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Tristan Ryan
Sigo as duas até a minha cozinha, ainda tentando absorver o
que diabos está acontecendo aqui.
Pelo que a garotinha deu a entender, elas já estão
hospedadas há bem mais do que apenas uma noite, então
realmente não pode ter sido uma pegadinha dos idiotas que são
meus melhores amigos há mais de 20 anos.
Embora eles sejam capazes disso.
Ah, com certeza eles são capazes disso!
Intimidade é mesmo uma merda...
A garçonete abre a minha geladeira e pega uma garrafa de
leite que eu com certeza não comprei. Depois, despeja o líquido em
uma vasilha que ela encontra facilmente, como se já conhecesse de
cor todos os gabinetes da minha cozinha.
Eu mesmo só conheço o que tem atrás de umas três portas.
Aquela onde ficam os copos. A das xícaras, que costumo usar para
preparar a minha bebida matinal na máquina de Café Italiano
caríssima que comprei. E a dos pratos que uso para colocar a
comida que costumo pedir delivery.
Chega a ser patético que eu tenha projetado cada pedaço
dessa cozinha e nunca tenha cozinhado as refeições que eu tanto
havia sonhado.
Sempre gostei de me aventurar pela culinária, mas preparar
um prato para um apenas é... solitário.
Então, acabo optando por ir jantar fora, me infiltrar na casa de
um dos meus amigos ou ligar para uma das garotas da minha
agenda de contatos.
A pequena imita a mãe e abre um dos armários baixos, de
onde tira uma caixa de cereais que com certeza não pertence a
mim, já que eu nunca colocaria aquela quantidade obscena de
açúcar no meu corpo.
Zoe senta-se à mesa. Não me recordo de ter feito uma
refeição sequer ali em 7 anos, desde que construí esse prédio e
mobiliei a minha cobertura.
A mãe coloca a tigela à sua frente, junto com uma colher e
beija o topo de sua cabeça, ganhando uma risada da pequena.
Gostaria de me manter mais impassível, afinal, as duas estão
invadindo o meu espaço pessoal, mas aquele miniser humano é
adorável.
Quando a tal Éden vira na minha direção, finalmente lembro-
me de endurecer as feições e aponto com a cabeça para a sala.
— Desembucha — demando assim que nos afastamos da
cozinha.
A mulher morde o lábio parecendo envergonhada e isso me
irrita profundamente. Era só o que me faltava ela se fazer de
vítima…
Que caralho!
Eu só queria dormir na minha cama pela primeira vez em seis
meses e agora estou no meio de uma situação absolutamente
injustificável.
— Sei que não parece bom, mas…
O tom doce é tão falso que só consigo revirar os olhos e
erguer a mão interrompendo-a.
— Me poupe.
Em um piscar de olhos, a vulnerabilidade parece evaporar de
seu corpo e a garçonete abusada e voluntariosa volta a mostrar as
caras.
— Ótimo. Não gosto de “draminhas” — diz, me encarando de
cabeça erguida, como se não estivesse dormindo na porra da minha
cama há alguns minutos.
— Então… — agito a mão, impacientemente.
— Ele disse que você ficaria fora até dezembro!
Seu tom não é um pedido de desculpas, nem mesmo uma
justificativa. É quase como uma acusação, como se o errado fosse
eu por voltar para a minha casa antes do previsto.
— Ah, me desculpe! Estou atrapalhando por chegar sem
avisar? — disparo com a expressão pingando sarcasmo e os braços
cruzados.
Os olhos castanhos flamejam de raiva e ela quase rosna na
minha direção.
Que coisinha raivosa…
Se não tivesse sido tão malcriada mais cedo e não tivesse
ocupado a minha casa sem permissão, eu adoraria tirar essa marra
com uns belos tapas na bunda.
E quer saber? Ela imploraria por mais.
— É claro que não, só não esperava…
— Que eu não a flagrasse invadindo a minha propriedade,
dormindo na minha cama e provavelmente usando até mesmo a
minha pasta de dentes? Ou que eu não ficasse puto por tudo isso?
— Eu compro nossos próprios produtos de higiene! —
retruca, fechando os olhos com raiva ao perceber que caiu em uma
cilada, já que a pergunta era absolutamente retórica. — Escuta, eu
não estou entendendo o porquê de todo esse drama quando você
autorizou a nossa estadia…
— Como é? — interrompo. — Eu fiz o quê?
— Você nos deixou ficar até que volt…
— Deve estar havendo algum engano. Eu não autorizei
absolutamente nada, garota.
— Ele disse que sim! — argumenta, claramente irritada.
— Quem disse?
— Jax, claro.
O apelido do meu filho me faz arregalar os olhos, ainda mais
incomodado. Se ela estiver usando o nome dele em vão, juro que
vou chamar a polícia.
Envolver meu único filho nessa palhaçada é passar dos
limites e nem mesmo a garotinha fofa vai amolecer meu coração.
— Jackson a deixou ficar aqui? É isso que está afirmando?
— praticamente cuspo as palavras.
— Sim.
— E de onde você o conhece? Faça o favor de ser bastante
convincente, pois meu próximo passo será ligar para ele.
Seus olhos se arregalam, como se tivesse pensado em algo
pela primeira vez. A garota vira o rosto em direção à varanda, já
totalmente iluminada pelo sol que nasceu nesse meio tempo, e
engole em seco.
— Se você estiver mentindo… — deixo a ameaça no ar.
Isso desperta mais uma vez a pequena fúria, que passa por
mim caminhando decidida e fazendo questão de bater o ombro no
meu braço.
Penso em segui-la pelo corredor, mas não confio em mim
mesmo em um quarto com ela. Pode ser que eu acabe colocando a
minha mão ao redor daquele pescocinho fino e apertando até ouvi-la
sufocar.
Ou pior. Pode ser que eu prenda-a contra a porta e invada
sua boca atrevida com a língua, fazendo-a gemer ao invés de cuspir
desaforos.
Por sorte, ela retorna em menos de 30 segundos, com o
celular em mãos. O “tum tum” de uma chamada em andamento
ecoa pela sala, deixando claro que o aparelho está no viva-voz.
— Alô?! — A voz do meu filho de 23 anos me faz franzir a
testa. — Éden?
Mas a maior surpresa vem a seguir, arrancando todo o ar dos
meus pulmões, quase como se tivesse levado um soco.
— Oi, Mozão — ela diz, abrindo um sorriso debochado na
minha direção.
— Éden? — Jackson repete.
Ao ouvir uma segunda vez, constato que é mesmo ele.
Meu filho nunca chegou a morar comigo, exceto nos dois
meses em que sua mãe e eu dividimos a mesma casa, logo que ele
nasceu.
Por diversas vezes, tentei trazê-lo para cá, mas Mélanie
nunca deixou. Tive que me contentar com dois finais de semana por
mês e algumas semanas de férias a cada verão.
Quando ele se tornou maior de idade, nem isso…
A verdade é que, por mais que eu tenha me esforçado muito
e que ame demais o meu filho, nossa relação sempre foi a mais
superficial possível. Quase fria. E isso dói. Dói pra caralho.
— Sim, Mozão. Eu mesma. Estou aqui com seu pai, acredita?
— O quê?! Como assim?
— Pode falar com ele, Mozão, está no viva-voz. Meu
sogrinho chegou mais cedo em casa e aparentemente não se
lembrava de que a Zoe e eu ficaríamos aqui.
Sogrinho é o caralho!
E a descarada chega a fazer um beicinho quando fala isso.
— Puta merda… — ouço meu filho xingar, então reajo.
— Talvez porque eu não soubesse que você estava aqui —
retruco, fuzilando-a com o olhar.
— Pode ser que a idade esteja deixando-o esquecido…
Cretina.
A ideia de dar umas palmadas em sua bunda parece cada
vez mais tentadora.
— Ou talvez você tenha fugido de algum sanatório, pois
nunca pediu permissão para…
— Pai? — Jackson interrompe meu rompante.
Fecho os olhos e suspiro pesado.
— Estou aqui, filho.
— Desculpe por isso. Você estava ocupado e a minha garota
precisava de um lugar para ficar, não achei que fosse se importar.
Na verdade, nem achei que vocês fossem se cruzar por aí, já que só
esperava seu retorno em dezembro.
— Adiantei o retorno — murmuro, enquanto as palavras
“minha garota” parecem ecoar pela minha cabeça.
Eu passei a porra da noite inteira desejando comer a “garota”
do meu filho.
Que caralho de pai de merda eu sou?
— Pai? — Jackson chama novamente e me dou conta de que
eu estava completamente alheio ao que ele dizia.
— Estava processando a informação — balbucio.
— Porra, desculpa mesmo, pai. Minha garota precisava muito
de um lugar para ficar por uns meses e eu…
— Meses?!
— Só uns 3 ou 4… — ele justifica, mas meu olhar está
queimando em cima da morena de olhos penetrantes, que me
encara de volta.
— Há quanto tempo exatamente você está na minha casa?
Jackson continua falando, mas nenhum de nós está
prestando atenção. Éden ergue ainda mais o queixo, o que me dá
vontade de dizer que vai ficar com torcicolo.
— Só três semanas…
— Você está invadindo a minha casa há quase um mês?! —
exclamo. — Porra!
— Não xinga perto da minha filha! — a garota argumenta,
embora ela própria tenha me chamado de filho da puta na frente da
garotinha.
— Ela nem está aqui!
— Mas pode ouvir seu piti lá da cozinha!
— Piti? — fuzilo-a com o olhar — Você invade a minha casa,
dorme na minha cama e eu estou dando a porra de um piti?
— Você estava na cama do meu pai?! — O grito do Jackson
chama a nossa atenção e ambos olhamos assustados para o
celular.
— Eu estava dormindo lá e ele chegou.
— Agora eu pareço uma merda de pervertido que estava
observando a princesa dormir! — aponto um dedo para ela, que e
endireita os ombros, como se estivesse se preparando para brigar.
— E nós dois sabemos que não foi assim que aconteceu!
— Meu Deus! — Jackson exclama do outro lado da linha. —
Isso está ficando muito, muito estranho… — ele balbucia.
Fecho os olhos e tento me concentrar, por mais que os olhos
flamejantes dela me desconcertem profundamente.
— Dá para focarmos no que realmente importa? Eu cheguei
em casa e tem uma desconhecida folgada e uma criança aqui!
O silêncio toma conta do ambiente pela primeira vez. Éden
parece envergonhada e Jackson claramente ficou sem argumentos.
Talvez dois minutos inteiros tenham passado sem que
ninguém reagisse. Quando estou prestes a perguntar mais uma vez
o que vamos fazer, meu filho arranha a garganta.
— Er… pai?
Ele usou o tom.
Aquele tom que me fazia comprar os brinquedos mais caros e
dar mesada dobrada. O mesmo tom que me levou a pagar sua
faculdade por quatro anos, sendo um curso diferente em cada um
deles. A voz que da última vez que foi usada, alguns meses atrás,
me custou 30 mil euros para um curso de Arqueologia na Itália.
Merda.
— A Éden não tem mesmo para onde ir. Pode deixar ela e a
filha ficarem aí por um tempo?
— Jackson… — preparo um discurso para tentar mostrar a
ele que isso é absurdo, mas o garoto termina de bater o último
prego no meu caixão.
— Por mim, pai.
Suspiro, esfregando o rosto.
Ele me quebra sempre que usa essa expressão. “Por mim”. É
claro que eu faria qualquer coisa por ele. É meu único filho, a
pessoa que eu mais amo no mundo. Faria qualquer coisa que ele
me pedisse usando esses termos e ele sabia disso.
Mas Jackson não se dá por satisfeito. Ele continua a falar,
dessa vez usando um argumento que faz meu estômago se revirar
de um jeito estranho.
— Eu queria estar aí para cuidar da minha garota, mas estou
realmente gostando das aulas dessa vez. Acho que nasci para fazer
isso da vida. Pode cuidar das coisas enquanto eu estou longe?
Que porra!
— OK.
As duas letras deixam um gosto amargo na minha boca e
uma dor de cabeça monumental começa a dar as caras.
— Obrigado, pai. — A voz de Jackson me faz olhar
novamente para a frente.
Engulo em seco, mas lá no fundo sei que aquela pequena
palavra de gratidão é tudo o que preciso para fazer qualquer coisa
que esse garoto me peça.
Daria um pedaço do meu corpo ou até da minha alma por ele.
— Tudo bem, filho. Depois me liga para falar sobre o curso
novo.
— Sim! Nossa, é demais, Coroa! Estou aprendendo sobre...
E, assim, ele começa um monólogo de 15 minutos sobre
arqueologia e monumentos históricos.
Tento prestar atenção, mas tudo o que consigo fazer é soltar
algumas inflexões de tempos em tempos. Algo como “nossa”, “uau”,
“legal”.
Enquanto isso, a garota e eu travamos uma batalha de
olhares. Um tentando se demonstrar mais indiferente do que o
outro. Não que eu realmente esteja conseguindo ignorar sua
presença.
Jackson e eu nos despedimos e, assim que a dona do celular
desliga a chamada, dito as regras da minha casa, me forçando a
não olhar novamente em sua direção enquanto faço isso.
Não por raiva, mas porque o maldito pijama parece mais
indecente a cada vez que passo meus olhos por suas pernas bem-
desenhadas e os seios pesados.
Ela é... linda.
Linda pra caralho.
E de todas as merdas que já fiz na vida, reparar no corpo da
porra da namorada do meu filho seria a mais nojenta.
— Você vai tirar suas coisas do meu quarto imediatamente.
Pode ocupar o do Jackson. Fique longe do meu caminho, não
atrapalhe o meu sono, não deixe suas merdas jogadas pela casa e
tente me incomodar o mínimo possível.
— Eu…
— Eu não quero saber — corto, sendo bem mais rude do que
estou acostumado.
Foda-se.
Estou puto e não quero ouvir porra de argumento nenhum.
Vou ter que dividir o meu espaço pessoal, o lar para o qual eu nunca
trouxe uma mulher sequer.
A minha vontade é gritar de ódio, mas isso assustaria a
garotinha que está na cozinha tomando seu desjejum.
