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Imagens: Depositphotos
Ilustração: @artes_da_nat
1º Edição
Agosto de 2021
A menina má e o advogado de ouro têm muito mais em comum do
que pensam.
Eu a protegi, mas ela drenou todas as minhas forças e isso me forçou
a deixá-la em sua adolescência.
Agora, depois de atormentar minha vida por anos, a encrenqueira foi
forçada a se voluntariar em um orfanato, e ela está aqui, de joelhos na
minha frente, propondo um casamento de conveniência e dizendo que sou o
único homem em quem ela confia para proteger um bebê que ela tem como
filha.
O problema todo é que, embora sejamos arqui-inimigos, ainda me
lembro de como era bom e quente tê-la em meus braços, mas algo forte em
mim me obriga a protegê-la e a mergulhar de cabeça nesta loucura.
Casado por conveniência, terei que lutar contra os sentimentos que
gritam por ela e lidar com os terríveis segredos de seu passado conturbado.
Ou clique aqui
Reféns do coração, livros único, é uma versão completa do livro
“Minha Redenção”, escrito por mim, no ano de 2018.
Por favor, esteja ciente de que "Reféns do coração" é um romance
maduro e alguns capítulos podem gerar desconforto.
Gatilhos:
- Bullying infantil com consequências graves (Transtorno alimentar
marcado por compulsão, seguido de métodos para evitar o ganho de peso)
- Relatos do passado de violência psicológica, física e sexual
.
Sinopse
Trilha sonora
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo 1
Epílogo 2
Agradecimentos
Sobre a Autora
Redes sociais da autora
Outros livros da autora
Antes
Tudo doía.
Com a mente turbulenta, lutei para recuperar as memórias e sofri
quando elas se consolidaram.
Me encontrei encostada na parede de um dos banheiros da boate
enquanto três estranhos revezavam-se em suas próprias satisfações.
Frustrada com a situação em que me coloquei, depois de três anos
sóbria, me forcei a abrir os olhos. Foi quando vi o rosto do meu irmão mais
velho, bem como o clarão do dia.
— Mimo... — murmurei seu apelido.
— Já são duas da tarde. Acorda, precisamos conversar.
Seu tom pesado me cobriu de vergonha.
— C-como cheguei aqui? — Com dificuldade, sentei-me na cama e
encarei meus dedos feridos sobre o lençol que cobria minhas pernas.
— Nicole encontrou você e com a ajuda do namorado dela e do
Felipe, a levou para o hospital.
— Droga!
— Droga, Alicia?
Senti as primeiras lágrimas descer. Luiz Miguel era como um pai para
mim e eu o respeitava com a minha alma.
— Posso te dar um abraço antes do sermão? — pedi com a voz falha.
Ele negou, fazendo-me encará-lo meio ressentida.
— Eu te abracei toda a minha vida. Mimei. Conversei. Protegi. Fiz o
meu melhor para criar você e nosso irmão, lutei para suprir a falta do seu
pai e derramei meu próprio sangue para dar a você mais do que podia. Mas
hoje, só hoje, depois de todos esses anos, reconheço que errei
— Você não errou...
— Calada! — gritou, me fazendo estremecer. — Heitor sempre achou
que faltava pulso firme, enquanto minha mãe e eu mimávamos e
estragávamos.
— Mimo, me dá o seu colo como das outras vezes. Por favor, só
preciso disso agora. — Estendi os braços, mas ele me ignorou.
— Não é possível que todos esses anos de terapia não tenha lhe
ajudado a ser uma pessoa melhor. Todo mundo tem problemas e você não é
o centro do universo, minha irmã. Até a faculdade você abandonou. O que
quer da vida, caramba? Quando pretende reagir?
— Mimo...
— Calada! Ainda não terminei e você vai me ouvir!
— P-perdão... — Solucei.
Ele sempre cuidou de mim, nunca me questionou, mas agora era um
homem casado e sua esposa me odiava. Eu definitivamente estava perdendo
meu melhor protetor.
— Não vou deixar você longe dos meus olhos. Já conversei com a
mãe e você vai comigo para o norte.
— Só se você me drogar e amarrar! — Eu o encarei. — Prefiro viver
na rua a morar sob o mesmo teto da mulher insuportável que você chama de
esposa.
— Preconceituosa, arrogante, mesquinha, maliciosa, irresponsável!
Meu Deus, como eu errei em te deixar tanto tempo em uma bolha protetora,
Alicia! — Ele arfou e piscou para afastar as lágrimas. — Você não
consegue superar traumas, porque só alimenta o que não presta!
— Paraaaaa! — Pressionei minhas duas mãos nos ouvidos.
— Sua cunhada me confidenciou o que passou em suas mãos na
infância e na adolescência.
— Ela tirou tudo de mim. Tudo! Agora tirou você! — gritei e Luiz
Miguel agarrou meus pulsos, me forçando a tirar as mãos da orelha.
— Antes de pegar você no hospital, fui à delegacia visitar um dos
filhos da puta que esteve com você. Eu juro que não consigo acreditar no
que ouvi enquanto quebrava o nariz dele.
— Por favor, não acredite. — Me engasguei no choro. — Não
acredite...
— Você pediu para ser usada por ele e mais dois, Alicia? — Ele
soltou meus pulsos — Isso já aconteceu antes?
— Cala a boca, Luiz Miguel! — Apertei os dedos feridos no lençol e
enrolei a mão quando senti que saía sangue. — Sai daqui!
— Do meu bolso não sai mais um centavo para bancar suas
irresponsabilidades. — Ele andou dentro do quarto. — O carro vai
continuar com você, isso se suas visitas ao orfanato forem frequentes. Vou
ligar toda semana e pedir relatório.
— Vai se ferrar e lamber os pés da sua mulherzinha! — gritei entre
soluços. — Delegado de merda! Capacho de mulher! Pau-mandado! —
Fiquei de joelhos na cama e vi minha mãe entrar imediatamente no quarto.
— Filho, já chega!
— Estou com tanto desgosto, mãe. — Meu irmão quase perdeu o
fôlego. — Nunca pensei que chegaria a esse ponto.
— Você não é meu pai! — gritei, magoada! — Bastardo!
Luiz Miguel tirou o cinto da cintura.
— Não, filho. — Minha mãe segurou a mão dele e me encolhi na
cabeceira da cama.
Eu merecia uma surra, mas só queria que ele me abraçasse.
— Alicia está se afundando de novo, mãe! Com a minha
transferência, não sei como vai ser... — disse embargado, e o cinto de
couro enfiado em sua mão só aumentou minha raiva.
— Não, não estou me afundando! Sou mesmo uma vagabunda que
gosta de tapa na cara e trepadas violentas! — Com raiva, usei palavras que
os dois nunca ouviram sair da minha boca. Aquela merda sempre foi
velada.
— Shh... filhinha! Não fala assim. — Minha mãe começou a chorar.
— Hoje vou sair com o primeiro cara grosseiro que encontrar na rua!
Porque eu realmente aprendi a gostar desse inferno! — Cheia de ódio,
continuei me machucando, machucando as pessoas.
Luiz Miguel viu o desespero da minha mãe e me deu a primeira
cintada.
— Ahhhhhhh! — gritei, me virei para proteger minhas pernas e levei
uma cintada no traseiro que doeu mais do que a primeira.
— Chega, filho! Por favor, não faça isso — mamãe implorou e ele
parou de me atacar.
— Mãe, a senhora não vai soltar nenhum centavo na mão dela. Vamos
tentar resolver essa situação de outra maneira — meu irmão declarou entre
engasgos. Eu estava com ódio, mas vê-lo chorar, de alguma maneira, doeu
mais do que as marcas vermelhas em minha pele. — Desejo de todo o
coração que você se torne uma pessoa melhor e que seja respeitada como eu
te criei para ser. — Limpou as lágrimas no braço. — Veja um médico para
ela, mãe. Um método para evitar gravidez. Já que não se importa em pegar
uma DST, pelo menos protege a vida de uma criança inocente.
— V-vou denunciar você para a corregedoria... — murmurei no meio
da asfixia do choro. — Nunca vou perdoar o que fez comigo...
Luiz Miguel não deu importância para minhas palavras. Puxou a porta
com violência, saiu do quarto segurando seu cinto e a mamãe seguiu atrás
dele.
Totalmente no fundo do poço, inclinei meu corpo sobre a cama e
gritei, chorando como a criança mimada, irresponsável e doente que nunca
deixei de ser.
