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J.M.

SOLLO
Estou muito feliz de ter a oportunidade de contar a vocês a história de Enzo e Giovanna, que já existe na minha mente há
algum tempo. Mas confesso que a adiei tanto, porque temia muitas coisas.

Por mais que Enzo seja um homem com seus demônios e que use de violência em seu trabalho, como qualquer outro mafioso,
ele não é cruel e nem abusivo. Ele é um homem que se apaixona por sua esposa e faz valer o respeito e o mínimo que um marido deve
prover a um lar. O que eu queria mostrar é que mesmo dentro de um universo cruel e sangrio como o da máfia podem haver casais
funcionais e realmente românticos.

Além disso, o que eu queria contar era uma história de amor com esse pano de fundo. Talvez, se você estiver procurando por
detalhes sobre negociações dentro da máfia ou sobre torturas, sobre aprofundamento de hierarquia e burocracias desnecessárias, vá
encontrar pouco aqui. Eu fiz minhas pesquisas, MUITAS, aliás, mas o que eu quis fazer neste texto foi contar a saga de um casal,
embora haja o necessário para se explicar o que Enzo e sua família e associados fazem. Se não é isso que você está buscando, esse livro
não é para você.

Ainda assim, mesmo com redução de cenas de violência, há algumas, que podem servir de gatilho para muita gente. Fique
alerta!

Tenha uma boa leitura e até o próximo livro!

Beijinhos,

Juliana.
SUMÁRIO

Parte 1
1
2
3
4
5
Parte 2
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
Parte 3
26
27
28
29
30
31
32
EPÍLOGO
Parte 1
1

Eu me lembro muito bem do dia em que o vi pela primeira vez. Era meu aniversário de oito anos, e
a expressão que mais me chamou a atenção àquela altura foi “seu futuro marido”. Ela veio

acompanhada por risadas, por isso, na hora, minha mente infantil processou que se tratava de uma
piada. Algo como brincar de casinha.

Mas os meninos não gostavam de brincar de casinha, gostavam?

Além do mais, estávamos em uma festa, e eu fui ensinada que uma mocinha precisa se comportar

em meio aos amigos de papai. Fui criada para saber me portar, para saber o que dizer e quando
dizer, para comer com elegância, usar a etiqueta e para ser elogiada. Para os homens do meio em que
meu pai vivia, o fato de ele não ter um filho homem era uma fraqueza, um... defeito. Claro que
culpavam a minha mãe por isso, e ela descontava em mim, pressionando-me a ser a princesa. A
garotinha dos sonhos de qualquer um.

Ou seja... uma futura esposa perfeita.

Desde muito nova eu sabia que este seria o meu papel: casar-me com alguém escolhido por meu
pai. Alguém que trouxesse uma aliança significativa e poderosa para a minha família.

Não havia opção de se casar por amor dentro da máfia. Era uma questão de tradição, e, naquela
época, quando minha mãe me dizia isso, ela o fazia com tanto entusiasmo, como se fosse uma honra,
para mim, participar dos “negócios” da família, da forma que uma moça poderia fazer.

Deslumbrada e começando a ouvir melhor a conversa, entendi que era sério. Não se tratava de uma
simples brincadeira.

Curiosa, toquei o braço da minha mãe, que olhou para mim com aqueles olhos frios que lhe eram
peculiares. Fiz menção de falar algo ao seu ouvido e o que ouvi dela foi:

— Você sabe que é feio cochichar, Giovanna! — sibilou como uma cobra, e eu estremeci.
Meu pai era um homem durão, como todo bom consigliere deveria ser. Como todo homem dentro

do universo da máfia era criado para se tornar. Assassinos frios quando preciso ser, tomadores de

decisões rápidas, em benefício de um bem maior. Só que se eu pudesse escolher um dos meus pais
para temer mais, seria minha mãe. Ela não tinha muitos sentimentos por nada, nem por mim.

Bem, se eu não podia cochichar, falei em voz alta, para que todas as outras pessoas ouvissem:

— É mesmo com ele que vou me casar?

Todos os olhos se voltaram para mim, surpresos. Minha mãe pareceu constrangida, mas não entendi
por quê. Fora uma pergunta inocente, não fora?

Imediatamente, o garoto, que me disseram chamar-se Enzo, olhou para o pai. Não havia uma mulher
com eles, o que me fez me perguntar onde poderia estar sua mãe, mas não cheguei a colocar para
fora. Talvez ele não tivesse uma.

Ele devia ser uns dois anos mais velho do que eu, e não era exatamente feio. Seus cabelos eram
loiros, os olhos eram muito azuis, e era alto. Mais do que eu – o que não era difícil, já que eu tinha
uma compleição mais mignon. Até poderia compará-lo a algum daqueles garotos bonitos de séries
teen que eu me achava madura demais para assistir escondido dos meus pais.

Só que ele não parecia ter a mesma opinião de mim.

— Ela é muito pequena. E magra demais.

Ergui uma sobrancelha e abri a boca, pronta para dar uma resposta, mas senti uma dor no meu
braço, percebendo que se tratava de um beliscão da minha mãe. A mensagem era clara: fique quieta.
Eu até obedeci, mas naquela época não entendi o motivo. O garoto tinha me ofendido, não tinha? Por
que eu não podia responder à altura?

Depois, mais velha, compreendi: o pai dele estava no topo da cadeia alimentar da máfia. Era
melhor, para o meu próprio bem, que eu não fizesse comentários ousados.

O avô dele era um Don. O pai era o chefe de todos os chefes. Quando chegasse a hora, Enzo
assumiria seu posto. E deveria ser uma grande honra, para mim, me transformar em sua esposa.

— É porque ela ainda é muito novinha, Enzo. Muito bambina. Olhe para a mãe dela... não é uma

mulher bonita?

Ele fez isso – era pouca coisa mais baixo que ela, porque minha mãe também era uma mulher

pequena –, avaliando-a realmente, sem nenhum constrangimento. Não era apenas a impetuosidade de
uma criança, mas o comportamento de um garoto que conhecia seu poder. Quem poderia condená-lo
ou repreendê-lo além do pai?

— Sim. Ela é bonita — a resposta não veio com muito entusiasmo, mas minha mãe abriu um

sorriso, fingindo timidez e olhando para o chão, como uma dama recatada deveria fazer.

Meu pai, por outro lado, não parecia muito confortável com isso, mas ele não poderia começar uma
discussão com seu superior.

E ok, achar minha mãe bonita não era algo extraordinário, porque ela era mesmo. Se não fosse uma
esposa da máfia, sem dúvidas poderia ter ido para Hollywood, com seus enormes olhos azuis, que
eu, infelizmente, não tinha herdado, os cabelos castanhos e fartos, o corpo curvilíneo e a elegância
que ela desejava que eu também adquirisse. Mas eu não era feia também. E isso ficou na minha
cabeça, tanto que na primeira oportunidade, em que vi o tal Enzo sozinho, tomando um copo de suco

de uva como se fosse uma taça de vinho, aproximei-me.

Ele usava um terno bem cortado e se comportava exatamente como se esperava de um filho de
mafioso. Um cenho franzido ensaiado, uma cara de mau, uma postura que fazia parecer como se ele
fosse muito maior do que seus dez anos permitiam. Isso não me intimidava.

A forma como me olhou poderia ter realmente me deixado incomodada. Ele se sentia superior, sem
dúvidas, mas não era culpa dele. Mesmo com meus oito anos de idade sabia que, exatamente como eu
era criada para ser a menina obediente e perfeita, ele era criado para ser durão e se achar um rei. Ou
um príncipe.
E dentro daquele mundo em que vivíamos, ele era isso. Um príncipe.

Se me casasse com ele... eu seria a princesa. Um dia seria rainha.

— O que está fazendo aqui? — ele perguntou, tentando me afugentar, mas não me acovardei. Parei
do seu lado, ancorada na grade porque estávamos na sacada. Uma brisa fria foi o que me recebeu, e

isso contrastou com o tom de voz do menino com quem eu pretendia conversar.

Ele era só uma criança. Não deveria se comportar daquele jeito.

— Não que isso me importe, mas você realmente me acha feia? — foi uma simples pergunta. Eu
não precisava de auto-afirmação, mas para uma menina de oito anos pensar que o garoto que fora

escolhido para ser seu marido no futuro não aprovava sua aparência era algo de se indignar.

Enzo rapidamente se empertigou, com um leve toque de arrogância, provavelmente esperando que
eu saísse de perto. Mas cruzei os braços contra o peito, pronta para não arredar pé dali.

— Se um dia a gente se casar mesmo, você não vai poder ficar se achando todo assim. Vamos ter
que ser amigos pelo menos, não acha? — insisti.

Com isso, ele suspirou derrotado e deixou os ombros caírem.

— Você não é tão feia assim. — Assim que ele falou, eu abri um sorriso, mas rapidamente o vi
recuperar a postura, como se a pose de superior fosse muito importante para ele. — Mas não sei se te

escolheria como esposa, se tivesse opinião nisso.

Abri a boca, colocando as mãos na cintura, ainda mais indignada.

— E eu não escolheria você. Tenho certeza de que tira meleca e solta puns.

Minha mãe me mataria se me ouvisse falando daquela maneira. Eu seria punida, sem dúvidas, mas
não havia ninguém ao nosso redor. Apesar disso, levei uma das mãos à boca, assustada pela minha
própria reação. Eu deveria me controlar, porque aquele garoto arrogante poderia muito bem me
denunciar.

Só que ele me surpreendeu soltando uma gargalhada.


— Você solta pum também, garanto.

Arregalei os olhos.

— Não solto não, eu sou menina! — Deu de ombros e me olhou como se eu fosse uma criancinha
muito mais nova, e ele um garoto maduro e experiente. — Tá, mas você solta mais, certeza!

— É uma competição? — Enzo ainda sorria, e eu fui contagiada. Ele tinha um sorriso bonito.
Parecia um garoto lindo de dez anos quando fazia isso. Alguém de quem eu poderia gostar. — Mas
tudo bem. Ainda falta muito tempo para a gente se casar. Quando isso acontecer, eu já vou ser o
chefe.

— É, acho que sim. — Fiquei pensativa. Nós dois ficamos um pouco em silêncio, olhando para a
noite lá fora, até que pensei em algo muito sério: — Você vai mandar em mim? Meu pai tenta mandar
na minha mãe o tempo todo, mas ele diz que ela é muito... — a palavra me fugiu.

— Desobediente? — ele sugeriu, e eu balancei a cabeça em afirmativa. — Meu pai me fala que eu
vou dar ordens em muitas pessoas.

Dei de ombros.

— Eu não vou te obedecer. Só obedeço aos meus papais. É melhor que você saiba disso logo
agora.

— Isso é o que vamos ver.

Só que, de alguma forma, eu e Enzo nos olhamos e trocamos um sorriso. Era um desafio selado
entre duas crianças que mal se conheciam, mas que sabiam que teriam que compartilhar um destino.

Um que nenhum dos dois imaginava qual seria.


2

Meu momento estava prestes a chegar. Eu sabia que não se tratava de férias em Paris ou em dias
em um SPA, que a parada era barra pesada, mas estava ansioso.

Porra, qual garoto de treze anos não ficaria animado para se tornar um homem?

Era uma questão de meses e alguns dias. Eu faria quatorze e seria iniciado.

Mas antes eu ainda precisava aturar algumas coisas... como, por exemplo, um final de semana na

nossa casa de praia, em San Vito Lo Capo, na Sicília, com a família Grinani. Ou seja, eu teria que
aturar Giovanna – minha futura... esposa.

Tudo bem que nós só tínhamos nos visto uma vez, naquela festa de aniversário, quase quatro anos
atrás, mas ela era bem insuportável. Eu sabia que não daria certo um casamento entre nós, no futuro,
porque ela era bem teimosinha para o meu gosto. E eu já gostava de meninas. Já tinha beijado
algumas, até. Mas não conseguia encontrar uma forma de me sentir atraído por ela.

Tá... toda a imagem que eu tinha da garota era de uma magricelinha de oito anos. Se eu, com
quase quatorze, tivesse qualquer atração por isso, poderia me considerar um doente. Só não

conseguia imaginá-la de outra forma. Provavelmente nem era tão bonita assim.Seria apenas uma
noite, ainda bem. Chegaríamos no sábado de manhã e voltaríamos no domingo. Mas seria uma
tortura, sem dúvidas.

Meu pai estacionou o carro na garagem, como Giuseppe, pai de Giovanna, o instruíra, e nós
saltamos. O dia estava ensolarado, quase sem nuvens no céu, e eu gostava do mar. Poderia tentar
compensar a companhia com o fato de estar na praia.

O Consigliere nos mostrou a casa, enquanto eu me esforçava muito para parecer blasé. Era o que
se esperava de um futuro chefe, não? Aquela frieza, a impessoalidade, a falta de empatia. Por mais
que eu não fosse assim e não quisesse ser, era o meu destino. Pessoas eram apenas... pessoas. E eu

deveria desconfiar de todas, por mais amigo, mais próximo. Qualquer um poderia se tornar um

inimigo em um piscar de olhos. Fora o que meu pai me ensinara.

Minha irmã, Paolla, de doze anos, em contrapartida, parecia empolgadíssima. Tanto que na

primeira oportunidade foi vestir seu biquíni, feliz em saber que Giovanna estava na praia.

De longe, na sacada do quarto que foi designado para dormirmos, fiquei observando as duas. Elas
pouco se conheciam, mas rapidamente se enturmaram, brincando na areia como duas crianças.

Não consegui ver muito de Giovanna, mas perto de Paolla, que era alta e graciosa, ela ainda
parecia um mosquitinho, pequena e desengonçada. A mãe pegava sol, deitada em uma
espreguiçadeira, com um chapéu elegante e um óculos de marca, exibindo um corpo escultural.
Qualquer homem poderia babar por ela.

Meu pai, por exemplo, ao meu lado, não conseguia parar de olhá-la.

— D. Fiorella é muito bonita, não é, papa? — comentei, não com muita inocência. Apesar de
muito jovem, eu conhecia olhares de desejo. Sabia muitas coisas que um menino da minha idade
talvez devesse desconhecer, porque fui criado sem mãe, em meio a homens que queriam me tornar

adulto a todo custo.

Ele me olhou de forma desconfiada, como lhe era peculiar. Meu pai não confiava nem no próprio
filho cem por cento.

— Isso é algo muito óbvio. A filha dela também será. Está em uma idade ingrata ainda. Daqui a
dois, três anos você a verá com olhos diferentes.

Lancei um olhar para a menina que corria pela areia com um biquíni cor-de-rosa e tentei acreditar
nisso.

Só que eu estava me sentindo particularmente ousado naquele dia, especialmente quando vi meu
pai molhar os lábios no momento em que Fiorella Grinani levantou-se, caminhando em direção ao

mar, com os quadris largos de italiana requebrando de um jeito sensual.

— O senhor deseja a esposa de outro homem? — Acreditei que um pai e um filho não pudessem
ter segredos um com o outro. Ou não devessem. Só que o tapa que eu levei respondeu muito mais da

minha dúvida do que suas palavras poderiam fazê-lo.

— Nunca mais fale algo assim, garoto insolente!

E ele saiu do quarto.

Não seria muito mais fácil negar? Se ele realmente não cobiçava a esposa de seu consigliere, a
resposta correta deveria ser: “claro que não”. Mas não foi o que disse.

Meu rosto ainda ardia quando eu desci, já com um short e sem camisa, pronto para tentar
aproveitar aquele dia na praia.

Paolla veio correndo para mim, e eu a abracei, tirando-a um pouco do chão. Amava minha
irmãzinha. Ela era a melhor coisa da minha vida.

— Enzo, a Gio é tão legal! Estávamos brincando de Pequena Sereia. Você poderia brincar com a

gente. Eu posso ser a bruxa, e você, o príncipe, e aí a gente podia...

— Eu não tenho mais idade para brincar — falei, impostando um pouco a voz, que estava em
período de transição.

Ela deu um passo para trás, cruzando os braços e me olhando com surpresa. Dei uma olhada de
soslaio para Giovanna, e ela me observava com aquele jeitinho impetuoso, quase desafiador. Uma
sobrancelha arrogante erguida que me fez lembrar o desafio que propomos um ao outro anos atrás.

Nunca seria uma esposa obediente. Foi o que me disse.

Secretamente isso me agradava, mesmo que naquela época ainda não compreendesse
perfeitamente o que significava.

— Você é só dois anos mais velho do que a gente. E não tem ninguém aqui que possa te deixar
com vergonha.

Claro que tinha. Meu pai.

A pessoa a quem eu mais queria agradar, em quem eu me espelhava. Ele nunca brincara com os
filhos, nunca se dera ao desfrute de algo tão infantil e lúdico. Se me visse cedendo à tentação de
agradar a minha irmã ou à necessidade de ser criança uma última vez, antes de tudo mudar na minha

vida, certamente eu o desapontaria.

— Deixa, Paolla. Ele não tem imaginação para brincar com a gente. É só um bobo que solta pum.
— Giovanna deu uma risadinha por trás da mão, recordando a brincadeira do nosso passado.

Precisei segurar a risada. Minha irmã pareceu não entender muita coisa, mas meu pai a chamou, e
ela foi correndo em direção a ele. Não sabia se sua intenção era me deixar um pouco sozinho com
Giovanna, mas imaginei que fosse.

Era bem raro, no meio da máfia, que futuros cônjuges pudessem se conhecer antes do casamento,
com exceção de poucos meses antes. Eu e aquela menina deveríamos considerar um privilégio

termos aquela sorte.

Não que, naquela idade, eu considerasse sorte ter que me casar com ela. Ainda não via graça
nenhuma naquela magrela que precisava erguer tanto a cabeça para falar comigo. Tinha a impressão
de que ela continuaria pequena para sempre.

Envergonhado de ficar olhando-a, como se a avaliasse, voltei meus olhos para sua bela mãe e o
pai. Eles pareciam discutir, e em um momento Giuseppe agarrou o braço da esposa sem delicadeza.

Assim como a filha, ela era tão pequena – embora voluptuosa – que imaginei que ele deveria
estar machucando-a. Visualizei-me no futuro, lidando com sua filha cheia de personalidade e
pensando se chegaríamos àquele ponto. O casal parecia não se suportar, e pela primeira vez eu senti

medo do futuro.

Eu não queria machucar minha esposa, não importava o quanto ela me tirasse do sério. Era...
cruel.

Mas eu teria que ser cruel um dia, não teria? Até que ponto a escuridão iria me dominar para
mudar alguns conceitos? Será que meu coração se endureceria tanto ao ponto de cogitar machucar
uma pessoa mais frágil?

— Você continua se achando, né? — a vozinha fina de Giovanna falou do nada. Saí de meu transe
e olhei para baixo, vendo-a naquela posição, com as mãos na cinturinha fina.

— Só porque não quero brincar com vocês?

— Também. Mas é essa cara que você tem. Como se fosse o rei. — Daquela vez não consegui
controlar um sorriso. — Ah! Você ainda sorri!

Ela também abriu um sorriso. E naquele momento, pela primeira vez, eu a achei bonita.

Quase linda.

Ainda muito criança para mim, mas uma linda menina.

— Não sou um rei. Mas meu pai é...

— Pffft — o som que ela soltou me fez pensar que estava zombando de mim. O revirar de olhos
também não deixou muita dúvida. — Não vai mudar em nada você falar essa besteira. Seu pai pode
ser quem for, mas você ainda não é nada. Nem chefe.

Ela continuava rindo, divertindo-se em me provocar. Eu poderia achar uma insolência,


repreendê-la, mandá-la se calar, ou qualquer coisa que meu pai teria feito. Poderia tentar começar a
mostrar minha autoridade naquele momento, para que entendesse que quando nos casássemos não
poderia haver aquele tipo de contestação.

Mas, novamente... eu gostava. De alguma forma aquela coisinha pequena me divertia. Ser
desafiado e provocado era instigante. Provavelmente eu preferia seu jeitinho do que se fosse uma
garotinha submissa e tediosa.

E aquilo só me deu mais vontade de brincar com elas. Ainda mais que Paolla já tinha voltado à
areia, com seus baldes e suas peças para construir castelos.

Eu era bom em castelos de areia. Quando era menorzinho, criava vários com a minha mãe. Eram,

na verdade, minhas maiores lembranças com ela. Antes da doença, antes de ficarmos só com o meu
pai e as inúmeras babás que nunca eram boas o suficiente para durar.

Cogitei topar pelo menos montar um castelo. Isso não me tornaria menos homem, não é? Brincar
de conto de fadas, ok, era mais complicado, mas...

Olhei de soslaio para o meu pai e o vi nos observando com aquela sua expressão fria, mas que
dizia tantas coisas. Não havia mais espaço para brincadeiras na minha vida. Por mais que a iniciação
ainda não tivesse acontecido, eu não podia me dar ao luxo de ser um menino de quase quatorze anos,
brincando com duas garotinhas inocentes.

Eu não tinha direito à inocência.

— Não sou chefe, mas ainda não quero brincar com vocês. Acho que eu iria... — hesitei,
abaixando a cabeça. — Estragar a brincadeira. Como você disse, não tenho muita imaginação.

Olhei-a nos olhos novamente, e de repente Giovanna pareceu mais velha do que seus doze anos.
Parecia compreender... tudo. Parecia ler a minha alma e entender que eu tinha uma imagem a zelar.
Ou senão meu pai me veria como uma decepção. Um perdedor.

Tanto que ela novamente sorriu, bem mais meiga e menos desafiadora.
— Tudo bem. Se mudar de ideia...

Então saiu correndo, aproximando-se da minha irmã, sendo criança, como elas poderiam ser.

Tentei me manter afastado de Giovanna o resto do dia inteiro, porque ela me fazia contestar o que

sempre julguei ser o meu sonho e o certo para mim.

Isso não era bom. Nada bom.


3

Não seria muito honesto dizer que eu e minha mãe éramos grandes amigas. Nunca fomos. Às
vezes eu tinha a impressão de que ela me invejava pelo futuro que me esperava. Pelo casamento com

um chefe. Ela sempre teve muito mais tino para a majestade do que eu.

Nada me envaidecia nesse fato. Pelo contrário. Era uma preocupação desde que compreendi o
que significava ser uma esposa obediente dentro da máfia. Eu não era um exemplo de submissão. E
isso poderia me custar muito caro.

Só que por mais que tivesse minhas ressalvas em relação a ela, perdê-la aos dezessete anos não
era exatamente algo que imaginei acontecer.

Muito menos tendo a estranha impressão de que sua morte não fora um simples acidente, embora
preferisse não ficar pensando nisso antes que chegasse a conclusões que não queria chegar.

Com um discreto e elegante vestido preto, seguia o cortejo, ao lado do meu pai, ambos
impassíveis. Ela teria aprovado minha escolha, porque era um Prada – sua marca favorita –,
delineava meu corpo magro, mas com algumas curvas, sem decotes e com um comprimento que quase

chegava aos meus joelhos.

Era estranho que sempre tivesse tentado contrariá-la em tudo, mas que naquele momento em
específico, quando nem estava mais ali para ditar o que era certo ou errado, minha decisão fosse
agradá-la.

Mas isso não vinha ao caso.

A cerimônia foi bonita, com algumas pessoas conhecidas presentes. Não que Fiorella Grinani
tivesse amigas de verdade, já que ela via a todas como rivais, mas sendo uma das esposas do grupo,
eu podia ouvir choros forçados vindos de mulheres casadas com homens de cargos inferiores ao do
meu pai.

Era quase uma competição.

Sentindo-me cansada e melancólica, fiz meus olhos viajarem ao redor do cemitério, e uma figura

chamou a minha atenção.

Fazia alguns anos que eu não o via, mas era difícil não reconhecê-lo. Ele se destacava no meio de
todas aquelas pessoas pelo porte. Com mais de um metro e noventa de altura, ombros largos,
músculos evidentes sob o terno bem cortado, os cabelos dourados mais longos do que seria comum

vermos em meio à máfia, presos em um rabo de cavalo frouxo, displicente.

Fisicamente ele tinha mudado muito. Não havia mais nada do menino que conheci um dia. Aos
quase vinte anos, Enzo era um homem. Atraente, forte, sombrio. Havia um vinco em sua testa que não
houvera antes. Eu não podia nem imaginar pelo que ele tinha passado em sua iniciação.

Como se um magnetismo nos atraísse, seus olhos se voltaram na minha direção. Por um segundo,
um mísero segundo, julguei ter visto surpresa neles. Admiração também, talvez.

Eu não era mais uma garotinha insegura com a minha aparência. Aos quase dezoito anos, meu
corpo tinha se desenvolvido, e por mais que não fosse tão alta para o padrão das mulheres italianas,

com um metro e sessenta e três, sabia me fazer valer de um belo salto para ressaltar minha elegância.
Eu usava os cabelos longos como os da minha mãe, e por mais que fossem lisos, eram pesados, com
forma, nada escorridos. Sabia que era bonita, mas de alguma forma a aprovação de Enzo, naquele
momento, por mais que pudesse ser ilusória, me agradou.

Paolla estava ao lado dele, mas rapidamente veio em minha direção, logo que me viu, jogando os
braços ao meu redor. Era estranho porque, na prática, não éramos amigas. Nós nos demos bem na
primeira e única vez em que nos encontramos. Brincamos um dia inteiro, mas nunca mais tivemos um
grande contato. Ela estudava em um colégio interno na Suiça e retornara pouco depois de fazer
dezoito anos, porque já iria se casar com um subchefe quinze anos mais velho.

— Minha querida, eu sinto muito. De verdade — disse, ainda abraçada a mim. Então se afastou, e
eu olhei em seus olhos sinceros. — Não consigo nem sentir o peso da sua dor, por mais que tenha
passado pelo mesmo, porque eu era muito novinha... — Sofia Dallaggio morrera quando Paolla tinha

no máximo uns seis anos.

— Obrigada pelos seus sentimentos — falei muito sóbria. Era o que se esperava de mim, não?
Começamos a andar lado a lado, e eu sem querer voltei-me na direção de Enzo. Por algum motivo ele
ainda olhava para mim com os olhos estreitos, como um predador. Isso quase me fez perder o ar.

— Saiba que voltei para a Sicilia de vez. Vou me casar dentro de alguns meses, mas nada que me
impeça de separar um tempo para uma amiga. — Ela sorriu, quase melancólica. — Minha futura
cunhada, na verdade.

Estremeci ao pensar nisso.

Por mais que eu estivesse a menos de um mês de completar dezoito anos, nenhum comunicado me
fora feito. Nem mesmo antes da morte da minha mãe. Era de se esperar que assim que eu atingisse a
maioridade as coisas começassem a ser negociadas. Imaginava que me permitiriam o luto, mas

provavelmente não iria demorar.

Talvez Paolla pudesse me dar uma luz.

— Você sabe de alguma coisa? Até agora ninguém me disse nada — comentei bem baixinho,
esperando que apenas ela me ouvisse.

— E como poderia saber? Não me falam nada. — Ela deu de ombros. — Mas pelo que entendi,
Enzo não quer se casar por enquanto.

— Ah, claro. Porque ele tem o direito de escolher. — Não deveria falar algo assim, em voz alta,
para a irmã de Enzo, mas Paolla riu. — Desculpa, eu...
— Não seja boba. Eu te entendo. E alguns anos atrás, pensando no meu próprio noivo, eu teria

dito que você tem sorte.

— Mudou de ideia?

Paolla respirou fundo, baixando os olhos enquanto continuávamos caminhando, à parte do resto
das pessoas, mais atrás, dando passos lentos para termos alguma privacidade.

— Meu irmão não é mais a pessoa que era. Imagino que iniciações sejam difíceis para todos os
meninos, mas ele voltou... — Paolla hesitou — diferente.

— Diferente... como?

— Não consigo mais enxergar o Enzo que conheci dentro dele. Não sei pelo que passou, mas não
foi algo bonito. Meu irmão sempre quis manter a pose de durão, mas comigo, ele amolecia. Agora...

— Ele te maltratou? — indaguei, preocupada. Um homem que fosse capaz de fazer mal à própria
irmã poderia de tudo com a esposa.

— Não! — ela exclamou com veemência, o que me deixou mais tranquila. — Não, de forma
alguma. Enzo só não... Olha, talvez eu esteja falando demais, mas tenho a sensação de que o meu

irmão não consegue me olhar nos olhos. Há anos não conversamos, há anos não o vejo sorrir.

Lembrei-me do sorriso bonito do garoto mais bonito ainda. Paolla estava certa em dizer que Enzo
se fazia de durão, mas a verdade era que, antigamente, ele conseguia mostrar seu lado mais jovem,
gentil e menos sisudo. Voltei-me para ele mais uma vez, que seguia na mesma velocidade de passos
que eu e sua irmã, mas a metros de distância. Sozinho, obscuro, sério... e ainda olhando para mim.

Era intimidador.

As palavras de Paolla me assombraram por horas. Talvez mais até do que a morte da minha mãe.
Por mais que lamentasse, meu futuro me preocupava mais. E se o homem com quem eu ia me casar
fosse mesmo um monstro?

Ok, monstro era uma palavra muito forte, mas a forma como Paolla pareceu assustada ao se
referir ao próprio irmão indicava que eu poderia esperar qualquer coisa.

Mas eu não era do tipo que espera. Sempre fui impaciente, sempre curiosa, sempre inquieta.
Especialmente quando tinha a ver com a pessoa que iria passar o resto da vida ao meu lado.

Era a segunda vez que eu o procurava daquela maneira, em meio a um evento. Daquela, diferente
da primeira, estávamos em uma reunião fúnebre, e eu peguei Enzo bebendo alguma daquelas bebidas

amarronzadas. Uísque ou conhaque, eu nunca sabia diferenciar, porque não me permitiam beber
álcool.

Ele parecia bonito e perigoso, com um blazer preto e uma blusa social branca, sem gravata, os
cabelos ainda presos, mas menos organizados, como se as horas passadas o tivessem deixado com
uma aparência menos perfeita. Alguns fios dourados caíam em seus olhos muito azuis. Olhava para o
nada, com as pernas longas cruzadas, de pé, com o quadril apoiado em uma mesa.

Afastado de todos, apreciava sua solidão. Rodeado por sombras, parecia pertencer a elas,
embora uma parte de seu corpo ainda estivesse iluminado pela luz.

Um contraste irônico... como se ainda houvesse uma partezinha de sua personalidade que podia
ser salva.

Eu não fiz barulho ao me aproximar. Passos silenciosos, mal respirei, mas de alguma forma ele
percebeu minha presença. Mais um sinal de que não confiava mais em nada nem ninguém.

Então me dirigiu aquele olhar.

Aquele olhar.

Nenhuma mulher – especialmente uma de dezessete anos – podia ser olhada daquela forma sem
ser afetada. Nenhum homem – especialmente um com quem você seria obrigada a se casar dali a

algum tempo e teoricamente teria posse de seu corpo e de sua vida – tinha o direito ser tão sexy.

— Você não deveria estar aqui.

A voz também havia mudado.

Claro... que pensamento idiota! Na última vez em que o vi ele não tinha nem quatorze anos, estava
na transição de criança para adolescente. Aos quase vinte, seu tom era profundo, rouco e parecia
ecoar ao meu redor condizendo com o poder que ele viria a possuir um dia.

— A casa é minha. É o velório da minha mãe. Posso andar por onde bem entender — apesar do
teor grosseiro da afirmação, usei um tom suave. Não queria me desentender com ele. Pelo contrário.

Um resmungo foi a resposta que recebi. Então ele deu um gole na bebida, como se eu não
estivesse ali. Como se eu fosse apenas uma alegoria ou um objeto que ele apreciou por segundos,
mas que perdeu a graça.

E eu não gostava de ser deixada de lado. Por isso estendi a mão e em um gesto rápido arranquei o
copo de sua mão, levando-o à minha boca. A bebida desceu ardendo pela minha garganta, e eu
sufoquei a necessidade de tossir, porque seria ridículo.

Só que, aparentemente, ficou bem óbvio que eu não tinha a menor experiência com álcool.

— Quem você está tentando impressionar, menina? — não havia um único resquício de humor em
sua voz, o que novamente me deixou irritada.

— Você se superestima demais se acha que estou fazendo isso para te impressionar. Acabei de
perder minha mãe. Acho que tenho direito de me embriagar um pouco, não tenho?

Apesar disso, devolvi o copo a ele, com a proposital mancha do meu batom vermelho no vidro
virada em sua direção. Enzo levou-o à boca exatamente daquela forma, quase como se me beijasse
sem me tocar. Sem tirar os olhos de mim.

Ok. Ele era um adversário à altura. Mas eu estava disposta a jogar.


4

Provocadora.

Aquela garota seria um problema para mim. Ela não era nada do que se esperaria de uma esposa
de um chefe da máfia. Nada do que eu gostaria que fosse.

Desde que a conheci, soube que não seria fácil domá-la, mas poderia lidar com ela enquanto era
aquela coisinha sem graça, que não me despertava absolutamente nada.

A mulher à minha frente poderia ser perigosa.

Há muitos anos, quando meu pai me perguntou se eu achava a mãe dela bonita, a resposta foi
muito óbvia. Fiorella era deslumbrante, mas de uma forma quase agressiva. Era difícil olhar para ela
e não se sentir intimidado, ainda mais para o garoto que eu fui.

Giovanna se tornara uma mulher linda de um jeito etéreo. Ainda assim, sua personalidade
impetuosa me provava que não era a mocinha doce que sua aparência poderia fazer qualquer um
pensar.

Ela seria minha um dia. Eu só não sabia se isso era uma bênção ou uma maldição.

Toquei o batom que ela propositalmente deixou marcado no meu copo com meus próprios lábios
e a senti perder um pouco o ar ao me ver fazer isso.

Apesar de toda a pose de mulher decidida, era uma coisinha inocente.

Eu ia destruí-la. Não havia nada de bom dentro de mim para dar a ela. E odiava pensar nisso.

— Acha que vai te fazer esquecer? — Ergui o copo, mostrando ao quê me referia. — Acredite, eu
já tentei.

Giovanna respirou fundo, mas fiquei feliz em não ver uma expressão de compaixão em seu rosto.
Podia ser inocente, mas era durona.

— O que quer aqui, Giovanna? Não sou a pessoa certa para te consolar.

— Não quero consolo. Só que também não quero... fingir. — Ela começou a dar alguns passos,

um pouco inquieta. Não precisava explicar muito para que eu compreendesse. Fiorella e a filha não
eram exatamente amigas.

Na verdade, eu não sabia se a mãe dela era amiga de alguém. Se era leal a qualquer outro ser
humano.

— Tenho a impressão de que com você não vou precisar fazer isso — ela completou. — Além do
mais, seria prudente começarmos a nos acostumar com a presença um do outro, não acha?

Avaliei-a, erguendo um pouco a cabeça. Nosso casamento era arranjado, como quase todos dentro
das famílias de mafiosos, e eu não tinha pretensões de me acostumar com minha esposa ou de
conhecê-la mais do que já conhecia antes de subirmos ao altar. Mas talvez fosse bom para ela saber
onde estava se metendo. Até aquele momento tinha a imagem do garotinho que um dia fui. Aquele
garotinho não existia mais. Não iria voltar.

Porém Giovanna estava certa em uma coisa: não precisava fingir comigo. Eu odiava hipocrisia e

não iria julgá-la.

Ainda assim, havia outras coisas que ela precisava saber.

— Não vamos nos casar por enquanto. Talvez ainda demore alguns anos.

Ela me olhou com uma expressão confusa.

— Eu estou prestes a fazer dezoito.

— Não vou me casar enquanto não for o chefe. Para isso, meu avô precisa ceder o posto ao meu
pai.
Giovanna ergueu uma sobrancelha, chocada.

— E se seu avô durar mais vinte anos? Trinta? Como teremos filhos?

— Neste caso, as coisas serão diferentes. Mas ainda não sabemos.

— E por quê? Isso é totalmente fora dos padrões e...

Dei um passo adiante, colocando-me perto dela de forma perigosa. De pé, com a coluna ereta, eu
era ridiculamente mais alto, e Giovanna fez menção de recuar, mas logo voltou a si, erguendo a
cabeça e me olhando de igual para igual.

Porra, ela era fascinante.

— Está ansiosa para se casar comigo? Não deveria. — Era uma estratégia muito ridícula tentar
assustá-la ou demonstrar algum tipo de poder só para que cedesse. Giovanna me despertava desejos
dúbios. Ao mesmo tempo em que queria que se rendesse e se mostrasse mais mansa, porque
obviamente seria mais fácil de lidar e resistir, gostava de vê-la daquele jeito, como se estivesse
constantemente em chamas.

Ela abriu um sorriso malicioso e cheio de desdém.

— Não mesmo. Mas também não estou ansiosa para me casar quando tiver idade para ser avó. Já
que tem que ser, que seja quando ainda posso ficar bonita em um vestido de noiva.

Insolente. Eu deveria odiar isso. Deveria exigir me casar com outra mulher, mas desde pequenos,
ela sempre mexeu comigo de alguma forma. Mesmo quando era apenas uma coceirinha no meu
coração de menino, que eu não entendia. Até ali, quando julguei que tinha perdido a capacidade de
simplesmente sentir.

E eu deveria ficar calado...

— Você dificilmente estará feia aos quarenta.


Aquilo pareceu surpreendê-la.

— Não era o que você dizia alguns anos atrás.

— Eu não sou a mesma pessoa de anos atrás.

Isso foi o suficiente para que ela se calasse. Mas só por um tempo. Giovanna era cheia de
opiniões, e eu suspeitava que guardá-las não era exatamente algo que gostasse de fazer.

— Provavelmente nenhum de nós dois é, mas imagino que uma pessoa possa realmente mudar
depois de tudo pelo que você passou. — Ela voltou aqueles olhos enigmáticos na direção dos meus,

fitando-me como ninguém nunca o fez. Como se quisesse ver além do que podia enxergar. Só que se
olhasse por tempo demais para o abismo, ela se depararia com o inferno.

Então Giovanna ergueu a mão, aproximando-a na direção do meu rosto. Ela ia me tocar. Levar
aqueles dedos delicados ao meu rosto. Há quanto tempo eu não era acariciado daquela forma? Nem
mesmo por Paolla. Até quando me deitava com uma mulher, não havia carinho, era apenas sexo. Cru,
sem sentimentos, feroz.

Se deixasse que fizesse aquilo, me tornaria vulnerável. E eu não podia permitir. Muito menos a
ela. Aquela mulher faria parte da minha vida um dia, muito intimamente. Quem poderia prever que

não se tornaria uma inimiga? E uma que dormiria ao meu lado – o pior tipo.

Agarrei seu punho, deixando o copo sobre o aparador onde estava apoiado. Puxei-a um pouco
mais na minha direção e enlacei sua cintura com meu braço, fazendo-a arfar, chocada pela atitude.

Isso era bom. Deixá-la desconcertada. Sem ar. Fazê-la perder a pose.

