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– Elena Gilbert.
Três anos antes.
Meu irmão nasceu para isso, acho que ele pegou todos os
genes jurídicos passados de pai para filho no útero, não sobrando
nada para mim, posteriormente. Ele simplesmente ama a profissão
e, diferente do que eu sinto, para ele, ser juiz não é um fardo.
Já ouvi através das conversas dos meus pais, bem como, dos
amigos da família, casos absurdos, como: irmão que mata irmão por
causa de herança; filho que mata os pais por motivos triviais; pai
que estupra a filha... A carga traumática que vem junto com a
carreira é somente um dos pesos a ser carregado.
Bufo.
— Eu prometo que tentarei, não por ele, nem pela família, mas
por ti. — sussurro contra sua nuca.
Fico um bocado irritado com o tom que Antônio usa para falar
com os agentes, os homens parecem se solidarizar com nossa
família, enquanto o patriarca só exala ódio e desdém para eles.
Não!
Não!
— Por que meu Deus? Por que logo esse filho? — Ouço meu
pai murmurar seu lamento.
Mas de tudo o que Antônio Zion já falou, de uma coisa ele tem
razão, eu deveria ter morrido, não o meu irmão, ele era melhor do
que eu, e deveria ter uma longa e maravilhosa vida, não merecia
nada menos que isso.
Espero que sua morte não tenha sido em vão. Morte. Morto.
Antônio está morto. Nunca mais, nunca mais poderei vê-lo. Nunca
mais iremos compartilhar uma garrafa do nosso whisky favorito.
Nunca mais faremos nada juntos.
23 de setembro.
Desde que descobri que papai teve alguns casos nesse último
ano, nossa relação tem andado delicada. Por mais que hoje faça
dois anos desde que mamãe morreu, não aceito ainda o fato de ele
estar seguindo em frente, saindo com outras mulheres. Soa como
se ele não a amasse realmente.
— Às vezes parecia que a sua mãe era mais gaúcha que eu, e
sempre que eu sentia isso, o sentimento de que eu havia
encontrado a mulher da minha vida me dava a sensação de
plenitude. — Gael limpa uma lágrima solitária. — Eu sofri muito com
a morte dela, Antonella, mas não podia demonstrar, tu já estavas
quebrada o suficiente. Precisei ser forte para te reerguer.
Eu quero gritar, xingar, falar que não temos esse direito, mas
não posso fazer isso, porque no fundo eu sei que Gael tem razão.
Sei mais ainda que mamãe gostaria que seguíssemos em frente.
Mas como é possível fazer isso quando a morte dói tanto?
Será que ele não consegue ver o quanto estou quebrada? Por
mais que eu sinta falta de quem eu era antes, ela se perdeu,
sufocou até sucumbir ao luto, indo-se para sempre.
Não existe reação para algo que foi perdido há muito tempo. Eu
me perdi em meu processo de luto e não vejo um caminho de volta,
e sinto muito que meu pai não possa ver isso.
— Tem certeza?
Olho mais uma vez para o cartório, repuxando meus lábios até
torná-los uma linha fina, franzindo o nariz.
Solto um suspiro.
ANTONELLA CAREGNATO
— Igualmente.
— Obrigada.
— Sim.
— Em qual área?
Querida? Querida?
Sem falar nada, tento correr para fora da sala, mas meu pai
segura meu pulso com força, mantendo-me no lugar. Não vi o
momento em que ele também levantou da mesa, assim como não
percebi o barulho das suas pegadas.
Sigo negando, sem poder aceitar que ele coloque outra mulher
no lugar da minha mãe.
Não! Isso não pode acontecer! Ele a traiu. Ele nos traiu.
Ainda não posso acreditar que meu pai pode me trair de tal
forma. Ele pensava o quê? Que me convidaria para um café da
manhã, faria meus bolinhos favoritos, assumiria o novo
relacionamento, eu sairia batendo palmas e seríamos, em diante,
uma família feliz para sempre? A notícia doeria de qualquer forma,
mas eu preferiria muito mais que ele tivesse me contado antes, me
preparado, respeitado a minha decisão de não conhecer a tal
Mikaela.
