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Capa e Projeto Gráfico

L.A. Creative

Diagramação
Katherine Salles

Revisão e Preparação de Texto


Ana Roen

Livro Digital
1ª Edição
Aline Damasceno

Todos os direitos reservados © Aline Damasceno.


É proibido o armazenamento ou a reprodução de qualquer
parte desta obra, qualquer que seja a forma utilizada – tangível ou
intangível, incluindo fotocópia – sem autorização por escrito do autor.
Esta é uma obra de ficção. Nomes de pessoas,
acontecimentos e locais que existam ou que tenham verdadeiramente
existido em algum período da história foram usados para ambientar o
enredo. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera
coincidência.
Índice

Sinopse
Nota
Agradecimentos
Prólogo
Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Capítulo nove
Capítulo dez
Capítulo onze
Capítulo doze
Capítulo treze
Capítulo quatorze
Capítulo quinze
Capítulo dezesseis
Capítulo dezessete
Capítulo dezoito
Capítulo dezenove
Capítulo vinte
Capítulo vinte e um
Capítulo vinte e dois
Capítulo vinte e três
Capítulo vinte e quatro
Capítulo vinte e cinco
Capítulo vinte e seis
Capítulo vinte e sete
Capítulo vinte e oito
Capítulo vinte e nove
Capítulo trinta
Capítulo trinta e um
Capítulo trinta e dois
Capítulo trinta e três
Capítulo trinta e quatro
Capítulo trinta e cinco
Capítulo trinta e seis
Capítulo trinta e sete
Capítulo trinta e oito
Capítulo trinta e nove
Capítulo quarenta
Capítulo quarenta e um
Capítulo quarenta e dois
Capítulo quarenta e três
Capítulo quarenta e quatro
Capítulo quarenta e cinco
Capítulo quarenta e seis
Capítulo quarenta e sete
Capítulo quarenta e oito
Capítulo quarenta e nove
Capítulo cinquenta
Capítulo cinquenta e um
Capítulo cinquenta e dois
Capítulo cinquenta e três
Capítulo cinquenta e quatro
Capítulo cinquenta e cinco
Capítulo cinquenta e seis
Capítulo cinquenta e sete
Capítulo cinquenta e oito
Epílogo
SOBRE A AUTORA
Conheça outros livros da autora
Sinopse:

CEO de uma das maiores financeiras da Espanha, Javier

Castillo tinha tudo o que alguém poderia querer: dinheiro, poder e um

relacionamento com a modelo mais badalada de Madrid.


Marcado pelo abandono da mãe e pela violência física e

psicológica causada pela sua avó, ao descobrir que sua noiva o traia
com o seu maior inimigo, o “Demônio de Gelo” jurou nunca mais
deixar que uma mulher se aproximasse, mesmo que isso significasse

renunciar ao seu sonho de ser amado e ser pai.


Afundado no desejo de vingança e na melancolia,
principalmente por ver a vida do seu melhor amigo mudada pela

paternidade, o milionário encontra uma oportunidade de ter um bebê


ao conhecer Bárbara, uma garota doze anos mais nova e
desesperada para salvar a vida do irmão.

Sem pensar nas consequências, o CEO não hesitou em

comprá-la por meio de um contrato, fazendo dela sua “barriga de


aluguel” e esposa de “fachada”.

Prometendo odiá-la por considerá-la igual as outras mulheres

que o feriram, com a convivência forçada, se tornava cada vez mais


difícil para Javier resistir à sua esposa indesejada, inocente e

também tagarela.
Um contrato, um casamento de mentira, uma gravidez e um

homem quebrado aprendendo, pela primeira vez, a amar...


Nota:

Embora seja um livro único, com começo, meio e fim e não

seja necessário ler O Pai dos Meus Bebês É o CEO para a

compreensão da história, Uma Bebê para Javier contém spoilers do

casal Yazuv Ibrahim e Valdete e seus três bebês.

Você pode ler esse livro aqui: https://amzn.to/3OIwWcP


⚠ Gatilhos: alusão a violência física e

psicológica e sugestão de aborto.


Agradecimentos

Como sempre, começo agradecendo as duas pessoas mais

importantes da minha vida: minha mãe e irmã. Mãe, sei que você não
está mais presente fisicamente em vida, mas eu sei que, entre as

flores, você sempre apoiará o meu trabalho e estará torcendo por


mim. É impossível não pensar em você ao escrever o amor dos

meus personagens pelo seu bebê. Em partes, eu sei que é uma


cópia, talvez que não faça tanto jus assim, aos sentimentos fortes
que você nutriu pelos seus “dois balõezinhos”. Nosso amor é eterno

e, mesmo falhando algumas vezes enquanto filha, torço para que,


outra vez, eu tenha a oportunidade de ser sua filha. Você me ensinou

o que é o amor em sua forma mais pura.


Amanda, eu não faço a mínima ideia do que seria da minha
vida sem você, sem o seu abraço de conforto, sem o seu apoio, sem

o seu ombro onde várias vezes chorei. Você me ajudou à cada


palavra escrita. Muito obrigada pela paciência em escutar meus

desabafos, por lidar com a minha frustração, por ler o meu livro
mesmo não gostando de romances hot. Eu amo você, irmã!

Fadinha Ana Roen, não tenho palavras para agradecer pela


sua amizade e carinho pela minha pessoa e pelo meu trabalho. Você
sabe que cada livro meu tem um pedaço seu. Sem a sua revisão e
preparação, minhas histórias não seriam a mesma coisa. Te amo,
amiga!

Tia Soraia, o meu muito obrigada por sempre tirar minhas


dúvidas quanto à questões médicas.

Um muito obrigada as minhas leitoras do grupo de Whatsapp


que me abraçaram, que ansiavam por cada spoiler, que
comemoraram e choraram comigo, que me apoiaram nesse

momento tão difícil. Um grande beijo: Danny, Patrícia, Valdete,

Iandra, Ionara, Gisele, Edna, Fernanda, Nedja, Cristina, Ionara, Glei,


Yslai, Ju, Leila, Thaty, Wilzanete, Helenir, Helineh, Tatiane, Rosi,

Eryka, Mari, Vânia, Michelly, Caroline, Regina, Jéh, Nalu, Rosana,

Naiane, Cris, Danusa, Juscelina, Lauryen, Laís, Natália, Luciana

(Nana), Amanda, Márcia, Isabella, Kelliane, Bárbara, Karol,


Roseane, Nay, Rose, Adriana, Edi, Beeh, Kaká, Elisangêla, Juhh,

Ariane, Eliaci, Thamy, Sueli, Vanessa, Jéssica Luiza, Fátima, Athina,

Roberta, Maria, Mônia, Adriana, Thais A., Débora, Larissa, Hélia,


Anna, Azianze, Isis, Fabiana, Camila, Naira, Georgia, Eliana, Jéssica

C., Ellen.

Mas é principalmente a você, leitora, que pacientemente


esperou pela conclusão dessa obra demorada, que me enviou
palavras de carinho e conforto no meu privado, que gosta de bater

papo, que veio me pedir uma história para o “demonio de hielo”, que
baixou essa obra sem conhecer meus outros trabalhos, que eu

agradeço.

É por vocês que escrevo cada linha. Vocês são a minha


motivação maior para dar o meu melhor em cada enredo! Sem

vocês, a Aline Damasceno, autora e também pessoa, não existiria.

Meu muito obrigada, por tudo.

Beijos,
You bring me up when I'm feeling down

You touch me deep you touch me right

You do the things I've never done


You make me wicked you make me wild

'Cause baby, you're my number one[1]


You're My Number One – Enrique Iglesias
Prólogo

Dois anos atrás – Madrid

Olhei através da janela do carro luxuoso as ruas vazias de


Madrid pelo tardar das horas, embora a luz lançada pelos postes mal

iluminasse as calçadas e fachadas dos prédios. Senti o cansaço

pesar sobre o meu corpo por trabalhar freneticamente e pelas noites


insones, em que eu não consegui descansar mais do que algumas

horas, o que já era uma surpresa, porque havia dias que nem isso

acontecia. Porém não iria fazer nenhum gesto que pudesse revelar

minha fraqueza e sentimentos ao meu motorista, mesmo que ele

trabalhasse para mim há anos, afinal, para todos os efeitos, não


havia nenhum resquício de humanidade e benevolência dentro de

mim. Muitas pessoas até acreditavam que eu era desprovido da

capacidade de ter qualquer sentimento.

Um demonio de hielo[2].

Desde muito cedo havia aprendido a dura lição de que

demonstrar qualquer emoção, por menor que fosse, traria


consequências na pele e na alma — algo que duvidava que ainda
tinha, pois ela tinha sido estilhaçada em mil fragmentos, reduzida a

pó muito tempo atrás.

Contendo a vontade de balançar a cabeça em negativa e de

passar a mão nos meus cabelos impecáveis, apenas afastei esses

pensamentos pelas quais não valia a pena me martirizar, mas que

sempre vinham à tona.


Eu era o que era.

Não podia negar que minha alcunha de demônio me ajudou, e

muito, a prosperar e alcançar o topo do mundo corporativo, sem

precisar de nenhum outro tipo de apoio.

Hoje, aos meus trinta anos, eu tinha tudo o que alguém

poderia querer. Era reconhecido mundialmente por estar à frente de

uma das maiores financeiras da Espanha, gerindo diversas


aplicações nas bolsas de valores de clientes tão ricos quanto eu.

Também diversifiquei meus investimentos em empresas prestadoras

de bens de consumo, serviços ou siderurgia, o que atraiu várias

pessoas interessadas no meu capital, permitindo-me o poder de

escolhê-los de acordo com o meu interesse. Meu patrimônio estava

se aproximando da casa dos bilhões e eu vivia uma vida cercado de


luxos e coisas caras.
Também tenho uma noiva, uma das modelos mais badaladas

e belas da Espanha, que dizia me amar com todas as suas forças,


algo que, por mais que tentasse acreditar, não conseguia.

Embora eu negasse a mim mesmo, havia certa reserva e até


algo a mais em seus olhos azuis que nunca consegui decifrar. Isso
não me incomodava tanto, pois a razão pela qual eu não queria

investigar minha desconfiança em relação aos sentimentos dela era


porque temia encontrar o grande culpado: eu mesmo e minha

incapacidade de suscitar algo. Nunca havia sequer conseguido


pronunciar nem mesmo a ela, a única mulher que me envolvi mais

profundamente, uma palavra de afeto mais profundo, externando


aquilo que sentia. Temia que, se eu me revelasse, ela fosse usar isso
contra mim, como todos pareciam fazer.

Mesmo com a ausência de palavras da minha parte, não me


impedia de me aferrar a ela, de precisar dela, do seu cheiro e do seu

contato, de buscar um refúgio em seus braços, apesar de nunca


encontrar aquilo que eu realmente necessitava.

Angel, durante esse primeiro ano de relacionamento, não


supriu os meus anseios, fato que nunca contei a ela nem a ninguém,
por não conseguir revelar nada de mim, nem mesmo para a mulher

que escolhi para ter um futuro.


Ela não conseguia me alcançar, me achar dentro de mim

mesmo, nem quebrar minhas barreiras.


Parecia que ninguém poderia.

Mas, hoje, com o cansaço me tornando ainda mais


vulnerável, eu necessitava dela, do calor humano que ela poderia me

propiciar, mesmo que não fosse capaz de derreter o gelo que sentia,
a fúria que me consumia. Era isso que demônios sem sentimentos
faziam, tomavam, sem dar nada em troca. Apesar que ela arrancava

de mim meu dinheiro.


Essa madrugada não seria diferente.

Continuei fitando as ruas, tentando afastar o rumo dos meus


pensamentos sombrios, refletindo sobre as inúmeras reuniões que
teria cedo no dia seguinte por videoconferência, até que o carro

adentrou no estacionamento do arranha céu moderno em que


morava com a minha noiva. Faltavam vários meses para o nosso

casamento, que aconteceria em uma ilha particular que eu tinha no


Caribe, porém, pouco a pouco, Angelina foi trazendo suas coisas, ao

ponto que dei uma cópia da chave do meu apartamento a ela.


A verdade era que ambos não passávamos muito tempo
dentro dele, eu por estar em viagens de trabalho ou em meu

escritório na Plaza Castilla; ela, em festas e eventos, que


normalmente eu não costumava ir junto por considerá-los uma perda
de tempo, já que havia muito mais a ser conquistado. Dinheiro e
poder eram os meus objetivos de vida, nada me impediria de

alcançá-los.
Suprimi uma risada irônica enquanto removia o cinto de

segurança ao pensar que havia, sim, algo que o “demônio de gelo”


gostava. Consciente dos meus movimentos, meu motorista abriu a
porta para mim, indo em direção ao bagageiro para pegar a minha

mala. E mais uma vez, escondi qualquer traço que denotasse meu
incômodo e pensamentos, vestindo uma máscara ilegível.

— Quer que leve sua mala para cima, señor Javier? —


perguntou em um tom gentil, me fitando diretamente nos olhos.

Trabalhava há tempo demais para mim a ponto de não mais me


temer.
— Não é necessário, Juan. — Minha voz, como sempre, saiu

fria e áspera.
— Então boa noite, senhor. — Fez uma leve mesura,

tocando o quepe do uniforme.


— Para você também.
Dei as costas para o homem e comecei a caminhar em

direção ao elevador, empurrando a mala atrás de mim.


Foi apenas quando alcancei a cobertura que me permiti
emitir um suspiro de cansaço enquanto passava as mãos nos meus
cabelos, desarranjando-os. Inserindo a chave na fechadura, girei a

maçaneta e fui recebido por um gemido alto que ecoou por todo o
meu apartamento, seguido de um pequeno gritinho rouco que era

pura luxúria e prazer.


Confesso que abominava filmes pornográficos. Considerava
algo repulsivo ver e ouvir pessoas transando, mas sabia que Angelina

curtia assistir e se masturbar olhando para a tela. Na verdade, não

conseguia me lembrar de uma única vez em que fizemos sexo sem


estarmos acompanhados desses vídeos, e isso me incomodava

bastante, apesar de não ter comentado nada a respeito com ela.

Não iria expor meus anseios de ter relações como um casal

apaixonado, apenas apreciando um ao outro, nos conectando


através de corpos e do toque.

Eu não era capaz de transar com as luzes acesas, por conta

dos meus ferimentos espalhados por todo meu corpo, embora a


textura enrugada de minha pele pudesse ser sentida através do tato.

Balancei a cabeça em negativa com a minha ambição,

dizendo que aquilo era apenas um capricho tolo, que sexo era
apenas sexo. Ansiar por algo a mais seria idiotice.
Ouvindo esses sons que se tornaram cada vez mais

frenéticos, foi impossível não sentir o desejo percorrer o meu interior,


bombeando sangue para o meu pênis, que esticava cada vez mais

contra o tecido da minha calça.

Me senti enojado comigo mesmo por me sentir tão excitado


pelos barulhos.

Ignorando tudo, inclusive meus pensamentos, joguei a chave

no aparador e comecei a remover meticulosamente as abotoaduras,

em seguida a gravata e o terno.


— Angelina? — chamei por ela em voz alta.

Caminhando em direção a nossa suíte enquanto

desabotoava a minha camisa social, chamei-a novamente, porém não


obtive nenhuma resposta, apenas continuei a escutar o som que se

tornava mais alto e que parecia bem real. O sexo era completamente

escandaloso, mais do que qualquer outra pornografia que havíamos


visto. Franzindo o cenho, sentindo meu estômago embrulhar,

estaquei próximo ao batente da porta, mal acreditando naquilo que

meus olhos viam.

Era como se eu estivesse preso em um pesadelo. Todo o


desejo que eu poderia sentir arrefeceu, transformando meu sangue

em grandes pedras de gelo. Uma dor surda me invadiu pela traição,


um amargo impregnou a minha boca, e precisei usar todo o meu

autocontrole para esboçar indiferença, enquanto assistia minha noiva

cavalgar em abandono, subindo e descendo em um pau alheio. Suas


mãos estavam espalmadas para pegar impulso, e ela gemia alto,

algo que nunca fez quando eu estava dentro dela.

Mesmo que tentasse suprimir, mais uma vez virei um niñito[3]

desamparado, assustado, sem saber o que fazer. Tive que conter a


vontade de estremecer, bem como as lágrimas que queriam se

formar em meus olhos. As sufoquei, matando-as juntamente com

todo o sentimento que um dia eu poderia ter nutrido por Angelina.

Pensei que, naquela altura, depois de tudo o que passei,


nenhuma outra mulher teria a capacidade de me machucar, porém,

diferentemente do que imaginava, minha noiva havia conseguido essa

façanha. Me senti completamente despedaçado por ela, dilacerado.


Tinha depositado minha confiança frágil naquele relacionamento,

naquela mulher, imaginando que eu poderia finalmente ter o futuro

que desejava para mim, apenas para tê-lo arrancado de maneira

cruel.
Coloquei as mãos nos bolsos da minha calça social,

consciente de que nem mesmo com toda a minha força de vontade

seria capaz de conter o leve tremor que sentia.


Mais uma vez o sexo feminino me destruía. Mas, dessa vez,

jurei a mim mesmo que nenhuma outra mulher iria me ferir daquela
maneira novamente.

Eu as trataria com o mais puro ódio frio.

E começaria com a que eu mais me doei em toda minha vida,


e que jogou meus sentimentos, que pareciam não valerem nada, no

lixo.

A raiva que agora me consumia, e que ameaçava sair do

meu controle, me deu forças para esconder-me atrás de uma apatia


que eu não sentia. Se me olhasse em alguma superfície espelhada,

provavelmente veria uma das minhas expressões mais frias e

totalmente desprovida de emoção. Nunca mais nenhuma mulher teria


algum sentimento meu a não ser ódio.

Não demorou para que eu percebesse quem era o homem

que trepava com a minha agora ex-mulher.

A fúria que queimava em meu interior pareceu crescer ainda


mais, me deixando no limite. Dentre todos os homens de Madrid,

Angelina tinha que me trair justamente com aquele que havia

quebrado minha confiança anos atrás? Ele havia roubado da nossa


empresa, algo que infelizmente não tinha provas para poder retaliá-

lo. Deveria ter esperado que ela não me trairia pela metade.
— Quer se juntar a nós? — Ouvi a voz do meu antigo sócio

ecoar pelo quarto, juntamente com sua risada de desdém, em meio

aos estalos produzidos pelo chocar de pélvis que continuavam a se

movimentar um contra o outro.


— Você sabe que não, Castro. — Minha voz saiu gelada e

ele riu ainda mais de deboche.

— Javier? — Angelina deu um gritinho, parando de se


movimentar e saindo do colo do homem, que teve a audácia de não

se cobrir.

Fitou-me com seus olhos azuis e, por poucos segundos,

percebi a surpresa em sua expressão, como se não me esperasse,


o que de fato não estava previsto, porém logo passaram a brilhar

com uma intensidade que nunca tinha visto enquanto fazíamos sexo.

Ela aparentava uma enorme satisfação maldosa por ter sido pega.
Não precisei de mais nada para ter certeza de que no fundo estava

certo: o amor que ela dizia sentir por mim realmente nunca existiu.

Foram mentiras atrás de mentiras.

Evitei olhar para o seu corpo nu, o mesmo corpo que


pensava que poderia me oferecer algum consolo hoje, que agora me

dava nojo e me enchia de desgosto.


Dei um sorriso que era uma mistura de frieza, desdém e

amargura, escondendo minha repulsa e decepção sob uma máscara


fria, sentenciando:

— Se vocês quiserem terminar o que começaram, fiquem à

vontade para continuar usando o meu colchão.

Dei de ombros, virando-me para sair.


— É só isso que você vai dizer? — Angelina perguntou.

— O que você gostaria que eu dissesse, mi cara[4]?

— Eu sou a sua noiva, Javier! — exclamou. — Não uma


prostituta!

Não dei importância para sua última fala, pois uma

profissional do sexo tinha caráter, algo que Angelina aparentemente

não tinha.
— Pena que você não se lembrou disso antes de levar outro

homem para nossa cama — arqueei a sobrancelha com desdém,

meu sorriso se tornando ainda mais frio —, e não somos mais nada
um do outro. Acabou, Angelina.

— Porco arrogante — gritou, removendo o anel de

diamantes, jogando-o em mim, porém não lhe daria o prazer de

pegá-lo. — Eu não preciso de você. Na verdade, nunca precisei,


porque você não tem nada para dar a ninguém além do seu maldito
dinheiro. É só por causa da vida luxuosa que você banca que alguém
permanece ao seu lado. Por puro interesse.

Gargalhou alto, seguida por Castro, que abraçou a minha ex-

noiva por trás, deixando um beijo no seu ombro nu.


Fiquei em silêncio, respirando calmamente, buscando

esconder o quanto suas palavras atingiram um ponto que me feria

muito. Ouvir essas palavras ditas pela mulher que tentei


desesperadamente amar, sentença já muito enraizada no peito e na

alma, era cortante como mil navalhas. E, pela segunda vez no dia,

senti que eu voltava a ser aquele menininho de vários anos atrás,

indefeso, ferido. Me esforcei para não tremer ainda mais e trincar os


dentes, para não sucumbir.

— É impossível amar um homem frio como você, Javier —

continuou a falar com sua voz venenosa, ferindo-me ainda mais —,


nenhuma mulher conseguirá nutrir qualquer tipo de ternura por um

homem que nem mesmo consegue dizer uma palavra de afeto. Por
isso que eu busquei um homem de verdade…
Fez uma pequena pausa, curvando seus lábios em um gesto

maldoso. Como eu pude ter achado algum dia aquele sorriso algo
sexy e sedutor? Que algum dia eu poderia confiar nela para me abrir
de verdade, expondo-me ainda mais?
— Nenhuma mulher irá amar algo tão gelado na cama quanto
um bloco de gelo, ainda mais um com o corpo coberto de ferimentos
desagradáveis.

Riu ainda mais, e eu recebi aquela última sentença como se


fosse uma faca cravada no peito, que ela torcia, enterrando ainda
mais fundo em meu interior. Sabia que as cicatrizes que eu carregava

tornava-me repulsivo, eu não as escondia à toa, porém escutar seu


deboche era doloroso e amargo, principalmente quando a lembrança
dela me dizendo que não se importava com elas, que eu não era

menos por isso, ecoavam em minha mente.


Mais uma das várias mentiras contadas por ela.
Perguntei-me verdadeiramente se algo dentro da nossa

relação havia sido real. Apesar de que, em minhas falhas, eu tinha


tentado ser o mais verdadeiro possível, embora houvesse várias
coisas que guardava a sete chaves. Pelo jeito, deveria ter tentado

esconder melhor as marcas que carregava no corpo. Como faria


isso, eu não sabia.

— Você já fez alguém gozar alguma vez na vida, Javier? —


perguntou, zombeteira.
Não respondi, forçando-me a não demonstrar nada, preso ao

turbilhão de lembranças amargas que as suas palavras suscitaram.


Eu era cativo da dor.
— Pegou pesado nessa, amor. — Castro ronronou, deixando
outro beijo na minha ex-noiva, para me provocar. — Não é

necessário humilhar a “besta” assim.


— É somente a verdade. Esse ano com ele tem sido um

verdadeiro inferno. Que bom que eu encontrei você, Ramón. —


Estalou a língua. — É impossível gostar de um homem que nem
mesmo a própria mãe e avó conseguiram tolerar.

Senti uma fina camada de gelo banhar minhas veias assim


que ela mencionou aquelas mulheres, prendendo-me em teias de dor,
o frio substituindo qualquer outro sentimento que poderia existir

dentro de mim, até mesmo meu sangue. Pouco a pouco, eu tinha me


transformado no demônio que todos falaram que eu era. Incapaz de
nutrir algo, até mesmo autocomiseração por mim mesmo.

Era puro torpor.


— Se isso é tudo, saiam — ordenei em um tom que não

expressava nada, dando as costas para eles. — Ah, chica[5], não


esqueça de pegar todas as suas coisas e deixar a chave em cima do
aparador. O apartamento estará à venda ainda hoje.

Não aguardei uma resposta, apenas afastei-me com passos


silenciosos, deixando não apenas o quarto, mas também aquilo que
até então chamava de lar, prometendo a mim mesmo que me
vingaria do meu ex-sócio e principalmente da mulher que deteve por

todo aquele tempo o meu futuro em suas mãos, mas que acabou me
machucando.
Seria uma vingança lenta e deliberada. Era isso que os

diabos faziam, eles destruíam.


Mais uma vez, tinha aprendido a minha lição. Eu aniquilaria

todas minhas emoções, e com isso a pouca esperança que havia


dentro de mim de um dia chegar a ser amado.
Capítulo um

Uma rajada de vento frio tocou minha nuca, fazendo com que

eu estremecesse e meus pelinhos se arrepiassem. Por mais que as

janelas estivessem todas fechadas e usasse meu casaco mais


grosso, isso não impedia que o ar gélido se infiltrasse pelo tecido e

atingisse meus ossos, me congelando.

Suspirei profundamente, desejando que tudo fosse diferente


e que pudéssemos ter um sistema de calefação que aquecesse o

pequeno apartamento de três cômodos em que vivia com o meu

irmão. Mas sabia que não era possível, não quando o que nós dois

ganhávamos, mal dava para pagar o aluguel em uma das principais

periferias de Madrid e nos alimentar, quem dirá pagar por


aquecimento. Era um luxo que poucos no subúrbio de Orcasur

poderiam se dar.

Peguei a caneca de café e a segurei entre meus dedos

rígidos pelo frio, procurando o conforto do calor emitido pelo líquido

quente, porém ele não conseguia me aquecer, nem mesmo oferecer

nenhum aconchego, me fazendo sentir ainda mais derrotada e


desesperançosa.
Nesses momentos era impossível para mim não me sentir
culpada pela situação em que eu e meu irmão estávamos,

principalmente por não conseguir um emprego decente que o

ajudasse com as contas, somente trabalhos esporádicos que

pagavam poucos euros por hora. Com a morte precoce da minha

mãe por suicídio, deixando-nos sozinhos no mundo e sem nenhuma

pensão, por ela não ter pagado o seguro previdenciário, e com


nosso pai abandonando-nos há anos, Pablo, um garoto de pouco

mais de dezoito anos, desempregado e ainda no bachillerato[6] —

que foi obrigado a abandonar —, teve que assumir todas as


responsabilidades de um adulto, inclusive os cuidados de uma

menininha completamente dependente dele.

Como ele havia conseguido nos manter juntos, sem que

fosse tirada a guarda dele ou eu parasse em um orfanato, não tinha

a mínima ideia; muito menos como ele tinha me oferecido uma

infância e adolescência digna, que embora não tenha sido regada


com fartura, havia tido o básico para nossa sobrevivência, permitindo

que eu concluísse meus próprios estudos. Também não sabia até

hoje com o que Pablito trabalhava, apenas tinha ciência que muitos

dos nossos vizinhos comentavam, quando achavam que eu não


estava escutando, que ele mexia com coisas ilegais, envolvendo-se

com o principal traficante de um dos bairros contíguos ao nosso.


Quando era mais nova, muitos dos coleguinhas que

brincavam comigo acabaram se afastando sem que eu pudesse


compreender o motivo. Impelida pelos comentários, em minha
curiosidade infantil, por várias vezes o questionei sobre isso, até que

desisti, pois ele me dizia que trabalhava em um distrito distante, em


um emprego comum, e que as pessoas falavam demais.

Eu acreditava veementemente nele. Era agradecida por ter


cuidado de mim e feito o melhor que pôde, por mais que as pessoas

continuassem a especular sobre a forma como ele colocava dinheiro


dentro de casa. Não que fosse algo raro os rapazes da nossa região
se envolverem com a criminalidade e violência, porém preferia confiar

nele mesmo que todos me taxassem de tola e ingênua.

Provavelmente eu era tudo isso que diziam, já que meu hermano[7]

havia me ensinado a acreditar no melhor das pessoas e do mundo,


mesmo diante de tanta maldade.

Pablo havia me salvado de uma possível vida solitária e, no


momento em que mais senti dor, ele me ofereceu seu amor fraternal

incondicional, que me ajudou a superar a perda dolorosa. Ainda tinha


que conviver com os comentários sobre o quanto a minha mãe tinha
sido fraca ao optar pelo caminho mais fácil, o que hoje podia ver que

era uma grande mentira.


Pablo me protegeu de tudo quando todos haviam nos virado

as costas, inclusive os parentes que sabiam da nossa existência. E


todo zelo dele por mim, o cuidado, o apoio, fizeram com que eu o

amasse ainda mais e nossa ligação tornou-se forte, inquebrável.


Faria de tudo por Pablito, assim como ele havia feito por
mim. Daria minha vida por ele se preciso fosse.

Então, mesmo que ele não me cobrasse nada, tomando para


si toda a responsabilidade, eu sentia o peso por não poder ajudá-lo.

Tudo bem que em partes não era minha culpa, estava tentando.
Havia mandado e deixado vários currículos para diversos cargos que
exigiam apenas o ensino secundário e o bachillerato, já que fazer

uma graduação estava longe de se tornar uma realidade naquele


momento, e tolamente ficava esperando uma resposta que nunca

vinha.
Bem, houve uma vez que obtive um retorno, no entanto ficou

mais do que evidente que o meu empregador esperava que eu


oferecesse meu corpo em troca do trabalho. Estava consciente que
era bonita, e que meus olhos verdes contrastando com meus cabelos

castanhos escuros chamavam a atenção, mas eu era muito mais do


que um corpo e rosto bem formados, mais do que a boneca delicada
que eu aparentava.
Queria ser reconhecida pela minha capacidade, não pela

minha beleza, mas parecia estar fadada a aquela última categoria.


Respirei fundo, balançando a cabeça em negativa, tentando

afastar esses pensamentos que me machucavam. Levei a caneca


aos lábios, engolindo o líquido que já tinha esfriado e que tinha um
gosto horrível e fraco, porém, com o frio se infiltrando em meus

ossos, era impossível não conter a melancolia. Era difícil acreditar


em dias melhores, quando não se tinha nenhuma perspectiva.

Mesmo assim, nada me impediria de sair naquele tempo inclemente,


que não mudaria tão cedo, para continuar tentando.

— Babi? — Ouvi a voz rouca do meu irmão ecoar pela


pequena cozinha conjugada com a sala e virei-me para ele, que dava
passos lentos e hesitantes em minha direção.

Afundei-me ainda mais no meu assento ao contemplar sua


aparência cansada, uma constante nos últimos meses. A barba

estava desgrenhada, bem como seus cabelos, os olhos verdes


sempre tão límpidos, estavam fundos, vermelhos, havia vincos
formando em sua testa, e pequenas rugas marcavam suas

pálpebras. Fitando-o, era impossível não perceber que a


responsabilidade havia cobrado seu preço. Pablito parecia ter bem
mais do que os seus vinte e nove anos, sua vida havia sido sugada
por completo.

— Hermano — cumprimentei-o, uma onda de vapor


escapando pelos meus lábios, mesmo em um ambiente fechado.

Forcei um sorriso que poderia enganar a muitos, menos a


ele, que de imediato franziu o cenho. Não havia nada que eu pudesse
esconder dele, Pablo me conhecia de trás para frente.

— Por que já está acordada? — perguntou, parando próximo

a mim, inclinando seu rosto na minha direção.


Como de hábito, algo que fazia desde que tinha sete anos,

ergui minha face e deixei um beijo estalado em sua bochecha.

— Daqui a pouco sairei para entregar mais alguns currículos

— disse com ternura, tocando a sua barba em uma carícia. — E não


é mais tão cedo assim, mocinho, já passa das nove da manhã. Só

não parece por causa do tempo.

Olhei pela janela, bebericando o líquido horroroso,


percebendo que a paisagem tinha ficado ainda mais cinza; as nuvens

cada vez mais pesadas tornavam tudo mais sombrio, fechado. E

como se tivesse sido chamado, uma rajada de vento soprou, tocando


a minha nuca novamente. Estremeci, mesmo que a proximidade do

corpo do meu irmão transmitisse um pouco de calor.


Pablo pousou seus lábios no topo da minha cabeça, deixando

um beijo suave, desfazendo o meu coque, para que meus cabelos

oferecessem mais proteção, porém ambos sabíamos que de nada


adiantaria; os fios estavam gelados demais.

— Você não precisa fazer isso, hoje, gatita[8] — respondeu

em um tom suave, e eu encarei seus olhos vermelhos, atentos,

preocupados. — Não com esse frio que está fazendo.


— Quem sabe é o meu dia de sorte? — comentei, dizendo

uma mentira, disfarçando o nó que se formou em minha garganta

com o desassossego que via nele.


Custava-me muito segurar as lágrimas quando ele me fitava

dessa maneira, como se ele tivesse falhado comigo no seu papel de

irmão mais velho.

— Espero que sim. — Seu tom soou animado, cheio de


esperança.

Deu um beijo na minha bochecha, e eu o agradeci

mentalmente por nunca me deixar esmorecer quando a esperança


parecia ter me abandonado por completo. O sorriso que ele me
brindou encheu-me de um pouco mais de confiança em mim mesma,

fazendo com que aquele frio que eu sentia, tornar-se calor.

— Você fez café para mim, Babi?


— Sabe que sim, Pablito. — Pisquei para ele, respirando

fundo.

— Ótimo.

— Mas acho que não está muito bom — engoli o restante da


bebida da minha caneca, odiava desperdiçar qualquer coisa,

independente se tivesse ruim —, só tinha um pouco do pó de café.

— Entendo — murmurou.
Em poucos passos, descalço, alcançou a pia, pegando um

copo, enchendo-o do líquido, antes de voltar e se sentar de frente

para mim, bebendo o café em pequenos goles, não dando indícios

do quão ruim estava a bebida.


Emitiu um suspiro cansado, passando os dedos pelos seus

cabelos curtos.

— Está faltando mais alguma coisa? — questionou-me,


depois de um silêncio ensurdecedor que somente foi quebrado pelo

barulho dos nossos vizinhos.

A mistura do café frio com o olhar penetrante, que buscava a

verdade sobre a nossa atual situação financeira, fez com que meu
estômago revirasse.

— Com os euros que você deixou no pote, e com o que me


sobrou da minha última faxina, acho que dá para passarmos os

próximos dias — minha voz soou baixinha e eu lutei para não me

encolher contra a cadeira, ainda mais quando outra corrente de ar


frio me tocou, como se fosse garras afiadas que me exprimiam. —

Mas não irá durar muito…

— Entendi. — Deu outro suspiro cansado, coçando a barba.

Voltou a pegar seu copo, dando um sorriso que não chegou aos seus

olhos. — Não se preocupe, eu darei um jeito, corazón[9].

Sentindo um aperto no peito, estiquei a mão e toquei a dele

que estava sob a mesa, entrelaçando nossos dedos, mostrando a

ele minha certeza cega nele, que nem eu depositava sobre mim
mesma.

— Eu amo você, Pablito — sussurrei, não contendo uma

lágrima, que desceu quente pelo meu rosto.

— Também amo você, hermanita[10]. — Fez uma pausa, se

erguendo, voltando a se aproximar de mim. Quando tocou os meus

ombros, massageando-os suavemente, senti que chorava ainda

mais. — Não chore, Babi, você sabe que odeio ver você chorando.
— Eu sei, só que é tão difícil não conseguir nada —

confessei, tampando meu rosto com os dedos, deixando-me levar

pela tristeza.

Enquanto chorava, ele sussurrou uma série de palavras, que


conseguiram se infiltrar dentro de mim, até que eu me acalmasse por

completo.

— Tá se sentindo melhor?
— Sim. — Balancei a cabeça. — Obrigada, mano.

— Não precisa agradecer. — Deixou um outro beijo na minha

testa, e fez com que eu o encarasse segurando o meu queixo,

levantando-o. — Não importa se estivermos debaixo de uma ponte


ou na pior, Babi, desde que estejamos juntos.

Não tive outra resposta que não fosse abrir um sorriso para

ele, que logo foi retribuído. Pablo estava certo, desde que
ficássemos juntos, nada importava, nem mesmo as privações.

— E você conseguirá ter a vida dos seus sonhos, gatita —

falou com esperança e, por um momento, ele me pareceu o jovem

descompromissado que ele fora antes da minha mãe falecer, o que


acabou contaminando-me com sua energia. — Tenho certeza disso.

Enquanto isso, vamos viver um dia de cada vez.


Risonho, deixou um beijo na ponta do meu nariz, como se eu

tivesse nove anos. Não contive uma gargalhada, sentindo-me bem


mais leve, nem mesmo o frio conseguindo irromper o calor que

brotou no meu peito.

— Melhor assim.

Seu sorriso ficou ainda maior, seus olhos brilhavam


satisfeitos, e parecendo feliz consigo mesmo, retornou ao seu lugar,

fazendo uma careta de desgosto ao provar do líquido frio e ralo.

— Realmente nunca se teve um café tão ruim nessa casa —


brincou, jogando a cabeça para trás, rindo do próprio comentário,

fazendo-me gargalhar ainda mais.

— Eu te avisei. — Dei de ombros, sorrindo.


Mesmo sabendo que eu deveria sair para tentar a sorte,

consciente de que, por mais que Pablo tentasse soar otimista, nossa

situação era extremamente precária e meu irmão estava beirando o

colapso, deixei-me ficar ali, apreciando aquele momento com meu


irmão, que embora não fossem raros, não eram menos especiais.

Com algumas palavras e lembranças doces, ele me transportava

para o reino dos contos de fadas, em que eu sonhava acordada.


Poderia ter me tornado uma mulher no papel, mas ainda era uma

menina com sonhos ingênuos e românticos.


— Não vai atender, Babi? — Seu tom soou mais alto e eu saí
do transe em que estava.

— Oi?

— Seu telefone. — Apontou para o celular em cima da mesa


e eu vi seu sorriso enorme. — Pode ser a sua tão sonhada

oportunidade

Quando disse isso, senti um friozinho na barriga embora


duvidasse que fosse alguma oferta de emprego, provavelmente era

engano ou telemarketing. Mesmo assim, torcia enormemente que

pelo menos fosse alguém respondendo os meus anúncios em que

oferecia meus serviços de babá ou faxineira. Com dedos trêmulos,


peguei o aparelho antigo e, antes que quem quer que fosse

desligasse, atendi.

— Bom dia. — Mal reconheci o meu próprio tom, soando


rouca e falha, e meu irmão arqueou a sobrancelha para mim.

— Bom dia. Senhorita Garcia? — Uma voz masculina, doce,


ecoou do outro lado da linha.
— Sim, ela mesmo. Com quem eu falo?

— Sou Fernán Aragon, subgerente do Departamento de


Recursos Humanos da Global Financiera. — Senti meu coração se
acelerar ao ouvir a apresentação e podia jurar que, nesse momento,
uma fina camada de suor cobria a minha pele. — Você foi
selecionada para realizar uma entrevista para uma das vagas nos
serviços gerais.

— E-e-eu — gaguejei, mal acreditando naquilo que meus


ouvidos ouviam.
Se antes minhas mãos estavam trêmulas, agora meu corpo

inteiro tremia. Meu coração batia acelerado, minha respiração ficou


entrecortada. Apesar de não ser o emprego dos sonhos, poder
trabalhar para mim significava muito. Eu não só conseguiria ajudar o

meu irmão com as contas, desafogando-o, mas com o pouco que


receberia, apesar de não saber ainda quanto seria a quantia, quem
sabe eu poderia me permitir sonhar outra vez?

— Ligamos para saber se a senhorita ainda tem interesse no


cargo para marcarmos um horário para que possamos conversar.
— E-e-eu — pigarreei quando vi que meu irmão arqueou

ainda mais sua sobrancelha para mim. — Desculpe-me, senhor.


Tenho interesse, sim, na vaga. Quando podemos realizar a

entrevista?
Quando disse isso, percebi que o sorriso que meu irmão
tinha nos lábios chegava aos olhos, mesmo que nada ainda fosse

garantido. Ele também se continha para se manter em silêncio.


— Não se preocupe, senhorita. — O homem foi gentil e
paciente, bem mais terno do que esperava para um recrutador onde
tempo significava dinheiro. — Você pode vir à sede hoje, às quatro

horas?
— Sim, senhor Aragon.

Continuamos a conversar por alguns minutos, onde ele


confirmou o local da entrevista e pediu que eu levasse alguns
documentos para que, caso fosse aprovada, eu pudesse entrar com

a documentação para formalizar a contratação, o que, de algum


modo, alimentou ainda mais as minhas esperanças.
— Eu agradeço a oportunidade, senhor — disse, depois de

ouvir atentamente tudo o que ele dizia.


— Eu que agradeço, senhorita Garcia. Até mais tarde. — Foi
cortês e eu retribuí, desejando a ele um bom trabalho.

— E então? — meu irmão perguntou, assim que desliguei a


chamada, colocando a mão sobre os meus ombros. Em algum
momento da minha conversa, ele havia se levantado, pondo-se atrás

de mim.
Ergui meu rosto, fitando-o com um sorriso enorme.

— Tenho uma entrevista daqui a poucas horas, Pablito. —


Não contive a animação da minha voz. Porém, poucos segundos
depois, dei uma murchada, o sorriso se desfazendo em meio a
insegurança. Eu tinha que ser racional, com certeza haveria outras

candidatas mais aptas do que eu. — Mas isso não significa que irei
conseguir.
— Eu não tenho nenhuma dúvida que irá. — Deu um beijo

estalado na minha testa, acariciando meu rosto, transmitindo-me uma


confiança que eu acho que nunca sentiria por mim mesma. — Você é

uma menina linda, inteligente, batalhadora — fez uma pequena pausa


—, articulada...
— Articulada? — Arqueei a sobrancelha para ele.

— Só quando não está gaguejando — brincou em meio a


uma gargalhada.
Apertou a minha bochecha, algo que detestava que ele

fizesse, mas acabei caindo na risada também, outra vez contaminada


por meu irmão.
— Você vai conseguir, Bárbara — disse em um tom sério

que, por um momento, arrepiou os meus pelinhos, e nem podia


culpar o frio, apenas a intensidade com que tinha falado. — Nunca
duvide de si mesma.

— Eu… — Impediu-me de falar, colocando um dedo em


meus lábios.
— Você, mais do que ninguém, mi pequeña estrellita[11],

nasceu para algo que está muito além da periferia em que moramos,
da pobreza em que vivemos. E eu farei de tudo, mesmo dentro das
minhas limitações, para que você consiga.

— Pablito… — sussurrei o apelido dele.


— Tenho certeza disso — sentenciou.
Senti novas lágrimas se formando em meus olhos com as

palavras doces, movidas pelo amor que nutria pelo meu irmão, pela
fé incondicional que ele tinha em mim, sentimento que se espalhou

por todo o meu corpo. Ergui-me da minha cadeira e o envolvi com


meus braços, abraçando-o com força, e ele retribuiu. Poderia não
acreditar completamente que eu iria muito longe, mas um dia

conseguiria retribuir todo aquele carinho e amor.


Capítulo dois

Deixei o arranha-céu onde tinha feito a minha entrevista de

emprego, mal contendo a euforia que me dominava. Tinha vontade


de esticar os braços e rodopiar no meio da calçada, rir alto, como a

menina que eu era, tamanha a alegria que sentia. Nem mesmo o

vento gelado que açoitava a minha pele, que havia se tornado ainda
mais intenso em poucas horas, conseguia apagar o sorriso que tinha

no rosto.

Ainda não podia acreditar que dentre os vários candidatos e


candidatas às vagas de serviços gerais, muito mais experientes do

que eu, já que nunca havia trabalhado registrada, apenas fazia faxina
em algumas casas, eu havia conseguido.

Estava nas nuvens.

Emitindo uma risadinha, precisando compartilhar minha

felicidade com a pessoa que mais torcia por mim, peguei o meu

celular dentro da bolsa, com meus dedos instáveis e torpes por não

estar de luva, quase deixando-o cair, e disquei para o telefone do


meu irmão. Não iria aguentar esperar até que ele chegasse em casa

para dar a notícia pessoalmente.


— Atende, Pablito — murmurei para mim mesma quando
começou a chamar e ele não atendeu de imediato, acabando

caindo.

Suspirei fundo, buscando controlar a minha ansiedade. Não

havia nenhum motivo para que eu me sentisse dessa maneira, já que

não era a primeira vez em que ele não atendia minha ligação,

ocupado com alguma coisa do trabalho.


Encolhi-me dentro do meu casaco, colocando o meu

aparelho no bolso, ao pensar que estava sendo egoísta com ele. O

mundo não girava em torno de mim, e não havia dúvidas de que ele

ligaria de volta o mais rápido possível, já que estava tão ansioso,

talvez até mais do que eu. Consolada por esse fato, comecei a

caminhar em direção a estação de metrô, que ficava a alguns

quarteirões da sede, e não demorou muito para que meu aparelho


começasse a tocar. Sem pensar muito, peguei o celular e atendi.

— Babi? — O tom animado do meu irmão fez com que todo

o sentimento negativo que ainda restava em mim se dissipasse

instantaneamente. Nem mesmo me deixei levar pelas incertezas de

minutos atrás. — E então, gatita?

— Eu consegui, querido — disse em meio um gritinho, não


mais contendo a minha euforia, gargalhando alto, atraindo a atenção
dos passantes, que provavelmente também estavam indo embora

para suas casas depois de um fim de expediente. — Eu consegui.


— Que notícia boa, hermanita. — Sua voz foi suave. Mesmo

não podendo vê-lo, pude imaginar que ele sorria de orelha a orelha,
compartilhando daquela pequena felicidade comigo.
Como queria poder abraçá-lo agora!

— Mas eu sabia que você iria conseguir — falou, convencido,


e minha risada se tornou ainda maior, ao ponto de sentir pequenas

lágrimas de alegria escorrerem pelo meu rosto. — Então não me é


nenhuma novidade — completou, depois que eu consegui me

controlar.
— Só você mesmo, Pablito. — Balancei a cabeça em
negativa, passando a mão pela face molhada enquanto uma onda de

ternura pelo meu irmão me invadia. Pela milésima vez no dia


agradecia a sua confiança em mim.

Ficamos em silêncio alguns segundos, apenas ouvindo a


respiração um do outro, e eu voltei a andar, para esquentar meu

corpo que, com a adrenalina abaixando, começou a esfriar, o frio


tornando-se insuportável.
— Quando você começa? — Pareceu prender o ar.
— Na semana que vem. — Fiz uma pausa. — Você não sabe

o alívio que senti por saber que não era apenas mais uma vaga
temporária.

Não contive um suspiro ao pensar que contratos temporários,


de algumas semanas ou durante uma prestação de serviço, era uma

modalidade comum na Espanha por não exigir que o empregador


pague encargos sobre ele, algo que as reformas trabalhistas têm
tentado frear por inúmeras razões. Então, tudo o que mais temia era

uma solução que fosse apenas por algum tempo, apesar que nada
poderia me garantir que eu iria permanecer no cargo até o final do

contrato.
Chacoalhei a cabeça novamente, não queria estragar aquele
momento com ideias negativas, ainda mais quando nem havia

começado.
— Imagino. Tudo está tão difícil... — Foi a vez de ele emitir

um som cansado, consciente de que a crise econômica deixava a


vida das pessoas ainda pior. Mas logo voltou a soar animado. — Sua

conquista merece tortilla.


— Gostei dessa ideia. Vou comprar os ingredientes.
Embora fosse um prato simples feito com ovos e batata,

nada me parecia mais saboroso, remetendo-me ao tempo em que


minha mãe, antes dela tornar-se cada vez mais infeliz, o preparava
para nós. Era uma lembrança feliz da minha infância, e por mais
devastador que tenha sido a morte dela, Pablo sempre a incluía nas

refeições, dizendo-me que mamãe nos amava com toda a sua força.
— Não esqueça do refrigerante, gatita.

— Com certeza que não. Quer um chocolate também? —


Questionei, mesmo sabendo que nosso dinheiro estava contado e
que era um luxo que não deveria nos permitir. Tentaria economizar

em alguma coisa para que pudesse comprar.


— Seria ótimo — disse suavemente, reafirmando algo que

ele tinha dito mais cedo em um timbre mais desprovido de emoção.


— Não precisa se preocupar com o dinheiro, Babi, eu darei um jeito.

— Tudo bem, Pablito.


Um pequeno calafrio me varreu, fazendo com que eu
estremecesse. Culpei o vento, estava buscando problemas onde não

havia. Pablo só estava sendo protetor e tomando a responsabilidade


para si, como sempre. Mas agora isso iria mudar.

— Agora preciso ir, querida.


Emitiu outro suspiro cansado, como se o trabalho o tivesse
sugado, e foi inevitável não me sentir preocupada com ele, ainda

mais quando isso parecia atingir diretamente o seu bem-estar. Mas


sabia que se eu perguntasse o que estava acontecendo, querendo
compartilhar aquele peso com ele, meu irmão apenas me daria uma
resposta evasiva ou não responderia, então preferi respeitar e não o

questionar, embora sentisse um pouco de culpa pesando sobre os


meus ombros. Eu queria ser o pilar que o sustentava e o motivava,

do mesmo modo em que eu tirava forças dele.


— Eu também, está um frio descomunal. — Apressei o
passo. — O metrô deve estar lotado.

— Provavelmente. — Ouvi ele engolir em seco do outro lado

da linha, mas logo voltando a ser o homem animado novamente: —


Eu te amo, Babi. Você não sabe o quão me deixa alegre saber que

você terá o seu começo.

— Eu também te amo, Pablito. Te vejo mais tarde.

— Até, estrellita.
Desligou a ligação, e eu coloquei o celular dentro da bolsa,

fechando-a, apertando o passo em direção ao terminal. E mesmo em

meio ao aperto dos corpos no corredor do metrô, não contive meu


sorriso. Até cantarolarei baixinho, desafinado, fazendo com que olhos

irritados pousassem sobre mim, mas não me importei. Sim, era um

novo começo.
Capítulo três

— Nossos advogados entrarão em contato com os seus para


apresentar as modificações a serem realizadas no contrato,

efendim[12]. — Meu melhor amigo disse ao apertar a mão de


Mitchell, o homem que tinha se levantado para deixar a sala de

reunião, sem deixar de usar o tom severo pela qual era reconhecido

e que fazia muitos temê-lo. — Se você estiver de acordo,


marcaremos uma nova reunião para assiná-lo e começar a discutir

como será feita a remodelação administrativa da empresa que

estamos investindo e de toda a cadeia produtiva para eliminar os


gargalos operacionais.

— De acordo— sussurrou, parecendo não tão conformado

assim, fitando-me com o canto do olho.

Arqueei minha sobrancelha para Mitchell, que tragou em

seco, completamente desconfortável com a minha presença, já que


não tinha sido convidado para aquele encontro.

Havia chegado em Chicago há apenas uma hora para

encontrar Yazuv para outra reunião importante que ainda teríamos na

parte da tarde, quando o homem tinha me falado sobre a

possibilidade de entrarmos juntos naquele investimento, postergando


outros assuntos também urgentes. Mesmo que eu não tivesse
analisado o contrato previamente, algo que nunca deixava de fazer,

pois era meticuloso com cada transação, o que incluía minha vida

pessoal, Yazuv tinha dito que era um investimento de baixo risco e

que, no longo prazo, poderia dar lucros na casa dos milhões. Como

confiava no tino financeiro do meu amigo, tanto quanto no meu,

arrisquei. Depois analisaria todas as informações disponíveis e daria


minhas sugestões.

Durante toda a reunião pude perceber o incômodo que

Mitchell sentia, quase que imperceptível, por negociar com o turco,

que tomou a frente, conduzindo a negociação, colocando-o contra a

parede de maneira nada gentil, mas foi o acréscimo de última hora,

já que meu amigo não iria investir sem mim, o que o incomodou

bastante; o sorriso nervoso provava isso. Não gostamos um do


outro, o que não era uma novidade, já que eu apenas suscitava ódio,

medo e ressentimento nas pessoas.

Durante todo o tempo ele ficou me fitando, como se eu fosse

estraçalhá-lo. Provavelmente faria isso caso ele desse um passo em

falso, ainda mais quando ele demonstrava a coragem de um rato.

Comumente eu não aceitava erros, mas, agora, estava cada vez


mais irascível e exigente.
O demonio de hielo tornou-se ainda mais frio e sedento por

poder e dinheiro, passando por cima de tudo e de todos, sem


nenhuma piedade, escondendo-se ainda mais em suas sombras,

deixando-se consumir por elas.


— Obrigada pela parceria, senhor Castillo — disse com um
tom que até eu reconhecia como falso.

Estendeu a mão para mim, a qual não apertei e nem


respondi, tornando o seu desconforto ainda maior, e um leve tremor

o percorreu. Um silêncio pesado caiu sobre nós, mas não me


importei. Acomodei-me melhor na minha cadeira, ciente do meu

próprio poder, sufocando o cansaço, e com o canto do olho percebi


meu amigo arquear a sobrancelha para mim. Não disse nada sobre a
minha falta de educação e arrogância.

— Conversaremos em breve, senhor Ibrahim. — Virou-se


para o turco. — Com licença os dois.

— Boa tarde, Mitchell. — O outro homem foi mais cordial.


— Para vocês também. — Assentiu com a cabeça.

Sabendo que sua presença não era mais necessária, deixou


a sala rapidamente.
A sós, eu e Yazuv permanecemos em silêncio por uns

instantes. Depois de checar minha caixa de e-mails, fitei o meu


melhor amigo, que encarava o seu celular. Ele sorria como um

maldito parvo. Sua expressão sempre austera estava completamente


suave, e não precisei perguntar para saber o que causava tamanha

transformação nele, com certeza eram os trigêmeos, que se


tornavam cada dia mais grandinhos.

Remexi-me na cadeira, sentindo certo desconforto ao pensar


nos bebês do meu melhor amigo. Tinha falado a verdade quando
disse que estava feliz por ele, apesar de não parecer por conta da

minha frieza. Não conseguia expor completamente meus


sentimentos, nem mesmo ao meu amigo, embora soubesse que

Yazuv não julgaria meus anseios.


De fato, acreditava que filhos eram preciosos na vida de um
homem, tornando-o completo, isso quando eram desejados, o que

não fui nem mesmo pelo meu pai, que veio a falecer juntamente com
a esposa em um acidente de carro causado por ele mesmo, logo

depois do escândalo do meu nascimento. Era uma ideia absurda


vindo de um homem como eu, demônios não davam valor a nada que

não fosse a si mesmo e muito menos precisavam de alguém para se


sentir inteiro. Mas, ainda assim, eu ousava desejar ter um filho.
Sempre ansiei por algo que preenchesse o vazio e o frio no meu

interior. Havia pensado que o amor de uma mulher era o suficiente,


mas com a Angel eu soube que só isso não bastaria, hoje posso vê-
lo claramente, no entanto não me impedia de sentir-me ressentido
por ela ter me tirado essa possibilidade.

— Veja isso. — O turco me tirou do transe com sua voz


animada, estendendo o celular para mim. Peguei com meus dedos

ligeiramente trêmulos, consciente de que era melhor não me deixar


levar por pensamentos que não me trariam nada de bom. — Eles
são tão espertos quanto a mãe dele.

Abstive de fazer qualquer comentário sobre sua esposa,


apesar que eu tinha que confessar que a mulher, pelas poucas vezes

que tivemos contato, me pareceu ser uma pessoa sincera, e


também… amorosa. Não somente com os trigêmeos, mas também

com Yazuv. Mesmo que eu fosse meio cético, pude perceber um


brilho diferente nos olhos dela sempre que olhava para o marido.
Talvez fosse uma ilusão, uma máscara, mas sabia que essa

percepção era fruto do meu amargor em relação ao sexo dela.


— Eles estão lindos, amigo — disse tempos depois com um

tom embargado, após ver o vídeo dos três pequenos, auxiliados pela
mãe, andando com passos hesitantes atrás da cadela que latia e
parecia brincar com eles. Enquanto assistia, foi inevitável não me
deixar ser dominado novamente pelo sentimento que me acometeu
quando o turco me disse que iria ser pai.
A inveja amargava na minha boca e, como uma erva daninha,

começou a se infiltrar em meu interior, criando raízes, lançando suas


garras sobre mim.

O sonho que eu sufocava e matava dentro de mim voltou em


toda a sua fúria, e mais uma vez eu desejei ter meu próprio filho,
alguém que me preenchesse, como as três crianças pareciam

completar Yazuv. Queria aquela felicidade que um simples vídeo

parecia ter a capacidade de suscitar, para aquecer o gelo que existia


dentro de mim. E ao passo que a ambição duelava com a inveja,

ruminava o ódio pelas mulheres que haviam roubado tudo de mim.

Meu passado, meu presente, meu futuro.

Meus sonhos.
O homem gentil que eu poderia ter sido.

O pai.

O marido.
O amigo.

Eu me afundava cada vez mais em sombras.

Busquei matar dentro de mim aquele desejo secreto de gerar


um filho, carne da minha carne, usando todas as forças que tinha.
Escondi aquela vontade do meu melhor amigo ao entregar o aparelho

dele, que o pegou com um sorriso enorme no rosto.


Voltou a olhar fixamente a tela, como o homem apaixonado

pelos seus bebês que era. Senti minhas vísceras se retorcerem por

saber que nunca teria a chance de olhar para o meu bebê daquela
maneira.

Talvez…

— Carajo[13] — xinguei-me mentalmente, sabendo que não

havia a possibilidade de ter um filho do meu próprio sangue, pois


nunca mais me deixaria ser refém de uma mulher. Não correria mais

riscos. E barrigas de aluguel era proibido no meu país.

Dei um sorriso que não chegou aos meus olhos, mas meu
amigo não percebeu.

— Eu já disse que você é um homem de sorte? — forcei meu

tom a sair suave e descontraído.

— Várias vezes, mas não me canso de escutar o quanto sou

um lanet olası[14] sortudo. — Soou arrogante, não escondendo o

quanto estava exultante. Fez uma pausa antes de falar de novo: —

Sou muito bom naquilo que faço, e três bebês de uma vez é a prova
viva disso.
— ¡Dios![15] — Passei a mão pelos meus cabelos e voltei

assumir minha inexpressiva e irônica feição. — De novo você se

gabando sobre isso? Não, amigo, não aguento mais escutá-lo

falando do seu dote — disse.


Parou de olhar o celular e me fitou, arqueando a sobrancelha

escura.

Fiz um gesto com a mão, alfinetando as proezas sexuais do


meu melhor amigo, e ele fechou a cara. Mas não temia aquela

carranca severa, então continuei o provocando. Era mais fácil do que

ter que lidar com os sentimentos voláteis e nocivos que eu não

deveria nutrir:
— Não tenho nenhum interesse na sua vida sexual mais do

que ativa. — Estalei a língua de uma forma que ele odiava e ouvi o

bufar dele em resposta.


E mesmo cansado, eu gargalhei alto, cínico, e, como

sempre, o som saiu estranho aos meus ouvidos. Ri ainda mais

quando o turco começou a emitir uma série de impropérios na sua

língua pátria, até que se deu por vencido.


— Você está com inveja da minha façanha, Javier — disse

em um tom jocoso e instantaneamente o meu riso morreu e engoli


em seco. Contive a vontade de suspirar fundo e segurar com força

na cadeira, e fiz um gesto com a mão, negando.


— Não, amigo. — Arrastei a última palavra, como se

estivesse com preguiça de falar, querendo esconder meu estado de

espírito. — Três bebês de uma vez é muito para mim. Prefiro utilizar
minha potência em outras coisas.

Yasuv deu uma risada baixinha, sabendo que eu falava dos

meus negócios e da minha empresa, e eu arqueei a sobrancelha,

desafiando-o a me contradizer.
Sabia que era apenas uma pequena brincadeira, mas uma

que chegava bem próximo da realidade. Era verdade, mas, mesmo

assim, tudo em mim transformou-se em frieza e eu comecei a me


fechar dentro de mim mesmo, meu corpo todo ficando tenso em

resposta. Aquele vazio sombrio, a dor bem conhecida, começou a

me sufocar.

Mas logo a diversão dele morreu e ele colocou o celular


sobre a mesa.

— Sobre isso, Javier…

Balancei a cabeça em negativa, impedindo-o de continuar.


— Ainda não mudei de ideia, amigo — sussurrei, escondendo

a minha própria vulnerabilidade quando o assunto se restringia ao


campo do afeto. — Manterei os votos que fiz para mim mesmo e não

irei me trair.

— Nem todas são iguais. Se você der uma chance…

— Não, Yazuv. — Fiz que não com a cabeça. — Não correrei


mais esse risco. Aceitei o meu destino da forma que é.

— Javier…

— Como disse há muito tempo, nem todos têm sua boa


sorte. Nem mesmo o dinheiro pode comprá-lo. De um modo

deturpado, você sabe que tentei ter. Hoje, posso ver que Angel nada

me foi do que um objeto caro que estava disposto a comprar.

Dei um sorriso para ele que, provavelmente, transformou


minhas feições em algo esquisito. Por dentro sentia um turbilhão de

sensações que iam da solidão à raiva, não que a mulher agora me

importasse, mas, sim, pela constatação da minha tolice em pensar


que eu poderia suscitar sentimentos mais nobres em alguém. Havia

sido advertido, mas não quis pensar muito nisso.

— Um bem fútil por sinal.

Grunhiu de desagrado, em um ato de lealdade que me


deixou contente.

— E até tempo atrás, sei que você pensava igual a mim —

continuei, erguendo-me, precisando fazer algo, mesmo que fosse


caminhar como um animal enjaulado.

— Bem…
— O importante é que agora você valoriza muito a sua sorte,

sua família. — Dei uns tapinhas nos ombros do meu melhor amigo.

— E você está certo, não só por isso, mas também por apreciar as

mudanças que ocorreram na sua vida. No entanto, não é para mim.


Voltei a sentar na cadeira, fitando-o, e foi estranho ver o

homem severo e sempre controlado abrir e fechar a boca várias

vezes, como se estivesse pensando em uma resposta. Por fim,


apenas assentiu, mas contrariado.

— Só desejo a você a mesma felicidade que encontrei. —

Sua voz soou embargada, e eu não me recordei de uma única vez


em que ele havia falado naquele tom. — Hoje, parece que a vida que

eu levava antes, sem a benim değerli[16] e meus bebês, me parece

tão vazia...

“— Porque era…”, pensei comigo mesmo.


Desde muito cedo, era consciente de que o trabalho, a sede

pelo poder, sempre foi uma válvula de escape pelas coisas que eu

não poderia ter. E frente ao meu amigo, tentava conter a sensação

de que estava sendo sugado por um grande buraco negro que tinha
como vórtice a solidão.
Não contive um suspiro baixo.
O topo era um objetivo que se tornou mais uma obsessão,

uma busca desenfreada pelo meu lugar no mundo. Ter sido tratado

como um bastardo, algo indesejado, só fez aumentar essa


necessidade por mais dinheiro e influência. Eu precisava me tornar

maior do que qualquer um da família Castillo, provar algo que eu nem

mesmo sabia o que era. Para quem? Preferia acreditar que era para
mim mesmo.

Forcei meus pensamentos a desviarem para algo que não

envolvesse o meu passado, embora o futuro não seja muito melhor.

— Eu tenho tudo o que alguém pode querer para ser feliz,


Yazuv — disse em um tom neutro que, como sempre, soou gelado.

Ele bufou outra vez.

— E agora estou mais próximo do bilhão do que você… E de


ganhar a sua empresa — provoquei-o, voltando a estalar a língua.

Porém, para a minha decepção, ele não caiu na minha


provocação, apenas emitiu um suspiro cansado, passando a mão
pelos cabelos.

— Tudo bem, Javier.


Fez um gesto como se estivesse desistindo daquela
discussão, que não nos levaria a lugar algum, ainda mais quando me
mostrava tão irredutível sobre o assunto. Eu sabia que, por mais que
eu quisesse, eu não teria aquele destino que meu melhor amigo
também sonhava para mim.

Era impossível.
Confiar em uma mulher estava fora de questão. Não exporia
meus sentimentos e vulnerabilidade nunca mais ao sexo feminino,

dando o poder a elas de me machucarem novamente.


Todas as três mulheres que passaram na minha vida, de um
modo ou de outro, conseguiram me destruir, transformando-me neste

monstro que eu sou hoje.


— Obrigado, amigo — sussurrei, grato por ele não insistir.
Mas, estranhamente, eu me senti incomodado, até

ressentido, pela única pessoa que parecia se preocupar comigo, ao


menos com meu bem-estar e felicidade, parecer desistir de mim.
Uma tolice.

Yasuv deu de ombros e se acomodou melhor na cadeira, em


uma posição relaxada que não se permitia ter perante a outras

pessoas, e eu tentei fazer o mesmo, embora meu corpo todo


estivesse rígido.
— Você não gosta de Mitchell e nem confia nele, não é? —

Mudou de assunto para um terreno bem mais seguro.


— ¡Sí[17]! Ele me parece um grande covarde para estar à
frente de qualquer coisa, ainda mais de uma empresa que eu vou

investir. — Não escondi no meu tom gelado o meu desgosto.


— Uma grande verdade. Ele mal me encarou nos olhos e
nem mesmo conseguiu olhar para você. Não que você também tenha

sido amistoso. Você parecia mais do que disposto a dilacerá-lo. —


Deu um sorriso estranho que mais se assemelhou a uma careta.
Não contive uma gargalhada, que reverberou por toda a sala

de reunião.
— Não era eu quem estava o pressionando ao ponto de
fazê-lo estremecer, amigo. — Fui cínico. — Me surpreende que você

tenha fechado negócio com ele e ainda me empurrado para esse


investimento. — Arreganhei os dentes, deixando minha aparência
mais demoníaca.

— Você sabe que a longo prazo será bem lucrativo. — Outra


vez fez uma careta de desagrado.

— Sei. — Peguei minha agenda de anotações, olhando


alguns pontos que havia registrado. — Mas tenho minhas dúvidas se
deixá-lo à frente de tudo é algo acertado. Além de carecer de

experiência e ser pouco articulado, percebi que Mitchell parecia


hesitar em tomar algumas decisões para reformular o quadro do alto
escalão e o processo produtivo, o que inclui mudanças de
fornecedores.

— Não se preocupe, pedirei ao advogado para que adicione


um item no contrato estabelecendo que a decisão final será nossa,
mesmo que não sejamos os sócios majoritários.

Pegou a caneta e escreveu algo na própria agenda.


— E como ele precisa do dinheiro, não irá contra a cláusula

de que não poderá mais decidir sobre isso. — Fez uma pausa, para
depois concluir arrogante. — Será isso, ou terá que procurar algum
outro investidor disposto, o que é pouco improvável, perante a

confusão que a empresa se encontra.


— Humm…
— E com a minha değerli à frente da Motors, terei mais

tempo para lidar com Mitchell pessoalmente. — Seu tom foi


apaixonado, como sempre quando falava da mulher, e me contive
para não fazer uma careta com a breguice de Yazuv. Embora fosse

obrigado a admitir que a esposa dele era bastante competente para


ser a CEO de uma grande empresa.

— Certo, eu deixarei que você lide com esse ratón.[18] — Ao

contrário dele, soei seco. — Não tenho a mínima paciência para


controlá-lo ou até mesmo ficar no mesmo ambiente que ele. Me

envie relatórios diariamente.


— Que Allah me proteja — sussurrou perante a ordem, e
começou a dizer uma série de palavras em turco cujos significados

pouco me importavam.
Permaneci com uma expressão impassível, embora minha
vontade fosse rir novamente, tamanha diversão que sentia perante

sua reação exacerbada. Eu estava ciente de que, por mais que


parecesse estranho a ele, o turco não julgaria o meu repentino senso

de humor, porém os fantasmas do passado me diziam o quão errado


era expor meus sentimentos outra vez, voltando a me assombrar.
¡Dios! Será que eu nunca conseguirei me livrar dessa

sensação opressora que nunca permitia que eu fosse eu mesmo,


nem mesmo com alguém que confiava?
Foi instintivo engolir em seco, mesmo que fosse um grande

erro por revelar demais. Sorte que o turco parecia completamente


desatento.
Parando de resmungar, pareceu mais no controle sobre si

mesmo e me fitou com intensidade, no entanto os olhos negros e


profundos não escondiam um brilho especulativo. Arqueei a
sobrancelha, porém não disse nada enquanto era avaliado.
— Yazuv? — questionei em um tom modulado quando o
silêncio dele começou a pesar e me senti desconfortável, temendo
que ele visse bem mais do que estava disposto a revelar.

— Já que estamos falando de negócios, arkadaş[19], minhas


fontes revelaram que os empreendimentos de Castro vêm passando
por certas dificuldades financeiras. — Sua expressão era séria,

apesar de não esconder sua curiosidade.


— Ah, isso.
Dei um sorriso frio, mantendo-me calado, enquanto me

ajeitava despreocupadamente contra o meu assento, adotando uma


postura lânguida que buscava esconder a minha surpresa por ele

estar bem-informado sobre o que ocorria na empresa do meu rival.


Exigia todo meu autocontrole fingir que aquele assunto não fazia com
que uma fúria cega banhasse as minhas veias. Pelo visto, não fui

bem-sucedido, pois ele emitiu um bufar quando não desenvolvi o


assunto; seus dedos tamborilando na mesa revelavam sua
impaciência.

— E então? — Sua voz soou áspera.


— O quê?

— Bok[20], Javier! — rugiu, meus lábios se curvando ainda

mais para cima em deboche, mostrando o grande demônio que eu


era. — Não finja que você não é o grande responsável pelo fato de
que as empresas do homem que você mais quer destruir dentre

todos os seus inimigos estarem indo à pique. Ele vem perdendo cada
vez mais credibilidade no mundo financeiro.
Passou a mão pelos cabelos, exasperado, e, por uma fração

de segundos, um sentimento desconcertante de pena pela mulher


que o aturava me dominou. Mas logo o descartei, juntamente com
aquela pequena pontada de inveja que senti por saber que eu era

igualmente difícil e que, diferente dele, nenhuma mulher era capaz de


me amar e tolerar meus erros, minha frieza e gênio irascível.
Endureci meu coração perante esse pensamento. Eu não

precisava que ninguém lidasse com o meu temperamento ou


aceitasse meus erros e defeitos, muito menos que uma mulher o
fizesse.

— Sik[21], por que você não me contou sobre a sua


vingança? Acreditei esse tempo todo que você preferiu lidar com a

traição por meio da indiferença. Ainda mais quando se passou tanto


tempo… Mais de um ano, na verdade.
— Esperava que você me conhecesse melhor, amigo, ainda

mais quando pensamos quase iguais. — Minha voz saiu repleta do


mais puro gelo e balancei a cabeça em negativa, quase que
imperceptivelmente. — Nenhum de nós dois deixaria algo assim
passar em branco, ainda mais quando atinge diretamente a nossa

reputação. — Fiz uma pausa, encarando os olhos negros dele. —


Então você mais do que ninguém deveria ter sabido que eu iria até o

fim.
— Droga, eu sou o seu melhor amigo — bufou.
Puxou os cabelos, e como eu esperava, não pediu desculpas

por pensar que eu seria leviano. Éramos arrogantes demais para


assumirmos a nossa parcela de culpa.
Fazia muitos anos que eu havia implorado por perdão, o que

resultou em uma série de cicatrizes que eu carregava na pele e que,


por mais que tentasse, ainda parecia doer e repuxar.
— Diga alguma coisa, Javier. — Tirou-me do transe de

pensamentos e dei de ombros.


— O que quer que eu fale, amigo?
— Que você não confia em mim — foi ácido, dando um soco

na mesa, mas não me assustei.


— Eu não estaria aqui se não confiasse, Yazuv — dei uma

gargalhada seca e o provoquei: — Não sabia que com a paternidade


e com o casamento você acabaria se tornando ainda mais
temperamental. Estou realmente com pena da sua mulher — menti.
Praguejou baixinho.

— Não mude de assunto.


— Apenas não quis estragar a bolha de felicidade em que
você se encontrava com a paternidade contando os meus problemas

— confessei em um tom bem mais suave. — E você também tinha os


seus para lidar.

— Humph. — Fechou a cara, como se não acreditasse nas


minhas palavras.
Ergui a mão, fazendo um gesto para que não dissesse nada.

— Deveria ter contado mesmo assim, eu sei. — Fui um


pouco indulgente comigo mesmo e um grunhido escapou dos lábios
do meu melhor amigo.

— Bok, sim…
— O que realmente importa é que muito em breve terei a
minha vingança e farei aquilo que ele fez comigo, vou tomar dele o

que mais ama. — Foi a minha vez de tamborilar os dedos sobre a


mesa, não contendo ironia: — E que está longe de ser a minha ex-
noiva.

Mantive para mim o fato de que a mulher pouco me


importava, mas, sim, aquilo que juntos eles haviam tirado de mim: a
chance de ter minha família.
— Uma retaliação mais do que justa a meu ver.
— ¡Sí, amigo! Sabia que você conseguiria me entender. Mas
o melhor de tudo é que, embora eu esteja sempre um passo à frente

dele por saber quem são os clientes em potencial da financeira,


roubando-os para mim, Castro será o principal pivô da sua própria
derrota.

— Como assim? — Pareceu confuso.


— Segundo os relatórios que recebi, praticamente todas as
empresas dele estão quebradas, eu mesmo detenho parte das

ações de algumas por meio de uma sociedade anônima. Mas isso


não vem em questão, e sim o fato de que meus informantes ficaram

sabendo que Castro vem perdendo cada vez mais dinheiro dos
clientes em alguns investimentos de índole duvidável. Será um
grande escândalo na mídia e no mercado financeiro. Ele estará

destruído e eu triunfarei.
Demos uma gargalhada, saboreando aquele momento.
— E a mulher?

— Ela perderá seu pequeno palacete de diamantes, apesar


que Angelina já vem sofrendo as consequências, mesmo que não
saiba. — Soei displicente. — Castro vem mantendo um monte de

amantes, principalmente fora do país. Irônico, não é mesmo, amigo?


Ele não respondeu, sabia que não faria.
Embora não tivesse sido traído por ninguém, o turco sabia

muito bem a dor causada pela infidelidade e a forma como ela


poderia destruir uma pessoa, já que sua própria mãe foi vítima de
uma série de traições, a última culminando em um divórcio doloroso.

Como ele, eu também tinha repulsa ao ato, principalmente


por ter sido gerado fora do casamento, fruto da infidelidade do meu
pai. Porém o demônio dentro de mim se sentia de alguma forma

vingado, principalmente por saber que ela sofreria tanto quanto eu


amarguei sua traição. Saboreava o fato de Angelina ter trocado
minha fidelidade incondicional, já que, por mais frio que fosse,

respeitava a mulher, bem como a relação que tínhamos, por alguém


que a tinha usado como um peão; por um casamento que

provavelmente se tornaria infeliz quando ela descobrisse os enganos.


— Não há punição maior para ela — voltei a sussurrar. —
Angelina perderá tudo, inclusive o homem que diz amar.

— E depois? O que fará depois de ter a sua vingança? Você


não poderá ficar presa a ela para sempre…— perguntou em um tom
preocupado, fitando-me com intensidade, e eu senti a dor habitual, o

vazio, chegar próximo de mim outra vez, sussurrando palavras


amargas.
Não soube o que responder e eu senti que meu corpo

duelava com a minha mente para não estremecer. Minha boca ficou
seca, e eu pude constatar que minha pulsação acelerou. A solidão
mais uma vez fincava suas garras, mas fui salvo quando o celular

dele começou a tocar, e uma expressão suave tomou conta do seu


rosto, sendo substituída pela aflição, indicando-me que era a mulher
que amava.

— Aşk[22]? — Seu tom era urgente. — Está tudo bem com


você e nossos bebês?
Ficou em silêncio por poucos segundos, mas foram o

suficiente para que eu ficasse preocupado, com todos os meus


instintos em alerta. Não consegui me conter e segurei com força na
cadeira, o medo me tornando seu cativo, pavor que algo tivesse

acontecido aos trigêmeos.


— Sim, claro. — Fez uma pausa. — Estaremos aí em meia

hora. — Mais silêncio. — Eu também te amo, meu amor.


— E então? — perguntei com a voz tensa assim que ele
desligou, obrigando-me a colocar de pé, embora minhas pernas

estivessem trêmulas.
— Parece que a reunião que a minha mulher tinha foi
cancelada e ela está nos convidando para almoçar junto com os
trigêmeos. — Deu um sorriso bobo. — Como temos tempo até a

próxima reunião, não tive como recusar.


— Entendo… — sussurrei, sentindo um misto de sentimentos

borbulhar dentro de mim.


Por mais que eu gostasse de ver os filhos do meu melhor
amigo, as crianças me lembravam de tudo o que eu não poderia ter.

E, frente a frente, tornava-se difícil mascarar a inveja que nutria de


Yazuv e disfarçar meus anseios de ter os meus próprios bebês.
— E eu não gosto de perder nenhum momento deles — seu

tom era sonhador e percebi que havia certa urgência nele para ir
para casa, confirmado pela sua pergunta: — Vamos?
Fiz que sim com a cabeça, dando um sorriso que

provavelmente não chegava aos meus olhos, sabendo que


dificilmente poderia recusar ou dar uma desculpa para não almoçar
com a família dele. Emitindo um suspiro baixinho, comecei a travar

uma luta interna comigo mesmo enquanto seguia o turco para fora da
sala de reuniões, uma batalha que sabia que iria perder.
Capítulo quatro

— Senti sua falta, aşk[23] — meu melhor amigo disse em voz

rouca ao aproximar da esposa, que o esperava na porta do


apartamento em que moravam, parecendo exultante.

Ele gemeu baixinho quando, não escondendo o anseio e

desejo que nutria por ela, enlaçou a cintura da esposa, trazendo-a de


encontro ao seu corpo de modo possessivo, sua mão acariciando os

quadris dela, suavemente emoldurados pela saia. Yazuv parecia

completamente diferente do homem sempre controlado, era como se


ele estivesse dominado por uma besta selvagem e nenhum dos dois

parecia se importar com a minha presença.

— Muita falta — sussurrou.

Plantou um beijo na testa dela e outro em seus dedos e eu

forcei uma máscara de indiferença, que não sentia, ao assistir a cena


melosa de amor e cumplicidade. De felicidade.

— Não faz nem cinco horas que estamos longe um do outro,

Yazuv — rindo, enlaçou o pescoço dele, colando os corpos um no

outro, e o turco não escondeu sua contrariedade com um bufar

perante a fala dela.


— É tempo demais para mim, değerli, você sabe que é. —
Seus lábios pousaram sob a bochecha dela.

— Sim.

Desviei o olhar para os arcos ogivais que ornamentavam o

hall comum quando eles se beijaram, como se fosse um menino que

tinha nojo de ver a troca de afeto entre os pais.

Por mais que eu tivesse jurado a mim mesmo que nunca


mais tocaria ou me aproximaria de uma mulher novamente, sempre

que via casais trocando afeto em público, palavras que me foram

ditas muitos anos atrás ecoavam na minha mente, zombeteiras.

Machucando-me, tentei recordar se em algum momento do

meu relacionamento com Angel, mesmo com toda a minha frieza e

repreensão dos meus sentimentos, tínhamos agido como um casal

que realmente tinha carinho um pelo outro, o mínimo que fosse. Mas
não consegui.

Ela tinha sido apenas um troféu, que eu nem mesmo havia

conquistado de fato; e eu, representei para ela uma conta bancária

recheada e status.

“Nunca ninguém poderá te amar, bastardo!”, me

autodestruindo, deixei que a frase me ferisse até que consegui me


esconder por detrás da fachada de demônio de gelo.
Porém, antes que eu pudesse encerrar aquele sentimento

dentro de mim, ouvi o barulho de unha arranhando o piso de


mármore, seguido de um gritinho da mulher:

— Aylla, não!
Antes que pudesse reagir, ficando sobre duas patas, a
cadela creme pousou as patinhas sobre a minha calça social

enquanto sua língua babada deslizava pela minha mão, deixando uma
série de lambidas que me provocava um pouco de cócegas.

— Não, menina. — Escutei Valdete falar novamente com a


cachorra, aproximando-se para segurá-la pela coleira. — Não é

assim que se trata as visitas.


— Deixa, aşk, Javier conseguirá lidar com ela como das
últimas vezes. — Ouvi a voz do meu melhor amigo soar repleta de

diversão. Quando eu olhei para ele, percebi que puxava a mulher


para os seus braços novamente.

— ¡Sí, amigo! — Acariciei a parte de trás da orelha dela,


fazendo a cadela soltar um grunhido. — Nós nos damos muito bem,

não é mesmo?
Sorri genuinamente para a cachorrinha quando ela latiu em
resposta e deu uma cabeçada em mim. A raiva, a frustração e a

solidão, que tinham me invadido há minutos, pareceram


momentaneamente se dissolver perante o afeto do animalzinho. A

ingenuidade presente nos olhos caramelos que me fitavam como se


eu fosse alguém bom, como se eu ainda valesse a pena a alguém ou

fosse digno de afeto, fez com que meu coração batesse acelerado.
Acariciando-a, eu me perguntei por qual motivo eu ainda não havia

adotado um cãozinho para mim. Poderia não vir a ser amado por
outro ser humano, mas talvez existisse uma última chance para mim,
de que, de alguma forma, eu fosse preenchido pelo calor e ternura

de um bichinho.
— Quem sabe, não é, pequena? — murmurei para mim

mesmo, continuando a acariciá-la.


Ela latiu outra vez, e estranhamente senti como se fosse uma
espécie de confirmação, o que me acalentou. Sim, eu adotaria um

bichinho. Talvez dois. Ou mais. Vira-latas, indesejados como eu, que


precisavam de amor, carinho e um lar, o que nunca eu teria.

— Desculpe por não te cumprimentar antes, Javier. — A


mulher tirou-me do transe de pensamentos.

— Não se preocupe, eu entendo — forcei minha voz a soar


mais suave, demonstrando um pouco mais de humanidade enquanto
meus dedos adentravam os pelos macios.
Desviei meu olhar da cadela para ela, que me fitava com
curiosidade, embora seu rosto estivesse corado pelo beijo. Ser alvo
do olhar dela fez com que meu estômago embrulhasse e o sorriso

que eu tinha morresse em meio ao desconforto, e instantaneamente


vesti a máscara fria.

Por mais que todas as vezes que nos encontramos a esposa


do meu amigo tivesse sido gentil comigo, eu sempre me retraía. Eu
tentava não reagir dessa maneira à ela, dizendo que o pouco contato

que tínhamos não permitiria que me ferisse, eu não conseguia evitar.


Yazuv percebeu o quão tenso eu fiquei e soltou um bufar, e eu o

agradeci por não tecer nenhum comentário, apesar que eu sabia que
ele se controlava para não socar a minha cara, por mais que eu

merecesse. Meus gestos, minha frieza, a insultavam, e o turco só


não defendia a mulher que amava por compreender o que sentia, e
também pelo fato de que ela o impediria, mantendo os braços dele

em volta do seu corpo, enquanto suavemente o acariciava. Era um


gesto que me pareceu completamente íntimo e que novamente me

desconcertou.
Ignorei o reboliço que os ver me causava e, perante minha
gentileza, Valdete sorriu para mim, ao passo que Yazuv ergueu uma

sobrancelha, questionador.
Dei de ombros.
— Vamos entrar? — A mulher convidou. — Os trigêmeos
não pararam de pedir pelo papai desde que eu falei o nome do

Yazuv no telefone — continuou.


Saiu dos braços do turco, que resmungou algo ininteligível; a

carranca severa fazendo com que novamente eu quisesse rir dele,


provocando-o, porém me contive.
Ela emitiu um bufar que pareceu bastante com aqueles que o

marido dela soltava ao virar-se para ele, e percebi que um sorriso de

orelha a orelha transformava o rosto do meu melhor amigo, antes de


se virar e apressadamente correr para dentro do seu apartamento,

seguida por Aylla, gritando que o papai tinha chegado, nem mesmo

se preocupando em remover o sapato conforme a tradição do país

dele.
— Deus, esse homem irá me deixar louca — Valdete

sussurrou para si mesma em um tom exasperado, balançando a

cabeça em negativa, dando-me a impressão de que, como todas as


outras, era uma grande traiçoeira, uma cínica.

Mas logo sua expressão pareceu irradiar alegres, os olhos

azuis cintilando com amor e prazer, os lábios estavam curvados para


cima de felicidade. Por uma fração de tempo, parecia como se
sonhasse acordada, presa nos próprios pensamentos, o que me fez

ter a ilusão momentânea de que nem todas eram iguais àquelas que
passaram em minha vida. E que talvez eu pudesse…

¡Maldito seas![24]

— Está tudo bem, Javier? — Ela pareceu sair do seu torpor.


— Sim, senhora.

Me odiei por deixar transparecer meus sentimentos à uma

mulher. Minha voz soou mais gelada do que deveria, ainda mais

quando o semblante dela foi tomado por preocupação. Eu sabia que


se o turco estivesse ali, nossa amizade teria um ponto final. Ele não

toleraria um desrespeito a sua esposa e, como um menino pequeno

que precisava da aprovação, eu murmurei:


— Eu… — Minha garganta pareceu se fechar, impedindo-me

de continuar.

— Está tudo bem, “amigo” — disse a palavra e sorriu, os

olhos azuis tranquilos, mas sem compaixão, algo que detestaria. —


Mesmo que não acredite em mim, nunca atrapalharia a amizade de

vocês dois por algo tão mesquinho. É o melhor amigo do homem que

eu amo e sei que, mesmo que não demonstrem, vocês se amam


como irmãos, e isso é importante para mim também.
Embora desconfiasse dela, fitei-a atônito, e voltei a tragar o

ar com força.

— Agora, entre — disse em um tom de ordem, como se


fosse minha mãe, apenas para modular sua voz logo em seguida

para um tom jocoso. — Antes que aquelas lambisgoias apareçam.

— Quem?

Balançou a cabeça em negativa, fazendo um gesto para a


porta e, preso no meu desconcerto, obedeci a ela

inconscientemente, parando no hall para remover os sapatos.

— Umas vizinhas chatas — disse em um delay.


— Entendo — menti, pois tudo em mim era pura confusão.

— Não que elas invadam a nossa vida, mas digamos que

tomei birra desde a primeira vez que as vi e elas pareceram

desdenhar de mim. — Deu uma risadinha. — Mas é uma besteira


minha, dê pouca importância.

Não soube o que dizer perante a tagarelice dela, que parecia

ter a intenção de me deixar mais confortável, então apenas arqueei a


sobrancelha. Era como se a minha rispidez com ela fosse algo do

passado, e não que tivesse acontecido a minutos atrás. Mesmo

assim, não confiava nela. Não podia.


— É bastante idiota, eu sei. — Começou a andar assim que

viu que eu tinha acabado de tirar minhas meias. Caminhei atrás dela,
e a ouvi completar quando se aproximou-se do chiqueirinho: — Ainda

mais quando Yazuv não me dá motivos para tal.

— Sim, aşk — Yazuv começou a dizer algo, porém não


prestava mais atenção neles, toda a minha concentração estava nos

pequenos que balbuciavam pequenas palavras no colo de Yazuv,

enquanto Aylla balançava o rabo animada.

Quase não reparei em Samia, que se aproximou do


chiqueirinho para pegar Nádia, que parecia completamente agitada,

movimentando braços e perninhas enquanto a boquinha pequena e

bem formada parecia jogar pequenos beijos no ar. Sem perceber,


cumprimentei a mulher mais velha, com um aceno de cabeça no

automático, recebendo um sorriso em troca que quase não percebi,

pois estava atento a niña[25], por mais que observá-la me causasse

dor.
Uma camada de suor frio cobriu a minha pele e senti que

meu coração palpitava no peito, bem como minha boca ficou seca, e,

não aguentando, desviei o olhar.


O sentimento nocivo que eu tanto buscava suprimir voltava

em seu apogeu, queimando-me lentamente, principalmente quando vi


os pequenos dedinhos dos gêmeos tocarem o rosto do turco,

clamando pela sua atenção.

— Papai está aqui, bebeklerimin[26] — sussurrou para eles,

beijando suas mãozinhas com extrema devoção, fazendo-os


gargalhar e emitir palavrinhas.

Sabia que seria difícil vê-los juntos novamente, mas não

esperava que a inveja se tornaria ainda mais amarga, ao ponto de eu


não conseguir controlá-la e quase deixar evidente em meu

semblante.

Somente Dios sabia o quanto eu queria aquele olhar repleto

de amor, desejava o modo como os trigêmeos pareciam adorá-lo,


tocando seu rosto, emitindo sons de apreciação e até mesmo

sorrindo. Queria poder me doar a alguém assim, sem ressalvas e

medo.
Somente ele sabia o quanto me era difícil negar querer ter

um filho do meu próprio sangue.

— Titi. — Ouvi a voz de Nádia e voltei a fitá-la, engolindo em

seco quando vi os bracinhos se esticando na minha direção enquanto


se contorcia nos braços de Samia. — Titi.

— Pequena traidora — o turco resmungou, ciumento.


— Yazuv! — A mãe brigou com ele, fechando a cara, e a

risada baixinha de Valdete ecoou pelo recinto. — Não me envergonhe


ainda mais. Você já macula a educação que eu te dei entrando com

seus sapatos.

— Desculpe, anne.[27] — Pareceu envergonhado, algo que

nunca tinha visto antes, balançando os dois bebês no colo enquanto


Aylla pulava sobre ele, apenas para soar arrogante logo em seguida:

— Ela tinha que querer o papai, não esse daí.

Ciente de que se eu tivesse uma menininha iria ser tão


possessivo ou mais que Yazuv, não contive uma gargalhada.

Assustei-me diante do som que revelava mais do que gostaria e

também do pensamento de que eu poderia vir a amar uma

menininha, minha filha.


Um pequeno arrepio percorreu toda a minha coluna.

E mais uma vez, mesmo sabendo que eu não deveria me

mostrar tão vulnerável, fechei os olhos quando a dor me invadiu, e


como uma zombaria ácida, imagens criadas pela fantasia de estar

segurando um pequeno corpinho de encontro ao meu, da minha doce

bebê que nunca existiria, assolaram a minha mente. E eu senti meu

coração sangrar, não apenas metaforicamente.


Precisei usar toda a minha força e autodisciplina para
sufocar a imagem e não sucumbir ainda mais a ela.

Teria tempo para lidar com o estrago que minha imaginação

causava mais tarde, em um quarto de hotel acompanhado de uma


boa garrafa de rum, torcendo para que o torpor do álcool oferecesse

algum conforto para minha alma despedaçada.

— Quer segurá-la, oğul[28]? — A voz suave de Samia infiltrou

em meus ouvidos e eu a encarei, olhando seu rosto como se fosse a


primeira vez, acordando do transe em que estava.

A expressão dela era neutra, porém, nos olhos tão parecidos

com o do meu melhor amigo, pude ver uma ternura dirigida a mim
que me deixava mais fodido. Não, não queria piedade daquela

mulher.

— Claro, senhora. — Parabenizei-me pela minha voz soar


respeitosa, que não me traiu.

O sorriso tão bem ensaiado ao longo dos anos voltou a


minha face, mas eu sabia que não havia calor algum.
— Titi. — A bebê voltou a me chamar e Yazuv emitiu um

ruído, que fez com que os gêmeos em seus braços emitissem sons
que me pareceram uma risadinha, provavelmente achando que o pai
deles estava brincando.
Mesmo que eu não estivesse preparado para segurar Nádia,
acho que nunca estaria, a mulher estendeu a criança que ainda
estava agitada, balbuciando palavrinhas, as quais nem conseguia

compreender direito.
— Oi, doçura — sussurrei, ouvindo os sons dela e forcei-me
a não fechar os olhos assim que Samia colocou-a nos meus braços,

que eu tinha esticado em antecipação, por mais doloroso que fosse


interagir com a menininha.
Quando a pequeña pareceu ficar bem em meus braços,

continuando a tentar a repetir a palavra “titio”, abrindo a boquinha,


mostrando seus dentinhos como se fosse um sorriso enquanto
balançava as mãozinhas e perninhas freneticamente, foi inevitável

não a abraçar gentilmente, uma forma de agradecimento silencioso


por aquela demonstração de carinho ingênuo e doce que eu tanto
precisava.

Desde que descobri a traição de Angelina, não deixei que


ninguém se aproximasse, nem mesmo em confraternizações e

eventos em que eu fechava grandes negócios, sabendo que tudo era


cinismo. As palavras frias da minha ex-noiva só vieram confirmar que
eu vivia em um mundo fútil, onde quase nada era verdadeiro. E ser

um homem avesso ao contato tornou-se parte do personagem que


eu interpretava para todos, aumentando a minha reputação diabólica.
E como isso era algo bom para os negócios, eu o aceitava, mesmo
que, no fundo, me machucasse.

— Sentiu falta do seu titio? — questionei suavemente,


apreciando o calor infantil que emanava do corpinho próximo ao meu,

ficando alheio a tudo que não fosse a menininha.


Era um deleite que se tornava cada vez mais agridoce, pois
a proximidade, mesmo que breve, era como se me queimasse, ao

mesmo tempo que fazia com que uma pontada de felicidade me


preenchesse, algo que sabia que era efêmero, mas que, mesmo
assim, era bom.

Inalei fundo, sentindo o cheirinho gostoso do xampu que


emanava dos cabelos negros da menina.
Eu poderia não ter os meus próprios filhos, mas, como um

grande sanguessuga, iria aproveitar aqueles pequenos confortos


proporcionados pelos bebês do meu melhor amigo, aquela brevidade
que fazia sentir como se tudo que tinha sido incutido em mim fossem

mentiras.
— Titi. — Ela moveu-se em meus braços, como se tivesse

cansada do meu aperto, e eu apartei o abraço a contragosto,


suspirando baixinho, meu coração se afundando no peito.
— Sim, doçura?
Não me respondeu, apenas levou a mãozinha molhada ao

meu rosto, fitando-me com seus doces olhos azuis. Ter a pele suave
tocando a minha fez com que de alguma forma me sentisse
recompensado por ela não querer o meu abraço. E, deixando um

beijo nas mãozinhas que passaram a me socar, descobri que sorria.


Não com frieza e cinismo, mas sim algo genuíno.

— Obrigado, pequeña — disse.


Queria desfrutar mais daquele breve momento, porém logo
um choro infiltrou-se em meus ouvidos, quebrando aquela bolha que

eu tinha adentrado, e fitei os gêmeos.


— Não, meu amor…
A esposa do meu melhor amigo se aproximou do turco,

pegando Erol no colo, aninhando-o contra o peito protetoramente,


gesto que fez com que a felicidade temporária que sentia se
transformasse em pó. Observar a interação de mãe e filho, o carinho

que ela parecia ter pela criança, fez minhas vísceras se retorcerem e
toda a tensão retornasse sobre os meus ombros. Como se sentisse
meu estado de espírito, a pequena em meus braços começou a

chorar convulsivamente e eu me senti perdido, sem saber o que


fazer, já que em um momento ela estava brincalhona, no outro,

chorando.
Tentei acalmá-la sem sucesso. Samia, parecendo atenta ao
desespero que sentia, algo que não consegui esconder de ninguém,

mesmo que tentasse não deixar evidente, pegou a menininha dos


meus braços, dando-me um sorriso gentil.
— Não se preocupe — disse gentilmente, acariciando os

cabelinhos negros da menina —, pode ser que seja a fralda.


— Entendo.

— Me dê ela aqui, anne. — Yazuv se aproximou, com Onur


no colo, que me olhava atentamente com seus olhos escuros e não
resisti, acariciando a mãozinha que tinha esticado para mim, e as

mesmas sensações que tive ao tocar Nádia voltaram com a sua


força.
— Eu e a değerli cuidaremos deles — continuou.

— Claro, oğul.
Sorriu para o filho, como se sentisse orgulho do homem que
ele tinha se tornado. Ou melhor, do pai, bem diferente do que seu ex-

marido, que havia sido um canalha. Dando um beijo na testa da neta,


tranquilamente colocou a menininha chorona e agitada no braço do
meu melhor amigo que, com confiança, tentava acalmar os dois,
balançando-os.
— Você pode perguntar para a cozinheira se o almoço está

pronto, anne? — pediu, falando um pouco mais alto para se fazer


ouvir perante o choro da criança. — Está na hora deles comerem e
temos uma reunião em breve.

— Tudo bem, Yazuv. — Virou-se para mim. — Você se


importa de ficar alguns minutos sozinho, senhor?
Meu melhor amigo bufou, balançando a cabeça em negativa,

e se afastou para deixar a sala. Minha mão caiu ao lado do corpo, e


eu senti novamente a perda do contato com Onur.
— Não, señora — disse em um gesto cortês, forçando minha

voz a soar neutra. — Não se preocupe, preciso checar alguns e-


mails.

Fitou-me por alguns segundos, como se buscasse enxergar


dentro de mim, tornando-me ainda mais desconfortável. Mantive-me
impassível, não gostava que me analisassem; havia muita chance de

ela descobrir os sentimentos que eu guardava apenas para mim e


que aprendi desde cedo que era proibido externar. Intuindo como eu
me sentia, concordou com a cabeça.

— Fique à vontade para sentar-se no sofá, oğul.


— Obrigado.
Balançando a cabeça em concordância, com passos lentos,

deixou a sala, e eu agradeci por estar sozinho por um breve período,


apesar que eu sabia que a solidão me tragaria mais fundo nos meus
pensamentos e sentimentos sombrios que aproveitavam a ausência

para se tornarem ainda mais perigosos ao obrigar-me a repassar


todos os momentos em que me coloquei em evidência.
E eu merecia aquela autotortura doentia. Era um demônio

que tinha consciência.


Resignado, inspirei lenta e profundamente, e caminhei em
direção ao conjunto de assentos, jogando meu corpo sobre ele,

mantendo uma postura casual arrogante, fria e controlada. Não


queria correr mais riscos de me expor ainda mais.
Mas ao contrário do que eu imaginava, não foram os erros

que cometi em menos de vinte minutos que repassaram na minha


mente, mas, sim, a imagem dolorosa de embalar minha própria

bebê, velando seu sono.


Fantasia que nunca se tornaria real.
Essa constatação me deixou ainda mais fodido e vazio por

dentro.
Só deixei-me sair daquela apatia quando a mãe do meu
melhor amigo, com o seu olhar mais sábio do que eu gostaria, me

chamou para almoçar. E eu a segui como se fosse gado indo para o


abatedouro.
Capítulo cinco

— Senhorita Garcia? — Escutei a voz do meu supervisor me

chamando cheio de desdém, e suspirei baixinho.

Sabendo que o homem gostava que o fitassem quando


falava com ele, interrompi o ato de passar pano no chão, correndo o

risco de ter que refazer o serviço, e virei-me para ele, observando a

expressão de desagrado na sua face.


Engoli em seco.

Ao contrário de Fernán Aragon, o responsável pela equipe de

limpeza era severo e arrogante, se achava melhor do que todos os

outros funcionários, mesmo que não fosse. Ele não passava de um

grande valentão que não fazia o seu serviço direito, já que os


ambientes que deveriam ser limpos por ele eram delegados a nós,

que fazíamos a parte dele por termos medo de acabar ficando sem

emprego por não acatar suas ordens.

Em um primeiro momento, achava que era apenas uma

promessa vazia, mas uma das minhas colegas que trabalhava ali faz

três anos me contou que duas pessoas que se negaram a fazer o


serviço no lugar dele acabaram sendo demitidas tempos depois sob
a alegação de que não cumpriam satisfatoriamente suas atividades.
Então o medo da demissão acabava nos paralisando, até mesmo de

fazer uma denúncia contra ele, que usava esse receio ao seu favor,

sempre nos ameaçando a qualquer erro que cometêssemos.

Como os outros, eu apenas acatava suas ordens, mas isso

não me impedia de sentir nojo dele e da pessoa que era, muito

menos que secretamente eu torcesse para que um dia ele tivesse o


que merecia: sua demissão.

— Sim, senhor? — Obriguei meu tom a soar suave,

mascarando a minha repulsa. — Em que posso ajudá-lo?

Fitou-me de cima a baixo, especulativamente, e eu senti a

bile queimar o meu esôfago com a repulsa, ao mesmo tempo que o

nervosismo me dominava. Detestava aquele olhar sobre mim, o

modo jocoso como parecia me desdenhar não só com o olhar, mas


também com palavras, bem como odiava o fato de que ele não me

respondeu de imediato, o que aumentava a minha ansiedade e fazia

com que eu revisitasse minhas lembranças em busca de algo que

tenha feito de errado para que merecesse alguma punição. Será que

deixei um canto sujo? Ou manchei algum piso? Não conseguia me

recordar, tentava fazer o melhor para não cometer esse tipo de


falha.
Sabia que ele costumava pegar no pé de todos, mas sentia

que o homem me perseguia excessivamente desde que comecei a


trabalhar ali, soando mais ríspido do que o comumente, sempre

buscando falhas onde não existia. A implicância dele me motivava a


ser o mais perfeita possível, minuciosa, para não deixar nenhuma
marca ou grão de poeira.

— Deseja que eu limpe alguma sala em específico? — Senti


minha palma ficar úmida contra o cabo do rodo que segurava e eu

soube que fiz uma besteira: — É algum ambiente que é da sua


responsabilidade? Só terminarei aqui e farei.

Sua expressão tornou-se mais fechada e, como estávamos


sozinhos, ele segurou meu braço com força, o que me deixou
assustada, fazendo com que eu soltasse o material de limpeza e ele

caísse com um estrondo. Ele poderia ser um porco, mas não


esperava que me coagiria usando força física.

— Garota tola, você pode ser bonitinha, mas isso não te


trará nada aqui. — Soltou-me, apenas para me ameaçar: — Existem

várias outras que querem o seu lugar. Até mais bonitas.


— Eu… Eu…
— Nunca mais use esse tom petulante e debochado comigo.
— Desculpe-me, senhor. — Fui submissa, consciente de que

era a melhor postura a se adotar com ele, por mais que por dentro
eu me rebelasse contra isso. — Só queria ajudá-lo. Eu conheço o

meu lugar, senhor. Não irei mais usar esse tom — completei quando
ele não disse nada, me fitando com aquela expressão nauseante.

Baixei a minha cabeça e envolvi minha cintura com um braço,


reconhecendo a minha vulnerabilidade. Agora que havia conquistado
esse emprego, que permitia pagar por alguns confortos e dividir

algumas contas com Pablito, eu não queria perdê-lo, ainda mais por
ter feito um comentário em meio ao nervosismo e repulsa.

— Assim eu espero, mocosa[29] — disse a última palavra


com desdém. — Apesar que não sei se você terá mais algum dia

aqui.
Deu uma gargalhada alta, sua expressão era puro escárnio,
e eu fitei-o, momentaneamente sem entender o que queria dizer.

— Sempre soube que você não duraria muito — zombou. —


É frágil demais para esse tipo de serviço.

Quando meu cérebro processou sua fala, meu estômago,


que estava dando cambalhotas, passou a revirar e eu precisei conter

a bile que subia por todo o meu esôfago. Meu maior medo não
poderia estar acontecendo.
— Eu cometi algum erro, senhor? — Me abracei ainda mais,
não conseguindo encará-lo. — Posso tentar melhorar o meu serviço.
— Duvido muito disso, menina — continuou a gargalhar. —

Várias vezes tive que mandar alguém refazer o seu trabalho malfeito,
tudo para não te mandarem embora de cara.

Engoli a resposta que tinha na ponta da língua, guardando


para mim o fato de que era o serviço dele que tínhamos que refazer,
principalmente as salas dos funcionários de alto escalão.

— Agora ande, menina, pare de me enrolar — disse com sua


voz irritante —, Aragon deve estar te esperando com a sua carta de

demissão.
Um tremor me percorreu e, com as mãos suadas, abaixei-me

para pegar o rodo, incerta se deixar o trabalho pela metade apenas


não daria mais razões para que ele me criticasse, mas não parecia
ter escolha senão segui-lo. Enquanto caminhava atrás do homem

com as minhas pernas bambas, sendo alvo dos olhares dos meus
outros colegas e funcionários, era como se andasse em direção ao

meu cadafalso. Minhas mãos suavam frio, meu coração batia


acelerado e eu rezava baixinho para que o meu superior estivesse
errado.
— Senhor Aragon? — disse com uma voz melosa e
bajuladora ao bater na porta suavemente, e contive a vontade de
franzir o cenho pelo tom falso por ele empregado. — Ela está aqui.

— Entre.
O homem abriu a porta e, como se fosse um mecanismo de

autodefesa, eu estaquei no lugar. Não queria receber a minha


demissão.
— Ande, menina — rosnou baixinho no meu ouvido,

insatisfeito —, não tenho tempo para você, muito menos o senhor

Aragon.
— Desculpe-me, senhor — murmurei outra vez.

Não respondeu, apenas fez um gesto floreado para que eu

me aproximasse da soleira onde ele estava e adentrasse no

escritório do diretor de Recursos Humanos. Tentei forçar minha


postura a ficar mais firme, porém não consegui mascarar a minha

derrota.

— Boa tarde, senhor Aragon — disse em voz baixa,


erguendo meu rosto para fitar o homem que tinha uma expressão

gentil no rosto.

— Deixe-nos a sós, por favor, Diego. — Fez um gesto com a


mão, indicando elegantemente que saísse, algo que eu não sabia
dizer se era bom ou ruim.

Conversas particulares nunca me pareciam uma coisa boa,


mas pelo menos o outro homem não teria a satisfação de assistir a

minha demissão.

Pareceu contrariado, porém, não tendo uma alternativa,


apenas assentiu, subserviente, e virou-se para deixar o escritório,

mas não sem antes sussurrar somente para mim, tão baixo que

quase não escutei:

— Boa sorte, mocosa.


Dando-me um sorriso de triunfo, fechou a porta atrás de si e

eu inspirei fundo, buscando toda a minha dignidade para encarar o

que quer que fosse que o diretor quisesse, o que incluía minha
demissão.

— Sente-se, senhorita Garcia, por favor — foi educado e eu

fiz que sim com a cabeça.


Trêmula, me aproximei da mesa e sentei-me de frente para

ele, uma posição que já estive antes, mas agora eu não parecia tão

confiante assim. Torci as mãos sobre o meu colo.

— Está gostando do seu emprego, senhorita? — Questionou


depois de vários minutos em silêncio, o que aumentou a minha

tensão.
— Muito, senhor. — Dei um sorriso para ele. — Me senti

bastante acolhida trabalhando aqui.

— Fico feliz por ouvir isso. — Fez uma pausa, pegando uma
espécie de agenda. — Tenho observado o seu trabalho mais de

perto e vejo que seu trabalho é bastante minucioso.

— Obrigada, senhor.

Embora fosse um elogio, fiquei desconcertada em saber que


me analisavam de perto, mas procurei me tranquilizar, ele não me

mandaria embora depois de elogiar o meu trabalho, ou mandaria?

— Me sinto lisonjeada por saber que estou cumprindo bem a


minha função — completei.

— De fato, senhorita. E é por isso que pedi que

comparecesse à minha sala.

— Entendo. — Retorci minhas mãos.


— Vou direto ao ponto, posso ver que estou deixando-a

nervosa — disse suavemente, tentando me transmitir confiança. —

Foi solicitado ao Departamento de Recursos Humanos algumas


mudanças no quadro de funcionários, e dentre todos os funcionários

de serviços gerais, consideramos você a mais apta e que possa se

adaptar a um horário flexível. Você tem algum problema em trabalhar

a noite e de madrugada?
— Não, senhor — respondi, sem pensar muito.

Não me sentia no direito de escolher um horário em


específico e também não era um luxo que eu poderia me dar, não

quando foi tão difícil conseguir aquela vaga.

— Eu imaginava que não — sorriu brevemente, apenas para


tornar-se mais sério. — Você será realocada para o turno da noite e

ganhará um adicional, fora o aumento pela função que passará a

ocupar.

Meu coração deu um salto no peito ao pensar que ganharia


um pouco mais, mesmo que fosse apenas alguns euros. Eu me

sentia exultante, tanto que poderia comer tortillas de batatas para

comemorar.
— E qual é a minha nova função, senhor? — questionei,

confusa, depois que a euforia permitiu que eu voltasse a raciocinar.

— Não se preocupe, senhorita Garcia. — Sua voz soou

suave. — Você continuará trabalhando com a limpeza, mas ficará


responsável por cuidar do escritório e cômodos adjacentes, como

copa e banheiro, do senhor Javier.

— Javier Castillo? — sussurrei o nome dele em uma


pergunta que era retórica.
Quando ele fez que sim com a cabeça, senti um arrepio

percorrer toda a minha coluna, alcançando os meus dedinhos do pé,

que se curvaram dentro dos meus sapatos, ao passo que meus

pelinhos do braço e nuca se ouriçaram. Nunca tinha visto o magnata


das finanças pessoalmente, mas muito se sussurrava sobre ele nos

corredores da empresa, sobre como ele tinha gelo ao invés de

sangue nas veias e como parecia o demônio em pessoa. Irascível,


gelado, uma máquina de destruição fria e silenciosa, que era incapaz

de demonstrar algo que não fosse sua impaciência e desgosto.

Impelida pelas minhas colegas e pela curiosidade, tinha lido

algumas colunas de fofoca a respeito dele e do suposto término com


a ex-noiva há mais de um ano, mas eu sabia que os tabloides tinham

mais sensacionalismo do que verdades.

Quando disse isso a elas, riram da minha cara, falando que


eu era uma ingênua e que se o demônio tivesse oportunidade, ele iria

massacrar minha inocência sem dó nem piedade. Na ocasião,

apenas dei de ombros, mas agora, perante a possibilidade de

trabalhar diretamente para ele, eu estremecia e o reboliço no meu


estômago se tornava maior. Se era de medo, ou por uma outra

razão, não sabia dizer.


Não importava, apenas faria aquilo que fui contratada para

fazer. E estava feliz demais pelo aumento que iria ganhar para me
importar com o fato dele ser realmente um “demônio de gelo” ou

não.

— Como ele passa muito tempo no escritório, o único horário

disponível para limpeza costuma ser a partir das dez da noite, ou até
mais tarde, até às sete da manhã.

— Compreendo. — Minha voz saiu baixinha.

Mesmo que não devesse, eu senti compaixão pelo homem


que parecia não ter uma vida além do trabalho, algo que as revistas

tinham falado que era sua maior obsessão e que agora era

confirmada pela fala do diretor de RH.


Dei um suspiro baixinho. Parecia solitário, triste. Eu poderia

não ter onde cair morta, mas, pelo menos, ao meu modo, me divertia

ouvindo música enquanto dançava, lendo os meus livros, ou

estudando. Mas como meu patrão usava seu tempo não era algo que
fosse da minha conta — e duvidava muito que alguém como ele

gostaria de receber minha piedade ou a de alguém.

— Caso ele trabalhe de madrugada, o que não é muito


incomum, também é provável que o senhor Javier peça a você que

providencie café fresco... — Fez uma pausa, fitando-me


atentamente, e eu assenti, sentindo alguns fios escapando do meu
coque. — Talvez seja necessário preparar algum sanduíche ou outro

tipo de lanche, já que muitas vezes, preso em reuniões e no trabalho,

ele não faz suas refeições em um horário específico.


Olhei para ele, insegura.

— Algum problema em exercer essa função também? —

Franziu o cenho. — Você será bem remunerada por essas


atividades.

— Eu não sei se conseguirei preparar algo que agrade. —

Voltei a retorcer as minhas mãos no meu colo, as minhas palmas

ainda úmidas. — Eu cozinho apenas para mim e meu irmão, mas não
é nada especial.

— Fique tranquila, senhorita Garcia, não será nada que

exigirá muitas habilidades, pois tirando o café que ele pede para ser
passado na hora, o senhor Javier não será rigoroso com a comida.

Se fosse o caso, contrataríamos um chef profissional.


— Tudo bem, senhor. — Tentei passar uma segurança que
não sentia, mesmo que seu raciocínio tivesse lógica e tenha afirmado

que eu não deveria me preocupar com meus dotes culinários. —


Darei o meu melhor caso ele me peça algo.
— Tenho certeza que sim, senhorita. — Deu um sorriso
gentil, e, por poucos segundos, pude ver certo alívio em seus olhos
que me fez questionar se seria tão fácil assim.

Porém não tive muito tempo para pensar sobre o aliviamento


que ele estava sentindo, pois o diretor de Recursos Humanos
começou a me dar uma série de instruções sobre como eu deveria

proceder no meu novo cargo. Eram tantos detalhes que quase senti
um nó se formando na minha cabeça. Foi com algum consolo que
recebi todas as instruções impressas.

— Há também uma outra função que esqueci de mencionar e


que não está redigida. Será necessário limpar as vasilhas de água e
ração dos cachorros e trocar o tapete higiênico deles diariamente.

— Cachorros? — Não escondi a minha surpresa.


— Os que o senhor Javier adotou recentemente. — Inspirou
fundo, passando a mão no rosto. — Pode parecer não muito

convencional, mas como eu disse, como ele passa muito tempo em


seu escritório, ele costuma levar os bichinhos para lá para não

ficarem tanto tempo sozinhos no seu apartamento.


— Compreendo.
Não contive um sorriso ao pensar que o homem que só

conhecia por fotografias era tão atencioso ao ponto de não querer


deixar seus cachorrinhos sozinhos. Era algo encantador da parte
dele e completamente antagônico a figura demoníaca que todos
falavam que ele era.

— Você tem medo de cachorros? — Pareceu alarmado,


como se o fato de eu temê-los fosse um grande problema.

— Não, não.
Senti uma euforia me dominar só de pensar em poder ver e,
quem sabe, tocar ou brincar com os pequenos; sempre quis ter um

animal de estimação, mas infelizmente nunca tivemos condições.


— Posso cuidar das coisas deles sem nenhum problema. —
Forcei a conter a minha empolgação, provavelmente não poderia

nem mesmo chegar perto deles.


— Okay. Terá que aspirar as caminhas também.
Assenti.

— Eu começo ainda hoje, senhor? — perguntei, minutos


depois que um silêncio caiu entre nós dois.
— Não, senhorita, somente amanhã à noite. Como o senhor

Javier chegará mais tarde, uma equipe está cuidando disso no


momento.

— Certo.
— Ah, já estava me esquecendo... — Pegou um envelope
branco e me deu. —Preciso que leia o contrato. Se você estiver de

acordo com as cláusulas, rubrique todas as páginas e assine a


última.
Foi a minha vez de franzir o cenho, mas não disse nada.

Comecei a ler aquilo que estava escrito, apesar dos termos jurídicos
me serem incompreensíveis.

— Não me recordo de ter assinado esse documento antes —


disse, não sem um certo tremor na voz, ao terminar de ler as minhas
obrigações como prestadora.

Mas o que realmente deixou-me um pouco assustada foi a


cláusula que estabelece que eu poderia remover objetos, desde que
voltasse exatamente ao lugar que estava antes, e aquela que exigia

sigilo absoluto em tudo o que eu vier a ver dentro do escritório ou ler


nos documentos que estariam a vista enquanto eu trabalhava, sob
penas severas de receber sanções jurídicas.

— Não assinou, senhorita Garcia. — Seu tom era sério. — A


assinatura deste documento é apenas para aqueles que terão
contato direto com o senhor Javier. Como terá acesso indiretamente

a informações confidenciais, é necessário que o assine e esteja


ciente do que poderá ocorrer caso decida abrir a boca. O senhor

Javier é bastante sistemático quanto a isso.


Não respondi, e com meus dedos trêmulos e suados, assinei
todos os espaços em branco e as vias, entregando a ele, que me

deu uma cópia.


— Isso é tudo, senhorita Garcia. Farei as modificações
necessárias no seu contrato. Você está dispensada, chegue uma

hora antes apenas para assinar o documento.


— Obrigada pela oportunidade, senhor. — Apertei a mão

que ele havia me estendido. — Farei o melhor possível.


— Tenho certeza que sim.
Sorriu e, após nos despedirmos, eu me levantei, caminhando

em direção a porta. Estava prestes a girar a maçaneta quando a voz


grossa me interpelou:
— Senhorita Garcia?

— Sim, senhor?
Virei-me para ele, encarando seu semblante estranho.
— Nunca o chame de senhor Castillo, lembre-se disso.

Outro arrepio percorreu a minha coluna e eu apenas fiz que


sim com a cabeça.
— Boa tarde, senhor.
— Para você também, senhorita.
Saí da sala e fechei a porta, caminhando para voltar ao
serviço que havia deixado pela metade com o pressentimento que a

minha vida estaria prestes a mudar.


Capítulo seis

— Já está se arrumando, gatita? — A voz do meu irmão

soou atrás de mim e eu dei um saltinho com o susto.

Fitei-o através do espelho, vendo-o encostar no batente da


porta, enquanto eu terminava de passar o gloss nos meus lábios. A

boca dele estava crispada, seus olhos estreitados e seu corpo

parecia irradiar tensão, principalmente quando cruzou os braços no


peito em uma postura defensiva. Não havia nada do homem que

costumava ser brincalhão e que sempre tinha um sorriso para me

dar, pelo contrário, ele me parecia bastante preocupado, algo que

não fazia sentido.

— Preciso chegar mais cedo hoje para assinar o meu novo


contrato — sussurrei ao pousar o vidro em cima da pia e sorri para

ele, tentando passar confiança.

— Você não precisa trabalhar de noite, Babi — sua voz saiu

suave, bem diferente da sua linguagem corporal.

— Já falamos sobre isso, Pablito. — Segurei meus cabelos

para prendê-los em um rabo de cavalo. — Você não precisa se


preocupar.
— Humph…
— Muitos trabalham a noite, sabia? — provoquei-o.

— Mas você não é todo mundo. — Descolando-se do

batente, aproximou-se de mim para pousar seu queixo sobre meus

ombros. — Você é a minha menininha.

Dei uma risada baixinha.

— Eu não sou mais uma garotinha, hermano. — Fingi que


estava brava. — Se ainda não percebeu, sou maior de idade e

adulta.

— Sim. — Fez uma careta. — O tempo passou tão

depressa. Mas você será para sempre minha estrellita, minha

irmãzinha que devo cuidar e proteger. E não gosto da ideia de você

sair tão tarde para trabalhar.

— Não são nem sete e meia da noite, Pablito.


— Ainda assim é muito perigoso para andar sozinha neste

distrito a essa hora. — Sua voz era séria e me virei para encará-lo,

observando seus olhos verdes insondáveis; eu não gostei muito do

que vi neles.

— Mas isso não impede de você sair à noite. — Cutuquei-o,

apontando o dedo para o seu peitoral.


— É diferente. — Tragou o ar com força quando arqueei a

sobrancelha para ele, desaprovando sua atitude, fazendo com que


ele erguesse a mão em sua defesa. — Estou sendo um pouco

machista, eu sei.
— Um pouquinho, Pablito.
— Me desculpa por isso. — Voltou a respirar fundo,

passando a mão na nuca. — Você sabe que não sou assim. Só


quero te proteger e a noite quase ninguém fica na rua. Existem

tantos casos em que as mulheres sofrem algum tipo de atentado


durante o trajeto para o trabalho. E você é tão linda, Babi, que

temo…

— E eu agradeço por isso, hermanito[30]. — Sorri com o

pequeno elogio, mesmo perante a seriedade da sua fala.


— Me sentiria responsável se algo acontecesse com você.
— Fez uma pausa e eu senti meu peito se apertar ao pensar, mais

uma vez, na responsabilidade que ele carregava sobre seus ombros


por amor a mim. — Pode ser maior de idade, mas ainda sou o seu

irmão mais velho, e também jurei a mamãe que iria protegê-la.


Engoli em seco, sem saber o que dizer. Era a primeira vez

que havia escutado sobre essa promessa que ele tinha feito, e não
sabia que havia essa sobrecarga a mais. E toda a empolgação que
sentia por começar na nova função pareceu me deixar

momentaneamente perante a dor que a confissão me causou.


¡Dios! Parecia tão cruel com Pablo.

— Você não tem culpa de nada, estrellita — murmurou,


como se pudesse ler a minha mente. Na verdade, eu era

transparente demais para ocultar meus sentimentos. Ele ergueu o


polegar para limpar uma lágrima sorrateira. — Prometendo ou não a
nossa mãe, eu faria de tudo para te proteger.

— Eu sei. — O abracei apertado, não adentrando no motivo


dele nunca ter me falado sobre isso antes. Talvez neste momento

não me importasse as suas razões, apenas o resultado das suas


ações.
— Deixe-me pelo menos acompanhá-la até a Estação San

Fermín — pediu, tentando imprimir a voz um tom mais animado,


voltando a ser o Pablo de sempre, desfazendo-se do abraço, como

se eu o estivesse sufocando com o meu amor.


Uma gargalhada brotou da minha garganta.

— Tudo bem, querido. — Toquei seu rosto e acariciei a


barba por fazer, evitando discutir com ele, consciente que, em algum
momento, ele veria que isso não era necessário. — Se isso fará com

que você se sinta mais tranquilo.


— Um pouco mais, com certeza.
— Hey! — O empurrei e ele deu vários passos para trás,
entrando na minha brincadeira, já que dificilmente iria conseguir

derrubá-lo. — Agora deixa eu terminar de me arrumar, antes que me


atrase.

— Tudo bem, Babi. — Sua voz soou séria.


Ele ficou parado ao invés de sair, me fitando intensamente.
— Que foi, Pablito? — Coloquei as mãos na cintura, batendo

os pés, impaciente, mas logo tentei brincar. — Se meu cabelo estiver


feio, me fale.

— Não é isso. Você sabe que é linda até descabelada. —


Voltou a passar a mão na nuca.

— Então o que está te deixando tão relutante? — sussurrei e


ele não me respondeu de imediato, fazendo com que eu insistisse: —
Está acontecendo alguma coisa, Pablito?

— Não. — Balançou a cabeça em negativa. — Não está


acontecendo nada, estrellita, mas é só que…

— O quê, querido?
— Estou com um pressentimento ruim, só isso — falou
baixinho. — Por mais que eu tente, não consigo afastar essa

sensação.
Aproximei-me novamente, tocando seu peito.
— O que de ruim poderia acontecer, querido? Minha função
é praticamente a mesma.

— Mas você não trabalhava diretamente para esse homem


— confessou em um tom estrangulado.

Abri e fechei a boca várias vezes, sem saber o que


responder.
— Eu tenho medo de que de algum modo ele te machuque.

— Fez um gesto com a mão para que eu não retrucasse. —, ¡Dios!

Eu não sei de onde eu tirei isso, mas apenas sinto que trabalhar para
ele será um erro. Dizem que ele é um demônio…

— Hey! — O interrompi. — O que as pessoas dizem e a

realidade são completamente diferentes, Pablito. Ele é apenas um

homem de carne e osso, repleto de falhas, cuja obsessão é o


dinheiro e o poder.

Senti novamente uma compaixão estranha me invadir ao

pensar no homem que parecia não ter outra vida além do seu
escritório, mas logo suprimi.

— O senhor Javier nunca poderá me machucar, até porque o

contato será mínimo. Realmente essa ideia é descabida até para o


seu senso de proteção exacerbado.
— Eu não tenho certeza disso, Babi.

Bufei.
— Está exagerando, Pablito. — Dei tapinhas no seu ombro,

gargalhando. — Agora vá, ou realmente vou acabar me atrasando.

Antes que pudesse responder, empurrei-o para fora do


banheiro, fechando a porta atrás dele, não sem antes perceber que

meu irmão ainda continuava sério. Balancei a cabeça em negativa,

ajeitando os fios que não havia prendido direito no meu rabo de

cavalo, colocando um sorriso no rosto enquanto enumerava os vários


pontos positivos.

Mas à medida que eu terminava de me ajeitar, eu começava

a ficar ansiosa e com medo, não por conta do meu novo patrão ser
tido como um demônio, o que não acreditava, mas, sim, das minhas

próprias capacidades de manter aquele emprego.


Capítulo sete

— No te quiero hacer sufrir[31] — cantarolei com a minha voz

desafinada a música de Luis Fonsi e Demi Lovato, que tocava no


último volume nos meus fones de ouvido enquanto, com movimentos

mecânicos, eu passava suavemente o aspirador de pó no tapete

turco, que provavelmente era mais caro que o meu rim, mesmo que
uma empresa especializada fosse higienizá-lo depois.

— Es mejor olvidar y dejarlo así[32].


Apesar de não ter nenhuma regra que me proibisse de

cantar, sim, tinha olhado toda a lista do que não fazer, que eram
muitas, sabia que era pouco profissional da minha parte estar

fazendo isso, mas como estava sozinha naquele andar e não estava

incomodando ninguém, eu o fazia sem nenhum pudor.

— Ese beso que siempre te prometí. Échame la culpa[33]. —

Mandei um beijo para o ar, rindo baixinho, balançando a cabeça em

negativa em seguida.

Hoje fazia seis dias que eu havia começado a trabalhar

diretamente para o senhor Javier e, diferentemente do que o senhor


Aragon me fez acreditar, até o momento, o CEO não havia
permanecido no seu escritório até tarde, tanto que ainda não o tinha

visto pessoalmente, o que de alguma forma foi um pouco

decepcionante, pois queria ver o homem que todos temiam.

Suspirei, tentando afastar aquele sentimento que eu não

deveria nutrir, pensando no quão tranquilo era trabalhar naquele

horário. Pablo estava bem mais aliviado quanto ao meu novo


emprego, principalmente quando seu mal pressentimento tornou-se

infundado, apesar que ele ainda me acompanhava todas as noites à

estação de metrô e me esperava na volta.

Havia uma série de detalhes e exigências no trabalho de

limpar os cômodos que formavam o ambiente do senhor Javier, o

que me deixava completamente exausta e louca por um banho

quando eu terminava, porém parecia-me melhor do que ficar à mercê


do meu antigo supervisor com suas ameaças, olhares de deboche e

prepotência. Aquele novo emprego me deixava completamente nas

nuvens!

Escutei várias outras canções que desconhecia a letra até

que eu me desse por satisfeita e considerasse o tapete limpo o

suficiente. Fazendo uma pausa, sentindo meus músculos cansados


pelo trabalho pesado, não resisti quando uma música da moda
começou a tocar no rádio, e voltei a cantar baixinho, usando a parte

do cabo do aspirador como microfone, tomada pela alegria infantil


que me arrebatou.

Deixei-me envolver por ela e inconscientemente comecei a


me mover no ritmo. Meus quadris, como se tivessem vida própria,
seguiam a batida do refrão caliente. Rebolava suavemente enquanto

meus cabelos, presos num rabo de cavalo, balançavam,


ricocheteando contra as minhas costas. Estava contagiada pelo som

que parecia infiltrar-se nas minhas veias.


Imersa, esquecendo de tudo, passando a mão na minha

cintura enquanto remexia, girei o meu corpo e eu estaquei os meus


movimentos ao perceber que não estava mais sozinha, o que me fez
tragar o ar com força. Um calafrio me percorreu, gelando-me por

inteiro, e meus dedos perderam a força, deixando que o objeto que


segurava caísse, o baque dele indo ao chão ecoando pelo escritório

e na minha mente.
Tudo pareceu suspenso por um bom tempo, até mesmo a

música havia terminado. Minha respiração se acelerou e o medo me


corroeu por dentro. Trêmula, nem sei como removi os fones dos
meus ouvidos, talvez fosse o senso de educação que me foi incutido

que me moveu.
Fincada no lugar, refém do silêncio, encarei o terno bem

cortado do homem que estava próximo à mesa, não ousando fitar o


seu rosto, apesar que a curiosidade por finalmente vê-lo duelasse

com o receio. Não queria descobrir que o meu maior medo, um que
sempre existiu, se confirmasse e que o pequeno conto de fadas que

sonhei tivesse acabado em menos de dois meses.


