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Copyright © 2022 - Sabrina J.P.

Essa é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos na obra
são produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes e acontecimentos reais é
mera coincidência.
É proibida a reprodução total e parcial desta obra de qualquer forma ou quaisquer meios
eletrônicos, mecânico e processo xerográfico, sem a permissão da autora. (Lei 9.610/98).
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@laradesigneditorial

Capa:
@softcheli

UMA ESTRANHA OBSESSÃO - [recurso digital] / Sabrina J.P. - 1ª ed. 2022.

1. Dark 2. Ficção 3. Contemporâneo 4. Thriller 5. Suspense 6. Mistério 7. Terror psicológico


O descaso com a dor alheia impulsiona nossa humanidade a fracassar.
Estamos cada vez mais trancafiados em nossos mundos, e isso é
desesperador.
Uma Estranha Obsessão é uma história composta por fragmentos de
trechos que fui montando ao longo dos meses. A partir disso fiz sua primeira
versão com um terço da intensidade e seriedade que ela exigia. Então, quando
decidi torná-la um livro, peguei todo material que já tinha e expandi.
Definitivamente, é uma leitura complexa, pelos assuntos encontrados
nessas páginas. Você verá que a vida nem sempre é justa com aqueles que
merecem e acompanhará o quão cruel o ser humano consegue ser.
Espero que tenham uma boa leitura e que fiquem tão submersos no
emaranhado dessa história quanto eu estive escrevendo.
O livro não é recomendado para menores de dezoito anos por conter
palavrões, abuso sexual, pedofilia, violência física e psicológica, assédio
sexual, uso de drogas e estupro. Também serão abordados temas como:
Síndrome de Estocolmo e Transtorno delirante compartilhado. Então, tenha
cautela durante a leitura.
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 4 – Parte 2
Capítulo 4 – Parte 3
Capítulo 4 – Parte 4
Capítulo 4 – Parte 5
Capítulo 4 – Parte 6
Capítulo 4 – Parte 7
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Prólogo

Andar de bicicleta é a minha terapia. Na verdade, o trajeto e a


calmaria tornam as pedaladas diárias únicas, partindo do vento fresco contra
mim. Observar as crianças brincando nos jardins de casa, o calor
esquentando minha face sendo uma distração bem-vinda para estabilizar as
emoções quando fico mal, é algo tão fácil e corriqueiro quanto acordar.
Tamanha fragilidade é bizarra. Uma coisinha que vá contra os meus planos já
me deprime, e essa leve decepção supre o pouco ânimo que porto, porém,
acredito que sempre tenha sido assim. Provavelmente, nasci frustrada quando
saí da barriga protetora da minha mãe, deparando-me com um ser estranho e
luzes nos olhos, que mal podiam abrir. Também não dei trabalho, como é o
esperado de um recém-nascido, quase não emitia ruídos, o que acarretou nas
consultas entre pediatras. Todos alegavam estar tudo nos conformes. Diante
disso, meus pais acabaram se acostumando comigo.
Os limitados flashes limpos que guardo na memória chegam até meus
nove anos, em que existia uma energia imperativa, apesar dos obstáculos que
foi fazer amigos. Para mim, bastavam as brincadeiras feitas por mim e meu
pai. Tínhamos o costume de conduzir a casa ao desastre quando mamãe fazia
a viagem anual com suas amigas para assistir ao musical do momento na
Broadway. Mamãe nunca esqueceu de posicionar as listas com regras e
obrigações no centro da geladeira, salientando os avisos até entrar no táxi e
dando uma última conferida antes de seguir caminho. Esqueça a lista,
arrumamos a casa um dia antes!, papai exclamava, corrompido na animação
infantil, disposto a passar um tempo comigo. Pegávamos tabuleiros antigos e
passávamos a tarde jogando. Eu ajudava na preciosa horta dele, pedíamos
pizza quase toda noite e assistíamos a filmes de ação que mamãe nem
sonhava. São filmes de adulto, Greta! Não te quero vendo essas coisas,
mamãe repreendia todas as vezes que pedia para acompanhá-los no cinema.
O filme podia ser livre de sangue ou sexo, mas, mesmo assim, Ellen negava.
Então tive sorte do papai portar uma postura mais flexível. Ele não colocava
nada pesado, somente alguns filmes de espiões ou assaltos, como em Onze
homens e um segredo.
Esse filme em específico marcou minha infância. Bryan e eu temos
uma relação boa, somos mais reclusos, comparados à Ellen. Assistimos aos
filmes na maior parte do tempo quietos, sem esboçar grandes comentários,
contudo, naquela vez, ficamos tão presos na trama do plano arquitetado,
diálogos, enredo e traições, que não parávamos de falar e teorizar sobre o
próximo passo. Entreolhávamo-nos, surpresos, quando éramos enganados
junto com outros personagens. Ríamos na sequência de alfinetadas e
terminamos o filme entretidos. Era engraçado o jeito que meu pai tinha
disposição de escutar uma criança tagarelar ininterruptamente.
Deve ter sido a última vez que fiquei animada, verdadeiramente, com
algo novo. Hoje, fico ansiosa quando arrisco ir contra minha rotina bem
construída, é estressante porque foge do controle que tanto prezo.
Posso ver os pássaros sobrevoando com suas penugens brancas,
acentuando o céu alaranjado, indo na direção norte. Faço a curva com
cuidado, evitando olhar diretamente para a floresta, perdendo-os de vista.
Minha cidade se destaca pela vegetação densa de árvores que a
cercam. Muitas vezes, fazíamos atividades por lá, até que algumas pessoas
começaram a desaparecer, sem deixar rastros. Não demorou para as trilhas e
os acampamentos serem proibidos, aumentando o clima de terror, iguais
àqueles filmes clichês abordando uma floresta misteriosa e um grupo de
adolescentes que a invadem, mesmo com os avisos. Ironicamente, esse enredo
tosco aconteceu. A polícia retirou três grupos que exploravam o local dos
desaparecimentos, querendo desvendá-los.
Sinceramente, não entendo o tesão das pessoas em se envolverem em
situações perigosas. Uma vez que meu desconforto é frequente, sinto que até
as árvores me observam. A floresta virou um incômodo com o número de
corpos sendo descobertos nas trilhas, matas ou boiando nos lagos a cada dia
e, infelizmente, meu quarto tem visão privilegiada da extensão verde, e fico
com uma sensação estranha de encará-la; entretanto, prefiro continuar atada
ao incômodo angustiante a ser arrastada para a Flórida.
Diminuo a velocidade quando avisto a entrada da garagem. É um
alívio chegar em casa após acompanhar tanta histeria formada nos intervalos
do cursinho preparatório para a faculdade. Todos por lá só sabem teorizar
sobre um possível assassino à solta. Não discordo da suspeita levantada, o
que converte as minhas noites de insônia num pesadelo sem fim.
Pretendo apagar por completo pelo resto da tarde. Posso estudar de
noite, já que o sono costuma fugir, mesmo usando técnicas para adormecer,
que nunca surtiram efeito. Tenho alguns cochilos curtos, mas nada muito
duradouro.
— Todo mundo está com tanta saudade de você, querida! — minha
mãe exclama, pressuponho que a intuição dela seja afiada, mal cheguei em
casa e já recebi sua ligação pontual. Percebo o quão contente ela está, no
outro lado da linha, já que ela adora essas reuniões de família. — Mas, não
se preocupe, eu já expliquei que o último ano é puxado.
— Queria poder estar aí com vocês. — Não me orgulho de mentir, o
fato é que embarquei na primeira desculpa que encontrei.
— Está tudo bem aí?
Meus pais não foram a favor quando pedi para ficar em casa na época
que já se preparavam para o encontro anual da nossa família. Repetiram
“não” mais vezes do que consigo lembrar, juntaram as manchetes com o
número crescente de desaparecidos, argumentando contra meu pedido.
Movida pelo medo de acabar arrastada por eles, insisti, alegando que a
viagem interromperia as aulas no cursinho, apontando que os
desaparecimentos aconteceram nas áreas de camping e no lado sul da cidade.
A batalha durou uns cinco dias, resultando neles cedendo a contragosto, com
a condição de que a nossa vizinha, a sra. Foster, averiguasse se eu estava bem
todo dia, até o retorno deles.
— Sim, não precisa se preocupar. — Forço uma entonação tranquila,
como se qualquer hesitação pudesse se converter numa passagem de avião.
— Fico tão feliz por ouvir isso, meu amor — diz. — Não deixe de
comparecer ao consultório da sra. Bevan na quinta, certo?
— Certo, pode deixar.
Nunca perdi uma consulta com minha psicóloga. A sra. Bevan é
atenciosa e ajuda à medida que dou abertura. Falamos de assuntos banais:
escola, todo o meu empenho feito para ingressar numa boa faculdade, vida
adulta no geral. O mais longe que a deixei chegar dos meus problemas foi
contar sobre a ansiedade. Suponho que existem suspeitas da sua parte
referente à cautela que tenho em responder certas perguntas envolvendo
minha infância, embora eu sempre corte as tentativas pela raiz.
Encerro a ligação e subo as escadas para o meu quarto, pronta para
repor parte do sono perdido da noite anterior.
— Mas que...
Não consigo raciocinar direito pelo choque repentino. Me aproximo
da cômoda, com a gaveta aberta, e sinto as pernas falharem por um momento.
Lembro muito bem de ter fechado quando peguei a mochila mais cedo, e essa
certeza faz o meu corpo arrepiar, como se o medo estivesse se tornando real.
Meus sutiãs estão bagunçados, parecendo que alguém mexeu neles. Sento-me
na borda da cama, tentando espantar o pavor que começa a se instalar.
— Acordei atrasada hoje, devo ter esquecido de fechar — justifico,
querendo acreditar nas minhas palavras. Não posso chamar a polícia e dizer
que alguém mexeu na gaveta, o argumento é fraco demais, sem embasamento e
patético.
É paranoia. Simplesmente paranoia. Estou absorvendo as besteiras
que todos dizem. Nathan, meu melhor amigo, acabaria rindo de mim com
descrença, acharia que estou exagerando perante o temor que trago com essas
notícias e boatos circulando por aí. Eu não o culpo por desconfiar das
incontáveis paranoias que desenvolvo com facilidade, também duvido de
mim constantemente.
Coloco o velho pijama xadrez, não quero passar mais um dia
teorizando sobre algo que a polícia já está investigando. Esvazio a mente e
me livro momentaneamente desses pensamentos turbulentos, estou deduzindo
coisas irreais... Quantas vezes não saio às pressas e, por descuido, deixo as
gavetas abertas? Que ridículo, são sustos e preocupações tão idiotas, que nem
vale o esforço de sustentá-los em troca de nada.
Fecho as cortinas e estou como sonhei o dia inteiro: enrolada no meu
edredom.
Meus olhos começam a pesar e consigo relaxar um pouco. Tenho a
breve impressão de um cheiro peculiar na cama, não é ruim, apenas diferente
do usual. Mamãe provavelmente trocou o amaciante, o aroma é bom.
A chuva inicia fraca, mas o aglomerado de nuvens indica que o
cenário mudará. Escassos pingos se chocam contra a janela, o abajur ilumina
a escrivaninha, faz algumas horas que anoiteceu. Estudei o básico e me
recompensei ao assistir um filme aleatório que passava na televisão.
Eu precisava desse descanso. A tensão aparentou dar uma trégua,
sumindo parcialmente, o que é raro ocorrer. Agora enxergo facilmente que
surtar com a gaveta aberta foi idiotice. Sinto uma certa vergonha do meu
próprio esquecimento. Talvez devesse tirar proveito da noite tranquila, quem
sabe terminando um dos livros que começo, mas nunca concluo. Enfim,
fazendo coisas banais, em vez de aceitar ser sobrecarregada pelas
preocupações improváveis que projeto.
Capítulo 1

A chuva se intensificou na madrugada, mostrando-se forte o bastante


para tornar o som das gotas contra a janela ligeiramente intimidador. No
cômodo escuro, iluminado com os relâmpagos, a jovem de cabelos claros
ficou encolhida embaixo do edredom azul-bebê.
Odiava enfrentar a sensação de solidão, proveniente da insônia,
lidando bem nos primeiros dias que esteve sozinha, quando seus pais
viajaram, e acabando no instante que o volume da chuva aumentava. Chuva
naturalmente é um fenômeno que tranquiliza ou apavora. Greta apreciava não
mais que um trivial serenar, então logo não demorava para entrar em pânico.
A intensidade a assustava, o vento forte ocasionava na movimentação agitada
dos galhos batendo contra a janela. Cogitou verificar se teria chance da chuva
cessar, mas desistiu quando lembrou da vista direta para a floresta.
Moveu a cabeça, saindo minimamente debaixo da coberta, e se
deparou com o ambiente vazio. Expirou, aliviada, por meros segundos, até
escutar uma movimentação vinda do corredor. Manteve a ideia que o barulho
externo a fez confundir os sons, culpando a tendência de sua mente em
exagerar por acordar assustada à custa dos relâmpagos, reduzindo tudo num
susto efêmero.
Arregalou os olhos, apertando a manta entre os dedos, recebendo um
choque que atingiu a extensão da coluna quando passos ficaram mais
próximos da porta, abrindo os pensamentos inquietos para qualquer
possibilidade aceitável e racional.
Será que voltaram mais cedo?
Rezava para que fossem eles. Tinha certeza de que havia trancado
toda a casa, ou seja, somente os pais possuíam a chave para entrar. A chegada
não seria um episódio impossível de ocorrer, algum imprevisto teria
adiantado a volta deles. Encontrariam Greta encolhida, encerrando qualquer
chance de deixá-la sozinha outra vez. Não ligava em escutar Ellen a
comparando com uma criança, ao mesmo tempo que deitaria ao seu lado para
afagar seu cabelo e contar parcialmente sobre a viagem.
Escondeu-se embaixo da coberta novamente, numa ação irracional,
como se a manta pudesse protegê-la dos seus medos. A maçaneta girou e
abriram lentamente a porta. Seu coração disparou, só faltava rasgá-la ao
meio. Pedia a todos os tipos de divindades que fosse apenas Ellen, vindo
tranquilizá-la diante do susto involuntário que gerou. No entanto, isso não
ocorreu. O silêncio dominou tudo mais uma vez, fora as gotas colidindo
contra o vidro, sintonizadas com o barulho das árvores se movimentando.
Minutos se passaram, com a consciência esvaziando os pensamentos nocivos,
que causavam um alvoroço no corpo trêmulo, incapaz de arrumar motivos
plausíveis para se enganar.
— O lençol não vai te proteger de mim. — Não conseguiu puxar o ar,
não soube como reagir. Os olhos ficaram marejados com a segunda voz no
recinto. — Prefere que eu arranque de você? — O objeto afiado deslizou
entre as coxas, cortando superficialmente o tecido e revelando parte da pele
coberta.
De repente, a manta foi puxada, voando para trás. Ficou cara a cara
com o invasor, que apontava uma faca em sua direção, deixando-a estática e
convertendo qualquer movimento numa ofensa que pudesse ser fatal. Estava
inclinada entre o impulso de gritar e esperar a decisão dele em matá-la.
Capítulo 2

Quero gritar o mais alto possível, até meus pulmões arderem, para
que toda a vizinhança acorde, sentindo na pele pelo menos um terço do meu
desespero, mas isso não acontece. Só consigo ficar pasma com a presença
desse homem. Quase não enxergo seu rosto diante da escuridão presente no
quarto. Porém, a pele pálida ganha fácil destaque. Posso até arremetê-lo a um
fantasma, trazendo uma crença esperançosa de quem ainda estaria dormindo.
— Os seus olhos são lindos. — Sua voz grave faz cada extremidade
do meu ser tremer. O invasor inclina-se para a frente, enquanto estou
petrificada. — É bem melhor te ver de perto.
Reprimo o pavor que me consome quando, num movimento rápido, ele
finca a faca na cama, no meio de minhas pernas. O desespero se torna ainda
pior com o meu cabelo sendo puxado para trás. Posso sentir sua respiração
quente contra o meu pescoço.
— Fiquei fantasiando como seria lhe ter implorando pela sua vida,
com sua vozinha doce pedindo por piedade. — O puxão se torna ainda mais
forte.
— Por favor! — digo em meio às lágrimas. Só consigo pensar que a
qualquer momento ele pode cravar a faca em minha garganta. — Leve o que
quiser... Eu... Eu posso mostrar onde meus pais guardam o dinheiro... Por
favor, só não faça nada comigo.
Pouso as mãos trêmulas no seu braço, num esforço de fazê-lo diminuir
o aperto. Sua risada macabra ecoa pelo quarto, como se fosse divertido ver
minha tentativa de mantê-lo longe.
— Vou soltar o seu cabelo quando eu quiser. — Não consigo ver os
seus movimentos, contudo, o escuto arrancar a faca da cama e colocar a ponta
afiada contra o meu pescoço.
— Só me deixe ir, por favor — peço novamente num murmúrio. Meus
pensamentos são um verdadeiro turbilhão, indo de chutá-lo e poder correr
para fora de casa a agarrar no seu moletom preto e continuar me humilhando
por piedade.
— O que teria de divertido nisso? Ainda vai ser uma longa noite.
Ele vai me matar, só está brincando comigo antes de enterrar essa faca
em mim. Não posso aceitar isso, não vou permitir que minha vida tenha esse
fim tão repentino. Consigo sentir cada batimento cardíaco, o suor que
percorre minha pele, acompanhado do nervosismo quando decido agir.
Não lembro o momento exato em que o soco, só vejo o corpo do
lunático caindo para trás. Não perco tempo e salto da cama, correndo para
fora do quarto.
— Você tá fodida! — O grito se prolifera, ampliando o medo que já
sinto. Meu quarto fica no final do corredor, que é relativamente extenso, então
preciso controlar meu nervosismo ou, pelo menos, tentar.
Chego perto das escadas e escuto os seus passos se aproximarem cada
vez mais. Não quero olhar para trás, será o meu fim. Consigo prever todo o
cenário. Ele só precisa puxar meu cabelo e cortar o meu pescoço. Tal
pensamento se repete sem parar.
As lágrimas embaçam a minha visão. Raciocinar que um homem
invadiu o meu quarto e seus passos largos estão atrás de mim, com a ideia
dele acabar me alcançando e desferindo um golpe fatal na minha garganta, faz
com que eu desfoque quando desço a escadaria, pisando de mau jeito num dos
degraus.
Tento me proteger contra o impacto de cair rolando, mas parece inútil,
assim como minha tentativa falha de fugir.
Perco o foco por completo, estou tonta demais. O gosto metálico do
sangue se faz presente no meu paladar e respiro com dificuldade. A sensação
é de ter um peso sobre mim. Movo a minha mão e me arrependo na hora, pela
dor agoniante instalada numa ação tão básica.
— Hum... — Sua imagem está completamente borrada. — Não faça
essa cara, docinho. — Agacha-se. Sua mão toca minha bochecha, tirando uma
mecha de cabelo da frente. Mexo o pescoço para escapar do toque e a dor me
pune com qualquer movimento, parecendo se intensificar. — Nós dois
sabíamos que você não iria escapar. — A voz está longe, como se estivesse
afundada no som abafado, abrangendo uma escuridão, roubando espaço.
Capítulo 3

Greta enfrentava uma batalha perdida para encontrar calma naquele


ambiente desconhecido, em que recobrou os sentidos. Incapaz de extrair
algum pensamento coerente no meio do nervosismo, que descia em forma de
lágrimas no rosto já inchado de chorar, imóvel na pequena cama, repleta de
dor, percorrendo o olhar pelos machucados roxos que estavam compondo seu
corpo.
— Vejam só quem finalmente decidiu acordar. — O susto fez a garota
reprimir um grito, notando-o entrar pela porta. A realidade pareceu atingi-la,
expondo que não existia saída. — Sua queda foi bem feia, fiquei surpreso por
não se foder tanto assim, já que não quebrou nenhum osso. — O raptor deu
alguns passos até ela, sentando-se na borda da cama, conseguindo ver com
clareza sua face.
A cicatriz que marcava o lado esquerdo do rosto dele foi o primeiro
detalhe que lhe chamou atenção. O corte atravessava a bochecha, chegando
próximo à orelha, entretanto, não tinha profundidade, sendo quase superficial.
Greta desviou o foco, querendo memorizar todas as particularidades,
reparando no cabelo liso de tom preto com comprimento no ombro, nos olhos
acinzentados, no nariz afilado e nas sobrancelhas um pouco grossas. A
fisionomia, apesar de magra, tinha definição. Ela constatou que não sairia
vitoriosa caso ocorresse uma luta corporal, além do seu estado atual não
colaborar para um desfecho positivo. Imaginava que tinha por volta dos vinte
e dois ou vinte e quatro anos, no máximo.
Passou anos vendo documentários e vídeos de criminologia,
assimilando o quão importante é a observação, retendo a convicção de que
fugiria e precisaria tê-lo fixado na mente quando fizesse um retrato falado
para a polícia, embora nutrisse um incômodo em encará-lo.
— Onde estou? — indagou, precisando obter informações sobre seu
atual paradeiro, embora soubesse que ele não diria. Até o momento, sua única
certeza era que estava num quarto de iluminação fraca, que fedia a mofo, sem
janelas, alguns móveis velhos e desgastados, repousando sobre uma cama.
— Isso realmente importa? Você não vai sair daqui, então não precisa
se preocupar com isso. — A resposta tratava com irrelevância toda a
frustração visível nos olhos amedrontados. — Eu te escolhi, Greta.
O homem chegou perto da jovem, pousando suas mãos frias nas
bochechas dela. Não conseguiu quebrar o contato visual com o olhar
intimidador. Ela nutria uma vontade dilacerante de cuspir nele, com repulsa
das palavras e do toque indesejado.
— Você é minha — decretou. — E eu não permitirei que vá a lugar
nenhum. — As mãos a apertaram. Ficar tão perto dele, escutando-o falar tais
palavras, fazia seu autocontrole evaporar.
— Eu... eu não te pertenço, caralho! — gritou com a voz embargada.
Aquilo tudo não passava da mais pura insanidade.
— Pertence sim, porra! — Ele elevou a voz da mesma forma, irritado,
e empurrou o corpo debilitado, a prensando contra o colchão. Um gemido de
dor foi emitido pelos lábios da estudante, por sentir uma pontada nas costas
perante os ferimentos. — E vou me livrar de qualquer filho da puta que tente
nos atrapalhar — declarou, segurando os pulsos da garota que, mesmo com
dor, começou a debater-se, lutando para afastá-lo e cessar a dor acentuada.
— Então, comece a aceitar sua nova realidade.
O silêncio pairou sobre o quarto e os dois encararam-se, com
sentimentos opostos. Ele contemplava a expressão de pânico. Ela era como
uma bonequinha de porcelana frágil, caindo de seu pedestal. Já Greta se
sentia dominada no singelo horror por tê-lo sobre si, como se não passasse de
uma ovelha prestes a ser morta pelo lobo.
— Você... é... louco — proferiu entre soluços e virou o rosto, não
queria permanecer encarando-o.
— Maníaco, lunático, insano — complementou, indiferente, já que
não se importava com tais adjetivos. — Prefiro te escutar me chamando de
River, é mais fácil.
Se fosse há alguns minutos, ficaria esperançosa por saber o nome dele
para, assim, ter mais informações a seu favor. Contudo, se River não hesitara
em revelar o próprio nome, era porque ele tinha confiança de que ela não
fugiria. Os ferimentos também não colaboravam para ter alguma perspectiva.
— Esse é mesmo seu nome? — perguntou, fracamente, com a dúvida
de que ele poderia estar mentindo sobre o nome real por precaução.
— Não crie expectativas de que isso será útil, sairemos logo daqui.
— Greta ficou aliviada por ver River se levantar, acabando com a pressão
dolorosa de antes e indo em direção à porta.

“Sairemos logo daqui.”


A frase se repetia constantemente e ela cogitava para qual lugar seria
levada. Será que já haviam dado falta dela? E se começassem as buscas com
ela já fora da cidade? Aquilo a fazia se sentir na beira do abismo ou com uma
corda no pescoço, esperando o carrasco, também conhecido como River,
decidir o seu destino.
Eram tantas perguntas, que pensar nisso a deixava apreensiva. Estar
naquele quarto estranho, sozinha, parecia colaborar para o inferno formado
em sua mente. Sentou-se com dificuldade, podendo ver uma das ataduras, que
enfaixava seu abdômen, manchada de sangue.
— Minha mãe resolveria isso. — As palavras escaparam sem ao
menos notar. O interesse por enfermagem veio inspirado da progenitora, e
lembrar disso só a deixou mais melancólica.
— Chorando de novo? — Ele abriu a porta novamente, lançando o
questionamento com certo desgosto. — Espero que não fique agindo assim
todo dia, senão vai ser chato pra caralho.
O retorno dele veio acompanhado de uma bandeja com waffles,
bacon, ovos mexidos e um copo cheio d’água, uma refeição completa, que ele
pousou no colo da nova moradora, que continuava em silêncio.
— Coma — ordenou, encostando-se na parede. Uma palavra
conseguia mostrar o quanto estava impaciente.
— Que horas são?
— Está de manhã, agora coma — respondeu, manuseando a calma
limitada. Ela precisava obedecê-lo, caso contrário ele teria que ser mais
incisivo.
Greta reparou no quanto as perguntas tiravam a paciência dele, e não
quis imaginar o que ele faria se negasse a comida. Para sua surpresa, a
refeição dispunha de um gosto bom. Ela focava somente no prato. Sentia os
olhos do predador, que estava atento a cada movimento que fazia. Preferia
que ele saísse do quarto, enlouquecer sozinha seria mais confortável do que
acompanhada.
Quando bebeu a última gota d’água, esperava vê-lo pegar a bandeja e
sair do quarto, para assim respirar sem o fardo daqueles olhos.
— Ótimo. — Parou ao lado do corpo dela, que se encolheu como
quando uma tartaruga entra no próprio casco. — Agora vamos tratar das suas
ataduras.
River a pegou no colo e sentiu a pele da menor arrepiar em surpresa
com o ato inesperado. Greta sofreria em silêncio, temendo reagir e o pior
acontecer.
— Vou te dar banho e trocar suas ataduras — anunciou, caminhando
com ela para fora do quarto, vendo o instante exato que os orbes tão verdes
de Greta se arregalaram.
— Não! — Nem tinha mais lágrimas para serem derramadas, só
restava implorar por sua privacidade. — Eu... Eu posso tomar banho sozinha.
— A fala saiu travada, sem crer nele fazendo sua vontade. Passou a
despachar mais súplicas arrastadas na voz embargada, jurando não fazer
nada.
— Ah, querida, eu não confio nem um pouco em você! — disse. —
Mas, se fica tão mal a ponto de pedir dessa forma... patética, posso deixar
que se banhe sozinha. Estarei na porta, de costas.
Agora o meu privilégio é tomar banho sem ter um lunático me
tocando. Me humilhei para ter o mínimo de privacidade... Não quero pensar
no que ainda está por vir.
Capítulo 4

Na primeira noite, eu chorei tanto que apaguei com as lágrimas


quentes, deixando o tecido do travesseiro úmido. Culpo o cansaço, que fez a
mente desligar por um instante. Meu inconsciente atingiu os sonhos, servindo
de cortina para a realidade e acalmando a mente, corpo e espírito atordoados.
Sonhei com coisas do cotidiano, chegando a supor as questões do
simulado de biologia, que faria na quarta, e confesso que, visitando aquele
mar de ilusões, eu sou feliz no período noturno.
A pior parte é acordar e ver que nada é real. Ainda não consigo
assimilar, na verdade, não pretendo assimilar, tampouco me conformar. Só
consigo crer que a sra. Foster já deu falta de mim. Costumo acenar para ela
todos os dias do jardim, passando com minha bicicleta de manhã, a caminho
do cursinho. Espero que ela já tenha contatado meus pais.
Quero escutar o meu pai reclamando de futebol, minha mãe
comentando sobre o clube do livro e o quanto o cheiro do perfume de
Margareth é forte. Quero começar a decidir para qual faculdade vou e
organizar meu aniversário de dezenove anos, porque Nathan não irá deixar
essa data passar despercebida. Quero minha vida de volta!
Tenho que controlar as emoções, que fervem no meu interior, ser
receptível sobre as ordens que forem impostas, além de rezar para uma
brecha surgir.
Preciso permanecer forte, porque não tenho ninguém para ser por
mim.
Capítulo 4 – Parte 2

Por que ele insiste em conversar? Passamos horas nos fitando. Vejo a
boca dele se mover, disseminando palavras, almejando desenvolver uma
conversa comigo.
Fico quieta.
Não tenho o que dizer.
Quando ele sai do quarto, desabo num choro com lágrimas grossas e
soluços que me fazem apertar o couro cabelo, com fios sendo soltos nas
mãos. Meus dedos dos pés entortam e a falta de ar parece um aviso de que
posso morrer.
Sou refém de uma ansiedade que toma meus sentimentos e os limita,
chegando num nível que não detenho algum tipo de autocontrole. Boto as
pernas encostadas no peito e me abraço com minha extensão inteira trêmula.
Puxo e solto o ar, com medo de ser um último suspiro.
Eu não quero morrer.
Capítulo 4 – Parte 3

Escuto o barulho da chuva hoje.


Gosto de pular nas poças que se formam usando galochas azuis.
Minha mãe sempre me repreende, com a justificativa de que estou velha
demais para isso.
Talvez esteja certa, mas eu realmente acho divertido.
Capítulo 4 – Parte 4

Duas semanas, a porra de catorze dias passaram, e eu não tive uma


oportunidade para escapar dessa merda de casa, nenhuma sequer. Não adianta
o quanto eu siga as imposições desse merda, ele continua me deixando
trancafiada aqui como um animal.
Estou sendo ansiosa?
Questiono-me todas as noites. Não vou conseguir a confiança desse
escroto num período curto de tempo. É um período sucinto analisando de
maneira teórica, porque sinto que já faz uma eternidade.
Só pude ter uma “conquista” nisso tudo. No segundo dia, River
permitiu que eu usasse o banheiro de porta fechada. Escuto a chave trancando
e depois abrindo quando aviso que terminei a minha higiene pessoal. Ele tem
cuidado dos meus machucados, provavelmente concluindo que estou muito
debilitada para conseguir correr ou atacá-lo. Mais uma vez correto. Não
existem objetos cortantes ou janelas. Ponderei em usar a tampa da privada
para afundar o crânio daquele lunático, entretanto, estou sufocada na dor,
tornando um desafio segurar qualquer peso. Confesso que também falta
coragem de executar tal plano.
— Quer mais alguma coisa? — Desvio o foco, encará-lo por muito
tempo desencadeará xingamentos amontoados. — Sobrou frango, se ainda
estiver com fome.
— Posso sair um pouco desse quarto? Me sinto sufocada aqui. — Ele
franze o cenho, comprimindo os lábios, demonstrando que meu pedido o
desagrada.
— É melhor não — nega com aquela gentileza asquerosa,
aproveitando para brincar com uma mecha do meu cabelo. — Vamos para um
lugar melhor, você terá espaço lá. — Ouvi-lo dizer isso me remete a um
dono, que garante um quintal para seu cachorro brincar, principalmente
quando a fala sai devagar, esperando que eu o entenda.
— Não aguento mais ficar trancafiada aqui.
— Eu entendo, só peço que tenha paciência.
Minha testa recebe um beijo e eu fico imóvel, fingindo que não é
comigo. Desprezo a existência dele, apesar de ser um alívio que nunca tenha
forçado nenhum toque mais malicioso. O contato que temos são seus beijos na
testa ou o ato de me carregar até o banheiro, algo suportável.
Um dos maiores desafios que tenho é o de controlar minha ansiedade.
Sua chegada não porta um aviso prévio, me arrastando para o suor frio que
percorre minha pele. Enterro minha cabeça contra o travesseiro e grito, com a
saliva o impregnando. Acordar nesse cubículo já é um passe livre direto para
meu coração palpitar, parecendo uma martelada dentro de mim, e suponho
que posso estar tendo um ataque cardíaco. Não possuo a ajuda dos meus
remédios, apenas os exercícios de respiração que a sra. Bevan ensinou.
Inspire, prenda o ar por dez segundos, expire e jogue as energias
negativas fora.
Repito igual um mantra, com a taquicardia disparada, suando frio e
observando o teto, esperando a agonia passar. Certa vez, River adentrou o
quarto e mirou no meu tórax subindo e descendo rápido, nos grunhidos que
dava baixinho, quando a imagem de morrer naquele quarto emergia, e sua
reação foi bater a porta. Agradeci mentalmente, mas seu retorno veio junto de
um copo d’água em mão. Beba, ele mandou e eu recusei com um grito
impensado. A insistência não parou aí, e meus gritos também não. River teve
que abrir minha boca para me forçar a beber. Não demorou para sentir a
sonolência bater e apagar pelo resto da tarde. Obviamente, ele colocou algo
na água, e tive medo de supor se era a primeira vez que fazia isso.
Os dias são um enigma. Às vezes, acordo banhada na convicção de
que tudo vai ficar bem, enchendo meu peito de confiança com a possibilidade
de sair daqui. Infelizmente, na maior parte do tempo, estou abatida, largada na
cama, incapaz de pensar, num estado quase vegetativo. Sinto que só estou me
enganando.
Capítulo 4 – Parte 5

Meus pensamentos são quase um diário mental, acumulando rascunhos


com ideias que descarto constantemente, temendo as consequências. Aos
poucos, perco qualquer ânimo para lidar com o caos que invade meu corpo
quando acordo e vejo que continuo aqui. Por esse motivo, passo a maior parte
do tempo cedendo ao sono. Não sinto vontade de permanecer acordada, então
resolvi buscar abrigo nos sonhos.
Capítulo 4 – Parte 6

Os machucados melhoraram. Ele tem me dado analgésicos e começou


a colocar compressas de gelo para diminuir o inchaço. Me mantenho distante
na presença dele, idealizando as férias de verão que não tive.
No último mês do verão, Nathan me arrasta para o lago, que tem
grande movimento nessa época, portanto, ficamos alojados nas áreas mais
afastadas do restante. Costumamos realizar piqueniques, tomar banho e pegar
sol. Isso é bom para você, precisa de vitamina D. Um pouco de sol não faz
mal a ninguém. Todo ano sempre acontece a mesma coisa. Chegam as últimas
semanas de “liberdade” e esse é o argumento fundamental para irmos ao lago.
Sinto falta do silêncio que compartilhamos com nossos corpos
secando, nas uvas compradas no mercado, de pedalar com ele falando do
amor platônico pelo parceiro nas aulas de química.
Reviver tais lembranças é o mesmo que me torturar. Sofro na angústia
de não ter mais uma dessas tardes ensolaradas, que deixavam as costas
vermelhas e eram regadas a sorvetes ou raspadinhas azuis. Nos despedíamos
dessa maneira das férias, antes de regressarmos ao ritmo acelerado da escola,
sonhando com a chegada do próximo verão. Nesse ano foi diferente, não
teríamos um próximo verão, já que era nosso último ano, simbolizando o fim
da fase acadêmica que não aproveitei por completo, se desconsiderasse o
meu único amigo.
É perturbador enxergar a escola como uma fita repetitiva e apática,
com trechos coloridos quando Nathan se mostra nas passagens, mas meu
temor é não ser capaz de prever exatamente o que seria de nós dois depois.
Uma hora nossas obrigações surgiriam, ele encontraria outras pessoas
interessantes, quem sabe não nos afastaríamos com o tempo, já temos feito
isso disfarçadamente, ele pode estar cansando de mim... Sou um fardo para
maioria, no fundo, eu sei bem disso.
Capítulo 4 – Parte 7

Desperto na madrugada com um grito agudo vindo do primeiro andar.