Então, apenas viro de costas e ando em direção ao meu
quarto até entrar no banheiro, trancando a porta logo atrás de mim.
Abro o chuveiro e entro de roupa mesmo, deixando a água
gelada tentar me acordar do pesadelo no qual eu acabei de cair de
paraquedas.
Éden Lavinski
Deixo meu corpo cair no sofá e escondo o rosto nas mãos.
Foi por pouco.
Foi por muito pouco.
Em menos de uma hora, a minha vida que já estava bem
longe de ser um mar de rosas se revirou de tal forma que eu chego
a sentir uma leve palpitação.
Esfrego o peito, assustada. Pode ser apenas uma leve crise
de asma dando as caras ou... genética.
Sete semanas atrás, minha mãe perfeitamente saudável teve
um infarto e morreu em questão de minutos aos 43 anos de idade.
Por sorte, Zoe estava na escola e não presenciou nada disso.
O ataque fulminante ocorreu enquanto ela trabalhava na
floricultura e uma cliente chamou a ambulância.
Não deu tempo.
Ela chegou sem vida ao hospital.
Pouco depois, recebi a ligação que abriu um buraco no meu
peito. Tive que sair às pressas de Vancouver para chegar a tempo
de buscar a Zoe na escola e dar a notícia triste.
Foi de longe o pior dia da minha vida e olha que eu sou
especialista em ter dias de merda.
Já tive mais do que poderia contar em meus 23 anos de vida.
De lá para cá, as coisas parecem continuar estagnadas.
Se, por um lado, temos um teto sobre as nossas cabeças, por
outro, não tenho a menor perspectiva de conseguir alugar um
espaço próprio para criar a minha filha.
Não consegui reaver o dinheiro que havia pago pelo primeiro
ano de faculdade. Não consegui alugar a kitnet onde eu morava.
Não consegui encontrar um emprego de meio-período para compor
a renda.
A única notícia boa era que o Red Pub havia me recontratado
mesmo após partir sem nenhum tipo de aviso prévio e ficar fora por
um mês inteiro.
Além, é claro, do fato de que Tristan Ryan me deixaria ficar
aqui. Pelo menos por enquanto.
Porra, se eu soubesse que ele era o dono da casa onde eu
estava hospedada teria sido mais simpática...
Pensando bem. Não. Eu não teria. Não sou o tipo de pessoa
que entrega sorrisos forçados só por interesse. Não sei fingir gostar
de alguém ou de alguma situação.
E convenhamos que o cara foi bastante inconveniente.
OK. Pelo visto, ele achou mesmo que eu estava me
divertindo, mas foda-se! E as 200 pratas que ele tentou deixar de
gorjeta?
A raiva ameaça a subir pela minha goela, junto com a
vontade de marchar até o quarto dele e gritar mais um pouco sobre
como eu não estou à venda.
Nem mesmo para um gostoso como ele.
Respiro fundo, tentando controlar meu lado assassino que ele
desperta tão facilmente.
Quisera Deus essa fosse a única emoção que aquele homem
despertasse no meu corpo...
— Mamãe?
Levanto a cabeça, rapidamente, voltando à realidade. Zoe me
encara com a testa franzida e eu me esforço para dar-lhe o meu
melhor sorriso.
Ela sempre o merece.
Meu melhor sorriso, meu olhar mais amoroso, tudo o que eu
tenho e o que eu sou.
— Comeu tudo, Bubbles? — pergunto, puxando-a para o
meu colo.
A garotinha acena, confirmando, e deita no meu ombro.
— Vamos mesmo ficar?
— Vamos sim, Bubbles.
— Então por que você está chateada?
Como explicar para uma criaturinha de seis anos que estou
preocupada com tudo o que está acontecendo e com medo do
homem mudar de ideia após acordar e nos expulsar?
Ou pior: ele poderia descobrir que eu não sou namorada de
seu filho e ficar furioso por termos mentido.
Que espécie de mãe coloca a filha pequena dentro da casa
de um desconhecido?
São tantas preocupações que eu volto a me sentir ofegante e
preciso esfregar de novo o peito.
— Ele é legal.
— Hã? — exclamo, olhando para ela. — Do que está falando,
Bubbles?
— O Tristan é legal — afirma com tamanha certeza que até
me desconcerta.
— Por que acha isso? — me pego perguntando a razão de
algo para uma criança, como se ela tivesse mais sabedoria para me
oferecer do que eu jamais poderia oferecer de volta.
A pequena dá de ombros e começa a trançar a ponta dos
cabelos.
— Ele é — diz, sem sombra de dúvidas.
Então, como se nada tivesse acontecido, abre o maior sorriso
e me pergunta se podemos ir ao parque ver as pessoas passearem
com os cachorros.
Ela adora animais, mas nunca pudemos ter um em casa. Um
dos meus objetivos era conseguir alugar uma casa que comportasse
um cachorro aqui em Vancouver antes de trazer a mamãe e a Zoe
para cá.
Pelo visto, vai demorar bastante para que isso venha a
acontecer...
— Vamos nos trocar — digo, decidida a afastar esses
pensamentos.
— Mas...
— O que foi, Bubbles?
— Nossas roupas...
Fecho os olhos e inspiro pelo nariz, me lembrando de que
nossas malas ficaram no closet do quarto dele.
— Vou buscar. Me espere aqui, sim?
— Melhor eu ir junto, mamãe...
— Por quê? — pergunto, franzindo a testa.
— Vocês brigam menos comigo por perto.
Mas que criaturinha inteligente. Juro que fico me perguntando
quando foi que ela se tornou tão esperta assim.
Beijo seu rosto e insisto que posso fazer isso sozinha.
Testo a maçaneta e solto um palavrão baixinho agradecendo
por estar aberta. Eu sou assim, falo palavrões quando estou puta da
vida e mais palavrões ainda quando estou contente.
Coloco a cabeça para dentro e escuto o som do chuveiro,
que preenche o ambiente. Ótimo.
Encosto a porta, sem fazer barulho, e sigo na ponta dos pés
até o closet. Já estava puxando a mala de dentro de um dos nichos,
quando ouço o som da chave girando na maçaneta do banheiro.
Sem pensar muito a respeito, me enfio no armário, me
escondendo entre as camisas do dono do quarto.
O chuveiro continua ligado, o que é bem pouco ecológico da
parte dele, enquanto ele entra no quarto.
E aí você precisa entender uma coisa sobre a suíte
monstruosa... tem o quarto, todo espaçoso e confortável, o
banheiro, igualmente enorme, e o closet. Só que este último não é
como na maioria das casas, em que há um terceiro cômodo dentro
da suíte.
O closet de Tristan Ryan é uma sequência de armários sem
portas com um design impecável, mas, ao invés de uma parede de
verdade, o espaço é separado do restante do quarto por uma
estante enorme de madeira onde ele tem livros, objetos pessoais de
decoração e uma TV gigantesca virada para a cama.
É lindo. Muito lindo mesmo. Sofisticado, sabe?
Porém, bem longe de ser o ideal quando você está tentando
se esconder entre as camisas brancas e as azuis.
Eu só não sei se o pior é correr o risco de ser flagrada ou a
visão perfeita que tenho do corpo dele enquanto caminha até a
mesa de cabeceira para pegar alguma coisa.
Tristan tem um desses corpos esguios, mas musculosos,
sabe? Não é “bombado”, mas perfeitamente definido, incluindo
entradas no final de suas costas, que seguem pela bunda mais
redonda e firme que eu já vi na vida.
Caralho... o babaca do “meu sogro” é um puta de um gostoso
e eu sei que essa frase soa errado em todos os idiomas possíveis.
Quando ele vira para voltar ao banheiro puxo o ar entre os
dentes com força. Só não sei dizer se pelo medo de ser pega ou se
pela visão do peitoral trincado e da tatuagem enorme que ocupa
todo o lado direito do tronco dele.
Por sorte (ou por azar!), uma sequência de livros está bem na
altura do pau dele, então não consigo enxergá-lo.
Me repreendo mentalmente por sequer ter notado que não
conseguia ver o tamanho do membro do meu “senhorio” e, pior,
“sogro”.
Ele mantém os olhos baixos, lendo algo na tela do que deve
ser seu smartphone, e entra novamente no banheiro, trancando a
porta atrás de si.
Pela primeira vez em vários minutos, consigo inspirar e
expirar tranquilamente, mesmo que meu corpo todo ainda esteja
tremendo e a visão do homem mais bonito e sexy que eu já vi
continue marcada no meu cérebro como se tivesse queimando em
brasa.
Pego nossas malas e saio o mais rápido possível dali,
tentando me livrar das sensações estranhas que parecem não
querer me abandonar de jeito algum.
Tristan Ryan
Sinto que estou sendo observado.
Sabe quando você tem um bichinho de estimação e ele fica
observando seu sono? É assim que estou me sentindo nesse
momento.
Exceto pelo fato de que o cheiro de chocolate que vem da
stalker significa que provavelmente é uma garotinha de olhos
curiosos e sorriso fácil.
Meu Deus! Acabei de comparar uma criança a um cachorro?
Killian tem razão ao dizer que estou longe de ser paternal.
Engulo o riso e abro um olho apenas, constatando que tem
uma criatura de um metro me analisando enquanto come uma barra
de chocolate.
— Você não deveria estar assistindo desenho ou fazendo
alguma coisa de criança? — pergunto, voltando a fechar os olhos.
— Estamos à tarde — ela responde, em tom de bronca.
— E?
— Não é hora de dormir.
Era só o que me faltava mesmo... levar bronca de uma mini-
humana que nem me conhece.
— Adultos podem dormir a hora que quiserem.
Ela dá uma risadinha, que me pega de jeito. Que coisinha
fofa!
— Minha mãe também não gosta de acordar cedo — conta,
sussurrando, como se fosse um segredo.
Na verdade, eu sempre acordo cedo. Mas não posso explicar
a ela que passei a noite toda acordado na cama da Ava, então
apenas esfrego o rosto e sento para olhá-la mais atentamente.
— Adultos são estranhos — murmuro.
Como se entendesse muito a respeito, ela chacoalha a
cabeça, concordando.
— Você não almoçou — diz, de repente.
Espio o relógio ao lado da cabeceira e constato que já são
quase três da tarde.
— Você pelo jeito já está na sobremesa — aponto a barra de
chocolate recheada de caramelo.
Zoe interrompe a mordida e me oferece o alimento com
naturalidade.
— Desculpa! Esqueci de perguntar se você queria!
Sorrio de lado e nego, agradecendo a gentileza.
Quando percebo que ela não vai sair, chuto o edredom,
agradecendo por ter tido o bom-senso de dormir de calça moletom e
não apenas de boxer, como de costume.
Ando até o banheiro para escovar os dentes e lavar o rosto.
Ao retornar, ela continua no mesmo lugar, porém muito entretida
com meu Apple Watch[16].
— Você é bem curiosa, não é, Zoe?
— Esse relógio é muito legal! Dá para assistir desenho nele!
— exclama, encantada. — Minha amiga tem um rosa...
Franzo a testa ao notar que ela fica calada.
— Você queria ter um igual ao da sua amiga? — pergunto,
tentando entender o motivo de sua aparente chateação.
Ela dá de ombros a princípio, mas logo suspira, sussurrando:
— Não vamos mais ser amigas...
— Por que não, Zoe?
— Agora a gente tá aqui.
Sei que é quase desleal usar uma criança para obter
informações, mas Éden não parece disposta a me contar nada de
bom-grado, então aproveito para tentar entender o que está
acontecendo.
— Vocês não moravam aqui em Vancouver?
— A mamãe sim, mas eu morava com a vovó Mary.
Não consigo evitar o desdém com que penso sobre a Éden.
O fato de que havia deixado a própria filha para trás só para
poder viver na cidade grande me dá uma boa ideia de quem ela
seja: claramente alguém por quem eu não tenho nenhuma simpatia.
Posso estar longe de ser o melhor pai do mundo, mas eu fiz
absolutamente tudo pelo meu filho desde o segundo em que fiquei
sabendo de sua existência.
Aliás, Jackson foi a minha razão para trabalhar triplicado e
conseguir construir o império que eu tenho hoje.
— E por que você não vai mais morar com a sua avó?
Percebo que toquei em um ponto sensível, quando a
garotinha solta meu relógio em cima da mesa e esconde o rosto,
virando para trás.
— Zoe...
— Vou assistir TV — anuncia.
— Zoe, espera...
Mas ela sai do quarto antes que eu possa me desculpar.
O que será que aconteceu?
Merda. Aparentemente sou mais babaca do que imaginava.
Coço a cabeça, frustrado, e solto o meu peso para cair
sentado na cama.
Meu relógio pisca, apontando a chegada de mensagens, mas
opto por lê-las diretamente no celular.
Assim que destravo o aparelho, me deparo com algumas
dezenas de notificações, principalmente no grupo dos meus
melhores amigos. Imediatamente gargalho do nome que coloquei no
grupo ontem enquanto estávamos no bar.
Pai da Bellinha (James): Chegou uma encomenda aqui
em casa, T...
Pai da Bellinha (James): Bellinha adorou. Já eu, só
consigo pensar no quanto você é um filho da puta arrombado
do caralho.
Killian pegador de novinha: Eita como tá bravo ele.
Peter Holmes, o Sherlock:
Pai da Bellinha (James): Vocês dois já foram tomar no cu
hoje?
Peter Holmes, o Sherlock: Não, mas você parece ter sido
comido por algum pirocudo com esse humor.
Killian pegador de novinha: É tão errado que eu esteja
rindo disso.
Pai da Bellinha (James): Babacas de merda, podem focar
no meu problema?
Peter Holmes, o Sherlock: Abra seu coração.
Killian pegador de novinha: Bellinha te perguntou sobre
o Tinder?
Pai da Bellinha (James): Vira essa boca para lá, K!
Peter Holmes, o Sherlock: Qual o problema então, porra?
Pai da Bellinha (James): O idiota do T mandou um
canguru de pelúcia de quase 3 metros para a minha casa!
