Você está na página 1de 460

Copyright © 2021 Pry Oliver

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos de imaginação do autor. Qualquer
semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Capa: Designer TTenorio

Revisão: Lidiane Mastello

Leitura final: Kiti Miguel

Diagramação Digital: Jack A. F.

Imagens: Depositphotos

Ilustração: @artes_da_nat

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte


dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº 9.610/98


e punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Edição Digital ǀ Criado no Brasil

1º Edição

Agosto de 2021
A menina má e o advogado de ouro têm muito mais em comum do
que pensam.
Eu a protegi, mas ela drenou todas as minhas forças e isso me forçou
a deixá-la em sua adolescência.
Agora, depois de atormentar minha vida por anos, a encrenqueira foi
forçada a se voluntariar em um orfanato, e ela está aqui, de joelhos na
minha frente, propondo um casamento de conveniência e dizendo que sou o
único homem em quem ela confia para proteger um bebê que ela tem como
filha.
O problema todo é que, embora sejamos arqui-inimigos, ainda me
lembro de como era bom e quente tê-la em meus braços, mas algo forte em
mim me obriga a protegê-la e a mergulhar de cabeça nesta loucura.
Casado por conveniência, terei que lutar contra os sentimentos que
gritam por ela e lidar com os terríveis segredos de seu passado conturbado.

Livro único entre Enemies to Lovers, com uma heroína esperta,


um advogado deliciosamente protetor e um trauma de partir o coração.
Para ouvir a playlist de “Reféns do coração” no Spotify, abra
o app no seu celular, selecione “buscar”, clique na câmera e
posicione sobre o code abaixo.

Ou clique aqui
Reféns do coração, livros único, é uma versão completa do livro
“Minha Redenção”, escrito por mim, no ano de 2018.
Por favor, esteja ciente de que "Reféns do coração" é um romance
maduro e alguns capítulos podem gerar desconforto.

Gatilhos:
- Bullying infantil com consequências graves (Transtorno alimentar
marcado por compulsão, seguido de métodos para evitar o ganho de peso)
- Relatos do passado de violência psicológica, física e sexual
.
Sinopse
Trilha sonora
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 01
Capítulo 02
Capítulo 03
Capítulo 04
Capítulo 05
Capítulo 06
Capítulo 07
Capítulo 08
Capítulo 09
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Epílogo 1
Epílogo 2
Agradecimentos
Sobre a Autora
Redes sociais da autora
Outros livros da autora
Antes

Lembrei-me de não ter dado um beijo de boa noite no papai, então


resolvi reparar o meu erro.
Eu sempre batia antes de entrar, mamãe nos ensinava assim, mas,
naquele dia, por um descuido, coloquei a mão na maçaneta primeiro, foi
quando ouvi meu nome e paralisei.
— O conselho escolar me ligou. Alicia continua sem socializar com
os coleguinhas. Ela já tem cinco anos, não é normal, Junior. Quero buscar
ajuda específica para cuidar melhor da nossa filha.
Mamãe continuou falando do outro lado e uni minhas mãos na frente
do corpo, silenciosamente esperando que não fosse um problema. Eu queria
ter amigos, mas as crianças riam do meu corpo redondo, me chamavam de
bola de fogo e isso deixava meu coração triste.
— Essa garota é estranha e isso veio da sua família, Samanta.
Estranha a mãe e estranha a filha.
Então, mamãe também é estranha?
Por isso papai fica irritado, igual as crianças da escola?
— Alicia só precisa de ajuda e vou procurar segunda-feira. — A voz
da mamãe saiu chorosa.
— Faça como quiser. Se ela parar de ser estranha, não sofrerá no
futuro... Você verificou se as crianças já estão dormindo?
— S-sim... eu... eu as deixei em um sono profundo e fechei as
portas.
— Você sabe que não esqueci o que você fez mais cedo, não sabe,
Samanta?
— Eu... disse que o Mimo é bonito como o pai. Você é o pai dele,
Junior. Qual o problema?
— Não seja sonsa, Samanta. Vamos, estou sem paciência. Vire-se
logo e levante os braços.
— Não, Junior, por favor.
— Feche a boca, mulher. Você está sofrendo as consequências dos
seus erros e suas marcas só interessam a mim.
Minhas pernas tremeram, meu coração bateu rápido no peito e um
aperto bloqueou minha garganta.
Papai estava machucando a mamãe, porque ela era estranha.
Trêmula, dei passos lentos para o meu quarto, onde parei em frente ao
espelho da penteadeira e peguei uma escova para alisar meus cabelos
ruivos.
Enquanto as cerdas macias deslizavam, fitei o reflexo da minha pele
pálida e repeti o mantra pela primeira vez:
Não sou uma bola de fogo.
Eu não sou estranha.
Eu não posso ser estranha.
Estranhas apanham.
Estranhas sofrem.
Dias atuais

— Não sou uma bola de fogo — afirmei, fitando o espelho frontal do


meu carro, enquanto beliscava e coloria minhas bochechas antes de ter que
descer para enfrentar meu primeiro dia de socialização forçada em um
orfanato no centro da periferia.
Era inevitável.
Visitar aquele lugar duas vezes por semana, durante alguns meses,
seria um martírio, contudo, eu tinha amor ao meu carro e a gorda mesada
que recebia do meu irmão mais velho. Segundo ele, me faltava humanidade
e blá blá blá.
Abri a porta, saí do carro e meu salto entrou no primeiro buraco.
Droga!
Calma, está tudo sob controle, Alicia.
Puxei o salto com força, respirei fundo e segui em frente, na direção
do portão colorido.
Um velho me cumprimentou na chegada, forçando-me a sorrir. Fiz
isso segurando minha bolsa importada com vigor. Se Deus ainda tivesse
misericórdia de mim, eu sairia de lá viva e com todos os meus pertences.
Andei sobre o ladrilho e subi os três degraus da escada que conectava
a outro portão menor. Não havia gritos ou demonstrações infantis e isso me
aliviou.
Se os pirralhos estiverem dormindo ou em aula, darei algumas voltas
e retornarei para o carro, pensei, mas quando abri o portão que dava para
um pátio interno, me deparei com dez fileiras de crianças uniformizadas,
recitando o poema As borboletas, de Vinicius de Moraes, enquanto
levantavam canudos com borboletas de papel nas pontas.
Brancas
Azuis
Amarelas
E pretas
Brincam na luz as belas borboletas.
Imediatamente me lembrei do meu falecido avô, que antes de sofrer
de Alzheimer, recitava aquele poema enquanto eu o acompanhava com meu
piano.
Borboletas-brancas
São alegres e francas.
Borboletas-azuis
Gostam muito de luz.
As amarelinhas
São tão bonitinhas!
E as pretas, então...
Oh, que escuridão!

Não consegui reprimir o sentimento e tive que lutar contra a


persistente nuvem de lágrimas que embaçou meus olhos.
— Tia, aqui está nosso presente de boas-vindas. — Um menino de
pele retinta me estendeu um cartão feito à mão e uma borboleta no canudo.
Recebi e forcei um meio sorriso.
— Posso te abraçar agora? — ele perguntou, com as mãos na frente
do corpo e um sorriso tímido.
Hmm... carinhoso demais para ser uma criança negligenciada,
pensei, curvando-me para encará-lo de perto.
— Estou vacinada contra qualquer tipo de rasteira da humanidade,
criança, então não tente me enganar com falsas demonstrações de afeto,
certo? — falei pausadamente para que ele entendesse.
— Só quero um abraço... — disse cabisbaixo e dobrei meu pescoço,
procurando seus olhos.
— E você acha certo pedir abraços para estranhos, fofinho?
— A senhora não é a nova tia do orfanato?
— As pessoas são ruins, garoto, muito ruins. Você já deveria saber
disso só de estar aqui.
— Eu tô ficando triste, tia... — choramingou.
— Shh! Ninguém precisa saber quando você está triste, fofinho. As
pessoas se aproveitam da nossa fraqueza para nos machucar!
— Alicia Azevedo? — A voz veio de trás e me recompus
imediatamente.
— Sim? — Fitei a mulher de quadris largos e cabelos curtos.
— Sou Joana, responsável pelo Lar. As crianças ensaiaram o poema
desde que o seu irmão, nosso bem-feitor, avisou das suas visitas.
— Ah, veja só que amor. — Forcei simpatia e observei os pirralhos
caminhando em fila indiana para outra área do pátio.
— Venha, vamos conhecer o orfanato — chamou-me e caminhei ao
lado dela.
Tudo ali era colorido.
Em alguns minutos conheci os dormitórios, salas de aula, biblioteca,
recreação, cozinha e, finalmente, chegamos ao temido berçário.
Precisei admitir que o cheiro de colônia infantil deixava qualquer
ambiente agradável.
Só o cheiro, as crianças me apavoravam.
— Bem-vinda, querida — uma das mulheres sussurrou enquanto
trocava a fralda de um balofinho.
— Somos sete mulheres voluntárias e o vovô Adão, meu pai, que
cuida do jardim e da portaria — explicou Joana. — Temos três bebezinhos
aqui no berçário. A mais novinha, tem quatro meses de vida e está no
banho...
— Olha quem já tomou um banho gostoso, titias. — A voz veio de
outra mulher, que entrou no berçário com uma criança embrulhada nos
braços.
— Essa é a nossa caçula, a Florzinha. Ela tem uma condição genética
e precisa de cuidados especiais. — Joana afastou a manta do rosto da
menina e pude ver uma sonda de alimentação introduzida em suas
minúsculas narinas. — A mangueirinha é temporária. Só até que ela seja
forte o suficiente para tomar leite na mamadeira.
Minúscula, de olhos azuis, e tão pálida quanto eu, a criança colocou a
língua para fora, riscou uma sombra de sorriso e...
Olhou para mim.
Sorriu para mim.
— Podemos voltar para o pátio agora? — indaguei, sem fôlego,
precisando fugir dali.
— Você está bem? — Joana se preocupou.
— Só preciso respirar... Está abafado aqui. — Saí do quarto e andei
rápido na direção do bendito pátio.
— Titia, você é tão bonita — disse uma miúda, de cabelos longos e
cacheados, que parou na minha frente, me impedindo de avançar. — Igual à
pequena sereia com esse cabelo vermelho — completou.
— Vermelho, não. Ruivo — corrigi, arfando, sem conseguir puxar o
ar corretamente.
— Fiz um desenho pra você, minha titia linda. — Estendeu o papel e
estudou minha reação.
Peguei com a ponta dos dedos, depois olhei o desenho da boneca
ruiva, segurando a mão de uma criança com cabelos gigantes e...
Olhei para ela.
O desenho não tinha boca, nariz, tampouco olhos, mas o cabelo ficou
bem retratado. Era a própria menina e, possivelmente, eu.
— Sei fazer carinho na cabeça. — Outra menor se gabou, sacolejando
o corpo de um lado a outro.
— Sei cantar e já fritei ovos na cozinha. — O menino que me
entregou o cartão na chegada também entrou na conversa.
— Eu! Eu! — A do cabelão deu dois pulos. — Sei passar paninho no
chão e lavar pratos na pia. Subo no banquinho, titia. Eu ajudo.
O quê...?
— Defendo mulheres com meu murro forte. — O menino passou na
frente da outra e mostrou o bíceps finíssimo.
Vozes infantis ecoaram em minha mente, todas ao mesmo tempo,
fazendo minha cabeça girar e a garganta secar. Quando abraçaram minhas
pernas, quase me derrubando dos saltos, levantei as mãos, evitando tocá-
los.
— Crianças, soltem a tia Alicia. — Joana pegou na mão de uma delas
e espalhou as outras. — Vão brincar. Restam poucos minutos para o início
das aulas. Vão!
— Preciso ir. — Segurei a alça da minha bolsa. — Não me sinto bem,
me desculpe.
— Mas você vai voltar, não é tia? — o menino perguntou, com os
olhos tristes, me entregando a borboleta e o cartão que deixei cair no chão.
— Eu... — De posse dos mimos, abracei meus próprios braços e olhei
para a mulher. — Realmente preciso sair agora.
Caminhei rápido na direção da saída e Joana seguiu os meus passos.
— Não se assuste. Elas só estão esperançosas por um lar. São assim
com todas as visitas! — a diretora do orfanato gritou nas minhas costas.
Não olhei para trás. Continuei andando e segurando a bolsa na frente
do corpo.
Quando entrei no carro, joguei as coisas no banco traseiro, debrucei a
cabeça sobre o volante e esperei tempo suficiente para a respiração voltar
ao normal.
Céus, aqueles pobres meninos cogitaram receber o meu amparo.
A necessidade nos levava a procurar água até em poços vazios.
Meu celular vibrou e o saquei da bolsa. Era minha ex-psicóloga. Me
despedi dela na manhã do dia anterior. Foram anos contendo meus
excessos, mas agora, tudo me levava à exaustão.
— Alicia, você precisa vir hoje. Reservei um horário mais cedo.
— Doutora Helena, agradeço tudo o que fez por mim... Tudo o que
você faz ao se preocupar, mas eu... eu preciso de um pouco de espaço agora.
— Não faz isso, Alicia.
— Vai ficar tudo bem. — Cobri minha testa — Obrigada por se
preocupar. Até qualquer dia.
Desliguei o celular, levantei a cabeça e encarei meus olhos marejados
no espelho frontal do veículo.
Eu estava há três anos sem cometer nenhuma tolice relevante.
Precisava descansar e deixar aquela pausa durar mais tempo.

O som do meu carro estava alto. A batida lenta e agradável me


distraiu e não vi o momento exato em que furei um bendito sinal de trânsito
e quase atingi um veículo que atravessou na minha frente.
Merda!
Segurei firme no volante e puxei o ar nos três segundos seguintes.
Quando me atentei para checar o perímetro, vi olhos azuis intensos me
encarando através da janela do veículo.
Felipe Moedeiros.
Por que meu coração ainda salta no peito toda vez que esse maldito
loiro entra no meu caminho?
Desviei o olhar para o carona com o airbag acionado. Cogitei ser a
avó dele, mas a culpa foi substituída pelo ranço quando percebi se tratar do
novo casinho amoroso do maldito herdeiro bilionário.
Nojo!
— Alicia! — ele gritou e comecei a manobrar o veículo. — Alicia! —
Saiu do carro e bateu no vidro da minha janela — Para esse carro, ruiva!
— O que é? Vai me colocar na cadeia? — gritei, abrindo o vidro. —
O que pretende alegar? Infelizmente seu carro está intacto e sua cortesã
parece muito bem. — Olhei para a mulher bonita que me encarava. —
Cobre caro por seus serviços, minha linda. O doutor aqui é ruim de cama e
tem o cacete minúsculo.
Felipe avançou, fechei o vidro rapidamente, mas ele meteu a mão por
um pequeno espaço e agarrou meu punho.
— Não, você não é maluca! Peça desculpas para a Mariana, agora! —
exigiu lá de fora e tentei me livrar de seu aperto.
— Os anos avançam e meu ódio por você aumenta, embuste! Vai se
ferrar, você, ela e o mundo todo! — Virei a direção do carro, fazendo-o
largar meu braço e saltar para longe do meu caminho.
Levantei meu rosto e fechei meus lábios. Mas quando saí da rua,
desatei a chorar.
Não havia como voltar atrás, já sentia o vento frio vindo do penhasco
de uma nova recaída.
Cortei minhas unhas bem curtas, pois já estava com medo de perder o
controle depois dos últimos acontecimentos. Até meus amados brincos de
pêndulos e cascata deixei que minha mãe levasse do quarto. Mas
impedimentos eram apenas detalhes para quem precisava de alívio.
Fragmentos de um frasco de perfume estavam próximos a mim, no
piso do box. A água quente que caía no meu corpo espalhava o sangue da
ponta dos meus dedos da mão esquerda diretamente para o ralo.
Só não sorria com a sensação de paz e alívio, pois tinha consciência
da loucura que era a minha vida, do monstro que começou na adolescência
e sempre me consumia nos momentos de vulnerabilidade.
Os últimos dois meses foram difíceis.
Meu pai, um fugitivo da polícia que, em nome de uma vingança
mesquinha contra um velho rival, acabou com nossas vidas, foi morto em
uma operação policial, liderada por meu irmão mais velho.
Frustrada e exausta com tudo isso, olhei para o chão branco
manchado de sangue, abracei meus joelhos e enterrei meu rosto nos braços.
No fundo da minha alma, eu temia que a crise desencadeasse outras. Era
complicado administrar tantos distúrbios internos, mas eu precisava me
manter segura.
Fechei os olhos.
A única alternativa era pensar nos bons momentos da minha vida.
Eu tinha dez anos e chorava atrás de uma árvore antiga, quando
Felipe Moedeiros, vestido com uma fantasia de príncipe, coloriu meu
casulo.
— Posso sentar com você, fada? — perguntou e movi o rosto em
negação, com vergonha de olhar para ele, um dos meninos mais populares
da escola. — Sou Felipe... Trouxe um doce para você.
— Me deixe em paz. — Minha voz infantil saiu através de um soluço,
então levantei meus joelhos, fechei meus braços sobre eles e abaixei meu
rosto, me escondendo de tudo, daquele menino que queria tirar sarro de
mim, assim como seus amigos faziam.
— Ei... — Senti seu calor ao meu lado. — Fadinha...
Alisou meu cabelo e o empurrei com meu cotovelo.
— É borboleta! — gritei sem sair da minha posição reclusa.
— É por isso que você está assim, brincando de casulo? — Ele deu
uma risadinha.
— Vou entregar todos vocês ao meu irmão. — Minha voz falhou e o
soluço ficou mais forte.
— Já te vi lá na escola. Você é a novata da classe ao lado. Alicia, não
é? — Não respondi. Ele continuou: — Meu tio disse que um homem não
pode deixar uma mulher chorar. Você passou por mim e me empurrou, mas
vi que estava chorando... O que aconteceu lá dentro?
— As meninas maiores me viram comendo atrás do sofá e gritaram.
Os meninos zombaram de mim e tentaram tirar minhas asas. Vocês são
todos idiotas! — gritei em lágrimas, querendo que ele me deixasse em paz.
— Veja, o doce é de chocolate e parece delicioso. Se você não pegar
em três segundos, vou comer.
— Coma tudo. Não quero nada.
— Um... Dois... Alicia... Borboleta...
— Por que está aqui? — Levantei o rosto e fitei o garoto bonito.
— Já disse, você passou chorando. — Sua mão chegou perto do meu
rosto e os dedos deslizaram sobre meus cílios molhados.
— Não vai tirar sarro do meu corpo redondo? — perguntei e ele riu.
— Você já está zombando de mim...
— Não, você que falou engraçado. Pegue seu doce e tente não chorar.
Não vou tirar sarro de você. Vou te proteger dos meninos.
— Me proteger? — Pisquei para remover as novas lágrimas.
— Vou. — Ele colocou o doce perto da minha boca. — Experimenta
— insistiu e dei uma leve mordida.
— De todos os meninos?
— Se eles pegarem no seu pé e seu irmão não estiver por perto... —
Entregou o restinho do doce na minha mão. — Você é criança, Alicia.
Criança tem que ser feliz.
Sorri mais calma e minhas bochechas esquentaram quando ele limpou
algum excesso perto da minha boca.
— Promete que sempre vai me proteger dos garotos. — O borrão de
lágrimas voltou aos meus olhos.
— Eles mexem tanto assim com você? — Felipe desviou da pergunta
e se encostou no tronco da árvore.
— É porque sou estranha com esse corpo redondo. Só minha melhor
amiga Andressa gosta de mim. Ela é magra.
— Vocês, garotas, são complicadas. Mas se quiser, pode andar
comigo. Pelo menos por enquanto. Assim, eles vão te deixar em paz.
— Vou andar sempre com você, Felipe. Sempre! — Coloquei minha
cabeça em seu ombro, fechei os olhos e me encolhi nele.
Felipe era gentil e perfeito, mesmo assim estava falando comigo.
— Agora preciso voltar para a festa, tudo bem? — Ele afastou minha
cabeça, levantou e me deu a mão.
— Posso gostar de você, Lipe? — Passei o dorso da mão contra meus
olhos.
— É, pode ser. — Não tive tempo de respirar, Felipe beijou os dois
lados da minha bochecha, minha testa e a ponta do meu nariz.
— Obrigada... — Baixei meu olhar para o gramado, certa de que a
pele do meu rosto estava muito vermelha, mais do que o natural.
— Você é uma gracinha, ruiva. — Ele tocou as asas presas no tecido
das minhas costas. — Fica linda com asas de borboleta. — Pegou minha
mão e uniu nossos dedos. — Não vou deixar que tirem suas asas.
— Você agora é o meu príncipe, Lipe. — Mordi o lado da minha
bochecha, sem saber como lidar com a emoção repentina.
— Vou ficar com você até o final da festa. Não vou deixar você
chorar, Alicia. — Levantou o meu queixo e olhou para mim de uma forma
que me tornou especial. Era tão bom ser especial. — É uma promessa.
Naquele momento protegi o afeto do príncipe dentro da minha alma e
desejei que a festa nunca acabasse, para que aquela promessa fosse
eternizada.”

— Filha! — Acordei com gritos da minha mãe, que naquele momento


desligava o chuveiro. — Já estou aqui, filha. — Ela beijou meu rosto e me
fez levantar.
— Mamãe... — Fui enrolada no felpudo da toalha macia e
direcionada para fora do box.
— Que marca é essa? Além de você, alguém te agrediu?
Observei onde ela alisava e fechei meus olhos por alguns segundos. A
pressão dos dedos de Felipe deixou coágulos visíveis na minha pele pálida,
mas aquela marca era o que menos importava no momento.
— Obrigada por vir, mas não precisava largar o trabalho, mamãe. Foi
a Judite que ligou, não foi? — Apertei meus braços em torno da cintura
dela.
— Ela ligou para o Heitor, ele estava comigo. Me fala de quem são os
dedos na sua pele. Quem te machucou, minha filha?
— Eu mesma, mãe — blefei. — Perdão.
— Vamos para a cama. — Ela me direcionou.
Heitor, meu irmão caçula, estava lá, deitado com as costas na minha
cabeceira. Brigávamos a maior parte do tempo, mas ele sempre aparecia
quando eu precisava de ajuda. Eu amava aquele moleque.
— O que foi agora, Alicia? — perguntou quando me deitei ao lado
dele. — Não se adaptou às crianças carentes, dondoquinha?
— Me deixa, pirralho. — Coloquei a mão entre o travesseiro e meu
rosto. — Não quero que você me veja assim. Sai.
— Claro, rainha do tédio! — Heitor nem hesitou, saiu da cama e
deixou o quarto sem olhar para trás.
No mesmo instante senti lambidas nos pés e me sentei na cama para
receber o conforto do meu vira-lata caramelo.
— Desce, Teo — mamãe ordenou antes de voltar ao banheiro, e
Teodoro choramingou, descendo da cama.
— Mais tarde vou brincar com você, tudo bem? — sussurrei e meu
cachorrinho aumentou o drama.
Teodoro era muito apegado a mim. Tendo um passado nas ruas, ele
temia a solidão e desfrutava da estabilidade do nosso lar. Até para passear
precisava estar preso na coleira. A psicóloga me explicou que ele fazia essa
exigência, porque tinha medo de se perder ou ser abandonado.
— Amanhã vou acompanhá-la na psicóloga. — Mamãe voltou com a
caixa de primeiros socorros e começou a cuidar dos meus dedos.
Senti ardor quando o antisséptico entrou em contato com as feridas e
estalei a língua. Agora a dor incomodava e minha mãe sabia que eu estava
em pausa.
— Não vou mais... Ai! Já desmarquei com a Doutora Helena. Preciso
de um tempo. Por favor me entenda e não insista.
— Não vou te perder, Alicia. Você precisa da terapia, filha. —
Mamãe passou uma mecha de cabelo para trás da orelha e vi lágrimas
escorrendo de seus olhos.
— Só quem me ama pode me ajudar, mãe. Perdi dezoito anos da
minha vida com essas terapias.
— Alicia...
— Já decidi e não vou voltar atrás. Quando os remédios acabarem,
volto apenas para repor. Ainda não sou capaz de ficar sóbria sem essas
drogas.
Mamãe estudou meu rosto. Ela desaprovava a ideia, mas não queria
discutir naquele momento e piorar meu estado.
Como se fosse possível piorar algo em mim.
— Como foi no orfanato? — Ela pegou mais um dedo ferido e
preparou o curativo.
— Eles são tão inocentes, pobrezinhos. Acreditam no amor genuíno
de estranhos, mãe.
— Você precisa abrir seu coração e confiar que existe muita gente boa
no mundo, que vai te respeitar e amar do jeito que você é.
Ri e passei as costas da mão nos olhos.
— Guardo minha última gota de sensibilidade para aqueles que
realmente importam, para aqueles que me devolvem.
— Sonho em ver você em um relacionamento estável e saudável,
filha.
— Sem relacionamentos, sem embustes no meu pé — contraditei,
sentindo uma fisgada dolorosa no estômago.
Mamãe terminou o curativo, então abracei o travesseiro, coloquei
minhas costas na cabeceira da cama e tentei ignorar a fome.
— Viu seu primeiro amor por esses dias? — perguntou ela, enquanto
recolhia os medicamentos.
— Não quero saber daquele idiota. — Revirei os olhos para o novo
assunto e apertei minha barriga com a mão.
— Nem te falei... Conversei com Suzane no casamento do seu
irmão... — Mamãe estudou meu rosto, fazendo-me fechar os olhos para
poupar reações. — Ela nos convidou para a festa e cerimônia de formatura
do neto.
— Eu só quero que Felipe se ferre, mãe. Que caia do palco, na frente
de todos e deixe o prêmio de mérito acadêmico quebrar. Que reprove no
exame da OAB. E se por um pequeno infortúnio conseguir passar, seja o
pior advogado do escritório e o avô tenha vergonha do neto incompetente.
Também desejo que ele seja traído na própria cama e com alguém próximo.
Que uma alma caridosa divulgue seus nudes na internet e seu minúsculo
poder de sedução vire chacota. É pequeno, dez centímetros, tenho absoluta
certeza...
— Quanto amor, Alicia... — minha mãe me interrompeu e abri os
olhos para flagrá-la rindo e mexendo no meu guarda-roupa. — A avó dele
falou toda orgulhosa que o neto fez a prova da OAB nos últimos semestres
da faculdade e passou de primeira.
— Eles são todos exibidos. — Deitei-me na cama e puxei o cobertor.
— Estou com sono. Apenas me acorde amanhã, depois das quatro da tarde.
Tenho uma festa à noite. Preciso dançar um pouco e esquecer a merda que
fiz hoje.
— Você vai é descer comigo e almoçar. Só depois pode hibernar. —
Ela estendeu um vestido. — Ponha. O almoço será servido.
— Obrigada. — Coloquei a mão na porta da caminhonete de luxo e
esperei que o negro alto e muito forte destravasse o veículo.
Rosinaldo, mais conhecido como Rex, apelido que herdou em um
ringue de luta clandestina, era o melhor amigo do meu irmão que, há alguns
anos, se tornou nosso padrasto.
Rex chegou de mansinho, quando Luiz Miguel sofreu um grave
acidente de moto e quase perdeu a vida. Apesar de jovem, ele apoiou minha
mãe em absolutamente tudo e foi importante para ela. Depois de alguns
socos e ameaças de morte, ele e meu irmão fizeram as pazes, abriram uma
gigantesca academia de ginástica e venceram no empreendimento.
— Volto às onze. Esteja aqui, no mesmo lugar — instruiu mexendo
no compartimento do carro. — Não beba, lembre-se da promessa que fez à
sua mãe.
— Sim, Rex. Não vou beber. Agora, abre essa porta.
— Tome, use se precisar. — Me entregou um pequeno frasco. — É
um spray de pimenta. Eu mesmo batizei.
— Você é maluco, Rex — reclamei, mas guardei o frasco na minha
bolsa tiracolo.
— Agora vá, e não apronte. — Ele destravou o carro e empurrei a
porta. — Onze horas, Alicia.
— Estarei aqui dez minutos antes, meu pai — ironizei, sacudindo os
dedos em despedida.
— Vinte e três anos e não sei quando você vai deixar de ser uma
adolescente — resmungou e fechou o carro antes que eu pudesse retribuir a
ofensa.
— Abusado! — exclamei e me virei para ficar chocada com a fila da
entrada. — Eu que não vou entrar aí.
Sem paciência, passei direto.
Ouvi reclamações, mas valeu a pena, pois a hostess era uma
conhecida da noite e me liberou sem questionar.
Lá dentro, vi conhecidos de outras noites e cumprimentei-os, mas
logo minha garganta secou, então caminhei em direção ao primeiro bar. Foi
aí que tive o desprazer de ver rostos desagradáveis.
A irmã paterna de Luiz Miguel estava no balcão com seu lindo
namorado taiwanês. Ao lado deles, o ser loiro mais ridículo do universo,
conversava com o novo casinho amoroso.
Não, eles não estragariam a minha noite.
Levantei a cabeça, empinei meu nariz e rebolei até lá. Só me notaram
quando deslizei entre eles e coloquei meu cotovelo no balcão para chamar o
barman.
— Boa noite, gatinho, uma sangria sem álcool, por favor.
— Tem certeza? — O barman que já me conhecia, ergueu uma das
sobrancelhas, questionando o pedido.
— Isso mesmo, sem álcool, gatinho. Quero bem doce.
— Você é quem manda, ruiva. — O rapaz piscou e foi fazer seu
trabalho.
— Como você está, Alicia, querida? — perguntou Nicole, a irmã de
Luiz Miguel.
Ela gostava de provocar. Já havíamos rolado pela rua e arrancado o
cabelo uma da outra quando éramos adolescentes.
Devolvi o deboche com um sorriso malicioso e desenhei o taiwanês
com meus olhos.
— Que sorte a sua, irmã do meu irmão. — Fiz questão de morder o
cantinho do meu lábio.
— Hoje não é um bom dia para me provocar, querida, irmã do meu
irmão — Ela se irritou e gargalhei vendo-a segurar a mão do macho e
carregar para longe de mim.
— Que ciumenta... — murmurei, me recuperando da gargalhada
maléfica, sentindo um olhar desagradável arder em meu rosto.
O barman colocou a bebida no balcão e me deu uma piscadela.
Toquei meus lábios no canudo e chupei sonoramente, sentindo o cheiro
insuportável de Felipe Moedeiros penetrar em mim.
Eu odiava aquele perfume nojento, mas se ele não saiu, eu não faria
isso também.
Mexia o canudo dentro do segundo drink quando Felipe não aguentou
minha presença e se afastou do balcão. Mas quando pensei que ganharia
aquela batalha infantil, ele agarrou a cintura da mulher e a beijou na boca,
bem ao meu lado.
Em um segundo senti tudo queimar dentro de mim, e quando a língua
do loiro entrou nos lábios da negra, antes mesmo de parar para meditar
sobre o peso da atitude ridícula, joguei o drink inteiro na cara do casal.
Droga!
Com a taça na mão, observei o olhar furioso de Felipe transformar
cada centímetro do meu corpo em uma estátua constrangida.
— Escorregou — dissimulei e a mandíbula do loiro trincou, assim
como a pulsação em seu pescoço aumentou.
— Não, Felipe! — A mulher colocou a mão no peito do macho e o
empurrou para longe de mim. — Ei, calma, vamos sair daqui.
Melindrosa, desviei o olhar, recuei furtivamente e corri para longe
deles.
Fiquei com raiva de mim mesma por protagonizar a cena medíocre e
resgatar a menina louca que fazia de tudo para chamar atenção na
adolescência.
Eu estava desmoronando novamente. Pouco a pouco.
Tentei desaparecer no meio da multidão, mas Felipe veio por trás,
agarrou meu braço e me levou por outro caminho. Só parou quando
chegamos a um local reservado, onde colocou meu corpo contra uma das
paredes e tentou me intimidar com os olhos.
— Não se atreva. Vou gritar — praguejei, tentando me libertar das
grandes mãos que cravaram seus dedos perto dos meus ombros.
— Quem vai te ajudar? Sobrou alguém para fazer isso? — Felipe não
gritou, mas seu tom arrogante e excessivamente confiante me abalou. — O
que levou você a se tornar esse ser tão ordinário e mesquinho?
— Dane-se você e os seus malditos questionamentos! — gritei,
lutando contra uma ameaça de choro. — Odeio você Felipe... — Empurrei
o bolo angustiante que apertou minha garganta. — Odeio!
— Não, você continua obcecada — rosnou em meus lábios, testando
minhas fraquezas, querendo me humilhar.
— Só vejo uma pessoa obcecada aqui: você, na minha boca. É difícil
esquecer, não é? — Destruída, debochei, mas isso só o fez empurrar seu
corpo contra o meu. — Estúpido! Me solta, já está doendo.
Não me soltou e olhei para um pequeno canto de seu peito onde
minha cabeça havia descansado algumas vezes na pré-adolescência.
— Você gosta de ser tratada com grosseria, ruiva. — Ele deslizou a
boca sobre minha bochecha e sussurrou em meu ouvido: — Também gosta
de pegada violenta. Ou você acha que os caras com quem você anda
mantêm isso em segredo?
Foi como me rasgar ao meio. Meus lábios tremeram, as lágrimas
quiseram vencer e pressionei meus dedos feridos, precisando aliviar o
excesso de angústia. A dor externa sempre foi fácil de lidar, a dor interna
dilacerava a alma.
— Você tem namorada. Não deveria estar aqui se esfregando em
mim. — Virei meu rosto e nossos lábios roçaram. A sensação mais gostosa
da minha vida, depois de anos, tornou-se a pior. — Me larga, Felipe. Seu
cheiro desagradável está me enojando.
Em silêncio, ele se fixou na minha boca e desceu até o decote. Foi o
suficiente para me fazer perder o último pedaço de segurança. Agora
examinava todas as minhas imperfeições de perto. Se brincasse com o
excesso de peso, me deixaria mais destruída.
— Você já foi doce, Alicia. Por que ficou tão amarga? — perguntou,
quando me preparava para lidar com ofensas ao meu corpo.
— Vá investigar a vida da sua pobretona. Não te devo satisfação. —
Mordi meu lábio com tanta precisão que senti o gosto de sangue.
— Mariana é de origem humilde, mas isso não a impediu de estudar,
trabalhar e ser uma das melhores advogadas do escritório da minha família.
Ela tem caráter. E você, com toda sua fortuna? O que está fazendo da vida?
Quantos cursos fez depois do ensino médio? Aprendeu a respeitar as
pessoas? — Virei o rosto — Olhe para mim! — Segurou meu queixo,
virando-o para ele. — Essa foi a última vez que você testou minha
paciência.
— Tudo isso por conta de um drink? — Inconformada com minha
posição indefesa, coloquei a língua para fora e lambi o líquido doce e
pegajoso de seu rosto. — Só assim para ficar gostoso. — Felipe fechou os
olhos, como se estivesse controlando seu pior lado, então dei uma longa
lambida nele.
— Inferno! — gritou, me fazendo encolher os ombros. — Não foi a
droga da bebida, Alicia. Você espalhou que eu era gay! Você atacou várias
amigas minhas a ponto de fazê-las mudarem de escola, provocou minha
prima, invadiu minhas redes sociais para espalhar mentiras, quebrou meu
primeiro maldito carro... — Ofegante, hesitou alguns segundos. —
Arruinou minha adolescência e continua assombrando minha vida adulta...
Me deixe em paz, caramba!
— Você prometeu!
— O quê, porra? — Segurou meu rosto. — O que eu te prometi? Me
fala!
— Tenho certeza de que você é gay... — Fui vergonhosamente
infantil e engasguei-me com angústia.
— Eu poderia dar a prova que você quer, Alicia, mas não tenho tesão
por você há muito tempo. Meu desejo se desvaneceu quando fui
apresentado ao seu lado podre. Maldito seja o momento em que me
aproximei de você!
— Malditas sejam todas as vezes que você segurou minha mão —
completei, perdendo o controle das lágrimas e me odiei por isso. — Você
nunca foi meu príncipe... — soltei, sentindo-me uma idiota. Ele sempre
despertava a criança ingênua que existia em algum lugar dentro de mim.
— Ah, você quer um príncipe? — replicou com um sorriso de
desprezo. — Bruxas não têm direito ao maldito príncipe! — Me soltou de
repente, se virou e saiu, deixando-me imóvel, chorando e sentindo o gosto
amargo de puro ódio arder em minha garganta.
— Você está bem? — uma estranha perguntou, mas a ignorei.
Limpei os olhos com as costas da mão e saí no meio da multidão.
Fui ao segundo bar e pedi um drink com vodca. Repeti a batida oito
vezes, paguei a conta e deixei o balcão. Foi quando uma voz masculina
chamou meu nome e me deixei ser levada.
Cheguei à pista de dança mais alta e o estranho puxou minha cintura
em sua direção. Quando beijou meu pescoço, senti a adrenalina correr pelas
minhas veias. Eu precisava me machucar mais agressivamente. Beliscar não
resolveria meu problema naquela noite.
— Está com amigos? — perguntei, vendo tudo girar rápido demais.
— Dois. O que você quer? — Senti os dentes do homem roçarem
meu queixo.
— No momento, um drink — falei com os olhos embaçados.
— Fica aqui. Já volto com seu drink e meus amigos. — Ouvi ele dizer
antes de me soltar.
Com meus olhos fechados, acompanhei o ritmo da música eletrônica.
Joguei pescoço, braços e balancei meus quadris, passando a mão pela minha
coxa até chegar à bainha do vestido curto.
Em poucos minutos, mãos me seguraram em todos os lugares. Parei
de dançar e vi os três homens fortes e bonitos me cercando com desejo em
seus olhos.
Aquilo aguçou não só a doença, mas também minha autoestima.
Peguei o copo de um deles e após beber o líquido muito amargo, comecei a
dançar com os três.
Eu só queria esquecer o maldito mundo ao meu redor. Minha vida era
uma droga!