Pulo da cama e vou em direção à porta. Giro a maçaneta, mas está fechada,
ele não cometeu o deslize de deixá-la destrancada.
Os gritos prosseguem, chegam a arranhar meus tímpanos com tamanha
entonação.
Perco a noção de quanto tempo a tortura lá embaixo se estende. O
barulho da motosserra é introduzido, perturbando minha mente e simulando o
pior dos cenários.
Eu não aguento mais escutar.
Por favor.
Abafe isso.
Abafe isso de alguma forma.
Eu não tenho controle de nada, absolutamente nada.
Capítulo 5

Faltam alguns dias para completar um mês da minha vida nessa casa.
Tenho contado os dias desde da minha primeira noite aqui, tentando ter esse
controle pequeno da situação, mesmo sem possuir total certeza. Logo, é o fim
do verão e a volta às aulas. O tempo passou e só consigo pensar que
apodrecerei aqui.
Os dias têm se resumido a River trazer no quarto minhas refeições e
remédios para dor. Um ponto positivo de toda essa situação catastrófica foi
que meus ferimentos melhoraram, praticamente não sinto mais dor, porém
finjo que ainda estou mal, penso que isso ajuda a fazê-lo baixar a guarda.
Apesar de odiar essa tortura diária, já estou quase habituada a esses
dias repetitivos, menos com os gritos, que não ocorrem todas as noites. Eles
são perturbadores e, às vezes, vêm de vozes masculinas, em outras femininas,
fundindo-se com uma música que passa a tocar com o propósito de abafar.
Isso não adianta, parece piorar. As vozes cantam em coro, junto aos gritos
agudos. A mesma música de sonoridade antiga é reproduzida por horas, até
que os berros cessem, e concluo que aquelas pessoas estão mortas. Sinto
medo de ser a sanidade me abandonando, sendo tudo loucura da minha
cabeça.
A porta é destrancada, mas não fico tão temerosa, pois já sei quem vai
passar por ela. Acostumar-se é uma merda. Não quero normalizar, mas parece
inevitável.
— Não perderemos mais tempo aqui. — Posso vê-lo entrar segurando
uma venda e cordas. — Estenda seus pulsos e tornozelos.
Sempre que descubro uma abertura para raciocinar melhor, ele
resolve me desestabilizar novamente. Assim que toca minha mão, fujo do
contato, recuo e bato as costas contra a parede, prefiro ser engolida pelo
concreto.
— Eu não vou te machucar. — Minha bochecha é acariciada. A mão
tocando minha feição tortura pessoas, ocasiona os sons agitados que têm
assombrado meus sonhos. — Agora, me obedeça.
Sinto cada extremidade do meu ser enrijecer quando ele diz “me
obedeça”. Sua voz sai mais ameaçadora que o normal, então prefiro não
arriscar. Embora esteja vendada, a respiração de River indica sua
aproximação. Ele ergue meu corpo, nunca esboçando dificuldade de me
sustentar.
— Não se preocupe, irei te soltar logo.
Descemos as escadas e a curiosidade é despertada. Quero ver o que
tem ao redor. Consequentemente, sou atingida pelo cheiro podre de morte,
que exala, e tento controlar a ânsia de vômito, afundando meu nariz no ombro
dele.
— Pode me agradecer depois, por não te fazer descer.
Aquele cheiro horrível finalmente some e o aroma é substituído pelo
ar puro que eu tanto sinto falta. Não existem dúvidas que River cumprirá com
seu aviso de sairmos da cidade. Não posso nem correr, graças às amarras
apertadas, que prendem minha circulação.
— É crucial que você se comporte no carro. — A voz, antes neutra,
acende-se num tom grave e sombrio, causando um calafrio. Tenho o queixo
apertado pela mão áspera. — Tente algo e eu garanto que vai se arrepender.
— Engulo em seco perante a ameaça. Ele muda de comportamento com
naturalidade quando contrariado.
Não posso deixar suas palavras me abalarem, porque esse é o
objetivo dele. Agarrarei a primeira oportunidade que tiver e vou correr até
meus pés sangrarem.
Capítulo 6

Faziam horas que estavam na estrada. Greta tinha a cabeça encostada


na janela, admirando as árvores ultrapassadas, transformadas num borrão
verde, encarando brevemente seus pulsos com marcas das cordas.
O motorista prometeu que logo tiraria as amarras, e tal mentira
perdurou até anoitecer. Foi solta quando os últimos raios de sol sumiram nas
nuvens, mantendo-se deitada na maior parte do percurso. Não conseguiriam
percorrer nem um quilômetro com ela sentada e amarrada no banco de trás.
Ao longo do dia, esteve atenta ao caminho, mesmo atada, percebendo
a limitação de carros e estabelecimentos durante o percurso. Somente um
posto na beira da estrada chamou sua atenção, tendo vontade de abrir a porta
e simplesmente saltar com o automóvel em movimento, sabendo que só
ganharia novos ferimentos. Ele precisava parar o carro, assim teria alguma
oportunidade.
— Está com fome?
— Sim. — A resposta saiu curta e direta.
— Ótimo, você ainda sabe falar.
De fato, manteve o silêncio como aliado na maior parte do tempo.
Culpou a fome, que invadia sua barriga, fazendo-a salivar em excesso, com
sua garganta ansiando para beber água. No banco da frente, River supôs que a
paciência iria lhe trazer frutos em breve, com Greta cedendo.
— Vamos parar em algum local? — Era difícil entender o que
passava na cabeça do outro, não tinha muita expressão naquele rosto
enigmático. — Não aguento mais ficar nesse carro, estou enjoada —
justificou, no intuito de retirar qualquer desconfiança que pudesse surgir.
— Não precisa se preocupar, tem um hotel a alguns quilômetros
daqui. — A tensão saiu através da expiração pesada. Não pareceu levantar
suspeitas com o questionamento. — É um local desgastado, mas serve para
passar a noite.
Detestava a possibilidade de dividir um quarto com ele, ao menos
tinha privacidade no cubículo que habitou. Sua imaginação trabalhava indo
longe, navegando no pavor das intenções dele. Dormiria no chão, poderia
colocá-la contra o concreto, que ficaria imensamente mais grata do que
sonhar em dividir as cobertas.
— Aproveitando, quero esclarecer que vou colocar uma máscara em
você, aquelas descartáveis. Caso desperte alguma curiosidade... — Pausou o
aviso, aparentando terminar seu raciocínio mentalmente. — Direi que minha
irmãzinha tem uma deformidade na boca, que só fica confortável usando
máscara.
— Irmã?
— Sim, nunca mentiu nessa vida? — Franziu a boca com ironia,
vendo-a curiosa, se inclinando sutilmente. — Se não for confortável para
você, posso arrancar a pele da recepcionista e desmembrá-la... Deixarei você
decidir a melhor alternativa.
Escutá-lo dizer aquilo a deixou horrorizada, pois ele falava com tanta
naturalidade quanto pedir uma xícara de café. Tendo consciência da
sinceridade nas palavras, formular a cena fez o estômago revirar e precisou
lidar com a ânsia de vômito.
— Porra, porra, porra!
Reparou, assustada, no outro batendo com as mãos no volante.
Escutou a sirene e viu as luzes vermelhas e azuis se destacando atrás do
veículo, compreendendo o motivo da reação.
O carro desacelerou, parando no acostamento. As batidas do coração
aceleraram em poucos segundos, a oportunidade que tanto sonhou havia
finalmente chegado.
— Não faça nada. — Ele nem a encarou, estava focado em como
agiria. — Nem tente me testar, porra!
O policial desceu da viatura e marchou na direção deles, que o
observavam atentamente. Greta queria mostrar seu rosto, talvez pudesse
reconhecê-la, tinha convicção das buscas terem iniciado há algum tempo.
— Não acha que está acelerando muito, senhor? — O oficial pulou a
cordialidade.
— Peço desculpas por isso, minha irmã está cansada da viagem,
estamos procurando algum local para passarmos a noite. — River apoiou seu
cotovelo na porta do carro, entretido com onde isso levaria. A passageira
ficou sem reação ao saber que ele, além de insano, conseguia assumir um tom
de voz estranhamente simpático, sendo completamente dissimulado.
O policial finalmente reparou nela, no banco de trás, demonstrando a
tensão diante da postura rígida e do rosto abatido.
— Entendo. A senhorita se importaria de descer do carro? — O
pedido fez as extremidades gelarem, olhando para o banco da frente, sem
captar reação com aquilo.
— N-não, claro, tu-tudo bem — gaguejou, tomada por tanta incerteza.
Assim que abriu a porta do veículo, suas pernas falharam brevemente. A
dormência surgiu como uma consequência de tantas horas sem movimentá-las
direito.
Caminhou, receosa, até o homem, que confirmou as dúvidas vendo os
pulsos marcados.
— Vá para a viatura! — ordenou, sacando a arma. Apesar do
pronunciamento ser para ela, o foco dele estava no motorista. — Saia do
carro.
Assim que desceu do veículo, o condutor manteve a cabeça baixa.
Greta deu passos, recuando, esperando as algemas serem colocadas nele.
— Levanta a cabeça — o policial exigiu, com a arma apontada. O tom
de voz tentava ser imponente, mas a ordem saiu fraca, como se o nervosismo
da menor o tivesse infectado. — Mandei levantar a porra da cabeça!
Acompanhou o momento exato em que River tirou um canivete do
bolso do moletom, pegando-o desprevenido, não dando brecha para a
autoridade reagir, avançando nele. Finalmente conseguiu correr, aquela ação
serviu para fazê-la se mover, não sabendo direito para aonde ir.
Correndo pela pista seria facilmente alcançada, poderia até passar
algum carro, no entanto, tinha suas ressalvas, visto a movimentação nula.
Desse modo, adentrou na estrada de terra que havia próxima, esperava ter a
sorte de encontrar alguma casa, algo comum na cidade, geralmente habitada
por caçadores.
Pôde escutar um tiro, que a fez tremer e cogitar se deveria voltar.
Abandonou a possibilidade logo depois, não arriscaria. Precisava sempre
pensar na pior das hipóteses, se quisesse ter alguma chance.
Acelerava os passos, pisando na terra irregular, com fios grudando na
testa suada. Usava a adrenalina para prosseguir. Enxergava entre as árvores
elevadas, abraçadas na escuridão, que cada metro percorrido apontava seu
retorno para casa, no entanto, o tormento residiria nos próximos anos de vida.
Greta conhecia as consequências que um trauma representava na vida,
especificamente quando ninguém tinha conhecimento disso. A diferença é que
o sequestro seria de conhecimento público, todos a encarariam com pena,
fazendo-a querer sumir, soterrada em comentários piedosos, demonstrando
uma empatia dispensável.
Reprimir os reais sentimentos nunca fora fácil, entretanto, falar era
ainda pior, portanto, não entendia a vantagem de lidar diretamente com a dor.
Contava as banalidades, trabalhando a ansiedade com sua psicóloga, ainda
assim não acreditava que superaria o passado. Desabafar só serviria de
munição, para as memórias que enterrou no fundo da consciência, emergir e,
diante disso, o que seria feito? Nada, absolutamente nada. Era somente uma
perda de tempo se colocar na posição vulnerável em troca de conselhos, com
o bônus da perspectiva rasa.
O raciocínio foi perdido com a colisão da tontura, sobrecarregada
devido à sede e à fome. Sua única refeição naquele dia tinha sido o café da
manhã. Não comeu durante o trajeto, então dava adeus à energia vital, que
esvaziava-se.
Um desmaio era previsível, contudo, a felicidade repentina se elevou
ao ver uma pequena cabana. Ela disparou na direção do local, para
finalmente conseguir a sonhada salvação.
A porta de madeira rangeu ao ser aberta, revelando um homem
aparentando ter uns cinquenta anos, com a barba malfeita e que usava uma
veste toda camuflada. Ele exalava o cheiro de cigarro e uísque, e mirou
descaradamente o decote da garota parada em frente à sua casa, ignorando o
cansaço transparente nos orbes tão verdes. Não contendo um sorriso, expôs
os dentes amarelados e podres.
Bateu a porta do carro, revoltado com o contratempo inesperado,
precisando esconder o cadáver do oficial na viatura e mover o veículo para a
estrada de terra, igualmente com sua Opala oitenta, crendo que abandoná-la
fosse um verdadeiro pecado.
Antes de ir atrás da fugitiva, pegou o revólver largado na pista e
começou a adentrar na floresta, sentindo uma fisgada forte vindo do
ferimento, já que recebeu um tiro de raspão na lateral do abdômen.
Uma bela tentativa para um cara patético.
A memória fresca do quão trêmulo o outro estava, quando fez questão
de obrigá-lo a avisar no rádio que tudo estava limpo, enfatizando conhecer os
códigos da polícia caso cogitasse enganá-lo, com a promessa de que ficaria
vivo. Desesperado, o homem obedeceu às ordens, e quando largou o rádio,
River não hesitou em terminar o serviço.
— Porra! — berrou diante da dor latente, levantando seu moletom e
reparando que o tecido arrancado do uniforme não conseguiu estancar
totalmente o sangramento.

Greta encontrava-se inquieta, aguardando o dono da residência,


conhecido como John, retornar da cozinha. Pretendia pular qualquer
explicação, priorizando ligar para a polícia ou pedir carona para a delegacia
mais próxima, mas os planos foram pausados pelo morador, que insistiu que
ela bebesse água, recusando ajudar alguém histérico. Apesar do insulto,
decidiu relevar o comentário, não lhe restavam outras alternativas.
— Você deve estar com sede. — O copo d’água fora estendido na sua
direção. — Beba — ordenou, permanecendo de pé, próximo ao bastante, para
deixá-la desconfortável.
— Obrigada — agradeceu sem encará-lo. Estava com tanta sede, que
bebeu de uma vez, apreciando o líquido gelado descer pela garganta.
John estreitou os olhos, fitando a boca úmida, as pernas expostas com
o short, que subiu quando a visitante sentou no sofá.
— Andou brigando com o namorado? — Não demonstrava interesse
em saber como ela tinha parado na porta da casa, só queria garantir que
ninguém o atrapalhasse.
— Eu realmente não posso explicar agora... mas você precisa ligar
para a polícia! — O tom de voz era trêmulo, as palavras saíram rápidas,
movidas pelo autêntico nervosismo. O tempo roubou os detalhes, trazendo a
urgência de fugir dali.
A expressão corporal falava por si: dedos inquietos e olhos vagando
nas particularidades do cômodo.
— Tudo isso por uma briga? — insistiu no assunto, retornando o foco
no decote. — Você é tão bonita, não deveria se estressar por causa de um
babaca...
Ela congelou no instante em que a mão áspera tocou sua bochecha,
circulando o dedão na maciez da face visivelmente mal, achando graça da
vulnerabilidade exalada sendo reduzida numa piada.
Aquela sensação era familiar. Reconheceu perfeitamente o significado
daquele olhar, resultando na incapacidade de enfrentá-lo, sentindo-se com
doze anos novamente. Conforme John desceu as carícias, chegando ao
pescoço, o corpo despencou nas memórias turbulentas.
Na sequência dos acontecimentos, gritos perpetuaram o cômodo. No
tempo em que foi arrastada rumo às escadas, debateu-se numa agitação
inquietante, que não surtiu efeito nenhum. O ranger das tábuas, vindo dos
degraus, indicava que não escaparia de dentro do quarto. O mordeu
firmemente e ouviu um grunhido misturado com xingamento.
— Solta, sua cadela! — esbravejou, puxando-a pelo cabelo. — Vou
quebrar a merda da sua mandíbula! — Apesar da ameaça, continuou com os
dentes cravados na pele, fazendo pressão.
Greta lutava para se soltar, recuando do toque incisivo, estimulando
John a agir com brutalidade, não aceitando a rejeição.
— Fica quieta — exigiu, jogando-a na cama, pondo-se sobre o corpo
pequeno e fraco comparado ao dele. — Você pediu por isso, piranha... — A
fala saiu desleixada, o cheiro de álcool só salientava seu estado de
embriaguez.
O rosto ficou avermelhado em razão do suor, gritou com todas as
forças que possuía, debatendo-se, tentando chutá-lo até acertar o queixo,
vendo-o cair para trás. Não teve oportunidade para agir, John pareceu se
reerguer, movido à fúria, acertando um soco na barriga dela. Ela sentiu cada
centímetro de si se contrair com tamanha dor.
Perdeu os sentidos com aquilo. Tendo seus pulsos segurados, não
conseguiu levar as mãos até a área dolorida. Não tinha mais forças para lutar,
a dor piorava gradativamente, o cômodo girava e estava cega na tontura.
Fechou as pálpebras ao escutar o zíper sendo aberto. Não
presenciaria aquilo, não podia fazer isso consigo mesma de novo.
Aguardou o pior, mas ao sentir a pressão sumir e os pulsos serem
soltos, tomou coragem para abrir os olhos minimamente. Teve o choque de
ver a expressão do homem petrificado, levando as mãos até a faca que
perfurava sua barriga.
John foi puxado para trás. Ela cobriu a visão com as mãos quando viu
River bater a cabeça do outro contra o assoalho. Tentava levantar para
revidar, falhando por não haver abertura para isso.
— Não toca na minha cara, porra! — A resposta raivosa fez Greta se
arrepiar, assustada. River pegou a mão dele, que tentava agarrá-lo, e torceu,
quebrando os ossos.
Pôde escutar o cadáver sendo esfaqueado inúmeras vezes. Ainda
chorava, com o corpo trêmulo, pensando no que poderia ter ocorrido. Não
aguentaria passar por aquilo novamente. Segurava na raiz do cabelo,
procurando esvaziar os pensamentos negativos.
— Puta merda, olha a confusão que você causou! — Teve os ombros
sacudidos, vendo a raiva exalar dele, o rosto pálido manchado de sangue e as
vestes igualmente. — Tem noção do que aconteceria se eu não tivesse
aparecido?
Sentiu-se atingida por aquela pergunta.
Num movimento súbito, os braços de Greta o rondaram num abraço
apertado, com as lágrimas manchando suas bochechas. Não existia afeição no
feito e, tampouco, lógica, simplesmente aconteceu, mesmo que estivesse
abraçada com o responsável direto por estar nesse cenário atual.
O estranhamento surgiu quando pôde senti-lo ficar mais pesado, sendo
incômodo para respirar. O abraço foi encerrado quando Greta conseguiu
erguê-lo com dificuldade, buscando livrar-se de seu peso, averiguando que
estava inconsciente. O abraço não havia sido retribuído, poderia ter
desmaiado no mesmo instante que ela lhe envolveu nos braços. Baixou o
olhar, constatando que o ferimento pingava gotas de sangue e sujando o
moletom seria a razão principal do desmaio. Só precisava largá-lo na cama e
correr para fora da casa, poderia ser a sua própria salvadora. Julgava estar
sedada diante dos acontecimentos, tratando as atrocidades com indiferença,
deixando-se ser controlada pelo instinto de sobrevivência. Dividiu as
prioridades em tópicos, o primeiro objetivo estabelecido seria sair da casa, e
esperava que nenhuma barreira se erguesse.
Esticou a mão, sofrendo com um espasmo momentâneo ao encostar os
dedos na ponta da maçaneta. Após ultrapassar o sangue espalhado, tinha seu
peito preenchido com uma fagulha brilhando no fim da tempestade.
O som da arma destravando integrou-se secamente no recinto. A
garota congelou com o barulho. Reconheceria esse som familiar em qualquer
lugar, cresceu numa família que praticava a caça esportiva e detestava escutar
os disparos. Sem ter para onde correr, ela elevou as mãos para o alto, em
sinal de rendição. Encarar a porta fazia tudo ser pior. Um simples gesto de
girar a maçaneta garantiria seu primeiro avanço para a liberdade, porém, o
portador da arma, mirando diretamente na cabeça, esclareceu que pisaria em
qualquer chance, limitando-as em empecilhos insignificantes.
— Nem pense nisso, Greta.
Capítulo 7

Frustração é um termo limitado, mas que serve para resumir o retorno


da impotência após fracasso atrás de fracasso. Eu não assimilo que continuo
estagnada aqui. Encontrar alguém perverso tanto quanto River decreta a
humanidade ficando gradualmente mais podre, com vermes aglomerados nas
beiradas, dispostos a esmagar o que resta de bom, se é que resta algo bom.
Não fujo das dúvidas principais que batem contra mim, apenas as
aceito porque são válidas.
Por que o universo me tortura?
Qual a necessidade de arrancar minhas chances tão rápido?
Agarro-me nas aberturas com avidez, e ele facilmente as corta.
Mesmo desmaiado, seu inconsciente o acorda igual um despertador, avisando
sobre a possível fuga. Não encontro outra explicação cabível com o
desadormecer súbito, logo dando ordens do que devo fazer. Obedeço, quieta,
do contrário, uma bala fará um buraco no centro da minha testa.
Me é imposto que eu trate do ferimento. Tento mentir, afirmando não
entender o processo de interromper um sangramento. A lábia não adianta, o
próprio declara ter conhecimento sobre meu interesse por enfermagem graças
aos livros de medicina espalhados no meu quarto. Ouvi-lo refutar, carregando
um certo orgulho de saber desse detalhe que agora é útil, só faz crescer todo o
repúdio e a vontade de arriscar tomar um tiro. Infelizmente, não disponho da
coragem.
Cedo à submissão intimada. Sou acompanhada na busca dos materiais
necessários para tratá-lo. Mesmo baleado, a guarda permanece elevada. Ele
compreende que sozinha no primeiro andar eu correria sem hesitar, o medo
não obtém tamanha influência a ponto de me parar.
O mandante repousa na cama, enquanto trato do ferimento. Pressiono
um pano limpo sobre a área, reparando que não chega a ser um corte tão
profundo, então posso conter o sangramento após alguns minutos. Em seguida,
lavo com água e sabão, evitando que infeccione, com ele mantendo o cano da
arma apontada, complicando minha concentração.
— Não deveria tentar mentir para alguém que sabe tudo sobre você.
De fato, fui ingênua o suficiente por desconsiderar que ele invadiu
meu quarto constantemente. Às vezes finjo que ainda existia privacidade, nem
quero imaginar o que poderia ter acontecido naquele quarto. Tenho certeza de
que minha mãe vai queimar o colchão, derrubar aquele cômodo quando
souber de tudo, provavelmente mudaremos de casa e a preocupação dela vai
triplicar. Sinto culpa quando penso nisso. É dilacerante não ter capacidade de
evitar o sofrimento dos meus pais, os pensamentos se tornam um borrão
quando imagino ambos retraídos, temendo me ferir com perguntas.
“Ele tentou alguma coisa... mais íntima, raio de sol?”
A voz dela ressoará tão receosa, que sinto fortemente os pelos
arrepiarem com a falta de ouvi-la.
Retorno à realidade, percebendo que o ferimento já foi tratado e está
costurado e enfaixado. Perdida nos delírios, que também são refúgios, eu
cuido dele no automático, é até melhor esquecer por uns instantes que
continuo aqui, e ainda faço rápido o suficiente para a arma abaixar.
— Posso preparar algo para comermos. — Pisco, levando as mãos à
barriga, com a fome atacando de novo. — Claro, depois que você tirar o
corpo desse quarto.
Um sorriso se forma suavemente, contudo, murcha de imediato,
convertendo-se em repulsa com a possibilidade de tocar diretamente no
cadáver mutilado.
— Não faça essa cara — pede, acariciando o topo da minha cabeça.
— É isso que dá tentar fugir, agora aceite as consequências.
— Irei mesmo comer?
— Seja sincera, no seu tempo comigo, alguma vez foi mal alimentada?
Ele nunca deixou de trazer refeições fartas, com comidas nutritivas na
maior parte do tempo, até doces ou salgados marcam presença, com a
justificativa de que sou merecedora do melhor. O autocuidado com minha
alimentação me faz desconfiar, na verdade, tudo que ele se propõe a fazer, eu
desconfio.
— Não... — respondo, contrariada. Odeio a hipótese de parecer que
sou grata quando concordo.
— Então, por que pergunta? — Nem posso contestar, o indicador é
posto diante de mim, barrando a fala. Reparo nele refletindo, antes de
prosseguir: — Foda-se, não quero que faça isso. Deveria aprender uma lição,
mas vê-la tão exausta me afeta mais do que permito.
River está me poupando da humilhação? As lágrimas grossas
acumulam no canto dos meus olhos e sorrio, soterrada com as emoções, que
borbulham, dando predominância para a piedade que é dada a mim.
— Obrigada.
É um delírio, tenho certeza, estou faminta, pronta para comer, então
não resta nada para continuar protestando ou arquitetando. Preciso suprir a
fome invadindo meu estômago. Deixo o arrependimento de agradecê-lo ir
contra meu pensamento anterior, sobre ser grata ao carrasco que tem me
aprisionado, estou muito fraca, e raciocinar constantemente é cansativo.
— Farei a melhor refeição que eu puder — promete, estendendo seu
braço, pedindo ajuda. Acabo o auxiliando a se colocar em pé.

O cheiro da comida me faz salivar, supondo a deliciosa textura


agraciando o paladar com os legumes na panela. Talvez esteja preparando um
caldo, considerando que a comida é bem limitada, enquanto possui um
excesso absurdo de cervejas ocupando a geladeira.
Brinco com a decoração empoeirada entre os dedos, dando uma
rápida espreitada na arma perto dele, posicionada sobre o balcão. Mesmo
com a tensão diminuindo entre nós, ao menos para ele, a cautela não baixou.
Checo a todo momento se eu continuo aqui e, sendo sincera, não estou
programando mais nada hoje. Pretendo ajustar as ideias e analisar o que farei
daqui em diante.
— Gosta de couve-flor? Tivemos sorte que essa gracinha estava em
bom estado. — Ele analisa o vegetal, averiguando se não está estragado.
— Gosto — digo. — O que está cozinhando?
— Eu não sei exatamente, porém não tenho dúvidas de que vai ficar
ótimo — gaba-se, como sempre, sobreposto na própria confiança. — Separei
algumas frutas para você comer de sobremesa.
— Não vai querer?
— A prioridade é cuidar de você.
Nem procuro lógica na resposta. Sensatez em insanidade não existe,
igual às palavras dele, que estão fora da esfera racional. Entretanto, qual o
incentivo por trás de cuidar de mim? Temi no início, imaginando que
enfrentaria as histórias absurdas sobre pessoas mantidas em cativeiros, com a
subnutrição, agressões físicas e abuso sexual. Por mais horrível que possa
soar, eu não esperava menos do que isso. Aguardei pelo pior que nunca
chegou.
River cumpriu com a função de me assustar, atingindo a meta de
reprimir qualquer coragem nascendo no meu interior, além desse estranho
cuidado. Sim, cuidado por querer ter certeza que estou bem, tratando os
ferimentos e saciando minha fome, sinto até que ganhei peso no último mês.
Mas por quê?
Existe uma hierarquia predominante, única e exclusivamente por ele.
As decisões da minha vida estão em suas mãos e o controle não passa de uma
névoa fina dissipando no decorrer dos dias, fomentando na dúvida do
benéfico real dessa hierarquia... Uma companhia constante basta? Ou
caminhamos ao lado do poder? Saber que detém o domínio sobre mim já
consegue satisfazê-lo? Provavelmente, tais dúvidas nunca encontrarão uma
resposta digna.
— Tome cuidado, está um pouco quente.
A tigela tem vegetais boiando no caldo com sabor desconhecido, o
aroma da couve-flor invade minhas narinas e dou a primeira colherada. Uma
careta é feita, com a língua queimando, mesmo assim continuo comendo
ininterruptamente, pareço um animal faminto dilacerando a presa com
dentadas de arrancar o couro.
Não ouso encará-lo, evitando o julgamento que os olhos devem trazer
com o caldo escorrendo nos cantos da boca, e consigo supor os sermões que
ganharia. Nos últimos anos, pairou uma cobrança implícita crescendo nos
comentários da minha mãe, num desejo de que eu ingresse na melhor versão
possível de mim. Ela não quer me ver apodrecer numa cidade pequena,
arrumando algum emprego mediano, casando e enterrando as oportunidades
com a chegada dos filhos. Ou seja, sou empurrada na espera de ter uma vida
melhor que a dela e entendo que os tempos são diferentes, logo sigo focada
nos meus estudos durante o ensino médio. Hoje, vejo que nada valeu a pena.
Quando retornar, terei as pequenas conquistas desmoronando, restando
somente o vazio perturbador.
— Bom, percebo que a comida te agradou — conclui, apoiando as
costas na bancada da pia. — Pronta para dormir?
Pressinto uma armadilha com tal pergunta. Arqueio as costas,
endurecendo igual concreto. Fico em alerta com o meticuloso tratamento
servindo de disfarce nas intenções ardilosas reveladas através da fachada do
zelo. Talvez pense que me tratar bem possa ser o melhor caminho para me
coagir.
— Tem um quarto minúsculo no final do corredor, a cama é sua e eu
posso dormir com alguns edredons no chão. — O cuidado sobre ressaltar que
não compartilharemos a mesma cama é nítido, e creio na capacidade dele em
ler mentes diante do receio habitando dentro de mim.
É caótica a constante subversão que River percorre, indo contra o
esperado. Suponho a imagem dele idêntico a uma serpente, esperando o
instante certo para me destroçar. Vivo na angústia da próxima ação que
definirá o amanhã, se é que viverei o suficiente para existir um amanhã.

O céu azul predomina em harmonia entre as nuvens brancas e


pinheiros na paisagem polida. É inacreditável a capacidade dos prédios
acabarem arruinando os ambientes naturais. Na verdade, é óbvia a
consequência disso, torna até irônico querer mudar para Nova York com
Nathan, estando no centro dos prédios tão altos e expansivos, cobrindo
manchas podres na cidade, procurando não atrapalhar os sonhos da maioria,
com ambição de desbravar a cidade das oportunidades, pelo menos é o que
dizem.
Não tenho segurança de mim mesma nessa narrativa de “desbravar”
Nova York e desenvolver essa vida bem-sucedida que muitos almejam. As
aberturas surgem por intermédio da comunicação, pessoas sociáveis e
extrovertidas são as que estão na televisão, sendo entrevistadas. Elas estão
ali justamente por terem uma facilidade para falar e nem podem ter algo
realmente interessante para dizer, porém o carisma nessa circunstância já
basta. Manter um sorriso grudado na boca, interagir constantemente, deve
acabar sendo um cansaço que não sustentaria nem por uma semana. É
inegável o meu bloqueio para interagir com pessoas no geral. Eu sofria
antecipadamente quando apresentava trabalhos na escola, e o mesmo ocorreu
na vez que minha mãe me indicou para ser babá. Ensaiei o que diria, um
diálogo casual, apenas para conhecerem a garota que cuidaria da filha deles.
Está tudo bem, Greta? Você parece nervosa. As respostas apressadas, a
inquietação nas mãos e a sensação enlouquecedora do nó apertando a
garganta entregaram o verbalizado nervosismo. Embora tal episódio tenha
passado há dois anos, sei que nada mudou, representando um eterno desafio.
O rádio toca as fitas do motorista e saio dos meus devaneios
autodepreciativos. Volto a avaliar o traje amassado, pois saímos às pressas
da casa, assim que clareou. Segundo ele, não demoraria para descobrirem o
corpo do oficial abandonado na viatura, portanto, manter qualquer
proximidade era burrice.
— Posso vestir outra coisa? — pergunto, insatisfeita, ajeitando a saia
rosada na cintura, com o aperto acentuado.
— A roupa é sua, deveria ficar feliz em poder usá-la.
Nunca gostei especificamente dessas peças, uso com a intenção de
agradar minha mãe, que adora. Ellen costuma fazer as compras, veste eu e
papai, ressaltando que temos um péssimo gosto com vestuários. Nunca
retruquei, porque concordo, além de não precisar ir ao shopping e sofrer com
filas intermináveis.
— E-eu gostaria de usar algo mais confortável — gaguejo, relutante
de estressá-lo com o pedido insistente. Tento soar delicada, quem sabe assim
ele não ceda. — Por que preciso usar, especificamente, essa roupa?
— Os tons claros, de rosa, não vão levantar suspeitas. Se usar roupas
escuras, vai expor uma imagem de que deseja passar despercebida, e esse
seria o primeiro erro — informa, gesticulando no ar, sem perder o foco da
estrada. — A peruca de cor clara vai harmonizar com sua roupa, teremos a
máscara cobrindo parte da cara... Espero que assim possamos seguir livres
de interrupções.
Esqueci da peruca loira ao lado, que com toda certeza vai pinicar,
queimar que nem a porra do inferno. Ele considerou o menor dos detalhes,
então não contenho a curiosidade de perguntar:
— Como sabe de tudo isso?
— Minha mãe gostava de costurar, falava sobre a importância dos
tons estarem bem alinhados com a roupa. — O raciocínio é pausado, o olhar
é vago mediante a fração de segundos, submerso em prováveis memórias.
Se ele tem uma família, o que aconteceu com eles?
É bizarro imaginar que ele teve realmente uma família, possivelmente
amorosa. Não assimilei nenhum desprezo ou desgosto com a mãe citada. Um
pouco de nostalgia, enquanto comentava sobre ela, talvez uma possível
memória ruim o invadiu, recaindo no silêncio.
Percorremos mais alguns quilômetros até o carro desacelerar,
aproximando-se de uma lanchonete decadente. O estabelecimento é velho e
carece de uma boa reforma, há poucos carros no estacionamento.
— Vamos comprar um pouco de comida para viagem — comunica,
retirando uma máscara branca do porta-luvas e a estendendo na minha
direção. — Você vai gostar daqui.
A porta é aberta, com o sino soando, indicando nossa entrada no
local, que é bem limpo por dentro, ao menos não é pior que lá fora. De
imediato, estremeço, quando percebo uma senhora grisalha que se apoia no
balcão com o nome “Betty” descrito no crachá. É assustador estar diante de
outra pessoa. Mordo a parte interna da boca, esperando aliviar toda a
agitação fervilhando, manifestando-se parcialmente no suor das mãos.
Recebo uma cutucada, num incentivo para que eu ande. Mesmo não sentindo
meus pés, ainda assim dou passos firmes.
Betty ergue a cabeça e ajeita os óculos de lentes grossas. Acompanho
sua expressão surpresa recair sobre nós. Será que me reconhece mesmo com
a máscara? A atenção descarada indica que isso é um sim. Espreito River
parcialmente. Ele não pode reagir, certo? Está de manhã, vejo câmeras de
segurança e gente reclusa nas mesas, possíveis testemunhas.
Entro em desespero, recebendo o impulso abrupto de impedi-lo
quando começa a se aproximar da senhora. Desmancho o cenário dela
sangrando sobre o balcão, sobreposta com a imagem fresca do cadáver
esquartejado na cabana. Pouco me importa seu fim, é quase mórbido colocar
a morte interligada à felicidade, nesse caso, por saber que outras garotas
estarão salvas de alguém desequilibrado como John.
— Jeff, você voltou! — A garçonete sai às pressas por trás do balcão,
com um sorriso caloroso no rosto. — Não pode sumir desse jeito, menino.
Que porra é essa?
Perco a noção do que está havendo, esvazio a mente de todos os
receios acumulados, soterrados na dúvida... Essa senhora o conhece?
— Peço desculpas, fiquei um pouco atolado no trabalho. Aliás, dessa
vez, eu não vim sozinho. — O braço se estende direto para mim, que não
reajo.
— Lily! — O nome sai alto em comemoração, sou esmagada num
abraço pela mulher que possui um cheiro agradável de lavanda. — Seu irmão
vive falando de você, estava ansiosa para te conhecer.
— É um prazer lhe conhecer — cumprimento-a, desconcertada, não
sei como agir. — Vocês se conhecem há muito tempo?
— Seu irmão sempre vem aqui, um jovem adorável, devo dizer! —
diz, retornando ao balcão, bagunçando o cabelo de River, que está sentado na
cadeira giratória. — Um pouco egocêntrico também, mas podemos deixar
essa informação de lado.
Reprimo a risada súbita com tamanho absurdo. Não creio no que
acabo de escutar. River sendo definido como alguém adorável é uma piada de
mau gosto. Controlo minha vontade de perguntar se ela é perturbada ou se
está sendo feita de refém para dizer isso.
— Esse garoto passou quase um mês sem aparecer, fiquei suspeitando
que não ia mais vir — confessa, pegando o bloco de notas no bolso do
avental.
Por quanto tempo ele tem tramado isso? Semanas, meses, anos? Vai
saber... Criou uma história, distorcendo os fatos verdadeiros, reescrevendo
esse encontro feliz, apresentando sua irmãzinha após tempos separados. É
árduo refletir na necessidade dele de compartilhar essas mentiras, talvez
queira alguém crendo igualmente que existe uma conexão entre nós. Se Betty
soubesse ao menos um terço da verdade...
Forço um sorriso ao ouvi-la desatar a fala das vindas do meu suposto
irmão na lanchonete. O peso da observação do próprio me deixa rígida,
tornando irônico lembrar que ninguém deu a mínima para os receios
crescentes, quando eu desabafava sobre as paranoias de invasão. Foram
incontáveis descrenças, entre falas e olhares, resultando nesse desfecho
trágico.
— Mas, agora, compreendo o motivo do sumiço. Jeff me contou que
você estava estudando fora e disse que em breve lhe traria novamente para
casa.
— Ele fez questão de me arrastar contra a minha vontade, vale
ressaltar. — Nem percebo o sarcasmo intercalado entre as sílabas
sobrecarregadas na sinceridade velada. — Diria que Jeff se encaixa
perfeitamente no egoísmo.
A coragem momentânea ajuda nas frases despejadas, livres da
insegurança corriqueira. Por outro lado, o efeito é curto, logo estou receosa
de ter ultrapassado os limites. Nunca agi assim e acredito que esse seja o pior
contexto para desenvolver confiança no que digo, só contribuo para deixá-lo
atento.
— Lily anda meio irritada ultimamente. Admito que o erro é meu, por
não conseguir ficar longe por muito tempo. — Repousa o braço nos meus
ombros, enroscando os dedos nos cachos da peruca. — Só tenho ela, você
sabe bem disso, Betty.
O arrepio emerge, com ele depositando um beijo, que mesmo
bloqueando o contato direto, devido à máscara, o efeito da ação me
desestabiliza.
Só tenho ela.
A frase se repete sem parar, como um disco arranhado, impregnando
minha mente, que anseia entendê-lo nesses instantes vulneráveis. Procuro
significados inexistentes, evitando os deslizes de afogar na cabeça perturbada
e manipuladora, entretanto, quanto mais nado para longe, mais a correnteza
arruma forças para me puxar de volta ao centro.
Capítulo 8

Os pacotes ocupavam o banco da frente, com as sobras visíveis.


