajamos para lá duas vezes e


o lugar no é tão bonito assim pessoalmente. É incrível o que podem fazer

com programas de edição de fotos hoje em dia.

Papá abraça o Nando rindo, olho para os dois e fico imaginando que
yo poderia ter morrido e nunca mais os veria novamente.

— Vocês dois mentem muito mal, sabiam? – Rio junto com eles, mas
me controlo por causa da dor.

— Pelos menos yo tentei, mano. – Nando dá de ombros rindo.


— Mas e a Lupita, quando vou poder ver a nossa princesinha? Ela

deve estar muito assustada com tudo o que aconteceu.

— Disseram que ela no pode entrar por causa da idade, mas vamos
dar um jeitinho, filho, no se preocupe. – Papá pisca para mim, yo assinto

sorrindo.

— Que susto você deu na gente, hein, espanhol? – Camila entra com

mamá no quarto.

Atrás das duas vão entrando mais e mais gente, entre membros da
nossa família que vieram para o casamento do Nando e os meus amigos, até

os funcionários da minha empresa vieram, quase não cabe todo mundo no


quarto. Pensei que só podiam entrar duas pessoas por vez, mas o diretor do
hospital deve ter ficado assustado com essa multidão na sala de espera e

deixou todo mundo entrar de uma vez só ou esse horário de visita no


terminaria nunca.

É bom saber que tantas pessoas se importam comigo, mas ainda assim

continuo sentindo que a pessoa mais importante no está aqui e foi por
decisão minha. É melhor assim. Para nós dois.

— No seja cínica, Camila, você estava louca para sambar em cima do


meu caixão que yo sei — faço piada e arranco altas risadas de todos, menos

mamá.
Ela está encostada na parede no fundo do quarto mexendo no celular
e colocando no ouvido toda hora como se estivesse tentando falar com
alguém, seu semblante mostra preocupação.

— Não seja bobo, Gonzales. Você está muito novo para morrer, ainda

temos muita cerveja para beber juntos. – John se aproxima da minha cama,
se conheço bem o meu amigo, deve ter surtado quando descobriu que fui
baleado.

— Eu concordo com o John, espanhol. Ainda temos que beber muito

juntos nessa vida. – Léo passa o braço em volta do pescoço do John.

— E aprontar todas, não é, rapazes? – Pedro passa o braço em volta


do pescoço do Léo, esquecendo que as esposas dos nossos amigos estão
presentes.

Yo acho é graça, pena que para a nossa turma ficar completa falta só o

delegado. Mas espero que ele se junte a nós em breve e trazendo boas
notícias.

— Diga só por você, Pedro. Porque o restante do grupo é


comprometido. – Yudiana leva as mãos na cintura batendo o pé no chão e os

rapazes engolem em seco.

— Verdade, Yudi, aliás, onde está a Solange que não está ao seu lado
te paparicando, chefe? – pergunta Daniele sorrindo, mas yo no esboço
reação alguma e ela percebe que o Pedro no é mais o único solteiro do
grupo.

— Solange e yo no estamos mais juntos, daqui para frente cada um


segue o seu caminho. – Pigarreio, está todo mundo me olhando literalmente

de queixo caído.

— Mas me fala aí, Gonzales, isso aqui está doendo muito? – John
mexe no curativo fixado ao lado direito do meu peito onde a bala entrou, na

tentativa de tirar o clima tenso do ar.

— Que nada! Yo já estou pronto para outra, mi amigo. – Forço um

sorriso falso.

Estou feliz com a presença de todos, mas tudo o que yo queria agora é

ficar sozinho. Falar na Solange me faz sentir ainda mais a falta dela, as

primeiras semanas no serão fáceis longe dela, mas vou sobreviver.

— Será que yo poderia falar um segundo com você lá fora, querido? –

Mamá agarra o braço do papá e o puxa para fora do quarto, no sei o que

tem de errado com ela.

Assim que mis padres saem, o celular do John e do Pedro apitam ao

mesmo tempo e, depois de ambos lerem as mensagens, eles trocam olhares.


Inventam uma desculpa e saem do quarto juntos cochichando, fico tenso.

Tento dar atenção para as minhas visitas, mas no consigo disfarçar muito
bem. Estou com uma sensação estranha e no é coisa boa, sinto que estão

escondendo alguma coisa de mim.

O horário de visita termina e todos vão embora, ficam apenas mis

padres agindo muito estranho e evitando me olhar nos olhos enquanto


conferem o celular a cada cinco segundos.

— Qual de vocês dois vai me contar o que está acontecendo? –

Seguro a mão de mamá quando ela ajeita o meu lençol pela terceira vez,
sendo que está perfeitamente arrumado, yo a conheço muito bem, ela está

nervosa.

— Do que você está falando, filho? No está acontecendo nada. –

Desvia o olhar tremendo os lábios, vai começar a chorar a qualquer

momento.

— Está acontecendo sim, Gonzales, e yo sou contra continuar

escondendo a verdade de você.

— Já chega, Antônio! Quando o delegado Avilar me ligou no horário

de visitas, ele disse que no era para falar nada para o Gonzales e nem ligar a

TV no canal de notícias até a polícia ter mais informações concretas sobre o

caso. – Deixa as lágrimas que estava segurando caírem. – Preocupar o


nosso filho agora só vai piorar as coisas.

— Contar o quê, mamá? – Fico agitado, sabia que tinha algo errado.
— Isso, meu filho. – Papá ignora o pedido da esposa e pega o

controle da TV sobre o sofá de canto. – No se fala mais nada nos jornais

depois que a notícia estourou há uma hora, você vai precisar ser forte,
Alejandro. – Me chama pelo primeiro nome, sinal de que a situação é

mesmo urgente.

Quando papá liga a TV, cai direto na chamada do jornal da tarde. O


polêmico repórter Léo Fontes alerta a população sobre um imitador do

assassino em série que está à solta, causando mais terror na cidade.

— A polícia pede a toda população para tomar cuidado, o imitador

do assassino em série está à solta e é muito perigoso – diz ele, com linhas

profundas de expressão ao meio das sobrancelhas grossas.

— Imitador do assassino em série, mas que porra é essa? – Pego o

controle da mão do papá e aumento o volume, Léo Fontes continua dando a

notícia principal do dia.

— Segundo fontes seguras, o imitador matou uma prostituta

recentemente, ele também é suspeito de atirar no conceituado advogado

Gonzales durante a festa de casamento do seu irmão. Aliás, o criminoso já


vinha perseguindo há meses o empresário e a sua namorada, Solange

Almeida, que está desaparecida no momento e tudo indica que foi

sequestrada pelo assassino – finaliza o repórter, yo nem respiro mais.


Vi a Solange de manhã e agora ela está desaparecida? Mas que diabo

está acontecendo que ninguém me falou porra nenhuma que a minha


namorada sumiu e pode estar nas mãos de um assassino lunático?

Porra!

— Agora o Lucas foi longe demais, matou uma mujer, atirou em mim

e pode ter sequestrado a minha Sol. – Sinto um misto de sentimentos, raiva,

medo e muito desespero de que algo de ruim aconteça com a única mujer
que amei e vou amar por toda a vida.

Papá e mamá se entreolham, então mamá joga a bomba final:

— Lucas no é o culpado, filho, foram encontrados os restos mortais

dele em uma casa abandonada. Ele já estava morto lá há meses – conta e

tenho uma síncope.

— Se no é o Lucas que está causando todo esse caos, quem está? –

Fico transtornado, mas quem responde minha pergunta no são mis padres,
mas sim o repórter Léo Fontes.

— Para finalizar essa reportagem, peço que se alguém vir esse

homem, por favor, ligue para o número 190. – A gravação corta e a tela
enche com a foto de um cara que conheço muito bem, então tudo fez

sentido.
— Professor Roberto! – Mi corazón acelera, as máquinas ligadas ao

meu corpo começam a apitar sem parar.

Duas enfermeiras e um médico entram no quarto correndo e começam


a me examinar, mas yo no consigo tirar os olhos da TV. Nem pisco olhando

para a foto do Roberto, com a mesma cara sonsa de bom moço de sempre e

um sorriso simpático no rosto. Nem em sonho ninguém desconfiaria desse


cara boa pinta. Esse tempo todo e nós estávamos procurando o bandido

errado. Agora Solange pode estar nas mãos dele e o pior pode acontecer, e

yo no posso fazer absolutamente nada para impedir estando preso nessa

cama.

Cometi um erro tremendo quando mandei Solange embora, se ela

estivesse aqui agora comigo estaria segura ao meu lado, lugar de onde
nunca deveria ter saído.

 
 
Solange

Acordo sentindo uma pressão forte na cabeça, me sinto tonta. Estou

deitada em uma mesa de ferro com as mãos e braços presos. Mesmo com a
vista turva, consigo fazer uma breve análise à minha volta. Estou em uma

espécie de galpão abandonado com a luz bem baixa, boa parte do lugar foi
tomado pela vegetação e todo maquinário guardado aqui está enferrujado. É
evidente que o local foi abandonado há muito tempo, tem buracos no teto, e
nas paredes vários recortes de jornais colados com a foto de cada uma das

prostitutas mortas. Dá para sentir o cheiro forte de morte, uma mistura de


sangue seco com enxofre.

— Merda! Roberto é o assassino em série que tem colocado terror na

cidade. – Fico em completo estado de choque, ainda não acredito que me


atropelou e me trouxe para esse galpão abandonado.

Nunca ninguém desconfiaria do Roberto, um professor do ensino

médio bonitão todo engomadinho, que fala bem e sabe conquistar as


mulheres com o seu cavalheirismo. Tudo isso é tão absurdo que penso estar

em meio a um pesadelo e vou acordar a qualquer momento.

— Bom dia, linda, vejo que você já acordou. – Roberto entra na sala,

me tremo toda de medo.


— Não chega perto de mim, seu psicopata! – Me esquivo quando

tenta me tocar.

— Se eu fosse você seria boazinha, Solange. – Caminha lentamente à

minha volta. – Esqueceu que sei onde a sua família mora? – ameaça o filho
da mãe.

— Se você machucar alguém da minha família, eu juro por Deus que

te mato, Roberto. – Tento me soltar, mas é impossível.

— Não use o nome de Deus em vão, sua pecadora. – Me dá um soco

no rosto com força, levo alguns segundos para recobrar a consciência.

— Que moral tem para me chamar de pecadora? Você é um assassino

em série, matou todas essas mulheres inocentes por nada.

— Agradeço o elogio, mas não sou o assassino de prostitutas. Sou

apenas o maior fã dele, o primeiro soldado do exército do Senhor designado

para limpar o mundo dos pecadores. – Pega uma faca grande e começa a

afiar bem na minha frente.

— Soldado do exército do Senhor? – Arqueio a sobrancelha,

estupefata, Roberto está completamente fora de si.

— Exatamente isso, Solange. Desde a primeira vítima do meu mestre

que venho me preparando para me juntar a ele nessa luta divina de limpar o

mundo, você é a segunda prostituta que perderá a vida pelas minhas mãos
sagradas. – Sorri para mim sereno, realmente acredita que faz parte de
alguma obra divina.

Puta merda!

Como não percebi em todo esse tempo trabalhando juntos que o

professor Roberto é um fanático religioso? Ele sempre falava de Deus,

contudo, de maneira saudável. Mas agora está falando como se fosse o


próprio messias que foi enviado para o mundo pela segunda vez para limpar

o pecado do mundo com as próprias mãos em um banho de sangue sem fim.

— Eu não sou prostituta, Roberto, você está cometendo um engano.

Sou professora do ensino fundamental, nós trabalhávamos juntos, lembra?

Se me deixar ir embora, prometo que não conto nada para ninguém – tento

jogar com a sua mente.

