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Copyright © 2023 de Carina Dutra Ferreira dos Reis

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uso de citações breves com o intuito de divulgação do livro. Tal
baseia-se na Lei Nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, sobre
Direitos Autorais.
Primeira edição, 2023
Livro 2, Série Amores Proibidos
Autora: Carina Reis
Publicação independente
Autoria: Carina Reis
Betagem: Monalisa Forcato e @leiturasdaariel
Revisão: Raquel Moreno
Edição: Carina Reis
Diagramação: Carina Reis
Capa: HB Design
Ilustrações capítulos e construção: @olhosdtinta
Ilustração pai e filha: @calorethorn_arts
Ilustração banheiro: @meryartt
Ilustração sacada: @ly.arts_
Ilustração +18: @carlosmiguelartes
Ficha técnica
Sumário
Sinopse
Nota da autora
Playlist
Dedicatória
Prólogo
Éden Lavinski
Capítulo 1
Éden Lavinski
Capítulo 2
Tristan Ryan
Capítulo 3
Éden Lavinski
Capítulo 4
Tristan Ryan
Capítulo 5
Éden Lavinski
Capítulo 6
Tristan Ryan
Capítulo 7
Éden Lavinski
Capítulo 8
Tristan Ryan
Capítulo 9
Éden Lavisnki
Capítulo 10
Tristan Ryan
Capítulo 11
Éden Lavinski
Capítulo 12
Tristan Ryan
Capítulo 13
Éden Lavinski
Capítulo 14
Tristan Ryan
Capítulo 15
Éden Lavinski
Capítulo 16
Tristan Ryan
Capítulo 17
Éden Lavinski
Capítulo 18
Tristan Ryan
Capítulo 19
Éden Lavinski
Capítulo 20
Tristan Ryan
Capítulo 21
Éden Lavinski
Capítulo 22
Tristan Ryan
Capítulo 23
Éden Lavinski
Capítulo 24
Éden Lavinski
Capítulo 25
Tristan Ryan
Éden Lavinski
Capítulo 26
Tristan Ryan
Capítulo 27
Tristan Ryan
Éden Lavinski
Capítulo 28
Tristan Ryan
Éden Lavinski
Capítulo 29
Tristan Ryan
Capítulo 30
Éden Lavinski
Capítulo 31
Tristan Ryan
Capítulo 32
Éden Lavinski
Capítulo 33
Tristan Ryan
Éden Lavinski
Capítulo 34
Tristan Ryan
Capítulo 35
Éden Lavinski
Capítulo 36
Tristan Ryan
Capítulo 37
Éden Lavinski
Capítulo 38
Tristan Ryan
Capítulo 39
Tristan Ryan
Éden Lavinski
Capítulo 40
Tristan Ryan
Capítulo 41
Tristan Ryan
Éden Lavinski
Capítulo 42
Éden Lavinski
Tristan Ryan
Capítulo 43
Éden Lavinski
Tristan Ryan
Capítulo 44
Éden Lavinski
Tristan Ryan
Capítulo 45
Éden Lavinski
Capítulo 46
Tristan Ryan
Capítulo 47
Éden Lavinski
Capítulo 48
Tristan Ryan
Epílogo
Zoe Lavinski Ryan
Agradecimentos
 
 
Às vezes, a coisa mais certa para a sua vida pode parecer,
em um primeiro momento, a mais errada.
 
Tristan Ryan não quer se apaixonar. CEO de uma construtora
multinacional, ele desistiu de relacionamentos depois de entender
que simplesmente não é bom em assuntos relacionados ao amor.
 
Éden é uma mãe solo, que tem a vida virada do avesso
depois que se depara com uma situação, digamos, inusitada,
levando-a a buscar socorro com seu ex-namorado.
 
Uma mentira.
Um mal-entendido.
 
E Éden agora dividirá a casa com a pessoa mais improvável:
Seu ex-sogro, um homem arrogante e mulherengo, que não
pretendia ter sua vida - até então organizada e centrada -
bagunçada por ninguém. Ainda mais por ela. A única pessoa de
quem Tristan parece realmente gostar é Zoe, a menininha de seis
anos, que ele trata como se fosse parte da família desde o primeiro
momento, mesmo que não haja nenhum parentesco.
 
A atração latente entre os dois adultos, que não param de
brigar, cresce dia após dia.
O que fazer quando o proibido torna-se tão gostoso que viver
com o inimigo é apenas um mero detalhe?
E se o imoral for apenas um ponto de vista?
 
Classificação: +18
Esse é o segundo livro da série Amores Proibidos, porém
todos podem ser lidos de forma independente.
 
Gatilho: Luto
Ei, você!
Fico muito feliz que tenha chegado aqui e espero que a
história do Tristan e da Éden faça seu coração ficar quentinho.
Esse é o segundo livro da Série Amores Proibidos. O
primeiro, é “Acordo com o inimigo”, da autora Jéssica Luiz, que
entregou uma comédia romântica divertida e gostosinha, daquelas
capazes de tirar qualquer pessoa da ressaca literária.
Embora os livros não sejam uma continuação e,
consequentemente, possam ser lidos de forma independente,
recomendo que conheça também a história do Killian e da Maju
(livro 1).
Depois do meu, ainda serão publicados dois livros da série,
um deles escrito por Camila Cocenza e o outro por Maya Passos.
Sobre “Vivendo com o inimigo”, garanto que é uma comédia
romântica com muitos momentos fofos, quentes e divertidos. Porém,
como essa é a minha marca pessoal, tem ali uma pitadinha (bem
pequenininha dessa vez!) de drama.
Avisos importantes (não pule!): Esse livro segue o Novo
Acordo Ortográfico, porém conta com gírias, palavras estrangeiras
(devidamente sinalizadas e traduzidas) e palavrões. Muitos
palavrões.
Sei que nem todo mundo gosta de palavras de baixo calão,
porém cada personagem decide o tom que vai utilizar em sua
história. E, nessa, tanto o Tristan, quanto a Éden são desbocados.
Também preciso alertar de que há um gatilho de luto e, como
não é nenhuma surpresa, já que aparece logo no prólogo, vou
adiantar: A mãe da Éden morre. Não há muitos detalhes e o tema foi
abordado com leveza, mas existe um gatilho e ele precisa ser
informado.
No mais, espero que você se apaixone pelo Tristan, a Éden e
a Zoe tanto quanto eu me apaixonei a cada página.
Não esqueça de ouvir a playlist, pois ela diz muito sobre a
história deles.
Um beijo,
Cá R.
@autoracarinareis
“A todos que ainda não entenderam que quem me protege
nunca dorme.”
Éden Lavinski
 
Quando saí desta Vila, não imaginei que voltaria assim...
ainda mais despedaçada.
Deixei minha filha sob os cuidados da minha mãe e fui me
arriscar na cidade grande, em Vancouver, para tentar dar um futuro
melhor a nós três.
Foi há apenas um ano, mas parece ter sido em outra vida.
Não me entenda mal. Já levei rasteiras o suficiente para
saber como as coisas podem ser ruins.
Mas isso? Não. Esse golpe foi muito mais forte do que eu
estava preparada para suportar.
Seguro a mão da Zoe e mordo os lábios com tanta força que
quase arranco sangue. Minha pequena fortaleza nem parece ter
apenas 6 anos. Ela me fita com os grandes olhos, que se parecem
tanto com os meus, e suspira.
— Vai ficar tudo bem, mamãe — sussurra, se inclinando para
tocar meu rosto.
Porra.
Será?
Será que vai mesmo?
— Vai sim, Bubbles[1]. Nós vamos ficar bem — minto, me
inclinando para beijar a ponta do nariz dela.
Volto a andar em direção à primeira fileira de bancos da
paróquia local, mesmo que eu desejasse tudo, menos ficar em
destaque diante dos olhos julgadores da nossa comunidade.
Assim que nos sentamos, o retrato da mulher que me apoiou
em cada segundo desde que eu vim ao mundo me encara de um
jeito doloroso.
O padre diz palavras aparentemente bonitas, mas que eu
sequer consigo distinguir.
Minha mãezinha se foi há 7 dias. A mulher que me deu à luz,
que segurou a minha mão. Aquela que foi uma rocha enquanto
vivíamos uma das piores fases das nossas vidas.
Depois da missa de sétimo dia, atendo os vizinhos que
querem me prestar suas condolências, embora mantenham seus
olhares pouco simpáticos.
Ninguém aqui gosta de mim. Eu sou a garota que teve uma
filha aos 17 anos e manchou a imagem impecável da cidadezinha.
Mas todos amavam a mamãe.
Ela era como o sol e brilhava das formas mais bonitas que
poderiam existir.
Foi por ela que vieram e foi por ela que recebi cada um deles
e os tratei com toda a gentileza.
Quando a última pessoa se despede, Zoe puxa a minha mão
para chamar a minha atenção.
— Podemos visitar a vovó antes de ir para casa?
Sei que ela se refere ao túmulo, que fica no cemitério atrás
da igreja. Aceno, concordando, e caminhamos juntas até a placa de
mármore onde leio os dizeres escritos em uma letra cursiva bonita.
Mary Ann Lavinski, adorada mãe e avó.
Parece tão pouco para definir tudo o que representou.
Quando tudo estava um caos, ela foi a rocha e me ajudou a ficar de
pé. Juntas, conseguimos nos refazer. Juntas, criamos a Zoe. Juntas,
fomos felizes.
E agora eu terei que seguir sem ela.
Não sei como farei, mas pela Zoe vou conseguir.
 
 
 
 
 
 
Éden Lavinski
 
Sete semanas depois
 
— Ally, pode assumir aquela mesa por mim? — pergunto, me
apoiando no balcão ao lado da ruiva lindíssima.
Nós nos conhecemos aqui no Red Pub, mas a amizade
acabou crescendo e hoje eu diria que é a minha única amiga na
cidade.
— Quem pisou no seu calo? — retruca, rindo baixinho.
Faço uma careta, que só a faz se divertir mais às minhas
custas.
Não explico que na mesa em questão existem dois caras
grandões com agasalhos do Vancouver Canucks, time de hóquei da
NHL[2], que estão mesmo me tirando do sério.
Antes que um pint[3] de cerveja acabasse caindo “sem querer”
na cabeça de um deles, achei melhor pedir ajuda.
Não preciso explicar, pois sei que ela vai me ajudar mesmo
assim. Ally é dessas pessoas de risada fácil e alma pacífica, o que
faz dela a favorita dos clientes e também quem ganha as melhores
gorjetas.
Pensando de uma forma prática, talvez o fato de que ela tem
um dos corpos mais perfeitamente curvilíneos que eu já vi também
auxilie na questão das gorjetas. Mas independentemente de sua
beleza única, ela é uma boa pessoa. Simples assim.
— Desembucha.
Bufo, revirando os olhos.
— Ok, ok. Eu cuido dos grandalhões, mas não vou dar conta
de tudo. Você vai ter que atender aquela mesa de quatro — diz,
apontando um grupo que aparentemente acabou de chegar.
Levanto uma sobrancelha, enquanto ela demora pouco mais
de três segundos para se dar conta do que acabou de dizer.
— Meu Deus! Não foi isso o que eu quis dizer! — se justifica,
se juntando a mim em uma gargalhada.
— Eu entendi, doida. Deixa que eu me viro com o quarteto ali
— comento. — E prometo que farei isso de pé e não “de quatro”! —
grito, quando ela já está a alguns passos de distância.
A ruivinha levanta uma das mãos e mostra o dedo do meio
para mim, sem nem se virar.
Balanço a cabeça, ainda rindo, pego um novo bloco para
anotar pedidos, já que o meu estava nas últimas, e sigo em direção
aos meus novos clientes.
De longe consigo reparar no grupo sem ser notada. São
quatro homens muito bem-apessoados, na casa dos “30 e tantos/40
e poucos”.
Quando começo a me aproximar, preciso imediatamente
corrigir meus pensamentos. Eu disse bem-apessoados? Nada disso.
Eles são gatos mesmo. Bem gatos mesmo.
É provável que eles tenham idade suficiente para que um
deles pudesse ser meu pai, mas quem liga?
O da ponta, um moreno um pouco mais alto que os demais,
com uma barba que o deixa com ar misterioso e olhos tão escuros
que quase parecem negros é o que mais me chama a atenção.
O intrigante é que da mesma forma que sua aparência
desperta todo o meu corpo e chega a me deixar levemente
ofegante, algo em sua risada ou seu comportamento me deixa
imediatamente irritada.
Talvez seja apenas o jeito como mantém um braço apoiado
no encosto do banco ao lado como se fosse o dono de tudo ou
como sua cabeça cai alguns poucos centímetros para trás a cada
vez que gargalha. Ou pode ser uma mistura de tudo.
O que sei é que ele me atrai e me repele na mesmíssima
medida, o que me deixa… intrigada.
Faz tempo que um homem não chama mesmo a minha
atenção. O último com quem aceitei ter alguma coisa mais séria foi
o Jax e deu no que deu…
Pensando bem, esse homem até lembra o meu ex-namorado.
Balanço a cabeça imediatamente, me dando conta de que estou
imaginando coisas só porque o babaca se redimiu há algumas
semanas e salvou a minha pele.
Aliás, ele fez mais do que isso. Ele salvou a pele da minha
filha, mesmo sem ter nenhuma obrigação de fazer algo assim.
Depois da morte inesperada da minha mãe, fiquei um mês
em Fort McMurray e até tentei tocar sua pequena floricultura, mas a
verdade é que ninguém ali queria Éden Lavinski por perto e eu nem
mesmo tinha talento para o negócio. Não entendo nada de flores,
não sei manter uma planta viva e detesto lidar com o público, o que
chega a ser irônico considerando o fato de que eu sirvo mesas em
um Pub de alto padrão e lido com babacas diariamente.
Mas uma coisa é você derrubar umas gotas de cerveja no
colo de clientes folgados que estão bêbados demais para perceber
seu olhar de desdém. Outra é lidar com vizinhas fofoqueiras, muito
atentas a cada errinho que você venha a cometer.
Meu temperamento explosivo me fez perder alguns clientes
logo na primeira semana quando não tive paciência de explicar que
não poderia pintar as rosas de azul e nem aceitava vender fiado.
Deus sabe que a ficha de “clientes” que nunca voltaram para
pagar o que deviam para a mamãe é maior do que a dos que
pagaram ao longo dos anos. Não sei até hoje como ela conseguiu
sustentar mais da metade das despesas da casa durante seis anos
com o que fazia vendendo flores.
O plano, quando vim para Vancouver há um ano, era
trabalhar, juntar dinheiro, começar a faculdade e então trazer as
duas para cá.
Contudo, com o negócio que herdei da minha mãe indo de
mal a pior e gastando mais do que fazia de lucro semanalmente,
optei por acelerar as coisas.
Juntei nossos poucos pertences e trouxe a Zoe para cá,
mesmo estando com um problema temporário (ou não tão
temporário assim) de falta de moradia unido à falta de dinheiro, que
quase me levou ao desespero completo.
Mas desgraça pouca é bobagem, não é? Ainda mais se
tratando da minha vida.
A kitnet[4] (apelidada por mim de “muquifo”) que eu alugava já
não estava mais disponível e absolutamente nenhum aluguel cabia
no meu orçamento.
Tinha investido quase todas as minhas economias pagando o
primeiro ano da faculdade de Arquitetura, que eu iniciaria em
agosto, e o que sobrou foi gasto com o funeral, enterro e para cobrir
as despesas que a floricultura não estava dando conta.
Naquele momento, minha conta bancária estava negativa e
só tinha umas 400 pratas em dinheiro guardadas no bolso. Foi aí
que o Jax, com quem saí durante seis meses no ano passado,
entrou em cena.
Ele, que está morando a milhares de quilômetros, foi a única
pessoa capaz de me estender a mão. Não que Ally não tivesse
oferecido para dividir seu quarto na república em que mora conosco.
Mas uma casa com três caras que passam o dia chapados não é
exatamente um lugar para onde posso levar minha filha de seis
anos.
Meu ex me deixou ficar na casa de seu pai, que só voltaria de
viagem no final do ano. Eram seis meses de aluguel grátis e eu
aceitei sem nem pestanejar.
Alguém esbarra no meu ombro, me fazendo voltar para a
realidade. Pisco os olhos algumas vezes e o juízo volta a me
abençoar. Olho mais uma vez para o moreno misterioso e chacoalho
a cabeça, rindo baixinho da minha loucura momentânea. É, esse
cara não se parece em nada com o Jax.
— Bem-vindos ao Red Pub. O que posso trazer para os
senhores? 
Olho rosto por rosto, atenta às reações de cada um.
O primeiro tem um pequeno sorriso educado, mas que deixa
claro que não tem nenhuma intenção por trás. O segundo é mais
sério e analisa o cardápio. O terceiro me observa como se tentasse
descobrir se tenho uma ficha criminal ou algum segredo obscuro.
O último é justamente o barbudo com cara de cafajeste.
Quando nossos olhares se cruzam, uma eletricidade parece
percorrer o meu corpo, despertando todas as terminações nervosas.
De repente, seu cheiro, forte e amadeirado, se torna mais intenso,
confundindo meu olfato.
Um sorriso sacana começa a brotar no canto direito de sua
boca bem-desenhada e em apenas um segundo ele já está me
devorando com os olhos.
— Consigo pensar em algo que eu adoraria que trouxesse
para mim, meu bem.
É no apelido meloso que recobro meu bom-senso.
Que nojo.
Encaro-o de volta, me inclinando em sua direção. O sorriso
do canalha só aumenta conforme me aproximo.
— Hmmm, deixa eu adivinhar — murmuro, fazendo charme.
— Você tem cara de quem gosta de…
— De…? — incentiva, parecendo uma criança na hora de
abrir os presentes.
Mordo meu lábio inferior antes de responder, fazendo a
encenação completa.
— De quem gosta de cerveja barata, cigarro de baixa
qualidade e companhias que não costumam escolher muito —
respondo pontuando bem cada palavra.
O completo choque em sua expressão só não é mais
impagável do que a reação de seus amigos, que gargalham e batem
nas costas dele dizendo que mereceu aquele fora.
— Falei que suas cantadas estavam cada dia piores, T! —
um deles diz, enxugando as lágrimas do canto dos olhos, de tanto
rir.
— Pareceu um cafetão que usa terno florido. Lamentável.
— Ei! Sem apelar, porra! Tudo bem me chamar de cafetão,
mas não precisa ofender meus ternos.
Reviro tanto os olhos que quase fico tonta.
— Quatro Macallans[5] 18 anos — o mais sério, que havia
analisado o cardápio antes, responde pelos amigos.
Não me passa despercebido que ele não pediu a versão
envelhecida por 12 anos da mesma marca, que já é uma das
bebidas mais caras da casa, mas sim o 18 anos que custa cinco ou
seis vezes o preço.
Aquelas quatro doses sozinhas equivalem a tudo o que eu
faço de gorjeta em uma semana ralando igual a uma condenada.
Talvez duas!
Ainda assim, coloco a minha melhor expressão blasé e sorrio
de forma polida.
— On the rocks[6]? — pergunto, já que a maioria dos clientes
que passam por aqui preferem a bebida com gelo.
— Deus, não — meu novo desafeto comenta, me fazendo
voltar a olhar para os olhos negros e intensos, que parecem brilhar
de forma zombeteira. — Puros, meu bem — acrescenta, piscando
para mim. — Gostamos de apreciar o sabor de tudo que bebemos.
Tudo mesmo.
Filho da mãe babaca.
— Patético até para você, Ryan — o mais simpático
repreende o amigo.
Ué? O nome dele não era “Tqualquer coisa”? Por que o outro
o chamou de “T”?
— Só isso por ora. Obrigado — o cara sério que havia feito o
pedido me dispensa e eu quase solto um assovio de alívio.
Enquanto caminho para buscar os pedidos, só consigo
pensar em uma coisa: Aparentemente fiz uma péssima troca ao
pedir para a Ally assumir a mesa dos grandalhões fãs de hóquei.
Aposto que eu conseguiria dar conta deles sem nem piscar. Já esse
tal de Ryan vai ser um pé no saco.

Depois de passar o resto da noite à beira de um ataque dos


nervos e só não ter derrubado a merda do Macallan 18 anos no colo
do babaca porque uma garrafa dele custaria o meu rim, me escondo
no corredor que leva aos banheiros para xingar em paz por um
instante.
Juro que vou socar a cara desse sujeito.
Ele não tirou os olhos de mim um instante sequer, nem
perdeu uma maldita oportunidade de me irritar.
— Babaca-cretino-cafajeste-de-merda! — xingo em uma
longa sequência sem nem respirar entre as palavras.
Piorando ainda mais a minha irritação, quem é que vira o
corredor bem nessa hora?
A porra do Ryan encosta o ombro na parede e sorri de lado,
me medindo dos pés à cabeça.
— Algo me diz que todos esses elogios são para mim.
— Conseguiu chegar a essa conclusão sozinho? Estou
chocada.
Ele sorri ainda mais.
— Gosto de batalhas interessantes, garota dos olhos bonitos.
Seu queixo empinado e o olhar de quem não leva desaforo para
casa despertaram o pior em mim… e o melhor também. — Pisca.
— Preferia despertar seu silêncio — retruco, levantando bem
a cabeça.
Nunca vou abaixar a cabeça para ninguém. Muito menos
para um sujeito que se acha por aparentemente ser bem-sucedido.
— Precisa de mais alguma coisa, senhor? — enfatizo o
pronome de tratamento, deixando clara a diferença de idade entre
nós.
— Pode me chamar de…
— Velho? — interrompo-o com petulância.
É esticar muito a realidade chamar um homem como esse de
velho, mas ele não precisa de mim para inflar seu ego um pouco
mais. Por pouco não cabe nesse pub.
A expressão de horror em seu rosto bonito deixa claro que
atingi seu calcanhar de Aquiles. É ou não um clichê ambulante? Um
homem rico e com complexo de Deus que não consegue ouvir umas
verdades.
— Outch! — murmura, após vários segundos, apoiando a
mão em cima do coração. — Essa doeu, garota dos olhos bonitos.
Não deveria ter deixado você conhecer meus amigos logo no
primeiro encontro. Aprendeu rápido demais a atingir meu ponto
fraco.
— Encontro? — debocho, gargalhando. — Eu poderia dizer
que “só nos seus sonhos”, mas prefiro que você não pense em mim
novamente. Aliás, poderia esquecer que tive o desprazer de atender
sua mesa hoje.
Viro para me afastar, mas ele faz menção de tocar meu
braço. Imediatamente, reajo com fúria.
— Não me toque! — praticamente cuspo as palavras.
O tal Ryan levanta as mãos, como se estivesse se rendendo.
— Não pretendia tocá-la, muito menos machucá-la. Na
verdade, ia me desculpar. Hoje foi um dia… complicado… e acabei
sendo mais ácido e cafajeste do que de costume.
Levanto uma sobrancelha irônica, enquanto ele levanta os
ombros, parecendo até um pouco constrangido.
— Achei que você também estava se divertindo com as
provocações. Foi mal…
— Guarde suas desculpas para quem se importa — finalizo,
me afastando a passos rápidos.
Babaca, cretino, arrogante.
Quando retorno para fechar a conta deles, o otário já havia
ido embora. Só um dos amigos ainda estava na mesa, segurando a
carteira de couro com o dinheiro dentro.
Ele não diz nada, mas me encara antes de entregar o
pagamento, como se me analisasse mais uma vez. Que gente
estranha.
Entrego a carteira para a caixa e alguns minutos depois, ela
me chama para me dar C$ 200[7] que deixaram de gorjeta. Por
alguma razão, a caixinha obscenamente alta me deixa ainda mais
irritada.
Não estou à venda e ele vai descobrir isso rapidinho.
Tristan Ryan
 
Desligo o motor assim que estaciono em uma das minhas
vagas na garagem. Giro a cabeça de um lado para o outro tentando
aliviar a tensão dos meus ombros.
O dia já está prestes a amanhecer e só agora cheguei em
casa. Há menos de 10 horas meu avião estava pousando em
Vancouver, depois de passar quase seis meses na Austrália. Dei um
pulo rapidamente no escritório e fui encontrar meus amigos no Red
Pub.
A lembrança da noite no bar me faz estalar a língua em uma
mistura de diversão e irritabilidade.
A garota dos olhos bonitos era mesmo uma coisinha irritante
e abusada.
Eu a vi logo que entramos naquele lugar. Estava com uma
expressão enfezada e cogitei intervir quando notei que dois sujeitos
grandões a estavam tirando do sério.
Não que ela precisasse. Não sei o que disse a eles, mas a
dupla pareceu murchar instantaneamente.
Quando nos sentamos, torci para que ela fosse nos atender,
mas outra jovem passou ao nosso lado e disse que já voltaria para
pegar nossos pedidos. Era uma moça mais ou menos da idade da
esquentadinha, com cabelos ruivos e um rosto delicado que
combinava com o corpo atraente.
Mas alguma coisa na pequena furiosa havia colocado fogo
dentro do meu cérebro e nem a mulher mais bonita do mundo
conseguiria me distrair da missão de tê-la.
Tristan Ryan pega o que quer, onde quer e como quer.
Mas não foi sempre assim, é claro. No passado...
Chacoalho a cabeça, jogando a lembrança para escanteio.
Nada que tenha acontecido mais de 20 anos atrás importa. Lutei
muito para ser quem sou hoje e ter o que tenho.
Não é como se alguma mulher tivesse obrigação de ficar
comigo, mas digamos que não estou acostumado a ser rejeitado.
Pelo contrário.
Gosto em especial das mais jovens, descomplicadas e que
desejam algumas noites de sexo intenso e despudorado até
seguirem em frente.
Eu não sou o cara com quem vão se casar e ter filhos, mas
posso ser aquele que proporcionará a melhor foda da vida delas. Se
tem uma coisa que eu faço direito é comer uma mulher.
Voltando às lembranças...
A ruiva encostou no balcão e logo a morena esperta parou ao
lado dela. As duas conversaram por um instante e olharam para a
mesa onde os folgados estavam.
Meu sexto sentido me disse que ela iria pedir para a amiga
atendê-los. Com um pouco de sorte, trocariam de lugar e a garota
dos olhos bonitos cairia lindamente no meu colo.
Sorte é algo que eu costumo ter. Principalmente, quando
envolve levar uma linda mulher para a minha cama.
Quando a outra apontou com a cabeça na direção da nossa
mesa, tive certeza de que o destino sorriu para mim mais uma vez.
Tristan Ryan consegue o que quer, senhores. Sempre.
— Vai ficar secando a garçonete gostosa a noite toda ou vai
conversar com a gente, cuzão? — Peter perguntou, estalando o
dedo em frente à minha cara.
— Sabem como é, T nunca resiste a uma novinha — Killian
comentou, rindo. A princípio ele até acertou, mas o complemento
não poderia estar mais errado: — Ainda mais se for uma ruiva como
aquela.
— Na verdade, estava... — comecei a explicar que meu
interesse era a outra, mas me interrompi imediatamente.
Não.
Podiam ser meus amigos mais antigos e a quem eu confiaria
a minha vida, a senha da minha conta bancária e até a chave do
meu Aston Martin[8], mas quando o assunto era mulher... não
mesmo.
Peter foderia qualquer criatura acima de 18 anos que
passasse em sua frente, Killian não ficaria muito atrás. James era
um pouco mais comportado, mas sempre acabava conquistando a
mais gata da noite por causa da aura de pai solo sério e misterioso.
— Sabem como funciona com o pai aqui, mes amis[9]! —
disse, abrindo o sorriso de cafajeste que é a minha marca
registrada, e fingindo que a ruiva era quem eu queria desde o início.
James e Killian balançaram a cabeça, rindo, mas Peter me
observava como um gavião.
Ele sempre teve esse jeito estranho de conseguir descobrir
qualquer coisa só com o olhar. Deve vir a calhar, sendo um dos
advogados mais requisitados (e caros!) de Vancouver, quiçá do
Canadá.
— Será que demoram a nos atender? — James questionou,
me fazendo olhar ao redor para procurar a garota bravinha. Ela não
estava mais ao lado do balcão. — Seria bom a gente começar logo
a beber, porque a babá só vai poder ficar até meia-noite com a
Bellinha.
A menção à filha dele me fez parar a busca pela garçonete
que mexeu com a minha cabeça e virar em sua direção com um
sorriso genuíno.
Adoro aquela “porcariazinha” de cinco anos que é mais
inteligente do que nós quatro juntos. E olha que essa era uma mesa
com homens muito bem-sucedidos, que construíram suas carreiras
do absoluto nada.
— Como ela está? Avisa que o tio Tris trouxe um presente
muito louco para ela.
— Puta merda! — James soltou o ar, enquanto Peter
assoviava e Killian gargalhava.
— Qual é? É claro que eu traria um presente para ela da
Austrália.
— É algo que uma garota de cinco anos possa usar? —
Killian questionou, com a sobrancelha erguida. — Não quero jogar o
lance da motocicleta na sua cara, mas...
— Ela disse que gostava de motocicletas! — me defendi. —
E faltam só 13 anos para ela poder pilotar...
— Sabe qual dia a minha filha vai pilotar aquela coisa? —
James perguntou, apontando um dedo na minha cara. — Nunca.
— Sem graça!
— Você trouxe um canguru para ela? — Peter disparou,
acertando como sempre. Sério. Esse cara lia mentes.
— Ela disse que nunca tinha visto um...
— Onde eu vou enfiar um canguru, porra?! Eu moro em um
apartamento!
— E o controle de animais...
— Ei! Não falei que trouxe um canguru de verdade. Não sou
tão maluco assim.
Os três suspiraram aliviados, enquanto eu ria por dentro
imaginando a cara deles quando vissem o canguru que mesmo
sendo de pelúcia, tem tamanho realista. Aqueles bichos têm quase
3 metros de altura. Não é à toa que o nome científico do canguru
cinza oriental é macropus giganteus.
E como eu sabia disso? Obviamente foi a Bellinha quem me
contou quando ficou sabendo que eu passaria uma temporada na
Austrália.
Alguém se aproximou enquanto estou distraído. A primeira
coisa que me atingiu foi o aroma floral suave, porém perceptível.
Seria cheiro de rosas? Não tinha certeza.
Em seguida, a voz rouca fez um choque percorrer cada célula
do meu corpo e me senti atordoado como se tivesse sido
nocauteado.
— Bem-vindos ao Red Pub. O que posso trazer para os
senhores? 
Virei imediatamente para encará-la, mas a verdade é que
mesmo antes de ver seu rosto, já sabia que era ela. A garota de
queixo erguido e postura afrontosa.
Para minha completa irritação, ela demorou a olhar para mim.
Primeiro, seus olhos percorreram toda a mesa, se demorando em
cada um dos meus três amigos. Pela primeira vez na vida, senti
uma necessidade primitiva de marcar território e deixar claro que ela
não era para o bico de nenhum deles.
Esse sentimento me assustou pra valer.
Nunca me importei o suficiente para demandar uma mulher.
Aliás, nunca nem liguei de dividi-las também.
Ao perceber o quanto estava afetado, reagi ativando todas as
minhas defesas. Ou seja, passei a agir como o filho da puta mais
cretino que se pode imaginar.
Quando ela me fitou, por fim, meu instinto de proteção me fez
tentar repeli-la ao máximo.
— Consigo pensar em algo que eu adoraria que trouxesse
para mim, meu bem — provoquei, aproveitando a deixa para fazer
algo que já queria mesmo, medi-la de cima a baixo, analisando cada
curva.
Já sabia que isso a irritaria. Vi como reagiu aos dois outros
clientes que pareceram dar em cima dela. Achei que a faria recuar e
pedir para trocar de mesa novamente, mas quando ela retornou com
as bebidas e fez questão de derramar um pouco do meu Whisky na
minha calça de alfaiataria, senti o lobo despertar dentro de mim.
Dali em diante, as provocações só escalaram.
De fato, achei que ela estava se divertindo tanto quanto eu,
mas quando a vi sair bufando em direção aos banheiros, uma parte
de mim me fez querer ir atrás para me certificar de que estava bem.
Peter segurou meu pulso no mesmo segundo em que fiquei
de pé.
— Tem certeza disso? — perguntou, me encarando com
severidade. — Ela não parece estar achando graça.
Droga. Ele também percebeu, então é um fato que passei
dos limites.
Isso é demais até para um babaca arrogante como eu.
— Acho que devo desculpas a ela — respondi, com
sinceridade.
Meu amigo me observou por um instante, com um brilho
curioso no olhar, como se tivesse escutado muito mais do que eu
disse, então me soltou.
Segui a coisinha estressada até o corredor que antecedia aos
sanitários bem a tempo de ouvi-la soltar um monte de palavrões
seguidos.
— Babaca-cretino-cafajeste-de-merda!
Sorri para mim mesmo, imaginando que eu fosse o alvo de
sua fúria. Virei a esquina do corredor e encostei ao seu lado.
— Algo me diz que todos esses elogios são para mim.
— Conseguiu chegar a essa conclusão sozinho? Estou
chocada.
O tom glacial me fez sorrir ainda mais. Droga. Havia ido lá
para me desculpar e já estava com vontade de provocá-la um pouco
mais.
— Gosto de batalhas interessantes, garota dos olhos bonitos
— admito.
É claro que ela retrucou alegando que preferia obter apenas
o meu silêncio. Mas não é minha culpa se sua atitude belicosa só
me instigava a continuar o entrave.
Pior para mim, pois ela não teve medo de usar armamento
pesado. Me chamou de velho sem o menor receio em furar meu
pobre ego inflado.
— Outch!
Insisti na brincadeira, alegando que não deveria tê-la deixado
conhecer meus amigos no nosso primeiro encontro e finalmente
obtive uma migalha do que eu buscava. Aliás, só naquele momento
eu percebi que realmente buscava algo.
Buscava ver que se importava.
O jeito como ela debochou da possibilidade de sair comigo foi
uma reação tão visceral que só poderia ter sido despertada se a
ideia já tivesse passado por sua cabeça em algum momento.
Foi nesse pequeno vacilo que eu tive certeza de que havia
uma minúscula ruptura em sua armadura. Mas, também foi nesse
momento que me dei conta de algo muito mais grave e que me
assustou por completo.
O Tristan de sempre estaria ali imaginando como usar aquela
brecha para convencê-la a entrar na primeira cabine de banheiro
para uma trepada rápida e casual.
O Tristan de sempre a apoiaria na pia e enfiaria seu pau tão
fundo na boceta da garota que precisaria tapar sua boca ou apertar
seu lindo pescoço para impedir que seus gemidos chamassem
muito a atenção de quem passasse por ali.
Só que não era nisso que estava pensando.
Bem... nisso também. De fato, meu pau já estava rijo desde o
momento em que coloquei os olhos nela, algumas horas atrás.
Mas não pensava apenas nisso.
Naquele instante, me peguei imaginando uma porção de
momentos em que nós dois poderíamos travar disputas infindáveis e
ridículas, um tentando ser mais folgado do que o outro.
Discutiríamos e foderíamos até nos saciar e então voltaríamos a
brigar só porque alguém deixou o copo na pia sem lavar.
E isso me parecia... confortavelmente instigante.
O Tristan Ryan de 20 anos adoraria ter vivido uma cena
assim, mas o de 40, não. Não lidava com confortável. Lidava
apenas com a segunda parte: Instigante.
Quanto mais instigante, perigoso, quente, intenso, sujo e
fugaz[10], melhor.
Sempre fugaz. Nunca duradouro.
Enquanto debatia internamente comigo mesmo, ela
começava a se afastar e em um ímpeto estiquei a mão para tocá-la,
me arrependendo logo a seguir.
A garota ficou puta da vida e com razão. Eu podia ser um
cafajeste, mas tocar alguém que não me deu permissão era
completamente inaceitável. Tentei me desculpar, tanto por isso
quanto pelas brincadeiras de mais cedo, mas ela só cuspiu mais
desaforos.
Fiquei irritado com a grosseria, mas talvez eu tivesse mesmo
merecido.
Tudo bem.
Eu nunca mais a veria e isso não passaria de uma noite idiota
regada a Macallan 18 anos e decisões erradas.
Já havia me despedido dos caras e estava quase chegando
ao meu carro, no estacionamento, quando a fúria no corpo de uma
mulher de 20 e poucos anos e 1,60m de altura surgiu à minha frente
e bateu a mão com força no capô do meu Aston Martin preto
novinho.
— Ei! Cuidado com ele! — resmunguei, acariciando meu
brinquedo que custou a pequena fortuna de C$ 4 milhões[11].
— Não quero a porra do seu dinheiro, seu babaca!
— O quê?! — perguntei, sem entender do que estava
falando.
Quando levantou a mão, deixando duas notas de C$ 100 à
mostra, entendi tudo. Peter ficou para trás, pois a conta era dele
dessa vez, e devia ter deixado uma gorjeta extra devido às minhas
gracinhas.
Porra, a intenção podia ter sido boa, mas o otário me fodeu.
Eu mesmo havia cogitado deixar uma gorjeta para ela, mas depois
de conversar por 3 minutos no corredor do banheiro, tive a certeza
de que isso só a irritaria.
E estava certo.
A mulher estava puta da vida e com uma certa razão, apesar
do excesso de arrogância.
Até lembrava a minha versão jovem e sem um puto no bolso,
mas com uma prepotência que não permitia que ninguém me
estendesse a mão.
— Escuta, eu não...
— Vai se foder!
A atitude começou a me irritar. Fazia muitos anos que
ninguém falava assim comigo. Talvez décadas.
Quando trabalhava como pedreiro para bancar a faculdade
de engenharia civil, acabei cruzando com um punhado de patrões
folgados que achavam que podiam tratar mal as pessoas só por
terem dinheiro, principalmente se fossem seus empregados.
Ao construir minha empresa, decidi que nunca trataria um
funcionário assim. E vinha honrando com a minha palavra com
minha construtora multinacional, mesmo que já tivesse alcançado o
patamar de ter alguns milhares de contratados ao redor do mundo.
Não seria uma fedelha que mal abandonou as fraldas a falar
assim comigo... Não mesmo.
— Escuta aqui... — comecei, mas ela levantou um dedo me
interrompendo.
— Se precisa pagar para alguém dar para você ou mesmo
tolerá-lo é porque você é um fracassado.
— Como é? — questionei, agora no mesmo tom elevado que
a garota usava.
— Acha que pode comprar as pessoas? Comprar uma
boceta?
— Como se eu quisesse comer uma criança mimada como
você...!
— Vai se...!
Dei um passo para a frente, encarando-a com raiva, mas fiz
questão de manter distância o suficiente para que não se sentisse
ameaçada ou acuada. Nunca tocaria em um fio de cabelo de uma
mulher.
— Não ouse repetir isso — praticamente cuspi as palavras.
— Não ouse se aproximar de mim novamente.
— Não se preocupe. Não tem o menor risco disso acontecer!
— disse, abrindo os braços e soltando uma gargalhada sem uma
gota de humor.
— Ótimo!
Quando ela se afastou, pisando duro, entrei no meu carro,
mais puto do que me lembrava de ter ficado e soquei o volante com
tanta força que a buzina disparou.
Então, fiquei ainda mais irritado por ter agredido o veículo
que tive que ficar quase um ano na fila de espera para conseguir
comprar, já que apenas 150 foram fabricados em todo o mundo.
Acelerei pelas ruas de Vancouver, mas não fui para casa.
Precisava queimar um pouco da energia que estava me sufocando
de ódio. E só havia um lugar onde poderia encontrar uma
companhia de última hora que estivesse disposta a foder até meus
ânimos se acalmarem.
— Ligar para a Ava — ordenei ao computador de bordo, que
imediatamente cumpriu com a demanda.
Trinta minutos depois, estava na casa da socialite que fez
questão de atender a porta completamente nua. Ótimo.
Agora, horas depois e com o sol quase prestes a espantar a
escuridão, finalmente chego à minha casa. Transei até minhas
pernas ficarem sem forças, então descansei e aí a comi de novo.
Ainda assim, a garota abusada dos olhos bonitos continuava
ocupando a minha mente, me distraindo e me consumindo. Até
mesmo durante o sexo com a Ava, era o rosto dela que eu visualizei
algumas vezes. A imaginei com sua língua afiada, falando
desaforos, enquanto eu socava tão fundo em sua boceta que a fazia
engasgar com as palavras.
Entro no elevador do prédio e digito a senha que libera o
acesso à cobertura, enfurecido comigo mesmo. As portas de metal
se abrem diretamente na chapelaria do meu apartamento, onde tiro
os sapatos e penduro meu terno, além de optar por abandonar a
mala de viagem ali mesmo.
Depois de um bom banho e algumas horas de sono eu me
preocuparei com as roupas que preciso pedir para a lavanderia
buscar.
Ao olhar ao redor da sala, imagino ter visto uma silhueta
pequena na varanda, mas só pode ter sido imaginação. Moro
sozinho há quase 20 anos, exceto por algumas visitas esporádicas
do meu filho, mas o moleque está na Europa.
— Preciso mesmo dormir... — murmuro, rumando para a
cozinha, onde encho um copo com água gelada e o bebo até a
última gota.
Me espreguiço, esticando a coluna e abandono a louça usada
na pia antes de voltar à sala. E é aí que a minha alma praticamente
sai de dentro do meu corpo.
Tem a porra de um fantasma de uma garotinha no caralho da
minha sacada!
Esfrego o rosto vigorosamente, imaginando que esteja
ficando louco, mas, quando volto a abrir os olhos, a garotinha
continua lá, com os cotovelos apoiados na mureta e olhando o céu
com muito interesse. Os cabelos castanhos estão trançados e ela
veste um pijama estampado de ursinhos coloridos.
Dou um passo em direção à ela, para tentar descobrir quem é
e como entrou aqui, mas um som vindo do final do corredor me
chama mais a atenção do que a mini-humana.
Estalo o pescoço, me preparando para socar a cara de quem
quer que seja o maldito invasor e ando sem fazer barulhos pelo meu
piso de madeira escolhido a dedo até parar em frente à porta da
minha suíte, que está entreaberta.
Empurro com a ponta dos dedos, ainda tentando não fazer
barulho algum e olho ao redor antes de entrar. Não há ninguém
aqui, o que significa que foi mesmo um fantasma ou que...
Nesse momento, alguém sai de dentro do banheiro e dá de
cara comigo.
Tudo acontece rápido demais.
Em um instante, ela está gritando. Em seguida, se joga
contra mim e tenta me agredir de todas as formas, inclusive me
chamando de pervertido e perseguidor.
Por fim, consigo jogá-la na cama e imobilizá-la com o peso do
meu corpo. Só então confirmo o que havia suspeitado quando a vi
rapidamente antes de me atacar.
— Me solta, seu pervertido! — ela grita.
  — Que porra você está fazendo na minha casa? —
pergunto, entredentes, encarando a garçonete do Red Pub.
A garota que chamou a minha atenção pelo olhar intenso,
mas conquistou meu ódio pela língua atrevida estava embaixo do
meu corpo, vestindo um pijama minúsculo após, aparentemente, ter
dormido na minha cama.
— Mamãe? — A voz doce vem da porta do quarto, chamando
tanto a minha atenção quanto a dela.
Olho a menina que deve ter mais ou menos a idade da
Bellinha e percebo que está assustada. Solto a mulher que parece
jovem demais para ter uma filha e dou alguns passos para trás.
— Tudo bem, criança. Não vou machucá-las — digo, em um
tom contido. Então, olho para a mulher que agora estava sentada na
cama, aparentemente se recompondo. — Que diabos está
acontecendo aqui?
Éden Lavinski
 
5 horas atrás
 
— Obrigada, senhora Curtis — cumprimento a esposa do
porteiro do prédio, que tem feito um bico como babá da Zoe nas
noites em que trabalho no Pub.
— De nada, querida...
Vejo-a hesitar, como se quisesse dizer algo, mas logo recua,
aparentemente envergonhada. Só então me dou conta de que já é
praticamente domingo, já que passa da meia-noite, e eu havia
prometido pagá-la todas as sextas-feiras.
— Senhora Curtis! — chamo, um pouco mais alto do que
deveria, então disparo um olhar para o sofá da sala, onde a minha
filha se remexe, mas continua a dormir.
— Sim, querida? — a mulher de meia-idade vira na minha
direção, com um sorriso tímido.
— Pode esperar um minuto? Vou pegar seu pagamento.
— Ah, nossa. Eu nem me lembrei disso — mente. — Claro,
espero sim, querida.
Finjo acreditar e viro de costas, apoiando a mochila na
enorme mesa de vidro. Uso meu corpo para cobrir a minha carteira,
enquanto conto as poucas notas torcendo para ter o suficiente.
Imagina que vergonha se não pudesse pagá-la?
Agradeço sussurrando o nome da minha mãezinha quando
vejo que tenho o bastante para pagá-la e comprar um pouco de
comida. Não vai ser suficiente para a semana toda, mas na quarta-
feira tenho outro turno no Red Pub e devo conseguir algumas
gorjetas e na próxima sexta-feira recebo o meu salário.
— Obrigada por cuidar dela, senhora Curtis — digo,
entregando o dinheiro.
— Ah, mas o que é isso? Sua filha é um doce, querida. Agora
vou para casa, antes que o senhor Curtis pense que resolvi sair
para uma noitada — graceja, me fazendo rir baixinho.
Eles são fofos.
A princípio, o marido não queria que ela aceitasse o trabalho,
já que ele sempre proveu tudo o que precisavam. Só que ela havia
colocado na cabeça que queria fazer uma viagem especial para
comemorar 30 anos de casados. Seria a lua de mel que nunca
tiveram quando jovens, já que agora seus filhos estão criados e até
casados.
Com jeitinho, ela o convenceu a deixá-la cuidar da Zoe nas
noites de quarta, quinta, sexta e sábado para que eu pudesse
trabalhar no bar.
Não era muito dinheiro, mas era o que eu podia pagar e
como eles moram no apartamento de serviço, aqui mesmo no
prédio, não havia custo de deslocamento, nem os riscos de andar
sozinha pelas ruas da cidade à noite.
A verdade é que entre pagá-la, comprar comida em uma
cidade tão cara quanto Vancouver, colocar gasolina na lata-velha
que eu dirijo e manter o seguro-saúde da Zoe em dia, o bico no bar
mal cobre todas as despesas. Se não fossem as gorjetas, com
certeza não seria suficiente.
Preciso urgentemente arranjar um outro emprego, porém tem
que ser meio-período, já que as aulas na faculdade começarão em
menos de 10 dias e eu estudarei no período matutino.
Teria que conseguir um emprego que fosse das 13h às 17h,
então correr para buscar a Bubbles[12] na escola e nas noites de Red
Pub sair novamente às 18h30.
Vai dar certo, penso.
Tem que dar certo.
Noto que já estava na metade da sala com as botas no tapete
impecável e quase posso ouvir as longas recomendações do Jax
sobre “as coisas do pai dele”.
“Não derrube nada no chão, pelo amor de Deus. É de
madeira maciça e ele vai me matar se algo acontecer. Cuidado com
a ducha de LED dos banheiros. Não toque na coleção de Whisky...”
Blá-blá-blá. Não faça isso, nem faça aquilo.
O cara deve ser um pé no saco, se até o filho dele tem medo
de estragar alguma coisa em sua preciosa cobertura. Acho curioso
que tenha me deixado ficar aqui, mesmo com tantas regras.
Cheguei a perguntar se estava mesmo tudo bem algumas vezes,
mas Jax garantiu que sim... e não é como se eu pudesse escolher,
não é mesmo?
Seria isso ou algum abrigo para moradores em situação de
rua. Com o que eu ganho, pagar aluguel está completamente fora
de cogitação. Agora que tenho que pagar alguém para olhar a Zoe,
nem mesmo a Kitnet onde pretendia morar caberia no nosso
orçamento.
Falando no dono da casa, nunca fomos apresentados e eu
nem posso reclamar, já que o meu lance com o filho dele não durou
nem seis meses. Jax ainda fugiu para a Europa como se tivesse
visto uma assombração quando soube que eu tinha uma filha de
seis anos.
Quando me ofereceu o apartamento, alegando que seu pai
só voltaria para casa em dezembro, ligou diretamente para o
porteiro e garantiu que eu recebesse as chaves, a senha do
elevador chique e tudo o que precisava.
Na primeira semana, tentei enviar dinheiro para ele para
custear as contas básicas, como água, energia elétrica, internet e
gás, mas meu ex apenas gargalhou na minha cara. Segundo ele,
seu pai não precisava de nada disso. Todas as contas estavam
sendo pagas, mesmo com ele fora.
Deve ser bom demais não precisar se preocupar com
dinheiro, não é?
Independente disso, não podia ficar abusando da
hospitalidade do pobre homem, então eu estava anotando no meu
caderninho um valor que me parecia justo para as despesas de
cada semana passada aqui. Quando a minha situação melhorasse,
devolveria cada centavo ao pai do Jax e se ele não quisesse, que
doasse para a caridade ou algo do tipo.
Volto até a chapelaria e tiro o meu calçado, deixando no
armário ao lado da porta. Depois, vou até a sala e paro em frente ao
sofá onde a minha bebê está toda esparramada.
Zoe estava acostumada a dormir cedo e na própria cama,
mas sempre fez questão de fazer a avó contar uma história já com
ela deitada.
Sem a minha mãe, parece que ficou um buraco na rotina
dela. Como se faltasse algo.
E falta mesmo. Só que não há nada que possamos fazer a
respeito…
Por isso, ela tem se negado a dormir sozinha. Quando estou
trabalhando, ela faz companhia para a senhora Curtis na sala até
pegar no sono. E quando estou em casa, pede para ficar na minha
cama.
Aliás, na cama do pai do Jax.
Sim, eu sei que é absurdo invadir a casa de alguém dessa
forma e ainda ser folgada a ponto de ocupar o quarto principal.
A princípio, nos acomodamos no quarto destinado ao meu ex,
mas quando a Zoe encontrou um pacote de camisinhas, lubrificante
e por pouco não viu o consolo que estava mais para o fundo da
gaveta, comecei a desconfiar de que havia cometido um erro. Sumi
com tudo aquilo, mas logo ela desenterrou uma caixa com animes
um tanto quanto… explícitos, por assim dizer.
Havia outros dois cômodos, além da suíte principal, mas um
deles fora mobiliado como escritório, apenas com estantes de livros,
decorações caras e uma bancada de trabalho com a cadeira mais
confortável em que meu traseiro jamais tocou.
O outro quarto estava trancado. Procurei a chave por todos
os cantos, mas não consegui encontrar e Jax também não soube
explicar o porquê. Seria um quartinho vermelho como o do Christian
Grey[13] ou algo do tipo?
Achei que chamar um chaveiro para invadir um espaço que
claramente o dono queria manter fora do alcance das pessoas seria
mais abusivo do que usar o quarto dele. Pelo menos
temporariamente.
No mesmo dia, mudei nossas coisas para a suíte-máster,
prometendo para mim mesma que voltaríamos para o quarto do Jax
depois que eu fizesse uma varredura no ambiente.
Resultado? Nunca fiz a varredura e estou há três semanas
dormindo na cama king size com lençóis deliciosos que devem
custar uma das minhas córneas.
Em minha defesa, é uma cama realmente muito confortável.
Abaixo e pego a minha Bubbles no colo. A pequena
resmunga e se acomoda no meu colo, encaixando o rosto no meu
pescoço, como sempre faz. Paro ao lado da mesa e, com apenas
dois dedos livres, pego a minha mochila, caminhando direto para o
quarto.
Depois de uma ducha rápida, visto meu conjunto de regatinha
e short e deito na cama digna de uma rainha para descansar da
noite de trabalho e estresse.
Antes de dormir, ainda me pego pensando naquele babaca
que quis me pagar 200 pratas para tentar comprar meu afeto.
Cretino. Filho da mãe. Otário. Gostoso…
Puta merda, como ele era gostoso.
Por um lado, era uma sorte que eu nunca mais o veria. Por
outro… sério, que babaca gostoso…
Bocejo e deixo os lençóis macios me levarem para os braços
de Morphéus[14].
Não sei o que me fez acordar. A princípio pareceu ser um
pressentimento, mas logo noto a cama vazia ao meu lado. Olho no
relógio, que fica ao lado da cabeceira, e constato que faltam 5
minutos para o nascer do sol.
Zozo costumava acordar cedo junto com a minha mãe para
assistir ao espetáculo de cores, mas eu nunca fui tão matutina
assim. Aliás, quanto mais eu puder dormir, melhor.
Agora que estamos aqui, já a flagrei mais de uma vez
observando o céu da enorme sacada do apartamento.
Suspiro, me sentindo culpada por não acompanhá-la
diariamente. Sei que é algo importante para ela.
Decido preparar um chocolate quente e assistir o nascer do
sol junto com ela, para aproveitarmos o domingo juntinhas, mas
antes paro no banheiro para me aliviar.
Tudo muda, no momento em que abro a porta e dou de cara
com ninguém menos do que o babaca de terno que havia
infernizado a minha noite.
Primeiramente, fico em choque. Então, apenas um segundo
depois, percebo que ele havia invadido o apartamento onde eu
estava e provavelmente teria visto a Zoe.
O instinto protetor me enfurece e quando dou por mim já
estou me atirando contra o sujeito, usando todos os meus membros
para agredi-lo com socos e chutes.
A princípio, ele tenta se desvencilhar sem me tocar, mas
quando acerto um soco em seu queixo, ele dá um passo para trás e
logo avança sobre mim, me segurando e atirando na cama, onde
me prende com o próprio corpo.
— Me solta, seu pervertido!
Não sei bem o que esperava ouvir em resposta, mas o que
ele diz me faz congelar no lugar, como se tivesse levado um tapa na
cara.
 — Que porra você está fazendo na minha casa?
Pisco algumas vezes, tentando me situar.
Sua casa? Como assim?
Sua casa… Sua… Não. Por favor, não.
— Mamãe? — A voz baixinha da minha filha me faz voltar à
realidade, mesmo que meu cérebro ainda esteja girando com a
conclusão a que eu estava chegando.
O barbudo olha para a Zoe e me solta, então dá alguns
passos para trás. Quando volta a falar, noto uma gentileza genuína
na voz forte e melódica.
— Tudo bem, criança. Não vou machucá-las.
Mais cedo, no pub, ele havia soado um pouco estridente, já
que tentava se fazer ouvir por cima do barulho das vozes exaltadas
e da música ambiente, e agora há pouco ao se referir a mim, o tom
era completamente enfurecido e até sombrio.
É esse mesmo tom seco que destina a mim logo em seguida:
— Que diabos está acontecendo aqui?
Abro os braços para a Zoe, que corre até mim e me abraça
apertado, escondendo o rosto no meu peito.
— Tudo bem, Bubbles[15]. Não foi nada — sussurro.
Vejo a testa do tal do Ryan se franzir e ele entreabre os
lábios como se quisesse falar algo, mas volta a fechá-los, olhando
para o lado.
— Eu… — começo a tentar explicar, mas nem sei o que dizer
realmente. — Quem é você? — arrisco, mas logo noto que foi a
pergunta errada.
O homem ri com sarcasmo.
— Você deveria saber, já que está na minha casa.
— Eu…
— Para de se fazer de desentendida, garota. Como você
conseguiu entrar aqui? Qual dos idiotas fez isso? Peter ou Killian?
James com certeza não participou dessa sandice.
— Como é? — balbucio.
— Admita logo. Foi alguma espécie de pegadinha deles por
causa do que aconteceu mais cedo? Meus amigos te mandaram
aqui para me perturbar?
Isso irrita cada célula do meu corpo e eu explodo, gritando
com ele.
— Você acha que eu arrastaria a minha filha para uma
pegadinha seu filho d…? — interrompo o palavrão e tapo os ouvidos
da Zoe antes de finalizar. — Seu babaca?
Quem responde não é o homem, mas sim a minha garotinha,
que tira as minhas mãos de seus ouvidos.
— É feio xingar, mamãe.
— Tem razão, Bubbles. Desculpe por isso.
Ela aponta para ele e eu suspiro pesarosa. Por que ela tinha
que ter aprendido tão bem? Ensinamos que é necessário pedir
desculpas sempre que brigamos com alguém, então engulo meu
orgulho e olho para o maior filho da puta do universo e coloco um
sorriso mais falso do que nota de 3 dólares.
— Perdão, senhor Ryan. Não quis ofendê-lo — digo a
contragosto.
Para a minha surpresa, ele volta a usar o tom gentil ao falar,
contudo responde para ela ao invés de para mim.
— Tudo bem, criança. Sua mãe não me ofendeu.
— Zoe — ela diz, fazendo-o encará-la com a expressão de
quem não entendeu nada.
— Perdão?
— Eu me chamo Zoe. E minha mãe é a Éden. E você?
Porra. Minha filha é um ser humano mil vezes mais evoluído
do que eu… ou ele… já que nenhum de nós se deu ao trabalho de
fazer as apresentações.
A garganta bem-desenhada se move, como se ele engolisse
em seco, mas novamente ele responde em tom suave.
— Tristan.
— Não era Ryan? — solto, sem conseguir me conter.
O olhar que ele destina a mim não é nem de longe parecido
com o que oferece a Zoe. Tem raiva, rancor e algo mais ali.
Bom. Por mim tudo bem. Desde que ele trate a minha filha
bem, pode me odiar à vontade.
— Tristan Ryan, dono deste apartamento — completa,
estalando a língua ao deixar claro que somos invasoras.
Eu nem imaginava que o pai do Jax tinha esse sobrenome.
Quer dizer, meu ex usa apenas Graham. Será que era o nome da
mãe? Sei que os pais não se casaram, mas nunca perguntei muito a
respeito e ele também nunca comentou por iniciativa própria.
Que bela merda, viu.
Se bem que mesmo que eu soubesse o sobrenome, nunca
poderia imaginar que o Ryan arrombado que me irritou a noite toda
seria o dono do apartamento no qual estou morando há três
semanas.
Pior: O dono da cama na qual eu estava deitada alguns
minutos atrás. Empurro Zoe mais para o lado, tentando me afastar
do “local do crime”.
— Você quem nos deixou ficar aqui? Eu gosto da varanda da
sala e a mamãe adora essa cama…
— Bubbles! — interrompo-a, mortificada. — A mamãe precisa
conversar com o moço simpático, pode esperar na sala?
— Mas… — choraminga, então aproxima o rosto para
sussurrar. — Eu estou com fome… 
Ouço um suspiro pesado vindo do homem.
— Não sei se tem comida aqui, mas posso pedir algo — ele
murmura, coçando a cabeça.
— A gente tem mesmo que ir ao mercado, mas ainda tem
cereal no armário — Zoe explica, como se não fosse nada de mais,
e posso jurar que ele me fita com ainda mais atenção. — Posso
comer o cereal, mamãe?
— Sim, pode. Vou preparar para você, mas depois os adultos
precisam realmente conversar a sós.
Ela concorda com um meneio e sai na frente, enquanto eu a
sigo.
Uma voz baixa e nada gentil soa às minhas costas.
— Há exatamente quanto tempo você está invadindo a minha
casa?
Engulo em seco, me preparando para a humilhação que está
por vir.