Mexer com a cabeça daquela mulher poderia ser um passatempo muito divertido. Provar que não
era imperturbável. Que algo ou alguém conseguia tirá-la do eixo.

— O que você está fazendo? — ela perguntou, realmente assustada.


— Estou pegando o que é meu.

Ela tentou se desvencilhar por um instante, mas minha expressão vitoriosa pareceu fazê-la
perceber que estava demonstrando fraqueza. Éramos adversários naquele jogo, e nenhum dos dois
queria perder.

— Não sou sua. — Meu braço fechou-se um pouco mais em torno de sua cintura, e ela arfou
novamente. Nossas bocas estavam muito próximas uma da outra.

Eu não tinha intenção de beijá-la, só de deixá-la levemente abalada.

Ao menos era o que eu pensava.

— Você não pode fazer isso. Não quer adiar tanto o casamento? Não vai poder me tocar até que
eu carregue seu sobrenome. É errado, contra as regras, o que pensariam de mim? Quer me arruinar?
— A maledetta não parava de falar. Cada uma de suas palavras saía cuspida, como se precisasse
muito demonstrar raiva de mim, ao mesmo tempo em que seu peito subia e descia através do tecido
do vestido sóbrio que não parecia combinar em nada com ela. — Enzo! Isso não é certo!

— O quê? Eu segurar você? Não estou fazendo nada além disso, Giovanna.

Ela pareceu suspirar ao me ouvir dizer o seu nome.

Isso quase me fez sorrir. Se eu ainda soubesse como.

Seus ombros caíram, derrotada. Eu estava certo, afinal. Nada acontecera.

Só que o desejo que acontecesse quase me queimava por dentro.

— Mas e se eu te beijar? — minha voz soou mais rouca do que o normal. Começou como uma
provocação, mas eu estava começando a ser afetado também.

Ela cheirava a pêssegos frescos, algo feminino e sensual. Era impossível ficar indiferente.
— Você... você vai? Eu não... Nunca... — Giovanna estava insegura. Gaguejando. Estremecendo

nos meus braços. Fazia muito tempo que eu não me sentia tão... vivo.

O que será que isso significava?

Depois de tudo pelo que passei, sentir alguma coisa era quase como um milagre. Doses de
adrenalina nas veias. Como me drogar com algo pesado...

— Nunca foi beijada? Sei disso. Porque você é minha. Está se guardando para mim. Eu vou ser o
único dono dos seus beijos. E de todo o resto.

Ela não mais relutou. Não mais negou. Sabia que era verdade. Estava prometida a mim, em algum
momento nós nos casaríamos. Então eu a teria para mim.

Para o bem ou para o mal...

Levei ambas as mãos à sua cintura fina, girando-a e invertendo nossas posições. Com ela de
frente para o aparador, empurrei algumas poucas coisas que havia sobre ele para um lado, levantei-a
do chão e a sentei em sua superfície. Giovanna sobressaltou-se outra vez.

— Enzo... o quê...?

Uma das minhas mãos foi parar em sua nuca com firmeza, agarrando os fios castanhos e macios
de seus cabelos. Fui aproximando nossas bocas bem devagar.

Muito devagar...

Até que uma estava roçando na outra. Até que pude sentir a maciez de seus lábios cheios contra
os meus.

Minha língua se manifestou, lambendo o contorno de seu lábio inferior, o que a fez gemer
baixinho. A mão que ainda estava em sua cintura, subiu um pouco para suas costas, segurando-a
contra mim de ambas as formas. Um dos meus joelhos abriu suas pernas para que eu me colocasse
entre elas, deixando-nos ainda mais próximos.

Meus dentes se fecharam no mesmo lábio que lambi, mas sem fazer força, porque não queria
machucá-la. Puxei-o e suguei-o logo em seguida, deleitando-me com a suave tortura que impunha a
nós dois.

Aquela era a forma como eu deveria lidar com ela. Deixá-la à minha mercê seduzindo-a e
fazendo-a se render.

Só que eu sabia que não demoraria muito para eu estar completamente rendido ao momento

também. Era só questão de aprofundar o beijo e...

— Mas que merda está acontecendo aqui? — uma voz masculina familiar chamou a minha
atenção.

Por algum motivo, passei o braço ao redor dos ombros de Giovanna protetoramente, encostando
sua cabeça no meu peito, esperando que não vissem de quem se tratava. Embora todos soubessem
que ela estava prometida a mim, não era de bom tom que nos pegassem aos beijos. Ou quase.

Só que se tratava do pai dela.

Eu não sabia se isso era pior...

— No enterro de sua mãe, Giovanna? Que tipo de pessoa você é? Não nega de quem é filha —
ele soltou as palavras praticamente sem pensar.

Continuei segurando-a contra mim, sentindo-a congelada. Voluntariamente manteve o rosto


enterrado no meu peito, com certeza constrangida.

— Não foi culpa dela. Eu a forcei — afirmei com decisão, usando um tom de comando.

Ela finalmente ergueu a cabeça, olhando para mim, surpresa.


— Como assim?

— Giovanna é minha futura esposa — usei de arrogância para falar. — Tenho direitos. E eu não
lhe dei escolha.

Não sei se Giovanna entendeu minha intenção, mas continuou calada. Senti quando engoliu em
seco, pouco antes de eu abrir espaço para que descesse da mesa.

— Não é o local para isso — o pai dela falou. Mas se esperava um pedido de desculpas, tudo o
que ganhou foi um erguer de cabeça altivo. Eu não ia ceder. Fosse como fosse, meu pai era o chefe.

Um dia ele seria meu consigliere. — Venha, Giovanna.

No momento em que ela chegou perto dele, eu o vi agarrá-la pelo braço e puxá-la sem muito
cuidado. Segurei a vontade de socá-lo e arrancá-la dele, mas isso só serviria para piorar as coisas.

Por isso deixei que acompanhasse o próprio pai, sentindo algo se remexer dentro de mim ao vê-la
olhar para trás, por cima do ombro, com uma expressão que não compreendi.

Mas era melhor assim. Algo nela despertava coisas que eu não podia sentir. Não no mundo em
que vivia. Especialmente porque ainda estava só começando. Tudo o que eu via no meu futuro era
mais e mais escuridão. Ela não podia ser a minha luz.

Giovanna seria minha esposa, eu precisava desejá-la e tolerá-la. Não mais do que isso.

Era o que eu me forçaria a fazer. Aquele encontro precisava ficar em um canto escondido da
minha memória ou a lembrança iria me enfraquecer.

E isso era algo que eu não podia permitir.


5

A mão pesada de meu pai machucava o meu braço, e conforme nós avançávamos escadas acima,
mais ele parecia querer me machucar. Tropecei em um dos degraus, quase caindo no chão, pela forma

como era literalmente arrastada, mas não reclamei. Estava errada, não estava? As regras eram claras,
e eu as quebrei.

Uma boa moça não ficava se agarrando com um homem em um canto escuro. Nem mesmo se esse
homem fosse seu futuro marido.

Nem mesmo se esse homem fosse o futuro chefe da porra toda.

Minha mãe, talvez, ficasse feliz. Meu pai... Bem, ali estava sua reação.

Fui levada ao meu quarto e praticamente jogada lá dentro. Cambaleei e novamente quase fui ao
chão, levando em consideração os saltos que usava, mas consegui chegar à cama.

— Você me desonrou, Giovanna! Acha mesmo que acreditei em uma palavra que aquele figlio di
puttana disse? Não me parecia um beijo forçado.

Meu pai estava xingando seu futuro chefe? Mas o que estava acontecendo?

— Pai, o beijo mal aconteceu. Não fizemos nada de mais.

Ele se aproximou de mim com uma expressão ameaçadora.

— Escute bem... você não vai se apaixonar por Enzo Dallaggio. Não vai! — embora não
estivesse gritando, porque provavelmente não queria que ninguém o escutasse, o tom ameaçador em
sua voz fez com que eu me encolhesse.

— Mas nós vamos nos casar. Se eu me apaixonar por ele, poderia ser mais feliz, pai. Por que está
falando isso? — Não sabia se aconteceria, se eu chegaria a ter sentimentos mais fortes por Enzo, mas
o quase beijo mexeu comigo.

Não mexeu?

Deus, eu queria que tivesse me beijado. Queria experimentar a sensação de ser arrebatada por

ele, porque algo me dizia que seria inesquecível.

Mas isso não era importante no momento. O que eu precisava entender era por que meu pai estava
tão transtornado.

— Pai, você vai descumprir o acordo? Eu não vou mais me casar com Enzo? — Por algum

motivo aquela perspectiva me deixou tensa. Apesar das palavras de Paolla e de odiar a ideia de me
casar sem amor, Enzo era jovem, bonito, charmoso e não me assustava tanto. Talvez porque o
conhecesse desde pequena. Mas e se minha nova realidade fosse ter de ir ao altar com um homem
muito mais velho? Com alguém por quem eu não me sentisse nem um pouco atraída?

Alguém que me desse asco?

— Não. Mas esse casamento vai ter outro propósito. — Ele agarrou meu braço novamente com
agressividade, e eu cheguei a gemer com o contato.

Apesar de ser um homem naturalmente violento, cruel – como todos no meio em que vivíamos –,
comigo ele sempre foi razoavelmente paciente. Nunca me faltou nada, e mesmo com suas ausências,
em viagens para resolver problemas, nunca foi um mau pai. Nunca me colocou em seu colo, nem
durante a infância, nem fez carinho nos meus cabelos. Nunca lera para mim antes de eu dormir, mas
não me tratava como uma garotinha boba – como minha mãe fazia. Só que naquele momento, eu não o
reconhecia.

— Está me machucando! — choraminguei, assustada.

— Você vai se casar com Enzo — ele continuou, sem dar atenção ao meu protesto. — Vai se
casar com ele e vai destruí-lo. Será meu instrumento de vingança. Está ouvindo bem, Giovanna?
Tentei me desvencilhar de sua mão, porque ele estava espumando de ódio. Quando consegui,

levantei-me da cama e me afastei, colocando uma distância segura entre nós.

— Que história é essa? Você sempre foi leal à família Dallaggio!

— Eu era! Deixei de ser a partir do momento em que meu próprio chefe me apunhalou pelas
costas. — Fiquei sem entender nada, e meu pai aparentemente percebeu, porque logo se apressou em
explicar: — Sua mãe, Giovanna! Aquela puta me traiu. Trepou com Marco Dallagio. Acho que vem
trepando com ele há anos!

Meu coração parou.

Literalmente congelou dentro do peito, como se alguém tivesse deixado de dar corda nele.

Se fosse sincera poderia dizer que não me surpreendia. Nem um pouco. Minha mãe não tinha o
perfil de uma esposa fiel e submissa, e eu sempre suspeitei que tivesse seus amantes. Quando meu
pai viajava, às vezes eu ficava tardes inteiras com as empregadas, e ela nunca explicava para onde
ia. Não que eu perguntasse, e não que suspeitasse enquanto menina. Depois, passou a ser uma
desconfiança, mas não me aprofundei porque achei melhor permanecer na ignorância.

Mas nem nos meus sonhos mais absurdos eu poderia suspeitar que o amante da minha mãe

pudesse ser o chefe do meu pai.

O chefe de todos nós.

— Tem certeza? — perguntei em um fio de voz.

— Claro que tenho. Um dos meus homens viu, e eu pessoalmente fui investigar. Marco não sabe
que eu descobri.

— Mamãe soube? — Meu pai não respondeu nada, mas sua expressão me disse tudo.

Ele a matara.
Levei uma mão ao peito e a outra à minha penteadeira, tentando me firmar. Poderia perguntar,

tirar a dúvida, mas assim como quis permanecer na ignorância no caso da traição da minha mãe, não

seria uma boa ideia saber que meu pai assassinara sua esposa.

— Entende o quanto isso feriu a minha honra? O quanto essa mácula não pode permanecer

impune?

— Mas por que quer me usar, pai? Não acha que pode ser perigoso? E se Enzo descobrir e...

— Se você souber conquistá-lo, ele nunca precisará descobrir. Para começar... você não lhe dará

um filho.

— Isso não vai descontinuar a linhagem deles. Paolla pode...

— Não importa. O único filho homem de Marco não terá descendentes. Você vai passar a tomar
anticoncepcional e não vai permitir que Enzo a engravide.

O que significaria que eu nunca poderia ter um filho meu também. Levei as duas mãos à barriga,
pensando que se seguisse seus planos, nunca sentiria um bebê ali dentro.

— Além disso, quero que o faça sofrer. Que torne a vida dele um inferno. Ele não vai ter paz

dentro de casa e nem fora dela. Vou me certificar disso.

— Ele pode me machucar, pai. Pode...

Novamente ele se aproximou, transtornado. Não consegui recuar muito, porque colidi com uma
parede. Meus dois braços foram agarrados, e eu fui sacudida.

— Você não se sacrificaria por sua família? Por seu pai?

Era uma pergunta cruel. Como eu diria que não? Se dissesse, ele mesmo não podia me machucar
no estado em que estava? Eu não o reconhecia.
Ele matara a minha mãe... por que não poderia fazer o mesmo com uma filha desobediente?

Assenti naquele momento, sentindo-me pequena e indefesa perto dele. Responderia qualquer
coisa só para que me soltasse.

Sempre me julguei corajosa, impetuosa e ousada, mas na primeira ameaça, me vi acuada, como
uma garotinha amedrontada. Era assim que eu iria conseguir me agigantar diante de Enzo e me tornar
um instrumento de vingança? Como poderia mentir e trapacear para um homem com seu poder, que
estaria acostumado a lidar com criminosos experientes e cruéis?

Parecendo voltar a si por um momento, meu pai tirou as mãos de mim e deu alguns passos para
trás. Cabeça baixa, respiração ofegante, trêmulo. Ele nunca amou minha mãe o suficiente para ter uma
reação como aquela. Era posse. Pura e simples.

Uma posse que Enzo teria comigo um dia.

Ou melhor... provavelmente ele já tinha. Se eu beijasse outro homem, ou se sequer fizesse o que
fizemos naquele canto escuro da casa, ele não ficaria satisfeito.

E essa posse que meu pai sentia pela minha mãe era tão forte, tão assustadora, que ele seria capaz
de colocar a própria filha em risco para vingar uma honra.

— Vai fazer isso por seu pai, não vai, Giovanna? — Lá estava ele ofegante novamente.

— Pai, eu não sei se...

— Se não concordar, vai ser renegada desta família — ele me interrompeu. Arregalei meus olhos,
chocada. — Você sabe o destino de uma mulher renegada, não sabe?

Claro que eu sabia. Meu próprio pai me arrastaria para um dos bordéis da máfia e me deixaria lá
para ser usada e abusada por soldados, capos e outros. Eu me tornaria uma prostituta, mesmo sendo
de uma família respeitada. Teria meu corpo virgem violado de todas as formas. Seria machucada,
submetida a todos os tipos de fetiches loucos e traumatizada.

Em qualquer idade, eu veria isso como um pesadelo. Mas aos dezessete anos? Era o mesmo que
amarrar uma corda no meu pescoço e me sufocar até a morte.

— Tudo bem, pai. Vou participar de tudo isso.

Então aquela foi a noite em que selei meu destino.

E desde que ela aconteceu, como se o destino quisesse me enviar alertas, eu fui ouvindo mais e
mais coisas terríveis sobre Enzo. Sobre o quão frio e cruel ele era. Sobre o quanto se tornaria um

chefe incrível.

Mas, obviamente, um péssimo marido. Especialmente para uma esposa que iria traí-lo. Porque eu
não duvidava nem por um minuto que tudo aquilo terminaria em tragédia. De uma forma ou de outra.
Parte 2
6

Saltei do carro, ajeitando meu sobretudo e meneando a cabeça em direção ao homem que abrira a
porta para mim – Luigi, um dos meus soldados. Aparentemente leal. Na verdade eu o consideraria

assim se conseguisse confiar em alguém.

Todo mundo era culpado até que se provasse o contrário. Foi o que fui descobrindo naquele meio,
em meus vinte e cinco anos de vida.

Há um mês eu tinha perdido meu avô em um “acidente”. Nunca fomos próximos, e eu não fingi,

em seu velório, que estava sofrendo. Assim como meu pai, era um homem frio, que não se importaria
com as lágrimas de um neto que, para ele, só servia para continuar a linhagem dos Dallaggio e
assumir a chefia.

Sem que eu me desse conta, enquanto me sentia impassível durante o velório dias atrás, meus
pensamentos foram guiados em direção a Giovanna por dois motivos: o primeiro deles porque me
lembrava que a última vez em que nos encontramos foi exatamente em um enterro. Lembrava-me
muito bem da forma como dissera que se aproximara de mim por não precisar fingir um sofrimento
que não sentia. O quanto isso nos tornava parecidos naquele momento específico?

Ela não compareceu ao enterro do meu avô. Enviou uma bela coroa de flores, mas alegou
indisposição. Se eu pudesse faria a mesma coisa, com exceção de que não me daria ao trabalho de
comprar as malditas plantas.

O segundo motivo que me fez pensar nela foi a ideia de que nosso casamento precisava acontecer.
A promessa fora de que assim que eu fosse instituído como chefe, deveria tomá-la como esposa. E ao
mesmo tempo em que a ideia me desagradava, porque queria adiar a descida dela ao inferno ao
máximo, estava desesperado por isso.

O beijo que nunca aconteceu... Porra, ele ficou na minha cabeça por semanas. Ao ponto de eu ter
vontade de invadir a casa dela, jogá-la no meu ombro e sequestrá-la para mim. Queria que aquela

boca ousada me pertencesse. Queria poder levar a minha a cada uma das partes intocadas de seu

corpo.

Mas eu precisava ter paciência. O casamento não poderia demorar. Não havia chances de eu me

tornar um chefe sem ter uma mulher ao meu lado. Uma mulher que tivesse sido criada para isso.

Só que naquele momento não era Giovanna que estava em minha mente, enquanto eu entrava no
galpão ermo, em uma noite silenciosa, pronto para ficar cara a cara com um homem que
aparentemente tinha informações preciosas.

Informações sobre um traidor.

Havia uma firme suspeita de que meu avô fora assassinado. Sendo o Don, muito idoso, ele era
recluso e dificilmente saía de sua mansão, porque seus passos eram sempre perigosos. Alguém que
sabia exatamente que ele precisaria para uma consulta médica aproveitou a oportunidade e preparou
uma emboscada. Nem mesmo os soldados que o acompanharam foram páreo para o elemento
surpresa.

Apenas eu e meu pai sabíamos que meu avô iria sair, além dos soldados. Algum deles o dedurara.

Então um deles – o único sobrevivente do ataque – estava amarrado a uma cadeira, amordaçado e
com uma venda nos olhos. Três homens o cercavam: meu pai, Giuseppe, Santino – que era um
subchefe e meu cunhado. Um pouco mais distantes contávamos com a vigilância de alguns soldados.
Aquele seria meu primeiro trabalho oficial como chefe, mas certamente não era a minha primeira
sessão de tortura. Era meu papel arrancar a informação dele, e eu sabia que seria sangrento e
cansativo.

Calmamente tirei meu sobretudo, pendurando-o, assim como fiz com o blazer, permanecendo
apenas com o colete como peça do terno. Ficaria arruinado, mas era importante que, mesmo em uma
situação como aquela, mantivéssemos a elegância, para demonstrar poder. Arregacei as mangas da
camisa preta e tirei a gravata, colocando-me atrás da cadeira do prisioneiro e a enrolando em seu

pescoço bem apertado.

— Gostando de nossa hospitalidade, Genaro? — falei em um tom de voz cortante, sentindo-o ser
asfixiado, mas não só isso. Ele estremeceu de leve ao ouvir a minha voz.

Eu sabia que tinha conquistado uma fama e tanto em nosso meio. Diziam que eu era implacável,
violento e que não tinha compaixão em uma situação como aquela. Claro que muitas coisas eram
aumentadas para que eu fosse realmente temido, mas com homens como ele eu realmente não me
importava de derramar um pouco de sangue. Machucar inocentes não era da minha natureza, mas

homens da máfia? Nenhum deles prestava, inclusive eu.

Deixei a gravata permanecer onde estava por mais tempo, apertando-a mais e mais, até senti-lo
mole, quase prestes a apagar. Então tirei a venda e dei a volta, deixando que me visse. Ele tossia
como um louco e se debatia, tentando se soltar das amarras, mas não iria conseguir. Peguei uma
mesa, puxando-a para perto do local onde ele estava. Depois fiz o mesmo com uma cadeira, para que
pudesse me sentar de frente para ele, com o peito apoiado em seu encosto, as pernas uma de cada
lado.

Vi seus olhos se voltarem para a mesa, enxergando todos os objetos que mantínhamos ali.
Alicates, canivetes, martelos... todo o tipo de ferramenta com as quais poderíamos causar uma boa
quantidade de dor em um traidor como aquele filho da puta. E ele sabia disso. Participara, como
soldado, de algumas das sessões de tortura que realizamos.

— Acho que já entendeu, não?

Ele engoliu em seco e fiz um sinal para que nosso subchefe lhe tirasse a mordaça.

— Chefe... senhor... eu não sei de nada — apesar do visível medo, o cara tentava se manter
impassível. Era treinado para isso. Para sentir dor.
— Então quer que eu acredite que você sobreviveu a um ataque ao meu avô, onde todos os

soldados foram mortos, mas você sequer foi atingido?

— Eu levei uma pancada na cabeça e caí. Suspeito que tenham se enganado e acreditado que eu
estava morto. — Ele parou de olhar para mim. Focou seus olhos em um ponto aleatório do ambiente,

como era treinado para fazer.

— Esse tipo de gente não comete esse tipo de erro — respondi, mantendo meu tom de voz baixo,
ameaçador. — Olhe para mim enquanto eu falo...

Ele não obedeceu. Foi seu primeiro erro.

Prefiro não descrever exatamente o que fiz, mas usei uma das ferramentas, e ele gritou como um
condenado. Nossos soldados eram treinados para lidar com a dor, mas aparentemente aquele ali não
tinha muita tolerância. Esperava que isso facilitasse nosso trabalho.

Não foi o caso.

Foram horas e horas de momentos intragáveis. Eu não sentia prazer no que fazia. Era minha
obrigação, e eu a encarava de tal forma. Meu pai, em contrapartida, chegava a sorrir ao me observar,
orgulhoso, sentindo-se premiado por ter um filho tão competente naquele tipo de serviço. Se é que

poderia ser chamado assim.

Mas, afinal de contas, ele me treinara. Eu passei por muitas daquelas coisas que aquele homem
estava passando, só para me tornar um homem. Dias e dias de agonia para provar o meu valor.

Eu sobrevivi. Nosso prisioneiro, não.

Ele resistiu até o fim, o que me fazia suspeitar que ou ele realmente não sabia de nada ou era
muito leal à pessoa para quem trabalhava.

Tanto tempo perdido para nada...


Sentindo meus músculos tensos, afastei-me do prisioneiro e dirigindo-me ao lavabo do galpão.

Aquele lugar cheirava a morte, mas eu não podia demonstrar fraqueza.

Obviamente não fiquei sozinho por muito tempo.

— Bom trabalho, Enzo. — Era meu pai. Mal olhei para ele, porque não queria ver o brilho do
entusiasmo em seus olhos.

— Não consideraria assim. Não descobrimos nada.

— O cara era durão. Você chegou aos limites, não hesitou.

Abri a torneira e comecei a lavar as mãos. Não iria adiantar muito, porque o sangue parecia
impregnado, mas precisava tentar.

Não respondi.

Eu realmente não tinha hesitado. Como poderia ser diferente? Todos os olhos estavam em mim;
era um teste, e eu, aparentemente, havia passado.

— Você é chefe agora, Enzo. Assumiu a posição com mérito, mas precisa se casar. A moça não
pode esperar a vida inteira e está mais do que na hora.

Era estranho falar sobre casamento depois de ter torturado um homem até a morte. Era quase
bizarro meu pai querer ter uma conversa trivial depois do que tínhamos acabado de fazer.

Mas provavelmente era mais um teste.

— Sim, está na hora. Avise Giuseppe, sim? Peça que fale com Giovanna para ela começar os
preparativos. Podemos realizar tudo em uns cinco meses, creio?

— Três. Não mais do que isso. Já demorou demais. Se está preocupado de se casar porque vai
ficar preso a uma única mulher a vida toda, não fique. Uma boa esposa vai entender quando você
precisar buscar algo fora de casa.

Continuei esfregando uma mão na outra, mais uma vez sem responder. Não merecia resposta.

— Três meses, Enzo?

Dei de ombros, enquanto limpava as mãos em uma toalha branca.

— Por mim, tudo bem — respondi sem entusiasmo.

Então tirei meu colete, que estava manchado de sangue e o joguei no lixo. Eu sabia que as pessoas
que iriam cuidar do lugar também dariam um sumiço na peça.

Havia apenas uma mancha de sangue na blusa. Na direção do ombro. O paletó e o sobretudo
esconderiam.

Saí do banheiro com meu pai em meus calcanhares, como uma sombra. Queria muito seguir para o
meu carro sozinho, mas sabia que ele iria atrás. Só que agora ele não era mais apenas o meu pai. Era
meu Don. Eu lhe devia obediência.

Passei pelo cabideiro onde pendurei minhas roupas e as vesti sem me importar com o caos que
estava o local. Já tinha visto coisas piores.

E passado por algumas similares.

— O casamento é importante, Enzo. Você precisa entender isso.

Ok, ele estava me irritando. Por mais que houvesse uma hierarquia entre nós, eu não permitiria
que tornasse a minha noite ainda mais estressante.

— Não preciso entender. Preciso estar no altar na data marcada e dizer sim. Creio que seja
suficiente. Não peça mais de mim. — Com isso, afastei-me, e ele não me seguiu. Finalmente.

Tentando afastar os pensamentos sombrios que insistiam em me assombrar, saí para a noite fria.
Meu motorista e guarda-costas abriu a porta do carro, e eu entrei sem olhar para trás. As horas

passadas naquele galpão em breve se tornariam turvas, fundindo-se a outros pesadelos, a outras

memórias obscuras. Muitas ainda viriam. Isso eu tinha certeza.


7

A imagem que eu via no espelho era a mais deslumbrante possível. Meu cabelo estava
perfeitamente penteado, com cachos bem feitos nas pontas, minha franja alta, como se eu fosse uma

atriz dos anos cinquenta de Hollywood. Meu vestido tinha o formato sereia, abrindo-se em uma
cauda na altura dos meus joelhos, um decote em coração, um véu recatado, um buquê de gérberas
coloridas deslumbrante.

Eu poderia estampar a capa de uma revista de noivas, com exceção de que não havia sequer o

resquício de um sorriso no meu rosto. O semblante preocupado era o mais evidente.

Ao longo daqueles anos, muito me foi dito sobre Enzo Dallaggio, e nenhum dos comentários foi
lisonjeiro ao ponto de me deixar mais tranquila. Se fosse apenas o casamento, eu poderia até
acreditar que ele seria um marido satisfatório. Bonito o suficiente para me atrair, experiente,
poderoso, rico e contanto que me deixassem em paz, eu poderia tolerar muito. Só que as coisas
mudavam um pouco levando em consideração o que eu teria que fazer.

Um bater na porta interrompeu meus pensamentos. Em qualquer situação eu ficaria feliz por ter
um alívio daqueles medos, mas era meu pai.

Desde nossa assustadora conversa no dia do velório da minha mãe, nosso relacionamento mudou
drasticamente. Não apenas eu passara a temê-lo mais do que seria saudável em uma relação de pai e
filha, mas senti um distanciamento de sua parte também.

Aparentemente, para ele, eu era apenas o instrumento de uma vingança que poderia me destruir.

— Você está linda, Giovanna. — Respirei fundo, tentando não ver naquele homem o pai do qual
eu sentia falta. Ele havia mudado muito. — Finalmente o dia chegou. Enzo adiou demais esse
casamento.— E eu queria que adiasse mais e mais. — Só mantivemos a promessa porque tenho
minhas intenções com essa união, e você sabe quais são. Se não fosse por isso, você já teria se
casado com outro.
Não teria, não. Se meu pai não tivesse descoberto que minha mãe tinha um caso com Marco

Dallaggio, ele continuaria sendo a cadelinha de seu chefe, e eu seria o prêmio. Sempre foi uma honra

imensa para ele que sua única filha se casasse com o príncipe da máfia, e isso não mudaria. Ele só
estava irritado.

Inclinou-se e beijou a minha testa. Seus lábios pareciam mais frios do que eu me lembrava, ou
talvez fosse apenas uma impressão. Talvez fosse o meu coração que tivesse congelado para ele.

— Vá. Cumpra seu dever. Honre o nome da sua família.

Traindo uma pessoa.

Era isso que ele conhecia como honra.

Os momentos seguintes se passaram como um borrão. Entrei no carro e fui levada pelo nosso
soldado para a casa de Enzo, onde aconteceria a cerimônia e onde moraríamos a partir daquele
momento. Meu pai seguia calado ao meu lado, inquieto, ansioso. Queria acreditar que estava temendo
por mim. Queria imaginar que em algum momento diria ao motorista que seguisse outro caminho e
que fugíssemos. Ou melhor... que me pedisse para esquecer aquela besteira toda de vingança e que eu
tentasse ter um casamento normal, na medida do possível.

Mas não foi o que aconteceu. Quando dei por mim, já estava de frente para o altar, de braços

dados com o meu pai, caminhando em direção a Enzo.

Mais sério do que eu me lembrava, ele parecia altivo e poderoso como sua posição exigia que
fosse. E bonito. Deus... como era bonito. Como Lúcifer. Tal qual o príncipe das trevas, Enzo era um
demônio.

Não houve sorrisos. Não que eu os esperasse. Não era um casamento feliz. Nenhum de nós dois
queria estar ali, cada um por seus motivos. Não houve olhares de interesse como na última vez em
que nos vimos, em que Enzo pareceu me incendiar com sua intensidade. Com as mãos para trás das
costas, ele olhava na minha direção, mas seus olhos azuis como safiras pareciam mortos.
Ele não era o mesmo menino que conheci.

Isso me fez começar a entrar em pânico.

Quando me peguei ao seu lado, no altar, minhas mãos tremiam. Ele iria me descobrir. Só de olhar
nos meus olhos, iria perceber.

Estava tão grande... Fazia com que eu me sentisse absurdamente pequena, menor do que de
costume. Aquele homem poderia me machucar se quisesse. Facilmente. Se descobrisse o que eu
estava prestes a fazer, ele...

— Podemos começar? — o juiz de paz perguntou, interrompendo meus pensamentos.

Assenti, tentando me controlar. Começava a ficar sem ar, e não seria nada bom eu desmaiar ali,
em pleno altar. Isso só evidenciaria a minha culpa.

Não ouvi praticamente nada que o juiz disse. Era um blá, blá, blá sobre honra e fidelidade, não
apenas ao cônjuge, mas à máfia em si, e eu estava ali traindo tudo isso. Não apenas iria destruir o
marido como enfraquecer o chefe de todos nós. Isso, é claro, se eu conseguisse conquistá-lo e seduzi-
lo. Havia uma chance imensa de meu marido sequer se interessar por mim. De me ver como um
instrumento de prazer, com um pouco mais de valor para ele do que as prostitutas que obviamente
conhecia.

No momento em que a aliança foi colocada no meu dedo, tudo no que pude pensar foi no tamanho
da mão de Enzo pegando a minha. No tamanho do estrago que aquelas mãos poderiam fazer um dia se
as usasse contra mim.

Ele deve ter percebido que eu estava tremendo, mas não fez nada. Não falou nada. Nenhuma
palavra de conforto. Nenhum olhar de compaixão. Apesar de seu toque cálido, o homem era feito de
gelo.

— Pode beijar a noiva — o juiz disse, e eu respirei fundo. Era um misto de sentimentos muito
assustadores. Eu me lembrava muito bem da sensação de ser arrebatada por seus braços. O beijo
nunca se concretizou, e eu nem tive tempo de ruminar como teria sido pela atitude do meu pai logo

depois. Não tive oportunidade de sonhar com o primeiro momento mais próximo do erotismo da

minha vida.

A partir daquele momento eu pertenceria a Enzo Dallaggio, chefe da máfia. Ele seria meu marido.

Beijos seriam cotidianos, e ele me possuiria, provavelmente naquela mesma noite.

Para a minha surpresa, no entanto, pegou minha mão de forma elegante e beijou os nós dos meus
dedos. Um beijo sem emoção, dado por obrigação.

Será que ele tinha tão pouco interesse em mim que sequer queria me dar um beijo de verdade?

Será que tanto havia mudado nos últimos anos?

Porque ele parecera me desejar na última vez em que nos encontramos. Ou teria sido uma ilusão
de uma adolescente deslumbrada?

— Você era mais ousado antes — tentei brincar. Não havia um pingo de humor no meu coração,
mas precisava experimentar. Talvez se ele respondesse de forma mais espirituosa eu pudesse ficar
um pouco mais calma.

Só que a expressão sisuda permaneceu.

— Teremos tempo para isso. — Seco, direto, sem dar espaço para leveza. Assim seria nosso

casamento. Um mar de gelo, um iceberg.

Enzo enganchou seu braço no meu, de uma forma tão possessiva que me tirou o ar. Caminhamos
por sobre o tapete vermelho, em meio a tantas pessoas que eu nem conhecia, em direção à casa.
Entramos, e a governanta já estava me esperando, pegando meu buquê com um sorriso e tecendo
elogios a mim e à cerimônia. Fomos guiados a dois quartos, e eu me surpreendi com o que foi
designado para mim.

Não era apenas um belíssimo quarto feminino, mas tudo ao redor parecia muito comigo. As cores,
o papel de parede, uma cama com dossel, um closet espaçoso, minhas flores favoritas, frescas em um
vaso, além de uma estante com livros.

Aproximei-me dela primeiro, ainda usando meu vestido de noiva, tocando as lombadas e

percebendo que a maioria deles eram exemplares dos meus favoritos, além de muitos que estavam na
minha wishlist da Amazon.

Cada vez mais chocada, girei ao redor de mim mesma e vi um canto do quarto que não tinha
percebido ainda. E como seria possível, se o cômodo era imenso? Um pequeno palacete.

Era um claro ambiente de leitura. Com um sofá confortável, um tapete felpudo no chão, além de
algumas almofadas sobre ele, parecia um espaço completamente mágico e distinto. O destaque ficava

para a cadeira de balanço que pendia do teto, quase como um balanço, toda acolchoada e com luzes
ao seu redor – tipo pisca-piscas de LED.

Dando passos incertos, coloquei-me de frente para o ambiente, tocando cada coisa com
delicadeza e crescente surpresa.

— O senhor me pediu para consultar sua governanta e descobrir coisas que a senhora poderia
gostar. Contratou um decorador pessoalmente para deixar o quarto o mais agradável possível.

Isso não fazia sentido. Por que Enzo se preocuparia com algo assim? Cada detalhe, cada pequeno
canto daquele quarto era perfeito para mim. O gesto não combinava com o homem que me recebera

no altar e que sequer quisera me beijar ao se tornar meu marido. Eu mal conseguia imaginar Enzo,
com seu jeito sisudo, a postura durona, preocupando-se em criar um cômodo como aquele para mim.

— Obrigada, Belamina — era o nome da governanta. Sorri para ela, esperando que pudéssemos
nos dar bem. Precisaríamos ser aliadas.

Isso, é claro, até eu trair o patrão dela. Ela não seria louca de ficar do meu lado quando tudo
desmoronasse.

— De nada, senhora. Precisa de ajuda para se trocar?

— Não, está tudo bem. — Outro sorriso, embora eu não estivesse nem um pouco a fim de sorrir.
Não era mais apenas o medo. Era a desconfiança. Será que seria sempre assim? Será que eu

sempre teria um pé atrás dentro da minha própria casa? Com meu próprio marido?

Por que ele queria tanto me agradar? Não era esse tipo de homem. E, pelo amor de Deus, seria
muito mais fácil arruinar alguém a quem eu odiasse. Se Enzo começasse a facilitar demais as coisas

no nosso casamento e não me tratasse como o monstro que todos diziam que era, ficaria muito
complicado traí-lo.

Seria complicado de qualquer forma. Eu estava em uma teia, sem saber como sairia dela. Se viva,
morta ou completamente despedaçada.
8

Sobressaltei-me quando abri a porta do quarto, já sem meu vestido de noiva – que fora
substituído por um cinza, quase prateado, colado ao corpo, sem decote profundo e na altura dos

joelhos. Comportado o suficiente para a nova mulher que eu era: a esposa do chefe da máfia – e vi
Enzo parado lá fora, me esperando.

Ele estava encostado na parede ao lado, como um guardião, silencioso, sombrio e predatório.

— Dio santo! — exclamei, levando a mão ao peito, no momento em que vi o homem enorme ali.

Nem mesmo com um salto de mais de dez centímetros eu alcançava mais do que seu queixo.

— Perdão. Achei que seria melhor se descêssemos juntos. — Aquele tom de voz... Provocava-me
calafrios, mas eu não sabia dizer o motivo. Era profundo, rouco, grave, sexy.

— Por que não bateu?

— Não quis te apressar.

Parecíamos dois estranhos. Bem... mas nós éramos, não éramos? Alguns encontros na infância,
adolescência e depois de adultos em eventos não nos tornava íntimos. Especialmente porque o Enzo

que conheci não era o mesmo que estava ali na minha frente.

— Desculpa se demorei demais, é que...

— Não importa. Vamos logo acabar com isso.

Uau. Que romântico para se dizer à esposa no dia de seu casamento.

Mas eu não deveria esperar nada diferente, não é?

Novamente meu braço foi entrelaçado ao de Enzo, e nós descemos para enfrentar todas aquelas
pessoas. Fomos cumprimentados por muitos, e eu podia sentir a falsidade ao nosso redor. Mulheres
que me invejavam, homens que odiavam meu marido, mas que lhe deviam obediência, e, é claro, meu

pai, que mais parecia um corvo observando-nos a cada movimento, provavelmente avaliando meu

comportamento.

Fomos praticamente arrastados para o centro do salão – um cômodo da enorme mansão de Enzo

destinado a bailes e festas, que eu provavelmente teria que organizar dali em diante –, para a nossa
primeira dança como marido e mulher.

Enzo me tomou em seus braços com cautela, e eu poderia me comover por isso se não suspeitasse
que ele não queria me tocar. Por algum motivo.

De início temi que fosse tão repulsiva assim, mas era outra coisa. No momento em que sua mão
grande tocou minhas costas e que me puxou para si, eu senti novamente o toque de posse. As pontas
de seus dedos afundaram em minha carne, e ele soltou um grunhido. Por mais inexperiente que eu
pudesse ser, não era difícil entender que era o tipo de som de um homem controlando seu tesão.

Isso me garantiu um tipo de poder que eu não tinha sentido antes. Se ele ainda me desejava, como
naquela noite do quase beijo, eu poderia seduzi-lo.

E então? Poderia seguir os planos do meu pai...? Era essa a vitória? Que grande ironia.