Tudo doía.
Com a mente turbulenta, lutei para recuperar as memórias e sofri
quando elas se consolidaram.
Me encontrei encostada na parede de um dos banheiros da boate
enquanto três estranhos revezavam-se em suas próprias satisfações.
Frustrada com a situação em que me coloquei, depois de três anos
sóbria, me forcei a abrir os olhos. Foi quando vi o rosto do meu irmão mais
velho, bem como o clarão do dia.
— Mimo... — murmurei seu apelido.
— Já são duas da tarde. Acorda, precisamos conversar.
Seu tom pesado me cobriu de vergonha.
— C-como cheguei aqui? — Com dificuldade, sentei-me na cama e
encarei meus dedos feridos sobre o lençol que cobria minhas pernas.
— Nicole encontrou você e com a ajuda do namorado dela e do
Felipe, a levou para o hospital.
— Droga!
— Droga, Alicia?
Senti as primeiras lágrimas descer. Luiz Miguel era como um pai para
mim e eu o respeitava com a minha alma.
— Posso te dar um abraço antes do sermão? — pedi com a voz falha.
Ele negou, fazendo-me encará-lo meio ressentida.
— Eu te abracei toda a minha vida. Mimei. Conversei. Protegi. Fiz o
meu melhor para criar você e nosso irmão, lutei para suprir a falta do seu
pai e derramei meu próprio sangue para dar a você mais do que podia. Mas
hoje, só hoje, depois de todos esses anos, reconheço que errei
— Você não errou...
— Calada! — gritou, me fazendo estremecer. — Heitor sempre achou
que faltava pulso firme, enquanto minha mãe e eu mimávamos e
estragávamos.
— Mimo, me dá o seu colo como das outras vezes. Por favor, só
preciso disso agora. — Estendi os braços, mas ele me ignorou.
— Não é possível que todos esses anos de terapia não tenha lhe
ajudado a ser uma pessoa melhor. Todo mundo tem problemas e você não é
o centro do universo, minha irmã. Até a faculdade você abandonou. O que
quer da vida, caramba? Quando pretende reagir?
— Mimo...
— Calada! Ainda não terminei e você vai me ouvir!
— P-perdão... — Solucei.
Ele sempre cuidou de mim, nunca me questionou, mas agora era um
homem casado e sua esposa me odiava. Eu definitivamente estava perdendo
meu melhor protetor.
— Não vou deixar você longe dos meus olhos. Já conversei com a
mãe e você vai comigo para o norte.
— Só se você me drogar e amarrar! — Eu o encarei. — Prefiro viver
na rua a morar sob o mesmo teto da mulher insuportável que você chama de
esposa.
— Preconceituosa, arrogante, mesquinha, maliciosa, irresponsável!
Meu Deus, como eu errei em te deixar tanto tempo em uma bolha protetora,
Alicia! — Ele arfou e piscou para afastar as lágrimas. — Você não
consegue superar traumas, porque só alimenta o que não presta!
— Paraaaaa! — Pressionei minhas duas mãos nos ouvidos.
— Sua cunhada me confidenciou o que passou em suas mãos na
infância e na adolescência.
— Ela tirou tudo de mim. Tudo! Agora tirou você! — gritei e Luiz
Miguel agarrou meus pulsos, me forçando a tirar as mãos da orelha.
— Antes de pegar você no hospital, fui à delegacia visitar um dos
filhos da puta que esteve com você. Eu juro que não consigo acreditar no
que ouvi enquanto quebrava o nariz dele.
— Por favor, não acredite. — Me engasguei no choro. — Não
acredite...
— Você pediu para ser usada por ele e mais dois, Alicia? — Ele
soltou meus pulsos — Isso já aconteceu antes?
— Cala a boca, Luiz Miguel! — Apertei os dedos feridos no lençol e
enrolei a mão quando senti que saía sangue. — Sai daqui!
— Do meu bolso não sai mais um centavo para bancar suas
irresponsabilidades. — Ele andou dentro do quarto. — O carro vai
continuar com você, isso se suas visitas ao orfanato forem frequentes. Vou
ligar toda semana e pedir relatório.
— Vai se ferrar e lamber os pés da sua mulherzinha! — gritei entre
soluços. — Delegado de merda! Capacho de mulher! Pau-mandado! —
Fiquei de joelhos na cama e vi minha mãe entrar imediatamente no quarto.
— Filho, já chega!
— Estou com tanto desgosto, mãe. — Meu irmão quase perdeu o
fôlego. — Nunca pensei que chegaria a esse ponto.
— Você não é meu pai! — gritei, magoada! — Bastardo!
Luiz Miguel tirou o cinto da cintura.
— Não, filho. — Minha mãe segurou a mão dele e me encolhi na
cabeceira da cama.
Eu merecia uma surra, mas só queria que ele me abraçasse.
— Alicia está se afundando de novo, mãe! Com a minha
transferência, não sei como vai ser... — disse embargado, e o cinto de
couro enfiado em sua mão só aumentou minha raiva.
— Não, não estou me afundando! Sou mesmo uma vagabunda que
gosta de tapa na cara e trepadas violentas! — Com raiva, usei palavras que
os dois nunca ouviram sair da minha boca. Aquela merda sempre foi
velada.
— Shh... filhinha! Não fala assim. — Minha mãe começou a chorar.
— Hoje vou sair com o primeiro cara grosseiro que encontrar na rua!
Porque eu realmente aprendi a gostar desse inferno! — Cheia de ódio,
continuei me machucando, machucando as pessoas.
Luiz Miguel viu o desespero da minha mãe e me deu a primeira
cintada.
— Ahhhhhhh! — gritei, me virei para proteger minhas pernas e levei
uma cintada no traseiro que doeu mais do que a primeira.
— Chega, filho! Por favor, não faça isso — mamãe implorou e ele
parou de me atacar.
— Mãe, a senhora não vai soltar nenhum centavo na mão dela. Vamos
tentar resolver essa situação de outra maneira — meu irmão declarou entre
engasgos. Eu estava com ódio, mas vê-lo chorar, de alguma maneira, doeu
mais do que as marcas vermelhas em minha pele. — Desejo de todo o
coração que você se torne uma pessoa melhor e que seja respeitada como eu
te criei para ser. — Limpou as lágrimas no braço. — Veja um médico para
ela, mãe. Um método para evitar gravidez. Já que não se importa em pegar
uma DST, pelo menos protege a vida de uma criança inocente.
— V-vou denunciar você para a corregedoria... — murmurei no meio
da asfixia do choro. — Nunca vou perdoar o que fez comigo...
Luiz Miguel não deu importância para minhas palavras. Puxou a porta
com violência, saiu do quarto segurando seu cinto e a mamãe seguiu atrás
dele.
Totalmente no fundo do poço, inclinei meu corpo sobre a cama e
gritei, chorando como a criança mimada, irresponsável e doente que nunca
deixei de ser.
Saí do banheiro vestida com uma camisa longa que cobria o tecido da
minha calcinha. Não me olhei no espelho, mas passei o pente no cabelo
molhado e protetor solar no rosto. Estava reagindo depois de setenta e duas
horas enterrada sob os lençóis.
Durante o isolamento, mamãe levou minha comida nas horas certas e
beijou meus cabelos com ternura, mas não trocamos uma palavra. Ela
estava triste, eu envergonhada.
Abri a porta do meu quarto e andei descalça até o penúltimo cômodo
no corredor.
Que a vozinha não tenha ouvido a briga, desejei em pensamento.
A porta estava aberta. A cuidadora deixava assim quando precisava se
ausentar.
Após a morte repentina do meu avô, a vovó Alice adoeceu de tristeza
e precisou de cuidados especiais. Foi um alívio quando mamãe conseguiu
convencê-la a deixar o rancho para morar conosco.
Me aproximei e encostei a cabeça na guarnição da porta, admirando a
velhinha mais linda do mundo, sentada em sua cadeira de balanço.
— Oi, borboletinha. — Ela logo me notou e ergueu os olhos do
paninho de tricô.
— Oi, vozinha... — Entrei e me sentei no chão, aos pés dela.
— Você está melhor agora?
— Não muito, vovó, mas vai passar. — Constrangida, peguei a linha
de tricô do chão e enrolei o excesso.
— Estou fazendo um casaquinho. — Ela puxou conversa — Esperei
muito tempo por um bisneto, depois do casamento do Mimo, estou mais
confiante.
— Mas vozinha, você já fez dois baús de roupas. É o suficiente para o
bebê.
— Serão muitos bisnetinhos, filha. Do Mimo, do Heitor e as suas
borboletinhas. — O sorriso esperançoso foi dos lábios finos aos olhos
clarinhos e estremeci, lembrando-me do horário dos exames que mamãe
tinha marcado na clínica.
Antes de viajar, Luiz Miguel informou à mamãe que ligariam do
pronto-socorro quando o resultado dos exames específicos ficasse prontos,
mas orientou que ela não me deixasse voltar lá, assim me pouparia de ser
vista como "a menina estuprada".
Não havia chance de gravidez, mas o medo de ter contraído uma DST
era real.
— Vovó, vou precisar sair agora. — Beijei a mão dela. — Posso
dormir com a senhora esta noite?
Meu tom saiu um pouco engasgado. Sentia necessidade de
aconchego, mas tinha vergonha de olhar para as pessoas em minha casa.
— Vou dormir tarde, só para esperar por você. — Ela sorriu
animadamente.
— Não, vozinha. Prometo voltar cedo da rua. — Beijei sua bochecha
enrugada e fofa. — Vou trocar de roupa.
Levantei-me rápido e voltei para o meu quarto.
Sentada na recepção do laboratório, vasculhei as redes sociais da
minha cunhada em busca de qualquer sinal de remorso do meu irmão. Ele
era discreto, sua posição na Polícia Federal assim o exigia.
Não encontrei nada no perfil da Maria Eduarda. Ela só havia
interagido com uma postagem de seu namoradinho de infância, algo sobre o
escritório da família.
Com os olhos presos na tela, funguei para afastar o odor fétido que
atingiu minhas narinas.
Caramba, só de pensar no embuste senti o cheiro dele, pensei, mas em
seguida ouvi um sussurro conhecido, o que fez meu rosto virar e meus
olhos terem o desprazer de captar a figura de Felipe sentando-se a algumas
cadeiras de onde eu estava, sorrindo e beijando a mão da tal Doutora
Mariana.
Nojo!
Típico casal de romance clichê, daqueles que as pessoas gostam: a
pobretona empoderada, que estudou e cresceu na vida, e o babaca rico e
arrogante. A única exceção aos livros era a falta de beleza do macho.
Será que está grávida?, matutei. Estão muito animados para fazer
exame de fezes.
Dane-se!
Que venha logo cinco para fazê-lo perder noites e afetá-lo no
trabalho!, praguejei. Isso! E quando voltar para casa, frustrado por ser
incompetente, encontre a Doutora desleixada e com uma fila de crianças
esperando sua vez de pegar no peito.
Gargalhei por dentro, apreciando a cena maravilhosa que acontecia na
minha cabeça, mas enrijeci quando a mulher de jaleco chamou meu nome e
os olhos de Felipe Moedeiros bateram em mim.
Inferno!
Fingi indiferença, peguei minha bolsa e entrei no consultório.
As enfermeiras demoraram para encontrar minhas veias, então
perfuraram-me em ambos os braços e nas costas da mão esquerda. Foram
necessárias doze ampolas para o hemograma completo e tanto esforço me
deixou um pouco trêmula.
Minutos depois, deixei a sala e dei de cara com Felipe na porta, agora
sozinho e segurando a bolsa da mulher.
— Oi... — Puxou conversa e foi devidamente ignorado.
Caminhei rápido em direção ao estacionamento. Não olhei para trás,
mas eu podia senti-lo por perto.
— Como você está, ruiva? — Ouvi sua voz quando toquei a maçaneta
do carro.
— No dia em que você pagar minhas contas, eu te dou satisfação. E
dou com muito prazer! — retruquei, ainda de costas.
— Sem deboche, Alicia. Liguei para Nicole ontem. Ela falou com sua
mãe... Você ainda estava de cama. Fiquei preocupado.
Preocupado comigo?
Belisquei minha palma para afastar o sentimento idiota e me virei
para confrontá-lo.
O loiro já era horrível, mas aquele traje social piorou sua situação.
Seu rosto simétrico totalmente atípico não combinava com os olhos
azuis e maxilar exageradamente definido.
A calça de alfaiataria marcava os músculos da coxa de uma forma
muito estranha, e provavelmente havia enchimento entre as pernas para
completar sua feiura.
Totalmente ridículo, com seus músculos falsos, moldados por
esteroides anabolizantes e barba por fazer, que eliminava a menor
possibilidade de sensualidade masculina.
Felipe Moedeiros era um homem estrambólico. Nunca vi outro mais
ridículo.
Afastei meus pensamentos para evitar pesadelos noturnos.
Dava pavor só de pensar naquele homem em cima do meu corpo, me
arranhando com seus dentes falsos, usando suas mãos grandes para apalpar
meu traseiro, me fazendo tremer de raiva com aquela voz horrível perto do
lóbulo da minha orelha... Não, eu precisava evitar esse sonho maldito.
— Algum problema, ruiva?
Me recompus.
— Sua roupa é tão feia quanto você — disse a verdade e ele ergueu
uma sobrancelha, já dando um passo em minha direção.
— Nicole abriu um BO, mas infelizmente nossas leis são falhas. O
desgraçado já está nas ruas, igual os outros dois que fugiram.
— Vai a merda, Felipe! — gritei, coberta de vergonha. — Nem
mesmo fazer sexo em paz agora posso mais.
— Com três, no banheiro de uma boate?
— Foda-se o seu conservadorismo! A Doutora está te procurando
para avisar que outro pilantrinha Moedeiros está a caminho. Vai lá.
Felipe sorriu amargamente.
— E você, o que está fazendo aqui? Medo das consequências? Se
engravidar, sabe quem é o pai?
— Seu desgraçado! — Avancei, mas Felipe segurou meu pulso antes
que eu o acertasse. — Não venha com lição de moral. Você nem mesmo
tem o direito de falar comigo!
Eu o acertei com minha mão livre e marcas de três unhadas foram
deixadas em seu rosto feio.
— Quem vê essa garotinha zangada não tem ideia de como é a mulher
nociva. — Ele ergueu meu punho bem alto. — Sabe, os homens da minha
família são conhecidos por serem bons domadores de feras.
— Vá se ferrar! Você e os cretinos da sua família! — gritei tão alto
que minha garganta doeu e tentei, inutilmente, mordê-lo.
— Mas acredito que não herdei esse destino. Odeio problemas.
Prefiro resolvê-los e ganhar dinheiro com isso.
— Estou pensando em colocar seu nome na boca de um sapo. O que
você acha, bastardo?
Foi uma ideia esporádica, mas fiquei tentada.
Será que essas coisas dão certo?, meditei, mas logo Felipe zombou
das minhas palavras, evidenciando a covinha na bochecha esquerda, um
sinal tão ridículo que me desconcentrou.
— Procure o sapo e mantenha-se ocupada, coração.
— Eu te odeio tanto, Felipe. — Suspirei alto demais.
Suspirei de desgosto.
— O que aconteceu com sua mão? — Sério, ele olhou diretamente
para meus dedos sem curativos e inflamados. — O que aconteceu aqui? —
Olhou com mais atenção. Tentei puxar a mão dele, mas não permitiu. —
Você já estava assim, naquela boate? — perguntou com os olhos nos meus.
— Minha resposta mudará alguma coisa em sua vida? Poupe-me do
desprazer de ouvir sua voz, Felipe. Vá cuidar de sua mulher.
— Vem aqui. — Me puxou pelo pulso, colocou minhas costas na
porta do carro e desceu os olhos para o meu corpo.
Tentei fugir, mas ele me prendeu e continuou a fiscalizar tudo, me
cobrindo de vergonha por estar com sobrepeso.
— Me larga!
— Quem fez isso com seu corpo? Sua perna está marcada e seus
dedos cortados. Onde conseguiu esses hematomas?
— Me deixa ir... — Minha voz saiu trêmula.
— Você está comendo direito? — indagou e segurei as lágrimas com
todas as minhas forças. Minha fragilidade não poderia vir à tona na frente
dele. — Continua malhando? Que suplemento você está usando? Responde,
menina. — Afrouxou a mão no meu pulso e deslizou as pontas dos dedos
sobre o lugar. — Quem machucou você, ruiva?
Forte, Alicia. Você é forte, declarei em pensamento e um soluço
solitário escapou da minha garganta.
— Seu perfume está embrulhando o meu estômago, Felipe...
Fechei os olhos quando ele arrumou as mechas displicentes do meu
cabelo.
— Onde estão seus brincos? Não me lembro de ter visto suas orelhas
sem um par deles... — Esfregou o polegar e o indicador no meu lóbulo
vazio. — Precisa ficar longe de caras como os da boate. Seu corpo é frágil e
você é pequena demais para lidar com esse tipo de coisa. Não consegue se
virar sozinha, coração?
— Felipe? — A namorada apareceu e o loiro se afastou
abruptamente. — É minha bolsa no chão? — ela questionou. — O que
estava acontecendo aqui, Felipe?
Corri a mão pelo cabelo, saí do lugar e destranquei meu carro.
— Foi só um momento. Releve isso, querida — Olhei para o loiro e
torci meus lábios em um sorriso maligno. — Esse safado me procura
sempre que a saudade aperta.
— Que palhaçada é essa, Felipe? — A mulher o encarou, perdendo
um pouco da compostura.
— Vamos para o carro. Explico no caminho. — Felipe beijou a testa
dela.
Um bolo angustiante travou minha garganta, não consegui respirar
profundamente e entrei rápido no carro.
No final da rua, senti as primeiras lágrimas ocuparem seu espaço.
Levantei-me com cautela para não acordar minha avó e, após enrolar
o cobertor em seu corpo e calçar meus chinelos, abri a porta e fui para o
meu quarto.
Ainda era cedo, mas meu dia ia ser longo e eu precisava me preparar
psicologicamente para mais um dia de visita ao orfanato.
Nua e no banho, descansei minha testa na parede de azulejos e senti o
cansaço do meu corpo ficar mais forte através da minha tontura matinal.
Com os olhos fechados, desejei que a água quente também levasse
embora minhas fraquezas, ansiedade e gatilhos emocionais.

Teodoro desceu comigo, recebendo a atenção devida. Quando me


aproximei da mesa do café da manhã, determinada a fingir estar tudo bem e
ignorar os últimos acontecimentos, vi Heitor olhando para minha mãe e
padrasto, conversando sem dizer uma palavra.
— Bom dia, família, dormiram bem? — Bem sonsa, enchi um copo
com suco de laranja e beberiquei.
— Bom dia — todos responderam ao mesmo tempo.
Judite, uma das nossas funcionárias mais antigas, também
acompanhou o coro, então percebi que ela fazia parte da conversa
silenciosa.
— Ainda é cedo, filha, por que levantou agora? — mamãe perguntou.
— Vou ao orfanato e você, Heitor, vai me levar no seu carro —
comuniquei.
Heitor, o novo habilitado da casa, era um gênio dos sistemas desde a
infância. Aos quinze anos, ele criou o primeiro aplicativo e, desde então,
acumulou uma pequena fortuna.
Tudo o que aprendi foi hackear perfis de mídia social, mas se eu fosse
à garagem com mais frequência na infância, hoje seria uma promissora
ladra de banco.
— Quebrou o carro, filha? — perguntou mamãe, toda sorridente.
— Não, mas meu tanque está praticamente vazio e preciso
economizar combustível. — Coloquei o copo vazio na mesa e olhei para um
bolo tentador que enfeitava o centro dela.
— Aproveite a nova rotina para regular as refeições do dia —
incentivou mamãe.
— Não é amarelo. — Me desculpei com um meio sorriso.
— Onde está o bolo de milho, Judite? — mamãe perguntou e a
mulher saiu correndo.
Há alguns anos criei uma disciplina e optei por comer alimentos de
uma única cor, e não, a cor não tinha um motivo específico, era apenas uma
forma de regular minha dieta e me manter longe da maldita compulsão.
— Aqui está. — Judite colocou um generoso pedaço de bolo de milho
na minha frente.
— Obrigada, Judite. — Cortei o bolo em pequenos pedaços e espalhei
no prato.
Quando olhei para cima, peguei todos observando minha ação.
— Até que não está tão frio, não é mesmo? — Meu padrasto
disfarçou e mexeu no próprio prato.
— Experimenta também a salada de frutas. Vou separar as cores para
você. — Mamãe pegou um prato e começou a selecionar tudo com um
sorriso enorme nos lábios.
— Seu irmão ligou, Alicia — Rex informou, fazendo-me parar de
mastigar. — Ele vai ficar feliz em saber da sua disposição.
Ignorei o assunto e comi mais do bolo.
— Conversa com seu irmão, filha. — Mamãe colocou a mão sobre a
minha. — Ele está sofrendo muito.
— Rex, não posso mais pagar a academia do condomínio, então, de
agora em diante, vou malhar lá na Anjos da Noite — falei com as
bochechas cheias, comendo o máximo que eu podia e olhando para a broa
de milho.
— Tudo bem. A academia também é sua.
— Só se você me colocou no seu testamento. Porque seu amigo me
arrancou até a mesada. — Repus meu prato. — Enfim, não quero saber
dele. Vou malhar na sua parte da academia. — Empurrei um gole de suco e
coloquei um pedaço de queijo na boca. — Qualquer horário a noite é ideal.
— Peguei parte da salada que a mamãe separou e comi rapidamente. — Me
passa esse mamão, Heitor.
— Não. — Meu irmão segurou a fruta.
— Você está muito chato, pirralho. — Coloquei mais suco de laranja
no copo, segurei o cesto com broa e devorei uma delas.
— Você tem nutricionista na próxima terça, às dez da manhã. Vou
com você. — Minha mãe tentou tomar o cesto das minhas mãos, mas
sustentei e continuei comendo.
— Essa broa foi feita aqui em casa ou veio da padaria, Judite?
— Veio da padaria — respondeu a mulher, colocando a mão na testa.
— Hum... Deliciosa. — Bebi uma grande quantidade de suco e repus
o copo. — Não vão comer? — indaguei com um bolo alimentar nas
bochechas.
— Se quiser ir comigo, é melhor se levantar agora. — Heitor me
arrancou da cadeira. Colhi três broas do cesto, mas ele as tirou de mim. —
Chega, Alicia! Vamos, agora.
Puxou minha mão e me levou para o primeiro andar. Após entrar no
banheiro e me observar escovar os dentes, pegou minha bolsa sobre a cama
e me levou na direção da escada.

— Comeram, tomaram banho de sol no gramado, ficaram limpinhos e


se deitaram para o soninho das dez. — Sorrindo gentilmente, a diretora do
orfanato abriu a porta do berçário.
Optei por lidar com os bebês. Eles não falavam, não ficavam no meu
pé e uma mamadeira sempre resolvia o problema.
— Posso olhar as redes sociais enquanto isso? — indaguei e a mulher
sorriu.
— Entendo que não queira estar aqui, mas tenho certeza de que você
vai ser contagiada da mesma maneira que fui há vinte anos. — Ela andou
até a porta. — Veja suas redes sociais, mas fique atenta aos chorinhos. —
Saiu e deixou a porta encostada.
— Vocês estão proibidos de acordar antes das duas da tarde —
sussurrei, sentando-me na cadeira de plástico.
Destravei meu celular e a primeira coisa que vi foi uma ligação
perdida de Luiz Miguel. Ignorei e abri meu aplicativo de música. Ouvi um
grunhido antes de colocar o fone e meus olhos foram para o canto esquerdo
do quarto, para o terceiro berço.
Era a menina. A que chamavam de Florzinha.
Acordou, mas ficou quieta, então escolhi uma playlist relaxante e abri
minha rede social preferida.
Ver todas as coleções de inverno me deixou deprimida. Eu precisava
conseguir dinheiro de alguma forma.
Ouvi outro grunhido e levantei os olhos.
A menina solitária me olhava de seu berço e a mãozinha abria e
fechava lentamente.
Curiosa com o pequeno gesto, coloquei a bolsa e o celular no chão e
fui até lá.
Olhei para a pequena mangueira de alimentação em suas narinas e
senti pena dela. Usei na adolescência e a agonia foi tão grande que puxei
várias vezes e eles precisaram me sedar.
Descansei minhas mãos na madeira do berço e abaixei minha cabeça
para observá-la de perto. Ninguém adotaria uma menina doente. Ela
deixaria o orfanato após os dezoito anos para viver sozinha.
Pobre, sozinha e doente. Um destino cruel, ela teria.
Desci a mão e deslizei o indicador na pele fina e macia.
Ainda sentindo meu toque, ela desviou o rosto, permitindo-me ver
seus pequenos lábios que tremiam, iniciando um grito quase silencioso que
logo sacudiu tudo no quarto.
— Shh, não, não...
Olhei para o berço onde os outros já estavam começando a se mover e
coloquei a criança escandalosa no meu colo.
Ela não parou de chorar, obrigando-me a sussurrar em seu minúsculo
ouvido:

Boi, boi, boi


Boi da cara preta
Pega esta criança que tem medo de careta.
Não, não, não
Não a coitadinha
Ela está chorando, porque ela é bonitinha!

Repeti a música algumas vezes. Quando o choro cessou e levantei o


rosto para vê-la, encontrei os olhos espertos, fixos em mim.
— Você não tem tamanho, mas o escândalo é digno de um Oscar. O
que você acha? “Maria escandalosa vence o primeiro concurso de choro da
quadrilha de bebês.” — Fingi dar uma grande notícia e cutuquei seu
abdômen rechonchudo.
E foi então que ouvi o som devastador e chocante: a gargalhada da
bebê.
— Você gostou disso? — sussurrei quando ela parou o barulhinho e
me olhou esperando por mais. — Não sou a melhor pessoa para fazer você
rir, garota. — Bati meu dedo indicador na ponta do narizinho e ela riu de
novo.
Fiquei com medo de machucá-la por dentro e sentei-me na cadeira.
— Quer olhar as coleções de inverno comigo? — perguntei e seus
dedinhos puxaram uma boa parte do meu cabelo.
— Uau, você é forte, criança. — Ela curvou os lábios e mostrou a
língua. — Não, não deboche, assim você vai derreter um coração de pedra.
Peguei meu celular no chão e quando levantei o tronco, meus dedos
de alguma forma se enredaram na sonda de alimentação, que escapou de
dentro da menina antes que eu pudesse fazer qualquer coisa.
Estremeci, completamente sem ação, e a bebê chorou alto o suficiente
para acordar os meninos.
Imediatamente, uma voluntária entrou no berçário, tirou a menina dos
meus braços e levou-a para o trocador.
— Peguei com cuidado do berço... O celular estava no chão e... Tive
cuidado... — Tremendo, mantive os braços na mesma posição, sentindo o
vazio da criança que deveria estar ali.
— Ela já ejetou a sonda antes. Vai ficar tudo bem — a voluntária
disse, de costas para mim, segurando a criança sobre a mesa.
— Você pode fazer isso? — Supervisionei a ação dela.
— Sou enfermeira, fisioterapeuta e trabalho em uma maternidade
neonatal.
A informação me fez soltar um longo suspiro e não pude deixar de
notar que a mulher era incrivelmente jovem para exercer as duas profissões.
— Por favor, faça ela parar de chorar — pedi quando a criança olhou
para mim, tremendo entre os soluços.
— Ela só está assustada. — Desabotoou o vestido da criança. — Vou
precisar levá-la ao hospital para substituir a sonda. Não sou capaz de fazer
isso aqui. — Desceu a calcinha e abriu a fralda descartável da bebê. — Vou
trocá-la, enquanto isso, tente acalmar os meninos. Pega o João. Ele é o mais
sensível.
— João? — Fui até os berços, onde os meninos estavam vermelhos de
tanto chorar, e peguei o menino gordinho, aquele que parecia se chamar
João. — Shh! — Andei com ele na frente do berço. — Fica calmo, João —
pedi com a voz embargada.
— Ele é Gabriel. João é o miudinho — disse a voluntária, vindo de lá.
— Fique com ela. — Pegou o balofo com um braço e me entregou a
menininha. — Conversa com ela. Ela gosta de interagir.
Totalmente desconfortável, assenti e saí do quarto. Sentei-me em uma
base de cimento de frente para a porta e encarei a criança, que gradualmente
parou de gritar e olhou nos meus olhos, esperando por algo que eu não era
capaz de oferecer.
— Já usei uma sonda como a sua. Tudo doía por dentro, não consigo
imaginar como você aguenta, mas seja forte. Você consegue me entender?
Ela abriu a mão para puxar meu cabelo e rapidamente coloquei meu
polegar entre seus dedinhos.
— Meu nome é Alicia. Não sou uma boa amiga e não gosto do nome
que te deram aqui. Urgh! Florzinha é um nome tão fraco. Me recuso a
chamá-la assim.
Beijei a mãozinha e ouvi faíscas de risos.
— Shh, não pode sorrir agora.
Ela riu outra vez.
— Não seja teimosa, menina. Ou melhor, seja, mas não comigo.
Senti que não estava sozinha, olhei para cima e vi a diretora me
observando.
— Continue, Alicia. Esse contato é bom para a Florzinha.
— A sonda saiu, mas não foi minha intenção...
— Sim, querida. Tia Julia me explicou isso ao telefone. — Cautelosa,
a diretora se aproximou. — Veja como ela está rindo para você. Ela gosta
de você.
— Gosta de mim? — Olhei para a criança.
— Florzinha foi encontrada com horas de vida, em um lixão aqui
perto. Ela ficou alguns meses no hospital e chegou aqui assim, sorrindo. É
uma pequena guerreira sorridente.
— Lixão? — Uma sensação agonizante cresceu em meu peito. —
Prenderam quem fez isso? — perguntei, estranhamente indignada.
— Ela foi deixada em um lugar sem sistema de segurança e não há
pistas sobre a família biológica. Mas além de estar bem-vestida e com
roupas aconchegantes, Florzinha usava uma corrente de ouro em volta do
pulso, então acreditamos que ela veio de uma família rica.
— O que ela tem? — Deslizei meu dedo indicador no nariz da criança
e isso a fez fechar os olhos.
— Um cromossomo extra no par 21, excesso de amor. — A mulher
se sentou ao meu lado e acariciou o cabelo liso da menina.
— Não é doença?
— Não, querida. A Síndrome de Down não é uma doença. Florzinha
só precisa ser acompanhada por um fonoaudiólogo, um fisioterapeuta e uma
mamãe amorosa.
— Então, por que ela precisa usar essa coisa? — Não consegui tirar
os olhos da criança.
— Devido a exposição do abandono, ela teve uma infecção grave no
pulmão e precisou tomar muitos remedinhos, o que a deixou fraca... — A
mulher estendeu as mãos. — Ela precisa ir para o hospital pediátrico agora.
— Não — relutei. — Ela vai chorar de novo e você não vai conseguir
acalmá-la como eu.
— Tenho experiência, Alicia. Cuido de crianças há vinte anos.
— É ruim chorar longe dos braços de quem confiamos, Joana. Vou
com ela para o hospital — afirmei, incerta da minha decisão, sentindo uma
enorme empatia pela criatura em meus braços.
A mulher sorriu, me estudou por alguns segundos e então, no mesmo
tom que falava com as crianças, disse:
— Obrigada por sua disponibilidade, querida. Tia Julia vai com você,
tudo bem? Ela conhece pessoas na saúde que podem facilitar o acesso.
Florzinha precisa da solução alimentar em duas horas.
— Vou chamar um táxi. Estou sem meu carro e meu irmão está longe
do bairro — expliquei. — Você vai pagar, claro.
— Vá com o meu carro. Vou chamar a Julia e assumir seu lugar no
berçário.

Nunca dirigi nada tão velho na vida e, após passar muita raiva no
trânsito, estacionei o fusca amarelo na rua dos hospitais infantis da cidade e
segui para agilizar o atendimento.
— Ei, para onde você está indo? — Julia perguntou, com a bebê nos
braços.
— Ao hospital. Por que estamos aqui, criatura?
— Aquele é o hospital público, Alicia. — Ela apontou para o prédio
de dois andares do outro lado da rua. — Trabalho nessa área particular há
quatro anos e trazia as crianças aqui, mas no ano passado muitas delas
pegaram gripe na mesma semana, as consultas tornaram-se rotina, então a
direção vetou as consultas.
— Que horror!
— Vamos! Precisamos implorar aos céus para que a pequena Flor seja
atendida antes de sentir fome.
Arfei, ajustei minha sandália de salto, descansei a bolsa de
maternidade em cima da minha e segui Julia.
Logo na entrada do local público e lotado, ouvi uma comoção por
divergências políticas. Na recepção, uma mulher chorava com um menino
minguado nos braços e várias mães conversavam ao redor dela.

Caminhamos até o balcão de atendimento e a maneira como a mulher


atrás dele olhou para mim não me agradou.
— Bom dia, estamos com uma criança doente e precisamos de
atendimento urgente — expliquei à mulher que me olhava como se eu fosse
de outro mundo. — Você me ouviu, queridinha? — Estalei os dedos na
frente dela.
— Documentos. — Foi tudo o que disse, em um tom presunçoso.
— Só um minuto. — Julia me deu a menina e tirou os documentos da
bolsa. — Você sabe se o Doutor...
— Não, ele não está de serviço hoje — a mulher cortou as palavras da
voluntária, recebeu os documentos e começou a digitar os dados no
computador.
— Ela precisa ser atendida antes de uma hora e meia — esclareci,
dando tapinhas no traseiro da menina em meu colo.
A atendente estalou a língua, arrastou os documentos sobre o balcão
para Julia, olhou para mim e disse:
— Está vendo todas essas mães e pais? — Revirou o dedo no ar. —
Eles também querem atendimento antes de uma hora e meia, e todos
amanheceram na porta do hospital. Você chegou aqui agora e já está com
pressa?
— Olha aqui, infeliz! — Levantei meu dedo e apontei. — A menina é
frágil e precisa se alimentar na hora certa. Acho melhor você poupar sua
ironia para falar comigo e dar a ela o que precisa. — Bati no balcão e Julia
me puxou pela cintura.
— Tudo bem, Alicia, vamos sentar.
A criança em meus braços se assustou e fui forçada a me afastar do
balcão para não meter a mão na cara da mulher.
— Quem ela pensa que é? — reclamei, indignada.
Julia me indicou uma única cadeira vazia e aceitei. Ficar de pé por
uma hora e meia, definitivamente, era o fim.
— Se acalme, Alicia, ou ficaremos marcadas e a Florzinha sofrerá
com isso.
— Os pobres deveriam ter mais empatia um pelo outro. — Balancei a
cabeça para tirar os fios de cabelo do meu rosto. — Você acha que seremos
atendidas antes de uma hora e meia, Julia?
— Vamos acreditar... — A voluntária examinou o perímetro, ficou
por perto, depois foi falar com outra equipe do hospital.

— Quero saber quando a menina será atendida! — gritei na frente do


balcão, enquanto um guarda me segurava pelo braço.
— Tire essa mulher daqui! — longe do balcão, a atendente também
gritou.
— Já estamos aqui há uma hora e a menina nem foi chamada para a
triagem! — Dei uma cotovelada no guarda, mas ele não se afastou.
— Não podemos fazer nada, senhora. Estamos com muitas crianças
— disse o homem.
Olhei para Julia, que estava tentando acalmar a criança faminta. Ela
implorou como pôde, mas os médicos alegaram que não havia espaço para
mais pacientes lá dentro.
— Isso não vai ficar assim! — Empurrei o guarda, fui até Julia,
peguei-a pelo braço e levei-a para fora da zona que era aquele lugar.
No caminho, liguei para Heitor e pedi que colocasse dinheiro na
minha conta. Ele zombou do pedido, só acreditou ser sério quando enviei
uma foto da menina e do hospital do terror.
Chegamos no hospital particular e quando procurei meu cartão de
débito na bolsa, lembrei que o havia deixado em casa, com a intenção de
guardar os poucos trocados que havia na conta.
— Droga, e agora, Julia?
— Ela não vai ficar com fome.
— Vem aqui, bebê. — Peguei a menina e sequei meus olhos
inutilmente. — Ser pobre é uma merda. Como as pessoas conseguem?
— Vou implorar para o plantão. Fica por perto. — Julia se afastou,
entrou pela porta larga do hospital e não foi impedida.
— Shh, bebê, Julia vai conseguir sua mangueirinha. Ela é pobre,
lascada, mas tem alguma influência aqui — sussurrei perto do ouvido da
garota e minhas lágrimas caíram sobre ela.
Nunca estive em uma situação parecida, mas provavelmente seria
uma das mulheres sentadas na sala de espera, olhando de soslaio e irritada
com o choro da criança. Era angustiante estar do outro lado
— Ela está com fome — alguém disse atrás de mim.
Virei-me pronta para dizer algo insultuoso, mas hesitei ao ver Suzane
Moedeiros. Não tínhamos intimidade e ela era a avó de um embuste, mas
algo em meu coração encontrou descanso.
— Ela precisa da sonda de alimentação, mas não tenho dinheiro para
pagar o médico — expliquei.
— Oh, minha querida... — A senhora tirou a bebê dos meus braços.
— Você é irmã do marido da minha neta, não é? — perguntou, indo ao
atendimento.
— Sim. — Fui atrás dela.
— Você já teve uma filha?
— Ela não é minha. Estou sendo voluntária em um orfanato... —
Engasguei-me com as últimas palavras e tentei conter as lágrimas.
— Vou pagar a consulta. Fique calma.
— Obrigada. — Foi tudo o que consegui falar, enquanto presenciava
a bebê tremer de tanto chorar.

