Você está na página 1de 227

Índice

Copyright © 2020 Sil Zafia


Notas
Verão de 1978
Antes
De volta a 1978
Anos 80
O covil do lobo
Alguém como eu
Garotas só querem se divertir
Vilã
Como confiar?
O rancho
O “apertamento”
Quantos segredos ele pode guardar?
Duras verdades
Confissão
Nem tão inocente assim...
A viagem
O primeiro emprego
O telefonema
Mantendo a cabeça no lugar
Encontro desastroso
Quando sua vida está prestes a mudar
Continua…
Previsão para o lançamento do livro 2 da Duologia:
Agradecimentos
Nem todos os príncipes usam coroa:
Encontro Perfeito
Trilogia Irresistíveis
Anjo Mau
Referências
Copyright © 2020 Sil Zafia
Publicado independente por Sil Zafia
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de qualquer processo eletrônico ou mecânico,
fotocopiada ou gravada sem autorização expressa da autora.
Diagramado e editado por Silmara Záfia.
Revisado por Sophia Castro.
Capa por Silmara Záfia.

O CAÇADOR - DUOLOGIA PAIXÃO PROIBIDA - LIVRO 1

A autora possui os direitos legais registrados e assegurados pela Biblioteca Nacional.


Notas
Aviso de conteúdo sensível.
O livro contém cenas que podem desencadear (GATILHOS) alguma
desordem de estresse pós-traumático. AO SE SENTIR
DESCONFORTÁVEL EM ALGUM TRECHO DO LIVRO, ABADONE A
LEITURA IMEDIATAMENTE.
Agatha Mendes, dona de um temperamento explosivo, foi mandada
para um colégio interno quando tinha onze anos, para que pudesse aprender a
se comportar. Cresceu sob supervisão das freiras, saindo do colégio apenas
para assistir às missas da paróquia.

George viveu em um orfanato, onde cresceu planejando se vingar da


família Mendes, responsável pela morte de sua mãe. Ele traçou o plano
perfeito para caçar os culpados.

Sete anos depois, Agatha é agora uma mulher deslumbrante, pode


finalmente voltar para casa, mas o destino acaba cruzando sua vida com a de
George, um homem charmoso e misterioso, que a envolve numa aventura
perigosa e cheia de segredos.

Ele poderia seguir com seu plano de vingança, caso se apaixonasse por
Agatha?

E como ela poderia se entregar ao homem que está caçando sua


família?
"Não é o tempo nem a oportunidade que determinam a intimidade, é
só a disposição. Sete anos seriam insuficientes para algumas pessoas se
conhecerem, e sete dias são mais que suficientes para outras."

Jane Austen, Razão e Sensibilidade


Verão de 1978
Eu amava o verão. Podia gritar isso para os quatro cantos da cidade.
Pedalando minha bicicleta rosa com fitinhas pendurados no guidom, sentia a
brisa quente soprando no meu rosto, enquanto contornava a praça perto da
minha casa.

Soltava as mãos do guidom, abria os braços e sentia a vitamina D


entrando nos meus poros, bronzeando minha pele. Cantarolava minha música
preferida, do meu filme favorito. Sim, eu estava apaixonada, mesmo que cada
pessoa dessa cidade me dissesse que eu não sabia o que era o amor, que eu
não tinha idade para isso.

Me lembro muito bem da sensação, das mãos suadas, a nuca


esquentando, o coração disparando quando eu o via. Sim, eu estava
apaixonada. Ninguém poderia tirar esse sentimento do meu peito, muito
menos da minha memória.

Ainda balbuciando trechos daquela canção, segurei o guidom e o virei


para a esquerda, entrando na rua de casa. O vi sentado nos degraus da
varanda. Eu jamais me sentiria desse jeito com outra pessoa.

Seus cabelos castanhos balançavam com a mesma brisa que soprava


meu rosto. O mesmo sol que bronzeava minha pele, iluminava a face dele.

Larguei a bicicleta no início do gramado, passei a mão apressada pelos


cabelos, arrumei a postura e respirei fundo. Caminhei evitando as sombras da
árvore do jardim para que ele me visse sob a luz do sol. Estufei o peito o
máximo que pude para que ele notasse as formas arredondadas dos meus
seios aparecendo na camiseta de algodão branca.

Meu coração já estava na garganta quando alcancei os degraus e me


sentei perto dele. Apoiei os cotovelos no chão, me inclinando para trás, como
se estivesse tomando sol sobre uma toalha na beira da piscina.

— Olá, Agatha — ele me cumprimentou com o sorriso que eu adorava.


— Olá, Mikall — respondi, sorrindo também.

— Qual o motivo desse sorriso tão bonito? — Mikall quis saber.

— É segredo — respondi, voltando a ficar sentada, deixando que meu


ombro tocasse o dele —, mas eu vou dizer, porque sei que não contará a
ninguém.

— Seu segredo está seguro comigo.

Ah! Eu adorava o som da sua voz. Era o som do qual eu jamais me


cansaria.

— O motivo do meu sorriso é você — confessei, fazendo com que ele


risse e sacudisse a cabeça em negação.

— Onde você estava, sua pirralha? — ouvi a voz de Lauren resmungar


atrás de mim, após abrir a porta da frente de casa e chegar até nós, na
varanda.

Odiava quando ela me chamava de pirralha na frente de Mikall.

— Por aí — respondi vagamente.

— Vá tomar um banho e lavar esse cabelo, você deve estar imunda! —


Lauren disse naquele tom de voz esganiçado. — E para de perturbar meu
noivo!

— Não fale assim com ela, Lauren — Mikall saiu em minha defesa. —
Só estávamos conversando. Agatha nunca me perturba.

Me virei para minha “adorável” irmã mais velha e mostrei a língua. Ela
contorceu a boca, juntando os lábios em uma linha estreita e agarrou meu
cotovelo, me puxando para cima, como se sentisse prazer em me humilhar na
frente de Mikall.

— Pirralha imunda! — ela me xingou ao me colocar de pé. Eu já


estava mais alta que ela, e isso só deixava minha irmã mais furiosa. — Vai
tomar um banho decente, papai quer que eu te leve ao cinema, terá uma
reunião do comitê e não quer te ver pela casa! Acho bom você se livrar desse
fedor de ferrugem das mãos.

— Não brigue com uma garotinha de onze anos, Lauren — Mikall


pediu, puxando minha irmã de perto de mim e a guiando pelo gramado. —
Adorei o perfume, é aquele que te dei?

— Sim, querido — Lauren respondeu.

— Sim, querido! — imitei sua voz ridícula antes de cheirar minhas


mãos. Detestava perceber que ela tinha razão. Minhas mãos cheiravam à
ferrugem do guidom da bicicleta.

— Posso pegar uma roupa sua emprestada? — gritei para Lauren antes
que ela virasse a esquina, enroscada no braço do meu Mikall.

— Se entrar no meu quarto, você será uma pirralha morta — ela


respondeu sobre o ombro, sem se dar ao trabalho de virar e me encarar.

— Mas só tenho roupa de criança!

— É porque você é criança, sua idiota!

— Por favor. Só uma blusa! Não vou estragar! — implorei, mas eles já
tinham virado a esquina.

Chutei o ar diversas vezes. Detestava a maneira como ela me tratava.


Precisava arranjar um jeito de abrir os olhos de Mikall, fazer como que ele
entendesse que ela não era a pessoa certa.

— Ouvi a gritaria — mamãe disse quando entrei em casa. — Por que


não podem se dar bem?

— Lauren tem inveja de mim, mamãe, você sabe!

— Por que ela teria inveja de você, Agatha?

— Estou ficando muito mais bonita e ela tem medo de perder Mikall
para mim — respondi com orgulho.
— Não diga besteiras! Mikall é um ótimo vereador, todo mundo na
cidade o adora. Em breve, ele será eleito presidente da câmara e seu pai faz
muito gosto em vê-lo casando com Lauren — mamãe disse séria. — Por
favor, não faça nada que deixe seu pai irritado, muito menos que vá
atrapalhar o noivado dos dois.

— Odeio ela, mãe! Sua filha só sabe me humilhar na frente dele.

— Não odeie sua irmã...

— Ela nem é minha irmã de verdade — resmunguei.

— Assim como não sou sua mãe. Mas te acolhemos como se fosse
filha, te criamos desde que você veio ao mundo. Agora vá tomar banho. Se
comporte no cinema ou terá que se entender com seu pai.

— Poderíamos ser só Mikall e eu — sussurrei, perdida nos planos.

— Pare de bobagem! Você é uma criança.

Revirei os olhos e subi as escadas com passos apressados, ansiosa para


estar logo sozinha no meu quarto.

Bati a porta com força e me joguei sobre o tapete felpudo e velho. A


decoração não combinava com o resto da casa. Dava para ver a ferrugem nos
cantos da cabeceira da cama tubular, o armário ficava embolorado com
facilidade e a terceira gaveta da cômoda não abria, porque todos aqueles
móveis eram de segunda (ou até terceira) mão.

Não que meus pais precisassem de caridade.

Pelo que sabia, meu pai era um dos homens mais ricos da pequena
cidade.

Eu era adotada. Seu nome constava na minha certidão de nascimento


como pai, mesmo assim, não tinha o mesmo sangue deles e, por algum
motivo sombrio, ele fazia questão de me lembrar a cada instante que eu só
estava ali por sua caridade.
Como se meu pai não fosse o bastante, ainda tinha Lauren, minha
“irmã” de vinte e dois anos. Uma das minhas recordações mais antigas e
amargas era de Lauren cortando meu cabelo loiro bem curto, porque uma das
suas amigas havia comentado que meu cabelo era mais brilhoso que o dela.

Lauren havia me batido e me obrigado a ficar quieta, enquanto destruía


meu cabelo, como se eu não tivesse direito a ter nada que fosse bom e bonito.

Eu não deveria ter nem quatro anos quando isso aconteceu. Lauren
tinha quinze. Apesar de tudo, não foi colocada de castigo. Sempre foi assim.
Ela fazia o que bem entendia, porque era a princesa do papai.

Os dois eram tão parecidos que me dava medo.

Minha infância tinha memórias desagradáveis com Lauren para encher


um livro, mas foi quando eu tinha oito anos que as coisas mudaram um
pouco.
Antes
Eu sabia que um convidado especial estava sendo esperado, porque
mamãe tinha dado autorização à empregada para usar a porcelana mais cara.
Me deixaram trancada no quarto, enquanto o jantar estava sendo preparado,
já que eu sempre acabava quebrando ou sujando algo quando tentava ajudar
na cozinha.

Mamãe me instruiu a lavar o cabelo, que crescia depressa, e a usar o


vestido do natal. Penteei as mechas loiras, me perguntando quem poderia vir
jantar conosco, e saí do quarto. Dava para sentir o perfume exageradamente
doce de Lauren do corredor, enquanto ela se arrumava.

Revirei os olhos e desci as escadas, ouvindo os sapatos estilo boneca


fazerem a madeira ranger. Naquela época, eu já tinha quase um metro e meio,
era a mais alta da minha sala de aula.

Ouvi a campainha tocando e apressei os passos para atender, passando


pelo meu pai, que fumava um charuto com um odor que fazia minhas narinas
arderem. Ele quase segurou meu cotovelo, mas consegui escapar e chegar à
porta antes de ser apanhada, sabendo que ele não se atreveria a me bater no
momento de receber a visita.

Abri a porta e dei de cara com um rapaz, o mais bonito que eu, até
então com oito anos, já tinha visto. Senti como se o tempo estivesse passando
em câmera lenta enquanto eu o encarava. Ele era milimetricamente perfeito,
muito mais interessante do que os caras dos filmes que Lauren assistia. Tinha
cabelo castanho, olhos azuis e cílios escuros. Seu rosto parecia ter sido
desenhado por Deus.

Lembro que o ar ficou preso na minha garganta quando ele abriu um


sorriso para mim. Pensei que iria engasgar em meio ao choque.

— Você deve ser Agatha — o rapaz disse, me estendendo um urso de


pelúcia com uma gravata vermelha.
Pisquei os olhos, perplexa por estar ganhando algo que não fosse
usado, ainda sem saber o que dizer.

— Sim, sou e-eu — respondi atônita.

Mas antes que pudesse pegar o urso, senti o peso do braço do meu pai
em volta do meu corpo, apoiado sobre meu tronco e segurando meu ombro
com força, como uma advertência sobre o que aconteceria se eu o
envergonhasse na frente daquele rapaz.

— Entre, Mikall. Lauren já deve estar descendo — papai disse com a


voz mais falsa que eu já tinha escutado. — Sabe como são as garotas.

Ele me puxou, ainda me segurando contra seu corpo, me tirando do


caminho para aquele rapaz entrar.

— Mikall — murmurei seu nome, com medo de pronunciar errado e


ele me achar uma criança boba.

— Você não brinca mais com ursinhos? — o rapaz quis saber, me


estendendo o bichinho de pelúcia outra vez. Dava para ver a dúvida no seu
olhar.

— Não precisava se incomodar com Agatha.

— Não foi incômodo — o rapaz insistiu. Eu não sabia muito sobre


adultos, mas ele parecia ter a idade de um daqueles caras da faculdade que
Lauren costumava paquerar.

Papai me puxou para o sofá e me sentei ao seu lado, segurando o urso


contra o peito. Mikall sentou-se a nossa frente. Não conseguia parar de olhá-
lo. Era bonito demais e parecia gentil como eu nunca pensei que um homem
pudesse ser.

Meu pai era rude, mal educado com minha mãe e sempre a fazia
chorar. Mikall parecia ser alguém que nunca levaria uma garota às lágrimas,
como um verdadeiro príncipe dos contos de fada, o oposto do meu pai.

Durante o tempo em que ficamos, os três, na sala de visitas, sentindo o


odor do charuto, não imaginei quem ele realmente pudesse ser. Papai recebia
muitos homens, e eles estavam falando de política, o que era mais que
comum.

Só quando vi Lauren descendo as escadas, parecendo uma rainha de


concurso de beleza, é que me dei conta do que estava acontecendo. Aquele
jantar era para o novo namorado da minha irmã. Senti meu coração se
espremer no peito quando Mikall se virou para olhá-la, sabendo que ninguém
nunca me olharia daquele jeito.

Ele não beijou seus lábios na frente do meu pai, mas sim, sua testa,
como um perfeito cavalheiro. Minha irmã era tão falsa quanto meu pai, e
conseguiu corar como se fosse uma garota tímida. Só eu sabia a bruxa que ela
era por trás daquele disfarce.

O jantar foi servido e a conversa entediante sobre política continuou.


Então me dei conta de algo: eu era a única para quem Mikall havia trazido
um presente. Sorri debochada para Lauren, até ela me encarar de volta,
chutando minha perna por baixo da mesa e me lançando um olhar odioso sem
que ninguém mais percebesse.

Aquele jantar ficou marcado na minha vida para sempre, a noite em


que vi Mikall pela primeira vez e que me dei conta que Lauren poderia ter
tudo que quisesse, mesmo sendo uma megera.

∞∞∞

Nos dois anos que se seguiram àquele jantar, Mikall e eu nos tornamos
algo como confidentes. Ele não me tratava exatamente como uma pirralha
que vivia graças à caridade dos donos da casa. Conversávamos a respeito de
filmes, jogos de futebol e, principalmente, sobre música. Às vezes, quando
ninguém mais queria, Mikall se oferecia para me levar à festa de aniversário
de alguém do colégio, ou para ver algum filme na matinê do cinema, quando
Lauren se ocupava no salão ou viajava para fazer compras com mamãe em
uma cidade maior. Eu nunca era bem-vinda nas viagens de compras das
garotas.
Ele me comprava sorvete, jogos, brinquedos e doces.

Às vezes, quando apoiava minha cabeça no seu ombro, enquanto nos


sentávamos no banco de balanço da varanda e bebíamos refrigerante de
garrafas de vidro, eu desejava que meu pai verdadeiro fosse alguém como
ele, que um dia de repente aparecesse para me resgatar. Então eu não seria
humilhada por aquela família novamente.

O carinho de Mikall, além do da minha mãe, foi o único que conheci.

Ele nunca me olhou ou me tratou como a garota adotada, alguém que


não pertencia àquela família, mas sim como um ser humano.

Mais ou menos dois anos após Mikall entrar na minha vida, numa tarde
de outono, ele me confidenciou que pediria a mão de Lauren em casamento, e
que seríamos como irmãos.

— Você não pode amá-la tanto assim — foi meu primeiro comentário.
Senti um caroço se formar na minha garganta, mas não consegui entender a
razão. Eu nunca chorava quando estava perto de Mikall.

— Por que acha isso? — ele quis saber. — Logo você, Agatha, vai
duvidar do meu amor pela sua irmã?

Não duvidava de Mikall, só não conseguia assimilar a ideia de Lauren


se casando com ele. Era como se a megera ganhasse mais uma vez, provando
que podia ter tudo.

Tentei imaginá-los entrando em um carro preto, com latas e fitas


amarradas na traseira, com as palavras “recém-casados” escritas com tinta
branca. A dor me fez engolir em seco.

— Não quer que sejamos cunhados? — Mikall perguntou, segurando


meu queixo para me encarar. — Não quer que eu faça parte da sua família?

Não sabia o que responder, então me afastei e entrei em casa, subindo


as escadas dois degraus de cada vez, e me trancando no meu quarto, deitando
no tapete felpudo.
Chorei até começar a soluçar, tentando entender o que estava sentindo.
Não demorei a perceber o motivo de não querer que Mikall se casasse com
minha irmã: eu queria que ele se casasse comigo.

Eu tinha dez anos na época, e Mikall vinte e dois. Ele era um vereador
da nossa pequena cidade, graças ao patrocínio do meu pai, e eu... uma
pirralha do ensino fundamental.

Respirei fundo, engolindo o choro e me levantando. Dei uma boa


olhada no espelho, satisfeita com as transformações que estavam acontecendo
no meu corpo, arrumei o cabelo e desci as escadas. Eu tinha dez anos, só
precisava esperar mais uns cinco ou seis para podermos namorar.

Sentia no fundo que Mikall gostava de mim, eu só precisava explicar


do jeito que o fizesse compreender que havíamos sido feitos um para o outro,
porque ele parecia ainda não ter percebido isso.

Peguei minha bicicleta no jardim e pedalei até seu apartamento de


solteiro, batendo na porta com força até ele abrir.

— Agatha? — ele disse surpreso e eu suspirei, me dando conta do


quanto meu nome soava bonito na sua voz. Meu coração estava ameaçando
explodir quando abri a boca e comecei a falar depressa, explicando por que
motivos deveríamos ficar juntos e por quantos anos ele precisaria me esperar.

Para meu horror, Mikall... riu de mim. Ele não disse que eu era criança,
que não entendia sobre a vida, nem nada do tipo, apenas riu.

— Eu abro meu coração e você ri? — perguntei, me sentindo traída.

Ele me puxou para seus braços e disse que era velho demais para mim.

— São apenas doze anos — tentei argumentar. — A diferença de idade


entre meus pais é de quinze! Quando formos mais velhos, mal vai dar para
perceber, você só precisa me esperar.

Ouvi sua risada contra minha cabeça outra vez. Seus braços eram
sempre quentes, não importava quanto frio estivesse fazendo, e Mikall estava
sempre perfumado, mas naquele dia eu tremi no seu abraço.

— Eu amo sua irmã, Agatha. Isso que sente por mim é só carinho.
Você não quer realmente se casar comigo.

— Mas Lauren não merece ser amada por alguém como você —
resmunguei entre soluços. Não podia aceitar perdê-lo daquela forma.

Quando não apareci no jantar de noivado, naquela mesma semana,


Lauren notou que eu gostava de Mikall mais do que como um irmão mais
velho. Papai também foi alertado.

As idas ao cinema com Mikall foram cortadas, assim como os doces, as


caronas e as conversas no banco de balanço da varanda.

Por algum motivo, minha irmã deve ter percebido o quanto eu era
determinada quando queria algo, e que poderia ser realmente uma ameaça,
mesmo que eu só tivesse dez anos. Eu não me fazia de coitada, lutava pelas
coisas que queria com garra.

Voltei a ser a mesma criança revoltada e sozinha que costumava ser,


antes dele aparecer pela primeira vez na porta da minha casa.
De volta a 1978
Tomei um banho demorado, esfregando cada parte do corpo com uma
esponja, lavei os cabelos, depois os sequei até que estivessem bem lisos,
coloquei um vestido solto e saí na ponta dos pés para o quarto de Lauren. Eu
só tinha onze anos, mas estava crescendo muito e já calçava o mesmo número
que ela.

Abri seu closet e experimentei um dos seus saltos, me arrisquei a dar


uma volta pelo quarto, me olhando no grande espelho. Lauren quebraria
minhas pernas se me pegasse usando seu sapato preferido. Após perceber que
já sabia andar naqueles saltos, os tirei e devolvi à prateleira, tomando cuidado
para colocar exatamente no mesmo lugar em que estavam.

Me perdi em devaneios com suas maquiagens, colares e brincos. Minha


irmã estava com vinte e dois anos, tinha tudo que queria, inclusive o homem
mais bonito e incrível daquela cidade.

Eu nunca seria como ela. Meus pais não permitiriam e não me dariam o
mesmo apoio. Eu não tinha o sangue deles correndo nas veias, sempre
deixaram isso bem claro: que eu era adotada, não pertencia àquela família.

Deixei os dedos escorregarem sobre a penteadeira de Lauren. Encontrei


o perfume que Mikall lhe dera de presente e borrifei algumas vezes no meu
pescoço. Se ele gostava daquele cheiro, iria gostar que eu usasse.

Abri o guarda-roupas e olhei para todos aqueles vestidos, sonhando em


poder usá-los. Não percebi quando alguém abriu a porta até as mãos estarem
puxando meus cabelos.

— Tire suas mãos imundas daí, pirralha! — Lauren gritou furiosa ao


me flagrar mexendo nas suas roupas. Senti o couro cabeludo arder, mas antes
que pudesse me defender, ela me jogou no chão.

— Eu só queria um sapato! — berrei.


— Avisei que te mataria se você entrasse aqui, sua peste!

Ela ia me chutar, mas Mikall já estava atrás dela segurando seus


braços.

— Calma, Lauren — ele pediu. — Não vai sair no tapa com uma
menina de onze anos.

— Te odeio! — minha irmã me insultou. — Você estraga todos os dias


da minha vida! Me solta, Mikall. Eu preciso respirar o ar que não esteja
poluído por essa coisa!

Dito isso, ela saiu do quarto cuspindo fogo.

Mikall me estendeu a mão, mas não a peguei.

— Ela é uma megera — resmunguei, observando os fios loiros de


cabelo que Lauren tinha arrancado da minha cabeça. — Por favor, não se
case com ela.

— Por que não?

— Eu te amo — confessei. — Não iria suportar vê-lo se casando com


essa bruxa.

— Agatha — Mikall pronunciou meu nome com cuidado ao se agachar


no chão a minha frente, fazendo meu coração disparar —, sabe quantos anos
eu tenho?

— Vinte e três — respondi sem encará-lo.

— Isso mesmo. Sou doze anos mais velho que você. Me casarei com
sua irmã na primavera. Você é uma menina, é linda, claro, mas é uma
menina...

Encarei seus olhos, fantasiando que aquele tom de desculpas


significava uma chance, ainda que mísera. Ele precisava entender que eu
estava virando mocinha, que ainda haveria uma oportunidade para nós, que
eu era uma melhor opção.
— Logo estarei mais velha — sussurrei. — Você só precisa ser
paciente.

— Não importa quanto tempo passe, sempre serei doze anos mais
velho que você — Mikall disse, sem ter noção do quanto sua negação me
feria. — Sinto muito se te deixei imaginar que queria ser mais que seu irmão
mais velho.

— Não seremos o primeiro casal com diferença de idade.

— O que você entende sobre casais, sobre o amor? — Mikall


perguntou.

— Entendo que te amo. Você é o único que não me trata mal, que me
dá atenção, que conversa comigo sem me menosprezar.

Ele estirou a mão e deslizou os dedos na minha bochecha molhada


pelas lágrimas.

— Sempre vou te tratar bem. Me casarei com sua irmã, mas vamos ser
sempre amigos.

— Não, Mikall, por favor, não se case! Espere por mim — implorei.

— Em breve você será uma moça linda, e todos os rapazes da cidade


vão desejar namorá-la. Serei velho, terei um monte de filhos e você nem
lembrará que já esteve apaixonada por mim.

— Duvido que alguém me faça sentir isso — murmurei.

— Não brigue com sua irmã por minha culpa. E pare de chorar, não
mereço essas lágrimas.

Ele tocou meu queixo e o ergueu, do mesmo jeito que tinha feito
quando disse que iria pedir a mão de Lauren.

— Mantenha a cabeça erguida. Nunca deixe ninguém te humilhar de


novo. Não é chorando que você impõe respeito.
— Para você é fácil falar, toda a cidade te adora.

— Não é tão fácil quanto parece e nem todos gostam de mim. Tem um
grupo só esperando um tropeço meu, um erro, para me derrubarem. Sei como
é medir e planejar cada passo para não decepcionar as pessoas.

— Então não me decepcione. Por favor!

Eu o amava e imploraria sem medo.

— Eu amo sua irmã, Agatha. Entenda.

— Como você não consegue ver que ela não te merece? Ela vai te
tratar como lixo assim que estiver casada, vai bater nos seus filhos como me
bate, você nunca vai ser feliz com ela... — minha voz foi morrendo quando
me dei conta de que dizer aquilo era inútil.

A primavera chegaria e ele estaria casado antes que eu completasse


doze anos, então o teria perdido para sempre.

— Ela fez algo que te enfeitiçou — murmurei, me perguntando como o


universo podia dar tudo a uma garota tão má como ela.

— Um dia você vai entender o que é amar alguém de verdade — ele


disse com gentileza, mas suas palavras eram como um tiro de canhão contra
meu peito.

— Então me beije — disse de repente.

— O quê? — Mikall pareceu chocado.

— Só um beijo. Ela terá você para sempre, só estou pedindo um beijo.

— Sou adulto e você é uma menina. Não foi para isso que me
aproximei de você. Te considero como a irmã mais nova que eu nunca tive, é
só isso.

— E é só um beijo — insisti e, chegando ainda mais perto dele, me


apoiei nos seus ombros, com o coração subindo pela garganta ao perceber
como seu rosto estava próximo do meu. Baixei o tom de voz e tentei soar
como a moça que eu já era. — Sua noiva nunca vai saber.

— Eu não poderia — Mikall murmurou. — Mesmo que você implore,


não faremos isso. Seu pai nos mataria se descobrisse, e sua irmã...

Ele não acabou de falar. Lauren estava dentro do quarto, tinha entrado
sem fazer barulho e escutado a conversa. Rosnou como uma fera, se
aproximando com os olhos vidrados. Numa fração de segundos, ela estava
em cima de mim, puxando meus cabelos, me arrastando pelo chão.

— Sua oferecida imunda! — ela xingava, enquanto me arrastava


escada abaixo. — Mamãe devia ter jogado você no rio. Papai vai te ensinar
uma lição. Vai te dar um remedinho que nunca vai esquecer!

Mikall vinha atrás de nós, implorando para que Lauren me soltasse,


mas ela tinha herdado a fúria e agressividade do meu pai de criação. Quando
minha irmã estava com raiva, ninguém conseguia pará-la.

Minhas costelas queimavam dos chutes que levei, assim como meu
couro cabeludo, quando ela me jogou na porta do escritório de papai. Aquela
era só uma parcela da agressão que eu sofreria naquela noite.

Se recompondo, ela bateu na porta do escritório e entrou.

— Não se meta — pedi a Mikall quando ele me ajudou a ficar de pé.


— Não fale nada! Fui eu quem falei aquelas coisas, você não teve culpa.

— Não posso deixar você... — ele começou a dizer, mas apertei meus
dedos contra sua boca.

— Meu pai só vai me dar uma surra. Já estou acostumada a apanhar.


Mas se ele desconfiar que você fez algo, se ele sequer imaginar, vai te matar,
eu juro que vai! Por favor, fique quieto.

Lá de dentro, ouvi os gritos de papai. Os homens que estavam na


reunião deixaram o escritório apressados, então ele surgiu na porta. Mamãe
veio correndo da cozinha e, com um único olhar, ele a fez parar.
— Não se meta, mulher! — ouvi seu berro, enquanto Lauren saía do
escritório.

— Afonso, ela não fez por mal — Mikall pediu. — Não a castigue.

— Você não teve culpa — minha irmã disse segurando os ombros do


noivo. — Era ela quem estava se oferecendo.

— Leve Lauren ao cinema — meu pai respondeu. — Essa daqui nunca


mais vai te incomodar.

— Afonso... — ouvi o murmúrio de Mikall, antes de papai me puxar


para dentro do escritório. Foi a última vez que eu o vi.

— Não fiz por mal — tentei argumentar, enquanto ele tirava o cinto.

— Você é a vergonha da casa. Mal virou moça e já anda se oferecendo.


Ainda mais para o noivo da sua irmã — ele falava ao desafivelar o cinto. —
Eu tenho nojo de você. Nunca deveria ter lhe dado meu sobrenome, meu
dinheiro.

A primeira cintada atingiu meus braços. Me encolhi e gemi baixinho,


sabia que se gritasse seria pior.

— Não é de hoje que sua irmã reclama das suas sem-vergonhices para
cima do vereador. Que vergonha! Uma criatura que vive da minha caridade,
me apunhala pelas costas, dentro da minha casa.

— Não fiz n-nada... — balbuciei entre soluços quando o cinto atingiu


minhas coxas, deixando uma marca vermelha em alto relevo.

— Cale a boca! Nunca mais quero ouvir sua voz, ver seu rosto. Arrume
suas coisas. Um carro vai te levar até a estação amanhã bem cedo. Você
ficará num colégio interno até aprender a ser gente, a não tentar estragar os
negócios de quem te acolheu.

Antes de me deixar sair, o homem me virou de costas e atirou o cinto


contra meu corpo, me derrubando sobre a poltrona do escritório, até deixar
minha pele em carne viva.
Mamãe não fez nada para impedir. Não a culpo. Sobraria para ela.

No dia seguinte, Lauren comemorou minha partida.

Ela e Mikall se casaram na primavera, como estava marcado, mas


ninguém me quis por perto no casamento. Minha irmã nunca foi me visitar no
internato, só mamãe aparecia nos fins de ano.

Nunca me convidaram para passar as férias em casa. Então, quando


meu pai morreu, algum tempo depois, me recusei a pegar um trem e ir ao
velório, mesmo que as freiras insistissem que eu deveria perdoá-lo. Ele já
estava morto mesmo. Não havia nada a ser perdoado.

Levei anos até conseguir esquecer Mikall.


Anos 80
Alcanço o espelho dentro da mochila e olho como está o batom
vermelho que comprei na última estação onde o trem parou. Essa cor
combina comigo. As freiras detestariam me ver assim.

Bem, elas não estão aqui agora. Além disso, já tenho dezoito anos e
posso decidir se usarei maquiagem ou não.

Graças ao peso na consciência do meu falecido pai, tenho um bom


dinheiro na carteira. Ele não suportava ir me visitar, então mandava grandes
quantias todo natal.

Eu não precisava de dinheiro enquanto estava trancafiada naquela


escola, eu necessitava de alguém para me abraçar quando me sentia
desamparada. Mas não tive isso. Durante sete anos e meio, mamãe foi a única
pessoa da família que veio me visitar.

Estive esperando por muito tempo, agora é hora de voltar para casa.

Obviamente, não tenho os mesmos pensamentos que tinha quando me


expulsaram naquela noite. Cresci, amadureci e aprendi o que é certo e errado.
Apesar disso, não me arrependo de ter demonstrado o que sentia, mas já não
sinto dor por Mikall não ter me correspondido.

O tempo passou. Ele está casado com Lauren, tem filhas gêmeas. As vi
por foto uma vez, mas nunca vi Mikall. Não sei como ele está agora. Acho
que tinha razão quando dizia que sempre seria doze anos mais velho que eu.
Ele está entrando na casa dos trinta. Não sei como são os homens de trinta.
Na verdade, não sei como são os homens.

As freiras me fizeram entender que, quando se ama uma pessoa, você


não deve fazer coisas para interferir na vida dela, que é preciso deixá-la livre
para escolher se quer você ou não.

Mikall nunca me escolheria. Hoje sei disso. Não sou mais aquela
menina que implorava por um beijo.

Desço do trem na estação e olho em volta. Vejo uma máquina de café,


várias pessoas indo e vindo, mas nada de mamãe ou Lauren me esperando.
Respiro fundo. Elas sabiam que eu chegaria hoje. Escrevi um telegrama
informando o trem, a plataforma e o horário. Só que elas não apareceram.

Arrumo a alça da mochila no ombro e resmungo na solidão de uma


plataforma cheia de estranhos. É inverno. Passei tanto tempo trancada que
não tenho mais preferências a respeito das estações do ano.

Ergo a cabeça. Mikall disse que não era chorando que eu conseguiria
respeito. Não vou chorar agora só porque ninguém veio me buscar.

Dou um passo à frente e percebo um homem me observando com


curiosidade. Ele olha para mim e olha para algo na sua mão — um papel,
talvez uma fotografia —, olha para mim e volta a olhar o papel. Faz isso mais
três vezes.

— Agatha? — vejo seus lábios pronunciarem meu nome. — Você é


Agatha Mendes?

Me aproximo com cautela, o rapaz parece perplexo.

— Sou — respondo ao parar a menos de um metro de distância do


homem. Ele é alto, do tipo que me faz ter que olhar para cima para encará-lo,
olhos castanhos, cabelo escuro e bagunçado de um jeito legal, mandíbula
marcada e furo bem discreto no queixo. Não parece ser muito mais velho que
eu.

— Agatha que veio do convento? — ele pergunta. Sua voz é rouca,


bonita para meus ouvidos. Não conversei com muitos homens nos últimos
anos, além dos padres da paróquia, mesmo assim, sei reconhecer quando um
timbre de voz é charmoso.

Inquieta e ainda frustrada por não encontrar mamãe a minha espera,


endireito a postura, tentando ocultar o desamparo que estou sentindo.
— Sou eu mesma — digo, arrumando a alça da mochila novamente,
que pesa cada vez mais sobre meu ombro magro. Alcanço o que ele carrega
na mão e puxo sem aviso. Trata-se de uma fotografia minha de quando eu
tinha dez anos. — Não está me reconhecendo pela foto?

O encaro novamente, a tensão é nítida entre nós.

— Não... quer dizer, sim. — Ele estira a mão para me cumprimentar.


— Me chamo George, me mandaram apanhar a senhorita e levá-la para casa.
A primeira dama está em um congresso importante e não pôde vir.

— Pelo amor de Deus, não me chame de senhorita de novo! — digo a


primeira grosseria que posso usar para provar que não sou frágil, assustando
o rapaz. Tenho certeza que Lauren deve ter feito uma descrição detalhada
sobre mim, sua irmãzinha rebelde que precisou ser trancafiada em um colégio
interno e punida pelos seus pecados, até ficar dócil o suficiente para voltar
para casa. Quero que ele pense que ela está errada, mas não sei exatamente
como causar a impressão que desejo. — Agatha. Só Agatha! É claro que
Lauren não poderia vir. Não estava esperando por ela. A primeira dama deve
ser uma mulher muito ocupada. E onde está minha mãe? Sabe dela?

— Dona Lucinda está viajando para a Europa com as gêmeas,


senhori... Desculpe, Agatha. Não te avisaram?

Reviro os olhos para George, como se não desse nenhuma importância


à informação sobre minha mãe.

— Quer comer alguma coisa antes de irmos? — ele pergunta e tenta


pegar minha mochila.

— Vou comer quando chegar em casa — digo. Comer com um rapaz


desconhecido é a última coisa que quero. — E não precisa carregar minha
bagagem.

— Eu insisto — George responde com a voz ainda mais rouca, tirando


a alça do meu ombro.

Sinto o calor da sua mão contra minha blusa e travo os músculos para
conter um arrepio.

— Como pretende me levar para casa? De ônibus?

— Estou de carro, senhorit... — É a vez de ele revirar os olhos. —


Estou de carro, Agatha.

— Ótimo. Vamos — digo e começo a caminhar.

Sem a mochila para segurar, me sinto ainda mais perdida. O observo


carregando a bagagem que contém todos os meus pertences como se não
pesasse nada e penso em recuperá-la, mas logo desisto da ideia.

Ainda estou tentando aceitar que a única pessoa que imaginei que se
importasse comigo está de férias com suas netas pela Europa. Um nó
estúpido se instala em minha garganta, mas engulo a saliva e o obrigo a se
desfazer, quando sigo George para o estacionamento.

— Você tem um carro legal — elogio ao ver o conversível lustroso cor


de gelo, onde ele joga minha mochila.

— Não é meu carro.

— De quem é?

— Do prefeito — George responde.

— E por que está com o carro do prefeito? — pergunto, pulando sobre


a porta do carona e me acomodando antes que ele possa pensar em abrir a
porta para mim.

— Porque trabalho para o prefeito. Vim te buscar, estou a serviço da


prefeitura.

George dá a partida. Observo a tensão no seu queixo, o jeito como os


olhos estão estreitos, olhando para a estrada. Parece tão desconfortável
quanto eu.

— E o que exatamente você faz para o prefeito te deixar dirigir este


carro? Lambe as botas dele?