— Por que não olha para mim, Enzo? — apesar dos pesares, perguntei, munindo-me de coragem
depois de sua demonstração de algum sentimento. Ele não era feito de pedra, afinal.

Ele ergueu os olhos, e eu quase me arrependi. Aquelas pequenas safiras eram tão intensas que eu
poderia ter cambaleado ali mesmo, como se tivesse sido atingida.

— Você merecia coisa melhor — foi tudo o que ele disse. Daquele jeito inflexível, em um tom
cortante,

Uma frase cruel, mas não no sentido que imaginei. Ele estava sendo cruel consigo mesmo.
Eu poderia ficar calada, porque até concordava. Não apenas por merecer, mas eu queria um

homem mais plácido, mais gentil, mais vivo. Alguém que, mesmo que eu não amasse, pudesse ser

meu amigo.

Um homem que meu pai não odiasse ao ponto de me usar como peão em seu jogo de vingança.

Desviei meu olhar e a primeira coisa que vi foi meu pai, ainda nos observando. Sua expressão
passava uma mensagem clara: você tem uma missão. Uma missão que eu não desejava.

— Você também poderia encontrar uma esposa mais adequada. Já me conhece há algum tempo,

sabe que não sou um modelo de perfeição — falei, tentando soar gentil e esconder meu nervosismo.

— Não quero um enfeite de prateleira — foi a resposta dele.

O que isso queria dizer? Só que Enzo não falou mais nada. Queria perguntar mais coisas, mas
meu pai surgiu, com um sorriso muito falso, tirando-me dos braços dele e começando a dançar
comigo. Não era algo estranho o pai da noiva valsar com ela, mas eu sabia que ele tinha interesses
escusos.

— Você não está cooperando, Giovanna — ele sussurrou.

— O quê? Pai, nós acabamos de nos casar. O que eu poderia fazer de diferente? — indaguei
indignada.

— Seja mais dócil. Seja mais sedutora. — Era meu próprio pai falando aquilo. Como era
possível? — E não pense que agora que está casada pode desistir de nosso acordo. Eu poderia
plantar evidências de uma traição no seu colo. Fotos suas com outro homem enviadas para Enzo
anonimamente. Não seria difícil manipular algo assim.

Minha garganta se fechou, e eu senti o local inteiro girar. Parei de dançar imediatamente, porque
meus pés não mais me acompanhavam.
— Você teria coragem de fazer isso? Enzo me mataria, e você não teria a sua vingança de

qualquer jeito — falei bem baixo, temendo que alguém me ouvisse.

— É o que se faz com traidores. E você estaria traindo seu próprio pai.

Saí dos braços dele e dei passos para trás. Eu sabia que todos os olhos estavam em mim e que
minha atitude iria chocar aquelas pessoas, mas eu estava pouco me lixando. Queria sair dali. Queria
me afastar daquele homem.

Minha vontade era sair correndo, mas decidi ser um pouco menos dramática e teatral e contei

cada um dos meus passos, esperando que fossem comedidos o suficiente para não chamar tanta
atenção. Ensaiei sorrisos para algumas pessoas, dei algumas explicações de que precisava de um
pouco de ar puro por estar nervosa pelo casamento e finalmente cheguei ao meu destino.

O quintal da casa era amplo e bem cuidado. Nada exuberante, cheio de flores ou romântico, mas
frio como o seu dono. Havia uma piscina, um deck, algumas espreguiçadeiras, um espaço com sofás
de vime bem aconchegante, algumas árvores, uma fonte bonita.

Aquela agora era a minha casa. Eu precisava me acostumar com ela.

Eu tinha um marido. Também precisava me acostumar com ele.

Fosse apenas o problema de este marido ser considerado um demônio por muitos, eu poderia
lidar com a situação. Era esperta e estrategista o suficiente para saber me postar e me impor quando
necessário. Só que meu pai tinha estragado tudo.

Até mesmo minha festa de casamento.

Não que eu estivesse considerando-a um conto de fadas, mas era a única que eu teria. Não havia
divórcio dentro da máfia, e algo me dizia que, pelo que precisaria fazer, só sairia do meu casamento
morta. De uma forma ou de outra.
Ainda estava respirando com dificuldades quando senti uma mão no meu ombro. Sobressaltei-me

– pela segunda vez desde que cheguei naquela casa –, mas, quando me virei, vi Paolla.

Eu já a tinha visto antes, tínhamos nos cumprimentado, mas era a primeira vez que ficávamos
sozinhas. Ela estava bonita, com o cabelo loiro caindo pelas costas, bem longo, e o rosto de anjo

perfeito. Os olhos azuis, maquiados de forma discreta, eram muito parecidos com os do irmão, mas
mais bondosos, cálidos.

A maternidade não mudara em nada sua silhueta. Ela tinha um bebê de alguns meses – uma
menina, para o desapontamento de seu pai –, que provavelmente estava em casa com uma babá.

Se ela não tivesse outro filho, os planos do meu pai seriam ainda mais bem sucedidos. Eu não
daria um herdeiro a Enzo, e a família Dallaggio sairia do poder.

Enzo, em sua velhice, seria obrigado a escolher um sucessor fora de sua linhagem.

Mas é claro que isso não aconteceria, porque ele eliminaria a esposa desleal antes e se casaria de
novo, com alguém que lhe daria herdeiros.

— Você está bem? — ela perguntou com uma voz doce.

Abrindo mais um sorriso falso, assenti.

— Estou, sim. Obrigada.

Ela me olhou com uma expressão desconfiada.

— Somos irmãs agora, Giovanna. E eu também já fingi calma quando estava explodindo por
dentro. Conheço a sensação. — Ela fez uma pausa. — Se isso serve de consolo, você é uma mulher
mais forte do que eu.

— Não sei se nos conhecemos tão bem para que afirme isso — falei com cuidado. Não queria
soar grosseira, porque ter minha cunhada como amiga era importante.
— Não preciso. No meu casamento... — Outra pausa. Eu me lembrava bem do casamento dela.

Fora uma cerimônia íntima, à qual Enzo não participou. Na época usou um compromisso fora da

Itália, algo inadiável, mas eu achei estranho. Muitos diziam que ele não aprovava a união da irmã,
mas não tinha poder suficiente para mudar isso. — No meu casamento eu estava bem mais

apavorada. De alguma forma, suspeito que Enzo tenha sentimentos por você.

Eu ri.

— Temos impressões diferentes a respeito disso.

Paolla sorriu como se soubesse de muito mais coisas.

— Você viu o quarto, não viu? Ele não faria algo daquela magnitude para qualquer uma. — Sim,
eu tinha visto o quarto. E ele me intrigara, mas não iria permitir me iludir por este detalhe. — Se
alguém pode salvar meu irmão, esse alguém é você.

Salvar Enzo?

Não, Paolla, eu vou destruí-lo, foi o que pensei.

E isso me deixou mais triste do que pensei que estaria.


9

O cheiro dela, de pêssegos, vagava até mim como um bálsamo. Estávamos lado a lado, dentro
do carro, enquanto o motorista – e meu soldado particular – nos levava a um hotel, onde passaríamos

a noite antes de irmos para Paris, para a nossa lua de mel.

O que era ridículo. Não se tratava de um casamento romântico, mas meu pai se preocupava
demais com o que as pessoas iriam pensar.

Eu estava pouco me fodendo para as pessoas. Tudo o que queria era me enfiar no escritório da

minha casa e tomar umas boas doses de uísque para esquecer.

O que eu queria esquecer? Que agora tinha uma esposa. Uma mulher que povoou meus
pensamentos por muitos anos por sua impetuosidade, por seu jeito de falar comigo e, depois, pela
beleza. Só que vê-la vestida de noiva, aceitando ser minha para sempre, fez meu estômago se
remexer de uma forma inexplicável.

Era uma sensação parecida com a adrenalina. Uma que eu nunca senti como meu pai dizia
sentir, quando matava ou feria alguém. Também não sentia quando fodia uma mulher aleatória. Nem
quando vencia em um dos cassinos da família, ganhando uma quantia boa em dinheiro.

Era algo que eu não sentia há muito tempo. A expectativa quase infantil de estar ansioso por
uma coisa. Só que a minha ansiedade precisava ser contida.

A partir daquele momento eu tinha o direito de tocar em Giovanna quando bem entendesse. Ela
era minha esposa. Na teoria, me devia obediência, seu corpo e sua vida. Era o que maridos da máfia
esperavam. Só que eu não conseguia imaginar aquela mulher impetuosa sendo submissa. Não queria.
Eu queria o desafio que ela significava. Não queria obrigá-la a ser minha esposa também na prática.
Queria seduzi-la até que me implorasse para ser possuída.
Só que tudo isso era muito perigoso. Enquanto eu apenas sentisse tesão por ela – que eu

esperava que fosse sanado quando fôssemos para cama pela primeira vez –, eu poderia lidar com

isso. Se algum sentimento entrasse em jogo, as coisas seriam diferentes.

Se eu me apaixonasse pela minha própria esposa, estaria perdido. Ela seria meu ponto fraco. E

eu não poderia ter um.

Vi Giovanna remexer-se ao meu lado, e eu não sabia se estava incomodada, embora parecesse
nervosa. Eu não a julgava.

Meu carro era um Mercedes-Maybach Pullman, o que significava que havia uma divisória entre
nós, mas por mais baixa que pudesse ser, mais parecia um muro a nos dividir.

Meus olhos se prenderam a ela. As pernas cruzadas, torneadas e fartas; uma das mãos de unhas
perfeitamente manicuradas e pintadas em um tom de vermelho sobre a coxa. Era toda delicada. Toda
feminina e suave. Eu poderia substituir sua mão pela minha só para sentir a textura de sua pele.

Eu poderia fazer isso.

Ela era minha.

Minha esposa.

Mais uma vez se remexeu e seus olhos se encontraram com os meus. Um dos cantos de seus
lábios perfeitos – também pintados de vermelho – se curvou em um sorriso.

— Vai ficar só olhando e não vai dizer nada? — lá estava o tom de provocação. Durante toda a
cerimônia do casamento ela pareceu tensa demais, completamente diferente da garota ardente que
conheci. Isso me decepcionou um pouco, mas era bom vê-la voltar a agir como antes.

— Não tenho nada a dizer — a resposta saiu em um rompante. Eu deveria ser um pouco mais
gentil, mas não sabia como.
— Hummm — murmurou. — Está avaliando o negócio que fez?

Finalmente olhei em seus olhos, erguendo os meus bem lentamente. Seu sorriso cresceu um
pouco assim que fiz isso.

— É uma brincadeira, Enzo. Você não precisa ser tão sério comigo o tempo todo. Não vou
contar para ninguém. — Merda, ela soou tão doce como nunca antes, nem mesmo quando criança. Era
uma mulher de camadas, e eu começava a me perguntar se algum dia conseguiria desvendar todas
elas.

Se haveria algo dentro de mim que seria suficiente para, ao menos, levar meu casamento em
paz.

— Está se iludindo, Giovanna. Não uso uma máscara em público. Esse sou eu — falei baixo,
em um tom de voz cortante, não deixando espaço para contestações.

— Isso nós veremos... — mais um desafio.

Ela voltou seu rosto bonito para a janela, observando a noite ao nosso redor, e eu continuei
olhando para ela, admirando-a em silêncio.

Assim permanecemos, até que ela pareceu sobressaltar-se.

— Enzo... — sua voz chamou com um tom de fragilidade, e eu me coloquei em alerta.

Quando olhei na direção para onde ela estava olhando, deparei-me com um homem em um
carro ao nosso lado, com uma arma apontada.

O veículo onde estávamos era blindado, é claro, mas por puro instinto agarrei Giovanna e a
abaixei, fazendo o mesmo.

O tiro estalou na lataria do carro, mas não o atingiu, e meu soldado reagiu imediatamente.
Era uma porra de uma emboscada. O momento perfeito para uma.

Eu normalmente andava com mais segurança, mas estava a caminho da minha lua de mel. Não
imaginei que fosse necessário me garantir mais proteção, mas estava enganado.

— Senhor, é apenas um carro, e eles devem saber que o seu é blindado. Suspeito que queiram
lhe dar um susto. Vou acelerar, ok?

— Faça o que tiver que fazer — respondi em tom de comando e me voltei para Giovanna que
estava muito calada e parada. Movimentei-a para tentar verificar seu estado e me deparei com uma

expressão de dor e sua mão erguida, segurando um corte em seu supercílio. No momento em que a
puxei para tentar protegê-la de um tiro que não iria nos atingir por conta do carro blindado ela deve
ter batido com a cabeça na divisória entre os bancos.

Maravilhosa lua de mel.

Perfeita noite de núpcias.

Em meus primeiros momentos como marido de alguém, minha esposa já estava ferida, por
minha causa.

— Você está bem? — Ela assentiu, mas ainda parecia um pouco atordoada e com dor, tanto que
não disse mais nada.

E nem teve tempo, porque mais um tiro estalou.

Meu soldado estava certo, não se tratava de uma emboscada. Se fosse, eles poderiam atirar nos
pneus, e teríamos que parar o carro. Seríamos cercados, e as coisas ficariam feias.

Eu obviamente atirava muito bem, e meu soldado era bem treinado, mas fora exatamente assim
que meu avô morrera. Além disso, eu estava com Giovanna. Era uma pessoa para defender, o que me
deixaria em desvantagens.
Fosse como fosse, eu não queria pagar para ver. Ela estava machucada, assustada.

— A Sra. Dallaggio está ferida. Precisamos ir para um lugar seguro.

Vi meu soldado olhando para nós pelo retrovisor, enquanto eu pensava. Ajudei Giovanna a se

ajeitar no banco e, olhando para ela em um tom de repreensão, puxei seu cinto de segurança, que ela
não estava usando quando tudo aconteceu.

Ela olhava para mim com atenção, como se não esperasse nenhum dos meus movimentos.
Parecia contar comigo para nos tirar daquela situação e nos proteger.

Foi quando a ideia me surgiu:

— Para a minha casa de praia. — Era um pouco longe, mas a propriedade ficava dentro de um
condomínio fechado, onde outro carro não cadastrado não poderia entrar. Nossos perseguidores
seriam barrados, e nós estaríamos seguros. Ao menos naquela noite.

Depois que fomos a San Vito Lo Capo, naquele ano, com a família Grinani, eu fiquei encantado
com o lugar. Era um ambiente onde minhas lembranças eram um pouco mais leves, mesmo que não
tivesse conseguido brincar com as meninas, como quis. Eram minhas últimas lembranças boas.
Depois minha vida virou do avesso.

Na primeira oportunidade de um bom negócio, adquiri uma casa em um condomínio fechado.


Não no mesmo onde Giuseppe possuía a sua, mas em outro, ainda mais luxuoso.

Era para lá que iríamos.

Em algum ponto paramos de ser seguidos. Giovanna finalmente se manifestou no meio do


caminho, parecendo um pouco menos em pânico, trazendo-me um pouco de alívio.

— O que aconteceu? — ela soou muito frágil, e eu pensei por um momento no que responder.
— Aquele homem estava... armado?
— Sim, estava — respondi impassível, sem meias palavras.

Ela apenas balançou a cabeça e se recompôs, passando a mão pelos cabelos e respirando
fundo.

Qualquer outra mulher teria surtado. Feito uma cena. Gritado... as possibilidades eram
infinitas. Mas não Giovanna. Senti quando estremeceu um pouco, mas nada mais do que isso.
Remexeu-se pela milésima vez e sentou-se novamente com as pernas cruzadas, inabalável.

— Não está assustada? — Eu não deveria ter perguntado. Deveria apenas deixar que

seguíssemos para a casa de praia. Assustada ou não, acabaríamos no mesmo destino.

— Estou. Bastante.

— Não parece — mais um comentário desnecessário. Aparentemente a adrenalina me tornou


um tagarela.

Giovanna respirou fundo, inquieta, mas havia algo de muito sombrio em sua expressão. Algo
que eu não sabia como interpretar.

— Preciso ficar calma e me acostumar. Sendo sua esposa, coisas assim vão acontecer com

frequencia. — Então aqueles enormes olhos castanhos se voltaram para mim. Era com eles que
Giovanna não conseguia mentir. Ela estava, sim, amedrontada, mas se era corajosa o suficiente para
tentar esconder, eu não iria desvalorizar sua tentativa. — Não é?

Nossos olhares se prenderam um ao outro por alguns instantes, como se estivéssemos tentando
nos decifrar. Mas eu tinha a impressão de que nenhum dos dois iria se abrir tão facilmente.

Giovanna foi a primeira a recuar, voltando novamente o rosto para a janela e levando a mão ao
machucado. Não estava muito feio, saía um pequeno filete de sangue como se tivesse se cortado mais
do que tido uma concussão.
Eu deveria perguntar novamente se ela estava bem. Deveria demonstrar a preocupação que

verdadeiramente sentia, mas não conseguia encontrar abertura.

— Para onde estamos indo? — ela perguntou, parecendo um pouco perdida.

— San Vito lo Capo. Tenho uma casa lá. É segura, dentro de um condomínio fechado. — Ela
assentiu. — Não estamos mais sendo seguidos. Suspeitamos que tenha sido uma tentativa de nos
assustar.

— Senão teriam atirado nos pneus, é claro — ela concluiu, ainda olhando pela janela.

Era uma constatação muito sagaz e inteligente. Eu sabia que Giovanna era culta, especialmente
porque era apaixonada por literatura – tanto que eu fiz questão de lhe proporcionar um espaço para
que mantivesse esse hobby –, mas era bom saber que conseguia pensar com lógica em um momento
de tensão também.

Ela realmente parecia calma. Mais do que esperei. Com exceção da mão que não parava de se
movimentar sobre sua coxa, agarrando o tecido do vestido como se aquele pequeno pedaço de
realidade fosse mantê-la segura, ninguém perceberia que tinha acabado de passar por um atentado.

Tirei um lenço de dentro do bolso e estendi para ela, para que pudesse limpar o pequeno

resquício do machucado. Quando o pegou, nossas mãos se tocaram, e eu senti uma chuva de
eletricidade percorrer o meu corpo.

Era uma coisa idiota. Eu não era um adolescente. Precisava controlar meus instintos.

— Obrigada — ela falou ao pegar o lenço e levá-lo ao local do machucado.

— Você está mesmo bem? — não resisti.

Merda... se fosse sempre assim, eu não conseguindo me controlar perto dela, as coisas seriam
muito complicadas.
Pior ainda quando ela abriu um sorriso. Parecia mais cansada do que antes, mesmo que tudo

tivesse acontecido muito rápido, mas ainda conseguia parecer mais linda do que seria prudente

depois de tudo pelo que passou.

— Vou ter que confiar que meu marido irá me proteger. A partir de agora terá que ser assim.

Lá estava aquela mulher, que sempre vi como uma coisinha diabólica, usando de um tom de voz
doce e meigo. Seria uma forma de manipulação? Eu não duvidava de nada. Giovanna era inteligente e
esperta o suficiente para saber o quanto poderia ganhar de qualquer um se soubesse como jogar o
jogo da forma correta.

Precisava ficar em alerta com isso.

Eu a desejava de um jeito que chegava a me assustar. Mas não podia confiar em ninguém, nem
na minha esposa.

Tentando afastar esses pensamentos, imitei-a e comecei a observar a janela, não apenas para
apreciar a paisagem, mas também para observar se os arredores estavam calmos. Aparentemente não
havia mais ninguém a nos seguir, mas não conseguiria mais ficar tranquilo.

Assim que chegamos e nos refugiamos dentro do condomínio seguro, uma hora e meia depois,

permiti-me olhar para Giovanna. Estava adormecida, e eu poderia temer que tivesse desmaiado,
depois de ter batido com a cabeça, mas eu a vi se remexer – eternamente inquieta.

Eu deveria levá-la a um hospital. Deveria checar se estava tudo bem, mas ela tinha conversado
comigo, não tinha? Parecera coerente e não houvera perda de memória, nem desmaios. Estava tudo
bem – era o que eu precisava me convencer. Além disso, poderia não ser seguro expô-la a um local
público e com fácil acesso por qualquer um.

Meu soldado parou na casa correta e abriu a porta primeiro para Giovanna. Nem assim ela
despertou.
— Devo acordar a senhora? — ele perguntou com cuidado.

Refleti um pouco, observando-a. Estava exausta, mas respirando serenamente. Seria um crime
tirá-la daquele estado tranquilo.

— Não, Luigi. Pode deixar comigo.

Saltei do carro sem esperar que abrisse a porta para mim e dei a volta. Tirei-a do banco,
ajeitando-a nos meus braços e parei um pouco para olhá-la mais uma vez. A cabeça no meu peito, o
rosto perfeito tão calmo que a fazia parecer um anjo. Tão pequena que cabia perfeitamente no meu

colo.

Respirei profundamente, tentando me controlar e não alimentar os pensamentos que eu sabia


que poderiam se formar se continuasse admirando-a daquela forma.

Sem mais, caminhei para dentro da casa, sabendo que a partir daquele momento tudo mudaria.
Eu só não sabia se para o bem ou para o mal.
10

Ainda era noite quando abri meus olhos. Provavelmente não demoraria a amanhecer, pelo que
eu podia ver pela enorme janela, que cruzava do teto ao chão. Cortinas esvoaçavam, e eu ouvia o

som das ondas do lado de fora. O cheiro de maresia inconfundível. Tudo isso me remeteu à minha
infância.

Só que eu sabia onde estava. Enzo dissera que iria me levar para San Vito lo Capo. Porque
estávamos fugindo de pessoas que tentaram nos atacar.

Apenas mais um dia na vida dele, foi o que imaginei.

E aquilo se tornaria a minha vida também.

A cama onde eu estava deitada era enorme e confortável, e eu poderia continuar dormindo.
Provavelmente não permaneci deitada nem por duas horas, mas me sentia inquieta. Especialmente
pelas circunstâncias.

Eu ainda estava usando o vestido da festa, mas estava sem sapatos e coberta. Deitada na cama.
Não fiz nada disso sozinha. Só que Enzo não era do tipo cavalheiro. Ou será que era?

Talvez eu pudesse descobrir.

Minha cabeça latejou um pouco no momento em que me movimentei, mas segui em frente.
Havia um robe de seda pendurado em uma poltrona, o que achei mais uma gentileza. Tirei o vestido e
coloquei a outra peça por cima da minha calcinha, sem sutiã, tentando imaginar que se precisava
realmente seduzir o meu marido, começar pela noite de núpcias poderia ser uma boa escolha.

Saí do quarto com aquela sensação estranha de não conhecer o lugar onde estava. Avistei um
corredor com algumas portas fechadas e supus que Enzo poderia estar dormindo depois da noite
agitada. Fosse como fosse, eu estava com sede, precisava encontrar uma cozinha.
Acabei percebendo que estava enganada quando me dei conta de que Enzo estava de pé,

acordado.

Sem camisa. Com uma calça de moletom que pendia em sua cintura estreita.

Oh, Deus...

Tudo o que eu podia ver eram costas muito musculosas, ombros enormes e uma bunda bem-
feita. Descalço, ele estava de frente para o bar, servindo-se de uma dose.

Provavelmente era o mesmo que colocar a mão numa fogueira, mas aproximei-me.

— Pode me servir um pouco? — perguntei, com uma voz baixa, temendo pegá-lo de surpresa.

Ele lançou um olhar de soslaio para mim, sempre sério, sempre sombrio.

— Você bebe?

— Às vezes. Depois que minha mãe morreu não tive mais ninguém para me controlar nesse
quesito. Roubei algumas doses do escritório do meu pai.

Sem dizer nada, Enzo fez o que eu pedi, entregando-me um copo. No momento em que se virou,
percebeu claramente que eu não usava nada em meus seios, sob o robe. Eu sentia a seda grudar no

meu corpo como uma segunda pele, e ele podia ver isso, sem dúvidas. Seus olhos fixaram-se naquela
área por alguns instantes.

Dei uma golada sem tirar parar de observá-lo. Comecei a me perguntar se seria sempre assim,
como uma dança, onde nenhum dos dois sabia como dar o primeiro passo.

Ainda assim, eu podia sentir a tensão sexual como algo palpável.

Sentia-me um pouco nervosa, por saber que qualquer movimento meu dentro daquele
casamento teria que ser calculado. Não apenas para fazer Enzo realmente se interessar por mim, mas
também para que não descobrisse minhas verdadeiras intenções.

Afastei-me um pouco, recuando alguns passos e permitindo que ele tivesse uma visão mais
completa. As luzes estavam apagadas, mas lentamente o dia começava a nascer e a sala não estava
em total breu.

— Ninguém pode dizer que você não me carregou pela soleira da porta na nossa noite de
núpcias, não é? — falei em um tom de brincadeira, levemente provocador, mas sabia que Enzo não
riria. Ele não era um homem de piadinhas. — E eu pensando que você não era um cavalheiro...

Nada. Ele não disse absolutamente nada.

Respirei fundo, tendo em mente que seria difícil. Quase impossível. Mas o desafio não me
faria desistir.

— Foi gentil da sua parte — insisti, e ele bebeu um pouco do uísque.

— Você é minha esposa.

Só isso. Foi tudo o que ele disse.

— Não é explicação para muita coisa. — Comecei a andar ao meu redor, sentindo-me inquieta.

Por algum motivo, sua voz profunda dizendo “minha esposa” fez minhas entranhas se remexerem.

Então ouvi uma risada sarcástica.

— Nosso primeiro dia de casados e dê uma olhada no seu rosto ferido. Não pode ficar melhor
do que isso, pode? — Ouvi a culpa impregnada em cada palavra que ele falou.

Será que se realmente se culpava por eu ter me machucado?

— Não foi você que apontou uma arma para o carro em que eu estava.

Vi os ombros largos de Enzo se erguerem, como se não fosse importante, mas eu conseguia ver
além de suas atitudes indiferentes. E isso era o que mais me entristecia. Eu poderia mudá-lo. Com um

pouco de paciência, poderíamos ser bons um para o outro. Poderíamos funcionar, mesmo de um jeito

torto e um pouco disfuncional... Só que... não seria assim.

Alguém estragara nosso futuro antes mesmo de ele começar.

Fosse como fosse, eu precisava agir. Para o bem ou para o mal, precisava ter Enzo do meu
lado. Se para ter um aliado ou um inimigo, manter-me distante ou desinteressada só me traria
problemas.

Aproximei-me, pé ante pé, cercando-o com meus braços só para pousar o copo sobre o
aparador, junto aos outros. A cena me lembrou nosso quase beijo, anos atrás, onde também, em meio
a uma semi-escuridão, ele quase foi meu. Ou o mais perto disso que chegamos.

Eu poderia me afastar de novo, mas ele era meu marido, afinal. Aquela era nossa noite – ou
amanhecer – de núpcias.

Levei uma das minhas mãos à sua nuca, sem tirar os olhos de seu rosto. Ele se enrijeceu
imediatamente, como se meu toque o deixasse tenso.

— Eu gostava de seu cabelo mais comprido — referia-me ao seu corte de cabelo. Estava curto,

espetado. Muito sexy, mas mais sério, mais com cara do chefe que ele era.

— Aquilo ficou no passado com o garoto que eu fui.

Desci a mão para seu peitoral, em um rompante de coragem, encontrando a cicatriz em seu
abdômen.

— Isto aqui foi uma das coisas que roubou aquele garoto de você? — perguntei com uma voz
suave, deixando que meus dedos desenhassem o estranho contorno da cicatriz que parecia de um
corte, mas não era preciso como o de uma faca ou canivete. Parecia... vidro. Ou algo assim.
Senti Enzo prender a respiração e seu tórax musculoso se contrair até que ele agarrou meu

punho, fazendo com que eu perdesse o ar.

— Muitas coisas aconteceram, Giovanna. Muitas que você sequer imagina.

— Conte-me. Abra seu coração para mim. — Era cruel. Eu queria que Enzo se abrisse
realmente, que se confessasse, que derramasse suas mágoas, embora soubesse que com menos de um
dia de casados eu não conseguiria nada. Ainda assim era terrível pensar que eu seria a portadora de
mais feridas, mesmo que não fossem feitas contra sua pele.

Ainda com a mão enorme fechada em meu pulso, embora não me machucasse com o aperto, ele
me puxou para si. Jurei que iria me beijar, que finalmente me tomaria como sua esposa e me levaria
para o quarto para fazer valer seus direitos como marido, mas apenas deixou nossos rostos muito
próximos, e eu senti o ar quente saindo de sua boca ao dizer:

— Eu não tenho um coração.

Então me soltou e se afastou, deixando seu copo ao lado do meu.

Percebi que iria subir e me deixar ali sozinha. Que iria ignorar minhas investidas.

Era uma humilhação. Não era possível que nem mesmo depois de casados ele me desejasse.
Não era possível que negaria o que seus olhos pareciam implorar.

— Você pode não ter um coração, mas tem algo entre as pernas, não tem? — Ok, eu estava
abusando um pouco. Mas nunca fui conhecida por guardar meus sentimentos, menos ainda por me
acovardar.

Ele parou, de costas, com a cabeça baixa. Fiquei em silêncio até que se virou.

— O que quer, Giovanna? Que eu a carregue para a cama como um homem das cavernas depois
do que aconteceu? — ele cuspiu as palavras, e sua expressão me fazia ter a impressão de que estava
sentindo dor. Então sua voz suavizou: — Você está ferida.

— O homem sem coração tem consideração por alguém? — perguntei com uma sobrancelha
erguida.

Ele suspirou, resignado, impaciente. Sentia-me uma criança em frente a um adulto depois de ter
cometido uma traquinagem bem tola.

— Vá se deitar, Giovanna. Ficaremos aqui até amanhã. Estou aguardando notícias dos homens
que nos atacaram.

— Não estou com sono. Posso aguardar com você.

— Prefiro ficar um pouco sozinho. — Eu queria dizer alguma coisa, reclamar, mas ele ergueu
uma das mãos, e sua expressão novamente mudou para algo mais suplicante. — Por favor.

Eu não poderia lhe negar. Não poderia invadir seu espaço, porque não queria que invadisse o
meu.

Sendo assim, assenti e travei uma trégua, acatando seu pedido.

Mas não pretendia desistir.


11

Fui treinado por anos a me controlar nas mais diversificadas situações. Aprendi a suportar dor,
a mentir, a enganar e a deixar meus sentimentos de lado quando tinha a ver com outras pessoas. Por

mais próximas que fossem, qualquer uma poderia ser a mão que seguraria o punhal que iria me ferir
pelas costas.

Não menti para Giovanna quando disse que não tinha mais coração, porque eu o perdi em
algum momento durante meu treinamento para a posição que assumi.

Só que ela...

Puta que pariu!

Não era uma questão de estar apaixonado, é claro, porque nunca tive sequer oportunidade de
conhecê-la o suficiente para isso. A verdade era que aquela mulher se tornara algo idealizado para
mim. Eu tinha uma imagem na cabeça, da mocinha atrevida que conheci quando criança, e ela cresceu
comigo.

No carro e naquele breve encontro onde ela foi me procurar completamente nua por baixo de

um robe de seda, que revelava o suficiente de seu corpo escultural, tive pequenas amostras da
realidade. E havia detalhes que não previ; como a inesperada doçura, o toque delicado, a
sensualidade com que se ofereceu para mim.

Merda, eu não esperava, de forma alguma, que Giovanna fosse querer que eu a tomasse como
minha na nossa primeira noite como casados. Eu sabia que ela era virgem. Provavelmente nunca fora
beijada – com exceção do dia em que eu mesmo quase lhe roubei um beijo –, portanto nem pensei em
pressioná-la. Não queria uma mulher dura e tensa como uma pedra sob mim. Queria alguém desejoso
e respondendo aos meus beijos e toques.
Não...

Eu queria Giovanna.

Eu a quis desde o dia em que quase a beijei.

Tive outras mulheres. Porra, eu fui obrigado a fazer sexo com quatorze anos, durante minha
iniciação. Depois disso, a necessidade falou mais alto. Dentro da máfia os homens tinham direito a
tudo, e eu sabia que Giovanna seria obrigada a se guardar para mim. Por mais que eu não quisesse a
responsabilidade de ser o homem que iria tirar sua virgindade, saber que ela seria apenas minha e de

mais ninguém, que seu corpo seria somente meu, remexia com as minhas entranhas.

Mas não deixava de ser injusto.

Só que não cabia a mim mudar isso. O que eu poderia fazer era satisfazê-la para que, de fato,
apreciasse a ideia de eu ser o único.

No entanto ainda não era a hora. Não enquanto meus pensamentos estavam maculados pela
lembrança dela ferida por minha causa.

De uma forma ou de outra. Por mais que eu não tivesse a intenção de machucá-la quando a

puxei para defendê-la do tiro, ela estava em perigo por ser minha esposa. Um chefe da máfia nunca
poderia ter paz.

E era exatamente nisso que estava pensando quando meu celular tocou às seis e meia da manhã.
Era o meu soldado, Luigi, com as informações sobre nossos perseguidores.

— Senhor, nossos homens encontraram o carro abandonado em uma rua, dois corpos com tiros
na cabeça dentro. Suspeitamos que se tratem do motorista e do atirador.

— Queima de arquivo, aparentemente — concluí.

— Sim. É no que acreditamos também. — Ele fez uma pausa. — Fizemos uma busca no carro,
e ele era alugado. Não havia nada dentro além dos documentos. As identidades dos mortos são
desconhecidas dentro da máfia também. Provavelmente dois matadores de aluguel.

— Seja lá quem for que está tentando nos dar um susto — usei de sarcarmo — está tomando
muito cuidado.

— Concordo, senhor. Quando pretende voltar para casa?

— Amanhã pela manhã. Bem cedo preciso que esteja aqui para escoltar a mim e à senhora.
Traga mais um homem com você para reforços.

— Estaremos aí, senhor.

Depois de sua confirmação, desligamos o telefone, e eu decidi deitar para dormir um pouco.
Subi as escadas lentamente, sentindo-me cansado e frustrado. Não era exatamente a forma como
esperava passar minha noite de núpcias – não que eu tivesse qualquer expectativa para ela, mas
certamente não cogitei ter minha mulher ferida e estar refugiado em um lugar diferente do que
imaginamos.

Passei pelo quarto de Giovanna e vi que a porta estava aberta. Eu poderia interpretar como um
convite, mas a vi apagada sobre a cama, usando o robe de seda de mais cedo. De bruços, sem uma

coberta por sobre seu corpo, as coxas estavam nuas, e eu precisei engolir em seco ao permitir que
meus olhos seguissem o contorno de suas curvas.

Mas não fui muito longe, logo saí e fechei a porta, esperando não cair na tentação.

Só que não foi tão simples durante o dia, porque ela estava muito empenhada em me
enlouquecer.

Dormi por apenas umas duas horas e desci para a praia, para tentar pegar um pouco de ar puro.
Deixei um almoço encomendado no restaurante dentro do condomínio, e eles nos entregariam por
volta de meio dia. Esperei que Giovanna ficasse dormindo até lá, mas por volta das onze ela
apareceu, vestindo, daquela vez, um roupão felpudo que deixava no quarto onde ela dormira, assim

como o robe, para hóspedes – embora eu dificilmente tivesse algum.

Fiquei olhando para ela enquanto passava por mim sem nem me lançar um olhar. Colocou-se
diante das ondas e alongou o corpo pequeno, chegando a colocar-se na ponta dos pés e erguer os

braços delicados sobre a cabeça. Não se parecia em nada com uma mulher cujo carro fora atacado na
noite anterior.

Claro que sendo fruto da máfia, ela estava acostumada à violência e àquele tipo de coisa, mas,
até onde eu sabia, nunca sofrera algo parecido, nem mesmo seu pai sendo consigliere do chefe, então

me fazia acreditar que se tratava de uma personalidade mais forte do que pensei.

A pequena diaba olhou para mim por cima do ombro, com os cabelos longos ao vento, um
sorriso ainda mais diabólico curvando a merda dos lábios perfeitos.

— Bom dia, marido — a ironia era perceptível. Com isso eu até poderia lidar. O problema foi
o que veio depois...

Dando mais alguns passos em direção ao mar, Giovanna simplesmente abriu o laço do roupão e
o deixou cair na areia, ficando completamente nua.

Nua.

Em pelo.

Eu queria olhá-la. Inteira. Queria deixar que meus olhos se perdessem no formato daquela
cintura, dos quadris, da bunda delicada, sem contar os seios, que eram fartos, redondos, empinados.
Só que um instinto me fez pular da cadeira onde estava sentado e correr na direção dela, pegando o
roupão do chão e enrolando-o em seu corpo, assustando-a.

— O que diabos está fazendo? — vociferei. Não queria soar enciumado daquele jeito, mas era
um pouco impossível.
— É uma praia particular, não é?

— Sim, mas nada impede de alguém de alguma casa vizinha passar. Não impede de alguém
estar com um binóculo olhando para cá e vê-la assim.

Ela se virou nos meus braços, ficando de frente, cara a cara.

— Talvez alguém se interesse mais do que você — novamente uma clara provocação, e ela
falou em tom de brincadeira. Eu não deveria cair. Só que Giovanna dificultava e muito as coisas.

Naquele momento não havia sangue frio em mim. O homem controlado e comedido que eu era

desmanchou-se em uma poça de possessividade sob os meus pés, imaginando outro cara conseguindo
ver Giovanna ali, nua, linda, desejável, sob o sol tímido daquela manhã, exibindo-se inteira.

Aproveitando que o roupão era bem grande, fechei-a melhor nele e a lancei no meu ombro,
começando a carregá-la para dentro da casa.

— Enzo! Ma che diabolo fai? — ela gritou, assustada.

— O que diabos eu estou fazendo? O que diabos você está fazendo, maledetta?

A louca começou a rir. Enquanto eu a carregava pelas escadas que davam à porta dos fundos da

casa e depois àquelas que nos levariam aos quartos, Giovanna gargalhava. E continuou fazendo a
mesma coisa quando a lancei sobre a cama. Sua reação era tão inusitada para mim que agarrei seus
punhos contra o colchão esperando olhá-la e entender o que estava acontecendo.

— O que há de engraçado? — Eu já estava perdendo a cabeça. E era nosso primeiro dia de


casados.

— Você. Está. Com. Ciúme. — Ela falou pausadamente, zombando de mim. Eu deveria estar
possesso de raiva, mas cada vez que me provocava, mais eu a desejava, mais ansiava por domá-la.

Resmunguei qualquer coisa bem baixinho, e Giovanna provavelmente não ouviu de tanto que
sua gargalhada era alta. Jocosa. Queria responder que não, que era uma questão de respeito, porque
ela era esposa de um chefe da máfia e precisava se comportar como tal, mas não consegui dizer mais

nada. Lá estava o roupão completamente aberto, e a mulher inteiramente nua sob o meu corpo.

Os seios que admirei momentos antes estavam sob o alcance da minha boca, se eu apenas a

inclinasse um pouco. Mamilos rosados e perfeitos, a carne macia e suave, pura tentação.

Dio santo! Eu a queria mais do que queria respirar.