Abaixou a música do rádio, enxergando no retrovisor a passageira dormindo.
Anoitecera fazia poucas horas, viraram mais um dia na estrada, dessa vez
com a convicção de que chegariam ao destino, calculando por alto os
quilômetros percorridos, estando distantes o suficiente para mantê-la longe de
tudo que um dia a rondou.
Desde o princípio, compreendeu que viveria um processo caótico,
exigindo esforço para conquistar sua afeição, lapidar sentimentos fervorosos
por ele, que demorariam na implantação. Entretanto, previa uma entrega
emocional genuína e inquestionável, que tornaria irrelevante os meios usados
para obtê-la, contanto que tivesse Greta prometendo a eternidade na vida e na
morte, ansiando por estar consigo, caso contrário, não suportaria, nunca
dando a mínima no peso sobreposto na mente.
Ninguém possui uma mente sã que não possa ser esmagada ou
modificada. Todos estamos à mercê da loucura, algumas pessoas só precisam
de... Bem, precisam de um breve empurrão para serem livres das amarras
pregadas na hipocrisia humana, crescida e fundada no caos.
Usava o termo “loucura” num aspecto simbólico, teria êxito no
instante em que ela se jogasse nas ideias duvidosas. Suspirava, realizado
sobre a idealização fomentada nas mudanças antes inexistentes. Rastros
surgiam com a hipótese do subconsciente estar perdido no próprio
julgamento. Cedendo entre as conversas com o envolvimento maior,
demonstrando relaxar sob o abraço de lado na lanchonete, voltando à postura
rígida, recobrando a guarda que havia sido baixada. A mudança poderia ser
precoce, muito precoce para acontecer, contudo, sabia exatamente os passos
que precisava dar. Greta não era um brinquedo, ela representava a vivacidade
que necessitava, não existindo barreiras que o impedissem de levá-la.
Diminuiu a velocidade, dobrando para a esquerda e adentrando a
estrada mal pavimentada. O excesso de plantas e buracos atrapalharam na
passagem do carro, demorando até chegarem ao portão enferrujado. Não
compreendia como se mantinha de pé, após anos sem reparos, submetido na
tarefa de empurrá-lo, abrindo com certa dificuldade, vislumbrando
parcialmente o quão amplo era dentro, embora a escuridão limitasse sua
visão com nitidez.
Após estacionar, desceu do carro, fechando o portão novamente,
supondo que tamanha fragilidade iria derrubá-lo em breve. Adiaria a
preocupação, retornando ao encontro da passageira adormecida e evitando
promover ruídos que pudessem acordá-la. River a segurava nos braços,
podendo vê-la se remexer, apoiando sua cabeça no ombro, Teve uma péssima
noite de sono, portanto, apagara num cochilo profundo.
Não tinha pressa para entrar no chalé, estendendo a proximidade com
sua princesinha, enfeitiçado no vício adocicado emanando naturalmente.
Quanto mais a tinha por perto, mais dependente ficava em repetir outra dose
de tê-la próximo, o dopando por inteiro.
Guardou as chaves do local durante anos, prevendo retornar um dia.
Teve dificuldade em encaixar na fechadura por sustentá-la, conseguindo abrir
na terceira tentativa. Adentrou no ambiente empoeirado e nostálgico com os
retratos, decoração, móveis que remetiam à família que um dia teve. Retornar
para o chalé que passara tantos feriados quando criança, portando motivações
opostas as do passado, refletia o quanto tinha mudado.
Tratou de colocar Greta no sofá, amarrando os pulsos e os tornozelos
com cautela, impedindo de acordá-la, uma tarefa quase impossível, já que
apertava o suficiente para detê-la de sair correndo. Feito isso, constatou que
a demora contribuíra para mantê-la no mundo dos sonhos. Partiu na busca do
gerador que havia nos fundos, pretendendo resolver os problemas
primordiais: luz e água.
Promover conforto era indispensável no planejamento arquitetado,
não poupou esforços, confiante de que o ânimo mudaria naquela atmosfera
espaçosa, em consequência disso, sobraria igualmente a atenção, impedindo
outra tentativa de fuga.
Subia do porão para o primeiro andar, conferindo se Greta havia
acordado, intercalando com o processo de ligar o gerador coberto por teias
de aranha, obtendo êxito em fazê-lo funcionar. Depois disso, trocou as
lâmpadas. Estava preparado, pois comprara tudo que julgou necessário para
os afazeres domésticos. Restava comprar comida, o que pretendia fazer de
manhã, na cidade mais próxima, a vinte minutos do chalé. De volta à sala
coberta por uma decoração rústica de madeira, que cobria chão e parede,
River subiu os olhos, com o privilégio de admirar a área verde pela enorme
janela e mirar o poço. Acordaria cedo para buscar água e suprir a utilização
nos afazeres domésticos e higiênicos. Até ferveria água, caso a jovem
quisesse tomar um banho quente em dado momento.
— River...? — A voz sonolenta ecoou, rompendo o silêncio,
voltando-se à razão de tudo que ele fazia.
— Hum... Você acordou, que bom — disse. — Sobrou comida, posso
esquentar se quiser — ofereceu, apontando na direção da bancada com a
estampa da lanchonete nas embalagens. — Só vou buscar água, já volto.
River saiu do chalé, enfrentando o frio da parte externa, portando
baldes nas mãos, enquanto ela permanecia deitada, encarando o lustre sobre a
cabeça, feito com chifres de alces. Enrugou a testa, contrariada, supondo estar
numa casa de possíveis caçadores, contendo tapetes de pele, animais
empalhados, com um urso acima da lareira chamando a maior atenção. Greta
já presenciara de perto um animal sendo abatido durante uma reunião
familiar, onde ficavam na área de camping, dividindo espaço com outras
famílias, sempre dispondo de trailers que chegavam na alta temporada, pois
em determinado ponto da floresta, a caça esportiva era permitida. Bryan
contrariava a vontade da esposa quando partia cedo com o irmão mais velho,
Albert, à procura de cervos, voltando na metade da tarde. Inevitavelmente, a
menina de cabelo castanho-claro portava um alívio, que a fazia suspirar, por
saber que o tio não regressaria tão cedo.
No segundo fim de semana, acordou cedo, averiguando os
responsáveis dormindo na barraca aconchegante, resolvendo sair para brincar
com o labrador, provavelmente preso na coleira, entediado, na porta do
trailer, esperando sua tia passear com ele. Nunca pôde ter um cachorro ou
algum bichinho, Ellen dizia que a responsabilidade sobraria para ela, então
cortava qualquer possibilidade da família ganhar um novo integrante.
Calçou as pantufas e partiu a caminho do trailer, encontrando balões
murchos, cobertos parcialmente na terra. Comemorara seu aniversário de
doze anos fazia poucos dias, batera todas as fotos de boca fechada,
envergonhada do aparelho, precisando escutar as reclamações da progenitora,
afirmando estar sendo antipática com a cara fechada. Tentou contestar,
alegando que o aparelho a deixava feia. Feia? Você é uma garota linda,
Greta! Não importa se usa aparelho ou não, retrucou, incrédula, apertando
as maçãs das bochechas e recebendo vários beijinhos na face que desviava.
Costumava elevar a autoestima da menor, esperando bloquear as inevitáveis
inseguranças que precedem a adolescência.
Tocou os pelos sedosos e macios do labrador, que abanava o rabinho,
aninhando a cabeça em seu colo, curtindo o carinho e mexendo de maneira
involuntária a patinha, arrancando uma risada que cessou por efeito da mão
áspera pesando no ombro. Esse cachorro te adora, joaninha! É um bobão
perto de você, parece até comigo. Torceu o nariz com repulsa, chamada por
Albert, que pediu para ser acompanhado. Não avistou nenhum outro parente
que lhe desse coragem suficiente para negar o pedido, restando ceder ao
convite.
Apertava a barra do moletom branco com estampa de coelhos,
atormentada pela hipótese de aborrecê-lo em consequência das vestes
pesadas irritarem o homem ao lado, que nunca escondeu o desgosto em vê-la
coberta, frisando o quanto ela foi abençoada pela feminilidade, e usar roupas
cobrindo a pele era um desrespeito, pois homens são visuais e precisam ter
algo para admirar. Comentários assim surgiam quando estavam sozinhos.
Testemunhava o verdadeiro monstro que ninguém mais tinha acesso, causando
sempre uma cicatriz emocional pior que a anterior, num ciclo que ela julgava
eterno.
Distantes de todos que pudessem socorrê-la, avistaram um cervo
agonizando, com uma bala perfurando o estômago, ouvindo a respiração
densa e o barulho doloroso emanando fracamente pelo animal. O sangue
gerara uma pequena poça. Greta tocou no animal superficialmente, vendo-o se
debater em desespero, tentando se mover quando mal conseguia ficar sentado.
Pediu para buscar ajuda, recebendo uma risada em escárnio. Ajuda? Essa
merda já está quase morta, mas posso dar um fim no seu sofrimento...
Dependendo do que ganharei com isso. Aquela pausa conhecida fez os
joelhos fraquejarem. Recuou no primeiro toque, sem ceder à chantagem,
contrariando Albert, que agachou, ficando na mesma altura dela. Não haja
assim. Você sabe o que acontece com os bichinhos insolentes? A pele gelou,
com a espingarda encostando-se no braço, engasgada no pânico, queimando
com o bafo quente próximo do pescoço. Eles são mortos, porque não há
espaço para eles. Deveria te considerar um bicho insolente?
A corrente gélida atingiu a pele. Cobriu sua intimidade e usou os
braços para tapar os seios pequenos, ainda em desenvolvimento, do jeito que
seu tio gostava. Pequena, magra, pele macia, livre dos pelos, um corpo isento
de curvas que o crescimento traz, portando repulsa de estrias, que mancham
tantas mulheres, arruinando as formações puras que um dia tiveram. Espero
que não mude nunca, disse, antes de disparar um tiro certeiro na cabeça do
cervo, manchando-o com pingos de sangue, pronto para saciar os desejos que
conteve nas últimas semanas. Greta fingiu que não estava ali, imaginando
brincar com o labrador até o abuso parar e ela retornar, vazia, forçando
naturalidade para evitar maiores perguntas.
— Podemos tirar esses enfeites? — questionou, mirando fixamente o
urso empalhado, embora esperasse que negasse o pedido. Nunca recebeu uma
resposta positiva, logo a expectativa era baixa.
— Claro, eu nunca gostei desse tipo de decoração. Meu pai, por outro
lado, fazia questão de exibir os animais que ele abatia como troféus. — A
repulsa era escancarada ao cuspir a palavra “pai”. — O desgraçado,
inclusive, me obrigava a carregar as carcaças, meu desconforto estranhamente
o entretinha.
— As fotos nas paredes são vocês?
Ultrapassou a sala, chegando à escadaria com retratos da família
emoldurados e alinhados adequadamente na extensão da parede. Apontou
para a foto com todos vestindo suéteres vermelhos em frente à lareira. Sem
cicatriz, aparência saudável, a feição juvenil, por volta dos dezesseis anos,
com o cabelo bagunçado pelo patriarca.
— Ele fingia muitíssimo bem, nem queira saber o que aconteceu
depois dessa foto.
— Seu sorriso parecia sincero — comentou, supondo quantos sorrisos
dera na presença de Albert quando, na verdade, estava enterrada em sua
vergonha desastrosa das coisas que fora obrigada a fazer.
— Dançamos conforme a música que nos é imposta — disse. — Ou
eu fazia sua vontade, ou apanhava pela minha “desobediência irreparável”.
Mas não importa hoje, ele não detém poder sobre mim. — O tom áspero
sumiu. A menção do pai diferia de quando a mãe fora citada no caminho da
lanchonete, sendo mais nostálgico, sem o rancor visível de agora.
Acabou sendo solta. River solicitou que fizesse companhia a ele na
cozinha, enquanto esquentava a refeição, os passos logo atrás subtenderam o
“sim”. Apesar de Greta estar aérea com a breve história do mais velho,
murmurando que faria uma limpeza no outro dia, não suportando a poeira,
provocando os repetidos espirros soltos com xingamentos, condenando a
rinite alérgica, necessitava assimilar a infeliz semelhança de entendê-lo nesse
sentido. As memórias da infância rondavam na submissão dos anseios
sádicos que erradicaram a inocência que não vivenciou. Cresceu desconfiada,
reclusa, nunca teve curiosidade em conhecer lugares novos. O novo lhe trazia
medo, na premissa de que estranhos chegavam prontos para violá-la. Os
crimes violentos que passavam nas reportagens e os casos brutais vagando na
internet a deixavam em constante alerta. Sempre aguardou um desastre
iminente ocorrendo no instante em que River pousou os olhos nela,
anunciando o fim da sua sanidade.
Capítulo 9

A mudança na coloração das plantas abre espaço para o ilustre


outono, destacado na cidade pelo evento de Dia das Bruxas, apagando por
completo a feira com escassez de pessoas, mesmo com a competição dos
maiores vegetais. Ainda assim, a cidade só ganha ânimo no Halloween,
lotando as ruas de gente, que chegam das outras cidades. Não é surpresa,
considerando que o prefeito investe uma quantidade generosa de dinheiro
público, provavelmente recebendo bem, já que todo ano a comemoração
marca presença no calendário de eventos.
Particularmente, gosto mais da feira, é divertido ver velhos
fazendeiros ao lado de abóboras com o dobro do seu tamanho. Mamãe
costuma ajudar sua amiga, Elise, na venda da geleia caseira, sobrando um
tempo considerável para explorar as poucas barracas novas no local.
— Conseguiu dormir bem?
Pude dormir melhor que nas noites anteriores. O quarto é maior, não
tem janelas, mas a sensação claustrofóbica diminuiu. Nada mudou muito, a
porta continua sendo trancada quando entro, seria muito exigir que ele não o
faça, considerando que faz pouco mais de vinte e quatro horas que tentei fugir.
Dessa vez, acordo com batidas avisando para ir tomar banho. Obedeço, como
de costume, e encontro o banheiro limpo, livre de poeira ou sujeira. Há
baldes com água para suprir minha higiene pessoal, com alguns deles quentes.
River fez questão de esquentar água diante do frio.
— Sim, a cama é confortável.
— Sinto que vai gostar daqui, só precisamos fazer uma limpeza. —
Aponta brevemente para as compras na mesa de jantar, retornando a preparar
o café da manhã. — Temos o necessário para passarmos o mês. Depois do
café, vai me ajudar a deixar o chalé brilhando.
Nem quero imaginar onde ele arruma dinheiro, tendo em conta a
quantidade de itens comprados, espalhados em sacolas na mesa. Durante o
nosso curto tempo na lanchonete, ele pagou pela refeição em dinheiro. River
deve roubar somente as cédulas após matar, caso contrário, seria fácil
rastreá-lo usando um cartão. Torço para algum deslize ter acontecido,
ninguém pode ser tão metódico a ponto de não deixar uma pista para trás, e
espero que encontrem essa possível fagulha escondida. A impotência de
tramar contra ele retornou mais forte do que poderia imaginar.
— Como prefere limpar os cômodos? Dividir os espaços para cada
um limpar seria...
— Rápido? Realmente seria rápido de limpar e mais fácil também
para você encontrar uma brecha e fugir. — A voz se sobrepõe à minha,
cortando as chances de convencê-lo de ficarmos separados. — Por que a
pressa? Tem algum compromisso que não estou sabendo? — zomba,
realçando a constante superioridade por enxergar uma perfeita marionete em
mim, incapaz de se opor ao que ele quer.
Evito estender o diálogo. Coloco os braços no balcão, repousando a
testa, pressionando as pálpebras, esvaziando minha raiva quando ele esnoba
tudo e transforma nossa “relação” numa brincadeira de amigos que trocam
farpas, agindo com intimidade, tratando o chalé como uma estada para férias.
Ignorando tudo que fez, consigo ouvi-lo falar sobre músicas normalmente,
mencionando as bandas favoritas que não tenho interesse de memorizar.
Incentivá-lo é algo que não pretendo fazer.
Farei as obrigações impostas, depois espero poder me trancar no
quarto, ao menos lá não terei que lidar com a realidade, posso estender meu
sono o máximo que puder.

Pingos d’água despencam das nuvens cinzas com a lembrança da noite


que o conheci, da noite que marcou o começo do fim. A ameaça baixa, os
dedos fixados no meu cabelo, a lâmina afiada quase me perfurando e
compondo o pânico contido por sofridos minutos antes de reagir. Escapar
dele disparou sua adrenalina, percebo isso com o seu prazer de caçar, que ele
transforma num jogo em que me torno a presa que River anseia por abater.
Estou o entretendo desde o começo.
— Coloque um sorriso nessa cara! Respirar um pouco de ar puro,
andar na grama, admirar o lago, são coisas que não se pode tirar proveito
sempre. — A entonação sai com entusiasmo, erguendo o queixo para a chuva
atingi-lo. — De que adianta manter essa pose emburrada? Ninguém gosta de
gente antipática, sabia?
Sento na grama, próxima ao lago, absorvendo as palavras que não
deveriam surtir grande efeito, contendo o simples intuito de gerar uma
emoção feliz. É doloroso entender que, ao invés do ódio, há apatia para
compartilhar da minha vida cotidiana, mesmo nos instantes que supostamente
trazem felicidade, só martela no quanto tudo é efêmero. Todos vão embora
uma hora, as únicas pessoas que me toleram viraram borrões e sumiram, não
tenho nada de bom para oferecer.
É, acho que posso estar depressiva, não sei.
— Podemos entrar? Vamos acabar pegando um resfriado.
— Passamos horas limpando, por que não tenta aproveitar? Lembro
muito bem das reclamações de ficar trancafiada no quarto, e agora quer
entrar? Eu realmente não te entendo. — Dá passos mais adiante, aparentando
estar irritado comigo, desistindo de persistir.
Analiso parcialmente a área, atenta aos arbustos que cercam as
laterais e que dão entrada para a floresta densa. Diferente das trilhas, que
tornam o percurso acessível, a mata fechada é árdua de transitar, quem dirá
disparar correndo. Receberei cortes dos galhos e colocarei em teste a
paciência limitada de River. Por enquanto, prefiro deitar na grama e relaxar
com o contato da chuva contra a pele.
— Gosto quando as poças são formadas. — Revivo o diálogo, não
entendendo o porquê. A estranha sensação de representar um peso negativo
move meus lábios. — É divertido, posso pular entre elas que nem amarelinha,
fazia isso quando criança no caminho da escola.
— Quer tentar encontrar uma poça?
Ele estica a mão, na expectativa de que eu aceite, acabo contraindo os
lábios. Não consigo verbalizar a negação, não quero aceitar. Meu estômago
revira com a ideia de rejeitar e ouvi-lo despejar verdades cortantes que
definham minhas entranhas.
— Entendo, a minha princesinha é reclusa. Me diga, Greta, você tem
muitos amigos na escola? — A risada baixa, com puro escárnio, integra o fim
da pergunta. — Nada muda muito depois, ela é um reflexo fiel da sociedade,
sua tendência de repelir todos ao redor te converte em alguém vagando nesse
mundo sem ninguém dar a mínima. Claro, estou apenas supondo, posso estar
errado, mas duvido que seja o caso.
— Sinceramente, não vejo sentido nessa conversa.
— Terei a honra de receber uma justificativa?
— Odeio interagir com você, odeio ser obrigada a entrar nessa
fantasia distorcida, porque desprezo sua existência — afirmo, firme, numa
recarga de coragem repentina, mesmo evitando encará-lo diretamente. — É
um doente fodido que me sequestrou e acha que tem respaldo para exigir uma
conexão genuína comigo! As conclusões que está tirando são baseadas num
medo incessante de algo ser feito contra mim porque, no fim, eu não tenho
nada agora, além de ódio e medo.
— Ah, pensa que essas conclusões são baseadas nas nossas
interações? Por favor, é entediante esse esforço todo para dizer palavras
banais. Semanas se foram e sua sinceridade chegou unicamente a isso? —
Franze a boca com ironia, agachando-se e tocando brevemente minha
bochecha, pressionando-me a encará-lo. — Nem é preciso virar um vidente
para enxergar o quanto é solitária e oprimida. Basta um olhar severo e minha
princesinha volta a se retrair, certo? Sua personalidade não é de alguém
perseverante ou otimista, Greta... Quer um exemplo disto? A tentativa de fuga
foi pura sorte. Caso o policial não tivesse surgido, teria mesmo agido?
— Eu quero que você morra, seu doente! — grito, com a visão já
embaçada, despejando vulnerabilidade na voz trêmula.
— Não chore, querida. — Move os dedos para cessar as lágrimas,
contudo, repilo o contato, domada pela repulsa. — Por que continua com toda
essa resistência? Nós dois sabemos que esse empenho todo não faz parte da
real Greta, quanto mais cedo aceitar a realidade, mais cedo tudo melhorará,
eu garanto.
Quieta. Prefiro regressar ao silêncio seguro, respondê-lo abre as
feridas que chegam perto, mas nunca cicatrizam, e que se agravam com a
influência dele parecer conhecer exatamente onde aplicar mais cortes,
ajudando, arruinando o curto orgulho de lutar pela liberdade que ferve nos
passos percorridos naquela floresta.
Foi sorte, ele está absolutamente certo. Talvez o impulso tenha
contribuído, mas nada partiria das várias possibilidades que arquitetei. Não
ponderei em ajudar o policial ou gritar no meio do estabelecimento pedindo
ajuda, não encontrei nenhuma alternativa segura para agir, preciso de
segurança sempre. É uma exigência alta, que nunca alcançarei. Tomar atitudes
com um homem tão incerto quanto River faz meu maxilar travar. Na hipótese
de fazê-lo perder a cabeça, quero pedir desculpas. Sim, desculpas pela
audácia de tê-lo atacado, para evitar o tratamento cruel que possa vir. Sou
medíocre em todos os sentidos, nunca conseguirei atingi-lo, não sinto
esperança dentro de mim, ela nunca existiu.

O presságio foi previsto no instante em que saímos do chalé,


recebidos pelo tempo nublado com serenar, anunciando o provável resfriado.
A premissa de que “ar puro” faria bem não foi a melhor alternativa, um
engano que não fez River desistir. Fui arrastada para ser humilhada, tenho
certeza disso, algum tipo de prazer perturbador deve crescer quando me
humilha, enxergo até os olhos opacos brilhando.
Quando anoitece, começo a espirrar, desencadeando o cansaço. Minha
imunidade é um lixo. Ele está intacto, completamente saudável, nem o maldito
carma é eficaz em acertá-lo.
— Ainda não comeu a canja? — indaga, com a testa enrugada,
contrariado, colocando os medicamentos e a garrafinha d’água ao meu lado,
na mesinha de cabeceira desgastada.
— Estou sem fome.
— O erro é meu por você adoecer — declara, puxando as mangas do
suéter verde-escuro, se acomodando na beirada da cama. — A última coisa
que deve fazer é deixar de comer.
— Posso ficar sozinha? Depois eu como, prometo. — Ensaio um
sorriso na esperança de ele conceder meu descanso. Adoeci e mereço paz,
nem que seja ao longo das horas transformadas em outro dia perdido.
— Antes de ir, quero pedir desculpas pelas coisas que disse.
Oscilo entre falar ou não, como se um nó prendesse a garganta, sendo
fatal mencionar as nove letras, desviando o olhar, talvez... Desconcertado?
Não sei, digeri-lo dessa forma é controverso, mas acabo me permitindo ceder
na pergunta que pesa há tempos no peito. Pretendo aproveitar da escassa
sanidade apresentada, o retorno disso pode nunca acontecer, virando uma
condição atípica.
— Por que eu?
River se deita, parcialmente sustentado nos cotovelos, alternando a
atenção entre mim e um ponto aleatório. Acompanho os fios escuros pingando
no edredom, conforme seu aroma cítrico invade o cômodo. É agradável, não
posso negar, mas é perturbador lembrar que esse mesmo cheiro impregnava
os lençóis do meu quarto e eu busquei a ilusão da minha mãe ter substituído o
amaciante. Todos os detalhes ali, pairando no ar, e é lamentável que nunca
foram provas maiores.
— Quer saber por qual motivo?
— É um tormento ficar sem explicação do porquê ter sido logo eu. Na
minha cabeça, a resposta vai diminuir um pouco a pressão que faço comigo
mesma. — Aposto na sinceridade, espero que faça o mesmo.
— Entendo bem. Sei que está assustada, e dizer qualquer coisa é inútil
no fim, acredite.
O aviso antecipado almeja evitar uma possível decepção com a qual
já estou habituada, lido com ela todas as manhãs. Basta erguer as pálpebras,
constatando que permaneço aqui, então uma onda de impotência bate algumas
vezes, forte ou não, o importante é que bate e puxa parte do ânimo que me
estimula a levantar.
— Mas existe algo único, nem detenho palavras suficientes que
expressem a histeria que invadiu meu corpo. Você pedalava na vizinhança,
levando consigo parte de mim naquele dia, fiquei transtornado com a
sensação — afirma, completamente seguro, percebo isso. A voz é firme e
livre de dilemas, manifestando sinceridade em cada vogal. — Acompanhei
sua dificuldade em manter relacionamentos no geral, como disse daquela
forma tão indelicada à tarde, caso contrário, todos veriam o que eu vejo.
Gente extraordinária não recebe o valor merecido. A necessidade de vê-la
sendo apreciada era inquietante, não contive o anseio de realmente
proporcionar tudo que merece.
— Está tentando justificar suas ações?
— Não vivo de justificativas, querida. Tenho plena consciência do
que faço, por isso não reajo ao seu desprezo, eu aceito — declara no instante
que nossos olhares se cruzam. Ele sustenta esse contato, favorecendo o
arrepio subindo pela espinha. — Eu só não consigo aceitar que ninguém
realmente te valoriza, dando migalhas de atenção e tratando-a como uma
pessoa substituível... Talvez seja difícil de perceber, mas pra qualquer um de
fora, é algo nítido.
— Daí decidiu me sequestrar? — indago no automático, ainda
processando o que foi dito.
— Queria que existisse outra forma, infelizmente, o passado impede
essa possibilidade. A cicatriz representa meu caminho sem volta, não resta
outra saída além de lidar com a escolha que fiz. — Um toque leve sobre
minha mão concretiza o nervosismo diante do calafrio na espinha. — E você,
Greta? Quero saber, realmente está feliz com sua vida? Seja sincera, e se
estiver, juro que garanto seu retorno para casa.
Sim.
Três letras. Pronunciaria rápido, fácil e, quem sabe, ele cumpriria o
combinado repentino. Não tenho nada a perder. A única exigência é a
sinceridade. Analiso sua paciência na postura relaxada, enquanto os dedos
acariciam minha mão sutilmente. Numa fração de segundos, chego a crer
nessa segurança invadindo, como se nada pudesse nos afetar. Ele é
irremediável, sem chances de mudar, e não tem problema em lidar com isso,
por outro lado, estou neste limbo de transmitir emoções falsas, emoções que
ninguém sequer busca averiguar se são de fato reais. River enxergou além da
fachada enganosa que não é relevante para os outros... Fui vista inteiramente
pela primeira vez na vida, movida na comoção. Aperto sua mão e arrebato:
— Eu não sei.
Capítulo 10

A convivência evoluiu nos últimos quinze dias, com Greta empenhada


em desenvolver maiores diálogos, se autoanalisando em consequência do
nervosismo atípico sobre o soar da voz masculina vinculado à imagem das
mãos unidas, que não provocavam repulsa, nutrindo um consolo imprevisto
no contato. Os pés suspensos na varanda balançavam, conforme descansava a
vista, esbarrando no ínfimo traço de tranquilidade à medida que observava os
longos pinheiros distantes.
Desviou o foco para a pele marcada, massageando a região pela
terceira vez no dia. Fazia pouco tempo que tivera as noites interrompidas
pelo incômodo do pulso preso à cabeceira, com River desejando evitar
outras possíveis fugas diante de toda a mudança no comportamento da jovem.
Precisava sondá-la minuciosamente, depois diminuiria as ressalvas.
— Podemos descer para o lago mais tarde?
— Faremos isso amanhã — respondeu, parando a leitura do livro
gastronômico que lhe chamou a atenção no mercado, utilizando o indicador
para posicionar os óculos de lentes grossas e redondas. — Hoje fiz planos
para nós.
— Vai me dizer o que é?
— Ah, princesinha, é contagiante vê-la alegre, mas terei que guardar
segredo por ora.
Greta contava os sorrisos espontâneos que dava, chegando à
conclusão que aquele fora o tempo mais longo que manteve as pontas dos
lábios erguidas. No tempo que esteve resfriada, a lembrança de River quando
despejou frases ácidas reinava na consciência. Aceitava a possibilidade de
que ninguém realmente se importava.
Os pais viravam as costas para o abuso na suposição de que estava
sempre quieta, fazendo parte da conduta incomum, jogando-a numa psicóloga
na crença de tratar por completo essas “esquisitices”, termo que uma vez
ouviu Ellen comentando com as amigas. E o que diria de seu pai? Bryan era
quieto e omisso, demonstrando nenhuma preocupação. Nathan pretendia
trocá-la, era uma questão de tempo, especialmente quando priorizava outras
pessoas, todos pareciam mais interessantes do que Greta, caso contrário, ela
já bastaria como seu pilar primordial.
Eles. Eles são tudo de mais precioso que colheu da vida, por eles que
persistia em vez de se render. Então, por que não sentia ser recíproco? Não
supriu as expectativas de Ellen, não desenvolveu nenhuma relação
genuinamente profunda com Bryan, ao ponto de sentir-se segura para lhe
contar o assédio e o abuso que vivenciou, causados pelo próprio irmão dele,
e Nathan em breve abdicaria da amizade que construíram. Por mérito de
River, visualizou o impacto iminente que esses acontecimentos provocariam,
estava crente que permaneceu cega durante um período extenso demais.
Acreditava precisar desse empurrão para ver a realidade, um empurrão que
veio integrado no “gente extraordinária não recebe o valor merecido”,
aumentando a combustão de sentimentos. Alguém a achava extraordinária?
Como poderia ser possível? Pensava, largada na cama, perdida entre os
barulhos da madrugada.
A narrativa não é perfeita, nenhum esforço era feito quando
relembrava o porquê deveria manter o desprezo. Em contrapartida, quase não
controlava essa onda que ameaçava afogá-la no conforto, o toque das mãos,
aquele sorriso diferente e o “eu só não consigo aceitar que ninguém realmente
te valoriza”.
— Mas, se quiser matar o tempo, comprei uma garrafa de vinho
branco. O que acha? — Regressou, abandonando a memória recente mais uma
vez, piscando com a menção do vinho.
— E-eu nunca bebi — gaguejou, pressionando os dedos contra o
assoalho de madeira.
— Bem, uma oportunidade surgiu hoje.
— Não sinto tanta vontade de beber ainda, sendo sincera.
— Hum... — Quis mostrar a insatisfação ao bufar e revirar os olhos,
com a quebra do contato e o retorno da leitura. — Quando penso que estamos
melhorando, você...
— Eu topo! — ela o cortou, atordoada por ele julgá-la mal, como a
maioria fazia. — Vai ser divertido.
— Pode ter certeza disso — garantiu, regressando à postura aberta,
aquecendo o coração dela, que sorriu, contabilizando mais um sorriso para
sua lista mental.
A primeira taça de vinho foi colocada de frente para a garota, que
jamais ingeriu uma gota de álcool sequer, fazendo-a engolir em seco. Houve
oportunidades, claro, Nathan bebia cervejas atrás da lanchonete e costumava
oferecer, mas Greta negava, alegando que o aroma lhe dava náuseas. Então,
nem queira ir para baixo da arquibancada em dia de jogo, é uma mistura
de álcool, cigarro e preservativo usado. Sempre existiram histórias daquele
local deserto na madrugada, perfeito para aventuras que certas vezes traziam
consequências.
O maior ocorrido da arquibancada foi com Annabel Dolan. Todos
testemunharam a barriga crescendo da garota prendada, com os pais pastores
endurecidos na quebra do celibato. Ela nunca quis assumir quem era o pai do
bebê, tentou falar com ele no início e sua resposta foi direta: o máximo que
posso fazer é te levar na clínica para tirar essa coisa... Mas assumir? Você
ficou louca, porra?
Nathan contava os detalhes, tinha amigos que eram próximos dela e a
ajudavam com doações em dinheiro para cobrir as consultas, já que os pais
preferiram manter distância do “pecado”. Greta costumava doar vinte dólares
todos os meses, inclusive conseguiu itens de bebês que sua tia guardava.
Ficar grávida na adolescência, sem apoio dos pais, agravava um momento
que já era complicado. Não dizia muitas palavras, apenas entregava os itens e
recebia um sorriso. Obrigada, Greta. Deus te abençoe, agradecia e
encerrava a interação rápida.
O bebê, naquela altura, já tinha nascido. Supôs a cor do cabelo e se
herdaria o olhar gentil de Annabel. Gostaria de tê-la visitado na casa dos
tios, que foram acolhedores. Quem sabe não pudessem conversar mais, ajudar
nos conteúdos que perdeu da escola, poderiam ter sido amigas. Bastava falar,
notava o interesse de Annabel em prolongar a interação, mas abdicava dessa
ideia em seguida.
Talvez tenha sido melhor assim.
— Beba sem medo.
Segurou na taça, contemplando a coloração dourada com o aroma de
frutas cítricas que impregnava o olfato, diferente da cerveja. Resolveu beber
para averiguar se o gosto a impressionaria tanto quanto o cheiro. Não
demorou para o líquido circular entre a doçura e acidez, havendo uma
estrutura agridoce forte por intermédio do álcool.
— Eu gostei — declarou, com o gosto recente na língua. — É
realmente bom, mas de um jeito estranho, não sei explicar...
— Vamos acabar com essa garrafa e no final você faz uma análise
crítica digna de uma sommelier.
Quando a taça ficava vazia, não demorava para ser preenchida,
ajudando a conduzir a espontaneidade da conversa, descobrindo que River
partilhava do prazer em ler, explicando a relevância dos clássicos que
acabaria adiando para alcançar um aprofundamento maior na literatura,
mencionando as obras de Fiódor Dostoiévski como sua paixão pessoal.
— Acho exaustivo, essa é a verdade, tentei ler sommelier e, nossa, é
lento, quase parando — comentou, colocando o vinho no piso, para deitar
sobre o tapete felpudo. — Dizem que essa obra muda suas percepções
quando termina, que é monumental... É uma pena eu ter desistido na metade,
suportei muito, na verdade.
— Tem narrativas lentas ou escritas rebuscadas que vão te fazer reler
o parágrafo, faz parte do processo — refutou, espiando na lateral a perna
desnuda por causa do vestido que subiu. — Invista em outros livros... Fiódor
aborda muitas questões existenciais, Crime e castigo é impecável, tenho um
exemplar antigo, se quiser.
A pele era alva, uma pressão leve serviria para as digitais ficarem
marcadas lá, mudando a tonalidade para vermelha ao longo de segundos tão
curtos que evaporariam, fingindo que nunca existiram, enfurecendo-o
parcialmente. Greta era uma dádiva angelical caída do céu, maltratada no
meio dos mortais, que destruíam aquilo que carecia de devoção, sem
escapatória. Terminou impactado internamente no instante em que a viu, então
por que não faria o mesmo?
— Chato... Você fala isso e parece muito chato. — A voz saiu
embargada e Greta tem dificuldade para sentar, agarrando a taça, que
transbordava um pouco de bebida no assoalho. — Prefiro romances clichês,
histórias repetidas, sabe? Nada que contenha um final.
Pausou a fala, cedendo à vontade de beber o restante do líquido, com
uma gota escorrendo do lábio para a garganta. River apertou o tecido da
própria blusa e desviou o foco, preservando sua compostura.
— Que tal você vestir a roupa que deixei separada no seu quarto?
— Roupa? Nós vamos sair?
— Quem sabe, só vai descobrir quando estiver arrumada.
Recebeu ajuda para levantar, ria da dificuldade em dar passos,
tropeçando nos pés. Foi impedida de cair com as intromissões do mais alto,
avisando que um banho gelado iria ajudá-la a despertar. Prepararia algo para
ela comer, nesse estado, sua utilidade era inexistente, necessitava dela
parcialmente sóbria, senão nada sairia nos conformes.

River trajava uma calça de alfaiataria preta, com blazer, sapatos da


mesma cor, fechando com a blusa de botões branca. O cabelo estava bem
penteado e alinhado, nem um pouco bagunçado, conforme se via sempre.
Quais eram as intenções dele? Apertou-se no assento, visualizando o vestido
preto com comprimento na metade das pernas, justo, marcando cada curva
que odiava expor, puxando incessantemente para baixo, agoniada com o
tecido roçando na pele enquanto subia, remetendo ao toque de seu tio.
Penteado, vestido, salto e maquiagem. Exigiu cada parte com suas
especificações. Cabelo solto partido no meio, vestido em tubo preto, salto
médio preto e batom vermelho. Não contestou na hora, estava aérea,
continuava quase igual, entretanto, o banho e a comida ajudaram a recuperar
fracamente as percepções.
Chegaram ao destino e ele estacionou no lado oposto da boate. A fila
extensa, com pessoas bem trajadas, atravessava a rua, indo na direção do
estabelecimento. Greta encarava o cenário com descrença. Isso explicava as
vestes, mas por qual motivo fora levada para tal lugar? Foram até a cidade
mais próxima deles, movimentada com instalações abertas. Já era tarde e
Greta não estava acostumada com isso.
Tudo nos conformes, perfeitamente planejado, havendo um propósito
que Greta descobriria da pior forma.
— Por que me trouxe aqui? — Nem o encarou completamente,
deslumbrada com a agitação e as luzes neon intensas colorindo a rua.
— Vamos nos divertir. Você vai entrar naquela boate e tirará todo o
proveito possível — complementou, aproveitando para tirar um isqueiro do
bolso.
— Não tem como eu entrar, nem tenho minha identidade aqui —
afirmou. — E por... por que está fazendo isso?
— Por quê? Prefere ficar trancada num quarto, sem comida e água? —
debochou, tragando o cigarro que lhe aqueceu o interior. — Suponho que não
estou suprindo suas expectativas como sequestrador, não? — Expeliu a
fumaça entre os lábios semiabertos, encostado no assento de couro. — E
sobre a identidade, eles não cobram aqui, fiz uma verificação antes de
virmos.
O pensamento dele fumando, voltado para si, arrumado, com os
primeiros botões desabotoados, dando brecha às cicatrizes relativamente
visíveis, foram elementos que mexeram com ela. A sobriedade não estava ali,
revivia a conversa agradável e o vinho compartilhado pela tarde. Nunca
havia tido uma conversa em que sentiu-se com toda atenção presa nela,
fomentando nessa vontade de prosseguir perto dele. Em quais partes do corpo
ele teria mais cicatrizes? Como ele costumava passar o tempo no chalé? Qual
era seu livro favorito? Cobiçava descobrir mais sobre River, mesmo não
pretendendo assumir, escondendo a todo custo as dúvidas ferventes.
— Vai descer do carro ou não? — Despertou com a voz rouca e os
orbes escuros a fitando.
— Você não vem?
— Ainda não, mas não se preocupe, vou ficar atento a cada passo seu
— declarou. — Então continue sendo a minha boa menina, ouviu? — Pôde
sentir a ameaça no fim da frase.
Decidiu descer do carro, caminhando com passos incertos, olhando
por cima do ombro a cada três metros, confessando a insegurança de ir
sozinha, com o nervosismo atrelado quando passou a imaginar River
totalmente focado em qualquer movimento seu.

Entrou facilmente na boate ampla, vinculada ao barulho, junto de


outras pessoas do ensino médio, talvez até mais jovens que ela, usufruindo do
acesso livre. No período em que aguardou na fila, ninguém reparou em sua
existência, esticando a crença das investigações não estarem seguindo o que
idealizou. Nas notícias que assistia sobre desaparecimentos, era formada uma
equipe de buscas na comunidade, espalhando policiais, comunicando as
regiões subsequentes.
Estou colocando uma expectativa alta? Eles estão tratando do jeito
correto? Por que sinto que nada mudou?
O emocional já convertido na fragilidade se esgueirou entre a
escuridão e corpos dançando no centro da pista. Pedia mentalmente por
calma, alucinada na busca de um local reservado que pudesse respirar,
encontrando cadeiras giratórias ligadas à mesa do bar.
A taquicardia aumentou. Quanto mais esforço investia nas inspirações
profundas, mas parecia disparar o coração. Ver muita gente a deixava
sufocada, por não saber o que deveria fazer, ponderando em contar que foi
sequestrada, cética se acreditariam nas palavras de alguém com as
vestimentas alinhadas, sozinha, cujo hálito de vinho predominava. Os
visitantes acabariam gargalhando, supondo que ela estaria brincando, ao
passo que os funcionários a identificariam como uma garota bêbada querendo
atenção.
— Ei, está tudo bem?
— Sim, só é a primeira vez que venho aqui — falou, apressada,
inquieta, na caça de esbarrar com River furioso a secando, condenando o ato
de conceder uma resposta quando nem deveria lhe direcionar atenção.
— E resolveu vir sozinha? Você tem coragem, é perigoso andar por
aqui.
Demorou para reparar melhor na nova companhia de olhos azuis, num
perfeito tom turquesa. O couro cabeludo fora raspado, com a barba rala
emoldurando seu sorriso aberto, com dentes caninos pontudos. Acabou com
calor, mudando a tonalidade das bochechas por observá-lo tanto.
— As ruas têm um bom movimento, não pensei que fosse perigoso. —
Programou uma desculpa decente, ainda tentava acalmar os ânimos
acentuados em virtude do álcool em sua corrente sanguínea.
— Poderia me trazer uma garrafa d’água, por favor? — pediu,
piscando para o barman, que retribuiu com um breve aceno positivo. —
Aliás, me chamo Hayden. — Esticou a mão na direção dela, que a segurou
relutante.
— Meu nome é Greta Lowel — salientou o nome completo.
— Um belo nome.
Ficou desapontada com a resposta, aumentando a certeza de que seu
nome, provavelmente, não estava circulando nos noticiários, logo, seu
desaparecimento talvez não estivesse sendo relevante. A ausência de River
também não facilitou para se recompor. Uniu as mãos suadas e espreitou nos
cantos escuros da boate, tentando encontrá-lo. Desviou sua atenção somente
na chegada da água, que Hayden recusou quando o barman iria entregá-lo,
apontando para Greta e indicando para servi-la.
— Acho que não seria adequado eu tocar na sua bebida.
— Obrigada. — Abriu a garrafa, virando de uma vez, desejando
saciar a sede.
— Então? Vejo que está melhor agora.
— Nem eu sabia que estava com tamanha sede.
— Normal, quase não tomo água quando bebo, acabo apagando assim
que coloco os pés em casa.
— Espero nunca vivenciar isso, imagine lidar com assédio estando
embriagada.
Greta sabia que mulheres eram submetidas ao assédio constantemente,
experimentava na pele os comentários obscenos que desconhecidos lhe
dirigiam no caminho da escola, e sempre apressava os passos, temendo o
pior. Usava roupas largas e nunca esteve livre das abordagens invasivas.
Queria socar os ignorantes, que eram sempre velhos, brancos e héteros,
opinando sobre o corpo alheio, menosprezando uma problemática enraizada
nos preceitos sociais, resumindo tudo em peças de roupas “provocativas”.
Usei roupas vistas como adequadas desde pequena, mas isso não o impediu
de rasgar minha inocência.
— Porra, eu odeio esses babacas... — Pensava alto, sem prestar
atenção em mais nada. — Deveriam experimentar passar um dia na minha
pele, com meus traumas, e ver se manteriam depois essas percepções
arcaicas.
O remédio “especial” fez efeito ao longo de vinte minutos. Hayden a
persuadiu a tomar o resto do líquido, alegando ajudar no regresso da
sobriedade, usando a lábia e o charme para mantê-la entretida.
— Quer sair para tomar um ar? — Demonstrou preocupação na fala,
porém avançou o toque, pousando a mão na perna exposta.
— Tudo bem, mas... — Formular o raciocínio virou um desafio, com
a pronúncia arrastada.
— Vamos, querida.
Querida. Enrijeceu de imediato, atônita, vagando no escuro com baixa
iluminação, procurando-o mais uma vez, enquanto era conduzida.
— Hayden, você... você tem quantos anos?
— Isso realmente importa? — Apertou com afinco o braço,
afrouxando antes que recebesse uma reclamação e ela pudesse recuar. —
Estou tentando te ajudar e recebo esse tipo de pergunta? Talvez seja melhor
deixá-la sozinha.
— Desculpe, eu não quero parecer ingrata — declarou, aflita,
consumida na fraqueza que arrancava a consciência, apagando, com as
pálpebras que insistiam em fechar.
Cambaleava, errando o passo, saindo do estabelecimento apoiada
nele. Mesmo com o estado alterado, ninguém dispunha de checá-la. Estavam
ocupados, orbitando em suas bolhas pessoais, deixando passar outra mulher
inapta a reagir. A cabeça pendeu e avistou o carro conhecido com os vidros
fumê levantados. Não lembrava direito da chegada na boate. Tudo pareceu
ficar embaçado na mente, similar a um borrão. Soltou um grunhido e acabou
prensada contra o carro de Hayden, que grudou seus lábios contra os dela.
Acertada pelo formigamento intenso percorrendo a cabeça, tentou afastá-lo,
sem êxito.
— Não tem como voltar agora — sussurrou de forma ardilosa,
forçando mais um beijo, empurrando-a para dentro do carro destravado,
quase desacordada no banco de trás.
Assim que deu partida no veículo, sabendo exatamente para aonde ir,
Greta apagou com o cheiro forte de conhaque no banco de trás. River o
seguiu, mantendo uma distância que não sugerisse suspeitas, satisfeito com o
plano saindo de acordo, exceto com a cena que presenciou.
Ninguém tocava nela.