Descobri que olhar para o peitoral firme também não era
uma boa opção, sendo mais uma coisa a acrescentar para o meu

antiprofissionalismo, então foquei minha atenção na janela atrás dele.


Umedeci meus lábios quando eles pareceram extremamente

secos, mesmo que estivessem com gloss, e meu estômago revirou


de nervosismo. Minutos se passaram sem que nenhum dos dois
dissesse algo. Sabendo que ele odiaria a covardia que estava

demonstrando, reuni toda a coragem, que era muito pouca, dizendo


para mim mesma que não podia lutar contra o destino, ergui meu

rosto e encarei aquele que todos chamavam de demônio.


Obriguei-me a não estremecer, muito menos a me encolher

como eu queria fazer, parecendo uma garotinha assustada, perante


a frieza que via em sua face. Seu rosto era tão inexpressivo que não
me dava nenhuma pista se ele sentia desgosto ou irritação por ter

me pegado dançando no seu escritório. Era como se o CEO tivesse


sido talhado em granito e não duvidava que, se eu pudesse encarar
seus olhos verdes, eles seriam tão sem emoção quanto o resto.
E eu agradeci que não pudesse vê-los claramente, apesar

que uma parte de mim, a ingênua, queria olhar dentro deles, mesmo
correndo o risco de que eles me trucidassem.

Uma tola.
— Bo-bo-a no-i-te, se-nhor Javier — forcei-me a dizer algo,
mas tudo o que saiu foi um balbuciar medroso.

Sentindo minhas mãos suarem frio, as passei nas calças do


meu uniforme e soube que estava sendo ridícula, mas era inevitável.

Ele não me respondeu. A bile começou a subir pela minha


garganta e eu a engoli, sentindo a acidez me queimando. Tentei

continuar:
— Des-des-culpe-me por isso, senhor. Eu… — Ele arqueou
a sobrancelha para mim, arrogantemente, e eu não soube se preferia

sua frieza gélida ou o seu desdém. — Eu sei que n-não de-deveria


estar dan-dançando no trabalho. Não tenho jus-justificativa para isso,

eu sei…
Continuou sem dizer nada, me deixando ainda mais nervosa,
e eu me questionei a razão pela qual ele não me demitia logo, o que

só aumentava o meu sofrimento. Como uma besta demoníaca e sem


coração, será que o senhor Javier sentia prazer em me torturar
dessa maneira? Não consegui me conter diante do pensamento e
senti meu corpo todo estremecer, fazendo com que sua expressão

ficasse ainda mais dura.


E eu soube que havia cometido um grande erro e que

pagaria caro por isso. ¡Dios! Tive que lutar contra a vontade de cair
no choro.
— Por favor, senhor — forcei minha voz a soar alta, porém

ela saiu trêmula e hesitante —, eu preciso desse emprego. Juro que

nunca mais eu farei isso.

— Recolha essas coisas, chica[34]. — A voz fria, modulada,

ecoou pelo escritório e pareceu infiltrar-se nos meus ossos,

deixando-me ainda mais gelada.

Fiquei paralisada no lugar, completamente muda, sem saber


como reagir. Apenas encarei o homem frio, percebendo que, em

outras circunstâncias, todas as minhas colegas de escola, inclusive

eu, teriam suspirado por ele. Se o senhor Javier era bonito nas fotos,
pessoalmente o milionário era muito mais atraente. Era inegável que

por trás da aura sombria que pairava sobre ele, o CEO financeiro

emanava bastante poder e…


Mas quando o senhor Javier apontou, impacientemente, para

os instrumentos de trabalho que eu utilizava, que estavam jogados


aos meus pés, principalmente para o aspirador de pó, ele arrancou-

me dos meus devaneios, que não deveria estar tendo naquela

situação, e recebi o gesto como se fosse uma acusação silenciosa


pela minha falta de profissionalismo.

Encolhi-me.

Era uma censura bastante merecida, porém não menos fácil.

Estava errada. Ser subordinada ao meu antigo supervisor e receber


suas reprimendas e ameaças parecia agora bem menos perturbador

e me machucavam menos do que às vindas diretamente daquele que

me pagava.
Me senti péssima e quis me afundar ainda mais nos

sentimentos que me engolfavam.

Outra vez o silêncio caiu pesado sobre os meus ombros,


somente quebrado pelo som da minha respiração ofegante e do

bater do meu coração que estava disparado.

— Por favor… — implorei baixinho, minutos depois, que

pareceram horas, buscando reagir.


— Saia. — Ordenou acidamente e virou-se de costas para

mim, andando com passos lentos em direção às janelas, deixando


claro que não queria ouvir mais nada.

— Sim, senhor Javier. — Fui submissa, inclinando-me, em

um gesto que indicava a minha posição mesmo que ele não visse.
Resignada, comecei a recolher as coisas como foi solicitado,

lançando um olhar para debaixo do sofá que precisava ser limpo.

Enquanto pegava tudo, ignorei a dor que sentia e a lágrima que

escorreu pelo meu rosto perante o amargor de ter perdido o meu


emprego, onde a única causadora tinha sido eu. Pablo deveria ter

temido não o que o senhor Javier poderia fazer comigo, mas, sim,

aquilo que eu poderia causar a mim mesma.


Respirei fundo e, depois de ter reunido tudo, lancei um último

olhar ao homem, que permanecia imóvel enquanto fitava a escuridão

da noite, sentindo algo dentro de mim se apertar por algo que eu não

soube explicar, mas que não era algo relacionado ao meu


desemprego. Era um misto de perda, tristeza, como se…

Voltei a engolir em seco e, com passos lentos, direcionei-me

até a despensa, que era acoplada à cozinha, para guardar tudo.


Estava prestes a sair quando a voz cínica e fria voltou a ecoar no

ambiente e novamente eu estaquei:

— Traga-me um café.
Atônita, virei-me para o CEO e percebi que ele continuava

olhando para fora, porém, dessa vez, algo na linguagem corporal


dele parecia revelar certa tensão, ou até mesmo cansaço, e uma

compaixão me invadiu, mas logo a sufoquei, quando as palavras dele

foram absorvidas pela minha mente.


— Sim, senhor Javier. — Não contive a esperança em meu

tom e, em silêncio, adentrei com passos energéticos na cozinha.

Talvez nem tudo estivesse perdido para mim, e eu iria

agarrar aquela pequena oportunidade que me foi dada.


E começaria com o melhor café que havia preparado na vida.
Capítulo oito

Suspirei fundo quando soube que estava sozinho e não

precisava mais me controlar. Com alguns passos, joguei o meu corpo

sobre a minha cadeira de couro. Depois de um evento com um grupo


de empresários da Península Ibérica, que foi um completo

desperdício de tempo e dinheiro, todos pareciam estar mais

preocupados em exibir suas acompanhantes de vestidos decotados


e mentes vazias, do que fechar algum negócio, tudo o que eu ansiava

era me afundar em algo mais produtivo. Dei uma risada baixa e fria

ao pensar que, algum tempo atrás, fui um desses, exibindo meu

troféu fútil, embora nunca perdesse a oportunidade de ganhar

dinheiro.
Como provavelmente passaria mais uma noite em claro,

havia decidido procurar refúgio no meu escritório, nos documentos,

relatórios e nas bolsas de valores que funcionavam pelo mundo

afora. Nunca era tarde demais para fazer um bom investimento, e

era tudo o que eu precisava para melhorar o meu humor. Mas,

agora, toda a frustração que estava sentindo parecia ter se tornado


ainda mais intensa. Por mais que eu tentasse relaxar, meus músculos
estavam completamente tensos e meus dentes estavam trincados
com força a ponto de doerem.

Eu sabia que estava na defensiva. Essa postura era bem

conhecida por mim, principalmente quando eu era mais novo e sentia

os castigos infligidos açoitarem a minha pele, mas não me recordava

se alguma vez na vida adulta me senti tão rígido como agora. Nem

mesmo ficar frente a frente com a mulher que eu mais odiava, e que
tinha minhas razões para permanecer tenso em sua presença, me

deixaram assim, não ao ponto de eu quase não conseguir me

controlar.

— ¡Carajo[35]! — sussurrei, passando a mão pelos meus

cabelos, sentindo-me subitamente cansado de lutar contra mim

mesmo.

Puxando os fios com força, fechei os olhos e imagens

indesejadas da menina surgiram na minha mente, fazendo com que

eu rilhasse meus dentes com ainda mais força, a ponto de ouvir o


som deles se chocando, tamanha raiva que sentia de mim mesmo

por não ter colocado um fim assim que adentrei no escritório. Mas

como se eu fosse uma mariposa atraída pela luz, não consegui parar

de observá-la em sua distração, o que era completamente ridículo.


Não foram os movimentos sensuais e eróticos, ao mesmo

tempo inocentes, dos quadris, nem a cintura fina, as mãos que


suavemente alisavam o corpo pequeno e frágil, evidenciando suas

curvas, e os cabelos longos e presos num rabo de cavalo que


alcançavam a bunda arrebitada, que haviam me paralisado e me feito
ficar a assistindo enquanto ela parecia alheia a minha presença,

presa em si mesma, em uma dança que tentaria qualquer homem.


Com certeza, muitos dos homens que eu conhecia não

resistiriam em se jogar em cima dela como predadores.


Não foram poucas as vezes que, para o meu desprazer, tive

que escutá-los falando das suas proezas e conquistas pessoais que


pouco me interessavam, mas os vários anos de prática me
ensinaram a dominar qualquer centelha de desejo dentro de mim e a

determinação em me manter celibatário só me fez aprimorar o


governo sobre o meu próprio corpo.

Por mais tentador que fosse, deixar-me dominar pela luxúria


era um erro que eu não cometeria.

Não mais.
O prazer não oferecia nenhum conforto.
Nunca mais me tornaria vulnerável e fraco dessa forma,

dando tal poder a alguém que, no final, apenas usaria minha ânsia
para me machucar. Para zombar. Não sufoquei a lembrança das

palavras de Angelina quando disse o quão gelado e repugnante eu


era; elas me asseguravam que eu nunca mais deveria me expor a

ninguém, nem mesmo me entregar a um sentimento tão mundano.


O que tinha me deixado inerte na verdade foi a vitalidade que

vi nela, a alegria que parecia sentir enquanto cantarolava com a voz


desafinada e se movia conforme a música que escutava nos seus
fones de ouvido que me tornou refém dela, para o meu desgosto.

Era uma felicidade que na mesma medida que me deixava com uma
sensação estranha, parecia lentamente infiltrar-se dentro de mim,

atingindo-me de uma maneira desconhecida.


Enquanto parecia hipnotizado, foi-me impossível não cobiçar
aquele sentimento, aquela leveza que irradiava dela, mas quando ela

girou, parando subitamente de dançar e cantar ao me fitar, receosa,


provavelmente se dando conta de que tinha ido longe demais, eu a

odiei por jogar-me outra vez nas minhas próprias sombras que nem
sabia que havia saído momentaneamente.

Instantaneamente o demônio de gelo voltou a me controlar,


mascarando não apenas a ganância que eu tinha por sentimentos
bons, como também me impelindo a me defender ao demonstrar o

meu lado mais diabólico e frio.


— ¡Hijo da puta[36]! — xinguei a mim mesmo por ter baixado
a guarda.

E, outra vez, não contive uma risada de escárnio,


controlando-me para não soar alto demais, mesmo sabendo que
nada que eu falasse conseguiria alcançar os outros cômodos pela

acústica. Puxei meus fios com mais força, sem me importar com a
dor que ocasionava.

— E você é um desgraçado, Fernán — falei baixinho e


estalei a língua de modo sarcástico. — Você pagará caro por ter
contratado essa garota.

Voltei a fazer um som sarcástico. Embora fosse muito


tentador demiti-lo por não ter substituído o antigo funcionário que

estava fazendo um trabalho insatisfatório por outro mais experiente e


discreto, meu diretor de RH sabia que eu não faria rolar a cabeça

dele. Deveria, mas não faria.


Talvez eu mandasse a garota embora e…
Suspirei fundo, deixando a minha mão cair, e acomodei-me

melhor na cadeira, permitindo que a minha racionalidade


sobrepujasse a minha frustração. Não podia negar que após a troca

de funcionários, meu escritório e todos os cômodos em anexo


estavam bastante limpos e nada parecia fora do lugar, nem mesmo
meus documentos pareciam terem sido movidos. Passei um dedo
sobre a minha mesa como se para confirmar meu argumento e não
senti nenhuma aspereza causada pelo pó. Sim, não fazia sentido

demiti-la, por mais que meu sistema de defesa dissesse para fazê-
lo. E, pelo estremecer dela, sabia que a garota tola não faria nada

que pudesse colocar o emprego em risco. O medo dela tinha sido


palpável, característica que odiava em um funcionário.

— ¡Una conejita asustada[37]! — murmurei em um tom seco

e contive a vontade de fazer uma careta de desdém.

Determinado a esquecer o acontecido, principalmente a


minha reação absurda ao vê-la dançar e cantar, bem como a cobiça

que senti pela felicidade alheia, aprumei-me. Ainda sentindo a tensão

consumindo-me, bem como o cansaço, pus-me a trabalhar, pegando

uma pasta em cima da minha mesa com os documentos e relatórios


que não havia lido mais cedo, que diziam respeito a minhas outras

empresas e que estava negligenciando, antes que eu pudesse me

dedicar exclusivamente a acompanhar a movimentação no mercado


de ações. Já havia perdido tempo demais com coisas inúteis em uma

única noite.

Mergulhando naquilo que fazia de melhor, senti que pouco a

pouco meus músculos relaxavam e minha frustração diminuía


gradativamente, tanto que perdi a noção dos minutos, esquecendo

tudo que não fosse o refúgio proporcionado pelos negócios. Não


policiei um sorriso enorme ao ler os números de uma das minhas

empresas do ramo de serviços, que revelavam que eu havia lucrado

vários milhões a mais do que o estipulado nas projeções feitas pelo


meu subordinado. Não chegava nem perto de um por cento do que

eu tinha, mas, mesmo assim, eu não desprezava aquele valor. Eu

nunca investia para perder, apenas para ganhar, independente do

quanto.
Ri baixinho, deixando que a euforia me dominasse, e já ia

pegar outro relatório da pasta quando o som de alguém batendo na

porta fez com que meu riso morresse e eu parasse o gesto no meio
do caminho. Havia esquecido da garota e que tinha pedido para que

ela me preparasse um café. Instantaneamente a tensão que havia

sentido voltou a me dominar, acrescida pelas lembranças


indesejadas da felicidade que vi na morena. Novamente a inveja por

querer sentir-me completo, como ela parecia ao dançar, me invadiu,

só que dessa vez, deixando um vazio amargo.

Abri e fechei as mãos em punho, tentando me dominar.


— ¡Carajo! — praguejei outra vez, entredentes, algo que me

era pouco habitual.


Voltei a passar as mãos nos meus cabelos, sem me importar

com o fato deles estarem desalinhados revelarem o meu estado de

espírito muito mais do que gostaria. Fúria cega e gelada começou a


correr em minhas veias por não conseguir controlar meus anseios:

primeiro, o de ter um filho, algo que pareceu ficar ainda mais

pungente ao interagir com os trigêmeos do meu melhor amigo;

agora, a felicidade que para sempre me seria negada…


— Senhor Javier? — A voz suave adentrou o meu escritório

e eu me tornei ainda mais rígido.

— Entre. — Ordenei com a voz gelada ao vestir a máscara


de indiferença, forçando a minha postura a ficar reta e minha

expressão não revelar nada dos sentimentos conturbados, que eram

um redemoinho fodido que me empurrava por caminhos perigosos.

— Com licença, senhor — pediu ao empurrar a porta com os


quadris, já que suas mãos estavam ocupadas com a bandeja,

chamando a minha atenção para eles; detestei-me por olhar para

ela.
Não respondi, apenas fitei-a com frieza, obrigando-me a

desviar a minha atenção para o seu rosto que, mesmo à distância de

alguns passos, mostrava certa hesitação.


— O senhor quer tomá-lo em sua mesa ou na sala de estar?

— disse docemente, ao parar no meio do meu escritório, e o tom


dela reverberou em meu interior, fazendo com que meu estômago

desses vários nós, reação que não me foi bem-vinda.

Não me recordava se alguma vez alguém havia soado tão


suave ao se dirigir a mim, e não tinha certeza se havia gostado.

Provavelmente era somente uma tentativa de me adular, como

muitos faziam tentando ganhar algo em troca, disse a mim mesmo

em pensamentos. Aquela menina tola não seria diferente dos outros,


ainda mais que ela achava que o emprego dela estava por fio, e

realmente estava.

E por mais jovem que fosse, a garota com certeza era


traiçoeira como todas as outras, ainda mais quando deveria ser

consciente que era bonita suficiente para usar sua beleza ao seu

favor para conseguir o que quer…

Sim, a inocência que parecia exalar dela era apenas algo


calculado. Me apeguei a essa ideia para sufocar qualquer cobiça que

poderia sentir da suposta felicidade que tinha exalado dela antes.

Quis sorrir com a frieza que me invadiu.


— Senhor?
— Aqui mesmo. — Fui seco, usando minha arrogância ao

meu favor, tornando-me ainda mais demoníaco. — Devem ter te

informado que não costumo usar a sala de estar quando estou

sozinho.
— Sim, me desculpe, senhor. — Usou o mesmo tom meigo,

o que me desconcertou mais uma vez, mas me mantive impassível.

Voltou a caminhar com a bandeja, mas diferentemente do


que eu pensava, não se assustou com a minha grosseria, pelo

contrário, um sorriso começou a se formar em seus lábios; sorriso

que era direcionado para mim.

Tola.
Mantive minha expressão impassível.

— Tinha me esquecido disso, senhor — continuou. — Me

perdoe pelo meu erro.


Não respondi.

Parou na frente da minha mesa e, mesmo a contragosto, fitei

a face angelical emoldurada por uma mecha que havia escapado do

penteado e que pousava sobre a pele dela como se fosse uma


carícia suave. Me obriguei a desviar meu olhar para seus olhos

quando a minha atenção focalizou os lábios generosos que ainda


sorriam para mim, e por alguns segundos voltei a almejar aquela

alegria que vi nos olhos verdes de aparência exótica.

¡Maldita sea[38]!

Inalei ar devagar, soltando-o lentamente, em um gesto quase

que imperceptível, para não mostrar para aquela traiçoeira que ela

tinha algo que eu desejava e não poderia ter.


— Quer que eu o sirva, senhor? — Voltou a usar o tom doce

e isso foi o suficiente para que eu obtivesse o controle de mim

mesmo novamente.
— Não. — Fiz uma pausa e meu lado demoníaco falou mais

alto: — Agora vá.

Pousando a bandeja em cima da minha mesa, ficou

estacada, fitando-me com aqueles olhos brilhantes, que me deram a


impressão de estarem mais arregalados, como se em dúvida se

deveria servir o meu café ou não, já que até então eu tinha tudo em

minhas mãos.
— Saia. — Fui ainda mais frio. — Tenho certeza que você

tem vários outros cômodos para limpar.

— Eu não fui… — Hesitou quando a esperança pareceu

dominá-la. — Não fui demitida, senhor?


— Será se não sair desta sala agora, garota. — Não escondi
minha impaciência na minha fala dura, estalando a língua em

desdém.

— Obrigada, senhor Javier… — O sorriso dela ficou ainda


maior, como se isso fosse possível, e eu arqueei a sobrancelha em

um último aviso.

Não precisei ordenar novamente, pois compreendendo o que


queria, com uma vênia exagerada, em passos largos começou a

deixar meu escritório. Eu ignorei os movimentos dos seus quadris,

não me interessava por aquela menina, muito menos no modo como

sua calça se ajustava ao seu corpo.


Quando ouvi o barulho da porta se fechando, voltei a jogar-

me na cadeira e respirei fundo, somente agora me dando conta do

cheiro forte de café que emanava do bule à minha frente, o que fez a
minha boca salivar. Ansiando pelo conforto proporcionado pela

bebida, comecei a me servir, inalando o perfume que exalava do


líquido escuro e fumegante.
Como apreciador da bebida, percebi que não havia a

camada de espuma que costumava ter quando feito na máquina e


me surpreendeu o fato dela ter optado pelo coador. Fazia muito
tempo que não tomava um café preparado dessa forma, já que meus
funcionários costumavam fazê-lo na máquina.
Não me demorando, levei a xícara aos lábios e senti o gosto

doce e suave dos grãos jamaicanos, os meus prediletos, e pareceu


tão agradável quanto o aroma. Eu suspirei de contentamento, algo
que não me permitia com muita frequência, nem mesmo quando

estava sozinho. Era impossível resistir e, mesmo sabendo que havia


muito a ser feito, tirei vários minutos do meu tempo para o apreciar
com calma, enquanto virava minha cadeira para fitar as luzes que

banhavam o centro de Madri, deixando que o prazer que sentia por


tomar um café bem-feito me invadisse.
Me controlei para não pensar na garota que tinha me

proporcionado aquele momento e no quanto eu queria ao menos uma


vez a felicidade que vi nela, sem sombras a me sufocar.
Mas falhei miseravelmente em meu propósito, pois, a cada

gole, ela me vinha a cabeça.


Capítulo nove

Babi:
Cheguei bem, Pablito :*

Não esperando a resposta do meu irmão, coloquei o meu


celular no silencioso, guardando-o dentro do bolso da calça. Prendi

meu cabelo, que tinha se soltado, em um coque no topo da minha

cabeça, sentindo o friozinho do ar-condicionado tocar a minha nuca,


arrepiando meus pelinhos. O frio que fazia nessa parte do prédio

costumava rivalizar com o que fazia lá fora em pleno outono e inverno

madrilenho, mas pelo menos não açoitava a pele e nem a deixava

completamente ressecada.

Balançando a cabeça em negativa com o pensamento bobo,


sorri, sabendo que muito em breve eu sentiria calor pelo exercício

físico que era limpar os dois banheiros, principalmente aquele que

era utilizado apenas pelos possíveis visitantes do senhor Javier.

Embora a decoração em cor branca dos azulejos e dos conjuntos

sanitários, bem como o piso de granito, fossem bastante elegantes e

minimalistas, era um terrível pesadelo para quem limpava, pois


parecia que nunca ficava limpo o suficiente, pelo menos não para
mim, por mais que eu esfregasse com afinco.

Fiz uma careta ao relembrar que ontem ele estava

completamente sujo, o vaso entupido e a pia imunda, como se um

vendaval tivesse passado por ele, sem contar o cheiro que só de

pensar, me causava náuseas. É, dinheiro nem sempre comprava

educação.
Determinada a deixá-lo por último, já que ninguém iria usá-lo

mesmo, peguei tudo que precisava e caminhei em direção ao do meu

chefe, que me daria muito menos trabalho. Porém, adentrando a

cozinha, percebi a louça por lavar que estava sobre a pia e o lixo

com as embalagens de comida que deveria ser retirado de lá, então

resolvi começar por ali mesmo, afinal, não importava a ordem.

Sem colocar os fones de ouvido, um erro que nunca mais


cometeria, comecei a atacar o trabalho, iniciando pelos utensílios.

Concentrada, não sei quanto tempo havia se passado, mas quando

estava quase finalizando de varrer, escutei o ruído que vencia a boa

acústica da parede que separava a cozinha do escritório, indicando

que o senhor Javier havia chegado.

Suspirei baixinho enquanto continuava fazendo o meu serviço,


sentindo meu coração se apertar pelo homem que provavelmente iria
passar mais uma madrugada em frente ao seu computador,

acompanhado de uma xícara de café, algo que virou quase que uma
rotina nestes últimos sete dias. Por mais que tentasse disfarçar sob

a fachada austera e fria, nos poucos minutos que ficava frente a ele,
podia perceber em suas feições que estava completamente exausto.
Bolsas se formavam sob suas pálpebras, os olhos avermelhados

denotavam noites e noites sem dormir, e seus ombros, delineados


pelo terno bem cortado que evidenciava o corpo musculoso e

definido, pareciam completamente tensos.


Ele se tornava cada vez mais humano e menos demônio do

que a mídia dizia que ele era, e isso fazia com que todo o receio e
insegurança que eu poderia ter de trabalhar diretamente com ele,
todo o temor que ele poderia colocar em mim, já que o senhor Javier

buscava me amedrontar com seu tom ríspido e frio, não mais


existisse.

Só havia compaixão e tristeza pelo estilo de vida que ele


levava, ali afundado no seu escritório, sentimento que, se o meu

chefe soubesse que nutria por ele, com certeza resultaria na


demissão que não ganhei naquele dia.
Fui tirada do fluxo de pensamentos quando o som de latidos

ecoou nos meus ouvidos, junto com o arranhar do piso, e tudo em


mim se enterneceu quando eu encarei os dois cachorros que

adentraram a cozinha como se fossem pequenos furacões,


arrancando de mim um grande sorriso.

Diferentemente do que imaginava, sim, eu tinha me pegado


pensando de que raça seriam eles, ambos pareciam ser uma mistura

indefinida. O vira-latinha preto e branco, que parecia o mais sapeca


de todos, latindo e balançando a cauda com vigor, não tinha uma das
patinhas da frente, mas isso não tirava o seu charme que estava

todo na manchinha presente no focinho.


Já o caramelo era mais tímido e magrelinho, mas não menos

simpático, e havia perdido parte da orelha. Claramente não eram


mais filhotes e não havia dúvidas que ambos tiveram muita sorte de
encontrar um lar ao serem adotados pelo meu patrão. A sociedade

era muito cruel e, infelizmente, isso reverberava até na hora de


escolher um mascote. Os mais saudáveis, os mais novos e

bonitinhos sempre tinham preferência.


Vendo-os ali, se eu ainda achasse que o senhor Javier era

diabólico, minha convicção cairia por terra. Somente alguém de


coração bom e generoso olharia para eles e os adotaria para si. E a
ternura que sentia pelos bichinhos se estendeu para o homem

também. Era impossível não o admirar por isso.


— Oi, queridinhos — cumprimentei-os, voltando a minha
atenção para os cãezinhos, não dando importância em mostrar meu
sentimento infantil, nem conter a empolgação na minha voz.

Meu coração ribombou com mais força quando eles se


aproximaram mais de mim, balançando a cauda como se eu já fosse

amiguinha deles, o som das patinhas batendo no chão era bastante


fofo. E, como eu acreditava em amor à primeira vista, senti que me
apaixonei por aqueles dois cachorros que eu não poderia ter.

— Vocês sabem que são lindos, não é mesmo? — sussurrei.


Voltaram a latir mais alto, como se me dessem uma

resposta, e eu soltei uma gargalhada, deliciada com a animação


deles, ainda mais encantada.

— Não, não, não pode — disse, fazendo um gesto com a


mão que obviamente não teria efeito nenhum, quando tragicamente
eles pisaram no lixo que eu havia reunido em um montinho,

espalhando-o. Fiz uma careta, havia me esquecido completamente


dele. — Tá, tudo bem, a tia vai limpar a bagunça de vocês depois.

Titia não resiste a vocês dois.


Fizeram mais barulhos, continuando a andar, até que
pararam próximo aos meus pés, cheirando a barra da minha calça

como se estivessem curiosos, e eu sorri ainda mais para eles. Presa


aos sonhos, me indaguei se o aumento que ganharia me permitiria
adotar um bichinho também, mas terminei soltando um som de
muxoxo ao perceber que ainda não tinha condições de ter um.

Resignada, não resistindo a brincar com os que tinha à minha


frente, agachei-me e os acariciei, recebendo pequenas lambidas em

troca. Ficamos nessa brincadeira, onde encontrava os pontos que


faziam cócegas neles, e quando dei por mim, estava sentada no
chão com um deles em meu colo enquanto o outro também tentava

subir. Eu beijava os pelos macios, sentindo o cheiro gostoso que

emanava deles enquanto borboletas pareciam bater suas asas no


meu estômago.

¡Dios! Eles eram tão doces e amáveis que somente percebi

o meu erro quando, dando um beijo no topo da cabeça de cada um,

fitei o local por onde eles haviam entrado e percebi que meu chefe
estava de pé e me encarava com uma expressão ilegível. E mesmo

a alguns metros de distância, pude perceber a tensão nele,

mascarada sob pedras de gelo no olhar.


Com uma calma que não sentia em meu interior, que revirava

não pelo medo que a expressão feroz dele poderia suscitar, mas por

algo desconhecido, tirei os cachorrinhos de cima de mim. Mas os


cãezinhos não concordavam comigo e voltaram a se amontoar em
mim, latindo, emitindo deliciosos sons caninos. E mesmo estando

errada, não pude negar carinho aos bichinhos, desviando meu olhar
para eles ao acariciar os pelos.

— Tudo bem, querido — sussurrei para o preto e branco

quando ele perdeu o equilíbrio da patinha da frente e virou-se,


ficando de barriguinha para cima.

Tentei colocá-lo de pé, porém ele voltou a posição que

estava e eu apenas fiz carinho na barriga redonda, arrancando dele

grunhidos enquanto o outro dava cabeçada nos meus dedos,


rosnando, querendo tudo para si.

Permaneci em silêncio, brincando com eles, sentindo a

maciez deles, beijando-os no topo da cabeça e nas patas, até que


um som ecoou por toda a cozinha e eu fitei o homem que o havia

emitido outra vez, ficando paralisada com a aura fria que parecia

irradiar dele. Trêmula, engoli o bolo que havia se formado na minha


garganta ao ver que ele se aproximava de mim com passos lentos.

Para a minha surpresa, agachou-se à minha frente,

colocando o peso em seus calcanhares, e nossos olhares se

encontraram. Eu fui refém do magnetismo que havia nos olhos


verdes escuros insondáveis, que, por mais que tentasse decifrar, não

revelava nada além de um abismo vazio. Inexpressivo. Ter tais


habilidades de esconder os próprios sentimentos sem se trair com

certeza levou vários anos de prática e, sem dúvida, deveria ter sido

um processo bastante doloroso, deixando várias marcas e feridas.


Um calafrio percorreu a minha espinha com meus

pensamentos, e eu senti que meu corpo ficava gelado ao me

perguntar o que fez com que o meu chefe adquirisse tal capacidade

de anular qualquer emoção. Ou pior: quem.


Inconscientemente, toquei a orelhinha desfigurada do

cachorrinho, afagando-a suavemente com meus dedos trêmulos.

Poderia ser ingênua em vários sentidos, mas sabia que existiam


pessoas capazes de infligir tal tortura a alguém. E nem mesmo o

dinheiro era uma proteção contra esse tipo de violência. Uma dor me

invadiu ao pensar que poderia ter sido o caso dele e eu devo ter

deixado transparecer isso, pois o homem ergueu uma sobrancelha,


irônico, como se me desafiasse a continuar seguindo essa linha de

raciocínio ao acariciar o cachorrinho preto e branco que estava no

meu colo, que logo me deixou para ir para o seu “papai”, que parecia
muito bem saber onde tocá-lo.

Com o coração batendo mais acelerado no peito, parecendo

que a qualquer momento iria sair da minha caixa toráxica, por ser

alvo do seu olhar desafiador, sabendo que era algo inconsequente da


minha parte, principalmente por não me dizer respeito, continuei a

fitar os olhos vazios como se neles eu encontrasse as razões dele.


De alguma forma, eu era impelida a buscar os motivos pelos quais

ele era tão rígido consigo mesmo, por mais dolorosas que fossem as

respostas e que eu não soubesse lidar com elas.


Enquanto eu o encarava, um brilho indecifrável cruzou o olhar

dele, tão rápido, que pensei que poderia ter imaginado, ainda mais

quando o senhor Javier pareceu se tornar mais frio. Era perceptível

que ele controlava a fúria e outros sentimentos dúbios, fazendo com


que eu instintivamente virasse o rosto, como se precisasse me

proteger daquilo que via, bem como para não mostrar a empatia que

sentia por ele.


Eram tantas sombras que eu não conseguia imaginar como

ele conseguia viver com elas. Era pesado demais!

Estremeci ao acariciar ainda mais o bichinho, procurando

alguma espécie de conforto e quando olhei para ele, vi que o


cachorrinho tinha adormecido com os meus carinhos, fazendo com

que eu me sentisse um pouco mais leve. Soltei um suspiro

apaixonado, curvando-me para dar outro beijinho na pata.


— Eu não sabia que te pagava para dançar e brincar com os

meus cachorros. — O tom do senhor Javier soou extremamente


seco e rasgante e ele estalou a língua em desdém quando

estremeci.

Quando consegui assimilar sua frase, suas palavras me

fizeram sentir como se tivesse levado uma bofetada. Dei um sorriso


amarelo com a reprimenda mais do que merecida, mesmo que o

desprezo tivesse sido deliberadamente usado para me amedrontar e

me ferir, como se quisesse me afastar daquilo que ele gostaria de


esconder. E conseguiu, pois novamente me colocava contra a parede

em relação ao meu próprio futuro.

Droga, porque eu não pensava primeiro antes de colocar o

meu emprego em risco? Sou uma boba mesmo.


— Eu… — Busquei uma resposta para a sua censura, para

tentar manter a minha vaga, mas não soube o que dizer.

Pedir desculpas como da última vez parecia não adiantar


muito com ele e, dessa vez, poderia deixá-lo ainda mais irritado.

Em delay, coberta de vergonha por ainda estar acariciando o

animalzinho dele depois de Javier me chamar a atenção, parei de

tocar o cachorrinho, que acordou com a ausência do contato,


emitindo grasnidos baixinhos, e o tirei do meu colo, meu coração se

partindo quando ele voltou a tentar subir em cima de mim.


— Deixe a Isabel no seu colo se você não quiser perder o

seu emprego, garota. — Sua voz soou rouca quando fiz com que iria
levantar e eu estaquei, não apenas com a ordem, mas perante a

garantia que não estava demitida.

Voltei a fitar o milionário e percebi, atônita, que ele tinha uma

expressão estranha no rosto sempre inexpressivo, que ele parecia


ainda mais tenso. Seu maxilar estava rígido, os dentes trincados,

estando à beira de perder o controle de si mesmo, a razão do

estopim dele me sendo incompreensível. Novamente uma onda de


ternura por ele me invadiu, só que dessa vez mais intensa, e eu quis

acalmá-lo, arrancá-lo dessas sombras. Mas não era possível e não

cabia a mim curar suas feridas.


— Tudo bem, senhor — murmurei tentando apaziguá-lo,

voltando a me sentar.

Dei um sorriso para o animalzinho, que agora sabia se tratar

de uma menininha, não tinha me atentado ao sexo deles, mais


preocupada em brincar com eles, e também para o homem,

ganhando uma lambida na ponta do nariz quando a pequena me

escalou.
— Você é irresistível, não é, querida? — brinquei.
A cadelinha latiu para mim de volta e seu irmãozinho roubou
minha atenção momentaneamente ao fazer um barulho e percebi que

ele se afastava do dono e caminhava em minha direção claudicando,

balançando o rabinho.
— Qual o nome dele ou dela? — questionei, curiosa,

deixando que ele subisse em cima de mim também e voltei a encarar

Javier, que voltou a sua habitual frieza e controle de si mesmo.


— Lorenzo — respondeu com indiferença.

— Lindo nome, querido.

O senhor Javier não respondeu e continuei a brincar com os

dois, que agora faziam uma verdadeira festa em mim, com patadas,
cabeçadas, lambidas, rabadas, e eu me esqueci da presença do

homem enquanto os pequenos arrancavam gargalhadas de mim, até

que novamente meu chefe se dirigiu a mim. Estava de pé,


completamente inexpressivo:

— Quando eles cansarem de você, troque a água e a ração


deles, e limpe suas caminhas, com certeza eles irão querer dormir
depois de comerem. — Sua voz soou gelada.

— Entendo. — Sorri para o homem, que se manteve estoico.


— Você será bem remunerada pela sua nova função,
senhorita Garcia.
Não escondi minha surpresa por ele saber meu sobrenome,
já que nesse tempo todo o meu chefe não havia perguntado, e nem
eu acabei dizendo.

— Não é necessário, senhor. — Acariciei os pelinhos. —


Será um prazer para mim ficar com eles por um tempo.
Ficou em silêncio. Ele não precisou dizer nada para que eu

entendesse que não acreditava em mim, e me senti uma tola pelo


simples fato dele me taxar de interesseira me decepcionar.
— Depois termine de limpar essa bagunça —, apontou para

o monte de sujeira com desdém.


— Sim, senhor Javier — sussurrei. — Não deixarei de
cumprir minhas outras obrigações.

Fez um som sarcástico, deixando claro que não aceitaria


nada menos do que eficiência, e virou de costas para mim. E, sem
saber por que, me peguei admirando as linhas definidas evidenciadas

pelo terno, sentindo um leve formigar desconhecido na minha pele,


minha boca ficando seca.

Voltei a fitar os cachorrinhos, envergonhada pela sensação


que tinha me acometido vertiginosamente, e feliz porque ele não
podia ver.
— Prepare o meu café também — ordenou rispidamente em
meio aos latidos dos cachorros brincalhões e fui impelida a olhá-lo
novamente.

Não tive tempo de responder, pois logo ouvi os passos dele


se afastando e a porta se fechando com um baque, me deixando a

sós com os cachorros e confusa com tudo o que aconteceu. Mas era
principalmente o sentimento absurdo que tinha me dominado que me
deixava assustada, pois, mesmo em minha inocência, eu sabia que

era algo ligado ao desejo.


Capítulo dez

— Agradeço por finalmente me receber, senhor Castillo. —

Seu tom foi meloso.

O herdeiro de uma grande fortuna, que parecia mais um


moleque recém-saído da faculdade, sentou-se de frente para mim

com um sorriso bajulador que somado ao fato dele se dirigir a mim

pelo sobrenome que detestava, fez com que eu tivesse que me


controlar para não demonstrar o quanto ele me desagradava.

Apeguei-me ao fato dos possíveis benefícios que poderia me

trazer ter negócios com o playboy dos Gonzáles, principalmente

quando o patriarca, conhecido por ser um empresário medíocre,

estava buscando uma empresa especializada em investimentos de


alto risco, pois as aplicações que tinha feito sozinho, usando seus

conhecimentos, haviam-se provado um grande fiasco, diminuindo seu

patrimônio familiar.

Ter o pai dele como possível cliente da minha financeira era

o meu maior objetivo, e ganhar dinheiro com as ideias do filho dele,

que tinha um potencial atraente por ir de encontro com os princípios


da economia verde, seria um bônus a mais. Apesar de eu não entrar
com o capital, já que o pai investiria nele, o playboy precisava do
meu conhecimento e experiência, pois não poderia contar com os do

seu genitor.

— Passei o dia inteiro esperando dar o horário. — Voltou a

falar quando não respondi a bajulação desnecessária, e passou a

mão nos cabelos impecáveis em um ato de vaidade.

Olhou para o relógio de pulso em uma crítica sobre o quão


tarde da noite era, como um garoto mimado, para depois voltar a me

encarar.

Não comentei o fato de que o maior culpado era ele mesmo,

por nunca estar disponível para conversarmos e preferir as festas e

a fila de mulheres que clamavam sua atenção, e ainda mais que ele

deveria ter estado algumas horas atrás com uma delas, ao invés de

ter focado em fazer sua ideia prosperar.


Asqueroso!

— Sabe como é... — Deu de ombros, como se tivesse em

casa e não numa reunião de negócios. Minha irritação ficou ainda

maior. — Sexta-feira, baladas, sexo…

— Não, eu não sei. — Fui ríspido.

Se antes eu achava que estava perdendo o meu tempo com


aquele garoto, agora eu tinha certeza. Eu deveria mudar minha
estratégia para conseguir os Gonzáles como cliente, o filho não me

levaria ao pai. Eu deveria ser mais agressivo para conquistar aquilo


que queria.

Relanceei o olhar para os gráficos no meu computador e quis


bufar de exasperação ao pensar no quanto eu desejava analisar o
mercado de ações da Austrália, que em breve abriria e que tinha

fechado em alta, tinha muitos investimentos por lá. Além de não ter
que ficar bancando a babá, ganharia muito mais a curto prazo, já que

até que as ideias se tornassem algo concreto e comercial, demoraria


meses. E estava mais do que claro para mim que o garoto não tinha

interesse nenhum, embora fingisse o ter, e era eu quem ficaria a


frente de tudo.
— Que pena, senhor Castillo. — Voltou a dizer depois de um

silêncio constrangedor enquanto tirava o notebook da pasta para


começarmos a reunião. — Esqueci que o senhor é um… — Não

conseguiu concluir e quis dar um sorriso sarcástico, mas apenas


estalei a língua para ele, repreendendo-o, mascarando a minha fúria.

Ele pareceu ficar assustado, pulando na cadeira, apenas para depois


fazer uma careta de desagrado, ajeitando seu terno com indiferença.
Pedi silenciosamente a Virgem de Almudena para me dar

paciência, pois estava por um fio de socar a mesa com força,


descontando a minha frustração. Para o meu desgosto, nos últimos

tempos, por mais que tentasse manter os meus sentimentos sob


controle, bem como as minhas ânsias e inveja, sabia que eu estava

cada vez mais volátil.


A insônia, o cansaço e a solidão me faziam mergulhar cada

vez mais fundo nas sombras que me envolviam, e nem mesmo o


trabalho oferecia uma tábua de salvação. Somente o amor dos
cachorros parecia de algum modo me fazer emergir daquela

escuridão.
E também em nada ajudava o fato que as poucas horas de

sono eram permeadas por imagens em que eu brincava com o meu


bebê, fazendo com que eu acordasse suado e ofegante, me
deixando com raiva do meu subconsciente que precisava me

atormentar até mesmo em sonhos. Como se não bastasse imaginar


essas cenas com cada vez mais recorrência quando estava

acordado, a garota vez ou outra tomava meus pensamentos.


E esse conjunto me impelia a me expor mais do que era

prudente. Senti um amargo na minha boca ao recordar o quão perto


estive em deixar aquela menina ver a vulnerabilidade emocional que
eu tanto buscava esconder, ao tentar desafiá-la.
Despertando o pior lado de mim com a sua curiosidade e
felicidade, quis testar aquela pirralha que havia conquistado meus
cachorros com sua doçura dissimulada, esperando que ela fosse

diferente. Mas, no final das contas, a garota acabou recuando


perante o demônio, apesar de ter sido corajosa o suficiente para

tentar. Quase todos retrocediam, temerosos com aquilo que viam, e


a menina de aparência angelical não seria diferente.
Eu a ataquei com palavras e frieza, ficando na defensiva.

E quando ela momentaneamente tirou Isabel do colo,


recusando o carinho que a pequena pedia, se erguendo, ataquei-a

ainda mais, tomando o gesto como uma rejeição dolorosa. Não


hesitei em ameaçar, usando o medo dela de ficar desempregada

contra si mesma, provando que realmente eu era um diabo.


Como minha funcionária, eu a obrigaria a dançar conforme a
minha música.

— Senhor Castillo?
— Vamos começar. — Usei o meu tom glacial, afastando

aqueles pensamentos da mente, voltando a minha atenção ao


playboy descompromissado.
Entrelaçando meus dedos uns nos outros, apoiando meu

queixo neles, adotei a minha expressão ilegível e cínica, ao mesmo


tempo que era uma advertência clara para que ele não adentrasse
mais na minha vida pessoal, o que não lhe dizia respeito.
— Por onde? — Questionou em uma voz que indicava que

estava perdido.
— Comece me dizendo a razão pela qual eu devo perder o

meu tempo auxiliando-o, senhor Gonzáles. — Fiz uma pausa,


rememorando tudo o que eu havia lido sobre o protótipo que ele e
uma equipe havia desenvolvido, e em como ele ainda precisaria

construir uma marca em torno dele, carecendo de uma pesquisa

mais aprofundada sobre o mercado que queria se inserir. — Além de


ser sustentável, o que irá diferenciá-lo dos outros produtos

existentes?

— Já deve ter lido tudo isso no projeto, senhor Castillo. —

Pareceu sem jeito e me controlei para não estalar a língua


novamente, impaciente por ele continuar a me chamar pelo

sobrenome.

— Sim, mas quem melhor do que você para apresentar os


prós e contras daquilo que está querendo me vender, mi amigo. —

Fui ácido, sentindo-me por um fio de mandá-lo embora. Apesar de eu

ser conhecido pelo meu gênio irascível e por não ter muita paciência,
eu acabava tolerando algumas coisas, mas ele estava se tornando
repulsivo por sua fraqueza. — Mesmo que você não precise dos

meus recursos financeiros… — Antes que eu pudesse completar,


alguém bateu na porta suavemente.

Só poderia ser aquela garota.

Mesmo que não quisesse, meus olhos se voltaram para a


superfície de madeira, o que era um grande erro da minha parte.

Mantendo a minha postura fria, voltei a encarar o homem à minha

frente, que pareceu alegre pela interrupção, aumentando meu

desgosto por ele.


— O que deseja? — Embora minha voz soasse alguns

decibéis mais alto para ser escutada pela garota, ela saiu gelada.

A irritação que eu estava sentindo aumentou ainda mais.


Fernán deveria ter deixado bastante claro à garota que eu detestava

interrupções nos meus negócios, ainda mais quando não havia nada

de importante a ser dito.


— Estou ocupado, senhorita Garcia. — Emiti um som

sarcástico.

— Boa noite, senhor Javier — respondeu em um tom doce e

amável, parecendo transmitir alegria e vitalidade. — O seu secretário


havia me avisado que o senhor teria uma reunião hoje à noite e,
como ele não está aqui para ver se o senhor precisa de algo, pensei

que gostariam de um café.

Não respondi, forçando-me a me manter frio enquanto


permanecia preso no som da sua voz, que ecoava aos meus ouvidos.

¡Carajo! Era nauseante ouvir sua falsidade e dissimulação,

mas pior ainda era que aquele tom ainda conseguia chocar-se contra

a ausência de ternura em toda a minha vida, infiltrando-se dentro de


mim tanto quanto a sua maldita felicidade, que não consegui parar de

almejar. Xinguei-me mentalmente por permitir que aquela menina

falsa e traiçoeira conseguisse facilmente criar pequenos arranhões


na minha superfície gelada.

Senti a tensão percorrer os meus músculos e meu corpo

todo enrijeceu, ficando na defensiva, como se eu precisasse me

proteger dela, de uma desconhecida que não tinha nenhum poder


sobre mim. Eu nunca permitiria.

— Acabei de prepará-lo. — Soou insegura e, no meu estado

volúvel, senti certo rebuliço em meu interior, mas tratei de massacrá-


lo como se fosse um inseto desprezível.

— Um café seria uma boa ideia. — O playboy apegou-se a

desculpa, e eu quase emiti um bufar exasperado que rivalizaria com

o do meu melhor amigo.


— Entre, senhorita. — Fui formal, controlando-me.

— Sim, senhor.
Ouvi o som da porta se abrindo com um clique, mas continuei

a fitar o homem à minha frente, que parecia disperso.

— Então, senhor Gonzáles? — disse e ele se assustou,


olhando-me como se eu nunca tivesse estado na sua frente.

— O quê? — A voz soou esganiçada.

— Com licença. — A menina pediu, antes de se aproximar

da mesa, roubando a atenção do playboy que virou o rosto para


encará-la fixamente.

Um sorriso começou a se formar nos lábios do homem e eu

não precisei ser um grande advinha para perceber que sua mente
estava sendo tomada por pensamentos lascivos, já que o olhar dele

parecia devorá-la sem nenhum pudor. Ao mesmo tempo que ela era

angelical, revelando o quanto ainda era jovem, havia certa

sensualidade nos olhos verdes claros em contraste com a pele


morena, além de lábios rosados e chamativos, e um corpo delgado,

repleto de curvas que o uniforme não escondia. E, com os bolsos

repletos de dinheiro, e acostumado a ter tudo o que queria, o filho do


Gonzáles com certeza achava que a minha funcionária era uma presa
em potencial, para usar e descartar, como todas as outras que ele

tinha jogado fora.

— Boa noite, princesa — disse, charmoso, sem respeitar o

meu ambiente de trabalho.


— Boa noite, senhor Gonzáles — murmurou, parecendo

tímida ao reconhecer o homem que tinha estampado várias revistas

de fofoca.
Eu não olhei para ela a fim de confirmar que a garota estava

gostando de ser alvo da atenção dele. Havia aprendido duramente

com a minha ex-noiva que as mulheres gostavam de ter o seu ego

adulado tanto quanto nós homens, e a menina não iria ser diferente.
Fiz uma careta irônica para os dois e segurei-me para não

demonstrar nenhuma emoção, bem como a náusea que sempre me

acometia quando via homens como ele, assim como o meu pai
deveria ter sido, usarem a arrogância e o dinheiro como blindagem.

Apesar que ninguém entrava nesse jogo sozinho. Só que para ela as

consequências seriam mais duras, pois não toleraria isso no meu

escritório.
— Não gosta de festas e baladas, mas fica escondendo o

ouro. — Deu uma risada. — Se eu soubesse, tinha vindo a esta

reunião a mais tempo.


Não respondi, mas meu corpo ficou ainda mais rígido, e

agradeci os anos de disciplina que me ensinaram a me controlar.


— Uma gata como você não deveria estar fazendo isso.

— Faz parte do meu trabalho, senhor. — Sua voz saiu baixa,

e com o canto do olho vi que ela pousava a bandeja no canto da

minha mesa, longe dos meus documentos e computador.


— E o que mais você faz, boneca? — Não conteve a

duplicidade das suas palavras.

— Gostaria de algo sem ser café, senhor? — fez outra


pergunta em voz baixa, começando a servir uma xícara para mim,

embora a regra de etiqueta dissesse que sempre deveria se servir o

visitante primeiro.
— Posso pensar em várias coisas, senhorita. — Gargalhou e

eu vi a mão da garota tremer.

Pressentindo que eu estava errado e que ela não estava

apreciando ser alvo do playboy, fitei-a e nossos olhares se cruzaram


rapidamente. O medo misturado ao constrangimento que eu vi me

deixou furioso.

Eu conhecia a raiva, o rancor e os sentimentos mais


sombrios que um ser humano poderia conhecer, mas nunca um ódio

tão profundo que não conseguia controlar.


Trinquei os dentes, cerrando as mãos em punho, sem me
importar com o fato de que estava me expondo. Estava descobrindo

uma outra face de mim mesmo, uma que enredava para uma

violência crua e que era consciente que sentiria prazer em descontar


nele frustrações que estava carregando há muito tempo. Raiva dele

e de mim mesmo, por ter deixado a situação chegar naquele ponto.

¡Mierda[39]!

Poderia odiar as mulheres, mas não deixaria que uma fosse


assediada dentro da minha sala, ainda mais quando podia perceber

que ela estava não apenas constrangida, mas pálida e trêmula.

— Ainda mais com alguém tão gostosa como você —


continuou e a garota soltou o bule, fazendo com que ele caísse no

chão e espatifasse, os cacos sendo jogados por tudo quanto é lado,

o líquido respingando não só no meu tapete, mas também nela e na


minha calça social.

— Me-me des-des-culpe, se-n-nhor Ja-ja-vier — gaguejou e


pareceu desnorteada, sem saber o que fazer.
Seu olhar alternava entre a mancha na minha calça e a do

tapete caro, e percebi que a menina estava paralisada de terror, com


receio de que isso resultasse na demissão dela. E, pela primeira vez,
me incomodou que alguém me enxergasse como o demônio que,
sem se preocupar com a vulnerabilidade da sua situação, faria com
que pagasse por um acidente. Apertei meus dentes com ainda mais
força ao ponto de doer.

— Você se machucou, princesa? — o playboy perguntou em


um tom meloso, que acabou soando como algo asqueroso em meus
ouvidos. Ele era repugnante em seu assédio. — Posso cuidar de

você.
Se levantou rapidamente, como se fosse ajudá-la, e a
menina ficou paralisada de constrangimento, o corpo todo tremendo

em reação, parecendo que as pernas não conseguiriam mais


sustentá-la. Antes que eu pudesse fazer alguma coisa, aproveitando
da vulnerabilidade dela e achando que agia como um cavalheiro

charmoso, envolveu a cintura dela, abraçando-a, como se fosse


firmá-la.
— Está tudo bem, querida. — Colou seu corpo mais ao dela

e ela estremeceu, parecendo ainda mais paralisada.


Eu iria trucidá-lo por aquilo.

Um inimigo a mais no meu caminho não faria a mínima


diferença.
Não estava em meu juízo e nem raciocinando.

Eu estava me tornando uma besta selvagem.


Somente um fio me impedia de surrá-lo como minha mente
queria.
— Solte-a. — Gritei com ele, batendo a mão com força na

mesa antes de erguer-me da minha cadeira com raiva, ignorando a


pontada causada pelo líquido quente que respingou na minha perna,

dor que nem se comparava aquelas que eu já havia passado,


assumindo minha postura mais diabólica, e isso fez com que o idiota
me encarasse. — Agora.

Antes que pudesse responder, com um gesto brusco que


surpreendeu a mim mesmo, com força, desloquei o braço dele para
baixo, fazendo-o soltá-la, mas ainda mantendo-o preso no meu

agarre.
Ela deu alguns passos hesitantes para trás, e o meu olhar e
o da garota voltaram a ficar presos um no outro. Os olhos ainda

estavam cheios de lágrimas não derramadas e os lábios trêmulos,


que outrora havia sorrido para mim, um sorriso que não queria, mas
que era melhor do que o medo que havia em sua expressão. Um

amargor me invadiu por ver sua vulnerabilidade, uma que eu tinha


visto em mim mesmo décadas atrás e, inconscientemente, apliquei

mais pressão para machucar o algoz dela, como não pude fazer com
o meu.
— Ai.
A contragosto, desviei o olhar para a minha mão que o

segurava com força, sentindo certa satisfação em infringir a ele dor.


— Por que você fez isso? — Rilhou os dentes. — Você está
me machucando.

Apertei-o com mais força.


— Só queria ajudá-la. — Choramingou, tentando puxar o

braço.
Dei uma risada baixa e seca.
— Volte para o seu lugar, Gonzáles — ordenei em um tom

ríspido que revelava todo o meu desgosto, soltando-o com força,


fazendo com que ele perdesse um pouco do equilíbrio.
— Você não pode me dar ordens — cuspiu e eu arqueei a

sobrancelha para ele.

— Será que não, mocoso[40]? — sentenciei friamente. —


Muitos não se arriscariam a me contradizer. — Fiz um gesto com a

mão livre, demonstrando displicência. — Sabem que não se brinca


com o diabo sem sofrer as consequências.
Bufou.

— Não é o que parece, já que Castro comia sua mulher e


você não fez nada. — Deu de ombros e gargalhou alto, como se
contasse uma grande piada.

Fiquei ainda mais tenso, mas apenas encarei-o com cinismo.


Tinha aprendido, desde que eu peguei os dois na cama
juntos, que demonstrar indiferença era o melhor caminho. E se ele

acreditasse que não haveria retaliação para tal traição, ótimo. O


sigilo seria a grande arma que utilizaria para a minha vitória.
Fiquei em silêncio, encarando-o, como se medisse forças

com ele, e o homem deu-se por vencido, ainda mais quando a garota
deu outro passo para trás.

— Eu duvido muito que fará alguma coisa, Castillo, mas tudo


bem… — disse arrogantemente e voltou languidamente para sua
cadeira, acariciando o braço dolorido. — No fundo, quem perde é

ela, já que eu mostraria um mundo de luxo que uma reles


empregadinha nunca verá. — Deu um sorriso nauseante, usando o
dinheiro que tinha para pisar nela. — Também já estive com mulheres

melhores que essa daí.


Sentindo-me ainda mais raivoso com o insulto a ela, contive a
vontade de esmurrá-lo. Voltei minha atenção à garota, que ainda

estava de pé, trêmula, não conseguindo nos olhar.


Mesmo hesitante, tomando cuidado com os cacos,
aproximei-me dela, sem saber como dar algum tipo de conforto a ela
nessa situação. Nunca precisei oferecer apoio a ninguém, e senti um
certo incômodo por estar nessa posição. Virando-se para mim, me
encarou. E se eu estava desconfortável em estar na posição de

consolar, sendo alvo do escrutínio dela fiquei ainda mais. Meu


estômago revirou não só com o alívio que ela pareceu sentir, mas
também pelo modo como ela me encarava, como se fosse o seu

salvador, o que por poucos segundos fez com que esquecesse a


pessoa sombria que eu era, a raiva, e o desejo assassino.
Não soube o que fazer com a sensação de que havia algo de

bom em mim que ela tinha suscitado. Era desconcertante, ao mesmo


tempo que também me deixava vulnerável. Contive a vontade de
explorar aquela sensação, de ser realmente o seu salvador, e

também de erguer a minha mão e tocar seu rosto delicado,


acariciando-o, gesto que parecia certo ao mesmo tempo que eu

sabia que era completamente errado.


Forcei-me a enumerar porque eu não deveria. Primeiro, por
eu ser um demônio frio que não se preocupava com nenhum outro

ser humano, apesar da minha personalidade volúvel me controlar


naquele momento. Segundo, porque isso não me faria melhor que o
homem que queria a machucar. Terceiro, eu tinha que me apegar à
promessa que fiz a mim mesmo de nunca mais me aproximar de uma
mulher, mesmo naquela situação.

Desviei o olhar, não conseguindo mais encarar o seu rosto.


— O café atingiu você? — Minha voz soou suave, não
querendo que ela achasse que minha fúria também era dirigida a ela.

— Não-não, senhor Javier — sussurrou —, eu estou bem.


Arqueei a sobrancelha, virando-me para ela novamente,
sabendo que estava mentindo.

Deu passos para trás para se afastar, tentando manter uma


fachada de profissionalismo.
— Des-des-culpe-me — gaguejou e voltei a encará-la, mas vi

que fitava o chão —, pelo tapete… vou limpá-lo. Já a sua calça…


Se encolheu.
— Não se preocupe com isso, senhorita Garcia — continuei,

dizendo em um tom de voz calmo. — Por que não vai se recompor


na cozinha enquanto eu cuido de tudo isso?

— Eu…
— Isso não é um pedido, senhorita, depois conversaremos.
— Fui um pouco mais incisivo, usando meu tom como um escudo de

proteção contra mim mesmo, apenas para adotar um mais suave


logo em seguida: — Por que não toma um chocolate quente? Creio
que deve ter os ingredientes na minha dispensa.

— Não é…
— Senhorita Garcia… — Interrompi-a gentilmente.

— Tudo bem, senhor. — Disse com submissão e, após fazer


uma mensura, tomando cuidado com os cacos de vidro, deixou o
meu escritório, fechando a porta atrás de si.

A ausência dela fez com que a violência e a fúria que tinha


controlado naqueles poucos minutos voltasse em seu apogeu, a
frieza dominando todo o meu corpo. Caminhei em direção ao

decantador para me servir uma boa dose de tequila, tomando o shot


de uma única vez, que desceu queimando pela minha garganta,
esperando que a bebida arrefecesse meus sentimentos tumultuados.

Enganei-me.
— Não vai me servir uma dose? — Encarei o homem que
parecia bastante tranquilo, como se estivéssemos em uma

confraternização. — Eu preciso de uma bebida forte depois de você


ter me machucado.

— Não, camarada. — Dei um sorriso irônico, servindo-me de


mais um copo. — Não desperdiçaria algo do meu bar com alguém
como você.
— Está levando as coisas a sério demais, Castillo. —

Acomodou-se melhor na cadeira. — Estava brincando com ela e


depois só quis ajudá-la, pois parecia que a qualquer momento iria
desmaiar.

— Verdade? — Caminhei em direção a minha mesa,


segurando meu copo com força para não bater no rosto dele, e

tomei meu assento, deixando-o pensar por alguns minutos que eu


acreditava nele.
— Claro. — Fez uma pausa. — Desculpe, Castillo, não quis

te ofender falando sobre…


— Basta! — O interrompi secamente, mostrando a minha
irritação. — Prepare-se para a guerra que você começou, amigo.

Não irei deixar passar em branco o ocorrido dessa noite. — Mostrei


os dentes, malevolamente.
Ele engoliu em seco. Um brilho cruzou os olhos dele e pude

notar o exato momento em que ele tinha se dado conta de que não
somente havia perdido a minha mentoria, mas também que ele
pagaria de várias formas.

Tolo. Ele poderia ter os contatos dele, mas eu também tinha


os meus. E sabia jogar mais sujo do que ele.
— Sim, eu farei com que você pague pelo crime cometido. —
Levei o meu copo aos lábios, bebendo o líquido de sabor cítrico e
envelhecido. — Não será o seu pai que irá te salvar de mim, se é

que ele aceitará a sua conduta.


— Não pode estar falando sério — falou em um arfar.
— Você deveria ter acreditado quando disse que retalharia.

— Soltei uma risada baixa. — Afinal, sou o demônio de gelo.


— Ela é apenas uma funcionária. Eu sou jovem, não custava
nada tentar algo com uma garota linda como ela, afinal, todas se

jogam aos meus pés por eu ser rico. — A voz dele não tinha mais a
arrogância.

Balancei a cabeça em negativa e fiz um som de desdém.


— Nem todas. E você aprenderá a nunca mais assediar uma
mulher na minha empresa.

— Ah, entendi! — Deu uma risada, fazendo uma careta. —


Está trepando com ela. Por que não disse logo? Homem de sorte
você, hein?

Gargalhou ainda mais e eu soquei a mesa com força, sem


me importar com o latejar do impacto, não contendo mais a raiva por
sua insinuação. Meu copo tombou e rolou até espatifar no chão e ele
pulou na cadeira. Ele tinha sorte de eu não ceder a todos os
impulsos que me tomavam.

— Deixe esse escritório imediatamente, senhor Gonzáles —


disse perigosamente, sem me dar ao trabalho de responder sua
indireta —, antes que eu seja obrigado a chamar a segurança para

tirá-lo daqui, ou eu mesmo faça isso.


— Vou com as minhas próprias pernas, Castillo. — Soou
arrogante, pegando as suas coisas e colocando dentro da pasta,

fechando-a em seguida.
Ergueu-se e eu fiz o mesmo, deixando que minha altura o
intimidasse, já que era bem mais baixo e mais magro do que eu.

— Tenho certeza de que, depois disso, meu pai nunca irá


procurar a sua financeira — deu uma gargalhada alta. — Era isso

que você queria, não é mesmo?


— Não havia outra razão para eu tentar tolerá-lo e ter estado
disposto a ajudá-lo. — Estalei a língua. — Mas eu nunca perco, você

se lembrará amargamente disso.


Deu de ombros e começou a caminhar em direção a porta, e
eu o segui até o hall dos elevadores. Não correria mais riscos.

Enquanto esperava a caixa de metal chegar no andar, olhou-


me de cima a baixo.
— Mas me parece que o grande Castillo perdeu ao preferir

uma boceta — falou.


— Você verá que não — disse quando ele entrou no
elevador.

Virou-se para mim, rindo. Então, estiquei a mão, impedindo


de a porta se fechar, e, sem me importar com as consequências dos
meus atos e se aquilo era ou não do meu feitio, se faria ele pensar

que era uma confirmação de algo que estava longe de ser verdade,
desferi um soco no rosto dele com força, sentindo os nós dos meus
dedos latejarem com a fricção de carne contra carne.

Ele me olhou atônito enquanto um filete de sangue escorria


pelo impacto. Mesmo assim, mantive a minha postura na defensiva
ainda que a fúria continuasse a correr pelas minhas veias. Um soco

não tinha sido suficiente, eu queria e muito descontar nele todos os


anos em que fui obrigado a agir como um homem insensível e

incapaz de demonstrar algo.


— Isso não ficará assim! — Aprumou-se, como um machão.
— Acabarei com você!

Suas palavras entraram no meu ouvido e saíram pelo outro.


As ameaças dele para mim eram em vão.
Não tentou revidar, como o covarde que era, e eu dei um

sorriso sarcástico, tirando minha mão do vão do elevador.


— É o que veremos — sussurrei antes das portas se

fecharem, abrindo e fechando a mão que dei o murro, sentindo a


ardência do machucado.
Respirei fundo, várias vezes, passando a mão nos cabelos,

jogando-os para trás, antes de pegar o celular que estava no bolso e


informar a equipe de segurança do prédio que a presença daquele
playboy estava proibida.

Subitamente cansado, como se a explosão e o fato de ter


me exposto como nunca tivesse me sugado, caminhei de volta para o
meu escritório.

Fui direto para o meu decantador, mas não sem antes


perceber a bagunça que tomava o meu escritório sempre ordenado,
dando-me uma amarga lembrança dos acontecimentos. Servi-me de

uma dose de whisky, girando-o no copo, e aproximei-me da minha


cadeira, jogando-me sobre ela.
Fechei os olhos e, inconscientemente, levei a bebida aos

lábios, mas estava atormentado pela recordação da expressão


vulnerável que eu tinha visto nela, conflitando com a fúria, raiva,

frustração e vários outros sentimentos que não conseguia classificar.


Contudo, era o instinto protetor descabido, que não deveria sentir
por ela, que era o mais perigoso deles. Tentei ignorá-los, pensando
em coisas mais práticas que agora eu tinha que resolver.

Mas se passaram longos minutos, talvez uma hora, antes


que eu me levantasse e me direcionasse para a cozinha. Com os

meus sentimentos sob controle, o homem disposto a protegê-la, em


consolá-la, fora completamente sufocado.

Já havia me mostrado demais para a garota para não temer


as suas consequências, revelando-me a uma menina-mulher mais do
que eu achava que era capaz de fazer.
Capítulo onze

Fechando a porta atrás de mim, encostei na superfície de

madeira e deixei que meu corpo trêmulo escorregasse, até que eu

estivesse no chão. Abraçando os meus joelhos, senti que as


lágrimas, que tinha custado a segurar na frente do meu chefe e do

seu convidado, rolassem pelo meu rosto enquanto meu coração batia

apertado. Embora não fosse minha culpa ter derramado o café nas
coisas do senhor Javier, não me lembrava de ter-me sentido tão

constrangida e humilhada. Com tanto medo.

Tinha sido terrível e assustador a vez em que o meu

empregador tinha deixado claro que só me daria o emprego se eu

fizesse favores sexuais a ele, mas pelo menos o homem não estava
na minha frente, já que tinha sido por telefone, nem havia insistido,

dizendo que tinha outra interessada. Mas, pessoalmente, no seu

próprio ambiente de trabalho, em um lugar que se sentia segura, era

mil vezes pior.

Tinha lutado para manter-me indiferente quando ele havia

começado com palavras sutis, mas fiquei literalmente em pânico


quando disse grosserias de teor sexual. Nunca me senti tão suja,
como se eu fosse um pedaço de carne à venda, e tudo o que eu
queria era que o chão me engolisse.

Chorei ainda mais, colocando as mãos no rosto, ao recordar

de como fiquei acuada, quase que indefesa quando, parecendo um

gigante, ele se aproximou de mim e envolveu a minha cintura com um

braço. O cheiro do perfume dele e o calor do corpo contra o meu

com a proximidade haviam me paralisado e não soube como reagir,


além de tremer, sem acreditar que isso estava acontecendo comigo.

Muitos não considerariam isso uma forma de abuso, mas senti o

toque dele, o contato, como uma espécie de violação ao meu corpo.

Respirei fundo, procurando me acalmar, e a fragrância do

homem que parecia ter ficado impregnado em mim invadiu as minhas

narinas novamente e eu quase sufoquei com a bile que subiu

queimando.
— O que eu não daria por um banho agora — sussurrei para

mim mesma, fechando os olhos com força, querendo que tudo não

passasse de um pesadelo, mas o odor era uma lembrança de que

havia ocorrido.

Tinha agradecido a Deus e quis desmoronar de alívio no

momento que o senhor Javier interveio, afastando-o de mim. Embora


a aparência dele tenha sido assustadora por tamanha a fúria que o
havia tomado, como se a qualquer momento fosse ceder aos

impulsos animalescos, senti-me protegida, ainda mais quando ele


pareceu demonstrar preocupação pelo meu bem-estar.

E, por mais insensato que fosse naquelas circunstâncias, em


que eu estava completamente vulnerável e me sentindo suja, eu quis
ser aninhada por aquele homem geralmente frio. Queria que seus

braços fortes e repletos de tensão me envolvessem e me


amparassem, oferecendo segurança e conforto. Que nossos corpos

ficassem próximos, compartilhando o calor um do outro, sentimento


intensificado quando percebi que ele parecia hesitar, sem saber o

que fazer, como se lutasse contra si mesmo se deveria ou não me


tocar.
A conexão criada pelo olhar fazia com que eu sentisse que

não era apenas eu que precisava daquele contato, que iria muito
além do físico. Eu estava vulnerável, mas, de algum modo, ele

também estava ao expor sua raiva, sua perturbação. Nunca havia


desejado tanto o abraço de um outro homem que não fosse o do

meu irmão, não com aquele desespero que havia me consumido,


tornando-me irracional, me impelindo a tomar as sombras dele para
mim.
Mas tudo ruiu quando ele desviou o olhar, quebrando aquele

vínculo silencioso. Meu coração se ressentiu por perder algo que


sabia que era impossível e que poderia ter sido criado pela minha

imaginação conturbada.
— ¡Dios! Ele é o seu patrão! Confundir a gentileza dele com

uma conexão é um grande absurdo — sussurrei, sentindo uma nova


onda de lágrimas rolarem pelo meu rosto.
Não sei quanto tempo eu fiquei naquela posição, imóvel,

digerindo tudo, chorando, sabendo que eu teria que criar coragem


para encarar novamente meu chefe, e possivelmente o convidado

dele. Um tremor involuntário me percorreu ao pensar na possibilidade


de ele ainda estar ali, com apenas uma parede nos separando.
— Para com isso, Babi… — Passei a mão com força pelo

rosto, correndo o risco de deixá-lo vermelho com a fricção, tentando


buscar uma bravura que achava impossível ter.

O som de uma mensagem soou na cozinha silenciosa e meu


coração se apertou ainda mais. Sabia que era o meu irmão dizendo

que estava se preparando para dormir e que ele esperava uma


resposta antes de ir se deitar. Senti que não me continha mais, e
erguendo-me com um salto, corri para o banheiro mais próximo e

coloquei tudo para fora com o nervosismo.


Havia pensado que o pior era encarar o meu patrão, mas
teria que encarar Pablito, que perceberia o meu estado quando fosse
me buscar no metrô, e que me interrogaria até obter as suas

respostas.
Diferentemente do ocorrido no ano passado, na minha festa

de formatura, quando eu tinha tomado sangria demais com as


minhas colegas de escola, temendo que elas fossem zoar de mim,
me chamando de careta por não beber, dessa vez não conseguiria

esconder minha agitação dele, pois estava sóbria. Se é que de fato


eu havia conseguido aquela proeza, já que meu hermanito me

conhecia melhor do que ninguém.


Tinha estado tão envergonhada de chegar um pouco bêbada

e das consequências da bebedeira, a qual tive minha parcela de


culpa, que não consegui falar sobre o ocorrido com o meu melhor
amigo e protetor. Nem mesmo minhas colegas souberam dos

detalhes daquela noite. Mas talvez se eu tivesse tido uma mãe que
pudesse me acolher naquela época…

Lavei minhas mãos e braços exaustivamente, passando um


pouco de água no pescoço e rosto, e quando me dei por satisfeita,
bloqueei meus pensamentos para que eles não seguissem aquela

direção. Nada de bom viria deles, só me faziam reviver coisas que,


nesse momento, me causariam mais desconforto. Em silêncio, eu
lutava para esquecer o ocorrido, embora estivesse ciente de que
eles ainda iriam me aterrorizar.

Suspirei baixinho, encarando a minha aparência no espelho.


— Péssima. — Dei um sorriso de desdém, fazendo de tudo

para não ceder novamente as lágrimas de vergonha e de nojo de


mim mesma.
Respirando fundo várias vezes, temerosa, puxei o celular do

bolso da calça e abri a conversa com o meu irmão.

Pablito

Boa noite, Gatita :*

Um bolo se formou na minha garganta quando li a mensagem


boba e já esperada, e eu hesitei em responder. No fim, a

racionalidade prevaleceu e decidi que conversaríamos sobre o

assunto pessoalmente, por mais que desejasse que ele pudesse me


consolar nesse instante, me apertando forte, fazendo um cafuné nos

meus cabelos, algo que meu irmão sempre fazia quando estava

chateada ou triste. Mas desabafar por mensagem ou ligação,


fazendo-o perder o sono por conta do nervosismo, parecia algo

egoísta, ainda mais quando ele não poderia fazer nada.


Vendo que eu estava online e não tinha respondido, ele

insistiu.

Pablito

Estrellita?

Digitei com os meus dedos trêmulos uma desculpa qualquer.

Babi

Desculpa, estava no banheiro


Boa noite, Pablito :*

Pablito
Não consigo ficar nem mais um segundo com os olhos

abertos rs XD

Babi
Posso imaginar.

Então já para cama, mocinho.


O que está esperando? :X

Passou da hora de criança ir dormir

Pablito

Está bom, mamãe kk

Babi

:p

Pablito

Bom trabalho querida

Babi

Obrigada.

Te vejo mais tarde :*

Não me respondeu mais e eu guardei o aparelho, sentindo

certo peso no coração por ele ter-me desejado um bom trabalho e


por brincar com meu irmão enquanto escondia dele o meu medo e

vulnerabilidade. Mas tentei tirar esse sentimento do peito, pensando

que eu tinha feito o melhor por nós dois e que ele não saberia
apenas por algumas horas. Apesar de ficar chateado comigo, no final

das contas, sua preocupação maior seria com o meu bem-estar.


Lançando um último olhar para o espelho, odiando a minha

aparência, deixei o banheiro e caminhei em direção a despensa para

pegar tudo o que eu precisava para remover os cacos da louça que


eu quebrei e para tentar limpar o tapete. Pensar que provavelmente

o café poderia tê-lo manchado de modo irreversível, bem como a

calça social feita sob medida, me deixou nervosa. Não tinha ideia de

quanto as peças custavam, mas não havia dúvidas que era mais do
que um dia eu poderia pagar.

Torcendo para que alguma solução encontrada na internet

resolvesse a mancha do tapete, fechei a porta do armário com um


tranco suave e me muni de coragem para fazer o meu trabalho,

embora novamente a perspectiva de que o homem ainda estivesse

no escritório me causasse náuseas. Uma água gelada talvez poderia

me ajudar; um minuto a mais, ou outro a menos, não faria diferença,


não quando estava a quase uma hora buscando me recompor.

Quando ia tomar mais um gole, ouvi passos se aproximando e, como

um ratinho assustado, senti meu corpo todo ficar tenso ao mesmo


tempo que minha respiração ficava irregular por mais uma onda de

pânico. Tive que me controlar para não deixar o copo cair.


Quando não houve mais som, estremecendo, pousei o

recipiente em cima da pia e virei, não conseguindo conter o alívio

pela presença do homem que me encarava fixamente.

— Oh, é você! — Esqueci a formalidade com a qual deveria


tratá-lo, e levei a mão ao peito, respirando fundo. — Me assustou.

Ele não respondeu de imediato, e observando-o melhor, pude

perceber que, apesar de aparentar gélido como sempre, a tensão


que ele havia sentido não o havia abandonado. Ele exalava fúria. As

mãos dentro dos bolsos da calça, os fios de cabelo fora do lugar e o

brilho assassino nos olhos verdes faziam com que o Senhor Javier

ainda parecesse um animal selvagem à beira de perder o controle


outra vez. E por mais que devesse temê-lo, eu sentia vontade de

cruzar a distância e tocar o maxilar trincado e acariciar sua barba.

O demônio de gelo nunca iria me machucar.


— Quem imaginou que fosse, senhorita Garcia? — A voz

saiu levemente rouca.

Senti os pelinhos da minha nuca se arrepiarem

instantaneamente e fiquei confusa com a minha reação a ele. Era


desproposital.

— Não precisa me responder…


A tensão dele pareceu aumentar. Com passos lentos, se

aproximou do conjunto de mesa e cadeira, que duvidava que algum


dia tivesse sido utilizado, da copa.

— Afinal, é o que se espera de um demônio sem

sentimentos. — Foi sarcástico, mas diferentemente das outras

vezes, havia uma pontada de decepção.


Desgosto e desapontamento cruzaram suas feições por uma

fração de segundos antes de voltarem a ser serem suprimidas. Senti

certa surpresa por ter visto tantas emoções conflitantes nele;


perceber sua vulnerabilidade. E o desejo de tocar sua pele em uma

carícia suave aumentou ainda mais dentro de mim, fazendo com que

minha pulsação se acelerasse.


Não, Babi, o que está acontecendo com você?

— Não — falei em um tom mais alto que deveria, lutando

contra mim mesma e torcendo para que meu rosto não expressasse

tudo aquilo que revirava em meu interior.


— Não?

— Não, senhor.

— Tsc, tsc, tsc…


Balançou a mão em um gesto de pouco-caso, movimento

que chamou a minha atenção para os nós dos seus dedos esfolados.
— Senhor Javier?
Sem que percebesse o que estava fazendo, preocupada,

aproximei-me dele e segurei sua mão entre os meus dedos.

— O senhor se machucou? — Fiz uma pergunta óbvia,


analisando os ferimentos que não sabia de onde haviam surgido.

Pelo menos não foi algo grave, apenas leves escoriações.

Ficou em silêncio.
— O senhor quer que eu limpe? — ofereci.

— Não é necessário, senhorita — falou extremamente baixo.

Estranhando, ainda segurando sua mão, voltei a fitar o rosto

dele. Ele parecia bastante distante, como se estivesse em um outro


local.

Os olhos verdes não apresentavam a frieza costumeira,

embora ainda se mantivessem completamente ilegíveis para mim.


Presa na profundeza deles, querendo desvendar o mistério que havia

naquele homem que tanto me tornava consciente de cada nuance


dele, comecei a sentir o calor de sua palma irradiando para minha
mão, fazendo com que pequenos choques causados pelo contato se

espalhassem pelo meu corpo, ao mesmo tempo que a realidade da


impropriedade do meu ato desabava sobre a minha cabeça. Antes
que eu pudesse quebrar o contato, o senhor Javier o fez ao retirar a
mão, como se o meu toque fosse repulsivo.
Desviei o olhar, lutando contra a vontade de me abraçar com

o afastamento dele. Por que a rejeição dele me doía tanto e me fazia


sentir perdida?
— Desculpe-me, senhor — falei em um fio de voz —, eu não

deveria, mas…
Engoli em seco. Precisando desesperadamente de uma
desculpa, peguei o copo e comecei a lavá-lo.

— Mas? — insistiu no mesmo tom baixo, havendo uma


imposição que ele não tinha mascarado por completo, como se
necessitasse saber a razão pela qual eu o toquei indevidamente.

Precisando entender por que ele queria tanto uma resposta,


tornei a encará-lo, mesmo que sentisse minha pele queimar com a
vergonha, e encontrei-o na mesma posição, parecendo com os

pensamentos distantes.
— Eu agi por impulso, senhor. — A fragilidade que via nele,

mesmo estando escondida debaixo de várias camadas, fez com que


eu falasse, ainda que isso significasse estar cavando a minha
derrocada. — Eu fiquei preocupada com o senhor e não pensei muito

no que estava fazendo, tomando liberdades que não deveria. Eu…


Meu irmão disse que sou muito impulsiva quando me deixo guiar pelo
coração.
Quando terminei de falar, vi um brilho indecifrável cruzar os

seus olhos, mas durou pouco, pois logo sua expressão transformou-
se em um bloco de granito sem vida. Ele não precisou dizer nenhuma

palavra para que eu entendesse que ele achava que eu mentia, tudo
nele demonstrava ceticismo. Não podia negar que no mundo dele,
em que o que contava era status, dinheiro e influência, muitas

pessoas deveriam se aproximar dele ou agir por interesse, mas me


magoava que ele pensasse que a vontade que tive de ajudá-lo tinha
como finalidade receber algo em troca.

Inspirei fundo e, não sei por que, me apeguei ao homem


fragilizado que tinha visto e não àquele que era tido como demônio. E
foi meu desassossego por ele que fez com que eu perguntasse a

queima a roupa:
— Onde se machucou, senhor?
Levantou a sobrancelha arrogantemente, deixando claro que

não cabia a mim fazer perguntas. Deu de ombros e, fitando-me com


indiferença, displicentemente, puxou a cadeira e se sentou

esparramado, fazendo com que o móvel parecesse pequeno demais


para o seu corpo, dando a ele uma aparência ainda bem mais
poderosa.

— Não estava ferido quando deixei o escritório — sussurrei,


fechando os olhos com a lembrança amarga do ocorrido, abrindo-os
segundos depois.

Devo ter revelado angústia em minha expressão, pois o


homem pareceu ficar rígido no seu assento e eu jurei que poderia

sentir a fúria controlada dele.


— Precisamos conversar, senhorita Garcia — disse com
seriedade, depois que um silêncio pesado caiu sobre nós. Não havia

dúvidas que ele tinha usado aqueles minutos para buscar se


controlar, já que quando falou, qualquer indício de sentimento havia
fugido da sua expressão.

Quando suas palavras se infiltraram na minha mente, senti


certo receio pelo meu futuro, mas tentei me manter otimista. Os
funcionários poderiam dizer um monte de coisas sobre ele, menos

sobre o senhor Javier ser injusto com seus subordinados.


— Sim, senhor. — Fiz uma pausa e tentei ser mais
prestativa. — Deseja uma água? Posso fazer outro café.

— Sente-se, senhorita — ordenou.


— Tudo bem, senhor.
Fiz o que ele pediu, dando a volta na mesa, sentando-me

numa cadeira distante da dele.


— E então, senhor Javier? — Torci as mãos no meu colo,
quando ele não disse nada.

— Por que não fez o chocolate quente que sugeri? —


Questionou suavemente e foi impossível não esconder a surpresa
com a ternura que havia em sua voz. — Teria te oferecido algum

conforto. Você estava trêmula.


Senti as lágrimas se formarem em meus olhos pela gentileza

que havia nele, mas não deixei que caíssem. Meu coração bateu
descompassado e uma onda de afeto por ele me engolfou, deixando-
me ainda mais certa de que ele era um homem bom.

— Não era necessário, senhor. — Não contive um sorriso


para ele, mesmo que estivéssemos falando de um assunto doloroso,
mas ele não retribuiu, pelo contrário, ele se fechou em si mesmo

novamente.
Apertei os lábios, reprimindo meu sorriso, sentindo-me uma
verdadeira idiota por ter afastado aquele lado doce dele de mim,

mesmo que nada significasse.


— Você se sente melhor?
Fiz que sim com a cabeça, depois não. Eu era uma grande
confusão de sentimentos não somente pelo ocorrido, mas também
pela confusão que o senhor Javier me causava.

Ergueu a sobrancelha, questionando-me, e eu optei por uma


meia-verdade:
— Nunca imaginei que passaria por algo assim — sussurrei

quando tudo voltou como um flash, assombrando-me. — Eu me sinto


suja, exposta e também humilhada.
Abracei-me involuntariamente, passando um braço pelo meu

corpo.
— Não é a primeira vez, mas… — As lágrimas que estava
tentando conter escorreram pela minha face. — Mulher alguma

deveria sofrer assédio só por ser mulher. Aliás, ser humano nenhum.
Ele não respondeu.

— E, Deus, eu só queria fazer o meu trabalho, mesmo que o


senhor não tenha pedido nada — falei desesperada.
— Sinto muito pelo ocorrido, senhorita Garcia. — Fez uma

pausa onde parecia pensar e sua voz saiu abafada, parecendo que
suprimia a raiva. — A Global Financiera entrará com uma denúncia
de assédio contra o senhor Gonzáles. Depois dessa conversa,
entrarei em contato com o departamento jurídico para resolver essa
questão.

Não tinha passado pela minha cabeça que eu deveria prestar


queixa na polícia contra ele. Um calafrio percorreu a minha espinha.
Embora a legislação espanhola de criminalização do abuso sexual e

assédio tenha sido enrijecida depois de um caso repulsivo, sabia que


muitos ocorridos não resultavam em uma punição para os seus
infratores, e contra pessoas ricas e influentes, muito menos. A

maioria das vítimas sofriam escárnio pelas pessoas e suas dores


eram diminuídas. Não queria passar por isso.
— Será mesmo necessário, senhor Javier? — questionei

baixinho. — Com o tempo, sei que vou esquecer as cantadas e


insinuações.
— O ocorrido dessa noite foi muito grave para que não

tomemos algumas medidas, senhorita Garcia. — Soou grave e


trincou os dentes, mas forçou-se a relaxar contra a cadeira.

— Entendo. — Envolvi-me no meu abraço com ainda mais


força, como se isso pudesse me proteger do que estava por vir.
Era a minha palavra contra a de um playboy herdeiro de uma

grande fortuna. Me recordei de uma reportagem, em que ele tinha


sido denunciado por uma outra moça, mas nada havia acontecido.
Traguei em seco.

— Não se preocupe, senhorita, usarei todos os meus


recursos para que sua identidade permaneça em sigilo, bem como

seu depoimento, caso seja necessário. Há algumas câmeras no meu


escritório que registraram o ocorrido.
— Ainda assim… — não completei.

Queria muito acreditar que isso seria o bastante, mas eu


sabia que a corda sempre arrebentava para o lado mais fraco. Seria
eu quem sofreria as consequências, e mais humilhação.

— Confie em mim — pediu com certa angústia, e foi como


se ele estivesse pedindo um voto de confiança, não na equipe de
advogados dele, mas nele.

E, por mais que eu quisesse negar, enquanto o contemplava,


vendo mais traços de vulnerabilidade nele que com certeza não
queria demonstrar, meu lado irracional voltou a falar mais alto do que

a prudência. Mesmo que fosse um grande erro da minha parte, eu


não poderia negar isso a ele.

— Tudo bem. — Emiti um suspiro baixinho. — Eu irei confiar


no senhor.
Ficou em silêncio como imaginei que ficaria, mas algo se

abrandou nele, e eu soube que tinha feito a escolha certa, mesmo


que isso resultasse em mais problemas do que eu tinha agora.
— Sobre o meu emprego… — perguntei, consciente de que

estava prestes a fazer uma besteira.


— O que que tem ele?

— Eu ainda o tenho?
— O que você acha, garota? — Rilhou os dentes,
demonstrando a raiva que sentia, com certeza tomando a minha

questão como um insulto, o que não foi minha intenção.


Droga!
— Que ainda o tenho. — Engoli em seco.

— Já tem a sua resposta, senhorita Garcia. — Tentou me


ferir com a sua acidez, retalhando-me por ter colocado em xeque seu
senso de justiça, ainda mais depois dele ter pedido que eu

acreditasse nele. — Isso se não quiser sair pelo ocorrido. É um


direito seu.
— Não, por favor! — Levantei da cadeira com um pulo, e o

movimento brusco fez com que o móvel tombasse no chão, bem


como o meu coque se desfizesse, e a massa de cabelos caísse
pelas minhas costas, mas não me importei.
Atrapalhada, ergui a cadeira, torcendo para que eu não a
tivesse arruinado também.
— É o que eu pensei — comentou baixinho e eu me virei

rápido para encará-lo.


Meu coração pareceu saltar no peito ao ver o meio-sorriso,
que, mesmo repleto de sarcasmo e cinismo, transformava todo o seu

rosto e o deixava ainda mais belo. Foi impossível não imaginar como
seria se aquele homem sorrisse de felicidade ou de contentamento.
Suprimi a vontade de soltar um suspiro e me voltei para a cadeira,

colocando-a no lugar depois de constatar que não havia nenhuma


lasca na pintura.

— Apesar de garantir que nada do tipo ocorrerá mais dentro


da minha empresa, se desejar, posso mandar um ofício a Fernán
para transferi-la para outro posto.

— Não é necessário…
— Você não irá perder o seu atual salário, se for isso o que
você teme…

— Eu gosto de trabalhar nesse horário, gosto da minha


função. — Fiz uma pausa quando ele assentiu com a cabeça. — E
gosto de ficar com seus cachorros também.
Não precisou dizer nada para revelar outra vez seu
ceticismo. Tentei ignorá-lo, assim como o gosto ácido que isso

deixava na minha boca.


— Posso voltar ao trabalho agora, senhor Javier? —
questionei ao me aproximar dos meus instrumentos de trabalho,

prendendo os meus cabelos de qualquer jeito, lembrando-me que


ainda havia muito trabalho a ser feito e que estava atrasada. — Eu
não sei se conseguirei remover a mancha do tapete e…

— Tsc. — O som ecoou por toda a cozinha. — Achei que


havia deixado claro que não me importava com o maldito tapete e
nem com a droga da calça. Sabia que eu posso comprar vários

deles, garota?
— Sim, eu sei, senhor. — Girando-me, ergui meu rosto em

uma postura altiva, não deixando que a tentativa dele de demonstrar


arrogância e poder me intimidasse. — Mas ainda assim eu preciso…
— Vá para casa, senhorita Garcia — falou suavemente ao

acomodar-se melhor na cadeira, como se sentisse desconfortável. —


Você passou por uma situação desconfortável e deve desejar tomar
um banho e ir buscar consolo nos braços do seu namorado, ou noivo,

ou seja lá o que for.


— Eu não tenho um namorado — respondi somente sua

última sentença, que não tinha sido bem uma pergunta, mesmo que
não fosse do interesse dele saber a resposta. Meus motivos para
fazer isso, eu não sabia dizer.

— Que seja. — Passou a mão pelos cabelos lisos e fechou


os olhos como se estivesse esgotado, fazendo com que uma vontade
enorme de o acariciar me atormentasse. — Apenas vá. De manhã,

os advogados da empresa entrarão em contato com a senhorita com


outras instruções.
Talvez fosse melhor ir mesmo, eu estava indo longe demais.

Olhei o relógio na parede, constatando que era pouco mais


de duas horas da manhã. Já era bem tarde quando havia terminado
de preparar o café e, depois disso, acabei perdendo completamente

a noção do tempo.
— Eu não posso, senhor.

— Não?
— A estação de metrô já está fechada. — A vergonha me
dominou e eu fiquei constrangida de dizer que os poucos euros que

tinha na bolsa eram para passar o restante do mês.


— Pedirei que o meu motorista te leve — antecipou-se a
mim.
Ergueu-se da cadeira onde estava e, dando as costas para

mim, deixando com que eu visse as linhas de tensão que pareciam


marcar os seus ombros e coluna, começou a caminhar em direção

ao escritório. Quando parou em frente a porta, puxou o celular do


bolso da calça social e mexeu nele rapidamente, voltando a guardá-
lo em instantes.

— Tem certeza de que não quer que eu ao menos recolha os


cacos da louça, senhor? — insisti ao vê-lo colocar a mão na
maçaneta.

— Não é necessário. — Foi brusco. — Agora se arrume,


garota, que em dez minutos o meu motorista irá subir para te levar
em casa.

Não esperou uma resposta, apenas entrou no escritório e


fechou a porta com rapidez, e eu escutei um clique que indicava que
ele tinha se trancado e não esperava ser incomodado.

Sentindo-me subitamente cansada pelos acontecimentos e


pela conversa estranha, permeada de momentos e sentimentos
ainda mais caóticos, comecei a recolher as coisas para guardar de

volta na despensa e ir trocar de roupa. Quando peguei o meu


aparelho para colocar dentro da bolsa, suspirei profundamente,
procurando forças, sabendo que tinha outro interrogatório difícil pela
frente, o de Pablito.
Capítulo doze

— Perfeito — disse baixinho para mim mesma quando

terminei de limpar o piso branco do banheiro problemático, vendo-o

brilhar.
Mas, diferentemente das outras vezes, não senti a satisfação

que sempre me acometia ao finalizar a limpeza dele. Um

pressentimento ruim tinha preenchido o meu coração desde que eu


acordei naquela tarde e o sentimento pareceu tornar-se ainda mais

forte quando Pablito havia chegado em casa mais cedo. Quando o

tinha questionado, ele havia dito que estava tudo bem com ele e que

era apenas cansaço, e que foi mandado para casa mais cedo, pois o

movimento estava fraco e que teria que pegar mais um turno durante
a noite por conta de um colega que estava de atestado. Eu sabia

que não havia muita escolha para ele além de aceitar, principalmente

pelo emprego pagar horas extras.

Mesmo que ele sempre viesse com o mesmo discurso para

me acalmar, dizendo que depois iriamos comer uma bela pan

tomaca[41] de sardinha que ele prepararia, eu o conhecia tão bem


quanto meu irmão conhecia a mim, e intuía que havia algo o
incomodando e muito que ele não queria me dizer.

Não era a primeira vez que acontecia de ele ter que trabalhar

a noite e de madrugada, e sempre que ocorria, Pablo parecia tenso

e nervoso, o que me deixava agoniada. E dessa vez não seria

diferente. Era como se ele virasse outra pessoa, o homem animado

e divertido desaparecia. Como aconteceu, quando eu tinha contado a


ele sobre o assédio sexual que eu havia sofrido há uma semana.

Nunca o tinha visto tão furioso, frustrado e impotente, principalmente

quando me acompanhou para prestar depoimento.

Tentei me manter otimista.

“Está tudo bem com ele, Babi, nada aconteceu das últimas

vezes, por que hoje aconteceria? Deixe de ser boba. Você

conversou com ele faz algumas horas, no seu intervalo, e ele voltou
a repetir que estava bem, só cansado, e que esse pressentimento

era apenas isso, uma sensação”, pensei comigo mesma.

Comecei a repetir que era uma bobagem da minha parte e

que Pablito estava certo enquanto terminava de recolher as coisas,

jogando a água suja fora, lavando os panos e terminando todas as

pequenas tarefas que ainda precisavam da minha atenção. Mesmo


assim, eu não conseguia acreditar nisso, a seriedade dele era
demais, e a angústia não me deixava, por mais que tentasse afastá-

la da minha mente.
Pegando o meu telefone, abri a conversa com o meu irmão e

mandei uma mensagem para ele perguntando como ele estava,


mesmo que tivéssemos combinado de nos encontrar há pouco
menos de uma hora. Pousando o celular em cima do banquinho do

banheiro de funcionários, comecei a me trocar, e quando terminei,


coloquei um casaco, já que com certeza lá fora estaria um frio de

congelar os ossos. Soltando os cabelos, passei um batom para


hidratar os meus lábios ressecados e dei um sorriso fraco que não

chegou aos meus olhos, quando um outro calafrio me percorreu.


Dei leves batidinhas no meu rosto, trazendo um pouco mais
de cor para ele, e peguei meu celular novamente, visualizando a

conversa, mesmo sabendo que ele não havia respondido ainda por
não ter sido notificada por nenhum som.

“Chega disso, garota!”, falei para mim outra vez, ao sentir


que tremia involuntariamente e que um nervosismo me invadia, o qual

não conseguia controlar.


Balancei a cabeça, colocando o celular na bolsa, e após
conferir se eu tinha pegado tudo, fechei o meu armário, pendurando

minhas coisas nos ombros. Caminhando em direção a cozinha, ouvi


barulho de unha arranhando contra o piso e como se fosse algo

instintivo, corri em direção ao cômodo e fiquei sobre os meus


calcanhares, deixando que meus amiguinhos me cheirassem e

fizessem festa comigo.


— Não esperava vê-la hoje, Isabel! — Beijei o focinho

molhado dela e ela latiu. — Nem você, Lorenzo.


Acariciei o topo da cabecinha do cachorro que não tinha uma
patinha e ele lambeu o meu rosto.

Deixando a bolsa no chão, abracei-os desajeitadamente,


sem me importar com os pelinhos que com certeza passariam para a

minha roupa e, por um momento, a presença dos cachorrinhos do


meu chefe pareceu acalmar um pouco a opressão que sentia no meu
peito.

Quem disse que animais são anjos estava cheio de razão.


Era impossível não se sentir contente na presença deles.

— Senti falta de vocês dois — disse cheia de alegria.


Fazia pouco mais de três dias que não os via e estava

morrendo de vontade de vê-los e brincar com eles novamente. Por


mim, o senhor Javier os traria todos os dias. Eles não eram os meus
cachorros, mas, nesse pouco tempo de convivência, havia me
apegado e muito aos pequenos. Então, mesmo que eu me atrasasse
um pouco, não negaria ficar com eles um pouquinho.
— Seus cheirinhos são tão gostosos. — Acariciei-os,

voltando a beijá-los, enterrando meu rosto nos pelos macios que


dariam inveja em qualquer um.

— É um perfume importado. — A voz áspera ecoou por toda


a cozinha.
Por mais absurdo que fosse, senti que meu corpo reagia à

presença dele, arrepiando-se por inteiro. Meu coração acelerou no


peito, tanto que eu jurava ser capaz de ouvi-lo ressoando em meu

ouvido. Mas era o impulso de sempre fitá-lo, como agora, que mais
me assustava. Eu não sei o que estava dando em mim, mas desde

que ele havia me protegido e me deixado ver parte de sua


vulnerabilidade, eu sentia um certo magnetismo que me impelia a ele.
Encarei sua expressão ilegível e apesar de ele ser bom em

disfarces, pude perceber que parecia muito mais esgotado do que


da última vez que eu havia servido café para ele. Era como se o

corpo dele estivesse à beira da exaustão e fosse entrar em colapso.


Os olhos estavam vermelhos como se tivesse dormido muito pouco e
tudo nele parecia ainda mais rígido do que quando o conheci. E

mesmo que não devesse, preocupei-me com o seu bem-estar e quis


aliviar o que quer que fosse que o atormentava. Mas eu não era o
seu anjo-salvador, e duvidava muito que um homem que se mantinha
distante de todos iria querer algo de mim.

Apesar de pouco ser dito sobre a sua vida pessoal nas


colunas de fofoca, embora vez ou outra o relacionamento com a ex-

noiva dele tornava-se novamente notícia, ainda mais com as


declarações desagradáveis que ela ainda dava, ele tinha o mundo
aos seus pés e era improvável que não houvesse ninguém na vida

dele que buscasse ajudá-lo, que o abraçasse e cuidasse dele. Não

sei por que o pensamento do senhor Javier ter uma mulher


atualmente me incomodou. Não deveria me importar com o que ele

fazia da vida pessoal, e nem tinha esse direito.

— Deveria ter imaginado — sussurrei, sem saber lidar com o

despropósito.
Me sentei para que os cachorros subissem em cima de mim,

apesar de que era uma tarefa bem difícil pelos dois quererem minha

atenção ao mesmo tempo, e concentrei-me neles, distribuindo


afagos.

— Eles merecem o melhor, não é mesmo? — Beijei cada um

deles novamente.
— Sim, meus perritos[42] terão tudo o que o dinheiro pode

pagar — falou com suavidade e um carinho tão grande que


novamente atraiu minha atenção.

Arrastando uma cadeira devagar, sentou-se de frente para

mim e os cachorros dele, e embora olhasse diretamente para nós,


ele não parecia nos enxergar de fato. Meus pelinhos da nuca se

arrepiaram perante as sombras que pairavam em seus olhos, bem

como o vazio que havia neles.

— Já que eu… — começou a falar, porém interrompeu-se,


como se tivesse se dado conta que não estava pensando, mas

dizendo em voz alta.

E, por uma fração de segundos, o olhar tornou-se cruel, e eu


não gostei daquele pequeno vislumbre de brutalidade que parecia

dirigido a si mesmo. Ainda assim, doeu-me muito. Eu não

compreendia por que me importava tanto com a agonia dele, com a

razão pela qual ele se martirizava tanto. Éramos dois desconhecidos,


afinal.

— Já que...? — questionei, quando minha ânsia por o

desvendar tornou-se incontrolável.


Sua frieza voltou-se contra mim, colocando-me em meu

lugar. Eu não estava em posição de interrogá-lo.


— Você não deveria já ter ido para casa, garota? — O tom

não me surpreendeu.

— Sim, senhor Javier. Eu… — respirei fundo, sentindo


novamente o nervosismo se apoderar de mim e observei Isabel me

deixar para ir em direção ao seu dono, pousando as patinhas sobre a

calça social. — Eu já estava de saída quando vi os seus cachorros.

— Compreendo.
Acariciou a cachorrinha que lambia seus dedos e latia para

ele, parecendo feliz com os carinhos do dono. Apesar da exaustão

ainda estar presente, algo pareceu suavizar na sua expressão


corporal. E vê-los juntos, observar a ternura que o homem tinha para

dar aos bichinhos, me jogava em uma grande tormenta, pois meus

próprios sentimentos se tornavam voláteis. Em minutos vou do

inferno aos céus.


— Vou trocar a água e a ração deles, senhor Javier, já que

eles ficarão aqui hoje — disse, tentando mitigar aquele vendaval.

Ele apenas continuou adulando a cadelinha ao mesmo tempo


que prosseguia com o olhar pousado sobre mim.

— Depois eu irei embora — completei, sem saber como

reagir a intensidade dele, e muito mais aquilo que ele parecia

despertar em meu interior.


Não respondeu e eu me levantei desajeitadamente quando

Lorenzo pareceu perder o interesse em mim e saiu mancando para


se aproximar também do meu chefe, ganhando também sua dose de

carícias. Peguei minha bolsa e coloquei-a em cima do balcão.

— Já tomou café da manhã, senhor Javier? — voltei a


questionar, mostrando uma preocupação excessiva.

— Ainda não, senhorita Garcia — sua voz soou baixinha.

— Gostaria que eu preparasse algo para o senhor comer?

— Inconscientemente me ofereci para fazer sua refeição, mesmo


que soubesse que ele tinha opções melhores do que eu podia

oferecer.

Envergonhada pelo meu impulso, comecei a verificar o


armário, utilizando como uma desculpa, e não contive meu sorriso ao

ouvir os barulhos dos pequenos que denotavam a felicidade deles.

— Se não for incômodo — disse suavemente.

Virei-me novamente para o homem ao som da sua voz, e


dessa vez o olhar dele estava voltado fixamente para os cachorros

que agora brincavam entre si. O senhor Javier parecia lutar para não

me encarar, para não me deixar desconfortável no ambiente de


trabalho, e eu o agradeci por isso ao mesmo tempo em que a

decepção me tomava.
Desde quando eu queria que ele me notasse? Droga!

Só me restava torcer para não ter deixado tão evidente não

apenas o meu desapontamento, mas também o meu rebuliço interior.

Ele ergueu o rosto, demonstrando ironia.


— É esperta o suficiente para pegar uma hora extra,

senhorita Garcia — disse secamente, me jogando um balde de água

fria, colocando um ponto final em qualquer pensamento impróprio.


— Claro, senhor. — Dei um sorriso fraco.

Não tinha por que contradizê-lo e muito menos argumentar

que eu queria fazer porque desejava, não porque era minha

obrigação.
— Prefere que eu prepare primeiro sua refeição ou que cuide

das coisas deles?

— O que você acha, garota?


— Deles. — Suspirei profundamente e os olhos verdes do

meu chefe faiscaram brevemente. — Só irei avisar o meu irmão que

irei atrasar um pouco.

Se ele respondeu alguma coisa, não prestei atenção, pois


pensar em Pablito fez com que a sensação ruim de outrora voltasse

a me invadir. Com os dedos trêmulos, abri minha bolsa e peguei o

meu aparelho celular. Não havia nenhuma resposta do meu


hermanito à mensagem que eu tinha enviado, e outro calafrio

percorreu a minha coluna, sentindo que meu corpo todo ficava


gelado. Respirei devagar várias vezes, buscando me acalmar, e

depois de apagar várias vezes as letras e palavras que tinha digitado

errado, decidi ligar para ele, mas a chamada nem ao menos

completava. Lutei contra a sensação ruim, tentando colocar na minha


cabeça que provavelmente ele tinha esquecido de carregar o celular.

— Garota? — A voz grossa e áspera saiu atrás de mim e eu

dei um pulinho com o susto, deixando o aparelho cair sobre o balcão.


Virei-me em direção ao som e vi que ele estava próximo a

mim, analisando-me atentamente, como se estivesse tentando

desvendar um artefato curioso, enquanto os cachorros latiam e


exigiam a sua atenção.

— Sim, senhor Javier? — Mal reconheci meu próprio tom.

— Parece trêmula e está pálida… — Fez uma pausa,

parecendo sem jeito e eu pude enxergar ainda mais as linhas de


tensão e cansaço que marcavam suas feições. — Está tudo bem?

Fiz que sim com a cabeça. O homem sarcástico e que todos

chamavam de demônio com certeza riria de mim caso eu dissesse


que eu era refém de um sentimento ruim com relação ao meu irmão,

algo que nem mesmo poderia vir a acontecer.


— Tsc.
Seus lábios se ergueram em descrença. Depois de continuar

a me encarar um pouco mais, deu as costas para mim,

demonstrando a minha insignificância, aproximando-se da enorme


janela que ia do chão ao teto, e só então percebi o quão feio o

tempo estava. Eu teria sorte se não pegasse uma chuva forte no

meio do caminho até a estação de metrô.


Suspirando fundo, o cansaço começando a pesar sobre

minhas pálpebras e ombros, intensificado pelo medo, pus-me a

caminhar novamente em direção a dispensa. Quis sorrir quando os

dois bichinhos começaram a me seguir, trotando, balançando os


rabinhos com vigor, provavelmente sabiam que eu iria dar um petisco

que o senhor Javier tinha comprado para eles e que tinha permitido

que eu desse também.


Tirando o meu casaco e colocando-o em cima de uma

superfície qualquer junto com minhas coisas, dei um biscoitinho para


cada um, que saíram correndo, fazendo com que eu soltasse uma
risada baixinha. Em poucos minutos, trançando de um lado para o

outro, enchi os vários potinhos espalhados pelos cômodos com ração


e água, verificando se estava tudo certo com os tapetinhos higiênicos
que, mesmo sendo mais velhinhos, aprenderam a usar. E durante
todo o momento em que estive trabalhando, era consciente de que o
senhor Javier continuava parado fixamente no mesmo lugar, fitando a
paisagem sombria, que parecia tornar-se cada vez mais um reflexo

do próprio homem, o que não era nenhuma surpresa, mas ainda


assim não tornava mais fácil assistir alguém se consumir dessa
forma.

Passei alguns minutos observando os bichinhos comerem


antes de deitarem nas suas caminhas na cozinha, emitindo suspiros
que indicavam que eles iriam dormir. Era muito fofo os sons que eles

faziam antes de cair no sono.


— Eles comeram tudo? — O homem perguntou, preocupado,
quando, depois de amarrar meus cabelos em um coque alto, fui

higienizar as minhas mãos.


— Sim. Devoraram tudo.
Colocando água no caneco, escutei seus passos e o som

abafado dele quando voltou a se sentar na cadeira.


Engoli em seco. Ele não iria esperar no escritório, como

sempre fazia?
Um nervosismo diferente me percorreu ao saber que ele
poderia me observar enquanto eu trabalhava.
— Isabel e Lorenzo sempre raspam tudo das vasilhas —
comecei a falar pelos cotovelos mesmo que, no fundo soubesse que
estava sendo inconveniente. Coloquei o filtro no coador, para depois

pegar o pote de vidro com o pó importado que ele tomava.


Quis rir do quão insensata estava sendo em ficar puxando

conversa com um milionário que claramente preferia o silêncio. Deus!


Eu realmente devo estar com meus nervos em frangalhos para tomar
uma liberdade que não cabia a uma funcionária.

Maneando a cabeça suavemente, voltei a encarar os


conteúdos da geladeira e dos armários, pensando no que eu faria
para ele comer. Montaditos teriam que servir. Não se podia errar no

preparo dos pequenos sanduíches feitos com pão de trigo tostados.


Bem, podia sim, mas já tinha feito demais para Pablito para tornar a
receita intragável.

— ¡Si! — respondeu vários minutos depois e eu arfei com a


surpresa, ainda mais quando ele continuou: — Eles estavam
bastante desnutridos e magros quando os peguei para mim.

— Entendo.
— É por isso que eles comem tudo e não deixam nada. — O

senhor Javier parecia mais falante do que o normal. — Temem que


faltem…
— Lamento muito, senhor.
Senti-me triste pelos cachorrinhos e por vários outros que

passavam essa mesma situação, e também um pouco de culpa por


não fazer nada para ajudar de alguma forma.
— Eu deveria fazer mais — sussurrei para mim mesma.

Ele não pareceu ouvir, ou não quis responder, e eu apenas


continuei a trabalhar, colocando os pães para tostar na frigideira

enquanto ficava de olho na água do café. Logo um suspiro cansado


ecoou nos meus ouvidos, atraindo a minha atenção e, aproveitando
para pegar um prato no outro armário da cozinha, vi que, apesar de

ainda se manter rígido, ele tinha os olhos fechados e a cabeça


jogada para trás, outra vez dando indícios da sua vulnerabilidade.
Novamente minha curiosidade sobre ele foi atiçada, e um

desejo tolo de apagar aquele cansaço me dominou.


— Você me olha demais, garota, mais do que é prudente. —
Estalou a língua ao abrir os olhos e por sorte não deixei a louça cair

por ter sido pega no flagra.


Quis que o chão me engolisse viva tamanho constrangimento,
mesmo que encarar alguém não fosse crime.

Achando que era uma brincadeira do seu “papai”, Isabel fez


sons caninos e latiu, e minha atenção voltou-se para ela, que deixava
a sua caminha e caminhava em direção ao senhor Javier.

— Desculpe-me, senhor.
Voltei para o fogão, desligando as bocas ao constatar que
tudo estava no ponto, e pus-me a passar o café. O cheiro pungente

enquanto a água quente entrava em contato com o pó infiltrou-se nas


minhas narinas e ofereceu-me algum conforto.
— Sempre desculpas, garota. — Foi ácido, repleto de

impaciência. — Tsc. Alguém deveria te dizer que essa palavra não


existe no meu vocabulário e que ela nunca me é bem-vinda.

Não soube o que dizer, tamanho o meu desconcerto.


— Está pronto, senhorita Garcia? — perguntou vários
minutos depois. — Tenho uma reunião em meia hora.

— Só falta finalizar os montaditos, senhor.


Apressei-me para terminar e, dando-me por satisfeita,
coloquei tudo em uma bandeja e comecei a servi-lo.

— Agora pode sair, senhorita — despachou-me como se eu


fosse um inseto. — Meu secretário cuidará da louça mais tarde.
— Tudo bem, senhor Javier. — Assenti com a cabeça. —

Tenha um bom dia.


Ele não retribuiu.
Estava cansada, louca por um banho, com fome e atrasada
para encontrar o meu irmão; então não tinha por que me demorar
mais. Peguei minhas coisas, vestindo o casaco de volta, e conferi

meu celular pela milésima vez, que tinha esquecido temporariamente


envolvida com o senhor Javier, fato que me deixou ainda mais
mortificada e me sentindo decepcionada comigo mesma, pois Pablito

deveria ser a minha prioridade sempre, não um desconhecido que


tinha pessoas para zelar por ele.
Liguei para o meu irmão e de novo não obtive sucesso.

Resignada, cedendo ao turbilhão que voltava a pesar sobre


mim, amassando-me como se houvesse uma bigorna imaginária
sobre minha cabeça, despedi-me dos cachorros, deixando um beijo

no focinho de cada um, sendo retribuída com lambidas.


Assim que deixei o prédio, uma rajada de vento açoitou a

minha pele e eu me encolhi no meu casaco, que não parecia forte o


suficiente para me proteger, e eu comecei a caminhar com mais
pressa para tentar me aquecer, mas uma voz bem conhecida me fez

estacar. Eu comecei a tremer e senti que um suor frio cobria a minha


pele.
Soube naquele instante que minha intuição estava certa

quando me virei e o fitei.


Capítulo treze

Lágrimas se formaram em meus olhos, nublando

parcialmente minha visão, ao ver meu irmão se aproximar de mim,

mancando de uma perna. Meu coração se apertou ainda mais ao ver


o rosto amado coberto de machucados. Os lábios estavam

rachados, com um pequeno filete de sangue escorrendo; as

pálpebras estavam inchadas, tanto que eu mal podia ver os seus


olhos, que ele lutava para manter abertos; e alguns dentes pareciam

faltar em sua boca.

— Pablito? — disse com a voz embargada quando ele parou

na minha frente.

Estremeci ao perceber a tensão que havia no corpo do meu


irmão e eu senti ainda mais medo, não dele, Pablo nunca me

machucaria, mas do que estava acontecendo, principalmente quando

ele não disse nada. Era assustador vê-lo assim.

— Meu Deus, Pablito.

Ergui minha mão para tocar a face ferida, hesitando no meio

do caminho, batalhando contra mim mesma para não sucumbir ao


pânico e cair por conta das minhas pernas trêmulas.
Como se pressentisse, Pablito segurou o meu braço com
gentileza, me firmando.

— Estrellita — emitiu um som que mostrava dor e cansaço.

— O que aconteceu, querido? — insisti, choramingando. —

Por favor, Pablito, me diga logo. Você foi assaltado?

Não sabia se o distrito em que ele trabalhava era perigoso,

mas foi a única coisa que consegui pensar. Os índices de violência


em Madri poderiam ser baixos em relação a outras cidades, mas

ainda ocorrem casos todos os dias.

Fez que não com a cabeça, depois que sim, me deixando

confusa.

— Queria dizer que foi da maneira que está pensando, Babi,

mas infelizmente não posso — sua voz soou baixa.

Tragou o ar, tocando o meu rosto com a mão esfolada,


limpando as lágrimas que caíam, e eu segurei seu braço com mais

força. Eu estava prestes a ter um ataque de nervos.

— Eu não estou entendendo — sussurrei.

— Eu… Eu… — Piscou os olhos, respirando mais fundo, e

fez uma expressão que mostrava sofrimento e angústia. Suas

lágrimas começaram a rolar também. — Eu nunca achei que isso


aconteceria, estrellita. Deus, eu estou fodido.
Ele chorava convulsivamente, aumentando a minha aflição,

então o abracei com força, fazendo com que ele gemesse com a
dor, provavelmente havia machucado as costelas também.

— Precisamos ir a um médico — falei, aflita.


— Eu estou bem, Babi — sussurrou em meio a um arfar —,
essas dores são o menor dos meus problemas, agora.

— Hermanito?
Um calafrio varreu-me de baixo a cima, como se meu sangue

tivesse congelado nas veias. Não havia dúvidas de que estava


completamente pálida, sem reação, meu coração batia tão acelerado

que parecia que sairia pela boca.


— Precisamos conversar, Babi — soou tenso —, mas não
aqui, na rua.

— Então vamos para casa, hermanito. — Afastei-me,


tentando me recompor um pouco. — Deixe-me cuidar de você.

— Não podemos, não é seguro. — Fez uma pausa,


passando a mão com força pelo rosto machucado. — Nunca mais,

creio.
— Você está me assustando — confessei em meio ao
pranto.
— Desculpe por isso, Babi. — Deu um sorriso fraco que se

misturou a careta e ao choro que não havia cessado. — Eu te amo


tanto, mas tanto, que estou me odiando por fazer isso com você.

— Eu também amo você. — Obriguei-me a dizer enquanto o


tocava suavemente, embora parecesse que havia uma grande bola

na minha garganta.
Estava completamente desnorteada e eu tive a sensação
opressora de que Pablito estava me escondendo algo grave e que

me deixaria ainda mais no chão.


— Vamos.

Entrelaçou nossos dedos, não parecendo se importar com a


mão machucada, e começou a me puxar para caminharmos. Mesmo
que ainda fosse cedo, várias pessoas nos fitavam, assustadas,

principalmente ao contemplar o rosto de Pablo. Durante todo o


trajeto para não sei onde, tentei indagar meu irmão novamente,

principalmente o motivo de não podermos voltar para casa, porém


ele nada disse, apenas continuou chorando, pedindo desculpas

várias vezes por algo que não entendia.


Tudo foi um grande torpor de pânico, medo, frio. Os minutos
pareciam horas. Suspirei, sentindo meu corpo todo moído pela

tensão e luta psicológica, bem como o cansaço do trabalho.


Entramos em um quarto barato e pequeno, em uma parte da
cidade totalmente desconhecida para mim, que cheirava suor e mofo.
O lençol da cama de casal estava manchado, com a aparência de

que havia visto muita coisa. Pelo menos tinha um banheiro privativo,
não muito limpo, mas, ainda assim, não precisava compartilhar com

outras pessoas.
— Deus! — Pablito sentou-se no colchão e colocou a mão
no rosto, parecendo desesperado, cedendo as suas emoções.

Ajoelhando-me em frente a ele, trêmula, pousei minha mão


no seu joelho e pedi:

— Me conte o que está acontecendo, hermanito. — Minha


voz saiu em frangalhos. — Por favor, eu não aguento mais ficar no

escuro.
Removendo os dedos do rosto, fitou-me por longos minutos,
e em sua expressão havia dor, ressentimento e medo.

— Como eu queria um jeito mais fácil de dizer isso… —


Fechou os olhos, fazendo uma súplica baixinho. — Eu estou jurado

de morte, Babi. Meus machucados são somente uma recordação do


quanto minha vida… — Não conseguiu terminar.
— O quê? — gritei, ficando de pé em um pulo, meu coração

parecendo parar de bater enquanto meu corpo convulsionava. —


Como assim?
— Eu e alguns colegas fomos emboscados por um bando
rival e perdemos a droga que deveria ser entregue nas boates e

bares na região de Huertas[43]... — Quando ele disse isso, eu


congelei, sentindo minha boca secar. — Eu estou devendo ao chefe

agora…
Lutei para respirar. Aquilo não poderia ser verdade. Era um
pesadelo que eu acabaria acordando.

Não conseguia acreditar que meu irmãozinho estava

envolvido com coisas pesadas, como os meus vizinhos haviam


sussurrado e fofocado, e que eles estavam certos.

Encarei-o por longos segundos, buscando a verdade nos

olhos verdes como os meus. Me sentia afundando em um mar de

dor, medo, angústia e incredulidade quando vi que ele estava, sim,


envolvido com tráfico de drogas.

Era uma completa tola por não ter conseguido enxergar a

verdade esse tempo todo, ou melhor, por não ter quisto ver. Ela
deveria ter estado sempre visível, porém preferi fazer vista grossa.

Deveria ter pressionado mais, questionado. Eu pagaria muito caro

por isso agora. Abracei-me involuntariamente quando as palavras

“jurado de morte” começaram a ecoar na minha mente, zombando de


mim, fazendo com que eu me sentisse estilhaçada, desesperada.

Não podia ser!


— Não, Pablito. — Dei outro grito, recusando-me aceitar que

meu irmão estava naquela situação.

— Me perdoe, Babi. — Escondeu o rosto novamente entre


os dedos, e novas lágrimas quentes deslizaram pelo meu rosto

enquanto ele chorava com força, se xingando baixinho. — Deus, eu

fodi com tudo e cavei a minha maldita cova. Você deve me odiar

agora… e você está no seu direito.


Fiz que não com a cabeça, mesmo que ele não estivesse

vendo o meu gesto.

— Olha para mim, Pablito — pedi em um tom choroso.


— Não consigo, estrellita — sussurrou. — Não consigo ver a

repulsa no rosto de quem mais eu amo. Ver o julgamento...

— Não, querido…
— Se eu pudesse voltar no tempo, porra... mas acho que

não teria feito diferente — falou consigo mesmo, parecendo não me

escutar, e algo dentro de mim se quebrou.

— Por favor, Pablito! — implorei baixinho.


Derrotado, ele se levantou e me encarou, e eu vi o terror

dele espelhando o meu.


Fez um gesto como se fosse me tocar, mas se impediu,

como se se sentisse sujo e meu coração doeu por ele. Peguei sua

mão, percebendo que ele estremecia de dor, e a trouxe para o meu


rosto, que ele acariciou, minhas lágrimas molhando o seu dorso.

— Por quê, Pablito…? — externei minha dúvida, tentando

não o julgar pela sua escolha.

Nem tudo era preto no branco. Por mais condenável que


fosse, pois muitas famílias eram estraçalhadas pelo envolvimento

com o tráfico e o consumo de entorpecentes, eu sabia que muitos

eram impelidos a esse mundo por sentirem que não tinham escolha.
A realidade era muito mais amarga.

— Eu tentei, Babi. — Deixou um beijo na minha testa e eu

senti a aspereza dos machucados contra a minha pele. — Juro que

tentei.
Fechei os olhos no momento em que um pressentimento de

quando ele começou a se envolver com o tráfico invadiu meus

pensamentos. Se antes não o julgava, agora que eu não poderia


condená-lo.

Senti a dor dentro de mim se intensificar ainda mais, uma

tristeza me engolfando.
— Foi por mim, não foi? — Busquei a confirmação. — Para

cuidar de mim depois que a mamãe morreu.


Não respondeu de imediato, mas não precisava. Estava em

sua expressão cada vez mais irreconhecível. Estranhamente o

agradeci por ter feito aquilo, ao mesmo tempo em que senti que eu
era um grande peso que ele teve que carregar. Sem dúvida, a vida

dele teria sido completamente diferente sem ter uma criança para

cuidar.

— Sim, cariño[44] — falou tão baixo que quase não escutei.


— Nossa mãe não contribuía com o seguro social e, como ela se

suicidou, não tínhamos direito a pensão. E havia tantas dívidas...

Não disse nada, apenas o abracei com força, chorando em

seus ombros, esquecendo-me completamente dos machucados nas


costelas dele. O gemido abafado que ele soltou contra os meus

cabelos fez com que eu afrouxasse o aperto.

— Eu tive tanto medo de te tirarem de mim, Babi, e te


colocarem no orfanato — sussurrou contra os meus cabelos, suas

lágrimas molhando meu casaco. — Não sei como isso não

aconteceu, porque sei que eu merecia.


— Não diga isso, Pablito.
— É a verdade, querida. — Colocou uma mecha de cabelo

atrás das minhas orelhas e deu um sorriso irônico; seu rosto ficava

cada vez mais inchado pelos socos. — Mas eu não me arrependo de

ser um maldito egoísta por querer cuidar da minha irmãzinha.


Dei um sorriso fraco, sentindo meu coração sangrar.

— Você me perdoa, Bárbara? — falou sério. — Me

desculpa, por favor, hermanita.


— Eu que deveria te pedir perdão, irmão. — Limpei as

lágrimas dele com as costas dos dedos. — Mas por que você não

me contou antes? Nós poderíamos…

— Tive medo, vergonha, eu… — Inspirou fundo. — Também


quis te proteger de quem eu sou.

Uma parte de mim entendia, enquanto a outra lutava para

processar todas as informações. Minha cabeça rodava, o abalo me


oprimia, ao mesmo tempo em que a angústia me fazia refém.

— E agora, Pablito? — Minha voz saiu num tom

desesperado.

Balançou a cabeça em negativa.


— Não há nada que eu possa fazer, sinto muito por isso. —

Respirou fundo e pareceu ainda mais tenso ao se afastar. — Deus,


agora que pensei nisso, eu devo ter te colocado em risco ao entrar

em contato com você. Porra!


Socou o colchão com força em uma explosão de raiva contra

si mesmo.

— De quanto é? — perguntei, esperançosa, ao ver uma luz

no fim do túnel.
Confesso que não estava me preocupando com o meu bem-

estar. Tudo o que queria era proteger o meu irmão, que ele ficasse

vivo, não importando o quão ingênua eu estivesse sendo.


— Quinze mil euros. — Ao dizer isso, toda a esperança em

mim morreu. — Eles me deram quarenta e oito horas para pagar, já

que sou um membro antigo, mas ambos sabemos que é algo


impossível, nunca terei esse dinheiro.

Deu uma risada amarga que me assombrou, fazendo com

que meu corpo todo sacudisse.

— Mas você ainda tem uma chance, estrellita. — Pegou as


minhas mãos, segurando-as com força e desespero. — Você pode

fugir. Tenho alguns euros no bolso para você tentar recomeçar em

outro lugar.
Fiz que não com a cabeça.
— Nunca poderia deixá-lo, Pablito. — Dei um beijo nas mãos
machucadas dele, mas não me importei, e implorei: — Por favor, não

me peça uma coisa dessas.

— Minha menina… — Suspirou, cansado, envolvendo-me


novamente em seus braços, e eu chorei contra o seu peito largo. —

Eu me sinto tão fodido por ter feito isso com você. Caralho de

monstro que eu sou.


— Você fez o melhor que pôde com o que tinha…

— Deveria ter procurado outra coisa — falou baixinho. —

Eu…

Fiquei em silêncio.
— Mas uma vez que se entra, é quase impossível sair, não

sem pagar um preço alto. Eu… só queria que a noite de hoje fosse

diferente, que eu estivesse mais atento. — Puxou o ar para os


pulmões. — Deveria ter tomado o tiro que foi direcionado a mim, não

ter fugido, e ter acabado com isso de uma vez. Mas fui covarde
demais.
— Pablito! — gritei com ele.

O empurrei, fazendo com que ele uivasse de dor, mas não


me importei, pois suas palavras me feriram bastante. Meu irmão era
a única pessoa que tinha no mundo e ouvi-lo falar como se a sua vida
não importasse, me doía, ainda mais quando me fazia lembrar da
forma que a minha mãe nos deixou ao desistir de tudo.
— Nunca mais diga isso — choraminguei.

Só depois que falei isso que me passou pela cabeça que


meu irmão também deveria andar armado, arma que nunca vi na vida
e não queria ver. Nem perguntaria sobre ela, queria distância daquela

parte da vida dele.


— É a verdade, gatita. — Sua voz saiu áspera, como nunca
tinha ouvido antes, e eu encarei sua expressão séria, ou o que

parecia ser uma. — Desculpe-me, querida. — Puxou-me para dentro


dos seus braços novamente e acariciou os meus cabelos, em um
afago que fez com que eu chorasse ainda mais. — Prometo que não

falarei mais assim.


— Okay.
— Você está com fome, Babi?

— Não. — Meu estômago embrulhava só de pensar em


colocar alguma coisa na boca. — Mas preciso de um banho.

— Está mesmo. — Continuou a acariciar uma mecha de meu


cabelo. — Nunca te vi mais fedorenta.
Quis rir da sua provocação, porém não consegui, a dor era

grande demais.
— Isso não é um pesadelo? — sussurrei.
— Queria dizer que sim, mas infelizmente não posso.
— Tem certeza de que não quer ir ao hospital?

— Acho que não quebrei nada, estrellita, e parece meio


desnecessário gastar comigo — falou em um tom amargo e eu emiti

um som baixinho. — Mas agora vá para o banho, mocinha. Você


precisa descansar.
— Deixe-me cuidar dos seus machucados primeiro.

Toquei a pálpebra inchada vagarosamente, sentindo que


novamente eu estava prestes a ceder ao desespero.
— Não é necessário, Babi. Já fiz isso quando fui no nosso

apartamento pegar algumas coisas.


— Realmente não poderemos voltar para lá? — Fiz uma
pausa. — Tudo que temos…

— Não, infelizmente não podemos. — Deixou escapar um


som cansado.
— Sou uma tola por pensar nisso, principalmente… — Não

consegui terminar, pranteando ao pensar que ia perdê-lo.