— A única coisa que lembro claramente é de uma conversa sua que

ouvi com a professora Tess na escola sobre ter dormido com um homem em

troca de uma pequena fortuna. Isso não faz de você uma prostituta? –

pergunta e eu não tenho coragem de responder, errado ele não está.

Droga!

Eu sabia que tinha ouvido um barulho estranho naquele dia enquanto

desabafava com a Tess, mas eu estava tão transtornada porque o Gonzales


enviou mil rosas vermelhas para o meu trabalho que não me importei em

dar mais atenção a isso.

— Você se aproximou de mim apenas para preparar o terreno para me

matar, não é mesmo? – Fito-o nos olhos, não tem nada dentro deles além de
puro vazio.

— No começo me aproximei de você porque queria te converter, esse

seu estilo chamativo cheia de tatuagens e linguajar inapropriado me dava


pena. – Torce o rosto. – Pensei que podia salvar sua alma, mas quando

descobri que era uma prostituta percebi que só um sacrifício seria a sua
salvação. Só que não podia simplesmente matar minha colega de trabalho,
seria mais fácil se as pessoas pensassem que estávamos vivendo um

romance.

— Mas o Gonzales chegou e estragou os seus planos, não é mesmo?


Porque eu escolhi ele ao invés de você – provoco, já que estou na merda

mesmo, que se dane tudo.

— E foi exatamente por isso que dei um tiro no peito do seu

namoradinho metido, se tivesse desistido de você não estaria morrendo em


um hospital agora, mas não! Ele tinha que colocar aqueles malditos

seguranças para proteger você e a sonsa da sua amiga vinte e quatro horas
por dia, impedindo que a minha missão divina fosse cumprida.
— E você acha mesmo que o mundo vai ser um lugar melhor

eliminando todas as prostitutas? – Elevo a voz. – Acorda, Roberto! Tem


pessoas morrendo de fome, vários criminosos roubando e matando pessoas

inocentes, políticos corruptos, entre vários outros problemas muito maiores


para a humanidade para se preocupar do que com mulheres que deveriam

ter o poder de escolher o que fazer com os seus próprios corpos.

— Não no mundo das pessoas tementes a Deus, me senti enojado

quando descobri que era colega de trabalho de uma mulher da vida. Venho
de uma família extremamente religiosa e jamais permitiria que aquelas

crianças inocentes continuassem sendo educadas por uma pecadora. Já


bastava ter que engolir uma aluna da escola filha de uma prostituta, mas

dessa piranha vou me livrar logo depois de você. – Tira uma foto da Paula
do bolso de trás da jeans e cola na parede ao lado da minha, esse maluco vai
atrás dela depois de terminar comigo.

— Essas mulheres não fazem mal a ninguém, Roberto! Elas vivem

suas vidas da maneira que escolheram, seguindo o livre-arbítrio que


também está escrito na Bíblia. Se é tão religioso assim quanto diz, deveria
saber que não devemos julgar o próximo, só Deus tem esse poder.

— Já disse para não falar no nome de Deus em vão, mulher. – Me dá

outra bofetada no rosto com ainda mais força. – O assassino de prostitutas e


eu somos soldados justiceiros, fomos enviados para a terra para eliminar
toda a escória e criar uma raça ariana. – Faz o sinal da cruz, junta as mãos
frente ao corpo e começa a orar em uma língua estranha.

Ali percebi que nada do que eu fizesse adiantaria, Roberto está


totalmente desequilibrado. Preciso ganhar tempo para pensar em alguma

forma para conseguir fugir, ou a próxima vítima a ser anunciada pelo


repórter Léo Fontes no jornal das nove serei eu.

— Mas e se eu me arrepender dos meus pecados e pedir perdão a


Deus? Todo mundo tem direito a uma segunda chance, por favor, só quero

ir para casa. – Seguro o choro, não vou dar esse gostinho a ele.

— Precisava ver a sua cara agora, Solange. Implorando por clemência


– debocha do meu desespero.

— Vai para o inferno, seu filho da puta! Se quer me matar vá em


frente logo, eu não ligo. – Minha voz falha. – Você já acabou comigo

mesmo quando deu um tiro no peito do homem que eu amo.

— Eu vou te matar sim, Solange, mas prometo ser rápido. – Vem na


minha direção segurando a faca afiada, a sessão tortura vai começar.

Aperto os olhos com força já preparada para o pior, sinto a ponta da


faca se afundar na maçã do meu rosto. Mas o celular do Roberto começa a

tocar, ele fala vários palavrões e vai atender fora da sala. Aproveito que
estou sozinha e começo a agir, tento passar minha mão pela corrente em
volta do meu pulso. Mas está muito apertada, trinco os dentes para não
gritar e quebro meu dedo mindinho para conseguir livrar uma mão. A dor é
insuportável. Porém, não posso parar.

Com a mão livre solto a outra, depois rapidamente faço o mesmo com

os meus pés. Desço da mesa de ferro e saio correndo desesperada pelo


galpão, o lugar está cheio de tralha de construção e não faço ideia de onde

é. Mas não consigo ir muito longe. Roberto rapidamente nota a minha fuga
e vem atrás de mim, ouço seus passos enfurecidos cada vez mais próximos.

— Você não pode fugir dos planos de Deus, Solange. – Começa a

assobiar.

Corro o mais rápido que consigo, mas o Roberto é muito maior e mais
forte e me alcança com facilidade. Ele me agarra por trás, me joga no chão

e me dá um chute no estômago com toda sua força, me encolho em posição

fetal devido à dor. Quando o covarde tenta me chutar de novo, agarro o seu
pé e o jogo no chão. Roberto pode até me matar, mas vai ter muito trabalho

antes.

Nós dois começamos a rolar no chão, finco minhas unhas no seu rosto
e afundo até perfurar a carne. Quero deformá-lo para sempre, para que toda

vez que olhe no espelho se lembre de mim.


— Você não vai se safar dessa, Roberto. Vai pagar por todos os

crimes que cometeu. – Dou uma joelhada no meio de suas pernas e ele
geme de dor.

Tento pegar uma barra de ferro não muito longe de mim, mas Roberto
me puxa pelo pé, agarra minhas tranças e bate minha cabeça contra o piso

de cimento grosso. Entro em um estado de leve inconsciência, abro os olhos

vagarosamente e os fecho enquanto sou arrastada pelas pernas de volta para

a salinha. Sou amarrada na mesma mesa de ferro onde estava antes, lutei
tanto para voltar à estaca zero.

— Você não tem que fazer isso, Roberto – digo quase sem forças.

— Não tenho, mas eu quero fazer. – Se apossa da faca novamente e se

aproxima de mim com um sorriso perverso, como um caçador pronto para

abater sua presa.

— Eu não me importo de morrer se essa é a vontade de Deus, como

você disse. Só peço que isso acabe aqui e deixe a minha família e a Tess em
paz, por favor. – Deixo uma lágrima cair quando ele assente, pelo menos as

pessoas que amo estão a salvo.

— Oh, Deus, receba essa alma no reino dos céus. Com todo o poder
celestial que concedeu a mim, eu a liberto, Solange Almeida, de todos os
seus pecados. – Ergue a faca com as duas mãos na direção exata do meu

coração, fecho os olhos aceitando o meu trágico destino.

Nunca mais verei a minha família novamente e nem tive a


oportunidade de dizer adeus, o homem que eu amo me odeia e terei que

levar essa dor comigo para o túmulo. Esse é o meu fim e não tem mais o

que fazer para mudar as coisas, só um milagre me salvaria nesse momento.

— Então é você o assassino que tem se passado por mim?

Abro os olhos quando escuto a voz de uma terceira pessoa no local,


mas está modificada, parece a de um robô. Sinto um calafrio tomar conta da

minha espinha quando vejo o homem alto de corpo esguio, coberto dos pés

à cabeça por uma espécie de colã que cobre até os seus olhos. Eu estou
diante do verdadeiro assassino em série de prostitutas. O criminoso mais

procurado deste país nos últimos tempos, que matou quase trinta mulheres

só no último ano.

— Eu não acredito que estou diante ao meu grande mestre, sabia que

você iria me encontrar para que possamos cumprir a nossa missão divina

juntos. – Roberto fica de joelhos de frente ao homem em sinal de


reverência, enquanto eu estou a ponto de me mijar toda de tanto medo.

Agora estou nas mãos de dois psicopatas, realmente não existe nada
tão ruim que não possa ficar pior.
— Missão divina? – O assassino em série solta uma risada macabra. –

O que eu faço não tem nada a ver com Deus, meu caro rapaz, está mais para
coisa do diabo mesmo.

— Mas você tem limpado a cidade do mal do pecado da carne, como


isso pode ser coisa do diabo? – insiste Roberto, decepcionado.

— Porque eu adoro matar e as prostitutas, além de belas, são os alvos

mais fáceis, vítimas perfeitas para o meu trabalho artístico. Que eu faço
sozinho, por isso estou aqui para limpar a sua bagunça e deixar bem claro o

que acontece com aqueles que tentam me copiar.

— O que você quer dizer com limpar a minha bagunça?

— Você saberá em breve, rapaz, não se preocupe. – Bate a mão na

cabeça do Roberto como se fosse uma criança. – E, já que é um homem de


Deus, deveria começar a orar porque vai precisar de toda ajuda divina

quando eu começar o trabalho artístico que preparei para você.

— Por favor, mestre, tenha misericórdia de mim, sou apenas um servo

de Deus que trabalha para o bem da humanidade. Por isso capturei essa

prostituta para dar a ela o fim que merece. – Aponta na minha direção com

a faca.

— Eu conheço uma prostituta a quilômetros de distância, e essa moça

que você sequestrou está longe de ser uma, seu idiota! – Esbofeteia o rosto
do seu maior fã, toma a faca da sua mão e afunda a ponta debaixo do seu

queixo.

— Mas Deus me disse que ela devia morrer, por isso estou aqui. – A
voz do Roberto fica trêmula.

— Você me enoja, sabia? – Agarra o pescoço dele. — Sua escória é a


pior face do mal que existe, que usa o nome de Deus para saciar os seus

desejos sórdidos.

— Eu jamais usaria Deus de maneira nenhuma, ele que me usa como


instrumento para que a Sua Vontade seja feita e o bem-estar da humanidade

prevaleça – filosofa Roberto, como um desses pastores malucos que

arrastam multidões por onde passam.

É como se nele habitassem duas personalidades completamente

diferentes que tomam o controle quando lhes convêm, uma impecável que

encanta as pessoas e outra psicótica que se rotula justiceira.

— Duvido muito que estivesse pensando no bem da humanidade

quando estuprou aquela moça várias vezes antes de matá-la, professor


Roberto. Agora vai pagar por isso, amargamente. – Tira uma pequena

seringa do bolso e aplica no pescoço do religioso lunático que cai para o

lado, inconsciente.
Eu queria gritar, mas o medo me impediu até de fazer isso. Depois

que silencia Roberto, o assassino em série caminha até mim e para do lado
da cama de ferro onde estou presa. É hora da queima de arquivo, depois de

tudo o que vi, ele nunca me deixaria viva.

— Por favor, seja rápido. – Começo a chorar.

— Calma, senhorita, só quero pedir sinceras desculpas pela maneira

grosseira como foi tratada. – Tira um lenço do bolso e enxuga minhas


lágrimas. – Eu fiz uma denúncia anônima para a polícia e chegarão aqui em

dez minutos, eles te levarão para casa com segurança – diz educadamente,

me deixando chocada.