O veículo parou no lugar de costume e ele conferiu se a premiada


continuava desacordada. Enfrentou um problema da última vez, quando o
barman errou na dosagem, sucedendo numa premiada que começou a gritar no
banco de trás do carro. Nomeou-a de “premiada histérica”. Em sua opinião, a
gritaria desenfreada não serviria de nada, pois o destino dela já estava
traçado. Geralmente, fazia o que desejava e as largava na beira da estrada
depois. Para toda regra, existe uma exceção, e a bela mulher com olhos cor
de avelã, que pediu pela força bruta quando escolheu gritar, lhe restou tal
exceção. A estrangulou antes de atear fogo no cadáver.
Ao sair do carro, ele olhou o horário, indo na direção do banco de
trás. No entanto, cessou subitamente ao ouvir um galho sendo quebrado,
deixando-o alerta dos passos vindo da mata. A tensão escapou e piscou com
frequência, esperando enxergar melhor no meio das árvores espessas. Girou o
corpo para o lado oposto, inquieto, crendo ouvir outro barulho ressoar
próximo de si.
O espaço escuro aumentava o pavor de alguém estar lhe observando.
Teria sido seguido? Não, para ele era impossível. Tinha toda a cautela de
mudar as ruas, checar o retrovisor ao adentrar a estrada vazia, especialmente
no processo de escolher a pessoa ideal de abordar. Muito bêbada ou sozinha,
adicionando um toque especial de insegurança corporal, apostando nos
vestidos pretos e curtos, batom vermelho chamativo e cabelos longos soltos.
Chamava-as de premiadas, garotas premiadas que usariam essas artimanhas
para receber atenção.
Acalmou os ânimos, supondo ter bebido mais do que podia. Virou
novamente para o carro, dessa vez recebendo um golpe certeiro na lateral da
cabeça, apagando de imediato.
River largou o taco de madeira no chão e ergueu o outro parcialmente
pelo sobretudo, notando o sangue molhar a terra seca.
— Espero que me ajude — falou com serenidade, não condizente com
as ideias de torturá-lo até que implorasse para ser morto rapidamente. — Vou
apostar tudo em você, então não seja uma decepção.

A luz dos faróis foi ligada, ajudando a recobrar os sentidos, com o


obstáculo da claridade ofuscante em manter as pálpebras levantadas. Tentou
movimentar o corpo, mas foi suprimido pelo aperto sufocante em função das
correntes que o prendia no tronco da árvore.
— Merda, mas que porra... — O crânio latejava de maneira intensa,
cogitando que explodiria com tamanha dor. — Ei! Me solta, filho da puta! —
berrou com voracidade, vendo uma silhueta se mover, sem sucesso em
identificá-lo, enfurecido pela sensação de estar aprisionado, já que estava
acostumado a vivenciar o inverso disso.
— Escolheu um ambiente interessante. — Tentou identificar de onde a
voz vinha, averiguando que sua audição havia sido afetada. — Praticamente
isolado à noite, ideal para trazer garotas dopadas para o meio da mata, abusá-
las e depois largá-las inconscientes. Aposto que conhece bem as redondezas,
pela frequência que vem aqui. — O borrão chegou mais perto.
— Eu não faço essa porra... — respondeu, debatendo-se, esperando
afrouxar o aperto das correntes que prendiam a circulação. — Tenho esposa,
porra! Você está me confundindo com o cara errado, caralho!
— Dessa vez, usou o nome Alan, Hayden ou Jack com a garota no
banco de trás do carro? — perguntou, aproveitando para inserir a faca no
campo de visão, brilhante e afiada. — Prefere esconder o nome real, usa
camisinha, luvas, a droga ajuda a esquecer ou embaralhar os eventos das
últimas horas. Bem esperto, Nath.
— De onde está tirando todas essas... mentiras? — Interrompeu o
raciocínio, assimilando a ponta afiada contra sua garganta, dizendo a última
palavra tomado pelo pânico.
— Eu sei tudo sobre você, seu merda! — Segurou no pescoço,
pressionando a cabeça para cima, forçando a faca contra a garganta, fazendo
um corte superficial, com uma trilha pequena de sangue descendo pelo
pescoço. — A garota era a minha isca, tinha planejado uma morte rápida... O
seu propósito seria mais simbólico, até você resolver beijá-la.
— Eu não...
— Por favor, não tente justificar, isso não vai alterar nada do que eu
pretendo fazer.
Apertou o maxilar, fazendo pressão para que Nath abrisse a boca,
agarrando com afinco a língua.
— Vamos apagar esse ato — declarou, esbanjando um sorriso
perverso, absorvendo o medo entregue no semblante de Nath.
Gritos agudos ecoaram no processo de arrancar o músculo lentamente,
espirrando sangue, que desceu na face entretida. A lâmina amolada tornava
fácil. Se quisesse, conseguiria cortar em segundos, mas não era divertido,
gostava de observar a dor genuína que os olhos azuis mostravam, com
lágrimas grossas sendo formadas.
Balançou a língua amputada com os dedos ensanguentados e retornou
a ficar de pé. Manteve a postura, analisando o estrago raso, decidindo
desferir chutes, acertando o abdômen e subindo para a cara. O impacto lhe
desfigurava, fazendo voar os dentes na ação, corroendo um corpo que mal
podia se mover, acabando por vomitar nas próprias vestes, enjoado pelo
cheiro de sangue atacando o olfato, agravado pela dor incessante.
— A minha garota está dormindo, não entende que seus gritos podem
incomodá-la? — repreendeu. — Faça menos barulho, garanto que vou ser
mais piedoso com você.
River não desprendia o foco do sangue fresco, a cor viva do odor
forte incentivava a tirar mais. Segurou o impulso de cortar a garganta e
receber a cascata de sangue, recuando com passos para trás, colocando a mão
no blazer, com um bolso escondido, revelando um pen drive e sacudindo com
entusiasmo.
— Gosta de Frank Sinatra? Ouço ele desde pequeno. — O comentário
saiu eufórico, indo na direção do veículo. — Não vai falar nada? Pensei que
fosse um convidado mais agradável. — Bancou o ofendido pela falta de
resposta. Não resistiu e desatou a gargalhar de forma estridente.
Encaixou o aparelho no som e abriu as portas do carro, para a música
repercutir. Não exagerou no volume, evitando acordar Greta, aproveitando
para abdicar do blazer, cedendo a menor, que se encolhia por causa do frio
entrando.
— Tivemos apenas uma introdução — pronunciou, subindo as mangas
da blusa social. — O show principal começa agora!
A dor de cabeça perturbou Greta no instante que visualizou o teto do
carro. Com sua visão ainda se ajustando, arrastou o corpo para fora do carro
e sentiu tudo rodar.
— Vamos, eu sei que aguenta por mais tempo.
A diversão sumiu, soltando-o quando já não era mais uma ameaça.
Restou terminar o serviço. Ele posicionou as mãos no pescoço, começando a
enforcá-lo, extasiado pela música That's life, que passou anos sem escutar. A
tonalidade mudou, ficando roxa, com Nath cuspindo sangue, enquanto
engasgava, arranhando os braços de River, na tentativa de pará-lo, com as
pernas se contorcendo.
— Será que vai morrer engasgado ou sufocado? — murmurou, com o
outro desistindo de lutar. — Fica a dúvida no ar. — O último suspiro foi
dado, com Nath mantendo os olhos abertos, voltados ao céu, iluminado de
estrelas.
Satisfeito, virou novamente, estando de frente para a menina, que
estava completamente abalada, tentando empurrá-lo, sendo impedida, com os
braços segurados.
— Quais eram suas intenções, hein? Esse homem... Ele me drogou,
você queria isso? — Identificou o cansaço e desgaste que a droga ainda
causava. — Queria que ele me machucasse? — Disparava as perguntas,
atônita.
— Conversaremos sobre isso amanhã — impôs, largando-a. — É
estúpido discutir nesse seu estado deplorável... Mal consegue raciocinar,
querida.
— Não! — A entonação era severa, a raiva crescia na mesma
intensidade que a fraqueza alastrava-se. — Você me usou.
— Usar é um termo exagerado — refutou, tentando passar, acabando
barrado por ela. — Está querendo testar minha paciência?
— Me diga o porquê! — A essa altura, as lágrimas já rolavam na
feição avermelhada.
— Porque é uma prova da minha devoção.
— Devoção...?
— Ele nunca iria encostar num fio de cabelo seu, princesinha —
garantiu. — Ninguém nunca vai te machucar enquanto estiver ao meu lado.
Talvez essa seja a pior maneira de provar, mas serve para comprovar minha
eterna devoção a você.
Permitiu realizar o movimento brusco no primeiro traço dela
reduzindo a raiva para compreender o que foi dito. Uma verdadeira ação
sustentada pelo impulso e genuína sensação de desejar realizar tal ato,
segurando na cintura, manchando o vestido de sangue, convertido no caos que
criou, tornando ainda mais oportuno encostar os lábios frios na boca
avermelhada, com Greta paralisada. A sensação era agridoce. Quis afastá-lo
aos gritos, entretanto, o corpo se entregou à medida que ambos ficaram
grudados.
A necessidade de aprofundar o contato aumentou, experimentando
ainda mais os lábios carnudos, apertando a cintura e puxando-a para perto,
cobiçando acesso completo. Os pensamentos rodavam, confusos, sobre o que
estava fazendo, deslizando a língua quente sobre a dele, movimentando a
boca sem pressa, pegando no rosto, dedilhando o corte na bochecha esquerda,
que instintivamente acariciou, perdida no gosto da bebida.
Guiado pelo fervor ao descer a mão, Greta despertou, saindo do
encanto ilusório, retratando o ocorrido numa droga que a fazia arrepiar.
Ainda assim, desfez o contato, afastando-o e acertando um tapa, deixando a
pele com os dígitos dos dedos, restando as respirações ofegantes. A
intensidade assombrou um, pois o outro orquestrou para que terminassem
assim.
Capítulo 11

Sirvo a taça redonda com uma dose de conhaque, sucumbindo em


espreitá-la bebendo outro copo d’água, necessário perante o excesso de
álcool e droga. É triste observá-la com o semblante abatido, com sua
maquiagem escorrida e borrada, a face igual uma rachadura na mais bela
escultura. Felizmente, a destruição também é renascimento. Coloque-a no
inferno e estenda a mão, ela precisa disso, e logo verá as coisas de maneira
distinta e amará cegamente.
— Por que não sobe e dorme um pouco? Vai se sentir melhor.
Segundos se estendem e viram minutos, com nenhuma resposta sendo
emitida. Tive o prazer desse silêncio ao regressar para o chalé, com minha
doce menina perturbada por ter presenciado o cadáver queimar, enquanto
entrava no carro, ficando enojada. Ou ter retribuído o beijo de seu raptor foi
o que a enojou?
— Voto de silêncio não cessará as divagações te rondando. —
Permaneço passivo, aberto a qualquer reação. — Fale de uma vez —
acrescento, aproveitando a ocasião para acender um cigarro.
Não sou um fumante ativo, na maior parte do tempo, a nicotina não faz
falta. Porém, ultimamente, desenvolver emoções enérgicas é peculiar. Estive
na constante apatia nos últimos anos, invadido vagamente pelo prazer visceral
do sangue quente, acendendo dentro de mim o lado detido na violência. Até
sua chegada, que deu sentido à minha existência sem propósito, com sua
feição cândida, delicada, submetendo ações corriqueiras nessa euforia
incontrolável de reprimir. Dias passaram, estimulando a dependência de tê-la
sendo tão necessária quanto os batimentos que me mantêm vivo.
Ela me pertence e eu sou devoto à sua inteira existência.
— Eu... Eu não aguento. — A mente é fraca, apesar do histórico não
ser dos melhores. — Esse é o segundo corpo que te vejo dar fim e... —
Tateou os lábios, incapaz de continuar.
— Quanto exagero, Greta. Entende que está impactada com a morte de
dois estupradores? Fodam-se as circunstâncias que te fizeram presenciar os
corpos, o desfecho é o que importa, certo? — afirmo. — E não fique surpresa
com o beijo, é uma consequência natural do nosso envolvimento. — Ao final
da frase, um sorriso involuntário transparece na sensação dos lábios
avermelhados me acariciando. É revigorante a brisa da lembrança recente.
O significado de ela retribuir equivale à fraqueza em ceder, agregado
à antecipação que surpreenderia os policias e a imprensa pela suposta
“rapidez”. Um equívoco da maioria. Colocá-la na posição da garota indefesa,
com Síndrome de Estocolmo, é uma justificativa conveniente que
desencadearia a comoção nacional. Usem o que quiserem: Síndrome de
Estocolmo, Transtorno delirante compartilhado, para o inferno com esses
termos. Não injeto delírios psicóticos, como podem vir a dizer, nessa linda
cabecinha, é desnecessário. Greta está mudando sozinha, recebendo um
pequeno auxílio, pois que tipo de ser humano eu seria caso não ajudasse?
— A culpa daqueles merdas cruzarem o meu caminho é inteiramente
sua. — Xingamentos sendo emitidos por ela nem parecem mais xingamentos.
— Eu nem consigo me reconhecer, minhas atitudes não condizem comigo.
— Não deve se conhecer inteiramente, então. — Ninguém é singular,
tolos são os que pensam assim. — E qual é a minha culpa mesmo? Você
escolheu descer do carro e beber o que lhe foi oferecido por um estranho. O
livre-arbítrio esteve contigo nessas ocasiões, não jogue suas más decisões em
mim, docinho.
A expressão muda, pendendo na autoanálise introspectiva, recorrendo
a mais um gole d’água, cobiçando ganhar tempo. Ela pensa em excesso. Até
que ponto tolero esses períodos aéreos? Paciência, é uma transição...
— Como sabia? Daquele cara no bar? — A pergunta é tendenciosa,
com o soar acusatório, complementando com ela levantando e vindo até mim,
não demorando para a tontura abater sua pressão, que cai.
— Por Deus, não sabe ficar quieta? — Tomo liberdade em puxá-la,
fazendo-a sentar no meu colo, onde posiciono a garota, que petrifica. —
Respeite seus limites ao menos uma vez.
Ela esquiva quando tento tocá-la, relutante do que pretendo fazer,
baixando o vestido, juntando as pernas e cruzando os tornozelos. Certo, posso
mudar essa postura de apreensão velada, basta decidir as ações mais
adequadas. Imagino por onde devo iniciar.
— Eu tinha uma noção sobre o que viria quando entrou naquela boate
— esclareço a dúvida anterior, dando uma tragada no cigarro e expelindo a
fumaça com os lábios semiabertos ao lado contrário de Greta. — Na primeira
gaveta, embaixo do quadro, tem uma caixa com fichas de pessoas semelhantes
àquele puto.
— Fichas? — repete, fitando o móvel.
— Gosto de criar fichas para as minhas vítimas. Por exemplo, o
homem que te dopou é o típico verme que tira proveito de garotas em festas,
pondo drogas nas bebidas, vinculado ao barman. — Sei que a fisguei perante
os orbes verdes vidrados em mim. — Isso antes de eu queimar o desgraçado.
— Fazer churrasquinho de Nath é um jeito eficaz das digitais não serem
encontradas, gosto do método.
— Então fui usada? Insistiu nessa roupa sabendo que iria atraí-lo? —
O timbre da voz é falho e alterado. — Entende que você ia deixá-lo...
— Nunca vou permitir que alguém lhe machuque. Confesso que o meu
único erro foi não arrancar a pele fora. — Enalteço o “nunca”, impedindo-a
de levantar. — Não encare com essa perspectiva, encare como alguém que
está disposto a enfrentar o inferno por ti.
— Isso é a porra de uma mentira! — esbraveja. — Não me colocaria
nessa situação se estivesse dizendo a verdade, é idêntico a eles.
— Eu caço pessoas podres, não me rebaixo como eles, que tiram
proveito de qualquer um, então não diga besteiras. — Sei que vai contestar
usando a cartada do sequestro, porém disparo: — Eles são estupradores,
Greta. Tem noção de quantos psicológicos foram destruídos? — Apago o
cigarro no cinzeiro, investindo no toque que, dessa vez, é aceito, com minhas
mãos na nuca. — Desculpe, querida. Detesto tê-la usado, fiquei possesso
quando presenciei ele lhe pressionando, mas, por favor, enxergue as boas
intenções no meu erro. — Coloco uma madeixa de cabelo atrás da orelha,
quero captar melhor o semblante que virá.
A boca abre e fecha, formulando raciocínios que se perdem, restando
nosso contato visual intacto.
— Anseio por te proteger a todo custo, nunca conteste isto —
sussurro, perigosamente próximo de seu rosto. — Prometo que não vai
acontecer de novo.
— Eu... — Ela está incerta.
— Confie em mim. — Pressiono as maçãs do rosto. — O medo vem
justamente porque é a sua primeira vez sendo prioridade na vida de alguém.
A reprise ultrapassa as barreiras do desejo ambicioso, com o aroma
delirante adormecendo os demônios internos. Meu pequeno anjo soturno se
entrega a mim de novo. É inevitável escapar desse doce beijo entre um anjo e
demônio.
Anjo e demônio, usarei essa visão convertida no olhar lírico, palavras
poéticas tendem a mascarar uma realidade áspera.
Capítulo 12

Sorrisos e trajes combinando davam ênfase ao retrato de família.


Analisou a imagem na varanda do segundo andar, ressaltando dúvidas sobre o
trajeto que encaminhou River aos dias atuais. Geralmente, as experiências
conturbadas dele eram ditas entre comentários avulsos, podendo vir de uma
recordação no chalé ou sendo avulsa mesmo. Aproveitava para fazer
perguntas, estimulando que contasse mais, entretanto, de nada adiantava, pois
ele se fechava e mudava de assunto, atrapalhando sua construção mental do
passado dele e a influência disso hoje.
— Não quer mesmo aprender a atirar uma flecha? — O convite veio
da parte externa. Estava ajoelhado na grama, verificando a qualidade do arco.
— Quem sabe depois — negou, abandonando o retrato na cabeceira
do quarto, para encostar os cotovelos no corrimão, alcançando a vista
completa do chalé construído na margem do lago.
— Perderá a diversão.
River encontrou o antigo arco e flechas do pai. A manhã foi resumida
na vibração de testá-lo, para constatar se continuava bom no quesito mira. Os
antigos alvos foram encontrados cercados por caixas empoeiradas quando
vasculharam o sótão, desencadeando um entusiasmo, admirando a
conservação dos itens, mencionando o costume de usá-lo nas férias.
Após ouvir trechos sem contexto, envolvendo histórias turbulentas
sobre o chalé, presenciar uma lembrança boa aumentou a interrogação dele
tê-la trazido justamente para esse local. Dessa vez, ficou quieta. Assim que
era encarada, seu nervosismo bloqueava a fala, enfrentando o obstáculo de
lidar com os beijos trocados na noite anterior, constrangida. Ambos não
tocaram no assunto e, diferente dela, ele agia normalmente.
Largou o incômodo de ter permitido que chegasse longe do que jamais
cogitou, tendo sua atenção voltada para a postura impecável diante do arco
erguido, posicionando a flecha com cautela, apontando para o alvo preso na
árvore. A concentração era presente no semblante fechado, prendendo os dois
sobre a brisa fria atravessando, movendo os fios escuros, assemelhando o
instante num contraste de uma pintura na presença de River conectado à
floresta colorida no céu nublado.
A primeira flecha foi solta e atingiu direto o centro do alvo. Instigado,
prosseguiu na sequência das flechas lançadas com precisão. Aparentando que
só precisava mirar uma única vez para acertar o restante, chegando ao final
com todas próximas envoltas do centro.
Convencido que se depararia com ela espantada no quão certeiro foi,
encarou por cima do ombro a sacada, desejando vê-la impressionada, com a
boca aberta, olhos arregalados brilhando, na ponta dos pés, almejando uma
visão privilegiada, entretanto, as expectativas foram frustradas, pois a jovem
não estava mais ali.

Afundada na banheira, com os braços envoltos nas pernas, Greta


enterrou o rosto entre os joelhos, suplicando para apagar os pensamentos
impuros que proliferaram conforme o observava. Nunca conseguiu imaginar
nada do gênero, qualquer aspecto sexual lhe remetia à aversão, então, por que
os lábios dele contra os seus não causavam o mesmo sentimento?
— Eu perdi a noção. — Elevou as mãos e puxou a raiz do couro
cabeludo. — Patética, patética, patética... — Aumentou a pressão no cabelo,
arrancando os fios, percebendo as lágrimas pingando na água.
A incansável vergonha de querer receber a aprovação de River
acabava lhe deixando apavorada por desconhecer o motivo dessa vontade
repentina tomando espaço, apesar da sua racionalidade repercutir diariamente
sobre o quão problemático era esse envolvimento com alguém que se
considerou no direito de sequestrá-la. Vivenciar a inquietação mental foi uma
previsão certeira de que seria importunada por si mesma pelo restante do dia,
sondando sobre qual foi o momento exato que o mais velho passou a exercer
uma influência que elevava o ânimo ou ressaltava as inseguranças afloradas.
Confiar na opinião de River provavelmente bastaria de alerta,
entretanto, a partir do instante que ele a salvou de sofrer um abuso,
inconscientemente, emoções vinham com outros traços deste, abrindo a noção
de que experimentaram dor provenientes das famílias. Greta cometeu o erro
grave de humanizá-lo, o erro cruel de deixá-lo conduzir suas percepções,
fazendo a razão pertencê-lo, pondo a culpa constantemente nos ombros da
pessoa que nunca teria errado em nada dessa situação. Ela lutava para
sobreviver, pressionada pelo desejo incessante de liberdade que o
sequestrador fazia questão de destruir.
Meus pais vão ter nojo de mim, ninguém deve ajudar alguém tão
desequilibrada quanto eu. Por que estou me autossabotando? Fui sua isca e
minha resposta é permanecer o querendo por perto? Não reconheço mais
meus pensamentos.
Descansou os braços na água e fitou os fios soltos boiando,
encostando a cabeça no azulejo rosa da parede e ignorando o couro cabeludo
latejando diante da dor causada.
— Ele não fez nada — murmurou. — Fui eu que fiz, a culpa é minha.
As coisas ruins vêm de mim, River estava certo.
Talvez eu precise dele, nunca me senti apta para estar sozinha.
A conversa recente atormentava, os argumentos opostos fizeram
sentido, e chegou à conclusão que não teria capacidade de decidir o que era
melhor para si. Os soluços do choro escapavam e estava envolvida na
invalidez de pensar isso, procurando a ilusão nos instantes que as palavras
dele não machucavam, somente entregavam o estranho conforto da devoção
dita anteriormente, entrando nessa esfera que interrompia a aversão frequente
da realidade.
Greta preferia manter-se atrelada às promessas feitas, especialmente
na “proteção” de ninguém nunca feri-la novamente, ressaltando o quanto ele
seria o único com essa capacidade, contribuindo para esmigalhar o lado
racional, se rebaixando ao papel que River muito idolatrou quando reparava
nela. Era incapaz de contestá-lo, apenas aceitando, e no entendimento do
maior, partilhando das exatas opiniões no futuro.
Capítulo 13

No decorrer da aurora, enquanto Greta dormia, a figura pálida saiu


para comprar ingredientes específicos no mercado. Faria as receitas que
havia aprendido com a mãe quando pequeno, aquecendo no peito a
recordação, manifestando os cheiros dos alimentos. Uma comida deliciosa
diz mais do que mil serenatas de amor, querido. Confie em mim, garantiu,
sujando a pontinha de seu nariz com farinha e arrancando um sorriso amável
do marido, que admirava a cena. Tardes de domingo tangiam nele indo ao
mercado com o pai e regressando para cozinhar mais uma receita do
caderninho da progenitora. Sentia falta dos dias alegres, antes do acidente.
Expeliu a tentativa da tragédia elevar-se. Aquilo ficou para trás, o seu futuro
dormia no segundo andar, e caso quisesse alcançá-la num nível irreversível
de afeição, tinha que estar atento à parte relevante.
Verificou a cesta pela quarta vez, não queria arriscar esquecer nenhum
item. Ansioso para surpreendê-la, deixou separada uma toalha de mesa e
taças para inserir o suco de uva natural. Envolver álcool só ressaltaria o
evento traumático sucedido há seis dias. Apesar daquilo não lhe importar,
tudo só contribuía para o que ele queria. Tratava até o episódio inesperado,
com ela se embrenhando na mata e dando de cara com o desconhecido na
cabana, uma verdadeira dádiva a seu favor.
Estamos construindo nossas memórias, a sensação me revigora,
admito.
Concluiu, chegando na porta dos aposentos e realizando as
costumeiras batidas suaves. Ouvir o bocejo mesclado ao barulho do corpo
espreguiçando, comprovava que havia acordado. Emitiu um “entre”,
assegurando que poderia recebê-lo, pronta para ser liberta da amarra que
prendia o pulso na cabeceira.
— Coloque um casaco e sua roupa favorita, faremos um piquenique
no lago — anunciou, reparando na lentidão dela de processar a informação,
ainda sonolenta.
— Piquenique? Não está muito frio lá fora... — balbuciou, segurando
o pulso vermelho, passando a movimentar a mão, para ajudar o sangue a
circular.
— Por isso que mencionei o casaco, anta. — Revirou os olhos diante
da falta de ânimo. Quanta ingratidão! — Tome um banho e se vista, estarei
esperando.

O vestido branco, com comprimento nos joelhos, percorria a pele


alva, que ajustava o sobretudo preto cedido a favor do acompanhante. O ar
gélido incentivou as mãos a afundarem nos bolsos, alcançando os passos do
outro pelo campo. Os raios de sol iluminavam a área e beijavam a textura
terna da face, que esquentava com o calor facilmente apagado em detrimento
do frio atuante. A toalha de mesa foi posta na grama, com o autor do
piquenique ajeitando os pratos feitos com cuidado, alinhando a parte doce de
um lado e salgado do outro. Greta mantinha-se alheia, admirando a visão
engrandecida do lago ordenado pelas árvores, acalmando o conflito interno
quanto aos sentimentos alastrados por River fugirem do que seria esperado de
alguém na sua posição.
— Vamos, Greta, pare de enrolar, a vista continua igual — alfinetou,
aborrecido, projetando uma reação de entusiasmo que nunca veio.
Evitou dar importância para a ignorância corriqueira, preferiu manter-
se focada no que provaria primeiro, acabando por decidir pela torta de
amora, tão chamativa com o cheiro doce agraciando seu olfato.
— Não fique só olhando, prove.
Serviu-se do primeiro pedaço e sem cerimônias mordeu a fatia
crocante, levemente salgada, antecedendo o recheio evidente da fruta. Ficara
perplexa em companhia do sabor delicioso. A calda de amora aparentava
desmanchar no paladar.
— Está ótima — elogiou, logo ocupando a boca com outro pedaço.
River relaxou em comparação a antes. Receber reconhecimento pela
refeição consistia nela dando lacunas estreitas para chegar ao controle
parcialmente perdido depois do baque no afastamento brusco. Assimilando as
atitudes que tomaria, precisaria de mais para abalar sua confiança. Sem
cerimônias, serviu as duas taças com o líquido escuro, enfatizando que a
bebida era suco de uva, quebrando qualquer ressalva. Provou a doçura ácida
da fruta, acomodando-se de lado, apoiado no cotovelo, vagando pela cesta à
procura do objeto essencial: um livro, escondido bem no fundo. Madame
Bovary, por Gustave Flaubert.
Removeu o marca página, voltando para o momento que parara,
deixando Greta o avaliar de maneira peculiar sobre como ele poderia ser
sanguinário quando praticava as ações deploráveis, beirando à singela
insanidade revelada no aspecto mais doentio de si, equiparando-se com a
aparência atual. A postura sossegada, o olhar despreocupado, as vestes
limpas, que em outra situação estariam banhadas pelo sangue alheio, tudo isso
transmitia a hipótese de duas pessoas diferentes habitarem naquele corpo. No
entanto, River separava as camadas que pretendia apresentar, as distinções só
portavam o propósito de não terminar jogado no estereótipo dela, o julgando
como um indivíduo limitado e singular.
— Gosta de clássicos? — Inseriu o diálogo, encerrando o silêncio
estendido além do aceitável, acertada na curiosidade de captar as opiniões
sobre a obra.
— Não gosto — negou, sem perder a atenção na leitura. — Ou
melhor, eu não gostava, mas a minha mãe insistia que eu consumisse esse tipo
de literatura, então, com o tempo, os livros ficaram interessantes.
— Qual o nome dela? — Efetuar tal pergunta oportuna serviria para
finalmente descobrir mais do passado nebuloso.
— Já leu Madame Bovary? — Bancou o dissimulado, destoando da
indagação e lançando outro questionamento, recebendo um breve “sim” de
retorno. — A protagonista é impecável em todos os sentidos. Presenciar
Emma e suas desilusões com o amor, sendo desfeito na cruel monotonia
inesperada do sagrado matrimônio é cativante.
— Não enxergo o que tem de bom na desilusão... Emma é amarga,
constrói dívidas exorbitantes e detém-se nos próprios interesses egoístas —
contestou, cismada no objetivo do assunto. Puxou o croissant, beliscando
pedaços sem quebrar o contato visual.
— Essa é a melhor parte, não? Emma vai contra as personagens
honestas, castas e nobres da época. Ela até engana no início, mas basta
avançarmos para encontrarmos uma pessoa que mantém distância do que é
supostamente certo. Uma mulher casada que traía o marido sem nenhum
pudor, imersa na convicção do amor intenso integrado numa vida luxuosa. —
Contagiado no próprio monólogo, não resistiu em entrelaçar seus dedos nos
dela. — O termo Bovarismo foi criado graças ao livro, e sabe qual o seu
significado? A inclinação que as pessoas podem ter de fugir da realidade,
fantasiando circunstâncias de uma vida inexistente.
— O que você está querendo dizer com isso?
— Eu não me importaria de fantasiar tendo uma vida ao seu lado, do
que arrancá-la de um ambiente genuinamente amável... Emma se iludia com
os casos amorosos, igual minha querida princesinha sonhava com o cenário
de uma vida melhor no futuro, certo? — O timbre da voz pendia na
serenidade, alisando a pele com a ponta dos dedos. — Os anos posteriores
iriam destruí-la, ninguém te daria apoio, ou acredita que Nathan te suportaria?
De longe, dava para vê-lo exausto na sua presença. Sob outra perspectiva,
seus pais estariam presentes para você, mas será que seria sincero? A filha
dependente, que não é apta para estar sozinha, sustentados nesse peso
estarrecedor...
— Por... Por que me quer tanto? — O arrepio circulava dos pés à
cabeça, recebendo um choque à menção de Nathan, levantando os inúmeros
cenários referente a quando River obteve essa impressão do seu melhor
amigo.
— Eu já expliquei o seu efeito em mim, não? — Arqueou uma
sobrancelha, não vendo necessidade de estar se repetindo, antes da feição se
alterar e abrir um sorriso convencido. — Ou você gosta quando digo o quão
importante é pra mim?
— O quê? Eu não...
— É tão especial e me sinto distinto da maioria por ninguém lhe ver
que nem eu — declarou, puxando as mãos unidas para cima e inserindo um
beijo na região. — Deveríamos comemorar! Você está livre daqueles
imundos e do desprezo escancarado contigo.
— Meus pais não são pessoas ruins, você está distorcendo as coisas
— rebateu, incrédula, predominando a razão, se desvencilhando dele, que
trincou os dentes, averiguando neste teste que cortar laços era uma tarefa
rigorosa.
— A Greta é diferente da maioria, entendem? Ela não tem grandes
ambições ou muitos amigos... Acho que Bryan e eu nunca teremos netos, nem
conseguiremos viajar o mundo juntos porque ela demanda um suporte que
drena nossa energia por inteiro. O dia acaba e só temos vontade apagar na
cama. É meio cansativo. — River imitou a voz de Ellen, roubando a taça
vazia para gesticular, fingindo beber vinho. — Aquele clube do livro é a
escória das mulheres quarentonas frustradas com suas vidas e sua mãe adora
menosprezar sua imagem lá — acrescentou, no aguardo dessa menção
assertiva atingi-la.
— Porra! — esbravejou, mordendo a parte interna da bochecha,
impedindo-a de lançar xingamentos. — Eu sabia, sempre soube... Tenho
vergonha dessas lamentações serem jogadas numa roda com a maioria
bêbada, eu sou um desgaste que eles sustentam, talvez persistissem na
esperança de uma mudança vir de mim... — Perdeu a linha de raciocínio,
asfixiada na frustração. Gosto de imaginá-la num apartamento luxuoso!
Dando festas chiques, rodeada de pessoas importantes interessadas no que
você tem a dizer. Suas palavras são mágicas, raio de sol!, assegurou,
alisando a figura adormecendo, ouvindo os sonhos altos da mãe relacionados
a ela.
Mentirosa, a porra de uma mentirosa!
A memória estava esmigalhada na mente, com o toque do outro
invadindo, elevando as digitais até as madeixas lisas, unindo os fios
espessos. Cedeu na investida. River presumia que não existiam grandes
impedimentos diante da facilidade em mexer com uma mente perturbada,
sobretudo quando ele detinha de informações cruciais.
Uma mentira é sempre bem-vinda.
Presumiu, orgulhoso do efeito instantâneo, não hesitando em romper o
espaço entre ambos, sucedendo na cintura da mais nova, sendo sustentada
com firmeza.
— Não deixe as falas daquela piranha te afetarem — sussurrou,
conduzindo o corpo a deitar na grama, ela não protestou. — Eu estou aqui,
única e exclusivamente entregue a você.
Teve cuidado quando se colocou sobre Greta, não queria assustá-la.
Um deslize e arruinaria o momento. Esteve incerto, observando-a pressionar
as pálpebras, com medo do passado se estabelecer.
— Pare de ficar se pressionando — pediu, deitando a cabeça em seu
peito. — Seus batimentos estão descompensados. — Mirou os olhos
acinzentados nos verdes acima. — Relaxe.
A frase final revelava os pensamentos alvoroçados de Greta já
afeiçoados às amarras psicológicas que a continha nas ilusões do que lhe era
dito. River surgia como alguém que a apreciaria verdadeiramente, na
dedicação ressaltada pelo próprio, alienando sua mente que ninguém estaria
disposto a ampará-la, que ele se esconderia consigo do mundo caótico e
impiedoso. Seriam somente eles daqui em diante.
O sopro fresco do vento atravessava a planície, com River
vislumbrando as íris brilhando, estando com a pigmentação mais visível em
face da claridade. Especulou o quão condenável seria tocá-la, como se o seu
toque pudesse reduzir a pureza emitida e a ideia de tê-la mais semelhante
consigo o instigou a unir os lábios, que se encostaram alvoroçados, levando-o
a exigir um contato acentuado ao segurar na cintura para encaixar os corpos,
arrancando um suspiro involuntário da estudante, que buscava apreciar a
sensação. Repousou as mãos na feição pálida, tateando o indicador sobre o
corte cicatrizado.
Lidou bem com a aproximação. As vestes roçavam, subindo
vagamente e exibindo as peles. No entanto, entrou em alerta quando o beijo
cessou, com ele descendo os lábios para o pescoço. A fisionomia tencionou
no chupão, ele cobiçava encontrá-la caminhando pelo chalé marcado nela.
As mãos escorregaram, chegando nas pernas macias, e subiu o
vestido, acariciando a parte interna da coxa, sofrendo com o susto
imprevisível de River perto da intimidade.
— Eu não posso! — decretou, atordoada, tentando afastá-lo de si. —
Estou desconfortável, me sinto um pouco aflita... — mentiu ao citar “um
pouco”, quando, na verdade, engolia a vontade repentina de chorar.
— O seu receio é compreensível, docinho. Mas vai deixá-lo vencer
sempre? — falou, regressando a mão que fisgou a perna, subindo a boca que
sussurrou. — Qualquer um, na minha posição, tiraria proveito para machucá-
la, mas minha devoção a você me impede de feri-la. — Soube conduzi-la nas
palavras.
Então, levantou os braços, rendida na premissa de River e sua
constante devoção. No fundo, ela captava um perfeito devaneio para barrar
tamanha problemática em aceitar fazer sexo com a pessoa que a sequestrou,
porém, não enxergava mais sentido na vida, pensamentos e emoções. O
máximo que arrancaria da existência turbulenta eram as promessas do ser
acima de si.
Os seios medianos ficaram evidentes, semelhante ao restante do
corpo, exceto pela calcinha de cor branca, que impedia a nudez completa.
Cultivou estilhaços de coragem para fitá-lo inteiramente, fascinando nos
menores traços que sua estrutura dispunha, movido na lentidão de inserir
beijos no abdômen, caminhando para baixo, disparando nas batidas falhas em
deter as intenções dele.
— Te acho perfeita, princesinha — murmurou, virando-a de lado, sem
hesitar em explorar as estrias que marcavam a bunda. — Do jeito que você é
e será. — A voz rouca expressava entre carícias, movendo a perna de volta
até chegar próximo da calcinha. Ouvi-lo dizer que ela era perfeita, mesmo
com estrias, resultava num sorriso involuntário salientado na face.
Incontáveis vezes, seu tio reclamava dessas falhas aparecendo em Greta com
o crescimento, fazendo-a crer nessas marcas como algo a se envergonhar.
A última peça foi retirada reparando no singelo êxtase, apoderando
dos orbes acinzentados, que desatava a enaltecê-la sobre o sinal na forma de
estrela no seio direito. As pequenas cicatrizes que ganhou ao longo da vida,
nas curvas do quadril, convertiam-se no delírio que este alegava deixá-lo
nervoso.
Tapou a visão, envergonhada, no aguardo de ser dito algo que a
deixasse vermelha, mas a surpresa da língua tocando sua intimidade se
converteu em calor. Segurou na toalha de mesa enquanto era chupada, subindo
e descendo nos pontos sensíveis. O gemido rouco saiu de maneira
despercebida por Greta, que bloqueava os traumas rodeando-a, aspirando
oportunidades de surgirem no centro da mente.
A bunda foi apertada, intensificando o contato da língua, que
saboreava o gosto natural que se perdia na saliva usada para lubrificá-la.
Presenciou as costas serem arqueadas, agarrando nos fios escuros de seu
cabelo. Estar no meio das pernas dela trazia a suposição de que residia no
paraíso. Acompanhá-la submersa nas sensações proporcionadas por mérito
de si mesmo o deixava duro. Não soube o instante exato que o orgasmo
surgiu, mas soube o quanto a repercussão deste a fez contrair cada centímetro,
ocasionando num espasmo momentâneo na perna esquerda.
A insatisfação foi instalada nele, que ambicionava por mais.
Aproveitou para enlaçar a cintura, impondo a inclinação do busto dela para
cima. Prendeu o seio contra sua boca na medida que rodeava a aréola com a
língua, em simultâneo os dedos livres seguraram o outro seio, acariciando
suavemente, provocando arrepios.
Nunca supôs que seria apta para sentir prazer, esteve estagnada na
crença do pavor que sentiria, caso tentasse usufruir do sexo. Apesar disso, a
devoção retumbava quando este acertava sobre o que precisava dizer para
deixá-la à vontade, detalhando as partes que fazem o corpo ser visto igual ao
de uma mulher. Jamais desejou que a enxergassem como uma adolescente
ainda em desenvolvimento. Ela detestava quando erravam sua idade, dando
anos a menos do que realmente tinha.
Retornou das divagações, fracassando em esconder a surpresa das
cicatrizes compondo toda extensão de River ao retirar a camisa. Esquecia da
quantidade absurda para tantos machucados, dando atenção para o mais
recente, que acabou tratando. A mão pequena tateou a marca, constatando as
veias sobressaltadas perante a palidez, analisando o tórax subir e descer,
entregue na respiração pesada, notando que também estava ofegante.
— Vamos entrar — disse entredentes. — Quero que seja num local
mais cômodo para você.
O aceno afirmativo bastou para mostrar que concordava, enquanto
tapava a nudez, recebendo a camisa dele para cobri-la. Retornaram ao chalé,
demorando escassos minutos até recolherem tudo e chegarem. Mal botou os
pés para dentro e foi prensada contra a parede, difundido no beijo intensivo,
terminando erguida, persuadida a prender as pernas no quadril, sendo
carregada na direção das escadas.
Adentraram na suíte principal, local onde River dormia e entrou
ocasionalmente para limpar. A estatura pequena terminou depositada na cama,
com o peso dele se sobrepondo, dando adeus ao bom senso, com o
envolvimento crescente em função do calor estimulante no cômodo. Os toques
e suspiros os guiavam, com as peças se desfazendo deles, perdendo-se nos
lençóis.
Greta esquivava o olhar da própria nudez, guardando uma repulsa
severa que barrava as possibilidades de colocá-la na frente de um espelho
descoberta, remetendo a fragmentos do tio instaurados ali, sentindo-se uma
intrusa. Preferiu reter a concentração nele, que abriu a gaveta do móvel ao
lado da cama, para pegar um preservativo. Decaiu o foco na camisinha
deslizando por toda a extensão do falo, distraindo a inquietação sobre
continuar descoberta.
— Terei cuidado — disse, a tranquilizando, e se posicionou entre as
pernas da ouvinte, que prendeu a respiração, esperando uma dor lancinante.
Receber os estalos dos beijos tão delicados desferidos nas
bochechas, extorquindo um sorriso franco, contribuiu para desprezar o
incômodo da penetração. Prendeu as coxas no quadril, com o membro
invadindo, decretando, na percepção de River, o fim da sanidade mental de
Greta.
Não resistiu em provar da boca novamente, norteando as línguas a
roçarem com lentidão, concedendo mordiscadas, distraindo-a no tempo em
que a movimentação foi instaurada, enterrando os dedos na cintura. Cessou o
beijo, afastando-se, ansiando por contemplá-la. Os seios se movimentaram
com o ritmo imposto na colisão dos sexos unidos, gerando o calor contínuo.
Entorpecidos, trocaram olhares libidinosos, alheios ao mundo lá fora. Gotas
de suor escorreram do casal à custa das estocadas acentuadas e frenéticas.
Colocou-a de lado, captando a reação instantânea dela mais à
vontade. Seu membro deslizava com facilidade e aproveitou para masturbá-la
na região do clitóris. Segurou os seios, sentindo o orgasmo possuí-la mais
uma vez. Ele não estava longe de atingir o ápice. As investidas foram mais
fundas, o barulho da cama vagava pelo chalé isolado, e acabou por não
aguentar. Gozou, retirando-se de dentro dela e preenchendo o preservativo.
Deitaram, exaustos, com River afundando seu rosto no busto,
concentrado no coração batendo rápido. Os odores corporais ficaram
impregnados neles, suados, e o silêncio se sobressaiu, exceto com as
respirações irregulares.
Eu sou podre.
Greta ressoava distante da constância, indo e voltando contra ou a
favor das opiniões que diferem com imprecisões, e fazer sexo com River não
seria diferente. Ela já se odiava, e o fervor da pele nem baixou.
Capítulo 14