 
Tristan Ryan
 
Sigo as duas até a minha cozinha, ainda tentando absorver o
que diabos está acontecendo aqui.
Pelo que a garotinha deu a entender, elas já estão
hospedadas há bem mais do que apenas uma noite, então
realmente não pode ter sido uma pegadinha dos idiotas que são
meus melhores amigos há mais de 20 anos.
Embora eles sejam capazes disso.
Ah, com certeza eles são capazes disso!
Intimidade é mesmo uma merda...
A garçonete abre a minha geladeira e pega uma garrafa de
leite que eu com certeza não comprei. Depois, despeja o líquido em
uma vasilha que ela encontra facilmente, como se já conhecesse de
cor todos os gabinetes da minha cozinha.
Eu mesmo só conheço o que tem atrás de umas três portas.
Aquela onde ficam os copos. A das xícaras, que costumo usar para
preparar a minha bebida matinal na máquina de Café Italiano
caríssima que comprei. E a dos pratos que uso para colocar a
comida que costumo pedir delivery.
Chega a ser patético que eu tenha projetado cada pedaço
dessa cozinha e nunca tenha cozinhado as refeições que eu tanto
havia sonhado.
Sempre gostei de me aventurar pela culinária, mas preparar
um prato para um apenas é... solitário.
Então, acabo optando por ir jantar fora, me infiltrar na casa de
um dos meus amigos ou ligar para uma das garotas da minha
agenda de contatos.
 A pequena imita a mãe e abre um dos armários baixos, de
onde tira uma caixa de cereais que com certeza não pertence a
mim, já que eu nunca colocaria aquela quantidade obscena de
açúcar no meu corpo.
Zoe senta-se à mesa. Não me recordo de ter feito uma
refeição sequer ali em 7 anos, desde que construí esse prédio e
mobiliei a minha cobertura.
A mãe coloca a tigela à sua frente, junto com uma colher e
beija o topo de sua cabeça, ganhando uma risada da pequena.
Gostaria de me manter mais impassível, afinal, as duas estão
invadindo o meu espaço pessoal, mas aquele miniser humano é
adorável.
Quando a tal Éden vira na minha direção, finalmente lembro-
me de endurecer as feições e aponto com a cabeça para a sala.
— Desembucha — demando assim que nos afastamos da
cozinha.
A mulher morde o lábio parecendo envergonhada e isso me
irrita profundamente. Era só o que me faltava ela se fazer de
vítima…
Que caralho!
Eu só queria dormir na minha cama pela primeira vez em seis
meses e agora estou no meio de uma situação absolutamente
injustificável.
— Sei que não parece bom, mas…
O tom doce é tão falso que só consigo revirar os olhos e
erguer a mão interrompendo-a.
— Me poupe.
Em um piscar de olhos, a vulnerabilidade parece evaporar de
seu corpo e a garçonete abusada e voluntariosa volta a mostrar as
caras.
— Ótimo. Não gosto de “draminhas” — diz, me encarando de
cabeça erguida, como se não estivesse dormindo na porra da minha
cama há alguns minutos.
— Então… — agito a mão, impacientemente.
— Ele disse que você ficaria fora até dezembro!
Seu tom não é um pedido de desculpas, nem mesmo uma
justificativa. É quase como uma acusação, como se o errado fosse
eu por voltar para a minha casa antes do previsto.
— Ah, me desculpe! Estou atrapalhando por chegar sem
avisar? — disparo com a expressão pingando sarcasmo e os braços
cruzados.
Os olhos castanhos flamejam de raiva e ela quase rosna na
minha direção.
Que coisinha raivosa…
Se não tivesse sido tão malcriada mais cedo e não tivesse
ocupado a minha casa sem permissão, eu adoraria tirar essa marra
com uns belos tapas na bunda.
E quer saber? Ela imploraria por mais.
— É claro que não, só não esperava…
— Que eu não a flagrasse invadindo a minha propriedade,
dormindo na minha cama e provavelmente usando até mesmo a
minha pasta de dentes? Ou que eu não ficasse puto por tudo isso?
— Eu compro nossos próprios produtos de higiene! —
retruca, fechando os olhos com raiva ao perceber que caiu em uma
cilada, já que a pergunta era absolutamente retórica. — Escuta, eu
não estou entendendo o porquê de todo esse drama quando você
autorizou a nossa estadia…
— Como é? — interrompo. — Eu fiz o quê?
— Você nos deixou ficar até que volt…
— Deve estar havendo algum engano. Eu não autorizei
absolutamente nada, garota.
— Ele disse que sim! — argumenta, claramente irritada.
— Quem disse?
— Jax, claro.
O apelido do meu filho me faz arregalar os olhos, ainda mais
incomodado. Se ela estiver usando o nome dele em vão, juro que
vou chamar a polícia.
Envolver meu único filho nessa palhaçada é passar dos
limites e nem mesmo a garotinha fofa vai amolecer meu coração.
— Jackson a deixou ficar aqui? É isso que está afirmando?
— praticamente cuspo as palavras.
— Sim.
— E de onde você o conhece? Faça o favor de ser bastante
convincente, pois meu próximo passo será ligar para ele.
Seus olhos se arregalam, como se tivesse pensado em algo
pela primeira vez. A garota vira o rosto em direção à varanda, já
totalmente iluminada pelo sol que nasceu nesse meio tempo, e
engole em seco.
— Se você estiver mentindo… — deixo a ameaça no ar.
Isso desperta mais uma vez a pequena fúria, que passa por
mim caminhando decidida e fazendo questão de bater o ombro no
meu braço.
Penso em segui-la pelo corredor, mas não confio em mim
mesmo em um quarto com ela. Pode ser que eu acabe colocando a
minha mão ao redor daquele pescocinho fino e apertando até ouvi-la
sufocar.
Ou pior. Pode ser que eu prenda-a contra a porta e invada
sua boca atrevida com a língua, fazendo-a gemer ao invés de cuspir
desaforos.
Por sorte, ela retorna em menos de 30 segundos, com o
celular em mãos. O “tum tum” de uma chamada em andamento
ecoa pela sala, deixando claro que o aparelho está no viva-voz.
— Alô?! — A voz do meu filho de 23 anos me faz franzir a
testa. — Éden?
Mas a maior surpresa vem a seguir, arrancando todo o ar dos
meus pulmões, quase como se tivesse levado um soco.
— Oi, Mozão — ela diz, abrindo um sorriso debochado na
minha direção.
— Éden? — Jackson repete.
Ao ouvir uma segunda vez, constato que é mesmo ele.
Meu filho nunca chegou a morar comigo, exceto nos dois
meses em que sua mãe e eu dividimos a mesma casa, logo que ele
nasceu.
Por diversas vezes, tentei trazê-lo para cá, mas Mélanie
nunca deixou. Tive que me contentar com dois finais de semana por
mês e algumas semanas de férias a cada verão.
Quando ele se tornou maior de idade, nem isso…
A verdade é que, por mais que eu tenha me esforçado muito
e que ame demais o meu filho, nossa relação sempre foi a mais
superficial possível. Quase fria. E isso dói. Dói pra caralho.
— Sim, Mozão. Eu mesma. Estou aqui com seu pai, acredita?
— O quê?! Como assim?
— Pode falar com ele, Mozão, está no viva-voz. Meu
sogrinho chegou mais cedo em casa e aparentemente não se
lembrava de que a Zoe e eu ficaríamos aqui.
Sogrinho é o caralho!
E a descarada chega a fazer um beicinho quando fala isso.
— Puta merda… — ouço meu filho xingar, então reajo.
— Talvez porque eu não soubesse que você estava aqui —
retruco, fuzilando-a com o olhar.
— Pode ser que a idade esteja deixando-o esquecido…
Cretina.
A ideia de dar umas palmadas em sua bunda parece cada
vez mais tentadora.
— Ou talvez você tenha fugido de algum sanatório, pois
nunca pediu permissão para…
— Pai? — Jackson interrompe meu rompante.
Fecho os olhos e suspiro pesado.
— Estou aqui, filho.
— Desculpe por isso. Você estava ocupado e a minha garota
precisava de um lugar para ficar, não achei que fosse se importar.
Na verdade, nem achei que vocês fossem se cruzar por aí, já que só
esperava seu retorno em dezembro.
— Adiantei o retorno — murmuro, enquanto as palavras
“minha garota” parecem ecoar pela minha cabeça.
Eu passei a porra da noite inteira desejando comer a “garota”
do meu filho.
Que caralho de pai de merda eu sou?
— Pai? — Jackson chama novamente e me dou conta de que
eu estava completamente alheio ao que ele dizia.
— Estava processando a informação — balbucio.
— Porra, desculpa mesmo, pai. Minha garota precisava muito
de um lugar para ficar por uns meses e eu…
— Meses?!
— Só uns 3 ou 4… — ele justifica, mas meu olhar está
queimando em cima da morena de olhos penetrantes, que me
encara de volta.
— Há quanto tempo exatamente você está na minha casa?
Jackson continua falando, mas nenhum de nós está
prestando atenção. Éden ergue ainda mais o queixo, o que me dá
vontade de dizer que vai ficar com torcicolo.
— Só três semanas…
— Você está invadindo a minha casa há quase um mês?! —
exclamo. — Porra!
— Não xinga perto da minha filha! — a garota argumenta,
embora ela própria tenha me chamado de filho da puta na frente da
garotinha.
— Ela nem está aqui!
— Mas pode ouvir seu piti lá da cozinha!
— Piti? — fuzilo-a com o olhar — Você invade a minha casa,
dorme na minha cama e eu estou dando a porra de um piti?
— Você estava na cama do meu pai?! — O grito do Jackson
chama a nossa atenção e ambos olhamos assustados para o
celular.
— Eu estava dormindo lá e ele chegou.
— Agora eu pareço uma merda de pervertido que estava
observando a princesa dormir! — aponto um dedo para ela, que e
endireita os ombros, como se estivesse se preparando para brigar.
— E nós dois sabemos que não foi assim que aconteceu!
— Meu Deus! — Jackson exclama do outro lado da linha. —
Isso está ficando muito, muito estranho… — ele balbucia.
Fecho os olhos e tento me concentrar, por mais que os olhos
flamejantes dela me desconcertem profundamente.
— Dá para focarmos no que realmente importa? Eu cheguei
em casa e tem uma desconhecida folgada e uma criança aqui!
O silêncio toma conta do ambiente pela primeira vez. Éden
parece envergonhada e Jackson claramente ficou sem argumentos.
Talvez dois minutos inteiros tenham passado sem que
ninguém reagisse. Quando estou prestes a perguntar mais uma vez
o que vamos fazer, meu filho arranha a garganta.
— Er… pai?
Ele usou o tom.
Aquele tom que me fazia comprar os brinquedos mais caros e
dar mesada dobrada. O mesmo tom que me levou a pagar sua
faculdade por quatro anos, sendo um curso diferente em cada um
deles. A voz que da última vez que foi usada, alguns meses atrás,
me custou 30 mil euros para um curso de Arqueologia na Itália.
Merda.
— A Éden não tem mesmo para onde ir. Pode deixar ela e a
filha ficarem aí por um tempo?
— Jackson… — preparo um discurso para tentar mostrar a
ele que isso é absurdo, mas o garoto termina de bater o último
prego no meu caixão.
— Por mim, pai.
Suspiro, esfregando o rosto.
Ele me quebra sempre que usa essa expressão. “Por mim”. É
claro que eu faria qualquer coisa por ele. É meu único filho, a
pessoa que eu mais amo no mundo. Faria qualquer coisa que ele
me pedisse usando esses termos e ele sabia disso.
Mas Jackson não se dá por satisfeito. Ele continua a falar,
dessa vez usando um argumento que faz meu estômago se revirar
de um jeito estranho.
— Eu queria estar aí para cuidar da minha garota, mas estou
realmente gostando das aulas dessa vez. Acho que nasci para fazer
isso da vida. Pode cuidar das coisas enquanto eu estou longe?
Que porra!
— OK.
As duas letras deixam um gosto amargo na minha boca e
uma dor de cabeça monumental começa a dar as caras.
— Obrigado, pai. — A voz de Jackson me faz olhar
novamente para a frente.
Engulo em seco, mas lá no fundo sei que aquela pequena
palavra de gratidão é tudo o que preciso para fazer qualquer coisa
que esse garoto me peça.
Daria um pedaço do meu corpo ou até da minha alma por ele.
— Tudo bem, filho. Depois me liga para falar sobre o curso
novo.
— Sim! Nossa, é demais, Coroa! Estou aprendendo sobre...
E, assim, ele começa um monólogo de 15 minutos sobre
arqueologia e monumentos históricos.
Tento prestar atenção, mas tudo o que consigo fazer é soltar
algumas inflexões de tempos em tempos. Algo como “nossa”, “uau”,
“legal”.
Enquanto isso, a garota e eu travamos uma batalha de
olhares. Um tentando se demonstrar mais indiferente do que o
outro. Não que eu realmente esteja conseguindo ignorar sua
presença.
Jackson e eu nos despedimos e, assim que a dona do celular
desliga a chamada, dito as regras da minha casa, me forçando a
não olhar novamente em sua direção enquanto faço isso.
Não por raiva, mas porque o maldito pijama parece mais
indecente a cada vez que passo meus olhos por suas pernas bem-
desenhadas e os seios pesados.
Ela é... linda.
Linda pra caralho.
E de todas as merdas que já fiz na vida, reparar no corpo da
porra da namorada do meu filho seria a mais nojenta.
— Você vai tirar suas coisas do meu quarto imediatamente.
Pode ocupar o do Jackson. Fique longe do meu caminho, não
atrapalhe o meu sono, não deixe suas merdas jogadas pela casa e
tente me incomodar o mínimo possível.
— Eu…
— Eu não quero saber — corto, sendo bem mais rude do que
estou acostumado.
Foda-se.
Estou puto e não quero ouvir porra de argumento nenhum.
Vou ter que dividir o meu espaço pessoal, o lar para o qual eu nunca
trouxe uma mulher sequer.
A minha vontade é gritar de ódio, mas isso assustaria a
garotinha que está na cozinha tomando seu desjejum.
Então, apenas viro de costas e ando em direção ao meu
quarto até entrar no banheiro, trancando a porta logo atrás de mim.
Abro o chuveiro e entro de roupa mesmo, deixando a água
gelada tentar me acordar do pesadelo no qual eu acabei de cair de
paraquedas. 
Éden Lavinski
 
Deixo meu corpo cair no sofá e escondo o rosto nas mãos.
Foi por pouco.
Foi por muito pouco.
Em menos de uma hora, a minha vida que já estava bem
longe de ser um mar de rosas se revirou de tal forma que eu chego
a sentir uma leve palpitação.
Esfrego o peito, assustada. Pode ser apenas uma leve crise
de asma dando as caras ou... genética.
Sete semanas atrás, minha mãe perfeitamente saudável teve
um infarto e morreu em questão de minutos aos 43 anos de idade.
Por sorte, Zoe estava na escola e não presenciou nada disso.
O ataque fulminante ocorreu enquanto ela trabalhava na
floricultura e uma cliente chamou a ambulância.
Não deu tempo.
Ela chegou sem vida ao hospital.
Pouco depois, recebi a ligação que abriu um buraco no meu
peito. Tive que sair às pressas de Vancouver para chegar a tempo
de buscar a Zoe na escola e dar a notícia triste.
Foi de longe o pior dia da minha vida e olha que eu sou
especialista em ter dias de merda.
Já tive mais do que poderia contar em meus 23 anos de vida.
De lá para cá, as coisas parecem continuar estagnadas.
Se, por um lado, temos um teto sobre as nossas cabeças, por
outro, não tenho a menor perspectiva de conseguir alugar um
espaço próprio para criar a minha filha.
Não consegui reaver o dinheiro que havia pago pelo primeiro
ano de faculdade. Não consegui alugar a kitnet onde eu morava.
Não consegui encontrar um emprego de meio-período para compor
a renda.
A única notícia boa era que o Red Pub havia me recontratado
mesmo após partir sem nenhum tipo de aviso prévio e ficar fora por
um mês inteiro.
Além, é claro, do fato de que Tristan Ryan me deixaria ficar
aqui. Pelo menos por enquanto.
Porra, se eu soubesse que ele era o dono da casa onde eu
estava hospedada teria sido mais simpática...
Pensando bem. Não. Eu não teria. Não sou o tipo de pessoa
que entrega sorrisos forçados só por interesse. Não sei fingir gostar
de alguém ou de alguma situação.
E convenhamos que o cara foi bastante inconveniente.
OK. Pelo visto, ele achou mesmo que eu estava me
divertindo, mas foda-se! E as 200 pratas que ele tentou deixar de
gorjeta?
A raiva ameaça a subir pela minha goela, junto com a
vontade de marchar até o quarto dele e gritar mais um pouco sobre
como eu não estou à venda.
Nem mesmo para um gostoso como ele.
Respiro fundo, tentando controlar meu lado assassino que ele
desperta tão facilmente.
Quisera Deus essa fosse a única emoção que aquele homem
despertasse no meu corpo...
— Mamãe?
Levanto a cabeça, rapidamente, voltando à realidade. Zoe me
encara com a testa franzida e eu me esforço para dar-lhe o meu
melhor sorriso.
Ela sempre o merece.
Meu melhor sorriso, meu olhar mais amoroso, tudo o que eu
tenho e o que eu sou.
— Comeu tudo, Bubbles? — pergunto, puxando-a para o
meu colo.
A garotinha acena, confirmando, e deita no meu ombro.
— Vamos mesmo ficar?
— Vamos sim, Bubbles.
— Então por que você está chateada?
Como explicar para uma criaturinha de seis anos que estou
preocupada com tudo o que está acontecendo e com medo do
homem mudar de ideia após acordar e nos expulsar?
Ou pior: ele poderia descobrir que eu não sou namorada de
seu filho e ficar furioso por termos mentido.
Que espécie de mãe coloca a filha pequena dentro da casa
de um desconhecido?
São tantas preocupações que eu volto a me sentir ofegante e
preciso esfregar de novo o peito.
— Ele é legal.
— Hã? — exclamo, olhando para ela. — Do que está falando,
Bubbles?
— O Tristan é legal — afirma com tamanha certeza que até
me desconcerta.
— Por que acha isso? — me pego perguntando a razão de
algo para uma criança, como se ela tivesse mais sabedoria para me
oferecer do que eu jamais poderia oferecer de volta.
A pequena dá de ombros e começa a trançar a ponta dos
cabelos.
— Ele é — diz, sem sombra de dúvidas.
Então, como se nada tivesse acontecido, abre o maior sorriso
e me pergunta se podemos ir ao parque ver as pessoas passearem
com os cachorros.
Ela adora animais, mas nunca pudemos ter um em casa. Um
dos meus objetivos era conseguir alugar uma casa que comportasse
um cachorro aqui em Vancouver antes de trazer a mamãe e a Zoe
para cá.
Pelo visto, vai demorar bastante para que isso venha a
acontecer...
— Vamos nos trocar — digo, decidida a afastar esses
pensamentos.
— Mas...
— O que foi, Bubbles?
— Nossas roupas...
Fecho os olhos e inspiro pelo nariz, me lembrando de que
nossas malas ficaram no closet do quarto dele.
— Vou buscar. Me espere aqui, sim?
— Melhor eu ir junto, mamãe...
— Por quê? — pergunto, franzindo a testa.
— Vocês brigam menos comigo por perto.
Mas que criaturinha inteligente. Juro que fico me perguntando
quando foi que ela se tornou tão esperta assim.
Beijo seu rosto e insisto que posso fazer isso sozinha.
Testo a maçaneta e solto um palavrão baixinho agradecendo
por estar aberta. Eu sou assim, falo palavrões quando estou puta da
vida e mais palavrões ainda quando estou contente.
Coloco a cabeça para dentro e escuto o som do chuveiro,
que preenche o ambiente. Ótimo.
Encosto a porta, sem fazer barulho, e sigo na ponta dos pés
até o closet. Já estava puxando a mala de dentro de um dos nichos,
quando ouço o som da chave girando na maçaneta do banheiro.
Sem pensar muito a respeito, me enfio no armário, me
escondendo entre as camisas do dono do quarto.
O chuveiro continua ligado, o que é bem pouco ecológico da
parte dele, enquanto ele entra no quarto.
E aí você precisa entender uma coisa sobre a suíte
monstruosa... tem o quarto, todo espaçoso e confortável, o
banheiro, igualmente enorme, e o closet. Só que este último não é
como na maioria das casas, em que há um terceiro cômodo dentro
da suíte.
O closet de Tristan Ryan é uma sequência de armários sem
portas com um design impecável, mas, ao invés de uma parede de
verdade, o espaço é separado do restante do quarto por uma
estante enorme de madeira onde ele tem livros, objetos pessoais de
decoração e uma TV gigantesca virada para a cama.
É lindo. Muito lindo mesmo. Sofisticado, sabe?
Porém, bem longe de ser o ideal quando você está tentando
se esconder entre as camisas brancas e as azuis.
Eu só não sei se o pior é correr o risco de ser flagrada ou a
visão perfeita que tenho do corpo dele enquanto caminha até a
mesa de cabeceira para pegar alguma coisa.
Tristan tem um desses corpos esguios, mas musculosos,
sabe? Não é “bombado”, mas perfeitamente definido, incluindo
entradas no final de suas costas, que seguem pela bunda mais
redonda e firme que eu já vi na vida.
Caralho... o babaca do “meu sogro” é um puta de um gostoso
e eu sei que essa frase soa errado em todos os idiomas possíveis.
Quando ele vira para voltar ao banheiro puxo o ar entre os
dentes com força. Só não sei dizer se pelo medo de ser pega ou se
pela visão do peitoral trincado e da tatuagem enorme que ocupa
todo o lado direito do tronco dele.
Por sorte (ou por azar!), uma sequência de livros está bem na
altura do pau dele, então não consigo enxergá-lo.
Me repreendo mentalmente por sequer ter notado que não
conseguia ver o tamanho do membro do meu “senhorio” e, pior,
“sogro”.
Ele mantém os olhos baixos, lendo algo na tela do que deve
ser seu smartphone, e entra novamente no banheiro, trancando a
porta atrás de si.
Pela primeira vez em vários minutos, consigo inspirar e
expirar tranquilamente, mesmo que meu corpo todo ainda esteja
tremendo e a visão do homem mais bonito e sexy que eu já vi
continue marcada no meu cérebro como se tivesse queimando em
brasa.
Pego nossas malas e saio o mais rápido possível dali,
tentando me livrar das sensações estranhas que parecem não
querer me abandonar de jeito algum.
Tristan Ryan
 
Sinto que estou sendo observado.
Sabe quando você tem um bichinho de estimação e ele fica
observando seu sono? É assim que estou me sentindo nesse
momento.
Exceto pelo fato de que o cheiro de chocolate que vem da
stalker significa que provavelmente é uma garotinha de olhos
curiosos e sorriso fácil.
Meu Deus! Acabei de comparar uma criança a um cachorro?
Killian tem razão ao dizer que estou longe de ser paternal.
Engulo o riso e abro um olho apenas, constatando que tem
uma criatura de um metro me analisando enquanto come uma barra
de chocolate.
— Você não deveria estar assistindo desenho ou fazendo
alguma coisa de criança? — pergunto, voltando a fechar os olhos.
— Estamos à tarde — ela responde, em tom de bronca.
— E?
— Não é hora de dormir.
Era só o que me faltava mesmo... levar bronca de uma mini-
humana que nem me conhece.
— Adultos podem dormir a hora que quiserem.
Ela dá uma risadinha, que me pega de jeito. Que coisinha
fofa!
— Minha mãe também não gosta de acordar cedo — conta,
sussurrando, como se fosse um segredo.
Na verdade, eu sempre acordo cedo. Mas não posso explicar
a ela que passei a noite toda acordado na cama da Ava, então
apenas esfrego o rosto e sento para olhá-la mais atentamente.
— Adultos são estranhos — murmuro.
Como se entendesse muito a respeito, ela chacoalha a
cabeça, concordando.
— Você não almoçou — diz, de repente.
  Espio o relógio ao lado da cabeceira e constato que já são
quase três da tarde.
— Você pelo jeito já está na sobremesa — aponto a barra de
chocolate recheada de caramelo.
Zoe interrompe a mordida e me oferece o alimento com
naturalidade.
— Desculpa! Esqueci de perguntar se você queria!
Sorrio de lado e nego, agradecendo a gentileza.
Quando percebo que ela não vai sair, chuto o edredom,
agradecendo por ter tido o bom-senso de dormir de calça moletom e
não apenas de boxer, como de costume.
Ando até o banheiro para escovar os dentes e lavar o rosto.
Ao retornar, ela continua no mesmo lugar, porém muito entretida
com meu Apple Watch[16].
— Você é bem curiosa, não é, Zoe?
— Esse relógio é muito legal! Dá para assistir desenho nele!
— exclama, encantada. — Minha amiga tem um rosa...
Franzo a testa ao notar que ela fica calada.
— Você queria ter um igual ao da sua amiga? — pergunto,
tentando entender o motivo de sua aparente chateação.
Ela dá de ombros a princípio, mas logo suspira, sussurrando:
— Não vamos mais ser amigas...
— Por que não, Zoe?
— Agora a gente tá aqui.
Sei que é quase desleal usar uma criança para obter
informações, mas Éden não parece disposta a me contar nada de
bom-grado, então aproveito para tentar entender o que está
acontecendo.
— Vocês não moravam aqui em Vancouver?
— A mamãe sim, mas eu morava com a vovó Mary.
Não consigo evitar o desdém com que penso sobre a Éden.
O fato de que havia deixado a própria filha para trás só para
poder viver na cidade grande me dá uma boa ideia de quem ela
seja: claramente alguém por quem eu não tenho nenhuma simpatia.
Posso estar longe de ser o melhor pai do mundo, mas eu fiz
absolutamente tudo pelo meu filho desde o segundo em que fiquei
sabendo de sua existência.
Aliás, Jackson foi a minha razão para trabalhar triplicado e
conseguir construir o império que eu tenho hoje.
— E por que você não vai mais morar com a sua avó?
Percebo que toquei em um ponto sensível, quando a
garotinha solta meu relógio em cima da mesa e esconde o rosto,
virando para trás.
— Zoe...
— Vou assistir TV — anuncia.
— Zoe, espera...
Mas ela sai do quarto antes que eu possa me desculpar.
O que será que aconteceu?
Merda. Aparentemente sou mais babaca do que imaginava.
Coço a cabeça, frustrado, e solto o meu peso para cair
sentado na cama.
Meu relógio pisca, apontando a chegada de mensagens, mas
opto por lê-las diretamente no celular.
Assim que destravo o aparelho, me deparo com algumas
dezenas de notificações, principalmente no grupo dos meus
melhores amigos. Imediatamente gargalho do nome que coloquei no
grupo ontem enquanto estávamos no bar.

 
Pai da Bellinha (James): Chegou uma encomenda aqui
em casa, T...
Pai da Bellinha (James): Bellinha adorou. Já eu, só
consigo pensar no quanto você é um filho da puta arrombado
do caralho.
 
Killian pegador de novinha: Eita como tá bravo ele.
 
Peter Holmes, o Sherlock:

 
Pai da Bellinha (James): Vocês dois já foram tomar no cu
hoje?
 
Peter Holmes, o Sherlock: Não, mas você parece ter sido
comido por algum pirocudo com esse humor.
 
Killian pegador de novinha: É tão errado que eu esteja
rindo disso.
 
Pai da Bellinha (James): Babacas de merda, podem focar
no meu problema?
 
Peter Holmes, o Sherlock: Abra seu coração.
 
Killian pegador de novinha: Bellinha te perguntou sobre
o Tinder?
 
Pai da Bellinha (James): Vira essa boca para lá, K!
 
Peter Holmes, o Sherlock: Qual o problema então, porra?
 
Pai da Bellinha (James): O idiota do T mandou um
canguru de pelúcia de quase 3 metros para a minha casa!
 
Peter Holmes, o Sherlock:
 
Killian pegador de novinha: Sabia que ele estava
aprontando!
 
Pai da Bellinha (James): Se sabia por que não me
contou?!
 
Killian pegador de novinha:

 
Peter Holmes, o Sherlock:
 
Pai da Bellinha (James): Obrigado por nada, babacas!
 
Solto uma gargalhada ao ler a conversa. Sabia que James
ficaria puto quando visse o presente que comprei para a Bellinha,
mas o importante é que a pequena gostou.
Respondo com uma sequência de figurinhas e mudo o nome
do grupo para “Canguru perneta”, então volto a ler o restante da
conversa.
 
Killian pegador de novinha: Alguém tem notícias do
Ryan? Desconfio que a garçonete tenha sumido com o corpo
dele.
 
Peter Holmes, o Sherlock: Ela pareceu perigosa.
 
Pai da Bellinha (James): Vocês são muito babacas
mesmo.
Pai da Bellinha (James): Mas manda notícias, T.
Pai da Bellinha (James): T?
 
Killian pegador de novinha: Ryan?
 
Peter Holmes, o Sherlock: Atende o telefone, cuzão!
 
Gravo um áudio para eles, ainda enxugando as lágrimas de
tanto rir.
 
Eu: Não chorem, crianças. O pai tá ON.
Eu:

 
Peter Holmes, o Sherlock: Até que enfim! Liguei umas 10
vezes, porra!
 
Killian pegador de novinha: Onde você estava, cuzão?
 
Eu: Dormindo meu sono de beleza, claro. Não preguei o
olho a noite toda.
Eu:
 
Pai da Bellinha (James): Ótimo, agora tenho muito mais
informação do que eu gostaria sobre a sua noite.
 
Eu: Posso dar mais uns detalhes se quiser, bonitão.
Eu:

 
Os três respondem ao mesmo tempo com variações de um
sonoro “não!”.
 
Peter Holmes, o Sherlock: Só conta se tem alguma coisa
a ver com a garçonete gostosa.
 
Antes que eu me desse conta, já havia digitado e enviado
uma resposta.
 
Eu: Ei! Olha o respeito!
 
Pai da Bellinha (James): Ué?
 
Killian pegador de novinha: Tem coisa aí!
Killian pegador de novinha:

 
Peter Holmes, o Sherlock: Sabia que tinha a ver com ela!
Peter Holmes, o Sherlock:

Começo a digitar, mas apago tudo umas dez vezes.


 
Pai da Bellinha (James): A coisa é séria. Tristan Putão
Ryan ficou sem palavras.
 
Peter Holmes, o Sherlock: CHO-CA-DO.
 
Killian pegador de novinha:

 
Eu: Vão pra merda, idiotas. Não tem nada a ver.
Esqueçam a garçonete.
 
Por pouco não falei o nome dela, mas aí com certeza
perceberiam o deslize. Ela não chegou a se apresentar no Red Pub.
Para disfarçar, engato uma conversa sobre a Ava, mesmo que até
dois minutos atrás eu mal me lembrasse de que havia passado a
noite com ela.
Não pensei na loira com quem já transei algumas dezenas de
vezes nem uma vez sequer desde que cheguei em casa.
Porra! Verdade seja dita, nem mesmo enquanto a comia eu
estava pensando nela.
Me sentiria um babaca se não soubesse que ela não liga a
mínima para onde estava a minha cabeça. Acho que a socialite não
se ofenderia nem se eu gozasse chamando o nome de outra,
contanto que a levasse ao orgasmo ao mesmo tempo.
Meu estômago reclama e nem consigo me lembrar de
quando fiz a minha última refeição. Certamente antes das doses de
whisky no pub.
 
Pai da Bellinha (James): Agora que já sabemos que você
está bem, pode vir aqui sumir com esse bicho?
 
Eu: Nops. É da Bellinha. Fica na sua.
 
Pai da Bellinha (James): Está ocupando a sala toda, filho
da puta!
Eu: Divirta-se!
Eu:

 
Travo o celular e o coloco no bolso do moletom, saindo do
meu casulo pela primeira vez desde essa manhã.
Assim que dou dois passos em frente, Éden sai de dentro do
quarto do Jackson carregando uma caixa enorme. A garota anda
para trás, como se tentasse se equilibrar e só não cai no chão
porque seu corpo acaba usando o meu como apoio.
Queria dizer que não me arrepiei dos pés à cabeça ao sentir
suas costas tocarem meu peito, mas foi quase como se tivesse
levado uma descarga elétrica.
— Olha por onde anda! — resmunga.
Ela quase cai em cima de mim e ainda tem a cara de pau de
reclamar.
Puxo o ar pelo nariz e pego a caixa de seus braços com bem
menos gentileza do que eu faria em qualquer outra ocasião. Ou
melhor, com qualquer outra pessoa.
— De nada — retruco.
— Não pedi ajuda! Posso carregar sozinha! — teima,
tentando pegar de volta, mas coloco um braço entre ela e a caixa,
impedindo-a de se aproximar.
— Dá licença?
— Já falei que não preciso de ajuda!
— Dá para parar de agir como criança?! — exclamo, um
pouco mais alto do que o necessário.
Nós dois olhamos ao mesmo tempo para o final do corredor,
de onde vem o som da televisão.
Depois de constatarmos que Zoe não percebeu a discussão,
voltamos a nos encarar.
— Onde devo colocar essa caixa? — pergunto com uma
dose extra de sarcasmo, mas em um tom bem mais baixo.
— No lixo, por gentileza — responde com o mesmo nível de
deboche.
Essa garota é irritantemente instigante.
Se não fosse quem é, eu adoraria passar horas travando
batalhas que só nos levariam a um lugar: A minha cama.
Adoraria despi-la de toda a sua petulância e fodê-la
loucamente.
Mas ela é a minha nora.
Preciso me lembrar disso.
— O que é tudo isso afinal? — pergunto, abrindo a caixa só
para fechar rapidamente ao notar a capa de uma revista pornô. —
Wow!
— Pois é. A minha filha viu uma bem parecida com essa.
— O quê?! — exclamo, sentindo meu pescoço ficar vermelho
só de pensar naquela criança inocente vendo algo tão explícito. É
um absurdo! — Essa porra não é minha! — me defendo.
— Relaxa, você pode ser um cafajeste, mas não me parece
que faça o tipo que gosta de mangá[17] explícito.
— Jackson...
— Ele deixou o quarto bem recheado de coisas proibidas
para menores de idade.
Coço a cabeça.
— Desculpe por isso.
Ela dá de ombros.
— Não é como se eu pudesse reclamar. Somos visitas
indesejadas...
Mordo as bochechas, pois não deixa de ser verdade. Muito
embora...
— Vou jogar no lixo reciclável e então volto para ajudar a
conferir se sobrou alguma coisa — anuncio, me afastando.
— Não precisa fazer isso! — A escuto responder, mas ignoro
completamente.
É óbvio que vou ajudá-la a deixar o quarto preparado para
uma criança daquela idade. Posso não estar contente com a sua
presença na minha casa, mas não sou um babaca completo.
Só meio babaca...
Éden Lavinski
 
Sabe aquele prazer em acordar cedo e aproveitar o dia?
Nunca tive.
Nunquinha mesmo.
Só de pensar em ter que me arrastar para fora do edredom
quentinho já fico de mau humor.
Contudo, nessa manhã em específico o sacrifício nem chega
a ser tão grande assim. A verdade é que sou uma merdinha que se
acostumou fácil demais com coisa boa.
A coisa boa em questão: A cama do meu “sogro”.
Caralho, como eu senti falta daquele colchão enorme e macio
essa noite... e os lençóis? Deve ser daqueles com um milhão de fios
egípcios que custam mais ou menos o preço da minha dignidade...
A quem eu quero enganar? A minha dignidade não custa tão
caro assim.
Sento, ainda atordoada, e olho ao redor, percebendo que Zoe
já havia acordado. Pra variar...
Abro a porta do quarto, mas paro por um instante, pensando
que a minha camiseta mais velha, a calcinha de algodão e a meia
de lã que usei para dormir talvez não sejam as roupas mais
apropriadas para vestir, já que o dono da casa chegou.
Enfio a cabeça no corredor e olho para os dois lados,
constatando que a porta dele continua fechada. Por que ele
acordaria às 6h10 da manhã? Ele é rico. Pode escolher dormir. Eu
escolheria...
Essa certeza me faz andar tranquila até a sala.
Imaginei que Zoe estivesse na varanda, assistindo o nascer
do sol, mas não a vejo ali.
— Bubbles? — chamo, bem na hora em que um barulho de
algo caindo soa na cozinha, seguido de gargalhadas.
Corro até lá, sentindo meu coração palpitar, mas suspiro de
alívio ao vê-la rindo sem parar enquanto Tristan pega uma vasilha
que caiu no chão.
— Mamãe! — a pequena exclama, pulando da cadeira e
correndo para me abraçar.
— O que está fazendo aqui, filha? — sussurro, beijando sua
testa.
— O Tris tá fazendo panquecas para mim — conta e aponta
na direção dele, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Nesse momento, o homem começa a se levantar do chão e
posso jurar ter flagrado um olhar demorado para as minhas pernas,
o que me deixa completamente ciente de que a minha camiseta mal
cobre a minha bunda.
Ele ergue o queixo, em um cumprimento discreto e vira de
costas, voltando a cozinhar.
Fico dividida entre correr para o quarto para me vestir e fingir
que nada aconteceu.
Talvez, se ele perceber que não me abalei, acredite que
estou usando um short por baixo...
É com essa convicção que eu sento à mesa como se fosse
uma situação completamente normal e começo a conversar com a
minha filha.
Dois minutos depois, ele coloca um prato com duas
panquecas e várias frutas picadas em frente a ela, além de um
potinho com mel.
— Uau! — minha filha exclama, sorrindo para ele.
O sujeito, que não chegou nem a gastar saliva falando “bom
dia” para mim, abre um sorriso enorme e bagunça o cabelo da
pequena.
— Coma — comenta, piscando para ela.
— Obrigada, Tris!
  Luto com a vontade de repreendê-la por dar um apelido a
ele. A verdade é que o sujeito não parece ter se ofendido, então
apenas tento ignorar.
Ela dá uma garfada generosa e sorri, agradecendo de novo.
— Quer um pouco, mamãe? — minha filha oferece, toda
educada.
Quero. Quero muito. A massa parece tão fofinha que chego a
salivar. Mas meu orgulho me faz apenas balançar a cabeça.
Como se conseguisse ler a minha expressão, Tristan cruza
os braços e levanta uma sobrancelha.
— Vou fazer um prato para você — anuncia, revirando os
olhos.
— Não precisa... — argumento, mas ele levanta apenas um
dedo, me calando.
Irritante.
Que velho irritante!
Ele volta sua atenção para o fogão e logo em seguida coloca
um prato parecido com o da Zoe à minha frente. A diferença é que
as minhas frutas não estão picadas como as dela. Mas não é como
se eu pudesse reclamar, não é mesmo?
— Obrigada — murmuro, muito a contragosto.
Mais uma vez, ele apenas ergue o queixo, em resposta.
— Você não vai comer, Tris? — Zoe pergunta, cobrindo a
boca para esconder que estava falando com ela cheia.
— Nada de falar com a boca cheia — repreendo-a.
Ele dá um meio-sorriso e volta a bagunçar o cabelo dela.
— Mais tarde.
Logo em seguida, ele sai e nós duas continuamos comendo o
nosso café da manhã. Não sei o que ele foi fazer, mas não volta à
cozinha até a hora em que guio a Zoe para o banheiro.
O escritório do senhor Ryan fica bem de frente para o
banheiro do corredor e, por acaso, ele não havia fechado a porta,
então consigo ouvi-lo falar um idioma estranho, como se estivesse
em uma reunião. Seria Mandarim?
Chacoalho a cabeça e entro no banheiro, guardando a minha
curiosidade só para mim. Alguns minutos depois, com Zoe de banho
tomado e vestida em uma roupa confortável para a escola, deixo-a
escovando os dentes e saio para me arrumar.
Ao fechar o banheiro, não consigo resistir à curiosidade e
ando na ponta dos pés até a porta do escritório dele. Como se fosse
uma praga do universo, meu “sogro” gira na cadeira nesse exato
momento.
Nossos olhares travam uma batalha que começa branda,
mas parece se exaltar à medida que os segundos se arrastam. O
contato só é interrompido quando ele ergue apenas uma
sobrancelha e então desliza seus olhos pelas minhas pernas, antes
de girar novamente com a cadeira e ficar de frente para seu laptop.
— Você parece bem à vontade na minha casa, Norinha.
O comentário arrogante me enfurece, mas antes que eu
pudesse xingá-lo, Zoe abre a porta.
— Mãe! Você ainda não se arrumou? Vou chegar atrasada!
— choraminga.
Engulo meu orgulho ferido e murmuro um pedido de
desculpas, me arrastando para vestir uma roupa decente.
Quando abro a porta do apartamento, Zoe grita:
— Tchau, Tris!
— Bubbles! — repreendo-a pelo grito, mas como se quisesse
apenas me contrariar, o homem grita uma resposta lá do final
corredor.
— Boa aula, Zoe!
Minha filha encolhe os ombros e sai cantarolando à minha
frente.
Estou muito bem arranjada com esses dois...

— Força, Sucata. Eu confio no seu potencial — murmuro,


acariciando o volante do meu carro, enquanto tento fazer o motor
funcionar com a força do meu pensamento.
Após mais algumas palavras de incentivo, finalmente sou
agraciada pelo som da partida sendo acionada. Meu Escort 1993,
única herança deixada pela minha mãezinha, sabe que não tenho
grana para consertá-lo.
Com um pouquinho de força de vontade, ele chega à quadra
do prédio do Tristan e eu o estaciono na minha vaga cativa, do outro
lado da rua.
Na nossa primeira noite aqui, decidi entrar na garagem com
ele, mas senti que o Sucata se sentiu um pouco humilhado, já que
só haviam carros de luxo por ali.
Como forma de protesto, meu velho de guerra decidiu não
funcionar na manhã seguinte e acabei precisando pedir ajuda para o
porteiro, o jardineiro e o zelador empurrarem.
A garagem fica no subsolo, então foi necessário um esforço
muito grande para fazer o carro subir a rampa até a rua. Desde
então, eu só o estaciono aqui fora.
Dou o meu truque para trancar a porta, já que a fechadura
não funciona mais, e sigo para o hall do prédio.
— Bom dia, senhorita Lavinski — o porteiro, marido da
senhora Curtis, me cumprimenta.
— Já falei que pode me chamar de Éden — choramingo,
fazendo o idoso sorrir. — Você bem que podia ter me dado um
alerta ontem sobre a chegada daquela fofurinha, né? — reclamo.
— O senhor Ryan está de volta? — o porteiro pergunta,
parecendo genuinamente surpreso.
— Sim. Chegou ontem de manhã.
— Ah, estava de folga. Que cabeça a do meu substituto por
não ter me alertado...
— Não é como se ele fosse tão importante assim —
desdenho, mas pela expressão do porteiro meu senhorio é sim
muito importante.
O velho começa a procurar algo, em uma enorme pilha, e eu
quase me debruço sobre o balcão de curiosidade. Quando encontra,
ele puxa o envelope no ar, parecendo aliviado.
— Pode me fazer uma gentileza, senhorita Lavinski?
— Hã... sim? — balbucio, já sofrendo por imaginar que tem a
ver com o docinho de coco do meu “sogro”.
— Pode levar o jornal do senhor Ryan e esse envelope?
A reclamação chega na ponta da língua, mas o senhor Curtis
e sua esposa têm sido tão afetuosos comigo que me sinto culpada.
— Claro — murmuro, pegando os papéis e me
encaminhando para o elevador. — Bom dia, senhor Curtis!
— Bom dia, senhorita Lavinski.
Já no apartamento, só me lembro de tirar as botas quando já
estou na metade do corredor, para variar.
— Foda-se — sussurro, continuando a andar em direção ao
escritório, onde imaginei que encontraria o dono da casa.
Para a minha surpresa, o lugar está vazio. Em um ímpeto,
colo a minha orelha na porta da suíte dele, constatando que está
silencioso demais para que ele esteja ali.
Luto contra a vontade de voltar a dormir, afinal preciso
procurar um emprego para poder ir embora daqui o quanto antes.
Por causa disso, decido furtar os classificados do jornal e ir procurar
alguma coisa que possa pagar as contas.
As minhas aulas na faculdade começarão na semana que
vem, o que significa que tenho apenas uma semana para encontrar
um emprego de meio-período.
Deus me ajude...
Tristan Ryan
Giro o corpo e acerto mais um chute na almofada de impacto,
mas com tamanha intensidade que o meu treinador de Muay Thai,
Morin, chega a se desequilibrar e dar um passo para trás.
— Foi mal — murmuro, quando meu treinador me encara
com a expressão de poucos amigos.
Ele cruza os braços na frente do corpo, ainda parecendo
irritado, e levanta as sobrancelhas.
— Desembucha, Ryan.
Dou de ombros e ando até a ponta do tatame para pegar a
minha garrafa de água.
Termino de me hidratar e olho para trás, com a impressão de
que ele continua esperando uma resposta. Uma espiada no sujeito,
que mais parece um armário de tão grande, e constato que não vou
conseguir escapar de seus olhos atentos.
— Tô puto com algumas coisas.
— E?
— Nada. Não tem o que fazer a respeito.
— Vai falar em códigos agora, porra?
Suspiro, frustrado, e passo os dedos pelos meus cabelos
molhados de suor enquanto conto para o meu professor de Muay
Thai tudo o que aconteceu no final de semana.
Relato desde o momento em que meu avião pousou em
Vancouver até a manhã de hoje, quando encontrei aquela criança
adorável assistindo o nascer do sol sozinha na sacada da minha
sala e depois tive que lidar com todas as… sensações… que a mãe
dela causa em mim.
— E o que você vai fazer a respeito, Ryan? — pergunta, com
aquela expressão de terapeuta.
O cara pode parecer um assassino profissional, mas, além de
atuar como professor de artes marciais, tem seu próprio consultório
de psicologia. É o maior contraste ambulante que eu já vi.
— Já falei que nada, Brother. O Jackson pediu...
— Corta essa — Morin diz, atirando uma toalha na minha
cara. — Da última vez que eu verifiquei, você tinha uns dois prédios
repletos de apartamentos para alugar. Poderia ter oferecido
qualquer um deles para a garota ficar.
— Três... — murmuro, confirmando que tenho mais de 100
unidades de apartamentos para locação. — Mas a maioria tem
inquilinos!
Morin me encara com preguiça e eu acabo rindo da minha
meia-verdade. Sim, a maioria está alugada, mas sei que há pelo
menos uns cinco apartamentos completamente vazios onde eu
poderia acomodar a Éden e a Zoe.
— Jackson não me pediu para dar um teto a elas. Ele me
pediu para cuidar delas — argumento.
— E como você pretende fazer isso? — meu treinador
dispara, me analisando de longe.
Solto um palavrão e me despeço dele sem responder, apenas
com um aceno acima da cabeça.
Não sei.
Não faço a menor ideia do que estou fazendo. Essa é a
verdade.
Quando entro no elevador, ainda estou atordoado. Fecho os
olhos e por um instante consigo visualizar com perfeição as pernas
da namorada do meu filho quando chegou à cozinha nesta manhã.
Esfrego o rosto e dou um soco na parede de metal, tentando
apagar a imagem da minha cabeça.
A maldita garçonete está comendo o meu juízo...

Entro no escritório às 8h30 em ponto, após tomar uma ducha,


me vestir e sair de casa bebendo uma bebida proteica enquanto
dirigia para cá.
Jennifer, minha secretária, me segue porta adentro com o
mesmo olhar escrutinador que o do Morin mais cedo. Esses dois
devem estar mancomunados.
— Bom dia para você também, chefe.
Reviro os olhos exageradamente, mas em seguida volto ao
normal e dou um abraço e um beijo no rosto dela.
Jen trabalha comigo há tantos anos que é quase como uma
irmã. Irritante, mas insubstituível.
— Bom dia, Jenibelly — cumprimento-a.
— Quem o irritou logo cedo?
Volto a fechar a cara e dou a volta na mesa, me jogando na
minha cadeira.
— Não quero falar sobre isso.
A pilantra apenas cruza os braços e continua me encarando
até eu bufar alto.
— Jackson me pediu para abrigar a namorada e a filha dela.
— Jax virou pai? — Jen dá um gritinho. — Vovô Tristan!
Fuzilo-a com o olhar.
— Não ouse comentar isso com…
Nem termino de dizer e ela já está digitando algo
rapidamente no celular.
— Jennifer Hudson! Se você enviou isso para…
Pela vibração insistente no meu bolso ela com certeza
acabou de contar para o Killian, que já deve ter contado para o
James e logo o Peter estará sabendo. Isso se já não estiverem os
três me zoando.
— Não sou porra de avô nenhum! — reclamo.
— Ops… espalhei uma inverdade? Que trágico, chefe —
dramatiza, cobrindo a boca para rir.
— Eu deveria demitir você.
— Você me adora.
— É um termo muito forte. Eu adoro seus filhos. Mas você,
eu apenas tolero.
Minha secretária revira os olhos e nós dois rimos.
— Eles vão acabar com a minha vida por causa dessa fofoca
— comento, pensando na quantidade de mensagens que já recebi
nos últimos minutos. O grupo deve estar a todo vapor.
— Killian me paga quase um salário para mantê-lo por dentro
das fofocas.
— Vocês são insuportáveis. Agora traz logo o meu café e
vamos revisar a agenda.
Jennifer cruza os braços e continua me encarando ao invés
de obedecer.
Deus, de que adianta ser milionário se sua secretária não
busca a porra de um café sem fazer uma cena? O fato de eu ser
padrinho de casamento dela e o “tio” favorito de seus filhos a salva
de várias enrascadas.
— Como foi a viagem, chefe?
— OK… — murmuro, pagando para ver onde o assunto vai
levar.
— Sabe o que não estou vendo, chefinho?
Levanto uma sobrancelha.
— Uma sacola da Austrália. Não estou vendo nenhuma,
acredita?
Reviro os olhos tão forte que chega a me dar dor de cabeça.
— Você queria um chaveirinho de Sidney, Jennifer? —
desdenho.  — Aliás, mais um?
Da última vez, ela precisou me acompanhar na viagem e me
lembro de ter tido que deixá-la transportar parte dos presentes que
comprou para a família toda na minha mala.
— Engraçadinho… só acho que sua secretária favorita
merecia uma lembrancinha.
— Você é a minha única secretária.
Deus me livre de outra inconveniente e intrometida como ela.
— Um vinho Australiano para o meu aniversário de
casamento…
Essa criatura não tem jeito.
— Por acaso, é possível que eu tenha deixado no carro uma
bolsa com vinhos e presentes para as crianças.
Ela esfrega as mãos uma na outra e eu volto a gargalhar.
— Vou buscar um café e um donut para você, chefe!
— Já era hora mesmo! — digo para as suas costas. —
Ninguém me respeita nessa merda… — dramatizo, mesmo não
sendo verdade. Jennifer tem intimidade para brincar comigo, assim
como Morin. Nenhum outro funcionário ousaria ir além de uma
abordagem profissional.
— Ah! E da última vez que chequei, você tinha sim uma nova
secretária lá na sua filial favorita da Austrália — Jen resmunga
fazendo uma careta, que me causa mais um acesso de riso.
— E por acaso ela me traz café sem 20 minutos de drama! —
grito, quando ela já está passando pela porta.
Posso jurar tê-la visto levantar o dedo do meio para mim.
Assim que fico sozinho, encosto na minha cadeira e balanço
a cabeça, rindo sozinho do absurdo que é a minha vida.
Só que não demora muito para os meus pensamentos serem
inundados pela imagem da Éden com sua camiseta velha e
indecente desfilando pela minha casa. Eu não deveria pensar nela
dessa forma.
Eu não deveria pensar nela. Ponto.
Suspiro pesado e pego o meu celular, preferindo a tortura das
mensagens dos meus amigos a mais um segundo dentro dos meus
próprios pensamentos errados.
Logo que bato o olho, já solto um choramingo.
Um dos dois cuzões trocou o nome do grupo para “Asilo do
vovô Tristan”. Digo dois, porque James odeia quando trocamos o
nome, então claramente não foi o artista por trás disso.
Preciso reconhecer que tem graça.
 
Killian pegador de novinha alterou o nome do grupo para
“Asilo do vovô Tristan”.
 
Peter Holmes, o Sherlock: Primeiro!
Peter Holmes, o Sherlock:

 
Pai da Bellinha (James): Opa, opa. Temos novidades?
 
Killian pegador de novinha: Minha informante, que não
posso dizer quem é, acabou de me contar que nosso velho da
lancha é vovô.
 
Peter Holmes, o Sherlock:

 
Pai da Bellinha (James): O QUÊ?!
 
Eles teorizaram sobre Jackson ter engravidado uma
europeia, mas Killian disse que “sua informante” – vulgo: a
fofoqueira da minha secretária – disse que não é um bebê.
 
Eu: Bando de fofoqueiro.
Eu:

 
Killian pegador de novinha: Oi, vovô!
 
Pai da Bellinha (James): Quer uma bengala?
 
Peter Holmes, o Sherlock: Eu já pesquisei e Jackson não
tem filho algum. Que porra é essa?
 
Reviro os olhos. Idiotas.
 
Eu: Primeiramente, vovô é o seu pau mole, Killian.
 
Killian pegador de novinha:
 
Eu: Sobre a bengala, só se for para enfiar no seu rabo,
James.
 
Pai da Bellinha (James): Ui. Toquei num ponto sensível.
 
Eu: E não, o Jax não é pai, Peter Pan. Ele...
 
Peter Holmes, o Sherlock: Desembucha, porra!
 
Conto a história por cima, guardando para mim as duas
informações principais: Que a minha nora é a garçonete da noite de
sábado. E que ela e a filha estão morando comigo.
Por alguma razão, ainda não me sinto pronto para
compartilhar esse detalhe com eles.
Éden Lavisnki
 
Eu queria ser pobre um dia...
Mas todo dia está foda!
A porra do carro pifou mais duas vezes durante o dia,
enquanto eu entregava currículos.
Acabei tendo que passar no mecânico antes de ir buscar a
Zoe ou teria que literalmente empurrar a lata-velha.
— Acha que consegue me ajudar?
— A guinchar essa porcaria até o ferro-velho? Consigo sim,
gata.
Estreito os olhos, fuzilando-o com tanta raiva que o homem
chega a dar um passo para trás.
— Eu posso dar uma olhada, mas vai ficar caro.
Provavelmente tem que mexer no motor e...
— O que dá para fazer com 30 dólares?
O cretino começa a rir, enquanto eu continuo com os braços
cruzados, ainda mais irritada.
— É sério, moça?
— Sim.
— Nada. Por 50 dólares posso completar o óleo do motor e
colar mais umas fitas isolantes na porta que parou de fechar.
— Porra, não dá para fazer isso por 30?
— Já estou dando desconto. Se você não fosse tão gata,
cobraria o dobro.
O comentário me enoja e quase vomito na minha própria
boca. Contudo, funciona para que eu deixe de insistir em mais
desconto. Com as indiretas dele sobre a minha beleza e os olhares
para o meu corpo, é bem capaz de acabar soltando alguma
proposta que me faça gastar meu réu-primário.
Não posso ser presa. Tenho uma criança para criar.
Quarenta minutos depois, saio de lá sem mais nenhum tostão
e com uma nova camada de fita adesiva grudada na porta do carro.
Pego a Zoe na escola e seguimos para o prédio chique em que o
Tristan mora.
Planejava ir ao mercado, mas nem os 20 dólares deu para
salvar. Vamos ter que nos virar com o que sobrou de comida até
quinta-feira. Isso se eu conseguir gorjetas na quarta-feira à noite.
Caso contrário, só voltarei a ter dinheiro na sexta-feira.
— O que vamos jantar, mamãe?
Tento me lembrar do que ainda tem na geladeira. Acho que
ovos, arroz, meia garrafa de leite e um restinho de cereal.
— Ainda não pensei, Bubbles.
Seguro sua mão e atravessamos a avenida, cumprimentando
o senhor Curtis ao passarmos pela portaria.
Ao abrir a porta do apartamento, ouço sons vindo da cozinha
e franzo a testa. Não imaginei que ele estaria em casa no final da
tarde. O homem tem cara de quem trabalha até à noite como todo
CEO metido a besta.
Zoe tira os sapatos, deixa a mochila na chapelaria e corre
para a cozinha.
— Bubbles! — chamo, mas sou ignorada com sucesso.
Imito a educação da minha filha e tiro os sapatos, andando só
de meias até o outro cômodo. Ao entrar, me deparo com a cena dos
dois guardando iogurtes na geladeira, enquanto conversam como se
fossem amigos de longa data.
— Hã... oi?
O homem me olha apenas por um segundo, mas é suficiente
para fazer até os meus ossos se arrepiarem. Logo, desvia sua
atenção de volta para Zoe, que entrega uma caixa de cerejas para
ele guardar na geladeira.
— Passei no mercado — anuncia.
— Notei, mas...
— Vi que não tinha mais quase nada.
O comentário me irrita de tal forma que eu poderia dar um
soco na cara dele.
— Filha, vai tomar um banho e trocar de roupa.
— Mas eu queria ajudar o Tris...
— Agora, Zoe.
Ela arregala os olhos, desacostumada com o tom irritadiço
que usei. Nunca preciso realmente chamar sua atenção e isso
também me causa um desconforto.
Quando a pequena passa ao meu lado, me abaixo e beijo
seu rosto doce várias vezes, murmurando que ela brincou muito e
precisa de um banho para poder comer.
Assim que ficamos a sós, cruzo os braços encarando Tristan
Ryan.
— Qual o problema? — ele pergunta, imitando meu gesto.
— Não sei qual é a sua, mas sou perfeitamente capaz de
cuidar da minha própria filha. Não preciso de...
Migalhas. A palavra quase sai da minha boca, mas então
percebo que estou falando isso enquanto dependo da “caridade”
dele para ter um teto sobre nossas cabeças.
O sentimento de humilhação é tão grande que só posso ficar
grata por ele ter tido a gentileza de não dizer o óbvio.
Tristan continua me encarando por um bom tempo.
— Por que vocês vieram para Vancouver?
A pergunta me pega de surpresa e a minha primeira reação é
querer dizer que não é da conta dele.
Porque não é.
Mas diante da minha situação, talvez seja justo que ele saiba
um pouquinho sobre quem está abrigando em sua casa.
Ando até as sacolas de papelão e retiro as bandejas de frios,
levando até a geladeira para guardar.
Só quando paro ao lado dele é que começo a falar.
— Nós morávamos em Fort McMurray. Não sei se você
conhece, mas é um buraco.
Não estou sendo justa. A cidade fica em um lugar lindo e as
construções são adoráveis. Eu só não me sentia em casa ali.
— Já passei por lá. — É sua resposta, enquanto guarda
algumas das frutas na gaveta do refrigerador.
— Não havia nenhuma perspectiva de crescimento, então
vim para cá para tentar estudar.
Está longe de ser toda a verdade, mas não me sinto disposta
a dar mais informações. Não agora, pelo menos.
Ele se manteve calado por um longo tempo, até terminarmos
de guardar quase tudo. O homem pega a última sacola e tira de
dentro uma caixa de cereal igual ao que eu havia servido para a Zoe
no café da manhã de domingo.
— Espero ter acertado a marca.
Sim. Ele acertou.
— Eu ia ao mercado hoje — digo.
Seu gesto de desdém, como se não fosse nada, me causa
irritação e...
E.
E outra coisa que não sei explicar. É uma sensação estranha
e nova. Como uma gratidão, só que mais forte.
Ele se deu ao trabalho de comprar o cereal que a minha filha
gosta. Além de ter feito panquecas para ela.
O torpor dura bem pouco, pois o sujeito faz questão de abrir
sua boca enorme logo em seguida.
— Trouxe o cereal, mas espero que ela opte pelo iogurte e as
frutas. É mais saudável.
— Como é? — balbucio, mais chocada do que qualquer
coisa.
— Cereal é puro açúcar.
Pisco algumas vezes até que a fúria toma conta das minhas
atitudes.
— Virou nutricionista agora? — pergunto, um tom mais alto
do que o necessário.
— Só estou dizendo que cereal não tem absolutamente
nenhum nutriente e...
— E eu não preciso de conselhos parentais de alguém que
não sabia que o próprio filho tinha uma loja inteira de revista de
safadeza embaixo da cama.
— Meu filho tem 24 anos! — justifica-se, alegando um ótimo
ponto, mas eu não me deixo abater.
— Mas já teve 6 também!
O sujeito esfrega o rosto, claramente irritado, mas consegue
controlar a voz.
— Eu perguntei antes se ela gostava de iogurte e frutas —
defende-se.
— Posso comprar frutas para a minha filha. Ela não precisa
comer a sua comida.
— Minha comida? Eu nem fico em casa, Éden.
— Então por que comprou um mercado inteiro? É louco ou o
quê?
Gesticulo na direção da pilha de sacolas de papelão vazias e
dessa vez realmente o deixo sem palavras.
Meu senhorio coloca no armário a caixa de cereal e uma
pilha de barras de chocolate, que tenho certeza serem da mesma
marca que a Zoe comeu no domingo, então o fecha.
— Você fez compras para a gente? — pergunto, tão baixinho
que minha voz mal soa.
Sem me dirigir um olhar sequer, ele passa por mim em
direção à sala, mas para na porta.
— Eu prometi cuidar de vocês.
É tudo o que diz antes de me deixar sozinha com o queixo
caído e um turbilhão de emoções no peito.
Tristan Ryan
 
— Que mulher irritante! — exclamo, após entrar no meu
quarto. — Será que ela desconhece a porra da palavra “obrigado”?
Esfrego o rosto, frustrado.
Queria descarregar essa raiva nas teclas, mas não posso ir
para a minha sala de música sem chamar a atenção delas.
Tocar piano é um hobby tão pessoal que eu simplesmente
não quero dividir com mais ninguém. Por isso, mantenho a porta da
sala de música trancada.
Meus amigos costumam dizer que aquele é meu quarto do
“Christian Grey”. Nenhum deles entrou ali. Nem imaginam o que
tenha do lado de dentro da porta que está sempre fechada.
Coloco uma roupa de treino e vou para a academia do prédio,
descontar a raiva correndo 10km e depois puxando um pouco de
ferro.
Quando volto, Zoe está sentada na mesa da sala com alguns
cadernos abertos e o cheiro de comida denuncia que a minha
“inquilina” está se aventurando pela cozinha.
— Dever de casa? — pergunto, bagunçando os cabelos
castanhos da garotinha, que sorri para mim.
— Geometria — conta, soltando um muxoxo.
— Ei! Geometria é legal. Você vai aprender a desenhar
formas e um dia pode construir prédios tão grandes quanto esse.
Adoro isso.
Construir.
Não era meu sonho. Mas foi uma surpresa boa que a vida me
trouxe.
Quando a Melanie ficou grávida, nós dois tínhamos apenas
16 anos. Eu era um moleque apaixonado por música que queria
viver da minha arte.
Só que uma criança custa caro e a minha mãe mal tinha
dinheiro para me sustentar. Comecei a trabalhar na construção civil
como “auxiliar do auxiliar”. Carregava sacos de cimento, fazia o
trabalho mais pesado e vivia com as costas doloridas e as mãos
machucadas.
A grana era pouca, mas pagava as contas.
Guardei meu sonho de viver de música em uma caixinha e
abracei a realidade.
Melanie, por outro lado, nunca aceitou o que precisava ser
feito para conquistar seus objetivos. Queria tudo de mão beijada e
por isso não chegamos a morar juntos nem dois meses depois que
nosso filho nasceu.
Ela odiava o fato de que não tinha o mesmo conforto do que
na casa dos pais e me culpava por tudo.
Optou por voltar a morar com eles e nem seis meses depois,
conheceu um homem rico e se casou com ele.
Eu continuei trabalhando como pedreiro para custear tudo o
que o Jackson precisasse. Aliás, comecei a trabalhar triplicado.
Aceitava todos os extras só para juntar dinheiro.
Naquela época, ainda não sabia o que fazer, mas pretendia ir
para a faculdade. Talvez conseguisse estudar música, afinal.
Aos poucos, percebi que eu era bom em construir coisas.
Tinha noção de espaço e dava ideias que surpreendiam até
os encarregados das obras em que eu trabalhava.
Demorei dois anos depois de terminar o ensino médio para
conseguir dinheiro o suficiente para me matricular na universidade
e, quando o fiz, optei por Engenharia Civil.
Não era meu sonho de infância e adolescência, mas essa
profissão me tornou o homem que eu sou hoje e me deu tudo o que
tenho. Mais do que isso, me fez feliz. Mesmo que eu não tenha
nunca mais voltado a pensar em viver de música.
— Não sou muito boa em construir. Eu gosto de ler... e de...
— Zoe responde, me fazendo voltar das lembranças.
— Do quê? — pergunto, abaixando ao seu lado.
— De música. Eu gosto muito de música.
A confissão sussurrada causa um aperto no meu peito.
Dei todos os instrumentos musicais possíveis para Jackson,
assim que tive dinheiro o bastante para isso, mas meu filho nunca
teve o mesmo amor que eu pela melodia.
— Isso é lindo, Zoe. Você faz aula de música?
Ela nega com a cabeça, parecendo triste por um momento.
Quero perguntar mais a respeito, mas a garotinha muda de
assunto e sorri como se nem se lembrasse do que acabou de me
contar.
— A minha mãe gosta de construir coisas! — conta.
— Ah, é?
— Sim. Ela vai começar a estudar Artequitura.
— Arquitetura? — sugiro.
— Isso!
Hm. Essa é uma informação interessante.
Então ela veio para Vancouver para estudar Arquitetura?
O som de uma tampa de panela caindo no chão ecoa na
cozinha e um cheiro de queimado quase insuportável parece se
espalhar com uma velocidade surpreendente.
— O-ou... — a baixinha murmura, fazendo uma careta. —
Mamãe está cozinhando — sussurra, quase como se me contasse
um segredo.
O que ela não diz é se isso é uma coisa boa ou ruim, mas
pelos barulhos e o cheiro... parece que não.
— Eu vou cuidar disso. Fique aqui. Por segurança.
A garotinha adorável ri baixinho e acena, confirmando que
ficará bem longe do campo de batalha que se tornou a minha
cozinha.
Paro à porta, analisando a cena antes de caminhar até a pia,
onde lavo as minhas mãos, afinal, estava na academia há poucos
minutos.
— Eu tenho tudo sob controle — Éden alega, na defensiva,
mesmo que eu não tenha falado nada.
Viro de lado e a encaro, levantando as sobrancelhas.
— Afaste-se do fogão antes que você exploda o prédio
conosco dentro.
Seus olhos reviram nas órbitas, mas ela obedece, dando um
passo para trás, enquanto murmura algo como “exagerado”.
Espio os ovos que carbonizaram e a panela de arroz que
quase não tinha água.
— Eu cozinho — anuncio.
— Mas...
— Não vou deixar você nos intoxicar com essa gororoba.
Agora pegue...
Passo a relatar o que preciso e ela vai me ajudando a
preparar os legumes e temperar o frango. No fim, sirvo legumes na
manteiga, o arroz, que consegui salvar, e frango grelhado com
batatas.
Enquanto mastigo a comida, me dou conta de que há muito
tempo não me sento à mesa com alguém. Sempre saio para jantar
com o meu filho e os meus amigos, ou com alguma mulher, mas
nunca preparo algo assim.
Já tentei fazê-lo, mas Jackson nunca queria esses programas
caseiros. Ele gostava de poder entrar em qualquer restaurante com
o meu sobrenome.
Porra.
Acho que nunca me sentei para jantar com uma criança e
uma mulher.
A sensação é... diferente. De um jeito bom.
Pelo menos até eu me lembrar do que nunca deveria ter
saído da minha mente: Essa não é a minha mulher. E nem a minha
filha.
Não posso me esquecer novamente.