Tranquilo, ele caminha até o Roberto e sem nenhuma dificuldade o

joga no ombro como se fosse um saco de batatas e vai embora. Quando ele

paralisa ao chegar na porta, penso que se arrependeu de me deixar viva e


voltaria para me matar, mas ao invés disso ele se vira, estica o braço e pega

a foto da Paula pendurada no mural, olha fixamente por longos segundos e

então a leva embora consigo. Infelizmente, acho que acabou de escolher sua
próxima vítima caso a polícia falhe em protegê-la.

Falando na polícia, eles chegaram em exatos dez minutos, como o

assassino em série disse. Delegado Avilar foi o primeiro a chegar, junto


com um homem negro mais velho que se apresentou como investigador
Siqueira, sua equipe entrou logo atrás dele e o lugar não foi grande o
suficiente para tantos policiais. Eles me desamarraram e disseram que me

levariam para a delegacia onde minha família já estava à minha espera,

apesar que adiantei a história para o delegado na viatura mesmo,


principalmente a parte em que o assassino em série levou a foto da Paula e

eles precisam protegê-la dele.

Delegado Avilar prometeu que entraria em contato com a Paula o

mais rápido possível, eles darão total proteção a ela e à sua filhinha.

— Isso pertence a você, Solange. – O investigador me entrega o meu


celular que foi roubado assim que chegamos na delegacia, ele me disse que

encontrou na revista que fez na casa do Roberto.

— Muito obrigada, senhor. – Viro o celular com a tela trincada de um

lado para o outro, ele ainda está carregado e consigo ver a foto minha com o
Gonzales que usava como plano de fundo.

Foi através desse celular encontrado na casa do Roberto e a


descoberta da morte do Lucas que eles começaram a juntar as peças do
quebra-cabeça, e quando o delegado foi me ligar para me avisar, eu

simplesmente desapareci. Só conseguiram me achar através da denúncia


anônima feita pelo homem mais perigoso da cidade, um assassino de
mulheres, que no final salvou a vida de uma.
É cômico dizer, mas eu devo a minha vida ao homem mais perigoso
do país no momento.

— Graças a Deus você está bem, amiga! – Tess acelera os passos na


minha direção e me abraça o mais forte que consegue, ela chora muito, mas

sei que é de alegria.

— Você está livre agora para voar, Tess, estou tão feliz por você. –
Aperto-a bem forte.

— E esse tempo todo eu estava com tanto medo do Lucas, sendo que
ele já estava morto. – Soluça e eu a aperto mais forte dentro dos meus
braços.

— Eu sei amiga, mas tudo acabou agora. – Aliso suas costas


acalentando-a.

— Solange, filha, que bom te ver. – Mamãe vem e abraça nós duas ao
mesmo tempo, vovô e o Rafael logo aparecem e se juntam a nós, estava

todo mundo aqui à minha espera.

Depois de eu dar novamente meu depoimento agora por escrito, enfim


somos liberados para voltar para casa. Agora tudo será diferente. Não

precisamos mais ter medo. Uma nova fase de nossas vidas começa a partir
de hoje, principalmente para minha amiga Tess.
— Duas viaturas vão levar vocês para a casa, mas você vem comigo,
Solange. – Delegado Avilar sorri. – Me disseram que tem um espanhol
maluco colocando o terror em um hospital inteiro por sua causa, quer sair

para ver a namorada a qualquer custo ou vai mandar explodir o prédio. –


Revira os olhos rindo, drama é com o Gonzales mesmo.

O delegado disse “sair para ver a namorada”?

Sim!

Ele disse.

— Então, por favor, vamos logo, delegado. Depois de tudo o que


passei, preciso abraçar esse espanhol maluco para nunca mais soltar. –

Sorrio apaixonada.

E vou com o coração cheio de esperança para que as coisas possam se


resolver entre mim e o Gonzales, para enfim vivermos o nosso final feliz.
Gonzales
 

— Yo já disse que vou ir ver a Solange e ninguém vai me impedir! –

Tento arrancar os fios presos ao meu braço, mas sou impedido por Nando.

Literalmente surtei quando descobri que o professor Roberto é um


assassino perigoso que sequestrou a minha namorada e levou sabe lá Deus

para onde. Mesmo com muita dor tentei sair dessa cama para procurar
Solange, só que o meu médico tentou me sedar para me impedir. Mas yo
disse que se ele ousasse fazer isso sem o meu consentimento, iria processar
até os bisnetos dele que nem nasceram ainda. No fui sedado, porém, no

adiantou porra nenhuma porque minha família no me deixou nem sair da


cama e a briga foi feia. Papá faltou pouco a tirar o cinto e me dar uma surra

mesmo nesse estado, consegui irritar até o Nando que é a pessoa mais
calma desse mundo.

Mi madre só chorava e, sem saber o que fazer no meio de toda a


confusão, acaba pedindo reforço para os meus amigos. John, Léo e o Pedro

chegam correndo no hospital. Ao invés de me ajudarem a encontrar a


Solange, liberam minha família para ir para casa descansar porque os três

dariam conta de mim o resto da noche.


— Será que dá para parar de agir feito criança, espanhol? Já dissemos

um milhão de vezes que a sua namorada foi encontrada e está fora de


perigo, o delegado em pessoa está trazendo ela até você.

Pedro insiste nessa história maluca de que o verdadeiro assassino em


série salvou a vida da Solange do seu imitador e ela está a caminho do

hospital com o delegado, mas yo no acredito em uma palavra. Esses caras

estão tentando me enganar para me manter nessa cama, são traidores


mentirosos hijos de una puta.

— No minta para mim, promotor Pedro! – Lanço os olhos na sua

direção, furioso. – Quando yo sair dessa cama a primeira coisa que vou
fazer é chutar a sua bunda.

— Você precisa se acalmar, Gonzales. – John prende o meu braço


esquerdo. – Sabe muito bem que nunca conseguiria passar por nós três nem

na sua melhor forma, imagina depois de levar uma bala no meio das fuças.

– O abusado ri do meu estado de saúde, a situação é séria e eles fazendo

piada.

— Você está rindo agora, John, mas chorou feito um bebê quando viu

o nosso amigo estirado no chão sangrando – implica Pedro, segurando o

meu outro braço.


— Sendo sincero, os dois estavam chorando, Gonzales – delata Léo
nos pés da cama enquanto segura minhas pernas.

As enfermeiras deram a ideia de me amarrar, mas os rapazes não

deixaram e ainda deram um sermão na coitada, disseram que ninguém iria

fazer isso com o amigo deles.

— E você não soltou uma lágrima, não é, Léo? Seu cuzão!

— Você que é um cuzão, Pedro. Vai se foder, cara! – Solta minha

perna por um segundo e dá um tapa na nuca dele. – É claro que eu também

chorei, pode não parecer por causa desse monte de tatuagens e essa cara

barbuda sedutora de motoqueiro mau, mas sou um homem bastante emotivo

– Léo se defende com um argumento bastante duvidoso.

— Santo Dios mío! Que pecado yo cometi para ser obrigado a

aguentar esses três idiotas? – Olho para o teto de gesso branco, preso nesse

pesadelo.

— Idiotas, mas você ama a gente que eu sei, Gonzales. – John faz

cócegas debaixo do meu braço, me deixando ainda mais puto porque no

consigo segurar o riso.

— A única pessoa que yo amo nesse momento se chama Solange

Almeida, mas no posso ir até ela porque vocês estão aqui me enchendo a

porra do saco – grito enfurecido.


No mesmo instante, a porta se abre e o motivo de todo o meu

desespero entra acompanhada do delegado, minha Solange está viva e a


salvo. Mas fico irado quando vejo o seu lindo rosto com manchas roxas e

inchando, ela foi agredida por aquele verme.

— Graças a Deus vocês chegaram, delegado, por que demorou tanto?

Porra! – rosna Pedro, acho que também dei uma canseira nos meus amigos.

— Olá, rapazes, que alegria encontrar a galera toda reunida –


cumprimenta Ricardo com o seu bom humor irritante de sempre. – E você,

espanhol, como é bom te ver! Para quem teve um encontro com a morte,
está com uma cara ótima. – Aperta minha mão com um sorriso enorme.

Mas yo só tenho olhos para a Solange, que está toda encolhida


abraçando o próprio corpo, se escondendo atrás dos meus amigos. Toda

tímida na minha frente. É como se no soubesse como agir, nem consegue


me olhar nos olhos.

Mas o que você queria, Gonzales?

Que a sua namorada chegasse aqui se jogando nos seus braços cheia
de amor depois do jeito horrível como a tratou? Agindo de cabeça quente e

gritando para quem quisesse ouvir que no queria a ver nunca mais, sendo
um tremendo egoísta? Nando estava certo quando disse que depois da vida

de orgias que vivi todos esses anos, no tenho direito de exigir confiança de
nenhuma mujer após tratar tantas outras feito lixo. Se quero criar uma

relação sólida com a Solange, isso vai levar tempo, muito trabalho em
equipe e esforço de ambas as partes, principalmente da minha.

— É muito bom te ver também, Ricardo. Mas será que poderia levar

nossos amigos para qualquer lugar bem longe daqui, por favor? Quero ficar
a sós com a minha namorada. – Faço questão de enfatizar as duas últimas
palavras, para deixar claro para a Solange que tudo o que falei no passou de

palavras jogadas ao vento em um momento de raiva.

— Você manda, parceiro! – Faz continência. – Mais tarde volto para


te atualizar com detalhes sobre os últimos acontecimentos, mas adianto de

antemão que o homem que te colocou nessa cama e atentou contra a vida da
Solange deve estar tendo o que merece nesse momento nas mãos de alguém
muito pior do que ele.

— Ótimo, delegado! Espero que esse desgraçado sinta muita dor. –

Respiro pesadamente, mantendo contato visual com a Solange, estou louco


para ficar sozinho com ela.

— A gente vai nessa, espanhol, mas antes quero registrar que o


delegado Avilar também chorou quando te viu desfalecido – Léo continua a

fazer fofoca, ele no consegue evitar.


— O quê? Eu não chorei porra nenhuma, aquilo foi um cisco que caiu
no meu olho. – Ricardo pigarreia cruzando os braços.

— Nos dois olhos? – John começa a rir com as mãos sobre a barriga.

Nossos amigos também riem, inclusive a Solange, mas de maneira


discreta, com a cabeça inclinada para baixo.

— Ah, vamos deixar esse casal bonito conversar em paz, lá fora a


gente fala sobre quem chorou mais. – Ricardo empurra os três para fora, a

porta se fecha atrás deles e o silêncio se faz presente.

Um silêncio cortante, mas que diz mil palavras. Ficamos assim por
alguns minutos, trocando olhares sem dizer nada. Até nós dois resolvermos

falar ao mesmo tempo para quebrar o clima tenso.

— Sinto muito por tudo! – dissemos juntos e acabamos sorrindo

envergonhados, como se estivéssemos nos conhecendo agora.

— Vem aqui, Cariño… – Ergo a mão na sua direção.

De cabeça baixa, Solange vem caminhando lentamente e segura a


minha mão com tanta força como se no fosse soltar nunca mais. Yo espero
que nunca mais solte. Puxo-a para que deite comigo na cama, ela esconde o

rosto na curva do meu pescoço e chora baixinho.

— Eu fiquei com tanto medo, Gonzales, pensei que nunca mais fosse
te ver novamente. – Suas lágrimas queimam contra minha pele, quentes e
dolorosas.

— Yo me senti da mesma forma quando soube que você foi

sequestrada, Sol. – Aliso a área do seu rosto com hematomas. – Espero que
o verdadeiro assassino em série dê um fim bem doloroso ao Roberto,

porque se ele no fizer, yo farei assim que colocar as minhas mãos nele. –
Trinco os dentes, irado.