Peter Holmes, o Sherlock:
Killian pegador de novinha: Sabia que ele estava
aprontando!
Pai da Bellinha (James): Se sabia por que não me
contou?!
Killian pegador de novinha:
Peter Holmes, o Sherlock:
Pai da Bellinha (James): Obrigado por nada, babacas!
Solto uma gargalhada ao ler a conversa. Sabia que James
ficaria puto quando visse o presente que comprei para a Bellinha,
mas o importante é que a pequena gostou.
Respondo com uma sequência de figurinhas e mudo o nome
do grupo para “Canguru perneta”, então volto a ler o restante da
conversa.
Killian pegador de novinha: Alguém tem notícias do
Ryan? Desconfio que a garçonete tenha sumido com o corpo
dele.
Peter Holmes, o Sherlock: Ela pareceu perigosa.
Pai da Bellinha (James): Vocês são muito babacas
mesmo.
Pai da Bellinha (James): Mas manda notícias, T.
Pai da Bellinha (James): T?
Killian pegador de novinha: Ryan?
Peter Holmes, o Sherlock: Atende o telefone, cuzão!
Gravo um áudio para eles, ainda enxugando as lágrimas de
tanto rir.
Eu: Não chorem, crianças. O pai tá ON.
Eu:
Peter Holmes, o Sherlock: Até que enfim! Liguei umas 10
vezes, porra!
Killian pegador de novinha: Onde você estava, cuzão?
Eu: Dormindo meu sono de beleza, claro. Não preguei o
olho a noite toda.
Eu:
Pai da Bellinha (James): Ótimo, agora tenho muito mais
informação do que eu gostaria sobre a sua noite.
Eu: Posso dar mais uns detalhes se quiser, bonitão.
Eu:
Os três respondem ao mesmo tempo com variações de um
sonoro “não!”.
Peter Holmes, o Sherlock: Só conta se tem alguma coisa
a ver com a garçonete gostosa.
Antes que eu me desse conta, já havia digitado e enviado
uma resposta.
Eu: Ei! Olha o respeito!
Pai da Bellinha (James): Ué?
Killian pegador de novinha: Tem coisa aí!
Killian pegador de novinha:
Peter Holmes, o Sherlock: Sabia que tinha a ver com ela!
Peter Holmes, o Sherlock:
Eu: Vão pra merda, idiotas. Não tem nada a ver.
Esqueçam a garçonete.
Por pouco não falei o nome dela, mas aí com certeza
perceberiam o deslize. Ela não chegou a se apresentar no Red Pub.
Para disfarçar, engato uma conversa sobre a Ava, mesmo que até
dois minutos atrás eu mal me lembrasse de que havia passado a
noite com ela.
Não pensei na loira com quem já transei algumas dezenas de
vezes nem uma vez sequer desde que cheguei em casa.
Porra! Verdade seja dita, nem mesmo enquanto a comia eu
estava pensando nela.
Me sentiria um babaca se não soubesse que ela não liga a
mínima para onde estava a minha cabeça. Acho que a socialite não
se ofenderia nem se eu gozasse chamando o nome de outra,
contanto que a levasse ao orgasmo ao mesmo tempo.
Meu estômago reclama e nem consigo me lembrar de
quando fiz a minha última refeição. Certamente antes das doses de
whisky no pub.
Pai da Bellinha (James): Agora que já sabemos que você
está bem, pode vir aqui sumir com esse bicho?
Eu: Nops. É da Bellinha. Fica na sua.
Pai da Bellinha (James): Está ocupando a sala toda, filho
da puta!
Eu: Divirta-se!
Eu:
Travo o celular e o coloco no bolso do moletom, saindo do
meu casulo pela primeira vez desde essa manhã.
Assim que dou dois passos em frente, Éden sai de dentro do
quarto do Jackson carregando uma caixa enorme. A garota anda
para trás, como se tentasse se equilibrar e só não cai no chão
porque seu corpo acaba usando o meu como apoio.
Queria dizer que não me arrepiei dos pés à cabeça ao sentir
suas costas tocarem meu peito, mas foi quase como se tivesse
levado uma descarga elétrica.
— Olha por onde anda! — resmunga.
Ela quase cai em cima de mim e ainda tem a cara de pau de
reclamar.
Puxo o ar pelo nariz e pego a caixa de seus braços com bem
menos gentileza do que eu faria em qualquer outra ocasião. Ou
melhor, com qualquer outra pessoa.
— De nada — retruco.
— Não pedi ajuda! Posso carregar sozinha! — teima,
tentando pegar de volta, mas coloco um braço entre ela e a caixa,
impedindo-a de se aproximar.
— Dá licença?
— Já falei que não preciso de ajuda!
— Dá para parar de agir como criança?! — exclamo, um
pouco mais alto do que o necessário.
Nós dois olhamos ao mesmo tempo para o final do corredor,
de onde vem o som da televisão.
Depois de constatarmos que Zoe não percebeu a discussão,
voltamos a nos encarar.
— Onde devo colocar essa caixa? — pergunto com uma
dose extra de sarcasmo, mas em um tom bem mais baixo.
— No lixo, por gentileza — responde com o mesmo nível de
deboche.
Essa garota é irritantemente instigante.
Se não fosse quem é, eu adoraria passar horas travando
batalhas que só nos levariam a um lugar: A minha cama.
Adoraria despi-la de toda a sua petulância e fodê-la
loucamente.
Mas ela é a minha nora.
Preciso me lembrar disso.
— O que é tudo isso afinal? — pergunto, abrindo a caixa só
para fechar rapidamente ao notar a capa de uma revista pornô. —
Wow!
— Pois é. A minha filha viu uma bem parecida com essa.
— O quê?! — exclamo, sentindo meu pescoço ficar vermelho
só de pensar naquela criança inocente vendo algo tão explícito. É
um absurdo! — Essa porra não é minha! — me defendo.
— Relaxa, você pode ser um cafajeste, mas não me parece
que faça o tipo que gosta de mangá[17] explícito.
— Jackson...
— Ele deixou o quarto bem recheado de coisas proibidas
para menores de idade.
Coço a cabeça.
— Desculpe por isso.
Ela dá de ombros.
— Não é como se eu pudesse reclamar. Somos visitas
indesejadas...
Mordo as bochechas, pois não deixa de ser verdade. Muito
embora...
— Vou jogar no lixo reciclável e então volto para ajudar a
conferir se sobrou alguma coisa — anuncio, me afastando.
— Não precisa fazer isso! — A escuto responder, mas ignoro
completamente.
É óbvio que vou ajudá-la a deixar o quarto preparado para
uma criança daquela idade. Posso não estar contente com a sua
presença na minha casa, mas não sou um babaca completo.
Só meio babaca...
Éden Lavinski
Sabe aquele prazer em acordar cedo e aproveitar o dia?
Nunca tive.
Nunquinha mesmo.
Só de pensar em ter que me arrastar para fora do edredom
quentinho já fico de mau humor.
Contudo, nessa manhã em específico o sacrifício nem chega
a ser tão grande assim. A verdade é que sou uma merdinha que se
acostumou fácil demais com coisa boa.
A coisa boa em questão: A cama do meu “sogro”.
Caralho, como eu senti falta daquele colchão enorme e macio
essa noite... e os lençóis? Deve ser daqueles com um milhão de fios
egípcios que custam mais ou menos o preço da minha dignidade...
A quem eu quero enganar? A minha dignidade não custa tão
caro assim.
Sento, ainda atordoada, e olho ao redor, percebendo que Zoe
já havia acordado. Pra variar...
Abro a porta do quarto, mas paro por um instante, pensando
que a minha camiseta mais velha, a calcinha de algodão e a meia
de lã que usei para dormir talvez não sejam as roupas mais
apropriadas para vestir, já que o dono da casa chegou.
Enfio a cabeça no corredor e olho para os dois lados,
constatando que a porta dele continua fechada. Por que ele
acordaria às 6h10 da manhã? Ele é rico. Pode escolher dormir. Eu
escolheria...
Essa certeza me faz andar tranquila até a sala.
Imaginei que Zoe estivesse na varanda, assistindo o nascer
do sol, mas não a vejo ali.
— Bubbles? — chamo, bem na hora em que um barulho de
algo caindo soa na cozinha, seguido de gargalhadas.
Corro até lá, sentindo meu coração palpitar, mas suspiro de
alívio ao vê-la rindo sem parar enquanto Tristan pega uma vasilha
que caiu no chão.
— Mamãe! — a pequena exclama, pulando da cadeira e
correndo para me abraçar.
— O que está fazendo aqui, filha? — sussurro, beijando sua
testa.
— O Tris tá fazendo panquecas para mim — conta e aponta
na direção dele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Nesse momento, o homem começa a se levantar do chão e
posso jurar ter flagrado um olhar demorado para as minhas pernas,
o que me deixa completamente ciente de que a minha camiseta mal
cobre a minha bunda.
Ele ergue o queixo, em um cumprimento discreto e vira de
costas, voltando a cozinhar.
Fico dividida entre correr para o quarto para me vestir e fingir
que nada aconteceu.
Talvez, se ele perceber que não me abalei, acredite que
estou usando um short por baixo...
É com essa convicção que eu sento à mesa como se fosse
uma situação completamente normal e começo a conversar com a
minha filha.
Dois minutos depois, ele coloca um prato com duas
panquecas e várias frutas picadas em frente a ela, além de um
potinho com mel.
— Uau! — minha filha exclama, sorrindo para ele.
O sujeito, que não chegou nem a gastar saliva falando “bom
dia” para mim, abre um sorriso enorme e bagunça o cabelo da
pequena.
— Coma — comenta, piscando para ela.
— Obrigada, Tris!
Luto com a vontade de repreendê-la por dar um apelido a
ele. A verdade é que o sujeito não parece ter se ofendido, então
apenas tento ignorar.
Ela dá uma garfada generosa e sorri, agradecendo de novo.
— Quer um pouco, mamãe? — minha filha oferece, toda
educada.
Quero. Quero muito. A massa parece tão fofinha que chego a
salivar. Mas meu orgulho me faz apenas balançar a cabeça.
Como se conseguisse ler a minha expressão, Tristan cruza
os braços e levanta uma sobrancelha.
— Vou fazer um prato para você — anuncia, revirando os
olhos.
— Não precisa... — argumento, mas ele levanta apenas um
dedo, me calando.
Irritante.
Que velho irritante!
Ele volta sua atenção para o fogão e logo em seguida coloca
um prato parecido com o da Zoe à minha frente. A diferença é que
as minhas frutas não estão picadas como as dela. Mas não é como
se eu pudesse reclamar, não é mesmo?
— Obrigada — murmuro, muito a contragosto.
Mais uma vez, ele apenas ergue o queixo, em resposta.
— Você não vai comer, Tris? — Zoe pergunta, cobrindo a
boca para esconder que estava falando com ela cheia.
— Nada de falar com a boca cheia — repreendo-a.
Ele dá um meio-sorriso e volta a bagunçar o cabelo dela.
— Mais tarde.
Logo em seguida, ele sai e nós duas continuamos comendo o
nosso café da manhã. Não sei o que ele foi fazer, mas não volta à
cozinha até a hora em que guio a Zoe para o banheiro.
O escritório do senhor Ryan fica bem de frente para o
banheiro do corredor e, por acaso, ele não havia fechado a porta,
então consigo ouvi-lo falar um idioma estranho, como se estivesse
em uma reunião. Seria Mandarim?
Chacoalho a cabeça e entro no banheiro, guardando a minha
curiosidade só para mim. Alguns minutos depois, com Zoe de banho
tomado e vestida em uma roupa confortável para a escola, deixo-a
escovando os dentes e saio para me arrumar.
Ao fechar o banheiro, não consigo resistir à curiosidade e
ando na ponta dos pés até a porta do escritório dele. Como se fosse
uma praga do universo, meu “sogro” gira na cadeira nesse exato
momento.
Nossos olhares travam uma batalha que começa branda,
mas parece se exaltar à medida que os segundos se arrastam. O
contato só é interrompido quando ele ergue apenas uma
sobrancelha e então desliza seus olhos pelas minhas pernas, antes
de girar novamente com a cadeira e ficar de frente para seu laptop.
— Você parece bem à vontade na minha casa, Norinha.
O comentário arrogante me enfurece, mas antes que eu
pudesse xingá-lo, Zoe abre a porta.
— Mãe! Você ainda não se arrumou? Vou chegar atrasada!
— choraminga.
Engulo meu orgulho ferido e murmuro um pedido de
desculpas, me arrastando para vestir uma roupa decente.
Quando abro a porta do apartamento, Zoe grita:
— Tchau, Tris!
— Bubbles! — repreendo-a pelo grito, mas como se quisesse
apenas me contrariar, o homem grita uma resposta lá do final
corredor.
— Boa aula, Zoe!
Minha filha encolhe os ombros e sai cantarolando à minha
frente.
Estou muito bem arranjada com esses dois...
Pai da Bellinha (James): Opa, opa. Temos novidades?
Killian pegador de novinha: Minha informante, que não
posso dizer quem é, acabou de me contar que nosso velho da
lancha é vovô.
Peter Holmes, o Sherlock:
Pai da Bellinha (James): O QUÊ?!
Eles teorizaram sobre Jackson ter engravidado uma
europeia, mas Killian disse que “sua informante” – vulgo: a
fofoqueira da minha secretária – disse que não é um bebê.
Eu: Bando de fofoqueiro.
Eu:
Killian pegador de novinha: Oi, vovô!
Pai da Bellinha (James): Quer uma bengala?
Peter Holmes, o Sherlock: Eu já pesquisei e Jackson não
tem filho algum. Que porra é essa?
Reviro os olhos. Idiotas.
Eu: Primeiramente, vovô é o seu pau mole, Killian.
Killian pegador de novinha:
Eu: Sobre a bengala, só se for para enfiar no seu rabo,
James.
Pai da Bellinha (James): Ui. Toquei num ponto sensível.
Eu: E não, o Jax não é pai, Peter Pan. Ele...
Peter Holmes, o Sherlock: Desembucha, porra!
