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Ele poderia seguir com seu plano de vingança, caso se apaixonasse por
Agatha?
— Não fale assim com ela, Lauren — Mikall saiu em minha defesa. —
Só estávamos conversando. Agatha nunca me perturba.
Me virei para minha “adorável” irmã mais velha e mostrei a língua. Ela
contorceu a boca, juntando os lábios em uma linha estreita e agarrou meu
cotovelo, me puxando para cima, como se sentisse prazer em me humilhar na
frente de Mikall.
— Posso pegar uma roupa sua emprestada? — gritei para Lauren antes
que ela virasse a esquina, enroscada no braço do meu Mikall.
— Por favor. Só uma blusa! Não vou estragar! — implorei, mas eles já
tinham virado a esquina.
— Estou ficando muito mais bonita e ela tem medo de perder Mikall
para mim — respondi com orgulho.
— Não diga besteiras! Mikall é um ótimo vereador, todo mundo na
cidade o adora. Em breve, ele será eleito presidente da câmara e seu pai faz
muito gosto em vê-lo casando com Lauren — mamãe disse séria. — Por
favor, não faça nada que deixe seu pai irritado, muito menos que vá
atrapalhar o noivado dos dois.
— Assim como não sou sua mãe. Mas te acolhemos como se fosse
filha, te criamos desde que você veio ao mundo. Agora vá tomar banho. Se
comporte no cinema ou terá que se entender com seu pai.
Pelo que sabia, meu pai era um dos homens mais ricos da pequena
cidade.
Eu não deveria ter nem quatro anos quando isso aconteceu. Lauren
tinha quinze. Apesar de tudo, não foi colocada de castigo. Sempre foi assim.
Ela fazia o que bem entendia, porque era a princesa do papai.
Abri a porta e dei de cara com um rapaz, o mais bonito que eu, até
então com oito anos, já tinha visto. Senti como se o tempo estivesse passando
em câmera lenta enquanto eu o encarava. Ele era milimetricamente perfeito,
muito mais interessante do que os caras dos filmes que Lauren assistia. Tinha
cabelo castanho, olhos azuis e cílios escuros. Seu rosto parecia ter sido
desenhado por Deus.
Mas antes que pudesse pegar o urso, senti o peso do braço do meu pai
em volta do meu corpo, apoiado sobre meu tronco e segurando meu ombro
com força, como uma advertência sobre o que aconteceria se eu o
envergonhasse na frente daquele rapaz.
Meu pai era rude, mal educado com minha mãe e sempre a fazia
chorar. Mikall parecia ser alguém que nunca levaria uma garota às lágrimas,
como um verdadeiro príncipe dos contos de fada, o oposto do meu pai.
Ele não beijou seus lábios na frente do meu pai, mas sim, sua testa,
como um perfeito cavalheiro. Minha irmã era tão falsa quanto meu pai, e
conseguiu corar como se fosse uma garota tímida. Só eu sabia a bruxa que ela
era por trás daquele disfarce.
∞∞∞
Nos dois anos que se seguiram àquele jantar, Mikall e eu nos tornamos
algo como confidentes. Ele não me tratava exatamente como uma pirralha
que vivia graças à caridade dos donos da casa. Conversávamos a respeito de
filmes, jogos de futebol e, principalmente, sobre música. Às vezes, quando
ninguém mais queria, Mikall se oferecia para me levar à festa de aniversário
de alguém do colégio, ou para ver algum filme na matinê do cinema, quando
Lauren se ocupava no salão ou viajava para fazer compras com mamãe em
uma cidade maior. Eu nunca era bem-vinda nas viagens de compras das
garotas.
Ele me comprava sorvete, jogos, brinquedos e doces.
Mais ou menos dois anos após Mikall entrar na minha vida, numa tarde
de outono, ele me confidenciou que pediria a mão de Lauren em casamento, e
que seríamos como irmãos.
— Você não pode amá-la tanto assim — foi meu primeiro comentário.
Senti um caroço se formar na minha garganta, mas não consegui entender a
razão. Eu nunca chorava quando estava perto de Mikall.
— Por que acha isso? — ele quis saber. — Logo você, Agatha, vai
duvidar do meu amor pela sua irmã?
Eu tinha dez anos na época, e Mikall vinte e dois. Ele era um vereador
da nossa pequena cidade, graças ao patrocínio do meu pai, e eu... uma
pirralha do ensino fundamental.
Para meu horror, Mikall... riu de mim. Ele não disse que eu era criança,
que não entendia sobre a vida, nem nada do tipo, apenas riu.
Ele me puxou para seus braços e disse que era velho demais para mim.
Ouvi sua risada contra minha cabeça outra vez. Seus braços eram
sempre quentes, não importava quanto frio estivesse fazendo, e Mikall estava
sempre perfumado, mas naquele dia eu tremi no seu abraço.
— Eu amo sua irmã, Agatha. Isso que sente por mim é só carinho.
Você não quer realmente se casar comigo.
— Mas Lauren não merece ser amada por alguém como você —
resmunguei entre soluços. Não podia aceitar perdê-lo daquela forma.
Por algum motivo, minha irmã deve ter percebido o quanto eu era
determinada quando queria algo, e que poderia ser realmente uma ameaça,
mesmo que eu só tivesse dez anos. Eu não me fazia de coitada, lutava pelas
coisas que queria com garra.
Eu nunca seria como ela. Meus pais não permitiriam e não me dariam o
mesmo apoio. Eu não tinha o sangue deles correndo nas veias, sempre
deixaram isso bem claro: que eu era adotada, não pertencia àquela família.
— Calma, Lauren — ele pediu. — Não vai sair no tapa com uma
menina de onze anos.
— Isso mesmo. Sou doze anos mais velho que você. Me casarei com
sua irmã na primavera. Você é uma menina, é linda, claro, mas é uma
menina...
— Não importa quanto tempo passe, sempre serei doze anos mais
velho que você — Mikall disse, sem ter noção do quanto sua negação me
feria. — Sinto muito se te deixei imaginar que queria ser mais que seu irmão
mais velho.
— Entendo que te amo. Você é o único que não me trata mal, que me
dá atenção, que conversa comigo sem me menosprezar.
— Sempre vou te tratar bem. Me casarei com sua irmã, mas vamos ser
sempre amigos.
— Não, Mikall, por favor, não se case! Espere por mim — implorei.
— Não brigue com sua irmã por minha culpa. E pare de chorar, não
mereço essas lágrimas.
Ele tocou meu queixo e o ergueu, do mesmo jeito que tinha feito
quando disse que iria pedir a mão de Lauren.
— Não é tão fácil quanto parece e nem todos gostam de mim. Tem um
grupo só esperando um tropeço meu, um erro, para me derrubarem. Sei como
é medir e planejar cada passo para não decepcionar as pessoas.
— Como você não consegue ver que ela não te merece? Ela vai te
tratar como lixo assim que estiver casada, vai bater nos seus filhos como me
bate, você nunca vai ser feliz com ela... — minha voz foi morrendo quando
me dei conta de que dizer aquilo era inútil.
— Sou adulto e você é uma menina. Não foi para isso que me
aproximei de você. Te considero como a irmã mais nova que eu nunca tive, é
só isso.
Ele não acabou de falar. Lauren estava dentro do quarto, tinha entrado
sem fazer barulho e escutado a conversa. Rosnou como uma fera, se
aproximando com os olhos vidrados. Numa fração de segundos, ela estava
em cima de mim, puxando meus cabelos, me arrastando pelo chão.
Minhas costelas queimavam dos chutes que levei, assim como meu
couro cabeludo, quando ela me jogou na porta do escritório de papai. Aquela
era só uma parcela da agressão que eu sofreria naquela noite.
— Não posso deixar você... — ele começou a dizer, mas apertei meus
dedos contra sua boca.
— Afonso, ela não fez por mal — Mikall pediu. — Não a castigue.
— Não fiz por mal — tentei argumentar, enquanto ele tirava o cinto.
— Não é de hoje que sua irmã reclama das suas sem-vergonhices para
cima do vereador. Que vergonha! Uma criatura que vive da minha caridade,
me apunhala pelas costas, dentro da minha casa.
— Cale a boca! Nunca mais quero ouvir sua voz, ver seu rosto. Arrume
suas coisas. Um carro vai te levar até a estação amanhã bem cedo. Você
ficará num colégio interno até aprender a ser gente, a não tentar estragar os
negócios de quem te acolheu.
Bem, elas não estão aqui agora. Além disso, já tenho dezoito anos e
posso decidir se usarei maquiagem ou não.
Estive esperando por muito tempo, agora é hora de voltar para casa.
O tempo passou. Ele está casado com Lauren, tem filhas gêmeas. As vi
por foto uma vez, mas nunca vi Mikall. Não sei como ele está agora. Acho
que tinha razão quando dizia que sempre seria doze anos mais velho que eu.
Ele está entrando na casa dos trinta. Não sei como são os homens de trinta.
Na verdade, não sei como são os homens.
Mikall nunca me escolheria. Hoje sei disso. Não sou mais aquela
menina que implorava por um beijo.
Ergo a cabeça. Mikall disse que não era chorando que eu conseguiria
respeito. Não vou chorar agora só porque ninguém veio me buscar.
Sinto o calor da sua mão contra minha blusa e travo os músculos para
conter um arrepio.
Ainda estou tentando aceitar que a única pessoa que imaginei que se
importasse comigo está de férias com suas netas pela Europa. Um nó
estúpido se instala em minha garganta, mas engulo a saliva e o obrigo a se
desfazer, quando sigo George para o estacionamento.
— De quem é?
Sei que estou consumindo sua paciência, que ficar calada pelo resto da
viagem é a escolha certa, mas fazer as pessoas chegarem no limite é um dom
que ainda me controla.
— Não, mas a senhorita tem uma língua muito afiada — diz com
sarcasmo.
Respiro fundo, sentindo o sangue subir para meu rosto, pensando em
todas as freiras que me falaram para ser recatada. Resolvo engolir seu
comentário.
Pelo jeito que me trata, sei que Lauren deve ter contado como sou
insignificante para a família. Se for assim, acho que causei uma “boa”
impressão.
— A senhorita quer fazer o favor de me deixar dirigir? — ele me
questiona, os olhos vidrados nos meus.
— Seu tom de voz fica interessante quando está com raiva — comento
e ele acelera novamente, guiando o carro de volta para a estrada.
— Sei que está frustrada por não ter sido recebida pela sua família,
ainda mais depois de tanto tempo longe, mas só estou tentando fazer o meu
trabalho. Não precisa descontar sua decepção em mim.
— Não sei.
Ele sorri relaxado. O mal estar que causei parece já ter passado. Pelo
menos ele não guarda mágoas. Gosto disso.
— Viu? Você precisa dos meus cuidados — ele diz com um sorriso.
George morde o lábio macio, seu rosto fica corado, mas ele não fala
mais nada pelo resto da viagem.
∞∞∞
— Não foi nada, senhorita — George diz, mas começa a correr antes
que eu consiga arremessar alguma coisa contra ele.
Nem minha mãe nem Lauren estão em casa. Não sei o que encontrarei
lá dentro. Respiro fundo antes de girar a maçaneta.
