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A Redenção da Fera

Copyright © Thalita Branco


1ª Edição – Agosto de 2023

@thalitabrancoautora

Revisão: Thalita Branco


Diagramação: Thalita Branco
Leitura beta: Bianca Maria, Bianca Noronha, Daia Vitoriano, Laura Marine e Vera Lucia
Leitura sensível: Joana Lutzke
Assessoria: Vanessa Pavan
Capa: L. A. Design
Ilustração: Carlos Miguel
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes ou acontecimentos reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei de Direitos Autorais 9.610/98 do Brasil, bem como demais leis sobre direitos
autorais dos países em que essa obra for adquirida.
Nenhuma parte do conteúdo deste livro poderá ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma sem a expressa
autorização por escrito da autora. Plágio é crime!
Sumário

Sumário
Sinopse
Nota da Autora
Dedicatória
Prólogo – Artur
Capítulo 1 – Milena
Capítulo 2 – Milena
Capítulo 3 – Milena
Capítulo 4 – Artur
Capítulo 5 – Milena
Capítulo 6 – Artur
Capítulo 7 – Milena
Capítulo 8 – Artur
Capítulo 9 – Milena
Capítulo 10 – Artur
Capítulo 11 – Milena
Capítulo 12 – Artur
Capítulo 13 – Milena
Capítulo 14 – Artur
Capítulo 15 – Milena
Capítulo 16 – Artur
Capítulo 17 – Artur
Capítulo 18 – Milena
Capítulo 19 – Milena
Capítulo 20 – Artur
Capítulo 21 – Milena
Capítulo 22 – Artur
Capítulo 23 – Milena
Capítulo 24 – Artur
Capítulo 25 – Milena
Capítulo 26 – Artur
Capítulo 27 – Artur
Capítulo 28 – Milena
Capítulo 29 – Artur
Capítulo 30 – Milena
Capítulo 31 – Artur
Capítulo 32 – Milena
Epílogo – Artur
Sinopse

Aos 42 anos, o poderoso magnata Artur Milano está acostumado a ter tudo.
Dono de uma bem-sucedida empresa do ramo médico, mora em mansões,
ostenta carros de luxo e deseja pedir a mulher que ama em casamento.
Até um grave acidente mudar os seus planos.
Traumatizado e com o coração partido, o milionário se torna um homem
amargurado e difícil de lidar. Ao manter-se recluso em uma isolada mansão à
beira-mar, cultiva um infinito mau humor enquanto se recusa a seguir as
orientações médicas. Artur tem apenas um intuito, e não é melhorar.
Milena de Villeneuve é uma enfermeira recém-formada de apenas 22 anos.
Conhecida pela gentileza ao lidar com pacientes hostis, torna-se a última
esperança da Família Milano. Precisando quitar as dívidas hospitalares do pai,
aceita a proposta de trabalho sem saber que cairá nas garras de uma intensa
fera.
O coração da inocente enfermeira bate mais forte assim que põe os olhos
no atraente magnata. Ela está disposta a ensiná-lo a amar de novo, mesmo que
ele acredite estar longe de qualquer redenção.
ATENÇÃO: leitura não recomendada para menores de 18 anos. Possui
gatilhos para depressão e menção a tentativa de suicídio.
Nota da Autora

Olá, tudo bem com você?


Seja bem-vinda ao “primeiro” livro do ThalitaVerso. Se você me
acompanhava como Stella Bianchi já sabe que decidi deixar o pseudônimo
de lado para assumir o meu nome de verdade. Sou muito grata a tudo o que
a Stella me trouxe, mas chegou o momento de seguir como eu mesma.
O livro que marca essa transição não poderia ser outro. A Redenção da
Fera surgiu após um momento de grande frustação. Artur não falava na
minha cabeça: ele berrava. Não tive a menor chance. Só me restou
abandonar o cronograma e contar a sua história.
Estou muito feliz por ter feito isso. Eu precisava de um personagem com
o temperamento de Artur. Acho que, no fim, extravasamos as nossas
frustrações juntos.
Nesse age gap conhecemos Artur Milano, um magnata revoltado com
sua nova vida após sofrer um grave acidente de carro. Nenhuma enfermeira
aguenta trabalhar com ele por muito tempo, mas Milena Alves de
Villeneuve precisa de dinheiro. De um lado temos um homem amargurado
de 42 anos que carrega no peito os cacos de um coração partido. Do outro
uma jovem alegre de 22 que fará de tudo para colocar esses cacos no lugar.
Ela irá conseguir? Fica o convite para descobrir.
Apesar dos assuntos serem tratados com leveza, A Redenção da Fera
possui gatilhos para depressão e menção à tentativa de suicídio.
Lembrando, é claro, que esse é um livro recomendado para maiores de 18
anos por conter palavras de baixo calão e cenas de sexo explícito.
Espero que essa fera possa conquistar o seu coração da mesma forma
que conquistou o meu :)
Boa leitura,
Thalita
Dedicatória

A todos que precisam reaprender a amar.


Prólogo – Artur

O que aconteceu?
Mexo os olhos dentro das pálpebras cerradas. A escuridão se mostra fria
naquele estranho estado de vigília que separa o sono do despertar. O suave
som da respiração chega aos meus ouvidos, misturado a bips e zunidos que
não consigo reconhecer.
A única coisa que reconheço é a dor pungente por todo o meu corpo.
Gemo baixinho ao tentar me mexer. O que aconteceu?, repito para mim
mesmo. Forço o cérebro, tentando me lembrar.
Aos poucos surge a imagem de uma importante reunião com o conselho
administrativo. Gráficos projetados no quadro branco. Um séquito de
homens engravatados sentados em uma comprida mesa de vidro.
Congratulações com apertos de mãos e tapinhas nas costas.
Comemorávamos mais um exponencial aumento de lucro? Provavelmente
sim.
Depois, caminhei a passos largos até a minha sala em busca de um único
objeto. Abri uma das gavetas sob a mesa e encontrei a caixinha de veludo
vermelho. Conferi se o anel estava lá, o solitário diamante tão cintilante
quanto saiu da loja. Peguei o telefone e avisei a secretária para que
dispensasse o motorista particular. O meu novo esportivo de luxo havia
chegado e eu mesmo dirigiria até o restaurante onde jantaria com a mulher
que amo.
E só. Não me lembro de mais nada.
Sou o dono da VitalCare Medical Services, uma das mais avançadas e
bem-sucedidas empresas do setor médico do Brasil. Comando uma
gigantesca rede que engloba clínicas e hospitais com o que há de mais
avançado na medicina. Financio pesquisas na área da saúde e auxílio o
desenvolvimento científico em todo o mundo. Convivo com homens
influentes e tomo decisões capazes de impactar milhares de pessoas.
Então o que caralhos aconteceu para eu acordar com a sensação de que
estou deitado em um quarto de hospital?
Abro as pálpebras, bem devagar, e aos poucos a visão enevoada se
clareia. As paredes brancas denunciam que estou exatamente onde imaginei
estar. Olho de relance para o lado, dando de cara com um monitor
multiparâmetro de sinais vitais. Os gráficos parecem constantes,
confirmando que estou vivo.
Deslizo os olhos pelo meu peito e um dos aparelhos solta um bip um
pouco mais alto quando minha respiração acelera. Uma agulha injeta soro
intravenoso em um dos meus braços enquanto outra se ocupa em repor
alguns mililitros de sangue. Franzo o cenho, mais confuso do que nunca. O
que aconteceu para chegar ao ponto de precisar de uma transfusão de
sangue?
Uma avalanche de perguntas sem respostas invade o meu cérebro. Fecho
os olhos com força. Não era para eu estar ali. Era para eu estar na minha
cobertura, deitado na cama com Nicole enroscada em meus braços após
uma gloriosa trepada.
Talvez seja apenas um sonho. Ou melhor, um pesadelo. Só pode ser isso!
Abro os olhos de novo. Dessa vez a visão está límpida o suficiente para
encarar a estonteante mulher parada à porta.
— Nicole? — chamo baixinho, a voz grave mais rouca que o normal.
Ela não encara o meu rosto. Não parece nem ao menos ouvir o meu
chamado. Seus olhos verdes estão fixos em algum ponto abaixo da minha
cintura. Acompanho os movimentos conforme se aproxima com passos
contidos e, sem a mínima cerimônia, afasta o lençol responsável por cobrir
as minhas pernas.
Ou melhor, o que sobrou delas.
Pisco, completamente incrédulo. Não, não, não!, penso ao tentar
assimilar a visão das coxas enfaixadas até a metade. Onde estão os meus
joelhos? As panturrilhas? Os pés? Tento mexer a ponta do dedão e o sinto
doendo! Porra, estou sentindo o dedão, então onde está o meu pé?
— Você sofreu um grave acidente de carro. — Nicole lê a minha mente,
respondendo à pergunta de forma mecânica sem que eu precise de fato fazê-
la. — As suas pernas ficaram presas nas ferragens. — Seu rosto se torna um
esgar. — Os médicos disseram que quase todos os ossos abaixo do seu
joelho foram esmigalhados.
Os bips e zunidos soam mais altos confirme o meu coração acelera no
peito.
— Isso não pode ter acontecido — digo, enfático. — O carro era novo!
Eu estava indo te encontrar e...
— Não foi culpa sua — corta, ainda sem me encarar. — O outro
motorista estava enviando uma mensagem no celular quando perdeu o
controle do caminhão. Os médicos garantiram que só uma amputação
salvaria a sua vida.
Balanço a cabeça. Por mais óbvio que seja, eu me recuso a acreditar. É
impossível que alguém tenha tido a audácia de cortar as minhas pernas!
— Não, não, não... — começo a dizer, dessa vez em voz alta.
Nicole dá alguns passos para trás, até estar perto o suficiente para esticar
uma das mãos em direção a maçaneta da porta.
— Sinto muito, Artur — diz, fechando os dedos sobre o metal.
Arregalo os olhos.
— Você vai embora?
Minha namorada, enfim, me encara.
— Vou.
Uma onda de pânico ameaça tomar conta do meu peito.
— Como assim?
Nicole apruma os ombros e volta a caminhar na minha direção com
passadas firmes. Da posição em que estou, deitado sobre aquela maldita
cama, ela parece ainda mais alta e imponente. O olhar esverdeado passa de
relance pelos cotos enfaixados antes de se fixarem no meu rosto. Encolho-
me contra a cama. Jamais pensei que ela seria capaz de me olhar com tanto
nojo.
— Eu vou embora — diz com a voz firme. — Não quero mais ficar com
você. Não dessa maneira — acrescenta, apontando com o queixo.
Os bips e zunidos aumentam de volume. Sei que o som não é tão alto
assim, mas aos meus ouvidos o barulho é quase ensurdecedor. Inspiro fundo
e o ar fica preso no meio da garganta.
— Mas você disse que me amava...
— Pois é. Não amo mais.
— Por quê? — consigo dizer com um fiapo de voz.
A expressão em seu rosto bonito se torna ultrajada.
— Olha só para você, Artur! — grita, abrindo os braços magros em
minha direção. — O poderoso magnata do setor médico reduzido a... isso!
Quem no mundo dos negócios te respeitará a partir de agora? Eu mesma
não consigo olhar para você! Imagine então... — engole em seco, sem saber
como continuar.
— Imagine o que? — pergunto por mais que algo me diga que irei
detestar a sua resposta.
Nicole morde os lábios, pensativa, mas logo torna a abrir a boca. Ela não
é mulher de deixar de emitir sua própria opinião.
— Ter você dessa maneira — desvia os olhos. — Eu não consigo. Eu
jamais conseguiria. Fico enojada só de imaginar.
Um novo som se mistura aos bips e zunidos. Baixo, mas ainda assim
audível. É o meu coração rachando de cima abaixo.
— Então fomos só isso? — exijo saber. Respiro fundo, fazendo um
imenso esforço para manter a voz firme antes de continuar. — Fomos
apenas atração física e sexo, Nicole?
— Você sabe que não, mas eu jamais poderia te amar dessa maneira —
torna a engolir em seco. — Sem contar que você acabaria com a minha
imagem.
Tento interpretar as palavras que saem dos lábios carnudos da suposta
mulher da minha vida enquanto uma estranha dor se irradia pelas pernas
que não existem mais. Fecho os olhos de novo, torcendo com todas as
forças para que aquilo seja apenas um desagradável pesadelo.
Mas, quando os abro, só me resta soltar um triste gemido ao encarar o
espaço vazio abaixo das coxas e notar que o pesadelo é real.
De repente sou acometido por uma insana raiva.
— E como você acha que sua imagem será melhorada ao descobrirem
que abandonou o namorado com deficiência física no leito do hospital? —
pergunto, a voz tomada de veneno.
Se Nicole o sente, não demonstra. Continua empertigada, o pescoço
altivo como o de um cisne, o ar sábio de quem passou as últimas horas
pensando em tudo.
— Direi que você saiu do trabalho para se encontrar com uma amante.
— O que? — quase berro.
Nicole ignora.
— Você ouviu bem — continua. — Não fui convidada para encontro
algum. Uma fonte próxima a família emitirá uma nota informando que eu
estava em casa quando recebi a ligação avisando que o meu namorado
sofreu um grave acidente. Segundo a fonte, o famoso magnata Artur Milano
estava indo se encontrar às escondidas com uma amante não identificada
enquanto eu me recuperava de uma forte gripe.
A minha visão torna-se vermelha.
— Você sabe que eu jamais faria isso!
— A sua fama o precede — dá de ombros. — Tenho certeza de que
ninguém irá desconfiar.
— Eu posso ter sido um mulherengo cafajeste, mas nunca um traidor! —
elevo a voz. — Desde que nos conhecemos eu sempre fui fiel a você!
A mulher pelo menos tem a decência de encolher os ombros.
— Sinto muito.
Os bips agora são ensurdecedores. Barulhos de passos apressados e
vozes alteradas em urgência se fazem ouvir do corredor. Encaro a mulher à
frente. Minha Nicole. A única capaz de tomar o meu coração. Aquela que
me faria passar uma eternidade ao seu lado. A única que pensei que me
amasse de verdade.
— Eu iria te pedir em casamento — digo bem baixinho.
Nicole torna a descer os olhos para onde estariam as minhas pernas.
— Ainda bem que não pediu.
O estilhaçar do meu coração partido se mistura aos demais sons no
quarto. A dor agora é excruciante como se afiados cacos de vidro
penetrassem, um a um, na pele machucada. Encaro a mulher à frente,
vendo-a pela primeira vez. Dois anos de namoro. Dois longos anos em que
imaginei estar convivendo com a mulher que sempre estaria ao meu lado.
Sem dizer mais nada, Nicole me dá as costas. Acompanho os seus
movimentos em câmera lenta. Os dedos delgados que se fecham sobre a
maçaneta prateada. O movimento de girar realizado pelo seu pulso. A força
empregada pelos músculos do braço para abrir a porta. Parte do meu
cérebro sabe que essa é a última vez que a verei e quer registrar cada ínfimo
momento da sua partida.
Nicole não olha para trás. A belíssima mulher apenas sai, deixando que a
madeira retorne ao batente com um leve baque. O barulho ecoa pelo quarto
e se mistura com os bips e zunidos das máquinas conectadas ao que sobrou
do meu corpo antes que duas enfermeiras irrompam pelo espaço.
E a ficha cai.
— Nicole? — chamo, as palavras se perdendo no ar. — Nicole! —
chamo mais alto.
— Ela já foi embora, Sr. Milano. — Uma das enfermeiras diz. Balanço a
cabeça em negativa.
— Ela não pode ter ido embora! NICOLE! — berro, tentando me
levantar. Mal consigo me sentar. — Volte, Nicole!
— Você precisa se acalmar! — A outra enfermeira pede, colocando um
par de mãos firmes sobre os meus ombros em uma tentativa de me fazer
deitar.
Não sei de onde a força vem, mas ela vem com tudo. Empurro a
enfermeira e volto a me sentar. Estou quase caindo da cama quando mais
duas enfermeiras aparecem. Juntas, conseguem me sobrepujar. Reúno o que
sobra da energia para lutar, mas elas são mais fortes. Dão um jeito de me
mobilizar e, em instantes, os meus braços estão atados à cama.
Balanço o corpo de um lado para o outro, mas não consigo me soltar. A
boca se escancara em um urro frustrado enquanto o peito sobe e desce,
ofegante. Estou preso a mim mesmo e duvido que um dia conseguirei me
soltar.
As enfermeiras se comunicam entre si, mas não dou ouvidos ao que
falam. Sequer escuto as suas perguntas. Finjo que estou sozinho ali. Encaro
a porta, mas é claro que Nicole não volta. Os estilhaços penetram ainda
mais fundo na carne e apenas um pensamento domina a minha cabeça, tão
alto quanto a cacofonia ao meu redor. Torno a olhar para as minhas pernas.
E decido que não vou viver sem elas.
Capítulo 1 – Milena

SEIS MESES DEPOIS


Bato com as pontas dos sapatos no chão, falhando em esconder a
ansiedade. Agarro os joelhos com as duas mãos e me forço a manter os pés
parados. Estou desde ontem tentando entender por que a reitora da
universidade me chamou até o campus. Terminei a graduação em
enfermagem no finalzinho de novembro com excelentes notas, então não há
motivos para ser chamada com tamanha urgência no começo do mês de
fevereiro.
Talvez algum professor tenha lançado uma nota errada, penso,
estremecendo de leve. Olho em torno, esquadrinhando a secretaria vazia.
Sim, só pode ser uma nota errada. Mordo os lábios, torcendo para que
aquilo não prejudique o meu futuro profissional. Apenas agora a saúde de
papai se estabilizou e preciso encontrar um emprego com muita, mas muita
urgência. Sei que o meu histórico acadêmico irá me ajudar.
— Milena Alves de Villeneuve? — Uma voz carregada de firmeza
chama por trás da porta fechada. — Entre, por favor.
Levanto-me de um pulo e respiro fundo enquanto ajeito a bolsa sobre o
ombro. Seja lá por qual motivo fui chamada aqui, estou prestes a descobrir.
Caminho até a entrada da sala da reitoria e giro a maçaneta. Ela range
diante do esforço, mas permite que a porta seja aberta com tranquilidade.
Ao entrar, vejo-me dentro de uma sala espaçosa e simples, decorada por
uma pessoa prática.
Não é a primeira vez que venho até a Sra. Irene Brandão. Apesar do
acúmulo de funções inerente ao seu cargo, a reitora sempre foi atenciosa
com os alunos da instituição. Gostava de transitar entre os corredores da
universidade perguntando aos alunos se estava tudo bem. Quando papai
adoeceu e meu rendimento ameaçou cair, chamou-me à essa mesma sala e
me deu todo apoio necessário para que continuasse estudando. Sou muito,
mas muito grata a ela.
Abro a boca, pronta para cumprimentá-la, quando vejo outra mulher
sentada próxima à mesa. Ela se ergue ao me ver entrar, percorrendo-me de
cima abaixo antes de cravar os poderosos olhos castanhos nos meus. Paro
onde estou, tímida em notar como me visto com simplicidade diante do seu
conjunto de saia lápis e blazer perfeitamente cortado.
Algo em sua postura altiva me faz pensar que estou diante de uma
poderosa mulher de negócios. O rosto bonito coberto por uma maquiagem
leve, denuncia que ela tem no máximo trinta e cinco anos. Os cabelos lisos
cortados na altura dos ombros entregam um leve ar de rebeldia à sua
belíssima aparência.
— Você deve ser a Milena — diz. A voz que sai dos lábios tingidos de
vermelho escuro é clara e imponente. Olha de soslaio para a reitora. —
Quando a Sra. Brandão falou de você jamais pensei que fosse tão jovem.
— Por favor, não ache que a idade de Milena seja sinônimo de
inexperiência. Desde o início do curso ela foi a melhor aluna da sua turma.
Olho de uma mulher para outra sem entender nada.
— Desculpem, mas… o que está acontecendo? — pergunto baixinho. —
Quando recebi a ligação pensei que houvesse algo de errado com as minhas
notas.
— Você vê? — A reitora comenta, bem-humorada. — Além de tudo é
humilde. — Ela me lança um gentil olhar maternal. — Não, Milena, é óbvio
que não há nada de errado com as suas notas. Muito pelo contrário.
A mulher de negócios ri.
— Sou Ágata Milano — estende a mão em um cumprimento. Envolvo
seus dedos nos meus e seus lábios formam um sorriso de lado. — Hummm,
você tem um aperto bastante forte. Ótimo. O meu irmão precisa de uma
enfermeira com pulso firme.
Ergo uma sobrancelha, mais confusa do que nunca, e a reitora se adianta
em explicar.
— A Srta. Milano ligou para a universidade ontem. Ela está em busca de
uma enfermeira para cuidar do seu irmão mais velho.
— Não apenas uma. A melhor. — Ágata corrige. – A Sra. Brandão
sugeriu o seu nome de imediato.
A reitora me lança um rápido olhar antes de voltar sua atenção para o
notebook sobre a mesa.
— Excelentes notas. Avaliações impecáveis em todos os lugares em que
estagiou. Conhecida por saber driblar os pacientes mais difíceis.
— Eles não eram difíceis — deixo escapar, meio sem jeito. — Ambos
foram abandonados pela família na casa de repouso. Passaram meses sem
receber visitas e se tornaram amargurados. Só precisavam de um pouco de
carinho.
Ágata troca o peso de um pé pelo outro, visivelmente desconfortável.
— Digamos que o caso do meu irmão seja um tanto quanto parecido —
deixa escapar —, com a diferença de que ele se isolou por vontade própria.
— O que aconteceu? — pergunto, mas logo em seguida percebo o
quanto a minha curiosidade pode soar rude. — Desculpe, eu...
— Não precisa se desculpar. — Ágata faz um gesto indicando que aquilo
não é nada. — Pelo contrário. Você precisa saber de tudo antes de ouvir a
minha proposta — toma fôlego, como se falar sobre o assunto fosse
bastante difícil. — Há seis meses o meu irmão sofreu um acidente de carro.
Desde então, não pode ficar sozinho. Ele é resistente ao tratamento, mesmo
precisando de cuidados vinte e quatro horas por dia.
— Oh, foi tão grave assim? — pergunto, levando a mão à boca. Ela
assente com o semblante muito sério.
— Foi. Ele passou por uma amputação bilateral transfemoral e se tornou
um homem um tanto quanto difícil — admite. — A enfermeira que vinha
cuidando dele foi embora e, bem... Preciso contratar outra com urgência.
Foi quando me lembrei das profissionais formadas pela instituição
comandada pela Sra. Brandão.
— E eu me lembrei de você. — A reitora fala. — A Srta. Milano teve a
bondade de me deixar a par de tudo antes que eu te ligasse. É uma proposta
de trabalho irrecusável. Tenho certeza de que qualquer enfermeira recém-
formada adoraria estar no seu lugar.
Algo na forma como ela fala deixa claro que é uma proposta irrecusável
para alguém como eu, uma simples estudante que quase não completou o
curso por falta de recursos financeiros. Engulo o orgulho e assinto com
firmeza. Por mais que a indireta doa, a Sra. Brandão não está insinuando
nenhuma mentira.
— Deixe-a decidir por si só. — Ágata comenta. Seu tom é ameno, mas
ainda assim autoritário. Volta a fixar os olhos em mim antes de continuar.
— A minha agenda é muito cheia para ficarmos de rodeios, então vou
direto ao assunto: gostaria de te contratar para ser enfermeira em tempo
integral do meu irmão.
— Eu? — arregalo os olhos ao olhar de uma para a outra.
— Sim, você. Para trabalhar na Ilha das Rosas, no litoral norte de São
Paulo.
— Oh! — deixo escapar enquanto o meu cérebro tenta assimilar aquela
oferta de trabalho.
Mas a empolgação logo é sobrepujada pela dura realidade. O litoral norte
é longe demais da minha casa. A imagem do meu pai, também precisando
de uma enfermeira em tempo integral, vem com tudo à mente.
Assim como as dívidas acumuladas durante todo o seu tratamento.
No final do ano passado papai sofreu um grave AVC hemorrágico.
Diante do desespero da situação, um vizinho se ofereceu para levá-lo ao
hospital mais próximo da nossa casa.
Apesar de excelente, o hospital é particular. Ao ver o meu pai sofrendo,
não hesitei em interná-lo lá. Tenho certeza de que só foi salvo por conta do
rápido atendimento. Mas a cirurgia, a internação na UTI e o tempo de
recuperação no quarto custaram caro e agora sou uma jovem recém-
formada de vinte e dois anos bastante endividada.
Isso, claro, sem contar o tratamento subsequente para amenizar as
sequelas. Elas são mínimas graças ao tratamento que ele recebeu no pronto
socorro. Papai vem melhorando dia após dia, mas sua coordenação motora
ainda não está plenamente restabelecida. Ele brinca que é uma sorte ter uma
filha enfermeira, senão os gastos seriam ainda maiores. Sempre sorrio, feliz
por tê-lo ali, sem fazer ideia do tamanho da dívida deixada no hospital.
Mas não me arrependo. Pelo contrário, faria tudo de novo. Somos apenas
nós dois desde que mamãe morreu. Papai fez tudo por mim, chegou a minha
vez de fazer tudo por ele.
Ágata interrompe os meus pensamentos ao continuar a falar:
— É uma ilha paradisíaca e o meu irmão tem o privilégio de morar no
melhor ponto dela. Você terá um quarto particular dentro da mansão, além
de despesas com vestimentas, transporte e alimentação pagas. Ah, e claro
— lembra-se, olhando para os lados em busca de algo. A Sra. Brandão
estende uma pasta de couro. Ágata acena em agradecimento e, com
cuidado, tira uma folha de papel sulfite e a estende para mim. — Esse seria
o seu salário com o acréscimo de um bônus ao término do contrato de três
meses.
Seguro a folha entre os dedos e percorro as cláusulas caso o contrato seja
quebrado. Eu receberia o porcentual do meu salário, mas perderia o direito
ao bônus. Arregalo os olhos diante do valor. Aquilo está muito longe do teto
salarial de uma enfermeira recém-formada. Duvido até de um médico
residente! É alto até mesmo para um médico veterano. Mas o que
surpreende mesmo é o valor do bônus.
— Esse valor está correto? — pergunto, completamente sem jeito
enquanto escuto o tum-tum-tum das batidas do meu coração acelerado no
peito. Com um salário e um bônus daqueles eu poderia quitar todas as
dívidas hospitalares do meu pai!
Ágata confirma com um aceno da cabeça.
— Está, e estou aberta a negociações caso ache pouco.
— Não, muito longe disso! É que...
A Sra. Brandão me lança um olhar de advertência, pedindo com todas as
letras para que eu me mantenha calada. Mordo os lábios e abaixo a cabeça,
mas a mulher de negócios não chegou aonde está sendo idiota.
— Então qual é o problema? — pergunta.
Respiro fundo antes de tomar coragem para erguer os olhos. Ágata me
encara com firmeza, o rosto deixando claro que não está acostumada a ser
contrariada.
— É que o meu pai está se recuperando de um AVC. Eu sou a enfermeira
dele.
A expressão em seu rosto relaxa no mesmo instante.
— Foi muito grave?
— Foi. Está tudo bem agora — acrescento, o que é a mais pura verdade.
— Mas ainda assim não sei se seria indicado passar três meses longe.
— Entendo.
— Ela terá direito a folgas, não terá? — A Sra. Brandão se intromete.
Ágata assente.
— Claro, mas o indicado é que passe as folgas na ilha. Como eu disse, o
meu irmão não pode ficar sozinho. — Ela se remexe, desconfortável. —
Mesmo assim, podemos combinar após o fim do contrato. Os helicópteros
da empresa estarão à disposição, então você viajaria de volta a São Paulo
em quarenta e cinco ou cinquenta minutos, no máximo, caso decida
renovar.
Dessa vez me forço a manter uma expressão impassível. Ilha paradisíaca
com direito a praia particular. Salário exorbitante. Helicópteros que podem
ser usados como meios de transporte de funcionários. Com o que essa
mulher trabalha?
E por que está escolhendo a mim? Ela poderia contratar a melhor
enfermeira do Brasil, quiçá do mundo! Sou apenas uma recém-formada que
teve sucesso em convencer dois ou três pacientes difíceis a seguir com o seu
tratamento. Qualquer profissional com o mínimo de paciência consegue
isso.
A reitora torna a me encarar. Ainda não sei o que está acontecendo aqui,
mas sei muito bem que aquela não é uma oferta para se jogar fora. Apenas
não posso tomar uma decisão tão importante sozinha.
— Eu poderia ir para casa pensar? Gostaria de conversar com o meu pai.
— Pode, mas eu preciso de uma resposta urgente. — Ágata me observa
com muita atenção. — Muitas enfermeiras não pensariam duas vezes diante
de uma proposta como essa, mas gostei de você. Posso aguardar até o meio-
dia.
Olho de relance para o relógio pendurado na parede da sala: tenho três
horas para lhe dar uma resposta. Assinto em concordância. É tempo mais
que suficiente para voltar para casa, conversar com papai e tomar uma
decisão.
— Tudo bem. Eu te ligo até o meio-dia.
— Ótimo — tira um elegante cartão de visitas de dentro da bolsa e o
estende a mim. — Esse é o meu telefone particular. Ficarei aguardando a
sua resposta positiva — pisca, sorrindo em seguida. Seu carisma é tamanho
que se torna impossível não sorrir de volta.
— Pode deixar. Obrigada pela oportunidade, Srta. Milano.
— De nada. — É a sua vez de olhar para o relógio na parede. — Bem,
preciso ir. Tenho uma reunião importante daqui a meia hora. — acrescenta,
colocando a bolsa de grife nos ombros e a pasta debaixo do braço.
A Sra. Brandão assente e se adianta em contornar a mesa para se
despedir da visitante, mas não sem antes me lançar um novo olhar que
ordena, com todas as letras, que eu fique onde estou. Encolho os ombros e
meneio a cabeça, dizendo em silêncio que entendi o recado.
Sento-me no lugar de Ágata enquanto as duas saem, suas vozes se
distanciando conforme os saltos altos as levam para longe. Não demora
para que apenas um par deles retorne apressado pelo corredor. Irene
Brandão irrompe porta adentro, visivelmente irritada.
— Você tem ideia de quem é aquela mulher?
Arregalo os olhos, surpresa com a sua súbita raiva.
— Não — digo. A reitora respira fundo.
— Ela é “apenas” — faz aspas com os dedos, acentuando a ironia — a
atual CEO da VitalCare Beauty.
— Eu não sabia! — digo, espantada.
Desde o início suspeitei que Ágata fosse uma mulher de negócios, mas
não a mente brilhante por trás do comando de uma das maiores redes de
clínicas de estética avançada do Brasil.
— Pois é. E o irmão dela, esse que precisa urgente de uma nova
enfermeira, é Artur Milano.
O meu queixo cai. Meu Deus, como eu pude ter sido tão burra? Lembro
de como a imprensa sensacionalista fez estardalhaço sobre o acidente do
magnata do setor médico.
Na época estagiava em uma casa de repouso e as senhorinhas passaram
tardes inteiras discutindo o fato de o homem ter sofrido um acidente grave
ao tentar trair a mulher. A maioria estava indignada, dizendo em alto e bom
som o quanto era bem-feito. Confesso que não dei muita atenção para a
notícia. Estava mais preocupada em cumprir os meus afazeres e mantê-las
confortáveis. Artur teria um séquito de profissionais para auxiliar na sua
recuperação enquanto elas só tinham a mim.
— Por que eu? — falo para mim mesma. A Sra. Brandão bufa.
— Eu não sei, e nem quero saber! Só sei que você precisa aceitar!
— Mas...
— Nada de mas, Milena! — Ela, enfim, perde a paciência. — Você sabe
muito bem que a nossa instituição recebe ajuda privada e adivinhe só qual é
a nossa maior patrona?
Sinto-me murchar, sabendo muito bem onde a reitora vai chegar.
— A CEO da VitalCare Beauty — recito como um robô. Irene confirma.
— A própria. Muitas de suas colegas estagiam, se formam e são
contratadas pelas clínicas comandadas por Ágata Milano. — Sua voz se
torna um pouco mais amena ao continuar. — E são suas contribuições
mensais que permitem a manutenção dos nossos atendimentos gratuitos. Ela
não me parece uma mulher vingativa, mas ainda assim não quero
desagradá-la — olha de relance para o relógio. — Então pense com muito
carinho na proposta.
— Prometo pensar — murmuro, me levantando.
Irene Brandão me encara com atenção antes de fazer um gesto indicando
que posso ir embora. Dessa vez, não há a mínima dureza em seu olhar. Ela
sabe o quanto o meu pai é importante para mim, assim como sei que tenho
uma dívida com ela.
E o quanto aqueles três meses de trabalho serão capazes de fazer
diferença na minha vida.
Capítulo 2 – Milena

— Papai? — chamo, assim que coloco os pés na sala de casa.


— Aqui! Estou aqui na cozinha, filha! — Ele responde. Sorrio aliviada e
caminho em direção ao cômodo.
Ernesto Alves devolve o sorriso. Um pouco torto, é verdade, mas o
sorriso mais bonito que eu poderia receber. Os medicamentos e a
fisioterapia vêm fazendo muito bem ao meu pai, mas o lado esquerdo do
seu corpo permanece um pouco paralisado.
Olho de soslaio para o brigadeiro fumegante sobre o fogão enquanto
beijo a sua face. Papai sempre gostou de cozinhar e vinha aperfeiçoando o
hobby durante a sua aposentadoria. Agora usa as habilidades com as
panelas como peça-chave da sua recuperação. No começo fiquei aflita,
ainda mais por conta da mão esquerda em garra, mas ele se diverte tanto
inventando novos sabores que se tornou impossível impedir.
Pelo menos é cuidadoso. Observo como usa o avental bem ajustado ao
corpo e cobre a mão que segura o cabo da panela com uma luva térmica.
Hoje ele está em um dia bom. Houveram sim dias ruins em que a
desesperança parecia querer falar mais alto, mas entre todas as
características que amo em meu pai, a maior delas é a sua vontade de viver.
Às vezes me pego pensando se não foi justamente essa característica que
fez mamãe se apaixonar por ele. Amélie de Villeneuve saiu do frio inverno
europeu para passar as férias nas praias do nordeste brasileiro quando
conheceu Ernesto. Solteiro aos quarenta e três, o tímido professor logo de
cara se sentiu atraído pela estrangeira quinze anos mais nova, mas como
avançar?
Bastou um único sorriso trocado ao pôr do sol para que quem acabasse
avançando fosse ela. “Nunca vi um homem sorrir dessa maneira, como se
tivesse vivido o melhor dia da sua vida”, ele adora repetir sempre que conta
a história de como se conheceram. Amélie já estava apaixonada pelo país.
A possibilidade de fazer parte de um amor verdadeiro foi o que bastou para
que ficasse.
A diferença de idade jamais impediu que os dois vivessem um romance
digno de um livro de contos de fadas. Mamãe com certeza estaria aqui,
desfrutando do delicioso aroma de brigadeiro recém feito, se não tivesse
falecido quando eu tinha cinco anos de idade. Papai ficou desconsolado,
cuidando de mim sozinho durante todo esse tempo.
Agora, sou eu quem cuida dele.
Bom, eu e a nossa vizinha.
— Que cheiro bom é esse? — Dona Bernadete espia pela janela da
cozinha.
— Não interessa, sua enxerida — ralha papai, mas nós duas sabemos que
é de brincadeira. Ele me lança um falso olhar recriminador. — Já não falei
centenas de vezes para trancar o portão quando passar?
— Já, mas moramos em uma tranquila rua sem saída.
— E ninguém vai querer roubar um velho como você! — A mulher
devolve antes de dar a volta pela casa. Entra pela porta da sala e fareja o ar
como um treinado cão de caça. Sem precisar ser convidada, pega uma
colher na gaveta e afana um pouco de doce. Leva-o à boca e solta um
deliciado Hummm. — Uau, Ernesto! O que colocou neste brigadeiro?
— Preparo em pó para capuccino.
— Ficou ótimo.
— Obrigado — estufa o peito, mexendo o conteúdo da panela mais um
pouco, até que se lembra do meu compromisso do início da manhã. — O
que a reitora queria, minha filha?
Solto um suspiro. Puxo uma das cadeiras da mesa da cozinha e me deixo
cair pesadamente sobre o assento.
— Me oferecer uma vaga de emprego.
— Que ótimo! — Ele e Bernadete vibram, falando ao mesmo tempo
antes de se entreolharem. Sorrio miúdo. Admiro a fidelidade do meu pai,
mas sei que ele e a vizinha dariam um casal e tanto se deixassem a viúves
de lado e se entregassem aos sentimentos do coração. Papai toma a palavra
— O que foi? O salário não é bom?
— Pelo contrário, é ótimo — adianto-me a dizer, lembrando da soma
exorbitante impressa no contrato. — Mas a vaga não é para trabalhar aqui
em São Paulo.
— É para onde, então? — Bernadete pergunta.
— Ilha das Rosas — olho de um para o outro. — Já ouviram falar?
— Não — papai diz. A vizinha pensa por alguns instantes.
— O nome não me é estranho... fica no litoral norte? — aceno de cabeça.
— Então já vi na televisão. É um lugar bastante bonito.
— Parece ser — confirmo. Dei uma rápida olhada no Google enquanto
voltava de ônibus para casa. Logo os créditos da operadora de celular
acabaram, mas não antes que eu pudesse vislumbrar uma bela faixa de areia
branca banhada por tranquilas ondas do mar. — A empregadora é uma
poderosa mulher de negócios. Ligou na universidade em busca da melhor
enfermeira e, de cara, a reitora se lembrou de mim.
Dona Bernadete bate palmas.
— Claro que se lembrou!
Sorrio, meio sem graça, quando papai pergunta:
— A vaga é realmente boa?
— Sim, é para trabalhar em período integral cuidando do seu irmão. Ele
sofreu um grave acidente de carro e teve parte das duas pernas amputadas
— explico antes de encolher os ombros, acanhada sobre como continuar. —
Eles são de uma família muito, mas muito rica. O contrato inicial é de três
meses e o salário é realmente alto, papai.
— Você ficaria sozinha com esse homem? — questiona, desconfiado.
— Não. Ela mencionou que ele mora em uma mansão... — respondo,
pensativa. — Devem haver outros funcionários.
— Com toda a certeza. — Bernadete confirma. Ela trabalhou por muitos
anos como empregada doméstica em casas de famílias abastadas.
— Então você deve aceitar. Eu não sou bobo, minha filha — adianta-se
em dizer ao desligar o fogo. Despeja o conteúdo da panela em uma travessa
refratária e se vira para mim. — Você nunca me deixou ver os valores, mas
sei que o meu tratamento custou muito dinheiro. Tanto que a venda do
nosso carro não foi capaz de cobrir. Gostaria muito de poder fazer mais,
mas infelizmente me tornei um velho inválido cuja aposentadoria não serve
para muita coisa — lamenta com ligeira raiva. — Odeio saber que o seu
futuro pode ser prejudicado por uma dívida que não é sua. Sou eu quem
deveria estar cuidando de você, não ao contrário.
— Você já fez isso — digo, firme.
— Fiz, e faria tudo de novo, mas isso não vem ao caso. O que eu quero
saber é: esse trabalho seria capaz de te livrar dessa dívida?
Encolho os ombros.
— Seria.
— E qual é a multa caso o contrato seja quebrado?
— Não há multa. Eu apenas perco o direito ao bônus.
— Então aceite. Vá e dê o seu melhor. Depois de três meses, venha me
visitar — olha de relance para o calendário pregado na parede. — Veja só!
Estarei te esperando para o meu aniversário. Enquanto isso, podemos
conversar pelo telefone.
Uma mistura de alívio e apreensão envolve o meu coração.
— Tem certeza? — pergunto. — O senhor ainda não se recuperou
totalmente, papai. Posso conseguir outra vaga aqui na cidade e...
— Estou ótimo! — corta, aprumando os ombros. Ernesto não é um
homem alto, mas contém certa presença. De repente ela preenche toda a
cozinha. — Posso muito bem me virar sozinho.
— E eu posso ajudar — intromete-se Bernadete, tomando a colher de
pau da sua mão. Pega um belo punhado do doce quente e o coloca em uma
tigela antes de estender a guloseima para mim. — Fique tranquila, Milena.
Moro aqui do lado. Que tipo de trabalho o seu pai iria me dar?
— Eu não sei... — digo, ainda apreensiva. Papai solta um longo suspiro
e se senta diante de mim.
— Posso ser sincero? — assinto com a cabeça. — Detesto a ideia de ter
a minha preciosa filha vivendo numa ilha distante com um homem
desconhecido, mas não te criei para ficar trancada comigo nessa casa. Siga
o seu caminho, querida.
— Mas...
— Uma oportunidade como essa não aparece todos os dias. — Ele
acaricia o meu rosto. — Aproveite-a. Quebre o contrato se não gostar.
Estaremos te esperando no dia que quiser voltar.
A vizinha concorda com a cabeça. Mordo os lábios, tentando não chorar,
mas é claro que falho. Papai sorri e me puxa para um abraço. Afundo o
rosto na curva do seu pescoço e o abraço de volta, sentindo o familiar
aroma da sua colônia amadeirada.
— Obrigada.
— De nada — diz, se separando. — Agora coma o docinho.
Limpo as lágrimas com as costas da mão antes de envolver a colher com
os dedos. Levo um pouco do brigadeiro à boca e preciso me conter para não
chorar de novo. Está divino!
— Uau, papai. O senhor se superou!
Ele estufa o peito, orgulhoso.
— Fico feliz que tenha gostado. Tenho ingredientes para mais uma
panela. Posso fazer uma nova porção antes que você vá viajar.
— Ótimo — sorrio, tirando o celular e o cartão de visitas da bolsa.
Lembro que estou sem saldo e recarrego o aparelho com quinze reais,
torcendo para que seja o suficiente para acertar todos os detalhes com
Ágata. Não tenho muito mais que isso na minha conta bancária e detestaria
pedir para o meu pai. Disco o número da empresária e aguardo.
A ligação está para cair na caixa postal quando ela atende.
— Pois não? — pergunta, muito séria.
— Srta. Milano? Sou eu, Milena.
— Ah sim! — Sua voz se torna mais animada. — Já tomou uma
decisão?
Olho para o meu pai e ele assente, enchendo-me de confiança.
— Sim. Eu aceito. Muito obrigada pela oportunidade e...
— Ótimo! Vou pedir para o meu motorista te pegar às quatorze horas,
tudo bem?
— Às quatorze? — penso alto. — Pensei que ainda levaria alguns dias
até começar.
Quase consigo ver a mulher revirando os olhos.
— Conforme enfatizei durante a nossa entrevista, o meu irmão não pode
ficar sozinho. A senhorita tem disponibilidade para começar hoje? Caso
contrário, precisarei encontrar alguém que tenha.
— Tenho sim — confirmo.
— Ótimo. A Sra. Brandão já havia me passado os seus dados. Vou pedir
para o setor de recursos humanos agilizar a papelada e as quatorze em ponto
o motorista irá te buscar. Até breve, Srta. de Villeneuve.
— Até — digo, mas a mulher já desligou o telefone. Afasto o celular do
ouvido enquanto eu, meu e a nossa vizinha nos entreolhamos.
— Bom, aparentemente você tem uma mala de viagem para fazer. — Ela
corta o silêncio. — Precisa de ajuda?
— Preciso — pisco, atordoada. — Virão me buscar às quatorze horas.
— Uau! Para quê tanta pressa? — Ernesto pergunta, tão atordoado
quanto eu. Seu rosto expressivo deixa claro o quanto o arranjo o desagrada.
— Por algum motivo, o Sr. Milano não pode ficar sozinho — termino de
comer o doce e me levanto da cadeira, lançando-lhe um silencioso pedido
de desculpas. — Sinto muito, papai.
— Está tudo bem. — Ele suspira. — É por apenas três meses.
— Isso mesmo — beijo a lateral do seu rosto. — Estarei em casa em
breve.
— Sei que estará. Vou preparar mais uma porção — indica a travessa
com brigadeiro sobre a bancada. — Assim você pode levar um pouquinho
da doçura de casa contigo.
Sorrio de orelha a orelha, feliz com o seu cuidado. Algo me diz que vou
precisar de toda a doçura que puder carregar.
Capítulo 3 – Milena

Enquanto papai mexe a panela, eu e Bernadete começamos a tirar as


peças de roupa do meu armário. Por sorte ela tem uma mala de viagem
novinha em casa, porque descobrimos que as rodinhas da minha estão
quebradas.
Ela garantiu que não pretendia viajar tão cedo, então aceitei o
empréstimo e enchi o espaço com calças, blusinhas, os dois jalecos e o meu
material básico de enfermagem. Apenas por sua insistência coloquei um
short e dois vestidos, mas deixei o biquíni de fora. Estou indo trabalhar na
praia, mas não sei até que ponto poderei desfrutar dela. Deslizo o zíper pela
lateral da mala quando lembro de levar um livro.
Observo a estante com carinho. Papai sempre me deu livros. Alguns
infantis ainda dividem espaço com os romances que, anos mais tarde,
tomaram o meu coração e me tornaram uma romântica incurável, do tipo
que almeja se casar com um príncipe encantado do século vinte e um. Não
sei se vou conseguir, mas não deixo de sonhar. Estendo a mão em direção
ao meu favorito e coloco-o entre as roupas, feliz por ter lembrado de levar
companhia.
Com tudo pronto, voltamos a cozinha a tempo de ver papai embalando a
primeira porção de brigadeiro em um pote plástico. Observo-o de longe,
sentindo-me um pouco mais tranquila. Ele está se virando bem.
— Fui sincera quando disse que irei ajudar. — Bernadete comenta, bem
baixinho. Assinto, feliz em poder contar com uma vizinha tão cuidadosa.
— Não sei como agradecer.
— E nem precisa. Gosto muito de você e do seu pai — sorri, olhando-o
com carinho. Sorrio de volta. Ao contrário de papai, Bernadete não foi feliz
em seu casamento. Seria bom se esses três meses de convivência
trouxessem mais do que dívidas pagas.
Nossa conversa é interrompida por uma exclamação assustada vinda da
cozinha.
— Meu Deus, filha! Fiquei tão entretido fazendo doces que me esqueci
do almoço! Você não pode ir embora sem almoçar!
— Daremos um jeito. — A vizinha interfere, abrindo os armários. Vou
em direção a geladeira. Lembro que sobraram dois filés de frango do jantar.
Dito e feito, ainda estão lá. Viro-me para mostrar o achando e dou de cara
com Bernadete segurando meio pacote de farinha de trigo e um de
macarrão.
É o que basta. Ela tira a carne da minha mão e se põe a preparar o
almoço. Em minutos um aromático molho branco borbulha sobre o fogão
enquanto o macarrão cozinha. Os filés foram cortados em minúsculos
cubinhos e grelham sobre um fio de óleo até ficarem dourados.
Com tudo pronto, sentamo-nos para comer. A refeição está deliciosa,
mas tem um sabor esquisito. Há poucas horas estava desempregada. Agora
faltam apenas trinta minutos para um motorista aparecer e me levar até uma
ilha no litoral norte, onde passarei os próximos noventa dias cuidando de
um homem desconhecido. Os dedos coçam para desbloquear a tela do
celular e descobrir mais sobre Artur Milano, mas decido aproveitar cada
precioso minuto ao lado do meu pai.
E ele parece querer o mesmo, principalmente quando o momento da
despedida se aproxima. Nós três olhamos para os ponteiros do relógio da
cozinha quando faltam apenas cinco minutos para as quatorze horas. Talvez
o motorista se atrase, penso, desejando poder ficar só mais um pouquinho
ao seu lado.
Com uma pontualidade capaz de fazer inveja a um bom britânico,
ouvimos um carro estacionando diante da garagem. Respiro fundo.
Adoraria ter me preparado melhor para essa despedida.
A campainha soa estridente no cômodo silencioso, pontuando de uma
vez por todas que chegou a hora. Levando-me da cadeira.
— O motorista chegou.
Papai também se levanta.
— Tome cuidado, minha filha.
— Irei tomar — beijo a sua face com carinho. Ele me abraça apertado e,
por um instante, temo que vá se derramar em lágrimas sobre o seu ombro.
Não chore, não chore, não chore, repito para mim mesma. Sei como ele
ficará de coração partido se eu chorar. Ele enfim me afasta e encaro o seu
rosto. — Prometo mandar mensagens todos os dias.
— Ótimo. Avise quando chegar — pede. Confirmo com um sorriso.
Bernadete se adianta e me abraça também.
— Irei cuidar bem dele — murmura no meu ouvido. Abraço-a de volta
em um agradecimento silencioso. — Vá em paz, querida.
A campainha soa de novo.
— Preciso ir.
Eles assentem e me seguem até a sala. Prendemos a respiração ao
abrirmos a porta de entrada e darmos de cara com o motorista. Não sei bem
o que eu esperava, mas com toda a certeza não era um chofer tão bonito.
— Uau! A sua nova patroa não está precisando de outra funcionária? De
repente fiquei com vontade de interromper a minha aposentadoria. —
Bernadete deixa escapar, recebendo um olhar zangado do meu pai.
O altivo homem na casa dos cinquenta anos nos observa, impassível.
— Srta. de Villeneuve?
— Sou eu — dou um passo adiante.
— Boa tarde. Sou Moacir, o motorista particular da Srta. Milano. Ela
pediu para que eu viesse te buscar.
Assinto, levando a mala até o portão. Papai se adianta com a sua passada
ligeiramente arrastada, fazendo questão de abri-lo. O homem aguarda como
se tivesse todo o tempo do mundo. Tira o objeto das minhas mãos e a
coloca no porta-malas do luxuoso sedã antes de abrir a porta do banco
traseiro para mim. Respiro fundo e volto a encarar a minha pequena família.
— Até breve — forço um sorriso.
— Até — papai diz. Ao contrário de mim, ele deixa que uma lágrima
corra livre pelo seu rosto. Mordo os lábios, sem saber muito bem o que
fazer, até que me adianto e o tomo em um abraço.
É tão rápido que ele não tem tempo para me abraçar de volta, mas sei
que é o suficiente para nos confortar. Um pouco mais leve, obrigo-me a
entrar no carro.
Moacir bate à porta com suavidade e, com um breve aceno, se
encaminha até o assento do motorista, dando a partida logo em seguida.
Vejo pelo vidro escurecido quando papai desliza uma mão pela cintura da
vizinha, os dois apenas observando enquanto o potente ronronar no motor
nos distancia. Aceno um último adeus, mas o carro deixa a rua sem saída
para trás antes que tenham tempo de responder.