Sentada na recepção, trêmula e com um copo de água na mão, eu


esperava Julia sair do consultório pediatra com a menina.
— Ela vai ficar bem. — Suzane sentou-se ao meu lado e colocou a
mão sobre a minha.
— Viram a menina chorando de fome e só atenderam quando
receberam o dinheiro... — Solucei, mas já não chorava mais.
— O mundo é injusto, minha filha.
Suzane Moedeiros, uma das mulheres mais ricas do Paraná, tinha
sessenta e poucos anos, mas eu esperava que ela tivesse memória fraca a
ponto de esquecer um momento constrangedor que presenciou no quarto do
neto quando éramos adolescentes.
O cretino andava sempre tão cercado de garotas que eu dificilmente
seria lembrada.
Ficava mortificada só de pensar no quanto havia me humilhado por
um amor que só existia na minha cabeça doentia.
— ... Minha pouca visão não me permite dirigir, então ele vem me
pegar em meia hora.
Despertei dos pensamentos e percebi que a mulher conversava
sozinha.
— Hmm... — emiti, fingindo saber do que ela estava falando.
— Conheceu meu neto, filha?
— Já vi por aí — respondi.
— Ele mora conosco desde a adolescência, quando os pais foram
estudar e trabalhar no exterior. Agora está mobiliando o próprio
apartamento. Meu coração já está apertadinho com a mudança.
— Apartamento novo? — perguntei, apenas para não a deixar falando
sozinha.
— Novinho e bem localizado. Meu menino é tão jovem e
responsável... — Se gabou e revirei os olhos. — Ele parece muito com o
meu filho Eduardo. A mesma garra para o trabalho, gentileza e amor pelas
pessoas.
Ah, tá! Não foi isso que ouvi sobre o canalha do seu filho. E seu neto
é a cópia do outro. Até a senhora não era flor que se cheire, mas, tudo bem,
vou concordar com tudo. Agradeço o que fez hoje e nem mesmo sonhando
vai me cobrar por essa consulta.
— Já passou da hora do almoço. Não quero atrapalhar você, Suzane.
— Tentei dispensá-la.
— Não tenho nada para fazer hoje, filha, só vou visitar um asilo
depois das três da tarde. Também sou voluntária.
— Parabéns. — Arfei com desgosto.
Ela continuou:
— Mariana, a namorada dele, é nove anos mais velha. Meu neto é
esperto, sempre gostou de mulheres experientes.
E um soco no meio da cara, ele também gosta?
— É bem a cara dele. — Tomei um longo gole de água.
— Ela quer ser mãe, mas está com dificuldades para gerar a criança.
Deus me livre de te contar algo. A senhora é uma língua ferina, não
que esteja me ferindo de alguma maneira, conflitei em meus pensamentos
bebendo a água e desejando álcool.
Torci para ela se calar, mas a velha continuou:
— Ela queria ser mãe solo, mas agora que eles estão juntos, meu neto
será o doador. — A velha sorriu com orgulho. — Lipe está tão envolvido
com a criança que já comprou vários sapatos...
— Maldito capacho! Meu sonho é que sejam quíntuplos. Quero ver
Felipe se ferrando. — Gargalhei maleficamente.
— Filha, o que é isso? Você não gosta do meu netinho?
Odeio!
— Estou nervosa por conta da situação da menina. A senhora me
entende, não é? — Funguei o nariz e entreguei meu melhor olhar
persuasivo.
— Sim, querida, entendo perfeitamente. — Ela segurou minha mão e
beijou. — Você é uma voluntária muito gentil e dedicada. Vejo que se
envolve muito com as crianças.
Assenti, sorrindo falsamente, mas então vi Julia se aproximando com
a menina e me levantei.
— Você comeu, pequenina? — Alisei seu rostinho pálido e beijei
perto dos olhos sonolentos.
— A barriguinha está cheia, agora ela só precisa de banho e descanso
— Julia disse, sustentando a criança cuidadosamente.
— Obrigada, Suzane — agradeci mais uma vez. — Estamos com um
carrinho velho, caindo aos pedaços, mas acredito que cabe mais uma pessoa
nele. — Medi os quadris largos da mulher de idade. — Quer uma carona?
— Não se preocupe, vou esperar meu netinho. Podem ir. — Recebi
um beijo da mulher.
— Então, até qualquer dia. — Segurei a bolsa da criança e caminhei
com Julia até a saída da recepção.
— Você se saiu muito bem no seu primeiro dia, Alicia — a diretora
do orfanato sussurrou perto de mim.
— Ela está tão quieta. Nem parece a mesma escandalosa. — Ajeitei o
lençol no berço da bebê.
— Você não quer almoçar antes de ir?
— Estou sem fome e meu irmão já está vindo me pegar. Vou esperar
lá fora. — Peguei minha bolsa, olhei para os outros bebês brincando no
tatame colorido e saí do quarto.
— Tia! — A menina de cabelo gigante abraçou minhas pernas
quando cheguei ao corredor. — Você voltou para mim, minha tia linda.
— Vai brincar. Já estou de saída. — Sacudi minhas pernas e ela me
soltou.
— Você pentia o meu cabelo? — perguntou com os olhos
esperançosos.
— É “penteia” — corrigi. — E não. Não sei pentear cabelos
cacheados. Posso te machucar com puxões e você não vai gostar.
— Não tem problema. Quero ficar perto da senhora. — Ela me olhou
diretamente nos olhos.
Por que eles tinham que fazer aquilo?
Antes que eu pudesse reagir, a criança me carregou pela mão, me
colocou em uma cadeirinha, tirou um pente do bolso e me entregou.
O dia não estava fácil para meu coração de pedra.
— Então, como foi? — Heitor perguntou quando me joguei no banco
carona do carro.
— Estranho — respondi, ligeiramente afetada pela memória dos
olhos da menininha.
— E a bebê?
— Dormindo e com a sonda no lugar.
— O que tem na sua cabeça? — perguntou e percebi que coçava o
cabelo freneticamente.
Aplicava uma camada de brilho labial, em frente ao espelho, quando a
mamãe abriu a porta da sala.
— Boa noite, filha.
— Chegou tarde hoje, mãe.
— Os pedidos cresceram quase 100%, preciso ficar de olho em tudo.
— Recebi um beijo na bochecha. — Como foi no orfanato?
— Uma verdadeira aventura. — Ouvi a buzina e coloquei o brilho
labial na pochete presa ao meu quadril. — Te conto tudo mais tarde. Heitor
vai me dar uma carona até a academia. — Peguei a garrafa de água no
aparador e corri para a porta. — Beijos!
— Você tomou vitaminas e suplementos? — ela gritou.
— Sim, mãe! — gritei do jardim, correndo em direção ao portão de
madeira.
— Vai voltar com quem, minha patroa? — Heitor destilou sarcasmo
quando entrei no carro.
— Com você. Me pegue às nove e não se atrase. — Prendi o cinto de
segurança.
— Tenho compromisso, não volto hoje. — Ele tirou o carro do lugar.
— Isso é tão errado, Heitor. Até outro dia você tinha dezessete anos e
brincava de carrinho, agora já dorme com aproveitadoras. Argh! Que
decepção...
— Alicia, minha irmã, o que se passa nessa cabecinha santa? Vou
apenas jogar videogame com uma amiga. — Sorriu cinicamente, com as
mãos no volante.
— Elas só querem sua fortuna.
— E você o meu bem, estou sabendo — brincou.
— Quero o seu bem mesmo. E por falar no seu dinheiro, muito
obrigada pelos novecentos reais que entraram na minha conta esta manhã.
— Dei para resolver a situação da menininha. A ideia é mantê-la
controlada e sem grana no bolso. Estou amando essa nova fase da sua vida,
Licinha.
— Só estou agradecendo a gentileza, não seja chato. — Empurrei seu
ombro.
Economizaria aquele precioso dinheiro por pelo menos dois meses.
— Você precisa ver o que está fazendo sua alergia piorar — comentou
quando me viu esfregando o couro cabeludo.
— Usei um dos xampus de sempre... Ai, foi só falar que o comichão
aumentou. Credo!
— Você precisa comer bem e parar de confiar nesses produtos loucos.
— Já estaria careca sem meus tônicos hipoalergênicos importados.
Preciso economizar muito a partir de agora ou terei que usar xampu de
drogaria. Nem gosto de pensar em chegar a esse ponto.
— O ideal seria trabalhar com a mamãe, mas a gente já sabe que não
vai dar certo, então... Que tal procurar um emprego de vendedor nas
lojinhas do shopping? Persuasiva, você é.
— Odeio ser mandada e não nasci para ficar em pé por oito horas.
Vou pensar em algum empreendimento — expliquei e Heitor zombou das
minhas palavras. — Pare de graça e me dê o dinheiro do táxi logo. Isso se
você não quiser sair do seu videogame da safadeza para me buscar. —
Cocei a nuca freneticamente, sentindo a coceira aumentar.
— Não sou seu chofer nem seu banco. Quanto tempo seu carro ficará
na garagem?
— Até que eu não precise economizar dinheiro da gasolina e revisão.
— Coloquei meus fones de ouvido, já selecionando minha playlist favorita.

Fui direto para a sala de musculação do terceiro andar. Mesmo sendo


da família, não gostava de malhar naquele lugar cheio de treinadores
intrometidos e ditadores de limites.
Mas agora não havia opção. Precisava perder pelo menos dois quilos
e minhas pernas poderiam ficar flácidas no processo. Resolvendo esse
problema mais urgente, correria no parque do condomínio para me manter
em forma.
— Pega leve, garota — disse meu padrasto quando passei por ele na
escada. — Vou mandar alguém ficar de olho em você.
— Tenho malhado desde os onze anos, Rex. Sou mais experiente do
que você e seus professores — rebati e não olhei para trás.
— Ligou para seu irmão? — gritou.
— Heitor? Vim de carro com ele — respondi já no topo e não me dei
ao trabalho de olhar para trás.
Procurei uma sala menos movimentada e me dirigi aos aparelhos
vazios. O plano para a noite era sair de lá com as pernas dormentes.
Vinte minutos depois, parei de mover minhas pernas no aparelho
elíptico e coloquei as mãos em minhas coxas. Suor escorria da minha testa e
sorri satisfeita.
Alguns minutos de alongamento seriam suficientes para outra série.
Bebendo minha água, passei entre os equipamentos de ginástica e
encontrei a única vantagem de frequentar academias movimentadas.
— Ora, ora... — Fechei a garrafinha e meus olhos correram pelo
corpo de um deus grego que exibia suas coxas grossas e torneadas no sobe e
desce do leg press horizontal. — Que audácia...
Mordi a unha do dedo indicador e fiquei um pouco tentada a me
aproximar.
Toquei a parte nua da minha cintura, entre a legging e o top, e puxei o
cós macio para esconder minhas dobras de gordura. Foi nesse momento que
o cara se sentou no aparelho e fui forçada a me virar de costas.
É feio!
Horrível!
Argh! O homem mais ridículo da face da terra!
Como é possível alguém sair do paraíso e entrar nas trevas tão
rapidamente?
Andei rápido para fora da sala.
Que ódio por ter cobiçado aquela coisa feia! Ainda bem que não me
viu.
Desci as escadas correndo, saí do prédio e fui tomar um ar no
estacionamento.
Ofegante, encostei-me na porta de um carro, coloquei a mão na testa e
alguns segundos bastaram para reconhecer o veículo importado.
Dei a volta apenas para confirmar o número da placa e voltei a espiar
inutilmente pelo vidro fumê.
Eu sabia como abrir um carro trancado, mas era necessário um ferro
estreito com ponta de gancho. Eu não acharia um tão fácil.
— Eu realmente não queria traquinar — disse ao carro. — Não há
nada de interessante aí. Quero distância do seu motorista.
Antes de me afastar do veículo, procurei a maçaneta e meu sorriso foi
na orelha quando puxei a mão e a porta abençoada veio em minha direção.
— Não sou mais adolescente para esse tipo de travessura... —
Gargalhei — Só tendo muito anabolizante na cabeça para deixar um carro
importado aberto. — Gargalhei mais um pouco. — E por falar em cabeça, a
minha está com uma coceira infernal.
Sentei-me no banco do motorista e reproduzi a pose de superioridade
do canalha. Rindo, abri um pequeno compartimento perto do volante e vi
animais valiosos espalhados. Peixes e onças. Bichos totalmente em extinção
na minha carteira.
Uma ideia errada passou pela minha cabeça, mas eu nunca seria capaz
de ceder a ela. Havia apenas um ladrão na minha família, e ele já bebia chá
com o capiroto há alguns meses.
Fechei o compartimento e me preparei para sair do veículo, mas
quando afastei um centímetro da porta, vi Felipe saindo da academia com a
camisa por cima do ombro, caminhando muito rápido naquela direção.
Inferno!
Puxei a porta, entrei na abertura entre os bancos e pulei para o
assoalho traseiro.
Ele entrou, sentou-se no banco, expeliu ar pela boca como se o tivesse
aliviado, começou a mexer nos compartimentos e ergueu minha garrafinha
rosa.
Seu grito veio, mas eu já tinha as duas mãos na cabeça, em uma
tentativa inútil de me tornar invisível.
Quando ele gritou "peste", provavelmente percebendo quem estava no
carro, fiz o que qualquer um faria se estivesse naquela situação: fingi um
desmaio.
Nem sabia que poderia fingir tão bem. Até meus olhos ficaram
pesados e meu pulso desacelerou.
— Alicia! — Mãos grandes agarraram minhas axilas e um zumbido
ecoou alto em meus ouvidos. — Que merda é essa?
— Acho que... vou tirar um cochilo, feio... — anunciei sem conseguir
me mexer.
— Alicia! Alicia!

Movi minhas pálpebras e por uma abertura estreita vi o loiro com o


celular na mão. Quando colocou o aparelho no bolso e veio em minha
direção, fechei os olhos.
— Ei, acorda. — Calor humano envolveu minha mão. — Acorda,
encrenqueira, não posso ficar com você a noite toda. — Levou minha mão
aos lábios, mas recuou quando abri os olhos.
— Sabe que meu irmão é delegado da Federal, não sabe? —
perguntei, sem reconhecer minha própria voz.
— Você estava roubando o meu carro. Tudo o que fiz foi trazê-la ao
hospital mais próximo.
— Hmm...
— O que foi, ruiva? — Sua respiração bateu no meu rosto.
— Não estou muito bem para dar um soco na sua cara. Chega mais
perto, por favor.
Rosnou e se afastou abruptamente.
— Você está no soro, falta só um pouco. Vou te levar para casa e
tchau.
— Soro engorda, seu cretino. Por que permitiu que fizessem isso
comigo?
— O médico disse que você teve uma queda na pressão arterial e que
o seu problema é a falta de comida. Você está desidratada e precisa de
vitaminas.
— Dois intrometidos! — Puxei a agulha que estava enfiada nas costas
da minha mão e me sentei na cama, observando um fio de sangue espirrar
no chão.
— Você é retardada, porra? — Felipe apertou o lençol na minha mão.
— Chega de palhaçada. — Empurrei seu peito e pulei da cama. —
Por que não me deixou jogada no estacionamento ou chamou o meu
padrasto? — Peguei minha pochete na poltrona e saí da sala de observação,
prendendo-a na cintura.
— Perdi um compromisso importante para trazer você aqui,
encrenqueira! — Felipe veio resmungando atrás de mim.
— Obrigada. — Levantei a mão, ostentei meu dedo do meio na cara
dele e o deixei para trás.
Pensei que havia pegado outro rumo, mas quando cheguei ao
estacionamento procurando um táxi e minha visão ficou turva, ele veio por
trás e me impediu de cair no chão.
— Vou fazer isso por sua mãe — disse no meu ouvido — Você não
merece um segundo do meu tempo — Me levou no estacionamento,
direcionando até o carro.
— Vou morder você... — balbuciei sem forças.
— Senta aí! — Abaixou minha cabeça sem qualquer delicadeza e me
conduziu para dentro do veículo. — Quieta! — Lutou comigo, se
defendendo dos chutes, mas finalmente conseguiu colocar o cinto de
segurança no meu corpo.
— Quando eu tiver condições, a primeira coisa que farei é dar um
soco na sua cara feia. — Cretino, grosseiro!
Cocei minha cabeça de qualquer maneira e baguncei todo o meu
cabelo.
— Gostei do penteado... — Sentou rindo e fechou a porta.
— Não quero te olhar na cara nunca mais. — Virei e abracei meus
braços, tremendo de frio e fraqueza.
— Não malhei com ela, está limpa. — Ajeitou a própria camisa sobre
meus braços.
— Mas está empestada com o seu perfume fedorento. Argh! — rebati,
olhando para ele de soslaio.
— Fique calada. Assim a viagem será mais rápida. — Começou a
dirigir.
— Não sei que assunto eu teria com você. — Disfarçadamente,
esfreguei meu nariz contra o tecido fedorento e fechei os olhos.

— Chegamos. — A voz de Felipe me tirou do cochilo.


Sonolenta, olhei pela janela e vi que a porta do passageiro não abriria
o suficiente.
— Você estacionou colado ao muro... — Esfreguei meus olhos.
— Tem uma saída livre.
Ele abriu a porta do motorista e não pude acreditar no que o cafajeste
sugeriu.
— Esqueceu com quem está lidando ou é falta das minhas
travessuras?
— Tudo bem, vou desencostar. — Segurou no freio de mão, mas me
antecipei, abandonei a camisa fedorenta, coloquei meu joelho sobre sua
coxa, fazendo questão de pressionar com toda minha força, e segurei nos
ombros dele — Aí, porra! — exprimiu e apertei um pouco mais.
— Nada em você me atinge, Felipe. Até nunca mais. — Mudei meu
joelho e duas mãos grandes repousaram em meus quadris.
— O médico mandou você comer frutas e verduras.
— O mesmo discurso de sempre — resmunguei, com a cabeça
tocando no teto do carro.
— Se já sabia, por que não está se cuidando?
— Ah, pronto. Mais um pra cuidar da minha vida! — rezinguei sem
paciência.
— Acho que minhas mãos se fecham em sua cintura, menina —
elogiou meu corpo, fazendo-me estreitar os olhos. — É, por pouco não
fecha... — Mediu com as duas mãos.
— Tenho alergia a suor e você está me infectando. — Coloquei
minhas mãos sobre as dele e tentei fazê-lo me largar.
— Isso não é frescura? — Usou os polegares para massagear a pele
nua da minha cintura, me fazendo estremecer involuntariamente. De ódio.
— Não, não é! — Coloquei as duas mãos em seu pescoço e treinei a
melhor maneira de asfixiá-lo. — Fico toda vermelha e com brotoejas
quando não me livro da minha própria transpiração.
— Mais vermelho do que já é? — Um meio sorriso rasgou seus lábios
e eu o soquei.
— Seu idiota!
— Se você fosse problema meu, eu vigiaria sua alimentação de
perto... — Se desvencilhou dos meus socos e me puxou para baixo,
sentando-me em suas coxas.
— Esconda esse corpo pegajoso dos meus olhos. Não tenho que ver
isso. — Agarrei a camisa e empurrei contra os músculos fortes, suados e...
totalmente ridículos.
— Não tente mais roubar os carros das pessoas, beleza?
— Posso processá-lo por essa calúnia. — Coloquei meu dedo em seu
rosto.
— Vó Suzi me disse que você está sendo voluntária em um orfanato.
— Segurou minha mão. — É verdade?
— Sua avó é uma linguaruda! — Puxei minha mão, mas ele prendeu
meu pulso com força.
— Tenha mais respeito pelos mais velhos, menina.
— Só isso? Chamei sua avó de língua grande. Se alguém falar isso
com minha vozinha, eu não perdoo. — Tentei arranjar uma nova briga.
— Não vou brigar com você assim, fragilizada, em desvantagem. A
menos que você queira argumentar: sua avó é tão, tão... mais do que a
minha.
— Você fumou maconha? — Não aguentei a coceira e enfiei as unhas
no couro cabeludo até quase rasgar o lugar.
— Vai cuidar dessa alergia. — Ele me soltou e empurrou a porta do
carro. — E, Alicia... — Colocou a mão novamente na minha cintura. —
Você ouviu o médico falando sobre a proibição, não ouviu?
— Eu nem vi o médico. — Continuei coçando meu cabelo. — Que
proibição?
— Precisa parar de transar.
— Que intrometido!
— Ele disse que você está com a imunidade muito baixa e fez essa
recomendação. Se insistir, pode causar graves feridas.
— Que horror! Esse médico cretino não sabe de nada. Não tem dois
meses desde que fui à ginecologista e ela não me falou sobre isso.
— A recomendação foi hoje. Dois meses fazem uma grande
diferença, né? — Ele esfregou os polegares novamente na minha cintura. —
Porra, você está tão magrinha, ruiva — me elogiou novamente e continuei
estranhando. — Tão delicada, tão pequena. Como aguenta ir com dois ou
três caras?
— Cuide da sua vida! Fico com quantos eu... eu... — Fechei os olhos,
pois a tontura voltou em uma fração de segundo.
— O que foi? — Ele sacudiu meus ombros. — Alicia?
— O que é? — perguntei grogue, sem ânimo.
— Você não está nada bem, garota.
— Sou uma mulher. — Coloquei meu dedo em seu rosto. — Só você
não me vê assim. — Escorreguei o indicador até seus lábios e abri os olhos
preguiçosamente. — Você tem noção do quanto é feio?
— Nunca me importei com beleza.
— Presunçoso! Odeio você por toda a eternidade — sussurrei, fitando
aquela boca pavorosa. — Vou ficar com a pele irritada por sua culpa.
— Então desce do carro e vai tomar um banho.
— Estou com tanta preguiça... — Tracei seus lábios com meu
polegar.
— Não faz isso, Alicia.
— O quê? — Mergulhei meu polegar em seus lábios e Felipe me
segurou pelos ombros.
— Desce logo da porra do carro!
— Estúpido! — Inflei minhas narinas e, morrendo de raiva, saí e bati
a porta com muita força.
Na calçada, abri a pochete e peguei o celular que estava vibrando. Era
mamãe, mas desliguei. Queria contar tudo a ela com minha cabeça em seu
colo.
Procurei a chave do portão e quando a encontrei me assustei e deixei
cair no chão.
— Desculpa pelo grito, coração. — Felipe veio por trás, afastou meu
cabelo do ombro e deixou um beijo ali.
— Você já gritou comigo tantas vezes, cretino. — Olhei de esguelha.
— Mas hoje você passou mal. — Ele ficou nas minhas costas e seus
lábios acariciavam minha bochecha esquerda, descendo até meu queixo. —
Desculpa, tá?
— Não desculpo... — Saiu em um sussurro quase silencioso e ele me
virou, deu três passos e me levou na frente dele até que minhas costas
estivessem grudadas no portão. — Felipe...?
Mantive meus olhos abertos, estudando seus movimentos, ofegando
por ar a cada batida acelerada do meu coração, a cada centímetro que ele
ganhava do meu rosto. Quando veio em direção à minha boca, coloquei a
palma na frente dela e vi seus olhos sorrirem.
— Não? — perguntou incrédulo, mas entendeu o que precisava fazer
quando acariciei seu rosto, segurando-o em minha mão e direcionando seus
lábios para minha testa.
Como da última vez, ele riu contra minha pele e abaixei meus olhos
com ressentimento.
Quando virei o rosto e coloquei minha mão em seu peito para afastá-
lo, ele finalmente cedeu às minhas expectativas e me acariciou daquela
forma que ainda estava na minha memória, com uma doçura que nunca
recebi de nenhum outro cara, que minha cabeça doente nunca me permitiu
receber.
Beijou meu nariz, minhas bochechas, cheirou minha pele e passou a
língua nos meus lábios, lentamente, lambendo de um canto a outro,
acariciando a pele nua da minha coluna e pescoço, deixando-me totalmente
presa na expectativa do beijo firme, quente e sem excessos de ferocidade.
Do jeito que eu gostava, do jeito que só ele sabia fazer.
Cinco beijos na boca foram os contatos mais íntimos que tivemos. E
tudo bem, eu não exigia mais. Trocava qualquer contato íntimo por
aconchego, beijos na testa e dedos entrelaçados.
Trêmula e atingida pelo magnetismo excitante do desejo, abri a boca e
aspirei seu fôlego.
Meu subconsciente insistia que eu ia me machucar, assim como das
outras vezes, fiquei relutante, mas logo comecei a tomar precauções sem
que o príncipe percebesse.
— Estamos na rua... — murmurei quando sua língua acariciou dentro
dos meus lábios. — Felipe... — Sorri meio tonta, perturbada com o embalo
da febre intensa que descobri com ele na adolescência.
— Você está bem? — perguntou e me impediu de responder, me deu
beijos rápidos de chupar, um após o outro, buscando mais dentro de mim,
querendo permissão para tornar tudo mais intenso.
Um som pungente escapou de sua garganta e segurei sua nuca,
soluçando algumas vezes, sentindo um nó agonizante bloquear sua
garganta.
O toque firme, a vontade, a respiração irregular, a dedicação, o
carinho... Nada me pertencia. Mais uma vez eu estava esperando pelo que
ele oferecia a outras mulheres, mulheres perfeitas que ele desfilava na
minha frente de mãos dadas.
A raiva queimou em meu peito, meus olhos se encheram de lágrimas,
e coloquei a mão em seu peito nu, empurrando-o para longe.
— Agora já me deixou louco, coração. — Voltou. Não quis me largar.
Pressionou o corpo contra o meu e me fez sentir a ereção que já se
manifestava.
— Para, Felipe! — supliquei, sem fôlego, quase me entregando ali
mesmo.
— Tudo bem, estamos na rua. — Ofegante, acariciou meu rosto com
as duas mãos e manteve sua testa na minha.
— Sou egoísta e tenho senso de posse — declarei, meu rosto duro,
lágrimas de ódio escorrendo pelos cantos do meu rosto.
— É bom reconhecer. — Mordiscou meus lábios. — Desabafa, quero
te escutar. — Esfregou o polegar na maçã do meu rosto.
— Você terminou com a sua namorada? — Soltei as palavras e Felipe
desviou o rosto do meu, arregalando os olhos, como se estivesse voltando à
realidade naquele momento.
— Porra, cegueira do caramba! — Me deu as costas e puxou os
cabelos. — Isso não poderia ter acontecido.
— Você saiu do carro e veio aqui. — Trêmula, levantei a mão e vi o
estrago no celular.
Pelo menos sairia por cima.
— Não estou te acusando, Alicia. — Ele voltou e parou na minha
frente. — Mas Mariana é uma mulher do caramba, ela não merece essa
merda!
— No final, é você quem bagunça minha vida, minha mente, bagunça
tudo. — Solucei de cabeça baixa, vencida pelas lágrimas, o máximo que ele
veria das minhas fraquezas.
— Entra, ruiva. Você precisa descansar, já passou por muita agitação
hoje. Depois volto e converso com você.
— S-sobre o quê? — Encolhi meus ombros, soluçando sem parar.
— Fui o único responsável pelo que aconteceu aqui.
— Não adianta assumir a culpa, se meu dano é sempre maior.
— Alicia...
— Ser vítima é viver uma dor infernal, Felipe. — Engoli a angústia e
esfreguei o punho contra os olhos. — Prefiro assumir a culpa. — Levantei
meu celular e mostrei o visor.
— Você gravou o beijo? — perguntou e assenti. — Foi importante
para você, coração? — indagou em voz baixa, sentindo pena do brinquedo
ruivo.
— Tão importante que resolvi transmitir ao vivo. — Desliguei o visor
do meu celular e levantei a cabeça, olhando para ele com todo o meu
rancor.
— Não, Alicia... — Ele sorriu de nervoso.
— Vai ficar salva até chegar ao conhecimento de quem me interessa,
só para você aprender a nunca mais me usar — murmurei, com uma névoa
espessa diante dos meus olhos.
Felipe tirou o celular da minha mão e me abaixei para procurar a
chave no chão. Ele não conseguiria desbloquear a tela e não tinha minha
senha do Instagram. Se quebrasse, eu ainda tinha um notebook.
— Coloca a senha. — Ele apertou o dedo no interfone e bradou perto
de mim. — Coloca essa porra, Alicia!
Calada, levantei-me com a chave e tentei enfiar na fechadura. Quando
abri o portão e entrei, ele entrou também.
Vi mamãe andando rápido na nossa direção e corri para os braços
dela.
— Achei o pedido tão fofo. — Mamãe alisou meu cabelo e beijou
minha testa.
— Samanta, sua filha, fez uma transmissão ao vivo...
— Eu estava on-line, menino. Já compartilhei com alguns de seus
familiares que não seguem minha menina.
— Porra! — Felipe gritou.
— Olha esse nome feio na minha casa, genro! Venha, vamos entrar e
comer um bolo de cenoura. Você precisa me pedir oficialmente.
— Ahhhh! — gritei, larguei os braços da minha mãe e corri para
dentro de casa!
— O temperamento dela oscila um pouco. Você vai se acostumar
rápido. — Ouvi a mamãe tagarelar, enquanto eu corria pela escada.
Entrei no meu quarto arrancando a legging do meu corpo e sentindo
minha pele e minha cabeça formigarem. Teodoro acordou e saiu do tapete
para ficar no meu pé.

— Me dá a senha, Alicia. — Felipe invadiu meu quarto e corri em


direção ao banheiro, vestindo apenas calcinha e top.
Teodoro latia e chorava ao mesmo tempo. Ele me ajudaria se não
tivesse seus próprios traumas.
— Não faça isso! — minha mãe gritou quando Felipe me agarrou
pela cintura e arrastou para fora do banheiro. — Solte minha filha! — Ela
deu tapas nele, ele me largou e me tranquei no banheiro. — Não foi um
pedido de namoro?
— Fiquei com sua filha, senhora, mas já tenho namorada. Me
desculpe por isso.
— Canalha! — minha mãe gritou do outro lado. — Estou na frente de
um canalha da pior espécie.
— Ela fez uma live e essa exposição vai magoar e humilhar minha
namorada que não tem nada a ver com o que aconteceu aqui. — Engasgou
furioso. — Preciso da senha do celular dela ou do Instagram.
Pressionei os dentes em meus lábios com força e provei o gosto do
meu sangue.
— Alicia! — Minha mãe bateu na porta. — Apague, filha.
— Não vou apagar! — Solucei encostada na porta.
— Isso envolve a minha vida com outra pessoa, Samanta. Sua filha
tem cinquenta mil seguidores, todo mundo está vendo essa merda!
— Então vá falar com sua mulher e fique longe da minha filha. Alicia
já tem muitos problemas para lidar com suas canalhices.
— Sua filha é mimada, maldosa e extremamente perturbada! — ele
gritou e foi o suficiente para que eu saísse do banheiro e caísse de unha e
tapa nele.
— Alicia! Para, agora! — Minha mãe tentou nos separar, mas não
conseguiu.
Meu cachorro viu que Felipe estava apenas se defendendo e teve
coragem de cravar os dentes em sua canela.
— Você não tem noção do que eu já passei na mão dessa encapetada.
— Felipe me jogou na cama.
— E, ainda assim, tendo uma namorada, você queria sugar até a alma
de Alicia. — Levantei-me para pular nele de novo, mas mamãe me
impediu. — Saia da minha casa agora, rapaz!
— Preciso que o vídeo seja excluído — Felipe insistiu, todo
arranhado, olhando para mim enquanto ofegava.
— Ela vai apagar. Agora vá resolver sua vida longe daqui.
O loiro permaneceu me olhando por alguns segundos, mas depois saiu
do quarto.
— Ele brincou comigo, mãe. — Abracei sua cintura, liberando todo o
choro que estava me sufocando. — E-ele me deu um pouco de carinho...
— Nunca se contente com pequenas doses de sensações agradáveis.
Há muito espaço para carinho dentro de você, não sofra com um pouco que
recebe. — Ela penteou meu cabelo com os dedos. — Vou fazer carinho em
você. Enquanto isso, por que não exclui o vídeo?
Me entregou o celular e vi que a live tinha sido vista por quase cinco
mil pessoas.
Apaguei e joguei o celular na cama. Fungando, coloquei minha
cabeça no colo da minha mãe e suas mãos pousaram no meu cabelo.
— Filha, acho que... Piolhos! — ela gritou, me fazendo sentar na
cama. — Alicia, você está cheia de piolhos!
Antes...

No chuveiro, coberto de espuma de xampu e sabonete, percebi a


porta se mexer e me virei, acreditando ser minha avó.
— Alicia! — gritei, me cobrindo com a mão, virando para a parede
oposta. — Como veio parar aqui?
— Sua avó me deixou entrar. Falei que era para o trabalho da escola.
— Ela deu uma risadinha, enquanto eu escorregava e segurava no box de
vidro. — Não estou observando seu corpo, príncipe.
Olhei por cima do ombro e dei alguns passos para trás, agarrei a
toalha e enganchei-a no quadril.
— Sai da minha vida e me deixa em paz, garota! — Agarrei com
força o braço da ruiva tóxica que me perseguia há quatro anos e a conduzi
para fora do banheiro, em direção à porta do quarto.
— Príncipe, hoje é um dia importante. Quero ficar um pouquinho
com você...
— Para de me chamar assim, Alicia! Não quero ficar perto de você.
Nem estou mais com vontade de ir para a escola por causa da sua
perseguição.
— Fico bem quando você segura a minha mão...
— Não sou seu pai, não sou seu irmão. Sequei suas lágrimas uma
vez, mas não tenho nenhuma obrigação com você.
— Andressa disse que sou muito lenta, por isso você não quer mais
cuidar de mim. — A menina se virou e parou na minha frente, me
impedindo de abrir a porta.
— Alicia, sai da minha casa. — Segurei seus ombros e tentei usar um
tom calmo para que ela entendesse. — Você me deixa doente e angustiado.
Tem muita gente no mundo, preciso sair com quem me faz bem, quem não
me sufoca.
— Já sei o que você quer. Andressa me contou. — A ruiva mordiscou
o lábio inferior e baixou os olhos, suas bochechas rapidamente ganharam
um tom mais rosado. — Você é um garoto e os garotos esperam
recompensas.
— O quê? O que você quer dizer, menina?
— Isso...
Não tive tempo de respirar, a garota veio e colocou a boca na minha
de um jeito que não pude recuar. No momento em que me encontrei, minhas
mãos já apertavam sua cintura, querendo mais daquele contato repentino e
nunca experimentado.
— Alicia... — Minha respiração engatou e afastei minha boca de seus
lábios, mas por algum motivo, mantive meu rosto lá, colado ao dela. —
Você é louca, ruiva.
— Nunca fiz isso... — Ela deslizou sua boca sobre meu queixo e isso
me estremeceu por inteiro. — Será que fiz certo?
Soprou contra minha pele e meus dedos escorregaram por sua
espinha, escalando o tecido fino do vestido, querendo sentir o calor da pele
branquinha.
Sensação boa, mas parecia tão errada.
— Eu também nunca fiz isso — confessei. — Se importa se...
Não terminei a frase.
Foi a minha vez de prová-la. Toquei na boca macia de um jeito
necessitado e guiei seus passos até a parede do guarda-roupa, querendo me
perder nela.
Não era o sentimento bom e puro que minha prima despertava em
mim, com Alicia era mistura de vontade, calor e medo, algo que nascia no
estômago e rapidamente assumia o controle total, da cabeça aos pés.
Parecia que meu corpo estava conectado ao dela, dependente do dela.
— Príncipe... — ela disse em voz baixa, quando soltei seus lábios
para raspar os dentes na curva do queixo. — Lipe, hoje é meu
aniversário... — Beijei sua garganta e a ruiva colocou as mãos no meu
rosto, me impedindo de avançar. — Lembro quando você beijou minha
testa. — Arfou — Você pode fazer de novo, por favor? — pediu com
lágrimas nos olhos.
Lágrimas que me deixaram triste. Queria que ela parasse de chorar.
Desde a primeira vez. Mas a ruiva exigia tudo de mim, drenava minhas
escolhas e me considerava sua propriedade privada.
— Parabéns, menina. — Engoli em seco e, incapaz de negar qualquer
coisa, selei sua testa duas vezes e rocei meus lábios na curva discreta da
bochecha rosada.
Alicia havia perdido muito peso nos últimos anos. Acho até que
andava na academia. Suas pernas eram delgadas, mas incrivelmente bem
torneadas para seu peso leve.
O desejo de tocar suas pernas ganhou força dentro de mim.
Lentamente abaixei minhas mãos, deslizei em seus quadris e meus dedos se
fecharam sobre o pequeno traseiro.
— Isso machuca? — ela perguntou contra a minha boca, dando uma
risadinha envergonhada.
— O quê, coração?
— Você está um pouco... como nos livros. — Ela riu e pressionou a
testa na curva do meu pescoço.
Só então percebi do que ela estava falando e me afastei
abruptamente, virando-me de costas.
— Me desculpe por isso. — Soltei um palavrão em pensamento e
baixei os olhos para a toalha retesada, ficando envergonhado e assustado
na mesma medida. — Você me pegou desprevenido. Isso nunca aconteceu.
Nunca mesmo.
— Também senti algo novo, príncipe. Em mim dói um pouco, mas é
uma dor boa... — Me abraçou por trás e beijou minha nuca. — Quero te
beijar para sempre. Toda a vida. Você é todinho meu.
Droga, precisava acabar com aquilo de uma vez por todas, porque eu
amava minha prima e não era certo meu corpo tremer ao toque da garota
que atormentava sua vida.
— Amo uma menina que não é você, Alicia — revelei e o corpo da
ruiva tremeu nas minhas costas. — Amo com todas as forças da minha
alma — afirmei. — Ela também me ama. Vou falar com o pai dela em
breve, porque vou me casar com ela, ter filhos com ela. Tudo com ela. Esse
primeiro beijo também estava reservado para ela.
— Não. Você me ama! — Alicia deu a volta e empurrou meu peito, as
lágrimas caindo em cascata por seu rosto vermelho. — Você é meu
príncipe, Felipe. Todo meu!
— Não sou, Alicia. — Tentei tocar seus ombros, mas levei dois tapas
e um empurrão. — Amo uma garota que me desmonta com apenas um
sorriso e não me sinto mal quando estou perto dela. Ela não me deixa
assim: louco, impulsivo, fora de controle. Já fiz planos, ruiva. Por favor,
fique longe de mim.
— V-vou te odiar para sempre, Felipe.
Alicia soluçou e tive vontade de abraçá-la, fazê-la parar de chorar,
mas meu corpo ficou estranho depois do beijo e não era certo chegar perto
dela assim.
— Você precisa fazer amigos... — sugeri e a mão da ruiva saiu com
força, mas consegui agarrar seu pulso antes que me atingisse. — Não faça
mais isso.
— É a sua prima manca? — Seus lábios tremeram e apenas respirei
fundo, incapaz de gritar com ela, pedir empatia e respeito pela garota que
eu amava. — Fala! É ela?
— Vai embora, Alicia. Vai ser bom para você e para mim.
— Odeio você, Felipe! Odeio!
— Vou pedir a vovó para chamar o motorista...
— Odeio todos vocês! Todos!
Me deu um tapa com a mão livre, minha toalha caiu e vovó entrou no
quarto naquele momento, me fazendo congelar de vergonha.
— Vovó, estávamos apenas conversando. Abaixei-me para pegar a
toalha, mas a ruiva foi mais rápida e puxou o felpudo. — Alicia, caramba!
— Protegendo-me com a mão, corri para buscar um travesseiro.
— Odeio seu neto ridículo e odeio a senhora, sua velha arrogante!
Odeio o mundo inteiro também. Ahhh! — A ruiva jogou a toalha no chão,
pisou algumas vezes e saiu correndo do quarto.
Depois daquele dia, Alicia não só atormentou aqueles ao meu redor,
ela também estragou minha adolescência.
Mas os anos foram passando e aos poucos ela foi se distanciando, até
sumir dos meus círculos de amizade.