Na manhã seguinte, abro os olhos antes do despertador.


Como sempre.
Gosto do ar gelado das manhãs no Canadá. Na Austrália
fazia calor quase o tempo todo e eu já estava me sentindo sufocado.
Empurro as cobertas e me espreguiço, deixando meus pés
me guiarem até a sacada, onde alguma coisa me dizia que Zoe já
estaria sentada.
— Caiu da cama de novo? — pergunto, bagunçando o cabelo
da menina.
Ela deita a cabeça para trás e me dá um sorriso banguela.
— O sol nasce aqui do lado! — exclama, parecendo
empolgada.
Ontem, eu acabei demorando para sair do quarto e só a
flagrei quando o céu já estava todo iluminado. Então a chamei para
tomar café da manhã.
— Quer um copo de leite? — ofereço, tentando entender de
onde surgiu esse instinto paternal com 41 anos nas costas.
Sei que cuidei muito bem do meu filho, mas “paternal” é
realmente algo de que nunca poderia ter sido acusado até então.
A garotinha nega com a cabeça, mas aponta a poltrona ao
lado da dela.
— Você gosta de ver o sol nascer?
A pergunta emblemática me soou como um pedido para que
a acompanhasse em seu hábito matinal. Como não acredito que eu
pudesse negar qualquer coisa que me pedisse, eu me sento e
observo o horizonte, como se não tivesse me dado conta de que ela
não queria ficar sozinha.
— Como você adivinhou? É um dos meus hobbies favoritos.
Mentira.
Mentira das brabas.
Eu realmente amo a natureza, mas só costumo desfrutá-la
quando estou ao ar livre, praticando um esporte radical ou fazendo
uma trilha.
Não me lembro de ter me sentado na sacada do meu
apartamento para ver o sol nascer desde… bem… desde sempre.
— Minha avó também gosta! — exclama, parecendo
empolgada.
O brilho em seu olhar não dura nem dois segundos, no
entanto.
— Ei. Algum problema? Está se sentindo mal? — pergunto,
me inclinando para a frente.
Zoe nega com um gesto e volta a olhar para o céu, mordendo
as bochechas com tanta força que deve estar doendo.
— Ela está morando lá — diz, após alguns segundos.
— Hã?
— Minha avó. Ela está morando no céu.
Oh. Então é esse o motivo de terem se mudado? A avó
provavelmente era quem cuidava da Zoe e…
— Era para a vovó ter vindo também — a menina esclarece a
minha dúvida, quase como se pudesse ler meus pensamentos. —
Só que…
— Tudo bem. Vai ficar tudo bem — digo, baixinho, sentindo
um vazio no peito.
Queria abraçá-la, mas acho que soaria tão estranho para a
mãe dela quanto soa na minha mente, um homem da minha idade
abraçando uma garotinha.
O mundo está repleto de pessoas doentes e por alguma
razão a ideia de que as duas possam pensar algo tão horrível sobre
mim me incomoda profundamente.
Nunca liguei para o que as pessoas pensam.
Nunca mesmo.
Mas a opinião delas conta.
Não sei o porquê.
Só sei que conta.
Alguns minutos depois, já com o céu totalmente colorido, a
acompanho até a cozinha onde preparo novamente seu café da
manhã.
Dessa vez, Éden não aparece usando sua camisa puída e
calcinha de algodão (sim, eu reparei no tecido da lingerie da minha
nora), mas com um moletom que cobre todas as partes de seu
corpo.
Suspiro de alívio, mas lá no fundo sinto uma frustração
inexplicável.
Éden Lavinski
 
Deixo a Zoe na escola mais uma vez rezando para o meu
carro não me deixar na mão. Preciso desesperadamente entregar
mais alguns currículos.
Acabo parando em frente a um prédio espelhado chique e tão
grande que poderia comportar umas dez empresas diferentes.
Olho ao redor, na recepção suntuosa, procurando uma
daquelas placas de prédios de consultórios que especificam o
proprietário de cada um dos andares.
Só que não tem nada disso.
O prédio inteiro pertence à TER Construtora.
Caramba!
— Bom dia — cumprimento a recepcionista, que me olha dos
pés à cabeça, reparando bastante no meu jeans e nos tênis
surrados.
— Bom dia. Em que posso ajudar? — responde, forçando um
tom simpático.
— Eu vi que estão selecionando estagiários e...
A dona de um penteado impecável levanta uma mão me
calando e pega um cartão do balcão.
— Pode enviar seu currículo para esse e-mail aos cuidados
dos Recursos Humanos, por gentileza.
— Ah. Certo... — murmuro.
Talvez seja a minha vivência de cidade pequena, mas lá em
Fort McMurray a gente costuma levar o currículo impresso e
conversar na hora com o gerente ou dono da empresa.
Pensando bem, dificilmente o dono de uma empresa desse
porte teria tempo de receber uma aspirante a estagiária.
Ainda assim, eu me sentiria mais confiante se tivesse
entregado o currículo extremamente mentiroso que elaborei nas
mãos de alguém. Quer dizer, não escrevi apenas mentiras, mas
posso ter aumentado a minha experiência um pouquinho.
Fazer a minha própria cortina talvez tenha se tornado algo
como “experiência em decoração de ambientes intimistas”. Talvez...
— Obrigada — murmuro.
— Disponha. Tenha um bom dia.
Guardo a frustração em um potinho no meu cérebro e tento
focar no lado positivo. Agora tenho um e-mail de contato e um
sonho.
É claro que alegria de pobre dura pouco e percebo isso ao
notar que levei uma multa por ficar 5 minutos parada em local
proibido.
— Merda! — xingo, pegando o papel amarelo deixado por
algum guarda de trânsito.
Ao tentar abrir, a maçaneta simplesmente sai na minha mão e
acabo tendo que entrar pela janela. Já fiz isso tantas vezes que não
costumo ficar envergonhada. O problema é o lugar onde estou.
Tem tanta gente bem-vestida e chique andando ao redor e
me olhando com ar de superioridade, que sinto as minhas
bochechas ficarem coradas.
Assim que me acomodo sob a proteção da minha lata-velha,
respiro fundo algumas vezes.
— Foda-se — murmuro para mim mesma. — Ninguém paga
as minhas contas.
Ninguém mesmo.
Nem eu.
Dou partida e sigo em direção ao outro local que havia
assinalado no jornal que roubei do Tristan essa manhã: Um café
que fica mais ou menos na metade do caminho entre a escola da
Zoe e o apartamento do meu “sogro”.
Não é uma oportunidade de estágio na área em que eu
pretendo me formar, mas é a vaga de lavadora de pratos ajudaria a
pagar as despesas com a Zoe e talvez consertar meu carro.
O problema é o horário de trabalho: das 14h às 20h seis dias
por semana. Teria que conseguir conciliar meu intervalo para buscar
a Bubbles na escolinha e levá-la para o apartamento e então
convencer a senhora Curtis a pegar mais algumas horas de trabalho
como babá.
Vai dar certo.

A quem eu quero enganar?


Vai dar muito errado.
A dona do café estava por lá e fez uma pequena entrevista
comigo. Não me passou despercebida a forma como levantou a
sobrancelha quando contei que tenho uma filha e que a buscaria na
aula durante o meu intervalo.
Acho que dentre todos os candidatos, acabei ficando em
último lugar. A mulher preferiria contratar um fulano qualquer que
estivesse passando na rua a mim.
Por que o mercado de trabalho é tão cruel com as mães? Em
especial com as mães solo.
Duvido que se o genitor da Zoe a criasse isso seria um
problema para seus empregadores...
Depois daquele fiasco e com o meu carro engasgando mais
do que o normal, decido encerrar a busca. Pelo menos por essa
manhã.
Assim que entro no apartamento vazio, solto um suspiro.
É bom chegar a um lugar “seguro”. O dono da casa saiu bem
cedo, por volta das 7 horas. Por alguma razão, ele se deu ao
trabalho de me informar que teria uma reunião no café da manhã.
Na hora, apenas dei de ombros e continuei a lavar a louça.
Agora, me pego pensando no porquê de ele ter dito isso como se
devesse algum tipo de explicação a mim.
Meu tênis, em contato com o carpete de madeira do corredor,
faz um som alto de borracha e me dou conta de que esqueci de tirar
o sapato ao entrar em casa. De novo.
Eu sempre esqueço.
Com isso, me distraio dos meus pensamentos anteriores e
começo a pensar no que fazer com todo o tempo livre que terei até
o final da tarde.
Ainda são 10h30 da manhã.
Poderia dormir novamente ou... E se eu fosse à academia do
prédio?
Nunca pisei lá, mas é uma forma de gastar energia e me
“desestressar”. Não é? Tem gente que gosta de treinar e até faz isso
diariamente. Não deve ser tão difícil.
Procuro uma roupa de ginástica e só encontro uma legging
de lycra e um top e blusa velhos.
Me olho no espelho do banheiro e noto que meu top mal
sustenta meus seios. Comprei quando era adolescente e de lá para
cá meu busto cresceu vários números, talvez por consequência de
ter amamentado a minha Bubbles durante dois anos e meio.
Não é como se alguém fosse me ver assim, então tudo bem.
Calço meu Vans surrado, o mesmo que foi tão severamente
julgado pela recepcionista da TER Construtora, e desço até o andar
da academia.
Havia acabado de pisar ali dentro quando um gemido
abafado chega aos meus ouvidos.
Porra. Será que alguém veio dar uma rapidinha nas áreas
comuns do prédio?
Ando fazendo o mínimo de barulho até conseguir espiar a
sala dos equipamentos de musculação. Um homem está deitado em
um dos bancos levantando uma barra com vários halteres de cada
lado. Deve estar pesado.
O braço musculoso ergue o equipamento mais uma vez e ele
geme de novo, soltando o ar com força.
Mordo o lábio, apertando as minhas coxas.
Caramba, faz tempo que não transo.
Muito, muito tempo.
O gostoso levanta o peso mais uma vez, fazendo aquele som
rouco e curiosamente sensual.
Dou mais um passo, atraída por sua presença.
Só queria ver melhor seu peito nu, mas acabo congelando no
lugar ao reconhecer a tatuagem do lado direito do tronco dele.
Tristan.
Meu sogro.
Porra!
Um desespero me faz tentar sair correndo apressada, mas
como boa desastrada que sou piso nos meus próprios cadarços que
não havia amarrado direito e acabo caindo de quatro no chão da
academia.
Um choque percorre meus joelhos e meus pulsos devido ao
impacto. Mas a maior dor é na minha alma. Que golpe para a minha
dignidade, senhores.
O som da barra sendo colocada no lugar ecoa atrás de mim
e, antes que eu possa ficar de pé por contra própria, ele me segura
pela cintura e me coloca de pé cuidadosamente.
— Argh... obrigada — digo, a contragosto. — Eu...
— Deixa eu ver se machucou — Tristan me corta.
Sem soltar a minha cintura, o quarentão em quem eu estava
babando dois minutos atrás, me guia até o banco onde estava
sentado e me acomoda.
Ele se agacha à minha frente e move a minha perna,
testando meu joelho direito. Sinto um leve choque, mas nada de
mais.
O problema é o joelho esquerdo...
Acho que foi com essa perna que tropecei e ela recebeu a
maior parte do impacto.
Assim que meu sogro tenta me fazer esticar o joelho, um
choramingo involuntário sai da minha garganta.
— Acho que pode estar apenas sensível do impacto, mas
seria bom ir ao médico para conferir — avalia.
— Certo. Vou fazer isso. Obrigada, senhor Ryan..
O pronome de tratamento o faz erguer os olhos para me
encarar pela primeira vez. Algo me diz que ele não gosta de ser
chamado assim. Faço uma anotação mental de usar “senhor” mais
vezes.
Qual é? Ele pode ter me ajudado agora, mas ainda é o
babaca das 200 pratas. Vamos ser honestos aqui.
— Vou ajudá-la a voltar para o apartamento. Nada de
academia por uns dias.
— Não precisa, eu consigo andar sozinha.
Para provar meu ponto, fico de pé em um salto e quase caio
novamente ao perceber que simplesmente não consigo colocar o
meu peso no joelho esquerdo.
Tristan me segura novamente pela cintura, firmando meu
corpo.
— O que dizia? — provoca, seus olhos brilhando com
diversão.
Lembro da educação que a minha mãe me deu e reprimo a
vontade de revirar os olhos.
Arrogante...
Deixo que me guie em direção ao elevador, tentando me
apoiar em Deus para não deixar todo o peso do meu corpo ser
carregado por ele.
É claro que falho miseravelmente e o homem praticamente
me reboca, mas vamos fingir que não foi assim.
— Você está se divertindo muito com isso — acuso, quando
olho para o espelho da caixa metálica e flagro um microssorriso no
canto da boca dele.
Ele me olha com desdém, disfarçando a diversão.
— O que você pretendia fazer na academia, afinal?
— Ah, deixa eu ver... geralmente as pessoas vão à academia
para cozinhar, sabe? — debocho, ganhando um olhar glacial.
— Suas piadas não são tão boas quanto imagina, senhorita
Lavinski.
— E a sua expressão não é tão intimidadora quanto você
gostaria, senhor Ryan.
— Enfant arrogant[18] — resmunga em francês.
Azar o dele que minha mãe tenha feito questão de me
ensinar o idioma.
No Canadá, temos dois idiomas oficiais, o inglês e o francês.
Só que o segundo é mas falado na capital, Otawa, e nas províncias
de Montreal e Quebec. Em Vancouver, quase metade da população
fala apenas inglês. Ou pelo menos apenas fluentemente.
— Vieil homme insupportable[19].
Travamos uma batalha com o olhar, em que nenhum dos dois
está disposto a ceder e ser o primeiro a desviar.
Por sorte, as portas se abrem por termos chegado à
cobertura e o movimento chama a atenção de ambos.
Tristan me ajuda a entrar no apartamento e me leva até a
porta do “meu quarto”.
— Vou me trocar e a levo ao hospital — anuncia e vira de
costas para mim.
— Não! — praticamente grito, fazendo-o me olhar por cima
do ombro com a testa franzida e uma expressão de puro
julgamento. — Não precisa. Já parou de doer.
— Você deveria fazer um raio-X pelo menos.
— Não — reitero.
— Você pode ter se machucado...
— Você não é meu pai! — digo, bem mais bruscamente do
que havia planejado.
Tristan continua a me encarar, claramente irritado, mas acaba
dando de ombros como se não valesse a pena sequer se estressar
a ponto de brigar comigo.
Quando ele some em seu próprio quarto, suspiro aliviada.
Não tenho seguro de saúde. Não mais.
O dinheiro que eu ganho no pub mal paga o da Zoe.
Isso é uma vergonha, pois o seguro aqui em Vancouver custa
menos de CAD 150[20] para uma família de dois. Só que a minha
situação estava tão complicada que tive que abrir mão do meu
seguro e deixar apenas o dela, diminuindo o custo para CAD 80.
É um custo muito baixo para um serviço de saúde tão
completo quanto o do Canadá. Ainda assim é muito caro para mim.
Pelo menos por enquanto.
E a prioridade é ela. Sempre.
Ando até a cama apoiando-me na parede e finjo que não
estou sentindo um choque percorrer a minha perna esquerda inteira.
Vai passar.
Só preciso de um analgésico e ficarei nova.
Tristan Ryan
 
— Estressado de novo, chefe?
Dou um olhar irritado na direção da Jennifer.
— Não.
— Vixi — exclama, assobiando.
— Já falei que não estou.
— Sua netinha rabiscou as paredes perfeitamente brancas da
sua cobertura?
— A Zoe não é esse tipo de criança. Ela é adorável e
inteligente e...
Paro de falar quando percebo que a minha secretária
fofoqueira havia se sentado e estava debruçada sobre a minha
mesa, com a expressão interessadíssima.
— Se você mandar mensagem para o Killian te demito —
ameaço.
— Nunca faria isso, chefe! — mente.
Ela sempre mente.
— Só adorei saber que você tem uma nova pessoa favorita.
— Hã?
— Preciso conhecer essa garotinha.
Dou de ombros pensando que não é como se eu pudesse
convidar a menina para passar uma tarde na minha empresa. Não
somos parentes. Não sou a porra do avô dela.
— Tá. Já sabemos que não foi a Zoe quem o irritou. Então...
— Você pode largar o osso uma vez na vida, Jennifer?
Os olhos dela se arregalam como se tivesse entendido muito
mais do que as minhas palavras ríspidas poderiam dizer.
Me surpreendendo de vez, ela sorri de um jeito caloroso e
fica de pé.
— Quer um café, chefe?
Levanto apenas uma sobrancelha, desconfiado de sua súbita
doçura.
— Sem veneno. Só café mesmo.
— Certo. Obrigado, Jen.
— De nada, chefe.
Quando já está na porta, minha amiga de longa data volta a
me encarar.
— E chefe?
— Sim?
— Vai dar tudo certo.
Não entendo o motivo de ter tentado me acalmar quando eu
claramente não estou estressado, mas agradeço de qualquer forma.
Sabe-se lá o que essa criatura acha ter compreendido.
Mulheres são estranhas.

Que dia exaustivo.


Aproveito a subida de elevador até a minha cobertura para
massagear as minhas têmporas.
Comecei com um café da manhã de negócios às 7h, voltei
para casa para treinar porque precisava gastar energia. O filho da
puta com quem me encontrei vendeu a droga do projeto que eu
queria arrematar para outra construtora.
Tive aquele encontro esquisito com a Éden, depois um
almoço com os acionistas de uma empresa que pretendo comprar,
trabalhei a tarde toda com uma das equipes de desenvolvimento de
projetos e finalizei com um jantar com o presidente de uma
companhia que quer fechar um contrato bilionário conosco, mas não
antes de ter seu ego bastante massageado.
Que dia...
As portas se abrem no meu hall e tiro meus sapatos,
colocando-os perfeitamente alinhados na chapelaria. Não consigo
evitar o revirar de olhos diante dos tênis da minha inquilina que
parecem ter sido chutados de qualquer jeito.
Pelo menos, a Zoe é uma boa menina. Seus sapatos infantis
estão arrumados no cantinho.
O som de uma música infantil vindo da televisão ligada me
faz franzir a testa. É tarde para uma criança estar acordada.
Quando entro na sala, vejo Éden dormindo sentada com a
perna esquerda apoiada em um pufe e Zoe deitada em seu colo,
encolhida de frio.
Quero dar um grito com a mãe por não tê-la levado para o
quarto, mas quando me aproximo, a garotinha abre os olhos e
coloca um dedo sobre a boca, me pedindo silêncio.
Cuidadosamente, ela se levanta sem mexer na mãe e segura
a minha mão, me puxando até o corredor.
— O que houve, criança?
— A mamãe machucou o joelho e estava com muita dor
quando chegamos em casa. Ela sentou ali no sofá e não conseguiu
mais levantar.
— Que horas foi isso?
Ela dá de ombros, indicando que provavelmente faz muitas
horas.
Zoe pelo menos trocou a roupa da escola.
— Você jantou?
— Peguei iogurte na geladeira.
— Quer um leite ou...
Um bocejo me cala.
— Estou bem, Tris. Só não queria deixar a mamãe sozinha.
Ela tomou uns comprimidos para a dor e...
— Apagou — concluo.
A garotinha boceja novamente e acena.
— Vai deitar, Zoe. Eu ajudo a sua mãe.
Vejo a dúvida em seu olhar. Ela sabe que Éden e eu estamos
longe de termos uma boa convivência.
Abaixo para nossos olhos ficarem na mesma altura.
— Pode ir, amorzinho. Eu cuido dela.
— Mesmo?
Beijo sua testa e ela se dá por satisfeita, arrastando os pés
cansados pelo corredor até o quarto que está dividindo com a mãe.
Quando fico sozinho, esfrego o rosto, nervoso.
Eu sabia que deveria ter insistido em levá-la ao hospital.
Não posso fazer isso agora, pois não tem como deixar a Zoe
sozinha.
Volto para a sala e observo a criatura irritante em uma
posição totalmente desconfortável.
— Senhorita Lavinski? — tento acordá-la chamando a 2
metros de distância.
Nem uma reação sequer. Dou dois passos, ficando diante do
sofá e tento novamente.
— Éden?
Nem mesmo suas pálpebras se movem, como se estivesse
em um sono completamente sem sonhos.
Por instinto, posiciono um dedo embaixo do nariz dela. Só
para me certificar de que está respirando.
Tudo certo. Ufa.
Me inclino em sua direção e chamo seu nome uma terceira
vez, mas ela apenas resmunga algo incompreensível.
— Éden, você precisa ir para a cama. Vai ficar com torcicolo
— argumento, como se fizesse algum sentido falar com quem nem
ao menos está acordado.
Quando percebo que não vai acordar mesmo, solto o ar com
força e, então, passo um braço atrás de suas costas e o outro por
baixo de suas pernas. Faço questão de evitar segurá-la pelos
joelhos, pois não sei o quanto está doendo. Parece inchado, então
não deve ser nada agradável.
Levanto seu corpo pequeno sem dificuldade e a mulher se
aninha em mim com um suspiro.
Por um instante, meu corpo todo se arrepia e eu travo no
lugar ao sentir seu hálito quente na curva do meu pescoço.
Aos poucos, ela relaxa e eu também.
Enquanto a carrego pelo corredor, preciso segurar a vontade
de rir ao imaginar sua expressão enfurecida se soubesse que
acabou a noite no meu colo.
Imediatamente, me repreendo pela simples ideia do
comentário, pois ele me faz imaginar cenas que eu não deveria
sequer cogitar. Cenas que envolvem Éden no meu colo, porém em
uma situação bastante diferente da que nos encontramos nesse
momento.
Quando a coloco na cama, a morena solta outro suspiro e se
aninha no travesseiro. Zoe abre os olhos ao lado da mãe e pisca
para mim.
— Obrigada por cuidar dela, Tris — escuto-a dizer em um
sussurro.
— Sempre, Pipoquinha.
E foi assim que dei um apelido a uma garotinha que eu nem
conhecia quatro dias atrás.

— Será que dá para você parar de fazer birra? — brado,


depois de 15 minutos argumentando com a criatura irritante sobre a
necessidade de ir ao médico.
Zoe volta para a sala nesse momento, carregando sua
mochila, mesmo que ainda seja cedo. Pelo que observei, elas
costumam sair por volta das 8h30, o que indica que as aulas devem
começar às 9 horas.
— Preciso levar a minha filha na escola — retruca,
levantando o queixo em desafio.
Para seu azar, assim que ela fica de pé, dá um ganido e
praticamente se joga para trás no sofá.
— São 7h45. Dá tempo de irmos ao hospital e deixar a Zoe
na escola a tempo.
— Nós? — pergunta, arregalando os olhos.
— Para de enrolar, senhorita Lavinski. Cada segundo de
pirraça é mais risco da Zoe se atrasar para a primeira aula.
— Não me importo — a baixinha cantarola. — A primeira aula
é geometria.
Rio baixinho da cara de pau, enquanto estendo a mão para
ajudar sua mãe a ficar de pé.
Éden parece preferir rastejar até o elevador do que aceitar a
minha ajuda, mas a filha se posiciona ao meu lado e acho que isso
a deixa envergonhada.
Nota-se quem é a adulta entre as duas.
Seguro sua cintura, trincando os dentes diante da reação do
meu corpo à nossa proximidade. É algo semelhante à confusão que
me acometeu na noite passada, quando a deixei em sua cama e
depois rolei nos meus próprios lençóis por horas, inquieto.
— Podemos ir até a clínica do bairro...
— Vamos a um hospital — defino, sem dar margem para
novas discussões.
Vejo-a prender a respiração, mas não sei dizer se é uma
reação à proximidade com o meu corpo, tal qual eu reagi ao dela,
receio de algo ou apenas uma de suas respostas malcriadas.
Assim que chegamos ao hospital, ela é levada para o
atendimento médico e Zoe e eu ficamos sentados na recepção.
A garotinha balança as pernas no ar, parecendo ansiosa.
— Ela vai ficar boa — digo, baixinho, como se confessasse
algo a ela.
Isso a faz sorrir, mas a diversão não chega aos seus olhos.
— A vovó teve que ir ao hospital também.
Isso me causa um aperto no peito e, inconscientemente,
acabo puxando-a para um abraço. Zoe se encaixa no meu peito
imediatamente.
— Não é a mesma coisa, Pipoquinha. Sua avó... — paro de
falar, pois não faço ideia do que tenha acontecido com a mãe da
Éden. Sei apenas que faleceu. — Sua mãe apenas torceu o joelho.
Talvez tenha que usar um gesso bem legal e você vai poder
desenhar nele.
Isso a faz rir.
— Lavinski — uma mulher chama da recepção e eu me
levanto, acompanhado da garotinha.
— Sim? — respondo.
— Você é o marido de Éden Lavinski?
Aquilo me pega desprevenido e reajo negando
terminantemente.
— Não. Não. Não mesmo. Não.
— Preciso de um familiar dela para poder passar
informações, senhor.
— Ela é a minha mãe! — Zoe se manifesta, mas a mulher
olha de cima para ela, de um jeito emburrado.
— Um adulto. Preciso de um adulto.
Arranho a garganta.
— Eu sou o... o sogro dela.
Por alguma razão, Zoe arregala os olhos, como se esperasse
que eu dissesse qualquer coisa menos isso.
— Senhor...
— Ryan. Tristan Ryan.
— Certo. Você e sua neta podem me acompanhar, então — a
mulher termina de bater o último prego na minha dignidade.
— Não é minha neta — murmuro tão baixo que é mais uma
reclamação para mim mesmo do que para ela.
Pego a mão da garotinha e sigo a funcionária do hospital pelo
corredor. Paramos ao lado de uma porta e consigo ver a Éden
deitada em uma poltrona, tomando soro.
— Mamãe! — Zoe exclama e corre até ela.
Faço menção de ir atrás, mas a mulher que nos levou até lá
me para.
— Senhor, aparentemente a senhora Lavinski não está
pagando o seguro de saúde. Podemos enviar a cobrança para...
— Minha secretária vai cuidar disso — digo, cortando-a, e
entrego meu cartão de visitas. — Envie a fatura para esse contato e
ela efetuará o pagamento imediatamente.
Éden está sem seguro de saúde?
É tão barato que chega a soar ridículo.
Por um instante, a julgo. Só que no segundo seguinte, me
recordo de um tempo, décadas atrás, quando eu próprio precisei
abrir mão do meu seguro de saúde para poder pagar o do Jackson.
Será que foi esse o caso?
Faço uma anotação mental de verificar e providenciar o
pagamento para as duas.
Só então ando até mãe e filha.
Minha nora não consegue me encarar.
— Acho que vou demorar um pouco aqui...
— Tudo bem. Levo a Zoe para a escola e volto.
— Não precisa! — apressa-se a negar. — Não quebrei nada,
só está inflamado do impacto. Vou tomar alguns medicamentos e
preciso usar essa joelheira por 15 dias — explica, apontando o
material ao redor de seu joelho esquerdo.
— Ótimo. Mas vou voltar mesmo assim. — Então olho na
direção da Zoe. — Pronta para a aula?
— Sim!
Saímos deixando para trás uma Éden bastante pensativa.
Éden Lavinski
 
Peço pela terceira vez para chamarem a pessoa responsável
pela tesouraria do hospital. Quero tentar negociar a conta antes que
o Tristan volte.
Quando vejo uma mulher bem vestida e com a expressão de
poucos amigos, imagino que seja a própria.
— Pois não, senhora Lavinski?
— Sobre a conta...
— Seu sogro já cuidou de tudo.
— O-o quê? — balbucio, mortificada. — Por que vocês
cobraram dele?
A funcionária franze o cenho, mas sequer se dá ao trabalho
de me dar qualquer tipo de satisfação.
— Com licença, senhora — diz, antes de sair sem nem se
despedir.
Que grossa!
Suspiro, tentando imaginar como farei para pagar tudo o que
estou devendo a Tristan Ryan.
Mas pior do que só aumentar os meus débitos com ele, é a
vergonha por estar mentindo descaradamente enquanto leva a
minha filha para a escola.
Pego o celular do bolso e digito uma mensagem rápida para
o Jax.
Precisamos contar para o pai dele que não somos
namorados.
Essa farsa precisa acabar.
— Éden, eu sei que meu pai é gente boa, mas não é como se
ele fosse ficar magoado porque não somos namorados. Relaxa!
Olho para o celular, enxergando muito bem a cara cínica do
meu ex-namorado.
Jax não é uma pessoa ruim.
Não mesmo.
Ele, por exemplo, não tinha nenhuma obrigação de estar me
ajudando.
Nós ficamos por um tempo, mas nunca foi um compromisso
de verdade. Fiquei chateada quando ele reagiu como se tivesse sido
convocado para a guerra só porque eu comentei que seria legal
conhecer a minha filha.
O babaca!
Eu nem estava falando isso por achar que tínhamos um
namoro sério e iríamos nos casar. Só que, depois da Ally, ele era
meu único amigo na cidade e eu realmente queria que a Zoe o
conhecesse.
O tonto embarcou na semana seguinte para um curso de
arqueologia na Itália. Arqueologia! Aprenderia a usar pincéis para
limpar ossos enterrados!
Bufo.
Sei que é uma profissão incrível e não tão simples assim,
como eu fiz parecer. Sem arqueologia não teríamos descoberto
nossa história, como civilização.
Mas o fato é que Jax estudava ciência do esporte antes
disso.
Foi como ir de um extremo ao outro em menos de 10 dias. E,
obviamente, me soou como a forma mais fácil de se livrar de mim.
Como se eu quisesse algo com ele!
Argh.
Um mês depois de mudar de continente, o otário me ligou,
todo envergonhado e pedindo um milhão de desculpas. Segundo
ele, não queria perder a minha amizade.
Tinha conhecido uma garota e ela o fez “ver a importância de
coisas simples como a amizade”. Palavras dele. Ou dela. Sei lá.
Eu até falei com a moça em uma chamada de vídeo. É uma
italiana formada em história que está fazendo o mesmo curso que
ele. Gente boa. Gostei dela e realmente venho sentindo que tem
feito bem ao Jax.
Então por que a versão amadurecida de Jackson Graham
Ryan não consegue pensar sobre os sentimentos do próprio pai?
Isso me irrita tanto que parece uma ofensa pessoal a mim.
— Édenzinha, olha para mim — meu ex chama. — Respira,
garota. Meu pai não vai ficar puto. Ele é de boa!
— Ainda acho melhor contar tudo para ele…
— Na real, eu nem sei por que mentimos para começo de
conversa. Ele não ia te expulsar de casa com uma criança pequena
se tivéssemos apenas dito que você é minha amiga.
É. Eu sei. Agora.
Só que não sabia naquele momento. Vi o cara que tinha sido
um babaca no pub e achei que ele era um saco de lixo sem-
coração.
Hoje, entendo que Tristan está longe de ser alguém ruim.
Ele trata a minha filha com tanto carinho que meu coração
chega a errar uma batida todas as vezes que os flagro conversando.
É como se ele mergulhasse no mundo dela e conversasse de igual
para igual. Não como um adulto que está tolerando a tagarelice de
uma criança.
Se naquele dia eu soubesse 10% do que sei sobre ele hoje,
não teria mentido sobre o meu estado civil.
— Eu surtei, tá legal? — choramingo. — Entrei em pânico e
fiz a primeira coisa que passou pela minha cabeça.
— Eu quis te alertar na hora, mas você já estava me
chamando de mozão e não quis te desmascarar.
— Seria uma vergonha monstruosa…
— Tudo bem, deixa que eu falo com ele. Digo que foi ideia
minha.
— Mas ele não vai ficar chateado com você?
— Éden, quantas vezes vou ter que dizer que meu pai é de
boa? Ele não gosta de mentiras, mas não vai me deserdar por isso,
muito menos te jogar na sarjeta.
Me pego percebendo que, muito embora ficar desabrigada
me preocupe, eu também me importo com o que Tristan pensará a
meu respeito. Não quero que ele me odeie. Não vai deserdar o filho,
mas pode optar por nunca mais olhar na minha cara. Ou pior, nunca
mais olhar na cara da Zoe. E ela gosta tanto dele…
— Mais calma?
Mordo o lábio.
— Você vai mesmo falar com ele?
— Vou sim. Deixa que eu me entendo com o meu velho.
A forma como se refere àquele espetáculo de homem quase
me faz rir de deboche. Afinal, o pai é trinta mil vezes mais sexy do
que o filho. Nossa! Trinta mil é pouco. Um milhão!
Não que Jax seja feio.
Ele tem a mesma composição corporal larga, esguia e com
músculos definidos. Seus olhos são de um azul claro, quase como
um mar cristalino, mas nem de longe tão intensos e sensuais como
as duas pérolas negras de Tristan.
O rosto é semelhante, mas não igual. E o pai tem aquela
barba cheia, que me faz arrepiar...
Ah, não sei explicar!
Só sei que Tristan mexe com partes de mim que nem
deveriam estar despertas. Não quando estou dividindo o teto com
um homem que mal me suporta.
— Ok? — pergunta.
Suspiro e confirmo com um menear de cabeça.
— Ótimo. A Nina e eu vamos sair em uma viagem para
escavar e voltamos em três semanas. Aí eu falo com o meu coroa,
ok? Preciso ir, Éden. Beijo!
— Jax! — grito, mas o safado já tinha desligado. — Porra!
Três semanas?!
Ele quer que eu minta por mais três semanas?
Que merda!
Bato a cabeça contra o volante do meu carro, me sentindo
derrotada.
— Pensando em escapar do trabalho hoje, amiga? — A voz
de Ally me pega tão de surpresa que dou um pulo na poltrona.
O parafuso que a segurava no lugar – e já estava “mais para
lá do que para cá” – espana de vez e ouço o encosto despencar,
caindo sobre o banco de trás.
— Puta merda! Você está bem, Éden?! — Ally pergunta.
Minha amiga tenta abrir a porta do meu carro para conferir,
mas a maçaneta sai em sua mão.
— Caramba! Seu carro está prestes a desabar. Isso aqui é
um risco de vida! A polícia...
Corto seu longo discurso sobre como não deveria estar
andando por aí com um carro tão velho assim, afinal não vai
adiantar de nada. Continuarei sem grana para consertar a lata-velha
ou comprar um veículo novo.
— Me ajuda a sair? Não posso dobrar o joelho.
Ally arregala os olhos, mas me atende, me segurando pelos
braços e me ajudando a pular a janela com o máximo de cuidado
possível.
Em sua defesa, ela realmente tentou não rir. Pelo menos
enquanto me ajudava. Mas, assim que pouso no chão, em
segurança, a pilantra solta uma gargalhada gostosa.
— Seu carro merecia ir parar em um daqueles documentários
sobre ferro-velho.
— Se pagarem... — murmuro, tentando arrumar a minha
roupa, afinal tenho um turno de trabalho me esperando.
Sigo pelo estacionamento, apoiada nos ombros da minha
única amiga e arrastando a perna esquerda para não dobrar o
joelho.
Não dá para piorar. Eu realmente cheguei ao fundo do poço.

Adivinha só?
Dava para piorar.
Dava para piorar, e muito!
Queria poder chutar o pneu do meu carro, mas meu joelho
esquerdo continua dolorido, mesmo que eu já esteja tomando as
medicações e usando a joelheira de compressão há cinco dias.
A lata-velha pifou de vez a caminho da faculdade.
Justo no meu primeiro dia de aula!
Pelo menos, consegui deixar a Zoe na escola antes de
acabar a pé no meio da rua.
O carro ao menos teve a decência de me esperar estacionar
antes de dar seu último suspiro. Que, no caso, foi uma nuvem de
fumaça preta vinda do capô.
— Eu disse que o motor estava se despedindo, gata — o
mecânico diz, pelo telefone.
— Mas...
— Hora de desapegar. Deixa ele partir — diz, como se
falasse de um ser vivo prestes a ter suas máquinas de suporte
avançado desligadas.
— Já acabou?
— O quê, gata?
— O velório da porra do carro! — grito, puta da vida.
O mecânico fica mudo do outro lado, provavelmente
assustado pelo meu rompante.
— Foi mal... — murmuro.
— Tudo bem.
— Não é sua culpa.
— Relaxa, gata. É chato mesmo quando ficamos na mão.
Mas não tem o que fazer, seu carro nem pode mais ser chamado
assim. É só uma junção de peças enferrujadas que não funcionam
mais.
— Você está bastante filosófico hoje, né? — digo, emburrada.
— Fumei unzinho essa manhã. Só para relaxar, sabe? Você
deveria tentar, gata.
— Tô de boa — respondo, ainda mais irritada.
Meu mecânico curte uma erva para relaxar. Será que ele
estava chapado quando mexeu no meu motor da última vez?
— Quer que eu mande o guincho? — o sujeito pergunta a
primeira coisa sensata em vários minutos de conversa.
— Quanto custa essa brincadeira?
— Para você? 100 pratas.
— Por acaso você está cobrando mais caro de mim?! —
pergunto, indignada com o preço.
— Claro que não, gata. Os outros clientes pagam “200tinhos”.
— Nossa, mas por esse preço você precisa jogar um
punhado de areia, rezar uma missa e acender até uma vela para o
meu carro, cara!
Ele gargalha como se fosse a piada do século.
Deve ser a erva.
— Você é doidinha, sabia? Igual a uma gaivota voando para
longe...
Com certeza é a erva.
— Valeu — começo a me despedir.
— Vai querer o guincho, gata?
— Não. Vou fazer o funeral aqui na calçada mesmo.
— Beleza. Vou acender uma vela pelo seu carro... — diz,
morrendo de rir.
Vai sim... vai é acender outro cigarro...
Pego todos os meus pertences, dou uma última olhada no
meu fiel escudeiro de tantos anos e sigo a pé para a faculdade
antes que perca a primeira aula de arquitetura.
Talvez esteja tudo uma merda agora, mas sinto que as coisas
vão começar a mudar.
Elas precisam mudar.
Tristan Ryan
 
— Chefe? — A voz da Jennifer soa pelo alto-falante do
telefone, em cima da minha mesa, me pegando de surpresa.
— Puta que pariu! — xingo, sem apertar a tecla para
respondê-la.
Ainda assim, a pilantra deve ter ouvido, pois uma batida soa
na porta.
— Entra.
— Levou um susto, chefinho?
— Sem-graça — resmungo.
Ela sorri, divertindo-se às minhas custas.
— A Margareth, do RH, fez a pré-seleção dos estagiários.
— Certo, pede para ela trazer a papelada. Vou olhar os
currículos essa tarde.
Jennifer continua em pé, me encarando.
— Então...?
— Você sabe que paga gente qualificada para encontrar os
melhores candidatos, não é?
— Eu sei, Jen. Só... gosto de fazer isso. — Dou de ombros.
Gosto mesmo.
Quando comecei a faculdade, ninguém queria me dar uma
oportunidade. O ex-auxiliar de pedreiro não era bom o bastante para
um estágio em engenharia ou uma vaga em uma multinacional.
Tive que brigar com unhas e dentes para ser alguém.
Então, gosto de olhar os currículos todos os anos, pensando
em quem poderia passar despercebido por um recrutador comum.
É claro que a pessoa precisa ser boa.
Isso não é uma ação voltada para a caridade. Preciso de
pessoas trabalhadoras e que sejam as mais fodas em suas áreas.
Mas muitas vezes esse “ser foda” pode estar escondido atrás
de roupas pouco adequadas e uma experiência duvidosa.
Para mim, o cara que trabalha a semana toda e ainda faz
bicos aos finais de semana para conseguir pagar a faculdade
merece ser tão reconhecido quanto aquele que vem vestindo um
terno de marca e pode se preocupar em ser apenas o melhor amigo,
pois suas contas estão pagas.
Não é mais, nem menos. É igual.
Era o que eu queria quando foi a minha vez. Ser igual. Não
ser desmerecido, desvalorizado. Não ter que trabalhar cinco vezes
mais do que todo mundo ao meu redor.
Minha secretária me observa por mais um instante, então
sorri.
— Vou te trazer um café, chefinho.
Café no meio da tarde? Devo ter feito alguma coisa certa
para merecer tamanha gentileza de uma pessoa tão folgada.

Já tinha confirmado a contratação de três dos quatro


estagiários que precisávamos. Faltava apenas uma vaga, a do setor
de projetos.
— Precisa de mais alguma coisa, chefe? — Jennifer
pergunta, me fazendo notar que são quase seis da tarde.
— Não — respondo, pensativo.
Geralmente, trabalho até tarde por não ter absolutamente
ninguém esperando. Mas se eu fosse mais cedo poderia...
— Você deveria.
— Hã? — balbucio, olhando para a minha secretária.
— Deveria ir para casa fazer isso.
— O que é “isso”?
— Qualquer coisa que você esteja pensando, chefe. Só sei
que sua expressão de workaholic suavizou por um instante.
Mordo as bochechas, sem saber o que dizer.
— Anda, homem. Vaza.
— Sabe que eu ainda mando aqui, não é?
— Se você diz...
Reviro os olhos diante do abuso, mas obedeço.
Dessa vez.
Junto os currículos espalhados na minha mesa e coloco-os
em uma pasta de couro. Não uso sempre esses acessórios, exceto
quando preciso transportar algo que não seja totalmente digital.
Quando eu assinava todos os projetos da empresa, quase
duas décadas atrás, eu vivia carregando as plantas em que estava
trabalhando para cima e para baixo.
Agora que tenho alguns setores de projetos, não preciso me
preocupar com isso.
Olho a pasta em minhas mãos, mas opto por deixá-la no
escritório mesmo.
A contratação pode esperar mais um dia.
Chego em casa uns quinze minutos depois e encontro tudo
silencioso.
Minha primeira reação é chamar o nome da Zoe, mas ela não
responde.
Um aperto no peito, me faz invadir o antigo quarto do meu
filho, com receio de que elas tenham ido embora para sempre.
Sinto um alívio instantâneo ao ver que suas coisas ainda
estão ali. Contudo, não demoro para começar a reparar demais em
todos os itens que compõem o ambiente.
A cama de casal comporta uma criança e uma mulher, mas
seria mais confortável se tivessem uma para cada, não?
As paredes são brancas e azuis, a escrivaninha tem itens de
decoração masculinos e o armário claramente é pequeno demais
para duas mulheres, já que há algumas pilhas espalhadas pela
mesa onde Zoe deveria estar fazendo seu dever de casa.
E onde estão os brinquedos? Tem apenas uma boneca em
cima da cama.
Imediatamente, me pego pensando na Bellinha que tem
todos os brinquedos comprados por seu pai e mais os presentes
absurdamente caros que Killian e eu vivemos comprando para ela.
A Zoe não tem brinquedos?
Como eu não percebi isso antes?
Também não me passa despercebida a diferença entre as
duas.
De um lado, há algumas roupas e sapatos infantis
perfeitamente dobrados. Do outro, um caos completo. Reconheço
uma jaqueta de couro, botas, umas quatro camisetas.
Éden é uma bagunceira do caralho.
Nem tenho tempo de me irritar com seus modos, pois escuto
o som da porta da sala se abrindo e vozes preenchendo o ambiente
até então silencioso.
Saio sem fazer barulho, fechando a porta atrás de mim.
Então, ando pelo corredor despretensiosamente, como se
estivesse vindo do meu quarto e, por acaso, as encontrado na sala.
Tudo milimetricamente pensado para soar aleatório.
— Oi, Tris! — Zoe corre até mim e me abraça pela cintura.
Inclino-me para ficar na altura de seus olhos e retribuo o
abraço caloroso.
— Como foi a aula, Pipoquinha?
— Boa! Hoje teve aula de música.
— Ah, é? — pergunto, reparando que Éden despenca
sentada em uma das cadeiras da sala de jantar e fecha os olhos.
— Sim, foi muito legal — responde.
Abaixo o tom de voz, para apenas a garotinha me ouvir.
— Sua mãe parece cansada.
— A gente veio a pé.
— Mas o joelho...
— Eu estou ouvindo! — a mulher diz, sem abrir os olhos. —
Fofoqueiros.
— Seu joelho não está bom para ficar andando por aí —
retruco, ficando de pé.
— Você é médico agora?
— Você é criança, agora? Porque está agindo como...
É a voz de Zoe que nos faz calar.
— O Latinha morreu.
Arregalo os olhos, encarando a garotinha.
— Quem?! O que houve?! — pergunto, assustado.
Como assim alguém morreu?
— O carro da mamãe — conta, como se dissesse a coisa
mais coerente do universo.
Puta merda.
Olho para Éden, em busca de explicações e ela apenas dá
de ombros.
— Eu o chamava de Lata-Velha — diz, como se isso
explicasse tudo.
Meu olho esquerdo começa a tremer.
Essa mulher é ridiculamente irritante.
— Você levou ao mecânico?
— Não, Tris! — Zoe me interrompe. — O Latinha morreu
mesmo. A gente foi até ele para dizer suas últimas palavras.
Fizeram a porra do velório do caralho do carro velho?
Éden dá de ombros e eu resolvo abandonar o assunto. Não
quero saber se acenderam uma vela e rezaram um Pai Nosso para
o carro...
— Nossa, tô com fome! — Zoe diz e eu aproveito para
perguntar o que ela quer comer.
— Vou preparar...
— Não! — a garotinha e eu dizemos ao mesmo tempo.
Tudo o que eu não preciso em uma segunda-feira à noite é
da casa fedendo a queimado novamente.
— Vou pedir comida.
— Não! — Éden exclama, então reitera: — Não mesmo.
Bubbles, diga ao senhor Ryan que não precisa se preocupar.
Minha fiel aliada responde fazendo uma expressão confusa.
— Quem é senhor Ryan?
— Ninguém, Pipoquinha. O que você quer comer hoje?
— Senh...
Levanto um dedo, calando-a. A mulher fica em silêncio por
um instante, mas logo parece se dar conta de que havia me
obedecido. Um olhar furioso é voltado imediatamente para mim.
— Não precisa pedir comida para nós, Tristan — diz,
entredentes.
— Você pode ficar discutindo comigo por meia hora ou só
escolher o que quer comer para podermos jantar mais cedo. Estou
faminto!
Mentira. Não estou realmente com fome, mas sei que a Zoe
sim e isso basta.
A mãe dela prende a respiração, claramente irritada, mas
aquiesce finalmente.

— Então, vocês vieram andando? — pergunto em meio ao


jantar, tentando soar o mais casual possível.
Zoe acena, mastigando sua lasanha, e Éden me observa de
canto de olho.
— E o carro...
— Estou providenciando — ela diz.
Quero insistir e chamá-la de infantil, mas sei que vamos cair
em uma das nossas discussões, então apenas bebo um gole da
minha taça de vinho.
Mais tarde, já no meu quarto, abro o grupo “Capitão ganho e
amigos”. Coloquei esse nome para irritar o Peter.
Eu, obviamente, sou o gancho.
 
Eu: Alguém conhece um mecânico?
 
Peter Pan: Você conseguiu foder um Aston Martin
novinho, filho da puta?
 
Crocodilo Tic Tac: É um arrombado mesmo. Ralou na
garagem ou bateu o carro, puto?
 
Killian de Tic Tac é demais. Mas gargalho ao ler o comentário
do James, que nos meus contatos está nomeado como Wendy.
 
Wendy: Que dor no coração, porra.
 
Eu: Primeiramente,
Eu:
Eu: Segundamente, nunca mais coloquem meu Aston
Martin e uma ralada no capô na mesma frase. Chega a ser um
sacrilégio.
Eu:

Eu:

 
Wendy: Figurinhas do caralho.
 
Crocodilo Tic Tac:

 
Peter Pan: Fala logo o que aconteceu com o carro, porra!
 
Eu: Não é o meu carro...
 
Peter Pan:

 
Crocodilo Tic Tac:
 
Peter Pan:

 
Crocodilo Tic Tac:
 

 
Wendy: Fala logo de quem é o carro ou eles não vão
parar com as porras das figurinhas!
 
Eu: Da Éden...
 
Peter Pan: Também conhecida como...?
 
Eu: A mãe da Zoe.
 
Crocodilo Tic Tac: A Zoe é a garotinha filha da namorada
do Tristan Júnior, né?
 
Wendy: Ou seja, sua nora?
 
Mordo as bochechas com força ao pensar sobre o termo
usado pelo meu amigo. A palavra que eu venho evitando há dias.
Desde o hospital. Minha... nora.
Mas é isso que ela é. Não?
 
Eu: É...
 
Peter Pan: O que você está escondendo de nós, Ryan?
 
Suspiro pesado, ciente de que não vou mais conseguir me
esquivar do assunto.
 
Eu: Elas estão morando aqui em casa.
 
O grupo cai em um silêncio assustador. Para três fofoqueiros
de merda, eles se assustaram rápido demais. Aproveito para tirar o
curativo de vez e conto a última parte.
 
Eu: E a Éden é a garçonete daquela noite, no Red Pub.
 
Penso que quebrei os três com a informação, mas logo
recebo o convite para uma chamada de vídeo em grupo. Killian é o
primeiro a gritar um sonoro “que porra é essa?”, mas os demais não
deixaram por menos.
Ainda a contragosto, conto tudo o que aconteceu nos últimos
oito dias.
Éden Lavinski
 
Acordo antes do meu horário usual e ainda mais irritada.
Preciso levar a Bubbles para a aula andando novamente e
meu joelho está muito dolorido da caminhada de ontem.
Se tivesse grana sobrando, pagaria um Uber. Mas, nesse
momento, até o transporte público é um luxo que não cabe no meu
orçamento.
Não quando precisaria gastar duas passagens para levá-la,
uma para ir à faculdade, que fica do outro lado da cidade, outra para
voltar para o apartamento ou ir procurar emprego e por fim mais
duas para trazer a Zoe de volta à noite.
É muito dinheiro.
Mesmo que o combustível não seja barato, ainda é mais em
conta do que tudo isso.
Saio do quarto, ouvindo a conversa animada entre Tristan e a
minha filha.
Sinto-me mal todas as vezes que ele faz café da manhã para
ela. Parece que estamos apenas abusando de sua hospitalidade –
por mais insuportável e arrogante que ele seja. E nem tenho a
decência de ser sincera com o homem.
Jax precisa contar logo que não namoramos. Ou poderíamos
inventar um término. Se bem que deve ser mais possível que ele me
expulse de sua casa se seu filho e eu terminarmos... Contar a
verdade pode ser o mais garantido...
Ah, não sei! Não sei de mais nada!
Só tenho certeza de que a minha situação piorou ao invés de
melhorar.
Não tinha onde morar, agora nem tenho um carro velho.
— Bom dia — murmuro, ao entrar na cozinha, dando uma
olhada de soslaio para o homem enorme, encostado no balcão.
— Bom dia, mamãe!
Beijo a cabeça dela.
— Bom dia, Bubbles. Já acabou de comer?
— Sim!
— Então vá escovar os dentes e se trocar, ok?
Ela levanta e sai empolgada, mas não sem antes dizer
obrigada ao Tristan pelo café da manhã.
Será que ela sentirá falta dele quando o sujeito nos chutar
para a sarjeta?
Ele estala o dedo em frente ao meu rosto para chamar a
minha atenção.
— O que foi?! — pergunto, mais rispidamente do que o
previsto.
— Tem ovos mexidos para você, malcriada — aponta a
panela sobre o fogão com uma expressão sombria.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ele vira de costas
e sai.
Ótimo. Se ficasse aqui eu teria que pedir desculpas e não
quero.
Sirvo um prato e como mais do que o necessário, ainda pego
um iogurte e uma banana. Sei que é feio comer como se fosse
gulosa, mas Deus sabe que não tenho grana para um lanche na
faculdade...
Depois de me alimentar e lavar a louça, afinal, sou educada
(pelo menos de vez em quando), vou escovar os dentes e pegar a
minha jaqueta.
Ao voltar para a sala, Tristan está parado à porta, enquanto
conversa com a Zoe.
O homem está impecável, vestindo um terno de três peças
que grita luxo. A única coisa destoando é o fato de que ele está
segurando a mochila lilás da minha filha.
Ele ri de algo que ela comenta, mas seu corpo parece notar a
minha chegada, já que seu tronco vira na minha direção
imediatamente.
Tristan olha para baixo e então começa a subir fitando dos
meus Vans[21] até a minha jaqueta de couro. Seu olhar só para de
percorrer meu corpo quando me encara, travando, como sempre,
uma batalha silenciosa.
— Pronta? — pergunta, com a voz um pouco mais rouca do
que de costume.
Observo-o arranhar a garganta e virar para abrir a porta,
como se nada tivesse acontecido.
Já eu, continuo paralisada no lugar, sem conseguir reagir ou
mesmo encontrar forças para arrastar minha perna machucada
pelas ruas de Vancouver.
Só quando ouço o elevador é que saio para o hall e chamo a
atenção dos dois.
— Como assim “pronta”?
— Vou levar vocês.
— Não pre...
— São 8 horas da manhã, Éden. Facilita a porra da minha
vida.
— Não xinga perto da minha filha!
O homem de mais de 1,90m arregala os olhos e murmura um
pedido de desculpas para a garotinha, que dá de ombros como se
não fosse nada de mais.
Lá no fundo, não é.
Eu falo mais palavrão do que um caminhoneiro, mas eu sou
eu. Eu posso. Ele não.
Já estamos no elevador quando me lembro do carro de luxo
em que ele entrou, no dia em que nos conhecemos.
— Não cabe nós três no seu carro! — acuso.
Tristan nem mesmo esboça reação.
Só quando as portas se abrem no subsolo é que me encara.
— Aquele é um dos meus carros — diz, antes de sair guiando
a minha filha pelos ombros em direção a uma SUV[22] preta.
Zoe já estava sentada no banco de trás quando chego perto
deles. Cogito por um instante ir ao lado dela, mas os bons modos
que dona Mary Ann me ensinou me fazem sentar na frente, ao lado
do dono do carro.
— Boa aula, mamãe! — Zoe diz, se enfiando entre os bancos
para me dar um beijo.
— Ei! Eu vou acompanhá-la até a porta, Bubbles! —
argumento, abrindo a porta do veículo.
Ela já não está prestando atenção, no entanto. Sua atenção
está voltada ao motorista da rodada.
— Obrigada, Tris!
— De nada, Pipoquinha.
O fato dele ter dado um apelido para a minha filha me irrita.
Ela é só minha.
Seguro a mão da pequena e só solto ao entregá-la aos
cuidados da professora. Ainda fico à porta uns dois minutos
observando de longe enquanto ela caminha ao lado da “tia”,
tagarelando sem parar.
Quando entra na sala de aula, me movo.
Só que, ao dar um passo para trás, acabo batendo em
alguém, que envolve a minha cintura com as mãos para me manter
no lugar.
O perfume delicioso toma conta do meu olfato e eu
reconheço a voz que soa rouca ao meu ouvido.
— Cuidado, Éden.
Viro para encarar meu “sogro”, ou pelo menos o homem que
pensa ser meu sogro, e suas íris escuras fazem meu corpo se
arrepiar.
— O-obrigada — murmuro, tentando encontrar minha própria
voz. — Por trazer a Zoe — explico, mesmo que ele não tenha
questionado a que me refiro.
— Sempre que precisarem.
A resposta gentil parece não combinar com sua aura de bad
boy. Quer dizer... com a Bubbles ele é sempre gentil. Mas comigo
ainda não tinha tido um rompante assim.
Ao mesmo tempo, me dou conta de que ele ainda está meio
que me abraçando. Suas mãos estão nas minhas costas, já que
virei de frente, e ele não recuou um milímetro sequer.
— Onde você estuda? — pergunta, me fazendo voltar para a
Terra.
— Hã?
— Onde você faz faculdade?
— Universidade de Vancouver... — murmuro, mas logo
arregalo os olhos e dou um passo para trás, saindo de seus braços.
— Não mesmo! — exclamo, tão alto que chego a chamar a atenção
dos pais ao redor.
Tristan apenas levanta uma sobrancelha, em um
questionamento silencioso. Sua expressão, até então suave,
endurece instantaneamente.
— Você não tem obrigação nenhuma de me dar carona até
lá.
— É. Eu sei — responde, seco e vira de costas para mim.
Quando imagino que vá me deixar plantada ali, ele fala por
cima do ombro:
— Vamos.
Cogito argumentar, mas a verdade é que uma carona seria
muito bem-vinda ou vou acabar me atrasando.
Acelero o passo e entro do lado do carona.
— Só dessa vez — informo-o.
Tristan levanta discretamente o canto do lábio direito e não
diz nada. Não sei se isso foi ele concordando comigo ou apenas me
mandando calar a boca. Talvez as duas coisas?
O CEO começa a dirigir e eu me esforço muito para não
observar seus dedos longos agarrarem o volante com tamanha
habilidade que meu cérebro chega a me pregar peças.
Só na metade do caminho é que eu me dou conta de que ele
havia descido do carro em frente à escola, quando poderia ter ficado
ali me esperando.
Seu gesto foi como o de um pai, preocupado em ver se a filha
havia entrado na sala em segurança.
E isso parece tão... certo?
Só que é muito, muito errado.
Tristan Ryan
 
Tento não pensar na garota que parece ter tomado conta de
todos os meus sentidos.
Começou com o olfato, devido ao maldito perfume de rosas
que está impregnado na minha roupa, no meu carro e até na minha
alma.
Então, foi roubando tudo. Agora, estou sentado na minha
cadeira confortável, no escritório, e ainda consigo sentir sua cintura
em minhas mãos, o que me faz abrir e fechar os dedos
constantemente.
Ainda vejo o pequeno pedaço de pele à mostra no rasgado
de sua calça jeans, bem no meio da coxa, ainda escuto sua voz
rouca e, pior do que tudo, ainda sinto o gosto do desejo.
O desejo que a minha nora me desperta.
O desejo que eu não deveria sentir em hipótese alguma.
— Chefe? — Jennifer chama da porta.
Sua expressão espertinha indica que está me observando há
algum tempo.
— Sim?
— Precisa de algo?
— Não, Jen. Obrigado — murmuro.
— Você tem uma reunião em dez minutos.
— Estou lembrado — minto.
— E o pessoal do RH está perguntando sobre os currículos.
Pisco algumas vezes, me dando conta de que estou há mais
de 40 minutos sentado fazendo porra nenhuma, quando deveria
estar terminando de analisar os currículos.
Aliás, eu deveria ter terminado isso ontem.
O verdadeiro Tristan Ryan teria terminado de analisar todos
os candidatos, escrito um longo e-mail com observações para o RH
e ainda verificado os novos projetos apresentados pelos arquitetos e
engenheiros.
Passaria para jantar com alguma garota da minha agenda e
chegaria em casa perto da meia-noite.
Que porra eu estou fazendo?
— Para de pensar tanto, Tristan.
A voz da minha secretária me puxa de novo das profundezas
da minha mente.
Jennifer é minha amiga, mas raramente me chama pelo
nome. Se o fez, com certeza foi para me forçar a prestar atenção ao
que dizia.
Arranho a garganta.
— Avise ao RH que enviarei as considerações sobre os
candidatos à tarde.
— Sim, senhor.
— A sala de reuniões está preparada?
Seus olhos se reviram, debochando da pergunta óbvia. Isso
me faz rir e finalmente volto ao estado normal de “Tristan Ryan”.
— Só confirmando — provoco.
— Não vou responder como você merece, porque...
— Porque eu assino seus contracheques?
— Também.
Acompanho-a ainda nesse clima leve até a reunião
chatíssima com o setor financeiro.
Passo a hora do almoço me esforçando ao máximo para não
pensar em como a Éden voltará para casa.
“Casa”.
Digo, para a minha casa.
Uma parte de mim, quer dirigir até o outro lado da cidade
para dar carona.
Mas a parte sensata me faz manter a minha bunda na
cadeira do restaurante onde encontraria o presidente de uma das
empresas parceiras da minha para um almoço descontraído. É claro
que falamos de negócios, mas nossa relação amigável permitiu que
não fosse uma refeição chata regada apenas a números.
Quando volto ao meu escritório, sou bombardeado com um
problema na obra de um condomínio na Austrália e passo as
próximas duas horas resolvendo com o departamento jurídico.
Já são 16h quando abro a pasta de couro e pego o chumaço
de currículos que preciso analisar. Margareth separou-os em dois.
Os que ela considerava adequados e os que dispensaria sem nem
pensar duas vezes.
São quase 50 candidatos, sendo que 15 estão na pilha dos
“qualificados”. Passo o olho por todos aqueles e realmente me
parecem bons.
Um rapaz em específico, aluno do quarto ano de engenharia
civil, me chama a atenção. É inteligente o bastante para manter
boas notas, mas o que o faz se destacar aos meus olhos é o fato de
ter escrito sua experiência no setor de construção. Tal qual
aconteceu comigo.
Em geral, os estudantes têm vergonha de precisar trabalhar
pesado e é por isso que o seleciono sem nem pensar duas vezes. É
disso que eu preciso na minha empresa. Gente batalhadora e
corajosa. Futuros donos de corporações tão grandes quanto a TER
Construtora.
Digito o e-mail para o setor de Recursos Humanos,
colocando as minhas considerações, e encosto na cadeira,
pensativo.
Alguma coisa me faz pegar a pilha dos “rejeitados” pela
Margareth e começar a folhear, sem uma razão aparente. Até que
um nome que eu não esperava ler me faz soltar o papel como se
tivesse queimado meus dedos.
Engulo em seco e pego-o novamente só para confirmar:
Éden Lavinski Dela Cruz.
Minha nora se candidatou a uma vaga na minha construtora.
Será que ela sabe que eu sou o dono? Não é possível que
seja tão sonsa a ponto de não saber.
Se bem que estamos falando da garota que queima os ovos
mexidos e coloca a camiseta do avesso quase todos os dias...
Leio o currículo com atenção e, de cara, entendo o motivo de
não ter sequer sido cogitada para a vaga. Ela acabou de começar a
faculdade e nós temos uma política de só contratar estagiários do 3º
ano em diante.
Provavelmente, a Margareth nem continuou a ler depois de
constatar isso. Já eu, curioso em saber mais sobre a mulher que
está morando na minha casa, sigo em frente.
Descubro que tem 23 anos e que fará aniversário daqui a
algumas semanas, seu contato de emergência é uma tal de
Alysson, o que me deixa curioso a respeito de seu pai. Zoe me
contou que a avó faleceu, mas nunca mencionou o avô. Onde ele
estará?
Também acho estranho que não tenha colocado o nome do
Jackson. Se são namorados, não deveria ser ele listado ali?
Contudo, logo me recordo que meu filho está na Europa e um
contato de emergência precisa ser alguém que está por perto.
Ok. Faz sentido.
No caso, o telefone listado ali deveria ser o meu.
Não? Ela mora comigo, afinal...
Balanço a cabeça, jogando esses pensamentos para longe, e
continuo a ler.
Ela não menciona a filha, mas não posso julgá-la por isso.
Sei que muitas empresas não dão as mesmas oportunidades a
mães e pais solos. Isso é ridículo, na minha opinião.
James, meu amigo, perdeu a esposa e cria a Bellinha
sozinho. Isso não faz dele um profissional menos qualificado ou
menos comprometido. Apenas significa que tem uma garotinha linda
dependendo dele para ser alimentada, vestida, cuidada e amada.
Se bem que a Bellinha cuida mais dele do que o contrário.
Nerdzinha esperta do tio...
Puxo meu celular e mando um áudio para o James
informando que é para a Isabella.
— Gatinha, o tio está com saudades de você. Tá brincando
muito com o canguru? Prometo passar para te ver e levo sua pizza
favorita.
Finalizo com um som de beijo.
Logo em seguida, o babaca do meu amigo encaminha um
áudio de poucos segundos no nosso grupo e, quando o escuto,
obviamente é apenas a parte do meu beijo estalado.
 