Saí do banheiro vestida com uma camisa longa que cobria o tecido da
minha calcinha. Não me olhei no espelho, mas passei o pente no cabelo
molhado e protetor solar no rosto. Estava reagindo depois de setenta e duas
horas enterrada sob os lençóis.
Durante o isolamento, mamãe levou minha comida nas horas certas e
beijou meus cabelos com ternura, mas não trocamos uma palavra. Ela
estava triste, eu envergonhada.
Abri a porta do meu quarto e andei descalça até o penúltimo cômodo
no corredor.
Que a vozinha não tenha ouvido a briga, desejei em pensamento.
A porta estava aberta. A cuidadora deixava assim quando precisava se
ausentar.
Após a morte repentina do meu avô, a vovó Alice adoeceu de tristeza
e precisou de cuidados especiais. Foi um alívio quando mamãe conseguiu
convencê-la a deixar o rancho para morar conosco.
Me aproximei e encostei a cabeça na guarnição da porta, admirando a
velhinha mais linda do mundo, sentada em sua cadeira de balanço.
— Oi, borboletinha. — Ela logo me notou e ergueu os olhos do
paninho de tricô.
— Oi, vozinha... — Entrei e me sentei no chão, aos pés dela.
— Você está melhor agora?
— Não muito, vovó, mas vai passar. — Constrangida, peguei a linha
de tricô do chão e enrolei o excesso.
— Estou fazendo um casaquinho. — Ela puxou conversa — Esperei
muito tempo por um bisneto, depois do casamento do Mimo, estou mais
confiante.
— Mas vozinha, você já fez dois baús de roupas. É o suficiente para o
bebê.
— Serão muitos bisnetinhos, filha. Do Mimo, do Heitor e as suas
borboletinhas. — O sorriso esperançoso foi dos lábios finos aos olhos
clarinhos e estremeci, lembrando-me do horário dos exames que mamãe
tinha marcado na clínica.
Antes de viajar, Luiz Miguel informou à mamãe que ligariam do
pronto-socorro quando o resultado dos exames específicos ficasse prontos,
mas orientou que ela não me deixasse voltar lá, assim me pouparia de ser
vista como "a menina estuprada".
Não havia chance de gravidez, mas o medo de ter contraído uma DST
era real.
— Vovó, vou precisar sair agora. — Beijei a mão dela. — Posso
dormir com a senhora esta noite?
Meu tom saiu um pouco engasgado. Sentia necessidade de
aconchego, mas tinha vergonha de olhar para as pessoas em minha casa.
— Vou dormir tarde, só para esperar por você. — Ela sorriu
animadamente.
— Não, vozinha. Prometo voltar cedo da rua. — Beijei sua bochecha
enrugada e fofa. — Vou trocar de roupa.
Levantei-me rápido e voltei para o meu quarto.
Sentada na recepção do laboratório, vasculhei as redes sociais da
minha cunhada em busca de qualquer sinal de remorso do meu irmão. Ele
era discreto, sua posição na Polícia Federal assim o exigia.
Não encontrei nada no perfil da Maria Eduarda. Ela só havia
interagido com uma postagem de seu namoradinho de infância, algo sobre o
escritório da família.
Com os olhos presos na tela, funguei para afastar o odor fétido que
atingiu minhas narinas.
Caramba, só de pensar no embuste senti o cheiro dele, pensei, mas em
seguida ouvi um sussurro conhecido, o que fez meu rosto virar e meus
olhos terem o desprazer de captar a figura de Felipe sentando-se a algumas
cadeiras de onde eu estava, sorrindo e beijando a mão da tal Doutora
Mariana.
Nojo!
Típico casal de romance clichê, daqueles que as pessoas gostam: a
pobretona empoderada, que estudou e cresceu na vida, e o babaca rico e
arrogante. A única exceção aos livros era a falta de beleza do macho.
Será que está grávida?, matutei. Estão muito animados para fazer
exame de fezes.
Dane-se!
Que venha logo cinco para fazê-lo perder noites e afetá-lo no
trabalho!, praguejei. Isso! E quando voltar para casa, frustrado por ser
incompetente, encontre a Doutora desleixada e com uma fila de crianças
esperando sua vez de pegar no peito.
Gargalhei por dentro, apreciando a cena maravilhosa que acontecia na
minha cabeça, mas enrijeci quando a mulher de jaleco chamou meu nome e
os olhos de Felipe Moedeiros bateram em mim.
Inferno!
Fingi indiferença, peguei minha bolsa e entrei no consultório.
As enfermeiras demoraram para encontrar minhas veias, então
perfuraram-me em ambos os braços e nas costas da mão esquerda. Foram
necessárias doze ampolas para o hemograma completo e tanto esforço me
deixou um pouco trêmula.
Minutos depois, deixei a sala e dei de cara com Felipe na porta, agora
sozinho e segurando a bolsa da mulher.
— Oi... — Puxou conversa e foi devidamente ignorado.
Caminhei rápido em direção ao estacionamento. Não olhei para trás,
mas eu podia senti-lo por perto.
— Como você está, ruiva? — Ouvi sua voz quando toquei a maçaneta
do carro.
— No dia em que você pagar minhas contas, eu te dou satisfação. E
dou com muito prazer! — retruquei, ainda de costas.
— Sem deboche, Alicia. Liguei para Nicole ontem. Ela falou com sua
mãe... Você ainda estava de cama. Fiquei preocupado.
Preocupado comigo?
Belisquei minha palma para afastar o sentimento idiota e me virei
para confrontá-lo.
O loiro já era horrível, mas aquele traje social piorou sua situação.
Seu rosto simétrico totalmente atípico não combinava com os olhos
azuis e maxilar exageradamente definido.
A calça de alfaiataria marcava os músculos da coxa de uma forma
muito estranha, e provavelmente havia enchimento entre as pernas para
completar sua feiura.
Totalmente ridículo, com seus músculos falsos, moldados por
esteroides anabolizantes e barba por fazer, que eliminava a menor
possibilidade de sensualidade masculina.
Felipe Moedeiros era um homem estrambólico. Nunca vi outro mais
ridículo.
Afastei meus pensamentos para evitar pesadelos noturnos.
Dava pavor só de pensar naquele homem em cima do meu corpo, me
arranhando com seus dentes falsos, usando suas mãos grandes para apalpar
meu traseiro, me fazendo tremer de raiva com aquela voz horrível perto do
lóbulo da minha orelha... Não, eu precisava evitar esse sonho maldito.
— Algum problema, ruiva?
Me recompus.
— Sua roupa é tão feia quanto você — disse a verdade e ele ergueu
uma sobrancelha, já dando um passo em minha direção.
— Nicole abriu um BO, mas infelizmente nossas leis são falhas. O
desgraçado já está nas ruas, igual os outros dois que fugiram.
— Vai a merda, Felipe! — gritei, coberta de vergonha. — Nem
mesmo fazer sexo em paz agora posso mais.
— Com três, no banheiro de uma boate?
— Foda-se o seu conservadorismo! A Doutora está te procurando
para avisar que outro pilantrinha Moedeiros está a caminho. Vai lá.
Felipe sorriu amargamente.
— E você, o que está fazendo aqui? Medo das consequências? Se
engravidar, sabe quem é o pai?
— Seu desgraçado! — Avancei, mas Felipe segurou meu pulso antes
que eu o acertasse. — Não venha com lição de moral. Você nem mesmo
tem o direito de falar comigo!
Eu o acertei com minha mão livre e marcas de três unhadas foram
deixadas em seu rosto feio.
— Quem vê essa garotinha zangada não tem ideia de como é a mulher
nociva. — Ele ergueu meu punho bem alto. — Sabe, os homens da minha
família são conhecidos por serem bons domadores de feras.
— Vá se ferrar! Você e os cretinos da sua família! — gritei tão alto
que minha garganta doeu e tentei, inutilmente, mordê-lo.
— Mas acredito que não herdei esse destino. Odeio problemas.
Prefiro resolvê-los e ganhar dinheiro com isso.
— Estou pensando em colocar seu nome na boca de um sapo. O que
você acha, bastardo?
Foi uma ideia esporádica, mas fiquei tentada.
Será que essas coisas dão certo?, meditei, mas logo Felipe zombou
das minhas palavras, evidenciando a covinha na bochecha esquerda, um
sinal tão ridículo que me desconcentrou.
— Procure o sapo e mantenha-se ocupada, coração.
— Eu te odeio tanto, Felipe. — Suspirei alto demais.
Suspirei de desgosto.