— Tudo bem.
— Dansper. — atende.
— Bom dia! Aqui é Antonella Caregnato, advogada do réu da
próxima audiência. Preciso de alguns minutos de carência, pois
fiquei presa no trânsito. O senhor poderia avisar? — Acelerando
ainda mais o veículo, pouco me importando pelas multas, falo com
Dansper sem tirar os olhos da estrada.
Com uma calma que não faz parte de mim, abro um sorriso
educado para Marcos, ignorando os olhares curiosos dos demais,
bem como, os sorriso debochados dos agentes penitenciários.
Não posso acreditar que esse infeliz desse juiz não me deu a
carência solicitada, sabendo o trânsito caótico que enfrentamos
entre uma cidade e outra. O antigo juiz sempre foi solícito com este
tipo de situação, pois residia em Porto Alegre e precisava fazer o
mesmo percurso que eu, assim como muitos outros advogados,
para estar aqui no horário marcado.
O novo juiz não parece ter muito mais do que trinta anos. Os
cabelos castanhos lisos e revoltos lhe dão um ar despojado, mesmo
que esteja vestindo um terno caro e impecável. Os olhos verdes são
frios, tão frívolos quanto o inverno do Sul do País, ainda que sejam
intensos. A mandíbula quadrada com barba por fazer, a boca
carnuda e rosada, os cílios longos e invejáveis e os músculos
evidentes na camisa branca, complementam o pacote.
O homem me encara com raiva e desprezo, mas não consigo
desviar o olhar, é como magnetismo puro.
HENRIQUE ZION
Primeiro dia que eu assumo a vara e uma advogada já resolveu
se atrasar. Não sei como o antigo juiz era com relação a isso, mas
eu sou extremamente pontual e intolerante, salvo algumas poucas
exceções.
Só o que me faltava!
— Sim?
— Podem sair.
— Eu sei que é difícil e teu pai pisou na bola, mas ele só queria
tentar fazer dessa notícia, a menos frustrante possível. Eu conheço
Gael, sei que ele teve boa intenção.
Suspiro.
— Se Gael não tivesse sido tão egoísta... eu falei para ele que
meu dia era atarefado, que eu tinha uma audiência logo cedo... —
As lágrimas ameaçam aparecer, pisco para afastá-las. — ele
parecia tão resoluto quanto ao encontro, cheguei a pensar que era
algo de suma importância...
— E era. — interrompe.
— Bem, eu não diria que conhecer a tal Mikaela tenha sido algo
importantíssimo.
— Pode não ter sido para você, mas foi para Gael, Antonella.
Rio debochadamente.
— Se tu insistes...
— Certo.
— Ei, o bar é ótimo, ninguém vai sair daqui falando mal, posso
garantir.
— De nada. — zombo.
Reviro os olhos.
Victor tinha dito que seria uma tarefa fácil, além do mais, eu já
havia auxiliado algumas outras vezes, só que ambos não
contávamos com toda essa movimentação.
— Ainda bem que nem eu, muito menos o dono do bar, pediu a
sua opinião. — retruco, a voz mais áspera que o normal.
— Olá! Não sabia que esse lugar era tão bem frequentado... —
Enrolando uma mecha de cabelo no dedo indicador, ela se
aproxima, sedutoramente.
— E quem é você?
Péssima mentirosa!
Antonella.
Victor bufa.
— Eu não fiz nada. Foi ela quem chegou atrasada para uma
audiência, precisei destitui-la do processo e nomear a defensoria
pública.
— Vai gostoso!
Deus do céu! Será que essa mulher acha que está arrasando?
Pensa que gritando aos quatro ventos o quanto o homem é bom de
cama, ampliará o seu ego, fazendo-o se apaixonar mais?
Ela dá de ombros.
— E eu prefiro dormir.
Deus do céu!
Seu tom de voz envia arrepios por todo o meu corpo e faz o
meu interior se contorcer em curiosidade. Balanço a cabeça, me
desfazendo dos pensamentos relacionados a ‘sexo e Henrique’ na
mesma frase.
Não deixando que ele veja que me abalou mais do que deveria,
levanto um dedo em riste em sua direção.