Mas foi só olhar para seu rosto novamente e ver o ferimento em sua testa que me lembrei de

tudo. A raiva pelo que a fiz passar na noite anterior me consumiu, e eu precisei soltá-la antes que a
tomasse naquele momento, com o sangue quente, irado comigo mesmo.

Afastei-me em um rompante, soltando-a e colocando-me de pé.

— O que houve, Enzo? Por que está fugindo de mim? — Ela também se levantou, parecendo
indignada. Trouxe o roupão consigo, vestindo-o, para o bem da minha sanidade.

— Não estou fugindo — respondi em um resmungo.

— Está, sim! Pelo amor de Deus, será que sou tão repugnante assim? Será que não te atraio

nem um pouco? Nós nos casamos ontem, e você sequer me beijou quando o padre mandou fazer isso.
O que há de errado comigo?

Eu não ia conseguir mais me controlar. Ela estava linda, enfurecida, com os cabelos
bagunçados, depois de eu tê-la jogado na cama, o roupão fechado, mas com um decote aberto, sem
maquiagem, as faces vermelhas por sua agitação. O fato de saber que estava nua por baixo do único
tecido que vestia só contribuía para a minha desgraça.

— Hein? O que há de errado co...

Mal deixei que terminasse de falar. Parti para cima dela como um selvagem, tirando-a do chão
e encurralando-a na parede mais próxima. Daquela vez, diferente da primeira, não hesitei, não

demorei para tomar sua boca na minha, usando a língua para abrir caminho.

Não fazia ideia se Giovanna já tinha sido beijada, mas ela parecia completamente inexperiente.
De início conduzi a situação, não apenas ao explorar seus lábios, mas também agarrando suas coxas

e incentivando-a a entrelaçar as pernas em minha cintura.

Aos poucos ela foi pegando o ritmo e correspondendo de forma apaixonada. Colocou os
braços ao redor do meu pescoço, uma das mãos na minha nuca, como fizera na noite anterior,
embolando seus dedos nos fios curtos do meu cabelo. Eu, por minha vez, agarrei a carne de suas

coxas, com vontade, querendo pegá-la com força.

Porra, eu a queria de uma forma completamente insana.

Giovanna soltou um gemido suave contra a minha boca, e eu entendi que, assim como eu, ela
estava rendida, entregue. Mas aquela coisinha diabólica precisava ser domada, e eu não ia conseguir
fazer isso enquanto ela me tivesse na palma da mão daquele jeito. Precisava virar o jogo.

Então me afastei um pouco, olhando em seus olhos e vendo-a ofegante – o que considerei uma
vitória.

— Eis o que está errado no meu desejo por você: ele me deixa louco. Não quero fazer amor
com você, Giovanna. Eu quero te foder de tantas maneiras que você nem pode imaginar. Então acho
que precisamos ir com calma ou as coisas ficarão muito complicadas.

Coloquei-a no chão, afastando-me, dando-lhe as costas e saindo do quarto, deixando-a sozinha,


esperando que estivesse tão frustrada quanto eu.

Se era um jogo, nós dois podíamos jogar.


12

O resto do dia foi um caos. Eu sabia que Enzo estava jogando comigo e que se eu novamente
desse um primeiro passo, perderia.

O beijo foi...

Inexplicável.

Eu não era mais uma garota. Era uma mulher de vinte e três anos, que nunca fora beijada e
muito menos tocada intimamente por outro homem. Regras eram regras, e por mais que eu gostasse de

infringi-las de vez em quando, não era o caso com a minha reputação dentro da máfia. Sempre soube
que era um prêmio e por puro orgulho desejei ser o melhor possível, impecável.

Mas então eu recebia meu primeiro beijo de verdade do meu marido. O homem que poderia
ficar atado a mim para o resto da vida. E o mundo pareceu parar de girar naquele momento. Se
alguém tivesse me beijado assim antes de eu me casar, eu não teria permanecido completamente casta
até minhas núpcias.

Ainda bem que tudo seguiu o curso que tinha que seguir.

Ou não...

Pensando muito no beijo, e no quanto Enzo parecia realmente me desejar, dei-me conta de que
as coisas estavam e poderiam ser ainda mais divertidas. O que me preocupou.

Havia um pequeno resquício do antigo Enzo naquele homem grande e intimidador que ele se
tornou. Era apenas um sopro frágil de uma personalidade menos sombria, mas com um pouco de
dedicação e paciência, eu conseguiria encontrá-la. Mas será que eu deveria fazer isso? Reconstruí-lo
só para fazê-lo ruir novamente?

Mas... droga! Eu queria um pouco da magia. Queria ter a oportunidade de viver dias intensos,
de esquecer, ao menos por algum tempo, que havia uma vingança nas minhas costas.

Só que quando me dei conta, já estava no carro, no dia seguinte, voltando para casa. Passamos
o dia todo evitando um ao outro, porque nenhum dos dois queria ser o primeiro a dar o passo
definitivo para ser derrotado em uma teimosia infantil. Éramos dois bicudos, e por mais que Enzo

quisesse manter a postura de sério, rígido e muito maduro, no fundo ele era igual a mim.

Como perdemos o voo para Paris, nossa lua de mel foi cancelada temporariamente. Adiada
para... nunca, talvez? Provavelmente era a melhor escolha, porque não havia nem um pingo de
romance no meu casamento.

E continuou não tendo quando meu marido apenas avisou que precisava sair e que só retornaria
mais tarde, depois que entramos em casa, e que se esforçaria para chegar a tempo de jantar, enquanto
eu apenas tentava parecer no controle da situação.

Belamina me ajudou a conhecer melhor a casa, como funcionava, mas ela parecia ter tudo sob
controle. Trabalhava para Enzo há pouco mais de um ano e falava dele com respeito. Não com
carinho, é claro. Dificilmente ele permitiria que alguém se apegasse àquele ponto.

Ela me ofereceu para me ajudar com minhas coisas e a me instalar naquele quarto que eu ainda

não compreendia, mas preferi fazê-lo sozinha para ter alguns momentos comigo mesma. Minhas
malas estavam todas ali, mas eu mesma ordenei que não mexessem nelas, porque queria organizar
meus pertences.

Estava pendurando meus vestidos em cabides quando me perdi olhando ao redor. Não era
possível que um homem que se preocupasse com o meu bem estar daquela forma pudesse ser assim
tão frio. Ele dissera que não tinha um coração, mas eu conseguia ver seus sentimentos em cada
detalhe daquele cômodo. Aquele lugar fora feito para mim, mas tinha muito dele; mensagens secretas
e escondidas em cada parede. Mensagens que não estavam escritas, que não eram óbvias, mas
codificadas em gestos. Pequenas gentilezas que eu precisava levar em consideração.
Um bater na porta roubou minha atenção. Vi a cabecinha de Belamina pela fresta da porta.

— Senhora, tem visita. É seu pai.

Imediatamente congelei. Eu sabia que não era uma visita cortês de um pai para uma filha. Ele

estava ali para saber informações.

Só que não me restava alternativa a não ser recebê-lo.

Pedi que subisse, e ele entrou no meu quarto sem nem bater na porta, simplesmente abrindo-a
como se tivesse o direito de estar ali.

A forma como não me cumprimentou, apenas observou seus arredores, com um desdém e uma
zombaria em sua expressão, me deu vontade de gritar todos os tipos de xingamentos que conhecia,
mas obviamente não o fiz, apenas esperei.

— Um quarto de princesa. Sua situação com Enzo está melhor do que imaginei — ele comentou
com tanto escárnio, tanta maldade, que cheguei a estremecer, controlando-me para que não
percebesse. — Mas vim para saber como você está. Ele foi bruto com você? Eu não esperaria menos
daquele filho da puta.

— E se fosse, pai? O que você faria? Defenderia a minha honra? — perguntei, cansada e
levemente irônica, cruzando os braços no peito.

— Imagino que você saiba se defender sozinha. — Ele continuou caminhando pelo meu quarto,
e eu sentia como se profanasse o espaço.

Desde que descobrira a traição da minha mãe, meu pai nunca mais foi o mesmo. Era como se
tivesse raiva do mundo inteiro.

— Não precisei. Tudo correu bem — menti. Não queria que meu pai soubesse que eu tinha
falhado em seduzir meu marido.
— Menos com o acidente, não é? Vejo que está machucada.

Falou de forma tão fria sobre aquilo que cheguei a me perguntar se tinha sido ele o mandante.

Mas não queria pensar nisso. Seria doloroso demais.

— Não foi nada. Já passou.

Meu pai sorriu e levou a mão ao meu rosto.

— Essa é a minha garota. Corajosa. — Então se afastou, levando a mesma mão que me
acariciou ao bolso. Continuei hesitante, sabendo que dali não viria coisa boa. — Espero que tenha

começado a tomar o anticoncepcional e que saiba esconder bem — ele baixou o tom de voz. Ergueu a
cabeça e me olhou nos olhos. — Posso continuar acreditando que é sensata o suficiente para seguir
meus conselhos?

Apesar de tudo, eu não era uma boa mentirosa. Nunca fui. Principalmente para o meu pai.
Omitir fatos era uma coisa, contar inverdades era outra completamente diferente. Exatamente por
isso, o meu medo de Enzo descobrir meus propósitos era ainda maior.

Quando fiquei calada, sem saber como reagir, ele interpretou perfeitamente. Deu um passo na

minha direção, e eu tentei recuar, mas havia uma parede logo atrás. Sua mão veio firme no meu rosto,
e o tapa estalou. Forte o suficiente para eu senti-lo queimar.

Não demorei a sentir o gosto de sangue do corte que se formou na minha boca.

— Você sempre foi desobediente, Giovanna, e eu tolerei porque era jovem e imprudente.
Agora é uma mulher casada. A esposa do chefe. Só que antes de tudo isso é minha filha. Eu a criei,
eduquei, lhe dei tudo o que uma garota poderia querer. Foi a princesa da casa, e eu nunca reclamei de
não ter um filho homem. Nunca a menosprezei por isso. É a sua vez de me pagar.

— Era sua obrigação como pai! — rosnei as palavras, sentindo mais raiva do que nunca.
— E é sua obrigação como filha! — eu sabia que ele queria gritar, mas não podia. Belamina

viria, assim como outros empregados, e eles eram leais a Enzo.

Ficamos nos olhando com tanto ódio que chegou a me assustar. Ele não falou mais nada.
Apenas me deixou ali, com a mão no rosto, ofegante e chocada com o quão longe aquele sentimento

sombrio que crescia dentro dele poderia chegar.

E o quanto eu ainda pagaria por sua loucura.


13

O jantar, na minha casa – sempre que eu conseguia chegar a tempo –, era servido às oito e meia
em ponto. Belamina era muito competente, e eu tinha certeza de que avisara à sua nova senhora a

respeito de tal regra. Eram quase nove, e nada de Giovanna aparecer.

Esforcei-me ao máximo para estar em casa a tempo de jantar com ela. Foi uma atitude
impensada, na verdade. Não planejei essa concessão, porque não queria acostumá-la a me ter
presente daquela forma. O trabalho me prendia muitas vezes até tarde e nem sempre o que eu

precisava fazer me permitia chegar em casa bem. Apesar de ser o chefe, eu não delegava certas
tarefas e muitas vezes estava presente em momentos nada ortodoxos. Odiaria chegar em casa e ter
que olhar para ela depois de...

Bem... depois de fazer o que tinha que fazer.

Apesar de trabalharmos em negócios ilegais – tráfico de armas, cassinos, bordéis e algumas


outras coisas –, não tolerávamos maltrato a crianças, mulheres e inocentes no geral. Homens como
nós, nunca perdoávamos. Traições eram pagas de forma violenta, e nossos inimigos não eram
tratados com piedade. E, aparentemente, eu tinha um. Um que perseguira a mim e à minha esposa no

dia de nosso casamento.

Passei a tarde inteira em reunião com meus soldados, tentando juntar o que sabíamos, mas era
muito pouco. Fora um ataque cauteloso e bem planejado, mas nada ficava impune. Não havia um
crime perfeito, e eu estava muito empenhado em descobrir a verdade.

Fosse como fosse, naquele momento eu estava em casa, esperando para jantar com minha
esposa, mas precisei enviar Belamina ao seu quarto para saber o motivo da demora. Quando esta
retornou, o fez sozinha.

— A senhora disse que está indisposta. Pediu desculpas, mas não vai jantar hoje — ela
anunciou, quase solene.

Belamina era muito competente, educada, mas eu não era um patrão exatamente simpático,
então havia uma distância respeitosa entre nós. Naquele momento senti que ela queria dizer mais
alguma coisa, e antes que me permitisse ficar puto da vida por Giovanna me dar um bolo em nosso

primeiro jantar, em nossa casa, como marido e mulher, pedi:

— Há alguma coisa que queira me falar, Belamina?

Ela respirou fundo, hesitou, mas acabou revelando:

— A senhora recebeu a visita do pai hoje. Acredito que tenham se desentendido.

— Por que você acha isso? — perguntei, enquanto me remexia na cadeira, desconfortável.

— Ouvi a voz dele um pouco alterada e alguns barulhos estranhos. Não entendi sobre o que
falavam, porque não quis bisbilhotar.

Assenti, calmamente. E preocupado. O que Giuseppe poderia ter falado para Giovanna que a
deixara tão mal ao ponto de sequer descer para jantar? Claro que poderia ser uma artimanha para me
desafiar novamente, só que eu não acreditava nisso.

Arrastando a cadeira, levantei-me.

— Vou falar com ela.

Belamina preparou-se para dizer alguma coisa, mas deteve-se. Provavelmente preferira não se
meter. Escolha sensata. Não que eu fosse ser grosseiro com a mulher, mas não era da sua conta a
minha vida de casado.

Subi as escadas de dois em dois degraus, parando diante da porta do quarto de Giovanna e
batendo.
— Giovanna, abra, quero falar com você — minha voz soou em tom de comando. Eu não

queria obrigá-la, mas preferia ver se estava bem. Também gostaria de sondar o que acontecera entre

ela e seu pai.

Ela demorou um pouco para responder, mas quando o fez, senti um tom um pouco embargado.

— Me desculpe, Enzo, não estou me sentindo bem. — Estaria chorando? Não parecia ser do
feitio dela. A não ser que algo grave tivesse acontecido.

Decidi insistir.

— Abra, Giovanna. — Eu poderia continuar medindo forças com ela. Poderia invadir seu
espaço, arrombar a merda da porta e impor minha presença. Era a minha casa, minha esposa.

Mas eu não queria que as coisas fossem assim. Ela já estava casada contra sua vontade, com
um homem que não podia lhe dar nada além de um status e uma relação fria, que, então, ao menos
tivesse um pouco de privacidade e liberdade – mesmo que controlada, já que em sua posição seria
necessário algum tipo de cuidado, especialmente depois do ataque que sofremos.

— Giovanna, por favor...

Eu dificilmente pedia por favor a alguém. Estava acostumado a ter todos realizando as minhas
vontades, em todos os sentidos. Mas talvez aquela expressão fosse realmente mágica, porque alguns
segundos depois a porta foi aberta.

Só que Giovanna já estava de costas para mim, de pé, de braços cruzados. Vestia uma camisola
de seda, em um tom suave de lilás, cabelos presos em um coque com um pau japonês. Isso teria me
deixado louco se não estivesse tão intrigado.

— Nunca imaginei que você fosse o tipo de homem que pede por favor — ela tentou colocar
um pouco de humor na voz, para disfarçar, mas eu não seria enganado. Agarrei-a em um pouco acima
do cotovelo e a virei para mim.
O machucado acima da sua sobrancelha ainda estava ali, mas havia outro. Um pequeno corte

próximo ao seu lábio, além de uma vermelhidão bem discreta, mas existente.

— O que diabos foi isso? Foi seu pai? — vociferei, sentindo meu sangue ferver.

— Enzo, eu... — Giovanna mal sabia o que dizer. Ao menos apreciei sua tentativa de não
mentir para defender o filho da puta.

Mal conseguindo me conter, virei-me, pronto para sair do quarto dela, mas senti sua mão
delicada no meu braço.

— O que vai fazer? — indagou apavorada.

— Vou ter uma conversinha com Giuseppe.

— Não, Enzo! Por favor! — Segurou-me com as duas mãos, como se fosse capaz de me
impedir daquela forma. — Não faça isso. Eu estou bem.

— Está machucada! Por que ele fez isso?

Ela hesitou mais uma vez. Então me soltou e deu um passo para trás, como se quisesse que eu
fosse embora para não ter que me dar explicações. Mas eu queria ouvir.

Vendo-se sem alternativa, começou:

— Foi pela noite de núpcias. Ele me acusou de não ser uma boa esposa para você. — Ela falou
de cabeça baixa, sem me encarar, e eu não sabia se era por vergonha ou se porque não estava falando
toda a verdade.

Achei melhor lhe dar um voto de confiança e aceitar sua palavra.

— Por que contou para ele?

Deu de ombros.
— Só não consegui mentir.

Ah, merda! Como era possível que um pai tivesse coragem de agredir uma filha por causa de
algo do tipo? Só porque eu não tirei sua virgindade na noite de núpcias? Então a culpa era minha e
não dela.

Inconscientemente levei a mão ao rosto de Giovanna, tocando o machucado com cuidado, mas
ela não se encolheu nem reclamou.

— Não está doendo. Se quiser, você pode me beijar... — Se não era a própria tentação...

E eu obviamente queria. Poderia prosseguir com o joguinho de gato e rato, manter meu orgulho
esperando que ela estivesse completamente seduzida para tocá-la novamente, mas ali estava apenas
uma garota linda pedindo que eu a beijasse. Ou melhor... lançando o desafio, como era mais de seu
feitio.

Daquela vez, só daquela vez, eu iria cair em sua teia.

Aproximei-me um pouco mais, segurando os dois lados de seu rosto com ambas as minhas
mãos e tocando seus lábios com delicadeza. Aos poucos eu a fiz abri-los e aprofundei o contato,
tornando o beijo uma dança lenta e sensual, completamente diferente do anterior.

Com toda a paciência, eu explorei sua boca, sentindo seu gosto, mordendo seu lábio inferior
bem delicadamente e ouvindo-a respirar cada vez mais ofegante. Beijá-la era um deleite, e eu queria
perder algum tempo ali. Queria prolongar o momento, conquistando, marcando território. Não havia
pressa. Ela era minha. Ninguém poderia tirá-la de mim.

Deslizando uma das mãos até sua nuca, puxei o pau japonês que prendia seus cabelos, fazendo-
os caírem em uma cascata por sobre seus ombros. Longos, macios, cheirando a pêssegos...
exatamente como eu me lembrava.

Ambas as suas mãos estavam fechadas em garras na minha camisa, como se ela quisesse me
manter perto. Como se precisasse daquele beijo tanto quanto eu.

Ousei tocar um de seus seios por sobre a camisola, tendo apenas a delicada seda como
barreira, e percebi que estava sem sutiã. Os mamilos enrijeceram imediatamente sob o meu toque,
implorando por atenção. Comecei a me imaginar beijando-os, lembrando de seu formato, sua cor, o

quanto pareceram deliciosamente tentadores quando os vi na casa de praia, depois de jogá-la na


cama coberta apenas pelo roupão.

Um suspiro baixinho saiu de sua boca, e ele ficou mais intenso no momento em que me
concentrei no tal bico, que já estava mais duro depois de minhas atenções. Rocei a palma da mão

nele, contando com a fricção do tecido, adorando as reações de Giovanna.

Aproveitei para deslizar a boca até seu maxilar e depois até seu pescoço, perdendo algum
tempo ali e descobrindo pontos sensíveis. Enfiei a mão por dentro do decote, agarrando o seio e
sentindo seu peso, girando em seguida o mamilo entre meu polegar e o indicador. Isso a fez gemer
mais alto.

— Enzo... — meu nome saiu sussurrado e rouco. Era luxúria. Ela me queria tanto quanto eu a
queria.

Sem nem pensar muito mais, parei tudo, pegando-a no colo.

— O que... o que foi? O que vai fazer? — indagou enquanto eu a levava para a cama.

— Vou fazer amor com a minha esposa. Acho que está mais do que na hora, não está?
14

De todas as formas que eu esperei ser arrebatada pelo meu marido na primeira vez em que
faríamos sexo, eu definitivamente não imaginei que ele me beijaria de forma tão suave e sensual,

muito menos que me levaria para a cama no colo, como um mocinho de livro.

Nem que me deitaria nela de forma tão gentil e que me olharia como se eu fosse a coisa mais
bonita na qual ele já pôs os olhos.

Deus... porque ele era a coisa mais bonita na qual já pus os olhos, especialmente me

observando daquele jeito.

Passeou seu olhar por todo o meu corpo, dos pés à cabeça, e achei completamente
desnecessário que me elogiasse, que dissesse que eu era bonita, como muitas outras pessoas sempre
faziam. Enzo conseguira me dizer mil palavras, praticamente recitar poesias, pela forma como me
admirava e venerava.

Tomou seu tempo para contemplar cada curva, e eu sabia que a camisola que eu usava deixava
pouco para a imaginação. Quando a escolhi, nem pensei que poderia ser útil para seduzir meu
marido, mas foi um presente bem-vindo.

Enzo parou de apenas olhar e começou a me tocar. Como era possível que uma mão tão grande,
vinda de um homem acostumado à violência, pudesse me venerar com tanta delicadeza? Ele parecia
estar acariciando algo frágil e precioso, enquanto seus olhos seguiam o caminho de seus dedos.

A suavidade desapareceu no momento em que chegou à minha coxa, que ele agarrou com um
pouco mais de ímpeto, ao ponto de me fazer arfar. Não de dor, mas de surpresa. E fui perdendo mais
e mais o ar, conforme ele foi se aproximando do meio das minhas pernas.

Um dedo invadiu minha calcinha, deslizando para cima e para baixo na minha fenda, como se
testasse. Então eu o senti entrar de súbito, o que me fez ofegar mais ainda.

— Você costuma se tocar, piccola? — Pequena. Era a primeira vez que me chamava assim e
soou carinhoso em sua voz. Ao menos o máximo que ele parecia conseguir soar.

— Sim. Às vezes e... — um gemido saído da minha boca interrompeu minha fala. Claro que eu
já tinha me tocado, mas nunca fora daquela forma. Definitivamente minhas mãos pequenas, de dedos
curtos, não conseguiam chegar tão fundo. E eu não era tão... habilidosa.

Enquanto começava a me masturbar bem devagar, Enzo inclinou-se e afastou um pouco o

decote da minha camisola, abrindo espaço para sua boca cair em um mamilo. Isso eu nunca tinha
feito, é claro, e a sensação de tê-lo mordendo-o, chupando-o e lambendo-o, associada ao que ele
fazia lá embaixo, era diabolicamente sublime.

— Você costuma gozar quando se toca? — a voz rouca e profunda me arrancou da minha bruma
de prazer, mas logo fui tragada para ela de novo quando Enzo soprou meu bico do seio que ele
acabara de torturar com a boca ao mesmo tempo em que encontrava um ponto sensível dentro de
mim.

Arqueei o corpo em resposta, mas só então me lembrei de sua pergunta.

— N-não... eu nunca... — Mais uma investida profunda, mais forte daquela vez. Novamente
não consegui terminar de falar.

— Serei seu primeiro em tudo, então? Vou fazer valer a pena.

Desde que o vi como homem, passei a achar Enzo muito sexy, ao menos sua aparência. Mas
nada se comparava àquilo, com a forma como falava, tocava, beijava e me seduzia. Eu não tinha a
menor chance contra ele.

Sem saber direito o que fazer, comecei a tentar tirar sua camisa, desabotoando-a, mas minhas
mãos não tinham a menor firmeza, principalmente quando aquele ponto maravilhoso, bem no fundo,
era encontrado por seus dedos experientes.

Com uma risadinha, ele parou de me tocar e se despiu sozinho, deixando meus olhos terem um
vislumbre dos músculos evidentes, de cada contorno de seu corpo que parecia moldado à perfeição.

Enzo não demorou a voltar para perto de mim, inclinando-se e tomando novamente minha boca
para si, enquanto usava uma das mãos para erguer a barra da camisola. Tirou-a por sobre a minha
cabeça, fazendo o mesmo com a calcinha, deslizando-a pacientemente por minhas coxas.

Então, em um rompante, fui virada de barriga para baixo, sem a menor dificuldade, e a boca de

Enzo foi direto na minha bunda, mordendo-a de várias formas. Enquanto fazia isso, flexionou um dos
meus joelhos, deixando minhas pernas formarem um 4, e logo voltou a me masturbar.

As sensações eram diferentes naquela posição. Era como se ele conseguisse ir mais fundo,
como se tudo fosse mais intenso.

— Enzo... — chamei seu nome involuntariamente, quase sem ar, e ele agarrou meu cabelo
liberando meu pescoço e meus ombros, depositando beijos cálidos por ali.

Era indescritível. Era maravilhoso. Eu queimava por dentro como nunca antes.

Senti que estava prestes a explodir, mas ele não parecia satisfeito. Agarrou-me pelos quadris,
empinando minha bunda e afastando minha pélvis da cama. Então se colocou sob mim, sussurrando:

— Monte a minha boca, piccola.

O quê?

Mas como assim? O que queria que eu fizesse?

Percebendo minha total inexperiência, ele empurrou meu tronco para cima, para que eu
erguesse a coluna e me sentasse, colocando-me na posição perfeita, com a cabeça entre minhas
pernas, a boca na minha intimidade.
DIO SANTO!

Não... era errado chamar o sagrado nome de Deus em uma situação como aquela.

Aliás, aquilo só podia ser errado.

Eu não era uma ignorante em relação ao sexo. Claro que, na prática, nunca sequer cheguei perto
de fazer, mas lia livros e via filmes, especialmente escondida do meu pai. Só que aquela posição eu
nunca sequer...

Ah, merda!

Ele ia acabar comigo. Na minha primeira vez.

Precisei agarrar a cabeceira delicada de metal da cama para me firmar, especialmente porque
Enzo não me deixava parada. Ele me movimentava, obrigava-me a rebolar contra sua boca, e meu
próprio corpo se mexia em busca de mais. Sua língua fazia misérias, girando e explorando; seus
lábios sugavam, enquanto ele me deixava rendida por cada uma das coisas que fazia.

— ENZO! — gritei seu nome, sem nem me importar que Belamina podia nos ouvir, quando ele
se ocupou do meu clitóris com a boca e voltou a me penetrar com seu dedo, no momento em que eu

tive discernimento para começar a me movimentar sozinha.

Quando novamente senti aquela explosão se aproximar, tentei me afastar, mas Enzo me segurou
no lugar, com seu braço livre, e então eu me senti despedaçar por inteiro. Era como se tivessem me
roubado meus cinco sentidos, meu discernimento, meus movimentos.

Nem percebi quando Enzo me colocou deitada na cama, muito menos quando tirou o resto de
sua roupa. Em segundos estava sobre mim, e eu o sentia entre minhas pernas, prestes a entrar.

— Está preparada? Podemos seguir adiante?

Novamente eu me impressionava com Enzo. Na minha opinião, era o mínimo que um marido
esperasse o consentimento de uma esposa para o sexo, mas o tipo de homem que ele era me fazia
acreditar que não se importaria em pegar o que queria à força.

Ele era o príncipe da máfia, não era? Quem poderia lhe dizer não?

Ainda assim, teve o cuidado de perguntar.

E eu apenas assenti.

Com isso, senti conforme foi entrando em mim. Devagar, cauteloso, olhando-me nos olhos,
buscando minhas reações.

A dor foi intensa. Mais do que pensei.

— Fique calma. Só é difícil na primeira vez — afirmou com uma voz suave.

— Imagino que nunca tenha acontecido com você — tentei brincar. — Sei que é só na primeira
vez. — Mas era doloroso. Bastante.

E foi ficando um pouco mais a cada investida, com o quão mais fundo ele ia chegando.

A dor foi se tornando prazer. Não um prazer como ele me dera anteriormente, mas eu podia
imaginar que em algum momento, dali para frente – talvez não naquela noite –, as coisas seriam

interessantes. Bem, e se ele fizesse coisas como aquela com a boca e com os dedos sempre, eu
toparia todo o resto.

Não esperava gozar na minha primeira vez, nem mesmo nas preliminares, como aconteceu. E
mesmo que o sexo em si não tenha me levado ao orgasmo, foi melhor do que imaginei.

Enzo foi gentil, e ele pareceu encontrar um prazer indescritível, porque estava escrito no seu
rosto. Aquele belo rosto másculo se contorcendo de tesão, mostrando que se deliciava com meu
corpo, foi algo excitante de se ver.
As investidas foram se tornando mais prazerosas, e os grunhidos dele se misturaram a leves

gemidos que nem percebi que estava soltando.

— Sinto muito, Giovanna... eu vou... Ah... puta que pariu! — ele rosnou, enquanto tomava
minha boca em um beijo, estocando um pouco mais forte, entregando-se ao clímax.

Ele gozou dentro de mim, e eu temi que naquela primeira vez nós pudéssemos conceber.

As palavras do meu pai ecoavam na minha cabeça, e eu não queria lembrá-las naquele
momento. Não enquanto meu marido se derramava dentro de mim, e depois de descobrir que eu

poderia encontrar um prazer incrível com ele na cama.

Não depois de entender que Enzo não era o monstro que todos diziam que era.

E isso era ainda mais angustiante.

O monstro dali para frente poderia ser eu.


15

Não foi uma surpresa, para mim, acordar durante a madrugada, para usar o banheiro, e
encontrar minha cama vazia. Eu simplesmente adormeci, segundos depois de fazermos sexo, e não

saberia dizer se Enzo ficou um pouco ao meu lado ou se simplesmente levantou-se e foi para o quarto
dele.

Mas não deveria fazer diferença, não é? Aquilo era mais conivente com a realidade que
imaginei desde o início do que o amante dedicado e carinhoso que ele se revelou ao tirar minha

virgindade: uma cama fria e um marido ausente.

Remexi-me sobre o colchão macio e me senti um pouco dolorida. Enzo fora delicado e
cuidadoso, mas era grande e obviamente eu não estava acostumada. Ainda assim, havia algo de
erótico em sentir a marca que deixou em mim. Uma que não me faria esquecer, também, que eu
precisava resolver a questão do anticoncepcional. Se tivesse engravidado naquela primeira vez...

Não era a solução ideal, mas eu iria a uma farmácia e compraria. Aos dezoito, fui a uma
médica, e ela me indicou qual tomar. Deveria ter começado imediatamente, mas não tive coragem.
Fui deixando o casamento chegar, esperando que meu pai mudasse de ideia, porém não aconteceu. E

lá estava eu brincando com o perigo.

Levantei-me, tomei um banho e desci para tomar café.

Enzo não estava mais em casa, mas havia uma mesa preparada para mim, e eu encontrei muitas
das coisas que gostava de comer: minhas frutas preferidas, pães, minha geleia favorita – de amora –,
além de manteiga fresca.

Recebi mais uma vez a informação de que minha antiga governanta fora consultada sobre os
meus gostos. O que era surpreendente.
Tudo a respeito do meu casamento era surpreendente.

E continuou sendo.

— Senhora — Belamina me chamou assim que eu terminei de comer. Voltei-me em sua direção,

enquanto limpava a boca no guardanapo de pano e o colocava sobre a mesa. Percebi que segurava
uma caixa nas mãos. — O senhor pediu que lhe entregasse isso. É um presente.

— Um presente? — surpreendi-me.

Ela assentiu e me entregou a caixinha.

Não estava embrulhada, e eu logo vi que se tratava de um celular. Um bem moderno, um


iPhone, que eu sabia que custava caríssimo.

Havia um bilhete dentro da caixa, e eu me senti uma boba na expectativa de que fosse um
bilhetinho carinhoso. Mas obviamente não era o caso. Enzo era prático, nada romântico, embora a
noite anterior pudesse contestar esse fato.

“Troque seu celular por este. Trata-se de uma linha segura.

É um aparelho mais facilmente rastreável, uma precaução.

Aliás, ligue para a minha irmã, ela quer te convidar para ir ao shopping. Deixei um soldado
à sua disposição. Há um cartão de crédito dentro da gaveta do seu quarto. Sinta-se livre para
comprar o que quiser.”

Seco. Sem qualquer traço de sentimento. Sem beijos de despedida. Ele sequer assinou.

Bem... talvez eu estivesse exigindo demais.


Conforme suas instruções, subi para o meu quarto e liguei para Paolla, combinando um horário

e um local no shopping para nos encontrarmos. Seria bom sair um pouco, passear e passar um tempo

com minha cunhada.

Ela levara sua garotinha, e eu fiquei completamente encantada. A menina era uma cópia da

família Dallaggio, e tinha semelhanças incríveis com o tio. Imaginei que, um dia, se eu tivesse uma
filhinha, ela seria exatamente como a pequena Kiara, com seus olhinhos azuis e o cabelinho dourado.
Uma beldadezinha.

Se eu não estivesse grávida naquele momento, isso nunca aconteceria. A não ser que uma

reviravolta muito grande surgisse.

O segurança de Paolla seguia ao lado do meu, logo atrás de nós, e a babá que cuidava de Kiara
bem à frente, com a bebê no carrinho.

— Como estão as coisas? — Paolla finalmente perguntou, enquanto caminhávamos, depois de


termos trocado os cumprimentos normais e de eu ter brincado um pouco com Kiara.

— Depende do que você quer saber — perguntei em um tom divertido.

— Bem, meu irmão não é fácil. E você está machucada.

— O carro foi atacado, você sabe. Acabei me machucando lá dentro. — Não era totalmente
verdade, porque um dos machucados não fora causado no acidente, mas também não fora causado por
meu marido. — Mas Enzo é menos difícil do que pensei — confessei. — Claro que temos poucos
dias de casados, mas até agora... posso dizer que fui surpreendida positivamente.

Paolla sorriu.

— Como assim?

Soltei uma risada pela forma como ela perguntou.


— Não vou falar sobre minhas intimidades com seu irmão — brinquei novamente. Não

tínhamos exatamente uma relação de amizade, mas eu queria uma amiga. E ela era uma escolha muito

acertada. Mesmo que soubesse que, assim como meu casamento, seria outra relação fugaz, dadas as
condições.

— Não! Pelo amor de Deus! — ela exclamou, quase em desespero, mas rindo também. —
Quero saber se ele está te tratando com decência.

Balancei a cabeça.

— Mais do que imaginei.

O sorriso de Paolla se ampliou.

— Fico feliz em saber que meu pai não conseguiu tirar toda a essência do meu irmão. — Seu
rosto bonito adquiriu uma expressão sonhadora. — Enzo sempre foi meu herói quando eu era
pequena. Sempre cuidou de mim e me protegeu como um bom irmão mais velho. Então tudo
aconteceu, e eu o perdi. Mas foi culpa minha.

— Por quê?

— Primeiro porque permiti que nos afastássemos. Quando ele voltou da iniciação era outro
garoto. Foi questão de dez dias, Giovanna! Assustador. Ele não me olhava nos olhos, não falava
comigo, como se tivesse vergonha. Não sei o que foi obrigado a fazer, mas mexeu com ele. E eu não
insisti. — Vi lágrimas caindo dos olhos de Paolla.

— Você era só uma menina.

— Sim. Mas depois eu senti ódio. Aos quatorze fui prometida ao meu marido e fiquei com
tanta raiva por não ter intercedido por mim, por não ter me defendido. Só que... o que ele poderia
fazer? A palavra do meu avô e do meu pai eram lei. — Assenti mais uma vez, compreendendo. Ela
limpou as lágrimas e respirou fundo, recompondo-se. — Seja como for, estou feliz. Talvez vocês
possam se entender.

— Eu gostaria disso — foi o que respondi, porque era verdade.

Eu gostaria. Mas não queria dizer que daria certo. Nem de uma forma e nem de outra.

Caminhamos pelo shopping, fizemos algumas compras, e eu fiz uma parada em uma farmácia,
aproveitando um momento em que Paolla sentou-se para amamentar. Aleguei que precisava comprar
um comprimido, porque estava com um pouco de dor de cabeça, e adquiri algumas cartelas do
anticoncepcional, escondendo-o no fundo da bolsa.

Sabia que estava correndo um risco grande. Não era a forma certa de começar a tomar, porque
eu precisava esperar minha menstruação chegar, e sabia que não era um efeito imediato, mas era
melhor do que nada. Também cogitei comprar uma pílula do dia seguinte, mas meu coração se
apertou, e eu não tive coragem. Era só olhar para a pequena Kiara para desejar ter um filho meu.

As probabilidades não estavam ao meu favor, mas se naquela primeira e única noite em que
fizemos amor, tivéssemos concebido um filho, não seria um presente do destino? Meu pai poderia
fazer o que fosse, mas eu não iria arruinar minha única chance.

Voltei para perto de Paolla alguns instantes depois e sentei-me ao lado dela, conversando

enquanto exercia uma de suas muitas funções como mãe. Uma que eu gostaria de ter também, um dia.

Assim que a linda Kiara já estava alimentada e de volta ao carrinho, continuamos nossa
caminhada. Comprei um belo vestido, na esperança de que Enzo voltasse para casa cedo para
jantarmos, tentando me convencer de que era uma artimanha para seduzi-lo e não porque queria que
me visse bonita.

Despedi-me de Paolla depois de um dia muito agradável, e nos separamos no estacionamento


do shopping, cada uma com seu segurança – e ela com a babá e o bebê –, porque nossos carros
estavam parados em pontos diferentes.
Chovia do lado de fora. Eu conseguia ouvir o som dos pingos fortes batendo e fiquei feliz por

termos estacionado na garagem subterrânea do estabelecimento. Apesar da pequena tempestade, nós

apenas ouvíamos o som de nossos passos, nada mais.

Aproximamo-nos do carro, mas o soldado que me acompanhava parou subitamente, fazendo um

sinal para que eu parasse também. Obedeci, e ele fez um gesto para que me afastasse. Então apontou
para o chão, onde uma pegada de terra demonstrava que alguém chegara perto demais do carro.

Não seria difícil, para uma pessoa discreta, fazer alguma maldade em um ambiente como
aquele. Uma pessoa habilidosa, menos ainda. Mas para a minha sorte, o soldado que Enzo designara

para me acompanhar era cauteloso.

Antes de permitir que eu entrasse no carro, fez uma inspeção completa e o que encontrou quase
me fez desmaiar de desespero.

Uma bomba.

— Senhora? — o homem me chamou, depois de me dar a notícia com o maior tato possível.
Não foi suficiente. Nem se ele cantasse uma canção de ninar eu poderia ficar calma.

Alguém queria me matar. Não era mais apenas um susto, como fora na minha noite de núpcias.

Se eu tivesse entrado naquele carro... adeus, Giovanna.

Ainda assim, precisava ser forte. Era meu papel como esposa de um chefe. Quando chegasse
em casa, poderia chorar e fraquejar escondida. Na frente de outra pessoa, minha expressão precisava
ser impassível.

— Senhora? — ele chamou de novo. Olhei em sua direção, de cabeça erguida. — Vou chamar
reforços para que a levem para casa em segurança, ok?