— O que aconteceu com sua mão? — Sério, ele olhou diretamente
para meus dedos sem curativos e inflamados. — O que aconteceu aqui? —
Olhou com mais atenção. Tentei puxar a mão dele, mas não permitiu. —
Você já estava assim, naquela boate? — perguntou com os olhos nos meus.
— Minha resposta mudará alguma coisa em sua vida? Poupe-me do
desprazer de ouvir sua voz, Felipe. Vá cuidar de sua mulher.
— Vem aqui. — Me puxou pelo pulso, colocou minhas costas na
porta do carro e desceu os olhos para o meu corpo.
Tentei fugir, mas ele me prendeu e continuou a fiscalizar tudo, me
cobrindo de vergonha por estar com sobrepeso.
— Me larga!
— Quem fez isso com seu corpo? Sua perna está marcada e seus
dedos cortados. Onde conseguiu esses hematomas?
— Me deixa ir... — Minha voz saiu trêmula.
— Você está comendo direito? — indagou e segurei as lágrimas com
todas as minhas forças. Minha fragilidade não poderia vir à tona na frente
dele. — Continua malhando? Que suplemento você está usando? Responde,
menina. — Afrouxou a mão no meu pulso e deslizou as pontas dos dedos
sobre o lugar. — Quem machucou você, ruiva?
Forte, Alicia. Você é forte, declarei em pensamento e um soluço
solitário escapou da minha garganta.
— Seu perfume está embrulhando o meu estômago, Felipe...
Fechei os olhos quando ele arrumou as mechas displicentes do meu
cabelo.
— Onde estão seus brincos? Não me lembro de ter visto suas orelhas
sem um par deles... — Esfregou o polegar e o indicador no meu lóbulo
vazio. — Precisa ficar longe de caras como os da boate. Seu corpo é frágil e
você é pequena demais para lidar com esse tipo de coisa. Não consegue se
virar sozinha, coração?
— Felipe? — A namorada apareceu e o loiro se afastou
abruptamente. — É minha bolsa no chão? — ela questionou. — O que
estava acontecendo aqui, Felipe?
Corri a mão pelo cabelo, saí do lugar e destranquei meu carro.
— Foi só um momento. Releve isso, querida — Olhei para o loiro e
torci meus lábios em um sorriso maligno. — Esse safado me procura
sempre que a saudade aperta.
— Que palhaçada é essa, Felipe? — A mulher o encarou, perdendo
um pouco da compostura.
— Vamos para o carro. Explico no caminho. — Felipe beijou a testa
dela.
Um bolo angustiante travou minha garganta, não consegui respirar
profundamente e entrei rápido no carro.
No final da rua, senti as primeiras lágrimas ocuparem seu espaço.
Levantei-me com cautela para não acordar minha avó e, após enrolar
o cobertor em seu corpo e calçar meus chinelos, abri a porta e fui para o
meu quarto.
Ainda era cedo, mas meu dia ia ser longo e eu precisava me preparar
psicologicamente para mais um dia de visita ao orfanato.
Nua e no banho, descansei minha testa na parede de azulejos e senti o
cansaço do meu corpo ficar mais forte através da minha tontura matinal.
Com os olhos fechados, desejei que a água quente também levasse
embora minhas fraquezas, ansiedade e gatilhos emocionais.
Nunca dirigi nada tão velho na vida e, após passar muita raiva no
trânsito, estacionei o fusca amarelo na rua dos hospitais infantis da cidade e
segui para agilizar o atendimento.
— Ei, para onde você está indo? — Julia perguntou, com a bebê nos
braços.
— Ao hospital. Por que estamos aqui, criatura?
— Aquele é o hospital público, Alicia. — Ela apontou para o prédio
de dois andares do outro lado da rua. — Trabalho nessa área particular há
quatro anos e trazia as crianças aqui, mas no ano passado muitas delas
pegaram gripe na mesma semana, as consultas tornaram-se rotina, então a
direção vetou as consultas.
— Que horror!
— Vamos! Precisamos implorar aos céus para que a pequena Flor seja
atendida antes de sentir fome.
Arfei, ajustei minha sandália de salto, descansei a bolsa de
maternidade em cima da minha e segui Julia.
Logo na entrada do local público e lotado, ouvi uma comoção por
divergências políticas. Na recepção, uma mulher chorava com um menino
minguado nos braços e várias mães conversavam ao redor dela.
Atualmente
Parei o carro em uma vaga perto da entrada do prédio e soquei o
volante, temendo perder Mariana depois daquele deslize infeliz e sem
sentido.
Após perder Duda para o irmão mais velho de Alicia, tive vários
relacionamentos, um após o outro, mas tudo mudou quando conheci
Mariana no escritório da minha família. Uma negra linda, atraente, bem
resolvida, inteligente e que me deu muito trabalho para conquistar.
Foram meses de insistência, enquanto enfrentava meu avô
incisivamente para que nada me atrapalhasse.
“— Garanto que não vai influenciar o nosso desempenho —
expliquei, durante um longo sermão sobre a política de nossa empresa, que
não aceitava relacionamentos amorosos entre funcionários.
— A doutora Mariana veio pronta, ela é uma das melhores
advogadas do nosso escritório. Não vou perdê-la sob uma possível
acusação de assédio. Essa moça já está incomodada, não está vendo,
Felipe? — vovô continuou seu sermão.
— Ela só está com medo de decepcioná-lo violando a política, mas se
você mudar, tudo isso pode ser facilmente resolvido.
— Não faço mais alterações a esse respeito. Meu escritório não é
bagunça. Ou já se esqueceu daquela briga ridícula, quando o Dr. Maurício
pegou sua esposa na mesa do escritório do Dr. Fernando, montada no
bastardo? Até a polícia foi chamada. Aquela situação fez uma mancha
incorrigível na imagem do escritório, Felipe. Não vou perder meus
melhores profissionais e você vai dar o exemplo! Encerramos nossa
conversa. Vai trabalhar.
Segurei o riso enquanto me lembrava do episódio. Naquele dia, meu
avô quase teve um infarto fulminante, mas no final a situação rendeu boas
risadas entre os corredores.
— Não tem comparação, vovô...
— Deixe de chacota, Felipe! — Sua mão bateu na mesa e senti o
impacto em meu corpo. — Não vou viver para sempre. Hoje estou aqui,
amanhã talvez você precise assumir o meu lugar. Está preparado para isso?
— Não consigo controlar o que sinto, vovô. E, com todo o respeito
que tenho pelo senhor, se Mariana ceder, não haverá política que me
impeça. — Levantei-me da cadeira.
— Seu insolente! — retrucou, mas eu já estava longe da sala.”
Na semana seguinte houve um congresso em São Paulo e, como meu
avô estava me preparando para ocupar seu lugar, fui escolhido para a
viagem bancada pelo escritório. Mariana e outros cinco bons advogados
também foram nomeados pelo patrão.
Não haveria melhor oportunidade para uma abordagem direta.
Após um longo dia de muitas palestras e atividades, meus colegas e
eu jantamos no próprio restaurante do hotel. No final da noite, Mari e eu
subimos para o terraço e ficamos em uma espreguiçadeira, na área da
piscina. Lá, conversamos e aconteceu. Foi mágico, encantador e
deliciosamente excitante.
“— Está tarde, Felipe. — Ela encerrou um de nossos muitos beijos.
— Amanhã será um longo dia de trabalho, doutora. Precisamos
aproveitar o que nos resta hoje. — Enrolei um de seus cachos em meu dedo.
— Doutor Olavo não vai gostar de saber que o herdeiro está beijando
uma das funcionárias, quando deveria descansar para abraçar o mundo de
oportunidades, amanhã.
— Mari... — Afastei meu rosto o suficiente para fitá-la. — Não se
preocupe com isso. Meu avô quer que eu seja o melhor e vou ser o melhor.
Ele precisa se conformar com minhas escolhas nesse processo. Não vou
desistir de você.
— Sou nova na empresa e preciso muito dessa qualificação, Felipe. O
escritório do seu avô é o mais conceituado de todo o Estado e foi a
realização de um sonho ser contratada. — Ela apoiou a mão na minha
nuca. — Não posso prejudicar minha carreira.
— Quando meu avô vê futuro nos olhos de um dos funcionários, ele
investe alto. É por isso que você está aqui com apenas quatro meses no
escritório. Ele quer moldá-la, Mari.
— Quer me deixar vaidosa e confiante para ficar com você,
escondida do doutor Olavo, não é? — Ela riu. — Não é assim que funciona,
rapaz. Você está terminando a faculdade e já tem o mundo aos seus pés.
Terminei minha especialização há quatro anos e estava desempregada...
Não posso arriscar.