— Xiu. Está tudo bem, querida.

— Queria fazer algo por você, Pablito. — Encostei meu rosto


ainda mais no seu peitoral, molhando sua jaqueta. — Queria ter esse
dinheiro, retribuir tudo o que você fez por mim.
Respondeu com um suspiro cansado, e eu deixei-me ficar no

abraço dele, rezando a Nossa Senhora de Almudena por um milagre


enquanto pensava em uma solução, mesmo que soubesse que seria
impossível conseguir essa quantia no prazo estipulado. Talvez um

empréstimo fosse a solução. Tola, nenhuma financeira liberaria um


crédito tão alto para alguém que está há pouco tempo no emprego.

Desesperançosa, chorei ainda mais por não saber o que


seria de mim sem o meu irmão. Mesmo que ele ainda estivesse me
abraçando, me sentia uma garotinha perdida, sem destino, sem

rumo, sem perspectiva. A única certeza que eu tinha era que nunca
abandonaria Pablo, não quando ele se sacrificou e colocou a própria
vida em risco para cuidar o melhor possível de mim e para que

ficássemos juntos. Enfrentaria tudo com Pablito e por ele. Por nós.
Capítulo quatorze

Levei o copo de bebida aos lábios, sentindo o gosto

amadeirado do whisky que, embora fosse envelhecido, estava


intragável. Ou era o meu humor sombrio que não me permitia

apreciar o líquido dourado adequadamente.

Eu estava completamente impaciente e prestes a perder o


controle naquele salão cheio de playboys irritantes, empresários

soberbos e modelos siliconadas em busca de uma nova caça, para

dar seus corpos e sexo em troca de luxo, o que me deixava enojado,


tanto que ignorava todas elas, mas não poderia chamar aquela festa

de um grande desperdício de tempo. Havia conseguido marcar uma


reunião para o dia seguinte logo cedo com um bilionário árabe do

ramo do petróleo que, segundo meus informantes, estava sondando

a financeira de Castro em busca de um novo consultor para investir

na bolsa de Madrid, que vem apresentando uma alta significativa.

A oportunidade de triunfar mais uma vez sobre o meu maior

inimigo deveria me deixar satisfeito, mas tudo o que sentia era um


grande nada. Um vazio. Sentimento aumentado pelo cansaço da

noite insone em que fui atormentado por lembranças que, por mais
que eu tentasse sufocar, pareciam ter o poder de me machucar. Não
fisicamente, não mais. Não importava que eu dissesse a mim mesmo

que eu era um homem adulto. O pior era as imagens zombeteiras da

bebê que eu nunca poderei ter, sorrindo para mim com docilidade.

Elas me cortavam mais do que qualquer açoite daqueles que

marcaram a minha pele.

Sorri com amargor, tomando a bebida em um gole só,


sentindo somente um leve ardor na minha garganta. De fato, não era

apenas o meu estado de espírito que a deixava horrível, mas, sim, a

qualidade, que era deplorável.

— Os Benavides já foram melhores anfitriões — falei comigo

mesmo.

Pousei o copo em cima da mesa redonda do jardim de

inverno, onde eu tinha me refugiado, longe de toda a agitação,


apesar que a música e o barulho das conversas conseguiam

alcançar aquele cômodo afastado do prédio principal, e acomodei-

me melhor no banco. Como provavelmente ninguém ousaria me

seguir, além de que tinha sido bastante discreto ao deixar o salão

principal, fechei os olhos e deixei-me consumir pelas sombras e

demônios que durante o dia todo haviam roubado a minha


concentração, sem me preocupar em me esconder por detrás da
frieza. Poderia ser um erro, mas já havia cometido vários outros em

menos de um dia, e todos eles se relacionavam com aquela garota


morena de olhos verdes e lábios rosados e cheios.

Sim, tinha sido errado olhar para a boca bem-feita que havia
sorrido para os meus cachorros quando brincava com eles, como se
realmente se sentisse feliz ao deixar que os dois lambessem seus

dedos e rosto, sem se preocupar com os pelos que deixariam em


suas roupas. E, enquanto a fitava, por um momento, acreditei que

não era apenas dissimulação da parte dela, mas logo sufoquei essa
ideia dizendo que isso não a tornava menos traiçoeira.

Errei em ficar na companhia dela. Com medo de ficar sozinho


comigo mesmo, não sabendo lidar com o turbilhão de emoções
conflituosas que roubavam meu raciocínio, acabei falando mais do

que deveria, impelido pelos demônios que me atormentavam. A


solidão a que estava tão acostumado não me era mais uma

companhia agradável, pelo contrário, me era amarga e sombria. E


mais uma vez eu desejei alcançar novamente a luz... dela. Quis

absorver aquela alegria que sempre parecia irradiar da menina,


mesmo que isso significasse demonstrar ainda mais a minha
vulnerabilidade que tentei disfarçar com rispidez.
O tiro saiu pela culatra quando a linguagem corporal dela

tinha me dito que algo a atormentava, roubando a sua felicidade. E o


meu instinto fez com que eu deixasse minha preocupação pelo bem-

estar dela bastante evidente, ao fazer uma pergunta que faria a


poucos. Não tinha sido algo leviano, mas genuíno, tão intenso como

da vez em que tinha afastado o filho do Gonzáles dela quando a vi se


encolher. Mas ao mentir, a garota jogou toda a minha preocupação
em um grande ralo, empurrando-me ainda mais para o precipício.

Soltei uma gargalhada alta, demoníaca, que ecoou por todo


o ambiente. Bati minha cabeça no assento do banco e abri e fechei

as mãos, sentindo a raiva fluir em minhas veias, transformando-me


em uma besta, uma fera, que estava doida para estraçalhar alguém.
Talvez eu já devesse foder logo com a vida de Castro de uma vez ou

até mesmo de Angelina...


— Pensei que havia aprendido a sua lição há muito tempo,

bastardo...
A voz feminina levemente rouca e cheia de escárnio fez com

que eu saísse do meu transe de pensamentos, porém não reagi.


Culpei-me por não ter prestado atenção ao som de passos se
aproximando, um erro que não me perdoaria, meu cansaço não

justificava meu deslize.


— Ou os açoites que ministrei foram poucos? — continuou
quando não respondi.
Riu alto, como se contasse uma piada, fazendo com que meu

corpo todo ficasse ainda mais rígido e tenso. Tive que me conter
para não estremecer e nem deixar que as lembranças do que ela me

fez me dominassem.
— Você ama tanto assim minha presença que precisou vir atrás de
mim, velha? — retruquei arrogantemente, dizendo a mim mesmo que

ela não tinha mais poder de me machucar, nem mesmo de me foder


emocionalmente.

Abrindo os olhos, encarei a mulher morena que todos


consideravam um exemplo de virtude, bondade e beleza, mas tudo o

que consegui ver foram os cabelos pintados de preto, o rosto cheio


de plásticas, que nem assim disfarçavam as rugas, muito menos a
maldade que ela escondia de todos. Tinha que admitir que ela era

boa em interpretar papéis, mas um dia a máscara dela, a de uma


doce senhora idosa, iria cair. Por enquanto, eu apenas jogaria seu

jogo fodido.
— Não teve de mim o suficiente? — prossegui, dando um
sorriso maldoso.

Bufou, corajosa.
Levantei-me, ajeitando o meu terno, que eu sabia estar
impecável, e aproximei-me dela. Vi os lábios pintados de vermelho
tremerem quando fiquei frente a ela.

— Ou quer matar a saudade daquilo que perdeu? — Fui


cruel.

Sabia que falar sobre a morte do meu progenitor seria o


suficiente para fazer com que a máscara cuidadosamente colocada
dela caísse, e ela não me decepcionou, seus olhos se arregalando

com o impacto das minhas palavras.

— Muitos me dizem que eu sou parecido com o seu precioso


filho...

Ficou muda por alguns segundos, mas não demorou muito

para que aquele brilho assassino e desumano, que tinha visto muitas

vezes ao longo da minha infância, e que parecia ser apenas


direcionado a mim, surgisse.

— Como ousa, seu bastardo?

Respondi com um arquear de sobrancelha.


— Como se atreve a falar daquele que você matou? — Se

aprumou.

Cada vez que me açoitava ou agredia, a mulher deixava mais


do que claro, através da força aplicada, o quão ela me culpava pelo
acidente automobilístico que tirou a vida do meu progenitor e de sua

esposa, que estava grávida do meu meio-irmão. Essa lembrança


fazia com que ela me odiasse e me culpasse ainda mais, pois ela

tinha perdido o herdeiro legítimo dos Castillos, o que tanto sonhava,

e ganhou um bastardo em troca.


— Que eu saiba, não era eu quem estava dirigindo bêbado e

que matou outras pessoas no processo.

— Desgraçado! — Ergueu a mão para desferir um tapa na

minha cara, mas segurei o pulso fino, cheio de veias saltadas, e a


impedi.

Não me tornaria um agressor de mulheres, mesmo que

estivesse por um fio de perder todo o meu controle e a capacidade


de raciocinar coerentemente, só a contive.

— Me solte! — tentou arranhar meu rosto com a mão livre e

eu a agarrei também, fazendo com que ela choramingasse, como se


fosse uma criatura inocente. — Você está me machucando.

Eu sabia que não.

— Não ouse levantar a mão de novo para mim, megera... —

Minha voz soou fria.


Soltei-a com força. Ela ergueu os braços, massageando os

pulsos falsamente, enquanto me observava com fúria, como se isso


me colocasse algum medo.

— Não sou mais o garoto que você machucava para

descontar a sua frustração. Lembre-se bem disso.


Rilhou os dentes com força. Quando voltou a erguer a mão,

eu apenas me mantive impassível, desafiando-a silenciosamente.

Como se fosse uma rainha, levantou o queixo para mim

arrogantemente e interrompeu o gesto.


— A prostituta da sua mãe deveria ter te abortado, como eu

havia sugerido — sibilou.

Ignorei a dor que irradiou por todo o meu corpo com a sua
fala. O fato da minha mãe ter me abandonado no hospital sempre

seria um espinho cravado em meu peito, porém não queria dar ainda

mais arma a minha avó, demonstrando o quanto ela me machucava.

— Ela não queria você — continuou, vitoriosa. — Se


quisesse, ela não teria deixado o bastardinho dela comigo, não é

mesmo?

Riu cinicamente.
— Você é a maior desgraça das nossas vidas. Minha e dela.

— Se isso é tudo... — Obriguei-me a me manter indiferente

e fui pegar o copo vazio em cima da mesinha.


A solidão sussurrava em meus ouvidos e a mente moldada

por anos de abusos começava a acreditar na veracidade daquilo,


então precisava sair dali.

— Com licença, senhora.

Dei as costas para ela, pois sentia que em poucos segundos


eu me quebraria. Mas quando ia começar a caminhar para deixar o

jardim de inverno, a voz arrogante fez com que eu parasse.

— Ainda não acabei com você, bastardo.

— Pois eu não tenho mais nada para falar com você,

vieja[45]. — Estalei a língua com desdém, voltando a caminhar.

Ela segurou o meu braço, e eu senti o toque dela como se

fosse um dos seus castigos. Meu corpo instantaneamente virou uma

pedra e um suor frio empapou a minha pele com o calafrio que me


varreu. Como se fosse um autômato, virei-me em sua direção e fitei-

a de cima a baixo, com o olhar repleto de desdém.

— Já disse para nunca mais me tocar, megera. — Meu tom


foi aveludado, perigoso, e me desvencilhei dela. — Quer sofrer as

consequências?

Estalou a língua, seus olhos brilhando.


— Sabemos que você é um frouxo que não fará nada a

respeito…
Não me dignei a responder.

— Só queria te contar uma novidade, demônio.

Dei as costas para ela.

— Não estou interessado em nada do que você possa dizer.


Dando de ombros, voltei a dar alguns passos, ouvindo o

barulho dos saltos dela quando me seguiu.

¡Mierda! A desgraçada quer fazer da minha noite ainda mais


infernal. Olhei para o copo vazio desejando que tivesse uma

generosa dose da bebida intragável.

— Coloquei a fortuna dos Castillos nas mãos do seu

“amiguinho” Castro — disse à queima roupa e eu me detive, minha


sobrancelha erguendo-se involuntariamente. — Ele é o novo

consultor financeiro da família. Nunca deixaria algo tão importante

nas mãos de um bastardo.


— Isto não me importa nem um pouco, muito pelo contrário.

— Não contive meu tom de escárnio. Fiz uma pausa. — Assim você

facilita muito as coisas para mim, velha.

Ela emitiu um som de desdém, e eu me virei para ela,


deixando que visse um sorriso debochado tomar os meus lábios,

expressando sentimentos que a velha tanto odiava.

— Não vejo em quê, bastardo.


— Para que estragar a surpresa, não é mesmo? —

Provoquei-a.
— Filho de uma puta.

Jogando a cabeça para trás, gargalhei alto. Ela cerrou as

mãos em punho, seu olhar era assassino.

— Tem mais ainda.


— É mesmo, velha? — Tsc.

— Eu serei madrinha do bebê que a Angelina e Castro estão

esperando — disse em triunfo.


— Que bom para você, senhora.

Mantive minha expressão neutra, mesmo que por dentro a

notícia tenha sido recebida como uma facada. Apesar dos meus
anseios em ter um filho, havia respeitado a decisão da Angelina de

focar na carreira de modelo até se sentir verdadeiramente pronta

para ser mãe. No fim, pegá-la na cama com o meu inimigo não foi a

sua pior traição. Ter o bebê que eu sonhava com o homem que mais
odiava, depois do meu pai, era a pior delas.

¡Maldita ramera[46]!.

— Pena que Castro precisará fazer um teste de DNA para

ter certeza de que é realmente dele, não é mesmo, Magda? —


continuei, zombando, mascarando minha frustração, tristeza e fossa.
— Pelo menos ele saberá como é ter um filho e ser amado
de volta. — Deu um sorriso malicioso. — Você nunca conhecerá o

amor, bastardo. E por mais que você sonhe com o dia que carregará

o seu próprio bebê no colo, ambos sabemos que isso nunca


acontecerá.

Uma fúria cega me invadiu por aquela mulher conhecer meus

anseios, que provavelmente haviam sido revelados pela minha ex-


noiva. Eu não tinha mais controle sobre mim mesmo. Respirava

ofegante, meus dentes estavam trincados com força e meus punhos

cerrados tão forte que consegui sentir minhas unhas machucarem

minhas palmas.
— Tenho que me parabenizar pelo excelente trabalho que fiz

em destruir você, e também a Angel que, sem saber, garantiu que

você nunca mais irá confiar em outra mulher para gerar o seu
bastardinho.

— Basta!
Com fúria, joguei o copo vazio na parede atrás dela, fazendo
com que ela desse um pulinho com o susto. Precisou de poucos

segundos para se recompor, mas logo a mulher arrogante retornou,


olhando-me como se a batalha tivesse sido ganha por ela.
— Morrerá sozinho e sem amor — continuou a zombar,
flagelando-me com a sua língua.
Mas não demonstraria mais quanta dor ela me causava.

— Igual a você, velha — sussurrei. — E o dia que isso


acontecer, pode ter certeza de que rirei, e alto. Ainda mais que
estará na merda, o que você merece.

Sem esperar uma resposta, dei-lhe as costas e, com passos


largos, afastei-me dela. Sentia todos os meus ossos doerem com a
tensão, ficando ainda mais irritado quando sua risada chegou aos

meus ouvidos.
Não me importando com as pessoas que me fitavam com
curiosidade, e muito menos com a minha aparência, que com certeza

fazia jus à alcunha de demônio de gelo, deixei aquela festa e pedi


que meu motorista me levasse ao único lugar onde eu poderia me
acalmar: meu escritório.

Assim que entrei no carro, as lembranças dos castigos


ministrados por Magda me invadiram, tanto que eu poderia jurar

sentir a dor dilacerando a minha pele. A rejeição da minha mãe,


jogada na minha cara, pulsava na minha mente.
Não entendia por que ela tinha desistido de mim, sem ao

menos tentar.
Mas essa dor de saber que eu era indesejado tornou-se
ainda pior enquanto eu crescia. Além de sofrer com sua ausência e
com a fúria da minha avó, assistir filmes e desenhos que pregavam o

amor materno incondicional e ver os meus colegas de escola


comemorando a data com as suas genitoras, recebendo beijos e

abraços, era um martírio. Nesses momentos, eu odiava a mulher que


me deu a vida por me deixar refém da mãe do meu pai, me roubando
o afeto que toda criança deveria ter.

Independente do tempo que tivesse passado, a mulher que


me gerou tinha o poder de me destruir por dentro, fazendo com que
eu sofresse em silêncio, já que externar me era proibido. Era uma

ferida que nunca se cicatrizaria, que havia me deixado vazio.


Porém, era a dor por não poder ter um filho, o bebê que
Angelina teria com Castro, que mais me dilacerava.

Fechei os olhos, mergulhando em caos.


As sombras, a amargura, e a desesperança pareciam
ter, finalmente, me vencido.
Capítulo quinze

— Chegamos, señor Javier.

Abri os olhos ao escutar a voz do meu motorista e olhei

através da janela escura pelo insulfilm a silhueta do edifício iluminada


pela luz do poste.

Havia perdido completamente a noção de tempo e espaço.

Eu era uma mistura volátil de raiva, fúria, tristeza e


esgotamento por, em algum momento, ter passado a culpar a mim

mesmo por não me permitir ter contato com outro ser humano,

dizendo também, repetidamente, que o que eu tinha me bastava.

— Obrigado, Juan — murmurei, removendo o cinto e abrindo

a porta do carro para sair.


— Por nada, senhor Javier. É para aguardá-lo no

estacionamento?

— Passarei a madrugada e a manhã inteira no escritório. —

Como sabia que não conseguiria descansar, era inútil ir para o meu

apartamento. — Só passe para buscar meus cachorros e traga-os

para cá. Depois, você pode ir para sua casa.


— Tudo bem, senhor. — Foi discreto em não comentar a
minha fala grande demais, meus hábitos e meu estado de espírito.

Saindo do veículo blindado, sem me importar em fechar a

porta, caminhei com passos enérgicos em direção ao arranha-céu,

mas não sem antes perceber que as luzes do meu escritório estavam

acesas.

¡Carajo! Não queria ver outra vez aquela garota que me


oprimia com sua alegria maldita, com seu rostinho falsamente

ingênuo. Só de pensar em vê-la eu sentia raiva, mesmo que não

tivesse feito nada diretamente a mim. Se fosse sincero, não queria

ver mulher traiçoeira alguma. De algum modo, a senhorita Garcia

parecia personificar tudo o que eu não alcançaria.

— Maldita, garota — resmunguei para mim mesmo,

passando a mão pelos cabelos, pouco me fodendo para os


seguranças. Não me reportei a eles, indo diretamente para o

elevador. Eu que mandava ali; se quisessem, o demônio teria o

prazer em fazê-los perder o emprego.

Encostando a cabeça na superfície de metal, coloquei as

mãos nos bolsos e deixei-me consumir pela fúria e derrota,

canalizando todos os sentimentos ruins em mim mesmo, xingando-me


de todas as formas possíveis, gargalhando alto com a minha

autodestruição.
— É culpa sua, seu mierda. — Ri ainda mais ao sair do

elevador. — Seu dinheiro não pode comprar o que você quer,

cabrón[47].

Estaquei com a ideia absurda, sentindo uma fração de


esperança sobrepujar a dor que estava sentindo, levando-me a ter
pensamentos irracionais que nunca havia tido antes e que me

pareceram completamente bloqueados.


Eu poderia comprar um filho?

Soava como algo absurdo, porém a ideia foi criando cada


vez mais raízes na minha mente, mas logo a descartei ao recordar

que na Espanha barriga de aluguel era proibido, e eu não estava


disposto a passar um ano da minha vida em um país onde a prática
era permitida, já que isso significaria abrir mão de outra parte que eu

também almejava. Eu nunca poderia ter os dois ao mesmo tempo.

— Infierno[48] — sussurrei.

Voltei a caminhar em direção ao meu escritório, sentindo a


cólera e a dor se espalharem por cada poro do meu corpo enquanto

o frio se apossava de mim junto com a solidão. A ideia tola tinha


cumprido o seu papel em terminar de me massacrar.
Não contive outra vez o riso, só que dessa vez, um amargo,

que ecoou pelos corredores pelos quais eu passava.


Mecanicamente, abri a porta que dava para o meu escritório e fui

direto para o meu decantador. Parei subitamente ao ouvir um fungar


baixo, que poderia ser fruto da minha imaginação, mas não era. Um

calafrio me invadiu e instintivamente eu girei meu corpo para ver a


garota sentada no meu sofá com as mãos trêmulas cobrindo o rosto,
chorando, parecendo completamente alheia a minha presença.

Silenciosamente, me aproximei com passos lentos e


hesitantes e fiquei a menos de um metro de distância dela. O choro

convulsivo me desestabilizava, mas depois da minha demonstração


de preocupação ter sido ignorada por ela, eu não me importaria o
mínimo. Era problema dela, não meu.

Fora que ninguém nunca se preocupou com as minhas dores.


Pelo contrário, faziam vista grossa.

Que se foda!
— Primeiro cantar e dançar; segundo, brincar com os meus

cachorros. Não deveria ser uma surpresa saber que também pago
você para ficar chorando no meu sofá — minha voz soou ríspida,
completamente na defensiva.
— Senhor Javier… — A voz soou fraca ao saltar do assento
e instintivamente a mão dela caiu sobre o colo, mas ela não se
ergueu como era de se esperar.

Mantive minha expressão impassível ao encarar os olhos


verdes sempre cintilantes, agora avermelhados. O rosto mostrava

exaustão, como se não houvesse descansado, parecia um espelho


do meu, porém pus de lado aquela comparação que faria com que
minha determinação esmorecesse. Demônios não sentiam

compaixão, nem nada.


Virando-me, ignorando o som baixinho dos soluços, com

passos lentos, cruzei a distância que me separava do meu


decantador, me servindo de uma dose dupla de whisky. Rolando o

líquido no recipiente, ergui o copo em direção a minha narina e inalei


o aroma da bebida envelhecida que rescendia a carvalho, trufas e
frutas secas. Excelente, tudo o que precisava. Porém,

diferentemente do que tinha ansiado, não levei a bebida aos lábios,


tomando tudo em um gole só, apenas continuei a brincar com a

bebida, girando-a. O whisky de milhares de euros de repente não me


parecia mais atrativo.
— Sabe o que realmente deveria me surpreender, garota?
— O quê? — Falou em um tom mais alto, mas trêmulo e
estrangulado, e voltei a encará-la, percebendo que ela estava parada
no mesmo lugar, ainda chorando copiosamente.

Dei um sorriso de desdém.


— Eu não ter te demitido no primeiro dia que a encontrei no

meu escritório.
Ficou de pé tropegamente e passou a mão com força pelo
rosto, deixando-o ainda mais avermelhado, em uma tentativa falha de

limpar a trilha molhada, já que, continuava a chorar.

— Não importa, senhor Javier. — Ergueu o queixo e me fitou


diretamente, com uma coragem que contrastava com os olhos

opacos, bem como com a tristeza evidente.

Mesmo que não quisesse, a admirei por isso, principalmente

por não se esconder como um ratinho assustado e submisso como


das últimas vezes. Não eram todos que tinham a ousadia de me

desafiar daquela forma. E, estranhamente, meu humor instável achou

aquilo bastante interessante.


Droga!

Beberiquei meu whisky automaticamente e apoiei meu corpo

na minha mesa, enquanto assistia a menina pegar a vassoura até


então esquecida.
— É mesmo, garota?

— Sim.
Fez uma expressão de dor e pareceu ficar pálida e,

inconscientemente, o braço livre envolveu a sua cintura, chamando a

minha atenção para aquele ponto. Mesmo que o uniforme fosse


grande para ela, o gesto fez com que eu visse o quão fina sua

cintura era, proporcional aos quadris mais largos.

Desviei o olhar, me recordando do meu voto de nunca mais

me deixar levar por pensamentos luxuriosos e pelo desejo, do quanto


eu tinha pagado caro por aquilo, com a minha autoestima como

homem.

Contendo a risada amarga, voltei a encarar o rosto dela, que


parecia alheia ao meu escrutínio.

— Então se demita — fui grosso e ela olhou para mim.

Uma lágrima grossa escapou por um de seus olhos, e a vi


trilhar toda a sua bochecha.

— Eu vou fazer isso mais tarde, senhor Javier.

Escondi o espanto e também o desgosto por perder uma

boa funcionária, bem como a sensação de que a garota estava, de


algum modo, abandonando meus cachorros, que, mesmo que eu não

desejasse, iam correndo brincar sempre que ela estava ali e


pareciam apegados à minha funcionária. Detestei a garota por sumir

da vida de Isabel e Lorenzo, dois animais que já sofreram demais

pelos maus tratos, pelo abandono por conta das suas deficiências;
por privá-los dos afagos que lhe eram dados por ela.

Perversa!

Com os dois, eu havia chegado o mais próximo de conhecer

o que era amor e afeto. Imagens deles procurando a garota e não a


encontrando no lugar que ela deveria estar invadiram a minha mente,

e eu soube que não poderia perdoar o fato dela feri-los. Nunca!

— É mesmo, senhorita Garcia?


— Sim.

Tomei um longo gole da bebida, fazendo um som quando ela

queimou minha garganta, esquentando o meu corpo, que parecia

gelado.
— Faz-me um grande favor então. — Não deixei que a

garota respondesse e soei maldoso: — Mas vou querer que você

cumpra o que está estabelecido no contrato.


— Eu não posso, senhor.

Franzi o cenho.

Trêmula, parecendo que a qualquer momento iria cair, voltou

a se sentar no meu sofá como se fosse uma convidada, chorando


outra vez, mas dessa vez convulsivamente. Os ombros delgados

subiam e desciam com a intensidade do pranto.


— Não? — questionei.

Balançou a cabeça em negativa, fazendo com que os

cabelos escapassem do coque que costumava usar, e meu lado


perverso quis passar os dedos entre as mechas longas e escuras

que pareciam ser sedosas ao toque, apesar de não ser o mais bem

cuidado que tinha visto. Queria brincar com as pequenas ondas que

emolduravam o seu rosto, acariciando-as, consolando-a.


— Então se prepare para lidar com as consequências de

quebrar as cláusulas do documento que você assinou — cuspi,

culpando a bebida pela minha falta de controle, embora estivesse


muito ciente que estava sóbrio, nunca deixaria que o álcool roubasse

meus sentidos.

Uma gargalhada surgiu em meio ao pranto, não escondendo

o seu desespero, e ecoou por todo o meu escritório.


Instantaneamente eu fiquei tenso enquanto meu coração

acelerava no peito. Foi o suficiente para que eu virasse o restante da

bebida no copo em meus lábios.


— E você acha que me importo, Javier? — Não usou a

formalidade exigida, mais uma vez me tirando do eixo pela sua


audácia, que estava longe de ser o comportamento que exigia dos

meus funcionários, e deu-me um sorriso fraco, que rivalizava com os

meus. — Isso será o menor dos meus problemas.

Colocando o recipiente sobre a mesa, olhei-a de uma forma


que nunca tinha feito antes, sentindo compaixão pelo seu desespero.

Achando-me completamente ridículo, massacrei a piedade sentida

como se eu pegasse um torrão de terra e esmagasse entre os meus


dedos. Mas ela retornou com força ao escutar a amargura,

contrapondo-se a felicidade infantil que havia nela.

— Por favor, vá em frente, Javier. — Fez uma pausa para

soltar outra gargalhada que gelou a minha espinha. Abraçando a si


mesma, totalmente exposta e vulnerável, voltou a falar: — Ter um

processo no meu currículo não é nada se comparado ao fato de que

sempre carregarei o peso de não ter dinheiro suficiente para salvar a


vida do meu irmão. De ser uma inútil…

— O quê? — Dei um passo à frente, meu cérebro

demorando a processar a gravidade da situação.

— Isso, sou uma inútil que não pode salvar o irmão da


execução. Ele entrou no tráfico de drogas apenas para dar-me uma

vida melhor...— Soou ferida e, por instinto, comecei a me aproximar


dela. Seus olhos estavam voltados para mim, mas parecia não me

enxergar.
— Senhorita Garcia…

— ¡Dios! Estou com tanto medo de perdê-lo! —

choramingou. — Conversei tanto com ele, mas não conseguimos

achar nenhuma solução. E as quarenta e oito horas estão passando


muito rápido.

Me detive perante suas palavras, parando no lugar. A ideia

de ter um filho que tinha sido descartada voltou a ganhar tanta vida
que, sem controle nenhum, meu corpo todo começou a tremer.

Encarei a mulher frágil por vários minutos, e eu soube que eu

poderia, sim, ter as duas coisas que eu mais almejava.


Por mais cruel que fosse com a garota, “el demonio de

hielo'' agarraria essa oportunidade que lhe foi dada sem hesitar. Eu

estabeleceria os limites. Manipularia a vulnerabilidade dela ao meu

favor. Nada me impediria. Eu passaria por cima do que era certo ou


errado naquela situação.

Determinado, dominado pelas sombras, pela selvageria e

também consciente de que havia um requinte de truculência naquilo


que estava prestes a fazer, cruzei a distância entre nós, parando a

sua frente. Eu estava ofegante, sem nenhum controle.


Sem hesitar, quebrando promessas, inclinei-me sobre ela e
levei a minha mão ao queixo da garota com certa pressão e o ergui

para mim, fazendo com que os olhos verdes dela me fitassem com

surpresa em meio a tristeza. Desconsiderei a sensação causada por


sentir o calor da pele macia contra os meus dedos.

Usaria aquele leve toque para manuseá-la, deixando-a onde

eu queria.
As mulheres poderiam ter me ferido um dia, mas eu usaria

aquela para os meus fins.

— Senhor Javier? — sussurrou, voltando à formalidade,

quando eu não disse nada, parecendo dar por si que havia falado
demais.

— Quão desesperada você está para salvar o seu irmão,

senhorita Garcia? — Falei com uma voz fria, desprovida de emoção,


contrariando o turbilhão de emoções que se agitavam em meu

interior.
— O quê? — Seus lábios cheios tremulavam e eu senti sua
respiração tocar-me.

— Quão longe você iria por ele, garota? — Fiz uma pausa.
— Quais os seus limites?
— Não estou entendendo, senhor — sussurrou.
Girou levemente o rosto, mas não deixei que ela desviasse o
olhar dos meus, por mais abusivo que eu estivesse sendo. Não
estava agindo melhor do que o filho do Gonzáles.

— Eu tiro o seu irmão da encrenca que se meteu com o


mundo do crime, seja lá qual for.
Um brilho cruzou as suas feições e eu vi a esperança nascer

nela, tornando seu rosto cansado mais suave.


— Eu não teria como te agradec…
— Espere, garota — interrompi-a grosseiramente. — Eu não

faço favores.
— Entendo, senhor Javier. — Engoliu em seco. — E o que
eu tenho que fazer em troca?

— Me dará um filho.
Capítulo dezesseis

— O quê? — Voltei a repetir a pergunta, mas não consegui

acreditar naquilo que meus ouvidos haviam escutado. Era como se

fosse algo criado pela minha mente e precisasse da confirmação.


Eu era uma vítima presa no torpor da dor, do desespero,

bem como do calor do seu toque exigente, que não deveria mexer

tanto comigo quanto fazia. Me senti suja, podre, pois, por mais que
tentasse negar, eu gostava da textura da sua pele na minha. O rosto

bem-feito com a barba por fazer estava muito próximo ao meu, tão

próximo que eu conseguia enxergar todas as linhas de tensão e

cansaço que marcavam a fachada rígida, inexpressiva, e, mesmo

sofrendo, quis consolá-lo também.


— Um filho... — Sua voz saiu áspera. — Eu quero que você

me dê um bebê, garota.

— Eu não sabia que você tinha um senso de humor tão

perverso — sussurrei em um impulso, ferida, com as lágrimas

escorrendo pelas minhas bochechas, esquecendo-me pela segunda

vez que estava soando informal. — Dizem muitas coisas sobre você,
mas, satírico?
— Pareço estar brincando?
Trouxe meu rosto para mais próximo ao dele, poucos

centímetros nos separando. Senti a fúria gelada dele bafejando

sobre mim, ao mesmo tempo que pude ver nos seus olhos uma ânsia

crua que me dava a certeza de que não era uma piada. Ele

realmente desejava um filho.

Minha mente começou a rodopiar, tentando assimilar o que o


senhor Javier queria de mim, mas me parecia completamente

impossível.

Era surreal demais, um sonho estranho.

Nunca poderia me imaginar naquela situação. Um homem

poderoso e rico como ele não precisava recorrer a tal medida

desesperada. Ou precisava?

Não sabia como reagir.


— Responda, pareço estar brincando? — murmurou.

— Não, senhor.

Soltou-me, e eu senti a perda do contato e do calor

imediatamente.

Tola. Embora eu tenha saído da puberdade há pouco tempo,

eu reagia como uma adolescente boba, igual aquelas dos filmes, que
não sabiam se comportar perante o garoto mais bonito da escola.
Dei um sorriso amargo ao pensar que tinha sido essa menina uma

vez e o resultado disso foi desastroso para mim.


Soltei um suspiro baixinho, de alguma forma aliviada pelo

olhar dele parecer distante e não zombar da minha reação.


— Nunca brincaria a respeito de ter um filho — falou tão
baixo, mais para si mesmo, que quase não o escutei, presa na minha

vergonha.
O tom de voz melancólico reforçava o desejo dele, e tudo em

mim se compadeceu por aquela ânsia, que beirava a angústia, de ter


uma criança. Meu coração passou a bater apertado pelo homem

poderoso à minha frente, a compaixão falando mais alto.


— Desculpe-me, senhor… — forcei-me a dizer.
— Não quero suas desculpas, garota. — Pareceu emergir

dos seus pensamentos que beiravam ao abatimento, seu olhar


faiscando de fúria por ter sido escutado. — Quero saber se você me

dará um filho em troca da vida do seu irmão.


Não consegui responder, pois sentia dor por ele, por mim,

por Pablito.
— Pagarei também uma quantia generosa para você
carregar o meu filho no seu ventre. — Foi cínico, frisando as

palavras quantia e meu filho.


Era um tapa na minha cara, porém tudo o que eu conseguia

pensar era que por de trás da amargura presente em sua voz, havia
muito mais sobre ele que deixava entrever, mas não tive tempo para

refletir sobre isso, muito menos das implicações contidas naquela


frase, pois o senhor Javier fitou a minha barriga com intensidade.

Fiquei envergonhada por ter o seu olhar cheio de cobiça sobre uma
parte do meu corpo, mesmo estando coberta, e o acanhamento que
me dominava se intensificou quando senti que reagia ao escrutínio

dele; um calor estranho parecia irradiar do meu abdômen e se


espalhar lentamente por cada pedaço do meu corpo, principalmente

pelo meu sexo, algo que definitivamente não deveria sentir.


¡Dios! Eu me comportava como uma devassa, uma
prostituta, ainda mais naquela situação em que tinha tanta coisa em

jogo, quando eu me consumia em desespero. Novamente senti nojo


de mim mesma por não ter nenhum controle sobre meu corpo, não

quando ele parecia ter todo o foco em mim.


— Oferecerei um futuro para o seu irmão em uma das

minhas empresas, se é isso que você precisa para aceitar —


continuou, como se estivéssemos em uma mesa de negociação.
Ele não parecia um demônio, mas sim um tubarão que

rondava a sua presa antes de atacá-la.


— Mas ser barriga de aluguel não é proibido? — Minha voz
saiu embargada ao me recordar de uma reportagem que tinha visto
no jornal sobre como vários casais buscavam essa solução no

estrangeiro, já que a prática era ilegal no país.


— ¡Sí, chica!

Engoli em seco.
— Faremos então algo ilegal?
Uma risada seca ecoou nos meus ouvidos e vi um sorriso

predador e sarcástico tomar os seus lábios.


— Não que você poderia julgar-me se eu quisesse fazer algo

do tipo.
Estalou a língua e encolhi-me no assento com a sua

reprimenda. Não, não poderia condená-lo por isso, mas, mesmo


assim, senti como se levasse outra bofetada.
— Mas, não, não será nada que infrinja a lei. — Fez uma

pausa e depois falou zombeteiro: — Diferentemente do outro que me


envolvi, esse escândalo em específico seria ruim para os meus

negócios.
— Entendo. — Não soube o que dizer, se é que havia algo a
ser dito.
Era difícil acreditar que o milionário tinha tirado algum
proveito das fofocas que envolveram sua ex-noiva, ainda mais
quando elas eram completamente desfavoráveis a Javier.

— Não será ilegal quando você se tornar minha esposa. —


Sentenciou em voz cortante e eu pulei do sofá com o susto.

— Esposa? — Dei um gritinho em delay, completamente


atônita, fitando-o como se o senhor Javier tivesse criado um par de
chifres e ele fosse o próprio demônio.

— ¡Sí!

Abri e fechei a boca várias vezes, sem saber o que falar,


estarrecida. Queria dizer novamente que era uma piada de mal

gosto, porém a seriedade dele não deixava nenhuma dúvida: ele

estava me propondo um casamento de conveniência para que eu

pudesse ser sua “barriga de aluguel” sem infringir normas.


— Você será a minha esposa por contrato e gerará o meu

bebê. — Reproduziu meus pensamentos, erguendo a sobrancelha de

modo arrogante, testando a minha coragem para contradizê-lo, como


tinha feito mais cedo.

Um silêncio pesado caiu sobre nós e, antes que pudesse

dizer alguma coisa, se é que eu conseguiria, já que meu cérebro


havia virado papa, escutei um barulho de alguém batendo na porta,

fazendo com que eu desse outro pulinho, como um animal assustado.


— Senhor Javier? — Uma voz masculina que eu já havia

escutado antes saiu abafada pela porta, mas os latidos seguidos do

arranhar na superfície de madeira fez com que eu esquecesse


momentaneamente do susto e da proposta do milionário, e

lembrasse daquilo que perderia ao deixar o meu emprego: meus dois

amiguinhos.

— Não acabamos, senhorita Garcia — disse com a voz


rouca ao se aproximar de mim e eu respirei fundo, apenas

assentindo com a cabeça, concordando. O perfume dele, que não

havia captado antes, se infiltrou em minhas narinas, um cheiro forte,


amadeirado, que combinava bem com aquele homem poderoso que

poderia se tornar o meu marido. Tentei ignorar o quanto estava

gostando de senti-lo.
— Entre, Juan — ordenou.

Girei meu corpo para ver os cachorrinhos entrarem, quase

não percebendo o homem, que eu sabia ser o motorista do senhor

Javier pela vez que ele me levou em casa. O cumprimentei com um


aceno de cabeça, pois toda a minha concentração estava nos

animais. Percebendo a minha presença, correram na minha direção


e, automaticamente, eu fiquei sobre meus calcanhares, recebendo o

amor dado em forma de lambidas e patadas. As lágrimas que em

algum momento haviam cessado, retornaram com força.


— Oi, meus amores. — Beijei os dois.

— Isso é tudo, Juan. — A voz do meu chefe ressoou no

recinto, mas não prestei atenção na conversa deles.

— Boa noite, senhor… Senhorita.


— Boa noite, Juan — ergui um pouco o rosto para fitá-lo, e o

semblante gentil dele se transformou em preocupação.

Apesar da postura séria, ele era um homem que gostava de


falar, principalmente dos filhos e da esposa, a quem amava com

paixão, amor que pareceu tão lindo quanto o dos filmes, embora

tenha suas imperfeições. Era algo que, no auge dos meus dezoito

anos, sonhava em viver.


— Senhorita, está tudo bem?

— Sim. — Dei um sorriso para tranquilizá-lo, acariciando os

pelinhos de Isabel enquanto os bigodes de Lorenzo faziam cócegas


em mim. — Não precisa se preocupar.

Não pareceu convencido, mas acabou concordando com a

cabeça.
— Mais alguma coisa, senhor Javier? — Virou-se para o meu

chefe.
— Não, pode ir para casa, para ficar com sua esposa e os

seus filhos — frisou as últimas palavras, como se fosse um lembrete,

e um calafrio, que eu não sabia determinar se era por algo bom ou


ruim, me varreu.

— Obrigado, senhor.

Despedindo-se de nós dois, fechou a porta suavemente e eu

sentei-me no chão, deixando que os cães fizessem o que quisessem


de mim. Não podia negar que eles eram uma boa distração,

principalmente quando os focinhos curiosos me cheiravam e as

linguinhas me atacavam com uma série de beijinhos, lambendo as


minhas lágrimas.

— Há alguém que não goste da senhorita? — Foi irônico. —

Ou conquista a todos com esse ar angelical?

“— Você”, uma vozinha sussurrou na minha cabeça, mas não


ousei falar em voz alta.

O porquê de ele escolher alguém que detestava para ser sua

esposa, estava fora da minha imaginação.


Continuei a acariciar os cachorros.
— Não importa. — Encarou-me fixamente e voltou a me

pressionar. — Já tomou a sua decisão, senhorita?

Fiz que sim com a cabeça, depois fiz que não.

— Eu não sei se posso. — Senti dor ao pronunciar essas


palavras, pois parecia mais do que óbvio que eu deveria dizer sim.

A repulsa por hesitar fez com que o meu peito se apertasse

ainda mais, mas era difícil de se tomar uma decisão com a mente
tão conturbada, cansada pela noite insone.

— Você ainda é virgem, garota? — Perguntou, como se

estivesse debatendo a queda da ação da bolsa de valores, assunto

que todos sabiam que era precioso para ele.


Não havia dúvida que estava completamente cético sobre

essa possibilidade. Mais uma vez me julgava pela minha aparência.

Mas, sob o olhar atento, que voltava a pousar sobre a minha


barriga, embora os cachorros oferecessem uma camada de

proteção, eu sabia que, mesmo que eu devesse estar indignada, não

estava, e ruborizei até o fio do cabelo.

Nunca havia falado abertamente sobre sexo com ninguém,


nem mesmo com o meu irmão, e ter aquele homem poderoso, lindo,

que exalava poder e masculinidade, bem como experiência,

perguntando algo tão pessoal, era desconcertante.


Queria que o chão me sugasse tamanha a vergonha, não só

pela pergunta, mas também pelas recordações amargas da minha


única experiência. Eu era patética.

— Senhorita? — pressionou, como se os seus planos

dependessem da minha resposta.

— Não. — Forcei a minha voz a sair.


Enterrei meu rosto nos pelos curtos de Lorenzo, que achou

que era uma brincadeira, dando uma rabada na minha face.

— Tem alguma doença sexual ou algum histórico de doenças


hereditárias? — interrogou-me.

— Não que eu saiba. — Voltei a fitá-lo, atônita.

— Então não vejo por que você não pode aceitar. — Passou
a mão pelos cabelos em um gesto de frustração, desalinhando-os, e

tornou-se ainda mais selvagem. — Mas, por via das dúvidas, fará um

check-up completo.

Senti-me como se fosse uma égua avaliada por um possível


comprador. Se pensasse bem, talvez não houvesse diferença entre

nós, já que aquele homem queria me comprar para gestar um filho

dele e desejava garantir que minha saúde estivesse impecável. Não


podia negar que era um pouco humilhante. Quis me abraçar, porém
os dois pequenos me impediam e tudo o que me restou foi desviar o
olhar.

Escutei um som baixinho que era uma mistura de cansaço e

também de frustração e, como uma tola, fui atraída novamente para


ele, encontrando aquela expressão ilegível de sempre.

— Se é o que te preocupa, caso os exames revelem alguma

doença que impeça você de seguir com o casamento, pagarei a


dívida do seu irmão, qualquer que seja ela, pelo seu sigilo. — Deu

um sorriso falso. — Como disse, não será bom para os meus

negócios que descubram que eu comprei uma esposa de

conveniência apenas para me dar um bebê. Tanto, que poucos


saberão disso, na verdade, quanto menos souberem, melhor.

Consegue compreender isso, não é mesmo, garota?

Fiz que sim com a cabeça.


Era uma ameaça que deixava claro que, se algo saísse na

imprensa, eu pagaria caro por isso, pois não haveria dúvidas que o
senhor Javier me responsabilizaria unicamente pelo escândalo. A
ideia de que aquele homem fazia tanto mal juízo de mim, ainda mais

sem me conhecer, julgando-me pelo fato do meu irmão ter


encontrado no mundo do tráfico uma chance de sobrevivência, me
magoou mais do que ele me enxergar como um objeto para os seus
fins. Mas, ao mesmo tempo que me ressentia, veio-me o estalo de
que as consequências para ele iam muito além do que uma perda
monetária…

— Poderia ser a sua ruína — pensei em voz alta e algo


faiscou em seus olhos.

— Quizás[49]… — Puxou a palavra.

Languidamente, deu de ombros, como se não se importasse


com o talvez e muito menos com as consequências, e riu do próprio
comentário, mas a tensão nele, a seriedade e sua desconfiança o

traíam. Havia muito mais em jogo para o senhor Javier, talvez mais
do que um dia eu sequer poderia imaginar.
— E então, garota? — Contra-atacou com sarcasmo, e eu

estremeci ao pensar que poderia ter algo a mais. — Para quem está
desesperada, você hesita demais.

Um nó se formou em minha garganta.


Ele estava certo e isso fez com que me sentisse mal, afinal
era a vida do Pablito que estava em jogo.

Não contive as lágrimas.


— Por que eu? — retruquei baixinho, erguendo o queixo,
tirando a coragem de não sei de onde. Estava sendo uma idiota, mas

era uma pergunta que o meu íntimo precisava saber, a razão me era
incompreensível. — Tenho certeza de que há uma mulher que pode
te amar e dar… — A risada seca, desprovida de humor, interrompeu
minha fala.

— Acha mesmo que eu estaria comprando uma esposa para


me dar um bebê, se existisse tal exemplar formidável? — Espetou-

me, mas a alfinetada não parecia apenas direcionada a mim, mas


também a ele, o que foi confirmado quando ele voltou a gargalhar
sarcasticamente.

O som arrepiou os pelinhos da minha nuca, a descrença e a


amargura da sua expressão apertaram o meu peito. ¡Dios! Havia
tanta dor e sombras nele.

Inconscientemente, beijei os cachorros, procurando um


refúgio momentâneo pelo sentimento doloroso que me acometeu.
Por ele. Somente ele.

— Não, garota. — Ele continuou a rir de si mesmo, mas logo


parou, ficando longos minutos em silêncio, como se se contraísse
dentro de si mesmo, mas logo voltou a falar: — Você pode acreditar

em contos de fadas, mas a vida ensina que eles não são para todos.
Estava surpresa por ele falar sobre romances e, ao mesmo

tempo, triste por ver a melancolia nele e por pensar que o senhor
Javier não acreditava que o amor um dia seria possível para si. Não
quis refletir o estrago que o último relacionamento pôde ter produzido
nele, nem os sentimentos que ele havia nutrido por aquela mulher,

apenas que um fim de relacionamento, bom ou ruim, traumático ou


não, não deveria significar perder totalmente as esperanças. Todos
eram dignos de serem amados.

— É impossível de se amar um homem frio. — Sua voz era


um sussurro rouco — E um demônio não ama.

Balançou a cabeça em negativa, como se saísse do transe,


as duas esmeraldas cortando-me, porém não me importei. Tudo o
que eu conseguia enxergar nele era uma outra faceta de um homem

sensível, quebrado, desesperançado, alguém que eu queria envolver


em meus braços e acariciar a barba por fazer, dizendo que ele
poderia, sim, ser amado e amar, porém não podia.

— Você será livre para tentar seu conto de fadas quando


assinarmos o divórcio. — Voltou a sentenciar, como se desse por
certo que eu seria sua esposa, e não contendo o deboche de si

mesmo. — Afinal, não sou nenhum príncipe encantado, pelo


contrário, estou mais para o diabólico vilão.
Arqueou a sobrancelha, soltando uma gargalhada abafada

que atraiu a atenção dos cachorros para ele. Os dois trotaram até o
seu dono que, agachando-se, deu atenção a eles, fazendo carinho no
topo das cabecinhas, arrancando latidos e granidos de deleite, ao

passo que ainda me fitava intensamente.


Não contive um sorriso quando Lorenzo plantou uma lambida
no queixo do homem e ele retribuiu, beijando o rostinho do cachorro.

Ciumenta, Isabel exigiu atenção também, enfiando as unhas no terno


bem-cortado, mas ele não pareceu se importar ao acariciar a cadela,
que começou a jogar seu corpinho contra as pernas dele. E eu

apenas fiquei ali observando, fascinada, o modo como a mão grande


e seus dedos longos tocavam suavemente os pelos dos bichinhos.

— Não perguntarei novamente, senhorita Garcia… —


Ameaçou-me, sabendo que eu não tinha escolha.
Ergueu-se e, antes que os cachorros viessem novamente

para mim, levantei-me também, lutando para não envolver minha


cintura com o braço e para não me esconder como uma ratinha.
— Gerará o meu bebê em troca da vida do seu irmão?

A pergunta foi dita em um tom casual, porém a expressão


dele, os olhos, a linguagem corporal, não escondiam a ânsia, a
expectativa e o desespero pela criança, por ter um filho. E eu soube

naquele instante que nunca poderia me recusar a ser a barriga de


aluguel dele. O senhor Javier poderia se achar incapaz de amar, mas
a minha intuição dizia que ele amava desesperadamente algo, e era
a ideia de tornar-se pai. Achava que amaria mil vezes mais o seu
bebê. Mas não podia ter certeza.
— Sim, senhor Javier, eu serei a sua esposa.

Uma lágrima gorda deslizou pelo meu rosto, minhas emoções


estavam em polvorosa. Alívio, gratidão por ele ter me dado uma luz
no fim do túnel, e alegria por ver o seu rosto suavizar, adquirindo um

ar sonhador, bem como um outro sentimento que não sabia bem


definir.
Como se pressentisse meu estado de ânimo, os dois

cachorrinhos foram em minha direção, e eu voltei a acariciá-los,


recebendo lambidas em troca.
— Pedirei que os meus advogados já redijam o contrato, e

amanhã cedo meu secretário informará a clínica onde você irá se


consultar, assim como o laboratório em que fará os exames. —

Começou a enumerar em um tom que revelava certo alívio


desconcertante, o que roubou a minha atenção. Enquanto com um
puxão removia a gravata firmemente atada, pegando-me

desprevenida, me perguntou: — Qual é o valor da dívida do seu


irmão?
Pegou a peça, colocando-a em cima da mesa, enquanto

apoiava o quadril na borda.


— Quinze mil euros — sussurrei.
Arqueou a sobrancelha.

— Uma quantia bem irrisória, menos do que esperava —


comentou para si mesmo.
Foi impossível não me sentir inferiorizada, pois, enquanto

para ele não passava de uma esmola, para mim era uma quantia
absurda que eu levaria anos para juntar com o meu atual salário. A
diferença das nossas realidades era exorbitante e eu estava prestes

a adentrar em um mundo de luxo e coisas caras, já que


provavelmente teria que manter as aparências. Acreditava que o
senhor Javier não esperaria menos da sua esposa falsa. E eu não

tinha a mínima ideia de como me adaptaria. Não era elegante, nem


tinha modos refinados, estava longe de me equiparar às mulheres do
seu círculo.

— Além do dinheiro, garantirei que ele tenha um emprego e


um lugar para morar em Cádiz. — Começou a falar de futuro como

se tudo estivesse certo, tirando-me dos meus pensamentos, e algo


dentro de mim se partiu pela sugestão dele. — Será mais seguro
para ele.

Abracei-me, vendo um pouco de razão em suas palavras,


mas não necessariamente tornava mais fácil. Passei dezoito anos da
minha vida morando com meu irmão e, depois de todos os sacrifícios
que ele tinha feito por mim, ficar longe de Pablito era doloroso,

mesmo sabendo que um dia nossas vidas iriam se desvencilhar. Mas


não achava que seria daquela maneira.

— Se ele realmente quiser… — Fez uma pausa. — Não me


olhe como se eu fosse um demônio por isso, garota. Sabe-se lá qual
o nível de envolvimento dele com o tráfico. Eu posso proteger a

minha esposa, mas não irei bancar a babá do seu irmão.


— Entendo. — Não podia fazer exigências.
— E será apenas por um tempo. — Adotou um tom mais

suave que me enterneceu. — Embora você seja a minha esposa


temporária e vá morar comigo, não será a minha prisioneira, garota.
Poderá visitá-lo, mesmo que seja distante daqui. — Fez uma pausa.

— É uma viagem curta.


— Obrigada, senhor. — Não contive a minha felicidade por
saber disso, tanto que nem me afligi, inicialmente, por saber que

viveria junto com ele.


Era pouco, mas, era melhor do que nada. Um pequeno

sacrifício se comparado a segurança dele.


— Se vai ser a minha esposa, me chame de Javier,
Bárbara… — avisou.
Por alguns segundos fiquei desconcertada por ele saber o

meu primeiro nome.


— Oh! Desculpe-me, Javier.
— Virgen María, mais desculpas — blasfemou ao fechar os

olhos.
Um silêncio pesado caiu sobre nós, onde apenas se ouvia o

roncar suave dos animais, que descansavam tranquilamente, e eu


pude refletir sobre aquilo que eu havia acabado de aceitar, e as
consequências. Eu seria a esposa e também mãe do bebê dele.

Um leve tremor me percorreu perante a ideia de como meu


possível futuro esposo desejava conceber essa criança. Droga!
Deveria ter perguntado primeiro o que ele esperava de mim.

Ao mesmo tempo que eu temia descobrir, um calor começou


a se espalhar pela minha pele e meu coração começou a bater forte
outra vez. Ele me beijaria? Me tocaria?

— Você irá querer… — Interrompi meus pensamentos que


sem querer havia falado em voz alta.
Era impossível não perder o raciocínio ao se deixar levar

pela imagem daquele homem lindo, sedutor e igualmente sombrio


encostando seus lábios nos meus, movendo-se vagarosamente,
apenas para aprofundar o contato, fazendo com que eu ficasse
completamente mole contra ele.
— O que você acha que eu quero, garota?

Morta de vergonha, eu não tinha onde enfiar a minha cara.


— Nada, Javier.
— Diga, garota — ordenou em voz áspera e cansada. —

Estou sem paciência para joguinhos.


— Bem…
— Bárbara…

— Eu terei que ir para cama com você? — Com certeza


minhas bochechas deveriam estar coradas. — Para fazer o bebê?

Balançou a cabeça em negativa.


— Eu nunca tocarei em você, Bárbara…
A decepção me invadiu. De um momento para o outro, minha

imaginação de ser beijada por ele havia se tornado desejo, por mais
que eu temesse desapontá-lo pela minha inexperiência. E não podia
negar que certa tristeza também me dominou por não ser atraente o

suficiente para que ele quisesse me beijar.


O que eu esperava? Não passava de uma pirralha sem
classe.
— Apesar que, se pensar bem, meu esperma será
introduzido dentro de você durante a inseminação, então não posso

dizer que nenhuma parte de mim nunca te tocará, mas isso será
tudo. — Foi ácido.
— Mas as pessoas não esperarão…

Uma gargalhada alta, cheia de escárnio, ressoou pelo


escritório e eu tive que lutar para não me encolher. Erguendo-se da
sua cadeira, cruzou a distância que nos separava e parou próximo a

mim, dando-me uma visão clara do quão conturbado ele parecia. Os


cães, que embora descansassem estavam atentos, vieram correndo
novamente para enroscar-se nas pernas dele.

Instantaneamente meus pelinhos se arrepiaram e tive que me


segurar para não demonstrar o quanto sua proximidade me afetava,

e de maneiras que agora sabia que eram proibidas.


— Que sejamos um casal de pombinhos que não pode ficar
um minuto sem se beijar e se tocar? — Riu ainda mais. — Que

deveríamos andar de mãozinhas dadas por aí e trocar olhares


ardentes? Demonstração de afeto em público?
Pareceu pensar por alguns segundos e respirou fundo,

exalando o ar devagar, que chegou a me tocar.


— Que o nosso bebê é o fruto do nosso amor? — disse

baixinho em uma mistura de ressentimento e desesperança.


Não consegui encontrar palavras para responder, presa nas
ondas de dor que pareciam exalar dele.

— Não sou o seu príncipe encantado, garota. — Deu um


sorriso fingido que não chegava aos olhos. — Ninguém,
absolutamente ninguém, esperará que minha esposa consiga amar o

demônio que eu sou, nem mesmo que sequer mostre devoção.


Todos sabem que isso é impossível.
Traguei o ar com força e lutei para não chorar e também

para dizer que essas pessoas estavam erradas. Todo o meu corpo,
o meu íntimo e minha alma, bem como minha intuição, gritavam que
ele estava errado, que ele era tão digno como qualquer outro de

receber carinho.
— Tudo bem. — Dei-me por vencida.

— Agora vá para casa. — Dando um passo para trás, fez


um gesto com a mão, me enxotando. — Todos os detalhes do que
eu espero de você serão redigidos no documento. Agora, eu preciso

trabalhar.
Contive um comentário de que ele precisava de tudo, menos
de mais trabalho.
— O metrô está fechado. — Olhei as horas no pequeno

relógio que ficava na estante.


Não respondeu, apenas tirou a carteira do bolso da calça e

puxou de lá algumas notas de cem e quinhentos euros, colocando-as


em minhas mãos. Nunca me senti tão suja ao receber dinheiro de
alguém, mas tentei me manter otimista, não iria deixar-me abalar e

muito menos me diminuir por estar recebendo essa quantia. Nem


todos tinham escolha, e eu agarraria aquela oportunidade que me foi
dada e que garantiria que meu irmão ficasse vivo.

— Isso deve dar para pegar um táxi e ir até a clínica


amanhã.
— Okay.

— Agora vá, nos encontraremos depois que saírem os


resultados dos seus exames. Eu cuido das coisas do cachorro.
Apenas assenti, minha mente estava exausta demais e meu

corpo esgotado para negar uma noite de sono. Com passos lentos,
caminhei para pegar a minha bolsa e minhas coisas, além do saco de
ração para que Javier pudesse colocar comida para eles. Não

trocaria de roupa. Voltei para o escritório para despedir-me dos


bichinhos com um beijo e, mesmo que não soubesse se iria receber
uma resposta, falei com ele, que estava próximo ao aparador de
bebida, fitando o licoreiro como se o achasse interessante.
— Boa noite, Javier.

— Creio que nenhum de nós está tendo uma boa noite.


— Um pouco. — Dei um sorriso frouxo.

Não disse mais nada.


Estava prestes a abrir a porta de serviço, quando a voz dele

interpelou-me e eu me virei em sua direção, o vi me fitando com


olhos insondáveis.
— Bárbara?
— ¿Sí?
— Está demitida.
Balancei a cabeça em concordância, meu estômago

embrulhando, embora fizesse todo o sentido a demissão. Se algo me


impedisse de dar o filho que ele tanto desejava, iria embora com
Pablito para onde quer que ele fosse. Sem dizer uma palavra, deixei
o escritório dele, sabendo que a minha vida havia virado de cabeça
para baixo pela segunda vez no dia.

Se para o bem, ou para o mal, só o tempo poderia dizer.


Capítulo dezessete

— Chegamos, senhorita. — A voz do motorista ecoou nos


meus ouvidos e eu dei um pulinho no meu assento, assustada. —

Deu trinta e cinco euros.

Embalada pelo andar suave do carro, o cansaço que antes


tinha sido mitigado pelo desespero começou a pesar em minhas

pálpebras e, fechando os olhos brevemente, não esperava cochilar.

Bocejando, pisquei algumas vezes e peguei uma das notas


que Javier havia me dado dentro da bolsa e entreguei ao motorista

sem mesmo olhar o taxímetro para confirmar o valor.

— Você não teria trocado? Não tenho troco para quinhentos.

— Ah, tenho, sim.

Voltei a mexer nas minhas coisas e peguei uma cédula


menor, dando a ele, que me devolveu a outra e o troco.

— Boa madrugada. — Sorriu para mim quando eu removi o

cinto.

— Obrigada, para você também.

Abrindo a porta, deixei o veículo, abraçando-me quando o

vento ameno soprou sobre mim. Não podia negar que estava
morrendo de saudades do calor, mas pelo menos o frio ajudava a
espantar o sono. Ouvi o carro se afastar assim que passei pelo
portão de entrada e fui grata por ele ter me esperado, vigiando-me.

Após cumprimentar a pessoa da portaria, caminhei em direção ao

nosso quarto alugado e bati na porta, batendo outra vez quando meu

irmão não me atendeu.

Não sei quanto tempo Pablito demorou a atender, mas já

estava com medo de estar incomodando as outras pessoas, quando


ele abriu e eu vi o seu rosto ainda mais inchado do que quando eu o

havia deixado. E meu coração se apertou por ele.

— Babi? — questionou, surpreso.

Deu um passo para trás para que eu entrasse e assim eu o

fiz, jogando a bolsa em cima de uma mesinha. Depois de remover o

casaco, pulei na cama, mesmo sabendo que eu necessitava de um

banho, mas eu tinha muita coisa para conversar com ele para me dar
ao luxo de descansar primeiro.

Não tinha me passado pela cabeça como seria a reação dele

e agora, frente a frente, fiquei com medo de como ele reagiria ao

saber que eu havia me vendido para o meu chefe. Meu irmão era

protetor demais e, conhecendo-o, acho que ele iria ficar bravo e

irritado, além de que, provavelmente, sentiria a mesma culpa que


havia me dominado por saber que ele tinha se arriscado por mim.
Respirei fundo, buscando a coragem que agora tinha me

fugido.
— Não esperava você a essa hora. — Olhou no rádio-relógio

velho. — Pensei que iria esperar o RH abrir para pedir sua


demissão.
— Não foi necessário, Pablito. — Precisava começar de

algum lugar. — Eu fui demitida.


— Demitida?

— É. — Me ergui e sentei na cama; não se dava para


discutir algo tão sério sem encará-lo. — O Senhor Javier me demitiu.

— Entendo. — Pareceu triste. — Foi por justa causa?


Levantei, me sentindo ainda mais nervosa.
— Digamos que sim.

— Babi…
— Promete que não ficará bravo comigo?

Aproximei-me dele e toquei seu rosto amável, acariciando os


machucados, sentindo-o tremer levemente de dor pelo contato. Mas

não me impediu, apenas pousou a mão sobre a minha.


— Por favor? — implorei baixinho.
— Você está me assustando, estrellita. — Vi o pomo de

adão dele subir e descer — O que aconteceu?


— Eu… — Hesitei, sentindo as lágrimas brotarem em meus

olhos. Me doía pensar que ele ficaria decepcionado ou chateado


comigo. — Não há jeito fácil de dizer isso, só espero que não me

odeie, Pablito. Eu vou me casar com o senhor Javier e dar um bebê


a ele, e, em troca, ele salvará sua vida.

— O quê? — Sua voz saiu áspera e ele abaixou a mão,


recuando um passo para trás, como se eu tivesse acabado de dar
um tapa em seu rosto.

Não segurei o choro.


— Diz que é mentira, Babi. — Chacoalhou a cabeça. — Que

isso é um pesadelo. Que aquele demônio não te fez uma proposta


dessas.
— Eu não posso — sussurrei, abraçando-me.

Para minha surpresa, diminuiu a distância entre nós dois e


me envolveu em seus braços em um abraço apertado, chorando em

meus ombros descontroladamente, me deixando levar pelos meus


sentimentos.

— Por que você fez isso, Bárbara? — murmurou com a voz


chorosa em meu ouvido.
Ajeitei-me de modo que pudesse vê-lo.
— Eu não queria perdê-lo, Pablito. — Deixei um beijo no
rosto machucado. —Não por minha culpa. Eu me sentiria mal por não
agarrar a oportunidade que me foi dada por ele.

— A escolha de me envolver com o tráfico foi minha, não


sua, hermanita. — Ignorou meus sentimentos, mas não podia culpá-

lo, era um choque descobrir que sua irmã estava se vendendo como
um pedaço de carne em uma das lojas do Mercado San Miguel.
— Como a decisão de ser a esposa e mãe do filho dele foi

minha.
Bufou, passando as mãos pelos seus cabelos.

— Ele te chantageou? — cuspiu a pergunta, a fúria dele veio


completamente à tona, não por mim, mas pelo meu comprador, já

que segurou suavemente meu rosto entre seus dedos. — Ele


aproveitou que você estava vulnerável para fazer você aceitar uma
coisa dessas?

Embora ele tivesse me pressionado e usado o meu


desespero contra mim, não iria contar isso para o meu irmão,

mesmo que odiasse guardar segredos dele. Isso só alimentaria


ainda mais a sua raiva.
— Não, ele não o fez isso. Eu aceitei porque desejava.
Ficou em silêncio, buscando a verdade em meus olhos, e eu
não tinha ideia de como meu olhar não havia me traído.
— Você não deveria ter concordado com a proposta

insultante daquele bastardo — falou amargo, dizendo a palavra


bastardo com fúria ao cerrar as pálpebras.

Balançou a cabeça em negativa, como se demonstrasse


descrença.
— Eu precisava. — Virei o rosto, com medo de contemplar a

decepção dele comigo.

Não disse nada, voltando a chacoalhar a cabeça em um


gesto negativo.

— Só de pensar que ele está te usando… Só para te levar

para cama….

Fiz que não com a cabeça e ele voltou a aproximar-se de


mim, erguendo a mão para tocar e acariciar meu rosto, o polegar

limpando a trilha de lágrimas.

— Ele disse que nunca irá me tocar.


— Você realmente acredita nisso, Babi? — falou

suavemente. — Homens poderosos e endinheirados como ele nunca

resistiriam a uma beleza como a sua, não vê isso?


— Ele nem ao menos gosta de mim, Pablito. E terá um

contrato…
— Tão inocente. — Beijou a minha testa. — Um papel não

impedirá que ele tome liberdades com você, cariño[50]. Você deve

saber que não.


Engoli em seco, quando lembranças do assédio indesejado

me invadiu, mas logo tratei de afastá-las, pois, no fundo do meu

coração, eu sabia que se ele me tocasse, beijasse, eu aceitaria com

prazer. Não tinha sido eu quem havia ficado decepcionada quando


Javier disse que não haveria beijos e nem toques?

Senti vergonha de dizer ao meu irmão o quanto eu seria

participativa se o meu futuro marido quisesse. Não precisava que


Pablito ficasse desapontado com o fato de que uma parte de mim

queria o calor e carinho de um homem que mal conhecia. E que

poderia se tornar o meu marido.

— Que tipo de demônio compra uma menina inocente como


uma esposa? — sussurrou. — A minha menininha, a minha

irmãzinha?

— Um que está completamente desesperado para ter um


bebê e que está disposto a correr mais riscos que talvez seja

prudente. — Tentei argumentar, baixinho, mas ele parecia não ouvir.


— Isso não é certo. — Voltou a fazer um gesto negativo. —

Esse cara poderia ter escolhido qualquer uma para gerar o filho dele.

Lutei para não fazer uma careta com a fala do meu irmão,
ignorando o sentimento confuso que me oprimia, dizendo a mim

mesma que eu tinha que agradecer por ele não ter escolhido outra.

Era um pensamento egoísta, mas o contrário, significava que eu

perderia meu irmão.


— Eu fico feliz por ele ter me escolhido, Pablito. — Beijei a

bochecha machucada do meu irmão e ele estremeceu. — De

verdade.
Tocou uma mecha do meu cabelo, brincando com ela, e

pareceu mergulhar dentro de si mesmo.

— Era eu quem deveria te proteger, Babi — falou tempos

depois, com a voz embargada. — Você não merece tornar-se a


esposa de um homem que só te tratará como um objeto. — Fez uma

pausa, os olhos tão iguais aos meus faiscando. — Ele te ofereceu

bem mais do que a minha vida, não é mesmo, gattita?


— S-S-Sim… — Respirei fundo.

— Canalha!

Trincou os dentes com força, ao ponto de achar que ele

acabaria os quebrando, soltando uma série de impropérios. Deixei


que ele extravasasse a raiva que sentia que sabia que não era

direcionada a mim, mas apenas ao meu comprador. Mas logo a raiva


passou e eu vi que ele parecia derrotado, a culpa tomava toda a sua

feição, fazendo com que eu sofresse pelo meu irmão. Abraçando-me

novamente com força, voltou a chorar convulsivamente em meus


ombros, murmurando palavras de crueldade para si mesmo, se

martirizando. Não contive minhas próprias lágrimas.

— Sou um inútil — sussurrou. — Um imprestável, um

covarde, que, ao invés de encarar as consequências, prefere deixar


a sua irmã inocente se vender a um homem inescrupuloso que

provavelmente quer muito mais dela do que ela imagina.

— Não fale assim de si mesmo, Pablito — pedi, ao afastar-


me um pouco, ignorando os sentimentos dele em relação a Javier.

De nada adiantaria dizer a um homem enfurecido que eu

também tinha minha parcela de responsabilidade nisso ao chorar e

me expor para o CEO, falando até demais.


— É a verdade, Babi.

— Não, pare já com isso! — Reuni toda a minha força para

falar naquele tom mais rígido com ele, contrariando a minha


personalidade. — Como você mesmo disse, a decisão foi
completamente minha e eu nunca poderei me arrepender de fazer

algo que significará que você ficará vivo e comigo.

Funguei.

— E ainda preciso fazer todos os exames para saber se


realmente poderei ser a mãe do bebê dele. — Dei um sorriso para

ele, que me olhou como se uma ideia surgisse em sua mente. —

Não, Pablito, eu cumprirei minha palavra.


— Por quê?

— Ele não é um homem que aceitará ter aquilo que deseja

ser retirado dele sem que nenhuma retaliação ocorra, querido.

Bufou um palavrão.
— Mesmo assim…

— Eu preciso fazer isso, não só por você ou por mim — falei

baixinho —, mas também por ele.


— ¡Dios, Babi! — Deu uma gargalhada de incredulidade. —

Por ele?

Fiz que sim.

— Ele está arriscando muita coisa só para ter um filho,


Pablito. — Fiz uma pausa. — Não posso ter certeza, mas ele parece

realmente querer muito essa criança. E eu vou poder ajudá-lo.


— Aquele demônio não merece a sua compaixão e seus

sentimentos. — Foi seco e eu ergui a sobrancelha para ele. — Muito


menos a sua ajuda.

— Não o conhecemos para julgá-lo. Ele… — interrompi.

Dizer ao meu irmão que o senhor Javier guardava

fragilidades dentro de si, que algo dentro de mim me dizia que


ninguém nunca o conheceu de verdade, por estar sempre usando

disfarces, não faria com que ele se compadeça.

— Não é preciso quando ele está disposto a negociar a vida


de uma pessoa — cuspiu. — Só um monstro faria tal coisa.

— Demônio ou não, sinto empatia pelo homem desesperado

que ele é, Pablito. — Pus um ponto final e fitei-o, determinada.


Ele abriu e fechou a boca várias vezes enquanto me

encarava, analisando-me criticamente, mas logo assentiu, me

puxando de volta para os seus braços.

— Você é boa demais — sussurrou contra os meus cabelos

e voltou a fungar, chorando. — Es mi pequeño ángel[51].

Não respondi, apenas aninhei-me nele, ouvindo o coração

dele bater ritmado, o que, de alguma forma, fez com que eu sentisse

a sonolência retornando pouco a pouco. Emiti um bocejo. Era


reconfortante sentir o calor do meu irmão, sabendo que ele não
pereceria, mesmo que a distância fosse se interpor entre nós.

— Eu devo te agradecer por salvar a minha vida, Babi —

disse tempos depois.


Sabia que era difícil para ele dizer tais palavras, ainda mais

quando se sentia impotente, frustrado e também culpado.

— Farei mil vezes se for preciso, Pablito!


Abri a boca, emitindo outro bocejo, e foi a vez de ele erguer

a sobrancelha, mesmo que os machucados o deixassem deformado.

— Já para o banho, mocinha — mandou como se fosse o

meu pai. — Eu não quero ter que te carregar e enfiar você com
roupa e tudo debaixo do chuveiro.

— Okay. — Aproximei-me para deixar um beijo estalado na

sua bochecha. —Tudo o que eu quero é deitar e dormir. Me


desanima pensar que terei que acordar cedo.

Fiz uma careta.


— Preguicinha.
Deu um sorriso, o primeiro que eu via em muitas horas, o que

me encheu ainda mais de certeza que tinha tomado a decisão certa,


por mais suja e errada que parecesse aos olhos do mundo. Não
saberia o que fazer sem aquele sorriso que eu tanto amava.
— Já vou!
Dando um tapinha de leve nas minhas costas, caminhei em
direção ao banheiro, fechando a porta atrás de mim, não sem antes

conferir se havia uma muda de roupas limpas para me trocar.


Cantarolando uma música qualquer, me despi, sentindo o
friozinho tocar a minha pele, o que fez com que eu corresse em

direção ao box minúsculo e abrisse o chuveiro, esperando que uma


água quente caísse sobre mim. Como não podia ter tudo o que eu
desejava, me contentei com a água morna, que beirava a fria.

Continuei a cantar com a minha voz desafinada e parei


quando alguém mandou-me calar a boca. Mas não me importei,
estava alegre demais para sequer pensar em retrucar, ou reclamar

quando o chuveiro parou de vez de esquentar.


Capítulo dezoito

Com as palmas suando frio e o estômago embrulhado com o

nervosismo, ignorando o cansaço de ter realizado uma bateria de

exames e por ter passado uma série de médicos durante o dia,


entrei no prédio que era o meu antigo local de trabalho.

Enquanto caminhava em direção ao balcão da recepção, me

senti inferior ao pisar num saguão tão luxuoso, com pé direito alto e
piso de mármore, e também sem jeito por estar usando jeans e blusa

de frio simples, mesmo que as pessoas bem-vestidas que ali

passavam para irem para casa ou ainda esperavam uma reunião de

última hora, não prestassem muito atenção em mim. Um ou outro me

lançava um olhar de esguelha, uma indicação clara que eu não


pertencia àquele mundo, e que eu seria uma intrusa ao adentrá-lo.

Que seja!, pensei comigo mesma.

Coloquei o melhor sorriso que tinha e me aproximei do único

recepcionista no momento, que conversava e ria animadamente com

uma moça da limpeza, que eu desconhecia, que piscava os olhos

como se estivesse flertando com ele.


É, de fato, era uma pena interrompê-los.
— Boa noite — disse.
O homem emitiu um suspiro baixinho, que revelava que não

gostou tanto da interrupção, principalmente quando isso fez com que

a mulher se afastasse.

— Em que posso ajudá-la? — Aprumou-se na cadeira e,

fazendo uma pequena careta de contrariedade, olhou para o

computador.
— O senhor Javier está me esperando.

Arqueou a sobrancelha, desviando a atenção do notebook

para mim.

— Preciso confirmar primeiro com o secretário dele — disse

com um tom que deixava muito claro que duvidava muito que alguém

como eu seria recebida pelo CEO da financeira.

Não me importei. Se fosse eu no lugar dele, também teria


ficado descrente de que o senhor Javier tiraria um tempo na sua

agenda apertada para me receber, além do que, estava ansiosa

demais para saber os resultados dos meus exames, o que mudaria

todo o meu presente e futuro.

— É uma norma que ninguém pode subir sem autorização. —

Parecia me advertir que estava perdendo o meu tempo ao tentar


forçar uma reunião e que a chance de eu ser escorraçada era muito

alta. — É uma regra estipulada pelo próprio senhor Javier.


— Eu sei disso.

— Ele é um homem bastante ocupado e somente grandes


empresários conseguem agendar um horário com ele — insistiu, seu
olhar focado no meu moletom, que eu sabia ser bastante impróprio

para o local.
Dei um sorriso amarelo para ele.

— Um documento, por favor. — Deu-se por vencido.


Abrindo a bolsa, tirei minha identidade da carteira e entreguei

a ele, que não disse mais nada. Examinou o documento brevemente,


pegou o telefone e me fitou com incredulidade enquanto discava para
o ramal do secretário do meu futuro marido.

— Boa tarde, senhor. — Seu tom foi cordial, bem diferente


do empregado comigo. — A senhora Bárbara Garcia disse que o

senhor Javier a aguarda.


Ficou em silêncio por alguns segundos, mas não me passou

despercebido o olhar arregalado dele com a surpresa. Conversou


com o secretário por mais alguns segundos e desligou, dando-me um
sorriso
— Desculpe-me, senhora. — Entregou o meu documento e

não escondi a surpresa por ele não fazer o meu cadastro de entrada.
— Está sendo aguardada no último andar.

— Não se preocupe. — Joguei meu documento dentro da


bolsa. — Você estava apenas fazendo o seu trabalho.

— Tenha uma boa noite.


— Obrigada.
Respirando fundo, caminhei em direção ao elevador

enquanto sentia meu coração bater acelerado. Entrando na caixa de


metal, apertei o botão para o último andar e segurei minha bolsa

com mais força, com medo de deixá-la cair dos meus dedos suados.
Encostando na parede, fechei os olhos, inspirei e expirei
várias vezes enquanto pequenos flashes da consulta com o

ginecologista e os exames que ele tinha feito surgiram em minha


mente. Havia sido a primeira vez que consultei com aquele

profissional, e não podia negar que foi um pouquinho constrangedor


responder às suas perguntas e me expor a ele. Senti que ruborizava

com as lembranças de como achei um dos exames invasivo e


incômodo, mesmo que fosse uma coisa corriqueira e que deveria
fazer parte do check-up anual de uma mulher.
— Boba — sussurrei para mim mesma, porque era isso
mesmo que eu estava sendo, tentando afastar essas recordações.
— Para se entregar a um idiota, você nem pensou duas vezes, mas

para verificar o estado da sua saúde, fica de melindres.


Dei uma risada baixinha, que não escondia o amargor comigo

mesma, e abri os olhos assim que o barulho do elevador parou no


andar. Passando a mão na calça, limpando o suor, tentei aparentar
uma confiança que não sentia, e deixei a caixa de metal.

— Não há nada que você possa fazer agora — falei. — Em


poucos minutos você irá ficar sabendo dos resultados dos seus

exames, que, sem dúvida, já estão nas mãos do senhor Javier. Seja
o que Deus quiser.

Não tinha contestado o fato de os resultados não serem


entregues diretamente a mim, mas sim ao CEO, por mais estranho
que fosse. Não era uma surpresa o homem mandar o médico dele

confirmar minha “adequação”.


— Senhorita Garcia? — Uma voz masculina nasalada

chamou-me, e só então me dei conta que, automaticamente, ao sair


do elevador tinha ido a caminho da cozinha como se estivesse indo
trabalhar.
— Oh! — Virei-me na direção dele. — Desculpe-me, senhor,
é a força do hábito.
— Imagino. — O homem, um senhor de idade, me olhou por

detrás dos óculos com uma expressão impassível, sem dúvida


especulando acerca da mulher que era louca o suficiente para tornar-

se a esposa de conveniência do seu chefe. — O senhor Javier pediu


que avisasse que está em uma videoconferência de última hora com
um dos seus clientes mais importantes, e isso poderá levar alguns

minutos.

— Não tem problema, eu espero — falei, embora não tivesse


escolha.

— Você quer aguardar junto com o advogado e o médico?

Eles estão na sala de reuniões.

Fiz que não com a cabeça. Não me agradava ficar sozinha


com desconhecidos, ainda mais quando não havia nada a dizer a

eles.

— Javier pediu que eu fosse ficar com eles? — questionei,


em dúvida.

— Ele não deu nenhuma ordem nesse sentido, senhorita.

— Os cachorros, onde estão?


— Brincando na cozinha.
— Então vou esperar lá. — Dei um sorriso ao homem. —

Bom que faço um café. Gosta da bebida?


— Muita gentileza a sua, mas para mim não é necessário,

senhorita Garcia.

— Tem certeza? — insisti quando ele pareceu querer


também.

— Bem…

— Farei para todos nós, de todo modo — disse, fazendo um

gesto com a mão indicando para ele não ter vergonha. — Javier não
é tão mesquinho a ponto de negar a um funcionário tão leal uma

xícara de café.

Os olhos dele se arregalaram com a surpresa, como se não


esperasse a minha fala. Temendo ter dito demais, não esperei por

ele e caminhei em direção a cozinha. Abrindo a porta, comecei a

gargalhar quando encontrei os dois pequenos me esperando com os


ossos de borracha, que eram grandes demais para o tamanho deles.

— Ouviram a minha voz, não é, danadinhos?

Coloquei-me sobre meus calcanhares e acariciei o topo das

cabecinhas deles, para depois tocar onde eu sabia que faria com
que eles se contorcerem sob meu tato, soltando os brinquedinhos

para latirem alto, que ecoou em meus ouvidos.


— Shiu — fiz um som para eles, empurrando-os para que

entrassem de novo na cozinha. — Não podemos atrapalhar a reunião

do papai.
Fiz uma careta quando os latidos ficaram ainda mais

intensos, bem como o arranhar no piso, e, erguendo-me, fechei a

porta, escorregando contra a superfície, deixando que aqueles dois

me enchessem de patadas e rabadas, emitindo ruídos altos.


— Não tem problema, deve ter uma acústica boa.

Dei uma risada e, pegando um dos brinquedos, interagi um

pouco mais com eles, sentindo-me leve ao receber tanto carinho.


Poderia ficar ali no chão a vida inteira brincando com eles, mas não

podia. Depois de verificar os potinhos de ração e água, encontrando-

os certinho, lavei as minhas mãos e pus-me a fazer a bebida,

inspirando fundo o cheiro do café sendo coado, que me era bastante


reconfortante e aquecia minha alma. Minha boca salivou querendo

provar um pouco do líquido escuro e aromático.

— Garota, o que está fazendo? — A voz grave soou nos


meus ouvidos e eu me assustei, dando um pulinho para trás.

Por sorte o caneco estava em cima da bancada, evitando

uma grande tragédia. Como aquele homem conseguia ser tão

sorrateiro e silencioso?
Olhei para o chão, vendo os dois cãezinhos que ainda

mordiam seus brinquedos, ralhando mentalmente com eles por não


terem denunciado a presença do meu ex-chefe.

— Decidi fazer um café para nós enquanto esperava sua

reunião acabar. — Virei-me para ele, me esconder não era uma


opção.

Perdi completamente a fala ao vê-lo parado na porta que

ligava o escritório até a cozinha, em uma postura casual, com uma

das pernas apoiada no batente e os braços cruzados sobre o peito,


e a camisa social preta bem-cortada deixava evidente todos os seus

músculos e força.

¡Dios!
Ele era muito atraente, mesmo em sua arrogância e frieza. E

só de pensar que ele poderia vir a ser o meu marido, senti como se

eu fosse derreter, e um calor gostoso se espalhou por todo o meu

ser.
Tola! Ele nem seria seu marido de verdade. Nunca seria.

Tinha que me lembrar de que ele queria apenas o bebê, não

uma esposa.
Mas, perante o olhar intenso dele sobre mim, meu coração

começou a bater acelerado, fazendo com que pequenos arrepios me


percorressem, me deixando em alerta.

Era impossível não ser consciente da sua masculinidade e

poder, que pareciam como o pólen que atraí uma abelha, algo

inevitável. E sem que eu percebesse, me comportava como uma


adolescente, ao colocar uma mecha atrás da orelha, sem jeito e sem

reação. Me sentindo ridícula, principalmente quando minha

respiração ficou ofegante, voltei a me virar em direção ao balcão


para terminar de passar o café.

Ouvi os passos dele se aproximarem, bem como o som dos

cachorros arranhando o piso.

— Você pode me esperar na sala de reunião, se… — me


corrigi a tempo — Javier.

— Precisamos ir — ordenou ao tocar o meu ombro.

Era um toque inocente, porém foi capaz de provocar


pequenos incêndios em mim que eram não apenas inconcebíveis

para ele, mas proibidos. Fechei os olhos e, como uma devassa,

imaginei o que ele produziria em mim ao deslizar seus dedos pelo

meu corpo, ainda mais sobre minha pele nua, acariciando-me,


enquanto sua boca se aproximava do meu pescoço, deixando um

rastro úmido pela minha pele.

Lutei para não balançar a cabeça em negativa.


Colei-me mais ao balcão, afastando-me do seu toque,

quando este tipo de pensamento só complicaria ainda mais a minha


situação. Tentei ignorar o som de frustração que escapou dele e que

me fazia querer voltar atrás.

Sem dúvidas eu deveria estar desenvolvendo uma paixonite

infantil por ele, daquelas que tínhamos na escola pelo aluno mais
popular, e que seria completamente unilateral, sem nenhuma

profundidade, fruto da admiração pela aparência física.

Algo absurdo!
Tinha que parar com isso antes que eu me levasse ainda

mais por aquele desatino e os sentimentos se tornassem uma grande

bola de neve, que só resultaria em infelicidade, já que ia viver uma


mentira.

— Não tenho tempo a perder, garota. — Sua voz soou seca,

mais ríspida que o normal. — O mundo não está aos seus pés,

princesa.
— Eu sei que não, Javier. — Voltei a encará-lo, sentindo-me

ferida pelas suas palavras desdenhosas que me fizeram reagir,

mesmo que minha posição fosse vulnerável e precária. — Não


estaria nessa situação se tivesse o mundo inteiro, não é mesmo?
Os olhos dele cintilaram brevemente e ele estalou a língua,
como se fosse um chicote, fazendo com que os cachorros latissem

em resposta e viessem em sua direção, encostando as patas na

calça social.
— Eu mando e as pessoas me obedecem, chica. —

Acariciou o topo da cabeça dos cachorrinhos displicentemente e eu

evitei olhar para as mãos que eu sabia serem grandes e fortes.


— Deseja uma esposa dócil, senhor? — Arrependi-me de

dizer isso assim que abri a boca. Não tinha o direito de irritá-lo e nem

o provocar, ainda mais quando nada estava garantido para mim e ele

bem poderia voltar atrás e desistir da sua proposta.


— Eu nem queria uma — murmurou.

Levou a mão ao queixo, acariciando os pelos da barba que

estavam mais compridos, indicando que ele não a havia aparado, o


que o deixava ainda mais másculo e belo.

Como seria sentir aqueles pelos sob o meu toque, afagando-


o, antes que ele puxasse meu rosto para o seu e…
Pondo um fim na minha imaginação, que parecia estar mais

do que fértil, desviei o olhar com medo de que ele pudesse ler o meu
rosto, e colocasse ponto final nas minhas esperanças.
O tempo em que ficou em silêncio foi o suficiente para que
eu sentisse uma fina camada de suor cobrindo a minha pele, sentindo
a apreensão me invadir.

— Você está me fazendo repensar se eu realmente preciso


de uma.
Engoli em seco.

Ele arqueou a sobrancelha, um sorriso diabolicamente frio


transformando as suas feições em algo malévolo.
E, para minha surpresa, a risada dele soou baixa e eu o fitei,

atordoada.
Ele estava brincando comigo? Ou a risada dele nada mais
era que a confirmação de que eu tinha ferrado com tudo?

Voltei a tragar o bolo que havia se formado na minha


garganta, meus dedos trêmulos.
— Javier? — Minha voz saiu estrangulada.

— Não demore, garota — falou naquele tom desprovido de


humor, apontando para a chaleira aberta —, ou o café esfriará. Se já

não está tão frio quanto eu.


Pisquei ao confirmar que o tempo todo ele estava brincando,
usando seu senso de humor malévolo para me colocar em uma
encruzilhada, uma armadilha que não hesitei em cair, como um
patinho.
— Homem perverso…

— Não viu nada, chica — respondeu e eu dei um gritinho,


assustada por ter dito aquilo em voz alta, vendo o olhar diabólico

dele sobre mim.


Eu não me ajudava, me comportando como uma criança sem
controle.

— Ande. — Fez um gesto irônico com as mãos para me


apressar e os cachorros, brevemente esquecidos, voltaram a fazer a
sua algazarra. — Estaremos aguardando você na sala de reunião.

— Okay. — Mal ouvi minha voz, e comecei a falar pelos


cotovelos, atordoada por ter sido pega no flagra. — Também servirei
uma xícara para o seu secretário.

— É mesmo? — Foi irônico.


— Disse que você não seria mesquinho de negar um bom
café a um funcionário tão competente.

Ele demorou a responder:


— Virgen, no que fui me meter?

Olhou para cima, como se pedisse paciência, em uma


caricatura que o contradizia, e eu tive vontade de rir com a sua
expressão cínica, mas cômica, no entanto me contive.
Instantaneamente ficou sério e voltou a parecer distante,

mergulhando nos próprios pensamentos.


— Não importa — continuou a dizer baixinho —, você
ganhará o que quer, diabo.

Quis me encolher com o seu comentário, que tornava a


confirmar o quão eu seria indesejável em sua vida. Foi como um tapa

na minha cara, me fazendo lembrar do meu lugar, de que não havia


espaço para minhas ilusões infantis.
— Esteja lá em cinco minutos.

Lançando-me um último olhar de desdém, deu as costas


para mim e, com os dedos, chamou os bichinhos com um estalar,
que foram trotando atrás dele, balançando a cauda com animação.

Eu apenas fiquei ali, parada, observando os três deixarem a cozinha,


sentindo minha mente rodopiar, meu estômago voltar a embrulhar,
enquanto tentava assimilar meus próprios erros e o senso de humor

volátil daquele homem que poderia ser a minha completa perdição.


Capítulo dezenove

— Obrigado, muita gentileza a sua — disse ao pegar a

xícara da bandeja. Eu lutei para não ruborizar perante ao homem que

eu descobri ser o ginecologista que havia me atendido mais cedo.


Não esperava ter que encará-lo novamente. Talvez o clínico geral

tivesse sido mais confortável para mim.

— Por nada, senhor.


— Podemos começar? — Javier disse em um tom neutro e

eu o encarei.

De costa para todos nós, com as mãos nos bolsos, ele

olhava para fora como se encontrasse lá algo de atraente, mas eu

tinha ciência que a aparência dele era enganosa e que sua paciência
estava por um fio. Essa calma fingida aumentou a tensão que

borbulhava em meu interior e que parecia muito próximo de eclodir,

ainda mais quando ninguém tocou no assunto que nos reunia ali.

— Sim. — Fiz uma pausa. — Tem certeza que não quer um

pouco de café, Javier? — ofereci por educação.

— Não, Bárbara, obrigado. — Virou-se na nossa direção,


tomou seu assento e apontou para uma cadeira. — Pode se sentar.
— Okay.
Coloquei a bandeja em um canto da mesa, tomando cuidado

para que os cachorros trançando na minha perna não me

derrubassem. Foi surpreendente ver os dois pequenos ali assim que

entrei. Imaginava que não seria permitido que eles entrassem, ainda

mais que eles faziam pequenas bagunças, latindo vez ou outra, ou

emitindo sons baixinhos, querendo atenção.


Não me servi de uma xícara da bebida, já que o cheiro que

antes me confortava, agora fazia com que o meu estômago revirasse

ainda mais. Beber o líquido só me causaria mais mal-estar. Sentei-

me no lugar indicado e entrelacei minha mão fria uma na outra em um

gesto de nervosismo.

Fitei o advogado de expressão severa, que me parecia o

mais seguro de se encarar, vendo-o remover um envelope grosso da


pasta.

Um calafrio me percorreu ao ter certeza de que era o

contrato que eu teria que assinar e que mudaria toda a minha vida.

Temi o que poderia estar escrito naquelas páginas, ao mesmo tempo

que não poderia culpar Javier por estabelecer uma série de cláusulas

que o protegeriam legalmente, bem como o seu patrimônio. Se eu


estivesse no lugar dele, não confiaria tanto assim em uma

desconhecida, que poderia colocar tudo o que ele construiu a perder.


— Ela está apta a ser a mãe do meu bebê? — Foi direto ao

ponto.
— O ultrassom transvaginal não mostrou nenhuma alteração
morfológica, e nenhum cisto ou miomas que pudessem dificultar o

processo. — O médico começou a dissecar os resultados dos meus


exames.

E quanto mais ele falava com uma naturalidade sobre a


saúde do meu aparelho reprodutor, mais eu me afundava na cadeira

de couro querendo me fundir a ela, envergonhada. Em algum


momento, desviei meu olhar do advogado para o tampo da mesa,
enquanto acariciava o pedaço da orelha de Isabel, era um bom

refúgio para aquele assunto.


— O fato da menstruação dela ser regular, sem usar

nenhuma pílula, também é um bom indicativo.


Tossi, engasgando com o ar, não esperava que ele falasse

diretamente sobre isso, porém ninguém pareceu se preocupar


comigo além dos cachorros, que latiram e começaram a arranhar as
unhas no piso.
— Alguma “DST”, Marcos? — Me ignorou, dirigindo-se ao

médico.
— Não, senhor Javier — falou calmamente. Fitando o

médico, vi que ele olhava fixamente para o tablet. — Todos os


exames deram negativo para doenças sexuais.

— Ótimo. E o resultado dos meus?


Fitei o homem que poderia ser o meu marido, sem esconder
minha admiração por ele ter pensado em fazer os exames também,

dando-me uma garantia que também estava limpo e que não me


transmitiria algo através do seu sêmen.

— Todos negativos também.


— E sobre o check-up geral?
— A saúde dela está excelente, não há nada com que se

deva preocupar. — Fez uma pausa. — Só há uma pequena


deficiência de algumas vitaminas, mas nada que um suplemento e

uma alimentação saudável não resolvam.


Dei um sorriso, voltando a acariciar os cachorros debaixo da

mesa.
— Entendo. Mais alguma coisa que eu deva saber antes de
assinar o contrato?
— Aconselho que ambos façam um exame de mapeamento
genético, para descobrir eventuais problemas de saúde que não
podem ser descobertos com os até então realizados, e também um

de compatibilidade do DNA de vocês dois. — Fez um gesto com as


mãos. — Apesar de ser mais comum em pessoas que tenham

histórico familiar de doenças, o que não é o caso de vocês, muitos


casais fazem esse exame preventivo para saber se o bebê poderá
ter alguma doença hereditária recessiva.

— Não — falou com uma convicção que fez os pelinhos dos


meus braços se arrepiarem e eu encarei Javier, encontrando não

apenas determinação, mas várias outras emoções que foram


confirmadas pela sua próximas palavras. — Não julgo quem se

preocupa com doenças genéticas e incompatibilidade dos pais, mas


eu não me importo com isso.
Como se para confirmar, Lorenzo latiu, querendo chamar a

atenção para si e para a ausência de uma das perninhas.


— Entendo, senhor.

— Amarei meu bebê, independente das circunstâncias. —


Disse baixinho, mais para si mesmo, e uma onda de ternura e
carinho por ele me invadiu.
Senti que lágrimas de emoção se formavam em meus olhos,
mas reuni todas as minhas forças para que elas não caíssem. Seria
constrangedor que me pegassem chorando por achar lindas as

palavras dele sobre amar o próprio filho, sem se importar se ele iria
ou não nascer dentro do ideal de “perfeição” e “normalidade”,

categorias discriminatórias criadas pela sociedade, que nunca


deveriam ser utilizadas.
Javier poderia dizer que ele não era um príncipe encantado,

mas, aos meus olhos, ele parecia se tornar um cada vez mais.

— Com todas as minhas forças e todo o meu ser. Eu… —


Parou de falar ao me encarar ao dar-se conta que estava expondo

seus sentimentos mais do que deveria.

Erigindo uma muralha de gelo em torno de si, impenetrável,

vestiu a máscara de indiferença, me lançando um olhar cheio de


ironia, antes de voltar sua atenção para o médico.

— Mais alguma coisa?

Ele fez que não com a cabeça.


— Ela tem uma boa saúde e tem tudo para ter uma

gestação saudável, embora imprevistos possam acontecer durante

uma gravidez. — Fez uma pausa. — Mas não tem com o que se
preocupar agora. A chance de a inseminação obter sucesso é alta.
— Ótimo. — Não escondeu o alívio que sentia.

Estranhamente, pareceu-me que, para ele, não lhe convinha


encontrar outra candidata. — Obrigado pelas informações, Marcos.

— Por nada, senhor.

— Não vamos perder mais tempo. — Levantou-se e os


cachorros foram correndo em sua direção, ganhando um carinho

descompromissado dele.

Caminhou até onde eu estava, seguido pelos cãezinhos, e

parou atrás da minha cadeira. Um calorzinho gostoso, que sempre


me acometia quando ele ficava próximo a mim, surgiu em meu

ventre.

Não resisti em respirar fundo, querendo sentir o seu perfume


amadeirado outra vez, um erro, já que com o cheiro senti um leve

desejo por ele, que fiz de tudo para suprimir.

Não era lugar para isso. Melhor, nunca poderia ter lugar.
Tinha que me lembrar e me aferrar ao fato de que desejar

aquele homem, algo que por si só era absurdo, que eu nunca poderia

ter e que não queria nada de mim, só me traria infelicidade.

Não éramos um casal, não um de verdade, e nunca


seríamos.
— Os contratos, Bernard. — Falou em um tom aveludado

que, embora não fosse uma advertência, soou como uma na minha

cabeça.
Mas, ainda sim, tudo o que eu conseguia fazer era

permanecer refém do cheiro dele e da sua proximidade, da vontade

de ser uma esposa de verdade para ele, não uma de papel.

Tola!
— Sim, senhor Javier.

O advogado ergueu-se com o maço de documentos e,

parando ao meu lado, colocou-os em cima da mesa e pegou três


deles, entregando uma cópia para cada um de nós. Peguei a minha

com os meus dedos subitamente trêmulos enquanto sentia um dos

cachorros deitar sob meus pés.

— Esse primeiro documento é a formalização daquilo que foi


estabelecido entre ambas as partes — começou a falar e, ao mesmo

tempo que tentava escutá-lo, busquei ler o texto a minha frente,

embora as palavras rebuscadas do jurídico fossem quase que


incompreensíveis —, e também uma garantia que todos irão cumprir

sua parte do acordo.

Continuou a explicar cláusula por cláusula, mas eu não

prestei tanta atenção, pois todo o meu foco estava nas inúmeras
exigências feitas por Javier, bem como os cuidados que eu deveria

ter como a sua esposa e a pessoa que iria gerar o seu bebê,
condições que iam desde não beber e fumar, seguir à risca o plano

alimentar que um nutricionista me passaria, até algumas coisas sobre

o comportamento que se era esperado de mim. Caso eu não


seguisse tudo à risca, as sanções legais prometiam ser pesadas.

Mas o que fez com que meu coração se condoer por ele,

mesmo que eu devesse tomá-la como um tapa na minha cara, não

só pela multa alta, mas também a clara desconfiança em mim, foi o


item que estipulava que, enquanto eu fosse sua esposa legalmente,

eu não deveria me relacionar sexualmente com nenhum outro

homem, como ele não se envolveria com nenhuma outra mulher.


Não conseguindo me segurar, ergui meu rosto para encará-lo

e notei seu semblante indiferente, como se o visse por uma outra

ótica, uma que ia em contramão àquela dada pela mídia. Tido como

um vilão, muitos diziam que a modelo badalada havia terminado o


relacionamento para se envolver com outro empresário do ramo

financeiro, apontado como um antigo sócio dele, devido à frieza do

demônio. Havia até mesmo boatos sobre uma possível traição de


Javier, que poderia ter sido o pivô…
— Ela traiu você, não o contrário — sussurrei a afirmação e

o advogado parou de falar, ao passo que a atenção do meu futuro

esposo recaiu sobre mim.

Ergueu a sobrancelha em um gesto que queria transmitir


apatia, mas o maxilar dele não escondia a tensão que o assunto

provocava. E também a dor de ter depositado a confiança em uma

pessoa, e depois ter ela quebrada.


— O que você disse, garota? — falou calmamente, contendo

uma ameaça implícita.

Mas não tive medo dele.

— Sua ex-noiva te traiu com esse ex-sócio?


Um brilho perigoso cintilou em seus olhos.

— Não vejo a razão pela qual isso faz diferença para você,

chica — disse ao se inclinar na minha direção.


Ficou ali, virando o jogo ao seu favor, a respiração quente

contra o meu pescoço fazendo com que os meus dedinhos dos pés

se curvassem dentro do meu sapato. Lutei para não fechar os olhos

e deixar-me levar pelas sensações provocadas por ele. Não


precisava fazer cena na frente do médico, do advogado e dele.

— Meu passado não é da sua conta — continuou e eu

estremeci.
Ele era como se fosse um predador rodeando a sua presa,

brincando com seus nervos antes de atacar.


— Não vejo nenhuma razão pela qual o desconhecimento

dele a impeça de gerar o meu bebê.

Não respondi.

— Estou enganado?
— Não, s- Javier — me corrigi a tempo, tentando me apegar

a algum fio de racionalidade. — É por causa da cláusula…

Afastou-se de mim e eu engoli o choramingar, seria patético


demais.

— Tem algum problema em manter-se fiel a alguém,

Bárbara? — Arrastou o meu nome com desdém e eu voltei a encará-


lo, percebendo seu desgosto. — Se sim, podemos encerrar nossa

negociação aqui mesmo.

Sussurrei um não baixinho, mas ele não prestou atenção em

mim.
— Nunca poderei deixar que um filho meu carregue o

estigma de bastardo, como… — Não era necessário que terminasse,

pois logo recordei que ele tinha sido resultado de uma traição.
— Não! — Exclamei em voz alta, levantando-me em um

salto, e os cachorros, que até então estavam quietos, começaram a


fazer barulho novamente. — Eu nunca trairia você…
Estalou a língua, como se não acreditasse, e voltou a se

aproximar de mim, sussurrando em minha orelha, tão baixo, tão

friamente, que duvidava muito que os outros presentes conseguiriam


ouvir:

— ¡Sí, chica! Ela me traiu.

— Sinto muito.
— Não necessito da sua compaixão, garota. Agora sente-se.

Engoli em seco e fiz o que ele ordenou.

— Podemos continuar?

— Sim, Javier.
O advogado voltou a falar mais algumas coisas, mas tudo o

que eu conseguia pensar era no quanto ser considerado um

“bastardo” pelo seu nascimento o magoava, e o quanto a traição da


sua ex-noiva fez com que Javier se tornasse frio, avesso as

emoções. Minha intuição gritava que a dor e as marcas deixadas


nele eram muito mais profundas.
— Está de acordo, senhorita? — A voz do advogado fez com

que eu desse um saltinho na minha cadeira, mas dessa vez os


cachorros não fizeram nenhum som, eles deveriam ter saído da sala.
— Com o quê? — Virei-me para ele.
— Com o valor a ser pago quando vocês se separarem.
— Sim — respondi, sem nem ao menos olhar quanto era.
Não me interessava quanto ele me pagaria, apenas queria a

quantia que permitiria que eu salvasse a vida do meu irmão.


— Então podemos assinar o documento? — perguntou.
— Sim — eu e Javier respondemos em uníssono.

Não havia mais por que postergar a assinatura daquele


contrato que faria de mim a esposa dele, mesmo que ainda não
tivesse terminado de ler tudo. No fundo, sabia que não tinha escolha

a não ser aceitar todas as cláusulas sem pestanejar. Duvidava muito


que Javier iria negociar comigo, fazendo as minhas vontades.
— Só irei chamar o meu secretário para ser minha segunda

testemunha. Marcos concordou em ser uma delas.


— Certo, senhor.
Ouvi o som de passos e da porta se abrindo e fechando,

então peguei a caneta que o advogado tinha estendido para mim.


— Por favor, rubrique todas as páginas das três vias,

senhorita Garcia.
— Tudo bem.
Fiz o que ele pediu, sentindo meus dedos escorregarem ao

pressionar a caneta contra o papel. Mesmo que estivesse certa da


minha decisão, o nervosismo se apoderou de mim, tanto que nem
reparei o momento em que Javier e o secretário dele entraram na
sala, só me dei conta disso quando, sem querer, seu braço esbarrou

no meu ao assinar os documentos, fazendo com que uma corrente


elétrica me deixasse consciente dele. Reprimi as emoções, emitindo

um suspiro baixinho.
Não demorou mais do que dez minutos para que o meu
destino fosse selado: eu seria a esposa do milionário e a mãe do

seu bebê.
— Há também esse documento que precisa ser assinado.
Olhei para o homem e assenti com a cabeça, pegando os

papéis dos seus dedos, acreditando que era mais algum documento
que protegeria meu futuro marido. Mas nada tinha me preparado
para as palavras que estavam redigidas naquele documento.
Capítulo vinte

Senti como se um pedaço de mim, que ainda nem existia,

tivesse sido arrancado à força e deixado em seu lugar uma dor que
nunca havia experimentado antes. Era visceral, tanto que o ar

parecia não adentrar aos meus pulmões.

Com a visão nublada pelas lágrimas que se formavam em


meus olhos, que eu tentaria não derramar, encarei o homem que me

condenava a aquele inferno em busca de resposta, encontrando-o

impassível e indiferente; expectante. Como se soubesse que era


observado, fixou seu olhar no meu, e ficamos nos encarando por

longos segundos, que se transformaram em minutos. Havia o mesmo


fio que nos conectava, como das últimas vezes em que nós tínhamos

trocado olhares, porém, dessa vez, ele era muito mais fino e,

inevitavelmente, acabou se rompendo.

Meus pelinhos se arrepiaram e eu fiquei gelada.

Tinha visto e sentido na pele as consequências ministradas

pelo lado perverso do CEO que todos chamam de “Demonio de


hielo”. E eu não poderia mais negá-lo, por mais que quisesse. Javier

era um homem que não tinha nenhum escrúpulo para obter o que
desejava e, se tivesse que passar por cima de qualquer coisa, ele
não hesitaria.

Não seria a sensibilidade alheia que o comoveria.

A constatação fazia com que uma centelha de amargura,

como uma erva daninha, se espalhasse em meu interior, intensificada

pela dor que me fazia prisioneira da desesperança, da tristeza, e do

ressentimento. O gosto de fel parecia impregnar em minha boca.


Virei o rosto, não tendo mais forças para olhar para meu

futuro marido.

O som de desdém escapou dos lábios dele.

— O que é isso? — Sabia que estava sendo burra em

questionar algo que estava mais do que claro no documento, mas

não conseguia raciocinar direito. Tudo se resumia àquele sentimento

dilacerador.
— Uma declaração em que formaliza que você está

renunciando a qualquer possibilidade de obter a guarda, mesmo que

compartilhada, da criança quando vocês se divorciarem após ela

desmamar. — O advogado explicou.

Ouvir aquilo fez com que a pequena esperança que ainda

abrigava em mim se extinguisse, minha sentença se tornando cada


vez mais real.
Fui ingênua por, em nenhum momento, ter refletido sobre o

que, de fato, Javier esperava de mim como a barriga de aluguel do


bebê dele sob disfarce de um casamento, principalmente quando ele

se acabasse; um matrimônio que ele tinha advertido que resultaria


em divórcio.
Fui burra por não pesar as consequências, não apenas

físicas, mas também emocional de gerar uma criança, que eu não


deveria me envolver durante a gestação e nem depois dela.

Eu não poderia conviver com o meu bebê!


Fechei as mãos com força, lutando contra a vontade de tocar

a minha barriga, protegendo uma criança que ainda nem existia,


como se o gesto pudesse fazer com que o bebê ficasse comigo.
As lágrimas secaram em meus olhos, eu não tinha forças

para chorar, apenas rir e alto. Um som que nunca tinha ouvido
escapou dos meus lábios. Era burrice acreditar que um homem que

claramente me detestava permitiria que eu permanecesse na sua


vida e na de quem ele provavelmente mais amaria, que seria sua

família. Mas ele não me incluía em sua vida nem na do bebê que,
não havia dúvida, eu também aprenderia amar. Minha risada ficou
ainda mais estridente.
— Garota? — A voz do meu algoz se infiltrou em meus

ouvidos.
Ainda sem conseguir me controlar, joguei a cabeça para trás

e o encarei. Seu cenho estava franzido como se estivesse tentando


entender a razão pela qual eu ria, porém também havia uma centelha

de preocupação, perturbação que me fez rir ainda mais. Era


contraditório aquele homem mostrar desassossego pela minha
reação descabida, quando não se importa com o fato de tirar o bebê

de mim.
— Algo engraçado, Bárbara? — Arqueou a sobrancelha,

desafiando-me.
— Não, marido — disse, tempos depois, quando consegui
parar de rir, e tudo o que restou dentro de mim foi um imenso vazio,

sofrimento. Dor.
Não passou despercebida a palavra “marido”. Javier

arreganhou os dentes em um sorriso diabólico e ironia cintilou em


seus olhos.

Novamente senti o estômago embrulhando. Abaixei a cabeça


e meu olhar repousou no maldito papel. Masoquista, fiquei encarando
aquelas palavras embaçadas por não sei quanto tempo, presa em

minha dor, até que novamente senti a respiração dele contra a minha
pele e eu me amaldiçoei mentalmente por reagir a sua proximidade,
mesmo estando em frangalhos. Talvez eu merecesse aquela punição
por, naquela situação, ainda ser capaz de sentir desejo por aquele

homem; por querer sentir seus lábios sobre mim; por as ondas de
antecipação percorrerem o meu corpo. Por ser tola.

— Por que a demora em assinar, princesa? — sussurrou a


pergunta no meu ouvido cheio de desdém, mas tudo o que eu
consegui foi focar no calor que ele parecia transmitir. — Seu irmão

não tinha pouco tempo?


Sentindo o gelo banhar minhas veias com a sua frase, olhei

outra vez para o documento, e me lembrei da razão pela qual eu


estava fazendo tudo aquilo.

Respirei fundo.
Com a frase “um filho pela vida do seu irmão” ecoando na
minha mente, peguei a caneta com os meus dedos trêmulos e, sem

pensar muito, assinei o documento. Imediatamente uma parte do


meu coração pareceu morrer ao abrir mão de algo tão precioso.

Tudo se tornou torpor, tanto que nem ao menos senti o afastamento


dele e muito menos escutei a conversa que se passou entre ele e os
outros presentes.
Eu era um caos, mas enquanto eu era refém do turbilhão
emocional que me dilacerava, estranhamente passei a contestar as
palavras que remetiam a uma troca. Por mais que ainda nem

houvesse uma criança, comecei a me apegar a ideia de que, por


mais que a distância fosse me separar do bebê que eu geraria, eu

nunca deixaria de amá-lo e querê-lo.


Javier poderia me relegar ao papel de barriga de aluguel,
mas ele não poderia controlar os meus sentimentos pelo filho dele.

Pelo meu filho.

O dinheiro dele não compraria o meu coração, só o meu


corpo.

— Isso é tudo, Bernard? — falei com determinação e não

obtive nenhuma resposta.

— Estamos sozinhos, garota — Javier disse em um tom


seco.

Ergui o rosto e o encontrei de pé, com as duas mãos

apoiadas sobre a mesa, observando-me fixamente com uma


expressão estranha no rosto, como se eu fosse um objeto a ser

desvendado.

Dessa vez não iria fugir; e o fato de eu sentir uma lambida


nos meus dedos, indicando que os cachorros voltaram à sala, me
encheu ainda mais de coragem.

— Mais alguma coisa, senhor? — Estava brincando com


fogo ao chamá-lo de senhor zombeteiramente, mas era uma

retaliação pela “princesa”, estava disposta a ser queimada.

— ¡Carajo, chica! — disse entredentes, e tudo nele pareceu


indicar perigo. — Se eu fosse você, não me provocaria. Muitos que

se atreveram a fazê-lo pagaram por isso.

— Eu não duvido disso — meu tom soou suave. — Um

demônio tem que ser sempre impiedoso, não é mesmo?


— ¡Si! — murmurou. — E é bom que se lembre disso.

Assenti com a cabeça.

Não dissemos nada um para o outro e, com um som de


frustração, o vi passar a mão nos cabelos e, com passos lentos, se

aproximar da minha cadeira. Lutei contra as sensações da

proximidade dele e, dessa vez, congratulei-me por ter um pouco mais


de êxito.

— Isso também faz parte do acordo. — Colocou com

displicência um cartão preto de um dos principais bancos da

Espanha em cima da mesa.


Não respondi. Confusa, apenas deslizei a ponta de um dedo

sobre o meu nome gravado em relevo.


— É ilimitado.

Girei a cadeira, tomando cuidado para não machucar os

pequenos, dando-me conta que ele estava mais próximo, tanto que,
se eu baixasse um pouco o olhar, encontraria o cós da sua calça.

Seria constrangedor ele me pegar fitando o volume no meio das suas

pernas.

Desconfortável com a ideia, ao passo que sentia uma parte


de mim esquentar, apoiei a minha cabeça no encosto e encarei o seu

rosto inexpressivo, sentindo uma pontada de inveja pelo autocontrole

dele. Contive os pensamentos negativos sobre mim mesma e minha


devassidão. Não iria me ferir, mais do que eu já estava, ao pensar no

meu comportamento.

— Não compreendo. — Engoli em seco.

— É para suas despesas pessoais enquanto estiver comigo


— soou frio —, mesmo que esse casamento seja de aparência… —

seu olhar desdenhoso percorreu-me da cabeça aos pés, deixando

mais do que evidente o quanto ele achava que eu era inadequada.


Acariciei os pelinhos de um dos cachorros que, pelo tato, constatei

que era Lorenzo. — Não posso permitir que a “minha esposa” vista

um trapo qualquer, principalmente quando estiver ao meu lado.


Emiti um suspiro baixinho cheio de vergonha e certa

humilhação, mas acabei concordando com a cabeça. Podia imaginar


o quanto naquele mundo uma imagem impecável era importante,

ainda mais quando queriam manter sua influência, e algo me dizia

que aquele homem objetivava ainda mais poder. Mas o fato não era
um consolo e muito menos diminuía a impressão de que eu me

tornaria um bibelô em suas mãos.

— E não finja que não gostará de gastar o meu dinheiro com

coisas fúteis, garota. — Ele era puro cinismo. — Ainda mais quando
não há limite.

Esse foi o pior dos insultos. Mesmo que eu devesse me

manter em silêncio, retruquei:


— Você não me conhece para julgar-me assim.

Foi a vez de ele gargalhar, fazendo com que os cachorros

emitissem vários sons em meio aos latidos.

— O contrato que você acabou de assinar me diz muita


coisa, chica.

Ignorei a pontada de dor que a sua acusação me provocava.

— Que seja — sussurrei, sabendo que não adiantava tentar


me justificar quando o ceticismo era mais do que evidente em sua

face, no seu tom e em cada pedaço do seu corpo.


Deixou de me encarar e olhou para a escuridão que

provavelmente fazia lá fora.

— Eu só tenho isso para lhe dar — sua voz não passava de

um sussurro doloroso.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, enfiando a mão

no bolso da calça, tirou dele uma caixinha preta que fez meu coração

bater acelerado. Receber um anel de noivado, com o pedido, era o


sonho de muitas mulheres e eu, romântica, inocente, também podia

me incluir nessa fantasia.

Mais uma vez, ele deixava claro que não era nenhum príncipe

encantado apaixonado ao jogar a caixa sobre o meu colo, o que foi


um grande balde de água fria.

— Use isso — ordenou.

Com os dedos trêmulos e hesitantes, abri a caixinha. Perdi o


fôlego ao ver o anel de ouro branco com um enorme diamante rosa

solitário, cravejado com pequenas pedrinhas nas laterais. Era um dos

anéis de noivado mais lindos que eu já havia visto, porém também

era igualmente frio.


— A farsa não estará completa se você não o usar.

— Verdade — falei por falar.


Depois de um tempo encarando-o, o coloquei no meu dedo

anelar direito, como via muitas pessoas usarem, já que ele não faria
isso por mim. E foi impossível não comparar o peso das pedras a um

grilhão.

— Isso é tudo? — questionei, sentindo-me subitamente

cansada. Mesmo assim, uma vez mais, o olhei.


Surpreendeu-me que ele estivesse olhando o dedo em que

tinha colocado a joia, porém eu nada disse.

— Preciso que você mande uma mensagem para o seu


irmão pedindo para ele me encontrar aqui.

— Por quê? — Um alarme me percorreu.

— Para ele buscar o dinheiro e também para que uma


equipe de segurança o acompanhe. Você não disse que ele tinha

menos de quarenta e oito horas?

— Sim, mas eu posso…

— Não, garota — Fez um gesto com a cabeça. — Quero


conversar com ele.

Traguei em seco, com medo da confusão que isso poderia

trazer, principalmente pelo fato de Pablito ainda estar furioso, porém


sabia que não tinha como dizer não ao milionário.

— Tudo bem. Obrigada por pensar na segurança dele.


Respondeu com um estalar de língua, menosprezando a
minha gratidão.

— É apenas a minha obrigação.

Contendo a vontade de me afundar contra o assento, peguei


o celular na minha bolsa e, sem ler as inúmeras mensagens que tinha

de mi hermanito, fiz o que Javier pediu, explicando sucintamente

tudo, felizmente Pablo apenas concordou.


— Pronto, agora é só esperarmos.

Negou. Meu peito se apertou.

— Como está redigido no contrato, pedirei que o meu

motorista te leve para o meu apartamento, o novo lugar em que você


irá morar a partir de hoje.

— Mas… — Comecei a contestar, não por ir morar com ele,

mas, sim, por querer ficar, mas ele me impediu.


— Ele passará na sua casa para buscar umas mudas de

roupa enquanto você não comprar outras mais… — fez um gesto


com a mão ao voltar a encarar o que usava —, decentes.
Fiquei em silêncio, absorvendo os sentimentos confusos que

o escrutínio suscitaram.
— Eu não posso ir para casa — confessei, e falar aquilo em
voz alta era como se eu cravasse uma faca no meu próprio peito. —
Os traficantes… Pablito não acha seguro.
Tragou o ar com força, soltando-o ruidosamente, os dedos
voltando a passar por entre seus cabelos.

— Ordenarei que ele passe na Milla de Oro com você. —


Arregalei os olhos quando ele falou da rua onde ficavam as lojas
mais badaladas de Madri. — Deve ter alguma coisa aberta nesse

horário e você poderá comprar tudo o que precisar. Se não, peça


para passar num shopping qualquer, depois alguém buscará seus
objetos pessoais em sua casa e acertará os aluguéis.

— Okay. — Queria agradecer novamente, mas sabia que ele


não desejaria ouvir isso.
— Pode levar Isabel e Lorenzo com você — falou com

suavidade sobre os cachorros e só então me dei conta que tinha me


esquecido deles. — Eles adorarão chocar a sociedade com a sua
presença.

Não escondi o meu assombro pela sua brincadeira e, ao


ouvir a risada grossa, porém gostosa, sem nenhum traço de cinismo

e também de frieza, eu o acompanhei e ri junto a ele. Meu erro, pois


logo ele parou, tornando-se um bloco de gelo.
— Vá, garota — ordenou — as coleiras deles e as correntes

estão em um armário da despensa.


— Javier…
— O meu motorista estará te esperando na minha garagem
privativa. — Deu um beijo no topo da cabeça de cada cachorro. —

Vejo vocês mais tarde.


Sem me dirigir outra palavra, pegando as cópias dos seus

contratos em cima da mesa, deu as costas e caminhou para fora da


sala de reunião, me deixando completamente confusa e também sem
reação.
Capítulo vinte e um

Fechei a porta do escritório, trancando-a, garantindo que

nem a garota e nem ninguém visse minhas reações. Coloquei a pasta


em cima da mesa, sentei-me na minha cadeira de couro, dando um

sorriso frouxo quando minhas mãos ficaram trêmulas ao abrir o

envelope e puxar a declaração.


Com medo de que tudo não passasse de um sonho e que eu

acordaria a qualquer momento, como um homem afoito li o

documento que tinha feito a garota rir descontroladamente, o que


não podia negar que me preocupou um pouco, pois não esperava

aquele tipo de reação. Estava buscando a confirmação de que o meu


bebê se tornaria real, e que tudo não passava de uma fantasia

criada pelo desejo de nutrir sentimentos verdadeiros por alguém, de

que fosse apenas fruto da inveja que sentia da paternidade de Yazuv,

da ânsia de ser modificado, como meu melhor amigo tinha mudado

pelos seus bebês. De sentir, uma vez na vida, sentimentos bons; que

eu poderia ser bom para alguém.


Toquei as assinaturas com devoção. Elas não deixavam

dúvida de que tudo era real.


Eu seria pai! Meu maior sonho se realizaria!
— ¡Mi bebé! — sussurrei, sem me importar que meu filho

ainda fosse uma mera ideia. — ¡Mi pequeño!

Senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto, não conseguindo

mais conter as emoções que a muito custo tinha sufocado na sala de

reuniões. O carinho, a ternura, e outro sentimento que não sabia

definir, por nunca ter sentido antes me tomaram, algo intenso,


desconhecido. Mas, de alguma forma, as lágrimas, meu coração

batendo acelerado, meu corpo trêmulo, e uma leveza que me era

totalmente estranha me indicavam que só poderia ser aquilo que as

pessoas chamavam de amor.

Levei a mão ao rosto, me permitindo chorar como há muito

tempo não fazia. Dessa vez não por conta de tristeza ou de dor, mas

pela felicidade em saber que aquele sentimento que por muito tempo
me parecia proibido agora me preenchia lentamente, afastando-me

das sombras.

— Papa ya te ama mucho — falei baixinho, com a voz

embargada, ainda aos prantos —, y siempre te amare, mi vida. Es

mi mayor regalo[52].

Eu não precisava invejar e muito menos cobiçar a felicidade

alheia.
Finalmente experimentava aquele sentimento em plenitude e,

por mais desconcertante que fosse, deixei que aquela alegria


dominasse cada pedaço de mim.

Tirando a mão do rosto, novamente encarei o papel que


detinha a minha felicidade, vendo as gotas grossas mancharem o
documento. Secando a mão na calça, tendo a certeza de que seria

pai cada vez mais infiltrada dentro do meu coração, não precisando
mais dos papéis para confirmar, abri o envelope para guardá-los,

meus dedos tocando o contrato que, ao mesmo tempo que realizava


meu sonho, fazia com que a garota se tornasse minha mulher, só

faltando a formalização na igreja e no civil que aconteceriam em


menos de quinze dias, era o máximo de tempo que eu conseguiria
esperar.

Eu não desejava aquele casamento, mas unir-me


temporariamente com aquela garota era um preço pequeno a se

pagar perante aos sentimentos que já sentia pelo meu bebê e o


vislumbre de felicidade que eu tinha para o meu próprio futuro.

Lembrar do meu casamento iminente fez com que minha


mente tivesse flashes de ter estado tão próximo a ela, de ver seus
pelinhos da nuca se arrepiarem ao sentir minha respiração contra

ela, de estar a centímetros de pousar meus lábios sobre sua pele,


do quanto o lado malévolo que a garota despertava em mim esteve

bem próximo de cruzar a distância e beijá-la somente para provocá-


la, cedendo ao desejo.

Por mais bonita e atraente que ela fosse, ela era perversa e
traiçoeira, mas eu não podia negar que, mesmo debaixo daqueles

trapos, o corpo pequeno era cheio de curvas nos lugares certos, o


que faria com que qualquer um quisesse fodê-la, ainda mais quando
se era sua esposa.

Como a minha mãe, ela abandonaria uma parte de si sem


hesitar, sem nem ao menos lutar. De algum modo, uma parte de

mim, aquela que ainda precisava do calor e do amor materno, tinha


ficado decepcionada com o fato de que aquela garota iria condenar
meu filho ao rejeitá-lo. Fiquei desapontado por ela não ser diferente

das mulheres que passaram por minha vida. Senti desprezo ao


pensar que aquela felicidade que havia nela, a ternura com que

brincava e beijava Lorenzo e Isabel, eram puro fingimento.


— Papai dará todo o amor que você precisa, mi bebé —

sussurrei essa promessa para o intangível, sentindo um aperto


estranho no peito. — Mamãe pode não te querer, mas o papá dará
sua vida por você.
Outra lágrima escorreu pelo meu rosto ao pensar nesse
assunto doloroso e, outra vez, não impedi que fizessem seu curso.
Estava cansado de reprimir meus sentimentos, minha angústia,

quando estava sozinho, de fingir que nada poderia me machucar.


Queria me tornar melhor e mais sensível pelo meu bebê,

revelando todos os meus sentimentos para ele, mesmo que esconda


isso de todo o resto das pessoas, até mesmo de minha futura
esposa.

Meus pensamentos e sentimentalismo foram interrompidos


quando o som do meu ramal soou e, amargamente, o homem frio

voltou a me controlar. Era inevitável, tinha sido mais de vinte e oito


anos escondendo-me atrás dele.

E eu tinha que cumprir a parte principal do acordo que me


daria a coisa mais preciosa que eu teria na vida.
Tirei o fone do gancho.

— Pode mandá-lo subir — disse em um tom seco.


Não esperei resposta, nem apresentação de quem era o

meu visitante, apenas desliguei. Levantando-me, com passos lentos,


caminhei em direção ao banheiro, lavei o rosto e me fitei brevemente
no espelho. Apesar de não haver mais rastro de lágrimas em minha

face, meus olhos nitidamente estavam vermelhos. Voltei ao meu


escritório e, após destrancar a porta, tornei a me sentar diante da
mesa, guardando o envelope em uma gaveta.
Por um capricho estranho e excêntrico, adotei a postura

lânguida, como se eu fosse encarar um visitante qualquer, não o meu


futuro cunhado, que, se fosse o tipo de homem que sua irmãzinha

imaginava que era, estaria furioso. Provavelmente descontaria toda


sua raiva em mim, não na “princesinha”. Não podia negar que seria
bem-merecido, mas não me importava. Ela tinha feito a sua escolha

ao aceitar os meus termos.

— Entre — pedi assim que ouvi alguém batendo na porta.


Encarei o rosto machucado, com as pálpebras quase

fechadas pelos socos que havia levado. No momento em que entrou,

não me senti nenhum pouco desapontado com a fúria que havia nele.

— Sente-se. — Apontei para a cadeira à minha frente


quando ele parou no meio do escritório.

Tinha os punhos fechados como se se preparasse para me

dar uma bela surra.


Tolo!

Não iria gastar meus punhos com alguém que já se

encontrava tão fodido, também não era da minha natureza. Ignorei a


lembrança de eu ter socado o filho do Gonzáles, bem como a

vontade que tive de surrá-lo por causa da Bárbara.


— Eu deveria te espancar pelo que fez com a minha irmã —

disse cheio de fúria, aproximando-se da mesa, como se realmente

fosse me agredir.
Arqueei a sobrancelha ironicamente.

— Fique à vontade para tentar. — Fiz um gesto com a mão,

e isso pareceu aumentar ainda mais sua cólera.

— Bastardo! — cuspiu.
— Isso é o seu melhor, rapaz? — Arreganhei os dentes em

um arremedo de sorriso e ele bufou. — Já fui chamado de coisa

muito pior. Então não gaste saliva com esses insultos, “cunhado” —
frisei a última palavra, não resistindo em provocá-lo.

— Demônio desgraçado! — Deu um soco com força na

mesa e eu tive uma pontinha de admiração pela sua expressão


deformada não demonstrar uma fração de dor. — Você irá destruí-

la.

Dei de ombros.