— Tudo bem — foi a minha resposta, porque foi tudo o que consegui dizer.
E era o necessário, ainda bem.

Só que algo me dizia que aquele era apenas o começo. Muito ainda viria, e eu precisava estar
pronta.
16

Minha missão naquele dia era voltar cedo para casa. Novamente, queria não pensar que tinha a
ver com o fato de que Giovanna estaria me esperando, mas, sim, porque estava cansado e queria

descansar, tomar um drinque e...

Ok. Fazer amor com a minha mulher estava no pacote.

Tocar em Giovanna tornou-se uma obsessão desde o fatídico dia em que, com apenas dezenove
anos, eu a tive nos meus braços pela primeira vez. Na noite anterior, ela fora minha porque podia ser.

Era minha esposa, pela lei, e cada instante fez tudo valer a pena. Queria repetir a dose, se ela
estivesse disposta, porque queria mostrar-lhe que sexo não era apenas dor.

Sabia que ela tinha sentido um pouco de prazer, que gozara na minha boca deliciosamente, mas
queria mais. Queria que se entregasse em todos os sentidos sem incômodos, sem outros pensamentos
a não ser o que estaríamos fazendo.

Mas antes de retornar para casa, para a minha esposa, tinha um acerto de contas a fazer.

Naquele dia em especial, eu sabia que ele estava em um de nossos cassinos, participando de

um inventário. Era o tipo de trabalho que gostava, porque podia apenas supervisionar, enquanto
outros realmente colocavam a mão na massa. Não era exatamente um apreciador dos esforços.

A não ser quando se tratava de levantar a mão contra a própria filha.

Cheguei ao local, estacionei e subi para o último andar, onde ficava a sala da administração.
Havia outras pessoas por perto, mas pedi a um dos homens que providenciasse que eu ficasse
sozinho com meu sogro.

Ele nem percebeu. Estava dormindo sobre a poltrona, chegando a roncar, e por alguns instantes
achei a cena tão patética que jurei que aquele homem não faria falta nenhuma para o mundo. Nem
mesmo para sua filha.

Talvez até menos para ela.

Sem nem me importar com a forma como acordaria, sentei-me sobre a mesa, quase à sua frente,

apoiando-me apenas em um quadril, e bati minha palma contra a madeira, bem alto, com bastante
agressividade, fazendo-o sobressaltar-se.

— Porra! — foi um impulso, tanto que quando viu de quem se tratava, ele rapidamente se
empertigou, ajeitando-se, envergonhado. — Perdão, senhor. Eu estava apenas... — Ele não encontrou

palavras. Como poderia?

Giuseppe me conhecia desde menino. Me viu nascer. Ele era o homem de confiança do meu
pai, e eu o herdei, de certa forma. Só que não importava que houvesse uma diferença enorme de
idade entre nós, a hierarquia prevalecia. Eu era seu chefe, e por mais que também fosse seu genro,
ele deveria me tratar com respeito.

— Não precisa se explicar por isso. Mas, sim, pelo machucado que vi no rosto de Giovanna
ontem à noite — falei com uma voz cortante, muito sério, sem me alterar. Eu nunca me alterava.

Meu sogro respirou fundo.

— Ela é minha filha. Foi apenas uma correção.

Agarrei-o pela lapela e o fiz levantar-se. Logo o imprensei na parede, lançando-o contra ela
com força.

— Giovanna não é mais sua responsabilidade. É minha. Você não vai nunca mais tocar nela. Se
fizer isso, vou considerá-lo um traidor — disse em uma voz rouca, esperando que ele acreditasse em
cada palavra. Ele sabia quais eram os destinos de traidores. — Ela me contou por que a agrediu.

— Contou? — Ele perguntou mais nervoso do que seria aceitável, olhos arregalados,
respiração ofegante.

Teria mais algum motivo? Teria Giovanna omitido algo?

— Sim. Ela disse que foi porque eu não tirei sua virgindade na noite de núpcias. Espero que

não se meta na minha vida conjugal com sua filha. Foi a primeira e última vez. Se entrar novamente
na minha casa para machucar minha esposa... — Soltei-o, jogando-o no chão, aos meus pés. — Bem,
já está avisado.

Dei-lhe as costas em silêncio, saindo do escritório, decidido a deixar o estresse lá dentro.

Esta fora uma das coisas que fui treinado para fazer. Qualquer problema, qualquer parte
necessária e violenta do trabalho precisava ficar escondida dentro da memória. Não podíamos
permitir que nos afetasse. Quando saíssemos de um galpão ou de uma sala por onde deixamos um
rastro de sangue, era como se fosse outra realidade. Se não fizéssemos isso, seríamos consumidos.

Era um pouco impossível levar essa premissa cem por cento para a vida, mas era necessário
tentar.

Ainda estava andando em direção ao meu carro quando meu telefone vibrou dentro do bolso.
Tratava-se do soldado que designei para cuidar de Giovanna.

Por um momento, suspeitei que ela pudesse ter causado algum tipo de problema. Apesar de
casados, eu a conhecia muito superficialmente, e tudo o que sabia era que tinha um gênio forte, que
não gostava de ser mandada e que era extremamente voluntariosa. Não duvidava que tivesse dado
trabalho ao guarda-costas. Lembrava-me muito bem dela nua na praia...

Quase estremeci ao pensar que pudesse estar fazendo algo similar.

Mas meu peito se apertou no momento em que ouvi as notícias.

“Uma bomba no carro, senhor”.


“A senhora não se feriu, está bem”.

“Por sorte eu percebi que havia algo de errado”.

Foi o que o ouvi falando... em meio a um zumbido insistente que quase se sobrepôs à sua voz.

Um zumbido de adrenalina. De medo.

E era irônico que eu não sentisse medo há muito tempo. Nem mesmo quando fomos atacados a
caminho da noite de núpcias... porque... porque...

Porque eu estava com ela. Poderia e iria protegê-la.

Se aquela bomba tivesse explodido... não havia nada que eu pudesse fazer. Eu teria me tornado
um viúvo.

Perderia Giovanna.

Isso não deveria importar. Eu não estava sequer apaixonado por ela, mas sentia... algo. Algo
que não queria admitir para mim mesmo, porque seria como achar que eu ainda tinha chances de
provar de sentimentos bons.

Não havia nada de bom dentro de mim.

— Estou voltando para casa, Luigi. Obrigado por avisar.

Desliguei o telefone e me enfiei no carro, começando a dirigir como um doido. Agarrei o


volante, tentando manter minhas mãos firmes, mas era fácil ver como eu poderia perder o controle se
não desviasse meus pensamentos. Se não fizesse o que aprendi a fazer.

Foquei meus olhos no caminho à minha frente, tentando esvaziar a cabeça dos pensamentos
perturbadores. Só que imagens de Giovanna ferida, de um carro explodindo com ela dentro, de um
velório, se misturavam a outras de nossa noite de amor. Ela fora minha pela primeira vez, e eu quase
a perdi.
Porra!

Soquei o volante com força, dando vazão à minha raiva. Quem poderia estar querendo me
atingir daquela forma? Eu tinha dias de casado... o que diabos estava acontecendo? Por mais que
fosse um homem visado e marcado, invejado e com muitos inimigos, nunca ameaçaram minha vida

tanto quanto já tinham ameaçado Giovanna em tão pouco tempo.

O que poderiam querer? Eu não recebi nenhum tipo de chantagem...

Mas não era hora de pensar nisso.

Cheguei em casa, parei o carro na garagem de qualquer jeito e corri, subindo as escadas de
dois em dois. Parei no último degrau, tentando respirar.

Não podia me aproximar de Giovanna à flor da pele como estava. Se demonstrasse para ela o
quanto estava nervoso, isso a deixaria ainda mais assustada. Eu precisava ser forte para mantê-la
forte também.

Entrei no quarto depois de alguns minutos, e ela estava sentada no balanço, com ambos os pés
sobre o assento, olhando pela janela. Parecia tão pequena, tão indefesa, que eu novamente senti a
necessidade de respirar fundo.

Não importava que fosse um casamento que nenhum de nós dois queria. Ela era minha esposa.
Era meu dever protegê-la.

Ouvindo quando me aproximei, Giovanna ergueu os olhos na minha direção.

— Oi — falou, suave. Parecia controlada, mas seus olhos ainda estavam vermelhos. Sem
nenhuma maquiagem, eu conseguia ver perfeitamente os machucados: o de sua testa, começando a
cicatrizar, e o da boca, que o pai causara.

Novamente, meu peito se apertou.


— Você está bem? — Era uma pergunta idiota, mas eu não sabia o que mais falar.

— Estou tentando ficar — outro sussurro. Ela parecia cansada. — Belamina foi muito
atenciosa. Ela me deu um remédio para dormir um pouco, mas ainda não consegui. Estou muito
inquieta.

— Você é inquieta — falei como uma reprimenda, mas não era o momento para isso.

— Sim, eu sou. Mas estou um pouco mais. Vai passar. É só... — Ela estava tentando ser forte.
E eu a admirava por isso. — Só é um pouco assustador pensar que eu poderia ter morrido em um

estalar de dedos. Eu nem me daria conta do que aconteceu...

Uma lágrima deslizou pelo seu rosto. Tentei me controlar, mas não consegui. Estendi a mão e a
coletei, acariciando-a no processo. Foi como o toque de um fantasma, mas era tudo o que eu podia
lhe oferecer.

— Deve ser ridículo eu falar isso para você. Provavelmente já passou pela mesma coisa
muitas vezes e nem amarrotou a camisa... — brincou, também erguendo a própria mão para secar
outra lágrima insistente. — Vou sobreviver, juro. Também sei que não será a última vez. Eu só não
estava preparada. Acho que agora estou. Não vai precisar vir correndo para casa para...

Não era a primeira vez que ela começava a falar sem parar. Era um sinal de que estava
nervosa, então, eu simplesmente me aproximei um pouco mais e a peguei no colo.

— Enzo! O que...? — indagou, sobressaltada.

— Para o remédio fazer efeito, você precisa estar na cama. — Foi para lá que eu a levei,
deitando-a.

— Não quero dormir, Enzo. Não quero sonhar.

Suas palavras me tocaram fundo. Eu sabia que iria destruí-la, mas não esperava que fosse tão
rápido.

— Vai te fazer bem — afirmei muito sério e jurei que ela iria reclamar, protestar, mas apenas
assentiu.

Peguei a coberta e a coloquei sobre seu corpo, mas quando estava prestes a sair, ela agarrou
meu punho.

— Fica comigo — pediu em um tom suplicante.

Como eu poderia negar?

Sem dizer nada, tirei meus sapatos e me sentei na cama, com as costas apoiadas na cabeceira.
Pretendia apenas me colocar ao lado dela, esperando que dormisse, mas Giovanna aconchegou-se em
mim, deitando a cabeça no meu colo.

Nada de explicações, nada de pedir permissão. Estava buscando meu consolo, minha proteção.

Ela não demorou a adormecer, mas só quando estava em um sono bem profundo foi que me
permiti levar a mão aos seus cabelos e lhe fazer carinho, como se fosse uma criança dormindo nos
meus braços.
17

Durante os dois meses seguintes, eu e Enzo estabelecemos uma rotina quase amigável. Comecei
a aceitar que não haveria romance em nosso relacionamento e que eu deveria ser a responsável por

dar o primeiro passo para fazê-lo entender que queria repetir nossa noite de sexo. Ou seja, meu
marido fizera amor comigo uma única vez.

E eu sabia que ele me desejava. Compreendia seus olhares cheios de luxúria e a forma como
reagia quando o tocava, mesmo que fingisse ser sem querer. Por vezes, era tão intenso que jurava que

iria me jogar sobre a mesa ou me pegar contra uma parede, mas Enzo era extremamente controlado.
Enquanto eu não dissesse com todas as letras que queria ser levada para a cama, ele não o faria.

Daquela vez, porém, eu não estava jogando um jogo. Estava esperando. Sabia que o
anticoncepcional ainda levava um tempo para fazer efeito, e precisava me precaver.

Só que eu queria. Todas as vezes que me lembrava das sensações, sentia meu corpo inteiro
latejar, pedindo mais. Eu sabia que havia mais. Sabia que Enzo poderia me dar mais. Estava mais do
que na hora de eu tomar uma atitude. O mais rápido possível.

Naquela noite, talvez...

Era um domingo, estávamos na casa do meu sogro, todos reunidos à mesa. Meu pai fora
convidado, mas não aparecera. Aliás, fazia dois meses que eu não o via, desde o dia em que me
agrediu. Apesar de eu não ser exatamente fã do meu sogro e do meu cunhado, Kiara e Paolla
compensavam tudo.

Ainda era doloroso olhar para aquela linda menininha e pensar no quanto eu gostaria de, um
dia, ter uma – ou um – como ela. Especialmente quando Enzo me lançava olhares furtivos ao me ver
com a neném no colo, brincando, apaixonada.
Será que ele queria ser pai? Como ele seria com um filho? Frio e distante? Ou mostraria seu

lado mais cálido, que eu sabia que existia?

Os momentos ternos de Enzo não passavam despercebidos por mim. Ele se esforçava demais
para parecer durão – como sempre fez, desde criança –, para manter sua imagem de insensível, mas

ele não conseguia disfarçar a todo momento. Era raro, mas por trás do mafioso frio e com a fama de
cruel, havia um cavalheiro. Isso sem contar seus empenhos em descobrir quem fora o responsável
pela bomba no carro. Desde que isso aconteceu, a segurança sobre mim redobrou. Era uma liberdade
vigiada, mas eu compreendia que duraria apenas até que as coisas fossem resolvidas.

— E então, Giovanna? — a voz do meu sogro atraiu minha atenção. Eu estava com Kiara no
colo, e ela interagia comigo com um enorme sorriso no rosto. — Quando teremos um novo bambino a
caminho?

Aquilo me deixou um pouco em pânico. Tínhamos dois meses de casados, já era hora de
começarem a cobrar bebês? Pensei que ganharia um ano ou dois para me preparar para a resposta.

Eu não sabia o que dizer. Nós nunca teríamos um bambino a caminho.

Como demorei a responder, olhando para Enzo em busca de um auxílio, ele mesmo se

manifestou.

— Ainda é cedo — foi sua resposta curta e grossa.

— Nunca é cedo. Sei muito bem que você quer ser pai. Desde pequeno sempre cuidou de sua
irmã com zelo. Além do mais, precisamos de um herdeiro.

— Paolla e eu estamos providenciando mais um, caso algo dê errado — Santino Ferrari, meu
cunhado, se fez ouvir, com uma risada sarcástica.

Eu realmente não gostava dele.


— Nada acontecerá nada de errado. Enzo e Giovanna são saudáveis. Me darão netos fortes

como o pai.

Sim... fortes como o pai. Assim seria um menininho meu.

Lindo.

Meu olhar se perdeu em Enzo por um momento, imaginando uma cópia sua em miniatura.
Correndo pela casa, trazendo-me uma felicidade que há muito eu não sentia.

Como se um imã nos atraísse, meu marido voltou os olhos também na minha direção, e eu senti

um calafrio por sua intensidade. Era como se mesmo àquela distância ele conseguisse me tocar. E
pela forma como me observava com Kiara, eu quase podia ouvi-lo sussurrar em meu ouvido que
também queria um filho meu.

Isso me fez engolir em seco e lamentar por estar enganando-o. Fez com que eu me sentisse suja,
de alguma forma.

— Aliás, sabe o que eu acho que vocês dois poderiam fazer? — Marco Dallaggio novamente
roubou minha atenção para si. — Passar alguns dias na casa de praia de Enzo. As coisas estão tensas
por aqui, mas eu posso dar conta do trabalho.

— Pai, temos um traidor entre nós, isso é bem óbvio... — Enzo falou, e eu estremeci. Será que
estavam falando do meu pai?

Mas meu pai não atentaria contra a minha vida. Não com uma bomba, não é?

Meu Deus... será que...?

— Não é apenas o fato de Giovanna ter quase morrido. Teve o meu avô e todos os problemas
que estamos enfrentando...

— Que problemas? — perguntei, interrompendo Enzo.


Todos os olhos se voltaram para mim. Provavelmente me achavam uma intrometida, mas eu

queria saber.

— Tivemos algumas denúncias anônimas à polícia. Além de uma emboscada para alguns de
nossos homens — Enzo respondeu.

Isso poderia ser coisa do meu pai. Ele tinha informações privilegiadas de tudo. Mas ainda
queria pensar que não fora ele que colocara a bomba no carro onde eu estava. Por que faria isso?

Tudo bem que fora um dia depois de eu ter falado sobre o anticoncepcional. E se achasse que

eu estava grávida? Será que cortaria tanto assim o mal pela raiz?

— Os problemas continuarão acontecendo com ou sem você aqui. Além do mais, alguns dias
não farão diferença. Você precisa descansar, filho. E vocês dois não tiveram lua de mel. Acho que
seria justo que pegassem alguns dias longe de tudo.

Eu e Enzo nos entreolhamos novamente. Não sabia se ele sentia a mesma coisa, mas havia uma
nota estranha no tom de voz do pai dele, como se tivesse intenções obscuras com aquela ideia
inocente. Não sabia quais poderiam ser, mas ele era o tipo de homem de quem se esperava qualquer
coisa.

— Você quer ir, Giovanna? — Havia algo de muito sexy na forma como Enzo dizia o meu
nome. Sua voz era naturalmente bonita, muito masculina, grave e profunda, e eu me perguntava se era
possível negar alguma coisa daquele jeito. Ainda mais algo que seria bom para mim. Para nós.

Só que novamente eu senti minhas entranhas se revirarem.

Enzo estava tentando. Ele poderia simplesmente tomar decisões sem me consultar, mas
importava-se com minha opinião. Mesmo na frente de seu pai, que não parecia aprovar esse tipo de
coisa, ele buscava minha aprovação.

Sendo assim, eu apenas assenti, mas isso ficou na minha mente por todo o resto da tarde.
Quando voltamos para casa, em meio ao crepúsculo, eu não conseguia relaxar. Esfregava uma

mão na outra sem parar, não conseguia encarar Enzo ao meu lado, no banco de trás do carro, e minhas

pernas estavam inquietas.

— O que houve? — ele perguntou, enquanto seguíamos pelas ruas da Sicília.

— Não é nada — respondi sem encará-lo.

— Se for pela viagem para a casa de praia, não precisamos ir. É só dizer.

Finalmente virei-me para ele, sentindo-me acuada.

— Eu quero ir. Acho que vai ser bom para nós. — Enzo não respondeu nada, então eu me vi na
necessidade de explicar alguma coisa. Era um homem naturalmente desconfiado, e não seria uma boa
ideia que começasse a ter incertezas ao meu respeito. — Talvez eu tenha ficado um pouco surpresa
por seu pai já nos cobrar um filho.

— Não precisamos apressar nada — ele atestou, com seu jeitão prático e muito sério.

— Mas você quer ser pai? — tive que perguntar.

— Em minha posição, eu preciso de um herdeiro.

— Não foi isso que eu perguntei. Perguntei se quer ter filhos. Se gostaria de tê-los.

Enzo ficou calado por alguns instantes. Vi seu peito subir e descer em uma respiração
profunda, mas não demorou a responder:

— Não vou ser um bom pai, Giovanna.

— Assim como falou que não seria um bom marido? Até agora não tenho muitas reclamações.

Isso pareceu surpreendê-lo. Voltou-se para mim, e provavelmente era a primeira vez que eu
encontrava alguma emoção perceptível em seu rosto, com exceção de quando via que estava
morrendo de tesão por mim.

— Mas você há de convir — continuei, tentando quebrar o clima, porque o olhar de Enzo
parecia me queimar — que mal fizemos amor direito...

Outra vez eu o surpreendi. Era divertido. Se não fosse a nuvem pesada sobre nossas cabeças,
eu poderia curtir meu casamento.

Ele mais uma vez hesitou em responder, mas baixou a voz a um sussurro ao fazê-lo:

— Se você quer sexo, Giovanna, só precisa pedir. Eu desejo você todos os dias, mas quis te

dar algum espaço.

Eu desejo você todos os dias, se isso não me deixasse em chamas, nada mais deixaria.

Tanto que não consegui responder mais nada. Seguimos o resto do caminho calados, enquanto
meus pensamentos fervilhavam dentro da cabeça.

Enzo partiu para seu quarto, para tomar um banho, e eu fiquei no meu, andando de um lado para
o outro. Também deveria ir para o chuveiro, colocar uma roupa mais confortável, mas algo dentro de
mim se remexia.

Era a hora de tomar o remédio, mas eu não conseguia. Cheguei a pegar um copo d’água e um
comprimido – eu os tinha colocado em uma caixinha, dentro de uma gaveta trancada, na intenção de
tentar enganar Enzo, se fosse necessário –, mas o devolvi.

Eu não podia mais mentir.

Enzo não chegou a me responder se realmente queria ser pai, mas eu vi em seu olhar. E ele não
seria um mau pai. Talvez se esforçasse muito para parecer indiferente, mas havia algo naquele
homem que poderia vir à tona caso reaprendesse a amar. Algo bom, algo pelo qual valeria a pena
lutar.
Tomada por um desespero, saí do meu quarto e cheguei ao dele. Não bati na porta. Era errado,

porque ele merecia sua privacidade, assim como eu tinha a minha desde que cheguei àquela casa,

mas foi um impulso.

Acabei pegando-o só de toalha, cabelos molhados, tão lindo que só reforçou minha decisão.

— Giovanna? O que está fazendo aqui?

Suspirei, resignada. Dali em diante ele poderia me destruir. Poderia me matar, poderia me
lançar em um dos bordeis ou simplesmente me prender naquele casamento me tratando como a

traidora que eu era.

Ainda assim, era melhor que soubesse pela minha boca. Antes que fosse tarde demais.

— Eu preciso te contar uma coisa. Não tenho sido honesta com você.
18

Eu estava acostumado a lidar com desonestidade, mas as pessoas não costumavam revelá-la
para mim. Normalmente eu descobria as traições sozinho, por isso a afirmação de Giovanna me

surpreendeu.

Sentia-me vulnerável em receber uma notícia provavelmente desagradável usando apenas uma
toalha, mas a curiosidade me venceria em qualquer circunstância, e eu acreditei que impedi-la de
falar para que eu trocasse de roupa poderia lhe dar a chance que precisava para escapar dali sem me

dizer nada. Ou para encontrar uma evasiva e mentir.´

— Do que você está falando? — mantive o tom de voz bem baixo, controlado. O tipo que
usava com meus inimigos.

Seria Giovanna uma inimiga?

E por que essa perspectiva me incomodava tanto?

Ela começou a se remexer, a andar de um lado para o outro, como eu já sabia que ficava
quando estava nervosa. Giovanna não era exatamente o tipo que se sentia intimidada para falar o que

tinha em mente, a não ser que fosse algo grave.

— Imagino que precise tomar uma atitude em relação ao que vou te contar, mas espero que leve
em consideração que não cometi nada contra você até agora e a única coisa que tenho feito vou parar
imediatamente. Além do mais, estou sendo sincera.

— Não faça rodeios, Giovanna! — disse em tom de comando.

Isso a fez perder o ar, e por mais que odiasse deixá-la assustada comigo, continuei impassível,
esperando. O coração estava acelerado no peito, mas disfarcei ao máximo.

— Meu pai colocou em mente algum tipo de vingança contra a sua família. — Ela abaixou a
cabeça, envergonhada. — Ele descobriu um caso entre seu pai e minha mãe. — Provavelmente
esperava que eu ficasse muito surpreso, mas não demonstrei qualquer emoção. — Você sabia!

— Eles não eram tão discretos quanto achavam que eram.

Giovanna levou uma das mãos à boca, contendo o choque.

— Você acha que mais alguém sabe?

— Não sei e não me interessa. Quero que continue falando sobre a tal vingança. Onde você se
encaixa nisso?

Seus olhos castanhos pareciam ainda maiores. Ela estava em pânico, e isso só me deixava cada
vez mais nervoso.

— Ele queria que eu te privasse de ter filhos. Que não concebesse e te deixasse sem herdeiros.
— Ergui a cabeça, respirando fundo. — Queria que eu transformasse a sua vida em um inferno. Que
não te desse paz quando ficasse em casa. Queria que eu pegasse informações... tudo o que fosse
possível. E provavelmente iria me usar em outras ideias que surgissem, mas não chegou a me dizer.

Assenti, bem devagar, absorvendo as palavras.

Ficamos alguns instantes em silêncio, porque eu simplesmente não sabia o que falar. Giovonna
continuava inquieta, visivelmente apreensiva, respirando de forma descontrolada.

— Você não vai dizer nada? — indagou, impaciente. Eu permaneci calado. — Por favor, Enzo,
diga alguma coisa. Estou tremendo aqui. Sei que você, talvez, precise me denunciar como traidora,
que eu posso pagar o preço, mas não sou desonesta. Tenho muitos defeitos, mas este não é um deles.

— E por que você decidiu tomar um lado? Por que decidiu trair o seu pai a me trair? —
Aquela resposta era importante.

Muito.
Exatamente como ela dissera, eu poderia denunciá-la. A sentença para um traidor dentro da

máfia era a morte. Ou, para uma mulher, algo ainda pior.

— Porque você é meu marido. Porque vou passar o resto da minha vida ao seu lado e... — ela
hesitou, abaixando a cabeça. — Bem... se você ainda quiser.

Dei alguns passos em sua direção.

Eu apreciava sua lealdade. Sua resposta resumiu exatamente o que eu queria ouvir. Lá estava a
linda Giovanna, a pessoa mais improvável que pensei, provando que fora a melhor escolha de esposa

que eu poderia ter. Não apenas pelo fato de que tínhamos uma química interessante, ou porque ela era
a mulher mais atraente em quem pus os olhos, mas porque tivera a coragem de ir contra o próprio pai
para ser leal a mim.

No momento em que me coloquei à sua frente, ela se encolheu um pouco. Era difícil vê-la fazer
isso. Tão corajosa, tão indomável, mas ao mesmo tempo tão pequena, tão menor do que eu. Odiava
que sentisse medo. Odiava que pudesse acreditar que eu teria coragem de fazer algo cruel contra ela.

— Não tenha medo de mim, piccola. Não vou machucá-la — falei baixinho, tentando soar
gentil.

— Mesmo sabendo que eu te traí?

— Você não me traiu.

Levando a mão à sua nuca, eu a puxei para mim, tomando seus lábios. Nunca a vontade de
beijá-la fora tão grande. Naquele momento, por menor que fosse o gesto, uma pequena luz de
esperança se acendeu. Era algo muito tímido, quase invisível, mas existia. Alguém, em meio ao mar
de gente mentirosa e falsa que eu conhecia, era confiável.

Giovanna ainda poderia estar escondendo coisas, mas aquele foi o primeiro passo para que eu
pudesse crer que teríamos uma parceria, além de um casamento onde fomos obrigados a entrar.
Segurei-a com força contra mim, quase esmagando-a contra o meu corpo. Suas duas mãos

espalmadas em meu peito, frias, provavelmente do nervosismo. Ela demorou a corresponder ao

beijo, um pouco atordoada, mas eu não conseguia parar.

Só que ela nos afastou quando começou a se desvencilhar de mim.

— Enzo, calma! Calma... — Estendeu as mãos em rendição, dando alguns passos para trás. Sua
respiração estava ainda mais ofegante. — Você não pode me beijar assim sem me dizer o que está
passando pela sua cabeça. O que vai fazer comigo?

Continuei olhando para ela, mas a mulher à minha frente parecia alguém completamente novo.
Ainda era a mesma linda garota que viera em minha direção no altar e para quem eu disse sim, mas
meus conceitos sobre ela tinham crescido.

— Quero que faça suas malas. — Ela ofegou, apavorada. — Vamos para a casa de praia
amanhã. Vamos passar algum tempo juntos. E se você quiser continuar tomando o anticoncepcional,
para o caso de não estar pronta para ter filhos, não vou me opor. Só me diga quando parar, assim
estaremos preparados.

Mais uma vez aproximei-me dela, deixando um beijo em sua cabeça, mas entrei na suíte, pronto

para vestir uma roupa, esperando que ela saísse do meu quarto. Meus desejos por ela naquele
momento estavam muito à flor da pele, e eu não queria dizer ou fazer coisas das quais iria me
arrepender depois. Não estava pronto para abrir meu coração. E ela provavelmente também não.

Além disso, eu não podia ignorar o quão puto estava com o pai dela. Teria sido ele o traidor
desde o início? Mas e a bomba? Será que teria coragem de matar a própria filha?

Bem, ele batera nela. No rosto... Do que mais seria capaz?

Quando saí do banheiro fiquei satisfeito em perceber que Giovanna não estava mais no meu
quarto. Antes de descer para jantarmos, eu precisava fazer uma ligação.
Eu sabia que Giuseppe era meu sogro, pai da minha esposa. Sabia que ela provavelmente

ficaria magoada, mas eu não poderia manter um traidor entre os meus homens. Não poderia ter um

louco com sede de vingança como meu consigliere.

O telefone tocou do outro lado, chamando, demorando a ser atendido.

Quando a voz familiar falou, respirei fundo...

Não, eu não poderia contar para ele ou colocaria Giovanna em perigo. Precisava resolver
aquele problema sozinho.

— Enzo? O que foi? — ele perguntou, intrigado.

— Nada de mais, pai. Só quero avisar que vou passar mesmo alguns dias afastado. Vou levar
Giovanna à praia.

Era uma mentira. Talvez eu fosse me arrepender dela, mas era para proteger minha esposa.
Valeria a pena.
19

Eu deveria estar acostumada aos silêncios. Enzo não era um homem de longas conversas muito
menos de desabafos. A pior tempestade poderia estar se passando por sua cabeça, mas ele não se

abriria.

Na noite anterior eu confessei para ele que estava prestes a traí-lo. Que aceitei o plano de
vingança do meu pai, mas me arrependi. Sentia-me tão nervosa que cheguei a passar mal de manhã.
Acordei enjoada e muito tonta, com o coração acelerado, depois de um pesadelo.

Neste, eu era arrastada pelos cabelos por Enzo até um dos galpões nos quais eu sabia muito
bem o tipo de coisa que acontecia, e ele me oferecia a vários soldados, para que abusassem de mim.
Durante todo o pesadelo ele observou as cenas, rindo como nunca o vi fazer. Como se sentisse prazer
na crueldade.

Mas não era o caso. A imagem que eu tinha de Enzo era muito pior do que a realidade. O
homem ao meu lado, observando o caminho passar através da janela, era uma caixinha de surpresas.

Para a nossa viagem, ele se vestira casual, com uma blusa preta, gola V, de mangas compridas
e uma calça jeans. O anel com o brazão de sua família no dedo mindinho direito, a mão enorme sobre

a coxa torneada. Meus olhos foram involuntariamente subindo até encontrar uma barriga plana e um
peitoral amplo, do qual ainda lembrava bem a sensação de tocar, depois do beijo do dia anterior.

Fora um beijo depois de algum tempo de abstinência, aliás. Desde nossa primeira e única vez.
Ele dissera que estava me dando espaço e que me desejava todos os dias; que tipo de autocontrole
aquele homem tinha para conseguia se manter longe quando afirmava querer o contrário.

Fosse como fosse, eu o desejava. Ainda não estava muito certa de como encarara o que lhe
contei na noite anterior, se estaria apenas usando de alguma estratégia de me manter consigo para me
surpreender depois... Meu coração mantinha-se em dúvidas, mas queria acreditar que minha tentativa
de acertar as coisas dera certo.

Só que um dos motivos do meu pesadelo também fora o meu pai. O que iriam fazer com ele?
Será que o matariam? Que o torturariam? Sequer pensei nisso no momento em que derramei a
verdade. Pensei apenas que ele não se importara comigo. Se me descobrissem, algo me dizia que me

consideraria a vergonha de sua família, tiraria o corpo fora para que eu me ferrasse sozinha.

— Você parece tensa — Enzo falou sem que eu esperasse, então me sobressaltei.

Eu poderia mentir e dizer que estava bem, mas não queria mais mentiras.

— Não dormi muito bem. Tive pesadelos.

— Eu sei. Você gritou.

Arregalei os olhos, surpresa.

— Gritei? Me desculpa.

— Não precisa se desculpar. Mas também quero que esqueça esse assunto. Você falou a
verdade, foi corajosa, e isso será levado em consideração — ele afirmou tão frio como sempre, e eu
cheguei a rir.

— Será levado em consideração — imitei o tom de voz dele, em zombaria, mas era uma
artimanha para tentar me acalmar, levando em consideração o quanto estava nervosa. — Obrigada,
senhor. Fico feliz que sua consideração por mim seja assim tão grande — continuei brincando, mas
logo me arrependi. — Talvez seja mais do que eu mereço, não?

— Você não fez nada de errado.

— Não, eu sei. Fui ameaçada.

Vi Enzo se remexer sobre o banco do carro.


— Essa parte você não me contou...

E nem deveria contar. Se a situação do meu pai já estivesse prejudicada antes, a nova
revelação poderia complicar ainda mais as coisas. Mas eu já estava no inferno, então...

— Ele disse que iria dar um jeito de montar um cenário como se eu estivesse te traindo com
outro homem. Que iria me jogar em um dos bordeis. Falou tantas coisas... eu fiquei assustada. Só
tinha dezessete anos quando concordei com tudo isso.

— Essa vingança vem sendo planejada há tanto tempo? — apesar do teor da pergunta, ele não

pareceu se alterar.

— Acho que acreditou que íamos nos casar mais cedo.

Ele balançou a cabeça em concordância.

— Sim, imagino que sim — falou, pensativo. — Seja como for, você não precisa mais temer as
ameaças dele.

— Ainda tenho medo, Enzo — confessei. — Não só por meu pai, mas por você. Não sei se
isso foi suficiente para que confie em mim.

Aparentemente ele curtia um suspense, ou então pensava muito bem em suas palavras, porque
ficou calado, olhando para a mão que observei momentos antes – aquela com o anel.

— Eu não confio em ninguém, Giovanna. — Abaixei a cabeça, lamentando. Então senti a


mesma mão do anel pousar sobre a minha. Era só isso: um toque. Nossos dedos não se entrelaçaram,
não houve uma carícia gentil. Ele apenas encostou em mim, como se só tivesse direito a isso. — Mas
talvez possa aprender a confiar em você. Se me ensinar...

Nossos olhos se encontraram, e eu sorri. Enzo não fez o mesmo.

Mas cada coisa a seu tempo... Cada coisa a seu tempo.


Foi uma viagem tranquila à casa de praia, completamente diferente da primeira vez. Não

tivemos surpresas, ainda bem. Levamos pouca bagagem, porque ficaríamos apenas três dias – que era

o que Enzo conseguia passar afastado do trabalho –, mas o soldado que nos acompanhou carregou
tudo para dentro, deixando-as em um mesmo quarto, o que me surpreendeu.

Preferi não comentar, mas achei um bom sinal.

— Teremos companhia o tempo todo? — perguntei em um sussurro, olhando para o homem,


enquanto ele inspecionava o local.

— Ele ficará na casa da piscina. É bem confortável. — Então um vinco surgiu em sua testa. —
Só espero que você não fique andando por aí completamente nua.

Abri um sorriso satisfeito.

— Está com ciúme, Enzo Dallaggio? — provoquei.

Jurei que ele iria responder que não. Que se tratava apenas de uma sensação de posse, mas fui
surpreendida.

— Sim, Giovanna. Eu estou.

Então fui agarrada com força e puxada contra seu peito. Sua mão segurou minha nuca e um
braço enganchou-se em minha cintura, prendendo-me a ele. O movimento foi tão súbito que eu
ofeguei, principalmente quando me tirou do chão, igualando nossas alturas ao invés de inclinar-se.
Com os pés voando no ar, quase como se estivesse flutuando, abracei-o, aceitando o beijo como um
sinal de que naqueles dias nós teríamos um casamento normal. Queria que Enzo quebrasse o gelo
entre nós e me tornasse sua novamente. Queria descobrir os caminhos do prazer em seus braços.

Senti que poderíamos ter continuado com o beijo até que nenhum dos dois tivesse um único
resquício de ar nos pulmões, mas um pigarrear nos interrompeu, e eu fui colocada no chão com
cuidado.
— Senhor, perdão por interromper, mas gostaria de avisar que a casa está limpa, não há

ameaças. Estarei por perto, se precisar — Luigi falou, parecendo um pouco envergonhado em nos

pegar aos beijos no meio da sala.

Mas éramos marido e mulher, não éramos? Tínhamos o direito.

— Obrigado, Luigi — Enzo falou, e o homem assentiu, afastando-se. Assim que o outro saiu,
meu marido voltou-se para mim: — Me desculpa. Eu não deveria ter te exposto assim.

Um sorriso curvou meus lábios.

— Foi um beijo e tanto. A exposição é o que menos importa. — Fiz uma pausa, ampliando o
sorriso. — O que quero saber é: por que nossas malas foram levadas para o mesmo quarto?

— Pensei que... Bem... se você quiser podemos ficar em cômodos separados.

Aproximei-me dele, colocando a mão em seu rosto.

— Não. Quero dormir com você. Vai ficar a noite inteira ao meu lado?

Ele suspirou, quase como um resmungo.

— Não sou um homem romântico, Giovanna. Não quero que espere isso de mim.

— Não quero romance. Quero sexo — soltei, sem rodeios, e eu o vi erguer uma sobrancelha.
Era interessante testemunhá-lo perder um pouco da compostura, mesmo que de forma quase
imperceptível. — Quero deixar tudo de ruim do lado de fora dessa casa. Vamos voltar para a
realidade em três dias, mas enquanto estivermos aqui, serei apenas sua esposa. E você será apenas o
meu marido. Pode ser?

Foi a vez dele de me surpreender, pegando a minha mão e beijando-a.

— Vou tentar.
Deixando-me com o coração inchado no peito, Enzo afastou-se, como se precisasse demonstrar

seus sentimentos em doses homeopáticas.

Ok, eu podia lidar com isso.

Só não sabia lidar com os meus sentimentos.

Eu estava me apaixonando por ele. E quando isso se tornasse uma certeza, não haveria como
voltar atrás.
20

Os cabelos voavam selvagens, combinando com sua personalidade.

Ou melhor... ela não era tão selvagem assim – pensei com o ensaio de um sorriso curvando

meus lábios. Era uma garota doce quando queria ser, que dizia o que pensava e que conseguia me
surpreender todos os dias.

Eu estava mais do que rendido por ela, embora não fosse algo que me agradasse.

Daquela vez não estava nua, mas usava um vestido solto que também se rebelava com a brisa,

caindo até seus pés. Leve, simples, mas que a deixava linda, como tudo o que vestia. Mesmo à
distância, admirando-a da sacada do quarto onde iríamos dormir – juntos –, podia perceber que os
seios fartos estavam livres, sem sutiã.