Selei seus lábios.
— Vovô teme que nosso trabalho seja comprometido, mas isso não
acontecerá. Quanto a ficarmos escondidos, não. Quero segurar sua mão e
levá-la para minha casa. Apresentá-la à minha família e conhecer a sua.
Quero você, Mariana.
Ela sorriu, ligeiramente emocionada.
— Mas seu avô...
— Shh... — Fiz um carinho em seus cabelos — Quer namorar
comigo?
— Oi? Já namorar, Felipe?
— Faz quatro meses que estou mostrando que quero isso.
Ela arfou de olhos fechados e sussurrou:
— Sou mais velha que você.
— Experiência é tudo o que preciso — rebati imediatamente.
— Minha família ainda mora na periferia da cidade.
— E a minha na zona nobre. O que isso tem a ver com o nosso
namoro?
— Você não existe, Felipe.
— Sim, existo e quero você. — Segurei seu rosto com as duas mãos.
—Você me quer?
Ela levantou da espreguiçadeira e se sentou no meu colo, em cima do
acúmulo de tesão herdado de nossos beijos anteriores.
— Foi tão difícil ignorar seus avanços. — Pressionou a boca na
minha. — Na sua carteira tem preservativo?
— Um... Sério? — perguntei ansioso e totalmente alucinado com o
deslizar das curvas fartas sobre meu colo.
— Há quatro meses venho observando você entrar todo gostoso no
escritório, desejo tocá-lo por toda parte e temo perder meu emprego. — Ela
começou a desafivelar meu cinto. — Vamos começar aqui, depois
terminamos no quarto.
— Você é maravilhosa, mulher. — Beijei seus lábios enquanto sua
mão me libertava de dentro da calça e começava a trabalhar no meu pau já
duro.
— Um preservativo não será suficiente. Vamos descer — ela
sussurrou em meu ouvido e mordeu levemente minha orelha.
— Quero aqui. — Levantei seu vestido e empurrei o segundo tecido
para o lado. Tocando-a me surpreendi com a pele completamente úmida. —
Porra, Mari! Já molhada!
— E esfomeada. — Ela apoiou os joelhos na cadeira e desceu,
engolindo-me em três lentos goles.”
Depois daquele momento, não fiquei longe dela por um dia. Nosso
sexo era muito prazeroso, nosso relacionamento era estável, estávamos
comprometidos com o profissionalismo e planejando um bebê.
Mari teve endometriose, foi alertada das dificuldades depois dos trinta
e ser mãe era o seu grande sonho. Sonho que mergulhei de cabeça para
realizar. Agora que estraguei tudo, não sabia como ia ser.
Porra, como consegui trair Mariana com Alicia?
— Felipe? O que faz aí? — Levantei os olhos e vi Mariana na porta
do carro, com duas sacolas de restaurante na mão.
— Mari — deixei o veículo —, precisamos conversar.
— O que aconteceu? — Estudou meu rosto com cuidado.
Não fazia ideia do meu estado, mas sentia queimação das unhas da
ruiva por toda a parte e o latejar dos dentes do vira-lata no meio da minha
canela. Não importava, não era uma preocupação no momento.
— Vamos subir. Preciso confessar uma sacanagem que fiz.
Peguei suas sacolas e o silêncio foi nossa companhia até chegarmos
ao terceiro andar do prédio. Quando entramos no apartamento, larguei as
sacolas e puxei-a para o sofá.
— Você me traiu, não foi? — A pergunta veio muito cedo, em tom
embargado, fazendo a culpa transpassar meu peito com mais intensidade.
— Fui um canalha. — Abaixei minha cabeça, totalmente
envergonhado de colocá-la naquela situação.
— Já tínhamos combinado... Se acabasse o tesão de um lado,
resolveríamos no diálogo, antes de traição, antes de tudo. — Ela se levantou
do sofá e secou os olhos com a mão.
— Não foi isso que aconteceu, Mariana. Nada mudou aqui.
— Contei a você que já tinha sido traída por um idiota e como foi
doloroso. Confiei em você, Felipe, estamos planejando um bebê! — Ela
soluçou, se engasgou e tossiu.
Minha culpa era ainda maior.
— Me perdoe, Mari. — Abracei seu corpo por trás. — Por favor,
preciso de uma nova chance. Se não for hoje, amanhã ou daqui a um mês,
mas não desiste da gente, do nosso bebê.
— Sai da minha frente agora, Felipe! — Uma curta pausa de silêncio
foi dada até que tirei minhas mãos de seu corpo. — Jurei para mim mesma
que nunca mais passaria por isso. Não, não aceito suas desculpas.
— Não vou desistir de você, Mariana. Não aceito perder o que
estamos construindo para um beijo sem importância.
— Com quem foi? — perguntou e não tive coragem para olhar em
seus olhos.
— Não importa. Traí, fui um canalha de qualquer maneira.
— Quem, Felipe? — insistiu. — Felipe!
— Beijei a ruiva — revelei, ela saberia de qualquer maneira.
— Claro! Quem mais seria? — Ficou mais indignada. — Não foi só
um beijo, Felipe! Foi querer! Você é louco por ela.
— O que você está dizendo não faz nenhum sentido. — Tentei
alcançar a mão dela, mas ela se esquivou. — Mari, Alicia nunca significou
nada para mim.
— Duas vezes... por duas vezes você chamou o nome dela enquanto
dormia.
— Pesadelo.
— Gemendo e duro dentro do calção, Felipe!
— Caralho, quando isso?
Tentei puxar na memória. Antes eu sonhava com a ruiva, mas sempre
foi algo relacionado à mutilação.
— Sonso! — Ela caminhou até a porta e abriu. — Sai da minha
frente.
— Não consigo controlar pesadelos, Mariana. — Abracei-a — O
beijo foi um maldito erro que nunca mais vou cometer. A menina estava
doente, fui rude com ela e pedi desculpas. Só isso.
— Com cortesia de um beijo, Felipe? — Me estapeou.
— Ela estava frágil, eu fui o canalha, Mari.
— Ainda defende a ninfeta! — Me empurrou. — Não olhe na minha
cara tão cedo, Felipe!
— Tão cedo? Então vai me perdoar? — Me afastei dos seus braços.
— Sai, ou vou terminar o serviço que fizeram no seu rosto.
— Tudo bem, já estou saindo. — Passei na divisa da porta. — E,
antes que você saiba por terceiros, a garota transmitiu o beijo no Instagram
dela... — A porta bateu na minha cara. — Posso voltar amanhã? —
perguntei com as mãos na guarnição, mas não obtive resposta.
Fiquei lá por alguns segundos, ouvindo seus soluços do outro lado da
porta.
Machuquei onde já existia uma velha ferida. Seria difícil conseguir o
perdão, mas eu não a deixaria desistir do nosso bebê.
Cada vez que me aproximava da ruiva, sofria graves consequências.
Só podia ser uma maldição.
Saí do banheiro sem nada no corpo e tomei um susto ao ver o meu tio
sentado e dando pulinhos sobre minha cama.
— Veja só, o pinto albino já não nega a origem na família... Não
herdou só o meu rosto de galã, sacana. Teve sorte de não puxar o seu pai.
— Já terminou sua licença médica, tio? — Peguei a primeira cueca da
gaveta e coloquei no corpo.
— Estou de licença do trabalho, não da minha família. — Ele moveu
o braço que estava em uma tipoia preta, lesão herdada em uma tentativa de
homicídio que sofreu.
Por duas vezes, o falecido pai de Alicia tentou dizimar meu tio. O
cara tinha ciúme da proteção do pai ao aluno, que mais tarde se tornaria seu
maior concorrente no mundo dos negócios. Não há como negar que
algumas situações foram trocas de chumbo. O passado do meu tio também
não era dos melhores.
— Está tudo bem com a tia e meu primo? — Desconfiado, presumi o
motivo de sua visita.
— Sua tia está mais linda do que ontem e o pequeno Olavo criando
estratégias para se casar aos sete anos.
Rimos juntos. Amarrei o cordão da minha calça e me sentei na
poltrona.
— É o boato da live, né? — Esfreguei meus cabelos molhados.
Usei o primeiro xampu que encontrei no banheiro, mas acho que já
tinha vencido. Me deu coceira.
— Olavinho gritou que o primo estava mandando ver no Instagram da
mãe dele. Assisti segundos antes de ser excluído.
— Porra, agi como um canalha, tio. Mari não podia passar por isso.
— Foi ela que esfolou sua cara?
— Não, a outra. Filha do bandido.