No trânsito ameno do início da tarde, leva menos de trinta minutos para


chegarmos ao coração financeiro da zona sul da cidade de São Paulo. A
paisagem usual é substituída por ruas arborizadas e prédios espelhados
muito diferentes do local onde moro. Penso em perguntar sobre o meu
paciente ao motorista, mas noto que apesar de educado, o homem prefere se
manter em silêncio, então faço o mesmo.
Logo o carro adentra a garagem de um dos prédios. Ele estaciona, faz
questão de abrir a porta e pega a minha mala, pedindo que o siga. Saímos
do subsolo, entramos no elevador e subimos direto até o último andar. De
repente sou tomada por um sentimento de apreensão: e se aquilo for um
golpe? Aquele homem pode estar me levando para qualquer lugar.
Estou para perguntar onde estamos quando o elevador para. As portas se
abrem diante de um saguão e dou de cara com a Srta. Milano.
— Finalmente! — diz, mas não em tom de recriminação. Agradece o
motorista com um educado menear de cabeça e se aproxima. Sou
surpreendida com um abraço apertado. — Obrigada, de verdade, por ter
aceitado. Já estava sem qualquer alternativa.
— De nada — murmuro, confusa. Jamais pensei que uma mulher como
ela me abraçaria daquela forma. Ela parece se dar conta do que está fazendo
e se afasta. Encaramo-nos, as duas sem jeito, quando limpo a garganta. —
Espero poder fazer um bom trabalho.
Ela encolhe os ombros.
— E eu espero que o meu irmão goste de você.
Abro a boca, pronta para perguntar mais sobre Artur Milano, quando um
homem negro trajando um uniforme de piloto aparece. Os olhos estão
cobertos por um grande óculos de aviador, mas ainda assim é possível
perceber que, de alguma forma, ele se diverte com a situação. É tão bonito
quanto o motorista, me fazendo perguntar se aquele é um pré-requisito para
se trabalhar com a empresária.
— Srta. Milano — cumprimenta com um poderoso vozeirão de barítono.
— O helicóptero está pronto.
— Helicóptero? — deixo escapar, estremecendo dos pés à cabeça. A
mulher assente.
— Lembra do que eu te disse? São apenas quarenta e cinco ou cinquenta
minutos de viagem até a Ilha das Rosas.
As coisas estão acontecendo em uma velocidade tão alta que, daqui a
pouco, não lembrarei nem do meu nome.
— Sim, é que... — engulo em seco, notando que o piloto se diverte ainda
mais. — Eu nunca voei de avião, quanto mais de helicóptero.
Ágata bate palmas, animada.
— Bom, para tudo existe uma primeira vez, não é? — ri, mas ninguém a
acompanha. — Pode ficar tranquila, o comandante Salomão é um dos
melhores pilotos do Brasil. Ele te levará em plena segurança até a ilha.
O homem leva uma mão ao quepe, solene. Só me resta assentir para
quase ser arrastada até a saída do saguão.
Uma aquecida brisa de verão envolve o meu corpo assim que os meus
pés pisam do lado de fora. Ao longe, antes mesmo de subir as escadas que
levam ao heliponto, vejo as imensas hélices do meu meio de transporte.
Respiro um pouco mais aliviada ao notar como o helicóptero executivo é
grande. Nenhum dinheiro do mundo me faria entrar em um daqueles
pequenos, para apenas duas pessoas.
Salomão toma a mala do motorista e se adianta em guardá-la em um
compartimento. Observo os seus movimentos enquanto tento ignorar os
pronunciados batimentos do meu coração. Com tudo ajeitado, ele estende a
mão e me convida a entrar. Lanço um último olhar a Ágata Milano.
— E se o seu irmão não gostar de mim?
Esperava que ela fizesse qualquer coisa, menos que engolisse em seco.
— Ele precisa gostar.
Pisco, mais confusa do que nunca, e me deixo ser puxada pelo
comandante. Ele me ajeita sobre o assento e explica, em um tom de voz
professoral que denuncia o quanto está acostumado a fazer aquilo, todos os
procedimentos de segurança. Afivela o meu cinto, coloca um fone de
ouvido com microfone integrado sobre a minha cabeça, confere se tudo está
em ordem e se dirige até o seu assento.
Em instantes as poderosas hélices começam a girar. Solto um gritinho
quando o helicóptero se ergue do solo, balançando ligeiramente até se
estabilizar. Ágata acena do seu lugar no chão, mas mesmo a distância
consigo notar o seu semblante preocupado. Alguma coisa me diz que não é
por conta do meu meio de transporte. Sei que não contaram tudo o que
havia para se contar sobre o Artur Milano.
De repente sinto que estou sendo enviada para um abatedouro.
— Tudo bem aí atrás? — Salomão pergunta, olhando por sobre o ombro.
Pelo amor de Deus, olhe para a frente!, quero gritar. Incapaz de falar, faço
um gesto de positivo com o polegar e ele sorri. — Então lá vamos nós!
Fecho os olhos e as mãos suadas seguram o assento de couro com força
enquanto ele impulsiona a aeronave para a frente. O helicóptero responde
ao seu comando de imediato. Permito-me abrir uma das pálpebras, vendo a
cidade de São Paulo se distanciando centenas de metros abaixo. O medo
logo dá lugar a curiosidade. O mar de prédios é uma visão muito bonita
para se ignorar.
— Não se preocupe, eu faço isso sempre. — O capitão brinca. Acabo
rindo, encantada com a visão da janela, até que noto o duplo sentido na sua
frase.
— Ágata visita o irmão com frequência? — pergunto. Seu rosto se torce.
Te peguei, comandante Salomão! Já que comecei, não vou desistir. —
Quantas enfermeiras já foram enviadas ao Sr. Milano?
— Desculpe, mas não estou autorizado a dizer.
Gemo de frustração.
— Ele é tão mal assim?
Salomão não responde. O meu corpo é invadido por uma gigantesca
onda de angústia. Respiro fundo e torno a fechar os olhos. O meu pai
garantiu que posso voltar no momento que desejar. E, de qualquer forma,
não posso me dar ao luxo de negar esse trabalho. Três meses, Milena. São
apenas três meses. Sei que posso aguentar.
Viro o rosto em direção a janela, o medo agora desaparecido. A estrutura
interna e os fones de ouvido isolam a maior parte do barulho vindo de fora.
A paisagem logo muda, dando lugar ao verde escuro da mata da Serra do
Mar. Não demora para que eu aviste o azul safira do litoral norte. Sorrio,
deliciada com a tranquilidade presente na visão.
— É lindo, não é? — Salomão diz. — Sempre me surpreendo quando
faço essa viagem.
Penso em fazer uma nova pergunta sobre o meu futuro padrão, mas
deixo para lá. Já que não pesquisei e ninguém parece disposto a revelar,
decido que não quero saber absolutamente nada sobre Artur Milano. Ele
que se revele a mim como é, sem qualquer interferência externa.
O helicóptero se aproxima do mar e diversas ilhas se descortinam à
nossa frente. Grandes, médias, pequenas. Algumas bastante habitadas,
outras desertas. Penso que o helicóptero vai entrar em alto mar quando uma
nova ilha aparece.
Pela janela, vejo as casas de uma vila se aproximando. Praias de areia
branca banhadas por ondas de águas cristalinas ladeiam a pequena cidade.
Largas flores vermelhas despontam na mata verde esmeralda.
— Bem-vinda a Ilha das Rosas. — O capitão apresenta. — Sabe por que
ela recebeu esse nome?
— Hummm — levo uma mão ao queixo, fingindo pensar. — Por causa
das rosas?
Uma profunda risada preenche os meus ouvidos.
— Exatamente. A primeira moradora da ilha era apaixonada por rosas.
Trouxe várias mudas do continente e as plantou na beira da mata. As flores
se adaptaram e...
— Deixaram a ilha linda — completo, conforme ele passa pelo local
onde uma profusão delas se aglomera entre as árvores à beira-mar.
Seguimos contornando a ilha até estarmos inteiramente virados para o
oceano. Casas de luxo despontam aqui e ali, mas nada poderia me preparar
para a maior e mais distante delas.
As paredes de vidro de uma imensa mansão refletem o brilho do sol. As
finas areias brancas se remexem com a nossa aproximação, mas as ondas
continuam tão calmas como sempre parecem ser. Não há nada ancorado no
pequeno píer e, de onde estou, a casa parece vazia. Solto um suspiro
admirado. É deslumbrante em um nível que não consigo descrever.
Salomão leva a aeronave até um heliponto incrustado em um ponto
elevado do terreno. As árvores se agitam conforme o gigante voador pousa
em segurança, as hélices girando devagar até pararem. O comandante
confere se tudo está certo e, só então, sai do seu posto. Tiro o comunicador
e permito que ele desprenda o cinto de segurança.
— Gostou do passeio? — pergunta, presunçoso. Confirmo com a cabeça.
— Adorei!
Ele ri alto.
— Que ótimo. Venha, vou te acompanhar até a casa.
Aguardo enquanto ele abre a porta do helicóptero. Saio do veículo e
respiro fundo, enchendo os pulmões com o delicioso aroma do mar. O sol
entre o meio e o final da tarde não demora a aquecer a minha pele e a brisa
amena remexe os meus cabelos. A apreensão desaparece por completo. Não
tem como alguém ser mal-humorado em uma paisagem como essa.
Salomão pega a minha mala e faz um gesto pedindo que o acompanhe.
Seguimos por uma trilha de pedras, larga o suficiente para admitir a
passagem de um carro. Roseiras em flor nos saúdam aqui e ali, tingindo o
usual verde com tons de vermelho vivo. A mulher que as trouxe até a ilha
devia ser muito romântica. Todas as rosas, sem exceção, são da cor da
paixão.
Em poucos minutos a trilha pela mata fechada dá lugar ao espaço aberto,
permitindo que a belíssima mansão de vidro entre em nosso campo de
visão. Atento-me aos detalhes que passaram despercebidos do alto: apenas a
face virada para o mar é envidraçada, mantendo o restante em alvenaria
pintada de branco.
Caminhamos até os cinco degraus que levam ao alpendre. Reparo na
rampa recém-construída ao lado da pequena escada, mas não digo nada.
Agora que estou prestes a descobrir, não preciso que alguém diga o que vim
fazer aqui.
— Srta. de Villeneuve? — Salomão chama. Viro o rosto em sua direção.
O homem de aspecto bem-humorado de repente se mostra muito sério. —
Se ele for demais para você, me chame. Virei te buscar no mesmo instante.
Estende um papel com o seu número de telefone escrito à mão. Reparo
na caligrafia bonita enquanto parte da minha animação se esvai.
— Há algo com que eu deva me preocupar? — pergunto.
— Sendo bem sincero? Não — diz, convicto, e acredito nele. — O
patrão é um bom homem, apenas se esqueceu disso.
Assinto, agradecida pelo seu cuidado.
— Obrigada.
— Não tem de que — olha para o relógio e parece se espantar com a
hora. — Eu preciso ir — toca a campainha e, no mesmo instante, escuto
alguém vindo até a porta. — Pode ficar tranquila. A Dona Jacira cuidará de
você.
Mal tenho tempo de me despedir. Quando vejo, Salomão caminha a
passos largos por onde viemos. Acompanho os seus movimentos, até que o
homem desapareça por entre as árvores que ladeiam a trilha. Viro o rosto ao
ouvir a porta se abrindo e dou de cara com uma senhora baixinha vestida
em um uniforme coberto por um avental. Os olhos castanhos claros são
ansiosos, os cabelos grisalhos soltando-se do coque preso por uma rede.
— Meu Deus, como você é nova!
— Ah, sou sim — tento não soar insegura. — Acabei de me formar.
— Que Deus tenha piedade da sua alma — faz o sinal da cruz sobre o
peito. — Por favor, entre.
Franzo o cenho, sem entender nada, mas faço como pede. De imediato
sou abraçada pelo frescor do ar-condicionado. Jacira fecha a porta e se vira
para mim. Sorrio, tentando parecer simpática.
— Que bom que alguém está cuidando do Sr. Milano. A Ágata comentou
que ele não pode ficar sozinho.
— Não, não pode — confirma —, mas eu não cuido dele.
— Não?
— Não. Eu só cozinho e comando a equipe de limpeza.
Mas porque também não cuida dele?, quase deixo escapar, mas minha
atenção é desviada por um barulho. Apuro os ouvidos, tentando descobrir a
origem do som quando vejo o elevador envidraçado ao lado da escada.
Assim como a rampa do lado de fora, aquele anexo parece ser recém-
instalado. As roldanas e cabos se movem, trazendo a caixa metálica até o
andar de baixo. Prendo a respiração quando o elevador para e um homem
sentado em uma cadeira de rodas irrompe porta afora.
Nenhuma pesquisa teria me preparado para a visão de Artur Milano. Ele
se aproxima, devagar, dando-me tempo para assimilar a sua intensa
presença.
A espessa barba desgrenhada é incapaz de esconder a beleza do seu rosto
emoldurado por maxilares fortes. Uma densa cascata de ondulados cabelos
castanhos desce em direção aos seus ombros, convidativa ao toque, não
fossem os ferozes olhos da mesma cor.
Artur me encara enquanto os braços musculosos o impulsionam até onde
estou. É incrível como ele é capaz de me olhar de cima mesmo estando
sentado centímetros abaixo. Escaneia o meu rosto a ponto de me deixar
desconfortável, mas não desvio o olhar. Pelo contrário, me vejo fixada nos
minúsculos pontos dourados de suas íris escuras.
Desvio os olhos, descendo-os pelo seu pescoço forte e pelo peitoral
largo. Tento parar, mas como fazer isso quando a camiseta justa deixa a
vista todos os gominhos do seu abdômen trincado? Continuo até chegar no
motivo que o faz precisar dos meus cuidados.
— Ah, o olhar de pena. — Sua voz é grave, levemente rouca, alta e cheia
de poder. Por um motivo que não consigo entender, ela me aquece por
inteira. — Todas vocês, sem exceção, me encaram com esse maldito olhar
de pena.
— Desculpe, Sr. Milano — ajeito a postura e sorrio, um tanto quanto
tímida. Ele volta a me encarar antes de mover a cadeira. Paro onde estou,
permitindo que me inspecione de cima a baixo.
— Pelo menos dessa vez a minha irmã se dignificou a enviar uma
mulher bonita — comenta, mordaz. Reparo quando o seu olhar se demora
sobre o meu traseiro. Ele inclina o rosto para o lado enquanto o analisa. —
Ainda que lhe falte um pouco de bunda.
Pisco, espantada, até que me dou conta das palavras proferidas pela sua
boca. Mas que ultraje!
— Ei! Não vim para cá com segundas intenções!
Ele volta a se posicionar na minha frente.
— Claro que não. Quem viria? — desce o olhar pelas próprias coxas até
parar nos joelhos inexistentes.
Mordo os lábios e decido começar de novo. Estendo a mão em um
cumprimento.
— Sou Milena Alves de Villeneuve — sorrio, tentando soar simpática.
Ele me encara. Um sorriso diabólico desponta em seus lábios.
— Ah, que gracinha. Milena e Milano — debocha em uma voz de
falsete. — A minha irmã realmente se superou!
Deixo que a mão caia ao lado do meu corpo. Jacira me lança um olhar
apavorado antes de escapulir sabe-se lá para onde. Encaro o homem à
frente, finalmente entendendo todos os pormenores da minha oferta de
trabalho.
Capítulo 4 – Artur

Faço o comentário sobre o traseiro da minha nova enfermeira apenas


para desconcertá-la. Já perdi a conta de quantas mulheres foram enviadas ao
meu covil, mas nenhuma delas era tão bonita quanto essa.
E nem tão jovem. A garota deve ter o que? Uns dezoito anos? Isso beira
ao absurdo! Sei que Ágata as seduz com a promessa de um ótimo salário
aliado a um bônus exorbitante e um tranquilo trabalho a beira mar, mas só
uma garota desesperada, ou muito mal-informada, aceitaria se sujeitar a
mim.
Faz seis meses que estou preso a essa cadeira de rodas e muita coisa
aconteceu nesse meio tempo. Saí da internação e passei algumas semanas
me recuperando na minha cobertura em um bairro nobre de São Paulo, mas
não aguentei ficar lá. Não com a imprensa infernizando, ansiosa para saber
mais sobre a recuperação do impetuoso magnata que bateu o carro ao
supostamente trair a namorada. Minha assessoria disse a verdade, mas
ninguém foi capaz de ouvir. Queriam uma entrevista, e isso eu não estava
disposto a dar.
Ágata tentava me animar, dizendo que em breve estaria recuperado o
suficiente para começar a adaptação com as próteses para voltar ao meu
posto de liderança. Jamais acreditei nela. Como acreditar quando a pessoa
que eu mais amava disse, com todas as letras, que eu a deixava enojada?
É mentira, minha irmã dizia, mas não sou burro. Via os olhares cheios de
pena. Ouvia os sussurros proclamando, em alto e bom som, como eu fui um
homem de sucesso. Ainda assim, por insistência de Ágata, me permiti vestir
um terno completo. Veja, você continua tão poderoso quanto antes! Tudo o
que eu vi foi uma criatura patética transvestida como um homem de
negócios.
Deixei Ágata e outras pessoas competentes nos mais altos postos de
comando da VitalCare Medical Services e decidi me isolar na mansão
envidraçada que comprei meses antes do acidente. O único lugar que
imaginei encontrar um pouco de paz. Um ambiente onde tinha esperanças
de dar cabo do meu plano.
O acidente não foi capaz de me levar, então eu mesmo teria que ser.
Mas não com esse incessante envio de enfermeiras!
A mais jovem delas afasta uma mecha ondulada do longo cabelo loiro
escuro e me observa com suas inocentes íris azuis. Elas são tão límpidas
quanto as calmas águas do lado de fora.
Volto a deslizar os olhos pelo corpo de Milena. Ela tem estatura mediana
e corpo em formato de ampulheta, com seios do tamanho ideal para se
cobrir com uma mão. Estou sendo intransigente, mas pouco me importo. A
maioria delas faz exatamente a mesma coisa ao me ver. Sei exatamente o
que se passa em suas cabeças: poxa, seria tão bonito se ainda tivesse as
pernas.
Encaro Milena, surpreso ao notar que o seu semblante não vacila. Pelo
contrário, torna-se ainda mais determinado. Sorrio meio de lado. A última
enfermeira ficou por apenas três dias, talvez essa daqui fique um pouco
mais.
A mais irritante de todas foi a enfermeira dos diminutivos. “Chegou a
hora do seu remedinho, Sr. Milano” ou “Vamos no deque tomar um
solzinho, Sr. Milano”. Não fiz uma coisa nem outra. Coloquei-a para fora
em sete dias.
Houve também a enfermeira dos gatos. A mulher me chamava a cada
poucos minutos para ver vídeos de gatinhos, achando que aquilo de alguma
forma iria me animar. Durou cinco dias. Miau.
E não posso me esquecer da enfermeira das chineladas. Sem qualquer
pudor, me deu uma chinelada na bunda quando me recusei a levantar da
cama para comparecer à sessão de fisioterapia. Essa eu expulsei aos berros.
Ficou comigo por apenas quatro dias.
Tento adivinhar qual tipo de enfermeira Milena será quando a jovem
pergunta:
— Quando podemos começar?
— Começar o que? — ergo uma sobrancelha. A confusão domina o seu
belo rosto.
— O seu… tratamento?
— Não faço nenhum tratamento.
— Como não? A sua irmã disse que…
— A minha irmã precisa aprender a cuidar da própria vida — digo,
irritado. — Pouco importa o que ela disse. Eu não tomo os remédios. Me
recuso a fazer fisioterapia. Abandonei a terapia. Nem ela, nem você, nem
ninguém irá me convencer ao contrário.
— Por quê? — pergunta, mais confusa do que nunca. — Você tem
recursos. O tratamento te deixaria mais confortável e...
— Esses tratamentos serão capazes de devolver as minhas pernas? —
rebato, sarcástico. Ela morde os lábios. — Não, não serão. Então não quero
ficar mais confortável — afasto a cadeira, englobando todo o seu corpo no
meu campo de visão. — Não quero absolutamente nada, a não ser ficar
sozinho. Mas, por algum motivo que não conheço, sou incapaz de fazer isso
dentro da minha própria casa!
Milena troca o peso de um pé pelo outro, ponderando o que fazer.
— Artur… — começa, mas a interrompo.
— Sr. Milano — corto. — Me chame de Sr. Milano. Só pessoas íntimas
podem me chamar pelo primeiro nome, e você não ficará tempo o suficiente
para se tornar uma delas.
Ao invés de encolher, a postura da mulher endurece.
— Sr. Mi-la-no — debocha, soletrando sílaba a sílaba. O meu sorriso se
alarga. Essa enfermeira, pelo visto, será uma das mais divertidas. — Fui
enviada para cá com o propósito de cuidar de você. Preciso que colabore
comigo.
— Boa sorte com isso — aponto para um quadro fixado na parede da
sala. — Está vendo aquilo ali? — Ela vira o rosto na direção indicada, mas
sua expressão continua impassível diante de um quadro no estilo de
"estamos há X dias sem acidentes, o nosso recorde é de X dias". No caso o
quadro mostra a quantidade de dias que estamos com uma enfermeira, o
recorde é de apenas dez dias. O meu sorriso agora se torna diabólico. —
Vamos ver se você consegue bater o recorde da sua colega.
Seus olhos tornam a se fixar nos meus. É impressão minha ou eles
flamejam de raiva?
— É, vamos ver.
— Vamos, ah se vamos — rio, sem qualquer bom-humor. — Fique à
vontade, Srta. de Villeneuve — digo, entrando de ré no elevador, parando
no meio das portas para que não fechem. — Já que me impedem de ficar
sozinho, saiba que durante o tempo que estiver aqui a minha casa é a sua
casa. Sinta-se à vontade para escolher um quarto de frente ao mar, deitar-se
sobre as esteiras do deque ou caminhar pelas belas praias com areia branca.
Aproveite o tempo que tiver, pois ele não será muito longo. Apenas lembre-
se de uma coisa: nunca, em hipótese alguma entre no escritório no fim do
corredor.
— Por quê?
— Porque eu não quero — elevo a voz. — É a única parte da casa
proibida. De resto, faça o que quiser. Eu não me importo.
Ela ainda me observa conforme entro no elevador e as portas metálicas
se fecham.
Todo e qualquer falso bom humor desaparece quando chego no andar de
cima. Saio do elevador e deslizo até o meu quarto, girando as rodas com
mais força que o necessário. Ignoro a estonteante paisagem além das
paredes de vidro e fixo a atenção no celular vibrando sobre a cama. Não
preciso pegá-lo para saber que a ligação é de Ágata. Bufo alto, tentado a
deixá-lo tocar até a bateria se esgotar, mas sei que a minha irmã virá até
aqui se eu não responder. Destravo a tela e levo o aparelho ao ouvido.
— O que é?
— Boa tarde para você também. — Ela diz, sarcástica. — A Milena
chegou bem? A pobrezinha ficou bastante assustada quando viu o
helicóptero.
— Chegou. Agora faça o favor de mandá-la embora.
Ágata solta um longo e cansado suspiro.
— Você sabe que eu não vou fazer isso.
— E você sabe que a única coisa que eu desejo nessa maldita vida é ficar
sozinho!
— Você deveria escutar com mais atenção algumas das palavras que
saem da sua boca!
— Eu as escuto muito bem, irmãzinha. Fiquei aleijado, não surdo.
Ágata bufa alto, a paciência enfim esgotada.
— Odeio quando você fala desse jeito pejorativo!
— E eu odeio que continue me enviando mais e mais enfermeiras! De
onde você tirou essa garota? Duvido que seja formada!
— Ela é formada, sim! Lembra-se daquela universidade que
contribuímos todos os meses? — Não lembro, mas fico quieto. A minha
irmã continua. — Milena foi a melhor aluna da última turma. Acabou de se
graduar em enfermagem.
— Uau. Imagino o quanto você deve estar desesperada para chegar ao
ponto de recorrer a meras estudantes.
— Talvez eu recorresse às veteranas se a Associação Brasileira de
Enfermagem não tivesse se recusado a continuar indicando novas
enfermeiras!
Sorrio para mim mesmo. Por mais poderosa que seja, Ágata não
conseguirá contratar mais ninguém. Ela deve estar muito, mas muito
irritada. Minha irmã mais nova detesta quando a mínima vírgula não sai do
jeitinho que quer.
— E o que fez Milena aceitar a sua oferta? — pergunto.
— Ela tem os seus motivos.
— Deixe-me ver… — enumero nos dedos. — Dívida de jogo? Deve
favores para traficantes? Envolveu-se com a máfia italiana?
— Não cabe a mim discuti-los com você — retruca, irredutível. Seu tom
logo se torna mais ameno. — Seja gentil com a garota, Artur. Ela só tem
vinte e dois anos.
Vinte e dois!, penso. Eu tenho o dobro da sua idade!
— Tornei-me um homem incapaz de qualquer gentileza — murmuro, de
repente muito cansado — Mande-a embora, Ágata. Por favor.
— Não vou mandar!
— Inferno! — berro, começando a ficar irritado. — Você contrata a
porra da Poliana e sou obrigado a ficar com ela? Sou o seu irmão mais
velho, você precisa fazer o que estou mandando!
— Pois é! Veja só que desgraça ser obrigada a cuidar de você!
— Ninguém está te obrigando!
Ágata não responde. No lugar da sua voz, escuto o tu-tu-tu da linha que
caiu. Sei que ultrapassei um limite e, ao invés de discutir, Ágata apenas
desliga. Solto um rosnado e atiro o celular do outro lado do quarto. Eu
quero discutir! Gritar e xingar até ficar sem voz!
— Sr. Milano? — alguém me chama. Olho por cima do ombro e vejo a
nova enfermeira me observando pela porta aberta. Solto o ar com força, me
recusando a responder. Ela não parece se importar. Estende uma tigela de
plástico. — Aceita um pouco de brigadeiro de colher?
Pisco.
— Como é que é?
Ela dá um passo adiante, como se tivesse sido convidada a entrar no meu
quarto.
— Meu pai estava fazendo brigadeiro antes de eu sair de casa. Trouxe
uma porção para cá.
— Eu não quero — viro o rosto.
— É brigadeiro de capuccino.
A irritação volta a borbulhar.
— E o que te faz pensar que gosto de brigadeiro de capuccino? —
desdenho. Ela dá de ombros e coloca a tigela sobre a mesinha de cabeceira.
— Não sei. Só sei que todo mundo fica feliz depois de comer brigadeiro.
E, sem falar mais nada, sai do quarto e volta a me deixar sozinho. Encaro
a tigela de doce, tentado a também atirá-la longe, mas a deixo onde está.
Pelo visto essa daqui será a enfermeira do brigadeiro.
Capítulo 5 – Milena

Fecho a porta do quarto do Sr. Milano e solto um longo e cansado


suspiro. O meu trabalho ainda nem começou e já estou exausta. De forma
bastante vaga, fui avisada sobre o temperamento difícil do meu novo patrão.
Ainda assim, não esperava uma recepção tão ameaçadora quanto essa.
Encaro a madeira pintada de branco, quase conseguindo visualizar o
homem sentado do outro lado. Está na cara que Artur Milano é um homem
enérgico do tipo que caminhava a passos largos pelos escritórios das suas
empresas proferindo ordens com sua poderosa voz grave. É visível como a
situação o frustra.
Situação que, com toda a certeza, poderia ser amenizada. Já se passaram
seis meses do acidente, tempo mais que o suficiente para uma cicatrização
completa. Artur poderia ter me recebido do alto das mais avançadas
próteses, não sentado em uma simples cadeira de rodas de ambulatório.
— A senhorita gostaria de escolher o seu quarto agora? — A voz de
Jacira interrompe os meus pensamentos. Olho para o lado, vendo-a
carregando a minha mala.
— Não precisava se dar ao trabalho — digo, me adiantando. Ela faz um
sinal de que está tudo bem, mas aguarda. Abro um pequeno sorriso. — Tem
algum quarto para me indicar?
— Sim, lá embaixo. Fica ao lado da lavanderia, mas é confortável.
Franzo o cenho.
— Não é melhor ficar perto do Sr. Milano? Segundo a sua irmã, ele
precisa de cuidados intensivos.
Ela torna a fazer o sinal da cruz.
— Se preferir... — diz baixinho, seguindo pelo corredor até a próxima
porta. Vejo-a no final dele, o espaço na qual fui proibida de entrar, mas não
lhe dou maior atenção. A cozinheira indica o quarto com o queixo. — O
mais próximo é esse — acrescenta, girando a maçaneta.
Acompanho os seus passos e solto um Uau! involuntário assim que
cruzo o batente e entro no recinto. O quarto é imenso, pelo menos três vezes
maior que o da minha casa. A decoração praiana em tons de branco e azul é
simples, mas de bom gosto. Caminho por entre a cama queen size coberta
com lençóis e pelos armários de madeira amarelo claro para observar a vista
da janela.
Não é a mesma que o do ambiente ao lado, mas é tão estonteante quanto.
Ainda estou encantada com a visão das árvores entremeadas por roseiras
vermelhas que compõem parte da paisagem.
Jacira fecha a porta e coloca a mala sobre a beirada da cama. Une as
duas mãos diante do corpo e morde os lábios, visivelmente contendo uma
coleção de palavras engasgadas. Mesmo tendo decidido que decifrarei o
meu chefe por mim mesma, divido-me entre fazer perguntas e ficar sem
respostas.
Jacira, enfim, abre a boca.
— Há um quadro na cozinha com os horários de todos os remédios que o
Sr. Milano precisa tomar — começa. — Nele também estão anotados os
seus demais compromissos.
— Ótimo — sorrio, feliz diante de tamanha organização.
— Os remédios ficam guardados no cofre dentro da parte mais alta do
armário — tira um pequeno objeto do bolso. — Essa é a chave.
Franzo o cenho.
— Para que guardar os remédios a chave?
— Ordens da Srta. Milano — declara. — Ela sempre pede para avisar
que nenhum objeto cortante seja deixado junto ao irmão. Toda a comida
servida a ele precisa estar cortada. Muito cuidado com os copos. Na dúvida,
prefira os de plástico.
— Tudo bem — digo, recebendo a chave de suas mãos. — Mais alguma
recomendação?
Fuja enquanto há tempo, imagino que vá dizer, mas a pequena mulher
se limita a negar com a cabeça. Faz uma minúscula mesura e sai porta
afora, me deixando sozinha com os meus pensamentos. Começo a formar
uma suspeita relacionada ao Sr. Milano, mas deixo para lá. Não quero julgar
o homem sem nem ao menos conhecê-lo.
Olho em volta. Não resta nada a não ser começar. Envio uma mensagem
ao papai, apenas para avisar que cheguei, e desfaço a mala, espalhando as
poucas roupas pelo espaçoso armário. Com tudo ajeitado, visto o meu
jaleco e retorno ao andar de baixo.
Assim como o meu quarto, noto que a decoração da sala com pé direito
alto é composta predominantemente por móveis em tons claros. Um ou
outro vaso e escultura encontram-se aqui e ali, todos afastados o mais
próximo possível da parede, deixando espaço para que o dono da casa possa
passar.
Ignoro o quadro das enfermeiras, atravesso a sala de jantar com vista
para o mar e sigo em direção a cozinha. Jacira está picando legumes sobre a
bancada de mármore. Sei que percebe a minha presença, mas não se dá ao
trabalho de olhar por cima do ombro. E para que fazer isso? Talvez seja
melhor não se apegar a enfermeiras que vem e logo se vão.
Mas estou determinada a ficar, então preciso aprender tudo sobre o meu
novo paciente. Olho em volta até encontrar o outro quadro. Além da lista de
remédios, ele também enumera horários de psicoterapia e fisioterapia. Pelas
datas, as consultas com o primeiro se encerraram há três meses. O
fisioterapeuta durou um pouco mais, mas pelo visto não o suficiente para
gerar resultados.
— O Sr. Milano não tem interesse nas próteses? — penso em voz alta. O
barulho da faca batendo na tábua cessa por um instante.
— Infelizmente ele não se interessa por nada.
— Bom, é o meu trabalho fazê-lo se interessar.
A cozinheira continua o seu trabalho enquanto tiro o celular do bolso do
jaleco. Coloco a senha do Wi-Fi também escrita no quadro e me sento sobre
uma das banquetas da ilha central.
Passo as próximas horas lendo artigos e revendo materiais de aulas sobre
pessoas amputadas. Apesar da experiência com pacientes difíceis, cuidei de
apenas uma pessoa nessas condições. Era uma das senhorinhas mais
simpáticas da casa de repouso. No caso, ela perdeu um pé para um grave
quadro de diabetes.
Peço uma caneta e um bloquinho de papel emprestado para a Jacira e
começo a fazer anotações. O caso de Artur é bastante diferente. Além de ter
perdido as duas pernas em um ponto mais alto, ele está longe de possuir o
temperamento da minha gentil paciente.
— Pensei que você já fosse formada. — Uma voz grave interrompe os
meus pensamentos. Ergo os olhos, dando-me conta de que já escureceu.
Artur me encara, parado a alguns metros de distância.
Arregalo os olhos ao notar que pequenas gotas d’água descem pelos fios
dos seus cabelos e caem na camiseta do pijama. É nítido que ele não precisa
de qualquer ajuda no banho, mas o meu rosto esquenta só de imaginá-lo nu.
Tento aplacar a imaginação ao abrir um sorriso.
— Eu sou formada. Só estava estudando o seu caso.
Ele revira os olhos.
— Ótimo. Ainda por cima serei tratado como cobaia.
Caio na gargalhada.
— É claro que não! Quero fazer de tudo para cuidar de você da melhor
forma possível, Sr. Milano.
Ele crava os olhos castanhos nos meus. Resisto a encolher os ombros e
me mantenho firme. Parece levar horas até que decida retomar a palavra.
— Por que você simplesmente não vai embora? — fala de supetão. —
Está mais do que claro que não te quero aqui.
Já percebi, Sr. Milano, mas não quero lhe dar o gosto da vitória. Decido
ser irônica.
— Bom, já anoiteceu — meneio a cabeça em direção a escuridão do lado
de fora. — Não acho que seria seguro chamar um helicóptero a essa hora.
Artur me observa por mais alguns segundos antes de se virar em direção
a cozinheira.
— Falta muito?
— Não, Sr. Milano.
— Então estarei esperando na sala de jantar — gira a cadeira de rodas e
nos dá as costas. As palavras saem da minha boca antes que eu possa contê-
las.
— Por que você não usa uma cadeira motorizada?
Ele para onde está. O seu rosto se vira por sobre o ombro, bem devagar.
Mesmo àquela distância consigo discernir suas íris cintilando de ódio.
— Porque nunca esperei ficar tanto tempo sentado sobre ela.
E, sem dizer mais nada, desaparece na escuridão da casa.
Capítulo 6 – Artur

Faço a refeição sozinho. Sei que Jacira come na cozinha, então torço
para que Milena também fique por lá. O filé mignon com legumes
refogados está perfeito, mas permaneço sem apetite por qualquer tipo de
contato humano.
Ao terminar, largo o prato e os talheres sobre a mesa. Ou melhor, o prato
e o garfo. Apenas para aumentar os níveis de irritação, a comida é sempre
servida cortada.
Manobro a cadeira de rodas, sentindo os olhos da nova enfermeira às
minhas costas. Há muito decorei todo o conteúdo do quadro de remédios e
agendamentos. Sei que cedo ou tarde Milena virá atrás de mim com toda
uma ladainha sobre os efeitos benéficos de dois ou três comprimidos
coloridos.
Entro no elevador e subo em direção ao meu quarto. Ainda é cedo para
me recolher, mas pouco me importo. Não faço questão de saber as horas.
Elas deixaram de ter importância quando todos os dias se tornaram iguais.
Uma vez dentro dele, impulsiono a cadeira até o banheiro. Escovo os
dentes e estou pronto para ir dormir. Mas, antes de me deitar, vou até as
paredes de vidro e deixo que a escuridão me abrace.
Longe de uma cidade grande e sem qualquer claridade do lado de fora,
uma profusão de estrelas brilha sobre o infinito veludo negro da noite.
Deixei de me interessar por filmes ou séries. Desde o acidente o firmamento
se tornou a minha Netflix.
Hoje não há lua visível, então as estrelas brilham sozinhas. Vez ou outra
consigo ver o rastro de um cometa. Na vila, alguns moradores mais velhos
falam sobre luzes estranhas que surgem nas horas mais escuras da
madrugada, fazendo referência a naves espaciais e seres extraterrestres.
Estes eu nunca vi.
E, pelo visto, não será hoje que irei ver. O céu estrelado se mantém
estático quando uma mão suave bate à porta.
— Posso entrar?
— Não.
— Vou entrar mesmo assim.
— Estou pelado.
— Garanto que não há nada aí que eu já não tenha visto. — Milena diz,
irrompendo porta adentro com uma pequena bandeja em mãos. Sobre ela,
um copo de vidro com água quase até a borda e um menor, de plástico,
contendo os remédios da noite. Um pequeno sorriso sarcástico se forma em
meus lábios.
— Será? Aposto que você é virgem.
— Não sou, não.
Pode não ser, Milena. Mas ruboriza como uma, penso.
— O que você quer? — corto, sem paciência para mais delongas. Pouco
me importa. Eu não tenho absolutamente nada a ver com a sua vida sexual
inexistente.
Milena não responde. Ao invés disso se aproxima da parede de vidro,
parando ao lado da cadeira de rodas. Sua boca se abre em um O silencioso
ao admirar o céu.
— Jamais imaginei que seria possível ver tantas estrelas — murmura. —
Já pensou em comprar um telescópio?
Viro o rosto em sua direção.
— Não. E você, já pensou em cuidar da própria vida?
Para a minha surpresa, a mulher gargalha alto.
— Você é engraçado.
— Você não faz ideia — retruco, voltando a olhar a escuridão.
Ela permanece mais alguns minutos ali, longe de se preocupar com
qualquer outra coisa a não ser as estrelas. Cansado da sua presença, deixo-a
onde está e rodo em direção a cama.
Agradeço mentalmente quando Milena permanece atenta ao lado de fora.
Detesto sair da cadeira de rodas com olhares de pena ou lábios ansiosos
para perguntar se preciso de ajuda. Ela só se vira após o meu corpo estar
acomodado debaixo dos lençóis. Ajeito as pernas e me deixo afundar no
colchão macio, feliz pela trégua da constante dor fantasma. Há noites em
que as pernas inexistentes formigam durante horas a fio.
— Eu não vou tomar nenhum remédio — digo antes mesmo que a
enfermeira insista. Ela olha para o conteúdo da bandeja.
— Posso saber por quê?
— Não.
— Mas eles te fariam bem.
— Não.
Ela solta um suspiro.
— Você é um homem muito negativo.
— E você é uma mulher muito curiosa — rebato. — Não vou responder
mais nenhuma pergunta.
— Tudo bem. Só tome os remédios.
— Não vou tomar.
Milena crispa as mãos. Ótimo, estou começando a irritá-la. Talvez ela
consiga bater o recorde e ir embora em menos de vinte e quatro horas.
— A Ágata vai me demitir se você não tomar.
— Você não faz ideia de como isso me deixa triste — debocho,
aconchegando-me debaixo dos lençóis.
Sua voz se torna soturna.
— Sr. Milano, eu preciso muito desse emprego.
— Dá para notar. Só estando realmente necessitada para aceitar vir
trabalhar aqui.
Ela olha para a tigela contendo o brigadeiro de colher intacto.
— O meu pai sofreu um AVC. Eu o deixei sozinho em casa para poder
cuidar de você. Preciso pagar a dívida do hospital e…
— Ah não, Milena — corto, levando as mãos aos olhos. Fecho-os com
força. — Já basta suportar a minha própria história triste, não preciso ouvir
a sua.
— Então tome os remédios.
Bufo alto, sentando-me na cama.
— Não vou tomar!
— Por favor! — pede, começando a se agitar. — Custa tanto assim
tomar dois comprimidos?
— Custa! Elas não fazem efeito, então que diferença faz tomá-los?
— Talvez comecem a fazer! A Jacira comentou que você nunca tomou
nos horários corretos!
Ranjo os dentes. Encontrar uma boa cozinheira é mais difícil do que
parece. Odiaria trocar a Jacira, mas se a fofoca continuar, será necessário.
— E o que você sabe sobre isso? Até agora a pouco estava pesquisando
sobre como cuidar de mim no Google! — estreito os olhos. — Ou, quem
sabe, estivesse pesquisando sobre a minha vida.
— Eu só estava conferindo algumas informações e...
— Mentira! — corto, mordaz. — Aposto que estava lendo todas as
notícias do meu acidente. E então? Também acha que mereço estar assim?
— abro os braços em direção ao que sobrou das minhas pernas. — A
maioria das pessoas acha que mereço! Uma punição por ter traído a
namorada!
É a sua vez de esfregar os olhos.
— Não pesquisei nada sobre você. Sabe por quê? — Não respondo e ela
continua. — Prefiro te conhecer aqui no dia a dia. Sei o mínimo sobre a
situação do seu acidente e, sendo bem sincera, prefiro não saber mais.
Arregalo os olhos. Confesso que aquilo me surpreende. Houveram
enfermeiras que desejaram saber diretamente da minha boca se eu trai
Nicole ou não. Por um momento me senti como personagem de um
romance do Machado de Assis.
Milena continua:
— Como eu estava dizendo, achei que seria melhor conferir algumas
informações. Por exemplo: uso das ataduras elásticas. Não o vi com elas.
— Porque eu também não uso.
— Mas seria bom usar. — Um leve desespero toma conta da sua voz. —
Elas ajudam a moldar e preparar o coto para o uso das próteses. Você já
começou a usá-las?
— Não.
— Por quê?
— PELO AMOR DE DEUS! — interrompo-a. — Me dê logo esses
remédios e vá embora!
Um breve cintilar de triunfo passa pelos seus olhos azuis, mas no fundo
percebo que está chateada com a quantidade de respostas negativas.
— Aqui está. — Ela estende o copinho plástico. Engulo os dois
comprimidos e faço um gesto pedindo o copo d'água. Sorvo todo o líquido
em três longos goles. Milena espera até que eu lhe devolva o objeto de
vidro. — Obrigada, Sr. Milano. Há mais alguma coisa que eu possa fazer
por você?
Nego com a cabeça.
— Tudo bem — sorri. —Tenha uma boa noite.
Lanço-lhe o meu melhor olhar azedo, mas não digo nada. Espero que
saia do quarto para cuspir os dois comprimidos na mão. Faço uma careta.
Um deles começou a se esfarelar na boca, deixando um gosto amargo na
língua. Coloco-o sobre a mesinha de cabeceira, fixando uma nota mental
para jogá-los na privada, quando vejo a tigela com brigadeiro.
Detesto a ideia de precisar me levantar para escovar os dentes pela
segunda vez, mas também não quero sentir aquele gosto de remédio até
sabe-se lá que horas. Pego a tigela, ajusto-me sobre os travesseiros e levo
uma colherada do doce à boca. Todo amargor vai embora ao ser substituído
pelo sabor do chocolate com um toque de capuccino. É o brigadeiro mais
gostoso que já comi!
Como de pouquinho e pouquinho, temendo que acabe. Volto a encarar o
céu a tempo de ver um pequeno rastro luminoso cortando a escuridão.
Ainda não é uma nave espacial repleta de extraterrestres ansiosos para me
abduzir. É apenas um cometa.
Lembro da primeira vez que fui à praia e um cometa como aquele rasgou
o firmamento. Faça um pedido, minha mãe disse. Não lembro o que pedi,
muito menos se o pedido se realizou, mas recordo da euforia em ter a
oportunidade de pedir algo ao universo.
Observo o céu enquanto termino de comer o doce. Ninguém será capaz
de devolver o que eu mais quero, então dessa vez não peço nada. Levo a
última colherada à boca e encaro a tigela vazia.
Bom, talvez eu pudesse pedir mais uma porção de brigadeiro.
Capítulo 7 – Milena

Uma vez me disseram que as portas do inferno abriam cedo. As da


mansão de vidro do Sr. Milano abrem pontualmente às seis da manhã.
Um estrondo de guitarras e baterias no volume máximo irrompe pela
casa. Desperto abruptamente do meu sono, assustada ao notar que aquele
não é o meu quarto. Pisco, confusa, até começar a entender onde estou.
Sento-me na cama enquanto as memórias do dia anterior preenchem o meu
cérebro. Tudo aconteceu com tamanha velocidade que ainda estou
atordoada.
Na noite passada, após dar os remédios para o Sr. Milano, fiz uma rápida
videochamada para casa. O meu pai prefere as ligações à moda antiga, mas
deixei as suas dificuldades com a tecnologia de lado e insisti no vídeo.
Precisava ver um rosto amado antes de dormir nem que fosse por meros
cinco minutinhos.
Ernesto ficou feliz ao confirmar que eu havia chegado bem. Ao
perguntar sobre o meu novo patrão, abri um imenso sorriso e disse que fui
recebida com toda a gentileza. Sabia que, em breve, seríamos ótimos
amigos. Aquilo animou papai que, com toda a certeza, dormiu como um
bebê.
Não posso dizer o mesmo de mim. Sinto que passei a maior parte da
noite rolando de um lado para o outro na cama. Detesto mentir, mas estou
longe de acreditar que eu e o meu chefe nos tornaremos colegas, quanto
mais amigos. Pelo menos foi por uma boa causa. Papai já tem preocupações
demais, não precisa de mais uma.
Deixa de ser pessimista!, digo a mim mesma ao tirar a camisola. Eu e
Artur nos conhecemos há menos de vinte e quatro horas. É normal que ele
esteja desconfiado. Visto uma calça e uma blusinha e coloco o jaleco por
cima. Após pentear os cabelos e escovar os dentes, desço até o andar de
baixo. A música ensurdecedora incomoda? Com toda a certeza. Mas ela
mostra o quanto o meu chefe acordou animado para iniciar um novo dia.
Isso só pode ser um bom sinal.
Passo na cozinha para dar um Bom dia! para a cozinheira e a encontro
debruçada sobre a bancada de mármore. Seus lábios murmuram um rápido
Pai Nosso enquanto os dedos ágeis dedilham um comprido terço.
— Dona Jacira? — chamo, mas ela me ignora. Abro a boca para chamar
mais alto quando noto os tampões em seus ouvidos. Franzo o cenho, sem
saber se aquele é um motivo pelo qual devo me preocupar. Deixo-a rezando
em paz e vou em direção ao som.
Ele parece vir de uma porta próxima a cozinha. Fecho os dedos sobre a
maçaneta, sem saber se devo abri-la ou não. Artur disse que eu tenho
liberdade para explorar a casa, com exceção do cômodo ao fim do corredor
no andar superior. Dou de ombros e abro a porta.
Não sei o que eu esperava encontrar, mas com toda a certeza não era o
meu chefe fazendo abdominais apenas com um minúsculo short de
ginástica e uma regata branca colada ao tronco suado. Mais uma vez é
impossível desviar os olhos. Artur se exercita com vigor, subindo e
descendo o peitoral largo com um ritmo impressionante, os músculos se
flexionando e relaxando em sintonia.
O som do rock pesado preenche o ambiente com tamanha força que as
paredes de vidro tremem sob os riffs da guitarra. Sem diminuir o ritmo,
Artur começa a cantar o refrão a plenos pulmões.
Observo-o, embasbacada com a força do seu corpo. As abdominais
terminam apenas ao fim da música. Ele se senta, pega uma garrafa de água
largada perto dali e a derruba sobre o rosto. Ah, pronto. É tudo o que eu
precisava. Ver o meu chefe gostoso malhando com uma regata branca
molhada.
— O que você quer? — Ele pergunta. Dou um pulo no mesmo lugar.
Não esperava que tivesse percebido a minha presença.
— Bom dia. Sr. Milano — digo, dando um passo adiante. Olho em volta,
obrigando-me a não encarar o seu peitoral. Observo os modernos aparelhos
de última geração. A esteira e a bicicleta ergométrica foram colocadas em
um canto, dando lugar a uma barra paralela para fisioterapia. Um par de
próteses ortopédicas de aspecto caro estão largadas de qualquer jeito ao
lado das barras. Um saco de pancada, preso em uma altura confortável para
um homem sentado em uma cadeira de rodas, pende de outro canto. — A
sua academia é muito completa — elogio com um sorriso.
Ele não retribuiu.
— Você veio aqui só para falar isso?
— Não — empertigo a coluna, decidida a impedir que me intimide. —
Vim ver se estava rolando um show de rock na praia.
A sombra de um sorriso cruza o seu rosto.
— A música te incomoda?
Dou de ombros.
— Nem um pouco.
— Ótimo — vira o rosto em direção a uma mesinha próxima dali. —
Alexa? Toque toda a discografia do Slipknot.
A assistente responde qualquer coisa e a música ensurdecedora volta a
preencher o ambiente. Troco o peso de um pé pelo outro, sem querer me dar
por vencida, mas também sem saber o que fazer. Decido voltar à cozinha e
perguntar sobre a fisioterapia após o café da manhã.
Jacira está finalizando os preparativos da refeição. O meu estômago
ronca diante de tamanha fartura: uma pilha de waffles aromatizados com
baunilha, uma cesta de pães recém assados, morangos e kiwis frescos,
queijos variados, uma jarra de suco de laranja e um bule com café coado.
Lembro do meu brigadeiro de colher e decido acrescentá-lo à mesa. A
minha boca saliva só de imaginar uma generosa porção dele sobre os
waffles quentinhos.
Abro a geladeira e estendo a mão para o pote de plástico guardado
dentro de uma sacola escura. Sinto-o leve, mas não dou maior atenção.
Basta tirar o pote do saco para entender o porquê.
Durante a noite, algum desalmado se esgueirou pela cozinha, comeu
todo o brigadeiro e deixou o pote vazio dentro da geladeira. Encolho os
ombros. Não me incomodo que tenham comido o doce, mas me incomodo
com a atitude feita única e exclusivamente para me chatear.
Artur Milano vem pelo corredor, o rock pesado ainda soando por toda a
casa.
— Ah, o café da manhã já está pronto! — diz, roubando um morango.
Estreito os olhos para ele.
— Gostou do brigadeiro?
Ele tem a pachorra de erguer uma sobrancelha, o rosto tomado em
dúvida.
— Que brigadeiro? Jacira! — chama, fazendo a cozinheira dar um pulo.
— Estarei esperando na sala de jantar.
E, sem dizer mais nada, dá as costas e desliza até o cômodo ao lado.
Aperto o pote plástico com força, tentando me acalmar. Sei que é aquilo que
ele quer. Me irritar até o ponto em que eu vá embora. Mas eu não vou, Sr.
Milano. Pode ter certeza de que não vou.
Jogo o pote dentro da pia ao mesmo tempo em que sinto o celular
vibrando dentro do bolso do jaleco. É uma mensagem de Ágata.
Bom dia. O meu irmão tomou os remédios do período da noite?, vai
direto ao ponto.
Tomou, respondo, tão direta quanto.
Ótimo. Faça-o tomar os do período da manhã. Por favor, convença o
fisioterapeuta a retornar à ilha. Vou te passar o número.
E envia o contato logo em seguida. Por um instante me pergunto por que
ela própria, ou a sua assistente, não fazem essa ligação, mas deixo para lá.
Limito-me a responder que irei falar com o profissional e volto a minha
atenção ao quadro. Ufa, apenas um comprimido. Será um pouco mais fácil,
eu acho.
Pego o cofre com os remédios e destranco o cadeado. Coloco o
comprimido em um copinho e me preparo para oferecê-lo ao meu paciente.
Artur observa o mar e cantarola ao ritmo das guitarras enquanto mordisca a
ponta de outro morango. Pelo menos aquelas músicas horríveis parecem
deixá-lo animado.
— Hora do remédio — brinco, oferecendo o copinho. Ele nem se dá ao
trabalho de virar o rosto.
— Não quero.
E lá vamos nós de novo...
— A sua irmã acabou de mandar uma mensagem pedindo que...
— Foda-se — xinga, me encarando. Os cabelos suados caem ao redor do
rosto, se misturando a barba desgrenhada. — Daqui a pouco irei bloqueá-la.
Não aguento mais ela me enchendo o saco com um monte de mensagens.
Sinto-me ultrajada diante de tamanha grosseria dirigida à irmã. E a
minha empregadora, diga-se de passagem.
— Ela só está preocupada!
— Então que arrume outro com quem se preocupar.
Os níveis de serotonina de alguém que malha com tamanho vigor
deveriam ser muito mais altos, penso. Solto um longo suspiro. Não são nem
sete da manhã e já estou exausta.
— Por favor, Sr. Milano.
— Não.
— Eu faço mais brigadeiro.
Ele ri, amargo.
— Agora você vai me tratar como criança?
— Acho que sim. Pois é isso o que você parece — deixo escapar. — Um
menino mimado de quatro anos, não um homem adulto com quarenta e
dois.
Artur arregala os olhos. Seu corpo todo se empertiga como o de um leão
ouriçado. Os pontos dourados das íris castanhas cintilam na mais pura fúria.
— O que foi que você disse? — rosna baixinho.
Fui longe demais para voltar.
— Que você parece um menino mimado — estendo o copinho. — Agora
tome o seu remédio!
Uma imensa mão se ergue, mas acerta apenas o plástico. O comprimido
escapa, rolando pelo chão.
— Eu não vou tomar! — berra, afastando-se da mesa. — Eu já disse e
repito, Milena: vá embora!
— Eu não vou!
— Então fique e aguente as consequências!
Artur abandona o café da manhã parcialmente comido e volta por onde
veio, se enfiando na academia. Achei que seria impossível, mas o rock
pesado se torna ainda mais alto, com força o suficiente para fazer todas as
janelas da casa tremerem. Solto um gemido frustrado quando Jacira se
aproxima e começa a recolher os pratos e talheres.
— Ele é sempre assim? — pergunto. Ela evita me encarar.
— É, Srta. de Villeneuve — lança um olhar triste ao comprimido do
chão. — Se eu fosse você, nem se daria ao trabalho. Ele não quer melhorar.
A forma desolada como ela diz isso entristece o meu coração. Abaixo-
me para pegar o copinho e o remédio.
— Querendo ou não, estou aqui para tentar — murmuro.
Capítulo 8 – Artur

Solto um urro ao socar o saco de pancadas. Que garota irritante! Acabou


de pegar o diploma de enfermeira e já se acha no direito de me chamar de
menino mimado! Soco de novo. Nenhum remédio será capaz de trazer as
minhas pernas de volta, então não vou tomá-los! Pronto e acabou!
Ofegante, fecho os olhos com força. A garganta arranha de tanto gritar
de frustração. Uma profusão de riffs de guitarra martelam os meus ouvidos.
As mãos enfaixadas doem após passar horas batendo no saco de pancadas.
Um incessante formigamento parece desejar levar o que restou das coxas.
Maldita dor fantasma!
Mas a maior dor sempre é a da alma. Os cacos do meu coração ainda se
encontram espalhados pelo meu corpo. Reduzidos a minúsculos fragmentos
afiados. Cada um deles entranhado fundo na carne, impossíveis de serem
recuperados.
A música muda. O sussurrar que dá início a Duality do Slipknot soa nos
alto falantes.
I push my fingers into my eyes
It's the only thing that slowly stops the ache
Enfio meus dedos nos meus olhos, é a única coisa que lentamente para a
dor, murmuro para mim mesmo, traduzindo a canção. Esfrego o rosto com
as costas das mãos, mas nenhuma dor cessa. De repente me sinto muito,
mas muito cansado. Certo de que nada será capaz de parar aquela dor
insuportável.
Sinto que estou em uma eterna espera. Do que? Não faço ideia. Pois
apenas uma coisa está clara na minha cabeça. A única atitude capaz de me
libertar da dor. Por fim a tudo. Afundar na escuridão para nunca mais voltar.
Falhei miseravelmente nas duas vezes que tentei. Continuarei falhando
enquanto mais e mais enfermeiras fuxiqueiras forem enviadas para ficarem
no meu pé.
Apenas uma vez confidenciei essa vontade. Não porque desejava
desabafar, mas porque esperava que a profissional me ajudasse. O dinheiro
faz o mundo girar e, sem querer me gabar, tenho o suficiente para sustentar
até a sétima geração da Família Milano. Já que não estaria aqui para gerar
herdeiros, fiz uma oferta bastante generosa. Uma daquelas que poderia
mudar a vida de uma enfermeira de origem humilde para sempre.
Mas a mulher era incorruptível. Ao invés de me entregar uma faca,
aceitar o meu dinheiro e desaparecer, ela enviou uma mensagem para
Ágata. Foi o que bastou para que a minha irmã desembarcasse na ilha em
companhia de terapeutas e psiquiatras. A enfermeira pediu demissão pouco
depois, mas levei dias para me livrar daquela corja incômoda.
E continuei aqui.
Talvez eu devesse ter me estendido. Explicado cada um dos motivos.
Como fazer uma enfermeira simplória entender que um poderoso magnata
jamais conseguiria se portar sentado em uma cadeira de rodas ou se
equilibrando sobre um par de próteses?
Ninguém no mundo dos negócios me respeitaria. Serei sempre olhado
como o empresário que perdeu as duas pernas em um acidente. Aquele que,
se tivesse ficado em casa cuidando da namorada gripada, ainda estaria de
pé. Pouco importa se não passam de uns safados capazes de trair as próprias
esposas ao menor surgimento de uma oportunidade, o julgamento viria. Ah,
se viria.
E o que seria do resto da minha vida? Desde que iniciei a minha vida
sexual, jamais fiquei tanto tempo sem sexo. Ágata certa vez chegou a
mencionar, acanhada como nunca vi, se eu desejava que ela contratasse uma
profissional especializada para me “aliviar”. Neguei veementemente. Nicole
deixou claro o que qualquer mulher sentirá ao se deitar ao meu lado. A
mera ideia de receber alguém obrigada a transar comigo por dinheiro me
causa repulsa.
Jamais tornarei a ser respeitado no mundo dos negócios. Nenhuma
mulher me amará. Não vou continuar a trabalhar. Não vou construir família.
Não tenho qualquer esperança. Simplesmente não quero viver assim.
Escuto um barulho baixo, mas ainda alto o suficiente para afastar esses
pensamentos. Deixo a música tocando a giro a cadeira em direção a porta.
Não me surpreendo em ver Milena parada ali. Ela me observa com atenção,
como se tentasse decifrar o que se passa na minha cabeça. Aprumo o corpo,
pronto para lhe dar qualquer resposta mordaz quando ela se adianta, cheia
de suavidade.
— O almoço está pronto.
E me dá as costas, indo embora. Peço para que a Alexa desligue a
música e sigo-a sem emitir palavra. Reparo como os cabelos loiros
cascateiam em direção ao meio das costas, balançando ao ritmo do seu
caminhar. Compridos e brilhantes como os de uma princesa. Não faço ideia
de onde a vontade vem, mas preciso resistir à tentação de esticar os dedos e
tocá-los. Parecem macios como a mais pura seda.
— Vou subir para tomar banho — anúncio para ninguém em particular.
Estou encharcado de suor e não há desodorante que aguente uma manhã
inteira de exercícios.
A mulher fica vermelha da cabeça aos pés.
— Você precisa de ajuda? — pergunta, tímida.
— Depois diz que não é virgem — resmungo.
— O que foi que você disse?
— Nada. E não, não preciso de ajuda. Já se esqueceu que tomei banho
sozinho ontem à noite?
Ela faz um gesto de que está tudo bem.
— Então vou subir apenas quando você terminar — ergo uma
sobrancelha, indagativo. — Para colocar as ataduras elásticas em suas
pernas.
Balanço a cabeça em negativa. Ataduras elásticas? Não mesmo! São
metros e metros de faixa compressiva que, enroladas, envolvem todo o coto
e cobrem a maior parte da minha coxa. Usei nas primeiras semanas após a
cirurgia e... só. O fisioterapeuta e algumas das enfermeiras insistiam que eu
deveria continuar usando, mas para que? O ferimento já cicatrizou e elas
não serão necessárias onde pretendo ir. Apenas mais um acessório inútil
para ser queimado no fogo do inferno.
— Está fazendo um calor de mais de trinta graus lá fora — indico a
janela com a cabeça, em uma tentativa de dissuadi-la daquela ideia. — Não
vou colocar faixa alguma.
— Graças ao ar-condicionado, aqui dentro está pelo menos dez graus
mais fresco.
Além de fazer perguntas irritantes, ela também dá respostas irritantes.
— Mesmo assim eu não quero.
— Por favor, Sr. Milano... — Ela começa.
É a minha vez de lhe dar as costas e entrar no elevador. Já que Ágata faz
tanta questão de me manter vivo, deveria me manter apenas com a
companhia de Jacira. A cozinheira não me obriga a tomar remédios. Não
insiste sobre faixas. Se limita a fazer o seu trabalho e me deixar em paz.
Uma excelente profissional, sem sombra de dúvidas.
Saio da caixa metálica e em segundos estou dentro do closet em meu
quarto. Ignoro os ternos de grife pendurados nos cabides e me concentro
nas roupas guardadas nas prateleiras mais baixas ou nas gavetas. Nada ali
dentro foi adaptado. Por sorte o ambiente é amplo, então não tenho
qualquer dificuldade para manobrar a cadeira de rodas e voltar à suíte.
Dentro do imenso banheiro a história é outra. A hidromassagem segue
intacta. Se já pensei em fazer uso indevido dela? Já, mas deixei a ideia para
lá. Não consegui dar cabo de mim mesmo após tomar uma caixa de
calmantes, duvido que conseguirei em meio metro de água.
Todo o resto foi completamente reformado. Barras de aço inox cruzam
os azulejos de ponta a ponta enquanto uma cadeira de banho me aguarda em
um canto. Puxo-a para perto e começo a tirar a roupa. Houve uma época em
que apreciava os longos minutos debaixo do chuveiro, mas agora prefiro ser
ágil. Ensaboo todo o corpo, desejando me vestir o mais rápido possível para
não precisar continuar olhando para as pernas nuas.
Estou vestindo uma camiseta limpa quando a imagem do rosto
ruborizado da nova enfermeira invade a minha mente. O Artur de antes
gostava de mulheres exatamente como ela. Dispostas a chicotearem uma
opinião contrária com a língua. Detestava as ensinadas desde cedo pela alta
sociedade a serem subservientes a um futuro marido.
Preciso admitir que, pelo menos, ela me tira da monotonia. Lembro de
uma das primeiras que Ágata contratou: a enfermeira dos ombros
encolhidos. Mais um pouco e a mulher desapareceria por entre as areias da
praia. Milena não. Ela se empertiga a cada provocação, pronta para me
devolver uma resposta afiada. Gosto disso. De como não abaixa a cabeça
para mim.
— Por que caralhos estou pensando na minha enfermeira? — digo para
mim mesmo, terminando de me vestir.
Aliso a barra da camiseta e saio do quarto, sendo acometido por uma
breve ideia. Milena pelo visto precisa de dinheiro, mas só de olhar para o
seu rosto dá para perceber que é uma jovem incorruptível como uma freira.
Nada a fará me ajudar com o meu pequeno projeto.
Franzo o cenho quando o seu tom acalorado sobe pelas escadas.
— Mas você precisa vir! — implora em voz alta. Desço pelo elevador,
chegando no andar de baixo a tempo de ouvi-la dizer: — Como assim só se
ele for exorcizado? Sim, ele ouviu essas músicas durante a manhã inteira.
Músicas do demônio? É apenas rock e...
Seu rosto se torce em uma careta chocada. Ela tira o telefone da orelha e
o encara, ultrajada.
— E o Davi desligou — digo, entrando na cozinha. Milena solta um
suspiro.
— Ele disse que não vem.
— Que pena — ironizo, espiando as opções. Pelo aroma, Jacira fez coxa
de frango ao molho de laranja. A minha boca começa a salivar. Adoro coxa
de frango. Se é para continuar vivo, que pelo menos seja com comida boa.
— Pode colocar duas no meu prato — aviso, me dirigindo a ela. A
cozinheira assente.
— Você tem outro fisioterapeuta que eu possa ligar? — A enfermeira
questiona. Pelo seu tom de voz, prevê de que não terei ninguém.
— Sabe — retruco, levando uma mão ao queixo, pensativo. — Você
também parece uma criança pequena, Milena. Nunca ouvi tantas perguntas.
— Talvez eu diminuísse a quantidade delas se você colaborasse —
resmunga. — Você já poderia estar se adaptando às próteses e...
— E isso não vai acontecer — olho de relance para o relógio. —
Parabéns, daqui a pouco você estará completando o seu primeiro dia na
mansão de vidro. Como se sente?
Ela me observa longa e demoradamente antes de responder.
— Deslumbrante.
— Ótimo — pisco. — Estamos apenas começando.
Capítulo 9 – Milena