— Sinceramente, eu acho que não precisamos mais nos preocupar

com o Roberto, só quero esquecer que tudo isso aconteceu e quero focar em
nós dois.

— Mas yo no consigo esquecer, Solange, fiz de tudo para sair daqui

para te encontrar onde quer que estivesse, mas como viu, tinha três babás
irritantes me vigiando – resmungo e Solange acha graça, o que me faz rir

também.

— Você tem amigos muito especiais, sabia? – Desliza a ponta do

dedo indicador de leve sobre o curativo do lado esquerdo do meu peito,

como se dissesse o quanto sentia por aquilo.

— Sim, yo sei, sou um hombre de muita sorte. Tenho bons amigos,

uma família incrível e… – Seguro seu queixo e ergo para que olhe para

mim, seus olhos estão cheios de lágrimas – uma mujer incrível que nunca
mais vou deixar escapar, no importa o que aconteça. – Beijo a sua boca

apaixonadamente.

— Me perdoa por não ter confiado em você, meu amor. Eu estava

com tanto ciúmes que não consegui raciocinar direito, prometo que isso não
vai acontecer nunca mais. – Soluça e isso acaba comigo, nunca mais quero

vê-la triste assim.

— Na verdade, você que precisa me perdoar por ter agido como um


tolo, Cariño. Prometo que vou conquistar sua total confiança e, enquanto yo

viver, nunca mais vou desistir de nós, serei seu até depois da morte – juro

com direito a dedos cruzados e tudo, arrancando risadas da Solange, a vibe


divertida do nosso relacionamento voltou.

— E eu também serei só sua, por toda a eternidade. – Encosta a testa

na minha.

— Yo te amo tanto! Mal posso esperar para formar uma família ao seu

lado, seremos muito felizes juntos.

— Eu também te amo muito, Gonzales. – Segura meu rosto entre suas

mãos. – Nossa história tinha tudo para dar errado e, depois de tantos

desafios, continuamos juntos e o nosso amor está mais forte do que nunca.

— E em breve dará frutos, Cariño, porque é bom que você fique

sabendo que yo quero ter pelo menos seis filhos – já vou logo avisando.
— Seis? – Seus olhos saltam para fora.

— Sim, senhora, quero uma casa lotada de espanhoizinhos

bagunceiros correndo para todo lado. – Roço nossos lábios. – Então acho
melhor começarmos a praticar agora mesmo, mal posso esperar para ser

padre. – Tomo seus lábios com mais voracidade e vou me empolgando.

Acabo fazendo mais força com o braço do que deveria e gemo de dor,

esqueci que praticamente acabei de levar um tiro.

— Segura a animação aí, espanhol, porque ainda vai demorar um


pouquinho para você poder voltar “à ativa”.

— Demorar quanto, Solange?

— Um ano no mínimo, pode ter certeza – fala sério e depois começa a

rir quando vê o desespero tomar minhas feições, yo morro se tiver que ficar

um ano inteiro sem sexo.

— Por Dios, mujer! Você quase me matou de susto agora. – Coloco a

mão sobre o corazón aos risos, enquanto Solange olha para mim
intensamente.

— Não sei o que seria de mim se te perdesse, Gonzales. – Sua voz


falha. – Minha vida não teria a menor graça sem você.

— Mas você no perdeu, linda. Vai ter que me aguentar ainda por

muito tempo. – Faço cosquinhas nela, o som das suas risadas aquece a
minha alma.

Solange e yo conversamos bastante, ela me conta todo o horror que

passou quando foi sequestrada. Enquanto fala, faz cafuné no meu cabelo tão

gostoso que acabo dormindo e tenho um pesadelo horrível. Acordo


assustado na manhã seguinte procurando minha namorada ao meu lado e no

a encontro, começo a pirar e fico com medo da conversa que tivemos ontem

ter sido apenas um sonho e ela ainda esteja desaparecida ou até morta uma

hora dessas.

— Yo preciso sair daqui, agora mesmo! – Consigo me sentar na cama

com muita dificuldade, preciso ser rápido antes que alguma enfermeira
chegue e tente me impedir.

— Mas o que você está fazendo, Gonzales? – Solange sai do banheiro

com uma roupa do hospital e uma toalha branca na cabeça, ela estava
tomando banho e yo a ponto de sair feito um louco atrás dela.

— Que susto, Cariño. Yo pensei que você tinha sumido de novo. –


Quase começo a chorar na frente dela.

— Eu não fui a lugar nenhum, meu amor. Só estava precisando

urgentemente de um banho. – Me ajuda a voltar a deitar. – Como vim direto


da delegacia te ver, as enfermeiras me emprestaram essa roupa do hospital
para vestir. – Inclina-se e beija minha boca, senta ao meu lado na cama e

enxuga as tranças longas.

— Ainda bem que foi só um pesadelo horrível, onde o Roberto


aparecia aqui no hospital e te roubava de mim de novo. – Seguro sua mão,

apavorado, no vou ter paz até saber qual fim esse cara teve.

— Roberto nunca mais vai me tirar de você, Gonzales – garante

segura. – Porque o delegado me ligou não faz nem dez minutos para contar

que nessa manhã o corpo dele foi deixado em frente à delegacia, dentro de

um saco de lixo, todo esquartejado. Ele quis me contar pessoalmente antes


que a notícia saísse na mídia em uma coletiva de imprensa que dará ao vivo

no jornal, falando sobre o assunto – dá a notícia e confesso que fico

aliviado, mesmo sendo uma notícia horrenda.

Mas cada um recebe o que merece nessa vida, nem mais nem menos.

E o delegado faz muito bem em ir à imprensa falar sobre o assunto, assim

evita que outros “fãs” do assassino em série resolvam sair por aí imitando o
seu ídolo como o Roberto tentou fazer e se deu muito mal.

— Poderia dizer que queria que o Roberto descansasse em paz, mas


estaria mentindo. – Dou de ombros. – Na verdade, espero que ele esteja

queimando no fogo do inferno nesse exato momento.


— Gonzales! – Solange me repreende, mas ela pensa do mesmo

modo que yo sei.

— Só vamos esquecer toda essa história, amor. Agora podemos

deixar isso tudo para trás e seguir nossas vidas juntos. – Faço biquinho e ela

me beija.

Nada e nem ninguém nesse mundo vai ser capaz de nos separar.

Nosso amor começou de forma errada, mas no momento certo.

— Olha que gracinha os dois pombinhos juntos, enfim os nossos

filhos se acertaram, Cátia. – Mamá e a minha sogra entram no quarto de

braços dados e interrompem o nosso beijo, nem percebi que já estava no


horário de visita da manhã.

Rapidamente o quarto enche como da outra vez, minha família inteira


e a da Solange estão aqui para abençoar o nosso amor.

— Quando for o casório, eu vou ser a madrinha. – Tess chega de

mãos dadas com o Celso, agora os dois também podem deixar tudo de ruim
que aconteceu para trás e enfim viver a história de amor deles.

— Eu não poderia pensar em outra pessoa para ocupar esse lugar,


amiga. – Solange segura a mão da nossa futura madrinha de casamento,

existe muita cumplicidade entre essas duas.

— Mas e quanto a mim? – Camila faz drama.


— O que eu disse com certeza se estende a você, Camila. – Minha
namorada segura a mão dela também.

— Mentira, Camila, ela só disse isso para que se sentisse melhor –


implico e todos começamos a rir.

— Yo posso ser a daminha, igual no casamento do Nando? – pergunta


Lupita, pendurada no colo do nosso padre, sabia que iam dar um jeito de

trazer a minha princesa até mim.

— Mas só se você vir dar um abraço bem forte no seu irmão,


docinho. Acha que pode fazer isso? – Abro os braços o máximo que

consigo nessa condição.

— Claro que posso, Gonzales. Senti tanta saudade! – A pestinha vem

correndo e pula em cima da minha cama, Nando chama a atenção dela, mas

no surte o menor efeito na pequena.

Me diverti muito durante o horário de visitas, rimos e conversamos

bastante. Quando terminou todos foram embora, menos Solange. Ela


prometeu que no sairia do meu lado até que me recuperasse por completo,
ficaríamos juntos na saúde e na doença. Na alegria e na tristeza.

Até que a morte nos separe…

 
Solange

Depois de todo o escândalo envolvendo o meu nome e o do Roberto,

com muito pesar tomei a decisão de tirar uma licença do meu trabalho sem
data específica para voltar. Amo os meus alunos, mas minha prioridade era

cuidar do Gonzales. Depois de duas longas semanas internado, enfim ele


recebeu alta do hospital. Eu praticamente me mudei para a sua casa para
cuidar dele, já que o seu médico prescreveu um mês inteiro de repouso
total. Isso incluía ficar sem sexo, o que deixou o espanhol mais rabugento

que o normal. Entretanto, o teimoso continuou trabalhando do mesmo jeito,


porque nesse meio-tempo o julgamento do caso do meu pai foi marcado,

pegando a todos de surpresa, e ele se recusou a deixar outro advogado da


sua empresa tomar frente nisso.

A equipe principal da sua empresa de defensoria atuará apenas dando


suporte, mas o representante oficial da minha família será Alejandro

Gonzales. Eles têm trabalhado pesado nisso nas últimas semanas, estão

revirando a vida do jovem que atropelou o meu pai de cabeça para baixo.

— Eu nunca vi o meu chefe tão obcecado com um caso antes,

Solange – comenta Daniele enquanto acompanho ela e mais três outros


advogados até a porta.
O grupo chegou cedinho na casa do Gonzales e passaram o dia todo

repassando os últimos detalhes do caso que já será julgado amanhã, minha


família está inteira com as emoções à flor da pele, principalmente minha

mãe. As obras no bar já terminaram faz tempo, mas tem acontecido um

perrengue atrás do outro e sempre que pensamos em começar a organizar a


festa de reinauguração, temos que adiar. Dessa vez, com o julgamento do

meu pai, não foi diferente, mas o motivo é muito especial porque reabrir as

portas do Paz & Amor após termos conseguido justiça pela morte do cara
que construiu aquele lugar vai ser uma conquista imensurável.

— Verdade, Dani, mas não podemos julgar o nosso chefe por isso,

afinal, a vítima em questão é o sogro dele – comenta um senhor simpático


de mais idade, todos da equipe são boas pessoas que realmente se importam
com as vítimas dos casos em que atuam.

— Na verdade, cada um de vocês está se esforçando tanto no caso do

meu pai vindo aqui todos os dias para repassar a estratégia contra a defesa

do acusado que montaram junto com o Gonzales. – Minha voz fica

embargada. – Não tenho nem palavras para agradecer, serei eternamente

grata.

— Não precisa agradecer, Sol. O nosso trabalho é garantir que a

justiça seja feita. – Daniele enxuga as minhas lágrimas. – Além do mais,

você sempre foi tão boa para o Marcelinho, sei que amava o meu filho e eu
serei eternamente grata por isso. – Me acolhe em um abraço terno, ela
melhor que ninguém sabe o que é perder um ente querido.

Me despeço do grupo e depois que eles vão embora me dirijo para o

escritório esperançosa de que conseguirei tirar o meu namorado de lá, ele

tem passado a maior parte do tempo nesse cômodo da casa, enfiado em uma

pilha de relatórios sobre o caso.

— Você não acha que já está bom por hoje, espanhol? – Cruzo os

braços e fico parada na porta olhando para o meu espanhol, entretido

sentado com a cabeça inclinada para as diversas folhas espalhadas sobre a

mesa.

— Yo vou repassar tudo só mais uma vez, Cariño – responde sem

olhar para mim, nunca vi pessoa mais perfeccionista no quesito trabalho.