Aliás, eu normalmente me considerava um homem destemido. Eu não tinha medo da maioria


das coisas. Nem da morte, se é que isso era algo para se ter medo, levando em consideração que
muitas vezes ela era até abençoada. Fosse como fosse, Giovanna me amedrontava. Eu sabia que ela
poderia me transformar em um homem que eu não poderia ser.

E isso só se confirmou quando ergueu o rosto na direção da sacada, e eu a vi sorrir. Ergueu


uma das mãos em direção aos cabelos, segurando-os para que não atingissem seus olhos, enquanto a
outra gesticulava para que me juntasse a ela.

Deveria ignorar seu chamado e encontrá-la apenas na hora do jantar, com uma mesa a nos
separar, mas era mesmo isso que eu queria? Um casamento frio como eu sabia que meus pais
tiveram? Minha esposa estava se esforçando. Por que eu não poderia fazer o mesmo?

Desci, portanto, encontrando-a onde a vi antes, e assim que cheguei, ela chutou um pouco de
areia molhada na minha direção, atingindo minhas pernas, que estavam nuas por causa da bermuda
que escolhi usar. Claro que ela brincou com esse fato.

— Nunca pensei que fosse te ver de roupas tão informais. Gosto disso.

— Gosta? — perguntei com uma sobrancelha erguida e as duas mãos no bolso. Sentia-me um

garoto tímido, sem saber como agir ou o que dizer. Completamente patético, mas naquele momento
não me importei.

— Você é um homem muito bonito, Enzo — a voz de Giovanna nunca soou tão sensual, tão
convidativa.

O que aquela mulher ia fazer com a minha cabeça?

Eu deveria dizer mil coisas também a respeito de sua beleza. Deveria contar a verdade de que
desde que a vi florescer na mulher que estava à minha frente, o rosto dela não saiu da minha cabeça.
Ele surgia como aparições fantasmagóricas nos meus sonhos, em meio a brumas, parecendo real
demais para a minha sanidade. Era ridículo pensar em algo assim, mas foi a imagem dela que vi
quando fui para a cama com outras mulheres. Tudo porque ainda não podia tê-la.

Sempre me convenci de que não havia um sentimento envolvido. Era uma obsessão. Posse,
porque eu sabia que ela seria minha mais cedo ou mais tarde. E ao mesmo tempo, foi isso que me fez

adiar tanto o casamento. Algo dúbio. Ao mesmo tempo em que a queria desesperadamente, temia que
sua presença em minha vida me causasse algum tipo de caos.

E causou. Mas não como eu esperava. Era o caos mais parecido com paz que eu poderia sentir.

Só que não consegui dizer nada. A verdade era que eu costumava economizar minhas palavras,
porque elas tinham poder, não apenas pela minha posição como chefe, mas no geral. Elas podiam ser
armas quando bem usadas, e eu entendia a hora certa de usá-las.

Naquele momento, o silêncio precisava falar por mim.


Aproximei-me devagar de Giovanna, levando a mão aos cabelos rebeldes que novamente

açoitavam seu rosto. Com os olhos fixos em mim, ela ficou parada, provavelmente se perguntando o

que eu iria fazer. Estaria ainda assustada? Preocupada com minha reação em relação à verdade que
me contou?

Ela fechou os olhos, respirando fundo, inclinando o rosto na direção da minha mão, como se
pedisse que eu a acariciasse.

Eu o fiz. Com os nós dos dedos, bem devagar... aproveitando o momento.

— Faz amor comigo, Enzo. Aqui, na praia — foi só um sussurro. Um que poderia ter me
desfragmentado e me misturado aos grãos de areia.

O certo seria dizer que não. Levá-la para o quarto e amá-la do jeito certo. Luigi estava por
perto e poderia nos pegar. Não era um exibicionista, especialmente para um de meus soldados. Mas
como teria coragem de negar aquele pedido?

Sem responder, peguei-a nos braços, levando-a pela areia, deitando-a sob a sombra de uma
árvore, onde havia uma toalha estendida – provavelmente por ela mesma. Era menos exposto do que
onde estávamos antes, mas, mesmo assim, poderíamos ser pegos.

Talvez o gosto de adrenalina apimentasse as coisas.

Deslizei a mão por sua perna, chegando à coxa, apertando-a e reparando que Giovanna estava
também sem calcinha.

— Você arquitetou isso tudo, não foi, piccola? — perguntei, encontrando sua fenda quente,
começando a brincar naquele ponto, ameaçando penetrá-la com o dedo, mas sem fazê-lo.

— Talvez... — Ela gemeu baixinho quando massageei seu clitóris. — Gosto quando me chama
de piccola.
— Combina com você. Delicada e pequena. Il mia piccola — sussurrei “a minha pequena”,

pouco antes da minha boca descer por seu colo, deixando beijos cálidos por ali. No momento em que

a penetrei, passando a masturbá-la, capturei seus lábios, buscando sua língua com a minha.

O crepúsculo despontava no horizonte, e ele nos servia de cenário. O vento brincava ao nosso

redor, enquanto eu sentia Giovanna arquear o corpo sobre a toalha, conforme chegava mais fundo,
conforme estocava o dedo e o remexia, descobrindo quais eram os pontos que a deixavam mais
excitada.

Sentindo-a bem molhada, parei de estimulá-la por um instante, só o suficiente para abaixar as

alças do vestido, deixando seus dois seios à mostra. Ela tentou livrar os braços da lateral do corpo,
presos pelo tecido, mas segurei-os.

— Deixe-os assim — ordenei, e ela surpreendentemente obedeceu.

Levei a ponta da língua a um dos mamilos, fazendo Giovanna se remexer sob mim. Os dedos
giraram o outro, bem devagar, puxando-o, enquanto minha boca se deleitava com seu sabor, e ela
gemeu um pouco mais.

Coloquei-me ajoelhado, com uma perna de cada lado de seu quadril, deixando ambas as mãos

livres, para poder voltar a masturbá-la enquanto me ocupava de seus seios.

— Enzo... — ela suspirou e arfou, novamente arqueando o corpo, dando-me mais e mais
acesso a ele.

Sabendo que ela estava prestes a gozar, abaixei-me e usei as duas mãos para deslizar o tecido
do vestido por suas coxas, erguendo-o até sua cintura. Coloquei as mãos por sob sua bunda, tirando-a
do chão, trazendo sua boceta até a minha boca, deixando-a suspensa daquela forma, para aproveitar
mais as sensações.

Dei-lhe tudo de mim, esperando que sentisse prazer. Eu não queria simplesmente que ela
gozasse, mas que aproveitasse cada segundo. Queria que sexo fosse tão bom para ela quanto fora
para mim na nossa primeira vez.

Quando investi a língua com mais ímpeto, e ela gritou, eu quase sorri, sabendo que era esse o
meu desejo.

Tirei a bermuda com pressa, ainda sem deixá-la gozar, e, enquanto fazia isso, eu a ouvi dizer:

— Por favor, Enzo... por favor... — soou quase como se ela estivesse completamente sem ar.

— O que você quer, piccola? — perguntei, completamente excitado.

— Você. — Então ela livrou-se das alças do vestido e tirou minha camisa. Empurrou meu
peito, dando a entender que queria que eu me deitasse, montando em mim. — Não sou experiente em
nada disso. Vai ter que me ensinar.

Prendi a respiração, já esperando o que viria. Giovanna começou a me beijar aos poucos,
deslizando os lábios cheios e doces por todo o meu peito, bem devagar, até chegar ao meu pau. Ela
começou lambendo-o um pouco sem prática, exatamente como dissera, mas já era o suficiente para
me torturar.

Arqueei o corpo para olhá-la, e neste momento, ela o tomou na boca inteiro, voltando os olhos
para mim, com uma aura de inocência que me atingiu em cheio.

— Siga seus instintos — falei, rouco, sabendo que aquilo iria acabar comigo.

Apesar de ser uma mulher completamente inexperiente, nunca recebi um sexo oral como
aquele. Giovanna estava se empenhando, desejando me dar prazer, e isso se tornou a parte mais
erótica da coisa.

Desesperado de tesão, agarrei seus braços e me sentei sobre a toalha, agarrando-a e


colocando-a montada em mim, fazendo-a descer completamente molhada pelo meu membro,
deslizando até estarmos conectados por inteiro.

— Ah, Enzo...! — ela gemeu, e eu me senti ainda mais enlouquecido em ouvir meu nome sair
daquele jeito de sua boca.

Sabendo que ela não estava mais sentindo nenhum tipo de dor, depois de sua primeira vez,
decidi movimentá-la com mais força, mantendo as mãos em sua bunda. De início ela pareceu não
saber direito o que fazer, como acontecera com o sexo oral, mas rapidamente passou a se
movimentar, rebolando os quadris, o que me fez soltar um grunhido quase selvagem.

Assaltei seus lábios em mais um beijo, transformando-o em algo tão cru quanto o sexo. Éramos
uma confusão de respirações entrecortadas, corpos se chocando e de gemidos em uníssono. Os dela,
deliciosos como miados de gatinho, os meus, mais roucos, mais como rosnados.

Ela gozou primeiro, e eu me segurei um pouco, porque não queria que terminasse. Não queria
sair de dentro dela, não queria...

Não queria perdê-la.

Eu sabia que encerrar aquele sexo não faria isso conosco, que ela era minha esposa, que tinha
me contado um segredo que poderia ter nos separado, mas que sua lealdade nos salvou. Ainda assim,

enquanto eu encontrava minha libertação, segurando-a lânguida nos meus braços, meu coração errou
uma batida.

Eu estava apaixonado por ela.

E isso era mais perigoso do que qualquer coisa que eu pudesse experimentar.
21

Naquela noite, nosso jantar foi na cama.

Havia algo de diferente no ar, era quase palpável. Talvez Enzo estivesse realmente levando a

sério meu pedido de que qualquer coisa de ruim e qualquer realidade desagradável fosse deixada do
lado de fora das portas daquela casa. Ali seria nosso refúgio, um santuário.

Um ninho de amor, se eu fosse brega o suficiente para falar assim.

E... talvez eu fosse.

Talvez eu estivesse prestes a me tornar uma daquelas garotas apaixonadas que ficam
suspirando, mas a minha sorte era que o cara por quem eu estava caidinha era meu marido. Nossa
ligação era para sempre.

Ou assim eu esperava.

Ainda me sentia atormentada pela história de vingança do meu pai. Como tudo aquilo
terminaria? Seria ele punido?

E eu? Enzo poderia ser compreensivo e me perdoar, mas será que ele teria que contar a

verdade para outras pessoas? E se meu próprio pai me colocasse em maus lençóis?

Os pensamentos eram tão atormentadores que eu mal consegui dormir. Cheguei a cochilar,
depois de mais uma rodada de sexo intenso, mas acordei sobressaltada, minutos depois. Enzo
continuava adormecido, ao meu lado, deitado de barriga para cima, completamente nu, e eu achei que
não haveria melhor forma de passar minhas horas insones do que olhando para ele.

O lençol o cobria apenas do quadril para baixo, e eu ainda conseguia ver as entradas em
formato de V em sua cintura, além dos gominhos do abdômen e o peitoral amplo. Tudo isso seria
quase hipnótico se meus olhos não estivessem focados na cicatriz. A mesma que vi na primeira noite
que passamos naquela casa,

Daquela vez, ele me impediu de tocá-la, e eu imaginava que ela lhe trazia lembranças pesadas,
mas foi inevitável levar meus dedos novamente em sua direção.

Tateei-a com cuidado, esperando que ele não acordasse, sentindo a textura e tentando imaginar
pelo que o garotinho que conheci tinha passado. Os dias terríveis que o transformaram no homem
infeliz que passara a ser.

Não consegui prosseguir com minha exploração por muito tempo, porque exatamente como

aconteceu na primeira vez, minha mão foi agarrada. O corpo enorme de Enzo veio para cima do meu,
colocando-se por cima e prendendo meus dois punhos contra o colchão.

— Qual a sua obsessão com essa cicatriz? — ele perguntou sem muita gentileza, parecendo
impaciente.

Tentei me soltar de suas mãos, mas ele me segurou com mais força. Não me machucava, mas
queria me manter ali.

— Não é obsessão. Ela me causa raiva.

— Raiva de quê? — ele praticamente rosnou.

— Raiva de quem te machucou.

O quarto estava praticamente escuro, mas as cortinas estavam abertas, e o luar prateava o
ambiente, permitindo que eu percebesse a expressão de Enzo modificando-se. Eu não poderia dizer
que ele estava com raiva antes, mas subitamente pareceu menos tenso, e seus olhos azuis brilharam
de forma diferente. Quase comovidos – ou o mais próximo disso que ele conseguia chegar.

Ainda assim ele não me soltou. Não saiu de cima de mim.

— O que aconteceu, Enzo? Conte para mim — pedi em um tom suave, quase suplicante.
Foi então que ele tirou as mãos de mim e se levantou, pegando uma calça de moletom que

estava no chão, que ele usara antes de nos atirarmos na cama depois de um banho, vestindo-a e se

afastando.

Levantei-me também, colocando um robe por cima do corpo nu, e fui atrás dele, não desejando

permitir que o momento passasse.

Enzo colocou-se diante da sacada, e eu o segui. Aproximei-me, abraçando-o pela cintura e


colando minha cabeça às suas costas. Algo me dizia que ele precisava de um pouco de carinho.
Quem sabe não se abrisse mais se eu lhe proporcionasse algo que não tinha das outras pessoas?

— Sou sua esposa, Enzo. Para o bem ou para o mal. Estou do seu lado, não vou usar nada do
que disser contra você.

As duas mãos que eu mantinha espalmadas em seu peito sentiram quando respirou fundo. Seu
coração também parecia um pouco acelerado.

Algo me dizia que aquele momento ditaria muito do nosso futuro.

Outra respiração profunda, e suas mãos pegaram as minhas. Sem dizer nada, começou a me
guiar para fora do quarto, então pelas escadas, até que estávamos novamente na praia. Fui com ele

sem contestar, esperando que tivesse alguma explicação.

Enzo sentou-se em uma espreguiçadeira, de um conjunto que ficava próximo à toalha onde
fizemos amor, puxando-me para seu colo. Era mais um gesto de carinho inesperado. Eu estava
gostando daquela sua versão.

— Não é uma história bonita, Giovanna. Não é algo que eu gostaria de contar a você.

— Não sou frágil. Se te aflige, quero saber. Quero conhecer o homem com quem me casei para
saber como lidar com ele.
Algo muito parecido com um sorriso curvou seus lábios, mas era apenas um esboço. Seria uma

vitória, talvez?

— Acho que você está lidando muito bem — respondeu, e havia certa ternura em sua voz. Uma
suavidade que muito me agradava. — Mas seja como for, se você quer saber, vou te contar.

Senti seus músculos tensionarem e entendi que não seria um momento fácil. Para isso, então,
toquei seu rosto e beijei sua boca delicadamente, apenas um toque sutil. Seus braços ao meu redor
me apertaram um pouco mais, então o relato começou:

— Quando somos meninos dentro da máfia, nós temos uma visão muito romantizada da coisa.
Sonhamos em nos tornarmos homens, em sermos temidos... principalmente quando se está destinado a
ser chefe.

— Eu imagino. Você tinha muito orgulho de dizer isso quando era pequeno.

— Se eu soubesse... — ele falou, amargo e melancolicamente nostálgico. — Meu pai


acompanhou pessoalmente. A primeira coisa que aconteceu foi que eu fui levado vendado a algum
lugar, onde fui algemado nu a uma cadeira. Tive que passar um dia e uma noite inteiros assim. Sem
saber onde estava, com fome, frio e sendo agredido.

— Meu Deus! — não consegui ficar calada.

— Meu pai me explicou que um homem de verdade tem que saber lidar com o medo e a dor.
Foi um dia longo. Quando terminou, tiraram a minha venda. Vi que estava em um galpão e havia
muitas pessoas ao meu redor. Seu pai, inclusive.

Eu não duvidava disso nem por um momento. Sabia que meu pai participava de iniciações, mas
imaginava que a de Enzo seria mais cruel, porque ele era o chefe, precisava provar seu valor para
tal.

— O segundo dia foi ainda pior. Mesmo vendo tudo, meu pai fez um teste comigo. Ele me
contou algo ao ouvido, e eu fui torturado de várias formas. Se eu falasse o que ele me disse, a tortura

pararia, e eu seria levado para casa. Só que se eu falasse, me veriam como um fraco, e eu não queria

isso. — Inconscientemente, Enzo levou a mão à cicatriz.

— Foi quando te machucaram aqui? — Toquei-a também, e ele assentiu.

— Sim. Foi um caco de vidro. Nunca senti tanta dor. Tanta que cheguei a perder os sentidos.
Meus braços e tornozelos estavam dormentes por estarem amarrados, eu estava a pão e água, todo
machucado.

Coloquei a mão novamente em seu rosto. Queria controlar minha expressão de pena, mas não
consegui. Ele era só um menino.

— Quantos dias durou? — indaguei.

— Uma semana. Mas pareceu uma eternidade. — Enzo se remexeu sob mim, parecendo
inquieto. — Depois eu fui solto, pude tomar um banho e me deram de comer. Só que tive que provar
que era um homem de outra forma.

— O que você teve que fazer?

— Matei alguém.

Prendi o ar. Não era uma novidade que Enzo já tinha matado pessoas, que ele mesmo sabia
torturar e ferir. Mas ouvi-lo contar tornava-se real demais.

— Não era flor que se cheire, é claro. Era um soldado que trabalhava para o meu pai. Ele
pegou o cara olhando para Paolla de uma forma indecorosa quando ela estava de biquíni na piscina.
Pelo que lhe contaram, ele fez comentários também e era meio inclinado a gostar de garotinhas. —
Mais uma vez seus músculos ficaram tensos. — Eu estava abalado. Depois de dias sentindo dor,
passando fome e sendo humilhado, meus nervos estavam destroçados. Nem procurei saber a verdade,
Giovanna. Só pensei naquele filho da puta colocando as mãos na minha irmã, se tivesse a chance.
— O que aconteceu? — não que precisasse perguntar, é claro. Eu sabia. Mas tentei incentivá-

lo a falar, com medo de que travasse.

— Deram uma arma na minha mão, e eu atirei. Várias vezes. Não o matei de uma vez, como
seria simples. Eu quis que sentisse dor. E gostei de vê-lo sofrer.

— Você estava abalado... era uma criança, Enzo... era...

— Não me defenda. Eu não mereço compaixão — ele me interrompeu. — Meu pai ficou
exultante com meu sangue frio. Na hora, eu me sentia anestesiado. Então veio o meu prêmio... e minha

última prova. Eles me levaram para um quarto com três prostitutas. E me observaram por câmeras.
Queriam analisar a minha... performance — ele falou com desdém.

— Isso é... doentio.

— Sim. É. — Enzo ficou calado por algum tempo. Seu olhar se perdeu no horizonte, e eu sabia
que ele estava se lembrando de todas aquelas coisas terríveis que lhe fizeram passar. Esperei
pacientemente até que olhou novamente para mim. Muito sério. — Caso tenhamos um filho homem,
algum dia, não vou permitir que passe por isso.

Cheguei a ofegar pensando em um garotinho meu e de Enzo sendo torturado física e

psicologicamente.

— Você pode? Passar por cima das ordens do seu pai? Pode não permitir que isso aconteça?
— Eu não sabia por que estava tão desesperada. Era um filho que não existia ainda.

Mas eu tinha parado de tomar o anticoncepcional no dia anterior. A qualquer momento


poderíamos conceber. Especialmente com o tanto de vezes que estávamos fazendo sexo. Se aquele
menininho de quem estávamos falando se tornasse uma realidade, eu não queria pensar nele passando
por tudo o que Enzo passou.

— Veremos quando chegar a hora. Mas prometo que isso não vai acontecer. Não importa o que
eu precise fazer.

Enzo me puxou para si, beijando-me no alto da cabeça e me aninhando em seus braços. Era o
momento mais carinhoso entre nós, e a ironia era tamanha, porque fora exatamente depois de termos
compartilhado memórias tão sombrias.

Meu coração estava pequeno no peito, lamentando pelo garotinho que conheci, pensando em
como seríamos, como casal, se Enzo tivesse vivido uma infância normal. Se nós dois pudéssemos
escolher. Será que teríamos nos apaixonado? Será que estaríamos juntos?

Eram perguntas que ficariam sem respostas, mas a promessa que ele me fez, as palavras “não
importa o que eu precise fazer”, permaneceriam na minha mente por algum tempo.

Melhor não pensar nos significados delas.


22

Os dias na casa de praia foram melhores do que imaginei. De alguma forma, desabafar com
Giovanna foi difícil, mas libertador. Depois que o fiz, fiquei procurando em seus olhos algum indício

de pena ou de medo, mas ela simplesmente fingiu que nada tinha acontecido.

Acordamos em um novo dia, e ela apenas pareceu mais carinhosa.

Ainda era difícil, para mim, demonstrar meus sentimentos, embora eu já soubesse que eles
existiam. Naquela noite, eu a abracei, aninhei-a a mim, beijei-a com ternura, mas fora um reflexo das

minhas próprias necessidades. Apesar disso, ela parecia entender. O que me deixava mais e mais
admirado. Encantado. Cativado.

Giovanna esforçou-se ao máximo para tornar nossos dias quase como uma lua de mel. A
presença de Luigi não foi empecilho para nada. Ele era discreto e permaneceu em seu posto, apenas
checando por telefone se precisávamos dele. Isso foi providencial, porque eu e minha esposa usamos
cada canto da casa para transarmos como loucos. Depois de sua primeira vez desconfortável, ela
parecia apreciar e muito o sexo que fazíamos. Eu, por minha vez, não poderia reclamar.

Além disso, ela não cobrava mais do que eu poderia lhe dar. Era compreensiva, apesar de

passional e de ter uma alma em chamas. Era uma mulher de muitas camadas, e eu queria desvendar
cada uma delas.

Quase lamentei por termos que voltar para casa, principalmente porque senti Giovanna um
pouco estranha naquela manhã. Saiu da cama bem mais cedo do que o combinado para viajarmos e
ficou algum tempo trancada no banheiro. Não quis invadir sua privacidade, mas ela não saiu de lá
com uma cara muito boa. Parecia pálida e cansada, com olheiras.

Sabia que ainda tinha pesadelos e que a história da vingança de seu pai a assustava, e eu queria
que confiasse em mim. Não faria nada contra ela, principalmente depois de ter me falado a verdade.
Esperava que em breve esquecesse os temores e se sentisse melhor.

Sentia-me cansado da viagem, mas mal pisei em casa e meu telefone já tocou. Giovanna olhou
para mim surpresa, mas eu lhe mostrei a tela, anunciando que se tratava do meu pai. Não me afastei
para atender, como faria antes.

— Boa tarde, pai — cumprimentei. Passava um pouco do meio-dia. Nem eu e nem Giovanna
tínhamos almoçado ainda, mas Belamina provavelmente já estava com tudo pronto, esperando-nos.

— Já chegou em casa?

— Tem pouquíssimos minutos.

— Ótimo. Coma alguma coisa, descanse um pouco e venha à minha casa, por favor. Tenho
algumas atualizações sobre as investigações.

O que será que ele tinha descoberto? Será que sabia sobre Giuseppe?

— Pode adiantar algo por telefone?

— Não. É pouca coisa por enquanto. Mas acho que estamos dando grandes passos. Em breve
teremos esse filho da puta em nossas mãos.

Aquela frase era um bom sinal, não? Se soubesse a identidade do traidor, ele daria algum
indício. Lancei um olhar de soslaio para Giovanna, que estava desfazendo a mala. Eu estava no
quarto dela, porque a ajudara a carregar as coisas, e podia perceber que tentava com muito afinco
não prestar atenção na conversa, mas parecia tensa.

— Tudo bem. Que horas quer que eu chegue aí?

— Por volta das seis. Tenho um compromisso agora, acredito que a esta hora já tenha chegado
em casa. Se não, você pode me esperar. — Provavelmente esperaria. O compromisso do meu pai,
sem dúvidas, era um encontro com alguma das prostitutas que ele fodia regularmente. Elas se
achavam extremamente importantes por serem escolhidas pelo Don.

Eram sempre as mais bonitas. As mais caras. As mais experientes.

Provei algumas delas também, mas nenhuma chegava aos pés da minha esposa.

Desliguei o telefone, e Giovanna rapidamente se voltou para mim.

— Pensei que íamos passar o dia de hoje juntos também — não era uma reclamação. Ela
estava sondando.

Como fora extremamente sincera comigo, eu faria o mesmo.

— Meu pai disse que tem informações sobre o traidor. — Ela prendeu a respiração. Levei as
mãos aos seus braços. — Não sabemos se é mesmo Giuseppe.

— Tudo leva a crer que sim... — ela afirmou, ainda mais nervosa. — Enzo... se seu pai souber
que ele me envolveu de alguma forma, não vai me livrar tão fácil da culpa. Se é um homem capaz de
fazer o que fez com o filho, o que não faria com uma nora traidora?

Segurei seus braços com mais força, sentindo-a empalidecer novamente.

— Giovanna, você não é uma traidora!

— Não aos seus olhos, mas seu pai... ele... ele... — Ela parou subitamente de falar, e então
simplesmente despencou. Apressei-me em segurá-la, antes que atingisse o chão, amparando-a.

Lá estava ela novamente me deixando apavorado, mas por um motivo totalmente diferente. Sem
dúvidas o desmaio era consequência do pânico, mas não me deixava menos preocupado.

Levei-a para a cama, deitando-a com cuidado, correndo à porta e chamando o nome de
Belamina, que surgiu correndo, provavelmente percebendo a urgência da minha voz.

Assim que viu Giovanna deitada, ainda de sapatos, com o braço pendendo para fora da cama –
o que eu rapidamente ajeitei – tirou suas conclusões.

— O que aconteceu com a senhora? — indagou com os olhos arregalados.

— Ela desmaiou. Pode, por favor, trazer algo para que eu tente acordá-la?

A mulher assentiu, saindo apressada. Sentei-me ao lado de Giovanna, pegando sua mão e
sentindo-a fria.

Assim que minha governanta voltou, com um pouco de éter em um pano limpo, fiz Giovanna
cheirá-lo, e ela despertou alguns instantes depois. Parecendo desorientada, olhou de um lado para o

outro e se sentou na cama, antes mesmo que eu pudesse impedi-la.

Dispensei Belamina com um meneio educado de cabeça. Fosse o que fosse que Giovanna iria
dizer naquele momento, não queria que fosse ouvido por qualquer pessoa.

Sua mão pequena foi parar no meu braço, enquanto seus olhos se abriam, grandes e
expressivos, assustados.

— Enzo, não vá a esse encontro com seu pai. Por favor... — suplicou, e meu peito se apertou.

— Não adiantaria nada. Eu teria que falar com ele em outra ocasião. — Peguei a mão dela e a

senti tremer. — Seja o que for que descobriu, vou protegê-la.

Ela não parecia confiar na minha palavra, mas não me senti ofendido. Era compreensível. Toda
a situação podia explodir e atingi-la. Só que eu não ia deixar.

Giovanna continuava pálida, então eu coloquei os braços sob seu corpo, puxando-a
delicadamente para que se deitasse.

— Enzo! Não vou ficar o dia inteiro deitada como se estivesse doente! — exclamou indignada.

— Vai sim. Você desmaiou. Está pálida como papel. Pode descansar. — Então me afastei. —
Vou pedir a Belamina que traga seu almoço aqui.

— Também não vou comer na cama!

— Vou te fazer companhia.

Isso pareceu acalmá-la o suficiente. Tanto que tivemos um almoço quase tranquilo. Eu sentia
que Giovanna estava muito tensa, que não conseguia comer com apetite normal, mas incentivei-a o
máximo que pude. Depois passei algum tempo lhe fazendo companhia, até que adormeceu.

E essa foi a oportunidade que encontrei para sair.

Teria que esperar por meu pai um pouco mais, já que marcamos às seis, e não eram sequer
cinco quando saí, mas seria melhor terminar logo com aquilo. Descobrir o que ele sabia. Com sorte,
ainda seria pouco o suficiente para eu preparar o terreno para que as coisas não prejudicassem
Giovanna.

Seria apenas uma questão de esperar.

***

Acordei sobressaltada, sentindo a cama vazia. Dois pensamentos em minha mente: ambos me
causavam medo, mas era uma dúvida que eu poderia tirar em poucos minutos.
Pulei da cama, descendo as escadas e encontrando Belamina na cozinha.

— Onde está Enzo? — perguntei a ela, observando o relógio na parede: passava muito pouco
das seis.

— Saiu há uma hora mais ou menos, senhora. Posso ajudar em algo? — Belamina perguntou,
sempre solícita.

— Não, obrigada.

Saí de perto dela, correndo para o meu quarto novamente, calçando um par de sapatos e

pegando a minha bolsa. Desci outra vez, dirigindo-me à porta da frente da casa, saindo e me
aproximando de Luigi, que estava no jardim, conversando com o jardineiro, que não fazia um
trabalho excepcional, apenas mantinha as plantas aparadas e apresentáveis. Como percebi no
primeiro dia em que entrei naquela casa, não havia flores por ali.

— Luigi, preciso ir a uma farmácia, pode me levar? — pedi, indo direto ao ponto.

Tanto ele quanto o jardineiro me olharam. Luigi levantou-se, agigantando-se diante de mim.

— Claro, senhora. — Então abriu a porta, permitindo que eu entrasse.

Havia algo de estranho em seu olhar, mas ele era um dos homens de confiança de Enzo, não
era? Se meu marido acreditava que era um bom soldado, o suficiente para ser designado para a
minha segurança, eu poderia acreditar no mesmo.

Peguei o celular dentro da bolsa, na esperança de conseguir falar com Enzo, mas antes de
poder tocar na tela, completando a ligação, percebi que não estávamos seguindo o caminho da
farmácia.

— Luigi... o que...?

— Perdão, senhora. Foram ordens superiores.


Então eu ouvi o som de todas as travas do carro sendo acionadas, o que fez o meu sangue gelar.

— Luigi, o que é isso? O que você está fazendo?

— Entregue-me o celular, senhora — ele pediu, embora sua voz estivesse tomada por pesar,

como se não quisesse fazer nada daquilo.

— Não! Eu não vou fazer isso! Não até que me responda o que está acontecendo! — eu estava
alterada, em pânico.

Mas fiquei um pouco mais, no momento em que, parado em um sinal, Luigi apontou uma arma

na minha direção.

— Obedeça, senhora. Não quero machucá-la.

Ainda hesitei um pouco, mas não tive escolha. Sob a mira de um revólver, minha coragem se
esvaiu, e eu entreguei o aparelho a Luigi, que o guardou dentro de seu bolso.

Sem dizer mais nada, ele fez a divisória entre os bancos da frente e o de trás se erguer,
separando-nos. Deixando-me completamente isolada.

Meu Deus... o que estava acontecendo?

Com as mãos trêmulas, agarrei o banco, tentando controlar meus pensamentos. Seria aquilo a
mando de Enzo? Luigi era um dos homens dele, não era? O rapaz dissera: “ordens superiores”, o que
significara que fora meu marido quem armara uma cilada para mim, como suspeitei desde o início
que iria acontecer.

Eu lhe contei a verdade, abri meu coração, traí meu pai... e ele me enganou.

O carro continuou seguindo, até que paramos em um local ermo da cidade. Eu sabia muito bem
para onde estavam me levando. Um dos galpões.
As travas do carro se abriram, e eu fui arrancada de lá de dentro por Santino, o marido de

Paolla.

— Ah, aqui está a ratinha traidora. — Ele me olhou de cima a baixo com lascívia, e meu
estômago se embrulhou. — Seu maridinho e nosso sogrinho chegarão em breve. Enquanto isso... você

pode dormir um pouquinho.

Ouvi passos chegando por trás e algo me atingiu na cabeça.

Não tive tempo para reagir, apenas fui despencando, tonta e sem noção de nada ao meu redor,

enquanto os braços de Santino me seguravam, embora eu soubesse muito bem que não estava em
segurança.

O que viria dali em diante ainda era um mistério.


23

Servi-me de um uísque no escritório do meu pai, checando meu relógio de pulso e percebendo
que eram quase sete da noite. Se ele demorasse mais quinze minutos, eu iria embora.

Estava nervoso, sem saber o que pensar. Fazia muito tempo que algo não me deixava tão tenso,
porque temia por Giovanna. No dia em que fiz a ligação para o meu pai, eu deveria ter contado a
verdade sobre Guiseppe. Deveria ter dito que ela o delatou e que ganhou minha confiança. Claro que
eu ainda poderia usar aquele argumento, mas não teria o mesmo apelo.

Não iria deixar Giuseppe impune, mas aos olhos de meu pai, eu provavelmente estava fazendo
isso. Dias tinham se passado, e enquanto eu transava com minha bela esposa em uma casa de praia,
um traidor estava à solta; provavelmente o assassino do meu avô.

O que me mantinha mais no controle era a esperança de que meu pai ainda não teria novidades
muito reveladoras para compartilhar, então eu teria tempo de preparar o terreno e consertar as
coisas. Daria meu jeito para deixar Giovanna de fora da situação.

No entanto foi questão de mais alguns instantes até ele chegar.

Abriu a porta com um sorriso, como se estivesse muito satisfeito com algo. Eu conhecia o tipo
de expressão que se desenhava em seu rosto. Meu pai era um sádico, assim como meu avô também
fora, e ele gostava da perspectiva da violência, gostava de encontrar brechas só para precisar
torturar alguém, para matar. Ele se divertia. Era seu lugar comum. Uma forma de prazer.

— Perdão por fazê-lo esperar, meu filho, mas tinha algumas coisas a resolver. — Ele não
fechou a porta.

— Só me deixou mais curioso — tentei parecer blasé, mas curiosidade não era um fator ali.
Era mais do que isso. Era uma necessidade de saber o que estava acontecendo.
— Não vai mais ficar. Só que a boa notícia é que não vou precisar te contar o que aconteceu.

Vou te mostrar. Venha comigo...

Eu queria fazer perguntas. Queria saber, descobrir, fuçar, desvendar. Mas conhecia meu pai.
Ele queria fazer um teatro, o que era muito perigoso.

Segui com ele e entramos em seu carro, com seu motorista. Partimos o caminho todo em
silêncio. Se eu desse um único passo em falso, poderia colocar tudo a perder.

Chegamos a um galpão – um claro sinal de que aquela noite se tornaria violenta. Na maioria

das vezes eu costumava não me importar com isso. Não seria a primeira vez e nem a última. Só que,
daquela, uma estranha intuição me dizia que não seria corriqueiro. Não seria apenas mais uma
resolução de negócios.

Andamos lado a lado, e um soldado abriu a porta pesada para nós. O som dela me fez respirar
fundo. Reconheci como sendo o mesmo de quando eu tinha quatorze anos.

Deveria ser uma coincidência, é claro. Eu não poderia me lembrar daquilo mais de dez anos
depois. Provavelmente havia vários galpões com o mesmo tipo de porta, não?

Provavelmente, sim, mas era exatamente o mesmo lugar. Eu reconheceria em qualquer

momento, em qualquer época da minha vida. O cheiro, a energia, as paredes acinzentadas, as vigas
no teto.

As correntes... as cadeiras prontas para prisioneiros...

E havia duas delas ali.

Em uma, meu sogro... amarrado e amordaçado. Desperto, olhos arregalados.

Ao lado dele, Giovanna…

Seu corpo pequeno estava tombado para a frente, os longos cabelos escondendo seu rosto.
Punhos amarrados para trás, aparentemente desacordada.

— O que diabos vocês fizeram com ela? — rosnei como um animal, pronto para dar um passo
à frente e tirá-la dali, mas fui impedido por meu pai, que colocou um braço à minha frente, criando
uma barreira.

— Sua esposa é uma traidora, Enzo. Descobrimos, e o próprio pai dela confirmou.

Olhei para Giuseppe, sentindo o sangue ferver. O filho da puta entregara a própria filha?

— Vejam só que coincidência, não é? — Meu pai foi caminhando em direção ao meu sogro,

agarrando-o pelo pescoço e inclinando sua cabeça para trás. — Seu homem, Luigi, estava na sua
casa, no dia em que este vagabundo aqui mancomunou tudo com a filha. E ela pareceu aceitar tudo.
Claro que precisei averiguar, porque eu deveria confiar mais no meu consigliere do que em um
soldado, não? Por isso demoramos a chegar onde estamos.

— Ela contou a verdade para mim, pai.

— Quando? — indagou, desconfiado.

— Um dia antes de sairmos para a praia — revelei, voltando meus olhos novamente para

Giovanna.

Percebendo isso, ele foi até ela, agarrando-a pelos cabelos e erguendo sua cabeça. Estava
mesmo desmaiada e havia uma mordaça em sua boca.

— E você não me contou nada? Ela deve ter uma boceta mesmo muito gostosa.

Prendi a respiração no peito, principalmente quando ele sacou uma arma e a encostou na
cabeça dela. Eu não podia fazer nada ou Giovanna morreria.

— Não importa se te contou... aparentemente Giuseppe vem arquitetando essa vingança há


muito tempo. Pelo que me revelou, sua esposa concordou e estava ciente de tudo. Suspeito que isso
inclua a morte do seu avô. Ela deve ter te contado o que lhe convinha. — Tentei ficar impassível,
usando de meu autocontrole, mas meu pai me conhecia muito bem. — Claro que isso ela não te

contou. A bomba no carro foi tudo armado também. Luigi percebeu que era falsa e veio comentar
comigo. Preferiu não dizer nada a você, porque temia que ficasse do lado de Giovanna. — Fez um

gesto para meu soldado, pedindo que se aproximasse. Quando este chegou, meu pai colocou o braço
livre, que não segurava a arma, ao redor de seus ombros, como se ele fosse um filho querido. — Isto
é um homem confiável, sabe? O pai dele era assim também. Daria muito orgulho a ele.

O rapaz pareceu emocionado por alguns instantes, e eu continuava enojado. Não era possível

que aquilo estivesse acontecendo. Giovanna era inocente, eu sabia disso. Ela me contara a verdade.
Não era possível que sua lealdade não fosse levada em consideração.

Eu queria dizer tudo aquilo, mas precisava pensar com mais cautela. Precisava entrar no jogo e
agir com estratégia.

— Mas vamos ao que interessa... Este homem aqui... — Meu pai levou o cano da arma
novamente à cabeça de Giuseppe. — Será levado para outro lugar para ter o que merece. — Usando
o mesmo revólver, ele deu uma coronhada no meu sogro, fazendo-o apagar. A passos lentos,
ensaiados, veio em minha direção, estendendo a arma para mim. — Mas aquela coisinha linda ali... é

sua.

Não peguei a arma.

— Do que está falando? — perguntei, com o cenho franzido, já sabendo que as coisas ficariam
muito complicadas.

— A escolha é sua, meu filho. Ou você dá um tiro na cabeça de Giovanna ou ela vai ser
torturada por dias e jogada em um dos bordeis, se sobreviver. Você conhece muito bem o que
podemos fazer com ela. Um garoto de quatorze anos aguentou, não é? Ela pode aguentar também.
Imagens de tudo pelo que passei naquele mesmo galpão começaram a surgir na minha mente.