O covil do lobo
Estou mordendo o lábio quando abro a porta. Meus olhos se arregalam
diante da imensidão da sala de estar, meu queixo cai, mas engulo em seco e
tento fingir desdém. Há um lustre pendurado no teto alto, uma escadaria
dupla a minha frente, tapetes persas, os móveis parecendo intocáveis.
Sorrio com a ideia de Lauren gritando comigo para não tocar no sofá
com minhas mãos imundas.
Dou um passo para dentro e fecho a porta. Não tem ninguém para me
receber, como eu deveria ter esperado.
Há várias portas que dão para a sala, mas só duas, do lado esquerdo,
estão abertas. Arrumo a alça da mochila no ombro e, ainda mordendo o lábio,
caminho para a primeira porta deixando que meus tênis se arrastem fazendo
barulho pelo chão.
É ele!
Não sei como me sinto. A última vez que o vi, Mikall era lindo, mas já
tinha vinte e três anos. Não faço ideia do que os longos anos fizeram com sua
aparência. Ele tem filhos, uma cidade para administrar e uma esposa
desequilibrada.
Continuo andando até estar de frente para a porta. Olho sobre o ombro
como quem não quer nada e o vejo. Me sinto com onze anos de novo, como
se fosse verão, como se o tempo não tivesse passado. Mas passou, e ele só fez
bem a Mikall.
Estou pasma como sua aparência. Ele conseguiu ficar ainda mais
bonito do que já era. Está usando um terno azul marinho e sua gravata está
afrouxada. Parado diante da porta, ouve o que a pessoa fala do outro lado da
linha. Nota minha presença e estica a mão para fechar a porta na minha cara.
Vejo a porta sendo fechada. Mikall agora encara o chão. Parece muito
aborrecido. Percebo que os homens desta cidade se irritam com muita
facilidade.
Quando a porta está a meio caminho do portal, ele olha para a frente e
me vê. O segundo em que nos encaramos passa devagar. Sei que minha
respiração está acelerada. Ele abre a porta de volta e sorri, só então, abro um
sorriso.
Quando estou pronta, meu estômago reclama. Faz horas que comi. Saio
do quarto e desço as escadas com a mão apoiada no corrimão. É uma linda
mansão, mas percebo que está deserta quando alcanço a sala de estar.
Ninguém se importa com minha chegada.
Ele acabou de tomar banho, seu cabelo ainda está úmido e o perfume
amadeirado contorna meu corpo, entrando pelas narinas.
— De que jeito?
Não quero que ele saiba que ainda mexe comigo. Preciso me esforçar
para controlar as emoções.
— Não acredito que você é aquela mesma menina que andava com o
cabelo bagunçado, pedalando a bicicleta rosa pela praça da cidade, que me
fazia rir dizendo...
— Teria — ele confessa, mas aperta os lábios para segurar uma risada.
— Não minto para você. Se soubesse que o casamento com sua irmã
seria uma droga, teria terminado com ela, acredite — Mikall diz, mas não
consigo perceber se está sendo sincero ou brincando comigo. — Teve sorte
de crescer longe de Lauren. Ela me odeia, odeia todo mundo.
— Os anos só voaram para você porque estava livre para voar junto
com eles — murmuro. — Para mim, eles passaram lentamente.
Mikall sorri. Ainda acho seu sorriso lindo, mas não estou interessada
em dizer isso agora. Ele tira a carteira do bolso da jaqueta, a abre e me
entrega uma nota de vinte.
— Me leva com você, por favor. Juro que não vou contar para Lauren.
∞∞∞
— Não faça eu me arrepender por ter lhe trazido — ele pede quando o
motorista para o carro diante de uma fachada simples. Há outros carros já
estacionados, mas a vaga principal ficou aguardando pelo prefeito.
Um homem forte e careca faz cara feia quando me vê, mas Mikall diz
que eu estou com ele.
Mostro o dedo do meio para o careca quando Mikall some pela porta,
em seguida, corro até meu... cunhado e agarro seu braço enquanto descemos
as escadas. São três lances, está escuro. Imagino como seria agarrá-lo e dar
aquele beijo que sonhei por tanto tempo. É deprimente assumir, mas estou
fantasiando isso e não posso transparecer. Não quero que ele me afaste para
longe, ainda mais ali.
— Quero cerveja!
— Não vai querer tomar seu primeiro porre aqui, vá por mim — ele
sussurra perto do meu ouvido. Seus lábios tocam o lóbulo da minha orelha e
causam cócegas. Me encolho, arrepiada. Mikall se dirige à mesa de sinuca
quando meu refrigerante chega.
Parece que todos ali têm algo para falar com o prefeito. Reviro os olhos
para a conversa entediante sobre obras e bebo o refrigerante devagar.
— A maioria dos homens presentes neste salão — ele diz e faz uma
pausa para olhar em volta; noto que Mikall nos olha brevemente, mas não dá
importância — não faz sexo com suas esposas há semanas, meses.
— Eles têm dinheiro, bens, poder, mas suas esposas não os suportam
porque eles trabalham demais, seus filhos os odeiam. É um covil de lobos,
sim. Então a senhorita aparece aqui com essa blusa apertada, os lábios
vermelhos, toda linda e cheirosa... Os lobos maus chegam a espumar pela
boca. Olhe em volta, veja como te comem pelo canto do olho.
— Quer ser devorada por um desses lobos? Você não está usando um
chapeuzinho, mas tem lábios vermelhos muito apetitosos, senhorita. Um
desses lobos nojentos te arrastaria para o banheiro antes que o prefeito
pudesse notar.
— Como assim?
— Ele é um homem decente, não corrompe os cofres públicos, não tem
histórico de relações extraconjugais e não compra briga com ninguém. Não
quero que a senhorita manche o currículo dele espalhando desavenças pela
cidade e arranjando encrenca.
— Vamos fazer uma coisa? Você para com esse negócio de “senhorita”
e eu vou me comportar muito bem. Fechado?
— Diga.
— Vou te mostrar que não sou mais menina — sussurro e puxo meu
braço da sua mão.
Aceito, surpresa.
— Para um lugar onde a senhorita possa dançar sob a luz das estrelas
— ele brinca com a voz rouca, acelerando o conversível.
Ele parece gostar de mim, da minha companhia, mas sei que não posso
me dar ao luxo de sair da defensiva e me acostumar com ele, porque a vida
me afastou da única pessoa que me tratou com gentileza.
Eu ainda sou apaixonada por ele como era na infância? Penso em como
sempre foi tão amoroso e respeitador comigo, mesmo quando eu não merecia.
Ele sabia como lidar com meu sentimentalismo, era bom com crianças. Deve
ser um excelente pai, do tipo que eu sempre quis ter, mas continua casado
com Lauren, mesmo dizendo que não são felizes.
Será que ele me contar aquilo foi um sinal de que devemos deixar o
passado para trás e tentarmos dar certo agora que sou adulta?
Ele disse que ia me esperar, mas não consigo ter certeza do que essa
espera significa: saber que cheguei sã e salva em casa ou realmente me
esperar?
Droga! Eu nunca sequer beijei alguém. Não sei nada sobre os homens,
muito menos um na casa dos trinta.
— Tem pernas compridas, mas não precisa saltar sempre por cima da
porta — George brinca.
Quero pedir para ele não ser tão gentil assim, que eu não quero me
acostumar e depois perdê-lo, mas começa a tocar Total Eclipse Of The
Heart[i], e é uma música que mexe comigo desde que foi lançada. Me limito a
soltar um ruído parecido com uma risada sarcástica.
— Nos conhecemos hoje, você não precisa decidir se vai ser apegar a
mim tão depressa. Vem.
— Como acha que eu sei dançar quando passei quase metade da minha
vida em um convento? — Praticamente cuspo sarcasmo.
— Não considerei isso quando você disse que queria dançar — ele
rebate com calma. — Não precisa aprender agora. Quer só se sentar e ver as
luzes da cidade?
— Assim como?
— Com gentileza.
— Parece tão fácil daqui de cima — ele sussurra com a voz rouca. —
Só uma pequena cidade, com casas arrumadas e famílias felizes. Faz a gente
desejar ser um deles, pertencer a uma dessas famílias que parecem perfeitas,
nos faz pensar que podemos encontrar um lugar, nos encaixarmos no mundo
deles.
— Sem perguntas desse tipo por hoje — ele diz, como se também
estivesse na defensiva.
— Foi você que começou a falar sobre não se encaixar — digo, dando
de ombros.
— Não é para soar engraçado — ele diz com o tom de voz sério. —
Você veio de um lugar onde só havia freiras, padres e garotas, e no primeiro
dia sai sozinha à noite com alguém que acabou de conhecer.
— Bem pensado — George diz e sorri, mas seus olhos ainda estão
sérios.
Dou uma risada baixinha, trazendo sua atenção de volta. Uma música
mais agitada começa a tocar.
— O que foi?
— Você não faz ideia de como era no convento para estar pensando
que eu sou assim tão boba e frágil — murmuro.
— O que os padres e freiras te fizeram?
Não quero relembrar essas coisas. Aquela menina que era castigada
sem poder reagir ficou no passado. Fecho a mão em punho e tento recuperar a
pose de garota terrível, mas minha voz soa fraca.
Dou de ombros.
Mesmo que eu tenha sido uma criança terrível, não acho que me tratar
de maneira desumana foi justo. Ninguém conseguia perceber que tudo que eu
precisava era afeto.
— Foi assim tão ruim? — ele quer saber, parece curioso demais. Me
faz lembrar dos olhos da irmã Antônia, que parecia sempre saber quando eu
estava mentindo e tinha ordens claras do meu pai para aplicar a punição que
julgasse necessário.
— Tem coisas que são bem difíceis de superar... — ele diz, como se
entendesse.
Costumava pensar que sempre teria minha mãe ao meu lado quando
pudesse sair do convento, mas foi apenas mais uma das minhas ilusões.
— Estudar. Faculdade.
— Não ria.
Ele se mantém sério, mas percebo que está mordendo a parte interna
das bochechas.
— Meu pai tinha muitos negócios na cidade. Não sei exatamente como
seus bens foram divididos quando morreu, mas com certeza terei muita coisa
para administrar. A faculdade será ótima.
— Perfeito.
— Você fica muito mais bonita quando não está sendo desagradável —
George comenta, me fazendo rir.
Seu braço ainda está apoiado em torno da minha cintura. E é tão quente
e seguro que tenho certeza que não quero ir embora ainda.
Ele fica em silêncio, fitando a paisagem. Sua barba está por fazer,
deixando uma sombra que destaca ainda mais a mandíbula e as maçãs do
rosto bem desenhadas.
— Amanhã.
Desenho um quadro na mente em que ele conta para Lauren que vai se
separar e ficar comigo. Ela fica furiosa porque, mesmo não amando Mikall, é
assim que ela é. E tenta fazer da minha vida um inferno, jogando suas filhas
contra nós. Mamãe fica do lado dela. Todo mundo da cidade me olha torto,
até mesmo George.
Estou disposta a pagar o preço novamente, logo agora que estou livre
do convento? Realmente quero fazer parte dessa pintura?
Não sei.
Não estou certa se valeria a pena encarar o olho do furacão por causa
de um homem, mesmo que este homem seja alguém como Mikall.