— Isso também não é novidade. — Fiz uma pausa lenta e


voltei a apontar para a cadeira. — Agora sente-se, Pablo.
Fez que não com a cabeça, voltando a esmurrar a mesa.

Percebi que, por detrás da raiva, também havia desespero de um

homem que carregava o peso da culpa sobre seus ombros.


— Minha irmã é uma menina inocente, generosa. — Seu tom

era de desalento — Você quebrará isso nela.

Ela estava longe de ser esse anjo de candura, esse mártir,

porém escondi minha reticência por trás de uma máscara neutra.


Não cabia a mim jogar na cara dele o quanto a irmã dele era

perversa e tão fria quanto eu ao concordar em dar uma parte de si

em troca de dinheiro.
— Caralho, você pode trepar com a modelo e socialite que

quiser. Porra, precisava mesmo dessa desculpinha de casar-se com

ela e ter um bebê só para fodê-la?

Sua fala sobre o meu bebê fez com que uma ira
instantaneamente se apossasse do meu corpo e, perdendo

completamente o controle sobre mim mesmo, fiquei de pé. Foi a

minha vez de socar a superfície, apesar de estar muito tentado a


estraçalhá-lo com os punhos, mas meu ato não fez com que ele

recuasse.

Homem tolo.
— Não fale sobre o que você não sabe, garoto — disse em

um tom de ameaça.
Não iria me expor, revelando o quanto eu queria aquele bebê,

o quanto eu já amava essa criança inexistente. Isso não dizia

respeito a ele, nem mesmo a sua irmã traiçoeira.


— Que tipo de sádico manipula uma menina desesperada, só

para transar com ela?

— Não tenho interesse nenhum em fazer sexo com ela,

rapaz. — Vesti a máscara de frieza. — Muito menos tocá-la.


Bufou, demonstrando incredulidade.

— Conta outra, cara! — proferiu com desdém. — Babi pode

ser inocente em acreditar nas suas mentiras, mas conheço tipos


como você que seduzem garotas ingênuas com falso cavalheirismo,

inventando uma lorota qualquer de inseminação artificial.

Contive a risada, me sentando esparramado novamente na

cadeira.
— Se você fosse mais esperto, não falaria que eu usei meu

“cavalheirismo” para levá-la para cama. — Dei de ombros. — Não

existe sentimento tão nobre dentro de mim, demônios tomam o que


querem sem precisar desse estratagema.

Ele cerrou os dentes.


— E não preciso ir tão longe, como me casar com uma

mulher para tê-la entregue a mim — menti descaradamente em um

tom frio.

A lembrança da minha ex dizendo que nunca ninguém do


sexo feminino poderia amar um homem frio e cheio de cicatrizes na

cama surgiu como um raio, mas eu apenas afastei-a para o fundo da

minha memória.
— Filho da puta! — Bateu na mesa outra vez, dessa vez com

as duas mãos.

— Você deveria agradecer a esse sádico por salvar a sua

vida — provoquei-o.
— Nunca! — Foi ríspido. — Nunca serei grato por você usar

a minha estrellita.

Fiz pouco caso das suas palavras.


— Nem mesmo quando nos encontrarmos no inferno, porque

é para lá que nós dois vamos.

Não conseguindo me segurar, joguei a cabeça para trás e ri

alto, incontrolavelmente.
O garoto estava completamente certo.

— ¡Sí! Temos isso em comum, “cunhado” — murmurei, após

conseguir me controlar —, cada um com o seu pecado. Mas não


estou aqui para falar dos meus, mas, sim, para consertar os seus.

Não queria perder mais tempo discutindo se eu iria fazer


sexo ou não com a irmã dele. Do mesmo modo que ele não me

convenceria sobre a virtuosidade da “Santa Bárbara”, eu não iria

enfiar na cabeça dele que não desejava a pirralha e que tudo o que

eu queria dela era o seu ventre saudável.


Também, meu relacionamento com a irmã dele não lhe dizia

respeito, mesmo que tenha sido por causa dele que Bárbara tinha se

vendido ao diabo.
Ele emitiu um som de desgosto.

— Agora faça-me o favor de se sentar — ordenei. — Não

tenho tempo para você e imagino que o seu prazo também esteja se
esgotando.

— Você não tem nada para me dizer, diabo. — Continuou de

pé.

— Mas tenho o dinheiro que limpará a sua barra, não é,


moleque? — Fui irônico.

Emitindo um suspiro cansado e cheio de desgosto, que eu

reconheci que não era apenas dirigido a mim mesmo, fez o que pedi
ao passar a mão pelos cabelos. Mesmo que suas pálpebras

estivessem inchadas, pude ver a dor e a culpa em seus olhos.


— Não me arrependo de fazer o que fiz. Como disse para a
Babi, faria mil vezes se fosse necessário — se justificou em um tom

baixo.

— Imagino que não. — Estalei a língua. — mas os motivos


que te levaram a esse caminho não me importam.

— Desgraçado! — Cerrou os dentes com força. — Não há

um pingo de compaixão em você?


Fiz uma careta que deixava bem claro que não.

— Que Dios me perdoe por deixar minha irmã sofrer nas

mãos desse capeta. — Para minha surpresa, começou a chorar de

ódio, mas não me comovi, como a garota não se comoveu com os


sentimentos do meu bebê.

Os minutos se passaram e, enquanto tamborilava o dedo na

mesa, esperei que ele se recompusesse, o ódio virando-se para


mim.

— O que me pergunto, garoto, é o que você fará com o


"sacrifício" dela.
— Não entendo aonde você quer chegar — retrucou

rispidamente.
— Será ruim para os negócios se alguém descobrir que o
“meu cunhado” continua no mundo do tráfico, garoto — falei com
cinismo.
— É mesmo? — Riu, não escondendo a amargura e o
quanto a ideia era tentadora para ele.

Não podia culpá-lo por jogar sujo, quando eu mesmo estava


jogando, mas, nesse tabuleiro de xadrez, só teria um vencedor. E ele
não tinha a mínima chance de vencer.

— Também partiria o coração da “minha esposa” ver que o


irmão dela voltou a se envolver com drogas. — Fui suave.
Engoliu em seco, e eu vi a expressão dele se transformar de

raiva para tristeza.


— Eu sei, mas não é tão simples assim.
— Não, não é garoto. Mas a minha pergunta é se você quer

continuar nisso. Sempre há essa possibilidade, ainda mais quando se


é… — Gesticulei, consciente de que eu o julgava com base em um
estereótipo de que quem traficava também costumava consumir,

mesmo que apenas para recreação.


— Não! — gritou. — Nunca cheirei uma pedra na minha vida,

por mais que tenha sido pressionado e que tenha sido tentador.
— Ótimo. — Dei um sorriso falso. — Depois do casamento
com a sua irmã, garantirei que…
— Eu não quero o seu dinheiro — interrompeu-me ao falar
vários decibéis mais alto e eu pedi paciência à Virgem. — Você não
pode me comprar.

— Tsc. Eu estou longe de estar te comprando, garoto.


Soltou um som de desprezo.

— Não é o que parece…


— Eu já tenho o que desejo. — Olhei com o canto do olho o
meu decantador, desejando uma dose de whisky. — Eu só compro

aquilo que tem alguma utilidade para mim, e você não tem nenhuma,
não faz a mínima diferença se vive ou morre.
Praguejou uma série de impropérios.

— Mas prometi a sua irmã, como parte do acordo, que você


permaneceria vivo e isso ficaria difícil com você residindo em Madrid,
onde a qualquer momento poderá levar uma bala na cabeça. — Ergui

a mão para que ele não me interrompesse. — Duvido muito que você
deseje um bando de guarda-costas te seguindo para qualquer lugar.
Ele não respondeu.

— Garantirei que você tenha um emprego honesto em um


dos meus negócios em Cádiz e um teto — informei.

— Não acredito em você — sussurrou e sua voz começou a


aumentar vários decibéis. — Está mentindo. Só quer afastar a minha
irmã de mim, seu canalha, deixando-a vulnerável e desprotegida,
apenas para manipulá-la, só para ter ela onde você quiser.

— Céus… — Olhei para cima e respirei fundo. — Como


disse para a garota, ela não é minha prisioneira, e poderá te visitar
sempre que quiser, desde que esteja acompanhada por guarda-

costas.
Bufou, indignado.

— É uma viagem curta para ser feita de jatinho, tanto que ela
poderá ir e voltar no mesmo dia. — Fiz uma pausa. — De qualquer
modo, não é como se fossem continuar a morarem juntos.

Não respondeu, parecendo pesar as alternativas.


— Você poderá recomeçar bem longe do crime. — Apelei
para meu tom persuasivo, que, em raras vezes, era obrigado a usar

em uma negociação. — Sua irmã iria gostar de ver você fazendo


uma faculdade, trabalhando em algo honesto.
Os olhos dele brilharam, como se a perspectiva de ter uma

outra vida, um recomeço, fosse sedutora para ele também.


— Por mais que você não acredite em mim, protegerei a sua
irmã. E eu não faço juramentos que não posso cumprir.

Fez uma careta.


— E então, fará valer ou não o sacrifício da sua irmã?
— E eu tenho escolha? — falou em um sussurro que não

escondia a sua dor, bem como sua contrariedade.


Os sentimentos dele não me importavam.
— Temo que não.

— Eu te odeio, seu bastardo! — Fechou e abriu a mão,


controlando a sua raiva. — Aceitarei pela Bárbara, por amar demais
a minha irmã, mas não pense que concordo com essa porra toda,

porque minha vontade é pegar minha pistola e dar uma merda de um


tiro na sua cabeça pelo que você fará ela passar.

Não fiz conta da ameaça.


— Se estamos resolvidos. — Tirei um maço de notas da
gaveta, colocando em cima da minha mesa. — Esse é o valor da

dívida que você tem. Há um carro blindado na garagem e uma equipe


de segurança te aguarda lá para te escoltar.
— Não é necessário. — Pegou as cédulas e guardou no

bolso.
— Você não está em posição de barganhar. — Apontei para
ele. — Se olhe no espelho.

Antes que pudesse responder, meu celular começou a tocar


e, não fazendo conta do meu futuro cunhado, olhei para o visor,
constatando que era o presidente de uma das minhas fábricas de
alimentos.
¡Mierda! Com certeza era algum problema, algo que

definitivamente não precisava agora.


— Isso é tudo, garoto. — Dei aquela reunião cansativa por
encerrada. — Tenho problemas para resolver.

Ele não respondeu, mas não esperava que o fizesse. Ele


estava furioso, mais do que quando tinha entrado na sala,
principalmente por saber que eu tinha razão e que se não quisesse

mais problemas, aceitaria a escolta.


Quando deixou meu escritório, emiti um suspiro cansado e
novamente encarei o decantador, mas toda a minha determinação

em usufruir de uma bebida morreu quando o celular voltou a fazer


barulho, algo que meus funcionários faziam apenas quando era algo

grave. Resignado, atendi a ligação, já havia negligenciado os meus


negócios demais.
Capítulo vinte e dois

— ¡Carajo! — Passei a mão nos cabelos e levei o copo de

bebida aos lábios, contemplando os pequenos raios de luz que

buscavam vencer a escuridão da noite.


Era um pouco mais de quatro da manhã e finalmente

havíamos resolvido o problema de um dos lotes que não passou no

controle de qualidade e que teve que ser descartado, por motivos


fúteis e mesquinhos. Várias cabeças tinham rolado, principalmente a

do presidente. Mesmo assim, eu me encontrava irritadiço, não havia

nada que eu odiava mais do que perder dinheiro e ser feito de bobo.

Suspirei fundo e busquei pensar em algo que não fosse o

revés que havia sofrido. Fiquei satisfeito com a notícia que tinha
recebido mais cedo de que o garoto tinha conseguido sair com vida

e, nessa hora, estava em um quarto de hotel em uma cidade vizinha

de Madrid, vigiado pela equipe de segurança, que só largaria do seu

pé quando ele estivesse a quilômetros de distância.

Tinha cumprido a minha parte, agora só faltava a garota

realizar a dela.
Meu bebê…
Não houve mais nenhum pensamento que não fosse meu
filho, e logo a felicidade por ter o meu sonho se realizando voltou a

me dominar, tanto que eu quis compartilhar aquela minha alegria, que

parecia transbordar de mim, com alguém.

Virando-me, pousei o copo vazio em cima da mesa e peguei

meu celular. Caminhei em direção ao sofá, me jogando nele, e antes

que eu me arrependesse, liguei para o meu melhor amigo. Yazuv


entenderia minha ânsia e as razões pelas quais comprei uma esposa

só para ter um bebê. Compreenderia meu desespero, o meu desejo

por amar. Minha inveja dele.

— Espero que seja um assunto urgente, Javier. — O tom

severo ecoou do outro lado da linha, mas eu não dei importância,

afinal ele era reconhecido pela sua intransigência.

— Te atrapalho, amigo? — falei arrastado.


— Você sabe que sim. — Bufou e eu escutei o som dele se

movimentando, provavelmente deixando a cama. — Você tem uma

mania sefil[53] de me ligar sempre quando estou com a minha

değerli[54].
Estalei a língua, achando graça, e estranhamente imaginei se

eu sentiria tanta raiva por ter sido tirado da cama como meu melhor
amigo parecia sentir, o que me seria inédito. Mas logo afastei esses

pensamentos, pois não era algo que aconteceria.


Recordei-me pela milésima vez no dia da minha promessa,

que parecia enfraquecer vertiginosamente em um curto espaço de


tempo. Talvez fossem as volatilidades das minhas emoções.
— Eu vou te matar qualquer dia desses.

— Não é a primeira ameaça de morte que recebo hoje. —


Tratei o assunto de maneira corriqueira.

— Bok[55], Javier — começou a praguejar —, que porra é


essa?

— Ossos do ofício.
— Que bosta que tu fez? Perdeu dinheiro de algum cliente?

Não respondi.
— Isso é sério? — insistiu.
— Sim, meu futuro “cunhado” ameaçou me dar um tiro de

pistola. — Ri sem nenhum humor. — Coisa de família, sabe?


Meu amigo engasgou e ouvi o som de Valdete batendo nas

costas dele.
— Que piada maldita é essa, Javier? — Questionou em um

tom severo que poderia fazer com que muitos arregassem, mas não
eu. — Está bêbado?
— Nunca estive mais sóbrio, amigo.

— Sei que você tem um senso de humor excêntrico, mas me


ligar a essa hora da noite para zombar de mim, ultrapassa todos os

limites.
— Eu vou me casar, Yazuv. — Adotei o tom mais sério que

pude. — Isso não é uma pilhéria com você.


— Por Allah — sussurrou, finalmente acreditando em minhas
palavras.

— ¡Sí!
— Não é nada com que se preocupar, Val — meu amigo

falou em voz baixa para a esposa, provavelmente tentando acalmá-


la, sussurrando outras palavras.
Dei de ombros, conformado que ele contaria para a esposa,

embora a parte de mim que sempre estava na defensiva dizia que


seria um grande erro, que ela não era confiável, por mais que

houvesse guardado segredo de como eu a tinha tratado com


desrespeito.

Que se foda!
Por um minuto, nenhum de nós dois disse nada, e eu apenas
escutei o barulho dele se movimentando, provavelmente indo até o

seu escritório em busca de privacidade.


— Vou perguntar outra vez: que merda é essa, Javier?
— Você está convidado. — Continuei a usar o mesmo tom.
— Droga, eu sei! — Soou frustrado e pude imaginar a

expressão fechada dele. — O que não entendo é por que você nunca
me contou que estava saindo com alguém, ainda mais depois de ter

prometido não se envolver com mais nenhuma mulher. — Respirou


fundo. — Bok, eu sou o seu melhor amigo, você deveria ter me
falado. Eu teria ficado fe…

— Não, amigo — interrompi-o —, eu não estava saindo com


ninguém.

— Não compreendo. Então como diabos você vai se casar?


— Eu comprei uma esposa — disse a queima roupa.

Ficou em silêncio por alguns segundos, onde eu só escutei o


som dele respirando profundamente.
— Isso não está certo, Javier. — começou a falar como se

repreendesse uma criança pequena. — É errado comprar uma


mulher.

— Tão errado quanto pedir a mãe do seu bebê para ser a


sua esposa de conveniência? — Falei secamente.
Mesmo que não devesse, suas palavras, de algum modo,

fizeram com que eu entrasse no modo defensivo. Meu corpo todo


ficou rígido em resposta.
— Javier… — Rosnou em advertência e eu soube que havia
despertado a fúria dele ao tocar no seu erro.

— Não deveria ter feito esse comentário. — Foi o mais


próximo que cheguei de uma desculpa. — Sei que você se

arrependeu do seu pedido.


— Sim, só Allah sabe o quão eu lamento. — Fez uma pausa
e a voz dele soou baixa, como se sentisse vergonha e também

angústia. — E mesmo depois de mais de dois anos, ainda sou capaz

de estremecer só de pensar que corri o risco de perder a minha


mulher.

— Eu sei…

— Mas não é sobre mim que estamos falando. — Respirou

fundo. — Céus, Javier, comprar uma esposa? Não é assim que as


coisas funcionam. Se você se permitir, poderá encontrar uma mulher

que irá…

— Não! — Cortei-o novamente, e contra tudo o que me foi


ensinado e que vivi nesse tempo, comecei a me abrir com uma das

poucas pessoas em que poderia confiar, me expondo, deixando que

ele visse a minha melancolia. — Eu desisti de encontrar esse tipo de


amor, Yazuv. Por mais que você me deseje a sorte de encontrar a
felicidade que você encontrou nos braços da sua esposa, eu aprendi

que, por mais que eu queira, nunca ninguém poderá amar um


demônio coberto de cicatrizes como eu, um homem frio.

— Não, Javier. — Foi a vez de ele retrucar. — Você não

deveria acreditar nas palavras da sua avó, e muito menos da


vagabunda da sua ex-noiva. Quando menos se espera…

— Eu não quero que me machuquem novamente, eu não

quero mais correr esse risco — confessei em tom baixo, que não

escondia a minha dor. — ¡Carajo! Todas elas me machucaram,


deixando suas marcas, me transformando nessa porra de monstro

que eu sou, nesse desgraçado frio que está cansado de se controlar,

esgotado de se esconder, que se afunda cada vez mais nas sombras


e no cinismo, nesse homem que se apega ao dinheiro porque nunca

poderá ter afeto, mesmo que tenha seus altos e baixos.

— Javier — falou com compaixão o meu nome e suspirou —,


não sei o que dizer.

— Não há nada para se falar, amigo. — Disse com

resignação. — Eu não preciso de uma mulher que só me foderá

ainda mais com mentiras.


Ele não respondeu, não era necessário.
Ficamos em silêncio, cada um preso em seus próprios

pensamentos, até que o turco o quebrou.

— Se você tem medo de se ferir, porque comprou uma


esposa? — Fez uma pausa. — Isso só irá te magoar.

— É um valor muito baixo a se pagar quando vou receber

outro tipo de sentimento… — Levei a mão ao queixo e acariciei

minha barba por fazer.


— Satisfação sexual? Me parece muito pouco e não é algo

do seu feitio.

— Não tocarei na garota — falei rapidamente, como se


tentasse afirmar para mim mesmo.

— Garota? — Perguntou em um tom que não escondia sua

incredulidade, parecendo não ter assimilado a minha promessa de

que eu não iria encostar na minha futura esposa. — Meu Deus,


Javier, que idade ela tem?

— Ela tem dezoito anos.

Engasgou.
— Dezoito? — falou em meio a tosse. — Tem certeza de

que não está bêbado?

Fiz um som de cinismo.


— Por Allah! — Arfou — Onde você está com a cabeça,

Javier? Uma menina!


— Mulher o suficiente para se vender para mim. — Não

ocultei o meu amargor.

— Bok, ela é muito nova para você. — Fez uma pausa. —


Esse casamento já era um erro, mas, agora, não me restam

dúvidas. Uma garota, Javier!

— Talvez…

— Eu tenho certeza.
— Você não pode me julgar, amigo. — Adotei um tom cínico,

querendo provocá-lo. — Casou-se com uma mulher, o quê... dez

anos mais nova do que você? A diferença entre mim e a menina é só


doze.

— Não é a mesma coisa. — Ficou na defensiva.

— Sim, é.

Bufou, exasperado, e eu gargalhei, principalmente quando


ele começou a soltar inúmeros palavrões em sua língua natal.

— Orospu çocuğu[56] — sussurrou em um tom severo. —

Não sei por que ainda somos amigos.


— Por que nossa amizade é bastante lucrativa? — perguntei

em um tom neutro.
— É um bom motivo. — Pareceu refletir. — É o único que

justifica eu ainda me associar com você.

— A melhor razão, amigo.

Rimos do meu comentário.


— Quem é essa menina, Javier? — Voltou a ficar sério.

— Uma ex-funcionária que limpava o meu escritório e que

estava desesperada o suficiente para salvar a vida do irmão


traficante. Ele tinha uma dívida, e eu a paguei.

— O quê? — Deu um grito, para logo demonstrar sua

decepção. — Você foi longe demais em usar a vulnerabilidade dela

ao seu favor, Javier.


— Fui — admiti, não me importando com o fato de que o

meu melhor amigo me achasse um monstro frio. — E se eu for

honesto com você, eu teria feito outra vez.


— Por quê, Javier? — Voltou a repetir a pergunta que eu não

havia respondido. — Por que você irá usar uma mulher dessa forma,

ainda mais uma que estava com medo de perder algum ente

querido?
Ajeitei-me melhor no sofá, sentindo um pouco de desconforto

com a sua acusação, mas, como sempre, ignorei o incômodo como

se fosse uma mosca morta. Não iria sentir culpa ou remorso por
manipular a situação ao meu favor. No fundo, nós dois éramos vilões:

eu por usá-la, ela por gerar uma criança e pouco se importar com o
futuro do meu bebê.

— Isso é cruel, até mesmo para você Javier… — Pareceu

ponderar as palavras — Você não é o demônio que pensa. Frio, sim.

Vingativo, claro. Mas cruel, não.


— Eu estava desesperado. — Passei a mão nos cabelos. —

Eu não aguento mais, Yazuv, não saber o que é amar e ser amado,

em sufocar o meu sonho, em viver nessa solidão.


— Mas uma desconhecida poderá te dar o que você

procura?

— Não é o amor dela que eu anseio, amigo. Eu não acredito


que esse casamento será um conto de fadas, passará muito longe

de ser um, tanto que eu mesmo coloquei a data do nosso divórcio.

— Não te entendo, Javier.

— Eu quero o bebê que ela poderá me dar — respirei fundo.


— Tudo o que mais desejo é amar um filho.

— Arkadaş[57] — sussurrou a palavra, cujo significado eu

desconhecia, e ouvi o barulho dele engolindo em seco.

Gargalhei roucamente, sentindo lágrimas se formarem em


meus olhos, com a emoção que era falar do meu pequeño.
— Você não sabe o quanto eu invejei você, Yazuv. — Não
me preocupei em ferrar com a nossa amizade. — Não sabe o quanto

cobicei a sua alegria ao se descobrir pai, cobiça que se tornou ainda

maior quando você descobriu que teria três bebês. Ver o amor que
você tinha por eles e o modo como eles retribuem, em sua inocência,

foi como uma erva daninha que cresceu em meu peito e se espalhou

por todo o meu corpo e pelo restante da minha alma. Dios é


testemunha do quão podre fui e sou.

Não disse nada e, cedendo ao choro, eu continuei:

— Sabe o que mais me doeu no meu término com a

Angelina?
— Suponho que não seja a traição.

— Não, apesar que foi um golpe bastante duro ser traído

pela única mulher com quem tentei me abrir. — Dei uma risada sem
humor, que pareceu ecoar por todo o meu escritório. — Mas o que

mais me machucou foi o fato daquela maldita cadela ter me roubado


a chance de ter um filho. Ela me quebrou ao tirar-me a confiança de
que eu poderia tentar de novo e realizar o meu sonho. Eu estava

cada vez mais afundado na merda e na sombra, quando tive…


— O quê?
— A ideia de uma barriga de aluguel, mas deixei essa ideia
de lado por ser proibido perante a lei.
— Entendo…

— Em minha angústia e descontrole, depois de uma briga


com minha avó, em que descobri que a Angelina está grávida de um
maldito filho do Castro, e de ver que a garota faria de tudo para que

seu irmão permanecesse vivo, eu me apeguei naquele fio de


esperança. O casamento foi a única forma que encontrei para que a
“barriga de aluguel” se tornasse legal. É uma fachada, eu não tocarei

nela, iremos ter o bebê por inseminação artificial.


Suspirou fundo.
— Não posso me arrepender de algo que fará com que eu

tenha o meu bebê em meus braços — sussurrei, sentindo o amor


pelo meu filho se espalhando pelo meu peito enquanto gotas grossas
deslizavam pela minha face. — ¡Dios! Eu quero tanto essa criança!

— Passei a mão pelos meus cabelos e fechei os olhos. — Você


consegue compreender por que eu fiz tudo o que fiz?

— Consigo, Javier, mais do que você pode imaginar. —


Soltou um som cansado, que também demonstrava um pouco de
melancolia.
Não soube o que fazer com a sua compaixão, mas, pela
primeira vez, não senti a raiva que tal sentimento despertaria em
mim. Talvez a possibilidade de ser pai já estivesse me mudando.

— Mesmo assim, é arriscado demais.


— Eu sei. Mas eu sinto que não tenho mais nada a perder.

— Dei um sorriso que ele não poderia ver. — As consequências


perante a única oportunidade que eu tenho de ser feliz, de conhecer
essa sensação, me parecem irrelevantes, principalmente quando já

consigo senti-la.
— Não tem medo dos boatos?
Fiz um som que indicava negação.

— A imprensa com certeza especulará a respeito do seu


casamento, ainda mais com uma mulher misteriosa e tão mais jovem
que você.

— Já sobrevivi a eles antes.


— Acho que será muito difícil garantir que nenhum dos seus
funcionários dedure o fato de que ela era uma empregada.

— Sem dúvidas adicionaria ainda mais tempero às fofocas,


não é mesmo? — Fui irônico, não escondendo o meu desdém.

— Só você mesmo para fazer piada disso — bufou.


— Não há nada que eu possa fazer.
Ficamos em silêncio e eu fitei a paisagem lá fora.
— Você deve estar doido para voltar para cama — soei

malicioso.
— Não posso negar que eu quero — falou em um tom
pastoso —, não me canso daquela mulher.

Deu uma risada e eu ignorei, mais uma vez, o pensamento


de como seria me sentir daquela maneira, porém, ao tentar pensar

em outra coisa, a imagem indesejada da garota surgiu em meus


pensamentos, imaginando como seria ter seus cabelos escuros
contra os meus lençóis, um absurdo no qual eu coloquei a culpa na

noite que tinha passado insone.


— Então não perca tempo.
Fiz um som que ele detestava, e ele bufou.

— Para ser sincero, eu também estou cansado, amigo. —


Dei uma pausa. Embora houvesse muito mais para falar, de alguma
forma, o homem sempre racional parecia estar vencendo o que tinha

se aberto, dizendo que havia se exposto demais, e o quão nocivo


isso poderia ser para mim. — Só queria compartilhar com alguém a
minha felicidade.

— Eu sei que deveria te dissuadir dessa loucura, mas eu não


posso.
— Não, não pode.

— Bok! Nem mesmo conseguiria, não depois de saber que


você parece tão…
— Completo é uma boa palavra — sussurrei, embora, talvez,

essas oito letras nunca de fato me definiriam.


E o silêncio dele, de alguma forma, assinalava que ele
pensava o mesmo.

— Boa noite, Yazuv.


— Boa noite… Javier?

— ¿Sí?
— Eu fico feliz por você. Tenho certeza que será um ótimo
pai, não tenho dúvidas que o bebê será muito amado. Você não

estaria colocando tanta coisa em risco se já não o amasse e, se tudo


der errado e essa bomba estourar, eu estarei do seu lado e
enfrentaremos essa merda juntos.

Antes que pudesse responder, ele desligou a ligação. Emiti


um suspiro longo, voltando a olhar para fora. De alguma forma, tinha
descoberto não apenas o amor pelo meu bebê, mas o quanto a

amizade e o apoio do turco eram valiosos para mim.


Capítulo vinte e três

Removendo o blazer do terno e a gravata com um puxão,

coloquei-os em um canto qualquer do hall de entrada em um gesto

automático, e me agachei para fazer carinho nos dois pequenos, que


sempre iam me receber quando eu chegava e davam-me patadas

querendo atenção. Não podia negar que os dois cachorros tornaram

a volta para casa algo bem menos solitário e bem mais afetuoso.
Eles haviam transformado aquele apartamento vazio e sem cor em

algo mais próximo de um lar. Algo que, eu não tinha dúvidas, ficaria

completo quando meu bebê chegasse.

— Como vocês estão? — questionei com a voz suave,

coçando a orelha deles de modo que eu sabia que eles gostavam. —


Gostaram do passeio? Chocaram a todos com as suas presenças?

Latiram e abanaram o rabinho e eu os beijei.

— Bom saber, mas papai está doido por um banho. — Fiz

um último carinho neles antes de me erguer. — Devo estar podre.

Mas vocês não se importam, não é mesmo?

Dei uma risada baixinha quando Isabel deu uma patada em


mim e, desatento, enquanto caminhava em direção a cozinha,
tomando cuidado para não tropeçar nos dois pequenos, comecei a
desabotoar a minha camisa.

— Javier… — A voz da garota fez com que eu estacasse

quando ia remover o último botão da casa.

Franzi o cenho. Embora fosse quase sete horas da manhã,

não esperava que ela já estivesse acordada.

Os cachorros, como se preferissem a garota a mim, foram


na direção de sua voz.

Inspirei fundo e, como se tivesse impelido a ela, girei o meu

corpo, procurando-a, e a encontrei caminhando em minha direção.

Não reparei inicialmente naquilo que vestia e muito menos no balanço

de seus quadris, mas, sim, nos cabelos soltos e longos que se

movimentavam suavemente contra a pele, que parecia macia e

sedosa, exposta dos ombros e braços. Forcei-me a olhar para seu


rosto quando parou, apenas para flagrá-la me encarando fixamente,

com os olhos arregalados. Segui a direção do seu olhar e encarei o

meu abdômen desnudo com algumas cicatrizes feias, resultado dos

castigos que recebi da minha avó.

Não havia dúvida de que a garota sentia horror por tê-las

visto, mesmo que não passassem de marcas há muito tempo


curadas. E, pela segunda vez em pouco tempo, senti uma pontada
de decepção, ao passo que a raiva começava a banhar as minhas

veias.
Dominado por algo malévolo, para constrangê-la do mesmo

modo que ela me fazia sentir acuado, deixei que o meu olhar
percorresse o restante do seu corpo, como se ela fosse um pedaço
de carne. Mas o que vi fez com que o feitiço virasse contra mim.

Apesar do pijama ser de algodão e ter estampa de bichinho, as


peças justas, coladas à pele, ressaltavam todas as suas curvas,

evidenciando ainda mais sua beleza. Podia ser infantilizado, mas


ficava fodidamente sexy nela, mais do que poderia imaginar.

E, a contragosto, enquanto olhava-a, senti que o desejo, que


há muito tempo não me invadia, começava a surgir em meu interior.
Não conseguindo parar de examiná-la, tive que me conter

para não engolir em seco ao ver a grossura das coxas marcadas


pelo tecido, para não dizer o que me passou pela minha cabeça

quando deixei que o meu olhar pousasse sobre seu sexo. Mas ver
seus seios pequenos, expostos pelo decote pronunciado, subindo e

descendo com sua respiração acelerada fez com que eu virasse o


rosto, antes que meu pau começasse a ficar semiereto.
Não iria dar uma ferramenta para o inimigo, para aquela

mulher traiçoeira me destruir ainda mais.


— Perdeu alguma coisa, garota? — Falei em um tom irônico

quando ficamos em silêncio por tempo demais e ela continuava a me


encarar.

— Você sofreu um acidente ou foi uma cirurgia? — perguntou


depois de cruzar a distância entre nós e erguer a mão para tocar

uma das marcas esbranquiçadas, mas parou no meio do caminho,


demonstrando-me a repulsa que sentia pelas cicatrizes do meu
corpo.

Quis rir amargamente ao pensar no quão nojento ela acharia


aquelas que eu carregava em minhas costas.

— Não vejo a razão pela qual você queira saber sobre isso
— fui não apenas arrogante, mas também cínico —, mas digamos
que sim. — Não hesitei em mentir.

Engoliu em seco.
— Sinto muito — sussurrou, abraçando a si mesma, mais

uma vez dissimulando.


— O que está fazendo acordada, garota? — Mudei de

assunto, fitando-a com desdém. — É daquelas que acorda cedo?


Fez que não com a cabeça, chamando a minha atenção para
as mechas, que uma parte de mim queria tocar para testar se

realmente eram macios como pareciam. Agora que estava bem


próximo a ela, podia sentir um cheiro gostoso e suave de caramelo.
Tentei ignorar, tal como a vontade de inspirar a fragrância
diretamente da sua pele.

— Eu não consegui dormir.


— O colchão era muito duro para a princesa, ou tinha uma

ervilha embaixo dele que a incomodou a madrugada inteira? —


Estalei a língua e os cachorros latiram, interpondo-se entre nós em
busca de atenção.

— É muita coisa para processar. — Inconscientemente,


levou a mão ao anel, brincando com ele, o deslizando pelo dedo.

Arqueei a sobrancelha.
— Agora que seu irmão está em segurança, não deixarei que

você volte atrás no nosso contrato — sentenciei friamente. — Seu


ventre é meu.
— Eu não voltarei atrás. Eu te dei a minha palavra.

— Suas palavras não valem muita coisa para mim, garota. —


Abri um sorriso sardônico. — Não fiz você assinar um contrato à toa.

Engoliu em seco.
— Se isso é tudo — não resisti e lancei um outro olhar pelo
corpo dela, sentindo que bastava um único relance para me acender

—, eu vou para o meu quarto.


Eu torcia para que ela não fosse louca para ter se instalado
nos meus aposentos. Embora não tivesse dado ordens nesse sentido
e não houvesse ninguém para indicar onde deveria se acomodar, era

mais do que claro o local onde eu raramente dormia.


Sem me preocupar com a sensibilidade alheia, se ela estava

ou não confortável na minha casa, dei as costas para ela e comecei


a caminhar, sendo seguido apenas por Lorenzo, já que Isabel parecia
contente em ficar se enroscando na perna da mulher. Queria manter

distância de Bárbara e das curvas expostas pela roupa curta. E

também não mudaria nada em meus atos para agradá-la. Se ela


achasse que estava em uma verdadeira prisão de luxo, pouco me

importava. Ela viveria ali.

— Javier? — Interpelou-me e eu estaquei.

— ¿Sí, chica? — falei, depois de pedir silenciosamente por


paciência.

— Você comeu alguma coisa no escritório? — Virei-me para

ela ao ouvir o seu tom, que beirava a uma preocupação descabida.


Não respondi. Não iria revelar que, diante da minha felicidade

e depois do problema que havia aparecido, tinha me esquecido

completamente de que eu precisava me alimentar, mas não foi


necessário, pois, traindo a mim mesmo, minha barriga roncou.
— Posso fazer algo para você comer — ofereceu, seu rosto

enrubescendo. — E um café também. Sei que você não paga uma


cozinheira.

— Não é mais a minha empregada. Eu me viro.

— Não me importa.
— Não precisa bancar a minha esposa, garota. — Fui

grosso.

— Eu não…

— Não preciso que você aja como se fosse minha mulher, e


muito menos finja se importar com o meu bem-estar.

“— Eu não preciso disso”, uma vozinha sussurrou no meu

ouvido, “— não necessito de mais farsas, não quando eu sou uma


grande mentira. Ao contrário, preciso que uma vez na vida seja

verdade”, o que nunca vai ocorrer.

Enquanto eu pensava, a garota voltou a se aproximar de


mim, os olhos verdes serenos.

— Mas ainda assim prepararei algo para você comer. — Fez

uma pausa. — Não pode me impedir de cozinhar, “esposo”.

Deu um sorriso, que me pareceu travesso, e virou as costas


para mim. Bufei, exasperado, e imaginei que deixaria meu melhor

amigo orgulhoso, pensando que se eu quisesse, poderia proibi-la,


sim. E enquanto ela caminhava em direção a cozinha, seguida pelos

cachorros que trotavam atrás dela, infelizmente, meus olhos

recaíram na sua bunda redonda e arrebitada. O short de lycra, já


curto, havia subido, deixando parte da popa à mostra e muito pouco

para a imaginação.

Gostosa! Pra caralho!

— ¡Infierno[58]! — Praguejei uma série de palavrões em um


tom baixo para que ela não escutasse.

Bárbara não precisava saber que eu era mais um patético

que poderia cair no seu joguinho, o que provavelmente ela queria.

Ignorando a ereção que começava a despontar no meio das


minhas pernas com a visão, passei a mão no rosto, sentindo raiva de

mim mesmo por sentir desejo por aquela menina maldita e, virando-

me, com passos duros, caminhei em direção ao meu quarto. Sentei-


me na beirada da minha cama para remover os sapatos e as meias,

terminando de desabotoar a camisa. Ficando de pé, levei a minha

mão ao cós da calça para abri-la, sentindo a região sensível ao

menor toque.

— ¡Bruja[59]! — murmurei ao baixar a calça e a cueca juntas,

retirando-as por completo.


Foi inevitável não olhar para baixo e ver o estado da minha

rigidez. Fazia muito tempo que não via meu pau tão ereto, tanto que,
se eu levasse minha mão a ele e o rodeasse, me acariciando um

pouco, eu poderia esvair em meus dedos, como se fosse um

adolescente de merda que se excitava só de ver uma mulher.


“— A mulher que será a sua esposa.”, uma vozinha malévola

sussurrou no meu ouvido e eu a suprimi sob a camada espessa de

raiva.

Tive ódio de mim, mas principalmente dela.


Por que dentre todas as peças que ela poderia escolher no

mundo, a maldita teve que escolher algo tão provocante? Cada

pedaço de pele exposta e cada milímetro das suas curvas pareciam


impregnados na minha mente e, por mais que eu fechasse os olhos,

eu só via essa imagem. Poderia ordenar que ela trocasse de roupa,

mas além de ser um grande babaca machista ao fazê-lo, eu

demonstraria a garota o quanto ela conseguia me afetar.


Inspirei fundo e jurei que ainda poderia sentir o cheiro de

caramelo em minhas narinas.

Praguejando, fui direto para o banheiro e, entrando no box,


abri o registro da água fria e deixei que ela caísse sobre mim.

Estava congelante, no entanto, mesmo assim, permaneci debaixo


dela, não apenas para tentar diminuir o estado da minha excitação, já

que não iria dar o alívio que o meu corpo necessitava, mas também

como uma forma de autotortura. Em silêncio, cerrando as pálpebras,

deixei que ela fizesse o seu trabalho em fazer com que o meu corpo
voltasse a estar sob controle.

Ri amargamente quando uma recordação de quase vinte

anos atrás conseguiu vencer a imagem sedutora representada pela


menina. Foi instantâneo brochar perante a lembrança daquela mulher

obrigando um Javier de pouco mais de dez anos a entrar debaixo da

água fria depois dele ter ousado sorrir para ela quando ela chegou

na mansão em que morávamos depois de uma longa viagem. E, de


repente, o som do choro desesperado misturado à risada cínica

pareceu ecoar nos meus ouvidos, e a dor daquela criança fez com

que minha respiração se acelerasse e eu abrisse os olhos.


— Você foderá minha vida sempre, não é, velha?

Dei um sorriso cheio de cinismo e soquei a parede com

força, agora a raiva direcionada àquela mulher.

— Por mais que eu tente, você sempre irá me assombrar,


não é mesmo?

A água gelada açoitando o meu corpo me dava uma

resposta. Cansado daquilo, fechei o registro e abri a de água quente.


O choque inicial da mudança brusca de temperatura logo passou, e o

calor do líquido e as ondas de vapor me ofereceram algum conforto.


—Você pode ter me levado ao inferno, velha, mas eu juro

pela minha vida que não irá machucar de nenhuma forma o meu

bebê. — Fiz essa promessa ao pegar o shampoo no suporte.

Comecei a lavar os meus cabelos, para depois passar o


sabonete pelo corpo, deixando que meus pensamentos fossem

dominados pelo futuro que se descortinava à minha frente com o meu

filho, porém, vez ou outra, a imagem indesejada da garota surgia em


minha mente, deixando-me frustrado por não conseguir lutar contra

as malditas sensações despertadas pela lembrança do seu corpo.

Fechando o registro, peguei a toalha do suporte e apliquei um pouco


mais de força do que necessário ao me secar, uma forma de punição

por sentir o desejo voltando a borbulhar em meu interior.

— Você só está cansado de tudo, Javier, foi uma noite e uma

madrugada intensas, em claro — murmurei ao adentrar o closet,


passando as mãos pelos meus cabelos.

Brigando comigo mesmo, vesti uma calça de moletom e uma

blusa de manga comprida. Depois do meu descuido, sentindo na pele


outra vez o desgosto de ver a repulsa da garota pelas minhas

cicatrizes, não me arriscaria mais a mostrar um centímetro sequer


delas. Poderia não dar o braço a torcer e evitá-la, com isso
rejeitando sua tentativa ridícula de me agradar ao preparar o café da

manhã, como se fosse a “minha esposinha”. Na minha lógica

deturpada, fugir era como assinar uma sentença de que, além de


covarde, não conseguiria lidar com ela e com as sensações que seu

corpo produzia no meu. Isso era inadmissível para um demônio, um

homem que havia jurado não mais deixar que o sexo feminino o
machucasse, se mantendo indiferente as mulheres, tornando-se frio.

Não deixaria que a luxúria me vencesse. Desejo era algo que

se acabava assim que era saciado, restando apenas um sentimento

vazio.
Sabia que ceder ao impulso de mergulhar dentro daquela

menina era um erro, o maior que eu cometeria.

Não trairia apenas a mim, mas ao meu bebê, e eu nunca me


perdoaria por fazer algo que o machucasse.
Capítulo vinte e quatro

Deixei o meu quarto e fui em direção a cozinha, mas antes

que pudesse alcançar o cômodo, o cheiro da massa frita infiltrou-se

em minhas narinas e eu emiti um suspiro, estacando no corredor.


Embora churros fosse algo que os espanhóis comessem

corriqueiramente no café da manhã, fazia muito tempo que eu não

experimentava um. Minha boca salivou, ao mesmo tempo em que a


lembrança agridoce de quando eu tinha quatro anos e a cozinheira da

minha avó tinha preparado a iguaria para mim invadiu-me. Lembro de

passar os pequenos rolinhos finos no chocolate e devorá-los

enquanto a mulher baixinha de olhos amendoados sorria para mim e

dizia palavras gentis, mas tudo se acabou quando a minha avó entrou
na cozinha e mandou que eu parasse de comer e subisse para o meu

quarto. Nunca mais vi a doce mulher depois desse dia, a matriarca

dos Castillos havia tirado de mim a única pessoa naquela casa que

se atreveu a me dar um pouco de afeto.

E naquele momento, parado no corredor, percebi que nunca

mais tinha comido churros por, inconscientemente, culpar-me por ter


degustado a massa crocante e, com isso, ter feito com que a pessoa
mais bondosa que havia surgido na minha vida sumisse.

Engoli em seco, balançando a cabeça em negativa, fazendo

com que pequenas gotas caíssem do meu cabelo e molhassem pelo

piso.

Não importava. Vários anos já haviam se passado, e eu tinha

aceitado aquilo que era inevitável.


Não conseguindo me desfazer da melancolia que me

dominava, obriguei-me a dar os passos que restavam para chegar à

cozinha, mas o abatimento pareceu diminuir ao flagrar a garota que

me tirava o sossego, cantarolando uma das suas músicas irritantes

enquanto balançava suavemente os quadris. Diferentemente da

primeira vez que a flagrei dançando, não senti inveja da alegria

alheia. Malditamente, toda minha atenção estava presa na


sensualidade dos movimentos que era intensificada pela roupa curta.

Os latidos dos cachorros fizeram com que ela parasse

subitamente de se mover e cantar. Os poucos segundos antes que

ela girasse na minha direção foram o suficiente para que eu

transformasse o ardor que banhava minhas veias em gelo, mas não

fingiria que não estava olhando para ela.


— Oh! — Levou a mão ao peito. Me controlei para não olhar

para o topo dos seus seios. — Não escutei seus passos.


Dei de ombros.

— Como você consegue ser tão silencioso? — Arqueou uma


das sobrancelhas, desafiando-me a dar uma resposta.
— Ou é você que sempre está distraída? — retruquei,

emitindo um som de desdém.


Para minha surpresa a garota jogou a cabeça para trás,

fazendo com que os cabelos dela alcançassem a bunda, e riu. Os


cachorros pareciam acompanhá-la, latindo, uivando, balançando o

rabinho, enquanto davam patadas em Bárbara. O som alegre


pareceu se infiltrar em meu interior e, mesmo que eu não quisesse, a
felicidade dela pareceu me contagiar, tal como tinha feito com Isabel

e Lorenzo, mas obriguei-me a não sorrir perante a visão que a


mulher representava.

¡Dios! Ela fodia com toda a minha determinação e


autocontrole com uma mera risada. Eu deveria estar mais prestes de

perder a minha sanidade do que imaginava por me deixar levar por


aquela garota.
— Meu churros! — Parou de rir, virando-se subitamente,

enquanto pegava a escumadeira para retirar a massa do óleo.


Não disse nada. Olhando uma última vez para a bunda dela,

caminhei até um conjunto de mesa e cadeiras que não me recordava


se alguma vez tinha utilizado. Sem cerimônia, sentei-me

esparramado no assento e olhei para a vista do Parque de El Retiro,


visão muito mais segura do que o do corpo tentador.

Inconscientemente, levei a mão à cabeça de um dos cachorros que


tinha me seguido e o acariciei, pelo tato descobrindo que era a minha
menininha pela ausência da orelha. Novamente, embora eu tivesse

minha visão fixa nas árvores, a imagem da garota rindo pareceu


impregnar a minha mente.

— Gosta? — questionou suavemente.


Franzi o cenho perante a ideia de que ela estava falando de
si mesma e dos seus atributos e a fitei, percebendo que toda

atenção dela estava na panela, ao contrário da minha, que a


devorava com os olhos. A tensão acumulada voltou a borbulhar em

meu interior, e foi com muito esforço que eu controlei a excitação.


Mesmo assim, minha respiração acelerada denunciava-me que

estava por um fio.


— ¡Mierda! — disse entre os dentes e por sorte ela não me
escutou.

— Então? — insistiu quando não obteve resposta.


— O quê?
Poderia contar nos dedos de uma mão aquilo que apreciava,
e nenhum dos cinco itens envolvia as sensações que ela despertava

em mim, principalmente quando isso me fazia vulnerável.


— Churros.

— Ah.
— Nem perguntei se você gostava antes de fazer. — Deu
uma pausa. — Posso preparar outra coisa se não gostar, Javier.

Eu…
— Não é necessário — cortei-a secamente.

O papel que a garota desempenhava em tentar me agradar


a qualquer custo me irritava. Se ela fosse inteligente, não adotaria o

caminho da bajulação, não havia nada que odiasse mais do que


pessoas que me adulavam para conseguir o que queriam.
— Tudo bem. — Suspirou e começou a tagarelar. — Daqui

a pouco estou terminando de fritar. Você quer um café ou chocolate-


quente para acompanhar? Fiz um pouco de chocolate para mim, mas

posso dividir com você ou fazer mais.


Era ridículo, mas me veio à mente a ideia absurda de
compartilhar com ela uma única caneca, algo que casais

costumavam fazer, intimidade que nunca partilhei com ninguém.


Esmaguei a imagem como se fosse uma barata.
— Somente café.
Voltei a olhar para fora, tentando mentir para mim mesmo

que a vista do topo das árvores era muito mais interessante.


— Ou prefere uma calda de chocolate?

Estaquei e a melancolia e a dor voltaram com tudo.


— Também fica muito gostoso.
— Não. — Fui mais grosso do que deveria.

Ela ficou em silêncio e uma pontada de culpa pela minha

grosseria me invadiu. Enterrei meus dedos no pelo de Isabel e a


cachorra fez um som de apreciação, atraindo a atenção de Lorenzo,

que parecia mais interessado no cheiro de comida que impregnava o

ar.

— Prefiro somente passado no açúcar — menti.


Ela não precisava saber que eu podia voltar a comer churros,

mas que eu nunca mais iria me atrever a cometer o erro de dar-me o

prazer de passá-los no chocolate. Era uma privação besta e sem


sentido, já que ninguém seria demitido por aquilo, mas, mesmo

assim, não conseguiria.

— Eu sempre achei bastante sem graça assim. — Voltou a


puxar assunto. — Não fica doce o suficiente para mim.
— Paladar infantil? — provoquei-a em um tom seco.

— Se o fato de amar doces me faz infantil, serei


eternamente uma criança — falou brincalhona e deu uma gargalhada.

— Não há nada que eu goste mais do que um bom doce.

Desconsiderei a vozinha malévola que sussurrou que, embora


ela fosse jovem, não havia nada de “infantil” nela.

— Humph. — Não me interessava a mínima pelos seus

gostos pessoais para comida.

— Confesso que sou doida para experimentar churros com


doce de leite — continuou, sem se importar com a minha

desaprovação. — Só de pensar minha boca começa a salivar,

embora nunca tenha provado o doce.


— Como você “baba” por algo que sequer sabe o gosto? —

Voltei a franzir o cenho, dessa vez em confusão.

Não dei importância ao fato de que, ao invés de ignorá-la,


como deveria, estava dando corda para as suas ideias descabidas,

muito menos levei em consideração o absurdo que era eu estar ali.

Virei-me para ela e encontrei a garota terminando de passar

o café, ajeitando tudo em uma bandeja. O cheiro da bebida


misturado ao da fritura, bem como ao chocolate, era delicioso.
Deu de ombros e foi inevitável não prestar atenção na pele

desnuda dela.

— Só me parece muito gostoso. — Caminhou lentamente na


minha direção, como se temesse cair. — Afinal, é doce. Não existe

doce que seja ruim.

— Até mesmo os azedos e cítricos?

Pousou a bandeja em cima da mesa e vi que além do


churros, do café e a xícara dela, havia um potinho com chocolate

derretido que me parecia um pouco frio.

— Sim, até eles. — Sorriu, os olhos verdes parecendo


cintilar com uma alegria juvenil.

Ela voltou para pegar mais alguma coisa no balcão da

cozinha e na geladeira, mas tudo o que conseguia pensar era que ela

brilhava mais do que o sol quente numa tarde de verão.


— Duvido muito que você irá gostar de alguns doces que vi

em algumas das minhas viagens, garota. — Minha intenção era

desnorteá-la da mesma forma que fazia comigo. — Principalmente


os feitos com insetos.

— Eca! — Fez uma cara de nojo, pousando o restante das

coisas sobre a mesa; não escondi a surpresa por ver pão fresco —

Por que você tem que ser chato e acabar com a graça?
Bárbara sentou-se à minha frente e, como se fosse algo

corriqueiro, passou-me a xícara de café fumegante. Nossos dedos


se tocaram, fazendo com que uma pequena descarga elétrica me

percorresse, e senti que meu coração acelerava enquanto ela me

fitava com seus olhos verdes cheios de uma doçura e surpresa


fingidas.

Lorenzo latiu, me tirando do transe.

Instantaneamente mascarei as sensações sob uma fachada

fria ao apartar o contato, segurando a alça da xícara com força,


como se o toque não produzisse nada em meu ser. Estava furioso

comigo mesmo por ter baixado a guarda perante essa garota

maldita, mesmo que tenha sido por poucos segundos. Fiquei mais
irritado por ainda sentir o local onde nossos dedos se roçavam

formigando.

Levei a bebida aos lábios, tomando um longo gole de café.

— Realmente é tão tola ao ponto de achar que eu não


destruiria essa nossa falsa conversação?

Diferentemente do que imaginava, ao contrário das últimas

vezes, não se encolheu na cadeira, apenas continuou a me encarar,


mas logo ela veio me ferrar de novo com o maldito sorriso dela.
— Não importa muito o que eu ache, não é mesmo? — falou

em um tom neutro, pegando a própria caneca e tomando o chocolate

quente.

Um bigodinho de leite se formou em cima do lábio superior e


contive a vontade de passar a mão para limpá-lo. Ela que ficasse

ridícula.

Mentiroso. Ela ainda continuava linda.


— Não estou aqui para dar a minha opinião — completou.

— Não, não está — sentenciei friamente —, mas acredito

que você não ficará em silêncio.

— Não. — Fez uma pausa, antes de dizer em um tom


brincalhão: — Dizem que um dos meus maiores defeitos é ser

faladeira.

Passei a mão pelos meus cabelos úmidos.

— En boca cerrada non entran moscas[60] — sussurrei.

— Deveria ter colocado uma cláusula no seu contrato me

proibindo de falar — provocou-me.

— Posso pensar em uma retificação — retruquei com


desdém, emitindo um som irônico.

Ela apenas riu, achando graça do meu comentário.


— Coma, antes que esfrie, Javier — disse ao balançar a

cabeça, ainda gargalhando. — Espero que esteja à sua altura.


Ia questioná-la outra vez, que não é porque iria virar minha

esposa que ela tinha direito de mandar em mim, mas acabei

desistindo quando a minha barriga voltou a roncar, a fome apertando.

Peguei um dos churros e dei uma mordida generosa,


mastigando devagar.

A massa era tão gostosa quanto me lembrava, talvez até

mais.
— Bom? — Pegou um e passou na calda de chocolate, e eu

senti um pouco de inveja por ela comer a calda com tanto gosto, mas

não me permitiria.
— ¡Sí! Muito bom. — Sabia que deveria mentir, mas acabei

falando a verdade.

Mordi mais um pedaço.

— Fico feliz, Javier — falou em um tom caloroso, mudando a


entonação quando os cachorros começaram a tentar subir na gente

querendo um pouco. — Não, não posso dar para vocês, pequenos.

Continuou a conversar com eles, entre mordidas e goles de


chocolate quente, mas Isabel e Lorenzo pareciam dispostos a

conseguir um pedaço de churros.


— Pode dar um pedaço de pão para eles — apontei para a
cesta —, acho que não fará mal. Eles devem ter comido coisa pior

na vida.

— Okay. — Não escondeu a tristeza por isso, mas não


deixei que os sentimentos dela me tocassem.

Pegando um dos pães, o partiu ao meio e deu um pedaço na

boca de cada um, que pegaram e saíram trotando para longe.


Depois de lavar as mãos, voltou a se sentar, e comemos em silêncio,

que agora me parecia incômodo, ainda mais quando eu escutava os

pequenos sons de deleite que escapavam dela, principalmente

quando abocanhava com vontade a parte coberta pelo chocolate,


martírio que se tornou ainda pior quando, inevitavelmente, meus

olhos acompanharam o movimento sutil da língua que deslizava

suavemente pelos lábios para limpá-los.


Como um sádico, apenas continuei a me alimentar

mecanicamente, ignorando o fogo que me queimava lentamente, bem


como os pensamentos eróticos que os gestos inocentes suscitavam
em mim. Também era impossível não perceber o quanto o ato de

compartilhar aquela refeição com ela era doméstico, cotidiano, ainda


mais quando estávamos sentados em uma mesa que agora me
parecia pequena demais, tanto que poucos centímetros impediam
que minha perna encostasse na dela.
Eu não precisei vivenciar isso para saber que era algo que

casais faziam.
Odiei as sensações provocadas em meu interior pelo ato de
partilhar algo com uma mulher, principalmente aquela. E, como num

passe de mágica, novamente a frieza começou a se apossar de mim,


tornando-me o demônio de gelo.
Não necessitava daquela mentira, muito menos de uma

esposa que me dispensava falsidades, meu bebê era tudo o que eu


precisava.
— Seu apartamento é lindo — falou em um tom suave

quando o silêncio caiu pesado entre nós, como se percebesse a


minha tensão.
Tola.

Eu estava começando a abrigar sérias dúvidas de que


aquela garota não seria um problema, ao invés de uma solução. Ela

não parecia ter nenhum bom senso para se manter em silêncio.


— Mesmo? — Fui irônico, pegando um pãozinho.
— Podia ter mais cor — disse ao olhar para o lado, como se

contemplasse o design —, é muito monocromático.


Fez uma pausa e eu arqueei a sobrancelha.
— Tudo é tão preto, branco, cinza. Sem… — Não continuou,
parecendo envergonhada ao comer mais um pedaço da massa. Mas

não era necessário, eu não era idiota.


Mordi um pedaço do pão e, para minha decepção, estava

intragável para o meu paladar. Pousei-o sobre o pires.


Se eu fosse sincero comigo mesmo, até muito tempo atrás,
se o chão era preto e branco e os armários também, me era

indiferente. Raramente eu passava muito tempo no apartamento,


minha casa era o meu escritório. Mas agora, a sua “alfinetada”, a
sua crítica velada ao fato de que minha casa era fria, me incomodou.

Não queria que o “lar” que eu formaria com o meu bebê fosse sem
vida, embora eu soubesse que eram as pessoas que faziam de uma
casa um lar.

A casa da minha avó era colorida, cheia de pinturas


contemporâneas, repleta de cor, porém era um verdadeiro inferno.
— Eu gosto dele assim, garota. — Adotei um tom ríspido,

mascarando meu incômodo por causa de uma coisa tão ridícula com
uma mera decoração.

— Entendi — falou calmamente, outra vez ignorando meu


tom.
Nossos olhos se encontraram e eu a desafiei a não apenas
continuar me fitando, mas também medir forças. Mais uma vez a

sem juízo não recuou, pelo contrário, ousou olhar-me fixamente,


como se quisesse me desvendar. E, por poucos segundos, acreditei
que ela poderia me alcançar, mergulhar nas sombras e me resgatar,

mas logo coloquei na cabeça que aquela pirralha nunca poderia


conseguir isso.

— Não acha que combina comigo? — provoquei-a. Ela fazia


vir à tona o pior de mim.
— Para ser sincera, não — retrucou em um tom firme e eu

admirei a sua coragem por contradizer-me, mas não deixei que


soubesse.
— É uma tola — disse em um tom aveludado que às vezes

usava para ameaçar quem me desafiasse. — Você não sabe de


nada, garota.
Não respondeu, apenas continuou a me encarar, e a

ausência de resposta dela fez com que uma decepção infundada me


invadisse.
Reunindo toda minha força de vontade para me manter

impassível, depois de limpar minha boca e mãos no guardanapo,


joguei-o sobre a mesa com displicência e me ergui, fazendo com que
a cadeira tombasse no chão, o que estava longe de ser a minha

intenção, e o som do impacto fez com que os cachorros latissem e


parecessem assustados. Senti raiva de mim mesmo por fazer isso
com os meus pequenos.

— Não vai terminar de comer? — Questionou com a voz


baixa, acariciando suavemente os cachorros, que se acalmavam sob
o toque da garota.

— Perdi a fome — disse friamente, e antes que ela pudesse


dizer algo, com passos largos, deixei a cozinha e fui em direção ao

meu quarto, ouvindo o som de patas me seguindo.


Virando, vi que era Lorenzo, e eu diminuí o passo, para que
o cachorro se aproximasse de mim. Quando ele o fez, peguei-o no

colo. Sentir aquele contato fez com que a raiva súbita diminuísse de
intensidade.
— Obrigado, pequeno. — Beijei o topo da cabeça dele,

inspirando o perfume caro, e carinhosamente ele lambeu a ponta do


meu nariz. Ficamos ali por alguns instantes.
Pegando-me desprevenido, quando comecei a caminhar

novamente, percebi que a garota, junto com a Isabel, também havia


me alcançado. Coloquei Lorenzo no chão, que ficou agitado.
— O que você quer? — Virei-me para ela.
— Eu… — Engoliu em seco e a vi passar a mão pela lateral
do short curto, como se limpasse o suor das mãos. — Eu não quis te
machucar.

— Está enganada se acha que pode me ferir, garota. — Fui


arrogante. — Nenhuma mulher conseguirá essa façanha.
A olhei de cima a baixo, cheio de desdém, e a menina deu

um passo para trás.


— Não seria uma pirralha como você que conseguiria a
proeza de foder ou destruir o “demonio de hielo”.

Ela arfou.
Girei-me sobre os meus calcanhares e cruzei a distância que
faltava para eu alcançar o aposento, e, dessa vez, nem mesmo

Lorenzo, o pequeno corajoso, se atreveu a me seguir. Assim que


fechei a porta e a tranquei, deixei-me cair contra a superfície,

levando a mão ao rosto. Bati minha cabeça algumas vezes na


madeira como se me punisse.
O cansaço se apoderava de mim, mas foi a solidão que

apertou o meu peito que mais me assustou e me levou à beira de um


penhasco cuja queda me levaria em direção aos espinhos,
sentimento que fez com que eu me fechasse ainda mais dentro de

mim, até que a solidão se desmanchasse e se tornasse gelo. No


entanto, logo aquele bloco começou a derreter novamente quando o
pensamento de que eu não estaria mais sozinho me preencheu.

Eu teria o meu bebê.


Capítulo vinte e cinco

— Hum? — Gemi.

Enrolei-me ainda mais no cobertor e ignorei o som, mesmo


que pudesse ser um dos cachorros querendo deitar comigo, algo que

se tornou parte da rotina, apesar deles terem suas próprias

caminhas.
Não podia negar que era delicioso ter os corpos quentinhos

cheios de pelo contra mim. Tinha que agradecer por Javier não ter

proibido os dois de dormirem na cama comigo, primeiro porque os


cachorros eram dele; segundo, sabia que algumas pessoas não

gostavam de tal coisa, apesar do quarto ser meu.


— Não — chiei baixinho quando o barulho voltou a ressoar.

Remexendo-me, fechei os olhos com força, tentando voltar a

dormir. Não tinha ideia de que horas eram, mas estava tão gostoso

ficar debaixo da coberta, que eu poderia ficar o dia inteiro ali.

Mas sabia que não podia, não quando era o dia do meu

casamento, cerimônia que tinha se tornado um grande escândalo na


mídia. O assédio para dar uma entrevista que nunca daria era

sufocante.
Eu sabia que o casamento iminente de Javier comigo geraria
alguma repercussão e que também seria difícil de esconder que eu

trabalhava limpando o escritório dele, mas não esperava que as

manchetes e comentários fossem tão maldosos. As fofocas

ganharam mais tempero quando o herdeiro do tal González tinha sido

arrastado pela polícia de uma festa para depor sobre uma acusação

de assédio, algo que eu tinha certeza de que não daria em nada,


mas não demorou muito para que o meu nome surgisse como o pivô,

mesmo que Javier tenha me prometido que isso não aconteceria.

Não havia dúvidas que alguém tinha falado para a imprensa, pois, até

onde sabia, essas informações davam um bom dinheiro.

Era impossível não sentir o estômago embrulhar ao ler que

meu casamento era uma espécie de sacrifício da minha parte, ou

que eu estava me vendendo ao demônio por status e dinheiro, o que


era uma meia verdade, além de outras especulações pejorativas

sobre o porquê do milionário sem coração ter escolhido uma plebeia

que não tinha nem onde cair morta, era como se, para as pessoas,

fosse impossível alguém se casar com Javier porque o amava e tinha

carinho por ele. Mas o pior era ler que o grande demônio só estava

casando comigo por conta de uma gravidez e por não tolerar que o
filho dele nascesse bastardo como ele tinha sido, indesejado. Isso

era tão cruel…


Suspirei baixinho, balançando a cabeça, tragando o nó que

havia se formado na minha garganta, sentindo-me subitamente


cansada. Entre fugir do paparazzis, o tratamento da inseminação
artificial, que felizmente já pude realizar por conta do meu ciclo

menstrual, a escolha de modelo do vestido de noiva, tirar medidas e


a prova final, algo que foi bastante solitário, fora outros detalhes da

cerimônia que Javier, através do seu secretário, me incumbiu de


decidir junto ao cerimonialista, como se eu soubesse o que desejava

e o que era apropriado para alguém como ele, e as visitas que fiz ao
meu irmão, eu quase não tive tempo de respirar, de pensar, de
sofrer.

Sim, sofrer. Pela separação do meu irmão, que, mesmo que


ainda estivesse relativamente perto, me parecia longe demais e pelo

fato do meu “quase” marido desde aquela manhã que tinha


preparado café da manhã para ele e conversamos sobre coisas

banais, com ele me provocando, até que o assunto sobre a


decoração do apartamento dele tinha desandado tudo, fazendo o
homem surpreendentemente falante se fechar dentro de si, ele nunca
mais ter dirigido uma única palavra a mim, nem mesmo para me

desejar boa noite.


Por mais que tivesse tentado puxar assunto, perguntando

como tinha sido o dia dele, eu só recebia o silêncio frio como


resposta. Nunca mais houve aquela intimidade compartilhada durante

uma refeição, o que em minha inocência desejei que tivéssemos.


Nem mesmo houve mais o olhar que tinha me devorado de
cima a baixo, repleto de ânsia e luxúria, que mesmo que tivesse sido

inesperado, algo que não acreditava que algum dia Javier sentisse
fome por uma “pirralha” como eu, fez com que meu corpo

esquentasse e formigasse com o desejo. O que me era


decepcionante, porque ele tinha me feito sentir mulher apenas com o
olhar, e tinha imaginado como me sentiria quando ele usasse o tato,

os lábios, seu corpo. Como seria se ele realmente fosse meu


esposo. Meu homem.

Senti uma pontada no peito, sabendo que tinha sido uma


ilusão tola de momento, de uma garota que facilmente nutriu uma

paixonite por um homem como ele. Mas, por mais que tentasse, eu
não conseguia parar de fantasiar com ele. Tinha vislumbrado um
pouco do Javier que se escondia sob várias camadas de cinismo e

sombras, e queria alcançá-lo mais e mais. Queria curar a sua alma


quebrada com meu corpo, mesmo estando consciente de que seria
um erro, pois quem acabaria machucada seria eu. Mas tudo em
relação aquele homem me fazia agir de modo irracional, impulsivo.

Até agora eu não havia compreendido o que tinha acontecido


para que ele se comportasse daquela maneira, só sei que eu

lamentava profundamente ter afastado Javier de mim e condenado


aquele casamento de aparência a algo muito mais frio. Vazio.
Solitário. Não podia negar que, embora soubesse que não haveria

amor ou paixão, tinha esperado pelo menos conviver bem com ele.
Eu tinha estragado tudo.

Me encolhi ainda mais contra o cobertor, vulnerável, triste,


tampando o meu rosto

Em meio ao caos que minha vida havia se tornado, havia uma


única coisa que não deixava a nenhum momento os meus
pensamentos: o bebê que eu geraria, mas que nunca poderia ser

meu. Uma dor me atravessou, fazendo com que meu coração


batesse apertado, e senti que uma lágrima deslizava pelo meu rosto,

seguida de várias outras. ¡Dios!! Doía demais, e ainda estava


apenas no início da inseminação. Não queria nem imaginar como
seria quando eu visse as mudanças do meu corpo, a imagem no

ultrassom e ouvisse o som do coraçãozinho.


Chorei ainda mais. Mas logo a confusão me invadiu quando
senti que os cachorros subiram em cima de mim, tentando com as
patas remover a coberta que me cobria, latindo.

— O quê? — sussurrei em tom choroso, já que tinha certeza


que a porta estava fechada, e mantive-me quieta. — Como vocês

entraram?
Claro que não obteria resposta. Apenas deixei que eles
ficassem em cima de mim, fazendo sua bagunça.

— “Princesinha”. — A voz fria do meu futuro marido ecoou

nos meus ouvidos, e odiei que ele me chamasse pelo apelido


desdenhoso que nada tinha a ver comigo. Talvez ele o fizesse só

porque sabia que me machucava.

Senti que um peso afundava o colchão macio.

— Javi… — Não tive tempo de completar a frase nem de


secar as lágrimas, muito menos disfarçar a minha vulnerabilidade,

pois, pegando-me desprevenida, inclinando-se contra mim, puxou a

coberta em um tranco.
Tudo em mim ficou consciente daquele homem e eu abri os

olhos. Senti certo incômodo pela claridade, embora o tempo

estivesse fechado, e encontrei o seu olhar frio e irônico fixo em meu


rosto, porém foi o sorriso cheio de desdém e cinismo que fez com

que eu quisesse me esconder novamente.


— Chorando de emoção pelo seu casamento iminente,

garota? — Despejou o seu veneno, e ergueu-se, saindo da cama.

Meu corpo traidor sentiu instantaneamente a perda da


proximidade dele.

Desconfortável, ainda mais com seu escrutínio sombrio,

sentei-me na cama, e passei a mão no rosto, limpando o rastro

molhado. O olhar dele recaiu brevemente para o meu colo exposto


pelo decote da camiseta do pijama, mas logo voltou a ser aquele

homem controlado e indiferente.

— Guarde suas lágrimas de emoção para o seu próximo


marido. — Fez uma pausa. — Ele fará mais proveito delas.

— Tudo bem. — Minha voz saiu baixa, e eu acariciei os

cachorros, cumprimentando-os com um beijo.


O sorriso dele ficou ainda maior, bem como a frieza.

— Ou está com medo de se tornar a “esposinha” do

demônio?

Fiz que não com a cabeça e ele soltou um som de


descrença.
Ficamos nos encarando por longos segundos até que ele

desviou o olhar.

— Levante-se, garota, senão vamos nos atrasar. — Foi


ríspido e deu as costas para mim, começando a caminhar para fora

do quarto.

Franzi o cenho. Tentei me lembrar se eu tinha algum

compromisso marcado na parte da manhã, porém não me recordei


de nada. O cabeleireiro e a maquiagem, que o secretário dele havia

marcado, era apenas a tarde.

— Para o quê? — Continuei a acariciar os cachorros.


Virou-se em minha direção e seus olhos me fitaram com

intensidade, queimando-me.

— Yazuv e a mulher dele querem conhecer a minha futura

esposa — disse secamente. — Principalmente meu melhor amigo.


Apesar do cobertor me cobrir parcialmente, eu senti meu

corpo gelar com a insegurança. Eu sabia que teria que acompanhar

Javier em eventos, festas e outros compromissos, porém não estava


preparada, temia fazê-lo passar por algum embaraço.

Eu não tinha certeza se saberia me comportar em meu

próprio casamento luxuoso e, com certeza, Javier me odiaria ainda


mais se eu o envergonhasse na frente do melhor amigo e da esposa

dele.
Quis sumir.

— Entendo — falei em um tom trêmulo que não escondia

minha insegurança.
— Eles querem que tomemos café com eles e os trigêmeos.

— Trigêmeos? — questionei, surpresa.

— Sim, três crianças.

Deu de ombros, mas pude perceber que algo havia mudado


em sua expressão. Era mais do que claro a ternura que ele parecia

sentir pelos filhos do melhor amigo, por mais que tentasse disfarçar

por meio de um gesto de indiferença.


— Esteja pronta em vinte minutos — ordenou rispidamente.

Fiquei paralisada, em pânico. Não sabia como iria conseguir

me aprontar nesse tempo.

— Não é ficando nessa cama que você irá conseguir se


aprontar, garota.

Estalou a língua quando ainda me mantive imóvel, e obriguei-

me a me levantar e começar a agir, fazendo com que Lorenzo e


Isabel latissem e balançassem a cauda com vigor. Tinha pouco

tempo para pensar até mesmo no que era apropriado para usar.
Enquanto caminhava em direção ao banheiro, estava consciente de

que Javier ainda estava no quarto e tinha seus olhos pousados sobre

mim. Ruborizei, lançando um olhar para o short curto do meu pijama,

que ainda era menor que aquele que tinha usado na primeira noite
que passei no apartamento. Eu não me ajudava. Apesar de serem

confortáveis, eram completamente impróprios. Não poderia culpar

Javier por olhar aquilo que estava expondo de bom grado.


Arfei.

Não duvidava que ele achasse que eu fazia de propósito,

somente para seduzi-lo. Uma garota inescrupulosa que usaria o

corpo para conseguir muito mais.


— Não, vão com o “papai” — sussurrei para os cachorros,

fechando a porta atrás de mim. Sabia que se eu deixasse eles

entrarem, me atrasariam ainda mais.


Vinte e cinco minutos depois, deixei o meu quarto

completamente insegura sobre tudo, e fui até a sala, encontrando

Javier sozinho digitando algo no computador na mesa de jantar, com

certeza os cachorros estavam na cozinha comendo algo. Ele parecia


perfeitamente vestido, embora não usasse terno e gravata.

Meu coração disparou no peito. Aquele homem era lindo

quando se vestia formalmente, exalando poder e masculinidade, mas


tinha que confessar que preferia vê-lo mais informal. Parecia ali

haver uma descontração que ele não se permitia muito.


Foi impossível não olhar o modo como a blusa social feita

sob medida ressaltava o torso poderoso e os seus músculos. Como

se sentisse o peso do meu olhar, desviou a atenção da tela e

encarou-me enquanto se erguia.


— Está atrasada, garota — cuspiu.

— Eu sei.

— Não conhece o significado da palavra pontualidade? —


Caminhou na minha direção, parecendo um felino.

— Você deveria ter me acordado mais cedo — retruquei, ele

não poderia me culpar quando tinha tido pouco tempo. — Essa é a


primeira vez que me atraso enquanto adulta.

Parou na minha frente e me obriguei a erguer o rosto para

fitá-lo. Dessa vez não senti o cheiro do seu perfume, ele não deveria

usar quando ia visitar crianças. Mas não precisava inspirar a


fragrância amadeirada para ficar embriagada por ele. Tê-lo tão

próximo era mais do que o suficiente para me deixar mole. Tive que

lutar para não espalmar a mão em seu peito.


— Eu bati na porta — disse rispidamente.
— Tenho certeza de que você poderia ter me acordado mais
cedo — falei suavemente. — Seu amigo deve ter avisado

antecipadamente sobre o horário.

Os olhos dele cintilaram perigosamente.


— Vamos, iremos nos atrasar ainda mais — deu um

comando e girou o corpo. Eu apenas o assisti ir em direção ao

aparador para pegar a carteira e o celular.


— Javier?

Emitiu um som de cansaço.

— Que foi, garota?

— Estou bem?
Coloquei uma mecha atrás da orelha, a insegurança voltando

a me atormentar. Tinha esquecido temporariamente do quão

inadequada me sentia.
Virou-se para mim e, mais uma vez, deixou que seu

escrutínio me varresse de cima a baixo. E como da primeira vez que


ele tinha me analisado, senti-me um objeto decorativo, não uma
mulher sexy e desejada.

— Servirá.
Não disse mais nada, apenas recolheu suas coisas e abriu a
porta. Não tive escolha a não ser segui-lo, mas aquela palavra que
usou, apesar de não ser uma repreensão severa, me fez sentir-me
ainda mais inadequada.
Capítulo vinte e seis

Tentei controlar o meu nervosismo, mas enquanto eu

esperava ao lado de Javier alguém vir abrir a porta, mais minha

ansiedade parecia aumentar. Durante todo o percurso, eu e meu


futuro marido ficamos em um silêncio sepulcral, o que não me ajudou

em nada, mas tinha que confessar que se tratava de um outro tipo

de nervosismo. Nunca um carro pareceu tão pequeno, embora


houvesse uma distância de centímetros nos separando. Todo o meu

corpo parecia consciente do dele, como se antecipasse o momento

em que ele pousaria a mão sobre a minha coxa, como eu tinha visto

nos filmes clichês. Mas é claro que isso não tinha acontecido, ele

havia me ignorado desde o momento que havia entrado no veículo e


dado a partida. Como o fazia até agora.

— Aylla! — Uma voz feminina suave ecoou nos meus ouvidos

e eu encarei a mulher que usava um véu cobrindo o rosto e tinha os

olhos voltados para baixo, tentando segurar o animal pela coleira. —

Meu oğul[61] pecou em não te dar nenhum limite.

Não entendi nenhuma palavra do que ela disse.


— Não tem problema, Sâmia. — Meu futuro marido
respondeu na mesma língua, que reconheci ser inglês

Eu quis me encolher de vergonha. Não tinha feito o curso por

falta de dinheiro, e o pouco que me foi ensinado na escola não era o

suficiente para que eu os compreendesse e me comunicasse.

Restou-me apenas assistir, desconfortável, à interação entre eles.

— Gosto de brincar com ela, não é, doçura? — murmurou


suavemente, acariciando a orelha da cadela, que deu um latido de

apreciação, jogando o seu corpo em direção ao dele. Acostumado a

brincar com os animais, agachou-se para fazer mais carinho nela. —

Graças a ela que adotei os dois que tenho hoje.

— Fico feliz por você, oğul — disse em um tom que eu achei

maternal ao tocar o ombro do Javier, que desviou o olhar para ela.

— E pelo seu casamento também.


Vi o pomo de adão dele subir e descer quase que

imperceptivelmente, revelando que a fala dela havia causado algum

incômodo nele. Surpreendeu-me que ele tivesse se exposto tanto

assim.

— Mais do que ninguém, você merece encontrar alguém uma

pessoa que possa te ajudar a curar as feridas que você esconde de

todos, evlat[62].
Ele não respondeu. Ficaram se encarando em silêncio, que

era apenas quebrado pelos sons da cadela.


— Obrigado, Sâmia. — Ela estendeu a mão para ele, que a

pegou e plantou um beijo nela. Nem sabia se isso era algo permitido
devido a religião dela.
— Essa deve ser a sua futura esposa — falou ao se virar

para mim e me encarou com curiosidade por alguns momentos,


como se me analisasse.

Morrendo de vergonha, dei um sorriso para a mulher. Não


sabia se ela retribuiu, pois os lábios dela também estavam cobertos.

— Tão linda quanto a minha nora, apesar de mais jovem.


— Eu não compreendo a sua língua. — Minha voz soou
fraca.

Virei-me para Javier, em busca de ajuda, e nossos olhares


se encontraram enquanto a cachorra continuava a exigir carinhos

dele. Não ver a frieza costumeira em seus olhos, apesar que ainda
me era ilegível, fez com que o meu coração batesse

descompassado.
— Não sei falar inglês. — Entrelacei minha mão na frente do
corpo.
Ele disse alguma coisa para a mulher, que assentiu e, ao

contrário do que imaginava que faria, meu futuro marido traduziu o


que ela disse para mim. Não esperava que ele tivesse sensibilidade

para me ajudar, pelo contrário, pensei que ele apenas ignoraria o


meu problema.

— Obrigada, senhora, é muito gentil da sua parte. Prazer em


conhecê-la.

— De nada, kizi[63] — disse em um tom calmo. — Eu quem


fico feliz em conhecer a “escolhida” de Javier. Allah sabe o quanto
ele precisa de ser amado. Ele abençoará essa união, como tem feito

com a do meu filho.


Fiquei em silêncio, sentindo o meu coração se apertar por

ele, por mim.


Me sentia uma grande impostora, uma fraude, por ela
acreditar que o nosso casamento seria por amor, que seria eu a

mulher que o amaria incondicionalmente, que formaria uma família


com ele.

— Eu torço para que sim. — Tive que falar algo, dando meu
melhor sorriso.

Mas temi que o meu tom não revelasse tanto a ternura que
uma noiva apaixonada deveria ter, embora tivesse me esforçado
para isso. Estava ciente de que seria muito fácil para uma garota
ingênua como eu amá-lo, porém sabia que não era o que o milionário
queria.

Uma onda de dor me assolou e precisei de toda a minha


força de vontade para não sucumbir à melancolia e a tristeza, pois eu

nem mesmo faria parte da família do bebê que geraríamos.


Suspirei baixinho.
Encarei Javier, desejando saber sua reação e,

diferentemente de mim, ele tinha uma expressão neutra no rosto,


inexpressiva, como se não estivéssemos vivendo uma mentira.

E a tristeza se transformou em chamas dentro de mim. Senti


raiva dele, de mim.

Ele poderia ter dito que ninguém esperava uma reação


apaixonada da nossa parte, principalmente da minha, mas aquela
apatia me incomodou. Quis rebelar-me contra esse sentimento,

massacrá-lo, revoltar-me contra o casamento que aconteceria em


poucas horas e que selaria aquele engodo que só me massacraria

ainda mais. Que me tiraria meu filho.


— Agora entrem.
A mulher me tirou do transe e voltei-me para ela. Os olhos

negros fitando-me com intensidade, diria com sabedoria, algo que


poderia ser fruto da minha imaginação, fizeram com que eu domasse
os sentimentos conflituosos dentro de mim.
Eu teria que aceitar tudo com resignação, porque era para

aquela mentira que tinha sido comprada.

— Yazuv e minha gelin[64] estão esperando vocês na sala de

jantar, os trigêmeos estavam com fome.


Fez um som para a cadela, chamando a atenção dela.
— Claro. — Javier disse.

Ergueu-se e eu passei pela porta.

— Tire os sapatos — ele sussurrou na minha orelha, e eu


senti os pelinhos da minha nuca se arrepiando. — É falta de

educação na cultura turca adentrar na casa os usando, garota.

— Okay.

Senti-me ainda mais deslocada por não saber o costume. É,


eu seria um fiasco.

Depois de remover os calçados, colocando-os em um canto,

e pendurar o casaco, percebi quando ele se aproximou de mim.


Pousou uma mão no centro das minhas costas, incentivando-me a

andar, como se fosse um noivo atencioso. O calor parecia se

espalhar do ponto em que ele me tocava para todo o meu corpo,

mas dessa vez não consegui apreciar o contato. Tudo em mim


gritava que era uma mentira, mesmo assim, me deixei ser guiada,

como o objeto que eu era.


— Pensei que teria que te buscar na porta. — A voz grossa

e masculina soou em meio a gritinhos de criança, chamando a minha

atenção para a mesa, onde ele se sentava na cabeceira.


O homem que deveria ser o melhor amigo do meu futuro

marido tinha uma careta em sua expressão, que me pareceu

medonha, mas que logo tornou-se mais suave quando encarou a

menininha sentada na cadeirinha, que fazia uma bagunça com um


pedaço de banana, e ele a ajudava a comer a fruta.

— Yazuv! — Outra mulher falou mas não olhei para ela, todo

o meu foco estava naquele bebê doce. — Não fale assim com o seu
amigo.

— Olá, amigo — Javier foi irônico.

Estalou a língua em um gesto de desdém, fazendo com que


o outro homem bufasse, mas com o olhar periférico percebi que

Javier irradiava certa tensão, mesmo que sua aparência estivesse

tranquila, principalmente ao encarar a cena familiar.

Era uma reação estranha, mas eu apenas voltei a olhar para


a menininha quando ele cumprimentou a mulher.

— Valdete.
Fiquei observando a mãozinha abrindo e fechando,

hipnotizada. Sabendo que havia mais dois, olhei as duas outras

crianças, que faziam bagunça tal qual a menininha.


Não contive um sorriso. A ternura preenchia cada um dos

meus poros. E o instinto maternal que estava florescendo em meu

interior pareceu ganhar mais força.

Sempre gostei muito de crianças e bebês, mas, infelizmente,


por circunstâncias da vida, não pude ter muito contato. Vez ou outra

eu tinha conseguido um emprego temporário de babá.

Mas aqueles três eram as coisas mais lindas que eu tinha


visto. As boquinhas se abriam e fechavam enquanto pegavam os

pedacinhos de frutas com as mãos melecadas e as levavam às

bocas, mastigando devagar, falando um monte de palavrinhas que se

embaralhavam entre si, vozinhas que ficaram mais altas quando um


deles finalmente desviou a atenção das comidinhas para Javier.

— Titi. — A menininha deu um gritinho, esticando as

mãozinhas querendo colo.


— Princesa — sussurrou em um tom melancólico a palavra

em espanhol, roubando a minha atenção.

O assisti caminhar até a cadeirinha onde ela estava sentada

e pegá-la no colo. E, por alguns momentos, não houve nada além


dos dois. Era uma cena terna, doce, principalmente quando ele sorriu

para a garotinha, que pousou a mão suja no rosto dele enquanto


falava palavrinhas. Era impossível não imaginar Javier brincando com

o seu próprio bebê. Se os filhos do melhor amigo pareciam produzir

uma transformação enorme no homem tido como frio e gelado, o


filho tão sonhado faria com que o homem bom que se escondia

dentro dele viesse à superfície.

Eu não tinha nenhuma dúvida de que Javier seria um

excelente pai, amoroso e protetor. De repente, várias imagens dele e


um bebê imaginário em diferentes situações bombardearam a minha

mente. Ao mesmo tempo que elas me faziam sorrir, me causava

tristeza por saber que eu só contemplaria os dois juntos por pouco


tempo, se é que ele me permitiria isso, pois não sabia se ele agiria

tão espontaneamente na minha frente, o que esperava que sim. Tudo

terminaria quando o pequeno desmamasse e Javier não precisasse

mais de mim.
Teria que ser o suficiente aqueles momentos breves e

agridoces em que veria o amor de pai e filho.

Pare com esses pensamentos melancólicos, Babi, falei para


mim mesma em pensamentos. Deixe para sofrer quando chegar a

hora.
Emiti um suspiro longo e baixinho, apaixonado, quando outro

menininho chamou a sua atenção e ele o também pegou no colo,

balançando os dois ao mesmo tempo.

¡Dios! Eu poderia perder meu coração ali mesmo para o meu


futuro marido.

— Está tudo bem? — A mulher que até então não havia

prestado atenção, pousou a mão sobre o meu ombro; não tinha


percebido que ela havia se aproximado.

Girei um pouco o meu corpo e a encarei. Vi que tinha um

sorriso gentil no rosto angelical, emoldurado por alguns fios pretos

que escapavam do seu coque. A esposa do melhor amigo de Javier


era lindíssima, tanto que chegava a doer os olhos.

— Você está com uma expressão um pouco distante, triste.

— Não compreendo. — Fui obrigada a apontar minha falha


outra vez.

Gentilmente ela repetiu o que disse em um espanhol

carregado de sotaque que não soube identificar de onde era.

— Estou, sim — respondi com uma meia verdade, dando um


sorriso. —Obrigada, por perguntar, senhora.

Ela fez uma careta.


— Val, me chame de Val. Ainda sou muito nova para ser

chamada de senhora.
Deu uma gargalhada e eu ri baixinho, mesmo não sabendo

se era apropriado.

— Eu sou Bárbara. — Estendi a mão para ela, mas

quebrando todas as formalidades, puxou-me para um abraço


apertado e eu deixei-me envolver. — Mas pode me chamar de Babi.

— É um prazer te conhecer, Babi. — Desvencilhou-se de

mim. — Espero que sejamos amigas assim como esses dois.


Fez um gesto com a cabeça, apontando para a mesa, onde

os homens pareciam interagir.

— Eu adoraria — falei baixinho.


Era verdade.

Eu realmente desejei que pudéssemos ser amigas, e ainda

que ela fosse uma completa estranha. Fazia muito tempo que não

tinha uma de verdade, e aquela mulher calorosa, apenas um pouco


mais velha do que eu, talvez fosse a melhor pessoa que encontraria

naquele mundo. Mas uma amizade não começava com mentiras, e

eu sabia que isso seria uma barreira.


— Então não precisa ficar sem jeito — disse em um tom

animado. — Vou te apresentar o meu marido e os meus trigêmeos,


Erol, Onur e a pequena Nádia.
Antes que eu pudesse reagir, pegou o meu braço e fez com

que eu me aproximasse da mesa, apresentando-me a todos. Não

podia negar que tive que conter a vontade de estremecer quando o


CEO, me encarou especulativamente com sua expressão severa,

mas Valdete, com o seu tato e sorriso, fez com que eu me sentisse

mais à vontade, principalmente quando passou a atenção que tinha


recaído sobre mim para os trigêmeos, tanto que um deles havia

acabado no meu colo. Eu me senti nas nuvens por ter o pequeno

fazendo bagunça, por poder ajudá-lo e também por sentir o cheirinho

gostoso que emanava da criança.


Enquanto conversávamos, vez ou outra eu olhava para

Javier, que se acomodou do outro lado da mesa, e o flagrava me

encarando com uma expressão estranha, mas que logo se tornava


fria, tanto que eu podia sentir me queimar como gelo.

Eu não conseguia compreendê-lo de maneira alguma, mas


talvez fosse melhor não o entender. O pensamento fez com que uma
rebeldia insurgisse em meu interior, mas a sufoquei ao tomar uma

xícara de café.
— Eu consigo imaginar o quão desesperador foi ter que lidar
com três bebês com cólica ao mesmo tempo — comentei,
balançando a mãozinha de Erol.
Tinha que admitir que admirava os dois por terem decidido,
mesmo em meio ao trabalho exaustivo, tirar boa parte do dia para

cuidar dos pequenos, tentando fazer todas as refeições com eles.


Val me contou que eles não delegavam a uma equipe de babás toda
a criação dos próprios filhos, embora fosse inevitável contar com a

ajuda quando um deles tinha que comparecer a uma reunião e


nenhum dos pais deles pudesse estar presente, o que raramente
acontecia, pois os avôs sempre gostavam de estarem juntos aos

seus netinhos.
Será que Javier trabalharia menos para ficar com o nosso
bebê? Uma parte de mim torcia para que sim.

— Acho que perdi alguns anos de vida, e não é no sentido


figurativo — Valdete comentou, dando uma risada, olhando para o
marido, que mandou um beijo para ela, o som fazendo com que a

criança no colo dele desse uma gargalhada.


Dei um suspiro baixinho, evitando olhar para meu futuro

esposo. Não tinha passado despercebido por mim o modo como Val
e Yazuv se encaravam, bem como sorriam um para o outro.
Claramente o amor e o fogo pareciam crepitar entre ambos, e era

impossível não sentir uma pontada de inveja dos dois, desejando


viver algo assim. Eles eram a prova viva de que contos de fadas
poderiam acontecer na vida real.
— Mesmo que tenhamos feito um curso para cuidar dos

nossos bebês, nós dois ficamos loucos — Val fez uma pausa —,
principalmente o Yazuv.

O homem bufou, exasperado, passando a mão pelos cabelos


negros, irritação que se tornou ainda maior quando Javier deu aquela
risada fria dele.

— Daria milhões para ver a cena — disse, o tom se


assemelhando ao de uma serpente.
O homem soltou uma série de palavras incompreensíveis e

eu imaginei que fossem palavrões, pois Val gritou com ele.


— Duvido que você irá rir quando for a sua vez de lidar com
o seu bebê chorando, incomodado, e nada ajudar a passar — o

homem rosnou, com raiva.


— Touché, amigo — disse em um tom sério, parando de rir.
— Tenho certeza que não acharei graça nenhuma.

Um silêncio pesado caiu sobre os adultos, só quebrado pelo


som das crianças, que pareciam cada vez mais agitadas nos nossos

colos.
— Provavelmente eu farei mais escândalo que você —
completou e o turco jogou a cabeça para trás, gargalhando alto.

Mas toda a minha atenção estava no homem à minha frente,


que parecia estar falando sério. Nossos olhares se cruzaram por
alguns segundos e eu senti aquele reboliço de calor e prazer

indesejado, antes que ele desviasse o olhar.


— E eu daria uma das minhas empresas para ver você

desesperado — provocou-o ainda rindo.


— Se me deixar escolher, eu te envio um vídeo — Javier
falou cinicamente e voltou a estalar a língua.

O homem bufou.
— Você não vale isso — murmurou.
Javier voltou a rir e, em meio ao som, a criança no meu colo

ficou ainda mais inquieta.


— Acho que eles querem esticar um pouco as perninhas e
brincar. — Sâmia, que passou a maior parte do tempo em silêncio,

comentou, tentando animar a menininha que parecia prestes a


chorar. — Irei levá-los para o chiqueirinho.
— Eu te ajudarei — Valdete falou ao se erguer, pegando

com prática Onur do colo do marido. Assim que ela pegou Erol, que
estava comigo, senti imediatamente a falta do pequeno.
Quando as duas saíram, um silêncio se instaurou, e o melhor

amigo de Javier me fitou com seus olhos escuros analíticos. Pensei


que ele faria alguma pergunta a respeito do casamento, como muitos
faziam, principalmente porque tanto eu quanto Javier não nos

comportávamos como um casal, mas nenhuma palavra saiu da sua


boca.
Não tive dúvidas de que o turco sabia que aquele casamento

era apenas uma farsa e que eu tinha sido comprada para dar um
bebê para Javier, que eu tinha me vendido.

Engoli um pedaço de pão e ele pareceu entalar na minha


garganta ao pensar que estava sendo julgada.
A expressão séria dele se transformou quando ouviu passos

e ele sorriu para a mulher que tinha acabado de voltar. Quando ela
passou pelo turco, ele envolveu a cintura dela e a puxou para o colo,
sentando-a de lado.

— Yazuv, aqui não! — falou em um tom de repreensão, as


bochechas enrubescidas, mas, mesmo assim, enlaçou o pescoço
dele com um braço.

— Eles não se importam, değerli.[65]— Deu um beijo na nuca


dela. — Eu não me importo, não quando estava doido para fazer
isso.
Ninguém traduziu para mim, pois falaram em inglês, mas não
precisou, pois o turco puxou o queixo dela e trouxe a boca da esposa
para a sua em um beijo curto que, mesmo assim, era digno de

cinema. A intimidade dos dois e a ausência de pudores era


fascinante, apesar de que poderia ser um pouco desconcertante.
Nunca imaginei que o homem de aparência severa e reservada não

conseguisse se conter.
Olhei para Javier e ele parecia completamente indiferente,
como se estivesse acostumado a ver a demonstração de afeto entre

os dois. Como uma tola, não apartei a minha vista, e não contive o
questionamento se alguém conseguiria fazer com que Javier agisse
da mesma maneira, selvagem, sem se importar com nada e nem

ninguém.
Javier ergueu a sobrancelha ironicamente para mim quando

me flagrou, e eu apenas dei de ombros, como se não estivesse


tendo pensamentos impróprios, terminando de comer.
— Agora chega — a mulher falou em meio a um arfar ao

tentar se erguer e o turco emitiu um som que demonstrava o seu


desagrado, prendendo-a no seu colo. — Você é terrível.
— Você gosta.

— Não posso negar.


Deu uma risada e se acomodou melhor no colo do marido; os
olhos azuis brilhavam de felicidade.

— Está tudo certo com os preparativos do casamento? —


Val questionou. — Mesmo que uma grande equipe esteja envolvida,
sempre há alguns probleminhas de última hora.

— Eu não entendo muito de organização de festas, mas


creio que sim, e se houver, acho que eles serão capazes de resolver.
— Inconscientemente, acariciei o anel no meu dedo. — A única coisa

que ainda tenho que fazer é ir ao salão mais tarde.


— Não, garota — a voz de Javier ecoou nos meus ouvidos e
eu franzi o cenho.

— Não?
— Eu e Yazuv mudamos de planos.
— É mesmo? — Valdete virou-se para o marido. — O que

você tem a ver com isso?


Beijou suavemente os lábios dela.

— Achei que você gostaria de um meio-dia de princesa. —


Deu outro selinho nela. — M, melhor, de rainha.
— Gosto disso.

— Nós dois — apontou para Javier —, acabamos


concordando em fechar um spa só para vocês duas, já que minha
mãe não quis participar. Para ser exato, a programação começa em
menos de duas horas.

Não contive um som de surpresa e voltei minha atenção para


o espanhol, olhando-o incrédula. Mas a frieza dele deixava mais do

que claro que ele não tinha a intenção de me agradar, só fazia


porque era o esperado dele.
— Ótimo — a mulher começou a tagarelar —, mas preciso

passar em uma loja para comprar uma meia-calça, esqueci de fazer


isso ontem.
— Aproveita e escolhe uma lingerie para hoje à noite —

falou baixo e ela estremeceu.


— Amor…
— Eu mereço, não é mesmo, değerli?

— Tsc. — Javier foi ácido.


O turco bufou.
— Leve Bárbara com você, para ela comprar algo especial

para a noite de núpcias. — Eu sabia que era uma provocação ao


Javier, mesmo assim senti que ficava vermelha.

— É uma ótima ideia. — Levantou-se do colo dele e o


homem deu-lhe um tapa na bunda, mas ela não pareceu se importar.
— Você quer ir comigo, Babi?
— Eu… — Não soube o que fazer, uma parte de mim

querendo acompanhá-la, querendo a amizade dela, e a outra com


receio.
Voltei a encarar meu futuro marido.

— Vá com ela, se for isso que desejar — disse em um tom


desprovido de emoção. — Você não precisa da minha permissão,

não sou seu pai.


— Não, não é, “marido”. — Ressaltei a última palavra e a
expressão dele transformou-se em pura ironia. — Preciso comprar

pijamas novos.
Desviei o olhar ao lembrar das peças curtas e inapropriadas
que tinha usado mais cedo.

— Só vou me arrumar e iremos, não quero me atrasar. —


Fez uma pausa. —Terá massagem com pedras quentes?

— Claro, aşk[66].

— Você é o melhor marido que uma mulher pode ter. — Deu


um selinho nos lábios dele.
— Sei que serei muito bem recompensado por isso. — O

seu sorriso não escondia sua luxúria.


— Homem esperto.

— Sempre.
Gargalhando, deixou a sala de jantar. Demorou cerca de
vinte minutos. Depois de nos despedirmos de Sâmia, fomos
acompanhada por Yazuv, que carregava os dois menininhos no colo,

e por Javier, que segurava uma menininha sapeca, até a porta, mas
só deixamos o apartamento quando dois seguranças vieram. Se
alguém reparou a falta de afeto na despedida entre mim e Javier,

foram educados em não comentar, ainda mais se comparado ao


outro casal. E mais uma vez o peso da mentira que era aquele
casamento voltou a pesar nos meus ombros e, principalmente, na

minha alma.
Capítulo vinte e sete

— Obrigada por vir comigo, Babi — Valdete disse com o seu

sotaque carregado, depois de ficarmos vários minutos em um

silêncio confortável em que ela apreciava a paisagem das ruas


madrilenas.

As nuvens cinzentas deixavam o tempo bastante melancólico

e a cidade sem vida, principalmente a parte histórica em que


percorríamos. Não me surpreenderia se caísse uma chuva forte na

hora da cerimônia, o que seria o pesadelo de qualquer noiva que

ansiava por um dia perfeito.

— Estava contando os minutos para que ficássemos

sozinhas para conversar — comentou, virando-se para mim.


Os olhos azuis, antes radiantes de felicidade ao falar dos

filhos e receber afeto do marido, pareciam ilegíveis. Não havia

dúvidas que a mulher também sabia das circunstâncias do meu

casamento com Javier.

— Entendo. — Não soube o que dizer.

Senti uma pontada de medo me invadir, receosa do que ela


falaria, porém logo o tom suave fez com que eu relaxasse um pouco:
— Imagino o quanto deve estar sendo difícil para você isso
tudo.

Em um gesto de amizade, segurou a minha mão; eu não

desfiz o contato dela, minha alma precisava daquele conforto.

— Muito — confessei, apesar de que sabia que estava

quebrando uma das cláusulas que eu havia assinado sobre sigilo

sobre o casamento. — Mais do que pensei que seria.


— Algumas pessoas poderiam te condenar pela escolha que

você fez, Babi, mas eu te admiro por ter tomado essa decisão.

Apertou minha mão suavemente, como se quisesse me

passar sua coragem através do gesto.

Lágrimas brotaram nos meus olhos e escorreram pela minha

face. Tinha esperado que aquela mulher pensasse o pior de mim,

pois uma pequena parte de mim me julgava da pior forma possível,


mesmo que não me arrependesse; era difícil acreditar que ela não

me condenava por ter me vendido para Javier quando eu mesmo o

fazia.

— Eu… — Traguei o bolo que havia se formado na minha

garganta.

— Mesmo que você seja jovem, é a mulher mais corajosa


que conheci — fez uma pausa —, até mesmo, mais do que eu um dia
poderei ser.

— Não fale isso — murmurei. — Sou uma covarde. Eu agi


por medo.

Fez que não com a cabeça.


— Muito pelo contrário. — Deu um sorriso, pegando um
lencinho da bolsa e me dando para enxugar minhas lágrimas. —

Você poderia ter encontrado um meio de fugir, mas decidiu cumprir a


sua palavra.

Foi a minha vez de mover a cabeça em um gesto negativo.


Apesar dela e Pablito acharem que eu poderia ter fugido de Javier, o

CEO não permitiria.


— Eu, na sua situação, teria fugido — comentou e depois
debochou de si mesma. — Eu sou ótima em fugir, Yazuv que o diga.

— Você fugiu dele? — questionei, curiosa, ao me movimentar


no banco do carro.

— Inúmeras vezes. — Emitiu um suspiro baixinho, que era


um misto de dor e tristeza. — Tenho sorte que ele é muito

determinado e não desistiu de mim em nenhum momento, mesmo


que da primeira vez tenha sido frustrante suficiente para que ele
tentasse me esquecer.

Foi a minha vez de apertar a mão dela com mais força.


— Por quê?

— Eu o abandonei depois da primeira noite com ele, saí do


quarto do hotel sem ao menos me despedir — fez uma pausa —, ele

tinha sido tão carinhoso, tão perfeito. Eu poderia ter me apaixonado


se mantivesse aquele caso.

— Mas você se apaixonou mesmo assim — afirmei.


— É muito difícil não o amar quando ele demonstrou ser tão
diferente dos outros. — Sorriu, parecendo sonhadora. — Ele foi tão

terno, tão paciente. Fora os mimos que ele deixava todos os dias na
minha mesa, dia após dia.

Outra vez, não pude conter a pontinha de inveja que senti


dela, dos dois, do amor que havia entre eles.
— Os olhares quentes... — comentou displicente. — Bastava

um olhar dele para me fazer sentir a mulher mais preciosa e


desejada do mundo.

Obriguei-me a não pensar no modo que Javier tinha olhado


para o meu corpo, pois dar significados além do desejo sexual aos

olhares que ele tinha me lançado era pedir para me iludir.


Não havia nada, a única coisa que poderia interessá-lo em
mim era o meu ventre que carregaria o seu filho.
— Ainda me dói pensar que minhas fugas poderiam tê-lo
afastado de mim — sussurrou. — Que eu não descobriria o que é
ser amada de verdade.

— Mas, felizmente, isso não aconteceu. — Incentivei-a.


— Não, não aconteceu. Desculpe-me falar sobre mim

quando é o seu dia. — Pareceu sem graça pela conversa ter


desviado para ela.
— Deixe disso. — Dei alguns tapinhas na mão dela. —

Confesso que queria saber como é estar casada com um homem tão
rico, poderoso e…

— Não pertencer ao mundo dele? — completou para mim,


balançando a cabeça. — Porque também não pertencia, já que eu

era apenas uma assistente administrativa.


Fiquei em silêncio.
— Sabe, o que realmente importa é que eu pertenço a Yazuv

de corpo e alma.
— Entendi — falei baixinho. — Mas você sabe que esse

casamento… Que eu…


— Meu marido me contou tudo — fez uma pausa,
confirmando aquilo que eu suspeitava —, ou parte dela, não sei.
Voltou a apertar minha mão com mais força e vi que seus
olhos pareciam tristes, não pelo marido manter segredo dela, mas
por mim.

— E é por isso que eu te admiro ainda mais e queria ter a


sua força por ainda manter a sua palavra, mesmo que isso só cause

uma enorme dor — disse em um tom embargado. — Eu não sei se


conseguiria…
Um nó se formou na minha garganta e novas lágrimas

caíram.

— Eu não sei se consigo — confessei, minha voz deixando


evidente toda a dor que o assunto me causava. — Mas eu preciso,

não tenho escolha.

— Ele está cometendo um grande erro com você, mas

principalmente com ele mesmo. Ele pode usar uma máscara de


cinismo e frieza, mas não consegue esconder o fato de ser um

homem solitário, vazio, e que precisa desesperadamente de afeto,

mesmo que nunca vá admitir.


— Entendo...

Suas palavras me atingiram em cheio e, mais uma vez, eu

desejei ser essa pessoa que daria carinho para ele, mas eu sabia
que não passaria de ingenuidade da minha parte acreditar que eu
poderia afastar as sombras que ele carregava em seu coração; que

o curaria com a minha entrega.


Não podia…

A única coisa que conseguiria era dar a ele o bebê que tanto

parecia querer, ansiar, amar, mesmo que isso me quebrasse ao


mesmo tempo. Dei um sorriso agridoce ao pensar que daria uma

parte de mim a ele, mesmo que Javier não quisesse, o filho que

teríamos juntos e que ficaria com ele teria para sempre o meu

coração.
— Quem sabe um dia Javier consiga entender que ele não é

o demônio que diz ser e que também merece ser amado — ela disse

depois de vários minutos em silêncio em que pareceu refletir, me


fitando com uma expressão estranha.

— Quem sabe… — sussurrei em um tom estrangulado.

Uma ferroada de ciúmes bobo atingiu meu peito, como se


fosse uma facada, ao pensar em outra pessoa oferecendo o carinho

que ele precisava. Era irracional.

¡Dios! Uma barriga de aluguel, uma esposa comprada, não deveria

sentir ciúmes de um homem que não era nada seu e que tinha
deixado mais do que claro que não queria nada com você, que não te

tocaria, que não desejava seus sentimentos e que não se importava


a mínima em te tratar com desdém. Era um homem que, em

contramão, daria a sua lealdade e fidelidade enquanto estivessem

casados, que tinha te devorado com o olhar e feito seu corpo


esquentar em partes completamente proibidas sem precisar fazer

nada. Ele seria meu marido, um homem frio, arrogante e cínico, mas

que era generoso o suficiente para amar dois animaizinhos lindos,

que quando queria, era protetor e carinhoso, que também se


expunha e deixava sua vulnerabilidade à mostra, que seria um

excelente pai, que estava doida para que me beijasse.

Sim, era uma loucura, mas ao mesmo tempo, o sentimento


parecia coerente.

— Você tem medo de se apaixonar por ele? — Valdete

perguntou à queima-roupa como se fizesse eco aos meus

pensamentos.
— Um pouco — disse com um suspiro profundo. — Sei que a

chance de ser correspondida é nula, mesmo assim temo a dor que

isso pode me causar. Ele é um homem atraente, mais experiente, e


eu apenas uma garota boba que é idiota o suficiente para acreditar

em finais felizes quando isso dificilmente poderá ocorrer.

— Não posso negar que sair com o coração quebrado era o

meu maior medo de me entregar a Yazuv — falou baixinho. — Mas


temo que não se tem muita escolha nesse assunto.

— Não, infelizmente, não. — Dei um sorriso fraco. — Só me


resta aceitá-lo, não é mesmo?

— Sim, ou torcer… — falou a última palavra baixinho, como

se fosse para si mesma, e eu fiz um gesto em negativo.


— Só se for para recolher os cacos que me restarem.

Uma gargalhada brotou de dentro de mim, mas ela não riu,

pelo contrário, ficou me encarando com compaixão, como se o meu

sofrimento fosse o dela.


— Os causados pela minha paixonite boba, já que o outro…

— Não consegui terminar.

— Pelo menos você terá uma nova amiga para tentar te


ajudar a cicatrizar parte dessas feridas.

— Obrigada, Val. — Meus olhos se encheram d’água, mas

fiz de tudo para não voltar a chorar.

— Nada.
— Chegamos, senhorita — a voz de Juan ecoou no veículo e

eu olhei para ele.

Temi ter falado demais.


— Eu sou pago pela minha descrição, não se preocupe —

disse o homem. — Como todos que trabalham diretamente para o


senhor Javier.

— Entendi. Obrigada.

— Vamos? — Valdete soou mais animada, seu sotaque

ficando mais acentuado, ao abrir a porta, sem esperar que os


seguranças o fizessem. — Temos pouco tempo para comprar

lingeries.

— Mas…
— Aprendi que a gente tem que usar para nós mesmas. —

Aprumou-se. — Te fará bem se sentir sexy no dia do seu casamento.

Balancei a cabeça, achando-a doida.

— E ele também merece essa pequena vingança.


Piscou para mim e eu gargalhei, mesmo achando que não

era nenhuma forma de punição a Javier. Mesmo assim, deixei que

ela segurasse o meu braço e saísse me puxando para uma das


lojas, contagiada pela sua animação. Era inegavelmente bom fazer

compras com uma amiga.


Capítulo vinte e oito

— O que você acha? — perguntei à minha mais nova amiga,

sentindo-me um pouco insegura.

Como não entendia nada sobre moda noiva e o que caía


perfeitamente bem no meu corpo, eu havia pedido que o estilista me

ajudasse com a escolha. Dentre os modelos que eu havia

selecionado, ele havia descartado todos, então desenhou um


exclusivamente para mim. Pela prova, tinha imaginado que ficaria

algo mais recatado quando ele disse que iria abaixar a cava.

Gostava do modo como o vestido abraçava minhas curvas, mas tinha

que confessar que o decote cavado, indo até o meu umbigo, que

embora valorizasse os meus seios, parecia mostrar mais do que era


apropriado para um ambiente religioso. Era impossível não pensar

que eu iria envergonhar Javier com a roupa decotada. Ele poderia ter

deixado todos os detalhes em minhas mãos, mas com certeza não

esperava algo tão escandaloso.

— É uma das noivas mais sexies que já vi — Valdete

comentou ao terminar de passar o rímel, ressaltando ainda mais os


seus olhos azuis.
Fiz uma careta.
— Esse era o meu medo. — Senti minhas palmas ficarem

úmidas.

Virou-se para mim.

— O quê?

— De ser vulgar.

A mulher riu ao se aproximar de mim, seus olhos parecendo


brilharem de diversão.

— Bobagem. — Tocou o meu braço em um gesto amigável

que me acalmou um pouco. — É um pouco ousado, não vou negar,

mas poucas podem usá-lo e ficar tão perfeitas.

Suspirou.

— Você está longe de parecer indecente, Babi.

Um som baixinho escapou pelos meus lábios, discordando.


— Está linda, Babi. Tenho certeza de que todos na igreja

acharão o mesmo.

Passei o dedo pela renda da mantilha que eu tinha optado ao

invés do véu, sentindo a textura delicada do tecido. Queria muito

acreditar nas palavras da Val, na mulher que, durante toda a tarde,

me fez gargalhar com os seus assuntos, que me ajudou com o meu


nervosismo e também me ofereceu o seu apoio conversando sobre o
quão difícil tudo foi para ela, principalmente com as suas

inseguranças. Tinha perguntado tudo o que ela sabia a respeito do


meu futuro marido, aproveitando que o esposo dela era amigo do

meu, porém não consegui obter as respostas que uma parte de mim
ansiava, já que Yazuv era reservado em relação aos segredos de
Javier, principalmente as razões pelas quais ele era tão fechado, frio

e cínico.
Val tinha me feito pensar que, mesmo que aquele casamento

fosse uma farsa, algo difícil de se viver, eu não precisava torná-lo


uma grande prisão ou me sentir encurralada. Eu poderia tentar

dialogar, buscar uma boa convivência com Javier, por ele, por mim
mesma, e também pelo bebezinho que eu geraria. Não seria bom
para a minha gestação que vivêssemos uma relação conturbada,

contudo estava consciente de que não seria fácil conseguir quebrar


as barreiras e as sombras que habitavam Javier, ele poderia ser

muito inflexível.
Senti meu estômago sacudir ao pensar que muito em breve

me casaria com o milionário, o meu comprador que fazia o meu


coração palpitar por emoções confusas.
— Javier não tirará os olhos de você — continuou em um tom

suave, tirando-me do transe.


— Não tenho tanta certeza — respondi, intimamente

desejando que ela estivesse certa.


A mulher que ansiava por uma relação pacífica, igualmente

queria que aquele homem a desejasse.


— Quer apostar comigo? — brincou.

— Duvido que ele não olhará para o decote — forcei-me a


dizer, encarando o objeto da nossa discussão.
— É assim que se fala — fez uma pausa, parecendo

pensativa, mas logo adotou um tom brincalhão. — O máximo que


acontecerá é Javier processar o estilista.

— ¡Dios! De onde você tirou essa ideia?


— Ele e o meu marido são amigos por vários motivos além
de dinheiro .— Deu de ombros e seu rosto tornou-se uma careta. —

Mas não duvido nada que o que de fato os unem é eles gostarem de
se “vingarem” quando contrariados.

Riu alto do próprio comentário que recordava a suposta


vingança que o turco queria infligir a ela, e eu não contive minha

gargalhada.
— Acho que os dois acabam incentivando um ao outro —
continuou, sua voz saiu estranha em meio à risada.
Balancei a cabeça em negativa, colocando em risco o meu
penteado, enquanto lutava para não cair no riso outra vez.
— Só você mesmo, Val.

— É para isso que servem as amigas, acabar com o


desconforto e a insegurança da outra.

Pegou as minhas mãos entre as suas e as apertou. Ter uma


mulher para compartilhar aquelas aflições comigo, uma pessoa tão
receptiva, que compreendia as minhas inseguranças, que mesmo não

sendo muito mais velha, fez o papel que minha mãe faria se
estivesse viva, me era muito precioso.

— Obrigada, Val — agradeci com todo o meu coração ao


abraçar-lhe. — Não sei o que faria hoje sem você.

— Me fará chorar e borrará toda a minha maquiagem, Babi


— sussurrou, começando a fungar. — Sou uma manteiga derretida.
— Eu também sou — falei, sentindo as lágrimas se formando

em meus olhos.
— Refazer a maquiagem nos fará atrasar mais do que já

estamos. — Desfez-se do abraço antes que caíssemos aos prantos.


— Droga, estou prestes a precisar retocar meus cílios.
Gargalhei.
— Babi — a voz do meu irmão ultrapassou a superfície de
madeira.
— Sim?

— Você está pronta? — bufou. — Estou cansado de


esperar.

— Quase — foi Val que respondeu e virou-se para mim. —


Deixe-me ajudá-la a colocar a mantilha. Abaixe-se.
Fiz o que ela pediu e, com cuidado, fixou a peça no coque e

a ajeitou para que ficasse bem centralizada para emoldurar meu

rosto. Quando fitei a minha imagem no espelho, a realidade se


abateu sobre mim, e as lágrimas contidas deslizaram pelo meu rosto.

— Droga — falei um tom mais alto, irritada ao ver a minha

face manchada.

— Que foi, Babi? — Escutei a voz do meu irmão novamente.


— Teremos um pequeno atraso, mas nada com que precise

se preocupar — minha amiga tagarelou.

— Mais? — Demonstrou impaciência.


— Que bom que você não é o noivo, Pablito — brinquei com

ele.

Ele bufou e nós duas rimos outra vez.


— E sorte sua que eu te amo muito para poder te esperar.
— Eu sei.

— Chame a maquiadora novamente para mim, Pablo — Val


pediu. — Ela deve estar lá embaixo.

— Tá bom.

Escutei os passos duros dele se afastando.


— Realmente temos tempo para isso? — questionei.

— Eles podem nos esperar. — Deu de ombros, e soltou uma

risadinha.

Logo nós duas estávamos gargalhando alto outra vez.


Capítulo vinte e nove

— Ela está atrasada — disse entredentes para Yazuv,

buscando controlar minha irritação.

Contive a vontade de passar a mãos pelos meus cabelos e

olhei para os afrescos[67] com imagens de anjos e santos pintados na

cúpula, que formavam o teto da Basílica de San Francisco, El


Grande; bem como os detalhes dourados. Não se podia negar que a

igreja reconstruída no século XVIII ostentava poder e riqueza do

chão ao topo. Não havia um centímetro dela que não fosse coberto
por algum detalhe chamativo.

— Malditos vinte minutos de atraso — murmurei, desviando

minha vista para uma escultura qualquer.

Ouvi o som de alguém pigarrear em reprovação.

Provavelmente o padre, já que comecei a blasfemar na casa de


Deus. Ignorei-o, bem como o som das vozes dos inúmeros

convidados, composto de clientes e seus familiares, empresários e

alguns funcionários do alto escalão, que conversavam entre si,

voltando a caminhar no altar, que era uma espécie de alpendre

elevado.
— E você parece um noivo desesperado andando de um
lado pro outro — o turco falou em um tom que revelava diversão e eu

estaquei.

— ¡Mierda! — praguejei baixinho e escutei outro pigarrear,

mas não pedi desculpas.

De fato, quem me olhasse andando igual um tigre

enclausurado teria a impressão de que eu estava ansioso pela minha


noiva, que eu era um tolo apaixonado que contava os segundos para

estar casado e começar uma vida a dois com a mulher que amava, o

que estava longe de ser verdade.

Aproximei-me de onde Yazuv estava parado. No rosto, ele

tinha uma expressão arrogante, ao mesmo tempo divertida, e fitei a

porta onde a minha noiva deveria entrar, buscando controlar a raiva e

o medo que agitavam o meu interior. Respirando fundo, deixei que a


frieza me consumisse até que eu voltasse ao meu normal, um noivo

desprovido de emoção, que era o que todos esperavam que eu

fosse.

O demônio que tomaria uma jovem inocente e bela como

sacrifício, eram o que deveriam achar.

— É normal as noivas se atrasarem, Javier. — Meu melhor


amigo deu alguns tapinhas no meu ombro tentando me passar certo
conforto, e eu o encarei. — Você deve se lembrar que a benim

değerli[68] também me fez esperar vários minutos. E foi um inferno.

— Senhores, por favor — uma voz suave nos pediu —, aqui

é a casa de Deus.
— Desculpe-me. — Arqueei a sobrancelha, não esperava

que ele fosse se desculpar.


Acabei fazendo o mesmo no automático.
— Mas você deve concordar que eu ser deixado plantado no

altar só apimentaria as coisas. — não mascarei o sarcasmo. — Acho


que boa parte das pessoas e da mídia esperam que ela fuja para se

salvar junto com um príncipe encantado misterioso.


— Desde quando você se importa com o que os outros

esperam?
Dei de ombros.
— Venderia, sabe?

— Javier… — Falou baixinho, em um tom de advertência.


— Um final feliz para a “princesinha” e a besta sendo

ridicularizada outra vez.


— Ela me parece diferente da…

— Você sabe que não coloco minha mão no fogo por


nenhuma mulher — interrompi-o, antes que ele continuasse a sua
ladainha.

Tinha escutado a tarde inteira que, embora Bárbara fosse


uma menina, ela parecia ter um caráter bem diferente da minha ex-

noiva, um modelo de virtude, que ela era doce e carinhosa, que eu


deveria tentar me entregar outra vez, palavras ridículas que só me

entediaram, mas que foram capazes de alimentar uma pontinha de


mim que desejava que ela fosse diferente. Mas a realidade era
amarga demais para que eu passasse por cima dela. A mulher que

eu esperava no altar era traiçoeira.


— Você tem medo, não é? — disse em um sussurro, tão

baixo, que quase não escutei.


Engoli em seco.
— Teme que ela não cumpra… — Não terminou, mas não

precisava.
— Não me surpreenderia. — Dei um sorriso cínico. — Afinal,

ela é uma garota, e o irmão dela não está muito contente com tudo.
— Não posso culpá-lo…

Eu também não poderia, mas a escolha não era dele.


— Não é a perspectiva de que ela me abandone no altar que
me incomoda — acabei confessando aquilo que eu mais temia e que
talvez fosse a razão de eu me sentir tão ansioso —, mas, sim, que
ela roube as minhas esperanças. Isso me foderia ainda mais.
— Senhor Castillo, se continuar com esse vocabulário, terei

que pedir que se retire — o padre disse, com um tom enfadado,


como se estivesse falando com duas crianças.

Olhei para o homem e assenti, embora minha vontade fosse


de rir, e alto.
Era no mínimo cômico ser expulso do seu próprio

casamento, mas não deveria ser uma surpresa um ser diabólico ser
excomungado de um local sagrado.

— Ela cumprirá sua palavra.


— Isso é o que veremos, amigo — falei com ceticismo e ele

bufou.
Um silêncio caiu entre nós e voltei a olhar a porta, em
expectativa. Os minutos se passavam lentamente e o nervosismo

aumentou em meu interior; a tensão parecendo deixar todos os meus


músculos rígidos.

Desviei a atenção da porta para uma das esculturas que


adornava a lateral da capela. Estava cada vez mais certo de que ela
não cumpriria com a sua parte do acordo e me sentia por um fio de

perder o restante do meu autocontrole. Essa seria a pior traição que


eu sofreria, e ela me pagaria caro por isso. Eu a faria sofrer por tirar
de mim aquilo que eu já amava.
Um burburinho chamou a minha atenção e virei-me

novamente para a porta em expectativa, algo que não queria sentir, e


o responsável pela organização da cerimônia balançou a cabeça em

confirmação, dando as últimas instruções antes da entrada da noiva.


O alívio que banhou as minhas veias fez com que sentisse minhas
pernas ligeiramente bambas, e eu me irritei comigo mesmo. Com

medo de me trair mais do que tinha feito até aquele momento, utilizei

todas as minhas forças restantes para me manter indiferente.


— Tudo certo, değerli? — Ouvi a pergunta sussurrada do

meu melhor amigo.

— Por que não estaria? — questionou Val no mesmo tom.

— Vocês demoraram.
— Atrasamos um pouco com a maquiagem e o trânsito está

caótico, mesmo que parte do entorno tenha sido fechada.

— Entendo.
— Nos seus lugares, por favor — o cerimonialista pediu a

Yazuv e a Valdete e eles assentiram. Não era comum que os

padrinhos ficassem no altar com os noivos, mas foi aberta uma


exceção, já que eles seriam as nossas testemunhas para garantir o

efeito civil da união.


O som de uma marcha nupcial ecoou por todo o ambiente e

eu me aprumei, capturando o momento exato em que a minha noiva

pisou no tapete vermelho com uma das mãos apoiada no braço do


irmão. Ela me fitava abertamente, já que usava uma mantilha

rendada nas bordas que deixava seu rosto completamente

descoberto, seguindo a tradição. Sua postura era altiva, seu queixo

levemente erguido demonstrando orgulho.


Enquanto caminhava lentamente, segurando o buquê de lírios

brancos e flores de laranjeira, desejei que aquela menina-mulher se

sentisse de fato orgulhosa e contente por se tornar a minha esposa,


porque ela queria, não por ter sido comprada. Por amor.

Afastei esses pensamentos da minha mente, trucidando-os,

permitindo que a indiferença tomasse o controle de mim. Os meus


sentimentos e os dela não importavam.

Deixei que o meu olhar passeasse pelos braços e colo

semicoberto pelo tecido transparente e também pela mesma renda

da mantilha, que dava a ela uma aparência ainda mais etérea e


inocente. Engoli em seco, sentindo uma onda de desejo crescer em

meu interior, quando fitei o decote em V profundo, que ia quase


próximo ao umbigo, e que parecia mostrar parte da curva suave dos

seios pequenos e bem-feitos. E não me ajudava em nada o fato do

tecido diáfano, frágil, abraçar todo o corpo dela, evidenciando a


cintura fina, o abdômen plano, e os quadris que ondulavam

suavemente à medida que caminhava. Ela estava sexy pra caralho

naquele maldito vestido que de ingênuo não tinha nada, a garota

poderia tentar até mesmo o diabo. E, de repente, senti que, junto ao


desejo, um sentimento estranho, ácido, irreconhecível, me invadia.

Ciúmes? Quis gargalhar alto, ela pouco me importava.

Uma parte primitiva e insana de mim se regozijou por saber


que, enquanto o contrato perdurasse, ela seria apenas minha e que

nenhum homem a tocaria, nem mesmo aqueles que tinham dinheiro

suficiente para comprá-la também.

“— Nem mesmo você.”, uma vozinha malévola sussurrou no


meu ouvido e eu me apeguei a ela.

Tinha que me recordar o quão perigoso seria deixar-me levar

por aquele caminho da luxúria e devassidão. Aquela garota iria rir de


mim, me humilhar. Me ferrar. Mesmo assim, parecia-me inevitável…

Bárbara subiu as escadas de mármore com a ajuda do

irmão, que pousou a mão dela sobre a minha, entregando-a para


mim. O toque de pele contra pele era a minha ruína; provocava-me,

mesmo que fosse inocente. Minha determinação parecia virar pedra.


— Cuide bem dela, ou eu te matarei — ameaçou-me em um

tom cortante depois de deixar um beijo na testa da garota, porém

não prestei atenção nele.


Sua primeira tentativa de intimidar-me tinha sido engraçada,

porém, naquele momento, não via graça nenhuma, não quando eu

fitava os lábios levemente rosados da irmã dele, curvados em um

sorriso sedutor, ao mesmo tempo inocente; os olhos brilhando,


embora insondáveis.

Contive a vontade de erguer a minha mão e acariciar o rosto

dela com o dorso da mão, como se eu fosse um noivo devoto,


mantendo-a bem rente ao meu corpo. Não poderia ceder à tentação

que ela representava, àquela ilusão passada pela sua inocência.

— Ela é tudo o que eu tenho — ele disse com desespero ao

tocar o meu braço e um silêncio caiu na capela.


Poderia ter me movido e me afastado do contato, ter sido

ríspido, já que detestava que desconhecidos encostassem em mim,

proferindo um palavrão, porém apenas fitei a cara cheia de


machucados dele, que estavam em processo de cicatrização,

hematomas verdes e roxos que não escondiam a sua ansiedade.


— Por favor — pediu.

— Farei o meu melhor para protegê-la — mal reconheci a

minha própria voz embargada quando respondi.

Ignorei o burburinho que havia se formado, bem como os


murmúrios de surpresa.

Não deveria estar fazendo aquela promessa, ainda mais

quando a minha palavra era tão importante para mim, mas acabei
concordando com a cabeça, e senti os dedos dela tateando-me.

Encarei-a, percebendo que os olhos dela estavam úmidos,

repletos de emoção, enquanto sorria para mim. Surpreendendo-me,

entrelaçou os nossos dedos, como se fôssemos um casal. Era um


gesto íntimo, no entanto não consegui me afastar do agarre dela,

não quando ela parecia irradiar luz, vitalidade e, principalmente,

aquilo que a pontinha de mim sabia que a garota havia me dado, mas
que eu negava: esperança. De um futuro. De felicidade.

Eu não deveria estar no meu juízo perfeito por me deixar

levar, mais uma vez, pelo sentimentalismo, pelas minhas ânsias mais

profundas.
Esse casamento não era real, porra, e nunca seria.

Mentiroso! O demônio bafejou em meu ouvido a palavra

malévola. Você também nutria esperanças de ser amado por uma


mulher, o que ambos sabemos que nunca irá acontecer.

Parecia escutar a risada da minha avó misturada com a de


Angelina, debochando de mim, enquanto falava que serei amado.

Forcei-me a não demonstrar nenhuma emoção, nem mesmo a dor

que o assunto me causava, mas nem mesmo diante daqueles

fantasmas, eu afastei a minha mão como deveria, mesmo que agora


o toque me queimasse como um ferro em brasa; que me

machucasse. Eu me apegava àquele toque como se fosse uma tábua

de salvação. De quê, não tinha ideia.


Quis rir da minha idiotice.

— Obrigada, senhor — disse Pablo em delay, e só então

percebi a surpresa que havia no rosto disforme.


Estendeu a mão para mim e obriguei-me a desfazer o

contato da garota, para apertar a dele. Não era idiota por acreditar

que aquilo era um gesto de amizade, muito menos um ato de

resignação; era uma trégua temporária.