Atualmente
Parei o carro em uma vaga perto da entrada do prédio e soquei o
volante, temendo perder Mariana depois daquele deslize infeliz e sem
sentido.
Após perder Duda para o irmão mais velho de Alicia, tive vários
relacionamentos, um após o outro, mas tudo mudou quando conheci
Mariana no escritório da minha família. Uma negra linda, atraente, bem
resolvida, inteligente e que me deu muito trabalho para conquistar.
Foram meses de insistência, enquanto enfrentava meu avô
incisivamente para que nada me atrapalhasse.
“— Garanto que não vai influenciar o nosso desempenho —
expliquei, durante um longo sermão sobre a política de nossa empresa, que
não aceitava relacionamentos amorosos entre funcionários.
— A doutora Mariana veio pronta, ela é uma das melhores
advogadas do nosso escritório. Não vou perdê-la sob uma possível
acusação de assédio. Essa moça já está incomodada, não está vendo,
Felipe? — vovô continuou seu sermão.
— Ela só está com medo de decepcioná-lo violando a política, mas se
você mudar, tudo isso pode ser facilmente resolvido.
— Não faço mais alterações a esse respeito. Meu escritório não é
bagunça. Ou já se esqueceu daquela briga ridícula, quando o Dr. Maurício
pegou sua esposa na mesa do escritório do Dr. Fernando, montada no
bastardo? Até a polícia foi chamada. Aquela situação fez uma mancha
incorrigível na imagem do escritório, Felipe. Não vou perder meus
melhores profissionais e você vai dar o exemplo! Encerramos nossa
conversa. Vai trabalhar.
Segurei o riso enquanto me lembrava do episódio. Naquele dia, meu
avô quase teve um infarto fulminante, mas no final a situação rendeu boas
risadas entre os corredores.
— Não tem comparação, vovô...
— Deixe de chacota, Felipe! — Sua mão bateu na mesa e senti o
impacto em meu corpo. — Não vou viver para sempre. Hoje estou aqui,
amanhã talvez você precise assumir o meu lugar. Está preparado para isso?
— Não consigo controlar o que sinto, vovô. E, com todo o respeito
que tenho pelo senhor, se Mariana ceder, não haverá política que me
impeça. — Levantei-me da cadeira.
— Seu insolente! — retrucou, mas eu já estava longe da sala.”
Na semana seguinte houve um congresso em São Paulo e, como meu
avô estava me preparando para ocupar seu lugar, fui escolhido para a
viagem bancada pelo escritório. Mariana e outros cinco bons advogados
também foram nomeados pelo patrão.
Não haveria melhor oportunidade para uma abordagem direta.
Após um longo dia de muitas palestras e atividades, meus colegas e
eu jantamos no próprio restaurante do hotel. No final da noite, Mari e eu
subimos para o terraço e ficamos em uma espreguiçadeira, na área da
piscina. Lá, conversamos e aconteceu. Foi mágico, encantador e
deliciosamente excitante.
“— Está tarde, Felipe. — Ela encerrou um de nossos muitos beijos.
— Amanhã será um longo dia de trabalho, doutora. Precisamos
aproveitar o que nos resta hoje. — Enrolei um de seus cachos em meu dedo.
— Doutor Olavo não vai gostar de saber que o herdeiro está beijando
uma das funcionárias, quando deveria descansar para abraçar o mundo de
oportunidades, amanhã.
— Mari... — Afastei meu rosto o suficiente para fitá-la. — Não se
preocupe com isso. Meu avô quer que eu seja o melhor e vou ser o melhor.
Ele precisa se conformar com minhas escolhas nesse processo. Não vou
desistir de você.
— Sou nova na empresa e preciso muito dessa qualificação, Felipe. O
escritório do seu avô é o mais conceituado de todo o Estado e foi a
realização de um sonho ser contratada. — Ela apoiou a mão na minha
nuca. — Não posso prejudicar minha carreira.
— Quando meu avô vê futuro nos olhos de um dos funcionários, ele
investe alto. É por isso que você está aqui com apenas quatro meses no
escritório. Ele quer moldá-la, Mari.
— Quer me deixar vaidosa e confiante para ficar com você,
escondida do doutor Olavo, não é? — Ela riu. — Não é assim que funciona,
rapaz. Você está terminando a faculdade e já tem o mundo aos seus pés.
Terminei minha especialização há quatro anos e estava desempregada...
Não posso arriscar.
Selei seus lábios.
— Vovô teme que nosso trabalho seja comprometido, mas isso não
acontecerá. Quanto a ficarmos escondidos, não. Quero segurar sua mão e
levá-la para minha casa. Apresentá-la à minha família e conhecer a sua.
Quero você, Mariana.
Ela sorriu, ligeiramente emocionada.
— Mas seu avô...
— Shh... — Fiz um carinho em seus cabelos — Quer namorar
comigo?
— Oi? Já namorar, Felipe?
— Faz quatro meses que estou mostrando que quero isso.
Ela arfou de olhos fechados e sussurrou:
— Sou mais velha que você.
— Experiência é tudo o que preciso — rebati imediatamente.
— Minha família ainda mora na periferia da cidade.
— E a minha na zona nobre. O que isso tem a ver com o nosso
namoro?
— Você não existe, Felipe.
— Sim, existo e quero você. — Segurei seu rosto com as duas mãos.
—Você me quer?
Ela levantou da espreguiçadeira e se sentou no meu colo, em cima do
acúmulo de tesão herdado de nossos beijos anteriores.
— Foi tão difícil ignorar seus avanços. — Pressionou a boca na
minha. — Na sua carteira tem preservativo?
— Um... Sério? — perguntei ansioso e totalmente alucinado com o
deslizar das curvas fartas sobre meu colo.
— Há quatro meses venho observando você entrar todo gostoso no
escritório, desejo tocá-lo por toda parte e temo perder meu emprego. — Ela
começou a desafivelar meu cinto. — Vamos começar aqui, depois
terminamos no quarto.
— Você é maravilhosa, mulher. — Beijei seus lábios enquanto sua
mão me libertava de dentro da calça e começava a trabalhar no meu pau já
duro.
— Um preservativo não será suficiente. Vamos descer — ela
sussurrou em meu ouvido e mordeu levemente minha orelha.
— Quero aqui. — Levantei seu vestido e empurrei o segundo tecido
para o lado. Tocando-a me surpreendi com a pele completamente úmida. —
Porra, Mari! Já molhada!
— E esfomeada. — Ela apoiou os joelhos na cadeira e desceu,
engolindo-me em três lentos goles.”

Depois daquele momento, não fiquei longe dela por um dia. Nosso
sexo era muito prazeroso, nosso relacionamento era estável, estávamos
comprometidos com o profissionalismo e planejando um bebê.
Mari teve endometriose, foi alertada das dificuldades depois dos trinta
e ser mãe era o seu grande sonho. Sonho que mergulhei de cabeça para
realizar. Agora que estraguei tudo, não sabia como ia ser.
Porra, como consegui trair Mariana com Alicia?
— Felipe? O que faz aí? — Levantei os olhos e vi Mariana na porta
do carro, com duas sacolas de restaurante na mão.
— Mari — deixei o veículo —, precisamos conversar.
— O que aconteceu? — Estudou meu rosto com cuidado.
Não fazia ideia do meu estado, mas sentia queimação das unhas da
ruiva por toda a parte e o latejar dos dentes do vira-lata no meio da minha
canela. Não importava, não era uma preocupação no momento.
— Vamos subir. Preciso confessar uma sacanagem que fiz.
Peguei suas sacolas e o silêncio foi nossa companhia até chegarmos
ao terceiro andar do prédio. Quando entramos no apartamento, larguei as
sacolas e puxei-a para o sofá.
— Você me traiu, não foi? — A pergunta veio muito cedo, em tom
embargado, fazendo a culpa transpassar meu peito com mais intensidade.
— Fui um canalha. — Abaixei minha cabeça, totalmente
envergonhado de colocá-la naquela situação.
— Já tínhamos combinado... Se acabasse o tesão de um lado,
resolveríamos no diálogo, antes de traição, antes de tudo. — Ela se levantou
do sofá e secou os olhos com a mão.
— Não foi isso que aconteceu, Mariana. Nada mudou aqui.
— Contei a você que já tinha sido traída por um idiota e como foi
doloroso. Confiei em você, Felipe, estamos planejando um bebê! — Ela
soluçou, se engasgou e tossiu.
Minha culpa era ainda maior.
— Me perdoe, Mari. — Abracei seu corpo por trás. — Por favor,
preciso de uma nova chance. Se não for hoje, amanhã ou daqui a um mês,
mas não desiste da gente, do nosso bebê.
— Sai da minha frente agora, Felipe! — Uma curta pausa de silêncio
foi dada até que tirei minhas mãos de seu corpo. — Jurei para mim mesma
que nunca mais passaria por isso. Não, não aceito suas desculpas.
— Não vou desistir de você, Mariana. Não aceito perder o que
estamos construindo para um beijo sem importância.
— Com quem foi? — perguntou e não tive coragem para olhar em
seus olhos.
— Não importa. Traí, fui um canalha de qualquer maneira.
— Quem, Felipe? — insistiu. — Felipe!
— Beijei a ruiva — revelei, ela saberia de qualquer maneira.
— Claro! Quem mais seria? — Ficou mais indignada. — Não foi só
um beijo, Felipe! Foi querer! Você é louco por ela.
— O que você está dizendo não faz nenhum sentido. — Tentei
alcançar a mão dela, mas ela se esquivou. — Mari, Alicia nunca significou
nada para mim.
— Duas vezes... por duas vezes você chamou o nome dela enquanto
dormia.
— Pesadelo.
— Gemendo e duro dentro do calção, Felipe!
— Caralho, quando isso?
Tentei puxar na memória. Antes eu sonhava com a ruiva, mas sempre
foi algo relacionado à mutilação.
— Sonso! — Ela caminhou até a porta e abriu. — Sai da minha
frente.
— Não consigo controlar pesadelos, Mariana. — Abracei-a — O
beijo foi um maldito erro que nunca mais vou cometer. A menina estava
doente, fui rude com ela e pedi desculpas. Só isso.
— Com cortesia de um beijo, Felipe? — Me estapeou.
— Ela estava frágil, eu fui o canalha, Mari.
— Ainda defende a ninfeta! — Me empurrou. — Não olhe na minha
cara tão cedo, Felipe!
— Tão cedo? Então vai me perdoar? — Me afastei dos seus braços.
— Sai, ou vou terminar o serviço que fizeram no seu rosto.
— Tudo bem, já estou saindo. — Passei na divisa da porta. — E,
antes que você saiba por terceiros, a garota transmitiu o beijo no Instagram
dela... — A porta bateu na minha cara. — Posso voltar amanhã? —
perguntei com as mãos na guarnição, mas não obtive resposta.
Fiquei lá por alguns segundos, ouvindo seus soluços do outro lado da
porta.
Machuquei onde já existia uma velha ferida. Seria difícil conseguir o
perdão, mas eu não a deixaria desistir do nosso bebê.
Cada vez que me aproximava da ruiva, sofria graves consequências.
Só podia ser uma maldição.
Saí do banheiro sem nada no corpo e tomei um susto ao ver o meu tio
sentado e dando pulinhos sobre minha cama.
— Veja só, o pinto albino já não nega a origem na família... Não
herdou só o meu rosto de galã, sacana. Teve sorte de não puxar o seu pai.
— Já terminou sua licença médica, tio? — Peguei a primeira cueca da
gaveta e coloquei no corpo.
— Estou de licença do trabalho, não da minha família. — Ele moveu
o braço que estava em uma tipoia preta, lesão herdada em uma tentativa de
homicídio que sofreu.
Por duas vezes, o falecido pai de Alicia tentou dizimar meu tio. O
cara tinha ciúme da proteção do pai ao aluno, que mais tarde se tornaria seu
maior concorrente no mundo dos negócios. Não há como negar que
algumas situações foram trocas de chumbo. O passado do meu tio também
não era dos melhores.
— Está tudo bem com a tia e meu primo? — Desconfiado, presumi o
motivo de sua visita.
— Sua tia está mais linda do que ontem e o pequeno Olavo criando
estratégias para se casar aos sete anos.
Rimos juntos. Amarrei o cordão da minha calça e me sentei na
poltrona.
— É o boato da live, né? — Esfreguei meus cabelos molhados.
Usei o primeiro xampu que encontrei no banheiro, mas acho que já
tinha vencido. Me deu coceira.
— Olavinho gritou que o primo estava mandando ver no Instagram da
mãe dele. Assisti segundos antes de ser excluído.
— Porra, agi como um canalha, tio. Mari não podia passar por isso.
— Foi ela que esfolou sua cara?
— Não, a outra. Filha do bandido.
— Felipe, fale a verdade para o seu tio, meu filho, você está
interessado na canela-fina?
— Claro que não, só quero distância. Aquela perturbada sempre
estragou minha vida. Para você ter ideia, houve um tempo em que eu
entrava na garagem da faculdade temendo encontrá-la com uma arma nas
mãos. Olhava em volta antes de entrar no carro e me assustava sempre que
via uma ruiva na rua. Ela ferrou minha cabeça por um longo tempo, tio.
Alicia é o retrato do...
— E o beijo? — me interrompeu. — Será que saí de casa na hora do
café da manhã para saber que meu sobrinho beija mulheres por medo?
Inferno!
— Foi coisa de momento... — Limpei a garganta. — Quando vi já
tinha acontecido.
— Vi sua empolgação no vídeo, sacana. De homem para homem, o
pinto albino estava animado, certo?
— Dane-se! Você não sabe o que passei nas mãos dela! — Soprei
com força e puxei meus cabelos, sem aguentar com a comichão.
— Me respeita, rapaz! — Usou um tom afiado. — Me formei em
putaria antes de você nascer, sei do que estou falando. Foi beijo de desejo
reprimido. Confessa, machão!
— Não foi, posso provar! — Descansei meus braços sobre os joelhos
e olhei para ele. — No mês passado falaram sobre ela no grupo do
WhatsApp que só tem ex-alunos homens da antiga escola. Fiquei furioso.
Normal, ficaria se soubesse de qualquer outra mulher. Eles me expulsaram,
mas descobri que cerca de trinta já haviam ficado com ela. Na adolescência
e mais tarde também.
— Ela não é solteira? — Tio Edu ergueu uma das sobrancelhas.
— Sim, mas é sujo falar detalhes íntimos da garota em uma roda de
WhatsApp. — Cobri meus olhos, muito furioso com certas memórias. — Se
a ruiva fosse um problema meu, juro que não deixaria um dente na boca
deles.
— Sim, você está certo e ficou com raiva e ciúme. Continue.
— Não! — Olhei para ele, rindo nervosamente. — Tenho ciúmes da
Mari, minha namorada que vale por todas.
— É bom lembrar que nenhuma outra se compara à minha amada
mulher — resmungou enquanto pensava e me fitava com seus olhos
desconfiados.
Tio Edu acreditava fielmente que um passado sujo seguido por uma
redenção dolorosa lhe dava o direito de ser um coach de relacionamentos.
Louco e devotado à esposa, ele brigava ferozmente para exaltá-la em
qualquer situação. Outro dia contratou alguns figurantes para aplaudir o
desfile de sua marca de roupas femininas. Minha tia expulsou ele e os
atores por atrapalharem o evento.
— Você não conhece Mari. Ela é maravilhosa em tudo. Tudo. —
Tentei desviá-lo do assunto da ruiva, sabia que funcionava.
— Por favor, não queira entrar em uma competição, Felipe. Aponte
um erro na sua tia que não seja eu. Tente fazer isso e não terá argumento.
— Não estou comparando...
— Mas pensou, e isso não vou admitir.
— Às vezes tenho medo de sua devoção. — Sorri com as loucuras
daquele homem de quarenta e oito anos que se achava um adolescente.
— Sinal de que você nunca amou uma mulher de verdade, seu
bastardo. Não há ninguém como sua tia no mundo e ela pode facilmente
encontrar um infeliz melhor do que eu, então não tenho escolha a não ser
amá-la com tudo o que tenho e o que não tenho. Dedicação total. Uso
antolhos mentais, então nem olho para os lados.
— Tia Fernanda é uma santa. A maior prova disso é carregar esta cruz
de noventa quilos nas costas.
— Oitenta. — Ele deixou bem claro. — Voltei a fazer exercícios e
perdi até o sinal da barriga. — Levantou a blusa. — Chapada. Até tento,
mas não consigo deixar de ser gostoso.
— Insuportável! — Continuei rindo, era sempre assim quando a gente
se encontrava.
— Tem alguma coisa na sua cabeça, sacana. — Ele apontou para
onde eu coçava sem trégua.
— Foi o xampu vencido.
— Você tentou, mas já me conhece, então vá em frente, libere tudo o
que está acontecendo. Deixei sua tia para vir aqui e não vou perder a
viagem.
— Os babacas do grupo disseram que Alicia não... — Hesitei, sem
jeito para passar o assunto adiante.
— Não é higiênica? — tio Edu completou.
— Alicia tem cheiro de flores, tio.
— Algumas mulheres deixam um pequeno topete... Uma coisa
mimosa e selvagem ao mesmo tempo. É normal não se depilar.
— Droga, que merda de assunto é esse? — Apertei meus olhos, pois
comecei imaginar os pelinhos ruivos que beirava o perigo.
— Está imaginando, não é sacana? — Meu tio estalou os dedos, me
fazendo jogar o corpo para trás e voltar minha cabeça para o teto.
— Deixa a Alicia quieta e no lugar dela, tio. É melhor assim.
— Ela não alcança o clímax? — Tio Edu chegou à conclusão e
confirmei com apenas um aceno de mão.
— É horrível até imaginar. Falaram que com alguns ela finge e com
outros nem se incomoda — expliquei superficialmente, ciente de que meu
tio era o único homem confiável a ouvir aquela explosão.
— O erro está neles, mas é triste saber que ela se sujeita a essa
situação. A magrela é tão jovem, educada e até meio bonita.
Meio bonita era até um insulto. A garota tinha traços perfeitos.
Sinceramente, acredito que nunca vi outra ruiva tão bonita em qualquer
outro lugar. Pena que o interior dela não era bom.
— Qual outro motivo para escolher sexo casual senão por prazer, tio?
— Me levantei do sofá e sentei na cama.
— Isso é perturbador. — Meu tio também analisou.
— Alicia é imprudente, uma verdadeira peste, mas seus olhos são
tristes. Dentro daquelas esferas verdes vejo o inverso da Alicia que
conheço.
— Você pensou em mostrar a ela o quão bom o sexo pode ser, não é
sacana? —Meu tio deu um tapa na minha genitália e rolei para o lado, me
protegendo e esperando que os segundos de dor passassem.
— Não. Claro que não! — falei com a voz sofrida. — Alicia não é
problema meu. — Sentei-me com a mão entre as pernas.
— Sim, você pensou e esse pensamento te deixou insano — insistiu e
estapeou minhas costas.
— Esses remédios estão te afetando. — Me afastei, mas ele enlaçou
meu pescoço com o braço bom.
— Você fica perdido quando olha para ela, porque todas as vezes
imagina como seria levá-la ao limite. Sou experiente, Felipe. Eu era um
puto quando conheci sua tia, ela só tinha cabelo e olho e aconteceu a mesma
coisa... O que é isso? — Mexeu no meu ombro, pegou algo com a ponta dos
dedos e deu um pulo da cama. — Felipe, seu piolhento.
Sacudiu a mão e se esforçou para coçar a própria cabeça com o braço
da tipoia.
— Você trouxe essa merda, tio?
— O jegue do piolho estava no seu ombro. Você que é o piolhento! —
insistiu na acusação e sacudi os cabelos quando começou a fazer sentido.
— Porra, Alicia! Ela estava se coçando ontem.
— Saracura, piolhenta! — Meu tio começou a dramatizar enquanto
coçava a cabeça. — Terei que ser colocado em quarentena, longe da minha
ferinha.
— Preciso saber como está Alicia. Ela tem imunidade baixa, pode ser
um problema. Você tem o número da Samanta, tio?
— Claro que não. Como teria o número de um antigo negocinho? —
Pegou o celular do bolso. — Mas sua tia certamente tem esse contato.
— Cuidado com o drama ou minha tia vai pensar que é algo muito
grave — alertei.
— Ferinha, aconteceu uma coisa terrível e vamos ficar separados por
um tempo. — Ele já começou assim. — Não, estou bem, mas têm parasitas
morando em mim. É tudo culpa do seu sobrinho.
— Tio, pede o número.
— Não tem aquela magrela, filha da Samanta? Ela é piolhenta e
passou para o Felipe. Achei bem-feito, mas ele também passou para mim.
Se não percebesse, faria uma coisa horrível: levaria piolhos para seus lindos
cabelos.
— Você pode pedir o número? — insisti no que realmente importava.
— Seu sobrinho quer o número da Samanta e, como não tenho — ele
enfatizou a última frase. — Porque eu jamais teria alguns números
comigo... Me deixa falar, mulher, pare de gritar.
Tomei da mão dele.
— Tia...
— Que desespero é esse do seu tio?
— Me encontrei com a Alicia dos Álvares Azevedo e parece que ela
estava com alguns piolhos. Peguei piolhos e provavelmente meu tio
também. Preciso do contato de Samanta para avisar sobre a praga. A
menina estava confundindo com alergia.
Ouvi uma risada doce do outro lado da linha e olhei para meu tio, que
estava passando um pente no cabelo e jogando o que quer que saísse no
meu travesseiro.
— Manda esse piolhento voltar para casa, Felipe. Depois de onze
anos tenho que catar piolho na cabeça de Eduardo. Na alegria e na
tristeza, não é mesmo? Beijo, meu amor, vou enviar o contato agora por
mensagem.
Desliguei o celular.
— Tia Fernanda mandou você voltar para casa.
— Isso aqui é consequência do seu erro, homem adúltero! — Tio Edu
reclamou. — Preciso de um médico, um barbeiro e dedetizadores. Vou
raspar a cabeça antes de voltar para casa. Essa praga não pode chegar perto
dos cabelos da minha mulher.
— Deixa de drama, tio. — Vi que chegou a mensagem e logo
selecionei o número para uma ligação de voz.
— A perversão atinge até quem é puro — meu tio continuou
reclamando e esfregando a cabeça.
— Samanta! — Ela atendeu depois de quase um minuto. — É o
Felipe. Como está sua filha?
— Felipe, o canalha?
— Estou com alguns piolhos. Ela...
— Se você acha que vai acusar minha filha de colocar piolhos na sua
cabeça, está redondamente enganado — Samanta bradou do outro lado.
— Só liguei para avisar. O médico disse que ela tinha baixa
imunidade e não sei como essas coisas funcionam.
Ouvi um choro copioso de fundo e na sequência um barulho do que
parecia ser alguém vomitando.
— Sim. Ela pegou piolhos no orfanato e reagiu mal ao medicamento.
Dona Alice estava catando manualmente, mas ela não para de fazer
vômito. Estamos indo para a emergência. — A ligação sofreu interferência.
— Preciso desligar. — Foi encerrada.
— Porra, garota, complicada do caramba!
Joguei o aparelho na cama e olhei para meu tio, pensando em usá-lo
para receber notícias.
— Não, não olhe para mim! Esse piolho foi mandado do capiroto e é
o salário do seu pecado. Não vou compactuar com seu erro.
Sentada em um banco acolchoado, deslizei meus dedinhos pelo
teclado do piano de cauda que ficava no centro da grande sala dos meus
avós.
Meu pescoço acompanhava o som harmonioso da Quinta Sinfonia de
Beethoven e meu torso permanecia ereto, como se um espartilho reforçado
de junco me segurasse na postura elegante que vovó me ensinou equilibrar.
— Bravo! Bravo! — Encerrei a apresentação e vovô Alfredo me tirou
do banquinho e girou meu corpo no ar. — Você afronta no piano,
pequenina.
— A pianista mais linda é minha pequena Alicia. — Vovó liberou
aquele lindo sorriso que me aquecia.
— Sou a senhorita Butterfly, vovó. — Fixei a máscara no meu rosto.
— Com essas roupas posso voar muito alto.
— Sim, você pode tudo, Alicia. — Vovô me deitou em seus braços e
vagou pela sala, dando rédea solta à minha imaginação, permitindo que a
fantasia infantil fizesse sentido.
— Senhorita Butterfly, vozinho, não podemos desvendar o mistério.
— Oh, desculpe, senhorita, Butterfly. Serei mais cuidadoso a partir de
agora.
— A menina vai ficar tonta, seu Alfredo. — Papai abriu as duas
partes da porta e entrou na sala, imaculadamente arrumado em seu traje
social.
— Não vou ficar tonta. Posso voar e tocar piano, papai. — Continuei
de braços abertos e o vovô me levou até ele.
— É, parece que você aprendeu a fazer algo — papai disse ao me
colocar no chão. — Mas não se engane, Alicia. Música serve apenas para
entreter — completou, deixando uma carícia descuidada no meu cabelo. —
Agora vá, filha. Tire essas asas ridículas e tente aprender algo útil. Você já
é muito estranha para se envolver com música.

Acordei com o choro de Teodoro, que puxava meu cobertor com os


dentes.
— Me deixa dormir, Teo. — Puxei o cobertor de volta. — Não vou
sair da cama pelo resto do mês. — Me enrolei e ouvi seus latidos. —
Teodoro! — Ele subiu na cama e começou a pular, batendo em mim com
seus pezinhos. — Tudo bem, seu cachorro safado! Você ganhou da sua irmã
má.
Sentei e mantive os olhos fechados. Quando pensei em jogar o torso
de volta na cama, o doguinho começou a empurrar minhas costas com o
focinho.
— Seu abusado!
Saí da cama e fui direto para o banheiro, onde parei em frente ao
espelho e encontrei meu rosto menos inchado.
Puxei a camisa em volta do pescoço, coloquei o short de malha nos
meus pés e fugi do espelho, de um novo surto.
Com um longo suspiro, me enfiei no chuveiro para um banho rápido e
tentei não olhar para os caroços vermelhos que cobriam até mesmo a
borboleta tatuada no lado esquerdo da minha virilha.
Os componentes do remédio quase acabaram comigo, mas pelo
menos me livrei da praga.

Desci as escadas vestida com uma camisa larga, longa e branca. O


conforto que eu precisava para descansar minha pele irritada.
No caminho para a cozinha, parei em frente ao piano quadrado que
ganhei do vovô quando fiz quinze anos e há muito servia como mesinha
para um vaso de cerâmica.
Balançada com algumas lembranças, puxei o banquinho e coloquei
meu joelho esquerdo sobre ele. A sensação de nostalgia foi gritante quando
levantei a tampa do teclado e dedilhei algumas teclas, testando a
combinação das notas, surpreendendo-me por ainda saber diferenciar cada
uma delas.
Sem mexer o joelho do banquinho, olhei em volta e, como não havia
ninguém por perto, estabilizei as notas com mais vontade e respirei fundo,
saboreando a viagem pelos acordes, a maravilhosa sensação de ter a
harmonia passando por cada ponto do meu corpo...
Escolhi a primeira melodia que toquei na vida. Vovó me ensinou para
que ela pudesse dançar com o vovô e juntos lembrassem do primeiro
encontro.
Vovô odiava música clássica, mas foi nos bastidores de um concerto
que uma jovem ruiva, filha de um maestro talentoso, conquistou seu
coração para sempre. Eles tinham quinze anos quando experimentaram um
sentimento profundo e verdadeiro. O amor que não machuca, que nunca
poderei experimentar.
Terminei a apresentação solitária e um pequeno sorriso apareceu em
meus lábios. Eu sabia tocar melhor do que qualquer outra coisa na vida,
mas algo me segurava, intimidava e assustava. Sempre foi assim.
— Você toca bem... — Ouvi uma voz estranha e me virei
abruptamente. — Cristo misericordioso! — O intruso, com um braço preso
na tipoia, deu um passo para trás.
— Como entrou aqui? — Dei um passo à frente, Teodoro me
acompanhou.
— O que aconteceu com seu rosto? — Ele deu mais um passo para
trás.
— Sou uma bruxa. Fui fazer uma mandinga e algo deu errado. Nem
sempre as coisas acontecem como a gente quer.
Dei mais alguns passos, o homem tropeçou em um móvel antigo da
coleção da minha avó e ergueu uma garrafinha de vidro na altura do peito.
— Trouxe um tônico natural. Folha de arruda, alho e algumas outras
essências...
— E você quer que eu enfie isso no seu rabo?
— Ei, não é saudável para uma garotinha usar esse tipo de
palavreado.
— Fala logo o que veio fazer aqui!
— Minha mãe tem um estúdio de beleza para cabelos e 'alguém' pediu
a ela para fazer um preparo natural antipiolho. Mas quero deixar bem claro,
escute bem, eu, Eduardo Moedeiros, não incentivo relações extraconjugais.
Estou aqui apenas em memória do meu falecido mestre Alfredo, fazendo
um favor em nome da família...
— Você é ridículo como seu sobrinho!
— E você é uma adolescente muito desbocada e piolhenta. — Ele me
deu as costas e caminhou em direção à sala de estar.
— Não sou adolescente. Tenho vinte e três anos. — Segui atrás e vi o
folgado no sofá, colocando uma almofada nas costas. — O que pensa que
está fazendo?
— Ainda não aguento ficar de pé por muito tempo. — Colocou a
garrafa na mesinha e cruzou as pernas.
— Seu sobrinho se ferrou? — indaguei, abraçando meus próprios
braços. — Apanhou da namorada, foi queimado, teve um braço quebrado
ou perdeu um dente?
— Vejo que seu coração é muito bondoso, mocinha. — O homem
olhou para a porta. — Ele pegou piolhos. É alguma coisa, não?
— Não. É muito pouco.
— Você não quer sentar para a gente conversar? — me convidou,
como se eu fosse a intrusa.
— Vá embora e leve o que você trouxe — ordenei e o Teodoro latiu,
cheio de coragem.
— Você estudou muito para alcançar essa técnica na música? —
Ignorou minha ordem.
— Quando meu padrasto chegar e te ver no sofá, não vai sobrar um
osso seu no lugar — alertei, sabendo que Rex era o sujeito mal-encarado
mais pacífico que eu conhecia.
Pelo menos até alguém atentar contra nossa família.
— Tá-tá-tá-tãããã — o homem cantarolou. — A Nona Sinfonia foi
criada...
— Essa é a Quinta Sinfonia de Beethoven — corrigi, degustando
minha última gota de paciência.
— Já sabia. Só queria te testar.
— Está escrito na sua cara que não sabe de nada.
— Sei, claro que sei.
— Não sabe!
— Beethoven criou esta sinfonia em um momento muito crítico da
vida e foi inspirado pela ideia da morte e do desespero do homem quando
ela bate à porta — disse e sorriu exibido.
— Não é que sabe alguma coisa... — Surpresa por dificilmente
encontrar alguém que entendesse o assunto, sentei-me na beirada do sofá e
completei: — A mensagem central é sobre viver e morrer. Morreremos um
dia, mas receberemos uma vida. Única e que precisa ser vivida, pois nunca
mais se repetirá.
— Você é esperta, mocinha. — Ele apontou o dedo na minha direção
como se fosse um professor diante de um gênio.
— Você não tem o que fazer, não é? — perguntei em um tom
implicante.
— Sou meu próprio patrão e fui forçado a me dar seis meses de
licença médica porque um sujeito ciumento, frustrado e perdedor me
sequestrou e torturou. Fora os duzentos e nove pontos cirúrgicos e uma
quase morte, eu realmente precisava de férias.
Ouvindo as verdadeiras acusações, baixei os olhos e cocei as mãos,
agonizando com a confusão em minha mente. O retorno e morte de meu pai
me desorientou completamente e estimulou minha recaída.
— Meu pai quase matou você. Não me odeia por isso?
— Não posso odiar crianças. Você e seus irmãos também foram
vítimas das circunstâncias.
— Ele lutou tanto por reconhecimento e morreu errado, sem valor
algum — murmurei, minha postura ereta e meus olhos fixos em um ponto
qualquer da sala. — Vou morrer do mesmo jeito.
— Não, não pense assim...
— Somos iguais. Um equívoco ambulante, seguindo dia após dia de
encontro à decadência. — Mordi o canto interno da minha bochecha.
— Esse pensamento não deveria estar no subconsciente de uma
menina tão nova.
— Minha cabeça está toda bagunçada. Só sinto alívio quando rasgo
minha pele e deixo a angústia escapar. Mais feridas significam menos
lágrimas. Esta é a vida de quem está fadado ao fracasso. Não há como
pensar diferente.
— Você já tentou ver um psicólogo? — o homem perguntou,
evidentemente desconfortável com meu desabafo.
— Vários. Tenho dezoito anos de terapia. Eles me ajudaram muito.
Um deles... enfim, estou dando um tempo sozinha.
— Licença. — Judite entrou na sala, colocou uma bandeja na mesinha
de centro e me encarou, tentando encontrar algum pedido de ajuda.
— Está tudo bem, Judite. — Acenei de forma tranquilizadora e ela
saiu discretamente.
— Você precisa experimentar o lado bom da vida. Viver para a dor
não se compara a viver para o amor. — Ele sorriu, pegou uma xícara e
levou aos lábios. — O que você gosta em você?
— Nada. Odeio tudo. — Meus lábios tremeram. — Não me encaixo
em nenhum molde, em lugar nenhum. — Encontrei uma ponta solta na
cutícula do meu indicador e puxei secretamente. — Quanto mais tento,
menos funciona. Lembro de coisas sujas e quero me punir por algo que não
tive controle...
— Temos a oportunidade de mover nossas vidas em qualquer direção,
Alicia — ele me interrompeu, recolocando o café na xícara. — Tente
procurar uma única força em você. Em seguida, outras aparecerão. O
segredo é nunca parar de procurar.
— Não tenho nenhum ponto forte — esclareci em um embargo.
— Você sabe tocar. E pelo pouco que vi, faz isso muito bem.
— Besteira. Música não vale muito, é só entretenimento — respondi
com a voz de papai em meus ouvidos.
O tio de Felipe me encarou por alguns segundos, depois dispensou a
xícara na bandeja e perguntou:
— O que mais você sabe sobre Beethoven?
— Trinta e duas sonatas, cinco concertos para piano e um para
violino, nove sinfonias... Dezesseis quartetos de cordas, dez sonatas para
violino e piano...
— Beethoven era surdo — ele me interrompeu. — O homem que
virou a música de cabeça para baixo ouvia pouco e quando criou a Nona
Sinfonia, a mais famosa de todas, não ouvia mais nada. Não se trata de
saber, é sobre querer e então fazer acontecer. A distância entre uma coisa e
outra não é tão grande, Alicia.
— Mas eu não consigo controlar essa coisa... — Me encolhi e um nó
bloqueou minha garganta. — Sempre que estou bem, logo fico triste e volta
tudo outra vez...
— Tente equilibrar sua mente — tocou o indicador na têmpora —,
com seu coração. — Descansou a mão no peito. — O órgão mais
importante de Beethoven era inútil, mas ele driblou a dificuldade e fez
história. Faça isso com seus problemas internos, mesmo que estejam
enraizados em você. Escreva sua história, filha e voe.
Uma explosão de choro saiu dos meus lábios e não consegui controlar
como sempre fazia. Então senti mãos intrusas segurando o topo da minha
cabeça de forma gentil e acolhedora.
— Você... você não é tão estúpido quanto pensei que fosse. — Fechei
os olhos e chorei de uma maneira que só mamãe podia ver.
— O que aconteceu, Alicia? — Judite apareceu na sala na velocidade
da luz.
— Ela só está expressando o que sente — seu Eduardo explicou. —
Traga um pano para limpar o catarro.
Ouvi a palavra “catarro” e rapidamente me recompus, enxugando
tudo na minha camisa e recuando um pouco.
— Estou bem, Judite. Ele é meu amigo.
— De piolhenta a pianista, hein? — O homem gentil acariciou meus
cabelos. — Se as circunstâncias não fossem erradas, gostaria de ter você na
família Moedeiros. O sacana do Felipe...
— Seu Eduardo, isso aqui nunca aconteceu — interrompi, propondo
uma cumplicidade, um segredo.
— Claro. — Ele se endireitou no sofá. — Nunca aconteceu.
— Seu sobrinho não pode sonhar que estou sofrendo. Sou capaz de...
— Ele não saberá de nada, fique tranquila — interrompeu minha
ameaça e se levantou do sofá. — Só não escondo nada da minha mulher,
mas ela é discreta.
— Esse soro realmente funciona? — Olhei para o frasco de vidro.
— Veio com selo de qualidade. — Ele me entregou a garrafa. —
Minha mãe colou a receita aí.
— Posso usar em crianças? — perguntei, pensando em matar aquela
praga pela raiz.
— É natural. Acredito que sim.
— Até mesmo bebês, tipo, recém-nascidos?
— Recém-nascidos não pegam piolhos, filha. É pecado. — Ele
caminhou até a porta e eu o segui com Teodoro.
— Conheço esse salafrário de algum lugar — ele disse, olhando para
o meu cachorrinho.
— Ele é meu cachorro, só meu! — gritei e Teo se escondeu atrás das
minhas pernas.
— Sim, é o seu cachorro, filha. Só tive a impressão. Vira-lata
caramelo tem em todo lugar, não é mesmo?
— Obrigada pelo remédio. — Abri a porta, desejando que ele desse
um passo para fora e desviasse os olhos do meu cachorro.
Luiz Miguel sequestrou Teodoro da loira esnobe, filha do homem à
minha frente, quando brigavam e se beijavam nas esquinas, há seis anos.
Demorou alguns dias, mas me agarrei ao Teo sem saber que era dela e não
deixei que o levassem embora.
— Continue tocando. — Ele dedilhou no ar. — É uma bela arte, não
deve ser ignorada. — Desceu para o jardim.
— Agradeça a Suzi. Não esqueça.
— Farei isso. — Continuou andando e segurando o braço doente.
— E... diga ao seu sobrinho para nunca mais aparecer na minha
frente. Se possível, que se ferre sem precisar da minha ajuda.
— Felipe vai amar saber que foi lembrado com tanto carinho.
— Obrigada por levar a mensagem.
Ele continuou caminhando em direção ao muro e dei passagem para
Judite, que foi abrir o portão.

Ontem, quando separei os ingredientes do remédio para cuidar dos


órfãos, não acreditaram em mim. Heitor até zombou do dano que causei aos
recipientes e Judite tentou me expulsar da cozinha. Agora, sabendo da
minha determinação em matar a praga pela raiz, estavam todos na frente do
orfanato, cada um com sua contribuição.
— Cuidado para não derramar o antipiolho, Heitor! — chamei a
atenção do meu irmão, que tirava do porta-malas dois galões de cinco litros
do remédio natural.
— Quer ajuda aí, Alicia do Egito? — Rex perguntou, segurando
caixas com produtos de higienização infantil.
— Não, já consegui. Vai entrando para não perdermos tempo. Vem
vozinha. — Destravei o cinto de segurança e ajudei-a a sair do carro.
— É aqui que as crianças moram? — Minha velhinha sorriu, olhando
a fachada colorida do local.
— É aqui. — Escondi o cabelo branco que escapou do lenço em sua
cabeça.
— Peguei os últimos lanches... Venham, os pequenos estão afoitos!
— mamãe disse, seguindo na frente, carregando uma cesta enorme cheia de
sanduíches, bolos e salgadinhos que ela e Judite passaram a noite
preparando.
— Vou exibir meu cabelo — Vovó disse em um caloroso ar de
teimosia.
— Nada disso, vozinha. A situação não está para brincadeira aí
dentro.
— A senhora quer que eu a carregue, dona Alice? — Rex, que
costumava ser o filho que meu pai nunca foi, perguntou.
— Hoje não, meu filho, vou esticar as pernocas — disse vovó,
sacudindo seu vestido de tecido fino.
Dei um segundo nó no lenço que protegia minha cabeça e dei a ela
meu braço como apoio.