Até eu me espanto com esse comentário. É por falar coisas absurdas e


desrespeitosas assim que recebi a maior parte dos castigos físicos no
convento. Parece que não funcionaram muito bem.

As narinas de George se inflamam. O osso do queixo parece prestes a


se partir.

— Eu levo as pessoas de um lugar a outro — ele explica de má


vontade, enquanto pega a rodovia. São 73km até minha cidade. — Este é meu
trabalho.

— Interessante — digo, me perguntando o que ele deve estar pensando


a meu respeito. Durante os últimos anos, fui tratada de maneiras tão
peculiares que já não sei mais como me comportar com pessoas normais, se é
que um dia já soube. — Você é o motorista do prefeito?

— Mais ou menos isso — responde sem simpatia, demonstrando que


está perdendo a paciência.

— O que você faz além de levar as pessoas de um lugar a outro?

— Faço faculdade de administração. Estou no segundo ano.

— Estuda e trabalha. Hum... — comento. — Você não é muito velho


para a faculdade?

— Nem todas as pessoas têm a sorte de serem as cunhadas mimadas do


prefeito.

— É assim que trata as pessoas para quem dirige?

Sei que estou consumindo sua paciência, que ficar calada pelo resto da
viagem é a escolha certa, mas fazer as pessoas chegarem no limite é um dom
que ainda me controla.

— Não, mas a senhorita tem uma língua muito afiada — diz com
sarcasmo.
Respiro fundo, sentindo o sangue subir para meu rosto, pensando em
todas as freiras que me falaram para ser recatada. Resolvo engolir seu
comentário.

— Pode me ensinar a dirigir?

— Claro, senhorita. Tudo pela cunhada do prefeito.

— Não me chame de senhorita! — berro, fechando a mão em punho e


me preparando para socar seu rosto, mas ele segura meu pulso com uma das
mãos e gira o volante com a outra, parando no acostamento.

— Quer aprender a dirigir? — ele pergunta, soltando meu pulso com


raiva. — Primeira regra: não golpeie a pessoa que está no volante!

Os olhos cor de mel me encaram com fúria e ele se inclina na minha


direção. Seu físico faz com que ele pareça ainda maior. Preciso engolir em
seco para disfarçar o quanto isso me traz lembranças ruins.

Tentavam me ensinar que mentir é pecado, mas me castigavam


severamente quando eu era sincera.

— Te deixo nervoso — digo quase sem ar, procurando diminuir a


tensão que causei. Sei que estou sendo imatura e descontando minhas
frustrações nesse rapaz que acabei de conhecer, mas não posso evitar. Sou
um desastre.

— A senhorita é — ele arfa, como se escolhesse bem as palavras —


uma garota terrível — George me acusa.

Seus olhos castanhos adquirem um tom amendoado na luz clara da


tarde, seu maxilar está tão trincado que parece que vai se partir a qualquer
momento.

— Não me chame de senhorita — repito baixinho.

Pelo jeito que me trata, sei que Lauren deve ter contado como sou
insignificante para a família. Se for assim, acho que causei uma “boa”
impressão.
— A senhorita quer fazer o favor de me deixar dirigir? — ele me
questiona, os olhos vidrados nos meus.

— Seu tom de voz fica interessante quando está com raiva — comento
e ele acelera novamente, guiando o carro de volta para a estrada.

Ligo o som e ele move a cabeça em negação.

— Não gosta de música? — pergunto.

— Ouça, Agatha, vamos começar de novo, tudo bem? — George pede,


tentando controlar o tom de voz. — Vamos ficar neste carro por mais de uma
hora, poderia tentar tornar as coisas mais fáceis.

— Tudo bem, George. Vou me comportar, prometo.

Ele respira fundo, parece mais relaxado.

— Sei que está frustrada por não ter sido recebida pela sua família,
ainda mais depois de tanto tempo longe, mas só estou tentando fazer o meu
trabalho. Não precisa descontar sua decepção em mim.

Suas palavras me fazem perceber o quanto sou ridícula. Meus olhos


ardem com a raiva que sinto por já estar causando no primeiro dia.

— Quando o excelentíssimo prefeito Mikall pretende trazer uma


estação de trem a nossa cidade? — resmungo a pergunta para manter a
conversa, fingindo que suas palavras não me abalaram.

— Não sei.

— Tem namorada? — continuo.

— Não tenho. E você?

Dou uma gargalhada e o observo, ele vira para me olhar com


curiosidade.
— Eu estava no convento. Não me deixavam sair para outro lugar que
não fosse a igreja. É claro que não tenho namorado.

— Estava lá há quanto tempo? — George quer saber.

— Desde 1978 — respondo.

— Então você nunca namorou?

— Não, George, claro que não!

Ele sorri relaxado. O mal estar que causei parece já ter passado. Pelo
menos ele não guarda mágoas. Gosto disso.

— Posso te levar a alguns lugares da cidade. Bares, discotecas...

— Por que faria isso? — não posso deixar de perguntar.

— Você tem um gênio impossível e vai acabar se metendo em


confusão se andar por lá sozinha. Também é linda, muitos caras vão querer
agarrá-la. Posso te defender.

— E se eu quiser que eles me agarrem? — o provoco.

— Viu? Você precisa dos meus cuidados — ele diz com um sorriso.

— E se você quiser me agarrar? — pergunto, o provocando só mais um


pouco. — Como vou me defender do cara que está cuidando de mim?

George morde o lábio macio, seu rosto fica corado, mas ele não fala
mais nada pelo resto da viagem.

∞∞∞

— Essa não é minha casa — comento quando entramos pelo portão de


uma mansão.
— É aqui que sua família mora. Essa é a residência oficial do prefeito.

Engulo a saliva. Ninguém me disse que mamãe tinha se mudado para a


residência de Lauren e Mikall.

George desce do carro e faço o mesmo. Me sinto muito pequena ao


parar diante da porta. Ele sorri.

— Preciso ir a um lugar agora.

— Seu trabalho é levar pessoas aos lugares — digo.

— Isso mesmo. Nos vemos depois?

— Claro! Você precisa me levar aos lugares certos e me defender dos


caras.

Ele sorri. Mantém o queixo erguido, com ar de superioridade, mas seus


olhos possuem um brilho triste.

— Desculpa pelo meu comportamento no carro.

— Não foi nada, senhorita — George diz, mas começa a correr antes
que eu consiga arremessar alguma coisa contra ele.

— Idiota! — grito na frente da residência oficial do prefeito.

Nem minha mãe nem Lauren estão em casa. Não sei o que encontrarei
lá dentro. Respiro fundo antes de girar a maçaneta.
O covil do lobo
Estou mordendo o lábio quando abro a porta. Meus olhos se arregalam
diante da imensidão da sala de estar, meu queixo cai, mas engulo em seco e
tento fingir desdém. Há um lustre pendurado no teto alto, uma escadaria
dupla a minha frente, tapetes persas, os móveis parecendo intocáveis.

Sorrio com a ideia de Lauren gritando comigo para não tocar no sofá
com minhas mãos imundas.

Dou um passo para dentro e fecho a porta. Não tem ninguém para me
receber, como eu deveria ter esperado.

Há várias portas que dão para a sala, mas só duas, do lado esquerdo,
estão abertas. Arrumo a alça da mochila no ombro e, ainda mordendo o lábio,
caminho para a primeira porta deixando que meus tênis se arrastem fazendo
barulho pelo chão.

Ao me aproximar, ouço uma voz vinda lá de dentro. Meu coração


dispara e mordo o lábio com mais força.

É ele!

Mamãe está viajando, Lauren foi a um congresso e Mikall está em


casa.

Não sei como me sinto. A última vez que o vi, Mikall era lindo, mas já
tinha vinte e três anos. Não faço ideia do que os longos anos fizeram com sua
aparência. Ele tem filhos, uma cidade para administrar e uma esposa
desequilibrada.

— Pobre Mikall! — sussurro ao notar seu tom de voz aborrecido ao


telefone.

Continuo andando até estar de frente para a porta. Olho sobre o ombro
como quem não quer nada e o vejo. Me sinto com onze anos de novo, como
se fosse verão, como se o tempo não tivesse passado. Mas passou, e ele só fez
bem a Mikall.

Estou pasma como sua aparência. Ele conseguiu ficar ainda mais
bonito do que já era. Está usando um terno azul marinho e sua gravata está
afrouxada. Parado diante da porta, ouve o que a pessoa fala do outro lado da
linha. Nota minha presença e estica a mão para fechar a porta na minha cara.

Vejo a porta sendo fechada. Mikall agora encara o chão. Parece muito
aborrecido. Percebo que os homens desta cidade se irritam com muita
facilidade.

Quando a porta está a meio caminho do portal, ele olha para a frente e
me vê. O segundo em que nos encaramos passa devagar. Sei que minha
respiração está acelerada. Ele abre a porta de volta e sorri, só então, abro um
sorriso.

— Essa ligação é importante — Mikall diz, abafando o telefone contra


o peito. — Vá até a cozinha. A empregada te levará ao seu quarto.

— Obrigada — sussurro e me viro para seguir caminho até a próxima


porta aberta.

Tento acalmar a respiração, enquanto sigo a senhora Matilde pelas


escadas. Imagino se me saí bem, se não deixei muito na cara o quanto estava
chocada.

A empregada me acomoda em um quarto grande e decorado. Há uma


penteadeira como a que tinha no quarto de Lauren, mas está vazia. Tem
também um banheiro. Tiro minhas roupas apressada e entro no chuveiro.

Quando estou pronta, meu estômago reclama. Faz horas que comi. Saio
do quarto e desço as escadas com a mão apoiada no corrimão. É uma linda
mansão, mas percebo que está deserta quando alcanço a sala de estar.
Ninguém se importa com minha chegada.

Mordo o lábio e procuro a alça da mochila para arrumar no ombro, mas


ela não está mais comigo. A deixei no quarto, em cima da cama.
Cruzo os braços e caminho até a próxima sala. Tem uma mesa de jantar
com mais cadeiras do que consigo contar com uma breve espiada. Vejo um
aparador cheio de porta-retratos e me aproximo. Há um espelho grande acima
das fotos. Arrumo o cabelo, o jogando de lado, e alcanço um porta-retratos
dourado que contém uma fotografia das gêmeas. Lana e Lara. Suspiro.
Lauren tem um péssimo gosto para nomes.

Quando ergo os olhos de volta para o espelho Mikall está refletido ao


meu lado.

Ele acabou de tomar banho, seu cabelo ainda está úmido e o perfume
amadeirado contorna meu corpo, entrando pelas narinas.

— Só acreditei que você viria quando Lauren ligou e me pediu para


mandar alguém te buscar — Mikall diz.

— Para onde mais eu iria? — pergunto.

— Não sei — ele murmura e dá de ombros. — Só pensei que nunca


mais fosse te ver. Então você me aparece... desse jeito.

— De que jeito?

— Linda — ele diz sem cerimônia.

— Obrigada. Você também continua muito bonito — sussurro e ele


sorri.

Não quero que ele saiba que ainda mexe comigo. Preciso me esforçar
para controlar as emoções.

— Não acredito que você é aquela mesma menina que andava com o
cabelo bagunçado, pedalando a bicicleta rosa pela praça da cidade, que me
fazia rir dizendo...

— Quando eu crescer quero me casar com você — completo sua fala.


— Mas você preferiu se casar com minha irmã.

Espero não demonstrar que isso me magoa.


— Pois é. Na época, parecia a coisa certa a se fazer, e não pensei que o
tempo fosse passar tão rápido, que você ficaria tão bonita e...

— Se soubesse como eu ficaria, teria me esperado crescer? —


pergunto. O coração bate tão rápido que temo não conseguir mais disfarçar as
emoções.

— Teria — ele confessa, mas aperta os lábios para segurar uma risada.

— Mentiroso! — exclamo, desviando os olhos do espelho e o


encarando de frente. Meu corpo reage furioso.

— Não minto para você. Se soubesse que o casamento com sua irmã
seria uma droga, teria terminado com ela, acredite — Mikall diz, mas não
consigo perceber se está sendo sincero ou brincando comigo. — Teve sorte
de crescer longe de Lauren. Ela me odeia, odeia todo mundo.

— Por que não se separam? — quero saber. É muita informação para


processar, e eu estou com o escudo levantado. Não posso confiar no que ele
diz assim tão fácil.

— Não podemos. A cidade nos vê como um casal modelo. Todos


pensam que somos felizes. Não imaginam que dormimos em quartos
separados.

— Dormem em quartos separados? — questiono perplexa e ele


confirma com a cabeça. — E ninguém sabe disso?

— Ninguém além da sua mãe e da senhora Matilde.

— E por que está me contando? — Ergo as sobrancelhas.

— Confio em você — ele diz. — As coisas mudaram. Os anos voaram.

— Os anos só voaram para você porque estava livre para voar junto
com eles — murmuro. — Para mim, eles passaram lentamente.

— Sinto muito, menina. Gostaria de ter ido te visitar, mas só deixaria


tudo pior. Não sei como faço para te recompensar pelas lágrimas que
derramou por mim.

— Comece me pagando uma pizza — brinco, aliviada por ter


encontrado um modo de fugir da tensão desta conversa. — Estou com fome.

Mikall sorri. Ainda acho seu sorriso lindo, mas não estou interessada
em dizer isso agora. Ele tira a carteira do bolso da jaqueta, a abre e me
entrega uma nota de vinte.

— Tem o telefone de uma pizzaria na cozinha.

— Prefiro que você me leve até lá — peço, enfiando o dinheiro no


bolso da calça.

— Não posso te levar.

— Por que não?

— Estou ocupado esta noite. Tenho que ir a um lugar.

— Me leve com você — tento não implorar. — Podemos comer no


caminho.

— Não posso te levar comigo — ele diz franzindo o cenho. — Você


nem sabe aonde estou indo

— Aposto que vai trair minha irmã — provoco.

Mikall ri da minha acusação.

— Não vou trair sua irmã!

— Então me leve! Fiquei anos fora e ninguém estava aqui para me


receber.

— Eu estava — ele me corrige.

— Só você, mas agora quer me largar em casa sozinha.


— O número da pizzaria está na cozinha e tem comida na geladeira —
Mikall informa e se vira, mas eu o puxo de volta, fazendo com que nossos
corpos se choquem. Ele me analisa de cima, sem se afastar. — Menina...

— Não sou menina — resmungo. — Cresci, sou mulher agora.

— Para mim, sempre será uma menina — ele murmura.

Estou chateada. Mikall ainda me vê como criança. Quero provar que


está errado, porém, no momento preciso convencê-lo a me tirar desta casa.

— Me leva com você, por favor. Juro que não vou contar para Lauren.

— É um clube. Vamos jogar sinuca, beber e falar de política. Garotas


não são bem-vindas — Mikall explica.

— Você é o homem mais importante e poderoso da cidade. Pode entrar


quem você quiser.

Ele respira profundamente e se afasta sem dizer nada. Prestes a saltitar,


corro atrás dele e seguro sua mão.

— Não podemos andar de mãos dadas! — protesta, enquanto


atravessamos a sala.

— Ainda estamos dentro de casa. Eu não colocaria a reputação do seu


casamento feliz em risco — digo, apoiando a cabeça no seu ombro. Estou
explodindo de felicidade, mas me controlo.

∞∞∞

— Não faça eu me arrepender por ter lhe trazido — ele pede quando o
motorista para o carro diante de uma fachada simples. Há outros carros já
estacionados, mas a vaga principal ficou aguardando pelo prefeito.

No caminho, paramos em uma lanchonete drive thru. Agora estou


alimentada e de bom humor.
— Juro que vou me comportar — garanto, beijando os dedos que
formam uma cruz.

Um homem forte e careca faz cara feia quando me vê, mas Mikall diz
que eu estou com ele.

— Prefeito, mulheres não são...

— Ela está comigo — Mikall repete, usando um tom de voz mais


autoritário dessa vez.

O homem não tem outra opção a não ser me deixar entrar.

Mostro o dedo do meio para o careca quando Mikall some pela porta,
em seguida, corro até meu... cunhado e agarro seu braço enquanto descemos
as escadas. São três lances, está escuro. Imagino como seria agarrá-lo e dar
aquele beijo que sonhei por tanto tempo. É deprimente assumir, mas estou
fantasiando isso e não posso transparecer. Não quero que ele me afaste para
longe, ainda mais ali.

Quando chegamos ao subsolo, mal posso enxergar a mesa de sinuca


através da camada sufocante de fumaça de cigarros.

Mikall me apresenta como sua cunhada a um monte de homens, depois


me encaminha até o bar com a mão apoiada nas minhas costas. Sento num
banco onde tenho uma ampla visão do local. Ele pede um refrigerante para
mim e eu protesto.

— Quero cerveja!

— Não vai querer tomar seu primeiro porre aqui, vá por mim — ele
sussurra perto do meu ouvido. Seus lábios tocam o lóbulo da minha orelha e
causam cócegas. Me encolho, arrepiada. Mikall se dirige à mesa de sinuca
quando meu refrigerante chega.

Parece que todos ali têm algo para falar com o prefeito. Reviro os olhos
para a conversa entediante sobre obras e bebo o refrigerante devagar.

— O que faz aqui, senhorita? — ouço a voz rouca de George


perguntar. — Ficou maluca?

— Estou acompanhando meu cunhado, senhor — respondo de má


vontade. — E o que você faz aqui?

— Aqui é covil do prefeito, onde todos os lobos maus e importantes da


cidade se reúnem para tramar sobre política — ele explica baixinho, se
sentando ao meu lado. — Eu venho observar. O prefeito deve ter perdido o
juízo para te trazer aqui.

— Acha que vou contar os segredos políticos para alguém? —


pergunto, ofendida. — E quer saber? Não estou vendo nenhum lobo mau
aqui. Só vejo homens pedantes.

— Aqui não é lugar para a senhorita — George insiste, se aproximando


ainda mais do meu ouvido.

— Já disse para não me chamar de senhorita — resmungo.

— A maioria dos homens presentes neste salão — ele diz e faz uma
pausa para olhar em volta; noto que Mikall nos olha brevemente, mas não dá
importância — não faz sexo com suas esposas há semanas, meses.

Engulo em seco e sinto o rosto esquentar. É a primeira vez que falam


abertamente comigo sobre isso.

— Eles têm dinheiro, bens, poder, mas suas esposas não os suportam
porque eles trabalham demais, seus filhos os odeiam. É um covil de lobos,
sim. Então a senhorita aparece aqui com essa blusa apertada, os lábios
vermelhos, toda linda e cheirosa... Os lobos maus chegam a espumar pela
boca. Olhe em volta, veja como te comem pelo canto do olho.

Estou sem ar. Percebo o olhar de alguns homens e um calafrio atinge


minha espinha.

— Não tenho medo deles — minto para George.

— Quer ser devorada por um desses lobos? Você não está usando um
chapeuzinho, mas tem lábios vermelhos muito apetitosos, senhorita. Um
desses lobos nojentos te arrastaria para o banheiro antes que o prefeito
pudesse notar.

— Está exagerando — murmuro. — E se isso acontecesse, eu armaria


um escândalo.

— Ninguém aqui quer alarde, assim como a senhorita não quer


nenhum desses homens nojentos encostando a boca com bafo de uísque e
cigarro em você.

— O senhor não deixaria ninguém me fazer mal.

— Não vou permitir. Preciso ficar de olho em você.

Acabo de beber o refrigerante e coloco a lata sobre o balcão.

— Quero fazer xixi. Vai me acompanhar até o banheiro também?

— Sim, senhorita — George responde, ficando de pé, segura minha


mão e me puxa para um corredor escuro.

Enquanto caminhamos, sinto sua mão tocar minha barriga exposta. É a


primeira vez que um homem toca meu corpo assim. Gosto da sensação.

— Você me trouxe aqui porque quer me atacar. Aposto que é um lobo


pior que os outros — brinco, mas ele não sorri.

— Eu sou o caçador que está te protegendo. Não confunda as coisas.

Reviro os olhos e entro no banheiro. Quando saio, tenho uma dúvida


em mente.

— Por que está me protegendo? — questiono George.

— Não estou protegendo exatamente a senhorita, estou protegendo o


prefeito.

— Como assim?
— Ele é um homem decente, não corrompe os cofres públicos, não tem
histórico de relações extraconjugais e não compra briga com ninguém. Não
quero que a senhorita manche o currículo dele espalhando desavenças pela
cidade e arranjando encrenca.

— Eu não faria nada para prejudicar Mikall — me defendo.

— Se eu não estivesse aqui, aposto que já teria encrencado com alguém


do salão.

— Só está fazendo isso pelo prefeito — comento, chateada. — Pensei


que gostasse da minha companhia.

— A senhorita tem um gênio terrível — ele brinca —, mas é divertida.


Gosto de estar perto de você.

— Vamos fazer uma coisa? Você para com esse negócio de “senhorita”
e eu vou me comportar muito bem. Fechado?

— Prefiro a minha ideia, Agatha — ele me chama pelo nome e eu


sorrio.

— Diga.

— Você vem comigo para um lugar onde possamos ficar sozinhos.

— Prefiro que me leve para dançar.

— Eu ligo o som do carro e dançamos embaixo das estrelas. — Já


estamos de mãos dadas novamente quando ele termina de falar. Seus lábios
parecem muito macios.

— E o lobo mau me ataca — sussurro, me inclinando para falar no seu


ouvido.

— Não se você atacar primeiro.

Voltamos ao salão, me dirijo até Mikall e o puxo pelo braço até um


lugar reservado.
— George me levará para tomar um sorvete. Tudo bem?

Mikall segura meu braço e se aproxima do meu pescoço.

— Posso te esperar em casa? — ele pergunta baixinho.

— Claro — respondo com os olhos arregalados, sem saber o que essa


pergunta pode significar. — Não durma até que eu chegue.

— Se comporte, menina. Se voltar para casa sem esse batom vermelho,


saberei que beijou alguém.

Engulo em seco. O jeito como ele fala me deixa inquieta.

— Vou te mostrar que não sou mais menina — sussurro e puxo meu
braço da sua mão.

Me dirijo à saída, onde George está me esperando.


Alguém como eu
O clima ficou ainda mais frio no tempo em que fiquei no bar “mulheres
não são bem-vindas”. O vento sopra gelado contra meu rosto, se enfiando por
baixo da blusa de mangas longas, esfriando minha espinha. A mão de George
ainda se encontra apoiada na minha cintura, quente e firme.

Apresso o passo na direção do conversível assim que o localizo no


estacionamento, me afastando do calor da sua pele. Pulo por cima da porta do
carona, sentindo o metal gélido contra meus dedos. O couro do banco só
intensifica o frio. Abraço-me, esfregando as mãos contra a blusa de frio que,
evidentemente, não é apropriada para a época do ano.

— Não precisa fazer nenhum comentário sobre eu ter escolhido uma


blusa inadequada que mostra a barriga e não me aquece — me defendo assim
que George abre a porta do motorista.

— Não ia comentar nada — ele diz, desconfiado, se acomodando no


banco de couro, devidamente aquecido com uma jaqueta com o emblema da
sua universidade. O hálito sai dos seus lábios em uma nuvem de vapor
enquanto fala. — Pelo contrário, está muito bonita hoje, Agatha.

Ele se contorce até o banco de trás, alcança um cobertor e o oferece


para mim. É feito de um material áspero e barato, como os que me
esquentavam no convento em noites frias como esta.

Aceito, surpresa.

— Não se preocupe, vou erguer a capota — ele assegura ao dar partida.

Observo seu rosto. Não estou acostumada a este tipo de tratamento.


Minha família e os membros do convento sempre me repreenderam por
minhas roupas, meus gestos e falas. Nenhum deles diria “tudo bem, Agatha,
eu tenho um cobertor aqui que vai te aquecer”.

Respiro fundo, passando a manta em volta do corpo ao som do ruído


metálico da capota, aspirando o cheiro de colônia masculina.

— Porque carrega um cobertor em um carro que nem é seu? —


pergunto para afastar aquele sentimento de estar sendo cuidada.

Mikall havia sido o único a me fazer sentir esse tipo de cuidado, e eu o


tinha perdido.

— Sem perguntas desse tipo — George responde com um sussurro e


trinca o queixo.

— Para onde vai me levar? — continuo usando o mesmo tom atrevido,


porque foi assim que me acostumei a falar com as pessoas.

— Para um lugar onde a senhorita possa dançar sob a luz das estrelas
— ele brinca com a voz rouca, acelerando o conversível.

Fico observando o osso do maxilar destacado, sua respiração regular, o


cabelo escuro jogado para trás, as sobrancelhas grossas, o rosto iluminado
pelas luzes da cidade.

Me dou conta de que George não me chama de senhorita para me


irritar, mas porque ele é gentil e me trata como um cavalheiro. O recordo
mais cedo tentando tirar a mochila de mim para carregá-la, e eu o tratando
com rebeldia. Mordo o lábio com força, tentando imaginar como seria ver
minhas atitudes pelos olhos de um rapaz amável e atencioso.

Ele parece gostar de mim, da minha companhia, mas sei que não posso
me dar ao luxo de sair da defensiva e me acostumar com ele, porque a vida
me afastou da única pessoa que me tratou com gentileza.

Penso em Mikall enquanto George se afasta da área urbana, guiando o


carro por um aclive sinuoso.

Eu ainda sou apaixonada por ele como era na infância? Penso em como
sempre foi tão amoroso e respeitador comigo, mesmo quando eu não merecia.
Ele sabia como lidar com meu sentimentalismo, era bom com crianças. Deve
ser um excelente pai, do tipo que eu sempre quis ter, mas continua casado
com Lauren, mesmo dizendo que não são felizes.

Será que ele me contar aquilo foi um sinal de que devemos deixar o
passado para trás e tentarmos dar certo agora que sou adulta?

Ele disse que ia me esperar, mas não consigo ter certeza do que essa
espera significa: saber que cheguei sã e salva em casa ou realmente me
esperar?

Droga! Eu nunca sequer beijei alguém. Não sei nada sobre os homens,
muito menos um na casa dos trinta.

George entenderia o que Mikall quis dizer.

— Chegamos — ele anuncia, me tirando daquela teia de pensamentos


confusos.

Estou ansiosa para voltar para casa e descobrir porque Mikall se


importa com meu batom vermelho, mas não sei se quero mais isso ou estar ali
com George.

O ouço ligar o som do carro e o farfalhar de roupas. Ele está tirando o


casaco da universidade.

— Vista — diz ao me estender a peça.

Aceito sem pensar duas vezes, o vestindo enquanto ele dá a volta no


carro e abre a porta do carona.

— Tem pernas compridas, mas não precisa saltar sempre por cima da
porta — George brinca.

Quero pedir para ele não ser tão gentil assim, que eu não quero me
acostumar e depois perdê-lo, mas começa a tocar Total Eclipse Of The
Heart[i], e é uma música que mexe comigo desde que foi lançada. Me limito a
soltar um ruído parecido com uma risada sarcástica.

— Não gosta dessa música? — pergunta.


— Gosto. É só que...

— Você queria dançar e eu te trouxe. Não está com medo que eu te


ataque, está?

— Não tenho medo de você — digo a verdade. Ele faz eu me sentir


mais protegida e à vontade do que deveria. — Você não é o lobo mal,
George, você é o caçador que me salva.

Pisco para afastar a sensação melancólica.

— Eu só não sei se devo me apegar a você — acabo confessando,


baixinho. Meu humor está acabando comigo.

— Nos conhecemos hoje, você não precisa decidir se vai ser apegar a
mim tão depressa. Vem.

George segura minha mão e me puxa para a frente do carro. Os faróis


estão acesos. Posso ver as luzes da cidade, e as estrelas estão incrivelmente
brilhantes. Ele está usando calças de sarja e um suéter azul marinho. Coloco
as mãos nos seus ombros, sem saber como lhe contar que não sei dançar. Mas
o primeiro pisão no seu pé me denuncia.

— O frio endureceu suas pernas? — George caçoa.

— Como acha que eu sei dançar quando passei quase metade da minha
vida em um convento? — Praticamente cuspo sarcasmo.

— Não considerei isso quando você disse que queria dançar — ele
rebate com calma. — Não precisa aprender agora. Quer só se sentar e ver as
luzes da cidade?

Balanço a cabeça em concordância, mas tentando achar deboche no


tom de sua voz. Fracasso. Nunca pensei que fosse mais fácil de lidar com
críticas e repreensão do que com gentileza.

Ele alcança o carro com passos largos e pega o cobertor, enquanto me


sento sobre uma das pedras com uma distância segura do abismo abaixo.
Sinto seus passos se aproximando e o calor do seu corpo quando se
senta ao meu lado e coloca uma parte do cobertor ao redor do meu corpo,
passando um braço em torno da minha cintura logo em seguida, me puxando
para mais perto, de modo a afastar o frio.

Suspiro nesse aconchego.

— Você trata todo mundo assim, George?

— Assim como?

— Com gentileza.

— Trato as pessoas como gostaria de ser tratado — ele explica.

Pisco, encantada, mas sem querer deixar transparecer o quanto estou


me sentindo bem.

— E você recebe a gentileza de volta? — não posso deixar de


perguntar.

— Às vezes. Com a senhorita, por exemplo, é bem difícil. Tentou me


dar um soco na primeira oportunidade. Não conseguiu, claro, mas não foi
nada educado da sua parte.

Dou risada do seu jeito de falar, não pretendo pedir desculpas.

— Só estava tentando me defender — comento, dando de ombros. —


Achei que estava me ofendendo com essa história de senhorita.

— Não acha que eu escolheria uma palavra mais desrespeitosa se


quisesse te ofender?

Respiro fundo, dando aquele assunto por encerrado.

No rádio, está tocando Making Love Out Of Nothing At All [ii]l da


banda Air Supply, e me sinto perdida por não saber lidar com tudo, ao
contrário de George. Apoio a cabeça no seu ombro e olho para as luzes
amareladas da cidade, ainda tentando entender as pretensões de Mikall.
A única coisa que sei é que não quero ir para sua casa ainda. Não estou
fazendo nada de divertido aqui, mas é tranquilo e eu não preciso me esforçar
para ser alguém que não sei se sou.

— Parece tão fácil daqui de cima — ele sussurra com a voz rouca. —
Só uma pequena cidade, com casas arrumadas e famílias felizes. Faz a gente
desejar ser um deles, pertencer a uma dessas famílias que parecem perfeitas,
nos faz pensar que podemos encontrar um lugar, nos encaixarmos no mundo
deles.

— Você me entende — murmuro, um pouco surpresa. Quero guardar


minhas emoções, mas não sei se estou indo bem.

— É mais fácil em cidades grandes, onde você não precisa fazer


amizades, ter ligações com as pessoas, só viver sua vida, sem ter ninguém
para cuidar dela, comentar seus passos, se importar. Aqui você precisa
encontrar uma forma de se encaixar, ou as pessoas acabam te expulsando.

— Nunca me encaixei — digo, enquanto tento localizar a residência


oficial do prefeito daqui de cima.

— E acredito que a senhorita não foi para o internato por preferência


— ele brinca.

— Não, me expulsaram porque eu não me encaixava. Onde está sua


família?

— Sem perguntas desse tipo por hoje — ele diz, como se também
estivesse na defensiva.

— Você não tem família? — insisto.

— Viemos aqui para dançar, esqueceu?

— Foi você que começou a falar sobre não se encaixar — digo, dando
de ombros.

Ergo a cabeça para olhá-lo, reconhecendo aquela tristeza que vi mais


cedo no seu olhar.
— Acho que somos mais parecidos do que você admitiria — brinco.

Ele esboça um sorriso e ergue a mão, encostando a ponta do polegar no


meu lábio inferior. Fico imóvel, mal respirando, enquanto ele observa minha
boca. Sinto uma palpitação estranha, bem diferente de quando o padre
colocava a hóstia na minha boca, um calor que me deixa inquieta, mas insisto
em ficar imóvel.

Mikall. O nome soa no meu pensamento, me lembrando que, por um


motivo misterioso, ele vai estar me esperando em casa. Só que aqui está tão
bom que eu não pretendo ir agora, mesmo que seja para Mikall.

Não quero entender o que está acontecendo, não quero pensar a


respeito e perceber que eu nunca me senti assim antes. Não quero pensar.

— Não vai falar nada sobre eu te atacar? — George pergunta,


afastando o polegar.

— Já disse que confio em você. Não tenho medo — digo com


convicção.

— Não é muito prudente da sua parte, senhorita, tendo em vista que


acabou de me conhecer.

Respiro fundo. Devo parecer ridícula. É o que acontece quando se


baixa a guarda.

— Eu poderia te agarrar e por mais que gritasse, ninguém ia te ouvir.

— Isso não é engraçado — o repreendo, fechando a cara e me


afastando do seu calor.

— Não é para soar engraçado — ele diz com o tom de voz sério. —
Você veio de um lugar onde só havia freiras, padres e garotas, e no primeiro
dia sai sozinha à noite com alguém que acabou de conhecer.

— Mikall sabe que estou com você — respondo, empinando o queixo


para provar que suas palavras não me afetam.
— E pareceu não se importar. Ele não é alguém que te protegeria.

As palavras de George me fazem pensar em Mikall levando Lauren ao


cinema, enquanto meu pai me espancava no seu escritório. Cruzo os braços,
ressentida. Ele poderia ter feito algo para me defender? Não sei mais o que
pensar.

— Está dizendo que vou precisar de alguém para me proteger o tempo


todo? Sabe, as freiras costumavam aplicar alguns castigos bem cruéis, você
nem imagina. Não havia ninguém lá para me defender e eu sobrevivi por
quase oito anos.

— As freiras não podem ser comparadas aos homens daqui. Acredite.


Não estou dizendo que vai precisar de um guarda-costas, o que estou
tentando explicar é que você precisa aprender a proteger a si mesma. E a
melhor forma é não confiar em qualquer pessoa, muito menos entrar no carro
com ela.

— Devo te dar um crédito porque você trabalha para Mikall e foi me


buscar na estação, logo, deve ser de confiança.

— Bem pensado — George diz e sorri, mas seus olhos ainda estão
sérios.

— Então, em quem devo confiar aqui nessa cidade?

— Em ninguém — diz e vira o rosto na direção das luzes amareladas.


Alguma coisa no seu olhar me faz pensar que ele realmente está falando
sério, mas como George mesmo disse, só nos conhecemos a um dia, é muito
cedo.

Dou uma risada baixinha, trazendo sua atenção de volta. Uma música
mais agitada começa a tocar.

— O que foi?

— Você não faz ideia de como era no convento para estar pensando
que eu sou assim tão boba e frágil — murmuro.
— O que os padres e freiras te fizeram?

Franzo o nariz, esfregando o polegar direito contra a cicatriz de


queimadura no braço esquerdo, encoberta pelas roupas. Me movo devagar,
flexionando as pernas, me lembrando de como ficavam rígidas após algumas
horas ajoelhada no milho. Quase posso sentir as feridas se abrindo, a dor
pungente, ainda maior que a humilhação.

Não quero relembrar essas coisas. Aquela menina que era castigada
sem poder reagir ficou no passado. Fecho a mão em punho e tento recuperar a
pose de garota terrível, mas minha voz soa fraca.

— Vamos mudar de assunto.

— Você não se comportava muito bem, não é?

Dou de ombros.

— Para começar, se eu fosse comportada, não teria ido parar lá —


sussurro o óbvio.

Mesmo que eu tenha sido uma criança terrível, não acho que me tratar
de maneira desumana foi justo. Ninguém conseguia perceber que tudo que eu
precisava era afeto.

Engulo o nó pesado. George está me analisando.

— Foi assim tão ruim? — ele quer saber, parece curioso demais. Me
faz lembrar dos olhos da irmã Antônia, que parecia sempre saber quando eu
estava mentindo e tinha ordens claras do meu pai para aplicar a punição que
julgasse necessário.

Pensar nela me faz querer desabar em lágrimas até soluçar, como na


primeira noite naquele lugar.

Quero dizer o quanto estou desamparada, como necessito de carinho,


de alguém que demonstre algum tipo de respeito por mim, mas me seguro o
mais forte que posso.
— Nada que eu não supere — acabo dizendo, mesmo sabendo que é
mentira, que quando começar a esquecer, sempre haverá as cicatrizes para me
obrigar a recordar.

— Tem coisas que são bem difíceis de superar... — ele diz, como se
entendesse.

— Vamos mudar de assunto — peço outra vez, tentando recuperar a


pose e pensando em alguma coisa bem estúpida para falar.

Percebo que minha mente está esgotada.

Costumava pensar que sempre teria minha mãe ao meu lado quando
pudesse sair do convento, mas foi apenas mais uma das minhas ilusões.

— Tudo bem, vamos falar sobre outras coisas — George me atende. —


Quais são os planos?

— Estudar. Faculdade.

— É um ótimo plano — ele elogia, abrindo um sorriso de aprovação


que faz meu coração acelerar. — O que quer fazer?

— Não ria.

— Por que eu iria rir?

— Administração, assim como você.

Ele se mantém sério, mas percebo que está mordendo a parte interna
das bochechas.

— Meu pai tinha muitos negócios na cidade. Não sei exatamente como
seus bens foram divididos quando morreu, mas com certeza terei muita coisa
para administrar. A faculdade será ótima.

— É um excelente plano. E posso te ajudar quando precisar.