— Tem certeza, amor? – pergunto com a voz melosa e isso chama a

sua atenção para mim, começo a abrir os botões do meu vestido bem na sua

frente e quando termino de tirar, jogo a peça em cima dele com cara de

safada.

Apesar do furacão que passou em nossas vidas há um mês, quando


Gonzales levou um tiro e eu quase perdi a vida nas mãos do meu ex-colega

de trabalho, nossa relação não poderia estar melhor. Passar esse tempo
morando juntos nos aproximou mais do que nunca. E sendo bem sincera,

poderia me acostumar fácil com essa vida de casal.

— O que é isso, hein, sua diabinha? – Dá um sorriso de canto

malicioso, esse espanhol fica muito sexy com esses óculos para leitura. —
No me coloque fogo se no for apagar, sei que estou de castigo até terminar

esse maldito período de repouso total que o médico passou e a senhorita


está me obrigando a seguir à risca. – Revira os olhos.

Foi muito difícil fazer o Gonzales se comportar durante seu período

de repouso, ele é um homem muito ativo sexualmente e o médico deixou


bem claro que sexo estava liberado só depois de trinta dias para evitar
complicações, já que a bala chegou a perfurar o pulmão dele. Mesmo assim

meu namorado fez um escândalo no consultório, quase me matando de


vergonha, mas não teve mesmo jeito, foi obrigado a concordar de cara

fechada.

Então passamos todo esse tempo sem fazer sexo, mas confesso que
rolaram muitas brincadeirinhas sexuais. Toda noite eu inventava uma coisa
diferente para satisfazer o meu namorado sem que ele precisasse fazer

nenhum esforço, acabou que isso esquentou ainda mais nossa vida íntima,
descobrimos juntos que existem várias maneiras de se sentir prazer.
— Você está tão focado no julgamento que esqueceu que hoje faz

exatos trinta dias que você operou, amor? – Seguro nas tiras da lateral da
calcinha vermelha fio dental, a preferida dele, e deslizo para baixo sem tirar

os olhos dos dele.

Seu queixo vai caindo e a sua boca se abre em formato de “O”,


Gonzales anda tão focado no trabalho que perdeu a noção do tempo. Ele
acordou cedo hoje, me deixou dormindo na cama e veio direto para o

escritório sem ao menos tomar café da manhã e está aqui desde então.

— Graças a Dios! Os tempos de fartura nessa casa voltaram! – Se


levanta já abrindo o cinto da calça apressado e empurra minhas costas

contra a parede mais próxima, ele quer me foder mantendo contato visual.

— Você me deve um mês de sexo selvagem, sabia? – Mordo o seu

ombro e ele geme.

— E yo pretendo pagar tudinho essa noche, Cariño. – Desliza a mão


por toda a extensão da minha perna antes de colocá-la em volta da sua

cintura. – Com juros e correção monetária. – Esfrega a ereção contra a


minha virilha.

Nós dois estamos só nas preliminares há trinta dias, então essa


primeira transa vai ser puro êxtase.
— Isso quer dizer que não vai ser nem um pouco gentil comigo, não
é, amor? – Me esfrego nele desavergonhadamente.

— Nada de gentilezas hoje, muchacha! – Umedece os dedos com a


língua e lubrifica o pau duro com a própria saliva antes de meter em mim

em uma estocada profunda, solto um gemido alto e ele me cala com um


beijo escandaloso.

Agarro no pescoço do Gonzales para não perder o equilíbrio, o som


do atrito dos nossos corpos e as respirações ofegantes ecoam por toda a

casa. Transamos feito dois coelhos no cio, fomos dormir tarde e quase
perdemos a hora do julgamento na manhã seguinte. Chegamos no local da

audiência literalmente correndo, minha família já está toda sentada no lado


que representa a vítima, vieram até os meus tios e primos que moram no
interior do Espírito Santo. O pessoal da equipe do bar também veio para nos

apoiar, eles são uns amores. Eu aceno para o pessoal, estamos todos muito
emocionados antes mesmo da audiência começar.

Meu olhar se cruza com o do Jeferson Lima Junior, o jovem de

dezenove anos acusado pela morte do meu pai. Ele está rodeado por meia
dúzia de advogados engomadinhos iguais a ele em seus ternos caros. Por ser
filho de um senador importante, está totalmente tranquilo, sentado de

maneira despojada enquanto masca chiclete de um jeito irritante.


Debochado como é, pisca para mim e abre um sorriso irônico. Ameaço ir
para cima do desgraçado e encher a cara dele de tapas e socos, mas o
Gonzales segura o meu braço.

— Fica calma, mi amor. Deixa que yo resolvo isso. – Segura o meu


rosto e me beija na tentativa de me fazer relaxar.

— Boa sorte, Gonzales, acaba com esse cara escroto! – Sorvo uma

longa lufada de ar, cada músculo do meu corpo treme de raiva.

— Yo no preciso de sorte para acabar com esse frangote, Cariño. –


Ajeita o nó da gravata, egocêntrico. – Fique com a sua família e veja o seu

hombre em ação, vai ficar toda molhadinha com todo o meu poder nos

tribunais. – Aperta minha bunda discretamente e vai conversar com a sua

equipe, esse espanhol sabe como ser sedutor em qualquer situação.

— Vem, filha, guardei um lugar aqui para você, perto da mamãe e do

vovô. – Minha mãe acena para mim do primeiro banco, caminho até eles e
me sento.

Ficamos nós três de mãos dadas, esperamos muito tempo por esse

momento. Achamos melhor não trazer o Rafael porque serão mostradas


fotos do local do acidente e não queremos que passe por mais esse trauma,

ele foi em um passeio legal com a Lupita e os meus sogros em um museu

de arte moderna. E falando em Artes, através de um contato do Gonzales,


que trabalha nesse meio, após ver as fotos que enviou dos desenhos do meu
irmão sem que ninguém soubesse, nosso menino foi convidado para expor

suas obras em um evento em Paris no final do ano, que lança novos artistas
talentosos no mercado.

Os profissionais que analisaram os desenhos do Rafael disseram que


o meu irmão com certeza será o Leonado Da Vinci deste século, e eu

acredito fielmente nisso.

— Ei, amiga, desculpa o atraso. – Tess aparece de mãos dadas com o


professor bonitão do quinto ano, agora seu oficial namorado. — Celso e eu

perdemos a hora, dormimos tarde ontem. – Eles sentam no banco atrás de

nós.

Foi muito gentil da parte do Celso vir acompanhar a Tess, ela adorava

o meu pai e ficou muito triste quando aquela fatalidade aconteceu com ele.

— Tudo bem, Tess, sei bem como é isso. Também cheguei atrasada.

— Olho para trás e fito minha amiga com um sorriso cúmplice.

Medindo pela pele de pêssego maravilhosa dela essa manhã, Tess e o

namorado também ficaram brincando na cama até mais tarde ontem. Os

dois formam um casal tão lindo, nunca vi minha amiga tão feliz antes,

encontrou um homem que a trata como uma verdadeira rainha.

— Vamos ficar em silêncio, pessoal, a audiência vai começar. – Vovô

remexe incomodado no banco, ele está muito nervoso.


— Vai dar tudo certo, vovô. Não se preocupe. – Deito a cabeça no seu

ombro.

— Bom dia a todos. Sou o Juiz Thompson e conduzirei essa


audiência. – O todo poderoso fala e não se ouve nem a respiração de

ninguém, ele é muito respeitado por todos.

Também, um homem enorme e lindo desse todo elegante de toga,

traje usado por desembargadores e juízes federais, quase que a vestimenta

impõe austeridade e solenidade aos atos do Judiciário por si só.

— Esse é aquele amigo bonitão do Gonzales, filha. Isso é bom para

nós, não é? – Mamãe fica animada.

— Também pensei que sim quando soube, mãe. Mas o Gonzales

deixou claro que isso não muda em nada, porque o Juiz Thompson é

extremamente imparcial nos seus julgamentos. Além do mais, não vai ser
ele que vai decidir hoje se o acusado é culpado ou não, mas sim o júri

popular. – Aponto na direção do grupo de pessoas sentadas do lado direito

na frente do tribunal, bem de frente para o réu.

A audiência começa, quem fala primeiro é o lado da defesa do

acusado. O advogado faz um show de mentiras, descreve meu pai como um

hippie liberal viciado em drogas, tanto que quando morreu deixou a família
atolada em dívidas com o banco e agiota, tudo para suprir o seu vício.
Minha mãe ficou puta nessa hora, se levantou e falou alguns desaforos para

o homem de nariz empinado. Mas infelizmente o juiz pediu para ela se


sentar e tentar se acalmar, porque se a sessão fosse interrompida mais uma

vez, seria obrigado a pedir para que se retirasse do recinto.

Depois disso minha mãe e mais ninguém da minha família ousou

dizer nada, o senador Jefferson Lima e a sua primeira-dama olhavam para

nós como se fôssemos lixo, não perdem em nenhum momento a postura

superior. Fomos obrigados a ficar ali ouvindo do advogado de defesa que o


meu pai era um malandro, viciado em substâncias ilícitas e não sei mais o

quê. Já o cliente dele foi posto como um santo, um pobre jovem perdido

que foi influenciado por más companhias e acabou bebendo demais.

O senador até chorou na hora do seu depoimento, disse que o filhinho

dele é uma boa pessoa e não merece ficar preso por causa de um erro que o

garoto cometeu. Ele só esqueceu de salientar que esse erro resultou na


morte de alguém.

— Agora que ouvimos a defesa do acusado, chegou o momento de


ouvir os representantes do lado da vítima. – O juiz faz sinal na nossa

direção. – Pode começar quando quiser, advogado Gonzales.

— Obrigado, meritíssimo. – Meu namorado fica de pé e fecha o


paletó do terno, numa postura que esbanja confiança.
Nunca vi o Gonzales tão sério dessa forma, com o olhar fatal. É como

se virasse outra pessoa quando atua nos tribunais.

— Yo havia preparado uma estratégia com a minha equipe para


conduzir essa audiência, mas decidi mudar de tática porque no esperava que

a defesa fosse apelar tanto para forçar uma imagem de santo para o acusado

em questão – protagoniza um sorriso irônico. – Sendo que Jeferson Lima


Junior no passa de um garoto mimado que no se preocupa com ninguém

além dele mesmo. – Aponta na direção do meliante, que nem está prestando

atenção em nada, continua mascando chiclete enquanto mexe no celular.

— Protesto, vossa excelência, ele está colocando em dúvida a moral

do meu cliente – interrompe o advogado do diabo.

— Moral, caro colega? – Gonzales alisa o queixo quadrado. – Seu

cliente pode ser um rapaz de boa aparência e nascido em berço de ouro,

cujos pais afirmam ser um jovem estudioso e de bom coração que só

cometeu um erro na vida ao dirigir embriagado, erro este que quero


salientar aos jurados, tirou a vida de um pai que amava tanto a sua família

que em um momento de desespero fez dívidas no banco e até mesmo com

um agiota para salvar o seu negócio, que era responsável por colocar
comida na mesa – é cirúrgico nas palavras.

Após uma pausa dramática, ele conclui:


— Por isso a morte do Ramon Almeida merece sim justiça, e yo estou

aqui para garantir que isso aconteça – disse quase como um juramento.

Gonzales caminha até a frente da bancada da parte da defesa. Ele fica

em silêncio por um instante, inclina a cabeça levemente para baixo e lança

os olhos verdes quentes como o fogo do inferno na direção do acusado.


Então pisca para ele e sorri irônico, replicando o mesmo gesto debochado

que o merdinha fez para mim quando cheguei para me provocar, sabia que

não deixaria a afronta passar impune. Em seguida meu homem se vira


novamente para os jurados e entra em ação arrasando com tudo, tinha

resposta para todos os argumentos do advogado do diabo. Mostrou uma

pilha enorme de provas e mais provas de que não foi a primeira vez que o
Jeferson Lima Junior cometeu um crime e o seu pai usou sua influência

para varrer para debaixo dos panos.