— Felipe, fale a verdade para o seu tio, meu filho, você está
interessado na canela-fina?
— Claro que não, só quero distância. Aquela perturbada sempre
estragou minha vida. Para você ter ideia, houve um tempo em que eu
entrava na garagem da faculdade temendo encontrá-la com uma arma nas
mãos. Olhava em volta antes de entrar no carro e me assustava sempre que
via uma ruiva na rua. Ela ferrou minha cabeça por um longo tempo, tio.
Alicia é o retrato do...
— E o beijo? — me interrompeu. — Será que saí de casa na hora do
café da manhã para saber que meu sobrinho beija mulheres por medo?
Inferno!
— Foi coisa de momento... — Limpei a garganta. — Quando vi já
tinha acontecido.
— Vi sua empolgação no vídeo, sacana. De homem para homem, o
pinto albino estava animado, certo?
— Dane-se! Você não sabe o que passei nas mãos dela! — Soprei
com força e puxei meus cabelos, sem aguentar com a comichão.
— Me respeita, rapaz! — Usou um tom afiado. — Me formei em
putaria antes de você nascer, sei do que estou falando. Foi beijo de desejo
reprimido. Confessa, machão!
— Não foi, posso provar! — Descansei meus braços sobre os joelhos
e olhei para ele. — No mês passado falaram sobre ela no grupo do
WhatsApp que só tem ex-alunos homens da antiga escola. Fiquei furioso.
Normal, ficaria se soubesse de qualquer outra mulher. Eles me expulsaram,
mas descobri que cerca de trinta já haviam ficado com ela. Na adolescência
e mais tarde também.
— Ela não é solteira? — Tio Edu ergueu uma das sobrancelhas.
— Sim, mas é sujo falar detalhes íntimos da garota em uma roda de
WhatsApp. — Cobri meus olhos, muito furioso com certas memórias. — Se
a ruiva fosse um problema meu, juro que não deixaria um dente na boca
deles.
— Sim, você está certo e ficou com raiva e ciúme. Continue.
— Não! — Olhei para ele, rindo nervosamente. — Tenho ciúmes da
Mari, minha namorada que vale por todas.
— É bom lembrar que nenhuma outra se compara à minha amada
mulher — resmungou enquanto pensava e me fitava com seus olhos
desconfiados.
Tio Edu acreditava fielmente que um passado sujo seguido por uma
redenção dolorosa lhe dava o direito de ser um coach de relacionamentos.
Louco e devotado à esposa, ele brigava ferozmente para exaltá-la em
qualquer situação. Outro dia contratou alguns figurantes para aplaudir o
desfile de sua marca de roupas femininas. Minha tia expulsou ele e os
atores por atrapalharem o evento.
— Você não conhece Mari. Ela é maravilhosa em tudo. Tudo. —
Tentei desviá-lo do assunto da ruiva, sabia que funcionava.
— Por favor, não queira entrar em uma competição, Felipe. Aponte
um erro na sua tia que não seja eu. Tente fazer isso e não terá argumento.
— Não estou comparando...
— Mas pensou, e isso não vou admitir.
— Às vezes tenho medo de sua devoção. — Sorri com as loucuras
daquele homem de quarenta e oito anos que se achava um adolescente.
— Sinal de que você nunca amou uma mulher de verdade, seu
bastardo. Não há ninguém como sua tia no mundo e ela pode facilmente
encontrar um infeliz melhor do que eu, então não tenho escolha a não ser
amá-la com tudo o que tenho e o que não tenho. Dedicação total. Uso
antolhos mentais, então nem olho para os lados.
— Tia Fernanda é uma santa. A maior prova disso é carregar esta cruz
de noventa quilos nas costas.
— Oitenta. — Ele deixou bem claro. — Voltei a fazer exercícios e
perdi até o sinal da barriga. — Levantou a blusa. — Chapada. Até tento,
mas não consigo deixar de ser gostoso.
— Insuportável! — Continuei rindo, era sempre assim quando a gente
se encontrava.
— Tem alguma coisa na sua cabeça, sacana. — Ele apontou para
onde eu coçava sem trégua.
— Foi o xampu vencido.
— Você tentou, mas já me conhece, então vá em frente, libere tudo o
que está acontecendo. Deixei sua tia para vir aqui e não vou perder a
viagem.
— Os babacas do grupo disseram que Alicia não... — Hesitei, sem
jeito para passar o assunto adiante.
— Não é higiênica? — tio Edu completou.
— Alicia tem cheiro de flores, tio.
— Algumas mulheres deixam um pequeno topete... Uma coisa
mimosa e selvagem ao mesmo tempo. É normal não se depilar.
— Droga, que merda de assunto é esse? — Apertei meus olhos, pois
comecei imaginar os pelinhos ruivos que beirava o perigo.
— Está imaginando, não é sacana? — Meu tio estalou os dedos, me
fazendo jogar o corpo para trás e voltar minha cabeça para o teto.
— Deixa a Alicia quieta e no lugar dela, tio. É melhor assim.
— Ela não alcança o clímax? — Tio Edu chegou à conclusão e
confirmei com apenas um aceno de mão.
— É horrível até imaginar. Falaram que com alguns ela finge e com
outros nem se incomoda — expliquei superficialmente, ciente de que meu
tio era o único homem confiável a ouvir aquela explosão.
— O erro está neles, mas é triste saber que ela se sujeita a essa
situação. A magrela é tão jovem, educada e até meio bonita.
Meio bonita era até um insulto. A garota tinha traços perfeitos.
Sinceramente, acredito que nunca vi outra ruiva tão bonita em qualquer
outro lugar. Pena que o interior dela não era bom.
— Qual outro motivo para escolher sexo casual senão por prazer, tio?
— Me levantei do sofá e sentei na cama.
— Isso é perturbador. — Meu tio também analisou.
— Alicia é imprudente, uma verdadeira peste, mas seus olhos são
tristes. Dentro daquelas esferas verdes vejo o inverso da Alicia que
conheço.
— Você pensou em mostrar a ela o quão bom o sexo pode ser, não é
sacana? —Meu tio deu um tapa na minha genitália e rolei para o lado, me
protegendo e esperando que os segundos de dor passassem.
— Não. Claro que não! — falei com a voz sofrida. — Alicia não é
problema meu. — Sentei-me com a mão entre as pernas.
— Sim, você pensou e esse pensamento te deixou insano — insistiu e
estapeou minhas costas.
— Esses remédios estão te afetando. — Me afastei, mas ele enlaçou
meu pescoço com o braço bom.
— Você fica perdido quando olha para ela, porque todas as vezes
imagina como seria levá-la ao limite. Sou experiente, Felipe. Eu era um
puto quando conheci sua tia, ela só tinha cabelo e olho e aconteceu a mesma
coisa... O que é isso? — Mexeu no meu ombro, pegou algo com a ponta dos
dedos e deu um pulo da cama. — Felipe, seu piolhento.
Sacudiu a mão e se esforçou para coçar a própria cabeça com o braço
da tipoia.
— Você trouxe essa merda, tio?
— O jegue do piolho estava no seu ombro. Você que é o piolhento! —
insistiu na acusação e sacudi os cabelos quando começou a fazer sentido.
— Porra, Alicia! Ela estava se coçando ontem.
— Saracura, piolhenta! — Meu tio começou a dramatizar enquanto
coçava a cabeça. — Terei que ser colocado em quarentena, longe da minha
ferinha.
— Preciso saber como está Alicia. Ela tem imunidade baixa, pode ser
um problema. Você tem o número da Samanta, tio?
— Claro que não. Como teria o número de um antigo negocinho? —
Pegou o celular do bolso. — Mas sua tia certamente tem esse contato.
— Cuidado com o drama ou minha tia vai pensar que é algo muito
grave — alertei.
— Ferinha, aconteceu uma coisa terrível e vamos ficar separados por
um tempo. — Ele já começou assim. — Não, estou bem, mas têm parasitas
morando em mim. É tudo culpa do seu sobrinho.
— Tio, pede o número.
— Não tem aquela magrela, filha da Samanta? Ela é piolhenta e
passou para o Felipe. Achei bem-feito, mas ele também passou para mim.
Se não percebesse, faria uma coisa horrível: levaria piolhos para seus lindos
cabelos.
— Você pode pedir o número? — insisti no que realmente importava.
— Seu sobrinho quer o número da Samanta e, como não tenho — ele
enfatizou a última frase. — Porque eu jamais teria alguns números
comigo... Me deixa falar, mulher, pare de gritar.
Tomei da mão dele.
— Tia...