— Perfeito.
— Você fica muito mais bonita quando não está sendo desagradável —
George comenta, me fazendo rir.

Seu braço ainda está apoiado em torno da minha cintura. E é tão quente
e seguro que tenho certeza que não quero ir embora ainda.

Ele fica em silêncio, fitando a paisagem. Sua barba está por fazer,
deixando uma sombra que destaca ainda mais a mandíbula e as maçãs do
rosto bem desenhadas.

— Sabe quando Lauren volta? — pergunto. Preciso saber quanto


tempo ainda tenho para tentar entender as coisas.

— Amanhã.

Mordo o lábio e repasso a conversa com Mikall na cabeça. Se eu voltar


para casa agora, poderemos conversar sobre seu péssimo casamento, o fato de
dormirem em quartos separados e o que ele pretende fazer agora que estou
aqui. Isso, se for verdade.

Desenho um quadro na mente em que ele conta para Lauren que vai se
separar e ficar comigo. Ela fica furiosa porque, mesmo não amando Mikall, é
assim que ela é. E tenta fazer da minha vida um inferno, jogando suas filhas
contra nós. Mamãe fica do lado dela. Todo mundo da cidade me olha torto,
até mesmo George.

Estou feliz nesse quadro?

As coisas não parecem muito favoráveis.

Estou disposta a pagar o preço novamente, logo agora que estou livre
do convento? Realmente quero fazer parte dessa pintura?

Não sei.

Não estou certa se valeria a pena encarar o olho do furacão por causa
de um homem, mesmo que este homem seja alguém como Mikall.

Sacudo a cabeça e puxo o ar para os pulmões.


— O que foi? — George pergunta.

— Hipoteticamente, se você vivesse em um lar onde ninguém se


importasse, ninguém te desse a atenção que precisava... — resolvo arriscar.
— De repente, aparece uma pessoa carinhosa, gentil, que te dá presentes, te
dá amor. Se você se agarrar com toda força a essa pessoa, pode acabar se
apaixonando? Mesmo que ela seja mais velha que você? Quero dizer, seria
possível confundir gratidão com paixão?

— Você se apaixonou por um padre, Agatha? — ele pergunta com as


sobrancelhas erguidas.

— Não! — corrijo depressa.

— Fale a verdade. Você fez alguma coisa... Fez o homem desonrar a


batina?

— Pelo amor de Deus, George! Que nojo! A ideia de ter algum


sentimento parecido com paixão por um dos padres que conheço me faz
querer vomitar.

Ele dá uma gargalhada, sacudindo o corpo. O encaro bem séria.

— É brincadeira. Eu sei de quem está falando — ele diz. — E lamento


por ter sido criada assim, sinto muito por Mikall ter sido o único que te deu
atenção quando era criança. Mas você ainda acha que... o ama?

Inspiro o ar, enchendo o peito, e o solto lentamente pela boca antes de


me deitar de costas, apoiando as mãos na barriga e olhando as estrelas.

— Como sabe sobre ele?

— Lauren me contou — George diz e se remexe ao meu lado. —


Ainda se sente apaixonada por ele?

— Eu não sei. Achei que tivesse esquecido, mas... — Sopro uma


mecha de cabelo da testa. — Sou adulta agora, tenho idade para me envolver
com alguém, mas não sei se estou disposta a entrar no meio de um
casamento, esperar que ele se separe, desejar isso, mesmo que também não
deseje que ele continue casado com alguém como minha irmã. Só que eu não
quero ser a razão, entende? Não quero ser o estepe. Não sei o que fazer. Além
disso, nem sei se o amo mesmo ou se amo o que inventei dele...

George se deita ao meu lado, passando o antebraço por trás da nuca.

— Se você gostasse dele de verdade, não estaria tão confusa. Se fosse


apaixonada, acho que não raciocinaria tanto sobre o assunto. Você iria
simplesmente se jogar. E, para começo de conversa, não estaria aqui comigo.

— Isso explica por que não quero voltar para casa — murmuro, mais
uma vez sentindo que ele me entende.

— Por que está tão preocupada? Você acabou de chegar e tem ótimos
planos de estudar, não deveria nem desperdiçar seu tempo considerando a
hipótese de se meter no casamento deles.

— Você é muito inteligente. Quantos anos tem?

— Vinte e três.

— A idade que Mikall tinha quando fui mandada embora por tentar
beijá-lo. E ele nunca foi me visitar — concluo, me dando conta de que
realmente estava desperdiçando meu tempo.

Não vou voltar para casa e implorar por um beijo, mesmo que sinta
atração física, não só por ser é errado, mas porque não é isso que quero para
minha vida.

— Espera! Por que Lauren contaria algo tão íntimo para um motorista?
— questiono de repente, me apoiando no cotovelo para encará-lo. — Não se
ofenda, mas esse é um segredo de família.

— Você já bebeu? — ele desconversa.

— Já — respondo, desconfiada, ocultando a parte em que passei mal e


fui rigorosamente punida quando persuadi duas garotas do meu dormitório a
roubarem o vinho da sacristia. Essa foi a única vez que bebi.
— Tem uma garrafa de uísque vagabundo no carro — ele diz ao ficar
de pé. — Não tenho copos, mas podemos beber do gargalo.

Me sento novamente e dou de ombros, um pouco surpresa pela ideia.

— Não fica bêbada com facilidade, não é? — ele se vira para


perguntar, antes de chegar até o carro.

— Por favor, George — sacudo a mão com desdém —, não me


subestime assim!

Ele volta depressa, segurando uma garrafa com o rótulo rasgado. O


líquido âmbar balança inocente. Ele bebe o primeiro gole e faz uma careta
antes de passar a vez para mim.

Seguro o vidro frio com as duas mãos e levo o gargalo aos lábios,
sentindo o gosto amargo, diferente do vinho. Viro de uma vez, engasgando
logo em seguida.

— Não exagerou quando disse que era vagabundo — brinco após


tossir.

Não me lembro de muita coisa depois disso.


Garotas só querem se divertir
— Mikall — chamo baixinho sacudindo seus ombros. — Mikall?

Estou sentada na cama do prefeito. Minha cabeça dói. Acendo a luz do


abajur sobre a mesinha de cabeceira e sacudo Mikall novamente, que abre os
olhos atordoado.

— Você disse que iria me esperar — o lembro, enquanto ele se senta.


O lençol só cobre até sua cintura e meus olhos se arregalam com o que vejo
ao alcance das minhas mãos. — Minha nossa!

Coloco as mãos sobre os lábios, ainda encarando seu abdômen cheio de


gomos.

— Que horas... — Mikall balbucia e confere o rádio relógio. — São


4h37 da madrugada, Agatha! Onde você esteve até essa hora?

— Tinha uma montanha, as estrelas brilhavam muito e dava para ver as


luzes da cidade. George aumentou o som do carro, ficamos girando e girando
— confesso, fazendo movimentos circulares com o dedo indicador. — É tudo
que consigo lembrar.

— Ele te... — Mikall começa, mas se detém. — Você está bêbada,


Agatha! Ele te deixou bêbada? Vou matar esse filho da puta!

— Juro que não beijei ele. O batom saiu por outro motivo — franzo as
sobrancelhas —, deve ter sido aquela bebida. Não lembro. Mas sei que não
beijei ele.

Não sei exatamente porque estou falando isso. Por mais que não deseje
entrar no meio do seu casamento, ainda quero ser sua amiga, como nos
velhos tempos.

— Vou quebrar a cara dele — Mikall rosna segurando meus braços. —


Você está gelada!
Imediatamente, me puxa para seus braços.

— Você está bravo comigo — resmungo, me afastando para encará-lo,


mas não estou certa de que consigo enxergar direito.

— Não estou bravo com você, menina — ele sussurra. — Não teve
culpa daquele imbecil te embriagar. Ele nunca mais vai fazer isso.

— Sabia que Lauren contou para aquele “imbecil” sobre nós? —


questiono, fazendo aspas teatrais com os dedos.

— Não — Mikall responde, chocado. — Por que ela contaria algo


assim para o motorista.

— Esperava que você pudesse me dizer — murmuro baixinho,


tentando me agarrar com força aos pensamentos concretos.

Não sou idiota, mesmo que seja isso que deixo transparecer na maioria
das vezes. Minha consciência me diz que foi exatamente para desconversar
que George me deu aquele uísque barato e mortal.

— Por que disse que iria me esperar? Por que falou sobre aquela coisa
do batom? — Mal posso recordar suas palavras, minha mente está prestes a
se entregar à névoa outra vez.

— Falaremos quando estiver sóbria — Mikall diz, passando os dedos


pelo cabelo, afastando as mechas da testa.

— Agora.

— Quando estiver sóbria, Agatha — ele repete e eu respiro fundo.

Sinto o mundo girando, meu estômago está embrulhado demais.

— Você deveria ir dormir agora, sua irmã chega amanhã.

— Acho que vou vomitar — declaro e Mikall arregala os olhos.

— Banheiro! — ele diz e se levanta, me puxando com ele e me


arrastando até o banheiro com pressa.

— Saia! — grito quando alcanço o vaso sanitário.

Sorte que a tampa já está levantada, do contrário, não teria dado tempo
de fazer isso. Coloco tudo para fora em esguichos nojentos e barulhentos que
me impedem de respirar.

Mikall fica e, apesar de ser repugnante o que estou fazendo, ele se


agacha perto do vaso e segura meu cabelo enquanto eu vomito. Abano as
mãos em sinal para que ele se afaste, ainda assim, ele não se vai. Ele prende
meu cabelo com uma das mãos e segura meu ombro com a outra. Quando
acabo, estou tão envergonhada por ele ter me visto nessa situação que não
consigo encará-lo.

Puxo a tampa do vazo e dou descarga. Um gosto horrível toma conta


do meu paladar.

— Desculpa — murmuro, cobrindo a boca com as mãos e encarando


meus pés, que logo estão saindo do chão quando Mikall me coloca no colo.

— Vou te levar para o quarto. Tome um banho.

Assinto uma única vez. Ele me deixa sozinha no meu quarto e sai para
procurar um remédio. Tiro minhas roupas e entro debaixo do chuveiro,
desesperada para me livrar daquele cheiro de vômito e do sentimento de
vergonha, em seguida escovo os dentes duas vezes. Quando saio para o
quarto, Mikall está sentado na minha cama. Parece irritado e com sono.

Vou até a mochila e pego o pijama entre as poucas mudas de roupa que
ainda tenho e volto ao banheiro para me vestir com privacidade. Quando
acabo, caminho derrotada até a cama.

Me dou conta de quanto foi estúpido da minha parte ir até seu quarto
bêbada, ainda mais ter denunciado George. Não sei onde estou com a cabeça.
Preciso me segurar para não falar um monte de besteiras que Mikall não
precisa e nem quer ouvir.
Quero perguntar por que nunca foi me visitar, se dizia se importar tanto
comigo. Quero contar como foi difícil, que eu não consegui fazer amizade
com as garotas que dividiam o dormitório comigo, porque sempre que uma
me dava chance, eu a metia em encrenca. Estou louca para confessar que não
aguento mais ser a maçã podre do cesto, que quero ser madura e responsável,
mas que não estou certa se consigo fazer isso sozinha, que ainda preciso do
apoio que me foi negado nos últimos anos. Preciso dizer que sua amizade me
fez falta e que eu não deveria ter confundido gratidão com paixão, que as
coisas teriam sido bem diferentes e melhores se eu não tivesse cometido a
besteira de tentar beijá-lo.

Não sei como falar nada disso sem começar a chorar, e uma das últimas
coisas que ele me disse, naquela noite, era que eu não conseguiria respeito
chorando. Não posso desabar na frente dele também. Não posso fazer isso na
frente de ninguém.

— Tome essa mistura, vai te ajudar com a ressaca — ele diz com a voz
séria, me puxando de volta da confusão de pensamentos.

Ingiro os remédios e me sento perto dele ainda sem conseguir encará-


lo.

— Vai passar — Mikall diz ao erguer meu queixo com a ponta dos
dedos para que eu o olhe nos olhos. — É seu primeiro porre. Todo mundo
passa por isso.

A tontura e as náuseas aliviaram consideravelmente.

— Não é meu primeiro porre, mas ainda me sinto péssima — digo


baixinho —, já estou fazendo besteira no primeiro dia.

— Não devia ter saído com George — ele murmura com


ressentimento. Não consigo entender até que ponto isso o afeta.

— Garotas só querem se divertir — digo dando de ombros.

— Garotos só querem se aproveitar.


— Você não está se aproveitando de mim.

— Não sou um garoto, Agatha — ele me lembra.

— Por favor, não brigue com George — peço gentilmente. — Ele não
fez por mal. Só queria que eu me divertisse. Por favor.

— Vá dormir — Mikall sussurra. — Lauren chega amanhã e vai ser


uma droga para todo mundo. Não deixe ela saber que você bebeu. Por mim.

— Ela continua tão desagradável? — não posso deixar de perguntar.

— Lauren não ama ninguém além dela mesma. Essa é a questão.


Apesar de tudo, você tentou me alertar, mas não dei ouvidos. Era a única que
conhecia realmente sua irmã — Mikall começa a falar. Não parece estar
mentindo. Seus ombros largos estão curvados, as mechas do cabelo voltam a
cair na sua testa. — Deveria ter te esperado. Doze anos não parece uma
diferença muito grande agora.

— Droga, Mikall! — resmungo, inquieta. Abro a boca para dizer que


agora é tarde, mas não consigo verbalizar. Estou tão carente que é
vergonhoso.

— Eu nunca traí sua irmã, sou um bom marido, um bom pai. Por muito
tempo, considerei que a culpa era minha. Sabia que, às vezes, eu até penso
que poderia ter te esperado? — ele diz com uma risada soprada, que não
consigo compreender.

— Ela te faz sofrer — concluo e ele desvia o olhar, franzindo o cenho.


— Você a ama muito, mas ela não corresponde.

Somos dois patéticos implorando por um amor que nunca vamos


receber. Isso é um fato, e eu já estou cansada desse drama todo.

— Me perdoa pelo que te fiz passar — ouço seu pedido baixinho.

— Eu não tenho nada para perdoar — digo, emburrada.

— Adoro seu jeito — ele diz. — Queria ser como você.


— Como?

— Queria ter sua coragem de fazer e dizer o que pensa.

— Essa coragem me custou caro, não se esqueça.

Eu tinha cicatrizes no corpo e na mente que iriam me lembrar para o


resto da vida que a verdade machuca, que ser sincera demais, às vezes, pode
ser seu maior erro.

— Quantos namorados teve? — Mikall muda de assunto.

— Nunca namorei.

— Não minta pra mim, menina.

— Juro que não beijei nenhuma freira ou colega no internato — digo e


ele dá risada. — Por que nunca pensou em se separar? Ainda tem esperanças
que ela mude?

Ele dá de ombros, mas não responde.

— Está se sentindo melhor?

Balanço a cabeça, mas o movimento traz a náusea de volta.

— Vou deixar você descansar. Estou muito feliz que tenha voltado —
diz e se inclina para beijar minha testa. Meu corpo fica consciente do seu
toque, como se acendesse uma faísca, me fazendo ficar confusa outra vez. —
Espero que esteja bem quando acordar. Mas, pelo amor de Deus, não conte
nada disso à Lauren. Ela te mataria se soubesse que estive aqui no seu quarto,
falo sério, e depois arrancaria meus testículos.

— Eu jamais contaria, Mikall — garanto. — Agora pode ir. Sei que


está cansado, que precisa acordar cedo.

— Tenho que sair para trabalhar daqui a pouco. Você vai ficar bem?

— Sim. Desculpa atrapalhar sua noite de sono — peço.


— Não se desculpe por isso — ele diz. — Durma, continuaremos essa
conversa depois.

— Quando minha irmã não estiver em casa — considero.

— Ela sempre viaja. Não vai ser difícil ficarmos a sós. Boa noite.

Ele beija minha testa novamente e sai, me deixando confusa. As coisas


não aconteceram na minha vida, não tenho experiência nenhuma para decifrar
as falas de um homem.

Suspiro, emocionalmente cansada.


Vilã
Menos de duas horas depois de pegar no sono, já estou vagando pela
casa. Uso um roupão quentinho que encontrei no banheiro e que cobre as
cicatrizes nos joelhos. O aquecedor está ligado e a casa, mesmo escura, é
aconchegante.

Caminho até seu quarto e giro a maçaneta sem fazer barulho. Meus
olhos ardem com a claridade que encontro lá dentro. A cama enorme está
perfeitamente arrumada, mas não vejo sinal de que ele está no quarto.

O senhor prefeito é o tipo de homem que levanta e arruma a cama.

Observo a decoração clássica, com poucos detalhes femininos, sinal de


que minha irmã não o frequenta muito. Os painéis de madeira em relevo me
remetem aos cômodos frios do convento. Fecho a porta depressa e caminho
para o quarto ao lado, me deparando com um ambiente claro e infantil, com
duas camas de dossel iguais.

— Lana e Lara — sussurro, pensando nas meninas loiras da foto que


mamãe me mostrou. Espero com todas as forças que elas tenham puxado o
temperamento de Mikall.

Continuo caminhando pelo corredor, passando pelo hall central do


andar e chegando à outra ala de quartos. Abro uma porta e me deparo com o
quarto luxuoso, decorado com quadros de moldura dourada, fixados
simetricamente entre painéis de boiserie[iii]. A cama parece à espera de uma
rainha, com cabeceira em capitonê[iv] e muitos travesseiros. Tem um cheiro
forte de flores que lembra da ressaca que estou sentindo. Fecho a porta e me
arrasto de volta para meu quarto.

Abro a mochila, na esperança de fazer um inventário das roupas que


ainda tenho disponíveis e de quanto dinheiro irei gastar para ter um guarda-
roupas razoável.

Tenho apenas duas calças jeans, três suéteres, uma camiseta branca e
um vestido estampado, além de algumas calcinhas de algodão, um sutiã de
bojo e renda, um par de botas pretas de cano alto embrulhadas ao lado de um
par de tênis cor de rosa dentro de um saco de flanela, dois pares de meia, uma
loção corporal e uma colônia. O batom vermelho completa meus pertences.

Usava uniforme o tempo todo no internato. Tudo que trouxe comigo


foi comprado com o dinheiro que meu pai me dava nos fins de ano. Uma
freira me levou até uma loja modesta e me esperou enquanto comprava
aqueles itens, alguns dias antes da minha partida.

Agora eu preciso ir às compras, além de conversar com Lauren sobre


finanças quando ela chegar. Considero ficar otimista, desejando que ela não
seja mais tão desagradável quanto Mikall fez parecer, mas quem eu quero
enganar?

∞∞∞

Após tomar um banho e vestir uma das últimas mudas de roupa, desço
as escadas cantarolando. Deixei a sensação de desamparo para trás, me sinto
feliz e otimista. Estou pensando na faculdade. Não sei se tenho vocação para
alguma coisa, mas isso não vai estragar meu bom humor.

Vejo os ombros e a cabeça de Mikall sobre o encosto de um dos sofás


caros da sala. Na ponta dos pés, vou até ele e pulo sobre o encosto para cair
ao seu lado. Mikall arregala os olhos azuis ao ser pego de surpresa e faz uma
cara bem séria. Cantarolando, tiro a gravata de dentro do seu terno cinza e a
puxo para que ele incline a cabeça para baixo.

— Pelo amor de Deus, Agatha! — ele reclama. — Não me faça ser


rude com você!

— Por que está tão tenso? — exijo saber.

— Sua irmã vai chegar a qualquer instante. Por favor! Não quero
arranjar confusão tão cedo. Nem fui para a prefeitura ainda.
Me afasto num pulo e me sento em outro sofá um segundo antes da
porta da sala se abrir.

George aparece arrastando uma mala grande e nos cumprimenta com


um bom dia e o rosto sério. Não sorri nem mesmo para mim. Lauren surge
em seguida com seu cabelo loiro claro e roupas elegantes. Ela usa batom
vermelho e abre um sorriso que exibe seus dentes brancos. Parece realmente
feliz em estar em casa. Ela sorri para Mikall e então seus olhos param em
mim. Fico tensa também, mas minha irmã se aproxima ainda sorrindo. Fico
de pé e ela me abraça bem forte.

— Está tão bonita, Agatha. Meu Deus, como você cresceu! — ela diz
bem alto para que todos na sala ouçam. — Tão linda! Como foi a viagem?
George foi receptivo? Espero que não tenha ficado chateada por eu não estar
aqui.

— Ocorreu tudo bem. George foi ótimo — digo brevemente.

Sinto como se não a conhecesse. Essa pessoa simpática e empolgada


não é a irmã que vi pela última vez antes de ir para o convento, muito menos
a esposa sem coração que Mikall relatou.

— Está tão maravilhosa! Sorria. Quero ver seu sorriso, irmã — ela diz,
ainda segurando meus ombros e me investigando. Tento abrir um sorriso
amarelo. — Ela não é linda, querido?

Lauren se vira para Mikall, que está nos observando com um olhar
pasmo.

Ela vai até ele, agarra seu pescoço e o beija com exagero. Meu coração
vacila. Olho para George e ele está me analisando dos pés à cabeça, enquanto
morde o lábio carnudo.

Quando Lauren larga seu precioso marido, Mikall ainda a olha confuso.
Minha irmã diz que está faminta e, após ele garantir que já tomou café da
manhã, ela o deixa ir para a prefeitura. Sou eu quem ela arrasta até a cozinha,
depois de dispensar George, e me enche de perguntas sobre como passei os
últimos sete anos, como se eu estivesse viajando pelo mundo e não presa em
um convento.

Diz que vou adorar conhecer as gêmeas. Que tudo vai ser lindo, que eu
sou linda.

— Você também continua muito bonita — a elogio, após me sentir sem


graça. Não é mentira. Lauren é mesmo uma linda mulher, bem vestida,
perfumada, impecável.

Ainda estou tentando entender o beijo apaixonado que ela deu em


Mikall. Se ele disse que era infeliz com minha irmã a ponto de dormirem em
quartos separados, porque ela o agarrou daquele jeito?

Senhora Matilde está servindo nosso café e analisa Lauren com olhos
estreitos. Ela também aparenta estar confusa.

∞∞∞

Faz um tempo que tomamos café. Estou tentando manter o bom humor
e enxergar tudo com otimismo. Talvez Lauren não pense mais naquela
fatídica noite. Quem sabe, ela imagina que minha paixonite por seu noivo
tenha sido coisa de criança e que já superei. Sei que preciso dela. Não tenho
nenhuma estrutura — além do envelope com dinheiro dentro da mochila —,
mamãe está longe e não há outra família a não ser ela.

Decidida a não arrumar problemas, vou até seu quarto e bato na porta.

— O que quer? — ela grita com sua voz madura e mal humorada, o
que acho estranho.

— Sou eu, Agatha — respondo para a madeira escura. — Posso entrar?

— Entra.

Abro a porta e adentro o quarto elegante. Ela está sobre a cama


passando creme nas pernas. Acabou de tomar banho e o cabelo loiro claro
está envolto em uma toalha. O sorriso simpático desapareceu. Ando com
passos lentos até a cama de realeza e me sento. É tão estranho. Parece uma
pessoa desconhecida.

— Eu queria saber se você pode me levar para fazer compras — digo


baixinho, sem saber o que me espera.

— Te levar para fazer compras? — ela pergunta com espanto. — Você


acabou de chegar aqui.

— Tenho dinheiro. Guardei tudo que nosso pai me dava de presente.


Só achei que poderia ser legal se fôssemos juntas.

— Não desperdice seu dinheiro. Vai precisar dele até arranjar um


emprego para se manter.

Engulo a saliva.

— Me manter? — pergunto confusa. — Preciso ajudar com as


despesas desta casa? Vocês são ricos...

— Esta casa? — Lauren olha para mim e dá a risada mais cínica que já
ouvi. — Você pensou que fosse morar aqui? Na minha casa, com meu
marido?

Uma gargalhada ainda maior. Sinto meu rosto corar e uma sensação
muito ruim tomar conta do meu peito.

— Você sabe que eu não tenho para onde ir. Eu não posso...

— Você mesma disse que tem algum dinheiro. Use-o!

— O dinheiro é para comprar roupas novas. Eu não tenho o que vestir!


— quase grito. — Usava uniforme no convento.

— Você não está nua, não é mesmo? — Lauren diz, me fazendo


lembrar o quanto a odeio. — Como sou uma irmã maravilhosa, vou separar
umas roupas de quando eu tinha a sua idade. Devem servir. Afinal, você
sempre quis vestir minhas roupas, não é?
— Engula suas roupas — grito me levantando, mas antes de sair, como
se ainda fosse uma criança, cuspo no cabelo da minha irmã.

Corro dali antes que ela me alcance, enquanto ouço seu grito me
xingando de pirralha, de como sou uma amaldiçoada e que ela não vai se
rebaixar.

Me tranco no quarto que pensei que fosse meu e fico lá por um bom
tempo. Reflito sobre suas palavras. Penso na casa em que morávamos, se ela
ainda pertence a nossa família, se posso ficar lá. É horrível saber que não tem
ninguém, que não há lugar para onde ir ou um colo amigável para onde correr
quando a situação fica assim.

Eu sei que não é chorando que vou conseguir respeito, mas não há
ninguém aqui, então eu deixo as lágrimas de raiva e solidão escorrerem.
Foram sete anos me sentindo abandonada e parece que nada mudou. Minha
mãe está viajando e sabe Deus quando voltará.

Mikall só mandou me trazer para cá porque não sabia o que fazer


comigo. Deve ter mentindo dizendo todas aquelas coisas sobre seu casamento
só para... Não! Eu vi que eles dormem em quartos separados. Essa parte não
pode ser mentira.

Então, por que a vaca da minha irmã o agarrou daquele jeito? Por qual
motivo ela me tratou tão bem na frente dele? Para depois me jogar na rua
como se eu fosse um cachorro que atacou uma das crianças pequenas?

Deve haver alguma coisa para mim. Meu pai tinha propriedades e
dinheiro. Não é possível que Lauren tenha ficado com tudo. Mesmo que eu
não fosse sangue dele, será que ele faria isso comigo? Tem de existir outro
jeito. Ela pensa que ainda está lidando com uma criança, mas se enganou.

Decidida a jogar algumas verdades na sua cara, levanto da minha cama


e volto ao seu quarto. Entro sem bater, mas não a encontro. Ouço água
escorrendo do chuveiro no banheiro e caminho até lá. Não vou esperar nem
mais um minuto, quero dizer que o nome dos nossos pais está na minha
certidão de nascimento e que tenho tanto direito quanto ela. Ao entrar no
banheiro, vejo roupas masculinas jogadas no chão.
Puxo a cortina e meu coração dá um solavanco quando dou de cara
com George.

Nos encaramos por alguns instantes enquanto tento raciocinar.

— Está transando com Lauren? — berro chocada, mas ele tapa minha
boca e me puxa para debaixo da corrente de água quente, me apertando
contra seu peito.

— Fica quieta — George pede contra meu ouvido.

Nunca vi um homem pelado na minha frente. É a primeira vez que


estou vendo e não queria que fosse assim. Ouço passos se aproximando.

— Não faça barulho — ele diz baixinho e solta minha boca.

— Paixão! — ouço a voz indecente de Lauren chamar e George me


larga para abrir um espacinho na cortina. — Tenho uma reunião agora.

— Tudo bem — ele diz. — Não demoro a ir embora.

Minha irmã tem um caso com George! Ela está do outro lado da cortina
e eu estou encharcada debaixo do chuveiro.

— Já sabe. Cuidado! — ela diz.

— Não se preocupe. Ninguém vai me ver saindo.

Ouço um estalo de beijo e logo ele se volta para mim.

Estou decepcionada, de queixo caído, perdida.

— Ela quase te pegou. Não deixe ela saber que você sabe.

— Não deixe ela saber que eu sei? — rosno, atirando água contra ele.
George já está molhado, então não faz muito efeito, mas é a única arma que
tenho no momento. — Você estava falando todas aquelas coisas sobre a
decência do prefeito enquanto é amante da primeira dama? Como pode ser
tão cretino?
— Calma, Agatha!

— Calma? Eu pensei que você fosse legal! O que diabos você viu
numa megera como ela? Sabia que ela quer me colocar no olho da rua?

— Se acalma. Você precisa me ouvir. Olha, eu gosto do meu emprego,


gosto do salário que ganho. Eu jamais teria isso se não fosse por Lauren.

— Você se vende? — pergunto, com nojo.

— Não me julgue desse jeito. Não se esqueça que sei sobre Mikall.

— Eu não estou interessada no que ele tem! — berro, arremessando


frascos de xampu contra esse cretino. — Não acredito que a vadia da minha
irmã teve coragem de te contar isso.

— Ela confia em mim. Não estrague tudo — ele diz, me empurrando


contra a parede e segurando meus pulsos.

Quero cuspir na sua cara, mas algo em seu olhar me faz desistir.

— Não estrague meus planos — George murmura mais baixo. — Você


e eu podemos sair mais vezes. Lauren vai gostar disso.

— Quer que eu seja sua namorada enquanto você trepa com a minha
irmã?

— Senhorita, tudo isso é um jogo. Ou você aceita jogar ou estará fora.


Aqui há muitos segredos. O prefeito não pode saber sobre isso. Se você fizer
o certo, vai conseguir ter alguma coisa, do contrário, ela vai destruir você.

— Se ela não ama Mikall, por que não se separa e fica logo com você?

— Ela não pode se separar do prefeito. O casamento deles nunca teve a


ver com amor. São negócios. Por favor, não estrague tudo. Se ele descobrir, o
jogo se desfaz.

Eu gosto de Mikall e agora sei que ele está sendo traído. Não posso
raciocinar com clareza com as roupas todas molhadas.
— Me solta — exijo e ele obedece.

Saio do banheiro.

— Você tem que... — George continua pedindo, mas paro de ouvi-lo


quando deixo o quarto. Preciso pensar no que fazer.

∞∞∞

Acho que essa é uma das poucas vezes na minha vida em que não
consigo me decidir sobre o que fazer.

Tenho Lauren na palma da mão. Posso destruir seu mundinho perfeito


em questão de segundos. Mas resta uma dúvida: Mikall acreditaria em mim?

E se ele pensar que é só uma maneira baixa de eu tentar sabotar seu


casamento? Não tenho provas. É minha palavra contra a dela. A menina que
ele mal conhece contra a mulher com quem ele viveu longos anos e tem duas
filhas.

Eu mesma não me daria esse crédito.

Por outro lado, eu não quero enganá-lo. Se ele descobrir que eu sei do
caso e fiquei calada, poderá nunca me perdoar. Isso eu não sou capaz de
suportar.

Tento pensar no que minha irmã ganha ficando casada com ele. Tem a
ver com negócios. Me lembro que ela vai me colocar no olho da rua logo
logo. Estou ferrada. Mamãe não vai me apoiar. Se eu chantagear Lauren com
essa informação, ela poderá usar isso contra mim no futuro. Mikall me
olharia como outra traidora.

Não. Eu não vou jogar o mesmo jogo sujo que George disse. Ele é
outro personagem imundo. Vende o próprio corpo em troca de dinheiro.
Duvido que ele sinta algo por Lauren que não seja desprezo. Não dá para crer
que Mikall ainda a ama, que se sujeita a tudo para dividir o mesmo teto que
aquela cobra. Será que as gêmeas são mesmo filhas dele?
Minha cabeça está explodindo. Meu cérebro acabou de dar um nó.
Talvez comer alguma coisa me ajude a clarear a mente. Está quase na hora do
almoço. Deixo meu quarto e encontro o safado do George no corredor, me
esperando. Ele está com uma camiseta xadrez em padrões de azul e uma calça
jeans clara, com as costas apoiadas na parede e os braços cruzados.

— Podemos almoçar fora? — ele pergunta com o rosto sério.

— Está de brincadeira? — o questiono. — Eu não quero mais falar


com você.

Não sei como pude pensar que era um rapaz decente.

— Por favor, Agatha! — George insisti e alcança minha mão. — Me


dá uma chance de te fazer entender o que está acontecendo. Posso te ajudar.

— Não quero sua ajuda. Se Lauren te mandou aqui, diga que eu


mandei ela ir se foder. — Dito isso, puxo minha mão da sua e desço as
escadas apressada.

Na cozinha, senhora Matilde me diz que o almoço já está sendo servido


(o que me anima), e que o prefeito e minha irmã já estão sentados à mesa (o
que me faz querer vomitar).

Me dirijo até a copa e flagro o casalzinho de mãos dadas, enquanto


Lauren diz imundices sobre a viagem. Quero me matar. Quero matá-la.

Me sento do lado oposto ao da cobra.

— Vi um trabalho para você numa loja de confecções do centro. Acho


que vai conseguir se manter com o salário — Lauren diz ao me ver sentar.

Pelo canto do olho, vejo George parado na porta a me observar. Deve


estar tremendo de medo.

— Pensei que fosse fazer faculdade, Agatha — Mikall diz, olhando


diretamente para mim. Odeio o fato de ele estar segurando a mão dessa vaca.
Detesto perceber o quanto ela consegue manipulá-lo.
— Agatha vai morar sozinha — a megera explica. — Ela vai precisar
trabalhar. Sabe como minha irmã é independente. Talvez não sobre muito
tempo para os estudos.

— Morar sozinha? — Mikall franze o cenho ao achar estranho. — Por


que isso, Agatha? A casa é grande, não precisa se mudar. Arrumamos um
quarto para você. Não gostou?

Ele me quer por perto. Os olhos da cobra se inflamam de raiva.

— Não precisa arranjar um emprego agora. Estude primeiro. Não vou


deixar te faltar nada — ele continua. — Não banque a orgulhosa. Pense no
futuro.

Estou vibrando por dentro. A pele de Lauren parece que vai derreter.

— Agatha não é o tipo de garota que aceita tanta generosidade assim


— ela rosna por entre os dentes. — Papai deixou algumas propriedades. Bem,
você já comprou quase todas. Mas tem aquele rancho. Ela vai se mudar para
lá.

— Aquele que fica onde o judas perdeu as botas? Eu não comprei


justamente por ser muito longe. Você não pode estar pensando em morar lá,
Agatha.

— Mamãe ficaria feliz...

— Na verdade — a interrompo —, acho que vou repensar minha


mudança para o rancho. Se você insiste tanto que eu fique, Mikall...

Imagino que Lauren vai pular por cima da mesa e me esfaquear. Mas
ela só me fuzila com os olhos de cobra.

— Não acho que seja conveniente você ficar aqui — ela continua —,
depois de tudo que aconteceu no passado. Querido, você vai concordar
comigo que seria constrangedor cruzar com Agatha o tempo todo, não é
mesmo?

Mikall fica vermelho de repente. Ele está pensando. Os olhos


percorrem o prato à sua frente.

— O rancho é muito longe — ele resmunga por fim. Está concordando


em me colocar para fora de sua casa. Meu coração se aperta. Lauren se
inclina ainda mais para perto dele e beija o canto dos seus lábios. — Podemos
achar um lugar mais próximo.

— Acho que o rancho está ótimo — resmungo, me levantando


repentinamente.

— Não vai almoçar? — ele quer saber.

— Tenho um encontro — digo com desprezo para que todos ouçam. —


Vou sair com George. Talvez eu perca minha virgindade com ele essa tarde.

Não acredito que disse isso em voz alta. O clima fica tenso na mesa,
mas não permaneço ali para ver no que vai dar. Aperto meus lábios contra os
do rapaz que ainda está parado na porta e o puxo comigo no rumo da porta,
tentando não considerar que esse é meu primeiro beijo. Quero quebrar todos
os enfeites preciosos da sala de estar.

— A senhorita precisa aprender a jogar o jogo direito — George


sussurrou quando saímos de casa.

— Cale a boca! — berro, entrando no conversível por cima da porta.


— Só dirija.

— Falou sério quando disse que queria perder a virgindade hoje?

— Vai sonhando — resmungo enquanto ele dá a partida.


Como confiar?
A tarde está esfriando consideravelmente. Ainda mais no alto da
montanha, de onde podemos ver a cidade.

— Esse é meu lugar favorito no mundo — George sussurra ao meu


lado, esfregando as mãos para esquentá-las. O vento sopra gelado, rachando
meus lábios. — De dia, tudo parece pequeno e sem valor.

Estou chorando como uma criança desamparada, enfim rendida. Me


sinto sozinha novamente. Ele concordou com Lauren. Eu já devia saber de
que lado Mikall ficaria. Não tem lugar para mim na vida de ninguém.

George tenta secar minhas lágrimas, mas o empurro para longe todas as
vezes.

— Você sabe onde fica esse rancho? — pergunto com a voz afetada.

— Bem longe. Só tem pântano, insetos e muitos, muitos mosquitos lá


— ele diz com pesar. — Sei o quanto é difícil não poder contar com
ninguém.

— Não se compare comigo — o repreendo. — Não somos iguais. Não


somos sequer parecidos. Eu nunca me venderia.

— Você não devia julgar as pessoas sem antes conhecer a história delas
— George insisti. — Não me conhece, não sabe pelo que já passei... — Sua
voz rouca vai morrendo e ele fica bem sério, o que aumenta minha
melancolia.

— Desculpa — sussurro. — Não acredito que Mikall concordou que é


melhor eu ir embora.

— Sinto muito — George diz e chega mais perto. Como está realmente
frio, permito que ele passe seu braço em volta de mim e debruço a cabeça no
seu ombro. — Não sei muito sobre você, mas acredito que vai conseguir
resolver de algum jeito. Vai dar tudo certo. Você só precisa abrir os olhos.