Artur tinha razão. Estávamos apenas começando e, a cada dia que se


passava, eu desejava mais e mais não ter começado.
A rotina na mansão de vidro se tornou uma versão resumida e por vezes
embaralhada das primeiras vinte e quatro horas em companhia do meu
chefe. Não houve o que convencesse Artur a tomar os remédios
corretamente. Ele simplesmente se recusava, às vezes com sarcasmo, às
vezes com grosseria.
Se a sua função era recusar, a minha era insistir até que bufasse e fosse
vencido pelo cansaço. Ou pelas infinitas perguntas, como gostava de
lembrar. Sabia que os tomava não porque queria, mas apenas para se livrar
da minha presença. Pouco me importava. Eu também queria me livrar dele,
de preferência o mais rápido possível.
A suspeita veio no segundo dia. No terceiro eu já tinha certeza de que ele
cuspia os comprimidos. Artur negou ao ser colocado contra a parede,
insinuando que eu o acusava de ser mentiroso. Abri a boca para retrucar,
mas já estava começando a ficar farta do magnata. Usar as ataduras
elásticas ou fazer exercícios de fisioterapia? Nem pensar. Jacira tinha razão.
Por algum motivo que eu não conseguia entender, Artur se recusava a
melhorar.
A música alta continuou, mesmo durante um dia em que ele se manteve
calado por vinte e quatro horas. Perguntei de brincadeira se estava fazendo
voto de silêncio, mas recebi como resposta apenas um olhar atravessado.
Ignorou a mim e a Jacira, aparecendo apenas para realizar as refeições antes
de se fechar na solidão barulhenta do seu quarto.
Não consigo decifrar qual efeito o rock pesado tem em meu patrão, mas
algum efeito ele tem. Gostaria de entender o significado das letras em inglês
que às vezes canta a plenos pulmões. É como se desejasse expelir toda a
raiva do peito, mas ao mesmo tempo tornar a preenchê-lo com o mesmo
sentimento.
E a única coisa que Artur faz para se distrair além de malhar na
academia é ouvir música. O homem não assiste filmes, não vê nenhuma
série, ignora os livros. Quando não está fazendo alguma das duas
atividades, passa horas e horas sentado diante das paredes de vidro olhando
para o mar.
Poderia estar trabalhando, mas está ali, parado, sem ter ciência do
próprio poder. Do quanto sua inteligência continua afiada, a presença
marcante e a beleza atraente. As mechas compridas e a barba desgrenhada
lhe conferem um ar bruto, selvagem, mas ainda assim capaz de atiçar
qualquer mulher que se sinta atraída pelo sexo masculino. Estremeço só de
imaginar como ele ficaria de terno e gravata.
Artur também recusou todos os convites para sair da mansão e curtir a
praia, ao invés de apenas observá-la. A expressão do seu rosto se
transformou em mais puro horror diante da sugestão. Por um momento
pareceu que eu o estava convidando para cometer um crime hediondo, não
apenas para se sentar sobre uma canga na fina areia do mar. Em uma das
ocasiões os seus berros irados preencheram a casa, então deixei de insistir.
Somado a isso, a pressão constante de Ágata. A CEO não parece nutrir
qualquer intenção de pisar no campo minado que é a casa do irmão, mas se
mostra ansiosa em saber das novidades. Todos os dias, sem exceção, envia
mensagens perguntando sobre o andamento do tratamento. E, ainda que de
forma polida, me recriminando diante do pouco sucesso dele. Às vezes
sinto vontade de perguntar o que ela espera que eu faça. Não posso obrigar
um homem com o dobro do meu tamanho a tomar um remédio que não
quer.
Jacira também não colabora. A cozinheira parece se esforçar para
ignorar a minha presença. De início tentei puxar assunto, ansiosa para ter
alguém com quem conversar, mas os diálogos monossilábicos não se
desenvolvem. Em cinco dias parei de tentar.
Agora, dez dias após a minha chegada, entendo por que as enfermeiras
vão embora. Artur é um homem difícil cujo mal humor se espalha pelo
ambiente como uma densa névoa maligna. O clima pesado da mansão
minou a minha alegria. A música alta faz com que a cabeça doa o dia
inteiro. Nas horas vagas, tentei ler o exemplar que trouxe comigo, mas
como se concentrar diante do barulho insistente e perturbador?
Não sei como foi possível, mas hoje Artur se mostrou ainda mais
irascível. Remexendo-se sobre a cadeira de rodas, reclamou de todas as
refeições, coisa que até então não havia feito. O rock ensurdecedor
continuou até o momento em que os autos falantes foram desligados com
uma profusão de xingamentos capazes de fazer um marinheiro corar. Subi
até o seu quarto para perguntar o que havia acontecido, mas ele estava tão
irritado jogando coisas de lá para cá que achei melhor me calar.
O magnata desceu horas depois pedindo pelo jantar. Comeu pouco e
disse, em alto e bom som, que eu não precisava me dar ao trabalho de ir ao
seu quarto com a bandeja dos remédios. A minha energia está tão esgotada
que nem ao menos retruquei. Apenas assenti, feliz por me ver livre daquela
tarefa nem que fosse por apenas uma noite.
Faço a refeição em companhia de uma silenciosa Jacira. A forte
tempestade de verão fustiga a casa enquanto comemos. A única coisa que
me consola é a liberdade de falar com o meu pai ou com Dona Bernadete ao
fim do expediente, mas o tempo ruim provavelmente me privará disso. A
cobertura da operadora de celular não é boa e o sinal da internet via satélite
se torna péssimo nas noites de chuva forte.
Nos últimos dois dias consegui me comunicar apenas por mensagem,
mas adoraria poder ouvir suas vozes. Por mais que eu tenha liberdade para
ir até a vila, o isolamento na ilha beira o angustiante. A falta de uma
presença amigável quase me faz chorar. Eu preciso falar com o meu pai,
nem que seja por apenas um minutinho.
Termino o jantar e peço licença a Jacira, ansiosa para subir ao meu
quarto e tentar ligar para casa. Passo pela sala de estar e encaro o quadro
das enfermeiras. Mais um dia e baterei o recorde. Ganharei um prêmio por
isso? Duvido. Duvido até que conseguirei completar os três meses de
contrato. Uma onda de ansiedade preenche o meu peito. Não posso ir
embora agora. Preciso engolir a angústia e ficar.
Chego ao andar de cima e caminho devagar, com receio de incomodar o
Sr. Milano. Não faço ideia da hora que ele costuma dormir, mas a última
coisa que desejo é dar motivo para irritá-lo ainda mais.
Passo diante da porta do seu quarto e... isso que estou ouvindo são
gemidos? Meu Deus, são! Que safado! Todo o meu rosto se aquece com a
imagem do homem fazendo sabe-se lá o que sozinho. Você sabe muito bem
o que ele está fazendo, Milena, uma vozinha sacana sussurra no meu
ouvido, mas não quero pensar sobre isso. Aperto o passo e o deixo se
masturbar em paz.
Mas ele geme de novo. Franzo o cenho. Tenho certeza de que aquele não
é um gemido de prazer. É de dor. Troco o peso de um pé pelo outro, sem
saber o que fazer, incomodada em invadir a sua privacidade. Então me
lembro do motivo pelo qual estudei enfermagem: para cuidar das pessoas,
pura e simplesmente. Volto alguns passos, respiro fundo e bato na porta.
— Sr. Milano? Está tudo bem?
Ele demora um pouco para responder.
— Está. — Seu tom de voz demonstra o contrário.
Um trovão soa do lado de fora e começo a ficar preocupada. Não sei se o
comandante Salomão terá acesso a ilha caso Artur esteja muito mal. Até
onde sei a vila não possui nem um posto de saúde, quanto mais um hospital.
Preciso saber se o meu paciente está realmente bem.
— Posso entrar?
— Não.
— Bom, vou entrar assim mesmo — aviso, torcendo para que ele esteja
vestido.
Ele está. Apenas com um curto short de pijama.
O meu queixo cai diante do homem esparramado na cama. A imagem do
meu ex-namorado dos tempos da escola vem com tudo à mente, mas é
covardia fazer qualquer comparação. Enquanto ele era magro, tinha o peito
estreito e abdômen liso livres de pelos, Artur é a completa personificação da
masculinidade.
Os cabelos se espalham pelo rosto virado de lado, ocupando parte do
travesseiro e os ombros largos. O peitoral forte e musculoso se move
devagar ao respirar. Uma fina trilha de pelos escuros passa pelo centro do
abdômen cheio de trincados gominhos até desaparecer pelo elástico do
short.
O meu rosto torna a esquentar diante do volume ali, bem no meio do
pequeno pedaço de tecido. Tento desviar os olhos para os pronunciados
vincos em seus quadris ou para as coxas grossas, mas não consigo. É
volume demais para uma pessoa só!
— Perdeu alguma coisa aí? — Artur pergunta, virando um olho para
mim. Pisco, atordoada por ter sido pega no flagra, mas ele não parece se
importar. É visível que está com dor.
— O que aconteceu? — entro no modo profissional e corro os olhos pelo
seu corpo, mas ele não está ferido.
— Nada.
É a minha vez de bufar.
— Você não estaria assim se não tivesse acontecido nada!
— São as minhas pernas! — explode. — Não entendo como pernas que
não existem podem doer tanto!
Um alerta é ativado na mente. Aproximo-me da cama.
— Doer como?
— O que importa? — Ele geme. — Duvido que vá acreditar se eu contar.
— Você precisa entender, de uma vez por todas, que eu estou aqui para
te ajudar — digo, me agachando ao lado da cama. — Por favor, me
explique como é a dor.
Seu rosto acompanha o meu movimento. Ele me encara e, por um
instante, penso que vá me mandar a merda, mas algo na minha expressão o
desarma. Só um pouquinho, mas desarma.
— Parece uma cãibra, mas também parece um formigamento — cospe as
palavras, irritado. — Não sei explicar! Os médicos disseram que se chama
dor fantasma e que, com o tempo, iria passar. Mas ela não passa. Está
doendo o dia inteiro!
Por isso o mal humor além do normal, penso com pena, mas mantenho a
voz firme ao falar:
— Claro que não passa. Você não toma os remédios, não enfaixa o coto,
tampouco faz os exercícios da fisioterapia — enumero. — Só um milagre
faria a dor passar sozinha.
— Acredite, Milena — ofega, contraindo o rosto em um espasmo de dor.
— Houve um tempo em que eu fiz tudo isso, mas de nada adiantou. Por
algum motivo fui amaldiçoado e a minha sina é viver com a dor.
— Ah, era só o que faltava — digo, me levantando. — Você tem algum
tipo de óleo essencial ou creme hidratante?
Ele dá de ombros.
— Devo ter no banheiro.
Dou-lhe as costas e vou buscar. Reparo na imensa hidromassagem em
um canto. É impressionante como, após dez dias nessa casa, ainda consigo
me surpreender com tamanho luxo, mas foco na missão. Abro armários e
procuro qualquer coisa que possa facilitar o deslizar dos meus dedos pela
sua perna. Não encontro o óleo, mas acho um excelente pote de creme
hidratante. Com ele em mãos, retorno ao quarto.
Um relâmpago ilumina todo o ambiente, seguido pelo estrondo do
trovão. Artur se remexe de leve, os olhos fechados. Resisto à tentação de
continuar o sermão sobre os remédios e me sento na beirada da cama,
despejando uma generosa porção de creme nas mãos. Deslizo a palma sobre
uma das pernas, surpresa com a firmeza da musculatura de sua coxa. Desde
que cheguei não o vi em qualquer aparelho para malhar membros
inferiores.
Mas tampouco estou aqui para julgar a definição dos seus músculos e
sim para aplicar uma massagem que possa acalmar a sua dor. Com
movimentos firmes, deslizo a mão por toda a perna. Artur tenciona diante
do meu toque, mas bastam três minutos para que o seu corpo comece a
relaxar. Desço os dedos até o coto, feliz em notar como o corte cicatrizou
bem. Seria questão de tempo até se adaptar às próteses e voltar a caminhar.
Engulo mais aquele sermão e me concentro no trabalho. Logo me dou
por satisfeita e migro para a outra perna. Em pouco tempo Artur está
completamente relaxado sobre a cama. Pela forma tranquila com que
respira, aposto que todas as dores foram embora.
— Melhor? — pergunto, apenas para garantir.
— Melhor. — Ele murmura, ainda sem me encarar. Começo a me
levantar. — Vou querer os remédios — acrescenta. Ergo uma sobrancelha,
mas contenho a língua. Ele não consegue fazer o mesmo: — Vai, fala o que
você está pensando!
— Não estou pensando em nada — digo, voltando a lhe dar as costas.
Desço até a cozinha, pego os remédios e um copo d’água e retorno ao
quarto. Artur engole os comprimidos, bebendo a água em seguida. Solta um
longo suspiro antes de se acomodar na cama.
— Há mais alguma coisa que eu possa fazer por você? — pergunto.
— Não. Pode ir embora.
Pego o copo.
— Boa noite, Sr. Milano.
Ele não responde, mas escuto a sua voz ao fechar a porta. Ela vem com
quase inaudível Boa Noite, Srta. de Villeneuve, tão baixa que não sei se é
obra da minha imaginação.
No dia seguinte a mansão de vidro amanhece em silêncio.
Capítulo 10 – Artur

Acordo cedo e desço para o andar debaixo, mas dessa vez não sei por
qual motivo. Não estou com vontade de malhar, tampouco de ouvir rock
pesado. Encaro o quadro das enfermeiras e percebo quem é a responsável
pelo novo recorde.
Quem diria que Milena seria casca grossa o suficiente para aguentar
mais de dez dias ao meu lado? Estendo a mão, pronto para atualiza-lo, mas
de repente me sinto envergonhado por ser o responsável por aquela
brincadeira idiota. Arranco o quadro da parede e sigo para a cozinha,
jogando-o na lixeira.
Abro a geladeira e encaro os potes com fatias de carne, legumes pré-
cortados e frutas da estação. Ainda é cedo até mesmo para Jacira, mas pelo
visto ela agilizou o cardápio do dia.
Fecho a porta sem encontrar qualquer doce e sigo amargo para o deque.
A fria brisa da manhã agita os meus cabelos assim que abro as portas de
vidro e deslizo para o lado de fora. Pétalas vermelhas, folhas e galhos de
árvores se espalham pela areia molhada. O mar continua agitado, mas
menos que na noite anterior. Mesmo que o céu esteja longe de estar azul, a
tempestade enfim parece ter ido embora.
Aos poucos as nuvens se abrem, trazendo consigo um tom de azul
semelhante as íris da enfermeira. Não sei qual tipo de feitiçaria havia em
suas mãos de fada, mas toda a dor desapareceu. Se eu fechar os olhos e me
concentrar, ainda consigo sentir os dedos moldando os músculos da minha
perna. Céus, jamais pensei que ansiava com tamanha vontade pelo contato
cálido de uma mão feminina. Delicado. Quente. Livre de qualquer malícia,
mas ainda assim capaz de despertar sensações que julgava há muito
adormecidas.
Durante todo o tempo evitei olhar para o rosto de Milena. As sensações
eram boas demais para serem estragadas por sua expressão enojada. Mas,
quando olhei, não havia a mínima repulsa em seu semblante. Pelo contrário.
Parecia gostar da minha aparência, como se eu ainda fosse um homem
desejável.
Balanço a cabeça, tentando espantar o pensamento para longe sem
qualquer sucesso. Talvez ela apenas estivesse fingindo, mas logo rechaço a
ideia. O rosto coberto de inocência da nova enfermeira é expressivo demais
para tanto. Desde que chegou, Milena não me lançou um único olhar de
nojo. De impaciência e irritação sim, mas jamais de nojo.
Uma pequena fagulha se acende em meu peito com tamanha força que a
leve ventania carregada de sal não consegue apagar. Preciso admitir: mesmo
com suas perguntas irritantes e recomendações mirabolantes, Milena parece
se importar de verdade com o meu bem-estar. Ouvi os seus passos na
escada. Ouvi quando parou diante da porta. Tantas antes dela passaram reto.
Uma até mesmo riu, como se comemorasse a minha dor.
Mas Milena parou. Perguntou se eu estava bem. Insistiu diante da minha
recusa. Cuidou de mim com respeito, por mais que eu não a tenha tratado
da mesma forma.
Sinto o meu rosto se tornando rubro de vergonha. Nunca me importei
com o que causei ou deixei de causar nas enfermeiras que vieram antes de
Milena. Mas, por algum motivo, agora me importo com ela. Então porque a
tratei tão mal, quando ela só queria me ajudar?
Remexo-me sobre a cadeira de rodas, pensando no que posso fazer para
tentar remediar a situação quando tenho uma ideia. Ouço um barulho às
costas e olho por sobre o ombro. Jacira já está na cozinha preparando o café
da manhã.
— Jacira? — chamo sua atenção ao deslizar para dentro de casa. Ela
ergue o rosto, assustada como se tivesse sido pega em uma atitude
comprometedora, não cortando pão. Foi isso que eu me tornei? Um monstro
que assusta as pessoas com sua mera presença? Encolho os ombros,
tentando indicar que está tudo bem. — Você poderia fazer algo especial
para o jantar?
Ela arregala os olhos.
— Especial como?
— Não sei. Algo mais refinado. — Seu olhar se torna desconfiado, então
decido acrescentar. Limpo a garganta e continuo. — Convidarei a Milena
para jantar.
A mulher dá um pulo no lugar, mas logo se recompõe.
— Senhor, me desculpe. Não tenho nada a ver com isso, mas acha
mesmo que a garota aceitará esse convite?
— Por que não aceitaria? — pergunto, ultrajado. — E onde ela está?
Já são quase oito horas da manhã. Milena sempre acordou cedo. A
menos que tenha caído doente, era para estar de pé aqui, nessa mesma
cozinha, insistindo para que eu engula os comprimidos do dia, mesmo
sabendo que não irei tomar.
A cozinheira se limita a abaixar a cabeça e voltar aos seus afazeres sem
me dar uma resposta. Franzo o cenho. Será que aconteceu alguma coisa?
Milena parecia ótima na noite anterior. Confiando que o meu pedido será
acatado, deixo Jacira sozinha e sigo até o elevador.
Basta sair dele para ouvir o choro contido da enfermeira. Franzo o
cenho, sem entender por qual motivo ela está chorando. Alcanço a sua porta
e ergo a mão para bater, mas hesito assim que ouço a sua voz.
— Eu estava com tantas saudades! — diz com sofreguidão. — Ficamos
dois dias sem internet por causa das tempestades de verão. Sinal de celular?
É muito instável, Dona Bernadete. Oscila o tempo todo. Tentei ligar, mas
não consegui.
Ela silencia por alguns instantes, provavelmente ouvindo o que a tal da
Bernadete está dizendo do outro lado da linha. Quem será ela? O meu rosto
torna a esquentar quando me lembro que pedi para Milena não contasse a
sua história. Pelo menos esse pedido foi acatado, mas a que custo?
O seu tom se torna estridente.
— Como é trabalhar aqui? Um inferno! Ele é horrível na maior parte do
tempo — funga alto, tentando se controlar. — Nunca pensei que precisaria
trabalhar com um homem tão grosseiro!
Apuro os ouvidos e abaixo o braço, bem devagar. O meu coração
começa a martelar forte no peito. Não me incomodo que ela esteja falando a
verdade, ao mesmo tempo em que me incomodo, e muito, que ela esteja
falando a verdade.
Eu deveria sair dali. Deixá-la desabafando em paz, mas a curiosidade
para saber o que mais sairá dos seus lábios fala mais alto. Permaneço onde
estou e Milena continua.
— O problema é o que ele não faz. Não entendo o porquê, mas se recusa
a seguir o tratamento e parece se divertir descarregando a sua ira nas
pessoas — faz uma pausa, provavelmente ouvindo a pessoa do outro lado
da linha. — A senhora não tem ideia de como fiquei desesperada. Eu só
queria ouvir uma voz amigável no meio desse caos. Nunca estive em um
ambiente com o clima tão pesado.
Milena volta a chorar. Engulo em seco, desconfortável com a tristeza
contida em seu pranto. Ela soluça alto, expelindo um sentimento tão
diferente de quando chegou, como se toda a alegria no seu corpo tivesse
sido drenada.
Aguardo, preocupado e sem saber o que fazer. Devo abrir a porta e
consolá-la? Como, se sou eu mesmo o causador do seu sofrimento?
Sobressalto-me ao ouvi-la continuar.
— Não posso pedir demissão. Preciso ficar aqui pelo menos até quitar
todas as dívidas do papai. Dar outro jeito? Que jeito? Não há outro jeito,
Dona Bernadete. Irei embora apenas em último caso.
Arregalo os olhos. Não, não e não! Ela não pode ir embora! Agito-me
sobre a cadeira de rodas, uma leve onda de pânico ameaçando me dominar.
Como fazê-la ficar? Um amigável jantar será o suficiente para me
desculpar? Talvez eu possa pensar em outra coisa. Em um presente. Algo de
que ela goste e mostre que é bem-vinda!
Deixo-a falando enquanto a minha mente entra em um turbilhão. Tento
encontrar uma solução, mas não consigo. Maldição! Já fui conhecido como
um tubarão dos negócios, um homem capaz de tomar as mais precisas
decisões mesmo sob pressão, como é possível que agora eu não consiga
pensar em uma única coisa capaz de fazer a enfermeira feliz?
Perco-me com tanta profundidade em mim mesmo que não percebo a
porta do quarto se abrindo.
— Ah, agora você também escuta a conversa alheia? — Milena
pergunta. Ergo a cabeça, encarando as suas íris. Todo o tranquilo azul
turquesa desapareceu e foi tomado por raiva. Engulo em seco.
— Não, eu...
— Espero que tenha ficado feliz com o que ouviu — cospe. — Será que
você poderia me dar licença?
— Claro — digo, começando a manobrar a cadeira de rodas para longe
da porta, mas paro no meio do caminho. — Eu gostaria de te fazer um
convite.
Ela cruza os braços e ergue uma sobrancelha.
— Um convite para o que?
— Para jantar. Quero que jante comigo hoje à noite.
Milena me encara longa e demoradamente. Torno a me remexer,
desconfortável, quando ela decide falar.
— Obrigada, mas eu não quero.
— Como é que é? — questiono, espantado.
— Não quero jantar com você — confirma. — Agora, por favor, me
deixe passar.
Estou estarrecido demais para me mexer. Impaciente, Milena empurra a
cadeira de rodas. O toque é delicado, mas o suficiente para me afastar.
Encaro as suas costas, os cabelos dourados bonitos mesmo com um monte
de fios arrepiados.
— Mas eu já pedi para a Jacira fazer algo especial e...
— Ótimo — diz, olhando por sobre os ombros. — Terei o maior prazer
de comer com ela na cozinha. Aproveite a sua solidão na sala de jantar.
O espanto dá lugar a irritação.
— Não! — elevo o tom de voz. Milena para diante da porta do banheiro.
— O convite acaba de se tornar uma ordem Srta. de Villeneuve. Você irá
jantar comigo, ou não irá jantar! Estamos entendidos?
A mulher gira o corpo bem devagar. A mesma tempestade que caiu
ontem à noite agora desaba nas íris escurecidas da minha doce enfermeira.
Espero que ela retruque, mas Milena não abre a boca. Não preciso que abra.
Em meus quarenta e dois anos de idade, poucas vezes alguém me
encarou com tamanha raiva.
Tamborilo os dedos sobre o tampo da mesa, cada vez mais impaciente.
Milena permaneceu o dia inteiro trancada em seu quarto. Não desceu nem
ao menos para tomar café da manhã ou almoçar. Vi Jacira subindo com um
pratinho de comida e não me importei. Afinal, não quero ser responsável
por matar as minhas enfermeiras de fome, mas realmente espero que ela
desça para jantar.
Encaro a louça organizada como se de fato estivéssemos comendo fora,
em um simples, mas sofisticado restaurante. Passei pela cozinha e sei que
Jacira caprichou ao tentar inovar com o que tínhamos em casa. Fez escalope
de filé mignon ao molho de uísque, batatas assadas com alecrim,
conchiglione com muçarela de búfala e uma colorida salada. Ainda não sei
qual é a sobremesa, mas suspeito que seja mousse de chocolate meio
amargo.
Bufo alto, começando a me irritar com a demora de Milena. Fecho os
olhos com força, tentando preencher o meu corpo com uma inexistente paz
interior. Calma, Artur. Ela vai descer. Ela tem que descer. Abro os olhos e a
vejo parada há poucos metros de distância.
Milena desceu e puta que pario, desceu para me matar do coração!
A mulher me encara de cima com tamanha dignidade que preciso me
forçar a permanecer parado, sem me encolher. Ela passou uma maquiagem
leve no rosto, realçando os belíssimos olhos azuis com lápis preto. Um
batom rosado tinge os lábios apertados de quem visivelmente adoraria me
mandar a merda, mas prefere se calar. Brincos de argola pendem das suas
orelhas e se mesclam às ondas dos seus cabelos. Eles foram escovados à
perfeição até que todos os fiozinhos estivessem no lugar. Brilha, sedoso e
dourado, como o cabelo e uma princesa.
O usual jaleco foi deixado de lado. Um bonito vestido de verão bege
claro cobre o seu corpo perfeito. O decote em formato de coração impede
que se veja além do necessário, mas é o suficiente para atiçar o imaginário
de qualquer homem hétero. O tecido passa pela cintura fina, terminando
apenas aos seus pés. Parte de mim agradece por não poder ver as suas
pernas. A outra parte deseja ter o mínimo vislumbre delas.
— Perdeu alguma coisa aí? — Milena pergunta. Pisco, assustado por ser
pego no flagra.
— Não, não! — adianto-me em dizer.
— Ótimo! — Milena dá a volta e se senta na mesa. — Então vamos lá.
Quanto mais rápido começarmos, mais rápido podemos terminar.
Limito-me a permanecer calado enquanto um silêncio sepulcral desce
sobre a mesa. É, pelo visto a minha mansão realmente tem um clima
pesado.
Como se pressentisse uma tragédia, Jacira sai apressada da cozinha com
o primeiro prato em mãos. Coloca o filé mignon sobre a mesa e volta
correndo, pronta para trazer o próximo. Abaixo a cabeça, pensando no que
dizer.
— O seu pai melhorou?
Devagar, Milena fixa os impressionantes olhos cor de mar nos meus.
— Ah, isso você não ouviu.
Nego com a cabeça.
— Mas naquele dia você mencionou que ele estava doente e...
Ela ergue uma sobrancelha.
— Pensei que você não quisesse ouvir a minha história triste. Aliás,
pensei que você me quisesse bem longe daqui em — leva uma mão ao
queixo — quantos dias mesmo?
Não respondo. Jacira ressurge com a massa e as batatas. Ajeita tudo
sobre a mesa e desaparece dali o mais rápido possível. Penso em lembrá-la
da salada, mas deixo para lá.
Milena observa a comida como se a avaliasse. Pega um escalope, dois
conchigliones e uma porção de batatas. Deixa que o pesado prato de
porcelana caia com força sobre a mesa, o baque se espalhando por toda a
sala. Lanço-lhe um olhar de esguelha, mas ainda me mantenho calado. A
ideia inicial é termos um jantar de reconciliação, não de desavença.
Comemos em silêncio. Ou melhor, fingimos que comemos. Por mais que
a comida esteja gostosa a ponto de derreter na língua, todo o apetite
desapareceu. Milena come a carne, mas joga os conchigliones de um lado
para o outro no prato.
Volto a botar o cérebro para trabalhar, ansioso para encontrar algum
assunto que possamos compartilhar. Mas qual? Há séculos não assisto
nenhum filme ou série. Mal leio as notícias, quanto mais um livro. Sei que
ela gosta de ler, mas não faço ideia do que andou lendo desde que chegou.
A única coisa que tenho certeza é que Milena detesta rock pesado.
Desesperado, decido voltar ao assunto anterior.
— Se houver algo que eu possa ajudar com o seu pai... — começo a
dizer. Ela ergue o rosto, bem devagar. Encolho os ombros. — Você sabe que
sou o dono da VitalCare. Posso encaminhá-lo para qualquer tratamento e...
— Não — corta.
— Mas...
— Desculpe, Sr. Milano, mas o que te importa?
Jogo os talheres com força sobre a mesa. Eles tilintam pela madeira até
que um garfo cai no chão.
— Porra, só estou tentando manter uma conversa civilizada!
Milena empina o queixo.
— Então converse sobre qualquer outro assunto, menos sobre o meu pai!
A vida dele não lhe interessa!
A raiva começa a borbulhar dentro do meu corpo, a densa lava vermelha
ameaçando explodir em erupção. Eu só fiz o caralho de uma pergunta
inocente, ela precisava responder daquele jeito? Quer saber, foda-se!
— É, realmente — rebato. — A vida dele não me interessa nem um
pouco, Srta. de Villeneuve!
No mesmo instante me arrependo do veneno contido nas palavras
desferidas pelos meus lábios. Milena pousa os talheres sobre a mesa. É
impressão minha ou os seus olhos estão cheios de lágrimas? Abro a boca
para tentar remediar a situação, mas ela é mais rápida. Cheia de elegância,
afasta a cadeira e se levanta. Em poucos passos contorna a mesa, passa por
trás da cadeira de rodas e chega à escada. Fecho os olhos enquanto a escuto
subindo.
Oh merda, eu acabei de estragar tudo.
Capítulo 11 – Milena

Subo as escadas com a maior suavidade possível, segurando a vontade


de bater os pés com força, fazendo meus passos ecoarem por toda a mansão.
Esforço-me para manter a classe. Não vou descer o nível do meu chefe.
Não sei o que mais me irrita. Descobrir Artur Milano ouvindo a minha
conversa particular com a vizinha ou ser obrigada a aceitar o seu “convite”
para jantar. Quem ele pensa que é para me dar ordens de maneira tão
grosseira? Faltou pouco para mandá-lo a merda, juntar os meus pertences
na mala e ir embora. Só não o fiz por conta da conversa que havia acabado
de ter com Dona Bernadete.
Finalmente consegui ligar para a minha residência. Por um momento
temi que ninguém fosse atender, mas papai sempre acordava cedo. Tinha
certeza de que ele estaria em casa.
Mas quem atendeu foi a vizinha. Fiquei surpresa? Sim, mas também
feliz. Dona Bernadete enfatizou que ele estava ótimo, apesar de sentir a
minha falta. Saiu para ir até a padaria e, em breve, iria voltar.
A mulher desatou a tagarelar sobre os últimos dias com tamanha
intensidade que foi impossível não me envolver. Quando dei por mim
estava aos prantos apenas por ouvir o familiar som da sua voz. Ela se
assustou, preocupada em saber se aquilo era apenas saudade. Dessa vez não
me contive. Sentia-me farta de fingir que tudo estava bem. Farta de mentir
sobre a personalidade do meu chefe. De repente eu estava farta de tudo,
apenas precisando desabafar
E desabafei. Com tamanha ênfase que, mesmo a quilômetros de
distância, consegui sentir o sentimento de pena fluindo da querida vizinha.
Após dias de perturbação incessante, aquela era a primeira manhã em que a
mansão amanhecia silenciosa. Até quando? Não sei. Mas não estava ansiosa
para descobrir.
Deixei-me levar pela conversa sem me dar conta do horário do primeiro
remédio do Sr. Milano. Pensei em ignorar. Ele não iria tomar, mesmo. Podia
me poupar do trabalho de ouvir as suas insistentes negativas.
Mas o meu senso de dever falou mais alto. Eu havia estudado para
aquilo. Estava sendo paga para aquilo. Devia pelo menos tentar.
Parte da angústia foi embora apenas por conversar com alguém
amigável, mesmo que Bernadete insistisse sobre um pedido de demissão.
Disse que continuaria ali e a fiz jurar que não diria nada ao meu pai. Não
queria preocupá-lo à toa e enfatizei que, apesar de tudo, Artur Milano me
tratou com o mínimo de decência na última noite. Talvez o silêncio na
mansão fosse sinal de alguma coisa boa. Ainda havia esperança.
Mas ela começou a ir embora no segundo em que abri a porta e dei de
cara o homem escutando a minha conversa. Foi como se toda a sua
constante irritação tivesse se transferido para mim.
Eu teria perdoado, não fosse o convite disfarçado de ordem para jantar.
Quem ele pensa que é? O meu pai jamais falou comigo daquela maneira,
não serei obrigada a aceitar tamanha grosseria vinda de Artur Milano!
Estava farta! Fiquei com tanta, mas tanta raiva, que passei o dia trancada no
quarto. Eu morreria de fome, mas não acataria a sua ordem!
Negligenciei todos os meus afazeres. Não fui capaz de mentir para
Bernadete, mas menti para a minha empregadora. Sem qualquer remorso,
disse a Ágata que Artur tomou todos os seus remédios. Exercícios básicos
de fisioterapia? Ah, fez sim. Um pouco, mas fez. O homem estava
colaborativo como nunca vi!
Senti-me mal quando ela mandou um áudio comemorando e, por um
momento, temi pelo meu emprego. Bastava enviar uma única mensagem ao
irmão para descobrir que tudo aquilo era mentira, mas algo dentro de mim
sabia que ela não faria qualquer confirmação. Artur vive reclamando da
exacerbada atenção da irmã. Ela, assim como eu, deve estar cansada.
Jacira não abre a boca para falar nada, mas foi atenciosa ao subir com
um prato de comida. Com segundas intenções? Claro. Ela pediu, quase
desesperada, que eu aceitasse o “convite”.
Nós duas sabíamos da instabilidade psicológica do nosso chefe, mas ela
queria garantir que eu não iria desafiá-lo. Era justamente o que eu pretendia
fazer, mas acabei cedendo. Nenhuma de nós duas está disposta a passar a
noite ouvindo os seus berros histéricos. Engoliria o meu orgulho e desceria
para jantar.
Bom, isso eu fiz. E talvez tivesse mantido a compostura se Artur não
tivesse insistido em falar sobre o meu pai.
Agora ele quer se fazer de bonzinho ao oferecer para pagar o seu
tratamento? Me polpe! Praticamente ordenou que eu calasse a boca no
único dia em que tentei me abrir sobre a situação da minha família. Não
serei obrigada a contar os pormenores da condição de papai justo quando
estou doente de saudade.
Precisei resistir à tentação de dizer, em alto e bom som, que não preciso
da sua ajuda. Em breve receberei o meu primeiro mês de salário e, se
aguentar ficar aqui, o bônus capaz de me livrar da sua presença. Será com
ele que pagarei todas as dívidas e estarei livre para recomeçar. Desaparecer
da Ilha das Rosas para nunca mais voltar.
Chego ao andar de cima e começo a retirar os brincos de argola. E pensar
que ainda me arrumei para participar dessa chacota! Devia ter descido com
o pijama que utilizei durante o dia, mas não. Tive que tentar provar o
quanto sou uma mulher poderosa, por mais que não me sinta tão poderosa
assim.
Consegui? Não sei. Só sei que se eu estivesse com o humor um
pouquinho melhor teria me abalado com o poder da aparência de Artur
Milano. O homem decidiu deixar as regatas fitness de lado para vestir uma
camisa de linho. Uma bermuda jeans presa por um cinto de couro marrom
complementava o seu look. Ele até mesmo penteou os cabelos, apesar de
não ter conseguido domar a barba. Estava lindo. Com um ligeiro aspecto
selvagem, mas lindo.
— De que adianta ser bonito se é um homem arrogante, grosseiro e
enxerido? — reclamo para mim mesma. — Nada! Não adianta nada!
Bufo alto, expondo toda a minha insatisfação. Estou quase na porta do
quarto quando os meus pés se enroscam e tropeço nos saltos altos. Nem ao
menos sei por que os trouxe. Talvez Bernadete tenha enfiado escondido na
mala, com a esperança de que eu pudesse usá-los em algum evento especial.
Olha só que maravilha de evento que acabei de participar.
Consigo me equilibrar a tempo, mas os brincos escapam das minhas
mãos. Um deles desliza até parar a poucos metros de distância, mas o outro
segue reto até desaparecer debaixo da porta do cômodo proibido.
— Era só o que me faltava! — resmungo para mim mesma, recolhendo a
argola mais próxima.
Caminho até o final do corredor sem tirar os olhos da porta. Por um
momento penso em deixar para lá. Não passam de um par de brincos
baratos que comprei em uma visita a Rua Vinte e Cinco de Março. Nada
valioso ou provido de apego sentimental cuja recuperação seja primordial
na minha vida.
Se eu estivesse em um dia normal, provavelmente teria dado as costas e
retornado ao meu quarto. Na manhã seguinte pediria para Jacira recuperá-lo
e pronto, mas eu não estava em um dia normal.
E eu quero o meu brinco de volta.
Abro e fecho a mão, indecisa. Lembro da forma como Artur falou que eu
poderia visitar a mansão inteira, menos o cômodo do final do corredor. Na
época fiquei com tanto receio que me limitei a explorar apenas as áreas
comuns. Há várias portas na casa que jamais tive a curiosidade de abrir.
Mas, de repente, sinto muita curiosidade de abrir aquela. O que o
magnata esconde para desejar tão veementemente que ninguém abra a
porta? Talvez seja algo como o quarto vermelho da dor, cheio de ilimitadas
fontes de prazer que o homem prefere esconder só para si. Se for, está
acumulando poeira. Nunca vi Artur rodar com a sua cadeira de rodas além
do próprio quarto.
Pouco me importa. Só quero abrir a porta e pegar o meu brinco. Uma
tarefa simples, que não levará mais do que dez segundos. Olho por sobre os
ombros, conferindo que a barra está limpa. Fecho os dedos sobre o metal
frio e giro a maçaneta.
Por um pequeno momento penso que não vai acontecer nada. O mais
lógico, quando não se deseja que alguém entre em um quarto proibido, é
manter a porta trancada. Mas ela se abre com facilidade, emitindo um leve
rangido.
Dou um passo adiante, permitindo que a porta feche as minhas costas. A
pouca luminosidade vem da janela com as persianas abaixadas, então tateio
a parede em busca de um interruptor. O meu coração falha uma batida
quando o quarto se revela um...
Simples escritório.
No centro, uma imensa mesa de madeira equipada com um notebook de
última geração. Atrás dela, uma estante cheia de pastas, prêmios, estátuas e
um vaso contendo uma comprida hera seca além de qualquer socorro. A
cadeira presidente está tão coberta de pó quanto o restante do mobiliário,
confirmando que ninguém se senta ali há muito tempo.
Assusto-me ao pisar em algo. Olho para baixo, encontrando o brinco.
Ótimo, pegue-o e saia o mais rápido possível!, uma voz sussurra na minha
cabeça, mas sou incapaz de ouvi-la. Entre os diplomas emoldurados na
parede há fotos e mais fotos do Artur Milano de antes do acidente. Todas
acompanhado da ex-namorada.
Aproximo-me de uma delas. Que casal bonito! Pelo aspecto da paisagem
ao fundo foi tirada aqui, na mesma praia em que se encontra a mansão.
Vestindo apenas uma bermuda, Artur ergue-se em toda a sua altura ao lado
de uma mulher estonteante. Os cabelos são escuros, mas as íris verdes
parecem duas esmeraldas cravejadas em seu rosto perfeito. Eles se encaram
com tamanho desejo que, por um momento, imagino que a foto irá entrar
em combustão espontânea.
Sentindo o rosto vermelho, deslizo os olhos até a foto ao lado. Nela o
casal traja vestes de gala: ele um smoking completo, ela um longo vestido
verde-escuro. A pedraria presente no pronunciado decote cintila através da
imagem. Nada ali foi comprado em uma rua de comércio popular. Só aquele
vestido vale o que jamais ganharei durante toda a vida.
Fuja daí!, a voz grita. Sei que estou invadindo a privacidade do meu
chefe, exatamente como ele fez comigo mais cedo, mas é forte demais para
que eu possa resistir.
Continuo olhando as fotos. Eles se beijando diante da Torre Eiffel em
Paris. Abraçados sobre uma gôndola ao navegar pelos canais de Veneza.
Dividindo um balão ao sobrevoar a região da Capadócia. Em todas, sem
exceção, Artur a olha com total devoção. O rosto é o mesmo de hoje, forte e
poderoso, mas as marcas de expressão são mais amenas. O semblante é
suave, de um homem completamente apaixonado.
Há mais fotos, mas chega de contar com a sorte. Giro o corpo, pronta
para ir embora, quando vejo um pequeno objeto quadrado ao lado do
notebook. É uma caixinha de joias vermelha tão empoeirada quanto todo o
resto.
O meu coração acelera antes mesmo que a segure por entre os dedos.
Devagar, abro a tampa e encaro o anel de noivado. O diamante cintila com
tamanha vivacidade que parece feliz em finalmente se ver livre do seu
invólucro de cetim. É lindo e deveria estar na mão da mulher da foto, não
na minha.
Dou um pulo quando a porta bate com força contra a parede.
— O que você está fazendo aqui? — Artur sibila.
Encho os pulmões de ar, pronta para pedir desculpas, mas a voz falha.
Balbucio feito um peixe enquanto o vejo deslizando escritório adentro.
Tento de novo, tendo um pouquinho de sucesso dessa vez.
— Desculpe, eu...
— Eu falei que você não podia entrar aqui — eleva a voz. O homem se
apruma sobre a cadeira, tornando-se maior do que já é. — De todos os
cômodos da casa, o único lugar que você não podia entrar era aqui!
— Sinto muito! — digo, sincera. — Tropecei nos saltos, um dos meus
brincos caiu no chão e deslizou por baixo da porta. Eu só iria pegá-lo, mas...
— Mas o que? — berra com tamanha força que me encolho. — Se
divertindo ao analisar o quanto eu era feliz antes de cair em desgraça? —
pergunta, olhando para as minhas mãos. — Assuma!
— Não é nada disso!
— O que é então?
— Eu só me distrai! — aponto para as fotos. Sim, dá para notar o quanto
ele era feliz em cada uma delas. Feliz a ponto se de entregar única e
exclusivamente a uma mulher que foi incapaz de retribuir a mesma entrega.
— Me desculpa, por favor. Já estou indo embora.
Mas Artur não me escuta. Os seus olhos acompanham o movimento,
fixos na caixinha de joias entre os meus dedos. As pupilas se estreitam. O
rosto se torna lívido. Por um instante penso que está sofrendo um infarto.
— Onde você encontrou isso?
Encaro a caixinha.
— Ao lado do notebook.
— Quem te deu o direito de tocar nisso?
Sinto os meus olhos se enchendo de lágrimas.
— Desculpa, Artur. Por favor, me desculpa.
— Solte esse anel agora!
— Eu vou soltar — digo, tentando fechar a caixinha para colocá-la no
lugar, mas as minhas mãos se tornam trêmulas. Tento uma, duas, três vezes,
falhando em todas elas. O desespero aumenta ao ritmo das lágrimas. Meus
olhos perdem o foco, turvos. Pisco, tentando enxergar, mas não sou rápida o
suficiente.
Artur avança sobre mim e toma a caixinha com brusquidão. O objeto
escapa dos meus dedos e é atirado do outro lado do escritório.
Grito, assustada, derrubando o brinco de argola, mas duvido que o
magnata escute. Ele está fora de si. Pega o notebook e o joga contra a
parede. Pedaços de plástico e circuitos eletrônicos voam para todos ao
lados.
— Saia daqui! — ordena, fazendo com que o porta lápis tenha o mesmo
destino do computador. — Saia agora desse escritório!
Arregalo os olhos quando ele segura a mesa com as duas mãos. As veias
proeminentes dos seus braços se retesam conforme vira o pesado objeto até
levá-lo ao chão. A mesa cai com estrondo, estremecendo parte da casa.
— Vai embora! — berra a plenos pulmões.
É o que basta para que eu, finalmente, saia do lugar.
Engulo o choro e corro em direção ao meu quarto. Chega, para mim
chega! Tateio a bolsa em busca do papelzinho com o telefone do Salomão.
Não sei se ele conseguirá me buscar a essa hora, mas não me importo. Jogo
a carteira e o celular dentro da bolsa e coloco-a sobre o ombro. Ágata que
mande entregar o restante dos meus pertences depois. Não consigo ficar
mais nem um minuto neste lugar.
Capítulo 12 – Artur

— Inferno de mulher teimosa! — torno a berrar.


Porra, dei-lhe apenas uma ordem! Uma simples ordem! Jamais, em
hipótese alguma, entre na porta ao final do corredor. Até uma criança
consegue entender! Então por que caralhos Milena decidiu me
desobedecer?
Vejo um objeto dourado no chão, lembrando do que ela tentou dizer. O
brinco. O raio do brinco de argola que usou durante o jantar. Não faço ideia
de como o objeto foi parar ali, mas pouco me importa! Ao dar uma ordem o
mínimo que espero é ser obedecido!
Olho em volta, percorrendo as molduras que ilustram alguns dos
momentos mais felizes da minha vida adulta. Eu recebia convites constantes
de CEOs e outros magnatas. De políticos influentes e sem qualquer
influência. Às vezes até mesmo de celebridades da TV e do cinema. A
correria do dia a dia não permitia que eu aceitasse todos, mas aceitava os
que me agradavam ou podiam servir aos meus interesses.
E, em todos os momentos, Nicole estava comigo. Viajávamos para fora
do país sempre que as nossas agendas recheadas de compromissos
permitiam. Estico-me sobre a cadeira de rodas e pego uma das fotos mais
baixas. Eu e ela deitados nas areias brancas do mar do Caribe.
Lembro bem daquela viagem. Tínhamos apenas três dias, mas não
hesitei em contratar um jato particular para levá-la até St. Barths, uma das
mais luxuosas ilhas da região. Foi uma das últimas viagens que fizemos.
Encaro a foto com mais atenção, reparando em nossas mãos entrelaçadas.
Ali, naquele momento, pertencíamos apenas um ao outro.
Até você soltar a minha mão quando eu mais precisava!, penso, jogando
a moldura longe. Ela bate contra a parede, os estilhaços de madeira e vidro
caindo sobre o notebook arruinado. Urro de novo. Olha só o que eu me
tornei! Uma fera insana diante de meras lembranças compartilhadas com
uma ex-namorada. Está satisfeita, Nicole? Deve estar!
Procuro mais alguma coisa para quebrar, mas tudo o que estava ao meu
alcance agora perece no chão. Perdi a minha namorada. Nunca mais recebi
um só convite. Ofegante, encaro os diplomas. Todo o esforço que investi
em mim mesmo, em busca de me tornar um bom profissional. Esforço que
agora não serve de nada.
Fecho os olhos com força. Proíbo toda e qualquer pessoa de entrar
naquele escritório por um simples motivo: tudo ali me machuca.
— Por que você foi entrar aqui, Milena? — pergunto a ninguém em
particular. — Porra, eu falei para você não entrar aqui!
A enfermeira não responde. Agarro os cabelos e berro de novo, mais
frustrado do que nunca.
Após o desastroso jantar, subi com a intenção de lhe pedir desculpas.
Primeiro por ter escutado a sua conversa por trás da porta. A curiosidade de
saber sua opinião sobre mim falou mais alto do que o bom senso.
Segundo por ter sido tão rude ao lhe convidar para jantar. Na minha
indignação por ser recusado a obriguei a fazer algo que não queria. O Artur
Milano de antigamente se envergonharia de tal atitude. Apesar da fama de
playboy cafajeste que durou grande parte da minha juventude, sempre fui
respeitoso. Jamais tratei uma mulher daquele jeito. Não existe qualquer
motivo para começar a tratar agora.
Estava ruminando o que dizer para convencê-la a me perdoar quando sai
do elevador e vi uma fresta de luz vazando por debaixo da porta do
escritório. Segui pelo corredor sem acreditar até girar a maçaneta e
confirmar que sim, Milena estava lá. Apesar de irritado, tentei manter a
calma. Contornar a situação. Controlar a porra do meu gênio difícil.
Até que vi a caixinha de joias em sua mão.
Até que o diamante cintilou, solitário, fazendo uma alusão a minha
condição.
O que restava da minha sanidade me abandonou.
— Por que, Milena? — torno a perguntar, mas ela, nem ninguém,
responde a pergunta.
Fecho os olhos e respiro fundo, de repente esgotado. Seria tão fácil ser
capaz de acabar com tudo. Deixar-me envolver no véu da escuridão. Sumir,
sem deixar rastros. Permanecer na eternidade, por mais que eu saiba que a
minha existência não será fácil lá.
Pela primeira vez durante aqueles seis meses, a ideia me soa absurda.
Uma nova fagulha se acende no meu peito. De repente percebo que
tenho um minúsculo motivo para viver.
— Milena? — chamo, mas ela não responde. Escuto o som de passos
apressados descendo as escadas. O coração acelera conforme começo a me
desesperar. — Milena? — chamo mais alto. — Porra, Milena! Você não
pode ir embora!
Mas ela é uma mulher independente, livre e dona de si. Ela pode e está
indo embora.
Nem ao menos penso. Giro a cadeira de rodas sobre o seu eixo e saio
porta afora. Cruzo o corretor o mais rápido que posso. De onde estou
consigo ouvi-la caminhando apressada até a cozinha. Um choro incontido
sobe ao andar de cima conforme conta a Jacira o que aconteceu. A
cozinheira se desespera, pedindo que fique, mas ela não escuta. Insiste em ir
embora, mesmo que a noite tenha caído.
Merda, eu preciso ser rápido!
Chamo o elevador, mas até ele se mostra surdo ao meu apelo. Soco o
botão com força. Inferno de acidente de carro! Como queria me levantar
dessa cadeira maldita e descer as escadas correndo! Talvez eu pudesse se
tivesse insistido com as próteses, penso. Porra! Não quero pensar nisso
agora!
O elevador finalmente chega. Enfio-me na caixa metálica e esmurro o
painel, torcendo para que a força da minha fúria aumente a velocidade com
que os cabos e polias levarão o equipamento até o andar de baixo. Claro que
nada disso funciona. Chego na sala de jantar e irrompo elevador afora.
Jacira arregala os olhos, assustada como nunca vi, mas a ignoro. Minha
atenção está focada na mulher cruzando a porta.
— Espere! — grito, mas Milena me ignora.
Sou envolvido em uma onda de pânico. Ela não pode ir embora! Agarro
as rodas da cadeira e me impulsiono para a frente com toda a força que
possuo nos braços. Ela começa deslizando em seu ritmo normal, mas logo
ganha velocidade.
Cruzo as largas portas de madeira e chego do lado de fora. Os cabelos
loiros de Milena balançam as suas costas no mesmo ritmo dos seus passos
apressados.
Dessa vez poupo o meu fôlego. Viro a cadeira em direção à rampa de
acesso construída ao lado dos degraus da escada e volto a tomar velocidade.
Tudo o que quero é chegar na enfermeira a tempo de fazê-la desistir da
ideia de ir embora. Convencê-la a ficar, custe o que custar.
Sei que alguma coisa está errada assim que os pneus se inclinam para
baixo. Estou desesperado demais para tentar ajustar o percurso. A roda da
direita tomba para o lado, então forço adiante. É o que basta para que a roda
caia de vez no degrau, fazendo com que eu seja arremessado para a frente.
Sobra tempo apenas para estender os braços em uma tentativa de amortecer
a queda.
Apenas um dos braços obedece ao meu comando. A mão ampara a
queda, impedindo que o meu rosto bata com tudo sobre o chão de cascalho.
O outro se prende debaixo do tórax, fazendo com que a dor se espalhe por
todo o meu corpo. Solto um berro, colaborando com a expulsão de todo o ar
dos meus pulmões.
Tento me mexer, mas não consigo. A mão úmida de sangue arde
enquanto pedrinhas afiadas penetram na carne do rosto. Uma dor lancinante
atravessa o braço preso debaixo do meu corpo. Ótimo só falta ter quebrado
essa merda, consigo pensar.
Inspiro um pouco de ar, mas não o suficiente para ter forças para me
levantar. E para quê? Nunca mais conseguirei ficar de pé. A única coisa que
sei fazer é maltratar a todos à minha volta. Talvez o meu lugar seja ali, com
a cara enfiada nas pedras do chão. Rebaixado a uma criatura digna de pena
que não consegue nem ao menos se erguer sozinha.
Só então percebo que os passos silenciam. Pronto, ela se enfiou na trilha.
Ou passará a noite na vila, ou logo escutarei as hélices do helicóptero do
comandante Salomão levando-a embora. Os meus olhos se enchem de
lágrimas. Espantei a única enfermeira da qual gostei. Aquela que, aos
poucos, estava me convencendo que talvez eu tivesse alguma esperança.
Jacira grita, mas ignoro. Meu ombro começa a doer quando o ecoar dos
passos preenche a noite. Ao invés de se afastar, eles se aproximam. Perto o
suficiente para se postarem próximo ao meu rosto. Uma sobra toma o meu
corpo enquanto um par de mãos macias acaricia a minha face.
— Milena? — consigo gemer baixinho.
— Sim, sou eu.
Solto um longo suspiro. Por algum estranho motivo o som da sua voz me
deixa em paz.
Capítulo 13 – Milena

Piso sobre o cascalho, próxima a entrada da trilha que leva ao heliponto.