— Você é um babaca!
— Um idiota, arrogante.
Ah, dane-se! Não queria gastar meu réu primário com uma
droga de Termo Circunstanciado de lesão corporal, mas esta
situação requer medidas drásticas.
— Espero que isso se repita mais vezes, porque isso sim é uma
fofoca das boas.
— Até mais! — Abano com a mão, fechando a porta o mais
rápido possível, tentando evitar a vizinha invasiva.
— Não.
Ah, claro! Ótima ideia, por qual motivo eu não havia pensado
nisso mesmo?
— Sim.
— Perna.
Estou prestes a ir até os equipamentos quando vejo Henrique
Zion entrando pela porta da frente. O desgraçado perambula pela
academia assombrosamente sexy com sua graciosidade própria e
arrogância infinita.
— Olá, doutora.
— Henrique Zion.
— É mesmo?
— Olá, doutora.
— Olá, Henrique.
— Encantado.
Pela primeira vez na vida vejo Victor sem jeito. Meu sócio passa
uma mão na nuca, abrindo um sorriso de boca fechada, seus olhos
correm até mim e, percebendo que eu o inspeciono, desvia-os para
o chão imediatamente.
— Claro. Tudo certo.
— Se era isso que estava lhe impedindo, saiba que está livre
para fazer a solicitação. A data já está acertada, sem mudanças, até
então.
Viajar com Antonella... Meu cérebro fala, grita que eu devo ficar
longe da advogada desbocada, no entanto, meu coração exaspera o
contrário.
— Quem?
— Ele disse que não tem plantão amanhã, e que está louco
para rever você. Portanto, querida, acho bom tu caprichar no visual.
Fernanda bufa.
— E eu lá tenho escolha? O cupido é a figura mais importante
dessa história toda.
— É claro que é.
— Uma pena, pois seria bem mais divertido para nós dois a
segunda opção.
Deus do céu!
Reviro os olhos.
— O médico?
— Ele mesmo.
— Se tu dizes...
— É sério. Agora traga a minha bebida.
— Só essa semana?
— Olá.
— Olá, doutora.
Deus... não.
HENRIQUE ZION
— Olá, doutora.
O desgraçado pigarreia.
— Sei...
— É um desafio, doutora?
O juiz desce a mão escondida pelo balcão até meu short largo,
arrastando meu corpo até o seu, escondendo suas carícias. O fato
de estarmos em público, podendo ser pegos a qualquer momento
amplia ainda mais o meu tesão. De alguma forma, ele encontra uma
brecha na minha roupa, colocando a calcinha para o lado e
mergulhando os dedos na minha parte úmida, a qual implorava por
ele. Gritei quando um dedo encontrou o caminho para dentro de
mim.
Mais, mais, eu quero mais! Preciso dizer, mas não consigo, não
há espaço para palavras, enquanto sua boca ainda devora a minha,
engolindo meus gritos e gemidos.
— Antonella..
Céus!
— Antonella! — Fernanda finca as unhas na minha pele do
braço, fazendo-me quebrar o contato visual com o juiz.
— Eu... eu vou com você. — falo, a voz soando mais baixa que
o normal, ainda assustada por tudo isso.
— Agora sim.
Reviro os olhos.
Mais risadas.
— Sua flor favorita é rosa branca, tem algo a ver com a mãe
dela. Adora ler, portanto, livros são presentes que a deixam feliz. Ela
também ama séries, a sua favorita é Lúcifer. — Alguns segundos de
silêncio. — Hum... ela também ama doces, é uma chocólatra
assumida. E ama viajar.
ANTONELLA CAREGNATO
Cretino, idiota!
Aliás, por que esse homem está andando por aí seminu? Isso
deveria ser proibido. A minha sanidade, assim como a de todas as
outras mulheres presentes, deveria ser preservada.
Trinco o maxilar com força, irritada com ele por ter tanto
controle sobre mim e irritada comigo por não conseguir ser
indiferente com a sua áurea sexual.
— Nem eu. Hã... quero algo forte e doce, faça algum drink para
mim.
— Qual é o problema?