— Isso explica por que não quero voltar para casa — murmuro, mais
uma vez sentindo que ele me entende.
— Por que está tão preocupada? Você acabou de chegar e tem ótimos
planos de estudar, não deveria nem desperdiçar seu tempo considerando a
hipótese de se meter no casamento deles.
— Vinte e três.
— A idade que Mikall tinha quando fui mandada embora por tentar
beijá-lo. E ele nunca foi me visitar — concluo, me dando conta de que
realmente estava desperdiçando meu tempo.
Não vou voltar para casa e implorar por um beijo, mesmo que sinta
atração física, não só por ser é errado, mas porque não é isso que quero para
minha vida.
— Espera! Por que Lauren contaria algo tão íntimo para um motorista?
— questiono de repente, me apoiando no cotovelo para encará-lo. — Não se
ofenda, mas esse é um segredo de família.
Seguro o vidro frio com as duas mãos e levo o gargalo aos lábios,
sentindo o gosto amargo, diferente do vinho. Viro de uma vez, engasgando
logo em seguida.
— Juro que não beijei ele. O batom saiu por outro motivo — franzo as
sobrancelhas —, deve ter sido aquela bebida. Não lembro. Mas sei que não
beijei ele.
Não sei exatamente porque estou falando isso. Por mais que não deseje
entrar no meio do seu casamento, ainda quero ser sua amiga, como nos
velhos tempos.
— Não estou bravo com você, menina — ele sussurra. — Não teve
culpa daquele imbecil te embriagar. Ele nunca mais vai fazer isso.
Não sou idiota, mesmo que seja isso que deixo transparecer na maioria
das vezes. Minha consciência me diz que foi exatamente para desconversar
que George me deu aquele uísque barato e mortal.
— Por que disse que iria me esperar? Por que falou sobre aquela coisa
do batom? — Mal posso recordar suas palavras, minha mente está prestes a
se entregar à névoa outra vez.
— Agora.
Sorte que a tampa já está levantada, do contrário, não teria dado tempo
de fazer isso. Coloco tudo para fora em esguichos nojentos e barulhentos que
me impedem de respirar.
Assinto uma única vez. Ele me deixa sozinha no meu quarto e sai para
procurar um remédio. Tiro minhas roupas e entro debaixo do chuveiro,
desesperada para me livrar daquele cheiro de vômito e do sentimento de
vergonha, em seguida escovo os dentes duas vezes. Quando saio para o
quarto, Mikall está sentado na minha cama. Parece irritado e com sono.
Vou até a mochila e pego o pijama entre as poucas mudas de roupa que
ainda tenho e volto ao banheiro para me vestir com privacidade. Quando
acabo, caminho derrotada até a cama.
Me dou conta de quanto foi estúpido da minha parte ir até seu quarto
bêbada, ainda mais ter denunciado George. Não sei onde estou com a cabeça.
Preciso me segurar para não falar um monte de besteiras que Mikall não
precisa e nem quer ouvir.
Quero perguntar por que nunca foi me visitar, se dizia se importar tanto
comigo. Quero contar como foi difícil, que eu não consegui fazer amizade
com as garotas que dividiam o dormitório comigo, porque sempre que uma
me dava chance, eu a metia em encrenca. Estou louca para confessar que não
aguento mais ser a maçã podre do cesto, que quero ser madura e responsável,
mas que não estou certa se consigo fazer isso sozinha, que ainda preciso do
apoio que me foi negado nos últimos anos. Preciso dizer que sua amizade me
fez falta e que eu não deveria ter confundido gratidão com paixão, que as
coisas teriam sido bem diferentes e melhores se eu não tivesse cometido a
besteira de tentar beijá-lo.
Não sei como falar nada disso sem começar a chorar, e uma das últimas
coisas que ele me disse, naquela noite, era que eu não conseguiria respeito
chorando. Não posso desabar na frente dele também. Não posso fazer isso na
frente de ninguém.
— Tome essa mistura, vai te ajudar com a ressaca — ele diz com a voz
séria, me puxando de volta da confusão de pensamentos.
— Vai passar — Mikall diz ao erguer meu queixo com a ponta dos
dedos para que eu o olhe nos olhos. — É seu primeiro porre. Todo mundo
passa por isso.
— Por favor, não brigue com George — peço gentilmente. — Ele não
fez por mal. Só queria que eu me divertisse. Por favor.
— Eu nunca traí sua irmã, sou um bom marido, um bom pai. Por muito
tempo, considerei que a culpa era minha. Sabia que, às vezes, eu até penso
que poderia ter te esperado? — ele diz com uma risada soprada, que não
consigo compreender.
— Nunca namorei.
— Vou deixar você descansar. Estou muito feliz que tenha voltado —
diz e se inclina para beijar minha testa. Meu corpo fica consciente do seu
toque, como se acendesse uma faísca, me fazendo ficar confusa outra vez. —
Espero que esteja bem quando acordar. Mas, pelo amor de Deus, não conte
nada disso à Lauren. Ela te mataria se soubesse que estive aqui no seu quarto,
falo sério, e depois arrancaria meus testículos.
— Tenho que sair para trabalhar daqui a pouco. Você vai ficar bem?
— Ela sempre viaja. Não vai ser difícil ficarmos a sós. Boa noite.
Caminho até seu quarto e giro a maçaneta sem fazer barulho. Meus
olhos ardem com a claridade que encontro lá dentro. A cama enorme está
perfeitamente arrumada, mas não vejo sinal de que ele está no quarto.
Tenho apenas duas calças jeans, três suéteres, uma camiseta branca e
um vestido estampado, além de algumas calcinhas de algodão, um sutiã de
bojo e renda, um par de botas pretas de cano alto embrulhadas ao lado de um
par de tênis cor de rosa dentro de um saco de flanela, dois pares de meia, uma
loção corporal e uma colônia. O batom vermelho completa meus pertences.
∞∞∞
Após tomar um banho e vestir uma das últimas mudas de roupa, desço
as escadas cantarolando. Deixei a sensação de desamparo para trás, me sinto
feliz e otimista. Estou pensando na faculdade. Não sei se tenho vocação para
alguma coisa, mas isso não vai estragar meu bom humor.
— Sua irmã vai chegar a qualquer instante. Por favor! Não quero
arranjar confusão tão cedo. Nem fui para a prefeitura ainda.
Me afasto num pulo e me sento em outro sofá um segundo antes da
porta da sala se abrir.
— Está tão bonita, Agatha. Meu Deus, como você cresceu! — ela diz
bem alto para que todos na sala ouçam. — Tão linda! Como foi a viagem?
George foi receptivo? Espero que não tenha ficado chateada por eu não estar
aqui.
— Está tão maravilhosa! Sorria. Quero ver seu sorriso, irmã — ela diz,
ainda segurando meus ombros e me investigando. Tento abrir um sorriso
amarelo. — Ela não é linda, querido?
Lauren se vira para Mikall, que está nos observando com um olhar
pasmo.
Ela vai até ele, agarra seu pescoço e o beija com exagero. Meu coração
vacila. Olho para George e ele está me analisando dos pés à cabeça, enquanto
morde o lábio carnudo.
Quando Lauren larga seu precioso marido, Mikall ainda a olha confuso.
Minha irmã diz que está faminta e, após ele garantir que já tomou café da
manhã, ela o deixa ir para a prefeitura. Sou eu quem ela arrasta até a cozinha,
depois de dispensar George, e me enche de perguntas sobre como passei os
últimos sete anos, como se eu estivesse viajando pelo mundo e não presa em
um convento.
Diz que vou adorar conhecer as gêmeas. Que tudo vai ser lindo, que eu
sou linda.
Senhora Matilde está servindo nosso café e analisa Lauren com olhos
estreitos. Ela também aparenta estar confusa.
∞∞∞
Faz um tempo que tomamos café. Estou tentando manter o bom humor
e enxergar tudo com otimismo. Talvez Lauren não pense mais naquela
fatídica noite. Quem sabe, ela imagina que minha paixonite por seu noivo
tenha sido coisa de criança e que já superei. Sei que preciso dela. Não tenho
nenhuma estrutura — além do envelope com dinheiro dentro da mochila —,
mamãe está longe e não há outra família a não ser ela.
Decidida a não arrumar problemas, vou até seu quarto e bato na porta.
— O que quer? — ela grita com sua voz madura e mal humorada, o
que acho estranho.
— Entra.
Engulo a saliva.
— Esta casa? — Lauren olha para mim e dá a risada mais cínica que já
ouvi. — Você pensou que fosse morar aqui? Na minha casa, com meu
marido?
Uma gargalhada ainda maior. Sinto meu rosto corar e uma sensação
muito ruim tomar conta do meu peito.
— Você sabe que eu não tenho para onde ir. Eu não posso...
Corro dali antes que ela me alcance, enquanto ouço seu grito me
xingando de pirralha, de como sou uma amaldiçoada e que ela não vai se
rebaixar.
Me tranco no quarto que pensei que fosse meu e fico lá por um bom
tempo. Reflito sobre suas palavras. Penso na casa em que morávamos, se ela
ainda pertence a nossa família, se posso ficar lá. É horrível saber que não tem
ninguém, que não há lugar para onde ir ou um colo amigável para onde correr
quando a situação fica assim.
Eu sei que não é chorando que vou conseguir respeito, mas não há
ninguém aqui, então eu deixo as lágrimas de raiva e solidão escorrerem.
Foram sete anos me sentindo abandonada e parece que nada mudou. Minha
mãe está viajando e sabe Deus quando voltará.
Então, por que a vaca da minha irmã o agarrou daquele jeito? Por qual
motivo ela me tratou tão bem na frente dele? Para depois me jogar na rua
como se eu fosse um cachorro que atacou uma das crianças pequenas?
Deve haver alguma coisa para mim. Meu pai tinha propriedades e
dinheiro. Não é possível que Lauren tenha ficado com tudo. Mesmo que eu
não fosse sangue dele, será que ele faria isso comigo? Tem de existir outro
jeito. Ela pensa que ainda está lidando com uma criança, mas se enganou.
— Está transando com Lauren? — berro chocada, mas ele tapa minha
boca e me puxa para debaixo da corrente de água quente, me apertando
contra seu peito.
Minha irmã tem um caso com George! Ela está do outro lado da cortina
e eu estou encharcada debaixo do chuveiro.
— Ela quase te pegou. Não deixe ela saber que você sabe.
— Não deixe ela saber que eu sei? — rosno, atirando água contra ele.
George já está molhado, então não faz muito efeito, mas é a única arma que
tenho no momento. — Você estava falando todas aquelas coisas sobre a
decência do prefeito enquanto é amante da primeira dama? Como pode ser
tão cretino?
— Calma, Agatha!
— Calma? Eu pensei que você fosse legal! O que diabos você viu
numa megera como ela? Sabia que ela quer me colocar no olho da rua?
— Não me julgue desse jeito. Não se esqueça que sei sobre Mikall.
Quero cuspir na sua cara, mas algo em seu olhar me faz desistir.
— Quer que eu seja sua namorada enquanto você trepa com a minha
irmã?
— Se ela não ama Mikall, por que não se separa e fica logo com você?