Conto a história por cima, guardando para mim as duas
informações principais: Que a minha nora é a garçonete da noite de
sábado. E que ela e a filha estão morando comigo.
Por alguma razão, ainda não me sinto pronto para
compartilhar esse detalhe com eles.
Éden Lavisnki
Eu queria ser pobre um dia...
Mas todo dia está foda!
A porra do carro pifou mais duas vezes durante o dia,
enquanto eu entregava currículos.
Acabei tendo que passar no mecânico antes de ir buscar a
Zoe ou teria que literalmente empurrar a lata-velha.
— Acha que consegue me ajudar?
— A guinchar essa porcaria até o ferro-velho? Consigo sim,
gata.
Estreito os olhos, fuzilando-o com tanta raiva que o homem
chega a dar um passo para trás.
— Eu posso dar uma olhada, mas vai ficar caro.
Provavelmente tem que mexer no motor e...
— O que dá para fazer com 30 dólares?
O cretino começa a rir, enquanto eu continuo com os braços
cruzados, ainda mais irritada.
— É sério, moça?
— Sim.
— Nada. Por 50 dólares posso completar o óleo do motor e
colar mais umas fitas isolantes na porta que parou de fechar.
— Porra, não dá para fazer isso por 30?
— Já estou dando desconto. Se você não fosse tão gata,
cobraria o dobro.
O comentário me enoja e quase vomito na minha própria
boca. Contudo, funciona para que eu deixe de insistir em mais
desconto. Com as indiretas dele sobre a minha beleza e os olhares
para o meu corpo, é bem capaz de acabar soltando alguma
proposta que me faça gastar meu réu-primário.
Não posso ser presa. Tenho uma criança para criar.
Quarenta minutos depois, saio de lá sem mais nenhum tostão
e com uma nova camada de fita adesiva grudada na porta do carro.
Pego a Zoe na escola e seguimos para o prédio chique em que o
Tristan mora.
Planejava ir ao mercado, mas nem os 20 dólares deu para
salvar. Vamos ter que nos virar com o que sobrou de comida até
quinta-feira. Isso se eu conseguir gorjetas na quarta-feira à noite.
Caso contrário, só voltarei a ter dinheiro na sexta-feira.
— O que vamos jantar, mamãe?
Tento me lembrar do que ainda tem na geladeira. Acho que
ovos, arroz, meia garrafa de leite e um restinho de cereal.
— Ainda não pensei, Bubbles.
Seguro sua mão e atravessamos a avenida, cumprimentando
o senhor Curtis ao passarmos pela portaria.
Ao abrir a porta do apartamento, ouço sons vindo da cozinha
e franzo a testa. Não imaginei que ele estaria em casa no final da
tarde. O homem tem cara de quem trabalha até à noite como todo
CEO metido a besta.
Zoe tira os sapatos, deixa a mochila na chapelaria e corre
para a cozinha.
— Bubbles! — chamo, mas sou ignorada com sucesso.
Imito a educação da minha filha e tiro os sapatos, andando só
de meias até o outro cômodo. Ao entrar, me deparo com a cena dos
dois guardando iogurtes na geladeira, enquanto conversam como se
fossem amigos de longa data.
— Hã... oi?
O homem me olha apenas por um segundo, mas é suficiente
para fazer até os meus ossos se arrepiarem. Logo, desvia sua
atenção de volta para Zoe, que entrega uma caixa de cerejas para
ele guardar na geladeira.
— Passei no mercado — anuncia.
— Notei, mas...
— Vi que não tinha mais quase nada.
O comentário me irrita de tal forma que eu poderia dar um
soco na cara dele.
— Filha, vai tomar um banho e trocar de roupa.
— Mas eu queria ajudar o Tris...
— Agora, Zoe.
Ela arregala os olhos, desacostumada com o tom irritadiço
que usei. Nunca preciso realmente chamar sua atenção e isso
também me causa um desconforto.
Quando a pequena passa ao meu lado, me abaixo e beijo
seu rosto doce várias vezes, murmurando que ela brincou muito e
precisa de um banho para poder comer.
Assim que ficamos a sós, cruzo os braços encarando Tristan
Ryan.
— Qual o problema? — ele pergunta, imitando meu gesto.
— Não sei qual é a sua, mas sou perfeitamente capaz de
cuidar da minha própria filha. Não preciso de...
Migalhas. A palavra quase sai da minha boca, mas então
percebo que estou falando isso enquanto dependo da “caridade”
dele para ter um teto sobre nossas cabeças.
O sentimento de humilhação é tão grande que só posso ficar
grata por ele ter tido a gentileza de não dizer o óbvio.
Tristan continua me encarando por um bom tempo.
— Por que vocês vieram para Vancouver?
A pergunta me pega de surpresa e a minha primeira reação é
querer dizer que não é da conta dele.
Porque não é.
Mas diante da minha situação, talvez seja justo que ele saiba
um pouquinho sobre quem está abrigando em sua casa.
Ando até as sacolas de papelão e retiro as bandejas de frios,
levando até a geladeira para guardar.
Só quando paro ao lado dele é que começo a falar.
— Nós morávamos em Fort McMurray. Não sei se você
conhece, mas é um buraco.
Não estou sendo justa. A cidade fica em um lugar lindo e as
construções são adoráveis. Eu só não me sentia em casa ali.
— Já passei por lá. — É sua resposta, enquanto guarda
algumas das frutas na gaveta do refrigerador.
— Não havia nenhuma perspectiva de crescimento, então
vim para cá para tentar estudar.
Está longe de ser toda a verdade, mas não me sinto disposta
a dar mais informações. Não agora, pelo menos.
Ele se manteve calado por um longo tempo, até terminarmos
de guardar quase tudo. O homem pega a última sacola e tira de
dentro uma caixa de cereal igual ao que eu havia servido para a Zoe
no café da manhã de domingo.
— Espero ter acertado a marca.
Sim. Ele acertou.
— Eu ia ao mercado hoje — digo.
Seu gesto de desdém, como se não fosse nada, me causa
irritação e...
E.
E outra coisa que não sei explicar. É uma sensação estranha
e nova. Como uma gratidão, só que mais forte.
Ele se deu ao trabalho de comprar o cereal que a minha filha
gosta. Além de ter feito panquecas para ela.
O torpor dura bem pouco, pois o sujeito faz questão de abrir
sua boca enorme logo em seguida.
— Trouxe o cereal, mas espero que ela opte pelo iogurte e as
frutas. É mais saudável.
— Como é? — balbucio, mais chocada do que qualquer
coisa.
— Cereal é puro açúcar.
Pisco algumas vezes até que a fúria toma conta das minhas
atitudes.
— Virou nutricionista agora? — pergunto, um tom mais alto
do que o necessário.
— Só estou dizendo que cereal não tem absolutamente
nenhum nutriente e...
— E eu não preciso de conselhos parentais de alguém que
não sabia que o próprio filho tinha uma loja inteira de revista de
safadeza embaixo da cama.
— Meu filho tem 24 anos! — justifica-se, alegando um ótimo
ponto, mas eu não me deixo abater.
— Mas já teve 6 também!
O sujeito esfrega o rosto, claramente irritado, mas consegue
controlar a voz.
— Eu perguntei antes se ela gostava de iogurte e frutas —
defende-se.
— Posso comprar frutas para a minha filha. Ela não precisa
comer a sua comida.
— Minha comida? Eu nem fico em casa, Éden.
— Então por que comprou um mercado inteiro? É louco ou o
quê?
Gesticulo na direção da pilha de sacolas de papelão vazias e
dessa vez realmente o deixo sem palavras.
Meu senhorio coloca no armário a caixa de cereal e uma
pilha de barras de chocolate, que tenho certeza serem da mesma
marca que a Zoe comeu no domingo, então o fecha.
— Você fez compras para a gente? — pergunto, tão baixinho
que minha voz mal soa.
Sem me dirigir um olhar sequer, ele passa por mim em
direção à sala, mas para na porta.
— Eu prometi cuidar de vocês.
É tudo o que diz antes de me deixar sozinha com o queixo
caído e um turbilhão de emoções no peito.
Tristan Ryan
— Que mulher irritante! — exclamo, após entrar no meu
quarto. — Será que ela desconhece a porra da palavra “obrigado”?
Esfrego o rosto, frustrado.
Queria descarregar essa raiva nas teclas, mas não posso ir
para a minha sala de música sem chamar a atenção delas.
Tocar piano é um hobby tão pessoal que eu simplesmente
não quero dividir com mais ninguém. Por isso, mantenho a porta da
sala de música trancada.
Meus amigos costumam dizer que aquele é meu quarto do
“Christian Grey”. Nenhum deles entrou ali. Nem imaginam o que
tenha do lado de dentro da porta que está sempre fechada.
Coloco uma roupa de treino e vou para a academia do prédio,
descontar a raiva correndo 10km e depois puxando um pouco de
ferro.
Quando volto, Zoe está sentada na mesa da sala com alguns
cadernos abertos e o cheiro de comida denuncia que a minha
“inquilina” está se aventurando pela cozinha.
— Dever de casa? — pergunto, bagunçando os cabelos
castanhos da garotinha, que sorri para mim.
— Geometria — conta, soltando um muxoxo.
— Ei! Geometria é legal. Você vai aprender a desenhar
formas e um dia pode construir prédios tão grandes quanto esse.
Adoro isso.
Construir.
Não era meu sonho. Mas foi uma surpresa boa que a vida me
trouxe.
Quando a Melanie ficou grávida, nós dois tínhamos apenas
16 anos. Eu era um moleque apaixonado por música que queria
viver da minha arte.
Só que uma criança custa caro e a minha mãe mal tinha
dinheiro para me sustentar. Comecei a trabalhar na construção civil
como “auxiliar do auxiliar”. Carregava sacos de cimento, fazia o
trabalho mais pesado e vivia com as costas doloridas e as mãos
machucadas.
A grana era pouca, mas pagava as contas.
Guardei meu sonho de viver de música em uma caixinha e
abracei a realidade.
Melanie, por outro lado, nunca aceitou o que precisava ser
feito para conquistar seus objetivos. Queria tudo de mão beijada e
por isso não chegamos a morar juntos nem dois meses depois que
nosso filho nasceu.
Ela odiava o fato de que não tinha o mesmo conforto do que
na casa dos pais e me culpava por tudo.
Optou por voltar a morar com eles e nem seis meses depois,
conheceu um homem rico e se casou com ele.
Eu continuei trabalhando como pedreiro para custear tudo o
que o Jackson precisasse. Aliás, comecei a trabalhar triplicado.
Aceitava todos os extras só para juntar dinheiro.
Naquela época, ainda não sabia o que fazer, mas pretendia ir
para a faculdade. Talvez conseguisse estudar música, afinal.
Aos poucos, percebi que eu era bom em construir coisas.
Tinha noção de espaço e dava ideias que surpreendiam até
os encarregados das obras em que eu trabalhava.
Demorei dois anos depois de terminar o ensino médio para
conseguir dinheiro o suficiente para me matricular na universidade
e, quando o fiz, optei por Engenharia Civil.
Não era meu sonho de infância e adolescência, mas essa
profissão me tornou o homem que eu sou hoje e me deu tudo o que
tenho. Mais do que isso, me fez feliz. Mesmo que eu não tenha
nunca mais voltado a pensar em viver de música.
— Não sou muito boa em construir. Eu gosto de ler... e de...
— Zoe responde, me fazendo voltar das lembranças.
— Do quê? — pergunto, abaixando ao seu lado.
— De música. Eu gosto muito de música.
A confissão sussurrada causa um aperto no meu peito.
Dei todos os instrumentos musicais possíveis para Jackson,
assim que tive dinheiro o bastante para isso, mas meu filho nunca
teve o mesmo amor que eu pela melodia.
— Isso é lindo, Zoe. Você faz aula de música?
Ela nega com a cabeça, parecendo triste por um momento.
Quero perguntar mais a respeito, mas a garotinha muda de
assunto e sorri como se nem se lembrasse do que acabou de me
contar.
— A minha mãe gosta de construir coisas! — conta.
— Ah, é?
— Sim. Ela vai começar a estudar Artequitura.
— Arquitetura? — sugiro.
— Isso!
Hm. Essa é uma informação interessante.
Então ela veio para Vancouver para estudar Arquitetura?
O som de uma tampa de panela caindo no chão ecoa na
cozinha e um cheiro de queimado quase insuportável parece se
espalhar com uma velocidade surpreendente.
— O-ou... — a baixinha murmura, fazendo uma careta. —
Mamãe está cozinhando — sussurra, quase como se me contasse
um segredo.
O que ela não diz é se isso é uma coisa boa ou ruim, mas
pelos barulhos e o cheiro... parece que não.
— Eu vou cuidar disso. Fique aqui. Por segurança.
A garotinha adorável ri baixinho e acena, confirmando que
ficará bem longe do campo de batalha que se tornou a minha
cozinha.
Paro à porta, analisando a cena antes de caminhar até a pia,
onde lavo as minhas mãos, afinal, estava na academia há poucos
minutos.
— Eu tenho tudo sob controle — Éden alega, na defensiva,
mesmo que eu não tenha falado nada.
Viro de lado e a encaro, levantando as sobrancelhas.
— Afaste-se do fogão antes que você exploda o prédio
conosco dentro.
Seus olhos reviram nas órbitas, mas ela obedece, dando um
passo para trás, enquanto murmura algo como “exagerado”.
Espio os ovos que carbonizaram e a panela de arroz que
quase não tinha água.
— Eu cozinho — anuncio.
— Mas...
— Não vou deixar você nos intoxicar com essa gororoba.
Agora pegue...
Passo a relatar o que preciso e ela vai me ajudando a
preparar os legumes e temperar o frango. No fim, sirvo legumes na
manteiga, o arroz, que consegui salvar, e frango grelhado com
batatas.
Enquanto mastigo a comida, me dou conta de que há muito
tempo não me sento à mesa com alguém. Sempre saio para jantar
com o meu filho e os meus amigos, ou com alguma mulher, mas
nunca preparo algo assim.