Virou-se para a irmã e deu um beijo na testa dela, antes de

deixar o altar. Arrisquei um olhar para o meu melhor amigo e

encontrei-o franzindo o cenho, fazendo-me uma pergunta muda de


que merda era aquela. Valdete deu uma cotovelada nele e ele emitiu

um bufar baixinho.
Dei de ombros. Nem eu conseguia compreender o que tinha
se passado, mas provavelmente era algo que, mais tarde, quando

estivesse longe dessa garota, eu me arrependeria. Me odiaria por

ter feito papel de ridículo por uma mulher na frente de várias


pessoas importantes.

— Podemos começar, senhor Javier? — O padre me

interpelou e eu assenti com a cabeça.


Posicionamos um do lado do outro. Pegando-me novamente

desprevenido, Bárbara tocou a minha mão.

Hesitei por alguns segundos, mas para dar veracidade ao

casamento, entrelacei os nossos dedos. O choque do contato fez


com que todas as minhas terminações nervosas ficassem em alerta,

mesmo que o toque me parecesse proibido. Os pelinhos da minha

nuca estavam todos arrepiados e uma onda de excitação percorreu


todo o meu corpo; um sentimento sujo, bruto, que não conseguia

dominar.
— Estamos aqui hoje, com a benção de Deus, para celebrar
a união entre Javier Castillo e Bárbara Garcia…

O padre terminou a saudação inicial e, depois de fazer um


sinal da cruz, começou a dizer em voz alta uma oração que não
prestei a mínima atenção.
Tudo em mim, infelizmente, estava atento ao calor de ter
palma contra palma, ao cheiro embriagante de caramelo, ao sorriso
no seu rosto. Não escutei nenhuma palavra dos Salmos, muito menos

aquelas que diziam respeito ao amor eterno.


Eu estava completamente alheio, até que o celebrante
chamou a minha atenção, pedindo que ficássemos frente a frente

para a próxima etapa do ritual e que pousássemos uma das mãos


sobre a bíblia. Sem soltar nossas mãos, fizemos o que ele pediu e
eu voltei a encarar o semblante que ainda parecia irradiar aquela

alegria infantil, que me era tentadora.


Ela sorriu para mim, ofuscando-me. Como a primeira vez que
a vi, quis sugar aquela energia dela para mim, roubando a felicidade

alheia, deixando que ela me consumisse.


“Eu não preciso dela”, tentei colocar na minha cabeça, pois
não precisava.

— Você, Javier Castillo, aceita Bárbara Garcia como sua


legítima esposa, de livre e espontânea vontade, para amar e

respeitar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, todos os


dias da sua vida, até que a morte os separe? — perguntou para que
todos pudessem ouvir depois de falar mais algumas coisas.
Eu senti um calafrio varrer a minha espinha ao passo que
meu coração batia acelerado, tanto que o som do órgão parecia
ecoar nos meus ouvidos.

As palavras proferidas em forma de questão não deveriam


significar nada, mas escutá-las em voz alta fez com que eu hesitasse

momentaneamente, mas logo a determinação me invadiu. Aquela


mentira era a mais importante e valiosa que eu contaria, e ela me
pareceu pequena demais.

— Sim — afirmei em um tom desprovido de emoção.


— Você, Bárbara Garcia, aceita Javier Castillo como seu
legítimo esposo, de livre e espontânea vontade, para amar e

respeitar, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, todos os


dias da sua vida, até que a morte os separe?
Ela piscou algumas vezes, como se só agora se desse conta

do que estava prestes a jurar. Seus lábios tremeram.


— Sim — falou baixinho. — Eu aceito. — Assim que concluiu,
uma lágrima deslizou pela sua face, seguida de várias outras.

Dei um sorriso carregado de cinismo, com a pontada de


decepção que me atingiu. Olhando-a agora, ela bem que parecia um

cordeiro a ser sacrificado no altar.


Eu era muito idiota por ter baixado a minha guarda e ter me
deixado levar por aquilo que “supostamente” eu tinha visto. Senti meu

sangue esfriar e o meu lado sombrio assumir o controle. Não me


deixaria mais cegar pela beleza dela e seu ar juvenil, muito menos
me importaria com os sentimentos dela.

— Tome. — Desfazendo o contato, removi uma bolsinha de


veludo do bolso, antes que os pajens entrassem com as alianças, e a

coloquei na mão dela.


— O que é isso? — perguntou em um tom embargado, como
se estivesse emocionada. Ignorei-a.

— As treze moedas de prata que compõem as arras. —


Minha expressão se tornou ainda mais fria.
— Oh! — Levou uma mão aos lábios, interpretando o seu

papel de noiva perfeitamente. — Deveria ter trazido um objeto velho,


um novo, um emprestado e um azul para dar sorte.
Inclinei-me sobre ela.

— Isso não importa muito não é, garota? — sussurrei para


que somente ela ouvisse e a senti estremecer quando meu hálito
tocou a pele dela. — Não estamos mesmo buscando a sorte

matrimonial.
Meu ato pareceu despertar os convidados, que

provavelmente não esperavam um gesto falsamente íntimo do


demônio e deveriam se perguntar o que eu havia falado.
Voltei ao meu lugar e vi que ela engoliu em seco, para depois

assentir e, segundos depois, me fitou. Senti raiva dela por ver a


resignação em seus olhos, que pareceram apagar o brilho.
Assenti para o padre, que continuou com a cerimônia, até

que o som da marcha voltou a tocar e todos viraram para a entrada


a tempo de ver os meus dois cachorrinhos, em suas roupinhas de

gala, entrarem latindo, fazendo com que algumas pessoas rissem.


— Que lindos — a garota sussurrou, abaixando-se para
recebê-los.

Não disse nada, apenas observei-os trotando, até que,


deixando o altar, peguei Lorenzo no colo, que encontrava dificuldade
para subir as escadas, aproveitando para remover o saquinho que ia

preso na sua coleira. Entreguei as alianças ao padre depois de


colocar o cachorrinho no chão. Tinha que admitir que fiquei orgulhoso
deles por não se deixarem intimidar pelo barulho e pelos convidados.

Coloquei o anel no anelar direito dela, junto ao diamante,


sem hesitar, não sem notar as várias emoções que passavam pelos
seus olhos. A vi tremer ao pegar a aliança das mãos do padre e a
deslizar pelo meu dedo. Eu senti o peso do aro de ouro na minha
mão. Era estranho senti-lo ali, ainda mais quando tinha ciência de
que o nome dela estava gravado no metal, alguém a quem eu

deveria amar. Fiquei preso à sensação esquisita evocada por aquele


objeto.
Das palavras finais, que não envolviam perguntar se alguém

tinha algo contra aquele casamento, já que, através do meu


secretário, eu havia pagado uma boa soma de dinheiro que seria
destinado às causas beneficentes feitas pela comunidade para que o

padre se mantivesse em silêncio, até a assinatura do termo


matrimonial por nós dois e por Valdete e Yazuv, nossas testemunhas,
tudo se passou como um borrão. Até mesmo a pergunta sussurrada

em inglês pelo meu melhor amigo não tinha sido assimilada por mim,
tanto que não soube como eu e a garota novamente estávamos

frente a frente, com Lorenzo trançando nas nossas pernas e Isabel


tentando deitar na cauda do vestido dela, arrancando risadas.
— Pelos poderes a mim concedidos por Deus, eu os declaro

marido e mulher. — O padre não escondeu a alegria. — Para selar


essa união, o noivo pode beijar a noiva.
Assim que o padre falou isso, eu senti que meu corpo

enrijecia, enquanto minha respiração se acelerava. Não escutei mais


som algum, além daqueles que saiam de mim. Parecia que tudo tinha
ficado em suspense. Era como se não houvesse nenhum convidado,

nem mesmo os cachorros se faziam ouvir. Mesmo que não devesse,


fitei os lábios cheios da garota por segundos a fio. Lutei contra mim
mesmo. Uma parte de mim queria com todas as forças beijá-la, não

apenas cumprindo aquilo que se era esperado, mas porque eu


desejava, mas a parte racional, aquela que tinha se feito inúmeras
promessas para se proteger falava mais alto. Porém, não tive muito

tempo para raciocinar, pois, pegando-me desprevenido, a garota se


aproximou de mim e, ficando nas pontas dos pés, tocou o meu rosto
suavemente antes de encostar a boca na minha.

— Ou a noiva pode beijar o noivo — o padre disse em um


tom jocoso e os convidados riram de mim, ou dela, batendo palmas e
até mesmo soltando assobios, fazendo meus cachorros latirem.

Pela primeira vez, não me importei por expor-me, não


quando meu corpo inteiro se arrepiou com o contato e com a

pressão dos lábios dela sob os meus. Eu estava gostando, por mais
que eu quisesse negar.
Era um selinho inocente, mas aquele beijo fazia com que

inúmeras sensações que eu não reconhecia me percorressem,


fazendo com que eu quisesse mais e mais. Eles me embriagavam.
Havia uma ternura no modo como seus lábios começaram a
se movimentar lentamente, buscando a minha reação, que me

emocionou, mexeu com o meu brio, ao mesmo tempo que ateava


fogo em minhas veias. A carícia meiga no meu queixo e na

bochecha, como se fosse o toque de uma pluma, e o calor da


proximidade do corpo pequeno só intensificaram os sentimentos.
Não houve demônio, apenas o Javier de carne e osso que

ansiava o carinho daquela garota, mesmo que fosse através daquele


contato moroso em que ela me explorava.
Suspirei baixinho. Mas quando ia começar a retribuir o beijo,

cedendo a volúpia e a ânsia que ela havia ateado em mim,


dominando-a, fazendo com que ela se abrisse para mim, Bárbara
interrompeu o contato, sua mão se afastou do meu rosto e seus pés,

tocando completamente o mármore, deram um passo e ela se


afastou.
Instantaneamente senti a falta dela, daquele beijo, do toque,

em meus ossos e em meu coração. Eu deveria estar com raiva da


sua audácia, detestar o showzinho que ela havia dado, mas tudo o

que experenciava era o abandono. Era algo que não deveria sentir,
mas, mesmo assim, a perda era visceral, estilhaçava-me ao meio.
Não se tratava apenas de algo físico, parecia ir muito mais além.
Fitou-me com os olhos verdes arregalados, como se ela

mesma estivesse surpresa por ter me beijado.


— Desculpe-me, Javier — disse em uma voz baixa, que me
soou estranha aos ouvidos.

Eu estava pouco me fodendo do que acontecia ao meu


redor. Com um turbilhão de emoções me percorrendo, ainda sem

controle nenhum sobre mim mesmo, o Javier que sempre mantive


guardado dentro de mim, que não sei se um dia tinha deixado vir à
tona, fitou o decote do vestido dela. Eu precisava da confirmação de

que aquele beijo tinha afetado a ela da mesma maneira que tinha me
devastado. Os seios tentadores subindo e descendo com velocidade
deram-me a resposta que eu queria, a garota não me era indiferente.

— Tú me haces selvaje, mujer[69] — sussurrei com a voz


rouca , mais do que seria sensato.
Ela arregalou ainda mais os olhos, ficando ofegante, porém o

brilho de regozijo que a iluminou a traiu e roubou o resto da minha


sanidade e capacidade de pesar as consequências do meu ato.
Não me importei se estava na frente de um homem de Deus.

Enlacei sua cintura com firmeza, puxando seu corpo esbelto e


pequeno contra o meu, arrancando dela um som baixinho que foi o
combustível para a minha fome. Apertei-a ainda mais, querendo que
nos fundisse, que ela se infiltrasse em mim, que me alcançasse.
Gemi um palavrão, blasfemando outra vez. Mesmo mais

baixa, ela se moldava perfeitamente ao meu corpo, me completava,


e senti que o mero contato, mesmo com inúmeros tecidos se
interpondo entre nós, fazia com que meu pau ficasse rígido. A garota

precisava de muito pouco para me excitar.


Sem pensar muito, ainda a abraçando com força, inclinei-me
sobre ela e tomei seus lábios com os meus. Diferente dela, não havia

gentileza nos meus movimentos, apenas um desejo cru, uma fome


que não conhecia limites. No início ela pareceu hesitar, como se

estivesse tímida, ou não estivesse certa do que estava fazendo,


porém logo deixou-se levar por aquela insanidade. Seus dedos se
infiltraram nos meus cabelos, acariciando o meu couro cabeludo

suavemente.
Não vacilei em me entregar aquela tortura, aos toques mais
do que proibidos. Minhas mãos começaram a criar vida enquanto a

beijava, dedilhando as suas costas. Subia em uma carícia lenta, até


alcançar a nuca dela, segurando-a com mais firmeza. Não permitiria
que ela fugisse de mim, do meu beijo moroso, e não me importava

se eu sem querer soltasse a mantilha. Eu mordisquei, tracei a curva


dos seus lábios com a ponta da língua, para depois refazer o mesmo
caminho, moldando as nossas bocas, tragando como um homem

sedento os sons baixinhos e doces que escapavam dela só para


mim.
Um grunhido de dor e prazer escapou da minha garganta

quando, travessa, imitou os meus gestos, provocando-me. E eu não


aguentei mais., Puxando-a ainda mais, abri a boca dela com a ponta
da língua e a beijei avidamente, tocando cada recanto da cavidade

morna, degustando-a, enroscando minha língua na dela.


Eu mergulhava nela, exigindo que me retribuísse, e a garota
acompanhava meus movimentos com a mesma voracidade, embora

sentisse certa surpresa nela. Não importava, eu mesmo estava


atordoado com o modo como nossas bocas se encaixavam tão bem

uma na outra.
Bárbara alimentava o meu ego destroçado, fazendo que eu
acreditasse, mesmo que por uma fração de tempo, que eu tinha

algum fogo dentro de mim. Ela tinha um gosto tão bom e o modo
como me retribuía, os olhos verdes brilhando de desejo, me deixava
cada vez mais perdido, cada vez mais rendido, e o pensamento fez

com que uma pontinha de racionalidade voltasse e percebi onde


estávamos, as consequências do meu descontrole.
Amargando a minha consciência, dei um selinho no canto da

boca dela. Apartei o contato e desfiz o meu abraço, soltando-a. Um


som de muxoxo escapou da garota, e ela me encarou com os olhos
cheios de questionamento. Mas eram os malditos lábios entreabertos

que roubavam meu fôlego e me faziam querer retomar aquilo que


havia começado, mas não podia.
Tinha ido longe demais e me exposto mais do que deveria,

porém, naquele momento, o homem sonhador de outrora me impedia


de me arrepender de tê-la beijado, mesmo sabendo que ela me era
proibida. Primeiro, pela minha promessa de não me envolver com

nenhuma mulher, de não demonstrar meus sentimentos e quem eu


era; segundo, por ela ser minha “barriga de aluguel”, a quem jurei
não tocar.

— Javier? — Tirou-me do transe. Meu nome soou como uma


carícia e ela ergueu a mão para tocar o meu rosto, mas eu a impedi,

abaixando o braço dela. Meu corpo se esticou, se rebelando contra a


minha decisão.
Balancei a cabeça em negativa, sufocando a esperança que,

sem que eu quisesse, agitava em meu interior, algo que era muito
bom em fazer, e deixei um último beijo na têmpora dela.
— Precisamos ir — sussurrei —, todos devem estar doidos

pelo coquetel.
— Como se você realmente se importasse com isso — falou

só para mim em um tom brincalhão.


Não respondi. Ela estava certa.
Rejeitei o desejo estranho de que ela conhecesse ainda mais

o verdadeiro Javier, que eu nem sabia se conhecia por completo. Eu


o temia.
Sorriu para mim, os olhos verdes cintilando de felicidade. A

alegria infantil que havia nela, o sorriso inocente que pairava em seus
lábios, mesmo depois de ter se tornado a minha esposa, era como
receber um grande soco na boca do estômago. Desviei o olhar,

focalizando em uma escultura de um santo que havia em um nicho


atrás dela. Ela deveria estar sentindo repulsa de mim, não me
olhando e sorrindo daquela forma; me enchendo de esperanças que

eu não deveria nutrir. Quantas vezes eu teria que me lembrar de que


tudo era uma farsa?
Respirei fundo, buscando mais domínio sobre mim mesmo.

— Vamos — ordenei em um tom de voz baixo, voltando a


encarar a minha esposa assim que uma música começou a tocar,

sentindo-me um pouco mais no controle.


— Tudo bem.
Entrelaçou os nossos dedos novamente e tudo em mim
pareceu ruir, porém apenas continuei a caminhar, parando para

cumprimentar algumas das pessoas que queriam nos parabenizar ali


mesmo. Bárbara fazia seu papel de esposa radiante perfeitamente,

mesmo que eu tenha falado que ninguém esperava isso dela. Não
soube o que pensar.

Enquanto caminhávamos pelo tapete vermelho, não passou


despercebido para mim a cara de insatisfação e desgosto do irmão
dela pelo beijo. Tinha falado que não iria tocá-la, mas, na primeira
oportunidade que apareceu, pousei as minhas mãos e a boca nela,
provavelmente ele acreditava que estava mesmo doido para foder
com ela, e que eu começaria nessa mesma madrugada. Não poderia

culpá-lo de querer me esganar, ou atirar em mim. No lugar dele eu


também faria o mesmo, ou coisa pior; de alguma forma a pessoa
sairia prejudicada.
Palavras não deveriam ser dadas levianamente, mas aquela
garota e o seu beijo fizeram com que as frases que tinha dito caísse

no vazio. Eu tinha que pegar a minha honra, e…


Paramos na frente da basílica para vermos os fogos que
queimavam no céu, algo tradicional nos casamentos espanhóis, e a
garota encostou no meu braço e olhou para cima. Outra vez o calor
dela parecia se infiltrar em mim. Dei um sorriso cínico, em
contrariedade, enquanto a olhava de soslaio.

Eu não tinha nenhuma força para afastá-la, nem sabia se de


fato algo em mim desejava isso. E isso me era inadmissível.
Capítulo trinta

— Precisamos ir — disse ao aproximar-me da garota, que

ainda dançava na pista, contendo a vontade de não passar meus

dedos pelos seus cabelos livres da mantilha, mas ela não pareceu
me escutar.

Desde o momento que o DJ começou a tocar, meus olhos

não a deixaram. Eu estava consciente de cada movimento dela, dos


sorrisos, da gargalhada que ela emitia quando o irmão, Valdete ou

algum outro homem que dançava com ela fazia algum gracejo. E

também estava ciente dos olhares que alguns deles lançavam para

minha esposa e para o decote pronunciado. A raiva que senti deles,

mesmo que alguns enchessem os meus bolsos com milhares de


euros todos os meses, dominou cada centímetro do meu corpo, e

tive que usar toda a minha força de vontade para assistir

estoicamente, principalmente quando ofertavam uma quantia mais do

que era adequada para que a minha esposa dançasse.

Não consegui disfarçar o meu descontentamento para o meu

melhor amigo, que fez questão de zombar das minhas emoções


voláteis, além de esgotar o restante da minha paciência com as suas
palavras sobre me permitir.

Sorte, se eu poderia chamar assim, era que os mesmos

homens também tinham despido com os olhos a mulher dele, fazendo

com que ele saísse pisando duro, bufando, para marcar o seu

território, beijando-a com fúria, beijo que ela também retribuiu, tanto

que fazia pouco mais de uma hora que eles tinham deixado a festa.
Yazuv quase a tinha jogado sob os ombros, como se fosse um

homem das cavernas, fazendo com que a mulher risse de deleite.

Não era a primeira vez que o turco agia com possessividade, porém

senti inveja da relação deles, do modo como ele parecia ansiar por

ela, descontroladamente. Esses sentimentos intensificaram a

lembrança do beijo que dei na garota, que parecia impregnado na

minha mente e me deixava em estado de alerta. Porra, eu parecia


um obcecado!

Uma centelha de irritação me percorreu por ainda não ter

conseguido me controlar, acrescido pelo fato de ser ignorado pela

minha “esposinha” que tinha uma boca gostosa.

— Bárbara — falei mais alto.

Segurei com suavidade o braço dela quando a música parou


de tocar e meu corpo inteiro reagiu ao contato inocente, me deixando
em chamas.

Mierda, tinha que dar um basta naquilo. Eu não deveria


deixar que aquela garota destruísse anos e anos de disciplina, que

ela tivesse algum poder sobre mim.


Continuei a tocá-la, como se não produzisse nada em mim.
— Temos que ir embora — forcei a minha voz a sair

controlada.
Ela se virou para mim e me deu um sorriso. O rosto corado

pelo exercício ainda mantinha a alegria de mais cedo, tornando o


meu interior ainda mais caótico.

— Não podemos ficar mais um pouco, Javier? — Fingi que


ela dizendo o meu nome com aquela voz doce não mexia comigo.
Fiz que não com a cabeça.

— Por que não dança comigo? — Pegou a minha mão para


me incentivar a dançar com ela. — Está tão gostoso.

Limitei-me a arquear a sobrancelha enquanto me afastava do


seu contato.

— O demônio não dança, garota, você sabe disso —


relembrei-a friamente do fato de que, diferentemente dos outros
casais, não tivemos a nossa dança na festa.
— Mas o Javier, meu marido, pode. Ele pode muitas coisas

— insistiu com voz travessa, fitando-me com aqueles olhos serenos


que me levariam a perdição.

Preso ao olhar dela, como um parvo, demorei a assimilar as


suas palavras, mas quando o fiz, elas foram como um tapa na minha

cara. Tomei-a como um comentário perverso, zombeteiro. Eu sabia


que não podia, não conseguia nem ser eu mesmo.
— O motorista está nos esperando — fui seco.

— Ainda é cedo para voltarmos para casa — falou


suavemente e eu engoli um impropério com a teimosia dela.

Por que aquela garota testava todos os meus limites? E o


pior, por que o fato dela estar sempre me desafiando me impelia a
ela? Despertando a minha vontade de provocá-la de volta? Me

fazendo mau, não no sentido perverso e podre, mas num sentido


estranhamente bom?

Talvez porque a coragem dela de bater de frente comigo, de


retrucar, fosse uma novidade, ainda mais vindo de uma mulher. Não

sabia se esse fogo que havia na “minha esposa”, se não fosse


apenas mais dissimulação, me agradava ou não.
“—Pare de mentir para si mesmo”, outra vez os demônios

sussurraram. “— Você gosta”.


— Não vamos para casa, garota. — Não me permiti afundar
nessa linha de pensamento.
— Não?

— Vamos para Cantábria.


— Cantábria? — Franziu levemente o cenho. — Por que

estamos indo para lá?


Inclinei-me sobre ela, para sussurrar no seu ouvido quando
outra música com batida agitada voltou a tocar. Senti novamente o

cheiro dela impregnar as minhas narinas.


— Para a nossa lua de mel.

A senti engolir em seco e estremecer, se por medo ou por


outra razão, eu não sabia dizer.

— Não compreendo — falou baixinho. — E os cachorros?


Você não gosta de deixá-los sozinhos.
— Não, não gosto. — Fiz uma pausa. — Juan ficará com

eles enquanto estivermos fora, será apenas um final de semana.


Eles serão bem cuidados.

— Entendi.
— Eu nunca iria deixá-los se não soubesse que ficariam bem.
— Fui ríspido, a hesitação dela me deixou ainda mais irritado.
Odiava quando ela parecia um ratinho assustado, mas odiava
ainda mais quando a garota parecia pensar o pior de mim.
— E as minhas coisas? — sussurrou. — Não preparei uma

mala.
Arqueei a sobrancelha.

— Com medo do seu “marido”, garota? — Ignorei seu


questionamento, não resistindo em provocá-la em um tom baixo e
modulado, cansado da dúvida que havia nela.

Para dar ênfase a minha pergunta, encarei a curva suave do

seio exposto pelo decote e outra vez o corpo pequeno e suave


estremeceu. Queria puni-la por não deixar os meus pensamentos e

também por todas as sensações ridículas que ela despertava em

mim, porém o desejo percorreu-me, acumulando-se no meu pau, a

brincadeira virando-se contra mim.


Porra!

— Nunca sentirei medo de você — falou com convicção.

Joguei a cabeça para trás e não contive a gargalhada,


chamando a atenção dos convidados que ainda estavam presentes.

— É muito ingênua, princesinha — disse contra sua

bochecha, arrancando dela uma reação.


— Estou apenas surpresa por sairmos de lua de mel. — Não

reagiu a minha provocação como eu esperava, sua voz estava calma,


embora o peito arfante dissesse o contrário e o leve rubor também.

— Imaginei que você não iria querer, por isso, quando seu secretário

sugeriu, eu descartei essa ideia.


— Não, eu não desejava isso — fiz uma pausa —, mas ainda

precisamos continuar a chocar a imprensa e a todos com o “demônio

leva a sua virginal esposa para o seu covil e…”

— Pare com isso, Javier — interrompeu-me com secura ao


ficar nas pontas dos pés para sussurrar no meu ouvido.

Tudo em mim ficou em alerta com a proximidade dela,

principalmente do seio roçando suavemente na lateral do meu corpo,


e foi com muito custo que controlei minha ereção. Ficar duro apenas

com aquela carícia não intencional era algo absurdo, ainda mais num

lugar que todos poderiam ver, mas uma parte de mim desejou que
ela tomasse meu lóbulo entre os dentes, puxando-o suavemente, que

sua boca deslizasse pela minha mandíbula e bochecha até alcançar

os meus lábios, que a garota me beijasse outra vez, mas, dessa vez,

sem comedimento.
— Você pode sentir prazer em se autodestruir com suas

palavras negativas sobre si mesmo — continuou. — Pode gostar da


imagem que você passa para todos, mas eu não gosto e não acho

graça nenhuma nisso.

Deveria retrucar suas palavras, feri-la com frases, mas


estava surpreso demais com a defesa dela para reagir. Eu apenas

encarava aquele olhar selvagem, determinado, e também com uma

pitada de fúria. Que direito ela tinha de ficar com raiva,

comportando-se como se fosse a minha esposa? Nenhum, mas,


ainda assim, as palavras dela adentraram em mim, parecendo

romper uma comporta de emoções que não tinha certeza de como

manejá-las
— Só irei me despedir do meu irmão. — Deu um beijo no

meu rosto enquanto a mão acariciava a minha bochecha antes de se

afastar, me deixando sozinho na pista.

Fiquei estagnado, olhando-a, preso no mesmo lugar, até que,


sem querer, um dos meus convidados cometeu a façanha de trombar

em mim, obrigando-me a me mover para despedir-me de alguns dos

meus presidentes, sócios e também de clientes importantes, sendo


acompanhado por Bárbara que, em algum momento, tinha se juntado

a mim e pousado a mão no meu braço. Odiei-a por parecer tão

radiante quando ela havia me levado ao mais puro caos. Suas


palavras sobre o que o Javier podia fazer em sua defesa davam

voltas em minha mente, torturando-me.


A tarefa de nos despedirmos durou alguns minutos até que

pudéssemos nos encaminhar para o estacionamento, onde, outra

vez, fomos saudados pelos convidados.


O silêncio caiu pesado entre nós quando entramos no carro e

eu olhei para fora, sem de fato encará-la, preso nos meus

pensamentos.

— Eu não deveria ter falado aquilo — ela falou em um tom


estranho e eu virei-me para ela, mesmo que a escuridão da

madrugada não deixasse vê-la perfeitamente, embora um pouco da

luz se infiltrava pela janela vencendo o insulfilm.


— Não.

Meu estômago revirou. Senti que uma parte de mim se

rebelava com a minha resposta, gritando que sim, que ela deveria ter

falado, que ela deveria ter me defendido de mim mesmo. Não olhei
mais fundo para os meus motivos, consciente de que a resposta não

mudava os fatos.

— Desculpe-me, Javier. — Fez uma pausa. — Eu me


intrometo muito na sua vida, mesmo que não seja paga para isso…
Não respondi, estranhamente o fato dela pontuar que tinha

sido comprada me incomodou.

— Eu tenho essa mania chata, você sabe.

— Você disse algo a respeito — falei com desdém.


— Sim. — Pude imaginar que sorria.

Voltei a encarar a paisagem lá fora.

— A Cantábria fica longe daqui? — Deveria imaginar que ela


não ficaria em silêncio.

— Uns quatrocentos quilômetros. — Fiz uma pausa —. Fica

próximo do País Basco e do golfo da Biscaia.

— Meu Deus — disse baixinho, como se estivesse com


vergonha. — Deveria ter prestado mais atenção nas aulas de

geografia. Me sinto burra.

— Só por isso?
Franzi o cenho. Eu gostava do silêncio, poderia estar

trabalhando durante o percurso, mas ali estava eu, rendendo assunto

com a garota. Se ela se sentisse burra ou não, não era da minha

conta.
— Por também não saber inglês — confessou em voz baixa,

depois de minutos em silêncio. — Por mais que tivesse dado o meu


melhor na escola, está mais do que claro que não foi o suficiente.

Queria ser mais do que uma casca bonita. Eu…


— O quê?

— Não conseguiria manter uma conversa civilizada com

essas pessoas, — Senti que ela tinha o rosto virado para mim. —

Claramente não pertenço ao seu círculo social.


Deveria fazer um comentário sarcástico, apontando que

aquele casamento era apenas de fachada e que, de fato, ela nunca

conseguiria se encaixar ali, pois nosso relacionamento falso tinha


prazo de validade, mas não consegui, não quando eu sabia que

também não pertencia àquele mundo, por mais dinheiro que eu

tivesse. Tudo era interesse. Eu os tolerava, como eles me aceitavam


em troca de benefícios.

— Você é um homem culto, inteligente… E eu uma garota

que parou no bachillerato — continuou, não escondendo a dor.

Imaginei se era possível fingir com tanta veemência. — Eu só farei


você passar vergonha.

Balancei a cabeça em negativa, sentindo uma pontada

estranha no peito. Uma vontade de falar que não, que eu não teria
vergonha dela, que isso não importava para mim, brotou em minha

garganta, mas eu me contive a tempo. Eu não era sensível, eu não


sabia oferecer conforto. Eu destruía. Senti o peso da minha aliança
no dedo.

Eu era uma pessoa ruim e, depois de que a confusão que me

envolvia e o desejo emocional suscitado pelo casamento passassem,


eu voltaria a ser aquele a que todos odiavam e temiam.

— Poderá voltar a estudar, garota. — Meu tom foi suave. —

Terá dinheiro suficiente para pagar qualquer faculdade que quiser


depois do… divórcio. — A palavra saiu amarga pelos meus lábios.

— Eu sei — soou triste.

Um silêncio desconfortável caiu sobre nós e ele me deixou

incomodado.
— E nada te impede de fazer algum curso enquanto nós

estivermos casados e você grávida — sugeri. Embora o foco fosse o

meu bebê, não poderia proibi-la de fazer algo por si mesma. —


Inglês, por exemplo.

— Sério?
— Ou geografia — disse em um tom cínico, cheio de
diversão. — Posso providenciar um professor particular para você, já

que está tendo certo problema com a matéria.


A risada dela, repleta de felicidade, preencheu todo o carro,
e um peso que nem sabia que estava sentindo, deixou o meu corpo.
Para minha surpresa, ajustando o cinto, aproximou-se de mim,
tombando a cabeça no meu corpo, aninhando-se. Instantaneamente
um calor diferente pareceu espalhar pelo meu corpo, atingindo a

região do meu peito. Suprimi o desejo de pousar meus lábios no topo


da sua cabeça e apenas inalei o cheiro que emanava dela.
Era tão bom, tão gostoso quanto o sabor da sua boca. Senti

que ficava rígido apenas com a lembrança.


— Obrigada, Javier — falou baixinho. — Isso é muito
importante para mim.

— Não preciso da sua gratidão, garota. — Minha voz saiu


áspera.
— Mas tem ela mesmo assim. —Emitiu um bocejo baixinho.

Soltei um impropério que fez ela rir.


— Por que um dos municípios da Cantábria, Javier? —
perguntou tempos depois em voz levemente rouca, colando-se ainda

mais em mim, encostando a cabeça no meu peitoral.


— Esperava uma “lua de mel” em um destino mais caro,

como Maldivas ou Tailândia? — Fiquei tenso, recordando de um


almoço onde as esposas e amantes de alguns clientes contavam
vantagem de terem feito essas viagens, menosprezando outras

regiões. Status era tudo.


— Não, para ser sincera, não pensei muito sobre isso. —
Bocejou outra vez. —É apenas curiosidade.
Ergui uma sobrancelha, cético. Era difícil acreditar que ela

não preferiria um resort de luxo em frente a uma praia tropical.


— Tenho uma casa em frente às montanhas em

Valderredible, um município pequeno que faz parte da cidade


autônoma.
— Diferente — comentou. — Não esperava que você tivesse

uma propriedade em um lugar tão remoto.


Não consegui ter nenhum pensamento coerente quando ela
se ajustou aos meus movimentos, para continuar naquele meio

abraço.
Eu deveria afastá-la de mim, mas a deixei ficar. Era estranho
ter alguém aninhado a mim, mas, ao mesmo tempo, era muito

agradável. Não me aprofundaria nessas sensações.


— Por quê? — Minha voz saiu rouca.
— Cidades que abrigam grandes centros econômicos

parecem fazer mais sentido — falou em meio a um suspiro cansado.

— Touché, fille[70].

— Posso apostar que você tem uma propriedade em Nova


York.
— ¡Sí! Também em Xangai, Tóquio, Londres, Paris…
— Adoraria ir a Paris, a cidade do amor. — Emitiu outro

bocejo. A palavra amor saindo dos lábios dela foi como receber um
coice. — Mas estou feliz de ir para... como é mesmo o nome?
— Valderredible.

— Hm…
Não disse mais nada e, depois de longos minutos, ouvi o

suspiro suave dela, seguido de um pequeno roncar. Ajeitei-a melhor


sobre o meu peitoral, desfrutando daquela sensação estranha, e
fiquei olhando para a estrada enquanto a garota, a minha esposa de

mentira, dormia em meus braços placidamente, como se ali fosse,


de fato, o seu lugar.
Capítulo trinta e um

— Já estamos chegando, Javier? — questionou em um tom

levemente rouco de sono.

O modo como disse o meu nome naquela voz sonolenta me


pareceu o som mais erótico que eu tinha ouvido e instintivamente

trouxe-a mais de encontro à lateral do meu corpo. Abri os olhos,

fitando a escuridão lá fora.


Como um parvo, em algum momento da viagem eu havia

cerrado as pálpebras a fim de apreciar aquele momento de

intimidade ingênuo, que não deveria estar tendo com a “minha

esposa”, gravando na minha memória o calor do contato, o cheiro e

os sons baixinhos que ela tinha emitido durante o sono, assim como
tinha feito com o beijo, cedendo a imaginação de como seria tê-la

assim eternamente em meus braços, em minha vida, seus lábios

colados nos meus, pele contra pele, em uma necessidade que

ultrapassava o desejo físico e quebrava as barreiras perigosas do

emocional. Eu tinha fome não do corpo perfeito, mas da conexão, de

sentir.
Sufoquei uma risada amarga. Além de ser gelado e de não
ter sentimentos, eu estava descobrindo que também era um maldito

masoquista. Provavelmente usaria as recordações dessa garota

para me martirizar ao longo dos dias e das noites, rindo de mim

mesmo por saber que aquele breve companheirismo, aquela

fantasia, teria um final. Sempre tinha. E eu aceitaria aquele

desenlace. Estava destinado à solidão; eu era um grande tolo por


permitir que o homem carente de afeto assumisse o controle.

Sorri para as sombras. Sabia que pagaria o preço por meu

erro e eu o merecia.

Contrariando esses pensamentos, meu abraço se tornou

ainda mais firme, como se mantê-la aferrada a mim impediria que o

fim chegasse.

Estúpido.
— Javier? — insistiu, tirando-me do transe.

— Creio que sí, garota. — Soltei um som cansado,

passando a mão livre nos meus cabelos, puxando-o com força.

— Que pena — murmurou, emitindo um suspiro.

Franzi o cenho com o seu comentário, mexendo-me contra o

banco.
— Por que diz isso?
— É gostoso ficar assim — confessou, traçando círculos

lentos com as pontas dos dedos no meu peitoral, fazendo com que
as chamas me consumissem. O tecido grosso da camisa e do terno

não era barreira suficiente para contê-las. — Me sinto bem em seus


braços.
Fechei os olhos com a sensação avassaladora que me

percorreu como um raio. Gemi, em uma mistura de dor e deleite. Era


um comentário ingênuo, mas, porra, era cortante.

— ¡Dios, chica! — falei em meio a respiração acelerada. —


Não sabe o que diz.

Retirei o braço que estava ao redor dela, em uma tentativa


falha de me afastar dela e de mim mesmo, do desejo, de tudo,
porém ela se aconchegou ainda mais em mim. Não tinha certeza se

queria amaldiçoá-la ou agradecê-la por insistir, já que uma metade


minha não queria de fato perder aquele contato precioso.

Eu travava uma batalha interna entre o desejo e o medo,


entre a ânsia e a razão.

— Isso é tão detestável para você, Javier? — perguntou em


um tom baixinho.
“— Está longe de ser detestável, garota, muito pelo

contrário, cada célula do meu corpo, cada pedaço do restante da


minha alma, se é que sobrou algum, gosta de ter você aninhada em

mim”, uma vozinha na minha cabeça sussurrou a resposta à pergunta


dela, porém ela nunca escaparia pelos meus lábios.

— Como algo que nos faz bem pode fazer tanto mal ao
outro?

Não respondi. Eu conhecia apenas o mal, não o bem.


Para minha decepção, ela deslizou até ficar próxima a outra
porta, voltando a ajeitar o cinto de segurança.

O frio deixado pelo afastamento era cortante. Virei-me para


a janela.

— Mesmo assim, eu agradeço — falou em uma voz suave e


eu deveria ter imaginado que ela ainda usaria do otimismo. — E me
desculpe por sempre ultrapassar os seus limites, Javier.

Fiz uma careta de desgosto.


Ela conseguia ser irritante por estar sempre se desculpando.

Alguém deveria ensiná-la o quão desagradável era se desculpar toda


hora.

— Creio que não será a última vez que você será


inconveniente, “esposa”. — Estalei a língua em desdém.
— Provavelmente não.
— Que Nossa Senhora de Almudena me ajude. — Pedi aos
céus e ela riu.
Ficamos em silêncio, cada um preso nos próprios

pensamentos, e não demorou muito para que o carro parasse. Em


um gesto cavalheiresco, desafivelei o meu cinto e removi o blazer do

meu terno.
— Vista isso — ordenei ao estender a peça para a garota.
— Não é necessário, Javier.

— Não preciso que você fique doente, garota — fui firme. —


A temperatura é mais baixa do que em Madrid por conta da altitude.

Esse vestido decotado e fino não te protegerá do vento.


— Okay. — Pegou o casaco.

Uma rajada fria me recepcionou assim que deixei o veículo e,


mesmo que queimasse a pele, eu o tomei como um gesto de boas-
vindas. Ele me fazia lembrar o que eu era.

Inspirei fundo, soltando o ar devagar, fazendo com que uma


nuvem escapasse pelos meus lábios.

— Leve nossas coisas para dentro, Joseph — pedi —,


depois você pode ir para o hotel.
— Sim, senhor Javier. — Assentiu.
— Estou congelando — a garota falou ao se aproximar de
mim, batendo os dentes, segurando o blazer com mais força.
— Vamos entrar, garota.

Pousei a mão nas costas dela, incentivando-a a andar, e,


mais do que depressa, ela acelerou o passo. Ignorei o quanto o

gesto era possessivo e que também era a segunda vez em menos


de vinte e quatro horas que eu o fazia.
— Uau! — exclamou assim que entrou na casa toda

construída de pedra. Virou-se para mim, com aqueles olhos verdes

expressivos novamente arregalados. — Não esperava que fosse tão


rústico.

Dei de ombros.

— É uma das residências mais antigas da região. — Fiz uma

pausa, caminhando em direção a uma das janelas que eu sabia que


tinha vista para as montanhas. — Quando a comprei, mandei que a

restaurassem, deixando-a o mais próximo do original.

Coloquei as mãos no bolso da calça social.


— Com as comodidades, é claro — completei.

— Posso sentir pelo sistema de calefação.

— Senhor Javier, quer que eu coloque as malas no quarto


principal? — Meu motorista perguntou ao entrar, quebrando nossa
interação.

— Não é necessário. Eu as levarei daqui a pouco. — Ele não


precisava saber que ocuparíamos quartos diferentes, o que era

improvável para recém-casados. Apesar que não fomos muito

cuidadosos durante a nossa conversa no carro.


— Precisa de mais alguma coisa, senhor?

— Isso é tudo, Joseph.

— Senhora?

— Acho que não.


— Então tenham uma boa noite.

— Boa noite, Joseph.

Ouvi o som da porta se abrindo e fechando, deixando-nos a


sós.

— Costuma vir muito aqui? — perguntou ao se aproximar de

mim.
— Não. — Inalei fundo e o cheiro dela me envolveu outra

vez. — Na verdade, faz alguns anos que não venho até aqui. Desde

que…

Não completei. Não precisava dizer que a última vez que


estive nessa casa foi quando eu descobri que a mulher que eu tanto

havia procurado estava morta, levando consigo as respostas que eu


desejava. Tinha buscado e encontrado naquelas paredes de pedra a

solidão e um refúgio. Não sei por que tinha evitado até então aquele

lugar. Podia não ser o centro financeiro que me atraía, mas havia
uma calma relaxante nele. E, estranhamente, a presença da garota

ao meu lado me transmitia ainda mais essa sensação.

Outra tolice melancólica.

— Entendo. — Não insistiu.


— Levarei as suas coisas para o seu quarto — falei baixinho,

virando-me em direção a bagagem que tinha pedido para que

preparassem para ela.


Ouvi o suspiro que ela emitiu, uma mistura de cansaço e

também resignação, mas não dei importância. Peguei a mala dela e

a levei para cima. Abrindo a porta do cômodo onde Bárbara dormiria,

a coloquei no chão. Foi impossível não lançar um olhar para as


paredes e móveis em tons claros, predominantemente branco, bem

diferente do meu, que era preto e cinza.

Dei um sorriso com a recordação da garota e sua crítica


velada ao monocromático

— Obrigada, Javier. — A voz suave veio de trás de mim.—

Não era necessário fazer isso. Parece leve — apontou para a bolsa

de viagem.
Virei-me na direção dela e encontrei-a na porta, olhando para

tudo. Em algum momento ela havia removido o blazer.


— Lembrarei disso da próxima vez em que for tentar ser

gentil, garota — fui cínico. — Ou melhor, não haverá outra

oportunidade. Se eu for honesto, não sei o que deu em mim para ter
tal tipo de comportamento.

— Eu só não quero que pense que sou uma flor frágil que

não pode fazer nada.

— É claro que não — falei desdenhosamente. Com passos


largos, me aproximei de onde ela estava, e meu olhar,

inevitavelmente, recaiu no decote. — Tenha uma boa noite. Foi um

dia bastante cansativo, para não dizer… — fiz um gesto com a mão,
especulativo. Poderia dizer muitas coisas sobre aquele dia.

Passei por ela, mas ela segurou o meu braço.

Respirei fundo.

— O que foi, garota?


— Estamos sozinhos nessa casa? — perguntou em um tom

suave e voltei-me novamente para ela.

— Sim, por quê? Tem comida congelada na geladeira, não


será necessário que cozinhe.

Piscou.
— Gosto de cozinhar.

— É só isso que queria dizer?

Piscou.

— Preciso que você me ajude com o vestido, Javier — falou


baixinho, cruzando as mãos em frente ao corpo, e o rosto dela

ganhou uma mancha rosada.

Meu pulso se acelerou e meu corpo todo começou a retesar.


Minha mente cansada deveria estar pregando peças, ou melhor, o

desejo odioso que sentia por ela, irracional, que deveria estar me

sacaneando.

Ela não estava me pedindo para despi-la, não é?


¡Mierda!

— Por quê, garota? — Foi com muito esforço que consegui

manter a minha voz neutra.


— Os botões, não vou conseguir removê-los das casas

sozinha.

Falei um monte de palavrões em italiano, usando ao meu

favor o fato dela só saber espanhol. Tinha me esquecido desses


malditos botões.

— Acho que se você os puxar, eles cederão facilmente. —

Tentei usar a lógica, combatendo o desejo, mas, no fundo, sabia que


estava dando uma desculpa para não fazer aquele trabalho

miserável.
Meu melhor amigo, sem nenhuma dúvida, riria alto da minha

cara pelo receio que eu tinha de despir aquela garota. Era ridículo

até para mim mesmo.

Ela era minha esposa.


Praguejei mentalmente, ignorando se estava sendo covarde

ou não.

— Não quero estragá-lo, Javier.


Respirei fundo e passei a mão nos meus cabelos.

Deveria ter imaginado que ela seria o tipo de mulher que

gostaria de guardar seu vestido, joias e a mantilha como lembrança.


— É só um vestido, garota, um que não significa nada. — Fiz

uma pausa e adotei um tom cruel, com quem não sabia dizer ao

certo, pois tive a leve impressão de que minha própria fala me

atingiu. — Você poderá comprar outro vestido e guardá-lo com


ternura quando se casar outra vez.

— Realmente… — sussurrou. Aquela única palavra dita em

confirmação foi capaz de me deixar irritado, e novamente a sensação


indesejada de posse me dominou. Não queria pensar no próximo
homem que iria desposá-la, beijá-la, tocá-la. — Mesmo assim não
quero arruiná-lo. Ele é tão bonito.

“E te deixa fodidamente sexy”, pensei ao percorrer com os

olhos todo o seu corpo.


— E caro também — completou.

— Daria um bom dinheiro se você o vendesse — não contive

a ironia.
— Mas não preciso mais disso, não é mesmo? — provocou-

me em um tom doce e vi as duas esmeraldas brilharem.

Bufei, pois a lembrança do nosso acordo foi como receber

um golpe bem dado no rosto.


— Vire-se, garota — ordenei em um tom frio.

— Certo. — Obedeceu-me.

Encarei os cabelos escuros que caiam em suas costas como


se fossem uma cascata, apontando para a sua bunda. Foi impossível

não olhar o modo como o vestido justo ressaltava as nádegas


redondas. Refreei a vontade abrupta de enterrar meus dedos na
carne macia, mas não consegui conter o impropério que saiu pelos

meus lábios ao perceber que os botões minúsculos alcançavam a


lombar.
Engoli em seco.
A expectativa fazia com que o homem que sempre tinha o
controle de si mesmo não mais existisse. Eu era movido pela luxúria,
por pensamentos eróticos com ela. Olhei para a cama king size com

o canto do olho e foi impossível não imaginar deitá-la ali e cobrir o


corpo nu dela com o meu, buscando sua entrega.
Porra!

Ela despertava um fogo que não sabia que era capaz de


sentir e, até mesmo, duvidava que fosse possível. Eu a queria
selvagemente, de várias formas, que ela fizesse…

Inspirei fundo, soltando o ar devagar, interrompendo aquele


pensamento. Busquei forças, não sei de onde, e enrolei seus fios
grossos em uma mão antes que ela mesmo o fizesse, dando-me

aquele pequeno prazer proibido. Como imaginava, eles eram


bastante macios ao toque.
Joguei a massa espessa e cheirosa para frente, inalando o

perfume dela, o que expôs a linha elegante da nuca. Eu quis plantar


um beijo ali, fazendo com que ela estremecesse ao meu toque, e

estive muito perto de fazê-lo, porém me contive.


Meu coração batia como um louco no peito. Meu pênis
pressionava o cós da minha calça, estava muito excitado. Ergui

minha mão e vi que meus dedos estavam completamente trêmulos,


como se eu fosse um menino que iria tocar pela primeira vez sua
namorada. Talvez houvesse algo em comum entre nós dois, pois, ali,
prestes a tocá-la, o meu passado e nem o dela pareciam importar;

só as experiências que poderíamos ter dali para frente.


— Javier? — Chamou-me baixinho.

Não respondi. Senti como se tivesse sido pego em flagrante


e, para me vingar, me deixei ser controlado pelo meu lado
demoníaco. Aproximei meu rosto da pele sensível e soprei.

Instantaneamente, o calor do meu hálito fez com os pelinhos dela


ficassem arrepiados.
— Javier — gemeu o meu nome quando voltei a atormentá-

la.
Não pude conter um sorriso de satisfação com a sua reação,
mesmo que o som aumentasse ainda mais a minha ânsia de me

enterrar dentro dela, o som era sedutor demais para não ficar aceso.
Era um jogo perigoso que estava fazendo, mas eu era impelido pelo
desejo de provocar nela as mesmas sensações que ela tinha

despertado em mim com o seu pedido insensato. Todo o corpo dela,


a tensão em seus ombros, me indicavam que estava tendo sucesso

em meu intento. E o homem com ego despedaçado se regozijou por


isso.
— O que está fazendo? — A voz dela soou trêmula,
abafada.

— Nada. — Enchi meu pulmão de ar e o soltei devagar na


orelha dela.
— ¡Dios! — murmurou e eu ri da sua blasfêmia, gargalhada

que morreu no minuto em que seus quadris instintivamente


procuraram os meus.

Traguei em seco. A brincadeira não tinha mais graça.


Forçando as minhas mãos a ficarem mais firmes, como se
nada tivesse acontecido, comecei a trabalhar no primeiro botão,

removendo-o da casa. Meus dedos roçaram sem querer na parte em


que a pele dela não era coberta pela gaze rendada, fazendo com
que eu engolisse meu gemido. Tocá-la era como receber um choque

elétrico de prazer, me tornando vivo.


Suspirei.
Em silêncio, somente escutando as nossas respirações

aceleradas, me controlei ao máximo. Tentei pensar em outra coisa


que não fosse a mulher que eu desnudava, falhando miseravelmente.
Eu removia os botões um a um, maldizendo-os em pensamento, pois

pareciam nunca acabar. Seria muito mais fácil puxar o tecido e


arrancá-los com força.
Roçar aquela pele suave com o dorso da mão várias vezes,

escutar os sons baixinhos que ela emitia, sentir os arrepios que a


percorriam, ser consciente do corpo dela se arqueando
inconscientemente contra mim, e não dar vazão ao desejo que me

martirizava, fazia com que eu quisesse bater palmas para mim


mesmo por ainda me manter são.
Estava fodido. ¡Carajo!

Eu poderia jurar que tinha memorizado a posição de cada


uma das pintinhas que havia nas costas dela, mas não havia

nenhuma cicatriz, bem diferente da minha que era enrugada, coberta


de marcas antigas, feridas mal curadas. Haveria algo que não era
perfeito no corpo daquela mulher?

— Pronto — disse com a voz rouca ao remover o último


botão, baixando a mão.
Dei um passo para trás, olhando a minha perdi… maldição.

Milímetros tinham separado a bunda dela da minha pelve excitada e


meu lado malvado esteve muito próximo de fechar aquela distância,
esquecendo de tudo, fazendo-a roçar as nádegas em mim, me

vingando da tortura que tinha me infligido.


Suspirei fundo, erguendo o foco da minha visão, tentando
normalizar os meus batimentos cardíacos, que denunciavam meu
estado de espírito. Estava aliviado por ter terminado a tarefa, mas,
ao mesmo tempo, contrariado por ter desfeito o contato. Queria
continuar a despi-la e ver o que ela usava por baixo. Amaldiçoei em

pensamentos o meu melhor amigo pela sugestão idiota da menina ir


com a esposa dele comprar algo para usar na noite de núpcias.
Nunca me importei muito com isso, porém eu daria uma boa

soma de dinheiro para descobrir como era a peça e como ela ficava
no corpo dela.
Seria pequena?

Comportada?
De renda?
Havia uma liga combinando?

O homem primitivo que existia dentro de mim, que parecia


estar há anos adormecido, queria tudo que aquela garota poderia

dar, com roupa, com pijama curto, com lingerie, ou nua.


Droga! Vez ou outra, na festa, eu não parava de pensar na
calcinha que ela poderia estar usando, e estar tão próximo de

descobrir, a um puxão, e não poder, era um martírio.


¡Carajo!
— Obrigada, Javier — respondeu em um tom igualmente

enrouquecido e se virou para mim, arrancando-me do transe.


Ela segurava a parte da frente do vestido sem necessidade,
como se fosse uma virgem inocente, e eu quis rir de escárnio e

brindá-la com um comentário sarcástico, que não tinha por que


bancar a donzela virtuosa quando tinha mostrado mais do que devia
em uma cerimônia religiosa, visão que, possessivamente, eu queria

só para mim.
Ficamos nos encarando, sem dizer nada um para o outro,
ouvindo o som das nossas respirações aceleradas, até que vi o

momento em que baixou os olhos e sua expressão pareceu


assustada. Segui a direção do seu olhar e encarei o volume entre as
minhas pernas.

Estalei a língua em reprovação e toquei o seu rosto,


erguendo-o, para que me fitasse.
Era inegável que ela ficava linda corada.

— Tenho certeza que você já viu isso antes, garota, ou


melhor, sentiu — provoquei-a em uma voz pastosa.

Passei o meu polegar pelos lábios cheios, experimentando a


textura deles. Foi outro erro da minha parte, pois desejei beijá-la
novamente. Ela era uma tentação, ainda mais quando seus lábios se

entreabriram com a minha carícia, como se quisesse ser beijada


também. Se eu tivesse alguma dúvida, os olhos verdes me davam a
certeza.

A garota me queria por razões que não conseguia


compreender. Quis rir com amargura ao pensar que, quando ela

visse os meus ferimentos, toda atração morreria em um piscar de


olhos.
A ideia deveria ser suficiente para me afastar, porém apenas

continuei a tocá-la, apreciando-a.


¡Mierda!
— Ou você mentiu? — Meu tom foi áspero, não escondendo

meu próprio desejo.


Balançou a cabeça em negativa.
— Responda — disse ao me inclinar sobre ela, nossos

corpos ficando tão próximos, que eu poderia roçar minha ereção


nela.
Eu sabia a resposta, o médico havia garantido que ela não

era mais virgem.


— Não — falou baixinho.

Aprumei-me e abaixei a mão.


— Então não precisa bancar a puritana, garota.
— Mas…
— Eu sei me controlar — menti, pois não tinha mais essa

certeza, não quando queria senti-la de novo. — Estou longe de ser


um desses pirralhos com quem você deve ter saído.
Abriu a boca para falar algo, mas acabou fechando-a sem

dizer nada.
— Se isso é tudo, boa noite, “esposa”.

Antes que pudesse fazer algo que me arrependeria, lancei a


ela um último olhar, percorrendo cada curva do seu corpo, e virei-me
para a porta, deixando-a sozinha, estacada no centro do quarto

Como sabia que eu não conseguiria dormir, não quando os


acontecimentos do dia estavam girando na minha cabeça e o desejo
pulsando com força, algo que não aliviaria com as mãos, caminhei

em direção ao escritório a fim de me pôr a par de tudo o que eu


perdi. Trancando a porta para não ser interrompido, olhei para a
garrafa de whisky, mas não me servi.

Para a realização da minha parte na inseminação artificial, eu


precisava estar de dois a cinco dias sem consumir álcool, além da
minha companheira chamada abstinência sexual. E desde que eu

soube, decidi nunca mais colocar uma gota de bebida na boca.


Sentei-me na cadeira e busquei refúgio no trabalho, porém
não conseguia afastar aquela maldita da minha mente, nem mesmo
controlar minha excitação. Eu fitava os números e as informações,
mas sem enxergá-los, pois tudo o que via eram as curvas da garota
e minhas mãos trabalhando nelas para desvendá-las, gravá-las, e

dar-nos prazer.
— ¡Carajo! — disse entredentes.
Mexi-me na cadeira, incomodado. Lancei um olhar para o

meio das minhas pernas. Minha mente lasciva não ajudava em nada
a diminuir minha ereção, pelo contrário, eu apenas ficava mais rígido.
Soltei um bufar de irritação e fechei os olhos, passando as mãos

pelo cabelo. Um grande erro, pois minha imaginação pareceu ficar


ainda mais gráfica, tanto que poderia jurar ouvir os sons baixinhos

dela e sentir o seu cheiro. Ninguém foi capaz de causar tanta


excitação em mim, não ao ponto de eu não conseguir me controlar.
Voltei a soltar uma série de impropérios.

O som do toque do meu celular fez com que eu saísse do


transe erótico que eu estava e eu franzi o cenho, torcendo para que
não fossem problemas com meus negócios, estava sem cabeça para

aquilo.
— Sim? — De olhos fechados, tirei o telefone do bolso e
atendi.
— Boa noite, senhor Javier. — A voz do meu informante
dentro da financeira do Castro ecoou do outro lado da linha. —

Tenho boas notícias para o senhor.


— Espero que seja boa o suficiente para me interromper —
insinuei que eu estava aproveitando a noite de núpcias com a minha

esposinha.
— Bem, senhor... — ele pareceu hesitar.
— Diga logo — fui ríspido.

— Investimento em bitcoins. Houve um ciberataque à

exchange[71] que eles utilizavam e perderam milhões, já que cerca de

oitenta por cento dos investimentos feitos pela financeira de Castro


estavam nessa carteira.
Sorri. Não sabia que meu principal rival seria tolo o suficiente

para se aventurar no mercado volátil das criptomoedas. Embora


pudesse ser rentável, sendo necessário acompanhar bem de perto
as flutuações, havia vários riscos que deveriam ser levados em

consideração, como a ausência de legislação que regulamentasse a


moeda, falta de lastro e também a especulação em cima delas. Mas
era principalmente o risco de fraude que a tornava tão insegura.

Castro era um idiota por ter apostado quase todas as suas


fichas nesse mercado.
— Há chances de ele estar envolvido no “roubo”? —

questionei.
— Os acionistas pediram que fosse aberto um inquérito
investigativo, mas sabemos que será quase impossível rastrear para

onde foi esse dinheiro — fez uma pausa —, e pelo que eu pude ver,
Castro estava tão nervoso que acho improvável que ele tenha alguma
coisa a ver com isso.

— Nunca se sabe.
— Em todo caso, é um rombo que ele não conseguirá cobrir
de maneira nenhuma, nem mesmo usando a venda das outras

empresas, já que boa parte delas pertence a você e a outros


empresários. Castro está falido e levará muita gente com ele.
— E os acionistas dele e clientes sabem? — batuquei meus

dedos sobre a mesa e estalei a língua.


— Ainda não, mas não demorará muito para que saibam,

não é algo que ele conseguirá esconder por muito mais tempo.
— Entendo.
Ficamos em silêncio, cada um em seus pensamentos.

— O que o senhor fará? — ele questionou, tempos depois.


— Isso muda um pouco os meus planos. — Meu tom era
displicente. — Certifique-se de iniciar os trâmites para a compra do
que ele vender.

— Certo. Algo mais?


— Por enquanto, o assistirei agonizar, afinal vê-lo colocar a

corda no próprio pescoço e se enforcar é mais divertido.


— Tudo bem, senhor.
— Mais uma coisa para mim?

— Não.
— Mantenha-me informado.
— Boa noite, senhor, e parabéns pelo seu casamento.

Não respondi, apenas desliguei a ligação. Girando minha


cadeira, fitei a escuridão. Não tinha mentido quando disse que o ver
se destruir era mais prazeroso do que eu mesmo fazê-lo. Conhecia

algum dos empresários que tinham negócios com o meu inimigo e


estava consciente de que dificilmente eles sofreriam a perda em
silêncio, eles retalhariam e tirariam tudo dele. O fim estava muito

próximo e a reputação dele no lixo. Mesmo quando saísse da cadeia,


duvidava que ele conseguiria se recuperar.
Eu daria o tiro final quando Castro descobrisse que eu havia

tomado tudo dele, e, como um belo bônus, assistiria à velha perder o


seu precioso dinheiro que lhe conferia status e poder.
Dei uma risada, mas logo ela morreu em meus lábios
quando, sem querer, minha mão roçou no meu pênis e dei-me conta
que ainda estava excitado por aquela garota.

Um som abafado escapou pelos meus lábios ao tomar


ciência de que seria uma longa madrugada insone em que, diferente

das outras vezes, eu não seria assombrado pela velha e suas


agressões, mas, sim, eu queimaria por uma bruxa de olhos verdes e

lábios deliciosos que, por mais que eu negasse, queria tocando toda
a minha pele e principalmente em minha boca, me beijando várias e
várias vezes.
Capítulo trinta e dois

Encolhi minhas pernas ainda mais na cadeira de ferro,

sentindo um friozinho se infiltrar através do tecido do grosso

cobertor, da calça jeans e do casaco. Emiti um suspiro baixinho ao


contemplar as montanhas semicobertas pela espessa camada de

neblina, que impedia os raios solares de me alcançar, e levei a xícara

de chá aos lábios, o líquido quente oferecendo conforto. Não podia


negar que era um lugar lindo, até mesmo romântico, por ser isolado,

mas, ali sozinha no pequeno jardim coberto de paredes de vidro, que

coibia o vento que uivava lá fora de entrar, parecia haver um quê

melancólico na paisagem que eu não sabia definir; talvez fosse o

clima ameno do inverno, ou apenas o cansaço que pesava em


minhas pálpebras e ombros, já que havia sido impossível conciliar o

sono.

Havia rolado várias vezes na cama e tentado de tudo, mas

não consegui dormir. Minha mente tinha repassado cada momento do

dia, da conversa amena que tive no spa com Val até o meu

casamento, dos votos onde jurei perante a Deus amá-lo, algo que
não esperava que fosse tão difícil de fazer, já que mentir em local
sagrado me parecia errado, até os dois beijos trocados na igreja,
que pareciam impregnados na minha boca. Mas, se eu fosse sincera

comigo mesma, tinha sido o roçar sem querer dos seus dedos em

minha pele enquanto ele me ajudava a remover o vestido que tinha

me mantido completamente desperta.

Javier havia deixado um rastro de fogo em mim, e todo o

meu corpo pareceu queimar de desejo por ele. Meu sexo tinha
pulsado, ansiando por ser preenchido, meus mamilos pareceram

ficar sensíveis sem ao menos um toque, meus pelos, arrepiados.

Enrubesci de vergonha ao pensar no quanto eu havia ficado úmida

apenas com o toque suave dele e de sua proximidade, me senti uma

mulher, não apenas uma garota, ao saber que o “meu marido” me

desejava ao ponto de ficar completamente ereto.

Não me recordava se em algum outro momento eu fui


dominada por esse sentimento tão intenso e poderoso, nem mesmo

com o garoto que eu gostava e cheguei a me entregar. Tinha

gostado dos beijos, mas não do toque afoito e muito menos de

quando o meu crush me penetrou, foi muito doloroso, e não estava

certa se realmente o queria.

— Não macule algo bom pensando em coisas ruins —


murmurei, tomando mais um gole da bebida de erva-doce. — O
melhor que você poderá fazer é tentar esquecer aquela noite

vergonhosa, mesmo que seja impossível.


Pousei a xícara na mesinha e fitei o horizonte, sentindo a

melancolia me invadir. Vez ou outra, sorria com o som de alguma ave


que gritava, ou melhor, cantava. Inconscientemente, brinquei com a
aliança e o anel no meu dedo, pensando no homem que as tinha me

dado e também nas várias sensações díspares que ele despertava.


Não sei quanto tempo fiquei naquele torpor, bebericando o

chá que havia esfriado, quando o meu celular começou a tocar,


provavelmente era Pablito.

Havia mandado uma mensagem para ele avisando que minha


viagem tinha sido tranquila e perguntando se ele também tinha
chegado bem na nova cidade em que ele recomeçaria, mas não

havia me respondido. Devia estar cansado demais, ou bravo.


Não precisava ser uma adivinha para perceber que o meu

irmão não havia gostado muito da forma que meu marido havia me
beijado, a cara fechada dele tinha deixado mais do que claro isso.

Ele havia fuzilado Javier com o olhar durante toda a festa, e eu sabia
que apenas o fato de não querer causar mais escândalo envolvendo-
me o impediu de partir para cima do meu marido. Mas eu o conhecia

e era consciente de que ele externaria sua raiva.


Suspirando, resignada, peguei o aparelho, que tinha

colocado na parte de dentro do casaco, e antes que pudesse


cumprimentá-lo, ele disparou em um tom ríspido e cheio de

preocupação:
— Ele te obrigou a fazer algo contra a sua vontade,

estrellita? Eu juro que mato esse cara!


— Não! — Minha voz soou esganiçada. — De onde tirou
essa ideia maluca, Pablito?

— Maluca, Babi? — cuspiu cheio de rancor. — Aquele


bastardo te agarrou na frente de todo mundo.

Suspirei.
— Eu o beijei primeiro, Pablito — constatei um fato.
— Não importa!

Praguejou uma série de palavrões em tom alto e eu afastei o


telefone da minha orelha.

— Isso não dá o direito de ele beijar a minha irmãzinha.


— Agora ele é o meu marido, querido.

— Deveria ter metido uma bala nele como eu queria — arfou.


— Eu sempre soube que aquele desgraçado só queria te levar para
cama.
Ouvi o som de passos do outro da linha e pude imaginar meu
irmão andando de um lado a outro, como um animal em uma jaula.
— Caralho, eu não sou melhor do que ele por ter deixado

essa merda acontecer — falou baixinho.


Por mais que tivéssemos conversado várias vezes sobre

esse mesmo assunto, novamente ficou evidente a culpa que ele


sentia.
— Só um monstro… — Respirou fundo. — Isso que dá

acreditar na palavra de um demônio.


— Eu gostei — confessei em um sussurro. Senti que minha

pele aquecia com a vergonha, mesmo que não devesse.


Beijar e fazer sexo era algo natural, e falar sobre isso não

deveria ser constrangedor. Era raro alguém chegar na minha idade


sem ter trocado alguns amassos.
Não duvidava que Pablito tinha tido uma iniciação precoce,

como vários dos meninos do bairro em que cresci, porém dizer para
o meu irmão superprotetor que o beijo foi bom era mudar a

percepção que ele tinha de mim, a de uma menininha para mulher.


Dei de ombros. Não importava.
Há muito tempo não era mais inocente; Javier não estaria me

roubando nada que eu já não tinha perdido. Pelo contrário, eu me


sentia viva, diferente com ele. Uma pequena parte de mim, para não
falar que boa parte do meu ser, realmente desejava muito mais
daquele casamento de fachada. Queria toques, beijos e calor, mas,

infelizmente, o restante do meu lado racional tentava convencer a


parte sonhadora que isso não aconteceria, e que o beijo que

trocamos na igreja seria o único. Não era um conto de fadas em que


viveríamos felizes para sempre.
— Você não pode estar falando sério, Babi. — Pelo seu tom

contrariado, pude imaginar que ele fazia uma careta.

— É a verdade — falei em um tom firme. — Tanto que o


beijaria de novo.

— ¡Carajo! — Não escondeu sua exasperação. — Ele é um

demônio… Um dinossauro pré-histórico.

Gargalhei com o seu comentário.


— Exagerado. — Ainda continuei rindo. — Javier não é muito

mais velho do que você.

— Não importa — sua voz soou séria —, ele é muito velho


para uma garotinha que nem você.

— Pablito…

Ignorando-me, continuou a dizer naquele mesmo tom:


— O canalha sabe que é muito mais experiente, que é

bonitinho — fez uma pausa, respirando fundo, como se procurasse


se acalmar, e eu pensei que a palavra “bonitinho” dito com desdém

pelo meu irmão era inapropriada para descrever o meu marido,

porém não disse nada —, ele se aproveitará de você, da minha


irmãzinha.

Balancei a cabeça em negativa, mesmo que ele não pudesse

ver.

— Irá aproveitar da sua inocência, com beijos, palavras


doces, até conseguir te levar para cama. — Engoliu em seco. —

Conheço tipos que nem ele. Porra! Vi muitos colegas fazerem o

mesmo e se gabar disso depois. É a tática mais barata de todas.


— Não vejo Javier dizendo palavras doces para ninguém —

brinquei, tentando descontrair, fazendo com que ele bufasse. —

Ainda mais com a intenção de seduzir alguém.


— Não tem graça, Babi. — Ele voltou a expirar fundo e

continuou com a voz embargada: — Tenho medo de que ele acabe te

manipulando e te influenciando a fazer coisas que você realmente

não quer, que não se sinta preparada…


Meu coração se apertou por ele, por mim, e eu desejei com

todas as forças que eu pudesse abraçá-lo.


— É meu dever protegê-la, estrellita, e sinto que tenho

falhado cada dia mais.

— Não, querido, você nunca falhou… — Engoli o nó que se


formou em minha garganta.

— Eu…

— Javier nunca fará algo que eu não queira, que eu não

deixe — murmurei.
— Você não pode ter tanta certeza, hermanita.

— Não, não posso, mas apenas confie em mim — pedi.

— Babi…
— É ilógico pensar que um homem como ele se casaria

comigo apenas para transar! — continuei sentindo uma pontada de

dor, e olhei novamente para os dois anéis no meu dedo anelar. —

Não foi você que disse que ele pode ter todas, então por que eu?
— Porque você é linda e sabe disso.

— Ele poderia ter feito outro tipo de acordo se quisesse. —

Foi a minha vez de puxar ar com força. — Nós dois sabemos disso.
Ficamos em silêncio por uns instantes, cada um preso nos

seus próprios pensamentos.

— Acredite em mim, Pablito, ele não precisaria se casar

comigo se me quisesse ter apenas como amante.


— Droga, você está certa — disse tempos depois. — Porra,

mais do que certa.


— É! — Dei um sorriso triste. — E como é a sua nova casa?

— questionei, mudando de assunto.

— Tenho que organizar muitas coisas ainda, mas não posso


negar que essa casa é bem melhor do que o apartamento que a

gente alugava. — Pigarreou. — Bem mais quente também.

— Qualquer lugar consegue ser mais quente do que lá —

brinquei, fazendo um som como se eu estivesse tremendo e caímos


na gargalhada.— Mande umas fotos para eu ver.

— Tá bom, gatita.

Trocamos amenidades por mais alguns minutos, voltando a


rir, a falar a sério, sem tocar novamente no assunto que fez com que

ele me ligasse.

— Tem certeza que ficará bem com ele? — perguntou,

quando estávamos nos despedindo.


— Sim, querido. Não se preocupe.

— Okay. — Suspirou. — Promete que não esconderá de

mim se ele tentar forçar a barra com você?


Franzi o cenho por ele falar daquela forma, como se eu

tivesse me casado com um monstro que estava prestes a me atacar;


como se o fato de eu ter gostado do beijo não tivesse importância,

porém não iria discutir com o meu irmão, quando ele queria, ele era

bastante teimoso e sabia que ele precisava de tempo para processar

tudo.
— Prometo.

— Eu amo você, Babi. Muito.

— Eu sei, também amo você, Pablito.


— Preciso ir agora, querida, beijos.

— Não esquece das fotos, tá?

— Certo, beijos.

Desligou a ligação e eu soltei um suspiro audível, colocando


o celular no bolso. Fiquei apreciando a vista por alguns minutos e

ergui-me, sentindo minhas pernas um pouco instáveis pela falta de

circulação. Me envolvendo na coberta, peguei a xícara e dei meia-


volta para deixar o jardim. Caminhei até a cozinha, olhando cada

detalhe da decoração, que me pareciam fascinantes, desde as

luminárias de estilo antigo, até os papéis de parede. Tinha que

confessar que, embora fosse sóbria, com um toque clássico, havia


muito mais vida ali do que no apartamento, principalmente nos

quadros, móveis e esculturas que a adornavam.


Parei para contemplar uma peça delicada de formas

bastantes abstratas, que, na minha percepção, parecia ser uma


mulher abraçada a uma criança. Estava surpresa por Javier ter uma

peça dessas.

Pousei a xícara em um cantinho.

Embora não fosse uma grande conhecedora e tivesse tido


pouco contato com obras de artes, vez ou outra eu havia ido em

alguma excursão na escola, aquela escultura em específico me

emocionou de maneira incompreensível. Eu quase podia sentir o


amor entre as duas figuras, sensação que pareceu ficar mais intensa

quando toquei a junção onde eles se abraçavam. Ao mesmo tempo,

aquele amor começou a me oprimir, pois a conexão delas me seria


negada.

Balancei a cabeça e baixei minha mão, tentando reprimir

aquele sentimento melancólico que pareceu criar raízes em meu

interior. Lançando um último olhar para a peça, peguei a caneca e


continuei o meu caminho. O melhor que faria por mim mesma era

colocar de uma vez por todas na minha cabeça que eu poderia não

ter o meu bebê comigo, mas o meu coração sempre estaria com ele.
Capítulo trinta e três

Desferi um golpe com mais força no saco de pancadas, que

pendulou várias vezes, e voltei a atingi-lo outra vez mesmo com ele

balançando suavemente. As batidas de uma música qualquer


ecoavam em meus ouvidos e eu as acompanhavam, desferindo

socos e chutes enquanto tentava diminuir a frustração que havia em

meu interior por não parar de pensar na garota, por desejá-la ao


ponto de não conseguir me concentrar em mais nada.

Porra, aquela menina tinha conseguido se infiltrar até mesmo

nas poucas horas de sono em que eu havia cedido ao cansaço. Era

impossível não me sentir ainda mais frustrado por ter sonhado

comigo a beijando outra vez enquanto mergulhava lentamente no seu


corpo nu, sentindo as contrações do sexo dela apertando o meu

pênis, ao passo que suas mãos deixavam um rastro de fogo em

minha pele. Carícias suaves, doces, que pareciam chegar na minha

alma.

Dei outro soco quando senti meu pau ganhando vida com a

minha imaginação fodidamente fértil.


O sonho, se é que não seria melhor ser chamado de
pesadelo, tinha sido tão real para mim, que eu parecia ouvi-la falando

o meu nome baixinho enquanto nos amávamos com calma. Sim, na

minha cabeça, aquela garota não fazia apenas sexo comigo, ela se

doava por inteiro através dos seus toques, dos beijos e do modo

como parecia receptiva a mim a cada erguer de quadris.

Não havia receio, nem repulsa pelas minhas cicatrizes,


apenas entrega. De ambas as partes. Principalmente da minha.

Nada do que vivi até hoje me pareceu tão intenso quanto

aquele maldito devaneio com a minha esposa, fantasia e sensações

que eu desejei e muito que se tornassem reais.

Dei uma risada de desdém. Acordar com a respiração

ofegante, completamente suado, e com o pau, ainda ereto, melado

pelo próprio gozo, só tinha feito com que eu me sentisse ainda mais
irritado. Havia me comportado de forma abominável esvaindo-me na

cueca durante um sonho erótico. Podia imaginar quantas risadas eu

arrancaria se soubessem que o grande demônio se comportava

como um “adolescentezinho” só de pensar na sua “esposinha”.

Desferi um soco com mais força no saco, amaldiçoando a

existência da garota e tudo aquilo que ela causava em mim enquanto


a raiva fluía pelas minhas veias.
Mais abominável do que não ter nenhum controle sobre o

próprio pau, era o fato de eu ter me esquivado dela o dia inteiro,


como um maldito covarde.

Tinha me trancado no escritório quase o dia todo e, quando


ela me chamou para almoçar, mesmo estando com fome de comida,
assim como de sua companhia, dei uma desculpa qualquer para não

a encarar, só para não me sentir tentado a beijá-la outra vez, para


não implorar que ela me tocasse como no meu sonho. ¡Carajo!

Respirei fundo e continuei a desferir socos e chutes no saco.


Mesmo sentindo os meus músculos cansados e doloridos pelo

esforço físico, minha mente era um turbilhão e o meu corpo todo


estava elétrico. Havia não apenas a insatisfação sexual por ela, mas
também por uma necessidade que nada tinha a ver com o desejo,

mas que, ainda assim, me era ainda mais violento do que a volúpia.
Eu precisava daquela garota, da minha esposa, com todo o

meu ser.
Removendo as luvas e as descartando em qualquer lugar,

apoiei minha cabeça no aparelho e deixei-me ficar ali, tentando


buscar algum tipo de controle sobre mim mesmo, em especial, o
mental, mas era uma tarefa ingrata, pois Bárbara parecia ter
destruído toda a minha força de vontade. Dei leves socos no ar

enquanto me xingava baixinho.


Um palavrão morreu em meus lábios e eu fechei os olhos,

dando-me por derrotado, quando senti um dedo tocar a enorme


cicatriz que ia do ombro direito até o meio das costas, uma causada

quando eu tinha cerca de cinco anos e havia pedido colo para a


matriarca dos Castillos depois que um dos meninos maiores havia
roubado meus doces. Nunca esqueceria as palavras cruéis que só

quando era mais velho consegui compreendê-las em sua totalidade,


umas que eu não seguiria. Nunca.

Afastei aquelas lembranças dolorosas da mente e foquei


naquela pequena carícia e nas sensações que causavam em mim.
O toque poderia muito bem ser uma continuação dos meus

sonhos eróticos, mas ele era muito real, a respiração quente e suave
da garota, que chegava a minha pele coberta de suor, não me

deixava dúvidas. Meu corpo todo, instantaneamente, ficou tenso, e


eu esperei que ela recuasse, demonstrando a sua repulsa pelas

marcas que tinha nas minhas costas, que a curiosidade dela


passasse, que o contato fosse apenas uma forma cruel de caçoar de
mim, porém Bárbara continuou a trilhá-la com a ponta do dedo. A

ausência de som, nenhum barulho que pudesse me revelar seu nojo


pela minha pele coberta de cicatrizes e enrugada em alguns lugares
por algumas queimaduras, era como um grande bálsamo, mas,
mesmo assim, eu precisava de certeza, como nunca antes

necessitei.
— Deveria sentir asco por mim, garota — minha voz soou

áspera ao passo que retirava os fones de ouvido, incitando-a a se


afastar, ao mesmo tempo que não escondia a minha própria dor e
receio.

Inspirei fundo, ignorando a pontada no peito, deixando que o


cheiro de caramelo dela me embriagasse e roubasse meus sentidos.

— Não consigo — falou baixinho.


Traçou círculos lentos pela minha pele. O calor que ela emitia

me aqueceu por inteiro, fazendo com que eu estremecesse, tanto


que quase não senti o frio da sua aliança. Meu corpo traiçoeiro
reagia àqueles afagos; eu me sentia vivo, excitado, fodido.

Emiti um suspiro baixinho, de deleite, e abracei ainda mais ao


saco de pancada, fechando os olhos com força, me contendo para

não virar e quebrar aquele contato, com medo de que ele acabasse
cedo demais.
Porra, eu estava gostando de ser acariciado por ela.

Superava e muito a minha imaginação. O toque dela em mim parecia


tão certo...
— Essas deformidades combinam muito bem com um
demônio como eu, não é mesmo? — insisti. — Alguns diriam que são

mais do que merecidas.


Soltei uma gargalhada fria, cínica, com a intenção de dar a

ela mais uma oportunidade de mostrar as suas verdadeiras garras,


embora meu corpo todo protestasse contra mim mesmo.
Mas ela não se afastou, pelo contrário, seus dedos pareciam

desfazer os nós de tensão que haviam se acumulado pelo meu

corpo. E, mesmo que lutasse contra, eu baixei a guarda para a


garota, quebrando mais uma vez a promessa que tinha feito para

mim mesmo.

— Essas pessoas são ignorantes em suas crueldades —

falou em um tom apaixonado, que fez os pelinhos da minha nuca se


arrepiarem; queria muito acreditar em suas palavras. — Não, você

não é um demônio, e muito menos mereceu essas cicatrizes e

machucados, independente do que tenha feito.


— Eu já disse que você é uma tola por acreditar que não sou

o diabo em pessoa, garota? — questionei em meio a um gemido,

ignorando a esperança que brotou em meu peito ao ouvi-la falar que


eu não era digno de ser machucado.
Senti um arrepio percorrer a minha coluna quando ela

alcançou uma série de marcas mal-cicatrizadas porque a mãe do


meu genitor não havia chamado um médico para mim.

— Várias vezes — ela disse em um tom brincalhão — tanto

que estou quase acreditando nisso.


Bufei, não gostando muito de ouvir que ela se achava uma

idiota por minha causa. Eu que era um estúpido por deixar que as

palavras dela e o seu toque me desmanchassem.

Não dissemos mais nada um para o outro. Eu apenas


continuei a me submeter àquele contato doce e angustiante enquanto

escutava os nossos sons baixinhos, nossos suspiros. Estava tão

envolvido naquele toque que eu perdi o fôlego quando senti que os


lábios dela substituíram as mãos e ela beijou um pedaço de pele

repuxada. Era demais para mim.

Virei-me de súbito, fazendo com que a garota desse um


passo para trás, odiando-me por colocar um fim abrupto aos toques

dela.

Sim, eu que era o imbecil dessa história.

— O que você estava fazendo, garota? — questionei em um


tom rouco, lutando comigo mesmo para não pedir que ela

continuasse.
— Eu não sei, Javier…

Aproximou-se novamente e plantou as duas palmas no meu

peitoral. Com certeza ela podia sentir as batidas aceleradas do meu


coração, porém não me importei, não depois da garota ter me

beijado de uma maneira tão íntima, mais do que o beijo que

trocamos na igreja. Seus lábios na minha cicatriz provocavam um

dano bem maior, pois alcançavam um lado que busquei matar, e isso
era perigoso, porque dava a ela um poder muito grande sobre mim.

Instintivamente comecei a calcular os riscos de ela acabar

usando isso para me machucar.


Dei um sorriso cínico para mim mesmo. Eu jogava um grande

balde de água fria sob mim mesmo, transformando aquele momento

doce em algo amargo.

— Não estava raciocinando direito — recuou um pouco,


como se era de se esperar, mas não fisicamente, pois continuava a

me tocar.

Fitou-me com aqueles olhos verdes límpidos e pude


confirmar que não havia repulsa, mas, sim, um pouco de vergonha...

de si mesma.

Não soube como reagir ao constrangimento da garota. Um

pedaço de mim achava divertido, porém, a maior parte estava


contrariada. O homem que havia gostado de ser tocado a queria

sem pudores.
— Entendo. — Passei a mão na minha barba por fazer,

coçando-a.

— Sou bastante impulsiva. — Ergueu o queixo.


Arqueei a sobrancelha.

— Há mais alguma “qualidade” que eu deva saber? —

questionei em um tom modulado, frio.

— Não deveria ter me perguntado isso antes, “esposo”? —


falou em um tom travesso, os lábios deliciosos se curvando em um

sorriso.

Resisti a vontade de cruzar a distância entre nós dois e beijar


aquela boca provocante, fazendo algo que me arrependeria depois.

Meu corpo todo retesou em protesto. Engoli em seco.

— Sim, deveria.

— Bom, é um pouco tarde, não é mesmo?


Deslizou um dedo pelo meu peitoral, traçando outras das

minhas cicatrizes lentamente.

Voltei a fechar os olhos, suspirando, enquanto agradecia


mentalmente o fato dela voltar a me tocar.
— ¡Sí!— A palavra escapou da minha boca tempos depois

sem que me desse conta.

Eu poderia me arrepender mais tarde, mas não quando era

refém do calor que irradiava das pontas dos dedos dela para o meu
peito.

— Javier? — Chamou minutos depois e, soltando um

resmungo, eu a encarei.
Algo dentro de mim se revirou com a tristeza que vi nos olhos

dela, bem como a seriedade. O toque que antes tinha sido recebido

por mim como um alívio, parecia se transformar em pequenos

instrumentos de tortura, mais doloroso do que aqueles castigos


aplicados pela minha avó.

— O que foi, garota? — Meu timbre soou grosso.

— Não foi um acidente e muito menos uma cirurgia, não é


mesmo? — falou em um tom baixo, como se sentisse dor.

Estaquei, segurando o ar nos meus pulmões.

— O quê?

— O que você carrega no corpo parece ter sido feito


deliberadamente para te machucar — continuou naquele mesmo tom

dilacerante. — Você foi assaltado ou algo do tipo?

Fiz que não com a cabeça.


— O que aconteceu? — Ergueu a mão e tocou o meu rosto,

acariciando o meu queixo e bochecha.


— Pergunta de esposa, garota? — falei naquele tom cheio

de cinismo, tentando voltar aonde estávamos.

— Alguém te machucou tanto, não apenas fisicamente, ao

ponto de você ter que usar a frieza como um escudo protetor para
não se machucar mais, Javier? — Ignorou-me e eu pude ver lágrimas

se formando nos olhos dela. Tomei-as como um soco na boca do

estômago.
— Você não sabe o que está dizendo, chica — disse

rispidamente, as barreiras de autopreservação se erguendo de

maneira vertiginosa.
Pegando as mãos dela, baixei-as e pus fim ao contato. Com

as sombras me atingindo, meu corpo todo ficou gelado.

— Com licença, preciso tomar um banho.

Antes que eu me afastasse, fugindo como um covarde outra


vez, ela ficou na ponta dos pés e deixou um beijo na minha bochecha;

suas lágrimas molharam a minha face.

— Boa noite, Javier.


Fiquei mudo quando me deu as costas. Instintivamente, olhei

para a bunda dela, sentindo certa decepção ridícula por não vê-la
usando o short curtinho que mostrava parte das nádegas.
Completamente paralisado, ouvi o som da porta se abrindo e

fechando, indicando que eu estava sozinho.

Quando despertei, tive que me segurar para não ir atrás dela


e dar vazão aos sentimentos conflituosos que me consumiam e que

fariam com que eu a tocasse freneticamente e a beijasse até que

nós dois perdêssemos o fôlego.


Senti raiva de mim mesmo perante a minha própria

vulnerabilidade. Precisando extravasar de algum modo, girei o corpo

e, usando toda a minha força, desferi um soco no saco de areia,

seguido de vários outros. Sentia o meu punho latejar com os


impactos, mas o incômodo em nada se comparava com a solidão

deixada pela saída da garota e também por não ter mais os seus

toques inocentes em minha pele.


— Droga, Javier — murmurei para mim mesmo ao dar um

último golpe antes que eu deixasse minha mão esfolada. Voltei a


abraçar novamente o aparelho, como se ele pudesse me manter
são, porque eu estava começando a duvidar de que o demônio de

gelo sobreviveria àquele casamento e àquela garota sem tomá-la


para si, machucando-se, traindo a si mesmo e a promessa que fez
ao seu bebê.
Capítulo trinta e quatro

— Pode usar a cabine do canto esquerdo, senhor Castillo. —

Contive a vontade de demonstrar a minha irritação por ser chamado

pelo sobrenome que tanto odiava. — O isolamento acústico garantirá


a sua privacidade para a realização da coleta.

Engoli o comentário sarcástico de que eu estava pagando

bem o suficiente para ter privacidade. Poderia parecer um


procedimento simples para os homens, e o era, porém se masturbar

consciente de que pessoas desconhecidas sabiam o que você estava

fazendo, mesmo que fossem profissionais, poderia ser bem

constrangedor.

Não podia negar que eu estava tenso com a perspectiva,


pois além de achar algo íntimo, a minha mente deturpada, sempre

sedenta por esconder os meus sentimentos e emoções, considerava

o alívio dado pelas mãos como uma forma de perder o controle. E eu

nunca deixaria de ter o domínio sobre meu próprio corpo.

Sufoquei a vozinha que ecoou na minha mente que dizia que

eu estava muito próximo de me desgovernar perante a minha


esposa. A maldita sempre se enfiava em meus sonhos, nos meus
pensamentos, atormentando-me com o seu corpo lascivo e
convidativo, sempre receptivo ao meu, com suas carícias suaves e

beijos quentes, com os seus gemidos que me eram tão vivos que me

faziam acordar ofegante.

Trinquei os dentes, tentando esquecer o outro “pesadelo”

que tive essa noite com a garota, que parecia ainda mais vívido do

que o primeiro. Tinha coisas mais importantes do que deixar-me levar


por besteiras criadas pela minha mente.

— O senhor pode ficar à vontade para usar um dos materiais

de incentivo disponibilizados pela clínica — o atendente continuou

animadamente e eu lancei um olhar frio para ele.

Não respondi, apenas peguei o potinho que ele havia me

estendido.

Eu não precisava daquelas porcarias odiosas que viciavam e


tornavam as pessoas doentes, como minha ex-noiva.

— Gaste o tempo que precisar, senhor, e não precisa

preencher todo o copinho com a sua amostra — falou, além de

outras coisas que não prestei atenção. — Alguma dúvida quanto ao

procedimento?

— Não.
Antes que perdesse a paciência com aquele atendente

sorridente, dei as costas para ele e caminhei em direção do local


onde eu faria a minha parte na inseminação.

Fechei a porta atrás de mim, trancando-a, e respirei fundo


ao contemplar o espaço incrivelmente branco que não era nada
convidativo. Ignorei as pilhas de revistas masculinas no canto, que eu

não tinha a mínima curiosidade de ver, embora tivesse várias


mulheres conhecidas nelas. Abrindo a tampa do recipiente, depositei

o potinho em cima de um balcão de mármore, deixando-o num local


de fácil acesso. Higienizando bem as mãos, abri a calça e deslizei o

zíper. Enfiando a mão dentro da minha cueca, tirei meu pau ainda
mole para fora.
Deixando a minha mente completamente em branco, rodeei

meu pênis com a mão e comecei a movimentar meus dedos de cima


para baixo, pressionando-o suavemente ao alcançar a ponta,

sentindo que lentamente eu ficava excitado com as minhas carícias,


mas, ainda assim, eu estava longe de estar rígido como eu ficava só

de olhar para a garota ou por ter sonhos eróticos com ela. Forcei-me
a não pensar nela e imprimi um ritmo mais insano aos meus
movimentos, porém parecia inútil.
— Desgraçada — xinguei-a entre dentes, emitindo uma série

de impropérios.
Consciente de que eu ficaria um bom tempo sem nenhum

resultado efetivo, odiando-me com a mesma intensidade com que


queimava de raiva pela minha esposa, fechei os olhos e deixei que

minha imaginação ganhasse vida.


Não eram mais os meus dedos que percorriam toda a
extensão do meu pau, mas a mão pequena e macia da minha

esposa. Imaginei a garota explorando cada pedaço da minha carne


lentamente, conhecendo a minha grossura, sentindo todas veias e

saliências enquanto me fitava com aqueles olhos repletos de desejo


por mim. Os lábios rosados entreabertos eram um deleite a parte,
um convite para a minha boca sedenta por ela.

Por alguns segundos, me perdi naquela imagem tão vívida e


prazerosa, deixando escapar um som oco e baixo com o desejo

indescritível que me assolou. Ela rodeou meu pênis com pressão


quando ganhou mais confiança e começou a deslizar para cima e

para baixo, adotando uma cadência lenta que era uma tortura.
Obriguei-me a acariciar meu pau do mesmo modo que fantasiava
com ela fazendo, o prazer se espalhando por todo o meu corpo.
Ao passo que me alisava, aumentando o ritmo e a pressão
exercida, eu sentia minha respiração cada vez mais ofegante,
acompanhando as batidas aceleradas do meu coração. Fechei os

olhos, intensificando as sensações que me deixavam bambos.


Mordi os lábios, impedindo um gemido de escapar pela

minha boca, quando, como se fosse ela a brincar comigo, toquei a


minha fenda e comecei a traçar círculos lentos com a ponta do dedo,
estimulando-a, enquanto com a outra mão eu continuava a me

masturbar.
Um líquido se formou na ponta, e eu deixei de me tocar ali

quando minha imaginação me levou a fantasiar comigo baixando o


shortinho que ela gostava de usar e, segurando suas nádegas

macias, apalpando-a da forma que eu queria, deixando um tapinha,


penetrei-a com um tranco, chegando fundo no seu interior quente e
úmido. Retirei-me de dentro dela, ouvindo o chiar baixinho em

protesto, apenas para estocá-la outra vez, sentindo seus músculos


apertarem meu pênis com pressão enquanto ela chamava meu nome

em meio a gemidos que eu capturava com a minha boca.


Mordi meus lábios para não emitir um grito ao pensar nos
seus toques cada vez mais descoordenados sobre a minha pele,

explorando cada pedaço de mim, enquanto instintivamente suas


pernas abraçavam os meus quadris, facilitando com que eu a
preenchesse.
— ¡Carajo!

Não consegui mais conter os meus próprios sons, nem


mesmo o arquear instintivo da minha pelve contra meus dedos

quando imaginei nós dois afoitos um pelo outro, cada vez mais
ofegantes, buscando a satisfação a cada chocar dos quadris, que
estalavam um contra o outro, colocando cada vez mais velocidade e

pressão no toque.

Uma fina camada de suor parecia pregar a minha camisa


social à pele e eu me sentia cada vez mais próximo de cair na beira

de um penhasco, cujo fim me era desconhecido. Era um sentimento

poderoso, que, ao mesmo tempo, me deixava irritado por senti-lo.

Não deveria estar experimentando aquelas sensações, ainda


mais ao me masturbar usando aquela garota como incentivo, porém

aquela maldita em pouco tempo havia me levado ao limite de mim

mesmo, testando o meu desejo e autocontrole com suas roupas


curtas, toques, sorrisos e calor.

E ali, entre quatro paredes brancas, eu extravasava e ateava

ainda mais fogo naquela fogueira que ela tinha acendido, apenas
para apagá-la furiosamente.
Preso as imagens criadas pela minha mente, em que eu fazia

amor com a garota, metendo mais fundo enquanto suas unhas


cravavam com força em minha pele a cada estocada, suas paredes

vaginais cada vez mais contraídas, apliquei mais cadência aos meus

movimentos acompanhando a minha respiração curta e ofegante.


Continuei a socar na minha mão, emitindo gemidos e sons cada vez

mais altos.

Eu perdi a capacidade de refletir coerentemente sobre

qualquer outra coisa que não fosse aquela mulher.


Sons altos escapavam da minha garganta. Imprimi mais

velocidade. Sentindo-me por um fio, prestes a melar os meus

próprios dedos, apegando-me a um último fio de realidade, peguei o


copinho com pressa e posicionei a ponta do meu pau no bocal,

dando mais algumas estocadas em uma cadência insana.

E, apertando a minha glande, com a imagem da minha


esposa chegando ao êxtase, completamente trêmula enquanto eu

continuava a me movimentar na sua vagina e beijava sua boca com

fome e desejo, minha língua brincando com a dela, deixei-me esvair

no coletor.
Emiti um grunhido alto com o orgasmo.
Tapei o potinho, colocando-o sobre a bancada, e permiti que

as sensações do orgasmo me dominassem. Segurei-me contra a

parede, ignorando a poltrona, sentindo minhas pernas trêmulas, e


lutei para levar ar para os meus pulmões.

Apesar de ter sido rápido, a punheta tinha sido intensa, mais

do que qualquer outra experiência que tive antes.

Evitei olhar-me no espelho, sem dúvida minha aparência


estava mais do que deplorável.

— ¡Mierda! — murmurei um palavrão em meio a respiração

entrecortada, seguido de vários outros, e acabei caindo na


gargalhada.

Era uma risada amarga, cínica, a situação era no mínimo

irônica.

Pouco a pouco o torpor do arrebatamento, algo que nunca


experienciaria com a garota na realidade, foi substituído por raiva,

um sentimento volátil que começou a banhar as minhas veias. Eu

havia me traído.
Soquei o balcão em um ato estúpido, já que apenas

machucaria a minha mão, continuando a amaldiçoar aquela mulher de

corpo delicioso, olhar penetrante e sorriso que era capaz de me

foder.
— Maldita! — Trinquei os meus dentes ao imaginá-la

sorrindo para mim, acariciando o meu rosto, me olhando


carinhosamente, completamente satisfeita, me pedindo por mais.

— ¡Hijo de puta! — Xinguei a mim mesmo.

Extremamente irritado, respirei fundo e, puxando um papel


do suporte, limpei meu pau, que ainda estava semiereto, o que

aumentou ainda mais minha fúria, e o coloquei de volta na cueca,

fechando logo a calça. Lavei minhas mãos e ajeitei meu cabelo, que

estava fora do lugar.


Olhei para o espelho e forcei-me a reunir todo o autocontrole

despedaçado por aquela garota, ao mesmo tempo que me obrigava

a esquecer o que tinha ocorrido ali.


Sorri, pegando o pote cheio do meu líquido, e vi que o

demônio de gelo parecia no comando outra vez.


Capítulo trinta e cinco

— Como estou? — perguntei para os cachorros que estavam

em cima da minha cama ao terminar de passar o batom vermelho

nos lábios e pousar a maquiagem sobre a penteadeira.


Sorri ao ouvir a resposta em forma de latidos e virei-me para

encontrar os dois abanando o rabo freneticamente.

— Queria ter a mesma certeza que vocês.


Suspirei baixinho e instintivamente deslizei a mão pelo meu

abdômen liso, o que fez meu sorriso se apagar. Havia feito a

inseminação artificial fazia pouco mais de uma semana. A taxa de

sucesso era relativamente baixa, apenas vinte e cinco por cento,

mesmo eu sendo uma boa candidata, mas eu não conseguia parar


de pensar que o meu bebezinho, uma parte de mim e de Javier,

poderia já estar crescendo dentro de mim. Ele já era amado

incondicionalmente, e recusava-me a pensar que aquela criança

também não era minha, mesmo que um documento dissesse que

não. Ao mesmo tempo que essa possibilidade me deixava

completamente eufórica, também estava com receio de que ainda


não estivesse grávida. Mas era o medo do momento em que eu teria
que me separar dele, que eu mais temia, isto me martirizava,
apagando um pouco o brilho da possível gravidez. Desde que deixei

a clínica, era como se uma faca tivesse sido cravada em meu peito e

que, quando eu a removesse, eu sangraria.

Sofria em silêncio, escondendo de todos a dor de não poder

ficar com o meu bebê, até mesmo do meu irmão, porém não tinha

certeza se conseguia disfarçar tão bem assim atrás de sorrisos e


falsa alegria.

— Ficará tudo bem, meu amor — sussurrei antes de afastar

a mão, sentindo a pontada apertar o meu peito, e tornei a me virar,

encarando a minha imagem no espelho.

Meus cabelos estavam presos em um coque e o vestido de

veludo vermelho ressaltava a minha cintura, caindo soltinho em baixo,

e o decote quadrado, embora modesto, destacava o meu busto


pequeno. Embora fosse feito por um estilista, eu não tinha certeza se

era apropriado para acompanhar Javier a uma festa de negócios,

cuja existência eu só soube há poucas horas e que me foi informada

não pelo meu marido, mas, sim, pelo secretário dele.

— Terá que servir. — Fiz uma careta e senti meu estômago

embrulhar com o nervosismo.


Passando a mão na saia para ajustá-la, balancei a cabeça

em negativa, tentando ignorar minha inquietação. Aproximei-me da


cama, sentando-me para calçar os sapatos.

— Não, querida — tirei uma Isabel sapeca que tentava subir


em cima do meu colo —, você vai me encher de pelinhos.
Tentou subir novamente, sua patinha marcando o tecido.

Suspirei.
— Não que eu me importe se meu vestido estiver com alguns

pelos, isso quer dizer que fui bem-amada antes de ir. — Plantei um
beijo no topo da cabecinha dela, beijando Lorenzo em seguida, que

também queria um afago. Voltei a minha atenção para o chão,


olhando os sapatos, pensando no quanto aqueles bicos finos
matariam os meus pés.

O som de um estalar de língua ecoou pelo quarto e meu


corpo todo pareceu reagir a presença dele, meus batimentos

cardíacos se aceleraram, denunciando-me, dizendo que eu era uma


grande idiota. Desde que beijei uma das cicatrizes dele, um ato

impulsivo e insensato, “meu marido” parecia me evitar, mas, ainda


assim, eu ansiava pela sua companhia. Por ele. Pelo seu beijo.
— Você está pronta? — disse em tom de desdém.
Virei-me em direção a porta, encontrando Javier ali parado,

perfeitamente vestido no seu smoking, me fitando fixamente com


uma expressão indiferente. Ele poderia se chamar de deformado,

mas Javier era um dos homens mais bonitos que eu tinha visto. Uma
onda de ciúmes me engolfou ao pensar que várias outras mulheres

babariam por ele.


— Perdeu a língua, garota? — A sobrancelha ergueu-se
ironicamente.

— Acho que já estou pronta.


Ergui-me da cama e ajeitei a saia do meu vestido com as

pontas dos dedos novamente, precisando de uma desculpa para me


aprumar, e peguei a minha bolsa de mão que estava protegida pelo
corpinho de Lorenzo.

— Só acha? — Seu olhar percorreu o meu corpo. O calor


que havia neles e que Javier não conseguia disfarçar fez com que eu

esquentasse.
A crise de ciúmes descabida evaporou-se. O desejo que

crepitava nos olhos do meu marido me passava uma segurança que


talvez eu não devesse sentir, mas que me era inevitável.
Dei de ombros, se era tolice se sentir única, que seja.

Lembrei-me do contrato que dizia que ele não me trairia e sorri.


— Então coloque isso — falou rispidamente ao se aproximar
de mim, parecendo detestar o que sentia, e estendeu-me uma
caixinha retangular.

— O que é? — disse ao pegar o invólucro.


— Ao que parece, você se “esqueceu” de comprar joias —

frisou a palavra esqueceu como se achasse improvável que alguém


não as adquirisse quando tivesse oportunidade.
— Entendo.

Abri a caixa, revelando um par de brincos e uma pulseira de


enormes diamantes combinando.

— Não posso permitir que achem que você não esteja à


altura.

Meu estômago, que estava embrulhado, revirou ainda mais,


mas fiz o possível para ignorar a sensação, começando a colocar os
brincos.

— Você se sentiria nua se não usasse alguma joia— o tom


suave fez com que algo dentro de mim amolecesse.

— Obrigada por pensar nisso, Javier — sorri —, são muito


bonitas.
Apertei o fecho da peça, surpresa de como ela ficou certa no

meu pulso.
— E você as detestou. — Colocou as mãos dentro dos
bolsos da calça social.
— São extravagantes demais para mim.

— Muitas matariam para ter uma peça como essa —


provocou-me e eu sorri ainda mais; sentia falta daqueles comentários

ácidos.
— Fico feliz que não precisei matar ninguém para tê-las —
falei em um tom brincalhão.

Ele emitiu um som de desagrado e eu caí na risada,

recapturando a bolsa caída no chão. Ainda sorrindo como uma boba,


deixei o apartamento junto dele, não sem antes deixar outro beijo

estalado nos cachorrinhos e vestir um casaco.

— Pretende fechar algum negócio hoje? — questionei,

movimentando-me no banco, depois de vários minutos em silêncio,


encarando o homem que fitava a rua, mesmo que a escuridão não

me deixasse ver muita coisa.

— Por que a pergunta, garota? — Não me encarou.


— Quando trabalhava para você, Fernán tinha me dito que

você não gosta muito desses eventos.

— Compreendo.
— E então?
— Sou tão previsível assim, “esposinha”? — Não escondeu a

própria diversão.
— Bem… — Controlei-me para não morder meus lábios e

estragar o meu batom.

Gargalhou alto, como se eu tivesse contado uma piada, e o


som cristalino, sem cinismo, reverberou em mim.

— Nunca mentiu em sua vida, garota? — Fez uma pausa, a

diversão dele morrendo, transformando-se em amargor. — Esqueci

que estamos vivendo uma mentira agora.


Engoli em seco, virando o meu rosto para a janela e brinquei

com os aros no meu dedo. No fundo desejava que o casamento se

tornasse real.
— Eu não deveria ter dito isso — sussurrou para si mesmo e

minha atenção se voltou para ele.

— Por que não, se é a verdade, não é mesmo, Javier?


— ¡Sí! — demorou a responder.

O silêncio caiu pesado sobre nós.

— Por que quer que eu te acompanhe? — Fiz a pergunta

que tinha dado voltas na minha cabeça várias vezes.


— Não quero ficar sozinho — falou em uma voz rouca. —

Satisfeita, garota?
Não respondi com palavras, apenas deixei que meus dedos

encontrassem a mão pousada sobre o assento de couro e entrelacei

nossos dedos, apertando-os suavemente. Ele não me repeliu.


Poderia ser um grande disparate, mas me achei necessária, mesmo

que não o fosse, não me senti como um objeto que ele havia

comprado, mas, sim, como uma companheira, o que eu não era na

verdade.
Suspirei baixinho com os meus sonhos infantis provocados

sem querer pelas atitudes ambíguas do meu marido. É, ele tinha

razão quando me chamava nas entrelinhas de estúpida.


Não demorou muito e o carro parou, indicando-me que

havíamos chegado, e o nervosismo que parecia amenizado com o

fato de ter palma contra palma retornou, principalmente ao ver que o

veículo parecia cercado de paparazzi. Removemos os cintos.


Surpreendendo-me, em silêncio, como um cavalheiro, ao deixar o

carro, estendeu a mão para mim e eu a peguei com meus dedos

úmidos, saindo do automóvel com a sua ajuda, logo sendo recebida


por vários flashes que me cegavam.

Me senti completamente perdida, não sabia para quem olhar,

e o pânico cresceu em meu interior. Como se pressentisse meu


estado de espírito, inclinou-se em minha direção e falou suavemente

no meu ouvido:
— Eu estou com você, Bárbara.

Pousou a mão no centro das minhas costas, fazendo com

que um choque de prazer percorresse a minha espinha, arrepiando


os meus pelinhos. O toque completamente íntimo me imprimia

coragem, ao mesmo tempo que me obrigava a seguir em frente. Não

paramos para nenhuma foto.

— Obrigada, Javier — disse com a voz trêmula depois que


demos os nossos nomes ao homem que recepcionava os convidados

e guardou os nossos casacos, e nos colocamos em movimento.

Não respondeu, apenas parou de andar e me encarou por


alguns segundos com aquela expressão ilegível, antes de seguir em

frente.

Poderíamos ter deixado a confusão dos fotógrafos para trás,

mas ainda assim eu me sentia tensa. Não tinha ideia se era melhor
enfrentá-los ou lidar com as pessoas ali presentes. Andando ao lado

de Javier pelo hall luxuoso decorado com inúmeros candelabros, eu

estava ciente dos olhares das pessoas pousando sobre nós, o que
ainda deixava meu estômago dando voltas.
Meu único conforto era o fato do meu marido continuar a me

tocar com a sua mão firme e quente, até mesmo um pouco mais

possessiva, traçando círculos lentos na base da minha coluna, como

se acalmasse um bebê. Ele poderia se considerar um homem sem


coração, mas o modo como Javier me tocava era tão carinhoso, que

eu me derretia toda. E quem olhasse para ele mal poderia acreditar

que o demônio de gelo fosse capaz de um gesto tão doce, ainda


mais em público.

Meu coração se acelerou. Droga, minha paixonite por ele

parecia aumentar cada vez mais de proporção.

Suspirei baixinho, em um misto de resignação e deleite.


— Você quer ir ao banheiro para se recompor, Bárbara? —

questionou em um tom baixo, parando próximo a um arco, antes que

entrássemos no salão principal.


— Estou bem — tentei me convencer disso ao falar em voz

alta.

Ele assentiu e, com a pressão dos dedos, obrigou-me a

caminhar novamente. Assim que entramos no ambiente lotado, senti


que a atenção pareceu recair completamente sobre nós, como se eu

e Javier fossemos a principal atração de um circo. Eu sabia que

chamaríamos à atenção pelo nosso casamento relâmpago e também


por todo o escândalo que havíamos causado, porém não esperava

que as pessoas nos lançassem diretamente olhares de curiosidade,


alguns de desprezo, ou até mesmo desdém, cochichando ao nos ver

passar.

Embora minha vontade fosse de ser tragada pelo chão,

endireitei a minha coluna, dei o meu melhor sorriso, mesmo que me


sentindo desconfortável por dentro, enquanto um homem de cerca de

sessenta anos com uma mulher loira e linda, risonha, que tinha idade

para ser a filha dele, agarrada em seus braços, aproximou-se de


nós.

— Castillo — o homem cumprimentou Javier e lançou um

olhar lascivo sobre mim, que eu achei completamente repugnante;


meu sorriso morreu instantaneamente. — Como sempre, com muito

bom gosto.

Surpreendendo-me, Javier envolveu a minha cintura com o

braço e trouxe meu corpo contra o dele, em um gesto possessivo.


Não me passou despercebido a tensão que havia no meu marido,

mas agradeci pela sua atitude protetora. Adorava o fato de que, com

pequenas coisas, inconscientemente, Javier me transmitia


segurança.
— José — disse o nome com frieza, mas para quem o
conhecesse, sabia que o tom era completamente perigoso.

O homem deu uma gargalhada, fazendo com que a loira o

acompanhasse.
— Deixe disso, Castillo…

Deu uns tapinhas no ombro dele e Javier fez um som de

desdém.
— Não me toque, senhor.

— Existem mulheres demais por aí para que eu tente algo

com as “casadas”. — Ignorou meu marido, continuando a dar

tapinhas, olhando para o meu decote, desrespeitando não apenas a


mim, mas também a mulher ao seu lado. — Ainda.

— Se isso é tudo, com licença — sentenciou e recomeçou a

caminhar, e eu fiz o mesmo.


Não queria permanecer mais nenhum minuto perto desse

homem asqueroso.
— Espere, Castillo!
Segurou o braço dele, fazendo com que ele parasse e

franzisse o cenho. O cinismo, a frieza e o desgosto que havia no


rosto do meu esposo fez com que um calafrio percorresse minha
espinha. O homem que me envolvia não era apenas o Javier
inexpressivo, mas a sua versão mais sombria; uma que tinha visto na
noite fatídica do assédio.
— Estou começando a formar um clube de investidores e…

— Não estou interessado — falou friamente — eu não


negocio com amadores.
— Terá outros…

— Muito menos com quem cobiça ter aquilo que é meu. —


Fez um gesto impaciente. — Eu não compartilho nada, deveria saber
disso.

— Não é o que dizem por aí — falou entredentes.


Deslocando o braço com força, Javier se virou, dando-lhe as
costas, e voltou a caminhar, comigo a tiracolo, ainda me segurando

com pressão. A mulher dentro de mim gostava da selvageria que


havia nele, tanto quanto vibrava com os seus toques carinhosos.
Suspirei. Não demorou nem trinta segundos para que

fôssemos abordados por outras pessoas, que, dessa vez, faziam


perguntas invasivas sobre a nossa relação.

Suspirei, pegando uma taça de água de um dos garçons e


levei aos lábios.
Aquela festa iria ser longa, longa demais.
Capítulo trinta e seis

— Posso pedir para o motorista me levar para casa, Javier?

— Questionei, tocando o braço dele assim que o milionário árabe se

afastou, depois de ambos terem combinado de se encontrarem no


dia seguinte no escritório. — Eu estou cansada.

Não era apenas um engodo para ir embora, realmente me

sentia fatigada de passar mais de duas horas sorrindo, respondendo


questões pessoais demais, que incluía inventar detalhes sobre o meu

pedido de casamento e o modo como nos apaixonamos, mostrando

o meu anel de noivado e a aliança a pedido das acompanhantes,

além de tentar acompanhar as conversas sobre temas que eu não

era versada.
Era fatigante ter que fingir uma coisa que eu não era e

também um pouco frustrante não se sentir à altura, mesmo que

tivesse tentado dar minhas opiniões quando era solicitado. Ainda que

Javier parecesse afável diante do meu desconforto, tentei não

pensar que era apenas fingimento da sua parte.

Tudo tinha sido uma pequena amostra do quanto eu não me


encaixava ali.
— Bastante chato, garota? — sussurrou na minha orelha
com aquele tom de diversão pícara dele. E como sempre, estremeci

perante o calor da sua respiração.

— Um pouco também — confessei, acariciando-o, sem me

dar conta dos meus movimentos.

Parecia tão natural tocá-lo, a única coisa real que havia entre

nós dois.
— Então vamos — colocou a taça vazia em cima de uma

bandeja — confesso que também estou entediado. Minha quota de

paciência está chegando no limite.

Soltei uma risada baixa, balançando a cabeça.

— Não sabia que você tinha uma — não resisti em atiçá-lo.

Fitou-me especulativamente e emitiu um som de desdém.

— Tenho até demais, garota — murmurou e deu-me um


sorriso falso. — Eu ter que aguentar essa conversação

desinteressante é a prova viva disso. Agora vamos.

Voltando a me conduzir, despedimo-nos de algumas pessoas

que Javier considerava apropriado, ignorando muitas delas no

processo, o que achava um pouco de falta de educação, e fomos em

direção ao hall.
— Ora, ora, ora, se não é o desfigurado e o seu novo

brinquedinho. — A voz feminina, com um quê de sedução, ecoou em


meus ouvidos assim que meus pés tocaram o piso de mármore da

entrada.
Javier parou por alguns segundos e eu encarei a mulher
elegante em seu vestido longo azul-marinho com belos cabelos loiros

e olhos azuis zombeteiros. Ela parecia uma verdadeira boneca


humana, porém o que ela tinha de beleza parecia ter de podridão. E

mesmo que eu não a conhecesse direito, senti-me nauseada, ao


mesmo tempo que uma pontada de fúria começava a crescer em

meu interior. Ouvi-la chamar Javier de desfigurado com tamanho


desdém talhou o meu sangue, mas apenas permaneci em silêncio.
— Tenho que dar os meus parabéns ou os meus pêsames?

— A ex-noiva do meu marido continuou a provocar.


— Acho que é os meus pêsames, amor. — O homem que a

acompanhava, que reconheci ser o marido dela pelas revistas de


fofocas, gargalhou, me tirando do transe, e eu o encarei.

Tratando-os como meros insetos, apertando a minha mão,


Javier continuou andando até o recepcionista para pegarmos nossos
casacos.
Não sei por que, mas senti um alívio enorme pelo meu

marido não sentir mais nada pela sua ex-noiva, nem mesmo uma
centelha de desejo. Instintivamente me aproximei mais dele e voltei a

acariciar seu braço, trilhando com as pontas dos dedos toda a


extensão, até alcançar sua mão livre.

— Apesar que — o homem continuou ao seguir-nos —, pelo


que se sabe dela, deve ter tirado a sorte grande por achar um trouxa
para sustentá-la.

— De fato, amor — a mulher sibilou. — Se pensar por esse


lado, até que ela tem um pingo de inteligência. Ninguém se

relacionaria com um frio disforme sem ganhar algo em troca.


A loira riu alto, fazendo com que algumas pessoas olhassem
para nós e, através do toque, senti que Javier tinha ficado mais tenso

com o último comentário dela. Ainda assim, ele se mantinha firme


enquanto o funcionário parecia demorar demais, como se gostasse

daquela fofoca.
— Se você acha isso... — meu marido falou languidamente e

estalou a língua com desdém.


— Não é surpreendente que Javier tenha baixado tanto o
nível — continuou, parecendo uma verdadeira cobra. — Uma tola
recém-saída da escola não deve ser lá muito exigente na cama,
porque se fosse… coitada.
Os dois gargalharam e eu soube que precisava reagir de

alguma forma. Tinha chegado no meu limite com todos.


— Não que o meu casamento com Javier seja da conta de

vocês dois… — comecei em um tom baixo, calmo, tentando manter a


minha elegância —, mas Javier é um marido maravilhoso —
continuei, baixinho, para que poucos ouvissem —, se vocês

acreditam ou não, é problema de vocês.


Meu marido fez um som de aprovação para mim, virando-se

na minha direção.
— Acho que aumentei meu nível, isso sim — insultou-a, mas

não prestei atenção na reação daqueles dois e nem mesmo de quem


nos assistia.
Querendo focar em algo que não fossem aqueles dois, sem

pesar as consequências dos meus próprios atos, agindo outra vez


por impulso, erguendo-me nos meus saltos, já que mesmo com eles

eu era muito mais baixa que Javier, colei nossos corpos. Resvalei
sem querer meus seios no braço dele e ouvi um grunhido baixinho
escapando dos seus lábios.
Encarei-o com toda a ternura que havia em mim, com todo
carinho e com toda a paixão que um dia eu poderia vir a ter por ele,
o que não era difícil. Com uma coragem que parecia extrapolar o

meu bom senso, depois de inspirar o cheiro do seu perfume


amadeirado, plantei um beijo suave nos lábios do meu esposo

enquanto minha mão acariciava o peitoral definido, sentindo que nós


dois estremecíamos com o prazer que meu ato nos proporcionava;
as sombras que pareciam envolvê-lo desaparecendo.

Embora eu não estivesse atuando, nunca fingia no que tangia

àquele homem envolvente, Javier parecia ter encarnado um


personagem e envolveu meus quadris com um braço, em uma

pegada forte e possessiva, antes de voltar a me beijar. Foi a minha

vez de emitir um gemido baixinho, sentindo minhas pernas ficarem

trêmulas com o desejo que me percorreu, principalmente quando


senti que Javier parecia ficar rígido, com outro tipo de tensão o

dominando, o mesmo desejo que o havia acometido quando ele tinha

me ajudado a remover os botões do meu vestido de noiva.


Perdemos o controle e tudo que não fosse nós dois pareceu

não mais existir.

Estremeci, sentindo meu sangue acelerar nas veias com o


espírito selvagem que parecia tomar conta de Javier, ao passo que
sentia que meu sexo começava a ficar úmido, pulsante, precisando

senti-lo.
Nossas respirações agitadas se mesclavam uma à outra em

meio ao beijo, até que o som de palmas irônicas nos alcançou e eu

me virei.
— Grande atuação de vocês dois — a mulher disse em um

tom irônico, continuando a bater palmas, e o acompanhante dela

gargalhou alto, chamando ainda mais atenção para nós.

Com certeza nosso showzinho era registrado pelos


fotógrafos do lado de fora. Não sei por quê, me recordei da vez que

meu marido falou que adorava chocar a sociedade. Sem dúvidas,

tínhamos dado muito material para a imprensa.


— O desfigurado agora faz aula de teatro e contratou uma

atriz para participar da sua encenação barata.

— Fiquem com suas piadas infantis sem graças — comecei


a falar baixinho —eu e meu marido não precisamos dar satisfação

sobre a nossa vida conjugal e intimidade para estranhos.

— Não consegue dizer, porque provavelmente é uma bosta

— o homem provocou-me.
— A de vocês que deve ser um grande saco de merda, já

que vocês estão tão preocupados com a nossa. — Não consegui


conter mais a minha irritação e minha voz soou gelada,

surpreendendo-me.

— Sua prostitu…
— Chega, Angelina! — A voz ácida de Javier soou baixa e a

tensão que havia nele era palpável. — Não irei tolerar que uma vadia

que nem você se dirija a minha esposa dessa maneira.

— Filho da puta…
O homem fez como se fosse partir para cima do meu

marido, porém foi contido pela esposa. Javier deu um sorriso de

escárnio, ignorando-o, se dirigindo a mulher em específico.


— Em seu lugar, Angelina — falou maldosamente —,

gastaria mais energia me preocupando onde o pau do seu maridinho

esteve ultimamente, do que com minha vida pessoal.

— O que você quis dizer com isso, bastardo?


Deu de ombros, emitindo um som ácido.

— Pergunte a Castro, não a mim.

Entrelaçou nossos dedos novamente e falou em um tom


suave ao voltar-se para mim, fitando-me com um ardor

desconcertante, roubando um selinho que fez meus lábios

formigarem.
— Vamos, mi Luz[72]? — falou. — Você disse que estava

cansada.
— Claro, querido. — Agarrei-me ao braço dele como se

fosse uma corda de salvação, impedindo-me, outra vez, que eu

caísse ao chão. O fato dele ter me chamado carinhosamente de

minha luz fez com que eu virasse gelatina. — Só preciso ir ao


banheiro primeiro.

— Eu te acompanho. — Me comeu com os olhos, fazendo

com que a minha pele ardesse com a insinuação, mesmo que fosse
apenas uma encenação. — Conheço um bastante privativo.

Quis questionar sobre como Javier sabia desse ‘local’, em

uma pequena crise de ciúmes, porém, antes que eu pudesse dizer

qualquer coisa, puxou-me de volta para o salão, com um senso de


urgência que me pareceu descabido. Sem entrarmos no espaço

principal, me direcionou à um corredor iluminado apenas por alguns

castiçais, fazendo-me ter certeza de que a festa não se estendia


naquela direção.

— Era um blefe? — questionei, tentando encher meus

pulmões de ar.
— O quê, garota? — Não desacelerou.

— Que o cara está traindo sua ex.


— Você acha que eu afirmaria algo do tipo sem ter certeza?

— Soou frio.

Quis me encolher; o homem carinhoso havia sumido.

— Não, claro que não.


— É bastante irônico, não? — Deu uma risada áspera.

— Sim. — Não questionei suas palavras ditas em um tom

vingativo, embora não desejasse uma traição para ninguém.


Deveria ser doloroso acreditar piamente em uma pessoa,

amá-la, e ela quebrar sua confiança por conta de impulsos. Mas

Javier estava no direito dele de se sentir dessa forma, ainda mais

quando os dois se uniram tão covardemente para insultá-lo.


Ele parou e me encarou na semiescuridão.

— E muito em breve, eu darei o xeque-mate — disse em um

tom sério.
— Como assim? — Arqueei a sobrancelha.

— Eles estão completamente falidos, garota. — Voltou a rir.

— Praticamente eu e outros poucos acionistas detemos quase a

totalidade das ações da empresa do Castro.


— E o que você ganha com isso?

— Além de tomar tudo o que ele mais ama? De ter a minha

vingança? — Deu de ombros. — Dinheiro a longo prazo.


— Entendi — falei em um tom baixinho.

Para mim havia muito mais coisas do que essa busca


desenfreada por retaliação e dinheiro.

Um som áspero escapou dos seus lábios, como se talvez

esperasse que eu o compreendesse, o que era ridículo, pois meu

marido não era alguém que buscava complacência. Ele voltou a


andar, me puxando outra vez, a tensão dele parecendo tornar-se

maior a cada passo.

— Você deveria me dar um bônus depois de aturá-lo —


tentei brincar com Javier, mas ele não soltou um comentário em tom

ácido, pelo contrário, continuou a caminhar apressadamente em

silêncio até que alcançássemos uma porta.


Intuindo que fosse o banheiro, desvencilhei-me do seu toque

e, empurrando a superfície de madeira, entrei no recinto luxuoso,

indo para um dos reservados. Quando me aproximei da pia para me

recompor, mal tive tempo de abrir a torneira, pois, pegando-me


completamente desprevenida, um Javier totalmente descontrolado

girou-me rapidamente, colando meu corpo contra a superfície de

mármore com o seu, e, sem cerimônia, levando as duas mãos a


minha bunda por debaixo do vestido, enterrando com pressão seus

dedos na minha polpa nua, já que a calcinha deixava parte à mostra,


ergueu-me como se não exigisse nenhum esforço e sentou-me na
bancada; o tecido da minha saia magicamente enrolou-se nos meus

quadris.

Foi instintivo para mim enlaçar o seu pescoço enquanto o


contraste da pele quente dele com o frio da pedra provocava

pequenos calafrios prazerosos por todo o meu corpo.

— Javier!? — Gemi o nome dele, em meio a uma pergunta,


ou exclamação, quando, abrindo minhas pernas com a sua coxa,

trouxe-me mais para si e encaixou seu volume excitado contra a

minha vagina.

Meu sexo pulsou, e eu movimentei meus quadris, roçando


nos dele, buscando com o contato aliviar um pouco do calor que ele

havia ateado em mim.

— Então sou um marido maravilhoso, garota? — falou com a


voz entrecortada contra a minha orelha.

Respondi com outro gemido quando ele me esfregou nele, e


encarei seus olhos que brilhavam selvagemente, repletos de luxúria.
Se era uma punição pelas minhas palavras ditas em um momento de

raiva, não me importava, eu queria mais daquele Javier que parecia


disposto a me devorar. Daquele homem que não tinha se importado
com pudores na frente de todos. O arfar rouco que ele emitiu era
ainda mais combustível para a minha excitação. Não me recordava
se alguma vez eu me senti tão afoita, tão devassa, prestes a perder
completamente minha razão.

— É uma boba. — continuou, repetindo seus movimentos.


Através daquele roçar eu me sentia cada vez mais úmida.
Infiltrei meus dedos pelos fios escuros tão bem penteados,

bagunçando-os, e tentei puxá-lo para um beijo, calando sua palavra


amarga, não queria ouvi-las. A única coisa que desejava, com fúria,
sem pudores, era a entrega daquele homem.

— Mas eu sou ainda mais idiota por acreditar que sou capaz
de me entregar completamente a você, de que poderei ser esse
homem — disse. Rebolei contra as palmas quentes dele quando

mordiscou a pontinha da minha orelha, soprando-a suavemente;


minha pele ficou toda arrepiada. — Ainda mais fodidamente estúpido
por sentir-me derreter à cada palavra sua, garota, à cada toque, à

cada beijo, à cada gemido.


— Javier? — Minha voz soou baixinha, rouca, ao passo que

o meu coração, que já batia descompassado, começou a pulsar em


uma outra sintonia, movido por uma emoção completamente
diferente daquela proporcionada pelo desejo.
Afaguei os cabelos dele com todo amor que havia dentro de
mim. Ele poderia não ter se dado conta daquilo que dizia, perdido na
sua própria irracionalidade, mas aquelas palavras, vindas daquele

homem fechado, frio, calculista, eram preciosas demais para mim.


Javier tinha me dado bem mais do que poderia imaginar.

— Você me põe louco, garota, você faz com que eu me traia


— continuou, fitando-me fixamente, cheio de anseio —, mas, ainda
assim, eu preciso que você me beije, que me faça sentir. Que…

Não terminou, colando a sua boca na minha em um beijo


exigente, sôfrego, moldando nossos lábios, mordiscando, lambendo
e sugando, enquanto meus dedos puxavam os fios macios, trazendo-

o mais para mim. Estava cada vez mais perdida nas sensações que
Javier provocava em mim, tanto que não hesitei em abrir minha boca
em um convite para que ele aprofundasse o beijo. Eu precisava,

desesperadamente, sentir outra vez o gosto dele.


Gemi contra os seus lábios e me arrepiei inteira quando
Javier não hesitou em tomar aquilo que eu dava para ele,

saqueando-me com a língua, provando cada centímetro da minha


cavidade, provocando cócegas no céu da minha boca, antes de exigir

que eu envolvesse a língua dele com a minha. Eu retribuía, beijando-


o de volta, enroscando nossas línguas, mordendo os seus lábios,
embora, por alguns momentos, temi que estava sendo um pouco
desajeitada em meus movimentos.

Tinha sido beijada outras vezes, mas nunca com aquela


voracidade, como se o beijo ultrapassasse a necessidade física e
alçasse outros níveis. Mas minha insegurança desapareceu quando

ele emitiu um suspiro de deleite e puxou-me mais contra si, como se


precisasse desesperadamente se fundir a mim, apalpando a minha

nádega enquanto com a outra mão acaricia minhas costas.


Acompanhando o ritmo das nossas bocas, que estavam
sedentas uma pela outra, nossas mãos se tornaram cada vez mais

frenéticas. Eu deslizava minha palma pela sua nuca e por toda a


extensão da sua coluna, subindo e descendo, odiando a presença do
blazer que me impedia de mapeá-lo. Emiti suspiros baixos em meio

ao beijo, sentindo-me ainda mais excitada com os sons que


escapavam dele.
Levei a minha mão trêmula aos botões que fechavam o terno

e comecei a removê-los das casas, abrindo-os um a um e, sem


querer, rocei o dorso da mão suavemente no pênis excitado, que
pareceu reagir ainda mais ao meu toque.