Eu: Já foi tomar no cu hoje, James?
 
Pai da Bellinha: Achei que nossos camaradas mereciam
ouvir o beijo também.
 
Eu:

 
Peter Parker: Que porra é essa?
 
Killian cachorrinho: Eu falei que ele está esquisito...
 
Peter Parker: Tá distribuindo beijo agora, cuzão? Eu
hein...
 
Killian cachorrinho: Precisamos falar sobre o fato de que
ele mandou um beijo estalado para o James.
 
Peter Parker: Ih, verdade! Alguma coisa que vocês
queiram nos contar?
 
Killian cachorrinho: Não acredito que levei 20 anos para
descobrir que vocês se comem.
 
Pai da Bellinha: Idiotas.
 
Eu:

 
Pai da Bellinha: E você ainda dá corda, T. Puta merda.
 
Eu:
Eu: Descobriram nosso caso, babe.
 
Troco o nome dele de “Pai da Bellinha” para “Baby boo”[23]
e mando print.
 
Peter Parker: Que lindos.
 
Killian cachorrinho: Quero ser padrinho.
 
Eu: Vocês dois serão nossos padrinhos e testemunhas
do nosso amor.
 
Baby boo: Vão todos se foder.
 
A culpa é do James que foi me zoar... Ele sabe que eu
desconheço limites.
Ainda estou rindo, quando volto a ler o currículo da Éden.
Ela se formou na escola, mas ficou sem estudar por vários
anos.
Isso me faz sentir uma certa identificação com ela. Também
fui pai muito jovem e sem um tostão no bolso. Demorei a entrar na
faculdade por ter que trabalhar demais para juntar dinheiro
suficiente para estudar e continuar a custear todas as necessidades
do meu filho.
Mélanie estava casada com um cara rico naquela época, mas
quem pagava pelas coisas do Jackson era eu. Sempre fiz questão
disso.
Fui eu quem bancou a escola, cursos, seguro de saúde,
alimentação e até os tênis caros que ele destruía em apenas um
mês de uso.
Essa lembrança me faz pensar na Zoe. Onde será que está o
pai da menina?
Tal qual o avô, nenhuma das duas jamais citou a presença de
um pai na vida dela. Ele não ajuda nem ao menos financeiramente?
Uma raiva começa a se espalhar pelo meu peito e sinto meu
pescoço aquecer.
Não que eu goste da ideia de um malandro qualquer levar a
garotinha para um final de semana ou algo do tipo.
Não.
Não. Não. Não.
Abro a conversa com Peter e começo a digitar o nome delas
para pedir que investigue tudo o que puder. O advogado é expert
em desenterrar informações que as pessoas querem manter
escondidas.
Contudo, sei que ele reconheceria o rosto da garçonete, já
que meu amigo nunca se esquece da fisionomia de ninguém. Isso o
faria me bombardear com perguntas que eu ainda não estou
disposto a responder.
Volto a ler e mordo as bochechas para controlar um sorriso
sacana ao reparar que usou o meu endereço, como se morasse
oficialmente na minha cobertura.
Por alguma razão, isso não me incomoda.
Acho que essa é a primeira vez que alguém, além de mim,
preenche o meu endereço em um formulário.
Jackson nunca morou comigo. Apenas passava finais de
semana, feriados e algumas férias. Quando ele queria, é claro.
Na parte da experiência profissional, uma ruga se forma entre
as minhas sobrancelhas. “Experiência em decoração de ambientes
intimistas”.
Mas que caralho isso significa?
“Disposição de mobiliário para comportar grandes multidões”.
É impressão minha ou ela floreou o fato de que precisa
arrumar as mesas e cadeiras do pub onde trabalha?
Que cara de pau...
“Acompanhamento de pequenas reformas e consertos”.
Aposto as pregas do meu cu que isso é um código para
“fiquei sentada olhando o encanador consertar a pia de casa” ou
“fiquei esperando alguém trocar meu chuveiro”.
Parece um monte de lorota rebuscada que ela imaginou que
tornaria seu currículo mais atrativo e isso me faz gargalhar com
vontade.
Ela é a pessoa mais sem-noção que eu conheço. E olha que
eu costumo ser esse amigo... o que corre o risco de ser preso por
alguma insanidade.
Mas a Éden... ela é realmente um caso a ser estudado.
É claro que no nosso mercado de trabalho as pessoas são
bem mais espertas do que isso. Com esse papel, ela vai conseguir
tudo, menos uma oportunidade de trabalho. E talvez ainda acabasse
sendo colocada em alguma lista negativa de contratações a serem
evitadas.
Alguém precisa orientá-la a respeito disso...
Tiro a folha da pilha e guardo no bolso do meu blazer.
— Chefe, você pediu para avisar quando faltasse 15 minutos
para as cinco — Jennifer usa aquele interfone que sempre me faz
saltar na cadeira de susto.
Pisco algumas vezes tentando me lembrar do motivo para ter
pedido algo assim e a imagem da Zoe vem à minha mente.
Ela sai da escola às 17 horas.
Levanto apressado e só paro na mesa da Jen para dizer que
não voltarei mais hoje.
Não posso deixar a Pipoquinha esperando.
Éden Lavinski
 
Acelero o passo, ignorando o repuxar do meu joelho
esquerdo, que ainda não está 100%. Preciso andar rápido para
chegar a tempo de pegar a Zoe na escola.
Hoje, quando voltava da faculdade de ônibus, a dona daquela
cafeteria onde fiz uma entrevista desagradável me ligou.
Pelo tom de voz, a mulher estava desesperada, precisando
urgentemente de ajuda, já que a pessoa que havia contratado (no
meu lugar, diga-se de passagem!) simplesmente não apareceu para
trabalhar.
A criatura sequer atendia o telefone e a chefe precisou ligar
mais de 20 vezes para que se dignasse a aceitar a chamada e dizer
que não pretendia voltar.
Nos meus sonhos, eu daria uma bela risada na cara da
proprietária do estabelecimento, que optou por não me contratar só
porque eu tenho uma filha.
Mas, como a realidade não é tão doce, apenas respondi que
poderia chegar em 15 minutos.
Cheguei em 13.
Só para provar que consigo cumprir as minhas promessas.
Nosso acordo é de uma semana de experiência, em que
trabalharei das 13 horas as 16h45 e, depois, das 18 as 20h15. Isso
de segunda a sexta-feira. Aos sábados trabalharei das 12h as 18h.
E um domingo a cada quinzena no mesmo horário.
Exatas seis horas de expediente por um salário que é apenas
80% do mínimo estipulado para contratos de oito horas de trabalho.
Tudo bem. É melhor do que nada.
O ruim mesmo seria ter apenas uma hora com a Bubbles nos
dias em que também trabalho no pub, já que na hora em que
costumo chegar em casa, ela já está dormindo.
Também precisarei pedir à senhora Curtis para ficar com ela
por duas horas e meia na segunda e na terça-feira.
Hoje, no entanto, está muito em cima da hora para pedir algo
assim, então levarei a Zoe comigo para o café e a deixarei comendo
algo e fazendo dever de casa em uma das mesas enquanto finalizo
meu turno.
Vai dar certo.
Tem que dar certo.
— Becca! — chamo o nome da professora, tentando fazer o
ar voltar aos meus pulmões.
— Éden, você chegou! Finalmente...
Franzo o cenho diante do comentário.
Sei que já são 17h10. Não consegui sair exatamente às
16h45 porque estava terminando de atender uma mesa. Espero que
isso não se repita diariamente... mas ainda são apenas 10 minutos.
Não é como se eu tivesse abandonado a menina na escola.
A professora se aproxima e sussurra:
— Eu estava ansiosa porque um homem chegou dizendo que
veio buscar a Zoe. Tentei ligar, mas seu telefone está caindo na
caixa postal...
Lembro que havia desligado o telefone ao chegar no café.
Segundo a chefe, são regras da casa. Pois essa é uma regra que
ela terá que mudar a partir de hoje. Nunca mais correrei o risco de
precisarem me ligar da escola e eu não atender.
— O quê?! Quem?! — exclamo, passando por ela sem
esperar resposta e entrando no corredor da escola.
De longe, vejo Zoe sentada no banco ao lado de Tristan, que
conversa com ela como se fossem melhores amigos.
Primeiro, sinto um alívio imediato ao perceber que não é um
maluco qualquer. É só o homem que acredita ser meu sogro.
Em seguida, no entanto, um arrepio estranho percorre o meu
corpo. Não é algo ruim. É apenas... incomum.
Nunca tive alguém que se importasse com o horário da Zoe
na escola. Exceto...
Engulo com dificuldade o bolo que se forma na minha
garganta, ao me lembrar da minha linda mãezinha.
Ela era a minha fortaleza. Meu chão.
Quando se foi, perdi completamente o que me sustentava.
Sigo em frente fazendo o meu melhor pela Zoe, mas tem dias
em que é tão difícil. Dias em que não sei que rumo tomar e só
queria ouvir sua voz macia e gentil do outro lado da linha, me
aconselhando.
Ela era a minha melhor amiga.
E agora é apenas uma lembrança bela e dolorosa.
Bubbles costuma dizer que “é a vovó” todas as vezes que
vemos uma borboleta. Às vezes até parece mesmo, sabe?
Minha filha tem o poder de atrair todas as borboletas quando
brincamos no parque ou andamos na rua. E todas as vezes ela fica
radiante dizendo que a avó veio nos visitar. Queria ter a sabedoria
das crianças.
— Éden? — Becca chama, me fazendo notar que estava
paralisada.
— Sim?
— Nós não íamos deixar o homem entrar na escola, mas a
Zoe o reconheceu e correu até ele.
— Ele queria levá-la embora? — pergunto, agora sentindo
raiva. Como assim ele vem até a escola sem me avisar e tenta
pegar a minha filha? Com que direito? Com autorização de quem?
— Não. Ele disse que você devia estar chegando e perguntou
se poderia esperar junto com a Zoe.
Mordo o lábio, mas poderia ter mordido a língua. Parece que
esse chato de galocha adora me fazer engolir minhas palavras.
Sempre se mostrando superior.
Insuportável.
— Ele é seu namorado?
A pergunta indiscreta me faz encarar a jovem professora com
desprezo.
— É claro que não — respondo, ácida.
— Ah — ela murmura, colocando o cabelo para trás como se
estivesse em uma comédia romântica. É sério isso? — Sabe se ele
é solte...
Corto a tagarelice com um gesto brusco, fazendo-a corar.
Nesse momento, a irritação já havia navegado por todo o
meu corpo e me deixado muito, muito azeda.
— Desculpe, eu...
— Tudo bem, Becca — respondo, me sentindo mal por ter
sido rude. Amenizo o tom de voz. — Eu continuo sendo a única
autorizada a levá-la embora.
— Certo. Pode deixar, Éden.
Viro para ir até eles, mas o peso na consciência me faz olhar
de novo para a professora. Droga. Não queria ser legal com ele,
mas...
— Mas... se ele vier novamente pode deixá-lo fazer
companhia para a Zoe enquanto não chego.
Ela acena e eu sigo na direção da dupla, sem fazer barulho.
Chego a tempo de ouvir parte da conversa.
— E agora eu sei algumas notas no piano! — Bubbles conta.
— Ah, é? Quais?
— Dó... mé...
— Ré — ele a corrige.
— Isso. Ré. E tem o...
— Mi?
— Como você sabe tanto sobre notas musicais?! —
pergunta, desconfiada.
Tristan se inclina na direção dela e diz baixinho:
— Não conta para ninguém?
— Prometo! Quer dizer... só para a mamãe. Não posso
esconder coisas dela.
Ele sorri de lado e acena, concordando.
— Só para a mamãe — confirma, então murmura mais para
si mesmo. — Não que ela queira saber algo sobre mim...
— Conta logo, Tris! — minha filha pede, com os olhos
brilhando.
— Eu aprendi a tocar piano quando tinha a sua idade. E
nunca mais parei. Já pensei em ser músico, mas...
— Não deu certo? — o tom triste na voz da minha filha quase
me faz intervir, mas ele se vira muito bem na resposta.
— Na verdade, encontrei algo com que gosto mais de
trabalhar. E decidi que a música seria uma coisa só minha, um
segredo que só pessoas muito especiais saberiam.
— Sou especial?!
— Com certeza, Pipoquinha.
— A mamãe também?
Arregalo os olhos diante da conversa que perdeu totalmente
o rumo. Antes que pudesse encerrar aquele disparate, ele responde:
— Sim. Ela também.
Pisco algumas vezes, envergonhada e sem-rumo.
Então, dou dois passos para trás e volto a me aproximar,
agora fazendo o máximo de barulho para notarem a minha
presença.
— Mamãe! — Zoe exclama e corre para me abraçar.
Tristan sequer olha na minha direção, mantendo o maxilar
trincado. Será que percebeu que eu estava ouvindo?
Não pode ser. Se soubesse da minha presença, não teria dito
algo assim. Ou ele apenas mentiu para agradar a criança...
Não.
Ele não me parece o tipo que mente.
Tristan Ryan é daqueles sujeitos que dizem a verdade, doa a
quem doer. Tenho certeza disso.
— Vamos? — ele pergunta, finalmente me encarando.
Ainda estou em choque, mas me forço a reagir.
— Na verdade, preciso levar a Zoe comigo para o meu novo
trabalho.
O vinco em sua testa não me passa despercebido.
— Trabalho novo? — pergunta, soando... irritado?
— Me conta, mamãe!
— É em uma cafeteria, não muito longe daqui. Você pode
comer um bolo de chocolate enquanto a mamãe termina o turno.
Que tal?
Ela não parece tão confiante.
— Mas você vai ficar comigo?
— Vou ficar por perto. Você vai ficar em uma mesa e eu
estarei circulando por ali.
— Hmmm...
— Só umas 2 horinhas, Bubbles.
Minha filha continua pensativa, então olha para o Tristan.
— Você vai ficar comigo? — pergunta, na maior cara de pau.
— Zoe! — repreendo-a. — O Tristan tem suas próprias
obrigações — explico, amenizando o tom de voz ao ver que ficou
magoada.
Ao invés de me apoiar, o insuportável nega.
— Não tenho, não.
E pensar que eu o defendi alguns minutos atrás! Ingrato!
— Senhor Ryan...
Seus olhos faíscam quando o chamo dessa forma e ele abre
um sorriso maldoso para mim, quase como um desafio. Então,
transformando-o em um sorriso doce, ele vira para a minha filha.
— Eu poderia te ensinar mais sobre as notas musicais
enquanto esperamos a mamãe. E aquele bolo de chocolate me
pareceu tentador.
— Oba! Vamos, então, mamãe!
Fuzilo-o com o olhar enquanto a pequena me reboca pelo
corredor.
Alguns minutos depois, entro na cafeteria segurando a mão
da minha filha. Noto imediatamente a careta de desgosto da minha
nova chefe, que nem tenta disfarçar.
Ela sabia que eu levaria a Zoe e, ainda assim, estava sendo
uma cretina a respeito.
Sua expressão de quase-nojo só muda quando Tristan entra
e toca o ombro da minha garotinha, apontando para uma mesa nos
fundos do salão.
A mulher, que há poucos segundos parecia odiar a luz da
minha vida, agora nem consegue disfarçar o olhar de cobiça na
direção do meu sogro.
Digo para eles que já os encontro e vou até o depósito da
cafeteria para deixar a minha bolsa e colocar meu avental.
— Éden, quem é esse espetáculo de homem? — A mulher
pergunta sem a menor cerimônia, depois de me seguir até ali.
Muito a contragosto, respondo.
— Ele é meu...
A palavra sogro parece tão errada, que eu travo no meio da
frase.
— Seu...?
Arranho a garganta e decido não dar muitas explicações.
— Ele está conosco — ofereço uma meia-verdade.
Se eu fosse uma rosa, teria murchado imediatamente com a
forma invejosa com que me encarou.
Levanto o queixo e sorrio.
— Como cheguei 15 minutos antes, sairei às 20h — informo
e sigo para a parte da frente, onde volto a anotar pedidos e servir
mesas, mas não sem antes levar duas fatias de bolo de chocolate
para a mesa da minha filha e do meu... sogro.
Tristan Ryan
 
Minha coluna reclama depois de quase 3 horas sentado
naquela cadeira desconfortável do café em que Éden está
trabalhando.
A minha vontade ao entrar ali e notar a forma como a mulher
atrás do caixa olhava para a Zoe foi pegá-las pela mão e levar
embora. Mas não podia fazer isso, então apenas toquei o ombro da
pequena e guiei até a mesa.
Se essa filha da puta fosse rude com a minha... com a
garotinha... juro que ela encontraria um inimigo pior do que poderia
imaginar.
Também não gostei de como ela falou com a Éden em
algumas ocasiões. Foi rude, para dizer o mínimo. E ainda a fez
trabalhar trinta minutos a mais, porque o local estava cheio.
Acabamos jantando uma massa sem-sal lá mesmo, já que
passaria muito do horário de refeições da Zoe, e chegamos quase
21 horas em casa.
Assim que entramos no apartamento, ambas bocejam e
anunciam que vão tomar banho e descansar.
Eu, por outro lado, tenho tanta coisa para remoer que preciso
urgentemente ir à academia. Para começo de conversa, queria
puxar a Éden pelo braço e dizer que não vai voltar àquele lugar
nunca mais.
Mas só de pensar em dizer algo assim para uma pessoa
marrenta quanto ela, já sei que seria retalhado. Lá no fundo, ela
mesma não deve querer trabalhar no café, mas se eu disser algo é
capaz de continuar só para me irritar.
Troco de roupa rapidamente e desço até a academia tão
agitado e inquieto que nem pareço ter acordado às 5h30.
Estava há vinte minutos correndo na esteira, quando uma
ideia iluminou a minha mente, quase me fazendo tropeçar.
É perfeito!
Se ela for chamada para um emprego melhor, não terá que
continuar naquele lugar.
Por um instante, cogito trazê-la para a TER Construtora, mas
sei que seria uma ideia absolutamente ruim. Nós dois já mal nos
toleramos no dia a dia, imagina se também trabalhássemos no
mesmo lugar?
Preciso falar com o Killian. Meu amigo vai dar um emprego
para ela. Nem que eu pague o salário.

Encontro a Zoe no corredor, pulando em um pé só.


— Algum problema, Pipoquinha? — pergunto, ainda
sonolento.
— Fui desviar da bolsa da mamãe que estava no chão e bati
o dedinho na quina da mesa — choraminga.
Quase consigo sentir sua dor.
Bater o dedinho é horrível. Pior do que isso, só lidar com
pessoas bagunceiras. E a mãe dela certamente se enquadra nessa
classificação.
— Você gostaria de ter um quarto só seu? — pergunto,
quando chegamos à sacada para nosso ritual matinal de assistir o
nascer do sol.
Zoe dá de ombros.
— Não sei. Nunca tive.
— Nem quando moravam com a sua avó?
— Não. Sempre dividi o quarto com a mamãe.
Aproveito para perguntar algo que vem me deixando curioso.
— Não tem muitos brinquedos seus por aí. Deixaram
bastante coisa lá em Fort McMurray? — questiono,
disfarçadamente.
— Eu não tinha muita coisa, mas a gente levou tudo o que
não cabia nas malas em um bazar da igreja.
— Você ficou triste por doar seus brinquedos, Pipoquinha?
— Não. A mamãe falou que era para as crianças que tinham
menos do que eu. E a vovó dizia que a gente tinha que ajudar as
pessoas.
Isso me pega de jeito.
Não me considero um cara egoísta, mas também não me
recordo da última vez que fiz uma grande doação. A vida nos
consome e esquecemos das coisas que realmente importam, não?
Isso também me leva a pensar que eu gostaria que elas se
sentissem em casa aqui. E se...
— Olha, Tris! O sol! — Zoe se apoia na grade e eu agradeço
mentalmente por ter colocado essa rede de proteção pensando nas
vezes em que James trazia a Bellinha até aqui.
O cheiro de rosas me desconcentra tanto que eu cheguei a
cortar outro veículo sem querer na pista.
Éden está sentada ao meu lado, emburrada. Tivemos uma
pequena discussão em frente à escola da Zoe, quando eu disse que
a levaria para a faculdade e ela quis insistir em ir de ônibus.
— Vai ficar bicuda até lá?
— Não estou bicuda.
— Às vezes fica difícil saber quem é a criança. Você ou a
Zoe.
Sei que despertei seu instinto selvagem quando ela vira no
banco e me encara, furiosa.
Mas, lá no fundo, era isso que eu queria. Uma briga para me
distrair do quanto eu gosto do seu cheiro. Não só do perfume de
rosas, mas do cheiro de sua pele, seu cabelo. Preciso não ser
capaz de pensar em como seria o aroma de sua boceta.
E, para isso, o melhor a fazer é começar uma briga.
Talvez não faça sentido para todo mundo, mas para mim faz.
Éden levanta as mãos e sei que vai me bater, então apenas
seguro mais firme no volante para não nos fazer sair da pista com o
impacto.
Só que ao invés de me agredir, ela deixa os braços caírem e
bufa alto.
— Encosta o carro — diz, em um tom controlado.
— O quê?! — pergunto, olhando-a de lado.
— Encosta a droga do carro agora!
— Estamos na pista expressa, Lavinski.
— Encosta o caralho desse carro, Ryan — berra e puxa o
meu volante na hora em que passamos ao lado de um descampado.
O carro trepida sobre o solo de terra irregular até que
paramos, alguns metros à frente.
— Você perdeu a porra do juízo?! — grito.
Só que ela não escuta. A marrenta abre a porta e sai como
um furacão do meu carro.
Tiro o cinto e dou a volta correndo, chegando a tempo de
impedi-la de ir para o acostamento. Envolvo sua cintura fina e a
empurro contra o carro, prendendo seu corpo com o meu.
— Você enlouqueceu?
— Acha que por estar nos abrigando e dando algumas
caronas você pode me julgar como mãe? — grita.
— Eu não...
— Você fez sim! Você faz o tempo todo!
— Não sei do que você está falando, Éden.
— Você julga o alimento que eu dou para a minha filha, o fato
de que meu carro era tão velho e fodido que o nomeamos de
Latinha e me considera mais criança do que ela só porque não
guardo as minhas roupas separadas por cor!
Suas palavras são como tapas na minha cara.
Achei que estava sendo gentil e no fim...
— Eu nunca quis julgar você...
— Mas o fez! Desculpa se eu não sou a porra da mãe
perfeita segundo o seu conceito, mas eu faço tudo o que eu posso
pela minha filha!
— Eu sei — murmuro, mas ela nem me escuta.
— Eu daria a minha vida por ela — continua, mas, dessa vez,
o som sai mais anasalado. Quase choroso.
Seguro seu rosto e a faço me encarar.
— Eu sei.
Faço questão de falar com tanta firmeza que sei que ela
entende.
— Não quis soar como se a julgasse, eu só...
— Já é muita gentileza nos deixar ficar. Você não tem que
acordar cedo para fazer companhia à Zoe ou deixar de ir para a
academia para nos dar carona. Muito menos ficar sentado naquela
lanchonete que não condiz nem com as suas roupas caras.
— Vocês não me pediram para fazer nada disso.
— Exatamente. Não pedimos.
— Mas... Eu nunca tive ninguém para cuidar.
— Você não tem que cuidar de nós, Tristan.
Ela não disse isso com raiva, mas com firmeza. Foi quase
como se tentasse me deixar livre para não fazer mais o que venho
fazendo.
Só que eu gosto.
Eu gosto de cuidar delas.
Minha atenção recai em seus lábios cheios e meu coração
parece acelerar.
O intuito ao comprar uma briga com ela, era me distrair de
seu cheiro inebriante e agora ele ficará impregnado em mim o dia
todo, já que nossos corpos estão colados.
Não percebi em que momento me aproximei ainda mais, mas
quando dou por mim, nossos lábios estão a uma distância tão curta
que se eu colocasse a língua para fora poderia lamber sua boca.
E eu queria muito fazer isso.
— Tristan... — Éden murmura, mais rouca do que de
costume.
Observo-a engolir em seco e juro que se não fosse a
lembrança viva de que ela é a namorada do meu filho, eu devoraria
essa boca gostosa agora mesmo.
Porra!
A verdade é que eu a comeria aqui, encostada no meu carro,
em pleno acostamento da rodovia. Me afundaria em seu corpo para
liberar toda essa energia caótica que parece vibrar entre nós e nos
envolver.
Adoraria ouvi-la gemer o meu nome.
Caralho, eu preciso ouvi-la gemer o meu nome.
E é por causa desse pensamento que eu consigo me afastar
da garota dos olhos bonitos.
Porque desejar foder a minha nora e ainda querer fazê-la
chamar o meu nome só para ter certeza de que quem a está
fazendo gozar sou eu e não o meu filho é algo tão absurdamente
surreal que nem um bosta como eu deveria cogitar.
Me sinto sujo por tudo isso. Imundo.
— Vamos — digo, virando de costas para tentar me controlar.
Ela não responde e eu fico com medo de que fuja
novamente. Se eu tiver que correr atrás dela, não sei se conseguirei
me controlar...
Por sorte, Éden entra do lado do passageiro e se senta sem
dizer uma palavra.
Passamos o resto do trajeto em um silêncio desconfortável,
cada um absorto em seus pensamentos.
Quando paro em frente à escadaria da Universidade de
Vancouver, ela abre a porta e se inclina para sair, mas seguro seu
braço.
A garota não vira na minha direção. Mas também não se
esquiva. Fica parada, esperando eu dizer algo.
Tem tanto que eu gostaria de falar. Para começar, um pedido
de desculpas por tê-la tocado. Não tinha esse direito.
Mas o que sai da minha boca é:
— Te pego às 20 para as cinco na cafeteria para buscarmos
a Zoe.
Minha nora inspira forte e acho que vai argumentar, mas ela
apenas murmura.
— Às 16h50.
Então sai me deixando com todos os meus sentimentos
impróprios e seu cheiro delicioso grudado no meu corpo.
Éden Lavinski
 
Minhas pernas tremem conforme subo os degraus da
faculdade.
Um colega de turma me cumprimenta, mas eu deixo o pobre
rapaz no vácuo ao passar apressada em direção ao banheiro.
Quando entro, duas meninas estão se maquiando em frente
ao espelho e eu ando direto até a última cabine. Assim que tranco a
porta, abaixo a tampa da privada e sento ali, por mais anti-higiênico
que isso possa ser.
Que porra está acontecendo comigo?
Eu quase beijei o pai do Jax... O homem que acredita que
seja meu sogro.
Meu coração está disparado e eu mal consigo respirar.
Minha visão começa a escurecer e sei que preciso da minha
bombinha de asma. Tateio a minha bolsa mesmo sem enxergar e
erro o primeiro jato de spray, acertando meu nariz. Na segunda vez,
consigo usar a medicação corretamente e aos poucos volto a
conseguir respirar.
Passada a primeira crise, a segunda parece se complicar
ainda mais. O quão errado foi o que aconteceu naquela estrada?
Tristan e eu não deveríamos nos tocar daquela forma.
Eu não deveria ficar excitada só por causa da pressão do
corpo dele contra o meu, me prendendo ao carro.
Se ele não tivesse se afastado, acho que eu teria encerrado a
distância entre nós e o beijado.
Sei que eu faria isso porque nunca quis tanto um beijo quanto
naquele momento. Nunca desejei tanto sentir a boca de alguém me
tomando para si.
E quando ele segurou meu pulso, antes de sair do carro,
precisei de todo o meu autocontrole para não me jogar em seus
braços.
Escondo o rosto nas mãos e me inclino para a frente,
tentando me acalmar.
A vergonha queima dentro de mim tal qual o fogo queimou
alguns minutos atrás.
Porra! A verdade é que ainda sinto esse calor entre as
minhas pernas.
Pego meu celular e tento ligar para o Jax.
Ele precisa contar ao pai dele que não somos namorados. Eu
me sentiria menos suja se ele o fizesse.
O telefone chama algumas vezes, mas ninguém atende.
Digito uma mensagem pedindo a ele para me ligar, mas não
chego a enviar.
Pensando bem, enquanto Tristan acreditar que sou sua nora,
ele vai conseguir se afastar. E isso é essencial para que nós dois
não façamos algo de que vamos nos arrepender drasticamente.
É melhor assim.
Não confio em mim mesma perto daquele homem. Muito
menos quando me toca daquela forma.
O autocontrole precisa ser dele. E para tal ele precisa
continuar acreditando que somos sogro e nora.
Tem que ser assim.
Saio da cabine, ainda tremendo e agradeço por já não ter
mais ninguém ali. Jogo água no meu rosto e aproveito para
umedecer a nuca, tentando esfriar meu calor.
Olho meu próprio reflexo, tentando deixar de sentir vergonha
e murmuro como se dona Mary Ann estivesse à minha frente.
— Mãezinha, eu preciso tanto de você...
Ando apressada para a minha sala de aula, mas, ao chegar
em frente à porta, uma borboleta voa até mim e pousa no batente de
madeira.
Observo as cores da pequena borboleta completamente
fascinada.
Será que... Não.
Preciso parar de levar tão a sério as teorias da Zoe.
Outras pessoas se aproximam e a borboleta voa para longe.
Quando sento na minha cadeira, curiosamente me sinto mais
leve. Como se algo tivesse trazido paz para o meu coração.
Algo... ou alguém.
Tristan Ryan

James começa a digitar assim que mudo o nome do grupo


pela terceira vez só hoje.
Estou inquieto desde o que aconteceu essa manhã e brincar
com o nome do grupo me distrai.
 
Pai da Bellinha: De novo, porra?
 
Eu: Boca-suja!
Eu:
 
Killian pegador de novinha: T está se identificando com a
vibe “velho da lancha”, agora que ele é vovô.
 
Eu: Seu cu!
 
Peter Pan:

Peter Pan: Continuem se digladiando, por favor.


Peter Pan: Grato.
 
Eu:
 
Pai da Bellinha: Vocês são cansativos.
 
Killian pegador de novinha: Falou o miss simpatia!
 
Pai da Bellinha: Sorrisos são para quem merece.
 
Eu: Tipo...?
 
Pai da Bellinha: A Bellinha, claro.
 
Peter Pan: Você precisa tirar o atraso urgente.
 
Eu: Podemos ir no Red Pub para achar uma foda para o
James.
 
Killian pegador de novinha: Maju não me deixa ficar
saindo com companhias duvidosas.
 
Eu: Busco você às 21h, cuzão.
 
Killian pegador de novinha: Sua neta deixa você sair?
 
Eu:

 
Antes de desligar o celular, troco o contato do meu amigo
para “Killian Key”, fazendo uma anotação mental de cantar a
música do cachorrinho para ele.
Isso depois de pedir um emprego para a Éden.
Pelo menos eu acho que vou fazer isso. Ainda é um assunto
delicado na minha mente.

Jennifer nem tece comentários quando saio do escritório


antes das cinco da tarde pelo segundo dia consecutivo.
Minha secretária apenas me encara como se soubesse de
um segredo. O que será que está passando naquela cabecinha
maldosa?
Estaciono bem em frente à cafeteria em que a Éden está
trabalhando cinco minutos antes do horário combinado. Penso em
descer para buscá-la, mas isso poderia passar a ideia errada a
respeito do nosso relacionamento.
Aliás, do nosso relacionamento absolutamente inexistente.
Não tenho tempo de remoer o assunto, pois logo ela abre a
porta e senta, cruzando os braços à frente do corpo.
— Tudo bem? — pergunto, olhando-a.
— Tudo.
Levanto uma sobrancelha e continuo a observá-la até que a
garota bufa e joga os braços para o alto.
— Não, não está tudo bem! Minha chefe é uma... uma...
— Ótimo. Não precisa voltar mais. E nem se dê ao trabalho
de avisar. Ela que se foda.
Ela me olha por um instante, então ri.
— Você não deveria ser a pessoa sensata?
— Perdão? — exclamo, indignado.
Ela me chamou de velho?
— Tendo o dobro da minha idade e tal...
Ela me chamou de velho!
Mas que putinha!
— Eu não tenho o dobro da sua idade!
Éden me encara de queixo erguido, toda afrontosa.
— Quase isso, então.
— Tenho 41 anos, Éden. Você tem quase 24. Não é tanta
diferença assim.
Mentira. É uma grande diferença. Praticamente 18 anos para
ser bem específico.
— Como você sabe a minha idade? — dispara, me fazendo
sentir um gelo escorrer pela coluna.
Porra. Me entreguei.
— Vamos nos atrasar — digo e começo a dirigir.
Já estávamos chegando à escolinha, quando ela volta a falar.
— Não posso.
Estaciono o carro antes de encará-la e responder.
— Não pode o que, Éden?
Era para a minha voz soar assim? Estou parecendo um
maldito ator pornô, caralho!
— Não posso pedir demissão. Preciso da grana. É um
absurdo você ficar parando a sua vida para levar e buscar a mim e a
minha filha.
— Eu tenho um carro...
— Não ouse completar essa frase, Ryan. Ou juro que vou
sair daqui e nunca mais aceito um caralho de carona!
Seu tom enérgico me faz morder um sorriso.
Por que eu gosto tanto dessa criatura geniosa?
Ela é instigante.
— Seria um empréstimo, Lavinski.
— Não.
— Mas...
A mulher vira de lado e segura meu rosto com as duas mãos.
— Não vou aceitar seu carro, Tristan. Por favor, não insista.
Não sei se foi o fato de ter pedido ao invés de teimado ou se
foi o toque suave de suas mãos no meu rosto, mas fui capaz apenas
de balançar a cabeça, concordando.
Acho que teria concordado com qualquer coisa que ela me
pedisse.

— Por que nós estamos aqui em plena quarta-feira? — Killian


reclama pela décima vez, desde que o busquei.
— Porque o Tristan tem assuntos inacabados — Peter
responde por mim, me fazendo olhá-lo de soslaio.
O pau no cu sempre parece saber de tudo.
— Não é bem assim. Só queria tomar um drink com meus
amigos, porra. Vamos galera, homens!
James me encara com tanta preguiça que chego a me sentir
corar.
Talvez eu seja um péssimo mentiroso.
Killian estava abaixando para sentar em uma mesa, quando o
seguro pela parte de trás da gola, mantendo-o de pé.
— Que porra?! — meu amigo exclama, se livrando do meu
agarre.
— Aqui não — dito, apontando para o outro lado do salão,
onde vejo Éden servindo as mesas.
— Tá com frescura sobre onde sentar agora, cuzão? —
Killian sai reclamando, junto de James, que também parece não ter
entendido nada.
Já Peter me olha como se tivesse compreendido tudo.
Assim que nos sentamos, começo a acompanhar todos os
passos dela com o olhar, sem nem ao menos prestar atenção ao
que os meus amigos estão falando.
Quase comemoro quando a vejo andando na direção da
nossa mesa, mesmo que esteja tão distraída olhando para o próprio
celular que nem tenha se dado conta da minha presença.
— T? — James me chama, mas eu não viro na direção dele,
nem respondo, já que ela chega à nossa mesa bem naquele
momento.
— Boa noite, senhores. O que gostariam de beber? —
pergunta, só então levantando os olhos. — Tristan?! — exclama,
parecendo assustada e confusa.
— Nossa, é verdade. Você trabalha aqui — digo,
cinicamente. — Meus amigos me chamaram para tomar uma coisa
e eu nem me lembrei...
Escuto Killian dar um ganido indicando que vai gargalhar,
então começo a bater nas costas dele para disfarçar. Os demais não
são muito mais discretos do que ele, mal escondendo suas risadas.
— Tudo bem por aqui? — Éden questiona. — Vocês estão
chapados?
— Não. Não usamos drogas — respondo, todo sério, pois
imediatamente me preocupo com a possibilidade de ela pensar que
eu uso entorpecentes e, por isso, não me querer perto da Zoe ou
algo do tipo.
Os demais me encaram como se eu tivesse um neurônio a
menos e só então me dou conta de que ela estava brincando.
A essa altura, minha dignidade já tinha ficado no carro, mas
Éden termina de me enterrar.
— Você precisa de um Whisky urgente, sogrinho.
O jeito como pronuncia a palavra me arrepia dos pés à
cabeça. Foi uma mistura de deboche com... provocação?
A mulher que mal me tolera em dias bons acabou de flertar
comigo?
Um dos meus amigos pede nossos costumeiros Macallans 18
anos e ela se afasta após anotar em seu bloco. Quando ficamos
sozinhos, três pares de olhos inquisidores me dissecam.
— Comece a falar — Peter demanda, recostando na cadeira.
— Não tem o que falar.
— Com certeza tem alguma coisa a dizer, Tris. A garota te
chamou de sogrinho, porém de um jeito “flertante”. Foi “flertante”,
não foi? — Killian olha ao redor para ter a confirmação dos outros
dois, que balançam a cabeça afirmativamente.
— Tristan, isso vai dar merda — James declara.
— Não tem nada acontecendo — reitero, mas logo suspiro e
começo a falar. — A Éden trabalha aqui e o carro dela quebrou.
— E?
— Só que ela é orgulhosa demais para aceitar que eu saia de
casa para vir buscá-la e mão de vaca demais para pagar um Uber, o
que significa que vai querer ir para casa uma da manhã de
transporte público ou pior, a pé.
— Ir para... casa? — Peter repete a palavra que eu usei.
— Já falei que ela e a Zoe estão ficando lá — disfarço,
mesmo sabendo aonde ele quer chegar. — Aí se por acaso eu
tivesse aqui, poderia oferecer uma carona.
“Casa” é um termo muito forte.
— Então você queria garantir que ela chegasse em casa,
mas, segundo você disse mais cedo, vocês mal se suportam —
James argumenta com aquele tom de sabe-tudo que me irrita.
— É.
— Entende que tem coisa aí? — Killian contribui para me
foder.
— Nada a ver...
Ela volta trazendo as nossas bebidas e seu cheiro de rosas
paira no ar.
— Avisa quando estiver pronto para admitir que tem coisa aí
— James diz e então pega os copos.
— Ao Ryan e ao que não está acontecendo — Peter propõe
o brinde.
— Seu babaca!
— Ao T e seu talento em se meter em roubadas — James
diz.
— Eu só posso brindar ao fato de que pela primeira vez,
Tristan Ryan pareceu desconcertado com um flerte — Killian levanta
o copo.
— Não sei por qual razão sou amigo de vocês — resmungo,
mas levanto meu copo também, brindando a essa merda toda.
Quando damos o primeiro gole, Killian olha na minha direção
com a expressão acusatória.
— Ei! Eu estou de carona com você!
— Você é bem grandinho.
— Foi você quem insistiu em me buscar, cuzão!
— O James te deixa em casa.
— Você é um bosta mesmo — Kil reclama, mas sei que não
está chateado.

Lá pelas onze horas, levanto-me para ir ao toalete. Como


tomei apenas duas doses de Macallan, não estou realmente
precisando urinar, mas não vejo a Éden há algum tempo e uma
comichão me faz ir atrás dela.
No corredor, viro para o lado onde uma placa diz “acesso
restrito”.
Espio no que parece ser um depósito e então continuo até
encontrar uma porta de metal escrito “saída de emergência”. Giro a
maçaneta e abro, saindo em um beco escuro, que fede a lixo
acumulado. Eca.
— Você não deveria estar aqui.
A voz rouca dela me faz olhar para o lado, para o canto mais
escuro, onde a encontro encostada na parede, aparentando
cansaço.
Seu tom foi mais divertido do que acusatório.
— Tudo bem? — me aproximo.
— Só vim descansar um pouco os olhos — responde,
fechando-os e encostando a cabeça na parede de procedência
duvidosa.
— Não parece muito confortável.
— Eu costumava descansar no carro, mas...
— O Latinha faleceu — repito as palavras usadas pela Zoe e
isso a faz rir.
— Isso.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, a garota arregala
os olhos e aponta um dedo na minha direção.
— Não ouse tocar no assunto de empréstimo de carro
novamente, Ryan. Não preciso de mais um estresse essa noite.
Não sei o que houve de tão ruim, se teve a ver com a
cafeteria ou com o bar. Ela tinha contratado a esposa do porteiro do
meu prédio para olhar a Zoe e voltou para o café por mais duas
horas antes de vir direto para o pub.
Deve ter sido um dia muito difícil. E algo em mim me faz
desejar abraçá-la e acariciar suas costas.
— A que horas você sai?
— Daqui a uns 40 minutos. Hoje fechamos cedo.
— Ótimo. Vou esperá-la.
— Tristan...
— Não insisto sobre o empréstimo do carro se você não
teimar a respeito disso.
Éden me encara, claramente contrariada, mas acena,
concordando.
— Boa menina — murmuro, me arrependendo logo em
seguida, quando os cantos da boca dela se levantam em um sorriso
que não deveria estar ali. Não assim.
Porra, como deve ser bom beijar essa boca.
— Meu intervalo acabou. Melhor você sair daqui antes que
sofra um ataque de ratos ou baratas.
Dou um pulinho nada másculo, fazendo-a gargalhar da minha
cara.
Mas barata é um limite rígido. Que coisa nojenta...
Ao voltar para a mesa, os caras estão discutindo sobre quem
será o vencedor da próxima temporada de Hóquei.
— Os Canucks[24] estão mais fortes com a chegada daquele
garoto. Aiden Roy.
— Ah, me poupe. O Toronto Maple Leafs continua favorito —
Peter argumenta com James.
— Mudando de campeonato, e aquele moleque que foi
expulso do Los Angeles Kings e acabou vindo parar no Ottawa
Senators? — Killian comenta.
— Lavinski. Drew Lavinski. Ele deu sorte de ter sido aceito no
Senators. O que ele fez foi imperdoável. Zero espírito esportivo.
James começa um longo discurso sobre como os atletas
precisam ser mais comprometidos, mas meu cérebro só consegue
registrar o sobrenome. Eu lembro de ter lido sobre esse garoto, mas
na época seu nome não me dizia nada.
Será que ele é parente da Éden? Porra, será que ele é o pai
da Zoe?
Um calor me faz virar um copo de whisky que nem era meu e
sentir meu pescoço esquentar. Se aquele cara colocou alguém no
hospital, será quê...
Tento me lembrar do que li em seu currículo. Não. Não pode
ser. O sobrenome vem da mãe dela. Mary Ann Lavinski.
Sinto um pouco de alívio, mas ainda preciso tirar tudo isso a
limpo.
Quando finalmente me acalmo, James e Killian levantam-se
anunciando que vão embora porque a babá da Bellinha está
encerrando o expediente.
Droga, queria ter falado com o meu amigo sobre o emprego
para a Éden, mas nem cheguei a tocar no assunto.
Tudo bem, amanhã ligo para ele.
Nos despedimos e Peter continua para me fazer companhia.
— Quer falar sobre isso? — ele pergunta, enquanto o pub vai
ficando cada vez mais vazio.
— Sobre o quê?
— Tudo, Ryan. Tudo isso que está te deixando louco.
Olho para ele e decido que é hora de recorrer ao meu amigo
advogado.
— Na verdade, preciso de algo que só você pode fazer...
Passo os dados do currículo da Éden e peço para ele
descobrir o que aconteceu em seu passado. Onde está seu pai e,
acima de tudo, onde está o pai da Zoe.
Não quero ser pego de surpresa.
Éden Lavinski
Tiro meu avental e estico a coluna, sentindo a minha lombar
reclamar. Foram 10 horas trabalhando de pé hoje, além da
faculdade, do transporte coletivo e do almoço que devorei em
menos de 5 minutos. Meu estômago está roncando de fome e cada
pedacinho do meu corpo dói.
Sem contar que as gorjetas de hoje foram fraquíssimas. Na
cafeteria já percebi que é sempre assim. Mas aqui no pub costuma
ser melhor. Se bem que hoje é quarta-feira, um dia mais fraco
mesmo...
Escuto passos e, pelo som do salto, só pode ser a Ally.
— Que dia fraco, amiga — reclamo.
— Não tente me distrair, Éden Lavinski.
— Hã? — olho para ela, sem entender.
— Você pode me contar quem é aquele homem que alegou
estar esperando por você?
Tristan.
Ele ficou mesmo.
— Deixa eu reformular, amiga. Quem é aquele homem fodido
de gostoso e com cara de podre de rico que está te esperando?! —
A cada palavra a voz dela sobe um tom, fazendo com que eu me
encolha.
— É o... dono do apartamento onde a Zoe e eu estamos.
— O pai do Jax?! — grita e eu mergulho para tapar sua boca
grande, com medo de alguém nos ouvir, já que não tem mais
música ambiente, nem barulho de conversa no salão bem ao lado
de onde estamos.
Balanço a cabeça, confirmando.
— Puta merda, o pai é muito mais gostoso. Tipo... puta
merda, amiga! Você está morando com esse homem?!
— Não é bem assim. Eu moro na casa dele, mas não com
ele.
— Ele está dormindo lá? — ela retruca, colocando as mãos
na cintura e fazendo uma cara blasé.
— Sim...
— Então estão morando juntos — conclui. — Puta merda!
Sua boceta não fica pingando o dia todo? Caramba, eu nem iria
conseguir passar por ele sem gemer.
— Alysson! — repreendo-a, me sentindo corar.
Tá aí algo que nunca me aconteceu... enrubescer.
Minha amiga parece notar, pois arregala os olhos e mal
consegue manter a boca fechada de surpresa.
— Preciso ir — murmuro.
— Amanhã você vai me contar tudo, dona Lavinski! — grita,
me fazendo acelerar ainda mais o passo.
Tristan está ao lado de seu amigo e por um segundo fico
frustrada pensando que o sujeito – que foi exatamente quem me
entregou as 200 pratas daquela primeira vez – também vá.
Imediatamente me repreendo por esse sentimento. E daí se
ele for? É até melhor, pois não ficamos sozinhos e...
— Olá — o sujeito em questão me cumprimenta.
Meu “sogro” dá um passo para o meu lado e espreme os
olhos. Por alguma razão, o outro começa a rir.
— Calma, irmão.
— Boa noite, Peter Pan.
O cara ri ainda mais e pisca para mim.
— Boa noite, Ryan. Boa noite, gata.
— Peter! — Tristan rosna o nome dele, que levanta as mãos
no ar e sai rindo.
Não consigo entender que porra aconteceu aqui.
— Pronta? — ele pergunta, fitando meus olhos.
— Sim. Obrigada por me esperar.
— Sempre — diz, dando de ombros como se fosse algo
corriqueiro.
Aquela palavra... a mesma que usou quando agradeci a
primeira carona... desperta algo dentro de mim.
Caminhamos lado a lado, seu perfume me causando um
certo atordoamento. Sabe em desenhos animados quando o
personagem sente um cheiro muito bom e sai flutuando no ar? É
assim que me sinto agora.
Ridículo, não?
Noto que veio com o carro esportivo de dois lugares e não
com o utilitário que tem usado para dar carona para mim e para a
Zoe.
— Você gosta mais desse carro, não é? — pergunto, quando
ele se senta e chega a acariciar o volante antes de ligar o motor.
— Por que você acha isso? — responde, sorrindo de lado.
— Acho que você combina com ele.
— Uau. Um elogio vindo de Éden Lavinski? O inferno vai
congelar?
— Há há. Engraçadinho. Só acho que você tem essa vibe de
solteirão que dirige um carro tunado…
Juro que achei que era um elogio, mas a forma como ele
trinca os dentes indica que pode não ter entendido assim.
— Não que o outro carro não esteja à sua altura — tento
consertar, mas ele só balança a cabeça e pisca para mim.
Ótimo, consegui ofender o homem até sem querer.
Detesto quando isso acontece, prefiro ofender
intencionalmente.
Depois de um tempo, me estico e ligo o som.
Ele não parece se importar enquanto tento encontrar uma
rádio que me agrade.
— Sabe que é só ligar o Bluetooth, não é? Sei que seu carro
devia ter só toca-fitas, mas…
— Ei! Respeite o Latinha. E sim, eu sei que seu carro chique
tem conexão via Bluetooth e talvez até consiga captar as ondas de
algum satélite lá da lua. Mas eu gosto de ouvir rádio.
Ficamos em silêncio por mais uns instantes até que ele
arranha a garganta.
— Então?
— O quê?
— Você gosta de ouvir rádio por quê? Faltou a explicação.
Nunca ninguém me perguntou.
A primeira parte da frase sempre foi suficiente para todos os
meus diálogos até hoje.
A maioria das pessoas só me considera estranha e dá de
ombros.
— Gosto da surpresa.
— E…?
Caramba, esse cara parece prestar atenção em tudo…
— Se eu coloco uma playlist, sei quais músicas esperar. Se
ligo o rádio, há chances de começar a tocar algo completamente
inusitado de que eu realmente goste… E, nesse caso, serei
positivamente surpreendida.
— E se começar a tocar uma música que você detesta?
Dou de ombros e digo, simplesmente:
— Mudo de estação.
Um sorriso preguiçoso começa a escorregar pelos lábios
dele.
Já vi seu sorriso cafajeste, o sorriso doce que reserva à Zoe,
o preocupado, mas amoroso quando fala com o Jax, o polido
quando vejo que está em uma ligação de trabalho.
Mas esse sorriso… foi a primeira vez.
É algo relaxado, despreocupado e tão confortável que me
pego sorrindo de volta. Me pego querendo ficar assim, conversando
sobre amenidades como a estação de rádio e músicas aleatórias,
enquanto sorrimos.
— É legal.
— O quê? — pergunto.
— Você não parece gostar de surpresas no dia a dia.
— Não. Não mesmo. Na minha experiência, é sempre
alguma coisa ruim — determino, franzindo a testa.
— É. Eu notei — murmura, me olhando rapidamente antes de
voltar a atenção à direção do veículo. — Por isso, é legal que você
tenha encontrado algo para extravasar sua necessidade de ser
positivamente surpreendida.
Engulo em seco pela forma como consegue compreender tão
rapidamente algo que eu mesma demorei anos para perceber.
— É esquisito e pode ser considerado um escape, mas…
— Não. Não é — diz. — Ninguém é uma só coisa, Éden.
Você pode ser forte e guerreira e lutar com unhas e dentes para se
manter de pé. E ao mesmo tempo querer ser positivamente
surpreendida. Não é esquisito querer ter surpresas boas. Só
gostaria que você pudesse tê-las mais vezes e não apenas na sorte
de ouvir uma música de que você gosta.
Pisco algumas vezes, tentando acalmar a ardência nos meus
olhos. Olho pela janela, pois nesse momento ele conseguiu alugar
tanto espaço dentro do meu peito que não me considero apta a me
manter sentada na minha própria poltrona. O formigamento que
percorre o meu corpo adoraria ser aplacado me aconchegando em
seu colo.
Quando estaciona, já na garagem do prédio, continuamos
imóveis por alguns minutos.
É o homem com quem eu moro, como disse minha amiga
Ally, quem quebra o silêncio.
— Eu também gosto de ser mais de uma coisa. Mas hoje
entendi que prefiro a versão que dirige uma SUV do que a do
solteirão do Aston Martin.
Suas palavras me fazem encarar seu perfil, boquiaberta.
Ele abre a porta do carro, mas antes que possa se levantar,
toco sua mão.
Tristan não me encara. E eu agradeço por isso ou não
poderia responder pelos meus atos. Seus olhos se cravam nos
nossos dedos que continuam se tocando suavemente.
— Você conseguiu.
— O quê, Éden? — pergunta, com a voz tão rouca que eu
preferia que não tivesse dito nada.
Saber que ele está sentindo a vibração ao nosso redor com a
mesma intensidade que eu, é enlouquecedor.
— Conseguiu me surpreender positivamente. De novo.
Sua garganta se move e eu sei que ele está engolindo em
seco.
Também estou.
Estou engolindo a vontade de sentar em seu colo, grudar
nossas bocas e…
— Fico feliz — sussurra, virando a mão para segurar meus
dedos suavemente.
Me surpreendendo mais uma vez, ele leva minha mão aos
lábios e deposita um beijo casto ali.
Então, sai do carro e dá a volta para abrir a minha porta.
Porra.
Eu estou completamente fodida.
Tristan Ryan
 
Deveria dormir, mas meu corpo todo clama pela mulher que
está dormindo a duas portas de distância.
Desisto de rolar na cama e desço descalço mesmo, apenas
com a calça e o agasalho de moletom até a academia do prédio,
onde vou direto para o tatame.
Não demoro nem um minuto golpeando o saco de areia para
começar a sentir calor, então tiro o moletom e o atiro em um canto
qualquer.
Imediatamente, volto a socar e chutar meu alvo, tentando
aliviar toda a tensão e, porra, o tesão que está consumindo a minha
alma.
— Você poderia me ensinar.
A voz rouca parece ser fruto da minha mente, mas ela insiste.
— Bem que eu gostaria de lidar com as coisas assim...
Viro para encarar os olhos castanhos mais intensos que eu já
vi e meu estômago chega a dar cambalhotas.
Porra. Ela está mesmo aqui.
— Ou não — murmura. — Se não quiser me ensinar...
Continuo em silêncio enquanto ela divaga, mas a cada
palavra me aproximo um pouco mais.
— Você quer aprender Muay Thai, Éden? — pergunto,
pairando bem em frente a ela.
A garota engole em seco e isso me faz olhar seu pescoço
delicado, que eu adoraria marcar como meu. Mas logo minha
atenção se volta ao decote em “v” da camiseta velha que usa.
Seus seios estão marcados no tecido fino e posso apostar
que não está usando sutiã, mesmo que não esteja vendo com
perfeição. Não acendi a luz ao entrar, então o brilho da lua na janela
é toda a claridade que temos.
Aproximo o rosto ainda mais do dela e literalmente cheiro sua
pele até parar com os lábios bem ao pé de seu ouvido.
— Não posso te dar o que veio buscar, Éden — murmuro.
— A-aulas de luta? — gagueja.
— Você e eu sabemos que não foi isso — digo, encarando-a
com firmeza.
O fogo que enxergo ali é tão intenso quanto aquele que
consigo ver ao olhar no espelho.
Eu a quero desesperadamente.
E ela também me quer.
Ela me quer tanto que veio atrás de mim no meio da noite.
Isso deveria me enojar, afinal, trata-se da namorada do meu
filho desejando o pai dele.
Mas... me excita a ponto de sentir meu pau enrijecer.
Éden mordisca o lábio e eu invejo seus dentes, pois queria
que fossem os meus cravados ali. Queria empurra-la contra a
parede e fodê-la até o amanhecer.
Só que eu não posso ser o homem que vai comer a própria
nora. Eu já fiz muita merda, mas nunca coloquei em risco a minha
relação com o Jackson, nem nunca traí alguém que confiava em
mim.
— Não posso dar o que você quer — repito.
Ela faz menção de argumentar, mas a calo com um olhar
severo.
— Eu não quero — minto, então arranho a garganta para
reforçar minha fala. — Não desejo ensiná-la a... lutar.
Seus olhos piscam algumas vezes, como se estivesse
contendo lágrimas que ameaçam desabar. Internamente, faço uma
prece para que não chore. Não conseguiria me manter afastado se
a visse chorar.
O momento de vulnerabilidade dura apenas um instante.
Logo, ela levanta o queixo e volta a ser a garota abusada que me
encanta.
— Ótimo, você parece ser um professor bem ruim mesmo.
Enquanto se afasta, sinto que leva um pedaço do meu
coração junto. Ou seria da minha alma?
O pedaço que eu queria entregar ao demônio para queimar
no inferno enquanto a fodo loucamente, mas que, por lealdade ao
meu filho, eu consegui apenas arrancar de dentro do meu peito e
colocar nas mãos de Éden Lavinski.
Ela não sabe.
Nem ele saberá.
Mas hoje um pedaço de mim foi separado do meu corpo.