Turvas, praticamente cobertas por uma mancha vermelha de sangue – eu só não sabia de quem era

esse sangue. Se meu, do garotinho que eu fui ou se da minha esposa, que teoricamente eu teria que
matar.

— Isso é ridículo! — cuspi as palavras.

— Estou te dando uma escolha, Enzo. Você pode matá-la sem dor. Pode livrá-la de um futuro
terrível.

Eu não podia matá-la. Mas se a deixasse viva, ela sofreria muito mais.

Conhecendo a personalidade de Giovanna – ao menos um pouco, já que não tivemos muita


oportunidade de passarmos um tempo considerável juntos –, ela jamais preferiria ficar viva para o
destino que meu pai estava preparando.

Porra, como eu poderia imaginar minha linda esposa, intocada antes de mim, pequena e
delicada, sofrendo tudo o que eu sofri? Dores, frio, fome, sendo agredida e violentada... Como eu
poderia permitir que isso acontecesse?

Eu era um homem treinado para não sentir medo. Um homem programado para conter minhas

emoções e nunca deixar que sentimentos se sobrepusessem ao que deveria ser feito. E naquela
situação? O que deveria ser feito?

Giovanna preferiria a morte.

Então eu peguei a arma.

Apontei-a na direção dela.

Poderia ter puxado o gatilho, mas hesitei.

Eu a amava...
Era uma péssima hora para perceber isso, mas eu amava aquela mulher. Eu a queria... queria

mantê-la na minha vida, porque acreditava que ela poderia me tornar um homem melhor. Mesmo que

apenas dentro da minha casa e que fora eu continuasse agindo como o monstro que todos queriam que
eu fosse.

A nossa noite na praia, abraçados, me fez perceber que eu poderia ser bom para ela. E isso
começava com a certeza de que precisava pensar em algo muito rápido para protegê-la. Algo para
tirá-la daquela situação. Era meu dever como marido.

Foi então que uma ideia surgiu. Poderia não dar certo, é claro, mas era minha última tentativa.

Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, Giovanna acordou. Abriu os olhos e os voltou na
minha direção.

Tudo o que ela viu foi seu marido apontando uma arma para sua cabeça.
24

Eu estava sob a mira de uma arma.

Ok, pela forma como fui abordada e literalmente sequestrada da minha casa, não era para ser

uma novidade. Estar viva poderia ser considerado uma sorte. Intacta, com exceção da dor na minha
nuca pela pancada que levei? Um milagre.

Mas o que eu não esperava era ver Enzo à minha frente, com um revólver apontado para mim.

Então ele fora o responsável por tudo mesmo. E como não seria? Luigi estava envolvido, e eu

sabia que era um de seus homens de maior confiança.

Ele me dera dias apaixonados, onde me iludi que poderíamos nos tornar um casal bem
sucedido, mas era para me enganar. Talvez fora por isso que insistira para que viajássemos – para
que Marco preparasse toda a teia por trás, nos bastidores.

Eu ia morrer. E não teria sequer a chance de falar, porque a mordaça na minha boca estava
muito apertada.

Ainda assim, esforcei-me para me soltar e murmurei o nome dele. Era confuso, mas audível. Eu

poderia falar mais, poderia...

A esperança durou pouco, porque o filho da puta do marido de Paolla veio até mim com um
pedaço de silver tape, colando-o por cima da mordaça, dificultando ainda mais minha comunicação.

As cordas que atavam meus punhos estavam apertadas também, e eu não teria chance de me
soltar.

— Essa vadia não tem direito de falar nada! — Santino exclamou, e eu resmunguei algo
novamente, mas tornara-se impossível que me entendessem.
O que me restava fazer era tentar me comunicar com Enzo por olhares. Não era possível que

tivesse tanto sangue frio de matar a mulher com quem fizera amor no dia anterior.

Mas que tola eu era... claro que teria.

Ele era um mafioso. Não sentia piedade de ninguém.

Ficamos algum tempo naquele embate. Uma lágrima escapou do meu olho, deslizando pelo meu
rosto e sendo coletada pela mordaça.

Por que eu ainda não acreditava que ele era um mentiroso? Estava mais do que óbvio que me

considerava uma traidora e que me entregara. Estava apontando uma arma para a minha cabeça, pelo
amor de Deus!

— Não! — Enzo abaixou a arma. Consegui soltar o ar que estava preso no meu pulmão,
permitindo-me um momento de alívio. Marco ia dizer alguma coisa, mas foi interrompido pelo filho.
— Quero levá-la para casa. Você não disse que deve ter uma boceta gostosa? Ela tem. E muito.
Tenho o direito, como marido, de fodê-la mais uma vez.

O quê? O que diabos ele estava falando?

Aquele era o mesmo Enzo que passou dias na praia comigo? Que tirou minha virgindade com
tanto respeito e delicadeza?

— Isso é ridículo! — Marco falou. — Ela vai fugir!

Enzo deu uma risadinha sarcástica.

— Ela dificilmente conseguiria fugir de mim. Além do mais... não vai ser jogada aos bordeis?
Imagino que vá ser tratada das piores formas possíveis. Se é uma traidora, quero ser o primeiro.

— Então faça aqui, na nossa frente — Santino falou, com aquela expressão odiosa de malícia,
agarrando meu rosto com violência.
Pobre Paolla. Como era possível que pudesse conviver com aquele homem nojento?

— Eu ainda sou seu chefe, Santino — Enzo vociferou daquele seu jeito cortante, puro poder.
— Não vai me dizer o que fazer. E tire as mãos dela.

Depois da ordem de Enzo, remexi-me na cadeira, virando o rosto para que ele o soltasse.

Por dentro, meu cérebro explodia em uma confusão sem precedentes. Devia confiar em Enzo?
Seria aquilo uma artimanha para encontrarmos uma saída? Ele queria me levar para casa...

Fosse como fosse, se tivéssemos a oportunidade de conversar, eu poderia convencê-lo, não?

Poderia... Deus, eu poderia ter uma chance.

— Vou lhe dar essa chance, Enzo. Mas vamos segui-lo até a sua casa. Vai em um carro
conosco, vai fazer o que tiver que fazer com sua esposa e devolvê-la a nós — meu sogro odioso
falou, e eu estremeci. — Ou vai matá-la.

Enzo ficou quieto. Foi só por alguns segundos, mas jurei que tinha se passado muito mais
tempo. Era a minha vida em jogo ali.

— Ela é minha — Enzo rosnou. — Vou fazer com ela o que eu quiser e por quanto tempo

quiser. É minha própria esposa e me traiu. E se eu mesmo quiser torturá-la? Não quero testemunhas.
Sou seu filho e chefe. Se não confia em mim para isso... — Ele entregou a arma ao pai. — É melhor
que me mate aqui e agora.

Congelei. O que ele estava fazendo? Parecia claramente um plano em meu favor, mas será que
eu poderia confiar?

Marco pegou a arma. Por um momento temi que ele matasse Enzo. Por mais que ainda não
soubesse se deveria e poderia acreditar em meu marido, ele era a minha única chance de sair de toda
aquela história viva. A única oportunidade que eu tinha de encontrar uma escapatória.
— Eu não vou matar meu próprio filho. Faça como bem entender. Mas se ela escapar, vai pagar

no lugar dela. Toda a tortura que sofreria, recairá sobre você.

Eu podia ver a expressão de Enzo quando este olhou para mim. Podia reconhecer a raiva em
seus olhos, mas não sabia se era dirigida a mim ou ao seu pai. Ou à máfia no geral. Ao que éramos

obrigados a suportar.

— Aceito. Ela não vai fugir — ele disse isso olhando para mim, vociferando, e eu continuei
chorando. Cada vez mais.

A afirmação dele de que eu não iria fugir me deixou mais assustada. Eu sabia que ele não me
deixaria escapar, se não quisesse.

— Ok, vamos levá-los para casa, então.

Santino pegou um canivete e desamarrou meus tornozelos, mas não soltou meus punhos, apenas
deixando-os presos às minhas costas. Ele agarrou meu braço e foi me conduzindo para fora. Alguns
homens ficaram no galpão, cercando meu pai, que estava desacordado.

Engoli em seco pensando em todo aquele pesadelo. Horas atrás eu estava...

Deus... no dia anterior eu estava na praia, fazendo amor com o som das ondas a nos rondarem...
Naquele momento eu estava amarrada e amordaçada, sendo guiada para fora de um galpão, no meio
da noite, em direção a um carro.

E em pânico.

Eu estava completamente em pânico. Não podia prever minhas reações, porque elas não
seriam tomadas com algum tipo de lógica.

Tanto que minha única escolha, naquele momento, sem refletir sobre minhas ações, foi soltar-
me de Santino e tentar escapar.
Minhas pernas estavam soltas, e por mais que com as mãos para trás fosse muito difícil correr,

eu tentei.

Porque precisava agir como uma sobrevivente.

Não consegui ir muito longe, no entanto. Foi Santino quem me segurou, puxando-me com força
e me fazendo cair no chão.

— Sua puta traidora! — Ele ergueu o braço, e eu me encolhi, fechando os olhos e me


preparando para a agressão, mas ela não veio. Já com eles abertos, vi que Enzo segurava o punho de

Santino.

— Não. Encoste. A. Mão. Nela — ele falou pausadamente, sem alterar o tom, mas soava
mortal. Pareceu agir em um impulso, mas assim que soltou o cunhado, complementou: — Só eu tenho
o direito de fazer isso.

Então Enzo me tirou do chão, erguendo-me em seu colo.

— Deveria amarrar as pernas dela — Santino rosnou. Meu sogro entrou no carro, deixando a
confusão para trás.

— Vou saber contê-la — Enzo cuspiu as palavras, como se estivesse muito ofendido.

Entrou comigo no carro, e não me colocou no banco. Manteve-me em seu colo, com os braços
firmes ao meu redor. Sentada sobre suas pernas, eu me remexi, mas ele apenas me segurou com mais
força. Seu pai estava sentado no banco da frente, ao lado de Luigi – aquele traidor.

Seus olhos recaíram sobre os meus, e eu sabia que havia súplica em minha expressão. Odiava
a fragilidade que me tomava naquele momento. Odiava ser a donzela em perigo implorando por
clemência, mas estava com medo. Não queria morrer. Não queria morrer pelas mãos do homem por
quem estava apaixonada.
Isso sem contar o resto das promessas que fez.

Queria acreditar que Enzo daria um jeito, que iríamos encontrar uma forma de resolver aquele
problema. Seus olhos pareciam desejar me acalmar. Não importava o que se passava por sua cabeça,
eu sabia que ele não poderia me dizer nada naquele instante. Não com tantas pessoas nos olhando e

ouvindo.

Mas a dúvida me queimava. O que seria de mim dali em diante? Será que Enzo iria me salvar
ou me destruir?
25

O que diabos eu poderia fazer?

Giovanna estremecia nos meus braços e chorava como uma garotinha assustada, e tudo o que
conseguia fazer era apertá-la mais contra mim, desejando confortá-la, mas eu tinha a impressão de
que acreditava que eu a estava tentando conter, exatamente como falei que faria, porque se remexia
como se quisesse desesperadamente se soltar. Como se quisesse fugir.

Quem poderia culpá-la? Até eu estava assustado e não era a pessoa amarrada, amordaçada e
sofrendo ameaças de tortura e morte.

Queria que meu olhar fosse suficiente para convencê-la de que tudo ficaria bem. De que não
importava o que acontecesse, eu a tiraria daquela situação.

Mas precisávamos ser deixados sozinhos primeiro para que eu pudesse conversar e contar o
que tinha em mente.

Chegamos em nossa casa, e eu jurei que nos deixariam em paz. Jurei que poderia libertar

Giovanna e conversar com ela, explicar minhas ideias, por mais desesperadas que fossem. Só que
todos saltaram e decidiram entrar. Era a minha casa, eu poderia proibir qualquer movimento lá
dentro, mas sabia que quem pagaria por isso seria a minha esposa. Precisava dançar conforme a
música, ao menos por um tempo, para salvá-la.

Passamos por Belamina que olhou para nós com olhos arregalados.

— Mas... a senhora... — ela comentou, apavorada, olhando para sua patroa no estado em que
estava, sendo carregada por mim. Isso sem contar os cabelos desgrenhados e os olhos borrados do
choro.
— Sua senhora é uma traidora! — meu pai falou, jogando-se no sofá sem nem ser convidado.

— Sirva um uísque para mim e para o meu genro. Meu filho tem assuntos a tratar em caráter privado.

— O sorriso malicioso que me lançou fez meu sangue ferver. — Não demore, Enzo. Use essa
vagabunda e vamos conversar.

Eu queria esmurrá-lo. Não importava que fosse meu pai, todo aquele circo estava me deixando
irado, mas, novamente, era para a proteção de Giovanna.

Enquanto os dois desgraçados riam, minha mulher se remexia novamente em meus braços,
completamente apavorada. Eu podia ver por seus olhos. Aquela seria uma experiência que ela jamais

esqueceria. Algo traumático. Não apenas isso... não haveria forma de voltarmos ao que nos tornamos
naqueles últimos dias. O início de paz que comecei a encontrar fora perturbado para sempre.

Cansado de tudo aquilo e ansioso por um momento a sós com Giovanna, subi as escadas,
segurando-a firme contra mim. Parti imediatamente para o quarto dela, onde esperava que se sentisse
mais à vontade, mas no momento em que a coloquei no chão, ela tomou uma atitude totalmente
baseada no pânico e tentou correr de mim. Chegou a sair do quarto, e eu precisei pegá-la no meio do
corredor, antes que fizesse uma loucura.

Joguei-a no meu ombro, sentindo-a debater-se como louca e gritar por trás da mordaça. Fechei
a porta, trancando-a, para não haver mais surpresas, e lancei Giovanna na cama.

Ela estava descontrolada. Olhos arregalados e vítreos, olhando para mim como se eu fosse um
monstro. E eu precisaria agir como um naquele momento. Precisaria fazer algo que seria dolorido,
em nome de algo maior. Para salvá-la – era isso que precisava manter em mente, especialmente
porque ela continuava lutando, tentando me chutar e se soltar.

Não conseguiríamos conversar daquela forma.

Girei-a de costas, desatando o nó que a prendia, mas a mantive imobilizada. Ela era uma leoa,
mas era pequena, então consegui contê-la.

— Por favor, eu não vou te machucar. Só que preciso manter a farsa... por favor, piccola,
colabore. — Assim que ouviu o apelido, Giovanna relaxou. — Se eles subirem, preciso improvisar.
Vamos conversar, mas vou ter que te manter contida. Juro que não vou machucá-la. Confie em mim.

— Ela continuou parada. Eu segurava seus dois punhos com uma das minhas mãos, às costas, e ela
permanecia amordaçada. Tudo isso me enchia de raiva, especialmente porque não parava de chorar,
mas, aparentemente, ela me deu um voto de confiança. — Você confia?

Ela balançou a cabeça em afirmativa, então se mostrou bem mais submissa, o que eu odiava,

mas, para a situação, seria conveniente.

Usei a corda com a qual a desamarrei para atar um de seus punhos à cabeceira da cama,
deixando-a sentada. Tirei minha gravata para prender o outro. Ela ficou novamente assustada, mas
tomei seu rosto com as duas mãos.

— Me perdoa. Eu vou resolver as coisas, mas temos que fazer um teatro. Tudo bem? —
Giovanna mais uma vez assentiu, e eu me inclinei, beijando sua testa suavemente.

Eu queria soltá-la. Queria tirar aquela mordaça de sua boca, mas primeiro precisava que me

deixasse falar. Se seu pânico a fizesse gritar um pouco mais alto e alguém lá embaixo ouvisse, se ela
comentasse qualquer coisa sobre o meu plano em um tom menos discreto, tudo iria por água abaixo.

— Presta atenção, Giovanna... Nós precisamos fazer tudo pensado. Eu vou fingir que estou te
mantendo aqui por alguns dias e depois você vai fugir. Vamos dar um jeito de fazer parecer como se
tivesse me drogado e você vai embora. Para bem longe. Então vamos forjar a sua morte. Vou
conseguir uma nova identidade para você, um país novo, vida nova. Vou dar um jeito para que não
lhe falte nada, vai... — Precisava continuar falando, mas ela começou a murmurar algo. Parecia mais
desesperada do que antes, o que chamou a minha atenção. — Se eu tirar a mordaça, promete ficar
calma? Promete falar baixo e não se exaltar?
Mais um assentir. Julguei que poderia confiar nela, como confiou em mim. Então tirei a silver

tape com cuidado e baixei o pano que a mantinha calada.

Ela respirou fundo e engoliu em seco. Demorou um pouco para começar a falar, e eu lhe dei
tempo.

— Ele disse que vai te torturar se eu fugir... — ela falou em um fio de voz. Chorosa,
embargada; estava realmente abalada.

— Antes eu do que você.

Isso a fez parar. Seus olhos vermelhos e marejados focaram-se nos meus, solenes e comovidos.
Minha afirmação mexeu com ela e, para ser sincero, mexeu comigo também. Surpreendeu-me.

No exato momento em que meu pai falou sobre fuga e transferiu a ideia de tortura para mim,
meu pensamento foi rápido: eu poderia suportar novamente as provações no lugar dela. Poderia
imaginar minha pele sendo ferida, poderia me imaginar com novas cicatrizes, mas a delicada
Giovanna ficaria intacta. A mulher que eu amava não seria ferida. Não tocariam nela se eu pudesse
evitar. Não abusariam de seu corpo de nenhuma forma.

Então era isso que significava amar alguém. Estar disposto a se sacrificar para manter o outro

em segurança.

— Enzo... tem uma coisa que você precisa saber. É importante — ela falou com pressa, como
se realmente fosse algo que não poderia esperar.

— O que é?

Giovanna hesitou por alguns instantes, mas soltou a informação que tinha o poder de mudar
tudo:

— Eu acho que estou grávida.


Parte 3
26

Ele não ia acreditar em mim. Por que acreditaria? Não tinha provas ainda. Para ser sincera,
nem sabia se era real, mas a suspeita surgira naquela mesma manhã, quando comecei a me sentir
enjoada. Além disso, teve o desmaio. Não fora apenas por uma crise de pânico. Eu estava me

sentindo... diferente.

Talvez fosse algo intrínseco às mulheres, não? Saber exatamente quando havia um serzinho
crescendo dentro de seus ventres. No momento em que cogitei a hipótese, eu também soube. Não era
uma certeza, mas uma bem-vinda hipótese.

Ao menos até aquele momento.

Se eu estivesse grávida... Estaria o meu bebê em perigo?

Vi Enzo empalidecer diante da notícia. Não foi a forma que esperei lhe contar. Não estando
amarrada a uma cama, com pessoas no andar de baixo de nossa casa esperando como abutres para
me comer viva.

Ele se levantou, começando a andar de um lado para o outro, passando a mão pelos cabelos
dourados, inquieto. Remexi-me na cama, mudando de posição. Não estava presa de uma forma que

me machucasse, porque Enzo se certificou disso, mas não era exatamente uma situação confortável.

— Grávida? — ele perguntou depois de lutar muito para recuperar o controle.

— Eu não sei, Enzo. Ia fazer o teste hoje, mas foi quando tudo aconteceu. Luigi me enganou,
dizendo que me levaria à farmácia, mas me levou direto para o seu pai.

— Filho da puta! — Ele socou a cômoda, e eu me sobressaltei, ainda abalada por tudo o que
estava acontecendo.

— Se eu estiver... — minha voz mal saía. Tinha medo de colocar em voz alta o que mais estava
me assustando.

Em passos largos, Enzo se aproximou da cama, novamente se sentando à minha frente e


tomando meu rosto em suas mãos grandes. Havia uma intensidade latente em seu olhar, algo que
quase me roubou todo o oxigênio. Uma fúria que quase me fazia acreditar que ele seria capaz de

qualquer coisa para me proteger.

A mim e ao filho que possivelmente eu estava esperando.

— Se você estiver grávida, temos uma chance.

Franzi o cenho, confusa.

— Como assim?

— Eu preciso de um herdeiro. Meu pai sabe disso. E ele também quer que eu tenha um filho.
Se for um menino, ganhamos mais tempo ainda.

— Enzo, ele me vê como uma traidora. Pode me matar do mesmo jeito e te obrigar a se casar
com outra mulher que te dará vários filhos.

— Eu não quero outra mulher — ele falou com tanta convicção que cheguei a sentir cada

palavra em cada parte do meu coração. Em cada célula. — E ele não arriscaria a chance. Se você
estiver mesmo grávida, posso fazer uma barganha. Até o bebê nascer, você estaria segura.

— Mas e depois? — Não queria pensar na ideia de fuga, especialmente deixando um bebê para
trás. Deixando Enzo para trás.

Além do mais, vivi minha vida inteira protegida, saindo da casa do meu pai apenas para me
casar. O que eu sabia do mundo? Como viveria sozinha? Especialmente com medo de ser descoberta,
de me encontrarem.

— Até lá poderemos pensar em outro plano. Primeiro precisamos constatar se há mesmo um


bebê. — Balancei a cabeça, em afirmativa. Enzo suspirou, parecendo cansado e mais triste do que o
normal. — Vai ser um período difícil, piccola. Vamos precisar fingir muitas coisas, e você,

provavelmente, vai passar por momentos complicados. Não é o que eu gostaria, mas vou te proteger
o máximo que puder.

Eu estava me mantendo firme até aquele momento, mas comecei a chorar de novo. Sentia-me à
flor da pele, andando na corda bamba, e Enzo conseguia me deixar ainda mais emotiva. Tudo o que
eu queria era acordar e perceber que não passara de um pesadelo. Queria abrir os olhos e me ver na
casa de praia, nós dois sozinhos, em um mundinho só nosso.

— Não chore. — Ele limpou minhas lágrimas, porque eu não poderia fazer isso. — Temos uma
chance. Pense nisso.

— Estou com medo, Enzo — confessei. Recolocando as mãos no meu rosto, ele se inclinou e
me beijou na boca. Apenas um contato terno, sem intenções além de me confortar.

— Sei que está, mas preciso que seja forte. Você aguenta mais algum tempo assim? As
restrições estão machucando? — Balancei a cabeça em negativa. — Como falei, precisamos criar um
teatro. Vou chamar o meu pai aqui e lhe falar sobre a possibilidade da gravidez.

— Mas eu não posso provar! — exclamei, assustada.

— Ainda não. O que quero é que confie em mim e que atue um pouco. Aja como se estivesse
enfurecida, como se tivéssemos brigado.

— Eu não sei se consigo. Não sei se... — Enzo novamente me beijou, calando-me.

— Você consegue. Precisamos disso — ele falou com tanta confiança que eu assenti. Mesmo
não tenho muita certeza.

Mas dei o meu melhor.


Quando meu sogro entrou no quarto, depois de ter sido chamado por Enzo, comecei a me

debater, remexendo-me e fingindo estar tentando me soltar. Gritei, esperneei e me fingi de louca,

provavelmente exagerando mais do que deveria, porque queria que comprassem a minha atuação.
Não era muito difícil fingir que estava nervosa, já que era a realidade.

— Não entendo por que me chamou aqui, Enzo. Fizemos um acordo. Você disse que tinha
intenções com a traidora, mas ela, aparentemente, está intacta. — Como era possível que aquele
homem fosse tão sádico? Como podia gostar tanto de violência? Ele queria me ver machucada,
queria que sofresse.

— Houve uma mudança na história. Giovanna disse que está grávida — Enzo falou com
firmeza.

Meu sogro ficou parado por alguns instantes, olhando para mim, mas logo uma gargalhada
explodiu, ecoando pelo quarto.

— Pensei que você fosse um pouco mais esperto, meu filho. Nunca pensei que um rostinho
bonito e um corpo sedutor poderiam te reduzir a um bobo.

Vi os punhos de Enzo se fechando, mas sua expressão continuou impassível. Era um

autocontrole que eu mesma não possuía.

— É verdade! Eu não disse que estou. Disse que tenho suspeitas — falei com raiva.

— Você não tem direito de se manifestar aqui, menina — Marco voltou-se para mim com
desprezo e depois olhou para o filho: — Ela está mentindo, não acredite.

— Não vou pagar para ver. Se está carregando um filho meu, não vou feri-la. Muito menos
matá-la. — Enzo era um ator muito melhor do que eu. Depois de ter sido tão caloroso comigo,
parecia uma pedra de mármore, frio e sem sentimentos.

— Mas seria o filho de uma traidora. Quem pode garantir que é mesmo seu?
Novamente me manifestei, xingando-o em italiano, ousando, mas Enzo manteve seu personagem

e veio até mim, recolocando a mordaça que ainda estava ao redor do meu pescoço. Seu olhar, na

minha direção, foi como um pedido de desculpas, e o meu, em resposta, foi consentimento. Era o
combinado, não era? Precisava ser forte e suportar as provações por minha segurança e a do possível

bebê que estava a caminho – se é que estava mesmo grávida.

— É meu herdeiro. Meu legado. Se for verdade, quero essa criança. E é do seu interesse
também que eu tenha um filho.

Marco pensou por um tempo, mas logo se manifestou:

— O que faremos com ela enquanto isso?

— Posso mantê-la aqui.

— Como prisioneira, imagino. E espero. Não pode deixar essa moça perambulando por aí. Ela
vai fugir.

— Sim, eu a manterei aqui, neste quarto. Vigiada. — Enzo lançou um olhar para mim, um que
eu já sabia interpretar. Um que dizia que ainda era parte do jogo.

— E se for menina?

— Vou querê-la do mesmo jeito — aquela resposta novamente me deixou emotiva. Ele estava
lutando por mim, como nunca pensei que faria. Como nem mesmo meu pai lutou.

Marco pareceu pensar novamente. Olhou para mim, analisando-me, e eu senti todo o seu ódio.

— Ok, Enzo, vamos fazer do seu jeito, embora eu ainda ache que vamos nos arrepender.

Tínhamos vencido aquela batalha, mas não a guerra.

Porque era uma guerra. Uma muito perigosa, mas que poderia me salvar.
Então eu iria lutar até o fim.
27

Sentia meus músculos todos tensos. A adrenalina costumava me agradar, mas não aquele tipo.
Não quando significava perigo para uma pessoa que era importante para mim.

E eu não costumava me importar com ninguém. Com exceção de Paolla, não havia outros seres
humanos no mundo por quem seria capaz de tudo. Absolutamente tudo.

Até pouco tempo eu não fazia ideia de que Giovanna se tornaria uma dessas pessoas. Só que
ela foi me conquistando mais rápido do que pensei. Se estivesse mesmo grávida... Deus, se estivesse

esperando um filho meu as coisas se tornariam ainda mais graves. Porque eu iria querer proteger os
dois. Com a minha vida, se fosse necessário.

Eu não sabia amar. Tinha desaprendido naqueles dias infernais onde perdi minha inocência,
onde fui transformado em alguém mais cruel. Não era simples para mim. Especialmente quando não
conseguia prever o que aconteceria.

Depois de convencer meu pai a ir embora, levando o babaca do Santino consigo, subi ao
quarto de Giovanna. Encontrei-a na mesma posição, ainda amarrada e amordaçada, dormindo
sentada, provavelmente exausta, e rapidamente senti ódio de mim mesmo por obrigá-la a passar por

tudo aquilo. Era a única forma, mas deveria ter pensado em uma solução melhor.

Fui até a suíte e enchi a banheira, contando cada segundo. Aproximei-me da cama e a soltei
com cuidado, mas mesmo assim ela despertou. Seus olhos estavam pesados, do choro e do sono, e eu
apenas a peguei no colo, tirando-a da cama e começando a levá-la para a suíte.

— Enzo, o que...

— Shhh — pedi com gentileza, enquanto ainda a carregava. Ela encostou a cabeça no meu
peito, sentindo-se segura. Isso era importante para mim, embora o senso de responsabilidade se
tornasse maior.
Coloquei-a de pé e a despi, deixando-a completamente nua. Por mais que meu desejo fosse

algo latente, naquele momento eu não queria seduzi-la. Queria cuidar dela.

Peguei-a novamente e a depositei dentro da banheira, na água morna, o que a fez suspirar.
Provavelmente seus músculos estavam igualmente tensos.

Tirei minha roupa, ficando nu e me enfiando dentro da banheira também, logo atrás dela,
deixando-a entre minhas pernas e apoiada no meu peito. Passei meus braços ao seu redor, e ela
inclinou o rosto, começando a chorar. Não um choro discreto, mas algo compulsivo, um lamento de
partir o coração.

Permiti que chorasse em silêncio, que apenas seus soluços fossem ouvidos em meio ao
cômodo. Eu mal podia imaginar o que se passava por sua cabeça depois das últimas horas. Peguei
seus punhos nas mãos, e eles estavam esfolados. Ela passara muito tempo amarrada, e eu me odiei
por isso.

Estiquei a mão, pegando uma esponja macia, mergulhando-a na banheira e começando a


suavemente esfregar as partes que poderiam estar doloridas, até que ela soltou um leve gemido.

— Desculpa — foi mais um rosnado do que uma palavra em si, mas a raiva não era

direcionada a ela, é claro.

— Não é culpa sua. Você sabe muito bem quem causou tudo isso. O meu pai. Não que o seu
seja muito santo.

Depositei um beijo em seu ombro, parando de usar a esponja nos seus punhos e começando a
esfregar suas costas, na intenção de massageá-las.

— O que vai acontecer, Enzo? Se eu não estiver grávida...

— Amanhã descobriremos — eu a interrompi. Não queria ouvir o que ela iria dizer, porque
precisava de alguns momentos de paz. Queria não pensar no que poderia acontecer dali em diante.
— Que seja... amanhã ou qualquer outro dia. O que vamos fazer? Não quero que você seja

torturado, não quero fugir... — ela hesitou, mas completou, em um sussurro: — Não quero me separar

de você.

Aquilo me surpreendeu. Não que eu duvidasse que Giovanna tinha adquirido sentimentos por

mim, mas gostar do nosso casamento era algo um pouco diferente. Eu lhe ofereci uma nova vida, em
outro lugar, com outro nome. Ela poderia ser livre, viver afastada do mundo violento da máfia e –
por mais que isso fizesse meu sangue ferver e que me deixasse irado ao ponto de perder a cabeça –,
quem sabe, encontrar alguém por quem se apaixonasse.

Ah, merda... não! Mesmo que ela fosse para outro país, outro continente, ainda seria minha. Eu
daria um jeito de ir vê-la, de encontrá-la, de mantê-la como minha esposa, ao menos na prática e em
nossas mentes.

Mas provavelmente eu seria obrigado a me casar novamente, não? Ela não se manteria fiel a
mim, não...

Porra, eu estava pensando longe demais.

— Minha intuição me diz que estou — ela continuou, levando as mãos à barriga. — Acho que

tem um bebê nosso crescendo aqui dentro — havia algum tipo de emoção em sua voz, o que também
conseguiu me tocar. — Quem poderia imaginar que conceberíamos na nossa primeira vez? — Ela riu.
Era bom ouvir aquele som depois de tê-la testemunhado chorar tanto.

— É uma possibilidade — tentei soar mais leve também, já que a conversa parecia estar
seguindo aquele caminho.

— É destino — ela afirmou com convicção, e eu apenas assenti, apertando-a mais contra mim.

Ficamos um pouco em silêncio, e eu a senti pensativa. Não queria que se perdesse em meios
aos demônios que deveriam estar dançando dentro de sua mente, mas também não queria privá-la
daquele momento de reflexão. Para o meu alívio, ela compartilhou:

— Enzo, eu não acredito que foi meu pai que matou seu avô. Não acredito que foi ele que
plantou a bomba no carro onde eu estava, nem mesmo ela sendo falsa. Até onde eu sei, seu plano de
vingança era bem menos elaborado. Não acho que chegaria tão longe.

— As evidências apontam para ele.

Ela se virou nos meus braços.

— Sim, mas seria muito conveniente para alguém que ele fosse tomado como culpado, não?

Talvez ainda consigamos descobrir alguma coisa.

Respirei fundo, passando a mão pelos cabelos dela, já molhados, e tirando-os do rosto.

— Isso não vai salvá-lo. Sinto dizer, mas seu pai já está condenado à morte. E não será uma
morte fácil. — Não era algo simples de dizer a ela também, mas não podia enganá-la. Giovanna era
uma mulher forte, que provavelmente não gostaria de ser enganada, não gostaria que a verdade fosse
suavizada.

— Ele não se importou comigo, então não vou me importar com ele. Mas se provarmos que as

coisas foram menos piores do que seu pai concluiu, talvez eu possa me explicar.

— Podemos tentar. — Beijei-a no alto da cabeça e a virei de costas para mim, fazendo-a
aninhar-se novamente, relaxada. — Agora descanse um pouco. Aproveite o banho. Amanhã será um
dia difícil.

— Sim, será.

Passamos algum tempo ali, sob a água morna, até que senti os dedos de Giovanna enrugarem.
Eu gostaria que ela dormisse, mas provavelmente estava agitada demais. A melhor opção seria levá-
la para a cama, então, saímos juntos da banheira, nos secamos e nos enrolamos em toalhas, partindo
para o quarto.

Vi Giovanna olhar para as amarras que ainda estavam sobre a cama, e eu a senti estremecer.

— Acho que vai demorar para eu perder o trauma de ficar presa. Se tem algum fetiche com

isso, marido, vai precisar esperar um pouco — ela brincou. Não era um tom divertido de todo, mas
algo mais sombrio, um humor irônico, como se precisasse disso para lidar com a situação.

— Posso sobreviver — decidi entrar no jogo e ousei sorrir. Um curvar de lábios discreto, mas
que pareceu deixá-la animada, tanto que levou uma das mãos ao meu rosto.

— Gosto do seu sorriso. — Então sua mão desceu pelo meu peito nu, combinada com a outra,
que foi desenhando um caminho muito perigoso em direção ao meu abdômen.

Agarrei seus dois punhos antes que fosse tarde demais.

— Piccola, não brinque com fogo se não quiser se queimar...

Ela ergueu os olhos na minha direção e havia um brilho profundo de desejo neles. Um
delicioso convite. Só que eu não queria interpretar nada da forma errada. Giovanna poderia estar
abalada ainda, e eu não pretendia me aproveitar de sua fragilidade.

— Eu quero. Quero muito. Mas não quero que me trate como uma florzinha delicada. Esta noite
preciso que seja bruto, Enzo. Que me foda com tanta força que me faça esquecer de tudo. Pode ser
nossa última vez.

Puta que pariu!

O que diabos aquela mulher ia fazer comigo? Seu pedido sussurrado, enquanto suas mãos
abriam minha toalha e a jogavam no chão, fez minha cabeça girar de forma vertiginosa, e se o banho
com ela não tivesse me deixado excitado, aquelas palavras seriam suficientes para um trabalho muito
bem-feito.
Não tive sequer discernimento para hesitar.

Não quis hesitar.

Arranquei a toalha de seu corpo também, agarrando-a pelas coxas em um rompante e

imprensando-a na parede.

— Não vai ser a última vez. Não vai...

Então eu a beijei do jeito que me pediu. Sem delicadeza, sem romantismo. Aquela noite seria
do jeito que ela desejasse.
28

Era exatamente isso que eu queria: ser arrebatada, sem piedade. Se Enzo fosse romântico
comigo naquela noite, eu não suportaria. Eu queria que me desse prazer até que eu desmaiasse em
seus braços, até que perdesse a noção. Se o sexo violento que eu sabia que ele podia fazer comigo

fosse capaz de apagar memórias, eu nem me importaria que me machucasse.

Ele me faria esquecer. Ao menos pelos instantes em que durasse, eu pensaria apenas em seu
pau entrando em mim, em seus dedos, em sua boca, nos sons que ele fazia quando estava gozando.

Com força, fui imprensada contra a parede. Entrelacei minhas pernas em sua cintura,
prendendo-me com força, como se tivesse medo que me soltasse e desistisse. Mas uma parte bem
grande de sua anatomia me dizia que era um caminho sem volta, que ele não conseguiria não ir em
frente.

O beijo não começou lento. Não começou gentil. Foi como ser pega no olho do furacão,
tamanho o frenesi e a loucura que me tomaram. Enzo beijava naturalmente bem, com a intensidade
certa, a lentidão sensual, e me pegava de uma forma que me agradava. Naquele momento parecia
outro homem. Não que eu não reconhecesse a boca e a língua do meu marido. O único homem que me

beijara e que me tivera por inteiro. Só que ele parecia um selvagem.

Tornamo-nos uma confusão desenfreada de gemidos, suspiros e respirações ofegantes. Agarrei


seus cabelos com as duas mãos, mantendo sua cabeça próxima à minha para que não nos
desconectássemos.

Com a força de seus braços, ele me ergueu mais alto, só para que pudesse me penetrar. E eu já
estava pronta. Com apenas um beijo, minha boceta ficou molhada o suficiente para que Enzo
deslizasse dentro de mim sem dificuldade.

Ele não pediu passagem, não me alertou. Só começou a se movimentar e a me movimentar,


estocando de um jeito que poderia ser ilegal. De um jeito que me fez gritar ao senti-lo tão fundo que
parecíamos um só.

Subitamente ele saiu de dentro de mim, começando a caminhar, ainda com a boca presa à
minha, levando-me até o meu balanço. Colocou-me sentada nele e abriu minhas pernas, apoiando uma

em cima de cada braço, também me fazendo segurar nas cordas que o prendiam no teto.

Ajoelhou-se à minha frente, iniciando um sexo oral, do jeito que já tinha aprendido que eu
gostava. Estava completamente aberta para ele, exposta. Era um nível de intimidade a mais. Quando
ele ergueu ambas as mãos para os meus peitos, girando os mamilos ao mesmo tempo nos dedos, eu

gritei e me remexi, arqueando o corpo.

— Mais, Enzo. Mais! — pedi, e ele atendeu. Seus lábios sugaram meu clitóris com força,
enquanto os bicos dos meus seios eram puxados. O balanço se movimentava sob mim bem pouco,
devagar, mas eu tinha a sensação de estar flutuando.

Tudo era tão incrível, tão excitante, tão forte, que eu gozei pela primeira vez.

Esperava que acontecesse novamente naquela noite.

— Sempre soube que esse balanço teria utilidades — ele falou, levantando-se e limpando a

boca com o polegar, com o ensaio de um sorriso malicioso no rosto. Era mais erótico do que todo o
resto, especialmente por tê-lo nu e excitado na minha frente. Para completar o pacote, ele lambeu o
próprio dedo, como se estivesse aproveitando cada gota de uma sobremesa deliciosa.

Era de tirar o fôlego.

Inclinou-se sobre mim, tomando minha boca, trazendo meu próprio gosto aos meus lábios,
enquanto eu envolvia as pernas em sua cintura novamente, mas apenas para pousá-las no chão.
Minhas mãos foram parar em seu peito, empurrando-o, o que ele entendeu como um sinal.