O entardecer desse dia memorável veio azedo e não me refiro aos


dramas de Greta, que se tranca no banheiro, num esforço inútil para deter a
birra por perceber o que fizemos. Passamos longe de tirar um cochilo. Fiquei
bons minutos ouvindo o barulho do choro engasgado nos soluços, durante
orações suplicando pela piedade da sua alma. Contenho o impulso de
relembrar que ela já não tem mais salvação. Porém, isso desencadearia uma
dose extra de estresse, e eu dispenso.
A demora ultrapassa os limites da minha tolerância, portanto, uso o
método tão eficaz que me foi útil no primeiro mês naquela casa, caindo aos
pedaços, os famosos soníferos. Jamais extrapolei na dosagem, só queria
encerrar os choros incessantes, é tão errado assim? Está atrapalhando o
cronograma que tracei com cuidado, virando um desafio quando a casa
minúscula repercute as lamentações insuportáveis.
Basta amassar os comprimidos, despejar no suco e, pronto, temos uma
bela mulher adormecida.
— As coisas estão melhorando, princesinha, vai ficar tudo bem —
consolo a pobre alma condenada, que termina a bebida e aninha a cabeça no
travesseiro, afundando na maciez. — Não fizemos nada de errado, você
gostou, então qual o problema?
O problema é eu ser a porra do sequestrador que te deixou trancafiada
no período de um mês, matou dois caras na sua frente, conta mentiras para lhe
afastar emocionalmente das pessoas que ama e... ah, permitiu que fosse
drogada. A usei de isca também, como posso esquecer?
A lista nem é longa o bastante, sorte minha que o sentimentalismo
proveniente do remorso não habita em mim e nada disso realmente importa,
pois nossa união é superior a esses eventos medíocres.
— Eu não paro de pensar, está virando um borrão na minha cabeça...
— A queixa vem fraca, as pálpebras pesam num intervalo curto de tempo. —
Estou cansada, River.
Devo estar fazendo algo bom, estou lhe dando um intervalo digno. É
cada vez mais irrefutável que os fins justificam os meios.
Uma piscada demorada, duas, três e ela apaga. Ótimo, posso dar
atenção para minha real preocupação, que está fodendo com a merda da boa
vontade que tive em não estraçalhar os policias insistindo nas investigações,
ganhando uma comoção pública. Antes de sair, amarro o pulso na cabeceira e
a deixo dormindo no nosso quarto. Chega daquele espaço miúdo. Já
transamos, portanto, não vejo motivos para mantermos a distância, agora
insignificante.
Sigo para o cômodo isolado no final do corredor, que nunca dei
autorização para ela entrar. Tranco e guardo a chave bem distante de sua
visão. Abro a porta e encontro o mural improvisado, decorado com notícias
relacionadas ao desaparecimento de Greta Lowel, e que puta nome lindo,
nome do motivo que me mantém são.
“Uma nota emitida através do prefeito, nesta tarde de sábado,
confirma que o caso relacionado à estudante de dezoito anos, Greta Lowel,
vai ser oficialmente dividido entre o oficial Mike Lail, com o comandante de
estado, Andrew Jones.”
Nossa, que surpresa! Ligo a maldita TV e sobre o que estão falando?
Sim, da minha garota. Esses animais não tiram o nome dela da boca, fingindo
preocupação, usando entrevistas dos pais, que pedem por voluntários nas
buscas da cidade. Gente velha abatida e com olheiras é a escória da
humanidade. Fiz o certo de mantê-la longe. O brinquedinho foi levado e
resolveram demonstrar interesse? Posso ter mentido sobre muita coisa, mas
para acreditar em mim, sem contestar, o relacionamento com os supostos
responsáveis não deve ser dos melhores. Ao menos é isto que tem no diário,
muito descritivo, com um número considerável de folhas preenchidas.
O diário é minha peça fundamental para compreendê-la. Poderíamos
estar vivendo numa versão mais desastrosa se não fosse pelas folhas com
desabafos que assombram qualquer um, menos eu, visto que minha
oportunidade surgiu ali. Pude encontrá-lo na terceira semana que fazia minhas
honrosas visitas aos aposentos da garota quieta e cabisbaixa. Ele estava
perfeitamente escondido num fundo falso na gaveta da penteadeira. Não sou
uma pessoa que sente ressalva em invadir a privacidade alheia, então,
evidentemente, quando dei por mim, já examinava tudo.
Greta montou um refúgio legítimo, as percepções pessimistas
delineiam o cotidiano. Pouco importava se tivesse tido um bom dia, os fins
são similares, norteados em inseguranças, com ênfases em assuntos banais.
“Xinguei Nathan, mandei mais de quarenta mensagens e fiz quinze
ligações num descontrole emocional que me enche de fúria quando ele
resolve cancelar nossa noite de sábado nesta manhã. Ele pediu desculpa,
argumentando que o grupo de teatro o convidou para ir ao lago, também disse
que fui chamada. Mas, pra que eu iria? Fumar maconha e beber até perder os
sentidos me repele naturalmente. Não o reconheço quando assume esse lado
imprudente. Discutimos na ligação, disse estar assustado com minha postura,
pediu calma e não dei a mínima, continuei gritando atrocidades sobre o
fracasso de priorizar amizades limitadas, que não agregam. Ele não entende
as boas intenções oferecidas por mim? Sinto que somente eu valorizo essa
amizade, ele é ingrato.”
O trecho sobre Nathan é um dos últimos escritos, creio que ainda
estejam brigados, já que sua presença naquela cidade se esvaiu. Aproveito
para grifar os fragmentos pertinentes que tenho usado, embora as menções
cerquem o nome Albert, o tio que fodeu com a cabeça dela. Greta narra os
pesadelos, lembranças, rascunhos de cartas confessando os horrores que
enfrentou, e constatar as orações emitidas do banheiro, minutos atrás,
relaciona-se diretamente com a parte circulada em vermelho.
“Eu sei que acabou quando sou obrigada a orar, deixando
subentendido que meu corpo não será mais massacrado e esmagado. Fico
ajoelhada ao lado dele e peço perdão, porque minha carne o induz a isso. Ele
reforça que sou a culpada pela ação pecaminosa, repete e por vezes grita. Se
sou culpada, como posso parar? Eu quero parar, só quero parar com tudo.
Meu corpo é a prisão da qual não posso fugir.”
A influência é destrutiva, me pergunto por quanto tempo ela suportaria
conviver com esse segredo, talvez nunca conseguisse dizê-lo em voz alta.
Largo o diário na escrivaninha, irritado. Detesto pensar nos traumas que
impedem sua entrega total e constante. Assim que se trancou no banheiro e
orou, esboçou o poder dele, no subconsciente.
Porra! No instante que desvinculo a atenção desse problema, passo a
madrugada maçante na busca de atualizações recentes sobre o
desaparecimento. Aproveito para deixar meus sinceros agradecimentos às
mídias, na imprudência de revelar partes cruciais da investigação, gerando
lucro e me favorecendo com isso. Se bem que as evidências recentes indicam
meus deslizes, impossibilitando nossa ida para a próxima cidade, com a
vistoria acirrada nas entradas de cada localidade, exceto na dela, algo bem
controverso. As autoridades têm convicção que nós estamos longe. Mesmo
com o palpite parcialmente certo, fico enfurecido, detesto a sensação de estar
encurralado.
Greta é a pior das distrações. Bastava ver o cabelo desgrenhado, a
silhueta do corpo realçada na luz, e lá vinha eu, entorpecido, coagido em
prolongar o tempo no chalé, nesse esforço desesperado de preservar o
paraíso pessoal. Postergo os problemas crescentes que se configuram numa
ampulheta, contando o resto de tempo que temos, caso não aja de imediato.
Essas matérias não vão sumir, nada vai ser cessado até receberem
respostas sobre seu paradeiro. Meu sangue parece esquentar ao mirar no
jornal com a foto do meu carro na capa. O caso é que aquele policial imbecil
fez a identificação da placa antes da abordagem, ou seja, suspeitas foram
levantadas, aliado a imagens de câmera quilômetros adiantes e, puta merda,
que azar da porra... Escolhi a lanchonete mais decadente na beira da estrada,
onde bêbados ocupam espaços, o cheiro de mofo é o aroma natural e ninguém
com bom senso se atreve a parar ali, e mesmo aquele estabelecimento sendo
derrubado, existe a porra de uma câmera funcionando no estacionamento.
Quanta ironia, é cômico para dizer o mínimo. Por enquanto, essa investigação
não tem vínculo forte com Greta, as nossas imagens não têm nitidez. O
depoimento de Betty faz uma descrição sobre dois irmãos, com a garota
sendo loira, pelo menos ela foi útil para algo. Mas, o tempo está contado, uma
hora eles podem trilhar o percurso até aqui ou identificá-la quando
analisarem as câmeras na rua da boate.
As horas fluem com pressa, indo contra mim. Leio e releio a lista de
cidades que terão as verificações e não encontro nenhuma que possamos ir
sem sermos parados, somente o buraco de que a arranquei está livre. Retornar
parece a decisão mais incabível e desleixada para tomar, porém, permanecer
aqui é o mesmo que aguardar a chegada da polícia. Que situação de merda!
Essa garota era para estar atirada aos meus pés, agradecendo por tudo que
tenho feito, minha paciência nessa altura já deveria ter esgotado.
O relógio marca três da manhã e não chego a nenhuma decisão, só
tenho a certeza de que não posso perdê-la. Ela integra humanidade em mim,
poupá-la da morte é a maior prova disso. Preciso dela para que as coisas
sigam fazendo sentido. Eu só quero silenciar as preocupações nos seus
braços. Saio do escritório, que em nada agrega, ele apenas atormenta com
esses infelizes se intrometendo. Queimem no inferno, inclusive faço questão
de atirá-los nas chamas.
— Querida — falo, baixo, adentrando no nosso quarto.
Retiro a camisa para sentir melhor o calor corporal e constato que o
braço atado atrapalha, então irei liberá-la da amarra hoje. Num movimento
sutil, ela repousa a cabeça na curva do meu pescoço. Sua respiração esvazia
a raiva acumulada das últimas horas, aumentando a certeza de que possuo um
genuíno vício do qual tenho dependência. Percorro os dedos, subo e acaricio
com o polegar o ponto macio atrás da orelha. Estamos atrelados um no outro,
com os fios grossos da princesinha espalhados na cama. Tenho um vestígio de
tranquilidade com prazo para acabar.

Faltam poucos dias para setembro encerrar. Apressei os planos para


sairmos daqui, com o sacrifício de abandonar a rotina que estabeleci,
gastando meu tempo no conserto do veículo encostado na garagem do chalé.
Infelizmente, irei abandonar o Opala, e isso já me deixa puto. Mas, não é pior
que presenciar ela regredir, trancafiada no quarto. Dei permissão para a
solidão fazê-la remoer tudo de novo. Se não tivesse fugido, quem sabe eu não
deixasse ela andar livremente pela casa, a culpa não é minha.
De toda forma, foda-se. Pensar constantemente nela é a razão de eu
estar lutando para fazer essa porra pegar. O tempo corre aqui dentro. Retiro a
camisa e amarro na barra da calça. Detesto as manchas de graxa. Prendo meu
cabelo e evito que os fios grudem, voltando minha atenção para o motor.
Disponho da caixa de ferramentas antiga, limitada, mas que tem suas
conveniências, facilitando na hora de substituir as peças do Opala que são
compatíveis. O processo é simples na teoria, sobrevivi esses anos roubando
carros e consertando-os. É trabalhoso se manter distante da polícia com o
histórico que possuo. Entretanto, a iminência caótica de sairmos logo daqui
me tenciona, os músculos ficam rígidos às vezes, tanto que pauso tudo e
espero os nervos esfriarem. Ando inquieto e mais perturbado que o usual.
Entro na garagem de manhã, saio no fim da tarde e depois viro a noite no
escritório. Os “intervalos” que tiro são para levar as refeições de Greta e
permitir suas idas ao banheiro, inclusive já passa do meio-dia.
Hora do almoço.
Preparei um prato generoso com vagem, cenoura, purê de batata e
carne, impedindo qualquer possível reclamação de fome, além do suco
especial para ajudá-la a dormir. Eu sei da expectativa dela quando me ouve
abrir a porta, desesperada em prolongar o tempo comigo, que dura no máximo
cinco minutos, já que não posso abdicar desse conserto.
— River! — A exclamação é estridente e levanta num pulo da cama.
— Andei pensando... Hoje eu podia fazer a janta — sugere, tomando a
bandeja das minhas mãos, pondo na cama e entrelaçando nossos dedos.
Cogito que a manhã dela foi arquitetada sobre como me abordar. Não
culpo a investida direta, é mais eficaz, ao invés de vê-la enrolando, como de
costume.
— Tá a fim de envenenar a comida, docinho?
Em hipótese alguma vou permitir que Greta toque na comida. Faço as
refeições justamente para prevenir que o tempero principal seja veneno de
rato. É ofensivo ela pressupor que eu aceitaria sua proposta imbecil.
— Não! Seria uma forma de ver se você... — A frase é contida por
um instante, pendendo na língua. — Você está enjoado da minha presença.
— Enjoado? — repito, olhando sua aparência aflita, que caça uma
reação. — Está de sacanagem comigo, porra?
— Só quero entender o que está acontecendo. — Existe receio na fala,
talvez esteja assustada com minha resposta. — Eu não gosto de ficar
trancada.
Merda de garota mimada!
— Não tenho gostado de metade das coisas que ando fazendo — digo.
— Essas coisas exigem empenho meu, algo que você jamais entenderá,
porque sua inteira existência reside em reclamações.
— Tá me machucando! — ela exclama, empenhada em desvencilhar o
pulso que prendo, sem ao menos notar.
— Tenho feito absolutamente tudo por ti, mesmo assim existe um
aborrecimento infinito.
— Por favor... — suplica, insistindo no afastamento, que impeço.
Sua imaturidade é enervante. Greta vai surtar com o rumo das
investigações, o carro já identificado, o nome dela correndo nas matérias
jornalísticas dia e noite, e a perderei de imediato. A descrença irá se instalar
com a quantidade exorbitante de informações no princípio e ela terminará
numa alegria absurda, crente que os moradores daquela cidade se importam,
fechando os olhos novamente para a falsidade dessa pseudopreocupação.
Cerro os punhos apenas por supor isso, contar está fora de questão.
— River, se acalme! Mal consigo mover o pulso.
— Calma? Pede calma após tentar me fazer sentir culpa? Cuido de
uma estúpida que banca a vítima e depois exige calma. — Abafo a voz dela e
expiro, cansado, já isento de paciência. — Acha que eu quero mantê-la
trancada? Odeio essa porra toda, mas faço isso única e exclusivamente por
você, por nós. — Paro de mediar as palavras, o estresse acumulado tira o
filtro do que devo evitar dizer. Uma hora esse assunto surgiria, contudo, as
circunstâncias são as piores.
Acabo atirando-a na cama. Logo me atento na garota se arrastando até
encostar na parede, com o peito arfando, dispondo de olhos arregalados. Por
que todo esse espanto?
— Que merda de cara é essa, hein? Te espanquei por acaso?
— Meu pulso... — A mão é elevada, com a região vermelha, e
percebo um corte sutil, nada relevante. — Meu pulso está sangrando.
Eu não penso no instante que soco a parede, afundando os tendões na
madeira, tendo estilhaços perfurando. Afasto, com sangue pingando no
carpete. A dor está anestesiada, sinto a adrenalina circular dentro de mim.
Lhe proporcionei uma demonstração breve de uma real atitude agressiva.
Recuso-me a alimentá-la no restante do dia, nem sequer dou um
mísero copo d’água, e deixo que esse tempo sirva de reflexão. Ninguém
suporta alguém tão insensível igual a ela, alegando o pior dos pesadelos por
estar num quarto aconchegante. Mesmo com uma justificativa plausível, que
eu não pretendo compartilhar, qual a dificuldade em calar a boca e aceitar as
condições impostas?
Sigo na direção do quarto provisório, prestes a guiá-la para o nosso.
As lágrimas derramadas quando saí mais cedo não me bastam. Ambiciono um
aspecto além do medo, vou pressioná-la e, dependendo do desenrolar, posso
rever se permitirei que coma. Entro de uma vez e encontro Greta embaixo das
cobertas, envolvendo os braços no travesseiro. Deve ter perdido a noção do
tempo entre cochilos e choros abafados. Ainda concedi que não estivesse
atada na cabeceira, provando a boa pessoa que sou com ralo reconhecimento.
Minha aproximação rende a ação do corpo encolher sobre a coberta,
se esgueirando para a parede. Age feito um animal assustado, que fica
recluso, temendo ser encontrado pelo predador. Ela e essa necessidade de
vitimização.
— Levanta.
O milagre de presenciá-la obedecer sem contestar é apaziguador.
Fito-a de rosto inchado, perante o choro recente, e os pés encostam no chão
gelado, sustentando meu olhar.
— Desculpa. — O pedido sai arrastado. — Desculpa, desculpa,
desculpa... — repete, angustiada. Sou entrelaçado por ela, que se sustenta
graças ao abraço.
— Você é problemática — afirmo. — Sou inteiramente entregue e
minha recompensa por isso são incertezas? Francamente, está sendo uma
decepção, somente retrocede.
— Tenho medo do seu desprezo — diz, depressa, abafando o som da
voz, que enterra a face na curva do meu pescoço, tirando forças para se
reerguer. — Não suporto que exista a possibilidade de se cansar... Isso tem
me matado.
Neste instante, finalmente retribuo o abraço, inundado nas palavras
mais autênticas e límpidas que pude ouvir após anos duvidando da
sinceridade que a humanidade guarda. Faço parte dessa falha humana,
irreparável, mas minha doce princesinha difere da maioria.
— A devoção é superior ao cansaço, querida. — Ela relaxa na
menção do apelido. — Serei devoto a ti não importa o quê, nada nunca irá
nos separar.
Greta está enxergando a verdade, sei disso com toda minha alma, sua
declaração comprova a conexão instalada. Não quero perdê-la, e o
sentimento é recíproco! Caralho, finalmente posso interromper o mistério
proposital para presenteá-la com o meu suposto passado doloroso e abusivo,
sendo útil para deixá-la mexida, induzindo-a nessa conclusão sobre o quanto
somos semelhantes, além da empatia, assim teremos uma união emocional
firmada.
— Vamos sair daqui? Quero lhe mostrar algo.
Minha garota não se opõe, então a conduzo para fora do “suposto”
calabouço, alvo do drama infantil de hoje. Ao menos colhemos uma coisa boa
disso: Greta caindo na razão. Quem diria que desistir de esfaqueá-la naquele
dia, perto da floresta, teria sido a melhor decisão?! Nunca esqueço o quão
fácil seria atraí-la, bastava chamar sua atenção e torcer para a curiosidade
fisgá-la.
Interromper as divagações dessa possibilidade é complexo,
considerando o sangue dela em mim, quente numa cor vívida de saltar os
olhos... O cenário é encantador e até poético. A musa com sua vasta perfeição
inabalável submetendo o fim da vida próspera largada nos meus braços, entre
suspiros finais e dor esvaindo das esmeraldas, reluzindo na cor alaranjada do
verão, dedicados somente a mim. Visualizo a pintura que poderia ser feita e
meu coração pulsa mais forte.
Espero que ela não me induza a esse desfecho trágico. Mas, caso
aconteça, será um prazer ceifar sua vida.
Capítulo 15

Ganhar o perdão dele é acalentador, embora os gritos altos, o pulso


apertado, com unhas afundando em mim, e o soco com capacidade de quebrar
dentes, repassem sequencialmente. Percebo a falta de atenção dele no próprio
descontrole, premedito o instante que terminaria estrangulada, sendo largada
quando tivesse quebrado o meu pescoço, sendo abandonada naquele quarto,
bastando ir embora dali, fingindo uma insignificância assustadora. Eu temi
esse fim, mordi o interior da bochecha até o gosto metálico me atingir,
buscando deter o assombro que some quando acabo sozinha. Não posso
conduzi-lo ao extremo mais uma vez, seu aborrecimento é culpa minha.
— Cuidado quando abrir, esses álbuns estão cobertos de poeira. —
Existe casualidade na fala, enquanto pousa a bolsa de gelo na mão inchada.
— Nossa... Esse é você quando criança? — Sigo com a voz baixa,
faço qualquer coisa para mantê-lo calmo.
— Sim, passe as páginas para chegarmos na parte importante.
Sigo a orientação e folheio páginas com as fases da infância
ressaltadas. Os pais estão presentes em todos os registros. River é sustentado
no braço do patriarca com um pequeno troféu segurado nas mãozinhas e um
sorriso aberto mostrando os dentes de leite. As memórias são felizes, a
família é harmoniosa, nem parecem reais. Teriam potencial para ser uma
família modelo para propagandas que prometem a vida perfeita. Nenhuma
foto é feia ou forçada, todas são o oposto disso.
Fico deitada de bruços, apoiando os cotovelos na cama extensa,
prosseguindo na análise minuciosa das imagens, parando no instante que o
indicador circula o registro de aniversário, com ele sorrindo igual às fotos
anteriores, em frente do bolo decorado. A numeração indica os dezessete
anos. Acessar esse trecho do passado fortalece a imprecisão sobre sua
drástica mudança.
— Estive feliz de verdade nesse dia, meu pai saiu da reabilitação e
jurou uma tarde de pescaria na manhã seguinte. — Ouço o contexto soar,
dessa vez, livre de rancor. — Achava aquele lugar especial, ele nunca levava
ninguém, talvez tenha sido ingenuidade ou eu só desejava uma realidade
genuína como essas fotos.
River faz uma pausa, as sílabas travam na língua, existindo a clara
dificuldade em continuar. Esteve de joelhos, esse tempo todo, na minha frente,
esclarecendo as imagens que via, no entanto, um afastamento é feito, dando a
entender o desconforto. Permaneço quieta, considerando que posso piorar as
coisas. Já ponderei tanto, que adentro nessa esfera introspectiva, similar ao
seu estado atual, vagando até esquecer e precisar memorizar novamente o que
dizer, fugindo do roteiro mental.
— Ele fingia muito, era um viciado. — A alternância do olhar sobe da
foto para mim. — No mesmo dia, a recaída veio logo de noite, nem tentou
fingir um esforço, porque minha mãe e eu, sua própria família, nunca tínhamos
muita relevância.
— Só vocês sabiam sobre o vício?
— Esconder podres é comum. Ninguém quer estar no centro do palco,
sendo fuzilado por julgamentos, com ele não era diferente.
— Posso imaginar que tenham sido tempos difíceis. — A risada baixa
serve de resposta primordial, e percebo uma ponderação no meio dela. O riso
é nervoso? Difícil chegar à conclusão quando a pessoa diante de mim é
indecifrável.
— Foram, mas suponho que vivemos à margem da nossa próxima
cicatriz. — O jeito que ele dispersa as palavras converte-se num tom sinistro.
— Vemos alguns que recorrem à terapia para lidar, outros preferem esconder
e abraçam a autodestruição... Eu prefiro um método mais brutal, entende?
— Queria não ter entendido. — A franqueza escapa, e quando penso
em justificar, ele declara:
— Meu pai, movido a álcool e um ataque de raiva, esfaqueou minha
mãe. Ela morreu pelo descontrole dele... — River permanece quase que
imparcial nas emoções, embora a pronúncia anterior me faça cismar da
possível amargura escondida nas entrelinhas. — A cicatriz da bochecha foi
ele mirando a faca no meu olho, e suponho que seja visível o local acertado.
Foi uma cena macabra, ver o sangue da minha mãe espalhado no carpete...
Não pude mais aguentar aquilo, eu revidei e o estrangulei, vi sua vida se
esvaindo, recebi arranhões no meu rosto, desesperado para que eu o soltasse.
Só parei quando ele começou a ficar roxo. Naquela noite, eu fiquei
desamparado no meio da sala. Por medo de não acreditarem em mim, acabei
fugindo.
Não processo tamanho absurdo, estou atordoada e escolho descontar
no lençol, apertando, exprimindo a ideia de presenciar minha mãe morta por
culpa da outra pessoa que supostamente deveria nos amar. Imagino um
arrepio lhe percorrendo, com o aviso concreto desse ato abominável ser real,
enquanto foge sem rumo, desnorteado, existindo, inteiramente desconectado
do corpo. O céu escuro, possivelmente, ajuda a fingir que seria engolido pela
escuridão e logo acordaria em sua cama, mas as horas afundam na claridade,
anunciando o despertar da manhã. Como suportar isso sozinho? Um dano foi
causado num garoto e nada acontece, ele foge, temendo ser culpado por
alegações que não o cabem. Quebrado por dentro, sem compreender a mente,
o corpo. Sem compreender a si mesmo.
— Eu lamento pelas coisas que você enfrentou, perder sua mãe...
— Não lamente — pede. — Já faz tempo.
— Tenho problemas em aceitar que o mundo é injusto com quem não
merece... Sua vida seria completamente diferente de agora.
— E daí? Do que adianta lamentar a essa altura? As coisas têm
sentido de novo, graças a você. — Sua declaração vem com a aproximação
na cama.
O diálogo é interrompido, os lábios roçam no meu ombro, subindo
para a nuca. Arfo, no efeito da respiração quente, e pressiono as pálpebras
nos beijos, sendo deixados com meu quadril prensado contra o dele. Gosto da
sensação e paralelamente me culpo. É vergonhoso quando retribuo seu
contato, pois River leva esse êxtase que serve de veneno na mesma
proporção que vou apodrecendo, abandonando um repúdio que não sinto
mais. Falta largar todo arrependimento destrutível, encará-lo como o vilão
parece errado, fomos machucados ao extremo, a vida nunca teve piedade de
nós. Ele fez coisas imperdoáveis, eu sei, mas por que não consigo odiá-lo?
Odiar tudo feito contra mim. Não... É incoerente o ódio depois das minhas
ações, orar jamais me livrará dos pecados.
— Amo o seu cheiro, princesinha, amo tanto. — A revelação vem
com a alça do meu vestido sendo baixada sem cerimônia.
— É estranho ouvir essa palavra saírem de você.
— Não leve a sério, apesar de venerá-la, acredito que seja
impossível amá-la.
— Eu não entendo...
— Amor? É como quando você vê a névoa de manhã, quando você
acorda antes do sol nascer. É como um breve instante que depois desaparece,
apenas isso, o amor é uma névoa que queima com a primeira luz de realidade.
— Não reconheço a citação que menciona para defender sua percepção. —
Charles Bukowski, querida. Garanto que amor porta um significado
superestimado, até mesmo vago demais, caso contrário, ninguém usaria essa
palavra com descaso. Seria ofensivo dirigi-la a você.
River está certo, o amor foi extinto há muito tempo. Tenho minhas
dúvidas sobre a capacidade das pessoas de interpretarem o valor dessa
palavra. Perdemos a noção da magnitude que esse sentimento conserva,
terminando na banalização.
— Tem razão. — Subo as mãos para a face dele e o corpo ajusta-se
no meio das minhas pernas.
Consigo o alegrar quando concordo. Recebo seu polegar circulando
minha boca e subo o queixo, em expectativa do que fará.
— Não teríamos problemas se eu ouvisse isso com frequência.
Tenho a perna esquerda inclinada para cima, com os orbes
interessados no meu semblante, disparando beijos longos pela extensão da
coxa, usando as mãos livres, que brincam, explorando minha barriga, quadril
e descendo na área sensível, fazendo menção de pressioná-lo vagarosamente,
reproduzindo a ação devagar de ir e vir.
Greta, saia debaixo da cama.
Aquela voz familiar, coberta na rouquidão, devido à quantidade de
cigarros que fumou por um significado tempo de vida, me invade.
Vamos, joaninha, temos pouquíssimo tempo.
Por favor, não faça isso comigo.
Eu mandei você sair, Greta! Saia, saia, saia debaixo da porcaria dessa
cama.
Albert me alcançou, tateando com a mão. Fui arrastada para fora
pelos fios de cabelo. Com a porta do quarto já trancada, não encontrei
escapatória. Faltava menos de uma semana para meu aniversário de quinze
anos. Um ano mais velha aponta a perda dos traços infantis que o atrai.
Tomara que não demore para ter filhos, joaninha. Meu estômago embrulha
pela atrocidade que ouço. Prefiro a morte do que prover uma criança para um
pedófilo.
— Me ajude, querida.
Acabo desligada, com um zumbido que distorce o som com batidas,
atravessando meu crânio. Que porra tá acontecendo? Ao invés de esboçar
meu incômodo ou afastá-lo, apenas detenho a imagem de mim, retribuindo na
investida de tirar o vestido. Peça por peça são removidas, mal esboço
expressão, pareço contida no pânico, trilhando os anseios dele, onde não
exerço ímpeto para interromper. Ele coordena os próximos passos e usufruo
de flashes. Num instante, recebo um susto que anuncio num espasmo da perna,
com o toque da língua contornando calmamente minha intimidade, pondo
saliva e logo chupando o clitóris, arrancando um grunhido amargurado. Meus
olhos gritam em reprovação, atuando como uma espécie de escotilha para
minha voz ausente, na urgência dele parar prontamente quando ver meu pavor.
Conto os minutos, perdurando na incapacidade de agir, com pontos pretos
desfocando a visão, atrelados à náusea do suor manifestado em nossas peles.
River lambe as feridas emocionais espalhadas por toda minha extensão e
despacho gritos internos. Você pisa constantemente em mim, machucando
quando me jura proteção, mesmo no ardor das suas ações. Não arrumo forças
para lutar, você consome os tormentos e apodera-se de mim. Desejo sua
morte tanto quanto sua vida, droga... HAHAHAHAHA!
Finalmente manifesto um som, frenético e alto, que o pega
desprevenido na agitação que a gargalhada repercute forte das cordas vocais.
Entrei nesse colapso que destrói de dentro para fora, nunca sei quando a
fraqueza do meu lado consciente ainda irá aparecer, divagando nos horrores
que não fazem diferença! River massacra minha sanidade. O que sobra? Meu
Deus, o que sobra de mim? Por favor, o que irá sobrar de mim depois dele? A
parte racional? Esfregando diariamente o quanto fui permissiva pelo resto da
vida, estagnada na vergonha de aceitar que sou manipulável, concluindo que
ele viu em mim fraqueza. Não, eu não quero. Sou a melhor versão de mim
mesma, o melhor caminho é aniquilar a razão. Só me ferro nas aparições que
apetecem humilhação. Prefiro estar cega diante da verdade, a ignorância
tende a recair de maneira mais amável.
Ele não liga do meu riso desenfreado surgir bruscamente, nem tenta
contestar, deve até tê-lo excitado, visto que acende uma intensidade dos
dígitos afundando na minha carne. Alcanço a submersão da dor tirada na
mordida dele contra minha boca, provando o sangue, com sua língua
invadindo, forçando o gosto metálico contra meu paladar. A violência é
exercida contra mim, e diferente da primeira vez, os dentes estão marcados
no torso, barriga e pernas, similares nos chupões que diferem numa aplicação
de dor abundante. Retribuo, sorrindo, acariciando a face, escondendo meu
incômodo, pois é irrelevante.
A camisinha é posta e confere se não tem furo, evitando o pior. Em
seguida, é imposto que eu fique de bruços, elevando minha bunda. Me atento
ao suspiro que foge ao roçar sua glande na entrada, agora bem sensível, nos
absorvendo pelo impacto da penetração. As estocadas começam profundas e
rápidas, deslizando sem atrito. A sensação é peculiar.
Somos compostos de gemidos e calor, trocando posições que não
posso escolher, colocando dedos na minha boca, impondo que os impregne
com saliva, e obedeço, apesar de achar degradante, mas faço mesmo assim.
Ele os leva direto à minha intimidade, proporcionando breves espasmos
corporais na sobrecarga alucinante entregue aos lençóis que fiquei agarrada,
desfeita num orgasmo, tangendo no tremor das pernas. River não demora para
se desfazer, a lubrificação natural pinga, impulsionando o líquido quente que
preenche o preservativo, retirando-se em seguida.
— Você é incrível — afirma, soltando o ar, exausto. — Te considero
o próprio êxtase.
Você me faz crer no mal sendo muito pior do que é idealizado,
desfigurando a caricatura perturbadora. Nada de bom provém de você,
porém, isso não importa mais.
Capítulo 16