— Que desespero é esse do seu tio?
— Me encontrei com a Alicia dos Álvares Azevedo e parece que ela
estava com alguns piolhos. Peguei piolhos e provavelmente meu tio
também. Preciso do contato de Samanta para avisar sobre a praga. A
menina estava confundindo com alergia.
Ouvi uma risada doce do outro lado da linha e olhei para meu tio, que
estava passando um pente no cabelo e jogando o que quer que saísse no
meu travesseiro.
— Manda esse piolhento voltar para casa, Felipe. Depois de onze
anos tenho que catar piolho na cabeça de Eduardo. Na alegria e na
tristeza, não é mesmo? Beijo, meu amor, vou enviar o contato agora por
mensagem.
Desliguei o celular.
— Tia Fernanda mandou você voltar para casa.
— Isso aqui é consequência do seu erro, homem adúltero! — Tio Edu
reclamou. — Preciso de um médico, um barbeiro e dedetizadores. Vou
raspar a cabeça antes de voltar para casa. Essa praga não pode chegar perto
dos cabelos da minha mulher.
— Deixa de drama, tio. — Vi que chegou a mensagem e logo
selecionei o número para uma ligação de voz.
— A perversão atinge até quem é puro — meu tio continuou
reclamando e esfregando a cabeça.
— Samanta! — Ela atendeu depois de quase um minuto. — É o
Felipe. Como está sua filha?
— Felipe, o canalha?
— Estou com alguns piolhos. Ela...
— Se você acha que vai acusar minha filha de colocar piolhos na sua
cabeça, está redondamente enganado — Samanta bradou do outro lado.
— Só liguei para avisar. O médico disse que ela tinha baixa
imunidade e não sei como essas coisas funcionam.
Ouvi um choro copioso de fundo e na sequência um barulho do que
parecia ser alguém vomitando.
— Sim. Ela pegou piolhos no orfanato e reagiu mal ao medicamento.
Dona Alice estava catando manualmente, mas ela não para de fazer
vômito. Estamos indo para a emergência. — A ligação sofreu interferência.
— Preciso desligar. — Foi encerrada.
— Porra, garota, complicada do caramba!
Joguei o aparelho na cama e olhei para meu tio, pensando em usá-lo
para receber notícias.
— Não, não olhe para mim! Esse piolho foi mandado do capiroto e é
o salário do seu pecado. Não vou compactuar com seu erro.
Sentada em um banco acolchoado, deslizei meus dedinhos pelo
teclado do piano de cauda que ficava no centro da grande sala dos meus
avós.
Meu pescoço acompanhava o som harmonioso da Quinta Sinfonia de
Beethoven e meu torso permanecia ereto, como se um espartilho reforçado
de junco me segurasse na postura elegante que vovó me ensinou equilibrar.
— Bravo! Bravo! — Encerrei a apresentação e vovô Alfredo me tirou
do banquinho e girou meu corpo no ar. — Você afronta no piano,
pequenina.
— A pianista mais linda é minha pequena Alicia. — Vovó liberou
aquele lindo sorriso que me aquecia.
— Sou a senhorita Butterfly, vovó. — Fixei a máscara no meu rosto.
— Com essas roupas posso voar muito alto.
— Sim, você pode tudo, Alicia. — Vovô me deitou em seus braços e
vagou pela sala, dando rédea solta à minha imaginação, permitindo que a
fantasia infantil fizesse sentido.
— Senhorita Butterfly, vozinho, não podemos desvendar o mistério.
— Oh, desculpe, senhorita, Butterfly. Serei mais cuidadoso a partir de
agora.
— A menina vai ficar tonta, seu Alfredo. — Papai abriu as duas
partes da porta e entrou na sala, imaculadamente arrumado em seu traje
social.
— Não vou ficar tonta. Posso voar e tocar piano, papai. — Continuei
de braços abertos e o vovô me levou até ele.
— É, parece que você aprendeu a fazer algo — papai disse ao me
colocar no chão. — Mas não se engane, Alicia. Música serve apenas para
entreter — completou, deixando uma carícia descuidada no meu cabelo. —
Agora vá, filha. Tire essas asas ridículas e tente aprender algo útil. Você já
é muito estranha para se envolver com música.
Entrei no orfanato e fui recebida por um abraço coletivo tão forte que
quase me derrubou dos saltos.
— Chega. Agora vão brincar. — Dei um tapa na bunda de uma
espoleta e dispersei todos para o parquinho.
A princípio toda aquela euforia infantil me incomodou, mas com o
passar dos dias fui me acostumando. As crianças tinham esperança em mim,
me viam antes dos problemas que me definiam. Sem falar que as tarefas
cotidianas me exauriram a ponto de quase anular meus demônios.
— Alicia, você precisa ver como Anna Flor ficou linda com a
roupinha que sua avó mandou. — A enfermeira Julia apareceu, me pegou
pelo braço e levou na direção da biblioteca, onde havíamos montado uma
decoração de bailarina no dia anterior.
— Eles já estão aí? — Me referi ao casal de médicos.
— Sim. — Julia limitou-se a dizer.
— Ouviu alguma coisa?
— Alicia, é um assunto confidencial. Não posso me envolver tanto...
— Ouviu ou não, Julia?
— Eles estão com problemas na documentação e o procedimento de
adoção foi adiado — revelou em um sussurro e liberei um longo suspiro.
— Espero que demore o suficiente para desistirem... — Soprei ar pela
boca, tentei aliviar o peso da angústia e entrei na biblioteca, pegando o casal
tirando fotos com Anna, que ria a cada clique do celular! — Com licença.
— Larguei o braço de Julia, passei pela médica e tomei a menina do colo do
homem. — Alguém aqui autorizou que as crianças fossem fotografadas?
— Não, eu...
— Cadê a Joana, Julia?
— Cortando o pão para os cachorros-quentes — respondeu a
voluntária.
— Ótimo, então estou no comando e ninguém aqui vai tirar foto com
as crianças sem minha permissão — declarei com autoridade.
— Me desculpe, mas ela estará em nossa casa em breve, então não
vejo mais problema. — A médica tentou pegar a bebê, mas me afastei dela.
— Venha com a mamãe, Laurinha.
Tremi dos pés à cabeça.
— Anna Flor. O nome dela é Anna Flor! — avisei, distraindo-me na
sequência com o impulso da bebê, que sorriu, estendeu os braços e se jogou
na direção da mulher.
Um gesto simples que afundou meu coração, trouxe lágrimas aos
meus olhos e me fez correr para fora da sala, levando a bebê para longe dos
dois estranhos.
Cheguei antes no orfanato, aprendi a trocar fraldas, a dar banho,
colocar para dormir, enchi de manias e dei a primeira mamadeira depois que
a sonda foi retirada. Eles não eram mais importantes do que eu na vida dela.
— Já falamos sobre não pedir colo para estranhos... — reclamei com
a voz embargada e me sentei em um banco no jardim. — Você nem entende
meus conselhos, vai acabar esquecendo de mim quando sair daqui.
— Alicia, não fica assim... — Julia se sentou ao meu lado.
— Conversei com Anna todos os dias, Julia, expliquei para não fazer
isso com estranhos... — Coloquei meu punho sobre os olhos e funguei com
a cabeça baixa. — Não gosto deles, principalmente do médico... —
Solucei.
O bebê puxou meu cabelo e tentou colocá-lo na boca, então Julia
começou a desatar seus dedinhos de aço.
— Anninha é muito apegada a você, seria maravilhoso se a adotasse
— Julia comentou enquanto eu fungava para desentupir meu nariz.
— Eu queria que ela ficasse aqui até os dezoito anos. Não tenho
condições físicas ou psicológicas de cuidar dela bebê.
— Por que você repete tanto isso, Alicia? Sua personalidade é forte,
você é um pouco mimada, mas não há nada de errado nisso. Você ama essa
neném e ela te ama. — Sorriu, usando aquele tom paciente que era a marca
registrada das voluntárias.
— Você só conhece o meu lado voluntário, Julia.
— Não, não. Você era bem nojentinha chegou aqui — sussurrou e
relevei a ofensa. — Mas se adaptou tão rapidamente. Começou a vir
diariamente e hoje se preocupa com o bem-estar das crianças.
— São médicos, casados e têm dinheiro. A única coisa que sei fazer é
tocar piano, o que é inútil perto deles.
— Você toca piano?
— Aprendi na infância, sou boa nisso, mas não toco mais.
— Oh, é uma pena. Meu primo vai se casar no sábado e está
procurando um pianista. O que ele contratou perdeu alguém da família, está
de luto e devolveu o dinheiro.