Ainda não liguei para o comandante Salomão e, naquela hora da noite, não
sei se ele será capaz de vir me buscar. Não tem problema. Esperarei até o
amanhecer. Se a escuridão me assombrar, caminharei até a vila e passarei a
noite lá. A ilha é frequentemente visitada por turistas. Devo conseguir
alugar um quarto sem grandes dificuldades. O que é mais uma dívida na
vida de quem já está lascada?
Quando escuto um estrondo seguido de um novo berro, mas dessa vez de
dor. Ele não é mais problema seu!, penso, mas vacilo. Olho por sobre um
dos ombros, dando de cara com Artur caído no chão.
A luz que vaza pela porta aberta o ilumina com claridade o suficiente
para que eu veja seu braço preso em um ângulo estranho debaixo do corpo.
Talvez esteja torcido ou até mesmo quebrado.
Algo se remexe dentro de mim. É triste demais vê-lo naquela situação
humilhante. Retrocedo até estar próxima o suficiente para me agachar.
Acaricio o seu rosto, tentando descobrir onde mais está machucado, e o
escuto chamando o meu nome.
— Milena? — geme baixinho.
— Sim, sou eu.
— Não vá embora — implora.
Deixo-o sem resposta. Estou mais preocupada em descobrir se quebrou
algum osso. Concluo que não e, com cuidado, engancho as mãos debaixo
dos seus braços. Preciso levantá-lo, colocá-lo de volta na cadeira de rodas e
levá-lo para dentro. Um fino raio cruza o céu, deixando um cheiro elétrico
no ar. Logo seremos agraciados com mais uma tempestade de verão. Não
quero Artur ali quando a chuva começar.
Jacira se junta a mim e, com certo esforço, conseguimos colocá-lo
sentado na cadeira de rodas. Artur não nos encara, os olhos castanhos fixos
à frente. Afasto o cabelo do seu rosto, contente ao notar que acompanha os
meus movimentos. Por um instante pensei que ele estivesse em choque.
— Vamos entrar — murmuro, segurando as manoplas da cadeira. Ele
permanece quieto, permitindo que o leve até o interior da mansão. Basta
que a cozinheira feche as portas para a chuva desabar do lado de fora.
Espero que finalize a tarefa antes de perguntar: — Você tem um kit de
primeiros socorros?
— Não. — Ela responde, quase em pânico.
— Tem um no banheiro da minha suíte. — Artur murmura. Uma trilha
de sangue escorre pelo seu rosto. — Ele só não tem uma tesoura.
Nem ao menos preciso pedir. Jacira corre para a cozinha e retorna com
uma tesoura em mãos. É dessas escolares, quase sem ponta, mas vai servir.
Levo Artur até o elevador e aperto o botão para subir.
Ele permanece em silêncio durante todo o trajeto. Fica quieto até mesmo
quando entro no seu quarto e deslizo a cadeira de rodas pelo banheiro.
Encontro o kit de primeiros socorros e espalho todo o seu conteúdo sobre a
pia de mármore. Faço uma rápida prece ao constatar que tenho tudo o que
preciso.
Embebeço uma gaze com antisséptico e o deslizo sobre o supercílio de
Artur. O sangramento parou, mas a ferida está suja e cheia de pedrinhas.
Uma porta de entrada perfeita para bactérias. Ele franze o rosto e solta um
rosnado de dor.
— Isso dói!
Ignoro e continuo desinfetando a ferida. Por sorte o corte foi bastante
superficial e não precisará de nenhum ponto. Pego mais gaze e limpo o
rastro de sangue em seu rosto.
Quando me dou por satisfeita, começo a secar a região com uma toalha
limpa enquanto o homem observa cada um dos meus movimentos em
silêncio. Só então me concentro em sua mão.
— Não precisa. — Artur diz, puxando o braço.
— Claro que precisa. Olha só a situação da sua pele! — observo,
indicando a extensão ralada e ensanguentada com o queixo.
— Ela não estaria assim se você não tivesse fugido!
— E eu não teria fugido se você não tivesse gritado — devolvo, irritada
e com a paciência esgotada. Agarro a sua mão, virando a palma para cima.
Vou desinfetá-la, custe o que custar!
Artur bem que tenta puxá-la na contra si, mas desiste quando percebe
onde os meus olhos se fixaram: na grande cicatriz rosada que atravessa o
seu pulso de ponta a ponta. Todas as minhas suspeitas enfim se confirmam.
— Você tentou se… — paro de falar, incapaz de continuar.
Artur solta um longo suspiro, o corpo forte encolhendo vários e vários
centímetros conforme o ar escapa dos seus pulmões.
— Você vê? Nem para isso eu prestei — murmura tão baixo que quase
não escuto. — Ainda estava no hospital quando roubei o bisturi de uma
enfermeira, mas aquelas merdas de máquinas me denunciaram com os seus
bips — encolhe os ombros, parecendo muito cansado. — Depois tentei os
comprimidos, mas não tomei a quantidade suficiente.
— Porquê você tentou? — deixo escapar. Para mim não faz o menor
sentido que um magnata com todo o seu suporte e recurso tente uma coisa
dessas!
Os olhos de Artur encontram os meus antes de caírem sobre o próprio
colo. Dou-lhe tempo para responder, mas ele permanece calado. Até que me
lembro das fotos no escritório. Estava na cara que Artur amava Nicole, mas
ela não foi capaz de continuar a amá-lo. O “na saúde e na doença” não
parece fazer parte do ideal da mulher. Mordo os lábios, o coração cheio de
pena. Não é à toa que ele tenha se tornado um homem tão revoltado.
Volto a atenção para a ferida aberta. Uma boa quantidade de sujeira se
infiltrou na pele. Tento tirar com uma nova gaze, quando decido pegar o
frasco de antisséptico e despejar sobre a sua mão.
Artur solta um grunhido conforme o medicamento borbulha, mas não
reclama. Mantém os olhos baixos enquanto limpo cada cantinho da ferida.
Ao me dar por satisfeita, finalizo o curativo enrolando uma faixa.
— Pronto, Sr. Milano.
— Artur — murmura.
— O que? — pisco, sem entender.
— Artur. Por favor, me chame de Artur.
Devagar, ele ergue os olhos. Suas íris escuras cintilam conforme uma
lágrima solitária escorre em direção a barba desgrenhada. Sem dar qualquer
aviso, o homem desaba um lamento sofrido.
— Ei, está tudo bem… — digo, tentando acalmá-lo.
Acaricio o seu pulso com a ponta do polegar e é o que basta para que ele
me puxe contra si. Afunda o rosto nos meus cabelos e o som do seu choro
preenche o banheiro com a mesma força que a tempestade do lado de fora.
Por um instante paraliso, sem saber o que fazer.
Quando entendo que tudo o que ele precisa é de um abraço.
Chore. Coloque tudo para fora, penso, envolvendo as suas costas com os
meus braços. Artur me agarra mais forte, o corpo tremendo como se
estivesse sofrendo uma convulsão.
E Artur coloca toda a sua frustração para fora. Aposto que aquela é a
primeira vez que o homem chora desde que sofreu o acidente. Sinto suas
lágrimas molhando a lateral do meu pescoço, mas o mantenho ali. Afago as
suas costas até que os tremores cessem e a sua respiração normalize. Ele
solta um profundo suspiro antes de se afastar. Limpa os olhos com as costas
da mão enfaixada e abaixa a cabeça, constrangido como jamais imaginei
ver desde que cheguei aqui.
— Melhor? — pergunto.
Ele assente.
— Você vai ficar? — fixa os olhos nos meus. Mordo os lábios e ele se
agita. — Eu quero que você fique, Milena — Não respondo, e a voz se
torna carregada de pânico. — Eu preciso que você fique! Por favor, não vá
embora!
Penso por um momento, mas que alternativa tenho? Uma pilha de
boletos vencidos me aguardam em casa, mas não é só isso. Algo
desconhecido me estimula a ficar.
— Eu fico, mas tenho algumas condições — digo com calma. Artur
espera, cheio de expectativa. — A primeira delas é: você seguirá o
tratamento?
— Sim — confirma, sem hesitar.
— Todo o tratamento? Incluindo tomar os remédios na hora certa, fazer
terapia e fisioterapia?
— Seguirei.
— Responda olhando nos meus olhos, Artur.
Ele me encara com suas íris castanhas salpicadas de ouro. São belíssimas
mesmo com as escleras avermelhadas e o semblante entristecido que toma
conta do rosto. Sem conseguir resistir, estendo a mão e acaricio a lateral da
sua barba. Surpreendo-me com a sua maciez, mas me forço a manter a
seriedade da conversa.
— Além de seguir o tratamento, você promete que nunca mais gritará
comigo? Ninguém jamais se dirigiu a mim com gritos — continuo. — Não
vou admitir que você ou qualquer outro homem me trate assim.
Seu rosto se torna ainda mais vermelho, dessa vez de vergonha.
— Prometo. Me desculpe. Eu não queria ter gritado daquele jeito. Perdi
o controle e... — O fôlego falta, como se não soubesse como continuar.
Faço um gesto indicando que está tudo bem.
— Dessa vez eu desculpo — abro um pequeno sorriso. — E fico com
você.
Artur fecha os olhos, completamente aliviado.
— Obrigado — diz, cobrindo a minha mão com a sua. — Muito
obrigado.
Capítulo 14 – Artur

Enrolo-me entre o edredom da minha cama. Apesar de tanta agitação,


não estou com sono. Estou apenas cansado. Deixo as persianas abertas,
permitindo que a pouca luz vinda de fora se esforce para iluminar o
ambiente. A tempestade já passou, mas um ou outro raio ainda cruza o céu.
O barulho de dois toques batendo na porta atravessa o quarto, fazendo com
que os meus olhos se ergam em direção ao som.
— Pode entrar — digo baixinho. Milena a abre devagar, os olhos se
arregalando ao me ver.
— Está tudo bem? — pergunta, caminhando a passos largos em minha
direção enquanto equilibra a usual bandeja de remédios. Coloca-a sobre a
mesinha de cabeceira antes de trazer uma mão em direção ao meu rosto.
Fecho os olhos quando uma palma macia encosta na minha testa. —
Hummm, você não parece com febre — diz mais para si mesma que para
mim. Ajusto o edredom.
— Estou bem.
Milena olha de relance para o controle digital do ar-condicionado ao lado
da bandeja. Dezoito graus. Fresco o suficiente para um homem se enrolar
nas cobertas.
— Bem que achei que estava gelado — brinca, abrindo um sorriso. Ele
ilumina todo o quarto, mas não consigo retribuir. Ela parece bem depois do
nosso interlúdio, mas ainda estou constrangido por ter agido como um
idiota. Ela percebe e pega uma pequena tigela. — Olha só, fiz brigadeiro de
colher! Não ficou igual ao do meu pai, mas está bastante gostoso.
— Obrigado. Depois eu como um pouquinho.
Ela encolhe os ombros e assente, colocando a tigela ao lado do controle.
O seu rosto se torna mais sério quando pega um copinho de plástico.
— Os seus remédios.
Olho para os comprimidos coloridos. Viro-os dentro da boca e ela me
oferece o copo d’água. Bebo dois goles e o devolvo. Parece que todo o meu
corpo dói e, conforme prometido, vou seguir com o tratamento. Milena
segura o copo e me observa, cheia de expectativa.
— O que foi? — pergunto.
— Mostre a língua.
Abro a boca e comprovo que engoli. Ela volta a sorrir, satisfeita. Ajeita
tudo sobre a bandeja, preparando-se para ir embora, quando minha voz
declara, baixa de tal forma que é quase inaudível.
— É mentira.
— O que é mentira? — Milena vira o rosto na minha direção, a face
tomada pela confusão.
— O que ela disse. É mentira — continuo.
Uma forte dor acomete o meu peito conforme a respiração se torna
ruidosa. É a primeira vez que ouso contar o que aconteceu após despertar
naquele quarto de hospital. Por algum motivo a ouvinte precisa ser Milena.
A jovem larga a bandeja sobre a mesinha de cabeceira e se senta no
tapete ao pé da cama. O seu olhar é curioso, mas também muito sério. De
alguma forma, Milena sabe o quanto aquilo é importante.
— Ela quem, Artur? — pergunta com cuidado.
Tomo fôlego e continuo.
— Nicole, a minha ex-namorada. Ela disse para toda a imprensa que bati
o carro enquanto estava indo me encontrar com uma amante — nego com a
cabeça. — Assumo que já estive longe de ser o mais santo dos homens.
Houve sim uma época em que dormi com todas que quisessem se deitar
comigo, mas nunca trai uma mulher. Se era para ser causal, deixava claro
que era para ser casual — sinto os meus olhos se enchendo de lágrimas. —
Mas eu amava a Nicole. Naquela noite, iria pedi-la em casamento.
— É um anel de noivado. — Milena murmura, espantada.
— É — confirmo. — Perdi a consciência após a batida e acordei horas
depois no hospital, assim — indico as pernas com o queixo. — Nicole
estava no quarto comigo. E sabe o que ela disse? Que foi melhor que eu não
tivesse pedido. — Minha voz se torna soturna. Gotas de veneno começam a
escorrer de cada sílaba. — Disse que o seu estômago embrulhava só de nos
imaginar juntos. E o rosto? Ah, Milena. Você precisava ter visto a expressão
de mais puro nojo.
— Artur… — Ela tenta me conter, mas continuo mesmo assim.
— Todo o meu corpo doía. Estava confuso, sem entender o que havia
acontecido. O meu coração se partiu, mas ainda assim fiquei desesperado
por perdê-la — estremeço todinho, enrolando-me ainda mais no edredom.
— Pensei que ela fosse me apoiar, mas…
Engulo em seco, sem saber como continuar. Uma mão cobre a minha. A
enfaixada, mas o gesto é tão delicado que não sinto a mínima dor.
— Mas ela foi embora.
Assinto.
— Foi. Não a culpo — acrescento. — Afinal, quem iria querer se casar
com um aleijado?
O aperto se torna um pouco mais forte, fazendo uma pequena pontada de
dor subir pelo meu pulso. Encaro a enfermeira sentada a poucos centímetros
de distância. Ela me encara de volta, os inocentes olhos azuis flamejantes
de raiva.
— Se você ver uma pessoa com deficiência na rua, vai se referir a ela
como aleijada?
— Claro que não! — retruco, chocado. — Eu jamais faria isso!
— Então por que se refere a si mesmo dessa maneira pejorativa? —
questiona.
Abro a boca, mas não consigo emitir qualquer resposta. Encho-me de
vergonha. Passei tantos e tantos dias tomado pela mais pura fúria que
jamais parei para pensar nas palavras horríveis que saíam da minha boca.
Milena bufa e se levanta. Resmunga qualquer coisa enquanto dá duas
voltas no quarto. Acompanho os seus movimentos, admirado diante da sua
raiva, quando ela aponta um dedo bem na minha cara.
— Ponha uma coisa na sua cabeça: a sua ex-namorada é uma
preconceituosa filha da puta — arregalo os olhos, surpreso. Não pela
verdade contida nas suas palavras, mas sim por ser a gentil enfermeira a
emiti-las. Achava que Milena era o tipo de garota incapaz de dizer algo
mais pesado que um merda. — Uma grande e preconceituosa filha da puta!
Ela merecia ser presa!
— Mas...
— Nada de “mas”! — volta a se sentar. Segura o meu rosto com as duas
mãos. — Sei que pode ser difícil esquecer palavras rudes que vieram em
um momento tão difícil, mas você precisa se esforçar. Não pode, de maneira
alguma, acreditar nelas! Está me entendendo? — enfatiza, chacoalhando o
meu rosto de leve. — Você é um homem atraente, Artur, independente da
sua condição!
Encaro o azul turquesa das suas íris, vendo toda a verdade impregnada
nelas.
E percebo o quanto estamos próximos. Mesmo a meia luz consigo
discernir o desenho perfeito do seu rosto, como se só agora o visse por
completo. A força impregnada na face delicada. A pele lisa, livre de
qualquer imperfeição. Os olhos cintilantes, grandes e sinceros.
De repente me falta ar. Inspiro fundo, conseguindo sentir o delicioso
aroma de chocolate vindo do seu hálito. Percebo a minha boca salivando de
vontade de provar a doçura dos seus lábios.
Desde o acidente não me senti minimamente atraído por uma mulher.
Meses sem me tocar, pois nada parecia capaz de me excitar. Agora, mesmo
cansado e desanimado, sinto o calor de uma pequena fagulha se acendendo
no meu peito e se espalhando por todo o meu corpo.
Tento levar a onda de pensamentos impuros para longe, quando percebo
Milena com os olhos fixos nos meus lábios. Ela pisca e me solta.
— Desculpe — diz, se levantando. — Não queria me exaltar.
— Tudo bem — adianto-me em dizer. — Acho que estava precisando
ouvir palavras como as suas.
— Com toda a certeza. Só não quero que você acredite nela —
acrescenta, voltando a me encarar. — Porque nada do que ela disse é
verdade.
— Prometo me esforçar.
— Ótimo. E não quero mais ouvir qualquer termo pejorativo vindo da
sua boca.
— Desculpe — murmuro, envergonhado.
— Não é a mim que você deve desculpas. É a você mesmo, Artur.
Mordo os lábios. Aquele, com certeza, será um longo processo. Milena
volta a segurar a bandeja e faz menção de ir embora, quando parece ler a
minha mente e decide retornar. Segura o objeto com força enquanto se
abaixa. Com cuidado, pousa um tenro beijo sobre a minha testa.
— Estarei aqui para ajudar.
Arregalo os olhos, surpreso com o seu gesto.
E com a forma como a sua pele parece marcar a minha feito ferro em
brasa.
— Obrigado — consigo dizer. Ela se afasta e torna a abrir um imenso
sorriso. Gosto daquilo nela. De como os sorrisos surgem fáceis em seus
lábios.
— Não há de que. Boa noite.
— Boa noite — respondo, vendo-a ir embora.
Permito-me afundar sobre o travesseiro apenas quando a porta se fecha.
Levo a ponta dos dedos a testa, ainda sentindo a onda de calor impregnada
ali.
O que foi que acabou de acontecer?
Capítulo 15 – Milena

Um minúsculo raio de sol atravessa as cortinas e cai sobre o meu rosto.


Franzo o cenho, enrolando-me ainda mais nos lençóis. O celular ainda não
despertou, então isso significa que posso dormir mais um pouco. Depois de
todo o estresse da noite anterior, tudo o que eu quero é dormir por mais
cinco minutinhos.
Aceitei permanecer na mansão apenas porque senti que o seu pedido de
desculpas foi genuíno. Não sei o que mudou, mas algo mudou. Ele se
arrepende e quer, finalmente, que eu o ajude a se sentir melhor.
E porque, bem... algo oculto me impeliu a ficar. É mais que mera atração
física. Artur me afeta de uma forma que ainda não sei bem explicar.
O celular desperta, preenchendo o quarto com uma musiquinha animada.
Estico a mão para desligar o barulho quando escuto outro som. Não dou
maior atenção. Jacira deve ter derrubado alguma coisa na cozinha.
Peraí. Isso que estou ouvindo são… estilhaços de vidro?
Meu Deus, Artur!
Ergo-me da cama de um pulo, pego o roupão pendurado no mancebo e
saio porta afora, temendo que ele esteja se machucando. Um leve tremor
percorre a minha espinha e se espalha por todo o corpo. Artur parecia
bastante chateado na noite anterior, mas não ao ponto de tentar alguma
coisa.
Ainda assim caminho apressada enquanto dou um laço na faixa do
roupão de cetim, dirigindo-me ao seu quarto, mas noto a porta do escritório
aberta. O som de outro objeto de vidro se estilhaçando no chão preenche o
ambiente.
Fico na dúvida entre deixar o homem em paz ou ir em frente. Bom, se eu
fosse alguém capaz de lidar com a curiosidade não teria entrado no
escritório ontem à noite. Vou dar uma espiadinha, conferir que ele está bem
e iniciar os meus afazeres.
Sigo pé ante pé até a porta aberta. Artur segura o cabo de uma vassoura
como se empunhasse uma espada. Sentado em sua cadeira de rodas, passa
as cerdas pela parede, derrubando os porta-retratos com as fotos em
companhia da ex-namorada.
A sororidade que me perdoe, mas que ódio dessa Nicole! Ela, nem
ninguém, tem o direito de dizer tanta merda a uma pessoa com deficiência.
Não é de se admirar que a autoestima de Artur seja tão baixa e a sua raiva
tão alta. A mulher desferiu uma infinidade de mentiras justo quando ele
mais precisava ouvir a verdade! Independentemente do que tenha
acontecido, Artur Milano continua sendo um grande gostoso.
Dou um pulinho quando mais um porta-retrato cai no chão antes que ele
perceba a minha presença diante da porta aberta.
— Desculpe, não quis te acordar, mas de repente não suporto mais a
existência desse escritório — diz, virando o rosto para olhar em volta.
— Está tudo bem.
Ele faz um gesto com a mão livre, me convidando a entrar. Hesito, mas
acabo dando um passo adiante. Os meus chinelos pisam em uma moldura
dourada. Abaixo-me para pegá-la. É a foto em que eles estão se beijando
diante da Torre Eiffel.
— Você ainda a ama? — deixo escapar.
Artur derruba mais um porta-retrato no chão.
— Não — diz, convicto. — Posso ter ficado desesperado quando a vi
indo embora do quarto de hospital, incapaz de acreditar que ela não me
amava mais. Agora? — ajeita a cadeira, de forma que as rodas terminem de
estilhaçar o vidro. — Espero nunca mais vê-la na minha frente.
Ele hesita, pensativo. Não preciso de muito para adivinhar o que se passa
em sua cabeça.
— Mas ainda se permite afetar pelas palavras ditas por ela — murmuro.
Artur bufa, mas assente.
— Estou cansado de saber que essas fotos estão aqui — olha em volta,
resignado. — E imaginar que vivi uma grande mentira. Quero jogar tudo
fora e começar de novo.
Abro um sorriso.
— Isso é ótimo!
— É sim — confirma. — Ainda mais se você me ajudar.
— Eu? — pergunto, confusa. Até ontem eu nem podia entrar ali.
Artur encolhe os ombros.
— Não sei se consigo fazer isso sozinho.
Detesto vê-lo chateado daquela maneira, então só me resta aceitar.
Assinto com firmeza.
— Eu te ajudo.
Seu semblante se ilumina quando sorri de volta. Meu Deus, Artur
Milano deveria sorrir mais!
Respeitando a sua vontade, começo a retirar as fotos que não conseguiu
derrubar com a vassoura. Ele pede que eu deixe as molduras com os
diplomas e os cursos de gestão enquanto segura um imenso saco de lixo. As
fotos, a planta seca e até algumas estátuas são jogadas fora. É um pouco
triste ver parte da história de alguém ser descartada daquela maneira, mas
não há outra forma de Artur recomeçar.
Estou varrendo os últimos cacos de vidro quando noto o pequeno porta
joias abandonado no chão. Abaixo-me para pegá-lo. O anel com um
diamante solitário continua intacto, brilhando sob a luz difusa da manhã.
— E isso aqui?
O magnata dá de ombros.
— Jogue-o fora também.
Coloco as duas mãos na cintura, indignada.
— Com toda a certeza esse anel custou milhares de reais!
Ele me encara, impassível.
— Custou sim. E daí?
— E daí? Você tem noção do que uma pessoa comum poderia comprar
com isso? — chacoalho a joia diante dos seus olhos. Ele pisca, mas não
vacila. Observo o anel. É bonito demais para ser jogado fora. — Você não
poderia devolvê-lo?
— Ah, claro — debocha. — Imagine a cena: um homem sentado em
uma cadeira de rodas voltando na joalheria com um anel de noivado
rejeitado — balança a cabeça, imaginando o absurdo da situação. — Prefiro
ficar no prejuízo a passar por tamanha humilhação!
Encolho os ombros.
— Sinto muito, Artur.
— Não sinta — rebate, meio irritado. — Faça o que quiser com esse
anel, só o tire da minha frente.
— Sabe o que seria legal? — dou uma última olhada na pedra preciosa
antes de fechar a caixinha. — Encontrar um jovem apaixonado que deseje
pedir sua amada em casamento.
— Boa sorte em encontrar esse otário. — Artur resmunga. Não resisto a
cair na garganta. Ele franze o cenho. — O que foi?
— Nada — tento me controlar, sem sucesso. O homem fecha a cara. —
Você poderia passar parte do seu tempo lendo contos de fadas
— Para me tornar um grande iludido? — ajusta o saco de lixo no chão.
— Não, obrigado.
— Você deu azar — digo baixinho. — O amor verdadeiro existe, e sei
que ainda vai encontrar o seu.
— Não, não vou — vira o rosto, como se de repente estivesse com
vergonha de me encarar. — Ninguém irá se apaixonar por um homem como
eu, Milena.
— Claro que irá.
Artur ergue a cabeça de supetão, fixando os intensos olhos castanhos nos
meus. Um calor gostoso se espalha por todo o meu corpo, mas sou incapaz
de dizer qualquer outra palavra. Desvio os olhos, voltando a minha atenção
aos certificados e diplomas ainda na parede.
— Já pensou em voltar a trabalhar? — pergunto, tentando mudar de
assunto.
Ele se encolhe de leve, mas dá para notar a sua dúvida. Primeiro balança
a cabeça em negativa, mas depois confirma.
— Confesso que até ontem não estava pensando na possibilidade, mas
talvez fosse algo com o que me distrair.
— Claro que sim. Como dizem por aí: uma mente desocupada é uma
oficina do demônio.
— Talvez seja — diz, bem baixinho. Encara o saco de lixo no chão,
fechando-o com dois nós bem firmes. — Pronto! Chega de infernizar
enfermeiras! A partir de agora sou um novo homem — declara. Bato
palmas, caindo na gargalhada.
Gosto muito daquele Artur.
— Com certeza é! Parabéns.
— Obrigado — inclina-se para a frente, fazendo uma leve mesura. Seus
olhos cintilam quando volta a se sentar ereto. — Sabe, eu gostaria de te
pedir mais uma coisa.
— O que?
— Quero que corte o meu cabelo.
Forço-me a segurar uma nova gargalhada.
— Desculpe, mas sou enfermeira, não cabeleireira. Será melhor
chamarmos alguma profissional da vila e…
— Não — nega com a cabeça. Os fios compridos se movimentam no
mesmo ritmo. — Eu quero que seja você.
Ao contrário do convite disfarçado de ordem do dia anterior, a voz de
Artur está carregada de humildade. Os pontos dourados dos seus olhos
castanhos brilham de expectativa. Ele quer muito aquilo.
Decido que vou dar.
— Tudo bem, mas não espere por perfeição — alerto, erguendo as duas
mãos em sinal de rendição.
— Só espero por um cabelo cortado.

Quase uma hora depois estamos sentados no banheiro da sua suíte, ainda
sem tomar o café da manhã. Vi e revi o tutorial do YouTube pelo menos dez
vezes, mas preciso reassistir antes de começar. A tarefa seria fácil se Artur
quisesse passar a máquina, mas ele não quer. Prefere que seja feito na
tesoura.
O homem bufa de leve ao se remexer em sua cadeira de rodas. Ergo os
olhos, encarando a sua carranca através do espelho. Sei que sua paciência
está por um fio, mas ele vem se mostrando um ótimo aluno quando se trata
de aprender a controlar os seus nervos. Há poucos minutos dividi o seu
cabelo em camadas, prendendo mecha por mecha com xuxinhas coloridas.
— Vai, pode rir — diz, seco. — Eu sei que estou ridículo.
— Não está, não.
— Estou sim — insiste.
Mordo os lábios, mas a risada escapa.
— Desculpe!
— Está desculpada. Já acabou o vídeo?
— Ainda faltam cinco minutos.
— Ah não! — exaspera-se. — Chega! Eu só preciso que corte o meu
cabelo, não que vire uma cabeleireira profissional!
Balanço a tesoura em uma das mãos.
— Calma! Eu só quero confirmar como faço as camadas e…
Rápido como um perigoso felino, Artur gira o corpo sobre a cadeira de
rodas e toma a tesoura da minha mão. O meu coração acelera de apreensão,
mas para o meu alívio, ou não, Artur estica uma das mechas e passa a
lâmina de qualquer jeito pelos cabelos. Solto um gritinho ao ver os fios
caindo.
— Desse jeito ficará cheio de falhas!
— Não ficará — estende a tesoura a mim. — Vamos, Milena. Por favor.
O seu tom torna-se suplicante. Abandono o celular e aceito o objeto
cortante.
— Você tem certeza? Ainda dá tempo de desistir.
Ele vira a cadeira, ficando de costas para o espelho.
— Tenho! — confirma, firme.
— Então vamos lá!
Com cuidado, seguro outro tufo de cabelo. A lâmina desliza sem
qualquer impedimento pelos fios grossos. Reparo que Artur está longe de
ficar grisalho. Salvo um ou outro fio cinzento, sua cabeleira é
predominantemente castanha.
O cabelo cortado cai sobre os seus ombros largos e se espalha pelo colo.
Estou na metade quando fecha os olhos, o semblante tranquilo, apreciando
o momento.
Ele fica bonito com o cabelo comprido, mas com ele curto torna-se
deslumbrante. Não estou cortando tanto assim, deixando em um
comprimento convidativo ao toque. Ótimo para se agarrar e puxar durante o
sexo.
Estremeço da cabeça aos pés, fazendo com que a tesoura se desvie da
rota e corte uma mecha pouco além do estipulado. De onde foi que surgiu
esse pensamento? Abro e fecho a mão livre, resistindo a tentação de fazer o
que a minha imaginação pede, mas é mais forte do que eu. Quando dou por
mim estou acariciando os grossos fios de cabelos castanhos do meu chefe.
Ele abre os olhos e o meu íntimo se incendeia. Meu Deus, que olhar é
aquele? Artur parece conseguir ler a minha alma. Encaramo-nos com
respirações em suspenso, nossos corpos próximos o suficiente para que
consigamos sentir o calor um do outro quando percebo que ainda estou com
a mão em sua cabeça.
— Estava só conferindo — digo, mas a afirmação soa falsa aos meus
próprios ouvidos. Outras partes do meu corpo, como a pele do meu rosto,
estão pegando fogo. Forço-me a evitar o espelho, mas sei que estou
vermelha como um tomate maduro.
— Tudo bem. — Artur diz, a voz grave mais rouca que o normal. —
Falta muito?
— Não.
Ele assente.
— Faça a minha barba também.
Ah, não! A experiência de cortar o seu cabelo já está se tornando íntima
além da conta, não sei se estou preparada para também fazer a sua barba!
Seu olhar hipnótico não admite negativa, então só me resta confirmar
com a cabeça.
Mas, antes de passar para a barba, preciso terminar o cabelo. Faço os
últimos ajustes, cortando aqui e ali, até me dar por satisfeita. Há uma
pequena falha onde Artur cortou de qualquer jeito, impossível de se
esconder em um cabelo tão liso, mas preciso admitir que fizemos um bom
trabalho.
Satisfeita, pego o aparelho de barbear na segunda gaveta. A maquininha
sem fio solta um zunido baixo ao ser ligada. Com cuidado, encosto a lâmina
afiada no seu rosto. Fiz a barba de papai durante a sua convalescência, mas
ao contrário de Artur, ele prefere mantê-la rente, então usava a lâmina de
barbear.
Aquela é uma experiência nova, ainda mais por estar barbeando o meu
chefe. Começo a suspeitar que estou nutrindo um fortíssimo crush por Artur
Milano, mas tento não pensar nisso no momento. Preciso me concentrar em
não retalhar todo o seu rosto. Com cuidado, deslizo o aparelho pela lateral
do maxilar, deixando os pelos baixinhos, mas ainda aparentes.
Aos poucos o rosto poderoso de Artur Milano se descortina à minha
frente. Falta ar quando a temperatura do meu corpo começa a aumentar.
Ofego alto, deslumbrada. Os maxilares são fortes e marcados. O nariz reto.
Os lábios do tamanho certo. Nem finos demais, nem grossos demais.
Perfeitos para um beijo.
Estamos próximos o suficiente para tanto. Próximos até mesmo para que
eu ouça quando a respiração de Artur se mistura à vibração da máquina ao
se tornar mais ruidosa. Forço-me a desviar os olhos da sua boca, tornando a
encará-lo. Artur faz o mesmo, subindo o olhar no mesmo ritmo do meu.
Suas íris estão em chamas. Ele me afeta, assim como eu o afeto.
Está enganado ao pensar que nenhuma mulher seria capaz de se
apaixonar por ele. Talvez eu mesma esteja me apaixonando! Como isso é
possível? Ontem mesmo estava me mandando embora aos berros! Deve ser
culpa dessa estranha intimidade compartilhada. Tenho certeza de que o
sentimento irá embora assim que eu terminar.
— Prontinho — digo poucos minutos depois. Passo a toalha pelo seu
rosto, tentando ignorar a sua beleza.
— Acho que é assim que os cachorros se sentem durante uma sessão de
banho e tosa — assopra alguns pelinhos errantes.
— Provavelmente — abro um sorriso. — Preparado para se olhar no
espelho?
Ele assente.
— Preparado.
Agarro as manoplas da sua cadeira de rodas e começo a girar-la.
— Voilá!
O semblante sério aos poucos se torna chocado. Artur abre a boca e
arregala os olhos enquanto leva a mão machucada aos fios. Ele toca a si
mesmo, deslizando a ponta dos dedos pela lateral do rosto como se tentasse
se reconhecer após um longo período preso em uma caverna.
O primeiro passo para Artur Milano voltar a ser ele mesmo.
— Obrigado — murmura. — Muito obrigado.
— De nada — sorrio. Estremeço da cabeça aos pés, envolta no mais
puro prazer, quando ele sorri de volta.
O que está começando a acontecer aqui?
Capítulo 16 – Artur

Após o corte de cabelo, Milena começou a desenfaixar o curativo da


minha mão. A enfermeira ficou feliz ao constatar que o arranhão estava
livre de qualquer ameaça de infecção. Distraído com a minha nova
aparência e com o machucado em recuperação, só me lembrei das
bandagens elásticas quando ela surgiu com um par.
— Eu realmente preciso usar isso? — pergunto.
— Precisa — diz. Solto um gemido. A enfermeira coloca as duas mãos
na cintura e entra no modo profissional. — Vamos, Artur! Será bom para
você. Já falei que elas ajudam com as dores fantasmas, reduzem o inchaço e
melhoram a musculatura.
— Eu sei.
— Então qual é o problema?
Dou de ombros.
— Não quero usá-las.
Seu rosto se torna muito sério.
— O que foi que combinamos?
— Que eu iria seguir o tratamento corretamente — recito como um robô.
— E para seguir o tratamento você precisa usar as bandagens.
Assinto, desanimado. Milena se agacha, pede licença e ergue a barra da
bermuda o máximo que consegue. Viro o rosto. Detesto olhar para aquilo.
Um dos médicos chegou a comentar que seria bom passar um tempo
encarando o coto para levar o cérebro a entender que a minha perna não
existe, mas nunca consegui fazer esse exercício.
Com a bermuda ajeitada, não demoro para sentir os delicados dedos da
enfermeira puxando a bandagem para cima e para baixo, sempre em
movimentos de oito, cobrindo a coxa de forma a manter uma leve pressão
sob a pele. Olho de soslaio para a concentrada mulher. O seu toque é leve,
quase imperceptível, mas forte o suficiente para que eu me arrepie de
prazer.
Quando dou por mim, os meus olhos descem pelo seu pescoço e param
no centro do decote. Assustada ao me ouvir quebrando o escritório, Milena
se limitou a vestir um roupão de cetim por cima da camisola. Ela aperta a
perna e uma nova fagulha queima no peito e se espalha por todo o meu
corpo, ameaçando agitar determinada parte há muito adormecida.
A ideia de que ela poderia estar ajoelhada deslizando as suaves mãos
pelo órgão presente no meio das minhas pernas não passa despercebida.
Imagino a boca de Milena se fechando em torno da cabeça do meu pau,
preparando-se para chupá-lo. Porra, o que está acontecendo comigo hoje?
Isso é inadmissível.
Você sabe muito bem o que está começando a acontecer aqui!, digo a
mim mesmo em pensamento. Pois é, sei. Suspeito que estou começando a
me apaixonar pela minha enfermeira.
Foi por isso que finalmente percebi como as minhas atitudes grosseiras
eram lamentáveis. Por isso fui incapaz de deixá-la ir embora. Gosto, e
muito, da jovem garota com olhos da cor do mar que aceitou abandonar o
pai apenas para cuidar de mim. Permitir isso talvez me transforme em um
filho da puta egoísta, mas sou incapaz de impedir. Ter Milena por perto é
mais que um simples desejo. Se tornou uma necessidade.
Forço-me a afastar todos esses pensamentos. Não posso ter uma ereção
com a enfermeira ajoelhada à minha frente! Tento preencher o meu cérebro
com qualquer outra visão. De... chuchu! Ótimo! O legume mais sem graça
que existe. Imagino que Jacira fará chuchu no café da manhã, no almoço e
no jantar. Nos encherá de chuchu até não aguentarmos mais!
Estou com a mente cheia de chuchus quando Milena se ergue de um
pulo.
— Pronto! — diz, batendo palmas. — Está confortável?
— Está, sim — confirmo, finalmente olhando para os cotos enfaixados.
Uma leve e agradável pressão se espalha pelas coxas. Talvez aquilo ajude
com a dor fantasma, afinal. Abaixo a barra da bermuda e encaro a
enfermeira. — Obrigado, Milena.
— Ahhh, gosto tanto da sua versão educada — brinca, fazendo graça. —
Já perdi as contas de quantos obrigados você me deu hoje.
Ela ri quando reviro os olhos, mas confesso que também prefiro essa
versão. Acho que, no fundo, eu estava cansado de sempre sentir raiva.
Um leve ronco preenche o banheiro. Olho para o meu estômago.
— Vamos tomar café? — pergunto, ouvindo um novo ronco. — Acho
que estou com fome.
— Vamos. Você também precisa tomar o seu remédio da manhã.
Fecho a cara e ela ri. Ah, Milena. Se você soubesse o quanto gosto do
som da sua risada.
Finalmente saímos da suíte. Ela pega o saco de lixo e seguimos juntos
até o elevador. Observo o seu semblante enquanto descemos. Será que, de
alguma maneira, também a afeto? A enfermeira não estava apenas ajeitando
o meu cabelo, tampouco observando os meus lábios. Por um instante pensei
que ela fosse me beijar. E céus, como eu gostaria que ela tivesse feito isso!
Balanço a cabeça. Além de ser uma funcionária da família, Milena é
vinte anos mais jovem do que eu. Só isso é motivo o suficiente para que ela
não sinta nada por mim. Preciso me distanciar e colocar a cabeça no lugar,
mas como fazer isso quando sinto o coração batendo mais forte só de olhar
para ela?
— Sr. Milano? Oh, Sr. Milano! — chama, despertando-me dos meus
devaneios. — Está tudo bem?
Ela segura a porta, aguardando do lado de fora do elevador. Remexo-me
sobre a cadeira de rodas.
— Está sim. E já pedi para você me chamar de Artur.
Isso, parabéns. Aproxime-se, ao invés de se distanciar!, recrimino a mim
mesmo. Encaro o bonito rosto da enfermeira. Duvido que serei capaz de
manter qualquer distância quando sei que tudo o que mais quero é estar
perto dela.
— Alô, alô! — estala os dedos. — Você não vai sair do elevador?
Abaixo a cabeça e, sem dizer mais nada, giro as rodas e deslizo para
fora. Seguimos lado a lado até a cozinha. Estou distraído pensando sobre
isso quando escuto um grito estridente. Sobressalto-me, dando de cara com
a cozinheira.
— O que aconteceu com você? — Jacira pergunta, levando as duas mãos
à boca.
— Ah... a Milena cortou o meu cabelo — respondo.
— Ficou tão ruim assim? — A jovem encolhe os ombros, envergonhada.
Adianto-me em socorrê-la.
— Não! Ficou ótimo! — Sou sincero. Realmente gostei do corte. Apesar
das falhas visíveis aqui e ali, ficou excelente para alguém sem experiência.
Jacira confirma com a cabeça.
— Até parece um novo homem! — sorri, o semblante muito diferente do
usual. — Com todo o respeito, mas o senhor está lindo!
— Não é para tanto... — começo, mas Milena me corta.
— Está lindo, sim.
Ela parece se dar conta de que falou demais. Apressa-se em levar o lixo
para fora enquanto sinto o rosto corando como o de um menino ao ser
notado pela garota mais bonita da escola. Eu, um homem de quarenta e dois
anos acanhado diante de um elogio? Beira o patético.
— O que temos para o café da manhã? — mudo de assunto, esticando o
pescoço para tentar descobrir o que há dentro das travessas sobre a ilha
central. Assim como nós, a cozinheira acordou inspirada, mas franzo o
cenho. — Torta de morango?
— Sim. A Srta. Milano acabou de enviar uma mensagem avisando que
está chegando.
— Como assim? — questiono, me dando conta que estamos em um
sábado. — Pelo visto a minha mansão se transformou na casa da mãe
Joana!
Olho para o lado de fora. A tempestade de verão da noite anterior limpou
o céu de maneira impressionante. O pronunciado azul celeste convida a
todos para um banho de mar. Faz algumas semanas que a minha irmã não
aparece. É óbvio que viria passar o final de semana.
A cozinheira não responde. Milena volta do lado de fora, mas também se
limita a ficar em silêncio. Amo a minha irmã, mas sinceramente? Preferia
passar o sábado e o domingo tendo apenas a companhia da enfermeira.
Aposto toda a minha fortuna que Ágata passará o final de semana inteiro
me aporrinhando com remédios, tratamentos e sei lá mais o que. Cumprirei
a promessa feita a Milena, mas não preciso de outra pessoa me lembrando
dela o tempo todo.
— Ela ficou de chegar que horas? — pergunto, quando escuto as hélices
do helicóptero do lado de fora. Solto um longo suspiro. — Pelo visto ela já
chegou.

— Oi irmãozinho! — Ágata cumprimenta assim que me vê parado


diante da porta de entrada da mansão. E pensar que há menos de vinte e
quatro horas eu estava esparramado ali, ao pé da rampa de acesso
construída apenas para mim.
A atitude da minha irmã é cautelosa, apesar de animada. Observa-me
com atenção, conferindo o estado do meu humor antes de me puxar para um
abraço. Retribuo. Ela pode ser uma pentelha sete anos mais nova que adora
encher o saco, mas a amo com todo o coração.
— Oi, Ágata. Como foi a viagem?
— Maravilhosa — vibra, abrindo os braços em direção ao céu. — Olha
só que dia lindo!
— Está lindo mesmo — confirmo, fazendo com que ela erga uma
sobrancelha. O piloto se aproxima. — Prazer em revê-lo, comandante
Salomão. Gostaria de tomar café?
Estendo a mão boa em um cumprimento. O meu convite e boa educação
parecem surpreendê-lo. Mal-humorado como usualmente estava, eu me
limitava a resmungar um bom dia. O homem logo se recompõe e aperta os
meus dedos com firmeza.
— Não, senhor. Obrigado. Só vim acompanhar a Srta. Milano. Preciso
voltar a São Paulo.
— Não se esqueça de me buscar na segunda-feira de manhã. — Ela
lembra. — E de trazer você sabe quem.
Franzo o cenho.
— O que você está armado, Ágata?
— Nada! — ergue as mãos em sinal de rendição. Salomão solta uma
breve risada profunda, despede-se com um aceno e se afasta. Esperamos
que ele desapareça pela trilha ladeada de rosas antes de entrar na casa.
Minha irmã olha em volta, curiosa. — Cadê a Milena? Não me diga que
você já espantou a garota!
— Quase. — Milena diz, descendo as escadas.
Engulo em seco. Pela segunda vez desde que chegou, a enfermeira
deixou o seu uniforme de lado e decidiu usar um vestido. Apesar de tensa e
irritada, ela estava linda durante o jantar de ontem à noite. Hoje, leve e
bem-humorada, se aproxima cheia de graça. Desço os olhos pelo seu busto
coberto pelo tecido claro salpicado de minúsculas flores amarelas,
percorrendo a saia fluida que se estende até as canelas.
Milena está deslumbrante!
— Cuidado, irmão. Desse jeito entrará uma mosca na sua boca.
Pisco, só então me dando conta que estou encarando a jovem como se
nunca tivesse visto uma mulher.
— Será que podemos tomar o maldito café da manhã? — remexo-me na
cadeira. Ágata cumprimenta a enfermeira entre risadas. Ótimo, mais um
motivo para ela me azucrinar durante todo o final de semana.
— Claro que podemos! — diz, caminhando em direção a mesa de jantar.
Jacira já ajeitou tudo, incluindo uma tigela com brigadeiro de colher da
Milena e a sua famosa torta de morango. A cozinheira encara a mesa em
dúvida. Entendo o seu dilema assim que me aproximo.
— Pode colocar um prato para a Milena — peço.
Ela assente e corre de volta à cozinha, não sem antes ser cumprimentada
e beijada por Ágata. As duas seguem para o cômodo ao lado enquanto
Milena troca o peso de um pé pelo outro, visivelmente desconfortável.
— Acho melhor continuar comendo na cozinha e...
— E eu acho melhor você tomar café da manhã comigo — digo, firme
como se estivesse dando uma ordem. Recomponho-me. — Se você quiser, é
claro.
Ela assente sem nem ao menos pensar.
— Eu quero.
Sua resposta me enche de calor.
Ágata retorna da cozinha e não diz nada. Limita-se a puxar uma cadeira
e se sentar. Milena se mostra tímida, sem saber como se portar, mas acaba
imitando a minha irmã. Sento-me entre elas e começo a partir um pão com
as mãos. Destruir escritórios e renovar aparências ferozes dá muita fome.
Milena me lança um olhar de soslaio e estende uma faca. Encaro o
objeto com atenção, subindo os olhos até encontrar o seu rosto. Ele está
tomado por um voto de confiança. Aceito-o de bom grado. A última coisa
que desejo é trair qualquer confiança que a enfermeira possa depositar em
mim. Pela primeira vez em meses corto o meu próprio pão.
Ágata apenas observa, mas logo começa a falar do seu assunto favorito:
negócios. Assinto diante dos seus apontamentos e constatações, orgulhoso
ao saber que deixei a empresa nas mãos da profissional certa. Apesar de ser
responsável pelo setor de beleza da VitalCare, sempre soube que o posto
cedo ou tarde se tornaria insuficiente para a minha ambiciosa irmã.
Milena ouve a conversa com nítido interesse, vez ou outra perguntando o
significado de termos desconhecidos para os leigos do mercado financeiro.
Omitimos valores, mas qualquer pessoa com o mínimo de curiosidade é
capaz de descobrir o quanto o setor médico brasileiro fatura ao ano. Ela não
parece interessada nisso. Pelo contrário, parece mais interessada nas
benfeitorias das ações sociais promovidas pela empresa.
O assunto está se encerrando quando Milena me lança um olhar. Sei o
que se passa na sua cabeça: eu tenho plena capacidade para voltar a assumir
o meu posto. Meneio a cabeça de leve, pedindo silenciosamente que não
traga o assunto à tona. Suspeito que Ágata já tenha munição o suficiente
para o final de semana.
Minhas suspeitas se confirmam assim que a enfermeira pede licença e
nos deixa a sós. Pego um prato limpo e enterro uma colher na tigela de
brigadeiro. Ágata apenas observa, até que não consegue mais se conter.
— Vocês parecem estar se dando bem — comenta como quem não quer
nada.
— Estamos.
— Também notei que o seu quadro de enfermeiras desapareceu.
— Pois é — retruco, ciente de onde ela quer chegar.
— Parabéns, irmão. Aquilo era ridículo.
— Eu percebi.
— Antes tarde do que nunca — comemora. Ao contrário de mim, um
tarado por chocolate, Ágata corta uma gigantesca fatia da torta de morango.
— E não houve um só desentendimento entre vocês? — provoca, levando
uma fruta à boca.
— Houve, mas já superamos.
— Que ótimo. Talvez ela dure os três meses.
O meu pescoço estala quando viro o rosto em sua direção
— Como assim?
— Pensei que tivesse dito — dá de ombros, comendo mais um morango.
— Depois de tantas recusas, pensei em tentar uma abordagem diferente. O
contrato de Milena é de três meses. Se ela cumprir o contrato, recebe um
bônus. Depois ela pode escolher entre ficar ou ir embora.
Remexo-me sobre a cadeira de rodas, desconfortável. Ágata percebe e
estreita os olhos.
— Você gosta dela.
— Não é nada disso…
— Claro que é — corta. — Assuma.
Solto um suspiro.
— Gosto. Acho que gosto.
— De que jeito você gosta, irmãozinho? — provoca. Reviro os olhos.
— Não te interessa!
— Interessa, e muito! — ri. — Olha só como você já está mais feliz!
Isso é bom para você e para todas as pessoas à sua volta, diga-se de
passagem.
Abaixo a cabeça.
— Eu era tão ruim assim?
— Era — confirma, sem pestanejar. — Mais um pouco e eu chamaria
um padre para te exorcizar.
Empurro-a de brincadeira e ela me empurra de volta. Caímos juntos na
gargalhada, o som flutuando leve entre nós.
Encaro a enfermeira há alguns metros de distância. Caminha à beira-mar,
chutando a água como uma menina que vai pela primeira vez à praia.
Balanço a cabeça.
— Ela é muito nova para mim.
Ágata se ajeita ao meu lado.
— Confirmado. Você gosta dela.
— E de que adianta? Sou um homem com deficiência vinte anos mais
velho — digo, exasperado. Passo a mão pelos cabelos que ela mesmo
cortou. — Porra, tenho idade para ser pai dela!
— E daí?
— Como assim e daí? Sabe o que eu teria feito se um cara com mais de
quarenta anos tivesse aparecido com vontade de namorar a Ágata de vinte?
— Sabendo da sua tendência para se tornar um homem das cavernas —
beberica um gole de suco de laranja antes de continuar a atacar a torta de
morango. — Aposto que teria colocado o coitado para correr.
— Com toda a certeza!
Ela torna a rir, ficando muito séria em seguida.
— Confesso que é uma ideia que me causa estranheza. Não apenas pela
diferença de idade, mas também pela experiência de vida entre vocês dois.
Mas quer saber?
— Quero.
— Que mal haveria se vocês realmente se amassem?
Capítulo 17 – Artur

Passo o restante do dia refletindo sobre a pergunta da minha irmã.


Deixei-a sem resposta por mais que ela clamasse dentro do meu íntimo.
Porque a única resposta possível é: não haveria mal nenhum amar Milena
Alves de Villeneuve desde que ela também me amasse.
O sentimento soa súbito até mesmo para mim. Nunca fui homem de
muita entrega. A única exceção aconteceu com a minha ex-namorada. Fui
sincero ao dizer que não a amo mais. A presença de Nicole pouco a pouco
se dissolveu, deixando apenas a sombra de um relacionamento para trás.
Mas suas palavras ainda reverberam em meus ouvidos. Desde o acidente
não sei o que é sentir o agradável calor do corpo de uma mulher. Para um
cara incapaz de ficar mais de três dias sem transar, passar seis meses na seca
está sendo um feito e tanto. Eu nem ao menos me masturbo. O desejo
simplesmente desapareceu.
Até a enfermeira surgir trajando um minúsculo biquíni.
Claro que a ideia foi da Ágata. Ela pode ter passado a manhã sem uma
resposta verbal, mas é inteligente o suficiente para saber qual é a alternativa
correta. Resolveu curtir a praia, mas queria companhia. E a única possível
era Milena. Insistiu até que a jovem aceitasse.
Devo admitir que Milena parece bastante contente com a folga. Sorrio ao
ouvir suas vozes e risadas animadas se misturando ao barulho das ondas.
Mantenho uma distância segura. Gosto de praia, mas não de ficar torrando
debaixo do sol forte, então as observo sob a proteção de um dos imensos
guarda-sóis do deque. Sem contar toda a logística envolvida em fazer uma
cadeira de rodas atravessar areia fofa. Não, obrigado. Prefiro ficar quietinho
aqui.
É a minha sorte. Meu pau acorda assim que Milena se levanta da esteira
e decide tomar um banho de mar. Ela não trouxe um biquíni, então Ágata
insistiu em lhe emprestar um.
Pelo visto emprestou o menor da sua coleção.
Um homem decente viraria o rosto e não ficaria espiando, mas talvez eu
não seja tão decente assim. E como ser? O biquíni branco deixa suas curvas
em plena evidência. Os seios do tamanho de pêssegos clamam para serem
apertados. E a bunda? Devia estar louco quando disse que ela não tem
bunda. Tem sim, e é deliciosa.
Por um instante a paisagem desaparece e me vejo enroscado em seu
corpo nu perfumado por protetor solar, a pele coberta apenas por suor e
água do mar. Abraço-a forte enquanto meto firme em sua boceta até fazê-la
revirar os olhos de tanto prazer.
E pronto, o meu pau está completamente duro. Olho para o pronunciado
volume na minha virilha. Faz tanto tempo que aquilo não acontece que, por
um instante, fico sem saber o que fazer. De repente eu quero, ou melhor,
preciso gozar.
E percebo que só uma mulher será capaz de me satisfazer.
Milena sai da água, as gotas translúcidas escorrendo vagarosas pela pele
arrepiada. Acena de longe e uma sirene toma conta da minha cabeça. Não
venha para cá!, peço mentalmente. A boca saliva de vontade de lamber gota
a gota, até deixá-la seca com exceção de um único lugar. Ali eu faria
questão de manter molhado, pronta para me receber.
É demais para aguentar. Espero Milena tornar a se deitar para girar a
cadeira e subir em direção ao meu quarto. Preciso resolver aquilo, e não há
água gelada no mundo capaz de apaziguar o tesão causado pela enfermeira.
Tranco-me no banheiro da suíte e desço o zíper da calça, abaixando a cueca
boxer em seguida. O pau melado pula para fora, as veias saltadas pulsando
de tanto desejo.
Gemo alto ao envolver o membro rijo com uma das mãos. Espalho o
líquido pré ejaculatório e desço os dedos por todo o comprimento,
apertando a base com força. Nem ao menos me lembro qual foi a última vez
que me acariciei. Agora o meu corpo parece clamar para se aliviar.
Volto a subir e descer a mão. É o que basta para que o meu pau pulse
com força. Um novo gemido escapa do fundo da garganta quando o quadril
é automaticamente impulsionado para a frente, os jatos de porra se
espalhando pelo chão e escorrendo pela minha mão. Estremeço por inteiro,
tomado por aquele diminuto prazer.
Não é o suficiente para apaziguar o meu fogo. Relaxo sobre a cadeira de
rodas e encaro a sujeira, o pau ainda ereto no meio das pernas. Preciso dar
um jeito de limpar aquilo antes que Milena apareça. Não tenho certeza de
que ela gostaria de saber que é a responsável pelo meu desejo. De que, na
realidade, me masturbei pensando o quando adoraria gozar gostoso dentro
da sua boceta enquanto a fazia estremecer em um orgasmo.