Os pulsos ficaram atados, idêntico aos tornozelos, propagando a


sensação de déjà-vu. Enxergou a exata paisagem similar no ângulo, estando
deitada, amarrada e mergulhada no olhar preocupado de River sobre o local
para aonde iriam direcionar-se. Obteve um aviso de que deixariam o chalé no
fim de semana, e quando questionado o porquê, a resposta foi limitada: é
necessário. Ampla, com nenhum significado relevante. Escolheu não
persistir, sabendo o que provocaria. Greta ainda se segurava na crença dessa
nova realidade ser o que restou de cabível para si, mas inevitáveis
pensamentos furtivos surgiam, retumbando a ideia de fugir apoiada no
desgosto de uma coleção de marcas corporal com dentes visíveis na pele,
apagando sua coragem em encarar o reflexo no espelho.
Não importa. Ele é devoto a mim, faria qualquer coisa por mim.
Reforçava, tratando como um lema, apanhada na ansiedade costumeira
de modo severo perante o empecilho de nem conseguir mover os pulsos,
interrompendo a circulação sanguínea. O conflito interno não era novo, mas
reviver um cenário semelhante de meses atrás, tomada por sentimentos
contrários, nublavam a mente.
— Tudo bem, querida? Esteve quieta desde que saímos do chalé.
Confessar o quanto ele fodeu com você, vai acabar excitando-o em
detrimento do seu psicológico esmigalhado.
Desprezou outra investida incômoda, querendo bater a testa contra a
parede até apagar, suspendendo uma onda formada, preparada para arrebentá-
la, temendo não se conter.
— Me sinto cansada, só isso.
— Sei que está chateada com nossa partida.
— Eu... Eu gostava de lá, mas é irrelevante — admitiu, mediando as
palavras com extremo cuidado. — Desculpe, é um motivo idiota pra ficar
triste.
— Não acho que seja algo idiota. — Ele subiu o foco direto no
retrovisor. — Sabe que eu faço qualquer coisa para te ver bem, certo? Já
provei isso quando desfigurei aqueles filhos da puta.
— Um dia te apresento o meu tio, então. — Não tomara consciência
do que dissera. Riu, alheia ao que havia emitido. Entretanto, quando o carro
diminuiu a velocidade, freando no acostamento, serviu de retorno direto para
mostrar que o pensamento soou alto demais.
— Tio? — A pergunta saiu e arrepiou-a em frente ao semblante
neutro, diferente dos orbes acinzentados, que não mentiam, assustando-a no
olhar incisivo. — Responda, sabe que eu não gosto de esperar — repreendeu,
batendo com o polegar contra o volante, apontando sua impaciência.
A garganta secou de uma vez, o contato visual foi desfeito, evitando
encará-lo a qualquer custo, sentindo-se suja nas palavras proferidas pelos
lábios ressecados, mas por fim contou para a primeira pessoa as caronas da
escola até em casa, iniciando tudo de maneira tão sutil na sua ingenuidade,
inibindo-a de constatar o comportamento do tio como inadequado, tendo o
toque na perna feito de um jeito despretensioso, usando a piada que lhe
contara para colocar a mão, ainda rindo, pulando para tecer elogios nas
roupas, alegando o quanto ficava graciosa nos vestidos rodados, pedindo
para girar, mesmo ela negando e gerando incômodo nas insistências
demasiadas. Albert era um perfeito predador, realizava investidas que não
levantassem suspeitas dos familiares e invadia o espaço de Greta
gradualmente, efetuando a famosa experimentação numa observação funda
sobre as reações dela com suas atitudes, analisando as menções do irmão
sobre a dificuldade da filha em falar, se autoexpressar no geral, vendo-a
como um perfeito alvo.
O cenário piorou na época que as caronas começaram, com Albert
buscando-a da escola para casa, mesma época em que Greta amava usar
laços, contando com vários de diferentes cores e estampas, geralmente com
eles enfeitando o topo da cabeça. Lembrava do belo laço rosa de tecido fino
que nunca conseguiu esquecer. Ellen o prendeu na metade do cabelo, o que
chamou a atenção de seu tio ao entrar na velha picape. Fica tão linda com
esse laço, joaninha. Mas, é claro que você já sabe disso, chama tanta
atenção com pouca idade, imagine quando crescer. O veículo parou no
sinal, o tom vermelho invadia as pupilas quando aquele toque no cabelo,
alisando as mechas finas, subiu para o laço.
Detinha uma certa raiva dos elogios, agradecia somente pela
educação, ficava farta do trajeto deles ser inteiramente baseado somente na
aparência dela. Nas poucas vezes que tentou mudar o assunto, mencionando a
escola, terminava sempre submetida, com ele arrumando um pretexto para
citar que ela ainda daria muito trabalho para os pais perante os pretendentes
formando filas na porta de casa. Nem fez esforço para responder a mais um
elogio, tratou com irrelevância, até o instante que ele se achou no direito de
puxá-la pela nuca, pressionando seus lábios contra a boca fina e enrugada.
Desculpa, joaninha! Você está tão linda, não pude resistir. Chama tanta
atenção com esses laços, e bom... Quem é capaz de resistir a uma ninfeta?
Mas, não se preocupe, só teríamos um problema caso contasse a alguém.
Seus pais ficariam bravos se descobrissem esse seu jeito promíscuo.
Ninfeta. Não conhecia o termo e nem raciocinava direito, mantinha-se
contendo a vontade de vomitar, com o cheiro de balas mentoladas emanando
do bafo, pondo os fios atrás de sua orelha. Resolveu manter a visão
inteiramente na rua, com a presença dele parecendo tão grande comparado a
si, revelando uma postura visivelmente opressora, diminuindo-a. Não digeriu
o que acabara de acontecer com o tio, agindo com insignificância diante da
ação, falando normalmente.
Não conte para ninguém, todos vão ficar muito bravos com você,
tem sorte de eu estar te encobrindo. O aviso disfarçado de ameaça foi
reforçado pelos ombros segurados com afinco, dando ênfase à seriedade caso
alguém soubesse, restando concordar, amedrontada, saltando para fora do
automóvel às pressas, dando um abraço apertado na matriarca, que acenava
da varanda para o cunhado. Como foi o seu dia? Ansiava por dizer que
estava enjoada com a ação do tio, confessar o quanto aquilo a deixava mal.
Ainda assim, ele foi ríspido sobre a irritação de seus pais, então vê-la
sorrindo tão abertamente a fez desistir de dizer, não queria aborrecê-la.
Normal, respondeu.
Subiu as escadas, pulando alguns degraus, até se trancar no quarto
rosa, enfeitado com borboletas brancas, que sobressaíam no papel de parede
e pelúcias. Foi direto na penteadeira e abriu a segunda gaveta, encontrando
todos os laços. Limpou as bochechas, marcadas pelas lágrimas, com a costa
da mão, decidida a livrar-se deles. Culpou os laços, aspirando crer na ação
ocorrida por culpa deles. Os laços eram apenas um dos objetos que odiaria
no decorrer dos anos, passando por se odiar também. O corpo representava
um mural com as digitais dele, a manchando por inteiro.
Emergiu das memórias, avistando dessa vez a paisagem parada, com
os longos pinheiros em equilíbrio no azul-escuro adentrados na escuridão da
noite em vestígios realçados no luar.
— O nome dele é Albert. — Mencioná-lo, no fim, estando deitada
com o corpo atado, invadia a impotência que ele aplicou durante tanto tempo
nas ameaças, retida na inquietação, fazendo-a debater-se, atordoada. — Me
solta. Me solta. Me solta, River... Por favor, porra! — implorava,
pausadamente, num bloqueio para puxar o ar.
As cordas foram cortadas com o canivete que River trazia no bolso da
calça. Presenciou-a segurar na garganta, imaginando que a garganta estava
fechando pela complicação em soltar o ar, se agravando no coração pulsando
de forma demasiada, sendo árduo concentrar-se numa angústia por vez.
Chegou a ferir seu pescoço, com as unhas machucando a pele
involuntariamente.
Greta foi puxada, tendo os braços rendidos, barrando a autoagressão,
e acabou de costas para River, com a cabeça grogue e os olhos embaçados
mediante as lágrimas grossas ameaçando cair.
— O que... — A voz saiu irregular, com a picada atraindo sua atenção
para a perna direita, localizando uma agulha lhe perfurando.
— Trouxe um remedinho — explicou calmamente, acariciando o topo
da cabeça, observando a melhora na respiração, que estabilizava devagar. —
Estamos chegando no nosso destino e você precisaria tirar um cochilo de
qualquer modo.
— River... — sussurrou, repousando no ombro do maior, que sorriu.
— Não se preocupe.
Um beijo foi depositado na testa, aguardando-a apagar em seus
braços, o que não demorou.
— Quando acordar, estará melhor.
Soltou o corpo desacordado, num turbilhão de sentimentos pela
atitude do relato, que saiu sem operar nenhuma persuasão, até levá-la ao
extremo. A avaliava como uma garota impecável nos últimos dias,
colaborando sem contestar, sempre à mercê do que ele desejava fazer,
avistando nesse comportamento a harmonia proporcionada em sinais. Embora
carregasse uma inevitável dúvida sobre o quão autêntico tal comportamento
era, jamais confiaria nela em consequência da fuga e discussões tidas,
preferia mantê-la atada e trancada quando necessário, já que não poderia
prever os próximos passos. Fantasiando naquele corpo desacordado sendo
ordenado em sangue, abstraindo a imagem.
O pessimismo é uma maldição, sei que não vai me decepcionar.
Abdicou de idealizar a tragédia chamativa para seguirem no trajeto
feito de madrugada, barrando maiores imprevistos, com destino para uma
pequena casa isolada, mantendo uma distância de três quilômetros da cidade
caótica, com o desaparecimento prestes a completar três meses. Considerava
a hipótese de encontrar uma garota que pudesse desfigurar e atear fogo, para
esquecerem dela, mas tudo ao seu tempo. Primeiro, ele priorizou sujar as
mãos para estabelecerem moradia. Fazia tempo que tinha constatado os
moradores idosos, afastados e alheios às visitas. Ocasionalmente, sondava o
casal, quando entediado pela ausência de Greta, que estava na escola.
Estacionou o carro na estrada de terra trilhada para a residência,
prendeu os pulsos novamente da estudante, e apanhou um canivete, com
pretensão de resolver a situação com precisão. Invadiu a casa com facilidade,
subindo as escadas, que rangeram, mas não fizeram muito barulho. Alcançou
o quarto em que o casal repousava e desferiu golpes certeiros diretamente nas
gargantas, reprimindo a vontade de fazer um estrago maior, tendo outra
pretensão, restando se desfazer dos idosos, que mal puderam revidar.
Lar doce lar.

Admirava a fisionomia pequena, enrolada no lençol, apagada, deitada


numa cama dispondo de colcha, edredom e lençóis trocados, recebendo uma
pessoa alheia ao assassinato com covas no jardim. Posterior ao banho de
River, que descarregou o cansaço e suor, ouvi-la respirando com serenidade
proporcionava um descanso mental. Priorizava trancá-la na casa logo na
manhã seguinte, vetando-a de reconhecer as proximidades, barrando brechas
para sentimentos repercutirem. Botaria tábuas nas janelas, limitando a
visualização do território.
Correram um risco ao saírem do chalé, então chegar com segurança o
fazia confiar no Universo a favor deles. Aproveitou a abertura que tinha se
manifestado no sábado, com a descoberta do cadáver carbonizado de Nath na
floresta, com policiais se deslocando em peso, destoando de Greta
momentaneamente, arrancando uma gargalhada com a falta da noção de River
estar envolvido nos assassinatos e sequestro, inflando o ego em relação a
ninguém pará-lo. Orgulhoso das proezas, os dedos teceram as costas, se
enroscando nos fios claros.
— Minha menina... — Afundou o nariz nas mechas e inspirou o
cheiro.
Levantou a contragosto e foi parar no corredor escuro, andando para o
cômodo pessoal, que guardaria os artefatos afiados. Tinha a ideia primordial
de enfrentar bons meses reclusos no domicílio, saindo somente para suprir as
necessidades básicas com compras, que faria em mercados menos
movimentados, convicto na comoção cessar, disposto a aplicar o plano
secundário e encontrar uma cobaia para servir de cadáver. Isso, claro, até
presenciar Greta revelando, por livre-arbítrio, a existência de Albert.
O brilho do luar apoderou-se do quarto, enfatizando facas, martelos,
ganchos com o arco e flechas adicionados na coleção, dispostos na mesa.
Remoía, atentamente, cada sílaba pronunciada por Greta.
Ela era sua preciosa bonequinha de porcelana com rachaduras.
Projetou derramar ácido nele, cortar a pele, prendê-lo nos ganchos,
acertá-lo com marteladas, desencadeando no entretenimento dos ossos
quebrados. Eram tantas opções, mas nada extraordinário aos seus olhos.
Surgindo o desejo irrefutável de proporcionar um tratamento especial a
Albert e usá-lo para demonstrar sua devoção da melhor maneira: com
bastante violência.
Além da doçura que acreditava ter por Greta, abranger um ódio
apoderado por Albert beirava à igualdade. Encontrar uma nova vítima o
enchia de ânimo.

A falta de movimentação nas ruas o surpreendeu. Os veículos de


imprensa dias atrás contornavam a casa de Greta, aglomerados, aspirando
receberem uma declaração exclusiva, respingando sadismo no proveito da
fragilidade enfrentada pelos pais, que pioravam, com Ellen perdendo peso
num declínio alimentar, além de Bryan com olheiras fundas participando de
buscas que perduravam a madrugada. Deram uma pausa no assédio incessante
quando o cadáver foi descoberto, lançando mais repercussão dos crimes
contabilizados nos últimos meses, tratando as vidas perdidas como números,
fazendo matérias com títulos sensacionalistas absurdos, apostando em
múltiplos motivos para as tragédias, alguns dizendo serem seitas agindo em
prol do demônio e outros alegando ser o fim dos tempos.
Tudo é volúvel, basta uma novidade aparecer, como o cadáver sendo
encontrado, e o rebanho se move com fervor para ver quem consegue o
melhor ângulo, relato ou qualquer merda que satisfaça a audiência.
River não dispensaria a folga que facilitava andar com menos viaturas
ou paranoia de uma pista sobre o paradeiro da mais nova surgir. Estacionava
o carro confortavelmente, numa distância segura da casa, fazendo o básico
antes de tomar uma atitude que pusesse em risco tudo. Observar nem sempre
o agradava, achava tedioso. Ainda assim, o caminho seguro só se manifestava
no aprendizado da rotina que Albert lhe daria. Os repórteres foram
responsáveis pela informação escapar sobre os parentes de Greta estarem
presentes na cidade, dando suporte emocional aos seus pais, favorecendo a
ideia de Albert estar integrado nessa menção. No primeiro dia de
observação, um homem corcunda desceu de uma picape enferrujada trajado
num moletom xadrez e calça surrada, sendo recebido com um “você veio
cedo, Albert” proferido por Ellen, que o recebeu da varanda. Percebendo o
motivo de seu sangue ferver, trincou o maxilar com gosto. Procurando se
conter, fantasiou com um sorriso convencido desenhado nos lábios, com a
gratidão de Greta quando descobrisse o que ele faria com seu tio.
O impulso é tentador. Descer do carro e andar na direção do bastardo,
para afundar o crânio com socos. O barulho dos ossos quebrando é a melhor
parte, claro, desconsiderando a face perdendo sua expressão, tornando
vermelho um atrativo mais interessante. A pior parte é a duração curta desse
prazer, infelizmente, cessando em segundos. Prolongar sempre será a melhor
parte.
Dispôs do tempo corrido de uma semana, tendo que servir quando
fizesse a abordagem, concluindo a rotina da futura vítima como previsível e
medíocre, cumprindo esse padrão à risca, partindo das discussões com a
esposa logo cedo, que xingava-o na saída do hotel, com veias do pescoço
sobressaltadas. Ele neutralizava o comportamento usando um aperto no braço
ou beliscões disfarçados na cintura. Certa vez, um tapa foi desferido nela, que
cambaleou para trás, demorando para recompor a postura até entrarem no
carro com destino à residência mais mencionada da cidade. O casal passava
as manhãs na casa, saíam para as compras e depois ele as despistava, com
desculpas dadas com um convencimento fraco. A parceira não ligava, o dia
era encerrado num clube de stripper, alojando-se no balcão do bar e saindo
quase às três da manhã. Uma fúria elevava-se quando via o alívio de Albert
pela ausência da sobrinha, demonstrando desinteresse quando estaria ali,
teoricamente, para ajudar na busca da filha de seu irmão. A esposa
demonstrava mais empenho, forçando-o a acordarem cedo e irem direto para
Ellen.
Tinha certeza de que ele achava que o benefício no sumiço
representaria o livramento sobre possíveis problemas futuros, com seu
segredo enterrado com ela onde estivesse. River não dormiria naquela noite,
especulando a reação dele ao descobrir que o segredo podre não só foi
revelado, mas acabara revelado para a pessoa que usaria suas vísceras para
declarar os próprios sentimentos. Particularmente, o condutor do carro
achava brega dar flores e chocolate, preferia salientar a afeição por jeitos
peculiares.
No trajeto, ele manteve uma distância segura e afastada de Albert, que
deixou o local, sozinho, mudando o percurso informado para os presentes,
indo na direção contrária. O perseguidor não projetava agir, apenas checar o
estacionamento para ter certeza que a iluminação continuava precária,
tomando a escuridão do exterior no estabelecimento. A luz neon que chamaria
atenção mantinha problemas elétricos, o cheiro da rua era podre, um espaço
deserto digno para acomodar Albert.
Estendeu-se ali, acompanhando-o acender um cigarro, seguindo para o
estabelecimento. Um segurança o barrou brevemente, para revistar
superficialmente, dando passagem segundos depois.
Amanhã irei conhecê-lo, Albert. Espero que seja divertido, tenho
idealizado tudo e não gosto de ser desapontado.
Destrancou a porta, soltando as correntes que prendiam, mesmo não
gostando do trabalho de colocá-las junto das tábuas nas janelas, eram as
medidas fundamentais para impedi-la de assimilar a proximidade com a
cidade. Deu passos adentro, ouvindo o ranger das tábuas, que entregavam a
movimentação no andar de cima, que mudou para passos apressados
descendo as escadas.
O cabelo molhado pingava gotas d’água. Recém-saída do banho,
criava um rastro, convertendo-se numa poça quando parou no último degrau.
Já usava um blusão, preparada para dormir. Recebê-lo, mesmo refém do
sono, o estimulava. Largou as compras no chão e a beijou. Deslizou os dedos
pela bochecha, indo até a nuca, empurrando-a contra a parede, excitado no
estalar do beijo misturado nos suspiros, apalpando o quadril, alvoroçado.
Ela queima os demônios dentro de mim, alastrando seu calor que
sufoca a insanidade predominante no meu ser, deixando somente você
marcando o meu corpo, marcando o pior lado, marcando partes que eu
desconheço.
Ofegante, com o peito subindo e descendo, os lábios entreabertos
junto dos olhos verdes, processando o que acabara de fazer, atraem River,
que adora testemunhá-la dessa forma.
— Trouxe um presente para você — anunciou e apanhou uma das
sacolas, retirando de dentro um livro. — Deve conhecer Orgulho e
Preconceito, mas já tentou ler?
Estender horas, sozinha, desencadearia pensamentos já presenciados
nela com a claustrofobia e solidão. Independentemente de não dar relevância,
fazia o básico para deixá-la contente e, em troca, ele não teria perturbações.
Trazer livros era a melhor distração para aguentar os dias. Preferia mantê-la
trancada até sua chegada. Entretanto, além da piora no emocional, a jovem
ainda precisaria comer e tratar da higiene pessoal, então cedeu que ficasse
livre, tratando de esconder objetos afiados e verificando a consistência das
tábuas, finalizando com as ameaças passivo-agressivas antes de sair.
— Nunca li, acha que vou gostar?
Não é minha obra preferida, mas fui na porra da biblioteca pública,
quase abandonada, habitada por mim e pelos funcionários, para alugar um
clássico, então é melhor que goste.
— Isso eu não posso afirmar. — Brincou com os fios entre os dedos,
virando um hábito. — Vai ter que descobrir sozinha.
— Tenho um receio com livros antigos, fico perdida nos parágrafos.
— Aproveite o tempo e leia com calma.
— Você está certo. — Deu-se por vencida. — Obrigada pelo livro.
Quase sinto amor por você, princesinha, quando age assim.

A cabeça deitou nas pernas e abraçou-as, acariciando com ternura. O


breu invadia o quarto quase que por completo, exceto pela luminária,
provendo a luz alaranjada sobre o livro que Greta lia, sentada de costas para
a cabeceira da cama. Mesmo não estando confortável no ambiente ainda
desconhecido, sentiu uma melhora com a faxina que fazia diariamente para
matar o tempo. Em outras circunstâncias, River não ligaria com as velharias
concentrando poeira, mas ajudava nas vezes que estava presente, mesmo que
gostasse de usar os esconderijos para os assassinatos, abdicando com
ressalvas na presença da menor.
— Eu gostei. — O som da voz saiu baixa, o barulho das páginas
faziam as pálpebras do ouvinte pesarem. — Posso ler para você?
— Por que não? Vá em frente.
As migalhas sentimentais eram o apego dela, encontrando paz interior
na pausa das explosões de raiva, com ele batendo a porta quando contrariado.
A gentileza de se dispor a ouvi-la, fazia as coisas serem suportáveis para ela,
que nada questionava sobre a casa com fotos de estranhos, encontradas na
primeira semana.
Ganhar o livro e ler para ele fazia um momento pacífico se apoderar
deles, e pedia em pensamentos que o dia de amanhã demorasse para chegar.
Greta definia o resto da noite, pela primeira vez em muito tempo,
como tranquila.
Capítulo 17

Uma goteira pingou sobre o homem paralisado de medo, orquestrado


nos ruídos do vento indo contra a estrutura abandonada. Sua respiração saia
ofegante, engasgado com a saliva, que mal podia engolir, ainda atônito diante
da condição despertada. Conceber como chegara ali nem permeava a mente,
em virtude do capuz preto cobri-lo, anulando por completo a vista, usava uma
audição afetada pela dor demasiada na testa. Ocasionalmente, pressionava as
pálpebras e contava de zero a dez, pedindo para acordar de ressaca no hotel,
com as reclamações da esposa sendo o corriqueiro despertador. Jurava não
ameaçar arrebentá-la, caso isso acontecesse, a decepção vinha quando o frio
batia contra sua pele friccionando no banco gélido de metal.
— Tem alguém aí? — Refez a pergunta, já que nas três anteriores uma
resposta não chegara.
A diferença das indagações anteriores, é que dessa vez a resposta
veio por meio de barulhos, com objetos metálicos batendo contra a base de
algo, afundando nela e sendo puxada. Deduziu ser madeira. Ele reconhecia
esse barulho específico, já que já tinha cortado toras para fazer fogueiras, e
associou aos prováveis objetos afiados perfurando tal base.
— Por favor, levem o que quiserem! Peguem meus cartões, dinheiro, a
chave do carro — oferecia, aos prantos. — Só me deixem ir.
Nada o impedia de gritar com toda a força, confiando na hipótese de
que alguém surgisse para ajudá-lo. Mas, o pânico das consequências de
emitir qualquer ruído alto o calou. Descartou em seguida a possibilidade de
mover-se pelas cordas que o prendiam, como o abraço sufocante de uma
serpente ameaçando quebrar os ossos em questões de segundos. Implorar lhe
dava uma segurança sobre possuir oportunidades, mesmo baixas, de sair
ileso.
— Você está nervoso, Albert? — A voz grave enunciando seu nome
fez o próprio ranger os dentes com a manifestação do desconhecido. —
Admito que eu estou, queria muito te conhecer. — Teve o capuz removido da
cabeça, fazendo os olhos fecharem com a luz, incomodando as pupilas. — De
forma oficial, claro, porque sinto que já te conheço muito bem.
— Quem é você? — Manter o tom constante era impossível, o
consumo excessivo de álcool prejudicava a fala.
— Sou a pessoa que te liberou da rotina detestável.
A figura misteriosa se detinha fora da luz, impedindo que o
enxergasse. Sua aliada era a audição, que delatava uma cadeira arrastando,
chegando adjacente à mesa coberta por um longo lençol no campo da luz. Os
segundos percorreram com a sensação de serem anos, erradicados quando
Albert o ouviu se sentando.
— Andei meio pensativo, programando o que falar. Eu acabei com o
seu desgaste de voltar ao hotel, discutir com a esposa, gastar o salário em
bebidas e foder com prostitutas. — Inclinou a face na direção da luz. —
Merece uma primeira impressão boa, mas coloquei essa pressão nos ombros,
acho... acho que vou improvisar. É, foda-se, vou improvisar!
— Do que tá falando, porra? É uma piada com minha cara?
— Que tipo de anfitrião eu seria se fizesse piada de você? Não, é um
desrespeito que ninguém merece receber. — As más intenções eram postas
em evidência na ironia movendo os lábios. — Ao invés de pensar nisso,
posso te mostrar os meus brinquedos?
— Brinquedos?
— É a minha diversão pessoal. — Arrancou o lençol e exibiu
ferramentas afiadas e enferrujadas compondo a mesa. — Gostou? Eu
certamente tenho os meus preferidos. — Um brilho lhe atingiu e escorregou a
mão nos objetos reluzentes.
— Eu imploro, me deixe ir!
— Você é novo na cidade, Albert? Nunca te vi por aqui.
— Não, eu... Eu estou de passagem.
— Pode me dizer o porquê? Talvez vir para cá não tenha sido uma
boa ideia.
— Minha sobrinha desapareceu faz alguns meses, eu vim ajudar! —
afirmou, empenhado em ganhá-lo na empatia. — Minha família e eu estamos
desesperados. Greta...
— Não fale o nome dela, perdeu o caralho da noção? — Avançara de
supetão, sacando o canivete, pondo-o contra a garganta do refém, que travou,
parando de respirar, temeroso. — Juro que se mencioná-la de novo, eu
arranco o seu olho e enfio dentro da sua goela, filho da puta!
Albert não ousou desviar dos olhos que lançavam pequenas faíscas,
ponderando que caso o fizesse, teria seu pescoço rasgado, espirrando sangue,
que ilustraria a aparência doentia com pupilas dilatadas quando ajustava o
objeto afiado, tentando matá-lo.
Foi o período mais longo que fiquei sem me divertir. Abstinência é
uma merda, então se controla, imbecil.
River, definitivamente, não projetava acabar com tudo logo, se via
frustrado nesse caminho, e aturar as chamadas “birras” de Greta quando
depressiva, engrandecia na valorização que o momento envolvia.
— Você... — Puxou o ar, aspirando coragem para explanar a dúvida.
— Conhece minha sobrinha?
— Conheço muito bem. — Brincou com a ponta da lâmina. — E sabe
o melhor? Ela me falou de ti, na verdade, de vocês... Os horrores que passou
com o tio.
O líquido quente, escorrendo das pernas, apesar de tentar contê-lo,
escapou de Albert, que apenas gritou, presumindo as intenções de River, que
bufou ao regressar à mesa, torcendo o nariz por conta do odor forte de urina,
visualizando a cueca escurecer.
— E olha que eu ainda não fiz nada — debochou, com os dígitos dos
dedos roçando na base de madeira. — Passou anos ocupando a posição de
opressor e agora está aqui... Um velho bêbado, fraco e submetidos às minhas
vontades, como é a sensação? Eu me mataria, mas não ocuparia seu lugar.
— Eu sou uma pessoa doente... — Buscava pronunciar qualquer coisa
minimamente coerente no fervor do medo. — Por favor, não sei o que foi
dito, mas juro que não sou um monstro! — declarava, sem compreender a
ligação de Greta com o homem dos trejeitos estranhos.
— Diga algo mais instigante! Que porra de lamentações simplórias
são essas? Prefiro te esfaquear e sair daqui — reclamava, verificando o
relógio de pulso, confirmando que já passava das duas da manhã. — Não
posso demorar, mas nem ouse ficar chateado! Vamos ter dias inesquecíveis.
Pensei comigo mesmo: “por que matá-lo numa noite, se eu posso estender até
o fim do mês?”. Planejei tanta coisa, quero te mostrar algumas das minhas
amiguinhas.
O sangue de Albert congelou.
Matar.
Estremecera, assistindo-o decidir qual objeto apresentaria, estando
bastante entretido nas opções.
— O que acha de arrancarmos os seus dentes amanhã? — A gentileza
vinha na exposição do alicate com passos na direção dele, que falhou ao
retrair o corpo imobilizado. — Vejo de longe o quanto estão podres, pode
tratar isso como um favor. — Apertou o maxilar, obrigando Albert a abrir a
boca.
— Não... Não faça.
— Relaxe, não farei nada hoje, a dor tem que ser gradual. — Deu uns
tapinhas leves na face, recuando para a mesa e pondo a mão num cutelo. —
Contemple um clássico! O estrago que esse item faz é esplêndido, aliás, ele é
novo, então vou estreá-lo arrancando pedaços da sua pele.
A loucura trajada na normalidade tende a assustar, mas, ao invés da
frieza, especialmente na oscilação comportamental do homem diante de si, o
deixando alerta até num movimento leviano dos dedos, pois deveria mesmo
crer que nada seria feito contra ele naquele instante, ou isso não passava de
um blefe para pegá-lo desprevenido? Albert acabou se entregando às
orações, clamando por uma salvação que nunca alcançaria.
— Tenha misericórdia da minha alma pecadora, me liberte das
impurezas — sussurrou, rejeitando a sordidez vinda do sequestrador,
comentando sobre as formas de torturá-lo. — Peço piedade, Deus...
— Deus? Não fique olhando para cima, esperando uma bênção cair
do céu — ele falava, escorado de costas na mesa, dando um sorriso
presunçoso e sarcástico. — Eu sou a merda do seu Deus agora.
— Deus não tolera heresia!
— E nem pedofilia — refutou, com a frase pulando da língua. —
Aliás, quer adivinhar onde eu vou enfiar essa belíssima furadeira? Dica: vai
te rasgar por dentro.
As cordas vocais queimam nos gritos, cedendo ao irracional e
recorrendo por ajuda no meio do nada. River preza pelo barulho, fechando os
olhos e saboreando o desespero oriundo da ansiedade em decorrência do que
virá.
— Grite mais alto, Albert! — incentivou, o rodeando e segurando a
cabeça, enterrando as unhas na pele oleosa. — Grite até as suas cordas
vocais estourarem, porque ninguém virá, ninguém irá te escutar, então persista
como a porra de um imbecil.
O armazém abandonado ficava próximo da casa, logo se deslocar
para lá não demorava, sendo igualmente isolado, e faria jus à liberdade que
teria.
— Vamos parar, prometo que amanhã estarei cedo aqui — impôs,
ajeitando as mangas da jaqueta jeans, conferindo o horário mais uma vez. —
Aproveite o restante da noite.
— Você não pode me deixar aqui, seu filho da puta! — berrou,
exaltado com a saída, acabando desamparado no frio.
A luz fraca foi apagada, nascendo dela o escuro, nem sendo um
problema, visto sua sede insuportável com os gritos, o desgaste das energias,
o odor da urina forte e o formigamento, que o impedia de sentir as
articulações.
O inferno pessoal de Albert havia sido introduzido, assim como o
demônio que o comandaria nas próximas semanas.

Estacionou a caminhonete dos antigos donos da casa, descansando a


cabeça, dando as últimas tragadas no cigarro, analisando gotas caírem contra
o para-brisa, oriundo da chuva intensa, ponderando sobre o que Greta fez
durante o dia. Decidiu quebrar as regras relembradas diariamente?
Arquitetava uma fuga dali? Ou encontrou as facas de cozinha e se mantém na
espreita aguardando-o entrar? Uma revolta violenta integra a lista mental feita
das possibilidades que viriam após a crise de riso, revelando essa versão
desequilibrada e transtornada tão atrativa para si, mas perigosa, concebendo
um entretenimento que faz o coração bater rápido, com expectativas
elevadas.
Destrancou a porta e soltou as correntes que impediam Greta de fugir.
Sustentava a corda de metal, pronto para enforcá-la caso tivesse pretensões
de atacá-lo. Ao entrar, teve o cheiro do chocolate apossando-se dele, o
guiando para a mesa de jantar. Encontrou uma caneca com vapor saindo, perto
de folhas com anotações, e pairou os olhos sobre, averiguando serem
referentes ao livro Orgulho e Preconceito, acabando ludibriado. River
gostou de ter Albert para reviver sua saudosa despreocupação de sujar os
trajes ou nas horas empenhadas em gerar dor, quebrar ossos e desmembrar
corpos. Cismado se a “princesinha” correspondia a uma boa substituta
permanente para o maior estímulo que vinha dos assassinatos, entrará numa
reflexão introspectiva sobre os anos subsequentes com a garota ao seu lado e
nas possíveis vantagens de tê-la consigo.
Eram quase quatro da manhã e, pela temperatura quente da caneca, a
bebida foi preparada recentemente. Subiu ao segundo andar, fugindo do
barulho, com as anotações amassadas e a bebida na outra mão. O cômodo
recebeu a fisionomia feminina marcada nos lençóis depois das tentativas de
Greta em ficar acordada, descendo ocasionalmente para verificar se ele
chegara. A bebida doce foi a última tentativa.
Uma atitude bonitinha.
Pensara, pisando nas folhas, enfurecido. Preferia receber uma facada
nas costas ao invés da passividade.
— Doce pra cacete... — criticou, pondo o chocolate quente na mesa
de cabeceira, acomodando-se na cama e sentindo os estalos das costas.
Greta tinha lhe servido como adrenalina, atiçando-o a operar os
eventos desastrosos e perigosos, trouxe ânimo de se entreter em companhia,
mesmo sendo às custas dela, torturando o psicológico com ofensas ou
cutucando as fraquezas. Afeição e sexo foram bônus que recebeu, porém,
nada tão interessante quanto confundi-la. Mas, e agora? A colaboração
recorrente parecia repeli-lo, as emoções apagando eram um presságio de algo
efêmero?
Capítulo 18

Nas tardes que Greta não leu, ela especulou sobre estar num limbo,
com idas e vindas de dias idênticos, portanto, fazer algo além do habitual,
provocou uma inquietação descontada nas unhas, que acabaram roídas. Em
ocasiões assim, sua consciência tendia a fazê-la contabilizar quantos dias
estava ali, num método para não enlouquecer. Manteve a contagem nos
primeiros dias, desistindo num sopro com o fracasso em desvirtuar-se de
River. Sofria pelo descaso, tirando as irrisórias horas dormidas, apostando
na investida de aguardá-lo, pretendendo melhorar o humor aborrecido. Por
acaso, você é a porra de uma cadela? Parece que está esperando o dono.
Sentiu-se insignificante e riu largamente, com este a abandonando na sala,
subindo para o segundo andar, enquanto ela não soube o momento exato que
desmoronou em lágrimas.
— Que merda, Greta! — Bateu com os punhos na mesa, arrastando a
abóbora para si. — Nunca esculpiu uma abóbora? Os olhos estão tortos.
Outubro.
River entregou o mês, sem esforço em esconder, diluindo a sensação
de existir nessa realidade por anos, proveniente da intensidade arrancando a
compreensão das coisas, sendo pessimista ao pensar no amanhã, estipulando
o prazo de sua disposição em levantar, ao invés da fraqueza governá-la,
aspirando o fim. O fim da vida ou somente o fim do dia.
— Na minha escola, em outubro, praticamente todos os alunos só
falam das fantasias que planejam usar, que são sempre bem elaboradas. —
Escolheu desconversar, engolindo o choro que ardia na garganta. Engolir as
ofensas era mais cômodo que enfrentá-las. — Ficaria surpreso com o
entusiasmo do conselho estudantil na divulgação da festa anual.
— E você se identifica? — O tom era neutro, causando alívio na
questionada.
— Fiz parte do conselho, não posso dizer que é o meu evento
favorito, mas gostava de decorar o ginásio — esclareceu. — Além das
fantasias, todos costumam ir à festa de Halloween do Will. Ele é capitão do
time de futebol, acho que da última vez a polícia apareceu lá pela lotação.
— Do jeito que fala, sei que não chegou a ir.
— Nunca tive muita vontade, mas esse seria o meu último ano, então...
— A frase se perdeu, assim como ela. Nem tinha motivo para falar aquilo, a
escola e seu último ano foram desfeitos por River.
Não disfarçou a decepção. Encolheu os ombros, se curvando,
abaixando a cabeça e encarando as palmas das mãos, ruminando quando jurou
ir para a festa com Nathan. Temos que escolher fantasias combinando, será
uma noite importante, a noite que Greta Lowel irá numa festa! Lembrava da
voz dele ser um dos seus sons preferidos. Ele a entendia tanto ao ponto de
assustá-la. Na época que mais se sentiu entrelaçada, fora quando ele lhe
revelou ser bissexual, um passo importante na autoaceitação, já que Nathan
enfrentava uma luta diária, especialmente integrado na cidade pequena, onde
todos fofocavam e olhavam de queixo erguido. O rótulo sobre ser “gay” já o
assolava pela suposta falta de “masculinidade”. Mesmo nas redes sociais, ele
recebia uma descrença dos amigos virtuais, que não validavam a
bissexualidade, argumentando que ela servia de passagem para se assumir
gay depois.
Nathan chorou, incerto de relatar uma coisa íntima e lidar com a
rejeição em seguida. De maneira oposta, ele foi acolhido pela amiga. Nem
precisou receber uma resposta sonora, bastava envolvê-lo num abraço, tudo
relacionado a esse assunto o sensibilizava, entretanto, um peso se desfez por
finalmente falar em alto e bom som. Eu não sei como o restante das pessoas
verão, mas eu tenho muito orgulho, sabe? Retribuiu o abraço, deitando seu
rosto na curva do pescoço. Greta encheu o peito para contar sobre Albert,
confiante da privacidade e proteção gerada embaixo da arquibancada na
quadra de basquete. Ainda assim, guardou o impulso, pois aquele instante lhe
pertencia, merecendo celebrar entre eles, nem que saíssem para comer na
lanchonete. Eu te amo, Greta. Ela também o amava, amava tanto que doía.
Com o tempo, ciúmes foi um tópico incômodo que surgiu na amizade
da dupla, e nunca teve capacidade em erradicá-lo. Seu amigo era como ela no
começo do ensino médio, ficavam reclusos no mundo deles, com os sonhos
deles e suas ambições, que programaram para estarem sincronizadas. O nosso
recomeço! Recebeu um rascunho da ilustração que fez na aula de química e
aquilo a encantou. Parece perfeito, elogiou, baixinho, evitando que a
professora os pegasse cochichando. No entanto, o ruivo caminhou na frente,
com a expansão das amizades, tendo breves relacionamentos, havendo
cuidado redobrado com garotos, decidindo terminar rapidamente, receoso
dos familiares descobrirem.
Greta condenava as lembranças sendo formadas com outras pessoas.
Nas pausas dos estudos, festas e preparação para a faculdade, discussões
acaloradas explodiram, e depreciava qualquer pessoa que interagisse e
destoava-se dela. Qual o seu problema, hein? Todos escutaram os seus
gritos pelo celular, nem pude disfarçar, fiquei muito constrangido. Nathan
constantemente dividia o tempo colocando-a num pedestal, mas nada parecia
satisfazê-la, ela só ficava calma quando a festa terminava.
Reprisaram as mesmas discussões, com desabafos dele sobre o poder
que ela exercia, o deixando tão mal por coisas que não estavam erradas. Seu
nome brilhava no visor do celular e o corpo gelava, prevendo todo desgaste
mental vindo naquela chamada. Os conselhos giravam em torno do
afastamento, a proposta era efetuada e a menor argumentava com choro. Nada
lhe feria mais do que observá-la de olhos inchados, prejudicando sua fala nos
soluços, a interrompendo, cedendo sempre, aspirando ainda crer nela
melhorando.
Desistiu de insistir no assunto, a escola virou um sinônimo direto para
recordar da amizade já desgastada. River dava de ombros na introspecção,
indo na cozinha checar a torta no forno; Greta aproveitou para puxar sua
abóbora novamente, entretanto, os olhos saltaram na faca pontuda ao lado,
com acesso livre e direto.
Só pega a faca, pega a porra da faca!
As mãos suaram pelo pensamento. Tinha certeza que o homem na
cozinha não perdoaria uma atitude dessas, fazendo questão em impedi-la de
continuar respirando.
— Está tudo bem? — Reprimiu um grito quando o viu se apoiar nas
costas da cadeira, por cima de si, inclinando o rosto até estar ao seu lado.
Bem é uma palavra irreconhecível quando se embarcava direto para o
meio agitado da mente.
— Sei que não é fácil ficar trancada aqui — a postura mudou,
despejando zelo, norteando-a para trocarem de posições e acomodá-la em seu
colo — e nem lidar comigo, mas você tem sido perfeita, princesinha.
O reconhecimento pôs os segundos anteriores, prestes a ameaçá-lo
com uma faca, numa profunda culpa que machucava, atormentando-a na
hipótese de quase traí-lo.
— Eu faço o que for preciso por você! — O empenho de reafirmar
sua entrega era notório.
— Faz mesmo? — A resposta chegou num aceno de cabeça, e ela
percebeu a mudança, mas, ainda assim, falhava ao tentar interpretá-lo. —
Você é preciosa, Greta. Sinceramente, não existem mulheres boas que sejam
comparáveis contigo, querida.
Ele a beijou e ela entendeu o significado dessa ação.
A afeição vinha de pretexto direto ao sexo, às vezes, tendo que forçar
um consentimento com River, caso contrário, receberia o mesmo descaso
frequente. E o que fazer nesses momentos? Greta apenas usufruía da afeição
temporária, dançando com a incerteza num ritmo lento, tirando peças,
desejando mantê-las grudadas nela.
— Olhe pra mim — mandou, segurando-a pela garganta,
interrompendo a movimentação. — Você me pertence, ouviu? — Gostava de
inseri-la como uma posse.
Ela aceitava, desesperada em prolongar qualquer tipo de afeto, pois o
suposto homem devoto, retornando a segurar seus quadris, tornava-se
agressivo verbalmente, quando encostado sem autorização, mudando toda a
dinâmica estabelecida nos últimos meses num piscar de olhos, e nada disso a
surpreendia.