Eu gosto de Mikall e agora sei que ele está sendo traído. Não posso
raciocinar com clareza com as roupas todas molhadas.
— Me solta — exijo e ele obedece.
Saio do banheiro.
∞∞∞
Acho que essa é uma das poucas vezes na minha vida em que não
consigo me decidir sobre o que fazer.
Por outro lado, eu não quero enganá-lo. Se ele descobrir que eu sei do
caso e fiquei calada, poderá nunca me perdoar. Isso eu não sou capaz de
suportar.
Tento pensar no que minha irmã ganha ficando casada com ele. Tem a
ver com negócios. Me lembro que ela vai me colocar no olho da rua logo
logo. Estou ferrada. Mamãe não vai me apoiar. Se eu chantagear Lauren com
essa informação, ela poderá usar isso contra mim no futuro. Mikall me
olharia como outra traidora.
Não. Eu não vou jogar o mesmo jogo sujo que George disse. Ele é
outro personagem imundo. Vende o próprio corpo em troca de dinheiro.
Duvido que ele sinta algo por Lauren que não seja desprezo. Não dá para crer
que Mikall ainda a ama, que se sujeita a tudo para dividir o mesmo teto que
aquela cobra. Será que as gêmeas são mesmo filhas dele?
Minha cabeça está explodindo. Meu cérebro acabou de dar um nó.
Talvez comer alguma coisa me ajude a clarear a mente. Está quase na hora do
almoço. Deixo meu quarto e encontro o safado do George no corredor, me
esperando. Ele está com uma camiseta xadrez em padrões de azul e uma calça
jeans clara, com as costas apoiadas na parede e os braços cruzados.
Estou vibrando por dentro. A pele de Lauren parece que vai derreter.
Imagino que Lauren vai pular por cima da mesa e me esfaquear. Mas
ela só me fuzila com os olhos de cobra.
— Não acho que seja conveniente você ficar aqui — ela continua —,
depois de tudo que aconteceu no passado. Querido, você vai concordar
comigo que seria constrangedor cruzar com Agatha o tempo todo, não é
mesmo?
Não acredito que disse isso em voz alta. O clima fica tenso na mesa,
mas não permaneço ali para ver no que vai dar. Aperto meus lábios contra os
do rapaz que ainda está parado na porta e o puxo comigo no rumo da porta,
tentando não considerar que esse é meu primeiro beijo. Quero quebrar todos
os enfeites preciosos da sala de estar.
George tenta secar minhas lágrimas, mas o empurro para longe todas as
vezes.
— Você sabe onde fica esse rancho? — pergunto com a voz afetada.
— Você não devia julgar as pessoas sem antes conhecer a história delas
— George insisti. — Não me conhece, não sabe pelo que já passei... — Sua
voz rouca vai morrendo e ele fica bem sério, o que aumenta minha
melancolia.
— Sinto muito — George diz e chega mais perto. Como está realmente
frio, permito que ele passe seu braço em volta de mim e debruço a cabeça no
seu ombro. — Não sei muito sobre você, mas acredito que vai conseguir
resolver de algum jeito. Vai dar tudo certo. Você só precisa abrir os olhos.
— Me conte mais sobre isso — peço. — Por que acha que é melhor
manter distância?
— Mas ela não ama Mikall. Por que não se separa? Vocês poderiam
ficar juntos.
George ri.
— Desde que me entendo por gente e até esse momento tudo que fiz na
minha vida foi jogar o jogo.
— E o que pretende com isso?
— Pelo amor de Deus, George! Você trepa com minha irmã, ela te dá
dinheiro. Pare de falar como se fosse uma grande coisa! — berro irritada
porque a única pessoa ao meu lado é alguém que eu quero estapear.
— E vai ter que confiar em mim — acrescenta com os olhos cor de mel
cintilando.
Engulo em seco.
— Conte — peço.
— Mikall não sabe de nada. Duvido que ele fosse concordar com isso,
mas, como ele é casado com sua irmã, ela o faz assinar um monte de papéis.
São esses papéis que fazem o negócio girar e parecer ser legal. O prefeito
nunca desconfiaria que está lidando com esse tipo de tráfico. Garotas que
vêm de países pobres e são vendidas e escravizadas entre os homens de bem
da cidade, os lobos maus.
Quero perguntar por que ele se envolveu nesse assunto, mas algo me
diz que não estou pronta para saber.
Não respondo, em parte porque sei que Lauren é capaz daquilo, que
meu pai também era, e em parte porque eu não quero ver.
— Obrigada, mas preciso descobrir onde fica esse rancho. Quero ir até
lá. Se importa de me levar?
— Agora? Já é noite.
Não sei o que fazer. Vendo por outra perspectiva, meus planos
pareciam tão fáceis: ficar morando com Lauren e Mikall, ter dinheiro, ir para
a faculdade até ser capaz de administrar alguns dos negócios da família...
Agora não tenho lar e sei que o dinheiro que tenho guardado não vai
durar muito se não arranjar um emprego. A faculdade parece um sonho
distante e os negócios da família são piores que um pesadelo.
Quase não noto quando ele sai da estrada principal, entrando por um
caminho de difícil acesso, ladeado por mata fechada. Sua mão direita fica
pousada na minha coxa, próxima ao joelho, como um aviso de que ele está ali
comigo, soltando apenas para mudar de marcha quando necessário.
Os minutos se vão, meu estômago está vazio, mas pelo menos o enjoo
passa. Sinto o gosto desagradável na boca como um sinal de que esse dia não
é um pesadelo. Quero dizer a George que vou ajudá-lo com a investigação,
que vamos colocar todos os responsáveis na cadeia, libertar essas mulheres e
livrar Mikall de levar a culpa, mas ainda não posso garantir algo assim
quando estou desesperada para salvar a mim mesma da confusão que está
minha cabeça.
— Sim, senhorita.
— Exato.
— E, mesmo que você queira fazer minha família pagar por seus
crimes, resolveu me contar.
— Isso tem a ver com o fato de eu ter ido com Mikall até aquele bar
onde mulheres não deveriam entrar?
— Se tem tanto conhecimento sobre minha família, deve saber que ela
não é minha irmã de verdade, que fui adotada — comento, em parte porque
quero que ele saiba que não pertenço realmente a eles, que sou desajustada,
mas não tenho o sangue podre dos Mendes correndo nas minhas veias.
Ele sai do veículo, dá a volta e abre a porta ao meu lado, mas não fica
esperando que eu desça, se apoia no capô e coloca as mãos dentro dos bolsos.
Está usando a jaqueta da universidade por cima da camisa xadrez, a gola está
levantada, como um badboy de filmes.
Se ele decidiu me contar sobre tudo isso, julgando que será mais seguro
para mim, deve estar relacionado com algo que ele não me contou. Se
considerou minha ida aquele bar assim tão perigosa é porque...
E, de certa forma, sei que isso não é tudo. Estou ciente de que George
está ocultando um detalhe ainda pior e que, se eu concretizar o pensamento,
não vou conseguir suportar.
Sacudo a cabeça em sinal positivo. Ele tira as mãos dos bolsos e vai
buscar o objeto.
Pelo que consigo perceber, trata-se apenas de uma cozinha, com uma
despensa anexa no lado oeste e um quarto sem porta no lado leste.
— Você não está pensando realmente em morar aqui, está? Sabe que
precisa pensar na sua vida com calma, sem contar no quanto ficará
desprotegida aqui.
George vira a lanterna contra meu rosto, mas logo desiste de esperar a
resposta. Caminho pelo cômodo até o quarto. Vejo a silhueta de um móvel
que parece ser uma cadeira. A janela de vidro está quebrada, e um galho de
uma árvore do exterior da casa está crescendo ali.
— Não estou maluco, mas não como desde o café da manhã. Achei! —
ele exclama, enfiando a mão em uma das portas abertas.
Dou um tapinha na sua mão, fazendo com que o pacote caia no piso de
madeira.
∞∞∞
Respiro fundo.
— Não tem que pegar hoje. Posso passar lá e pegar amanhã, antes de ir
trabalhar.
— E se acha que sou ingênua o bastante para pensar que Mikall sentiria
ciúmes de mim... — minto outra vez, mas deixando a frase morrer. É bem
provável que Mikall tenha se doído, sem nem desconfiar que a cobra da
esposa tinha transado com George debaixo do seu teto.
— Ele é uma boa pessoa, mas é muito desligado — ele diz, enquanto
estaciona na frente da residência do prefeito.
— Ah! Viu só, Agatha. Já tem onde morar — ela comenta, juntando as
palmas das mãos como se fosse a melhor notícia de todos os tempos. —
Fiquei tão preocupada pelo jeito que saiu daqui.
Pressiono meus lábios contra os dele e, sem saber direito o que estou
fazendo, mas para ser mais convincente, sugo seu lábio inferior por um
instante, fazendo meu coração se debater contra meu peito. Sua boca é macia
e quente. Fico ciente da pele do meu braço tocando a pele da sua nuca, do
meu peito contra o dele, e estremeço quando George corresponde, passando a
língua no meu lábio inferior, explorando à procura de uma brecha para
invadir minha boca.
A subida tira o resto do meu fôlego e preciso parar no topo para tentar
recuperá-lo. George aproveita para me encarar, com as sobrancelhas
arqueadas e uma expressão de dúvida do rosto. Observo seu rosto moreno,
levemente corado pela subida, a boca entreaberta para facilitar a respiração,
os olhos cor de mel fixos nos meus.
Abro a porta com a mão livre, ciente do seu polegar esfregando com
firmeza os nós dos meus dedos.
Minhas bochechas estão incendiando, meus olhos estão mais azuis que
de costume, o cabelo bagunçado. Tento arrumá-lo, observando George
parado ao meu lado. O vendo assim pelo espelho, é tão bonito que parece
estar em um pôster pendurado no quarto de uma adolescente.
Por capricho, quero exigir que ele não se envolva mais com Lauren,
mas sei que não posso impor algo assim. Cometi o erro de pedir isso a Mikall
e ele riu de mim.
Meu sangue ferve, mas ele segura minha mão com firmeza.
— Não tenho direito a uma folga? — George que saber. Algo no seu
tom de voz me quebra por dentro. Por mais que Lauren seja bonita por fora,
ele não parece querer estar com ela.
Tento pensar no que aconteceu com esse homem para ele se envolver
em uma investigação tão a fundo, se sujeitando a ir para a cama com alguém
que provavelmente detesta tanto quanto eu. Só alguém quebrado que já não
pensa mais em si mesmo conseguiria. Não conheço seu passado, mas sei de
uma coisa: George tem estômago para aguentá-la.
— Mas não para mim — ela sussurra com tanta intimidade que fico
constrangida por estar testemunhando a cena.
— Queria que fosse logo à universidade — ele murmura. Sua voz está
tão rouca que destrói qualquer vestígio de atrevimento em mim. — Queria
que resolvesse logo isso.
Volto o olhar para George. Suas mãos estão agarradas ao volante com
muita força. Ergo a mão e acaricio as maçãs do seu rosto com a ponta do
polegar, desço até seu queixo e percorro o traço marcante, tão trincado que
tenho medo que seus dentes se quebrem. As sobrancelhas escuras e espessas
estão franzidas e os lábios contraídos em uma linha.