— Quanto? — perguntei, afastando o choro.
— Quatrocentos reais.
— Sábado?
— Sim.
— Seiscentos reais é um cachê razoável. Vou pensar.
— Falei quatrocentos, Alicia.
— Ninguém acha uma pianista em cima da hora, Julia. Seiscentos
ainda é pouco.
— Ele gastou muito nos preparativos. Seiscentos não cabe no
orçamento...
— Então manda o bonito baixar a marcha nupcial da internet. —
Balancei a perna para ninar Anninha, que já cochilava no meu colo. — Sua
família precisa aprender a valorizar um bom profissional, Julia —
murmurei, pensando nos quatrocentos reais.
— Vou falar com ele, te dou a resposta amanhã, pode ser?
— Não demore muito, amanhã minha agenda pode estar lotada... —
Vi uma criança nova brincando no gramado e olhei para Julia. — Quando
ela chegou?
— Ontem à noite. O conselho tutelar a encontrou sozinha e morrendo
de fome dentro da casa dos pais, que são donos de um bar na rodovia.
— Coitadinha, me lembrou a Milena cabeluda dos piolhos.
— Ouvi a assistente social e Joana conversando sobre Milena mais
cedo.
— Você gosta de fofoca, não é, dona Julia? — brinquei, para me
distrair.
Julia era quase uma santa. Se olhasse de perto, poderíamos até ver
uma auréola em sua cabeça.
— Entrei na sala para pegar o carimbo e escutei...
— Vá em frente, me diga logo.
— A assistente social fez uma visita de rotina e a encontrou com um
corte na testa.
— Estão batendo nela, Julia!
— Os pais adotivos foram receptivos. Disseram que foi uma queda e
a criança confirmou. Mas de qualquer maneira, o conselho de tutela fará
uma visita a eles amanhã.
— Amanhã, Julia? — questionei e Anninha acordou choramingando.
— Shh, dorme, neném. — Coloquei sua cabeça no meu ombro e me
levantei.
— Aí está você — disse Joana, aproximando-se com a assistente
social e o casal de médicos, que certamente foram fofocar sobre mim.
— Vem, Laurinha... — A médica tentou levar a bebê dos meus
braços, mas recuei.
— O nome da criança é Anna Flor — esclareci, lançando o meu pior
olhar.
— Ela é novinha, vai se adaptar ao novo nome. — A assistente social
veio com as mãos estendidas, tirou a menina dos meus braços e tive que me
conter.
A médica recebeu a bebê e tentei empurrar o bolo angustiante que
bloqueou minha garganta.
— É melhor cantarmos os parabéns logo. — Minha voz falhou, Julia
parou na minha frente e mexeu no meu cabelo.
— Isso, vamos cantar os parabéns e alimentar as crianças — Joana
disse, direcionando o casal de volta à biblioteca.
A assistente social olhou para mim por alguns segundos e depois
seguiu Joana.
— Quer água? — Julia perguntou. Balancei a cabeça e, puxando-lhe a
mão, segui o cheiro da Anninha.
Durante a festinha, meu bebê ficou no colo do médico. Cada palma
era uma fisgada no meu peito, como se um pedaço estivesse sendo
arrancado.
Meus sentimentos sempre foram intensos. Bons ou ruins, eu sofria
cada um deles. De todas as maneiras possíveis, os sentimentos me
destruíam.
— Doce ou salgado? — Julia perguntou, segurando dois pratos cheios
de comida.
— Os dois engordam.
— O que foi? — Ela colocou a mão na minha testa. — Você está
quente.
— Vou falar com a Anninha. Preciso sair um pouco. — Fui até Anna
Flor e beijei sua saia de tule.
— Você está se sentindo bem? — a médica perguntou e eu a ignorei.
— Volto amanhã, Anninha. — Acariciei sua barriga e evitei o contato
direto. Minha cabeça doía e meu corpo suava frio, não sabia o que estava
acontecendo, talvez fosse um resfriado. — Vou deixar seu presente no
berçário. Amanhã abriremos juntas.
Virei para o lado esquerdo e vi o rosto do médico. Ele parecia um
homem decente, diferente do outro que adotou a cabeluda, mas as
aparências enganavam. Ninguém podia tirar meu direito de suspeitar.
Olhei de novo para a Anninha e voltei para a Julia, que comia como
uma doida. Não sei como conseguia ter um corpo em forma e uma pele
macia. A sorte definitivamente não era para todas.
— Vou te dar um antitérmico — Julia disse de boca cheia,
abandonando os pratos sobre a mesa. — Vamos até o armário.
— Vou tomar, deixar o presente no berçário e depois você vai me
fazer um favor.
— É sobre a Anninha? — Enlaçou meu braço e me levou da sala.
— Não. Quero o endereço do casal que adotou a cabeluda.
— O que está pensando em fazer? — Pegou a bolsa do armário e me
deu um comprimido.
— Uma visita.
— De jeito nenhum. Você está com febre e não sabe o que vai
encontrar lá. — Colocou a bolsa de volta no armário.
— Preciso vê-la agora, Julia. — Peguei sua bolsa de volta. — Por
favor, venha comigo, estou preocupada.
— Esse é o endereço. — No banco do passageiro, Julia apontou para
uma casa com portões de ferro, do outro lado da rua, e foi fácil reconhecer o
homem alto e magro que mexia na traseira da caminhonete estacionada na
calçada.
— Traz seu celular e já deixa o número da polícia discado. — Saí do
carro e Julia me acompanhou, segurando meu braço, ajudando-me a andar
com os saltos na rua de paralelepípedos.
— Bom dia. Senhor Humberto — Julia disse e o homem se virou para
nós.
— Conheço vocês? — ele perguntou, olhando ao redor do perímetro
da rua
— Somos voluntárias no orfanato onde Milena morava — informei,
observando uma mala dentro do carro.
— Não tenho nada para vocês aqui — ele disse rispidamente, se
colocando entre nós, indo até o portão. — Lúcia Maria! — gritou. — Se
demorar, vou largar você aí!
— Milena, venha aqui! — gritei, indo atrás dele, sendo bloqueada na
entrada do portão. — Onde está Milena? — exigi e Julia ficou ao meu lado,
reclamando a mesma coisa.
— Lucia Maria, não vou chamar outra vez! — Nos ignorando, ele
gritou, e não demorou muito para que a mulher aparecesse segurando um
menino pela mão.
— É a minha tia bonita!
A criança deixou a mulher, correu, abraçou minhas pernas e a
angústia invadiu meu peito.
Era Milena, de pijama masculino, cabelo cortado rente ao casco e
medo nos olhos.
— Quem cortou seu cabelo? — Desci para ficar na altura dela e corri
minha mão ao redor de onde seu cabelo deveria estar.
— Assim também é bonito, titia. — Ela sorriu tristemente, confusa
diante da violência.
Vi a cicatriz recente em sua testa e comecei a inspecionar o resto do
corpinho, nenhum pouco intimidada pelos gritos e ameaças do homem. Ele
estava muito errado em acreditar que sua falta de controle me assustava.
Puxei a manga comprida do pijama e vi manchas vermelhas no braço
da criança. Hematomas de cinta.
— Desgraçados!
— Pega a menina e põe no carro, Lúcia! — gritou o homem.
A mulher veio, agarrou uma das mãos de Milena e foi a minha vez de
apertar os dedos em seu pescoço.
— É você que gosta de espancar crianças, safada? Faça o mesmo
comigo.
— Eu caí. Eu caí, minha tia — Milena gritou e puxou a barra da
minha saia.
Vermelha e asfixiada, a mulher não conseguiu reagir, e quando seu
marido entrou na casa e começou a pegar malas em vez de ajudá-la, eu a
soltei com um empurrão e vi que o lenço em seu pescoço havia afastado a
ponto de revelar feridas em sua pele.
— Julia, liga para a polícia — pedi, agarrando a mão de Milena. —
Você vem comigo. — Agarrei a mão da mulher e recebi um sopapo.
— Não!
— Ele fez isso com você, precisa vir comigo! — exclamei,
enfurecida.
— Tenho alergias — ela mentiu e olhou para o homem que jogava as
malas na caminhonete. — Vão embora daqui.
— Vou colocá-lo na cadeia — avisei e tive que soltar Milena, porque
o homem pegou o celular de Julia e jogou no chão. — Não se atreva! — O
ataquei por trás, fazendo-o soltar o punho da minha amiga.
— Não foi ele. — A mulher entrou na minha frente e abraçou a
cintura do homem, impedindo-o de me atacar.