Já tentei fazê-lo, mas Jackson nunca queria esses programas
caseiros. Ele gostava de poder entrar em qualquer restaurante com
o meu sobrenome.
Porra.
Acho que nunca me sentei para jantar com uma criança e
uma mulher.
A sensação é... diferente. De um jeito bom.
Pelo menos até eu me lembrar do que nunca deveria ter
saído da minha mente: Essa não é a minha mulher. E nem a minha
filha.
Não posso me esquecer novamente.
Adivinha só?
Dava para piorar.
Dava para piorar, e muito!
Queria poder chutar o pneu do meu carro, mas meu joelho
esquerdo continua dolorido, mesmo que eu já esteja tomando as
medicações e usando a joelheira de compressão há cinco dias.
A lata-velha pifou de vez a caminho da faculdade.
Justo no meu primeiro dia de aula!
Pelo menos, consegui deixar a Zoe na escola antes de
acabar a pé no meio da rua.
O carro ao menos teve a decência de me esperar estacionar
antes de dar seu último suspiro. Que, no caso, foi uma nuvem de
fumaça preta vinda do capô.
— Eu disse que o motor estava se despedindo, gata — o
mecânico diz, pelo telefone.
— Mas...
— Hora de desapegar. Deixa ele partir — diz, como se
falasse de um ser vivo prestes a ter suas máquinas de suporte
avançado desligadas.
— Já acabou?
— O quê, gata?
— O velório da porra do carro! — grito, puta da vida.
O mecânico fica mudo do outro lado, provavelmente
assustado pelo meu rompante.
— Foi mal... — murmuro.
— Tudo bem.
— Não é sua culpa.
— Relaxa, gata. É chato mesmo quando ficamos na mão.
Mas não tem o que fazer, seu carro nem pode mais ser chamado
assim. É só uma junção de peças enferrujadas que não funcionam
mais.
— Você está bastante filosófico hoje, né? — digo, emburrada.
— Fumei unzinho essa manhã. Só para relaxar, sabe? Você
deveria tentar, gata.
— Tô de boa — respondo, ainda mais irritada.
Meu mecânico curte uma erva para relaxar. Será que ele
estava chapado quando mexeu no meu motor da última vez?
— Quer que eu mande o guincho? — o sujeito pergunta a
primeira coisa sensata em vários minutos de conversa.
— Quanto custa essa brincadeira?
— Para você? 100 pratas.
— Por acaso você está cobrando mais caro de mim?! —
pergunto, indignada com o preço.
— Claro que não, gata. Os outros clientes pagam “200tinhos”.
— Nossa, mas por esse preço você precisa jogar um
punhado de areia, rezar uma missa e acender até uma vela para o
meu carro, cara!
Ele gargalha como se fosse a piada do século.
Deve ser a erva.
— Você é doidinha, sabia? Igual a uma gaivota voando para
longe...
Com certeza é a erva.
— Valeu — começo a me despedir.
— Vai querer o guincho, gata?
— Não. Vou fazer o funeral aqui na calçada mesmo.
— Beleza. Vou acender uma vela pelo seu carro... — diz,
morrendo de rir.
Vai sim... vai é acender outro cigarro...
Pego todos os meus pertences, dou uma última olhada no
meu fiel escudeiro de tantos anos e sigo a pé para a faculdade
antes que perca a primeira aula de arquitetura.
Talvez esteja tudo uma merda agora, mas sinto que as coisas
vão começar a mudar.
Elas precisam mudar.
Tristan Ryan
— Chefe? — A voz da Jennifer soa pelo alto-falante do
telefone, em cima da minha mesa, me pegando de surpresa.
— Puta que pariu! — xingo, sem apertar a tecla para
respondê-la.
Ainda assim, a pilantra deve ter ouvido, pois uma batida soa
na porta.
— Entra.
— Levou um susto, chefinho?
— Sem-graça — resmungo.
Ela sorri, divertindo-se às minhas custas.
— A Margareth, do RH, fez a pré-seleção dos estagiários.
— Certo, pede para ela trazer a papelada. Vou olhar os
currículos essa tarde.
Jennifer continua em pé, me encarando.
— Então...?
— Você sabe que paga gente qualificada para encontrar os
melhores candidatos, não é?
— Eu sei, Jen. Só... gosto de fazer isso. — Dou de ombros.
Gosto mesmo.
Quando comecei a faculdade, ninguém queria me dar uma
oportunidade. O ex-auxiliar de pedreiro não era bom o bastante para
um estágio em engenharia ou uma vaga em uma multinacional.
Tive que brigar com unhas e dentes para ser alguém.
Então, gosto de olhar os currículos todos os anos, pensando
em quem poderia passar despercebido por um recrutador comum.
É claro que a pessoa precisa ser boa.
Isso não é uma ação voltada para a caridade. Preciso de
pessoas trabalhadoras e que sejam as mais fodas em suas áreas.
Mas muitas vezes esse “ser foda” pode estar escondido atrás
de roupas pouco adequadas e uma experiência duvidosa.
Para mim, o cara que trabalha a semana toda e ainda faz
bicos aos finais de semana para conseguir pagar a faculdade
merece ser tão reconhecido quanto aquele que vem vestindo um
terno de marca e pode se preocupar em ser apenas o melhor amigo,
pois suas contas estão pagas.
Não é mais, nem menos. É igual.
Era o que eu queria quando foi a minha vez. Ser igual. Não
ser desmerecido, desvalorizado. Não ter que trabalhar cinco vezes
mais do que todo mundo ao meu redor.
Minha secretária me observa por mais um instante, então
sorri.
— Vou te trazer um café, chefinho.
Café no meio da tarde? Devo ter feito alguma coisa certa
para merecer tamanha gentileza de uma pessoa tão folgada.
Eu:
Wendy: Figurinhas do caralho.
Crocodilo Tic Tac:
Peter Pan: Fala logo o que aconteceu com o carro, porra!
Eu: Não é o meu carro...
Peter Pan:
Crocodilo Tic Tac:
Peter Pan:
Crocodilo Tic Tac:
Wendy: Fala logo de quem é o carro ou eles não vão
parar com as porras das figurinhas!
Eu: Da Éden...
Peter Pan: Também conhecida como...?
Eu: A mãe da Zoe.
Crocodilo Tic Tac: A Zoe é a garotinha filha da namorada
do Tristan Júnior, né?
Wendy: Ou seja, sua nora?
Mordo as bochechas com força ao pensar sobre o termo
usado pelo meu amigo. A palavra que eu venho evitando há dias.
Desde o hospital. Minha... nora.
Mas é isso que ela é. Não?
Eu: É...
Peter Pan: O que você está escondendo de nós, Ryan?
Suspiro pesado, ciente de que não vou mais conseguir me
esquivar do assunto.
Eu: Elas estão morando aqui em casa.
O grupo cai em um silêncio assustador. Para três fofoqueiros
de merda, eles se assustaram rápido demais. Aproveito para tirar o
curativo de vez e conto a última parte.
Eu: E a Éden é a garçonete daquela noite, no Red Pub.
Penso que quebrei os três com a informação, mas logo
recebo o convite para uma chamada de vídeo em grupo. Killian é o
primeiro a gritar um sonoro “que porra é essa?”, mas os demais não
deixaram por menos.
Ainda a contragosto, conto tudo o que aconteceu nos últimos
oito dias.
Éden Lavinski
Acordo antes do meu horário usual e ainda mais irritada.
Preciso levar a Bubbles para a aula andando novamente e
meu joelho está muito dolorido da caminhada de ontem.
Se tivesse grana sobrando, pagaria um Uber. Mas, nesse
momento, até o transporte público é um luxo que não cabe no meu
orçamento.
Não quando precisaria gastar duas passagens para levá-la,
uma para ir à faculdade, que fica do outro lado da cidade, outra para
voltar para o apartamento ou ir procurar emprego e por fim mais
duas para trazer a Zoe de volta à noite.
É muito dinheiro.
Mesmo que o combustível não seja barato, ainda é mais em
conta do que tudo isso.
Saio do quarto, ouvindo a conversa animada entre Tristan e a
minha filha.
Sinto-me mal todas as vezes que ele faz café da manhã para
ela. Parece que estamos apenas abusando de sua hospitalidade –
por mais insuportável e arrogante que ele seja. E nem tenho a
decência de ser sincera com o homem.
Jax precisa contar logo que não namoramos. Ou poderíamos
inventar um término. Se bem que deve ser mais possível que ele me
expulse de sua casa se seu filho e eu terminarmos... Contar a
verdade pode ser o mais garantido...
Ah, não sei! Não sei de mais nada!
Só tenho certeza de que a minha situação piorou ao invés de
melhorar.
Não tinha onde morar, agora nem tenho um carro velho.
— Bom dia — murmuro, ao entrar na cozinha, dando uma
olhada de soslaio para o homem enorme, encostado no balcão.
— Bom dia, mamãe!
Beijo a cabeça dela.
— Bom dia, Bubbles. Já acabou de comer?
— Sim!
— Então vá escovar os dentes e se trocar, ok?
Ela levanta e sai empolgada, mas não sem antes dizer
obrigada ao Tristan pelo café da manhã.
Será que ela sentirá falta dele quando o sujeito nos chutar
para a sarjeta?
Ele estala o dedo em frente ao meu rosto para chamar a
minha atenção.
— O que foi?! — pergunto, mais rispidamente do que o
previsto.
— Tem ovos mexidos para você, malcriada — aponta a
panela sobre o fogão com uma expressão sombria.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele vira de costas
e sai.
Ótimo. Se ficasse aqui eu teria que pedir desculpas e não
quero.
Sirvo um prato e como mais do que o necessário, ainda pego
um iogurte e uma banana. Sei que é feio comer como se fosse
gulosa, mas Deus sabe que não tenho grana para um lanche na
faculdade...
Depois de me alimentar e lavar a louça, afinal, sou educada
(pelo menos de vez em quando), vou escovar os dentes e pegar a
minha jaqueta.
Ao voltar para a sala, Tristan está parado à porta, enquanto
conversa com a Zoe.
O homem está impecável, vestindo um terno de três peças
que grita luxo. A única coisa destoando é o fato de que ele está
segurando a mochila lilás da minha filha.
Ele ri de algo que ela comenta, mas seu corpo parece notar a
minha chegada, já que seu tronco vira na minha direção
imediatamente.
Tristan olha para baixo e então começa a subir fitando dos
meus Vans[21] até a minha jaqueta de couro. Seu olhar só para de
percorrer meu corpo quando me encara, travando, como sempre,
uma batalha silenciosa.
— Pronta? — pergunta, com a voz um pouco mais rouca do
que de costume.
Observo-o arranhar a garganta e virar para abrir a porta,
como se nada tivesse acontecido.
Já eu, continuo paralisada no lugar, sem conseguir reagir ou
mesmo encontrar forças para arrastar minha perna machucada
pelas ruas de Vancouver.
Só quando ouço o elevador é que saio para o hall e chamo a
atenção dos dois.
— Como assim “pronta”?
— Vou levar vocês.
— Não pre...
— São 8 horas da manhã, Éden. Facilita a porra da minha
vida.
— Não xinga perto da minha filha!
O homem de mais de 1,90m arregala os olhos e murmura um
pedido de desculpas para a garotinha, que dá de ombros como se
não fosse nada de mais.
Lá no fundo, não é.
Eu falo mais palavrão do que um caminhoneiro, mas eu sou
eu. Eu posso. Ele não.
Já estamos no elevador quando me lembro do carro de luxo
em que ele entrou, no dia em que nos conhecemos.
— Não cabe nós três no seu carro! — acuso.
Tristan nem mesmo esboça reação.
Só quando as portas se abrem no subsolo é que me encara.
— Aquele é um dos meus carros — diz, antes de sair guiando
a minha filha pelos ombros em direção a uma SUV[22] preta.
Zoe já estava sentada no banco de trás quando chego perto
deles. Cogito por um instante ir ao lado dela, mas os bons modos
que dona Mary Ann me ensinou me fazem sentar na frente, ao lado
do dono do carro.
— Boa aula, mamãe! — Zoe diz, se enfiando entre os bancos
para me dar um beijo.
— Ei! Eu vou acompanhá-la até a porta, Bubbles! —
argumento, abrindo a porta do veículo.
Ela já não está prestando atenção, no entanto. Sua atenção
está voltada ao motorista da rodada.
— Obrigada, Tris!
— De nada, Pipoquinha.
O fato dele ter dado um apelido para a minha filha me irrita.
Ela é só minha.
Seguro a mão da pequena e só solto ao entregá-la aos
cuidados da professora. Ainda fico à porta uns dois minutos
observando de longe enquanto ela caminha ao lado da “tia”,
tagarelando sem parar.
Quando entra na sala de aula, me movo.
Só que, ao dar um passo para trás, acabo batendo em
alguém, que envolve a minha cintura com as mãos para me manter
no lugar.
O perfume delicioso toma conta do meu olfato e eu
reconheço a voz que soa rouca ao meu ouvido.
— Cuidado, Éden.
Viro para encarar meu “sogro”, ou pelo menos o homem que
pensa ser meu sogro, e suas íris escuras fazem meu corpo se
arrepiar.
— O-obrigada — murmuro, tentando encontrar minha própria
voz. — Por trazer a Zoe — explico, mesmo que ele não tenha
questionado a que me refiro.
— Sempre que precisarem.
A resposta gentil parece não combinar com sua aura de bad
boy. Quer dizer... com a Bubbles ele é sempre gentil. Mas comigo
ainda não tinha tido um rompante assim.
Ao mesmo tempo, me dou conta de que ele ainda está meio
que me abraçando. Suas mãos estão nas minhas costas, já que
virei de frente, e ele não recuou um milímetro sequer.
— Onde você estuda? — pergunta, me fazendo voltar para a
Terra.
— Hã?
— Onde você faz faculdade?
— Universidade de Vancouver... — murmuro, mas logo
arregalo os olhos e dou um passo para trás, saindo de seus braços.
— Não mesmo! — exclamo, tão alto que chego a chamar a atenção
dos pais ao redor.