Ela me odeia.
Já se passaram vários dias desde o fatídico encontro na
academia e Éden continua fazendo todo o esforço possível para não
olhar na minha cara.
Zoe e eu continuamos nossa rotina de assistir o nascer do sol
e preparar o café da manhã e ela até se junta a nós, mas não diz
uma palavra para mim que não seja estritamente necessária. Tal
qual, bom dia e obrigada.
Eu voltei a ser um estranho para ela, só que com o agravante
de que agora ela me odeia mais do que antes.
Também nunca mais aceitou minhas caronas para voltar do
pub, mesmo que eu tenha ido até lá todas as noites e ficado até o
último cliente ir embora.
Em algumas noites, eu a seguia de carro a uma velocidade
ridiculamente baixa enquanto ela caminhava até o prédio. Em
outras, pegava carona com sua amiga.
Por sorte, nunca a vi aceitar carona de nenhuma outra
pessoa. Em especial, homens. Acho que eu teria surtado se a visse
entrar no carro de algum homem.
Na sexta-feira da semana seguinte, decido tirar a cabeça do
meu próprio rabo e tentar arranjar um emprego para ela que lhe
ofereça melhores condições, já que ela não parece disposta a
aceitar a minha ajuda mais.
— Preciso de um favor — digo, assim que Killian atende a
chamada de vídeo.
Sei que ele detesta quando ligo em pleno expediente, mas é
leal o suficiente para nunca rejeitar a chamada.
— Oi, Killian, como vai? — ele imita a minha voz. — Muito
bem e você, meu amigo? — responde, agora usando sua própria
voz. — Estou bem também... — responde, novamente me imitando.
— Já acabou? — corto, irritado.
Ele revira os olhos.
— Pode pedir, cuzão.
— Preciso que você contrate a Éden como estagiária da sua
empresa.
Killian pisca algumas vezes, como se tentasse se orientar,
então arregala os olhos.
— Ela estuda algo na área de tecnologia? Porra, que da hora.
Claro que tenho uma vaga para ela...
— Arquitetura — corrijo.
— Perdão?
— Ela estuda arquitetura.
Meu amigo apoia o celular no que imagino ser seu porta-
canetas e esfrega as têmporas, tentando se acalmar.
— E como caralho eu vou contratar uma estagiária de
arquitetura para a minha empresa de design de games? — Sua voz
vai se elevando a cada palavra.
— Eu pago o salário dela! — argumento e ele volta a segurar
o celular, trazendo-o para perto do rosto.
— Porra, Tristan! Não é questão de dinheiro, arrombado.
Como eu vou contratar uma estagiária de arquitetura se não tem
setor de arquitetura na minha empresa?
Aos poucos, vou entendendo seu ponto de vista.
— Ah, é! Precisa de um profissional que assine o estágio... —
murmuro, mais para mim mesmo do que para ele.
— Exatamente. Por isso...
— Vamos contratar uma arquiteta!
Killian me encara pela tela como se eu tivesse
completamente fora de órbita.
— O quê?
— Vamos contratar uma arquiteta para a sua empresa e...
— Caralho, Tristan! Você está ouvindo o absurdo que está
propondo?
— Eu pago! — volto a argumentar e dessa vez ele realmente
grita.
— Não é questão de dinheiro, filho da puta! É questão de
bom-senso. Primeiro, não faz sentido eu criar um setor de
arquitetura que ficará completamente inutilizado só para dar
emprego a uma estagiária que você pode perfeitamente contratar
para a sua empresa.
— Não posso.
— Por que não?
Desvio o olhar e sinto meu peito agitado.
— Só... não posso.
— Certo, então vou dar o segundo argumento — diz, me
fazendo voltar a encará-lo. — Ela merece um estágio em que vá
aprender a ser a melhor profissional possível para que possa ter
sucesso em sua carreira. Éden não me parece o tipo de garota que
quer ser contratada para uma vaga que nem existe.
Engulo em seco.
— Eu sei, mas...
— Mas nada. Contrate a moça. Agora, tchau. Preciso ir para
uma reunião.
— Killian...
— Tchau, T!
— Não desliga! — reclamo, mas a chamada é desligada
assim mesmo.
Deito a cabeça sobre a mesa do meu escritório e sinto
vontade de bater a testa contra a madeira.
Não chego a fazê-lo, pois a voz de Jennifer soa do telefone,
naquela mágica tecnológica assustadora que ela costuma fazer.
— Chefe.
— Puta merda, Jen! — exclamo, colocando a mão em cima
do coração.
— Acabei de encontrar o arquivo da moça e enviar para o
setor de Recursos Humanos.
— O quê?! Que moça?
— Éden Lavinski Dela Cruz — responde pausadamente,
como se estivesse lendo.
— Eu não pedi isso!
— Nem precisava. O andar inteiro ouviu os gritos do Killian. A
sorte é que só temos você e eu por aqui.
— Jennifer — uso meu tom de voz bravo, que geralmente é
dedicado apenas a pessoas que realmente me irritaram.
— Nem vem, chefe. Você sabe que acabaria chegando a
essa decisão, só provavelmente ficaria andando em círculos por
mais alguns dias até cair na real.
— Eu realmente deveria demiti-la.
— Blá-blá-blá. O RH vai entrar em contato com ela a respeito
da vaga e depois envia o contrato para você assinar...
— Não! — exclamo. — Prefiro que o diretor financeiro assine.
— Mas você gosta de analisar todos os contratos...
— Não quero que ela saiba que eu sou seu chefe. Pelo
menos, não por enquanto.
Minha secretária ri baixinho, mas diz que me ajudará.
Assim espero, pois Killian e ela acabaram de me colocar em
uma situação muito complicada.
Éden Lavinski
 
Tem dias em que “derrotada” é uma palavra suave demais
para especificar o quão humilhada nos sentimos.
É o meu caso hoje.
Na semana passada, depois de passar duas horas tentando
dormir, fui para a varanda do apartamento e vi quando Tristan saiu
pela sala, parecendo tão transtornado quanto eu.
Segui-o até a academia e praticamente me ofereci para
aplacar sua fúria.
Eu me ofereci para ele.
E ele rejeitou.
Acho que faria sentido ele me rejeitar por pensar que sou
mesmo a namorada do filho dele. Se fosse o caso, eu mesma
esclareceria o mal-entendido (leia: minha mentira) e poderíamos
terminar a noite transando ali naquele tatame.
Só que não foi isso que ele falou.
Ele me rejeitou do jeito mais doloroso possível ao dizer que
não me queria, que não me desejava.
De lá para cá, simplesmente não consigo apagar da minha
mente suas palavras. Elas ecoam na minha cabeça quando tento
dormir, me distraem quando começo a estudar e me acompanham
enquanto trabalho.
Ele não me quer.
Então, dizer que estou na merda é pouco. Mas hoje pareço
ter chegado ao fundo do poço.
Perdi hora de manhã e não deu tempo de tomar café da
manhã. Não me arrumei. Não consegui render nada na faculdade. E
tudo piorou quando cheguei à cafeteria para o meu turno.
Minha chefe, que já é uma grossa, parece estar com raiva de
mim, não apenas do resto do mundo como de costume.
— Você precisa ser mais rápida.
— Você ainda não aprendeu a usar essa máquina?
— Você vai ter que limpar essa sujeira.
— Você não sabe fazer nada direito, garota?
Essas foram apenas algumas das frases que pontuaram
minha tarde toda.
Tudo piorou, quando fui ao banheiro e ouvi meu telefone
tocando. Acabei atendendo a chamada, mas ela praticamente
arrancou o aparelho das minhas mãos, gritando que não posso ficar
vadiando no celular em horário de serviço.
Não descobri sequer quem havia me ligado, já que a maluca
guardou meu smartphone em seu bolso e disse que só me
entregaria na hora do meu intervalo.
Isso tinha passado dos limites.
Ainda assim, engoli minha raiva e trabalhei por mais uma
hora até dar conta de atender todas as pessoas presentes no local.
Às 16h45, estendi a mão para ela sem dizer uma palavra.
— O que foi, Lavinski? A mesa...
— Meu celular.
— Você está sendo solicitada na mesa...
— Não — respondo.
— Não? — repete, incrédula.
— Não. Não vou atender mesa alguma. São 16h45, horário
do meu intervalo. Então você vai enfiar a mão no bolso da sua
calça, entregar meu celular com a educação que você não tem,
porque se danificá-lo ou me machucar eu vou chamar a polícia,
então vai abrir o caixa, me pagar as diárias trabalhadas e aí eu vou
sair por aquela porta e nunca mais voltar.
— Sua...
Estreito os olhos, como se a desafiasse a me xingar.

Cinco minutos depois, Tristan Ryan, o homem que me


rejeitou, entra na cafeteria com a testa franzida.
— O que houve? — pergunta e eu só não respondo
grosseiramente, porque não quero dar o gostinho à minha chefe
cretina.
Gosto que ela pense que eu tenho uma relação com um
homem com a aparência dele.
A infeliz em questão, chega a encolher ao vê-lo se aproximar
e começa a fazer as contas mais rápido.
— Nada. Minha ex-chefe está fazendo o meu acerto.
— Você arranjou outro emprego? — pergunta e pode ser
impressão, mas um brilho parece cruzar em seu olhar.
— Não. Só não estamos mais na mesma página por aqui.
Foi uma resposta vaga, mas ele estreita o olhar como se
tivesse compreendido tudo. A forma como encara a minha ex-chefe
é uma ameaça velada e juro que a mulher estremece.
Ótimo.
Ainda o odeio, mas gosto de fazê-la sentir ainda mais medo
do que quando ameacei arrancar os dentes dela para guardar como
garantia caso ela não me pagasse.
Dois minutos depois, ela entrega um envelope com o que
ganhei por 10 dias de trabalho. É uma mixaria, mas terá que me
ajudar a ficar de pé até conseguir outro emprego.
O único problema é que meu plano de ir embora da casa do
Tristan no mês que vem provavelmente terá que ser adiado por um
tempo.
Quando nos sentamos em sua SUV preta, para irmos buscar
a Zoe, meu senhorio me olha de lado.
— Vai me contar o que houve?
— Não.
— Éden...
Bufo.
— Ela é uma babaca. Alguém me ligou e ela arrancou o
telefone das minhas mãos e o guardou em seu próprio bolso por
duas horas.
Ele freia tão abruptamente que meu corpo acaba indo para a
frente. O homem estica o braço direito e me segura no ar. Coisa que
nem o cinto de segurança havia conseguido fazer.
— Você está bem? — pergunta, virando afoito no banco para
segurar meus ombros e tatear meus braços.
— Estou. Não foi nada. Mas você poderia ter causado um
acidente, porra. Comprou a carteira de habilitação ou o quê? Por
que freou assim?
Tristan pisca algumas vezes e então parece voltar à
realidade.
— Ela arrancou o seu telefone das suas mãos e o escondeu
de você?
Confirmo com um aceno e suas narinas se dilatam, como um
touro bravo.
Ele está furioso.
— Vamos voltar lá — diz e faz menção de girar o volante e
fazer outra manobra insana em pleno tráfego de Vancouver.
— A Zoe — cito o nome da minha filha e isso é suficiente
para que seus ombros relaxem.
— Certo. Vamos buscar a Zoe e...
— Não vou voltar nunca mais naquele lugar. Esqueça essa
mulher.
Meu “sogro” trinca o maxilar e volta a dirigir em direção à
escola da minha filha. Só quando estaciona lá em frente, é que ele
volta a falar.
— Você nunca mais vai voltar lá. Mas ela vai pagar pelo que
fez.
Não entendo a que exatamente se refere. Sei que não é um
homem violento e que claramente nunca agrediria uma mulher, mas
nesse momento ele parece disposto a destruir a vida dela.
Ao invés de fazer questão de ir comigo pegar a Zoe na sala
de aula, ele diz que precisa retornar uma ligação e fica para trás.
Quando ela e eu voltamos, ele já está parado em frente ao
carro com a porta traseira aberta para recebê-la.
— Tris! — Bubbles grita e, tal qual em todos os outros dias,
corre para abraçá-lo.
Ele a pega no colo e pergunta como foi o dia e os dois ficam
alguns minutos absortos em seu mundinho próprio.
Como estamos bem em frente à escola, vários outros pais
querem parar o carro ali, mas precisam esperar que Tristan escute
toda a história da Zoe sobre a aula de música. Só depois disso é
que ele a ajuda a entrar no carro, prende seu cinto de segurança e
se lembra de que o resto do mundo existe.
Nessas horas, fica muito, muito difícil me lembrar de que o
odeio. Mas então revivo o momento da rejeição na minha mente e
consigo apagar todo o rastro de simpatia e... carinho... por Tristan
Ryan.
Já estávamos na metade do caminho para o apartamento
dele, quando meu telefone toca. Novamente, não reconheço o
número, mas atendo.
— Senhorita Lavinski?
— Sim. Sou eu.
— Margareth Tofer da TER Construtora.
— O-oi — gaguejo, me lembrando do nome da empresa para
a qual enviei meu currículo. É aquela do prédio espelhado. — Pois
não, senhora Tofer?
— Margareth, querida.
— Certo, Margareth.
— Queria saber se ainda tem interesse na vaga de estágio?
Acreditamos que você será perfeita para a TER Construtora.
— Sim! — exclamo, então dou uma tossidela para me
recuperar. — Digo, sim. Ainda tenho interesse.
— Ótimo! Enviarei por e-mail o contrato, o salário e os
benefícios. Se estiver de acordo com tudo, aguardamos você às
13h30 horas na segunda-feira.
— Estarei aí! — respondo, mesmo que não tenha lido
nenhum dos documentos ou feito o que ela havia me orientado.
Margareth é gentil o bastante para disfarçar seu pequeno
riso.
— Certo, querida. Até segunda-feira. Bem-vinda à TER.
Desligo o telefone, mas continuo olhando para o aparelho
incrédula.
— Novidades? — Tristan pergunta, estourando a minha bolha
de alegria.
Olho para ele e sinto uma dor na boca do estômago ao
admitir para mim mesma que tudo o que eu queria era me jogar em
seu pescoço e comemorar essa conquista. Mas ele me rejeitou.
— Apenas que você vai se livrar de mim mais rápido do que
poderia sonhar.
Ele não responde, mas seu sorriso torna-se uma máscara de
pura tensão, enquanto aperta o volante como se estivesse com
raiva do carro.
Éden Lavinski
 
Não tenho roupa.
Sério. Não tenho mesmo.
Não estou exagerando só para dramatizar.
Eu literalmente não tenho roupas.
Pelo menos, não para trabalhar em uma empresa daquele
porte.
Procuro entre todos os meus pertences até encontrar uma
bota de cano alto, que vai até o joelho - o mais próximo de um
sapato “chique” que eu possuo -, um jeans menos rasgado e a
minha jaqueta de couro.
Não é exatamente o que eu acho que as mulheres que
trabalham ali vestem no dia a dia, mas vai ter que servir. 
A TER Construtora tem aquela vibe meio Wall Street, então
aposto que seus funcionários andam com ternos impecáveis e
sapatos de marca.
Mas é o melhor que posso oferecer.
Tristan não falou uma palavra sequer desde que eu deixei no
ar a minha ideia de juntar dinheiro e sair de sua casa o quanto
antes, mas mal parou em casa durante o final de semana.
Talvez tivesse ido encontrar alguma mulher… ou mais de
uma, até.
A ideia me faz morder a parte interna das minhas bochechas
e jurar para mim mesma que não estou com ciúmes. Não posso
estar.
Hoje, quando cheguei à cozinha, ele parecia abatido, como
se não tivesse dormido bem, mas estava ali servindo panquecas
para a minha filha e ouvindo-a falar sobre um milhão de assuntos
com toda a paciência do mundo.
Isso me levou a ser gentil e preparar uma xícara de café para
ele naquela máquina chique antes de preparar uma para mim.
Ele agradeceu, mas eu não deixei o assunto continuar. Logo,
saímos para levar a Zoe à escola.
— Boa aula, meu amor — digo, beijando a ponta do nariz da
minha pequena antes de deixá-la na escola.
— Boa sorte no trabalho, mamãe! — Bubbles diz, me
abraçando antes de dar a mão à professora. — Tchau, Tris! —
acena para o homem cuja presença consigo sentir logo atrás de
mim.
— Boa aula, Pipoquinha.
— Becca, lembre-se de que hoje eu talvez atrase para buscá-
la, mas…
— Eu chegarei a tempo — meu “sogro” diz, me fazendo
bufar.
A professora demora alguns segundos para conseguir
desviar os olhos do rosto bonito dele, mas então me encara como
se esperasse minha autorização.
— Tristan está autorizado a buscá-la no meu lugar hoje.
Mandei os dados dele por e-mail antes de sairmos de casa.
Soou como se nós morássemos juntos. E ela percebeu, pois
arregalou os olhos.
Bom, tecnicamente moramos, só que não temos esse tipo de
relacionamento.
Penso em como corrigir o mal-entendido, mas ele coloca a
mão no meu ombro, o que reforça a desconfiança da mulher.
— Tudo bem, Éden. Até amanhã — ela diz e sai andando
com a minha filha.
Fuzilo o sujeito com o olhar assim que ficamos sozinhos, mas
ele apenas continua olhando as próprias cutículas, como se não
tivesse feito nada.
— Pronta? — pergunta, apontando para o carro.
O dia está chuvoso e eu adoraria pegar carona com ele, mas
não vou me render a isso. Não mesmo.
— Tchau — respondo, começando a ir em direção ao ponto
de ônibus.
Tristan vem andando atrás.
— Você vai se molhar…
— Prefiro chegar molhada à faculdade.
— E depois continuará molhada até a hora de ir para o
emprego novo — argumenta e eu quase fico balançada nesse
momento, mas separei uns trocados para pagar um Uber caso
perceba que corro o risco de me atrasar para o trabalho.
Só hoje. Afinal, preciso causar uma boa impressão no
primeiro dia.
— Eu me viro.
— É só a porra de uma carona — exclama, bufando.
Viro em sua direção, furiosa.
— Uma carona que você não quer dar. Não deseja dar.
Uso contra ele as mesmas palavras que me magoaram tanto.
Tristan respira pelo nariz e suas pupilas se dilatam conforme
me encara ainda mais intensamente.
— Você não faz a menor ideia do que eu desejo, Éden.
Engulo em seco, sentindo meu corpo todo se arrepiar. Queria
dizer que não dei um micropasso mais para perto dele, mas meus
pés traidores fizeram isso involuntariamente, como se nem uma
parte de mim fosse capaz de ficar longe ou de manter o controle
quando está diante de Tristan Ryan.
O som de um ônibus se aproximando me faz desviar o olhar
e sorrio aliviada ao ver que é o meu.
— Tchau, Tristan. Obrigada por buscar a Zoe.
— Éden… — ele me chama mais uma vez, em um tom de
súplica, mas eu entro correndo no transporte público, precisando
ficar o mais longe possível do homem que me rejeitou.
Foi por pouco.
Acho que eu teria aceitado a carona se o ônibus tivesse
demorado mais 10 segundos para chegar…
Salva pelo gongo.

— Você tem alguma dúvida sobre o contrato, senhorita


Lavinski?
Margareth, do setor de Recursos Humanos, é a minha nova
pessoa favorita.
Sei que ela me mandou olhar essas coisas na sexta-feira,
mas fiquei tão eufórica que nem cheguei a abrir o arquivo. Assinei
sem nem ler.
Irresponsável, eu sei.
Então, quando cheguei à empresa e fui apresentada ao
pacote de benefícios, simplesmente tive que conter as lágrimas que
queriam escorrer pelo meu rosto.
Além de uma bolsa-auxílio de 15,55 dólares canadenses por
hora, a empresa ainda oferece o meu seguro-saúde e o da Zoe,
transporte, vale-refeição e bônus por projeto concluído. Tudo isso,
para um contrato de 12 meses de trabalho, renovável até o final da
faculdade.
O único problema é que eu trabalharei das 13h30 às 17h30
de segunda a sexta-feira, o que significa que preciso conseguir um
transporte seguro para a Zoe. Talvez com uma dessas motoristas de
vans de alunos ou a própria senhora Curtis possa ir buscá-la.
Ainda não sei exatamente o que fazer, mas vou dar um jeito.
Eu sempre dou.
— Nenhuma dúvida, senhora… — dou uma tossidela quando
ela me encara. — Digo, Margareth. Você pode me chamar de Éden,
por favor.
— Combinado, Éden. Vou apresentá-la aos seus novos
colegas de trabalho. Espero que você seja muito feliz na TER
Construtora.
Eu vou ser.
Sei disso.
A empresa não fica tão perto da vizinhança em que estamos
morando, que é a mesma da escola da Zoe, então levo cerca de 40
minutos de ônibus para chegar a uma avenida próxima e andar mais
15 minutos até o prédio.
Já são quase 18h30 quando chego. Mas, apesar do cansaço,
me sinto realizada profissionalmente pela primeira vez na vida.
Aprendi tanto em apenas algumas horas convivendo com
aquelas pessoas brilhantes, que só posso me sentir puramente
inspirada.
— Mamãe! — Zoe exclama, quando abro a porta e corre para
me abraçar.
— Oi, Bubbles. Como foi na escola hoje? — pergunto, me
abaixando para abraçá-la e enchê-la de beijos.
— Bem! E o seu primeiro dia? Fez amigos?
Sorrio, achando muito doce a forma como ela enxerga a vida.
Para adultos, o “fazer amigos” é secundário, já que estamos
mais preocupados com pagar contas e ter sucesso do que em
gostarmos do ambiente em que estamos.
Contudo, dessa vez eu tenho uma resposta feliz a essa
pergunta.
— Sim, Bubbles. Eu fiz amigos. Todo mundo é incrível lá.
Quando me levanto, noto que o dono da casa está encostado
de lado na parede, observando nossa interação com um pequeno
sorriso no canto dos lábios.
— Que bom que você gostou da TER, Éden.
Franzo a testa, pois não me lembro de ter comentado que é
lá onde eu vou trabalhar, mas decido ignorar, já que estou mais
preocupada com algo que só agora notei.
— A senhora Curtis?
— O marido dela tá dodói — Zoe responde, me fazendo
arregalar os olhos.
— Mas...
— Tudo bem. Nós ficamos fazendo o dever de geometria —
Tristan explica.
— O Tris é muito bom com isso, mamãe. Igual a você!
Pisco algumas vezes, mortificada por ter me dado conta de
que o dono da casa ficou de babá da minha filha.
— Nossa, que legal, Bubbles. E você já terminou todas as
lições?
— Falta só uma.
— Vai lá fazer para podermos brincar depois?
— Sim! — responde, e corre de novo para a sala.
— Desculpa por isso — murmuro.
— Por...?
— Fazer você ficar cuidando da minha filha. Já fez muito em
buscá-la...
— Éden, eu faria qualquer coisa por vo... pela Zoe.
— Obrigada — agradeço, com sinceridade, mesmo que me
sinta frustrada por ter criado expectativas de que diria que faria
qualquer coisa por nós duas.
— Não precisa me agradecer.
Mais tarde, depois de Zoe e eu brincarmos no parquinho
coberto do prédio, terminarmos sua lição de casa e jantarmos junto
com o Tristan, a pequena pega no sono assistindo desenho
animado no sofá da sala.
Antes de levá-la para o quarto, vou até a varanda, onde
Tristan está bebendo um copo de whisky.
— Tudo bem? — pergunta assim que me aproximo.
— Tudo. Só que... não vou poder ficar no emprego.
Ele engasga com a bebida e coloca o copo na mesinha.
— Do que você está falando?
— O marido da senhora Curtis está bem adoentado e ela não
vai poder cuidar da Zoe essa semana.
Tristan franze a testa, me olhando como se eu fosse
completamente doida.
— Acho que posso levá-la para o pub comigo, mas para a
empresa...
— Você está falando sério?!
Seu tom de reprovação me faz levantar a cabeça, pronta para
me defender, mas ele consegue me deixar ainda mais irritada.
— Quer levar uma criança para o pub?
— Ela ficaria no depósito! — retruco, tentando não gritar de
raiva.
— Mas por que raios você faria isso, Éden?
Me aproximo dele, puta de raiva, e cutuco seu peito.
— Deixa eu ver, talvez por que eu sou mãe solo e não tenho
ninguém para me ajudar? Se você tem preconceito com a minha
situação, é problema seu, Tristan. Mas eu...
— O quê?! — balbucia, indignado. — Você realmente não
consegue enxergar nada, não é?
— Estou enxergando muito bem seu olhar de julgamento!
— Eu estou julgando sim, porque você é tão cega que prefere
cogitar deixar um emprego que você queria muito conseguir ao
invés de entender que não está mais sozinha, porra!
Abro a boca para retrucar, mas sua última frase me faz calar.
— O-o quê?
— Eu cuido da Zoe para você trabalhar, Éden. São só umas
horas mesmo...
— Mas e seu trabalho? — murmuro, chocada.
— Eu sou o chefe. Faço o horário que der na minha telha.
— Mas...
— Eu cuido dela — reforça.
— Não posso pedir isso.
— Você não pediu. Eu disse que estaria aqui sempre que
precisassem.
— Isso é errado. Você...
— Só até o Walter ficar melhor e a Molly voltar a poder olhar
a Zoe para você.
Meu orgulho me faz querer recusar. Afinal, ele foi um babaca
naquele dia e...
Apesar do horário improvável, uma borboleta pousa no
parapeito da varanda, me fazendo arregalar os olhos.
Talvez seja apenas uma forma de justificar o fato de que
estou aceitando mais uma vez a caridade do Ryan, mas a voz da
minha filha falando que é a vovó toda vez que uma borboleta se
aproxima ecoa na minha mente.
— Só até ela voltar ao trabalho — murmuro.
— Combinado.
Não encaro-o, para não correr o risco de entregar mais um
pedaço do meu coração nas mãos desse homem.
Ele já levou pedaços de mim para uma vida toda. Então, digo
a única coisa capaz de me fazer manter um pouco de sanidade.
— Logo não seremos mais problema seu, de qualquer jeito.
Obrigada.
Tristan Ryan
 
Mais uma noite em que quase não preguei os olhos, dessa
vez remoendo as palavras da Éden.
Como assim “não serão mais problema meu”? O que quis
dizer com isso?
Não pode simplesmente ir embora e... e...
E me deixar aqui sem a Zoe e ela.
— Nossa, você está um lixo.
— Valeu — murmuro, sem nem ao menos dar um sorriso
para o meu treinador de Muay Thai.
Por causa dos horários da Zoe, troquei os meus treinos com
ele para terças e quintas na hora do almoço e aos sábados pela
manhã.
Morin achou estranho, afinal, sempre costumei treinar antes
de trabalhar, mas não chegou a perguntar o motivo. Só que ao invés
de voltar para casa para treinar, as aulas passaram a ser na
academia dele, que fica bem mais perto da TER.
— Nossa, pior do que eu imaginava, hein.
— Veio para fazer uma sessão de terapia ou me dar aula de
luta? — respondo, ácido.
Isso faz o grandalhão franzir a testa, surpreso.
Ser grosseiro não é um traço da minha personalidade. Não
mesmo.
Sou sarcástico, folgado e arrogante. Mas, raramente rude.
— Só estou dizendo que se quiser desabafar, eu posso
emprestar meus ouvidos. De novo...
— Certo — murmuro e me coloco em posição de combate,
avançando sobre o treinador, que desvia com facilidade e ainda me
derruba de bunda no chão.
— Fraco, Ryan. Muito fraco — diz, balançando a cabeça. —
De novo.
Levanto do tatame e tento me concentrar no treino. Lá pelas
tantas, depois de descontar muito da minha frustração na luta,
consigo enxergar as coisas com mais clareza.
Não posso deixá-las ir.
Não mesmo.
Preciso convencê-las a ficar.
Mesmo que Éden nunca possa ser minha. É melhor tê-la por
perto, do que simplesmente viver sem seus olhos flamejantes.
Minha chama.
Ma flamme.

Chego à empresa todo suado do treino e sigo direto para a


minha sala, onde tomo uma ducha em meu banheiro privativo.
O dia está tão chuvoso quanto ontem.
Para alguém que gosta de esportes ao ar livre, como eu, não
é tão convidativo, mas minha opinião sobre tardes chuvosas muda
imediatamente ao olhar pela janela do meu escritório enquanto
abotoo a camisa.
Éden está do outro lado da avenida, esperando os carros
pararem para poder atravessar. Hoje, veste aquela bota que chega
ao joelho, uma saia na metade das coxas, uma blusa simples e uma
parca bege.
Não parece se importar com a chuva, pois não trouxe nada
para se proteger. Pelo contrário. Está com fones gigantescos na
cabeça e dançando como se estivesse completamente sozinha no
universo.
Os carros param, mas não atravessa normalmente.
Nada é comum com a Éden.
A garota sai andando e cantando, gira o corpo, dá pulinhos,
tudo em um passo ritmado.
Me pego rindo e sinto falta de sua imagem assim que ela
termina de atravessar a rua e já não consigo mais vê-la tão livre e...
linda. Absolutamente linda.
— Chefe? — Jennifer me chama.
— Sim? — respondo, arranhando a garganta ao notar o tom
rouco que minha voz assumiu após ter sido impactado pela visão da
namorada do meu filho.
Viro de frente para ela e flagro-a tentando esconder um
sorriso.
— Sua reunião começa em 15 minutos — diz, me entregando
um shake de proteína. — Aposto que não almoçou.
— Não mesmo. Obrigado, Jen.
— Precisa de um momento? — pergunta, apontando para a
janela e isso me faz engasgar com o líquido. — Opa. Nada de
falecer. Você é meu chefe favorito — cantarola ao sair da sala.
— Sou seu único chefe! — grito.
— Detalhes! — grita de volta, me fazendo rir.

— Boa tarde, senhor Ryan. Tudo bem?


— Pode me chamar de Tristan. Você é a Rebecca, certo? —
cumprimento a professora da Zoe, que abre um sorriso de orelha a
orelha.
— Como o senhor sabe? Pode me chamar de Becca...
— A Éden me passou seus dados — explico.
A moça sorri, um pouco sem-graça, e me deixa entrar.
— A última aula foi de música e a Zoe quis ficar ensaiando
um pouco mais. Venha por aqui, por favor.
Ao invés da sala usual, a Pipoquinha estava na sala de
música, divertindo-se com um teclado. Peço silêncio à professora,
que acena sorridente, concordando e fico parado à porta, vendo-a
tentar tocar o refrão de uma música.
— Muito bem! — aplaudo quando ela termina e seus olhos se
enchem de luz.
— Você viu?! Eu estou aprendendo!
— Está indo muito bem, meu amor.
— Você sabe tocar teclado, Tris?
— Um pouco, Pipoquinha — digo.
Não é verdade. Eu toco piano desde que me entendo por
gente, mas não costumo falar muito a respeito.
— Deixa eu ver? — pede, juntando as mãozinhas como se
fizesse uma prece.
Coisa mais adorável do mundo.
Olho para a professora, pedindo permissão e ela acena, me
autorizando a entrar na sala, onde mais duas crianças seguem
brincando com instrumentos musicais.
— O que você quer ouvir, Pipoquinha? — pergunto.
— Escolhe uma música para mim!
Penso um pouco e opto por “In my life”, dos Beatles. Sei que
não é uma música infantil, mas o ritmo é delicado e quase parece
uma canção de ninar.
Mas o motivo mesmo por ter optado por ela, é a letra. Fala de
algo romântico, mas, para mim, pode facilmente abranger um
carinho ainda mais puro. O carinho que eu tenho pela Zoe e pela...
droga... e pela Éden.
E é por isso que eu canto a música toda. Só para elas.
 
Embora eu saiba que nunca vou perder o carinho
Por pessoas e coisas que vieram antes
Eu sei que muitas vezes vou parar para pensar nelas
Em minha vida, é você quem eu amo mais
 
Quando termino, noto que tinha uma plateia ao redor, entre a
professora, as crianças que já estavam ali e algumas que vieram do
corredor com seus pais.
Mas a espectadora mais especial está sentada ao meu lado
com os olhos brilhando.
— Você sabe tocar!
— É... eu sei, Pipoquinha.
— Me ensina?
— Ensino sim, meu amor. Agora, podemos ir para casa?
— Sim! — diz e fica de pé em um salto.
A mãe dela levou um pedaço do meu coração.
Mas o restante dele foi essa criança de seis anos, olhos
incrivelmente sinceros e a alma mais pura que eu já encontrei.

— Não tem um monstro aí dentro, né? — Zoe pergunta,


quando digo que vou mostrar a ela o quarto que fica trancado no
corredor.
— Não. Não mesmo — respondo, rindo.
Giro a chave e apresento a alguém pela primeira vez aquele
espaço que é só meu.
— Uau...
Há quadros com meus álbuns favoritos espalhados por toda
uma parede, meu piano encostado em outra, dois violões, guitarra e
um baixo na outra e no meio um aparelho de som vintage com
centenas de vinis.
— Isso é muito legal, Tris — diz, girando no meio da sala. —
Eu posso aprender a tocar tudo isso?
— Pode sim, Pipoquinha. Mas que tal começarmos com o
teclado?
— Não tem nenhum... — murmura.
— Vou providenciar um para você, meu bem. E esse piano
vai lá para a sala, para você poder ficar perto dele também.
— Por que não aqui?
Mordo a língua ao quase contar meu plano de transformar
esse quarto em um espaço só para ela. Mas prefiro fazer surpresa.
— Esse quarto vai passar por uma reforma.
— E os violãos?
— Os violões e o restante vão para a sala que tem no
terraço. Lá em cima. Sabe?
Zoe nega e eu me sinto um filho da puta por nunca ter
apresentado a casa toda para elas.
— Tem uma piscina lá em cima também. Mas só pode nadar
quando estiver fazendo calor.
— Oba! — comemora.
O som da porta da sala sendo aberta interrompe nossa
conversa e Éden chama pela filha, que grita para ela “vir conhecer a
sala legal do Tris”.
Sua mãe aparece à porta parecendo levemente assustada.
Será que, tal qual meus amigos, ela achava que esse fosse um
quarto proibido para menores de idade?
Seu olhar indica que sim.
— É uma sala de música... — balbucia, incrédula.
— O que pensou que era?
Tenta esconder o pequeno sorriso que brinca em seus lábios,
mas eu vejo.
— Como foi a aula, Bubbles?
— Foi boa e o Tris vai me ensinar a tocar teclado. Ele toca
piano e vilãos e canta também!
— Violão ou violões — corrige. — Canta, é?
Finjo estar tirando uma poeira inexistente da minha mesa,
enquanto ela continua a indagar a menininha sobre isso.
— Como era a música, Tris? — pergunta e tenta repetir o
refrão “In my life I love you more”[25].
A acompanho, cantando só esse trechinho, para fazê-la feliz.
Zoe aplaude efusivamente e quando levanto a cabeça, meu olhar
cruza com o de Éden que parece... encantada.
Nos encaramos por um instante, ambos perdidos em tanta
coisa que nem que quiséssemos poderíamos falar.
A intensidade entre nós só para de vibrar quando Zoe
resmunga de fome.
Éden Lavinski
 
Esse cara só pode estar tentando me confundir.
Em um dia ele diz que não me quer. No outro, passa a ser
babá da minha filha.
Como se não pudesse piorar, consigo ouvir o som dele
tocando piano no quarto ao lado. A Bubbles[26] dormiu embalada
pelas músicas, mas eu estou aqui remexendo na cama, sem
conseguir tirá-lo da mente.
Deslizo para fora da cama, suavemente para não acordar a
minha filha. Saio do quarto sem fazer barulho e ando na ponta dos
pés pelo corredor até parar em frente ao espaço de música dele.
Sua porta está entreaberta e consigo vê-lo deslizando os
dedos longos pelas teclas do piano com tamanha intimidade que
chega a parecer uma carícia.
Não consigo evitar pensar nesses dedos habilidosos
acariciando entre as minhas pernas, afundando entre os lábios da
minha boceta e brincando com o meu interior.
Isso me excita tanto que preciso fechar as coxas com mais
força.
Para piorar a minha situação, Tristan começa a cantar “In my
life”. Sua voz grave e rouca arrepia todos os pelos da minha nuca e
se havia alguma parte de mim que não estava em chamas, nesse
momento posso dizer que estou pegando fogo.
 
Há lugares de que vou lembrar
Por toda a minha vida, embora alguns tenham mudado
(...)
 
Mordo o lábio, sonhando que ele está cantando diretamente
para mim.
Como se pudesse ler os meus pensamentos, Tristan olha
para cima e canta o restante me fitando intensamente.
 
Mas de todos esses amigos e amores
Não há ninguém que se compare a você
E essas memórias perdem o sentido
Quando eu penso no amor como algo novo
 
Engulo em seco, sentindo meu coração bater
descompassado dentro do peito.
Ele para de tocar, mas continua me encarando...
E eu corro de volta para o quarto, onde me escondo na cama
para fugir dos meus próprios desejos impossíveis.
Ou seriam possíveis?
Tristan Ryan
 
— A estagiária nova já é a queridinha do setor de
planejamento — Jennifer comenta, como quem não quer nada.
— Ah, é?
— Sim. Todo mundo está falando sobre as ideias criativas da
Éden Lavinski. Ela tem mesmo nome de arquiteta famosa, não é?
Mordo as bochechas, envergonhado por me dar conta de que
preferia que ela tivesse outro sobrenome.
O meu.
Quão machista e patriarcal é isso? Logo eu, um feminista
inveterado, pensando assim só porque gostaria que ela tivesse algo
meu que a tornasse intocável para qualquer outro.
— Que bom — murmuro.
— Também repararam que ela é muito bonita.
Isso me faz parar de digitar e olhar por cima da tela do
Macbook.
— Perdão?
Jennifer, muito cretina, apenas dá de ombros e sai me
deixando completamente atordoado com a informação.
Qual filho da puta do caralho está reparando tanto assim
nela?
Sigo minha secretária até a sala dela.
— Desembucha, Jennifer.
— Nada, chefinho... relaxa...
— Jennifer!
— O estagiário novo, que entrou alguns dias antes dela,
contou que ela fez o maior sucesso ontem na obra do St. Patrick
Hospital.
Juro que meu olho começa a piscar.
— O quê?
— Ela virou a favorita do pessoal por lá.
Estreito o olhar.
— Quero ser informado quando ela for acompanhar outra
obra — decreto, fazendo minha secretária traidora gargalhar e
começar a gravar um áudio para o Killian imediatamente.
Não demora nem trinta segundos para meu bolso começar a
vibrar, provavelmente com mensagens dos meus amigos cuzões.

Na quinta-feira, Zoe já está me esperando praticamente na


porta da sala de aula quando chego, mesmo que tenha me atrasado
apenas dois minutos.
— Tris! — diz e sai correndo pelo corredor para me encontrar.
Pego-a no colo, sentindo um afeto caloroso preencher meu
peito.
— Oi, Pipoquinha.
— Posso pedir uma coisa? — pergunta, sem fazer cerimônia.
— Pode, claro — respondo e decido carregá-la no colo até o
carro, só porque não quero soltá-la.
— É aniversário da mamãe...
— Hoje?!
Arregalo os olhos, tentando lembrar das informações em seu
arquivo pessoal.
— Hoje não, seu bobo! É dia 16.
— Ah! Dia 16 — repito, sentindo a alma voltar para o meu
corpo. Temos cerca de duas semanas até lá.
— Isso. Então, eu quero comprar um presente.
Sorrio, mais uma vez sendo afogado por todo o carinho que
ela desperta em mim.
— Ah, é?
— Sim. Você pode me ajudar?
— Claro, Pipoquinha. O que você quer que a gente compre?
— Não sei — murmura.
— Que tal um colar?
— Pode ser! — diz, seus olhos se acendendo.
— Ótimo — digo, colocando-a no assento de elevação[27] e
prendendo o cinto de segurança ao redor de seu corpo. — Podemos
ir ao shopping que fica aqui perto. Topa?
— Eu deixei meu cofrinho em casa e preciso dele para pagar
o presente — diz, fazendo um beicinho chateado.
Sorrio como um bobo para a criança de seis anos que está
oferecendo suas moedas para pagar um presente, sem ter a menor
noção de que eu posso comprar quantos colares ela quiser.
Porra, eu compraria até a lua se ela me pedisse.
— Não tem problema, Pipoquinha. A gente compra o
presente da sua mãe amanhã, tá bom?
— Obrigada! — diz, então começa a me contar sobre o que
aprendeu na escola.
Não sei se é por eu nunca ter vivido isso no dia a dia com o
Jackson, mas eu me sinto encantado todas as vezes que ela
começa a tagarelar e mal respira entre as frases.
Apenas adorável.

No dia seguinte, assim que busco a Zoe na escola, passo em


um pequeno shopping onde sei que tem algumas lojas mais
exclusivas e a levo direto até uma Tiffany & Co.[28], onde ela poderá
escolher um colar ou qualquer outra coisa de que tenha gostado.
— Nossa, que bonito... — a pequena sussurra, como se me
contasse um segredo, assim que entramos no local.
Uma vendedora se aproxima imediatamente.
— Bem-vindos! Como posso ajudá-los?
— Eu vim escolher um presente para a mamãe! — Zoe conta,
como se isso explicasse tudo.
A mulher passa os olhos pelo meu terno e posso jurar que
identifica o quão caro ele custou em menos de dois segundos.
Então, ela coloca um sorriso no rosto e se abaixa para fitar a
garotinha.
— Ah, é? E o que você e seu pai querem?
A palavra “pai” me desconcerta e por um instante me pego
sem reação.
Pai.
Pai...
Porra, eu adoraria ser o pai dela.
Penso em corrigir o mal-entendido, mas Zoe parece nem ter
notado, pois começa a falar sobre borboletas e a avó.
— Acho que temos alguma coisa assim lá atrás. Vou pegar
para vocês.
A funcionária some atrás do balcão, enquanto nós
continuamos a olhar os mostruários. Quando ela retorna, poucos
minutos depois, Zoe me puxa até o balcão.
— Eu encontrei duas peças que acho que podem se
enquadrar no que você quer, querida.
Reviro os olhos diante das palavras difíceis que a criatura usa
com uma criança de apenas seis anos, mas a menina acena como
se tivesse entendido tudo.
— Primeiro, esse colar.
É um colar simples, com um pingente de borboleta bastante
bonito, mas que não chega a me encantar. Pela forma como Zoe
olha para ele, acredito que pense o mesmo.
— E a outra peça? — pergunto.
Noto que a mulher hesita por um instante, antes de pegar a
caixinha que parece bem mais luxuosa do que a outra. Ela me
encara e eu aceno, confirmando silenciosamente que não temos um
limite de gastos.
Quando ela abre, eu sei que é o presente certo.
Olho para a criança e ela também está encantada pela
pulseira.
— Gostou, meu amor? — pergunto, mesmo que a resposta
esteja estampada em seu rostinho.
— É tão linda…
É mesmo.
Trata-se de uma pulseira de ouro de duas voltas com três
borboletas e algumas bolinhas de brilhantes penduradas entre as
principais decorações. Mas, o que chama mesmo a atenção, são as
pedras negras cravejadas nas borboletas.
É tão… Tão “Éden”.
Delicada e forte ao mesmo tempo.
Impactante.
— Gostaram? — a vendedora pergunta, sorrindo ainda mais.
Abaixo ao lado da garotinha.
— É essa, Pipoquinha?
— Só preciso ver se custa muito caro, Tris. Eu não tenho
muito dinheiro — sussurra.
— Aposto que tem o suficiente. Quer contar?
Ela acena e pega o cofrinho de dentro da mochila,
derrubando um punhado de moedinhas barulhentas no balcão de
vidro da loja.
É claro que o som faz todo mundo olhar na nossa direção e
talvez alguém mais tímido – ou que ligasse a mínima para o que as
pessoas pensam – teria ficado envergonhado, mas eu só consigo
achar a coisa mais doce do universo.
Zoe sempre encontra um jeito de me fazer sorrir tanto que as
minhas bochechas chegam a doer.
— Dois, três…
Ela vai contando até parecer confusa, então me olha, pedindo
ajuda.
— Vamos contar juntos? Aqui tem um, dois, três, quatro,
cinco dólares canadenses e setenta e cinco cents.
— Dá para comprar a pulseira? — pergunta para a
vendedora, com a expressão esperançosa.
Tiro o cartão de crédito do bolso e o coloco discretamente
sobre o balcão. A atendente entra na pequena farsa e começa a
olhar a etiqueta de preço.
— Hmmm, deixa eu ver… Na verdade, parece que ainda
sobram dois e setenta e cinco.
— Jura?! — Zoe bate palmas e eu rio baixinho.
Enquanto a garotinha coloca de volta as moedas que
“sobraram”, eu passo o cartão de crédito para pagar a pulseira que
custou CAD 9,8 mil.
A verdade, é que eu teria pago o dobro sem nem pestanejar.
Aquela pulseira foi feita para estar no pulso da Éden.
Ao pensar sobre ela, lembro-me de algo importante.
— Acredito que esteja muito grande. O pulso dela é mais fino.
Podem ajustar?
— Claro, senhor. Sabe a medida das pulseiras de sua
esposa?
Dessa vez, eu engasgo com o próprio ar ao ouvir a palavra. A
mulher havia decidido sozinha que sou o pai da menina e marido da
mãe dela.
Em outros tempos, essas duas frases teriam me causado
urticária.
Mas, agora, o que me incomoda realmente é que não são
nem de longe a verdade.
Olho o braço da vendedora e decido não corrigir o engano.
Foda-se. Vou me permitir sentir o gosto de ser o pai e o
marido hoje.
— Um número a menos do que o seu — informo.
— Tem certeza, senhor?
Sim. Eu tenho. Me lembro de cada mínimo detalhe a respeito
de Éden Lavinski.
— Absoluta — murmuro.
Por alguma razão, a atendente sorri com carinho para a
minha certeza.
— Geralmente, pedimos 7 dias para alterações, mas
podemos entregar mais rápido se for necessário, senhor.
— Sete dias está ótimo.
Ela preenche a papelada e eu assino.
Aproveito, também, para encomendar uma peça sob medida
para mim e saímos de lá alguns minutos depois.
Zoe segura a minha mão por todo o caminho até o carro e
pede para não contar à mãe dela sobre o presente.

Mais tarde, sentamos na sala para fazer seu dever de casa.


— Olá? — Éden chama, assim que abre a porta de casa.
Casa.
Quarenta minutos atrás, eu estava pensando sobre o quanto
eu gostaria de ser pai daquela garotinha. E agora sou nocauteado
por um novo pensamento... que eu adoraria poder ouvir essa mulher
chegar em casa todos os dias.
Para me destruir um pouco mais, a dona dos meus sonhos
mais impróprios entra na sala abraçada à filha e eu a vejo
novamente vestindo aquela bota, saia e parca que me fizeram babar
da janela do meu escritório mais cedo.
Ela está absolutamente linda e...
E, porra, eu estou muito fodido.
Tristan Ryan
 
Quando Jennifer entra pela terceira vez no meu escritório
sem motivo algum, dou um grito.
— Fala logo, inferno!
— Não sei de nada — alega, na pior atuação possível.
— Jen... — uso meu tom de aviso.
— Se eu soubesse de algo, diria que sua estagiária foi
sozinha acompanhar a obra do hospital. Mas eu não sei de nada.
A veia do meu pescoço se dilata e eu sinto um desconforto
no peito.
— Certo — murmuro.
— Preciso chamar uma ambulância, chefe? — minha
secretária fofoqueira brinca.
— Engraçadinha. Não tem problema algum. Ela é uma boa
profissional e...
— Ela ainda não sabe que trabalha para você, não é?
Mordo a parte interna das bochechas e confirmo com um
breve aceno.
— Tá explicado.
— O quê?
— Porque você ainda não saiu correndo daqui, chefinho.
Bufo.
— Nada a ver, Jennifer. Vai caçar trabalho, vai.
— Então você não vai se importar com...
Me inclino para ouvir, mas ela fala tão baixo que não consigo.
— Jen... — uso o tom de bronca que a faz revirar os olhos.
— Ué? Por que quer saber? Você não se importa.
— Fala logo, Jennifer!
Primeiro, ela gargalha. Só então, se inclina sobre a minha
mesa com a expressão de adolescente que está aprontando.
— O estagiário novo contou para a secretária do setor de
planejamento, que contou para a secretária do...
— Contou o quê, inferno? — corto.
— Que homem ansioso! Você precisa cuidar do seu coração,
chefe. Vai enfartar, assim.
— Você vai me causar um infarto, Jennifer. Desembucha,
porra!
— Parece que o engenheiro indicado pelo pessoal do St.
Patrick para acompanhar a obra junto com o nosso setor de
planejamento andou perguntando se a Éden é solteira...
E foi assim que eu fui parar em uma maldita obra em plena
segunda-feira.

Noto a forma como revira os olhos assim que me vê. Minha


mão chega a abrir e fechar involuntariamente, de vontade de
estapear sua bunda empinada até fazê-la criar modos.
— Me seguindo aqui também, Sogrinho?
Odeio quando ela usa esse apelido ridículo. Odeio com todas
as minhas forças.
— Acho que tenho coisa melhor para fazer do que ficar
seguindo seus passos, Norinha — retruco, usando do mesmo
sarcasmo.
Éden tira o capacete de proteção, colocando-o embaixo do
braço e me encara com desdém.
— Então?
— O quê...?
— O que veio fazer aqui? — pergunta, claramente irritada.
Isso vai ser tão saboroso, que eu chego a ajustar a postura e
cruzar os braços, olhando-a com diversão.
— Gosto de fiscalizar as minhas obras, vez ou outra — minto.
A verdade é que hoje tenho tantas obras em simultâneo, que
só participo do processo de execução de umas duas ou três ao
longo do ano. Tenho equipes que assumem todo o trabalho em cada
um dos projetos que a minha empresa assina.
Não vim aqui para fiscalizar nada, exceto os boatos de que
os funcionários estavam muito saidinhos para cima dela.
— Suas... obras?
Um sorriso dança nos meus lábios quando respondo.
— Você não chegou a pesquisar quem é o dono da
construtora em que está trabalhando, Norinha?
Seu queixo cai de leve e ela me fuzila com o olhar.
— Não.
— Sim.
— Mas... — balbucia, parecendo chocada, porém não
irritada.
Começo a pensar que sua reação está pacífica demais, o que
me deixa em total alerta, mas logo ela volta a me fuzilar com os
olhos.
Se esquecendo por completo que estamos cercados de
funcionários da minha empresa, ela simplesmente levanta um braço
e me mostra o dedo do meio.
Primeiro, arregalo os olhos em choque.
Depois, endureço a minha própria expressão e me preparo
para dar uma bronca que a fará perder o rumo.
Éden não pode me desrespeitar assim em frente aos colegas
de trabalho, porra!
Só que, como sempre, sua boca fala a última coisa que eu
poderia esperar ouvir. E isso me desarma por completo.
— Não acredito que você me contratou só para poder me
humilhar!
— O quê?!
Achei que ela me xingaria, mas não que pensaria que eu
queria humilhá-la.
A garota vira de costas e sai andando, fazendo o salto de
suas botas pretas baterem contra o cimento batido.
Pisco os olhos, engolindo em seco. Quando dou por mim, já
estou correndo atrás dela.
Parece que sempre estou correndo atrás dela...
Éden Lavinski
 
Aquele babaca-cretino-arrogante de merda!
Não acredito que ele fez isso comigo.
— Dá para você parar de correr, Éden?!
Viro para brigar com ele, agora que já não estamos mais na
obra, mas o motorista da empresa, que me trouxe, arregala os
olhos.
— Pode voltar para a TER, Malcolm — Tristan dispensa meu
motorista.
— Ei!
— Vou dar uma carona para a senhorita Lavinski — continua
a falar, me deixando ainda mais puta.
— Não mesmo! — exclamo, mas ele já havia aberto a porta
da SUV preta.
— Entre, Éden.
— Nem fodendo.
— Entra na droga do carro, Lavinski!
Fecho as mãos, querendo dar um soco no rosto dele, mas
vejo que ainda temos plateia, por isso me controlo.
Bufo e entro completamente a contragosto.
Ele dá a volta e senta atrás do volante.
— Éden... — tenta puxar conversa, mas eu o ignoro por
exatos 2 minutos, que é o tempo que eu aguento antes de gritar.
— Seu filho da puta! Obrigada por me tornar a fofoca do mês
na empresa!
— Eu te tornei a fofoca do mês? Você mostrou o dedo do
meio para o CEO da empresa em que trabalha na frente de uma
obra inteira! — argumenta.
Sei que lá no fundo ele tem um pouco de razão, mas vou
morrer sem admitir isso em voz alta. Principalmente, porque eu não
fazia ideia de que ele era me chefe. E Tristan sabe disso.
— Está satisfeito agora? Já me humilhou o bastante, senhor
Ryan?
— O que se passa na sua cabeça para pensar que eu queria
isso? Que eu sequer cogitaria algo assim?
— Cara, você nos abrigou, nos dá carona diariamente, cuida
da minha filha e ainda me dá um maldito emprego? O que mais
você pode querer a não ser me humilhar?
— Será que já passou nessa sua cabeça teimosa que eu
posso só querer te ver feliz?
Engulo em seco.
Não estou pronta para ouvir isso. Não mesmo.
— Não vamos ter essa conversa.
— Pare de agir como criança, Éden.
— Para de falar! — grito, cobrindo os ouvidos.
Tristan ainda tenta argumentar, mas aproveito que estacionou
em frente à empresa para abrir a porta e sair correndo.
Não posso lidar com ele agora.
Não mesmo.
 
 
 
 
Tristan Ryan
 
Nossa discussão continua martelando na minha cabeça e
nem os dois drinks que bebi foram capazes de me fazer esquecer a
raiva com que ela me encarou.
— Quero fazer uma reclamação — Killian levanta seu copo.
— Lá vem... — Peter revira os olhos.
— Agora que tenho a Maju, não acho correto que eu fique
frequentando esse inferninho.
Fuzilo meu amigo com o olhar, enquanto os demais riem da
cara dele.
— Não é meu lugar favorito também — James, o traidor,
anuncia.
— E quem se importa com o que vocês querem? Você —
aponto para Killian — já tem uma namorada e você — aponto para o
James — não quer saber de mulher alguma. Então, a opinião de
vocês sobre o lugar que nós frequentamos é irrelevante. Só o Peter
e eu contamos aqui.
Abraço o advogado pelos ombros para reforçar meu
argumento, mas o silêncio que toma conta me faz olhar em sua
direção.
— O que foi? — pergunto, azedo.
— A gente realmente tem vindo muito aqui...
— Até tu, Brutus?! — acuso, colocando a mão sobre o meu
coração. — É muita trairagem em um só grupo...
— É que a gente poderia variar um pouco de lugar, sabe, T?
— James começa a argumentar.
— Até vocês devem estar cansados de ver as mesmas
bocetas — Killian diz, cobrindo a boca em seguida, horrorizado. —
Minha mulher vai me matar se ouvir uma coisa dessas saindo da
minha boca.
Bufo, sentindo a irritação crescer no meu peito. Não é como
se estivéssemos batendo cartão aqui. A gente só vem umas duas...
ou três vezes por semana.
Olho ao redor, encontrando as expressões julgadoras deles.
— É que...
— Boa noite, velhote e amigos do velhote. Digo, senhores —
Éden aparece nesse momento, trazendo nossa terceira rodada de
whisky.
Desde que chegamos, a outra garçonete, a ruiva, vinha nos
atendendo, então sua presença me faz ter que morder as
bochechas para conter o sorriso.
— Não conseguiu ficar longe, Lavinski? — pergunto,
bebericando meu Macallan 18 anos.
Éden me olha da cabeça aos pés com a expressão de
preguiça, então abre um sorriso que é pura maldade.
Uh-oh.
Isso não pode significar algo bom.
— Pois é. Não consegui ficar longe — declara, se
aproximando.
Continuo em alerta, mas não recuo, aproveitando a
proximidade para sentir seu cheiro gostoso de flores.
— Tem um homem que vem me fazendo ter sonhos...
impróprios.
A garota segura a minha gravata e puxa de leve. Arregalo os
olhos, enquanto meus amigos começam a rir.
— Ele é tão... diferente dos demais... e...
— Acho que podemos conversar sobre isso em particular —
murmuro, todo atrapalhado.
Nesse momento, ela solta a minha gravata e dá um passo
para o lado, grudando sua boca na do James, como se fosse a
coisa mais corriqueira do mundo.
Pisco umas três vezes, tentando fazer a minha alma voltar
para o corpo, até que um rosnado surge do fundo da minha
garganta.
— Que porra é essa? — esbravejo, puxando a cabeça do
James para trás pelos cabelos.
Ele se desequilibra e quase cai no chão, enquanto Peter
coloca um braço na minha frente, como se quisesse me segurar.
Éden limpa o cantinho da boca e pisca para o meu melhor
amigo. Em seguida, sai na direção oposta, andando como se nada
tivesse acontecido.
— Caralho! — James balbucia, cobrindo a boca com a mão e
me encarando com os olhos esbugalhados.
— Agora fodeu... — Peter murmura, enquanto Killian
gargalha sem parar.
— James seu arrombado do caralho! — grito. — Se encostar
nela de novo...
Empurro o braço do Peter e parto pra cima dele, que levanta
apressado e usa a cadeira como barreira de proteção.
— Foi ela quem me beijou, porra!
— Cala a boca, desgraçado! Não fala o nome dela!
— Eu nem falei o nome dela!
— Eu vou te matar, filho da puta!
Volto a tentar acertá-lo com um tapa, mas Peter aproveita a
brecha para passar o braço pelo meu pescoço e me puxar para trás.
— Amigo, amigo... — o advogado tenta me acalmar como se
eu fosse um cachorro ou um touro bravo.
— Eu não sou um cachorro, arrombado! Me solta! — xingo.
— Eu preciso socar a cara dele!
Killian, que estava rindo tanto que quase ficou sem ar,
consegue controlar suas gargalhadas e arranha a garganta como se
fosse falar algo sábio.
— O James se fodeu demais! — o babaca exclama,
enxugando as lágrimas dos cantos dos olhos.
— Dá pra você ajudar ao invés de me ferrar mais?! Não fui
eu, T. Eu juro que nunca imaginei a Éden enfiando a língua na
minha boca...
— Você deu um beijo de língua nela, seu pau no cu? — grito
de novo. — Me solta! Eu vou matar esse merda!
— Não! Foi modo de dizer. Eu só correspondi ao selinho!
— Você correspondeu, desgraçado?!
— Amigo, amigo! — Peter continua a me puxar pelo pescoço.
Killian, que perdeu o amor à porra da vida dele, bate no meu
ombro, como se estivesse sendo solidário.
Só que o que sai da boca dele só me enfurece ainda mais.
— Tristan cadelinha! — E volta a gargalhar.
— Bando de pau no cu do caralho! — xingo, dando uma
cotovelada nas costelas do Peter para me livrar do gancho dele. —
Vão se foder! — rosno e saio para procurar a Éden.
— Espera, T!
— Volta aqui, Ryan!
— Ela não quer falar com você!
Foda-se. Ela vai me ouvir querendo ou não.
Éden Lavinski
 
Encosto na parede do beco que fica atrás do Red Pub e
respiro fundo. Nos últimos 40 minutos, venho fugindo do Tristan
como o diabo foge da cruz.
Ele tentou falar comigo no bar, me seguiu até o depósito e só
sossegou quando eu pedi para o segurança acompanhá-lo até a
calçada para “esfriar a cabeça”.
Ramon perguntou se deveria dar uns tapas nele, mas eu só
queria uns minutos para colocar a cabeça no lugar, então disse que
daqui a pouco poderia deixá-lo voltar a entrar.
— Que grande merda, Éden — murmuro para mim mesma.
— Concordo plenamente, mocinha.
A voz do homem me faz dar um pulo para trás, assustada.
— Porra, James! Que susto! — reclamo, sentindo meu
coração acelerado. — Olha, se você veio brigar comigo...
— Não vim.
Olho o homem, que é um dos melhores amigos do Tristan, da
cabeça aos pés e dou um passo para trás, querendo colocar uma
certa distância entre nós.
— Sei que fui eu que comecei essa palhaçada, mas não
tenho nenhum interesse em repetir o que aconteceu...
O homem ri, balançando a cabeça.
— Não vim atrás de você com segundas intenções, Éden.
Relaxa.
— Então...
— Eu só queria dizer que entendo.
— Entende...? — balbucio, franzindo a testa.
— Entendo que você não suporte o Tristan. É fácil querer dar
um soco na cara dele. Em alguns dias, chega a ser tão fácil que eu
nem sei como ainda somos amigos.
Mordo o lábio, subitamente irritada com o que ele está
dizendo.
— Ele não é tão ruim assim também... — me pego defendo-o,
antes que pudesse segurar a porra da minha língua.
James sorri largamente e acena.
— Exatamente. Em um dia, eu só quero poder dar um soco
nele. No outro, ele aparece na minha casa com pizza e cerveja só
porque sabe que é o aniversário da minha falecida esposa e não
quer que eu fique sozinho.
Engulo em seco, desconfortável com o rumo da conversa.
— É muito fácil não gostar dele, Éden. Eu sei — James
continua, olhando diretamente nos meus olhos. — Mas quando ela
morreu, ele dormiu no meu sofá uma semana só para fazer
companhia para mim e para a Bellinha. Ele é terrível, tem as ideias
mais ridículas e dá uns presentes que me fazem querer esganá-lo,
mas você nunca vai encontrar alguém que ame mais intensamente.
Ele pode ser um cafajeste, mas ama loucamente cada pessoa ao
seu redor. E ouso dizer que isso inclui você.
— Não, eu...
— Tá tudo bem, Éden. Não precisa admitir para mim que
também sente algo por ele. Basta que admita para si mesma.
Nos encaramos por um instante, enquanto eu repasso suas
palavras na minha mente.
O quarentão rompe nosso contato visual e olha ao redor,
parecendo se dar conta de onde estamos só naquele momento.
Então, faz uma careta enojada para chão imundo.
— Tem certeza de que quer ficar aqui fora sozinha? —
pergunta.
— Melhor eu entrar... — balbucio, seguindo-o pela porta.
Para o nosso azar, os minutos que havia pedido ao Ramon
acabaram e damos de cara com Tristan assim que entramos no
corredor.
Ele olha para mim, depois para o James e, por fim, para a
porta que leva ao beco deserto.
— Não é o que parece, T — o amigo argumenta, mas sua
atenção continua completamente na porta de ferro.
Então, com a expressão mais magoada que eu já vi na vida,
ele simplesmente vira de costas e começa a se afastar.
— Tristan! — chamo e nós dois tentamos segui-lo.
Quando já estamos no meio do pub, James segura o braço
dele e Tristan reage dando um soco na cara do melhor amigo, que
cambaleia para trás.
Em um piscar de olhos, o segurança agarra-o por trás e
começa a levá-lo para fora do salão.
— Não! Espera! — grito, tentando correr atrás dele.
Alguém me segura pelo cotovelo e, quando olho para trás,
vejo a Ally.
— O Donny estava perguntando sobre você, amiga. Melhor
voltar ao trabalho...
— Mas...
— Ele está bem irritado, Éden. É sério.
Fecho os olhos e respiro fundo, sentindo meu coração
apertado. Preciso falar com ele, mas não posso me dar ao luxo de
perder meu emprego.
Engulo em seco e volto ao trabalho, depois de enviar uma
mensagem para o celular do Tristan.
Na primeira folga que tenho, ligo meu aparelho na esperança
de que ele tenha me respondido, mas nenhuma das minhas
mensagens sequer havia sido entregue.
Que merda!
Que grande merda!
Tristan Ryan
 
O porteiro do prédio do James me conhece há tanto tempo
que nem chama o dono do apartamento pelo interfone antes de
liberar a minha entrada.
Bato na porta umas dez vezes, até que ela é aberta por uma
criaturinha de menos de 1 metro de altura, que coloca as mãos na
cintura como gente grande.
— Bom dia, tio T. Por acaso, você sabe por que meu pai está
com o olho roxo?
Arranho a garganta, envergonhado e, ao mesmo tempo, me
sentindo um pouco ridículo por estar com medo dela.
— Eu...
— Você...?
— Bellinha, por que você não vai brincar no seu quarto
enquanto o papai conversa com seu tio Tristan?
A pequena cruza os braços e olha do pai até mim e de volta
para ele. Então aponta o indicador e o dedo médio para os próprios
olhos, indicando que está atenta a nós dois.
— Acho bom vocês fazerem as pazes ou teremos que ter
uma conversinha, senhores.
Nós dois ficamos com cara de idiotas, diante da ordem clara
da menininha, que sai andando plenamente em direção ao seu
quarto.
James fecha a porta de casa, depois de me deixar entrar, e
nós ficamos em um silêncio desconfortável, que não combina nem
um pouco com os 20 anos de amizade.
— Desculpa... — murmuro ao mesmo tempo em que ele
começa a se explicar.
— Não aconteceu nada entre ela e eu.
Suspiro pesado, me sentindo um idiota. Lá no fundo, eu sabia
que não tinha acontecido nada. Só que na hora não consegui
controlar o meu ciúme doentio.
Nunca senti algo assim por ninguém. Nunca ninguém fez tão
parte de mim, que parece até estar fundida ao meu peito.
— Eu fui conversar com ela sobre você, T. Só isso.
— Eu sou um idiota...
— É mesmo. Mas é um idiota com um gancho de direita
pesado pra caralho. Porra! — exclama, esfregando a lateral do
rosto, por onde o hematoma parece ter se espalhado.
Faço uma careta de dor ao imaginar o que ele estava
sentindo.
— Vou pegar gelo pra você — anuncio, correndo até a
cozinha, enquanto ele continua reclamando.
— Você deveria segurar o gelo na minha cara, seu bosta.
— Quer que eu faça massagem nos seus pés também?
— Deveria fazer! — James exclama, mas logo puxa o ar com
força quando encosto o saco de ervilhas congeladas em sua pele
machucada.
— Foi mal, Irmão — murmuro.
— Tudo bem, só conversa logo com ela. Vocês dois se
esquivando um do outro está custando caro para todos nós. Meu
lindo rosto que o diga!
Dou um meio-sorriso, ainda me sentindo muito culpado por
ter machucado um dos meus melhores amigos, e continuo a
pressionar os legumes congelados na marca arroxeada para tentar
controlar o inchaço.
Sou um babaca, mas tenho muita sorte por ter os melhores
amigos do mundo.
Acabo fazendo as minhas famosas panquecas para a
Bellinha e fico por lá mais umas duas horas. Só quando sento no
meu carro é que eu ligo o meu celular, recebendo uma enxurrada de
mensagens de uma Éden muito, muito puta da vida.
Quando fui expulso do pub, entrei no carro, alterado pelo
álcool, a raiva e o ego ferido, e pensei em dirigir até a casa da Ava
ou de alguma outra garota da minha lista de contatos.
Só que eu não consegui.
A mera ideia de ficar perto de outra mulher me causou
tamanho nojo, que precisei encostar o carro na lateral da pista
expressa e vomitar.
Depois de colocar as minhas emoções para fora, “chamando
o Hugo”[29], dirigi por toda a madrugada até ver o sol nascer no
horizonte.
Então, parei em um restaurante de beira de estrada e tomei
duas xícaras de café para estar em condições decentes quando
batesse na porta do apartamento do James para me desculpar.
Agora, preciso encarar a outra pessoa envolvida na confusão
e essa me assusta até mais do que a imagem da Bellinha furiosa
com as mãos na cintura.
Não sei nem por onde começar, mas acho que é hora de
conversar com a Éden sobre o que está acontecendo entre nós.
Mesmo que não estejamos dispostos a admitir que há um
nós.
Chego em casa me sentindo destruído pela noite em claro.
Além da expressão decepcionada da Bellinha e de ter que encarar o
olho roxo do meu amigo, causado por mim, anda tive que ouvir 30
minutos de gritos do Peter e do Killian, que se revezaram em comer
o meu rabo.
Tiro os sapatos e suspiro, esfregando o rosto.
Vozes soam da cozinha e eu cogito passar direto para me
esconder, mas não consigo ouvir a voz da Zoe e não ir dar um beijo
nela. Mesmo que isso signifique enfrentar uma marrenta que deve
estar furiosa.
— Tris! — a baixinha exclama e levanta da mesa para me
abraçar.
Pelo menos alguém parece feliz em me ver.
— Oi, Pipoquinha.
— Você perdeu o nascer do sol.
Merda.
Isso me faz sentir ainda pior.
Não deixei de acompanhá-la em nenhuma manhã desde o
primeiro dia.
— Desculpa, meu amor. Prometo que nunca mais passarei a
noite fora. Você me perdoa?
Ela sorri, inocente, e me abraça de novo.
— Claro!
— Obrigado, Pipoquinha.
— A mamãe ficou preocupada — sussurra, como se me
contasse um segredo, então se afasta. — Vou escovar os dentes e
trocar de roupa para a gente passear no parque, mamãe!
O clima fica pesado quando ficamos a sós. Éden continua
sem me encarar e a dor nas juntas dos meus dedos me faz sentir
ainda mais indigno de seu perdão.
— Podemos conversar? — murmuro.
— Sobre você ser o dono da empresa que me contratou por
pena, sobre ter dado um soco no seu melhor amigo por entender o
que quis de uma cena que não tinha nada a ver ou sobre você ter
passado a noite fora?
De tudo, a pergunta que mais me surpreende é a última. Foi
quase como uma confissão de que também sente ciúmes.
— Eu dirigi a noite toda — digo, mas ela continua sem me
encarar. — Sozinho. E fui para a casa do James agora cedo.
Isso capta sua atenção e ela me olha de lado.
— Fizeram as pazes?
— Sim, mas a filha dele quase me deu um soco no olho para
eu ficar igual ao pai.
Um dos cantos de seus lábios se levanta de leve, mas logo
ela volta à expressão séria.
— Não a contratei por pena. Contratei porque você é
talentosa, mas precisa de uma oportunidade. Assim como eu
precisei 20 anos atrás e ninguém quis me oferecer só porque eu era
pedreiro.
A mágoa em seu olhar parece suavizar.
— Quem vê a minha vida atual não imagina o quanto eu tive
que trabalhar para conquistar cada pequeno degrau, Éden. Eu só
não queria que você tivesse que sofrer tanto quanto eu, quando eu
posso ajudá-la a dar o primeiro passo.
— Você poderia ter sido sincero... — murmura, mas logo
arranha a garganta, como se isso a tivesse deixado desconfortável.
Por que se envergonha de me pedir sinceridade?
Isso é o mínimo que eu poderia oferecer a ela.
— Eu sei. Só fiquei com medo de que você não aceitasse
trabalhar para mim por orgulho ou por...
— Ser marrenta?
Mordo a parte interna das bochechas, sorrindo de lado.
— Você quem está dizendo.
— Ouvi um certo velhote me acusar disso.
O clima pesado parece se dissipar um pouco mais, mesmo
que ainda estejamos bem distantes um do outro.
— Eu não devia ter feito aquilo — sussurra, após algum
tempo. — Não devia ter beijado seu amigo. Foi uma atitude infantil.
— Você pode fazer o que quiser, Éden — murmuro, mesmo
que o gosto das palavras seja amargo.
A garota me encara, mais uma vez com aquele olhar
flamejante que me faz perder o fôlego.
— Eu não queria fazer aquilo — diz com firmeza.
Meu peito estufa com tantos sentimentos, que eu não sei o
que fazer a seguir.
Meus pés agem por mim, se aproximando dela até estarmos
frente a frente.
— Éden...
— Sim? — murmura, quase em um gemido suave.
— Me diz para parar.
— E se eu não quiser?
— Porra... — digo, entredentes, colando nossas testas.
Quando roço os dedos em seu queixo e ela parece prestes a
cobrir a pequena distância entre nós, uma voz animada soa da sala,
mas vai ficando mais alta, como se ela estivesse se aproximando.
— Mamãe, tô pronta!
Nós dois nos separamos tão rápido, que parecemos duas
crianças pegas no flagra fazendo algo muito errado.
Não deixa de ser verdade.
Realmente estávamos ultrapassando qualquer limite
aceitável...
— Vou só me trocar, Bubbles — Éden murmura.
— Tris, você quer vir também?
— Eu não dormi ainda, Pipoquinha...
— Por favor! — suplica, grudando as mãozinhas adoráveis.
Estou perdido com essa garotinha. Acho que não há nada
que ela possa me pedir que eu esteja disposto a negar.
— Ok. Por que não? Vou só trocar essa roupa, ok?
— Oba! Mamãe, o Tris vai com a gente! — sai gritando pela
casa, me deixando com o coração ainda mais rendido.
 