— Abrir os olhos para quê? — o questiono, esfregando as costas da


mão contra as bochechas para enxugar as lágrimas.

— É muito melhor ficar longe de Lauren. Vá por mim, conheço ela


bem melhor que você.

As palavras de George me fazem pensar. Minha irmã vendeu tudo que


era meu por direito, me deixou apenas um rancho no meio do nada. Será que
ela ainda quer me prejudicar mais?

— Me conte mais sobre isso — peço. — Por que acha que é melhor
manter distância?

— Você é uma ameaça.

— Por quê? — pergunto.

— Você é linda e gosta do prefeito. Acha que Lauren não se sente


ameaçada?

— Mas ela não ama Mikall. Por que não se separa? Vocês poderiam
ficar juntos.

George ri.

— Lauren não pode se separar. Já te falei. Ela precisa do prefeito e vai


fazer tudo que for possível para continuar casada. Antes era fácil. Ele era um
homem solitário, você sabe... a família dele morreu... Então você chega...

— Não estou entendendo nada.

— É um jogo, Agatha. Estamos jogando um jogo.

— Você também joga? — o questiono, perdida.

— Desde que me entendo por gente e até esse momento tudo que fiz na
minha vida foi jogar o jogo.
— E o que pretende com isso?

— Ganhar — George diz e fica observando o horizonte com os lábios


entreabertos.

— Dá para explicar direito? — Já estou perdendo a paciência outra


vez.

— Não posso. A senhorita não estaria segura se soubesse — ele diz,


enigmático.

— Pelo amor de Deus, George! Você trepa com minha irmã, ela te dá
dinheiro. Pare de falar como se fosse uma grande coisa! — berro irritada
porque a única pessoa ao meu lado é alguém que eu quero estapear.

— Não é pelo dinheiro — ele diz baixinho. — É por informações. Não


posso te contar tudo que sei... ainda, mas posso te adiantar uma parte, se você
jurar que vai manter essa boca linda fechada e que vai esperar pacientemente
até que eu te conte o resto, sem colocar pressão.

— Eu juro! — digo sem pensar e ele me olha sério.

— E vai ter que confiar em mim — acrescenta com os olhos cor de mel
cintilando.

Engulo em seco.

— Conte — peço.

— Há um negócio antigo nessa cidade. Uma economia que sustenta as


contas de todos aqueles lobos maus que a senhorita viu no bar. Era um
negócio modesto na época do seu pai, mas quando Mikall se tornou prefeito,
e Lauren assumiu o controle, o negócio cresceu rapidamente. Novos
investidores, mais oferta.

— Que negócio é esse? Terras, propriedades?

— Nada disso, senhorita. Eles negociam... garotas — George diz com


o tom de voz sombrio.
— O quê? — pergunto, levando a mão até minha boca, que se abre
formando um “o”.

— Mikall não sabe de nada. Duvido que ele fosse concordar com isso,
mas, como ele é casado com sua irmã, ela o faz assinar um monte de papéis.
São esses papéis que fazem o negócio girar e parecer ser legal. O prefeito
nunca desconfiaria que está lidando com esse tipo de tráfico. Garotas que
vêm de países pobres e são vendidas e escravizadas entre os homens de bem
da cidade, os lobos maus.

— Meu Deus! — Não sei se devo acreditar.

— O grande problema é que são as assinaturas de Mikall que estão em


todas as licitações. É o dinheiro da prefeitura desviado para o tráfico humano.
Não tem o nome de Lauren nem de qualquer outro membro desse sistema
podre. É o nome dele. Tem noção do que isso significa?

— Ele vai para a cadeia se isso for descoberto — concluo, horrorizada.

— É, mas se você ficar com a boca fechada e me ajudar...

— Eu faço o que for preciso — o interrompo. — Dou minha palavra.

— Consegue fingir que não sabe de nada, que nunca conversamos


sobre isso? É para o bem de Mikall e, principalmente, de todas aquelas
garotas. Se eles desconfiarem de algo, podem matar todas elas. Acredite, eu
sei no que estou me metendo. Só me envolvi com Lauren para ter alguma
chance.

— Te dou minha palavra — repito.

Quero perguntar por que ele se envolveu nesse assunto, mas algo me
diz que não estou pronta para saber.

A noite cai e com ela, a temperatura. Fico encolhida perto de George,


tremendo de frio e medo do que pode estar acontecendo com mulheres
inocentes naquele exato momento, temendo que Lauren possa me colocar no
seu jogo, com medo do que pode acontecer com Mikall.
— Sei que é difícil de acreditar que sua irmã é capaz disso, assim como
seu pai, mas tenho como provar, posso te levar na casa onde eles fazem
negócios, sem ninguém ver, é claro.

Não respondo, em parte porque sei que Lauren é capaz daquilo, que
meu pai também era, e em parte porque eu não quero ver.

Só desejo tirar aquele medo da minha mente. Parece que viver


assustada é o meu fardo.

— Você pode ficar no meu apartamento — George diz com gentileza.


— Não é grande coisa e está mais para “apertamento”, mas pode ficar o
tempo que precisar.

— Obrigada, mas preciso descobrir onde fica esse rancho. Quero ir até
lá. Se importa de me levar?

— Agora? Já é noite.

— Agora, por favor.

Não sei o que fazer. Vendo por outra perspectiva, meus planos
pareciam tão fáceis: ficar morando com Lauren e Mikall, ter dinheiro, ir para
a faculdade até ser capaz de administrar alguns dos negócios da família...

Agora não tenho lar e sei que o dinheiro que tenho guardado não vai
durar muito se não arranjar um emprego. A faculdade parece um sonho
distante e os negócios da família são piores que um pesadelo.

Considerar que há mulheres sendo comercializadas tão perto de nós, e


por causa da minha família, é devastador. Quero saber mais informações, mas
tenho medo. Deixo que George me guie até o carro, lutando contra o desejo
de ficar no topo da montanha para sempre. Minhas pernas estão duras de frio
e tensão, enquanto ele abre a porta e me ajuda a entrar.

O álcool ainda está no meu corpo, faz meu estômago embrulhar,


enquanto as perguntas se ordenam na minha cabeça, temo as respostas, mas
preciso fazê-las. Preciso de informações mais concretas. Ainda necessito
considerar a possibilidade de tudo isso ser só uma mentira doentia de George.
Só que um sexto sentido me diz que não há dúvidas, mesmo que ele ainda
não tenha me provado nada.

O carro desce a estrada sinuosa lentamente. Ouço o som dos pneus


sobre o cascalho, o ruído reconfortante do motor.

— Como sabe sobre o rancho? — o questiono, minha voz parece vazia.

— Eu sei muita coisa sobre sua família.

Engulo a saliva, lutando contra a náusea e torcendo os dedos sobre o


colo.

— O que fazem com essas mulheres?

George desvia a atenção da estrada e me olha. Entendo o olhar triste


que notei no dia anterior.

— Escravas sexuais — sua voz soa ainda mais rouca —, estupro


coletivo, espancamento, tudo que a mente é capaz de imaginar.

Giro a maçaneta que abre o vidro da janela bem a tempo de colocar a


cabeça para fora e expelir tudo que há no meu estômago, caindo no choro
outra vez, me sentindo tão impotente e sozinha que não sei se vou conseguir
aguentar.

Quase não noto quando ele sai da estrada principal, entrando por um
caminho de difícil acesso, ladeado por mata fechada. Sua mão direita fica
pousada na minha coxa, próxima ao joelho, como um aviso de que ele está ali
comigo, soltando apenas para mudar de marcha quando necessário.

Os minutos se vão, meu estômago está vazio, mas pelo menos o enjoo
passa. Sinto o gosto desagradável na boca como um sinal de que esse dia não
é um pesadelo. Quero dizer a George que vou ajudá-lo com a investigação,
que vamos colocar todos os responsáveis na cadeia, libertar essas mulheres e
livrar Mikall de levar a culpa, mas ainda não posso garantir algo assim
quando estou desesperada para salvar a mim mesma da confusão que está
minha cabeça.

— Você deveria estar estudando direito em vez de administração —


murmuro um comentário banal, com receio de que o odor do meu hálito
chegue até ele.

— Já sou formado em direito.

— Você é advogado? — Pisco, surpresa.

— Sim, senhorita.

— E por que continua estudando? Porque não está exercendo a


profissão em vez de ser um motorista?

— Derrubar essa rede de tráficos é o objetivo da minha vida — ele


confessa, com os olhos fixos na estrada.

— Você estudou direito por causa disso e começou administração pelo


mesmo motivo?

— Exato.

Considero essas informações por um momento.

— E, mesmo que você queira fazer minha família pagar por seus
crimes, resolveu me contar.

— No começo, pensei que fosse melhor você não suspeitar de nada,


mas é tão teimosa e encrenqueira que saber de tudo parece ser o único modo
de te proteger, só assim você vai saber com o que está lidando e, quem sabe,
seja menos imprudente.

— Isso tem a ver com o fato de eu ter ido com Mikall até aquele bar
onde mulheres não deveriam entrar?

Ele meneia a cabeça em concordância.

— E com o fato de você não conseguir se controlar perto da sua irmã


— George acrescenta.

— Se tem tanto conhecimento sobre minha família, deve saber que ela
não é minha irmã de verdade, que fui adotada — comento, em parte porque
quero que ele saiba que não pertenço realmente a eles, que sou desajustada,
mas não tenho o sangue podre dos Mendes correndo nas minhas veias.

George se cala, me dando tempo para reorganizar as ideias.


O rancho
Muito tempo depois, o carro para diante de uma clareira no fim da
estrada, onde os faróis iluminam um casebre. Mordo o lábio e seco as
lágrimas que voltaram a cair com as ideias desconexas. Estou com tanto
medo que não sei se conseguirei sair do carro.

Ele sai do veículo, dá a volta e abre a porta ao meu lado, mas não fica
esperando que eu desça, se apoia no capô e coloca as mãos dentro dos bolsos.
Está usando a jaqueta da universidade por cima da camisa xadrez, a gola está
levantada, como um badboy de filmes.

Respiro fundo, na esperança de acalmar o nervos e o coração, mas é


impossível.

Se ele decidiu me contar sobre tudo isso, julgando que será mais seguro
para mim, deve estar relacionado com algo que ele não me contou. Se
considerou minha ida aquele bar assim tão perigosa é porque...

Sacudo a cabeça, mal posso concluir o pensamento.

... eu também corro perigo... de ser uma vítima.

O medo se transforma em horror, o choro cessa, me deixando ainda


pior, com as emoções presas.

E, de certa forma, sei que isso não é tudo. Estou ciente de que George
está ocultando um detalhe ainda pior e que, se eu concretizar o pensamento,
não vou conseguir suportar.

Jogo a primeira perna para fora do carro, lutando contra o turbilhão de


pensamentos. Fecho a porta atrás de mim e me aproximo do rapaz moreno
apoiado no capô. Acho que ele sabe o que estou pensando, ou evitando
pensar. Seus olhos me fazem acreditar que, quando estiver pronta, ele vai me
contar sobre o detalhe que falta, se é que um dia estarei.
Cruzo os braços e me viro para olhar o casebre. Os faróis revelam a
construção amarelada, com algumas trepadeiras aqui e ali subindo
desordenadas pelas paredes. Não posso enxergar direito, mas vejo a pequena
varanda de entrada. Algumas tábuas estão bloqueando uma das janelas.

— Quer ir até lá? — George pergunta depois de pigarrear. — Tem uma


lanterna no porta-luvas.

Sacudo a cabeça em sinal positivo. Ele tira as mãos dos bolsos e vai
buscar o objeto.

— Você trabalha para a polícia? — questiono.

— Por conta própria, e é por isso que preciso do emprego.

— Entendo. Só não consigo entender como tem estômago para transar


com Lauren.

— Faço o que for preciso — sua voz soa decidida.

Me pergunto o que diria se eu pedisse para não fazer mais isso.


Entendo que deve ser fácil para ele manter relações com Lauren, tendo em
vista que ela é uma mulher muito bonita, mesmo assim, a ideia me parece
repulsiva.

George vai na frente, subindo os degraus iluminados pelo feixe de luz.


O acompanho de perto e posso ouvir o ronco do seu estômago. O meu
também está furioso.

A porta da frente encontra-se entreaberta. Ele a empurra com a ponta


do sapato, fazendo as dobradiças rangerem. O interior da casa é tão sombrio
que penso em dar meia volta. Não há mobília, com exceção de alguns
armários e um fogão a lenha, de onde escapa um morcego quando George
direciona a lanterna para iluminá-lo. Penso na quantidade de outras criaturas
que devem habitar o casebre e fico ainda mais tentada a desistir dessa
exploração.

— Meu apartamento parece um hotel de luxo comparado com isso aqui


— ouço a voz rouca de George comentar.

Pelo que consigo perceber, trata-se apenas de uma cozinha, com uma
despensa anexa no lado oeste e um quarto sem porta no lado leste.

— É tudo que tenho — comento, sentindo o peso do que essas palavras


representam.

— Você não está pensando realmente em morar aqui, está? Sabe que
precisa pensar na sua vida com calma, sem contar no quanto ficará
desprotegida aqui.

Sinto um arrepio na espinha que me impede de responder.

George vira a lanterna contra meu rosto, mas logo desiste de esperar a
resposta. Caminho pelo cômodo até o quarto. Vejo a silhueta de um móvel
que parece ser uma cadeira. A janela de vidro está quebrada, e um galho de
uma árvore do exterior da casa está crescendo ali.

— É um lixo, mas é meu — murmuro, olhando para o teto baixo.

Ouço rangido de dobradiças novamente e volto para a cozinha,


temendo que alguém tenha nos seguido até ali ou que talvez haja alguém
morando escondido na “minha propriedade”, mas é só George abrindo as
portas dos armários.

— O que está fazendo?

— Procurando alguma coisa para comer.

— Ficou maluco? Mesmo que encontrasse alguma comida, pelo estado


que esse lugar está, já teria passado do prazo de validade.

— Não estou maluco, mas não como desde o café da manhã. Achei! —
ele exclama, enfiando a mão em uma das portas abertas.

Vou até ele a tempo de vê-lo segurando um pacote de biscoitos pela


metade.
— Largue isso aí! Vamos voltar para a cidade. Também não como
desde o café da manhã e ainda passei mal no carro. Não seja um bebê chorão!

Dou um tapinha na sua mão, fazendo com que o pacote caia no piso de
madeira.

— A senhorita ainda vai me matar de raiva qualquer dia desses — ele


reclama, mas me segue para a porta.

— Posso passar a noite no seu apartamento?

— Já disse que pode ficar quanto tempo precisar.

∞∞∞

A viagem de volta não parece mais rápida, e o estômago de George


ronca com frequência, fazendo eu me sentir culpada por ter pedido para me
levar até o rancho. Estico a mão e toco sua barriga, sentindo os músculos
rígidos e marcados. Acaricio por cima da camisa devagar, então me lembro
que as mãos de Lauren já o tocaram também e me recolho, lutando para
afastar da mente a ideia dos dois enroscados um no outro, que me parece
mais perturbadora do que imaginá-la com Mikall.

Respiro fundo.

— Um dia de cada vez — sussurro, notando que nos aproximamos da


zona urbana. — Preciso passar em casa e pegar minha bagagem. Todo
dinheiro que tenho está nela.

— Não tem que pegar hoje. Posso passar lá e pegar amanhã, antes de ir
trabalhar.

— Se Lauren não colocar fogo nela antes.

— Tem razão, vamos passar lá agora — George diz. — Preciso te


perguntar uma coisa.
— Pode perguntar o que quiser, só não garanto que vou responder.

— Quando me beijou na sala de jantar, foi para fazer ciúmes no


prefeito ou na sua irmã?

— Não te beijei para fazer ciúmes em ninguém — minto com o tom


atrevido. — Você é bonito.

— Não sou bobo, senhorita — ele rebate, as mãos segurando firme no


volante. — Sei que teve um motivo. Se pensa que Lauren sentiria ciúmes de
mim...

Ele dá uma risada sarcástica.

— E se acha que sou ingênua o bastante para pensar que Mikall sentiria
ciúmes de mim... — minto outra vez, mas deixando a frase morrer. É bem
provável que Mikall tenha se doído, sem nem desconfiar que a cobra da
esposa tinha transado com George debaixo do seu teto.

— A senhoria é uma mulher muito bonita, duvido que o prefeito não


tenha ficado tentado, além disso, há a suspeita de que ainda pode ter
sentimentos por ele.

— Ele me chama de menina — revelo, erguendo as sobrancelhas,


imaginando qual vai ser sua reação.

George ri novamente, mas dessa vez com sinceridade.

— Ele é uma boa pessoa, mas é muito desligado — ele diz, enquanto
estaciona na frente da residência do prefeito.

Saio do carro e sou recepcionada pela megera quando chego até a


porta, como se ela estivesse espreitando na janela. George está bem atrás de
mim.

— Irmã, achou um lugar para ficar? — pergunta com um sorriso falso.

— Não é da sua conta, va... — começo a xingar, mas George segura


meu cotovelo.
— Fomos até o rancho — ele informa. — Está deteriorado, mas com
uma boa reforma ficará novo em folha.

— Ah! Viu só, Agatha. Já tem onde morar — ela comenta, juntando as
palmas das mãos como se fosse a melhor notícia de todos os tempos. —
Fiquei tão preocupada pelo jeito que saiu daqui.

— George tomou conta de mim — digo, não posso perder a


oportunidade de provocá-la.

— Ele é ótimo, não é? — pergunta, cruzando os braços, sorrindo e


mostrando os dentes brancos. O rosto é uma máscara de serenidade que
parece tão perfeita que quase chega a me enganar.

— Ele é demais — murmuro, passando meu braço direito em torno do


pescoço de George e me colocando na ponta dos pés para beijá-lo na frente
dela.

Pressiono meus lábios contra os dele e, sem saber direito o que estou
fazendo, mas para ser mais convincente, sugo seu lábio inferior por um
instante, fazendo meu coração se debater contra meu peito. Sua boca é macia
e quente. Fico ciente da pele do meu braço tocando a pele da sua nuca, do
meu peito contra o dele, e estremeço quando George corresponde, passando a
língua no meu lábio inferior, explorando à procura de uma brecha para
invadir minha boca.

Me afasto, sentindo a pele queimar, e seguro sua mão, o puxando na


direção das escadas, não suporto pensar em deixá-lo a sós com Lauren, ainda
que por pouco tempo. Dois beijos em um dia, e nem é um deles foi um ato
sincero; meneio a cabeça em negação.

A subida tira o resto do meu fôlego e preciso parar no topo para tentar
recuperá-lo. George aproveita para me encarar, com as sobrancelhas
arqueadas e uma expressão de dúvida do rosto. Observo seu rosto moreno,
levemente corado pela subida, a boca entreaberta para facilitar a respiração,
os olhos cor de mel fixos nos meus.

Penso em beijá-lo outra vez, imaginando como ele vai reagir na


privacidade do hall, mas descarto a ideia depressa. Giro o corpo na direção do
quarto onde dormi na noite passada e sigo, ainda o puxando pela mão. Meu
coração pulsa em tantas partes do meu corpo que sinto como se estivesse
vibrando.

Abro a porta com a mão livre, ciente do seu polegar esfregando com
firmeza os nós dos meus dedos.

— Dá próxima vez, para ficar mais convincente, experimente me


abraçar de volta — resmungo, indo até a cama. Agarro a alça da mochila e
me permito uma rápida olhado no espelho.

Minhas bochechas estão incendiando, meus olhos estão mais azuis que
de costume, o cabelo bagunçado. Tento arrumá-lo, observando George
parado ao meu lado. O vendo assim pelo espelho, é tão bonito que parece
estar em um pôster pendurado no quarto de uma adolescente.

— Dá próxima vez, experimente usar a língua — ele rebate. — Vai ser


ainda mais convincente.

Por capricho, quero exigir que ele não se envolva mais com Lauren,
mas sei que não posso impor algo assim. Cometi o erro de pedir isso a Mikall
e ele riu de mim.

Emito um ruído de desaprovação, torço o nariz para George, mostrando


minha língua, num dos meus vários momentos de descontrole, e começo a
deixar o quarto.

— Estou me perguntando como a senhorita reagiria se acontecesse o


contrário — ele comenta ao pegar a mochila da minha mão.

— Como assim? — questiono, franzindo o cenho.

— Se eu ficasse te beijando, você iria gostar?

— Você dorme com minha irmã, nem ouse tentar — o ameaço.

Desço as escadas depressa. A serpente ainda está na sala, pronta para


dar o bote.
— Pode me buscar amanhãs às 9h, George? Tenho alguns
compromissos.

Meu sangue ferve, mas ele segura minha mão com firmeza.

— Planejei levar Agatha para conhecer a universidade, as aulas logo


voltarão, depois pensei em passar na prefeitura e ver se tem alguma coisa na
qual ela possa estagiar.

Pisco algumas vezes, pega de surpresa.

— De novo essa história de faculdade, Agatha?

— Por que se importa? Se tem alguns compromissos, dirija você, ou


desaprendeu? Aposto que a mão não vai cair.

— Você é o meu motorista — ela diz por entre os dentes, lembrando a


George o seu lugar.

Ele endireita a postura, parecendo maior, e ergue o queixo, o maxilar


trincado. Vejo o volume na sua garganta quando ele engole em seco.

— Não tenho direito a uma folga? — George que saber. Algo no seu
tom de voz me quebra por dentro. Por mais que Lauren seja bonita por fora,
ele não parece querer estar com ela.

Tento pensar no que aconteceu com esse homem para ele se envolver
em uma investigação tão a fundo, se sujeitando a ir para a cama com alguém
que provavelmente detesta tanto quanto eu. Só alguém quebrado que já não
pensa mais em si mesmo conseguiria. Não conheço seu passado, mas sei de
uma coisa: George tem estômago para aguentá-la.

— Eu fiquei dias longe — ela baixa o tom de voz, denunciando sem


querer a intimidade entre eles, parece que quer derretê-lo com o olhar.

É visível o quanto ela pensa estar no controle — a dominadora rica e


elegante e o submisso que precisa satisfazer as vontades dela em troca de
trabalho.
Conhecendo minha irmã como acho que conheço, posso imaginar que
ela já deve ter saído com George de mãos dadas em público, como um casal,
só para poder exibi-lo como se fosse um troféu.

Ela o escravizaria se pudesse. O pensamento faz meu estômago revirar


outra vez.

— E eu continuei trabalhando mesmo quando estava fora — George


continua, estreitando o olhar. Por mais que ele tente manter a postura erguida,
Lauren ainda é superior.

— Mas não para mim — ela sussurra com tanta intimidade que fico
constrangida por estar testemunhando a cena.

— Pode me levar outro dia, quando não estiver ocupado — me


intrometo, porque não quero que ela o humilhe ainda mais. — Ou melhor,
vou pedir que Mikall me leve. Será perfeito!

Puxo George, dando o assunto por encerrado.


O “apertamento”
Entramos no carro, ambos envergonhados. Não quero pensar em
quantas vezes Lauren já o humilhou, e ele persistiu em levar seu plano
adiante, mas não consigo evitar. Certamente, já aconteceu tantas vezes que
George já deveria ter se acostumado. Só que eu tenho ciência que não nos
acostumamos com humilhação, apenas aprendemos a conviver com ela.

— Queria que fosse logo à universidade — ele murmura. Sua voz está
tão rouca que destrói qualquer vestígio de atrevimento em mim. — Queria
que resolvesse logo isso.

Passo a língua no lábio inferior.

— Tenho um plano, não precisa se preocupar com isso — sussurro


com gentileza. — Tive um momento de desespero essa tarde, mas vou seguir
em frente e te ajudar no que for preciso.

O carro para no sinal vermelho em cruzamento no centro da cidade.


Vejo as lojas fechadas, com as luzes acesas nas vitrines. Parece uma cidade
de brinquedo.

Volto o olhar para George. Suas mãos estão agarradas ao volante com
muita força. Ergo a mão e acaricio as maçãs do seu rosto com a ponta do
polegar, desço até seu queixo e percorro o traço marcante, tão trincado que
tenho medo que seus dentes se quebrem. As sobrancelhas escuras e espessas
estão franzidas e os lábios contraídos em uma linha.

— Desculpa por te beijar daquele jeito — murmuro para distrai-lo. —


Sinceramente, me desculpa por te usar para fazer ciúmes em Lauren.

Meu comentário funciona, porque os cantos dos seus lábios se curvam


para cima e o maxilar relaxa.

— Não precisa se desculpar, senhorita. Sendo você, eu não me


importo.
Suas palavras fazem meu coração disparar. Tiro a mão da sua bochecha
e recolho para que George não veja o quanto me deixou nervosa.

∞∞∞

Quando o carro se aproxima do prédio onde George mora, vejo um


homem de casaco escuro com o capuz ocultando parte do seu rosto.

Trata-se de um prédio antigo de três andares, com a tinta verde


descascando, localizado entre um supermercado e uma ruela escura. Os
carros dos moradores ficam estacionados em um terreno em frente ao prédio,
do outro lado da rua, protegido por um precário muro de tela e um portão de
correr.

Vejo manchas enegrecidas no primeiro andar, que mais parecem


marcas de incêndio, mas quando George me entrega as chaves e me pede
para abrir o portão, saio do carro e noto que é apenas musgo. Meu corpo
reage estranho, enquanto o carro segue para sua vaga no estacionamento.
Sinto que o homem do outro lado da rua está me observando. Evitando a todo
custo relembrar tudo que descobri, espero até que George vem e fecha o
cadeado do portão.

— O prefeito — ele diz ao apoiar a mão esquerda nas minhas costas


para atravessarmos a rua.

O homem sai da sua posição e vem ao nosso encontro. A rua está


deserta. Ainda não sei se vou me segurar e não acabar falando o que sei. Meu
coração me trai quando reconheço seus traços na escuridão que o capuz lhe
proporciona.

Não há um diálogo ou um simples boa noite. Mikall vem em nossa


direção a passos largos e, quando meus pés tocam a calçada, ele dá um soco
no queixo de George, que tomba o rosto para o lado. Perco o fôlego e a voz.
Concluo imediatamente que Mikall descobriu que está sendo traído. George
aperta o queixo com a mão e me olha com acusação por um segundo,
considerando a hipótese de eu ter contado para Mikall sobre ele e a vaca da
Lauren, mas as palavras do prefeito logo anulam sua dúvida.

— Isso é por ter embebedado Agatha — Mikall praticamente rosna.


Nunca o vi tão bravo. Me pergunto porque ele é tão submisso à vadia da sua
esposa. Não posso pensar, caso contrário vou chorar na sua frente.

Observo a mão livre de George se fechar em punho, trêmula, mas ele


solta o maxilar e ergue a cabeça com o rosto relaxado. Me concentro nas
coisas ao meu redor.

— Mereci — o rapaz diz com simplicidade. Baseado no pouco que sei,


tenho certeza que George nunca arriscaria seus planos para devolver o soco.
— De nada por cuidar de Agatha hoje.

— Não fez mais que sua obrigação — Mikall diz com agressividade,
ainda com o capuz escondendo parte do seu rosto irritado. Vejo que ele está
armando outro soco e me adianto.

— O que faz aqui? — o questiono, procurando guardar todos os


sentimentos.

— Vim te buscar — ele sussurra, se aproximando um passo. — Te


procurei pela cidade inteira quando saí da prefeitura, quando não te encontrei,
vim para cá e fiquei esperando. — Ele dá outro passo. — Vamos embora.

O fato de não ser uma pergunta, e sim uma afirmação, como se Mikall
estivesse me dando uma ordem, me irrita profundamente.

— Embora para onde? — pergunto, esfregando as mãos contra os


braços para afastar o frio. Está ventando muito, minha visão periférica capta
clarões no horizonte anunciando chuva.

— Pedi uma pizza — Mikall diz, apontando com o queixo na direção


do muro baixo que separa a calçada da ruela escura. — Já deve ter esfriado.

Vejo uma caixa quadrada de papelão sobre a mureta e meu estômago


vazio reage em expectativa.

— Obrigada — digo, me afastando dos dois e indo até a embalagem.


— Vamos entrar, George? Vou pegar um resfriado se ficar mais tempo aqui.

— Claro, senhorita — ele diz, indo até o portão para abri-lo.

— Agatha — Mikall chama —, onde está pensando em passar a noite?

— George me convidou...

— Não precisa dormir aqui — diz em tom de desaprovação. — Nossa


casa é grande, Lauren nem vai perceber se você entrar com cuidado.

Solto um ruído que se assemelha a uma risada de deboche.

— Eu sei, eu sei! — ele se antecipa. — É uma péssima ideia. Você


pode ficar em um hotel. Eu pago. Você não pode...

— Nos vemos amanhã cedo na prefeitura — o interrompo. — É melhor


cancelar seus compromissos da manhã.

Não espero por resposta, entro pela porta que George está segurando.

— Pelo menos a noite vai terminar em pizza — ele brinca, trancando a


porta.

Sem me importar com Mikall parado lá fora, me deixo ser guiada por
um corredor escuro.

— Cuidado com a escada. Não tem corrimão — George diz com


timidez.

— Tudo bem.

Após dois lances, somos iluminados pela luz que atravessa a janela de
um apartamento. Ouço a televisão ligada e gemidos depravados.

— Parece um prédio bem familiar — brinco. Seus vizinhos são


decentes?

— Os melhores — ele diz com sarcasmo.


Seguimos até o terceiro andar em silêncio. Quando ele abre a porta e
acende a luz amarelada que pende do teto, fico tentada a correr de volta para
Mikall e aceitar sua oferta de dormir em um hotel.

George entra primeiro, me dando as boas-vindas com toda educação.


Caminha até um sofá em frente à parede oposta à porta e coloca minha
mochila. Prateleiras de alumínio cobrem a parede lateral da direita, onde há
roupas e livros, um balcão de alvenaria divide o ambiente ao meio. Ao lado
da porta fica a bancada da pia e do fogão vermelho, uma estrutura de fórmica
esverdeada. Os armários estão fixos na parede, são amarelos e velhos. A
geladeira azul completa o cômodo.

O apartamento está limpo, mas não conservado.

— Ali fica o quarto? — pergunto, apontando para a única porta que


vejo na parede esquerda.

— Não, é o banheiro — ele diz, voltando na minha direção.

— E onde fica o quarto? — Estou imaginando onde vou dormir.

— Isso é tudo, senhorita — George explica.

— Ah, sim. É bem agradável — tento parecer gentil como ele, mas
ainda estou um pouco chocada pela simplicidade.

Ainda posso ouvir os gemidos no andar de baixo. Molas começam a


ranger, George percebe e fecha a porta depressa, abafando o som.

— Bem familiar — brinco, tentando disfarçar quem também estou


constrangida.

Ele sorri, sem graça. Seu sorriso tímido é tão bonito que me distrai por
um instante.

— O sofá vira uma cama — ele explica, pegando a caixa de pizza da


minha mão e levando até a bancada verde, em seguida gesticula para que eu o
acompanhe na direção do outro ambiente. — Quer tomar um banho, enquanto
eu esquento a pizza? A casa é simples, mas o chuveiro funciona bem, a água
é bem quente.

— Ótimo.

Me apresso em pegar minha mochila e ir para o banheiro, antes de


entrar, o observo tirar o casaco e se movimentar na pequena cozinha.
Quantos segredos ele pode guardar?
O cheiro de pizza de marguerita domina o apartamento quando saio do
banheiro. Estou usando pijamas e meias. Sequei o cabelo o quanto pude com
a toalha, ainda assim, está molhado, me deixando com mais frio. O
apartamento de George não é quente, muito menos aconchegante.

O sofá foi transformado em uma cama de casal, com dois travesseiros,


lençóis brancos e alguns cobertores dobrados. Caminho até lá e pego minha
mochila, onde guardo minhas coisas, tomando cuidado de colocar a roupa
usada em um compartimento separado. Preciso comprar novas peças o mais
rápido possível, e também encontrar um lugar para lavar as que já usei.

Esfrego a toalha no cabelo outra vez, sentindo o cheiro do shampoo de


George nas mechas. Seu cheiro também está na toalha, é uma fragrância
amadeirada que se mistura a cheiro de rosas, mas não há nada de enjoativo, é
aconchegante, do tipo que faz eu me sentir mais quente; dá vontade de
abraçá-lo.

Volto ao banheiro quando meu rosto cora com o pensamento, penduro


a toalha no suporte, verificando mais uma vez se deixei a água da banheira
esmaltada escoar. Piso no tapete e o arrasto pelo chão, secando os respingos.
Para um apartamento simples, o banheiro é bem limpo e agradável.

Com uma rápida olhada no espelho da pia, arrumo o pijama: um


conjunto de calças e camiseta de mangas longas de algodão cor de rosa.
Minhas bochechas estão coradas e me pareço com um chiclete gigante.

Me arrasto até a cozinha, sentindo o peso do dia sobre meu corpo.


George está de costas, lavando alguma coisa na pia, com um pano de prato
sobre o ombro. Vejo as formas da sua nuca e pescoço, a pele lisa, o pé do
cabelo bem feito. A mesa foi posta de maneira simples, mas ainda
organizada. Os pratos brancos estão colocados nos lugares, com guardanapos
de papel dobrados em triângulos sobre eles, um talher de cada lado.

Ele se vira, pega o pano de prato no ombro e seca as mãos, o


descartando sobre a pia, se aproxima e puxa a cadeira para que eu me sente.
Deixo meu corpo cair no assento com zero de elegância. George retira a pizza
do forno e a coloca sobre a bancada, em seguida estica o braço para colocar
uma fatia em meu prato.

— Você está faminto, não precisava ter me esperado — comento,


enquanto ele serve o outro prato. Só então se senta.

— Quer fazer as preces? — pergunta, um dos cantos dos lábios se


ergue em um sorriso torto encantador.

— Obrigada pelo jantar, George — sussurro com um sorriso de


aprovação.

— O prefeito comprou a pizza imaginando que iria comer com você.

— Mas foi você que arrumou a mesa.

Seu estômago ronca furioso, dando aquela conversa por encerrada.


Também estou faminta, penso em dispensar os talheres, mas a pizza está
quente e George arrumou a mesa com tanto cuidado, que resolvo usá-los.
Corto o primeiro pedaço e levo a boca, quase queimando a língua com o
queijo quente.

Ele percebe, se levanta depressa, abre a geladeira azul e pega duas latas
de refrigerante.

— Não tenho vinho — explica, acanhado.

— Refrigerante está ótimo — respondo, educada.

Abrimos as latas e voltamos a comer. Acabo a primeira fatia em


silêncio. Percebo que ele está prestando atenção porque me serve outro
pedaço imediatamente. Guardo a conversa para depois e devoro o segundo
depressa; meu estômago continua reclamando furioso.

— Mais uma? — George pergunta ao me ver acabar.

— Por favor.
Ele me serve outra vez e continua comendo.

— Você já foi garçom? — resolvo perguntar.

— Já trabalhei em muitas coisas, senhorita.

Gosto de como sua voz soa quando me chama de senhorita, mas sei
que não sou a única que ele trata assim. Imagino que seja realmente em sinal
de respeito, por eu ser cunhada do prefeito, e que ele deve ser muito educado
com todas as pessoas para quem trabalha, mesmo diante de tudo que vivemos
nesses dois dias e dos segredos que compartilhamos.

Como e bebo mais devagar quando sinto que a fome foi aplacada.

— Não sei nada sobre você.

— Sabe onde moro, onde trabalho, para quem trabalho, sabe onde fica
a universidade que estudo — ele diz com um sorriso, antes de beber um gole
da lata de refrigerante.

— Só formalidades. Não sei nada mais além disso. Seu sobrenome,


quando faz aniversário, onde estão seus pais, o resto da sua família... nada.

Ele cutuca com a faca um pedaço de queijo que derreteu e secou na


base do seu garfo, depois ergue a postura e me encara profundamente.

— Já me viu nu, Agatha. É um bônus.

— Você sabe tudo sobre mim... — começo a falar, afastando da mente


a imagem do seu corpo molhado debaixo do chuveiro.

— Não tudo, só algumas coisas — ele me interrompe.

— As mais importantes — o lembro. — Então, se eu te deixasse me


ver nua também, você me contaria sua história?

George contrai os músculos, noto sua respiração acelerar, o rosto


corando.
— Quando penso que a senhorita está começando a se comportar... —
ele divaga, desviando o olhar por um momento, e me fazendo rir.

— Gosto de te deixar embaraçado.

— Vou ficar ainda mais se você tirar a roupa. Vai fazer isso por mim?

Dou uma risada para disfarçar o que estou pensando.

— Fala assim com todo mundo ou é só comigo? — ele quer saber.

— Só com você, George — assumo.

— Me sinto lisonjeado. Só não consigo me lembrar de quando te dei


tanta intimidade.

O jeito que ele fala, educado mesmo quando tem sua paciência testada,
é tão charmoso, tão diferente dos rapazes dos filmes... Me faz querer elogiá-
lo, dizer que ele é uma graça, que tenho certeza que nunca vou conhecer
alguém como ele, que ele é único.

— Não mude de assunto — peço, voltando a ficar séria. — Onde estão


seus pais?