Tristan apenas levanta uma sobrancelha, em um
questionamento silencioso. Sua expressão, até então suave,
endurece instantaneamente.
— Você não tem obrigação nenhuma de me dar carona até
lá.
— É. Eu sei — responde, seco e vira de costas para mim.
Quando imagino que vá me deixar plantada ali, ele fala por
cima do ombro:
— Vamos.
Cogito argumentar, mas a verdade é que uma carona seria
muito bem-vinda ou vou acabar me atrasando.
Acelero o passo e entro do lado do carona.
— Só dessa vez — informo-o.
Tristan levanta discretamente o canto do lábio direito e não
diz nada. Não sei se isso foi ele concordando comigo ou apenas me
mandando calar a boca. Talvez as duas coisas?
O CEO começa a dirigir e eu me esforço muito para não
observar seus dedos longos agarrarem o volante com tamanha
habilidade que meu cérebro chega a me pregar peças.
Só na metade do caminho é que eu me dou conta de que ele
havia descido do carro em frente à escola, quando poderia ter ficado
ali me esperando.
Seu gesto foi como o de um pai, preocupado em ver se a filha
havia entrado na sala em segurança.
E isso parece tão... certo?
Só que é muito, muito errado.
Tristan Ryan
Tento não pensar na garota que parece ter tomado conta de
todos os meus sentidos.
Começou com o olfato, devido ao maldito perfume de rosas
que está impregnado na minha roupa, no meu carro e até na minha
alma.
Então, foi roubando tudo. Agora, estou sentado na minha
cadeira confortável, no escritório, e ainda consigo sentir sua cintura
em minhas mãos, o que me faz abrir e fechar os dedos
constantemente.
Ainda vejo o pequeno pedaço de pele à mostra no rasgado
de sua calça jeans, bem no meio da coxa, ainda escuto sua voz
rouca e, pior do que tudo, ainda sinto o gosto do desejo.
O desejo que a minha nora me desperta.
O desejo que eu não deveria sentir em hipótese alguma.
— Chefe? — Jennifer chama da porta.
Sua expressão espertinha indica que está me observando há
algum tempo.
— Sim?
— Precisa de algo?
— Não, Jen. Obrigado — murmuro.
— Você tem uma reunião em dez minutos.
— Estou lembrado — minto.
— E o pessoal do RH está perguntando sobre os currículos.
Pisco algumas vezes, me dando conta de que estou há mais
de 40 minutos sentado fazendo porra nenhuma, quando deveria
estar terminando de analisar os currículos.
Aliás, eu deveria ter terminado isso ontem.
O verdadeiro Tristan Ryan teria terminado de analisar todos
os candidatos, escrito um longo e-mail com observações para o RH
e ainda verificado os novos projetos apresentados pelos arquitetos e
engenheiros.
Passaria para jantar com alguma garota da minha agenda e
chegaria em casa perto da meia-noite.
Que porra eu estou fazendo?
— Para de pensar tanto, Tristan.
A voz da minha secretária me puxa de novo das profundezas
da minha mente.
Jennifer é minha amiga, mas raramente me chama pelo
nome. Se o fez, com certeza foi para me forçar a prestar atenção ao
que dizia.
Arranho a garganta.
— Avise ao RH que enviarei as considerações sobre os
candidatos à tarde.
— Sim, senhor.
— A sala de reuniões está preparada?
Seus olhos se reviram, debochando da pergunta óbvia. Isso
me faz rir e finalmente volto ao estado normal de “Tristan Ryan”.
— Só confirmando — provoco.
— Não vou responder como você merece, porque...
— Porque eu assino seus contracheques?
— Também.
Acompanho-a ainda nesse clima leve até a reunião
chatíssima com o setor financeiro.
Passo a hora do almoço me esforçando ao máximo para não
pensar em como a Éden voltará para casa.
“Casa”.
Digo, para a minha casa.
Uma parte de mim, quer dirigir até o outro lado da cidade
para dar carona.
Mas a parte sensata me faz manter a minha bunda na
cadeira do restaurante onde encontraria o presidente de uma das
empresas parceiras da minha para um almoço descontraído. É claro
que falamos de negócios, mas nossa relação amigável permitiu que
não fosse uma refeição chata regada apenas a números.
Quando volto ao meu escritório, sou bombardeado com um
problema na obra de um condomínio na Austrália e passo as
próximas duas horas resolvendo com o departamento jurídico.
Já são 16h quando abro a pasta de couro e pego o chumaço
de currículos que preciso analisar. Margareth separou-os em dois.
Os que ela considerava adequados e os que dispensaria sem nem
pensar duas vezes.
São quase 50 candidatos, sendo que 15 estão na pilha dos
“qualificados”. Passo o olho por todos aqueles e realmente me
parecem bons.
Um rapaz em específico, aluno do quarto ano de engenharia
civil, me chama a atenção. É inteligente o bastante para manter
boas notas, mas o que o faz se destacar aos meus olhos é o fato de
ter escrito sua experiência no setor de construção. Tal qual
aconteceu comigo.
Em geral, os estudantes têm vergonha de precisar trabalhar
pesado e é por isso que o seleciono sem nem pensar duas vezes. É
disso que eu preciso na minha empresa. Gente batalhadora e
corajosa. Futuros donos de corporações tão grandes quanto a TER
Construtora.
Digito o e-mail para o setor de Recursos Humanos,
colocando as minhas considerações, e encosto na cadeira,
pensativo.
Alguma coisa me faz pegar a pilha dos “rejeitados” pela
Margareth e começar a folhear, sem uma razão aparente. Até que
um nome que eu não esperava ler me faz soltar o papel como se
tivesse queimado meus dedos.
Engulo em seco e pego-o novamente só para confirmar:
Éden Lavinski Dela Cruz.
Minha nora se candidatou a uma vaga na minha construtora.
Será que ela sabe que eu sou o dono? Não é possível que
seja tão sonsa a ponto de não saber.
Se bem que estamos falando da garota que queima os ovos
mexidos e coloca a camiseta do avesso quase todos os dias...
Leio o currículo com atenção e, de cara, entendo o motivo de
não ter sequer sido cogitada para a vaga. Ela acabou de começar a
faculdade e nós temos uma política de só contratar estagiários do 3º
ano em diante.
Provavelmente, a Margareth nem continuou a ler depois de
constatar isso. Já eu, curioso em saber mais sobre a mulher que
está morando na minha casa, sigo em frente.
Descubro que tem 23 anos e que fará aniversário daqui a
algumas semanas, seu contato de emergência é uma tal de
Alysson, o que me deixa curioso a respeito de seu pai. Zoe me
contou que a avó faleceu, mas nunca mencionou o avô. Onde ele
estará?
Também acho estranho que não tenha colocado o nome do
Jackson. Se são namorados, não deveria ser ele listado ali?
Contudo, logo me recordo que meu filho está na Europa e um
contato de emergência precisa ser alguém que está por perto.
Ok. Faz sentido.
No caso, o telefone listado ali deveria ser o meu.
Não? Ela mora comigo, afinal...
Balanço a cabeça, jogando esses pensamentos para longe, e
continuo a ler.
Ela não menciona a filha, mas não posso julgá-la por isso.
Sei que muitas empresas não dão as mesmas oportunidades a
mães e pais solos. Isso é ridículo, na minha opinião.
James, meu amigo, perdeu a esposa e cria a Bellinha
sozinho. Isso não faz dele um profissional menos qualificado ou
menos comprometido. Apenas significa que tem uma garotinha linda
dependendo dele para ser alimentada, vestida, cuidada e amada.
Se bem que a Bellinha cuida mais dele do que o contrário.
Nerdzinha esperta do tio...
Puxo meu celular e mando um áudio para o James
informando que é para a Isabella.
— Gatinha, o tio está com saudades de você. Tá brincando
muito com o canguru? Prometo passar para te ver e levo sua pizza
favorita.
Finalizo com um som de beijo.
Logo em seguida, o babaca do meu amigo encaminha um
áudio de poucos segundos no nosso grupo e, quando o escuto,
obviamente é apenas a parte do meu beijo estalado.
Eu: Já foi tomar no cu hoje, James?
Pai da Bellinha: Achei que nossos camaradas mereciam
ouvir o beijo também.
Eu:
Peter Parker: Que porra é essa?
Killian cachorrinho: Eu falei que ele está esquisito...
Peter Parker: Tá distribuindo beijo agora, cuzão? Eu
hein...
Killian cachorrinho: Precisamos falar sobre o fato de que
ele mandou um beijo estalado para o James.
Peter Parker: Ih, verdade! Alguma coisa que vocês
queiram nos contar?
Killian cachorrinho: Não acredito que levei 20 anos para
descobrir que vocês se comem.
Pai da Bellinha: Idiotas.
Eu:
Pai da Bellinha: E você ainda dá corda, T. Puta merda.
Eu:
Eu: Descobriram nosso caso, babe.
Troco o nome dele de “Pai da Bellinha” para “Baby boo”[23]
e mando print.
Peter Parker: Que lindos.
Killian cachorrinho: Quero ser padrinho.
Eu: Vocês dois serão nossos padrinhos e testemunhas
do nosso amor.
Baby boo: Vão todos se foder.
A culpa é do James que foi me zoar... Ele sabe que eu
desconheço limites.
Ainda estou rindo, quando volto a ler o currículo da Éden.
Ela se formou na escola, mas ficou sem estudar por vários
anos.
Isso me faz sentir uma certa identificação com ela. Também
fui pai muito jovem e sem um tostão no bolso. Demorei a entrar na
faculdade por ter que trabalhar demais para juntar dinheiro
suficiente para estudar e continuar a custear todas as necessidades
do meu filho.
Mélanie estava casada com um cara rico naquela época, mas
quem pagava pelas coisas do Jackson era eu. Sempre fiz questão
disso.
Fui eu quem bancou a escola, cursos, seguro de saúde,
alimentação e até os tênis caros que ele destruía em apenas um
mês de uso.
Essa lembrança me faz pensar na Zoe. Onde será que está o
pai da menina?
Tal qual o avô, nenhuma das duas jamais citou a presença de
um pai na vida dela. Ele não ajuda nem ao menos financeiramente?
Uma raiva começa a se espalhar pelo meu peito e sinto meu
pescoço aquecer.
Não que eu goste da ideia de um malandro qualquer levar a
garotinha para um final de semana ou algo do tipo.
Não.
Não. Não. Não.
Abro a conversa com Peter e começo a digitar o nome delas
para pedir que investigue tudo o que puder. O advogado é expert
em desenterrar informações que as pessoas querem manter
escondidas.
Contudo, sei que ele reconheceria o rosto da garçonete, já
que meu amigo nunca se esquece da fisionomia de ninguém. Isso o
faria me bombardear com perguntas que eu ainda não estou
disposto a responder.
Volto a ler e mordo as bochechas para controlar um sorriso
sacana ao reparar que usou o meu endereço, como se morasse
oficialmente na minha cobertura.
Por alguma razão, isso não me incomoda.
Acho que essa é a primeira vez que alguém, além de mim,
preenche o meu endereço em um formulário.
Jackson nunca morou comigo. Apenas passava finais de
semana, feriados e algumas férias. Quando ele queria, é claro.
Na parte da experiência profissional, uma ruga se forma entre
as minhas sobrancelhas. “Experiência em decoração de ambientes
intimistas”.
Mas que caralho isso significa?
“Disposição de mobiliário para comportar grandes multidões”.
É impressão minha ou ela floreou o fato de que precisa
arrumar as mesas e cadeiras do pub onde trabalha?
Que cara de pau...
“Acompanhamento de pequenas reformas e consertos”.
Aposto as pregas do meu cu que isso é um código para
“fiquei sentada olhando o encanador consertar a pia de casa” ou
“fiquei esperando alguém trocar meu chuveiro”.
Parece um monte de lorota rebuscada que ela imaginou que
tornaria seu currículo mais atrativo e isso me faz gargalhar com
vontade.
Ela é a pessoa mais sem-noção que eu conheço. E olha que
eu costumo ser esse amigo... o que corre o risco de ser preso por
alguma insanidade.
Mas a Éden... ela é realmente um caso a ser estudado.
É claro que no nosso mercado de trabalho as pessoas são
bem mais espertas do que isso. Com esse papel, ela vai conseguir
tudo, menos uma oportunidade de trabalho. E talvez ainda acabasse
sendo colocada em alguma lista negativa de contratações a serem
evitadas.
Alguém precisa orientá-la a respeito disso...
Tiro a folha da pilha e guardo no bolso do meu blazer.
— Chefe, você pediu para avisar quando faltasse 15 minutos
para as cinco — Jennifer usa aquele interfone que sempre me faz
saltar na cadeira de susto.
Pisco algumas vezes tentando me lembrar do motivo para ter
pedido algo assim e a imagem da Zoe vem à minha mente.
Ela sai da escola às 17 horas.
Levanto apressado e só paro na mesa da Jen para dizer que
não voltarei mais hoje.
Não posso deixar a Pipoquinha esperando.
Éden Lavinski
Acelero o passo, ignorando o repuxar do meu joelho
esquerdo, que ainda não está 100%. Preciso andar rápido para
chegar a tempo de pegar a Zoe na escola.
Hoje, quando voltava da faculdade de ônibus, a dona daquela
cafeteria onde fiz uma entrevista desagradável me ligou.
Pelo tom de voz, a mulher estava desesperada, precisando
urgentemente de ajuda, já que a pessoa que havia contratado (no
meu lugar, diga-se de passagem!) simplesmente não apareceu para
trabalhar.
A criatura sequer atendia o telefone e a chefe precisou ligar
mais de 20 vezes para que se dignasse a aceitar a chamada e dizer
que não pretendia voltar.
Nos meus sonhos, eu daria uma bela risada na cara da
proprietária do estabelecimento, que optou por não me contratar só
porque eu tenho uma filha.
Mas, como a realidade não é tão doce, apenas respondi que
poderia chegar em 15 minutos.
Cheguei em 13.
Só para provar que consigo cumprir as minhas promessas.