Deixei minha mãe, Rex e Heitor ajudando na distribuição dos lanches


e fui com a vovó para o berçário. Não encontrar piolhos nos bebês foi um
alívio, e por enquanto os três ficariam em quarentena, longe dos outros.
— Você sentiu minha falta, pequenina? — Inclinei-me sobre o berço
e brinquei com a menina, que gargalhou e levantou as perninhas na direção
do meu rosto.
— Ela é ruiva — vovó declarou em sua voz envelhecida e entrei em
alerta.
— Não, vozinha. Ela é loira.
— O cabelo da sua bisa, Anna Cecília, era assim, loiro. — Ela sorriu,
aquele vislumbre de esperança iluminando seus olhos.
— Anna... — Olhei para o bebê sorridente e a coloquei em meus
braços. — Vozinha, a senhora se importa se eu colocar esse nome nela?
O sorriso da minha avó se alargou, então ela brincou com o vestido
do bebê e disse:
— Anna tem um significado muito bonito. Cheio de graça. Graça é
tudo o que vejo em minha bisnetinha.
— Não, não comece, vovó. — Arrumei o lenço que já estava
escorregando em seu cabelo liso. — Não posso ter filhos e já conversamos
sobre isso.
— Mas então... posso ficar?
— Não, né vozinha. Que ideia. A senhora pode me acompanhar em
algumas visitas e fazer roupinhas. O inverno está chegando e os três vão
precisar de seus agasalhos.
— Só queria um bisnetinho... — Minha avó caminhou lentamente até
o tatame onde os meninos brincavam com uma voluntária.
— Vovó, não fica assim...
— Tudo bem, consigo viver e esperar mais alguns anos — dramatizou
e se inclinou para alcançar os bebês, mas sua coluna não permitiu.
— Este é o João — A voluntária estendeu o bebê para ela acariciar.
— Essa moça bonita é minha neta — sussurrou vovó para a
voluntária. — A borboletinha é minha bisneta. O nome dela é Anna.
— Vozinha! — exclamei em um tom disciplinado.
— Anna? — A voluntária olhou para mim.
— Sim, de agora em diante, quero que a chame de Anna Flor —
comuniquei minha decisão.
— Anna Flor é lindo. — Sorriu a voluntária. — Você está
considerando a possibilidade de adotá-la?
Eu ri apavorada.
— Não tenho condições financeiras ou psicológicas, colega. Minha
avó que quer um bisneto de qualquer maneira e está fantasiando.
— Tem um casal bem avançado no processo de adoção dela.
Meu sorriso desapareceu.
— Que casal?
— Um casal de médicos. Eles moram em Goiânia, têm boa condição
financeira, estão no topo da fila de adoção e ficaram apaixonados pela
pequena.
— Achei que ela ficaria aqui até os dezoito anos... — Olhei para o
sorriso da criança, sua mãozinha fechada na ponta do meu lenço, seus
olhinhos azuis brilhando, a língua de fora, zombando fofamente... — Por
que vieram de tão longe?
— Moram em Goiânia, mas são paranaenses e foram voluntários aqui
quando estavam na faculdade.
— A profissão conta muito, né? — Beijei os cabelos da criança,
ligeiramente incomodada com a informação.
— Sim, é uma profissão importante e dificilmente outro casal a
escolheria antes dos meninos. A assistência social levará isso em
consideração e os priorizará. Logo a Florzinha estará com uma nova
família.
— Anna Flor — corrigi, cheirando os cabelos da menina. — E este
casal não é de confiança.
— Você os conheceu, Alicia? — a voluntária perguntou,
considerando minhas suposições.
— Não conheço, mas não acho que valham muito. — Mudei a
posição da criança e puxei a fralda do ombro da mulher. — Não faz sentido
escolher Anna Flor antes dos meninos. — Caminhei em direção à porta. —
As pessoas não perdem tempo quando encontram uma fraqueza.
— Alicia, eles estão de quarentena — disse a mulher nas minhas
costas.
— Não vou deixar a menina presa aqui. Traga os outros também. O
jardim é enorme, só precisamos ter cuidado. Venha, vozinha. — Saí do
berçário e me sentei no banco de cimento para cobrir a cabeça da bebê com
a fralda.
Chegando ao pátio principal, vi minha mãe penteando o cabelo da
menina que me infectou com piolhos. A criança sorriu e acenou para mim.
Dei atenção, mas mantive uma boa distância dela.
— Vem, tia bonita!
— Vou ficar aqui mesmo, está passando uma corrente de ar
fresquinha — expliquei, a dois metros de distância, segurando Anninha no
colo e ajustando a fralda que protegia seus cabelos loiros.
— Milena está feliz, Alicia. Será adotada em breve — minha mãe
informou e a cabeluda sorriu com brilho nos olhos.
— Falei que sabia passar paninho no chão e o papai me escolheu.
— Como é?! — exclamei com mil paranoias na cabeça.
— Se compadeceram das palavras dela, filha — mamãe pediu
cautela. Um olhar dela e eu entendia tudo.
— Se eles têm teto e comida, não vejo necessidade de adoção. —
Esses bastardos são todos pedófilos e abusadores de crianças inocentes.
— Alicia! — mamãe gritou e estremeci ao som de sua voz.
— O que é pedófilo, tia bonita?
— Pedófilos “são” — enfatizei o plural —, pessoas ruins que
estragam a mente de inocentes — Coloquei minha mão na cabeça da bebê e
embalei-a em meus braços.
— Você vai ficar mais bonita com o cabelo hidratado, Milena. — Me
olhando de soslaio, mamãe roubou a atenção da criança antes que ela
fizesse mais perguntas.
— Papai e mamãe vai amar meu novo cabelo. — Milena balançou a
cabeça e percebi que seus fios estavam mais curtos, na cintura.
— Com menos volume, seu rosto de princesa ficará mais visível,
Milena. — Olhando para mim, minha mãe continuou a pentear a criança.
— Tem um cachorrinho fofo na nova casa, titia...
— Um cachorro, Alicia! A gente confia em quem gosta de cachorro,
né, filha?
— Confio no cachorro, mãe. — Deixei bem claro e procurei minha
avó, que já estava longe, brincando com as crianças no gramado.
Dois meses depois

Entrei na loja de acessórios infantis com os olhos fixos na tela do meu


celular, que anunciava mais um telefonema do meu irmão mais velho.
Há um mês as ligações passaram a ser diárias e, embora sempre
ignorado, ele não desistia. Minha alma seguia quebrada, mas de alguma
forma meu coração se acalmava com sua insistência.
Coloquei o celular na bolsa e me dirigi para as prateleiras de
promoções. Era um saco fazer compras com pouco dinheiro, mas eu queria
levar algo para a Anna Flor, que completava seis meses naquele dia.
Os médicos, futuros pais dela, estavam de férias na cidade e desde o
início da semana não saíam do orfanato. Tentavam a todo custo roubar a
atenção e o apego que a menininha tinha por mim.
Nos últimos dois meses ela não saiu da curva da minha cintura e se
recusava a dormir nos braços de outra voluntária, o que me fez visitar o
orfanato todos os dias da semana, incluindo finais de semanas e feriados.
Meu coração doía só de pensar no dia em que a levariam para outro Estado.
— Estou confiante que o próximo dará certo. — Ouvi a voz familiar e
me escondi atrás das prateleiras para assistir Felipe em seus típicos trajes de
alfaiataria conversando com uma mulher.
— Minha prima teve sorte de te encontrar, Felipe. Meu ex-marido
nem paga a pensão do nosso filho, imagina estar disposto a embarcar em
um sonho tão exigente como o da Mari — disse a mulher, descaradamente
interessada no herdeiro bilionário.
Felipe era até fofo na infância, mas depois que cresceu, ganhou
músculos e aquelas veias horríveis de tão salientes, não havia outra razão
além do dinheiro para continuar chamando atenção.
— Hoje sonhei pela terceira vez segurando um bebezinho... — Ele
sorriu, com os braços cruzados, exibindo aquele enchimento ridículo que
costumava enfiar nas calças.
— Vocês vão voltar, Felipe — a intrometida afirmou, enrolando a
ponta do cabelo em volta do dedo, passando os olhos furtivamente pelo
corpo do feioso.
— É tudo que mais quero. Perdê-la para uma distração boba foi um
erro maldito que nunca pretendo repetir. — Ele suspirou esperançoso e
fechei os olhos por dois segundos, segurando o tremor dos meus lábios.
— Se eu puder ajudar em alguma coisa...? — A mulher olhou para
onde não devia e fui obrigada a empurrar um cabideiro entre eles.
— Ops, não vi que tinha gente aí. — Os contornei e segui em frente.
— Alicia! — ele chamou e fingi indiferença. — Ei, o que você está
fazendo aqui? — Cruzou na minha frente, seus olhos fixos na minha
barriga.
— Comprando roupas para minha avó. — O empurrei e continuei
meu caminho, parando apenas para ver um vestidinho bonito e chique em
uma das prateleiras promocionais.
— Você está grávida?
— Estou... — Levantei o vestido branco com babados, cheirei o
perfume requintado e notei o excelente aviamento do tecido.
— Verdade? — indagou e cantarolei, me dirigindo até o balcão do
caixa. — Alicia!
— Sim, e você é o pai! — gritei de costas para ele. — Esse cretino
fodeu comigo a noite toda sem camisinha e agora está bancando o idiota —
falei para uma vendedora que apareceu no meu caminho e segui com o
cabide na ponta do dedo indicador, reforçando um gingado extravagante.
— Odeio seu jeito vulgar e zombeteiro! — ele disse baixinho, ao meu
lado.
— O príncipe do conservadorismo não fode? — provoquei, deixando
cair o vestido nas mãos da moça caixa, que arregalou os olhos em nossa
direção.
— Por que faz isso, menina? É feio. Tenho certeza de que Samanta te
ensinou boas maneiras...
— Deixe minha mãe fora disso, idiota! — Empurrei seu peito — Se
sou o erro que você nunca mais quer cometer, por que vem atrás sempre que
me vê, hein? Não é bom magoar quem só sabe ferir, Felipe! Já te ensinei
essa lição mais de uma vez...
— Mil e duzentos reais, Senhora — disse a moça e me virei para ela,
vendo-a encolher os ombros instintivamente.
— O que você disse?
— Mil e duzentos reais. Crédito ou débito?
— Cem reais! — declarei, abrindo minha bolsa. — Vou pagar cem
reais. — Peguei meu cartão de débito e o estendi para que ela visse a
bandeira.
— O vestido acabou de chegar à loja e faz parte da nova coleção de
inverno da...
— Cem reais! — insisti, incisivamente. — Foi na prateleira de cem
reais! É isso que vou pagar.
— Meu Deus! — A funcionária colocou a mão na cabeça. — Acabei
de repor a prateleira e não vi que ele estava no meio. É uma peça importada,
por favor, reconsidere...
— As câmeras podem comprovar que ela tem o direito de levar —
Felipe interrompeu a justificativa da menina, que começou a tremer
incontrolavelmente.
— Tudo bem. Vou notificar o gerente e fechar sua compra.
Desculpem o transtorno — disse a moça de cabeça baixa, pegando a
maquininha e tremendo tanto que deixou cair sobre o balcão.
Não foi difícil me ver em sua pele. Dois meses antes, eu não sabia o
que era estar sem dinheiro, agora só tinha cem reais na poupança e tive que
escolher entre a gasolina e o presente da Anninha.
— Vai acabar saindo do seu salário, né? — perguntei, ela apenas
balançou a cabeça silenciosamente e colocou a maquininha à minha
disposição — Então deixa. — As palavras decisivas saíram arrastadas da
minha garganta.
— O quê? — o loiro indagou ao meu lado e dei as costas para ele.
— Não, tudo bem. Pode colocar o cartão e a senha. — Ela estendeu a
maquininha outra vez, seus olhos marejados de lágrimas.
— Já disse que vou escolher outra peça. Deixe de orgulho e traga
vestidos no orçamento de cem reais. Aliás, quero um bom desconto para
apagar o aborrecimento — falei diretamente com uma garota, que engoliu
em seco e liberou um sorriso choroso.
— Espera, me dê a máquina, ela vai levar o vestido. Vou pagar no
débito — Felipe disse, estremeci de surpresa, mas não resmunguei uma
única palavra.
Orgulho era tudo que me restava, mas sempre estava disposta a
manter exceções quando se tratava de dinheiro.
Chorosa, mas aliviada, a jovem iniciou o procedimento. E enquanto
Felipe digitou a senha, silenciosamente decorei a combinação.
— Aceitei porque é um presente para Anna Flor. — Deixei bem claro.
— Anna Flor? — indagou ele, despretensiosamente interessado,
guardando a carteira no bolso.
— A menina do orfanato.
A moça agradeceu, me entregou a compra e pisquei para ela antes de
sair com a sacola na ponta dos dedos e um rebolado elegante nos quadris.
— Então... ainda está visitando o orfanato? — o loiro perguntou atrás
de mim.
— E você, já é o novo pai do ano? — Devolvi com uma pergunta. —
Muito fraquinha, essa doutora. No mínimo, teria cortado cinco dos dez
centímetros.
— Será que você consegue conversar em uma linguagem madura e
sem esse maldito tom de deboche?
Me virei para xingá-lo, mas peguei o idiota levantando os olhos, então
esfreguei minha bunda, procurando por algo errado no tecido da saia.
Só encontrei quadris largos, resultado da negligência com a comida
nos últimos meses. Eu precisava planejar uma nova dieta com urgência.
— Obrigada por pagar pelo vestido. Não espere que eu devolva esse
dinheiro. Estou zerada. — Afastei-me rapidamente dele.
— Zerada de dinheiro? — perguntou, me perseguindo.
— E de paciência também.
— Está seguindo a orientação do médico?
— Sexo? Todos os dias. Não posso viver sem... Ai! — Bruscamente
meu braço foi capturado e Felipe parou na minha frente. — Me larga! — O
empurrei, mas de nada adiantou.
Ele fiscalizou o perímetro do shopping, então voltou me encarando
meio enfurecido, meu contido.
— Tem uma loja de acessórios eróticos aqui perto. Pode escolher o
que quiser, eu pago.
— O quê? — Recuei meu rosto, vendo sua mandíbula apertar.
— Pau de borracha, qualquer merda que te ajude a ficar segura.
— Se você não me soltar agora, vou fazer um escândalo, Felipe! —
pedi, fazendo o possível para camuflar o constrangimento que suas ideias
me causaram.
Só provocava o ogro conservador que o habitava, porque ele não
conseguia ver que eu ainda me sentia uma menina perto dele e que, ao
contrário do que pensava, meu descontrole não era prazer, mas doença e
desespero.
— Está pelo menos se protegendo? — perguntou, mas fiquei em
silêncio e um soluço mudo escapou da minha garganta. — Por que está tão
magra, Alicia?
— Zombe outra vez e acabo com você, Felipe!
— Quê? Não, não estou... Alicia!
Acelerei meus passos, seguindo rápido para fora do shopping, em
busca do meu carro no estacionamento.
Ele não deveria me afetar tanto.

Entrei no orfanato e fui recebida por um abraço coletivo tão forte que
quase me derrubou dos saltos.
— Chega. Agora vão brincar. — Dei um tapa na bunda de uma
espoleta e dispersei todos para o parquinho.
A princípio toda aquela euforia infantil me incomodou, mas com o
passar dos dias fui me acostumando. As crianças tinham esperança em mim,
me viam antes dos problemas que me definiam. Sem falar que as tarefas
cotidianas me exauriram a ponto de quase anular meus demônios.
— Alicia, você precisa ver como Anna Flor ficou linda com a
roupinha que sua avó mandou. — A enfermeira Julia apareceu, me pegou
pelo braço e levou na direção da biblioteca, onde havíamos montado uma
decoração de bailarina no dia anterior.
— Eles já estão aí? — Me referi ao casal de médicos.
— Sim. — Julia limitou-se a dizer.
— Ouviu alguma coisa?
— Alicia, é um assunto confidencial. Não posso me envolver tanto...
— Ouviu ou não, Julia?
— Eles estão com problemas na documentação e o procedimento de
adoção foi adiado — revelou em um sussurro e liberei um longo suspiro.
— Espero que demore o suficiente para desistirem... — Soprei ar pela
boca, tentei aliviar o peso da angústia e entrei na biblioteca, pegando o casal
tirando fotos com Anna, que ria a cada clique do celular! — Com licença.
— Larguei o braço de Julia, passei pela médica e tomei a menina do colo do
homem. — Alguém aqui autorizou que as crianças fossem fotografadas?
— Não, eu...
— Cadê a Joana, Julia?
— Cortando o pão para os cachorros-quentes — respondeu a
voluntária.
— Ótimo, então estou no comando e ninguém aqui vai tirar foto com
as crianças sem minha permissão — declarei com autoridade.
— Me desculpe, mas ela estará em nossa casa em breve, então não
vejo mais problema. — A médica tentou pegar a bebê, mas me afastei dela.
— Venha com a mamãe, Laurinha.
Tremi dos pés à cabeça.
— Anna Flor. O nome dela é Anna Flor! — avisei, distraindo-me na
sequência com o impulso da bebê, que sorriu, estendeu os braços e se jogou
na direção da mulher.
Um gesto simples que afundou meu coração, trouxe lágrimas aos
meus olhos e me fez correr para fora da sala, levando a bebê para longe dos
dois estranhos.
Cheguei antes no orfanato, aprendi a trocar fraldas, a dar banho,
colocar para dormir, enchi de manias e dei a primeira mamadeira depois que
a sonda foi retirada. Eles não eram mais importantes do que eu na vida dela.
— Já falamos sobre não pedir colo para estranhos... — reclamei com
a voz embargada e me sentei em um banco no jardim. — Você nem entende
meus conselhos, vai acabar esquecendo de mim quando sair daqui.
— Alicia, não fica assim... — Julia se sentou ao meu lado.
— Conversei com Anna todos os dias, Julia, expliquei para não fazer
isso com estranhos... — Coloquei meu punho sobre os olhos e funguei com
a cabeça baixa. — Não gosto deles, principalmente do médico... —
Solucei.
O bebê puxou meu cabelo e tentou colocá-lo na boca, então Julia
começou a desatar seus dedinhos de aço.
— Anninha é muito apegada a você, seria maravilhoso se a adotasse
— Julia comentou enquanto eu fungava para desentupir meu nariz.
— Eu queria que ela ficasse aqui até os dezoito anos. Não tenho
condições físicas ou psicológicas de cuidar dela bebê.
— Por que você repete tanto isso, Alicia? Sua personalidade é forte,
você é um pouco mimada, mas não há nada de errado nisso. Você ama essa
neném e ela te ama. — Sorriu, usando aquele tom paciente que era a marca
registrada das voluntárias.
— Você só conhece o meu lado voluntário, Julia.
— Não, não. Você era bem nojentinha chegou aqui — sussurrou e
relevei a ofensa. — Mas se adaptou tão rapidamente. Começou a vir
diariamente e hoje se preocupa com o bem-estar das crianças.
— São médicos, casados e têm dinheiro. A única coisa que sei fazer é
tocar piano, o que é inútil perto deles.
— Você toca piano?
— Aprendi na infância, sou boa nisso, mas não toco mais.
— Oh, é uma pena. Meu primo vai se casar no sábado e está
procurando um pianista. O que ele contratou perdeu alguém da família, está
de luto e devolveu o dinheiro.
— Quanto? — perguntei, afastando o choro.
— Quatrocentos reais.
— Sábado?
— Sim.
— Seiscentos reais é um cachê razoável. Vou pensar.
— Falei quatrocentos, Alicia.
— Ninguém acha uma pianista em cima da hora, Julia. Seiscentos
ainda é pouco.
— Ele gastou muito nos preparativos. Seiscentos não cabe no
orçamento...
— Então manda o bonito baixar a marcha nupcial da internet. —
Balancei a perna para ninar Anninha, que já cochilava no meu colo. — Sua
família precisa aprender a valorizar um bom profissional, Julia —
murmurei, pensando nos quatrocentos reais.
— Vou falar com ele, te dou a resposta amanhã, pode ser?
— Não demore muito, amanhã minha agenda pode estar lotada... —
Vi uma criança nova brincando no gramado e olhei para Julia. — Quando
ela chegou?
— Ontem à noite. O conselho tutelar a encontrou sozinha e morrendo
de fome dentro da casa dos pais, que são donos de um bar na rodovia.
— Coitadinha, me lembrou a Milena cabeluda dos piolhos.
— Ouvi a assistente social e Joana conversando sobre Milena mais
cedo.
— Você gosta de fofoca, não é, dona Julia? — brinquei, para me
distrair.
Julia era quase uma santa. Se olhasse de perto, poderíamos até ver
uma auréola em sua cabeça.
— Entrei na sala para pegar o carimbo e escutei...
— Vá em frente, me diga logo.
— A assistente social fez uma visita de rotina e a encontrou com um
corte na testa.
— Estão batendo nela, Julia!
— Os pais adotivos foram receptivos. Disseram que foi uma queda e
a criança confirmou. Mas de qualquer maneira, o conselho de tutela fará
uma visita a eles amanhã.
— Amanhã, Julia? — questionei e Anninha acordou choramingando.
— Shh, dorme, neném. — Coloquei sua cabeça no meu ombro e me
levantei.
— Aí está você — disse Joana, aproximando-se com a assistente
social e o casal de médicos, que certamente foram fofocar sobre mim.
— Vem, Laurinha... — A médica tentou levar a bebê dos meus
braços, mas recuei.
— O nome da criança é Anna Flor — esclareci, lançando o meu pior
olhar.
— Ela é novinha, vai se adaptar ao novo nome. — A assistente social
veio com as mãos estendidas, tirou a menina dos meus braços e tive que me
conter.
A médica recebeu a bebê e tentei empurrar o bolo angustiante que
bloqueou minha garganta.
— É melhor cantarmos os parabéns logo. — Minha voz falhou, Julia
parou na minha frente e mexeu no meu cabelo.
— Isso, vamos cantar os parabéns e alimentar as crianças — Joana
disse, direcionando o casal de volta à biblioteca.
A assistente social olhou para mim por alguns segundos e depois
seguiu Joana.
— Quer água? — Julia perguntou. Balancei a cabeça e, puxando-lhe a
mão, segui o cheiro da Anninha.
Durante a festinha, meu bebê ficou no colo do médico. Cada palma
era uma fisgada no meu peito, como se um pedaço estivesse sendo
arrancado.
Meus sentimentos sempre foram intensos. Bons ou ruins, eu sofria
cada um deles. De todas as maneiras possíveis, os sentimentos me
destruíam.
— Doce ou salgado? — Julia perguntou, segurando dois pratos cheios
de comida.
— Os dois engordam.
— O que foi? — Ela colocou a mão na minha testa. — Você está
quente.
— Vou falar com a Anninha. Preciso sair um pouco. — Fui até Anna
Flor e beijei sua saia de tule.
— Você está se sentindo bem? — a médica perguntou e eu a ignorei.
— Volto amanhã, Anninha. — Acariciei sua barriga e evitei o contato
direto. Minha cabeça doía e meu corpo suava frio, não sabia o que estava
acontecendo, talvez fosse um resfriado. — Vou deixar seu presente no
berçário. Amanhã abriremos juntas.
Virei para o lado esquerdo e vi o rosto do médico. Ele parecia um
homem decente, diferente do outro que adotou a cabeluda, mas as
aparências enganavam. Ninguém podia tirar meu direito de suspeitar.
Olhei de novo para a Anninha e voltei para a Julia, que comia como
uma doida. Não sei como conseguia ter um corpo em forma e uma pele
macia. A sorte definitivamente não era para todas.
— Vou te dar um antitérmico — Julia disse de boca cheia,
abandonando os pratos sobre a mesa. — Vamos até o armário.
— Vou tomar, deixar o presente no berçário e depois você vai me
fazer um favor.
— É sobre a Anninha? — Enlaçou meu braço e me levou da sala.
— Não. Quero o endereço do casal que adotou a cabeluda.
— O que está pensando em fazer? — Pegou a bolsa do armário e me
deu um comprimido.
— Uma visita.
— De jeito nenhum. Você está com febre e não sabe o que vai
encontrar lá. — Colocou a bolsa de volta no armário.
— Preciso vê-la agora, Julia. — Peguei sua bolsa de volta. — Por
favor, venha comigo, estou preocupada.
— Esse é o endereço. — No banco do passageiro, Julia apontou para
uma casa com portões de ferro, do outro lado da rua, e foi fácil reconhecer o
homem alto e magro que mexia na traseira da caminhonete estacionada na
calçada.
— Traz seu celular e já deixa o número da polícia discado. — Saí do
carro e Julia me acompanhou, segurando meu braço, ajudando-me a andar
com os saltos na rua de paralelepípedos.
— Bom dia. Senhor Humberto — Julia disse e o homem se virou para
nós.
— Conheço vocês? — ele perguntou, olhando ao redor do perímetro
da rua
— Somos voluntárias no orfanato onde Milena morava — informei,
observando uma mala dentro do carro.
— Não tenho nada para vocês aqui — ele disse rispidamente, se
colocando entre nós, indo até o portão. — Lúcia Maria! — gritou. — Se
demorar, vou largar você aí!
— Milena, venha aqui! — gritei, indo atrás dele, sendo bloqueada na
entrada do portão. — Onde está Milena? — exigi e Julia ficou ao meu lado,
reclamando a mesma coisa.
— Lucia Maria, não vou chamar outra vez! — Nos ignorando, ele
gritou, e não demorou muito para que a mulher aparecesse segurando um
menino pela mão.
— É a minha tia bonita!
A criança deixou a mulher, correu, abraçou minhas pernas e a
angústia invadiu meu peito.
Era Milena, de pijama masculino, cabelo cortado rente ao casco e
medo nos olhos.
— Quem cortou seu cabelo? — Desci para ficar na altura dela e corri
minha mão ao redor de onde seu cabelo deveria estar.
— Assim também é bonito, titia. — Ela sorriu tristemente, confusa
diante da violência.
Vi a cicatriz recente em sua testa e comecei a inspecionar o resto do
corpinho, nenhum pouco intimidada pelos gritos e ameaças do homem. Ele
estava muito errado em acreditar que sua falta de controle me assustava.
Puxei a manga comprida do pijama e vi manchas vermelhas no braço
da criança. Hematomas de cinta.
— Desgraçados!
— Pega a menina e põe no carro, Lúcia! — gritou o homem.
A mulher veio, agarrou uma das mãos de Milena e foi a minha vez de
apertar os dedos em seu pescoço.
— É você que gosta de espancar crianças, safada? Faça o mesmo
comigo.
— Eu caí. Eu caí, minha tia — Milena gritou e puxou a barra da
minha saia.
Vermelha e asfixiada, a mulher não conseguiu reagir, e quando seu
marido entrou na casa e começou a pegar malas em vez de ajudá-la, eu a
soltei com um empurrão e vi que o lenço em seu pescoço havia afastado a
ponto de revelar feridas em sua pele.
— Julia, liga para a polícia — pedi, agarrando a mão de Milena. —
Você vem comigo. — Agarrei a mão da mulher e recebi um sopapo.
— Não!
— Ele fez isso com você, precisa vir comigo! — exclamei,
enfurecida.
— Tenho alergias — ela mentiu e olhou para o homem que jogava as
malas na caminhonete. — Vão embora daqui.
— Vou colocá-lo na cadeia — avisei e tive que soltar Milena, porque
o homem pegou o celular de Julia e jogou no chão. — Não se atreva! — O
ataquei por trás, fazendo-o soltar o punho da minha amiga.
— Não foi ele. — A mulher entrou na minha frente e abraçou a
cintura do homem, impedindo-o de me atacar.
— Não vou parar na cadeira por sua causa, madame! — ele gritou,
mas eu já estava atravessando a rua, segurando a mão de Milena, correndo
atrás de Julia, que entrou pela porta do motorista e deixou a traseira aberta.
— Entra, Milena. — Coloquei a menina no carro e meus cabelos
foram puxados para trás. — Liga o carro, Julia! — gritei, sendo arrastada.
— Você errou de ter vindo aqui, madame!
Lutei, consegui morder o braço dele e corri de volta para o carro.
Entrei pela porta de atrás e Julia colocou o veículo em movimento.
— Ahhhhhhhh! — minha amiga gritou quando o vidro da janela foi
atingido por uma pedra grande, o suficiente para causar estragos.
Jogada no banco e ofegando incontrolavelmente, me virei para o lado
e vi Milena encolhida, os olhos vidrados, traumatizada demais para chorar.
Respirei fundo e minha mente ressuscitou cenas tristes das vezes que
ouvi o choro abafado de mamãe no quarto dos fundos e no dia seguinte
fingia não saber de nada, com medo de que papai me machucasse também.
Fechei os olhos, lutando para sair do caos do passado, mas outra
imagem cruel foi projetada em minha mente:
Pés descalços. Frio. Medo. Sangue nas mãos...
— Alicia! — Julia gritou e abri os olhos, tragando o ar com tanta
força que meu peito doeu. — Precisamos falar com Joana e fazer um
boletim de ocorrência.
Arfei, tentando organizar minha cabeça. Não era hora de surtar.
Olhei para Milena e me arrastei até seu cantinho no carro.
— Ele não vai te machucar mais e seu cabelo vai crescer de novo. —
Coloquei o cinto de segurança nela.
— Tudo bem, titia — ela disse submissamente e levantei sua cabeça
no mesmo momento.
— Ele mexeu em você quando estava sem roupa? — perguntei,
segurando o rostinho dela.
— Não, titia — respondeu com lábios trêmulos. — Só me bateu com
a corda da cintura e machucou a mamãe também. — Liberou um choro
copioso e afundei seu rosto em meu peito.
— É bom que ela seja examinada, Julia. — Passei o punho nos meus
olhos. — Vou deixar vocês no orfanato e Joana chama a polícia de lá.
Preciso ver uma pessoa e tentar resolver outra situação que está me
atormentando agora. — Acariciei a cabeça de Milena.

Engolindo meu orgulho a cada passo, saí do elevador no sexto andar


do escritório de advocacia da Família Moedeiros, e caminhei em direção à
recepcionista.
— Boa tarde, Felipe Moedeiros está no escritório?
— Ele está de saída para uma audiência — a mulher em traje formal
disse, cordialmente.
— Preciso falar com ele. É urgente — expliquei, apertando a alça da
minha bolsa. — Sou cunhada de Maria Eduarda Moedeiros.
— Ah, sim. Vou informar... Olha ele aí.
Virei-me e vi Felipe vindo em direção à recepção, ao lado de alguns
homens e seu avô, todos de terno, ele de camisa social e mochila nas costas.
— O que faz aqui? — ele perguntou, caminhando em minha direção e
seu avô não deu um passo ao ouvir a pergunta do neto.
— Preciso conversar com você.
— Este é o meu local de trabalho. Vá embora! — falou com os dentes
cerrados, agarrando meu cotovelo e me arrastando para longe da
recepcionista.
— Preciso de você mais do que qualquer coisa na minha vida. — Fui
categórica e ele parou para me olhar nos olhos.
— Vou acompanhar uma audiência importante agora, não tenho
tempo a perder com suas brincadeiras tóxicas, Alicia.
— Por favor, me escute. — Descansei meus joelhos no chão e deixei
o peso do corpo cair sobre eles. — Preciso de você, Felipe. Me ajude.
De cabeça baixa, o ouvi soltar uma lufada de ar.
— Certo! O que está acontecendo? — Pegou meu braço e me colocou
de pé.
— A menininha do orfanato, a que você pagou pelo vestido mais
cedo, ela tem Down e... Ela é linda e esperta, Felipe. Acabou de fazer seis
meses e é cheia de manias. As voluntárias me culpam por isso. Eu a chamo
de Anna Flor, o primeiro nome é da minha bisavó. E... ela ... ela é tão
forte...
— Respire... fale mais devagar para eu poder entender.
Respirei fundo e continuei:
— Ela é muito esperta e gosta de puxar meus cabelos... — Sorri,
procurei boas reações nele, mas só encontrei um olhar confuso. — Amo a
bebezinha, Felipe. Amo muito. Isso veio do nada e está mudando minha
vida... — Parei por um momento e respirei fundo. — Agora apareceu um
casal querendo adotá-la. Eles vão tirar Anninha de mim para sempre.
— Que bom. Já estava ficando preocupado. — Segurou meus ombros
e deu uma pequena sacudida. — Agora tenho que ir.
Me deixou, como se não tivesse ouvido nada importante e foi até o
avô que estava nos observando, assim como os outros homens.
— Você me ouviu dizer que a amo? — Desesperada, corri atrás dele.
— Ouvi. Isso é surpreendente. — Continuou andando.
Cretino!
— Quero adotá-la — disse, e foi o suficiente para o loiro se virar para
mim.
— Sério?
— Sim, quero muito, mas sou jovem, solteira e não tenho profissão,
nem dinheiro. O casal tem prioridade. Eles são médicos.
— Você quer orientação profissional gratuita, é isso?
— Sim, vou precisar. — Suspirei consternada. — Também preciso de
um marido.
— Vá para casa, você está desorientada. — Felipe balançou o rosto,
olhando nos meus olhos, tentando procurar sinais de delírio.
— Não confio nos homens e preciso de um marido decente para
proteger meu bebê. Pensei em um herdeiro bilionário que também é
advogado e a família tem influência jurídica em nosso estado.
— Vamos, vovô. — Ele seguiu em passos largos e me deixou
conversando sozinha.
— Felipe, só assim terei chance de ficar com ela. — Passei entre os
homens e parei na frente dele.
— Vá conversar com a moça no seu escritório — ordenou o avô,
olhando para ele com ar de advertência.
— Seu Olavo. — Segurei a mão do velho, agarrando-me em qualquer
esperança para ser atendida. — Conheço seu neto desde criança. Eu o beijei
pela primeira vez na sua casaaa... — Fui puxada pelo braço e praticamente
empurrada para dentro do elevador.
— Seu problema é mais sério do que eu pensava. — Felipe bateu com
a mão no painel e quando a porta se fechou, ele me colocou contra a parede
de aço.
— Deveria me agradecer por escolher você para ser o pai da minha
filha.
— Ah, então do nada, uma mulher de caráter duvidoso que tem me
atormentado por toda a vida me escolheu para ser o pai de uma criança não
planejada e eu tenho que agradecer?
— Desculpe. Não me preparei, apenas entrei no carro e parei aqui. —
Baixei a cabeça e chorei. — Acabei de ver uma criança sofrendo nas mãos
do pai adotivo. Anna Flor é ainda mais indefesa e me sinto responsável por
ela, é minha filhinha.
— Você não tem filha. Alicia. — Ele baixou o tom e hesitou por
alguns segundos. — Nenhuma criança ficaria bem sob seus cuidados.
Esqueça isso e me deixe em paz.
— Temo que eles aproveitem os atrasos no desenvolvimento para
maltratá-la.
— Isso não vai acontecer. A menina ficará bem.
— Pessoas ruins machucam inocentes... e é tão doloroso ter que viver
depois disso. — Minha voz falhou duas vezes.
Ele respirou fundo e parou de apertar meus ombros para pressionar o
painel e direcionar o elevador ao térreo.
— Você não se cuida, como pretende fazer isso por uma criança que
precisa de cuidados especiais? — Sua pergunta transmitiu possibilidades e
levantei minha cabeça instantaneamente, segurando-me em um fiapo de
esperança.
— Sei trocar fraldas, banhar e colocar para dormir. Faço tudo direito.
Tudinho.
— Vá para casa, tome um banho frio e durma. Quando acordar terá
esquecido esta ideia.
— Aceita por favor. — Saí do canto onde estava e o encurralei na
porta. — Dou prazer em troca de ajuda.
— Cala a boca, Alicia! — ele gritou, me fazendo estremecer.
A porta se abriu e ele agarrou minha mão, me levando para fora do
elevador.
— Você não quer ter um filho?
— Só de olhar para o seu corpo, sei que está doente! Será que
ninguém na sua casa é capaz de ver isso?
— Vou dar um jeito. Uma dieta mais rígida resolverá tudo isso.
Felipe parou e silenciosamente olhou para mim como todo mundo
fazia, com pena e aversão, o que me fez cravar a unha na pele do meu
braço. Por enquanto, supria minha necessidade. Logo eu voltaria para casa e
teria mais alívio.
— Essa audiência é muito importante para minha carreira. É o meu
futuro que está em jogo. — Ele agarrou minha mão novamente e me levou
para fora do prédio, me fazendo correr para acompanhar seus passos.
— Você não me deseja, mas não me importo com isso. Finja que é
outra mulher em sua cama. Sei dar prazer e não gosto de receber...
— Cala essa boca, maldita! — Felipe largou minha mão e se afastou.
— Propôs esse inferno a quantos antes de mim?
— Só você, mas depois daqui vou no seu Eduardo. Ele é um bom
homem e...
Felipe se virou, veio em minha direção com fúria nos olhos e isso me
fez dar dois passos para trás, encostando em um dos carros do
estacionamento.
— Que Eduardo? — perguntou.
— S-seu tio.
— Você vai se oferecer ao meu tio Edu?
— N-não, eu... eu só...
— Não posso acreditar que pensou nessa desgraça! — Ele se afastou
novamente.
— Aposto que você não trata aquela Mariana assim. — Minha voz
saiu engasgada.
— Mari nunca atormentou minha vida e, principalmente, nunca se
ofereceu para meu tio! — Ele apontou incisivamente para mim.
— Só estou aqui engolindo meu orgulho pela Anninha, mas se você
não vai me ajudar, esquece! Seu tio é um homem gentil, paciente e
bondoso. Ele vai me ouvir.
— Bondoso uma porra! — Felipe riu com indignação, puxou os
cabelos da nuca e passei por ele, voltando para o meu carro. — Aonde você
vai?
— Conversar com seu tio e pedir ajuda. Não tenho tempo a perder.
Minha filhinha precisa de mim.
— Para de me provocar, Alicia! — Bloqueou meu caminho com seu
grande corpo. — Você não vai se oferecer ao meu tio!
— Tenho certeza de que ele não vai me pedir nada em troca.
Felipe respirou fundo, a fúria escapando dele através de baforadas
pelas narinas.
— Ele não é advogado, esqueça essa merda.
— Não é advogado, mas o pai dele é dono disso aqui — rebati e vi os
dedos do loiro maltratarem os cabelos. — Ele conhece as pessoas certas —
continuei —, também pode conseguir um bom marido para mim, que dê a
família e a proteção que a Anninha precisa em troca do que posso oferecer.
— Eu gostaria de nunca ter conhecido você, infeliz. — Felipe pegou
minha mão, já tirando a chave do bolso e destravando o carro.
Quando alcançamos o veículo, ele abriu a porta do passageiro e deu a
volta para pegar o volante. Demorei um pouco do lado de fora, olhei na
direção do meu carro, mas quando ele ligou o motor, entrei rápido e
coloquei o cinto de segurança.
Ele tirou o carro do estacionamento e seu celular tocou em sua
mochila entre seus pés. Quando ele largou o volante para abrir o zíper,
estendi a mão, empurrei o notebook e ajudei a procurar o dispositivo. Era o
avô dele, vi o nome antes de entregá-lo.
Felipe olhou o visor, desligou o aparelho, colocou no espaço entre as
pernas, e não pude deixar de notar aquele lugar. Só olhei para o celular.
Ele não disse mais nada ao longo do caminho, nem olhou para mim
durante as paradas dos semáforos. Estava muito quieto e o músculo de seu
rosto tremia.
Não sabia se ele aceitaria meu pedido, mas me colocar em seu carro
me encheu de esperança.
Aquele loiro feio era um quebrador de promessas, mas ele nunca foi
abusivo ou olhou para mim daquele jeito nojento que eu odiava. Queria ser
pai e seria um bom pai para a Aninha, minha filhinha. Era tão bom chamá-
la assim.
Olhei através do vidro, achei a estrada estranha e perguntei:
— Onde estamos? — Ele não me respondeu, mas abriu os vidros do
carro. — Está pensando em fazer algo errado comigo? — Apoiei minhas
mãos no assento e fiquei alerta.
— Você não precisa de mim para isso — ele retrucou.
— Meus últimos exames de sangue não indicaram doença e não tive
tempo... não faço sexo desde que você me pediu. — Achei necessário dizer.
— O médico pediu.
— Sim, o médico...
— Você continua proibida. Sem sexo de qualquer tipo — murmurou,
seus olhos na estrada. Parecendo um robô dirigindo o veículo.
— Agora você está proibindo?
— Dane-se isso. Está proibida.
— É uma exigência? — perguntei, já cheia de esperança, e ele soprou
uma lufada pelo nariz.
Sorri, passando a mão pelo meu cabelo, tentando colocá-lo de volta
no lugar.
Olhei para os carros que passavam na estrada e senti o vento frio tocar
meu rosto, secando as lágrimas e acalmando meu espírito. Eu não podia
perder a fé. Logo ele me daria uma resposta positiva.
— É o meu apartamento. — Quebrou o silêncio quando entramos na
garagem de um edifício.
Uma gastura boa percorreu meu estômago, me forçando a apertar o
local, tendo cuidado para não deixar transparecer tanta euforia. Era tudo
pela Anninha. Só por ela.
— Anna Flor é linda, Lipe. Ela é loira e tem olhos azuis, assim como
você.
Sorri com a lembrança da bebezinha em minha mente e Felipe
desligou o carro, pegou o celular e saiu, sem se importar com minhas
palavras.
Suspirei abatida e deixei o carro, tentando acompanhá-lo.
— Se não consegue andar, por que não tira os tamancos? —
perguntou enquanto travava o carro e notava minha curta corrida na
garagem.
— Estou bem — blefei, minhas pernas tremendo com a fraqueza do
meu corpo. —Você está morando aqui? — Abraçando minha bolsa, entrei
no elevador com ele.
— Não definitivamente. — Ele escolheu o décimo quarto andar e se
abaixou, me assustando. — Usa um sapato tão alto e não tem forças para
andar sobre ele — resmungou e começou a desabotoar minhas peep toes,
salto 15.
— E a audiência? Seu avô não vai achar...
— Era importante — cortou a minha frase.
— Eu poderia ter voltado no meu carro. Ele ficou lá no
estacionamento.
Em silêncio, ele segurou minha panturrilha e esperou que eu saísse de
um salto e depois do outro.
— Fico com suas chaves. Venha. — Se levantou com minhas
sandálias na mão.
O elevador parou, ele saiu e o segui com os pés no chão.
Eu não deveria me sentir tão adolescente perto dele.
— É aqui? — perguntei, parecendo uma tonta, observando a porta
aberta.
— É — disse lá de dentro, jogando minhas sandálias no chão e
puxando a gravata do pescoço.
— Ogro, argh! — resmunguei e ele olhou para trás, então exercitei
meu lado sonso.
Sorrindo, entrei e fechei a porta atrás de mim.
— Você precisa de um banho — disse de costas, mexendo em seu
telefone celular, e movi meu nariz até as axilas, mas não consegui
identificar nenhum odor forte. — O último... — Me pegou em flagrante
durante a inspeção e rapidamente me consertei. — Use o terceiro quarto do
corredor. Venha.
Fiz o que ele pediu, segui seus passos e caminhamos juntos até a
última das três portas.
Havia apenas uma cama e um guarda-roupa enorme no quarto de cor
neutra e franzi o nariz, desaprovando a péssima decoração.
— Essa vai servir. — Me entregou uma camisa de malha preta. —
Banho, comida e cama. Vou pedir sua comida e enfrentar a fúria do meu
chefe.
— Você sabe melhor do que eu como funciona um casamento de
conveniência...
— Tem toalhas limpas no banheiro. — Saiu do quarto.
— Você deveria aprender a ser gentil com seu tio. — Balancei a
camisa com raiva, mas logo levei-a ao rosto e inalei o cheiro do ignorante.
Canela, madeira de cashmere, patchouli e ládano. O mesmo perfume que
usava na adolescência, que roubei um frasco uma vez e quebrei na parede
do meu quarto. — Ninguém merece inalar um odor tão desagradável como
esse — murmurei, indo para o banheiro, a camisa no mesmo lugar, perto do
meu nariz. — O que uma mãe não faz por um filho?
— O que está acontecendo com sua irmã? — perguntei sem rodeios,
assim que o marido da minha prima atendeu a ligação.
— Com Alicia? Não sei. Vou desligar e falar com minha mãe...
— Sua irmã está comigo, no meu apartamento! — Andei pela sala e
interrompi as recomendações do cara com perguntas certas: — Por que ela
está tão magra e falando sobre dieta? Por que parece estar sempre
deprimida e, principalmente, por que ninguém em sua casa dá atenção a
isso?
— Alicia enfrenta transtornos alimentares desde pequena, Felipe.
— Droga, é isso então. — Sentei-me na beirada do sofá e lembrei que
ela sempre ficava irritada quando eu falava de sua magreza. — Sua irmã me
deu sinais e não entendi.
— Vocês estão juntos?
— Não. Quer dizer... A gente se esbarra por aí.
— Olha, fico até mais despreocupado. Mesmo com aquela confusão
toda sobre a Mar...
— Esqueça isso. Fale só da sua irmã.
— Queria trazê-la para passar uma temporada comigo, mas dei umas
cintadas nela e desde então não fala mais comigo.
— Você o quê? — Levantei-me do sofá. — Bateu nela, porra?
— Alicia me desrespeitou, disse coisas que ferem a proteção
exagerada e necessária que recebeu ao longo dos anos. Não suportei
ouvir...
— Foda-se! Você não tinha o direito de bater nela!
— Eu sei, Felipe, mas na hora não suportei vê-la desdenhando da
própria dor...
Desliguei meu celular e joguei com força no sofá, ignorando a
insistência das novas ligações.
Bastardo de merda!
A ruiva doente e quem deveria cuidar dela batia nela.
Que merda de família!