— Hummm... é bom.
Ótimo.
Deus do céu!
HENRIQUE ZION
Inferno!
— Feliz agora?
— Sim?
— O quê?
Não estendo nosso diálogo por mais que isso, visto que eu
preciso de um chuveiro ou qualquer coisa quente o suficiente para
elevar a minha temperatura corporal.
Ele ri, uma risada rouca que envia calafrios ao meu corpo
traidor.
Solto um grunhido.
Jesus Cristo!
— Tá, tá! Chega! Eu preciso jantar, será que você faria o favor
de se retirar da minha casa? — Descruzo os braços e um gesto de
mãos.
Reviro os olhos.
Engulo em seco.
Sem dar chances para que ele fale qualquer outra coisa, fecho
a porta, ouvindo sua risada rouca contra a madeira fina.
Ela junta uma pequena bolsa do sofá e passa por mim, indo
chamar o elevador. Para a minha sorte — ou a da minha sanidade
—, ela não beija o meu pai na despedida, sequer chega perto dele.
— Querida, já faz dois anos que a sua mãe morreu. Por favor,
tu precisa superar o luto. — Coloca a mão sobre a minha.
— Pelo visto será uma longa noite entre nós dois. — cicio para
a garrafa, conversando com o objeto como uma verdadeira louca.
— Dia ruim?
Deus!
Com uma única mão ele puxa a camiseta preta pela cabeça,
liberando todos os centímetros de pele que eu desejo tanto tocar.
— E agora eu mereço?
Sem forças, mas querendo tudo o que ele tem para me dar,
faço conforme instruído, chocando a cabeça contra o espelho. A
posição não é agradável para os músculos e possivelmente me dará
uma dor nas costas mais tarde, contudo, Henrique me penetra
novamente, indo, dessa vez, mais fundo, acertando um ponto, até
então, nunca alcançado.
Ah, não! Isso é demais para mim, se Victor continuar com essas
perguntas indecentes eu vou queimar, mas não como eu estava
antes dele interromper e sim de vergonha.
Ontem ela sumiu o dia todo e como estive muito ocupado com
afazeres do trabalho fiquei sem notícias suas. Mas hoje é diferente,
eu sei que ela está em casa, posso ouvir o barulho alto da televisão.
Pigarreio.
— E quem é você?
Relembro que eu vim até aqui com o intuito de foder com a filha
dele, o que pareceria muito indecoroso em sua presença.
Isso seria meio íntimo. Assistir ao jogo com o pai da guria que
eu estou tendo algo ainda inominado.
Dou de ombros.
— Sei.
— De qual marca?
— Heineken.
— Tudo bem.
— Algumas semanas.
— Não que seja da minha conta, mas por qual motivo ela faria
isso?
ANTONELLA CAREGNATO
Amanhã eu irei viajar com Victor e como havia dito a Gael que
não teria tempo de vê-lo antes da viagem, ele mesmo resolveu
solucionar a minha falta de tempo me fazendo uma visita
inesperada. E eu, sabendo da sua fissura pelo tricolor gaúcho e
tendo ouvido algumas notícias sobre o jogo, rapidamente me
disponibilizei a ir ao mercado para comprar algumas coisas para
preparar o jantar, e, é claro, sua tão preciosa cerveja.
Meu pai não traria Mikaela para o meu apartamento, ele não
faria isso contra a minha vontade, desrespeitando-me desse jeito.
— Aham...
Revira os olhos.
— Olha o cara!
— Pode subir.
— Experimente, doutora.
HENRIQUE ZION
Deus do céu!
— Tudo bem.
Ouço-me resfolegar.
— Não sei do que você está falando. — Meu tom não passa de
um murmúrio.
Desgraçada!
Filho da puta!
— Não!
— Oh, céusssss!
— Até agora não entendi por que quis fazer isso na rua.
— Antonella, eu nem sabia que isso existia até hoje, como quer
que eu reaja normalmente? Jesus, ejaculação feminina, sexo na
moto... isso é demais para a minha cabeça.
Reviro os olhos.
— Bem, eu me importo.
— E quais são?
Dane-se!