∞∞∞
— Não fez mais que sua obrigação — Mikall diz com agressividade,
ainda com o capuz escondendo parte do seu rosto irritado. Vejo que ele está
armando outro soco e me adianto.
O fato de não ser uma pergunta, e sim uma afirmação, como se Mikall
estivesse me dando uma ordem, me irrita profundamente.
— George me convidou...
Não espero por resposta, entro pela porta que George está segurando.
Sem me importar com Mikall parado lá fora, me deixo ser guiada por
um corredor escuro.
— Tudo bem.
Após dois lances, somos iluminados pela luz que atravessa a janela de
um apartamento. Ouço a televisão ligada e gemidos depravados.
— Ah, sim. É bem agradável — tento parecer gentil como ele, mas
ainda estou um pouco chocada pela simplicidade.
Ele sorri, sem graça. Seu sorriso tímido é tão bonito que me distrai por
um instante.
— Ótimo.
Ele percebe, se levanta depressa, abre a geladeira azul e pega duas latas
de refrigerante.
— Por favor.
Ele me serve outra vez e continua comendo.
Gosto de como sua voz soa quando me chama de senhorita, mas sei
que não sou a única que ele trata assim. Imagino que seja realmente em sinal
de respeito, por eu ser cunhada do prefeito, e que ele deve ser muito educado
com todas as pessoas para quem trabalha, mesmo diante de tudo que vivemos
nesses dois dias e dos segredos que compartilhamos.
Como e bebo mais devagar quando sinto que a fome foi aplacada.
— Sabe onde moro, onde trabalho, para quem trabalho, sabe onde fica
a universidade que estudo — ele diz com um sorriso, antes de beber um gole
da lata de refrigerante.
— Vou ficar ainda mais se você tirar a roupa. Vai fazer isso por mim?
O jeito que ele fala, educado mesmo quando tem sua paciência testada,
é tão charmoso, tão diferente dos rapazes dos filmes... Me faz querer elogiá-
lo, dizer que ele é uma graça, que tenho certeza que nunca vou conhecer
alguém como ele, que ele é único.
— Não tenho.
— Como um castelo — concluo sua fala. — Dava para ver aquela torre
da janela do meu quarto. No verão, o sol se punha atrás dela. Sempre
fantasiei em fugir para lá e ver como era, mas havia grades em todas as
janelas.
— Eu cresci ali.
Ele esteve esperando por mim... Penso de repente. Esperou por muito
tempo. Não sei de onde essa ideia veio, mas faz nossa ligação parecer ainda
mais significativa.
— Hum... — murmura.
Sinto meu coração pesar, porque sei o que essa cicatriz representa.
Me pergunto o que pode ter acontecido com ele para decidir fazer algo
assim. Sinto meu nariz e meus olhos queimarem com as lágrimas que se
formam e engulo o nó com força, limpando a garganta em seguida.
— Foi a única vez que fiz isso — George diz com a voz grave. — Não
sabia que precisava cortar na vertical. Eu tinha doze anos.
— Uma menina da minha idade disse que eu iria para o inferno por
tentar suicídio, mas eu não tinha medo, já vivia em um, de qualquer forma.
Sei que preciso dizer algo coerente e significativo, mas não faço ideia
do que falar.
Minha mente esvazia por um instante. Não sei mais o que pensar.
Ele se levanta e guarda as sobras da pizza no forno, depois que lhe digo
que já estou satisfeita, pega os utensílios na mesa e os leva à pia. Retira o
relógio e o coloca de volta na bancada antes de começar a lavar a louça.
Por quê?
Sempre soube que Lauren era uma megera, tão ruim quanto meu pai,
por isso foi muito fácil acreditar no que George me contou, mesmo sem me
mostrar provas, mas nunca me questionei por que ela era assim.
Por quê?
Tento pensar, achar uma lógica, talvez porque não quero aceitar que
mulheres podem ser tão cruéis quanto os homens.
Estou atônita.
— Era muito pequeno. Acho que nasci lá. É tudo que me lembro de ter
conhecido antes do orfanato. Havia uma cama de cada lado do banheiro.
Minha mãe dormia do lado direito e sua irmã gêmea do esquerdo. Os homens
eram como se fossem seus donos. Cada um possuía uma das irmãs. Eles
odiavam me ver, principalmente o “dono” da minha mãe — George faz aspas
com os dedos, me olha brevemente, mas logo desvia o olhar para a mesa. —
Sempre que a porta se abria, eu corria para debaixo da cama, porque se um
deles me visse pelo quarto, me dava uma surra. Eu ficava quieto enquanto
eles...
— Não. Não consigo me lembrar do seu rosto, nunca ouvi seu nome.
Só me lembro do homem que visitava a outra irmã. Me lembro dele, porque
foi ele que me largou no orfanato.
Arfo.
Estuprar.
— Eu era muito pequeno, tinha cinco anos, mas não conhecia o mundo
exterior, minha mente estava atenta à paisagem em volta do carro. Me lembro
dos homens fazendo ameaças para que eu ficasse quieto e não tentasse fugir.
Diziam que iriam machucar ainda mais minha mãe e minha tia. Usaram
cordas para me amarrar, colocaram um pano na minha boca e me puseram
agachado atrás do banco do motorista, para que as pessoas na rua não
pudessem me ver. Acho que também me cobriram com alguma coisa, mas
não tenho certeza. Tudo que recordo é de ter me erguido o suficiente para ver
da janela quando não aguentava mais a dormência no corpo.
— As freiras te acolheram?
Quando me dou conta, estou segurando sua mão com força. Ambos
estamos tremendo.
— E o seu nome?
— Ela te deu um soco no rosto porque você não sabia falar direito? —
pergunto, sentindo as lágrimas quentes escorrerem. Meu coração bate pesado
em uma espécie de dor e revolta.
George faz que sim com a cabeça e tenta rir como se não desse mais
importância àquilo. Não funciona muito bem.
— Fugi pela primeira vez em 1969. Tinha adquirido uma obsessão por
mapas. Estudei tudo que podia, antes de sair à procura da minha mãe.
Imaginei que pudesse encontrar alguma coisa sobre ela, mesmo que fosse
uma lápide. Era ingênuo o bastante para pensar que ela receberia esse tipo de
final, em vez disso deve ter sido enterrada em uma vala. Bem, minha primeira
fuga não deu muito certo e acabei voltando. Recebi um castigo especial, mas
você não precisa saber dos detalhes. Fiz mais duas fugas mal sucedidas antes
de deixar o orfanato pela última vez, aos quinze. Era inteligente e, por mais
que pareça absurdo, conseguia a simpatia das pessoas. Trabalhei na limpeza
de um restaurante em troca de comida e um lugar para dormir, até o dono me
dar uma chance de ser garçom. Trabalhei duro e estudei. Nas folgas,
procurava pela cidade onde nasci. Não sabia o nome do seu pai, só me
lembrava da casa, então demorei muito tempo para encontrar.
— Você é determinado.
— Sim, eu sou. Eu reconheci seu pai assim que o vi. Os próximos anos
foram dedicados a investigá-lo. Descobri que ele tinha expandido os
negócios, que mais homens participavam, como um clube, e que eles traziam
meninas de países pobres. Imagine, o negócio deles é algo que só os
membros conhecem, suas esposas não sabem, e os outros cidadãos da cidade
nem sonham com o que acontece aqui. As garotas são trazidas de muito
longe. É fácil seguir alguém que não tem medo de ser pego. Descobri que sua
irmã era a única mulher que participava. Ela já era casada com o prefeito, na
época ele era apenas um vereador, e não parecia saber nada. O segui por
muito tempo até perceber que ele era só um peão. Sim, eu sou determinado.
Me formei em direito porque eu queria ser o advogado que ia condenar seu
pai, mas o desgraçado morreu antes. Eu estava no segundo ano do curso
quando descobri da sua morte, nunca tinha deixado nenhum deles me ver.
Consegui transferência e terminei a faculdade aqui, foi fácil conseguir o
emprego de motorista. Mikall tinha sido eleito há pouco tempo quando me
mudei.
Sacudo a cabeça, tomada por uma excitação nova. Nunca confiei tanto
em alguém como confio em George nesse momento, nem mesmo em Mikall
quando era criança. Sei que ele é capaz de fazê-los pagar, de condenar minha
irmã.
— Era para eu ser motorista apenas do prefeito, mas sua irmã colocou
os olhos em mim e... — ele dá aquele tipo de risada triste. — Ela não foi nada
sutil na primeira vez em que ficamos sozinhos. Não queria a boca daquela
puta no meu pau, mas... — George arregala os olhos, se dando conta de que
perdeu a linha. — Desculpe pelo palavreado, senhorita.
— Não deveria falar assim, fui rigidamente ensinado a não falar esse
tipo de coisa.
— Por isso você ficou tão brava por eu te chamar assim ontem na
estação. Vou tentar não fazer mais.
Sinto meu rosto esquentar, meu estômago fica frio. Não gosto de
pensar nos dois juntos, muito menos de ouvi-lo falar isso.
Engulo a saliva, sentindo a boca amarga. Ela tem tantos crimes pelo
quais pagar, fez tanta maldade, que eu mal posso esperar para vê-la indo para
a cadeia.
— Me sinto tão aliviada por não ter o sangue dela nem de Afonso, por
ser adotada.
— Seria um prato cheio para esses monstros daqui, mas eles preferem
vítimas mais nutridas.
— Não.
— E depois?
— Sim, o cretino que a compra passa a ser seu dono, e mais uma vez
Lauren se livra da responsabilidade, ela não mantém nenhuma vítima por
muito tempo. Acho que eles levam suas escravas para as próprias caixas de
concreto que devem ter construído no porão de casa ou em algum lugar da
floresta.
— Então Lauren nunca mais as vê, não tem mais contato com elas?
— Sei que são catorze, mas tem um que ainda não descobri quem é.
— Sei onde é a sede, onde fazem os leilões. Fica numa fazenda chique
e isolada. Já levei Lauren lá algumas vezes e fiquei esperando no carro por
horas, com a desculpa de que o proprietário era um homem muito recluso e
que não gostava de receber estranhos. Eu ficava do lado de fora do portão, há
cerca de um quilômetro da casa, e via todos os outros chegarem. Anotei
placas, os segui, descobri sobre eles. O problema é que eles não vêm cada um
no seu carro, às vezes vêm juntos, provavelmente estupram as garotas
enquanto o outro assiste pelo retrovisor e dirige.
— Ela diz que é viciada em apostas, que vai lá para jogar e que Mikall
não pode saber. Mas eu não a levo sempre, porque também preciso entrar na
propriedade sem ser visto e chegar mais perto para fotografar.
Sinto uma vontade mórbida de pedir para ver tudo, mas consigo
segurar essa curiosidade macabra.
— Nunca te pegaram?
— Sou discreto, e eles ficam tão entretidos com o que estão fazendo
que não reparam.
— Você já tem provas em vídeo, sabe quem são, por que não levou
tudo para a polícia ainda?
— Sim. Eu já pensei em destruir tudo, mas ele deve ter cópias dos
documentos que ele assina em segurança.
— Então você não vai levar esse assunto à polícia até arranjar um jeito
de livrar Mikall da cadeia.