O restante do final de semana transcorre sem maiores emoções. Como é


costume no verão, o tempo virou ao final da tarde de sábado e trouxe
consigo uma nova tempestade. Domingo amanheceu cinzento e abafado,
então Ágata preferiu se manter dentro da mansão.
O céu azul voltou a dar o ar da sua graça apenas na segunda-feira, mas já
era hora da minha irmã ir embora. Vamos para o lado de fora assim que
ouvimos o barulho do helicóptero. Ágata arrasta a mala de rodinhas porta
afora quando, de súbito, se vira e me abraça.
— Fiquei tão feliz em te ver bem, irmãozinho — diz, a voz ligeiramente
embargada. — Eu ficava perdida, sem saber o que fazer com você.
— Eu disse, mais de uma vez, que você não precisava se preocupar.
Ela se afasta e me encara. Somos muito parecidos. A maior diferença
talvez fique por conta do olhar. Ágata tem os mesmos olhos castanhos
profundos do nosso pai. Os meus são um pouco mais claros, cheios de
pontinhos dourados, idênticos aos da nossa mãe.
— Aí que residia o problema, Artur. Como não me preocupar com você
depois de... — encolhe os ombros e olha de soslaio para o meu pulso. —
Bem, você sabe.
Assinto.
— Desculpe.
Ela leva a mão ao peito, chocada.
— Senhoras e senhores, o que foi isso que ouvi? — brinca. — O meu
irmão mal-humorado está pedindo desculpas? Não pode ser! Prepare a
mansão, tenho certeza de que uma nova tempestade se abaterá sobre ela!
Milena sai porta afora e ri. Reviro os olhos.
— Ainda bem que você está indo embora.
— Ainda bem mesmo! — abaixa-se para plantar um beijo em minha
bochecha. Seguro o seu rosto, retribuindo o carinho. Sempre fomos assim,
uma dupla de cão e gata que adora se provocar. Ela se afasta o suficiente
para me encarar e continua, bem baixinho. — Não se esqueça da conversa
que tivemos. A minha pergunta permanece sem resposta, mas sei que você a
tem aí dentro — enfatiza, dando um soquinho no meu peito.
— Vou me lembrar — respondo, tão baixo quanto ela.
— Sei que vai — volta a endireitar o corpo. — Milena me contou que
você está seguindo o tratamento direitinho.
A enfermeira estufa o peito e assente, orgulhosa por mais que aquele
trato tenha começado há tão pouco tempo. Uma leve onda de calor percorre
o meu corpo, feliz em saber que sou capaz de agradá-la.
— Estou sim — confirmo. Ela sorri e o calor aumenta. Preciso ler a bula
do antidepressivo. Não é possível que aquele remédio esteja me dando
tamanha sensação de bem-estar em menos de quarenta e oito horas.
— A sessão com o terapeuta já está agendada. — Milena confirma. —
Agora só falta conseguimos um fisioterapeuta.
As vozes do comandante Salomão e de outra pessoa se fazem ouvir
conforme se aproximam. Franzo o cenho, tentando me recordar de quem é
aquela voz. Ágata ri quando os dois homens saem da trilha.
— Os seus problemas acabaram — anuncia.
— Ah não! — quase grito, movendo a cadeira uns trinta centímetros
para trás. — Ele não!
— Ele sim! — Davi abre os braços e caminha em nossa direção. —
Sentiu a minha falta, Sr. Milano?
— Nem um pouco! Vá embora!
— Artur! — As mulheres me repreendem. Olho zangado para a minha
irmã.
— Como você conseguiu? A Milena ligou, mas ele disse que não viria!
— A Milena, infelizmente, não tinha o mesmo poder persuasivo do que
eu — comenta, observando as unhas em gel como se algo extraordinário
estivesse crescendo ali. — Tampouco a capacidade de dobrar o salário de
um dos melhores fisioterapeutas do país.
— Mas ele é um carrasco! — reclamo, lembrando das séries de
exercícios que o profissional me passava.
— E você é puro drama! — Davi rebate, enfim chegando à porta da
mansão. Dá dois beijinhos no rosto da minha irmã e depois se vira para
Milena. — Uau, que joia preciosa nós temos aqui. Não sabia que vocês
contrataram uma princesa como enfermeira!
Leva menos de três segundos para o meu sangue entrar em ebulição.
Impulsiono a cadeira para a frente, me colocando entre os dois. Só eu, mais
ninguém, tem o direito de pensar em Milena como uma princesa.
A minha princesa!
— Ei! — berro, tentando conter a irritação. Davi ergue o rosto em
direção ao céu e gargalha alto.
— Ah, Sr. Milano, pode ficar tranquilo. Eu e a Milena aqui gostamos da
mesma fruta — pisca, cheio de malícia.
— Então a trate com respeito!
— Calma... — A enfermeira pede com suavidade, mas estou longe de
manter qualquer calma! Viro-me para Ágata.
— Leve-o embora!
— Não vou levar! — bate o pé, enfatizando a sua decisão. — Se existe
um cara capaz de te fazer voltar a andar, esse cara é o Davi! É isso que você
quer, não é?
Mordo os lábios, mas acabo assentindo. Maldita família de gente
teimosa!
— Ótimo! — Ágata comemora.
— Ah, antes que eu me esqueça... — O fisioterapeuta puxa a mochila
para a frente do peito, abre o zíper e começa a procurar algo dentro dos seus
pertences. Sua mão retorna segurando uma garrafinha de vidro. Daquelas
pequenas, com uns cem mililitros. Ele a destampa e começa a espirrar o
conteúdo em minha cabeça, gritando: — Sai desse corpo que não te
pertence, Satanás!
— SEU FILHO DA PUTA! — explodo, fazendo menção de avançar
sobre ele. Ágata solta um grito. Salomão se agita. Mas é Milena quem
intervém. Posta-se entre nós dois e me encara, firme.
— O que foi que você me prometeu?
Respiro fundo e fecho os olhos, tentando contar até dez enquanto solto o
ar. Aquilo é um teste. Só pode ser um teste. O universo querendo uma prova
de que farei qualquer coisa por aquela mulher.
— Que eu seguiria o tratamento — consigo dizer, entredentes.
— Então o Davi fica — determina como uma juíza.
Fuzilo o fisioterapeuta com o olhar. Ele devolve a afronta, comemorando
sua pequena vitória. Talvez, com Milena ali, as minhas sessões de tortura
sejam menos agonizantes.
Capítulo 18 – Milena

Nos três primeiros dias após a chegada do fisioterapeuta pensei que a


convivência na mansão de vidro voltaria a se tornar um inferno. Davi
provocava de um lado, Artur revidava de outro, os dois em um jogo
ininterrupto pelo poder de alguns simples exercícios capazes de auxiliar o
magnata a andar. O fisioterapeuta é discreto ao revelar os motivos que o
fizeram ir embora da mansão, mas dessa vez parece disposto a ficar, custe o
que custar.
Os latidos e rosnados logo cessaram. Com a paz reinando na praia, liguei
para casa e precisei convencer a pobre Bernadete de que tudo estava bem.
Ela seguiu fiel a palavra de não narrar as minhas angústias ao papai, mas
demorei a convencê-la de que não havia mais motivos com o que se
preocupar. Eu estava bem. Artur estava bem. Todos nós estávamos bem.
O meu paciente vem se mostrando ávido por agradar. Já perdi as contas
de quantas vezes o vi direcionando seu olhar castanho a mim, como se
esperasse por algum tipo de aprovação. Eu a concedo sem pensar duas
vezes. O seu humor e boa vontade vem melhorando dia após dia, tornando
impossível lhe recusar uma palavra de incentivo ou um largo sorriso. Já sei
que, debaixo de toda aquela marra, existe um homem bom.
Um especialista diria que os remédios e a terapia são os responsáveis.
Concordo. Há um antidepressivo entre as cápsulas que Artur toma e,
mesmo de má vontade, ele vem se consultando semanalmente com o
psicólogo.
Mas há algo mais.
Um paciente precisa querer melhorar para ficar bom. Para isso ele
precisa de um motivo. Algo que o faça levantar da cama para enfrentar as
suas angústias. Artur, de alguma forma, parece ter encontrado motivação
para isso.
As horas e horas sentado diante das janelas envidraçadas foram
substituídas por outras atividades. Além do tempo na academia e na
fisioterapia, ele passou a assistir filmes.
Não gosta de nada cheio de efeitos especiais. Prefere os clássicos,
incluindo os em preto e branco. Geralmente o acompanho na sessão de
cinema. Só assim para definir a imensa televisão que ocupa a maior parte da
parede da sala de estar. Sugeri que víssemos uma comédia romântica,
apenas para variar, e ele aceitou de pronto. Até mesmo soltou algumas
risadas, apesar de achar o mocinho um babaca. Ri junto, encantada em notar
como os nossos dias se tornaram agradáveis.
E como, cada vez mais, venho apreciando estar ao seu lado. De
pouquinho e pouquinho, passei a acompanhá-lo em quase tudo. Artur
parece gostar, sempre se mostrando grato ao notar que estou ali,
emprestando-lhe um pouco de força apenas com a minha presença.
No total, são necessários quinze dias de preparação física até Davi julgar
que Artur está apto para colocar as próteses e tentar caminhar por entre as
barras paralelas. Assim como eu, alugou o ouvido do patrão por horas ao
descobrir sobre as bandagens elásticas, mas ficou feliz ao descobrir que elas
finalmente estavam sendo usadas.
A síncope veio ao ver o estado das caríssimas próteses jogadas de
qualquer jeito em um canto da academia.
Elas são de última geração, mesmo que o encaixe seja provisório. Como
as pernas foram cortadas na ponta da coxa, Artur precisa de joelhos novos.
O sistema que a sua fortuna permitiu comprar é de impressionar. Por meio
de microprocessadores, a prótese consegue calcular se ele está descendo
rampas e até mesmo prevenir tropeços. Fiquei boquiaberta quando Davi me
mostrou o vídeo de outro paciente. O caminhar é tão leve e natural que,
com bastante treino, ninguém será capaz de dizer que o magnata sofreu um
grave acidente quando estiver vestindo calças.
Davi passou um tempão limpando e reconfigurando todo o sistema.
Agora caminha de peito estufado pela academia com elas em mãos.
Aguardo ao lado de Artur, cheia de expectativa. Ele, por sua vez, parece
apreensivo ao encarar as próteses com um ar de dúvida. Aperto o seu
ombro.
— Ei, vai dar tudo certo.
Artur olha para cima e sorrio, tentando lhe transmitir um pouco de força.
Seus lábios devolvem o sorriso, mas o rosto não se mostra otimista.
— Tenho as minhas dúvidas — revela, voltando a encarar os objetos nas
mãos do fisioterapeuta.
— Por quê?
— Não deu certo da última vez.
— É lógico que não deu certo! — Davi exclama. — Você usou as
próteses por três dias e já queria correr uma maratona! Essas coisas levam
tempo!
Artur resmunga qualquer coisa como “É mentira, usei por cinco dias
antes de prever que não daria certo”. Abafo uma risada e me ajoelho diante
dele. Graças ao uso das bandagens, a maior parte do inchaço desapareceu
das suas pernas. O coto está saudável, livre de qualquer problema, pronto
para uma nova etapa. Tiro o liner da embalagem e começo a enrolá-lo sobre
a sua coxa.
O liner é uma espécie de meia colocada entre o coto e o encaixe da
prótese. Ele protege a pele de atritos e ajuda a manter tudo no lugar. Artur
faz menção de me ajudar a puxar o silicone até o alto da sua coxa, mas não
encara a própria perna. Demora um pouco, mas consigo ajustar tudo.
— Confortável? — pergunto, olhando para cima. Ele faz que sim, então
passo para a próxima perna. Com as duas devidamente cobertas, é a vez de
Davi entrar em ação.
— Vou colocar as próteses e você irá andar com elas por quinze minutos.
Depois...
— Só quinze minutos? — Artur corta. Lanço-lhe um olhar de
advertência. Ele solta um suspiro. — É muito trabalho para andar apenas
quinze minutos.
— Veremos se você consegue andar por mais tempo. — O fisioterapeuta
debocha.
Ele não responde a provocação. Aguarda como está enquanto Davi se
abaixa para fixar as próteses. Ele dá um sinal de OK antes de se erguer e, só
então, Artur encara as pernas. Seu olhar é enigmático como o de uma
esfinge.
— Se é para ser assim, que seja — murmura, posicionando a cadeira de
rodas entre as duas barras paralelas. Com firmeza, agarra o metal e faz
menção de se levantar, mas permanece onde está.
— Tente de novo. — Davi pede, gentil. O magnata assente, mas olha
para mim.
— Você vai conseguir — incentivo com um sorriso.
Deva vez o sorriso de Artur é sincero. Volta a olhar para frente, agarra as
barras com força e impulsiona o corpo para cima.
Ele quase cai, mas graças ao sistema eletrônico e aos músculos torneados
dos braços consegue se manter no lugar. Davi solta um sonoro Viva! e bato
palmas. O sorriso de Artur se alarga, transformando-se em uma risada. Está
radiante ao encarar o meu rosto.
— Estou de pé! — comemora.
— Está sim! — E uau, como você é alto!, penso. Se as próteses foram
projetadas para simular a sua altura, o homem deve ter quase um metro e
oitenta e cinco!
— Posso tentar andar? — pergunta, voltando sua atenção ao
fisioterapeuta. Ele faz que não.
— Primeiro deixa eu ajustar a posição dos seus pés — diz, abaixando-se
para alinhar tudo. — Pronto. Devagar, alivie os braços e tente colocar o
peso sobre as próteses.
Artur obedece, o corpo emitindo ondas de impaciência enquanto se
esforça para permanecer parado. Depois, ergue e abaixa as pernas. Move o
quadril de um lado para o outro. Se prepara para, finalmente, dar o primeiro
passo.
O fisioterapeuta faz uma nova conferência e assente, concedendo-lhe
aval para continuar. Ele firma as mãos nas barras, se apruma em toda a sua
altura, encara o espaço à frente com determinação e dá o primeiro passo.
Prendo a respiração e assisto ao movimento em câmera lenta. A perna
direita se ergue e o joelho metálico se dobra como se fosse de carne e osso,
ajustando-se até que o calcanhar toque o solo e conclua a passada.
— Você conseguiu! — vibro, dando pulinhos no mesmo lugar. Artur me
encara, o sorriso mais largo do que nunca.
Talvez esse tenha sido o erro. Talvez, se eu tivesse ficado quieta, ele
continuasse devagar. Mas Artur quis impressionar. Empertigou-se ainda
mais e deu o segundo passo. E o terceiro. E o quarto.
— Calma! — adverte Davi, esticando as duas mãos diante o peito,
tentando contê-lo. — Você está indo muito rápido!
É claro que Artur não escuta.
— Saia da frente — ordena.
— Então tá! — O fisioterapeuta dá de ombros enquanto caminha para
trás, até se ver longe das barras. Abro a boca, pronta para pedir que Artur
tome cuidado, mas não tenho tempo. Ele erra a quinta passada e cai com
tudo para a frente.
Solto um grito, mas ele não serve de nada em ampará-lo. Por sorte Artur
é rápido em esticar os braços e Davi, talvez prevendo uma tragédia, deixou
um colchonete posicionado logo após o fim das barras. O homem cai com
um sonoro baque sobre a espuma. Adianto-me em socorrê-lo.
— Você está bem? — pergunto, aflita, ajoelhando-me ao seu lado. Davi
se limita em repetir incontáveis Eu avisei!.
Artur ri e se vira de barriga para cima. Por um instante de insanidade
penso que ele vai me agarrar e me beijar. E eu adoraria que ele fizesse isso!
Mas ele apenas me encara com um olhar cheio de brilho.
— Estou, Milena. Estou muito bem.
Capítulo 19 – Milena

Após a queda, Artur se ergueu e continuou praticando. Conseguiu seguir


com a sessão de fisioterapia além dos quinze minutos previstos, mas logo
Davi preferiu encerrar. Melhor seguir com passinhos de bebê, a tentar correr
e tornar a cair.
Suado após o exercício, o magnata subiu para tomar um banho.
Aproveito a pequena folga para me sentar no sofá em companhia do meu
livro. Devia ter trazido mais exemplares de casa, mas não tem problema.
Aquele é um dos meus romances favoritos, então não me importo de relê-
lo.
A história lembra um conto de fadas. Nela, um poderoso príncipe se
apaixona por uma simples camponesa. Tomado pelo amor, ele enfrenta
todas as convenções sociais apenas para ficarem juntos.
Ouço o elevador descendo. Segundos depois Artur está ao meu lado. Um
delicioso cheiro de sabonete masculino flutua suave ao redor do seu corpo.
— Você deve gostar muito desse livro — comenta, espiando as páginas.
— É a segunda ou terceira vez que o lê desde que chegou.
— Gosto sim — digo, virando a capa para ele. O homem faz careta
diante da imagem do modelo com a sua camisa aberta até metade do peito.
— Adoro histórias com intrigas entre a realeza, príncipes galantes e
camponesas indefesas.
— Duvido que eles se vestissem dessa maneira — resmunga. Caio na
gargalhada.
— Também duvido, mas prefiro imaginar que eles se vestiam. É muito
mais sexy.
Artur se apruma sobre a cadeira de rodas, eriçando-se como um pavão.
Só falta uma placa pendurada no pescoço dizendo: Isso é ser sexy, milady.
— Mas você não precisa ficar relendo a mesma coisa. É só pegar um
livro na biblioteca.
É a minha vez de se eriçar.
— Biblioteca? Ninguém me disse que existe uma na vila!
— Não é na vila. É aqui — diz com simplicidade. O meu coração salta
no peito enquanto levo uma mão à boca, espantada. Artur franze o cenho,
fazendo a pergunta que o meu estado de choque não está sendo capaz de
formular. — Você abriu a porta proibida do meu escritório, mas não abriu a
da biblioteca?
— Não. — Ele me lança um olhar cheio de dúvidas. — Ei, eu não sou
xereta! Já disse que só entrei no seu escritório para pegar o brinco que
escorregou por baixo da porta!
— Você não é xereta, mas é curiosa.
— E isso não é a mesma coisa?
Ele dá de ombros e começa a movimentar a cadeira de rodas.
— Sei lá. Vem, vou te apresentar a biblioteca. Mas! — acrescenta,
erguendo o dedo indicador em riste. — Saiba que noventa por cento
daqueles livros não são meus.
— Quer dizer que o senhor não gosta de ler? — brinco, seguindo-o até o
elevador.
— Gosto, mas doei a maioria dos meus livros depois que comprei um
Kindle. — Seus ombros se encolhem. — Só não consegui doar esses.
— Então eles devem ser muito especiais — comento com carinho.
Artur assente sem dizer nada. Noto como se torna melancólico e, por um
momento, penso se os livros pertenciam a Nicole.
Chegamos no andar de cima e passamos diante do quarto de Artur. Ele
segue em frente, ignorando a minha porta e a do banheiro. Sei que mais ao
fim do corredor ficam dois quartos, incluindo o que Ágata usou no final de
semana que dormiu conosco. O escritório e, por fim, uma nova porta.
Ele coloca a mão sobre a maçaneta, mas me lança um olhar convidativo
antes de abri-la. Pouso a mão sobre a sua, muito maior e mais forte. Tento
ignorar a corrente elétrica que sobe pelo meu pulso e, juntos, giramos a
maçaneta.
Preciso segurar um grito conforme a porta abre com um leve rangido.
Levo as duas mãos a boca escancarada, sem acreditar no que vejo à frente.
As laterais do quarto são revestidas por estantes do chão ao teto. Metade
delas estão cobertas por lombadas coloridas de incontáveis livros.
Espalhadas pelo chão, imensas caixas de papelão tanto fechadas quanto
abertas, denunciando que mais histórias aguardam o momento de serem
guardadas. No centro, uma imensa poltrona reclinável. Flocos de poeira
flutuam enquanto um leve cheiro de mofo se espalha pelo ar.
Artur impulsiona a cadeira de rodas para dentro do quarto. Apesar de
espaçoso, o chão atulhado de caixas impede que se movimente com plena
liberdade. Ele não parece se importar. Se aproxima de uma das estantes e
desliza os dedos pelas lombadas. Puxa um título e sorri diante da capa
semelhante à minha.
— Eram todos da minha mãe — comenta, guardando-o no lugar. — Ela
adorava esses livros de “mulherzinha”, como os chamava. — faz aspas com
os dedos, apenas para enfatizar. — Às vezes passava a tarde inteira lendo
sem se cansar.
Sua voz soa carregada de saudade.
— Ela morreu? — pergunto, me aproximando. Artur confirma com a
cabeça.
— Ela e o meu pai. Foi um acidente de carro. Eu tinha só vinte e cinco
anos.
— E Ágata dezoito — completo, espantada.
— Pois é. Em meio a dor de perdê-los precisei assumir o império
construído pelo meu pai. Às vezes tenho a sensação de que até hoje não
consegui digerir o que aconteceu.
Assinto, compartilhando o seu sentimento.
Uma roda da cadeira se enrosca em uma caixa. Artur se abaixa para
arrastá-la para o lado. Adianto-me em ajudá-lo, mas ele faz um gesto
indicando que está tudo bem. Noto como suas íris estão marejadas, então
dou-lhe espaço, me ocupando em correr os olhos pelas prateleiras. Há
romances de todos os tipos, desde clássicos ingleses até livros de banca.
Perco-me entre eles, cheia de vontade de puxá-los das prateleiras e admirar
capa por capa. Acabo me distraindo de tal forma que não sei quanto tempo
leva até que Artur volte a falar.
— Você já me contou sobre o seu pai — comenta, erguendo o rosto.
Parece um pouco mais recomposto. — E a sua mãe?
— Ela também faleceu — respondo. — Mas eu era bem pequena, às
vezes nem ao menos me lembro dela.
Artur assente como se compreendesse. Volta a encarar o ambiente ao
redor.
— Vendi a cobertura em que eles moravam, mas nunca tive coragem de
me desfazer dos livros da minha mãe. Eles ficaram um bom tempo
guardados em um depósito alugado, depois os trouxe para cá. Ágata ficou
com um ou dois, mas não quis o resto. Tinha esperanças de que Nicole os
lesse, mas ela nunca gostou de romances — dá de ombros. — Depois sofri
o acidente e esqueci que estavam aqui. Agora são todos seus.
Paraliso onde estou, sem entender se ouvi direito. Viro-me para ele, bem
devagar. Artur sorri de leve, tranquilo como poucas vezes vi.
— Você está falando sério? — sussurro. Ele assente.
— Estou. Sinta só o cheiro de mofo desse quarto! É de se admirar que
não tenham sido comidos pelas traças. Livros foram feitos para serem lidos.
— O seu sorriso se alarga. — E eu ficaria muito feliz em saber que estão
sendo lidos por você.
Tento conter a euforia, mas é impossível. Começo a pular no lugar e,
quando dou por mim, solto um grito e corro até Artur. Sua risada se espalha
pela biblioteca quando envolvo o seu corpo em um abraço apertado.
— Obrigada — digo, afundando o rosto em seus cabelos. Ele solta um
suspiro gostoso ao me abraçar de volta.
E então começo a me dar conta do aroma do seu perfume. Sou incapaz
de identificar, mas é forte e masculino, algo como madeira nobre misturada
ao cheiro de mar. A maciez dos seus grossos fios de cabelo faz cócegas no
meu rosto. Tomo ciência da firmeza do seu peitoral e dos braços em volta
do meu corpo. Ele é todo grande, capaz de me cobrir por inteira.
O calor presente em minha feminilidade se espalha pelo ventre, subindo
pelos seios e assolando o meu rosto. Algo também parece se remexer em
Artur. Ele me afasta, um tanto quanto sem graça. Estamos cada vez mais
atraídos um pelo outro, mas nenhum de nós dois sabe o que fazer.
Artur pigarreia.
— Fico feliz que tenha gostado do presente.
— Gostei — tento me recompor. Cruzo os braços, fazendo graça. —
Mas tenho uma condição para aceitá-los.
— E qual é?
— Preciso que você me ajude a arrumar todos eles na estante.
Artur revira os olhos, mas o seu rosto demonstra o quanto está feliz com
a minha condição.
— Ajudo. É claro que ajudo.
Abrimos as caixas e passamos o restante da tarde ajeitando os livros.
Tentamos seguir uma ordem lógica, mas logo a tarefa se mostra impossível.
Para tanto seria necessário tirar todos os livros das prateleiras e catalogá-
los, um a um, seja por autor, título ou gênero literário. Como são de
romance, decidimos simplesmente colocá-los lado a lado.
A mãe de Artur devia ser uma grande fã da Nora Roberts, pois há uma
imensa quantidade de livros da romancista. Também encontramos vários da
Agatha Christie. Passamos um tempo discutindo se o nome da sua filha
seria uma homenagem à autora.
O sol está baixo quando terminamos. Desmonto as caixas de papelão e
as deixo em um canto antes de nos postarmos lado a lado. Sorrio para o
resultado do nosso trabalho. Ainda sobraram duas ou três prateleiras vazias,
perfeitas para guardar os livros que tenho em casa.
Arregalo os olhos. Eu... estou pensando em ficar?
Sinto o olhar de Artur sobre mim e viro o rosto, devagar. Ele me observa
com um sorriso de orelha a orelha. Sorrio de volta. Sim, talvez eu esteja
pensando em ficar. E sim, talvez eu tenha me apaixonado pelo meu chefe.
Detestável de início, furioso e intratável como uma fera. Uma criatura que
eu adoraria manter distância, não fosse a necessidade de trabalho.
Mas que, dia após dia, vem se tornando cada vez mais gentil. Educado,
preocupado e prestativo. Um homem que aos poucos se cura da própria dor
e mostra quem verdadeiramente é.
Um príncipe disfarçado de magnata. Alguém fácil de amar.
— Obrigada — repito, resistindo a tentação de abraçá-lo de novo. Artur
parece fazer o mesmo.
— De nada, Milena — sussurra, rouco.
Um arrepio percorre toda a minha espinha. Para me distrair, tiro um livro
aleatório da prateleira. Dou sorte: é um romance medieval parecido com o
meu. Balanço a capa e ele faz uma careta.
— Vou começar por esse aqui — brinco. — Vamos descer? Acho que
conseguimos assistir ao finalzinho do pôr do sol.
Artur assente e começa a manobrar para fora do quarto. Deixo as caixas
onde estão, colocando uma nota mental para voltar e arrumar tudo depois.
Descemos juntos e seguimos em direção ao deque. Apesar das altas
temperaturas ao longo do dia, os finais de tarde são agradáveis, amenizados
pelos ventos que circulam a ilha. Sento-me em uma das poltronas com dois
lugares, afundando-me no estofado macio. Artur me observa e, por um
instante, penso que irá permanecer onde está.
Abro a boca, pronto para convidá-lo a dividir a poltrona comigo, quando
ele decide por si só. Com um movimento ágil dos braços, salta da cadeira
de rodas e se acomoda ao meu lado. Permanecemos em um silêncio
confortável, apenas admirando a forma como o céu se tinge em incontáveis
tons de laranja conforme a tarde dá lugar ao crepúsculo.
Uma leve brisa salgada nos envolve. Folheio o livro, permitindo que as
páginas respirem um pouco daquele ar renovado. Quando dou por mim
estou terminando de ler o capítulo um. O gancho é tão bom que se torna
inevitável: sigo para o capítulo dois, devorando as páginas com uma
velocidade impressionante. Pelo jeito é uma história que me fará varar a
noite lendo.
Aos poucos um corpo bastante grande começa a se debruçar sobre o
meu. Olho para o lado e sorrio quase que sem acreditar: Artur dormiu. Sua
cabeça tomba de lado até se encaixar no meu ombro. Temo que vá
escorregar, mas ele permanece ali, como se tivesse encontrado o lugar que
queria estar. Deito a cabeça sobre a sua e fecho os olhos, tendo certeza de
que também encontrei o lugar onde quero estar.
Capítulo 20 – Artur

Caminho pensativo por entre as barras paralelas, aquecendo as coxas


antes de iniciar o treino com o andador. A minha adaptação melhorou ao
longo daquele último mês, mas as passadas ainda estão longe do natural. O
máximo que consigo é manter o equilíbrio e dar alguns passos claudicantes.
Davi gosta de dizer que cada paciente tem o seu tempo, o problema é que
não tenho paciência.
A risada de Milena se espalha pela casa. Pelo visto ela e Jacira estão se
divertindo na cozinha. Sorrio para mim mesmo. A enfermeira completou
quarenta e cinco dias em minha companhia. O recorde dos recordes, como
gosta de lembrar.
Uma parte de mim fica exultante com a sua presença, mas a outra se
apavora com a perspectiva de que em um mês e meio ela estará livre para ir
embora.
Não sei o que acontecerá caso ela opte por partir. Tornei-me dependente
de Milena. Um homem completamente obcecado pela jovem enfermeira.
Ainda lembro da sensação de acordar com o rosto enfiado na curva do seu
pescoço. O inebriante aroma floral que se desprendia da sua pele,
misturando-se ao cheiro salgado do mar enquanto Milena devorava o livro
que havia acabado de lhe dar.
A nossa convivência se modificou após esse episódio. Posso passar
horas sentado ao seu lado enquanto lê um romance, ansioso para que dívida
trechos da história comigo, sem me cansar da sua voz por um segundo
sequer.
Milena virou sinônimo de felicidade. O semblante alegre. O sorriso
luminoso. A risada que reverbera pelo vidro e se espalha pela mansão
inteira. O meu peito se aquece sempre que a escuto, fazendo com que a
deseje de tantas formas que não sou capaz de explicar.
Os nossos dias viraram uma deliciosa tortura. Os leves toques e carinhos
se tornaram mais constantes. Se antes assistíamos aos filmes nas pontas do
sofá, agora nos sentamos no meio. Mãos lado a lado, dedos tremendo de
vontade de se entrelaçarem como se fosse uma necessidade tão grande
quanto respirar.
Mas ainda me falta coragem. Os toques e carinhos são esporádicos,
disfarçados, jamais explícitos. Por um tempo tentei me convencer de que
poderiam ser apenas gestos de uma enfermeira gentil em busca de agradar
um paciente, mas logo joguei essa teoria por terra. Impossível pensar assim
quando um par de olhos turquesa buscam os seus lábios com constância.
Iris sinceras flamejam ao me verem sem camisa. Centímetros de pele se
arrepiam ao mínimo toque.
Mas nada disso quer dizer que Milena me deseje da mesma forma que a
desejo. Solto um longo suspiro resignado. Davi ergue o rosto do celular e
me encara.
— O que foi?
— Nada — retruco, dando mais um passo.
Ele revira os olhos e guarda o aparelho no bolso de trás da calça.
— Vamos, desembucha. Talvez eu possa ajudar.
Ergo uma sobrancelha enquanto ele aguarda sem dizer nada. E pensar
que, em outra era, eu era capaz de arrebatar o coração de uma mulher como
um mero olhar, mas com quem posso desabafar se não como o
fisioterapeuta? Não sobraram amigos. Sei que Ágata estaria do meu lado,
mas não quero falar com ela sobre o tesão pungente que sinto pela
enfermeira.
— É a Milena — digo. Davi ergue as mãos para cima.
— Ninguém precisa ser um gênio da lâmpada para saber que é a Milena
— debocha. Apoia-se na lateral de uma das barras, lançando-me um olhar
de pura incredulidade. — Desculpe, mas jamais pensei que um homem
como você precisasse de ajuda para conquistar uma mulher.
Porra, está tão na cara assim?
— Eu não... — começo a dizer, mas Davi me interrompe. Sua
gargalhada estridente preenche toda a academia.
— Ah Artur, pelo amor de Deus! Aceito qualquer coisa, menos que
negue a sua paixão pela loirinha. Só falta babar quando ela está ao seu lado.
Sinto todo o meu rosto ficando quente. Não sei se de vergonha ou raiva
por ter sido desmascarado. Pelo visto até as gaivotas e os caranguejos que
aparecem próximos a mansão já devem estar desconfiados.
— Você vai me ajudar ou não? — digo, entredentes. Davi apruma o
corpo e assente.
— Claro! Mas você quer ajuda com o que?
Paro no meio de uma passada, sem ter ideia do que responder. Fecho os
olhos com força, em busca de uma resposta, mas ninguém é capaz de dá-la.
Nem eu, muito menos Davi.
— Não sei — acabo admitindo. Abro os olhos e o encaro. — Acho que,
no fundo, só estou com medo de ser rejeitado.
O sentimento de pena, ahhh o maldito sentimento de pena, cruza o rosto
do fisioterapeuta. A irritação começa a crescer em meu peito, mas logo se
apazigua. Davi se aproxima antes de perguntar:
— Você já se olhou no espelho?
— É claro que já! — respondo, brusco. Talvez a irritação não tenha se
apaziguado tanto assim.
— Então não se olhou direito! — Davi retruca no mesmo tom. — Olha
só para você! Cabelos sedosos, barba bem-feita, um rosto de galã de cinema
— começa a enumerar, olhando-me de cima a baixo. — Um corpo que
misericórdia! — abana-se com a mão antes de continuar. — Tudo isso em
um metro e oitenta e cinco de pura gostosura. Com todo o respeito chefe:
você é um tesão.
Arregalo os olhos, chocado com a informação.
— Mas as minhas pernas...
— Fodam-se as suas pernas! — grita.
Lanço-lhe um olhar assassino antes de voltar a minha atenção à porta.
Não quero que as mulheres, e principalmente Milena, escutem a conversa,
mas novas risadas escapam da cozinha. Fazer um bolo de chocolate é mais
divertido do que parece à primeira vista.
— Fale baixo! — ordeno.
Davi faz que não.
— Eu vou falar na altura que eu quiser! Que tipo de criatura desprovida
de autoestima você se tornou? — questiona. — Acorda, Milano! Pare de
achar que merece alguém que se importe com a sua deficiência! Você
merece uma mulher que se importe com você! — enfatiza, batendo com o
dedo indicador no meu peito antes de se afastar e fazer um gesto
englobando todo o meu corpo. — E você, meu caro, é um imenso pedaço de
mal caminho capaz de incendiar qualquer calcinha!
Balanço a cabeça, ainda em dúvida.
— Eu não tenho tanta certeza.
Davi bufa alto, a paciência enfim esgotada.
— Então deixe a certeza de lado e apenas acredite! Porque de uma coisa
eu tenho certeza: a Milena está doidinha para sentar em você!
— Olha o respeito! — rebato, tentando ignorar a visão da enfermeira nua
se sentando com força sobre o meu pau. A visão é tão nítida que quase solto
um gemido.
— Não estou faltando com respeito — dá de ombros. — Só estou
falando a verdade.
É a minha vez de bufar. Bato com o pé da prótese no chão, enfim
irritado.
— O que sugere que eu faça?
— E eu sei lá! Você não disse como quer que eu te ajude!
Respiro fundo e ponho o cérebro para pensar. Preciso de algo que possa
agradá-la. Talvez um presente. Algo como um colar ou um par de brincos
de diamantes, mas de alguma forma a ideia soa errada. Milena não parece
ligar para itens materiais. O seu celular está caindo aos pedaços, mas negou
veementemente o meu apelo para que lhe deixasse substituí-lo por um
Iphone de última geração
Algo me diz que amou a biblioteca mais pelo valor sentimental contido
nela que pelos livros em si. Não posso me limitar a presenteá-la com um
objeto qualquer. Precisa ser algo com intenção de agradá-la com o coração.
— Como um jantar — digo baixinho. Davi bate palmas.
— Ótimo! Há um restaurante maravilhoso na vila que...
Nego com a cabeça.
— Você sabe que eu não saio da mansão. Precisa ser aqui.
A animação do fisioterapeuta evapora.
— Mas você não se ajuda, hein? Até onde sei o último jantar promovido
sob o seu teto não deu muito certo.
— Então preciso fazer dar certo agora. — Ele troca o peso de um pé pelo
outro, ainda em dúvida. Empurro-o de leve. — Pensei que você fosse me
ajudar!
— Que outra alternativa eu tenho? — resmunga. Faço menção de
empurrá-lo de novo, mas Davi é rápido em se desviar. — Mas, dessa vez,
nada de obrigar a garota a jantar, está me entendendo?
— Estou — abaixo a cabeça, envergonhado ao lembrar do meu convite
deplorável. Sou acometido por uma pequena onda de pânico. — E se ela
não aceitar? — pergunto, subitamente desesperado. Davi revira os olhos.
— Ai, Artur. É lógico que ela vai aceitar.
— Ela vai aceitar o que?
Sobressaltamo-nos juntos, virando o rosto em direção a voz. Milena
passa pela porta com dois pratos de bolo de chocolate em mãos. Recheio,
cobertura e flocos granulados escorrem pelas imensas fatias. Davi é o
primeiro a se recuperar. Caminha em sua direção, tomando um dos pratos
para si.
— O Sr. Milano irá lhe dizer — pisca para a enfermeira antes de me
lançar um olhar de “Não estrague tudo, seu idiota”. Segue decidido para
fora, nos deixando a sós.
Percorro as barras paralelas até alcançar a cadeira de rodas. Milena
apenas observa, sem fazer menção de me ajudar. Sabe que eu gosto de me
virar sozinho, intervindo apenas em último caso, quando acha que irei me
machucar.
Deixo-me cair sobre o assento, aliviado em tirar alguns minutinhos para
descansar. As coxas vêm se fortalecendo, mas os exercícios ainda exigem
bastante esforço.
O prato de bolo é me oferecido assim que termino de me acomodar. Ergo
o rosto em direção a enfermeira, agradecendo com um sorriso. Milena sorri
de volta. Não sei o que será da minha vida se essa mulher me rejeitar.
— Você irá me dizer o que? — pergunta, curiosa.
Apoio o prato no meu colo, de repente sem saber como começar. Abro a
boca, mas nenhuma palavra sai dela. Milena franze o cenho, começando a
se preocupar, mas faço um gesto indicando que está tudo bem. Respiro
fundo antes de fazer uma nova tentativa.
— Eu gostaria de saber se você aceitaria um novo convite para jantar —
encolho os ombros. — Pensei em fazer algo especial na sexta-feira.
Ela arregala os olhos, completamente surpresa com o convite inesperado.
Encolho-me na cadeira, temeroso de levar uma negativa, quando um sorriso
do tamanho do mundo surge em seus lábios.
— Aceito — diz com firmeza.
Pisco, sem saber se escutei direito, o coração acelerado martelando no
peito.
— Você... aceita mesmo?
Milena ri.
— Sim, eu aceito.
Rio de volta, aliviado. Estendo a mão em direção a sua, finalmente
entrelaçando os nossos dedos. Uma explosão elétrica eclode entre eles,
envolvendo as nossas palmas, subindo pelo pulso e se espalhando por todo
o braço.
— Você não sabe o quanto isso me deixa feliz, Milena — consigo dizer,
rouco, tomado por uma súbita emoção. Ela aperta os meus dedos.
— A mim também, Artur. A mim também.
Capítulo 21 – Milena

— Eu não quero passar a tarde inteira trancada no quarto! — cruzo os


braços, indignada. Artur se aproxima com a cadeira de rodas, a melhor
expressão de cachorro pidão estampada no rosto.
— É por uma boa causa — insiste, mas bato o pé. Ele solta um longo
suspiro. — Por favor, Milena. Eu só quero fazer uma surpresa.
O seu tom de voz começa a me desarmar. Ah, inferno de homem!
— Posso saber o motivo disso? — questiono, querendo ganhar tempo.
— Até agora não entendi por que não posso passar a tarde em qualquer
outro lugar. Preferiria mil vezes ficar na praia.
— Mas aí você estragaria a surpresa — ergo uma sobrancelha e Artur
percebe que falou demais. Ele se remexe sobre a cadeira de rodas e estende
as mãos em minha direção. — Vamos, por favor. Prometo que você não vai
se arrepender — pisca cheio de charme.
Pronto. Agora estou completamente rendida. O seu cabelo cresceu ao
longo daquelas últimas semanas e misericórdia, Artur está divino. Às vezes
comenta que precisa de um novo corte, mas me faço de desentendida. Se
depender de mim ele pode ficar com essa aparência para sempre.
Descruzo os braços e permito que segure as minhas mãos. Elas são
grandes, quentes, capazes de cobrir os meus dedos por inteiro. Basta que as
nossas peles se toquem para que a já familiar corrente elétrica suba pelos
pulsos. A respiração de Artur se torna automaticamente mais ruidosa. Sei
que o afeto tanto quanto ele me afeta. Até quando conseguiremos segurar?
Não faço ideia, mas estou ansiosa para descobrir qual surpresa ele fará hoje
a noite.
— Tudo bem — dou-me por vencida. Ele aperta os meus dedos e sorri.
Aperto de volta. — Mas eu tenho uma condição.
— Qual?
— Não quero que você passe a chave na porta.
Artur fica pálido.
— Eu jamais faria isso! — diz, chocado. — Só preciso que não olhe em
direção ao deque, Milena!
Ele morde os lábios enquanto sorrio de orelha a orelha.
— Ah, o jantar será no deque!
Ele se agita.
— Chega, já falei demais! Desse jeito você me fará estragar a surpresa!
Caio na gargalhada.
— Pode ficar tranquilo — aperto os seus dedos, apenas para enfatizar. —
Ficarei no meu quarto, sem espiar a surpresa que você está organizando no
deque.
Artur enfim respira aliviado. Para o meu espanto, desce os lábios sobre
as costas da minha mão, plantando um suave beijo. Sua barba curta pinica a
pele de forma inebriante, fazendo com que eu me arrepie por inteira.
— Espero que você goste — sussurra, erguendo o rosto de forma a me
encarar com os olhos em chamas.
— Tenho certeza de que irei gostar — consigo dizer. — Até às oito da
noite?
— Até — sorri e se afasta, esperando que eu entre no quarto.
Dou-lhe um tchauzinho e finalmente acato o seu pedido. Fecho a porta,
encostando as costas na madeira enquanto tento normalizar a respiração
errática. O casto beijo de Artur aquece a minha pele, fazendo com que o seu
calor se espalhe pelas partes necessitadas do meu corpo. É impossível
negar: estou apaixonada pelo meu chefe.
Poderia dizer que aquilo aconteceu após a melhora do seu humor. Em
pouco tempo Artur conseguiu domar os seus nervos e se tornou um homem
muito diferente daquele que conheci. Continua sarcástico e com uma
facilidade impressionante para perder a paciência, mas agora de um jeito
controlado.
A raiva escondia o que ele tem de melhor. O agente do caos se foi,
deixando em seu lugar um homem atencioso e cheio de vontade de agradar.
Artur é gentil, mesmo que às vezes de um jeito um tanto quanto rude. Gosta
de ver as pessoas à sua volta felizes. É bom, mas ainda parece não saber
disso.
Suas inseguranças são latentes. Voltar a andar está trazendo parte da sua
autoestima de volta, mas o complexo de inferioridade o domina. Artur ainda
não encara as pernas quando as enfaixo ou visto o liner. Passa reto diante de
espelhos, como se temesse se olhar. Parece conter uma masculinidade
abalada, por mais charmoso que seja.
— Ah, se você soubesse Artur... — murmuro a mim mesma, sentindo o
centro da minha feminilidade completamente encharcado. — Se tivesse
ideia do quanto te desejo do jeitinho que você é.
Ele é o seu chefe, penso, mas e daí? Não serei a primeira, nem a última,
a ter um crush pelo patrão. Tudo o que importa é saber se Artur sente o
mesmo que eu. Não sou mulher de me entregar por entregar. Preciso que o
sentimento seja recíproco.
Está nítido que ele também sente algo por mim, mas em qual
intensidade? O seu coração ainda está machucado, mas não hesitarei em
ajudá-lo a recolher os cacos para colocar tudo no lugar, se assim desejar.
— Estou pensando isso só porque ele beijou as costas da sua mão? — rio
sozinha. — Ai, Milena. Os contos de fadas só existem nos livros. Deixe de
ser ridícula!
Abro os olhos e contenho um grito surpreso. Pelo visto as surpresas já
começaram.
Uma bandeja com suco de laranja, pães, frios e uma fatia de bolo
encontra-se sobre a mesinha de cabeceira, mas o que chama atenção é a
imensa caixa de presente dourada deixada sobre a minha cama. Passei a
manhã inteira no andar debaixo, tempo mais do que suficiente para que
Jacira ou Davi tenham subido com ela.
Aproximo-me devagar, sem saber o que fazer, quando vejo um envelope
escrito “Abra.” preso ao imenso laço de cetim. Seguro-o entre os dedos,
ainda na dúvida se devo abri-lo ou não, quando dou de ombros. Artur sabe
o quanto sou curiosa, então só me resta abrir.
Uma folha de papel na cor creme desliza para fora. Encaro a bonita
caligrafia inclinada, admirada com tamanho capricho. O magnata escreveu
o meu nome com tantos floreios que por um segundo imagino que aquele
seja um convite de casamento. Começo a ler:
Milena,
Espero que goste desse presente. É uma pequena forma de agradecer
por tudo o que você vem fazendo por mim. Passei horas diante do notebook
até encontrar um modelo que combinasse com você e me sentirei honrado
em vê-la usando-o nessa noite, mas entenderei caso prefira um dos seus. O
prazer da sua companhia é o melhor presente que eu posso ter.
Com carinho,
Artur.
O que esse homem está aprontando?, pergunto a mim mesma, o coração
martelando no peito. Coloco o bilhete e volta ao envelope e volto a encarar
a caixa, curiosa para saber o que há dentro dela. Puxo o laço e ele se desfaz
com um sussurrar suave, espalhando-se em torno do invólucro dourado.
Respiro fundo e ergo a tampa, colocando-a sobre o lençol.
Olho embasbacada para o seu conteúdo. Entre folhas de papel de seda
encontra-se um vestido. Seguro-o entre os dedos, chocada com a maciez do
tecido, enquanto puxo-o para fora da caixa. O tom de amarelo é alegre e a
saia godê desce até a altura dos joelhos. É um vestido de verão tão bonito e
elegante que poderia ser usado em qualquer ocasião.
Coloco-o diante do corpo. Não preciso prová-lo para saber que ficará
perfeito. Artur realmente o escolheu a dedo. A cor. O comprimento. Tudo.
Ele com certeza vem reparando no que estou usando. Sorrio para mim
mesma, ainda mais ansiosa para a sua surpresa.
Estico o vestido sobre a cama e retorno a caixa, reparando que Artur
também teve o cuidado de me presentear com uma sandália. Agradeço
mentalmente, ciente de que a minha está longe de ser digna de combinar
com o vestido novo. Preocupa-me imaginar o quanto ele gastou com
aqueles dois itens, mas espanto o pensamento. Estou gostando, e muito, de
ser mimada.
Começo a fechar a caixa quando reparo em algo escondido entre as
camadas de papel de seda. Estico a mão, mas começo a dar risada antes
mesmo de alcançar um novo envelope.
Milena,
Desculpe, mas não resisti. Aquele seu celular está horrível. Os meus
dedos coçam de vontade de jogá-lo fora. Por favor, cure a minha alergia,
dê um descanso ao pequeno guerreiro e aceite mais esse presente.
Eu imploro,
Artur.
— Só você, Sr. Milano — rio, afastando o papel para segurar a caixa de
um Iphone de última geração. Balanço a cabeça, sem conseguir me conter.
— Só você.