Dois dias passaram desde que esculpiram abóboras, queimaram uma


torta e fizeram sexo na mesa. Nem nutriu expectativas, ciente do
distanciamento assim que acabassem, entregando-a de novo nas tardes
largada no sofá, encarando o teto, vazia por dentro na inquietude do silêncio,
inteiramente arrependida em não ter arrancado mais da presença de River. O
tempo voava quando estava presente, diferente da distância que fortalecia a
necessidade de se desprender dos braços que alegavam protegê-la,
enfraquecendo a influência nascida da manipulação, e definitivamente o
tratamento indiferente não contribuiu em nada para isso.
Existia um medo descomunal que perdurava, contaminando-a quando
cogitava agir. Ela era prisioneira de um assassino cruel e sanguinário, assistiu
trechos curtos dos crimes, o comportamento oscilante tirava qualquer
incentivo para fugir. O lado racional não carregava tamanha coragem,
carecendo de uma estratégia certeira.
Dominada pelo calafrio, percorrendo a espinha e cortando sua linha
de raciocínio, afetada pelo som fraco e familiar surgindo de um ruído, usou o
silêncio como um de aliado. Dava passos, concentrada, pedindo que não
estivesse delirando, parando em frente à escadaria. Seu pé direito pisou no
degrau, mas o corpo se manteve afastado.
Não quero subir e averiguar que, na verdade, estou louca. Eu não
quero comprovar isso, as coisas só pioram depois da comprovação.
Independentemente da relutância, ela subiu as escadas, indo contra as
incertezas e chegando no final do corredor, com tábuas tapando a janela.
Resolveu aproximar a orelha na madeira e a música externa soou com
clareza. Os pelos ficaram arrepiados, omitindo os riscos corridos dos
pensamentos quando quebrou os estilhaços pequenos das tábuas,
posicionando seu olho na fresta, procurando confirmar a suspeita.
Teve a exata sensação de receber um soco no estômago, ficando
desnorteada. As pernas fraquejaram e bateu os joelhos contra o chão. Ela
vomitou de imediato, numa tentativa do corpo em colocar para fora aquilo
que a revirava por dentro.
A música conhecida a fez estremecer nas memórias da infância,
presenciando, quando pequena e junto dos pais, o desfile anual da cidade,
anunciando os eventos que antecediam a comemoração do Halloween. Carros
alegóricos, tradicionalmente partiam na entrada da cidade, com líderes de
torcidas, bandas, fogos de artifícios ilustrando o céu escuro, com os
moradores acompanhando, gerando uma boa movimentação nas ruas.
Estamos na minha cidade, próximos dos meus pais, próximos de tudo
esse tempo todo.
Parecia intragável de assimilar tal descoberta, apesar do pensamento
repetir-se, incentivando na paralisia momentânea. Os membros acabaram
rígidos, com uma respiração densa, e ela só rezava para se recompor antes
dele encontrá-la vulnerável, próximo da janela, que revelava mais do que
River gostaria. Demorou bons minutos para se recompor, transtornada na
desilusão, persistindo num filtro camuflando a ampla podridão, tendo todo
esforço descontado na limpeza do piso, para impedi-lo de notar as tábuas
cutucadas. Apagou na cama logo depois, a insônia só veio incomodá-la no
instante em que os braços rodearam sua cintura na madrugada.
Era como ter uma farpa na mente, alfinetando quando as pálpebras
pesavam, sonhando acordada, num aspecto tão vívido ao ponto de sentir a
textura da grama macia sendo dispensada pelo asfalto áspero, indicando o
quão longe já estavam. Concretizar o cenário ilusório gerava uma
movimentação na cama, inquieta, caçando uma posição minimamente
suportável, testando de bruços. Deitou para o lado esquerdo e depois direito,
alternando para a posição fetal e agarrando um travesseiro.
— Greta, porra, para de se mexer!
— Desculpe.
A noite de River também não havia sido uma das melhores. As
infecções do convidado no depósito pioraram perante os buracos nas pernas,
afligindo o tempo de vida restante, mesmo proporcionando os cuidados
básicos para mantê-lo respirando. Ficou temeroso em perdê-lo na extração do
olho direito, da língua e dos dentes, perante a perda excessiva de sangue,
tendo uma surpresa agradável, com Albert resistindo. Somente enfraqueceu
gravemente no final da tarde. É uma pena, pensei que o descanso no dia
anterior fosse ajudar. Mas não podemos parar toda hora, a diversão
precisa predominar no fim. Presumia a tragédia em perdê-lo, uma catástrofe
sem precedentes sobre o que fazer após enterrar seu entretenimento.
Mesmo que estivesse no transe do sono, ele esticou o dedo e
contornou as costas nuas, em decorrência da blusa parcialmente levantada de
Greta, trilhando um caminho na coluna vertebral, contando os ossos,
adormecendo lentamente.

Sentada no penúltimo degrau da escada, ela se atentou na porta sendo


trancada, com o som das correntes indicando oficialmente a saída de River.
Colocando em perspectiva se deveria realizar a ação irreversível, inclinou o
tronco para trás, arrumando mais uma dose de coragem para invadir o
cômodo com muito receio, capaz de prendê-la contra o chão.
Sei que minha querida já sabe perfeitamente onde não pode entrar, não
é? Espero que, para seu bem, você não me decepcione.
O tom passivo-agressivo fora sua despedida. Normalmente, daria de
ombros, com uma nova ameaça adicionada à lista, exceto que ele afirmava
com convicção no dia que suas pretensões não são inocentes, incitando a
desconfiança dela, levantando suspeitas dele estar ciente das suas intenções,
mas como poderia?
Deitar e desistir é mais cômodo, a submissão já faz parte do meu ser.
Sentiu repulsa da tentativa de autossabotagem recaindo.
Eu mereço sair daqui.
Girou a maçaneta da porta, que estava trancada, como esperado.
Derrube a porta, chute, empurre a mesa contra ela, jogue a cadeira.
Incentivava a si mesma, pegando a mesinha do quarto, dispondo da
excêntrica sensação de segurar uma arma carregada entre os dedos, bastando
puxar o gatilho e pronto, as consequências viriam.
Eu consigo.
Posicionou o móvel de frente para porta que derrubaria.
Destrua essa porta!
Bateu-o contra a porta, o impacto não teve repercussão de primeira.
Nunca entre nesse cômodo.
A imagem de River apoderou-se dela, fazendo-a recuar da mesinha
por um instante, ficando contra a parede.
Foda-se, foda-se ele, foda-se o medo, ninguém vai me parar, caralho!
Pegou impulso e jogou a mesa e corpo, despejando força, derrubando-
a, caindo nos retalhos, buscando o mínimo de equilíbrio antes de erguer as
íris e enxergar que seu desaparecimento virou assunto nacional, com
incontáveis matérias pregadas nas paredes. As horas corriam para aplicar
suas alternativas de fugas e, diferente da impotência na noite passada, dessa
vez, Greta não hesitou em prosseguir.
Capítulo 19

O conhecimento é terrivelmente contínuo, não interessa se minha


mente está assolada a todo momento, o subconsciente me obriga a engolir
informações, atuando com descaso no meu sincero desejo pela morte, ao
invés de gravar coisas simplórias, que nem os longos segundos dele entrando
na casa, as verificações das tábuas nas janelas. Memorizei as
particularidades de River e prevejo quando um sentimento ruim o atinge na
maneira de soltar o ar com demora, sendo o jeito usado para ter equilíbrio, ou
pelo menos tentar. Usei dos conhecimentos obsoletos de modo nivelado com
os críticos, regendo muita atenção, inclusive no convívio de tropeços que lhe
partem a paciência quando ultrapasso os limites da sua tolerância.
De tarde, dediquei bastante tempo, levando a casa abaixo numa
ansiedade, para sair puxando as tábuas que cortam os dedos, alternando em
bater qualquer objeto pesado contra a porta do primeiro andar, sem causar
impacto, provavelmente está reforçado. Fiz uma avaliação das opções
oportunas, com o rosto quente de raiva, drenada nos berros e choro na falta
de conclusão. Portanto, subi direto para o quarto, agora derrubado, com
intenção de analisar melhor. Vasculho nas notícias, espalhando papéis no
chão e escapando da vontade mordaz que é ler as anotações de River, com
meu diário disposto no centro da mesa. Eu não posso me desestabilizar, esse
cômodo é um acumulado de armadilhas, e perder a cabeça aqui seria sua
idealização mais prazerosa. Conceder o acesso escancarado, preparando para
me ver num colapso muito atrativo para si.
A tristeza ou sofrimento são os semblantes favoritos, em particular
quando abro mão de negar sexo. Ele vislumbra desconforto, forçando-se
contra mim, e vai fundo, concebendo lágrimas que contornam minhas
bochechas. A língua quente atravessa, deixando um beijo demorado,
sussurrando que sou o motivo de sua inteira existência. Cegamente, me
apeguei às doçuras fantasiosas. Sei das minhas oscilações vergonhosas
melhor do que quem possa julgar. É mais conveniente reverter uma condição
exaustiva em algo minimamente suportável do que sofrer incessantemente. As
promessas também não me motivaram a renegá-lo com tanta garantia sobre
venerar e prezar por minha proteção acima dele... Não é fácil abandonar ou
me desvincular dessas emoções. Meu empenho só assume o comando porque
a mudança no comportamento, beirando uma agressividade iminente, e a
proximidade da cidade, dão um choque, o que me leva ao momento atual,
encostando minha orelha na porta. Concentro no barulho característico das
correntes, sinalizando a chegada, fazendo meu corpo transpirar. Peguei uma
tesoura perdida naquele quarto, embaixo do móvel adjacente à mesa, lotada
de fotos minhas e do meu quarto. Não quero pensar nisso.
Deter alguma noção de tempo e horários é indistinguível, sei que
anoiteceu à custa dos raios de sol sumirem nas frestas estreitas que a madeira
não barra. Costumava ficar melhor quando deitava no chão, para sentir o
calor fraco da luz natural intercalando no frio fresco que o aquecedor
limitava. Geralmente, ele ressurge quando já estou dormindo, com exceção de
hoje, já que o sono tornou-se incabível. Imagino que ainda não seja
madrugada, só faz algumas horas que anoiteceu, terei que esperar um bom
tempo.
Ranjo os dentes e percebo o barulho da porta sendo destrancada, com
meu pesadelo tomando forma. Uso a barra do short para esconder a tesoura.
Estou tão trêmula, que posso fazer merda, caso tente manuseá-la. Os ruídos
me contam seu passo a passo, incendiando minha pele com a amargura da
antecipação. Subo as mãos para a maçaneta, encho meu peito e desato no
grito.
As vibrações da garganta ardem, com essa queimação apossando-se.
Ponho meu horror reprimido para fora, porque dependo disso. Os
questionamentos atropelados são elevados com batidas na porta. Comprimo
meu corpo, fazendo pressão contra o empenho vindo do curso oposto.
— Abre, abre essa merda de porta, Greta! — A voz enfurecida quase
falha, evidenciando algum traço de aflição. — Tá surda, sua imbecil do
caralho? Abre essa porra!
A força do River é superior a minha em todos os sentidos, então logo
perco espaço, com a porta abrindo em câmera lenta, com ele perto de entrar
no banheiro. Inverto a posição com velocidade e uso os pés para bloqueá-lo.
Arrisco na aposta de ceder para desequilibrá-lo e então desferir um chute
certeiro na porta que o acerta. Assisto-o cambalear, e nesse deslize me lanço
a correr. Desço as escadas pulando a maioria dos degraus com cuidado, para
não ter o desfecho trágico como da primeira vez. Minha pele arrepia e um
calafrio trilha a coluna quando finalmente saio pela porta e me deparo com o
terreno enorme. Percorro a grama macia, checando por cima do ombro,
avistando-o colado em mim, dispondo do olhar idêntico ao dia que me
sequestrou. Um olhar sedento.
Nem respiro, com meus pés empenhados em ir longe. Apesar disso, os
passos estão atrás, indicando a recuperação absurda. A desistência não lhe
apetece, na verdade, posso estar servindo de incentivo. Felizmente, meus
olhos miram nos dois faróis brilhantes na estrada: uma caminhonete! Porra,
uma caminhonete passando, sei que estou muito afastada da rua, mas gritar
chamará atenção para o desgraçado me perseguindo.
Sigo correndo, puxo o ar e...
A pancada em ser derrubada contra a grama pressiona as costelas,
com o peso do seu corpo contra mim. Não desisto e luto para sair do aperto,
que tapa minha boca e imobiliza meus punhos. Tenho a cabeça afundando na
terra, com o joelho dele empurrando. Isso não me impede de acompanhar o
veículo pegando distância. Fui capturada outra vez, as veias estão
sobressaltadas, porque solto um grito abafado, enraizado no ódio.
— Deu tchau para a caminhonete, querida? — Sou levantada pelos
fios de cabelos. — Foi perspicaz, achei que tinha cortado os pulsos ou sei lá
a merda que passa nessa cabecinha linda. — Ele usa do escárnio para rir do
meu estado, arrastando-me com as mãos no pescoço, jogando-me para
caminhar na frente.
Recebo a ordem de sentar na escada e River ajeita as correntes.
Constato um moletom de tricô verde-escuro manchado com sangue, igual suas
mãos, só que seco. Mordo o interior da bochecha e espanto o quanto fico
apavorada. Instintivamente, toco meu quadril e sinto a tesoura aqui,
comprovando que não fui revistada.
— Confesso que estou admirado com essa terceira tentativa e
decepcionado pela desobediência. — A afirmação fica séria e imita um
sermão. — Eu vi parcialmente o que fez no quarto... Leu todas as matérias,
hein? A falsa preocupação já te satisfez? Aposto que esqueceu quem te salvou
daquele buraco.
— Eu não li.
— Mentira, porra! — explode, abatendo sua ira num pontapé,
quebrando o batente da escada. Sustento a rigidez, independentemente do
susto. — Se revolte por si mesma, Greta, não porque é uma puta
influenciável. O mundo não dá trégua para pessoas iguais a você, existe
prazer em destruí-los... Até imaginei que fizesse isso, mas não achei que
fosse burra o suficiente para usar um motivo fútil.
— Qual motivo não é fútil pra você?
Qualquer motivo que inclua meus pais ou uma vida livre no geral
provoca essa “decepção”, porque me afasta de terminar tão desequilibrada
numa cópia perfeita dele. Eu conheço o manuseio da manipulação,
diminuindo quem sou e engrandecendo-o. Fala com confiança, me
impossibilitando de refutá-lo. Parece enxergar por mim, tocando os pedaços
frágeis. Tê-lo longe ajudou nesses pensamentos, porém escutá-lo dizer essas
coisas ainda ferem.
O trinco da porta é trancado. River tem uma postura superior e um
sorriso que aumenta e se alarga de frente para mim.
— Posso te dar bons motivos para perder a cabeça e criar um
empenho real — diz. — Por exemplo, querida, que tal eu visitar os seus pais?
Acho que está na hora de conhecê-los, já passo em frente à sua casa todos os
dias mesmo.
Minha resposta é instintiva e brutal quando afundo a tesoura no seu
ombro, pegando-o desprevenido, assim como eu processando o que fiz,
contudo, torço o objeto na carne, sem provocar um único som incômodo, ao
invés disso, a cor nublada dos orbes sobe, alucinados. Quando tento puxar de
volta, ele detém meu pulso.
— Agora quer fugir? Que feio.
Chuto o braço e me solto. Nem posso levantar direito para alcançar o
segundo andar e pegar uma distância maior, pois sou apanhada pelo tornozelo
e puxada para cima. Bato meu maxilar num degrau e o gosto metálico inunda a
boca.
— Será que é errado enfiar essa tesoura na sua perna? Eu estaria
apenas devolvendo a gentileza... — O questionamento logo traz seu impulso
de cravar o objeto contra minha carne. Grito, lutando para me desvencilhar
dele, que puxa a tesoura de uma vez.
— Não se preocupe, princesinha. Eu vou cuidar de você.
A ferida aberta reforça minha insistência em subir, tendo esse
empenho prejudicado nas tentativas agressivas de me parar. Resisto à maioria
delas, quando subitamente ele bate minha cabeça no degrau. Perco os sentidos
pela sequência de pancadas. Tenho a barriga virada para cima, nem
raciocínio a distância que estamos, a respiração atinge meu rosto e nem
protesto com a tontura nauseante.
— Precisa se acalmar... — Ele está ofegante, o som é desregulado.
O polegar circula minha bochecha e nossas testas são encostadas.
— Sabe, eu deveria te estrangular, mas é impossível ter raiva da
minha princesinha, e veja só o quanto estamos nos divertindo...
Os segundos servem na recuperação baixa de energia. Desfruto da
proximidade para pressionar meus polegares nos olhos dele, o repelindo,
proferindo palavrões desconexos. Subo com dificuldade, cambaleando e
escorada nas paredes.
Bato a porta do quarto, trancando, e empurro os móveis contra, para
ganhar tempo. Nessa movimentação acelerada, sinto uma dor indescritível
que me derruba. Meu sangue faz uma trilha que vem da perna esquerda, e
deslizo, verificando o comprimento do estrago. River desferiu a tesoura
contra mim uma única vez, sendo o suficiente para a poça de sangue ser feita.
Não está fundo, mas preciso tratar do ferimento. Porra! Eu não sei o que
fazer, as tábuas bloqueiam a janela e não tem nada nessa merda de quarto.
— Podemos dar uma trégua? Eu te perdoei e retiro as baboseiras que
te disse sobre amor.
Tapo as orelhas, abafando os chutes que agregam na dor batucando no
meu crânio, fazendo tudo girar ao meu redor. Toco na lateral e sinto a textura
espessa de cor vermelha. Fracasso quando levanto e perco as forças nos pés
trêmulos. Eu não posso desmaiar, caralho! Busco qualquer canto aleatório
para servir de ponto, amparando minha consciência. O baque vem e nem
sequer posso ficar sentada, batendo as costas no chão. Movo a cabeça para a
porta, nada... Não consigo mirar em nada, está tudo desfocado.
— Eu acho até que te amo, porra! Você é a única pessoa que me leva
ao limite, e isso é grandioso! — Ele diz que me ama depois de bater minha
cabeça contra o degrau. Eu não sei que tipo de amor é esse.
— Você... é... louco pra caralho!
— Já ouvi isso antes, então é meio que um déjà-vu.
Perco a noção do que é dito nos delírios afoitos, só desperto quando o
cômodo é invadido por River. Pude atrasá-lo, sei disso. Teve uma demora até
adentrar aqui, graças à tranca e aos móveis posicionados. Num estado melhor,
quem sabe, eu não pudesse ter agido, arrumado uma saída milagrosa. Ajusto-
me à realidade, com meu queixo segurado e seus lábios roçando contra os
meus. Quero desmaiar ou morrer. Ficar consciente é um inferno.
— Te amo, Greta. — A boca está manchada com sangue, ele lambe os
lábios. — Ninguém me faz sentir esse ápice de emoção. Espero que não fique
muito brava quando acordar.
— River... Por favor...
— Durma, meu amor.
Capítulo 20

No ínfimo de Greta, a morte vinha num desfecho fúnebre, que


acumularia larvas na carne podre, infestando o ar, sendo um desafio para
identificá-la pelo estado avançado da decomposição. Divagava nessa auto-
observação da morte integrada na deterioração, presumindo o nojo se
estranhos lhe descobrissem largada numa vala. Provavelmente, traumatizaria
o grupo que estivesse passando e o odor forte chamasse a atenção. Abominou
acabar assim. A maioria das pessoas se imaginam tendo uma morte já idosos,
após uma vida longa e feliz, que chega ao fim num sono eterno, fazendo uma
passagem pacífica. Achava isso inalcançável, já que o direito de viver não
dependia de si.
Recuperou sua consciência após dois desmaios, e acordou tomando
uma martelada no pé direito, que a fez provocar a expulsão de líquido, sem
restos de comida, fundindo o gosto ácido no sangue ainda atuante na língua.
Lançou insultos, massageando o foco da dor, com lágrimas rolando,
convertendo o despertar num caos. Aguda e histérica, pensou River, largando
o martelo e cruzando os braços, dando um sorriso vitorioso, chamando-a de
morango com a vermelhidão intercalada rapidamente na face. Tive que fazer
algo, morango, fui tolerante e você escolheu ameaçar nossa relação.
Quebrar o pé era a justificativa para impedir outro “deslize” da garota,
supondo estar muito impressionada com as descobertas, desvirtuando-a do
universo particular que tinha construído.
Desmaiou, com a mente não suportando um acumulado de sangue
espalhado nas feridas abertas. Vômito e dor pesavam quando focava na aguda
violência estampada contra o corpo. Ansiava em sair da pele que induzia uma
sensação de que aquele corpo não era seu, e sim do homem que a destruía
tanto psicologicamente quanto fisicamente.
— Os analgésicos vão ajudá-la, está limpa e tratei dos ferimentos.
Daqui a uns dias, o inchaço na perna vai diminuir. Mas essa febre não baixa...
— mencionou os tratamentos com a insatisfação salientada por fracassar na
diminuição da temperatura elevada. — Vou precisar ir à farmácia, mas te
deixar sozinha nesse estado não me conforta.
O velho zelo regressava. Beijava-a e tratava-a, num distanciamento
sobre o próprio ter sido o autor do estado debilitado que Greta estava,
concebendo cicatrizes que serviriam como lembrete fixo sobre River ser a
crueldade incorporada no corpo físico. Naquele instante, ela não disse nada,
nem um ruído, ficando muda, mesmo com a dor atacando cada micromolécula
em atos básicos, como respirar e mover centímetros do pescoço, incitando na
confiança dele em vê-la apagando-se e arruinando futuras fugas, recuando
com qualquer intenção que lhe pusessem nesse estado de novo.
— Sou muito apaixonado. — Coçou a nuca e deu um riso sem humor.
— Cogitar esses minutos longe de você está mexendo comigo. Por acaso, fui
alvo de outro feitiço seu? — ele brincou, espalmando a mão no peito. —
Gosto da sensação.
Contou a quantia de dinheiro e os cartões, costumava descartar os
cartões após pouco uso, impedindo que fosse rastreado pela frequência,
enquanto na quantia física, tinha exatos quatrocentos dólares, sendo possível
encerrar o mês sem precisar cometer furtos. Esquivava de estender o tempo
fora. Albert não permeava a cabeça, estava atraído pela figura com palidez e
olheiras fundas, imóvel na cama.
Ainda pode existir beleza na ruína.
River via nela um equilíbrio e fluidez que faltara nos meses norteados
nas inconstâncias. Ele sentiu que alcançou paz por intermédio da
agressividade trajada num método educativo, aniquilando a raiz das fugas
serem recorrentes. Então, ganhar xingamentos e choro direcionados para ele
quando deu a martelada no pé foi uma trilha sonora melódica, nascendo da
raiva uma prosperidade amorosa.
— Não vá aprontar, correr atrás de você é cansativo. — Deu um
tapinha no pé roxo, o que a fez morder o lábio, segurando um grunhido. —
Deixando a piada de lado, eu prometo que será rápido... Vou preparar algo
macio e gostoso quando voltar, sei que não gostou do mingau no café da
manhã.
O rosto dele repousou na borda da cama, ajoelhado, e graças à visão
periférica, Greta deparou-se com River, dispondo dos olhos marejados, sem
derramar uma lágrima sequer, aparentando segurar a fraqueza que vinha no
choro.
— Eu te amo, docinho, e sei que está assustada com o descontrole de
ontem, sei que minhas mudanças drásticas assustam — disse, esgueirando os
dedos para tocar os fios de cabelo. — A culpa é dessa porra de cidade!
Estarmos próximos nos fez mal e vamos melhorar quando sairmos daqui.
Estou providenciando para ser logo, ok?
Beijou com delicadeza a mão estendida na cama, antes de levantar e
sair da casa.
Minutos foram contados, cinco minutos foi o prazo máximo para se
basear que ele não esquecera nada, sobrando um tempo curto para engatilhar
uma alternativa que tinha medo acima de tudo. A liberdade não era certa, indo
contra isso, os riscos de morrer intoxicada tinha sua relevância em outras
ocasiões. O receio servira de empecilho, menos quando ele a forçou tanto ao
extremo da humilhação e tortura, colocando-a numa posição vulnerável e
impulsionando em arrastar-se com a pele ralando no piso de madeira.
Greta não desistiria. Caso saíssem da cidade e retornasse a ficar
trancafiada em cômodos minúsculos, podendo sofrer numa reclusão ainda
maior, pela falta de confiança dele, sua expectativa de futuro seriam
inexistentes. Como ter expectativa trancafiada num quarto? Sem ter acesso à
luz do sol, vivendo num lugar que conhece os números das rachaduras nas
paredes por representar um “entretenimento” que lhe distrai do estresse,
pedindo que no dia seguinte as coisas sejam suportáveis, pelo medo de River
se alterar com qualquer fala que o mesmo considere desrespeitosa ou
irritante.
A jovem estava fraca, entretanto, faria um esforço, indo bem além de
seu limite, precisando inicialmente virar o corpo e cair fora da cama,
reprimindo de extravasar num grito. Tirava forças que nem sabia de onde
vinha, para sofrer calada. Dar brecha à exaustão iria condená-la.
Utilizava dos braços para arrastar as pernas, incapaz de levantar,
empenhada em sair, em perseverar, mesmo com as falhas tendo capacidade
para desmotivá-la em qualquer outra situação. O desespero para não
apodrecer refém de River servia de estímulo para o risco. Ele declarava o
suposto amor lhe invadindo e Greta sonhava acordada com os três itens que
pensara nas últimas horas.
Adotar um cachorro.
Ajudar na horta do meu pai.
Visitar Nathan em Nova York.
Repercutia esses três itens, fugindo do monólogo batido sobre
proteção e a afeição inesgotável do homem tratando seus ferimentos mais
cedo, foi uma boa distração para não o xingar. Apostou nessa alternativa
novamente, destoando-a da dor martirizante que era movimentar centímetros
da fisionomia exaurida.
A matriarca talvez aceitasse um novo membro na família, possuía
idade suficiente para arcar com essa responsabilidade de quatro patas sendo
uma companhia fiel. Fariam caminhadas pelas manhãs, sentaria no banco do
parque com o filhote descansado e ela fecharia os olhos, com uma brisa
fresca colidindo. Ponderava na convivência com o restante da família. Ellen
faria uma lista dos limites, mas logo se derreteria pelo filhote e Bryan estaria
com ele aninhado no colo, assistindo aos jogos. Gostaria de presenciar essas
ações cotidianas que ninguém costuma reparar, via um toque especial nesses
instantes onde o amor era demonstrado na simplicidade.
— Merda... — grunhiu, escorregando na escada, batendo o pé roxo
contra a parede. — Tudo bem, estou indo... Muito bem. — Mordeu a parte
interna da bochecha, massageando o pé, preocupada em acabar pressionando
demais.
Chegou no primeiro andar. A cozinha teria o fósforo que
proporcionaria sua saída ou um fim precoce. Ambos significam uma forma de
liberdade na mente, embora viver indicasse a realização da tarefa que
abdicou na adolescência. Cuidar da horta era um pretexto para aproveitar o
tempo com Bryan. Trajando luvas amarelas e avental rosa, com um regador na
mão, horas eram sugadas cuidando dos vegetais e jardins por muito tempo.
Greta compartilhou dessa idêntica paixão, sendo afastada quando Albert
tirava o sentimento de diversão e acolhimento. Ela via o irmão do seu
abusador, via o desgaste que provocaria na família e via o rompimento dessa
relação estritamente firme de irmandade.
Uma garota que gostava de colorir, brincar em poças d’água e trançar
o cabelo da mãe nunca traria o termo culpa. Ela era uma vítima incontestável,
a menção do óbvio parece incabível em ser descrito. Ainda assim, foram
anos de alienação e distorção pela influência do tio. Acabava afastada do pai,
receosa em contar tudo, sobre quando começou e a piora vindo numa onda
crescente. Amava Bryan, eram parecidos e partilhavam de interesses
semelhantes, então se abrir com ele era um caminho possível. O medo vinha
justamente das consequências dessa ação. A cabeça fervia nas afirmações do
tio serem verdadeiras.
A caixa de fósforo estava riscada na lista mental. Revirou as gavetas,
esforçando-se para ficar de joelhos, e sorriu fracamente, encontrando-a
escondida no fundo do armário. De longe, essa fase fora fácil, refletir nas
próprias vontades ajudava no processo. O problema foi quando saiu da
cozinha e arriscou ficar em pé, perdendo o equilíbrio na escadaria reprimida
na fadiga, com a tontura atrelando num pensamento súbito:
Concussão.
Recebeu a tigela de mingau de manhã e River aproveitou para
comentar que fariam testes simples no decorrer do dia, para cortar a
possibilidade dela ter sofrido uma concussão pelo impacto das batidas no
degrau, pretendendo limpar sua imagem com paparicos que ajudassem no
esquecimento da noite passada. Ela fingia que ninguém estava ali, o apagando
daquele quarto.
— Babaca escroto... — resmungou, com o peito arfando, despejando
álcool no cômodo, aplicado mais cedo no ferimento da perna, prevenindo
infecções.
Atearia fogo no quarto onde as ilusões incitadas na cama seriam
consumidas pelas chamas, com expectativas de chamarem atenção. Saiu do
cômodo, atravessou o corredor, deslocou o corpo já sem aguentar e desistiu
de descer, posicionando sua barriga para cima. O nervosismo pesava,
parecendo que River residia nela, empurrando-a contra o chão. Vai querer
mesmo se matar, princesinha? Tocou, desacreditada, no rosto memorável,
que originou feridas abertas e extensas. Já está alucinando... Talvez seja uma
concussão, acho que fui realmente violento, não acha? Mas, fique
tranquila, a fumaça irá te asfixiar.
Para Greta, apenas segundos tinham passado, mas a fumaça escura
adentrando o corredor indicava o contrário. Inclinou o rosto para o lado e
presenciou as chamas já queimando a porta, trazendo uma sensação de
impotência e ansiedade na espreita. Pressionou as pálpebras, trazendo mais
um dos itens na lista curta que montou.
Qual era a cafeteria que Nathan tanto falou?
Reprisou os diálogos e mensagens trocadas, com imagens dos
estabelecimentos que pretendiam visitar antes mesmo da aprovação nas
universidades virem. Amava a ideia de viajarem sozinhos, existia certa
independência e uma sensação de serem memórias já antigas.
Que fofo, docinho. Apesar que Nathan já nem lembra de ti, ele tem
bons amigos o apoiando e fazendo planos... Acho que sua morte vai ser bom
para todos. O cheiro da fumaça subiu até as narinas, ela nem se moveu e
persistiu em relembrar do amigo.
Gostaríamos de ter uma casa bem central.
Escolha um apartamento, é melhor para você se atirar quando não for
mais uma prioridade. A imagem de River não sumiu, dissecando frases
cruéis, machucando-a. Sei que me quer contigo nos suspiros finais. Um
zumbindo foi trazido.
Eu almejo viver outro dia para amar vocês.
Pena que está fadada a uma morte esquecível. River sumiu após
falar, sobrando somente ela.
A fumaça prevalecia no segundo andar. As pessoas nos automóveis
não demorariam para reparar no fogo saindo da lateral da casa, pelo menos
era assim que gostaria de avaliar seu plano, desprezando a negativa de ser
tarde demais quando vissem as chamas consumindo a casa por completo.
Piscou, com menos capacidade de prosseguir consciente.
Piscou de novo, pensando nos dias dedicados à horta em companhia
do pai.
Piscou numa maior demora pelos dias em que a mãe fazia penteados
belíssimos em seu cabelo longo.
E piscou uma última vez pelos dias caminhando na rua com River.
Apagando, sem medo.
Capítulo 21

O consultório nunca muda. Já é a quinta vez que leio essa revista de


turismo no Canadá, enquanto aguardo meu nome ser chamado pela
recepcionista. Analiso outras pessoas na mesma situação que eu. Ninguém
muito interessante. Um homem bigodudo ajusta a armação grossa dos óculos
no nariz, fazendo palavras-cruzadas, e uma moça com metade do cabelo
raspado, usa capuz, nem consigo vê-la direito, mas deduzo que esteja
dormindo. Cometi o erro de esquecer meu celular na escrivaninha, mamãe
provavelmente está o entupindo com ligações e mensagens. Ela pode acabar
vindo aqui.
Não ligo muito, talvez seja escroto e egoísta pensar assim, mas o
aparelho nunca para de vibrar. Posso dizer que estou ótima, sendo escoltada
por quarenta policiais, que isso não vai importar. Eu tenho o direito de ligar,
Greta! Ligo quantas vezes quiser e ponto final. Qual o desafio em atender a
droga da ligação? Esse é o argumento principal que precede as discussões
exaltadas. Parece que sou ingrata pelas coisas que fizeram. Mudamos de
cidade dois meses após os incansáveis interrogatórios humilhantes e exames.
Meus pais estavam ali, ao meu lado, num processo desgastante, que me fez
repetir as mesmas coisas.
Mamãe dorme comigo e papai dorme com uma espingarda debaixo da
cama, num sono leve, acordando nos menores ruídos. A proteção deles me
ajuda, apesar de necessitar do medicamento para dormir, assim como a
proteção da polícia, que praticamente escoltaram nossa mudança,
especificamente a sargento Helene Parker, que nos acompanhou para ter
certeza que eu estava bem. Mudamos para Berkeley faz sete meses e,
sinceramente, gosto daqui. Minha cidade natal nunca foi um lugar em que
enxergava algum traço de aconchego, diferente daqui.
— Senhorita Lowel. — Finalmente meu nome é chamado. — Entre, a
sra. Harris irá atendê-la.
A iluminação tem o tom baixo alaranjado, fazendo uma menção sutil
ao pôr do sol. Estantes de livros, quadros decorativos com pinturas
renascentistas, a mesa tendo uma caixa com lenços, copos com água próximos
e duas poltronas marrons de couro sintético viradas uma de frente para a
outra. Minha psicóloga gosta de mudar a decoração da sala, toda semana vejo
uma diferença, dessa vez a tinta das paredes mudou para a cor púrpura.
— Acha que a cor dá um ar de mistério? — Ela capta minha
observação silenciosa. — O ambiente carrega um descanso visual à vista
pela luminosidade, então eu não via conexão com o azul.
— Eu gosto — digo e me direciono para a minha poltrona. — É
bonita.
— Também acho! — concorda, sacando o caderninho que toma notas.
O barulho do lápis contra a folha me incomoda. — Pensei que só fosse
receber sua opinião sobre a pintura amanhã. Adiantamos sua sessão, como
pediu, tem algum motivo específico nessa solicitação?
Sim, faz sete meses que não falo abertamente sobre os meus
sentimentos, do quão ruim foi meu tempo de internação no hospital, perante a
quantidade de fumaça que respirei, numa melhora amena, logo me jogaram
para a polícia, pegando relatos, caçando River nas redondezas. Ninguém
ligava que eu estava dopada de remédios, caso contrário, eu acabava gritando
freneticamente quando ficava submersa, com dúvidas do paradeiro dele.
Aguardava sua aparição, possuído pela raiva pelos problemas que causei.
Não existi naqueles meses, agindo no automático quando contei dos
assassinatos, das casas que fiquei, de suas imposições que acatei por um
tempo, cega naquela realidade. Achei que estivesse no fundo do poço ali, mas
estava erroneamente enganada. River, mesmo ausente, parecia deixar os
vestígios que me estraçalhavam. Meu diário, a suposta ficha do cara no bar, a
história do pai, dependente químico extremamente agressivo...
— Quis adiantar, nada demais.
— Tem certeza? — Kristen não é idiota. Minha antiga psicóloga se
contentaria, às vezes sinto falta da sra. Bevan. — Você já pediu para
adiantarmos outras vezes, está incerta sobre o assunto que pretende tocar?
— É engraçado, não é? Nós duas sentamos aqui, falando banalidades.
Passeou com Panqueca hoje? Como foi sua semana? — digo, gesticulando
no ar e esbarrando nas perguntas rotineiras. — Nunca mencionando a tensão
que vem grudada em mim. Sei que não quer me forçar a falar e eu aprecio
isso... Mas, sempre que estou decidida a tocar no assunto, algo detém minha
coragem — despacho de vez nessa coragem minúscula, que habita no peito.
— É uma boa análise, percebo até uma certa confiança quando fala.
— Sério? — Franzo a testa, confusa.
— Sim, você diz tudo com clareza, além de ser assertivo, então é
normal ter uma entonação confiante — explica, brincando com a tampa da
caneta. — Não precisamos falar tudo numa única sessão, é um processo em
que você dita o ritmo.
Desvio o olhar, recaindo no abajur vintage, ponderando se realmente
devo falar daquilo que me fere. Já revivo isso diariamente, qual a diferença
em proferir? Aspiro me convencer disto, é melhor testar primeiro antes de
aprofundar nas questões mais duras.
— Lidar com interrogatórios de horas foi uma merda.
— Eles foram incisivos? — A dedução vem num incentivo para
continuar.
— Eles já estavam no hospital quando recuperei a consciência, nem
tive tempo de ver os meus pais ou compreender que não morri. — Balanço os
pés suspensos na poltrona, espantando o nervosismo. — Faziam as mesmas
perguntas diversas vezes, provavelmente averiguando se realmente lembrava,
ou desconfiavam de mim...
— Desconfiar?
— Alguns agiram com indiferença quando as perguntas foram para um
caminho íntimo e fui honesta ao falar que por um tempo eu aceitei as
imposições, gostava das promessas e dessa sensação de proteção garantida...
Tive vergonha quando disse, nunca esqueci que naquela sala havia seis
homens me ouvindo e a expressão deles, no final...
— Faltou empatia, organização e uma mulher naquela sala. — Kristen
vê o engasgo na garganta e me socorre, interrompendo. — Seis policiais
numa sala é inadmissível, e serem homens é ainda pior... Sabe, Greta, na
teoria, a polícia deveria priorizar mulheres em casos que envolvam meninas
que passaram por abusos, visto que tendemos a nos sentir acolhidas com uma
presença feminina.
— Tive essa sensação quando a sargento Helene tomou à frente. Ela é
atenciosa e não exigia que excedesse meu tempo, porque se preocupava com
minha recuperação. — Ouvi-la me acalmou. — Foi como um suspiro
antecedendo a queda.
— Fale caso se sinta bem para isso — alerta novamente.
— Tudo bem, eu quero falar — afirmo, convicta. — O primeiro baque
veio quando contaram que encontraram o cadáver do meu tio coberto de
infecções, sangue e irreconhecível, só o identificaram pelas digitais.
Tinha completado três semanas do meu resgate, fui levada à delegacia
e não recebi explicações da razão de estar indo para lá. Meus pais insistiram
para ir outro dia, mamãe argumentou que estávamos no meio da mudança, mas
me levaram mesmo assim. Nenhuma mãe quer ver a filha passar pelo que eu
passei. Nesse dia, eles souberam do meu pior segredo.
— River o matou e tive medo do pensamento que me veio naquela
hora.
— Qual pensamento?
— Se ele tivesse me contado o que fez, talvez eu desistisse de fugir.
— Nem posso olhá-la, sei que é horrível pensar isso. — River me
sequestrou, me bateu, fez ameaças, além da culpa sempre recair nas minhas
costas... E, apesar de toda essa merda, eu teria desistido, porque ele matou o
homem que já tinha me matado por dentro.
— Ele te controlava, Greta. Fez isso como outra forma de mantê-la
ali, não acha?
— Mesmo assim, fiquei presa na hipótese de que, de alguma maneira,
River cuidava de mim, talvez... Talvez uma parte realmente se importasse.
Assumir uma frase igual a essa é desprezível. Me desprezo por dizê-
la com uma carga sentimental evidente, que nem escondo quando penso no
que fez por mim. Não duvido que Kristen esteja montando um perfil mental
meu neste instante, tendendo a definir minha estabilidade mental com essas
afirmações. Porém, eu já disse, não há volta.
— River te tirou do seu lar, restando exclusivamente ele, não é fácil
desapegar completamente desses sentimentos controversos. — Pausa o
raciocínio, soltando o caderninho de anotações no colo. — Mas nunca se
esqueça que esse homem não é um herói ou algum tipo de salvador. A cicatriz
na perna, os ferimentos, o período no hospital, são provas físicas sobre como
ele te machucou.
— Quando penso nisso, até esqueço do pesadelo que era. — Deslizo
os dedos na área da cicatriz coberta pela calça. — Devo ser louca, não é?
Uma conclusão dessas é óbvia.
— Você é forte, Greta.
Ela tá de sacanagem comigo?
— Ninguém pode lhe julgar pelas coisas que fez, pensou e sentiu,
ouviu? Um cenário foi criado para você desenvolver empatia, humanizá-lo.
— Percebo o assunto que entraremos e bato as pontas dos dedos na poltrona
de couro, inquieta. — Ele te estudou e te arrastou para uma dependência
emocional, com a narrativa de alguém injustiçado pelo mundo... Quem, em sã
consciência, lidaria bem com isso?
Mamãe fez um bom resumo e Kristen esteve atenta, é notório, mas
irritante. Ela não tem o direito de sair contando, principalmente porque
metade do que a psicóloga nessa sala está sabendo são informações que
deveriam ser sigilosas. Cruzo os braços, saindo da sensação melancólica.
Nem tive o direito de confessar esses detalhes, porque Ellen fez isso,
desconsiderando minha vontade.
— Vamos encerrar, por favor? Quero ir pra casa.
— Por quê? — Ela não estava pronta para essa resposta. — Ainda
temos tempo, podemos falar sobre...
— Não, já basta — interrompo-a. — Nada do que disser vai mudar
algo, já passei por essa merda, ouviu? Passei por muita merda desde de
pequena e lidei com isso sozinha por anos... Suportei as piores coisas, quieta,
não quero ser chamada de forte, porque eu não me vejo assim, e nem quero
ouvir você repetir as coisas que minha mãe te disse.
— Suportou e mesmo assim não enxerga o quão forte é? — Kristen
não menciona Ellen, representando seu respeito com minha insatisfação.
— Eu deixei que fizessem isso comigo.
Choro, com os lábios tremendo. Penso que tomei um banho frio para
tremer tanto. Encosto na poltrona, permitindo que as lágrimas rolem. Uma
pessoa forte jamais chegaria no ponto em que cheguei, é ofensiva essa
palavra caber em mim.
— River tinha um pai abusivo e eu entendia como era ter um parente
assim. — Faço pausas, enquanto bebo água para acalmar. — Depois
esclareceu que só matava pessoas podres. Ele matou dois caras que me
atacaram e foi arrebatador o sentimento de segurança, parecia certo ficar com
ele.
— O problema é que ele mentiu. — Pressiono as pálpebras, meus
olhos ardem. — Usou seu diário para montar uma narrativa e a ficha falsa do
homem na boate para te render nas boas intenções alegadas por ele.
Fui perspicaz em não tocar no meu diário quando o vi na mesa da
delegacia. Prolonguei o baque quando Helene explicou as anotações, frases
frisadas, descrições simples do que iria me dizer e falas prontas sobre sua
família conturbada. Ele montou uma história minuciosamente, para gerar uma
identificação que me fizesse despencar em seus braços. River teve tamanha
facilidade nisso, que assusta. Também tinham as fichas que alegava fazer para
caçar estupradores. Aquele cara deve ter sido somente um exemplo
concretizado do quanto Kristen está correta. Eu me rendi, na ilusão de boas
intenções residirem nele.
— Sabe o pior? Descobrir a verdade. Minha mãe já te contou? —
Obtenho um aceno em negação. — Que milagre.
Faço um resumo da trajetória que sei, compartilhada por Helene e que
na internet vem com atualizações, integrando o meu nome. O nome dele é
verdadeiro, entretanto, seu passado havia sido pleno e tranquilo. Todas as
fotos sorridentes eternizam um amor singelo, que acabou quando os pais
faleceram num acidente de carro, que colidiu contra um casal da vizinhança.
River os perdeu, mudou para a casa dos tios e via frequentemente o filho
desse casal, que sobreviveu. Apesar dos pais terem causado o acidente por
avançarem o sinal numa velocidade rápida, ele resolveu matar o colega de
classe e mandou o corpo triturado numa caixa de presentes, desaparecendo
sem deixar rastros depois disso.
Ler toda a matéria custou o meu sono por dias, e nessa insônia
prolongada concluí que sua cicatriz na bochecha pode ter sido feita quando o
colega buscou se defender. River afirmou que tinha sido o patriarca, mas era
mentira. Então sua primeira vítima tem chances altas de tê-lo marcado,
lutando pela vida.
— Era uma história de terror com um término macabro — declaro,
tomando um gole longo d’água. Falei tanto que minha garganta ficou seca. —
Passei horas trancada no quarto, pensando no que rondava sua mente, o luto
abrupto e conviver com o colega todo santo dia, vendo seu pai deixá-lo na
escola... Ninguém faria algo tão violento do nada, não é? Quanto tempo
demorou para planejar o crime? E os tios, professores ou amigos, não
perceberam?
— São muitos questionamentos, Greta.
— Eu só não entendo como ninguém é capaz de enxergar quando
alguém está afogado na própria dor.
Peço um tempo para organizar o raciocínio e esclarecer que meu
ponto não é defendê-lo dos crimes, caso esteja interpretando dessa maneira.
— Ele matou pessoas inocentes, famílias perderam parentes que
amavam e futuros foram desfeitos. Merece ser achado e preso para pagar por
cada crime... Mas, às vezes, imagino que tudo isso seria prevenido se tivesse
recebido a ajuda necessária.
— Entendo seu pensamento, a empatia é uma dádiva que nem sempre
recai nas pessoas... — O alarme toca, anunciando o fim da sessão.
— Nos vemos na próxima semana.
— Agradeço por confiar em mim, Greta. A sessão voou hoje e espero
continuarmos do jeito que você acha melhor na próxima semana.
Kristen sempre me trouxe sinceridade, é bom escutá-la pronunciar
essas palavras.
Concordo e pego minha bolsa. É estranho essa leveza que me levita
da poltrona, com os sentimentos saindo sem temor ou receio do início, sendo
natural.
— Greta! — Kristen me chama quando estou prestes a sair da sala. —
Sua mãe acabou de me mandar mensagem avisando que está no
estacionamento.
Merda.
Capítulo 22