— Não vou parar na cadeira por sua causa, madame! — ele gritou,
mas eu já estava atravessando a rua, segurando a mão de Milena, correndo
atrás de Julia, que entrou pela porta do motorista e deixou a traseira aberta.
— Entra, Milena. — Coloquei a menina no carro e meus cabelos
foram puxados para trás. — Liga o carro, Julia! — gritei, sendo arrastada.
— Você errou de ter vindo aqui, madame!
Lutei, consegui morder o braço dele e corri de volta para o carro.
Entrei pela porta de atrás e Julia colocou o veículo em movimento.
— Ahhhhhhhh! — minha amiga gritou quando o vidro da janela foi
atingido por uma pedra grande, o suficiente para causar estragos.
Jogada no banco e ofegando incontrolavelmente, me virei para o lado
e vi Milena encolhida, os olhos vidrados, traumatizada demais para chorar.
Respirei fundo e minha mente ressuscitou cenas tristes das vezes que
ouvi o choro abafado de mamãe no quarto dos fundos e no dia seguinte
fingia não saber de nada, com medo de que papai me machucasse também.
Fechei os olhos, lutando para sair do caos do passado, mas outra
imagem cruel foi projetada em minha mente:
Pés descalços. Frio. Medo. Sangue nas mãos...
— Alicia! — Julia gritou e abri os olhos, tragando o ar com tanta
força que meu peito doeu. — Precisamos falar com Joana e fazer um
boletim de ocorrência.
Arfei, tentando organizar minha cabeça. Não era hora de surtar.
Olhei para Milena e me arrastei até seu cantinho no carro.
— Ele não vai te machucar mais e seu cabelo vai crescer de novo. —
Coloquei o cinto de segurança nela.
— Tudo bem, titia — ela disse submissamente e levantei sua cabeça
no mesmo momento.
— Ele mexeu em você quando estava sem roupa? — perguntei,
segurando o rostinho dela.
— Não, titia — respondeu com lábios trêmulos. — Só me bateu com
a corda da cintura e machucou a mamãe também. — Liberou um choro
copioso e afundei seu rosto em meu peito.
— É bom que ela seja examinada, Julia. — Passei o punho nos meus
olhos. — Vou deixar vocês no orfanato e Joana chama a polícia de lá.
Preciso ver uma pessoa e tentar resolver outra situação que está me
atormentando agora. — Acariciei a cabeça de Milena.
Dias depois
— E foi assim que a mamãe conheceu o papai...
Deslizei os dedos pelos cabelos cor de caramelo de Anninha.
Sozinhas e deitadas em um cobertor, tomávamos banho de sol no gramado
do orfanato.
— Você está com saudade dele, filhinha?
Anna Flor continuou me olhando, sem entender nada do que eu estava
falando.
Aqueles olhos graúdos eram minha força.
— Você sabia que é proibido fazer imagens de crianças dentro de um
orfanato, amorzinho? — Estendi a mão e peguei meu celular. — Mas
mamãe é muito irresponsável para cumprir todas as regras.
Selecionei o contato de Felipe no aplicativo de mensagens e fiz uma
videochamada. Ele não respondeu de imediato, mas insisti e só parei de
ligar quando vi o loiro aparecer do outro lado da tela. Vestido com um robe
atoalhado e exibindo seu cabelo bem penteado.
— É a Anna? — perguntou com um largo sorriso. — Só estou vendo
os cabelos dela.
— Consegue ver agora? — Suspendi o celular e continuei deitada
com a Anninha. — Olha, filhinha, é o papai.
— Oi, Anna. — Felipe sustentou um sorriso bobo, completamente
enfeitiçado pela nossa menininha.
— Estamos quebrando uma regra. Não acha isso emocionante,
doutor?
— Você é maluca. — Vi um brilho especial nos olhos azuis. — Ela
está quieta. Aconteceu alguma coisa?
— Sono. Ela fica assim depois do primeiro banho. Vai dormir em dez
minutos e acordar em duas horas acabando com tudo no grito. — Anna Flor
levantou a mãozinha e tentou alcançar o celular. Tudo ela queria levar para
a boca. — Não pode, Anninha.
— Você está sendo teimosa, papai? — Felipe perguntou
carinhosamente e o meu coração pulou uma batida.
Ele estava sendo incrível. Se tivéssemos a oportunidade de ter aquela
conversa franca antes, talvez as coisas tivessem sido diferentes há mais
tempo e hoje eu seria capaz de lidar com o afeto sem medo de que a
qualquer momento tudo desmoronasse.
— Sua filha entrou na fase de conhecer o mundo, Felipe. É quando a
criança leva tudo à boca para identificar o gosto e textura. Dizem que tem
relação com a amamentação e a sensação de prazer que a criança recebe
através da conexão com a mãe, mas não sei se acredito nessa teoria.
Anninha nunca mamou no peito.
— Você está fazendo mesmo o dever de casa, menina. Isso é
maravilhoso.
— Julia tem me ensinado algumas coisas — expliquei, sentindo um
súbito calor em meu rosto. — Mas ela briga comigo na maioria das vezes
porque questiono tudo o que ela diz.
— Não queria estar no lugar dela.
— Você é o meu noivo, feio. Vai me suportar bem mais do que ela.
— Ainda é difícil de acreditar no que estamos fazendo.
— De ranço a melhores amigos. Um avanço e tanto, hein?
Ele mordeu o lábio inferior e me examinou.
— Já que está infringindo uma norma, me manda uma foto da Anna.
Vou mostrar à minha mãe quando ela chegar. — Levantou-se de onde
estava e andou levando o celular com ele.
— Sua mãe já perguntou sobre mim? — indaguei com uma nota de
esperança.
Nunca troquei uma palavra com meus sogros. Uma médica e um
cientista estavam sempre ocupados e preferiam acreditar que era esse o
motivo.
— Só contei o necessário, fica tranquila.
— Não estou falando dos problemas, Felipe. Pensei que eles
quisessem saber com quem o filho estava se metendo.
— Eu disse a eles que o casamento só vai durar um ou dois anos.
Eles me apoiaram e com toda certeza serão os melhores avós que a Anna
Flor poderia ter.
— Tudo bem, Felipe. Já entendi.
— Alicia, você disse que eu não deveria pisar em ovos. Por que está
cada vez mais difícil não te deixar assim?
— Sei o meu lugar. Você que interpreta as coisas errado. — Sentei na
grama e coloquei Anninha em meu colo. — Vá estudar e fazer suas coisas.
Vou ninar sua filha agora.
Encerrei a ligação, tirei a foto de Anninha, enviei e abracei minha
filha.
Eu precisava parar de desejar um lugar que não me pertencia e
mostrar segurança sobre isso. Felipe já estava fazendo muito e eu sabia no
que estava me metendo quando pedi ajuda sem ter nada a oferecer em troca.
Dias depois
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Pry Olivier é uma autora baiana de comédia romântica, Drama e
romance policial. Seu principal objetivo é levar mensagens positivas para os
corações e mostrar que o remédio para qualquer ferida é o amor.
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[1]
Transtorno Dimórfico Corporal É uma condição psicológica que se caracteriza pela preocupação,
sem controle, com a aparência. Seus portadores dão importância exagerada a defeitos pequenos que,
apesar de imperceptíveis para outras pessoas, assumem uma dimensão enorme aos seus olhos,
causando baixa autoestima e muito sofrimento.
Apesar de ser considerada uma doença grave, ela tem cura, desde que o tratamento seja realizado de
forma multidisciplinar.
Entretanto, a identificação e o diagnóstico do transtorno são bastante difíceis de serem realizados,
visto que, muitas vezes, os sinais são confundidos como excesso de vaidade.
Causas: Ainda não se sabe o que causa a dismorfofobia, mas os estudos mostram uma correlação
significativa com:
• Abuso físico e sexual na infância;
• A valorização familiar excessiva da aparência física;
• O aparecimento de modificações corporais pré-puberais;
• Baixa autoestima entre os portadores, dentre outros.
O tratamento consiste em psicoterapia, longa e trabalhosa. Há também a indicação do uso de
medicamentos para sintomas depressivos e ansiosos associados.
A condição foi descrita pela primeira vez na literatura médica pelo psiquiatra italiano Enrico
Morselli, em 1886. Quase um século depois, em 1980, a Associação Americana de Psiquiatria
reconheceu a condição e a incluiu na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Distúrbios Mentais, o DSM.
[2]
Trecho da Reflexão “O Sábio e a Borboleta Azul”.
Fonte: Internet
[3]