Saí do ar fumegante do box e o frio atingiu meu rosto.


Examinei a decoração moderna do banheiro e logo me veio à mente
que talvez Felipe tivesse planejado tudo com a ex-perfeita, a escolhida para
ser mãe do filho dele.
Puxei a toalha com desgosto, abri as gavetas do balcão procurando
qualquer sinal dela e encontrei apenas preservativos. Vários. De todos os
tipos e de um tamanho absurdo, que provavelmente não cabia nos dez
centímetros do loiro.
Vesti a camisa dele, coloquei minha calcinha e usei a ponta do
indicador para escrever "Feio" no vapor do espelho.
— Isso é o que você é. — Mostrei minha língua para aquele nome e,
descalça, saí do banheiro para encontrá-lo esparramado na cama, com o
rosto voltado para o teto, a camisa aberta e os olhos fechados.
Ora, ora...
Me aproximei sorrateiramente.
Quando enfiei o dedo em seu umbigo, o homem saltou da cama e um
grito estridente escapou da minha garganta.
— Já tomei banho. — Encolhi os ombros e inutilmente puxei a
camisa até os joelhos enquanto seu olhar pousava nas minhas coxas.
— Você não é... — Felipe apontou para mim com o dedo indicador,
mas engoliu o resto da frase que sempre repetia, saiu como um furacão,
bateu a porta do banheiro e se trancou lá dentro.
— Ele não vai aceitar... — murmurei, andando de um lado para o
outro, sentindo meu coração apertar.
Precisando falar com mamãe, peguei meu celular da bolsa sobre a
cama e esperei ela atender.
— Alicia, onde está você? Seu irmão acabou de me ligar...
— Mãe, por favor, liga para o orfanato. Procure saber da Milena,
aquela que você cortou o cabelo e foi adotada no início do mês.
— Vou te buscar, onde você está?
— Estou resolvendo uma situação importante com o Felipe. No
apartamento dele.
— Envia já a localização. Não quero você com esse canalha.
— Por favor, mãe, é só ligar para o orfanato e saber sobre Milena. Te
explico tudo mais tarde. Estou bem, acredite em mim.
— Minha filha, você sabe que esse homem tem namorada. Não
embarque nessa história...
— Porra! — Felipe gritou lá de dentro e corri para encostar o ouvido
na porta.
— Vou encerrar a ligação, mamãe — sussurrei.
— Alicia me passa a localização!
Desliguei o celular e bati meus dedos contra a porta.
— Lipe?
— Não mexa mais no meu chuveiro!
— É que... Só gosto assim... Queimou você?
— Espere na sala! — falou ríspido.
— Estúpido! — Bati a palma na porta e me afastei com a mão na
barriga. Sentindo dor lá e na cabeça.
Meu ânimo foi esgotado após os eventos turbulentos daquele dia, mas
não ter surtado me deixava mais segura.
Coloquei o celular na bolsa e saí do quarto. Fui para a sala de estar,
me aninhei no sofá, enfiei os joelhos na camisa e fechei os olhos para
esperar a dor de cabeça passar.

— Alicia... — Ele me sacudiu e sentei abruptamente, ajeitando a


camisa que escorregou dos joelhos e subiu para a cintura.
— Você demorou tanto que acabei dormindo — reclamei e corri o
olhar nele.
Moletom, camiseta, cheiro fresco, músculos, veias... Que horror.
— Sua comida já está subindo. — Sem eu esperar, ele agarrou meus
pulsos e verificou as manchinhas da alergia ao suor. — Depois do banho,
quanto tempo leva para sua pele voltar ao normal? — Tentou inspecionar
minhas pernas, mas encolhi os ombros, deixando claro que estava
desconfortável.
Odiava quando ele me olhava assim, notando meus defeitos.
A campainha do apartamento tocou. Foi o suficiente para ele se
afastar e me deixar respirar com tranquilidade. Quando voltou, trouxe três
sacolas de restaurante e o cheiro de comida fez um barulho constrangedor
no meu estômago.
— Ainda não tenho mesa, vamos nos virar por aqui mesmo.
— Estou enjoada. Não vou comer. — Salivei e continuei encolhida no
mesmo canto.
— Já passou das duas da tarde. Está enjoada porque não almoçou. —
Sentou-se ao meu lado e abriu parte das marmitas.
— Isso aí é...
— Feijoada.
Engoli a umidade e apertei meu estômago, tentando contê-lo.
— Um verdadeiro barril de calorias. Não vou comer isso.
— Ah, vai. — Ele rasgou o saquinho dos talheres. — Vai comer tudo.
— Só de olhar para esse feijão ganhei dois quilos. Não vou comer. —
Cruzei os braços. Felipe levantou, pegou o celular e parou na minha frente.
— Ei, o que está fazendo? — Tentei contê-lo quando percebi estar tirando
fotos, mas ele levantou a mão, se afastou e estudou o visor. — Apaga,
Felipe! — Fui atrás, tentando a todo custo pegar o celular.
— Eu realmente quero entender onde está a gordura do seu corpo. —
Ele virou a tela do celular. — Me explica.
— Você não tem esse direito! — Meu coração acelerou e perdi o
fôlego — Não tente... Não tente me confrontar. — Coloquei a mão no peito
e esfreguei.
— Você está emagrecendo a cada dia, Alicia.
Ele trouxe o celular até meu rosto e lágrimas escorreram dos meus
olhos, pois tudo que eu podia ver era uma balofa ruiva.
— Não faça isso comigo! — Voltei para o sofá com as mãos na
orelha.
— Alicia... — Felipe se aproximou, sentou e começou a enrolar meu
cabelo no alto da cabeça. — Você precisa se cuidar. — Sutilmente, ele
afastou minhas mãos do ouvido.
— Você está procurando uma desculpa para não me ajudar. A
menininha é mais importante do que essa merda que vive comigo há anos.
— Vamos conversar, mas primeiro você precisa comer um pouco. —
Ele se afastou e voltou levantando meu queixo, trazendo uma colher cheia
para minha boca.
— Estou bem, Felipe. Posso cuidar da Anninha... — Enxuguei os
olhos com o dorso da mão. — Não me quer, tudo bem, mas diga o que
preciso fazer para me ajudar?
— Abre a boca, Alicia.
— Não posso comer isso, Lipe.
— Só um pouco. — Ele aproximou a colher e fechei os lábios. —
Você tem vinte e três ou oito anos? — Cutucou minha boca e grãos de
comida caíram no meu colo. — Alicia! — gritou impacientemente e
estremeci.
Abri a boca para receber a comida, mastiguei o feijão e olhei de
soslaio para outra colherada que já se aproximava.
— Se eu comer tudo, você aceita ser o pai da minha filha?
Pai da minha filha...
— Não fale com a boca cheia.
— Só preciso de alguns papéis assinados e um anel no dedo, Felipe.
Esmeraldas, se possível.
— Claro. — Felipe riu sem nenhum traço de humor e enfiou outra
colherada na minha boca.
— Preciso da sua resposta hoje... — Mastiguei. — Se não aceitar, vou
buscar ajuda em outro lugar. Já fiquei... Conheço de longe alguns deputados
que, provavelmente...
— Ah, foda-se, Alicia!
Levantou, colocou a marmita no sofá, pegou o celular e saiu da sala.
— Felipe! — Derramei algumas lágrimas e solucei. — Você começou
a me dar comida na boca, venha terminar!
Segurei a marmita e coloquei uma grande quantidade de comida na
boca.
— Felipe, seu falso, quebrador de promessas!
Chorando, peguei a calabresa com a ponta dos dedos e mastiguei.
Comi tudo sem conseguir parar de chorar. Comi a marmita dele
também.

A necessidade insana de proteger a encrenqueira quase me ferrou no


passado e estava acontecendo de novo.
Arrumei os lençóis na cama e coloquei fronhas sobre os travesseiros.
Precisava fazer Alicia esquecer a ideia de casamento e adoção.
Porque se ela fosse até os deputados filhos da puta, eles dariam um jeito de
adotar a criança, só para tirar vantagem da ruiva.
O cérebro dizia para fugir, o instinto mandava proteger.
Voltei para a sala, refugiei-me na sombra da parede do corredor e de
lá vi a ruiva soluçando enquanto raspava o resto dos grãos de feijão da
marmita.
Pelo menos comeu.
Apertei o cobertor em minhas mãos e deixei a trincheira para entrar
no campo de batalha.
— J-já comi tudo... N-não precisa... — O soluço a deteve.
— Aqui, beba. — Abri o copo de suco de laranja e coloquei na altura
da mão dela.
— Você não pode me dar tanta comida... — murmurou entre soluços
e goles de suco.
— O que acha de me dizer como funciona?
— Se eu contar, você não vai querer casar comigo.
— Você não vai se casar com ninguém, Alicia. Precisa se cuidar e
ficar longe de problemas.
— Vou me casar pela Anninha. Ela é pequena e frágil... Eles... Eles
vão se aproveitar dela. — Cobriu o rosto com a mão e, de cabeça baixa,
soluçou. — Isso é o que eles fazem. Estragam a cabeça, estragam para
sempre. Eles estragam tudo.
— Se acalme. — Afastei a marmita, coloquei o cobertor sobre suas
costas e cobri suas pernas com as pontas. — Você quer sobremesa? É petit
gâteau.
— Não me deixe comer mais nada. Não é assim que funciona. — Me
olhou nos olhos, me fazendo querer saber tudo sobre aquela maldita doença.
— Tudo bem. — Coloquei os recipientes na sacola e me sentei ao
lado dela. — Onde estão suas mãos?
— Por quê?
— Apenas me mostre.
Ela descobriu as mãos pálidas e comecei a massageá-las, afastando o
frio e buscando a intimidade necessária para o desabafo.
— A menininha está esperando por mim, Felipe. Eles vão levá-la
embora a qualquer momento.
— Me fale sobre o transtorno alimentar. Não sei muito. Nunca tive
motivos para me aprofundar no assunto. — Continuei aquecendo suas
mãos, desejando de alguma forma aquecê-la na alma.
— Você é advogado, deveria ser mais esperto.
— Sim, eu deveria. Me ensine sobre isso.
— Eu era gorda, as crianças da escolinha me chamavam de bola de
fogo e isso me fazia me esconder no banheiro e no depósito. Quando
avisaram lá em casa, papai me chamou de estranha. Eu realmente era
estranha, mas não queria que ele repetisse. E ele repetiu muito. Todos os
dias. Repetiu tanto que cobri os espelhos do meu quarto.
— Filho da puta!
— Não xingue minha vozinha!
— Shh, desculpa. — Detive a mão que empurrou meu peito e voltei a
esquentá-la. — Continue, por favor.
— Um dia comi uma torta de chocolate inteira e passei mal —
soluçou e liberou um suspiro cansado —, tive medo do papai descontar na
minha mãe, porque eles sempre brigaram por minha causa, então coloquei
meus dedos na garganta e a torta foi jogada para fora. Chorei de felicidade e
na minha cabeça aquilo virou solução para tudo. Minha garganta doía, meu
esôfago queimava, mas me livrava da comida antes mesmo de ser absorvida
pelo organismo. — Moveu as mãos que estavam comigo e ergueu os
punhos cerrados. — Se você olhar direito...
— O quê? — Fixei no pulso e não vi nada ali.
— Aqui. — Ela passou o dedo pelas articulações da segunda mão,
então notei relevos finos e mais branco do que sua cor natural.
— São cicatrizes? — Tentei parecer delicado, mas não sei se
consegui.
Alicia não olhou para mim, mas moveu o rosto em confirmação e
continuou:
— O TDC[1] trouxe a bulimia, mas já não era apenas do excesso de
comida que eu precisava me livrar. — Seus dentes afundaram no lábio
inferior com tanta pressão que um friso de sangue escorreu por lá.
— Não faz isso, coração... — Levei meu polegar para o local e
acariciei em uma tentativa de fazê-la desistir da agressão. Desistiu. —
Isso... — Puxei a camiseta para fora do meu pescoço e limpei o sangue de
sua boca.
— Estranha, gorda e comilona... A compulsão seguida de alívio me
absorveu, Felipe. As séries excessivas de exercícios que eu fazia escondido
não resolvia meu problema. Minha cabeça estava doente, meus olhos viam
tudo distorcido e isso me deixava angustiada, sufocada e sem fôlego... Eu
precisava tirar a angústia de mim. — O olhar de Alicia se tornou vidrado no
nada. — Comecei com pequenos cortes abaixo das unhas. Era uma troca.
Dor psíquica pela física. Durava pouco, mas o alívio vinha imediatamente.
A angústia realmente escapava dessa forma. — Ela abaixou a cabeça. —
Mais tarde precisei encontrar outras maneiras de me machucar...
— Tudo bem, já chega. — Engoli o nó angustiante e envolvi as partes
de seu corpo que estavam fora do cobertor. — Seu pai era um merda. Mas e
sua mãe, ela cuidou de você?
— Ela me levou na psicóloga aos cinco anos e sempre cuidou de
mim. Meu pai começou a bater nela por minha causa. — Alicia deixou
escapar um soluço seco.
— Vem aqui. — Consegui colocá-la no meu colo e envolvê-la como
uma criança.
Apesar de sua amizade possessiva, era assim que eu a enxergava no
passado: uma criança desprotegida e exposta ao bullying.
No dia em que ela decidiu me beijar e despertou a libido em meu
corpo pela primeira vez, a imagem que eu tinha dela deixou de ser ingênua
e entendi que não precisava mais de tanta proteção.
Um grande erro.
— Beija minha testa — ela murmurou em um tom choroso e não tive
a intenção de negar.
Questionável em comparação com a vida intensa que levava, Alicia
estava sempre me pedindo para beijar sua testa.
— Pronto — sussurrei, repetindo aquela carícia inocente três vezes.
— Obrigada.
Olhos lindos, matizados de jade e raiados de lágrimas, permaneceram
fixos nos meus com uma intensidade anormal, como se ela me
superestimasse e esperasse tudo de mim.
— Vou colocar você para dormir. Você quer?
— Depois vai beijar minha testa de novo? — perguntou com os olhos
fechados.
— Vou.
— E vai ser o pai da minha filhinha? — sussurrou suavemente, sob a
umidade de sua língua.
— Tente dormir, Alicia. — Levantei-me com o pequeno peso em
meus braços, beijei entre seus olhos e ouvi um suspiro.
Como um bom defensor, não seria capaz de fazer nada antes de
estudar seu caso.
Tentei pensar como um profissional. Dessa forma, era possível manter
o equilíbrio e dissipar o desejo de não ter que deixá-la ir, de querer protegê-
la como se fosse minha nova prioridade.
Coloquei Alicia na cama e seus olhos cansados não resistiram ao
conforto do colchão, então acariciei seus cabelos ruivos, sentei-me no chão
e observei seu sono se aprofundar.
Segura. Era assim que ela sempre estaria comigo.
A campainha tocou insistentemente e levantei rápido para não acordar
Alicia.
Pelo escândalo, esperei encontrar meu avô, mas dei de cara com a
mãe e o irmão mais novo de Alicia.
— Onde está minha filha? — Samanta perguntou alterada e coloquei
as duas mãos na guarnição da porta.
— Qual é cara? — O irmão de Alicia empurrou meu peito e foi
empurrado de volta.
— Ela está descansando e ninguém vai incomodá-la. — Continuei na
passagem.
— Como é? — Samanta me atacou com tapas, forçando-me a
desbloquear a porta. — O que fez com minha filha?
— Ela está bem e segura! — Me esquivei, mas a mulher continuou
me atacando — No último quarto do corredor, caramba!
Samanta me fitou do peito nu aos pés descalços, então foi assim,
chamando o nome da filha.
— Desde quando ela passa a tarde no seu apartamento? — perguntou
o garoto tatuado, estendendo a mão, os dedos cheios de anéis. — Heitor.
— Nunca aconteceu. — Apertei a mão dele e recuei, esfregando o
lugar em meu ombro atingido pelas bofetadas. — Até mais cedo ela me via
como um inimigo.
— Como ela veio parar aqui?
— Apareceu no meu trabalho e me pediu em casamento... — Soltei
uma lufada de ar.
— Porra, agora ela pegou pesado.
— Sua irmã quer adotar uma bebê do orfanato e está procurando um
pai. — Sentei-me no outro sofá. — Ela não estava bem. Tive que trazê-la
aqui para descansar um pouco e desabafar.
Heitor ergueu uma das sobrancelhas.
— Desabafar? Coisas do passado? — indagou e demonstrou muito
interesse na resposta.
— Sim.
— Tudo?
— Realmente espero que seja tudo. Não consigo imaginá-la
suportando além.
— Mas então... Ela confia muito em você.
Soltei uma risada irritada.
— Nada. Foi desespero.
— O desespero a faz buscar alívio, seguido de segurança. Então você
se encaixa em um desses. — O garoto estreitou os olhos e logo entendi
para onde seu raciocínio estava indo. — É bom que tenha sido respeitoso.
Pode não parecer, mas minha irmã é uma mocinha pura.
— Nunca transei com sua irmã e a última vez que rolou um beijo foi
há dois meses. Um erro. Eu tinha namorada na época.
— E hoje, está solteiro, como é?
— Sua irmã precisa da família, Heitor. Apenas cuide dela. Minha vida
não está em pauta.
— Não basta receber ajuda, ela precisa estar disposta a chegar ao
objetivo. Esse é o problema da minha irmã, Alicia não tem um... Propósito
na vida... — hesitou por alguns segundos —, então é isso? Caramba, a
garotinha do orfanato. — Puxou os cabelos e liberou um sorriso assustado.
— Como não percebi antes? Alicia não para de falar da menina.
— Será que ela não vai desistir?
— Não vai. — Foi até a porta de vidro da varanda e emendou outro
assunto: — Precisa colocar uma tela na área.
— Sou o primeiro morador. A equipe vem fazer os últimos reparos na
semana.
— É um belo apartamento. — Abriu e testou as portas no trilho.
— Meu tio fez o projeto e cuidou de tudo. Só vou escolher a
mobília... — expliquei sem dar muita importância para o assunto.
— Duzentos mil?
— O quê?
— Duzentos e dez e não se fala mais nisso. Posso incluir um ano de
reparos eletrônicos e um par de alianças de ouro.
— Está tentando me subornar?
— Suborno é uma palavra muito forte. — Levantou o indicador e
veio na minha direção. — Dote. Isso. Dote é uma parada séria e está em
algum lugar das escrituras. Alicia tem um dote.
— Não é assim que você vai ajudar sua irmã, Heitor.
— Veja só, querido cunhado... — Sentou-se ao meu lado e abraçou
meu ombro, fazendo-me levantar imediatamente.
— Minha ex-namorada está em tratamento para ter um filho meu, e
foda-se, esse não é o único motivo.
— Filho de outra? — Meditou e raspou os dedos na barba. — É
complicado então. Pode não parecer, mas minha irmã é levemente
narcisista. Nunca aceitaria isso.
— Levemente?
— Mas não posso ignorar esse momento. Minha irmã encontrou um
propósito e precisa de incentivo. Meus amigos são fãs da ruiva, vão até
brigar pela vaga de papai. — Esfregou uma mão na outra, sorrindo,
deixando-me indignado.
— Acha mesmo que vou deixar Alicia se casar com um desgraçado
que só quer se aproveitar do corpo dela? Quer ajudar sua irmã ou piorar a
situação?
— Não sei como é seu círculo de amizades, mas o meu só tem nerds
de bom coração. Um deles, Vinícius, é até virgem. Alicia tirou o BV dele e
o cara se apegou. Queria namorar sério e deu um anel de família. Amor
platônico, sabe como é?
— Amor platônico é o caralho!

— Acorde, sem-vergonha. — Ouvi a voz doce e ligeiramente irritada,


mas não abri os olhos.
— Felipe me colocou no colo, mãe... — Rolei manhosa na cama
enorme e gemi quando detectei um incômodo no estômago.
— Enquanto você brincava de montaria com o garanhão dos olhos
azuis, eu estava brigando com a família Moedeiros para dar conta de você.
— Não montei nele, ele me colocou no colo — murmurei de olhos
fechados e apertei a mão na barriga, buscando um pouco de alívio.
— Usaram proteção? Urinou?
— Pare de fantasiar histórias, mãe. Felipe não sente atração por mim.
— Arfei ressentida. — Ele só foi gentil, me ouviu e beijou a minha testa.
— Testa? Testa de cima?
— Sim, mãe...
— Então ele não é mais um cretino? — Mamãe se sentou na cama e
fiscalizou os meus braços.
— Bem, isso ele é. Um cretino quebrador de promessas. — Aspirei o
cheiro dele que continuava impregnado em mim. — Mas vai me ajudar sem
querer nada em troca e estou disposta a ser uma esposa exemplar.
— Vou remarcar suas consultas na psicóloga. Sabia que daria nisso.
Mente confusa, alucinações... — Abriu minhas pálpebras. — Pupila
dilatada...
— Ele ficou sabendo das minhas fraquezas e não deu as costas como
costumava fazer — expliquei, sentando e limpando a névoa úmida de meus
olhos.
— O que exatamente conversaram? — mamãe perguntou naquele
tom sensível que ela usava sempre que me encontrava vulnerável.
— Dos distúrbios alimentares e das circunstâncias que me levaram a
isso.
— Filha, isso é bom. — Recebi um beijo na bochecha. — Lembra
quando a psicóloga disse que em algum momento você confiaria em outra
pessoa?
— Sim.
— Você acabou de se abrir. Se isso aconteceu, é porque o sentimento
importante renasceu no seu coração. Você ainda confia nele, né, filha?
Baixei o rosto para esconder qualquer sinal impulsivo de ilusão.
Felipe foi gentil como antes, mas não era bom esperar mais do que eu
merecia. Mais do que ele podia me oferecer.
— Na verdade, o sentimento nasceu agora. E é mais forte do que
qualquer outro que já experimentei. Foi isso que me levou a entrar no carro
e ir atrás dele.
— Mas filha, ele tem uma namorada.
— Não mais — falei bruscamente, e mamãe deu um sobressalto no
colchão. — Ele está solteiro. Vai casar comigo e ser um bom pai para minha
filhinha.
— O... O quê? — Mamãe segurou firme no meu queixo.
— Vou adotar uma bebezinha do orfanato e preciso estabelecer uma
base familiar para recebê-la.
— Alicia, não é assim...
— Felipe não vai me bater na frente dela e nem escondido. Ele não
faz essas coisas.
— Filha... — Mamãe acariciou meu rosto.
— Ela é frágil e vou protegê-la de todos os homens do mundo. Vou
deixar você descansar também. Cuidarei da minha própria filha e não terei
tempo para pensar em coisas ruins. Vou ficar longe de tudo.
— Oh, meu amor. — Mamãe acarinhou minha bochecha. — Criar
uma filha não é a mesma coisa que brincar com uma boneca. A
responsabilidade é enorme. A preocupação é ainda maior.
— Sou especial quando estou com ela, quando sinto o cheiro dela. Se
saio do orfanato, sinto tanta saudade que meu peito dói. Ela não pode ficar
no orfanato até os dezoito anos e não vou deixar ninguém a tirar de mim
agora. Felipe vai me ajudar. Temos nossas diferenças, mas não importa.
Será uma agradável solidão conjugal. Tudo pela Anna Flor.
Mamãe secou as lágrimas que surgiram de seus olhos castanhos e
levantou da cama.
— Vista suas roupas e vamos para casa. Vou conversar com o Naldo e
ver a possibilidade de adotar a bebê. Por você e seus irmãos, eu faço tudo.
— Por favor, me deixa ser a mãe dela... — implorei e minha mãe
cobriu o rosto com a mão, chorando e buscando controle. — Anninha é
muito apegada a mim. Todos no orfanato sabem sobre nossa conexão.
— Adoção é um processo demorado, filha...
— Sim, mas a família do Lipe tem muita influência jurídica e conhece
as pessoas certas. Sem falar que ele pode mexer os pauzinhos para resolver
o processo mais rápido.
— Vou conversar com o Naldo. Se tudo der certo, a bebê vai ser bem
recebida lá em casa, como sua irmã.
— Não, mãe! Já tenho uma irmã. Você vai adotar a Milena do
orfanato.
— O quê?
— Também vou falar com o seu Eduardo. Ele é um bom homem e
tem muito dinheiro. Pode ficar com algumas.
— Alicia, não é assim que as coisas funcionam. Levanta. Vamos para
casa. Você precisa descansar e tomar seus remédios.
Ouvi batidas na porta e percebi que Felipe estava parado naquele
lugar.
Droga, ele deveria ter colocado uma camisa.

— Samanta, espere na sala de estar, por favor. Devolvo sua filha em


dois minutos.
A mãe olhou para a filha, que assentiu, então esperei que ela saísse do
quarto e me aproximei da cama, onde uma ruiva de aparência inocente e
bochechas coradas segurava um sorriso contido nos lábios.
Inacreditável.
Não sabia se fui eu quem a viu assim depois da nossa conversa, ou se
ela estava tentando me persuadir.
— Vai ficar aí só me olhando? — indagou com os olhos baixos e
cruzei os braços para analisar o quão longe ela iria com aquela imagem,
mas logo flagrei a parte inferior de sua calcinha, perdi o raciocínio e
pressionei meus dedos nos olhos.
— Sua pele está menos vermelha. — Pigarreei, puxei o cobertor e
joguei sobre suas pernas.
— Prometo que nunca mais vou arruinar sua vida, Lipe. E se eu não
posso, ninguém pode.
Ignorei a frase problemática e sentei-me na frente dela. Precisava
convencê-la a desistir daquela loucura. Eu nunca desistiria dos meus
projetos para embarcar em sua história.
— Alicia, de hoje em diante não me veja mais como inimigo...
— Não vou. Prometo.
— Então me escute e pense em tudo que vou explicar.
Seu sorriso murchou instantaneamente.
— Não vai aceitar, né?
— Você não vai se casar com ninguém nessas circunstâncias, Alicia.
Ela abaixou a cabeça.
— Obrigada por me ouvir... — Me apalpou até encontrar minha
barba. — Você está perdendo a oportunidade de ser pai de uma criança
linda, forte e amável, mas tudo bem. Não tenho o direito de exigir nada.
Ajoelhou sobre o colchão, fechou os braços em volta do meu pescoço
e beijou meus cabelos.
Traguei a saliva.
Criatura astuta do caramba.
Agarrei a cintura fina e ganhei alguns centímetros de distância.
— Tá bom, Alicia.
— Você foi carinhoso comigo, só estou retribuindo. — Me sacudiu,
fazendo com que meu rosto se encaixasse no vale de seus seios.
— Senta, Alicia.
— Agora não, tem visita na sala. — Mordeu o lóbulo da minha
orelha.
— Inferno! Senta logo, garota!
— Está bem.
Ela sentou de vez. No meu colo. E deu uma rebolada certeira. Dessas
que fazem o pau chorar precocemente.
— Caralho! — Joguei a garota sobre a cama e levantei, ficando de
costas, tentando perder o engasgo. — Nunca. Mais. Tente. Fazer. Isso —
ordenei pausadamente, perdido no efeito dos quadris enganosamente
sensíveis.
— Perdãozinho?
— Não seja sonsa. — Arrastei as mãos pelos cabelos, suspirando
fundo. — Você mesma se coloca em perigo. Como pretende educar uma
menina assim?
— Estou desesperada, Felipe. — Fungou em um início de choro. —
Anninha nunca será como eu. Nunca.
— Levanta os olhos quando estiver falando comigo.
— Você está de costas, qual a diferença?
— Estou porque você me provocou.
— Provoquei? — Ouvi quando pulou da cama e desci as mãos, na
tentativa de esconder a projeção na minha calça. — Você disse que não
sentia atração por mim... — Sorrindo, tentou puxar minhas mãos.
— Para de dar uma de doida. — Segurei seu rosto.
— Você é um... Chato! — Ela empurrou meu peito, os olhos foram
direto para meu pau e tive que segurar seu rosto outra vez.
— Você não é mais uma adolescente, então pare com isso.
— Chato, conservador e feio.
Suas narinas dilataram e tudo que fiz foi controlar uma risada
repentina, pois sempre que ela falava “feio”, fazia um beicinho emproado e
me dava um olhar ganancioso.
— Depois de tudo que me disse esta tarde, só quero cuidar de você.
Mas controle-se, porque não sou de ferro e não é com sexo que vai me
convencer.
— Por isso só você pode ser o pai da Anninha, Felipe — ela disse, o
rosto tenso e os lábios já tremendo. — Você nunca se aproveitou de mim
quando teve oportunidade e isso é suficiente para confiar a bebê em suas
mãos — completou, trazendo um nó angustiante à minha garganta. — Não
me deixe casar com outro homem. Por favor.
— Você realmente não vai esquecer essa ideia, né?
— Minha filha não é uma ideia, é uma decisão, e nunca estive tão
certa na minha vida — falou com a voz embargada.
— Você não tem estrutura para ser mãe, Alicia.
— Estou aprendendo. Por favor, acredite em mim.
— A menina é órfã? — Entreguei os pontos, pois já não aguentava
vê-la implorando.
Os olhos de Alicia se encheram de esperança e ver aquilo me deu uma
paz do caramba.
— Ela foi deixada em um lixão e ninguém sabe de onde ela veio.
— É surpreendente não ter sido adotada. Recém-nascidos são
preferidos nas linhas de adoção.
— Ela tem Down, Lipe. Por isso só agora apareceu esse casal. E há
mais dois bebês lá. Acho que ninguém adotou porque um é obeso e o outro
oriental. Preciso encontrar mais dois bons lares para eles. São diferentes e
crianças diferentes estão sempre sofrendo nas mãos de pessoas maliciosas.
Quanto mais Alicia falava, mais eu queria mantê-la por perto.
Deslizei minha mão e descansei em seu cabelo, então ela se calou e
suspirou de alívio.
— Se os pais biológicos da criança são desconhecidos, não é
necessário ação prévia de destituição familiar, isso vai facilitar o processo
de adoção. Preciso saber os passos desse casal e tentar encaixar você na fila.
Não pense que será tudo fácil.
— Você vai conseguir. — Abraçou meu corpo e tive que deixá-la
deitar o rosto em meu peito. — Obrigada, príncipe.
— Vou te ajudar, mas minha palavra com Mariana permanece.
— Não!
— Sim. Só não estamos juntos porque ela não quer, mas concordamos
em seguir o tratamento como pais amigos. Ser mãe é o sonho dela, assim
como é o seu agora. Me comprometi primeiro e terei um filho biológico
com ela.
— Não, aceito.
— Você decide.
— Odeio você outra vez, Felipe. — Enfiou o punho na minha costela.
— Quero quartos separados.
— E você achou que seria diferente? — Tentei me afastar, mas ela
não me soltou. — Você vem para este apartamento com a menina e fico na
casa dos meus avós até conseguir um novo apartamento.
— Vai fazer um contrato cheio de regras também?
— O último casamento de contrato na minha família já dura mais de
vinte anos.
— Eu nunca ficaria vinte anos sem transar.
— Porra, você só pensa nisso, caramba?
— O que contar para mim vai contar para você! Não pense que vai
ficar solto.
— Não venha com ordens. Você que me procurou e além da bebê não
estou ganhando nada aqui.
— Não vai desfilar com outras pela cidade e me ridicularizar como
fez esse tempo todo.
— Vai colocar as unhas de fora em menos de um minuto?
— Desculpa. — Me abraçou com mais força. — Basta ser um bom
pai.
— Casamento civil com duração de um ano e regime de separação
total dos bens. O prazo do divórcio será minha palavra contra a sua ou peço
o litigioso.
— Que ódio!
— Resmungou o que aí?
— Nada! Aceito tudo.
— Depois do divórcio, continuo cumprindo todas as obrigações e
deveres de pai e a menina será minha única responsabilidade. Deixo o
apartamento em seu nome. Nada mais do que isso.
— Não preciso do seu dinheiro. — Esfregou o nariz no peito e se
afastou, deixando uma lambança de secreção ali.
— Merda, Alicia! Para de ser infantil com assunto sério. É um ano de
nossas vidas.
— Tenha quantos filhos quiser e banque quantas mulheres quiser! —
Sentou na cama e deu de ombros. — Eu não ligo.
— Outra coisa, você vai se esforçar para sair dessa situação.
— Não tenho recaídas há dois meses.
— Quero relatórios médicos.
— Vou voltar para a terapia. Pela Anninha — afirmou, toda raivosa.
— Não quero ouvir seu nome na boca de outros homens, então
sossegue esse ano e apenas aproveite a maternidade.
— Grrr! — Me mostrou os dentes e depois saiu da cama com a mão
na barriga.
— Quero ver a menina. Quando vai visitar o... O que foi, Alicia?
— Estou... Bem... Blargh! — Correu para o banheiro, já sujando o
piso de vômito.
— Samanta! Vem aqui!
Sentada no sofá ao meu lado, Mari continuou calada. Estava assim
desde que contei sobre a decisão de me casar e adotar um bebê com Alicia.
— É tão surreal e forçado que não posso acreditar que você caiu
nessa. — Ela quebrou o silêncio, levantou do sofá e meu olhar a seguiu.
— Éramos amigos na infância... — comecei explicar, mas parei
quando Mariana riu de desgosto.
Apenas abaixei a cabeça e me senti um homem de merda. Primeiro a
traição, agora isso. Nenhuma explicação pouparia sua decepção.
— Você sempre foi louco por aquela moleca, Felipe.
— Não. — Balancei minha cabeça.
— Sim. E pare de fingir que está sofrendo. Você estava apenas
esperando o primeiro estalar de dedos para correr como um cachorrinho
atrás dela.
— Porra, Mari! Passei aqui, porque achei certo avisar, mas há dois
meses você nem me olha na cara, a não ser que eu fale sobre o
procedimento.
— Ah, você queria chamego depois de agarrar ninfetas nos muros da
cidade? — ela questionou, batendo as mãos nas coxas.
— Você tem toda razão, Mariana. — Me levantei do sofá. —
Conversamos depois. Boa noite. — Passei por ela e caminhei em direção à
porta.
— Você vai me deixar na mão, certo? — perguntou quando alcancei a
fechadura.
— Você ainda quer que eu seja o pai de seu filho?
— Você pediu permissão para essa menina problemática? Eu nem me
lembro do nome dela.
Soltei uma lufada de ar, esgotado demais para continuar qualquer
assunto.
— Alicia não é problemática.
— Ah, não é mais? Você mesmo só a chamava assim.
— Não chamo mais. Ela me confidenciou assuntos sérios hoje. Isso é
exatamente o que me levou a ajudá-la. — Abri a porta. — Pode me
amaldiçoar à vontade. Eu mereço.
— Felipe — Mari chamou e me virei para ela. — Já estou
acostumada com a ideia de ter o pai do meu filho presente. — Ela alisou o
abdômen, como se houvesse um bebê ali. Foi o suficiente para eu voltar. —
Mas agora... não quero vê-lo sofrer com sua ausência.
— Já esclareci a situação para Alicia. Ela não vai se envolver.
— Ela foi e continuará sendo uma fonte de discórdia. — Mariana
passou a ponta dos dedos nos olhos.
— Mari, seja sincera. Se não fosse isso, você me perdoaria e aceitaria
como seu homem novamente?
Ela negou com o rosto.
— Meu coração continuaria dizendo: não. — Ela riu chorosa — Mas
no futuro, com nosso filho grandinho, quem sabe...
Beijei sobre os olhos dela.
Amava sua companhia e o nosso sexo quente, mas primeiro vinha a
amizade madura e a cumplicidade saudável que desenvolvemos nos últimos
dois anos. Eu não sabia como seria minha vida depois da turbulência que
passei nas últimas cinco horas, então era melhor não fazer mais promessas.
— Preciso ir. Vou conversar com meus avós e descansar. Estou
exausto.
— Doutor Olavo não vai aceitar isso tão fácil.
— Não vai, mas já dei minha palavra. Ele não pode fazer nada.
— Essa foi uma das suas qualidades que me encantou. Uma pena que
ser decidido não anula o fato de que você me traiu. — Afastou minhas
mãos. — Vai resolver seus problemas. Boa sorte.
— Volto para conversar melhor com você.
— O procedimento é em duas semanas. Só não me deixa na mão.
— Não vou deixar. — Beijei os dois lados de seu rosto lindo e
caminhei na direção da porta.