Mordo o lábio e tento raciocinar. Sei que George tem razão, ele já
esperou demais para conseguir derrubar o negócio todo. Mikall é bem
grandinho para saber que não deveria ter instituições que nem visita, ainda
assim, eu quero tentar encontrar esses papéis e destrui-los.
— Sobre aquele bar que você chamou de “o covil do lobo”, por que
Mikall vai lá?
— Essa parte eu não posso afirmar com clareza, mas imagino que
tenha sido o jeito que Lauren encontrou de colocá-lo ainda mais em maus
lençóis, ele joga cartas e sinuca toda semana com todos os homens que são
membros do clube. Está atolado até o pescoço nesse pântano.
— Já.
— Eles não querem ter apenas uma e... eu sinto muito, mas elas
adoecem ou tentam fugir e acabam mortas — vejo o horror no seu rosto
enquanto ele diz isso. Imagino o quanto deve ser difícil se controlar e não
fazer logo a denúncia. Ele precisa pegar todos de uma vez.
Vou até o sofá, tiro sua jaqueta e me deito, pegando um dos cobertores
para me aquecer. Ainda estou tremendo, tentei ser o mais forte possível
durante todo o tempo em que ouvi George falar, mas agora estou desabando.
É horrível saber que existe gente tão cruel, e que fui criada por pessoas assim,
que tem garotas mais novas que eu sofrendo abusos de todos os tipos nesta
cidade, que muitas já morreram em meio a tanto sofrimento, e que Lauren e
meu pai são responsáveis por tudo.
Não posso pensar nas provas que George já tem, o conteúdo dos vídeos
que ele gravou, porque se pensar demais vou querer ver, só para ficar
terrivelmente apavorada depois.
— Na verdade, eu prefiro.
— Nem pensar, não vou atrapalhar sua privacidade. O chão não está
tão frio. Acredite, já dormi em lugares piores — ele dá desculpas, falando
depressa.
— Estou com medo, por favor, George — não sei exatamente o peso
que esse pedido tem, mas meu coração bate tão rápido que o sinto martelando
contra meus ouvidos.
— Vou vestir uma camiseta — diz assim que se senta no espaço vazio
da cama, fazendo menção de ficar de pé outra vez.
— Não seja bobo, eu já te vi pelado, esqueceu? — brinco, sem ao
menos pensar antes de falar isso.
— Obrigada — sussurro.
— Eu me sinto sujo — ele sussurra tão baixo que mal posso escutar.
Percebo que fica tenso quando seus braços fortes se fecham ainda mais em
volta de mim. — O tipo de sujeira da qual eu nunca vou conseguir me limpar.
— Também. Quando você permite que alguém que odeia toque seu
corpo, você se sente sujo. São as lembranças, a culpa por deixar, por não me
afastar. É uma sujeira terrível que eu sinto desde que ficava embaixo da cama
da minha mãe, enquanto ela... Me sinto sujo por ser filho de alguém como
ele, pelo que acontecia no orfanato.
— Não tem que se sentir culpado. Quanto à Lauren, você está fazendo
um sacrifício para ajudar outras pessoas. Considere isso. É um herói, sim.
— Obrigada por ter entrado na minha vida — ouço sua voz triste,
como a de alguém que não aguenta mais sofrer.
— Também sou grata por tudo que está fazendo — murmuro de volta,
com a boca contra seu queixo, logo abaixo do seu lábio inferior.
— De quê?
Meu corpo reage, tenho tanta vontade de abraça-lo mais forte que me
assusto.
Pensar nos dois juntos faz meu estômago doer, mas se ele for meu e
continuar transando com ela, vai doer muito mais. Não, definitivamente não,
eu não posso entrar no meio disso, e também não sou egoísta nem tola o
suficiente para pedir que ele a dispense.
Meu estômago revira quando me pergunto como ela o toca, como ele
corresponde, se já fizeram aqui nessa cama, nesses mesmos lençóis.
Eu sou uma pessoa quebrada, e ele é ainda mais, quem sabe seja por
isso que estejamos nos sentindo assim. Um entende o outro e talvez não haja
mais ninguém com quem possamos nos abrir, conversar...
Luto contra o desejo, seu hálito na minha boca não ajuda em nada.
— Aquele som... Ouvi uma coruja piando, mas não sei como se chama
o som que ela faz. Imaginei que você soubesse.
— Se sente feliz agora que tirou uma dúvida tão importante da cabeça?
— ele pergunta, parece sarcástico.
— Tudo bem.
George se afasta ainda mais, de modo que nossos corpos não se
toquem, ficando na beirado do sofá-cama.
Compreendo que isso realmente pode ser paixão, diferente do que senti
por Mikall, que era apenas uma necessidade de carinho e atenção que só ele
atendia.
Limpo a garganta com o pigarro e deslizo meu joelho pelo lençol até
encontrar sua perna.
— Não? — ele murmura com o tom de voz sério, que denota seu
humor.
— Não mesmo. Não sou e nem nunca fui apaixonada por Mikall, não
no sentido de homem e mulher. Me apaixonei pela forma que ele me tratava,
pelo afeto e a ternura que demonstrava. Nunca teve a ver com esse tipo de
paixão — estico a mão e toco seu peito nu, o fazendo estremecer, me
surpreendendo com a dureza dos músculos, com a temperatura da sua pele.
Minha mão encaixa em torno do seu peito esquerdo e eu posso sentir seus
batimentos de encontro a meus dedos. — Nunca foi esse tipo de sentimento.
Jamais foi tão difícil conversar com Mikall porque eu não sentia essa
desordem dentro de mim, essa louca vontade de me unir a ele. Era apenas
carinho.
Engulo a saliva, me segurando para não falar que estou com ciúmes de
Lauren.
— Não consigo te beijar sabendo que vai fazer a mesma coisa com
Lauren depois.
Suspiro, feliz por ele me ver como uma mulher e não uma menina,
mesmo sabendo que tenho pouca experiência de vida.
— Não sou do tipo que esquece, muito menos que deixa garotas sendo
abusadas sem fazer nada.
— Obrigada por dividir isso comigo. Saiba que farei tudo para ajudar
essas meninas.
Pego no sono com o carinho que ele faz no meu cabelo. Nunca dormi
tão protegida.
Nem tão inocente assim...
Acordo de repente; a luz do sol entra pela única janela do cômodo, o
iluminando. Estou sozinha no sofá-cama, mas vejo a cabeça de George
aparecendo no pé da colchão, desaparecendo em seguida. Pisco os olhos e os
esfrego, enquanto bocejo, tentando entender o que está acontecendo. Seus
cabelos castanho-escuros surgem outra vez e depois somem. Engatinho pela
cama até vê-lo fazendo flexões. Continua sem camisa, a calça de moletom cai
perfeitamente em torno dos seus quadris, marcando sua bunda como uma
luva, os músculos das costas e braços estão tensionados com o exercício.
— Bom dia.
Se ele está mesmo com medo de se apaixonar por mim, sou a garota
mais sortuda que conheço. Pulo da cama, eufórica com o pensamento.
Encontro minha mochila e pego minha escova de dentes, indo para o
banheiro em seguida.
Quando retorno, ele está caminhando pela cozinha, sinto cheiro de ovos
e café.
Vejo o canto da sua boca se erguer com o sorriso torto e meu coração
dispara. George despeja os ovos mexidos em dois pratos e me oferece uma
xícara de café. É sensual ter um homem cozinhando para mim e me servindo,
mesmo que seja apenas um café da manhã simples.
Ele ergue o rosto e me olha. Adoro o tom de mel nos seus olhos, o
formato das suas sobrancelhas escuras, o rosado dos seus lábios, o nariz reto
e principalmente a linha do seu maxilar. Sinto meu coração esquentar só de
olhá-lo.
— Não é culpa Dele — ele diz sem precisar de tempo para refletir. —
Pelo menos eu não o culpo. Não tem a ver com a religião, mas com as
pessoas ruins que se escondem por trás dela. Acho que temos pessoas ruins
em qualquer lugar.
Ele bebe alguns goles de café, antes de se levantar para lavar a louça.
Sinto um nó na garganta. Não quero que ele a veja, muito menos que
fique a sós com aquela cobra. Não desejo ir à prefeitura e convencer Mikall a
investir nos meus estudos, tudo que quero é voltar para a cama com este
rapaz incrível, mas é tão difícil conseguir o que tenho vontade.
∞∞∞
Passamos pela saída e ele me guia até seu carro, um Maserati vermelho
de duas portas lustroso. Me acomodo no banco da frente, feliz por escapar do
vento frio e da garoa. Choveu um pouco na madrugada, deixando a cidade em
uma neblina gélida.
— Alguma vez passou pela sua cabeça que estava adquirindo esses
bens só para que não restasse nada para mim?
— Eu não sei o que sua irmã faz comigo para que eu sempre caia na
sua conversa. Sempre considera seus planos tão melhores que os meus, e eu
simplesmente cedo, mesmo sabendo que ela nunca vai me dar ouvidos, que
ela nunca vai levar em consideração minhas opiniões. Lauren é assim,
consegue tudo que quer sem medir as consequências — Mikall soa
perturbado enquanto fala. As palavras saem de sua boca como se ele estivesse
desabafando algo que esteve entalado na sua garganta por muito tempo. Vejo
como ele respira, como aperta as mãos no volante e, outra vez, sinto pena
dele.
— Eu não pensei...
Ele é um banana! Como George disse, é uma pessoa boa, mas é muito
lento. Talvez mereça tudo que Lauren está fazendo contra ele.
— O que mais você quer que eu faça por você, por enquanto? —
Mikall me questiona, soando tão manso que chega a ser irritante.
∞∞∞
Respiro aliviada quando ele entrega o cheque para a moça que está do
outro lado do balcão, imaginando que Lauren não terá como reaver esse
papel, que eu estarei com a faculdade garantida. Pelo menos isso.
Saindo de lá, vamos até uma loja de departamentos, onde ele me espera
sentado em um sofá Chesterfield de couro marrom, enquanto escolho e
experimento todas as peças que imagino que vão combinar comigo.
— Falei sério quando disse que queria realmente me separar — ele diz,
baixando o tom de voz e alcançando minha mão por cima da mesa.
Sem saber exatamente o que fazer nem para onde ir, o observo
trabalhando por alguns minutos, esperando ansiosa, na expectativa de que
George apareça a qualquer momento, procurando por mim, mas sei que ele
está ocupado demais com Lauren.
Ela vai até o balcão que se encontra no lado oeste do escritório, uma
espécie de aparador que contém um porta-retratos com a foto das gêmeas e
outro com uma fotografia sépia do casamento, além de alguns objetos de
decoração. Na prateleira de baixo encontram-se as garrafas de bebida
importadas e caras. Lauren começa a preparar um drink, de costas para nós,
ignorando minha presença, ao mesmo tempo em que Mikall continua
dedicado, lendo seus documentos importantes como se nem eu nem sua
esposa infiel estivéssemos ali.