— Agora nós dois temos uma única peça de roupa, como vai
ser? — pergunto, sentindo a vodca correr pelas minhas veias,
aumentando a minha libido pela visão do homem à minha frente.
Assim como eu, Henrique perdeu alguém que amava muito, por
isso sua alma é marcada como a minha, por isso eu identifiquei a
dor. Só não sei ainda quem foi ou qual era o grau da sua
importância.
— Câncer.
— E o seu irmão?
— Ele era juiz, assim como eu, assim como o nosso pai. — Ao
falar do progenitor, sua mandíbula trabalha tanto que me surpreendo
por não a ouvir estalar. — Em um dia qualquer, Antônio estava
saindo do Foro quando foi atropelado e morreu na hora. Fim.
— E as outras?
— Eu... eu...
— O jogo acabou.
Reviro os olhos.
— Amanhã.
— Eu vou.
— Obrigado!
— Assistir à um filme?
Eu sei bem como esse filme vai terminar, mas estou muito
contente e animado por isso. Apesar das desavenças no início, eu
gosto de passar um tempo com Antonella, no final de contas, ela é
mais agradável do que eu imaginava.
— Claro.
— Me devolve!
— Sempre, doutora.
ANTONELLA CAREGNATO
Voltei mais cedo para casa depois do trabalho, pois queria ter
tempo o suficiente para me acalmar para o jantar nos pais de
Henrique. Embora o convite tenha me assustado inicialmente e o
‘não’ estivesse na ponta da língua, ver os olhos do juiz e a forma
como ele parecia implorar silenciosamente me fez verbalizar o
temido ‘sim’.
— Tua mãe fica feliz por ter vindo, Henrique. — fala, cada
palavra saindo mais trincada que a anterior, em tom incisivo.
Pigarreio.
— Prazer em conhecê-lo, senhor Zion. — Estendo minha mão à
guisa de cumprimento.
Henrique bufa.
— Bem que você falou que o seu pai era uma pessoa...
agradável, mas poderia ter me preparado melhor. — sussurro.
Ele solta uma risada desprovida de humor.
Lisi era como uma prima para nós. Um pouco mais jovem, a
garotinha envergonhada, mas muito inteligente e sagaz, cresceu
fazendo parte de todas as comemorações em família. Embora
tenhamos perdido o contato depois da morte de Antônio, pois acabei
evitando meus pais e, consequentemente, Lisi, o carinho ainda
permanece e eu ainda lhe considero uma prima.
— Não.
— Deveria ser você. — profere tão baixo que mal se faz ouvir.
A verdade é que, por mais que eu sinta certa afeição por ela,
minha saúde mental vale mais do que isso, mais do que a mulher
que deixou os filhos sendo criados por empregados pela falta de
tempo, ou, pior ainda, pela mulher que viu tudo o que o marido fazia
com os filhos e mesmo assim ficou ao seu lado.
Encaro os faróis dos carros que passam por nós, as ruas pouco
movimentadas se dá ao fato de que estamos em véspera de rodeio,
portanto, quase toda a população gaúcha se concentra em CTG’s[9]
para comemorar.
— E vamos aonde?
— Só saiba que precisa colocar uma roupa confortável, calça,
botas e camisa já estão bons o suficiente.
Ele dá de ombros.
— Tudo bem, mas não quero demorar, tenho mais planos para
essa noite. — Pouso uma mão em seu peito, sentido a pele dura
dos músculos.
— É uma pena.
Deus do céu!
— Xis salada.
— É... oi. — Tento sorrir, mas sei que mais parece uma careta
do que um sorriso, de fato.
Deus!
— Ah, desculpe.
Ele dá de ombros.
— Porque você é o juiz de uma das varas onde nós mais temos
processos. — falo parcialmente a verdade, pois nem que me
paguem eu confesso que passei mais de mês falando mal dele no
escritório.