— ¡Carajo! — arfou.
Ia remover a minha mão, porém, abrindo um espaço entre

nossos sexos, ele segurou meus dedos com firmeza, mantendo-os


no seu pau.
— Toque-me — ordenou em voz rouca, incentivando-me a

roçar meus dedos por cima do tecido.


Fiz o que ele pediu quando, depois de puxar o ar com força,
beijou-me outra vez com volúpia, tragando para si todos os meus

gemidos e meu próprio desejo. Me sentia uma devassa ao tocá-lo


dessa maneira tão íntima, no entanto a intensidade do beijo, do olhar

penetrante, do calor das suas carícias, dos gemidos, me impelia a


continuar explorando-o por cima da calça, sentindo sua rigidez ficar
cada vez maior.

Eu era dominada por uma sensação indescritível de poder


por fazê-lo se sentir daquela maneira, selvagem, sem nenhum
controle, tanto que desejei tocar diretamente a carne inchada,

sentindo o calor de seu pênis pulsando contra os meus dedos.


Queria dar para ele o prazer indescritível que eu sentia.
Logo me perdi perante o contato morno dos lábios dele

sobre a minha bochecha, trilhando a minha pele, arranhando-a


suavemente com a sua barba, até alcançar o meu pescoço.
Tentei fechar as minhas pernas por instinto, contendo a onda
avassaladora de desejo, porém a coxa dele me impediu, fazendo
com que eu choramingasse. A língua habilidosa, rápida, percorria a

linha da minha garganta, até parar na curva perto do meu ombro.


Não havia dúvidas que a barba dele deixaria minha pele
avermelhada, mas o leve arranhar potencializava o desejo que me

percorria, tornando-o mais feroz. Exteriorizei um som rouco no


momento em que o sopro quente encontrou a umidade deixada pelos
seus lábios, o que me fez retorcer.

Meu marido era muito bom em incendiar-me com um mero


toque, com um pequeno afago, imagina com essa volúpia. Eu parecia
não ter mais vontade própria em suas mãos, estava completamente

à mercê do desejo dele.


— Javier! — O nome dele escapou dos meus lábios como se

fosse uma prece quando seus dedos encontraram finalmente a


lateral do meu peito por debaixo do vestido.
A carícia suave, o roçar delicado subindo e descendo, era

delicioso, e contrastava com a selvageria que havia nele. Senti que


meus seios pareciam mais pesados sob o seu toque, os bicos
ficando duros. E eu quis seus lábios em meus mamilos, sugando,

beijando-os, da mesma forma com que ele brincava com a minha


pele. Voltando a enroscar meus dedos nos cabelos dele, tentei puxá-
lo para baixo, indicando o que eu queria, porém sua boca

permaneceu firme no meu pescoço, ignorando meus anseios,


brincando comigo, algo não menos delicioso. Deixei-me levar pelas
sensações do seu tato e calor.

Inspirou fundo, sedento, e eu senti todas as minhas


terminações nervosas vibrarem. Meu sexo pulsava freneticamente,
implorando por alívio. Eu tentava continuar a acariciar sua ereção,

mas desatenta perante os toques de Javier; tudo em mim estava


sensível pelos seus estímulos.
— Não sei se gosto mais do seu cheiro, ou do sabor da sua

pele, seu toque, seus gemidos ou do seu beijo, garota.


— Por que escolher um se pode ter todos? — murmurei,
provocando-o, enrolando meus cabelos e jogando-os para um lado,

expondo-me mais para ele, que mordeu suavemente minha garganta.


Era um ato selvagem, mas Javier não me machucava, pelo

contrário, me fazia sentir ainda mais mulher em seus braços. Sem


me importar com os meus saltos, abracei-o com as minhas pernas,
cruzando-as na sua lombar, para trazê-lo mais de encontro a mim.

Javier pareceu ainda mais rígido, sua respiração ficando


ofegante; eu podia sentir seu pau pulsar contra o meu sexo, mesmo
com várias camadas de tecido nos separando.
— ¡Carajo, chica! — sua voz saiu abafada e, segurando meu

seio em concha, ele encontrou o mamilo com o polegar, deixando-o


mais teso. — Você me transforma em um homem que nunca imaginei

que poderia ser.


Não tive como responder, pois logo nossas línguas se
encontraram novamente. Ergui uma mão e segurei seu rosto entre

meus dedos, com ternura, enquanto nos beijávamos, suspirávamos,


exigindo um do outro coisas que não estávamos prontos para dizer
em voz alta.

Fechei os olhos. Era um beijo mágico, intoxicante, que fazia


com que o desejo secreto de que aquele casamento de aparência se
tornasse real se intensificasse, mas ao mesmo tempo, era

temperado por contatos mais fortes em que buscávamos


insanamente um pelo outro. Nossas pélvis estavam coladas uma na
outra, aumentando a nossa frustração e anseio na mesma

proporção; nossas mãos começaram a apalpar com mais


ferocidade. Afastei-o, buscando por ar, fazendo com que Javier

emitisse um som baixinho de frustração.


Mas, diferente de mim, mesmo que a respiração dele fosse
curta, meu marido não parava de me tocar com os lábios, a língua e
os dentes, refazendo o seu caminho pela minha garganta,

explorando, arranhando, fazendo com que eu ficasse completamente


mole. Choraminguei, afoita, quando alcançou o topo dos meus seios
arfantes e brincou com a região. Deslizando meus dedos, alcancei

seus cabelos novamente, e puxei os fios, trazendo o seu rosto em


direção ao meu decote. A risada rouca e excitada reverberou em

meu íntimo.
— Javier — pedi.
— Com prazer, garota. — A voz dele soou grossa.

Ergueu o rosto e me fitou com os olhos verdes cheios de


desejo. Os lábios se curvaram lentamente em um sorriso safado, ao
mesmo tempo maldoso, com promessas lascivas, o que roubou o

meu fôlego, me fazendo desmanchar. Não resisti e me curvei para


deixar um beijo no canto da boca dele, e depois outro no seu maxilar.
Dei um gritinho quando, baixando um dos lados do meu

vestido, infiltrou a mão e segurou meu seio com a sua palma quente.
Ergueu-o e baixou a cabeça para tomar o bico entre seus lábios. Um
choque me percorreu da cabeça aos pés, e eu me senti naufragar

quando ele começou a sugar enquanto que com a outra mão,


estimulava o meu outro mamilo por cima do tecido.
— ¡Dios! É muito bom — disse em voz alta quando começou
a alternar sucções com leves mordidas.
Ele respondeu com um som gutural, continuando a sugar, a

me estimular, me deixando completamente mole. Envolvidos um no


outro, no enlevo que sentíamos ao dar e receber prazer um ao outro,
nada parecia nos importar, somente nós dois e aquilo que nos

consumia.
— Virgem Maria misericordiosa! — Uma voz feminina ecoou
bastante aguda no banheiro seguido do som de algo indo ao chão.

Estaquei como se fosse uma pedra e senti que Javier


também ficava tenso sob o meu toque, mas seus lábios ainda

prendiam o meu mamilo. Por cima do ombro do meu marido, encarei


a mulher idosa que nos fitava com os olhos arregalados, parecendo
completamente em choque. As feições dela me pareceram

familiares, mas não conseguia raciocinar direito naquele momento.


Instantaneamente a vergonha se apoderou de mim e eu quis
desaparecer. Nunca na minha vida imaginei que seria pega em uma

posição tão comprometedora. Mesmo que eu estivesse com o meu


marido, me senti uma criminosa, afinal estávamos em local público,
prestes a devorar um ao outro. Será que poderíamos ir presos por

atentado ao pudor?
— O que aconteceu, mulher? — Um homem falou em um tom
severo.

Javier tirou a boca do meu seio e instantaneamente senti


falta da sua carícia erótica.
— ¡Mierda! — Javier praguejou uma série de palavrões

baixinho, parecendo irritado.


O pensamento de que talvez ele se arrependesse do seu
descontrole foi como receber um balde de água fria e, junto a

vergonha, fez com que todo o meu desejo morresse.


Respirou fundo e ergueu o rosto. A contrariedade na sua
expressão fez com que eu me retraísse ainda mais.

— Ah, é só um casal de amantes — o homem continuou. —


Lembra que fazíamos o mesmo, não é mesmo, Joana? Temos que

relembrar dos velhos tempos uns dias desses.


— Oscar! — A mulher deu um gritinho.
Em um gesto muito retardatário, consciente da minha

posição para lá de vulgar, completamente desapontada e


constrangida, descruzei minhas panturrilhas, baixei as pernas e subi
o decote do vestido. Aqueles poucos segundos em que eu tentava

aprumar-me pareceu o suficiente para o meu marido se controlar,


tornando-se o homem de expressão gelada e desprovido de

sentimentos, embora a respiração dele o traísse.


O invejei por isso, pelo autodomínio de si mesmo, tanto que
me foi preferível olhar por sobre os ombros dele o casal. A mulher

ainda parecia chocada, mas o homem mais velho do que ela tinha um
sorriso divertido nos lábios. Olhando-os, recordei-me de que ambos
tinham estado no meu casamento. Devo ter recebido seus

cumprimentos, ou os vistos na pista de dança.


— Não parece a esposa do Javier? — o homem perguntou e
eu o vi franzir o cenho.

— Porque é ela — meu marido respondeu naquele tom


apático, ao se virar, seu corpo me cobrindo. Aproveitei para ajeitar a
saia, tampando coisas indevidas. — Boa noite, Oscar, senhora

Souza.
— Bom Deus, Javier! — Não escondeu a própria diversão.

— Não esperava isso de você, homem, tem sempre suas emoções


tão controladas...
Fiquei de pé, incerta se minhas pernas me sustentariam, e

mesmo que eu quisesse me esconder, sem dúvidas eu estava em um


estado deplorável. Aproximei-me de Javier, que enlaçou a minha
cintura, sua mão pousando firme nela, acariciando-a. Não me passou
despercebido o fato de que a senhorinha, antes chocada, parecia

deliciada.
— Somos recém-casados — falou, com uma naturalidade

que me foi surpreendente. — Você não pode me culpar por isso,


Oscar. — Javier era um bom ator, sem dúvidas.
Forcei a manter a minha expressão neutra, mas eu tinha

certeza que ruborizava ainda mais com a insinuação dele. Contive a


vontade de sair correndo.
¡Dios! Era tão constrangedor!

— Não, claro que não, homem. — Sorriu e eu achei fofo o


fato dele pegar a mão da tal de Joana e deixar um beijo no dorso, a
mulher deu uma risadinha de deleite. — Também não conseguia me

controlar e ficar longe da minha Joana. Até hoje não consigo.


— Não, não consegue, Oscar — ela falou suavemente.
Sorri para os dois.

— Então, mais do que ninguém, não posso julgá-lo por


querer aproveitar cada momento com a sua jovem esposa —
continuou. — Ainda mais quando a festa pode ser bem entediante

para um homem como você.


Piscou para Javier, brincando com ele. Não escondi a

surpresa pela coragem do homem, e muito menos, pelo meu marido


responder em um tom cheio de diversão e também duplicidade:
— ¡Sí!
— Queria ter a sua idade novamente — brincou. — Mas

agora vamos, Joana, não vamos interromper mais a diversão dos


pombinhos.

— Não é necessário, nós dois já estamos de saída — Javier


comentou —, minha “esposa” está bastante cansada.

O homem gargalhou e eu não soube onde enfiar a minha


cara.
— Podemos ver o porquê — falou alegremente. — De todo
modo, bom “descanso” para vocês dois.
— Obrigada — agradeci, fazendo os dois rirem.
— Boa noite, querida.

A senhora se aproximou de mim e Javier me soltou para que


eu retribuísse o beijo e o abraço dela.
— Desejo novamente que seu casamento seja bastante feliz
— fez uma pausa — e com muitos bebês, porque sabemos que
vocês parecem estar mais do que dispostos a abrir a fábrica. —

Piscou e eu dei um sorriso amarelo, sem saber o que dizer.


— Agradeço. — respondi, sem jeito.
Um bebê poderia já estar a caminho, mas não era da forma
romântica que ela pensava. Evitei deixar-me levar por aqueles
pensamentos que fariam com que a dor surgisse.

Terminamos de nos despedir e, sem sequer me olhar no


espelho para conferir a minha aparência, eu e Javier deixamos o
banheiro, como se fôssemos um casal de apaixonados.
Soltei um suspiro de alívio, mesmo assim, ainda me sentia
embaraçada, com minhas pernas completamente bambas. Flashes
do que tinha acabado de acontecer rodopiavam na minha mente, o

desejo não satisfeito banhava as minhas veias. Eu ainda queria o seu


beijo, sua boca nos meus seios e pelo meu corpo de maneira
visceral.
— Quem são eles? — questionei enquanto caminhávamos
em silêncio pelos corredores.
— Um casal de clientes.

— Entendi. — Fiz uma pausa. — Foi bastante constrangedor.


— Se arrepende, garota?
— Não — falei baixinho. — Eu deveria, Javier?
— Se fosse sensata, sim.
— E você? — Fiz com que ele parasse, antes que

adentrássemos ao hall.
Virou-se para mim e tocou o meu rosto, acariciando-o
suavemente.
— Eu deveria, mas não consigo, garota — confessou em um
tom rouco e meu coração pareceu se encher de esperanças.
— Isso me deixa aliviada. — Sorri, mesmo que não tivesse

certeza se ele poderia vê-lo na escuridão.


— Mas isso não quer dizer que iremos concluir o que
começamos. — Roçou os seus lábios nos meus em um beijo
agridoce. — Nem hoje, nem amanhã.
— Nós estávamos gostando, então por que… — Morri de
vergonha pelo meu pensamento ter saído em voz alta.

— Esse é o problema, garota. — Voltou a me dar um


selinho. — Estávamos gostando mais do que é prudente.
— Não compreendo.
— Temos que nos lembrar dos limites do nosso contrato —
disse antes de se afastar. Eu recebi suas palavras como se fosse
um tapa na minha face.

— Javier…
— E eu também não posso — murmurou para si mesmo e
pelo seu timbre pude perceber que ele parecia sentir dor.
— Não entendo, Javier… — Estava confusa com a tristeza
que ele parecia sentir.

— Não posso… — Não continuou.


Balançou a cabeça em negativa.
— Vamos, garota — falou suavemente, ignorando meu tom,
que era uma mistura de desapontamento e súplica, bem como a
minha pergunta. Eu estava completamente perdida. — Foi uma festa

cansativa e eu ainda preciso ir para o escritório, tenho uma reunião


importante com um cliente chinês.
Antes de esperar uma resposta, virou-se e eu apenas o
segui em silêncio, submissa, sentindo todas as esperanças que não
deveria ter abrigado dentro de mim, de que algum dia pudéssemos
viver aquele casamento, mesmo que tenha sido iniciado sobre bases

tão frágeis como a atração sexual, desvanecer. Foi impossível não


conter a tristeza que me assolou.
Capítulo trinta e sete

Entrelacei minhas mãos suadas pelo nervosismo e remexi-me

inquieta na cadeira do consultório enquanto aguardava o médico

voltar com o resultado do teste de Beta HCG, que eu havia feito para
saber se a inseminação havia dado certo e se eu realmente estava

grávida, já que ainda não havia sentido nenhum sintoma que poderia

pelo menos me indicar o meu estado.


Desde que eu deixei a festa de mãos dadas com Javier, o

restante do período de espera tinha se passado lenta e

solitariamente. Eu tentava preencher o meu tempo buscando

aprender inglês, já que, além do meu irmão estar bastante ocupado

com o seu novo trabalho e também estudando para realizar o exame

de selectividad[73], o que me deixava superfeliz por ele, o meu

marido parecia ter se afundado cada vez mais no trabalho.


Javier estava passando muito mais tempo no escritório,

voltando para o apartamento apenas para descansar um pouco.

Quando estava em casa, ele pouco falava, praticamente todo

recado importante era transmitido pelo secretário dele. Era como se

ele estivesse fugindo de mim, do que ocorreu, da atração que


parecia existir, mesmo naqueles poucos momentos em que
estávamos juntos; as chamas do desejo insatisfeito ainda crepitavam

entre nós dois. Me ressentia, como uma tola, de não haver mais os

toques sutis nem as conversas bobas. Mas o pior era que não houve

mais nenhum beijo ou selinhos, aqueles que tinham a capacidade de

me deixar extremamente mole e rendida.

Tentando afastar da mente não só as lembranças ardorosas,


mas também as imagens eróticas que eu mesma havia criado, em

que completei na imaginação o que havíamos começado, porque

parecia que nunca iria ser finalizado, suspirei e olhei a cadeira

desocupada ao meu lado.

Tinha se passado pouco mais de dez minutos que haviam

coletado o meu sangue, mas parecia que tinham se passado horas,

sensação aumentada por eu estar sozinha, já que Javier não pôde


me acompanhar, por um motivo que não compreendi bem. Não podia

negar que fiquei chateada quando o secretário dele me comunicou

que meu marido não estaria comigo. Fiquei bastante sentida por

mim, mas principalmente por ele. Mesmo que nenhuma vez tivesse

falado abertamente, era consciente de que Javier estava ansioso

para saber se eu já estava grávida, até mais do que eu, então queria
que ele estivesse aqui comigo, nesse momento que era especial não
apenas para mim, mas com certeza para Javier também. Tinha

certeza de que, se ele pudesse, estaria aqui.


O barulho da porta se abrindo fez com que eu desse um

saltinho na minha cadeira, e esticasse o pescoço, me virando para a


entrada, sentindo minha respiração se acelerar quando vi o doutor
entrar, minha visão focando na mão dele que segurava uma folha de

papel.
— E então, doutor? — questionei, com o coração na goela,

meus dedos ficando ainda mais suados com o nervosismo, agitação


que se tornou ainda maior quando ele não me respondeu

imediatamente, caminhando com passos lentos em direção a mesa,


até que se sentasse.
— Segundo o exame, a taxa de HCG presente no seu

sangue é de 40 mIU/ml.
Encarei-o, confusa, ficando ainda mais nervosa.

— O que isso significa, doutor?


— Que a inseminação foi um grande sucesso e que você

está grávida.
Continuou a falar, mas eu não escutei mais nada, pois fiquei
em choque. Mesmo que eu estivesse esperançosa pela confirmação,

estava paralisada, somente respirando. Minha mente parecia ter


virado mingau, enquanto lágrimas começaram a se formar nos meus

olhos e a escorrer pela minha face. Eu não conseguia acreditar


naquilo que meus ouvidos haviam escutado.

— Marcaremos um ultrassom semana que vem para


visualizar o saco gestacional.

A afirmação dele arrancou-me do transe e eu instintivamente


levei a minha mão na barriga, pousando-a sobre o abdômen, como
se eu conseguisse sentir a criança que crescia em meu interior.

— Eu estou realmente grávida, doutor? — sussurrei uma


pergunta besta, precisando que ele confirmasse outra vez. Estava

abobalhada demais.
Ele franziu levemente o cenho, mas era educado demais
para comentar o quanto ridícula eu estava sendo.

— Sim, senhora Castillo.


Deixei que a alegria singela e linda daquele momento me

contaminasse, bem como o meu instinto protetor vir à tona.


— Eu vou ter um bebê — voltei a murmurar, deslizando os

dedos pela minha barriga, não contendo um sorriso —, um lindo


bebezinho.
Meu choro ficou ainda mais intenso à medida que a certeza

se tornava maior, criando raízes na minha mente e no coração.


Se antes estava mais do que encantada, agora me sentia
completamente apaixonada pela ideia de me tornar mãe.
¡Dios! O amor que eu já tinha por aquele serzinho pareceu se

multiplicar ainda mais, extrapolando o meu próprio corpo. Gargalhei,


alto.

O médico me fitou-me com um ar de pena e a realidade


amarga caiu sobre mim, algo que não deveria ter esquecido nem
sequer por um momento, de que eu apenas o geraria, que a

convivência seria algo que me seria privado. As lágrimas, que antes


eram de felicidade, deslizaram dolorosamente.

Chorei convulsivamente, cedendo ao desespero, presa na


minha própria dor por querer demais aquela criança. O olhar cheio

de compaixão do homem e o suspiro cansado que deu fizeram com


que eu desmoronasse ainda mais.
Um pedaço enorme tinha sido arrancado de mim ali, e eu

temia que, a cada dia, mais e mais, a cada respirar meu, a cada
bater do meu coração, outros pequenos pedaços fossem retirados,

deixando-me oca, vazia.


Respirei fundo, balançando a cabeça, tentando infundir
alguma grama de otimismo dentro de mim. A recordação de mim

mesma me dizendo que o amor incondicional que eu tinha


ultrapassaria a distância e a ausência me deu um pingo de forças, e
não dei ouvidos a vozinha que sussurrava no meu ouvido que não era
o suficiente e nunca seria, não para mim.

— Se sente um pouco melhor, senhora? — Entregou-me um


lenço.

— Sim, obrigada — murmurei, secando as lágrimas. —


Desculpe-me por isso.
Ele assentiu.

— Bom, tenho que ligar para o senhor Javier para informar

os resultados do exame.
— Ele não ainda não sabe? — Me surpreendi por ele não ter

contado para o meu marido antes de mim.

Fez que não com a cabeça.

— Sei que deveria, mas achei que você deveria ser a


primeira. — Respirou fundo. — Agora com licença, senhora.

— Espere, doutor — pedi quando o homem pegou seu

celular e fez menção de discar o número do meu marido. Uma ideia


infantil me ocorreu ao recordar-me de que eu tinha me prometido,

enquanto terminava de me arrumar para o meu casamento, que eu

faria de tudo para uma boa convivência com o pai do meu bebê, faria
isso por nós três.
Descobrir que realmente estava grávida dele poderia ter um

sabor agridoce para mim, mas a notícia de que Javier se tornaria pai
não precisava ser dada como se fosse um relatório dos ganhos de

um dos negócios financeiros dele, não quando ele se arriscou tanto

para ter aquele bebê.


Acariciei meu abdômen, sentindo o meu amor pela minha

sementinha pulsar, bem como minha determinação.

Meu corpo poderia ter sido comercializado, bem como parte

da minha alma, mas não o meu bebê. Meu filho precisava ser
celebrado, amado. E era isso que eu faria.

Por mais difícil que fosse, eu tentaria afastar toda a tristeza

e dor que a ideia de me separar do bebê causava em mim, deixando


isso para depois. Viveria cada momento da gravidez e do nascimento

dele ou dela como a coisa mais preciosa do mundo. Guardaria todos

esses momentos para mim, fazendo com que Javier nunca


esquecesse deles também.

Eu amaria meu bebê a cada segundo e comemoraria cada

etapa do seu desenvolvimento, e não permitiria que Javier também

não vibrasse pelo nosso filho. E eu começaria agora.


Nosso casamento poderia ser uma mentira, mas nosso amor

por aquela criança que eu já carregava não o era.


— Sim? — Fitou-me expectante.

— Quero contar para ele pessoalmente, doutor — forcei a

minha voz a sair mais firme.


Os olhos do homem se arregalaram, espantados.

— Desejo fazer uma pequena surpresa para o “meu marido”.

— Sorri.

— Tente me entender, o senhor Javier ficará furioso comigo


caso eu não o informe imediatamente. — Sua voz soou tensa.

Balancei a cabeça em negativa.

— Eu irei assumir toda a responsabilidade.


— Não posso fazer isso, senhora. — Gesticulou com a mão.

— Ele poderá acabar com a minha carreira como retaliação.

— Por favor, doutor — pedi suavemente ao tocar a mão

dele, mesmo que fosse completamente impróprio. — Sei que o


senhor está ciente das circunstâncias de tudo, mas será importante

para mim e para ele também.

— Eu não sei, senhora. — Ele não escondia seu nervosismo.


— Por favor — repeti.

Fitou-me por longos segundos, parecendo ponderar, até que,

com um suspiro longo, acabou assentindo.

— Sei que irei me arrepender disso…


— Não se preocupe — removi minha mão e falei com uma

certeza que surpreendeu até a mim mesma, pois, embora eu


acreditasse em Javier, tinha que admitir que ele conseguia ser

volúvel em suas decisões, agindo de acordo com o seu humor. —

Pode não parecer, mas meu marido é um homem justo e nunca


puniria alguém injustamente.

Ele não escondeu a incredulidade e eu sorri.

— Posso te fazer uma pergunta de cunho pessoal, senhora?

— Pareceu sem jeito ao se movimentar na cadeira.


Não tinha ideia do que o meu médico poderia querer saber

sobre mim; esperava que não fosse algo constrangedor.

— Claro. — Emiti um suspiro.


— Você não teme por si mesma? — Sua voz saiu hesitante.

— Digo, as consequências em despertar a raiva do senhor Javier

dessa maneira. Apesar de tudo, sua situação é bastante precária.

Demonstrei surpresa e também senti uma vontade absurda


de proteger Javier me invadindo, mesmo que eu devesse me

autopreservar.

Javier era apenas um homem, não um monstro, um


arrogante e egocêntrico, mas, ainda assim, alguém que tinha coisas

boas a oferecer a alguém, além do cinismo e terror. Ele conseguia


ser carinhoso quando queria; o modo como ele cuidava de Isabel e

Lorenzo e também a forma com que ele tinha me ajudado na festa

indicavam isso.

Encarei o médico com firmeza.


— Não, senhor — respondi, sem pensar muito. — Eu não

consigo ter medo dele e de nada que possa fazer contra mim.

“Somente do momento em que ele irá me afastar de vez da


vida dele e a do meu bebê”, completei em pensamentos. Mas não

poderia culpar Javier, já que eu havia assinado o documento que

dava legalmente toda a custódia para ele.

Respirei fundo, tentando aplacar novamente meu sofrimento,


não querendo voltar a cair no choro, contradizendo-me.

— Tenho que confessar que eu a admiro por isso — falou em

um tom baixo depois de longos minutos. — Todos o temem, inclusive


eu, e a senhora é ainda tão jovem...

Dei um sorriso fraco.

— Desculpe-me por ser tão invasivo, senhora.

— Não por isso. — Assenti. — Não tem problema.


— Além de marcarmos o primeiro ultrassom — voltou ao

assunto que tinha me trazido até ali —, pedirei que você faça alguns

outros exames e que também mantenha a dieta que a nutricionista


prescreveu. Ainda deverá consumir moderadamente café e

refrigerantes.
— Claro.

— Se for necessário, faremos algumas alterações na sua

alimentação e rotina de exercícios.

Continuou a me passar uma série de instruções enquanto


digitava algo no computador, e tentei gravar todas as informações

que ele me passava.

— Tem certeza de que quer fazer isso, senhora? —


questionou quando eu estava me levantando para deixar o

consultório. — Ele não gosta de surpresas e muito menos ficar

esperando.
Quis gargalhar pelo receio dele e pelas tentativas de me

dissuadir. Não duvidava que, mais tarde, ele faria um relatório para o

meu marido, arriscando enfrentar sua suposta fúria.

— Tenho. Até a próxima consulta, doutor.


— Uma boa tarde, senhora.

— Para o senhor também.

— E boa sorte.
Não contive mais a risada. Segurando a minha bolsa com um

pouco mais de força, deixei a sala. É, talvez eu fosse precisar de um


pouco de sorte, mas não do tipo que o meu obstetra imaginava, mas,
sim, para não desmoronar outra vez quando eu descobrisse a reação

de Javier.
Capítulo trinta e oito

— Está despedida — sentenciei friamente.

Ouvi uma das diretoras de marketing da rede de fast-food,

que tinha lojas por toda a Espanha, me xingar de bastardo


demoníaco em um sussurro do outro lado da linha.

— Você não pode fazer isso, senhor Javier, eu consegui

contornar o erro na campanha antes que ela entrasse em veiculação.


— Pareceu se recompor alguns segundos depois.

Não retruquei que tinha sido a equipe dela, e não

propriamente ela, que havia conseguido entrar em contato com todos

os veículos de imprensa para barrar a divulgação da nova linha

gourmet de hambúrgueres.
— Sou uma profissional conceituada e várias empresas

desejam que eu esteja à frente das suas campanhas de marketing —

continuou.

— Então fique à vontade para se inserir em uma delas. —

Demonstrei meu desdém com um som de irritação.

— Os danos foram todos mitigados e esse é o primeiro


equívoco que cometi nestes últimos meses.
— Um que, por muito pouco, me custaria muito mais do que
os milhões que eu já tive de prejuízo pelo atraso — fui frio.

Senti que a raiva, que a muito custo dominava, cresceu ainda

mais, outra vez direcionada em partes a mim. Embora o comentário

fosse corriqueiro, senti que havia falado demais, já que não deveria

estar perdendo o meu tempo justificando-me para uma funcionária.

Era patético. Ela quem deveria responder a mim, não o contrário.


— Era uma boa ideia — tentou se defender, demonstrando

um pouco de raiva, mas mudou de tática. — Gosto de trabalhar para

o senhor e quero permanecer no cargo, então, por favor, dê-me mais

uma chance.

O tom bajulador com o qual falou fez com que a minha ira

aumentasse ainda mais.

Definitivamente ela tinha adotado a tática errada. Não


tolerava isso de um funcionário e, provavelmente, de ninguém.

Trinquei os dentes ao pensar que havia, sim, uma mulher que

era capaz de me seduzir com suas palavras ditas em tom doce:

minha esposa.

Balancei a cabeça em negativa, tentando focar no meu atual

problema.
— Não preciso ouvir mais nada, senhora Rico — falei

secamente. — Nada do que disser fará com que eu mude de ideia, já


deveria saber disso.

Sem esperar que ela continuasse tentando argumentar o


porquê eu deveria mantê-la no cargo, bati o telefone com força,
encerrando a ligação.

Passei a mão pelos meus cabelos, desarranjando-os,


soltando uma gargalhada cheia de escárnio, de ódio.

Se havia alguém que teria que desferir palavrões, esse


alguém era eu. Todos os incompetentes que estavam em meus

negócios e os problemas a serem resolvidos pareceram terem


deixado para surgir hoje, me jogando um grande balde de água fria.
Era consciente de que, vez ou outra, reveses aconteciam, o que não

queria dizer que eram menos irritantes, porém, nesse momento,


minha paciência, que era bastante limitada, parecia ter evaporado.

Estava mais irritadiço do que o normal, não conseguia me concentrar


e me pegava divagando quando deveria estar focado.

Ainda gargalhando, abri e fechei a mão, sentindo os dedos


doerem pela tensão.
Pela primeira vez, meu escritório não era o meu santuário.

Eu não queria estar ali, mas, sim, no consultório, aguardando junto


com a garota o resultado do exame para saber se ela já estava

grávida. Eu tinha passado a madrugada inteira acordado pensando


no meu bebê, pedindo a todos os seres sagrados que eu conhecia

para que a inseminação desse certo e que a espera angustiante por


segurar o meu filho se tornasse menor. Talvez fosse a parte mais

difícil da inseminação o aguardar, torcendo para que desse certo,


engolir a frustração, caso desse negativo, e tentar novamente.
Continuei a rir quando o pensamento de que, mais uma vez,

a vida tinha me roubado a minha felicidade ao ter que perder um


momento tão especial para mim. Com a minha sorte, ela me foderia

outra vez com um resultado negativo.


— ¡Dios! — Arfei, sentindo uma pontada de dor transpassar
o meu peito ao pensar naquela possibilidade.

Me sentia cada vez mais fodido, arruinado. O desejo que eu


sentia pela “minha esposa”, pelo corpo dela, pelo beijo, pela entrega,

pelo carinho, toda a ânsia para que ela me tocasse novamente de


várias formas, como ela me tocou em meu descontrole, só me

faziam me afundar ainda mais na minha própria melancolia.


Eu queria ser um homem que se permitisse ser levado pelas
próprias emoções. Ser o homem dela.
— Uma fam… — interrompi o pensamento que expressava
em voz alta, não conseguindo pronunciar a palavra que me parecia
tão cara.

Eu não merecia. Não podia.


O medo de que ela me ferisse, me machucasse, era

pungente. Não suportaria que a garota brincasse comigo, zombasse


dos meus sentimentos.
Porra, se eu fosse sincero comigo mesmo, não queria sexo,

eu queria que ela fizesse amor comigo. Não desejava uma rapidinha
em um banheiro, mas, sim, algo a mais, que eu não poderia exigir,

muito menos comprar, mesmo que ela fosse ambiciosa o suficiente


para se vender.

Mas não queria o fingimento, não dela.


Manter-me afastado por não conseguir controlar os meus
anseios, mesmo que fosse taxado por ela de um grande covarde, o

que de fato eu era, tinha sido a melhor opção, mesmo que me


custasse caro.

Respirei fundo, balançando a cabeça em um gesto de


negativa.
Ignorando todas as pendências e também alguns problemas

que ainda precisavam ser resolvidos, peguei o meu celular privado.


Eu sabia que não teria nenhuma ligação perdida, mas, ainda assim,
chequei o registro de chamada, as mensagens e até mesmo o e-
mail, porém não havia nenhuma notícia de Marcos, nem mesmo da

garota.
Emiti o suspiro que estava preso na minha garganta. O

resultado já deveria ter saído há pouco mais de uma hora, eu já


deveria ter sido informado.
Senti que ficava gelado com a possibilidade de que algo de

errado poderia ter acontecido, mas procurei me acalmar. Era um

exame bobo, e não havia nada que pudesse dar errado. No máximo,
um resultado indeterminado que teria que ser repetido em um outro

dia. Contrariado, estava quase ligando para o médico para descontar

nele toda a minha frustração, quando ouvi a voz da garota vencer a

acústica do meu escritório.


— Javier?

Uma onda de alívio percorreu o meu corpo por escutar o tom

comumente alegre dela, indicativo de que nada grave tinha ocorrido,


ao passo que eu franzi o cenho. O que ela estava fazendo aqui?

— Você está no seu escritório? — insistiu.

— Sim, garota, entre.


— Você pode abrir a porta para mim? Minhas mãos estão

ocupadas, e seu secretário não está aqui para me ajudar.


— Ele saiu mais cedo para ir ao médico com a “mãe” — a

palavra saiu amarga pelos meus lábios, porém não me ative a isso.

Na verdade, estava mais preso ao pedido estranho.


Ainda assim, como se fosse uma criança obediente, o que

era no mínimo ultrajante, empurrei a cadeira e me ergui. Com passos

rápidos, ansiosos, uma parte querendo vê-la, outra querendo

interrogá-la logo sobre o exame, abri a porta, encontrando-a parada,


segurando uma enorme caixa, que não dei importância, pois toda a

minha atenção se encontrava no seu rosto. Porra, os olhos verdes

dela irradiavam felicidade e o sorriso enorme que pairava em seus


lábios fez com que eu perdesse o ar. Eu não precisava que ela me

dissesse qual tinha sido o resultado, pois estava estampado nas

suas feições. Bárbara estava grávida.


Fiquei paralisado, apenas tentando controlar a respiração.

Não pensei em mais nada, nem mesmo na mulher à minha

frente. A única coisa que estava consciente era de que o meu corpo

tremia, que minhas pernas estavam completamente bambas, ao


ponto de não me sustentarem de pé. Mas não me importava se eu

cairia de joelhos, não enquanto várias emoções me percorriam,


preenchendo os vazios que havia na minha alma. Não quando meu

desejo mais secreto estava se realizando. Eu teria um doce

bebezinho a quem amar, uma pessoinha a quem eu poderia ser eu


mesmo e dar tudo o que eu tinha de melhor dentro de mim: meu filho,

alguém que já amava incondicionalmente!

Meu coração começou a galopar no peito e eu jurava ouvir

as batidas ressoando no meu ouvido.


— Javier? — a garota me chamou baixinho.

Encarei-a, saindo do transe emocional que eu estava. Sua

expressão ainda parecia contente, porém havia algo estranho nela,


que na minha euforia de saber que em menos de nove meses eu

teria meu bebê em meus braços, eu não conseguia distinguir.

— O quê? — sussurrei.

— Você está chorando!


— Eu… — Erguendo a minha mão lentamente, toquei o meu

rosto, sentindo-o molhado.

Nem havia sentido as lágrimas rolarem pela minha face. Eu


deveria estar completamente furioso comigo mesmo por me expor

dessa maneira perante aquela mulher, que já tinha muitas armas

para me destruir, porém não conseguia me ressentir de mim mesmo,

embora devesse. Estava me sentindo feliz demais com a notícia para


me importar com a minha própria vulnerabilidade, tanto que não fiz

nenhum gesto no sentido de esconder o rastro deixado pelo pranto.


— Pelo jeito, sim. — Minha voz saiu rouca, quase inaudível.

Ela suspirou.

— Eu fico feliz por isso, Javier. — falou em um tom risonho


enquanto seu sorriso ficava maior. — Eu acho tocante.

Franzi o cenho. A garota estava zombando de mim? Dos

meus sentimentos? Da minha fragilidade?

O amor que irradiava por todos os meus poros pelo meu


bebê foi bem mais forte do que a minha tendência de transformar

momentos bons em amargura, mas uma pequena parte de mim, a do

homem que ela tinha despertado com toques e beijos, queria


acreditar que ela era diferente e que não seria tão cruel.

Desviei o olhar.

— De verdade, garota? — Soltei a pergunta à queima roupa,

sem pensar muito se faria papel de tolo.


— Por que eu mentiria para você sobre algo tão bonito,

Javier? — devolveu a pergunta em um tom firme, desafiador. — Eu

sei que você já é apaixonado por essa criança desde que assinou o
contrato.
Abri e fechei a boca, tentando buscar palavras, porém não

as encontrei. Escutar alguém dizer em voz alta meus sentimentos,

confirmando que eu era capaz de amar, parecia fazer com que eu

me sentisse ainda mais feliz, nas nuvens.


— Ver esse amor estampado em suas feições é muito

emocionante — continuou a dizer em um tom suave —, e eu não

posso me arrepender da minha decisão de te contar pessoalmente.


— É por isso que você está aqui? — Fiz uma pergunta

besta. — Para me dizer o resultado?

Estava surpreso demais com o seu gesto e, se fosse

honesto, completamente confuso por ela vir me trazer aquilo que eu


havia perdido. Eu não soube lidar com o altruísmo dela em relação a

mim, nunca alguém foi tão generoso comigo a esse ponto. Bárbara,

mais uma vez, me tocava em locais que eu havia trancado a sete


chaves.

Outra lágrima sorrateira escorreu pelo meu rosto.

Inalei o ar devagarinho, tentando acalmar a minha

respiração, que estava ainda mais ofegante.


— Queria fazer uma surpresa para você.

Encarei-a novamente, buscando a verdade, e encontrei o

sorriso doce dela, os olhos sonhadores, e também um pouco de


timidez.

— Por isso que Marcos não me ligou? — questionei, depois


que a minha ficha caiu.

A determinação em censurá-lo pela sua incompetência, se é

que ainda havia alguma dentro de mim, provavelmente seria

esquecida. Eu sabia que aquela garota, com sua doçura, tinha a


capacidade de conseguir o que queria. Ela era intrometida, um

grande ponto negativo nela, porém nunca imaginei que daria graças

pela minha esposa ser enxerida.


Contive a vontade de rir.

— Pedi que ele não o fizesse — fez uma pausa, como se

ponderasse as próprias palavras —, uma notícia tão importante


assim tem que ser comemorada, não dita de maneira impessoal.

— Compreendo.

Meu peito se apertou ao enxergar pelo ponto de vista dela o

quão frio seria receber a notícia de que a inseminação deu certo e


que meu bebezinho já estava a caminho. Eu era grato por Bárbara

ser mais sensível do que eu nesse aspecto, precisava e muito

daquilo.
— Mas acho que falhei miseravelmente no meu intento.
Fiz que não com a cabeça, e tive que conter a minha vontade
de tomá-la em meus braços, sem me importar com a caixa, e girá-la,

deixando-me levar pelos meus sentimentos, que eram um grande

turbilhão.
— Não, garota, você não falhou em surpreender-me…

Voltei a fazer um gesto negativo, confessando aquilo que eu

levava dentro de mim, ignorando a sensação de que as minhas


palavras que eram fracas e bobas, mas era a primeira vez que

tentava verbalizar sentimentos depois de aprender que falá-los em

voz alta era um erro bastante caro:

— Não tem ideia do quanto isso foi importante para mim —


completei —, eu agradeço.

Sua resposta foi em forma de sorriso.

— Vamos entrar? — A sobrancelha dela se arqueou. —


Estou cansada de ficar segurando essa caixa.

— Claro. Eu…
Sem jeito, peguei a embalagem das mãos dela sem que
pedisse e dei um passo para o lado, para que ela entrasse. A risada

dela adentrou no meu peito e pareceu ali ficar.


Como um tolo, fiquei parado alguns segundos, antes de me
virar e entrar também. Mesmo que não devesse, meu olhar recaiu na
bunda redonda e empinada. Ignorei as lembranças de ter os meus
dedos cravados na carne macia, pois naquele momento não tinha
lugar, forçando-me a caminhar, seguindo-a, percebendo que ia em

direção a cozinha.
Coloquei o invólucro sobre a mesa e, em silêncio, observei-a
mexer na bolsa.

— Tome. — Estendeu-me um envelope. — É o resultado do


exame. Acho que você gostaria de ver.
— ¡Sí! — Suspirei.

Com os dedos subitamente trêmulos, peguei o invólucro


branco e tirei um papel de dentro dele. Meus olhos instantaneamente
marejaram novamente só pelo seu significado. Fitei as letras e

números, que ficaram embaraçados, à minha frente, e novamente a


alegria me invadiu. Eu perdi a noção de espaço, do tempo.
Eu apenas era consciente do meu coração agora

bombeando forte de emoção e do calor da palma da garota contra a


minha, ao segurar a minha mão. Um arrepio de prazer percorreu a

minha coluna, eriçando os cabelos da minha nuca. Como se fosse


uma marionete, a assisti conduzir a minha mão em direção ao seu
abdômen, colocando-a debaixo da blusa, fazendo com que eu

tocasse a sua barriga ainda lisa.


Levei um choque com aquele gesto mais do que inesperado,
deixando que o papel escorregasse do meu agarre, porém não
consegui afastar meus dedos dali.

— Garota? — Minha voz saiu quebrada e, dessa vez, senti a


nova onda de lágrimas que escapavam pelos meus olhos. — O

quê…
— É uma tolice minha, mas ainda que seu bebê seja algo tão
pequenininho dentro de mim, quero que você o sinta — sussurrou —,

desejo que você não perca nada dessa gestação.


Fiquei em silêncio, momentaneamente sem forças para
responder.

— Que você toque sempre o bebê quando quiser, sem se


preocupar com o meu corpo. Que crie vínculos com essa criança
quando ainda estiver em minha barriga.

— ¡Dios! — Foi a única coisa que consegui dizer naquele


momento.
Fechei os olhos e, infiltrando a minha outra mão pela

camiseta, deixei que meus dedos percorressem a pele lisa como se


de fato pudesse sentir o meu bebê, mesmo que ele ainda fosse

menor que um grãozinho de arroz. Poderia parecer idiota para


muitos, mas, para mim, estava longe de ser. Porra, eu guardaria
aquele presente para sempre. Minha esposa de fachada, minha
barriga de aluguel, estava transformando a descoberta em algo

muito mais do que especial, do que perfeito. Estava sendo


indescritível.
— Meu filho — murmurei, tempos depois, expondo em voz

alta o meu amor.


— E se for uma menininha? — questionou ao colocar a mão

sobre a minha.
Abri meus olhos contemplando sua expressão suave, seus
olhos questionadores. Estranhamente, na minha percepção, ela

parecia ainda mais linda, e eu quis plantar uma série de beijinhos


pelo seu rosto.
— Hein? — insistiu.

Engoli em seco e não pensei muito na minha resposta.


— Pelo menos uma mulher poderá vir a me amar algum dia.
Baixei minhas mãos, interrompendo o contato, ainda que

meus dedos quisessem continuar acariciando a barriga dela, que a


minha voz quisesse implorar pelo amor dela, que ela tentasse me
amar.

— Javier… — Seu tom soou triste, e me incomodou um


pouco a compaixão que cintilou em seus olhos.
Tentou deslizar o dorso na minha face, mas a impedi,

segurando-a pelo pulso, maneando a cabeça em uma recusa. Uma


adaga sendo cravada em meu peito não seria tão eficiente em me
ferir como a pena nela, comiseração que me fez ciente de que

aquele tipo de amor que eu ansiava não poderia vir dela, embora o
meu melhor amigo tivesse sugerido que com ela seria diferente, e
até mesmo Bárbara tivesse me feito crer que seria possível. Eu

estava fadado à ser sozinho.


Reprimi o sorriso de amargura.

Permanecemos nos encarando como se nos


comunicássemos em silêncio, nossas respirações ofegantes, até que
me agachei para pegar o papel para guardá-lo no envelope.

— Você tem tempo para uma pausa? — perguntou.


Poderia retrucar, sendo ácido, porém engoli a minha
amargura para mim mesmo, determinado a não deixar que a verdade

me afetasse.
— Sim — menti.
Ainda havia uma série de problemas que deveriam ser

resolvidos e exigiam a minha atenção, mas, naquele momento, eles


pareciam não me importar. Eu ainda queria aproveitar a magia que
havia em saber que eu era pai.
— Por que a pergunta? — questionei, curioso, puxando uma
cadeira para me sentar.

— Trouxe alguns bartolillos[74] — apontou para a caixa, que

havia esquecido completamente, e eu vi os olhos verdes dela


cintilarem —, e outros docinhos para comemorar.
Não contive uma risada e ela gargalhou também.

— Por que não adivinhei que seriam coisas doces? —


provoquei-a.
— Não sei. — Deu de ombros, adotando um tom brincalhão.

— Era tão óbvio.


— ¡Sí!

— Você quer que eu prepare um café?


Seu olhar pareceu ficar preocupado. Como os outros
sentimentos, eu não sabia lidar com a sua inquietação.

— Parece bastante cansado, Javier. — Continuou quando


não respondi de imediato.
— Um pouco — sussurrei. — Se não for incômodo para

você, garota, aceito.


— Não, “maridinho” — brincou. — Iria fazer um chocolate
quente para mim de qualquer modo. Vou continuar a evitar tudo que

tenha cafeína.
— Entendo.
Ela se virou para a bancada, começando a mexer nos

utensílios e armários. Uma parte de mim não podia negar que havia
sentido falta de vê-la mexendo em tudo por ali. Até então, não era
consciente que as vezes que tínhamos compartilhado um café ou

uma refeição tinha tamanha importância para mim. Havia uma


domesticidade, uma intimidade no ato, que me aquecia, que me fazia
querê-la ainda mais…

Balancei a cabeça em negativa.


— Ainda tem chocolate e leite nessa cozinha?
— Acredito que sim. — Foi a minha vez de dar de ombros.

— Como irei saber?


— Falha minha — sussurrou para si mesma. — Conseguiu
resolver o problema que o impediu de ir ao exame?

— Por que acha que tive um problema?


— Se não fosse grave, você não estaria aqui.

Estalei a língua e continuei a observá-la, vez ou outra, meu


olhar se fixando em suas nádegas.
— Uma campanha de marketing que quase iria negativar a

imagem de uma das minhas empresas com os consumidores. —


Passei a mão pelos meus cabelos, ignorando a minha propensão de
falar com ela como se eu fosse uma gralha. — Mas já está resolvido
e a pessoa responsável demitida.

— Entendi. — Fez uma pausa e virou-se para mim. —


Falando em demissão…

— Sim, garota?
— Acho que você deveria demitir o supervisor de serviços
gerais da Global.

Arqueei a sobrancelha.
— Me dê uma boa razão para isso. — Poderia censurá-la,
mas quis ouvir o que ela tinha para dizer.

— Ele coage os funcionários a fazerem o trabalho dele com


ameaças de demissão. Ele é um grande valentão, por assim dizer.
Senti a raiva me invadindo, ficando ainda mais furioso por

pensar que ele ameaçou a mulher que agora é a minha esposa.


— Por que só soube disso agora?
— Não dá para negar que não tive uma oportunidade antes.

— Voltou-se novamente para mim.


— Pedirei que Fernán envie uma carta comunicando-o do

desligamento da financeira e acerte todas as pendências.


— Obrigada.
Não dissemos mais nada, cada um imerso nos seus próprios

pensamentos. Automaticamente, minha mente desviou-se dos


problemas e recaíram no meu bebê. Peguei-me novamente tirando o
papel do envelope, para lê-lo mais uma vez. A mesma emoção que

senti quando vi nos olhos da garota a resposta voltou a me dominar.


Não havia dúvida que a folha ficaria amassada e a tinta borrada de

tanto que eu olharia para ela, do tanto que choraria em cima dela.
Não demorou muito para que Bárbara me servisse uma
xícara de café e se sentasse com a sua própria caneca, atacando a

massa folhada e os pequenos bombons. A garota realmente amava


doces, mas teria que chamar a atenção dela mais tarde por isso.
— Ainda não marquei o primeiro ultrassom — disse, depois

de emitir um pequeno suspiro de prazer ao morder um dos bombons,


som que provocava a minha imaginação e fazia com que o sangue se
acumulasse no meu pau. — Queria que você agendasse, no melhor

dia e horário para você. Caso ocorra um imprevisto, que escolha


uma outra ocasião. Mesmo que só dê para ver o saco gestacional,
quero que você esteja presente.

O amor pareceu me engolfar outra vez ao pensar em como


eu me sentiria ao encarar pela primeira vez a imagem do meu filho no
ultrassom. Meu coração voltou a se acelerar. Minhas mãos ficaram
tão trêmula ao segurar a xícara que só por um milagre o líquido não
derramou e queimou meus dedos.
— Dizem que é algo mágico — sorriu, seus olhos parecendo

conter uma série de mistérios insondáveis.


— Foi o que o meu melhor amigo disse — falei em um tom
distante, ainda sonhando acordado com aquele momento. — Ou

melhor, se gabou.
Ela riu.
— Você não tem ideia do quanto foi difícil para mim ouvir…

— confessei em voz baixa e, sensível, ela tocou a minha mão,


acariciando-a —, esconder a inveja que sentia dele. E saber que

eram três, foi mais difícil ainda.


— Posso imaginar, Javier — sussurrou —, mas você não
precisa mais sentir-se assim.

— Não, não preciso. — Suspirei.


Continuei preso ao seu toque até que ela removeu a mão,
deixando-me vazio.

Bárbara voltou a comer em silêncio e obriguei-me a fazer o


mesmo, compartilhando em silêncio, pela primeira vez com uma
mulher, a felicidade que havia em mim, sem medo e ressalvas. Nunca
me esqueceria o sabor daqueles bartolillos que se tornaram os mais
saborosos que havia provado.

Amaldiçoei a hora em que o meu celular começou a tocar,


amargamente me obrigando a voltar para os problemas que eu não
mais poderia ignorar, quebrando a magia daquela celebração tão

doce.
Enquanto escutava, sem de fato ouvir, a pessoa do outro
lado da linha, pensando no meu pequeno, foi impossível não recordar

a verdade ácida de que a garota, apesar de tudo, não desejava a


criança que carregava em seu ventre.
Como ela era capaz de algo tão amável, mas ao mesmo

tempo, ser cruel o suficiente para não querer a vida que havia dentro
dela? Uma mulher que parecia ter estado feliz com a gestação, e até

mesmo gostar de bebês, tendo em vista o modo como interagiu com


os filhos de Yazuv, uma lembrança que vez ou outra me invadia, mas
que não era capaz de amá-lo?

Uma figura doce, alegre, que balançava toda a minha vida,


descascando camadas e camadas até alcançar o meu interior, que
me fazia sonhar…

Não senti a raiva que imaginei que me invadiria pela rejeição


da garota, pela ambiguidade que era, mas, sim, decepção, uma dor
surda, por mim, mas principalmente pelo meu bebê. Novamente, me

veio a ideia de que o meu amor teria que ser o suficiente para ele.
Mas e se não fosse?
— Tem que ser — murmurei sem me importar com a pessoa

que estaria ouvindo do outro lado da linha, pedindo a Virgem que


assim fosse.
Capítulo trinta e nove

— Boa tarde, em que posso ajudá-la, senhora Castillo? — A

vendedora me interpelou assim que passei pela porta da loja que

comercializava roupas de bebê, seguida pelo meu guarda-costas.


Sorri amarelo para a mulher, que era um pouco mais velha

do que eu, que não conseguia esconder sua curiosidade em relação

a mim, bem como a avidez por uma boa venda.


Apesar das fofocas sobre o meu relacionamento com Javier

terem diminuído drasticamente, sendo substituída por outras fofocas

mais suculentas, ainda não estava acostumada a ter os olhares

especulativos sobre mim. Por mais que tentasse seguir os conselhos

da Val sobre não dar tanta importância assim e de me manter em


silêncio, sentia-me constrangida de ter cada um dos meus passos

vigiados a todo momento, para não dizer sufocada, com medo de

cometer um deslize grave que faria com que o meu marido se

tornasse ainda mais alvo de escárnio.

Coloquei uma mecha atrás da minha orelha e olhei os objetos

no meu entorno, parecendo ainda mais deslocada pelo ambiente


elegante, pelas roupas caras, que sussurravam que ali não era meu
lugar.

— Boa tarde. Gostaria de ver uma peça em específico que

tem no seu catálogo — imprimi um tom firme a minha voz.

Disse a mim mesma que não interessava o que eu achava ou

o que as pessoas pensavam, mas, sim, que o cartão de débito na

minha bolsa fazia com que eu pertencesse àquele mundo.


Suprimi uma careta perante aquela ideia cínica, que não

combinava comigo, e, sim, com o meu marido, e foquei naquilo que

eu tinha ido fazer ali: comprar um presente de aniversário para

Javier. Havia descoberto ao acaso que em alguns dias ele

completaria trinta e um anos, e me pareceu lógico comprar alguma

coisa para ele. Quem não gostava de ser lembrado e mimado? Tinha

pensado em inúmeras itens, mas nada parecia ser bom o suficiente,


até que vi uma foto em uma rede social de um menininho com uma

blusa escrito amor da mamãe e…

— Você sabe me dizer qual tipo de peça e o modelo,

senhora? — tirou-me do transe. — Ou outra característica para que

eu tenha alguma referência?

— É um macacãozinho branco escrito “amor do papai”.


— Tenho que confirmar se temos esse modelo em estoque.

— Não escondeu a surpresa e percebi que apenas o medo de


acabar perdendo o seu emprego fez com que ela não fizesse mais

perguntas, principalmente para confirmar se eu estava grávida. —


Quer se sentar enquanto espera? Deseja uma água ou alguma outra
bebida?

— Não, obrigada. Olharei outras coisas enquanto isso.


— Claro, senhora. — Balançou a cabeça em concordância.

— Fique à vontade.
Não respondi, minha atenção desviada por um lindo

vestidinho rosa cheio de tule e babados. Com passos lentos, como


se estivesse sob uma espécie de encanto, me aproximei dele. Desde
que Javier tinha dito que ela seria a primeira mulher a amá-lo, a cada

dia que passava, uma parte de mim torcia para que fosse uma doce
garotinha, embora soubesse que iria amar meu bebê independente

do gênero.
Toquei a peça, sentindo o tecido macio em meu tato. Era

impossível não imaginar uma linda menininha de cabelos escuros e


olhos verdes usando-o. Mas lembrei que, mesmo se eu comprasse e
realmente fosse uma menina, não estaria lá para vê-la usar.
A dor que o pensamento me causou fez com que eu quisesse

me encolher. No dia da descoberta da gravidez, eu tinha buscado me


manter determinada, mas, a cada passar dos dias, e principalmente

depois do ultrassom, a imagem mais linda que eu veria em minha


vida, minha força pareceu ruir por completo. Não tinha ideia de como

não havia caído no choro no consultório.


Dia a dia, a dor se tornava mais intensa, a tristeza, mais
difícil de disfarçar. Eu estava em colapso e prestes a eclodir. Por

mais que eu pedisse a Deus por amparo, eu parecia perder a


batalha. Queria desesperadamente aquela criança e estava

chegando ao ponto de implorar para Javier por um pingo de


misericórdia, mas barrigas de aluguel não tinham esse direito, não
quando se tinha assinado um contrato.

Afastei minha mão da peça, sentindo-me prestes a chorar, e


fingi uma indiferença que não sentia ao olhar outras roupinhas.

Resolvi sentar-me um pouco.


— Temos o tamanho do 1m ao 9m, senhora — a vendedora

colocou alguns pacotes em cima da mesinha de centro. — Qual


gostaria? Se precisar de maior, podemos encomendar com o
estilista.

— Posso ver o 3m?


— Sim, senhora.
Retirou-o da embalagem e me passou.
Toquei o bordado delicado da peça e emiti um suspiro. Era

lindo.
— Vou levar esse — falei, entregando-a para ela.

— Mais alguma coisa, senhora?


— Não, embrulhe para presente. — Não cabia a mim
comprar peças para o enxoval dele.

— Claro, você pode me acompanhar até o caixa, por favor?


Assenti, me erguendo no automático. Sem questionar o valor,

fiz o pagamento aguardei a vendedora me entregar a sacolinha, e


deixei a loja.

— Passará em mais algum lugar, senhora? — meu


segurança perguntou com a voz grave cheia de sotaque, e só então
me lembrei da existência dele.

O guarda-costas parecia uma verdadeira sombra.


— Acho que tomarei um chá em um dos cafés, Igor.

Assentiu.
Me escoltou em silêncio em direção a praça de alimentação
e, enquanto eu escolhia um local, não me passou despercebido a

aproximação de uma mulher de mais idade, mas enxuta, com


cabelos pretos. Ela andava lentamente em minha direção e tinha um
sorriso suave em seus lábios pintados de um batom vermelho.
Era a primeira vez que via a matriarca dos Castillos e

confesso que não podia esconder que sentia uma certa curiosidade
natural sobre ela, ainda mais por ser a parente mais próxima de

Javier e não ter estado no nosso casamento. Já que meu marido não
me contaria nada, e mesmo que não devesse, busquei nas colunas
de fofocas se tinha havido uma briga entre os dois, mas apenas

encontrei informações escassas sobre o nascimento de Javier, que

foi fruto de um caso fora do casamento, a morte do pai em um


acidente de carro, e como a matriarca tinha tomado para si a

responsabilidade de cuidar da criança, além das habituais notícias

sobre o envolvimento dela com ações de caridade e também sobre o

quão estava na vanguarda da moda.


Ela parecia uma idosa normal, que gostava de aproveitar

tudo o que o dinheiro dela poderia oferecer, como plásticas, viagens,

joias e personal trainer de celebridades.


Franzi o cenho quando meu segurança se colocou em atitude

defensiva, não compreendendo muito o porquê de parecer prestes a

enfrentar um assassino perigoso.


— Precisamos ir embora, senhora — o russo sussurrou em

um tom urgente —, temos ordens para não deixar que ela se


aproxime demais.

— Por quê? — questionei, sabendo que não me forçaria a

me afastar dali. Quem sabe ele me desse alguma pista.


— Ordens do senhor Javier. — Foi reticente, virando-se para

mim.

Sua expressão parecia ter sido talhada em granito. Ele

parecia tão bom em disfarçar seus sentimentos quanto o meu


marido.

— Compreendo, mas desejo saber o que ela poderia querer

comigo.
Sabia que deveria obedecer ao meu marido, sem dúvida ele

deveria ter um bom motivo para querer que eu a evite, porém a

curiosidade parecia falar mais alto do que o meu bom-senso, afinal o


que uma senhora idosa poderia fazer contra mim em um shopping

lotado e com um segurança por perto? Duvido muito que faça algo

grave.

— Não é seguro, senhora, e não podemos desobedecê-lo.


— Confio em você para me proteger. — Sorri.
Antes que pudesse falar mais alguma coisa, ouvi a voz da

mulher falando comigo em um tom doce e gentil:

— Finalmente posso conhecer a minha querida neta.


Virei-me para ela e, embora a mulher tivesse um sorriso nos

lábios, por alguma razão, eu senti os pelinhos da minha nuca se

arrepiarem. Fitar os olhos dela, que me analisavam de cima a baixo,

não ajudaram a afastar a sensação ruim que me invadiu. Parecia


haver certa perversidade escondida em meio a doçura.

Provavelmente estava apenas me deixando levar pelo aviso do meu

segurança, bem como o fato do meu marido, por alguma razão,


querer me proteger contra ela. Eu estava sendo uma tola.

— Prazer em conhecê-la, senhora Castillo — forcei-me a

dizer em um tom neutro, estendendo a mão para ela.

— Me chame de Magda, por favor — pegou a minha mão


com a sua enrugada, apertando-a suavemente —, não há razão para

sermos tão formais quando somos parentes.

Sorri ao confirmar o quanto estava sendo exagerada.


— Obrigada.

— Você tem um tempo para tomar um café comigo,

mocinha? — Emitiu um suspiro. — Eu tenho estado tão sozinha


ultimamente. Meu neto, infelizmente, não deixa que eu me aproxime

dele. Sinto… — Não conseguiu continuar.


Meu coração se condoeu por ela, ainda mais ao ver a

fragilidade em seu semblante, ao mesmo tempo, atiçou a minha

curiosidade para saber o porquê dos dois serem afastados. A


tristeza que havia nela fazia com que eu acreditasse que lamentava

essa distância.

Com o canto do olho, fitei o guarda-costas, que me fez um

gesto quase imperceptível para que eu negasse.


— Será bom conversar com você — outra lamentação —,

tenho certeza de que nos daremos muito bem, Bárbara.

— Senhora… — Igor falou em um tom baixo que não


escondia uma advertência.

Pesei os prós e contras, e a vontade de saber mais sobre o

meu marido falou mais alto.

— Por que não? — Sorri. — Eu estava pretendendo tomar


um chá mesmo.

— Podemos ir na minha cafeteria favorita? — Pareceu

receber uma lufada de ânimo. — Lá teremos mais privacidade.


Fitou o meu guarda-costas especulativamente e também ao

redor, indicando a possível presença de paparazzi, por mais que o


shopping buscasse conter esse tipo de coisa.

— Claro, Magda.

Sem esperar resposta, enlaçou o meu braço com uma força

surpreendente, e me arrastou em direção a uma das lojas,


desfazendo o aperto quando adentramos no recinto.

— Em que posso ajudá-las, senhoras?

— Uma mesa para duas, privativa em que possamos


conversar sem sermos interrompidas.

— Sigam-me, por favor.

Caminhei atrás dela, porém um toque no meu braço me fez

parar.
— Senhora?

— Sim?

— Não podemos ignorar as instruções do senhor Javier.


— Não ficarei sozinha com ela.

Virei-me antes que ele tentasse me convencer com outros

argumentos e encontrei a avó de Javier me aguardando.

— Estava me perguntando se você iria desistir de fazer-me


companhia. — A sobrancelha bem-feita se ergueu.

Sentou-se e eu fiz o mesmo, pegando o cardápio que a

garçonete tinha estendido para mim.


— Por que eu faria isso?

— Não sei, acho que é apenas coisa da minha cabeça.


Mania de gente velha — deu um sorriso que não chegou aos olhos e

novamente tive uma sensação ruim, mas que logo tratei de reprimir.

— Vou querer um café expresso e biscoitos. E você, querida?

— Um chá de erva cidreira, por favor.


A atendente anotou os nossos pedidos e, assentindo, deixou-

nos a sós, apesar que percebi a presença de Igor me vigiando,

falando algo no seu comunicador. A mulher mais velha me envolveu


em uma conversa amena, falando sobre si mesma, o que me deixou

um pouco mais relaxada, tanto que não fui capaz de perceber a

tempo as mudanças que pareciam ocorrer nela durante a nossa


pequena conversa.

Não demorou muito para que a atendente chegasse com os

nossos pedidos, porém, ao contrário do que imaginava, o cheiro da

erva fez com que meu estômago revirasse. Provavelmente eu


poderia ser sensível a cheiros durante a minha gestação. Fiquei um

pouco amuada, pois tinha esperança de que não sofreria daquele

incômodo. Se fosse sincera, o único sintoma que tive nesse início foi
a ausência de menstruação.
— Não irá beber, querida? — Fez uma pausa. — Aqui os
chás são tão bons quanto os que os ingleses fazem.

— Desisti — coloquei a mecha que tinha caído no meu rosto

atrás da orelha, envergonhada.


Os olhos dela cintilaram.

— Compreendo. Mas fique à vontade para pedir qualquer

outra coisa…
— Obrigada.

Tomou um gole da sua bebida, marcando a porcelana com o

seu batom.

— O que tem nessa sacola? — Apontou para o logo


impresso no invólucro depois de levar a xícara novamente aos lábios.

Um frio me invadiu e, estranhamente, senti-me impelida a

esconder a minha gravidez dela. Talvez fosse pelo tom desprovido de


emoção, ou pela expressão fria, ou até mesmo pela consciência de

que não cabia a mim dizer. O bebê era de Javier, não meu. Outra
vez, reprimi a dor que o assunto me causava.
— Um presente para uma amiga.

— Não é necessário mentir para mim. — Pousou a porcelana


em seu pires calmamente e eu vi um brilho maldoso cintilar nela. —
Eu sei que você está grávida.
Meus olhos se arregalaram e eu senti um frio que nada tinha
a ver com a temperatura do ambiente, mas, sim de medo. Segurei
minha caneca, precisando de ocupar minhas mãos.

— Eu não sei do que você está falando — tentei aparentar


uma calma que não sentia.
Ela gargalhou baixinho e eu pude ver as garras que ela tinha

mantido escondidas aparecerem.


— Não se faça de sonsa, pirralha. — Arreganhou os dentes,
apenas para escondê-los rapidamente atrás de uma expressão de

inocência. — Fui informada que vocês fizeram inseminação e que


está tão grávida que até já fez o primeiro ultrassom.
— Como? — sussurrei, aturdida.

— Do mesmo modo que o seu “marido bastardinho” compra


pessoas — me fitou especulativamente —, eu também sou capaz de
adquirir segredos, informações e lealdade.

Não disse nada.


— A questão é quanto terei que desembolsar para comprar

você também. — Frisou o “você”, indicando que sabia do meu


contrato com Javier, e pegou um biscoitinho, mastigando-o devagar.
Forcei-me a não engolir em seco, mesmo que um bolo

houvesse se formado em minha garganta que parecia impedir-me de


respirar.
— Não sei do que você está falando — repeti e ela
interrompeu-me com um gesto da mão enrugada.

— Não posso negar que fiquei levemente desconcertada


quando soube do casamento dele com uma pirralha qualquer. —

Tamborilou os dedos na xícara, seu sorriso ficando demoníaco. —


Mas, segundos depois, eu não tive nenhuma dúvida de que essa
união era uma farsa engendrada pelo “bastardinho” para conseguir

aquilo que mais almeja.


Fiz que não com a cabeça veementemente.
— Nosso casamento é real. Eu…

Gargalhou, interrompendo-me outra vez, uma risada que fez


vários calafrios me percorrerem.
— Conte outra piada — falou cheia de escárnio. — Nenhuma

mulher é capaz de amar aquele bastardo.


Meu coração apertou com força.
— Você está mentindo! — Minha voz saiu mais alterada do

que gostaria, mas eu senti que eu precisava defendê-lo de alguma


maneira.

Aquela mulher era uma cobra venenosa e agora eu sabia as


razões de Javier querê-la afastada de mim. Eu tinha sido uma tola.
— Nosso casamento foi por amor! — continuei.
— Espera mesmo que acredite? — Riu.

— O que você acredita ou não, não me interessa. — Segurei


a alça da xícara com mais força, ainda que meus dedos estivessem
trêmulos, buscando tragar ar.

— Tenho que confessar que admiro bastante a sua


capacidade de atuar. Deve ter sido uma característica que fez com

que ele escolhesse você. Mas nós duas sabemos que Javier te
comprou apenas para gerar um “bastardinho”. — Fez um gesto com
a mão, displicente. — Não vejo nenhum problema em ser ambiciosa,

sabia? Eu mesma fui bastante ao casar-me com o porco do Castillo.


Não me dei o trabalho de responder.
— Mas vamos direto ao ponto, já perdi mais tempo do que

gostaria com você. Eu dobro o valor que ele te pagou, se você


desistir do acordo.
— O quê? — Minhas vísceras pareceram se retorcer, o bolo

voltando a se formar na minha garganta.


Aquela mulher não estava sugerindo que eu… que eu…
— Tire o bebê dele — sentenciou, confirmando aquilo que o

meu coração e minha mente não queriam acreditar. — Seja mais


esperta que a mãe dele e aceite minha proposta.
O nó impedia-me de falar.

— Ele só será um atraso em sua vida. — A unha pintada de


vermelho passou pela xícara. — Você tem o quê, vinte anos,
pirralha? Poderá gerar seus filhos mais tarde.

— Você está louca — minha voz saiu fraca, e balancei a


cabeça em negativa.
Senti lágrimas se formando em meus olhos e,

instintivamente, levei a minha mão à barriga, como se o ato pudesse


proteger uma das pessoas que eu mais amava no mundo.

Não condenava quem optava por fazer um aborto, pois, além


de ser uma decisão difícil, que deixaria marcas na pessoa, era
consciente de que muitas não tinham outra opção, mas ser coagida

daquela forma era extremamente doloroso.


Sabia que existiam pessoas ruins, mas não tão cruéis para
chegar naquele ponto de sugerir que alguém tirasse um bebê por

dinheiro.
— O triplo então?
Arqueou a sobrancelha e deu uma risada ácida.

O medo que sentia se transformou em raiva e todo o meu


instinto maternal pareceu vir à tona.
— Dinheiro nenhum no mundo me faria aceitar essa proposta
ultrajante! — disse em um tom cheio de desdém frio. — Eu nunca
tiraria um filho só porque alguém deseja isso!

— Tola! — sibilou.
— Que seja.
— Você nem mesmo terá direito de ficar com ele, no final de

tudo. Então que diferença faz ou não impedir a gravidez? — Não


hesitou em enfiar as suas garras no meu ponto mais fraco e
vulnerável, fazendo com que eu sentisse uma dor absurda.

— Isso não é da sua conta — sussurrei.


Enxuguei as lágrimas que caíam pelo meu rosto com força.
A velha gargalhou.

— Agora se isso é tudo o que você queria de mim… —


continuei a falar, erguendo-me, mesmo que minhas pernas não me

sustentassem. Aquela conversa era demais para mim, principalmente


quando o meu coração já estava em frangalhos muito antes dela
aparecer na minha frente. — Passar bem!

Peguei a sacola da mesa e senti que o meu guarda-costas


se aproximava para me amparar. Outra vez tinha esquecido da
presença dele.
Estava completamente derrotada e prestes a ceder a
tristeza e a angústia.

— Obrigada, Igor. — O homem não respondeu, mantendo-se


impassível.
— É muito burra, garota — a mulher gritou e veio atrás de

mim para me ameaçar. — Eu farei com que pague por isso. E com
juros.
Ignorei-a, caminhando apressada para deixar o local. Mal

sabia ela que eu já estava pagando muito caro por amar


incondicionalmente aquela criança.
— Posso te fazer uma pergunta? — Parei de andar e virei-

me para ela. — Por mais difícil que fosse, eu precisava da última


resposta, a única que precisava.
— Sim? — Deu um sorriso de escárnio.

— Por que quer que eu faça isso?


— Quero tirar aquilo que ele mais ama, como o bastardo fez comigo.

— Não escondeu o ódio, bem como a crueldade que havia dentro de


si. — E conseguirei, com ou sem a sua ajuda.
Estremeci diante da promessa dela, reconhecendo certa

loucura.
Respirar tornou-se difícil. Era muito rancor, muita raiva, tanto
que me assustava, me congelava. Aquela mulher era capaz de fazer

mal ao próprio bisneto para ferir Javier. Temi pelo meu bebê, e
abracei minha barriga com mais força, protegendo-a.

Desejei que eu tivesse ouvido meu guarda-costas e, com


isso, nunca ter conhecido aquela mulher, que agora eu só queria
distância.

— Por favor, Igor, me tire daqui — pedi com voz rouca.


— Sim, senhora. — Firmou-me. — Vamos.
Tudo se passou como um grande borrão enquanto caminhava

pelos corredores do shopping. Eu andava como uma morta-viva.


Agradeci quando entrei no carro e, finalmente, pude dar a vazão ao
medo que sentia.
Capítulo quarenta

— Vocês podem me dar um momento, por favor? — pedi,

contrariado, ao sentir meu celular pessoal vibrar pela segunda vez

em cima da mesa.
Detestava interrupções, ainda mais quando estava

conversando sobre a ampliação do número de franquias por toda a

Europa da minha rede de fast-food. O novo produto tinha sido um


sucesso e a demanda foi tanta que apostar em novos públicos e

regiões poderia ser interessante.

— Fique à vontade, Javier — a mulher falou.

— Claro. — Um dos homens assentiu, seguido de outros

presentes.
Ergui-me e, pegando o meu celular, deixei a sala de

reuniões. Fui em direção ao meu escritório, passando pelo meu

secretário, que parecia atônito com os meus passos enérgicos, e

assim que entrei, fechei a porta atrás de mim. Havia duas ligações

perdidas de Igor e eu senti que meu coração dava um salto no peito

ao mesmo tempo que eu ficava gelado, minha respiração sôfrega.


Não havia dúvidas que algo tinha acontecido com a minha
esposa, e um medo descomunal me invadiu por ela e pelo meu bebê.

Rezando para que nada grave houvesse acontecido, com os dedos

trêmulos, retornei a chamada. Cada segundo de espera era como se

fosse um martírio.

— Senhor Javier.

— Eles estão bem? — foi a primeira coisa que perguntei em


meio a um ofegar.

— Sim, senhor. Acabei de deixá-la no seu apartamento em

segurança.

— ¡Dios! — sussurrei, fazendo uma prece silenciosa. — O

que aconteceu?

À medida que ele falava, eu sentia o medo que havia em meu

interior se transformar em raiva cega. Por mais que eu a chamasse


de tola, não esperava que fosse tão idiota. Eu não podia acreditar

que a garota era imprudente o suficiente para colocar o meu bebê

em risco.

Uma onda de dor e tristeza uniu-se à minha fúria, e eu soube

que eu não tinha mais controle nenhum sobre mim mesmo. Eu me

senti traído por Bárbara de maneiras inimagináveis.


E de todas as decepções que sofri ao longo desses trinta

anos, a da “minha esposa” foi a mais dolorosa delas. Eu preferiria mil


vezes que ela estivesse com outro do que ter sido apunhalado

daquela maneira, ou melhor, escolhia droga nenhuma.


Porra, esperava muitas coisas dela, coisas que sequer eu
deveria pensar ou desejar que ela fizesse, mas não aquilo. Pensar

que a mãe do meu pai poderia ter causado um dano a ela e


consequentemente ao meu bebê me deixou louco.

Dei uma risada amarga, sentindo meus olhos lacrimejarem,


mas me recusava a derramar uma lágrima sequer por aquela mulher

mais do que perversa.


Era um grande imbecil por ter me deixado levar pelas
emoções que minha esposa tinha despertado em mim, por ter

baixado a guarda com relação a ela. Acreditar que ela seria, em


algum ponto, diferente, por até mesmo sonhar que a menina viesse…

Balancei a cabeça em negativa, aniquilando de uma vez


aqueles pensamentos e desejos ridículos. Ignorando a dor

metafórica da traição que me fodia e me partia ao meio, outra


cicatriz que provavelmente nunca irá ser curada, deixei que as
sombras me invadissem, que o demônio de gelo novamente

vencesse.
“— Soy un patán[75]”— repeti mentalmente, dominado pela
raiva e pela frieza.
Abri e fechei a mão, com vontade de socar algo, de

preferência a cara do desgraçado do outro lado da linha que era


pago para protegê-la e que tinha ordens estritas de não permitir que

a matriarca do Castillos se aproximasse da minha esposa, e com


isso, do meu bebê.

— Acertarei as contas com você depois — falei


rispidamente.
— Não esperava outra coisa. — Igor respondeu em um tom

desprovido de humor e emoção.


Ignorei-o, desligando a ligação. Guardando o aparelho no

bolso, peguei minhas coisas que estavam em uma gaveta, bem como
a chave do carro, não aguentaria esperar o meu motorista chegar
para me levar para o meu apartamento, e saí do meu escritório,

batendo a porta, com passos largos, acossado pelo demônio. Aquela


garota iria ouvir poucas e boas sobre a sua imprudência, ela vai

apreender que contratos devem ser cumpridos à risca.


— Senhor, está tudo bem? — meu secretário me perguntou

quando me viu passar.


— Dê uma desculpa qualquer para a equipe e remarque a
reunião para outro dia — ordenei, sem responder a sua pergunta.
Se na maioria das vezes não me sentia muito disposto a dar

satisfação, puto é que eu não daria.


Cheguei ao meu elevador privativo e entrei nele, as portas se

fechando atrás de mim. Assim que fiquei a sós, bati a cabeça na


superfície metálica e fechei os olhos, soltando uma série de
impropérios que eram destinados a mim mesmo. Nem mesmo com

raiva da garota eu conseguia xingá-la.


Entrei no meu carro e, enquanto dirigia pelas ruas

madrilenas, o ódio que parecia me motivar foi arrefecendo, não era


capaz de sobreviver no meu interior, pois de alguma forma a dor e a

melancolia pareciam suplantar a ira.


Eu já havia sangrado outras vezes fisicamente, mas nada se
comparava aquela angústia que me dilacerava. Pareceram horas,

não minutos, até que eu chegasse e subisse para o meu


apartamento, já que o elevador antigo parecia lento demais.

— Bárbara? — Minha voz soou embargada assim que inseri


a chave na fechadura e girei a maçaneta.
Não obtive resposta.
Com o meu peito subindo e descendo com rapidez, o ar
parecendo queimar meus pulmões, caminhei diretamente para o
quarto da garota, chamando-a ao léu. A preocupação me invadiu e

sem pensar se estava ou não invadindo a privacidade dela, abri a


porta suavemente e encontrei-a deitada, encolhida na cama em

posição fetal. Os dois cachorros latiram assim que me viram,


abanando os rabinhos, pulando no colchão, porém não desceram.
— Javier? — A voz dela soou baixa.

Como se tivesse saído de um transe, a garota se moveu

lentamente para sentar-se na cama e me encarou, enquanto seus


dedos automaticamente foram acariciar os cachorros, que

subitamente ficaram quietos.

Os olhos dela estavam avermelhados e eu vi os traços de

lágrimas pelo seu rosto amassado e bastante pálido.


Me aproximei da cama, dizendo a mim mesmo para não me

deixar levar pela tristeza que havia nela.

— Como você pôde, garota, desobedecer a principal


cláusula do nosso acordo? — Tentei manter-me controlado, mas

parecia impossível me esconder sob as camadas de gelo e

indiferença, que sempre foram meu escudo e que agora pareciam


completamente rachadas. Eu era puro cacos.
A assisti engolir em seco e uma lágrima escorrer pela sua

bochecha.
— Eu…

— Como pôde colocar o meu bebê em risco? — sussurrei,

mostrando minha dor e o meu desespero.


— Não, Javier. — balançou a cabeça em negativa. Mesmo

que ela estivesse prestes a desmoronar, vi uma força cintilar em

seus olhos, mas que logo se apagou. — Ele é o meu bebê também.

Como se para provar o seu ponto, abraçou a sua barriga em


um gesto protetor e ao mesmo tempo maternal, o que fez com que

eu perdesse o fôlego. Eu parecia incapaz de ter um pensamento

coerente naquele momento. Estava paralisado, sem nenhuma


reação, tinha certeza de que deveria ter uma expressão estranha no

rosto.

— O quê? — Foi a minha vez de fazer um gesto negativo,


inconformado, quando eu pareci me recuperar.

Que tipo de joguinho sujo aquela garota queria fazer comigo?

A dor foi substituída pela fúria ao pensar que ela estava me

manipulando, apenas para tirar a culpa de si mesma. Não havia


nada que eu pudesse odiar mais.
— Não, garota, é o meu bebê. — Não me preocupei se feria

os sentimentos dela. Minha esposa havia me machucado demais

para me importar com qualquer coisa. Eu queria fazê-la sentir a


mesma dor dilacerante que me agredia. — Apenas meu,

“princesinha”. Você assinou o documento que transfere toda a

guarda para mim.

— Chega! — gritou, um som ferido que fez com que meus


ouvidos doessem e os cachorros se assustassem, latindo e uivando

descontroladamente. — Eu não aguento mais isso, Javier.

Começou a chorar, as lágrimas escorrendo pelo seu rosto.


— Eu tentei, juro pela Virgem, por Deus, e até mesmo pela

minha vida, que eu tentei ser forte, que eu conseguiria ser uma

verdadeira barriga de aluguel. — Desviei o olhar para as mãos que

ainda deslizavam pelo seu abdômen. — Mas a cada dia que passa,
eu falho miseravelmente.

Engoliu em seco.

— Eu não consigo deixar as minhas emoções de lado por


mais que eu tente, por mais que diga para mim mesma que manter o

meu coração trancado era a melhor coisa a ser feita. Por mim, por

ele.

Um dos cachorros uivou, como se discordasse.


— Eu me apaixonei, Javier. Completamente. — Passou a

mão no rosto. — Como não poderia? Ele ou ela é uma pequena


parte de mim. Um grãozinho ainda, mas ainda assim, o meu

bebezinho.

— Não compreendo — sussurrei.


Eu voltava a ser uma espécie de morto-vivo que apenas

respirava, puxando ar com força, incapaz de usar a lógica.

Eu travava uma dura batalha contra mim mesmo. Inúmeras

sensações percorriam o meu corpo. Se antes eu achava que um dia


estive ferrado, eu não sabia descrever o limbo emocional que eu me

encontrava agora. Era como se eu tivesse preso nas lembranças do

passado, de quando eu era um garotinho implorando pela mãe,


escutando-a falar do seu amor pelo meu filho, e também no futuro,

que se revelava um grande vazio sem ela, sem a mãe do meu bebê.

— Eu nunca imaginei que ficaria grávida tão jovem, muito

menos que seria através de um contrato — continuou com uma voz


fraca. — Mas eu amo o nosso bebê, Javier, desde que aceitei sua

proposta.

Assim que ela disse aquilo, tive que olhar nos olhos dela,
buscando a verdade, e o que eu encontrei fez com que eu

estremecesse.
Havia visto aquela mesma emoção na expressão da mulher

do meu melhor amigo quando fitava os seus três bebês. Era amor.

— Eu o amo tanto, que não consigo imaginar minha vida sem

ter nenhum contato com o meu filho.


Senti lágrimas se formando em meus olhos. Continuei

estacado no lugar.

Como não falei nada, a garota, de joelhos, engatinhou até a


beirada da cama, e segurou minha mão trêmula.

— Por favor, Javier — falou suplicante. A expressão era de

uma mulher que ao mesmo tempo que amava, carregava uma dor

enorme dentro de si. — Sei que assinei um documento te tornando o


guardião, mas te imploro que não tire ele de mim.

Tentei falar, mas era como se eu tivesse perdido minha voz.

— Deixe-me vê-lo, acompanhar o seu crescimento, ouvir as


primeiras palavrinhas, rir junto com as suas risadinhas, consolá-lo

quando perder os primeiros dentinhos, mostrar o amor que sinto por

ele... — Respirou fundo, me fitando com os olhos tristes. — Um dia

na semana, um dia na quinzena, uma vez ao mês… uma hora,


qualquer migalha de tempo que você quiser me dar.

Porra, por que não conseguia dizer nada?


— Eu não quero dinheiro, eu não dou a mínima para ele,

Javier — continuou a argumentar no seu monólogo. — Eu quero o


meu bebê! Por favor, não deixe que ele fique sem a mãe. Não

impeça essa criança de…

— Não ter o amor materno que me foi negado — completei a

fala dela em um tom embargado, sentindo que o pranto que eu havia


contido escorria pela minha face, abundantemente.

Como se fosse possível, a dor que eu sentia se tornou ainda

mais pungente.
Uma chave dentro de mim pareceu virar dentro de mim e eu

soube quem era o vilão: eu.

Eu estava muito perto de condenar meu bebê por puro


egoísmo.

Fugi dela, deixando-a sozinha, chorando na cama, com os

cachorros a consolando, como eu queria fugir de mim mesmo e dos

meus próprios atos.


Mas eu não podia, não podia escapar das palavras ditas por

ela e do estrago que a verdade amarga causava a mim.


Capítulo quarenta e um

— Eu já disse que você tende a ser muito inconveniente? —

meu melhor amigo falou ao atender, parecendo irritado. — Bok[76],


Javier, não me diga que você quer falar de negócios a essa hora.

Não tinha ideia de que horas eram, nem aqui, muito menos

em Chicago, e não estalei a língua em reprovação, nem emiti algum


som irônico.

Não estava me importando com nada, e não seria a

indignação do meu melhor amigo que faria com que eu ligasse. Eu


me consumia em arrependimento, dor e tristeza.

— Javier? — Pareceu alarmado.

Deslizei a ponta do dedo sobre a imagem do primeiro

ultrassom do meu filho. Mesmo que ele fosse bem pequeninho, eu

queria registrar em imagem tudo referente a ele. Senti meu peito


voltar a se apertar antes de falar.

— Ela quer o bebê — respondi em um tom baixo, não

escondendo dele minha angústia, a raiva que nutria por mim mesmo,

nem minhas lágrimas.

Meu melhor amigo não disse nada.


Por mais que eu tentasse, não conseguia parar de chorar

pelo meu bebê e também de pensar no quão próximo estava de

condenar essa criança a passar pelo mesmo sofrimento que senti na

pele, algo que eu nunca poderia me perdoar.

Se havia alguma dúvida em mim, agora não me restava mais

nenhuma, eu era um demônio sem coração e desalmado por separar


de maneira tão cruel uma mãe e seu filho por puro egoísmo.

Em meu julgamento, no meu cinismo, preferi acreditar que a

minha esposa era igual ou pior do que a mulher que me deu a vida.

Que era dissimulada, fria, ambiciosa, adjetivos que me definiam com

perfeição, não a Bárbara.

Agora que pensava com clareza, pois ela havia aberto meus

olhos, pude perceber que tudo nela parecia gritar o contrário do que
eu acreditava. A alegria que havia visto nela quando foi ao meu

escritório para me surpreender, seu sorriso, a vivacidade do olhar,

isso tudo não era algo que se conseguia fingir, não com tanta

perfeição. Até mesmo a reação dela durante o ultrassom, em que

pareceu se conter para não cair no choro.

Mas fui cego demais para querer enxergar a verdade.


Imaginá-la como um ser perverso, traiçoeiro e desprovida de
sentimentos era mais fácil do que vislumbrar o meu próprio

egocentrismo e culpa, de ver as minhas falhas, que eu escondia sob


as camadas do passado e da minha dor. Os erros e as traições

sofridas não justificavam minhas ações.


— Ela sempre quis o meu bebê — sussurrei novamente. —
Porra, ela ama o meu filho! Ela sempre amou.

Yasuv suspirou longamente.


— Era de se imaginar, Javier — disse tempos depois, ele

apenas me deixou chorar enquanto eu proferia uma série de

palavrões. — Minha değerli[77] tinha me alertado para essa

possibilidade depois de conhecê-la e ver o modo como ela brincou


com os trigêmeos.

Senti outra facada no peito ao recordar do modo como a


garota parecia à vontade com os bebês do meu melhor amigo, os
sorrisos que ela havia lançado, a leveza.

— Bárbara é uma menina afetuosa, amorosa.


— ¡Sí!

Não culpava meu melhor amigo por ter enxergado a verdade


antes de mim, muito menos sua esposa. Eu só poderia me culpar por

ser um grande filho da puta. Desejei poder ter visto isso há muito
tempo.
— Era inevitável que uma garota inocente como ela não se

envolvesse com o bebê durante a gestação — continuou em um tom


que demonstrava sua compaixão. — Teria que ser muito madura

para lidar com o afastamento completo.


Não havia o que falar, Yazuv tinha razão.

— Nem sei se eu conseguiria suportar algo assim — pareceu


pensativo. — Não gosto nem de imaginar como seria a minha vida se
eu não pudesse conviver com os meus filhos.

— Nem eu… — pensei alto, e pela primeira vez, coloquei-me


no lugar dela.

A dor que me invadiu foi imensa e eu odiei-me ainda mais por


causar tamanha angústia em uma mãe.
Mais lágrimas deslizaram pelo meu rosto.

— Que tipo de monstro eu sou, Yazuv, por comprar uma


garota, transformá-la em minha esposa, apenas para ter o meu

bebê? — questionei em um tom embargado, depois de vários


minutos, mesmo que eu tivesse certeza daquilo que eu era.

— Todo mundo erra… — começou naquele tom de


compadecimento.
— Não, amigo — dei um sorriso amargo, soltando uma

gargalhada igualmente sombria —, eu não errei, eu a coagi,


manipulei, me aproveitei de um momento de fragilidade, usando-o ao
meu favor. Somente uma besta faria uma coisa assim.
— Javier…

— Vou apodrecer no inferno — cuspi. — E eu mais do que


mereço isso.

— Por Allah! — Não escondeu a exasperação em seu tom.


Pude imaginar que ele tinha uma carranca no rosto e que
passava a mão pelos cabelos, frustrado. Antes, eu ria dele, porém

não via mais graça.


— Que merda de pai eu sou? — Soltei ao voltar a minha

atenção novamente para a imagem do ultrassom, sentindo as


lágrimas ficarem mais intensas, bem como o aperto no peito e o nó

na minha garganta, que haviam surgido em algum momento. Era tão


doloroso! — Que droga de pai impediria um filho de ter contato com
a própria mãe? Que merda de homem, que já sentiu na pele o peso

da rejeição, é capaz de privar esse amor? De retirar um bebê dos


braços da sua mãe? De dizer que ama, mas fazê-lo sofrer?

Yasuv emitiu um som cansado.


— Porra! Um canalha demoníaco como eu não merece
sequer ser chamado de pai. — Balancei a cabeça em negativa,
amargurado comigo mesmo. — Eu não mereço esse bebê, Yazuv.
Eu não sou digno de amá-lo. Sou um merda, um covarde!
Como se fosse possível, enquanto dizia essas palavras, a

minha angústia ficou ainda maior.


— Eu sequer mereço que ele algum dia venha a me amar…

Caí em um pranto convulsivo, em que pequenos soluços de


dor escapavam pelos meus lábios. Minhas lágrimas molhavam o
papel entre os meus dedos.

— Minha avó estava certa…

— Não diga isso, Javier — falou em um tom ríspido, depois


de ficar vários minutos em silêncio, e eu não esperava tanta

veemência vindo do meu melhor amigo. — Por mais que você não

acredite, sua avó estava errada. Todos, até mesmo o demônio,

como você mesmo se intitula, pode amar e ser amado.


Balancei a cabeça em negativa mesmo que ele não pudesse

ver.

— Não, eu não…
— Pode ter cometido um erro, mas isso não significa que

você merece ainda mais solidão como forma de autopunição —

interrompeu-me bruscamente, apenas para adotar um tom mais


suave em seguida. — Você já sofreu muito.
— Eu…

— Não é tarde demais para consertar seu erro, kardeşi[78] —


sussurrou. — Bárbara é uma menina doce e, pelo que minha mulher

me contou, bastante altruísta.

Soltou um suspiro.
— Vocês podem tentar… — Não completou, e não

precisava.

Por um minuto, vislumbrei aquela possibilidade doce de que

ela fosse a minha mulher não apenas no papel, e que pudéssemos


criar o bebê juntos, mas logo aquela fantasia se dissolveu como se

fosse uma nuvem soprada pelo vento.

— Eu não posso fazer isso com ela — murmurei, dando


outro sorriso amargo pelo meu “suposto” altruísmo. — Não posso

mais condená-la, obrigando-a a ficar comigo. Eu já a fiz sofrer

demais em um curto espaço de tempo.

Fiz uma pausa, puxando o ar com forças para o pulmão,


quando senti as minhas próprias palavras como facadas. Eu

aniquilava mais um sonho.

— Como você mesmo disse, ela é jovem, poderá encontrar


um homem da idade dela que a fará feliz, que possa dar aquilo que
ela mereça. — Suspirei. — Amarrá-la a mim em um casamento

condenado ao fracasso desde o início só seria mais um erro.

— Você não pode saber se não tentar…


— O amor e a felicidade conjugal te deixou sonhador, amigo

— forcei um tom de ironia, porém aquele Javier parecia ter morrido.

Ficamos em silêncio por vários minutos.

— E o que você fará, Javier?


— A única coisa que posso fazer, o certo.

Assim que disse essa única palavra em um tom quebrado, eu

me senti um pouco morto por dentro. Mas se a garota parecia forte


o suficiente para sobreviver a ausência, o convívio esporádico, de

alguma forma eu também teria que ser. Tinha que pensar naquilo que

era o melhor para meu bebê.

— Por mais difícil e doloroso que seja… — falei para mim


mesmo, já sentindo as garras da solidão esmagando o meu coração.
Capítulo quarenta e dois

Acariciava o topo da cabeça de Isabel enquanto Lorenzo

estava deitado nos meus pés, mas eu quase não era consciente dos

meus gestos, bem como das lambidas amorosas que eu recebia em


troca, carinhos caninos que apreciava e muito. Olhei pela enorme

janela da sala, só então constatando que há muito a noite havia

caído, e eu não tinha me dado conta.


Movida pela dor, eu fazia tudo no automático, como comer,

tomar banho, dormir. Tinha sido difícil me esquivar do meu irmão,

fingindo uma normalidade que não sentia, suprimindo as lágrimas que

queriam ser derramadas.

Suspirei. Há exatas vinte e quatro horas Javier havia me


dado as costas, me deixando a sós com os cachorros, e eu tinha

repassado cada segundo, me perguntando o que eu poderia ter feito

ou falado de diferente, porém minha mente era um grande vazio,

tanto quanto estava meu coração.

Toquei com a mão livre o meu rosto, encontrando-o seco,

não tinha mais lágrimas para chorar. Eu parecia oca.


Minhas esperanças haviam desvanecido, Javier não me
permitiria conviver com o meu bebê, isso tinha ficado mais claro do

que o brilho das estrelas que iluminavam o céu.

Parando os carinhos em Isabel, fazendo a cadela protestar

com um pequeno choramingar, encolhi-me contra o sofá, sem forças.

Só fui tirada do meu torpor quando o som de latidos ficou

intenso e eu encontrei o meu marido parado próximo a mim.


Erguendo o meu rosto, o encarei, percebendo o cansaço, a tristeza e

a dor que havia em sua expressão. Nunca tinha visto tamanha

derrota nele, desespero.

Era uma tola, mas meu coração sofreu por ele.

— Preciso te dar isso — falou baixinho, seu tom quebrado, e

só então percebi que ele segurava um envelope e estendia um papel

para mim.
— O que é? — questionei em um fiozinho de voz depois que

criei coragem para perguntar.

— Leia você mesma. Não me force a ler em voz alta para

você.

— Tudo bem.

Com os meus dedos trêmulos, peguei a folha da mão dele.


Quando eu comecei a ler as palavras impressas, senti que as
lágrimas, que pensei que não conseguiria mais derramar, se

acumulavam em meus olhos. Meu coração começou a bater mais


acelerado, a esperança renascendo em meu interior como uma fênix.

— Javier? — perguntei, mal acreditando naquilo que lia.


Pulei do meu assento no automático, fazendo com que os
cachorros começassem a latir alto e dessem patadas em nós, mas

presa na minha felicidade, quase não era consciente deles.


— Só precisa da sua assinatura, garota.

— Eu não entendo...
— Não é justo que o “nosso” bebê viva sem ter os carinhos,

o cuidado, e o amor da sua “mãe” — respondeu em um tom


embargado e vi uma lágrima sorrateira escapar pelos seus olhos. —
O amo demais para privá-lo de você e de tudo o que poderá dar a

ele, tanto que estou disposto a ficar com ele apenas uma vez na
semana para que você possa ter a guarda dele.

— Meu Deus, Javier — sussurrei, completamente


emocionada.

Ele não tinha ideia do quanto aquele ato generoso significava


para mim. Ele estava renunciando àquilo que ele mais amava, do seu
sonho, pelo nosso bebê.
Soltando a folha, sem pensar muito no que estava fazendo,

cortei a distância que havia entre nós dois, e o envolvi em um abraço


apertado, sem me importar se meu choro molhava a sua camisa. Um

corpinho se colocou entre nossas pernas, enquanto eu levava uma


rabada. Javier emitiu um suspiro cansado e, automaticamente, me

abraçou de volta; eu senti as lágrimas dele caindo sobre os meus


cabelos.
— Obrigada — falei por entre as lágrimas.

— Eu que tenho que agradecer por você abrir os meus


olhos, garota — murmurou. — Eu estava cego, preso ao passado,

tanto que eu quase cometi o maior erro da minha vida, o que faria o
meu filho sofrer.
— Javier…

Balançou a cabeça em negativa.


— Eu sei que você será uma ótima mãe para o nosso filho,

Bárbara. Será paciente, generosa, doce, bem diferente de tudo o


que conheci.

Ergui meu rosto em direção ao dele, e senti uma onda de


ternura me invadir, bem como uma pontinha de dor pela criança que
meu marido foi, e quis tragar aquela melancolia para mim,

transformando-a em amor, carinho e felicidade.


— Isso foi a coisa mais linda que me falaram, Javier.
— É a mais pura verdade, Bárbara. — Me encarou de volta
e pude perceber que ele falava a verdade. — Estou dando a você o

meu bem mais amado, mas sei que será uma mãe maravilhosa!
— ¡Dios! — dei um gritinho, e latidos me acompanharam.

Novamente voltei a abraçá-lo, aninhando-me contra ele.


Nunca um abraço me pareceu tão gostoso na vida, tão perfeito.
— Eu agradeço, Javier — falei minutos depois contra o seu

peitoral, ouvindo o coração dele batendo cadenciado —, mas eu não


posso aceitar.

— Por quê?
Senti o corpo dele ficar tenso de encontro ao meu e ele

ergueu o meu rosto para que nos fitássemos.


Vi a dor e a confusão nele.
— Não era isso o que você queria, garota? — continuou a

questionar em tom embargado.


— Eu também não posso privar o nosso bebê de viver

cotidianamente com o seu papai, ainda mais quando o pai é um


homem completamente apaixonado por ele. — Acariciei o queixo
dele, sentindo os pelos mais compridos do que o normal. — Você

precisa tanto do calor e do amor dele, quanto ele precisará do seu.


— Bárbara… — disse meu nome em meio a um suspiro e o
vi fechar os olhos, como se fosse atingido por uma rajada de
emoções agridoces, indo do amor à dor.

Me abraçou com mais força, como se precisasse do contato


com todo o seu ser, e eu me colei mais a ele.

— Podemos tentar ser uma…


Capítulo quarenta e três

— Família… — completei em voz baixa antes que ela o

fizesse, como se dizê-las fizesse com que a ideia se materializasse,

de que a sensação de que eu sonhava acordado se tornasse real.


Meu coração passou a martelar furiosamente no peito e a

esperança tomava todo o meu corpo, por mais que uma parte

racional tentava colocar algum freio nos meus anseios. Não tinha sido
eu quem havia falado um dia atrás que eu não poderia continuar

fazendo a garota sofrer, condenando-a a algo vazio? Prendendo-a a

um homem que não pode oferecer a ela aquilo que merece?

Inalei fundo, sentindo o cheiro de caramelo que vinha dela,

fragrância que pareceu dar ainda mais forças para meus desejos
secretos de que eu e aquela mulher, juntos, poderíamos formar uma

família para o nosso bebê. E por que não, para os dois pequenos

que, ignorados por nós, tentavam chamar nossa atenção com suas

patas, lambidas e latidos. Porra, a ideia era maravilhosa demais para

não me deixar levar por ela. Por querê-la.

Controlei-me para não deixar que ela tomasse proporções


ainda maiores e me fizesse desejar que a garota pudesse… Por
mais que houvesse desejo entre nós, pedir que a garota tentasse
gostar de mim, era demais.

— Sei que sou impulsiva, me meto onde não sou chamada,

sou uma tola, ingênua, sou jovem demais… — Pareceu insegura

consigo mesma, tirando-me do transe de pensamento.

Segurando-a suavemente pelo queixo, fiz com que não se

escondesse de mim. Quando ela não fez nada para baixar o rosto,
acariciei sua face, não podia negar que sentia falta de tocar a sua

pele macia.

— Podemos ter uma relação amigável pelo nosso bebê.

Sorriu e algo dentro de mim se revirou com o uso da palavra

“amigável”. Não queria que fôssemos apenas amigos, queria muito

mais dela. Poderia ter sido o suficiente no passado, porém, agora,

não era mais.


Como eu poderia ser apenas amigo daquela garota que, me

encarando daquela maneira, com o seu corpo tão próximo do meu,

os lábios entreabertos, me fazia querer beijá-la outra vez? Eu perco

completamente a capacidade de raciocinar quando ela está tão

próxima; as convicções e promessas feitas a mim mesmo, que eram

tão importantes para mim, eram destruídas com um simples olhar e


um toque dela.
— Eu sei que você não me queria como esposa, Javier, e

que pode ser que você se apaixone por outra mulher — continuou em
voz baixa e eu pude perceber uma pontinha de tristeza em seus

olhos —, mas, se acontecer, eu te darei o divórcio sem nenhum


problema… — Desviou o olhar, fitando algo atrás de mim. — Isso se
você não quiser a separação agora. Não precisamos estar casados

para criar nosso bebê juntos.


— Entendo. — Quase não me escutei.

Quando entreguei o documento que passava a guarda para a


garota, estava determinado também a mostrar os papéis do divórcio,

mas, agora, tudo o que eu desejava era rasgá-los. A ideia de me


separar naquele momento era intragável. O homem que a garota
despertava em mim ainda queria ser casado com ela, mesmo que

fosse algo impossível.


— Sei que você me detesta, Javier, mas nós podemos…

Pousei um dedo sobre os lábios dela, fazendo com que se


calasse. A ponta do meu dedo formigou onde eu a tocava, a

respiração quente dela contra a minha pele era como receber uma
carícia fodidamente deliciosa.
— Você está errada. — Minha voz soou rouca, e eu escutei

o meu próprio desejo ecoar em meus ouvidos. — Eu não te odeio,


muito pelo contrário.

Não resisti e aproximei o meu rosto da curva do pescoço


dela, inspirando sua fragrância. O cheiro dela era tão gostoso,

embriagante, que eu sentia a excitação banhar lentamente as minhas


veias. Eu fiquei ereto.

Respirei outra vez, guardando uma última recordação dela


para mim. Ela estremeceu e segurou nos meus ombros, firmando-se
quando pareceu ficar mole, minando ainda mais a minha

determinação em resistir.
Porra!

Ainda me surpreendia como o corpo dela reagia


instintivamente à menor das provocações.
— Eu tentei detestá-la — sussurrei contra a orelha dela,

arrepiando-a —, sentir raiva de você, das suas perguntas excessivas


e da sua tagarelice, ignorá-la…

— Javier…
— Mas você deve saber que não sou capaz de odiá-la,

garota.
Ri baixinho de mim mesmo. Ouvir aquela verdade dita em voz
alta era no mínimo engraçado.
Ergui meu rosto para que nossos olhares ficassem presos
um ao outro e voltei a dedilhar a linha da sua mandíbula.
— Mas mesmo que eu sempre tenha sonhado acordado em

ter uma família — senti a diversão morrer dentro de mim, a dor


substituindo-a, apertando meu peito —, que eu adoraria formar uma

com você pelo nosso bebê, eu não posso puni-la ainda mais
mantendo-a como minha esposa.
— Javier…

Silenciei-a com o dedo, impedindo-a de continuar.


— Não entende, garota? — Dei um sorriso amargo. —

Merece um homem que possa te venerar do jeito que tem direito, um


que irá te amar e te dar uma família de verdade, repleta de

felicidade, carinho e ternura.


— Você pode ser esse homem, Javier — falou suavemente
contra a minha pele, uma centelha de esperança brilhando em seus

olhos.
— Não, eu não posso, Bárbara — comecei a ser cruel

comigo mesmo —, sou incapaz…


— Para, Javier! — Seu tom aumentou várias escalas ao
desviar do meu toque, fazendo com que eu me calasse e os
cachorros se agitassem. — Você não é incapaz de amar. No fundo
do seu coração, você sabe que consegue.
Suas palavras eram como um soco na boca do meu

estômago. Perdi o ar, fiquei paralisado ao ver as lágrimas voltarem a


deslizar pela sua face.

— O amor pelo nosso bebê é a prova viva disso. — Pareceu


esmorecer ao dar um passo para trás, recuando de mim e do meu
toque e, com isso, me fazendo sentir um lixo. — Mas entendo se

você não me quiser ou se sentir que é incapaz de gostar de mim em

outros sentidos, como mulher, como sua esposa.


Uma risada áspera saiu da minha garganta.

Sem pensar muito no que estava fazendo, coloquei minhas

mãos na sua cintura, e a puxei de encontro a mim, fazendo com que

nossas pélvis se chocassem, um ato bruto, que me incendiou. Minha


ereção começou a ganhar vida outra vez com o pequeno roçar. Era

surreal como só o simples fato de ter o corpo daquela garota contra

o meu era o suficiente para que eu me sentisse excitado.


— Eu a desejo, mais do que eu demonstrei naquele maldito

banheiro — falei com a voz áspera, sentindo minha respiração ficar

cada vez mais entrecortada.


Os olhos dela cintilaram, provavelmente espelhando o

mesmo desejo que havia nos meus, e eu gemi.


— Eu não quero apenas sexo, garota, por mais que eu

esteja louco para tê-la. — Como um último raio de consciência,

usando as minhas últimas forças, tentei convencê-la, ou se fosse


honesto, convencer a mim mesmo da razão por que não deveríamos

manter aquele casamento. — Sentir satisfação sexual não é mais o

suficiente para mim, nunca o foi.

— Entendo — sussurrou e eu não sei se de fato ela


entendia.

— Eu quero bem mais, e é por isso que o divórcio é a melhor

alternativa para nós dois. — Retirei o curativo de uma só vez,


expondo minha ferida, deixando que eu sangrasse.

— E o que você quer, Javier? — perguntou suavemente ao

tocar o meu rosto.


Afagou-me, fazendo com que experimentasse aquela

enxurrada de sensações que alcançavam a minha alma, os

sentimentos que tanto almejava e tinha tentado verbalizar em voz

alta.
Não sei se ria ou chorava pela capacidade dela de chegar

tão próximo daquilo que eu desejava.


— Não precisa esconder de mim — falou no meu ouvido,

continuando a me tocar.

Fiquei em silêncio, apenas encarando aqueles olhos que me


fitavam com extrema doçura.

— Eu quero ser amado, garota. — Acabei verbalizando

aquilo que mais queria — Preciso que me toquem, que me beijem

com sentimentos que vão além de satisfação carnal. Eu… — Não


completei.

Sabia que estava correndo o risco de me expor demais e dar

armas para que ela me quebrasse ainda mais, porém, mas, diante
do desalento que sentia, não me importava, não quando a solidão

venceria outra vez, quando eu estava prestes a afastar a única

mulher que conseguiu chegar a me dar uma amostra daquilo que eu

mais cobiçava.
— Assim, Javier?

Antes que eu respondesse, a garota ficou nas pontas dos

pés e, puxando-me, colou nossas bocas uma na outra, moldando-as


suavemente enquanto sua mão segurava meu queixo com pressão

para que eu não me afastasse. Um arrepio de êxtase percorreu todo

o meu corpo, fazendo com que eu estremecesse ao sentir o calor de


nossos lábios, e instintivamente a trouxe mais para mim, querendo a

fusão dos nossos corpos, lamentando as camadas de roupa.


Me beijava devagar, sem me penetrar com a língua,

provocando-me, e eu deixei que ela imprimisse o ritmo que

desejasse, apenas retribuí, degustando das sensações que aquele


mero roçar inocente provocava em mim.

Me sentia nos céus por ser beijado daquela forma, por ter os

seus dedos infiltrando-se nos meus cabelos, massageando o meu

couro cabeludo.
Suspirei, embevecido, quando, com pequenas mordidinhas,

fez com que eu abrisse meus lábios para que recebesse a sua língua

em meu interior.
Bárbara me lambeu, sugou, mordiscou, provou cada canto

da minha boca, e eu peguei-me inclinando a cabeça para que lhe

desse mais acesso, para que ela não deixasse um único pedaço de

mim sem o seu beijo. Tive que conter uma gargalhada quando a
ponta da língua dela fez cócegas no céu da minha boca, e apenas

deixei que a alegria do momento fluísse pelo meu corpo.

Perdi-me nela e naquele beijo diferente de tudo o que provei.


Enquanto ela aumentava o ritmo e suas provocações, usando

lábios, língua e dentes, eu a instigava a prosseguir com a sua


exploração ao subir com as mãos pelas suas costas, firmando-a,

acarinhando-a.

Puxou o meu lábio com os dentes, fazendo-o estalar, e o

meu sangue pareceu bombardear diretamente para o meu pau. Colei


minha pelve na dela em um espasmo, e instintivamente o corpo dela

ondulou contra o meu, seus seios pequenos e arfantes amassando-

se contra o meu peitoral. Ela era gostosa demais!


Gememos juntos quando nossas línguas se encontraram,

enroscando-se uma na outra com morosidade, fazendo com que

nossas respirações descompassadas se tornassem uma só, bem

como nossos corpos pareciam ter se tornado um. Era como se não
houvesse naquela sala nada além de mim e ela, de calor e prazer.

Nossas bocas, mãos e corpos pareciam se mover no mesmo

ritmo, buscando sentir um ao outro, e os sons que saiam pelos


nossos lábios formavam uma única canção.

Era a primeira vez que alcançava aquele nível de entrega

com alguém, e eu me derretia diante daquela intimidade. Ela me

fazia ver que não precisávamos estar nus para que eu sentisse
aquele prazer indescritível nos meus sentidos. E eu mergulhava de

cabeça no momento doce que ela me propiciava.


Um beijo nunca me pareceu tão perfeito como aquele que

dávamos, com nossas bocas se buscando com mais voracidade,


desespero, apenas para voltar a encontrar um ritmo calmo, mas não

menos prazeroso para mim. Até mesmo os selinhos que trocamos

em meio aos beijos, em busca por fôlego, pareciam intensificar ainda

mais aquele contato, tornando-o mais especial.


Porra! Um homem como eu estava perdendo completamente

a capacidade de pensar apenas com aqueles selinhos rápidos,

provocantes. Eu ficava cada vez mais viciado neles e poderia passar


o restante da minha vida sendo reféns daquele contato.

Suspirei outra vez. Eu poderia não ter experiência em beijos

como aquele, mas eu sentia que ela me dava tudo o que eu desejava
com apenas um roçar de lábios. Fechei os olhos, como um garoto

que recebia o primeiro beijo da namorada, o que, de alguma forma,

estava sendo o primeiro para mim, pois ele não era apenas diferente

de tudo que já tive, mas também pareceu vir mudar tudo. Agora que
tive uma amostra de como era ser beijado daquela forma, com

ternura e carinho, não aceitaria menos.

— Está ao seu contento, Javier? — Questionou em um


sussurro ofegante ao colar nossas testas, deixando um selinho nos

meus lábios.
O olhar dela parecia nublado pelo desejo e por uma espécie
de felicidade. Inconscientemente, infiltrei minhas mãos pela blusa

soltinha que usava e acariciei suavemente a barriga dela, mesmo que

ainda não houvesse nenhum volume. Era emocionante tocá-la ali,


sabendo que já estava esperando nosso bebê, meu pequeno e tão

sonhado filho.

Saber que a garota parecia mais do que disposta a dar uma


família para ele, tornava isso ainda mais tocante.

— Ou você precisa de mais só para ter certeza? — disse em

um tom brincalhão e voltou a deixar outro beijinho na comissura da

minha boca.
Não contive o meu próprio sorriso.

— Você me deixa maluco, garota.

Ainda deslizando meus dedos pelo seu ventre nu, mordisquei


o lóbulo, provocando-a da mesma forma que ela tinha me atiçado

com palavras.
— Mas acho que preciso de um pouco mais — falei em tom
de diversão —, só para ter certeza.

Soltou uma risada baixinha, mas a gargalhada dela morreu


quando deslizei a língua pela região sensível atrás da sua orelha.
Bárbara ficou completamente arrepiada ao meu tato, seus dedos
apertando o meu braço enquanto a outra mão continuava a percorrer
os meus fios.
— Deliciosa.

— Hm? — Gemeu baixinho.


Expôs o pescoço para mim, em um convite silencioso, o qual
não tinha mais forças para recusar. Suguei, lambi, deixei mordidas e

arranhei com a minha barba, inspirando com força o cheiro dela, ao


passo que minhas mãos, que antes a tocavam ingenuamente, subiam
até alcançar os seios dela, traçando o contorno dos mamilos firmes

e pequenos com as pontas dos dedos, que pareciam queimar por


tocá-la. Tinha quase toda a certeza de que eles eram do tamanho
perfeito para as minhas mãos.

— Vamos para o quarto, Javier... — pediu em um tom baixo


ao puxar meus cabelos, quando eu estava prestes a testar a minha
teoria sobre seus seios, fazendo com que eu tombasse a cabeça

para trás e interrompesse o que estava fazendo e baixasse minhas


mãos.

Só então recordei-me de que eu desejava tê-la lentamente


em uma cama, não em um lugar qualquer, e também que eu tinha um
par de cachorros que, mesmo que tivessem desistido de nós,
provavelmente estavam em suas caminhas ou no quarto da minha
esposa, poderiam a qualquer momento nos interromper.
— ¡Sí, mi Luz! — concordei.

Vi os olhos dela cintilarem pela forma que eu a chamei


impulsivamente, e um sorriso lindo e provocante surgiu em seus

lábios, vermelhos pelos meus beijos. Definitivamente, aquela visão


me iluminou.
Dei um beijinho suave na testa dela e, pegando-a

desprevenida, passei um braço em torno das suas pernas e uma


mão no centro das suas costas, e a ergui.
— Javier! — Emitiu um gritinho.

— Envolva o meu pescoço — pedi suavemente e ela não


pensou duas vezes.
Firmei minhas pernas quando senti os lábios dela deixando

um beijinho na minha garganta.


— Posso andar, sabia? — Questionou quando comecei a
caminhar, passando pelo envelope e o papel da guarda

completamente esquecidos no chão, era como se eles pertencessem


a um passado bastante longínquo, não que apenas tivessem sido

lidos há pouco mais de uma hora. Mais tarde, teria o prazer de


rasgar cada uma dessas folhas, talvez eu até fizesse uma chuva com
os papéis picados.

— Sim, eu sei — respondi em tom suave.


Atraído pelo som da minha mulher, senti uma pequena Isabel
entrelaçando-se nas minhas pernas, dificultando os meus passos.

Pelo menos meu quarto não ficava tão longe assim; somente alguns
metros. E minha esposa era pequena e leve demais para mim.

Acomodei-a melhor em meus braços.


— Então por que…
— Precisa de alguma razão, garota? — Estalei a língua,

repreendendo-a, recebendo a risada dela em resposta, bem como


uma carícia suave feita pelos seus lábios. — E se for sincero, queria
muito carregá-la no colo, “esposa”.

— Hum…
— Não gosta? Posso te soltar aqui mesmo — brinquei, pois
nem ferrando eu a soltaria.

— Digamos que é bem romântico da sua parte, “esposo” —


provocou-me —, e eu gosto muito.
— Mesmo?

— Talvez, daqui para frente, eu o obrigue a me carregar de


cima para baixo.
Gargalhei.

— Acho uma ideia interessante — falei suavemente. — Mas


vou querer ser recompensado por isso, garota.
Parei na frente da porta do meu quarto e, com cuidado,

deslizei o corpo dela suavemente contra o meu até que ela


alcançasse o chão, erguendo-a um pouco outra vez, para que seu
sexo roçasse no meu pau excitado, deixando claro qual

compensação eu queria dela, porém o contato só serviu para me


fazer latejar ainda mais dentro das calças.

Minha cadelinha se interpôs entre nós com o focinho, fazendo


com que a garota desse um passo para trás, e eu fiz uma careta.
— Esse não é o meu quarto. — Afirmou algo óbvio quando

eu abri a porta. Adentrou, curiosa, seguida de uma Isabel trotando.


— Não — respondi, alcançando-as.
Abracei a garota por trás e sussurrei:

— Mas é o novo lugar em que você irá dormir. — Mordisquei


a orelha dela. — Comigo. Nua. Ou usando os seus pijamas curtinhos
que me deixam ver a metade da sua bunda.

— Javier! — Exclamou com a voz abafada e eu imaginei que


ela ficava ruborizada, provavelmente ao pensar em quantas vezes
tinha usado aquelas peças na minha frente.
Bárbara não sabia o quanto precisei me comportar como um
cavalheiro, e tentar olhar o mínimo possível. Mas a partir dessa
noite, não precisaria me privar da visão de cada parte do corpo dela,

nem mesmo de tocá-la.


Dei um tapa de leve nas nádegas dela que, para minha
decepção, estavam totalmente cobertas com o tecido de flanela da

calça de um pijama longo, e a garota deu um saltinho com o impacto.


Inclinei-me para pegar Isabel, e a cadela levada emitiu uns
barulhinhos caninos enquanto eu caminhava para tirá-la do quarto..

— Boa menina, querida — sussurrei para ela, ao pousá-la no


chão.
Ela deu um grunhido indignado, queria ficar. Fiz um carinho

nela e fechei a porta na carinha dela, fazendo com que latisse e


arranhasse a superfície de madeira com suas unhas. Meu coração

se infligiu por ela, mas era inevitável. Só poderia torcer para que a
pequena se acostumasse.
Limpando as mãos com álcool em gel, removi os sapatos, as

meias e o terno, jogando-os no chão. Não tive tempo de me despir


de mais nada, pois logo a garota voltou a se aproximar, colando
nossos corpos, e suas mãos enlaçaram o meu pescoço. Sentir os
seios macios amassados contra o meu peitoral era um deleite à
parte, principalmente quando não havia o tecido grosso do blazer.

Infiltrei as mãos novamente pela blusa do seu pijama e


comecei a traçar a lateral do corpo dela, percorrendo os seus
quadris generosos até alcançar a cintura fina. O calor sob o meu tato

fez com que eu gemesse e, por instinto, esfreguei meu pau no seu
ventre.
— Onde paramos, Javier? — Murmurou em um tom rouco ao

voltar a enterrar seus dedos nos meus cabelos, acariciando-os


suavemente, em um gesto inocente que me era extremamente
erótico.

Os olhos verdes dela tinham um brilho travesso, cheios de


desejo, que me deixou completamente maluco.
— Acho que aqui, garota — falei roucamente. E rompendo o

último fio de sanidade, sem esperar uma resposta, cobri seus lábios
com os meus.

Diferente do beijo suave que ela havia me dado, a beijei com


fome e voracidade, sentindo uma urgência de tê-la banhando as
minhas veias.

Lambendo seus lábios, sugando-os lentamente, fiz com que


ela se abrisse para mim, e sem pensar muito, Bárbara deu acesso
para mim. Usei a língua para saquear a sua boca enquanto minhas
mãos passaram a percorrer cada centímetro de pele, meu pau

latejando na calça ao senti-la se contorcer sob o meu toque.


Minha esposa retribuiu com o mesmo vigor, inclinando a

cabeça suavemente para dar-me mais acesso a sua boca, enquanto


suas mãos, também frenéticas, percorriam meus ombros e costas,
até alcançarem a minha lombar, subindo outra vez. Onde ela tocava,

mesmo que não fosse pele contra pele, a garota parecia deixar um
rastro de fogo em mim.
Eu queimava por aquela garota e pelos sons baixinhos que

ela emitia em meio ao nosso beijo cada vez mais sedento, onde
nossos dentes sem querer se chocavam, com nossos lábios se
movendo freneticamente, produzindo seu próprio som, e nossas

línguas se enroscando uma na outra em uma dança ritmada.


Trouxe-a mais de encontro a mim. Aquele beijo sôfrego não
parecia ser suficiente para aplacar o desejo que sentíamos, e

suspirando outra vez, imprimi ao contato uma intensidade mais


morosa, freando-me e também a garota, que, em algum momento,

havia conseguido o controle das nossas bocas. Meus dedos


passaram a tocá-la com delicadeza, e eu senti pequenos arrepios de
prazer por apalpá-la suavemente.
Por mais gostoso que fosse nossa avidez, algo que, sem

dúvida, gostaria de explorar no futuro, pois me fazia sentir quisto,


desejado, como nunca antes, eu queria aproveitar cada uma das
sensações da nossa primeira vez. Da primeira vez que alguém faria

amor comigo.
Ela chiou em protesto e eu quis sorrir em meio ao beijo,

porém apenas continuei movendo nossas bocas lentamente uma na


outra, deliciando-me com o fato dela voltar a me acompanhar,
beijando-me suavemente de volta. Entre suspiros, beijos e selinhos,

alcancei outra vez os seios que tanto queria sentir com as minhas
mãos. Depois de contorná-los com as pontas dos dedos, traçando
suas doces curvas, como eu faria depois com a língua, segurei-os

em concha, sentindo o peso deles contra a minha palma.


Sim, eram perfeitos. Pequenos, firmes, mas enchiam as
minhas mãos.

— Javier — murmurou meu nome contra a minha bochecha


ao apartar o beijo, deixando um rastro molhado pela minha pele,
quando, com os polegares, toquei os bicos já excitados.

Continuei a acariciar as pequenas aréolas, deixando-as ainda


mais túrgidas, ignorando meu pau que pulsava freneticamente,
querendo sentir o calor úmido do canal dela. Estava tão ereto que
chegava a me causar dor, principalmente por ter nossos sexos
roçando um no outro.
— Maravilhosos — foi a minha vez de sussurrar, ofegante,

enquanto a garota trilhava com a boca um caminho de beijinhos pelo


meu maxilar e queixo, deslizando pela minha garganta. Eu ainda nem
tinha os visto nus, mas eu sabia que eram lindos.

Grunhi ao sentir seus dentes raspando pela minha pele. Ela


ergueu o rosto para me encarar, parecendo envergonhada.
— Tenho a impressão de que um deles é um pouco maior do

que o outro.
Continuei a acariciá-la com as pontas dos dedos, só então

percebendo a leve diferença que havia no tamanho e no peso.


— São perfeitos para mim, garota.
Como para provar isso, removi minha mão de dentro da

blusa dela e, segurando a barra, comecei a erguê-la. Ela me ajudou


a remover a peça de manga comprida ao levantar os braços. Despi-
la se tornaria um novo hobby para mim.

Quando eu descartei a camisa no chão, ela tapou os seios


com o antebraço, envergonhada. Toquei seu rosto, brincando com os
seus lábios.

— Não precisa se esconder, mi Luz.


Deixei um beijo na sua testa e um em cada pálpebra.
— Eu…

— Não de mim.
Baixei o braço dela, expondo os seios para o meu olhar.
Porra, eles eram lindos na sua imperfeição. Os bicos eriçados

pareciam clamar pelos meus lábios.


— Não quando você viu e sentiu o quão disforme é a pele
das minhas costas. — Não escondi minha insegurança da garota. —

Não quando meu corpo é repugnante.


Em meio aos beijos e toques, tinha varrido temporariamente
para o fundo da minha mente o quanto as cicatrizes e marcas eram

intragáveis, o quanto elas poderiam ser repulsivas para ela tocar em


meio ao sexo.

— Não fale assim de si mesmo, Javier.


Me encarou com uma expressão séria. A firmeza que havia
nela fez com que eu balançasse a cabeça em concordância.

Meu corpo todo tremeu com a intensidade que havia nela.


Nenhuma pessoa tinha mostrado tanta veemência em defender-me
de mim mesmo como a minha esposa.

— Sinto desgosto por ver você se menosprezando, querido


— disse a última palavra com tanta doçura que, ao invés de gelo, eu
parecia ser feito de açúcar. Ela me fazia derreter, tanto que senti

minhas pernas ficarem levemente bambas.


Não tive tempo para pensar em mais nada, pois, tomando a
iniciativa, puxou a minha camisa social, removendo-a da calça, e

começou a desabotoar os botões. Sentindo uma ânsia desesperada


por ela, ajudei a tirar os botões da casa também, puxando a camisa
com força para retirá-la, jogando a peça no chão. Imediatamente

senti sua mão sobre a minha pele. Segurei o ar nos meus pulmões.
Por mais que eu quisesse tocá-la, brincar com os seus mamilos
eretos, deixei que ela me explorasse. Ela tracejava com a ponta dos

dedos as marcas, massageando a carne lesada e as cicatrizes das


minhas costas e ombros com tanta delicadeza que, se ela parasse,
porra, eu era capaz de implorar para que continuasse.

Como da vez em que Bárbara se arriscou ao tocar-me,


pareceu que a minha esposa alcançava um lugar desconhecido

dentro de mim que somente ela conseguiria. A carícia era algo físico,
porém ela atingia algo que ia muito além do meu corpo.
Fechei os olhos e as sensações que percorriam meu corpo

se intensificaram. Os sons que escapavam dos meus lábios


pareciam ecoar mais alto, os barulhos que saíam dela e o calor do
contato pareciam maiores.
Não contive um gemido quando senti seus lábios pousarem

na cicatriz mais feia do meu abdômen, deixando uma trilha de


beijinho suaves, que pareciam uma pena, por toda a extensão. Uma

mecha do cabelo dela que roçava na minha pele provocava cócegas


e eu sufoquei uma risada alta, não fazia ideia de que ali era um ponto
tão sensível.

Suas mãos faziam mágica sobre mim, relaxando-me, ao


mesmo tempo que ficava rígido.
Eu estava todo arrepiado, minha barriga contraía ao contato

daquela boca morna, meu fluxo sanguíneo se acumulava no meu


pênis, deixando-o latejando; eu lutava para trazer ar para os meus
pulmões.

Havia um quê de inexperiência no seu toque e nos seus


beijos que me emocionava. Ela poderia não ser virgem, mas a
inocência dela fazia com que o meu lado primitivo ganhasse força em

meu interior, porém me controlei.


Ainda de olhos fechados, busquei pelos seus cabelos e
envolvi a massa sedosa e longas entre os meus dedos, brincando

com os fios, massageando-os, incentivando a continuar.


Joguei a cabeça para trás e senti uma gota do pré-gozo

escorrer pelo meu pau quando sua língua substituiu seus dedos e,
com os lábios, começou a traçar pequenos círculos pela minha pele,
subindo até alcançar o meu pescoço, deixando pequenos chupões
que aumentavam o prazer que sentia. Regozijei-me quando ela

mordeu o meu queixo sem se preocupar com a minha barba.


Um muxoxo escapou dos meus lábios quando ela parou.

Abaixando a mão, envolvi a sua cintura e a puxei para mim, gemendo


ao sentir os seios e os bicos rígidos roçando contra o meu peitoral.