Saímos da psicóloga e enfrentamos um trajeto composto por sinais


sequencialmente vermelhos. Mamãe aparenta não ligar, cantarolando a música
que toca no rádio, baixinho. Mesmo seu bom humor predominando, as
reclamações referentes ao esquecimento do meu celular surgiram logo de
início, porém tratei de pedir desculpas, cortando o atrito que se estenderia
muito além da disposição já inexistente.
Fisicamente, estou aqui, descansando a cabeça no vidro, voando,
distante do cenário pacato. Lembrar das mentiras é uma âncora que não posso
soltar. Kristen diz concordar comigo, mas será que é verdade? Saí do
consultório leve e orgulhosa por falar. Mesmo que tenha sido passageiro,
tivemos um pontapé nos diálogos. Mas, será que ela realmente pensa que sou
forte? E o que acha do que falei sobre River? Contei sobre um adolescente ter
triturado alguém e logo em seguida minha preocupação recaiu em ninguém ter
pegado os sinais na mudança de comportamento, ou fingia bem para não
chamar atenção. Não posso crer no menino das fotos na lareira sendo o
monstro de hoje.
Ele não teria me sequestrado e nem matado ninguém se tivesse
recebido ajuda, suporte psicológico, qualquer merda que o desviasse desse
fim. E se eu tivesse recebido ajuda quando viram meu comportamento mudar?
Sempre fui quieta, porém quando Albert tocou em mim pela primeira vez,
fiquei trancada no meu mundo. Não gostava de toques, afastava as pessoas
sempre que podia e mamãe dizia: é coisa da idade, amor. Todos entram
nessa fase de fugir dos pais, uma fase bem chatinha. Por que reduzir uma
mudança no comportamento numa fase? Já guardei muita raiva dos meus pais,
aflorando no período que estive com River, enchendo sobre o descaso
comigo. Afirmar que superei por inteiro essa raiva é mentira, contudo,
entendo que aquele filho da puta não levantava suspeitas, nunca encostando
em mim na presença deles.
Ninguém espera que um irmão faça algo do tipo com um filho seu. O
irônico disso? A maioria dos abusadores são membros da família, já dentro
de nossas casas.
— Raio de sol. — Seu tom é manso, conheço de longe quando usa
delicadeza vinda pelo toque no ombro. — Tive conversas com uma amiga do
trabalho, que acabou me contando que a irmã dela participa de reuniões num
grupo de apoio para mulheres que sofreram abuso. O que acha de ir numa
dessas reuniões? A próxima será amanhã, às sete horas.
— Eu dispenso.
Mamãe bufa, endireita as costas e assume uma postura rígida. A
sugestão nunca é só sugestão, é uma imposição disfarçada num convite.
— Vai te fazer bem, Greta. — Me chamar pelo nome não é um bom
sinal. — Por que é tão teimosa? Te forcei a sair daquele quarto, praticamente
implorei para você ir à psicóloga, além de tudo que eu e seu pai estamos
fazendo porque queremos que fique bem! Não quer isso também?
É injusto ela despejar essas afirmações contra mim, sua imposição
sobre como devo seguir tem me abalado. Fui obrigada a falar, quando ansiava
em estar quieta no meu quarto. Essa obrigação imediatista de reagir, levantar
e recomeçar não funciona. Qual o problema em viver meu período recluso?
Nem tempo tive para digerir cada nova informação, portando uma premissa
destruidora. São muitas exigências para alguém num estado vulnerável lidar.
— Sabe qual o problema desses pedidos que você fez? Eles foram
obrigados, nem pude decidir quando iria me sentir pronta para sair de casa,
não sendo escoltada pela polícia. Quis tempo e ninguém nunca respeitou isso.
— Me diga, como uma mãe lida vendo por tudo que passou sem tentar
ajudar? Não saía do quarto pra comer, não tomava banho e o seu pulso...
— Não! Combinamos que não falaríamos disso, então, por favor,
pare. — O som é exaltado. Ela prometeu não falar do assunto caso começasse
as consultas. — Já estou indo para a psicóloga e gosto dela, tivemos uma boa
conversa hoje.
— Sério? Que ótimo, meu amor! — O alívio acalma os ânimos. —
Desculpe pelo sermão quando entrou no carro, conversei com seu pai e
também preciso melhorar.
Retorno o sorriso. Em meio às desavenças, ainda se pode achar
equilíbrio? Eu espero que sim. Eu e mamãe vamos do zero a cem num piscar
de olhos, e mencionar a melhora nas conversas com Kristen serve de desvio.
— Tudo bem, mãe.
Chegamos em casa e o papai está preparando a janta. Panqueca está o
seguindo para aonde vai, com sua boca aberta, hipnotizado, na carne
preparada. O labrador somente esquece dele quando chego, pulando em mim,
com as lambidas na cara que posso desviar, devolvendo com carinho. Ele se
rende fácil, aproveitando a barriga alisada.
Adotei o Panqueca num abrigo para cães assim que cheguei aqui.
Mamãe trouxe a notícia, tentando me tirar de casa, e funcionou. Foi como
acordar na manhã de Natal, eram vários cães latindo, tendo outras famílias
visitando o local. O sentimento que tive quando Panqueca estava quieto na
gaiola, assustado, com estranhos rondando ali, me fez desejar pegá-lo no
colo, e assim fiz, e nunca mais o larguei.
— Seu celular não parou de vibrar, acho que Nathan te ligou — papai
diz alto da cozinha.
Duas ligações perdidas e cinco mensagens.
Estou indo bem. A distância com Nathan, que partiu para a faculdade,
iria me abalar, caso não tivesse questões piores para tratar. Kristen soube da
relação com meu melhor amigo, esse fora o único tópico menos turbulento de
falar, tivemos diálogos e discordância da minha parte. Mas, por fim, aceitei
que tenho um comportamento meio abusivo. Parece algo muito pior quando
uso essa palavra. A distância serviu para tratar tal comportamento. Ele estava
fora do meu controle e confesso que não levei a sério o conselho da Kristen
para dar espaço. Vacilei algumas vezes, gastando tempo no celular, almejando
uma mensagem ou ligação. Porém, quando senti raiva e incômodo, vendo-o
nas redes sociais, saindo com outras pessoas, precisei levar a sério.
Nathan sabia disso, combinamos de nos falarmos pela noite.
Ocasionalmente, acabava esquecendo e mandava mensagens ou ligava, eu não
retornava. É cansativo me policiar, mas não pretendo perdê-lo, além dessa
necessidade de tê-lo disponível para mim toda hora ser menos frequente. São
melhoras pequenas. Está dando passinhos de bebê, Greta, e está tudo bem
que seja assim. Kristen valoriza as coisas mais obsoletas, argumenta que
todo processo merece reconhecimento.
Ligo para Nathan após o banho. Passamos uns quinze minutos
conversando sobre a estada dele aqui, empenhado em ficar o verão inteiro,
torcendo para nenhum imprevisto nos atrapalhar. A animação compartilhada
faz um sorriso largo se desenhar em meus lábios. Sorrio, chegando a doer, e
assim que desligo, murcho subitamente. E se as coisas piorarem depois que
ele partir? Avancei nos últimos meses devido à distância, presencialmente
nem tenho ideia da maneira certa que devo agir. Um tópico importante para
conversar com minha psicóloga, nunca falamos disso.
Desfoco do receio na janta. Tenho pensamentos obsessivos e perco o
controle dependendo do grau de relevância que um assunto traga, e pensar
constantemente não resolve, apenas me desgasta mentalmente e consome todo
meu tempo nessas inseguranças, admito que terapia tem tornado as coisas
suportáveis. Os medicamentos para ansiedade e depressão também, até certo
ponto, odeio os efeitos colaterais dessas merdas. As dosagens me
derrubavam, estava tão anestesiada que nem me atentei que as coisas diante
de mim só melhoraram no decorrer do tempo, mesmo assim tenho um desejo
de viver livre deles.
Duas batidas na porta são dadas, Panqueca late, já aninhado na borda
da cama, e meu pai entra com uma caneca quente em mãos.
— Chocolate quente?
— Lembra que eu trazia todas as noites?
— Mamãe brigava contigo todas às vezes que te pegava no flagra.
— Hoje não vai ter problema.
Papai faz o melhor chocolate quente desse mundo, nunca descobri a
receita que usa para ter um gosto tão bom. Tomo goles, com este sentado ao
meu lado, passando a mão no meu cabelo, fechando e abrindo a boca,
selecionando o que dirá.
— Significaria muito se você fosse à reunião amanhã.
— Não vejo sentido em ir.
— Ver que não está sozinha, criar uma rede de apoio será bom.
— Mamãe te pediu para me convencer?
Bryan une as mãos e curva o corpo, igual a mim quando estou
nervosa. Nunca falamos diretamente sobre os acontecimentos. Descobrir
sobre Albert o abalou, nunca demonstrou nada na minha frente, só desabava
em lágrimas ao cair da noite. Mamãe o ampara, ouvia ela pedindo para que
não carregasse tamanha culpa sozinho. As paredes soavam o choro engasgado
e, de manhã, o rosto inchado esclarecia as horas de sono perdidas.
— Não, ela avisou que negou quando tocou no assunto — diz. — Já
percebi que nossa preocupação está te estressando, os desentendimentos com
sua mãe...
— Tenho três sprays de pimenta que me deu semana passada —
brinco, procurando amenizar o tom do assunto.
— Eu e sua mãe estamos em pânico porque falhamos em... Falhamos
em tantos momentos, que regularmente pensamos no nosso amparo não
bastando, então buscamos alternativas que te ajudem...
— Não ajuda muito quando nem posso fazer coisas simples do dia a
dia, como passear com o Panqueca sozinha. Isso assusta vocês, e é cansativo.
— Sou franca. Papai é bem compreensível e ótimo ouvinte. — É um lembrete
diário.
— Meu amor, como... Como consegue lidar bem com isso? Eu
realmente não entendo.
— Acho que tudo já desmoronou sobre mim, o que de pior poderia
acontecer comigo nessa altura?
A morte.
Papai nunca vai verbalizar, mas tem completa ciência que a morte
seria um impacto drástico. Eu não temo o mundo, me isolo dele, contudo, não
o temo igual antes.
Temo River vagando por aí, com o paradeiro desconhecido, temo o
abuso que surge da pessoa mais engraçada e simpática, escondendo a
crueldade no sorriso largo. Hoje eu temo sujeitos com nomes e sobrenomes.
— Nunca te forçaria a nada e nem tocarei no assunto, mas pode
apenas pensar?
— Posso sim, pai.
Ele pega a caneca já vazia, bagunça o topo da minha cabeça e dá um
beijo no local.
— Durma bem, eu te amo.
— Também te amo.
Sentar com outras mulheres, relatando os relacionamentos terríveis
que vivenciaram não é meu tipo favorito de passar o tempo. Adiarei o
processo de pesar os prós e contras para amanhã, meus olhos já ardem de
sono.
Miro na pequena cômoda grudada na cama. Prometi a mim mesma que
pararia de pegá-lo faz duas semanas, e quebrei essa promessa todas as noites,
hoje não será diferente.
As cadeiras dobráveis arrastam com murmúrios de conversas
desconexas. Puxo as mangas do moletom rosa e cruzo os braços, batendo o
pé. Dezesseis, dezessete, dezoito... Vou contando, afastando o nervosismo que
é estar rodeada com desconhecidas de idades vastas. Uma mulher elegante
entra e atrai olhares. Cumprimentos são direcionados a ela, que acena e
abraça algumas delas.
O conjunto do blazer na cor roxa é realçado na pele negra, que
combina com as joias verdes. Seu cabelo crespo está solto e enaltece a face,
ela é muito bonita!
— É muito bom regressar e ver caras novas por aqui — ela começa a
reunião com todas já acomodadas. — Meu nome é Marie Williams e estou
contente em poder recebê-las hoje. Criei esse grupo com o propósito de não
sermos reféns da solidão. Temos a reconstrução constante em comum e
passarmos juntas por isso é uma boa opção, não acham?
O discurso é empático conosco. Ela pede que falemos nossos nomes,
sendo opcional dizer a razão que nos trouxe para cá. Surpreendentemente,
todas têm franqueza, ninguém hesita, apenas fala da caminhada até aqui.
Emma derrama lágrimas, sendo acolhida pela mulher do lado, que
coloca a mão em suas costas e alisa. Recentemente, ela aplicou uma medida
protetiva contra o ex-namorado. Terminaram há oito meses, quando o
desgraçado decidiu transformar a vida dela em um completo inferno. Ele a
seguia, ligações eram feitas de números diferentes na madrugada, e o pior
aconteceu quando teve seu apartamento invadido, com xingamentos pichados
nas paredes.
— Tranquei a faculdade nesse semestre, resolvi passar um tempo com
minha mãe, na esperança das coisas melhorarem... — A mão cobre sua boca e
esconde os lábios trêmulos. — Eu tô bem agora, meu problema é quando
reflito no depois.
— Existe alguma chance de conseguir transferir seu curso para outra
cidade? — Alguém faz o questionamento geral.
— Tenho procurado ultimamente, tô aceitando qualquer lugar que
encaixe no meu orçamento, sinceramente.
É interessante a mobilização com sugestões para ajudá-la. Temos
vidas opostas, mas experienciamos situações horríveis que nos interliga.
Outras integrantes compartilham relações que tiveram já fazem longos anos e
mesmo assim repercutem com cicatrizes, impedindo o desenvolvimento de
relacionamentos saudáveis por insegurança dos padrões antigos se repetirem.
Além disso, a formalidade não cabe aqui, somos um círculo com uma
conversa conjunta, que instantaneamente se entrosa com identificação. No
entanto, prossigo fora desse entrosamento, examinando-as igual uma
espectadora, não mereço ser incorporada neste grupo.
Jamais dividirei minha história, basicamente: por onde partiria?
Sobre os anos de abuso nas mãos do meu tio pedófilo ou cair na armadilha de
um sociopata? A influência de River é tamanha, que imagino o que me diria.
Pra que perder o seu tempo aqui? Caralho, Greta, você adora estar no
fundo do poço. Menosprezaria qualquer alternativa que recorresse para
melhorar, algo contraditório, já que quando estive entregue na loucura
descabível de suas palavras, num estalar de dedos tudo mudou. O domínio
completo de mim deveria irritá-lo, seu prazer doentio vinha do atrito.
— Greta? — Marie me chama e fico arrepiada pelo meu nome
escapar da boca com batom escuro.
— Sim?
— Gostaria de adicionar algo na conversa?
— Não. Eu... eu estou bem. — Coço a nuca, desnorteada por perder o
rumo que os diálogos tomaram.
— Tudo bem, sinta-se livre para falar quando quiser.
Desfoco no restante da noite, invado a imersão de River na cadeira,
próximo de mim, disparando comentários ácidos e desrespeitosos para todas
no recinto. Nenhuma delas tinha uma pessoa disposta a protegê-las desses
filhos da puta. Você me teve, docinho, e foi uma imbecil quando desistiu.
Some da cadeira e reaparece, descansando os braços nos meus ombros. Meu
peito sobe e desce rápido, com minha respiração alterando, segurando a
angústia no interior. Elas não acabaram loucas, então por que permanece
aqui? Ninguém está alucinando, além de você... Finja o quanto quiser,
querida, mas a realidade não lhe cabe mais.
Ensaio um sorriso e aviso que irei ao banheiro. Ajo casualmente,
saindo dali com a gargalhada exagerada dele acendendo com veemência nos
tímpanos. Parabéns pela atuação, princesinha!
Bato a porta da cabine, pressiono as mãos na boca e grito, tendo o
barulho abafado. Torço para as cordas vocais estourarem, para desviar da
alucinação de River indo e voltando no espaço do banheiro. O barulho dos
sapatos arrastando no piso, sei que estou alucinando... A personificação dele
vem nos instantes que eu possa ter uma melhora se fortalecendo. O
consultório de Kristen foi o palco principal dessas alucinações, exceto desta
última vez. Por que não aceita logo sua entrega a mim? Olha o seu estado
deplorável.
— Vai embora, porra! — Cubro minhas orelhas, com batidas sendo
desferidas na porta. — Sai da minha cabeça! Merda, merda, merda... Me
deixa em paz!
Por que não posso melhorar?
Eu não mereço piedade?
Por quanto tempo vou suportar?
As batidas são pausadas, meu celular vibra com mensagens, com o
nome Nathan escrito no topo das notificações.
Comprei as passagens, esteja pronta para me receber!
Nathan virá para cá.
Ele virá, ele virá, ele virá.
Eu não posso... Ele vai acabar descobrindo que perdi a cabeça, meus
pais vão me abandonar num hospício, todos vão me abandonar. Ninguém
suspeita que meu estado psicológico esteja tão grave assim, todos ficariam
assustados e achariam que uma internação é a melhor alternativa, e eu não
posso viver assim... Em hipótese alguma, posso acabar num quarto branco,
tomando medicamentos todos os dias, encontrando psicólogos, sem ter prazo
para sair dali. Quem sabe eu não apodreça lá... Meu quadro pode nunca
melhorar.
Ensaio um sorriso largo quando saio do banheiro, assim que River
simplesmente some. Sigo no corredor para acompanhar o restante do grupo
falar, e na saída me despeço de todas. Falo para mamãe que escutá-las me fez
bem e ajo como se todas as palavras e meu comportamento fossem um teste,
que se eu falhar, possa levantar a suspeita de não estar indo tão bem igual
tenho aparentado.
Eles não podem saber. Eles não podem saber. Eles não podem saber.
Eles não podem saber. Eles não podem saber. Eles não podem saber. Eles não
podem saber. Eles não podem saber. Eles não podem saber. Eles não podem
saber. Eles não podem saber. Eles não podem saber. Eles não podem saber.
Mantenho essa personagem que tranquiliza meus pais e desabo no meu
quarto. Me preparo para dormir quando prendo meu pulso na cabeceira da
cama, caso contrário, não consigo apagar. River está ali comigo, ocupando o
espaço restante da minha cama. A consequência é bem justa, não acha?
Combina com sua ingratidão podre, sussurra a centímetros de mim. Pisco e
ele já não está mais ali.
Todos os dias prosseguem assim, intermináveis e torturantes.
Capítulo 23

Eu amo Nathan. Seu abraço porta a fragrância do perfume amadeirado


que invade minhas narinas, seu abraço é apertado e demoramos para nos
largar, com essa saudade que cresceu nesses meses longe.
— Trouxe presentes para minha garota especial! Comprei uns
cupcakes de red velvet, ainda são os seus favoritos? — anuncia, me soltando
e retirando a bolsa do ombro. Concordo com a cabeça, recebendo os bolinhos
fofinhos. — Já comeu canolin?
— Nunquinha.
— Sem sacanagem, é como ter um orgasmo doce... — Ele freia as
palavras quando lembra que os meus pais também estão no recinto, ajudando
com as malas.
— Se a Greta não quiser, eu quero! — Mamãe levanta a mão e rimos
com a reação. Papai pode ter uma expressão marrenta, mas é tímido e cora
fraquinho, abraçando-a de lado.
— Sorte sua, Ellen, trouxe duas caixas.
Conversamos na sala, com mamãe guardando os chocolates e
biscoitos que Nathan trouxe. Combinamos que ele iria vir no verão por sua
escolha. O final do ano é com os meus pais e o meu verão será
completamente seu. Nossa estação favorita. Meu cabelo é elogiado
constantemente, declarando brilhar na luz. Ele avisa que baterá fotos minhas,
para ter um registro do quão linda fico no sol.
Nathan diz que mereço estar na luz, que a luz é o meu lugar, com o
calor esquentando meu rosto. Sinto-me bem quando o ouço.
— O Panqueca tá enorme! Colocou fermento na comida desse bebê?
Nas fotos que você mandou, ele era um brotinho peludo correndo no quintal.
Subimos ao segundo andar. As patinhas do Panqueca fazem barulho no
assoalho e entregam que fomos seguidos. Abro a porta do quarto de hóspedes
com cama, banheiro e um armário que papai fez. É simples, mas
aconchegante.
— Gostou?
— Achei incrível! — fala, pondo o rosto no topo da minha cabeça. —
Mas, precisamos conversar, você parece meio nervosa.
— Eu?
— Sim, você mesma — persiste, esfregando meus braços e tentando
acalmar o que quer que seja. — Está se segurando? Pareceu recuar quando fui
te abraçar.
— Só quero que fiquemos bem.
— Mas nós estamos, não?
— Tenho receio de acabar te deixando mal como no passado, quando
for embora. — Kristen iria me elogiar se me visse agora. — Estou indo bem,
mas sei lá.
— Vamos aproveitar, solzinho! Não pense nisso, sei que
continuaremos bem depois. Você tem se esforçado, pode não reconhecer,
porém, eu reconheço, e muito.
A compreensão e sua capacidade em perdoar são as qualidades
ilustres que acho raras de outras pessoas terem. O perdão existe, não vou ter
a ideia pessimista que ninguém é capaz de perdoar, só tenho ressalva que a
mágoa não suma. Nathan é uma exceção, mesmo sendo uma característica
valiosa, persiste a outra perspectiva, de as pessoas tirarem proveito da sua
bondade, como eu fazia, confiando que ele não me abandonaria.
O perdão não impede que esses mesmos erros ressurjam, eles dão
uma falsa sensação que tudo irá melhorar. Nathan é adepto dessa sensação
passageira, sou prova viva disso.
— O que faremos hoje? Espero que tenha um itinerário pronto.
— Tem uma cafeteria aqui perto, o cappuccino é bem gostoso.
— Que chique, tomando cappuccino, abdicou das raspadinhas? — As
pernas são cruzadas e a cabeça pende para trás. — Esqueça, vamos comprar
raspadinhas e amoras! Ficaremos no parque, enquanto o Panqueca persegue
esquilos ou pula vendo borboletas.
— Do que adianta sugerir se já decidiu o que faremos? — rebato,
revirando os olhos. — E você não tem noção do que está perdendo, o
cappuccino é delicioso.
— O capuccino ou a atendente com presilhas coloridas no cabelo?
— Que atendente? Eu... eu não sei...
— Sua mãe disse que você quase baba pela atendente e vai sempre no
turno dela.
Minha mãe é uma fofoqueira descarada.
— Desde quando conversam?
— Somos amigos de e-mail.
— Quem ainda usa e-mail?
— Não é? Achava brega, mas Ellen o fez legal.
Que tipo de assuntos eles devem falar? Nem consigo suspeitar.
— É coisa da cabeça dela, para sua informação. Agora, gostaria de
ir? Panqueca passeia nesse exato horário.
— Aprendeu a fugir do assunto muito bem. — Levanta e para diante
de mim. — Sorte sua que minha vontade de brincar com o Panqueca é grande.
Panqueca, você é valioso.

Meus pais esconderam o desconforto quando me viram saindo,


pediram somente para colocar meu spray de pimenta na bolsa, talvez a
presença do Nathan os acalme. É bom esse sossego quando saímos andando
por aí, com meu amigo e cachorro, comprando raspadinhas azuis, amoras e
chantilly.
Brincamos com Panqueca um tempo no parque, corremos na extensão
da grama esverdeada e caminhamos ao redor do lago. Paramos quando o
labrador cansa e decidimos sentar nos bancos, comendo as amoras com
chantilly. Comemos as raspadinhas no caminho do parque.
— Sinto saudades do ritmo tranquilo, Nova York é muito agitada.
É um deleite completo ter a oportunidade de escutar Nathan falando
sobre Nova York, sobre os semestres da faculdade, com o interesse dele
evoluindo nos amigos e festas. Ouvi-lo é minha parte preferida, me renova
vê-lo bem.
Nunca fui largada, mesmo merecendo. A distância com a mudança da
faculdade e minha vinda para Berkeley nem se impôs como empecilho. Os
traços faciais amadureceram nesses meses, convertendo-o numa aparência
mais adulta.
— Acho que lá é o seu lugar — digo, sem pensar. — A agitação
combina com você.
— E o que combina contigo?
— Não me conheço o suficiente para saber.
— O que está te impedindo?
— Não sei quanto tempo ainda vou ter aqui. — A conversa é tão
espontânea que nem pondero. Os orbes castanhos reluzentes denotam uma
preocupação, me causando arrependimento.
— Terá a vida inteira. — Sua mão quente aperta a minha.
— Lembra do áudio que te mandei? Tenho escutado todas as noites —
confesso, retribuindo o aperto. — Todas as noites, penso que não tem sentido
eu ser feliz, porque uma hora ele vai voltar.
— Contou isso para sua psicóloga?
— Você é o único que confio para contar algo assim.
— Ele está longe, seu último paradeiro foi bem distante daqui.
River havia descoberto um novo divertimento, provocar a polícia com
cartas e ligações. Roubava a atenção para ele nas manchetes, desnorteando
meu vínculo justamente pelos absurdos que falava nas ligações. Numa delas,
fui mencionada como argumento, para ressaltar o quão destrutivo acabou
sendo em menos de seis meses, e a resposta dele me assombrou. Sua voz
vibrava numa frequência agitada, ganhando vida na menção do meu nome.
Imagine o estrago que faria com mais tempo.
A verdade é que ele nunca perdeu, as matanças nunca cessaram,
mesmo com as notícias, investigações correndo e as provocações mensais.
Estava saindo vitorioso esse tempo todo. Fui a primeira pessoa que o fez
perder, pois persisti e escapei. Como o ego dele teria ficado? Não creio que
estou livre, creio nesses meses sendo concedidos num tempo limitado de
liberdade, acabando na hora que River quiser.
Não conto para ninguém esse pensamento, seria dada como louca de
imediato. E se o assunto da internação surgir a partir daí? Passar meu tempo
dopada com medicamentos, incapaz de recordar meu nome, usando
exclusivamente para diminuir esses delírios... Prefiro fingir que não
enlouqueci.
— Tem razão.
— Ótimo, vamos falar sobre outra coisa... Que tal a sua quedinha pela
atendente da cafeteria?
— Não fode! — Gargalhamos, comigo encostando a cabeça em seu
ombro.

Quinze dias perfeitos vieram, com o clima crescentemente melhor em


casa. Mamãe e Nathan pareciam velhos amigos se reencontrando, com chás
da tarde que a mulher com tintura loira no cabelo insistia em fazer. Ellen
renunciou à vaidade esse tempo inteiro, então presenciá-la desabrochar,
interessada com cuidados na pele, assistindo tutoriais de tranças na internet, é
adorável. Meus pais, vagarosamente, demonstram que existe esperança de
retornarmos ao eixo. Talvez Nathan colabore nessa percepção, afinal, foram
anos com tardes pelo jardim, e nos verem fazendo as mesmas coisas
acarretam nessas recordações.
As alucinações reduziram consideravelmente. Nesses quinze dias, tive
dois episódios, com um deles me levantando na madrugada. Bati o olhar na
penteadeira, com River encostado, vasculhando as maquiagens em cima.
Sente minha falta, princesinha? Matar o homem que odiava não basta para
você? Panqueca acordou com a movimentação na cama e veio sentar no meu
colo, então compreendi que não era real.
Panqueca me ajuda quando necessário, diferenciando o que é real e
alucinação. Ele certamente iria reagir, caso tivesse uma segunda pessoa no
quarto.
— Em umas semanas finalmente iremos colher os morangos, solzinho.
— Papai tira as luvas e checa as plantas no jardim, montando uma horta. —
Regou as flores?
— Sim, elas estão muito bonitas! — elogio, aspirando suas
fragrâncias. Contribuí na construção da horta. A atividade me fez falta, é uma
boa distração.
— Posso te confidenciar uma surpresa? — Concordo com um aceno
de cabeça e papai sorri. — Fiz uma reserva para jantar hoje com sua mãe, ela
demonstrou interesse no restaurante italiano que inaugurou esses dias.
— Parece bom pra mim, vocês vão se divertir.
— Deixarei dinheiro para pizza, meu solzinho, e você e seu amigo
podem se virar, não é?
Papai está tentando me dar espaço. Saírem sozinhos estava fora de
questão há algumas semanas, a companhia de Nathan deve ter ajudado nessa
decisão.
— Compre flores, ela vai se derreter! — sugiro com um sorriso largo.
Mamãe ama receber flores.
— Fica linda quando sorri, filha.
Mamãe esteve em casa no restante da tarde. Nós três saímos para
comprar as flores, com a desculpa de irmos tomar um sorvete, e acertamos
em cheio. A mulher enrolada no roupão quase chorou ao segurar o buquê,
lançando beijos no marido, agradecendo e correndo para o quarto. Ajudei nas
incontáveis opções de vestidos postos na cama, indo de exageradamente
estampados para simples, elegendo o azul-marinho de manga longa como
vencedor, com brinco e colar combinando e uma maquiagem básica. Fez um
“coque elegante”, que aprendeu nos tutoriais. Fazia tempo que não a via tão
arrumada.
— Tranquem as portas e janelas assim que sairmos, temos a chave
reserva para entrar. — Os dois, de maneira alguma, saem sem reforçar as
orientações. — Tem seu spray de pimenta guardado, certo? — Confirmo num
breve “sim”. — Ótimo, seu pai e eu iremos estar com os celulares em mãos.
Assisto o veículo tomar distância. Eles realmente tiveram coragem em
tirar umas horas a sós, após meses dedicados a mim. Vê-los entusiasmados,
se arrumando, semelhantes a adolescentes saindo para um encontro, transfere
alívio, disseminando minha culpa, sendo esse empecilho trajado na exaustão.
— Então, qual sabor de pizza a senhorita gostaria?
Do que adianta escolher? Nathan terminará me convencendo do sabor
que preferir mesmo.
Pizza de marguerita ganhou! Comemos metade vendo filmes do Adam
Sandler, que fazem Nathan se revirar no sofá, rindo, aproveitando para dizer
que anda na rua esperando esbarrar com celebridades, e quem sabe um
enredo de livro romântico parta desse encontro inesperado. Admiro essa
expectativa, eu só torceria para a celebridade não ser babaca. Conversamos
sobre seus relacionamentos curtos, com rompimentos dolorosos. Ele confessa
que se entrega de imediato quando tem a sensação das clássicas borboletas na
barriga. Continuamos prolongando o assunto, até a sonolência se apoderar de
nós e decidirmos dormir. Peço para dividir a cama comigo no meu quarto, um
medo quase infantil de dormir sozinha pela falta dos meus pais vem contra
mim.
— Me sinto feliz, Greta. — Deitamos um de frente para o outro. —
Os dias têm sido incríveis. — Meu pulso é tocado e massageia as marcas
visíveis pela amarra improvisada do dia anterior.
— Hoje descobri o quanto adora Adam Sandler.
— Te vi rindo também.
— Você rindo, me fez rir — rebato e puxo sua mão para descansar a
face. — Obrigada por não desistir de mim.
— Como eu poderia desistir de alguém que amo tanto?
O amor acolhe. Nesse instante, meu sentimento é que aqui, com
Nathan, posso dormir livre, dispensando o anseio em prender meu pulso para
adormecer.
— Eu também te amo.
— Perfeito, mas dorme, porque amanhã iremos cedo na sua cafeteria
favorita. — Pisca, alisando minha bochecha.
Sairei envergonhada de lá, definitivamente, mas é bom dormir
animada com a manhã seguinte.

A garganta seca me desperta. Sonolenta, sento na cama e boto as


pantufas rosadas, ponderando se vale a pena descer para beber água. Acordei
diversas vezes nesse meio-tempo, sendo um desafio dormir direito sem
amarrar meu pulso. Quis prosseguir incentivando essa liberdade, contar com
uma noite de sono direito está fora do meu controle. Verifico Nathan agarrado
num travesseiro, de boca aberta, e dou passos lentos, saindo do quarto.
Panqueca vai junto, idêntico a uma sombra, e fecho a porta, evitando
propagar barulho.
Deve ser cedo. O quarto dos meus pais está vazio, indicando a
permanência fora. Na escadaria, Panqueca dispara, indo direto na cozinha,
provavelmente aguarda receber um petisco. E vou mimá-lo mesmo, sou
incapaz de negar algo a ele. No primeiro grunhido, já acabo cedendo, dando
sempre um petisco sabor frango, seu favorito.
— Dessa vez você merece apenas um, viu? Sujou a garagem ontem e
sobrou para eu limpar.
A luz da geladeira ofusca minha visão. Ponho o braço na frente e me
aproximo, com uma silhueta fechando-a geladeira. Assim que ergue o corpo,
constato na escuridão que aquela figura não é minha mãe, que entrou em casa
enquanto papai estacionava. O formigamento doma meus pés, que congelam
no piso. A ponta dos dedos tremem e bato contra o blusão. Emito terror, com
lágrimas me contornando quando Panqueca pula nele, pedindo carinho.
Meu cachorro interage com ele.
Ele retribui com um carinho na cabeça.
Os olhos acinzentados recaem sobre mim, me queimando no horror
que fora ter meu pé quebrado, recebendo pontos na cabeça, com o corte na
perna perfurando a carne e cicatrizes mapeando o que ele havia feito comigo.
Lembro dos segundos sempre parecerem horas intermináveis em sua
presença, lembro quando a morte aparentava ser agradável, lembro que
suportá-lo extraia sanidade.
— Docinho.
Engulo as palavras e gritos que pudessem me salvar, recaindo na
fraqueza que River influencia em mim.
As mechas de cabelo são afastadas e escorrega os dedos em meu
pescoço, analisando as mudanças com as pupilas dilatadas, entretido nessa
busca de novos detalhes. Eu nem sou capaz de firmar minha atenção por
completo nele, ainda o trato como se estivesse alucinando ou num pesadelo.
Mas Panqueca comprova o contrário.
Constato que é o meu fim.
River me encontrou.
O pesadelo nunca acabou.
Nunca estive livre dele.
Meus pensamentos relembram que previ seu retorno, e agora não faço
nada.
Não mereço esse final, mas sou trancafiada nele.
— Eu senti tanto sua falta — ele declara, com um sorriso tomando
seus lábios.

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