Nosso acordo é de uma semana de experiência, em que
trabalharei das 13 horas as 16h45 e, depois, das 18 as 20h15. Isso
de segunda a sexta-feira. Aos sábados trabalharei das 12h as 18h.
E um domingo a cada quinzena no mesmo horário.
Exatas seis horas de expediente por um salário que é apenas
80% do mínimo estipulado para contratos de oito horas de trabalho.
Tudo bem. É melhor do que nada.
O ruim mesmo seria ter apenas uma hora com a Bubbles nos
dias em que também trabalho no pub, já que na hora em que
costumo chegar em casa, ela já está dormindo.
Também precisarei pedir à senhora Curtis para ficar com ela
por duas horas e meia na segunda e na terça-feira.
Hoje, no entanto, está muito em cima da hora para pedir algo
assim, então levarei a Zoe comigo para o café e a deixarei comendo
algo e fazendo dever de casa em uma das mesas enquanto finalizo
meu turno.
Vai dar certo.
Tem que dar certo.
— Becca! — chamo o nome da professora, tentando fazer o
ar voltar aos meus pulmões.
— Éden, você chegou! Finalmente...
Franzo o cenho diante do comentário.
Sei que já são 17h10. Não consegui sair exatamente às
16h45 porque estava terminando de atender uma mesa. Espero que
isso não se repita diariamente... mas ainda são apenas 10 minutos.
Não é como se eu tivesse abandonado a menina na escola.
A professora se aproxima e sussurra:
— Eu estava ansiosa porque um homem chegou dizendo que
veio buscar a Zoe. Tentei ligar, mas seu telefone está caindo na
caixa postal...
Lembro que havia desligado o telefone ao chegar no café.
Segundo a chefe, são regras da casa. Pois essa é uma regra que
ela terá que mudar a partir de hoje. Nunca mais correrei o risco de
precisarem me ligar da escola e eu não atender.
— O quê?! Quem?! — exclamo, passando por ela sem
esperar resposta e entrando no corredor da escola.
De longe, vejo Zoe sentada no banco ao lado de Tristan, que
conversa com ela como se fossem melhores amigos.
Primeiro, sinto um alívio imediato ao perceber que não é um
maluco qualquer. É só o homem que acredita ser meu sogro.
Em seguida, no entanto, um arrepio estranho percorre o meu
corpo. Não é algo ruim. É apenas... incomum.
Nunca tive alguém que se importasse com o horário da Zoe
na escola. Exceto...
Engulo com dificuldade o bolo que se forma na minha
garganta, ao me lembrar da minha linda mãezinha.
Ela era a minha fortaleza. Meu chão.
Quando se foi, perdi completamente o que me sustentava.
Sigo em frente fazendo o meu melhor pela Zoe, mas tem dias
em que é tão difícil. Dias em que não sei que rumo tomar e só
queria ouvir sua voz macia e gentil do outro lado da linha, me
aconselhando.
Ela era a minha melhor amiga.
E agora é apenas uma lembrança bela e dolorosa.
Bubbles costuma dizer que “é a vovó” todas as vezes que
vemos uma borboleta. Às vezes até parece mesmo, sabe?
Minha filha tem o poder de atrair todas as borboletas quando
brincamos no parque ou andamos na rua. E todas as vezes ela fica
radiante dizendo que a avó veio nos visitar. Queria ter a sabedoria
das crianças.
— Éden? — Becca chama, me fazendo notar que estava
paralisada.
— Sim?
— Nós não íamos deixar o homem entrar na escola, mas a
Zoe o reconheceu e correu até ele.
— Ele queria levá-la embora? — pergunto, agora sentindo
raiva. Como assim ele vem até a escola sem me avisar e tenta
pegar a minha filha? Com que direito? Com autorização de quem?
— Não. Ele disse que você devia estar chegando e perguntou
se poderia esperar junto com a Zoe.
Mordo o lábio, mas poderia ter mordido a língua. Parece que
esse chato de galocha adora me fazer engolir minhas palavras.
Sempre se mostrando superior.
Insuportável.
— Ele é seu namorado?
A pergunta indiscreta me faz encarar a jovem professora com
desprezo.
— É claro que não — respondo, ácida.
— Ah — ela murmura, colocando o cabelo para trás como se
estivesse em uma comédia romântica. É sério isso? — Sabe se ele
é solte...
Corto a tagarelice com um gesto brusco, fazendo-a corar.
Nesse momento, a irritação já havia navegado por todo o
meu corpo e me deixado muito, muito azeda.
— Desculpe, eu...
— Tudo bem, Becca — respondo, me sentindo mal por ter
sido rude. Amenizo o tom de voz. — Eu continuo sendo a única
autorizada a levá-la embora.
— Certo. Pode deixar, Éden.
Viro para ir até eles, mas o peso na consciência me faz olhar
de novo para a professora. Droga. Não queria ser legal com ele,
mas...
— Mas... se ele vier novamente pode deixá-lo fazer
companhia para a Zoe enquanto não chego.
Ela acena e eu sigo na direção da dupla, sem fazer barulho.
Chego a tempo de ouvir parte da conversa.
— E agora eu sei algumas notas no piano! — Bubbles conta.
— Ah, é? Quais?
— Dó... mé...
— Ré — ele a corrige.
— Isso. Ré. E tem o...
— Mi?
— Como você sabe tanto sobre notas musicais?! —
pergunta, desconfiada.
Tristan se inclina na direção dela e diz baixinho:
— Não conta para ninguém?
— Prometo! Quer dizer... só para a mamãe. Não posso
esconder coisas dela.
Ele sorri de lado e acena, concordando.
— Só para a mamãe — confirma, então murmura mais para
si mesmo. — Não que ela queira saber algo sobre mim...
— Conta logo, Tris! — minha filha pede, com os olhos
brilhando.
— Eu aprendi a tocar piano quando tinha a sua idade. E
nunca mais parei. Já pensei em ser músico, mas...
— Não deu certo? — o tom triste na voz da minha filha quase
me faz intervir, mas ele se vira muito bem na resposta.
— Na verdade, encontrei algo com que gosto mais de
trabalhar. E decidi que a música seria uma coisa só minha, um
segredo que só pessoas muito especiais saberiam.
— Sou especial?!
— Com certeza, Pipoquinha.
— A mamãe também?
Arregalo os olhos diante da conversa que perdeu totalmente
o rumo. Antes que pudesse encerrar aquele disparate, ele responde:
— Sim. Ela também.
Pisco algumas vezes, envergonhada e sem-rumo.
Então, dou dois passos para trás e volto a me aproximar,
agora fazendo o máximo de barulho para notarem a minha
presença.
— Mamãe! — Zoe exclama e corre para me abraçar.
Tristan sequer olha na minha direção, mantendo o maxilar
trincado. Será que percebeu que eu estava ouvindo?
Não pode ser. Se soubesse da minha presença, não teria dito
algo assim. Ou ele apenas mentiu para agradar a criança...
Não.
Ele não me parece o tipo que mente.
Tristan Ryan é daqueles sujeitos que dizem a verdade, doa a
quem doer. Tenho certeza disso.
— Vamos? — ele pergunta, finalmente me encarando.
Ainda estou em choque, mas me forço a reagir.
— Na verdade, preciso levar a Zoe comigo para o meu novo
trabalho.
O vinco em sua testa não me passa despercebido.
— Trabalho novo? — pergunta, soando... irritado?
— Me conta, mamãe!
— É em uma cafeteria, não muito longe daqui. Você pode
comer um bolo de chocolate enquanto a mamãe termina o turno.
Que tal?
Ela não parece tão confiante.
— Mas você vai ficar comigo?
— Vou ficar por perto. Você vai ficar em uma mesa e eu
estarei circulando por ali.
— Hmmm...
— Só umas 2 horinhas, Bubbles.
Minha filha continua pensativa, então olha para o Tristan.
— Você vai ficar comigo? — pergunta, na maior cara de pau.
— Zoe! — repreendo-a. — O Tristan tem suas próprias
obrigações — explico, amenizando o tom de voz ao ver que ficou
magoada.
Ao invés de me apoiar, o insuportável nega.
— Não tenho, não.
E pensar que eu o defendi alguns minutos atrás! Ingrato!
— Senhor Ryan...
Seus olhos faíscam quando o chamo dessa forma e ele abre
um sorriso maldoso para mim, quase como um desafio. Então,
transformando-o em um sorriso doce, ele vira para a minha filha.
— Eu poderia te ensinar mais sobre as notas musicais
enquanto esperamos a mamãe. E aquele bolo de chocolate me
pareceu tentador.
— Oba! Vamos, então, mamãe!
Fuzilo-o com o olhar enquanto a pequena me reboca pelo
corredor.
Alguns minutos depois, entro na cafeteria segurando a mão
da minha filha. Noto imediatamente a careta de desgosto da minha
nova chefe, que nem tenta disfarçar.
Ela sabia que eu levaria a Zoe e, ainda assim, estava sendo
uma cretina a respeito.
Sua expressão de quase-nojo só muda quando Tristan entra
e toca o ombro da minha garotinha, apontando para uma mesa nos
fundos do salão.
A mulher, que há poucos segundos parecia odiar a luz da
minha vida, agora nem consegue disfarçar o olhar de cobiça na
direção do meu sogro.
Digo para eles que já os encontro e vou até o depósito da
cafeteria para deixar a minha bolsa e colocar meu avental.
— Éden, quem é esse espetáculo de homem? — A mulher
pergunta sem a menor cerimônia, depois de me seguir até ali.
Muito a contragosto, respondo.
— Ele é meu...
A palavra sogro parece tão errada, que eu travo no meio da
frase.
— Seu...?
Arranho a garganta e decido não dar muitas explicações.
— Ele está conosco — ofereço uma meia-verdade.
Se eu fosse uma rosa, teria murchado imediatamente com a
forma invejosa com que me encarou.
Levanto o queixo e sorrio.
— Como cheguei 15 minutos antes, sairei às 20h — informo
e sigo para a parte da frente, onde volto a anotar pedidos e servir
mesas, mas não sem antes levar duas fatias de bolo de chocolate
para a mesa da minha filha e do meu... sogro.
Tristan Ryan
Minha coluna reclama depois de quase 3 horas sentado
naquela cadeira desconfortável do café em que Éden está
trabalhando.
A minha vontade ao entrar ali e notar a forma como a mulher
atrás do caixa olhava para a Zoe foi pegá-las pela mão e levar
embora. Mas não podia fazer isso, então apenas toquei o ombro da
pequena e guiei até a mesa.
Se essa filha da puta fosse rude com a minha... com a
garotinha... juro que ela encontraria um inimigo pior do que poderia
imaginar.
Também não gostei de como ela falou com a Éden em
algumas ocasiões. Foi rude, para dizer o mínimo. E ainda a fez
trabalhar trinta minutos a mais, porque o local estava cheio.
Acabamos jantando uma massa sem-sal lá mesmo, já que
passaria muito do horário de refeições da Zoe, e chegamos quase
21 horas em casa.
Assim que entramos no apartamento, ambas bocejam e
anunciam que vão tomar banho e descansar.
Eu, por outro lado, tenho tanta coisa para remoer que preciso
urgentemente ir à academia. Para começo de conversa, queria
puxar a Éden pelo braço e dizer que não vai voltar àquele lugar
nunca mais.
Mas só de pensar em dizer algo assim para uma pessoa
marrenta quanto ela, já sei que seria retalhado. Lá no fundo, ela
mesma não deve querer trabalhar no café, mas se eu disser algo é
capaz de continuar só para me irritar.
Troco de roupa rapidamente e desço até a academia tão
agitado e inquieto que nem pareço ter acordado às 5h30.
Estava há vinte minutos correndo na esteira, quando uma
ideia iluminou a minha mente, quase me fazendo tropeçar.
É perfeito!
Se ela for chamada para um emprego melhor, não terá que
continuar naquele lugar.
Por um instante, cogito trazê-la para a TER Construtora, mas
sei que seria uma ideia absolutamente ruim. Nós dois já mal nos
toleramos no dia a dia, imagina se também trabalhássemos no
mesmo lugar?
Preciso falar com o Killian. Meu amigo vai dar um emprego
para ela. Nem que eu pague o salário.
Antes de desligar o celular, troco o contato do meu amigo
para “Killian Key”, fazendo uma anotação mental de cantar a
música do cachorrinho para ele.
Isso depois de pedir um emprego para a Éden.
Pelo menos eu acho que vou fazer isso. Ainda é um assunto
delicado na minha mente.
Ela me odeia.
Já se passaram vários dias desde o fatídico encontro na
academia e Éden continua fazendo todo o esforço possível para não
olhar na minha cara.
Zoe e eu continuamos nossa rotina de assistir o nascer do sol
e preparar o café da manhã e ela até se junta a nós, mas não diz
uma palavra para mim que não seja estritamente necessária. Tal
qual, bom dia e obrigada.
Eu voltei a ser um estranho para ela, só que com o agravante
de que agora ela me odeia mais do que antes.
Também nunca mais aceitou minhas caronas para voltar do
pub, mesmo que eu tenha ido até lá todas as noites e ficado até o
último cliente ir embora.
Em algumas noites, eu a seguia de carro a uma velocidade
ridiculamente baixa enquanto ela caminhava até o prédio. Em
outras, pegava carona com sua amiga.
Por sorte, nunca a vi aceitar carona de nenhuma outra
pessoa. Em especial, homens. Acho que eu teria surtado se a visse
entrar no carro de algum homem.
Na sexta-feira da semana seguinte, decido tirar a cabeça do
meu próprio rabo e tentar arranjar um emprego para ela que lhe
ofereça melhores condições, já que ela não parece disposta a
aceitar a minha ajuda mais.
— Preciso de um favor — digo, assim que Killian atende a
chamada de vídeo.
Sei que ele detesta quando ligo em pleno expediente, mas é
leal o suficiente para nunca rejeitar a chamada.
— Oi, Killian, como vai? — ele imita a minha voz. — Muito
bem e você, meu amigo? — responde, agora usando sua própria
voz. — Estou bem também... — responde, novamente me imitando.
— Já acabou? — corto, irritado.
Ele revira os olhos.