— Eu sei que te feriram física e emocionalmente, Javier —


falou em um tom baixinho depois de permanecermos abraçados por
alguns segundos, erguendo o rosto na direção do meu para encarar-
me. Ela me prendeu naquele mar de esmeraldas cheias de ternura.
Suas mãos voltaram para o meu rosto. — Mas confie em mim, eu
nunca irei te machucar, como eu confio que você nunca me fará

sofrer.
— Eu… — Já ia dizer que eu já a havia ferido, porém ela me
interrompeu com um selinho.
— Não deliberadamente. — Voltou a me dar um beijinho. —
E mesmo com os ferimentos, você deve saber que é um homem

muito, mas muito atraente, tanto que foi impossível não nutrir uma
paixonite por você.
Arqueei a sobrancelha ao passo que meu coração se
acelerava.
¡Carajo! Aquela garota estava me dizendo que já nutria algo

por mim?
— Paixonite?
Fez que sim com a cabeça, continuando a me acariciar, e
sorriu.
— Que mulher em sã consciência não o desejaria?
— Não me importo o mínimo com as outras mulheres — falei

com a voz áspera.


— Melhor mesmo, porque agora você é meu, Javier. — Seu
tom teve um quê de posse que jogou fogo no meu lado primitivo, e eu
soube que já havia esperado tempo demais sem prová-la.
— ¡Sí!— rugi.
Deslizei as minhas mãos em direção a sua bunda e baixei

minha boca sobre a dela, lambendo seus lábios, antes de mergulhar


com a língua na sua boca em um beijo cheio de urgência. Ela tinha
me marcado como seu através das palavras, e eu a faria minha
através do meu beijo cheio de desejo e posse. Enquanto nos
beijávamos furiosamente, nossas mãos trabalhavam freneticamente.
Cada vez mais perdido, fui conduzindo-a lentamente em direção a
minha cama, até que suas pernas batessem na beirada.
— Javier?
Deu um sorriso e minha resposta foi beijar sua bochecha,
deslizando minha boca por todo o seu rosto enquanto buscava por

ar. Minhas mãos foram das suas nádegas para o elástico da maldita
calça que usava. Voltei a capturar seus lábios.
Senti que meus dedos ficaram trêmulos com a perspectiva
de deixar a minha mulher completamente nua para mim e, mesmo
torpemente, comecei a baixar a peça, juntamente com a calcinha de
algodão. Eu me sentia nervoso, afoito, complicando uma tarefa mais

do que fácil. Segurou-se em meus ombros e tirou as pernas pela


peça até que ela ficasse no chão. Com a respiração entrecortada,
dei um passo pequeno para trás para contemplá-la, agradecendo-a
mentalmente por não se cobrir da minha visão.
Meu coração saltou pela boca; meu pênis cresceu ainda
mais.

Nada tinha me preparado para vê-la nua. Dos mamilos


marrons ao seu sexo coberto por pelos da cor do cabelo, dos
quadris generosos às coxas macias, tudo nela parecia ter sido
perfeitamente criado.
Um sorriso bobo se formou em meus lábios.

¡Diablos[79]! Eu mal podia acreditar na minha sorte. Aquela

menina-mulher era minha esposa. Somente minha.


Sentindo meu sangue agitar nas veias, me aproximei
novamente dela, tomando-a entre meus braços, e retomei o beijo,
imprimindo um ritmo lento e sôfrego, contrariando minha ânsia. Arfei
contra os lábios dela, sem deixar de beijá-la, quando os dedos

hesitantes dela tocaram o cós da minha calça e, desabotoando-a,


desceu o zíper.
— ¡Dios, chica! — gemi ao sentir o dorso da mão roçar
suavemente no meu pênis.
Desejei muito segurar os dedos da minha esposa e fazer
com que ela acariciasse o volume até que eu gozasse na minha

cueca, porém apenas a ajudei a remover a calça, junto com minha


roupa íntima.
Como eu tinha feito com ela, deixei que Bárbara olhasse o
meu corpo. Não me passou despercebida a mistura de desejo e
fascínio que cintilou nos olhos verdes, principalmente ao fitar meu
pênis ereto, babado pelo meu líquido, bem como o movimento

sensual da língua sobre os lábios avermelhados pelos meus beijos.


Engoli uma série de impropérios ao sentir a ponta do dedo
dela tocar a fenda da minha glande, depois deslizando a mão pela
minha extensão. Deixei que ela me explorasse lentamente, das várias
formas que havia imaginado, e fechei os olhos.

A realidade superava e muito a minha imaginação.


Joguei a cabeça para trás.
As sensações que ela me transmitia através daquele dedilhar
não era apenas de satisfação sexual, mas se infiltravam em todo o
meu ser. Meu coração batia forte no peito e eu estremecia diante
daquelas carícias. Não contive meus gemidos roucos.

Os dedos curiosos tocavam cada centímetro do meu sexo


excitado, deliciando-me com aquele roçar suave, ao mesmo tempo
que me deixava latejando.
Porra, era muito bom!
Não sei como minhas pernas completamente bambas me

sustentavam de pé, principalmente quando sua mão rodeou meu pau


e aplicou certa pressão, antes de começar a subir e descer por todo
o meu pênis.
Deixei que ela me masturbasse lentamente, o que me
incendiou.
— Agora não, Luz — eu disse, ofegante, quando intensificou
os movimentos assim que adquiriu mais confiança, o vai e vem
ficando cada vez mais rápido, e segurei seu pulso impedindo-a de
continuar.
Se ela prosseguisse me tocando daquela forma, as chances
de eu me esvair em seus dedos eram grandes.

Ela soltou um som de desagrado ao passo que todo o meu


corpo protestou contra a minha ação. Tudo em mim queria que ela
me oferecesse algum tipo de alívio, mas o fiozinho de controle que
havia em mim queria que fosse dentro dela. Eu teria outras chances
de liberar meu prazer apenas com suas carícias.
— Eu preciso te amar primeiro — deixei um beijo na pele

sensível do pescoço e deslizei em direção ao triângulo entre as


coxas, tocando suavemente os pelos já úmidos —, e vê-la gozar
antes de mim.
— Hm.
Abraçou-me pelos ombros quando deslizei minha barba pela

sua garganta.
— Não sabe o quanto eu imaginei te dando prazer, Luz...
Sem esperar uma resposta, tombei-a suavemente contra o
colchão e, apoiando meus joelhos na superfície, a deitei no centro da
cama, seus cabelos se espalhando pelo lençol cinza. Soltei uma
gargalhada áspera quando ela me puxou para si com voracidade,

risada que morreu e transformou-se em som baixo e grave de prazer


ao sentir o meu peso inteiro a prensando contra a cama, meu pau
resvalando suavemente na sua entrada.
— Me beije, Javier — ordenou em um tom rouco.
Antes mesmo que o fizesse, ergueu um pouco o tronco e me
beijou com volúpia, porém, dessa vez, não deixei que ela tomasse a

iniciativa. Deslizei minha boca ferozmente sobre a dela e com a


língua eu exigia a sua redenção completa, que veio em meio de
gemidos e pequenos gritinhos de prazer que eu tragava para mim.
Me forcei a diminuir o ritmo das nossas bocas, fazendo-a
choramingar, apenas para, ao passar minha língua pelos dentes
dela, saqueá-la novamente até que perdêssemos o fôlego.

Em meio aos beijos, o quadril dela passou a instintivamente


buscar o meu, roçando seus seios no meu peitoral, enquanto suas
unhas curtas arranhavam as minhas costas devagarinho, em uma
carícia que me era deliciosa, persuadindo-me a perder
completamente o controle e devolver o comando do beijo para ela.

Seus olhos fixos aos meus estavam cada vez mais nublados
de desejo, a imagem dela era fodidamente erótica.
Mordiscou os meus lábios, puxando o superior devagar, e eu
amei a voracidade daquela mulher que, aproveitando o suor que
começava a banhar nossos corpos, deslizava contra mim,
estimulando-se ao roçar lentamente no meu pênis.

— Por favor, Javier — pediu em voz rouca, enquanto eu


deixava uma série de beijos pelo seu rosto, baixando para o seu
pescoço.
— ¿Sí?
Não respondeu, apenas enfiou os dedos com mais pressão
nas minhas costas e se contorceu embaixo de mim ao sentir minha

barba arranhando-a, enquanto eu lambia sua garganta e chegava ao


externo. Inspirei fundo e o cheiro de caramelo misturado ao do suor
era um afrodisíaco para a minha excitação, tanto que me movi contra
o seu sexo em um espasmo, como se fosse preenchê-la.
Respirando fundo, voltei a brincar com a sua pele, beijando,
sugando, até alcançar o vale dos seios. Ela soltou um grito abafado

e eu assisti os pelinhos dela se arrepiarem quando minha língua


escorregou até o umbigo, voltando a subir. Seus dedos agarraram
meus cabelos com força em um pedido silencioso, e eu dei o que o
corpo dela me pedia, sentindo uma satisfação gigante por dar prazer
a ela, por provocá-la. Pousei uma mão no abdômen gentilmente,
firmando-a, impedindo de erguer seus quadris. E fiz o mesmo

caminho com a língua, dessa vez dando atenção para as curvas


doces dos seios, traçando-os com lambidas, sem brincar com os
montinhos túrgidos e excitados.
Ela arfou.
Beijei a barriga dela, que carregava o meu bebê, com
ternura, até minha boca ficar a milímetros da sua vagina. Não

precisava penetrá-la para saber que estava molhada, o cheiro


pungente que exalava do seu sexo me indicava sua excitação.
Tentou erguer sua vagina em direção a minha boca, porém o
peso da minha mão não deixou, arrancando dela um som de
frustração. Com outro gemido, fechou as pernas, tentando aplacar o

fogo que havia entre elas, e eu dei um beijo no seu monte, fazendo
com que se contorcesse contra o meu rosto, mas apenas subi
novamente, até pairar sobre um dos bicos sensíveis.
Vingando-se de mim, circulou o meu pau com a mão livre,
fazendo com que ele pulsasse entre seus dedos. Grunhi quando
começou a acariciá-lo um pouco desajeitadamente, mas logo a

impedi, levando os dedos dela em direção ao próprio monte.


— Javier? — Perguntou em um tom rouco, seus olhos se
arregalando, quando fiz com que ela inserisse um dedo dentro dela.
Senti que minha esposa ficou um pouco tensa.
— Quero olhar para você enquanto se dá prazer, Bárbara —
sussurrei com voz áspera e soprei o bico suavemente, fazendo-a

estremecer, mas não o tomei entre os meus lábios. — Quero que


você não pare de pensar em mim enquanto se estimula, da mesma
forma que eu não parei de sonhar acordado com você.
Senti mais uma gota de pré-gozo escorrendo pela extensão
só com esse pensamento.
— Eu não sei se consigo, Javier…

Não fiz comentários sobre a possível inexperiência dela.


— Tome o seu tempo para se conhecer, mi Luz.
Deixei um selinho em seus lábios entreabertos.
Pareceu hesitar por alguns segundos, porém acabou
assentindo. Capturei o momento em que ela começou a brincar com

o próprio sexo, arqueando-se contra o dedo. Grunhindo, sem deixar


de fitá-la, comecei a acariciar um seio, rolando-o entre meus dedos,
e tomei o outro mamilo entre meus lábios, puxando-o suavemente,
antes de começar a sugar lentamente. Um gritinho escapou da
garganta dela e, sem deixar de sorvê-la, olhei um pouco para baixo e
vi que ela ousava inserir mais um dedo dentro de si, deslizando
suavemente, apenas para removê-lo um pouco em seguida, imitando
os gestos de penetração.
Fiquei rígido, mas apenas obriguei-me a voltar a fitar os seus
olhos e a continuar a trabalhar sobre a sua pele suada.
Sentir o corpo dela ondular suavemente debaixo do meu era

um verdadeiro inferno, e minha ideia cobrava seu preço, pois era


difícil manter o controle sobre o meu próprio pau. Peguei-me
desejando acompanhar cada um dos movimentos que ela fazia
dentro de si mesma.
Dei atenção ao outro mamilo, soprando-o suavemente,
quando ela mordeu os lábios, soube ali que ela havia encontrado o

ponto que a dava mais prazer.


— Comece a traçar círculos lentos sobre ele imaginando que
sou eu, garota — ordenei.
— Por que imaginar se você pode fazer isso? — sussurrou,
ao arquear-se outra vez, provocando-me.

Mandei às favas o meu alto controle e deslizei minha mão em


direção ao seu sexo. Logo penetrei-a com o meu próprio dedo,
sentindo seus músculos oferecerem certa resistência. Comecei a
acariciá-la, tocando suas paredes, agitando o indicador, contornando
todo o seu interior, testando, junto com ela, os pontos que lhe davam

prazer.
Uma gota de suor escorreu pelas minhas costas com o
esforço que eu fazia para não reagir ao corpo da menina que se
arqueava em minha direção, com a vontade de penetrá-la com o meu
pau que chegava ao limite.
Os olhos dela ficavam cada vez mais brilhantes e sua

respiração acelerada, e eu acompanhei cada degrau na busca pelo


prazer. Bárbara ficava mole, tanto que parou de se masturbar, seus
dedos molhados passando a acariciar minhas costas enquanto eu a
substituía.
Ofegante, encontrei o clitóris dela e comecei a esfregá-lo
gentilmente, alternando com suaves pinçares, também usando o

dedo médio e o indicador para fazer movimentos suaves, como se


estivesse a chamando no seu ponto de prazer, o que arrancou dela
um grito. Eu aumentava o ritmo do atrito ao sentir que ela estava
chegando lá, diminuindo a intensidade quando o corpo dela dava
sinais que iria gozar, fazendo com que Bárbara sempre ficasse em

um grande limbo.
Nossos gemidos e nossas lamúrias de insatisfação ecoavam
em uníssono por todo o quarto. Continuando a afagá-la, brincando
com seu clitóris, então ergui-me, apoiando em um cotovelo, para
tomar seus lábios em um beijo sôfrego e intenso que aumentava a
nossa própria ânsia. Apliquei mais pressão no seu ponto de prazer,

traçando círculos, esfregando, dando pequenos beliscões.


Todo o meu corpo estremeceu ao sentir as paredes dela se
fechando com força nos meus dedos e, penetrando-a com mais um,
senti que ela convulsionava embaixo de mim. Traguei o som oco da
sua redenção final com um beijo carinhoso. O olhar da minha mulher
ao chegar ao orgasmo ficaria guardado na minha mente para

sempre, era uma mistura de euforia, assombro e um deleite


delicioso.

— Hermosa[80] — disse em um tom excitado, continuando a


estimulá-la, prolongando as ondas do seu êxtase até que ela sorrisse
de enlevo.
Removi meus dedos de dentro dela e levei aos meus

próprios lábios, sentindo o gosto do seu gozo.

— Buenarra[81] — completei, dando um beijinho na sua testa.


Minha esposa havia me dado um doce presente ao se
entregar com aquela intensidade. Pela primeira vez, eu me sentia
homem. O homem dela.
— Ainda preciso de você, Javier — falou com uma voz
lânguida e sorriu para mim.
Deslizando para baixo de mim, seus dedos voltaram a tocar
meu pau babado, acariciando-o suavemente.

— Chica insaciable[82] — não tinha ideia de como consegui

proferir essas palavras —, me gusta eso[83].


Gargalhou e sem dizer nenhuma palavra, ajustou-se debaixo
de mim. Abrindo as pernas, guiou-me para o seu interior, colocando
a ponta do meu pênis na sua fenda. Finquei os cotovelos com força
no colchão ao perceber que, ao contrário de estar relaxada, como
minutos atrás, seus músculos pareciam um pouco tensos, bem como

sua expressão.
Não forcei.
— Está tudo bem, Luz? — questionei, preocupado, tirando
uma mecha molhada do rosto dela.
— Sim, Javier — sussurrou. — É só que a minha primeira
vez foi bem ruim. Eu estava bêbada, ele sóbrio…

Senti a raiva me invadir por esse homem desconhecido ter


abusado dela. Se ele estivesse na minha frente, eu o surraria até
quebrar todos os seus dentes, porém foquei no presente, na mulher
linda e maravilhosa que estava debaixo de mim, e merecia ser
amada.

— Hey, “esposinha”. — Deixei uma série de beijinhos no seu


rosto e repeti as palavras dela. — Confie em mim, eu não te
machucarei.
Sorriu.
— Eu sei, Javier.
— Mantenha seus olhos nos meus, mi Luz — pedi, ou melhor

implorei, precisando que ela me fitasse, não apenas por


conectarmos ainda mais, mas também para transmitir segurança
para ela.
Sem penetrá-la, continuei a beijar o corpo dela, e sentia que
pouco a pouco ela relaxava, seus olhos ficando cada vez mais claros

e alegres, aquela felicidade linda que eu sempre via nela, mas que,
agora, parecíamos compartilhar.
Instintivamente, ela ergueu a pelve para ir me recebendo em
seu interior úmido, onde poderia facilmente deslizar, mas não o faria,
por mais que exigisse muito de mim. Segurando-se nos meus braços,
com um tranco, fez com que eu chegasse mais fundo, arrancando um

gemido da minha garganta. Controlando-me, deixei que ela ditasse o


nosso ritmo, vagaroso, torturante, ao subir e descer sua pelve. Eu
apenas tomei seus lábios em outro beijo enquanto minha mão
esquerda buscava pela sua. Entrelacei nossos dedos quando ela se
moveu um pouco mais rápido, gemendo quando acariciou minhas
costas.

Ela ganhava confiança com o meu autocontrole, e deixou que


eu ditasse os movimentos, estocando-a devagar, sentindo seus
músculos se contraírem, oferecendo um pouco de atrito.
— É bom. — Sorriu, e eu fiquei encantado com a visão doce
e relaxada da garota.
— Muito — disse em voz entrecortada.

Traguei seu gemido quando eu deslizei mais fundo dentro


dela. Saí apenas para voltar a penetrá-la.
Não trocamos mais palavras. Não precisávamos. Nos
comunicávamos através dos nossos beijos, toques, estocadas e
suor. Por meio de gemidos e dos sons dos nossos quadris se

chocando a cada vez que eu me retirava e avançava.


Nossos corpos, pouco a pouco, construíam sua própria
cadência ritmada, em um vai e vem ora lento, ora forte. Nos
perdíamos cada vez mais nas sensações que despertávamos um no
outro. Nos olhos dela, pude ver refletido que Bárbara se deixava
engolfar pelas mesmas ondas de desejo que me percorriam. Quando
ela deslizou a boca para beijar meu pescoço, eu me senti prestes a
explodir.
Comecei a bombear mais forte dentro dela, movendo-se com
cada vez mais vigor, sentindo as contrações dela ficarem ainda mais
intensas enquanto me acompanhava. Dobrou um joelho, tentando se
abrir ainda mais para me receber, e senti as unhas dela fincarem

com força na minha carne quando a penetrei na nova posição, seu


grito abafado pelos meus lábios.
Forcei-me a diminuir, testando aquele ponto em que eu
roçava e parecia dar prazer a ela, e Bárbara confirmou ao
estremecer, sua mão apertando a minha com mais força. Estimulei-a
até não aguentar mais e, sentindo-me prestes a gozar, eu havia me

segurado demais, movimentei-me mais rápido, deslizando com certo


atrito pelo interior quente e úmido, até que, emitindo um som baixo,
gutural, senti que esvaía dentro dela.
Reunindo todas as minhas forças, continuei a penetrá-la, até
senti-la arranhando as minhas costas, se quebrando ao meio e

deixando-se levar pelo torpor, seus movimentos ficando cada vez


mais lentos à medida que eu a penetrava. Prolonguei um pouco mais
o nosso prazer, dando algumas estocadas a mais, aproveitando o
restante da minha rigidez, e me deitei suavemente sobre ela,
deixando vários selinhos em seus lábios enquanto uma languidez
eufórica percorria cada célula do meu corpo, bem como uma miríade
de sensações desconhecidas de completude enchia o meu coração,

minha mente, minha alma.


Minha esposa havia feito amor comigo. Olhei para as nossas
mãos e vi a aliança e o anel de noivado no dedo dela, sentindo a
minha própria na minha mão direita. E não pude deixar de contemplar
nelas o futuro doce à nossa frente e o quanto nosso ato de amor

marcava aquilo que construiremos juntos: uma família amorosa para


o nosso bebê.
Capítulo quarenta e quatro

Com círculos lânguidos, acariciei um pedaço de pele

repuxada nas costas de Javier, enquanto sentia as últimas ondas do

prazer indescritível que ele havia me proporcionado deixarem


lentamente o meu corpo, transformando-se em ternura e carinho por

aquele homem que ainda me tinha embaixo de si e deixava uma série

de beijinhos pelo meu rosto suado. Ele havia sido tão delicado
comigo, com o meu medo da dor, que eu sentia lágrimas se

formarem em meus olhos.

Ele havia pedido para eu fazer amor com ele, porém foi ele

quem acabou me amando. Eu guardaria aquele momento para

sempre na minha memória e também no meu corpo. E, pelo modo


como ele me encarava, com as nossas mãos ainda entrelaçadas, eu

sabia que Javier também se recordaria por um bom tempo, pelo

menos, era o que eu esperava.

— Foi especial, não foi? — falei, me sentindo um pouco

envergonhada por ter dito em voz alta, subindo com meus dedos em

direção a nuca dele, até alcançar os fios molhados de suor.


Comecei a fazer cafuné nele e ele sorriu, um sorriso lindo,
sincero, que chegava aos olhos e fazia meu coração se acelerar por

ele.

— Mais do que eu poderia imaginar, Luz…

Não contive um sorriso bobo ao ouvi-lo me chamando de luz

outra vez.

Embora o “garota” tenha passado a ter uma conotação mais


carinhosa, adorava o escutar me falando que eu era sua luz.

Sem saber, Javier me fazia sentir nas nuvens e me deixava

ainda mais apaixonada por ele.

— Tanto que acho que vou me viciar em você, esposa —

falou em um tom divertido.

Antes que pudesse retrucar, meu marido colou nossos lábios

um no outro e começou a se mover devagar. Suspirei ao sentir o


contato da língua gentil na minha, envolvendo-me em um beijo doce e

apaixonado, que me fez estremecer. Era eu quem poderia ficar

viciada nos seus beijos e no seu toque.

— E eu ficarei mais do que feliz em te prender a mim, Javier

— provoquei-o quando a boca dele deslizou pelo meu pescoço, os

pelos arranhando-me suavemente.


— ¡Bruja[84]! — seu tom foi sério, porém a diversão em seus

olhos o desmentia.

Gargalhei, continuando a acariciá-lo. Foi instintivo arquear-

me contra ele, pedindo que tomasse um dos meus mamilos em sua


boca, quando seu rosto se aproximou do topo dos meus seios,

porém ele apenas deixou um beijinho onde meu coração batia


acelerado e, com suavidade, saiu de cima de mim, rolando para o
lado.

— Ah — emiti um som de muxoxo.


Gostava de ter o peso do seu corpo sobre o meu, do calor,

do nosso encaixe, mesmo que seu pênis não estivesse mais dentro
de mim.

Escutei a risada dele ecoar em meus ouvidos, antes de me


puxar para ele e sua mão pousar suavemente sobre o meu abdômen
e o acariciou, transmitindo seu amor pelo nosso bebê, que agora

teria o amor cotidiano de ambos os pais e dos seus “dois


irmãozinhos”. As lágrimas voltaram a surgir em meus olhos, e dessa

vez não consegui contê-las.


Ele limpou o meu pranto com o polegar.

— Por que está chorando, doçura? — Soou preocupado.


Engoli um soluço.
— Eu te machuquei? — Pareceu tenso. — Por que não me

falou?
— Não, você não poderia ter sido mais carinhoso, Javier —

pousei a mão sobre a dele, afagando-a, buscando tranquilizá-lo,


fazendo com que ele continuasse a acariciar meu ventre —, eu só

estou emocionada.
Emitiu um suspiro de alívio, limpando mais algumas lágrimas
minhas.

— É impossível não me sentir comovida perante o amor que


você sente pelo nosso bebê, Javier… E também por poder participar

desse sonho — continuei.


— Me encanta saber que você o ama também, com toda a
sua força — falou com a voz embargada —, eu…

Calei-o ao colocar um dedo sobre seus lábios.


— Isso ficou no passado. — Minha voz soou meio chorosa.

— Também estou feliz pelo que aconteceu entre nós dois. Parece um
grande sonho.

— É real. — Beijou-me outra vez, como se para provar seu


ponto. — Mais do que real.
— Sim…

Sorri.
Toquei o seu braço forte e comecei a deslizar meu dedo por
ele, sentindo todos os seus músculos se retesando, seus pelinhos se
arrepiando. Ficamos nos encarando e nos acariciando por longos

minutos a fio. Sentindo o desejo começar a crepitar lentamente


dentro de mim, meus dedos se tornaram mais ousados, tocando o

abdômen sarado, até alcançar o pênis molhado pelo sêmen, que


começava a ficar ereto.
Parei, removendo as mãos dele, ao sentir certa pressão no

meu baixo-ventre.
Ele arqueou a sobrancelha quando me sentei na cama.

— Preciso ir ao banheiro — sussurrei, sentindo a vergonha


tomar conta de mim, e rolando para o lado, deixei a cama.

— O banheiro fica na segunda porta.


— Obrigada.
Mesmo com as pernas ainda levemente bambas, segurando

o xixi, forcei-me a caminhar depressa, ouvindo a risada alegre dele


atrás de mim. Não reparei muito na decoração do cômodo, apenas

corri para a privada. Limpei-me rapidamente e fechei os olhos com o


alívio que senti. Enquanto eu terminava, ouvi passos no banheiro e
encarei, incrédula, Javier passando por mim indo em direção ao

maior box que havia visto na vida.


— O que você está fazendo aqui? — Arfei uma pergunta.
Mesmo atordoada, não resisti à curiosidade, e olhei para as
nádegas quadradas e firmes. Até mesmo a bunda dele era bonita,

senti certa inveja dele.


— Vou tomar banho — não escondeu a própria diversão ao

falar.
Se virou em minha direção e meu olhar pousou no seu pênis
ereto. Senti meu sexo pulsar de desejo, querendo que ele me

preenchesse lentamente, apenas para retirar-se e ir com mais

pressão. Obriguei-me a encarar o rosto dele e vi que ele tinha um


sorriso sem-vergonha na cara, me fitando com intensidade enquanto

eu estava sentada no vaso.

Merda.

Eu tinha certeza de que meu rosto demonstrava o embaraço


que sentia.

— Por quê? — falou naquele tom desprovido de humor, mas

eu sabia que ele queria só me provocar.


— Privacidade. — Fiz um gesto com a mão e estalei a língua

como meu marido faria, engolindo minha vergonha.

Ele riu outra vez.


— Pode ser constrangedor ver alguém nessas

circunstâncias. — Apontei para mim mesma.


— Não vejo por que seria. — Deu de ombros, porém o

safado não fez nenhum gesto para sair ou mesmo se virar —, todo

mundo usa o banheiro.


Revirei meus olhos.

— Você é incrível, Javier.

— Por quê? Não é a verdade?

— Sim, mas isso não quer dizer que as pessoas não


precisam de espaço pessoal para fazer suas necessidades e sua

higiene

Não respondeu, apenas se virou para entrar no box.


Aproveitei para me limpar com o papel e dar descarga.

Enquanto lavava as mãos, olhei para o espelho enorme e percebi

que estava completamente descabelada, meus lábios ainda rosados


pelos beijos e, em alguns pontos, via pequenas marcas vermelhas

deixadas pelos seus chupões e mordidinhas.

— Que pena — falou em um tom lamurioso assim que

comecei a caminhar para deixar o banheiro e eu estaquei no lugar —,


ia te convidar para se juntar a mim.

— Mesmo?
Virei-me para ele e, ao contrário da sua voz, ele ainda tinha

um sorriso perversamente delicioso que transformava minhas pernas

instantaneamente em gelatina.
Javier era a personificação do diabo, um demônio movido

pela luxúria e o desejo.

— Sim, mas como você gosta de privacidade, te respeitarei,

esposa.
Fazendo uma carinha triste, virou-se e fechou a porta de

vidro atrás de si. Falando algo baixo, que não identifiquei, ligou

inúmeros jatos. Logo uma nuvem de vapor se formou no banheiro,


mesmo assim, como ele estava de lado, consegui vê-lo pegando um

pouco de sabonete líquido, deslizando-o lentamente pelo seu

abdômen, até alcançar o próprio pau, lavando-o. Poderia jurar que

cada movimento de Javier era feito deliberadamente para me


convencer a fazer aquilo que ele desejava.

Paralisada, como uma devassa, o assisti tomando banho,

sentindo a ânsia por aquele homem se intensificar ainda mais. Eu


pequenas contrações da minha vagina me tomaram, bem como a

umidade que se formava. E o demônio não ajudava em nada ao

emitir sons baixinhos que alcançavam o meu âmago.


Balançando a cabeça em negativa, consciente de que estava

derrotada desde o momento que me fitou com a expressão de


cachorrinho pidão, caminhei até onde ele estava e, abrindo e

fechando a porta do box, juntei-me a ele debaixo da água morna,

abraçando-o por trás.


Deixei vários beijinhos em suas costas, capturando as

gotinhas de água que deslizavam pela sua pele.

— Mudou de ideia sobre a sua intimidade, querida? —

Questionou em um tom inocente, que não era capaz de enganar


ninguém.

Não respondi, apenas estiquei meus braços para pegar um

pouco do sabonete líquido e, esfregando minhas mãos avidamente,


deslizei a espuma pelas costas dele, ensaboando-o. Gemeu.

— Não se sinta pressionada a fazer algo que não queira —

sua voz saiu estrangulada.

Dei uma risada e ele se virou. Depois de apertar a


saboneteira, começou a dar banho em mim também, porém os seus

toques eram muito mais sedutores que os meus.

— Você é sempre tão “sutil” para conseguir o que deseja? —


Forcei-me a falar ao sentir seus dedos no meu sexo.
Torci para que ele me penetrasse como tinha feito e

aplacasse o calor que ele havia ateado em meu íntimo, porém Javier

o não fez, apenas continuou a lavar o interior das minhas coxas com

gentileza.
— Na maioria das vezes, Luz — entendeu a minha ironia —,

mas me deixa contente saber que você acabou cedendo a minha

“sutileza”.
— Saiba que você não conseguirá sempre, esposo —

brinquei, lavando a nádega dele e deixando um tapa.

— Casei como uma megera — fingiu uma desolação e, para

se vingar de mim, roçou a mão novamente no meu sexo.


A expectativa que ele me penetrasse me invadiu, porém ele

não o fez.

— E eu com um demônio — arqueou a sobrancelha,


questionando-me, logo me dando um sorriso predatório.

— Somos perfeitos um para o outro — sussurrou ao dar

também um tapa suave nas minhas nádegas e voltou a espalhar a

espuma pelo meu corpo, tocando cada recanto.


— Vamos ficar apenas no banho mesmo, Javier? —

questionei, maliciosa, ao tocar o pau dele, que pareceu avolumar sob

o meu toque.
Soltou um gemido, falando algumas palavras que não

compreendi, que fizeram com que a água parasse de cair do teto e


jatos de vapor a substituíssem. Era como se o box tivesse virado

uma espécie de sauna. Mas não dei muita atenção a isso, embora

minha respiração se tornasse mais curta, pois Javier voltou a soltar

um som baixinho, seguido de vários outros gemidos, quando, com as


pontas dos dedos, percorri toda a extensão dele, sentindo as

texturas do seu pênis até alcançar a base, subindo novamente.

Curiosa, com a mão livre, toquei levemente os testículos


dele, e sorri ao vê-lo pegar a minha mão e levá-la de volta para o

seu pau, fazendo com que eu o rodeasse. Como da primeira vez, fiz

movimentos de subir e descer em toda a extensão, aumentando e


diminuindo a pressão que exercia nele, apenas para voltar a explorá-

lo lentamente.

— ¡Carajo! — cuspiu um palavrão baixinho quando, com a

ponta do dedo, toquei a pequena fenda e tracei círculos lentos por


ela, sentindo o líquido que escapava.

Em um minuto, eu estava fazendo movimentos de vai e vem

no pênis, em um ritmo cada vez mais rápido e confiante, sentindo-me


poderosa por ver que era eu quem arrancava gemidos dos seus

lábios e lhe dava prazer; no outro, eu estava presa entre seu corpo
forte e a parede de azulejo aquecido, com as suas mãos fortes
envolvendo meus quadris com força.

Encarei-o, encontrando um brilho selvagem em seus olhos,

que fez com que eu segurasse em seus ombros para não cair;
minhas pernas não me sustentavam, não perante aquele olhar

sedento e faminto.

— Javi… — Antes que pudesse terminar, senti seus lábios


devorarem os meus.

Não havia ternura no modo como sua língua avançava sobre

a minha, somente um desejo bruto e irracional. Eu havia começado

aquele jogo, atiçando-o, e meu marido iria me fazer pagar por isso.
Meu corpo inteiro vibrou com a perspectiva de ser devorada.

Peguei-me retribuindo o beijo dele da mesma maneira

irracional, ávida, com nossas bocas se movendo furiosamente,


nossos dentes sem querer se chocando, enquanto nossos se

buscavam por instinto. Nossas mãos, outra vez, se moviam


freneticamente, explorando nossos corpos.
Minha vagina pulsava querendo ser preenchida pelo seu pau.

Meus seios roçavam no peitoral dele e eu senti os meus bicos


ficarem cada vez mais rígidos e doloridos, ansiando por sentir o calor
e a pressão dos seus lábios, sugando e mordiscando.
Éramos puros gemidos e desejo!
Javier diminuiu o ritmo, me dando pequenos beijos enquanto
aproveitava para respirar.

Um suspiro escapou pelos meus lábios ao sentir sua barba


roçar suavemente no meu pescoço enquanto seus lábios deixavam
uma trilha de beijos e lambidas. Arrepiei-me sob o calor da sua boca,

ao som dos seus gemidos cada vez mais altos, ao mesmo tempo
que virei gelatina em seus braços quando ele tocou a lateral do meu
mamilo com o dorso da mão, subindo e descendo.

Fechei os olhos e, rendendo-me a ele, deixei que Javier


fizesse o que quisesse de mim, apenas aproveitei as sensações de
sentir sua língua deslizar pela minha pele úmida de suor e pelo vapor

de água. Espichei contra a parede ao sentir a lambida dele


percorrendo o vale dos meus seios, indo bem mais abaixo do meu
umbigo.

A tensão que havia se acumulado no meu ventre pareceu


aumentar exponencialmente, e eu senti a expectativa me revirar de

dentro para fora.


Ouvi um som estranho, de carne batendo contra azulejo, mas
eu apenas chiei por não sentir mais seus beijos e mordidas na minha

pele, por ele não dar a atenção devida aos meus mamilos.
Javier riu baixinho e eu senti que erguia uma das minhas
pernas e colocava pelo sobre seu ombro, abrindo-me para ele. O nó
na garganta se tornou maior e minha vagina contraiu.

Segurei em um dos seus ombros, com força, cravando


minhas unhas nele, enquanto com a outra mão acariciava seu braço.

— Abra os olhos, mi Luz — falou em um tom ofegante,


deixando um beijo no interior das minhas coxas, os pelos da barba
arranhando-me suavemente intensificando as sensações que

banhavam minhas veias.


Cerrei minhas pálpebras com mais força, uma vergonha
súbita me invadiu ao compreender aquilo que ele estava prestes a

fazer.
Deixou uma mordida na coxa, apenas para voltar a traçá-la
com a língua, chegando cada vez mais próximo do meu sexo.

Contraí.
— Não é um pedido, garota — ordenou, voltando a me
provocar, ao usar um dedo para me expor e soprar ar quente.

Rebolei outra vez contra a parede, sentindo todas as minhas


terminações nervosas ficarem em alerta. Quando voltou a soprar, fiz

o que ele pediu. A nuvem de vapor não deixava ver uma imagem
completamente nítida, mesmo assim, baixei meu olhar para vê-lo
ajoelhado no meio das minhas pernas, me encarando com um sorriso
safado em seus lábios. Retribuiu-me, acariciando meu joelho com as

pontas dos dedos.


Suspirei baixinho quando aproximou sua boca novamente da
minha parte íntima.

Como se fosse possível, minhas pernas ficaram ainda mais


moles, ao senti-lo trilhar um caminho de beijos e mordidas na face

interna da minha coxa direita, deixando um beijo no meu sexo, e indo


fazer o mesmo na coxa esquerda. Firmando meus quadris com as
duas mãos, impedindo-me de arquear-me contra a sua boca, e

repetiu o trajeto várias vezes, pensei que iria enlouquecer.


— Javier! — puxei os cabelos molhados dele quando o
“demônio” fez com que iria se levantar, mas logo baixou sua cabeça

de volta para a minha boceta.


Não precisei mais esperar, pois, apalpando minhas nádegas,
trouxe-me mais para si, inspirando o cheiro da minha excitação.

Um grunhido, meu ou dele, ou de ambos, não sabia dizer,


ecoou pelo box quando, usando os dedos para abrir meus grandes
lábios, lambeu meu sexo de cima à baixo lentamente, roçando

suavemente em um ponto que me fez estremecer com o prazer que


senti.
Com uma delicadeza que o momento não exigia, começou a

explorar o meu sexo com a língua, deixando pequenas mordidelas no


meus pequenos e grandes lábios, tomando-os entre os dentes,
sugando-os, encontrando vários pontos em que me fazia tentar

contorcer contra o seu rosto, ansiosa por mais. Javier percorria cada
centímetro, torturando-me lentamente, sem dar atenção à carne
inchada que clamava pelo seu toque, o que me deixava frustrada.

— ¡Dios! — murmurei ao sentir sua língua adentrando


lentamente pelo meu canal.

Grunhiu, continuando a entrar e sair, imprimindo uma


cadência mais ritmada, acompanhando os sons que eu emitia, o
mover dos meus quadris.

Eu me comportava como uma devassa ao esfregar-me no


rosto dele, porém nada me importava além daquilo que ele produzia
em mim, mas eu estava ciente que ele também estava gostando,

pois seus dedos cravados na minha bunda incentivavam que eu


continuasse a me contorcer; seus olhos estavam cada vez mais
escuros de prazer.

Tive que morder os meus lábios com força para conter um


grito, quando, alternando o movimento de penetração, meu marido
traçou um círculo por uma região sensível que desconhecia, e foi
instintivo para mim segurar seus cabelos com firmeza, obrigando-o a
continuar me acariciando ali.
— Gosta? — falou contra o meu sexo e eu apenas gemi e

me arqueei em resposta.
Dessa vez não me torturou, apenas continuou a me acariciar
naquele ponto, e eu me retorci inteira quando ele me penetrou com

um dedo e encontrou o meu clitóris.


Não consegui mais manter os meus olhos abertos quando
seu dedo passou a esfregar a minha carne inchada, diminuindo e

aumentando a pressão com que me tocava, ao passo que sua língua


trabalhava em cada ponto sensível. Os pelos da barba eram um
afrodisíaco, mesmo que pudesse deixar minha pele irritada.

A cada movimento eu sentia minhas paredes se contraírem


mais e mais, tentando prendê-lo em meu interior.

Ele me levava cada vez mais alto, fazia com que a minha
respiração ficasse ainda mais curta, cada inspirar ardendo em meus
pulmões. Meu coração parecia que ia sair pela boca, meu corpo

estava completamente tomado pelo suor. E o calor deixado pelo


vapor quente, temperado pelos barulhos que fazíamos, só me dava a
sensação de que eu estava pegando fogo.
Gemi outra vez quando, parando para respirar, Javier inseriu
mais um dedo dentro de mim, e, depois de contornar as bordas do

meu sexo, deslizou-o facilmente por conta da minha umidade. Ficou


me masturbando por vários minutos enquanto suas mãos
acariciavam-me com ternura, me deixando cada vez mais perdida e

bamba, até que, removendo os dedos, mergulhou novamente a boca


na minha boceta, pousou sua língua sobre o meu clitóris e sugou
devagar, sem pressa, apenas para aumentar o ritmo com que sorvia

meu ponto de prazer.


Ele traçava com a ponta da língua, chupava, fazia
movimentos de sucção, dava leves lambidas, movimentos que se

tornavam frenéticos e rápidos enquanto seus dedos voltavam a


preencher meu canal, entrando e saindo. Minha mente não produzia
mais nenhum raciocínio lógico, completamente dominada pelo prazer.

— Javier — falei o nome dele em voz alta, em súplica, ao


sentir várias ondas de prazer percorrerem-me, indicando que eu não

duraria muito.
Meu marido intensificou a pressão dos seus lábios sobre
meu clitóris e, querendo presenteá-lo, reunindo todas as forças que

ainda me restavam, abri meus olhos e o encarei por entre a névoa


espessa, percebendo que, embora me chupasse, vez ou outra erguia
os olhos para observar a minha reação. Completamente cativada por
isso, senti que alcançava outra vez o orgasmo. Meu corpo tremeu,

eu soltei um som que era um misto de grito e gemido, e se não fosse


minha perna apoiada no ombro dele e ele me segurando, eu cairia no

chão.
Continuando a sugar, sorver, voltando a me penetrar com os
dedos, mudando a velocidade de cada movimento, Javier prolongava

o meu torpor do êxtase, até que meu sexo começou a pulsar


novamente, e, quando menos vi, presa em meio a tormenta que ele
havia desencadeado, deixei-me levar por um segundo orgasmo

quando, com cuidado para não me machucar, ele raspou o dente de


leve no meu ponto de prazer.
Tombei a cabeça contra o azulejo, fechando os olhos, e

apenas respirei, sendo consciente de que meu marido acariciava


lentamente a minha barriga.

— Bombón[85] — sussurrou uma palavra que era mais

utilizada pelos latinos da América do Sul, e isso me obrigou a encará-


lo, flagrando-o levar os dedos sujos pela minha excitação aos lábios.

Como aquele homem era capaz de, mesmo depois de dois


gozos, fazer uma comichão percorrer meu sexo?
Não tive tempo para pensar, pois ele rompeu a distância que

havia entre nós dois e me envolveu em um beijo meigo e afetuoso,


deixando-me sentir o meu próprio gosto impregnado em sua boca e
língua. Ainda me recuperando do entorpecimento, deixei que ele

comandasse o ritmo, e só tive forças para retribuir e acariciar os


cabelos negros.

— E você? — questionei tempos depois.


Roçou seu pau na minha pelve, e eu senti que ele estava
flácido.

Franzi o cenho, Javier não deveria estar naquele estado.


— Gozei só por dar prazer a minha mulher — sussurrou na
minha orelha, tomando o lóbulo entre os dentes, puxando-o

suavemente.
Meus pelinhos se arrepiarem quando suas palavras se
infiltraram em meu cérebro atordoado. Arfei e, concomitantemente,

senti-me poderosa.

— Agora podemos passar para o banho, Mme[86]? — Usou


seu tom ácido para brincar comigo. — Gostaria de dizer que tenho

um vigor de ferro que nem o seu, mas estou ficando velho e preciso
de um tempo para descansar. — Fez uma pausa. — Quem mandou

se casar com um demônio friorento e de idade?


— Bobo.
Empurrei-o, mas estava tão lânguida que não consegui fazê-
lo se mover nem um passo. Sua gargalhada soou rouca.

— Vamos — apertou o meu nariz como se eu fosse uma


criança —, quero lavar seus cabelos.
— Mesmo?

— ¡Sí! E só descansarei quando desfazer todos os nós que


eu mesmo causei.
— Só se você me ajudar a caminhar, esposo — foi a minha

vez de provocá-lo, plantando um beijo no seu peitoral —, você me


deixou completamente bamba.

— ¡Carajo! — grunhiu e me apoiou. Ele fez com que eu


ficasse debaixo do chuveiro, e deu um comando de voz para alterar a
função, aquele box parecia ser proveniente do futuro.

Ele pegou o frasco de xampu e colocou uma dose generosa


nas mãos antes de espalhar pelos meus fios. Ele não era mais o
amante fogoso que desejava fazer-me gritar de prazer, mas, sim, o

marido carinhoso, que massageava os meus cabelos suavemente,


formando uma camada de espuma, desfazendo os nós com as
pontas dos dedos. E, com a carícia lenta e deliciosa, não só nos
meus fios como também pelo meu corpo, senti que o cansaço me
dominou e minha adrenalina baixou.

A última coisa que tive ciência, antes de não resistir mais


aquele torpor bom que me induziria ao sono, foi dele me secando e
carregando para a cama. Para a nossa cama.
Capítulo quarenta e cinco

Senti uma gota de suor frio deslizar pela minha coluna ao

me ver novamente no quarto isolado, onde nenhum funcionário se

atreveria a ir, nem mesmo para limpar.


Diferente das outras vezes, eu não era o menino, nem

mesmo o adolescente manipulável, mas, sim, um homem feito,

mais forte, mas que ainda assim parecia não ser capaz de se
defender, de se erguer e romper aquele ciclo vicioso. De se libertar.

Controlei a minha respiração que, a qualquer momento, iria

ficar ofegante pelo medo que eu sentia e que fluía pelas minhas

veias. Obriguei-me a não estremecer perante o frio que fazia ali e

que machucava minha pele nua. Estava congelando.


Meus joelhos contra o piso de madeira estavam doloridos.

Movimentei minhas mãos dormentes, sentindo o roçar da corda que

apertava meus pulsos com força, cortando-me. Engoli um gemido

agonizante.

Demonstrar alguma reação só aumentaria ainda mais o

meu “castigo”, mesmo que eu não tenha feito nada para merecê-lo.
Bem, na verdade fiz, tinha permitido que minha esposa me
beijasse, me tocasse de várias formas. Tinha me entregado, e
também parte do que havia de melhor em mim, a alguém. Deixei

que o homem carinhoso, sedento por amor, viesse à tona.

Não conseguia me arrepender. Nunca iria me arrepender.

Devo ter emitido algum som, pois, a risada alta e fria da

minha algoz ecoou nos meus ouvidos.

— Vejo que não aprendeu nada daquilo que te ensinei,


bastardo — continuou a rir e eu senti o chicote estalar contra as

minhas costas.

Mordi meus lábios para fazer silêncio, demonstrando que

eu não sentia nenhuma dor, embora a ponta dilacerasse a minha

carne já machucada pelos açoites.

Tentei manter a minha expressão impassível, focando a

minha visão no papel de parede colorido com estampa floral, bem


como nos móveis alegres que eram um contraste bastante sádico

ao se pensar no uso que a minha avó dava àquela sala.

Outra vez o chicote estalou e, com mais força, bateu na

parte de trás do meu braço, e eu senti um filete de sangue escorrer

por ele.

— Não se iluda, seu desgraçado — a risada dela


acompanhou mais uma série de chibatadas que deixavam minha
pele ardendo —, ninguém poderá te amar. Nem mesmo a drogada

da sua mãe quis uma merda como você.


Sorri. Algo dentro de mim, agora, sabia que era uma

mentira.
A minha esposa havia feito amor comigo.
De alguma forma, aquele pensamento fez com que uma

força surgisse dentro de mim para suportar cada estalar na minha


carne.

— Mas por via das dúvidas, destruirei você, da mesma


forma que me destruiu.

Gargalhou mais alto, manejando com mais força o chicote,


e eu controlei-me para não me curvar com a dor. O cheiro férreo de
sangue invadiu as minhas narinas, aroma que conhecia muito bem

por ter ficado em carne viva.


Meu coração pareceu parar no peito quando um grito

lancinante cortou o ar, seguido de um choro baixinho, que


suplicava. Minha mulher chorava pelo meu bebê.

Uma dor cortante pareceu me rasgar ao meio. Movido pelo


senso de proteção, tentei usar as minhas forças para libertar-me,
porém as cordas se tornaram garras.
Não conseguia mover-me, estava paralisado, e a parede

pareceu se transformar em uma imagem vívida da minha avó


fazendo mal para o meu bebê.

A impotência era sufocante. O frio tornou-se ainda mais


intenso.

Lágrimas escorreram pelos meus olhos enquanto a mãe do


meu pai continuava aplicando seus açoites, ao mesmo tempo que
machucava o meu filho…

Tudo se transformou em um grande borrão de dor e eu


acordei assustado.

Estava completamente tenso. Minha respiração estava


ofegante, meu corpo tomado pelo suor gelado. Um medo visceral
atingia-me. Meu peito estava apertado pelo meu bebê.

— Javier? — minha esposa me chamou baixinho.


Deu vários beijinhos nas minhas costas enquanto sua mão

macia acariciava meu braço, subindo e descendo, em uma tentativa


de oferecer algum conforto.

Pela primeira vez eu não estava sozinho ao lidar com um


pesadelo, e isso era muito reconfortante, mais do que poderia ter
imaginado.
— Está tudo bem, querido, só foi um pesadelo — traçou
círculos calmantes.
Continuou a me tocar, beijar, e falar palavras de conforto, até

que minha mente separasse um pouco o pesadelo da realidade, e


meu corpo ficasse um pouco mais relaxado.

Não estava no quarto do “terror”, mas, sim, no meu


apartamento.
— Se sente melhor, meu amor? — questionou em um tom

doce, ainda acariciando-me.


Degustando o fato dela ter me chamado de amor, girei meu

corpo para ficar frente a frente com ela. Como estava escuro, não
podia distinguir bem sua expressão, mas com certeza estaria

preocupada, ela era altruísta e carinhosa demais para não se


importar.
— Sim, Luz — disse ao enterrar meu rosto na curva do

pescoço dela, sentindo seu cheiro, e levei minha mão a sua barriga,
acariciando-a suavemente. Meu bebê estava seguro ali.

Erguendo a mão novamente, voltou a acarinhar meu braço


com as pontas dos dedos.
— Esses pesadelos costumam ser recorrentes? — Fez uma

pergunta em um tom que indicava que era mais uma afirmação do


que propriamente uma questão.
— É tão previsível assim? — murmurei, deixando um beijinho
no ombro nu dela.

O fato de cheirá-la e de tocar meu bebê, pouco a pouco me


acalmou, embora as imagens ainda parecessem vívidas na minha

mente.
— Não é difícil somar dois mais dois quando, mesmo depois
de um longo dia de trabalho, você ficava até tarde no escritório. —

Fez uma pausa. — Sofre de insônia também.

— ¡Sí! Confesso que tenho medo de dormir e reviver…


Engoli em seco, as palavras atolando na minha garganta.

— E reviver os momentos que te feriram — completou para

mim em um tom repleto de tristeza, compaixão.

Antes, o demônio que havia em mim odiaria isso, porém o


homem amado por ela sentiu-se acalentado por saber que outro ser

humano poderia sofrer por ele.

— Foi sua avó que te machucou, não foi, Javier?


Fiquei levemente tenso. Ergui meu rosto e tentei encarar

seus olhos na escuridão.

Briguei comigo por alguns segundos, pensando se eu iria ou


não responder a sua pergunta, porém o beijo que ela deixou na
cicatriz ao abaixar a cabeça quebrou a minha insegurança. Se eu

quisesse de verdade aquele casamento, eu não poderia ter medo de


falar do meu passado com a mulher que um dia queria aprender a

amar.

Amar. O pensamento de que eu poderia vir a amar aquela


garota encheu-me de esperanças.

“Você não é incapaz de amar. No fundo do seu coração,

você sabe que consegue.”, relembrei as palavras de Bárbara, que

pareciam infundir ainda mais certeza em mim. Eu conseguiria nutrir


sentimentos fortes por ela, uma pequena chama já começava a se

acender em mim.

— Sim, foi ela — sussurrei, sentindo uma pontada de dor.


— Sinto muito, querido.

Tocou a minha face, acariciando-a suavemente em um

deslizar lento.
— Eu não consigo entender como uma pessoa pode ser tão

cruel como ela, ainda mais com uma criança. — Seu tom protetor

era um conforto, e eu soube que aquela mulher seria uma mãe leoa,

zelosa.
Ser consciente disso fez com que meu peito fosse

preenchido por sensações boas.


— Você deve ter lido que eu sou fruto de uma relação

extraconjugal entre meu pai e minha “mãe”.

— Algo do tipo.
— Pode imaginar o escândalo que foi na época? O grande

herdeiro dos Castillos traindo sua esposa grávida...

Não respondeu, não precisava.

— Minha avó nunca perdoaria essa mancha no nome familiar


— fiz uma pausa —, tanto que, antes mesmo que todos soubessem,

tentou se livrar do “inconveniente” de modo discreto, mas minha mãe

não aceitou.
A garota estremeceu ao ouvir minhas palavras e escutei um

choramingar.

— Ela te fez essa mesma proposta, não é? — perguntei,

quando essa ideia me veio à mente.


Não queria tocar no assunto do encontro das duas, que fez

com que nós dois brigássemos, porém era algo que precisávamos

conversar para que pudéssemos seguir em frente.


— Eu não aceitei — falou, e eu percebi que ela começava a

chorar.

Ouvir a confirmação dela em voz alta era doloroso e me

deixava completamente furioso.


Magda poderia ser velha, mas isso não diminuía a minha

vontade de destruí-la. Ela tinha ido longe demais. O que me


consolava era o fato de que, pelo que soube, minha avó estava

arruinada financeiramente. A tola havia perdido todo o seu dinheiro

ao deixar tudo nas mãos de Castro, só restando poucos bens.


Não haveria vingança melhor do que vê-la arruinada

socialmente nos ciclos que ela mais prezava.

Com o tempo, a gravidez de Bárbara não seria mais segredo

quando a barriga dela começasse a crescer, um bebê que geraria


furor nas revistas de fofoca. Eu não seria complacente com quem

havia contado a velha sobre o meu filho e também sobre o contrato.

Minha intuição dizia que quem se vendeu, também tinha negociado


essa informação.

— Eu nunca poderia — continuou, e deixando esses

pensamentos para mais tarde, prestei atenção na minha mulher. —

Embora eu saiba que muitas precisam tomar essa decisão difícil.


— Eu sei que não conseguiria.

Não adentrando no assunto aborto, tema que me era

espinhoso por conta da rejeição sofrida, movimentei-me na cama até


que meu rosto pairasse sobre o abdômen dela e dei um beijo ali,

demonstrando o meu carinho pelo bebê e pela mãe que ela seria.
Acariciou os meus cabelos.

— Mas por que ela tem tanto ódio de você ao ponto de

machucá-lo, Javier? — questionou em um sussurro, voltando ao tema

das minhas cicatrizes. — Não consigo compreender.


— O escândalo foi tão grande, mi Luz — comecei, tentando

ordenar meus pensamentos —, que meu pai começou a beber, até

que em um dia, ao dirigir bêbado, ele acabou batendo o carro e


matando não só a ele, mas também sua esposa e o filho ainda no

ventre da mãe.

Não disse nada, apenas continuou a fazer cafuné em mim.

— Em meio ao sofrimento — fiz uma careta ao pensar


naquela desgraçada sentindo dor. Apesar da crueldade dela, não

poderia apagar o fato de que ela tinha perdido um filho, embora que

só agora tinha conseguido perceber isso —, ela precisava encontrar


um culpado pela morte de quem ela mais amava, e quem melhor do

que o bastardo, o causador disso tudo? O símbolo da sua perda?

— Mas você não deveria ser responsabilizado pelo ato do

seu pai de beber e dirigir. E muito menos dos seus pais não usarem
camisinha ou outro método contraceptivo.

— Não, não deveria, mas ainda assim, eu fui.


Ela emitiu um som baixinho. Voltando a subir na cama,

fazendo com que ficássemos na mesma altura, limpei as lágrimas


que deslizavam pela face dela com as pontas dos dedos.

— Não é uma história bonita, Vida — murmurei, beijando-a

nas pálpebras, depois na testa e no nariz. — Você não precisa

continuar escutando-a.
— Não, não é algo bonito de se ouvir — tornou a acariciar

minha barba —, mas quero saber do passado do meu marido,

daquilo que fez com que ele se fechasse, pois sinto que essas
feridas foram muito mais além, atingindo o seu emocional.

Assenti com a cabeça suavemente, mesmo que ela não

pudesse ver.
¡Dios! Aquela menina me compreendia tão bem!

— Quando minha mãe me abandonou na maternidade, e

minha “avó” foi obrigada a cuidar do bastardo pela “família”, Magda

decidiu que me faria pagar por toda desgraça que causei —


continuei. — Você não faz ideia de quantas vezes a escutei dizendo

que trocaria mil vezes a minha vida pela do meu “meio-irmão”.

Ela emitiu um soluço.


— Então, cada vez que eu busquei afeto, seja nela ou em

outra pessoa, cada vez que eu ri e chorei, até mesmo nos momentos
que demonstrava um comportamento de uma criança normal, minha
avó me punia.

Encolheu-se contra o meu peitoral. Ignorando as lágrimas

que me molhavam, eu acariciei suas costas, trazendo-a mais de


encontro a mim. Foi a minha vez de consolá-la com beijos e afagos.

— Chicotes, cigarros e todo o tipo de coisas que você pode

imaginar que machucam a pele e torturam a alma.


— ¡Dios! — arfou, externando sua dor. — Como as pessoas

não interviram? Como eles deixaram que machucassem uma

criança?

— Ela comprava o silêncio e as pessoas, assim como eu,


garota…

“Não fui eu quem comprou você?”, completei mentalmente a

minha fala.
Dei um sorriso amargo ao pensar no ponto que eu tinha em

comum com Magda, se é que não era muito pior do que ela nesse
sentido.
Bárbara ficou em silêncio.

— Quando eu fiquei mais velho, capaz de revidar, ela me


mandou para uma escola na Inglaterra, mas era tarde demais para
mim, pois, embora tivesse contato com colegas, nunca de fato
consegui ter um amigo, até conhecer Yazuv. Tínhamos coisas em
comum demais para ignorar, principalmente o amor ao dinheiro.
Seus dedos acariciaram minhas costelas.

— Meus relacionamentos, que foram poucos, sempre eram


vazios. — Arrependi-me de falar desse passado com ela, pois não
deveria ser agradável para uma mulher ouvir sobre as outras. — Eu

sempre tive medo de me machucar. E elas sempre conseguiram, de


alguma forma, me ferir.
— Sinto muito por você ter sido tão ferido, Javier.

— Devo tê-las machucado com a minha frieza também —


confessei.
— Talvez, mas você não pode se culpar por isso.

Gargalhei alto, sentindo o meu peito vibrar.


— Eu não te mereço, Luz — falei em meio ao riso. — Você
nunca consegue pensar o pior de mim, mesmo que eu mereça.

— Quem disse que não pensei?


Franzi o cenho, mas logo estalei a língua em reprovação. Foi

a vez da garota rir e eu a trouxe mais de encontro ao meu corpo.


Ficamos em um silêncio confortável até que eu quebrasse a
leveza daquele momento.
— Através dos castigos, minha avó me criou para ser uma
máquina sem sentimentos. — Externei a minha dor. — Ela me fez
acreditar que o amor e os sentimentos bons não eram para mim e

que um bastardo como eu só merecia a dor, a solidão.


— Mas você deve saber que ela sempre esteve errada,

Javier… — sua voz soou triste. — Você merece ser amado, ser feliz.
Deixou um beijo onde meu coração batia e eu fechei os
olhos, apreciando a sensação boa de ter os lábios dela ali.

— Graças a você, mi Luz — falei a verdade.


De alguma forma, a garota me mostrava que, ao contrário do
que imaginei a vida inteira, eu era digno de carinho, de afeto.

Mesmo que eu não conseguisse enxergá-la, ergui o rosto


dela na direção do meu e deixei uma série de beijinhos pela face
molhada até alcançar seus lábios. Nossas bocas moveram-se

vagarosamente uma contra a outra, moldando-se, apreciando o


encaixe perfeito, degustando do beijo suave que fazia com que
pequenos suspiros escapassem das nossas gargantas. Não

tínhamos pressa, apenas sentíamos um ao outro enquanto as mãos


afagavam nossos corpos. Ela entreabriu os lábios para mim e não

me contive, deslizei minha língua pelos dentes dela antes de provar


cada recanto da sua boca, até encontrar sua língua. Nosso contato
era moroso, delicado e intenso.

Minha esposa se aproximava ainda mais de mim com aquele


beijo doce e intoxicante. E eu me sentia feliz por ser beijado por ela.
Bárbara aumentou a pressão dos lábios e eu ofeguei contra a boca

dela, principalmente quando intensificou o beijo; sua língua tornando-


se voraz. Retribui ao beijo com fome enquanto nossas mãos ficaram

mais afoitas, e quando precisamos encher os nossos pulmões com


ar, diminuímos novamente, deixando mordidinhas e selinhos.
Não precisava penetrá-la para que sentisse um prazer

indescritível. Eu me sentia embriagado apenas com aquele beijo.


Vivo.
— Acho que nunca vou me cansar de beijá-la, esposa —

repeti uma frase que tinha dito antes, mordiscando sua orelha.
— Hummm — respondeu com um gemido, encolhendo-se
como uma gatinha contra mim—, e eu nunca vou cansar de me

aninhar em você.
— Gosto disso — sussurrei.
Ficamos em silêncio, desfrutando do calor das nossas peles

nuas.
Acho que era eu que nunca enjoaria de ter aquela garota

pequena, calorosa, em meus braços.


— Javier? — Chamou-me com a voz sonolenta.
— Que foi, meu doce? — Inspirei o cheiro do meu xampu

nos cabelos dela.


— Por que sua mãe te abandonou?
Fiquei tenso momentaneamente, porém respirei fundo e

procurei me acalmar. Era uma pergunta bastante inocente.


— Eu não sei, Luz — minha voz demonstrava a minha dor. —

E nunca saberei.
— Não teve vontade de procurá-la? — Traçou pequenos
círculos em uma das minhas cicatrizes. — Apesar que compreendo

você não querer encontrá-la. Deve ser doloroso ser abandonado


quando se ainda é um bebê.
— Muito. A ausência dela deixou marcas e feridas enormes

na minha alma.
Engoli em seco.
— Se ela tivesse ficado comigo — continuei sentindo que eu

expunha um pouco do rancor —, eu não teria passado por tudo o que


passei. Sofrido o que sofri.
— Lamento, amor — sussurrou.
Meu coração se acelerou novamente com a palavra amor.
— Mas já é tarde demais para obter as minhas respostas. —
Eu voltava a ser o menininho ansiando pelo amor de mãe.

— O que aconteceu?
— Ela faleceu e não encontrei nenhum parente dela que
pudesse me dizer o porquê.

— Entendo — mostrou compaixão.


— Mas o que realmente me machuca é saber o quanto eu
sofri sem o amor da minha mãe, e que quase condenei meu filho a

isso — repeti.
Não havia dúvidas de que eu me martirizaria por aquilo por
um bom tempo, se é que um dia eu conseguiria me perdoar.

— Não pense mais nisso, Javier, por favor, nada de bom virá
desse pensamento — pediu com a voz sonolenta novamente e

mudou de assunto em um tom sério. — Você pode não conseguir


obter suas respostas, mas você pode tentar curar essas feridas ao
conversar com um psicólogo.

— Eu tenho medo, Bárbara — falei a queima roupa.


— Não será fácil se abrir e confiar em um profissional,
querido, levará tempo você colocar na sua mente que falar o que
sente não é errado — espalmou a mão no meu peitoral —, mas sinto
que você precisa tentar pelo nosso pequeno e por você mesmo.

— Não vai falar por você também?


— Seria presunção a minha — disse em um tom divertido.
— Vou tentar pela nossa família — falei, tempos depois.

Em algum lugar na minha mente, eu sabia que a minha


esposa estava certa. Nunca conseguiria viver completamente o
presente se as feridas do passado não estivessem completamente

escancaradas.
— Obrigada, querido.
Deixou um beijo na minha cicatriz.

— Agora tente voltar a dormir, querido — sua voz era rouca.


— Quero dar uma “canseira” em você depois.
Gargalhei, sentindo meu pênis ganhar vida com a perspectiva

de fazer amor com ela novamente.


— Você é terrível, garota — disse ao deslizar minha mão

das suas costas até alcançar a nádega dela, apertando-a


suavemente.
— Não finja que não gosta, “esposo”.

— Pelo contrário, eu gosto e muito — provoquei-a


novamente, apenas para voltar a falar sério —, mas não sei se
consigo, “esposa”, nunca voltei a dormir depois de um pesadelo.
— Eu estou aqui com você…

— Eu sei. — Deixei um beijo na sua testa. — E nunca fui tão


grato por isso. Você espantou meu medo, e tornou mais fácil de

suportá-lo.
— Huum… — Gemeu e eu a trouxe ainda mais contra mim,
fazendo com que ela apoiasse a cabeça no meu braço. Acariciei

seus cabelos.
Não demorou muito e eu escutei o seu ressoar baixinho,
delicioso. Perdi a conta de quantos minutos fiquei acariciando a

minha esposa, até que o torpor do sono me invadisse e eu me deixei


sonhar um sonho doce com a mulher que havia colocado a minha
vida pelo avesso, e me fazia sorrir por isso.
Capítulo quarenta e seis

— ¡Madre de Dios! — Soltei um gemido abafado quando

senti uma pata atingindo minhas partes baixas.

Abri os olhos, dando de cara com uma cadela caramelo com


parte da orelha faltando.

— Eu quero ter mais filhos, princesa — brinquei com a

cachorra, acariciando seu pescocinho.


Recebi uma lambida no nariz como resposta e escutei a

risada da garota ecoar em meus ouvidos. Logo senti Lorenzo

avançando para cima de mim também, exigindo sua quota de

carinho. Não fazia ideia de quantas lambidas e patadas, além de

rabadas, havia ganhado.


— Parece que eu perdi a oportunidade de te dar o primeiro

beijo do dia — minha esposa falou cheia de diversão.

Fiz uma careta. Removendo os dois cachorros de cima de

mim, acomodei-me melhor na cama, e a vi ela aproximar. Não

reparei de imediato na bandeja em suas mãos, pois toda a minha

atenção estava nas pernas bem-definidas que esteve várias vezes,


nos últimos dias, envolvendo a minha cintura enquanto eu arremetia
em seu interior acolhedor e úmido; bem como no short curto do
pijama que me deixava ver suas coxas cremosas.

— Meu primeiro beijo é sempre seu, garota — rosnei,

contrariado, e um dos cachorros latiu —, bem como o último do dia.

— Eu não sou ciumenta — disse em um tom displicente.

Emiti um resmungo, fazendo-a rir.

— Bom saber disso, “esposa”.


— Não abuse, Javier. — Franziu o cenho.

Dei de ombros, sentindo meu estômago retesar, e voltei a

devorá-la com os olhos.

— Bom que sou ciumento por nós dois, garota.

— Mesmo? — Pousou a bandeja em cima da mesa de

cabeceira. — Não sabia.

— Sou um ogro possessivo pela minha esposa.


Puxei-a, fazendo com que Bárbara emitisse um gritinho,

montando-a sob os meus quadris, a minha posição favorita com ela,

e a trouxe para um beijo faminto de língua, roubando o meu fôlego.

Ignorei o som dos latidos dos cachorros com os meus movimentos

súbitos. Estava viciado no gosto dela.

— Bom dia, querido — falou depois de lamber os meus


lábios e eu senti meu pau crescer contra o tecido da cueca.
Porra, nem parecia que eu tive essa mulher a noite inteira

embaixo e em cima de mim. Ela me deixava impaciente por tê-la,


tanto que, anteontem, quando estava resolvendo um problema junto

com Yazuv acerca daquele idiota do Mitchell, que não tinha feito
aquilo que havíamos pedido, deixei transparecer toda a minha
inquietação por acabar logo com aquilo e ter a minha mulher. O meu

melhor amigo tinha rido da minha cara por vários minutos.


— Bom dia, Luz.

Enterrei meu rosto no decote dela, querendo deixar vários


beijos ali, porém ela me impediu, puxando meus cabelos. Grunhi,

contrariado.
Fitei os olhos verdes dela, buscando compreender por que
Bárbara me impediu.

— Feliz aniversário, meu amor.


Arregalei os olhos. Ela sorriu antes de buscar meus lábios

outra vez em um beijo calmo, ainda assim cheio de ternura. Não


tentei aprofundar o contato, estava surpreso demais pela minha

esposa ter prestado atenção na minha data de nascimento.


Meu aniversário era algo que costumava ser passado em
branco. Yazuv costumava me ligar, mas nunca comemoramos o dia,

pois era completamente absurdo fazê-lo se deslocar de longe


apenas para isso. Mas não podia negar que uma parte de mim,

principalmente quando era criança, queria celebrar a data, contudo


acabei desistindo no meio do caminho quando minha avó não fazia

nem mesmo uma festinha na escola. Foi doloroso querer uma festa
como a dos seus coleguinhas e não ter.

— Você… — Não consegui continuar e ela deixou um selinho


no canto da minha boca.
Estava dominado pelo choque e também pelo

maravilhamento com a surpresa boa. Se fosse honesto, até mesmo


trêmulo. Uma emoção gostosa preenchia meu peito.

Acariciei as costas dela, grato por aquela menina fazer mais


um dia ser especial na minha vida.
— Não poderia esquecer da data — disse com uma

animação que me contagiou, ao ponto de fazer com que eu sorrisse


também. — Afinal, não é todo dia que se faz trinta e um anos!

Fiz uma careta ao recordar que a mulher no meu colo tinha


apenas dezoito anos.

Senti-me um velho, mas quando ela deixou um beijo no meu


pescoço, a nossa diferença de idade não parecia mais me importar.
Ela seria para sempre a minha mulher.
— Obrigada, mi Luz — deixei vários beijos em sua pálpebra,
ciente de que ela adorava quando eu dava suaves beijinhos ali.
— Não por isso, Javier — falou suavemente ainda de olhos

fechados, sorrindo.
Porra, Bárbara era tão linda!

Um focinho gelado se colocou entre os nossos corpos, nos


separando, e eu fiz uma careta de desagrado pela interrupção de
Lorenzo. A garota riu.

— Fiz café da manhã e trouxe na cama para você —


começou a tagarelar alegremente ao sair do meu colo. — Hoje você

merece ser mimado!


— O cheiro parece bom — desconcertado, coloquei um

travesseiro sobre a minha pelve, tentando controlar a ereção


despertada por ela, antes que um dos cachorros subisse em cima de
mim. O que os dois fizeram.

— Eles querem desejar feliz aniversário para o “papai”


também.

— Hm… Obrigado a vocês.


Acariciei as orelhinhas deles.
— Agora desçam, quero ver o que a “mamãe” preparou para

mim.
Meu coração bateu mais forte só de falar em voz alta que ela
era a mãe dos meus cachorros, e que também seria a mãe dos
meus filhos. Sim, pois no futuro queria ter muito mais filhos com ela.

Coloquei-os no chão, e eles me obedeceram, mas não sem


latir e choramingar.

— Trouxe algo para você higienizar as mãos.


Estendeu-me álcool em gel e limpei minhas mãos.
— Oh! — deu um gritinho. — Espere um momento, esqueci

de uma coisa.

Franzi o cenho, confuso, mas antes que pudesse dizer


alguma coisa, vi Bárbara se virar e caminhar para deixar o nosso

quarto. Olhei para a banda da bunda exposta pelo shortinho e, como

se soubesse que estava olhando, parou e rebolou suavemente, de

um jeito sexy pra caralho. Meu pênis pulsou.


Virou o rosto, fazendo uma cara inocente, antes de continuar

a andar, mexendo os quadris de maneira provocativa. Como sempre,

os cachorros foram atrás dela.


Porra, quis ter aquela garota quicando no meu pau outra

vez.

— ¡Dios! — Blasfemei, fechando os olhos, vários palavrões


escapando dos meus lábios.
Quando ia puxar a bandeja para o meu colo, vi a garota

voltar, e não me passou despercebido que ela havia fechado a porta


e que segurava um embrulho em suas mãos.

— É para você, Javier. — Estendeu-me uma caixinha com

um enorme laço, ao se ajoelhar do meu lado na cama. — Espero que


você goste.

Não respondi, pois perdi o ar. A garota havia comprado um

presente para mim?

Meus dedos tremeram ao pegar o invólucro e eu fiquei


olhando para o presente por vários minutos a fio, como se eu

estivesse vendo um alienígena.

Um nó se formou na minha garganta e meus olhos


umedeceram. Era o meu primeiro presente; terceiro, se pensar no

meu bebê e na mulher que fazia minha vida melhor.

— O que é? — questionei em um fio de voz, e fitei a menina


que parecia expectante.

— Abra e descubra você mesmo, Javier — ordenou

suavemente.

Assenti. Com os dedos incertos, comecei a remover o laço


que envolvia a caixa.
Meu coração palpitava no peito à medida que eu

desembrulhava, retumbando em meus ouvidos. Quando removi o

papel de seda que embrulhava o presente e peguei o pequeno


macacãozinho branco, sentindo sua maciez, as lágrimas começaram

a deslizar pela minha face, choro que se tornou ainda mais convulsivo

ao ler as palavras “amor do papai” bordado delicadamente.

— Eu não soube o que comprar para um homem como você,


que pode ter tudo o que deseja, então pensei que algo relacionado

com o nosso bebê teria um significado mais especial — pareceu

insegura.
— Compreendo.

Deslizei meu dedo pelo bordado, achando aquelas três

palavrinhas juntas algo mágico.

— Amor do papai — sussurrei para mim mesmo.


— Sei que não faz muito sentido comprar um presente, se foi

o seu dinheiro e não o meu que pagou — continuou a falar pelos

cotovelos, demonstrando que estava um pouco nervosa. — Mas foi


algo que pensei que poderia gostar.

— É perfeito, Luz — levei a peça ao rosto e a cheirei,

sentindo minhas lágrimas molharem o tecido, depois o ergui para fitar

a minha esposa. — Eu não tenho palavras para dizer o quanto é


especial, tocante. Não me importa o valor dele ou quem pagou, mas,

sim, que foi você que escolheu e me deu.


Deixou um beijo na minha bochecha e se acomodou ao meu

lado, se aninhando no meu braço.

— Assim que vi esse body no site, pude imaginar nosso bebê


usando-o, com um pai completamente bobo aninhando-o nos seus

braços.

— Não sei por que, mas também consigo sonhar acordado

com isso — confessei com a voz rouca.


— Fico feliz que consegue, Javier.

— Eu amei — falei depois de vários minutos em silêncio,

guardando a peça na caixinha.


Emitiu um suspiro baixinho, feliz, e acariciou o meu braço.

— Podemos vestir nosso bebê com ele quando sair da

maternidade.

— Mesmo? — Fitou-me.
— Sim — fiz uma pausa —, não posso perder a

oportunidade de mostrar a todos que nosso filho é a vida e o grande

amor do “demônio” — provoquei-a, chamando-me de algo que ela


não gostava, apenas para escutá-la me defendendo.

Fechou a cara e cruzou os braços sobre o seio.


— Javier…

— Estou apenas brincando com você. — Dei um selinho nos

lábios crispados. — Tenho que rivalizar com Yazuv de quem é o pai

mais babão.
— Hm.

Fingiu-se de brava, porém logo riu.

Uma coisa era fato, minha mulher conseguia achar graça nas
mínimas coisas. Sorri.

— Vamos tomar o café — pousando o meu presente sobre o

móvel de cabeceira, apontei para bandeja —, não quero que seus

esforços tenham sido por nada.


— Claro.

Afastou-se de mim. Peguei, então, a mesinha de café da

manhã e a coloquei no meio da cama. Minha boca salivou ao ver os


bocadillos enquanto ela me servia de uma dose de café. Eu estava

faminto. Sem pensar muito, peguei um dos sanduíches de salmão e

o ataquei.

— Muito gostoso, como sempre — disse, dando uma última


mordida no pãozinho.

Levei a xícara da bebida quente aos lábios e o líquido estava

perfeito para o meu paladar.


— Não me lembro de você ter me dito isso quando os

preparei pela primeira vez — seu tom não escondia a sua diversão.
— Desculpe a minha falha, esposa — fingi inocência. —

Nunca mais cometerei esse equívoco.

Fez um som de descrença e eu arqueei a sobrancelha para

ela. Peguei mais um sanduíche.


Deixei um beijo estalado na bochecha dela, que quase

derramou o suco, porém sua mão firmou a tempo de não fazer uma

bagunça.
— Juro pelos meus milhões!

Mastigou um dos biscoitinhos.

— ¡Dios! — Gargalhou. — Então é sério mesmo.


Soltei um bufar exasperado.

— Tenho que tentar ser um bom marido para a minha

esposa. — Dei de ombros, ignorando a pequena alfinetada ao meu

amor pelo dinheiro, bebendo mais um gole do café. — E dizem por aí


que elogiar sua mulher é um dos requisitos.

— Não sabia que você tendia a ser um bajulador, Javier.

— Só da minha esposa. — Beijei o braço dela. — Espero


que ela goste de ser mimada pelo marido.

— Acho que ela vai gostar.


Deu um sorriso provocante que fez com que eu começasse a
ficar rígido novamente. Ela voltou a comer, como se não tivesse me

deixado ereto. Acompanhei os movimentos da língua dela enquanto

lambia suavemente os dedos, removendo as migalhas de pão, com


certo fascínio. Minha mente criava várias imagens eróticas do

tracejar da língua que ficava cada vez mais habilidosa.

— Não vai comer? — Arqueou a sobrancelha, apontando


para o meu prato, pegando-me em flagrante.

— Sim, esposa — respondi, mas algumas ideias não me

deixaram por completo.

Continuamos a comer, trocando alguns gracejos, até que,


saciados, pousamos a bandeja no chão e acabamos nos braços um

do outro, trocando carinhos, beijos e afagos.

— Você tem planos para hoje, Luz? — Falei, acariciando o


braço dela.

Imaginei que Bárbara poderia ter planejado alguma coisa


para o dia.
— Como achei que você iria trabalhar, pensei que

poderíamos sair à noite para jantar fora.


— Parece bom.
— Você teria que escolher um restaurante, já que não sei
nada sobre isso.
— Entendo, mas tenho uma ideia melhor, hermosa.

— Qual?
Não respondi de imediato. Movimentei nossos corpos e parei
sobre ela, prensando o corpo de Bárbara contra o colchão. Os lábios

dela se entreabriram com a surpresa. Os olhos verdes exalavam


luxúria e seus dedos começaram a passear pelas minhas costas.
— Que tal comemorarmos meu aniversário na cama? —

perguntei no ouvido dela e a garota estremeceu debaixo de mim.


Emitiu um gemido que, porra, me deixou maluco. Foi a minha
vez de grunhir ao sentir sua respiração na minha orelha. Minha

respiração estava entrecortada.


— Podemos pedir comida e ver filmes também. — Arqueou
seu corpo quando minha pelve roçou no seu shortinho.

— Um bolo de aniversário — murmurei, tentando convencê-la


de que o meu plano era melhor através do doce.

— Adoro muito a ideia de comemorarmos com bolo —


forçou-se a dizer quando usei a ponta da língua para provocá-la.
— Somente com bolo? — Soltei um muxoxo.

— E que meu marido faça amor comigo…


Seus dedos alcançaram a minha cueca e se infiltraram pela
peça, tocando a minha bunda.
— Melhor assim, garota.

Um som de satisfação saiu pelos meus lábios quando ela


apertou a minha nádega, não me sentia menos homem por ser

tocado naquela região.


Eu era o homem dela e ela poderia fazer o que quiser de
mim.

— Cala a boca e me beija logo, Javier — ordenou em um


tom rouco, sua mão possessiva.
Ri baixinho, embriagado por aquela garota, antes de

mergulhar nos lábios já entreabertos, facilitando o deslizar da minha


língua em direção a sua boca.
Capítulo quarenta e sete

Tempos depois...

Batuquei no batente da janela do escritório com impaciência,

e obriguei-me a não passar a mão pelos meus cabelos perfeitamente


alinhados. Tinha sido um dia exaustivo, principalmente depois de

reunir-me com o Marcos, o médico, já que havia descoberto que

tinha sido ele quem havia se vendido para a minha avó. Deveria estar
aliviado por não ser o meu secretário, muito menos o meu advogado,

mas não estava, me sentia completamente furioso mesmo tendo

despejado minha ira sobre o culpado.

Infelizmente, não havia muito o que se fazer, além de trocar

de médico, já que entrar na justiça contra ele, tentar caçar sua


licença era o mesmo que assinar minha própria culpa. Não que a

palavra dele tivesse mais poder do que a minha, mas minha esposa

não necessitava ser vítima de mais um escândalo, muito menos ser

exposta dessa maneira, como uma mulher volúvel que se vende. Ela

não deveria pagar por um erro que eu cometi, mas isso não

significava que eu não estava louco para descontar minha raiva em


alguém.
E que candidato melhor para sofrer com o peso da minha
cólera do que o meu maior inimigo, que, segundo meu informante,

havia sofrido mais um revés hoje?

Já passava da hora de realizar a minha vingança contra ele,

já havia esperado tempo demais e agora eu teria meu triunfo.

Ouvi meu celular pessoal vibrar, indicando que eu havia

acabado de receber uma mensagem, automaticamente puxei o


aparelho do meu bolso, destravando a tela. Tive que usar todo o meu

autocontrole para não reagir a selfie da minha esposa, deitada sobre

a nossa cama com o seu conjuntinho mais curto, revelando seu

ventre levemente abaulado pela gravidez de dois meses e meio e

parte das suas coxas.

Era inocente perante as várias outras que Bárbara havia me

enviado. Não podia negar que receber um “nude” da minha esposa


no meio de uma reunião tinha sido delicioso, porém, mesmo assim, a

imagem dela era o suficiente para me deixar em estado de alerta.

Meu celular fez barulho outra vez, provavelmente, por ver que

eu estava online.

Amor:
Traz bombons da Chocolatero, querido? <3<3
Enviou outra foto, dessa vez do rosto, fazendo uma cara de
cachorrinho pidão, que rivalizava com a de Isabel querendo um

pedaço de pão. Mas ela sabia que eu não resistiria. Eu acabava


fazendo aquilo que ela desejava.
Era consciente de que mais e mais meus sentimentos pela

minha esposa estavam crescendo, ainda que não soubesse


denominá-los. Eram fortes, pungentes, que me faziam lamentar os

minutos em que estávamos separados. Eu precisava dela com


desespero, dos beijos, das conversas, dos sorrisos, do seu corpo

me fazendo amor.

Amor:

Por favorzinho <3


O chocolate daqui de casa acabou.

Javier:

Pensarei no seu caso.


Amor:
Podemos fazer uma troca :p
— ¡Carajo! — Minha voz saiu abafada.

Contive um gemido ao imaginar as diferentes coisas que ela


poderia fazer comigo em troca de chocolate. Só aquela garota para

abrandar um pouco a raiva que eu sentia e a transformar em desejo.


— Disse alguma coisa, senhor Javier? — A voz de um dos

acionistas ecoou na sala e só assim lembrei que não estava sozinho.


Virei-me para o homem.
— Não — falei friamente, embora o meu sorriso deveria ter

me traído, pois ele franziu o cenho.


Não dei atenção a ele, tinha uma proposta erótica para

responder:
Javier:
Que tipo de troca?

Amor:
Uma que você não irá se arrepender

Javier:
Mal posso esperar

Amor:
Não te decepcionarei :*:*
Como um idiota, fiquei olhando aquela mensagem por vários
minutos a fio, até que ouvi a voz de quem eu estava mais esperando
aproximando-se da sala de reuniões. Guardei o celular no bolso e

busquei toda autodisciplina que me foi ensinada para não demonstrar


nada, fazendo-me uso dela a contragosto. Depois de me abrir com

Bárbara, eu não queria ser mais aquele homem que foi moldado pela
minha avó, mas, sim, o homem que eu descobria a cada dia com a
mulher que estava me ensinando o que é amor.

A leveza tornou-se raiva de mim mesmo, misturando-se à


frieza que aquele momento exigia de mim. Não podia deixar que meu

inimigo visse o homem que eu estava me tornando. Eu precisava ser,


outra vez, o “Demonio de hielo” que triunfaria, que massacrava sem

dor e piedade, que tinha esperado anos para se vingar e fazê-lo


pagar, não por ter sido o amante daquela vagabunda, mas, sim, pelo
calote financeiro que nunca pude provar.

— O que esse canalha está fazendo aqui? — Castro falou


em um tom enfurecido.

Colocando as mãos no bolso displicentemente, fitei meu


adversário com desdém e vi o rosto dele se enraivecer ainda mais.
Com o canto do olho, percebi que todos ali presentes pareciam

subitamente tensos, menos Igor Tarnovskiy. Não havia demitido o


segurança a pedido de Babi, mas nunca mais confiaria no russo para
proteger a minha família, por mais que ele já trabalhasse para mim
há anos.

Para provocar meu rival, estalei a língua, e ele pareceu ficar


ainda mais irritado.

— Boa noite, Castro, seja “bem-vindo” a nossa reunião de


última hora. — Não escondi a ironia e apontei para uma cadeira
qualquer. — Peço que se sente, por favor.

— Bastardo, quem você pensa que é para dar ordens na

minha empresa como se fosse o dono dela? — cuspiu ao dar um


soco na mesa e observar os covardes tremerem.

Não respondi. Com uma calma calculada, puxei a cadeira da

presidência que costumava ser ocupada por ele e me sentei com

displicência.
— Sente-se, não é um pedido, mas, sim, uma ordem —

minha voz era puro gelo.

— Alguém tire esse bastardo insolente daqui — deu outro


grito.

— Não podemos, senhor. — Um funcionário corajoso abriu a

boca enquanto os acionistas assistiam a tudo calados. Tive vontade


de bater palmas para o homem. Ele havia acabado de manter seu

emprego.
— Como não? — Castro disse, voltando a bater no tampo

da madeira.

Dei uma risada ácida.


— Não é homem o suficiente para fazê-lo você mesmo? —

provoquei-o, tamborilando os dedos pela superfície.

— Não irei sujar minhas mãos com um lixo que nem você —

meu rival rugiu.


Abri um sorriso cínico.

— Quem deixou você entrar, Castillo?

— Não preciso de permissão.


— Como ousa? — Castro questionou.

— Vamos direto ao ponto, essas suas ameaças tolas estão

me cansando. — Fiz um som de desdém. — Você não tem mais


nenhum poder nem aqui e nem em qualquer outra empresa sua.

Ele gargalhou alto.

Arqueei a sobrancelha, intrigado.

— Mentira!
— Tem certeza, Castro? — falei com desdém. — Não

precisa ficar “tímido” por eu estar ciente que há meses você vem
vendendo as ações da sua empresa para cobrir os prejuízos dos

seus maus investimentos da sua financeira.

Pela primeira vez, vi o homem que eu mais odiava


empalidecer; não havia mais a arrogância de sempre. Senti certa

satisfação por vê-lo tão vulnerável, porém não tanto da maneira que

tinha imaginado. Sim, havia pensado nisso várias e várias vezes.

Tinha passado várias noites bolando a minha vingança, por isso, eu


não me sentir pleno era-me estranho. Como sempre, não me permiti

pensar naquele assunto naquele instante, mas foquei no presente

momento.
— Eu não sei do que você está falando, Castillo — sua voz

soou hesitante.

— Não? — Fingi-me de inocente. — Vai me dizer que não

passa de especulação?
Pareceu ficar mais vermelho e continuei a brincar com ele.

— Logo você que até então a adorava.

Fingi uma risada de diversão.


— Pare de fingimento, Castro — minha voz voltou a ficar fria,

demonstrando nenhum sentimento. — Todos os aqui presentes estão

cientes de que você acabou de vender as últimas ações que você


detinha das empresas que ainda davam algum lucro. Agora, só lhe

resta a financeira falida e sua má credibilidade para investimentos.


— Saiam todos! — Esbravejou e eu senti todos os olhos

sobre mim, esperando por uma decisão minha.

— Esperem lá fora, menos você, Tarnovskiy — solicitei.


Em silêncio, observei as pessoas deixarem a sala, me

deixando a sós com o meu rival.

— Precisa de alguém para defendê-lo, bastardinho? —

disse, quando a porta se fechou.


— Não irei sujar as minhas mãos com um lixo como você —

repeti suas palavras em um tom cínico e gargalhei.

— Pare com joguinhos, Castillo, e diga logo o que quer. Meu


tempo é precioso demais para gastar com as suas excentricidades.

Deslizei uma pasta com documentos na direção do meu

inimigo.

— Leia por si próprio.


Capturei o momento que hesitou, antes de, furioso, pegar a

pasta e abri-la, lendo rapidamente o seu conteúdo.

Sorri.
— Eu venci, Castro, esse é o fim da linha. — Minha voz soou

divertida. — Você pode ter achado que tinha ganho esse jogo
quando usou e casou-se com aquela vagabunda, mas não.

— Maldito bastardo!

— Como se sente tendo aquilo que você mais ama sendo

conquistado pelo rival? — Gargalhei. — Não que eu me importasse


de fato com Angelina.

— Mas se importava com o bebê que ela poderia gerar. —

Tentou me atingir e, por alguns segundos, fiquei desconcertado, mas


deveria ter imaginado que ele também saberia. — Como é ver o seu

rival fazer um filho na mulher com quem você planejava se casar?

— Você tem certeza de que é seu mesmo? — Estalei a

língua.
Ele deu de ombros.

— Quer dizer que nenhum dos dois venceu, não é mesmo?

— Não, Castro, além de ver a sua ruína, eu obtive tudo o


que desejei e ainda mais — falei ao pensar na mulher que me

esperava em casa, com um sorriso doce e vários beijos para me dar.

— Ah, a prostitutazinha vulgar — gargalhou.

Não vi mais nada, pois sentindo a raiva que eu havia


controlado o dia inteiro eclodir em meu interior, eu perdi

completamente a capacidade de raciocinar. A única coisa que era


consciente era que eu tinha dado um soco no nariz dele e o segurava

pelo colarinho da camisa, erguendo-o.


— Não use essa boca suja para falar da minha esposa. —

Ameacei.

— Senhor… — Igor me chamou, porém não prestei atenção.

— Ora, ora, ora, o demônio de gelo tem algum sangue na


veia — zombou e eu vi um filete de sangue escorrer pelo seu nariz.

— O bastardo e a puta até que são perfeitos um para o outro.

Contive minha vontade de socá-lo novamente, de surrá-lo até


que perdesse os sentidos, a minha esposa não gostaria disso.

Soltei-o e ele riu.

— Perdeu a coragem, diabo? Ou sua mulher não vale a


pena, afinal?

Balancei a cabeça em negativa.

— Deixarei que os seus investidores, que perderam milhares

de euros nas suas mãos, acabem com você. — Sorri e vi o medo

cintilar em seus olhos — Criptomoedas e NFT[87]? Você já foi mais

inteligente, Castro.

Não respondeu.

— Não sei como conseguiu enganar seus clientes, mas


amanhã todos saberão que sua perda não é apenas um boato na
mídia. — Fiz uma pausa. — Como irão estar cientes não só das
várias traições que sua esposa sofreu, bem como o modo que você

usou o nome dela e o sujou sem o seu consentimento.

Coloquei a mão no peito, fingindo uma pena que não sentia.


— Tadinha, irá acabar presa por causa do homem que ama!

— Está mentindo — sussurrou, não mais tão confiante.

— Veremos.
Dei de ombros. Sem deixar de fitá-lo, dando passos para

trás, alcancei novamente a cadeira da presidência e sentei-me.

— Não é divertido estar sob os holofotes da mídia? —

Provoquei-o, e sem esperar uma resposta, chamei meu segurança:


— Igor?

— Sim, senhor?

— Ajude o senhor Castro a sair e chame todos os outros de


volta, temos muito o que conversar.

— Claro, senhor Javier. — Assentiu.


Aproximando-se de Castro, intimidando-o, colocou-o para
fora como o saco de lixo que era.

Assim que a porta se fechou, deixando-me sozinho, fechei os


olhos e deixei que o entusiasmo por finalmente ter destruído Castro,
depois de tantos anos planejando isso, me invadisse, mas,
novamente, a satisfação que esperava sentir não veio.
Foi a minha vez de socar a superfície com força, sentindo

raiva de mim mesmo. Vingança era algo que sempre quis, mas,
ainda assim, não me sentia satisfeito
Engoli o gosto amargo ao ver que todos voltavam aos seus

lugares novamente enquanto as sombras pareciam me engolfar.


Capítulo quarenta e oito

— Não consegue dormir, Javier? — questionei ao encontrá-lo

no cômodo que era uma espécie de alpendre todo fechado por

paredes de vidro.
Deitado em uma long chaise, iluminado parcamente pelas

pequenas arandelas fixadas nas paredes, eu não podia ver o seu

rosto com definição.


— Não. — Sua voz rouca ecoou nos meus ouvidos e vi que

ele virou o rosto na minha direção.

— Compreendo.

Segurei melhor o lençol que cobria o meu corpo para que ele

não caísse e caminhei até onde ele estava. Apesar do meu marido
buscar aparentar normalidade, fazendo pequenos gracejos durante o

jantar, eu sentia que havia algo que o estava incomodando.

Esperei que ele me dissesse o que o deixava, de algum

modo, distante, porém Javier apenas permaneceu em silêncio, o que

respeitei.

Ele estava tão retraído que a noite quente que estava


planejando para nós dois querendo recompensá-lo pelos bombons,
não aconteceu, apenas dormimos um nos braços do outro, o que de
forma alguma era ruim. Eu conhecia bem aquele homem que, na

mínima oportunidade, me beijava e me fazia estremecer em meio ao

encontro dos nossos corpos. Sob a fachada fria, havia um amante

quente e sempre disposto. Generoso. Carinhoso.

Javier poderia não dizer em voz alta como se sentia em

relação a mim, mas através dos seus gestos, toques, beijos e


sorrisos, eu podia sentir o seu amor. Eu não precisava de palavras,

necessitava do homem que ele era. Por isso, no meio da madrugada,

com ele buscando um refúgio para si próprio, a inquietação dele

tornou-se a minha e não pude mais ignorar ou dar tempo para Javier

pensar.

Detestava com todas as forças vê-lo dessa maneira,

principalmente quando Javier parecia mergulhado em sombras. Não


aguentava vê-lo sofrer em silêncio.

Sem dizer uma palavra, quando parei de frente a ele,

pegando-me desprevenida, puxou-me para o seu colo, fazendo com

que o lençol escorregasse um pouco, deixando meus seios expostos.

Me acomodei contra o seu peitoral em busca de conforto. Um

suspiro escapou dos meus lábios ao sentir seus braços fortes me


abraçarem. Deixei um beijo em seu peito, onde o coração dele batia

acelerado.
— O que está te incomodando tanto, amor? — perguntei.

— Pensei que não iria querer saber — respondeu em um tom


de brincadeira, levando o nariz nos meus cabelos, respirando fundo.
— Pensei que iria me falar sem precisar questioná-lo —

retruquei.
Apertou-me com mais força contra si.

— Desculpe-me por isso, Luz — sua voz era baixa —, não


quis te machucar com o meu silêncio.

— Me dói mais por você do que por mim. — Acomodei-me


no seu colo, para que nossos rostos ficassem um de frente para o
outro, embora não pudesse ver completamente o seu olhar. — Me

preocupo com você.


— Eu sei, Vida.

Envolveu a minha cintura com delicadeza e eu toquei o seu


rosto, sentindo cócegas pelos pelinhos da barba contra a minha

palma.
— E então?
— Eu finalmente consegui destruir o meu maior inimigo,

garota. — Seu tom era tão desprovido de emoção que eu precisei


me controlar para que eu não tremesse. — Depois de um longo

tempo, obtive minha vingança sobre Castro.


Engoli em seco e senti meu coração se apertar com o

pensamento de que sua vingança tinha a ver com aquela mulher.


Baixei a mão.

— Por causa dela? — obriguei-me a perguntar, cabisbaixa.


Era melhor acabar com aquilo de uma vez.
— O quê? — Sua voz saiu áspera e foi a vez dele de segurar

o meu rosto gentilmente. — Não, mulher, eu não dou a mínima para


aquela vagabunda. Para ser sincero, hoje nem sei se cheguei a nutrir

algum afeto por ela. — Acariciou as minhas bochechas. — Quando


fui traído, não fiquei devastado por ela em si, mas, sim, pelo filho que
sonhava ter um dia.

— Desculpe minha tolice — senti mais uma vez uma onda de


alívio me invadir por ter mais uma confirmação de que ele não nutria

nada por ela. — É só uma insegurança boba.


— Nunca te darei motivos para ficar insegura, mi Luz. —

Deixou um beijo em meus lábios. — Você será a única, sempre.


Sorri.
— Minha vingança foi puramente por dinheiro, garota.

Fiquei em silêncio.
— Anos atrás, éramos sócios de uma grande financeira.
Tínhamos os maiores clientes da Espanha, e não poderíamos ser
mais bem-sucedidos, porém um grande rombo fez com que quase

perdêssemos tudo, e tivemos que demitir vários colaboradores.


Fez uma pausa.

— Tudo apontava para Castro, porém nunca consegui


provar, não pude levá-lo à justiça.
— Compreendo.

— Descobri da forma mais amarga que ele nunca foi meu


amigo, mas, sim, um cínico que só alcançou sucesso às minhas

custas.
Não soube o que dizer, apenas fiquei triste pelo homem que

havia sofrido mais um grande baque.


— Tive que recomeçar praticamente do zero. — Suspirou
fundo. — Fui bem-sucedido, como pode ver.

— Sim…
— Porém, não podia perdoar tal traição. Então, procurei

meus próprios meios de fazer justiça. Começamos a travar uma


batalha silenciosa para descobrir quem era o melhor, e, no final, eu
venci. Tirei dele tudo o que mais amava, as empresas, que,

provavelmente, foram construídas com o meu dinheiro. Eu venci!


— Então por que se sente tão incomodado, amor? —
questionei baixinho, não conseguindo compreendê-lo.
— Eu não estou sentindo a satisfação que imaginei que

sentiria.
Puxou o ar com força para os pulmões.

— Vivi tanto tempo elaborando a minha vingança contra ele,


para, no final das contas, me sentir indiferente. Porra, eu deveria
estar me sentindo eufórico.

Balancei a cabeça em negativa.

— Não, não deveria.


Soltou-me e eu acarinhei a barba dele.

— O quê? — A pergunta soou incrédula.

— Não vê, Javier? — Desejei poder ver os seus olhos com

clareza. — Você não precisa mais se apegar à vingança para se


manter vivo, nem mesmo ao rancor, à raiva ou até mesmo à

represália, como você quer fazer contra o filho do Gonzáles.

Relembrei-me do quão irritado ele tinha ficado ao saber que


aquele playboy assediador teria apenas trabalho comunitário como

pena. Não deixei que Javier comprasse juízes para se vingar. Era

triste, porém sabia que abusadores, até mesmo estupradores, nem


sempre recebiam a punição merecida. Tinha que concordar que a

justiça, muitas vezes, era podre.


— Eu não posso deixar o assédio passar em branco — sua

voz soou baixinha.

— Pode, querido.
Puxou ar com força.

— Não entende, amor? — Plantei um beijo no seu maxilar e

voltei a acariciá-lo. — Sua maior vingança contra todas as pessoas

que te feriram e que você jurou machucar de volta é ser feliz.


Ficou mudo e, como eu o conhecia, mesmo naquele pouco

espaço de tempo, sabia que ele ponderava as minhas palavras.

— Principalmente contra a sua avó, que tentou de todas as


formas minar tudo o que há de bom em você — sussurrei e peguei

as mãos dele, colocando no meu ventre. — Dar a ela o gosto de

saber que não conseguiu destruir a sua capacidade de amar, de ser


feliz, é a melhor das retaliações.

Sua resposta foi capturar os meus lábios e me beijar

vagarosamente, deixando os meus lábios formigando por mais.

Adorava os beijos famintos, mas igualmente amava os lentos, cheio


de ternura e amor. Nossas bocas ficaram mais ávidas uma pela outra

quando nossas línguas se encontraram com urgência. Suas mãos


passaram a acariciar meus ombros nus com círculos vagarosos, ao

passo que nossos corpos buscavam a proximidade.

— Você tem o amor pelo nosso bebê, Javier — falei com a


voz entrecortada ao apartar o beijo —, e também o amor que eu

sinto por você.

— Bárbara…

Impedi que ele falasse algo ao colocar o indicador sobre os


seus lábios.

— Sei que temos convivido há pouco tempo e que parece

leviano falar sobre um sentimento tão forte, mas eu me apaixonei por


você e pelo homem doce que você é. — Massageei seus lábios. —

Não peço que acredite, pois sei que levará tempo para você lidar

com meus sentimentos.

— Está errada de novo, garota — falou depois de beijar os


meus dedos, sua voz completamente embargada e emocionada. —

Eu acredito no seu amor, porque, de alguma forma, você me fez

senti-lo. Você consegue me tocar de diferentes formas, Bárbara.


Você alcança a minha alma.

— É a segunda coisa mais linda que você me disse, Javier

— falei por entre lágrimas, que era difícil de segurar, ainda mais

quando a gravidez parecia me transformar em uma manteiga


derretida. — Mas não se sinta pressionado a me retribuir. Meu amor

é grande o suficiente para nós dois.


— Então me ame, garota. — Sua respiração era pesada e

eu dei uma pequena rebolada sobre o pau ereto debaixo de mim.

Gemeu e eu me senti poderosa.


Levantei-me do seu colo na long chaise, ficando de pé, e

livrei-me do lençol que estava embolado, ficando completamente nua.

Não podia negar que, mesmo que minha barriga ainda fosse

pequena, me sentia insegura com meu corpo, porém, como sempre,


o olhar que me devorava enquanto erguia os próprios quadris para

remover a cueca, acendia uma chama de cima a baixo no meu corpo,

fazendo minha vagina pulsar. Criando coragem, provocando-o, rocei


meus próprios dedos em um dos meus mamilos e senti que o bico

ficava rígido sobre o meu toque suave.

Um som alto escapou pelos lábios dele e, mesmo que eu não

pudesse ver claramente seus olhos, eu sabia que seus olhos


aprovavam o que viam. Fiz o mesmo com o outro mamilo e

aproximei-me novamente dele, que girou o corpo na minha direção.

Preferia que ele me tocasse do que eu mesma.


Beijou cada um dos bicos eriçados, sua língua traçando um

círculo perfeito pelas aréolas, e eu tive que apoiar uma mão no


encosto, minhas pernas estavam completamente moles.

Choraminguei quando parou com as carícias, mas logo eu gemi

quando deslizou as mãos pelos meus quadris antes de se curvar na

direção da minha vagina e pairar ali.


Eu era pura expectativa, desejando sentir seus dedos

abrindo meus grandes lábios enquanto sua língua me degustava até

encontrar o meu clitóris. A umidade se formava no meu interior e


fechei as pernas tentando conter a sensação abrasadora que Javier

parecia não tão disposto a aplacar, já que, diferentemente do que eu

queria, apenas deixou um beijo suave no meu monte. Se movendo

novamente, sentou-se de modo que suas costas ficassem contra o


encosto do móvel.

Mordi os lábios ao contemplar as linhas dos ombros largos,

seu peitoral definido subindo e descendo rapidamente, passando


pelo abdômen trincado até alcançar o pênis, que parecia crescer

ainda mais sobre o meu olhar. Saber que eu causava tamanho

desejo naquele homem, que ele parecia não cansar de mim,

alimentava a minha própria ânsia por ele.


— Monte de costas em mim, hermosa — ordenou em voz

rouca.

— De costas? — questionei, surpreendida.


Não podia negar que ficar por cima e cavalgá-lo era uma das

minhas posições preferidas, principalmente por, na maioria das


vezes, eu ditar o ritmo do nosso sexo enquanto a boca dele

esmagava a minha.

— ¡Sí! — Vi o seu sorriso entre as sombras. — Se ficar

desconfortável para você, podemos tentar outra coisa.


— Tudo bem.

Retribui o sorriso, ao mesmo tempo que me sentia derretida

por ele sempre pensar no meu bem-estar e no meu conforto nas


nossas explorações, nunca me forçando a nada.

Curvei-me para deixar um beijo longo em seus lábios,

saqueando a sua boca com a minha língua, arrancando dele um


grunhido excitado. Toquei seus ombros, acariciando-o, sentindo a

rigidez dele sob o meu tato.

Segurando meus cabelos em uma mão, tomou o controle

para si, inclinando minha cabeça, buscando o melhor encaixe, e


imprimiu ao beijo um ritmo mais intenso, deixando-me ver que essa

noite não haveria calmaria, mas que meu marido extravasaria, sem

me machucar, os sentimentos selvagens e conturbados que o


dominavam.
Javier exigiria a minha entrega de maneira irreversível e eu
demonstraria todo o amor que eu tinha por ele através do meu

corpo. Deixei que ele mergulhasse completamente em mim com a

língua, lábios e dentes. Arfei quando ele mordiscou meus lábios


antes de voltar a me beijar com fome e desespero. Perdemos o ar.

Ele espalmou a mão na minha bunda, dando um pequeno

tapa, incentivando-me a me mover. Sentou-se novamente e esticou


as pernas.

— Vá, garota. — Voltou a ordenar com a voz enrouquecida.

Trôpega e arfando, fiz o que ele pediu, subindo em cima

dele, depois virando-me de costas. Brindando-me com um beijo no


antebraço, Javier ajudou a me acomodar melhor contra si com as

suas mãos fortes, e todo o meu ventre se contraiu ao sentir seu pau

roçar no meu abdômen. Senti a rigidez latejar contra mim e me


movimentei em seu colo outra vez, buscando ficar um pouco mais

confortável, já que a posição me deixava um pouco insegura, porém


não pensei mais no desconforto quando, segurando-me nele,
impulsionei um pouco mais meus quadris para frente, roçando nossos

sexos, pedindo que ele me preenchesse.


A selvageria que havia nele parecia fluir para mim e eu não
desejei as longas preliminares, que comumente eu vibrava a cada
segundo dela. Meu marido parecia ansiar pelo contrário, pois, com
uma gentileza que contradizia seu estado de espírito, enrolou os
meus cabelos e prendeu-os em um coque frouxo, expondo minha

nuca para si. Estremeci quando sua barba roçou o meu pescoço e
seus lábios tocaram a minha pele, deixando uma série de mordidas
deliciosas enquanto a mão forte e possessiva firmou o meu quadril

com suavidade, deixando-me parada, impedindo-me de arquear


contra ele. Com a outra mão, acariciou suavemente um dos meus
seios, antes de deslizar pelo meu abdômen, dando atenção especial

ao volume, até alcançar o meu sexo.


Flexionei os meus joelhos e mordi os lábios ao sentir dois
dedos dele deslizando pela minha fenda, me penetrando

vagarosamente.
— Porra! — murmurou um palavrão quando meus músculos
contraíram em torno dos seus dedos. — Tão úmida. Tão pronta para

mim.
Não respondi, apenas deixei escapar o som que estava

preso na minha garganta e arqueei-me contra a mão dele quando


Javier, me presenteando, encontrou o meu clitóris e começou a
acariciá-lo com lentidão ao passo que sua boca escorregava pela
minha pele, trilhando beijos, mordidas, lambidas, um arranhar suave,
que faziam com que meus pelinhos ficassem arrepiados.
Inclinei-me mais para frente, instintivamente, e emiti um

arquejo quando ele encontrou o meu ponto g, me deixando


completamente mole em seu colo.

Ter o pênis ereto dele, babado pelo pré-gozo, resvalando no


meu abdômen, enquanto ele trabalhava habilmente, aumentando e
diminuindo a pressão exercida sobre o meu ponto de prazer, os

gemidos que escapavam de Javier, a respiração quente contra a


minha pele, isso tudo fazia com que cada vez mais eu me sentisse
perdida.

Fechei os olhos e deixei que o desejo e as sensações que


meu marido me fazia sentir dominassem completamente o meu
corpo. Cravando meus joelhos no estofado, movimentei-me com mais

afinco contra os dedos dele, subindo e descendo meus quadris,


desejando o torpor do gozo que lentamente ele vinha construindo.
— Javier — choraminguei quando, subitamente, ele retirou-

se de dentro de mim, nem me dando tempo de segurar sua mão


para impedi-lo.

Raspou seus dentes pelas minhas costas, arrancando de


mim um suspiro baixinho, e usou a mão melada com o meu líquido
para segurar o outro lado do meu quadril. Como se eu não pesasse
muito, ergueu-me e começou a me deslizar sobre o seu mastro,

gemendo alto ao sentir minhas paredes vaginais comprimindo-o à


medida que avançava.
O estalo das nossas pélvis se chocando quando ele alcançou

o fundo ecoou por todo o cômodo, em meio ao som das nossas


respirações ofegantes.

— Isso, Luz — falou com a voz entrecortada para depois


tomar o lóbulo da minha orelha entre os dentes, quando subi e desci
pelo seu pau, colando-me contra o seu peitoral suado. — Controle o

meu prazer.
— Assim? — Impulsionei-me novamente para cima e desci
com mais vigor sobre o seu pênis.

— ¡Dios! — Blasfemou ao soltar um rugido.


Apoiando minhas mãos em suas coxas, comecei a cavalgá-lo
lentamente, mesmo que minha vontade fosse ir depressa, buscando

a minha própria satisfação em tê-lo me preenchendo, de sentir o


roçar do pau dele nos meus pontos de prazer.
Javier me provocava de volta, fazendo mágica com a sua

boca nas minhas orelhas, nuca, pescoço, ombros e parte das


costas, sua língua imitando a cadência do ritmo que eu imprimia ao
nosso sexo. Naquele pouco tempo, meu marido parecia ter gravado

em sua mente todas as minhas zonas erógenas e não se fazia de


rogado em me estimular através dos toques e dos lábios, porém não
podia negar que sentia falta da intimidade do beijo, da troca de

olhares enquanto nossos corpos dançavam um contra o outro, pois


ter a boca dele sobre a minha, beijando-me suavemente apenas para
depois me devorar, potencializava todas as sensações que ele

despertava ao meter dentro de mim.


Sugou a base do meu pescoço com pressão e eu desejei

que Javier estivesse aplicando aquela pressão no meu clitóris.


Revidei a provocação, aumentando a intensidade dos meus
movimentos, dando uma rebolada suave quando alcançava a base do

pênis, perdendo completamente o foco ao sentir uma das suas mãos


subirem até encontrar o meu seio, massageando o globo, mais
pesado pela gravidez, enquanto a outra segurou com força uma das

minhas nádegas.
Subi e desci algumas vezes, gemendo a cada estocar,
sentindo uma gota de suor, com o esforço que fazia, percorrer toda

a linha da minha coluna, ao passo que minhas pernas ficavam cada


vez mais bambas e perdia minhas forças para continuar a me
movimentar.
A cada estocada, eu me deixava levar mais fundo no meu
próprio orgasmo. Um prazer indescritível banhou as minhas veias
quando ele parecia tão bambo quanto eu, tanto que ele passou a

escorregar na long chaise até que ficasse deitado nela, obrigando


que eu me ajustasse sobre ele enquanto nos movimentávamos.
Sentei com força nele e joguei o meu corpo um pouco mais à

frente, gemendo no processo. Ofegante, segurei um dos seus


tornozelos e rebolei para que ele me preenchesse novamente,
prosseguindo com as minhas quicadas e balanços para levá-lo mais

fundo.
Eu lutava para tragar ar para os meus pulmões ao sentir-me
sugada por uma espiral feroz de desejo.

— ¡Hermosa — disse em um tom fraco enquanto suas duas


mãos paravam na minha bunda, acariciando-a suavemente, antes de

enterrar seus dedos na minha carne —, jodidamente sabrosa[88]!


— Hm...
— Se toque para mim, garota — ordenou em meio a um

grunhido e tomou o controle dos movimentos para si, me puxando


pela bunda, fazendo com que eu sentisse meu canal contrair a cada
arremeter — e rápido.
Usando apenas um braço como apoio, o que me deixava um
pouco desequilibrada, fiz o que ele pediu enquanto Javier me

estocava. Usei o dedo médio e o indicador para me penetrar,


experimentando um leve torpor pelo duplo estímulo ao passo que o
dorso da minha mão roçava na sua pelve. Encontrando a carne

inchada e sensível, acompanhando as estocadas do meu marido,


esfreguei meu clitóris com pressão, sentindo-me prestes a quebrar
ao meio.

Nossos movimentos tornaram-se síncronos, uno, bem como


o som das nossas respirações e gemidos. Nossos corpos se
chocavam um com o outro, produzindo estalos. Permanecemos

assim, até que, grunhindo, puxou-me com mais força, inserindo mais
fundo em meu canal, e tudo estilhaçou; caí contra ele, sem forças.
Eu não era capaz de nem mesmo emitir qualquer som, apenas o

senti continuar a estocar, puxando-me pela bunda, buscando vencer


a minha resistência, indo com mais velocidade, até que o líquido

quente dele me preencheu. Penetrou-me mais algumas vezes até


que, quase flácido, removeu-se de dentro de mim.
Deslizando as mãos pela minha lombar e pela minha bunda,

afagando-me, ficamos assim, até que, reunindo um pouco as forças,


me movimentei em cima dele com cuidado, invertendo minha posição,
até que nossos rostos ficassem frente a frente. Erguendo uma
palma, desfez o coque que prendiam meus cabelos e, acariciando

meu couro cabeludo, me puxou para um beijo, que eu retribuí de bom


grado, entreabrindo os lábios para ele para que nossas línguas se

encontrassem. Não contive um suspiro de deleite ao ser envolvida


pela boca dele naquela carícia terna.
— Acho que prefiro a convencional — falou com a voz

enrouquecida depois de abraçar o meu corpo e nos cobrir com o


lençol.
Pousei minha cabeça no seu peito e, com as pontas dos

dedos, toquei cada gominho do seu abdômen.


— Apesar que a vista… — completou, com diversão.
Senti que ficava corada ao mesmo tempo que uma nova

onda de desejo se espalhava pelo meu corpo. Era sempre delicioso


saber que a visão do meu corpo tinha dado prazer a ele.
— Mesmo?

Subi com o dedo novamente, traçando a linha do pescoço e


tocando o pequeno pomo de adão.

— Gosto do seu toque, dos seus beijos e de olhar para a


sua expressão enquanto você cavalga em mim.
Arqueei a sobrancelha para Javier com seu último

comentário, fazendo com que ele gargalhasse; seu peito vibrando


com a risada.
Trouxe-me ainda mais contra a lateral do seu corpo, quase

que querendo fundir-nos.


— Adoro o modo como você me fita.

Sorri, sentindo o meu coração ribombar no peito. Era


impossível não o amar quando, mesmo sem perceber, ele era
romântico.

— E como eu te encaro? — Fiz uma pergunta besta apenas


para provocá-lo, pois sabia muito bem como eu olhava para ele.
— Como uma mulher extremamente apaixonada.

Deu uma batidinha na ponta do meu nariz.


— Hm.
Enterrei meu rosto na curva do pescoço dele, sentindo o

cheiro do sabonete misturado ao suor, e o beijei ali.


— Deve ser porque eu sou extremamente apaixonada. —
Falei novamente o óbvio.

— Sou um homem de sorte pela mulher mais linda da


Espanha me amar — sussurrou e beijou o topo da minha cabeça.
— Bajulador…
Sua mão enterrou em minha bunda, possessiva.
Pisquei os olhos e emiti um bocejo.
O cansaço e a sonolência, os únicos sintomas que por

enquanto estava tendo durante a minha gestação, me dominavam.


— Então quer dizer que não sou a mais linda da Europa? —
brinquei. — Me decepciona, Javier.

Deixou um tapa suave nas minhas nádegas.


— Não coloque palavras em minha boca, esposa— estalou a
língua —, ou me sentirei mais do que tentado a provar o contrário.

Suspirei.
— Poderá tentar — falei baixinho —, mais tarde.

— ¡Dios! Você sabia que é a mulher mais gostosa da Terra?


— Talvez.
— Convencida, e minha. — Voltou a gargalhar.

Não disse mais nada, apenas aninhei-me ainda mais contra


ele, aproveitando o calor do seu corpo, observando algumas estrelas
no céu.

— Obrigado, Luz — falou depois de vários minutos em que


eu estava cada vez mais presa no torpor do sono — por me fazer
enxergar que há algo de bom em mim e que eu não preciso mais da

vingança para ser feliz.


Apenas sorri, fechando os olhos, bebendo daquelas palavras
doces, e quase não escutei as mais lindas delas, as que fizeram com

que eu tivesse certeza de que os sentimentos dele eram bastante


fortes:
— Por eu ter você, minha metade.
Capítulo quarenta e nove

— Obrigada por fazer isso por mim, Javier.

Pegou a minha mão estendida para ajudá-la a deixar o carro

e a apertou suavemente.
— Você não sabe o quanto é importante para mim que você

e meu irmão se deem bem e esqueçam o passado — falou

animadamente, dando isso como certo.


— É um prazer, Luz.

Levei a mão dela aos lábios, depositando um beijo suave no

dorso.

Não iria estragar a felicidade dela dizendo que duvidava

muito que isso acontecesse. Embora ela e eu estivéssemos bem,


aproveitando cada minuto da nossa união e da gravidez, isso não

mudava o fato de que eu havia comprado a irmã dele, aproveitando

da sua vulnerabilidade, e a tratado de maneira covarde.

Não poderia culpá-lo por nutrir um ódio eterno por mim. Se

ele realmente fosse o homem que a minha esposa tinha tanto falado,

aquele que arriscou tudo para ficar e cuidar da irmã, ele nunca
esqueceria o que fiz e sempre que lembrasse, me odiaria.
Eu mesmo acreditava que eu sempre carregaria uma
centelha de raiva por mim mesmo por conta disto. Eu era o homem

que quase a destruiu.

Paramos em frente a uma casa antiga e ela tocou a

campainha. Escutamos um “eu já vou” sendo gritado. Demorou pouco

mais de trinta segundos para que a porta se abrisse e uma mulher

morena, baixinha e bastante jovem, talvez um pouco mais velha do


que a minha esposa, aparecesse. Arqueei a sobrancelha.

— Você deve ser a Babi — falou efusivamente ao olhar de

cima abaixo a minha esposa, ignorando-me.

— E você, Soledad. — Minha esposa soltou a minha mão e

abraçou a mulher com força. — Pablito falou tanto de você, tanto

que não via a hora de conhecê-la.

Ela pareceu ficar ruborizada, apartando o abraço.


— Oh, ele falou?

— Como não, doçura? — Meu cunhado disse ao se

aproximar de onde estávamos.

Não me passou despercebido o quanto ele era parecido com

a irmã dele sem os machucados e inchaços cobrindo suas feições,

bem como o olhar cheio de carinho e desejo pela sua mulher. Ele não
perdeu tempo.
As duas mulheres saíram do abraço uma da outra e minha

esposa abraçou-me pela lateral. Com carinho, passei meu braço em


torno do ombro frágil e minha outra mão tocou a barriga dela onde

meu bebê crescia.


— Senhor — Pablo falou em uma voz branda, fazendo um
esforço pela irmã.

— Javier, por favor — tentei ser cordial com o meu cunhado


e estendi a mão para ele.

Hesitou por uma fração de segundo, mas acabou apertando-


a. Mantive-me impassível perante a força que ele havia aplicado, que

eu sabia que era para machucar.


— Virgem! — a mulher deu um gritinho, finalmente
reconhecendo-me —, você é casada com o Castillo? O “ricaço” das

finanças? Ou é alguém parecido? — Bateu a mão na testa. — Acho


que vi fotos na revista de fofoca, mas sou esquecida.

Contive a vontade de sorrir ironicamente para ela ou até


mesmo estalar a língua, velhos hábitos eram difíceis de superar,

ainda mais em pouco tempo.


— O próprio — minha esposa falou e eu olhei para ela,
flagrando-a me encarando de volta.
O amor que havia nos olhos verdes e o sorriso enorme e

apaixonado que tomava seus lábios fez com que eu relaxasse. Ficou
nas pontas dos pés e deixou um beijo suave em minha boca. Por um

tempo não houve nada além de nós dois. Provavelmente eu tinha o


mesmo olhar apaixonado para ela, pois algo faiscou nas duas

esmeraldas.
— E eu não poderia estar mais feliz com a minha escolha —
falou suavemente ao se virar para os dois.

— E eu grato por essa mulher estar em minha vida. — Voltei


a acariciar a barriga da minha esposa com ternura e Bárbara voltou

a me encarar. Porra, ela parecia cintilar.


A mulher emitiu um suspiro.
— Vamos entrar? — Pablo chamou a nossa atenção, e eu

voltei a encará-lo. — Ainda preciso acender a churrasqueira.


Não consegui encontrar hostilidade em suas feições, apenas

resignação.
— Claro. — Minha esposa começou a caminhar para dentro,

sentindo-se bem à vontade na casa do irmão e a tal de Soledad a


acompanhou, entrelaçando os braços no da minha esposa. —
Espero que tenha comprado chuletas, hermanito.

— Sim, gatita — disse.


— Ótimo!
— Estou tão feliz, Babi, sei que ainda é cedo, mas acho que
seremos grandes amigas. Pablo disse que você adora dançar, assim

como eu… — a mulher começou a tagarelar e, minha mulher, que


também falava bastante, começou a dar corda, rindo.

Fiquei em silêncio, seguindo-os, meu olhar percorrendo o


mobiliário humilde. Bárbara podia ter dado dinheiro para que ele
pudesse comprar móveis mais caros e confortáveis.

— Eu não quis mais nenhum euro vindo de você — meu


cunhado cuspiu em voz baixa quando estávamos a sós no quintal

pequeno enquanto as mulheres tinham ido até a cozinha preparar não


sei o quê.

— Posso ver… — Tentei não soar frio, muito menos


arrogante. Não queria fazer minha esposa infeliz criando mais
inimizade ainda.

Em silêncio, ele pegou o saco de carvão e colocou alguns na


churrasqueira, aprontando tudo para acendê-la. Deu um sorriso

satisfeito consigo mesmo, quando, depois de várias tentativas, o


fogo pareceu pegar.
— Quer? — Depois de colocar algumas carnes na grelha,

retirou uma garrafa de cerveja do cooler e estendeu-a para mim.


— Por que não?
Peguei-a, mesmo que não fosse a minha bebida preferida.
Eu preferiria um bom whisky envelhecido, apesar que não me

recordava da última vez que tinha colocado uma gota do destilado na


boca diante da minha decisão de não beber mais, algo que quebraria

para tentar socializar com o meu cunhado.


Beberiquei a cerveja, sentido o gosto levemente frutado
demais para o meu gosto. Ele abriu uma para si e deu um longo

gole.

— Deveria te quebrar por ter tocado na minha irmã —


cuspiu, furioso.

— Sim, deveria. — Não tinha por que discordar.

Levei a garrafa novamente aos lábios, tomando um sorvo.

— Porra, sua palavra não vale nada!


Encarei-o, sentindo a raiva me invadir, porém usei meu

autocontrole para não a demonstrar. Desviei o olhar.

— Ninguém critica a minha honra e sai impune, garoto — fui


frio.

Deu de ombros.

— É a verdade, demônio — fez uma pausa —, nem mesmo


você poderá negar que você não cumpriu o que prometeu.
Sim, eu não podia contestar que tinha dito a ele que não

levaria a irmã dele para a cama. Eu mesmo havia me feito essa


promessa, porém minha determinação morreu perante a tudo aquilo

que a garota me fazia sentir. Mas não iria dizer em voz alta que meu

cunhado, em partes, tinha razão.


— E o que você fará contra mim? — questionou em um tom

irônico, tempos depois.

— Nada.

Um silêncio caiu pesado sobre nós e ele começou a mexer


nas carnes.

— Sabia que ela iria acabar se apaixonando por um filho da

puta como você — falou resignado, seu tom ficando mais baixo. —
Minha irmã é inocente demais para não ver quem você é, para não

se deixar levar pela sua sedução barata.

— É o contrário, garoto — disse baixinho, ignorando as


palavras “sedução barata” dita com desdém —, ela viu o homem que

eu sempre quis ser.

— E quem você queria ser?

Voltei a fitá-lo, percebendo que ele me encarava fixamente.


Pesei sua pergunta, bem como as consequências de dizer ao homem
furioso ao meu lado algo tão pessoal e que, definitivamente, não era

da sua conta.

— Um homem digno de receber amor. — Acabei optando por


abrir a boca, mesmo correndo o risco de ele zombar de mim.

— Você não é merecedor do amor dela.

— Não, não sou — confessei —, mas, ainda assim, ela

parece me amar.
— Não a machuque, por favor — pediu depois de vários

minutos em silêncio —, nem brinque com os sentimentos dela.

— Pode não acreditar, Pablo, mas sou muito grato por sua
irmã me amar, e farei de tudo ao meu alcance para fazê-la feliz

todos os dias da minha vida. — Fiz uma pausa, sentindo uma

pontada de dor no peito ao concluir: — Até mesmo quando ela não

me quiser mais.
Analisou-me por um tempo, como se buscasse a verdade, e

deixei que ele visse o que queria.

— Você está se apaixonando por ela também?! —


Perguntou, ao mesmo tempo que afirmou, em um tom suave.

Seus olhos pareciam tornarem-se menos cautelosos e um

sorriso começava a surgir nos lábios dele.


— ¡Sí! — Fiz uma pausa, novamente ponderando o quanto

deveria dizer. — Bárbara me faz sentir coisas que eu nunca senti


somente com a presença dela, seu sorriso, suas palavras. Ela tem

me ensinado, sem pedir, a amá-la.

— Fico feliz que não está apenas brincando com os


sentimentos da minha irmã.

Deu alguns tapinhas nos meus ombros e eu franzi o cenho

com o gesto.

— Eu teria sido obrigado a usar a minha arma em você —


completou em um tom divertido e deu uma risada.

Peguei-me rindo baixo também.

— Ainda tem a sua arma? — Questionei em um tom sério. —


Pensei que tinha dito que não queria mais essa vida.

— Não, não tenho. — Emitiu um suspiro longo. — Quando

me senti seguro o suficiente, joguei a pistola no mar.

— Entendo.
— Eu realmente nunca desejei aquela vida para mim — falou

em um sussurro e virou as carnes de lado —, só não vi uma

alternativa e estava desesperado o suficiente para não pensar em


outra coisa.
Não respondi. De alguma forma, eu compreendia que o

desespero fazia com que tomássemos atitudes que, em outro

momento, não faríamos. Mas não conseguia me arrepender do que

tinha feito.
— Quero deixar o passado para trás — confidenciou.

— Espero um dia conseguir também.

— É difícil, não é? — Perguntou depois de um tempo. —


Esquecermos quem fomos e o que fizemos…

— Acho que sempre iremos nos lembrar, garoto.

Franziu o cenho, parecendo pensativo.

— Tem razão. — Voltou a deixar tapas nas minhas costas.


— Só nos resta tentar ser homens melhores no futuro.

Assenti e tomei um grande gole da cerveja, que já estava

quente.
— Pablo? — Chamei-o, quando uma ideia surgiu na minha

mente.

— Sim, Javier?

— Você aceita ser o padrinho do meu bebê? — Senti certo


desconforto ao dizer isso.

— Foi a Babi que te pediu para fazer o convite? — Pareceu

cético. — Isso seria a cara dela para tentar fazer com que nos
déssemos bem.

— E nós acabaríamos cedendo a vontade dela, de qualquer


forma.

— Por amor a ela, sim.

— Mas não, minha esposa não me pediu nada. — Terminei

minha bebida, colocando o casco sobre uma mesa. — Na verdade,


ela nem mesmo sabe que estou escolhendo um padrinho.