Sou uma hipócrita mentirosa que não quer dar o braço a torcer,
essa é a verdade. Embora esses sejam defeitos meus, eu ainda
tenho um maior, o orgulho, e jamais admitiria isso. A verdade é que,
enquanto observo Henrique encher os pulmões com o maior veneno
de todos, o mesmo que levou a minha mãe, sinto uma dor enorme
no coração, temendo perdê-lo, assim como ela se foi. E é
justamente por isso que eu não posso aparecer com ele na frente de
todos, porque isso que estamos tendo se tornaria mais sólido, até
mais do que o sentimento que, aos poucos, sopra dentro do meu
peito, crescendo a cada dia mais, tornando-se um enorme problema
para mim.
E então eu vejo.
Oh, Deus!
Não posso! Quero gritar. Isso é traição! Mas nenhum som sai
da minha garganta, nada além de um grunhido de dor.
As lembranças da minha mãe, dos meus pais juntos alvejam a
minha mente, apunhalando-me como a sensação de ter mil facas no
coração. Aceitar Mikaela, aceitar esse relacionamento é como
manchar a memória da minha mãe... é como deixá-la partir...
Céus!
Passo pela sala, vendo as pastas das cópias dos casos para
julgamento que estava estudando na época, antes do acidente. Até
mesmo o copo de uísque vazio permanece intacto na mesinha de
centro, no mesmo lugar onde a mão de Antônio o repousou pela
última vez.
Não sei bem como agir com ela, não depois de tê-la afastado
da minha vida sem lhe dar desculpa alguma.
— Obrigada. — zombo.
— Sim e não.
Abro e fecho a boca, irritada demais com ela, mas nada sai,
absolutamente nem uma única palavra.
— Aceitar o quê?
— Não, acha que sim, mas não. Acha mesmo que Maria estaria
feliz sabendo que, desde que morreu, eu nunca havia visto a filha
tão... leve, e tudo isso por causa... dele, mesmo assim foi idiota o
suficiente para afastá-lo, para deturpar a tua felicidade.
— Henrique não tem nada a ver com essa conversa, Gael sim.
— Ele quem?
Solto um grunhido, puxando os cabelos com força.
— Eu sinto muito, não queria ter que falar tudo isso pra ti dessa
forma, mas já estou cansada de ficar de mãos atadas enquanto a
vejo colocar fora tudo o que te faz feliz. — Estreita os lábios,
tornando-os uma linha fina, antes de continuar. — Falo sério quando
digo que nunca te vi mais leve, não desde que Maria morreu. E
nunca havia visto Gael assim antes, não tão feliz como está.
— Ele já escolheu.
— Não, ele escolheu tentar ser feliz. — Ela abre sua garrafa de
água, bebendo alguns goles para molhar a garganta antes de
continuar. — Mas ele vai acabar abandonando a namorada, mesmo
que isso lhe faça sofrer, porque ele te ama acima de tudo ou
qualquer coisa.
— Ah, ele com certeza vai. E eu também sei que tu fará o que
estiver ao teu alcance para conseguir o perdão dele.
Como um interruptor sendo ligado, minha mente pisca em uma
ideia. Eu ainda tenho um aniversário para ir.
— Que é o quê?
Reviro os olhos.
— Até parece que alguém tem o dom para fazer isso, nem
mesmo o pai dela consegue.
Hum... não era bem isso que eu estava esperando ouvir, o que
me deixa ainda mais confuso.
Respiro fundo.
Uma escolha.
ANTONELLA CAREGNATO
— Tudo bem.
Suspiro.
E ele chora ainda mais. Nem lembro quando foi a última vez
que eu proferi essas três palavrinhas tão importantes para ele, e eu
nem havia percebido o quanto elas estavam me fazendo falta.
Gael se afasta, um leve sorriso brotando em seus lábios,
contrastando com os olhos inchados pelo choro.
— Sim, eu adoraria.
Sei que Henrique está aqui pois tive uma aliada muito
importante para descobrir seu paradeiro. Dona Celene, a vizinha
fofoqueira, foi de muita utilidade. Conforme eu solicitei, assim que
Henrique saiu do apartamento a senhorinha prontamente se pôs a
perguntar para onde ele estava indo, sendo assim, aqui estou eu,
seguindo o homem que estou apaixonada sem saber se ele ainda
me quer, mas viver é isso, não é mesmo? Correr riscos, dentre eles,
o de um coração partido.