— Mortos, eu acho — ele diz e trinca a mandíbula, estreitando os


lábios. Vejo como aperta o garfo com força, as veias do seu pulso se
destacam sobre a pele, subindo em direção a manga da camisa que está
enrolada até metade do antebraço.

Bebo mais um gole de refrigerante, dizendo a mim mesma em


pensamentos que vou me comportar, que não vou falar besteira.

— Acha? Não tem certeza?

— Não tenho.

Ele se cala por um momento, voltando a brincar com a faca e o


pedacinho de queijo.
— Por quê? — insisto.

— Lembra-se de uma construção antiga, no lado oeste atrás do colégio


interno, que possuía uma torre central arredondada como...

— Como um castelo — concluo sua fala. — Dava para ver aquela torre
da janela do meu quarto. No verão, o sol se punha atrás dela. Sempre
fantasiei em fugir para lá e ver como era, mas havia grades em todas as
janelas.

— A senhorita teve sorte de nunca ter colocado os pés lá.

— Espera! — digo erguendo a palma da mão. — Ali era um orfanato.


Tudo que eu sabia era que meninos e meninas moravam juntos. Convenci
algumas garotas a tentarem escapar pela porta quando o vigia noturno
cochilasse, para sairmos em uma expedição até lá, mas elas acabaram
desistindo com medo de que fosse mal-assombrado.

— Realmente parecia — George diz, mantendo os olhos no queijo.

— Como você sabe daquele lugar?

— Eu cresci ali.

Vejo seus cílios compridos voltados para baixo, as veias saltando no


braço, a mão apertando a faca de tal forma que os nós dos dedos estão
brancos, penso que ele vai erguer a cabeça e me encarar, mas não faz.

— Eu fui para lá em 1978 — murmuro, tomada por uma emoção


estranha.

— Eu fugi de lá pela última vez em 77. Nunca mais voltei.

Última vez... As palavras ecoam na minha mente. Estou sentindo


muitas coisas, mas não sei exatamente o que dizer. Experimento uma
sensação de cumplicidade com esse rapaz sentado a minha frente, como se
estivéssemos tão ligados que só nos sobrasse um ao outro. Quero abraçá-lo,
quero sentir o calor do seu peito, da sua pele, inalar o cheiro amadeirado do
seu pescoço e sentir o aconchego dos seus braços fortes em volta de mim.
Moramos na mesma propriedade em épocas diferentes. Sinto medo de
perdê-lo também, porque talvez ele seja tudo que eu tenha.

Ele esteve esperando por mim... Penso de repente. Esperou por muito
tempo. Não sei de onde essa ideia veio, mas faz nossa ligação parecer ainda
mais significativa.

— George? — o chamo com um sussurro. Parece que seus


pensamentos o levaram para outra dimensão.

— Hum... — murmura.

— Continua — peço com minha voz mais gentil. Me inclino para a


frente e estico a mão para tocar seu pulso.

George estremece. Vejo a marca alva na pele, no lugar do relógio que


ele sempre usa e que agora está na bancada. Acaricio uma das veias com o
dedo indicador e sinto a protuberância na pele. É apenas uma linha estreita e
horizontal, paralela à junção da mão com o braço.

Sinto meu coração pesar, porque sei o que essa cicatriz representa.

Ele puxa a mão de repente e se estica na direção da bancada. É alto o


suficiente para alcançar o relógio sem precisar se levantar da cadeira. Ele o
coloca no pulso depressa, ocultando a cicatriz.

Me pergunto o que pode ter acontecido com ele para decidir fazer algo
assim. Sinto meu nariz e meus olhos queimarem com as lágrimas que se
formam e engulo o nó com força, limpando a garganta em seguida.

— Uma garota do quarto ao lado do meu fez um corte assim no braço


depois que seus pais morreram — digo baixinho. — Ela se recuperou do
sangramento, mas nunca mais foi a mesma.

— Foi a única vez que fiz isso — George diz com a voz grave. — Não
sabia que precisava cortar na vertical. Eu tinha doze anos.

Ele dá de ombros, como se não fosse grande coisa. Já me senti triste e


abandonada tantas vezes, a maioria das vezes, na verdade, mas nunca desejei
morrer. Penso no quanto ele deve ter sofrido para pensar uma coisa dessas. É
uma dor que não quero experimentar nunca.

— Uma menina da minha idade disse que eu iria para o inferno por
tentar suicídio, mas eu não tinha medo, já vivia em um, de qualquer forma.

Sei que preciso dizer algo coerente e significativo, mas não faço ideia
do que falar.

— Continue — é tudo que consigo murmurar. Meu peito queima de


dor.

— Quando o corte fechou, uma freira me mostrou de uma forma bem


peculiar a nunca mais “fazer gracinhas” — ele faz aspas com os dedos ao
falar.

— George — sussurro, aterrorizada com um pensamento —, meu pai


pagava por minha estadia no colégio interno, e tenho cicatrizes dos castigos,
o que faziam no orfanato onde as crianças não tinham pais para pagar uma
mensalidade?

Ele dá de ombros outra vez.

— Como era a comida? — faço uma pergunta meio boba.

— Escassa — ele diz brevemente.

Quero dizer para ele comer os últimos pedaços de pizza, como se


encher a barriga agora pudesse apagar da memória o que passou.

— Mas foi há muito tempo. Já passou — George diz.

— Você se lembra como foi parar lá?

— Me lembro — ele diz e faz uma pausa. Finalmente, ergue o olhar


para me encarar. — Seu pai me deixou lá.

— O quê? — ergo a voz e arregalo os olhos.


— Seu pai, Afonso Mendes.

Minha mente esvazia por um instante. Não sei mais o que pensar.

— Agatha, se disser isso para alguém...

— Não vou dizer — o interrompo. — Te garanto que vou guardar em


segredo tudo que me contar.

— É uma longa história, deixa eu tirar a mesa primeiro.

Ele se levanta e guarda as sobras da pizza no forno, depois que lhe digo
que já estou satisfeita, pega os utensílios na mesa e os leva à pia. Retira o
relógio e o coloca de volta na bancada antes de começar a lavar a louça.

Bebo o resto do refrigerante, tentando me preparar psicologicamente


para ouvir sua história. Não consigo traduzir em palavras o que estou
sentindo a respeito do envolvimento do meu pai, mas sei que faz sentido.
Deve ser por essa relação que George está aqui. Minha mente começa a bolar
teorias, mas as afasto.

Penso em quantas garotas estão sendo abusadas aqui na cidade nesse


exato momento, feitas de escravas por um sistema onde Lauren é a cabeça.

Por quê?

Ela é naturalmente má, assim como meu pai? Um traço psicopata


passado de pai para filha? Como uma mulher consegue fazer uma coisa
dessas com outra?

Quero levantar da mesa e ir acabar com tudo, chamar a polícia, torcer


para que ela pague na cadeia, mas preciso confiar em George.

Sempre soube que Lauren era uma megera, tão ruim quanto meu pai,
por isso foi muito fácil acreditar no que George me contou, mesmo sem me
mostrar provas, mas nunca me questionei por que ela era assim.

A recordo cortando meu cabelo quando eu era bem pequena, apenas


por inveja. Me lembro de ter pensado que ela era capaz de fazer qualquer
maldade comigo.

Por quê?

Tento pensar, achar uma lógica, talvez porque não quero aceitar que
mulheres podem ser tão cruéis quanto os homens.

— Terminei — George diz, após lavar o último talher e o colocar sobre


um pano de prato.

Ele se senta de frente para mim e me encara enquanto recoloca o


relógio.

Estou atônita.

— Não precisamos mais conversar sobre isso hoje. Pode ir dormir —


sugere.

— Não! — exclamo. — Não conseguiria dormir com as dúvidas que


tenho em mente. Continue contando, pelo amor de Deus. Por que foi meu pai
quem te deixou naquele orfanato?
Duras verdades
— Havia dois homens e duas irmãs — George começa a falar devagar.
— Elas eram gêmeas. Disso me lembro bem. Idênticas. Morávamos em um
lugar escuro, fétido e fechado. Parecia uma caixa de concreto. Nunca
podíamos sair.

— Você, as gêmeas e os homens?

— Não, os homens não. Eles apareciam de vez em quando, sabe... —


ele faz uma pausa e esfrega a mão contra o nariz, sem me encarar. —
Vivíamos nesse lugar.

— Na caixa? — pergunto, tentando imaginar o horror.

— Isso. Mas não era exatamente uma caixa. Havia um banheiro no


meio, que ajudava a dividir o espaço em dois quartos. Quando nenhum deles
aparecia, eu andava livremente, mas era obrigado a ficar embaixo da cama
quando um ou outro chegava. Aquilo era tudo que eu conhecia. Não falava
muito, porque só havia as duas para conversar. Não sabia falar muitas
palavras.

— Quantos anos tinha?

— Era muito pequeno. Acho que nasci lá. É tudo que me lembro de ter
conhecido antes do orfanato. Havia uma cama de cada lado do banheiro.
Minha mãe dormia do lado direito e sua irmã gêmea do esquerdo. Os homens
eram como se fossem seus donos. Cada um possuía uma das irmãs. Eles
odiavam me ver, principalmente o “dono” da minha mãe — George faz aspas
com os dedos, me olha brevemente, mas logo desvia o olhar para a mesa. —
Sempre que a porta se abria, eu corria para debaixo da cama, porque se um
deles me visse pelo quarto, me dava uma surra. Eu ficava quieto enquanto
eles...

— Eu sei — murmuro, apavorada com a ideia de uma criança


testemunhando tal horror. — Imagino o que acontecia.
— Cada um deles sempre visitava a mesma irmã. O dono da minha
mãe não tocava na minha tia, me lembro bem, e o outro não se envolvia com
minha mãe. Então acho que esse homem era meu pai biológico.

— Você sabe quem era ele?

— Não. Não consigo me lembrar do seu rosto, nunca ouvi seu nome.
Só me lembro do homem que visitava a outra irmã. Me lembro dele, porque
foi ele que me largou no orfanato.

Arfo.

— Meu pai? Ele... abusava da sua tia?

— Sim... — George alcança a minha lata de refrigerante, a balança


para ver se já bebi tudo, então se levanta para jogá-la no lixo.

— Continua — peço. Estou tremendo. Há uma sensação terrível no


meu estômago, mas quero saber mais.

— Eles não vinham todos os dias, nem em dias regulares. Traziam


comida, mas era muito pouco, sempre estávamos com fome — ele diz e volta
ao seu lugar à mesa. — Poucas vezes vinham juntos. Me lembro de minha
mãe e sua irmã gêmea tentarem fugir, mas aquela caixa de concreto era uma
fortaleza que só eles conseguiam abrir.

A jaqueta da universidade está jogada sobre o balcão. Me estico e a


pego para vesti-la quando não consigo mais aguentar o tremor. Ele nem
percebe, sua mente está naquele terrível lugar.

— Então, eles começaram a vir com mais frequência juntos. Me


lembro de não tocarem nelas da última vez, pelo menos não para...

Estuprar.

George não consegue dizer a palavra em voz alta. Eu também não


consigo completar sua fala.

— Conversaram sobre quanto tempo as manteriam ali, que precisavam


arranjar novas garotas, e aí eles me tiraram daquele lugar. Meus olhos
queimaram de um jeito insuportável quando vi a luz do sol pela primeira vez.
Só consegui enxergar direito quando já estava dentro do carro em movimento
há algum tempo. Os dois homens estavam no banco da frente. O homem, que
provavelmente era meu pai, dizia para Afonso como deveria me matar e o
que fazer com meu corpo. Eu nunca tinha saído daquela caixa, não tinha visto
o mundo exterior. Estava perdido demais para me importar sobre o que
falavam.

— E como escapou? — pergunto, ansiosa e assustada como se


escutasse uma história de terror. Não consigo sequer pensar em me colocar
no seu lugar e experimentar uma parcela do horror que ele deve ter passado.

— Eu era muito pequeno, tinha cinco anos, mas não conhecia o mundo
exterior, minha mente estava atenta à paisagem em volta do carro. Me lembro
dos homens fazendo ameaças para que eu ficasse quieto e não tentasse fugir.
Diziam que iriam machucar ainda mais minha mãe e minha tia. Usaram
cordas para me amarrar, colocaram um pano na minha boca e me puseram
agachado atrás do banco do motorista, para que as pessoas na rua não
pudessem me ver. Acho que também me cobriram com alguma coisa, mas
não tenho certeza. Tudo que recordo é de ter me erguido o suficiente para ver
da janela quando não aguentava mais a dormência no corpo.

— E o que você viu?

— Sua casa. Vi uma mulher gesticulando na varanda para o homem


que escravizava minha tia, eram seus pais. Me agachei de volta assim que os
vi, ainda que pequeno memorizei a fachada da casa. Tenho facilidade de
gravar o que vejo, como se minha mente tirasse uma fotografia. Só não
consigo me lembrar do rosto do homem que violentava minha mãe, mas acho
que meu cérebro escolheu apagar isso, me pregou uma peça. Mas,
continuando, seu pai voltou ao carro sozinho e dirigiu por algum tempo até
que ficou escuro. Trancado naquela caixa, eu não tinha noção do que era
noite e dia. Me lembro do seu pai ter parado o carro, tirado as cordas e a
mordaça e me deixou sentar no banco outra vez. Eu não compreendia muito
bem o que era morrer, tinha ouvido eles dizerem que iam me matar, entendi
que Afonso iria fazer isso. Na época eu não sabia seu nome porque eles
nunca diziam, descobri alguns anos depois. Enfim, não sabia exatamente o
que era a morte, mas não fiquei com medo de ser libertado daquilo em que
vivia, sabe... o terror psicológico. Mas seu pai não fez o que tinha que fazer,
imagino que não teve coragem. Dirigiu até aquele convento e fez inúmeras
ameaças que eu sequer entendia, então me largou no portão e foi embora.

— As freiras te acolheram?

— Acolher não é exatamente a palavra. Meu filme de horror só mudou


de cenário, passei a receber muito mais punições no orfanato, mas pelo
menos não via minha mãe ser agredida, nem minha tia.

Quando me dou conta, estou segurando sua mão com força. Ambos
estamos tremendo.

— E o seu nome?

— Minha mãe já me chamava de George, então foi o nome que dei


quando a freira perguntou. Colocaram meu sobrenome de Garcia — ele diz e
dá uma risada estranha. — Eu não sabia falar muita coisa, e a irmã não teve
muita paciência comigo. Já tinha levado um soco na cara, mas essa é uma
agressão que a gente nunca se acostuma a sofrer. Dói no corpo, mas a
humilhação castiga ainda mais.

— Ela te deu um soco no rosto porque você não sabia falar direito? —
pergunto, sentindo as lágrimas quentes escorrerem. Meu coração bate pesado
em uma espécie de dor e revolta.

George faz que sim com a cabeça e tenta rir como se não desse mais
importância àquilo. Não funciona muito bem.

— Mas está tudo bem agora. Isso ficou no passado.

— E como saiu de lá? Como se tornou advogado?

— Fugi pela primeira vez em 1969. Tinha adquirido uma obsessão por
mapas. Estudei tudo que podia, antes de sair à procura da minha mãe.
Imaginei que pudesse encontrar alguma coisa sobre ela, mesmo que fosse
uma lápide. Era ingênuo o bastante para pensar que ela receberia esse tipo de
final, em vez disso deve ter sido enterrada em uma vala. Bem, minha primeira
fuga não deu muito certo e acabei voltando. Recebi um castigo especial, mas
você não precisa saber dos detalhes. Fiz mais duas fugas mal sucedidas antes
de deixar o orfanato pela última vez, aos quinze. Era inteligente e, por mais
que pareça absurdo, conseguia a simpatia das pessoas. Trabalhei na limpeza
de um restaurante em troca de comida e um lugar para dormir, até o dono me
dar uma chance de ser garçom. Trabalhei duro e estudei. Nas folgas,
procurava pela cidade onde nasci. Não sabia o nome do seu pai, só me
lembrava da casa, então demorei muito tempo para encontrar.

— Você é determinado.

— Sim, eu sou. Eu reconheci seu pai assim que o vi. Os próximos anos
foram dedicados a investigá-lo. Descobri que ele tinha expandido os
negócios, que mais homens participavam, como um clube, e que eles traziam
meninas de países pobres. Imagine, o negócio deles é algo que só os
membros conhecem, suas esposas não sabem, e os outros cidadãos da cidade
nem sonham com o que acontece aqui. As garotas são trazidas de muito
longe. É fácil seguir alguém que não tem medo de ser pego. Descobri que sua
irmã era a única mulher que participava. Ela já era casada com o prefeito, na
época ele era apenas um vereador, e não parecia saber nada. O segui por
muito tempo até perceber que ele era só um peão. Sim, eu sou determinado.
Me formei em direito porque eu queria ser o advogado que ia condenar seu
pai, mas o desgraçado morreu antes. Eu estava no segundo ano do curso
quando descobri da sua morte, nunca tinha deixado nenhum deles me ver.
Consegui transferência e terminei a faculdade aqui, foi fácil conseguir o
emprego de motorista. Mikall tinha sido eleito há pouco tempo quando me
mudei.

— Você só se mudou para cá quando meu pai morreu porque tinha


medo de ser reconhecido? — perguntei, a voz rouca pelo choro.

— Não. Tinha crescido, acho que ele não me reconheceria, e duvido


que alguma vez tenha voltado no orfanato para ver como eu estava, já que me
largou no portão e saiu antes que alguma freira o visse. A verdade é que eu
tinha medo de encontrá-lo e acabar o matando. Eu não o queria apenas morto,
queria derrubar todo o covil, entende? Porque se um escapasse, poderiam
começar um novo negócio.
— Você precisava saber quem eram todos os envolvidos — entendo.

— Não só isso. Eu preciso de provas, e isso é o mais difícil de


conseguir.

— Seu testemunho não vale?

— Não. O testemunho da acusação não serve de provas para condenar.


É preciso muito mais que isso para colocar pessoas ricas na cadeira.

Sacudo a cabeça, tomada por uma excitação nova. Nunca confiei tanto
em alguém como confio em George nesse momento, nem mesmo em Mikall
quando era criança. Sei que ele é capaz de fazê-los pagar, de condenar minha
irmã.

— Você escolheu o melhor curso que poderia. Mas como acabou


fazendo uma nova faculdade? — pergunto e franzo o cenho. — Como se
envolveu com Lauren?

— Era para eu ser motorista apenas do prefeito, mas sua irmã colocou
os olhos em mim e... — ele dá aquele tipo de risada triste. — Ela não foi nada
sutil na primeira vez em que ficamos sozinhos. Não queria a boca daquela
puta no meu pau, mas... — George arregala os olhos, se dando conta de que
perdeu a linha. — Desculpe pelo palavreado, senhorita.

— Tudo bem, foi só um minuto de descontrole — o garanto.

— Não deveria falar assim, fui rigidamente ensinado a não falar esse
tipo de coisa.

— Lavaram sua boca com sabão? Literalmente? — pergunto e ele me


olha, curioso. — Lavaram a minha também, sabe como falo o que vem na
cabeça.

Dou de ombros, o que eu tinha passado não deveria ser nada


comparado ao que ele foi submetido.

— Eles também eram criativos nos castigos do lado rico?


— Bem criativos. Espera, você me chama de senhorita e tenta ser tão
educado comigo porque eu morei na parte rica do convento?

— Era um colégio interno e caro, a senhorita tem uma certa classe —


ele brinca, dando um sorriso mais espontâneo.

— Sou um exemplo de bons modos.

— As freiras também te chamavam de senhorita?

— Só quando me castigavam — explico, ainda estou segurando sua


mão. — Quando eu as deixava furiosas.

— Por isso você ficou tão brava por eu te chamar assim ontem na
estação. Vou tentar não fazer mais.

— Tudo bem — aperto sua mão —, estou gostando mais agora.


Continue me contando sobre Lauren.

— Percebi que seria mais fácil investigá-la se fôssemos muito


próximos. Sabe como dizem, fique perto dos amigos e mais perto ainda dos
inimigos. Acho que não teria outra forma de me aproximar mais do que
estando dentro dela.

Sinto meu rosto esquentar, meu estômago fica frio. Não gosto de
pensar nos dois juntos, muito menos de ouvi-lo falar isso.

— Perdão, Agatha — ele pede e eu sacudo a mão livre, fazendo de


conta que não me importei. — Sei o quanto a família Mendes foi cruel com
você porque ela me contava. Dando risada, sabe? Me falou até sobre o dia em
que cortou seu cabelo loiro bem curto.

— Cobra desgraçada! — quase rosno.

— Ela vai pagar, eu te prometo.

— E eu confio em você. Me conte como acabou fazendo


administração.
— Quando me formei em direito, não tinha reunido provas suficientes,
precisava de mais tempo. Conversei com ela sobre isso, que achava que não
tinha vocação para advogado e que não me importava em passar mais alguns
anos lhe servindo. É tão vaidosa que acreditou. Ela pensa que é uma rainha
dominadora, que me tem na palma da mão, e ela simplesmente adora isso.

Engulo a saliva, sentindo a boca amarga. Ela tem tantos crimes pelo
quais pagar, fez tanta maldade, que eu mal posso esperar para vê-la indo para
a cadeia.

— Me sinto tão aliviada por não ter o sangue dela nem de Afonso, por
ser adotada.

George pega a latinha sobre a mesa e a chacoalha, verificando se ainda


tem refrigerante, em seguida a leva até a boca e bebe o resto.

— Como eles fazem? Como acontece esse... “comércio”? — pergunto,


sem ter certeza se quero realmente saber.

— Funciona mais ou menos assim: eles trazem uma adolescente de


outro país, pelo que descobri, às vezes são raptadas e em outras, a vítima é
vendida pelo próprio pai.

— O quê? — Não sei por que ainda me choco.

— Em alguns países onde a pobreza é extrema, os pais chegam a


vender as filhas para conseguir dinheiro e poder alimentar o resto da família.

— Que horror! — murmuro, apertando a mão contra o peito para


aliviar a agonia.

— Seria um prato cheio para esses monstros daqui, mas eles preferem
vítimas mais nutridas.

— Como eles as trazem?

— É aí que o prefeito entra. Lauren forjou a participação deles como


benfeitores em uma instituição de caridade, uma espécie de orfanato, onde as
crianças moram e estudam, mas é tudo apenas no nome dele. As passagens de
avião são compradas com o dinheiro da prefeitura, com verba do governo ou
até mesmo do bolso de Mikall. Quando eles conseguem uma vítima nova,
Lauren faz o prefeito assinar os cheques para as despesas da viagem e todos
os outros documentos para a garota ser aceita no país e no “orfanato”. Tudo
fica parecendo um ato de caridade, e não há nada contra Lauren a não ser a
palavra de Mikall.

— Contra todas as provas que o incriminam — completo. — E ele


nunca quis visitar esse tal orfanato, pelo menos para ver quem são as crianças
que ele supostamente deveria estar ajudando?

— Alguma vez ele foi te visitar no colégio interno? — George arqueia


uma das sobrancelhas.

— Não.

— Ele é uma marionete na mão de Lauren. E a cobra sairia ilesa de


tudo.

— E depois que essas garotas chegam, o que acontece? Lauren as faz


se prostituírem entre os membros do clube?

— É um pouco mais asqueroso que isso. Elas são leiloadas. Fazem


uma festa com bebidas e drogas, como um grande leilão beneficente. Os
membros do clube se reúnem e podem dar lances, quem pagar mais leva a
garota.

— E depois?

— Lauren só faz a venda e mantém o clube organizado, crescendo


desde que seu pai e o meu começaram isso.

— Então a garota é levada embora?

— Sim, o cretino que a compra passa a ser seu dono, e mais uma vez
Lauren se livra da responsabilidade, ela não mantém nenhuma vítima por
muito tempo. Acho que eles levam suas escravas para as próprias caixas de
concreto que devem ter construído no porão de casa ou em algum lugar da
floresta.

— Como aquela em que você viveu.

Ele faz que sim com a cabeça.

— Então Lauren nunca mais as vê, não tem mais contato com elas?

— Ela as vê nas festas de leilões. Os membros trazem suas escravas e...


— George faz uma pausa para respirar. — Fazem trocas de casais, se
revezam para estuprar a mesma garota... Coisas desse tipo.

Estou horrorizada demais, tremendo dentro da jaqueta de George.


Preciso de um copo d’água para tentar me acalmar, mas não tenho coragem
de pedir.

— Você sabe quantos homens fazem parte desse clube maldito?

— Sei que são catorze, mas tem um que ainda não descobri quem é.

— Como sabe quem são?

— Sei onde é a sede, onde fazem os leilões. Fica numa fazenda chique
e isolada. Já levei Lauren lá algumas vezes e fiquei esperando no carro por
horas, com a desculpa de que o proprietário era um homem muito recluso e
que não gostava de receber estranhos. Eu ficava do lado de fora do portão, há
cerca de um quilômetro da casa, e via todos os outros chegarem. Anotei
placas, os segui, descobri sobre eles. O problema é que eles não vêm cada um
no seu carro, às vezes vêm juntos, provavelmente estupram as garotas
enquanto o outro assiste pelo retrovisor e dirige.

A pizza está revirando dentro do meu estômago, me fazendo lembrar


do enjoo que senti mais cedo.

— E que desculpa a Lauren dá para frequentar esse lugar e te deixar


esperando do lado de fora?

— Ela diz que é viciada em apostas, que vai lá para jogar e que Mikall
não pode saber. Mas eu não a levo sempre, porque também preciso entrar na
propriedade sem ser visto e chegar mais perto para fotografar.

— Você tem fotos do que fazem lá dentro? — pergunto com os olhos


arregalados.

— Fotos, fitas de vídeos, de voz…

Sinto uma vontade mórbida de pedir para ver tudo, mas consigo
segurar essa curiosidade macabra.

— Nunca te pegaram?

— Sou discreto, e eles ficam tão entretidos com o que estão fazendo
que não reparam.

— Não tem ninguém que fica de vigia?

— Sim, há seguranças, mas eu sei quais são os pontos cegos.

— Você já tem provas em vídeo, sabe quem são, por que não levou
tudo para a polícia ainda?

— Por três motivos — ele diz e pigarreia para limpar a garganta. — O


primeiro é que ainda falta descobrir a identidade de um deles, tenho medo de
deixar um escapar e ele recomeçar o negócio depois, sem contar que sua
vítima continuará sendo abusada, todos precisam ir para a cadeia. O segundo
motivo é que eu preciso de uma prova que os incrimine por todas as garotas
que eles já escravizaram, e há um catálogo em que eles colocam fotos das
garotas que chegam, com um registro; não sei exatamente porque guardam
isso, e já desisti de entender tudo que uma mente doentia é capaz de fazer,
mas nunca consegui colocar as mãos nesse catálogo. O último motivo é...

— As assinaturas de Mikall — concluo, tendo noção do quanto isso


deve ser um problema.

— Sim. Eu já pensei em destruir tudo, mas ele deve ter cópias dos
documentos que ele assina em segurança.

— Então você não vai levar esse assunto à polícia até arranjar um jeito
de livrar Mikall da cadeia.

— Não, Agatha, eu só preciso descobrir sobre o décimo quarto


membro e conseguir uma prova do catálogo das vítimas. Mikall terá que
provar ele mesmo sua inocência. Não posso deixar aquelas meninas sofrendo
por mais tempo por causa dele.

Mordo o lábio e tento raciocinar. Sei que George tem razão, ele já
esperou demais para conseguir derrubar o negócio todo. Mikall é bem
grandinho para saber que não deveria ter instituições que nem visita, ainda
assim, eu quero tentar encontrar esses papéis e destrui-los.

— Não podemos salvar todo mundo — George diz como se soubesse o


que estou pensando. — Mas podemos e vamos ajudar os mais fracos.

Sacudo a cabeça positivamente.

— Sobre aquele bar que você chamou de “o covil do lobo”, por que
Mikall vai lá?

— Essa parte eu não posso afirmar com clareza, mas imagino que
tenha sido o jeito que Lauren encontrou de colocá-lo ainda mais em maus
lençóis, ele joga cartas e sinuca toda semana com todos os homens que são
membros do clube. Está atolado até o pescoço nesse pântano.

— Entendi. Ele é mesmo uma marionete. Só tenho uma dúvida, cada


membro do clube já possui uma escrava?

— Já.

— E por que Lauren continua fazendo leilões, arranjado mais garotas?

— Eles não querem ter apenas uma e... eu sinto muito, mas elas
adoecem ou tentam fugir e acabam mortas — vejo o horror no seu rosto
enquanto ele diz isso. Imagino o quanto deve ser difícil se controlar e não
fazer logo a denúncia. Ele precisa pegar todos de uma vez.

— A quem pertence a fazenda onde os leilões acontecem?


— A um homem chamado Efraim Delacroix, mais ou menos da idade
de Lauren. Seu pai morreu e ele herdou tudo há alguns anos.

— Os dois seriam os mandantes desse tráfico?

— Imagino que sim, mas Lauren é a rainha, entende?

Faço que sim com a cabeça.

— Você acha que o pai desse homem era o seu pai?

— Vi fotos deles no jornal quando comecei a investigar, mas como ele


morreu antes de eu vir para cá, não o vi pessoalmente. Como te disse, minha
mente apagou o rosto daquele monstro.

Assinto novamente. Acho que meus nervos ficaram dormentes, porque


já não sei mais o que estou sentindo.

— Precisamos ir dormir, Agatha — ele diz e olha para o relógio. —


São quase três da manhã.

— Tudo bem. Preciso acordar cedo.

— Qual o plano a respeito da faculdade?

— Vou exigir que Mikall pague toda a mensalidade — digo com


praticidade.

— Como? — George pergunta, curioso.

— Ele comprou quase todas as propriedades da família, sei que foi a


mando de Lauren, mas foi apenas para tirar tudo que eu tinha direito. É o
mínimo que ele pode fazer.

George sorri em aprovação, se levanta e joga sua latinha no lixo. Fico


de pé também.

— Você pode ir se deitar. Vou tomar um banho. Quer que eu deixe a


luz da cozinha acesa?
— Quero, por favor.
Confissão
Ele caminha até as prateleiras, pega uma roupa e vai para o banheiro,
apagando a luz da sala.

Vou até o sofá, tiro sua jaqueta e me deito, pegando um dos cobertores
para me aquecer. Ainda estou tremendo, tentei ser o mais forte possível
durante todo o tempo em que ouvi George falar, mas agora estou desabando.
É horrível saber que existe gente tão cruel, e que fui criada por pessoas assim,
que tem garotas mais novas que eu sofrendo abusos de todos os tipos nesta
cidade, que muitas já morreram em meio a tanto sofrimento, e que Lauren e
meu pai são responsáveis por tudo.

Não posso pensar nas provas que George já tem, o conteúdo dos vídeos
que ele gravou, porque se pensar demais vou querer ver, só para ficar
terrivelmente apavorada depois.

Estou tão aterrorizada que penso em acender a luz da sala. Os minutos


passam enquanto George toma banho. O som da água no chuveiro e da chuva
caindo lá fora são uma coisa real e bucólica, tento me concentrar nisso para
me poupar das imagens que estou pintando na mente.

Começo a pensar no homem debaixo do chuveiro, no seu corpo. Não é


o certo a se fazer, ainda assim, é muito melhor me apegar a isso. Pelo menos
esquenta meu corpo.

Mas minha mente perde o foco a todo tempo, me fazendo lembrar o


que ouvi.

Me concentro no barulho do motor da geladeira, no rangido de uma


motocicleta passando pela rua, uma coruja faz um ruído em algum lugar do
beco ao lado do prédio — não sei qual nome se dá a esse som, George deve
saber —, alguém se movimenta no andar de baixo, derrubando alguma coisa
pesada no chão, um carro buzina distante... O trinco da porta do banheiro é
destrancado, me fazendo dar um gritinho de susto.
— O que foi? Te acordei? — George pergunta, aparecendo na porta
com uma nuvem de vapor atrás das suas costas. Ele apaga a luz do banheiro
ao sair.

— Não foi nada. Só um susto.

Me encolho embaixo do cobertor e o observo. Ele usa somente uma


calça de moletom azul marinho, deixando visível a barriga malhada. A luz
que vem da cozinha e as sombras da sala destacam os músculos, fazendo seu
abdômen parecer aquela parte do tanque onde esfregamos a roupa.

Ele se aproxima da cama e meu corpo reage, a pulsação acelera em


expectativa de sentir o seu calor, seu cheiro, mas ele não se deita. Pega os
cobertores que ainda estão dobrados no lado livre da cama e se afasta,
abrindo uma manta e a esticando no chão.

O vejo improvisar um lugar para dormir e me sento.

— Você não vai dormir no chão — digo em protesto.

— Quer que eu divida a cama com a senhorita? — pergunta, surpreso.

— Na verdade, eu prefiro.

— Nem pensar, não vou atrapalhar sua privacidade. O chão não está
tão frio. Acredite, já dormi em lugares piores — ele dá desculpas, falando
depressa.

Pisco, pega de surpresa.

— Estou com medo, por favor, George — não sei exatamente o peso
que esse pedido tem, mas meu coração bate tão rápido que o sinto martelando
contra meus ouvidos.

Ele morde o lábio, mas pega os cobertores e vem se deitar.

— Vou vestir uma camiseta — diz assim que se senta no espaço vazio
da cama, fazendo menção de ficar de pé outra vez.
— Não seja bobo, eu já te vi pelado, esqueceu? — brinco, sem ao
menos pensar antes de falar isso.

Meu corpo reage com fervor na expectativa de abraçá-lo, enquanto ele


se acomoda ao meu lado.

Recordo a conversa que tive com Mikall, no meu estado de


embriaguez, sobre George ser um garoto e ele um homem, mas estava
enganado. George é muito mais homem que ele.

Inspiro, sentindo o cheiro de sabonete na sua pele fresca, o aroma do


shampoo nos cabelos ainda úmidos e a borrifada de perfume que ele deu no
pescoço; tudo funciona como uma tentação para chegar mais perto, mas ainda
me seguro.

— George? — o chamo. Estamos deitados, mas sem encostar um no


outro.

— Estou aqui, senhorita — ele sussurra com a voz áspera.

— Quando me tirou do bar ontem e disse que estava me protegendo


dos lobos maus... — minha mente conclui a questão antes que eu faça a
pergunta. — Você temia pela minha segurança de verdade. Lauren poderia
me vender para um daqueles homens nojentos e ninguém iria sentir minha
falta. Você tentou me assustar para me manter a salvo.

Um calafrio percorre minha espinha e eu fecho as mãos em punhos


para não me contorcer.

— Obrigada — sussurro.

— Venha aqui — ele diz baixinho e vou imediatamente para seus


braços, afundando o rosto na sua clavícula, sendo acolhida pelo seu cheiro,
sua pele quente, seu hálito contra minha testa. — Não precisa agradecer.

— Sim, eu preciso — digo com convicção. — Ter se preocupado


comigo ontem, ter me contado sobre tudo isso, ter me acolhido aqui... É mais
do que qualquer coisa que já fizeram por mim.
— Não fiz nada demais. Gostei de você — ele diz, apertando os lábios
contra minha testa. Seus braços estão em volta dos meus ombros e da minha
cintura como um escudo.

— Fez sim, você é o caçador que salvou a chapeuzinho de todos


aqueles lobos maus — murmuro contra seu maxilar. — É um herói.

— Não sou um herói. Se fosse, já teria salvado todas aquelas meninas.

— Não se desmereça assim.

— Eu me sinto sujo — ele sussurra tão baixo que mal posso escutar.
Percebo que fica tenso quando seus braços fortes se fecham ainda mais em
volta de mim. — O tipo de sujeira da qual eu nunca vou conseguir me limpar.

— Por que diz isso? — pergunto, afastando o rosto para conseguir


encará-lo. Apoio a cabeça no travesseiro, deitada de lado, e passo a mão no
seu queixo. — Por causa de Lauren?

— Também. Quando você permite que alguém que odeia toque seu
corpo, você se sente sujo. São as lembranças, a culpa por deixar, por não me
afastar. É uma sujeira terrível que eu sinto desde que ficava embaixo da cama
da minha mãe, enquanto ela... Me sinto sujo por ser filho de alguém como
ele, pelo que acontecia no orfanato.

É a minha vez de abraçá-lo bem forte.

— Não tem que se sentir culpado. Quanto à Lauren, você está fazendo
um sacrifício para ajudar outras pessoas. Considere isso. É um herói, sim.

Beijo seu maxilar, deixando meus lábios escorregarem sobre a pele.


Percebendo a aspereza da barba por fazer, passo meus braços em volta do seu
corpo e o aperto contra mim, sentindo a batida forte do seu coração de
encontro a meu peito. Quero aninhá-lo, quero cuidar dele.

— Obrigada por ter entrado na minha vida — ouço sua voz triste,
como a de alguém que não aguenta mais sofrer.

— Também sou grata por tudo que está fazendo — murmuro de volta,
com a boca contra seu queixo, logo abaixo do seu lábio inferior.

— Estou com medo, Agatha — ele diz, quase como se gemesse.

— De quê?

— De me apaixonar por você.

Sou pega de surpresa pelas suas palavras. Arregalo os olhos na luz


fraca do cômodo, sentindo como se meu coração fosse um carro sendo
acelerado contra um muro de concreto. Vamos bater e não tem como evitar.

Meu corpo reage, tenho tanta vontade de abraça-lo mais forte que me
assusto.