— Compreendo. — Começou a tirar as chuletas da grelha,

deixando-as ao ponto. — Não seria melhor tomar essa decisão junto


dela?

Balancei a cabeça em negativa.

— Duvido muito que ela reprovará a minha escolha.


— Bem, acredito que não. — Pareceu pensar.

Deu um último gole na cerveja, pousando a garrafa ao lado

da minha.

— Por que eu, um ex-traficante de merda, sem bosta para


cagar, ao invés de um dos seus colegas ricaços?

— Porque se algum dia alguma coisa acontecer comigo, eu

sei que nenhum deles cuidaria e amaria o meu bebê como se fosse
seu próprio filho. — Fui sincero. — Porque eu não confio em mais

ninguém para proteger com a própria vida aquilo que eu mais amo.
— Compreendo.
— E então?

Não sei por que, a expectativa corroeu o meu estômago, e

eu tive que me forçar para não fazer nenhum gesto que


demonstrasse o quanto o sim dele me era importante, mesmo que

não devesse. Nem éramos amigos nem nada, ele era apenas o

irmão da mulher que eu gostava, e que eu deveria apenas respeitar e


tentar um convívio pacífico.

— Nada me deixaria mais feliz, carajo.

Senti o alívio pouco a pouco me invadir, porém não tive muito

tempo para senti-lo, pois, para minha surpresa, largando o garfo e a


faca sobre a tábua, deu a volta e me abraçou, dando novamente

vários tapas na minhas costas. Era um abraço fraterno, que marcava

um novo recomeço na nossa relação familiar.


— Obrigado por isso, cara.

— Eu que agradeço, Pablo. — Dei tapas nas costas dele


também.
Soltou-me e pude perceber que seus olhos estavam

avermelhados, como se estivesse se contendo para não cair no


choro.
— Eu prometo pela minha vida de merda que serei o melhor
tio que essa criança terá — disse em meio a um sorriso e eu soube
que ele nunca quebraria aquele juramento.

Foi a minha vez de sorrir.


— Conto com isso, “cunhado”.
— Oh, aí estão elas. — Tentou disfarçar a lágrima que

escorreu pelo rosto dele, limpando-a com força.


Virei-me em direção a minha mulher, vendo seu rosto irradiar
felicidade enquanto acariciava suavemente sua barriga, um gesto que

se tornou corriqueiro, ainda assim, me parecia lindo e emocionante


de contemplar. Nunca me cansaria de observar o amor dela pelo
nosso bebê e mal podia esperar para vê-la segurando o nosso filho

no colo e o amamentando.
Bárbara ressignificava para mim todos os dias a imagem
negativa que eu tinha sobre a relação mãe e filho, mostrando-me que

a maternidade poderia ser bem diferente da minha visão deturpada.


Senti meu coração acelerar quando ela sorriu para mim.

— Já tem carne pronta, amor? — Soledad falou, animada,


ao se aproximar. — Podemos sentir o cheiro de longe.
Não prestei atenção na mulher, pois tudo em mim estava

atento a minha esposa, no cheiro que exalava dela, da sua


gargalhada, do calor do seu corpo contra o meu quando passou um
braço pelas minhas costas.
— Está tudo bem, querido? — questionou.

— Sim, por que não estaria? — Abracei-a e deixei um beijo


no topo da sua cabeça.

— Vocês dois podem ser bem teimosos — Fez um gesto


tirando a importância da própria fala. — Gênios difíceis, sabe como
é.

— Hey, estrellita, eu ouvi isso. — Pablo fingiu ralhar. — Você

consegue ser muito mais cabezota[89] quando quer. Lembra-se da


vez que eu tive que te trancar no quarto porque você queria sair com

as suas amigas de madrugada?


Arqueei a sobrancelha para ela.
— Não me recorde disso, por favor, hermanito. — Pareceu

envergonhada.
— Não sabia que era tão travessa, garota — falei no ouvido

da minha esposa para que apenas ela escutasse, provocando-a.


Eu não podia negar que adorava o fato dela ser uma
espoleta na cama, tanto que só de pensar eu sentia meu sangue

ferver. Encarou-me e eu vi os olhos dela cintilarem de desejo, porém


manteve-se calada.
Sufoquei a vontade de bater em sua bunda.
— Você foi uma criança espoleta, menina — ralhou. — Você

é a razão de eu ter cabelos brancos com menos de trinta.


Todo mundo gargalhou, menos minha esposa que fez uma
careta.

— Deixe de exagero, Pablito. — Bateu o pé.


— Eu não disse? — Deu de ombros e mexeu no churrasco.

— Você ficaria lindo com cabelos grisalhos, amor. — A


mulher dele o abraçou.
— Eu já sou gostoso — disse, convencido, e todo mundo

gargalhou.
— Você ri, Javier, mas você também ficará com os fios todos
brancos — provocou-me.

Estalei a língua e ri alto.


— Vamos comer? — Minha esposa sugeriu. — Estou
morrendo de fome; nem parece que comi faz algumas horas na

estrada.
— Eu estou terminando de fazer a carne — o meu cunhado
falou. — Enquanto isso, gatita, você pode arrumar a mesa aqui no

quintal?
— Me ajuda, Javier?
— Claro, Luz.

Dei um selinho em seus lábios, ignorando o grunhido do meu


cunhado. Animada, minha esposa me puxou para dentro de casa,
rindo.

E em meio a conversas, risadas e uma comida deliciosa,


passamos uma tarde agradável, mais do que eu poderia imaginar.
Não me recordava se alguma vez eu me senti à vontade com duas

pessoas quase desconhecidas, tanto que, sem perceber, eu tinha


permitido ser eu mesmo.
Capítulo cinquenta

— Obrigado pela informação.

— Por nada, senhor.

Desliguei a ligação do meu informante, jogando o aparelho


celular em cima da mesa do meu escritório, e fitei a escuridão lá

fora, sem de fato contemplá-la.

Suspirei fundo. Eu não sentia nada em relação a notícia que


havia acabado de receber.

Passei a mão nos meus cabelos, desajeitando-os, e comecei

a desatar o nó da minha gravata, jogando-a em algum lugar, e

abrindo os botões do terno, coloquei todo o meu peso contra o

encosto.
Não sei quanto tempo fiquei observando o nada, até que o

som de passos, seguido de patinhas arranhando o piso, me tirou do

transe. Olhei para a porta e vi minha esposa entrando acompanhada

dos cachorros trotando atrás dela. Deixei que meu olhar percorresse

as pernas esguias, apreciando as coxas bem-feitas, e também parte

da barriga volumosa à mostra pela blusinha que não mais tapava


tudo.
Quando ela se aproximou, puxei-a para o meu colo e,
envolvendo o meu pescoço, acariciou meus fios de baixo para cima.

Os cachorros latiram, deram patadas na gente, chamando a nossa

atenção.

Automaticamente levei minha mão ao seu abdômen e

gentilmente deslizei meus dedos pelo ventre abaulado. Eu contava os

minutos para sentir o primeiro chute do meu bebê e também por


saber o sexo dele, já que tínhamos optado por descobrir por meio do

ultrassom.

— O que aconteceu, querido? — Sua voz soou suave e vi a

preocupação em seu rosto. — Você está sério. Um mau negócio?

— Não, Luz. — Deixei um beijo em seus lábios entreabertos.

— Um dos meus informantes avisou-me que Castro foi encontrado

morto no seu escritório.


Estremeceu e nos olhos dela eu vi a compaixão por aquele

que foi o meu maior inimigo. Aquela era a Bárbara; minha garota era

capaz de sofrer por quem não merecia.

— Ele foi assassinado? — Questionou e Lorenzo se deitou

em cima dos meus sapatos, já que não iria ganhar meus afagos.

Isabel me cheirava e, desistindo, trotou até a caminha que


ficava em um dos cantos do cômodo e, depois de dar várias voltas
em círculos, deitou-se, emitindo um suspiro e fechando os olhinhos.

— Sim.
— Entendi...

Aninhou-se contra mim e eu a envolvi em meus braços.


— Sabem quem cometeu o crime? — Fez uma pausa. —
Não é fácil entrar em um escritório de um homem como ele.

— Angelina.
— Não deve ter sido fácil para ela se ver diante de todo esse

escândalo estando grávida, tendo que prestar depoimento por algo


que não fez.

Não respondi.
Diferentemente da minha esposa, não conseguia sentir
comiseração por aquela mulher. Na verdade, era indiferente ao

sofrimento dela. O único por quem eu conseguia sentir pesar era a


criança que estava na barriga dela. Ele era um serzinho inocente

que, como eu, tinha dois pais irresponsáveis.


— O bebê irá sofrer… — Pareceu ler os meus pensamentos.

— Infelizmente, sim. — Comentei com a voz baixa e cheia de


tristeza por ele. — Mas pelo menos o pai de Angelina é um homem
justo e também paciente. Tive alguns negócios com ele no passado,
e se mostrou bem diferente da filha. Creio que ele irá pedir a guarda

do neto quando ele nascer.


— Eu não sei o que dizer, Javier.

— Não há nada a ser dito, Luz. — Deixei um beijo nos seus


cabelos.

Não dissemos mais nada um para o outro, não necessitamos


de palavras, apenas permanecemos ali, apreciando o conforto que
nossos corpos ofereciam, bem como o calor e a intimidade de

ficarmos abraçados, até que a minha mulher me interpelou, se


acomodando outra vez no meu colo de modo a ficar com o rosto de

frente ao meu.
— Você ainda pretende continuar a trabalhar? — perguntou
contra a minha boca.

Tomei a proximidade como um convite e, roçando nossos


lábios um no outro, incentivei Bárbara a me beijar. Senti todo o meu

corpo vibrar quando ela me deu o que queria, persuadindo-me a abrir


a boca para sua língua encontrar a minha em um beijo sôfrego. Não

contive um gemido de deleite quando ela intensificou o contato,


imprimindo urgência, roubando nosso fôlego.
Porra, quando ela me beijava daquela maneira, com tanto

desejo, eu me sentia um homem de sorte. Eu quase não podia


acreditar que ela era minha, somente minha, e que minha garota me
amava.
— Não respondeu a minha pergunta, Javier — sua voz era

entrecortada.
— Que pergunta, Luz? — Ela roubava meu raciocínio.

— Se você tem coisas importantes para fazer ainda hoje. —


Traçou meus lábios com a ponta de um dedo. — Afinal, ainda é cedo
para os seus padrões.

Arqueei a sobrancelha, mas logo abri um sorriso de orelha a


orelha.

— Isso é um convite, esposa? — Para enfatizar aquilo que


eu queria dizer, levei minha mão até a lateral dos seus seios e

acariciei aquela região com o dorso.


Arqueou-se contra mim involuntariamente e eu acomodei-me
melhor no assento, sentindo minha ereção começando a despontar

no meio das minhas pernas.


— Não o tipo de convite que está pensando — forçou-se a

falar.
Soltei um som de muxoxo. Meu apetite pela mulher no meu
colo não tinha limites.
Ela havia despertado uma besta selvagem em meu interior
que havia permanecido adormecida por anos. Meu desejo era todo
dela.

— E o que você tem em mente? — Não a pressionaria.


Passar um tempo juntinho dela me bastava. Com certeza, o

que ela tinha em mente envolveria alguns beijos, era sempre assim.
Apesar disso, continuei a acariciar a lateral do mamilo.
— Pedir uma pizza e vermos um filme.

— Parece-me bom.

— Oba!
Deixei um selinho em seus lábios que sorriam para mim.

— Que tipo de filme você quer ver? — perguntei, mesmo

sabendo a minha resposta.

— Um superbrega, romântico, que me fará suspirar diversas


vezes pelo mocinho. — Sorriu. — Além de me apaixonar por ele a

cada segundo.

Fiz uma careta e ela gargalhou, fazendo com que uma cadela
curiosa erguesse da sua caminha e se aproximasse de nós.

— Não sei como me sentir ao ouvir minha mulher falar de

outro homem tão descaradamente — brinquei com ela e beijei seus


lábios.
— Feliz por eles serem fictícios?

— Tenho que me contentar com isso — sussurrei antes de


tomar seus lábios em outro beijo, dessa vez dando vazão ao desejo

furioso que me queimava com lentidão.

Enterrou os dedos nos meus cabelos, puxando-me mais para


si.

— Vamos parar por aqui, Javier. — Por conta da respiração

acelerada, sua voz soou ofegante, porém, contrariando sua fala, ela

rebolou no meu colo.


Um gemido baixo e rouco escapou pela minha garganta.

— Você é má.

— Eu sei que me fará pagar por isso mais tarde. — Os olhos


dela cintilaram. — E tenho toda a intenção de pagar a minha dívida.

Mexeu-se outra vez.

— ¡Carajo!
Tive que agradecer aos céus pela libido dela não ter sido

afetada pela gravidez.

— Agora vá tomar banho, Javier. — Saiu do meu colo e eu

emiti um suspiro resignado. — Enquanto isso, vou pedir nossa pizza


e escolher um filme no catálogo.
— Não vai se convidar? — questionei, malicioso, ao observar

a metade da bunda dela de fora.

Remexi-me na minha cadeira, sentindo meu pau latejar.


Porra, eu já disse que amava aqueles shorts curtos? Acho que sim.

— Dessa vez não — disse em um tom risonho, virando-se na

minha direção ao alcançar a porta, lançando-me um olhar de cima a

baixo. — Você está ficando mal-acostumado.


Girou o corpo e, movimentando os quadris sugestivamente,

deixou o cômodo, rindo.

Mais rápido do que um relâmpago, ergui-me, e com um


bando de cachorros alvoroçados, latindo freneticamente atrás de

mim, segui Bárbara, até que ela estivesse em meu colo, ainda

gargalhando. Sem pensar muito, carreguei-a em direção ao nosso

quarto, fechando a porta antes que dois cãozinhos entrassem


também, e fui com ela até o box com roupa e tudo, acionando por

comando de voz os jatos de água quente.

Beijei-a e a toquei até que ela implorasse para que eu a


preenchesse.
Capítulo cinquenta e um

— Você está suando frio — comentou baixinho, apertando

minha mão com mais força, mas, ainda assim, meus dedos

escorregaram dos dela.


— Acho que nunca estive tão ansioso na vida — confessei e

me senti embaralhado com as palavras. — Não que eu queira… me

importo de verdade… eu amarei muito independente se for menino


ou menina.

Ela riu baixinho.

— Eu sei disso, amor. — Deixou tapinhas na minha mão. —

Respira fundo e solte devagar.

Fiz o que ela sugeriu, inalando e exalando vagarosamente.


— Isso…

Encarei o seu rosto, para encontrá-la sorrindo.

— Assim está melhor.

Sorri para ela também. Tempos depois, voltei a ficar inquieto

no meu assento.

Meu coração parecia martelar no peito. Cada segundo de


espera em que o novo obstetra não chamava a minha esposa era
angustiante. Tinha que reconhecer que somente a mulher ao meu
lado impedia-me de fazer um estardalhaço. Aquele cara sempre

estava atrasado em suas consultas.

Como nas outras consultas em que pude ver as imagens e

ouvir o coraçãozinho do meu bebê, eu estava prestes a sucumbir às

diferentes emoções que me percorriam, que iam desde a ansiedade,

a euforia e também o amor, porém, dessa vez, não sabia se


conseguiria controlar essas emoções, mesmo que o médico tenha

sempre me deixado a vontade.

— E se eu chorar na frente do médico, garota? — externei

meu medo em voz alta, aproveitando que estávamos a sós na sala

de espera.

Tocou o meu rosto, acariciando a minha barba, e o olhar que

me lançou era bastante doce.


— Não é crime um homem chorar, sabia? — falou

suavemente. — E muito menos por amor.

Fiz que sim com a cabeça.

Ela ergueu minha mão e deixou um beijo no dorso.

— Na verdade, acho lindo — sorriu. — Se você quiser rir

alto, chorar que nem uma criança, ou tremer como uma gelatina
dentro do consultório, pode fazer.
Aproveitando nossos dedos entrelaçados, levei a mão dela

aos lábios também, plantando vários beijinhos.


— Não reprima seus sentimentos, não aqueles que se

relacionam ao nosso bebê, nunca — pediu, e pude perceber a


seriedade em seus olhos.
— Sim, Luz — murmurei.

— E lembre-se — não escondeu a diversão —, o “demônio”


e a esposa não ligam de chocar a sociedade.

Gargalhei alto.
— Ainda faremos muitos escândalos, não é mesmo? —

Entrei na sua brincadeira.


— Não sei. — Seu sorriso era travesso.
Ficamos trocando amenidades até que a porta se abriu e um

casal passou por ela, fechando-a. Segurei com mais força a mão da
minha esposa, sentindo novamente a ansiedade me invadir.

Minutos se passaram até que o médico apareceu na entrada


do consultório e chamou a minha esposa.

— Vamos — minha esposa disse ao se erguer e não me


passou despercebido a ironia dela ter me ajudado a levantar, não o
contrário. Eu que deveria ser cavalheiro com ela e auxiliá-la.

— Obrigado.
Sentindo minhas pernas bambas, entrei no consultório e,

antecipando-me, puxei a cadeira para que a minha mulher se


sentasse. Entrelaçamos nossos dedos. Não consegui prestar

atenção nas palavras do obstetra ao analisar os resultados do


exame.

— Vamos ao grande momento, pais? — Saí do transe.


— ¡Sí! — falamos em uníssono e nos fitamos.
Outra vez meu coração deu um baque ao ver o entusiasmo

cintilar nela. Acho que não me cansaria de olhar para a felicidade que
havia em seus olhos.

Em silêncio, a ajudei a se levantar e nos aproximarmos da


maca. Bárbara rapidamente se deitou sobre a cama e eu fiquei do
lado dela, buscando a sua mão novamente.

— Abra um pouco a calça e suba a blusa, por favor, senhora


Castillo — o obstetra pediu.

Bárbara fez o que ele pediu.


— Com licença, mãe — pediu.

Vi o médico passar o gel sobre a barriga da minha esposa e


ela estremecer com o gelado, porém ela não tirava o sorriso dos
lábios. Ele pegou o transdutor e começou a deslizar pelo ventre

avolumado de Bárbara. Eu e ela instantaneamente viramos para a


tela. O som do coraçãozinho do meu bebê preencheu meus ouvidos
e, como da primeira vez que eu o escutei, senti-me completamente
bambo enquanto lágrimas surgiam em meus olhos, mas diferente das

outras vezes, não suprimi minhas emoções ao ver e ouvir a coisa


mais linda da minha vida.

Quanto mais eu via e ouvia, mais emocionado ficava, mais o


amor crescia dentro do meu peito.
Deixei que uma lágrima escorresse pelo meu rosto e não me

preocupei com mais nada, nem mesmo com o fato de me mostrar


vulnerável.

— E então, doutor? — A voz da minha esposa transpassou a


do coraçãozinho do nosso bebê.

Minha respiração se acelerou e eu fitei o homem, buscando


uma resposta.
— É uma menininha, mamãe.

Por alguns segundos, fiquei paralisado, apenas respirando,


sem acreditar naquilo que meus ouvidos tinham escutado.

— Uma menina? — questionei em um fiozinho de voz.


— Sim, pai.
Em um momento, eu estava de pé, segurando a mão de

Bárbara, em outro, estava de joelhos, com os dedos tapando o meu


rosto, chorando copiosamente.
Eu conseguia ouvir os meus próprios soluços em meio ao
som emitido pelo transdutor. Meu coração parecia que iria escapar

pela boca. Eu não conseguia acreditar que seria papai de uma


menina, de uma linda garotinha.

Comecei a rir e chorar ao mesmo tempo e, por entre os


dedos, fitei a minha esposa. Ela não olhava a imagem da nossa filha,
mas, sim, me encarava, emocionada, o rosto também tomado pelas

lágrimas, com um amor que roubou o meu fôlego.

Porra, o sorriso dela tinha várias nuances que, com a mente


atordoada, eu não conseguia decifrar, apenas sentir.

Ficamos nos encarando, compartilhando daquela felicidade

sem dizer uma palavra, até que a vi se limpar, fechar a calça e se

erguer da maca, parando na minha frente. Pousou a mão no meu


ombro. Ainda aos prantos, sem me importar com o médico, abracei

suas pernas e uma vez mais deixei-me levar pelo pranto convulso.

Acariciou os meus cabelos.


— Eu te amo, garota. — Mal me dei conta de que aquele

sentimento, que brotava em meu peito há algum tempo, tinha sido

dito em voz alta.


Parei, completamente surpreso comigo mesmo por ter

conseguido dizê-lo. Estava em choque, na mesma medida que


completamente eufórico por ter me livrado de algumas garras que

me prendiam às sombras do passado.

— Javier? — Chamou-me com a voz embargada e puxou


meus cabelos, para que eu a fitasse.

Ela parecia igualmente surpresa e emocionada. Lágrimas

grossas também escorriam pela face que não havia perdido sua

alegria.
— Eu amo você, Bárbara. — Saboreei dizer novamente

aquelas palavras e levei a mão ao abdômen dela, acariciando-a

suavemente. — Eu amo você e nossa menininha.


Deixei um beijo na barriga redonda, não importando com os

resquícios de gel.

— Se levante, querido — pediu.


Mesmo não tendo certeza de que minhas pernas me

sustentariam, ergui-me e ela me envolveu em um abraço forte.

Retribuí, deitando a minha cabeça nos seus ombros frágeis, inalando

o seu cheiro bom. Minhas mãos automaticamente tocaram o local


onde a minha princesinha crescia.
— Eu amo as minhas meninas. — Voltei a falar, dessa vez no

ouvido dela.

— Também te amamos, Javier.


Envolveu o meu pescoço e, sorrindo, selou aquelas palavras

com um beijo doce. Como uma manteiga derretida, mais do que a

minha mulher, que ultimamente andava muito sensível, chorei em

meio ao contato suave dos nossos lábios.


Ali, no meio do consultório, eu não pensei mais se era

merecedor ou não daqueles sentimentos, apenas me permiti ser

amado por aquela menina doce que sempre tinha um caminhão de


sentimentos bons para me dar, e deixei que a esperança de que, no

futuro, eu também seria amado pela minha bebê.

Eu não poderia me sentir mais feliz e mais completo.


Capítulo cinquenta e dois

— Coloque um pouco mais de corante, ainda está claro

demais — pedi para Javier depois de passar um pouco da tinta na

parede para testar a cor.


— Deveríamos ter comprado a tinta já pronta e

personalizada — falou e eu me virei para ele.

Não contive um sorriso ao ver que o torso nu dele já estava


cheio de pequenas gotinhas de tinta e ele nem havia começado a

pintar.

— Acho que não estava raciocinando muito quando “você”

comprou, amor — frisei a palavra você, já que eu nem estava

presente no momento. — Como não deve ter pensado muito quando


adquiriu várias coisas do enxoval da nossa bebê.

— Eu estava empolgado. — Parou com o tubo na mão e eu

apenas arqueei a sobrancelha para ele. — Tá, ainda estou

empolgado.

Gargalhei.

— Ainda podemos contratar uma equipe de design para


fazer tudo, inclusive pintar.
Jogou um pouco mais de corante e mexeu.
— E perder a oportunidade de ver um homem másculo e viril

que nem você fazendo trabalho braçal?

Parou de mexer a tinta e me fitou, flagrando-me no momento

que comecei a me abanar com a mão, indicando o calor que ele me

fazia sentir.

— Hm? — Deu um sorriso lascivo. — Posso fazer outro tipo


de trabalho braçal, esposa.

Balancei a cabeça em negativa, fazendo com que uma

mecha escapasse do meu coque.

— Não, obrigada.

Bufou, exasperado.

— Agora deixa-me ver se essa cor está pronta — tagarelei,

me aproximando dele, colocando um pouco na minha vasilha. Voltei-


me em direção a parede e deslizei o pincel pela superfície. — Para

mim parece perfeita e para você?

Aprumou-se e parou atrás de mim.

— Bem violeta!

Deu de ombros.

— Lilás — o corrigi.
Estalou a língua e eu senti todas as minhas terminações

nervosas reagirem ao beijo que ele deixou na minha nuca.


— Combina com o móbile de ursinhas que você comprou —

arfei.
— Verdade. — Brincou com a barba.
— E com parte do enxoval também.

— Não tem como negar.


Virei-me para ele e Javier envolveu-me em seus braços

fortes.
— Você é um grande consumista, senhor Javier.

Sorri para ele.


— Não gostou das coisas que eu comprei, amor? —
ronronou.

Não contive um sorriso ao ouvi-lo me chamar de amor. Faz


cinco dias que ele havia me surpreendido ao dizer que me amava e,

desde então, a cada momento, Javier verbalizava seus sentimentos


por mim. Com toda a repreensão que sofreu quando criança por se

expressar, eu sabia o quão difícil para ele era falar as palavras. Por
isso, ouvi-lo me chamar de amor ou escutar “eu te amo” era algo
precioso.
— Sabe que sim, Javier, eu amei cada macacãozinho e

vestidinho que adquiriu. Mal posso esperar para colocá-la no


vestidinho de joaninha.

— Ela ficará linda — disse em um tom sonhador, e tive


certeza de que ele estava imaginando a si mesmo interagindo com a

nossa pequena.
Várias vezes tinha o flagrado sonhando acordado. Um sorriso
tomava seus lábios e eu ficava minutos a fio o observando até que

ele desse conta da minha presença.


— Sim, muito…

Ficando nas pontas dos pés, sem apartar o abraço, dei um


selinho nele.
— Você já pensou em um nome, amor?

Na nossa empolgação com tudo, não sabia por que ainda


não havíamos conversado sobre como chamaria a nossa bebê.

— Confesso que vários. E você, esposa?


— Alguns nomes me passaram pela cabeça, mas quero que

você escolha, Javier — sussurrei, olhando nos olhos dele.


Uma emoção cruzou os seus olhos e eu vi que eles ficaram
úmidos.

— Sozinho?
Fiz que sim com a cabeça.
— ¡Dios! — falou baixinho e ele me abraçou com mais força.
— Você não cansa de tornar isso tudo ainda mais especial para

mim?
Senti que minhas próprias lágrimas começaram a deslizar

pela minha face, dominada pelo calor e o amor do momento.


— Nunca me cansarei, Javier. — Fiz uma pausa. — No que
depender de mim, cada momento dessa gestação será perfeito,

pena que não posso lhe dar essa certeza.


— Eu te amo, querida — sussurrou.

— Gosto de ouvir isso. — Sorri por entre as lágrimas.


— Aurora — murmurou depois de vários minutos em que

permanecemos chorando, afagando um ao outro. — Aurora, o meu


pequeno nascer do sol, meu doce recomeço a cada dia.
— É um nome lindo, Javier. — Toquei o rosto dele, sentindo

meu coração bater acelerado. — Mal posso esperar para conhecer


a nossa pequena Aurora.

Senti uma vibração no meu abdômen.


— Oh!
— O que foi, Luz? — Javier pareceu subitamente

preocupado.
— Acho que nossa Aurora se mexeu.
Levei a mão à minha barriga, acariciando-a.
— Não são gases?

Uma nova onda me assolou.


— Acho que não — murmurei, completamente sensibilizada.

Pousou sua palma no meu abdômen e começou a deslizá-la


pelo volume, até que parou no local onde senti uma vibração
completamente suave. Javier pareceu ficar trêmulo.

— ¡Dios!

Arfou, e eu soube que ele estava muito prestes a sucumbir


novamente às lágrimas.

— É incrível.

— Sim, pena que, segundo Valdete me disse, no futuro,

quando realmente a bebê começar a chutar, será incômodo e


doloroso.

— Sinto muito. — Deixou um beijo na minha testa. — Queria

poder compartilhar desses desconfortos.


— É um preço pequeno que irei pagar se comparado as

felicidades que ela já me proporciona… — Fiz uma pausa, e adotei

um tom brincalhão. — Você poderá me compensar quando ela


nascer, papai. Terá muitas fraldas para trocar, noites insones e

cólicas para lidar.


— Hm. Não sei por quê, a perspectiva não me assusta.

— Fico feliz em ouvir isso, pois me parece um pouco

amedrontador — confidenciei.
— Juntos nós daremos conta, amor — disse com convicção.

Sua expressão determinada transmitiu-me a esperança de

que, de fato, mesmo com erros, nós seríamos bons pais para a

nossa Aurora.
— Se meu melhor amigo deu conta de três ao mesmo tempo

— estalou a língua —, nós tiraremos de letra.

Dei uma risada baixinha e balancei a cabeça em negativa.


— Só você mesmo, Javier.

— Fico feliz que a divirto, garota.

— De várias formas — falei em um tom provocante.


Deixei um beijo no seu pescoço, arrancando um gemido dele.

— Agora vamos, bonitão, essa parede não vai ser pintada

sozinha. — Deixei um tapa estalado na bunda dele e lhe dei as

costas.
Bufou.
— Sim, querida — disse em um tom submisso que achei

bonitinho.

Sentei-me em cima de um baú, apoiando minhas costas na


parede, e o vi despejar um pouco de tinta em uma vasilha, passando

o rolo antes de começar a pintar.

Não podia negar que, enquanto ele trabalhava, toda a minha

atenção estava no modo como os músculos definidos dos braços e


das costas flexionavam a cada movimento.

Era hipnotizante ficar observando-o, tanto que perdi a noção

do tempo enquanto o devorava, só fui tirada do transe quando a


minha barriga roncou.

— Já estou com fome de novo.

Javier gargalhou.

— Por que não pede algo para nós? Não precisa ir para a
cozinha hoje.

Virou-se na minha direção e meu olhar percorreu o abdômen

sujo de tinta.
— Meu celular está no bolso da calça — continuou. — Tenho

certeza de que eles serão rápidos em atender a minha doce grávida.

— Por que será? — Foi a minha vez de rir alto.


Levantando-me, aproximei-me dele e comecei a apalpá-lo,

sem tocar os bolsos.


Soltou o rolo.

— Hey, garota — arfou quando acariciei o volume no meio

das suas pernas —, acho que você não vai encontrar nada aí.
Gemeu baixinho e eu vi os olhos dele ficarem mais escuros.

Sorri, me sentindo vitoriosa.

— Acho que sim, Javier — falei suavemente, sentindo o

pênis dele crescer sob o meu tato —, mas realmente estou com
fome.

Enfiei a mão no bolso da calça dele, pegando o aparelho

celular, e meu marido emitiu um grunhido, frustrado.


— Eu criei um pequeno monstro insaciável — disse em um

tom de resignação fingida, pois seus olhos me devoravam.

— Você adora e muito.

— Para minha surpresa, sim.


Enlaçou a minha cintura e colou-me contra o seu peitoral, sua

boca baixando ferozmente sobre a minha em um beijo repleto de

desejo e fome. Suspirei quando sua língua envolveu a minha


lentamente e levei a mão aos seus cabelos, acariciando os fios

enquanto ele me inclinava, acessando cada recanto da minha boca.


— Uma paella[90] para mim, esposa.
Deixou um tapa na minha bunda e me soltou. Riu quando eu

choraminguei um protesto e virou-se em direção à parede para

continuar trabalhando.
— O feitiço virou-se contra o feiticeiro — brincou.

— Não sei do que você está falando, senhor — fiz-me de

desentendida, mesmo que por dentro eu me sentisse queimar.


Bufou.

Voltei a me sentar sobre o baú e escolhi o mesmo que

Javier; hoje, felizmente, não estava atacada pelo desejo de comer

algo em específico.
— Que tal redecorarmos todo o apartamento? — sugeriu,

tempos depois.

— Sim? — Não escondi minha surpresa.


— Acho que nossa casa precisa de mais cor. — Virou-se na

minha direção e me fitou. — Mesmo que você tenha trazido vida para

cada canto dessa casa.

Derreti-me com as suas palavras e mandei um beijo para ele.


— Quero que nosso lar seja bem colorido para a nossa

Aurora — falou sonhador. — Não apenas o quartinho dela e o de

brinquedos.
Sorri.

— É uma ideia perfeita, Javier. Podemos começar pela sala,


comprando algumas almofadas coloridas, substituindo objetos que

poderão oferecer risco para ela quando ficar maiorzinha.

— Temos que mandar telar todas as janelas também…

Estávamos tão presos aos nossos planos e projetos de


como tornar aquele apartamento cinzento em uma explosão de cores

e alegria, sem perder nossa essência, transformando-o

verdadeiramente em um lar para a nossa bebê, que só fomos sair da


nossa bolha quando o interfone soou e o porteiro avisou que a nossa

comida havia chegado. E, como a grávida faminta que eu havia me

tornado, saboreei cada garfada da paella, feliz pelo cheiro forte dos
frutos do mar não mais me deixar enjoada. Esbaldei-me, sentindo

minha boca salivar pelos camarões à medida que mastigava, um

desejo de última hora, tanto que tive que roubar alguns do meu

marido, que, gentilmente, em meio às gargalhadas, cedeu-os para


mim.
Capítulo cinquenta e três

— Temos alguém interessado em adquirir a mansão por um

pouco menos do que o pedido, senhora Castillo — o meu advogado

falou em um tom suave. — Se me permitir, eu e o corretor


poderemos levar os documentos para a assinatura da venda ainda

hoje.

— É proposta daquele bastardo, não é? — gritei.


Bati a mão com força contra a superfície de madeira,

sentindo-me furiosa ao pensar que aquele desgraçado ousava

comprar a mansão dos Castillos, propriedade que estava na família

há mais de cem anos e que era para o meu “neto”, o meu verdadeiro

“neto”, herdar. Saber que por causa daquele bastardo indesejado,


por culpa dele, meu pequeno Breno não chegou a sobreviver para

receber aquilo que era seu por direito, me deixava ainda mais

furiosa.

— Se for daquele demônio, nem perca o seu tempo —

continuei.

— Não, senhora, é uma herdeira estrangeira.


Não respondi.
— Dificilmente encontrará uma proposta melhor do que essa,
senhora Castillo, não quando se tem pouco tempo.

— Traga os documentos que eu assinarei.

Desliguei a ligação, sem esperar uma resposta dele.

Cedendo a raiva, joguei o meu celular contra a parede, vendo

as peças do que restou dele espalhadas pelo chão.

— Desgraçado! — Voltei a gritar, levando as mãos a minha


cabeça. — Você me tirou tudo, seu bastardo maldito!

Minha respiração começou a ficar ofegante.

— Posso imaginar o quanto você deve estar rindo de mim

agora, seu maldito. Você conseguiu o que queria, não é mesmo? —

perguntei para o nada. — Tenho certeza de que teve dedo seu no

investimento ruim feito pelo Castro, que me levou à ruína.

Gargalhei alto.
— Sempre foi o seu objetivo, não é mesmo? — minha voz

soou áspera. — Trazer a destruição desde que você nasceu.

Ri ainda mais.

— Mas isso não ficará assim, bastardo. Eu juro.

Com o braço, derrubei todos os objetos em cima da mesinha

de centro, provocando um caos de cacos de cerâmica e vidro. Senti


uma leve ardência no braço, porém não me importei, toda a minha
atenção se voltou para a página entreaberta da revista que havia

caído no chão. Abaixando-me, com meus dedos trêmulos, peguei o


periódico, sem tirar os olhos da fotografia que fazia meu estômago

revirar na mesma medida que aumentava a minha raiva.


Ver o bastardinho sorrindo, parecendo feliz ao acariciar a
barriga daquela maldita garota, era nauseante, mas, ainda assim, eu

não deixava de encarar a imagem, amaldiçoando-os.


— Você não aprendeu nada daquilo que te ensinei, não é

mesmo, Javier?
Deslizei um dedo pela imagem da garota, alcançando o

ventre volumoso, como se o meu toque pudesse remover a criança


da barriga da mãe através do meu toque.
Estaquei. Puxei a folha com força, destacando-a das demais,

quando li o sexo da criança.


— Então você terá uma menininha, bastardo? — Fiz uma

pausa. — Não cansa de ser ludibriado e machucado pelas mulheres?


Gargalhei ainda mais ao ponto de sentir lágrimas

assomando-se aos meus olhos.


— Bem que eu tentei fazer um favor a você, bastardinho,
mas sua mulherzinha não quis me ouvir — sussurrei. — Outra idiota

como você.
Voltei a fitar a imagem deles.

— Já que você não quis aprender por bem, que seja pelo
mal.

Comecei a rasgar a folha com fúria, rindo, causando a ela os


mesmos danos que me foram infligidos e que eu também aplicaria

em Javier.
Só descansaria quando o deixasse em pedaços.
Capítulo cinquenta e quatro

— Estou tão feliz por você estar aqui comigo, Pablito. —

Acariciei o meu barrigão de quase trinta e sete semanas sentindo a

minha Aurora chutar freneticamente naquele momento, embora o


médico tivesse me dito que a maior parte do tempo ela permaneceria

dormindo. — Não sabe o quanto ter você aqui no final da minha

gestação é importante para mim.


— É um prazer, Babi — disse alegremente. — Não poderia

perder o nascimento da minha princesinha, já que serei o homem que

mais a amará na vida.

— Javier te esfolará vivo se te ouvir falando isso. —

Gargalhei. — Sabe que ele é muito ciumento em relação a Aurora,


mesmo que ela ainda não tenha nascido.

— Gosto de viver no perigo.

Deu de ombros e eu franzi o cenho para ele.

— Estou apenas brincando, gatita. — Se aproximou de mim

e deixou um beijo no topo da minha cabeça. — Eu já tive minha quota

de perigo para toda a minha vida. Sabe o quanto estou feliz por
abandonar aquele mundo e recomeçar.
— Eu sei, querido. Mal vejo a hora de ver você se formando
em engenharia naval.

— Vai demorar muito ainda. — Tocou a minha barriga e

mudou de assunto. — Como está a nossa menininha?

Aurora deu alguns chutinhos doloridos.

— Hoje ela parece inquieta…

— Será agitada que nem a mãe. — Piscou para mim e fez


uma careta irônica. — Eu deveria sentir pena do meu cunhado por

ter duas bagunceiras em sua vida, mas tudo o que eu consigo pensar

é bem-feito!

— Hey! — Fingi-me de brava.

Acomodei-me melhor contra o assento do sofá, sentindo a

minha coluna me torturar. A dor que sentia nas costas por carregá-la,

bem como o inchaço nos pés, era a pior parte da gravidez e a única
coisa que eu mudaria em toda a gestação.

— Sua hora chegará, hermanito. — Provoquei-o, sabendo

que ele estava cada dia mais apaixonado pela Soledad. — E quando

for a sua vez de ter crianças bagunceiras, duvido que você irá

continuar a zombar do meu marido assim.

Deu de ombros novamente.


— Tenho que conquistar muitas coisas primeiro para dar a

ele ou a ela uma vida confortável — falou em um tom sério.


— Você irá conseguir, Pablito — disse com convicção.

Eu poderia pedir ao meu marido que facilitasse o caminho


dele, já que Javier possuía várias empresas espalhadas por toda a
Espanha, porém sabia que o meu irmão não queria que o

favorecessem dessa maneira. Pablito sequer havia aceitado um


único euro da fortuna que agora eu tinha à minha disposição, imagina

isso.
— Assim espero, estrellita. — Deixou outro beijo no meu

rosto. — Agora vou tomar um banho e descansar um pouco. Você


ficará bem?
— Não precisa ficar de olho em mim o tempo todo, Pablito

— não escondi a minha diversão —, você parece o Javier.


Fez uma careta.

— Estou grávida, não inválida.


— Tá bom. — Demonstrou resignação. — Qualquer coisa,

só me chamar.
— Okay.
Assisti ele caminhar para fora da sala, mas logo a minha

atenção foi desviada para a pequena dentro de mim.


— Não, meu amor, forte assim machuca a mamãe —

conversei com ela sabendo que era escutada.


Levantando um pouco a minha blusa, deslizei a minha palma

quente contra a minha barriga e comecei a cantarolar uma música


que meu irmão cantava para mim quando eu era menor.

— Está sentindo falta de ouvir a voz do papai e o barulho dos


cachorrinhos, querida? — perguntei vários minutos depois. — A
mamãe confessa que ela também, mas logo, logo seus irmãozinhos

voltam do pet shop bastante cheirosinhos. Infelizmente, seu papai


ficará até tarde no escritório, preso em reuniões.

Emiti um bocejo, seguido de vários outros.


— Acho que sua mãe vai fechar um pouco os olhos — falei
baixinho para ela —, você não tem deixado nem eu e nem o seu pai

dormir direito, princesa.


Continuei a acariciar o meu abdômen avolumado, quase

pegando no sono, quando a campainha tocou.


Franzi o cenho. Não me recordava de uma única vez desde

que eu passei a morar ali de algum vizinho ter batido na nossa porta.
— Quem será que é, Aurora? — sussurrei e com alguma
dificuldade, ergui-me.
Apoiei a minha coluna com a mão e, com passos lentos,
fazendo um esforço que, sem nenhuma dúvida o meu marido
superprotetor acharia mais do que reprovável, sabia que ouviria

bastante por isso, aproximei-me da porta, destranquei-a e girei a


maçaneta para abri-la.

Movida pelo instinto, levei as minhas mãos à barriga e usei-


as como um escudo protetor ao reconhecer a mulher que tinha o
rosto completamente transfigurado e que também usava óculos

escuros e uma peruca como disfarce.


— Como conseguiu entrar aqui? — Minha voz soou baixa,

quase inaudível.
Tentei fechar a porta na cara dela, porém ela não permitiu,

usando uma força surpreendente para alguém de sua idade.


O medo banhou as minhas veias e eu senti que começava a
ficar paralisada. Ela usou o pânico contra mim e forçou a entrada.

— Identificação falsa. — Tirou os óculos e me deixou ver os


seus olhos que pareciam tomados pela loucura. — O porteiro não

pode impedir ninguém de fazer uma visita a outro residente desse


prédio. Foi fácil pagar alguém para fingir que estava me esperando.
— Fechou a porta.
Reunindo todas as minhas forças, dei vários passos para
trás, buscando colocar distância entre mim e a avó de Javier.
— Condomínio de luxo tem as suas vantagens, mas uma das

maiores desvantagens é que quase nenhum funcionário arriscaria o


seu pescoço negando a entrada de um convidado.

— E o guarda-costas?
— As empresas de hoje em dia deveriam se importar mais
com a ética daqueles de quem elas contratam. — Riu baixinho. —

Comprá-lo não foi difícil. A essa hora, ele deve estar bem distante

daqui, pouco se preocupando com a segurança de quem foi bem


pago para proteger. — Fez uma pausa. — O outro parecia mais

durão, apesar que, ainda assim, não cumpriu sua função.

Estalou a língua e eu engoli em seco.

— Eu ensinei ao bastardinho que não deveria confiar em


ninguém. — Balançou a cabeça em negativa. — Porém ele não

prestou atenção nos meus ensinamentos.

Riu baixinho.
— Quem mandou ele se enfraquecer por causa de uma

prostitutazinha insignificante, não é mesmo? — continuou. — O idiota

tem que estar muito iludido para achar que uma mulher comprada
poderá vir a amá-lo.
— Eu o amo — falei mais alto, ao alcançar o sofá, batendo

no braço.
Parece que eu contei uma piada enorme, pois ela desgramou

a rir, parecendo uma insana. Parou de gargalhar de súbito, me

lançando um olhar irônico.


— Que seja — disse com uma voz desprovida de emoção,

que arrepiou a minha espinha, e sacou uma arma do bolso do

casaco.

Congelei, o pavor que eu sentia se tornando ainda maior.


Lágrimas se assomaram em meus olhos e deslizaram pela minha

face. Tentei gritar pelo meu irmão, sabendo que a acústica do

apartamento dificultaria que ele ouvisse os barulhos que fazíamos,


mas parecia que um bolo havia se formado em minha garganta,

minha voz parecia um arranhar.

Meu coração batia freneticamente contra a minha caixa


toráxica e eu tentei controlar a minha respiração, por mais que o

nervosismo me impedisse. Eu tinha que buscar alguma calma para

não prejudicar ainda mais a minha bebê. Sabia que o estresse por si

só daquele momento já era prejudicial.


— Vamos acabar logo com isso de uma vez, fedelha.
Apontou a arma para a minha barriga e minha determinação

de me manter calma ruiu. Vi que os dedos dela pareciam incertos, o

que a tornava ainda mais perigosa.


Eu temi e muito pela vida da minha bebê, mais do que pela

minha própria. Chorei ainda mais, silenciosamente, sentindo meu

peito se apertar. A impotência de não poder fazer nada por estar sob

a mira de uma arma era algo amargo.


— Por favor, não — foi a única coisa que consegui

pronunciar em um sussurro, sentindo o desespero me consumir.

Ela deu uma gargalhada alta, desvairada, que arrepiou o


meu corpo inteiro.

— E deixar aquilo que Javier mais ama sobreviver?

Balançou a cabeça freneticamente e vi a loucura em seus

olhos.
— Por favor! — implorei, mantendo as minhas mãos trêmulas

sobre o meu abdômen.

— Garota burra — falou cinicamente. — Ele me tirou toda a


minha família, matou aquele quem eu mais amava, e agora é a minha

vez de roubar tudo dele.

Riu novamente, dessa vez mais alto, e eu não tive mais

dúvidas de que ela parecia ter perdido a sanidade.


— Condenarei Javier a solidão que ele merece — cuspiu. —

Destruirei aquele bastardo, tornando-o um morto-vivo. Conhecerá a


dor que senti por ele ter-me tirado o meu filho.

— Meu marido não teve culpa, mas sim o seu… — disse em

um fio de voz, mas o bolo que havia na minha garganta impediu-me


de continuar.

Piscou um dos olhos energeticamente, como se tivesse um

tique nervoso. Aproximou-se de mim e vi que a pistola tremeu ainda

mais em sua mão instável.


— Como ousa colocar a culpa no meu filho quando tudo é

culpa daquele bastardo infeliz que deveria ter morrido na barriga da

mãe? — Fez uma pausa. — Vou te ensinar uma lição, fedelha.


Antes que eu pudesse reagir, ergueu a mão e desferiu um

tapa no meu rosto que fez com que minha cabeça virasse com o

impacto. Sem querer, mordi meus lábios e senti o gosto férreo de

sangue tomar a minha boca.


Mesmo com a face ardendo, os lábios doloridos, poderia

tentar lutar, mas temia que ela machucasse a bebê.

— Você é a escória, um lixo, uma puta que vendeu seu corpo


ao bastardo em troca de dinheiro. — Sua fala exalava fúria. — Você

teria que nascer várias vezes para chegar aos pés dele. Só um
desgraçado como o demoniozinho para casar com a irmã de um

traficante.

— Como?

— Eu sei de tudo — cuspiu, sua saliva atingindo os meus


pés.

— Então por que…

— Não podia deixar vocês arruinarem ainda mais o nome da


minha família, como já vêm fazendo. — Tirou algo do bolso e jogou

sobre mim.

Olhei os papéis picados no chão, percebendo que era uma

fotografia minha com Javier, uma que havia saído com a notícia do
sexo do nosso bebê.

— É isso que farei com você e sua bastardinha — apontou

para o chão —, estraçalhá-la, deixando o seu “queridinho” em


pedaços.

Deu um sorriso malévolo.

— Não consegue imaginar o quanto me agrada pensar em

Javier destruído emocionalmente… Quem sabe o bastardo irá


derramar uma lágrima por você, apesar que, eu duvido muito. —

Destravou a arma e eu senti que meu corpo todo tremia com o

pavor. — Agora vamos acabar logo com a sua vida, fedelha…


Fechei os olhos, protegendo ainda mais o meu abdômen.

Comecei a murmurar uma prece.


— Vocês já viveram demais — completou com uma risada

histérica.

Ouvi o som do disparo, que me deixou temporariamente

surda, e o grito que estava entalado na minha garganta finalmente


escapou, embora fosse tarde demais para mim e para a minha bebê.

Esperei pela dor causada pela bala e a viscosidade do sangue

saindo de mim, porém segundos se passaram sem que eu nada


sentisse.

— Droga! — uivou, furiosa, e abri os olhos.

Mesmo que minha vista estivesse nublada, pude perceber


que a mulher estava muito trêmula, ao passo que sua expressão

estava completamente crispada.

— Dessa vez irei te acertar, cadela — rosnou.

Quando ia atirar novamente, dessa vez mirando na direção


do meu coração, meu irmão surgiu na minha frente e usou o próprio

corpo como escudo.

— Só se for por cima do meu cadáver, velha — a voz dele


estava carregada de tensão.

— Oh! — Pareceu momentaneamente desconcertada.


Meu irmão aproveitou a distração e usou-a para lutar pela
arma com a mulher, que, recuperada e também movida pela raiva,

parecia ter ganhado mais força que o normal para resistir, já que

Pablito era muito mais forte do que ela. Com uma mão, ela tentava
unhar o rosto dele, como se arranhões fossem parar o meu irmão.

— Me solta — gritou, se debatendo, furiosa. — Eu preciso

acabar com elas.


— Eu acabarei com você primeiro — assim que meu irmão

disse isso, escutei outro som de disparo que fez com que meu

coração se apertasse com força, mas nenhum dos dois parou.

Eu tinha que fazer alguma coisa, mas estaquei no lugar,


assustada, quando um grito raivoso ecoou por todo o cômodo, que

logo se transformou em lamúria quando meu irmão, segurando o

pulso dela com força, torcendo-o, fez com que ela soltasse a arma,
deixando-a cair no chão. Magda tentou se abaixar para pegá-la

novamente, mas Pablo foi mais rápido, chutando a arma para


debaixo do sofá.
Aproveitei o momento em que ela estava abaixada e,

finalmente reagindo, mesmo que enxergasse embaçado pelas


lágrimas e meus movimentos fossem limitados pela gravidez, peguei
um vaso qualquer e joguei em cima da cabeça dela, deixando-a
desacordada.
Eu respirava ofegante e assisti o meu irmão correr para

dentro e pegar um lençol para amarrá-la. Deu vários nós, prendendo


os pulsos e tornozelos dela.
— Ela atirou em você! — Berrei ao ver o braço do meu irmão

sangrando. — Você precisa ir ao médico, Pablito.


— Foi só de raspão. — Levantou e se aproximou de mim,
contornando o corpo da mulher no chão. — Queima como o inferno,

mas não vou morrer, gatita, não ainda. Tenho que ver a minha
sobrinha nascer.
Sorri por entre as lágrimas. Tocou o local onde recebi o tapa

e eu estremeci.
— Essa filha da puta te bateu! — Não escondeu a raiva que
sentiu. — Porra, nunca nesses dezoito anos alguém levantou a mão

para você e essa desgraçada o fez. Deveria quebrá-la por isso.


— Não quero mais violência, Pablito, por favor — pedi em

um sussurro.
Me encarou por alguns segundos e eu soube que Pablo
estava ponderando se deveria ou não a agredir. Enquanto pensava,

pude perceber que ali ele não era apenas o meu irmão, mas também
o homem capaz de cometer atos violentos, algo que o mundo das
drogas exigiu dele.
— Tudo bem, estrellita.

Sem dizer mais nada, abraçou-me com força e pude


perceber que a tensão do momento ainda estava acumulada em seu

corpo. Chorei ainda mais contra ele, deixando que todo o medo que
ainda estava sentindo fluísse através das lágrimas.
— Agora está tudo bem, querida, ela não poderá te fazer

mais mal. Eu estou aqui — falou baixinho.


— Obrigada.
— Desculpe não ter estado alerta o suficiente para evitar

isso. — Havia remorso em suas palavras. — Era meu dever estar


atento a você.
Balancei a cabeça em negativa.

— Não é culpa sua, Pablito.


Acariciei o rosto dele, que grunhiu em discordância, mas eu
não discuti. Meu irmão era superprotetor e nada do que eu dissesse

iria livrá-lo do que sentia. Ele levaria tempo para digerir tudo.
Fiquei vários minutos em seus braços, mas logo recuei

alguns passos ao sentir uma dor irradiar da minha coluna para o meu
ventre, bem como uma dor forte no abdômen. Olhei para baixo e vi
que minha roupa estava encharcada de um líquido rosado.

Fiquei gelada e meu coração parou de bater por alguns


segundos.
— Minha bebê! — Soltei um grito de desespero e levei a

mão na barriga, como se isso fosse impedir que algo acontecesse a


ela.

Irracional, ainda processando tudo, senti meu coração se


apertar no peito com o medo de perder minha Aurora e as lágrimas
voltaram a ficar abundantes. Naquele momento, presa ao pânico, não

conseguia me lembrar de nada que o obstetra tinha me falado, só


sabia que faltavam vários dias, na minha percepção de mãe ansiosa,
para que ela estivesse pronta para nascer, embora minha pequena

estivesse na posição correta dentro do meu útero.


— Fique calma, Bárbara, vou chamar uma ambulância e
pedir que eles mandem também uma viatura da polícia — meu irmão

disse com urgência, sacando o celular do bolso da calça e fazendo


as ligações.
Conversou com uma atendente, mas não prestei mais

atenção nas palavras dele, pois todo o meu foco estava na enorme
mancha na minha roupa e no medo que sentia. Abracei a mim
mesma, apavorada, sentindo todo o meu corpo trêmulo, um nó na

minha garganta dificultando a minha respiração. Forcei a puxar ar


para os meus pulmões, tentando me acalmar, porém eu ainda estava
completamente trêmula.

— Eles já estão a caminho, gatita. — Meu irmão se


aproximou de mim, tocando os meus ombros. — Pedi urgência.
Assenti.

— Javier… — Senti mais lágrimas deslizarem pela minha


face. — Preciso ligar para ele.

— Eu faço isso por você, querida. — Tirou uma mecha que


caía sobre os meus olhos e a colocou atrás da orelha. — Quer que
eu vá até a cozinha para pegar uma água para você?

— Eu não quero.
— Sente-se no sofá, então, querida. — Deixou um beijo no
topo da minha cabeça.

— Irei sujá-lo.
— Como se o seu marido fosse se importar com isso.
Segurando o meu braço, fez com que eu me sentasse a

contragosto e acomodou-se ao meu lado, acariciando-me, tentando


oferecer algum conforto.
Cada segundo de espera da ambulância, sem saber o que
de fato estava acontecendo, era uma agonia sufocante. Eu só queria
que Javier estivesse ali agora, me abraçando, dizendo que tudo

ficaria bem.
Capítulo cinquenta e cinco

— Só um minuto, por favor, Oscar — minha voz demonstrava

todo o meu desespero ao ver o nome do meu cunhado no visor do

meu celular, que vibrava freneticamente em cima da mesa.


Nunca ele havia me ligado e, para isso estar acontecendo, eu

sabia que algo deveria ter ocorrido com a minha esposa e com a

minha bebê.
Uma bigorna oprimiu o meu peito e senti que o suor frio

começava a cobrir a minha pele.

— Preciso atender essa ligação — completei.

— Tudo bem, filho — falou em um tom sério, com certeza via

em minha expressão que algo não estava certo.


Não esperei nem mais um segundo sequer e atendi ali

mesmo, ao erguer da minha cadeira.

— Pablo?

— Você precisa vir para casa agora, Javier. — Demonstrou

seu desespero e o medo bombardeou-me. — Sua avó conseguiu

entrar no apartamento e tentou matar a Babi e a Aurora.


— O quê? — Gritei, perdendo completamente a cabeça.
Senti a raiva duelar com o medo, tanto que demorei a
processar o que meu cunhado havia dito. Aquela desgraçada tentou

matar a mulher que eu amava? Não, não podia ser. Perdi o ar.

— Minha irmã ficou tão nervosa que entrou em trabalho de

parto — continuou.

Como se fosse possível, meu peito se apertou ainda mais e

eu senti que lágrimas grossas deslizavam pela minha face. O medo


fincava suas garras em mim, e eu tremia.

— Eu estou indo para aí — minha voz saiu rasgada e deixei

o celular cair ao chão, mas não o peguei.

Em meio ao desespero, com o peso da impotência sobre

meus ombros, corri para fora do escritório e nem percebi que era

seguido por Oscar.

— Fique calmo, homem — ele falou assim que entramos no


elevador. — O que está acontecendo?

— Minha esposa... — Senti minhas entranhas revirarem e

deslizei minha mão com força pelo rosto, apagando as trilhas de

lágrimas. — Minha bebê! Elas… Elas…

— Vai ficar tudo bem, Javier.

Deu tapas nos meus ombros, tentando oferecer conforto de


uma maneira estranha.
— Vamos até o meu carro. — O velhinho me puxou e eu não

ofereci resistência. — Não está em condições de dirigir.


Entrei no veículo dele e coloquei o cinto de segurança no

automático. Preso na minha própria dor, disperso, sentindo o meu


choro ficar abundante, a única coisa que me recordava durante todo
o trajeto era de ter passado o meu endereço ao homem e ele ter

dirigido bem acima da velocidade, perigosamente. Não me importei,


eu apenas queria estar com as duas mulheres que me ensinaram o

que era amor.


Quando o carro parou, abri a porta sem pensar muito, e corri

para dentro do prédio.


A cada segundo dentro do elevador eu tentava afastar da
minha mente a sensação de que era tarde demais.

Não podia ser. Se houvesse algum Deus misericordioso, ele


não me tiraria nenhuma das duas, não quando eu finalmente conheci

a sensação de ser amado e amar. Eu não suportaria tal crueldade do


destino.

Quando a caixa de metal abriu no meu andar e estava me


aproximando da minha porta, vi a mulher que eu mais odiava na vida
sair algemada de cabeça baixa do meu apartamento, tornando todo
aquele pesadelo real. Esperei sentir uma raiva absurda dela, porém

tudo o que senti foi indiferença em meio a minha angústia.


Como se pressentisse a minha presença, ergueu o queixo e

me fitou. Pude ver a insanidade dominar as suas feições,


principalmente quando jogou a cabeça para trás e riu.

— Acabou, bastardo — sibilou em meio a gargalhada que


ficava cada vez mais alta, insana. — Eu venci! Eu venci!
Se debateu, tentando se soltar das algemas, e o policial

segurou-a com mais força.


— Você está condenado a solidão, maldito — gritou. — Você

sentirá na pele a dor de ter aquilo que mais ama tirado de você
abruptamente.
Deu um sorriso enorme e frio.

— Se lembrará de mim e de tudo aquilo que você me causou


pelo resto da sua vida. — Estalou a língua. — Porque eu triunfei

sobre você.
Maneei a cabeça, me recusando a acreditar nas suas

palavras. Passei por ela sem dizer uma palavra, correndo até a
minha mulher, que estava sendo colocada sobre a maca, sentindo o
meu desespero crescer.
— Bárbara! — Mal escutei a minha própria voz e não reparei
na equipe que a cercava.
Meu coração parecia sangrar ao ver o rosto machucado, os

lábios rachados, mas era a mão na barriga que me quebrava ao


meio.

— Javier — chamou-me baixinho.


— Estou aqui, meu amor. — Deixei um beijo na sua testa e
senti minhas lágrimas pingarem em seu rosto. Segurei a sua mão.

— A nossa bebê — sussurrou e eu vi o desespero cruzar os


seus olhos.

Senti como se levasse uma facada no peito e quem desferiu


o golpe a estava torcendo.

— Irá ficar tudo bem, Luz, eu prometo. — Sabia que não


deveria estar fazendo essa promessa, pois eu mesmo não sabia o
que estava acontecendo, mas queria infundir a ela esperança,

sentimento que eu também precisava desesperadamente. Fiz uma


prece a todos os deuses que conhecia pedindo pela saúde das duas.

— Embora a pressão dela esteja boa, precisamos levá-la a


um hospital e o irmão dela também, senhor — o médico falou,
interpondo entre nós dois. — Fizemos os primeiros socorros, mas
precisamos de alguns exames para saber se a bala chegou a pegar
em algum músculo.
Encarei o meu cunhado, que estava sentado no sofá, e

nossos olhares se cruzaram. Não me passou despercebido a culpa e


o medo nas suas feições, provavelmente, era um espelho da minha

própria aparência.
— Vocês têm algum convênio?
— No Virgen del Mar. — Tentei soar prático. — O obstetra

que está fazendo o pré-natal trabalha lá, mas pode ser qualquer

outro. O dinheiro não importa.


— Certo. O senhor pode pegar os documentos dela, por

favor?

Assenti com a cabeça e corri para pegar a bolsa da minha

esposa.
— Vamos. — Ele deu um comando para os paramédicos e

eu segui todos para fora do meu apartamento até alcançarmos a

ambulância.
— Posso ir com ela? — pedi para o médico assim que minha

mulher foi colocada dentro da ambulância.

— Ficará apertado já que temos o outro paciente — um dos


socorristas falou.
— Entendo.

— Posso ir em outra — meu cunhado interveio e eu o encarei


—, minha irmã e a bebê precisam dele mais do que de mim.

O homem pareceu contrariado, mas acabou consentindo.

— Obrigado, Pablo.
— Cuide dela, irmão.

Sem pensar muito nas suas palavras, adentrei no local

desconfortável e sentei-me próximo a minha mulher, segurando a sua

mão suada. E não demorou muito para que a porta fosse fechada
com um tranco e a ambulância começasse a se mover.

— Ficará tudo bem, amor — murmurei e meu coração se

afundou ainda mais no peito quando a vi cerrar os dentes com uma


contração. — Queria tomar a sua dor para mim.

— Eu sei — arfou. — Dói tanto, Javier.

Curvei-me para deixar um beijo na sua testa, ignorando o


solavanco da ambulância.

— Nossa doce Aurora só quer nos conhecer mais cedo,

amor — tentei entretê-la. — Ela é uma garotinha forte, tão forte

quanto a mãe dela.


Sorriu por entre as lágrimas e, mesmo naquelas

circunstâncias, eu a achei a mulher mais linda do mundo.


— Que palavras doces, amor.

— É a mais pura verdade, Luz.

— Estou com tanto medo, Javier.


— Ficará tudo bem, senhora — o socorrista tentou

tranquilizá-la —, seria mais preocupante se o líquido estivesse com

uma coloração mais escura.

— Compreendo. — Fez uma careta de dor.


Continuei a murmurar palavras tranquilizantes para minha

esposa enquanto segurava sua mão, até que o veículo parou e as

portas se abriram novamente.


— Com licença, senhor — o médico pediu.

Tudo depois disso pareceu uma grande confusão. Bárbara

foi levada para dentro a toda pressa e a equipe médica que a

recebeu, com um monte de perguntas sobre o ocorrido, solicitou que


ela fizesse uma bateria de exames e, felizmente, em alguns

procedimentos pude acompanhá-la. Não queria desgrudar dela,

muito menos da nossa bebê. Eu não me perdoaria se algo


acontecesse às duas.

Senti um alívio enorme no peito e na alma ao descobrirem,

algum tempo depois, que não era descolamento de placenta, nem

outro problema mais grave que poderia oferecer risco de vida a


Bárbara e a minha bebê. Meu coração se tranquilizou um pouco mais

quando aplicaram nela a injeção peridural para a diminuição da dor


das contrações. Ver a minha mulher sofrer e assistir sem poder fazer

nada para tomar a sua dor, para mim, era frustrante.

Se passaram horas enquanto esperavam a dilatação dela


aumentar, tanto que Pablo, que tinha recebido cuidados, havia sido

liberado para ficar com a irmã no quarto do hospital. Era agonizante

a espera, tanto que não consegui ingerir nenhuma colher da comida

que serviram.
Em alguns momentos, estive muito perto de sucumbir ao

pânico, e não me passou despercebido a ironia, sempre fui mestre

em dominar meus próprios sentimentos, porém, diante do parto que


poderia acontecer a qualquer minuto, tive que fazer muito esforço

para me dominar. Só a necessidade de passar tranquilidade à minha

esposa naquele momento, para não a estressar ainda mais, me

manteve firme.
— E então, doutor? — perguntou, ansiosa, quando o médico

apareceu depois de quase uma hora e meia sem vê-la.

Apertou a minha mão com força, e percebi que, mesmo que


ela estivesse medicada para as contrações, estava começando a

ficar irritada pela espera.


— A dilatação está quase chegando à total — o obstetra

falou, baixando o avental que a minha mulher usava. — Pedirei para

que uma equipe a leve para a sala de parto.

— Finalmente — minha esposa sussurrou e eu vi o alívio


banhar a face dela.

— Sim! — Deixei um beijo em seus lábios, comemorando

com ela o fato de que muito em breve eu teria minha princesinha em


meus braços.

— Poderei assistir? — meu cunhado perguntou.

— Você poderá acompanhar pela parede de vidro. Na sala

de parto, permitimos apenas um acompanhante.


— Certo.

Demorou vários minutos para que todos nós fôssemos

enviados à sala e, enquanto vestia os equipamentos de proteção, eu


sentia meu coração começar a bater acelerado no peito, minhas

pernas ficarem bambas.

Deixei que as emoções, que aquele momento suscitava em

qualquer um, me dominassem, afastando qualquer medo ou


sentimento negativo.

— Suas mãos estão geladas, Javier — falou baixinho.

— Estou nervoso — confessei.


— Eu que farei o esforço e você que está assim — brincou

comigo.
— ¡Sí! Sinto-me prestes a desmaiar.

Coloquei uma mecha de cabelo dela para dentro da touca.

Sorriu.

— Eu deveria mandar Pablito gravar essa cena — fez uma


pausa —, ficaria milionária.

Bufei.

— Com licença, senhora — uma enfermeira pediu, abrindo


as pernas da minha esposa.

Respirei fundo, tentando manter-me o mais calmo possível

quando, poucos minutos depois, a equipe começou o parto da minha


esposa.

— Mais força, mãe — o médico pediu, não sei quantas

vezes.

Bárbara apertou a minha mão com força e eu vi seu rosto se


contorcendo com o esforço que ela fazia, bem como as pequenas

lágrimas que se assomaram em seus olhos; o grito rouco era visceral

e eu o senti na alma.
— Empurre — a enfermeira disse em um tom suave.
Minha esposa respondeu com um grunhido.

— Continue, Luz. — Deixei um beijo na sua têmpora suada,

sentindo que gotas grossas deslizavam pela minha face. — Você


está sendo maravilhosa.

Ela deu um gritinho.

Continuei a sussurrar palavras de encorajamento para ela,


mesmo que minha esposa parecesse não me ouvir em meio a

pedidos para empurrar. Beijando-a, deixei que ela espremesse meus

dedos com a força que queria.

— Está coroando, mãe. — O médico incentivou e minha


mulher abriu um sorriso enorme enquanto continuava a trabalhar sua

musculatura.

— É bem mais forte do que eu, garota — sussurrei. — Eu


estou quase sucumbindo e indo ao chão.

E era a verdade. Meu coração martelava furiosamente,


minha respiração era tão acelerada quanto a dela, meu corpo tremia
enquanto eu chorava. Era difícil não se deixar levar pelas emoções

daquele momento que, embora fosse de alegria, também era de


expectativa.
Ela me fitou e sorriu para mim, como se quisesse me
transmitir que ficaria tudo bem, voltando a gritar quando fez mais
esforço.

— Diminua a força, mãe — o médico pediu, depois de várias


vezes solicitar que ela fizesse o contrário.
Franzi o cenho, estranhando o pedido, e passei uma

toalhinha no rosto da minha esposa para limpar o suor. Pouco a


pouco, seu aperto começou a ficar mais suave, indicando que ela
relaxava.

Não sei quantos minutos se passaram, mas sei que tive que
segurar-me na borda da maca para não cair ao chão ao ouvir o
chorinho da minha pequena bebê ecoar por toda a sala de parto.

E se antes eu achava que o amor que eu nutria por Aurora


era um sentimento poderoso, ali eu realmente o senti em toda a sua
força. Ele pulsava em cada grama no meu corpo, me deixava trêmulo

e roubava o meu ar.


— É normal chorar tanto assim? — Pai de primeira viagem,

fiz uma pergunta besta, quando a pequena Aurora, bastante


pequenininha, passou a berrar a plenos pulmões, com uma força
enorme.
Ao mesmo tempo que o som me agoniava, pois meu instinto
me induzia a correr para pegá-la no colo, eu me sentia emocionado
ao ouvi-lo. O choro tornava meu sonho de ser pai ainda mais real

para mim.
— Sim, papai. É saudável que eles chorem, pois os pulmões

doem ao receber ar.


— Compreendo.
— Ela é uma linda garotinha de dois quilos e setecentos, e

de quarenta e sete centímetros.


— ¡Dios! — Falei baixinho.
Não ouvi mais nada que a equipe médica dizia entre si, preso

naquele turbilhão e na imagem da minha menininha. Só era


consciente de estar fazendo uma prece aos céus.
Minhas lágrimas caíram mais abundantemente e senti o

toque gentil da minha mulher no meu braço, enquanto encarava a


minha bebê se contorcendo nos braços da enfermeira, que a levava
para outro canto da sala, provavelmente para limpá-la e fazer os

primeiros exames.
— Eu consegui — Bárbara disse com a voz embargada.

Olhei para o rosto da minha mulher, que estava cheio de


suor, alguns fios que escaparam da touca colando na pele. Mas era
o sorriso enorme, cheio de satisfação, em meio às próprias lágrimas,
que me fez amá-la ainda mais.

— Sim, meu amor. — Colei nossos lábios em um beijo suave


de comemoração. — Você foi maravilhosa em cada minuto.
— Hm. — Fechou os olhos um pouco.

Ergui nossas mãos entrelaçadas e plantei vários beijinhos no


dorso da dela, minhas lágrimas molhando-a.

Ficamos em silêncio, apenas ouvindo o som distante do


chorinho da nossa bebê enquanto o médico cuidava da minha mulher,
até que o pranto se tornou mais alto. Meu olhar recaiu na enfermeira,

que se aproximava com a nossa pequena Aurora enrolada em uma


manta.
— Quer segurá-la, mãe?

Meu coração deu um baque ao ver a mãozinha enrugada


fechada em punho. Me emocionei ainda mais ao ver a face amada
contorcida pelo choro, seus lábios pequenos e bem-formados se

movendo. Aquele rostinho angelical era um dos mais lindos que eu


tinha visto na vida e comecei a contar os minutos para vê-la sorrindo
para mim.

— Ficar pele contra pele, mesmo que por alguns minutos,


será bom para as duas — continuou.
— Claro. — O sorriso da minha mulher pareceu ficar ainda

maior.
Sentindo-me tremer com a perspectiva de ver a interação
entre mãe e filha, algo que mudaria ainda mais a minha percepção já

modificada pela minha garota a respeito da maternidade, ajudei


Bárbara a se acomodar melhor na maca.
— Ela precisará ficar na incubadora? — perguntou ao

estender os braços para receber a nossa filha.


— Infelizmente, sim, mamãe.

Colocou-a no colo da minha esposa, que deixou um beijinho


no topo dos cabelos pretos e abundantes. Guardaria para sempre
em minha memória aquele primeiro contato.

— Como ela não chegou a completar as trintas e sete


semanas, mesmo que não tenha nenhum problema respiratório
aparente, ficará em observação.

— Compreendo — falou baixinho.


Soube que tinha ficado chateada por não a levar logo para
casa, eu mesmo me senti um pouco triste por isso.

Emitiu um suspiro.
— Ela é linda, não é, Javier? — comentou depois de vários
minutos em silêncio onde parecia desfrutar daquele momento.
— ¡Sí, Luz! — Não escondi o fascínio que sentia no meu tom
de voz. — Tão linda quanto a mãe dela.
Abaixei-me para beijar a mãozinha da minha menina.

— Nada puxa-saco o seu papai, Aurora — brincou.


— Acho que ficarei cada vez mais bajulador. — Fiz uma
pausa, sentindo uma emoção indescritível tomar o meu peito só de

olhá-la. — Acostume-se, esposa. Eu estou completamente


apaixonado por ela e não me cansarei de elogiá-la.
Bárbara respondeu com um sorriso que me fez mais bambo.

— Ela tem o seu narizinho — comentei.


— Acho que é muito cedo para dizer isso, querido.
Dei de ombros, sorrindo de orelha a orelha.

— Quer carregá-la um pouco? — murmurou depois de dar


outro beijinho nela. — Sei que você deve estar ansioso por isso.

Assenti com a cabeça e estendi os braços, forçando-os a


ficarem firmes. Enquanto ela passava a Aurora para o meu colo,
senti certa insegurança, mesmo tendo tido algumas experiências ao

segurar os trigêmeos do meu melhor amigo. Ela parecia tão frágil,


tão molinha, que temia, em um descuido, machucá-la. Meus medos
morreram no momento em que eu a tive em meus braços, a emoção

de sentir seu peso e corpinho contra mim me dominando.


— Oi, meu sonho — sussurrei com a voz embargada,
sentindo meus olhos ficarem embaçados pelas lágrimas —, sou eu, o

seu papai. Ele esperou tanto por você, para amá-la, que está meio
bobo.
De alguma forma, pareceu atenta a minha voz, ficando

caladinha.

— Papai aprendeu o que é o amor com você, mi Sueño[91]!


— Javier… — Minha mulher choramingou.

Beijei a mãozinha dela.


— Ele te amará com todas as suas forças, para sempre. —
Fiz uma pausa, quando um bolo de emoção se formou em minha

garganta. — Além da vida, querida.


Aninhei-a ainda mais contra mim e, depois de um tempo,

nossos corações pareceram bater em uníssono. Uma sensação


indescritível me invadiu. Eu não sabia defini-la, mas só sei que era
algo precioso e único, outro momento que ficaria gravado em minha

alma. Ela me preenchia.


O momento só foi interrompido quando Aurora chorou e a
enfermeira, até então esquecida, interveio:

— Vamos tentar amamentá-la, mamãe, antes que eu a leve


para a incubadora e os cuidados finais sejam feitos?
— Sim. — Os olhos da minha mulher cintilavam ao baixar
uma alça da camisola hospitalar.

Passando a pequena Aurora para o braço da minha esposa,


a enfermeira ajudou-a a posicioná-la corretamente, semi-reclinada, e

instruiu-a a erguer o mamilo, sem colocá-lo na boquinha da bebê.


Intuitivamente minha pequena buscou a mama e eu me senti derreter
por dentro ao ver a pequena começar a sugar devagar enquanto

suas mãozinhas encostavam na pele da minha mulher.


Era uma cena doce de se contemplar, principalmente ao ver
o amor cintilar nas feições de Bárbara e no modo como encarava a

nossa menininha. Não resisti e, atrapalhando o momento mãe e filha,


eu toquei os cabelinhos dela. Um pequeno suspiro de deleite
escapou pelos lábios da minha mulher.

Pena que o momento acabou rápido demais, já que Aurora


mamava pouquinho de cada vez.
— Pode ficar no quarto com ela, Javier — Bárbara falou

enquanto traçava círculos lentos nas costas da nossa pequena,


como foi instruída. — Se eu pudesse, faria o mesmo.

Com tato, assim que soube que nossa pequena iria precisar
ficar internada por um tempo, meu cunhado tomou as frentes
burocráticas e solicitou um quarto privativo para nós, onde

poderíamos ficar com ela.


Eu era muito grato a ele, como seria eternamente
agradecido por ele ter arriscado a própria vida para salvar a mulher

que eu amava e a minha bebê. Enquanto esperávamos a hora do


parto, tentei agradecê-lo, mas as minhas palavras não me pareciam

ser suficientes. Eu tinha certeza de que nada do que eu fizesse


poderia compensá-lo, mesmo que ele nunca fosse querer algo do
tipo.

Balancei a cabeça em negativa, deixando um beijo na sua


têmpora.
— Meu lugar, por enquanto, é com você. — De fato o era.

Aquela mulher tinha se esforçado ao máximo para que


Aurora nascesse e não ficar ao seu lado, no momento da
recuperação, parecia-me errado.

— E tenho certeza de que o titio babão irá cuidar dela por


nós — fiz uma careta.
Minha mulher se esforçou para não rir e, assim, assustar a

bebê.
— Posso levá-la, senhora? — A enfermeira perguntou.
A contragosto, minha mulher assentiu, e nós dois a
observamos levar a nossa neném.
— Eu te amo, Bárbara — disse, tempos depois, deixando um

beijo nos lábios dela e acariciei o rosto cansado. — Obrigado por


fazer meu sonho de ser pai e de amar realidade, tornando tudo mais
do que palpável.

— Eu que agradeço, amor, por, através do seu sonho, eu


acabar descobrindo que em partes era o meu também.
Sorriu, arrancando de mim um sorriso em resposta, e nossas

mãos se buscaram outra vez, apertando-se. Continuei a fazer carinho


na face dela e ela fechou os olhos, descansando, enquanto

esperávamos o médico dar o aval para que pudéssemos finalmente ir


para o quarto.
Capítulo cinquenta e seis

— Papai já disse que ama você hoje? — Javier perguntou

para a bebê que dormia tranquilamente dentro da incubadora e, é

claro, não obteve resposta. — Pelas minhas contas, é a décima


segunda vez.

— Você está contando? — questionei ao me aproximar de

onde os dois estavam e toquei os ombros dele.


Virou o rosto na minha direção e pude ver os olhos dele

cintilarem de alegria, embora o cansaço estivesse estampado em

suas feições pelas noites insones.

Desde que, há alguns dias, fomos para o quarto, meu marido

só havia saído de perto da nossa pequena para fazer suas


necessidades e se alimentar. Era surpreendente que o homem

viciado em trabalho e em ganhar dinheiro tivesse deixado de lado

suas obrigações para ficar conosco, desmarcando reuniões ou

delegando funções. Nem mesmo para resolver a situação da avó,

que, embora tivesse idade avançada, acabou sendo presa.

Javier velava cada segundo do sono de Aurora, cada mamar,


com uma devoção que me era tocante. Era como se a ficha dele não
houvesse caído por completo e ele precisasse estar perto, tocando-
a, olhando-a, para garantir que ela era real. Para muitos poderia ser

sufocante esse carinho e cuidado excessivos, principalmente pelo

puerpério ser marcado por adaptação da rotina e por mudanças

psicológicas, porém, conhecendo a história de vida do meu marido,

marcada pela carência de afeto e sentimentos, eu sabia que ele não

fazia por mal, pelo contrário, era algo inconsciente dele.


Também, não podia negar que várias vezes me pegava com

lágrimas nos olhos ao ver a interação entre os dois, principalmente

quando ele a embalava durante o sono em seus braços fortes,

porém, gentis.

O amor de Javier pela nossa bebê era palpável, tanto que eu

jurava ser capaz de senti-lo como algo físico que entrava no meu

coração.
— Eu não quero ser pedante para ela — falou baixinho e eu

engoli a risada que brotou na minha garganta.

Voltou sua atenção para a nossa filha, que tinha as

mãozinhas fechadas em punho próximo as orelhinhas.

— Ela não irá te achar chato por isso. — fiz uma pausa e

resolvi brincar com ele. — Mas não posso garantir que, quando ficar
mais velha, ela não vá achar irritante sua pieguice, principalmente

quando estiver na fase dos namoradinhos.


Voltou-se novamente para mim e vi que ele estava com uma

cara amarrada.
— Não quero pensar nisso agora — murmurou baixinho. — O
importante é que por muito tempo eu serei o único homem da vida

dela.
Arqueei a sobrancelha para ele, mas não respondi. Discutir

seria inútil. Lidaria com o papai possessivo quando chegasse a hora.


Não o deixaria sufocar a nossa menininha com o ciúmes paterno.

Ficamos em silêncio observando a nossa princesinha


dormindo, sua boquinha movimentando, bem como os bracinhos,
completamente embevecidos, até que um barulho suave de alguém

batendo na madeira me tirou do transe. Girando o meu corpo em


direção a porta, vi o médico que cuidava da nossa filha entrar com

uma prancheta na mão.


— A enfermeira me disse que a pequena Aurora ganhou

quase dezesseis gramas de ontem para hoje — falou ao se


aproximar.
— Sim, doutor — meu marido disse.
— Como ela não apresentou nenhum problema respiratório,

de sucção ou cardíaco, e os exames dela não deram nenhuma


alteração — fez uma pausa e eu senti a expectativa borbulhar em

meu interior —, e como a Aurora estava bem próxima de completar


trinta e sete semana, o que seria considerado normal, e também

nasceu com um peso excelente para alguém do tamanho dela…—


Fez outra pausa. — E acho vocês preparados o suficiente, darei alta
para que ela seja cuidada em casa — completou.

— Que notícia maravilhosa! — Não contive a empolgação no


meu tom, dando-me conta só alguns segundos depois que eu poderia

ter acordado a Aurora com o meu gritinho.


Fitei Javier, o mais ansioso de nós dois para que a nossa
menininha não precisasse mais ficar naquele local que ele

considerava, mesmo com todo o conforto, um ambiente sombrio, e vi


um enorme sorriso de júbilo surgindo em seu rosto.

— Antes, passarei algumas recomendações necessárias —


prosseguiu.

— Claro — Javier disse em um fio de voz.


Antes de nos entregar o papel que deveríamos apresentar
na recepção quando acertarmos a papelada, o médico nos passou

várias informações e nos recomendou uma pediatra conceituada


para fazermos o acompanhamento semanal do desenvolvimento da
Aurora nesses primeiros meses de vida.
— Você quer dar banho nela primeiro, Javier? — questionei

quando o médico saiu.


— Acho melhor dar assim que chegarmos em casa, não? —

Fez uma pausa, parecendo pensativo. — Ela ainda estará exposta


às bactérias hospitalares, fora que não faz nem uma hora que ela
mamou.

— Tem razão. — Assenti.


— Vou trocá-la — falou baixinho. Com cuidado, o vi passar

uma mão por baixo do pescocinho e da cabeça, e a outra no torço.


Sensível, nossa bebê começou a chorar e meu marido

trouxe-a contra o peito, em uma posição que ela parecia gostar pelo
calor que transmitia.
— Não, mi Sueño. — Sorri com o apelido carinhoso que ele

deu a ela que me fazia derreter —, papai precisa te trocar para


podermos ir para casa.

Continuou conversando com ela, balançando-a suavemente,


até que o chorinho passou a ficar cada vez mais baixo.
— Você pode pegar uma roupinha, amor? — pediu ao deitá-

la sobre o trocador, começando a remover o macacãozinho que


usava, bem como a fralda, com mais destreza depois de vários dias
se responsabilizando pela tarefa. Não havia dúvidas de que ele era
melhor em trocá-la do que eu, que ainda sentia certa insegurança em

meus movimentos, principalmente na hora do banho.


— Claro.

Enquanto ele limpava as dobrinhas da nossa menininha com


zelo, caminhei até a enorme bolsa de maternidade que Pablito havia
trazido para nós, um exagero, e procurei o macacãozinho que eu

tinha dado de presente para ele.

Quando o entreguei, Javier me fitou, surpreso.


— Tinha pedido para meu irmão colocar na mala — falei

baixinho.

— Obrigado.

Deixou um selinho em meus lábios.


Com carinho, trocou a nossa pequena com delicadeza, e eu

não resisti em tirar uma foto sem flash da nossa bebê e dele, para

depois tirar outra dela sozinha, com suas mãozinhas fechadas


balançando.

— Ela ficou tão linda — murmurei.

— O amor do papai — leu o que estava escrito na peça.


Deu um sorriso bobo, totalmente apaixonado.
Pensar que aquele homem que era tido como demônio de

gelo tinha virado um pai extremamente babão deixava o meu coração


quentinho. A cada segundo, sentia que o meu amor por Javier

aumentava exponencialmente, tanto que não parecia caber dentro de

mim.
Quis rir de mim mesma ao lembrar da fala dele de vários

minutos atrás em que ele disse que não queria ser pedante. Eu

sentia que não era maçante apenas com a bebê, mas com ele

também, verbalizando sentimentos.


— Vou terminar de arrumar tudo para podermos ir. — Falou,

novamente sendo prestativo. Ter o apoio dele para me ajudar em

tudo era valioso. — Só irei ligar para Juan pedindo que ele venha nos
buscar.

— Você pode avisar o Pablito que não precisa vir no horário

de visita? — sussurrei ao pegar uma manta e enrolar nossa pequena


nela, mantendo-a bem aquecida.

— Claro.

Com menos habilidade, peguei-a no colo e a trouxe de

encontro ao meu peito. Inspirei fundo, sentindo o cheirinho gostoso


que sua pele parecia ter mesmo que fizesse horas desde o seu

banho. Ao invés de deitá-la novamente na caminha, enquanto Javier


guardava tudo, sentei-me na poltrona com ela e a assisti dormir

calmamente.

Demorou pouco mais de meia hora para ele ajeitar tudo e


acertamos as pendências burocráticas e financeiras para deixarmos

o hospital.

Coloquei uma Aurora ainda dormindo calmamente na

cadeirinha enquanto o motorista colocava as coisas dela no porta-


malas. Passou nem cinco minutos que o carro estava em movimento,

ao som de uma buzina mais estridente, a neném acordou e começou

a chorar, dessa vez, alto.


— Ela tem os pulmões bastante fortes — o motorista

brincou.

— Sim. — Javier disse com a voz sofrida, toda a sua

atenção era voltada para a nossa filha. — Não, Sonho, não chore.
Eu sabia que Javier estava bastante tentado a pegá-la no

colo, podia ver nos olhos dele, porém ele não cedeu ao desejo em

prol da segurança dela. Aqueles dez minutos de trajeto, com a nossa


pequena esperneando, chorando, foi um verdadeiro martírio.

— Pronto, princesa, chegamos.

Meu marido emitiu um suspiro de alívio ao remover o cintinho

que a prendia na cadeirinha, a pegando no colo quando o carro


estacionou na garagem.

Imediatamente a neném parou de chorar.


— Assim está melhor, não é, querida? — falou, saindo do

carro assim que Juan abriu a porta para ele.

Fiz o mesmo.
— Quer ajuda para pegar as coisas, Juan? — ofereci.

Ele não era pago para bancar o carregador.

— Não é necessário, senhora — sorriu para a bebê aninhada

nos braços do meu marido —, eu levo tudo dessa princesa.


— Obrigada. — Dei um sorriso em agradecimento ao

homem.

Caminhamos em silêncio até o elevador que, por sorte,


estava vazio. Assim que chegamos em frente ao nosso apartamento,

girei a maçaneta, abrindo a porta para que Javier entrasse, sendo

recebido por dois cachorros peraltas que nos encheram de patadas

enquanto latiam, som que fez com que a neném se agitasse. Com
certeza estavam com saudades de nós dois, já que fazia um tempo

que não os víamos e sentiam um cheiro diferente.

— Vocês querem dar boas-vindas para a sua irmãzinha, é?


— Javier falou.
Se abaixando, controlando-os para que não lambessem o

rostinho da bebê, deixou que Isabel e Lorenzo, ainda eufóricos,

cheirassem as mãozinhas dela, reconhecendo-a como a nova

integrante da família.
Começaram a abanar a cauda freneticamente, como se a

cumprimentassem, e eu apoiei minha mão no ombro do meu marido,

tremendo de alegria.
— Eles adoraram a irmãzinha — Javier se expressou

baixinho, emocionado.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, meu irmão

interpelou, fazendo com que nós dois o encarássemos.


— Diga X, família feliz.

Sorri e ele tirou uma foto de nós cinco juntos, guardando o

celular no bolso.
— Faltou você, cunhado — meu marido brincou, e eu sorri

com a sua fala.

Era bom vê-los se dando bem depois de tanta rusga no

início. Quando Javier me contou que ele tinha escolhido Pablo para
ser o padrinho protetor da Aurora meses atrás, convidando-o sem

nem mesmo me perguntar, eu não havia cabido em mim de

felicidade. Tinha chorado horrores por isso.


Ainda que eles não fossem amigos próximos, havia sido algo

que tinha reforçado o tratado de convivência pacífica entre os dois,


acordo que pareceu se tornar ainda maior quando meu marido soube

que Pablito havia se colocado na mira de uma arma para me

proteger. Sem perceber, Javier havia confiado várias coisas ao meu

irmão naqueles últimos dias.


Voltamos a atenção para os dois cãezinhos, que ainda

brincavam com a bebê, que não parecia assustada pela recepção

deles.
— Teremos outras oportunidades.

Deu de ombros.

— Fora que a fotografia ficará muito mais bonita sem a sua


“beleza” — provocou-o.

Meu marido estalou a língua ironicamente e eu maneei a

cabeça em negativa.

— Não é, princesa do tio? — perguntou para a bebê,


tocando nos dedinhos babados pelas lambidas dos cachorros. —

Teremos várias fotos de você com o homem que você mais ama na

vida.
— Com certeza eu e ela teremos mesmo — Javier se ergueu

dos calcanhares, cedendo a provocação. — Vamos tomar banho,


Sonho, e deixar seu tio para lá? Daqui a pouco tenho certeza de que
você irá querer mamar.

Começou a caminhar em direção ao quartinho dela e meu

irmão foi atrás.


— Posso ajudar? — questionou, fazendo meu marido parar

de andar. — Meu braço ainda está fodido, mas quero auxiliá-lo nesse

momento.
— Por que não? — falou suavemente.

Sorri ao ver os dois se colocando em marcha novamente,

com os cachorros trotando atrás deles, e virei-me para agradecer

Juan por ter subido com tudo, fechando a porta depois que ele saiu.
Suspirei profundamente.

Caminhei em direção a sala de estar imaculada, sem nenhum

traço do que havia ocorrido ali e, removendo os sapatos baixos,


esparramei-me no sofá. Deixaria aqueles dois homens babões se

entenderem no cuidado da bebê enquanto eu descansava por alguns


minutos, pois era consciente de que o dia ainda seria longo.
Capítulo cinquenta e sete

Encostando minhas costas na cabeceira, passei a mão pelos

cabelos, sentindo o cansaço das noites mal dormidas pesando sobre

meus ombros e pálpebras, então fechei os olhos.


— Ela conseguiu dormir? — Escutei a minha mulher

perguntar. — Hoje a Aurora está bastante agitada.

— ¡Sí! — murmurei.
Abri os olhos para vê-la com uma toalha enrolada na cabeça

e outra em volta do seu corpo. Como sempre, estava lindíssima.

Admirei-a se movimentar no quarto, se aproximando da cama,

apoiando uma perna para passar um hidratante sem cheiro, já que

ainda não sabíamos se Aurora teria alergia a perfume.


— Nada que o calor do colo do papai para fazê-la adormecer

— minha voz tinha um quê de orgulho.

— Convencido — falou baixinho e eu a vi mostrar a língua

para mim.

— Bastante — concordei com ela.

A verdade era que a arrogância do meu melhor amigo


quando contava vantagem sobre os seus bebês pareceu me
contaminar também. Eu não cansava de me gabar o quanto meu
pequeno Sonho gostava da minha proximidade, principalmente com o

meu cunhado, que tinha como hobby me provocar dizendo que ele

era o homem preferido de Aurora.

Confesso que, muitas vezes, tive vontade de espantá-lo a

pontapés, mas tinha que reconhecer que ele ajudava muito a minha

esposa quando eu estava em alguma reunião de urgência.


— Espero que ela durma três horas seguidas, hoje. — Era

engraçado perceber como a maioria dos nossos assuntos girava em

torno da bebê. — Eu preciso desesperadamente de uma noite de

sono mediana.

Não respondi, sentindo o meu sangue agitar nas veias

quando, mecanicamente, ela desenrolou a toalha do corpo para

passar um creme específico para tentar clarear as pequenas estrias


que marcavam a pele da barriga ainda abaulada. Ela tinha

confessado que as achava feias, porém eu não via nada de horrível

nelas, pelo contrário, conseguia ver beleza em cada uma dessas

marcas, que significavam um momento tão lindo como a gestação,

porém, antes que meu pau desse sinal de vida, me controlei. Além

de me sentir esgotado, depois de algumas reuniões inevitáveis, e


minha mulher também estar implorando por descanso, acataremos a

recomendação médica de não fazermos nada durante quarenta dias.


— Mas duvido muito que a pequena irá nos dar esse

presente — continuou a tagarelar.


— Também acho. — Ri baixinho.
Movimentou-se para pegar o seu pijama curtinho, e eu emiti

um suspiro cansado. Mesmo que minha vontade fosse dormir, forcei-


me a levantar e a caminhar em direção ao banheiro, para tomar o um

banho também. Tomei uma ducha morna, a água ajudando a aliviar


um pouco as dores musculares. Vestindo um short, voltei para o

quarto e encontrei minha mulher deitada em posição fetal quase


dormindo.
Dando a volta na cama, me acomodei atrás dela e, jogando

a coberta sobre nós, aninhei-a em meus braços.


— Hm — gemeu baixinho e se acomodou melhor, colando

suas costas no meu peitoral.


Minha esposa adorava dormir de conchinha e, se fosse

honesto, eu gostava, e muito, também.


Estávamos quase dormindo quando o som de chorinho ecoou
na babá eletrônica.
— Você pode ir dessa vez? — Minha mulher perguntou em

uma voz sonolenta. — Juro que da próxima eu levanto.


— Tudo bem, Luz. — Deixei um beijo na testa dela. — Se

ela quiser mamar mais, eu trago para você.


— Obrigada, amor.

Emitiu um suspiro de contentamento.


Dando mais um beijo nela, ergui-me e, com passos um pouco
trôpegos, deixei o quarto. Dei alguns passos no corredor em direção

ao da bebê. Tomei cuidado para não tropeçar em um dos cachorros


que, no escuro, não soube identificar muito bem, e que montavam

guarda na frente da porta. Tanto Isabel quanto Lorenzo eram


bastante protetores em relação à pequena e pareciam atentos a
cada choramingar. Tinha certeza de que, quando ela ficasse mais

velha, os três seriam bastante amiguinhos. Era uma pena que a


imunidade dela ainda não permitia que os dois dormissem no seu

quartinho.
— Não pode entrar, doçura — reconheci minha cadelinha

pelo latir dela.


Sentou-se, obediente. Então, abri e fechei a porta
rapidamente. Acendi a luz. Com passos largos, desligando a babá
por algum tempo, aproximei-me do bercinho onde minha bebê estava
agitada, chorando baixinho.
— Papai irá verificar o que está te incomodando, meu bebê

— sussurrei. Curvando-me em direção a ela, a peguei no colo,


traçando círculos suaves nas suas costas para acalmá-la.

Instantaneamente, inspirando fundo, senti o cheirinho acre e soube


qual era o problema.
— Vamos trocar essa fraldinha, amor.

Cantarolando uma canção que tinha visto na internet,


carreguei-a até o trocador e deitei-a na superfície acolchoada.

Removendo os sapatinhos, desabotoei o macacãozinho e abri a


fralda.

— Caprichou, hein, querida? — Franzi o cenho enquanto


embolava a fralda, descartando-a no lixo.
Só de removê-la, vi que minha menininha parecia mais

tranquila, o choro perdendo a intensidade. Aurora detestava ficar


suja.

Com destreza, peguei um lencinho, passando-o suavemente


nas suas dobrinhas delicadas, e, dando-me por satisfeito, foi a vez
da pomada antiassaduras. Sorri, satisfeito, quando terminei o

processo mecânico de trocar fralda e vesti-la novamente, e vi que ela


havia se acalmado. Higienizando minhas mãos, tornei a pegá-la no
colo, mas ao invés de levá-la até o berço novamente, aproximei-me
da poltrona onde Bárbara costumava amamentá-la e sentei-me.

Rente ao meu peito nu, apreciei por minutos a fio o simples


fato daquele serzinho, tão pequenino e frágil, se sentir calma e

confortável contra o calor da minha pele coberta de cicatrizes.


Tendo-a em meus braços, mais uma vez, minha bebê, sem saber, me
dava um enorme presente que, não apenas metaforicamente, dava

um giro na minha vida. Se ainda houvesse algum resquício da ideia

de que eu era um demônio, minha Aurora acabava de destrui-la por


completo.

Não havia mais sombras, só um homem que amava sua filha

incondicionalmente, um homem que era movido pela felicidade e pela

completude que só a paternidade poderia trazer. Que tinha se


realizado. Que tinha vencido. Que não olharia mais para trás, apenas

para o futuro, futuro representado por aquela doce criança que me

amava sem emitir uma palavra.


Segurei as minhas lágrimas quando sua mãozinha sem

querer encostou no meu peito, parecendo tocar diretamente o meu

coração, que logo se acelerou.


— Obrigado, meu amor — sussurrei com a voz rouca —,

papai nunca vai cansar de amar você.


Fechei os olhos, apreciando aquele contato pai e filha e, com

o coração batendo em uníssono com o da minha princesa, cochilei

com ela em meus braços, só acordando quando, horas depois, ela


chorou querendo mamar.
Capítulo cinquenta e oito

— Hoje você está faminta, minha bebê.

Suspirei baixinho, assistindo-a sugar o meu mamilo com

calma, acompanhando os movimentos das mãozinhas que abriam e


fechavam. Eu gostava muito daquele momento íntimo e fascinante de

amamentar meu bebê, de ter sua pele suave e macia contra a minha,

pena que, com o tempo, aquele pequeno prazer se transformaria em


dor quando os bicos dos meus seios ficassem ainda mais sensíveis e

os primeiros dentinhos nascessem. Quando senti o meu seio

esvaziar, com cuidado, pegando a outra mama, troquei-a de lado.

Não demorou nem um minuto para que Aurora encontrasse minha

mama e começasse novamente a mamar com afinco.


— Isso, minha garotinha — sussurrei, incentivando-a.

Os cachorros, que até então estavam tranquilamente

deitados nos meus pés, ficaram subitamente agitados e, erguendo-

se, correram em direção a porta.

— O seu papai deve ter chegado — continuei a conversar

com a minha bebê —, quer apostar quanto que daqui a pouco ele
estará…
— Como está, mi Sueño? — Um Javier esbaforido disse ao
adentrar na sala de estar com passos largos, seguido dos dois

cachorros.

Não contive um sorriso ao ver o amor tomar as feições do

meu marido e voltei a minha atenção para a pequena que, reagindo a

voz do meu marido, ficou agitada e largou o meu seio. Ele

aproximou-se de nós.
— Esfomeada.

— Hum…

Ergueu o meu rosto com um dedo e deixou um beijo suave

em meus lábios, que os deixou formigando por mais.

Meu olhar pousou sobre a pequena e eu o vi acariciar os

cabelinhos da nossa menininha.

— Ela já acabou de mamar?


— Pelo jeito, sim.

Aurora se movimentou no meu colo e abriu os olhinhos para

fitar seu papai babão, movendo as mãozinhas em sua direção.

Coloquei-a de pé para evitar o refluxo.

— Dê-me ela — pediu em um tom baixo, estendendo seus

braços na direção da nossa filha — eu a coloco para arrotar.


— Claro.
Não discuti, apenas entreguei-a para o meu marido, que

apoiou a cabecinha em uma mão e o corpinho com a outra. Eu sabia


que ele estava louco para pegar a nossa menininha no colo. Tive

medo de que, no futuro, ela acabasse ficando mal acostumada como


diziam por aí, porém a pediatra da nossa filha acabou
desmistificando essa ideia, dizendo que o ato de dar colo era uma

forma de transmitir segurança ao bebê, além do afeto.


— Papai sentiu muita falta de você, Aurora — falou baixinho

e começou a caminhar pela sala —, ele tem odiado ficar cada


segundo longe de você.

Se isso fosse possível, meu sorriso ficou ainda maior.


— Você arruinou o homem de negócios que há dentro de
mim, pequena — continuou.

Não contive a minha gargalhada com o comentário absurdo


do meu marido.

— Espero que não, Javier — provoquei-o, resistindo à


vontade de estalar a língua como ele —, você tem uma linda

princesinha para sustentar.


Vi um sorriso surgir nos lábios dele e Javier me encarou.
— Uma princesinha bem cara por sinal, já que ela não pode

sentir uma fralda suja que cai no choro.


Fechou a cara, fingindo uma raiva que não sentia.

— Hey, docinho, não dê importância para as palavras da


mamãe — beijou a mãozinha dela —, ela está brincando.

Balancei a cabeça em negativa e, depois de passar um


paninho nos bicos dos meus seios, ergui as alças da blusa que

usava. Levantei e me aproximei da janela onde os dois estavam.


Fiquei nas pontas dos pés e sussurrei na orelha dele, não
escondendo a minha diversão:

— Que coisa feia, “marido”, fazendo complô contra a mãe


dela só para ser o pai favorito.

— Eu não preciso disso, “esposinha”, eu já sou o favorito


dela… — disse cheio de convicção, tanto que, se eu não o
conhecesse melhor, acreditaria que Javier estava de fato falando a

verdade. — Não é, doçura?


Para contrariá-lo, Aurora começou a chorar baixinho. Meu

marido fez uma careta de todo o tamanho e eu ri.


— Assim você machuca o papai, Sueño — falou com a voz

rouca, beijando o topo da cabeça dela.


— Deve ser a fralda.
Dei de ombros e peguei-a do colo do meu marido, porém,

quase que imediatamente, Aurora parou de chorar.


O bico que Javier fez foi impagável. Ele vinha se tornando um
grande dramático.
— Não leve para o lado pessoal — pedi em um tom

brincalhão e, segurando-a firmemente, caminhei até o sofá.


Meu marido não respondeu, apenas seguiu sua menininha

como se fosse um cachorrinho.


Sentei-me e trouxe a bebê mais contra mim, cujos
movimentos passaram a ficar desacelerados.

— Você ficou magoado? — questionei.


— Não. — Abriu um sorriso enorme. — Minha menininha

nunca será capaz de me machucar. Eu a amo demais para ter


qualquer sentimento negativo em relação a ela.

— E ela também o ama demais, não é, bebê?


Inclinou-se, ficando na nossa linha de visão, e acariciou os
fios pretos tão parecidos com os dele.

— Ainda mais por ela ter criado a oportunidade perfeita… —


Ignorou a minha fala sobre o quanto Aurora gostava dele.

Encarei seus olhos verdes, que estavam fixos nos meus e


pareciam emocionados. Estremeci, sentindo várias emoções me
percorrerem.
— Oportunidade? — A palavra saiu embargada pelos meus
lábios.
— ¡Sí! Uma ocasião maravilhosa.

— Para quê?
Outra vez, não disse nada, apenas ficou de joelhos e levou a

mão ao bolso da calça.


Fechei os olhos, sentindo o meu coração bater tão rápido
que parecia saltar no peito, tanto que eu podia ouvi-lo retumbando.

— Você sabe que não sou muito bom em expressar com

palavras meus sentimentos — começou e eu me forcei a abrir os


olhos para encará-lo, embora as lágrimas começassem a turvar a

minha visão. — Mas a cada dia com você e com a nossa princesa,

eu tenho aprendido dizer aquilo que sempre me foi proibido…

— Eu sei, amor…
— Às vezes sinto que peco pelo excesso, em outras,

acredito que deveria falar mais vezes, em voz alta, o quanto amo

vocês duas. — Sua voz começou a ficar embargada.


Vi sua expressão tornar-se mais séria.

— Até mesmo, procurar palavras melhores que façam jus

aos meus sentimentos.


— Não, querido. — Acomodei a pequena Aurora em um

braço, esticando uma mão para tocar o rosto do meu amado. —


Cada frase que sai da sua boca para dizer o quanto nos ama é

perfeita.

— Obrigado.
Sorri para ele.

— Sei que praticamente te coagi a se casar comigo, Luz —

continuou —, mas eu não consigo me arrepender de cada segundo

dele, pois me trouxe o seu amor, seu afeto. Trouxe-me luz.


— Nem eu… — murmurei, sentindo lágrimas deslizarem pela

minha face. — Nunca irei me arrepender de ser a sua mulher, Javier,

de ser a sua esposa, sua companheira.


— Me alegra saber isso…

Acariciei o queixo sem barba, já que ele havia tirado para

não incomodar nossa bebê.


— Mas eu sei que você merece muito mais do que algo

imposto, Bárbara.

Suas palavras foram como receber um soco na boca do

estômago, mas logo a pressão diminuiu ao vê-lo remover uma


caixinha do bolso da calça e ouvir as suas seguintes palavras:
— Você merecia ter sido pedida em casamento pelos

motivos certos, por amor. — Abriu o invólucro, revelando-me um anel

de esmeralda. — E é por isso que, aqui e agora, diante da vida que


mais amamos, sem as palavras românticas que você tanto merece,

já que não consigo formulá-las, é que te peço para que se case

comigo de novo.

Eu tremia, minha respiração passou a ficar ofegante. Senti


que me apaixonei outra vez pelo homem ajoelhado à minha frente.

Poderia não ser o pedido mais romântico do mundo, mas era o mais

lindo que um dia esperava receber.


— Bárbara, você aceita se casar com um homem que

promete tentar demonstrar a você tudo o que ele sente até o último

dos seus dias? Que procurará te fazer sempre feliz?

— Sim, meu amor — consegui murmurar em meio ao pranto.


— Não há nada mais que eu queria do que recomeçar ao seu lado e

da nossa pequena, tornando-me sua esposa outra vez.

Pegou a minha mão que estava no seu rosto, que


coincidentemente era onde eu já carregava a nossa aliança e o anel

de noivado, e colocou a joia no meu dedo.

Deixou um beijo na pedra.


— Agradeço por fazer de mim o homem mais feliz do mundo,

mi Luz — falou baixinho, deixando uma trilha de beijinhos no dorso


da minha mão.

— E eu a você, por dar a mim tudo o que uma mulher

poderia querer, Javier — disse em meio a um sorriso.


Não tivemos mais tempo para trocar nenhuma outra palavra,

pois o nosso pacotinho, que havia cochilado, decidiu que era o

momento ideal para interromper-nos.

O choro atingiu nossos ouvidos, ecoando pela sala, e o


cheirinho acre que surgiu no ar não deixava dúvidas do que se

tratava.

Javier se ergueu.
— Pode deixar que troco ela. — Pegou-a dos meus braços.

— Você cuidou dela o dia inteiro, então está na minha vez.

— Enquanto isso, farei algo especial para o nosso jantar —

mandei um beijo no ar para ele ao me erguer —, afinal não se é todo


dia que se fica noiva, e muito menos pela segunda vez e com o

mesmo homem.

Ele gargalhou em meio ao pranto da minha pequena.


— Você me deixa maluco, garota — fez um som de desdém.

— Bom saber, senhor.


— Mas a minha princesinha ainda mais — falou ao começar

a andar apressadamente em direção ao quartinho dela.

Rindo, fui em direção a cozinha, não podendo me sentir mais

feliz por ter aquele homem ao meu lado.


Epílogo

— Feche os olhos, por favor, senhora.

Fiz o que o maquiador pediu e, sem prestar atenção naquilo

que as meninas diziam entre si, minha mente foi tomada por várias
lembranças dos últimos meses. Parecia que tinha sido ontem que

Javier havia me pedido em casamento outra vez, e não há quase

sete meses. Os dias haviam se passado tão rapidamente que mal


podia acreditar que a nossa pequena Aurora já conseguia ficar

sentada sozinha, comia frutinhas e papinhas, e já estava arrastando

a bundinha para começar a engatinhar atrás dos seus irmãozinhos de

quatro patas, que adoravam brincar com a bebê.

Mesmo que eu e Javier quiséssemos ter mais filhos, já que


juntos passamos a sonhar em ter uma família grande com uma casa

igualmente grande, meu marido tinha optado por aguardar alguns

anos para tentarmos ter outro bebê. Ele queria que eu me realizasse

profissionalmente primeiro, que eu estudasse, que eu me

encontrasse como ser humano, não me relegando apenas ao papel

de mulher e mãe. Saber que Javier me apoiava na decisão de fazer


uma faculdade, tinha descoberto o meu amor pela farmácia por
acaso, era muito importante para mim. Eu o amava ainda mais por
saber que ele estava disposto a ficar com a nossa bebê enquanto eu

frequentava as aulas, que começariam no mês que vem.

Nós olhávamos para frente, não para o passado. Angelina

continuava presa e, felizmente, o pai dela dava todo o suporte para o

neto. Já a avó de Javier, pela idade, tinha acabado internada em

uma casa de repouso pelas suas condições mentais, dando a ela


uma dignidade para o final da vida, ainda que não merecesse.

— Pronto, senhora — o maquiador falou.

Abri meus olhos e vi através do espelho que não era apenas

o profissional que me encarava com um olhar satisfeito, mas também

as minhas duas melhores amigas, Val e Soledad.

— Você está divina — a namorada do meu irmão falou em

meio a um gritinho.
— Acho que ainda mais linda do que da primeira vez —

Valdete concordou.

— Obrigada, meninas. — Disse ao erguer-me.

Caminhei em direção ao espelho de corpo inteiro para

contemplar-me, algo que, até então, não havia feito. Diferentemente

do meu primeiro vestido, o corpete tinha um decote coração com


uma alcinha fina bordada com diamantes e a saia era evasê. Não era
tão provocante, mas, ainda assim, lindo, porém o que realmente me

chamava a atenção era a expressão que eu tinha em minha face. Era


inegável o quão radiante eu estava.

— Nervosa? — Soledad perguntou.


— Somente um leve friozinho na barriga.
Sorri. Acreditava que não seria dominada por um nervosismo

exacerbado por renovarmos nossos votos. Talvez fosse o fato de


saber que era muito amada pelo homem que me esperaria no altar,

por já ter sentido esse amor, que me deixasse mais tranquila.


Pousei a mão no meu abdômen que, por mais que eu

tentasse, ainda não havia voltado à forma que tinha antes da


gravidez, e talvez nunca voltasse.
— Vamos? Não quero deixar Javier esperando como da

última vez — falei.


— Pablito me mandou uma mensagem dizendo que ele já

está andando de um lado para o outro, como um tigre enjaulado —


minha cunhada disse.

Não contive uma risada e maneei a cabeça, sem querer


fazendo com que várias mechas saíssem do coque.
— Temos que arrumar isso primeiro — Val comentou. —

Cabelereiro!
Sentei-me novamente. Não sei quantos minutos se passaram

até que o meu penteado fosse refeito e eu finalmente me pusesse a


caminho da pequena igreja de tijolos, que pareciam de barro, em

estilo romanesco, de Valderredible. Javier tinha sugerido que nos


casássemos em Paris, já que era o meu sonho conhecer a cidade

francesa do amor, porém, para mim, não havia lugar mais lindo no
mundo que aquela propriedade do meu marido. O sol sumindo entre
as montanhas era uma das vistas mais bonitas que eu já tinha visto.

Então, por que não me casar ali?


Observei a paisagem belíssima enquanto o carro se dirigia

ao local da cerimônia. Quando avistei a igreja ao longe, senti meu


coração bater mais forte, o nervosismo que não sentia antes vindo à
tona. Minha mão começou a ficar suada.

— Respire fundo, Babi — Valdete disse com a voz divertida


—, ou você terá uma síncope antes mesmo de ver o seu “noivo”.

Forcei-me a fazer como sugerido, procurando me acalmar.


Soledad, que estava sentada no banco da frente da limusine, riu.

— O que o amor não faz com as pessoas — minha cunhada


falou em meio à risada.
Estalei a língua igual ao meu marido.
— Duvido que não se sentirá dessa forma quando se casar
com o meu irmão — provoquei-a e a vi ficar vermelha.
— Estamos juntos há muito pouco tempo ainda — comentou

e eu pude sentir em seu tom que ela tinha esperanças de ter um


futuro com Pablito.

Eu não poderia prever o que aconteceria com os dois, mas


torcia fortemente para que eles ficassem juntos. Soledad era uma
mulher incrível e, mesmo conhecendo o passado do meu hermanito,

ela ofereceu apoio incondicional para ele o abandonar, ainda que


fosse impossível o esquecer por completo. Quase dois anos tinham

se passado e, mesmo assim, eu ainda me sentia receosa pela vida


do meu irmão. A ameaça sempre estaria pairando sobre nossas

cabeças.
— Quem sabe em um futuro próximo. — Estendi a mão para
ela, que a pegou e eu a apertei. — Adoraria que fôssemos irmãs. Na

verdade, eu tenho vocês duas como se fossem.


— Vou borrar toda a minha maquiagem — Soledad

choramingou.
— Desculpe, querida.
Não tivemos mais tempo para conversar, pois logo o veículo

parou e eu me vi na frente da igreja, recebendo um buquê de flores


de laranjeira da cerimonialista. Respirando fundo, tentando manter-
me calma, dei o primeiro passo em direção ao tapete vermelho,
acompanhada de Isabel e Lorenzo. Vi alguns poucos convidados de

relance, que incluíam Oscar e a Joana, que haviam nos pegado no


flagra no banheiro.

Meu coração, que já batia acelerado, pareceu ribombar


ainda mais ao ver meu marido, elegantemente vestido em um
smoking, esperando-me no altar, segurando uma menininha agitada

em seus braços, em um lindo vestido branco de noivinha, que para a

decepção do meu marido, esticou os bracinhos querendo o colo do


meu irmão. Os meses poderiam ter se passado, mas as

provocações não haviam acabado. Sorte de Pablito que meu marido

levava tudo na esportiva.

A cada passo que eu dava em direção ao altar, me sentia


mais trêmula. Meus olhos encheram de lágrimas ao ver Javier chorar

copiosamente, completamente emocionado.

— Você está linda, Luz — falou com a voz embargada ao


pegar a minha mão assim que parei na frente dele. Levou-a aos

lábios.

— E você parece um príncipe, Javier — disse com um


enorme sorriso e vi os olhos dele brilharem de diversão.
— Um príncipe, garota? — sussurrou na minha orelha e eu

senti todos os pelinhos da minha nuca se arrepiarem. — Estou longe


de ser um.

— Será? — Não contive a minha vontade de atiçá-lo.

— Hm.
— Podemos começar? — o padre nos interpelou.

— Sim — dissemos em uníssono, animados.

A cerimônia se passou como um flash para mim, a única

coisa que fui consciente foi dela ser interrompida pelos latidos dos
cachorros e, vez ou outra, com os barulhinhos infantis.

Ficamos frente a frente, completamente trêmulos, prestes a

renovar nossos votos. Javier pegou o anel de cima do púlpito e eu


estendi minha mão esquerda para ele, cujos outros anéis eu não

havia retirado.

— Poderia estar recitando algumas palavras prontas que


traduzem o amor que sinto por você, porém seria fácil demais,

covarde demais, e nunca chegaria perto daquilo que

verdadeiramente nutro por você. — Sua voz soou rouca. — Em

pouco tempo, você não apenas trouxe luz e felicidade para a minha
vida, mas também me deu tudo aquilo que eu não mais esperava

encontrar, o amor, em suas diferentes nuances, um amor que dói,


mas que ao mesmo tempo me faz sorrir, que preenche vazios, que

constrói.

Senti mais lágrimas escorrerem pelo meu rosto com a


emoção.

— Você realizou… Você… os meus sonhos, você… —

embaralhou-se com as palavras e eu achei isso extremamente fofo.

— Você sempre foi o meu lar, meu abrigo. Você, garota, me trouxe
vida, cor.

— Javier…

— Aprendi a amar com você e espero que, com essa aliança


— começou a colocar o anel no meu dedo —, você aceite para

sempre esse amor, que, algumas vezes, é bastante imperfeito, que

não chega aos pés daquilo que uma mulher como você merece, mas

que juro ser incondicional.


Levou minhas mãos aos lábios, plantando um beijo também

na aliança que simbolizava aqueles sentimentos.

— Nosso amor é perfeito, Javier. — Minha voz soou trêmula


e peguei a aliança dele, começando a colocar no seu dedo anelar. —

E eu passarei o resto dos meus dias provando a você o quanto ele é

sublime, forte e inquebrantável, que você é muito mais do que

sempre sonhei para mim.


Sorriu por entre as lágrimas.

— Que essa união é muito mais do que companheirismo,


fidelidade e desejo. Nosso casamento é para sempre. — Fiz uma

pausa, terminando de colocar o anel no dedo dele. — Eu amo muito

você.
— Eu também amo você, Bárbara — sussurrou.

— Tenho uma coisa para te mostrar. — Sem esperar uma

resposta, puxei o saquinho que estava acomodado no meu corpete e

entreguei a ele.
— Você as guardou? — disse em um tom embargado ao

contemplar as arras, as trezes moedinhas que ele havia me dado no

nosso casamento e que de algum modo havia nos dado sorte.


Apenas assenti.

Como resposta, guardando o saco no bolso da calça, Javier

segurou o meu rosto com as duas mãos e puxou-me para um beijo,

sem se importar com o consentimento do padre. Ouvi um barulho de


palminhas, que poderia ser de um dos trigêmeos, e latidos altos dos

cachorros, que começaram a se agitar, trançando entre nossas

pernas.
Sorri contra a boca de Javier antes que ele me desse um

beijo de tirar o fôlego.


Ele lambeu delicadamente os meus lábios e entreabri-me

para ele, até que nossas línguas se encontrassem, sedentas, não

cansávamos de provar um ao outro. Foi só o som de um chorinho

estridente que fez com que descolássemos nossas bocas. Ficamos


nos fitando por alguns segundos até que o pai protetor vencesse o

marido e, para a graça de todos, que emitiram uma risada, ele

estendeu os braços para pegar uma Aurora agitada e com os


olhinhos verdes tomados pelas lágrimas. Os cachorros davam

patadas na calça social dele, querendo consolar a menininha.

— Assim está melhor, não é, querida? — Falou alto para

todo mundo ouvir, principalmente o Pablito, que a estava segurando.


— Acho que ela não concorda com você — Pablito sibilou

baixinho enquanto a bebê continuava a chorar.

— Não, não, meu amor. — Javier ignorou meu irmão,


balançando-a suavemente, começando a cantar uma das

musiquinhas prediletas dela.

Não resisti e abracei dois dos meus amores, que estavam

envolvidos um no outro. Perante sua princesinha, Javier esquecia de


tudo.

Senti os cachorros deitarem nos nossos pés.


Pouco a pouco a bebê parou de chorar, suas mãozinhas

batendo no peitoral do meu marido, mas continuamos abraçados.


Não havia melhor forma de celebrarmos aquilo que há dois anos

tínhamos começado a construir: nossa família.


Em breve...
Mineira, se apaixonou por romances há alguns anos, quando
comprou e devorou um romance de banca que adquiriu em um
supermercado. Após aquela leitura, não parou mais de comprar
livros e ler. Encontrou no mundo da literatura um lugar de prazer e
refúgio. E agora se aventura em escrever suas próprias histórias.
Siga Aline no Instagram:

https://www.instagram.com/autoraalinedamasceno/
Conheça outros livros da autora

Um bebê por encomenda

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Sinopse: Solteirão convicto e CEO da maior companhia do
ramo de alimentos do país, Jefferson Richelme tinha apenas um

objetivo de vida: tornar-se ainda mais poderoso e rico; o que não

incluía formar uma família, para o desgosto do seu avô, Estebán.


Nascido em berço de ouro, o milionário sempre teve tudo o

que desejava. Depois de descobrir que o próprio pai desviava

dinheiro da empresa do avô, ele queria mais do que nunca que


Estebán tirasse o seu genitor da presidência, rebaixando-o de cargo

e assim, salvando o negócio da família. Mas convencer o velhinho a

fazê-lo não seria nada fácil, pois o avô só daria ao empresário o que
tanto almejava se ele lhe desse um outro herdeiro.

Um filho, definitivamente, não estava em seus planos.


Encurralado e não querendo se envolver com uma

desconhecida e ficar amarrado a ela para sempre, o magnata, se

sentia cada vez mais pressionado a ter um bebê. Mas um plano

surge em sua mente ao ouvir que a menina que viu crescer, a sua

melhor amiga de infância, desejava ser mãe. Não havia mulher mais

perfeita para gerar o seu filho, já que Sofia era adorada pelo avô.
Um CEO precisando de um herdeiro, uma mocinha traída,

uma proposta indecente e uma gravidez! Uma comédia romântica


doce que deixará o seu coração quentinho.
Minha segunda chance

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segunda-chance/

Sinopse: Sentindo-se culpado pelo acidente de carro que

vitimou o seu melhor amigo, o milionário do ramo madeireiro,

Alexander Brooke, como forma de autopunição impôs-se a solidão,


afastando-se de todos que o amavam. Recluso e agora sombrio, ele

abandonou seus sonhos, inclusive de ser amado e formar uma


família.

Quando uma menina, tão quebrada quanto ele, fraca e

desnutrida, aparece em sua porta precisando de proteção, o CEO


não hesitou em cuidar dela, embora lutasse arduamente contra os

sentimentos despertados por aquela desconhecida, emoções que

não poderia mais permitir ter. E lutar contra a tentação que Mariana
representava tornou-se impossível para o homem poderoso, e

acabou tomando sua inocência e luz para si.

Mas aquela felicidade frágil ao lado da sua Pequena poderia

vir a ruir quando o milionário se vê obrigado a cuidar da filha do seu


melhor amigo.

Um milionário envolto em sombras, uma virgem inocente, uma

bebê órfã, uma segunda chance!


A paixão do CEO (Phillips e Madeline)

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Sinopse: Sua secretária não resistiria a ele...

Depois de muito lutar contra o desejo que sentia, o CEO da


Jhonson's and Phillips's, uma grande multinacional do ramo

imobiliário, estava determinado a conquistar sua secretária

supereficiente e torná-la sua amante, sem se importar com as


consequências, e por tempo indeterminado. Porém os planos do

empresário vão por água abaixo quando um obstáculo se interpõe no

seu caminho.
Machucada e ferida por um relacionamento fracassado,

Madeline Jameson, secretária do CEO da J&P, não queria se

envolver tão cedo com outro homem. Mas o seu chefe, e amigo,
estava determinado a arrastá-la à uma ilha australiana a fim de

avaliar o estado físico do local e, principalmente, para seduzi-la.


Poderá a convivência entre os dois forjar algo além da atração

e do desejo?
A menina inocente do CEO

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Sinopse: Ele não confiaria em mais ninguém...

CEO multimilionário da Matiazzi Corporation, uma empresa


reconhecida mundialmente no ramo da construção, Fernando

Matiazzi era um homem amargurado, frio e cético, que controla tudo

e a todos ao seu redor. Não há nada, nem ninguém, que o dinheiro


não possa comprar.

Cínico e arrogante, cuidava da empresa e da sua vida com

mão de ferro, afastando todos que ousavam se aproximar. Ele nunca


se deixaria enganar, não mais...

Porém suas barreiras de gelo e de cinismo poderão começar

a ruir quando uma jovem, meiga, inocente e persistente, entra na sua


vida e começa a colocar em xeque tudo o que ele acreditava que era

e se tornou.
Será que a doçura dela conseguirá quebrar o coração de gelo

desse CEO calculista?


A virgem comprada do Magnata

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Sinopse: Bilionário conhecido por seu gênio controlador,

sua arrogância e foco nos negócios, o magnata Andrea Della Torre


sempre conseguia o que queria e não se importava de passar por

cima de tudo para alcançar os seus objetivos. E ele estava

determinado a ter em sua cama a única mulher que nos últimos anos
despertou o seu interesse e que tinha seu respeito: sua secretária.

Mesmo que para isso tivesse que comprá-la, pois todos tinham o seu

preço.
Adelle Beckett desde nova teve que assumir várias

responsabilidades, dentre elas a criação de seu irmão, após a morte

de sua mãe em decorrência de uma overdose. Conciliando o trabalho


e os estudos, ela faria de tudo pelo pequeno William, inclusive se

vender ao seu chefe para pagar a cirurgia de urgência que a criança


precisaria fazer. Era isso, ou pegar emprestado com um agiota, e a

mulher não hesitou em assinar o contrato que faria dela a amante

exclusiva por tempo indeterminado do poderoso magnata.

Ele não queria se envolver emocionalmente, ainda mais com

uma mulher que achava que queria apenas o seu dinheiro, traindo-o.

Ela não desejava perder o seu coração e se apaixonar por ele, um


homem rico que não suportaria lidar com seus sentimentos.
Mas esse acordo selado por meio de cláusulas contratuais
poderia ser a ruína de ambos, principalmente a dele.

[1] Você me coloca para cima quando eu estou para baixo


Você me toca profundamente, você me toca certo
Você faz coisas que eu nunca fiz antes
Você me faz perverso, você me faz selvagem
Porque, baby, você é minha número um

[2] Demônio de gelo.


[3] Menino.
[4] Minha cara.
[5] Garota.
[6] Etapa não obrigatória, equivalente aos dois últimos anos do ensino médio
no Brasil. Usada para a admissão no ensino superior espanhol.
[7] Irmão.
[8] Gatinha.
[9] Coração.
[10] Irmãzinha ou irmã menor.
[11] Minha pequena estrela.
[12] Senhor.
[13] Caralho.
[14] Maldito.
[15] Deus.
[16] Minha preciosa.
[17] Sim.
[18] Rato.
[19] Amigo.
[20] Merda.
[21] Porra.
[22] Amor.
[23] Amor.
[24] Maldito sejas!
[25] Menininha.
[26] Meus bebês.
[27] Mãe.
[28] Filho.
[29] Pirralha.
[30] Apesar da palavra significar irmãozinho ou irmão menor, no livro, a
autora optou por usar a palavra “irmãozinho” na conotação mais carinhosa.
[31] Não quero te fazer sofrer.
[32] É melhor esquecer e deixar assim.
[33] Esse beijo que sempre te prometi. Coloque a culpa em mim.
[34] Garota.
[35] Caralho.
[36] Filho da puta.
[37] Uma coelhinha assustada.
[38] Maldita seja!
[39] Merda.
[40] Pirralho.
[41] Prato espanhol feito com pão amanhecido, tomate e aliche.
[42] Cachorrinhos
[43] Bairro de Madrid conhecido pela sua vida noturna.
[44] Carinho.
[45] Velha.
[46] Maldita rameira.
[47] Desgraçado.
[48] Inferno.
[49] Talvez.
[50] Carinho.
[51] É o meu pequeno anjo.
[52] Papai já te ama e sempre te amará, minha vida. Você é o meu maior
presente.
[53] Desgraçada.
[54] Preciosa.
[55] Merda.
[56] Filho da puta.
[57] Amigo.
[58] Inferno.
[59] Bruxa.
[60] Em boca fechada não entra mosca.
[61] Filho.
[62] Garoto.
[63] Filha.
[64] Nora.
[65] Preciosa.
[66] Amor.
[67] Técnica de pintura que consiste na aplicação de tinta dissolvida em
água em uma base feita de nata de cal e areia ainda úmida. Em sua maioria
os afrescos são pintados em forma de mural.
[68] Minha preciosa.
[69] Você me faz selvagem, mulher.
[70] Garota em francês.
[71] Plataforma que faz a venda e compra das criptomoedas.
[72] Minha Luz.
[73] Exame escrito realizado na Espanha para admissão no ensino superior.
[74] Doce feito de massa folhada frita, recheado com creme de confeiteiro,
envolvido no açúcar de confeiteiro.
[75] Sou um idiota.
[76] Merda ou porra.
[77] Preciosa.
[78] Irmão.
[79] Diabos.
[80] Formosa.
[81] Gostosa.
[82] Garota insaciável.
[83] Gosto disso.
[84] Bruxa.
[85] Gostosa.
[86] Abreviatura de madame ou senhora em francês.
[87] Na tradução: Token que não pode ser substituído (fungível).

NFT é um ativo (algo que pode ser convertido em dinheiro) — que


representa digitalmente um objeto da realidade. Usa a mesma tecnologia da
bitcoin, sem nenhum lastro de moeda.
[88] Gostosa pra caralho!
[89] Expressão idiomática que significa pessoa cabeça-dura ou teimosa.
[90] Prato da culinária espanhola feito com arroz e frutos do mar.
[91] Meu sonho.

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