Éden Lavinski
 
É difícil manter-se longe do “inimigo”, quando ele está
cochilando no sofá junto com a sua filha, enquanto a Elsa[30] canta a
plenos pulmões na televisão.
Ou quando ele brinca de pique-pega no parque, como
aconteceu no último final de semana. Cada dia na casa do Tristan
me deixa ainda mais presa à presença dele. Mais carente de seus
sorrisos, das piadas absurdas e do jeito arrogante, mas que é só de
mentirinha.
Olho mais uma vez a cena à minha frente e meu coração se
agita. Zoe está deitada no colo dele e a cena é tão fofa que chego a
cogitar tirar uma foto. Ah, foda-se. Vou tirar.
Assim, quando tudo isso acabar e voltarmos a ser só nós
duas, teremos uma recordação.
Pego meu celular e tiro a foto sorrateiramente, usando a luz
da TV e da lua ao invés do flash.
Então, me inclino para pegar a Bubbles no colo, mas uma
mão grande segura meu braço.
— Pode deixar comigo — um Tristan muito sonolento
murmura, esfregando os olhos com a outra mão.
— Estou acostumada a carregá-la — sussurro, mas ele
apenas dá uma piscadela, enquanto apoia suas costas e a pega no
colo com facilidade.
Sigo-os pelo corredor até a porta do quarto em que estamos
hospedadas e ele indica a maçaneta com o queixo, pedindo que eu
a abra.
O homem que eu pensei ser um babaca coloca a minha
filhinha na cama com tanto carinho que chego a sentir falta de ar.
Nunca ninguém fez algo assim por ela, exceto a minha mãe e
eu. A emoção acelera os meus batimentos cardíacos e a falta de ar
se agrava.
Saio do quarto, apressada, com medo de acordar a Bubbles,
mas chego à sala com dificuldade. Pego a minha bolsa e começo a
tatear lá dentro procurando a minha bombinha.
— O que houve? — Ele pergunta atrás de mim.
Puxo o ar com força, mas ainda é pouco para me fazer
respirar.
— Porra — Tristan xinga e pega a bolsa da minha mão,
atirando todos os meus objetos em cima da mesa até encontrar a
bombinha e colocá-la na minha boca.
Conforme a medicação começa a fazer efeito nas minhas
vias aéreas, meu corpo – até então mantido de pé pela adrenalina –
começa a amolecer.
Meu “sogro” me segura e me leva até o sofá, onde senta
comigo no colo mesmo.
— Tudo bem, respira — diz, acariciando as minhas costas.
Aos poucos, vou voltando a me sentir bem e a conseguir
respirar.
— Obrigada — sussurro, envergonhada por estar sentada
sobre as coxas dele, mas ao mesmo tempo incapaz de me afastar.
— Asma?
Aceno, confirmando.
— Você tem há muito tempo?
Novamente, um aceno.
Noto que quer me perguntar mais a respeito, mas ele hesita,
como se não soubesse se tem abertura para tanto. Como se eu
pudesse negar essa informação ao homem que acabou de “me
salvar”...
— Desde os meus 16 anos — murmuro. — A vila em que a
gente morava sofreu um grande incêndio em 2016, Fort McMurray...
— Eu me lembro disso. Foi uma catástrofe — Tristan
comenta, com a testa franzida.
— Sim. Mais de 2 mil casas queimaram por completo e 80 mil
pessoas precisaram deixar a cidade às pressas.
— E sua família...?
— Nossa casa foi uma das mais atingidas, já que morávamos
bem perto de onde tudo começou. Meu pai trabalhava na indústria
de oil sand[31]. Éramos nós três naquela época.
O que eu não comento, é que aquele foi só o prenúncio do
que estava por vir.
Nas semanas seguintes, enquanto ainda nos abrigávamos na
casa de amigos da família, em uma Vila próxima, comecei a sentir
uma falta de ar constante e acabei sendo levada pelos meus pais à
Emergência local.
Lá, descobri duas coisas que mudaram a minha vida.
— Inalei uma quantidade excessiva de fumaça e isso
desencadeou um processo inflamatório crônico das vias aéreas
inferiores, os brônquios e bronquíolos. — Continuo contando.
Tristan não força a barra, não pergunta, mas me deixa tão
confortável, que eu acabo oferecendo um pouco mais do que estava
disposta a contar a princípio.
O diagnóstico de asma foi um baque, já que é uma doença
que não tem cura, mas não foi nem de longe tão assustador quanto
a segunda informação que eu descobri naquele dia.
— Tive que fazer exames de sangue também e foi quando eu
descobri sobre a Zoe. — sussurro. — Eu nem fazia a lição de casa
por contra própria e um ser vivo estava crescendo dentro de mim.
Meu mundo desabou com aquela informação. E, hoje, ela é tudo o
que eu tenho.
Não sei o que me levou a me abrir tanto, mas me senti
aliviada por fazê-lo. Tristan segura uma mecha do meu cabelo e a
coloca atrás da minha orelha.
— Fui pai aos 17 anos.
Olho para ele, mordendo as bochechas.
— Você teve medo? De não ser um bom pai?
— Ainda tenho — confessa. — Acho que a gente nunca para
de ter. Mas, sim, naquela época eu fiquei assustado. A Mélanie e eu
não... nós nem estávamos planejando ficar juntos. Foi complicado.
— Mas você ficou ao lado dela?
— Claro! — responde tão rápido que chega a soar rude.
Então, percebendo que claramente o pai da minha filha não
fez o mesmo, ele me encara com tristeza.
— Desculpe... é que eu nunca cogitei não ficar. Jackson foi a
pessoa por quem eu lutei para conquistar tudo o que eu tenho.
Dou um sorriso fraco. Sei que ele não quis me chatear, mas é
um pouco frustrante comparar a minha história e a dele.
— Eu chorei, sofri, me senti burra por não ter seguido o que
cansei de ouvir nas aulas de educação sexual e nos conselhos da
minha mãe.  Já o meu namorado, nem pestanejou. Ele ficou...
contente, sabe?
Ele fica calado, me dando tempo para processar o que dizia.
— Enquanto eu sentia medo, pavor, ele planejava a família
que nós formaríamos e a cerca branca que teríamos ao redor da
nossa casa. Ele havia conseguido uma bolsa de estudos em uma
faculdade do outro lado do país, para jogar pelo time de hóquei
universitário, mas prometeu que assim que se estabelecesse, me
buscaria para morarmos juntos.
Uma lágrima solitária escorre pela minha bochecha. A única
que eu permiti escapar dos meus olhos em mais de seis anos.
Tristan enxuga a minha pele com o polegar, mas não se afasta
novamente. Seu dedo continua acariciando meu rosto suavemente.
— O que houve?
— Não sei — confesso. — Ele só... não voltou para me
buscar, aliás, ele nunca mais nem atendeu as minhas ligações,
nunca pagou um centavo de pensão e nem mesmo se dignou a
conhecer a própria filha ou registrá-la com seu sobrenome.
O cara que havia sido meu namorado por três anos e que
jurou cuidar de nós duas, nunca nem ao menos me enviou uma
mensagem pedindo desculpas por não poder ficar.
— Desgraçado — meu senhorio rosno, respirando tão
profundamente que suas narinas dilatam.
Consigo sentir a raiva vibrando no corpo dele. Seu maxilar
está travado e os olhos injetados. Aposto que adoraria dar um soco
na cara do pai da minha filha.
É estranho ter alguém furioso com o que o Aiden fez, porque
eu já não me sinto mais assim. A raiva e a indignação já não
existem mais. Só fico triste porque a minha filha nunca pôde ter um
pai. Nunca foi amada por ninguém além de mim e da minha mãe.
Bem... agora, parece que tem mais alguém que se importa
com ela.
Olho o homem de traços fortes e bonitos e roço a ponta dos
dedos em sua barba, acariciando suavemente, enquanto continuo a
minha história.
— Mamãe, minha rocha, segurou o rojão como a guerreira
que era. Ela me ajudou a manter a cabeça erguida.
— E seu pai, Éden? — pergunta, mas consigo ver o
arrependimento em seus lindos olhos negros quando me reteso em
seu colo. — Desculpa, desculpa — sussurra. — Não precisa falar
sobre isso se não quiser...
Mas eu quero.
Eu nunca falei sobre isso com ninguém. Nem mesmo com a
Ally. Só que com ele eu quero.
Eu falei que o incêndio foi só o começo do caos, não?
Pois é. As coisas continuaram a piorar.
— Nos meses seguintes, descobrimos que não receberíamos
o seguro da nossa casa, pois meu pai havia deixado de pagar.
Também foi quando fomos informados de que ele havia gastado
todas as nossas economias em apostas e estava afundado em
dívidas — conto, sentindo todo o amargor que eu não nutro pelo
Aiden, mas que não consigo evitar sentir pelo meu pai.
Porra. Ele foi o homem que me criou, que me ensinou a
andar de bicicleta e cantou para eu dormir.
Como ele pôde nos destruir assim?
— Pais deveriam ser confiáveis — sussurro. — Ao invés de
ficar e ajudar nossa família a se restabelecer, ele simplesmente foi
embora. Sumiu no mundo, deixando apenas um bilhete em que
culpava a mim e a minha irresponsabilidade por sua partida. Não
foram as dívidas, a falta de grana ou a vergonha por seus próprios
erros... Não. A culpa de tudo era única e exclusivamente minha. Ele
não queria ser o pai da adolescente grávida... Palavras dele.
Tristan xinga uma sequência de palavrões e, então, me
surpreende ao me puxar contra seu peito e me abraçar tão forte que
nossos corpos quase se tornam um só.
— Você sabe que isso é um monte de merda que esse
covarde inventou só para se isentar da culpa, não é? — sussurra,
tão perto do meu ouvido que a minha pele se arrepia.
É um arrepio diferente dos que ele já me causou.
Se continuar a falar ao pé do meu ouvido, com certeza ficarei
com tesão. Mas, nesse momento, suas palavras gentis me fazem
arrepiar de... conforto.
Me permito reviver um pouco daquela época.
Minha mãe, que até então era dona de casa, teve que
trabalhar em dois empregos, pois se recusava a me deixar
abandonar a escola antes de me formar.
Eu também trabalhava após a aula, apesar da barriga que
começava a marcar as roupas e me deixava ainda mais cansada do
que a crise respiratória que não tinha cessado até então.
— Foi muito, muito difícil. Mas nós duas conseguimos —
conto, baixinho. — Mamãe e eu. E, agora, estou sozinha de vez...
— Não — me corrige, segurando meu rosto para me forçar a
encará-lo. — Eu já disse que não está sozinha, Éden.
Ele diz com tanta convicção que, pela primeira vez, eu
realmente acredito.
Ainda ficamos abraçados por um longo tempo, até que meu
corpo para de tremer. Então, nos encaramos como se
perguntássemos um ao outro o que fazer a seguir.
— Pais deveriam ser confiáveis — Tristan sussurra as minhas
palavras e eu sei que está preso ao medo de trair o único filho.
Quero contar a ele que Jackson e eu não temos esse tipo de
relacionamento, mas já foram emoções demais para uma só noite.
Toco sua bochecha com os lábios, em um beijo casto.
— Boa noite, Tristan — sussurro.
— Boa noite, Ma Flamme.
Minha chama? Foi disso que ele me chamou?
Sorrio como uma boba por também ter ganhado um apelido e
sigo para tomar uma ducha antes de dormir.
Tristan Ryan
 
— Que demora — reclamo ao receber a equipe de instalação
de papel de parede que deveria ter chegado às 9h.
Confiro o relógio, que aponta 9h03.
Dá para ler na expressão do funcionário mais jovem um
grande “vai se foder” para mim, mas o mais velho, que deve ser pai
dele, apenas sorri e pede desculpas.
Ok. Talvez eu esteja sendo um cuzão, mas é uma coisa
importante demais para receber menos do que toda a atenção
possível.
Além disso, as duas devem voltar para casa no final da tarde,
o que significa que os funcionários precisam ter isso embora até lá.
— Em qual cômodo vamos trabalhar, senhor Ryan?
— Podem me chamar de Tristan. Será no quarto da minha f...
— interrompo a fala, pois a Zoe não é minha filha, mas o termo
“neta” ou “futura neta” rasga a minha garganta antes mesmo de sair.
— Da criança — concluo, me sentindo um traidor por me referir a
ela com tamanha impessoalidade.
— Certo — o homem mais velho responde, pegando uma
mala de equipamentos.
Noto que o mais novo carrega um galão de aparência
pesada.
— Isso é...
— A cola — o rapaz responde, me interrompendo.
Nesse momento, me sinto um completo imbecil por não ter
pesquisado os malefícios desse produto químico, então disparo uma
sequência de questionamentos, enquanto os guio até o dormitório.
— Vejo que tentou instalar... — o encarregado comenta, mas
eu nego descaradamente.
— Não. Nunca mexi com esse tipo de coisa e achei melhor
deixar para os profissionais.
Mentira. Mentira deslavada.
Eu tive que comprar a metragem de papel de parede três
vezes, porque jurei que era algo fácil de instalar. Ledo engano. Isso
me custou dois dias em que eu saí para levá-las, fingi que fui
trabalhar, mas voltei para casa para tentar colar o maldito papel de
parede.
No primeiro dia, havia contratado dois profissionais para me
ajudarem a mover o piano para a sala e os meus outros
instrumentos para o antigo quarto de visitas, no terraço da minha
cobertura.
A reforma, no entanto, eu havia decidido fazer sozinho, já que
trabalhei com construção civil praticamente a minha vida toda.
Só que eu não esperava que fosse tão difícil fazer o maldito
papel de parede ficar liso. Ainda mais que não pego no batente
mesmo há quase 15 anos...
Por fim, recorri à ajuda profissional da dupla que me encara
com diversão. Acho que ficou bem óbvio que eu tentei fazer
sozinho, já que há muitos pedaços de cola mal removidos da
parede.
Ainda assim, continuo de queixo erguido, mantendo a minha
mentira.
— Certo. Vou lixar as paredes para remover... — o homem
tosse de leve, disfarçando. — qualquer sujidade, enquanto meu
garoto prepara a cola.
Aceno, observando atentamente enquanto o outro abre o
galão e um cheiro forte toma conta do ambiente, apesar da brisa fria
que entra pela janela.
— Então não é tóxico mesmo? — pergunto, desconfiado.
Tenho receio de que o cheiro da cola possa atacar a asma da
Éden ou até deixar a Zoe doente.
— Não, senhor. Assim que a cola secar o cheiro deve sumir.
Basta manter a janela aberta. Se a porta também...
— Não. A porta ficará trancada.
— Certo, então deve ficar pronto em 96 horas.
— Você tinha dito 72! — acuso.
— Se deixar tudo aberto, seca em 72 horas — o jovem
emburrado retruca, voltando a se calar com um olhar discreto do
outro.
Estava planejando mostrar o quarto novo a ela no sábado,
que é daqui a três dias, mas posso fazer isso no domingo.
— Certo, 96 horas — murmuro, trocando o peso de uma
perna para a outra, incessantemente.
O encarregado do serviço para com a lixa no ar e então abre
um sorriso para mim.
— Ela vai gostar do papel de parede, Tristan.
Franzo a testa, deixando as palavras me acalmarem ao
mesmo tempo em que me machucam.
Ela vai gostar. Ela vai se sentir em casa.
E um dia ela vai embora, me deixando com um quarto rosa e
um buraco no peito no tamanho exato de Zoe...
Ah, a quem quero enganar? Também ficará o formato da
Éden escavado ali dentro, como uma ferida aberta.
Droga. Quando eu me tornei esse merdinha inseguro e que
pensa demais?
Chacoalho a cabeça.
— Estarei no escritório. Última porta à esquerda — anuncio,
saindo do cômodo.
Me jogo na minha cadeira de trabalho e espalho todos os
projetos que precisava analisar pela bancada. Raramente trabalho
de casa, mas tenho esse escritório montado para essas ocasiões.
Recentemente, quem vem utilizando mais o espaço é a Éden,
por isso noto um bloco de folhas quadriculadas e vários esboços de
projetos arquitetônicos.
Não sei quanto tempo fico parado, olhando para o nada, mas
caio na real quando meu celular toca e minha secretária me lembra
da videochamada da qual devo participar em apenas 15 minutos.
Foco, Tristan.
Antes de ingressar na reunião, no entanto, penso que Éden
merece um lugar próprio para trabalhar também, então encomendo
algumas coisas para ela antes de voltar a agir como o CEO de uma
multinacional.

— Pode colocar ali — oriento a equipe que veio montar os


móveis do novo quarto da Zoe.
O papel de parede ficou exatamente como eu queria e hoje,
sexta-feira, o cheiro já está bem menos intenso. Ainda assim, acho
melhor esperar até domingo para mostrá-lo a ela.
Do jeito que é, vai querer dormir ali logo na primeira noite.
Além disso, chamei um pintor para passar uma ademão de
tinta no escritório amanhã, o que significa que preciso tirar as duas
de casa durante o sábado.
Para conseguir, uso armamento pesado: Bellinha.
Liguei para a pequena mais cedo e sugeri que convidasse a
Zoe para dormir na casa dela. As duas se conheceram há algumas
semanas e fizeram amizade imediatamente.
Espero que a Éden autorize.
Perto das 17 horas, termino os últimos detalhes e tranco a
porta do quarto mais uma vez, para i buscar a Popoquinha na
escola.

— Mas e se ela não se sentir bem durante a noite ou... ou...


— Nós vamos buscá-la — digo, pela décima vez na última
meia hora.
Bellinha e James ligaram na hora do jantar e Zoe ficou
empolgada com a ideia de passar o sábado na casa da nova amiga
e fazer uma festa do pijama.
Quem não se empolgou nem um pouco, foi a mãe dela que já
está há 32 minutos andando de um lado para o outro na minha
frente enquanto pensa nos prós e nos contras.
Sozinha, inclusive, porque ela ignora tudo o que eu falo.
— Eu jamais entregaria a Zoe a alguém em quem não confio
a minha vida, Éden. James vai cuidar dela tão bem quanto cuida da
própria filha.
Seus olhos focam em mim pela primeira vez, enquanto
pondera.
— Mas... e se eu sentir falta dela? — sussurra, virando para
olhar o corredor dos quartos, onde a pequena dorme
profundamente.
Isso me faz sorrir de lado e bebericar mais um gole do meu
Macallan. Quase faço uma piadinha sobre ela dormir comigo, mas
isso seria impróprio de tantas formas, que apenas mordo a língua e
me contenho.
— Eu levo você até lá se isso acontecer — digo, rindo.
— Está me chamando de criança, senhor Ryan?
— Eu jamais faria isso, senhorita Lavinski.
Um sorriso brinca em seus lábios bonitos e ela acena,
finalmente.
— Ok. A Bubbles pode dormir na casa da Bellinha.
Éden Lavinski
 
James, o amigo do Tristan que eu beijei naquele dia, chega
às 8 horas da manhã para buscar a Zoe. Segundo ele, pretende
levar as meninas para brincar no parque e não queria perder o dia
bonito.
Juro... 8 horas da manhã!
Quem quer sair de casa tão cedo em um sábado?
As duas garotinhas pareciam empolgadas e eu fiz uma
mochila com uma troca de roupa, pijama, escova de dentes e um
pouco de dinheiro.
— James, você pretende levá-las para almoçar fora? Eu
deixei dinheiro na bolsa da Zoe, mas...
Tristan faz um som irritado com a língua e eu paro de falar
para olhar para ele.
— O que foi, velhote?
— Até parece que o James vai aceitar usar dinheiro da
criança! — exclama, indignado.
— Não é da criança, é meu. Ele não tem obrigação de pagar
nada para a minha filha.
— Mas se ele precisasse de algo assim, pediria para mim!
— Por que se a mãe sou eu?
Ficamos nesse bate-boca até que o homem, cuja existência
eu havia esquecido, arranha a garganta, chamando a nossa
atenção.
— Pode ficar tranquila, Éden. Não precisaremos de nada.
Mas se for preciso, eu tenho o seu telefone...
— Como é?! — Tristan se intromete novamente.
— Eu passei meu telefone para ele. Algum problema?
— Por que se ele pode me ligar? Não precisa ligar para você!
Um assovio nos faz parar de brigar pela segunda vez.
— Caramba, vocês são cansativos. A Éden me passou o
telefone dela puramente por causa da Zoe, mas você não esperou
eu terminar de dizer que se precisar de algo eu ligarei para vocês
dois.
A ênfase em sua fala tem quase um tom professoral. Bem
que o insuportável ao meu lado comentou que ele é treinador.
— Estamos liberados? — pergunta, parecendo prestes a
gritar conosco.
— Sim — Tristan e eu murmuramos ao mesmo tempo.
— Vamos, meninas — chama e as duas bonequinhas
aparecem correndo, enquanto o pai da Bellinha resmunga algo
como “eles são piores do que as minhas atletas, piores até do que
as duas crianças...”
Encho a minha Bubbles de beijinhos e então a deixo ir.
— Até amanhã, mamãe. Até amanhã, Tris! — ela diz, da
porta, segurando a mão da outra garotinha, que é tão falante quanto
a minha.
— Divirta-se, Pipoquinha.
Assim que a porta se fecha, nós dois ficamos em um silêncio
estranho. Acho que nunca estivemos sozinhos em casa antes. Zoe
sempre está por perto.
Bom, não sei sobre os planos dele, mas eu pretendo passar o
dia dormindo ou assistindo televisão ou até lendo um livro...
— Sairemos em 15 minutos.
— O quê?! — exclamo, olhando o sujeito de lado.
— Vamos sair em 15 minutos — repete a mesma coisa, com
outras palavras e em tom mais lento, como se eu fosse burra.
Estreito o olhar, sentindo o ranço tomar conta do meu peito e
estalo a língua ao dizer apenas:
— Não. Obrigada.
Viro para sair do hall, mas ele impede a minha passagem
com o próprio corpo.
Se esse cara não sair da minha frente, ele vai levar um belo
chute no saco. Ninguém, além da minha filha, tem autorização para
ficar entre mim e a cama.
— Se você não for se trocar, vou carregá-la com essa roupa
mesmo.
— Como é? — praticamente cuspo as palavras.
— Faz algumas semanas que não pratico nenhum esporte
radical e decidi que você vai me acompanhar.
— Você... decidiu? — balbucio, a princípio. — Decidiu?! —
grito.
— Sim.
— Saia da porra da minha frente, Tristan!
Tento passar novamente, mas ele continua a me impedir.
— Que inferno! Que porra de esporte você vai fazer,
caralho?!
— Bungee jump.
É ali que ele ganha um milésimo da minha atenção. Eu
sempre quis viver uma experiência assim, mas nunca tive coragem.
Morro de medo de altura...
— Sugiro calça e blusa térmica e uma jaqueta corta-vento. É
frio lá em cima.
— Eu não disse que ia! — contesto, porém muito menos
enfaticamente do que antes.
Os olhos negros brilham ao me fitar, enquanto ele apenas
levanta uma sobrancelha.
Que ódio.
Não acredito que vou ceder...

— Você já fez algo assim? — Tristan pergunta, enquanto


dirige um Jeep que eu nem sabia que ele tinha.
Talvez devesse ter aceitado sua oferta de me emprestar um
carro, afinal...
— Pular de uma montanha com uma cordinha me
segurando? — desdenho, mesmo que seja apenas uma forma de
esconder meu medo.
De alguma forma, acho que ele percebeu, pois não retruca no
mesmo nível, apenas sorri de lado.
— Dá um frio na barriga, mas é lindo.
Mordo o lábio inferior, observando a paisagem conforme a
gente sobe a montanha.
— Você faz sempre isso?
— Bungee jump? Já pulei algumas vezes. Eu acho que já
pratiquei quase todos os esportes radicais. Pelo menos uma vez...
— Saltou de paraquedas? — pergunto, desconfiada, e ele
apenas acena confirmando. — Voou de asa delta?
— É sensacional! — vibra, me deixando cheia de inveja.
— Rafting também? — chuto qualquer coisa, só porque
descobri que gosto muito de ouvi-lo falar.
— Já, mas não gosto tanto assim de esportes coletivos —
conta, então me olha por um instante antes de voltar a prestar
atenção na direção. — Acho que você gostaria de motocross.
Também acho.
Mas não digo isso a ele.
É estranho que um cara que eu conheço há tão pouco tempo
saiba mais sobre mim do que... bem... do que qualquer outra pessoa
viva.
Muitos outros carros estavam estacionados no bolsão,
quando chegamos ao topo da montanha. Há vários homens e
mulheres. E quem não está com a roupa própria para o esporte,
está no mirante assistindo e filmando os saltos de outros.
É... vibrante.
Vivo.
E eu me sinto tão feliz que agradeço por não ter sido teimosa
e voltado a dormir.
Acho que eu nunca viveria algo assim. Não sem um tostão no
bolso e com uma filha para criar.
— Eu tenho tanta vontade de fazer isso... — confesso.
Tristan vira o rosto para me encarar e levanta as
sobrancelhas.
— De pular de Bungee Jump? — pergunta, apontando a
equipe que prepara uma mulher para o salto.
Sinto uma pequena inveja da coragem dela.
Apenas aceno, respondendo sua pergunta.
— E por que não vai? Temos tempo.
Encolho os ombros, desviando o olhar do dele, mas continuo
a sentir que me observa. Não quero confessar que tenho medo, mas
acho que ele entende. Alguns instantes depois, me surpreende ao
estender a mão na frente do meu corpo.
— Vem.
— Hã...?!
A intensidade com que me analisa chega a me aquecer por
dentro, apesar de estarmos em um lugar altíssimo e muito frio.
— Eu pulo com você, Éden.
— Você não... Não quero atrapalhar seu esporte...
Seus dedos ásperos, de quem não conquistou o sucesso
facilmente, tocam meu rosto e ele segura o meu queixo com
delicadeza.
— Confia em mim?
Não respondo.
Não consigo.
Mas nem precisaria.
O simples fato de não recuar diante de seu toque ou de
permitir que se aproxime assim, é um sinal do quanto confio.
E Tristan sabe disso.
Ele sempre sabe de tudo o que se passa na minha mente e
no meu coração, mesmo que na maioria das vezes apenas optemos
por fingir que não é assim.
O empresário enrosca os dedos nos meus e me guia até a
equipe de Bungee Jump, pagando pelas nossas entradas.
— Vamos pular juntos — informa ao técnico, para que ele
pegue o equipamento adequado para duplas.
O que ele não faz em momento algum é soltar a minha mão.
Seus dedos continuam enroscados nos meus e eu gosto tanto disso
que chego a temer o momento em que me soltará.
Talvez nem tenha se dado conta disso.
Ou talvez ele esteja tentando me acalmar.
Continuo em silêncio, sentindo uma agitação crescente no
meu estômago.
Medo.
Ansiedade.
Mas, acima de tudo, excitação.
Eu vou pular de Bungee Jump!
Tristan e eu ficamos cara a cara, ainda de mãos dadas, e os
instrutores começam a dar as orientações e a prender os
equipamentos nos nossos corpos.
— Como preferem pular?
Olho para o sujeito, sem entender a que se refere.
— Podem pular um ao lado do outro ou...
— Ela vai no meu colo — Tristan decide por nós e me puxa
pelo quadril, colando os nossos corpos.
Não consigo esboçar nenhuma reação a não ser encará-lo
ainda mais intensamente.
— Desse jeito, um de vocês terá que pular de costas — o
rapaz argumenta, explicando que a sensação pode ser mais
assustadora.
— Eu estarei olhando para onde importa — meu parceiro de
salto diz, sem parar de me encarar por um segundo sequer. — Me
abraça, Éden.
Não é um pedido. É quase uma demanda.
E eu obedeço.
Fico na ponta dos pés e envolvo seu pescoço.
Nossos rostos estão tão próximos que consigo sentir seu
hálito fresco tocar meus lábios.
Tristan segura meu quadril e me puxa para cima, me
pegando no colo.
— Enrosca as pernas no meu corpo — exige, em um tom tão
baixo e rouco, que chega a soar indecente.
Engulo em seco, inebriada pela tensão sexual que nos
envolve.
E, novamente, obedeço.
Minhas coxas envolvem seu quadril, enquanto ele espalma
uma de suas mãos largas bem embaixo da minha bunda, para
sustentar o peso do meu corpo.
Passa o outro braço pelas minhas costas, apoiando a mão na
minha nuca. Sinto seus dedos roçarem os cabelos revoltos que se
soltaram do elástico com que os prendi.
É íntimo.
É vivo.
É intenso.
E absolutamente delicioso.
Morro de medo do esporte radical, mas nunca me senti tão
segura.
Não pelos cabos que se prendem ao meu corpo, mas pela
forma como ele me abraça como se eu fosse algo tão precioso, que
precisa ser mantido bem no meio do peito, perto do coração.
— Prontos? — o instrutor pergunta e eu apenas aceno, sem
desviar dos olhos negros do Tristan.
— Sim — ele responde por nós dois mais uma vez.
O instrutor passa mais um monte de informações, mas
estaria mentindo se dissesse que ouvi qualquer palavra que tenha
saído de sua boca.
Tristan sabe o que está fazendo.
Ele vai cuidar de mim.
Ele sempre cuida.
O homem ao lado começa uma contagem regressiva. O meu
“sogro”, no entanto, o ignora completamente.
Sua atenção é só minha e eu bebo dessa fonte como se
estivesse morrendo de sede.
— Confia em mim? — repete a pergunta feita quase 30
minutos atrás.
Dessa vez, eu consigo fazer a voz sair da minha garganta
embargada.
Eu quero que ele escute. Preciso disso como do ar nos meus
pulmões.
— Com a minha vida.
Tristan respira fundo, tão afetado quanto eu. Então, cola as
nossas testas.
— Pulamos no 3, Ma Flamme — sussurra, quase roçando os
lábios nos meus.
— Três... — começo a contar, também fazendo o meu hálito
serpentear por entre os lábios dele.
— Dois...
— Um — murmuro, no momento em que ele dá um passo
para trás, deixando a gravidade fazer nossos corpos despencarem.
Grito de medo e ele gargalha, enquanto me segura ainda
mais apertado e enfia os dedos pelos meus cabelos.
Sei que é só ilusão.
Mas nesse momento, é como se nós dois pudéssemos voar.
Juntos.
Só ele... e eu.
Tristan Ryan
 
Nunca tive medo de altura, nem de nenhum esporte radical.
Na verdade, eles sempre foram um escape para mim.
Então, me surpreende que, pela primeira vez, eu esteja
assustado por pular de Bungee Jump. Receoso.
Carrego algo tão perfeito e precioso nos braços, que não
posso correr o risco de perdê-la.
A forma como me toca, com intimidade, e me olha como se
confiasse em mim mais do que em si mesma, me aquece por dentro
e por fora, apesar do vento cortante no topo da montanha.
Minha garota engancha as pernas ao redor do meu corpo e
nossa proximidade me excita mais do que eu poderia admitir.
Talvez eu seja um grande filho da puta por isso. Mas eu estou
completamente apaixonado por Éden Lavinski.
Sei que a queda leva entre 5 e 6 segundos, mas para mim
parece ter durado muito mais. Ela grita de emoção conforme caímos
até o limite das cordas que nos prendem e eu a aperto ainda mais
contra o meu corpo, aproveitando cada milésimo de segundo que
posso ter da mulher que fez a minha vida perfeitamente ordenada
virar de ponta-cabeça.
— Caralho, foi muito, muito, muito bom! — Éden exclama
pela vigésima vez enquanto descemos a montanha de Jeep, depois
de almoçarmos no restaurante que tem lá no topo e fazermos uma
minitrilha.
Já passa das 17 horas e costuma escurecer cedo por aqui.
Não quis prolongar nosso passeio, pois a estrada é estreita e
perigosa.
— Que bom que você gostou — murmuro.
— Sério, podemos fazer isso de novo?!
Sorrio de lado e olho para ela por um segundo.
Sua beleza sempre me desconcerta, mas ela parece ainda
mais bonita agora que está com os cabelos bagunçados e um
sorriso gigante estampado no rosto.
— Sempre que você quiser — digo.
A mulher me encara e eu perco a noção do espaço por um
instante, apreendido por ela. Rendido.
Mas o pneu do Jeep passa em cima de uma pedra e isso faz
o veículo chacoalhar de um jeito perigoso. Éden dá um gritinho e
cobre a minha mão direita, que está no volante, com a dela.
Por um instante, penso que tentou tomar o controle do carro,
mas logo seus dedos me apertam e eu entendo o que aconteceu.
Ela temeu por sua vida e segurou a minha mão, como se eu
fosse mais capaz de mantê-la segura do que a robustez do veículo
4x4 em que estávamos viajando.
Seguro o volante mais firme com a mão esquerda e solto
alguns dos meus dedos da mão direita do volante para se
enroscarem nos dela. Queria beijar sua palma e colocá-la sobre o
meu coração, mas receio que isso a assuste, então me contento em
manter nossos dedos enganchados e o clima de cumplicidade que
nos envolve.
Éden Lavinski
 
Quando chegamos à cobertura, sinto um leve aperto no peito
devido ao silêncio.
Mas não sou eu a primeira a tocar no assunto.
— É estranho não ouvir a voz da Zoe pela casa — Tristan
murmura, me fazendo olhar seu perfil.
Porra, esse cara quer mesmo roubar cada pedaço do meu
coração…
— É mesmo — murmuro, concordando.
Ele sorri de lado e me encara.
— Vai me achar maluco se eu disser que já estou com
saudades dela?
Mordo meus lábios para tentar conter o sorriso, mas não
consigo.
— Eu também já estou com saudades.
— Podemos ir buscá-la? — pergunta, parecendo ansioso e
dessa vez eu realmente gargalho.
— Podemos ligar para saber se está tudo bem… — ofereço e
ele tira o celular do bolso imediatamente.
Em alguns segundos, o rosto de seu amigo James aparece
na tela e ele mostra as duas garotinhas se divertindo juntas.
Conversamos um pouco com elas, mas somos dispensados
rapidamente, já que elas querem voltar a brincar.
— Parece que ela não quer voltar antes da hora... —
murmuro, mordendo o lábio.
— Outch. Ela nos dispensou… — Tristan dramatiza.
— É o que eu sinto quando você e a Zoe ficam no mundinho
de vocês, conversando como se eu nem existisse.
Ele balança a cabeça, parecendo envergonhado.
Só então noto que há um cheiro diferente no ar.
— Isso é… cheiro de tinta?
— Porra! Eu esqueci!
— Do quê…?
Tristan segura a minha mão e me puxa pelo corredor. Ainda
estou olhando para nossos dedos entrelaçados, quando ele abre a
porta do que antes era sua sala de música e agora é um…
— O que é isso? — balbucio, sentindo a minha garganta se
fechar de emoção.
— A Pipoquinha merecia um quarto só para ela — responde,
tentando diminuir o fato de que ele simplesmente tirou as coisas de
que mais gosta dali e montou o quarto mais lindo que eu já vi.
Tudo é absolutamente perfeito, desde o papel de paredes
delicado, os móveis branquinhos, a quantidade absurda de
brinquedos e até o teto.
Literalmente, o teto.
Ele mandou pintar notas musicais ali.
— Para ela ver música quando estiver deitada — explica,
provavelmente notando para onde eu olhava.
— Tristan, isso é…
— Olha o teclado dela! — exclama e aponta a parede onde
há uma poltrona lilás, o teclado e uma cadeira delicada em frente ao
instrumento musical.
Tudo ali é tão lindo que meu coração chega a doer.
Não sinto vergonha por saber que talvez eu nunca fosse
capaz de pagar por algo assim para a minha filha, mas emoção por
alguém adorá-la a ponto de fazer uma surpresa como essa.
— Exagerei? — ele pergunta, soando envergonhado. — Eu
sei que eu deveria ter pedido permissão, mas…
— Sim, você exagerou — digo, cortando-o. — E, sim, você
deveria ter pedido permissão.
Uma tristeza genuína cruza seus olhos e eu diminuo a
distância entre nós antes de voltar a falar.
— Mas isso é… é… — minha voz falha e meus olhos ardem
de vontade de chorar.
— Ei. Não, por favor. Não posso vê-la chorar — sussurra,
colocando as mãos no meu rosto.
Seus polegares acariciam a minha pele, enxugando duas
lágrimas teimosas que caem sem permissão.
— Desculpa, Éden. Eu não queria chateá-la.
Encaro-o e, dessa vez, não sou capaz de manter a postura
indiferente. Aproximo-me um pouco mais, sentindo seu perfume
gostoso me envolver.
— É perfeito, Tristan. Esse quarto… é perfeito.
Uma criança não teria sorrido com tanta sinceridade quanto
ele ao ouvir isso.
— Sério? Não fodi com tudo dessa vez?
Gargalho e fico na ponta dos pés para beijar seu rosto.
— Você foi… perfeito.
Sim, meu vocabulário tornou-se escasso, mas é que a
presença dele me deixa assim, toda confusa e estranha.
Quando meus lábios tocam sua bochecha barbuda, sinto um
choque percorrer a minha pele e posso jurar que o mesmo acontece
com ele.
Nossos olhos voltam a cruzar e ficamos assim, nos
encarando, tão próximos que chega a ser íntimo demais.
Nesse momento, eu só queria jogar toda a sanidade para o ar
e beijá-lo.
— Também tenho uma coisa para você.
— O-o quê…?! — balbucio, enquanto ele segura a minha
mão e me leva até a próxima porta do corredor.
Só que não é a porta do meu quarto, mas sim do escritório
dele.
Tristan abre o cômodo e acende a luz, me puxando para
dentro.
Antes, havia uma mesa para seu computador e outra
reclinável de desenho. Agora, os móveis estão duplicados. Há duas
mesas, lado a lado, e duas pranchetas, uma em cada parede.
Meu computador está em um dos lados, onde também há
alguns livros de arquitetura, que eu certamente não havia comprado,
pois custam os olhos da cara, e o maior estojo de desenho que eu já
vi, ainda com um laço em cima.
— Não é muito, mas queria que você tivesse seu próprio
espaço para trabalhar, estudar…
Paro de ouvir, pois um zumbido me faz sair do ar por alguns
instantes. Quando volto à realidade, Tristan está à minha frente,
desesperado, segurando meus ombros.
— Éden, por favor, fala comigo.
— Preciso contar algo — praticamente cuspo as palavras.
— O que houve? — pergunta, ainda parecendo preocupado.
Abro a boca, disposta a esclarecer todas as mentiras, desde
o momento em que falei que era namorada do Jax até hoje, mas a
voz não sai.
Com muito esforço, consigo dizer algo que é verdade, mas
não toda ela.
— Jax e eu não estamos mais juntos.
Não especifico quando terminamos e faço uma prece para
que ele não pergunte.
O dono da casa pisca algumas vezes, como se estivesse
tentando compreender as minhas palavras.
— Vocês… terminaram?
— Sim.
Outra quase-verdade.
— Sério?
— Sim.
— Não vão… voltar depois? — Sua expressão muda ao
perguntar isso, como se as palavras machucassem sua garganta.
Isso me faz sorrir, pois me dou conta de que ele não está
bravo ou prestes a me expulsar de casa.
Ele está… aliviado.
— Não há a menor chance de voltarmos — garanto.
Tristan xinga baixinho e elimina a distância entre nós em
meio segundo, grudando nossos lábios, imediatamente.
A surpresa não dura nem um segundo. Logo, sua boca cobre
a minha, possessiva e exigente, e eu me abro para tudo o que ele
tem a me oferecer.
Caralho!
Eu estou beijando meu ex-sogro e é, sem dúvidas, o melhor
beijo de toda a minha vida.
Tristan Ryan
 
“Jax e eu não estamos mais juntos.”
Nunca senti tanto alívio em uma só frase.
Nunca mesmo.
Nem ao menos pensei antes de colar nossas bocas e fazer o
que eu tenho vontade desde o dia em que a conheci, naquele
barzinho fuleiro, andando de cabeça erguida e postura segura.
Meus dedos acariciam seu rosto, enquanto a minha língua
pede passagem entre seus lábios só para sentir seu gosto ainda
mais intimamente.
Mantenho apenas uma mão ali, enquanto, com a outra, enfio
os dedos pelos cabelos da minha garota, trazendo-a ainda mais
para mim.
Seu gemido suave termina de acordar todas as minhas
terminações nervosas e, em um ímpeto, eu a agarro pelas coxas e
coloco sentada na mesa nova, ao lado de seu computador.
Éden deixa sua língua travar uma batalha deliciosa com a
minha, me provocando na mesma intensidade em que eu a provoco.
Penso que eu esteja ansioso para senti-la melhor, mas quem
toma a iniciativa de diminuir a quantidade de tecido entre nós é ela.
A mulher intensa e marrenta, começa a tentar puxar meu casaco
para cima, totalmente desastrada.
Rio contra seus lábios e nos separo por um instante. Só o
tempo necessário para puxar o casaco e a camiseta de uma só vez
pela cabeça e atirá-los do outro lado do escritório.
Éden me analisa como se quisesse me devorar e consigo
enxergar labaredas em seus olhos.
— Ma Flamme... — murmuro, rouco, avançando para tocá-la
novamente, mas a mulher me faz parar.
— Primeiro, eu — determina, deslizando suas mãos pelo meu
tronco.
Seus dedos fazem a minha pele arder de dentro para fora e
eu só não fecho os olhos de prazer por não querer perder a
oportunidade de assistir cada microexpressão em seu rosto.
Ela toca meu abdômen, depois roça as unhas pela minha
pele. Desenha o traçado da minha tatuagem, do lado direito do
peito, e, então, sobe até o meu pescoço, onde segura para me
puxar para si.
Me encaixo entre suas coxas e roço meus lábios nos dela,
sentindo seu hálito quente.
Puxo seus cabelos, bem perto de sua nuca, fazendo-a deitar
a cabeça para trás e passo a roçar a barba por seu pescoço
delicado, ouvindo seus suspiros baixinhos.
Deposito um beijo na curva antes de seus ombros e a minha
garota solta um gemido, prendendo as coxas ao redor do meu
quadril.
Seguro a barra de sua blusa de manga comprida e a puxo
devagar, deixando meus dedos acariciarem sua pele macia pela
primeira vez.
Éden levanta os braços para me ajudar a tirar a peça de
roupa. Em seguida, coloca as mãos para trás.
— Porra! — rosno, ao ver que abriu o sutiã e seus seios
pesados fizeram a lingerie cair para a frente, quase deixando seus
mamilos à mostra. — Eu sou louco pelos seus seios, Ma Flamme —
confesso, encarando-a ao lamber entre eles.
Sua pele está levemente salgada, devido à trilha que fizemos
juntos, e isso me excita ainda mais. O cheiro suave de suor se
misturou ao perfume de rosas e tornou-se uma fragrância única.
Cheiro de Éden.
Puxo uma alça do sutiã e me deleito na visão que é o seio
pesado e completamente natural. Ela é toda real. Com suas
pequenas sardas, pintas, marcas, cicatrizes, estrias. Toda perfeita.
Toco a pontinha enrijecida e ela joga a cabeça para trás,
gemendo gostoso. Prendo o mamilo entre os meus lábios e chupo
de leve. Minha garota geme ainda mais alto.
Ainda bem que estamos sozinhos e que o andar todo é meu,
pois é assim que eu a quero: Gemendo sem pudores.
Tento abocanhar o máximo daquele banquete e chupo,
afastando os meus lábios, que fazem um barulho molhado quando
deixam de tocar a pele dela.
Éden me segura pelos cabelos e me guia de volta ao seio
úmido da minha saliva. Aproveito para puxá-la mais para a beirada
da mesa e roçar a minha ereção em seu centro, antes de mamar em
seu mamilo durinho.
Afoita, ela se esfrega no meu pau como se buscasse algum
alívio para o desejo, mas o gesto quase me faz gozar, tamanho o
meu tesão.
— Calma, Ma Flamme. Tudo a seu tempo — sussurro,
abocanhando o outro mamilo, para dar a mesma atenção que
ofereci ao anterior.
Desobediente como sempre, Éden não para de se roçar em
mim, me deixando cada vez mais desesperado para me enterrar em
sua boceta.
— Menina má — dou uma falsa bronca, mordendo o mamilo
que estava na minha boca.
— Porra! — minha desbocada linda xinga e arqueia as
costas, tentando esfregar nossos sexos ainda mais intensamente.
Com esforço, me afasto de seus seios apetitosos e observo
seus lábios entreabertos e a expressão de puro tesão. O sutiã ainda
pendurado em um dos ombros, os seios pesados caindo para a
frente e com marcas avermelhadas onde chupei e mordi.
Ela é o retrato de uma mulher implorando para ser comida
com força.
Mas, independentemente do quanto esteja excitada, ela não
diz o que quer. Éden demonstra com gestos e gemidos, mas não
coloca em palavras que quer ser fodida por mim.
— Tristan... — me chama, tentando me puxar.
Seguro seu pulso e dou um beijo em sua palma, sem desviar
nossos olhos.
— Logo, gostosa. Logo.
Engancho os dedos no cós de sua calça legging e puxo para
baixo, levando a calcinha junto.
Quero ter o prazer de vê-la desfilando em uma lingerie preta
e rendada como essa. Só para mim.
Mas hoje tenho urgência em fazê-la minha.
Só minha.
Seguro seus joelhos e a faço abrir bem as pernas, exibindo a
boceta carnuda, com pelos aparados, porém presentes. Mais uma
vez, sou nocauteado por quão real ela é. Quão deliciosamente
natural.
Levo o dedão até sua fenda e passo de leve, melando-o em
sua excitação. Éden morde o próprio lábio com força, enquanto me
observa sugar cada gota salgada e deliciosa.
Volto a acariciar sua bocetinha, mas dessa vez com o dedo
médio, enfiando até deixá-lo completamente molhado.
Então, levo até sua boca e puxo seu lábio, fazendo-a soltar a
mordida.
— Chupa — demando.
Ela prova que não poderia ter outro apelido, senão Ma
Flamme ao deslizar os lábios pelo meu dedo médio e sugá-lo como
se fosse o meu próprio pau, tudo isso sem desviar os olhos dos
meus.
— Minha puta gostosa — rosno e volto a beijá-la, sentindo o
gosto de sua boceta diretamente de seus lábios.
Uso dois dedos para foder sua boceta enquanto sugo sua
língua.
Éden solta um gemido choroso que só pode indicar estar
prestes a gozar e não posso permitir que isso aconteça sem que eu
a tenha provado.
Puxo seus cabelos com força, fazendo-a me encarar com
ainda mais desejo e desço deixando chupões por seus seios,
barriga e virilha até finalmente me aproximar da boceta em chamas.
A ponta da minha língua mal tem tempo de tocá-la e já a
escuto choramingar de prazer. Solto seus cabelos e uso as duas
mãos para apertar suas coxas e abri-la ainda mais, enquanto meto a
língua em sua fenda melada.
— Tristan... — geme e, porra, eu amo ouvi-la chamar meu
nome.
Suas unhas se enterram nos meus ombros, mas eu não ligo
para a dor. Acho que até gosto.
Sugo a vulva quente, ouvindo-a gemer mais e mais. Quando
uso meu polegar para estimular seu clitóris, minha garota se retesa.
Preciso usar os ombros para manter suas coxas bem abertas para
mim, enquanto ela finca sua unha sem dó na minha carne.
— Não para, Tristan! — exige.
Como se eu tivesse qualquer intenção de parar antes de
sentir seu gozo na minha boca.
— Isso... — exclama, toda melosa e barulhenta. — Vou gozar
para você. Só para você.
Mal termina de dizer isso e sinto seu corpo todo se contrair e
tremer em um orgasmo tão intenso que quase me faz gozar junto,
mesmo que meu pau sequer tenha saído de dentro da calça até
agora.
Porra, essa mulher vai acabar com a minha sanidade.
Endireito a coluna, lambendo os lábios melados e sorrio, todo
convencido, por vê-la corada e lânguida, com a expressão de quem
acabou de ter prazer.
— Caralho, eu preciso muito foder você — digo, segurando
seu rosto com as duas mãos e beijando-a com força.
Desço uma das mãos para sua bunda e a pego no colo,
caminhando em direção ao meu quarto.
Chuto a porta de qualquer jeito, fazendo-a gargalhar diante
do meu desespero.
— Rindo de mim, senhorita Lavinski?
— Com certeza, senhor Ryan.
— Abusada — exclamo depois de atirá-la na cama.
— Abusada não, senhor Ryan... — continua a me provocar.
— Sou uma... — fica de joelhos e vira de costas enquanto fala —
menina... — abaixa, empinando a bunda para mim — má.
— Muito, muito má — digo, entredentes.
Dou um tapa tão forte em sua bunda empinada que fica
vermelha imediatamente.
Éden rebola mais uma vez, me olhando por cima do ombro, e
eu perco completamente o controle sobre o meu pau.
Abaixo a calça e a cueca ao mesmo tempo e dou mais um
tapa forte na bunda dela, antes de abrir a gaveta da mesa de
cabeceira e pegar uma camisinha.
Rasgo a embalagem e deslizo o preservativo pelo meu pau,
enquanto a pilantra continua a balançar seu rabo para mim.
— Gostosa do caralho — xingo, segurando seu quadril, e
puxando-a para a beirada da cama, ainda de quatro. — Quer ser
comida assim, é?
Sua resposta é se esfregar na minha ereção e eu solto um
palavrão ao sentir meu pau roçar entre suas pernas.
Encaixo meu membro em sua abertura e abaixo, cobrindo
suas costas com meu peito, para sussurrar em seu ouvido.
— Última chance de escapar, Ma Flamme.
Éden nem espera eu terminar a frase para empurrar o corpo
contra o meu, fazendo meu pau penetrá-la.
Trinco o maxilar, para controlar a onda de prazer que quase
me faz gozar, e deixo-a se acostumar com a grossura antes de
socar mais alguns centímetros dentro da boceta apertada.
Tão apertada que sinto o suor escorrer pela minha testa,
tamanho o esforço para conseguir atrasar o orgasmo um pouco
mais.
Saio de dentro dela e volto a meter, dessa vez me enterrando
quase todo, o que a faz xingar alto, em uma mistura de dor e prazer.
Agarro mais forte seu quadril, provavelmente deixando-o
marcado com meus dedos, e começo a socar mais rápido. Éden
volta a gemer tão alto quanto ao gozar na minha boca.
Deliciosamente escandalosa.
O problema é que, conforme seus gemidos se intensificam,
fica quase impossível continuar controlando o meu orgasmo...
— Tristan! — grita, finalmente, e sei que vai gozar.
Tiro meu cacete de dentro dela e seguro-a pelas coxas,
girando-a no colchão.
— Porra! — choraminga. — Por que parou?
Essa mulher é incomparável...
Rio, enquanto subo na cama.
Com as minhas coxas, afasto as dela até ficar toda aberta
para mim. Escancarada.
Então, aperto suas bochechas com uma só mão. Sem
machucá-la, mas o suficiente para que me olhe daquele jeito
marrento que me deixa louco.
— Você vai gozar junto comigo e olhando nos meus olhos,
Ma Flamme.
Meto de uma só vez, preenchendo-a por inteiro. Minha garota
geme enquanto eu bombeio com tanta força e velocidade, que o
som sai entrecortado, picado, afoito.
É como se ela engasgasse com seus próprios gemidos.
Seus olhos castanhos viram para cima quando começa a
gozar, mas eu empurro seu queixo para baixo com o polegar,
fazendo-a voltar a me encarar.
Não demoro a acompanhá-la, urrando ao preencher a
camisinha com os jatos quentes de prazer.
Deixo meu corpo cair sobre o dela, ainda tremendo devido ao
orgasmo. Conforme nossas respirações se acalmam, nos
abraçamos instintivamente, entrando em uma bolha de paixão que é
só nossa.
Não dizemos nada, um ao outro, mas seu olhar reflete o
mesmo que o meu.
É tão intenso que não ousamos confirmar em voz alta o que
nossos corações parecem saber de cor.
Éden Lavinski
 
Eu realmente não gosto de acordar cedo.
Mas, nessa manhã em específico, desperto bem antes do sol,
sentindo meu corpo todo aquecido, apesar da nudez.
Estou perfeitamente aconchegada nos braços do homem
que, até ontem, acreditava ser meu sogro.
Tristan dorme tranquilo, com o rosto próximo do meu. A barba
bem-desenhada deixa seu rosto ainda mais bonito. Ele todo é
absurdamente bonito. De um jeito que chega a parecer irreal.
Não quero me render a pensamentos tristes, mas é inevitável
cogitar se isso tudo é de verdade ou se ele só estava com muita
vontade de foder a garota que pensava ser a namorada de seu filho.
Deslizo suavemente para não acordá-lo, precisando ficar um
pouco a sós. Passo em seu closet, pego a primeira camisa que
encontro só para não sair nua, e ando até a varanda onde minha
filha gosta de passar todas as manhãs.
Ainda está escuro, mas já dá para ver os primeiros indícios
do nascer do sol.
Olho o horizonte, tentando me acalmar, até que dois braços
fortes me abraçam pela cintura e um corpo quente encosta no meu.
— Bom dia, Ma Flamme — sussurra.
O apelido pelo qual me chamou tantas vezes enquanto me
fazia ter os melhores orgasmos de toda a minha vida aquece a
minha pele apesar da brisa gelada da manhã.
— Bom dia — respondo, sorrindo de lado.
O sol começa a se levantar de seu sono profundo e Tristan
apenas se aconchega mais em mim.
Nunca foi meu programa favorito, mas acho que acabei de
me tornar fã do nascer do sol.
— O que estamos fazendo? — pergunto, em um sussurro.
Ele segura a minha cintura e gira meu corpo para ficarmos
cara a cara.
— Agora? Assistindo o nascer do sol juntos.
Sorrio de lado, balançando a cabeça.
— Você sabe que não estou falando disso, Tristan.
Seus lábios roçam a ponta do meu nariz, então, depositam
um beijo suave na minha boca.
— Não sou bom com nada disso, nem sei o que dizer
exatamente. Nunca me apaixonei antes. Não de verdade. Mas, para
mim, nós estamos apenas vivendo. A diferença é que, de agora em
diante, eu espero que possamos fazer isso de mãos dadas.
Porra.
E ele falou que não é bom com as palavras? Essa foi a coisa
mais linda que alguém já me disse nos meus 23 anos de existência.
Me aconchego no peito dele, sentindo seu coração
acelerado. Tão afoito quanto o meu.
— Gosto desse plano — sussurro, beijando o queixo do meu
ex-sogro.
— Eu também, Ma Flamme.
Ele segura a minha nuca e, ao mesmo tempo, uma de suas
mãos grandes e habilidosas aperta a minha bunda, me puxando
contra uma ereção que, alguns segundos atrás, não estava ali.
Tristan me beija como se não houvesse nada mais importante
no mundo do que deslizar a língua pela minha e tomar meus lábios
para si.
Aliás, tudo o que ele faz é assim... com total dedicação.
Desde quando ele escuta a Zoe falar, prestando atenção
como se ela fosse a criatura mais incrível, até quando ele está lendo
um arquivo no computador.
Ele coloca dedicação e paixão em absolutamente tudo o que
faz e isso o torna irresistível.
Quando nossas bocas se afastam, novamente, cravo os
dentes no queixo dele, provocando.
— Você acabou de dizer que está apaixonado por mim,
Sogrinho?
Seus olhos faíscam de raiva e diversão na mesma medida.
— Você vai pagar por isso, menina má.
Gargalho quando ele simplesmente passa os braços pelas
minhas coxas e me joga por cima de um dos ombros, me
carregando para dentro do apartamento.
Tristan me leva de volta para a cama e sobe em cima de
mim, prendendo as minhas mãos acima da minha cabeça e usando
as pernas musculosas para afastar os meus joelhos.
Suas mãos estão ocupadas segurando os meus pulsos,
então ele usa a boca para arrancar o único botão de sua camisa
branca que eu havia fechado. Com o queixo, afasta o tecido para os
lados, expondo meus seios.
— Tris... — balbucio, quando a boca bonita suga um dos
meus mamilos.
— Agora não sou mais “sogrinho”?
Volto a gargalhar, tentando me mexer, mas ele me prende
com mais força. Dou um gritinho de prazer quando ele mordisca o
outro mamilo e puxa-o de leve, soltando logo em seguida.
— Abusada, marrenta... — xinga. — Gostosa pra caralho!
Crava os dentes na pele do meu seio e eu solto um gemido
tão alto que até me surpreendo comigo mesma.
— Aposto que consigo fazer você gozar só chupando esses
seios deliciosos — diz e eu me contorço, em protesto.
Minha boceta está latejando de vontade de ser fodida.
Não quero esperar mais um segundo sequer.
Só que ele é muito mais forte do que eu e eu fico ainda mais
fraca quando abocanha um dos meus seios como se fosse
realmente devorá-lo.
Sua boca suga a pele, os dentes arranham de leve e a língua
brinca com o meu mamilo.
Como suas mãos estão ocupadas, ainda me mantendo
refém, ele usa a barba para provocar o outro seio ao mesmo tempo.
— Porra, Tristan! — grito, sentindo meu corpo tremer.
Tento me esfregar em sua ereção, mas ele abaixa um pouco
mais, me deixando sem ter onde roçar a minha boceta.
O tesão parece estar prestes a me consumir por completo e,
quando ele crava os dentes ao redor do meu mamilo, simplesmente
me entrego à loucura que é gozar sem nem ao menos tocar a minha
boceta.
— Caralho! — xingo, em um tom que mais parece um gemido
agoniado, enquanto meu corpo treme por completo.
— Agora sim — diz, sorrindo de um jeito tão cafajeste que me
faz querer morder sua boca.
Não passo vontade.
Aproveito que soltou meus pulsos para segurá-lo pela nuca e
puxá-lo para mim, mordendo sua boca com tanta força que não sei
como não arranquei sangue.
Tristan não parece se importar, pois engata um beijo tão
intenso que é como se trepasse com a minha boca.
Suas mãos tateiam pelo meu corpo e encontram a minha
boceta aberta e melada. Mal toca a minha carne e já sinto outro
solavanco de prazer percorrer meu corpo.
— Me come agora — exijo, empurrando sua boxer para
baixo, para liberar o pau que quase me arrombou na noite passada.
É grande, na medida certa, mas tão grosso que ainda
conseguia senti-lo dentro de mim mesmo depois de já termos
transado. Acho que Tristan me estragou para os outros homens. De
todas as formas possíveis.
Ele se inclina para pegar um preservativo e, assim que o
veste, prendo as pernas ao redor de seu quadril e puxo-o para
dentro de mim. A entrada é dolorida, afinal, ainda estava sensível,
mas eu gosto.
Gosto pra caralho!
Seus dedos circulam a minha cintura e me apertam tão forte
que talvez fique marcado. Não me importo. A cada vez que soca
seu pau grosso na minha boceta, me sinto mais entregue.
Transamos forte e duro, como se nossos corpos precisassem
disso para continuar funcionando. Meu homem me fode como se eu
fosse a mulher mais linda do mundo e quando gozamos, juntos, eu
realmente acredito.
— Sim — murmura, quando nossas respirações voltam ao
normal.
— Hã? — pergunto, sem entender.
— Sim, eu estou apaixonado por você, Éden.
Eu também.
Perdidamente.
Não digo. Não estou pronta.
Mas ele sabe.
Como disse antes... ele sempre sabe tudo a meu respeito.
Tristan Ryan
 
Cubro os olhos da Zoe enquanto Éden puxa a garotinha
pelas mãos, guiando-a pelo corredor.
— O que é?! — pergunta mais uma vez, ansiosa.
— Você vai gostar, Bubbles.
Eu não consigo dizer nada. Estou ansioso para ver se ela vai
ficar feliz com o quarto novo ou se eu errei na escolha de tudo e
será decepcionante.
Éden jurou que a filha amaria, mas as minhas mãos estão
literalmente suando.
Quando o Jackson era criança, eu não tinha condições de
comprar tudo o que queria para decorar o quarto dele, então fiz com
as minhas próprias mãos.
Naquela época, eu ainda trabalhava como construtor e não
tinha perdido as minhas habilidades manuais.
Só que na casa do padrasto, que era rico, ele tinha muito
mais luxo do que no cubículo em que eu morava. Então, tudo o que
ganhei foi um “valeu, pai”.
Sei que ele não fez por mal. Era só um garoto.
Mas aquele “valeu, pai” doeu, já que tinha passado quase
dois meses usando as minhas poucas horas vagas para deixar tudo
como eu gostaria para ele.
Éden abre a porta e Zoe e eu paramos bem ali. Quero que
ela veja desde a entrada, por isso, com as mãos trêmulas, eu
destapo seus olhinhos.
A garotinha arregala os olhos e entra hesitante, olhando tudo
com tanta estranheza que, por um segundo, meu coração se
encolhe.
Mas, quando ela me encara, vejo que está chorando.
— Ei! Não. Não é para chorar, Pipoquinha — digo, me
ajoelhando diante dela para puxá-la para os meus braços.
Ao invés de me ajudar, Éden apenas sorri para nós dois e fica
olhando da porta, como se soubesse de algo que eu não sei.
— Você fez para mim, Tris? — pergunta, chorosa.
— Sim... mas se você não gostou, a gente pode trocar tudo.
Podemos escolher outra cor e...
Ela se joga nos meus braços com tanta força que quase caio
para trás e começa a me agradecer como se eu tivesse construído a
Disney só para ela.
— Bigada, bigada, bigada — repete sem parar.
Rio, sem-jeito, e espio a mãe da garotinha, que continua com
aquela expressão de sabe-tudo.
Quando Zoe larga meu pescoço, seguro seus ombros só para
me certificar.
— Você gostou mesmo, Pipoquinha?
— É perfeito! Eu... eu... eu amo você, Tris.
Porra. Isso me quebra de um jeito que eu nem consigo falar
por vários segundos, apenas trago-a para o meu peito novamente e
abraço-a com todo o meu coração.
— Eu também amo você, Zoe. Muito.
Levanto do chão e deixo a garotinha terminar de explorar seu
quarto novo, enquanto eu me encosto ao lado da mãe dela.
— Eu disse que ela ia gostar — Éden sussurra, roçando as
costas da mão na minha.
Combinamos que não falaríamos nada para a Zoe sobre o
nosso... envolvimento. Pelo menos, não por ora.
Eu entendo que a Éden precise de um tempo para acreditar
que estamos juntos nessa.
E eu também preciso ligar para o Jackson e explicar o que
está acontecendo. Não sei como meu filho vai lidar com tudo isso e
talvez seja algo delicado para se falar em uma chamada de vídeo.
De qualquer forma, nós ainda temos muito o que pensar
antes de sairmos dando as mãos em frente a uma garota de seis
anos, sem sabermos o que nos aguarda no dia seguinte.
Sei que eu as quero comigo. Para toda a vida. Só não sei
como ainda.
— Tris... — Zoe me chama, parando em frente ao teclado
novinho. — Posso pedir uma coisa?
— Bubbles! — Éden a repreende. — Não podemos ficar
pedindo as coisas, filha...
— Mas é que só o Tris pode fazer, mamãe. Você não sabe...
Pisco para a mulher ao meu lado e me aproximo da pequena.
— O quê, Pipoquinha?
— Vai ter uma apresentação daqui a umas semanas... de
música... e...
Agacho para ficar da altura dela.
— Diz, meu amor.
— É uma coisa de pais e filhos e eu queria que você tocasse
uma música comigo — sussurra. — Se você quiser! — acrescenta,
envergonhada.
Ouço o som de surpresa vindo da porta e Éden se aproxima
para se unir a nós.
— Não fica triste, mamãe. Eu te amo, mas eu queria que o
Tris tocasse comigo porque ele canta e toca piano e...
Espero a expressão assustada no rosto da mulher que
dormiu agarrada ao meu corpo a tarde toda ser substituída por um
olhar de ternura para o pedido da filha e, só então, respondo.
— Eu me sentiria honrado em participar dessa apresentação
com você, Pipoquinha — afirmo, beijando sua testa.
— Oba!
Ela comemora se agarrando a nós dois e isso se transforma
em um abraço em... família.
 