— Pode pedir, cuzão.
— Preciso que você contrate a Éden como estagiária da sua
empresa.
Killian pisca algumas vezes, como se tentasse se orientar,
então arregala os olhos.
— Ela estuda algo na área de tecnologia? Porra, que da hora.
Claro que tenho uma vaga para ela...
— Arquitetura — corrijo.
— Perdão?
— Ela estuda arquitetura.
Meu amigo apoia o celular no que imagino ser seu porta-
canetas e esfrega as têmporas, tentando se acalmar.
— E como caralho eu vou contratar uma estagiária de
arquitetura para a minha empresa de design de games? — Sua voz
vai se elevando a cada palavra.
— Eu pago o salário dela! — argumento e ele volta a segurar
o celular, trazendo-o para perto do rosto.
— Porra, Tristan! Não é questão de dinheiro, arrombado.
Como eu vou contratar uma estagiária de arquitetura se não tem
setor de arquitetura na minha empresa?
Aos poucos, vou entendendo seu ponto de vista.
— Ah, é! Precisa de um profissional que assine o estágio... —
murmuro, mais para mim mesmo do que para ele.
— Exatamente. Por isso...
— Vamos contratar uma arquiteta!
Killian me encara pela tela como se eu tivesse
completamente fora de órbita.
— O quê?
— Vamos contratar uma arquiteta para a sua empresa e...
— Caralho, Tristan! Você está ouvindo o absurdo que está
propondo?
— Eu pago! — volto a argumentar e dessa vez ele realmente
grita.
— Não é questão de dinheiro, filho da puta! É questão de
bom-senso. Primeiro, não faz sentido eu criar um setor de
arquitetura que ficará completamente inutilizado só para dar
emprego a uma estagiária que você pode perfeitamente contratar
para a sua empresa.
— Não posso.
— Por que não?
Desvio o olhar e sinto meu peito agitado.
— Só... não posso.
— Certo, então vou dar o segundo argumento — diz, me
fazendo voltar a encará-lo. — Ela merece um estágio em que vá
aprender a ser a melhor profissional possível para que possa ter
sucesso em sua carreira. Éden não me parece o tipo de garota que
quer ser contratada para uma vaga que nem existe.
Engulo em seco.
— Eu sei, mas...
— Mas nada. Contrate a moça. Agora, tchau. Preciso ir para
uma reunião.
— Killian...
— Tchau, T!
— Não desliga! — reclamo, mas a chamada é desligada
assim mesmo.
Deito a cabeça sobre a mesa do meu escritório e sinto
vontade de bater a testa contra a madeira.
Não chego a fazê-lo, pois a voz de Jennifer soa do telefone,
naquela mágica tecnológica assustadora que ela costuma fazer.
— Chefe.
— Puta merda, Jen! — exclamo, colocando a mão em cima
do coração.
— Acabei de encontrar o arquivo da moça e enviar para o
setor de Recursos Humanos.
— O quê?! Que moça?
— Éden Lavinski Dela Cruz — responde pausadamente,
como se estivesse lendo.
— Eu não pedi isso!
— Nem precisava. O andar inteiro ouviu os gritos do Killian. A
sorte é que só temos você e eu por aqui.
— Jennifer — uso meu tom de voz bravo, que geralmente é
dedicado apenas a pessoas que realmente me irritaram.
— Nem vem, chefe. Você sabe que acabaria chegando a
essa decisão, só provavelmente ficaria andando em círculos por
mais alguns dias até cair na real.
— Eu realmente deveria demiti-la.
— Blá-blá-blá. O RH vai entrar em contato com ela a respeito
da vaga e depois envia o contrato para você assinar...
— Não! — exclamo. — Prefiro que o diretor financeiro assine.
— Mas você gosta de analisar todos os contratos...
— Não quero que ela saiba que eu sou seu chefe. Pelo
menos, não por enquanto.
Minha secretária ri baixinho, mas diz que me ajudará.
Assim espero, pois Killian e ela acabaram de me colocar em
uma situação muito complicada.
Éden Lavinski
Tem dias em que “derrotada” é uma palavra suave demais
para especificar o quão humilhada nos sentimos.
É o meu caso hoje.
Na semana passada, depois de passar duas horas tentando
dormir, fui para a varanda do apartamento e vi quando Tristan saiu
pela sala, parecendo tão transtornado quanto eu.
Segui-o até a academia e praticamente me ofereci para
aplacar sua fúria.
Eu me ofereci para ele.
E ele rejeitou.
Acho que faria sentido ele me rejeitar por pensar que sou
mesmo a namorada do filho dele. Se fosse o caso, eu mesma
esclareceria o mal-entendido (leia: minha mentira) e poderíamos
terminar a noite transando ali naquele tatame.
Só que não foi isso que ele falou.
Ele me rejeitou do jeito mais doloroso possível ao dizer que
não me queria, que não me desejava.
De lá para cá, simplesmente não consigo apagar da minha
mente suas palavras. Elas ecoam na minha cabeça quando tento
dormir, me distraem quando começo a estudar e me acompanham
enquanto trabalho.
Ele não me quer.
Então, dizer que estou na merda é pouco. Mas hoje pareço
ter chegado ao fundo do poço.
Perdi hora de manhã e não deu tempo de tomar café da
manhã. Não me arrumei. Não consegui render nada na faculdade. E
tudo piorou quando cheguei à cafeteria para o meu turno.
Minha chefe, que já é uma grossa, parece estar com raiva de
mim, não apenas do resto do mundo como de costume.
— Você precisa ser mais rápida.
— Você ainda não aprendeu a usar essa máquina?
— Você vai ter que limpar essa sujeira.
— Você não sabe fazer nada direito, garota?
Essas foram apenas algumas das frases que pontuaram
minha tarde toda.
Tudo piorou, quando fui ao banheiro e ouvi meu telefone
tocando. Acabei atendendo a chamada, mas ela praticamente
arrancou o aparelho das minhas mãos, gritando que não posso ficar
vadiando no celular em horário de serviço.
Não descobri sequer quem havia me ligado, já que a maluca
guardou meu smartphone em seu bolso e disse que só me
entregaria na hora do meu intervalo.
Isso tinha passado dos limites.
Ainda assim, engoli minha raiva e trabalhei por mais uma
hora até dar conta de atender todas as pessoas presentes no local.
Às 16h45, estendi a mão para ela sem dizer uma palavra.
— O que foi, Lavinski? A mesa...
— Meu celular.
— Você está sendo solicitada na mesa...
— Não — respondo.
— Não? — repete, incrédula.
— Não. Não vou atender mesa alguma. São 16h45, horário
do meu intervalo. Então você vai enfiar a mão no bolso da sua
calça, entregar meu celular com a educação que você não tem,
porque se danificá-lo ou me machucar eu vou chamar a polícia,
então vai abrir o caixa, me pagar as diárias trabalhadas e aí eu vou
sair por aquela porta e nunca mais voltar.
— Sua...
Estreito os olhos, como se a desafiasse a me xingar.
— Tristan! — Éden exclama ao me ver entrar em casa. —
Onde você estava?
— No escritório... — murmuro. — A Zoe...
— Dormiu — diz. — Você quer conversar sobre...?
— Sobre você ter esquecido de me contar a verdade?
— O quê? — balbucia.
— Jackson me disse que vocês não namoravam mais
quando nos conhecemos. E eu entendo a mentira. De verdade,
Éden. Só não entendo por que você escolheria continuar mentindo
depois que nós dois ficamos juntos.
Ela pisca algumas vezes, parecendo atordoada.
— Nossa, foi há tanto tempo que eu... esqueci.
— Esqueceu — repito.
— É... — murmura, então me encara. — Desculpa, Tristan.
Eu esqueci. Aconteceu tanta coisa...
— O que mais você está escondendo?
— O quê?!
Me arrependo da pergunta antes mesmo das palavras
terminarem de sair pela minha boca.
Caralho, eu pareci um cretino agora.
— Desculpa, amor... — murmuro, mas ela não me deixa tocá-
la.
— Eu sei que errei ao contar, mas você tinha agido como um
babaca na noite anterior, mais ou menos como está fazendo agora,
e eu tive medo de acabar na rua com a minha filha!
A imagem das minhas garotas passando necessidade é um
soco tão forte no meu estômago que a minha garganta chega a
fechar.
— Eu...
— Eu sei que deveria ter contado depois, mas eu fiquei com
medo de você ficar com raiva e então com medo de te magoar e em
algum momento esqueci! — continua se justificando, falando tão
rápido que é difícil acompanhar.
— Amor...
— Então se você quer ficar com raiva, tudo bem, mas não
vem me acusar de estar escondendo algo que eu não estou!
A fúria em seus olhos só me faz querer abraçá-la. Tento, mas
ela recua de novo.
— Não me toca agora, por favor.
— Desculpa, Ma Flamme — murmuro, me sentindo um
cretino da pior espécie.
Ela me analisa, com a expressão séria, e então acena
discretamente.
— Desculpo, mas vou dormir no quarto do Jackson hoje.
— Não! — declaro.
— Boa noite, Tristan.
— Éden... — chamo.
— Você vai acordar a Zoe! — diz, entredentes, entrando no
quarto do meu filho.
A ideia de tê-la dormindo na cama dele mais uma vez,
mesmo que sozinha, me deixa em pânico, mas não tem como
insistir sem correr o risco de acordar a pequena, que está dormindo
no quarto ao lado, então me arrasto para tomar uma ducha fria.
Éden Lavinski
Brigar com o Tristan quando nós dois fingíamos nos odiar, era
divertido.
Mas brigar com o homem que eu amo não tem o mesmo
sabor.
Na verdade, o gosto que sinto na boca é amargo e triste.
Como se tudo parecesse errado.
Eu sei que alguma coisa mexeu muito com ele de manhã e
essa conversa com o Jackson parece ter piorado as coisas. Isso
não justifica ele ter praticamente me acusado de estar mentindo
sobre outras coisas, no entanto.
Não é esse o tipo de confiança que eu quero que nós
tenhamos um no outro.
Tento ligar algumas vezes para o Jax, mas seu telefone cai
direto na caixa postal. Queria saber exatamente o que eles falaram.
Imagino que o Tristan tenha contado sobre nós e talvez a reação do
filho não tenha sido a melhor.
Depois de duas horas tentando dormir, meu celular vibra com
uma mensagem e eu imagino que seja o Tristan, mas quando pego
o aparelho sou surpreendida por uma mensagem do Aiden
agradecendo por “tê-lo deixado passar um tempo com a gente”.
De certa forma, essa ideia de que eu abri a minha vida e da
Zoe para o genitor da minha filha funciona como um tapa na minha
cara.
Será que foi isso que o Tristan pensou também?
É por isso que eu saio da cama onde estou completamente
desacostumada a dormir e vou até o quarto dele.
Meu namorado não está deitado, nem dormindo. Ele está
sentado no meio da cama, abraçado aos joelhos e parecendo
miserável. Quando me vê, morde a parte interna das bochechas e
puxa o ar com força pelas narinas.
Fecho a porta e subo no colchão, sentando bem no meio de
suas pernas com as costas apoiadas em seu peito.
Ele me abraça e afunda o nariz na curva do meu pescoço,
enquanto sussurra mais um pedido de desculpa.
— Eu amo você — digo, baixinho.
— E eu amo você, Ma Flamme.
[1]
Bolhinhas
[2]
A National Hockey League é uma organização profissional esportiva composta
por times de hóquei no gelo dos Estados Unidos e do Canadá, onde também é conhecida
pelo nome francês Ligue Nationale de Hockey.
[3]
O Pint nada mais é do que um tradicional copo de cerveja muito comum em
países Europeus e nos Estados Unidos. Por ser servido em copo barateia o custo da
garrafa. Na Inglaterra, por exemplo, existe uma lei que obriga os Pints a terem 568ml, ou
20oz. A média do tamanho na maioria dos outros países é meio litro.
[4]
Apartamento pequeno que tem quarto, sala e cozinha em um só ambiente e um
banheiro separado.
[5]
Macallan é uma marca de Whisky.
[6]
Expressão bastante usada para se referir a Whisky com gelo
[7]
Dólares canadenses
[8]
Carro esportivo que é um dos mais carros, velozes e exclusivos do mundo
[9]
Meus amigos em francês
[10]
Passageiro
[11]
C$ 4 milhões (dólares canadenses) é o equivalente a aproximadamente R$ 15
milhões.
[12]
Bolhinhas
[13]
Referência ao livro “50 tons de cinza”
[14]
Segundo a mitologia grega, Morphéus era um deus filho de Hipnos, o deus do
sono. Quando uma pessoa augura: vá para os braços de Morfeu, sugere "ter um sono
tranquilo, com bons sonhos", como se estivesse envolvido por este deus.
[15]
Bolhinhas
[16]
Relógio digital
[17]
Mangás são histórias em quadrinhos desenhadas no “estilo japonês”.
[18]
Criança arrogante
[19]
Velhote insuportável
[20]
dólares canadenses
[21]
Marca de tênis
[22]
Sport Utility Vehicle - ou seja, veículo utilitário esportivo. As SUVs costumam
ter porte avantajado, além de interior espaçoso e possibilidade de trafegar dentro e fora da
cidade.
[23]
Baby boo é uma forma carinhosa de se referir ao namorado ou namorada.
Significa “bonito”.
[24]
Vancouver Canucks, time de hóquei de Vancouver, British Columbia.
[25]
Na minha vida, eu te amo mais.
[26]
Bolinhas
[27]
É um equipamento de segurança que funciona como uma cadeirinha para
crianças. Na prática, parece uma almofada que eleva a altura das crianças no banco do
carro, deixando-as com os cintos bem posicionados.
[28]
Joalheria sofisticada e famosa
[29]
Expressão que remete ao ato de vomitar
[30]
Desenho da Disney
[31]
Areia betuminosa. A região de Wood Byuffalo, em Alberta, é conhecida pelo
comércio desse produto.
[32]
Minha chama
[33]
Minha chama
[34]
Bolinhas
[35]
Vancouver Canucks, time de hóquei de Vancouver, British Columbia.