— É por isso que você está com essas rugas de preocupação na testa,
sem mencionar os pés de galinha — ela diz, tocando seu rosto, enquanto
rebola o quadril. — É por isso que está com essa cara, seu semblante não
nega o quanto está estressado. Vai ficar velho antes do tempo e sabe muito
bem que vou te trocar por outro se não se cuidar — Lauren o repreende como
uma mãe dando bronca em uma criança levada, mostrando um risinho
inocente, mas eu sei melhor que ninguém que essa é a verdade, que ela vai
trocar seu marido por um modelo mais jovem assim que não precisar mais
dele.
— Sei que você tem uma vida boêmia e que é adepta a beber durante o
dia, mas eu não sou assim, Lauren. Tento ser o mais responsável possível e
isso inclui não beber no expediente — Mikall se defende.
— Pelo amor de Deus, querido, beba logo esse uísque e pare de se
lastimar! Sabe como eu odeio quando você fica melodramático.
Meu coração dói quando percebo do que ela está falando, olho para
George, que me encara desconfiado com seus expressivos olhos cor de mel.
Mikall está com cara de bobo, deixando transparecer que crê em tudo
que essa cobra fala. Ele retira o talão do bolso do terno cinza escuro e pega
sua caneta no suporte prateado sobre a mesa.
Preciso ser forte o bastante para não dar com a língua nos dentes. Outra
vez, enfio as unhas nas palmas das mãos para aguentar a pressão de guardar
um segredo tão asqueroso. Olho para George outra vez e penso em sua
determinação, e tento me inspirar nele.
Ela vira o rosto para George e pisca quando o marido diz que já está
acostumado a passar as noites sem sua companhia, o que me dá ainda mais
nojo. Lauren passa o polegar embaixo do lábio inferior e sai rebolando na
direção da porta, onde George está.
Sei que não somos um casal, que não somos namorados e que nem ao
menos nos beijamos de verdade, mas gosto de pensar que é uma coisa legal
ser franca com ele o tempo todo, que falar sempre a verdade é o princípio de
um relacionamento saudável. Se formos sempre sinceros e tivermos a
oportunidade de conversar sobre nossas diferenças, será bem mais fácil de
lidar com o ciúme, mesmo que eu esteja tremendo de raiva e que a minha
vontade seja dar um soco na cara Lauren neste exato momento, e que não
tenha coragem de admitir isso.
Sei que já estou pensando longe demais e que tudo o que ele fez foi me
convidar para um jantar, porém não consigo me segurar.
Estou sentindo meu coração subir pela garganta, é a primeira vez que
ele toma a iniciativa, e sei que não teve nada a ver com fazer ciúmes em
Lauren ou Mikall. Ele fez isso por vontade própria. Me sinto nas nuvens ao
perceber isso.
De cabeça baixa, sigo Mikall até seu gabinete, enquanto meu estômago
se contorce em uma dor gélida e angustiante. Meus olhos estão cheios de
lágrimas, estou tão pasma com a grandeza dos sentimentos que mal consigo
me dar conta do quanto estou me apaixonando por esse rapaz, em como estou
permitindo que ele invada minha vida e meu coração desta forma, mas não
consigo mais sentir o medo de me apaixonar que eu senti durante a
madrugada. Percebo que essa pode ser a melhor coisa que poderia acontecer
na minha vida, e que ele também gosta de mim.
— Ela sempre me ganha com uma boa dose de uísque ou alguma outra
bebida que tenha em mãos — Mikall resmunga, enquanto organiza papéis
dentro da última gaveta da sua mesa.
— Já vou limpar tudo isso — ela diz assim que entra pela sala,
afobada. Sinto seus olhos me investigando dos pés à cabeça, mas ela disfarça
com sorriso falso assim que me vê a encarando de volta. Pela cor dos seus
dentes amarelados, suponho que ela fuma. Também deve sofrer de alguma
doença no estômago, a julgar pela careta que está fazendo e pelo suor na sua
testa. Retira o copo da mesa de Mikall e sai.
— Pois é, foi assim que eu comecei a perceber que Lauren não era
mais apaixonada por mim. Talvez nunca tenha sido, mas quando ela está por
perto, eu simplesmente não consigo resistir.
— Então minha mãe sabe que você não tem um casamento feliz?
— Mais ou menos isso, ela não parece muito disposta a concordar com
tudo que eu digo sobre sua filha. Sabe como ela é uma mãe coruja, e as mães
sempre pensam que seus filhos são bonzinhos.
Me dou conta de que minha irmã deve ter uma espécie de escudo que
afugenta as pessoas. Só alguém trouxa como Mikall se envolveu com ela, só
homens ruins como ela devem ser seus amigos e se prestam ao trabalho de
passar um tempo com Lauren, desfrutando dos seus passatempos macabros e
nojentos preferidos.
Imagino que ela deve ter algum clube falso onde senta com as mulheres
importantes da cidade por alguns minutos por semana e finge tomar chá ou
alguma coisa do tipo. As outras senhoras devem tolerá-la somente por ela ser
a primeira dama e a mulher mais rica e influente da cidade, contudo, devem
cochichar a seu respeito sempre que dá as costas. Pelo menos é isso que eu
estou esperando que elas façam. Não gosto de pensar que todas são idiotas e
manipuláveis como o homem que está aqui sentado na cadeira em forma de
trono.
— Posso dar uma olhada no que precisa ser revisto, nas coisas que
podem ser descartadas ou passadas para algum outro arquivo. Parece que isso
aqui está cheio demais, você não acha? — o questiono com as sobrancelhas
arqueadas, Mikall continua me encarando, sem dizer uma palavra. — Desta
forma, também vou aprender como se administra uma cidade, quem sabe não
seja a futura prefeita...
— Bem, a não ser que esta mulher seja Lauren, não é mesmo?
Enquanto Mikall sobe para tomar banho, encho meu prato com risotos
e peixe assado com batatas e outros legumes. Devoro tudo rapidamente, sem
dar a mínima para as regras de etiqueta que aprendi no colégio interno.
Só que pensar nisso me faz lembrar de George e no que ele deve estar
fazendo. Sinto meu coração se apertar com o mal-estar e me empanturro de
sobremesa para aliviar a solidão.
— Pois é... — ele diz e dá um risinho que me faz imaginar que o canto
da boca está erguido em sorriso torto. — Resolvi te fazer uma surpresa.
— Não pensei que fosse sentir sua falta tão depressa, senhorita — ele
me confidencia. — Eu estava sozinho no quarto de hotel, pensando se você
iria mesmo dormir na casa do prefeito ou se seria orgulhosa o bastante para
voltar sozinha ao meu apartamento.
— Imaginei que já tinha deixado claro que eu não quero nem pensar na
ideia de perdê-la.
— Saiba que se viesse a me perder não seria para alguém como Mikall
— sussurro seu nome baixinho, com medo que ele esteja ouvindo e, ao
mesmo tempo, torcendo para que esteja mesmo. — Não para alguém com a
personalidade tão fraca como ele. Muito menos para o homem que está
casado com Lauren.
George fica em silêncio por um instante, então baixo ainda mais o tom
de voz e minhas palavras soam apenas como um sopro ao telefone.
— Ela disse que iria se encontrar com a equipe e que, depois que saísse
de lá, iria comprar as passagens de avião para buscar a garota no Sri Lanka.
— Meu Deus! — Levo a minha mão livre em concha até a boca e torço
para conseguir disfarçar o horror que estou sentindo por saber que uma
menina de apenas catorze anos virá para cá, será vendida como um bezerro de
raça e depois... não quero nem pensar no que acontecerá depois. — É muita
sorte que haja esse orfanato aqui na cidade e que Lauren vá viajar até tão
longe para resgatar essa menina.
Fixo meus olhos no tapete persa abaixo dos meus pés, tentando me
concentrar no padrão de desenhos coloridos que estampam uma paisagem
parecida com a que imaginei quando li Ali Babá e quarenta ladrões. Me
deixo ser levada por um instante para essa fantasia infantil, mas as palavras
de George me pegam de volta para a aterrorizante realidade. Ele entende o
sarcasmo da minha voz e dá um risinho cínico.
— Sim, senhorita. Essa garota teve muita, muita, muita sorte. Sabe
Deus o que aconteceria com ela se ela continuasse em seu país de origem.
— Quem sabe ela não queira te dar um cargo nessa instituição — digo
lentamente.
Ele não pode se dar ao luxo de desabafar mais que isso, não sabemos se
estamos sendo espionados.
— Claro! — respondo, torturada pela dor que ele deve estar sentindo.
— Sobre o que quer conversar?
— Sobre nós.
— Estou ouvindo.
— Fico muito feliz que esteja sendo sincero comigo, porque imagino
que você seja o cara certo — minha voz é apenas um sussurro, e não estou
certa se ele consegue ouvir cada palavra.
— Mas vamos com calma — ele adverte. — Não quero meter os pés
pelas mãos. Imagino que as coisas serão mais fáceis se eu der um passo de
cada vez. Uma mulher como você merece ser cortejada e não apenas receber
uma declaração no meio da madrugada.
— Acha que devemos mesmo fazer isso em meio às coisas que estão
acontecendo? — não posso deixar de questionar.
— Mas prometo que irei com calma — ele diz e ouço sua risada baixa.
— Posso te perguntar uma coisa?
— O quê?
— É verdade.
— Não — confesso, surpresa por ele ter pensado nisso. — Você foi
meu primeiro.
— Nem sei o que dizer, eu... tenho muita sorte — George diz. Ouço o
som da sua respiração. — Não quero decepcioná-la jamais, mas nunca tive
uma namorada de verdade, então, por favor, seja paciente. Darei o meu
melhor para ser digno de você.
— Tudo que quiser saber — ele diz. Estou com tanta saudade dele que
sinto vontade de ir correndo até onde ele está, só para vê-lo dar aquele sorriso
adorável.
— Se eu te pedisse para não transar mais com... você sabe... o que
diria?
— Que não estou transando com ela por prazer, que já te expliquei por
que faço isso.
— Eu sei que é muito egoísta da minha parte tocar nesse assunto, mas é
algo que estava entalado na minha garganta. Estou convicta dos seus motivos,
ainda assim, me machuca pensar nos dois juntos, mesmo que você não tenha
esse tipo de sentimento por ela. Não consigo parar de pensar nisso... Me
desculpa.
— Não tem por que se desculpar — ele diz com o tom de voz triste, faz
uma pausa e, por um longo momento, tudo que ouço é sua respiração. — Eu
disse que não queria te decepcionar e já estou fazendo.
— Acha que pode mesmo fazer isso? Ela não vai desconfiar de nada,
digo, não é apenas hoje?
— Não pode comprar mais? Acho que ainda não estou pronta para
desligar.
— O prefeito disse que você está aqui para aprender mais sobre
administração, mas não sei como arrumar esses documentos empoeirados vai
te ajudar a ser uma boa gestora — a secretária observa, na certa se
perguntando se estou ali para roubar seu emprego, e julgando que não preciso
do trabalho por ser irmã de Lauren.
∞∞∞
— Ela nunca me liga quando viaja — ele informa. — A não ser que
precise de dinheiro.
Estive tão ocupada que nem pensei em verificar como a casa estava.
— Sua mãe se mudou daqui assim que seu pai faleceu — Mikall diz ao
meu lado. — Só levou a roupa do corpo.
— Eu cuido de Lauren. Não acha que ela domina tanto minha vida
assim, acha?