— Vamos para o escritório. — Foi a primeira coisa que falei quando


entrei na sala e vi que o tio Edu e meus avós já estavam me esperando.
Meus pais que moravam no Canadá também estariam na reunião, através de
videochamada.
Minha cabeça estava a ponto de explodir, mas eu precisava resolver
minha vida antes de tomar algum analgésico e me jogar na cama.
Fui ao escritório, liguei o computador e procurei o contato on-line.
— Depois da irresponsabilidade de hoje, suponho que vai pedir
demissão. — Meu avô liberou um tom hostil ao entrar no escritório.
— Não posso nem sonhar com essa palavra agora, seu Olavo. Até
sugiro que o senhor me dê um aumento.
— Mas é muito desaforo — meu velho resmungou e vó Suzi o calou
com um chiado.
— Sentem-se. — Virei a tela do computador para os três quando a
imagem dos meus pais apareceu do outro lado do monitor.
— Você realmente sequestrou a magrelinha? — perguntou o tio Edu.
— Samanta ligou lá em casa e ameaçou acionar o jornal da Record TV se
não disséssemos o endereço do seu apartamento.
— O que aconteceu, meu filho? — vó Suzi perguntou, seus olhos
cheios de preocupação.
— Sente-se um minuto, vó. — Continuei manipulando o aplicativo.
— Vocês estão me ouvindo? — indaguei aos meus pais.
— Sim. Me deixou curiosa, filho — minha linda mãe falou do outro
lado da tela.
— Como está sua saúde, Eduardo? — meu pai perguntou.
— Só não fiz quíntuplos na licença, porque Maria Fernanda usa DIU
— respondeu meu tio, soltando aquele sorriso presunçoso que já fazia parte
dele.
— Pronto! — Aumentei a tela de transferência. — Marquei a reunião
porque tenho um anúncio importante a fazer.
— Só espero que não seja desgosto — resmungou meu avô.
— Vou deixar claro que, independentemente da opinião de vocês, já
dei minha palavra. Vou me casar em quarenta dias. E não é com a Mariana
— revelei e um burburinho tomou conta do lugar.
— Olha, que sacana... — tio Edu se manifestou, mas pareceu não
acreditar.
— O que aconteceu com a Mariana, filho? — minha mãe perguntou.
— Pensei que vocês voltariam.
— Não sei como vamos ficar, mãe. Mas o casamento é apenas um
acordo entre mim e uma amiga de infância. Ela precisa de ajuda para adotar
uma criança. — Expulsei uma lufada de ar e apertei meus olhos. A dor de
cabeça estava me matando. — Vou casar com a Alicia, dos Álvares
Azevedo. Você não deve se lembrar dela.
— É a filha do Junior que tentou me matar. Foi ela quem passou os
piolhos para o Felipe — o fofoqueiro do tio Edu fez questão de lembrar
dessa maneira.
Olhei para meu avô e o encontrei mais sério do que ele costumava ser
durante uma negociação. Vó Suzi levantou e segurou a minha mão direita e
meus pais se aproximaram da tela, ainda sem acreditar.
— Vamos nos casar e adotar uma criança que ela tem como filha —
reafirmei. — E vou ter outro bebê com a Mari.
— Isso só pode ser uma piada! — Meu avô deu uma bofetada na
mesa. — Seu neto está abrindo mão do futuro, Suzane!
— Deixa o menino explicar, Olavo. — Vó Suzi tentou contê-lo.
— Meus dois filhos se afastaram da profissão! Uma neta se formou
em direito e foi catar gatos nas ruas do Pará! O pequeno Olavo quer casar
aos sete anos e este, que pensei que seria o futuro de tudo o que construí,
quer colocar dois filhos nas costas antes de iniciar o mestrado. Suzane,
ligue para a funerária. De hoje eu não passo.
— Calma, meu marido. Olhe seu coração. — Vó Suzi continuou
tentando contê-lo.
— Vou vender tudo e comprar um barco! — meu velho continuou
gritando. — Vou viver meus últimos dias pescando e comendo peixe-frito.
Construir legado para quem?
— Pai, seu neto está apaixonado. Olha os olhinhos dele brilhando. —
Tio Edu botou fogo e minha mandíbula contraiu.
— A culpa disso é toda sua! — Vô Olavo apontou para a minha mãe
na tela. — Se ele tivesse os pais por perto, não seria assim, desesperado
para ser pai antes do tempo.
— Tudo o que tenho feito é estudar e trabalhar, pai. Vou ao Brasil
sempre que posso, durmo e acordo pensando no meu filho... — Minha mãe
começou a chorar e foi amparada por meu pai.
— Carência! Esse menino está carente da presença dos pais!
— Vovô! — gritei e ganhei a atenção que eu precisava. — A mãe e o
pai estão trabalhando para encontrar uma cura importante que beneficiará
muitas pessoas. Estou orgulhoso deles por isso. Que drama é esse, caramba?
O senhor não precisa entender, apenas aceite!
— Serão nossos bisnetinhos, Olavo. Os primeiros. — Minha avó
beijou a testa do marido.
— Ele não está pronto para isso, Suzane! — vô Olavo retrucou.
— Isso é tudo que eu tinha a dizer. Agora vou tomar banho e comer,
porque preciso resolver mais uma situação hoje. — Caminhei até a porta.
— Mãe, pai, ligo para vocês antes da meia-noite. Você vem comigo tio. Vou
devolver o carro da ruiva e preciso de uma carona na volta. — Saí da sala.
— Felipe! — meu avô gritou e virei para pegar sua figura zangada de
pijama de bolinhas na porta do escritório. — Devido à sua
irresponsabilidade hoje, você está suspenso por três dias e vou descontar
seis no final do mês. O tratamento é o mesmo para todos os meus
funcionários.
Porra!
— Tudo bem. Só não me demita. — Subi os degraus da escada. —
Vou ter dois filhos, não tenho condições de ficar desempregado e nem a
intenção de procurar a concorrência.
— É uma ameaça, Felipe? — o velho bradou lá debaixo. — Felipe!
Saí do apartamento de Felipe nos braços do meu irmão, mas depois de
duas horas de sono e da medicação certa, já me sentia melhor.
Quando acordei, minha mãe tentou me dissuadir do casamento e da
adoção, mas relutei. O que a fez reagendar minhas sessões de psicoterapia
com a doutora Helena.
Entendi seu medo, afinal, estive tão perturbada com problemas de
saúde e alívios degradantes que ser razoável soava estranho.
Mas ainda a deixaria muito orgulhosa e provaria que meu amor pela
Anninha era real.
Ainda na cama, fiz planos para o futuro. De olhos fechados, pude ver
os cômodos do apartamento mobiliado. Eu na cozinha fazendo aviõezinhos
de comida para a Anninha, enquanto a pipoca estourava no micro-ondas, o
Teo dormindo no tapete e uma série pausada na TV do quarto.
Tudo tão novo e excitante. Antes eu não tinha motivos para acreditar
no futuro assim. Quando saí do banho, recebi uma mensagem de Julia com
boas notícias. O primo dela me contratou para tocar na cerimônia e festa de
casamento.
Ofereceu 500 reais e nem mesmo contraditei. Não tinha um centavo
no banco e o pão duro do Felipe já havia deixado claro que não me daria
dinheiro.
Meus olhos sorriram no espelho da penteadeira.
Eu não poderia reclamar do Felipe. Ele aceitou ser tudo para a
Anninha sem pedir nada em troca.
— Alicia. — Heitor invadiu meu quarto, me fazendo segurar a escova
de cabelo em posição de ataque.
— Quer me matar do coração?
— Vaso ruim não quebra. — Ele se jogou na minha cama e colocou
os braços atrás do pescoço. — E esse sorriso bobo aí? Está toda
apaixonadinha, não é?
— Só estava pensando na Anninha. — Levantei do banco e borrifei
óleo hidratante no cabelo.
— Irmãzinha... — Heitor se sentou na cama. — Vem aqui. — Deu
duas batidas no colchão e me sentei ali para escovar meus cabelos. — Você
tem certeza do que está fazendo? É uma decisão importante, Alicia.
— Não posso e não quero ficar longe da Anninha, Heitor. Ela precisa
de mim. Vou cuidar dela e proteger.
— Mas e o cara? Você confia tanto nele assim?
— Já fomos amigos e ele cuidava de mim. — Abaixei meus olhos.
— Ah, não, você corou? — Heitor apertou uma das minhas
bochechas e sacudiu de um lado a outro. — Onde estava escondida essa
coisinha meiga que só apareceu agora?
— Para de palhaçada, Heitor! — Empurrei o peito dele.
— Você é uma manipuladora nata, Alicia. E está apaixonada.
Senti a pele do meu rosto esquentar.
— Eu só preciso que ele seja um bom pai. — Escovei meu cabelo. —
Felipe tem uma ex-namorada e vai ter um filho dela. Deixou isso bem claro
e não me deu o direito de reclamar.
— Eu duvido que ele resista à beleza dessa pequena ninfa terrorista.
— Heitor segurou no meu queixo. — Essa carinha de brava já conquistou
todos os meus amigos e os rejeitou na mesma medida. Destruidora de
corações de nerds.
— Um bando de adolescente, né, Heitor? Por favor.
— Você está diferente, garota. Pode até não admitir, mas o castigo do
nosso irmão está fazendo isso com você.
— Ele me espancou e... não quero falar do Mimo agora. — Larguei
minhas pantufas e mergulhei minhas pernas no edredom. — Vou tocar em
um casamento no sábado e preciso da sua ajuda para alugar e transportar
um piano de cauda. O da vovó está na estância e certamente precisa de
reparos.
— Sério? — Heitor arqueou uma sobrancelha.
— Preciso de dinheiro e não posso trabalhar com a mamãe no buffet.
Só posso fazer o que sei mesmo com os olhos vendados.
— Vou com você — Heitor disse com convicção e me senti mais
segura para fazer aquilo em público.
— Vou avisar Julia sobre mais um convidado.
— Faça isso. — Beijou meus cabelos. — Agora tenho uma reunião
por videoconferência. Alguns amigos do Japão estão me ajudando com um
novo projeto de aplicativo. Ah, seu noivo está aí e perguntou por você.
— O Felipe aqui em casa? — Calcei as pantufas e corri para o closet.
— Se for se arrumar, não encontrará mais o noivinhooo... — Heitor
cantarolou e saiu do quarto.
— Droga! — Larguei as portas abertas, passei por meu irmão e desci
as escadas correndo.
No jardim vi quando Judite fechou o portão estreito, então acelerei
meus passos naquela direção.
— Judite, foi o meu noivo que saiu?
— Que noivo, menina? Quem saiu foi o parente da sua cunhada, que
trouxe o carro. Venha, você precisa descansar. — Ela segurou em meus
ombros e virou na direção da casa. — Os patrões saíram, mas garanti que
ficaria de olho em você.
— Não sou mais criança, Judite. — Puxei a chave da mão dela, abri o
portão e vi uma caminhonete importada do outro lado da rua. Um veículo
desconhecido.

— Vai quebrar a porta? — Tio Edu resmungou quando me sentei ao


lado dele. — Minha caminhonete não é culpada pelos seus problemas,
sacana.
— Minha cabeça está explodindo, tio, me leva para casa. Para a sua
casa. — Descansei a cabeça no espaldar do estofado.
— Precisa entender que a notícia pegou o velho desprevenido. — Tio
Edu pôs a mão no meu ombro quando deveria estar dirigindo. — Entendo
você. Também não consigo negar um pedido da mulher que amo.
— Não amo Alicia. Preciso até que você me consiga um apartamento
tão bom quanto o outro. Ela vai ficar no meu com a bebê.
— Não me diga que você vai lá molhar o biscoito de vez em quando e
deixar de assumir sua própria esposa?
— Molhar biscoito o quê? Dirige logo esse carro.
— Pegou a responsabilidade, agora vai até o fim, Felipe. Já cometi
esse erro e me custou oito anos longe da minha família.
— É diferente. Você era um puto raparigueiro e minha tia uma santa.
— Me respeita, salafrário, eu te dou uma coça.
— Vai, dirige logo.
Fechei os olhos e recebi cotoveladas na costela.
— Olha lá, ela veio te ver.
Olhei em volta e vi Alicia em frente ao portão, acenando, com
pantufas nos pés, uma espécie de moletom que ia até o meio das coxas e
nada mais.
— Olha como essa menina sai de casa em um dia frio, tio!
— Um absurdo. Alguém precisa reclamar. — Meu tio passou o tronco
sobre mim e empurrou a porta do veículo para que Alicia me visse.
— Eu ainda não sei como a minha tia suporta você.
— Dou tudo o que ela precisa, simples assim. Faça o mesmo pela
magrelinha e será feliz para sempre. Vai!
Saí da caminhonete e respirei fundo. Caminhei em direção à ruiva
sem nenhum entusiasmo. O corpo estava apenas pedindo descanso.
— Você não acha que está muito frio para ficar com as pernas de fora,
Alicia? — perguntei antes mesmo de alcançá-la.
— É que eu estava me preparando para dormir... Espera. — Virou na
direção da casa e foi encostar o portão que não parava de bater.
Meu pescoço caiu no meu ombro e meus olhos seguiram o instinto.
A pequena bunda estava coberta por shorts de malha fina branca,
tecido que dividia e favorecia o formato redondo moldado pelos excessos
de exercícios físicos.
Quando ela se virou, disfarcei e olhei para o muro.
— Como está sua bundi... barriga. Seu estômago, Alicia. Ele
melhorou?
— Sim. Tomei remédio e chá — disse com as mãos unidas na frente
do corpo e um olhar esperançoso.
O vento frio que soprou em seus cabelos trouxe um perfume doce e
ela sorriu um pouco desconfortável, como se fosse inocente demais para
estar na frente de um homem.
Ela precisava parar de fazer aquilo. A Alicia que eu conhecia era uma
mulher perigosa e tão experiente que virava qualquer homem do avesso.
Difícil discernir qual das duas versões seria capaz de me deixar mais
atormentado.
— Seu carro está com duas janelas quebradas. — Abri o zíper da
minha jaqueta, tirei-a do corpo e comecei a amarrá-la em seu quadril. —
Como aconteceu?
— Briguei com o pai adotivo de uma criança.
— O quê? Ele que fez aquilo? — Dei o segundo nó e me afastei, já
preocupado com a nova informação.
— É um cretino, Felipe. Ele bateu na criança e cortou o cabelo. Eu e
uma amiga a salvamos e levamos de volta para o orfanato. Ela está segura
agora.
— Isso foi hoje?
— Sim — respondeu e entendi o gatilho que a levou a procurar por
mim. — Ouvi da mamãe que ele foi preso. Quando a polícia chegou, eles o
pegaram batendo na esposa.
— Não se coloque mais em perigo assim — aconselhei, vendo-a
colocar a mão no quadril e acariciar o tecido da minha jaqueta. — Melhor
você entrar. Está frio aqui fora.
— Quer vir comigo? — perguntou, pegando minha mão. — Mamãe
teve que sair para um jantar de negócios com meu padrasto, mas Heitor está
em casa.
— Estou com dor de cabeça, preciso dormir e esfriar a cabeça.
— Desculpa por isso, Lipe. — Levantou a mão e a descansou no meu
rosto, fazendo-me olhar torto para aquele contato.
— Toda hora penso em você, em tudo o que me disse — revelei e os
olhos dela sorriram.
— Obrigada. — Esfregou o polegar no canto da minha boca. —
Agora mesmo meu irmão me lembrou de uns amigos dele. São pirralhos de
dezoito anos, mas são certinhos e ricos. Eu acabaria recorrendo a um deles
— disse isso sorrindo e afastei sua mão do meu rosto.
— Vá dormir! Amanhã quero ver a bebê. Conheço pessoas
importantes e posso resolver tudo mais rápido. — Me virei e caminhei em
direção à caminhonete.
— É o seu Eduardo? — ela gritou nas minhas costas. — Seu
Eduardo! — Passou correndo por mim.
— Bem-vinda à família. — Ouvi meu tio dizer, e quando abraçou
Alicia tentei entender quando tinha conseguido intimidade.
— Vamos tio. — Puxei a porta do veículo e olhei seriamente para ele.
— Volta para casa Alicia.
— Você poderia, por favor, adotar algumas crianças do orfanato, seu
Eduardo? — A ruiva tagarelou e meu tio finalmente olhou para mim e se
afastou dela. — Se ficar com três, vai ajudar muito. Dois bebês e um
menino de cinco anos.
— Hã... é melhor você entrar agora, filha. Se tiver remédio noturno,
não esqueça de tomar — disse tio Edu, me olhando um pouco assustado. —
Beije o rosto da sua noiva e vamos embora, Felipe.
Ignorei a ordem.
— Onde fica o orfanato, Alicia? — perguntei, um pé já dentro do
carro.
— Na periferia da cidade. Me desbloqueia que te mando o endereço.
— Ela se aproximou, virando a bochecha para mim.
— Então, até amanhã. E coloque uma calça para aquecer essas
pernas. — Entrei no carro e fechei a porta.
Quando me virei, Alicia estava correndo em direção ao portão
enquanto tio Edu movia o rosto de um lado para o outro, desaprovando
minha atitude.
Joana autorizou a entrada de Felipe pelo interfone e, assim que
entramos no primeiro pátio, as crianças o rodearam daquele jeito impulsivo
e carente que abordavam todos os visitantes.
— Sei engraxar sapatos e deixo tudo brilhando.
— Eu sei lavar carros.
— E eu já consigo lavar as roupinhas do papai...
Começaram a se gabar e Felipe, bem-vestido com suas roupas sob
medida e os olhos cheios de preocupação, se inclinou e por alguns minutos
deu atenção a todos.
— Alicia, que coragem, menina. Julia me contou o que vocês fizeram
— disse uma voluntária ao se aproximar de mim.
— Suspeitei daquele homem na primeira vez que ele veio aqui —
comentei com a mulher, e a mão de Felipe pousou na renda que separava
meu cropped da calça jeans. — Onde está Milena? — Prendi a respiração,
dizendo a mim mesma que era apenas um impulso de proteção, que ele faria
isso por qualquer mulher.
— No quarto. Está tão quietinha. Saiu apenas para tomar banho e
comeu pouco no café da manhã — contou a voluntária, dando uma olhada
furtiva em Felipe.
Eu a entendi. Ele realmente ficava apresentável em roupas sociais. E
os olhos, tão azuis quanto o oceano, chamavam muita atenção.
— Julia já chegou? — Alisei a mão de Felipe em volta da minha
cintura.
— Não. Ontem ela saiu daqui tarde. Acompanhou Milena nos exames
e ficou tentando animá-la. Graças a Deus nada mais traumático aconteceu
com essa garota.
— Vou conversar com ela. — Encaixei meus dedos nos de Felipe,
mas ele recuou abruptamente, então sorri sem jeito com a evasão e me
afastei da mulher. — Tenha um bom dia.
Fui para o dormitório feminino com ele ao meu lado.
— São todos órfãos? — perguntou e ignorei. — Alicia, estou falando
com você.
— A maioria. Os outros foram abandonados pelos pais ou salvos de
negligência.
— Vou providenciar uma doação de brinquedos.
— Eles precisam de tudo, principalmente de comida. Joana faz
milagre aqui para que não falte nada.
Cheguei na porta do dormitório e vi Milena deitada no beliche, as
pernas enfiadas no vestido e as mãos entre o travesseiro e o rosto.
Com o coração batendo forte no peito, fiz sinal para que Felipe
ficasse na porta, caminhei até a cama e me agachei na frente dela.
— Minha tia. — A criança se sentou e me abraçou. — Não quero que
papai machuque você e tia Ju.
— Ele não vai. A polícia o levou para a prisão.
— Mamãe disse que ele era legal, só estava nervoso, por isso apertou
e queimou o pescoço dela.
— Shh. Esqueça. Ele não é legal. Homens bons não machucam
crianças e mulheres. — Usei a voz baixa e acariciei seus minúsculos fios de
cabelo.
— Quem é aquele homem bonito, titia? — Milena sussurrou com a
cabeça colada ao meu peito.
— Meu noivo — revelei no mesmo tom.
— O que é um noivo?
— Homens bondosos e protetores.
— E grandes também?
— Isso. Geralmente são grandes assim.
— Então também quero um noivo.
— Shh, você não pode agora. Tem que querer uma mãe e um pai.
— Mas não deu muito certo...
— Vou dividir minha mãe com você, Milena. Você quer?
— A sua mamãe?
— Isso. Ela vem ver você no finalzinho da tarde. Meu padrasto vem
também. Ele é um homem muito bom para ela.
— Então ele é legal?
— Sim, ele é um careca legal.
— Obrigada, titia. — Milena me apertou com mais força.
— Agora levanta e vamos lá fora brincar com os outros.
— Tenho medo que o papai chegue nervoso...
— Aquele homem não é seu pai, Milena. — Segurei o rosto dela. —
Não é seu pai. Repete.
— Não é meu papai.
— Não é. — Coloquei os chinelos em seus pés minúsculos e tirei-a da
cama. — Vamos ver a Anninha. Prometo que não vou soltar sua mão até
que Julia chegue.
Saímos do quarto e fomos para o berçário. Antes mesmo de chegar,
ouvi Anninha chorando, então deixei Felipe para trás e andei rápido,
levando Milena comigo.
Tremendo, passei pela assistente social e peguei meu bebê do colo da
mulher que queria adotá-la.
Aninha estava toda vermelha, as perninhas chutando de estresse.
— Pronto, garotinha. Já estou aqui. — A levantei em meus braços e
descansei sua cabeça contra meu peito. Do jeito que ela gostava de ficar. —
Pronto, meu amor.
Caminhei com ela e cobri sua cabeça com a minha mão. Anna Flor
suspirou, mas continuou soluçando com um rastro de lágrimas.
Cantarolei em seu ouvido e enquanto ela se acalmava, olhei para
Felipe na porta, seus olhos fixaram em mim.
— Olha quem veio te ver, bebê. — Mantive Anna Flor em pé, virei-a
para Felipe e sussurrei: — Nossa filhinha.
Apaguei a imagem de todos lá da minha mente e caminhei até a porta.
Felipe sorriu e, ainda receoso, brincou com os dedos de Anna Flor.
— Ela é tão pequena... — disse, enquanto Anninha tentava enfiar seu
polegar na boca. — Muito linda, Alicia.
— Quer segurá-la? — perguntei, comovida pelo brilho que vi em seus
olhos.
— Posso? — Felipe olhou sobre meu ombro, então percebi a
assistente social perto de mim.
— Claro que você pode. — Coloquei a bebê em seus braços. Mostrei
a ele como segurá-la e deixei uma mão como apoio. — É o papai, meu
amor. Papai veio conhecer você.
Anninha olhou para o rosto de Felipe e soluçou antes de se encostar
em seu peito e esfregar a boquinha no tecido da camisa social.
— Acho que ela está com fome, Alicia.
— Aqui. — A médica me entregou a mamadeira, visivelmente
nervosa com a situação. — Tentei alimentá-la, mas ela recusou o leite.
— Você não beliscou ela? — indaguei, testando a temperatura do leite
e não encontrando nada errado.
— Jamais faria isso — se defendeu.
Tentei ignorar sua voz lamentosa, mas não tive sucesso. Ela estava
aflita e aquilo de alguma maneira quebrou meu coração.
Coloquei o bico da mamadeira na boca de Anna Flor e olhei para a
mulher, para a tristeza que cobria sua face.
— Ela lembra alguém... — Felipe disse e me virei para ele.
— Quem, Felipe? — perguntei apreensiva, olhando em seus olhos
azuis. — Quem parece com nossa filha?
— Não sei, pode ser só impressão — respondeu aéreo, sorrindo para a
bebê.
— Alicia, precisamos conversar. — A assistente social apoiou a mão
no meu ombro.
— Felipe, esta é Elisabete Alencar, que orienta o processo de adoção
aqui no orfanato. Ele é meu noivo. Decidimos adotar Anna Flor — declarei,
firme em meu propósito.
Anna Flor era minha filha. Nasceu do meu coração. E seu lugar era
comigo, sob meus cuidados e a proteção de seu novo pai.
— Segura ela, Alicia. — Felipe me entregou Anninha. — Tenho a
leve impressão de que este não é nosso primeiro contato — disse ele,
olhando para a assistente social.
— Não me lembro de ter visto seu rosto antes — a senhorinha falou
um pouco hesitante.
— Você já ouviu falar no grupo Moedeiros, Elisabete? Não a empresa
de engenharia, o escritório de advocacia.
— Sim. É o mais requisitado de todo o Paraná. Até estive lá alguns
meses atrás quando precisei de serviços específicos — respondeu a
assistente social
— Então é isso. Você é uma de nossas clientes. — Dotado de uma
eloquência absurda, o loiro sorriu e estendeu a mão em cumprimento. —
Felipe Moedeiros. — Apertou a mão da mulher. — Vou precisar de cinco
minutos do seu tempo, Elisabete. Tudo bem?
— Claro, vamos para a sala da diretora — concordou a mulher, e
mantendo uma pose confiante, Felipe colocou a mão nas costas dela e,
juntos, saíram do berçário.
Com Aninha nos braços, fui até a porta e o acompanhei com o olhar,
observando sua bunda definida e retesada na calça de alfaiataria.
— Seu pai é feio, mas não dá para jogar fora né, filhinha? —
comentei e olhei para o lado, pegando a médica com o pescoço esticado e
os olhos fixos no mesmo lugar. — Por acaso você é anestesista?
— Sou. — Ela se recompôs.
— Hmm, entendi. — Olhei para ela de ponta a ponta e vi a mulher
pigarrear. — Qual é o seu nome mesmo?
— Michelle.
— Olha, Michelle, cheguei aqui antes de você. Cuidei da Anna Flor,
amei e até dei o nome dela. Não havia jeito antes, mas agora meu noivo
quer adotá-la comigo. Isso acabou com todas as chances de outra pessoa
tirá-la de mim.
— Se não fosse pelos erros na documentação, já a teríamos levado —
disse ela com tristeza, visivelmente mais vulnerável do que eu naquele dia.
— Não, Michele. Não era para ser. De qualquer maneira ela ficaria
comigo. Vim parar aqui só por isso, para encontrá-la.
— Já tinha perdido a esperança de ser mãe quando decidi adotar um
bebê. — Ela fungou, levantando a cabeça para não chorar. — Tive cinco
abortos espontâneos. No último perdi o útero — revelou e rasgou meu
coração em pequenos pedaços.
— Não sou bebê, mas posso fingir para a mamãe...
— Shh, Milena — interrompi a criança e minhas lágrimas caíram na
roupa da Anninha.
— Mas ela está chorando, titia... — Milena encostou a cabeça na
minha perna.
— Sinto muito, Michelle, mas Anna Flor é minha filha e é um pecado
arrancar uma criança dos braços de uma mãe.
— Eu sei, mas tive que aprender a me conformar. — A mulher
enxugou os olhos e foi amparada pela voluntária que cuidava do berçário.
— Seu marido é um bom homem? — investiguei, enxugando meus
olhos. — Ele já bateu em você? Deixou trancada, xingou ou adoeceu seu
psicológico?
— O... o quê? Que perguntas são essas? Meu marido é o homem mais
justo que conheço — ela respondeu um pouco alterada. — Ele ficou comigo
nos piores momentos da minha vida. Até trocou minhas fraldas quando eu
estava em recuperação.
— Ele não fez mais do que a obrigação — rebati. — Mas já é sinal de
que não é 100% cretino — analisei, olhando para os meninos no tapete de
borracha. — Você não está mentindo para protegê-lo, está?
— Por que você desconfia do meu marido?
— Sou muito desconfiada e tenho motivos para isso... Você já viu
como o João olha para você?
A mulher virou no momento exato em que o bebê miudinho meteu o
tapa no outro de bochechas roliças.
— Ele é lindo e sempre tão nervoso...
— Lindo e carinhoso. O mais carinhoso de todos. Deve estar de cocô.
É isso.
Fechei a boca e Gabriel deu um tapa tão forte no pequeno João, que a
cabeça tombou no tatame de borracha.
— Misericórdia, corre ali, mulher! — exclamei, vendo a voluntária
saltar para separar a briga de bebês.
— Eu sempre quis uma menina — Michelle disse, indo até o tapete e
se levantando com o João no colo.
— Não podemos escolher filhos, Michelle. Eles são enviados, nós
apenas aceitamos. Foi assim com a minha Anninha. Olhe para João, veja
como ele se parece com seu marido?
— Ele é oriental. — Michelle sacudiu o miúdo para acalentá-lo.
— Detalhe bobo.
— O sorriso lembra... um pouco — a voluntária me ajudou.
Michelle era inteligente para desacreditar das nossas palavras, mas
tinha um sonho pulsando em seu peito e seu espírito materno estava
apurado demais para ignorar qualquer sinal de esperança.
Como se refletisse sobre uma nova perspectiva, ela beijou o rostinho
de João e olhou para mim, sorrindo, como uma mulher deveria sempre
estar.
— Ele parou de chorar... — ela disse e o bebê puxou seu cabelo com
força. — Eles amam fazer isso — completou, rindo, beijando a mão do
menino.
— Ele fica nervoso quando está entediado. Brinque com ele. Vou
cuidar da minha vida agora. Venha Milena — chamei a criança e olhei mais
uma vez para Michelle. — Ele e Gabriel são muito unidos. Pense bem e
leve os dois — aconselhei, já saindo do berçário.
Milena e eu ficamos vinte minutos esperando no banquinho de
cimento em frente à sala da diretora.
Felipe saiu de lá sozinho e em silêncio sentou-se sobre os calcanhares
para acariciar os cabelos de Anninha.
— Sim, Lipe, como foi? — indaguei com o coração acelerado.
— Se tudo der certo, nós a adotaremos. Elisabete reconhece o apego
da menina por você — disse ele, hipnotizado pela criança nos meus braços.
Liberei um suspiro aliviado.
— Quando?
— Não vai demorar mais que cento e vinte dias, se corrermos atrás
ainda hoje.
— Tudo isso?
— Estou contando com menos dias, se eu falar com as pessoas certas.
— O que precisamos fazer? — Coloquei a Anninha sentada no meu
colo e aliviei meu braço.
— Vamos ao cartório do juizado da infância e da juventude. Tenho
amigos lá. Depois vamos ao cartório de registro civil. Seus documentos
estão em perfeito estado? Certidão de nascimento e cédula de identidade?
— Sim. Tudo certo. Estão comigo.
— Tem um comprovante de residência original com você?
— Tenho.
— Ótimo! Vamos dar entrada nos papéis de casamento. — Ele largou
a mão da nossa filha e se levantou.
— Já? — Levantei tentando digerir a nova realidade. O coração
parecia querer escapar do meu peito.
— Tem muito caminho pela frente e não podemos adotá-la juntos sem
comprovar nossa união. — Ele segurou a mão de Milena que pulou igual
uma pipoca. — Se despeça dela. O dia vai ser longo e preciso aproveitar a
minha folga de três dias.
— Aí está você, sapequinha. — Julia se aproximou, abotoando a
ponta do casaco e Milena soltou Felipe para recebê-la com um abraço. —
Está melhor, Alicia? — Ela acenou com os olhos, silenciosamente
perguntando quem era Felipe.
— Esse é o meu noivo, Julia. Ele é feio, mas vai assumir minha filha.
Isso que importa.
— Mulher, pelo amor de Deus. — Julia liberou um tom espirituoso e
o descarado sorriu convencido.
— Vocês são... amigas? — Felipe perguntou em um tom incrédulo.
— Julia estava comigo ontem quando tudo aconteceu e desde que
cheguei aqui, passamos por alguns problemas juntas — expliquei.
— Você é enfermeira, trabalha na saúde? — Felipe perguntou.
— Enfermeira graduada e estudante de fisioterapia — respondeu ela.
— Trabalho no hospital pediátrico e sou voluntária em dois dos meus dias
de folga.
— Concursada? — Felipe tornou a perguntar.
— Quem me dera. Contratada e com contrato a vencer.
— Quer ajudar Alicia com Anna Flor em casa? — Lipe propôs e Julia
olhou para mim.
— Vai mesmo adotá-la, Alicia?
— Sim. Meu noivo é fluente nesse negócio de processo e conhece as
pessoas certas — respondi, dando tapinhas no traseiro de fralda da minha
filha. — E você vai me ajudar com a Anninha, porque ainda sei pouco
sobre os exercícios que ela precisa fazer no dia a dia.
— Sinto muito, mas não posso me comprometer. Estou na lista de
espera do último concurso, perto de ser chamada. E gosto da experiência do
hospital.
— Você pode esperar pelo resultado enquanto cuida das minhas
meninas — Felipe disse, enquanto bagunçava os cabelos de um garotinho
que abraçou suas pernas. — Pago o dobro do que você ganha.
— O dobro? — Os olhos de Julia se arregalaram e tive a nítida
impressão de ter dois cifrões saltando para fora. — Quando começo?
— Assim que conseguirmos a custódia da Anninha. — Coloquei meu
bebê em seus braços. — Tchau, filhinha. Mamãe e papai vão correr atrás de
seus documentos agora. — Beijei seu narizinho duas vezes. — Cuide dela
Julia. Qualquer coisa me liga.
Enquanto Felipe se despedia da Anninha, beijei os cabelos de Milena
e cochichei no ouvido dela:
— Vai brincar com os outros e mais tarde pede a Julia que coloque
aquele seu vestido de festa para receber a mamãe.
— Ela sempre traz lanches deliciosos. — Milena sorriu com os
olhinhos brilhando, então correu para o pátio e se envolveu na brincadeira
com os outros.