Mas dessa vez foi diferente, um homem que o Gonzales provou para
os jurados facilmente ser do bem perdeu a vida por causa de um moleque

irresponsável sem nenhum arrependimento pelo que fez, e isso ficou bem

claro para todos os presentes. Na hora de dar o seu depoimento o


desgraçado ria, mostrando nenhum respeito pelo próximo. O resultado disso

no final da audiência foi que os jurados decidiram unânimes pela sua culpa

e o Jeferson saiu dali mesmo preso e com uma pena máxima de vinte e
cinco anos sem direito à condicional devido ao agravante por estar
alcoolizado e não ter prestado socorro à vítima.

Minha mãe soltou um grito na hora e caiu de joelhos no meio do


tribunal aos prantos, foi uma comemoração sem tamanho, com todos se

abraçando em lágrimas.

— Você conseguiu, meu amor. – Corro para os braços do Gonzales e

beijo sua boca.

— No sei por que tanta surpresa, mujer, yo te disse que conseguiria.


Sou ótimo em tudo o que faço. – Abraça minha cintura e puxa para si. —

Precisamos sair essa noche para comemorar a nossa vitória, já tenho tudo

preparado. – Faz aquela carinha de quem está aprontando.

Nossa saída do fórum foi uma festa, acho que o Gonzales nunca

recebeu tantos abraços na vida. Agora é o queridinho de toda a minha


família, não tem como não se apaixonar por ele depois de ver a veracidade

com que defendeu o caso do meu pai. Se não fosse pelo meu espanhol,
nunca teríamos essa sensação ótima de justiça que estamos sentindo agora.

— Tem certeza de que quer sair hoje à noite? Podemos fazer a nossa

comemoração a dois agora que o seu período de castidade terminou. – Puxo


meu namorado pela gravata, mal intencionada, acabamos de chegar na casa
dele e por mim passaríamos a noite juntinhos na cama.
— De jeito nenhum, mi amor! Nós saímos em uma hora. – Me beija,
mas o seu celular toca no bolso e ele se afasta para atender.

Subo para o segundo andar e me arrumo bem bonita, já que vamos


sair para comemorar, quero aproveitar cada segundo.

— Você está linda, Cariño. – Gonzalez entra no quarto já arrumado,


sinto o aroma amargo da sua loção pós-barba quando se inclina para beijar
o meu rosto enquanto termino de passar o batom nude.

— Obrigada, mas eu mal posso esperar para você tirar esse vestido do
meu corpo mais tarde, amor. – Pisco para ele pelo espelho.

— No me tente, sua diabinha. – Me puxa pela mão e começa a dançar

comigo mesmo sem música. – Agora precisamos ir ou chegaremos


atrasados na reserva que fiz no lugar mais badalado dessa cidade, Cariño.

— Qual o nome do lugar onde vamos, Gonzales? – Quando ele ia


responder meu celular toca, é a minha mãe desesperada dizendo que houve

um curto-circuito nas novas instalações do bar e começou um incêndio.

Meu namorado dirige correndo até lá tentando me acalmar durante


todo o caminho, estava tudo bom demais para ser verdade. Não acredito que

isso tinha que acontecer logo hoje, num dia tão especial para a memória do
meu pai, e agora o maior sonho dele que, mesmo de maneira torta, me
trouxe o grande amor da minha vida, está virando cinzas.
Sinto vontade de chorar, mas o meu namorado não deixa, diz que
preciso ser forte para ajudar a minha mãe. Quando chegamos no local a
primeira coisa que vemos é o caminhão dos bombeiros na frente do bar, tem

várias pessoas em volta curiosas com a situação. Não consigo encontrar


minha mãe no meio da multidão, Gonzales estaciona e eu salto do carro e

vou falar com os bombeiros.

— Eu sou a filha da dona do lugar, vocês acham que conseguem


controlar o fogo? – pergunto para o bombeiro que desceu do caminhão, eles
também acabaram de chegar.

— Que fogo, moça? Nosso turno já acabou, passamos aqui a convite


de um amigo meu, o delegado Avilar, para conhecer um bar que está
reinaugurando hoje e a primeira rodada é por conta dele. – Me fita como se

eu fosse louca, se vira e se junta aos seus companheiros de trabalho e


caminham conversando animadamente na direção da entrada do
estabelecimento da minha família.

Na hora do desespero, nem reparei que não tinha fogo nenhum no bar.
O prédio está intacto e novinho em folha após a reforma, mas tem algo
novo lá, uma placa enorme na frente escrito “Paz & Amor” com lâmpadas

cor-de-rosa que piscam, que dá para ver desde a entrada da rua. Mas eu
cheguei tão desesperada que não vi. Aquela multidão na porta da frente não
era de curiosos, mas sim uma fila gigantesca de clientes para entrar no bar.
— Eu não acredito que você fez isso, Gonzales! – Giro o corpo com
as mãos na cintura e lá está o espanhol, com a cara mais lavada do mundo.

— Tive ajuda da minha sogra para fazer essa surpresa para você,
linda. Yo tinha total certeza de que a justiça seria feita nos tribunais,
reinaugurar o bar hoje é a cereja do bolo para fazer deste dia um marco na

história do meu sogro – conforme ele fala as lágrimas despencam pelo meu
rosto, foi a surpresa mais linda da minha vida.

— Eu sinceramente não sei o que dizer, Gonzales – digo rindo e

chorando ao mesmo tempo, nessa ele conseguiu se superar.

— Diga sim para mim na frente do padre quando a hora certa chegar,
Cariño. – Me cata pela cintura, me ergue no ar e gira me fazendo gargalhar.

— Isso foi um pedido de casamento, é, espanhol? – Roubo um beijo

quando ele me coloca no chão. – Porque, se for, eu posso me animar e


começar a procurar uma igreja amanhã mesmo – jogo a indireta.

— Pois pode procurar, e quando encontrar o vertido perfeito é só me

enviar a localização, no importa o dia, que yo estarei lá em quinze minutos


para me tornar oficialmente o seu marido. – Contorna os meus lábios com o
polegar antes de beijá-los.

De mãos dadas, entramos juntos no bar e a casa está lotada.


— Nós te enganamos direitinho, não é, filha? – Minha mãe nos

recepciona toda arrumada em um vestido bonito verde e os dreads presos


em um coque alto como se estivesse indo para uma festa de gala, ela me
abraça forte como se fosse me quebrar ao meio.

Dona Cátia está tão emocionada quanto eu, meu namorado nos deixa
sozinhas, ele sabe que esse momento é só nosso. Ele vai cumprimentar os
nossos amigos que vieram em massa para a reinauguração do bar, temos

sorte de ter pessoas tão queridas na nossa vida. Me envolvi com esse
homem contra a minha vontade e todos os meus princípios para salvar esse
lugar, e agora ele faz parte da história do Paz & Amor tanto quanto eu.

— Sim, mãe, vocês me enganaram! A senhora podia ser atriz, sabia?


Até chorou na ligação.

— Confesso que foi muito divertido fazer isso, Solange. – Ela cobre o

rosto rindo.

— Deve ter dado o maior trabalhão montar tudo isso para a


reinauguração, a senhora podia ter me contado. Como funcionária do bar, é
minha obrigação ajudar a senhora e a nossa equipe em tudo.

— Você não é mais funcionária do bar, filha, agora é sócia. Como


além da equipe antiga original, contratamos funcionários novos, nós duas
ficaremos apenas na parte administrativa.
— Como assim sócia? – Olho para minha mãe, chocada.

— Gonzales passou a metade dele do bar para o seu nome desde que
a reforma terminou, querida. Disse que esse tempo todo só estava cuidando

dele para você, não é romântico? – conta e eu olho para o meu namorado
mais lindo do que nunca sorrindo e conversando com o pessoal, sendo a
pessoa divertida e apaixonante de sempre.

O meu protetor.

Que tem cuidado de mim desde o começo da nossa história, mesmo


que do jeito torto dele.

— É muito romântico, mãe. – Sorrio para o meu espanhol apaixonada

e com os olhos marejados, eu enfim encontrei minha alma gêmea.

Gonzales sorri para mim de volta, tão apaixonado quanto eu.

— Consegue sentir essa energia boa no ar, Solange?

— Sinto em toda parte! Nós conseguimos, mãe, a morte do meu pai

teve justiça e o sonho dele está mais vivo do que nunca e na sua melhor
fase. – Passo o meu braço em volta do seu pescoço e ficamos ali, olhando
tudo à nossa volta sem pressa.

O Paz & Amor está de cara nova, todo equipado com o que há de
mais moderno no mercado. Mas a essência do meu pai ainda continua aqui,
essa energia positiva no ar vem dele, emanada de cada centímetro desse bar
e está mais forte do que nunca. Seu corpo não está mais entre nós, mas o
seu espírito permanecerá vivo através do amor que sempre sentiremos por

ele.

 
12 de junho.

Dia dos Namorados.


 
Gonzales

Acordei cedo e deixei mi Cariño dormindo na nossa cama, desci sem


fazer barulho e montei uma bandeja linda de café da manhã para acordá-la

com uma chuva de beijos. Quero que o nosso primeiro Dia dos Namorados
juntos seja perfeito desde o momento que abra os olhos até que feche hoje à
noche, planejei tudo para criar lembranças novas incríveis, já que nessa

mesma data, há exatamente dois anos, Solange dormiu comigo por dinheiro
e yo sei como isso foi traumático para ela.

Fiz uma lista de tudo o que a minha noiva gosta no café da manhã e
tentei colocar tudo em uma única bandeja, demorei cinco minutos para

subir as escadas só de cueca equilibrando tudo. Pedi Solange em casamento

no dia do aniversário dela em um jantar romântico durante uma viagem que


fizemos para o Sul do Brasil, ela sempre quis conhecer Gramado e foi

muito romântico. Mas o problema é que a mujer fica enrolando para

marcarmos a data do casamento, a desculpa é sempre a mesma, de que nós


andamos muito ocupados, yo com muito trabalho na empresa e ela na
correria da rotina de lecionar e ajudar a minha sogra na administração do

bar que agora também é dela.

Aí Solange me beija no final do discurso e completa que, como já

estamos morando juntos, no precisamos correr para casarmos porque já se


considera minha esposa, falta só assinar a papelada.

— Graças a Dios deixei a porta aberta – sussurro aliviado.

Como a porta está entreaberta uso o pé para terminar de abrir, entro

no quarto com um sorriso rasgando o rosto.

— Buenos Dias, mi vida… – digo cheio de animação, mas me deparo


com a cama vazia.

Fico arrasado quando leio um pequeno bilhete que a Solange deixou


em cima do travesseiro dizendo que a diretora ligou para avisar que teria

uma reunião de última hora com os professores antes da aula começar, por

isso teve que sair correndo e nem deu tempo de dizer tchau. Finalizou

dizendo que me ama e falaria comigo mais tarde.

— Ela nem me desejou feliz Dia dos Namorados, saiu sem ao menos

me dar um beijo. – Olho para a bandeja linda nas minhas mãos que levei

horas para fazer e deu um trabalhão danado e fico puto de raiva.

Depois de proferir alguns palavrões, deixo a bandeja sobre a nossa

cama vazia e vou decepcionado tomar banho para me arrumar para ir para o
trabalho. Yo sei que a Solange anda muito ocupada com o final do primeiro
semestre do ano letivo, as férias de verão estão chegando e ela precisa

lançar todas as notas no sistema e isso está deixando minha noiva louca,

ainda mais que esse ano pegou uma turma de trinta pré-adolescentes

bastante energéticos. Todo dia chega em casa com uma história diferente

que os moleques aprontaram e nós dois nos acabamos de rir enquanto

preparamos o nosso jantar. Apesar da correria do trabalho, gostamos de


passar todo o tempo que estamos em casa juntos fazendo coisas românticas

de casal.