Nos dias que se seguem, vou com a senhora Matilde para a casa
sempre que terminamos o expediente da prefeitura. Ela não se importa em me
ajudar com a limpeza e está sempre sorrindo. Mikall também nos ajuda no
que pode, e só vai para sua casa quando decido que já está tarde.
Ainda não tenho coragem de dormir sozinha aqui, mas sinto uma
vibração que vai crescendo dentro de mim com o passar dos dias, como se eu
realmente estivesse deixando o lugar com minha cara.
∞∞∞
Foi George quem a buscou no Sri Lanka. Ela se chama Aiko e tem
mesmo catorze anos. É uma garota sonhadora. George disse que seu nome
significa “filha amada” e que seus pais são filhos de japoneses, que foram
mortos na guerra civil.
Ele está muito perturbado, com receio de não conseguir reunir tudo que
precisa a tempo de impedir o leilão de Aiko. Nunca esteve tão envolvido com
uma das vítimas, além de sua mãe e da irmã gêmea.
— Você não faz ideia do quanto estou com saudades — ele diz e
respira fundo. — Te busco na casa do prefeito?
— Se Lauren chega amanhã, não vou ficar lá para ser enxotada outra
vez. Pode me encontrar na minha “antiga/nova” casa?
— Que Lauren vai lidar bem com isso? — completo sua pergunta. —
Definitivamente: não, mas estou tentando sonhar com a ideia de que ela não
controla todos a sua volta.
— Sei.
Ela vai apodrecer na cadeia, mas não posso dizer isso ao telefone.
Encontro desastroso
Imagino que todos os escrotos comparsas de Lauren estão ocupados
demais, na expectativa de receber uma “mercadoria nova”, para se
preocuparem comigo, então arrisco ir caminhando até minha casa,
dispensando a carona de Mikall. Esse simples gesto, de alguma forma, faz eu
me sentir mais independente e adulta.
Saí mais cedo do meu entediante e inútil trabalho, por isso a luz do sol
ainda penetra as cortinas de renda das janelas da sala, deixando o cômodo
claro e receptivo.
Estou carregando uma sacola de papel pardo com alguns itens que
comprei no supermercado próximo à prefeitura, para o caso de George
resolver passar a noite comigo.
Meu coração dispara com a expectativa. Estou tão ansiosa para revê-lo
que sinto o meu corpo vibrar.
Tento deitar um pouco para me acalmar. Acho graça de como meus pés
ficam para fora na cama infantil. Tenho 1,77cm, o móvel já era pequeno para
mim antes de me mandarem embora. Abro um sorriso, pensando que George
com quase 1,90m não caberia aqui.
∞∞∞
∞∞∞
∞∞∞
∞∞∞
— Não voltei com Lauren. Sua mãe ligou para Mikall, avisando que
havia antecipado a passagem de volta, ele ligou para o hotel onde estávamos
hospedados e me deixou um recado dizendo para buscá-la no aeroporto.
— Ela e as gêmeas.
— Que horas?
— Passei por cima do plano — ele diz como se pedisse desculpas, seu
semblante deixa transparecer a agonia que ele está sentindo. — Não dava
mais para lidar com isso. Foi um erro terrível ter ido buscar Aiko. Não
poderia ter conhecido uma das vítimas.
— Sim, você disse que conhecia um ponto cego, por onde passava para
fazer as gravações.
— O quê?
Fico de pé e entro na casa com George atrás de mim. Ele segura meu
cotovelo com firmeza e me puxa para seus braços assim que fecha a porta,
me fazendo girar e bater contra seu peito musculoso. Se inclina para baixo e
aperta a boca contra a minha, me fazendo perder o fôlego.
Coro no mesmo instante por não saber beijar, mas faço o que ele diz.
Quando sua língua encontra a minha, não tem mais como controlar o que
sinto.
Agarro seu pescoço e o abraço ainda mais forte, envolvida pelo seu
corpo quente. Sinto os músculos rígidos dos seus ombros, escorrego as mãos
pelos seus braços fortes, pelo peito firme. Ele é tão gostoso que não consigo
evitar apalpá-lo, conhecer cada músculo... Enfio a mão por baixo da gola da
camisa, abrindo o botão de cima, permitindo tocar sua pele em chamas, e
percebo algo duro se apertar contra minha pélvis. Luto contra o desejo de
deslizar a mão até lá e tocá-lo por cima da calça. Estou fervendo por dentro.
Sua boca desce pelo meu queixo e o morde de leve, sinto sua língua
encontrar meu pescoço e lamber minha pele, enquanto uma de suas mãos
junta meu cabelo e puxa. Me contorço contra ele, me aproveitando do
movimento para deslizar meu quadril contra o seu, em um desespero que leva
para longe todas as preocupações da minha vida. Somos só eu e ele agora.
Relaxo meus ombros, jogando a cabeça para trás. Ele me segura sem
esforço, se inclinando ainda mais sobre mim e começa a explorar minha pele.
O movimento da sua língua e dos seus lábios me faz queimar. Puxo mais um
botão da sua camisa, enquanto enlaço sua bunda com as minhas pernas, o
apertando bem forte de encontro ao interior das minhas coxas. Solto um
gemido, perdida com a nova sensação.
— Eu sou louca por você — confesso, perplexa com o poder que ele
exerce sobre meu corpo.
Sinto uma de suas mãos escorregar para a frente do meu corpo, tocando
o vestido, afastando-o da minha coxa. O toque firme dos seus dedos me
alucina. Imploro por mais quando ele move o quadril com força contra meu
sexo, me fazendo soltar um gemido.
Minha pele está em chamas, mas posso sentir o vazio que a distância
entre nossos corpos me causa. Puxo a meia de volta até metade da coxa e
abraço meu próprio corpo, me sentindo exposta como se estivesse nua diante
dele.
— Não quero que veja meus joelhos — sussurro tão baixo que ele não
consegue ouvir.
— O quê?
— Meus joelhos! Não quero que você os veja — digo mais alto, até
mesmo sentindo vergonha de encará-lo.
Vejo seu cenho franzido, o rosto confuso.
Mordo o lábio, sem saber o que dizer, triste por ter estragado um
momento tão especial.
— Vamos jantar?
Faço que sim com a cabeça e permito que ele me desça das costas do
sofá. Tento me recompor e George faz o mesmo. Damos as mãos quando
passo a chave na porta e o sigo para a motocicleta estacionada lá fora.
Ele limpa a garganta, antes de voltar a falar, baixando ainda mais o tom
de voz.
Uma coisa é você saber que algo tão cruel e desumano assim acontece,
outra coisa bem diferente é testemunhar de perto.
Sou tomada pela agonia e a vontade de ir até lá fazer alguma coisa, mas
George ainda está segurando meu pulso.
O garçom aparece com nossos pratos. Tento recuperar o fôlego, sei que
não serei capaz de provar da comida.
George está sorrindo para mim, mas parece mais com uma careta, ele
tenta disfarçar ao máximo.
— Eu não faço ideia — ele responde. Posso ver nos seus olhos que ele
está tão desesperado quanto eu.
— Como sabe?
Tento conter os calafrios que estão subindo pela minha espinha, mas é
quase impossível. Estamos em mais um covil de lobos e o caçador está
tremendo tanto quanto eu.
— Nunca o vi nos leilões. Se ele está com esses dois e fazendo o que
penso que está, só pode ser ele.
Como se não pudesse ficar ainda mais terrível, vejo Lauren entrar no
restaurante, usando saltos altos e um vestido prateado justo que cobre até seus
joelhos. Ela dá uma breve olhada no ambiente e nos localiza antes que eu
possa pensar em me esconder embaixo da mesa.
— Já que está ouvindo, saiba que eu vou te arrancar daquela casa com
minhas próprias unhas, sua pirralha imunda — ela cospe as palavras. — Vou
te colocar na rua com todo prazer.
Um sentimento tão ruim toma conta do meu interior que não consigo
segurar as lágrimas. Penso em levantar e enfiar a mão na cara dela, mas me
contenho por instinto.
— Calma — murmuro.
— Não seja bobo — ela diz, sorrindo com malícia para meu namorado.
— Quero te ver mais tarde, depois que Mikall dormir. Após o jantar, vou até
a fazenda Delacroix jogar cartas, te espero na minha casa daqui a algumas
horas.
Meu corpo inteiro treme de ódio, pavor e nojo quando percebo o que
aquelas palavras significam.
Olho para George, mas ele está encarando Lauren. Acena levemente a
cabeça, como se concordasse com o encontro, o que a deixa satisfeita. Ela
morde o lábio e sai rebolando na direção da mesa ocupada pelos três
membros do clube.
— Vamos até o balcão. Vou pedir a conta e você pede para usar o
telefone — ele explica, enquanto enfia a mão no bolso interno da jaqueta e
retira uma caneca, pega minha mão e escreve o número. — Ligue para o
inspetor Calvin, é só falar que George Garcia disse que a bola preta foi
encaçapada.
Ergo a sobrancelha.
— Então vamos.
— Alô.
∞∞∞
Visto o colete.
Apenas dois policiais nos seguem, os outros cinco pegam outro rumo,
indo em direção à frente do casarão.
Vou rezando pelo percurso para que a polícia consiga prender todos os
malditos membros, libertando as garotas em segurança, sem que nenhuma
delas saia ainda mais machucada do que já está.
Após vários minutos, consigo ver uma luz na parte superior do final do
túnel.
Um dos policiais tenta passar na sua frente, mas o inspetor Calvin diz
que George conhece bem o entorno.
O vejo empurrar uma grade retangular com muito cuidado, sem emitir
nenhum ruído. Enquanto ele sai do duto, imagino que há uma segunda
intenção para ele ter me trazido, então pisco, me dando conta de qual é minha
função esta noite: pegar o catálogo das vítimas e tentar descobrir algo sobre
seu pai ou que fim teve sua mãe.
George não me pediu isso, ainda assim, consigo decifrar sua atitude.
Ele quer saber antes que a polícia recolha todos os objetos da casa e os leve
como evidência, mas não pode fazer tudo sozinho.
Os policiais e eu esperamos até que ele faz sinal para que possamos
sair do túnel.
Vou na frente, ele segura na minha mão e me puxa para fora. Não
emito nenhum som. Fico de pé, endireitando a postura, enquanto os demais
homens saem. Olho em volta, percebendo que estamos numa espécie de
terraço escuro. Não consigo localizar nenhuma entrada para o casarão, a não
ser uma janela de vidro a alguns passos de nós. As luzes lá dentro são
vermelhas. Posso ver pessoas se movimentando em um grande salão,
vestindo terno e gravata, jogando suas cabeças para trás, dando risadas
exageradas.
Quando dou por mim, estou me aproximando para ter uma visão
melhor.
Como duas pessoas tão jovens, com objetivos e vidas tão diferentes poderiam
suportar o destino os afastando cada vez mais?
Gênero: Rock
[iii] O boiserie, com a pronúncia “boaserrí”, é um revestimento francês típico do século XVII e
XVIII. A técnica consiste em emoldurar as paredes através de painéis de madeira em relevo.
[iv]
Capitonê é primariamente uma técnica aplicada ao tecido, em almofadas, cabeceiras estofadas de
cama, sofás e poltronas.