Tento me agarrar a alguma coisa concreta, desesperada em meio ao


turbilhão de emoções, quando percebo que também corro o risco de me
apaixonar. Não quero sofrer, não quero perdê-lo, e sei que não poderei
controlar isso. Ele é tudo que tenho e eu quero mergulhar, quero me entregar
ao sentimento, mas essa entrega também me assusta, porque há Lauren.

Engulo as emoções, me agarrando ao fato de que esse homem me


abraçando dorme com aquela cobra, e por mais que ele não goste dela, não
devo me envolver em uma confusão dessas, porque sei que vou acabar me
ferindo ainda mais.

Pensar nos dois juntos faz meu estômago doer, mas se ele for meu e
continuar transando com ela, vai doer muito mais. Não, definitivamente não,
eu não posso entrar no meio disso, e também não sou egoísta nem tola o
suficiente para pedir que ele a dispense.

Meu estômago revira quando me pergunto como ela o toca, como ele
corresponde, se já fizeram aqui nessa cama, nesses mesmos lençóis.

George se move, esfregando a mão nas minhas costas, pressiona a testa


contra a minha e se aproxima. Me derreto em chamas quando sinto seus
lábios roçando os meus. Cada pedacinho do meu corpo deseja corresponder.
Fecho as mãos bem forte, cravando as unhas na palma para me manter sã,
apegada à razão, até mesmo quando ele desliza a mão até minha nuca e junta
meu cabelo entre seus dedos.

Eu sou uma pessoa quebrada, e ele é ainda mais, quem sabe seja por
isso que estejamos nos sentindo assim. Um entende o outro e talvez não haja
mais ninguém com quem possamos nos abrir, conversar...

É isso, penso, George preencheria o espaço vazio no meu coração.

Lauren!, minha mente berra.

Não vou aceitar dividi-lo com ela.

Luto contra o desejo, seu hálito na minha boca não ajuda em nada.

— Você sabe que nome dá ao som que a coruja faz? — sussurro a


primeira coisa aleatória que me vem à mente.

— O quê? — ele pergunta como se tivesse sido tirado de um sonho de


repente.

— Aquele som... Ouvi uma coruja piando, mas não sei como se chama
o som que ela faz. Imaginei que você soubesse.

Sinto seus braços afrouxarem ao meu redor, sua boca se afasta da


minha, me deixando com uma sensação angustiante de vazio. Acho que sou
masoquista.

— Chirriar — ele diz.

— Ah... — dou um risinho falso de satisfação.

— Se sente feliz agora que tirou uma dúvida tão importante da cabeça?
— ele pergunta, parece sarcástico.

— Acho que está na hora de dormir — comento, forçando um bocejo.

— Tudo bem.
George se afasta ainda mais, de modo que nossos corpos não se
toquem, ficando na beirado do sofá-cama.

— É por causa do prefeito? — murmura, deitado de lado com o braço


musculoso embaixo do travesseiro. — Você é mesmo apaixonada por ele?

— Esqueci de escovar meus dentes. — Me levanto de súbito, indo até a


mochila para procurar minha escova.

Percebo que estou tremendo, mas não é de frio. Caminho até o


banheiro com a escova de dentes agarrada ao peito. Diante do espelho, vejo
meu rosto afogueado, o molho com a água fria e tento reordenar os
pensamentos.

Eu mereço alguém como George? Não me importo. Eu o quero


também? Mais do que deveria. Eu aguentaria vê-lo entrando no carro com
Lauren, sabendo que ela passaria a mão e a boca em todo aquele corpo
gostoso, mesmo que para ele não significasse nada além de um fardo?
Definitivamente não.

Droga! Não posso acreditar que já estou sofrendo de ciúmes e que o


motivo é minha irmã outra vez.

Compreendo que isso realmente pode ser paixão, diferente do que senti
por Mikall, que era apenas uma necessidade de carinho e atenção que só ele
atendia.

Desejo voltar depressa para a cama e exigir seu afastamento de Lauren,


o que iria contra seu plano para salvar aquelas garotas; não posso me
intrometer nisso. A única saída é ser paciente e esperar que ela e todos os
outros monstros sejam presos o mais rápido possível, que aquelas garotas
possam voltar para suas vidas.

Meu coração dispara assim que retorno ao cômodo, me aproximando


da cama com cuidado. Guardo a escova de dentes e entro embaixo do
cobertor, ao seu lado. George se remexe, mas não se aproxima para me
abraçar.
— Não quero que pense... — começo, sem saber exatamente o que
estou dizendo.

Enrolo o cabelo, formando um coque na minha nuca e dou um nó,


esperando que ele diga algo. Sua respiração soa forte e rápida. Não sei se o
magoei mudando de assunto daquele jeito, não quero machucar alguém que
sofreu tanto. É preciso colocar as coisas em pratos limpos, explicar porque
não quero me envolver em um triângulo, mesmo não sendo amoroso, mas
estou certa do que posso ou não falar? Admitir que estou me roendo de
ciúmes? Não, isso não.

Pensei que as coisas seriam muito mais fáceis quando crescesse... Só


piorou.

O tempo está passando, e eu estou pensando demais, talvez porque


pensar sobre essas coisas afaste da mente os horrores do tráfico, e se começar
a matutar sobre isso enlouquecerei.

Limpo a garganta com o pigarro e deslizo meu joelho pelo lençol até
encontrar sua perna.

— Não é por causa de Mikall — sussurro, chamando sua atenção.

— Não? — ele murmura com o tom de voz sério, que denota seu
humor.

— Não mesmo. Não sou e nem nunca fui apaixonada por Mikall, não
no sentido de homem e mulher. Me apaixonei pela forma que ele me tratava,
pelo afeto e a ternura que demonstrava. Nunca teve a ver com esse tipo de
paixão — estico a mão e toco seu peito nu, o fazendo estremecer, me
surpreendendo com a dureza dos músculos, com a temperatura da sua pele.
Minha mão encaixa em torno do seu peito esquerdo e eu posso sentir seus
batimentos de encontro a meus dedos. — Nunca foi esse tipo de sentimento.

Sou tomada pela agonia de me agarrar a ele outra vez, em um estado de


carência tão cruel que mal posso me dominar.

Jamais foi tão difícil conversar com Mikall porque eu não sentia essa
desordem dentro de mim, essa louca vontade de me unir a ele. Era apenas
carinho.

O que estou experimentando agora, seja lá o que for, é muito mais


intenso, toma conta do meu coração, dos meus nervos e meu sangue, me faz
ferver.

— Então... — ele murmura, ainda na beirada do sofá-cama, mantendo


distância.

— As coisas estão acontecendo muito rápido — sussurro cada palavra


com calma. — Chega a ser assustador.

— Sei disso — diz e solta um risinho. — Só te conheço há dois dias,


não estou apaixonado por você!

Ele ri como se estivesse recordando de uma piada, parece nervoso.

— Não é questão de tempo. A quantidade de dias que passamos juntos


não tem a ver com o que podemos ou não sentir. Digo isso porque fui
magoada por todas as pessoas que conheço há muito tempo. Acho que não
tem nada a ver com isso — digo, me surpreendendo com a escolha de
palavras, me considerando madura diante da situação, pelo menos até certo
ponto.

— Então o que é? — George insiste, se aproximando novamente,


dominando meu olfato com seu cheiro amadeirado, me esquentando ainda
mais com o calor que exala da sua pele.

Engulo a saliva, me segurando para não falar que estou com ciúmes de
Lauren.

— Não consigo te beijar sabendo que vai fazer a mesma coisa com
Lauren depois.

— Mas você já beijou. Duas vezes.

— Foi diferente, não estávamos sozinhos. Foi só para provocá-la.


— Entendo. Desculpe a insistência, não queria te constranger, ainda
mais com tudo que está sentindo e passando, não deveria nem ter tocado no
assunto.

— Tudo bem — sussurro, é bom saber que tenho essa opção, é


incrível. Me sinto eufórica por imaginar ser correspondida, poder me entregar
a alguém que vai me amar de volta é tudo que sempre quis, mas eu preciso
me segurar. — Saiba que gosto de você.

O vejo menear a cabeça positivamente e dar aquele sorriso torto


adorável, fazendo meu coração se encher de esperanças.

— Você tem o sorriso mais bonito que eu já vi, sabia? — comento,


levando a mão até seu queixo para lhe fazer carinho.

— E você é a mulher mais bonita que já vi — ele devolve, esticando


sua mão para percorrer meu cabelo comprido com os dedos, desfazendo o
nó.

Suspiro, feliz por ele me ver como uma mulher e não uma menina,
mesmo sabendo que tenho pouca experiência de vida.

— Você é incrível — preciso dizer —, por sua determinação, por tudo


que passou e todo o esforço em tentar colocar aqueles monstros na cadeia.
Você poderia simplesmente seguir com sua carreira e esquecer o passado.

— Não sou do tipo que esquece, muito menos que deixa garotas sendo
abusadas sem fazer nada.

— Obrigada por dividir isso comigo. Saiba que farei tudo para ajudar
essas meninas.

Ele sorri de novo e dá um bocejo.

— Posso deitar no seu peito? — o questiono, fazendo minha melhor


cara de inocente.

— Deve — ele diz, deitando de costas e me puxando para junto de si.


Seu braço esquerdo envolve meus ombros e o direito, minha cintura.
Ele beija minha testa quando apoio a cabeça no seu peito, dobro a perna e a
coloco em cima do seu quadril, deixando minha mão descansar sobre suas
costelas.

Pego no sono com o carinho que ele faz no meu cabelo. Nunca dormi
tão protegida.
Nem tão inocente assim...
Acordo de repente; a luz do sol entra pela única janela do cômodo, o
iluminando. Estou sozinha no sofá-cama, mas vejo a cabeça de George
aparecendo no pé da colchão, desaparecendo em seguida. Pisco os olhos e os
esfrego, enquanto bocejo, tentando entender o que está acontecendo. Seus
cabelos castanho-escuros surgem outra vez e depois somem. Engatinho pela
cama até vê-lo fazendo flexões. Continua sem camisa, a calça de moletom cai
perfeitamente em torno dos seus quadris, marcando sua bunda como uma
luva, os músculos das costas e braços estão tensionados com o exercício.

Respiro profundamente, é a melhor visão com que uma garota poderia


acordar. Me pergunto se ele conseguiria continuar o exercício se eu sentasse
nas suas costas.

— Bom dia — me cumprimenta com a voz grave.

— Bom dia.

Se ele está mesmo com medo de se apaixonar por mim, sou a garota
mais sortuda que conheço. Pulo da cama, eufórica com o pensamento.
Encontro minha mochila e pego minha escova de dentes, indo para o
banheiro em seguida.

Quando retorno, ele está caminhando pela cozinha, sinto cheiro de ovos
e café.

— Vou colocar uma camiseta — diz, abaixando a cabeça sem graça ao


me ver entrando no cômodo.

— Não! — quase grito com a frustração de ter aquele abdômen


coberto, mas consigo disfarçar. — Por mim não precisa, a casa é sua e juro
que não me importo.

Vejo o canto da sua boca se erguer com o sorriso torto e meu coração
dispara. George despeja os ovos mexidos em dois pratos e me oferece uma
xícara de café. É sensual ter um homem cozinhando para mim e me servindo,
mesmo que seja apenas um café da manhã simples.

Comemos em silêncio, porque cada vez que penso em falar alguma


idiotice, mordo o canto interno da bochecha. George parece tímido, evitando
cruzar o olhar com o meu. Talvez tenha se arrependido por ter se aberto
demais. Mal sabe ele que foi a melhor notícia que eu recebi na vida inteira.

— Obrigada por me deixar ficar aqui — comento, para aliviar o clima.


— Os ovos estão uma delícia.

Ele ergue o rosto e me olha. Adoro o tom de mel nos seus olhos, o
formato das suas sobrancelhas escuras, o rosado dos seus lábios, o nariz reto
e principalmente a linha do seu maxilar. Sinto meu coração esquentar só de
olhá-lo.

— É muito bom ter você aqui.

— George — o chamo para conseguir manter uma conversa —, você


acredita em Deus? Quer dizer, depois de tudo que passou dentro de um
convento…

— Não é culpa Dele — ele diz sem precisar de tempo para refletir. —
Pelo menos eu não o culpo. Não tem a ver com a religião, mas com as
pessoas ruins que se escondem por trás dela. Acho que temos pessoas ruins
em qualquer lugar.

Sacudo a cabeça em concordância.

— Também penso assim. Sofremos nas mãos de algumas freiras, mas


se elas não estivessem no convento, estariam em escolas, hospitais ou em
casa, judiando de possíveis filhos.

Ele bebe alguns goles de café, antes de se levantar para lavar a louça.

— Posso te deixar na prefeitura? Tenho que encontrar Lauren o quanto


antes — ele diz, acanhado.

Sinto um nó na garganta. Não quero que ele a veja, muito menos que
fique a sós com aquela cobra. Não desejo ir à prefeitura e convencer Mikall a
investir nos meus estudos, tudo que quero é voltar para a cama com este
rapaz incrível, mas é tão difícil conseguir o que tenho vontade.

∞∞∞

Estou chocada com o que vejo diante de mim. Sentada na poltrona de


frente à robusta mesa de madeira maciça, vejo a placa com o nome do
prefeito: Mikall Mendes. Ele não deu o seu sobrenome Müller para Lauren,
mas pegou o dela. Pisco, pensando no domínio que ela exerce sobre ele e fico
com pena. Se não arranjarmos um jeito de destruir todas as evidências que o
incriminam, ele vai precisar de ótimos advogados, porque George não vai
ficar esperando para fazer a denúncia. Eu mesma não esperaria, mesmo sendo
por Mikall, a vida daquelas garotas é muito mais importante.

— É só marcar para amanhã — ele repete para a secretária de meia


idade que atende o telefone e recepciona as pessoas na mesa do lado de fora
do gabinete do prefeito. Ele aperta a parte de cima do nariz, entre os olhos,
como se já estivesse com dor de cabeça logo cedo. — Sim, sim, eu vou me
lembrar.

O vejo bater o telefone e desvio o olhar para as prateleiras de madeira


repletas de arquivos. Me pergunto se em algum deles estão os papéis sobre o
suposto orfanato. Se eu conseguisse acabar com tudo, ainda existiria mais
provas, como documentos de verbas e cheques do banco? Não faço ideia, não
entendo disso. Só George sabe o quão encrencado ele está.

— Vamos? — ele murmura, estressado.

Se levanta de sua poltrona chique e pega o terno que está pendurado no


espaldar. O veste de cara fechada. Quero brincar com ele, dizer alguma
bobagem que lhe arranque uma risada, mas estou melancólica demais para
isso. Imaginar que alguém como ele provavelmente vá para a cadeia não faz
meu dia melhor.

— Vamos — sussurro, ficando de pé e pegando a carteira sobre a


mesa, ao lado da placa com seu nome, todos os meus documentos
importantes estão nela. — Está com seu talão de cheques? Não o da
prefeitura, mas o pessoal.

Ele me olha desconfiado, arqueando uma das sobrancelhas, me


investigando com seus olhos azuis.

— Mikall, você pagou o preço real por todas as propriedades do meu


pai? — sinto asco ao pronunciar as palavras “meu pai”, não quero ter
nenhuma relação com ele, a não ser as questões financeiras.

— Vamos conversar no carro, menina — ele diz, se aproximando e


pondo a mão na minha cintura ao me guiar para a porta. Atravessamos a
prefeitura com todos os olhares voltados para nós.

Vejo as pessoas se levantando das cadeiras de espera, dizendo “senhor


prefeito” e tentando chamar sua atenção. Mikall apenas acena para eles e
abaixa a cabeça.

— Senhor prefeito! — uma voz grita mais alto às nossas costas. É a


secretária, usando uma sombra azul celeste e um terninho de tweed com saia
lápis caramelo. — George saiu com a primeira dama, quer que eu arranje
outro motorista? Posso fazer isso num segundo.

— Não precisa. Eu mesmo vou dirigir — Mikall informa.

Passamos pela saída e ele me guia até seu carro, um Maserati vermelho
de duas portas lustroso. Me acomodo no banco da frente, feliz por escapar do
vento frio e da garoa. Choveu um pouco na madrugada, deixando a cidade em
uma neblina gélida.

— Seu pai vendeu por um preço bem abaixo do mercado. Eu era


apenas um vereador, você sabe, não poderia ter pagado por tudo — ele
explica assim que dá a partida.

Vira o volante para a esquerda, tomando o rumo da universidade.

— Alguma vez passou pela sua cabeça que estava adquirindo esses
bens só para que não restasse nada para mim?

Ele olha pensativo para a estrada.

— Ele se livrou de quase tudo antes de morrer, isso é verdade.


Também é verdade que não pensei muito a respeito. Não imaginei que fosse
te ver novamente. Você estava tão longe naquele internato, eu não
considerava que seus dezoito anos fossem chegar tão depressa e que você
voltaria para esta cidade. Não refleti muito a respeito das consequências.
Agora me parece ridículo e egocêntrico da minha parte, só que na hora não
me senti assim. Seu pai estava me oferecendo uma fortuna em propriedades a
preço de banana e eu não poderia recusar. Não seria burro o bastante para
recusar. E ainda tinha sua irmã que me dizia que era a coisa certa a fazer, que
eu não poderia dizer não, e que seríamos muito felizes e ricos.

— Foi muita estupidez — murmuro. — Não um ato de burrice, mas de


egoísmo.

— Eu não sei o que sua irmã faz comigo para que eu sempre caia na
sua conversa. Sempre considera seus planos tão melhores que os meus, e eu
simplesmente cedo, mesmo sabendo que ela nunca vai me dar ouvidos, que
ela nunca vai levar em consideração minhas opiniões. Lauren é assim,
consegue tudo que quer sem medir as consequências — Mikall soa
perturbado enquanto fala. As palavras saem de sua boca como se ele estivesse
desabafando algo que esteve entalado na sua garganta por muito tempo. Vejo
como ele respira, como aperta as mãos no volante e, outra vez, sinto pena
dele.

Imediatamente, me acho ridícula por ter pena de um homem de mais de


trinta anos que obedece cegamente às ordens daquela escrota. Se ele não tem
capacidade de pensar por si só, eu não deveria estar com pena mas, apesar de
tudo, eu ainda sinto carinho por ele e não poderia lhe desejar nenhum mal.

— Você consegue entender as consequências agora? — o questiono,


segurando firme no banco para controlar minhas emoções.

— Sim — ele diz e vira o rosto na minha direção para me encarar. —


Agatha, nunca pensei realmente em me divorciar, até você aparecer assim na
minha frente. Acho que...

— Droga, Mikall! — berro, cedendo ao meu impulso de falar o que


penso. — Essa conversa não é mais sobre você e o que quer ou não fazer a
respeito do seu casamento falido. Estamos aqui para que repare o prejuízo
que me trouxe, para que você perceba que, enquanto esteve acumulando
riquezas, me deixou sem nada para morar além de um casebre no meio do
nada e caindo aos pedaços!

— Eu não pensei...

— Não pensou o quê? Que eu iria querer reaver minhas coisas?

Fecho as mãos em punhos, furiosa, tomada pela dor dos machucados


onde cravei as unhas na madrugada.

— Urgh! — gemo, enfurecida. — Vamos até a universidade, vou fazer


minha matrícula e você vai assinar um cheque pagando por todas as
mensalidades, entendeu?

— É mais que justo — ele afirma.

— Seria ótimo se você tivesse pensado nessa ideia antes, em vez de me


tirar do sério.

— Eu sinto muito, Agatha.

—É para sentir mesmo.

Ele é um banana! Como George disse, é uma pessoa boa, mas é muito
lento. Talvez mereça tudo que Lauren está fazendo contra ele.

Me arrependo de pensar assim que os pensamentos se concluem na


minha cabeça. Ninguém tem culpa de confiar, de existirem pessoas más.

— O que mais você quer que eu faça por você, por enquanto? —
Mikall me questiona, soando tão manso que chega a ser irritante.

— Por enquanto — dou ênfase às palavras, soando um pouco


sarcástica —, quero apenas que você me leve para fazer compras, preciso de
roupas.

Deslizo a mão no tricô do meu suéter, ciente de que, se não comprar


novas peças, estarei sem ter o que vestir amanhã.

— Sem problemas, o que você precisar.

Fico me perguntando se ele realmente me dará tudo que eu precisar ou


se diz isso somente porque Lauren não está aqui. Tenho medo da resposta.

∞∞∞

Na universidade, me matriculo para as aulas do próximo semestre. Sem


que eu precise fazê-lo entender que aquilo é realmente sua obrigação, que ele
está em débito comigo por ter enriquecido às custas do que seria minha
herança, Mikall pega seu talão de cheque e assina, colocando o valor total das
minhas mensalidades.

Respiro aliviada quando ele entrega o cheque para a moça que está do
outro lado do balcão, imaginando que Lauren não terá como reaver esse
papel, que eu estarei com a faculdade garantida. Pelo menos isso.

Saindo de lá, vamos até uma loja de departamentos, onde ele me espera
sentado em um sofá Chesterfield de couro marrom, enquanto escolho e
experimento todas as peças que imagino que vão combinar comigo.

Da loja ele me leva para almoçar em um restaurante francês. Peço uma


massa ao molho pesto e Mikall, um filé mignon ao poivre acompanhado de
batata rosti. Bebemos suco de uva fermentado, enquanto comemos.

— É impressionante como você atrai os olhares das pessoas, Agatha —


Mikall expõe e eu me viro para olhar em volta, flagrando alguns homens que
desviam o olhar assim que os encaro. Sinto meu rosto esquentar um pouco,
enquanto imagino o que devem estar pensando.

— E se eles acharem que temos um caso? — pergunto para Mikall


descaradamente.

Ele se engasga e limpa a boca no guardanapo de linho que está sobre o


seu colo.

— Bem, se eles pensarem que temos um caso, acho que estarei


perdido. Sua irmã vai arrancar minhas tripas e fazer um churrasco com elas
— ele diz, me fazendo dar uma gargalhada, o que chama ainda mais a
atenção das pessoas ao redor, principalmente dos homens.

Me pergunto se algum deles pertence ao clube demoníaco que Afonso


Mendes fundou.

— Falei sério quando disse que queria realmente me separar — ele diz,
baixando o tom de voz e alcançando minha mão por cima da mesa.

Sinto seus dedos percorrerem meu pulso e não me contenho,


recolhendo a mão de repente. Não é por Lauren, não é por ele ser casado, é
apenas porque estou pensando em George e não quero ficar de mãos dadas
aqui com outro homem, mesmo que isso tenha sido meu sonho por tanto
tempo. Um sonho muito bobo por sinal.

Mikall é um homem manipulável e, em se tratando de bom senso e


atitudes coerentes, ele não é muito bom nisso.

— Que bom que decidiu se separar — digo, colocando uma mecha do


meu cabelo loiro atrás da orelha. Pigarreio antes de voltar a falar. — É uma
pena que você tenha deixado sua preciosa esposa influenciá-lo por tempo
demais. Acho que ela te manipulou tanto que você nem sabe mais como agir
sem ela, sem os seus comandos, sem estar cumprindo com todas as vontades
daquela vaca.
A viagem
A volta para casa é tensa e silenciosa, como se o tempo estivesse se
estendendo.

Na prefeitura, somos recepcionados novamente pelos olhos


especuladores das pessoas que ali estão. Quase posso imaginar alguns dos
homens pensando: foi só a jovem cunhada do prefeito chegar para ele
colocar as asinhas de fora.

A secretária de Mikall corre para interceptá-lo a respeito da suas


obrigações pendentes assim que chegamos. O sigo até seu gabinete e volto a
ocupar a cadeira onde estive sentada mais cedo.

Sem saber exatamente o que fazer nem para onde ir, o observo
trabalhando por alguns minutos, esperando ansiosa, na expectativa de que
George apareça a qualquer momento, procurando por mim, mas sei que ele
está ocupado demais com Lauren.

Os minutos se prolongam. Pego uma revista sobre pessoas de negócios


bem sucedidos e a folheio, enquanto considero se devo ir até o rancho ou não.
Não tenho carro, carona e sequer sei o caminho correto, logo sou obrigada a
descartar a possibilidade.

O som do telefone tocando me tira do tédio. Mikall atende


imediatamente e sacode a cabeça, aparentando estar nervoso. Quando ele
desliga, Lauren entra sozinha no escritório. Não sei onde George está, mas
também não tenho coragem de perguntar a esta bruxa.

Ela vai até o balcão que se encontra no lado oeste do escritório, uma
espécie de aparador que contém um porta-retratos com a foto das gêmeas e
outro com uma fotografia sépia do casamento, além de alguns objetos de
decoração. Na prateleira de baixo encontram-se as garrafas de bebida
importadas e caras. Lauren começa a preparar um drink, de costas para nós,
ignorando minha presença, ao mesmo tempo em que Mikall continua
dedicado, lendo seus documentos importantes como se nem eu nem sua
esposa infiel estivéssemos ali.

Quando ela acaba de preparar a bebida, leva até a mesa dele.

— Não quero beber agora, tenho um monte de documentos e papéis


para preencher, licitações para examinar. Não posso trabalhar sob efeito de
álcool quando estou analisando solicitações, quando estou cuidando desta
cidade. Sabe muito bem disso, querida.

É tão depravado a forma que ele a chama de querida que penso em


bater com o punho contra a mesa para chamar sua atenção e lhe dizer que ele
é um babaca manipulado.

— É por isso que você está com essas rugas de preocupação na testa,
sem mencionar os pés de galinha — ela diz, tocando seu rosto, enquanto
rebola o quadril. — É por isso que está com essa cara, seu semblante não
nega o quanto está estressado. Vai ficar velho antes do tempo e sabe muito
bem que vou te trocar por outro se não se cuidar — Lauren o repreende como
uma mãe dando bronca em uma criança levada, mostrando um risinho
inocente, mas eu sei melhor que ninguém que essa é a verdade, que ela vai
trocar seu marido por um modelo mais jovem assim que não precisar mais
dele.

Lauren só precisará encontrar outro homem para manipular e satisfazer


seus desejos perversos, então ela vai dar um pé na bunda de Mikall. O
mandará para a cadeia se for preciso.

Estou inteirada de tudo que ela capaz de fazer.

Me ignorando por completo, ela aproxima a bebido ao rosto dele e o


faz sentir o aroma.

— Veja como o cheiro é gostoso. Não te dá água na boca? — ela


pergunta.

— Sei que você tem uma vida boêmia e que é adepta a beber durante o
dia, mas eu não sou assim, Lauren. Tento ser o mais responsável possível e
isso inclui não beber no expediente — Mikall se defende.
— Pelo amor de Deus, querido, beba logo esse uísque e pare de se
lastimar! Sabe como eu odeio quando você fica melodramático.

Ela revira os olhos bufando e deixa sua máscara de irritação a mostra


por um instante, mas logo faz uma cara de esposa brincalhona outra vez.

Mikall pega o uísque e coloca os seus dedos sobre os dela em um gesto


singelo.

Me sinto mal por presenciar isso, tenho vontade de fugir e, ao mesmo


tempo, me sinto tentada a ficar e contar para Mikall sobre tudo que ela
esconde. Tenho vontade de bater as mãos com toda força sobre a mesa e dizer
que ele nunca deve beber uma gota de álcool quando estiver na companhia
dela, que ele nunca deve sequer piscar os olhos, jamais se distrair por uma
fração de segundos que seja, que ela é tão perigosa que ele não deve baixar a
guarda nunca!

No entanto, tenho ciência de que ela ficará desconfiada se eu fizer isso


e nos matará num piscar de olhos.

Permaneço calada, engulo as emoções e começo a reparar nos detalhes.


Percebo que Lauren não se deu ao trabalho de colocar nem dois cubos de
gelo na bebida âmbar dentro do copo baixo e largo. Mikall começa beber e eu
o assisto relaxar os ombros, soltando o peso do corpo no espaldar da poltrona.
Ele se inclina para trás e demonstra satisfação, com o rosto relaxado.

Lauren morde o lábio vermelho e balança os quadris ao segurar o


cotovelo direito com a mão esquerda. Realizada, ela troca o peso do seu
corpo para o outro sapato de salto alto e dá um risinho de satisfação por ter
feito o seu trabalho direito, por saber que Mikall ainda come na sua mão,
então começa andar pelo escritório, tocando as lombadas das pastas de couro
que abarrotam as prateleiras de carvalho.

Imagino em qual daquelas pastas estão os documentos do suposto


orfanato. Mesmo que não faça diferença e que eu não tenha certeza que possa
ajudar Mikall, eu sei que preciso vasculhar essas estantes nos próximos dias.

Ouço uma batida na porta, um instante antes de George abrir e se


recostar no umbral. O casal o ignora, como estão fazendo comigo.

— Querido, há uma nova criança pobre que precisamos ajudar.


Encontramos ela em um país da Ásia, o Sri Lanka. Sua família foi morta na
guerra civil no ano passado. Vou me reunir com os outros membros da
instituição, e precisamos ir buscá-la imediatamente. Ela não pode mais ficar
ao Deus-dará como está naquele país. Por isso, viajarei hoje mesmo para a
capital, onde terminarei de organizar os papéis para que ela possa ser
acolhida no nosso orfanato, só preciso que você assine tudo e que preencha
os cheques com os valores em branco, assim eu poderei colocar os números
quando souber exatamente o que será gasto com esse resgate.

Meu coração dói quando percebo do que ela está falando, olho para
George, que me encara desconfiado com seus expressivos olhos cor de mel.

Mikall está com cara de bobo, deixando transparecer que crê em tudo
que essa cobra fala. Ele retira o talão do bolso do terno cinza escuro e pega
sua caneta no suporte prateado sobre a mesa.

Preciso ser forte o bastante para não dar com a língua nos dentes. Outra
vez, enfio as unhas nas palmas das mãos para aguentar a pressão de guardar
um segredo tão asqueroso. Olho para George outra vez e penso em sua
determinação, e tento me inspirar nele.

Mikall está preenchendo os cheques, três deles, enquanto Lauren


espera com os olhos vidrados, fazendo carinho em sua nuca. Tenho tanto
nojo dela que sinto vontade de vomitar Mikall parece tão ingênuo quanto
uma criança que nunca sofreu.

Examino o rosto de George, lhe perguntando com o olhar se Lauren


está mesmo indo buscar uma nova vítima do tráfico nojento. Entendendo o
que quero dizer, George acena uma única vez, o que é o suficiente para fazer
meu coração ficar ainda mais pesado, como se eu estivesse carregando uma
tonelada de pedras no meu peito.

Engula a saliva, desesperada para me livrar da sensação nauseante e da


bile que sobe pela minha garganta. Ela não vacila uma única vez, enquanto
mente para o marido.
— Passarei algumas noites fora, George irá comigo. Espero que você
não se importe, querido. Acabei de chegar e já tenho que sair novamente, mas
você sabe como tenho esse coração caridoso, não aguento saber sobre essas
meninas sofrendo. Quantas eu já ajudei? Só esse ano, acho que foram sete —
ela diz e me olha, como se estivesse querendo me provocar com a sua pose de
boa samaritana. Mal sabe ela que sei sobre tudo.

Ela vira o rosto para George e pisca quando o marido diz que já está
acostumado a passar as noites sem sua companhia, o que me dá ainda mais
nojo. Lauren passa o polegar embaixo do lábio inferior e sai rebolando na
direção da porta, onde George está.

— Vamos me levar até o carro, querido? — convida Mikall.

Fico de pé e vou até a porta.

Só quando me aproximo de George é que me dou conta do quanto


estou com saudades. Vejo o canto do seu lábio inferior se curvar para cima
naquele sorriso torto e encantador, com o qual já estou me acostumando, e
então ele passa a mão no meu braço esquerdo para fazer carinho, deixando o
calor da sua pele acariciar a minha. O arrepio vem imediatamente. Então
percebo que não quero que ele viaje com essa cobra. Não só por tudo de
podre que ela planeja fazer, mas porque eu também não quero me afastar
dele, muito menos por tantos dias. Não sei quando o verei de novo, não sei
onde vou conseguir dormir e também não tenho certeza se estou preparada
para ficar sozinha nessa cidade, onde eu sei que posso ser raptada e que o
tonto e imbecil de Mikall nem vai dar falta, e quando minha mãe chegar aqui
com as princesas gêmeas, eu já estarei morta e enterrada, depois de ter sido
abusada por esses maníacos que moram aqui. Tudo que precisam é de apenas
um sinal de Lauren para me pegar. Tenho plena consciência de que ela ficaria
muito satisfeita em me ver sendo escravizada por seus “sócios”.

O choque do pensamento me invade, me fazendo tremer. George


percebe e me abraça, dizendo que vai voltar o mais rápido possível e me
pergunta se eu conseguirei ficar sozinha sem ele. Com todo meu orgulho e
com a minha pose de metida, faço que sim com a cabeça e digo que ele não
precisa se preocupar comigo, que eu ficarei com saudades, mas saberei me
virar.
É mentira, não estou certa se sei me virar sozinha e não tenho força
suficiente para me proteger se um ou mais homens tentarem me pegar à força.
Mikall não servirá de nada, a única forma de me manter protegida é se eu me
grudar nele 24h por dia. Engulo a saliva, pensando na possibilidade. Não
tenho mais nenhum sentimento por esse homem que agora é meu cunhado e
que antes pensei ser o amor da minha vida. Não tenho desejo físico por ele,
mesmo que tenha me sentido atraída quando cheguei.

Foi apenas o choque da primeira impressão de vê-lo parado diante de


mim quando o encontrei no primeiro dia. Por mais que seja atraente, a sua
falta de posicionamento e de personalidade tiraram todo charme que ele tinha
antes, por isso sei que posso ficar muito bem sozinha com Mikall durante
esses dias e não correr nenhum perigo de ter uma recaída. Sorrio vitoriosa
nos braços de George. Eu o acompanho até a saída da prefeitura, enquanto a
vaca vai rebolando na nossa frente, com o braço pendurado no cotovelo do
marido.

— Sabe, senhorita — ele diz, me fitando com aquele olhar brincalhão e


triste ao mesmo tempo, quando alcançamos a saída—, sei que não tivemos
um bom começo e tenho consciência de que me precipitei com as palavras na
noite anterior. Eu não deveria ter falado todas aquelas coisas, ainda mais
depois de ter te contado aquelas histórias horripilantes, foi imprudente e
desnecessário da minha parte começar a falar de paixão. Eu estou consciente
de todos estes detalhes, mas vou seguir meu coração, que diz que eu devo
convidar a senhorita para sair comigo, e que se eu fizer dessa forma, se as
coisas forem acontecendo lentamente, poderemos dar certo. Mas se sinta à
vontade para recusar, não estou pressionando, não quero parecer chato.

— Eu aceito — digo, colocando as mãos contra seu peito, sentindo a


dureza dos músculos por baixo da camisa. — Eu aceito, sim, George. Quero
sair com você. Será meu primeiro encontro de verdade. Também concordo
que as coisas poderão dar certo se tentarmos fazer de uma forma simples, se
formos com calma.

— Então podemos sair para jantar?

— Eu vou adorar — o asseguro. — E quando você vai me levar para


jantar?
— Assim que eu voltar de viagem. Você promete que vai se cuidar,
andar na linha e não arrumar confusão com ninguém? Sei o quanto é difícil
para você me prometer uma coisa desse tipo, mas eu não sei se conseguirei
dormir, não sei se terei cabeça para fazer as coisas que tenho que fazer e
aguentar toda a barra se não tiver pelo menos a confirmação de que você
ficará em segurança e que, pelo amor de Deus, não frequente o “covil do
lobo”.

— Pode ficar tranquilo que eu tentarei manter os meus instintos de


arrumar encrenca bem seguros e guardados dentro de mim. Acho que vou
dormir na casa do prefeito, não é que eu queira, já fui expulsa da casa dele,
mas é a única coisa que me resta. Não estou em condições de escolher e não
me sinto segura o suficiente para dormir sozinha no seu apartamento —
acabo confessando.

Sei que não somos um casal, que não somos namorados e que nem ao
menos nos beijamos de verdade, mas gosto de pensar que é uma coisa legal
ser franca com ele o tempo todo, que falar sempre a verdade é o princípio de
um relacionamento saudável. Se formos sempre sinceros e tivermos a
oportunidade de conversar sobre nossas diferenças, será bem mais fácil de
lidar com o ciúme, mesmo que eu esteja tremendo de raiva e que a minha
vontade seja dar um soco na cara Lauren neste exato momento, e que não
tenha coragem de admitir isso.

Sei que já estou pensando longe demais e que tudo o que ele fez foi me
convidar para um jantar, porém não consigo me segurar.

Noto os olhos de George se voltarem para meus lábios, vejo o nó


passar por sua garganta quando ele engole a saliva. Meu corpo reage como se
pressentisse o que está para acontecer. Quando sua cabeça se inclina para
baixo, sinto minha pele formigar e os meus batimentos se elevarem depressa.
Nossos lábios se tocam por iniciativa dele, não é um beijo de verdade, é
apenas o encontro de nossas bocas. Sinto sua respiração quente e a pressão
dos seus lábios contra os meus. Agarro seus ombros, desejando prolongar o
momento. Sinto seus braços me apertarem mais forte por um instante, depois
se afrouxam e ele se afasta, abrindo os olhos e os fixando nos meus.