Respiro fundo ao alisar a frente do vestido. Sim, Artur realmente


acertou. Cada centímetro de tecido amarelo abraça o meu corpo com
tamanha perfeição que parece que foi feito sob medida. Viro de um lado
para o outro, encantada com a fluidez da saia soltinha.
Retorno ao banheiro para conferir a maquiagem. Preferi prezar pelo
básico. Retoco o batom cor-de-rosa e ajeito os cabelos soltos. Escovei-os à
perfeição, até que cada mecha ondulada parecesse com pura seda. Respiro
fundo mais uma vez. Estou nervosa como se tivesse sido convidada para um
primeiro encontro.
Talvez seja, penso, mas logo rechaço a ideia. Passei a tarde inteira
evitando criar expectativas. Artur só me chamou para jantar, oras. Isso não
quer dizer nada, ao mesmo tempo em que pode dizer muita coisa.
Retorno ao quarto e desbloqueio a tela do meu novo celular: oito em
ponto. Chegou a hora. Confiro uma última vez se tudo está no lugar e saio.
Caminho tranquila pelo corredor, parando apenas diante do quarto de Artur.
Encosto o ouvido na porta e só escuto o silêncio. Ele já deve ter descido.
Continuo caminhando e em segundos chego a escada. Basta que eu desça
um único degrau para que o meu coração falhe uma batida.
Artur me aguarda ao final da escada. De pé. Parece tenso enquanto
segura o corrimão com força, mas está completamente de pé.
— Eu não acredito! — digo, levando as duas mãos à boca. — Ele ergue
o rosto e sorri. Aproveito para admirá-lo. Uma camisa azul marinho com as
mangas dobradas até os cotovelos envolve todo o seu peitoral forte. Ele
poderia ter optado por uma calça, mas mesmo de longe parece orgulhoso
em exibir as próteses sob a bermuda de linho cru. — Você conseguiu,
Artur!
Ele não parece ouvir. Suas íris percorrem o meu corpo com admiração.
Começo a descer as escadas, acanhada, sentindo a quentura do seu olhar em
cada movimento.
— Você aceitou o meu presente — diz, rouco. Estendo a mão em direção
ao seu rosto. A barba recém aparada pinica a palma enquanto ele fecha os
olhos, deliciado com o carinho.
— É claro que aceitei, mas você precisará me dar algumas aulas. Não
faço ideia de como mexer naquele Iphone.
Artur ri.
— Terei o maior prazer em ensinar — diz, voltando a me encarar. —
Você está linda, Milena.
— Você também está — sorrio, só então percebendo o andador às suas
costas. Ele acompanha o meu olhar.
— O Davi quis me matar. Disse que eu não estava pronto, mas decidi
tentar.
— Fico feliz que tenha tentado — acaricio o seu rosto uma última vez
antes de me afastar. Ele parece sentir falta do toque no mesmo instante.
Confesso que também sinto. — E então, qual surpresa me aguarda no
deque?
Ele revira os olhos.
— Às vezes você é muito sem graça.
— Eu sei — brinco.
O homem ri de novo e começa a se virar, mas a insegurança logo toma
conta do seu rosto. O andador está a apenas trinta centímetros de distância,
mas parece estar a trinta metros. Ele me encara com um pedido silencioso.
Sem dizer nada, pego o andador e o coloco à sua frente. Sua respiração se
torna aliviada no mesmo instante.
— Obrigado — murmura, agarrando as laterais do metal.
— De nada.
Caminhamos lado a lado, sem qualquer pressa, mas o ritmo lento logo
parece irritar Artur. Fecho a mão sobre a sua e ele logo se acalma. Temos a
noite inteira, quero dizer, mas permaneço em silêncio. Franzo o cenho ao
chegarmos na cozinha.
— Cadê a Jacira?
Ele engole em seco.
— Dei folga a ela e ao Davi.
Um novo sorriso toma conta do meu rosto. Pela primeira vez desde que
cheguei, temos a mansão só para nós. Estar ciente desse fato me aquece por
inteira.
Preciso conter um grito quando chegamos ao deque. O lugar está
irreconhecível! Uma mesa de madeira cheia de comida foi instalada bem no
centro do espaço. Passo os olhos pelas fatias de carne, a massa com queijo
escorrendo e pela salada colorida. É tudo tão bonito e perfumado que dá até
pena de tocar.
Em volta de todo o ambiente, lanternas e pequenas luzes amareladas
como pisca-piscas nos envolvem em uma iluminação quente e acolhedora.
Rosas vermelhas se enroscam no guarda-corpo do deque como se
convidadas a participar do jantar.
Artur se aproxima de uma cadeira estofada e me convida a sentar. Ela foi
deixada afastada para facilitar, mas ainda assim vacilo. Preferia que ele se
sentasse primeiro, mas não quero desagradá-lo. Agradeço com uma leve
mesura e me sento, puxando a cadeira para perto da mesa. Observo
enquanto vai até o outro lado, pronta para me levantar e ajudar caso
necessário, mas ele se sai bem sozinho. Deixa-se cair sobre o assento com
um suspiro.
— Talvez Davi tenha razão — suspira. — Ainda não estou pronto.
— Claro que está. Posso ser sincera? — Ele confirma com a cabeça. —
Acho que você conseguiria caminhar tranquilamente sem o andador.
Os seus olhos se arregalam.
— Não!
— Sim! — enfatizo, levantando da cadeira que acabei de me sentar.
Caminho até ele e estendo a mão. — Vem, vou te provar.
Ele encara a mão antes de erguer os olhos em direção aos meus.
— Eu vou cair, Milena.
Aprumo os ombros, ofendida.
— Acha mesmo que vou te deixar cair?
Artur hesita, mas aceita o desafio. Agarra a minha mão com força.
Encaramo-nos e, sem precisar dizer qualquer palavra, eu o puxo enquanto
ele se impulsiona para cima. O homem se avoluma a minha frente, alto,
poderoso e imponente.
Dou um passo para trás, atenta aos seus movimentos ao mesmo tempo
em que o instigo a prosseguir. Ele me encara e mexe as pernas,
acompanhando o meu movimento. Sorrio, incentivando-o, e em poucos
passos estamos distantes da segurança da mesa. Subo a mão pelo seu braço
até alcançar a curva do seu cotovelo. Artur entende a deixa e envolve a
minha cintura. Sorrimos um para o outro e fingimos alguns passos de
dança. Ele ri, desajeitado, mas entra na brincadeira.
— Viu só? — comemoro. — Você já está até valsando!
— Estou, ah se estou — debocha. Aperto o seu braço.
— Está sim! Você que não quer assumir como é um ótimo dançarino.
Ele pisca.
— Não quero fazer inveja.
Caio na gargalhada, fazendo menção de soltar as nossas mãos. Artur me
impede. Por um momento penso que vai tropeçar, mas o seu movimento é
calculado. Seu braço forte me puxa contra si, tomando o meu corpo em um
abraço apertado. Arregalo os olhos quando ele afunda o nariz contra o meu
pescoço e respira fundo.
— Eu não aguento mais.
— O que? — pergunto baixinho.
— Esse fingimento. Esse maldito fingimento. — O movimento dos seus
lábios arrepia cada pelinho dos meus braços. — Me diga, Milena: só eu
estou sentindo?
Abraço-o de volta, me envolvendo no delicioso aroma do seu perfume
amadeirado. Artur aproxima ainda mais os nossos corpos, como se quisesse
provar o que sente por inteiro.
— Não — respondo a sua pergunta. — Eu também sinto, Artur.
Agarro as suas costas com força, impressionada com a firmeza dos seus
músculos. Ele relaxa, mas é incapaz de continuar. Adoraria dizer, palavra
por palavra, o que estou sentindo. O quanto estou atraída. O quanto o
desejo. O quanto o amo. Mas tenho medo de que, talvez, não seja a hora,
por mais que ele sinta exatamente o mesmo.
A barba curta desliza pela lateral do meu pescoço até que os seus lábios
se fecham sobre a parte de trás do meu maxilar. Ofego alto ao mínimo
contato com aquele ponto sensível. Artur impulsiona o quadril para frente
de forma automática, fazendo com que o seu pau duro roce contra a minha
barriga.
— Olha só o que você faz comigo — grunhe, voltando a me beijar. —
Eu não deveria estar aqui, louco de tesão pela minha enfermeira!
— Por que não? — questiono. Artur se afasta com brusquidão.
— Você sabe por que — diz, irritado. — Pode ter o homem que quiser,
Milena. Um cara descomplicado da sua idade, que não precise de um
andador para ficar de pé!
— Talvez eu possa — dou de ombros, indiferente. — Mas eu quero ter
você.
Não lhe dou tempo de retrucar. Ergo-me na ponta dos pés, envolvo o seu
pescoço com as mãos e lhe roubo um beijo.
Roubar talvez não seja a expressão correta, pois Artur o entrega sem
hesitar. Agarra a minha nuca e toma os meus lábios com ferocidade. Exige
passagem e dou-lhe sem pensar duas vezes, permitindo que me envolva
com o seu hálito quente ao mesmo tempo em que as nossas línguas se
entrelaçam. Meu Deus, como o homem beija bem! Artur é firme e decidido,
como se soubesse exatamente o que fazer para deixar uma mulher sem
fôlego.
Separamo-nos apenas para respirar. Uma mão continua segurando a parte
de trás da minha cabeça enquanto a outra desce em direção a bunda. Ele a
aperta, fazendo com que um gemido de prazer escape para dentro dos seus
lábios. Artur ofega alto e interrompe o beijo.
— Eu devia estar louco quando disse que você não tinha bunda.
Estico o pescoço para trás ao cair na gargalhada.
— Preciso admitir que não é das maiores — brinco. Ele faz que não.
— É perfeita — diz, beijando a minha testa com carinho. — Você é
perfeita.
Os pontinhos dourados dos seus olhos cintilam como vagalumes. Há
fogo ali, um incêndio castanho prestes a se tornar descontrolado. Mas há os
vagalumes. Tranquilos, voando de um lado para o outro, cheios de uma
palavrinha que é incapaz de pronunciar.
Sinto o seu pau pulsando contra o meu ventre. Amor e desejo, juntos e
misturados. Hoje Artur é capaz de me entregar apenas um deles, e estou
disposta a aceitá-lo.
— Vamos para o quarto — peço baixinho. Ele encosta a testa na minha.
— Você tem certeza?
— Tenho — ergo o rosto, obrigando-o a me encarar. — E você?
— Tenho — diz, sem hesitar.
Capítulo 22 – Artur

A decoração que eu, Davi e Jacira levamos a tarde inteira para arrumar
permanece no deque. O jantar cuidadosamente preparado pela cozinheira
esfria enquanto eu e Milena voltamos ao interior da casa. Ela me ampara
enquanto caminho com esforço. Gosto do seu incentivo, mas o
fisioterapeuta tem razão: ainda não estou pronto para seguir sozinho.
Preciso do andador, mas o ignoro. Naquele momento tenho Milena, então
não preciso de mais nada.
Paramos apenas ao chegarmos no elevador. Ela aperta o botão e
aguardamos a caixa metálica, mas é impossível esperar. Tomo Milena entre
os braços, ávido para unir as nossas bocas em um novo beijo. Ela vem a
mim sem qualquer resistência, entregando-se por completo.
Fecho os olhos, embriagado com o sabor doce da sua boca. Quase não
acreditei quando ela me beijou. Na realidade, acho que ainda não acredito.
O algo que vinha acontecendo entre nós enfim se confirmou: eu amo aquela
mulher. Acabei me apaixonando pela inocente enfermeira vinte anos mais
nova. Não sei se é certo. Recuso-me a pensar nas consequências. Quero
apenas Milena.
Esquecemo-nos do elevador, mas ainda assim entramos nele. Não faço
ideia de como caminhamos pelo corredor, só sei que em minutos estamos
dentro da suíte. As persianas abertas permitem que o brilho da lua cheia
penetre em cada canto dela, nos iluminando de forma acolhedora.
Milena olha para fora antes de me encarar. Por um instante esqueço de
respirar, arrebatado pela sua beleza. O vestido amarelo serviu com
perfeição, acentuando cada delicada curva do seu corpo. Torno a beijá-la,
desejando deitá-la com cuidado na cama, mas me atrapalho. Seus lábios
escapam dos meus conforme caímos como dois sacos de batatas sobre a
maciez do colchão.
— Desculpe — digo, tentando sair de cima do seu corpo. Sou muito
maior, não quero esmagá-la. Milena simplesmente gargalha alto e me
agarra, puxando-me para si.
— Está tudo bem — sussurra, tornando a me beijar.
Suas mãos deslizam pela barra da camisa, ansiosas para alcançar a pele
nua. Gemo alto quando seus dedos atravessam o tecido e me tocam. Milena
aperta de leve, contornando a musculatura do abdômen. Ajoelho-me ao seu
lado, por mais que anseie pelo contato. Preciso arrancar a camisa e permitir
que me toque por inteiro.
Seus olhos azuis cintilam conforme desabotoo botão por botão, até
permitir que o tecido deslize com suavidade pelos meus ombros.
Envaideço-me ao notar o desejo explícito em seu olhar conforme percorre
os músculos do meu peitoral até alcançar o pronunciado volume no centro
da minha bermuda.
— Quer que eu tire também? — pergunto, a voz completamente rouca.
Ela confirma com a cabeça. Sem deixar de encará-la, estendo a mão para o
cinto de couro, mas paro no meio do caminho. — Você nunca respondeu a
minha pergunta.
Ela franze o cenho.
— Qual pergunta?
— É virgem ou não?
Milena ri.
— Não acredito que você ainda está pensando nisso!
— Estou — confirmo, descendo o corpo em direção ao seu. Mãos ávidas
me agarram, deslizando através dos poucos pelos em meu peito. Forço-me a
ignorar o seu toque e manter a concentração. — Precisarei ir com mais
calma se você for virgem.
— Talvez soubesse a resposta se tivesse me escutado — debocha,
circulando um dos meus mamilos. Ela sorri quando solto um gemido. —
Não sou virgem e nem quero que você vá com calma, Artur — continua,
manhosa, mas sua voz se torna insegura. — Isso faz diferença para você?
Detesto ouvir aquela insegurança.
— Nenhuma — beijo a sua testa. — Só perguntei por que não quero te
machucar.
Ela sorri.
— Então pode ficar tranquilo. Perdi a virgindade aos dezessete anos com
um namoradinho da escola.
Ergo uma sobrancelha. Aquilo deveria me afetar? Não. O Artur de antes
nem ao menos escutaria. Já estaria com a calça arriada, dando e tomando
prazer como se a vida dependesse única e exclusivamente disso.
Mas o de agora precisa saber.
— E foi bom?
Sua risada torna a se espalhar pelo quarto.
— Depois eu que sou curiosa! — brinca, me empurrando de leve. Acabo
me juntando à sua risada. — Não, não foi. Ele nunca foi capaz de me fazer
chegar lá. Depois dele não tive mais ninguém. — Ela se torna pensativa. —
Sabe, as vezes acho que todos os orgasmos de revirar os olhos descritos
pelas mocinhas dos livros são pura mentira.
— Não sou adepto desse tipo de literatura — entro na brincadeira —,
mas vou provar que podem ser de verdade.
— Então prova — sorri, afundando os dedos em meus cabelos. Fecho os
olhos, deliciado. Adoro quando ela mexe nos meus cabelos daquela
maneira. Faz com que eu me sinta como um gato sendo acariciado pela sua
dona.
Obrigo-me a erguer o corpo, voltando a me ajoelhar. A prótese range
contra o colchão, o encaixe se afundando na pele da minha coxa. Ignoro o
desconforto. O prazer de estar ali com Milena é maior que qualquer dor.
Desafivelo o cinto, abro o botão e desço o zíper da bermuda. O tecido
desliza com facilidade pelo quadril. Milena acompanha o movimento, os
olhos se arregalando ao alcançar o contorno do meu membro sob a cueca
boxer. Encaixo os polegares na barra e começo a baixá-la.
Ela passa a pontinha da língua pelos lábios rosados assim que o meu pau
pula para fora. Imagino-a ali, contornando cada veia saltada do acentuado
comprimento, mas aquilo precisará esperar. Vou gozar em segundos se
Milena fizer a mínima menção de me chupar.
— Tire isso também — pede, descendo as mãos em direção às próteses.
Cubro os seus dedos com os meus e nego com a cabeça.
— Não. — Ela franze o cenho. — Por favor, Milena. Me deixe fazer
isso como um homem inteiro.
Seus olhos se enchem de compreensão, mas não de aprovação. Devagar,
aproxima o rosto do meu, as íris cintilantes de desejo. O meu peito se enche
de coragem, adorando aquela nova percepção. Por meses achei que
ninguém seria capaz de me olhar daquele jeito.
— Eu deixo — murmura, encostando os lábios nos meus.
É o que basta para tomar a sua boca com luxúria enquanto o meu corpo
cobre o seu por completo. Milena agarra os meus cabelos ao afundar sobre
a cama. Puxa-os com vontade, como se há muito tempo desejasse fazer
aquilo. Um prazeroso arrepio desce pela minha nuca, percorrendo toda a
coluna.
Delicio-me em seu beijo até ficar sem ar. Ofegante, observo o rosto
corado da mulher em meus braços. Seus cabelos dourados se espalham
como um leque pelo travesseiro. Sorrio para a visão. Ela parece uma
delicada princesa à mercê de uma perigosa fera.
Desço os lábios pelo seu pescoço e planto um beijo na curva graciosa,
encantado ao ver a pele se arrepiando ao mínimo toque. Afasto o decote do
vestido, deliciado ao notar que ela não vestiu um sutiã. E nem precisa. Dou
de cara com um seio empinado. Seus pulmões se enchem de ar quando
envolvo um mamilo rosado nos dentes. Mordisco de leve, o suficiente para
fazê-la soltar todo o ar. Adoraria passar a noite inteira ali, chupando os seus
bicos intumescidos.
A costura range quando tento afastar o tecido para tomar o outro mamilo
nos lábios. Milena segura a minha mão e se remexe, tentando se levantar.
— Jamais te perdoarei se rasgar esse vestido — declara, resoluta.
— Eu compro outro — digo, beijando o vale entre os seios. Ela geme
alto.
— Não quero que compre outro, quero que me ajude a tirar esse.
Sorrio contra a sua pele.
— Sem rasgar?
— Exato. Sem rasgar. Pode me ajudar? — pergunta, erguendo uma
sobrancelha. Assinto sem pensar duas vezes.
— Com todo o prazer — volto a me ajoelhar, dando-lhe espaço para que
faça o mesmo.
Sem deixar de me encarar, Milena desce o zíper lateral do vestido,
afrouxando o tecido amarelo em torno do tórax. Prendo a respiração
conforme permite que as mangas caiam pelos ombros, expondo os seios.
Ela se ergue o suficiente para passar o vestido pelo quadril, deslizando-o
pelas pernas esguias sem qualquer dificuldade.
Um sorriso toma conta dos meus lábios ao notar a diminuta calcinha
molhada cobrindo a sua genitália. Está mais do que comprovado o quanto o
seu desejo é latente, mas jamais imaginei que voltaria a ser capaz de
encharcar a calcinha de uma mulher.
— Você é perfeita — murmuro, ciente de que aquela não é a primeira, e
nem será a última vez que lhe direi isso. Milena agarra o meu rosto,
puxando todo o meu corpo para si.
— Você também é — murmura de volta. — Eu não consigo mais
esperar.
Solto um longo suspiro de prazer.
— Eu também não.
Estico-me sobre a cama até alcançar a mesinha de cabeceira. Por sorte há
três ou quatro pacotes de preservativos esquecidos no fundo da primeira
gaveta. Deslizo o látex por todo o comprimento do meu pau e volto a cobrir
o corpo de Milena.
Não resisto a tornar a chupar os seus seios, circulando as aréolas com a
ponta da língua antes de sugar os mamilos. Ela geme de leve, mas sigo o
meu caminho, descendo pela barriga plana. Sorrio quando os meus lábios
roçam nos quase imperceptíveis fios dourados, finos como a penugem de
um pêssego. Desço a língua por entre eles e lhe arranco um suspiro ao
circular o seu umbigo.
Finalmente chego em sua virilha. Ergo os olhos em direção aos seus.
Milena me encara de volta, cheia de expectativa.
— Eu vou te dar prazer com toda a atenção que você merece — digo,
puxando a sua calcinha com ligeira brusquidão. As tramas de algodão se
rompem, mas Milena não reclama. Apenas geme alto quando deslizo a
língua pela sua feminilidade até alcançar o clitóris inchado de tesão.
A enfermeira se contorce enquanto ele pulsa ao menor contato. Afogo-
me em sua umidade, inebriado com o seu cheiro delicioso antes de assoprar
a pele aquecida. Milena de contorce de novo, necessitada. Eu também
estou. Sem mais delongas envolvo o pequeno órgão com os lábios e chupo
com força.
Ela geme ao arquear as costas. Firmo minhas mãos nas laterais dos seus
quadris, tentando mantê-la no lugar ao continuar a sugar. Passei tanto tempo
preso em mim mesmo que quase me esqueci do doce sabor de uma boceta.
O meu aperto é firme, mas não o suficiente para impedir Milena de
rebolar. Seu ventre sobe e desce conforme geme. Uma fina camada de suor
começa a cobrir a sua pele. Nua, com as mãos agarradas aos lençóis, a
enfermeira é uma visão gloriosa sob a luz do luar.
Círculo o seu clitóris com a língua, fazendo-a arquejar antes de
abocanhar a sua boceta. Seus gemidos se tornam mais pronunciados. Sei
que ela está quase lá. O orgasmo promete vir com tudo, afundando-se entre
os meus lábios, esperando o momento em que a mulher irá se desmanchar.
E ele vem. Milena grita enquanto as coxas estremecem ao lado do meu
rosto. Seu quadril se mexe, descontrolado, o orgasmo percorrendo cada
terminação nervosa do seu corpo. Libero-a do meu aperto apenas para
poder ver sua alma se envolvendo em prazer.
Rio baixinho conforme volto a cobrir o seu corpo com o meu, tomando
cuidado para que as próteses não machuquem as suas pernas. Apoio-me nos
cotovelos e beijo os seus lábios, transferindo o seu gosto para a sua boca.
Ela responde com avidez. Sorrio contra os seus lábios.
— Nos seus livros é assim? — pergunto, a ponta do meu pau roçando na
sua entrada.
Ela ri.
— Confesso que está sendo muito melhor.
Um arrepio de prazer percorre todo o meu corpo conforme encaixo-me
melhor e começo a penetrá-la. O membro invade as suas dobras centímetro
a centímetro, até estar completamente envolvido entre as paredes apertadas
da sua boceta.
Gememos em uníssono. Afundo o meu rosto em seus cabelos. Seis
meses. Mais de seis longos meses sem uma mulher. Estar dentro de Milena
é como uma primeira vez, mas muito melhor.
— Tudo bem? — murmuro em seu ouvido. Ela assente, agarrando as
minhas costas. Começo a me movimentar devagar, tentando me controlar.
Meu instinto pede que eu foda forte e rápido como um animal selvagem,
mas resisto. Sou grande demais para Milena. Não quero machucá-la.
A enfermeira afunda o rosto contra o meu pescoço. Geme baixinho em
meu ouvido conforme o meu quadril se choca contra a sua feminilidade. O
som se intensifica conforme vou mais fundo, até a base, gerando uma
fricção deliciosa em nossas virilhas.
De repente Milena passa a se movimentar. É a deixa para que eu meta
um pouco mais forte. Ela acompanha o meu ritmo, nossos corpos
encaixados com perfeição. Seus gemidos preenchem os meus ouvidos como
a mais bela sinfonia. Ajusto-me sobre os cotovelos e abraço o seu corpo,
misturando o nosso suor. Milena me agarra de volta, uma mão em minhas
costas, a outra afundada nos fios dos meus cabelos.
Perco-me no corpo de Milena. Saio quase por completo apenas para
tornar a me afundar. Seu gemido aumenta e o peito arfa contra o meu, o
atrito dos mamilos endurecidos arrepiando a pele. Roço um deles com a
ponta do polegar enquanto meto fundo. Ela grita, me agarrando ainda mais
forte.
Sua boceta aperta o meu pai com ainda mais força. Milena grita quando
o segundo orgasmo vem, todo o seu corpo estremecendo como se levasse
um choque.
Ergo o rosto, ansioso para vê-la gozar. Seus olhos encontram os meus
antes de se revirarem nas órbitas. Ela agarra os meus cabelos com mais
força e não resisto em beijar os seus lábios abertos em prazer. Milena
envolve a língua na minha e retribui antes de se desmanchar por completo.
O meu gozo vem. Meto uma última vez ao tomar a sua boca com avidez,
o pau pulsando dentro da sua boceta. Desabo sobre o seu corpo, ofegante e
satisfeito. Milena beija a lateral do meu rosto e me abraça.
— Obrigada.
— Pelo que? — sussurro.
— Por ser o primeiro a me fazer gozar desse jeito.
Rio contra os seus cabelos. Ah, quando foi que imaginei que me tornaria
completamente rendido pela minha enfermeira?
Capítulo 23 – Milena

Após transarmos, eu e Artur descemos ao deque e nos empanturramos


com a comida preparada por Jacira. Estava fria, mas deliciosa. Nossa
conversa fluiu como as ondas, as risadas reverberando pela noite com
tamanha leveza que pareciam fazer parte da brisa do mar. Subimos uma
hora depois satisfeitos, mas ainda famintos. Artur me tomou de novo antes
que nos enroscássemos um contra o outro e caíssemos no sono.
Não sei quanto tempo se passou quando abro os olhos. Encaro a
paisagem além das paredes de vidro. Não amanheceu, e ainda vai demorar
um pouco para amanhecer. A maior parte do céu está tingida de um
profundo tom de azul salpicado com as últimas estrelas da noite. Ele
começa a clarear lá no fundo, na linha do horizonte, em um tom só um
pouquinho mais claro que o restante do firmamento. É lindo de tantas
maneiras que não consigo descrever.
Assim como a sensação de acordar envolva em um forte abraço protetor.
Sorrio para mim mesma e me viro com cuidado, sem querer acordar o
homem deitado ao meu lado. Artur ressoa baixinho, entregue a completa
tranquilidade. Afasto uma mexa de cabelo do seu rosto e confirmo: estou
apaixonada por Artur Milano.
Desde quando? Acho que desde o momento em que o vi saindo furioso
do elevador em nosso primeiro encontro, quando os seus bonitos olhos de
fera indomada se fixaram nos meus. Eu sabia que estava perdida, fosse para
o bem ou para o mal. Fico feliz que tenha sido para o bem.
O leão agora ronrona como um gatinho. Beijo a sua testa e me levanto.
Visto o roupão e caminho em direção ao banheiro da suíte, a bexiga
clamando por alívio. Ao voltar, reparo na bunda bonita aparecendo por
debaixo dos cobertores. Estou resistindo a tentação de apertá-la com gosto
quando vejo que suas coxas ainda estão conectadas as próteses.
Deslizo a ponta dos dedos pela pele, sentindo-a um pouco inchada.
Forço o tecido firme do liner para baixo e a vermelhidão na coxa confirma:
a movimentação da noite machucou a sua perna. Balanço a cabeça de um
lado para o outro e desconecto a prótese.
Coloco-a ao lado da cama e avalio a pele do coto. Aparentemente não é
nada grave, apenas um vermelhidão causado pelo uso prolongado. Tiro a
outra prótese e massageio a região de leve.
— Você realmente não sente nojo. — Uma voz grave sussurra. Ergo os
olhos para Artur. Ele me encara com tremenda seriedade. Sem deixar de
encará-lo, abaixo o corpo em direção a sua perna.
— Por que eu teria nojo de você? — questiono, beijando a ponta do coto.
Todos os pelos da sua coxa se arrepiam, mas ele não diz nada. Devagar,
subo na cama e continuo distribuindo beijos. Na lateral do seu quadril.
Sobre um mamilo arrepiado. No canto da sua boca. A respiração de Artur se
torna mais ruidosa. Esfrego o meu nariz contra o seu. — Queria tanto que
você pudesse se enxergar como eu te enxergo — murmuro, passando um
joelho por cima do seu corpo.
Sinto-o estremecer conforme desço o quadril devagar, até sentar sobre o
seu membro ereto. Ele automaticamente impulsiona o quadril, roçando toda
a sua extensão pela minha boceta.
— E como você me enxerga? — geme. Abro a faixa do roupão.
— Nesse exato momento? — começo a dizer, rebolando de leve. Ele
geme mais alto enquanto sinto toda a minha umidade banhando o seu pau.
Remexo os ombros, permitindo que o cetim deslize por eles e caia à nossa
volta. — Como um homem tremendamente lindo que vai me deixar
cavalgar com força.
— Ah, Milena — arfa em desespero. Apoio as mãos contra o seu peito e
ele me agarra, tomando a minha boca contra a sua. Beijo-o com avidez, até
ficarmos sem ar. Ele desliza as mãos pelos meus seios, apertando-os sem
qualquer delicadeza. Sua voz sai rouca. — Eu imploro: faça isso.
Rio contra os seus lábios. Minha vontade é sentar em sua rigidez sem
qualquer barreira, sentindo pele contra pele, mas não tomo
anticoncepcional. Precisamos do preservativo.
— Ainda temos camisinhas? — pergunto. Ele faz que sim.
— Encontrei mais algumas na segunda gaveta.
— Uau, você fazia grande uso delas — brinco, esticando-me para pegar
uma. Ele ri.
— Nem ao menos sei se estão na validade.
Pego uma embalagem prateada e confirmo. Estão, sim.
Volto a me posicionar entre as pernas de Artur. Começo a abrir a
embalagem, mas há outra coisa que desejo fazer antes de vesti-lo com a
proteção.
Agarro o seu pau, impressionada com a maciez aveludada em torno do
membro intumescido, e deslizo a língua por uma veia saltada até fechar os
lábios sobre a cabeça. Ele se remexe e geme alto. Olho para cima.
— Você não gosta disso? — pergunto. Artur nega com a cabeça. —
Então qual é o problema?
— O problema é que eu vou gozar fundo na sua garganta se fizer isso de
novo — ofega.
— Uau, não pensei que pudesse ser tão sensível.
— Só quando se trata de você — admite.
Para provocar, beijo a pontinha da glande encharcada e desenrolo a
camisinha sobre o membro rijo. Artur solta pequenos gemidos durante todo
o processo. Daquele jeito até parece que não vai aguentar três sentadas, mas
não me importo. Ele me deu orgasmos suficientes por uma noite, estou mais
do que satisfeita. Estarei no lucro se, por acaso, ele me der mais um.
Volto a posicionar os joelhos ao lado dos seus quadris. Desço o corpo até
estar próxima o suficiente para que a cabeça do seu pau se encaixe na
minha entrada. Artur me observa com expectativa, permitindo que eu dite o
ritmo. Subo as mãos pelo seu abdômen trincado até alcançar o peitoral.
— Você se permite fazer isso como um homem inteiro?
Artur arregala os olhos, mas algo poderoso cintila nas íris escuras
tomadas de nova percepção. Ele assente e, sem mais delongas, me sento
sobre o seu quadril. Gememos alto quando o seu pau invade as minhas
dobras, alarga as minhas paredes e me preenche por completo.
Rebolo de leve, ainda me acostumando com todo o seu tamanho, quando
Artur agarra o meu corpo. Impulsiona forte para cima ao mesmo tempo em
que toma um dos meus seios na boca, chupando o mamilo com tamanha
vontade que me faz gritar.
Volto a rebolar, em uma tentativa de tomar o controle, mas ele há muito
foi perdido. Não tenho qualquer controle quando se trata de Artur Milano, e
ele não tem qualquer controle quando se trata de mim.
Uma das suas mãos agarra a minha bunda, juntando os nossos corpos
ainda mais, metendo com uma força desenfreada ao dividir a atenção entre
os meus seios. Beija um, agarra o outro, a mão grande e pesada espremendo
o delicado mamilo entre os dedos enquanto os lábios sugam com vontade.
Agarro os seus cabelos com tamanha força que sinto parte dos fios se
soltando, mas ele não parece se importar. Preciso mantê-lo ali, chupando o
meu seio como se a sua vida dependesse disso. Ele corresponde. Circula a
aréola com a ponta da língua antes de mordiscar o mamilo, metendo ainda
mais fundo dentro de mim. Grito alto, agradecida por não haver ninguém na
mansão e morarmos na parte mais isolada da ilha.
Consigo retomar o controle ao rebolar firme contra a sua virilha. Firmo
os joelhos e pressiono o seu corpo para baixo, mas ele volta a me dominar
ao pressionar a minha bunda com mais força. Um dedo me invade sem
qualquer aviso, os movimentos de vai e vem proporcionando um prazer
jamais imaginado.
O orgasmo que se avolumava me toma por completo. Torno a gritar
quando Artur mete com força na minha boceta e na zona proibida de forma
sincronizada. O meu corpo inteiro estremece como nunca. Desabo como
uma boneca de trapos contra o seu peito, sem qualquer energia para
continuar a cavalgar.
É o que Artur precisa para tomar todo o controle. Seus braços fortes me
envolvem, pressionando o meu corpo em direção ao seu, transformando-nos
em um só. Ele mete uma última vez e grita, a voz grave tomando todo o
quarto em um urro descontrolado antes de também desabar em um intenso
orgasmo.
Devolvo o abraço. Aos poucos sinto-o diminuindo dentro de mim, mas
permaneço como estou. O agarre de Artur afrouxa. Seus dedos deslizam
pelas minhas costas, acariciando a pele com tamanha leveza que parecem
transformados em plumas.
— Acho que deixei marcas nos seus seios — sussurra, descendo a mão
para um deles. Arrepio-me de leve.
— Tudo bem — digo, me acomodando sobre o seu peito. Ele volta a me
abraçar, plantando um beijo sobre os meus cabelos antes de um longo
suspiro percorrer os fios.
— Jamais pensei que fosse voltar a sentir isso, minha bela Milena.
Ergo os olhos para ele, surpresa, mas não chocada. Seu rosto está tomado
por um pequeno sorriso, o semblante na mais completa paz.
— Isso o que? — pergunto. Ele respira fundo uma, duas, três vezes, mas
é incapaz de prosseguir. Limita-se a me abraçar mais forte.
— Isso — diz, simplesmente.
Sorrio contra o seu peito. Não sei qual nome podemos dar a isso, mas
isso é bom. Muito bom.
Capítulo 24 – Artur

Passamos o final de semana inteiro dentro do quarto. Saímos apenas para


ir até a cozinha, comer qualquer coisa e tornar a subir o mais rápido
possível. Pelo menos até decidirmos levar a comida até o quarto.
Voltamos a descer apenas na segunda-feira. A comida acabou e, depois
de uma maratona frenética de sexo, precisamos repor as energias com uma
refeição de verdade.
Observo Milena vasculhando a geladeira, mas mesmo a distância
consigo ver que ela está vazia. Acabou de amanhecer. Ainda levarão
algumas horas para Salomão entregar as provisões da semana.
Pouco me importo. Desde sexta-feira à noite a minha fome é satisfeita
apenas por uma mulher. Milena se estica, tentando pegar algo no fundo do
eletrodoméstico, fazendo com que a barra do vestido suba alguns
centímetros e exiba a pele das suas coxas. O meu pau torna a se agitar. Nem
parece que, há menos de meia hora, eu estava entre as suas pernas, metendo
forte em sua boceta enquanto ela se contorcia em um novo orgasmo.
Milena fez muito mais que compartilhar algumas noites de prazer. Ela
me deu confiança. Fez com que eu me sentisse desejável de novo. Iniciou o
processo de juntar os cacos do meu coração partido, mostrando que é
possível tornar a amar.
Não sou idiota. Sei muito bem o que estou sentindo pela jovem
enfermeira. Que esse final de semana não foi um mero desejo carnal
satisfeito em pouco mais de quarenta e oito horas de sexo. Foi amor. Só não
estou pronto para falar em voz alta. Ainda não.
Isso não me impede de me aproximar com a cadeira de rodas apenas
para admirar o seu corpo esguio coberto pelo vestidinho amarelo.
— O que você está procurando?
Milena dá de ombros.
— Pensei em fazer uma omelete, mas acho que o queijo acabou —
responde, concentrada em sua busca. — Posso tentar substituir por outro
ingrediente se não encontrar e... ARTUR! Não acredito que você está
mordendo a minha bunda!
Ela olha por sobre o ombro, mas ignoro. Aperto os seus quadris entre as
mãos e mordo de novo.
— Eu já disse o quanto a sua bunda é gostosa? — pergunto. Ela ri.
— Já, mas isso não te dá o direito de mordê-la!
— Dá sim — retruco, lembrando da quantidade de marcas aparentes em
seu corpo.
Depois de tanto tempo sem sexo, não resisti a sugar os bicos endurecidos
dos seus seios até que a pele em torno ficasse sensível. Calculei mal uma
mordida, deixando uma marca avermelhada ao lado de um deles.
Não sai ileso. Além das pernas machucadas pelo uso prolongado das
próteses, meus ombros e costas estão com arranhões de ponta a ponta. Sem
contar a quantidade de fios de cabelo arrancados. Milena gosta de acariciá-
los tanto quanto gosta de puxá-los. Adoro quando faz ambas as coisas.
— Não dá, não — insiste, tentando se desvencilhar.
— Dá sim — insisto com veemência, subindo os dedos pela sua coxa. A
barra do vestido acompanha o movimento, exibindo a pele nua. Alcanço a
lateral do seu quadril e espalmo a mão contra uma nádega, apertando com
força. — Desde sexta-feira essa bunda é única e exclusivamente minha, está
entendendo?
— Temos um homem ciumento e possessivo aqui — brinca. Aperto com
mais força, fazendo com que ofegue alto.
— Temos.
Uma onda da mais pungente raiva ameaça tomar o meu corpo a mera
ideia de alguém se aproximando de Milena. Invado a sua calcinha e deslizo
a mão até alcançar o meio das suas pernas. O meu pau torna a pulsar dentro
da bermuda ao constatar que já está encharcada. Milena volta a gemer.
— Pode ficar tranquilo — consegue dizer, rebolando sobre os meus
dedos. Aperto o seu clitóris, fazendo com que gema mais alto. — Não tenho
motivos para oferecer a minha bunda a mais ninguém.
— Fico feliz em saber disso — insiro o indicador dentro dela.
Todo o seu corpo se contorce, buscando alívio, mas decido que não vou
dar. Pelo menos, ainda não. Puxo-a contra mim, fazendo com que caia
sentada sobre o meu colo. Gememos em uníssono enquanto a cadeira de
rodas range devido ao peso. Nenhum de nós escuta. Milena rebola, apenas
para provocar, fazendo com que o meu pau semirrígido endureça por
completo. Impulsiono o quadril para cima de forma automática, cheio de
vontade de meter dentro dela.
A enfermeira rebola de novo e agarra o meu rosto, tomando os meus
lábios nos seus. Enrolo as mechas douradas entre os dedos antes de segurar
a sua nuca, retribuindo o beijo faminto, já esquecido de qualquer coisa que
desejasse preparar para o café da manhã. Tudo o que eu quero é, mais uma
vez, provar o doce sabor da Milena.
Deslizo a outra mão por debaixo dos nossos corpos. Quero puxar o meu
pau e fodê-la ali, no meio da cozinha, fazendo com que os seus gemidos
reverberem por toda a mansão de vidro. Consigo abaixar o zíper e agarrar o
membro intumescido justo no momento em que uma chave é colocada na
porta. Milena interrompe o beijo no mesmo instante.
— Nos esquecemos da Jacira! — diz, assustada. Leva um tempo até que
a névoa de tesão se dissipe, clareando a minha visão. A enfermeira pula
para fora do meu colo e encara o meu pau. — Guarde isso!
Olho para baixo, enfiando o pênis de volta ao seu devido lugar dentro da
cueca boxer segundos antes da cozinheira abrir a porta. Subo o zíper e aliso
a frente da roupa. Os cabelos de Milena estão em completo desalinho, a saia
rodada do vestido amarrotada em tantos pontos diferentes que apenas um
potente ferro de passar roupa será capaz de desamassar. Apenas uma pessoa
muito distraída seria incapaz de adivinhar o que fazíamos.
E Jacira não percebe. Entra na cozinha de cabeça baixa, notando a nossa
presença segundos depois. Pisca, como se estivesse surpresa de nos ver ali.
Murmura um desanimado “bom dia” e se põe a trabalhar. Eu e Milena
trocamos olhares intrigados.
— Aconteceu alguma coisa? — Ela pergunta, aproximando-se da
mulher. Acaricia o seu antebraço, incentivando-a a contar, mas Jacira faz
que não.
— Diga! — O pedido acaba saindo em tom de comando, fazendo com
que a pobre cozinheira se encolha. Remexo-me sobre a cadeira. —
Desculpe, não queria ter soado tão brusco — acrescento, me aproximando.
— Se aconteceu alguma coisa, saiba que estou aqui para ajudar.
Jacira me encara, ainda em dúvida. Davi irrompe porta adentro como um
furacão. Encara eu e Milena com os olhos arregalados, mas não surpresos.
Um sorriso sacana domina o seu rosto.
— Ah, eu sabia! Vocês passaram o final de semana inteiro fodendo feito
coelhos! — Só então se dá conta da presença da cozinheira. — Oh, Dona
Jacira! Desculpe, não vi que a senhora estava aí!
— Eu já falei para você ter respeito! — ralho, pensando nas mulheres,
mas elas não parecem se importar. Milena está mais preocupada com a
senhora.
— Está tudo bem — murmura, tornando a acariciar o seu antebraço.
Jacira morde os lábios e decide falar.
— Achamos que a esposa do meu neto está entrando em trabalho de
parto.
Todos nós sorrimos de orelha a orelha.
— Que ótimo! — digo, realmente feliz. A cozinheira balança a cabeça
de um lado para o outro.
— A gravidez é de risco. Ela fez todo o acompanhamento no continente,
mas não tem condições financeiras de ir para lá — murmura, envergonhada.
— A parteira teme que ela, e o bebê, sofram algum tipo de complicação se
ficarem aqui.
Franzo o cenho, sem entender.
— E não há um hospital capaz de atendê-la aqui? — Milena e Davi se
entreolham. Volto a minha atenção aos dois. — Qual é o problema?
É Davi quem toma a palavra.
— O problema é que a ilha não tem nem um posto de saúde, Artur.
Quanto mais um hospital.
A notícia me pega de surpresa. Com assim? A ilha precisa ter, no
mínimo, uma clínica médica!
— Não seja ridículo — rebato. — Não é possível que...
— É possível sim! — Ele me corta. — E talvez você soubesse disso se já
tivesse ido à vila.
— Ei, eu já fui até lá!
— E posso saber quando? — coloca as duas mãos na cintura,
questionador.
Tento puxar uma data, mas o meu cérebro falha. Devo ter ido uma ou
duas vezes apenas para jantar em um dos restaurantes da região.
Mesmo antes do acidente eu me limitava a chegar de helicóptero,
caminhar pela trilha das rosas e me enfiar na mansão. Saia para tomar
banho de mar e só. Nunca me integrei ao que acontece na vila e no restante
da ilha. Cuidava no meu canto, metia-me apenas com a minha própria vida,
sem me importar com qualquer coisa ao redor.
O meu rosto é tomado pela vergonha. Ignoro Davi e olho para Milena.
— Ele está falando a verdade?
— Está, sim — confirma.
O meu queixo cai. É função do poder público cuidar da saúde dos
habitantes da ilha, mas como dono de uma das mais poderosas empresas do
setor médico do Brasil, acho inadmissível que a atual situação seja aquela.
Ainda estou tentando acreditar quando as fortes hélices do helicóptero da
VitalCare preenchem a cozinha. Olho para cima, como se conseguisse ver a
aeronave pousando através do concreto.
— Eu vou mudar isso — digo para mim mesmo —, mas antes
precisamos resolver a situação da moça — viro-me para Jacira. — Ligue
para ela. Peça que, de alguma forma, a tragam até aqui. Não importa como.
Quero-a dentro desse helicóptero o mais rápido possível.
Jacira leva as duas mãos ao peito.
— Vai levá-la para onde?
— Para a maternidade da VitalCare em São Paulo. — Ela arregala os
olhos. É a minha vez de tocar em seu antebraço. — Pode ficar tranquila —
sorrio. — Eu vou pagar tudo.
— Ah, Sr. Milano! — diz, abraçando-me com força.
É um abraço tão rápido que, por um instante, duvido que tenha existido.
Jacira logo pega o celular e faz a ligação, pedindo que alguém leve a jovem
com urgência até a mansão de vidro. Nesse meio tempo, Salomão aparece
com as provisões da semana. Basta um rápido olhar para descobrir que será
convocado para uma importante missão. Explico a situação e ele assente,
ansioso para ajudar.
Em minutos o vento criado pelas hélices chacoalha a copa das árvores.
Da porta da mansão, vemos a aeronave se erguendo sob o céu azul,
rumando em direção a cidade grande. A jovem foi examinada pela
enfermeira assim que chegou à mansão, recebendo o aval para seguir
viagem acompanhada da mãe. Ainda assim Milena parece nervosa ao
segurar a minha mão.
— Acha que vai dar tempo? — pergunta, preocupada. Devolvo o seu
aperto e confirmo com um movimento firme da cabeça.
— Vai, sim. As condições meteorológicas estão ótimas e Salomão é um
excelente piloto. Chegará em São Paulo em um piscar de olhos.
— Que bom — sorri, levando a mão livre ao coração. Solta o ar em um
longo suspiro. — Acho que só vou relaxar quando ele chegar lá.
— Eu também — murmuro. Enfio a mão no bolso da bermuda, mas o
meu celular não está lá. — Você viu o meu Iphone?
— Acho que ficou no seu quarto — franze o cenho. — Por quê?
— Porque eu preciso convocar uma reunião urgente na VitalCare
Medical Services.
Capítulo 25 – Milena

Observo enquanto Artur termina de ajustar a gravata em torno do


pescoço. Sua expressão é determinada, mas não evita que os dedos tremam
de leve. Em meses é a primeira vez que o magnata fará uma aparição na
empresa fundada pelo pai. Não é de se admirar que esteja tão nervoso.
Adianto-me em ajudá-lo. Seguro a seda entre os dedos, puxo o nó até estar
firme o suficiente e ajeito a gola da camisa branca.
— Você está lindo! — sorrio, olhando-o de cima a baixo. Ele acompanha
o meu movimento, parando nas pernas vestidas com a bermuda de linho
cru.
— Acho que não preciso vestir o terno completo.
— Só se você quiser — digo, apontando a calça com o queixo. — Só vai
aparecer da cintura para cima, não é?
Artur confirma, estendendo a mão para pegar o paletó jogado sobre a
cama. Começa a vesti-lo, mas o forro do tecido se enrosca nas manoplas da
cadeira de rodas. Ajudo-o mais uma vez. Ele se ajeita e volta a me encarar.
A minha boceta se contrai de tanto desejo. Artur está um tesão vestido
com um paletó cinza escuro, uma camisa social branca e uma fina gravata
de seda. Por um instante o imagino caminhando a passos largos pelos
corredores da empresa que comandou, desferindo ordens com seu vozeirão
grave e arruinando calcinhas pelo caminho.
Um sorrisinho sacana desponta no canto dos seus lábios.
— Posso saber o que a senhorita está pensando?
— Não — digo, beijando o topo da sua cabeça. — Vamos para o
escritório?
— Só se você me contar o que está pensando.
Aproximo os lábios do seu ouvido.
— Te conto mais tarde — sussurro.
Os pelinhos da sua nuca se arrepiam.
— A forma como você me deixa louco é diferente — sussurra de volta.
Mordo o lóbulo da sua orelha e me afasto, fazendo com que solte um
gemido.
— Que bom. Você exigiu que eu fosse sua, então exijo que seja meu.
— Incluindo a minha sanidade.
— Incluindo ela — pisco, reparando no pronunciado volume abaixo da
sua cintura. Ele acompanha o meu olhar.
— Se o assunto não fosse tão sério — comenta, erguendo as íris
castanhas. — Eu pediria que você se escondesse embaixo da mesa e me
chupasse durante toda a reunião.
Caio na gargalhada.
— Você é muito safado, sabia?
— Sabia — confirma, orgulhoso. — Vamos? Não quero me atrasar.
— Vamos — digo.
Apesar da largura da cadeira de rodas, seguimos lado a lado em direção
ao escritório. Davi ficou furioso quando soube que o patrão não tirou as
próteses para dormir. Após um sermão de meia hora, disse que seria melhor
evitá-las por dois ou três dias, para dar tempo da pele se recuperar. Foi com
certa alegria que vi a decepção nos olhos de Artur. Se antes ele estava
conformado em permanecer sentado na cadeira, agora se mostra ansioso
para se erguer dela.
O escritório ainda não foi reformado e os indícios da fúria de Artur
continuam presentes. As paredes precisam de uma demão de tinta, a estante
está desprovida de enfeites, uma das quinas da mesa rachou ao ser jogada
no chão. Pelo menos as janelas voltaram a ser abertas, permitindo que o
denso ar pesado fosse renovado.
Artur ignora tudo isso e impulsiona as rodas até a cadeira estilo
presidente posicionada atrás da mesa. Olha para ela por um segundo, ciente
de que pode simplesmente empurrá-la para o lado e continuar sentado onde
está. Abro a boca, pronta para pedir que ele não faça isso. A cadeira de
rodas pode fazer parte de si, mas ele não precisa fazer parte dela.
Ele toma a decisão por conta própria. Em um movimento ágil, migra de
uma cadeira para a outra, ajeitando-se sobre o confortável assento de couro.
Ergue a tela do notebook recém comprado e digita a senha, entrando no
sistema da empresa. Um pequeno cronômetro indica que a reunião
começará em cinco minutos. Respira fundo e me encara.
— Me avise se tiver qualquer novidade — pede. Assinto em
concordância.
Salomão mandou uma mensagem avisando que chegou em São Paulo em
tempo recorde, pousando o helicóptero na maternidade. A futura mãe foi
encaminhada às pressas. A última atualização recebida por Jacira informava
que a bolsa havia estourado, mas a jovem passaria por uma cesárea. O bebê
estava em uma posição desfavorável para o parto normal, aumentando os
riscos de ambos.
De repente sinto uma vontade imensa de perguntar se Artur tem vontade
de construir uma família. Algo me diz que ele seria um ótimo pai. Do tipo
babão, capaz de se derreter por inteiro ao menor grunhido fofo de um bebê.
Começo a ovular só de imaginar uma trouxinha enrolada entre os seus
braços imensos. Ele franze o cenho.
— Está tudo bem? — pergunta. — Você ficou vermelha de repente.
— Está sim — confirmo, pousando um demorado beijo sobre os seus
cabelos. Sinto quando todo o seu corpo relaxa. — Boa sorte, Artur.
Ele ergue o rosto. O carinho é insuficiente, ele precisa dos meus lábios.
Toma-os com vontade antes de responder:
— Obrigado, Milena.
Sorrio e me afasto, contente em vê-lo aprumando o corpo instantes antes
da reunião começar. Assim que uma espantada Ágata confirmou o horário,
perguntei se ele gostaria que eu o acompanhasse. Ele pensou por alguns
instantes, mas disse que não. Era algo que ele precisava fazer sozinho.
Concordei, orgulhosa da sua atitude.
Escuto a sua voz escapando através da madeira da porta quando
cumprimenta os demais participantes da reunião. Eles começam a
comemorar o seu retorno, mas Artur é firme em cortá-los. Há pouco a se
comemorar quando uma localidade do tamanho da Ilha das Rosas não
possui uma miséria clínica médica para tratar os seus pacientes. Não houve
tempo para formular um plano mais elaborado, mas a ideia do magnata é
clara: dar um jeito de levar serviços médicos de qualidade onde mais se
precisa.
Deixo-o trabalhando, pego um novo livro na biblioteca e sigo até o andar
de baixo. Jacira cantarola na cozinha, aliviada após saber que a esposa do
seu neto está sendo bem assistida em uma maternidade da melhor
qualidade. Davi passou a manhã limpando as próteses, mas depois saiu.
Sento-me na confortável poltrona estofada do deque. Duas ou três
gaivotas grasnam metros acima. O som é sobreposto por um irado conjunto
de berros. Alguém não concorda com o plano de Artur. Sorrio para mim
mesma. Gostaria que o assunto fosse tratado com tranquilidade, mas gosto
de ver que o magnata ainda sabe ser quem é.
Relanceio os olhos em direção ao ponto em que valsamos colados um no
outro há apenas três dias. É impressionante como toda uma vida parece ter
se desenvolvido em tão pouco tempo. Há quase dois meses chegava na Ilha
das Rosas ansiosa para ir embora. Agora tudo o que mais quero é ficar.
Folheio as páginas e começo a ler. O primeiro capítulo não me fisga de
cara, mas a história parece ser do tipo que se desenvolve com calma. Sigo
lendo, pouco a pouco me deixando levar pelo enredo. O sedutor vampiro
está prestes a beijar a mocinha quando sinto a presença de Artur. Ergo o
rosto e o meu queixo cai na mesma hora.
— O que aconteceu? — pergunto. O homem solta um longo suspiro.
Parece muito, mas muito cansado.
— Tinha me esquecido como o conselho é cabeça-dura.
— Aprenderam com o melhor — tento soar divertida. Artur revira os
olhos.
— Pois é. Apenas Ágata e mais duas pessoas aprovaram a ideia — estufa
o peito, orgulhoso da atitude da irmã. — Todos os outros reclamaram.
Encolho os ombros, todo o divertimento desaparecido.
— Sinto muito.
— Não sinta. No fundo eu já esperava por isso. — O seu olhar se torna
decidido de um instante para o outro. — Mas foi bom voltar, Milena. A
gestão se tornou frouxa na minha ausência. Irei colocá-la nos trilhos. — Um
sorriso maligno toma conta do seu rosto. — Estão com medo. Sabem que
vou ter o que quero.
— Que bom — aprovo, começando a desfazer o nó da sua gravata. — O
que você quer vai ajudar muita gente, Artur.
— Vai sim — um suspiro escapa dos seus lábios. — Só não esperava me
sentir tão cansado. Acho que estou ficando velho — ri, sem qualquer
humor.
— Vamos tomar um banho de mar para relaxar — puxo a seda do seu
pescoço. Todo o seu corpo tensiona enquanto me encara com os olhos
arregalados. Começa a negar com a cabeça, mas seguro o seu rosto. — Por
que não?
— Eu não saio da mansão.
Ergo uma sobrancelha.
— Por que não? — repito. Ele desvia os olhos.
— Não gosto que as pessoas me olhem assim — aponta para os cotos
saindo pela barra da bermuda. Acaricio a lateral dos seus maxilares.
— Realmente não entendo o motivo, mas tirando um par de gaivotas —
indico o céu com a cabeça. — Não há ninguém para te olhar.
Artur pondera por um instante. Sei que vai recusar, até tornar a olhar
para mim. Desço as mãos pelo pescoço forte e desabotoo o primeiro botão
da camisa. Ele se remexe, permitindo que o paletó deslize pelos ombros
largos. Parte de mim se incomoda em ver algo tão caro sendo jogado de
forma displicente sobre a poltrona do deque, mas estou exultante. Seu
suspiro cansado se torna deliciado conforme os meus dedos descem pelo
seu peitoral, até alcançar o último botão.
— Vai entrar na água com o seu vestido? — pergunta. Faço que não.
— Sua irmã me deu um lindo biquíni — respondo. — Vou subir
rapidinho para colocá-lo.
— Aquele branco?
— Sim.
— Meu Deus — sussurra, rouco.
— Aquele biquíni ficou perfeito, não ficou?
— Ficou, mas prefiro você sem ele — diz, me puxando contra si.
— Não estamos em uma praia de nudismo.
— Aposto que as gaivotas não irão se importar.
Caio na risada.
— Vou me vestir e já volto — digo, beijando o topo dos seus cabelos.
Artur assente, parecendo animado.
Corro até o andar de cima. Vasculho o guarda-roupa e encontro o biquíni
branco. Tiro a blusinha e o sutiã que estou usando, admirada ao notar os
mamilos já enrijecidos. É impressionante como Artur Milano consegue me
atiçar com o mínimo esforço.
Em instantes coloco a parte de cima do biquíni. O tecido é grosso, mas
não o suficiente para esconder os bicos eriçados. Dou de ombros. Tenho
certeza de que Artur adorará vê-los assim. Visto a calcinha, coloco o short
jeans por cima e estou pronta.
Volto ao andar debaixo com a mesma velocidade com que subi. Artur
tirou a camisa e encara o mar. A tensão presente em suas costas largas
denuncia que toda a descontraída animação desapareceu.
— Como eu vou chegar até a água? — questiona ao me ouvir chegando,
apontando para o mar. — Olha só quanta areia.
— Daremos um jeito — digo, apertando o seu ombro. Ele balança a
cabeça.
— Eu vou atolar. Vão rir de mim.
Olho para os lados. A praia continua vazia.
— Ninguém vai rir de você — uma das gaivotas solta um estridente
“crá” — Com exceção delas — dou de ombros —, mas desde quando você
é homem de se importar com a opinião das gaivotas?
Só então Artur vira o rosto para mim. O seu queixo cai.
— Uau, mulher. Lembro que você havia ficado linda nesse biquíni, mas
não tão linda!
— Obrigada — estufo o peito, feliz com o elogio. Seus olhos vão direto
para os bicos empinados. Ignoro o calor que se espalha por todo o meu
corpo. — Vamos?
Artur torna a olhar para a areia.
— Bom, os exercícios que faço nos braços precisam valer alguma coisa
— resmunga, impulsionando a cadeira para a frente.
Ela quase vira quando as rodas saem do deque e caem na areia, mas
Artur nem se dá conta. Continua mirando o horizonte, todos os músculos
dos bíceps trabalhados focados em ultrapassar a areia fofa e alcançar a
arrebentação.
Vou atrás dele, tentada a segurar as manoplas e ajudar. Ele olha por sobre
os ombros como se pressentisse o que desejo fazer, o rosto coberto de suor
dizendo com todas as letras: Não! Aquele é mais um dos obstáculos que
precisa ultrapassar sozinho.
Leva alguns minutos até chegarmos na areia firme da beirada da água. A
primeira onda lambe as rodas enquanto Artur fecha os olhos e ergue o rosto
para o sol ameno do final da tarde. Sorri de orelha a orelha, todo o cansaço
desaparecido do seu semblante, ainda que grossas gotas de suor escorram
pelo pescoço.
— É a primeira vez que venho aqui desde o acidente — murmura.
Agacho-me ao seu lado.
— E aí, como se sente?
Ele dá de ombros, mas sei que está emocionado. Os pontinhos dourados
dos seus olhos castanhos cintilam quando tornam a abri-los e os fixa com
intensidade sobre mim. Imprevisível como um leão, Artur se joga da
cadeira de rodas e dá o bote.
Solto um grito misturado com uma risada estridente quando caímos
juntos sobre a água rasa. Espirro espuma para todo o lado ao tentar me
desvencilhar, mas é impossível. Artur é muito mais forte. Seus braços me
agarram enquanto espalha sua risada grave por toda a praia.
— Está fria! — reclamo ao sermos atingidos por uma nova onda. Ele tira
os cabelos molhados do rosto.
— Está deliciosa — diz, roubando um beijo. Entrego-o sem resistir. Não
preciso de muito para descobrir que é impossível mostrar resistência
quando se trata de Artur Milano.
Seguro o seu rosto, forçando a língua contra os seus lábios. Ele dá
passagem e me toma para si com ferocidade, mãos firmes puxando o meu
peito contra o seu. Passo as pernas ao redor da sua cintura, colando os
nossos corpos por completo. Artur geme na minha boca quando a ereção
firme roça na virilha.
— Adoraria te foder aqui na praia — deixa escapar ao tomar fôlego.
— Não podemos — viro o rosto para os lados, excitada, mas
preocupada. — Alguém pode estar olhando.
— Agora você está preocupada com isso? — resmunga, descendo os
lábios pelo vale dos meus seios. Afasta o biquíni, deixando um rastro de
fogo conforme beija a pele sensível e atinge um mamilo enrijecido com a
ponta dos dentes. Arfo alto, incapaz de me conter.
— Estou. A Jacira pode nos ver.
— E daí?
Rebolo sobre o seu colo, apenas para provocar. O seu gemido se torna
mais alto.
— E daí que não quero que ela nos veja — rebato, aproveitando a
distração para escapar do seu abraço. Sei que não serei capaz de resistir se
permanecer ali por mais um minuto.
Caio de bunda sobre a areia, mas aproveito uma nova onda e espirro
água na sua cara. Artur primeiro me lança um olhar indignado, mas o
desafio logo toma conta do seu semblante. Pega um pequeno punhado de
areia molhada e revida. Tento escapar, mas ele acaba atingindo a lateral das
minhas costelas. Só então percebo que o meu seio ainda está para fora do
biquíni.
— Deixe assim — ordena. Faço que não, ajeitando a peça de roupa no
lugar.
— Você precisa aprender a ser menos mandão!
Ele ergue uma sobrancelha, o melhor sorriso safado estampado no rosto.
— Acha mesmo?
— Não — digo, juntando um punhado de areia nas mãos.
Artur imita o meu movimento, mas sou mais rápida. Jogo a bola de areia
contra o seu peito, desviando em seguida. Ele solta um grito frustrado ao
errar, mas não dá trégua. Espera a onda ir embora para fazer uma nova
bolinha.
Ao invés de jogar, abro os dedos em concha sobre os seus cabelos,
espalhando areia molhada por todos os lados. Leva apenas três segundos
para perceber que não deveria ter feito isso. Artur torna a dar o bote,
agarrando a minha cintura e me jogando contra uma onda. Espirro água ao
cair sobre o seu frescor, trazendo o magnata comigo. Sua gargalhada se
espalha pela brisa quando rolamos pela areia, espalhando água para todos
os lados como duas crianças que vão pela primeira vez à praia.
— Olha só o que você fez! — diz, voltando a se sentar. Seus músculos
estão completamente cobertos de areia. Mordo os lábios, tentando conter
uma piada. Ele franze os olhos, desconfiado. — O que foi, Srta. de
Villeneuve?
— Você virou o Artur à Milanesa.
— Ah, não! — ergue os braços para cima, pedindo piedade divina. —
Você não disse isso! Pensei que tinha acabado de sair da faculdade de
enfermagem, não da quinta série!
— Desculpa, não resisti — rio. Ele me puxa contra si. Permito-me ser
puxada sem qualquer resistência.
— Não se esqueça que o seu primeiro nome é bastante parecido com o
meu — diz, também me enchendo de areia.
— Milena e Milano à Milanesa — penso por um momento. — Isso é
quase um trava línguas!
— Pois é — encara o meu rosto com olhos famintos. — Já que eu não
posso te comer aqui, o que acha de terminamos de nos refrescar na banheira
da suíte?
— Acho ótimo — digo, pronta para tornar a beijá-lo. Ele sorri, mas
somos interrompidos pelo barulho de passos.
Ergo o rosto, feliz por não estar com o seio de fora. Jacira e um rapaz se
aproximam. Ele carrega alguma coisa embrulhada sobre um dos braços,
mostrando-se acanhado ao erguer a mão livre para tirar o chapéu de aba
larga. Dá para notar o quanto é jovem, apesar da pele curtida pelo sol.
Lança um rápido olhar a Artur, mas não se demora sobre as suas pernas.
— Boa tarde, senhor — cumprimenta, meneando a cabeça para nós dois.
— Eu também me chamo Artur. Sou neto da Dona Jacira e marido da moça
grávida que o senhor ajudou hoje cedo.
— Ah! — O meu Artur exclama. — E como ela está?
O rapaz lança um rápido olhar para a avó, mas ela o instiga a continuar.
Toda a insegurança desaparece do seu rosto. Tira o celular do bolso e o
estende a nós. Uma jovem sorridente segurando um bebê enrolado em
cobertores cor-de-rosa encara a lente em plena felicidade
— Que lindas! — deixo escapar, extasiada. O rapaz sorri de orelha a
orelha.
O olhar do magnata se prolonga sobre a foto. Os seus lábios demoram
para formar um sorriso, como se antes precisasse absorver a informação de
que as duas estão vivas por sua intervenção. Quando o formam, é sincero e
emocionado.
— Elas parecem bem — comenta, rouco, apenas para confirmar. O outro
Artur assente.
— Estão sim — diz com alegria, mas sua voz de repente se torna
embargada. — O médico disse que as duas poderiam ter morrido se
tivessem permanecido na ilha. Então vim agradecer, Sr. Milano, e perguntar
como posso pagar essa dívida.
— Não há dívida a se pagar — rebate, ofendido.
— O senhor tem certeza? — O jovem insiste. — Eu posso pagar de
pouquinho e pouquinho. Sou um simples pescador, mas tenho as minhas
economias. Podemos adiar o casamento e...
— Chega! — Artur eleva a voz, mas não está bravo. — Você não vai me
pagar um só centavo, está entendendo?
Ele assente aliviado, no fundo já esperando aquela resposta. Estende o
embrulho.
— Então aceite o meu peixe — pede. — É o maior que pesquei hoje!
Artur pisca surpreso, mas ergue as mãos sujas de areia e aceita o
presente. O outro Artur estufa o peito, orgulhoso, enquanto o magnata
desembrulha o papel pardo. O corpo prateado do peixe reluz sob o sol. É
realmente imenso!
— Uau — murmura, tornando a erguer o rosto. — Você tem certeza?
Sei que o que ele deseja perguntar é se o alimento não fará falta. Um
peixe daquele tamanho poderia satisfazer sua família por uma semana
inteira. A simplicidade do jovem pescador é notada em seus jeans
desbotados e na camisa puída. Ele faz um imenso contraste com a opulência
da mansão há poucos metros de distância.
— Tenho — assente.
— Então eu aceito. Obrigado.
O sorriso do rapaz se alarga, mas tendo a sua missão cumprida, de
repente parece ainda mais acanhado do que antes. Faz menção de se
despedir, mas lembro de algo dito pouco antes.
— Vocês vão se casar? — pergunto.
— Sim, mas ainda não sei quando — encolhe os ombros, dando sinais de
que a bebê não foi planejada. — Gostaria de ter pedido antes, mas ainda
estou juntando dinheiro para comprar um anel.
Eu e Artur nos entreolhamos. Ele assente de leve, bem de leve, e
nenhuma palavra precisa ser dita para que eu saiba o que preciso fazer.
— Espere aqui — pisco, erguendo-me da areia. O jovem me lança um
olhar curioso quando impulsiono as pernas para a frente e corro em direção
a mansão.
Em segundos estou dentro do escritório, mas não vejo a caixinha de joias
em lugar algum. Ela causa dor demais, então Artur não a deixaria à vista.
Começo a abrir as gavetas, encontrando-a jogada de qualquer jeito no fundo
de uma delas. Seguro-a entre os dedos e abro a embalagem vermelha,
conferindo se o anel está realmente ali, e volto à praia.
Estendo a caixinha ao magnata que a estende ao seu xará. Os olhos do
rapaz percorrem o objeto com espanto. Talvez não saiba qual a grife de
origem da joia, mas qualquer pessoa sabe que um artigo daqueles custou
muito caro.
— Eu aceitei o seu peixe — Artur diz. — Agora aceite es.
— Mas vocês...? — Não consegue finalizar, mas a pergunta fica no ar.
— Ele foi comprado para outra pessoa. Não deu certo. — O magnata
resume, abrindo um sorriso encorajador. — Talvez dê certo para você.
— Tem certeza?
— Absoluta — insiste, esticando o corpo até alcançar a mão do
pescador. Força os seus dedos até abri-los, colocando a caixinha entre eles.
— Espero de coração que lhe traga mais felicidade que trouxe a mim.
Sua voz soa aliviada, como se um imenso peso tivesse sido tirado de
suas costas. O jovem Artur ergue a caixinha até a altura do rosto. Abre a
tampa e quase solta um berro. O anel é lindo, ainda mais faiscando sob a luz
dourada do final da tarde.
— Obrigado, senhor — diz com a voz embargada.
— Não há de que. Quer visitar a sua companheira? Posso pedir para o
helicóptero te levar.
Seu corpo treme de empolgação, mas para a nossa surpresa ele faz que
não.
— Preciso acompanhar a pescaria de amanhã. — A voz soa solene, cheia
de responsabilidade. — E deixar tudo pronto para quando a minha futura
esposa voltar.
Artur não insiste. Talvez um cabeça dura reconheça o outro.
— Tudo bem. Não deixe de me avisar caso precise de alguma coisa.
Qualquer coisa — enfatiza, erguendo o presente. — E obrigado pelo peixe.
— Eu que agradeço. — O jovem diz.
Troca o peso de um pé pelo outro, indeciso, mas se aproxima e toma o
magnata em um rápido abraço. Artur arregala os olhos, mas não tem tempo
de reagir. Quando dá por si, o pescador já se afastou. Visivelmente não está
acostumado a abraçar as pessoas. Lança um rápido olhar para a avó,
pedindo em silêncio que o acompanhe até a porta. Despede-se com um
último aceno e se vai. Artur encara o peixe em seus braços.
— Vou pedir para a Jacira prepará-lo para o jantar.
— Vai ficar ótimo.
— Vai, sim — responde, pensativo. Ergue o rosto e mira o horizonte. —
Anote o que eu estou dizendo, Milena: não vou descansar até construir um
centro médico nessa ilha e em todas à sua volta.
— Não preciso anotar — digo, beijando o topo dos seus cabelos cheios
de areia. — Vamos entrar? — desço os lábios até os seus ouvidos. —
Alguém me prometeu um banho de banheira.
Ele me encara com um sorriso safado cheio de segundas intenções.
— E eu cumpro cada uma das minhas promessas.
Capítulo 26 – Artur