Éden Lavinski
 
Zoe segura a minha mão, olhando encantada para todos os
lados. Ela já vinha me pedindo para levá-la à empresa há algum
tempo e aproveitei que ela não tinha aula na sexta-feira para fazer
um dia diferente. Ela estava eufórica também porque domingo é
meu aniversário.
Tristan ficou com ela de manhãzinha e, como eu tinha prova
na faculdade, saí bem mais cedo, lá pelas 10. Depois disso, ele teve
que sair para uma reunião e nós duas fomos ao parque, almoçamos
juntas e agora viemos para a TER.
Apresentei a pequena a todos os meus colegas de trabalho e
a deixei brincando na sala do setor de planejamento.
Depois de algum tempo, no entanto, ela começou a insistir
que também queria ver o Tris.
Agora estou aqui no andar da presidência, onde nunca pisei
antes, me sentindo uma invasora.
— Olá? — uma mulher bonita e muito bem vestida nos
cumprimenta, de sua mesa posicionada em frente a uma porta dupla
de madeira.
Antes que eu pudesse responder, minha filha já estava nos
apresentando.
— Oi! Eu sou a Zoe! E essa é a minha mãe, Éden. Ela
trabalha aqui e o Tris também.
Por alguma razão, a mulher parece nos conhecer, pois
levanta e vem na nossa direção com o maior sorriso do mundo.
— Então, você é a Zoe! Eu sou a Jen.
— Você me conhece? — a pequena pergunta, soando
desconfiada.
— O Tristan fala muito sobre você!
Os olhinhos dela brilham de alegria.
— Ele é meu melhor amigo!
— Aposto que você também é a melhor amiga dele, Zoe.
— Então, posso ver o Tris?
— Ele não está, mas por que vocês não esperam na sala
dele?
— Acho melhor não... — começo a recuar, mas a secretária
segura a outra mão da minha filha e começa a nos levar até lá.
A sala é enorme. Basicamente, o mesmo espaço que todo o
setor de planejamento tem que dividir - que já é bem grande e
confortável - ele tem só para si.
— Pode sentar ali no sofá, Zoe. Você quer um suco?
Minha filha acena, aceitando a gentileza da tal Jen.
Eu acompanho a moça até o frigobar no canto da sala, onde
há uma pequena copa privativa.
— Tem certeza de que podemos ficar aqui? — sussurro.
— Absoluta. Tristan ficaria puto de raiva se soubesse que
deixei a Zoe e você na sala de espera.
Rio baixinho do jeito informal dela de falar e aceito o suco
que me oferece também, depois de entregar uma lata idêntica à
minha filha.
— Você trabalha com ele há muito tempo? — pergunto,
tentando não soar tão intrometida, porém me corroendo de
curiosidade.
— Desde que ele trabalhava em uma salinha em cima de
uma lanchonete. Era um buraco e a gente tinha que dividir uma só
mesa. Ele ficava com um lado e eu com o outro.
Nós duas olhamos para a sala exageradamente grande e
rimos. Mas, logo uma pontinha do que eu me recuso a chamar de
ciúmes parece surgir.
— Vocês viveram muita coisa juntos, então...
Sei que estou sendo patética, mas, em minha defesa, nunca
senti algo assim por ninguém. Nem pelo meu namorado de
adolescência e pai da minha filha.
— Muita mesmo — concorda, sorrindo. Então abaixa a voz
como se me contasse um segredo: — Por exemplo, ele me levou ao
altar no dia do meu casamento, já que não tenho mais meu pai e
nem irmãos, e ainda é padrinho de um dos meus bebês.
Alívio escorre pela minha espinha.
— Isso é... incrível — murmuro.
— Somos muito amigos, Éden. E é por isso que eu sei o
quanto vocês são importantes para ele.
Meu coração se aquece diante da certeza com que ela fala.
Pode soar tolo da minha parte, mas eu venho tentando me
convencer de que essa felicidade que vem tomando conta das
nossas vidas é real. Que não é algo passageiro.
Só que para quem está acostumado a se foder tanto na vida,
é difícil acreditar que tudo realmente vai ficar bem.
Fico sempre esperando o golpe que virá de onde menos
espero, olhando para os lados receosa.
Quero um dia não me sentir mais assim. Mas, por ora, tenho
feito o que posso.
Nesse momento, uma mulher ruiva e muito bem vestida entra
na sala como se fosse a dona do mundo.
Jen e eu franzimos a testa, mas antes que pudéssemos dizer
algo, ela vira o rosto e dá um gritinho ao ver a minha filha.
Corro até lá, ao perceber que Zoe se assustou.
— Quem é essa pirralha, Jennifer? E essa mulher? Seu chefe
sabe que está deixando qualquer um entrar na sala dele?
Meu sangue ferve, mas minha nova amiga é mais rápida que
eu ao responder.
— Meu chefe — usa o mesmo tom dela — vai ser informado
de como você se referiu a elas e pode apostar que ele não vai
gostar. Agora saia.
— Quem é você para me expulsar?
— A secretária executiva que não autorizou a sua entrada —
responde com firmeza. — Saia antes que eu chame a segurança.
A mulher bufa e sai batendo os saltos no piso de mármore.
Mas, não sem antes olhar com desdém para mim e para Zoe.
— Mamãe, por que ela não gosta de mim?
— Não sei, Bubbles. Mas não importa.
— Essa criatura não gosta de ninguém — Jen comenta,
sentando do outro lado da garotinha. — Não fique chateada,
anjinho. Eu tenho uma barra de chocolate, você quer?
A pequena hesita, mas acaba aceitando.
A secretária vai buscar o doce, enquanto eu continuo
abraçando a minha filhinha e acariciando suas costas.
— Bigada... — murmura, aceitando o chocolate.
— De nada, anjinho.
Jennifer ainda parece estar tão furiosa quanto eu.
— O Tristan vai ficar furioso...
— Não quero que a nossa presença seja um problema, Jen.
— Problema? Ele vai proibir aquela infeliz de passar em
frente à empresa, Éden!
— Mamãe, o Tris vai demorar? — Zoe pergunta, mastigando
sem ânimo.
— Parece que sim, Bubbles. Melhor nós irmos embora e
voltarmos para visitar o Tristan outro dia. Pode ser?
— Tá bom... — sussurra, tristonha.
O elevador apita, nesse momento, e alguém se aproxima a
passos rápidos.
— Jen? — ouço sua voz antes de vê-lo.
Está vestindo o terno grafite que já havia tirado meu fôlego
mais cedo. Assim que seus olhos pousam sobre nós, a expressão
cansada em seu rosto se ilumina.
— Ei, vocês! — diz, sorrindo largamente. — Cadê meu
abraço, Pipoquinha? — pergunta, abrindo os braços.
Ela levanta e vai até ele, mas não corre como de costume. A
megera realmente a chateou.
Tristan percebe e a pega no colo.
— O que houve? — pergunta, olhando primeiro para ela,
depois para a secretária e para mim.
— A mulher não gosta de mim — Zoe murmura, chateada.
— Esquece isso, Bubbles — digo.
Tristan franze ainda mais a testa.
— Que mulher?
— Ava — Jennifer responde.
Já havia notado que ela parecia conhecer a ruiva, mas agora
seu tom dá a entender que é alguém que o visita sempre, a ponto
de ambos saberem bem o seu nome.
Será que é uma das mulheres com que ele costuma sair?
A expressão dele confirma as minhas suspeitas.
— Vamos embora, Zoe — digo, levantando em um pulo.
Tristan coloca a minha filha no chão e tenta me tocar. Recuo
e murmuro a primeira coisa que passa pela minha cabeça antes de
sair correndo.
— Vou ao banheiro.
— Fica aqui com a Jen, Pipoquinha. Cuida dela! — ouço-o
pedir, antes de correr atrás de mim.
Acelero o passo e entro no banheiro feminino, mas ele
consegue colocar o pé no vão da porta e entrar.
— Me deixa, Tristan — viro de costas, mas ele segura meus
ombros e me faz encará-lo.
— Ei, o que houve?
Mordo o lábio inferior, mas não respondo.
— Fala comigo, Éden. O que a Ava fez, afinal?
— A Ava... — repito seu nome, com desgosto.
— Ela tocou na Zoe? Em você?
— Não mesmo! Se isso tivesse acontecido, você estaria na
delegacia me tirando da cadeia por arrancar cada fiapo ruivo da
cabeça dela.
O homem, até então sério, sorri e encosta a testa na minha.
— Prometo manter um advogado sempre na discagem
rápida, Ma Flamme.
Rio baixinho e me deixo ser abraçada.
— O que ela fez, afinal? — pergunta, cheirando meu
pescoço.
Afasto o rosto para encará-lo.
— Chamou a Zoe de pirralha e disse que você ficaria com
raiva por nos ver ali em seu escritório.
Seus olhos soltam faíscas de raiva.
— A Jen a expulsou — acrescento, encolhendo os ombros.
— Ótimo. Jennifer fez muito bem.
— Fez mesmo? Ela parecia ser sua... sua...
— Minha?
— Sei lá. Namorada. — Mordo a parte interna das
bochechas.
Ele primeiro arregala os olhos, então sua expressão vai
mudando até se tornar de pura diversão.
Tristan gargalha, o que me irrita ainda mais.
Empurro seu peito e tento me afastar, mas ele não me deixa
sair de seu abraço, passando a cobrir meu rosto com beijos.
— Nunca tive namoradas, Éden.
— Ah, é? Só amantes?
Tristan não responde, mas nós dois sabemos que sim. Seus
lábios roçam pelo meu maxilar, traçando-o em uma carícia suave.
— Nunca tive um relacionamento sério... até agora.
— Está me chamando de namorada, senhor Ryan?
— Não mesmo, senhorita Lavinski.
Estreito o olhar.
— Sou velho demais para namorar. Você é minha. Minha
parceira, minha amante e...
— Sua nora? — provoco, interrompendo-o.
— Você vai ser muito castigada por isso — diz.
— Promete?
Ele desfere um tapa na minha bunda tão rápido e com tanta
força que eu até solto um gritinho.
— Só não vou castigá-la agora, Ma Flamme, porque tem uma
garotinha muito chateada nos esperando para levá-la para tomar o
maior sorvete do mundo para esquecer o que aconteceu.
Sorrio e roço nossos lábios.
Amo a forma como ele se importa com a Zoe o tempo todo. E
não é só com o bem-estar físico dela, mas com sua felicidade. Ele
se preocupa se a minha filha está bem, se é feliz.
Ele é muito mais pai dela do que o homem que contribuiu
com seu DNA jamais poderia ser.
Saímos juntos, mas, enquanto cruzamos o hall da
presidência, ele cola o peito nas minhas costas e sussurra:
— Hoje à noite você não escapa, Ma Flamme.
Olho por cima do ombro, provocando-o.
— Hoje à noite estarei no Red Pub.
— Ainda bem que a senhora Curtis confirmou que cuidará da
Zoe mais tarde. Serei seu cliente a noite toda...
Estamos rindo quando entramos na sala dele, onde uma Zoe
bem mais relaxada assiste um vídeo em um iPad tão chique que
chego a me arrepiar de medo de que ela o quebre.
Tristan vai direto até o sofá e senta ao lado dela.
— Ei, Pipoquinha.
— Ei...
— Quero que você saiba que você pode vir aqui quando
quiser. Tudo o que é meu, é seu. Entendeu?
Ela sorri, provavelmente sem conseguir mensurar o que ele
está dizendo, mas encantada pelo jeito doce com que fala.
— Tá bom, Tris.
Minha filha se aconchega no peito dele e começa a mostrar o
vídeo que assistia.
— Eu disse, Éden. Vocês são muito importantes para ele —
Jennifer sussurra, antes de sair da sala com um sorriso no rosto e
fechar a porta para nos deixar a sós.
Enquanto os observo, fico pensando qual era a terceira coisa
que ele pretendia me dizer. Sou sua parceira, amante e...
 
Tristan Ryan
 
Cada vez que ela passa perto da minha mesa, deixando para
trás seu aroma de rosas, sinto meu corpo ficar ainda mais
incandescente. Éden tem esse poder sobre mim, me deixar quente
até nos lugares mais gelados.
A garota dos olhos bonitos me encara, pela primeira vez
desde que me sentei ali. Mesmo de longe consigo vê-la em brasa e,
confesso, não estava preparado para tanto...
O fogo que enxergo em seu olhar queima quase dentro de
mim. O mesmo fogo. O mesmo tesão. O mesmo a...
Não. Não posso usar essa palavra. A mesma paixão. Paixão
é um termo muito mais seguro.
Levanto de qualquer jeito, empurrando a mesa no processo.
Quem se importa? Preciso dela.
Como se conseguisse ler a minha mente, ela atravessa o
salão e ruma ao corredor. O vestido rosa de cetim praticamente
grudado à curva perfeita de seu quadril.
Ela é toda perfeita. Deliciosa.
Por um instante, sinto ciúmes de todos os filhos da puta que
puderam admirar suas curvas sob o tecido fino de sua roupa.
Chega a ser possessivo, quase um pensamento machista,
mas gostaria de jogar álcool nos olhos de cada um que ousou
desejar o que é meu.
Só meu.
Porque ela é... minha.
Minha pra caralho.
Éden entra no banheiro e em menos de 20 segundos eu
empurro a porta, fechando-a sem nem ao menos evitar o baque
surdo.
— Discreto, Ryan...
— Impossível ser discreto quando o que eu mais quero é me
enterrar na sua boceta, Lavinski.
Suas íris castanhas brilham e eu não consigo mais manter as
mãos longe dela. Seguro sua nuca, afundando os dedos nos
cabelos macios, e a puxo de encontro ao meu corpo, clamando sua
boca quase violentamente.
Ela se agarra aos meus ombros, fincando as unhas no tecido
da minha camisa social, e me beija como se tivesse fome e meus
lábios fossem sua refeição.
Gememos juntos. Meu pau inchando ainda mais dentro da
calça. Acho que poderia gozar só com o roçar de seus seios fartos
no meu peito. Me dou conta de que não está usando sutiã e uma
nova onda de ciúmes me acomete.
Puxo seus cabelos para fazê-la me encarar.
— Você foi uma garota muito má, Éden Lavinski.
Seus olhos brilham como fogo e um sorriso surge na curva de
seus lábios perfeitos.
— Ah, é, senhor Ryan?
Puxo um pouco mais, punindo-a por me chamar de senhor,
quando sabe que eu não gosto.
— Por que fui uma menina má, Tristan? — a voz rouca me
deixa a um fio de gozar nas minhas calças como a porra de um
adolescente.
— Andando por aí sem sutiã?
Uma de suas sobrancelhas se ergue, sarcástica.
— E?
— Não gosto de ninguém olhando o que é meu — pontuo
cada palavra lentamente, com ênfase no pronome possessivo.
Em um movimento rápido, viro-a de frente para o espelho e
colo suas costas no meu peito. O vestido de cetim está esticado em
cima dos mamilos, mostrando o quanto estão excitados.
Cubro os dois montes perfeitos com as minhas mãos e
aperto-os com vontade, sentindo um arrepio delicioso quando a
ouço gemer.
— Essa visão é só para mim, Éden.
Minha putinha deita a cabeça para trás, no meu ombro, e
fecha os olhos. Aperto mais seus seios fartos, puxando os mamilos
entre o indicador e o polegar.
Seu gemido ganha um leve toque de dor e isso me faz repetir
o gesto, pinçando os biquinhos excitados.
— Por favor, Tris...
— O quê, minha putinha?
— Por favor...
— Pede, Éden. Faço qualquer coisa que você quiser, mas
precisa pedir.
Minha gostosa rebola, esfregando a bunda que me deixa
louco na minha ereção.
— Porra! — xingo, inclinando-a para frente só para conseguir
me roçar melhor em seu rabo empinado.
Continuo apalpando um dos mamilos e deslizo a outra mão
para a barra do vestido, subindo até seu quadril.
— Tris...
Olho o reflexo da minha garota no espelho, enlouquecido de
tesão. Preciso tanto comê-la. Bem aqui. Assistindo suas expressões
a cada estocada.
Engancho o dedo na lateral de sua calcinha de renda e por
pouco consigo reprimir a vontade de rasgá-la.
Adoraria saber que está andando por aí com a minha porra
escorrendo de sua boceta, mas odiaria pensar que algum filho da
puta poderia enxergar o que é só meu caso ela se abaixasse para
pegar algo no chão.
Opto por apenas empurrar a calcinha para o lado e sorrio
convencido ao tocar sua entrada melada.
— Toda molhada... — sussurro, mordiscando sua orelha.
— S-sim... — Éden gagueja me fazendo roçar ainda mais a
minha ereção contra sua bunda.
— O que você quer? — provoco.
— V-você sabe — responde, relutando em dar o braço a
torcer.
Penetro sua fenda melada com dois dedos e os giro em seu
interior, fazendo-a gemer tão alto que posso jurar que nos ouviram
lá do salão.
Encaixo o dedão em seu clitóris inchado e a fodo com os dois
dedos, enquanto estimulo o nervinho. Éden treme por completo e
fica ofegante.
Quando sinto que está prestes a gozar, paro.
Seus olhos se abrem imediatamente, me encarando com
raiva pelo reflexo.
— Que porra?!
— Eu disse que você tem que pedir, Ma Flamme[32].
— Você quer tanto quanto eu! — resmunga, rebolando de um
jeito que me faz arfar de desejo.
— Preciso mais disso do que do ar que respiro, Ma Flamme.
— Então...
Belisco seu mamilo direito com força, antes que volte a
argumentar.
— Pede! — exijo em um rosnado.
— Me fode! — grita, choramingando. — Me fode, por favor,
Tris. Preciso de você, porra!
Mordo o ombro nu para esconder meu sorriso satisfeito e
abro a calça o mais rápido possível.
Meu pau pula para fora da cueca e do aperto desconfortável
do tecido de alfaiataria.
Levo uma mão ao pescoço delicado e o aperto, puxando sua
cabeça para trás, enquanto seguro meu cacete com a outra mão e o
guio para a bocetinha apertada.
Não perco tempo com conversas, nem preliminares. Ela sabe
que eu amo chupá-la até derramar seu mel na minha boca e farei
isso antes de dormirmos ainda essa noite, mas nesse momento só
preciso sentir seu calor.
Rasgo um pacote de camisinhas com os dentes mesmo e
visto no meu pau.
Então, empurro-a levemente para a frente e meto até o talo
de uma vez só, ouvindo-a arfar de dor e prazer ao mesmo tempo.
— É disso que você gosta, minha putinha?
— Isso! — Éden exclama, segurando-se na pia para manter o
equilíbrio.
Soco tão forte e rápido que nossas respostas soam
entrecortadas e até chorosas.
Minha garota geme sem se importar com quem possa nos
ouvir e isso só me faz querer fodê-la ainda mais violentamente.
Minha vadia gostosa. Minha chama. Ma Flamme.
Trinco o maxilar tentando controlar o meu próprio orgasmo. A
verdade é que estou pronto para gozar desde a primeira estocada,
mas quero que ela chegue lá junto comigo.
Éden choraminga e sinto sua coluna se empertigar,
provavelmente em um arrepio de prazer. Sei que vai gozar, então
cravo os dentes em sua orelha e peço:
— Diz meu nome, Ma Flamme.
Ela abre os olhos, me observando pelo espelho. Não gosto
de mostrar essa vulnerabilidade, mas a verdade é que todas as
vezes que a faço gemer, quero ouvi-la chamar meu nome só para
ter certeza de que não é um sonho. Certeza de que não vou acordar
e ainda ser apenas a porra do sogro dela.
— Diz o meu? — Éden me pede com um brilho diferente no
olhar.
É algo muito mais potente do que a chama de antes. É...
Será?
— Goza comigo, Éden — sussurro, então a penetro de novo,
tão fundo que nossos corpos se tornam um só.
O orgasmo toca primeiro o meu corpo, fazendo um arrepio
percorrer a minha espinha, mas logo chega à minha alma. Nesse
momento, eu chamo o único nome que poderia jamais sair da minha
boca.
— Éden... Minha Éden!
— Tristan! — grita, também se entregando ao orgasmo.
Ainda continuamos na mesma posição, comigo segurando
seu corpo tão forte quanto se temesse deixá-la ir.
Quando volta a abrir os olhos, sua boca delicada gesticula
meu nome. Não sai som algum, mas consigo ouvir com a alma.
— Meu Tristan.
 
Tristan Ryan
 
Zoe tentou ao máximo ficar acordada para “ser a primeira” a
dar os parabéns para sua mãe, logo à meia-noite, assim que Éden
chegasse do trabalho, mas acabou dormindo no sofá da sala.
A pequena havia vestido uma roupa bonita, com uma fita nas
costas, e colocou a caixinha com o presente que eu busquei mais
cedo na joalheria em seu colo.
Não demorou muito, no entanto, para seus olhos começarem
a pestanejar.
— Ei, Pipoquinha? — chamo, mas ela está dormindo tão
profundamente que até ressona. — Vamos colocar você na cama,
mocinha — sussurro, pegando-a no colo.
Zoe, mesmo sem abrir os olhos, consegue se abraçar ao meu
pescoço e eu a carrego até seu quarto, tentando andar o mais
suavemente possível.
Deito-a na cama, mas, quando começo a cobri-la com o
edredom, seus lindos olhos espertos se entreabrem.
— Tris? — me chama, tão sonolenta que não sei se está
realmente acordada.
— Sim, Pipoquinha?
— Você pode ser meu pai?
Meu coração faz dois movimentos intensos.
Primeiro, ele se contrai tanto que chega a doer. Depois,
expande dentro do meu peito, como se ocupasse todo o meu tórax e
espalhasse um amor tão puro que eu nem consigo descrever em
palavras.
Tão rapidamente quanto fez o pedido inusitado, ela voltou a
ressonar. Ainda que não possa me ouvir, me inclino e beijo sua testa
ao sussurrar:
— Nada me faria mais feliz, Pipoquinha.
Fico sentado na beirada de sua cama, apenas velando o
sono tranquilo, até ouvir o som da porta da sala se abrir.
Detesto que a minha garota fique andando sozinha por aí tão
tarde da noite, mas hoje a senhora Curtis estava ocupada em um
jantar em família, então eu fiquei cuidando da Zoe. Pelo menos, a
marrenta aceitou pegar um dos meus carros emprestado.
Penso em ir encontrá-la, na sala, mas aposto que ela virá
direto para o quarto da Zoe, para um beijo de boa noite, então
continuo aqui.
Éden abre a porta delicadamente e sorri ao me ver. Anda na
ponta dos pés e se inclina para beijar o rosto da filha, fazendo uma
carinha de surpresa ao ver que a pequena está com um vestido de
festa ao invés do pijama.
— Ela tentou esperar acordada... — sussurro e seu sorriso é
genuíno ao dar mais dois beijos no rosto da filha.
Saímos do quarto cor-de-rosa juntos e, assim que fechamos
a porta, eu puxo a aniversariante pela cintura, beijando-a com
saudade.
— Feliz aniversário, Ma Flamme — sussurro contra seus
lábios carnudos e deliciosos.
— Eu vi uma caixinha no sofá da sala — comenta, sorrindo
de lado.
— Essa é melhor você abrir só amanhã ou uma garotinha vai
ficar muito, muito chateada. Mas, se não estiver muito cansada, eu
deixei uma massa pronta no forno e um vinho decantando...
Seus olhos flamejam e ela me deixa puxá-la pelo corredor até
a varanda do apartamento, onde deixei uma mesa pronta com
alguns petiscos, pratos e as taças. Apenas dois, pois imaginei que a
Zoe acabaria se rendendo ao sono logo.
— Volto já.
Equilibro o vinho em uma mão e a travessa de Cannelloni na
outra.
Éden Lavinski
O dia do meu aniversário não é uma lembrança tão boa
quanto eu gostaria. Foi o dia em que meu pai nos abandonou,
pouco mais de seis anos atrás.
Ele nunca olhou para trás.
Nem sei se está vivo...
Vai ser também o primeiro aniversário que passarei sem a
minha mãe. Uma lágrima escorre pelo meu rosto bem na hora em
que Tristan volta com a comida e a bebida.
Não digo nada.
Mas... adivinha? Ele sabe.
— Ela também gostaria de estar aqui, meu amor — diz,
beijando a minha testa.
Aceno, enxugando outra lágrima e seguro a taça para ele
servir o vinho. O aroma delicioso da comida me deixa com água na
boca.
Ao invés de servir os dois pratos, ele serve apenas um. Antes
que eu pudesse perguntar o que estava fazendo, o homem já havia
me levantado no colo e sentado no meu lugar, comigo sentada em
suas coxas fortes.
Ele corta um pedaço da massa e leva o garfo à minha boca
para me alimentar. Mastigo devagar, admirando o perfil dele,
enquanto também prova a comida.
Tristan continua me oferecendo comida na boca e
terminamos o prato sem pressa.
Depois, me aconchego mais em seu peito e ficamos
conversando, bebericando o vinho e olhando as estrelas por algum
tempo.
— Comprei uma coisa para você, mas estou com medo de
ficar brava.
Levanto a cabeça para encará-lo.
— O que você aprontou, senhor Ryan?
— Você precisava muito...
— Juro que se você me comprou um carro...
— É um carro pequeno! — me interrompe, se defendendo.
— Pelo amor de Deus, Tristan! — tento brigar com ele, mas
sua expressão de cachorro sem dono, com um biquinho dramático,
me faz rir. — Você não pode me dar um carro, inferno! —
argumento.
— Por que não?
— Porque... porque... é um carro!
— Você precisa de um e eu posso te dar.
— Tristan... — esfrego as têmporas, sem saber o que dizer.
— Me deixa cuidar de você, Ma Flamme? De vocês...?
Franzo a testa, roçando as costas da mão na barba macia.
— Nada de presentes extravagantes a partir de agora. Esse
será o único.
— Esse e o da Zoe...
— Tristan! — exclamo, beliscando-o.
— Outch! Ela gostou dele...!
— Ela também teria gostado de alguma porcaria de um dólar!
— Não tinha nada de um dólar na Tiffany & Co — argumenta,
todo engraçadinho, e eu dou mais um beliscão em sua barriga
chapada de músculos.
— Você é forte — reclama, mordendo a minha bochecha de
leve.
— Lembre-se disso antes de gastar dinheiro comigo
novamente.
— Talvez eu goste de apanhar de você, Ma Flamme[33]... —
sussurra, mordiscando a minha orelha e um arrepio delicioso vibra
pelo meu corpo.
Quando estou prestes a testar a teoria, ouço a Zoe me
chamar.
— Mais tarde, senhor Ryan.
— Para de me chamar assim, menina má.
Encontramos a Bubbles[34] no corredor, esfregando os
olhinhos, toda sonolenta.
— Parabéns! — grita quando me vê e corre para me dar o
abraço mais gostoso do mundo.
— Obrigada, minha vida — digo, enchendo-a de beijinhos.
Ela sorri, toda contente, e olha por cima do meu ombro.
— Eu fui a primeira, Tris?! — pergunta e eu viro com ela no
colo para ver o homem encostado na parede do corredor, nos
olhando como se fôssemos as duas criaturas mais lindas do
universo.
— Claro que foi, Pipoquinha. Quer dar seu presente agora?
— Sim!
Ele busca a caixinha, mas diz que vai esperar na sala para
nos dar um momento a sós.
Minha filha pega o presente e me entrega toda empolgada.
Quando abro, meu coração se aperta de tal forma que é
quase impossível não me emocionar. É uma pulseira linda com três
borboletinhas penduradas.
— Eu, você e a vovó — Zoe explica apontando cada uma das
borboletas negras.
Aceno, fungando alto, e encosto a testa na dela.
— Amo você, Bubbles.
— Também te amo, mamãe.
Fecho os olhos e repito a fala para alguém que consegue
ouvir sem que eu diga em voz alta: Amo você, mãezinha.
Depois disso, acabamos passando a próxima hora assistindo
um desenho no sofá da sala. Nós três juntos, como uma família.
Tristan Ryan
 
Estou terminando uma ligação quando Jennifer entra no meu
escritório com uma expressão irritada. Desligo o telefone, encarando
a minha secretária.
— O que houve, Jen?
— Tem uma pessoa querendo falar com você.
— Uma pessoa que nós odiamos, pelo visto.
— Uma pessoa que eu odeio, com certeza. Agora você, eu
não sei, chefe, porque o saquinho de lixo ambulante disse que veio
a seu convite!
O tom acusatório é cristalino na fala dela e eu sorrio, contente
por estar cercado de pessoas verdadeiras como a Jennifer.
Odeio mentiras.
De todas as formas.
E minha amiga e funcionária é sempre sincera.
— Pode deixá-la entrar.
— Tristan...
— Confia em mim, Jen. Vai valer a pena.
Ela estreita os olhos, intrigada, mas não convencida, então
vai até a porta e abre, deixando Ava Gautier entrar.
— Tristan! — a ruiva com quem já passei diversas noites,
mas cuja presença agora só meu causa desgosto, abre os braços,
sorrindo como se fosse manhã de Natal.
— Bom dia, Ava — digo, ficando de pé, mas sem andar até
ela para cumprimentá-la.
Isso não passa despercebido pela socialite, que levanta uma
sobrancelha.
— Pode deixar a porta aberta, Jen — digo, antes que a minha
secretária saia e a pilantra chega a comemorar levantando o punho
no ar porque não vai precisar ouvir escondido.
Sim, ela faz isso às vezes. Eu sei e não ligo.
— Algum problema, Tristan?
— Sim. Você veio ao meu escritório na semana passada...
— E fui muito destratada por sua funcionária. Acredita que
ela ameaçou chamar a segurança...?
— Pois deveria ter chamado — digo, mas a mulher é tão
autocentrada que continua falando sem parar.
— Tinha uma criança com os pés em cima do seu sofá de
couro e... Perdão?
Sorrio, tranquilamente.
— Exatamente o que eu disse: Jennifer deveria ter chamado
a segurança.
— Que absurdo é esse? Você está sendo ridículo, Tristan.
— Não. Ridículo é alguém vir ao meu escritório e magoar a
minha filha.
Sei que não sou o pai da Zoe, mas, no outro dia, ela me
pediu para ser, então me permito a licença poética para me referir a
ela assim.
— Filha?
— Tristan, vim mais cedo para almoçar com você e... — Éden
entra no escritório de surpresa, fazendo a ruiva olhá-la dos pés à
cabeça. — O que está acontecendo aqui? — exclama, irritada.
Cruzo a sala e me coloco ao lado dela, pousando a mão na
base de sua coluna, antes que entenda algo errado.
— Eu estava explicando à senhorita Gautier que não admito
que falem daquela forma com a minha filha e com a minha mulher.
Não sei exatamente qual foi a reação da Ava, pois minha
atenção está por inteiro na garota ao meu lado, que me encara com
os olhos arregalados.
A ruiva sai, me xingando, e escuto Jennifer dizer algo sobre ir
almoçar mais cedo para nos deixar a sós, antes de fechar a porta.
— O que você...?
— Ficou faltando dizer isso naquele dia. Você é minha
parceira, minha amante e... minha mulher. Entende isso, Éden?
— E isso faz de você...
Puxo-a pelo quadril, roçando nossos narizes em uma carícia
suave.
— O homem que vai te levar ao altar quando você menos
esperar, garota dos olhos bonitos.
Não sei quem se move primeiro. Acho que nossas bocas se
encontram no meio do caminho.
Minha língua desliza sobre a dela e a sinto morder meu lábio
com tanta força que quase me arranca sangue.
— Outch! — resmungo, dando um tapa em sua bunda
arrebitada.
— Isso é pelo susto que eu tomei ao ver essa mulher aqui! —
diz, me empurrando até o sofá, onde caio sentado.
Éden segura as minhas bochechas com uma só mão e aperta
forte.
— Eu juro que cogitei se a Jennifer aceitaria ser meu álibi
caso eu te matasse.
— Aposto que ela aceitaria, caso não estivesse me ouvindo
dizer umas verdades para a Ava — digo, rindo.
— Não tem a menor graça, Sogrinho.
A gargalhada trava na minha garganta e eu a encaro com
fúria.
— Isso sim não tem graça, Norinha.
— Você merece ser castigado.
— Esqueceu que a menina má aqui é você?
— Você nem imagina o quanto eu pretendo ser má, senhor
Ryan — provoca, mordendo meu queixo com força o bastante para
deixar a marca de seus dentes na minha pele.
Dói, mas eu gosto de sua fúria.
Sempre quente, flamejante.
Ela abre a minha camisa estourando todos os botões e deixa
mordidas por todo o meu tronco, descendo até o cós da minha
calça.
— Éden... — alerto, temendo pela primeira vez.
— Confia em mim? — faz a mesma pergunta que eu fiz no
dia em que saltamos juntos de paraquedas.
— Porra — exclamo, acuado. — Confio, mas por favor não
seja uma menina má nesse momento —imploro.
Ela solta uma gargalhada gostosa e abre a minha calça com
pressa.
É inacreditável, mas mesmo com o perigo iminente de ser
mordido por dentes muito ferozes, meu pau está duro como pedra,
pronto para fodê-la com força.
Acho que eu sempre estarei pronto para ela.
Só de pensar em seu olhar de labaredas, minha pele já
começa a ficar quente... é simples assim. Ela me dá tesão apenas
por existir e ser exatamente como é. Marrenta, desbocada... e forte.
Minha garota é tão forte. Tão guerreira.
Levanto o quadril para ajudá-la a puxar minha calça pelas
minhas pernas.
Ela pisca para mim, com aquela expressão de menina má e
eu chego a fechar os olhos, imaginando o pior, mas quando toca
meu pau é usando apenas a língua.
— Caralho, que alívio! — exclamo, quando chupa a cabeça
do meu membro.
Éden ri de novo, então segura a base do meu pau e o
abocanha com vontade dessa vez, chupando até o talo.
— Puta que pariu! — xingo.
Sua língua brinca com a minha glande, mas logo ela volta a
sugar, enquanto massageia as minhas bolas. A chupada é intensa e
deliciosa, mas quando estou prestes a gozar... ela mostra que
continua sendo a minha menina má ao morder de leve a pele
sensível.
Não é uma mordida que realmente me machuque, mas o
susto me faz contrair o estômago imediatamente.
— Parece que fui uma menina má — diz, cínica.
— Muito, muito má — respondo, enfiando os dedos entre
seus cabelos e puxando-a com força.
— Mereço ser castigada.
— Éden... — repreendo, mas ela morde o lábio, me
provocando. — Foda-se!
Segurando firme em seus cabelos, forço sua cabeça para
baixo novamente.
— Chupa. Mas chupa com vontade — ordeno.
Ela obedece, dessa vez sendo ainda mais gulosa ao engolir
todo o meu cacete. Puxo seus cabelos com tanta força e soco até
tocar sua garganta com a minha glande.
Só quando ouço o barulho de engasgo é que puxo sua
cabeça para trás novamente, deixando-a respirar.
— Assim que você quer ser castigada, minha putinha?
Seus olhos brilham de excitação e eu repito o movimento
mais algumas vezes, assistindo enquanto lágrimas escorrem do
canto de seus olhos a cada vez que a faço engasgar com meu
cacete.
— Vou gozar e você vai engolir cada gota — demando e,
porra, ela obedece.
Uma gota da minha porra escorre pelos lábios inchados e eu
limpo com a ponta dos dedos, fazendo-a lamber em seguida.
Nem dou tempo para se recuperar antes de puxá-la para o
meu colo e tirar sua roupa com pressa, desesperado para senti-la
nua nos meus braços.
— Camisinha... — murmuro, pensando se tenho alguma por
aqui.
— Eu tomo pílula — diz. — E você foi o único homem com
quem transei nos últimos meses.
— Nunca transei sem camisinha e não saio com nenhuma
mulher desde o dia em que te peguei dormindo na minha cama.
— Sério?
— Você ainda não entendeu que eu sou loucamente
apaixonado por você desde a primeira briga, Ma Flamme?
Ela me beija com tanta paixão que é como se estivesse se
declarando também, mesmo que ainda não tenha usado palavras.
Deito no sofá, segurando-a à minha frente e me encaixo em
sua entrada, por trás. Éden mantém o rosto de lado e continua me
beijando a cada estocada.
Gememos juntos e, dessa vez, gozo dentro da boceta dela,
me sentindo o filho da puta mais sortudo do mundo todo só por tê-la
comigo.
 
Tristan Ryan
 
— Pede para o setor financeiro refazer esse orçamento com
base no...
— Senhor Ryan? — Margareth, do RH, entra no meu
escritório sem autorização, interrompendo a minha conversa com a
Jennifer, que estava em pé ao meu lado, me ajudando a analisar um
relatório.
A mulher está parada na porta, parecendo apreensiva.
— Um momento, Marg... — Jen começa a falar, mas ela
interrompe novamente, o que não é de seu feitio.
A atitude já me deixa sobressaltado, com um mau
pressentimento.
— Desculpem, mas parece que é bem urgente. Chefe, o
senhor consta como contato de emergência da senhorita Lavinski.
Levanto tão rapidamente que a cadeira até cai para trás.
— O que aconteceu com ela? — pergunto, apavorado.
— Ela está bem — explica. — A Éden foi acompanhar uma
obra no subúrbio e o celular está fora de área, mas ligaram da
escola da filha dela falando que é urgente.
Franzo a testa apreensivo.
— O que houve com a Zoe?! — quase grito.
— Parece que o pai da criança quer levá-la, mas ele não tem
autorização.
Nunca agi tão rápido na minha vida. Peguei o celular e a
chave do carro e nem ao menos parei para pensar quem colocou
meu nome como contato de emergência dela. Deve ter sido a
Jennifer. Preciso me lembrar de agradecê-la por isso.
— Vou ligar para o Peter, Tristan! — minha secretária grita
quando a porta do elevador já está se fechando.
Meu peito se aperta com a ideia da minha garotinha sendo
tirada de mim.
Ultrapasso pelo menos cinco semáforos vermelhos e aposto
que estouro todos os pontos da minha carteira de habilitação de
uma só vez. Foda-se.
Paro de qualquer jeito em frente à escola e desço correndo
do carro. Peter, Killian e James chegam quase ao mesmo que eu. É
claro que a Jennifer chamaria todos eles.
— Que porra é essa? — Killian pergunta, mas eu nem tenho
tempo de responder antes de correr para dentro da escola.
Vejo a Zoe imediatamente, se escondendo atrás do corpo da
professora Rebecca, enquanto um homem insiste em tentar falar
com ela.
— Zoe! — chamo de longe e ela corre na minha direção
imediatamente, se jogando nos meus braços.
— Tris, eu não quero ir com ele. Eu tô com medo... por favor,
pai. Por favor.
Pai.
Ela me chamou de pai.
Meu coração, que já estava apertado, se contrai um pouco
mais diante do amor que eu sinto por esse pequeno ser humano,
que é simplesmente a minha pessoa favorita no universo.
— Shh... tudo bem, meu amor. Eu estou aqui. Ninguém vai
tirar você de mim, ok?
Ela funga, chorosa, e eu aperto seu corpinho contra o meu
peito, bem sobre o meu coração.
Peter e Killian se adiantaram e estão discutindo com o
sujeito, mas James ficou para trás.
— Ei, Pipoquinha. Eu preciso cuidar disso, você pode ficar
com o tio James um minuto?
Ela se agarra ainda mais a mim, balançando a cabeça
efusivamente.
— Zoe? — meu amigo chama, fazendo carinho nas costas
dela. — O que acha da gente ir tomar um sorvete no refeitório? Só
para o Tristan conversar com a sua professora.
Ela olha para mim e para ele, em dúvida.
— O tio vai ficar com você o tempo todo, querida — ele
reforça.
— É bem rapidinho, Pipoquinha. Eu já vou lá buscar você.
— Promete?
— Prometo, meu amor — sussurro, beijando suas
mãozinhas.
Zoe aceita ir no colo do James e eu encaro meu amigo,
pedindo com o olhar que ele não deixe ninguém chegar perto de um
dos amores da minha vida.
— Só por cima do meu cadáver, irmão — ele diz, mostrando
que leu exatamente os meus pensamentos.
Só quando eles viram o outro corredor e desaparecem da
minha vista, é que eu me preparo para brigar pela minha filha.
Ando com tanto ódio em direção ao sujeito, que só percebo
que meus amigos estavam falando comigo quando Killian me
segura e Peter para na minha frente, me encarando.
— Calma — orienta.
Calma é o caralho.
— Quem você pensa que é? — praticamente cuspo as
palavras na cara do intruso que se diz pai da minha garotinha de
tanto ódio que estou sentindo.
— O pai da menina — responde, me encarando com
arrogância.
Filho da puta.
Meu corpo treme de vontade de bater nele, mas Killian volta a
me segurar.
— A certidão de nascimento dela não confirma isso — Peter
argumenta juridicamente.
Pelo menos alguém está conseguindo manter o controle.
Porque eu estou tão puto que mal consigo falar.
— Mas o sangue dela...
— Você não teve a porra da decência de procurar saber
como elas estavam por seis anos e agora vem aqui querer bancar o
pai, desgraçado? — grito.
— Eu... — o homem parece desconfortável. — As coisas
foram complicadas — diz, como se isso explicasse o fato de que a
Éden teve que se foder para sustentar uma criança sozinha,
enquanto o genitor não levantou um dedo sequer.
Eu tenho nojo de gente como ele, que se sente digno de usar
o termo “pai”.
Eu fui pai do meu filho.
Eu deixei de colocar comida no meu prato inúmeras vezes
para pagar mais do que o juiz havia determinado como pensão,
porque eu queria que ele não passasse necessidade alguma.
Posso não ser o melhor pai. Nem o que tem a relação mais
próxima. Mas eu fiz por ele tudo o que estava ao meu alcance pelos
últimos 24 anos.
— Complicadas? Você é um covarde de merda — digo, com
nojo.
Isso parece despertar a ira do sujeito, que dá um passo na
minha direção como se quisesse me bater.
Eu adoraria a oportunidade de socar esse filho da puta. Só
preciso de um convite.
Não importa que ele seja maior do que eu, devido ao porte de
jogador de hóquei. Um olho roxo seria um presente para mim se eu
pudesse deixar o dele roxo também.
— Vem — provoco e o cretino reage fechando os punhos ao
lado do corpo.
Killian me solta, mas Peter se coloca entre o genitor filho da
puta e eu.
— Irmão, você está fazendo errado — meu advogado diz,
com uma calma invejável. — Em oponentes como esse, a gente não
pode começar socando...
Quando eu achei que ele argumentaria sobre resolvermos as
coisas legalmente, Peter dá um golpe só com os dedos bem no
diafragma do sujeito, fazendo-o dobrar o corpo, completamente sem
ar.
— Ei! Eu é que ia bater nele! — reclamo.
Peter levanta as mãos, como se pedisse desculpa, bem na
hora em que o genitor recupera o fôlego e parte para cima de nós
dois. Meu punho chega primeiro, atingindo bem o queixo do sujeito,
mas ele também consegue acertar um golpe na minha boca.
Sinto o gosto de sangue, mas é uma dor pequena perto da
que ele vai sentir. Giro o corpo e dou um chute alto de Muay Thai na
cara dele, fazendo-o cair para trás.
Rebecca, a professora, dá um gritinho de susto e diz que vai
chamar a polícia para nós, mas Killian se ocupa em acalmá-la.
— Não chegue perto da minha filha de novo — digo, puto de
raiva.
— Eu vou processar vocês.
— Ótimo — Peter atira seu cartão de visitas. — Eu
represento nós dois. Aguardo sua notificação judicial e tenha
certeza de que também receberá uma por tentativa de sequestro
infantil, já que você não tem direito algum de se aproximar da Zoe.
— Vocês não sabem quem eu sou! — grita.
— Além de um grande filho da puta que abandonou a
namorada grávida e nunca enviou um centavo? — respondo, com
ódio.
— Seu desgraçado! — diz, antes de abrir os braços, com um
sorriso arrogante, e começar a se afastar.
— E seu time é uma merda! — Killian grita.
O fulano levanta o dedo do meio e continua andando até sair
da escola.
— Time? — pergunto, com a testa franzida, depois que ele já
foi embora.
— Você anda por fora mesmo, né? É aquele babaca que foi
contratado pelo Vancouver Canucks[35], Aiden Roy.
— Roy — repito o sobrenome, me lembrando de ter lido a
respeito no jornal. Olho para Peter. — Ele não vai tirar a Zoe da
Éden e de mim — então, virando para o Peter, reforço: — Faça o
que for preciso.
— Pode deixar, irmão.
Me aproximo da professora da Zoe, que ainda estava
assustada por toda a confusão.
— Desculpe por isso, Rebecca. Não quis assustar você, nem
causar uma cena. Só...
— Tudo bem — ela responde. — Só proteja a Zoe. Ela ficou
apavorada quando ele tentou levá-la.
— Ninguém vai tocar nela — garanto e a mulher acena.
— Preciso voltar para os meus alunos. Você vai levar a Zoe
para casa?
— Sim. A Éden deve chegar em breve.
Quando chego ao refeitório, ela ainda está encolhida e
assustada.
— Ei, meu amor. Já voltei — digo, pegando-a no colo.
— Não me deixa mais, por favor, Tris.
— Eu prometo, Pipoquinha. Vamos para casa?
Ela acena e me deixa carregá-la. Quando chegamos ao
carro, continua agarrada ao meu pescoço, não querendo ficar
sozinha no banco de trás.
— Eu dirijo. Depois o Peter ou Killian me trazem aqui para
pegar meu carro — James oferece.
— Valeu, irmão — murmuro e me sento no banco traseiro
com ela no colo.
Éden Lavinski
 
— Bubbles! — chamo, alto, assim que entro em casa.
Meu tom é apavorado e trêmulo, pois é assim que eu me
sinto. Quando Tristan finalmente conseguiu falar comigo, desabei a
chorar no telefone.
Jennifer enviou um motorista para me buscar, mas a
engenheira e eu estávamos realmente longe, em uma obra afastada
do centro da cidade. Demorou para o carro chegar e demorou mais
ainda para chegarmos a uma área com sinal de telefonia.
— Aqui — ouço a voz do Tristan, que parece soar
sussurrada. — No meu quarto.
Corro para lá e paro à porta, vendo a minha filhinha dormir no
colo dele como se só ali pudesse se sentir segura, s0ó nos braços
dele.
Fungo, sentindo meus olhos arderem de novo, e ele me olha
como se quisesse se levantar e vir me dar colo também. Nego com
a cabeça, pois não quero que a minha bebê acorde.
Tiro os sapatos e subo na cama, engatinhando pelo colchão
gigantesco até onde eles estão. Sento ao lado de Tristan e acaricio
as costas da Zoe.
— Ela estava muito agitada e assustada. Acho que quando a
adrenalina baixou, acabou ficando sem energia e dormiu — ele
sussurra.
Inclino-me e beijo a cabeça da garotinha que é a dona do
meu coração. A pessoa por quem eu acordo todos os dias. O amor
da minha vida.
— Vai ficar tudo bem — Tristan sussurra.
Não consigo responder.
Meu coração está tão acelerado que parece prestes a sair
pela boca.
Como vai ficar tudo bem se o Aiden agora é um astro do
hóquei e eu sou uma estagiária fodida?
— E se ele tentar tirar ela de mim? — sussurro, com
dificuldade.
Que juiz dará a guarda para uma mãe que não tem onde cair
morta ao invés de um atleta profissional que acabou de assinar o
contrato da vida dele?
— Não vai acontecer. Eu prometo. Peter já está estudando o
caso e estará pronto para uma ordem de restrição contra ele se
você quiser.
Sua fala firme, porém tranquila, é um indício de que ele já
pensou a respeito. Já estudou as possibilidades. Ele...
Olho para o rosto de Tristan.
— Você vai mesmo cuidar da gente, não é?
Ele franze a testa e inclina a cabeça para beijar a minha
têmpora.
— Sempre.
Só então reparo no corte em seu lábio inferior.
— O que houve?! — pergunto, um pouco mais alto do que o
necessário.
Zoe murmura alguma coisa e se mexe, mas acaba voltando a
dormir.
Quando ela volta a ressonar, toco a ferida na boca do homem
que a segura como se fosse algo precioso.
— Tristan...
— Você precisa ver o outro cara — brinca, me fazendo rir
baixinho, pois eu sei que o Aiden é um monstro de tão grande.
— Cuidado, por favor — peço, me esticando para dar um
beijinho suave em cima do machucado.
— Ela estava tão assustada quando cheguei lá... — ele
conta, trincando os dentes como se estivesse revivendo a cena em
sua mente.
— É, acho que eu também tentaria socar o Aiden se tivesse
chegado primeiro.
Foi uma piada, mas ele não achou graça.
Tristan assume uma expressão tensa e vira devagar com a
Bubbles no colo para me olhar.
— Eu não quero que você chegue perto desse filho da puta
sozinha, Éden — diz, com firmeza. Então, olhando para a Zoe, se
corrige: — Vocês, aliás. Nenhuma das duas.
— Acho que ele não nos machucaria... — tento acalmá-lo.
— Não importa. Não vou correr o risco com duas pessoas
que eu amo. Não mesmo.
Eu já sabia que ele me amava. Mas ouvi-lo dizer com tanta
convicção fez meus olhos se encherem de lágrimas.
— O que houve, meu amor? — pergunta, preocupado.
— Só... — tento, mas não consigo dizer. Queria tanto, só que
o medo me faz paralisar. — Será que também me cabe no seu colo?
— pergunto, rindo baixinho.
Ele sorri e ajeita a Zoe mais para o lado para que eu também
deite em seu peito. Ficamos abraçados. Nós três, como uma família.
A nossa família.
Éden Lavinski
 
Descobrimos que Aiden colocou um detetive para nos
localizar logo depois de fechar o contrato com o Vancouver
Canucks.
Quando soube que estávamos na mesma cidade que ele,
achou que estaria tudo bem simplesmente aparecer na escola da
minha filha. Filho da puta.
Nos dias seguintes, realmente recebemos uma intimação
extrajudicial dos advogados dele, alegando que quer negociar os
termos da guarda da Zoe.
Por mais que Tristan e Peter tenham me explicado sobre a
estratégia que usaremos, é impossível ficar completamente calma.
A preocupação é algo que me acompanha diariamente, até
mesmo quando chego em casa e vejo Tristan ensaiando balé com a
Zoe, só porque ela não tinha mais ninguém com quem treinar. A
cena é doce e linda e faz meu coração transbordar de amor, mas
também me apavora a ideia de que um dia ela não seja mais minha.
Aliás, nossa.