Estou sentindo meu coração subir pela garganta, é a primeira vez que
ele toma a iniciativa, e sei que não teve nada a ver com fazer ciúmes em
Lauren ou Mikall. Ele fez isso por vontade própria. Me sinto nas nuvens ao
perceber isso.

— Até mais, se cuida.

— Se cuide também — sussurro, enquanto ele desce as escadas e segue


para o conversível, onde Lauren está esperando.

Eu o vejo entrar no carro com Lauren e imediatamente me sinto


arrependida por não ter lhe pedido que parasse de ficar com ela. Seria uma
estupidez e ele provavelmente não aceitaria o meu pedido, mas pelo menos
eu teria tirado este peso da consciência.
O primeiro emprego
Me sinto perdida, nunca experimentei uma sensação tão devastadora
quanto esta. Não consigo me livrar do pensamento, de saber que os dois
dormirão juntos por dias na mesma cama, um lugar que deveria ser meu.
Melancólica, observo o carro se afastar até sumir de vista.

De cabeça baixa, sigo Mikall até seu gabinete, enquanto meu estômago
se contorce em uma dor gélida e angustiante. Meus olhos estão cheios de
lágrimas, estou tão pasma com a grandeza dos sentimentos que mal consigo
me dar conta do quanto estou me apaixonando por esse rapaz, em como estou
permitindo que ele invada minha vida e meu coração desta forma, mas não
consigo mais sentir o medo de me apaixonar que eu senti durante a
madrugada. Percebo que essa pode ser a melhor coisa que poderia acontecer
na minha vida, e que ele também gosta de mim.

Respiro fundo ao entrar no gabinete de Mikall, tentando manter minha


pose e não deixar escapar nenhuma lágrima. Começo a andar pelo cômodo
para tentar controlar meus nervos, observo as paredes repletas de quadros dos
antigos prefeitos desta cidade. Eles estão dispostos em uma fileira, em
molduras de mogno e de borda dourada, contendo cada um dos quadros uma
foto em preto e branco com a data da posse e do final do mandato de cada um
deles. Mikall é o último da fila. Sinto o pânico tomar conta do meu peito,
substituindo a angústia que sinto por George ter partido, dando espaço para o
terror de pensar em quais desses homens participaram ou ainda participam do
maldito clube de Lauren.

— Ela sempre me ganha com uma boa dose de uísque ou alguma outra
bebida que tenha em mãos — Mikall resmunga, enquanto organiza papéis
dentro da última gaveta da sua mesa.

Caminho até ele e deslizo meus dedos contra as figuras entalhadas a


mão na madeira maciça, sentindo a aspereza e os relevos dos desenhos. Eu o
vejo se inclinar para trás, relaxado, como se estivesse sob efeito de alguma
droga que Lauren tenha colocado na sua bebida. Olho para o corpo que ainda
está sobre a mesa, mas não sei identificar nenhuma droca. Mikall acompanha
meu olhar e imediatamente liga para a secretária que está do lado de fora da
sala e exige que ela venha buscar o copo.

— Já vou limpar tudo isso — ela diz assim que entra pela sala,
afobada. Sinto seus olhos me investigando dos pés à cabeça, mas ela disfarça
com sorriso falso assim que me vê a encarando de volta. Pela cor dos seus
dentes amarelados, suponho que ela fuma. Também deve sofrer de alguma
doença no estômago, a julgar pela careta que está fazendo e pelo suor na sua
testa. Retira o copo da mesa de Mikall e sai.

— Não precisava chamar sua secretária — reclamo assim que ficamos


sozinhos. — Eu mesma poderia ir até a cozinha e lavar um simples copo.

— Não está aqui para isso. — Mikall fala com praticidade

— Bom, então imagino que passarei a tarde inteira sentada aqui, o


assistindo trabalhar — digo com sarcasmo.

— Tem algum lugar melhor para ir? — ele pergunta de sobrancelhas


erguidas.

— Não precisa descontar sua frustração em mim — me defendo como


posso.

Ele se limita a revirar os olhos. Volto a andar novamente, indo na


direção das prateleiras, e percorro os dedos pelas lombadas. Em alguma
destas pastas pode estar os papéis que o incriminam. Ele está tão absorto no
seu trabalho, que não me dá muita atenção. Vejo as letras douradas nas
lombadas de algumas das pastas, há apenas números romanos na maioria
delas.

Pego uma sem muita cerimônia e a retiro do meio da prateleira, a abro


e começo a folhear, trata-se de uma licitação sobre a compra de um veículo.
De repente, me pergunto se as pessoas dessa cidade não se importam que
George ande por aí para todo lado em um conversível da prefeitura. A
licitação data de dois anos atrás, e a compra trata-se exatamente deste carro
que George dirige. Talvez Mikall não seja tão bonzinho quanto pensei. Mas
logo me dou conta que isso, com certeza, deve ter sido ideia de Lauren. Ele
não tem capacidade de pensar por si mesmo, isso é um fato.

— Como você conheceu Lauren? — pergunto, de repente, tomada por


uma curiosidade que eu nunca tive. Nunca quis saber nada a respeito da vida
amorosa dos dois. É a primeira vez que isso se passa pela minha cabeça.

Mikall me olha e passa a mão pelos cabelos escuros e lisos, fazendo a


cascata de sua franja escorregar pela testa.

— Na verdade, conheci seu pai primeiro, em uma reunião do partido


em que eu era afiliado quando resolvi me candidatar. Eu tinha mais ou menos
vinte anos na época. Era uma noite de terça-feira, ainda me lembro bem. Eu
era um daqueles rapazes sonhadores que pensava que ia conseguir mudar o
mundo sozinho, sabe? Desses que a gente lê em livros ou assiste em filmes.
Fazia muitos planos para quando fosse eleito, mas não tinha dinheiro para
financiar minha campanha e nenhum empresário que apostasse nas minhas
ideias. Seu pai foi o primeiro e o único que me chamou para conversar
naquela noite. Ele parecia acreditar cegamente nas coisas que eu tinha a falar,
não me fez críticas, pelo contrário, pareceu extremamente feliz com a minha
simpatia e o meu jeito de ver a vida. Começamos a conversar sobre projetos e
ele me disse que poderia financiar minha campanha, que sempre sonhou em
ter alguém do lado dele na câmara de vereadores desta cidade. Eu nem me
lembro exatamente quais projetos eu tinha, mas ele incluiu alguns na minha
chapa e me ajudou também com os discursos, na forma de escolher as
palavras certas para conquistar os eleitores. Algum tempo depois, ele acabou
me apresentando a Lauren. Engraçado — Mikall franze o nariz e dá uma
risadinha soprada—, não me lembro de terem mencionado alguma coisa
sobre outra filha, sabe? Nem seu pai nem sua irmã. Fiquei pensando que ela
era filha única. Eu a chamei para ir comigo ao cinema e ela aceitou. Era tão
bonita, tão popular e cheia de amigos, às vezes até um pouco maldosa, mas
eu não liguei muito para isso, o importante é que ela estava feliz em sair
comigo e tudo que eu queria era manter aquele sorriso. Acho que foi amor à
primeira vista — ele conta, tão concentrado que parece perdido em outro
mundo.

Percebo o quanto está sereno, os olhos expressando a calma, os ombros


relaxados. Imagino que essa deve ter sido a melhor fase da sua vida, quando
ele havia tido a ilusão de ter conquistado Lauren e não tinha todas as pressões
da prefeitura e de um casamento falido sobre seus ombros.

— E você nem imaginava que ela era uma megera?

Ele parece sobressaltar, como se acordasse de um cochilo no meio da


tarde, pisca os olhos para mim, se dando conta de que estou aqui.

— Não, eu não percebi que ela era uma megera. Na verdade, eu


demorei muito para notar que você tinha razão. Sabe quando você começa a
conversar sobre um relacionamento com outra pessoa e se dá conta de que
tolera coisas que não deveriam ser toleradas?

Franzo o cenho e meneio a cabeça, fingindo que tenho experiência.

— Pois é, foi assim que eu comecei a perceber que Lauren não era
mais apaixonada por mim. Talvez nunca tenha sido, mas quando ela está por
perto, eu simplesmente não consigo resistir.

— Mikall, com quem você conversou sobre seu relacionamento?

Ele dá outro risinho engraçado.

— Com a sua mãe, a senhora Lucinda.

Engulo a saliva, recordando o quanto minha mãe não faz a menor


questão de saber como estou, de que nem sequer um telefonema se prestou a
dar desde que cheguei. Está ocupada demais em uma tour pela Europa com
as preciosas gêmeas.

Não quero sentir raiva de duas crianças de quatro anos, mas no


momento é exatamente assim que me sinto. Odeio ficar assim, odeio perceber
que tenho ciúmes demais das pessoas.

— Então minha mãe sabe que você não tem um casamento feliz?

Mikall faz uma careta.

— Mais ou menos isso, ela não parece muito disposta a concordar com
tudo que eu digo sobre sua filha. Sabe como ela é uma mãe coruja, e as mães
sempre pensam que seus filhos são bonzinhos.

— Não sei exatamente do que está falando — comento e dou uma


risada. Eu nunca fui vista como a garota mais boazinha da família, e a mamãe
coruja nunca esteve disposta a me defender.

— Está coberta de razão quanto a isso — Mikall concorda, jogando


outra vez a franja para trás, fazendo os fios negros deslizarem suavemente
pela sua cabeleira.

Ele é um homem tão bonito, tão doce, gentil e atencioso, educado e,


acima de tudo, rico. É tão estranho nenhuma mulher nunca ter aparecido até
agora para tomar o lugar de Lauren.

Me dou conta de que minha irmã deve ter uma espécie de escudo que
afugenta as pessoas. Só alguém trouxa como Mikall se envolveu com ela, só
homens ruins como ela devem ser seus amigos e se prestam ao trabalho de
passar um tempo com Lauren, desfrutando dos seus passatempos macabros e
nojentos preferidos.

Sacudo a cabeça, desesperada com a ideia de George a acompanhando.


Será que foram sozinhos? Duvido muito. Algum outro membro do clube,
talvez até o irmão biológico de George, deve ter os acompanhado. Talvez ele
seja uma espécie de vice-presidente do clube.

Voltando à linha de pensamento, suponho que as mulheres se sentem


ameaçadas por Lauren, assim como eu me sentia, como um instinto que nos
afasta do perigo. Mesmo sendo sua irmã, me sentia repelida por ela porque
sabia exatamente do que ela era capaz desde que eu tinha cinco anos e a vi
cortar meu cabelo. As mulheres daqui não devem nem ter coragem de olhar
muito tempo para o prefeito, devem conter um arrepio sempre que fantasiam
alguma coisa sobre ele, se condenando imediatamente e dizendo que aquilo é
errado, que ele é casado e que elas não devem pensar dessa forma, mas na
verdade é apenas uma espécie de autopreservação que algumas pessoas
possuem.

Imagino que ela deve ter algum clube falso onde senta com as mulheres
importantes da cidade por alguns minutos por semana e finge tomar chá ou
alguma coisa do tipo. As outras senhoras devem tolerá-la somente por ela ser
a primeira dama e a mulher mais rica e influente da cidade, contudo, devem
cochichar a seu respeito sempre que dá as costas. Pelo menos é isso que eu
estou esperando que elas façam. Não gosto de pensar que todas são idiotas e
manipuláveis como o homem que está aqui sentado na cadeira em forma de
trono.

Será que há realmente um clube para mulheres aqui na cidade? Será


que são essas as mulheres dos membros do clube maldito? Será que são tão
submissas como minha mãe era, tão iludidas a ponto de acharem que, um dia
desses, seus maridos vão se transformar em homens melhores, que elas só
precisam ter paciência e fazer suas vontades, nunca contrariá-los, serem a
esposa ideal? Temo que sim.

Acabo de me dar conta de que Mikall é exatamente uma versão


feminina de uma esposa tradicional, da mulher que a maioria das pessoas
espera encontrar em uma família clássica, o tipo de lar onde nunca
imaginariam que uma Agatha poderia estar.

É a minha vez de fazer uma careta.

Não consigo me imaginar como uma esposa obediente. Fiquei tempo


demais sozinha, mesmo vivendo em meio a tantas garotas, para me imaginar
sob o domínio de um marido. Tudo que planejei para minha vida enquanto
estava internada no colégio era voltar para a cidade, me formar em
Administração para cuidar de alguns dos negócios do meu pai. Não pensava
muito a respeito dos homens daqui e se algum deles poderia me interessar,
estava mais preocupada realmente em ser a dona da minha vida, em ser a
minha chefe e a gestora do meu futuro. É um pensamento bem fora do
comum para as freiras que sempre me disseram que eu deveria me comportar,
ser educada e graciosa, que desta forma um homem maravilhoso se
apaixonaria por mim. Reviro os olhos, Mikall não está olhando mesmo.

Bem, eu não sou comportada, graciosa e muito menos educada, ainda


assim, um homem maravilhoso parece estar se apaixonando por mim.

Meu coração explode de felicidade e eu preciso me conter para não dar


um gritinhos de alegria e excitação que denunciaria minha cara de
apaixonada para Mikall — nem sei se ele seria atencioso o bastante para
notar.

Enfim, imagino como todas as outras esposas dos homens escrotos do


clube de Lauren devem pensar e agir, que devem ser exatamente como a
minha mãe era, e que a única decisão mais relevante que elas conseguem
tomar é sobre o que cozinhar para o jantar, mesmo assim, sem ter ousadia o
suficiente para escolher um prato que não têm certeza de que seus preciosos
maridos possam gostar.

É uma vida de merda de submissão, onde uma mulher precisa viver em


função de um homem ignorante e agressivo, e eu nem sei a troco de quê,
porque a maioria deles só as vê como um troféu, mas não as amam de
verdade. Sou atrevida e sonhadora demais para aceitar uma vida dessas.

É engraçado como tantas mulheres são educadas a viverem assim, não


sei se é por comodismo, segurança, tradições ou simplesmente falta de
imaginação, de esperança e determinação de procurar alguma coisa melhor,
algo que realmente mereçam.

Não tenho como saber se irei conseguir me sair bem na faculdade, se os


estudos irão me levar a algum lugar. Não sei nem se Lauren vai invadir o
escritório do campus para pegar o cheque de volta. Pelo menos vou fazer o
meu melhor para conseguir. Sei que se, por algum motivo, George não puder
me ajudar, vou dar os meus próprios pulos. Caso Mikall se arrependa de
pagar, se ele mesmo for até lá e pegar o cheque de volta, mesmo que eu não
possa começar a faculdade este ano, arranjarei um trabalho em tempo integral
para juntar dinheiro e pagar eu mesma meu curso.

— Mikall? — o chamo. Ele ainda parece estar relembrando o passado.

— Hum... — ele murmura sem erguer a cabeça para me olhar.

— O que acha de me dar um estágio aqui na prefeitura? Posso ser uma


espécie de assistente pessoal.

— Agatha, eu já tenho a minha própria secretária.


— Ela faz suas tarefas, claro, mas não é exatamente isso que eu estou
pensando.

— E o que exatamente você está pensando? — ele eleva sua cabeça e


me encara com um olhar especulativo.

— Seria algo como uma aprendiz de administração. Você sabe que


quero ser uma administradora. Durante todos esses anos, pensei que voltaria
do convento e encontraria um ou dois negócios para gerir, que seria muito
mais fácil adquirir experiência, mas me enganei — digo e limpo a garganta.
Não estou tão desesperada assim para arranjar um estágio no seu gabinete,
mas é a forma mais segura que consigo imaginar de revirar aquelas pastas. —
Pensei que trabalhando com você eu poderia ter mais experiência e, não vou
negar, também estou interessada no salário. Preciso arranjar uma forma de
me manter, uma renda, não posso ficar te pedindo coisas o tempo todo,
mesmo que você esteja em débito comigo. Acha que pode me pagar um
salário para ajudá-lo? Posso começar dando uma olhada em todos esses
papéis.

Faço minha maior cara de inocente, enquanto gesticulo para as


prateleiras.

— Posso dar uma olhada no que precisa ser revisto, nas coisas que
podem ser descartadas ou passadas para algum outro arquivo. Parece que isso
aqui está cheio demais, você não acha? — o questiono com as sobrancelhas
arqueadas, Mikall continua me encarando, sem dizer uma palavra. — Desta
forma, também vou aprender como se administra uma cidade, quem sabe não
seja a futura prefeita...

— Uma mulher prefeita aqui nessa cidade?! — Mikall questiona em


tom de deboche, mas eu não o culpo por pensar assim quando deve conhecer
muito melhor as pessoas daqui e saber que são machistas demais para
elegerem uma mulher como prefeita.

— Bem, a não ser que esta mulher seja Lauren, não é mesmo?

Mikall olha para os papéis e parece refletir por um instante, ignorando


meu último comentário.
— Acho que posso, sim, te pagar um salário, mas não vai atrapalhar a
faculdade?

— Não estou em condições de me dar ao luxo de apenas estudar,


preciso de um salário. Lauren vai ficar maluca quando descobrir que você
custeou meu curso e meu guarda-roupas novo, mas acho que ela não pode
interferir no seu trabalho como prefeito. Ou será que você é tão manipulável
assim, Mikall?

Mikall parece embaraçado, ele se remexe em sua cadeira e coça a nuca.

— Aqui na prefeitura sou eu quem comando, ela quase não se mete.

Quase... Penso em debochar, mas vou lhe dar um crédito e imaginar


que sim, ele vai me ajudar a manter esse trabalho.

— Quando posso começar? — pergunto, empolgada. — Amanhã?


Agora?

Mikall dá de ombros e meneia a cabeça positivamente.

Controlo a vontade de ir saltitando até sua cadeira para agradecer. Em


vez disso, pego uma das pastas da prateleira, me sento na cadeira giratória e
começo a analisá-la. Assim que percebo que não vou encontrar nada sobre a
tal instituição, a coloco de volta no lugar e pego outra. Passo o resto da tarde
procurando qualquer pista que possa encontrar.
O telefonema
Mikall me leva direto para sua casa no fim do expediente. Minha
barriga está roncando e eu vou correndo para cozinha, onde senhora Matilde
nos espera com o jantar fumegante e maravilhoso. Não me dou ao trabalho de
tomar banho primeiro, minha cabeça está doendo de frustração, mas sei que a
comida vai aliviar a dor.

Passei a tarde inteira analisando papéis e não encontrei nada sobre o


orfanato. Chego até a pensar que foi uma ideia idiota, mas então me dou
conta de que terei um salário e disso não posso reclamar.

Enquanto Mikall sobe para tomar banho, encho meu prato com risotos
e peixe assado com batatas e outros legumes. Devoro tudo rapidamente, sem
dar a mínima para as regras de etiqueta que aprendi no colégio interno.

Me vem à mente a lembrança de ser espetada com um garfo sempre


que eu colocava os cotovelos sobre a mesa. Essa era uma das atitudes que as
malvadas irmãs desaprovavam severamente. As marcas ainda são visíveis nas
minhas costelas, mas essa é uma das recordações ruins que eu não preciso
ficar remoendo a todo momento, ainda mais na mesa do jantar.

Só que pensar nisso me faz lembrar de George e no que ele deve estar
fazendo. Sinto meu coração se apertar com o mal-estar e me empanturro de
sobremesa para aliviar a solidão.

Lavo a louça que sujei em silêncio, contra todos os protestos da


senhora Matilde, e subo para tomar um banho no quarto que ocupei no
primeiro dia. Ao chegar ao topo das escadas, murcho os ombros, sentindo o
peso do cansaço mental. Aconteceu tanta coisa que é como se já tivesse
voltado há mais de um ano. Me arrasto para o quarto, me deparando com as
sacolas de compras sobre a cama.

Tiro as roupas para tomar um banho e sou atormentada pelas


lembranças sobre o tráfico de garotas. Mordo lábio e tento afastar a mente
desses pensamentos, porque não tem nada que eu possa fazer daqui e preciso
manter a sanidade para ajudar George na investigação quando for preciso.

A única maneira que encontro, no momento, para me manter sã, é me


agarrar a coisas supérfluas como roupas novas. Quando saio do banho, ainda
de toalha, faço um pequeno inventário mental de tudo que comprei, me
forçando ao máximo para ficar concentrada na tarefa.

Dois pijamas, uma dúzia de pares de meias comuns, dois pares de


meias de lã sete oitavos, cinco conjuntos de roupa íntima, dez calcinhas
avulsas, uma dúzia de camisetas de algodão de mangas curtas e mais uma
dúvida de mangas longas, oito pares de calças jeans, três saias e três shorts,
cinco conjuntos de calça e top coloridos, três suéteres e uma jaqueta, dois
pares de botas, uma sandália plataforma, e um sapato estilo boneca, além de
quatro vestidos e itens de higiene pessoal e cosméticos.

Não vi quanto deu a conta na loja. Não é problema meu e sim de


Mikall.

Organizo as peças entre opções para o dia a dia e ocasiões especiais,


sem ter certeza de para onde posso levar tudo quando Lauren voltar. Acho
que seria esquisito começar a sair com George e continuar dormindo no seu
apartamento. Tenho o rancho, mas ainda não consigo pensar nele como uma
opção de moradia aceitável.

Ainda mantendo a cabeça entretida, escolho um vestido estampado e o


visto por cima de uma camiseta de malha branca, usando também meias
pretas sete oitavos, que vestem até as minhas coxas e escondem as cicatrizes
que carrego nos joelhos pelas inúmeras vezes que fui obrigada a ajoelhar no
milho. Calço meus novos sapatos de boneca e dou uma volta diante do
espelho, observando com satisfação o resultado.

Estou penteando os cabelos quando ouço batidas na porta.

— Quem é? — grito, sentindo um frio na barriga. Meus nervos estão à


flor da pele.

Imediatamente, concluo que deva ser Mikall vindo se lamentar mais


uma vez pelo casamento fracassado.
— É Matilde, tem telefone para a senhorita — ouço a voz mansa e
tranquilizadora da governanta, abafada pelo obstáculo da porta a sua frente.

Meu coração dispara.

— Já estou descendo! — berro alto demais com a surpresa.

Largo a escova de cabelo sobre a penteadeira, arrumo as mechas atrás


da orelha e faço uma trança simples que bate no final das minhas costelas.
Desço as escadas depressa, sem ter a certeza de quem pode estar no telefone
querendo falar comigo.

Sinto euforia e medo ao mesmo tempo, pensando nas freiras e em


Lauren ou até mesmo na minha mãe, que deve ter se dado conta de que eu
estou aqui há três dias e que não me fez uma única ligação.

— Alô — murmuro ofegante para o telefone.

— Olá, senhorita — a voz aveludada sussurra do outro lado.

Sinto meu coração ameaçar explodir no peito.

— George... — respondo, sentindo o tremor nas mãos e pernas... Não


me lembro de ter me sentido assim nenhuma vez nos últimos anos. Acho que
nenhuma vez na vida, para ser mais franca. — Não sabia que você iria me
ligar.

— Pois é... — ele diz e dá um risinho que me faz imaginar que o canto
da boca está erguido em sorriso torto. — Resolvi te fazer uma surpresa.

— Foi a melhor das surpresas — digo, me sentando no sofá de couro


caramelo.

Um elegante abajur solitário com lâmpada amarelada é único


responsável pela iluminação da sala de estar, cheia de esculturas e objetos
sofisticados de decoração.

— O que está fazendo? Onde está agora? — pergunto, ansiosa e cheia


de expectativas. Imagino que é exatamente assim que uma estudante do
ensino médio se sente quando o garoto dos seus sonhos liga para ela pela
primeira vez.

— Estou em uma cabine telefônica de um posto de gasolina — ele diz


relaxado, nem parece que está em uma viagem com Lauren.

— Por que me ligou, George? — o questiono, sem saber exatamente o


que falar. Estou inquieta demais. Enrolo os dedos pela trança, enquanto
espero a sua resposta.

— Não pensei que fosse sentir sua falta tão depressa, senhorita — ele
me confidencia. — Eu estava sozinho no quarto de hotel, pensando se você
iria mesmo dormir na casa do prefeito ou se seria orgulhosa o bastante para
voltar sozinha ao meu apartamento.

— Não, acho que estou ficando um pouco mais prudente, senhor —


brinco. — Eu obriguei Mikall a assinar o cheque da minha faculdade e o fiz
comprar roupas novas, e como a serpente venenosa não está aqui, vou passar
essas noites no quarto de hóspedes.

— Ele não deu em cima de você, deu?

— Por que se preocupa? — pergunto com deboche. Não posso deixar


que essa atmosfera leve acabe tão de repente. Preciso enrolar antes de
começar a conversar sobre as coisas sérias.

De repente, me pergunto se Mikall talvez tenha o outro telefone no


andar de cima. Preciso ser discreta com a escolha de palavras, para que ele
não entenda do que estamos falando, caso esteja nos espionando.

George respira fundo.

— Imaginei que já tinha deixado claro que eu não quero nem pensar na
ideia de perdê-la.

Suspiro ao ouvir suas palavras.

— Saiba que se viesse a me perder não seria para alguém como Mikall
— sussurro seu nome baixinho, com medo que ele esteja ouvindo e, ao
mesmo tempo, torcendo para que esteja mesmo. — Não para alguém com a
personalidade tão fraca como ele. Muito menos para o homem que está
casado com Lauren.

George fica em silêncio por um instante, então baixo ainda mais o tom
de voz e minhas palavras soam apenas como um sopro ao telefone.

— Onde ela está neste exato momento?

— Eu não sei, senhorita. Ela saiu do hotel há cerca de quarenta minutos


e disse que iria até a embaixada, encontrar um homem que a ajuda com esses
assuntos do orfanato — ele diz com ironia, me fazendo perceber que também
acha que alguém pode estar nos ouvindo.

Sei que guardará suas palavras e que falará de maneira enigmática,


então precisarei me esforçar para entender tudo.

— Ela disse que iria se encontrar com a equipe e que, depois que saísse
de lá, iria comprar as passagens de avião para buscar a garota no Sri Lanka.

— Você sabe quantos anos essa garota tem? — o questiono.

— Catorze, pelo que eu entendi.

— Meu Deus! — Levo a minha mão livre em concha até a boca e torço
para conseguir disfarçar o horror que estou sentindo por saber que uma
menina de apenas catorze anos virá para cá, será vendida como um bezerro de
raça e depois... não quero nem pensar no que acontecerá depois. — É muita
sorte que haja esse orfanato aqui na cidade e que Lauren vá viajar até tão
longe para resgatar essa menina.

Mal posso disfarçar o sarcasmo.

Fixo meus olhos no tapete persa abaixo dos meus pés, tentando me
concentrar no padrão de desenhos coloridos que estampam uma paisagem
parecida com a que imaginei quando li Ali Babá e quarenta ladrões. Me
deixo ser levada por um instante para essa fantasia infantil, mas as palavras
de George me pegam de volta para a aterrorizante realidade. Ele entende o
sarcasmo da minha voz e dá um risinho cínico.

— Sim, senhorita. Essa garota teve muita, muita, muita sorte. Sabe
Deus o que aconteceria com ela se ela continuasse em seu país de origem.

— Lauren é mesmo uma figura. Ela é toda metida a irmã malvada,


mas, quando ninguém está vendo, ela é simplesmente uma mulher que faz
bondade e ajuda crianças carentes. Uma figura! — digo de modo robótico,
abalada demais para ter um pensamento coerente.

Engulo a saliva e tento ignorar a náusea crescente, fixando os meus


olhos outra vez nos desenhos do tapete. Deixo o meu pé percorrer as formas,
permitindo que uma parte do meu cérebro se distraia com a complexidade
desse trabalho e no quanto isso deve ter custado a Mikall.

Ouço seu suspiro prolongado.

— Agatha, ela quer que eu vá buscar essa menina no Sri Lanka —


George confessa. — Não sei exatamente o que ela quer com isso, e é essa
incerteza que está me deixando ainda pior. Eu não sei se ela está me dando
um voto de confiança ou me testando.

— Quem sabe ela não queira te dar um cargo nessa instituição — digo
lentamente.

— É, é a teoria mais aceitável e também a que mais me assusta — ele


murmura. — Não sei se consigo entrar nesse avião e ir sozinho buscar essa
garota. Ficar horas no avião ao lado de alguém que...

Ele não pode se dar ao luxo de desabafar mais que isso, não sabemos se
estamos sendo espionados.

— Acho que você consegue! — procuro encorajá-lo, enquanto esfrego


o peito para tentar aliviar a agonia, sei que ele não tem outra opção. Lauren
não lhe daria a chance de escolher, a única coisa que ele pode fazer, se quiser
mesmo seguir o plano, é obedecer. — Você é mais forte do que pensa, e eu te
admiro tanto por isso!
— Eu sei que eu não tenho outra alternativa — ele diz.

— Ossos do ofício — tento brincar, lutando para afastar o nó na minha


garganta.

— Agatha? — ele me chama baixinho. — Podemos conversar sobre


outra coisa agora?

— Claro! — respondo, torturada pela dor que ele deve estar sentindo.
— Sobre o que quer conversar?

— Sobre nós.

Sou tomada pela emoção e arrumo minha postura, tirando a mão do


peito e agarrando o braço do sofá.

— Estou ouvindo.

— Estava pensando em tudo que conversamos, na intensidade do que


estou sentindo e no quanto quero me agarrar a isso — ele diz, parece estar
sem graça, porém decidido. — Acho que você é a única mulher com quem
posso ser eu mesmo, sem medo de julgamentos.

Respiro profundamente, sentindo a pele arrepiar. Adoro quando ele me


chama de mulher, faz eu me achar mais madura e forte.

— Fico muito feliz que esteja sendo sincero comigo, porque imagino
que você seja o cara certo — minha voz é apenas um sussurro, e não estou
certa se ele consegue ouvir cada palavra.

— Mas vamos com calma — ele adverte. — Não quero meter os pés
pelas mãos. Imagino que as coisas serão mais fáceis se eu der um passo de
cada vez. Uma mulher como você merece ser cortejada e não apenas receber
uma declaração no meio da madrugada.

— É mesmo? Você acha? — pergunto, mais empolgada do que


deveria.

— Sim, senhorita, é o que penso.


Afasto o gancho, aperto o telefone contra minha barriga e solto um
gritinho de euforia. Eu amo quando ele me chama de senhorita!

— Acha que devemos mesmo fazer isso em meio às coisas que estão
acontecendo? — não posso deixar de questionar.

— Me apaixonar por você é a pior coisa que poderia acontecer no


momento, preciso manter o foco, mas você entrou na minha vida de um jeito
que não me deixou escolha. Não quero ficar esperando que tudo se resolva.

— Também não quero — digo com sinceridade.

— Mas prometo que irei com calma — ele diz e ouço sua risada baixa.
— Posso te perguntar uma coisa?

— O quê?

— Me lembro de você dizendo que passou os anos todos com as


colegas do colégio, as freiras e os padres, e que nunca teve um namorado...

— É verdade.

— Mas você já tinha beijado alguém antes de mim?

— Não — confesso, surpresa por ele ter pensado nisso. — Você foi
meu primeiro.

— Nem sei o que dizer, eu... tenho muita sorte — George diz. Ouço o
som da sua respiração. — Não quero decepcioná-la jamais, mas nunca tive
uma namorada de verdade, então, por favor, seja paciente. Darei o meu
melhor para ser digno de você.

Pisco, corando como uma boba apaixonada.

— É a minha vez de te fazer uma pergunta.

— Tudo que quiser saber — ele diz. Estou com tanta saudade dele que
sinto vontade de ir correndo até onde ele está, só para vê-lo dar aquele sorriso
adorável.
— Se eu te pedisse para não transar mais com... você sabe... o que
diria?

— Que não estou transando com ela por prazer, que já te expliquei por
que faço isso.

— Eu sei que é muito egoísta da minha parte tocar nesse assunto, mas é
algo que estava entalado na minha garganta. Estou convicta dos seus motivos,
ainda assim, me machuca pensar nos dois juntos, mesmo que você não tenha
esse tipo de sentimento por ela. Não consigo parar de pensar nisso... Me
desculpa.

— Não tem por que se desculpar — ele diz com o tom de voz triste, faz
uma pausa e, por um longo momento, tudo que ouço é sua respiração. — Eu
disse que não queria te decepcionar e já estou fazendo.

— Vai ficar tudo bem um dia, não é? — pergunto, querendo me agarrar


à esperança de que seus planos vão dar certo. — Só falta descobrir sobre o
décimo quarto.

— Está mais perto que nunca. É questão de dias. Estou confiante de


que vou conseguir todas as provas no próximo leilão.

Respiro aliava ao saber que, talvez, na próxima semana, Lauren e seus


seguidores desgraçados estejam presos e todas as suas vítimas a salvo.

— Agatha, eu vou fazer o que você me pediu. Tenho uma ideia —


George sussurra. — Eu posso tomar alguma bebida e fingir que entrei em
coma alcoólico antes que ela chegue.

— Acha que pode mesmo fazer isso? Ela não vai desconfiar de nada,
digo, não é apenas hoje?

— Um dia de cada vez.

— Tem razão, George, um dia de cada vez — repito suas palavras. —


Vamos ter fé que tudo vai dar certo.

— Esse é o pensamento que eu tento manter. As fichas estão acabando,


preciso ir.

— Não pode comprar mais? Acho que ainda não estou pronta para
desligar.

— Se você prometer me esperar, eu vou até o posto de gasolina e volto


num minuto — George me garante.

— É claro que eu posso esperar.

George desliga. Me deito no sofá, tentando acalmar o coração que está


desenfreado. Ainda não posso me dar ao luxo de acreditar que não haverá
mesmo Lauren entre nós. Quando ponho o telefone de volta no lugar, já é
tarde da noite. Vou dormir exausta.
Mantendo a cabeça no lugar
No dia seguinte, acordo cedo e pego uma carona com Mikall para a
prefeitura. Passo o dia inteiro entretida com as pastas, mas não consigo
encontrar nada que ligue Lauren ou Mikall ao tal orfanato.

Na hora do almoço, Mikall me leva para comer no mesmo restaurante


francês do dia anterior. Hoje, os olhares estão ainda mais especuladores. Os
homens parecem não saber mais disfarçar o que estão pensando sobre nós.

— Você não tem medo de decepcionar seus eleitores vindo aqui


almoçar comigo, deixando parecer que temos um caso? — pergunto para
Mikall, enquanto ele corta um pedaço do seu bife.

— E você se importa? — ele me questiona com rispidez. Parece um


tanto rabugento, mas não acho que isso tenha alguma relação com o
telefonema de George na noite anterior. Deve ser apenas abstinência de
Lauren.

Reviro os olhos, largando o garfo sobre o prato e bebendo alguns goles


do meu suco de laranja.

— Acha mesmo que ligo para a opinião dos outros? — o questiono.

Ele me analisa por um momento.

— Não, você não é esse tipo de pessoa.

Terminamos a refeição em silêncio. Na volta, Mikall me deixa na


prefeitura e sai, se recusando a dizer onde está indo. Atravesso o corredor,
passando pelas pessoas que aguardam para serem atendidas e os demais
funcionários da prefeitura, de cabeça erguida, demonstrando que não dou a
mínima para o que estão pensando.

A secretária me segue, falando sobre onde colocou as pastas antigas


que separei mais cedo, mas não me importo. No meu segundo dia de
trabalho, já estou frustrada por não descobrir nada que possa ajudar George
ou Mikall.

Tento me agarrar à ideia do salário que receberei no fim do mês e no


quanto isso significa para mim, e me obrigo a continuar analisando as pastas.

— O prefeito disse que você está aqui para aprender mais sobre
administração, mas não sei como arrumar esses documentos empoeirados vai
te ajudar a ser uma boa gestora — a secretária observa, na certa se
perguntando se estou ali para roubar seu emprego, e julgando que não preciso
do trabalho por ser irmã de Lauren.

— Também não tenho certeza — murmuro, entediada.

∞∞∞

Ao fim do meu segundo dia de trabalho desestimulante, sigo meu


cunhado para o carro com os ombros caídos. Assumo meu lugar no banco do
passageiro, pensando em como é desesperador não ter notícias de George.

— A megera te ligou? — pergunto sem cerimônia.

— Ela nunca me liga quando viaja — ele informa. — A não ser que
precise de dinheiro.

A desgraçada deve ganhar uma fortuna com os leilões, mesmo assim


faz Mikall desviar dinheiro da prefeitura. Ela, no mínimo, deve ter um pacto
com o diabo. Sorrio com o pensamento.

— Está preocupada com ele? — Mikall pergunta, mas não respondo.


— George é um bom rapaz, apesar de eu não ter lhe perdoado por te deixar
bêbada. Não pensei que vocês fossem se dar tão bem. Na verdade, imaginei
que você gostasse de homens de verdade.

Ele vira o pescoço para me olhar, desviando a atenção da direção.

Controlo minha vontade de mostrar o dedo do meio, porque estou


tentando ser o mais madura possível.

— George é um homem de verdade — pronuncio as palavras


lentamente. — O melhor que já conheci.

Bem melhor que você, penso, mas me contenho.

— Hum… — ele murmura, voltando a olhar para a frente.

Noto que estamos indo em uma direção diferente da sua casa.

— Aonde está me levando? — pergunto desconfiada.

Por um instante, sou dominada pelas paranoias e começo a pensar que


Mikall é o décimo quarto membro do clube maldito e que está me levando
para leiloar minha virgindade. Entro em pânico, me segurando no banco com
os olhos arregalados.