Risadinhas.
HENRIQUE ZION
Pigarreio.
— Me desculpe.
Ouço meu pai limpar a garganta de maneira forçada e audível
ao meu lado. Lisi leva a mão ao meu ombro, esfregando o meu
peitoral distraidamente.
— Ah, Henrique...
Charlotte dá de ombros.
Eu lembro desse júri, foi o último que ele fez antes de encerrar
a carreira, aposentando-se, por fim. Na época, ele ficou quase
quatro dias fora de casa e quando retornou estava exausto,
fadigado e aliviado pela aposentadoria. No entanto, mesmo tendo
que ser imparcial, acabou levando esse julgamento para o lado
pessoal.
— Antonella? — interpela.
— Oi. — murmura.
Ela suspira.
— Só esquece toda essa merda. Sinto muito por ter sido uma
cretina. — Infelicidade turva os seus olhos — Eu te quero, Henrique,
estou apaixonada por você... — solta um grunhido. — Deus, nem
sei como é possível viver agora sem esse seu jeito irritante!
— Eu preciso te foder.
— Como assim?
Retiro minhas mãos do meio das suas pernas, ela salta em meu
colo, prendendo as pernas na minha cintura, afastando-se somente
o suficiente para centralizar o meu pênis e então empurra toda a
extensão para dentro de si.
Sinto seu interior me apertar e sei que ela está gozando, assim
como sei que está gritando, fincando as unhas nos meus ombros,
marcando a minha pele. Sem esperar, lhe faço companhia,
chegando ao ápice com ela.
— Preciso de um favor.
ANTONELLA CAREGNATO
Reviro os olhos.
Posso dizer que hoje somos amigas, ainda não tão íntimas,
mas estamos rumando para isso. Depois que eu parei para entender
o quanto ela faz o meu pai feliz, que não quer roubar o lugar da
minha mãe e, principalmente, que é uma pessoa exemplar, passei a
adorá-la.
Ofego, aturdida.
— Pronto.
— Obrigada.
— Nella, Feliz aniversário! Estou feliz por ti. — Victor olha para
Henrique parado ao meu lado. — Por vocês, na verdade.
Às que se foram:
Tia Sandra, obrigada por ter estado sempre presente e por ter
sido uma grande conselheira nos momentos mais sombrios. Você
faz tanta falta.
[1]
O chimarrão, ou mate é uma bebida característica da cultura do Cone Sul legada da
cultura indígena, produzido pela infusão da planta erva-mate moída em água fervente a
aproximadamente 70 graus Celsius, em uma cuia com uma bomba.
[2]
grande
[3]
algo muito chocante, que cause muito impacto
[4]
Conhecido popularmente como pão francês, no Rio Grande do Sul é comum chamar de
“cacetinho”.
[5]
Tchê é interjeição muito utilizada no Rio Grande do Sul, sendo usado no início ou final
de frases, para chamar a atenção. Tchê = pessoa, “cara”;
[6]
Grenal é o duelo entre os clubes brasileiros de futebol Grêmio e Internacional.
[7]
Rengo é o mesmo que algo torto ou empenado, enquanto cusco é um modo como os
gaúchos chamam os cachorros. Então um frio de renguear cusco seria o mesmo que muito
frio, tão frio que entortaria os cachorros.
[8]
O squirt é o nome que se dá à ejaculação feminina e que ocorre num momento de
prazer.
[9]
Os Centros de Tradições Gaúchas são sociedades civis sem fins lucrativos, que buscam
divulgar as tradições e o folclore da cultura gaúcha;
[10]
Pilcha é a indumentária tradicional da cultura gaúcha, utilizada por homens e mulheres
de todas as idades. Portanto, pilchado é estar vestido a caráter com a vestimenta gaúcha.
[11]
No Rio Grande do Sul é muito costumeiro comer ‘xis’, o qual corresponde a um
sanduíche enorme, prensado antes de ir à mesa, no qual entram queijo, presunto,
maionese, ovo, tomate, alface, milho e ervilha, além de um bife de carne moída.
[12]
pessoa que tem experiência