Essa é a primeira vez que vejo o Aiden desde que foi


embora, ainda no começo da gravidez da Zoe.
O rosto é o mesmo, mas ele dobrou de tamanho,
provavelmente para conseguir se destacar no esporte pelo qual nos
trocou.
— Éden... — balbucia, com um olhar apaixonado que pode
até enganar os puxa-sacos ao seu lado, mas não me comove nem
um pouco.
Ele compareceu à reunião agendada pelo Peter, advogado do
Tristan, acompanhado da assessora, o agente e mais um monte de
homens de terno. A equipe é grande e isso me deixa novamente
receosa.
Sinto uma mão quente pousar na base da minha coluna e
olho por cima do ombro para o semblante sério do Tristan, que está
encarando meu ex com ódio.
Sua presença me acalma.
Não somos um time como o do Aiden, mas sei que posso
confiar a minha vida nas mãos do Tristan e que ele deposita
confiança igual no talento do Peter como advogado.
Vai ficar tudo bem.
Não estou sozinha.
Ao voltar sua atenção para mim, Tris me dá um pequeno
sorriso, cheio de carinho, que eu retribuo me sentindo mais leve.
— Vamos acabar logo com isso — digo, voltando a fitar o
genitor da minha filha.
Trinta minutos e duas “quase brigas” depois, Aiden ainda
insiste em dividir a guarda da Zoe comigo.
Que audácia!
— Quem você pensa que é?! — grito, batendo na mesa e
ficando de pé. — Você não estava aqui quando ela pegou
pneumonia aos seis meses. Não dormiu no hospital. Não escondeu
seu primeiro dentinho e trocou por uma nota de um dólar. Não
segurou sua mão quando a avó que ela amava desesperadamente
morreu...
A informação sobre a partida da minha mãe parece tê-lo pego
de surpresa.
— Éden...
— Você não tem direito algum sobre a minha filha, Aiden! —
berro, atirando a papelada à minha frente na cara dele.
Os babacas de terno ao redor do jogador estrelinha parecem
querer protegê-lo, como se eu fosse sujar as minhas mãos com
esse verme.
Saio enfurecida em direção ao corredor.
Tristan se levanta e vem atrás de mim, o que faz o jogador
cretino reagir, gritando ainda mais alto que eu.
— Ela é minha filha! — exclama. — Não desse bosta! Ele tem
idade para ser seu pai, Éden!
Paro, sentindo meus ombros se retesarem de ódio. Viro com
os olhos vidrados e aponto para o filho da puta:
— Pai é quem cria, Aiden — digo, no tom mais glacial que
poderia sair da minha boca. — E quem tem criado a filha que você
abandonou é ele. Então lava a sua boca para falar do pai da minha
filha.
— Eu sou...
— O merda que me deixou grávida e sem um tostão no
bolso, enquanto curtia as festinhas da fraternidade e se destacava
como jogador de hóquei “família”! — retruco.
Ele arregala os olhos e eu sinto o gosto do “poder” pela
primeira vez desde que essa reunião começou.
— Imagina só o que seus fãs vão pensar se souberem quem
é o verdadeiro Aiden Roy?!
— Não vamos tolerar ameaças! — O agente dele – ou
qualquer cargo que o desgraçado tenha – se adianta para defender
a galinha dos ovos de ouro.
Tristan dá um passo, ficando entre o homem de terno e eu,
mas Peter é quem coloca um ponto final.
— Não é uma ameaça. É um fato. Então, acho que está na
hora de aceitarem o que a minha cliente está disposta a oferecer ou
vamos ter que continuar isso no tribunal. E eu posso garantir que
não será ela a fazer a notícia vazar. Eu próprio terei muito prazer em
enviar essa história para todos os jornais do país, talvez do mundo.
Um silêncio fúnebre toma conta do ambiente e os puxa-sacos
parecem se entreolhar, buscando soluções.
— O que você quer, Éden? — Aiden pergunta depois de um
tempo, engolindo em seco.
— Visitas mensais monitoradas — digo.
— Quinzenais e sem monitoramento — ele argumenta.
— Quinzenais monitoradas — informo. — Se – e eu disse
“se” – eu sentir que a Zoe está mais à vontade com você e nós
tivermos desenvolvido uma confiança, podemos renegociar o
monitoramento. No futuro. Um futuro bem distante.
Ele acena, acatando os meus termos.
— Também vamos querer pensão integral e que deposite o
valor que deveria ter sido pago nos últimos seis anos em um fundo
para a faculdade da Zoe — Peter diz.
Tristan e eu respondemos ao mesmo tempo:
— Ela não precisa do dinheiro desse cara!
Nos olhamos, mordendo as bochechas para controlar o
sorriso, pois somos iguais em tantas coisas, principalmente na
personalidade intensa.
— Eu faço questão de pagar — Aiden diz, entredentes,
querendo interromper o momento de cumplicidade entre Tristan e
eu.
Grande merda que ele faz questão. Estou prestes a
responder isso, quando Peter se aproxima e sussurra:
— Sei que vocês não querem nada dele, mas é um direito da
Zoe e não cabe a vocês dois abrirem mão disso em nome dela.
A bronca doeu um pouco, pois basicamente nos chamou de
crianças marrentas, mas posso conviver com isso.
— Certo — declaro, mesmo que a contragosto.
Olho para o Tristan que, embora não pareça feliz, acena me
apoiando.
Assinamos o acordo, que será enviado para a apreciação do
juizado de menores. Os dois advogados, tanto o nosso, quanto o do
Aiden, parecem confiantes de que não teremos problemas com o
tribunal, já que tudo foi decidido amigavelmente e a rotina da criança
não sofrerá mudanças drásticas.
O genitor ainda tentou argumentar sobre o sobrenome da
Zoe, mas eu fui enfática ao dizer que isso não iria acontecer. Se,
quando mais velha, ela quiser o nome dele, eu mesma a levo ao
fórum para fazer a mudança, mas até lá não aceito nenhuma
alteração.
Sei que é o tipo de coisa que ele poderia conseguir mudar em
uma disputa judicial, mas, no fim das contas, Aiden foi mais cordato
do que eu imaginava que seria.
Na hora que estamos saindo, ele se aproxima de mim. Noto
Tristan fechando a cara, mas aceno para ficar calmo.
— Posso falar um minuto com você?
— Você tem 30 segundos, Aiden.
Ele coça a cabeça e troca o peso de uma perna para a outra,
parecendo envergonhado.
— Eu só... — murmura, engolindo em seco. — Me desculpa,
Éden. Por tudo.
Não esperava por isso.
Não mesmo.
As palavras me pegam tão de surpresa que eu pisco algumas
vezes, sem entender.
— Algum problema? — Tristan pergunta, tocando as minhas
costas.
Me dou conta de que não havia respondido, então murmuro
um “certo” e saio acompanhada do meu... namorado? Ex-sogro?
Ainda não sei como me referir a nós.
Tristan Ryan
 
Saímos do escritório do Peter com o problema resolvido.
Então por que caralho eu não consigo tirar essa angústia do
meu peito?
Odiei cada segundo que passamos perto daquele sujeito.
Odiei a forma como ele olhava para a minha mulher. Odiei, mais do
que tudo, aquela conversa sussurrada no final da reunião.
Éden está sentada no banco ao meu lado e consigo sentir
seu olhar no meu perfil.
Quando chegamos à autoestrada, ela fala pela primeira vez.
— Para o carro.
Olho de lado, sem entender nada.
— Para o carro agora! — demanda e eu acabo entrando no
mesmo acostamento em que tivemos uma discussão, meses atrás.
— O que houve? — pergunto, mas mal tenho tempo de
terminar a pergunta.
Ela desliga o meu carro, passa uma perna por cima do meu
corpo e senta de frente para mim.
— Para de pensar bobagem, porra — diz, segurando o meu
rosto.
— Não sei do que você está falando... — disfarço, mas ela
segura o meu queixo, me fazendo encará-la.
— Você está morrendo de ciúmes. De nós duas.
— Eu... — penso em disfarçar, mas nunca fui bom em manter
aparências. — Eu estou, porra! — exclamo, esfregando o rosto. —
Eu estou morrendo de ciúmes.
Minha garota sorri, daquele jeito que faz seus olhos
castanhos ficarem pequenininhos.
— Acho que eu sei como curar isso — sussurra, roçando os
lábios nos meus.
Começa com um beijo suave, mas em apenas dois segundos
já estamos devorando a boca um do outro com desespero.
É o lugar mais impróprio possível, já que tem dezenas de
carros passando por segundo bem ao nosso lado, mas não consigo
parar. Aperto as coxas dela, agradecendo por ter vestido uma saia
nessa manhã, e subo o tecido para tocar a bunda perfeita que eu
adoro.
Muito mais afoita do que eu, Éden já estava abrindo a minha
calça.
— Com pressa, senhorita Lavinski? — provoco, mordendo
seu lábio grosso e suculento.
— Muita. Preciso do seu pau dentro de mim agora —
demanda e eu obedeço, empurrando sua calcinha para o lado e me
enterrando na boceta que é só minha.
Ouço seu gemido e seguro mais forte em suas coxas,
guiando-a para cima e para baixo, para cavalgar no meu cacete.
Éden rebola tão gostoso que não demoro a sentir que estou
prestes a gozar. Uso os dentes para puxar sua blusa e o sutiã para
baixo e conseguir abocanhar um dos mamilos que eu amo tanto.
Minha gostosa joga a cabeça para trás, gemendo ainda mais
alto, quando sente meus dentes cravados no mamilo durinho. Ela
adora quando faço isso.
Levo o dedão ao clitóris inchado e ajudo a estimulá-lo. Em
pouco tempo, ela está completamente entregue ao orgasmo e eu
tiro o dedão dali para voltar a segurá-la pelo quadril e acelerar os
movimentos.
Fodo a minha mulher rápido e duro até finalmente derramar
meu prazer dentro dela.
Quando terminamos, apenas volto sua calcinha para o lugar
e sussurro:
— Vai ter que andar com a minha porra escorrendo da sua
boceta, Ma Flamme.
— Oh, que castigo terrível — brinca, me fazendo rir.
E, assim, a tensão de antes se dissipa e nós vamos juntos
para o trabalho.
Éden Lavinski
 
O tribunal levou cerca de uma semana para analisar o nosso
acordo e regulamentar a presença do genitor na vida da minha filha.
Ainda estou desconfortável, mas não há nada que possa realmente
fazer a respeito.
O primeiro dia de visitas do Aiden me deixou em pânico.
Tristan e eu fizemos questão de estar em casa quando ele
chegou. Zoe não ficou feliz e só aceitou ir ao parque se fosse de
mãos dadas com aquele que ela considera pai, o que irritou
bastante o genitor.
A tensão entre os dois homens era palpável e achei que teria
que separar uma briga a qualquer momento, enquanto nós quatro
andávamos até o parque, no final da rua.
Foram quarenta minutos de puro desconforto, mas, no final,
Aiden se mostrou disposto a tentar conquistar a nossa confiança.
Pelo menos até ele entregar um presente para a pequena.
Era um colar relicário com o meu rosto de um lado e o dele do outro.
Reconheci imediatamente a foto antiga. Foi em uma festa, no
parque de diversões, alguns meses antes de eu descobrir que
estava grávida. Éramos dois adolescentes sorridentes, que não
sabiam nada do mundo real.
Isso me incomodou, mas quem ficou realmente irritado foi o
Tristan.
Meu namorado não comentou nada, mas seu olhar dizia tudo.
Ainda assim, eu não poderia arrancar o presente das mãos
da Zoe, que estava encantada em ver uma foto minha mais nova.
Quando Aiden foi embora, Tristan logo disse que precisaria ir
trabalhar e ficou fora o resto do sábado.
Não passávamos um dia inteiro distantes desde o nosso
primeiro beijo e eu deveria ter percebido que aquele era um
prenúncio de que algo estava errado.
Tristan Ryan
 
Ver aquele filho da puta perto das minhas garotas foi mais
difícil do que eu tinha imaginado.
Nunca pensei em mim como um cara ciumento a esse ponto,
mas o simples fato de Aiden Roy respirar o mesmo ar que a Zoe a
Éden me fere diretamente.
Quando ele entregou aquele relicário, senti vontade de
quebrar o nariz ridiculamente grande do desgraçado.
Mas o que mais doeu foi ver que elas... gostaram do
presente. De certa forma, a Éden pareceu feliz por relembrar sua
juventude e a Zoe ficou exultante em ver uma foto da mãe mais
nova.
No final, o que havia começado como um ponto para mim
quando a Pipoquinha só aceitou sair na companhia do genitor se
fosse segurando a minha mão, acabou como um belo ponto para o
filho da puta.
Esfrego o rosto, frustrado e bebo mais um gole do meu
whisky, sentado no escuro, no meu escritório, em uma tarde de
sábado.
Sou burro a ponto de ter deixado as minhas garotas com a
imagem alegre do fulano e vindo me esconder na minha caverna de
tão puto que fiquei.
Meu celular começa a tocar e eu o pego, imaginando que
seja a Éden, mas na verdade é uma chamada de vídeo do Jackson.
Não nos falamos há um bom tempo.
Depois que a Éden e eu ficamos juntos pela primeira vez, eu
cheguei a mandar algumas mensagens falando que precisava
conversar com ele, mas meu filho estava em uma viagem de
escavação que duraria três semanas, a princípio, mas acabou se
prorrogando por mais de dois meses.
— E aí, Coroa? — ele diz, assim que eu aceito a ligação.
— Oi, filho. Tudo bem? — pergunto, me sentindo estranho
por olhar no rosto dele.
Sei que não deveria me sentir assim, pois não é como se eu
tivesse escolhido ficar com a ex-namorada dele só por causa de
uma competição infantil entre pai e filho. Eu a amo. Amo
desesperada e loucamente.
Só não sei se o Jackson entenderá da mesma forma, já que
não chegamos a falar sobre isso. Pelo menos, não até agora.
Era um assunto delicado demais para ser abordado por
mensagens de texto.
— Estou de boa e aí? — diz, mas sua voz não parece tão
animada assim.
Coloco o copo sobre a mesa e seguro o celular com as duas
mãos, franzindo a testa.
— O que foi, filho?
— Eu... sei lá, pai. Acho que também não é isso que eu quero
fazer — diz, parecendo frustrado.
Lá no fundo, eu já sabia que esse também não era o passo
certo para ele. Quem troca de ciência do esporte para arqueologia
do nada?
Mas não quero ser um cuzão que diz apenas “eu avisei”, até
porque eu nem isso o fiz. Apenas paguei o curso que ele me pediu
sem argumentar.
Talvez se eu tivesse lutado mais para que ele convivesse
comigo, as coisas fossem diferentes.
Eu tentei muito no começo, mas aos poucos fui deixando ele
fazer o que queria. E ele sempre queria seguir as ideias da mãe.
Quis ser um bom pai e talvez tenha sido o pior de todos.
— Tá tudo bem, Jackson. Você vai encontrar seu caminho —
digo.
— Mas e se eu já tiver encontrado e ferrado com tudo?
Engulo em seco, com medo de onde essa conversa vai
acabar.
— C-como assim?
— Eu fugi, pai.
— Fugiu?
— A Éden queria apresentar a Zoe para mim e eu
simplesmente decidi mudar de continente e começar um curso de
arqueologia.
Não consigo mais falar. Perdi completamente a habilidade de
formar frases.
— E se eu devesse ter ficado? E se eu adorasse a garotinha
e de repente percebesse que nós três fomos feitos para ser uma
família?
Cada palavra parece fincar mais fundo uma faca no meu
coração.
— Isso não...
— A minha namorada terminou comigo — ele diz.
— Namorada?
— É. A Nina. Ela disse que eu preciso crescer e jogou na
minha cara a minha história com a Éden e o jeito como eu fugi.
— Que namorada, Jackson?
— A Nina — repete, como se fosse óbvio. — A Éden não
contou? — ele bate na testa, como se só agora tivesse lembrado de
algo importante. — Eu tinha dito para ela que ia contar pra você que
não éramos mais namorados. Acredita que ela inventou aquilo
quando você chegou em casa de surpresa? A gente tinha terminado
há um tempão, mas ela achou que você as expulsaria.
Porra!
Consigo entender o porquê de ela mentir quando nos
conhecemos. Mas não consigo aceitar que depois de quase dois
meses de um relacionamento que, pelo menos para mim é muito
sério, ela não tenha tirado dois minutos para me contar sobre isso.
— Ih! Ficou bolado, pai? Relaxa. A Éden não fez por mal.
— Vocês deveriam ter me contado — digo.
— Eu tinha prometido contar quando voltasse da escavação,
mas a viagem foi prorrogada...
— Certo.
— Você está puto — diz, rindo. — Relaxa, Coroa! Pode ser
que volte a ser verdade, de qualquer jeito. Eu vou voltar para casa e
pretendo ter uma conversa muito séria com a minha ex. Talvez a
gente volte a namorar e você se torne vovô!
— Isso não...
— Tenho que ir, minha bateria vai acabar. Vejo você em
breve, pai.
— Jackson!
— Nada de ficar bravo com a minha gata, hein?!
Meu filho chama a minha mulher de “minha gata” antes de
desligar e eu simplesmente atiro o celular do outro lado da sala.
Não falei sobre o meu relacionamento com ela e ainda tive
que engolir essa merda de que vai voltar para tentar reconquistá-la.
Que porra!

 
— Tristan! — Éden exclama ao me ver entrar em casa. —
Onde você estava?
— No escritório... — murmuro. — A Zoe...
— Dormiu — diz. — Você quer conversar sobre...?
— Sobre você ter esquecido de me contar a verdade?
— O quê? — balbucia.
— Jackson me disse que vocês não namoravam mais
quando nos conhecemos. E eu entendo a mentira. De verdade,
Éden. Só não entendo por que você escolheria continuar mentindo
depois que nós dois ficamos juntos.
Ela pisca algumas vezes, parecendo atordoada.
— Nossa, foi há tanto tempo que eu... esqueci.
— Esqueceu — repito.
— É... — murmura, então me encara. — Desculpa, Tristan.
Eu esqueci. Aconteceu tanta coisa...
— O que mais você está escondendo?
— O quê?!
Me arrependo da pergunta antes mesmo das palavras
terminarem de sair pela minha boca.
Caralho, eu pareci um cretino agora.
— Desculpa, amor... — murmuro, mas ela não me deixa tocá-
la.
— Eu sei que errei ao contar, mas você tinha agido como um
babaca na noite anterior, mais ou menos como está fazendo agora,
e eu tive medo de acabar na rua com a minha filha!
A imagem das minhas garotas passando necessidade é um
soco tão forte no meu estômago que a minha garganta chega a
fechar.
— Eu...
— Eu sei que deveria ter contado depois, mas eu fiquei com
medo de você ficar com raiva e então com medo de te magoar e em
algum momento esqueci! — continua se justificando, falando tão
rápido que é difícil acompanhar.
— Amor...
— Então se você quer ficar com raiva, tudo bem, mas não
vem me acusar de estar escondendo algo que eu não estou!
A fúria em seus olhos só me faz querer abraçá-la. Tento, mas
ela recua de novo.
— Não me toca agora, por favor.
— Desculpa, Ma Flamme — murmuro, me sentindo um
cretino da pior espécie.
Ela me analisa, com a expressão séria, e então acena
discretamente.
— Desculpo, mas vou dormir no quarto do Jackson hoje.
— Não! — declaro.
— Boa noite, Tristan.
— Éden... — chamo.
— Você vai acordar a Zoe! — diz, entredentes, entrando no
quarto do meu filho.
A ideia de tê-la dormindo na cama dele mais uma vez,
mesmo que sozinha, me deixa em pânico, mas não tem como
insistir sem correr o risco de acordar a pequena, que está dormindo
no quarto ao lado, então me arrasto para tomar uma ducha fria.
Éden Lavinski
 
Brigar com o Tristan quando nós dois fingíamos nos odiar, era
divertido.
Mas brigar com o homem que eu amo não tem o mesmo
sabor.
Na verdade, o gosto que sinto na boca é amargo e triste.
Como se tudo parecesse errado.
Eu sei que alguma coisa mexeu muito com ele de manhã e
essa conversa com o Jackson parece ter piorado as coisas. Isso
não justifica ele ter praticamente me acusado de estar mentindo
sobre outras coisas, no entanto.
Não é esse o tipo de confiança que eu quero que nós
tenhamos um no outro.
Tento ligar algumas vezes para o Jax, mas seu telefone cai
direto na caixa postal. Queria saber exatamente o que eles falaram.
Imagino que o Tristan tenha contado sobre nós e talvez a reação do
filho não tenha sido a melhor.
Depois de duas horas tentando dormir, meu celular vibra com
uma mensagem e eu imagino que seja o Tristan, mas quando pego
o aparelho sou surpreendida por uma mensagem do Aiden
agradecendo por “tê-lo deixado passar um tempo com a gente”.
De certa forma, essa ideia de que eu abri a minha vida e da
Zoe para o genitor da minha filha funciona como um tapa na minha
cara.
Será que foi isso que o Tristan pensou também?
É por isso que eu saio da cama onde estou completamente
desacostumada a dormir e vou até o quarto dele.
Meu namorado não está deitado, nem dormindo. Ele está
sentado no meio da cama, abraçado aos joelhos e parecendo
miserável. Quando me vê, morde a parte interna das bochechas e
puxa o ar com força pelas narinas.
Fecho a porta e subo no colchão, sentando bem no meio de
suas pernas com as costas apoiadas em seu peito.
Ele me abraça e afunda o nariz na curva do meu pescoço,
enquanto sussurra mais um pedido de desculpa.
— Eu amo você — digo, baixinho.
— E eu amo você, Ma Flamme.

Dizem que antes da tempestade vem a calmaria, mas


ninguém avisa que você estará tão compenetrado na sua felicidade,
que não perceberá os sinais.
Eu não percebi.
Desde que Tristan e eu demos o nosso primeiro beijo, nunca
mais nos desgrudamos.
Nem voltamos a dormir separados. Pelo menos, não uma
noite inteira.
Ainda não assumimos o relacionamento com todas as letras
para a Zoe, mas tenho certeza de que a minha filha sabe que
estamos juntos.
Ela dá uns sorrisos curiosos quando nos vê sentados lado a
lado e costuma dar a mão aos dois quando vamos ao parque, como
se fosse óbvio que somos uma família.
Nossa rotina é confortável e gostosa.
Só que nos esquecemos de todo o resto...
Então “o resto” voltou para nos assombrar.
Depois daquela primeira briga, nós retomamos a rotina da
nossa família e o Tristan conseguiu segurar a onda no próximo dia
de visitas do Aiden.
Dessa vez, nós levamos a Zoe a um jogo dele de hóquei e
depois saímos para comer uma pizza juntos.
Foi estranho e desconfortável, mas os dois se comportaram
perfeitamente e não discutiram uma vez sequer na frente da criança.
Achei que estava tudo bem, mas claramente me enganei.
Tristan Ryan
 
Sei que preciso conseguir lidar com essa raiva que parece
tomar conta de mim todas as vezes que vejo a cara desse merda de
Aiden Roy.
No começo, achei que era só ciúme bobo, mas, no último
sábado, quando fui ao banheiro, o babaca apareceu por lá e fez
questão de deixar claro que está só começando seu plano para
reconquistar o que “é dele”.
Meus dedos coçaram de vontade de quebrar a cara do
desgraçado, mas não teria como justificar uma agressão assim
quando o filho da puta fingiu ser o mais compreensivo e pacífico
durante as últimas três horas.
Ele volta para a mesa e eu fico mais alguns minutos,
tentando me acalmar.
Quando chego, Zoe e Éden estão rindo de algo que ele
contava e o infeliz nem disfarça o olhar de vitória ao me ver.
Fecho as mãos em punhos e engulo mais uma vez a raiva.
Eu sinto que vou acabar explodindo e isso vai ser bem ruim.

Se tudo já parecia uma merda, quando chego em casa na


noite de segunda-feira, depois de um jantar chatíssimo de negócios,
e dou de cara com ninguém menos do que a porra do genitor da
minha filha sentado na mesa da minha sala, segurando a mão da
minha mulher, aí sim a bosta explodiu de vez.
— Que porra é essa?! — rosno, puxando o cara pela gola da
camiseta e atirando-o no chão.
— Tristan! — Éden exclama, soando assustada.
Mas o que me quebra mesmo é quando a Zoe vem correndo
pelo corredor e vê o fulano caído no chão, fingindo ter se
machucado, e a minha expressão de ódio.
Minha garotinha me olha assustada, como se nem me
reconhecesse.
— Saia da minha casa — digo para o maldito Aiden Roy, que
tem a ousadia de sorrir, como se tivesse vencido algo.
De certa forma, ele venceu. Mais uma vez.
— Pipoquinha... — chamo, mas ela se esconde atrás da mãe.
— Ei. Sou eu...
A garotinha continua assustada e isso parte meu coração.
— Eu vou falar com ela — Éden murmura, sem me olhar nos
olhos e as duas saem da sala, me deixando com o peito dolorido.
Esse cara não sou eu.
Não mesmo.
Eu não posso ser o babaca que age por impulso e assusta
uma criança de seis anos.
Já é tarde quando Éden finalmente sai do quarto da Zoe e
vem me encontrar no meu... no nosso, aliás.
Eu estou sentado na beirada da cama, me sentindo um lixo.
— Não acredito que a assustei assim — murmuro,
esfregando o rosto.
— Ela nunca viu você bravo.
— Nem deveria ver. Eu não queria que ela jamais tivesse
essa imagem de mim.
— Tristan... o que está acontecendo?
— Eu não sei. Só... me sinto estranho. Com medo.
— Medo do quê?
De não ser a pessoa certa para essa família. De ter usurpado
o lugar que era para ser do meu filho ou até mesmo desse jogador
de merda.
Penso tudo isso, mas não consigo dizer nada.
— Sei lá. É bobagem, acho — murmuro.
Minha garota senta de lado na minha coxa e me beija com
delicadeza.
Enfio as mãos por baixo da camiseta dela, acariciando suas
costas e a puxo para ficar de frente pra mim, montada no meu colo.
Suas mãos afagam meus cabelos suavemente e eu deito no
colchão, trazendo-a comigo. Rolamos pela cama, cada hora um
ficando por cima e, quando transamos é delicado e gentil.
Nosso sexo é sempre selvagem e intenso, mas, dessa vez,
nós apenas fazemos amor.
Éden Lavinski
 
— Que porra é essa?! — o grito exaltado me puxa com tanta
força do meu sono gostoso, que eu realmente cogito a ideia de que
é um pesadelo.
Acho que Tristan pensou o mesmo, pois sinto-o cobrir meus
seios com os braços, me apertando contra si.
— Calma, filho! — O tom de voz triste do meu namorado é o
que realmente me leva a abrir os olhos e dar de cara com Jax nos
olhando com asco.
— Isso é nojento, porra! — meu ex grita novamente e isso me
faz pular da cama, enrolando o lençol ao redor do meu corpo, com
medo de que a Zoe acorde.
— Dá para falar mais baixo?! — exijo.
— Você perdeu a porra do juízo, Éden? Meu pai? Isso foi
uma espécie de vingança porque eu fui embora?
— Não fala assim com ela! — Tristan rosna, enquanto
termina de vestir a calça de moletom às pressas.
— Tem razão! Eu deveria falar assim com você, que é a porra
do meu pai! Que merda de pai faz uma coisa dessas?! — A cada
palavra do filho, Tristan se encolhe mais.
— Mamãe? Tris? — Zoe chama do corredor.
— Já vou, Bubbles! — grito. — Volta para o seu quarto!
Olho para o homem que fez amor comigo há apenas algumas
horas, mas ele nem consegue retribuir o meu olhar.
Jax também não me encara e tudo parece desmoronar tão
rápido que eu mal tenho tempo de me equilibrar.
— As coisas não são o que parecem, Jax. Nós nos amamos
— argumento, sozinha.
— Por que você não me contou nada disso quando falamos
no telefone há alguns dias? Eu disse que pretendia voltar para
reconquistá-la e você não lembrou de comentar que por acaso
estava fodendo a minha ex?
— Jackson, já chega! — Tristan diz, se aproximando.
Minha mão acerta o rosto do garoto tão rápido que eu nem
percebi antes de reagir.
— Relaxa, Éden — Jax diz. — Eu estou falando com o meu
pai, não com você.
— Mamãe! — Zoe chama de novo, agora com a voz chorosa.
— Por favor, não briguem. Eu... — tento apaziguar ao ver a
expressão raivosa no rosto dos dois homens.
— Mamãe! — Zoe grita ainda mais alto.
Engulo as lágrimas e saio do quarto, encontrando a garotinha
encolhida no chão.
— Desculpa, Bubbles. Desculpa. Você se assustou?
— Vocês estão tão bravos e gritando... — chora.
Graças a Deus ela só está assustada por causa dos gritos,
mas não chegou a prestar atenção no conteúdo da discussão.
Ainda está escuro lá fora, então deve ser madrugada. Pego a
minha filha no colo e a levo para o quarto, onde deitamos juntas até
ela pegar no sono novamente.
Quando saio do quarto, ainda enrolada no mesmo lençol, a
casa está vazia.
Não há sinal nem do pai, nem do filho.
Tristan não volta para casa naquele dia e Jax nem atende as
minhas ligações. Quem não para de me mandar mensagem, no
entanto, é o Aiden, mas eu simplesmente o ignoro.
Na manhã seguinte, estou voltando para o carro, depois de
deixar a Zoe na escola, quando vejo o genitor da minha filha parado
na calçada, me esperando.
— O que foi? — pergunto, me aproximando dele.
Parece que o sujeito conseguiu farejar que havia algo errado
e resolveu aparecer do nada.
— Podemos tomar um café?
Quero gritar que não, pois só queria voltar para casa e chorar
mais um pouco, mas ele parece afoito demais, então aceno,
apontando com o queixo para o pequeno café que tem em frente à
escola.
Nos sentamos em uma mesa bem diante da janela de vidro
que me permite ver o meu carro do outro lado da rua.
— Sim? — pergunto, cruzando os braços.
— Éden, eu sei que eu errei muito.
— Já passamos da fase de falar sobre isso, Aiden.
— Não passamos, não! — exclama. — Eu demorei muito
para entender que tinha tomado a pior decisão da minha vida, mas
agora eu entendi. Eu estou aqui! — diz, abrindo os braços.
Preciso me controlar para não revirar os olhos diante de sua
fala. Como se o fato de ele estar aqui fosse um grande presente.
Que babaca...
— E? — pergunto, levantando a sobrancelha.
Sorrindo de orelha a orelha, ele tira uma caixinha de veludo
de dentro do bolso e abre me mostrando um anel de noivado com
um diamante horrorosamente grande. Algo que simplesmente não
combina em nada comigo.
— Éden, nós podemos ser uma família! — exclama,
segurando a minha mão.
Com o gesto, a pulseira de borboletas com pedras pretas
balança e o som chama a minha atenção. Diferente do anel
horroroso, a pulseira que o Tristan ajudou a Zoe a escolher para
mim é perfeita. Delicada, nada extravagante e combina não só com
a minha aparência, mas com a minha personalidade.
Isso me faz rir baixinho, pois o Tristan é o homem que me
conhece. O homem da minha vida.
— Qual é a graça?
— Não sei se você percebeu, Aiden. Mas eu já tenho uma
família. E a Zoe também.
Tento puxar a mão, mas ele segura mais forte.
— Aquele cara? Sério?
— Sério.
— Se é porque ele é rico, eu também sou!
— Como é? — pergunto, indignada.
— Eu posso te dar o mesmo que ele ou mais...
— Não pode mesmo — respondo, me inclinando para a
frente, para dizer isso tão baixo que só ele escute, afinal, já tem
algumas pessoas olhando na nossa direção, provavelmente atraídas
pelo anel horroroso. — Você não pode me amar nem 1% do que o
Tristan me ama. Você não pode me compreender como ele me
compreende. E não pode me dar nada do que ele me dá. Eu deixei
você entrar na vida da Zoe e vou continuar deixando, mas entenda
que você sempre será o genitor dela, porque o pai é o Tristan.
— Éden... — Aiden tenta argumentar, mas eu paro de ouvi-lo
e puxo a mão com força, finalmente me livrando de seu toque.
Com o movimento, eu olho pela janela e vejo o amor da
minha vida derrubando um buquê de rosas no chão ao se virar e
sair andando pela calçada.
Olho para o anel, a proximidade entre o genitor da Zoe e eu e
penso no fato de que ele estava segurando a minha mão e entendo
tudo.
Não.
— Tristan! — grito, mesmo que ele não possa me ouvir lá de
dentro.
Saio correndo do café, seguindo-o pela calçada.
— Tristan, espera!
Ele para, mas não olha para mim.
— Amor...
— Eu entendi, Éden.
— Não! Não entendeu. Não é nada do que parece...
Ele vira de lado, mas não me encara. Seu perfil é triste. E é
estranho ver o homem que sempre foi tão forte, decidido,
arrogante... parecer tão frágil.
Eu só não esperava o que ele diria a seguir.
— Talvez seja melhor assim.
— O-o quê?
— Talvez eu esteja fodendo com tudo ao insistir em seguir
um sonho impossível e egoísta.
— Tris...
— Eu vou perder meu filho, Éden! — ele exclama, me
olhando pela primeira vez.
As olheiras profundas, as pálpebras inchadas e os olhos
vermelhos são indícios do quanto ele está destruído.
Porra, eu não imaginei que fosse doer tanto assim.
Quer dizer... eu pensei várias vezes sobre isso.
Principalmente no começo. Eu sempre pensava o que faria ou como
seria se ele se cansasse de mim.
Recado da Éden do presente para a Éden do passado: Você
não fazia ideia.
Acho que se ele tivesse realmente espetado uma faca no
meu peito e cortado o meu coração, ainda teria doído menos.
Ele tenta. Só que não consegue. Sua voz parece sumir a
cada vez que começa a falar, como se não tivesse forças o bastante
para dizer em voz alta.
A “menina má” o deixaria se debatendo com a realidade.
Mas, nesse momento, eu só quero ser boazinha para poder vê-lo
partir de uma vez por todas e então chorar.
Porque eu posso morrer por dentro, mas não vou chorar na
frente dele.
Como se o universo discordasse de mim, o céu escurece e
um raio brilha antes das primeiras gotas de chuva atingirem o meu
rosto.
— Eu sei o que é ter um filho — digo, simplesmente.
Os olhos do Tristan ficam mais vermelhos, mas, tal como eu,
ele não chora. Ou chora... a chuva molha tanto nossos rostos que
fica difícil distinguir o que é a água escorrendo sem parar.
— A Zoe...
— Vai ficar arrasada, mas vai entender. Eventualmente... —
minto.
A minha filha nunca vai entender.
Ela o ama demais e isso me faz ter tanta raiva que eu só
quero que ele vá embora de uma vez para eu poder me culpar por
ser uma mãe de merda, que deixou uma garotinha de seis anos se
apegar tanto a alguém que vai abandoná-la.
— Vou ficar uns meses na Austrália — ele diz, voltando a
desviar o olhar do meu.
— Certo. Nós podemos sair da sua casa ainda hoje.
— Não!
— Tristan...
— Em hipótese alguma, Éden. Eu quero que vocês fiquem. A
casa é de vocês...
— Quando você voltar...
— Eu encontro outro lugar para mim. A casa é de vocês —
reforça.
Não pretendo ficar lá, mas é bom não precisar sair em menos
de 12 horas. Não é tão fácil assim arranjar outro lugar para morar e,
porra, emprego.
— Posso entregar a minha demissão hoje também.
— Por que você faria isso?!
— É a sua empresa...
— E você não trabalha diretamente comigo! Eu ficarei fora
por um tempo, mas mesmo quando voltar, você sabe que não
precisará me ver todos os dias.
Essa conversa já esgotou cada gota de energia do meu
corpo.
— Já acabou?
— Éden...
— Adeus, senhor Ryan.
Viro de costas e ando com toda a dignidade que eu consigo
reunir até o meu carro, agradecendo mentalmente por não me
deparar com Aiden pelo caminho. Giro a chave e acelero, só me
permitindo chorar quando o vejo parado na calçada pelo retrovisor.
Tristan parece arrasado.
E eu... bem... eu estou em pedaços.
Tristan Ryan
Meu cérebro mal consegue se concentrar em tarefas simples.
Eu vivo irritado, explosivo e... triste. Triste pra caralho.
Faz três dias desde que eu entrei no primeiro voo para a
Austrália. Não tive condições de me despedir da Zoe. Não poderia
viajar se visse aqueles olhos brilhantes da minha menina.
A saudade que eu sinto delas chega a me causar uma dor
física.
Tudo o que eu menos queria era ter ido embora.
Mas depois da conversa dura que tive com meu filho e da
cena que flagrei entre aquele jogador filho da puta e a minha Éden,
achei de verdade que essa fosse a melhor opção.
Eu precisava me afastar, para que ela conseguisse pensar se
o futuro que deseja é mesmo ao meu lado ou... ou com qualquer
uma das outras opções que tem.
Além disso, não queria perder meu único filho. Aliás, único
não... o filho que carrega o meu DNA.
O som do meu telefone tocando desperta uma ansiedade
genuína, que agita meu estômago. Quando vejo o nome da Éden na
tela, meu coração começa a bater descompassado. Principalmente,
por se tratar de uma chamada de vídeo.
Não sei se estou preparado para vê-la e não poder tocá-la.
Ainda assim, rejeitar a chamada é algo impensável. Aceitarei
qualquer pequeno pedaço dela que eu possa ter.
Só que... se eu não estava preparado para vê-la, estava
ainda menos preparado para a pessoa que realmente aparece na
tela quando aceito a chamada.
— Pipoquinha... — murmuro, sentindo a minha voz se
embargar.
Zoe me encara com a expressão fechada e os olhos
vermelhos. Um soco na cara teria doído menos. Muito menos...
— Não me chame assim! — a pequena diz, soando furiosa.
— Pipoquinha, eu...
— Não! Já disse que não sou sua Pipoquinha!
Meu coração dói tanto que chega a me causar falta de ar.
— Você é mal! Você é mentiroso! — ela diz, sem piedade
alguma de continuar me nocauteando.
— Zoe, meu amor, me desculpa.
— Não!
Esfrego o rosto com uma mão, segurando o celular com a
outra. Fico procurando as palavras certas para dizer, mas é ela
quem rompe o silêncio, dessa vez soando mais magoada do que
brava.
— Você prometeu...
Em um instante, entendo o motivo da ligação. O show de
talentos da escola. Eu prometi que estaria lá com ela.
— Pipoquinha, eu queria muito participar do show, mas...
— Você prometeu! — repete, finalmente olhando diretamente
nos meus olhos, através da tela.
— Eu sei... eu sei, meu amor...
— Você prometeu não me deixar!
— Meu anjo...
— Por quê...?
Ela não completa a pergunta, mas eu sei que quer saber o
porquê de eu ter ido embora. Adoraria ter uma resposta bonita, mas
a verdade é que também ando me questionando isso... o tempo
todo.
— Assim é melhor para todo mundo, meu amor — murmuro,
por fim.
Zoe volta a desviar o olhar, então sussurra em um tom tão
baixo que eu quase não escuto.
— Ela chorou de novo. Ela chora o tempo todo.
A Éden? Ela chorou?
A ideia de ver a mulher mais forte que eu já conheci chorando
me faz sentir um vazio tão grande no peito que eu realmente preciso
me sentar para evitar cair.
— Eu também... — a pequena complementa e é nesse
momento que a minha alma se parte em milhões de pedaços.
— Pip... — começo a dizer, mas ela me interrompe.
— Adeus, senhor.
— Não! Zoe, espera! — grito, mas ela já havia encerrado a
chamada.
Tento retornar a ligação, mas ela deve ter desligado o
aparelho, pois nem chega a chamar.
Levanto da cadeira e, em um ímpeto de fúria, derrubo tudo o
que havia em cima da minha mesa, incluindo o celular e o laptop. O
som dos eletrônicos batendo com força no chão é tão alto que
alguém abre a porta do meu escritório.
Mas eu não havia terminado.
Seguro a minha cadeira e atiro com força contra a parede,
assistindo enquanto as rodinhas se quebram com o impacto.
Continuo a destruir tudo ao meu redor, até que pego um
enorme peso de papel do chão e levanto o braço, me preparando
para atirá-lo contra a janela. Sei que o vidro é blindado, mas aposto
que se colocar força o suficiente, consigo estilhaçá-lo...
Alguém segura meu braço para trás e arranca o peso da
minha mão.
— Chega. Já chega, Pai. — A voz de Jackson me faz virar a
cabeça, surpreso por vê-lo do outro lado do mundo.
— O que você...?
— Vim buscar você. Chega dessa porra.
— Eu não posso... — tento falar, mas a minha garganta fica
ainda mais embargada e eu acabo caindo de joelhos no chão.
Meu filho engancha os braços embaixo dos meus e me puxa
de volta para cima, me abraçando como se tentasse me consolar.
— Tá tudo bem, Pai. Pode chorar.
Só então eu me dou conta de que realmente estava
chorando. Um soluço rompe do fundo da minha garganta e eu me
permito chorar copiosamente talvez pela primeira vez na minha vida.

Não sei quanto tempo fiquei chorando como uma criança.


Jackson me ajudou a me manter de pé e me levou até o sofá
do escritório. Talvez a única mobília que ainda esteja inteira.
— Desculpa por isso — murmuro.
— Está se desculpando por sofrer, pai?
— Eu... — minha voz falha — Eu estou me desculpando por
não ser capaz de deixar de amá-la — sussurro, em tom de
confissão.
— Que bom que ela também te ama, então.
A resposta tranquila me faz encará-lo. O garoto, que tem os
mesmos traços físicos que os meus, está com um pequeno sorriso.
— Eu é quem devo me desculpar, pai. Não tinha direito de
falar daquele jeito com nenhum de vocês. Foi um baque, mas...
— Filho... — começo a tentar explicar que não omiti a minha
relação com ela por mal, mas ele me silencia com um olhar.
— Preferia que tivesse me contado por telefone, mas depois
fiquei relembrando a nossa conversa no dia em que eu liguei e
percebi que atropelei você com tanta informação que nem deixei
espaço para me contar algo.
Seguro a cabeça do meu filho e encosto nossas testas.
— Você foi a primeira pessoa que eu amei de verdade,
Jackson. Quando vi seu rosto pela primeira vez... Mas em algum
momento acho que eu não consegui demonstrar isso da forma
correta.
— Não somos muito bom com essas coisas de sentimentos,
né, Coroa?
— É.
— Você demonstrou sim — diz, com convicção. — Você fez
de tudo para estar do meu lado. Eu pude cometer todos os erros do
mundo até agora porque sabia que você estaria lá para me colocar
de pé se eu caísse. E não tô falando de grana, pai. Tô falando de
apoio.
Beijo a testa dele.
— Mas acho que tá na hora de focar na sua felicidade e não
apenas na minha.
— Talvez seja tarde demais...
— Você ficou louco? A Éden te ama. E a Zoe então...
— Era a Zoe no telefone — conto, sentindo minha garganta
arranhar novamente. — Ela disse que eu sou mal e que nunca mais
quer me ver.
— Ela está magoada, velho. É claro que está. Mas a gente só
se magoa com quem ama.
— Será que elas conseguem me perdoar?
— Eu aposto que sim — diz, então segura meus ombros. —
A Éden me procurou. Sabe por quê?
Franzo a testa, negando.
— Para me dizer que a culpa toda era dela, que foi
impossível não se apaixonar por você, mas que não queria estragar
a nossa relação de pai e filho. Ela queria que eu te perdoasse.
Fecho os olhos, sentindo uma dor física. Ao invés de se
preocupar em ficar bem, ela foi tentar cuidar de mim.
A porta do escritório se abre e um Peter muito irritado
aparece.
— Já parou de sentir pena de si mesmo, cuzão do caralho?
— meu amigo pergunta, colocando as mãos no bolso da calça.
Killian entra em seguida com a mesma expressão irritada.
— Sério, você é um bosta, Ryan. Não teve a porra da
decência de avisar antes de se enfiar em um voo para a Austrália.
— Eu não pensei em nada...
— James não veio por motivos óbvios, mas a Bellinha me
mandou dizer que está muito decepcionada com você.
— Outch! Essa doeu — murmuro.
— Andem logo, temos um voo a pegar ou esse babaca de
merda não chegará a tempo da apresentação de uma certa
garotinha na escola — Peter aponta para a porta.
— Será que dá tempo? — pergunto, ficando de pé.
Jackson passa o braço pelo meu pescoço e me puxa.
— Vai ter que dar, Coroa.
Paro, de repente, antes de chegar à porta e os três me
olham, intrigados.
— E se ela preferir aquele jogador de hóquei?
— Ficou frouxo de vez, Ryan? — Peter pergunta.
— Eu achando que esse cuzão ia falar algo sério... — Killian
resmunga.
— Mas...
— Qual é, pai? Acha mesmo que aquele babaca tem
chance? Eu hein. Nós somos Ryans! Fala sério!
É claro que eles contam meu momento de fragilidade para o
James ainda a caminho do voo e meus três amigos, unidos ao meu
filho, passam o resto da viagem me zoando porque, na versão
deles, eu estava com medo de levar uma surra do jogadorzinho.
Cretinos.
Pelo menos, isso me distrai do medo de encarar os olhos
flamejantes da minha mulher para implorar seu perdão.
Éden Lavinski
 
— Pronta, Bubbles? — pergunto, esperançosa.
Nos últimos dias, Zoe tem estado tão triste que praticamente
tive que arrastá-la até a escola, para o show de talentos.
A falta que eu sinto do Tristan não é nada se comparada à
dela. Consigo ver em seus olhos o quanto ela sente a ausência
dele. Principalmente hoje, já que ambos fariam um show em dupla.
Pensar que ele prometeu algo a ela e não cumpriu me faz
sentir raiva. Uma raiva que eu não senti nem mesmo quando ele me
disse adeus.
Sei o motivo de sua partida. Não compreendo, mas sei que o
fez por amor ao único filho. E, por isso, eu poderia perdoá-lo... mas
magoar a Zoe? Isso não tem perdão.
Minha filha não responde, mas também não impõe
resistência quando puxo-a para a lateral do palco. Ela será a
próxima a se apresentar e, sem o Tristan, eu prometi que cantaria
com ela.
Pobres dos espectadores...
A garotinha que dançava balé com a mãe termina a
apresentação e o mestre de cerimônias da escola volta ao palco,
puxando uma salva de palmas.
— Agora com vocês Zoe Lavinski e... — nós duas
começamos a subir enquanto o homem tenta ler algo na folha —
Tristan Ryan!
Merda.
Zoe para no lugar e vira de costas, seus olhos se enchendo
de lágrimas imediatamente.
Eu avisei à professora que ele não viria, mas aparentemente
esqueceram de trocar seu nome.
Merda. Merda. Merda.
— Bubbles... — chamo-a, abaixando em frente a ela para
ficar na altura de seus olhos. — Foi só um engano. Está tudo bem.
— Eu não quero mais cantar, mamãe.
— Meu amor...
— Por favor, vamos embora... por favor...
Abraço a minha pequena, deixando-a chorar escondida no
meu pescoço.
— Tudo bem, amor. Se você não quiser, a gente...
Alguém começa a tocar a introdução de uma música suave,
mas não me chama a atenção a princípio. Estou mais preocupada
em acalmar a minha filhinha.
É a voz que soa no microfone que faz meu corpo todo se
arrepiar. Ou talvez tenha sido o corpo da minha menina. Ela dá um
pequeno passo para trás, arregalando os olhos, mas não ousa
espiar na direção do palco.
Eu, por outro lado, não consigo deixar de olhar para ele.
— Tenho certeza de que o mestre John Lennon me perdoará
pela adaptação de sua preciosa música. Essa é para a minha “Linda
menina”, Zoe.
 
Feche os olhos
Não tenha medo
O monstro foi embora
Ele fugiu e o papai está aqui
Linda, linda, linda
Linda menina
Querida, querida, querida
Querida Zoe
 
A declaração de amor é tão delicada, que consigo ouvir os
suspiros da plateia.
Trata-se apenas um homem dizendo o quanto ama a filha. E
no fundo é isso que eles são, não é?
Pai e filha.
Acho que foram desde o dia em que se conheceram. Desde
antes de eu me apaixonar pelo homem, a Zoe já amava o pai.
— Canta a próxima música comigo, filha? — Tristan pede,
olhando para a lateral do palco, onde ela continua de costas para
ele.
Minha filha, tão inteligente e empática, apesar da pouca
idade, me encara como se pedisse permissão. Toco o seu rostinho e
sorrio para ela, para mostrar que está tudo bem.
Zoe corre pelo palco e se joga nos braços dele, como se
fosse o melhor lugar do mundo todo.
E é.
Eu sei que é.
Também era lá que eu me sentia mais segura e amada...
Não consigo ouvir o que conversam, mas leio perfeitamente
os lábios dele dizendo que a ama.
Tristan volta ao piano e começa a tocar a música que eles
ensaiaram incontáveis vezes nas últimas semanas.
 
Amigo, estou aqui!
Amigo, estou aqui!
Se a fase é ruim
E são tantos problemas que não tem fim
Não se esqueça que ouviu de mim
Amigo, estou aqui!
Amigo, estou aqui!
Amigo, estou aqui!
Amigo, estou aqui!
Os seus problemas são meus também
E isso eu faço por você e mais ninguém
O que eu quero é ver o seu bem
Amigo, estou aqui!
Amigo, estou aqui!
 
Eles são tão lindos juntos que meu coração se despedaça um
pouco mais.
Quando terminam a apresentação, eu aplaudo, tentando me
manter firme, mas, assim que saem do palco, corro até onde a
minha amiga Ally estava sentada e peço para ficar de olho na Zoe
enquanto eu respiro um pouco.
Tento andar devagar e dignamente até a saída, mas acabo
correndo. O exercício e a ansiedade desencadeiam uma crise
asmática que eu já não tinha há um bom tempo.
Paro na calçada na frente da escola, exatamente onde
Tristan e eu nos despedimos, alguns dias atrás, e começo a
procurar a bombinha na minha bolsa, quase completamente sem ar.
Braços fortes me seguram por trás e a pessoa coloca um
aparelho idêntico ao meu na minha boca.
Quando volto a respirar, finalmente reconheço o cheiro do
homem que está me abraçando por trás.
Lá no fundo, eu já sabia que era ele.
Me desvencilho de seus braços e dou alguns passos para
colocar distância entre nós.
— Por que você tem uma bombinha de asma? — É a
primeira pergunta que sai da minha boca.
Uma bobagem, mas eu preciso saber.
— Comprei no dia em que você me contou sobre as suas
crises. Ando sempre com uma no bolso.
Porra, Tristan.
Por que você tem que tornar tão difícil te odiar?
Meus olhos começam a arder e eu luto contra as lágrimas.
Ele dá um passo na minha direção e eu grito para se afastar.
— Não. Não toca em mim.
— Não vou. Não se você não deixar.
— Você foi embora... — sussurro o óbvio.
— Eu sou burro.
— Você foi embora! — repito, agora mais firme.
— Me perdoa, amor — ele implora e isso me deixa ainda
mais irritada.
— Você foi embora! — grito, batendo meus punhos contra
seu peito. — Você foi embora! — Dessa vez, o tom é choroso e,
quando dou por mim, ele está me abraçando para que eu não caia
no chão.
— Desculpa, desculpa, desculpa — repete, me abraçando
tão apertado que o tremor do meu corpo vibra no dele.
— Eu te amei e você foi embora...
— Eu nunca mais vou embora, meu amor. Por favor, me dá
uma chance...
Lá no fundo, quero dizer que sim, mas não consigo esquecer
a dor que eu senti quando ele partiu.
O desespero.
O vazio.
Empurro seu peito, me soltando de seus braços.
Tristan está com os olhos vermelhos e o rosto molhado.
Chorando.
Suas pernas cedem e ele cai de joelhos na calçada.
— Por favor, Ma Flamme. Por favor, Vida. Eu não posso viver
sem você... sem a Zoe. Vocês são tudo para mim. Esses foram os
piores dias de toda a minha existência... sem vocês, eu nem consigo
respirar direito.
Mordo o lábio com força, sem saber o que fazer.
Uma parte de mim quer me jogar de novo em seus braços e
outra parte só quer sair correndo.
De repente, uma borboleta surge do absoluto nada e pousa
sobre o ombro dele.
O pequeno inseto bate as asas e o sol faz suas cores
refletirem de um jeito tão bonito, que chega a parecer angelical.
Olho para o céu e posso jurar que ouço a voz da minha mãe,
sussurrando que vai ficar tudo bem.
Quando volto a olhar para o amor da minha vida, ele está
olhando para o próprio ombro, tão surpreso com a presença da
borboleta quanto eu.
Então, ela voa para longe, como se já tivesse cumprido sua
missão...
Dou um passo e depois outro e me deixo cair de joelhos em
frente a ele.
— Se você ousar me deixar novamente, eu... — começo a
ameaçá-lo, mas sou interrompida por seus lábios molhados de
lágrimas cobrindo os meus.
Sua boca passeia por todo o meu rosto, beijando cada
pedacinho dele.
— Eu te amo, Ma Flamme — diz, após cada beijo.
— E eu amo você, Tristan Ryan.
O homem dos olhos negros e misteriosos sorri largamente e
enfia a mão no bolso da calça, tirando uma caixinha de lá.
— O que é isso?
— Algo que comprei no dia em que levei a Zoe para escolher
sua pulseira.
— Isso foi há meses... — balbucio.
— Depois que ficou pronto, me dei conta de que não tinha
direito de te dar algo assim. Não naquela época. Encomendei
porque queria vê-la usando, mas não percebi que era um...
— Um...?
Ele abre a caixinha, exibindo o anel mais lindo que eu já vi.
É dourado, cravejado de pedras pretas iguais às da minha
pulseira, e tem um pequeno diamante no meio.
Perfeito.
— Um anel de noivado. Eu nem sabia que te amava e
alguma coisa dentro de mim já sabia que um dia seria a minha
esposa.
— Tristan...
— Casa comigo, Ma Flamme.
Não é um pedido.
Ainda bem.
Esse é o homem decidido e arrogante por quem eu me
apaixonei perdidamente.
— Caso.
Ele desliza o anel pelo meu indicador e nós voltamos a nos
beijar, sem perceber a princípio que temos uma grande plateia ao
redor. Em especial, uma garotinha que não para de aplaudir a nossa
reconciliação.
Tristan Ryan
 
Não achei que ficaria tão nervoso nesse dia.
Afinal, ela já é minha mulher desde o nosso primeiro beijo.
Mas preciso secar as mãos na calça várias vezes, devido ao
suor, enquanto espero a Bellinha terminar de caminhar pelo corredor
da capela fazendo bolhas de sabão, enquanto exibe seu vestido
rodado.
Meu filho aperta meu ombro e me entrega um lenço, como se
conseguisse ler a minha mente. Ou, talvez, ele só tenha visto
minhas mãos brilhando de suor...
Meus amigos estão ao meu lado e piscam para mim, me
dando apoio também. Killian, é claro, me mostra o dedo do meio, o
que me faz rir. Delicado como um elefante.
Abaixo para dar um beijo na bochecha da pequena, que
terminou de desfilar, e agradecer antes que ela vá para junto do pai,
do meu lado do altar.
Me perguntava onde está a Zoe e por que ela não entrou
fazendo bolhas de sabão junto com a Bellinha, quando ouço as
primeiras notas da marcha nupcial.
Olho para o fundo da capela e meu coração dá um salto ao
ver as minhas garotas de mãos dadas.
Elas andam na minha direção com seus sorrisos belíssimos e
eu só consigo chorar. Chorar de emoção, alegria... chorar por ser o
filho da puta mais sortudo do mundo.
Parece tão certo que seja a Zoe a me entregar a mãe no
altar. Afinal, eu me encantei pela garotinha antes mesmo de me
apaixonar pela mulher dos olhos flamejantes.
Foi a Pipoquinha que me fez voltar a ser alguém que eu tinha
perdido nos últimos vinte anos. Ela me fez querer ser melhor. Ela
me fez amar.
E, então, a Éden me mostrou sua faceta real e guerreira e
terminou de arrebatar o meu coração...
— Promete cuidar dela, pai? — Zoe pergunta, antes de
entregar a mão da mãe.
Éden ri, enxugando as lágrimas.
— Prometo cuidar de vocês duas, meu amor.
Nesse momento, eu tenho todas as pessoas que eu amo ao
meu redor. E, porra, nunca imaginei que fosse possível ser tão feliz
assim.
Zoe Lavinski Ryan
 
10 anos depois
 
— Eles estão chegando! — Jax, meu “irmão”, avisa e nós
todos voltamos para a sala.
Ouço a porta se abrir e imediatamente começo a tocar as
notas que ensaiei por semanas no piano.
É a primeira vez que ele me verá tocando no piano da sala de
casa, já que eu dizia ter medo de desafinar o instrumento musical.
Na verdade, estava apenas ensaiando para surpreender o meu pai
no dia do aniversário dele.
Minha professora e eu fizemos um arranjo especial juntando
duas músicas que marcaram a minha vida. Aliás, que marcaram a
nossa família.
Começo com “Beautiful boy”, do John Lennon, porém
cantando a versão adaptada pelo meu pai no dia da minha
apresentação musical, dez anos atrás.
 
Feche os olhos
Não tenha medo
O monstro foi embora
Ele fugiu e o papai está aqui
Linda, linda, linda
Linda menina
Querida, querida, querida
Querida Zoe
 
— Filha... — ouço a voz dele, mas não viro para ver seu
rosto, pois emendo na próxima música, “In my life”, a primeira que
ele tocou para mim.
 
Embora eu saiba que nunca vou perder o carinho
Por pessoas e coisas que vieram antes
Eu sei que muitas vezes vou parar para pensar nelas
Em minha vida, é você quem eu amo mais
Em minha vida, é você quem eu amo mais
 
Quando termino, pisco para o Jax, que estava ao meu lado, e
viro para ver meus pais.
A mamãe já sabia da surpresa e aproveita para filmar a
reação do meu pai quando receber seu presente de verdade.
— Pipoquinha, isso foi... — ele diz, enxugando as lágrimas.
— Velho chorão do caral... — tio Killian interrompe o palavrão
ao levar um beliscão da tia Maju. — Emocionado. Velho chorão e
emocionado — corrige.
Nós convidamos o trio de melhores amigos do meu pai, a tia
Jennifer e mais algumas pessoas especiais, pois queríamos que
todos fossem testemunhas do presente que preparamos para ele.
— Você gostou, papai?
— Porra! — xinga, cobrindo a boca. Sim, ele e a minha mãe
continuam tão boca-suja quanto antes. — Foi muito lindo, princesa.
Ele me pega no colo, mesmo que eu já não seja mais uma
menininha, e gira comigo pela sala.
Minha irmã, Mary Ann, de quatro anos, bate palminhas e
pede colo também. Nosso pai dá um jeito de segurar nós duas em
seus braços. Ele sempre dá um jeito de caber todas as suas garotas
em seu peito.
— Preparado para o seu presente? — pergunto, quando me
coloca no chão de novo.
— Como assim? Não era esse o meu presente?
— É que precisa de muito presente quando chega à sua
idade — Peter grita do canto da sala e meu pai mostra o dedo do
meio.
Em seguida, percebe que fez o gesto feio na frente das
crianças e começa a dizer para a minha irmãzinha que não pode
mostrar dedo do meio para as pessoas.
Sempre coerente...
— Não. Na verdade, o seu presente é mais um presente para
mim, mas eu espero que você também fique feliz, paizinho.
Ele franze a testa, daquele jeito intrigado, e levanta uma
sobrancelha.
Jax me entrega o envelope e dá um beijo no rosto do nosso
pai ao passar por ele, dizendo que vai pegar mais lenços porque o
“coroa” com certeza vai chorar.
Meus dedos estão trêmulos quando coloco o envelope em
suas mãos. O empresário milionário parece uma criança ao abri-lo,
com os olhos brilhando, e puxar os documentos.
Mas, quando começa a ler, seus olhos ficam marejados
imediatamente.
— Ele vai precisar dos lenços, Jax — tio James grita, nos
fazendo rir.
Tristan Ryan me encara com o rosto encharcado de lágrimas
e parece incapaz de conseguir falar... ou continuar a ler.
— Quer que eu leia para você, pai?
Ele acena, me entregando os papéis e eu começo.
— Eu, Zoe Lavinski, acompanhada da minha representante
legal, Éden Lavinski Ryan, venho por meio deste solicitar a inclusão
do sobrenome “Ryan” ao final do meu nome, como conclusão do
processo de adoção que torna Tristan Elliot Ryan oficialmente meu
pai.
Ele senta, escondendo o rosto nas mãos e soluça. Fico em
frente ao homem que me criou e pergunto.
— Você aceita ser oficialmente o meu pai?
— Porra, Zoe. É claro! Eu te amo pra caralho, filha. Eu não
poderia receber um presente melhor.
— Também amo você, papai — digo, abraçando-o bem
apertado.
— Esse é um bom momento para dizer que teremos mais um
Ryan daqui a alguns meses? — mamãe comenta após alguns
segundos, acariciando a própria barriga.
A sala toda entra em festa, comemorando sem parar. O
falatório é alto e animado, mas algo me chama a atenção na sacada
de casa.
Ando até lá, atraída pelas cores, e sorrio ao ver uma
borboleta em cima da mureta, como se estivesse assistindo a nossa
felicidade.
— Amo você, vovó. Até a próxima — sussurro e a borboleta
bate as asas e voa para o horizonte, no exato momento em que o
sol se põe.
 
Fim.
Eu não sabia que eu precisava tanto desse livro até escrevê-
lo.
Tristan, Éden e Zoe transbordaram o meu coração de amor,
em um momento da minha carreira em que eu estava realmente
cogitando se queria estar aqui.
Eles me fizeram voltar a acreditar que eu estou fazendo o
certo para a minha vida. Que é isso que eu amo e quero fazer para
sempre.
Nessa jornada, preciso agradecer também a algumas
pessoas que ficaram do meu lado como rochas. Pessoas como
Jéssica Luiz, Bruna Pallazzo, Gabi Bortolotto, “Ariel”, Jully Aquino,
Raquel Moreno. Vocês são muito incríveis. Obrigada!
Espero que a história de “Vivendo com o inimigo” tenha sido
emocionante para você aí que está lendo essa mensagem de
agradecimento. Obrigada por acompanhar minha carreira. Também
é por você que eu estou aqui.
Nos vemos na próxima história?
Com amor,
Cá R.

[1]
Bolhinhas
[2]
A National Hockey League é uma organização profissional esportiva composta
por times de hóquei no gelo dos Estados Unidos e do Canadá, onde também é conhecida
pelo nome francês Ligue Nationale de Hockey.
[3]
O Pint nada mais é do que um tradicional copo de cerveja muito comum em
países Europeus e nos Estados Unidos. Por ser servido em copo barateia o custo da
garrafa. Na Inglaterra, por exemplo, existe uma lei que obriga os Pints a terem 568ml, ou
20oz. A média do tamanho na maioria dos outros países é meio litro.
[4]
Apartamento pequeno que tem quarto, sala e cozinha em um só ambiente e um
banheiro separado.
[5]
Macallan é uma marca de Whisky.
[6]
Expressão bastante usada para se referir a Whisky com gelo
[7]
Dólares canadenses
[8]
Carro esportivo que é um dos mais carros, velozes e exclusivos do mundo
[9]
Meus amigos em francês
[10]
Passageiro
[11]
C$ 4 milhões (dólares canadenses) é o equivalente a aproximadamente R$ 15
milhões.
[12]
Bolhinhas
[13]
Referência ao livro “50 tons de cinza”
[14]
Segundo a mitologia grega, Morphéus era um deus filho de Hipnos, o deus do
sono. Quando uma pessoa augura: vá para os braços de Morfeu, sugere "ter um sono
tranquilo, com bons sonhos", como se estivesse envolvido por este deus.
[15]
Bolhinhas
[16]
Relógio digital
[17]
Mangás são histórias em quadrinhos desenhadas no “estilo japonês”. 
[18]
Criança arrogante
[19]
Velhote insuportável
[20]
dólares canadenses
[21]
Marca de tênis
[22]
Sport Utility Vehicle - ou seja, veículo utilitário esportivo. As SUVs costumam
ter porte avantajado, além de interior espaçoso e possibilidade de trafegar dentro e fora da
cidade.
[23]
Baby boo é uma forma carinhosa de se referir ao namorado ou namorada.
Significa “bonito”.
[24]
Vancouver Canucks, time de hóquei de Vancouver, British Columbia.
[25]
Na minha vida, eu te amo mais.
[26]
Bolinhas
[27]
É um equipamento de segurança que funciona como uma cadeirinha para
crianças. Na prática, parece uma almofada que eleva a altura das crianças no banco do
carro, deixando-as com os cintos bem posicionados.
[28]
Joalheria sofisticada e famosa
[29]
Expressão que remete ao ato de vomitar
[30]
Desenho da Disney
[31]
Areia betuminosa. A região de Wood Byuffalo, em Alberta, é conhecida pelo
comércio desse produto.
[32]
Minha chama
[33]
Minha chama
[34]
Bolinhas
[35]
Vancouver Canucks, time de hóquei de Vancouver, British Columbia.

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