Bem que tentamos nos limpar, mas deixamos uma trilha de areia pelos
corredores da mansão ao subir até a suíte. Milena olha para o chão
preocupada, mas digo a ela que em breve voltaremos para limpar. Não
gosto de deixar tudo a cargo de Jacira e a equipe de limpeza chegará apenas
ao final da semana.
No fundo, dou mínima atenção a isso. Pouco me importa se a mansão
ficará suja até sexta-feira. Só me importo com a beldade loira dividindo o
banheiro comigo. Ela me encara e ri. O timbre suave preenche todo o
espaço com alegria.
— Desculpa — diz, levando a mão à boca. — Mas realmente parece que
você foi empanado na areia, Artur.
Desço os olhos pelo corpo. Todo o meu peitoral está coberto por
minúsculos grãos de areia clara. Remexo-me sobre a cadeira de rodas,
desconfiado de que haja areia enfiada até na cueca.
— Você não está em situação muito melhor — debocho, deslizando um
dedo pela sua barriga. Os pelinhos dourados se arrepiam sob o meu toque.
Ergo os olhos até encarar as íris turquesa da mulher à minha frente. —
Empanada ou não, você continua linda.
— Você também — sorri, afastando uma mecha de cabelo do meu rosto.
Sorrio de volta, enternecido pelo contato. Cubro sua mão.
— Eu gosto tanto quando você me toca — murmuro, bem baixinho.
Milena prolonga o carinho, afundando os dedos até alcançar o couro
cabeludo. Solto um suspiro misturado com um ronronado. Poderia passar a
noite ali se o meu pau não estivesse pulsando de desejo.
Um pensamento sobrepõe o tesão. Notei a forma como a jovem
enfermeira apreciou o ato romântico do meu xará. Os tempos mudaram e as
mulheres podem ser muito diferentes umas das outras, mas grande parte
delas ainda deseja receber um pedido de casamento seguido de um anel de
diamantes.
Ainda não admiti em voz alta, mas sei muito bem o que sinto. Eu não
quero apenas foder a boceta da Milena, tomando-lhe todo o prazer que
puder me dar. Quero tê-la só para mim de todas as formas. Tomar o seu
coração e amá-la como a princesa que ela é.
Abro a boca, mas torno a fechá-la. Uma trava parece impedir que as
minhas cordas vocais emitam o que preciso dizer. Mordo os lábios,
frustrado. Milena apenas observa. Sabe o que eu desejava fazer, mas não
pressiona. Apenas compreende. Fecho os olhos, ciente de como sou um
homem sortudo. Onde, nos meus dias mais sombrios, imaginei que seria
capaz de amar uma mulher como ela?
— Vamos para a banheira? — pergunta.
Faço que sim. Ela se afasta. Imediatamente sinto falta do seu toque, mas
a minha mente logo é distraída pelos movimentos fluidos das suas mãos ao
desatar os laços da parte de cima do biquíni. Observo tudo, hipnotizado,
deixando escapar um suspiro de deleite quando a peça cai e expõe os seios.
Depois é a vez dos shorts. Ela começa a descê-lo com calma, sem deixar
de me encarar por um segundo sequer, nem mesmo quando o jeans se
enrosca nos quadris. Ri ao notar que esqueceu de abrir o botão e baixar o
zíper. O diminuto triângulo branco da calcinha do biquíni falha em esconder
a sua feminilidade.
— A minha irmã te deu a menor roupa de banho que trouxe na mala —
comento.
— Ela trouxe várias — diz, os lábios se aproximando do meu ouvido. —
Eu escolhi a menor.
Arregalo os olhos, surpreso.
— Já planejava me seduzir?
— Quem me seduziu foi você — mordisca o lóbulo da minha orelha,
fazendo com que um arrepio desça pelo meu pescoço e se espalhe por todo
o corpo. — Desde o primeiro dia, quando saiu daquele elevador parecendo
uma fera indomada.
— Não sei como você foi capaz de me aguentar — admito, ligeiramente
envergonhado.
— Só aguentei porque você é um grande gostoso — brinca.
É a minha vez de cair na risada. Eu não acreditaria em suas palavras se
elas tivessem sido ditas na ocasião. Diria que eram mentira. Que as estava
dizendo apenas para me constranger. Tirar sarro da minha cara.
Mas agora eu acredito.
— Pelo menos eu tinha alguma coisa de bom — entro na brincadeira.
A risada de Milena se torna mais alta. Deixa a sensualidade de lado e tira
a calcinha do biquíni de qualquer jeito. A minha boca saliva diante da visão
da boceta nua, mas é por pouco tempo. Ela logo se ajoelha, esticando uma
das mãos em direção ao meu peito, bem no local onde se encontra o
coração.
— Isso, e muitas coisas também.
Fico sem palavras, ainda mais quando seus dedos leves descem pelo meu
peitoral, percorrem os gominhos do abdômen e alcançam a fina trilha de
pelos escuros que se afundam na cintura da bermuda. Desfaz o laço e
começa a puxá-la para baixo, descendo a cueca boxer no processo. Ergo os
quadris o suficiente para que ela possa retirá-los.
O meu pau pulsa contra a minha barriga, mas o ignoro. Os meus olhos
estão nos cotos tão cheios de areia quanto o restante do meu corpo. Analiso
a cicatrização com atenção. Ficou bonita, se é que posso utilizar esse termo
para me referir ao que sobrou das minhas pernas. Estico o dedo, tocando a
pele firme da ponta da coxa. Os pelinhos se arrepiam, mas é só. Milena
assiste a tudo, atenta.
— É a primeira vez que você faz isso, não é?
— É — respondo.
— E como se sente?
Dou de ombros.
— Com a sensação de que deveria ter feito isso antes.
Ela sorri e, com delicadeza, volta a se erguer. Resvala os lábios nos
meus, mas não me beija. É um convite. Observo quando ergue as pernas
torneadas por cima da borda da hidromassagem, afastando-se até o outro
lado. Abre a torneira, permitindo que a água morna comece a encher o
espaço. Manobro a cadeira de rodas, posicionando-a lado a lado com a
parede da banheira, forço os braços e me iço para fora, caindo sobre a fina
lâmina de água.
Arrasto-me até a enfermeira. Ela solta um gemido deliciado quando
afasto o seu cabelo bagunçado e beijo a curva entre o ombro e pescoço. Os
meus lábios se enchem de areia, mas não me importo, continuo subindo em
direção ao lóbulo da sua orelha. Mordo-o de leve, transformando o gemido
em um arquejo.
Enquanto isso deslizo as mãos pelas costelas, alcançando os seios firmes,
puxando o seu corpo até que suas costas se colem em meu peito. O meu pau
pressiona o seu traseiro, ávido para se enterrar dentro dela.
— Minha bela Milena — sussurro, assistindo os pelinhos da sua nuca se
arrepiando. Círculo os mamilos enrijecidos com a lateral dos polegares. Em
retribuição ela rebola contra o meu pau, provocante. Impulsiono para cima,
quase entrando em sua boceta. — Ah, adoro a forma como você gosta de
brincar com a minha sanidade.
Sua risada torna a preencher o banheiro. Afasta-se do meu toque,
pegando um frasco de shampoo.
— Desculpe — vira o corpo de forma a ficar de frente para mim —, mas
só quando você estiver bem limpinho.
Sem dizer mais nada, despeja quase todo o conteúdo do frasco sobre o
meu cabelo. Fecho os olhos quando os dedos delicados invadem as mechas
e massageiam o couro cabeludo. Ela está próxima o suficiente para que
abocanhe um mamilo.
É impossível resistir. Puxo-a sobre o meu colo e fecho os lábios sobre o
botão rosado, roçando os dentes antes de sugá-lo com força. Os dedos de
Milena agarram os meus cabelos com um pouco mais de força. A água
morna continua a subir, preenchendo a lateral dos nossos quadris.
Estico um braço, em busca de um sabonete, e só paro de tatear a lateral
da hidromassagem ao encontrá-lo. Deslizo-o pelas costas nuas de Milena,
sentindo toda a pele se arrepiando com o contato. Abandono um mamilo
apenas para abocanhar outro com a mesma vontade. Ela geme baixinho, a
lavagem nos meus cabelos demorando além do necessário, mas não me
importo. Quero que ela se demore. Que o nosso desejo cresça até o ponto de
ebulição.
Desço o sabonete até as suas nádegas, circulando uma, depois outra.
Resisto à tentação de soltá-lo apenas para penetrar um dedo em seu traseiro,
da forma como sei que gosta. Ao invés disso, sigo com a limpeza. Não me
importaria de tomar Milena da forma como ela está, mas aquele banho está
gostoso demais para nos apressarmos em terminar.
O meu pau pulsa entre nós quando subo pela sua barriga, deslizando o
sabonete pelos mamilos enrijecidos. Ela solta os meus cabelos e geme alto.
— Meu Deus, eu não vou mais aguentar.
— O que? — pergunto, impulsionando o quadril de forma a roçar no seu.
— Ter você fora de mim.
— Ainda não estou limpo o suficiente — provoco. Toda a pressa
desapareceu. Coloco o sabonete entre os seus dedos. Ela me encara, cheia
de vontade de soltá-lo. Faço que não. — Me ensaboe.
Milena entende a provocação. E gosta dela. Segura o sabonete com
firmeza e começa a deslizá-lo pelo meu pescoço, descendo em movimentos
circulares até o meu peito. Movimenta o quadril de forma a pressioná-lo
ainda mais, mantendo o meu pau esmagado entre os nossos dois corpos. A
pressão é deliciosa, capaz de quase me fazer gozar por si só.
Gemo alto quando ela desliza o sabonete em torno de um dos meus
mamilos. Desce os lábios em direção ao outro, mordendo a pontinha de
leve. Dou um pulo dentro da banheira, espalhando água para todos os lados.
Agora ela subiu até quase a metade do nosso tórax. Aproveito para jogar
uma porção do líquido cristalino nos cabelos, tirando parte do shampoo que
caia sobre os olhos.
A enfermeira não se incomoda. Aproxima ainda mais os nossos corpos,
até estar em posição suficiente para ensaboar as minhas costas. Os bicos dos
seus seios cutucam o meu peito, arrancando suspiros do fundo da garganta.
As mãos deslizam pelos meus ombros e descem pelas omoplatas. Os
movimentos agora não são suaves. São calculados, de forma a me ensaboar
e arranhar. Um choque percorre o meu corpo cada vez que suas unhas se
encontram com a minha pele.
— Daqui a pouco quem não vai mais aguentar sou eu — reclamo.
Milena ri.
— Xiu, você ainda não está limpo o suficiente — diz, mordendo o
lóbulo da orelha ao mesmo tempo em que ergue o quadril para que a sua
entrada roce sobre a cabeça do membro intumescido.
Aquilo é demais.
— Estou sim — rebato, agarrando a sua cintura com força, pronto para
fazê-la se sentar com força sobre o meu pau. Milena faz que não.
— A camisinha.
Porra! Como fui me esquecer da camisinha? Solto um suspiro frustrado.
Nem ao menos sei se temos uma camisinha no banheiro! Milena ri e ergue
um pacotinho prateado. Franzo o cenho.
— De onde você tirou isso?
— Peguei na sua mesinha de cabeceira, enquanto vínhamos para cá.
Deixei aqui assim que entramos no banheiro.
— Eu nem percebi!
— Claro que não, você estava ocupado demais olhando para a minha
bunda — dá de ombros, antes de estufar o peito. Os seios balançam no
ritmo do movimento, gotas de água pingando dos mamilos. — Ainda bem
que sou uma mulher preparada, Sr. Milano.
— Ainda bem mesmo — digo, içando-me para fora da banheira.
Adoraria senti-la por completo, sem qualquer barreira, mas não fizemos
qualquer tipo de exame e sei que Milena não toma anticoncepcional.
Agradeço mentalmente por ela ter lembrado. Não preciso acrescentar a
chegada de um bebê à imensa quantidade de eventos que vem acontecendo
atualmente na minha vida.
Ela segura o meu pau e desliza os lábios por todo o meu comprimento,
beijando a cabeça molhada de água e líquido pré-ejaculatório. Ergue o rosto
com sua melhor expressão safada antes de morder de leve. Gemo alto, mas
seguro sua face com delicadeza.
— Por favor, Milena. Coloque logo essa camisinha e me deixe gozar
fundo na sua boceta.
— O seu pedido é uma ordem — diz, encaixando-a sobre a glande.
Desce o látex até a base e confere se está tudo certo. Só então se afasta,
permitindo que eu volte para água.
Caio nela com tudo, desesperado. A banheira está cheia quase até a
borda, mas não tenho tempo de fechar a torneira. Não quando Milena
praticamente pula sobre o meu colo, trava os joelhos nas laterais dos meus
quadris, agarra os meus ombros com força e, em um impulso, engole o meu
pau em uma sentada.
Gememos em uníssono. Pulso dentro dela, pressionado por todos os
lados pela sua deliciosa boceta. Ela rebola, pedindo mais, e eu lhe dou.
Impulsiono para cima, me enterrando fundo até a base. O gemido se torna
um grito. Agarro as suas costas e a puxo contra o meu peito, socando com
força, sem diminuir o ritmo por um só segundo.
A água enfim transborda e se espalha pelo piso do banheiro. Nenhum de
nós lembra de fechar a torneira. Nenhum de nós se importa. Estamos
focados em dar e tomar prazer. Nada mais.
Milena volta a rebolar, seguindo o ritmo ágil das estocadas. Os meus
movimentos de vai e vem são tão profundos que sinto o seu clitóris roçando
na minha virilha. Agarro-a mais forte, apertando a sua bunda enquanto
seguro suas costas.
— Eu vou gozar — tem tempo de dizer.
— Então goza, Milena — sussurro em seu ouvido. — Quero sentir a sua
boceta gostosa me esmagando com ferocidade. As suas coxas tremendo e os
joelhos fraquejando ao redor dos meus quadris. A boca escancarada em um
grito enquanto os olhos turquesa estão nublados de estrelas de prazer.
Aperto-a ainda mais, deslizando a mão pela sua bunda até alcançar a sua
intimidade proibida. Enfio um dedo em seu traseiro e meto o pau ainda
mais forte. — Vamos, goza!
Ela o faz. Exatamente como descrevi. O seu corpo entra em colapso, o
grito extasiado preenchendo cada mínimo espaço do banheiro. As paredes
internas da sua boceta apertam o meu pau e o meu grito de prazer se junta
ao seu. Com uma última arremetida, despejo todo o meu gozo dentro da
proteção da camisinha.
Caio para trás, espalhando ainda mais água pelo banheiro. Milena está
desfalecida em meus braços. Encontro forças para beijar o topo dos seus
cabelos ainda cheios de areia enquanto tateio em busca da torneira. Fecho-a,
feliz em ver os seus sentidos voltando. Ela se limita a soltar um longo
suspiro e se aconchegar ainda mais a mim.
Sorrio, fechando os olhos, acometido por uma profunda paz. Não é
apenas o efeito positivo de uma excelente sessão de sexo. É o efeito de estar
ali, com a mulher que eu amo em meus braços. Jamais senti aquilo. Com
nenhuma outra, nem mesmo com Nicole. Uma completude tão grande que
não consigo descrever, só sentir.
Milena parece ouvir os meus pensamentos.
— Eu te amo Artur — diz, bem baixinho, fazendo com que um delicioso
arrepio percorra todo o meu corpo. Abro a boca para responder, mas
continuo incapaz de emitir qualquer som. Milena cobre os meus lábios com
um dedo em riste. Os seus sorriem cheios de compreensão quando continua.
— Sei o quanto o amor te machucou no passado. Como partiu o seu coração
em incontáveis pedaços. Você ainda está se curando disso, e de um monte
de outras coisas. E faz bem em fazer isso. Devagar. No seu ritmo. Não
precisa se sentir na obrigação de retribuir em voz alta — encosta a cabeça
em meu peito. — Eu já consigo ouvir, Artur.
O meu coração refeito está acelerando. Martelando contra as costelas.
Inchado de tanto amor. Abraço o seu corpo escorregadio e ela se aconchega.
Minha voz desaparece em um redemoinho de emoção. Sou incapaz de
responder com um simples obrigado, mas ela ouve. Sei que ouve.
Aos poucos lembro da sua expressão na praia, quando o meu homônimo
lhe mostrou a foto da companheira e da bebê. Milena sorriu com imensa
sinceridade. Posso não desejar ser pai agora, mas quero ter uma família. E
sei que Milena fará parte dela.
Capítulo 27 – Artur

Os dias passam. Aquela primeira semana se transforma em duas. Em


três. Vira um mês. Não acredito em amor à primeira vista. Para mim isso
não passa de um termo criado para iludir casais desavisados e vender
objetos baratos no Dia dos Namorados. Mas talvez, só talvez, eu acredite
em almas gêmeas. E ela passou a amanhecer todos os dias ao meu lado.
Milena continua ouvindo. Só assim para ainda estar ali, dormindo com
tranquilidade, a cabeça pousada sobre o meu coração. Acaricio os seus
longos cabelos loiros com cuidado, temendo acordá-la. Adoro ser o
primeiro a despertar. Ter preciosos momentos a sós, quando a casa ainda
está em silêncio e tudo o que escuto é o seu suave ressoar misturado ao
longínquo barulho do mar. As vezes passo uma hora inteira ali, quieto,
apenas contemplando a beleza da mulher em meus braços.
Não sei quanto tempo leva até a sua respiração mudar e os olhos se
abrirem. Ela sorri de leve, cheia de preguiça. Ainda é cedo, mas em breve
precisaremos levantar.
— Dormiu bem? — murmura, olhando para cima. Assinto em
concordância.
— Sempre. E você?
— Sempre — repete, manhosa. Um longo bocejo escapa da sua boca e
ela torna a se acomodar. Por mais cinco minutinhos. Até o celular despertar
e confirmar que as obrigações do dia nos aguardam.
Aos poucos entramos em uma nova rotina. De manhã, foco na
musculação e na fisioterapia. No início da tarde, analiso se algo precisa ser
administrado na VitalCare. Estou voltando aos poucos, sempre sentado em
meu escritório, em reuniões por videochamada.
Conforme esperado, o meu plano para construção de uma clínica médica
na Ilha das Rosas foi aprovado. A reunião de hoje é para definir quando o
primeiro tijolo será assentado, o que eu espero que seja muito em breve.
Artur, sua noiva e sua bebê estão entre os inúmeros habitantes que se
beneficiarão dela. A saúde de ninguém pode esperar.
Continuo com a terapia uma vez por semana. De vez em quando tenho
uma ou outra consulta médica. Não importa. Assim que as obrigações
finalizam, passo o restante do dia com Milena. Seja sentado ao seu lado
enquanto lê em silêncio, seja ouvindo a narrativa de aventuras e desventuras
de príncipes apaixonados.
Apesar da mudança de estação, o outono ainda está distante do calor da
ilha. Brincar na areia e nadar no mar se tornou um prazer. Mais de uma vez
me peguei pensando como aquilo era possível. Eu, um homem feito de
quarenta e dois anos, jogando água apenas para provocar uma jovem
enfermeira com idade para ser minha filha. Até Milena revidar, enchendo os
meus cabelos de areia, lembrando como pouco importa a nossa diferença de
idade.
À noite vemos filmes. Ouvimos música. Contamos estrelas. Transamos
até nos saciarmos por completo. O corpo de Milena é um templo criado
para ser reverenciado. Eu o reverencio, toda noite, como se ela fosse uma
deusa. E ela me reverência de volta. Com dedicação. Com amor. Sempre
ouvindo. Sempre.
Eu também ouço. O meu coração bate cada vez mais forte com ela. Às
vezes com tamanha força que sinto que irá romper as minhas costelas e
explodir. A palavra já esteve na ponta da língua em tantas ocasiões que sou
incapaz de numerar.
O celular desperta. Resisto à tentação de jogá-lo longe. Ignorar todos os
compromissos do dia e permanecer ali, na cama, deitado preguiçosamente
com ela. Mas Milena se remexe. Eleva os braços sobre a cabeça e boceja
mais uma vez, pronta para se levantar. Sou mais rápido. Agarro o seu corpo
e o puxo contra o meu.
— Fique aqui — peço. Ela ri e tenta se desvencilhar.
— Você sabe que a Jacira chegará mais tarde hoje. Preciso descer e
preparar o nosso café da manhã.
— Ótimo, mais um motivo para você ficar aqui — deslizo as mãos pelas
suas costas até alcançar a sua bunda. Aperto-a de leve, pressionando o
início da ereção.
— Depois — diz, beijando a lateral da minha boca.
Afrouxo o abraço, permitindo que saia de cima de mim. Ela se ergue e
caminha em direção ao closet. Há muito as nossas roupas se misturaram.
Aciono as persianas, permitindo que a luz da manhã invada o quarto e
ilumine cada curva do seu corpo perfeito. Além da lingerie, Milena pega
um shorts e uma blusinha limpa, dirigindo-se ao banheiro em seguida. Olha
por cima do ombro antes de entrar.
— Adoro quando você me olha desse jeito — deixo escapar. Ela ergue
uma sobrancelha.
— Desse jeito como?
— Como se eu fosse o cara mais desejável do mundo.
— Mas você é — sorri, fechando a porta. Sorrio de volta, feliz em como
ela me faz acreditar que sou.
Milena sai do banheiro minutos depois, dando-me espaço para entrar.
Migro da cama para a cadeira de rodas, mas é por pouco tempo. Após tomar
um rápido banho e me vestir, deixo-a de lado para colocar as próteses. A
enfermeira não precisa mais me ajudar com o liner. Olhar o coto deixou de
me incomodar. Talvez leve anos até conseguir aceitar, mas comecei a me
acostumar.
Em minutos estou sobre as próteses, me apoiando no andador.
— Milena? — chamo, saindo do quarto. Ela aperta o botão do elevador
antes de me encarar. Ainda não desço as escadas, apesar de estar praticando
nos primeiros degraus. — Sabe o que você poderia fazer para o café?
— O que? — pergunta, desconfiada.
— Brigadeiro de capuccino.
— A essa hora da manhã?
— Qual o problema? Eu te ajudo.
Sua risada se espalha pela casa.
— Você não sabe nem fritar um ovo, Artur!
Encolho os ombros, incapaz de rebater aquilo. Da última vez que tentei,
perdemos uma excelente frigideira antiaderente e a cozinha ficou fedendo a
ovo carbonizado por três dias.
— Posso ajudar com um incentivo moral — insisto, lançando-lhe o meu
mais charmoso sorriso. É claro que ela se rende. Entra no elevador, tentando
disfarçar, mas está mais derretida que uma panela de brigadeiro.
— Ok! — diz, ao chegarmos ao andar debaixo. — Mas eu preciso ligar
para o meu pai e pegar a receita.
— Não é só jogar o preparo para capuccino?
— Se o meu pai te ouve falando isso... — balança a cabeça enquanto
segura a porta do elevador. — Há toda uma técnica na nobre arte de se fazer
um brigadeiro.
Assinto, ligeiramente incomodado. Após ter ouvido sua conversa por
trás da porta, evitei presenciar outro diálogo entre Milena e os seus. Ainda
não entendi quem é a tal da Dona Bernadete, mas sei que ela se preocupa
com a jovem. A mansão é grande, mas suas paredes não evitam que certas
palavras venham a mim. “Está tudo bem” ou “ele é um homem mudado”
foram repetidas à exaustão. Apenas uma sequência delas me causou imenso
desconforto: “em breve poderei visitá-los”.
Sei que o contrato de Milena é de apenas três meses. Após esse período
ela poderá voltar para São Paulo e visitar o pai. Sinto-me um egoísta da pior
espécie, mas não quero que a enfermeira deixe a mansão. Tornei-me
dependente. Obcecado a ponto de desejá-la ao meu lado durante vinte e
quatro horas por dia. Não consigo me imaginar distante dela por um
segundo sequer, quanto mais pelo período que levará para fazer uma visita à
família.
Deixo para pensar no assunto depois e observo Milena tirando o celular
do bolso do shorts. Ela conversa com o pai quase todos os dias, mas as
videochamadas são raras. Não sei se quero conhecê-lo de maneira tão
abrupta.
Ela parece ler os meus pensamentos.
— Ei, só vou fazer uma ligação.
Uma importante questão invade a minha cabeça.
— O que o seu pai pensaria de mim? — questiono. Ela franze o cenho.
— Como assim?
Encosto-me contra a ilha no centro da cozinha, mas não existem meias
palavras para o que preciso dizer. Encaro o seu rosto confuso.
— Eu tenho o dobro da sua idade, Milena — remexo-me,
desconfortável. — Eu tenho idade para ser seu pai.
— Aham — diz, sem se abalar. — E sabe quantos anos de diferença o
meu pai tinha da minha mãe? — nego com a cabeça. — Quinze. Então
acredite: papai não vai se incomodar com isso.
Sua fala não me tranquiliza.
— E ele se incomodaria com o que então?
— Com a forma como você me trata — troca o peso de um pé pelo
outro, de repente tão desconfortável quanto eu. — Lembra-se daquela
conversa que ouviu atrás da porta? Bernadete ficou preocupada e comentou,
bem por cima, que não estávamos nos dando bem. Já enfatizei ao contrário,
mas duvido que tenha acreditado.
Detesto saber que o homem pode imaginar que sua filha não esteja sendo
bem cuidada por conta de atitudes grosseiras que tive no passado.
— Faça a videochamada — aprumo os ombros, subitamente tomado por
uma onda de coragem. — Quero conhecê-lo.
Seu queixo cai. Mais um pouco e o rosto de Milena se transformaria no
retrato de O Grito de Edvard Munch.
— Você está falando sério? — consegue perguntar. Confirmo com a
cabeça.
— Estou.
O sorriso que ela me dá é tão radiante quanto o sol brilhando do lado de
fora. Pula sobre o meu pescoço e me abraça com força.
— Obrigada! — diz, tão rápida que mal dá tempo de devolver o abraço.
Destrava a tela do celular e, em segundos, a videochamada se inicia.
O rosto de um senhor na casa dos sessenta e cinco anos preenche a tela.
É visível que não está acostumado com aquele tipo de tecnologia.
Atrapalha-se com o celular, a imagem entrando e saindo de foco, até apoiá-
lo em um local que o mantenha parado. Ajeita o cabelo grisalho e sorri para
a filha com tamanha alegria que, por um instante, me sinto mal por desejar
que ela esqueça as suas férias para continuar cuidando de mim.
— Milena! Pensei que só fosse ligar a noite! — Sua surpresa é evidente.
Milena sorri de volta, tão alegre quanto ele.
— Ligaria, se o meu... — lança-me um olhar interrogativo. Movo os
lábios, formando a palavra “chefe” sem emitir qualquer som. Quero assumi-
la como minha, mas acho que será melhor fazê-lo em outra oportunidade.
Ela confirma com a cabeça, limpa a garganta e continua. — O meu chefe
adorou o seu brigadeiro de capuccino e queria a receita. Ernesto, esse é
Artur. Artur, esse é meu pai.
Ela afasta o braço, adicionando o meu rosto ao enquadramento. Tanto eu
quanto Ernesto somos pegos de surpresa. O homem arregala os olhos com
tamanha velocidade que por um instante penso que eles vão rolar pelas
órbitas. Abro a boca, mas balbucio feito um peixe antes de conseguir tomar
o controle.
— Senhor Alves de Villeneuve — cumprimento com um leve menear de
cabeça. — É um imenso prazer te conhecer. Sou Artur Milano.
Os olhos arregalados se tornam estreitos em um segundo. Reparo que o
lado esquerdo do seu rosto está um pouquinho paralisado, provavelmente
sequela do AVC da qual ainda está se recuperando.
— Sei quem você é — diz, baixinho. — A Milena não para de falar de
você.
— É mesmo? — olho para ela. O rosto da jovem se torna rubro.
Ernesto não responde. Encara-me por mais algum tempo em uma
descarada tentativa de ler a minha alma. Remexo-me onde estou. O
enquadramento muda, fazendo com que as minhas pernas sejam capturadas
pela câmera de selfie. Aquilo de alguma forma o desarma. O seu olhar não
é de pena. Muito longe disso. É de identificação. Ele também passou por
provações. Ambos tivemos sorte de sermos, à sua maneira, acolhidos pela
mesma bondosa enfermeira.
A conversa se torna natural depois disso. Em minutos fica nítido que eu
e Milena temos algo a mais que uma simples relação entre chefe e
funcionária. O carinho transparece. As brincadeiras escapam em direção à
lente. O amor ainda não dito é ouvido a quilômetros de distância.
Ernesto percebe, mas sua filha tinha razão. Ele não se choca. Pelo
contrário, parece tranquilo ao confirmar que nos damos bem. Talvez sinta a
nossa sinceridade. A mesma que sentiu quando se apaixonou por uma
mulher quinze anos mais nova. A que lhe deu uma família e presenteou
com uma filha.
O brigadeiro está começando a borbulhar quando ele diz que precisa
encerrar a chamada. Encara-me nos olhos e a força do seu contato é
tamanha que me arrepia por inteiro. Encaro-o de volta, sem vacilar. Cuide
da minha filha, ele parece dizer em pensamento. Eu vou cuidar, respondo da
mesma forma.
— Foi um prazer te conhecer, Sr. Milano. — É o que acaba dizendo.
— Por favor, me chame de Artur.
Ele assente.
— Artur, então — volta sua atenção para a filha. — Tchau, minha
querida. Eu te amo.
— Também te amo, papai. — Milena diz, lançando-lhe um beijo. Ele
lança outro e a videochamada é encerrada. Ela me encara por sobre o
ombro, sem deixar de mexer a colher de silicone por um segundo. —
Parabéns, você sobreviveu!
— Sua boba — digo, caído na risada. — Me pegou de surpresa!
— As más línguas dirão que fiz de propósito — debocha. Abraço-a por
trás.
— Dirão, e com razão — beijo a lateral do seu pescoço, fazendo com
que o seu suspiro se misture ao delicioso aroma do chocolate.
— Pare de me distrair — pede com uma entonação que deixa claro o
quanto está adorando ser distraída.
— Vou parar — volto a me apoiar na ilha. — Gostei do seu pai.
— Que bom — volta a olhar por sobre o ombro, sorrindo de orelha a
orelha. — Tenho certeza de que ele também gostou de você.
Sorrio de volta, contente pela aprovação.
E então a palavra ganha som. Sobe pelas cordas vocais e rodeia a minha
língua. Escuto-a não apenas no coração, mas na alma. Observo a mulher
diante do fogão preparando um simples brigadeiro cheia de dedicação. A
que me aceita com todos os defeitos, mas que também é capaz de trazer à
tona todas as minhas qualidades.
Ela já disse. Sei que Milena me ama, mas agora não tenho mais medo de
dizer o mesmo. Mordo os lábios e seguro mais um pouco. Demorei tanto
tempo, quero que seja especial. Quero que ela se sinta única. Que se sinta
minha.
Eu preciso de um novo anel.
Capítulo 28 – Milena

Não sei qual bicho mordeu Artur nos últimos dias. O magnata vem se
mostrando cada vez melhor consigo mesmo, mas sua alegria passou a
transbordar.
Cantarola rock pesado, mesmo que o volume permaneça baixo. Assovia
pelos corredores como um passarinho apaixonado. Encara-me com tamanho
desejo que, mais de uma vez, esperei que me agarrasse e me puxasse para
um beijo. Ele o fez, admito. Gostei principalmente quando o fez na
biblioteca, ao me empurrar contra uma estante de livros e me tomar de tal
forma que fiquei sem ar.
Agora ele passa a maior parte do tempo com as próteses. Davi adora
lembrar que ainda levarão meses até estar cem por cento adaptado, mas é
nítido o quanto se orgulha do esforçado paciente. Artur deixou de ser
avesso à fisioterapia para se tornar um viciado em melhorar.
Também me orgulho dele. Às vezes nos menores gestos, como quando a
campainha toca e faz questão de caminhar até a porta. Um ato corajoso para
um homem que teme se mostrar. Minutos depois, Artur volta radiante com
uma pequena caixa debaixo do braço. Claro que a curiosidade fala mais
alto, mas ele se limita a dizer que é uma surpresa. Mordo o canto dos lábios,
curiosa para saber qual tipo de surpresa precisa ser mantida oculta com
tamanha vontade.
Porque também tenho uma surpresa. Talvez Artur não tenha se dado
conta, mas acabo de completar três meses trabalhando em sua mansão. Isso
me deixa feliz de incontáveis maneiras.
De forma divertida, por ser a enfermeira a bater todos os recordes.
Profissional, por ter conseguido incentivá-lo a melhorar tanto em tão pouco
tempo. E de forma pessoal, por sentir que encontrei quem estava
procurando. Para uma romântica incurável, daquelas que acredita em
príncipes encantados, estou feliz que o destino tenha me mandado para as
garras de uma gentil fera.
Talvez eu tenha me apaixonado por Artur Milano desde o momento em
que o vi sentado em sua cadeira de rodas com uma simples camiseta branca
colada no corpo sarado, mas foi a convivência que me fez amá-lo.
Conhecemo-nos há pouco tempo, mas o suficiente para saber que quero
passar o restante da minha vida ao seu lado. Sei que ele sente o mesmo.
Está escrito em cada ponto luminoso dos seus olhos castanhos. Ele só não
disse. Não ainda, mas vai dizer. E quando o fizer, estarei pronta para
escutar.
E, claro, não posso me esquecer da questão financeira. Só Deus sabe
como pagaria tamanha dívida com o salário de uma recém-formada. Sempre
serei grata pela confiança que Ágata Milano depositou em mim.
O celular vibra dentro do bolso do meu short como se para lembrar dos
boletos a se pagar. Espio a tela antes de entrar no quarto de Artur. É Ágata,
dizendo que acabou de realizar a transferência de salário e do bônus por ter
“aturado” o irmão.
Seu tom é divertido, ainda mais ao enviar um áudio cantando o tema da
vitória e perguntando se desejo renovar o contrato por mais três meses. Rio
para mim mesma e agradeço, aliviada. Aproveitei as horas de Artur na
academia e na fisioterapia para lhe enviar um áudio contando sobre o meu
plano. Ela se mostrou tão animada quanto eu e disse que manteria o
helicóptero a postos.
Começo a digitar que sim, desejo continuar para sempre ao lado de
Artur, mas algo me impede. Não quero continuar cuidando dele por
dinheiro. Em breve a ilha ganhará uma clínica médica exclusiva. Posso
trabalhar nela enquanto continuo acompanhando a recuperação de Artur
como sua fiel companheira, não enfermeira.
— Milena? — Ele chama, preocupado. Deixo para responder depois e
abro a porta.
O homem sorri de orelha a orelha assim que me vê. Sorrio de volta. Os
meus pulmões ficam sem ar por alguns segundos assim que o vejo sentado
na cadeira de rodas. Os cabelos recém lavados estão ajeitados de qualquer
jeito sobre a cabeça, dando-lhe um ar despojado. Minúsculas gotículas
caem nos ombros da camisa de linho, grudando o tecido ao seu corpo.
Enfim consigo respirar fundo, resistindo a tentação de correr em sua
direção e sentar com força em seu colo. Noto algo oculto em suas mãos,
mas seguro a curiosidade. Quero ser a primeira a contar a surpresa.
— O papai ligou! — digo de supetão, caminhando em sua direção. —
Ele completará sessenta e oito anos no próximo domingo.
— Que ótimo! — Artur diz, sincero. Não entendo qual conexão rolou
entre eles durante a videochamada, mas consigo notar o quanto os dois se
identificaram.
— Sim! — concordo, aliviada. — Sabe, eu realmente pensei que fosse
perdê-lo. Será ótimo comemorar mais um aniversário ao seu lado. Ele
também disse que tem uma novidade para me contar, mas que só o fará cara
a cara, quando voltar à São Paulo.
O sorriso de Artur vacila.
— Como assim? — pergunta, remexendo o objeto que tem em mãos.
Franzo o cenho, sem entender o seu tom esquisito.
— A Ágata não te avisou? Os meus três meses de contrato acabaram de
vencer — começo a explicar. — Pensei que seria uma ótima oportunidade
para visitar o meu pai. Haverá uma festinha, coisa bem simples, mas feita
com carinho. E queremos que você participe dela! — alargo o meu sorriso,
dando um passo em sua direção.
O rosto de Artur é tomado pelo mais puro horror.
— Sair da mansão? — sussurra, espantado. Faço que sim, sem entender
por quais motivos ele não desejaria sair dela. Ainda não fomos até a vila,
mas passamos cada vez mais tempo na praia. Estamos isolados demais, mas
vez ou outra algum turista aparece. Artur se mostrou tranquilo em todas
essas ocasiões.
— Sim — enfatizo.
Ele balança a cabeça e, para a minha surpresa, arrasta a cadeira de rodas
para trás. O objeto que tem em mãos desaparece em um dos bolsos da calça.
Seus olhos vão de lá para cá, agitados com o de um animal acuado sob
luzes fortes. O cérebro inteligente parece estar a mil, em busca de uma
solução para aquela conversa, mas sem de fato encontrá-la.
— E se fizermos diferente? — diz, a voz alguns tons elevada. Abre os
braços. — Olha só o tamanho dessa mansão! O seu pai e toda a sua família
podem vir comemorar o aniversário aqui!
Ah, não, penso, finalmente entendendo. A mera ideia de sair gatilhou as
inseguranças de Artur. Ajoelho-me à sua frente, pensando em maneiras de
tirá-lo daquele estado, mas nenhuma parece boa o suficiente. Sou
enfermeira, não psicóloga. Ele esteve tão, mas tão bem nos últimos dias,
que pensei que a novidade o deixaria animado, não transtornado. Solto um
longo suspiro. Preciso ser sincera.
— Papai é um homem caseiro, Artur. Morre de medo de avião, duvido
que entrará em um helicóptero.
— Não tem problema! Posso mandar buscá-lo de carro. E, bem, estamos
em uma ilha — ri sem qualquer humor, espalhando vibrações de
nervosismo por todo o quarto. — Será fácil chegar de barco!
Mordo os lábios e faço que não. Temo que aquilo o magoe, mas precisa
ser dito.
— Eu quero voltar. Estou com saudades — solto em voz baixa. Seus
olhos se arregalam. Forço-me a encará-lo — Do meu pai, da minha vizinha,
e do meu cantinho. Moro no mesmo lugar desde que nasci. Nunca passei
tanto tempo longe.
Artur balança a cabeça.
— Pensei que você estivesse feliz aqui.
— Estou feliz — digo, tornando a me aproximar. Seguro suas mãos.
Estão frias. Esfrego os seus dedos, tentando aquecê-los. — Muito, mas
muito feliz.
— Ainda assim quer me deixar. — Ele vira o rosto.
— Não! Por isso quero que você vá comigo — aperto os seus dedos,
para enfatizar. Ele não devolve o aperto. — Podemos voltar em uma
semana, Artur. Eu só... — minha voz falha. Droga! Detesto estar a ponto de
chorar. — Eu só quero passar alguns dias em casa.
— Então volte. — Artur diz, tão baixo que quase não escuto.
— Volte comigo — imploro. — É por pouco tempo.
Ele nega com a cabeça.
— Você sabe que não saio da mansão.
— Sim. Assim como sei que é capaz de sair dela — aperto os seus dedos
com mais ênfase.
Algo muda. Não sei explicar o quê, mas muda. Artur puxa as mãos com
tamanha força que a cadeira de rodas vai alguns centímetros para trás. Ele
me encara. Os pontos dourados das íris castanhas se apagaram. Seu olhar se
tornou sombrio e cheio de raiva.
— Nada me fará sair dessa mansão! — grita. A voz grave reverbera
pelas paredes de vidro. — Está me entendendo? Nada!
Encolho-me contra mim mesma, sem acreditar no que está acontecendo.
— Você prometeu — digo baixinho.
— O que?
— Que não gritaria comigo.
A compreensão volta aos seus olhos, mas é tarde demais. Dou um passo
para longe. O peito de Artur sobe e desce, ofegante, a incredulidade de
volta ao rosto bonito. Uma mecha de cabelo caiu sobre o seu olho, mas ele
não faz nenhum movimento para tirá-la. Apenas observa enquanto, passo a
passo, retorno até a porta do quarto.
— Aonde você vai?
Enrijeço os ombros e aprumo a postura.
— Para casa.
— Mulher teimosa! — grita de novo, mas dessa vez não me encolho.
— Eu? Olha só quem está falando! — rebato, indignada.
Ele balança a cabeça, ignorando o que acabei de falar. Aponta o dedo
indicador em minha direção.
— Saiba que não precisará voltar se passar por aquela porta!
Abro a boca para rebater, mas a voz fica presa na garganta. A dor no
peito é grande demais para que eu possa falar. Mantenho a postura e seguro
a vontade de chorar.
Encaro o homem à frente. Seus olhos tornam a se arregalar, como se
tivesse percebido o que acabou de dizer, mas dessa vez não me importo. Eu
me apaixonei por Artur Milano, mas de repente estou farta dele.
Sem pensar duas vezes, continuo o meu caminho e cruzo a porta. Um
urro estrondoso irrompe as minhas costas, mas finjo que não escuto.
Caminho com calma até o quarto ao lado, vasculho a bolsa jogada sobre
a cama que deixou de ser usada e encontro o papelzinho dado por Salomão
no dia que desembarquei. Sei que a noite se aproxima, mas sei que posso
contar com ele. Outro grito chega até mim, mas ignoro. Volto a tirar o
celular do bolso e mando uma mensagem para o comandante.
Sua resposta é rápida. Em uma hora ele virá me buscar.
Capítulo 29 – Artur

Arrependo-me do que digo no instante em que as palavras cruzam os


meus lábios, mas é tarde demais. A dor nos olhos de Milena é como uma
punhalada certeira. Sei o que fará antes mesmo que o faça. Ela engole a dor
e cruza a porta de cabeça erguida, sem olhar para trás.
Minha frustração irrompe assim que a madeira bate contra o batente. O
que sai do fundo da garganta não é um grito. É um urro. Alto a ponto de
machucar as cordas vocais.
Quero implorar para que ela volte, mas dessa vez não consigo. De
repente é como se eu não tivesse aprendido a falar. As palavras ficam presas
na confusão barulhenta do meu cérebro, incapazes de serem emitidas,
apenas sentidas. Os estilhaços do meu coração tornam a se espalhar, afiados
como navalhas, rasgando o meu peito em infinita agonia.
Porra, a garota só quer visitar o pai! Que tipo de monstro a impede de
fazer isso? E ainda fui convidado para ir junto! Poderia ter recusado o
convite como um homem civilizado e dito para que aproveitasse. Estaria
aqui, esperando que voltasse para os meus braços.
Mas a emoção, ah a maldita emoção, falou mais alto. Segundo ela,
Milena não vai voltar. O seu contrato acabou. Aposto que Ágata já
transferiu o salário e o bônus. A enfermeira pode quitar todas as suas
dívidas. Está livre para recomeçar.
Por que voltaria?
Por que ela disse que te ama, seu idiota!, penso, mas não é o suficiente.
A dor da rejeição torna a me envolver em seu véu obscuro. Agarro os
cabelos e grito de novo. Ela disse, mas eu não. Que garantia Milena tem?
Nenhuma.
O movimento dos meus braços faz com que algo escorregue do bolso e
caia no chão. Olho na direção do objeto, uma simples caixinha de veludo
azul escuro.
Fiz questão de trocar de joalheria. Passei horas diante do notebook até
encontrar uma pedra idêntica ao turquesa dos seus olhos. Paguei uma
fortuna de frete para que o anel fosse entregue o mais rápido possível.
Abaixo-me para pegá-lo, abrindo a caixinha em seguida. A joia cintila sob a
luz difusa como as estrelas que em breve tomarão o céu.
Eu finalmente iria dizer. Com todas as letras, uma por uma, o quanto a
amo. Faria uma declaração do fundo do coração e a pediria em casamento.
A minha vida se tornou um caos de incertezas. A única certeza é o meu
amor pela jovem enfermeira dos brigadeiros.
Eu diria ali, no momento em que ela entrou, se a sua surpresa não tivesse
sobrepujado a minha. Depois, não haveria um novo jantar. No lugar, pedi
para que Jacira preparasse sanduíches, canapés e frutas que pudéssemos
levar até o quarto. Passaríamos a noite, e quem sabe o dia seguinte,
enroscados um no outro.
Mas, mais uma vez, os meus nervos aflorados falaram mais alto. Sei que
preciso ir atrás dela. Pedir desculpas, antes que seja tarde, mas não consigo.
A insegurança me paralisa. A dor me domina. Estou confuso e perdido
como há muito não me sentia. O quarto escurece. A luz prateada da lua me
envolve sem trazer qualquer conforto. Abraço a mim mesmo, ciente de que,
mais uma vez, fiquei sozinho do lado errado da porta.
Não, eu não posso passar por aquilo de novo. Eu preciso dizer a ela.
Preciso falar antes que vá embora!
— Milena? — chamo, rouco. Não sei quanto tempo transcorreu desde
que saiu, mas ela não deve estar longe. Não pode estar longe. Estamos em
uma ilha! O espaço é limitado. Milena precisa estar na mansão. Uma
lágrima solitária transborda, escorrendo vagarosa pelo meu rosto. — Por
favor, Milena. Não me deixe sozinho.
Ninguém responde. O único barulho é o baixo murmurar das ondas,
quase inaudíveis graças à parede de vidro. As densas teias do pânico
começam a me dominar. Eu preciso de uma resposta. Qualquer uma.
E ela vem. O estrondo das hélices do poderoso helicóptero da VitalCare
Medical Services toma o silêncio. Em segundos passa diante da mansão,
seguindo até o heliponto a alguns metros de distância. Balanço a cabeça,
sem acreditar.
E fico completamente louco.