Só me dou conta de onde estamos indo quando ele estaciona o carro em


frente a minha antiga casa. Vejo a hera crescendo na cerca branca, os
arbustos no gramado, uma das janelas quebradas.

Desço do carro assim que Mikall estaciona na entrada da garagem.

Parece estar abandonada.

Piso no lixo descartado no jardim, enquanto me aproximo, vendo


minha velha bicicleta cor de rosa, agora enferrujada, largada em um canto.
Sinto as emoções me pegarem de surpresa, tenho que me segurar para não
chorar com a quantidade de lembranças.

Estive tão ocupada que nem pensei em verificar como a casa estava.

— Sua mãe se mudou daqui assim que seu pai faleceu — Mikall diz ao
meu lado. — Só levou a roupa do corpo.

Ouço o tilintar das chaves e me viro a tempo de vê-lo me estendendo a


mão.
— Liguei para sua mãe. Ela concordou em passar a casa para o seu
nome.

Encaro o molho de chaves prateadas, sendo invadida por um desejo


enorme de cair no choro, e nem sei o porquê.

Tento respirar fundo e manter a postura, mas as lágrimas já estão


escorrendo.

— É sua casa, Agatha — Mikall diz, pegando a minha mão e


colocando as chaves dentro dela. — Não está em boas condições, mas é
melhor que o rancho.

— Minha mãe concordou mesmo? E Lauren? Ela não vai me expulsar


assim que chegar? — pergunto, como uma criancinha que não sabe se merece
ganhar um brinquedo tão desejado.

— Eu cuido de Lauren. Não acha que ela domina tanto minha vida
assim, acha?

— Acho! — digo, afastando as lágrimas indesejadas com a ponta dos


dedos.

Caminho na direção da casa, tentando me lembrar qual das peças


daquele molho abre a porta da frente. Sou tomada pelo cheiro de bolor
quando entro, mas me sinto esperançosa e confiante como nunca antes me
permiti sentir.

— Meu lar — digo para a sala. É como se eu fizesse uma viagem no


tempo, de volta à infância.

— Sei que tem algumas lembranças ruins desse lugar, mas…

— Obrigada — eu o interrompo, pressionando o dedo indicador contra


sua boca. — Não quero pensar nas memórias desagradáveis. Só pensamentos
positivos hoje.
∞∞∞

Nos dias que se seguem, vou com a senhora Matilde para a casa
sempre que terminamos o expediente da prefeitura. Ela não se importa em me
ajudar com a limpeza e está sempre sorrindo. Mikall também nos ajuda no
que pode, e só vai para sua casa quando decido que já está tarde.

Obrigo minha mente a enxotar Lauren e o imundo do seu pai sempre


que lembranças dos dois me humilhando dançam diante dos meus olhos. Mal
posso me aproximar dos seus antigos quartos sem sentir um calafrio na
espinha.

Ainda não tenho coragem de dormir sozinha aqui, mas sinto uma
vibração que vai crescendo dentro de mim com o passar dos dias, como se eu
realmente estivesse deixando o lugar com minha cara.

— Vou fazer faculdade, tenho um lar, um emprego e um namorado —


digo ao terminar de limpar o vidro recém trocado de uma das janelas. — É
mais do que posso sonhar.

Quase posso visualizar a menina sonhadora que pedalava pela rua no


verão.

∞∞∞

George me telefona no horário do almoço quando estou na prefeitura,


então não saio mais para o restaurante com Mikall. Começo a levar uma
marmita para o trabalho, e faço minha refeição, enquanto ele me conta em
códigos o que tem acontecido.

Lauren teve alguns contratempos em relação à imigração, mas


finalmente conseguiu provar que iria trazer mesmo aquela garota para um
orfanato.

Foi George quem a buscou no Sri Lanka. Ela se chama Aiko e tem
mesmo catorze anos. É uma garota sonhadora. George disse que seu nome
significa “filha amada” e que seus pais são filhos de japoneses, que foram
mortos na guerra civil.

Ele está muito perturbado, com receio de não conseguir reunir tudo que
precisa a tempo de impedir o leilão de Aiko. Nunca esteve tão envolvido com
uma das vítimas, além de sua mãe e da irmã gêmea.

Me sinto inútil por não poder fazer nada.

— Chego amanhã à tarde. Posso te pegar às vinte horas?

— Vai mesmo me levar para jantar? — pergunto só para provocá-lo.


Conversamos por tanto tempo ao telefone nos últimos dias que me sinto cada
vez mais íntima dele.

— Não está pensando em me dar um fora, está? — George me


questiona, seu tom de voz está sério, como se ele realmente pensasse na
possibilidade.

— Mal posso esperar para te encontrar — sussurro, ansiosa.

— Você não faz ideia do quanto estou com saudades — ele diz e
respira fundo. — Te busco na casa do prefeito?

— Se Lauren chega amanhã, não vou ficar lá para ser enxotada outra
vez. Pode me encontrar na minha “antiga/nova” casa?

— Posso, sim. Você acha que... — George murmura.

— Que Lauren vai lidar bem com isso? — completo sua pergunta. —
Definitivamente: não, mas estou tentando sonhar com a ideia de que ela não
controla todos a sua volta.

— Em breve... Você sabe o que vai acontecer.

— Sei.

Ela vai apodrecer na cadeia, mas não posso dizer isso ao telefone.
Encontro desastroso
Imagino que todos os escrotos comparsas de Lauren estão ocupados
demais, na expectativa de receber uma “mercadoria nova”, para se
preocuparem comigo, então arrisco ir caminhando até minha casa,
dispensando a carona de Mikall. Esse simples gesto, de alguma forma, faz eu
me sentir mais independente e adulta.

Abro a porta e procuro não pensar em Afonso Mendes e na


possibilidade de seu fantasma aparecer para me assombrar. É a primeira vez
que venho sozinha desde que Mikall me entregou as chaves.

Saí mais cedo do meu entediante e inútil trabalho, por isso a luz do sol
ainda penetra as cortinas de renda das janelas da sala, deixando o cômodo
claro e receptivo.

Limpo a garganta, dizendo a mim mesma que já sou bem grandinha


para ter medo de alguém que está morto. Contenho o arrepio na espinha e
passo a chave na porta, só por segurança.

Estou carregando uma sacola de papel pardo com alguns itens que
comprei no supermercado próximo à prefeitura, para o caso de George
resolver passar a noite comigo.

Meu coração dispara com a expectativa. Estou tão ansiosa para revê-lo
que sinto o meu corpo vibrar.

Carrego as compras para os armários da cozinha e organizo os


alimentos nas prateleiras, em seguida subo para o andar de cima. Meu quarto
é o menor da casa e ainda possui os mesmos móveis de segunda mão de
quando eu era criança, mas me recuso a trocar pelo quarto de Afonso ou de
Lauren. Não sei se vou ficar aqui por muito tempo. Meu futuro é repleto de
incertezas, mas, por enquanto, me contentarei com o quarto pequeno.

O urso de pelúcia que Mikall me deu no primeiro dia em que o vi ainda


está na prateleira, junto dos poucos brinquedos que eu possuía. Minhas
roupas antigas foram doadas quando fui embora, e agora meu guarda-roupas
está ocupado com as peças que ganhei.

Abro as portas duplas e começo a pensar no que vestir para o meu


primeiro encontro. Mordo o canto da unha, enquanto examino as opções.
Acabo escolhendo um vestido de algodão, estampado com pequenas
florezinhas, curto e de mangas compridas; as meias sete oitavos e um par de
botas pretas.

Tento deitar um pouco para me acalmar. Acho graça de como meus pés
ficam para fora na cama infantil. Tenho 1,77cm, o móvel já era pequeno para
mim antes de me mandarem embora. Abro um sorriso, pensando que George
com quase 1,90m não caberia aqui.

Mordo o lábio e me levanto. Estou ansiosa demais para ficar parada.


Ando pela casa, tentando limpar o que já está impecável, enquanto espero a
hora de ir tomar banho.

∞∞∞

Pontualmente às dezenove horas, estou sentada na cadeira de balanço


da varanda de casa, porque não suporto esperar por ele lá dentro.

Enrolo a ponta do cabelo, arregalando os olhos e ficando ereta ao ouvir


o ronco do motor se aproximando. O carro passa em frente ao jardim, mas
não para. Alguns minutos depois, outro automóvel passa. Olho para o relógio
e vejo que George está quinze minutos atrasado.

Não estou brava, deve ter acontecido alguma coisa.

∞∞∞

Me pergunto se ele teria ligado para explicar o motivo do atraso se eu


tivesse um telefone em casa...
Ando de braços cruzados pela varanda, imaginando quanto tempo
ainda precisarei esperar, tremendo de frio, até que me rendo e entro para
buscar um casaco.

∞∞∞

Quando o relógio marca vinte horas, estou cozinhando um macarrão


instantâneo, porque não preciso de homem nenhum para me levar para jantar.
É um pensamento bem agressivo, que se vai assim que meu estômago é
preenchido.

Retorno à varanda e me sento nos degraus de entrada, aquecida pela


blusa de lã. Começo a contar quantos carros passam pela rua.

∞∞∞

São 21h17, já parei de contar os carros e de esperar, mas ainda estou


sentada aqui, tentando criar coragem para entrar e dormir na casa vazia. O
medo de encontrar o fantasma de Afonso no corredor adquiriu novas
proporções ao cair da noite.

Ouço um ronco diferente se aproximando, mas não me dou ao trabalho


de erguer a cabeça para olhar, até perceber que alguém estacionou em frente
ao gramado.

É uma motocicleta preta. O piloto desce e começa a se aproximar.


Minhas narinas estão inflamadas quando o vejo. Está usando calças pretas,
camisa branca e jaqueta de couro. Viro a cara assim que nossos olhos se
encontram, mantendo meu orgulho, lutando contra a vontade de correr para
seus braços.

George senta ao meu lado e apoia os cotovelos nos joelhos.

— Eu não tenho palavras para me desculpar pelo atraso.


— Não iria te perdoar mesmo — digo, dando de ombros. Me sinto
meio traída.

— Cheguei aqui há poucos minutos. Só passei em casa para tomar um


banho e vim correndo te ver.

Quero perguntar o que aconteceu, mas me seguro.

— Não voltei com Lauren. Sua mãe ligou para Mikall, avisando que
havia antecipado a passagem de volta, ele ligou para o hotel onde estávamos
hospedados e me deixou um recado dizendo para buscá-la no aeroporto.

— Minha mãe chegou? — murmuro.

— Ela e as gêmeas.

— Que horas?

— Por volta das dezoito.

— Me deixou esta casa, mas não se deu ao trabalho de vir me ver —


divago. — Espera, se chegaram à cidade tão cedo, porque só agora você
aparece aqui?

— Não foi por causa disso que me atrasei.

Ergo as sobrancelhas, o encarando bem séria.

— Então, por quê?

Ele respira fundo e se inclina para trás, apoiado nos cotovelos.

— Pensei durante toda a viagem; Lauren voltou com Aiko e o outro


sócio. Sei que não deveria ter me apegado àquela criança, que não poderia
deixar o emocional falar mais alto, mas aconteceu. Não consegui lidar com a
ideia de mais uma criança sendo leiloada. A coisa muda de perspectiva
quando você conhece a vítima.

— E o que você fez? — o questiono, deixando a raiva de lado por um


momento.

— Passei no meu apartamento, peguei todas as provas que tinha e fui


até a delegacia da cidade vizinha, porque não iria arriscar fazer uma denúncia
aqui, por medo de que Lauren tivesse algum aliado na polícia da cidade.

— Você os denunciou? Não queria descobrir primeiro quem era o


décimo quarto membro? E aquele catálogo que contém todas as fotos das
vítimas?

— Passei por cima do plano — ele diz como se pedisse desculpas, seu
semblante deixa transparecer a agonia que ele está sentindo. — Não dava
mais para lidar com isso. Foi um erro terrível ter ido buscar Aiko. Não
poderia ter conhecido uma das vítimas.

— Você foi humano, é só isso — tento animá-lo, tocando seu ombro


por cima da jaqueta. — Então Lauren será presa hoje mesmo?

É mais do que eu poderia esperar para esta noite.

— Não, pedi para que eles esperassem meu telefonema, enquanto


investigam as fitas de vídeo, de áudio e as fotografias. Vou ligar para eles no
dia em que Aiko for leiloada. Se lembra que você me perguntou se não havia
seguranças na propriedade onde eles se reúnem?

— Sim, você disse que conhecia um ponto cego, por onde passava para
fazer as gravações.

— Exatamente. A polícia vai chegar na hora do leilão, vai pegar todos


em flagrante. Agora é só torcer para o décimo quarto estar lá e não conseguir
fugir sem que alguém o veja.

— É um plano perfeito — murmuro, sentindo meu coração palpitar


mais forte. A sede de justiça toma conta dos meus nervos, me sinto eufórica.
Mal posso esperar para saber que as crianças foram resgatadas. — Espera,
George, como sabe sobre o décimo quarto se nunca o viu? Como sabe que
são catorze membros?
— Catorze cadeiras na sala de leilões, catorze taças de champagne... —
ele diz e dá de ombros. — Não é difícil de decifrar. Como só descobri a
identidade de treze, sei que falta um.

Aceno com a cabeça em concordância.

— E quando acha que acontecerá o leilão?

— Pelo que consegui ouvir das conversas de Lauren ao telefone, será


daqui a dois dias.

Engulo a saliva, mal posso esperar.

— Senhorita? — ele murmura, com o tom de voz mais relaxado.

— O quê?

— Ainda posso levá-la para jantar?

— Você tinha uma boa desculpa — digo, beijando a ponta do seu


nariz. — Só vou pegar minha bolsa.

Fico de pé e entro na casa com George atrás de mim. Ele segura meu
cotovelo com firmeza e me puxa para seus braços assim que fecha a porta,
me fazendo girar e bater contra seu peito musculoso. Se inclina para baixo e
aperta a boca contra a minha, me fazendo perder o fôlego.

— Senti tanta saudade — ele sussurra de encontro aos meus lábios, me


beijando outra vez.

Sinto seus braços se fecharem em volta da minha cintura quando ele


me aperta ainda mais contra si. Ergo minhas mãos e seguro sua nuca, com
medo de perdê-lo de vista outra vez, tomada por uma necessidade de estar
com ele que domina cada canto da minha mente.

— Abra os lábios, Agatha — George me pede com a voz rouca.

Coro no mesmo instante por não saber beijar, mas faço o que ele diz.
Quando sua língua encontra a minha, não tem mais como controlar o que
sinto.

Agarro seu pescoço e o abraço ainda mais forte, envolvida pelo seu
corpo quente. Sinto os músculos rígidos dos seus ombros, escorrego as mãos
pelos seus braços fortes, pelo peito firme. Ele é tão gostoso que não consigo
evitar apalpá-lo, conhecer cada músculo... Enfio a mão por baixo da gola da
camisa, abrindo o botão de cima, permitindo tocar sua pele em chamas, e
percebo algo duro se apertar contra minha pélvis. Luto contra o desejo de
deslizar a mão até lá e tocá-lo por cima da calça. Estou fervendo por dentro.

George me ergue do chão, segurando a parte de trás das minhas coxas


com as mãos grandes, então me coloca sobre o encosto do sofá sem parar de
me beijar. Ele se acomoda entre as minhas pernas num encaixe perfeito. Arfo
com a nova sensação, me agarrando a ele cada vez mais forte, lutando para
encontrar nele um alívio para a palpitação que está torturando meu interior.

Sua boca desce pelo meu queixo e o morde de leve, sinto sua língua
encontrar meu pescoço e lamber minha pele, enquanto uma de suas mãos
junta meu cabelo e puxa. Me contorço contra ele, me aproveitando do
movimento para deslizar meu quadril contra o seu, em um desespero que leva
para longe todas as preocupações da minha vida. Somos só eu e ele agora.

Relaxo meus ombros, jogando a cabeça para trás. Ele me segura sem
esforço, se inclinando ainda mais sobre mim e começa a explorar minha pele.
O movimento da sua língua e dos seus lábios me faz queimar. Puxo mais um
botão da sua camisa, enquanto enlaço sua bunda com as minhas pernas, o
apertando bem forte de encontro ao interior das minhas coxas. Solto um
gemido, perdida com a nova sensação.

Sua língua começa a descer pela minha clavícula, mas o suéter o


impede de explorar mais para baixo. Ergo os braços bem a tempo de George
puxar a blusa para cima, atirando-a no chão em seguida. Eu o ajudo a tirar a
jaqueta, empurrando-a dos seus ombros, e logo estou abrindo mais um botão
de sua camisa, extasiada com a visão do seu peito nu.

George puxa o decote do meu vestido para baixo com força, de um


jeito que é cruel e sexy ao mesmo tempo. Sua mão entra por baixo do tecido
de algodão e encontra um dos meus seios. Quando seu polegar contorna meu
mamilo, perco o controle e puxo sua camisa de dentro do cós da calça e
arranho sua pele na região lombar.

— Senhorita... — ele geme contra meu ouvido.

— Eu sou louca por você — confesso, perplexa com o poder que ele
exerce sobre meu corpo.

— Eu também sou louco por você — sussurra.

Sinto uma de suas mãos escorregar para a frente do meu corpo, tocando
o vestido, afastando-o da minha coxa. O toque firme dos seus dedos me
alucina. Imploro por mais quando ele move o quadril com força contra meu
sexo, me fazendo soltar um gemido.

Então, acontece algo. George começa a puxar a meia para baixo,


despindo minha perna direita até abaixo do joelho. Pisco, o empurrando para
longe de mim com toda força que consigo reunir, tomada por um sentimento
frio.

Minha pele está em chamas, mas posso sentir o vazio que a distância
entre nossos corpos me causa. Puxo a meia de volta até metade da coxa e
abraço meu próprio corpo, me sentindo exposta como se estivesse nua diante
dele.

Ele pisca seus olhos caramelo, com a mandíbula trincada e as


bochechas afogueadas.

— O que eu fiz de errado? — pergunta, sem entender o que acabou de


acontecer.

— Não quero que veja meus joelhos — sussurro tão baixo que ele não
consegue ouvir.

— O quê?

— Meus joelhos! Não quero que você os veja — digo mais alto, até
mesmo sentindo vergonha de encará-lo.
Vejo seu cenho franzido, o rosto confuso.

— Eles são cheios de cicatrizes — procuro explicar, os esfregando por


cima da meia. — Fui colocada de joelhos sobre o milho muitas vezes.

Estou mais constrangida do que pensei que ficaria se um momento


como esse chegasse. Nunca pensei muito em como seria perder a virgindade
e, há poucos minutos, estava louca por isso, mas não quero que ele me veja
nua, que veja todas as marcas que tenho no corpo.

— Meu amor — George murmura, fazendo meu coração voltar a bater


forte —, acha que as coisas eram diferentes no orfanato?

Mordo o lábio, sem saber o que dizer, triste por ter estragado um
momento tão especial.

— Também tenho cicatrizes da infância — ele diz com gentileza,


voltando a se aproximar. — Você viu minha marca mais pessoal.

— Eu sei — digo, me lembrando da linha em relevo no seu pulso. —


Mas você é bonito, e as cicatrizes só te deixam mais atraente.

— Se você se visse pelos meus olhos, não pensaria da mesma forma —


ele diz e dá mais um passo, segurando meu rosto entre suas mãos. — Você é
a mulher mais linda que eu já vi. Não ligo para isso, mas se não quer que eu
veja seu corpo, não se preocupe, vou respeitar.

— Obrigada — sussurro com gratidão, colocando as mãos sobre as


suas.

— Vamos jantar?

Faço que sim com a cabeça e permito que ele me desça das costas do
sofá. Tento me recompor e George faz o mesmo. Damos as mãos quando
passo a chave na porta e o sigo para a motocicleta estacionada lá fora.

— É sua? — pergunto, enquanto ele sobe e dá partida.

— É nossa — George brinca e pisca para mim.


— Nunca andei de moto — confesso ao montar na garupa.

— Segure firme, senhorita.


Quando sua vida está prestes a mudar
No restaurante francês, o mesmo onde almocei com Mikall, o garçom
nos leva para uma das mesas do canto, de onde podemos ver todo o salão. A
mesa é quadrada, com um assento estofado para duas pessoas. George senta
ao meu lado e pede uma garrafa de champagne, enquanto olho o cardápio. Já
me enchi de macarrão instantâneo, mas não digo nada, não quero que ele se
sinta ainda pior por ter se atrasado.

Acabo escolhendo uma salada e um frango grelhado, já que os preços


são caros e que George, sendo um cavalheiro do jeito que é, vai querer pagar
a conta sozinho; não quero que desperdice seu dinheiro quando estou sem
apetite, já basta a bebida cara.

— Só vai comer isso? — me questiona.

— Não gosto de me empanturrar à noite — dou uma desculpa.

— Então vou querer o mesmo — diz para o garçom, me deixando mal


porque sei que isso não vai satisfazer sua fome.

O garçom se afasta, mas logo retorna com a garrafa de champagne e


serve nossas taças. Antes que eu possa experimentar o primeiro gole, noto a
expressão de George: olhos estreitos, cenho franzido e lábios entreabertos.

— O que foi? — pergunto, tomada por um pressentimento que faz meu


estômago doer.

— Me diga se estou vendo coisas — ele murmura, se aproximando do


meu pescoço e beijando o lóbulo da minha orelha.

Me encolho para conter um arrepio, enquanto seu dedo acaricia minha


bochecha.

— Está vendo os dois senhores de terno escuro naquela mesa? —


George pergunta sem se afastar do meu pescoço.
— Estou. Sempre os vejo quando venho almoçar aqui com Mikall. Eles
ficam nos observando.

Ele limpa a garganta, antes de voltar a falar, baixando ainda mais o tom
de voz.

— Olhe rapidamente e vire o rosto na minha direção — ele me instrui.


— Consegue ver que tem alguém de joelhos embaixo da mesa?

Arregalo os olhos ao notar que realmente há alguém ali. George vira


meu rosto e me beija, balbuciando contra meus lábios algo como “disfarce”.

Perco o ar e sinto minhas mãos começarem a ficar trêmulas quando


olho novamente, desta vez com mais discrição, e constato que não se trata
apenas de uma pessoa, mas duas. Aperto os olhos, tentando enxergar melhor,
e consigo ver os dois pares de pés por baixo da toalha de linho da mesa.

— São escravas? — pergunto ao ver um dos homens pegar


discretamente um pedaço de carne e o enfiar por baixo da toalha. — Ele está
alimentando elas com migalhas!

Uma coisa é você saber que algo tão cruel e desumano assim acontece,
outra coisa bem diferente é testemunhar de perto.

— Pare de olhar — George pede, tornando a acariciar minha bochecha.

Sou tomada pela agonia e a vontade de ir até lá fazer alguma coisa, mas
George ainda está segurando meu pulso.

— Sim. São dois dos membros do clube — ele confirma. — Sinto


muito por isso, por estragar esse encontro.

O garçom aparece com nossos pratos. Tento recuperar o fôlego, sei que
não serei capaz de provar da comida.

George está sorrindo para mim, mas parece mais com uma careta, ele
tenta disfarçar ao máximo.

— Como entraram aqui com duas garotas e as colocaram embaixo da


mesa? — pergunto por entre os dentes.

— Eu não faço ideia — ele responde. Posso ver nos seus olhos que ele
está tão desesperado quanto eu.

É terrível ficar parado olhando.

— Veja, aquele é o dono do restaurante — digo, apontando com o


queixo de maneira sutil na direção do homem que atravessa o restaurante e se
senta ao lado de um dos escrotos. — Ele sempre vem cumprimentar Mikall e
pergunta como Lauren está.

— É ele! — George conclui. — É ele o décimo quarto!

— Como sabe?

Tento conter os calafrios que estão subindo pela minha espinha, mas é
quase impossível. Estamos em mais um covil de lobos e o caçador está
tremendo tanto quanto eu.

— Olhe agora — George pede.

Percebo o dono do restaurante colocando as mãos onde não posso ver,


mas quase posso visualizar a cena: ele abrindo a calça para fazer uma das
pessoas embaixo da mesa colocarem a boca nas suas partes íntimas.

— Nunca o vi nos leilões. Se ele está com esses dois e fazendo o que
penso que está, só pode ser ele.

Como se não pudesse ficar ainda mais terrível, vejo Lauren entrar no
restaurante, usando saltos altos e um vestido prateado justo que cobre até seus
joelhos. Ela dá uma breve olhada no ambiente e nos localiza antes que eu
possa pensar em me esconder embaixo da mesa.

— Oi, George — diz, o encarando e mordendo o lábio como se eu não


estivesse aqui.

— Boa noite, senhora Mendes — George a cumprimenta, seu aperto


em volta do meu pulso fica cada vez mais forte. — Fez boa viagem?
— Fiz sim — ela diz e cruza os braços, se aproximando dele ainda
mais. — Mal tivemos tempo de conversar. Você sempre estava bêbado...

A serpente peçonhenta nem disfarça.

— Agatha está aqui — ele a lembra.

Ela me lança um olhar de desprezo, que faz eu me sentir um nada.

— Já que está ouvindo, saiba que eu vou te arrancar daquela casa com
minhas próprias unhas, sua pirralha imunda — ela cospe as palavras. — Vou
te colocar na rua com todo prazer.

Um sentimento tão ruim toma conta do meu interior que não consigo
segurar as lágrimas. Penso em levantar e enfiar a mão na cara dela, mas me
contenho por instinto.

— Senhora Mendes — George quase rosna por entre os dentes


cerrados. É minha vez de apertar seu pulso.

— Calma — murmuro.

— Não seja bobo — ela diz, sorrindo com malícia para meu namorado.
— Quero te ver mais tarde, depois que Mikall dormir. Após o jantar, vou até
a fazenda Delacroix jogar cartas, te espero na minha casa daqui a algumas
horas.

Meu corpo inteiro treme de ódio, pavor e nojo quando percebo o que
aquelas palavras significam.

Olho para George, mas ele está encarando Lauren. Acena levemente a
cabeça, como se concordasse com o encontro, o que a deixa satisfeita. Ela
morde o lábio e sai rebolando na direção da mesa ocupada pelos três
membros do clube.

— George — chamo seu nome baixinho, fazendo um esforço danado


para manter a sanidade.

Ele volta a beijar meu pescoço, até alcançar minha orelha.


— O leilão será esta noite — ele sussurra, quase inaudível. — Queria
mesmo que fosse um encontro perfeito, mas preciso ir agora. Tenho que ligar
para a polícia. Posso te deixar em casa?

— Nem pense nisso! — O encaro, bem séria. — Quero estar lá quando


essa desgraçada for presa.

Ele reflete por um momento, antes de concordar.

— Vamos até o balcão. Vou pedir a conta e você pede para usar o
telefone — ele explica, enquanto enfia a mão no bolso interno da jaqueta e
retira uma caneca, pega minha mão e escreve o número. — Ligue para o
inspetor Calvin, é só falar que George Garcia disse que a bola preta foi
encaçapada.

Ergo a sobrancelha.

— É um código — George explica. — Tem certeza que quer ir?

— Absoluta — digo com convicção.

— Então vamos.

Nos levantamos, deixando os pratos e as bebidas intocadas sobre a


mesa. Ele segura minha mão com firmeza enquanto seguimos para o caixa. O
maitre não se importa em me deixar usar o telefone, que fica em um canto
afastado do balcão.

— Não gostaram da comida? — ouço o homem perguntar, enquanto


estou me distanciando.

— Minha namorada está passando mal.

Pego o telefone e começo a girar o disco até os números


correspondentes. Um homem atende no quarto toque.

— Alô.

— Gostaria de falar com o inspetor Calvin — falo o mais baixo que


posso.

— Sou eu mesmo. Quem gostaria?

— George Garcia mandou dizer que a boa preta foi encaçapada.

— Estarei lá em vinte minutos.

— Pelo amor de Deus, não vá com a sirene ligada como os policiais


fazem nos filmes.

O inspetor dá risada, como se a ocasião pedisse.

∞∞∞

Quando George me disse que conhecia um ponto cego, nunca imaginei


que se tratasse de um buraco de esgoto por onde é drenada a água da chuva.

Graças a Deus não está chovendo.

— Você não deveria ter vindo — o inspetor Calvin reclama pela


terceira vez, abrindo o porta-malas de um utilitário azul —, mas já que está
aqui, vai colocar o colete.

— Sou testemunha ocular — o lembro. — Vou relatar tudo que vir


aqui para o juiz no dia do julgamento.

— Precisamos dos depoimentos dela — George diz com a postura de


um advogado. — Mesmo que a gente pegue todos em flagrante, precisamos
do maior número de provas possível. Empenhei a minha vida nisso.

— Está certo — o inspetor concorda.

Visto o colete.

Estamos ocultados na floresta, ao lado de duas viaturas desligadas,


quando vemos os primeiros carros passarem na estrada de acesso a fazenda.
— Precisamos ir agora — George anuncia. Também está usando colete
à prova de balas.

O seguimos algumas centenas de metros pela floresta, até alcançarmos


um riacho pedregoso. Sete policiais à paisana nos acompanham.

George usa uma lanterna para iluminar o caminho, tomando cuidado de


manter o feixe de luz focado para baixo. O duto do esgoto não tem a
circunferência suficiente para que possamos caminhar erguidos, precisamos ir
agachados, tomando cuidado para não fazer barulho. O odor não é tão
insuportável quanto pensei, já que só passa água da chuva por aqui.

Apenas dois policiais nos seguem, os outros cinco pegam outro rumo,
indo em direção à frente do casarão.

Vou rezando pelo percurso para que a polícia consiga prender todos os
malditos membros, libertando as garotas em segurança, sem que nenhuma
delas saia ainda mais machucada do que já está.

Após vários minutos, consigo ver uma luz na parte superior do final do
túnel.

— Chegamos — George informa com um sussurro.

Um dos policiais tenta passar na sua frente, mas o inspetor Calvin diz
que George conhece bem o entorno.

O vejo empurrar uma grade retangular com muito cuidado, sem emitir
nenhum ruído. Enquanto ele sai do duto, imagino que há uma segunda
intenção para ele ter me trazido, então pisco, me dando conta de qual é minha
função esta noite: pegar o catálogo das vítimas e tentar descobrir algo sobre
seu pai ou que fim teve sua mãe.

George não me pediu isso, ainda assim, consigo decifrar sua atitude.
Ele quer saber antes que a polícia recolha todos os objetos da casa e os leve
como evidência, mas não pode fazer tudo sozinho.

— Pode contar comigo — balbucio, inaudível. De repente, me sinto


ansiosa para me fazer útil.

Os policiais e eu esperamos até que ele faz sinal para que possamos
sair do túnel.

Vou na frente, ele segura na minha mão e me puxa para fora. Não
emito nenhum som. Fico de pé, endireitando a postura, enquanto os demais
homens saem. Olho em volta, percebendo que estamos numa espécie de
terraço escuro. Não consigo localizar nenhuma entrada para o casarão, a não
ser uma janela de vidro a alguns passos de nós. As luzes lá dentro são
vermelhas. Posso ver pessoas se movimentando em um grande salão,
vestindo terno e gravata, jogando suas cabeças para trás, dando risadas
exageradas.

Quando dou por mim, estou me aproximando para ter uma visão
melhor.

— Calma — George pede contra meu ouvido o mais baixo possível,


segurando meu antebraço. Faço que sim com a cabeça. — Preciso que você
repare em todos os homens que estão aqui, além de sua irmã.

Sacudo a cabeça, ciente de que meu testemunho será muito importante.

Ele continua me segurando ao nos aproximarmos da janela. Consigo


ver com mais clareza o salão. Presto atenção na cena, contando os homens ao
redor. Com um rápido olhar, guardo suas feições. São treze, catorze contando
com Lauren. Cada um dos homens segura uma corrente presa às coleiras
cravejadas de joias em torno dos pescoços magros das crianças. Elas estão
usando vestidos pretos e rodados, que as fazem parecer ainda mais frágeis,
como se fossem bonecas humanas. Posso perceber a expressão de vazio nos
rostos de algumas das maiores, aparentando já terem desistido de viver há
muito tempo, entregues à letargia de suas prisões.

As mais novas ainda carregam expressões de dor, com seus olhos


arregalados e inquietos, como se ainda estivessem procurando uma maneira
de escapar.

Alguns dos membros estão andando pela sala, as puxando como se


passeassem no parque com seus cachorros — quatro meninas estão
engatinhando pelo chão.

De repente, o horror se faz mais nítido na minha mente. Vejo os seus


joelhos se arrastando pelo chão de granito, sustentando o peso de seus corpos
castigados e penso em como me deixo ser afetada pelas minhas cicatrizes
quando esses garotos estão sofrendo uma dor inimaginável, muito maior que
a minha.

Preciso controlar meus nervos e a vontade de fechar os olhos, de sair


correndo dali. Ver é muito pior do que imaginar. Uma das meninas que está
de quatro, tropeça na perna de uma mesinha de centro e se estatela no chão,
seu dono imediatamente chuta suas costelas e puxa seu pescoço com toda
força, a fazendo se erguer novamente.

Levo as mãos à boca a tempo de segurar um grito, sinto a força do


aperto de George se intensificar no meu braço e entendo que aquela visão o
destrói assim como está me destruindo.

— Precisamos invadir depressa — ele fala para o inspetor Calvin.

Meu coração salta no peito e meu estômago congela. Nossas vidas


mudarão no segundo seguinte.

— Vamos invadir — Calvin dá o alerta no rádio para os outros


policiais.
Continua…
Previsão para o lançamento do livro 2 da
Duologia:
14 de outubro
Agradecimentos
Não vou me estender nas palavras, não vou citar nomes, não quero correr o
risco de esquecer ninguém, só quero agradecer imensamente a todo mundo
que me ajudou na construção deste livro, e principalmente a cada leitor que
dedicou seu tempo a uma das minhas obras.

Vocês transformaram imensamente minha vida!

Continuem comigo, nos encontraremos nas páginas do próximo livro.


Nem todos os príncipes usam coroa:
Lucy Peter leva uma vida miserável, acostumada a ser maltratada pelos tios,
com quem foi obrigada a morar desde os quatro anos de idade, após uma
tragédia.
Tudo muda quando sua tia Esther arranja um novo emprego na fazenda da
família Hansson, onde vive Axel, o único rapaz da cidade de Agaton, no sul
da Suécia, capaz de chamar sua atenção.
O problema é que nunca trocaram um único olhar e, enquanto o rapaz bonito
e inteligente frequenta badaladas festas em que se apresenta como DJ, Lucy
vive no lado pobre da cidade, forçada a viver sob os constantes maus-tratos
do tio dominador.
Será que Axel poderá salvá-la?
Duas realidades completamente opostas irão se misturar em um romance
proibido e inesquecível.
Encontro Perfeito
Ele saiu da pequena cidade de Agaton para fazer shows ao redor do mundo,
conquistando fama, dinheiro e fãs que pareciam encontrá-lo aonde quer que
ele fosse.

Ela permaneceu na fazenda e precisou enfrentar a gravidez sozinha. Não


poderia abrir mão da rotina com a formatura e o nascimento de um bebê tão
próximos.

Como duas pessoas tão jovens, com objetivos e vidas tão diferentes poderiam
suportar o destino os afastando cada vez mais?

Em Encontro Perfeito, nós temos a chance de passar um dia especial com


Axel e Lucy, o casal que arrebatou nossos corações em Nem todos os
príncipes usam coroa.
Trilogia Irresistíveis
Desde os tempos mais antigos, os jogos de azar sempre foram muito
procurados pelos homens.

Roggero Fontana era um viciado em apostas, à beira da falência. Em uma de


suas jogadas habituais, desesperado, aposta a mão de sua própria filha,
Isabella, com John Smith, um misterioso forasteiro.

Mas Roggero perde o jogo e, consequentemente, sua filha.

O casamento acontece de forma rápida; John tem urgência em levar Isabella


para sua isolada fazenda. Lá, a jovem se depara com um segredo que vai
mudar para sempre suas vidas, e descobre que para ficar ao lado de John
precisará enfrentar todos os demônios do passado para, só então, encontrarem
o paraíso que sempre desejaram.
Anjo Mau
Quando Melissa aceitou participar da caça ao tesouro na famosa casa mal-
assombrada, ela não esperava que aquilo traria consequências sérias e
definitivas. Era para ser só mais uma aventura de jovens inquietos que
fugiam, todas as madrugadas, do dormitório da Escola Católica de Martins
para se esgueirarem pelas sombras da cidade adormecida em busca de
diversão.

Mas não era apenas uma brincadeirinha de adolescentes. O destino havia


reservado uma surpresa para cada um deles.
Referências
[i] Total Eclipse Of The Heart

Artista: Bonnie Tyler

Álbum: Faster Than the Speed of Night


Data de lançamento: 1983

Indicações: Grammy Awards: Melhor Performance Vocal Pop Feminina, MAIS

Gêneros: Pop rock, Pop

[ii] Making Love Out Of Nothing At All

Artista: Air Supply


Data de lançamento: 1983

Gênero: Rock

[iii] O boiserie, com a pronúncia “boaserrí”, é um revestimento francês típico do século XVII e
XVIII. A técnica consiste em emoldurar as paredes através de painéis de madeira em relevo.
[iv]
Capitonê é primariamente uma técnica aplicada ao tecido, em almofadas, cabeceiras estofadas de
cama, sofás e poltronas.

Você também pode gostar