Fiz Enzo caminhar de costas até a cama, onde o lancei. Então foi minha vez de lhe
proporcionar um sexo oral, desejando deixá-lo tão louco quanto fiquei.

Levei uma das mãos até a base enquanto a outra acariciava seus testículos, deixando a língua
viajar por toda a extensão, circulando a glande e depois tomando-o todo na boca, até a base,
sugando, chupando e sentindo-o quase na minha garganta.

Enzo grunhia, e isso me garantia um prazer indescritível. Um homem poderoso como ele se
rendendo daquela forma me fazia sentir como se o poder tivesse sido transferido para mim, ao menos
durante nosso momento.

— Porra, Giovanna! — ele rosnou e tentou sair da posição em que estava, mas não deixei.
Claro que em uma batalha de forças eu perderia, mas Enzo não fez muito esforço para me vencer.

Só que isso durou pouco tempo, porque ele logo trocou nossas posições e me deixou apoiada
na cama, de bruços, mas com os pés no chão. Empinou meus quadris, agarrando-os, e me penetrou
com força.

— Você pediu assim, não pediu, piccola? Vai aguentar? — ele falou, estocando novamente, de
uma forma que me fez berrar ao ponto de toda a casa ser capaz de ouvir.

— Vou... eu vou...

— E se eu fizer ainda mais forte? — Meu Deus, era possível?

Bem... Enzo mostrou que sim. Era um homem grande em todos os sentidos e tinha um
condicionamento físico invejável. E era incrível na cama.

Fora dela também. Em muitos cantos da casa.

Eu não conseguia parar de gemer e sabia que novamente ficaria dolorida, mas até a dor era
prazerosa. Tudo atingiu o ápice quando ele combinou as investidas com estímulos a um dos meus
seios e ao meu clitóris.
Sem parar. Sem piedade. Era a coisa mais deliciosa que eu já tinha feito.

Só que Enzo não me deixou gozar pela segunda vez. Saindo de dentro de mim, girou-me,
pegando-me pela cintura e literalmente me jogando na cama. Mal consegui me ajeitar sobre o colchão
e ele já veio, novamente, por cima de mim. Agarrou algumas almofadas, colocando-as sob meus

quadris, elevando-me. Então pegou minhas duas pernas e as posicionou em seus ombros largos.
Nesta posição, quando se esgueirou para dentro de mim novamente, conseguiu ir ainda mais fundo.

Era insano.

Ajoelhado na cama, estocou e estocou, deslizando para dentro e para fora com facilidade do
tanto que eu estava molhada.

Como a pura perfeição, nós dois gozamos quase ao mesmo tempo. Assim que eu fui, ele me
seguiu, liberando-se dentro de mim.

Instantes depois, com os dois jogados sobre a cama, não pude conter um comentário:

— Espero que já tenhamos feito mesmo um bebê. Acho que não foi um sexo muito propício
para me tornar uma mãe.

— Talvez você já seja uma mãe. Talvez já sejamos pais... — Ele levou a mão à minha barriga,
acariciando-a.

Se não fosse o terror que nos rondava, no momento em que viramos o rosto um para o outro e
nos beijamos, mais calmos, mais suaves, eu poderia dizer que estávamos felizes.

Mas apenas o destino poderia determinar o que seria de nós dali para frente.
29

Eu me sentia uma ré em meio a um julgamento por assassinato. Enzo, Marco e Santino


aguardavam, à noite, com o resultado do exame de sangue que fora coletado em nossa casa naquela

manhã e que fora enviado pelo laboratório. O papel parecia brilhar nas mãos do meu marido,
enquanto todos nós esperávamos que abrisse o envelope, dentro do escritório. Por um milagre não
me amarraram a uma cadeira, mas havia dois homens do lado de fora, como se eu fosse capaz de
escapar dos que estavam do lado de dentro.

Minha inveja pelo autocontrole de Enzo era imensa. Eu sabia que estava tão ansioso quanto eu,
porque aquele resultado definiria o resto de nossas vidas. Se não estivesse grávida, o que fariam
comigo? Não teríamos sequer tempo de bolar um plano. Passamos a noite anterior inteira pensando,
mas nada nos surgiu.

Dependíamos inteiramente da sorte.

Só que ela parecia estar do nosso lado, porque o olhar que Enzo me dirigiu foi resposta para
todas as minhas dúvidas.

— Positivo — foi o que ele disse. Eu podia sentir o alívio em sua voz, por mais que ele fosse
perito em mantê-la inflexível quando queria.

Meu sogro e meu cunhado não disseram absolutamente nada. Entreolharam-se, quase
chateados, porque obviamente queriam sangue. Queriam me arrastar dali para algum lugar onde
pudessem me matar.

Que tipo de gente era aquela? No fundo, eu sabia que por mais que Enzo tivesse a mesma
natureza, havia algo de bom em seu caráter. Não podia imaginá-lo sentindo prazer em fazer o que
fazia. Era o necessário.
Ou talvez eu estivesse buscando uma desculpa para defendê-lo.

— Bem, acho que vamos ter que esperar um pouco. Fico feliz em saber que terei um neto,
embora as origens dele não sejam as melhores. — Que coisa horrível de se dizer. Pior ainda de se
ouvir, mas eu precisava aguentar calada. Dali em diante precisaria bancar a submissa ou as coisas

ficariam ainda piores para o meu lado. — Seria uma boa ideia mantê-la em algum lugar seguro, Enzo.

— Um cativeiro? — não consegui conter a minha língua, sentindo a indignação na minha voz.

— Seria muito mais do que você merece — Santino cuspiu, corroborando cada vez mais pelo

ódio que eu sentia dele.

— Ninguém vai tirá-la daqui — Enzo afirmou, em minha defesa. Eu conhecia suas intenções,
embora ele estivesse sério e se mostrando indiferente. — É minha mulher e vai me servir como tal
até o fim. Além disso, posso mantê-la sob vigilância nesta casa.

— Se ela fugir com seu filho... com meu neto...

Imaginei que viria mais uma ameaça como a anterior, de que Enzo sofreria as consequências de
uma imprudência da minha parte, mas a porta do escritório foi aberta em um rompante, e eu ouvi uma
voz feminina gritando, revoltada.

— Isso é ridículo! Ela não é uma criminosa! — Era Paolla. Seu rosto bonito estava
transtornado de raiva, seu cenho franzido, e ela parecia pronta para explodir.

— Paolla! O que está fazendo aqui? — Santino vociferou, como se tivesse alguma posse sobre
ela.

— O que estou fazendo aqui? O que acham? Vim fazer uma visita à minha cunhada, e Belamina
me contou tudo. Não é possível que vocês acreditem que Giovanna é uma traidora!

— Você não deveria ter vindo! Volte para casa, Paolla. Seu lugar não é aqui!
— Não! — Paolla enfrentou o marido, e eu a admirei ainda mais.

Santino deu um passo à frente, e eu temi o pior, mas Enzo foi mais rápido e se colocou na frente
da irmã.

— Vai se arrepender do que está pensando. — Aquele era o tom de voz que ele usava com seus
inimigos, com certeza. E qualquer um que machucasse as pessoas que Enzo amava se tornava um
inimigo. Ele podia se achar um monstro, mas era uma alma protetora, bem no fundo.

Fiquei olhando para ele, sentindo meu coração inflar no peito por cada atitude que o via

tomando. Eu o amava. Só precisava de um pouco de coragem de lhe dizer isso. Não esperava
retribuição, porque não era do tipo que se declarava, nem mesmo para uma esposa, mas fui
interrompida pela mão de Paolla que segurou meu braço, me puxando.

— Quero conversar com Giovanna. — Marco ia dizer alguma coisa, já que Santino ainda
estava bloqueado por Enzo, mas minha cunhada ergueu um dedo em riste. — A sós!

— Não vai ficar sozinha com esta mulher, minha filha.

A sensação de ser tratada como uma criminosa era horrível. Apesar de tudo, eu era, de fato,
uma traidora. Ao menos por um tempo, alimentei a loucura do meu pai.

— Se quiser, coloque um segurança na porta. Sei gritar, mas não vou precisar.

— Paolla, comporte-se! — Santino ordenou, impostando a voz. — Em breve você será a filha
do Don e esposa do consigliere. Precisa agir como tal.

— O quê? — Enzo pareceu ter a mesma reação que eu, tanto que perguntamos juntos.

Eu sabia que meu pai ainda estava vivo. Sabia que não o deixariam morrer tão fácil depois de
uma traição. E não era tola de imaginar que esperariam sua cadeira esfriar para colocar outra pessoa
em sua posição. Ainda assim... Santino?
— Isso é verdade, pai? — Até mesmo Paolla parecia abismada. E era marido dela.

— Foi uma ideia que eu tive por um momento, mas não vai se concretizar, Santino. Sinto muito.
Tenho uma pessoa em mente. Um velho amigo, mais experiente, que já provou seu valor mais de uma
vez. Ele e seu filho, aliás. Estão no comando dos negócios em Miami, mas ele está disposto a vir

morar na Sicilia se eu nomeá-lo.

Eu imaginava de quem ele estava falando. Sandro Cardinali – meu pai sempre dizia que temia
que este homem tomasse seu lugar por sua proximidade com Marco. Matteo, seu filho, era um pouco
mais velho do que Enzo, e era um capo implacável.

— Do que diabos você está falando? — Santino reagiu de forma passional. Seus olhos negros
estavam arregalados, como um insano.

— Não me leve a mal, Santino — Marco falava casualmente, enquanto abria um estojo de
charutos que estava sobre a mesa de Enzo, avaliando-os antes de pegar um com a calma de quem
estava no poder —, você é um bom homem, confio em você, mas não sei se seria um bom
consigliere. É jovem demais e um pouco imprudente.

— Imprudente? — ele cuspiu as palavras. Olhei para Enzo, que estava afastado de mim e vi

que levava as mãos ao cinto. Estaria ele armado?

E como não estaria? Provavelmente se preparara para o caso de o exame de gravidez mostrar
que não havia um bebê na história. Ele seria capaz de matar o próprio pai por mim?

Isso fez o meu peito apertar, principalmente porque eu mesma tinha tomado meus cuidados sem
que ele soubesse.

Só que eu precisava ficar em alerta, porque outra pessoa sacou uma arma. Santino. E ele a
apontou direto para Marco.

— Depois de tudo o que eu fiz? Eu te coloquei onde está agora! Tirei Don Arturo da jogada
para que pudesse chegar ao topo.

Levei a mão à boca, chocada. Ele estava...

Meu Deus, ele estava confessando o assassinato do avô de Enzo!

Todos estavam chocados, até mesmo Marco, que parecia não saber. Seu genro tramara tudo por
suas costas.

— Não vai me trocar por outro. E essa merda desse bebê não vai nascer. Eu serei consigliere e
um filho meu será o futuro chefe. Matei Don Arturo e posso matar quem eu quiser.

Ele estava completamente descontrolado. Perdendo a cabeça. Àquela altura, Enzo já estava
com a arma apontada também. Percebendo isso, Santino foi rápido em atirar em Marco, bem no meio
do peito, e vir até mim, agarrando-me e colocando-me contra o seu peito, usando-me de escudo. O
cano da arma colado à minha barriga.

— Abaixe a arma, Enzo, ou eu mato os dois. Sua mulher e seu filho.

E eu sabia que ele não estava mentindo.

Ele não tinha mais nada a perder.


30

O grito da minha irmã no momento em que nosso pai foi atingido me puxou mais para a
realidade do que o tiro em si. Aquilo estava mesmo acontecendo? Como aquele caos podia ter se

instaurado dentro da minha própria casa?

Só que tudo ficou ainda mais desesperador quando vi Giovanna nas mãos daquele desgraçado.
Com uma porra de uma arma apontada para seu ventre, onde meu filho crescia. Um filho que eu tinha

acabado de descobrir que existia.

Santino estava fora de si. Sempre soube que era um homem ganancioso, que queria mais do que
poderia ter. Seu casamento com minha irmã fora completamente de caso pensado, e eu nunca
concordei com a união de nossas famílias. O pai dele não era muito melhor do que o filho, e eu sabia
que nada de bom viria dali.

Mas ele tinha matado meu avô e acabara de atirar no meu pai.

— Pai! Por favor... — Paolla choramingou.

Eu entendia que Paolla tivesse tanto carinho por nosso pai, porque ela sempre foi a princesinha

da casa. Como fora agraciado com um filho homem, um primogênito, herdeiro do legado, a menininha
que viera em seguida, dois anos depois, tornou-se seu anjinho. Ele a mimava, e eu mal conseguia
entender como Paolla não se transformara em uma moça voluntariosa e menos altruísta.
Provavelmente fora um bom trabalho de educação das babás que a criaram.

Comigo, as lembranças eram menos agradáveis. Eu tinha sentimentos pelo meu pai. Era sangue
do meu sangue, meu Don, o homem que me ensinou tudo o que eu sabia, para o bem e para o mal.
Mas não podia dizer que o amava.

Ela tirou o casaco que usava e começou a pressionar a ferida.


— Santino, por favor... precisamos chamar uma ambulância... — ela pediu, como se tivesse

algum poder sobre o marido.

— Ninguém vai chamar nada. O velho vai morrer, e eu vou levar essa puta aqui comigo. Vocês
vão me deixar sair, ou vou explodir a barriga dela com esse bastardo aqui dentro!

Eu sabia que ele seria capaz disso. E, certamente, se levasse Giovanna como refém, as portas
da casa seriam abertas. Só que eu não podia permitir que a tirasse dali. Se isso acontecesse, ela e
meu filho estariam perdidos para sempre.

— Vamos lá, Santino, seja razoável — tentei negociar, embora imaginasse que não cederia.
Estava completamente perdido. Se soltasse Giovanna, eu o mataria ou ele seria pego por um de
nossos soldados. Um dos soldados de meu pai. Ele matara meu avô e atirara contra seu novo Don. O
tipo de tortura ao qual ele seria submetido era irreal.

— É melhor você ser razoável, Enzo. Eu vou embora daqui, mas sua mulher vai comigo.

Pelo canto do olho, vi soldados se aproximando. Havia três deles na porta, e Luigi se
apressava para ajudar Paolla com o meu pai.

Os homens foram entrando no escritório, posicionando-se estrategicamente, mas com cuidado,

porque Giovanna estava em perigo.

— Você está acabado. Para onde quer que vá, nós o encontraremos, sabe disso. Vai ser caçado
e quando for encontrado, vai se arrepender de não ter morrido aqui mesmo, agora.

Eu queria ter o prazer de fazê-lo sentir dor com minhas próprias mãos. Não importava quem
iria imobilizá-lo, eu queria me encarregar dele pessoalmente depois.

— Você não sabe de nada, Enzo. Se acha que sua iniciação foi uma merda, é porque não viu o
que o meu pai foi capaz de fazer. O tipo de dor que eu tive que suportar. Mas não existe dor maior no
mundo do que ver quem a gente gosta sofrendo, não é? — Ele agarrou Giovanna com mais força. —
E eu sei que você gosta dessa putinha aqui. De repente poderia ser uma boa ideia levá-la e eu mesmo

torturá-la. Estuprá-la cem vezes e te mandar vídeos. Agora não tenho mais nada a perder mesmo, não

é? — Ele riu. O filho da puta riu. — Não era para as coisas terem acontecido assim, sabe? Mas
talvez, no final das contas, meu pai estivesse certo. Eu não sei controlar as minhas emoções. Não

como você.

Não, ele aparentemente não sabia. E se era bem treinado para agir em momentos de tensão,
como dizia ser, havia algo de errado, porque eu vi o exato momento em que Giovanna movimentou-se
suavemente e tirou uma faca afiada do bolso de sua saia. Ela foi rápida, precisa, e a lâmina foi parar

bem na mão do filho da puta que segurava a arma.

Ele a deixou cair, mas não soltou Giovanna de imediato.

— Puta! Vagabunda! — gritava, balançando a mão ferida. Com o outro braço, empurrou
Giovanna, fazendo-a bater de encontro com a mesa.

Foi seu erro duas vezes. Primeiro, porque me deu a oportunidade de atirar. Só que eu o fiz na
coxa, de caso pensado. Ele não podia morrer ali, tão fácil.

Um dos soldados rapidamente pegou a arma de Santino, tirando-a de seu alcance. Por mais que

estivesse caído no chão, abatido, poderia nos surpreender.

— Não o matem. Não ousem matá-lo — ordenei, com firmeza, enquanto me aproximava de
Giovanna.

Ela estava desmaiada, provavelmente tinha batido com a cabeça. Puxei-a para o meu colo,
deixando a arma um pouco de lado e confiando que meus soldados dariam conta da situação. Eles
iriam conter Santino, enquanto eu cuidava da minha mulher.

Tentei reanimá-la, porque não via nenhum machucado evidente, principalmente na cabeça, mas
tinha a impressão de que ela batera com a nuca, o que poderia ser ainda mais preocupante.
— Senhor, a ambulância já está a caminho — Luigi me falou, alertando-me. Eu sabia que ele

tinha chamado para o meu pai e que não poderiam levá-lo junto a Giovanna.

Eu não teria paciência para esperar. Não quando sentia a adrenalina correndo pelas minhas
veias de uma forma tão assustadora.

Tirei Giovanna do chão em um rompante, ajeitando-a nos braços e começando a sair do


cômodo.

— Luigi, venha conosco. — Então me virei para a minha irmã, esperando que ela fosse forte o

suficiente para encarar pai e marido feridos. Este último, prestes a ser levado para um galpão e
torturado até a morte. Por seu próprio irmão. — Paolla — chamei, e seus olhos vermelhos se
voltaram para mim —, você segura as pontas por aqui?

Eu precisava dela. Era uma autoridade ali, de certa forma. Por mais que na máfia mulheres não
fossem muito levadas em consideração como líderes, eu só tinha a ela, ali, de minha total confiança.
Por isso, quando a vi assentir voltei-me para os homens que sobraram na sala:

— Obedeçam à senhora Dallaggio. — Ela usava o nome do marido, é claro, mas sempre seria
uma Dallaggio. Era uma forma de que a vissem como sendo parte da família que os governava.

Ela pareceu surpresa por alguns instantes, mas logo ergueu a cabeça, altiva, mesmo com a
roupa toda manchada de sangue, as mãos ainda pressionando a ferida de nosso pai.

— Cuide de Giovanna — ela pediu, e eu balancei a cabeça, saindo do escritório com Luigi em
meu encalço.

Partimos em direção ao carro e, durante o caminho, ele começou a falar:

— Precisa de ajuda, senhor?

Eu sabia que ele estava agindo com boas intenções, mas não conseguia esquecer que fora o
responsável por colocar Giovanna em uma situação complicada.

Se eu fosse muito sincero, concordaria que fora leal de sua parte, porque ele poderia pensar
que ela estava traindo a mim também. Meus sentimentos por aquele soldado eram muito dúbios no
momento.

— Não, obrigado. — Ninguém ia tirar Giovanna de mim naquele momento. Nem nunca.

Se meu pai sobrevivesse, eu o faria entender isso.

— Senhor, me perdoe. Eu não tinha a intenção de causar tanto dano. — Havia humildade em

seu tom de voz. Claro que eu sabia que ele não era um idiota. Caso Marco morresse, eu passaria a
ser o Don. Teria muitas decisões a tomar, porque precisaria de um chefe e um consigliere que não
fossem da família, então teria que nomear pessoas de fora, e Luigi, talvez, estivesse interessado em
um cargo mais alto. Como capo, talvez.

Mas não era o momento certo para pensar nisso. Meu pai ainda estava vivo, e eu precisava
torcer para que sobrevivesse. Mesmo que não fosse o melhor dos homens, mesmo que estivesse
ameaçando a segurança da minha esposa, eu precisava ter em mente que éramos uma família.
Precisava respeitá-lo. Dentro da máfia, isso era tão importante quanto respirar.

Entrei com Giovanna no carro e partimos para o hospital, enquanto eu a mantinha nos meus
braços, esperando que estivesse segura, assim como o meu filho.
31

Meu pai faleceu naquele mesmo dia, horas depois, a caminho do hospital. Não conseguiu
sequer dar entrada na emergência, por mais que a ambulância tivesse chegado rápido.

Era impressionante pensar como a vida podia se esvair em um segundo. Como um ser humano
poderia estar vivo e cheio de vigor, mas ter a morte à sua frente de forma completamente súbita. Eu
jurava que meu pai teria uma vida longa, que eu não precisaria ocupar seu posto tão cedo, mas o
destino tinha o poder de mudar tudo.

Ao mesmo tempo em que o luto preenchia meu peito – por mais que não conseguisse realmente
sofrer pela perda – o alívio também me dominava. Giovanna estava bem, apesar dos pesares. Nosso
filho – ou filha – estava intacto. A gravidez, aparentemente, seguiria tranquilamente, mesmo com o
susto.

Queria ajudar Paolla com toda a situação do meu pai, mas ela, como uma rocha, pedira que eu
fosse para casa e cuidasse da minha esposa. Sandro Cardinalle fora acionado e prometera chegar à
Sicilia o quanto antes para nos ajudar – e, claro, barganhar por sua nova posição. Provavelmente
estava ansioso para se tornar consigliere, e, talvez, para indicar seu filho para a posição de chefe.

Seria o mais lógico, não?

Bem, eu realmente teria muitas decisões a tomar. Mas. naquele momento, estava ajudando
minha esposa a colocar uma camisola para se deitar. Acomodei-a na cama e me sentei à sua frente,
esperando que aquele dia longo acabasse logo.

— Eu não queria que ele morresse, Enzo. Sinto muito. Era seu pai — Giovanna falou baixinho,
parecendo cansada. E como não estaria?

— Não era exatamente um bom pai. E sei que ele lhe causaria muito mal. Não estou feliz por
tê-lo perdido, mas só de pensar que não farei com nosso filho, se for um menino, o mesmo que fez
comigo, acho que poderia dizer que fico aliviado. — Fiz uma pausa, estudando seus olhos. Ela me

olhava fixamente, parecendo me analisar também. Achei importante explicar: — Não sou um homem

bom, piccola. Você sabe disso. Sei que me procurou no velório da sua mãe, porque não precisava
fingir sofrimento ao meu lado. Estou te pedindo a mesma coisa. Permita-me não ser hipócrita.

Amanhã, no velório, provavelmente terei que interpretar um papel, mas aqui não quero máscaras.
Quero ser apenas quem eu sou com você.

Ela hesitou um pouco, ainda me observando. Temi que pudesse estar decepcionada, mas não
era como se eu tivesse mentido ou criado um personagem para que se apaixonasse por mim. Não a

seduzi com ilusões ou inverdades. Sempre demonstrei que havia uma profunda escuridão dentro de
mim. Ela sabia disso quando me disse sim no altar.

Não que tivesse escolha. Nosso casamento fora arranjado, e ela fora obrigada a me aceitar
como marido. Mas queria acreditar que funcionávamos juntos, que o que sentíamos era real.

Então sua mão encontrou meu rosto em um toque suave, e eu supus que me compreendia.

— Você é um homem bom, Enzo. Ao menos até onde o mundo em que você vive permite que
seja Ele não era. Nunca poderia julgá-lo, e quero que nunca finja quando estiver comigo. Amo quem

você é, não uma imagem de uma promessa que nunca me fez.

Ela... me amava?

Aquilo era novo. Sabia que estávamos apaixonados, que os sentimentos eram correspondidos,
mas não imaginava que pudessem ser tão profundos. Ao menos os dela. Eu conhecia os meus.

Peguei a mão que me acariciava e levei-a à boca, beijando-a.

— Eu também te amo, piccola. E fico feliz que possamos ser nós mesmos um com o outro.

— Sempre — ela sussurrou, e eu me inclinei para beijá-la, sabendo o quão perto estive de
perdê-la de mais de uma maneira.
Dormimos juntos, abraçados, e acordamos para o velório. Eu sabia que Giovanna estava triste,

porque não teria sequer o direito de fazer o mesmo com seu pai, já que, pelas informações que me

passaram, ele estava morto e fora enterrado naquela madrugada, em uma sepultura quase de indigente
– como acontecia com os traidores –, mas ele também não fora o melhor dos pais com ela.

Seguimos o cortejo, enlutados, e minha maior preocupação era com Paolla. Ela seguia ao lado
da babá de Kiara, que carregava a neném para sua patroa, sem derramar uma lágrima, mas com uma
expressão visivelmente devastada.

— Vá falar com ela — Giovanna sussurrou, incentivando-me e apontando na direção da minha

irmã com a cabeça, enquanto uma de suas mãos tocava o meu ombro.

— Não temos mais nada em comum. Não é fácil recuperar uma relação tão desgastada.

— Vocês perderam o mesmo pai.

— Nós víamos o mesmo pai de formas diferentes. Eu certamente não posso mensurar o
sofrimento dela. Especialmente por causa de Santino também.

— Não é como se ela amasse o marido. — Giovanna apertou o ombro que segurava com
carinho. — Vamos lá, Enzo. É sua irmã. Precisa de você.

— Você é mais amiga dela do que eu.

— Ela precisa do irmão. — Então ergueu as duas sobrancelhas, de forma incisiva: — Vá.

Bem, ela estava certa. Eu precisava começar de alguma forma e, provavelmente, uma perda em
comum poderia nos ligar novamente. Além do mais, naquela noite eu participaria de uma sessão de
tortura contra seu marido. Ela sabia disso. Eu precisava... dizer alguma coisa.

Apressei um pouco os passos para aproximar-me dela. Paolla sentiu-me ao seu lado, mas não
me olhou. Deveria ser um indicativo de que não estava muito feliz com minha companhia, só que foi
a primeira a dizer alguma coisa.

— Não tente me confortar, Enzo, por favor — ela pediu, firme.

— Eu não saberia como fazer isso.

— Ótimo. — Paolla respirou fundo, prosseguindo: — Eu deveria odiar nosso pai por ter me
obrigado a me casar com um homem como Santino. Por tudo o que ele me fez passar, mas não
consigo. Eu o amava.

Sempre soube que Paolla amava nosso pai, mas não sabia de algumas outras coisas. A raiva

com que mencionou o nome de Santino me fez tirar várias conclusões. Nenhuma delas muito
agradável.

— Ele te machucava? Santino?

O silêncio foi resposta suficiente. Meu sangue borbulhou nas minhas veias, de ódio.

— Eu deveria ter sabido — tentei controlar o sentimento na minha voz, mas era em vão. Eu
queria que Paolla soubesse que eu estava arrependido.

— Então pense nisso enquanto o estiver torturando hoje à noite. E pense nisso também porque

tenho um pedido a fazer. — Nós dois paramos de caminhar, e Paolla olhou para mim com aqueles
enormes olhos azuis, tão parecidos com os meus. — Não quero mais me casar, Enzo. Não me force.
Serei uma viúva, criarei minha filha e não precisarei de um homem para isso.

Era triste pensar que uma mulher tão jovem e bonita estivesse decidida a nunca mais tentar se
unir a alguém. Fosse como fosse, eu precisaria acatar sua decisão.

E foram suas palavras que me fizeram companhia quando entrei no galpão naquela noite;
quando vi Santino nu, acorrentado a uma viga do teto, com a perna estraçalhada pelo tiro, mais morto
do que vivo.
Foi na minha irmã que pensei quando comecei a primeira sessão de tortura que me deu prazer.
32

UM ANO E DOIS MESES DEPOIS

Nós vivíamos em um mundo sombrio de violência. Havia noites em que Enzo voltava para casa

e se enfiava em seu escritório, e eu só o via de manhã. Ele pensava que eu não sabia, mas tinha
vergonha de certas coisas que precisava fazer. Do sangue que, embora não manchasse sua camisa,
porque ele passara a ter pessoas para fazer o trabalho sujo, maculava sua alma. Se isso o fazia sentir
melhor, continuaria fingindo que suspeitava de nada. Fingindo que acreditava que ele apenas não

pudera voltar para casa, mesmo quando eu me levantava de madrugada e via a luz do cômodo acesa.

Ele tinha se aberto um dia, contando sobre a violência que sofrera quando ainda tão menino, e
esperava que fizesse isso novamente, desabafando sobre seus demônios comigo.

Talvez não quisesse ter feito isso durante a gravidez e nem mesmo enquanto eu amamentava
nosso filho, o pequeno Andrea Dallaggio, de seis meses, que já carregava consigo o estigma de um
dia ocupar o lugar de seu pai. Ao menos, para o meu alívio, ele não passaria pelo que Enzo passou.

Fosse como fosse, naquela noite, algo mudou. Revirava-me na cama, inquieta, desejando ter o

meu marido do meu lado. Não sabia se ele já tinha chegado em casa, e muitas vezes eu me apavorava
pensando na hipótese de não voltar. Santino não era o único inimigo com o qual ele poderia esbarrar
no caminho. Embora as pessoas ao seu lado – Sandro, Matteo e todos os outros – nunca tivessem
dado motivos de desconfiança, como poderíamos prever o momento em que seríamos apunhalados
pelas costas?

Desci as escadas descalça, vestindo um robe por sobre a minha camisola, temendo acordar
Belamina. Ela vinha sendo tão maravilhosa com Andrea, tão prestativa, mesmo com a existência de
uma babá, que não queria perturbá-la fazendo-a acreditar que eu precisava de alguma coisa.
Caminhei pela casa enorme, chegando ao escritório e batendo na porta. Demorou para que

alguém se manifestasse lá de dentro, mas ouvi a voz de Enzo, soando rouca e cansada, permitindo

que eu entrasse.

Quando o fiz, eu o vi atrás de sua mesa, lindo e imponente, embora menos elegante do que de

costume. Usava apenas o colete de seu terno de três peças, com a camisa branca por baixo. Já sem
gravata, com o colarinho aberto, bebia um uísque, com os cabelos um pouco desgrenhados e um
vinco na testa.

— O que está fazendo acordada, piccola? Já passa das três da manhã.

Aproximei-me e me sentei em seu colo, sendo recebida sem hesitações.

— Senti a cama muito vazia.

Ele abriu um quase-sorriso. Era o máximo que conseguia extrair. Mas era mais do que antes.
Tinha esperanças de que com o passar dos anos teríamos mais motivos para que aqueles lábios
maravilhosos se curvassem.

Um deles eu estava prestes a lhe dar. Esperava que fosse mesmo motivo de felicidade.

— Não é a primeira vez — ele falou com indulgência, passando a mão pelo meu rosto. — E
não será a última.

— Eu sei. Mas hoje quis vir te fazer companhia. Espero que não se importe.

— Nunca me importaria com sua companhia.

Eu sorri. Era bom ouvi-lo falando aquele tipo de coisa. Era um homem poderoso, que nunca
abria seu coração, mas ele sempre tinha uma palavra carinhosa para mim e para nosso bebê. Era um
bom pai, muito melhor do que qualquer outro que testemunhei em nosso círculo. Nem sempre estava
muito presente, porque saía cedo e voltava tarde, mas fazia questão de passar algum tempo conosco.
Também precisava viajar às vezes, mas constantemente nos compensava com alguns dias na casa de

praia ou com um final de semana em família, em casa, com a presença de Paolla e Kiara.

— Está preocupado com alguma coisa? — perguntei, mesmo sabendo qual era o motivo de seu
isolamento.

— Não. Só gosto de pensar às vezes. — Assenti, sabendo que aquela novamente não seria uma
noite em que ele iria se confessar. Se é que algum dia o faria. Talvez aquela fosse uma lacuna eterna
em nosso relacionamento, mas havia tantas coisas boas que eu poderia relevar.

— E de beijar? Gosta também? — indaguei, provocadora, inclinando-me na direção dele.

— Você? É uma das coisas que mais gosto no mundo.

Provando o que disse, Enzo tomou meus lábios de um jeito do qual eu nunca me cansava. Tinha
a impressão de que anos poderiam se passar, mas nós nunca perderíamos aquele desejo que
sentíamos. Tanto que em segundos fui colocada sobre sua mesa, depois de ele afastar alguns papéis e
objetos que estavam sobre ela.

Sua boca foi parar direto no meu seio, afastando o tecido suave da camisola, e eu sabia que
acabaria me perdendo em poucos segundos. Se permitisse que fosse mais longe, não conseguiria

impedi-lo.

E eu precisava.

— Enzo, eu não vim aqui para isso — falei baixinho.

— Então não deveria ter me tentado, maledetta. — Não pude deixar de rir. Na maioria das
vezes, piccola era nosso apelido, mas maledetta também se fazia presente quando Enzo achava que
eu merecia uma repreensão.

No entanto não era o caso daquele momento.


— Eu tenho uma coisa para te falar...

Apesar de ter me ouvido muito bem, ele fez sua boca deslizar pelo meu rosto, deixando a
língua desenhar o contorno do meu maxilar e cair ao meu pescoço.

— Você tem a vida inteira para me contar, seja lá o que for que quer contar.

— Não. Só mais alguns meses até que você perceba sem eu precisar falar...

Enzo imediatamente parou o que estava fazendo, provavelmente compreendendo perfeitamente


o que eu queria dizer.

Afastou-se o suficiente para me olhar nos olhos, e os dele estavam um pouco arregalados.

— Mas o quê...? — Ajeitei-me sobre a mesa, abrindo um sorriso. — Giovanna, você está
grávida novamente?

— Ah, agora eu vou poder falar? — Cruzei os braços contra o peito, com uma sobrancelha
erguida, irônica. — Sim, Sr. Dallaggio, nossa família vai aumentar.

Por alguns instantes temi que ele não gostasse da notícia, mas segurou meu rosto com ambas as
mãos, aprofundando um beijo intenso, mas cheio de sentimento.

— Desde quando você sabe? — ele perguntou, parecendo o mais animado que Enzo conseguia
parecer.

— Desde hoje mais cedo. Pretendia esperar o final de semana para te contar, porque vamos
para a praia, mas não aguentei. Não consegui ficar sozinha na cama, pensando em sua cara quando
recebesse a notícia, tão diferente da primeira vez...

Eu nem queria me lembrar do momento em que contei para ele que estava grávida de Andrea.
De toda a tensão, do que passei naquele dia e depois. Do momento em que lemos o resultado, no
misto de felicidade e de caos que se instaurou em questão de horas.
Daquela vez tudo era diferente. Nunca teríamos uma vida simples, corriqueira ou segura. O

medo sempre nos rondaria, sempre haveria incertezas, mas aquele era o máximo de paz que

conseguiríamos.

— Você está feliz? — perguntei a ele, ansiosa pela resposta.

E ela veio em forma de um movimento fluido, em que ele se levantou da cadeira e me puxou
para si, entrelaçando minhas pernas em sua cintura, começando a sair do escritório.

— Mais do que poderia descrever. E é um absurdo pensar em você sozinha na cama, piccola.

Vamos resolver isso agora.

Gargalhando, deixei que ele me conduzisse pelo corredor, subindo as escadas e chegando ao
quarto que compartilhávamos. Eu ainda tinha o meu, projetado especialmente para mim, como um
escritório pessoal, mas dormíamos juntos.

Fui jogada na cama, e Enzo colocou-se por cima de mim, com nossos rostos muito próximos.

— Eu te amo — ele sussurrou e novamente capturou meus lábios em um beijo, porque não
precisava de respostas. Ele sabia o que eu sentia.

Nós dois sabíamos.


EPÍLOGO

QUATRO ANOS DEPOIS

Crianças gargalhavam, correndo ao meu redor. O vento batia, e eu sentia que poderia viver

daquele jeito para sempre. Alguns homens invejavam o que eu tinha – poder, um nome forte,
coragem, dinheiro e controle sobre muitas coisas. Poucos sabiam que o que realmente importava para
mim estava ali, à minha frente, naquela praia: minha esposa, meus casal de filhos – Andrea e Sienna
–, minha irmã e minha sobrinha.

Aquela casa era nosso refúgio. Ninguém mais entrava ali. Não convidávamos amigos, ninguém
do meio da máfia. Nossa família se resumia àquelas pessoas, e enquanto Paolla continuasse com sua
ideia fixa de que nunca mais iria se casar, permaneceria assim. Se ela realmente não se juntasse a
mais ninguém, não mudaríamos nossa tradição.

Ao menos uma vez a cada dois meses nos reuníamos ali, e era o momento em que eu finalmente
me sentia um homem comum.

Às vezes eu me pegava pensando nisso: como seria poder simplesmente deixar tudo para trás e

me mudar para um lugar como aquele, vivendo com minha família sem o medo como constante
companhia, sem achar todos os dias que poderia ser traído ou enfrentar a morte quando tudo o que
queria era voltar para casa?

Não era possível, é claro. Não com o cargo que eu ocupava e com homens confiando em mim
como seu líder supremo. Mas era um pensamento que às vezes me deixava um pouco melancólico.

Ainda assim, eu tinha muito mais do que alguém poderia pedir.

— Papai! — ouvi uma vozinha deliciosa me chamando. Era meu garotinho, de quase cinco
anos, vindo correndo até mim, com suas perninhas gordinhas. Ele era moreno como a mãe, mas os
olhos eram azuis como os meus. Já Sienna era totalmente a cara de Giovanna. Certamente me daria

tanto trabalho quanto minha piccola.

Eu estava sentado em uma espreguiçadeira, e ele veio correndo, pulando no meu colo. Não me
lembrava de ter tido essa liberdade com meu próprio pai um dia, e ficava feliz em ter esse tipo de

relação com meu filho.

Aliás, ele parecia emburrado.

— O que foi, garotão? Por que está com essa cara?

Ele cruzou os bracinhos contra o peito, e eu afastei a franja lisa e castanha que caía em seu
rosto.

— Kiara está me chamando para brincar com ela, mas eu não quero brincar dessa coisa de
princesa. Isso não é coisa de menino, né? — Assim que nosso filho falou, Giovanna e Paolla me
olharam, divertidas, provavelmente se lembrando de anos atrás, quando tivemos o mesmo embate.

Lembro-me de sentir vontade de brincar com elas e ser podado pelo meu pai. Novamente, não
queria que meu filho tivesse o mesmo tipo de criação que eu, privado de seus desejos.

— Você pode brincar do que quiser. — Levantei-me com ele no colo, sentindo meu coração
pesar no peito de amor. — Aliás, sua mãe e sua tia eram ótimas construtoras de castelos na areia,
mas nunca conseguiram fazer um melhor do que o meu.

— Ele nunca pôde provar isso, filho, porque nunca fez um na minha frente — Giovanna
provocou, e Paolla apenas riu. — Acho que está na hora de tirarmos a prova.

Minha esposa se levantou, esfregando uma mão na outra e pegando um balde e uma pá de
brinquedo, pronta para colocar a mão na massa.

Pus Andrea no chão, pronto para o combate.


— O que acha de ser um rei na brincadeira, Andrea? Papai vai fazer um castelo incrível para

você — prometi, olhando para Giovanna com um ar malicioso.

— Não vai ser melhor do que o das minhas princesas. Venham, Kiara e Sienna. Vamos mostrar
para eles.

E a brincadeira começou.

Sim, eu era feliz. Não havia poder no mundo que se sobrepusesse à minha família. À história
que estávamos construindo.

FIM

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