Solange e yo temos morado juntos desde que minha namorada veio

cuidar de mim quando levei um tiro, nunca que a deixaria ir embora depois

que experimentei o que é acordar ao lado da mujer da minha vida todos os

dias.

— Mujer esta que te deu um bolo no Dia dos Namorados. – Bato a

porta do carro quando chego na minha empresa com um mau humor do cão.

— Bom dia, chefe! – cumprimenta minha secretária sorridente

quando passo pela recepção.

— O que tem de bom? – resmungo e entro na minha sala batendo a

porta.
Meu humor só piora conforme as horas vão se passando e no recebo

uma mensagem da Solange, nós havíamos combinado de almoçar no nosso


restaurante espanhol favorito onde tivemos nosso primeiro encontro, mas

pelo jeito ela esqueceu disso também.

— O que o senhor acha sobre essa estratégia de defesa que Daniele e

eu montamos no caso de divórcio daquela modelo famosa, Gonzales?

Pergunta Rafael, um dos melhores advogados da minha equipe.


Estamos finalizando a última reunión do dia para ir embora e yo no recebi

uma mensagem da minha noiva. O Dia dos Namorados perfeito que


planejei foi pelo ralo. Finalizar a noche curtindo em um night club qualquer
dançando e voltar para casa só de madrugada bêbados e excitados no vai

rolar.

Nervoso como estou com a Solange, quando yo chegar em casa a


briga vai ser feia. No duvido nada que terminemos a noche dormindo em

camas separadas, amo essa mujer, mas às vezes ela me tira do sério.

— Está ótima, Rafael. Mas por que a Daniele no está aqui com você

para apresentar o trabalho que fizeram juntos? – pergunto com o tom mais
elevado do que o de costume, hoje no estou com paciência para porra

nenhuma.
— Ela precisou sair mais cedo hoje, chefe, disse que tem um

compromisso importante com o marido – o rapaz responde engolindo em


seco, todo mundo nessa empresa está com medo até de abrir a boca na

minha frente.

— Ah… esqueci que hoje é Dia dos Namorados e os casais


apaixonados fazem programas românticos juntos, pelo menos aqueles que
se amam de verdade. – O rancor se manifesta através da minha boca em

forma de palavras.

— O senhor está bem, chefe? – pergunta uma estagiária responsável


por anotar tudo o que falamos durante as reuniões, a pobre moça ajeita os

óculos de grau me examinando de canto, desconfortável.

Me sinto mal por isso, minha equipe de trabalho no tem culpa que

minha noiva no me ama mais. Se é que a Solange já me amou algum dia.

Santo Dios, Gonzales! Desde quando ficou tão inseguro assim em


relação às mujeres? Se recomponha, porra.

— Estou ótimo, Beatriz! Vamos continuar com a reunión de onde


paramos, por favor. – Faço sinal com a mão para que continue falando, mas

alguém bate na porta nos interrompendo.

— Desculpa, chefe, mas chegou uma coisa para o senhor. – Minha


secretária entra com um buquê de rosas vermelhas nas mãos e me entrega.
Começo a sorrir quando, em seguida da minha secretária, aparecem
vários entregadores da floricultura também segurando buquês de rosas
vermelhas.

— Yo no puedo crer! – Jogo a cabeça para trás rindo alto.

Meus funcionários também estão rindo e no parecem nada surpresos,

acho que já sabiam da surpresa.

— Se eu fosse o senhor, lia o que diz no cartão logo, chefe –

aconselha Rafael, apontando na direção do buquê nas minhas mãos.

Pego o cartão e abro. Quando leio o que está escrito, sou pego
totalmente de surpresa.

“Mil rosas vermelhas para o meu futuro marido, te espero em quinze


minutos.”

Diz o cartão, com a localização de uma igreja sinalizada abaixo.

Conheço o lugar, fica perto da minha empresa.

— Cacete! Yo vou me casar em quinze minutos e todos vocês estão


convidados. – Entrego o cartão para a minha secretária, beijo o rosto dela e
saio correndo feito um maluco com a minha gravata voando e um sorriso

rasgando o rosto.

Aperto o botão do elevador várias vezes olhando a todo momento no


relógio. Como demora a chegar, desço as escadas pulando vários degraus
por vez. Yo estava tão bravo com a Solange por ter esquecido o Dia dos
Namorados, sendo que ela organizou um casamento surpresa para mim.
Pego o meu carro na garagem e saio dirigindo a mil por hora, mas

infelizmente em certo momento fico preso no trânsito. Penso que no vou


chegar a tempo, então ouço o som das sirenes da polícia ligadas vindo atrás

de mim abrindo caminho entre os carros.

— Precisa de uma forcinha dos seus padrinhos aí, amigo?

Delegado Avilar passa por mim na sua viatura da Polícia Civil com a
sirene ligada, John está do seu lado no banco do carona e o Nando, Pedro e

o Léo no banco de trás, todos usando terno e fazendo a maior farra dentro

do veículo.

— Claro que preciso, bando de cuzão! – Mostro o dedo do meio para

os meus padrinhos.

Eles me chamaram para sair para beber ontem à noche e no falaram

nada, agiram normalmente, pensei que fosse só um encontro entre amigos.

Fazemos isso com frequência, sendo que yo estava na minha própria

despedida de solteiro e no fazia a menor ideia. Com a ajuda dos meus


padrinhos sem noção, consigo chegar na igreja a tempo. Mamá e a Lupita

estão me esperando na entrada, minha pequena está vestida de daminha.


Respiro fundo ainda em choque, nem acredito que o momento mais

feliz da minha vida está prestes a acontecer.

— Nós vamos te esperar lá no altar, parceiro. – John e os rapazes

entram na igreja apressados, yo paro para falar com mamá, que


provavelmente foi cúmplice da minha noiva nisso.

— Yo trouxe a sua roupa, filho. – Ergue o cabide com o traje espanhol

de gala envolvido em um saco de plástico transparente.

Rapidamente, mamá começa a tirar o paletó e a gravata do terno preto

que trajo e me veste como na época que era só um chico; ela coloca um
colete preto com bordados dourados em cima da camisa branca e uma faixa

vermelha enrolada em volta da minha cintura.

— Obrigado, mamá, yo te amo! – Beijo o rosto dela, que está


chorando antes mesmo da cerimônia começar.

— Também amo você, filho. Enfim tomou jeito na vida e encontrou


uma mujer incrível, estou tão orgulhosa de você. – Passa a língua na mão e

arruma o meu cabelo. Reviro os olhos, já esperava por isso.

— A senhora sempre acreditou que yo encontraria o amor, por isso


estou feliz que esteja comigo nesse momento tão importante da minha vida.

– Segura o meu braço para fazermos a entrada na igreja juntos.


— Vamos, gente, está na hora. – Lupita se posiciona na nossa frente e

começa a jogar pétalas de flores no corredor do meio da igreja.

Mi corazón bate tão forte quando dou o primeiro passo, todos os


convidados, entre família, amigos e o pessoal do trabalho, estão olhando

para trás à minha espera. No consigo conter as lágrimas quando começa a

tocar a minha música e da Solange em uma versão acústica no piano, linda


e romântica. Foi nesse momento que a vi, a mujer mais linda do mundo à

minha espera em frente ao altar, em um vestido de noiva simples tomara

que caia justo ao corpo e a cauda longa, mas não tanto quanto o véu preso
no topo da sua cabeça cobrindo as tranças. Ela segura um microfone e,

quando nossos olhares se cruzam, começa a cantar em um espanhol

perfeito.

Sua voz é doce e suave, mas ao mesmo tempo sexy. No paro de sorrir

admirando a sua beleza. Quando enfim chego até a minha noiva, toco o seu

rosto carinhosamente e, em uma troca de olhares sublime, cantamos juntos


a nossa música, revivendo o momento quando estávamos juntos naquela

cela, onde yo já tinha total certeza de que Solange Almeida seria minha.

Para sempre…

 
Solange

Abaixo os óculos escuros só para admirar melhor a cena do meu

atraente marido saindo de dentro do mar todo bronzeado depois de um


mergulho na praia da charmosa cidadezinha litorânea no interior da

Espanha onde Gonzales nasceu. O lugar é um verdadeiro paraíso tropical


escondido no meio do nada. Escolhi passar a nossa lua de mel aqui porque
sei o quanto ele tem orgulho de onde veio, acertei em cheio porque foi uma
experiência inesquecível conhecer a casa simples em que viveu com os pais

e o irmão na infância, a escola onde estudou e vários lugares que fazem


parte da sua história, inclusive visitamos o túmulo do avô dele e levamos

flores.

Meu amor me apresentou os pontos turísticos da cidade. Como o


lugar é pequeno, conseguimos ir em todos eles durante as últimas duas
semanas que estamos aqui hospedados no hotel mais luxuoso da região, que

fica à beira-mar. É incrível ver os olhos do Gonzales brilhando ao andarmos

de mãos dadas pelas ruas com aquele sorriso nostálgico no seu rosto, ele
disse que vai comprar um terreno aqui na área mais montanhosa no interior

da cidade para construir uma casa linda para nós. Queremos que os nossos

filhos cresçam tendo contato com as duas culturas, brasileira e espanhola.


Mas, voltando para o meu marido gato saindo do mar de águas

esverdeadas refletindo nos seus olhos no mesmo tom, ele tira o excesso de
água do rosto e vem correndo na minha direção com o corpo mais em forma

do que nunca, pisando sobre a área branquinha e sorrindo em câmera lenta

com o cabelo molhado balançando e outra coisa enorme dentro da sunga


branca transparente também. O que chama atenção das espanholas

assanhadas, mas não me importo porque esse muchacho hermoso é todinho

meu.

— Pronto para a nossa próxima parada, mi amor? – Ajeito meu

chapéu de palha, o vento da maresia está forte essa manhã.

— Mas já, Cariño? Pensei que poderíamos ficar mais um pouco na

praia antes de pegarmos o voo para Madri. – Deita comigo na cadeira de


praia me molhando todinha de propósito, ele segura o meu queixo entre os

dedos e rouba um beijo.

Depois de passar duas semanas na cidade natal do Gonzales, planejei

uma rota de viagem pelas principais cidades da Espanha, começando por

Madri. Fiquei louca quando descobri que o cantor Juanes está em uma turnê
surpresa pela Europa que preparou para os seus fãs e fará um show lá

amanhã à noite, meu marido correu para conseguir reservar um camarote

VIP só para nós dois. Estamos muito animados, ouvir nossa música ao vivo

em Madri na nossa lua de mel vai ser incrível.


Quando contei para o meu marido que logo depois que fomos presos
juntos na delegacia, sonhei que íamos no show do Juanes em Madri, ele riu

da minha cara dizendo que foi uma premonição.

— Nosso voo é só mais tarde, amor, mas antes de irmos embora

quero muito passar numa loja que vi no centro para comprar um vestido

bem bonito para ir ao show amanhã.

— Está bem, Cariño. Quer que yo te acompanhe?

— Não precisa! Pode ir para o hotel descansar um pouco antes da

viagem, te encontro lá em breve. — Damos um beijo de despedida.

Meu marido vai para o hotel como combinamos e eu vou para a loja

de grife no centro da cidade, espero ansiosa até que alguém vem me


atender.

— Necesita ayuda con algo, señora? – pergunta a atendente em um

tom simpático forçado.