O celular vibra sem parar. Abro um dos olhos, vendo-o jogado nos
lençóis a poucos centímetros de distância. É impressionante que ainda
esteja funcionando. Sei que o joguei no chão após a última chamada negada
de Milena, mas pelo visto o peguei na inútil esperança de que ligasse de
volta. Não ligou, e não é ela quem liga agora.
Remexo-me sobre os lençóis. Uma dor pungente sobe pelas minhas
coxas, atinge a coluna vertebral e se irradia por todo o meu corpo. Uma
noite. Uma única noite sem tomar os malditos remédios e a dor fantasma
voltou, mas quem se importa? O meu corpo inteiro dói sem que ela precise
se manifestar.
A vibração se encerra, apenas para começar de novo. Bufo alto e afundo
a cabeça na maciez do travesseiro. Nunca tentei me sufocar. Talvez
funcione, se eu ficar por tempo o suficiente. Permaneço ali, olhos abertos
encarando o vazio, ciente de que não dará certo. A minha mãe já dizia: vaso
ruim não quebra. Não quebra mesmo. Aposto que viverei até os cem anos.
Forço-me a virar de barriga para cima, tentando ignorar as pontadas de
dor. Em segundos estou sentado sobre a cama. Caí em um sono agitado
desprovido de descanso, sem me dar ao trabalho de fechar as persianas.
Nem poderia: quase todas as lâminas de tecido foram puxadas e jogadas no
chão.
Pela quantidade de luz que entra no quarto, deve ser quase meio-dia.
Percorro os destroços com indiferença. A mesinha de cabeceira virada. Os
tapetes rasgados. O quadro com o centro furado. As próteses jogadas contra
a parede. Sobrou até para a cadeira de rodas.
Jacira apareceu minutos após os meus berros se tornarem
ensurdecedores, mas o que a pobre senhora poderia fazer além do sinal da
cruz? Pegou o terço que mantêm enfiado no avental e saiu correndo dali o
mais rápido que conseguiu.
Davi surgiu, mas foi esperto em não tentar me conter. Seria inútil, então
também me deixou entregue a própria agonia. Deve ter voltado em algum
momento da noite, quando tudo finalmente se aquietou. Isso, ou a cadeira
de rodas se posicionou sozinha ao lado da cama e uma garrafa de água se
materializou como em um passe de mágica sobre o assento. Encaro o
líquido cristalino, sedento após tanto gritar, mas sem qualquer vontade de
aliviar a sede que acomete a garganta.
O maldito celular para de vibrar, apenas para começar de novo. Destravo
a tela e o levo até o ouvido.
— O que você quer, Ágata?
— SEU IDIOTA! — berra. Os meus tímpanos estremecem, mas
mantenho o aparelho onde está. — O VOCÊ FEZ COM A MILENA?
— Não fiz nada — rebato. A voz sai rouca, dolorosa. Custa falar, mas
não me importo. Que doa tudo o que tiver para doer. — Ela disse que queria
visitar o pai. Então permiti que fosse visitar o pai.
— E como deu essa permissão? — questiona, irritada como nunca vi. E
olha que Ágata teve muitos, mas muitos motivos, para se irritar comigo. —
Porque primeiro ela mandou um áudio superanimado contando sobre o
aniversário. Que sentia falta de casa e como seria ótimo que você pudesse
acompanhá-la, assim não precisaria dividir a sua saudade. Que esperava que
você fosse, porque o pai estava ansioso para te conhecer pessoalmente!
Engulo em seco.
— Ágata...
— Ágata é o caralho! — interrompe com brusquidão. Fecho os olhos. —
Não sei se ela te disse tudo isso, e também não quero saber! Só sei que,
horas depois, enviou um áudio quase chorando, dizendo que estava
deixando a ilha. Para você estar aí, em meio aos destroços do seu quarto, só
posso suspeitar que o convite para comemorar o aniversário do pai dela não
foi bem recebido!
— Como você sabe que eu...
— Você acha que sou idiota? A Jacira ligou desesperada! Por um
instante pensei que fosse ter um infarto! O Davi precisou interromper um
encontro com um surfista na vila para voltar à mansão! Olha só quanta
confusão você causou por ser um grande idiota!
— Chega! — berro. — Não vou admitir que fale assim comigo!
— Eu vou falar com você do jeito que eu quiser! — berra de volta. —
Estou cansada disso, Artur!
— Está porque quer! Você sabe muito bem qual era a minha intenção. —
A voz falha, e não é por causa do estresse. As lágrimas irrompem. — Eu
não precisava estar aqui.
A linha emudece. Não sei se Ágata desligou, mas deixo que o celular
escape dos meus dedos e caia sobre os lençóis. Cubro os olhos com as
mãos, mas é impossível conter a dor que escorre pelo meu rosto. Céus,
como estou cansado. Desde o acidente só me senti bem ao lado de Milena.
Todos os dias anteriores foram de dor e exaustão. Eu preciso tê-la de volta,
caso contrário não preciso mais ficar aqui.
Ouço o meu nome sendo chamado. Penso em ignorar, mas tateio em
busca do celular. A respiração aliviada de Ágata ultrapassa quilômetros de
distância e chega aos meus ouvidos, mas a sua voz está carregada de tensão.
— Eu preciso contar uma coisa.
— O que? — pergunto. Algo em seu tom me põe em alerta. Empertigo-
me sobre a cama. — O que aconteceu, Ágata?
— A Milena sofreu um acidente.
O meu coração falha uma batida.
— O que? — berro, sem entender por completo.
— Calma...
— Calma? Como você espera que eu mantenha a calma? — pergunto,
desesperado. Passo a mão livre pelos cabelos embaraçados. — O
helicóptero caiu? Vamos, me diga!
— Não caiu, não! — tenta me tranquilizar. — Ela está internada no
Hospital Central da VitalCare, mas...
O meu cérebro nubla. Entra em um turbilhão descontrolado.
Lembro-me de acordar confuso e sozinho dentro de um quarto. De
querer ouvir uma palavra gentil, mas ser bombardeado por mentiras. Traiu
ou não traiu?, os tabloides questionavam. Do quanto isso me fez mal. Faz,
até hoje. A mera ideia de ser visto em público me causa profunda agonia.
Por conta da minha condição. Por conta de uma mentira.
Dói, mas o que é uma dor em meio a tantas outras?
Pela primeira vez nada disso importa. Não quero que Milena acorde
sozinha em um quarto de hospital.
— Peça para o Salomão vir me buscar — interrompo a explicação que
não ouvi. — Eu preciso ir a São Paulo.
Capítulo 30 – Milena

O que aconteceu?
Tento abrir os olhos, mas a claridade é tamanha que me obrigo a fechá-
los. Não escuto nada além do suave som da minha própria respiração
misturada a bips e zunidos distantes. Os pensamentos confusos se tornam
mais confusos ainda.
Eu estou em um... hospital?
Tento me mexer e o colchão macio suspira debaixo do meu corpo
envolvo em um lençol. Uma pontada de dor sobe pelo meu braço direito.
De repente ele parece pesar uma tonelada. O que aconteceu?, repito para
mim mesma. Forço o cérebro, tentando me lembrar.
Salomão levou pouco mais de uma hora para chegar na Ilha das Rosas.
Os meus olhos se encheram de lágrimas quando vi o helicóptero se
aproximando, mas me mantive firme. Agradeci a gentileza em me buscar
com tamanha urgência e entrei na aeronave. Já havia me despedido de
Jacira na porta da mansão, quando ela me abraçou e me lançou um
profundo olhar de pena.
Ágata não estava presente na sede da VitalCare. Lembro de olhar em
volta, sem saber o que fazer, quando o seu motorista apareceu e se ofereceu
para me levar em casa. Aproveitei o trajeto de carro para responder a
mensagem da nossa patroa. Agradeci a oportunidade, mas disse que não
queria renovar o contrato. Depois disso desliguei o celular. Não queria ser
obrigada a dizer o motivo. Ela que perguntasse ao irmão.
Cheguei em casa em meio a uma névoa de melancolia. Toquei a
campainha, vendo Ernesto e Bernadete abrindo a porta com olhos
arregalados. Esforcei-me para botar um sorriso no rosto e anunciei que
estava de volta. Papai caminhou apressado, me puxando para um abraço.
A única felicidade genuína foi vê-lo bem. Aqueles três meses o mudaram
para melhor. Parecia fortalecido. Mais vivo. Ele e a vizinha não disseram
nada, mas qualquer pessoa é capaz de ver que estão apaixonados. Não
toquei no assunto. Deixei que papai contasse a novidade quando fosse
conveniente. Talvez a minha alegria em vê-los juntos fosse maior se eu não
me sentisse tão vazia.
Eles logo notaram algo errado. Perguntaram se estava tudo bem, menti
dizendo que sim. Falei pouco. Comi pouco. Logo pedi licença para ir
dormir. Apenas ao deitar na cama permiti que as lágrimas viessem.
Silenciosas de início, até se tornarem um choro contido. Em meio a elas,
liguei o velho notebook e paguei boleto a boleto, até quitar todas as dívidas
hospitalares de papai.
Pronto. Eu estava livre, ainda que o meu coração continuasse preso a um
homem em uma ilha.
Em algum momento dormi. Lembro de acordar com o computador sobre
a barriga e pensar: a partir de hoje não precisarei cuidar de Artur. E
imaginar que, há vinte e quatro horas, eu acordava com sua mão possessiva
me puxando contra o seu corpo quente e forte. As lágrimas ameaçaram
retornar, mas não lhes dei vazão. Ergui-me da cama e decidi fazer uma
caminhada.
Ainda era cedo. Cedo a ponto dos pássaros não terem saído dos seus
ninhos para cantar. A luz difusa do amanhecer começava a tomar as ruas do
meu bairro quando coloquei o pé para fora. Asfalto, no lugar de areia.
Buzinas, no lugar do barulho do mar. Uma brisa cinzenta percorreu o meu
corpo quando comecei a andar. Distraída, percorrendo as ruas sem rumo,
atravessando avenidas sem saber onde as pernas seriam capazes de me
levar.
E só. Não me lembro de mais nada.
Tento abrir os olhos de novo. Mantenho as pálpebras erguidas em uma
diminuta fresta até me acostumar com a claridade. Sim, estou em um quarto
de hospital. Parece a suíte master de um hotel cinco estrelas, mas com
certeza é o quarto de um hospital. Só assim para explicar o monitor
multiparâmetro de sinais vitais e o soro conectado a um dos braços. Franzo
o cenho, ainda sem entender por que o outro está tão pesado, quando escuto
gritos do lado de fora.
— Eu preciso vê-la! — Uma grave voz masculina brada.
— E eu já falei e repito: o senhor só irá fazer isso depois que ela acordar!
— Alguém retruca no mesmo tom.
— Mas ela não pode ficar sozinha!
— Pode e vai ficar! Não vou permitir que um grosseirão chegue perto da
nossa paciente sem autorização!
— Do que me chamou?
— Isso mesmo que o senhor ouviu!
— Sua enfermeira insolente! Eu sou o dono desse hospital!
— Aham! E eu sou a primeira-dama dos Estados Unidos da América!
Uma sequência de palavrões se sobrepõe às vozes, até que a porta se
abre com um estrondo e Artur Milano irrompe para dentro do quarto. Seus
olhos cintilam ao me ver, mas é por pouco tempo. Logo um par de mãos
fortes segura as manoplas da cadeira de rodas e o puxa com brusquidão para
trás. Seu rosto é tomado pela mais pura indignação.
— Você não tem o direito de fazer isso! — diz, tentando agarrar as rodas
com as mãos. Ele está a meio caminho de sair do quarto quando consegue
se firmar no lugar. A enfermeira bufa de raiva.
— E você não tem o direito de ficar aqui! — rebate, tentando puxá-lo
para fora sem sucesso. — Eu vou chamar o segurança!
— Deixa ele ficar — peço, bem baixinho. A expressão enfezada da
enfermeira muda no mesmo instante. Larga a cadeira de rodas e caminha a
passos largos em minha direção.
— Ah, meu bem. Como está se sentindo? — pergunta, cheia de carinho.
Nem parece a mesma pessoa que estava discutindo há poucos minutos.
— Confusa — resumo. Ela assente, solidária. Confere o soro e o
monitor, parecendo contente com o que vê.
— Em breve um médico virá conversar com você — olha de soslaio para
Artur. — Tem certeza de que ele pode ficar?
— Tenho. Obrigada.
— Não tem de quê. Qualquer coisa é só chamar apertando aqui —
explica, indicando um botão vermelho ao lado da cama.
Murmuro um agradecimento e ela se afasta, bufando como uma gata
irritada ao passar ao lado do magnata. Ele pouco se importa. Impulsiona a
cadeira de rodas até parar ao meu lado. A cama está elevada, mas Artur
ainda consegue me observar.
— Ah, Milena — diz, pesaroso. Estende a mão, mas hesita, sem saber se
possui autorização para me tocar. Meneio a cabeça de leve, permitindo que
os seus dedos venham até mim. O toque é delicado, mas faz com que toda a
minha cabeça doa. Solto um pequeno gemido e os seus olhos se enchem de
água. — Não era para isso ter acontecido. Eu sinto tanto, mas tanto!
— O que... aconteceu? — hesito em perguntar.
— Você foi atropelada ao atravessar uma avenida dois ou três
quilômetros longe da sua casa — conta, acariciando os meus cabelos. — O
motorista estava dentro do limite de velocidade e tentou frear, mas mesmo
assim acabou te acertando. — Ele desce os olhos pelo meu corpo, como se
não soubesse como continuar. — Você caiu no chão e bateu a cabeça.
Também trincou um dos ossos do braço, não lembro qual, mas o médico
achou melhor engessar. Os paramédicos viram que a sua última conversa
havia sido com o contato Ágata Milano – VitalCare e ligaram para ela. Ela
pediu que te trouxessem para cá imediatamente.
— Oh — digo, enfim olhando para baixo. Isso explica por que o braço
está tão pesado. Aos poucos entendo por que não ligaram para o meu pai.
Por motivos de segurança o seu contato está marcado apenas como Ernesto
Alves, não como Papai. — Vocês avisaram o meu pai?
Ele morde os lábios antes de falar.
— Eu e Ágata ficamos com medo de deixá-lo preocupado, então
achamos que seria melhor contar pessoalmente... — engole em seco. —
Liguei e avisei que, em breve, a levaria para casa. Mas não contei o que
aconteceu.
Fecho os olhos e solto um longo suspiro. Pobre papai. Deve estar
morrendo de preocupação da mesma forma. Preciso encontrar o meu celular
e avisar que estou bem.
— Pelo menos não foi nada grave — torno a abri-los, encarando Artur
por completo. Ele me encara de volta e, pela primeira vez desde que o
conheci, parece carregar todo o peso da sua idade. O rosto abatido e cheio
de olheiras denuncia que teve uma noite terrível. Franzo o cenho,
lembrando da nossa discussão. — O que você está fazendo aqui?
— Eu vim cuidar de você — declara. Respira fundo, como se precisasse
sugar todo o ar para conseguir falar. — Quando a Ágata ligou e falou sobre
o acidente, por um instante pensei...
Sua voz congela. Leva tempo até que consiga respirar fundo e continuar.
— Eu pensei que tinha te perdido — murmura, tão baixo que quase não
consigo escutar. — Que nunca mais teria a chance de dizer o quanto te amo.
Pisco, sem saber se entendi direito.
— Você...
— Eu te amo, minha bela Milena — corta, desesperado. Os dedos leves
se afastam dos meus cabelos, tomando a minha mão. Ele a aperta com
força. — E olha só o que eu fiz? — afasta-se, correndo os olhos por todo o
meu corpo.
— Não é culpa sua — digo, tentando me sentar. — Eu sabia das suas
inseguranças, mas fiquei tão empolgada com o seu progresso que não me
dei conta de que, talvez, você não estivesse pronto para sair da mansão.
Pensei que ficaria animado, então contei como se fosse uma grande
surpresa. Deveria ter contato com mais calma.
— Não! Não vou admitir que você diga isso! — declara, convicto. — Eu
que, mais uma vez, falhei em controlar a porra dos meus nervos. Por mais
que eu estivesse com medo, jamais deveria ter explodido daquela maneira.
Deveria ter respirado fundo e pensado de forma sensata. O problema é
que... — engole em seco antes de continuar. Seu tom de voz se torna
trêmulo. — Naquele momento, só pensei que você não iria voltar. Que eu
tornaria a ser um homem amargurado, sozinho em uma mansão gigantesca.
Detesto aquela versão de mim — cospe, desgostoso. — A do Artur irascível
que só queria acabar com tudo. Foi você quem pegou os estilhaços
espalhados pelo meu peito e juntou caquinho por caquinho, até que o meu
coração estivesse pronto para bater de novo. E ele bateu. Por você. Sempre
por você. Saber, mesmo irracionalmente, que eu poderia perder a mulher
que resgatou o melhor de mim, me deixou em pânico. Não suporto viver um
segundo longe de você. Eu te amo tanto, mas tanto! Mas olha só — indica o
meu corpo com o queixo. — Você jamais estaria aqui se eu não tivesse
rompido a minha promessa!
— Não, não estaria...
— Então! Eu fui um...
— E você não estaria aqui comigo.
Artur arregala os olhos, enfim compreendendo a enormidade do que fez
ao sair da mansão. Seus ombros se encolhem. De repente ele parece muito,
mas muito cansado.
— Desculpe — murmura de cabeça baixa. — Por favor, me desculpe.
Fui um tolo egoísta. Não queria ter dito aquele monte de merda.
Seus ombros voltam a tremer em um choro compulsivo. Olho para os
lados, em busca do controle da cama. Enfim consigo abaixá-la até uma
altura confortável para alcançar um homem sentado em uma cadeira de
rodas, mas o magnata é mais rápido. Abraça-me pela cintura com tamanha
força que por um instante fico sem ar.
Minha mágoa se esvai. Sei que, talvez, devesse dar um gelo em Artur.
Fazê-lo se arrastar. Implorar pelo meu retorno aos berros. Mas eu não sou
assim. Não quero que Artur se arraste, quero que ele caminhe. Por mais que
suas palavras tenham me ferido, o conheço bem o suficiente para saber que
foram ditas no calor do momento por um homem desesperado. Abraço-o de
volta.
— Está tudo bem — ergo a mão até conseguir afagar os seus cabelos. —
Eu te desculpo. E também te amo.
Ele levanta o rosto.
— Depois de tudo o que fiz... você ainda me ama?
Assinto.
— Sim — digo com simplicidade. — Posso acreditar em contos de
fadas, mas sei que eles não existem. A vida real é assim, com os seus altos e
baixos. E está tudo bem.
Sua força retorna ao me encarar.
— Juro para você, por tudo o que é mais sagrado, que não vou falhar de
novo. Posso estar longe de ser um príncipe encantado, mas você é a minha
princesa, Milena. Vou tratá-la como tal.
Sorrio, deslizando os dedos pelos seus cabelos.
— Então trate — brinco, puxando os fios de leve. — Não vou te dar uma
terceira chance.
— Garanto que ela não será necessária — acaricia a minha mão, fazendo
com que uma corrente elétrica percorra todo o braço engessado. Solta um
profundo suspiro de alívio. — Obrigado.
— De nada — digo.
Desço um pouco o corpo. Ele se estica, tentando alcançar a minha boca.
Nossa posição é péssima, eu sobre uma cama de hospital, ele sentado ao
lado em uma cadeira de rodas, mas estamos próximos o suficiente para que
possamos roçar os lábios um contra o outro. O beijo é cheio de carinho,
fazendo com que eu me recorde de todos os que trocamos desde a dança à
beira-mar.
Um objeto cai no chão com um pequeno baque. Olhamos em direção ao
som. É uma caixinha de veludo azul escuro.
— Ah, deve ter escapado do bolso de trás da calça. — Artur comenta, o
rosto tomado por um tom escuro de vermelho. Franzo o cenho. Apesar das
inseguranças vindas por conta do acidente, o magnata não é homem de
corar. Lembro do objeto em seus dedos no momento da discussão e a minha
curiosidade aflora.
— O que é isso? — pergunto. Artur inspira fundo e abre a caixinha.
Levo as duas mãos à boca, fazendo com que um bip soe alto pelo quarto.
Preciso conter um grito. — Uau! Você iria me pedir em casamento?
Artur arregala os olhos.
— Você aceitaria se casar comigo? — pergunta em tom de dúvida.
Deixo as mãos caírem no colo. Ai meu Deus, só falta ter interpretado
tudo errado.
— Sim — digo com cautela. — Eu aceitaria, se você pedisse.
Seus bonitos olhos castanhos se fixam nos meus, os pontinhos dourados
cintilando como estrelas. Há apenas a mais pura surpresa neles. Abro a
boca, pronta para perguntar o que ele iria fazer com o anel, quando um
sorriso do tamanho do mundo toma os seus lábios. Abaixa as vistas para o
conteúdo da caixinha. O ouro branco e a pedra azul turquesa faíscam em
toda a sua elegância.
— Comprei com essa intenção, mas pensei que, depois de tudo isso,
você não quisesse mais — passa a mão pelos cabelos, deixando-os ainda
mais bagunçados. O sorriso se alarga e sua voz se torna forte e poderosa. —
Milena Alves de Villeneuve, você aceita se casar comigo?
— Sim! — grito, puxando-o para um novo abraço desajeitado. Artur ri
alto e me abraça de volta. Beija todo o meu rosto, fazendo com que eu
gargalhe alto. — Quem diria!
— O que?
— Que eu seria pedida em casamento em um quarto de hospital —
estendo a mão. Artur segura a palma com reverência, deslizando o anel até
a base do dedo. Beija a pedra preciosa antes de olhar para mim.
— Depois comemoraremos em um lugar mais apropriado — pisca,
fazendo com que o meu rosto todo se aqueça. — Mas, antes, eu tenho um
segundo pedido a fazer.
— Qual?
— Sou egoísta em querer você só para mim, mas não quero que viva em
minha função — declara com gravidade. — Continue estudando. Faça uma
pós. Se especialize. Terei o maior prazer em pagar por tudo o que quiser,
mas se for do seu desejo, trabalhe. Continue levando os seus cuidados a
quem precisa.
— Pode deixar — levo a mão até o seu rosto. Ele fecha os olhos quando
acaricio a barba que cobre o maxilar. — Obrigada.
— Pelo que?
— Por me amar?
— Ah, Milena. — Ele volta a me abraçar, com bastante força dessa vez.
— Sou eu quem agradeço.
Capítulo 31 – Artur

Após uma agitada noite mal dormida, estou cochilando nos braços de
Milena quando o médico entra no quarto acompanhado da enfermeira
ranzinza. Ela me encara em tom de ameaça, descendo pelo meu rosto até
alcançar nossas mãos entrelaçadas. Arregala os olhos para o anel, mas sua
boca aberta em um imenso O não diz nada. O médico se concentra em
avaliar a minha noiva. A palavra dança no meu cérebro, clamando para ser
dita.
— Noiva — sussurro, gostando de como soa na língua.
Ela sorri de leve, voltando a se concentrar no médico. Responde às
perguntas com convicção, reclama de dor de cabeça, mas aparentemente
não há com o que se preocupar. Os exames estão normais. O braço irá se
recuperar. Pede apenas para que fiquemos atentos, passa uma lista de
recomendações e nos deixa a sós.
Milena já pode ir para casa.
A enfermeira fica mais um pouco. Com cuidado, retira o acesso na veia
da colega de profissão e confere se ela está mesmo bem. Faz menção de ir
embora, mas volta no último instante.
— Me disseram que você veio de helicóptero. É verdade?
— Sim — confirmo, grato pelo Salomão ter se lembrado do heliponto no
topo do principal pronto socorro da VitalCare.
— Então o que as outras enfermeiras estão dizendo é verdade. Você é
mesmo dono do hospital — pondera antes de estufar o peito. — Vai me
demitir? Se for, faça isso agora. Tenho uma pilha de contas para pagar e não
sou mulher de perder tempo.
Um sorriso sarcástico toma conta do meu rosto. Aquela ali teria me
domado a força se tivesse sido contratada pela Ágata.
— Acredite: os meus dias de demitir enfermeiras ficaram para trás.
— Ótimo. — Ela sorri de volta. — Espero que vocês sejam muito
felizes.
Sem dizer mais nada, dá as costas e nos deixa sozinhos. Milena espera a
porta se fechar para saltar da cama. Estendo os braços para ampará-la, mas
não é necessário. Ela parece bem, apesar do susto. Percorre o meu corpo de
cima a baixo.
— Cadê as suas próteses?
— Ah... — engulo em seco. — Os encaixes quebraram.
Seus olhos se estreitam.
— Como?
— Milena, acredite: fui sincero ao dizer que fiquei louco com a sua
partida — encolho os ombros. — Destruí o quarto inteiro. As próteses
estavam no meio do caminho e...
Ela balança a cabeça.
— Você as jogou contra a parede.
— Foi isso mesmo — abaixo a cabeça. Sua mão boa segura o meu
queixo e a leva para cima.
— Aposto que o Davi ficou furioso.
— Ficou.
— Aí Artur...
— Eu juro: isso não vai se repetir — começo a dizer, quase entrando em
pânico. Milena sorri cheia de carinho.
— Eu sei.
Céus, aquela mulher é boa demais para mim.
— Vamos embora? — pergunto. Ela assente e seguimos até a porta do
quarto.
Ninguém nos dá atenção, salvo um ou outro olhar curioso seguido de
cochichos quase inaudíveis. Aparentemente a notícia de que o dono do
hospital chegou de helicóptero se espalhou com a força de um fósforo aceso
jogado sobre um galão de gasolina.
O meu coração passa a bater mais forte, mas agora pelos motivos
errados. Milena parece pressentir a minha insegurança. Sua mão boa aperta
o meu ombro com força. Fecho os olhos, lembrando da quantidade de
paparazzis me aguardando do lado de fora da porta daquele mesmo
hospital. Os flashes. As perguntas gritadas. O pânico que tomou a minha
alma. Começo a suar frio, o corpo reagindo a desagradável experiência
passada como se ela estivesse acontecendo agora.
Abro os olhos e vejo uma profusão de fotógrafos e jornalistas se
aglomerando além do saguão. Os seguranças se esforçam, mas falham em
tentar tirá-los de lá. Paro onde estou. Milena para ao meu lado, parecendo
tão espantada quanto eu.
— Não é possível que alguém tenha vazado a informação — murmura.
— Pelo visto vazou — digo, tentando pensar em uma forma de contornar
a situação.
Há muito Salomão foi embora, mas poderia subir ao heliponto e pedir
que viesse nos buscar. O voo até a sede leva pouquíssimos minutos. Em
instantes nos veríamos longe daquele problema. Abro a boca, pronto para
fazer essa sugestão a Milena, quando um estalo soa no meu cérebro.
Sou o dono da VitalCare Medical Services, uma das mais avançadas e
bem-sucedidas empresas do setor médico do Brasil. Antes do acidente
comandava uma gigantesca rede de clínicas e hospitais com o que há de
mais avançado na medicina. Convivia com homens influentes e tomava
decisões capazes de impactar milhares de pessoas. Estou ao lado da mulher
mais incrível que tive a sorte de conhecer. A que desceu até o fundo do
poço, estendeu a mão e me trouxe de volta a luz. Ela me ama. Eu a amo.
Estou com medo do que?
— Vamos? — pergunta, estendendo a mão boa. Aprumo a postura sobre
a cadeira de rodas e envolvo os dedos nos seus.
— Vamos.
Seguimos um metro adiante, o suficiente para os fotógrafos notarem a
nossa presença. Apontam as suas câmeras. Preparam os seus flashes. E...
Voltam sua atenção para uma mulher. Os flashes cobrem o seu corpo,
mas ao contrário de mim, ela parece ansiar pela atenção. Um homem surge
e a abraça por trás em uma atitude protetora, mas visivelmente ensaiada
para sair bem na foto.
O queixo de Milena cai.
— Eu não acredito! — franzo o cenho, sem entender. Ela balança a
minha mão para cima e para baixo. — São eles! O casal da novela das
nove!
— Ah tá — deixo escapar, sem ter nada melhor para dizer. Não sei de
qual novela ela está falando, mas ainda assim olho o casal com atenção. São
lindos, como se tivessem sido fabricados um para o outro.
Pessoas comuns começam a se aglomerar no saguão, celulares em
punho, ansiosas para fazerem a sua própria cobertura. O casal não se
importa. Pousa para as fotos até que uma limusine irrompe do lado de fora.
Caminham até ela com sorrisos e tchauzinhos, fazendo com que a
aglomeração se dissolva em instantes. De um segundo para o outro é como
se nada tivesse acontecido.
Seguimos lado a lado, até chegarmos ao lado de fora. Alguns paparazzis
ainda estão por ali. Um deles termina de guardar a teleobjetiva na mochila.
Olha-me com atenção quando a coloca nas costas. Seu cenho se franze.
— Ei, eu sei quem você é — diz, estreitando os olhos. — É aquele ricaço
que sofreu um acidente de carro e perdeu as duas pernas!
Mais delicado, impossível. Decido não me ofender.
— Eu mesmo.
O rapaz acende um cigarro.
— Parece que se recuperou bem.
— Tudo graças a ela — aperto a mão de Milena. Ela troca o peso de um
pé pelo outro, acanhada. O fotógrafo vira o rosto para soltar uma baforada
de fumaça.
— Que bom. Melhoras aí para vocês.
Sem dizer mais nada, nos dá as costas e vai embora. Milena tenta conter
uma risada, mas ela escapa da mesma maneira.
— Parece que você virou notícia velha — deixa escapar.
Assinto em concordância. Agora, aliviado diante de tamanha negligência
jornalística, chega a ser ridículo pensar que me preocupei tanto com isso.
O sedã de luxo do motorista de Ágata entra no hospital.
— Vamos para a sua casa? — pergunto.
— Vamos.

— Eu deveria te proibir de chegar perto da minha filha! — O senhor


Ernesto brada assim que estacionamos no meio fio.
— Calma, pai! — Milena pede. Remexo-me ao seu lado. Adoraria ser
capaz de descer para abrir a porta e amparar a sua saída, mas o motorista se
ocupa dessa tarefa. Ela encara o pai e abre um sorriso sincero — Eu estou
bem.
— Calma? Como você espera que eu mantenha a calma? — questiona,
alcançando a filha a passos largos. O seu vigor é impressionante para um
homem que está se recuperando de um grave AVC. — A minha filha
querida chega de surpresa após passar três meses longe de casa, passa a
noite chorando dentro do quarto, sai de manhãzinha sem avisar e aparece
horas depois com um braço enfaixado! Desculpe, mas não está sendo fácil
manter a calma!
— Eu posso explicar — intrometo-me, saindo do carro. Agradeço ao
Moacir com um aceno de cabeça e me posiciono sobre a cadeira de rodas.
— Prazer em te conhecer pessoalmente, senhor Alves de Villeneuve. Sou
Artur Milano.
Estendo a mão em um cumprimento, mas ela é ignorada.
— Pouco me importa quem você é! — Ernesto puxa Milena contra si. —
Quero que fique longe da minha filha!
— Pai... — A enfermeira começa.
— Não quero saber de “pai” — o homem retruca em uma voz de falsete.
— Olha só o que aconteceu! Você está de castigo, está me entendendo?
— Pelo amor de Deus! A sua filha tem vinte e dois anos! — Uma
mulher se intromete. Pelo visto é a tal da Bernadete. — Não pode colocá-la
de castigo. O Artur enfatizou que foi um acidente e...
— Não quero saber! — explode, uma veia saltada surgindo em sua testa.
— Será que não podemos conversar lá dentro? — pergunto. Os
paparazzis podem não ter dado a mínima atenção à minha presença, mas a
vizinhança curiosa parece ávida para saber mais sobre a última novidade
daquela rua sem saída.
Logo percebo que falei a coisa errada. O pai de Milena fica lívido. Seu
rosto se torna tão vermelho de raiva que, por um instante, temo que vá
sofrer um novo AVC.
— E quem disse que vou te convidar para entrar na minha casa? É por
sua culpa que a minha filha está desse jeito!
Sua fala me perfura como uma punhalada.
— Chega! — Milena intervém. — Não é culpa de Artur, nem de
ninguém, que decidi fazer uma caminhada matinal e acabei sendo
atropelada!
Ernesto range os dentes.
— Mesmo assim! Não sou obrigado a...
— Vamos nos casar, papai — diz de supetão, estendendo a mão com o
anel. Ela faísca sob a luz dourada do sol do final da tarde. Bernadete solta
um sonoro Uauuu! enquanto dá pulinhos no lugar. Ela, pelo visto, adora um
casamento. Já Ernesto arregala os olhos. Não, talvez ele não sofra um AVC.
Quanto a infartar...
Seus olhos escuros se fixam nos meus.
— Você teve a ousadia de pedir a mão da minha filha sem se dignificar a
conversar comigo antes? — sibila.
— Ei! Não estamos mais na Idade Média! — Bernadete se indigna.
— É por isso que o mundo está do jeito que está! Ninguém mais tem
respeito pelas tradições e...
— Pai! — interrompe Milena. Ela está prestes a chorar. Estico a mão
para tocá-la, assumindo a vez de lhe transmitir um pouquinho de força. É a
deixa que precisava para me abraçar de lado em uma tentativa de mostrar
que sim, estamos juntos. — Por favor, será que podemos entrar?
Ernesto nos encara antes de soltar um longo suspiro.
— Podemos.
Faz um sinal, nos dando passagem. Sigo-os para dentro de casa. Ela é
muito diferente daquilo que estou acostumado, preciso admitir, mas há
muita beleza em sua simplicidade, como nos panos de pratos branquinhos
com a barra bordada em crochê, nos livros espalhados de forma displicente,
ou nos quadros com fotos de Milena com cinco ou seis anos de idade. Uma
estonteante mulher loira a abraça em uma delas. Ninguém precisa dizer que
aquela é a sua mãe. Elas são idênticas.
Manobro a cadeira de rodas com cuidado, evitando bater nos móveis. O
espaço é apertado, mas bem dividido. Uma casa pequena e simples, mas
que respira lar. Não é de se admirar que Milena quisesse voltar. A minha
mansão parece imensamente fria diante de tamanho acolhimento.
Bernadete se adianta em me oferecer água ou café. Agradeço, mas ela
continua insistindo até que aceito um copo de suco de laranja por educação.
É a única que se mostra animada diante da atual circunstância.
Um aroma delicioso de carne assada transpõe a cozinha e envolve toda a
sala. O meu estômago ronca alto, lembrando que estou há horas sem me
alimentar.
— Ah, você precisa ficar para jantar! — Ela diz, me oferecendo o suco.
Ernesto se eriça todo, visivelmente incomodado. Deixo para pensar
naquilo depois. Agradeço o refresco enquanto Milena fica com um copo de
água. Olho preocupado para ela. A jovem enfermeira parece muito cansada.
— Está tudo bem? — pergunto baixinho. Ela assente.
— Está, sim. Só estou com um pouquinho de dor.
— Você precisa de algum remédio, minha filha?
— Já compramos — tiro a sacola do cesto da cadeira de rodas e a seguro
em mãos, sem saber muito bem para quem entregá-los. Ernesto solta um
longo suspiro.
— Por favor, contem o que aconteceu.
Eu e Milena nos entreolhamos. Acabo tomando a palavra. E conto. Tudo.
Não apenas o que aconteceu nas últimas vinte e quatro horas, mas o que
aconteceu desde que uma certa enfermeira colocou os pés na mansão de
vidro da Ilha das Rosas e ousou enfrentar a fera em forma de homem que
vivia lá.
Ou melhor, fingia viver.
Ele só passou a viver de novo após alguém ser capaz de mostrar que
havia motivos para tanto. Sua vida virou de cabeça para baixo. Seu coração
foi partido em mil pedaços. Ele odiava a tudo e a todos. Mas, ainda assim,
merecia ser amado.
E ela o amou, mesmo com todas as suas imperfeições. Aguardou
pacientemente enquanto ele sentia o mesmo, mas era incapaz de dizer. Ela
era perfeita demais. Poderia rejeitá-lo. Ele aguentou uma vez. Não
aguentaria uma segunda. Não quando a amava como jamais amou nenhuma
outra.
Ao interpretá-la mal, sentiu-se ameaçado. Ela se foi. Mesmo com medo,
foi atrás dela. Ele foi perdoado. Vai fazer valer esse perdão por hoje e todo
o sempre. Agora não teme nada.
— É isso — digo, ao terminar o relato. O copo de suco vazio jaz entre os
meus dedos. Bernadete o preenche até a borda. Lanço-lhe um olhar
agradecido e bebo um gole, aliviando a garganta machucada. Permaneço em
silêncio. Estou exausto. Tudo o que desejo é me deitar ao lado de Milena e
ter uma longa noite de sono.
Ernesto ouviu a tudo com atenção. Olha para sua protegida, depois para
mim. Abre a boca para falar, mas hesita. Dá para notar que o lado esquerdo
do seu corpo ainda está paralisado, mas de forma quase imperceptível. A
fisioterapia com certeza está fazendo muito bem a ele. Torna a tentar e,
dessa vez, sua voz preenche a pequena sala de estar.
— Você parece ter idade para ser pai da minha filha.
— Acredite, eu disse isso a ela.
— E eu não me importo — Milena murmura. — Eu o amo, papai.
Ele assente, reconhecendo o sentimento. Olha com atenção para mim.
— E você?
— Com todo o meu coração — digo, enfático
Aos poucos um sorriso muito parecido ao da garota que arrebatou o meu
coração desponta em seus lábios.
— Então o que me resta a não ser lhes dar a minha benção?
Milena sorri de orelha a orelha. De repente todo o cansaço desaparece do
seu corpo. Ela beija os meus lábios, mas mal consigo devolver o carinho:
ela já correu em direção ao pai. Ernesto ri diante da alegria da filha,
abraçando-a com força.
— Obrigada, papai.
— Não há o que agradecer — diz, devolvendo o seu sorriso com
sinceridade. Encolhe os ombros, de repente encabulado. — Eu também
preciso contar que...
— Vamos nos casar! — Bernadete irrompe da cozinha, mostrando o seu
anel. Milena arregala os olhos e solta um grito, abraçando a vizinha. As
duas pulam no mesmo lugar, enchendo a pequena casa com sua alegria.
Ergo uma sobrancelha para Ernesto.
— Parabéns — digo, estendendo a mão. Dessa vez ele a aperta.
— Obrigado. Vamos jantar?
Aceito o convite. Em minutos estamos sentados diante de uma pequena
mesa redonda. Bernadete pede licença para fazer uma oração, agradecendo
por estarmos ali, tendo a chance de amarmos de novo. Não sou religioso,
mas suas palavras me comovem. Há verdade contida nelas. Muita, mas
muita verdade.
Eles contam como sempre se gostaram, mas temiam se aproximar. Eram
muito diferentes, pensaram. O distanciamento de Milena fez com que se
aproximassem e percebessem que, no fim, tinham mais em comum do que
imaginavam.
Seus planos estavam bem traçados: iriam se casar em uma cerimônia
simples, apenas para as pessoas mais próximas, e pretendiam se mudar para
a tranquilidade do interior. Milena se mostrou surpresa, mas aprovou a ideia
do casal. A casa da sua infância lhe era muito querida, mas ela própria não
iria mais morar lá.
O jantar se estende, transformando-se em uma comemoração. Salivo
quando uma travessa de brigadeiro de capuccino é colocada na mesa. Pego
uma generosa porção, pensando onde passarei a noite. A minha cobertura
está fechada. Precisaria, no mínimo, de uma boa limpeza para ser habitada.
Ágata provavelmente terá espaço para mim, ou também posso ir para um
hotel, mas nenhuma das possibilidades se mostra satisfatória.
— Passe a noite comigo — Milena pede. Assinto, aliviado. É uma pena
que o seu pai escuta.
— A casa é pequena, mas podemos pegar um colchão, colocar na sala
e...
— Pai — sua filha interrompe. — Acredite, eu e Artur já dormimos
juntos.
O homem nos encara, chocado. Bernadete irrompe em uma estrondosa
gargalhada.
— Às vezes você parece ter saído de dentro de uma caverna, Ernesto —
faz um sinal para nós, indicando que está tudo bem. — Fiquem tranquilos,
nós também dormimos juntos.
Milena se junta à gargalhada enquanto eu e Ernesto nos entreolhamos,
encabulados.
Ainda é cedo, mas estamos realmente muito casados. A jovem
enfermeira é a primeira a pedir licença. Toma banho e faz menção de se
retirar para o seu quarto quando me olha com atenção. Encolho os ombros.
Ninguém precisa avisar que a casa não é adaptada para um homem que
perdeu as duas pernas. Longe dos apoios e da cadeira de banho, precisarei
de alguma ajuda.
Bernadete traz uma banqueta de plástico e a posiciona dentro do box. A
cadeira de rodas é larga demais para passar pelo banheiro apertado, mas dou
um jeito. Está longe de ser um banho ideal, mas pelo menos consigo fazer
com que todo o suor acumulado vá pelo ralo.
Ao sair do banheiro, Ernesto me encara como se dissesse: o sofá segue
disponível. Forço-me a ignorá-lo e entro no quarto. Milena me espera
deitada sobre uma cama de solteiro.
— Vem cá — convida, abrindo espaço. Giro as rodas da cadeira até ela.
— Ficaremos apertados.
— Sim — comenta, olhando para o lençol cor-de-rosa. — Você é muito
grande, Artur. Teremos que dormir abraçados.
Deito-me ao seu lado e a puxo sobre o peito. Milena se enrosca no
mesmo instante, pousando a cabeça no meu coração.
— Que chato — brinco, afundando o nariz no meio dos seus cabelos. —
Ser obrigado a dormir abraçado com você.
— Pois é — ri, se aconchegando ainda mais. Estico o braço, puxando o
edredom sobre nós dois. Ela solta um suspiro deliciado. — Muito chato.
Capítulo 32 – Milena

É curioso como o tempo passava devagar na Ilha das Rosas. Não de


forma desagradável. Como efetivamente deve passar. Com calma. Com
apreciação. Sem qualquer pressa. Muito diferente do tempo em São Paulo.
Aqueles poucos dias na cidade não passam: eles voam.
Pisco e chegamos no domingo, data da comemoração do aniversário do
meu pai. Ernesto convidou alguns amigos de longa data. Além de felizes
por poderem comemorar mais um ano em sua companhia, todos ficaram
surpresos ao saber que o velho professor iria se casar. Eu e Artur
mantivemos o sigilo. Ali, naquela ocasião, o centro das atenções era papai.
Pensei que o magnata desejaria voltar à mansão tão logo a comemoração
passasse, mas ele insistiu em ficar. Para que eu pudesse passar mais tempo
com o meu pai, e para que pudesse resolver seus negócios na cidade.
Irrompeu de surpresa na sede VitalCare para descobrir que as reuniões
sobre a construção da clínica na Ilha eram de fachada. Absolutamente nada
havia sido aprovado.
Segundo Ágata, seu acesso de fúria se tornou um marco na história da
empresa. Em um estalar de dedos Artur assumiu a liderança que sempre foi
sua, mandou os responsáveis embora e tomou as rédeas da situação. As
ações caíram, mas ele pouco se importou. Ou o foco mudava, ou os
responsáveis mudavam. A partir de agora a VitalCare não se importa apenas
com os lucros. Ela se importa com as pessoas.
Enquanto a mansão de vidro ficou sob os cuidados de Jacira, a cobertura
da zona sul foi limpa e voltou a ser habitada. No fundo sabia que Artur
preferia a minha casa, mas o espaço era um problema. Ele tinha
dificuldades para manobrar a cadeira de rodas e precisava de certos
acessórios que a pequena residência dos Villeneuve era incapaz de
fornecer.
De início se preocupou com o meu braço, mas bastou que eu agarrasse
os seus cabelos de jeito para notar que não havia com o que se preocupar.
Eu o queria com o mesmo desejo de sempre. Ardente a ponto de me
queimar por inteira a mera visão do seu corpo. Artur me tomou naquela
primeira noite na cobertura. E em todas as outras.
O meu braço se recuperou aos poucos. Quinze dias após a imobilização
estava apta a me juntar às sessões de fisioterapia de Davi. Ele reclamou por
Artur ter quebrado a prótese, reclamou por ser trazido de volta à selva de
pedra e reclamou de mais uma porção de coisas, mas se mostrou feliz em
ser escolhido como meu fisioterapeuta. Ao contrário do rabugento chefe, eu
era uma gentil princesa. Um prazer com quem se trabalhar.
Artur cumpriu sua promessa. Sua voz podia se elevar quando algo o
desagradava no trabalho, mas o leão se tornava um gatinho na minha
presença. Esteve ao meu lado nos momentos de dor. Lembrou dos meus
remédios. Aprendeu a fazer brigadeiro de capuccino apenas para me
agradar, mesmo que fosse incapaz de ferver um litro de água. Cuida de mim
da mesma forma com que cuidei dele. Eu me sinto protegida em seus
braços. Protegida e muito amada.
Estávamos abraçados um ao outro, procurando algo para assistir na
televisão, quando vimos a matéria transmitida no horário nobre da TV.
Segundo ela, a socialite Nicole Schmütz foi pega traindo o atual namorado.
O jornalista da rede sensacionalista enfatizou, em alto e bom som, se tratar
da mesma Nicole que meses atrás se separou de um magnata por ter sido
traída.
As redes sociais resgataram o caso e logo o feitiço se virou contra a
feiticeira. Ninguém mais acreditava em seu relato. Passaram a acreditar na
verdade: que Nicole inventou uma história qualquer para se afastar do
namorado que perdeu as duas pernas em um grave acidente de carro.
Traiu um, abandonou o outro. Em menos de vinte e quatro horas a
reputação que tanto queria manter deixou de existir. Nicole foi
completamente cancelada. Eu e Artur nos entreolhamos. Nunca vou me
esquecer do satisfeito sorriso demoníaco estampado em seu rosto.
A vida na cobertura era confortável, mas não demorou para sentirmos
saudades de casa. A nossa casa. A imensa mansão envidraçada à beira das
ondas tranquilas. O lugar onde havíamos nos conhecido, e não importava o
quanto nos distanciássemos, sempre iríamos nos encontrar. Artur poderia
seguir com o home office. Eu tinha vaga de trabalho garantida na futura
clínica. Queríamos voltar ao nosso cantinho. As manhãs enevoadas e
restauradoras. As tardes preguiçosas com um livro na mão. As noites
fazendo amor sob o manto das estrelas.
Nós só queríamos voltar.
— Prometa que irá nos visitar — peço a papai assim que ele me abraça.
— Prometo — seu aperto se torna mais forte. — Mas só se formos de
barco. Eu não entro naquele helicóptero de jeito nenhum!
Artur ri.
— Pode ficar tranquilo. Irei arranjar tudo.
— Ótimo — diz, se separando.
— Até breve. — Artur estende a mão. Papai a encara e, assim como fez
no dia em que se conheceram, não a aperta. Ao invés disso se abaixa até a
altura da cadeira de rodas e puxa o meu noivo para um abraço.
— Cuide bem dela.
— Pode deixar.
Papai se afasta e limpa uma lágrima do olho, mas logo está recuperado.
Bernadete abraça a sua cintura e ele a abraça de volta. Fico mais tranquila
em ir embora sabendo que papai fica em boa companhia.
Existem duas famílias interessadas em comprar a nossa casa. Uma delas
chamou a minha atenção: um casal com seu filho de dois ou três anos e um
cachorrinho. Se a venda for concretizada, Ernesto e a vizinha se mudarão
em menos de três meses para o interior do estado. Estão de olho em um
sítio bonito, um pouco afastado da cidade, mas ainda próximo o suficiente
para estarem perto de tudo. Querem se casar lá. Eu quase não consigo
conter a ansiedade.
Eu e Artur não conversamos a fundo, mas é certo que nos casaremos na
praia. Quando? Ainda não sabemos, mas sei o que se passa em sua cabeça
cheia de fios castanhos. O meu noivo quer caminhar, tão natural quando
sempre caminhou, até o altar. Vou esperar o tempo que for necessário. Não
quero correr quando sei que o terei para sempre.
Acenamos ao entrarmos no sedã de luxo. Se da primeira vez estava
apreensiva, sem saber para onde estava indo, agora parto repleta de
certezas. Papai e Bernadete acenam de volta, até o carro fazer a curva e o
seu até logo nos acompanhar apenas em pensamento.
Artur me puxa contra si e acaricia o meu braço. Aconchego-me contra o
seu corpo. O trajeto até o heliponto é curto, mas delicioso. Em poucos
minutos chegamos na sede da VitalCare.
Mais uma vez somos recepcionados por Ágata. A jovem CEO brinca
com o irmão enquanto nos leva até o helicóptero. Salomão parece orgulhoso
ao me ver. Ele sorri torto, assentindo de leve, como se aprovasse o meu
retorno. Confere se eu e o patrão estamos acomodados em segurança e liga
a aeronave. Mais uma vez nos despedimos com acenos, até Ágata se tornar
um pontinho distante no topo do prédio.
O céu azul de inverno permite que vejamos longe no horizonte. A
paisagem logo muda, os prédios cinzentos dão lugar ao verde da mata
atlântica. Em minutos o azul se mistura com o brilho cintilante do mar.
Não demora para a Ilha das Rosas surgir. O helicóptero faz a volta, nos
dando uma vista panorâmica do lugar. Dessa vez sou eu que procuro pelo
contato do homem ao meu lado. Artur me abraça de volta.
— É lindo, não é? — observo as rosas vermelhas entre as árvores.
— É sim — diz com sua voz grave.
Viro o rosto, dando de cara com seus cintilantes olhos castanhos. Artur
sorri e sei que não está falando da ilha.
Busco os seus lábios, cheia de necessidade. Seu abraço se acentua ao dar
passagem, permitindo que a minha língua busque a sua. Ele me toma por
completo, até me deixar sem fôlego. Beijo-o de volta, recebendo tudo o que
tem para dar.
Uma mão pesada desce pelas minhas costas até alcançar o cós do meu
jeans. Dedos ligeiros penetram no tecido e atingem a calcinha. Remexo-me
sobre o banco. Quero mais. Quero que ele atinja a minha bunda. Se insira
em minha zona proibida. Me tome como sua de todas as maneiras. Do seu
jeitinho brusco, mas apaixonado. Quero que...
— Ah-ham. — Salomão pigarreia. Separamo-nos como se tivéssemos
sentido um choque elétrico. O seu sorriso se alarga. — Chegamos.
— Obrigado. — O magnata agradece, ajeitando a camisa. Não me dei
conta que, no calor do momento, deslizei uma mão pela barra para arranhar
os gominhos da sua barriga. Tiro o cinto de segurança e me aproximo do
seu ouvido.
— Mais tarde — sussurro.
Todos os cabelos da sua nuca se arrepiam.
O comandante nos ajuda a descer. Não é fácil transpor a trilha de
cascalho em uma cadeira de rodas, mas Artur o faz sem reclamar. Sei que,
na próxima, ele a fará andando. Metro a metro, centímetro a centímetro, a
trilha se encurta para alcançarmos a mansão à beira-mar. Ela se descortina à
nossa volta, incrustada sob a areia como um imenso diamante. Sorrimos.
Chegamos em casa.
Jacira nos recebe à porta. Ela me abraça, depois abraça o chefe. Artur
transpõe a rampa que, em outra ocasião, foi responsável pela sua queda.
Inspira fundo ao cruzar a imensa porta e entrar. A cozinheira pede licença e
o magnata aproveita o momento a sós. Em um movimento ágil, me puxa
para o seu colo. Rio alto, tentando escapar, mas Artur é mais forte. Ignora o
rangido da cadeira e me prende contra si.
— Estou tão feliz!
— Eu também — digo, beijando a ponta do seu nariz. Ele ri. Ali, colada
ao seu peito, o som parece um alto ronronar. Seus olhos cintilam em um
profundo tom de castanho, interrompido pelos bonitos pontinhos dourados
que parecem vagalumes. Sua voz se torna solene ao perguntar.
— Milena e Milano?
Sorrio.
— Para sempre.
Epílogo – Artur

CINCO ANOS DEPOIS


A menina corre pela areia molhada, deixando uma trilha de pequenas
pegadas às suas costas. Limito-me em segui-la. Em determinado ponto da
minha vida jamais imaginei que teria uma filha, quanto mais uma tão
cabeça dura.
— Maitê! — chamo. Ela olha por sobre os ombros antes de seguir o seu
caminho. Pois é, cabeça dura e determinada. Como diz a minha amada
esposa: puxou o pai. Apresso o passo e a seguro pela cintura, erguendo-a no
ar. Sua risada estridente se espalha por toda a praia enquanto Amêndoa, a
vira-lata caramelo que adotamos pouco após voltarmos a mansão, late e
corre ao nosso redor — Te peguei, espertinha!
— Pegou! — ri mais alto. É impossível resistir. Deixo que a risada, mais
grave e grossa, se misture à alegria infantil. — Posso saber onde a minha
princesa está indo?
Maitê ergue o dedinho, apontando para um objeto alaranjado próximo à
arrebentação das ondas alguns metros adiante. Como se recebesse uma
ordem, a cachorra torna a latir e corre na mesma direção. Coloco uma das
mãos em concha sobre os olhos, tentando ver o que é, mas não tenho
sucesso. Às vezes detesto ter chegado na idade em que não posso me
separar dos óculos.
Ela se contorce, querendo sair do meu colo. Coloco-a no chão.
— Cuidado com a água! — relembro. Maitê assente com a cabeça, as
ondas castanhas dos seus cabelos cintilando sob o sol. A menina não tem
apenas o meu temperamento: ela é a minha cara. Com exceção dos olhos.
Eles são azuis turquesa como os da mãe.
Observo a criança e a cachorra chegando ao seu objetivo enquanto
caminho apressado ao seu encalço. Levou bastante tempo, mas aprendi a
andar com as próteses. Em momentos como esse penso como fui burro por
ter resistido. Não apenas contra elas, mas contra tudo. Principalmente
contra a possibilidade de estar ali, vendo a minha filha de dois anos se
deslumbrando com uma estrela do mar.
Ajoelho-me sobre a areia e seguro a estrela entre os dedos. Ela é grande,
quase do tamanho da palma da minha mão, a vívida cor laranja se
destacando sobre a pele. Amêndoa se limita a cheirar a estrela de longe,
logo perdendo o interesse. Ela está acostumada às criaturas vindas do mar.
Já Maitê solta um gritinho admirado quando as patinhas amarelo-claras se
remexem em todas as direções.
A menina estende a mão e toca a parte de cima, muito séria. Só então
reparo que falta a pontinha de um dos seus braços.
— Acho que temos uma pequena guerreira aqui — murmuro, só um
pouco mais alto que o barulho das ondas. Minha filha escuta e me abraça.
Abraço-a de volta. As vezes fico assombrado com o entendimento de uma
criança tão nova. — Vamos devolvê-la ao mar?
Ela assente, soltando o nosso abraço. Ergo-me com um gemido. Estou o
dia inteiro com as próteses e uma delas está começando a incomodar.
Mas afasto a dor. Não quero pensar nela agora. Quero pensar em dar a
mão para a minha pequena princesa e caminhar alguns passos em direção
ao mar. Mais uma vez me ajoelho e, com cuidado, estendo a estrela de volta
ao seu lar. A onda vem, água morna tocando os seus braços como se a
requisitasse ao seu lugar. Basta que a onda retorne para que ela flutue e se
vá. Eu e Maitê permanecemos um tempo ali, apenas para ter certeza de que
ela não tornará a encalhar. A estrela permanece onde deve ficar.
Olho por sobre o ombro e sorrio largo. Milena caminha acenando em
nossa direção. O vestido de verão esvoaça a sua volta, conferindo uma
aparência etérea a sua beleza.
Volto a ficar de pé, o coração batendo forte enquanto tomo cuidado para
não me desequilibrar e cair. A enfermeira chapina descalça pela água até
parar a minha frente.
— Oi! — diz, se abaixando para pegar a filha no colo. Maitê ri alto e
permite que a mãe plante um beijo estalado em seu rosto, mas logo se
contorce, desejando se soltar. Milena ri de volta e deixa que a menina volte
à areia. Só então ergue os pés e me rouba um selinho. Aquilo é pouco para
mim. Agarro a sua cintura e retribuo o beijo com avidez. — Uau, marido!
— suspira, o corpo esguio ainda colado no meu.
— Oi. Como foi o seu plantão?
— Maravilhoso! Lembra-se daquela paciente de noventa e dois anos que
quebrou o pé?
— Lembro.
— Ela teve alta hoje! — comemora dando dois pulinhos no mesmo
lugar.
— Que ótimo! — sorrio, genuinamente feliz.
Milena sempre compartilha alguns casos que acompanha no centro
clínico. Com a melhor tecnologia presente nas clínicas da VitalCare, a
iniciativa é um tremendo sucesso. Em pouco tempo tornou-se uma parceria
público-privada e se espalhou por outras praias e ilhas. A ideia agora é levá-
la para o interior do país. Além da curiosidade em si, gosto de saber como
as coisas estão se desenvolvendo justamente para poder incrementar
melhorias onde for necessário.
E Milena, claro, é uma das principais enfermeiras da clínica. Enquanto
cuido dos meus negócios a distância, a mulher que mudou a minha vida
cuida dos seus aqui, na ilha que chamamos de lar. Ela fica no centro apenas
meio período desde que a bebê nasceu. Preciso cuidar de vocês também,
brinca. No fundo, nós cuidamos uns dos outros.
Ela devolve o sorriso ao acariciar a lateral do meu rosto. Fecho os olhos,
rendido ao seu toque. Uma leve brisa do mar agita os seus cabelos quando
torno a abri-los.
— O que foi? — pergunto.
— O que foi, o que? — Ela se faz de desentendida. Agarro a sua cintura
com mais firmeza.
— Vamos! Conte o que você está escondendo!
— Mas eu não estou escondendo nada! — ri, tentando se desvencilhar
igualzinho a nossa filha. Beijo a lateral do seu pescoço, desarmando-a por
completo. — Ou... talvez eu esteja.
— Então me conte.
Milena afasta o rosto apenas o suficiente para que eu possa encará-la. Os
límpidos olhos azuis cintilam, cristalinos como o mar à nossa volta. Por
uma fração de segundo a sua atenção se desvia para nossa filha brincando
na areia com a cachorra e, de repente, sei o que ela vai contar. O meu peito
se enche de expectativa antes mesmo que as palavras saiam da sua boca:
— Estou grávida.
Um sorriso de orelha a orelha preenche todo o meu rosto.
— Que maravilha! — digo, voltando a beijá-la.
Ela ri dentro dos meus lábios, agarrando os meus cabelos enquanto
retribui todo o meu amor. Sinto as lágrimas se formando ao redor dos meus
cílios, mas as deixo ali. Agora só quero beijar a minha mulher. Provar todo
o meu amor até deixá-la sem fôlego.
— Que bom que você ficou feliz — brinca, ao nos separarmos. Lanço-
lhe um olhar ultrajado.
— Claro que eu fiquei feliz! Só um louco não ficaria — digo, abraçando-
a com força. Ela me abraça de volta. Juntos, observamos Maitê brincando
de pega-pega com Amêndoa. Oh céus. Dali alguns meses teremos mais um
bebê. Beijo o topo da sua cabeça com todo o carinho que consigo transmitir
antes de falar com a voz embargada. — Você só me dá motivos para ficar
feliz, Milena.
Ela olha para cima.
— Você também — sorri.
FIM
Obrigada pela leitura ❤
Acompanhe os próximos lançamentos em
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