— Na verdade, quem vai precisar de ajuda aqui é você, Paola. – Me

viro de frente para ela por cima do salto e tiro os óculos escuros para olhar
bem na cara da vadia de cabelo vermelho, ela não tem para onde correr.

Ontem usei o cartão de crédito sem limite do meu marido para ligar

para a gerente da loja e reservar um horário para clientes VIP, onde eles

fecham as portas e você pode escolher um atendente para ficar à sua


disposição. E eu escolhi a Paola. Fiz tudo com a ajudinha da minha sogra

querida, ela é minha cúmplice nisso. Já vim para a minha lua de mel com o
plano feito e passei as últimas semanas no rastro dessa vaca, eu havia

prometido para o meu sogro no hospital que daria uma lição nela. E eu iria
cumprir a minha promessa.

Paola e eu temos uma ótima conversinha particular de mulher para


mulher, duvido muito que depois disso vá incomodar qualquer um da

família Gonzales outra vez. As cicatrizes das minhas unhas que vão ficar no
rosto dela são a garantia disso, agora ela vai lembrar de mim toda vez que

olhar no espelho enquanto viver.

— Mandou bem, Solange! – penso alto, jogo a bolsa debaixo no

braço e vou embora.

Volto para o hotel feliz da vida como se nada tivesse acontecido,


estou com a alma até mais leve.

— Ei, amor, já voltou? – grita Gonzales do banheiro quando entro no


quarto, ele está no banho.

— Sim, querido, mas não achei nada de interessante na loja e o

atendimento é péssimo. – Tiro minhas roupas correndo e me junto ao meu


marido dentro do box, ele está com o cabelo e o corpo cheios de espuma.
Nos divertimos debaixo do chuveiro. Quando terminamos o banho

pedimos um lanche no quarto. Descansamos um pouco e à noite nos


preparamos para a viagem, fomos para Madri e eu logo de cara amei a

cidade. Na noite do show do Juanes me arrumei toda explodindo de


animação, Gonzales e eu nos divertimos muito durante cada segundo e nos

beijamos quando ele cantou nossa música. Foi muito romântico.

Como a nossa pulseirinha é VIP, tivemos permissão para ir ao

camarote do Juanes cumprimentá-lo no final do show. O problema é que eu


estava tão nervosa que vomitei em cima do cantor assim que abri a boca,

vindo a desmaiar logo em seguida. Acordei no hospital com um marido


bem sorridente sentado ao lado da cama, segurando a minha mão, lembrei

de tudo o que aconteceu e quase morri de vergonha.

— Nem deu para tirar uma foto com o Juanes, amor – foi a primeira

coisa que disse.

— Relaxa, Cariño, nós teremos outras oportunidades. – Beija a minha


testa. – Ainda mais que yo prometi a ele que se o bebê que você está

esperando for menino, nós daremos o nome dele a ele. – Seu sorriso é
aquele que ilumina o mundo inteiro.

Eu ainda estou tentando assimilar o que acabei de ouvir, não acredito


que estou mesmo grávida.
— Nós vamos ter um bebê? – Meus lábios estremecem.

Ser mãe é um sentimento que atravessa o seu corpo e deixa marcada a

sua alma, um presente que Deus nos concede para toda a vida.

— Vamos sim, Solange. Quase desmaiei também quando o médico


me deu a notícia. – Acho graça imaginando a cena.

— Eu tenho certeza de que você será um pai incrível, amor. – Ergo o


braço e faço carinho no seu rosto, seus olhos estão inundados por lágrimas.

— E você a madre mais bela de todas. – Segura minha mão e a beija.

— Yo te amo, Alejando Gonzales – declaro em espanhol, sorrindo

entre lágrimas.

— Te quiero mucho más, Solange Gonzales. – Me beija por quase

uma eternidade. – Mas confesso que mal posso esperar para voltarmos para
o Brasil e contar para todo mundo que você vomitou no Juanes. – Joga a

cabeça para trás em um ataque de riso, ele nunca vai me deixar esquecer
disso.

— Vai se ferrar, seu bobo! – Dou um tapa no ombro do meu marido,


mas tenho um ataque de risos também, chamando a atenção de todos no

hospital.

Você sabe que encontrou a pessoa certa quando ela te faz rir o tempo
todo até das coisas mais inusitadas, trazendo leveza e luz para os seus dias.
É assim que esse espanhol me faz sentir, como se a nossa vida fosse uma
eterna comédia romântica onde nós dois somos os personagens principais.
Que, apesar de todos os problemas que passaram, enfim estão vivendo o tão

sonhado felizes para sempre.

E em poucos meses, nossa linda história de amor vai ganhar mais um


membro que já é muito amado pelos seus pais.

FIM…

 
Livro Promotor Pedro Alcantara

Prólogo
 

Paula
 

O cheiro de sangue e carne podre no ar é forte, o que faz o meu


estômago embrulhar. Estou sem me alimentar há dias e nem consigo ver
onde estou porque meus olhos estão vendados, o que faz os meus outros

sentidos se aguçarem, principalmente a audição. Ouço a porta se abrindo


vagarosamente. O bicho papão, nome que dei a ele, tem os passos leves e
segue sempre o mesmo padrão. Some por algumas horas e depois volta sem

falar absolutamente nada. Gosta de caminhar em círculos à minha volta

para admirar o meu corpo nu pendurado pelos braços erguidos acima da

cabeça.

Fico em sinal de alerta quando ouço ele soltar uma respiração pesada,
porque sei que em seguida vem o primeiro golpe do chicote nas minhas

costas, a essa altura já em carne viva. Perdi a conta de quantas vezes esse

ciclo vem se repetindo nos últimos dias. Sinto uma dor tremenda, estou
fraca e muito assustada. Mesmo assim engulo o choro, tampouco imploro

pela minha vida. Aguento tudo calada sem esboçar nenhuma reação, sei que
esse tipo de sádico doentio sente prazer sexual em ver as suas vítimas

sofrendo. Por isso esse assassino em série não estupra nenhuma de suas

vítimas, seu prazer está na dor que causa nas mulheres indefesas totalmente
à mercê dos seus desejos mais vis.

No entanto, eu não vou dar esse gostinho para esse desgraçado e ele
sabe disso, por essa razão está tão furioso. Posso ouvir sua respiração

pesada fazendo o máximo de força que consegue em cada golpe, para ele é

como estar logo para gozar e não conseguir. Desmaio e volto a mim várias

vezes e ele continua me batendo, até que em determinado momento apago


de vez. Quando acordo, percebo que depois de dias sem ver nada, não estou
mais vendada.

É noite lá fora, e o vento assobia em uma melodia triste que adentra a

velha cabana de madeira, trazendo consigo uma brisa gélida. Abraço meu

próprio corpo na tentativa inútil de me aquecer um pouco. Ainda estou

completamente nua e com uma corrente presa em volta do meu pescoço

como se fosse um animal selvagem, ferido e assustado. Olho à minha volta


e tudo o que vejo são móveis cobertos por lençóis brancos cheios de poeira.

As cabeças de animais penduradas na parede são espantosas, não consigo

ficar olhando por muito tempo.


Meus olhos brilham quando vejo uma bandeja linda com comida, dois
sanduíches de peito de frango, um copo de suco de laranja, frutas e uma

garrafa de água fechada. Ele também deixou uma rosa azul de presente,

como se isso compensasse toda a dor que me causou. Estou faminta, mas

fico com medo de estar envenenado. Sinto que esse cara está só jogando

comigo. Agora sozinha, me dou ao luxo de chorar sem fazer barulho porque

o bicho papão pode estar por perto escondido nas sombras me observando,
só esperando o momento certo para atacar de novo.

— Respira fundo, Paula! Você não pode chorar, precisa ser forte ou

nunca mais verá a sua filha outra vez. – Lentamente, fecho os olhos e sorvo

uma longa lufada de ar e depois solto.

Lembro do rostinho lindo da Maria e isso me acalma, eu a amo tanto.


Ela foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida e não posso desistir de

vê-la de novo. Isso tudo é culpa minha, todo mundo tentou me avisar. O

delegado Avilar ofereceu proteção, disse que sabia de fontes seguras que eu

seria a próxima vítima do assassino em série. Mas não quis ouvir. Pensei

que podia cuidar de mim e da minha filha sozinha como fiz todos esses

anos porque todos me viraram as costas quando mais precisei.

Agora estou aqui, há dias nas mãos do maior assassino em série da

história do Brasil. Se não morri, foi por milagre. Ou talvez por castigo,

devido a todos os pecados que cometi e mereço ser punida dessa forma
cruel. Mas vou lutar até o fim para sair dessa situação com vida e voltar

para a minha filha. Como sempre digo, nem a morte é capaz de me separar
dela. Vou lutar até o último segundo para conseguir fugir desse lugar, nem

que para isso tenha que matar esse desgraçado.

Mas por ora, preciso jogar o jogo do meu sequestrador. Pego a rosa

azul e prendo no cabelo, se ele quer mexer com o meu psicológico, eu que
vou foder com o dele. Como preciso ficar forte, decido arriscar e começo a

devorar a bandeja de comida. Se esse filho da puta quisesse me matar, já


teria feito há muito tempo. Por algum motivo chamei a atenção dele, sabe

que faço o tipo durona e vai fazer de tudo para me domar. Mas isso nunca
vai acontecer, nenhum homem chegou nem perto.

Sou uma fera indomável.

Continua em breve…
OUTROS LIVROS DA SÉRIE HOMENS
DA LEI
 

Para você que é novo por aqui e gostaria de conhecer as histórias de


outros personagens desta série, vou deixar abaixo em ordem os nomes dos

livros já disponíveis na Amazon, para que possam ir lendo enquanto


esperam o livro do Promotor Pedro, que sairá em breve.

*DELEGADO AVILAR — Livro 1

*POLICIAL BARRETO — Spin-off do livro Delegado Avilar.

*JUIZ THOMPSON — Livro 2

*O GUARDA-COSTAS — Spin-off do livro Juiz Thompson.

*CORAÇÃO FERIDO — Livro paralelo da personagem Dani Flores,


presente nos livros citados acima como personagem secundária, quando ela

nem sabia ainda da existência do Marcelinho.

*CORAÇÃO VALENTE — Segunda e última parte do livro da Dani.


*ADVOGADO GONZALES. — Livro 3 PROMOTOR PEDRO —

Livro 4, último da Série Homens da Lei.

 
SOBRE A AUTORA

Mais informações sobre os próximos lançamentos e todos os outros

livros da autora em:

Grupo no Facebook: Romances - Mari Sillva

Instagram: https://imgaddict.com/user/autoramarilia/5458384158

Wattpad: https://www.wattpad.com/user/MarliaSillva
AGRADECIMENTOS

Quero agradecer em primeiro lugar às minhas betas Amanda, Leyde e

à minha querida amiga Ana Maria, que chegou no final do segundo tempo
para fazer parte da equipe. Obrigada por todas as risadas, surtos e choro

durante a construção deste livro que ficou tão lindo.

Muito obrigada também a todas as minhas lindonas que tanto amo do


grupo no WhatsApp “Amoras da Mari” e do grupo do Facebook: Romances
— Mari Sillva, que fazem os meus dias mais felizes.

Aos meus amados leitores do Wattpad, onde tudo começou, e estão


firmes e fortes comigo até hoje. Obrigada, amo vocês!

À equipe responsável pela produção deste livro para que ele chegasse

lindão até vocês: o revisor Fabiano Jucá, o capista Murilo Magalhães e a


diagramadora Denilia Carneiro.

E, ACIMA DE TUDO E DE TODOS, A DEUS, QUE FOI A


MINHA BASE PARA CHEGAR ATÉ AQUI!

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