Saí do orfanato no carro de Felipe e aproveitei para economizar no


táxi.
Fomos ao Juizado de Menores para obter informações e conversar
com alguns de seus amigos. Eu não entendia muito do assunto, mas toda
vez que ele olhava para mim e dizia: "está tudo sob controle", meu coração
se acalmava.
Saindo de lá, fomos ao cartório para protocolar o processo de
casamento e o casal responsável pela fotocopiadora nos ajudou sendo as
testemunhas.
— Você quer um pouco de água? — Lipe perguntou, batendo os
dedos no volante, depois de ter ficado em silêncio por mais de vinte
minutos.
— Estou com fome... — Olhei para ele, quase implorando por um
prato de comida.
— Não sei como está seu estômago e não quero que fique doente de
novo. Melhor comer em casa.
— Então me deixa aqui, vou pegar um táxi e procurar comida.
— Teimosa! — Ele freou o carro abruptamente, foi na contramão e
pegou outra pista.
— A câmera do radar pegou você, senhor, certinho.
— Dane-se. — Foi a última palavra antes que ele engolisse a voz
novamente.
Parou o carro em um quiosque próximo ao rio Itiberê. Quando saiu do
veículo, abri a bolsa e rapidamente renovei a camada de proteção solar nos
meus braços e pescoço.
Sem proteção minha pele ficava vermelha e não queria ser vista mais
vulnerável do que ele já sabia.
— Eles têm salada de frutas — Felipe comentou quando cheguei ao
seu lado e me sentei no banco de pernas altas.
— Estou com fome de comida salgada, Lipe. Talvez um camarão bem
carnudo e suculento. Uma moquequinha de frutos do mar... Você paga,
claro.
— O restaurante da minha família fica perto daqui. Eles oferecem os
melhores pratos da nossa região — comentou o funcionário do quiosque.
— Vamos ficar só com a salada de frutas e a água. — Felipe recebeu
um coco das mãos do rapaz e arrastou-o para o meu lado. — Beba. Isso não
vai te fazer mal.
Respirei fundo e segurei no canudo.
— Você não precisa pisar em ovos o tempo todo.
— Bebe logo essa água, menina — falou impaciente e olhei para o
funcionário do quiosque, que viu aquilo, se virou e foi pegar o outro pedido.
— Não fale comigo como se fosse meu pai — sussurrei entredentes.
— Sou a mãe da sua filha, e não tenho 12 anos.
O menino colocou uma tigela de salada de frutas no balcão. Felipe
pagou a conta e saiu pisando duro.
— Felipe! — chamei, mas ele apenas se sentou em um banco e
acenou para que eu o seguisse.
Sorri cordialmente para o garoto, abracei o coco e a tigela e segui
atrás do ogro que arrumei para ser o pai de minha filha.
— Tá com raiva? — Suguei a água do coco, fazendo barulhos na
sucção.
— Acabamos de dar entrada em um processo de casamento e vamos
adotar uma filha. — Ele riu, sem vestígio de humor. — Como viemos parar
aqui depois de tudo?
— Usei meus poderes de bruxa. — Coloquei o coco ao lado e peguei
a cumbuca de salada de frutas. — Mas fiz um péssimo feitiço. Arranjei um
noivo tão pão duro, que me nega até um prato de comida. — Enchi a boca e
mastiguei com desgosto.
— Não sei nada sobre sua alimentação e não pretendo manchar minha
carreira, tendo envenenado minha noiva de conveniência.
— Conveniência... — resmunguei de boca cheia. — Você disse que é
casamento de verdade! Se for para jogar na minha cara o tempo todo, vou
voltar naquele cartório e pedir o divórcio para casar com outro.
— Você é muito imatura, não consegue sustentar uma conversa sem
brigar.
— Você que me provoca!
— Quando isso? — Se virou para mim. — Esqueceu que você me
atormentou durante anos?
— Você estragou tudo quando quebrou nossa promessa e me deixou
sozinha — declarei, olhando-o nos olhos. — Eu gostava de você. —
Empurrei o indicador no peito dele. — Fui à sua casa no dia do meu
aniversário, apenas para dizer isso, e tudo o que você fez foi me mandar
embora e dizer que amava outra — completei em tom ressentido.
— Você era só uma criança. Coma e pare de falar tolices.
— E você era outro pirralho. Cheirava a colônia infantil e não sabia
usar a língua. Babão! — Virei o rosto, enchi minha boca e larguei a tigela.
— Vamos ter uma filha. Melhor esquecermos de tudo isso.
— Não quero mais saber de você.
— Olha pra mim.
— Não.
— Alicia. — Segurou meu queixo e me fez olhá-lo. — Sujou de leite
em pó... — Esfregou o cantinho da minha boca com o polegar. — Termine
de comer e esqueça o passado.
— Não significou nada para você, mas foi importante para mim. —
Senti uma lágrima solitária escorrer pelo meu rosto e abaixei a cabeça. —
Às vezes preciso voltar naquele dia para desacelerar minha mente.
— Por que esse choro agora? — Mexeu no meu cabelo. — Éramos
crianças. Você não sabia nada sobre sentimentos e eu não tinha senso de
responsabilidade afetiva.
— Não posso esquecer, porque mesmo que a rejeição tenha sido
dolorosa, ofereci tudo por minha própria vontade. Preciso manter memórias
assim aqui comigo.
— Alicia... O que ainda falta me contar? — Afastou meus cabelos do
rosto. — Você tem alguma outra compulsão...?
— Seja mais claro. — Levantei meu rosto e ele respirou fundo.
— Esquece, depois a gente conversa sobre isso.
— Sim, às vezes eu me machuco de outra maneira — me expus com a
cabeça erguida, mantendo uma falsa confiança, quase desmoronando ao ver
lágrimas nadarem nos olhos de Felipe.
— Aquela noite, na boate... Todos os outros dias que fiquei sabendo...
— Ele moveu o rosto negativamente, tirando conclusões. — Não, Alicia.
— Sim.
— Sempre? — indagou e percebi uma veia crescer verticalmente em
sua testa.
— Nunca foi prazer — soltei, seguindo sua linha de raciocínio. —
Não sei o que é isso. Não me permito sentir.
— Por quê? — Segurou meu rosto entre as mãos e respirou com
dificuldade, como se estivesse subindo uma montanha. — Agora preciso
saber tudo.
— É sujo e errado.
— Não precisa ser...
— Uma semana depois do meu décimo quarto aniversário, me
machucaram assim e meu corpo não tem o direito de gostar.
Empurrei a sujeira toda. Felipe entrou em choque e me levantei
quando senti que estava prestes a desmoronar.
Segui na calçada, passei por seu carro e ouvi o bip do alarme sendo
desativado.
Não parei.
Raiva, angústia, nojo e muita vergonha me atingiram ao mesmo
tempo.
Não deveria ter tocado no assunto. Era tarde demais.
— Alicia! — Felipe se aproximou e deu a volta em mim. — Não vou
deixar você ir. — Apontou o dedo na minha cara, visivelmente
desorientado. — Você não vai. — Me protegeu entre os braços, ofegando
contra minha pele. — Não vou deixar você ir sozinha, coração. Perdão por
chegar tão tarde.
Fechei meus lábios, mas não segurei as lágrimas.
Abracei Felipe com força, mas o esôfago queimou e tive que me
afastar.
Com o corpo curvado na calçada, coloquei a salada de frutas para
fora.
— Terminou? — Felipe perguntou, segurando meu cabelo, e só tive
forças para acenar com a cabeça. — Serei rápido na estrada. — Me levou
para o carro, sentou e ergueu minha cabeça. — Feche os olhos. — Agarrou
o volante e se atrapalhou para tirar o carro do lugar.
— Vou cuidar dela. Só preciso que você traga uma comida leve —
falei com a funcionária, que subia a escada atrás de mim.
— O que aconteceu? Você fez mal a ela?
— Eu jamais faria isso. Vamos nos casar e... — parei na escada —,
senhora, me deixa sozinho com ela.
— Vou ligar para dona Samanta e para o patrão também.
— Faça isso. Alicia precisa da mãe aqui.
Terminei de subir correndo, procurei o quarto que estive no episódio
da live e invadi.
— Alicia — chamei na porta do banheiro, ouvindo o barulho da água
corrente do chuveiro.
— Vai pra casa, Felipe. Preciso de um tempo.
— Vem aqui, não vou perguntar nada.
— Você não entende...
— Não vou deixar você sozinha. Destranca a porta, Alicia.
Ouvi o clique da fechadura e testei a maçaneta, deixando a porta
entreaberta. Só então me afastei e me sentei na beira da cama.
Alicia era mais ferida do que eu imaginava.
Coloquei minha cabeça em minhas mãos e a mistura de raiva e
tristeza sufocou minha garganta.
Ouvi um choro baixo e encontrei o vira-lata na porta com o rabo entre
as pernas e o focinho para baixo.
Apenas ameacei levantar e ele correu para o corredor.
Ninguém ali protegia a menina, até o cachorro era um covarde.
Levantei a cabeça, observando a decoração do teto com desenhos
sutis de borboletas. Respirei fundo e tentei encontrar calma naquela visão,
mas não funcionou.
Cinco minutos depois, eu estava vasculhando os frascos de perfume
na penteadeira quando Alicia saiu do banheiro.
Descalça, vestida com um roupão e cabelos presos no topo da cabeça,
ela não conseguiu olhar para mim.
— Você precisa descansar um pouco. — Eu a direcionei para a cama.
Ela se sentou e com os olhos baixos começou a estalar os nós dos dedos. —
Está com frio? — Puxei o edredom e forrei suas pernas. — Assim está
bom?
Calada, ela apenas assentiu.
Não sabia quando e como acontecia, mas parecia que ela estava muito
perto de uma crise.
— Trouxe a comida. — A funcionária entrou com uma bandeja e
olhou para mim de soslaio. O cachorro entrou com ela. — Sua mãe está
voltando para casa, Alicia. Liguei para todos. Você tem família, é bom que
saibam.
— Tudo bem, Judite. Felipe é o pai da minha filha.
— Cristo! — a mulher exclamou, largando a bandeja aos pés da
cama. — Você engravidou a menina, moço? — me questionou meio
enfurecida.
— Senhora. Espere lá fora. — Suspirei um fardo. — Ela precisa
descansar agora.
Alicia tocou a mão duas vezes sobre o colchão e o vira-lata colocou a
cabeça ali. O medroso tremia mais do que a dona.
— Está tudo bem, Téo. Ele não é uma ameaça, fica tranquilo — ela
sussurrou e acariciou a cabeça do cachorro. — Judite, vai e distrai ele, por
favor.
— Vou, mas a porta vai ficar aberta. Vem Teodoro. — A mulher saiu
do quarto.
— Vai brincar, Teodoro — Alicia insistiu e seu cachorro covarde
olhou para mim, soltou um pequeno rosnado e saiu do quarto com as presas
à mostra.
— Deita, coração. — Tentei unir os fios soltos com o nó em seu
cabelo, mas não consegui e abandonei a missão. — Não precisa falar nada.
— O que eu te disse antes... Sobre me privar de... Eu não falo sobre
isso com minha mãe e meus irmãos. Tenho muita vergonha. — Esfregou as
mãos — Só minha psicóloga, e agora você, sabe...
— Vai continuar assim. — Engoli a angústia que bloqueava minha
garganta e me sentei ao lado dela, determinado a fazê-la parar de sofrer.
— Não desiste do casamento, por favor. Anninha precisa de você. —
Soluçou. — Diga que não vai nos deixar.
— Isso não está em jogo. — Esfreguei meus sapatos e os deixei cair
para subir na cama. — Vem aqui — chamei e ela colocou a cabeça no meu
peito. — Me desculpe por não perceber antes.
— Você nunca teve obrigações comigo. — Ela se enrolou em meu
corpo.
— Não aguentava o jeito que os babacas falavam de você. Sabia que
algo estava errado, seus olhos diziam, mas eu apenas julgava e ignorava.
— Não sou ingênua, Felipe. Procurei por eles. Enquanto me usavam,
eu sentia a dor que meu corpo precisava.
— Não fala assim. — Abracei o corpo dela. — Não repita isso. Você
não tem culpa de nada, apenas passou por um trauma e perdeu o controle.
Uma mistura de raiva e desgosto veio forte, mas mantive a calma.
Precisava deixá-la confortável e segura.
— Felipe... — Abaixei a cabeça para olhá-la, mas a ruiva manteve os
olhos baixos. — Me sinto bem quando estou com você — confessou com
um suspiro de alívio.
Só conseguia me lembrar de todas as vezes que mudei de caminho ou
perdi um evento porque sabia que a encontraria lá e seria assediado de
alguma forma.
Ela só queria proteção. Porra! Ela só queria estar segura.
— Feche os olhos e esqueça tudo por um tempo. Quando você
acordar, estarei aqui.
— Foi o psicólogo que cuidava de mim.
O choque da informação fez meu corpo tremer mais intensamente.
— Você não precisa falar agora, Alicia.
— Quero conversar — ela insistiu e eu a enrolei, deixando apenas sua
cabeça descoberta. — Às vezes ele esbarrava a mão em mim, mas eu não
entendia. Confiava nele. Mamãe me acompanhava em todas as consultas,
mas Heitor estava com caxumba, teve complicações e precisou ser
internado na madrugada. Uma vizinha, que trabalhava perto do consultório
me levou, Luiz Miguel me pegaria no horário do almoço — hesitou alguns
segundos e fiquei calado — no meio da consulta, aquele homem me deu um
refrigerante gelado, então... Acho que adormeci. Só lembro de acordar na
mesma poltrona, com o vestido suspenso e uma sensação estranha entre as
pernas. Não foi dor. Ele não usou força... Só descobri, porque o encontrei na
cadeira ao lado, nu da cintura para baixo e se tocando enquanto me
observava.
— Chega, Alicia! — Passei o punho nos meus olhos. — Vou
conversar com sua mãe mais tarde.
— Confio em você.
— Mas não quero que pense ou volte ao passado. — Levantei o rosto
dela e beijei a sua testa.
Ela gostava de ser beijada assim. Quando fechou os olhos, eu a beijei
novamente.
Já havia estudado vários casos e participado de muitas audiências
relacionadas a assédio sexual e abuso infantil. Estava com muitas perguntas
em mente, mas não resolveria com ela.
— Você está tremendo, Lipe.
— Vai passar. Só preciso te ver bem. Vou te fazer comer agora.
— Já perdi a fome.
— Você vomitou. Precisa ficar forte e estou aqui para cuidar de tudo.
— Peguei a bandeja e segurei o prato. Tinha uma porção de arroz cozido,
abóbora, cenoura e dois bifes de frango grelhado. O suco na bandeja era de
laranja. — Continue pensando em Anna Flor. Você precisa estar bem para,
em alguns meses, ser a mãe dela.
— Já sou a mãe dela.
— Sim, você já é. Mas precisa estar saudável.
— Fiz centenas de terapias com a doutora Helena. Só fico estranha
quando não consigo encontrar um ponto de equilíbrio.
— Sim, agora, abra sua boca. — Juntei um pouco da comida e levei
aos lábios dela.
— Aquele dia na boate foi a primeira vez desde que consegui parar.
Dos dezoito aos vinte anos, estive com um homem mais velho. Eu o
conheci fora da cidade e o procurava sempre que precisava dele. Dessa
forma, não precisava me expor a tanto perigo.
— Por hoje, chega. — Mergulhei a comida em sua boca, silenciando-
a, porque não conseguia controlar a agonia de cada informação que ela
estava me trazendo.
— Estou enjoada. — Ela mastigou sem prazer.
— Faça só um pouco de esforço. — Inclinei-me, beijei sua testa e ela
engoliu a comida. — Você ainda gosta de borboleta ou é apenas parte da
decoração?
— Quando eu era pequena, vovô Alfredo me contava uma história
sobre borboletas... — Alicia sorriu tristemente. — Eu queria ser bonita e
poder voar como elas, mas meu casulo quebrou antes do tempo e minhas
asas nunca se desenvolveram.
— Vou usar o seu banheiro. Continue comendo. Já volto.
Levantei-me, passei por aquela porta e depois de fechá-la me sentei
no chão. Precisava tomar fôlego para não desabar na frente dela.
O nó agonizante bloqueou minha garganta com mais força e respirei
fundo algumas vezes.
Estava tudo claro em minha mente agora. A violência velada na
adolescência a privou de prazer na vida adulta. O abuso intensificou a
automutilação. Era tudo mais complexo do que eu poderia imaginar.
Por favor, não faça mais isso, Alicia, clamei em pensamento, no
sufoco das lágrimas, enquanto era consumido pela raiva e o desejo de
vingança.
— Felipe — Alicia chamou perto da porta. — Já comi o suficiente.
Vem aqui. Fica comigo.
— Já estou indo. — Levantei, desabotoei os punhos da minha blusa
social e puxei em direção ao cotovelo. — Me espera na cama. — Abri a
torneira da pia, lavei as lágrimas do rosto e puxei a toalha com os olhos
fechados.
O cheiro de rosas vermelhas invadiu minhas narinas e me peguei
sentindo o tecido felpudo mais do que deveria. Era a mesma essência
refinada que sempre escorreu de seu corpo e me deixava... Porra,
definitivamente não é hora para isso!
Coloquei a toalha no mesmo lugar e abri a porta.
— Me desculpe, Felipe. — Alicia mordeu o cantinho do lábio e
descansou a mão na lateral do próprio pescoço. — Te assustei com tudo
isso, não foi?
— Deita — ordenei, cativo nos olhos dela, no efeito azulado
provocado por suas lágrimas. — Vou ficar com você até mais tarde. —
Afastei-me, tirei a bandeja da cama e puxei o edredom. — Vamos!
Ela veio devagar, deitou-se e eu a cobri até o busto.
— Você não vem? — indagou e tive que me juntar a ela porque, foda-
se, se já era difícil negar algo antes, de agora em diante seria quase
impossível.
Vou cuidar de você, Alicia.
Circulei meus dedos na raiz de seu cabelo e uma proteção quase
obsessiva tomou conta de mim.
Essa necessidade nunca mais vai te atormentar. Não vou deixar.
Beijei entre seus olhos e parei em sua testa.
— Eles estavam fazendo meu bisnetinho.
Uma voz trêmula me acordou do cochilo e, quando tirei o braço do
rosto, vi uma velhinha, corcunda e incrivelmente idêntica a Alicia, na
cabeceira da cama.
Esfreguei os olhos e fiquei cara a cara com Samanta, Heitor, e o
padrasto da ruiva. Todo mundo parado bem na frente da cama.
— Agora não tem escapatória — Heitor falou de braços cruzados. —
Aliança no dedo ou bala. Aqui funciona assim.
— Preciso fazer mais roupinhas. Não vai dar tempo. — A velhinha,
de pele muito pálida, pôs as mãos na cabeça e caminhou de um lado para o
outro.
Coloquei a cabeça de Alicia no travesseiro e foi o suficiente para
acordá-la de seu sono pesado.
— Samanta, eu só estava cuidando da sua filha. — Sentei-me e
procurei meus sapatos.
A mãe sentou-se na cama e começou a inspecionar o corpo da filha.
— Só estávamos dormindo, mãe.
— Assim, nua? — Ouvi a mãe questionar em um cochicho.
— Ela não está nua — informei no exato momento em que Samanta
ajeitou o roupão da filha e pude ver um pequeno mamilo no mais leve tom
de rosa. — Porra, eu não sabia.
— Não exagere, mãe. — Alicia sentou-se e Samanta continuou a
inspecioná-la, como se a filha tivesse cinco anos.
Desviei os olhos e deparei com a velhinha sorridente me olhando de
muito perto.
— Ele é bonitão. — Ela cutucou o dedo no músculo do meu peito. —
Forte. Vai fazer muitos bebês.
— Prazer em conhecê-la, senhora. — Peguei a mão enrugada e beijei
o dorso.
— Bem-educado e perfumado... — A senhorinha se virou para me
olhar por trás e fugi de seus olhos. — Borboletinha danada.
Me afastei e coloquei os sapatos em meus pés.
— Samanta, preciso conversar com você. Vamos lá fora, agora.
— Não é assim não, meu irmão. — O padrasto da ruiva colocou a
mão em meu peito.
— Quero falar com a minha sogra em privado, tem algum problema?
— perguntei, olhando para o homem.
— Com o título a história muda. — Ele ajeitou a gola da minha
camisa. — Seria muita ousadia dormir sob este teto sem ter boas intenções
com minha enteada. — Deu um tapinha provocador na minha bochecha e
me afastei dele.
Saí do quarto e esperei pela mulher no corredor.
— Alicia não está pronta para ser mãe — Samanta falou quando
parou na minha frente.
— Muita coisa aconteceu quando ela não estava pronta, não é? —
questionei e vi as feições da mulher mudarem instantaneamente. — Só não
a levo para a casa dos meus avós hoje, porque sei que você cuida bem dela.
— Vamos para o escritório.
Sentado em uma poltrona, descansei minha mão sobre a de Samanta,
que respirava profundamente e não conseguia controlar o choro.
— Vou pedir água para você.
— Não precisa. — Ela enxugou os olhos e se concentrou em mim.
— Consegue continuar?
Ela assentiu.
— Os exames confirmaram apenas a ruptura do hímen, mas não
encontraram material genético dele ou sinais de violência. Ele agiu
cautelosamente. Só não esperava que Alicia acordasse cedo e flagrasse a
violação. — Samanta soluçou, cedendo ao desespero novamente. — Ele
negou, apresentou os relatórios psicológicos da minha filha e alegou que ela
armou tudo porque tinha perdido a virgindade com um namorado e queria
esconder de mim. — Secou o rosto outra vez e continuou: — Minha
garotinha foi destruída e a polícia não acreditou nela, até que mais duas
vítimas apareceram.
A indignação ferveu dentro de mim. Era repulsivo pensar que, na
ausência de provas sólidas, a vítima teria de apresentar marcas de tortura ou
ser morta para provar sua verdade.
— Quero saber dele, Samanta. Onde está o monstro?
— Quando ela acordou, ele tentou convencê-la da mesma narrativa
que inventou para a polícia. Mas Alicia não era fraca como ele imaginava e
o atacou com uma caneta de ferro. Quatro golpes no abdômen. Horas
depois, Luiz Miguel a encontrou caminhando na calçada de uma rua
próxima ao consultório. Toda suja com o sangue dele e sustentando a caneta
na mão.
— Ela o matou?
— Não. O monstro foi levado para o pronto-socorro e liberado três
dias depois. Mentiu para a polícia, foi solto e só não fugiu da cidade porque
meu filho o pegou e o manteve preso. Quando as outras duas vítimas se
apresentaram à polícia e fizeram a mesma denúncia, Luiz Miguel o deixou
na porta da delegacia com os testículos mutilados e... Ninguém precisa
saber dessa parte. Meu filho fez o que deveria ser feito. Hoje ele é chefe de
polícia e ninguém vai manchar seu nome.
Passei o punho nos olhos e me levantei do sofá.
— Não se preocupe com isso. Já estava planejando fazer o mesmo.
Em que prisão está o porco?
— Ele pegou tuberculose no ano seguinte e morreu na cadeia.
— Filho da puta! — exclamei indignado. — Ferra a cabeça da garota
e morre no meio do sofrimento! Desgraçado da porra!
— Não gosto de palavrões dentro da minha casa, Felipe. O pai de
Alicia estava sempre me xingando dos piores nomes. Não permito que isso
aconteça aqui, seja qual for a intenção.
Fui repreendido e apertei meus dedos contra os olhos, tentando
reorganizar minha cabeça.
— Desculpe. Não vou repetir. Agora que vou ter uma filha, preciso
estar mais atento.
— Você ama Alicia?
— Sinto o suficiente para protegê-la de todos e de si mesma. Vamos
nos casar.
— Não agora.
— Já dei entrada nos papéis.
— O quê? — Samanta desabou na poltrona.
— Na próxima semana terei que viajar ao Canadá. Já estava
programado e é importante para minha carreira. Por favor, cuide da Alicia.
Faça além do que já fazia. Quando eu voltar de viagem assumo tudo.
— Que desaforo. — A mulher me mirou de cima a baixo. — Sempre
cuidei com dedicação.
— Gosto de saber que ela está bem. — Andei em direção à porta,
deixando a mulher sem reação. — Vou me despedir dela. — Saí e andei
rápido em direção ao primeiro andar da casa.

Na sexta-feira aproveitei meu último dia de suspensão disciplinar para


comprar os móveis que faltavam no apartamento e ajudei a equipe que
estava finalizando os ajustes da reforma.
Precisava acelerar as coisas, pois voltaria do Canadá na data exata do
casamento.
Estava levando tudo tão a sério que cuidar das vulnerabilidades de
Alicia por um ano parecia ser o novo objetivo da minha vida.
Cheguei em casa à noite, e depois de ter sobrevivido a uma sessão de
mau humor com o velho ranzinza que pagava meu salário e estava infeliz
por me casar tão cedo, tomei banho, entrei no carro e decidi ver Alicia.
Avisei da visita no caminho e, quando saí do carro e atravessei o
portão de sua casa, encontrei a ruiva sentada no gramado do jardim, usando
um vestido totalmente diferente dos modelos justos e curtos que ela
costumava usar.
— Oi. — Sentei-me ao lado dela e não pude deixar de notar as
sandálias de tiras finas que deixavam seus pés bem torneados nus e exibiam
unhas pintadas com algumas florzinhas bonitas. — O que aconteceu com
você?
— Virei mãe e noiva de um advogado conservador — respondeu ela,
colocando o cabelo atrás da orelha, mostrando um de seus lindos brincos.
Não era um daqueles gigantes em cascata. Tinha uma corrente, mas
estava presa a um piercing de cartilagem e, por alguma razão depravada,
engoli em seco, olhando com muito cuidado para aquele ponto.
— Você tinha esse vestido aí ou comprou?
— Ah, você percebeu isso? — Ela ergueu o nariz fino e segurou
aquele ar confiante que eu estava determinado a provocar de agora em
diante. — Tenho um closet cheio de roupas, Felipe. Algumas peças nunca
foram usadas. Este vestido era um deles. — Colocou as pernas de lado e
espalhou o tecido floral fino sobre os joelhos, permitindo-me ver uma
enorme fenda que chegava até suas coxas.
— É um modelo bastante conservador... — comentei, fixo naquela
abertura.
— Esse será meu novo estilo. Gostou?
Limpei a garganta e fixei meus olhos no muro do jardim.
— Você que tem que gostar. Não me importo com suas roupas.
— Grosseiro! Estúpido! — Ela empurrou meu ombro. — Você é um
péssimo noivo, ainda bem que é de conveniência.
Se chateou de verdade e quando cutuquei o braço dela, a ruiva me deu
um sopapo.
— Você tem um gênio difícil pra caramba, viu, Alicia? Mariana teria
ficado satisfeita com a resposta.
— Não pergunto mais nada! — Levantou e saiu arrastando o vestido
fino na grama.
— Alicia... — fui atrás —, vem aqui, garota! — Não parou e corri. —
Gostei da sandália e do brinco — murmurei na frente dela, e sua boca se
curvou em um leve sorriso. — E o vestido deixou você ainda mais jovem
— concluí e vi seu riso se transformar em uma careta de desgosto. — Era
para deixar mais madura?
Ela bufou pelas narinas e virou-se para sentar na soleira do canteiro
de flores.
— Amanhã vou para uma festa — disse irritada e levantei uma
sobrancelha em análise.
— Que festa? — Sentei-me ao lado dela.
— Vou tocar em um casamento.
— Tocar o quê?
— Piano.
— Desde quando toca piano?
— Aprendi desde menina e agora, mulher adulta, sei tocar ainda
melhor.
— Por essa eu não esperava... — Inclinei meu corpo para trás e mexi
nas flores. — Conheço esses noivos?
— Você por acaso foi convidado? — questionou desaforada e tive que
sufocar o riso.
— Sabe... — Puxei uma flor pelo caule e esfreguei no rosto dela. —
Não sei se vou ter paciência com seu jeito de moleca irritante.
— Moleca é a sua... — Contraiu os lábios e soltou: — Avó!
— Não, minha avó definitivamente não é uma moleca.
Ri, satisfeito com a atmosfera relaxada. Foi bom não a ver deprimida
como da última vez em seu quarto. O mau humor era natural, inofensivo e
fácil de tolerar.
— Vou tocar no casamento do primo de Julia, minha amiga do
orfanato. Ele vai me pagar 500 reais e concordei porque ainda preciso do
dinheiro.
— Ô, porra, ganha tão bem assim? Já consiga mais eventos para
ajudar em casa.
— Ora, seu... mão de vaca! Só vou tocar, porque me comprometi e
Julia é minha amiga. Você vai me dar uma mesada depois do casamento e
não vou te dar um centavo para ajudar na casa.
— Sou apenas um assalariado, Alicia — zombei da careta dela e levei
alguns catiripapos.
— Você já tinha alguns milhões antes mesmo de nascer. E anda por aí
com dois carros importados. Vai me dar mesada, sim. Pelo menos enquanto
estivermos casados.
— Estou prestes a ser deserdado, ruiva. Meu avô é contra o
casamento. Tá um clima pesado lá em casa. — Focado no assunto sério,
comecei puxar as pétalas da flor uma a uma.
— Ele vai aceitar quando conhecer a Anninha. Ela derreteu meu
coração, vai derreter o dele também.
— O velho também não concorda que eu assuma dois bebês agora.
— A outra criança, eu também não quero.
— Mas você não tem que querer ou deixar de querer.
— Posso não ter voz nisso, Felipe. Mas tenho o direito de não
concordar com esse absurdo.
— Você precisa ser menos atrevida com os meus assuntos. Com
relação a isso, serei extremamente chato. Aprenda a separar as coisas para
evitar discussões desnecessárias.
— Você é chato em tudo. E não espere que eu receba outra mulher
com chá e biscoitos. Tenho 1 ano de direito sobre muita coisa. Até mesmo
sobre... — Me mediu com o olhar, tomou a flor da minha mão e jogou-a no
gramado. — Rum!
— Você não sabe como é dolorosa a vida de uma mulher tentante.
Mari colocou toda esperança em mim, em nosso relacionamento, e falhei
com ela. Não vou desistir do bebê e destruir outro sonho.
— É você quem está pagando esses tratamentos caros, né? Quantos
procedimentos fizeram? Se ela sonha em ser mãe, por que não adota uma
criança? — Fez perguntas afiadas.
— Não pense muito sobre isso. Concentre-se em Anna Flor. Minha
responsabilidade e amizade com Mari é outra história.
— Ela só quer ter um filho de pai rico.
— Amanhã vou com você ver Anna Flor. — Desviei do assunto. —
Vou viajar na próxima semana, sua mãe te falou?
— Vai sozinho, né?
— Sim. É um curso muito caro. Meu avô só investiu em mim. Vou
ficar na casa dos meus pais.
— O que seus pais disseram sobre o casamento? — Virou para mim,
as esferas verdes atentas na resposta.
— Expliquei que você era uma amiga de infância e que o casamento
não seria definitivo, só a criança. Eles me apoiaram em tudo.
— Humm... E mais o quê?
— Mais nada.
— Não perguntaram nada sobre mim?
— Não.
— Melhor assim. — Por algum motivo a tristeza nublou suas feições
e ela se virou para frente. — Não é bom que eles saibam muito sobre mim.
— Promete que vai se cuidar enquanto eu estiver fora?
— Estou bem. Não consegue ver?
— Sim, está mais corada. Mas depois de tudo o que me contou, não
paro de pensar em você, Alicia. Estou preocupado.
— Preocupe-se em procurar um bom presente. Gosto de brincos.
Originais, é claro. Ouro branco ou rosé. Você pode escolher entre os dois.
Atrevida.
Sorri, fixo no queixo duro da minha fera domesticada.
— Trago o que você quiser. Presente de pais amigos, é claro. —
Enrolei meu dedo indicador na ponta de seu cabelo.
— Não exagere. Posso querer gostar de você de novo, e já sabemos
que isso não dá certo.
De novo?
— Não gosta mais de mim, Alicia? — perguntei e ela me olhou de
soslaio. — É apenas curiosidade, mesmo. Se não gostar, será mais fácil na
rotina do nosso casamento... de conveniência.
— Gostar, não. Foi amor, Felipe. — Ela corou, fazendo-me sorrir. —
Amor bobo de adolescência — completou e esmaeci meu sorriso. — Você
cresceu, ficou diferente e fortão. Até tem uma bunda legal, mas o resto do
conjunto é bem feio.
— Tá de palhaçada, né?
— Estou sendo honesta — insistiu naquilo, e não vi nenhum sinal de
ironia. — Mas não se preocupe com isso. Você é feio por fora, mas está se
mostrando lindo por dentro — complementou, passando a ponta do dedo
indicador sobre os vasos sanguíneos da minha mão.
— Minha mãe me acha bonito — soltei essa frase estúpida e ela
rebateu afiada:
— Nós mães somos assim — continuou traçando o mesmo caminho
em minhas mãos —, achamos nossos filhos perfeitos e lindos. Eles
realmente são. Aos nossos olhos e com todo o sentimento do nosso coração.
Entendo sua mãe perfeitamente.
— Você é uma boa trapaceira, ruiva. — Sorrindo pensativamente,
olhei para a casa e vi a velhinha dançando pela janela do primeiro andar,
segurando o que parecia ser um macacão de recém-nascido.
— Se você quiser, minto para te agradar...
— Er... Ahn... sua avó, ela... — Hesitei, pois estremeci com a
insistência das carícias inocentes. — Minhas veias são feias, melhor ficar
longe delas. — Afastei-me.
— Somos pais e melhores amigos, vou mexer quando eu quiser! —
Fechou as mãos no meu braço e colocou a cabeça no meu ombro. — Essas
veias são salientes em todos os lugares, amigo?
— Droga, assim fica difícil, né, Alicia?
Uma semana depois
— Aaaaaaaaa!
Um grito saiu da minha garganta e me sentei na cama com a mão
sobre o coração.
Felipe estava dentro do meu quarto, vestido em uma roupa elegante e
com um gorro na cabeça.
— Não queria viajar sem saber de você — disse ele, sua voz rouca de
sono, seu cheiro masculino por todo o quarto.
Cobri meu rosto com a mão e esperei alguns segundos para minha
cabeça se acalmar.
Na tarde passada ele foi levar a mulher para finalizar o procedimento
da fertilização in vitro, à noite queria me ver, então deixei ele bater com o
nariz na porta e desliguei o celular.
— Você não vai mais viajar? — Tentei colocar meu cabelo no lugar.
— Ainda tenho uma hora.
— Estou bem. Pode seguir sua viagem. — Levantei minha cabeça e o
encarei sob a luz fraca do abajur.
— Deixei uma procuração nas mãos de um amigo do escritório. Ele
vai resolver qualquer pendência sobre a adoção.
— Tudo bem. Pode ir.
— Se cuida e cuida da menina também. — Ele me deu as costas e
caminhou em direção à porta.
— Felipe! — chamei e ele se virou para mim. — Queria que você
fosse estéril. — Levantei-me da cama e caminhei sobre o tapete, seguindo
até ele para dar um abraço de melhores amigos.
— Lamento desapontar. — Ele deu um tapinha no meu ombro. —
Agora volte para a cama e durma de pijama da próxima vez.
— É um short pequeno e da cor da pele, não estou nua. — Usei a
escuridão do quarto para enganar minha insegurança. — Mas durmo sem
calcinha por recomendação médica. — Ele tentou se afastar, mas apertei
meus braços ao redor de seu corpo quente e musculoso. — Vou sentir sua
falta, amigo feio.
— Você está proibida de dormir assim quando estivermos no
apartamento. Esse inverno será rigoroso e você precisa evitar resfriados. —
Ele caminhou comigo em sua frente, levando-me para a cama.
— Sua filha é a Anninha, não se esqueça disso.
— Basta você se comportar. — Me colocou de volta na cama e jogou
o cobertor sobre o meu corpo. — Volto para o Brasil uma noite antes do
casamento. Te encontro no cartório.
— Estarei lá esperando você. Véu, grinalda e lingerie sexy. Confere?
— Ri nervosamente e o homem permaneceu sério no escuro.
— Quero saber da Anna Flor, então me ligue diariamente. — Se
afastou da cama e colocou algo sobre a mesa de cabeceira. — É uma cópia
da chave do apartamento. Talvez queira ajeitar suas coisas com calma. —
Foi embora sem me dar um beijo na testa, deixando-me com uma sensação
de profundo vazio no peito.

Dias depois
— E foi assim que a mamãe conheceu o papai...
Deslizei os dedos pelos cabelos cor de caramelo de Anninha.
Sozinhas e deitadas em um cobertor, tomávamos banho de sol no gramado
do orfanato.
— Você está com saudade dele, filhinha?
Anna Flor continuou me olhando, sem entender nada do que eu estava
falando.
Aqueles olhos graúdos eram minha força.
— Você sabia que é proibido fazer imagens de crianças dentro de um
orfanato, amorzinho? — Estendi a mão e peguei meu celular. — Mas
mamãe é muito irresponsável para cumprir todas as regras.
Selecionei o contato de Felipe no aplicativo de mensagens e fiz uma
videochamada. Ele não respondeu de imediato, mas insisti e só parei de
ligar quando vi o loiro aparecer do outro lado da tela. Vestido com um robe
atoalhado e exibindo seu cabelo bem penteado.
— É a Anna? — perguntou com um largo sorriso. — Só estou vendo
os cabelos dela.
— Consegue ver agora? — Suspendi o celular e continuei deitada
com a Anninha. — Olha, filhinha, é o papai.
— Oi, Anna. — Felipe sustentou um sorriso bobo, completamente
enfeitiçado pela nossa menininha.
— Estamos quebrando uma regra. Não acha isso emocionante,
doutor?
— Você é maluca. — Vi um brilho especial nos olhos azuis. — Ela
está quieta. Aconteceu alguma coisa?
— Sono. Ela fica assim depois do primeiro banho. Vai dormir em dez
minutos e acordar em duas horas acabando com tudo no grito. — Anna Flor
levantou a mãozinha e tentou alcançar o celular. Tudo ela queria levar para
a boca. — Não pode, Anninha.
— Você está sendo teimosa, papai? — Felipe perguntou
carinhosamente e o meu coração pulou uma batida.
Ele estava sendo incrível. Se tivéssemos a oportunidade de ter aquela
conversa franca antes, talvez as coisas tivessem sido diferentes há mais
tempo e hoje eu seria capaz de lidar com o afeto sem medo de que a
qualquer momento tudo desmoronasse.
— Sua filha entrou na fase de conhecer o mundo, Felipe. É quando a
criança leva tudo à boca para identificar o gosto e textura. Dizem que tem
relação com a amamentação e a sensação de prazer que a criança recebe
através da conexão com a mãe, mas não sei se acredito nessa teoria.
Anninha nunca mamou no peito.
— Você está fazendo mesmo o dever de casa, menina. Isso é
maravilhoso.
— Julia tem me ensinado algumas coisas — expliquei, sentindo um
súbito calor em meu rosto. — Mas ela briga comigo na maioria das vezes
porque questiono tudo o que ela diz.
— Não queria estar no lugar dela.
— Você é o meu noivo, feio. Vai me suportar bem mais do que ela.
— Ainda é difícil de acreditar no que estamos fazendo.
— De ranço a melhores amigos. Um avanço e tanto, hein?
Ele mordeu o lábio inferior e me examinou.
— Já que está infringindo uma norma, me manda uma foto da Anna.
Vou mostrar à minha mãe quando ela chegar. — Levantou-se de onde
estava e andou levando o celular com ele.
— Sua mãe já perguntou sobre mim? — indaguei com uma nota de
esperança.
Nunca troquei uma palavra com meus sogros. Uma médica e um
cientista estavam sempre ocupados e preferiam acreditar que era esse o
motivo.
— Só contei o necessário, fica tranquila.
— Não estou falando dos problemas, Felipe. Pensei que eles
quisessem saber com quem o filho estava se metendo.
— Eu disse a eles que o casamento só vai durar um ou dois anos.
Eles me apoiaram e com toda certeza serão os melhores avós que a Anna
Flor poderia ter.
— Tudo bem, Felipe. Já entendi.
— Alicia, você disse que eu não deveria pisar em ovos. Por que está
cada vez mais difícil não te deixar assim?
— Sei o meu lugar. Você que interpreta as coisas errado. — Sentei na
grama e coloquei Anninha em meu colo. — Vá estudar e fazer suas coisas.
Vou ninar sua filha agora.
Encerrei a ligação, tirei a foto de Anninha, enviei e abracei minha
filha.
Eu precisava parar de desejar um lugar que não me pertencia e
mostrar segurança sobre isso. Felipe já estava fazendo muito e eu sabia no
que estava me metendo quando pedi ajuda sem ter nada a oferecer em troca.

Uma semana depois

No elevador do apartamento, repreendi meu irmão com uma


cotovelada. O descarado parecia hipnotizado na bunda da garota que entrou
conosco e estava na nossa frente.
— Heitor, para com isso. — Dei uma beliscada, ele me ameaçou, mas
foi fisgado quando algo caiu do bolso da garota.
— Com licença, vizinha. — O safado se abaixou atrás da menina.
— Que susto! — A garota saltou para o canto do elevador, onde
examinou meu irmão com as pupilas dilatadas.
— Caiu do seu pequeno bolso. — Heitor levantou, estendendo um
lacinho rosa.
— Obrigada. É da minha filha. — A mocinha pegou o laço e voltou
para o canto do elevador.
— Filha? Sério? — Heitor coçou a cabeça e eu ri. — Você é casada
ou...?
— Que casada, garoto? Tenho quinze anos! — Ela torceu o nariz,
jogou o cabelo cheio em camadas suaves e saiu do elevador, deixando meu
irmão com cara de bocó.
— Que fermento você comeu para chegar assim nos quinze anos,
gracinha? — ele gritou, mas a garota apenas jogou os cabelos e o ignorou.
— Droga, me apaixonei. — Segurou meu rosto e mordeu minha bochecha.
— Ah, seu doido! — O empurrei sobre as malas.
— Obrigado por me pedir ajuda com seus panos de bunda. Não saio
mais daqui. — Puxou duas malas e parou para respirar fundo. — Já sinto o
cheiro bom de enemies to lovers — divagou, batendo o piercing da língua
nos dentes. — Vou me ferrar, mas dane-se, sempre vale a pena.
— Largue de conversa. — Eu o puxei pelo braço, levando-o para fora
do elevador.
— Tão nova e com uma filha sem pai. Isso é tão triste.
— Sem-vergonha! — Dei um tapa na cabeça dele. — Você está
proibido de se envolver com essa mãe precoce.
— Veja se não é uma mãe precoce falando de outra.
— Esqueça qualquer pensamento descarado que esteja em sua mente.
Quinze anos, Heitor. Se toca!
— Três anos não é nada quando já estou imaginando nossos filhos
correndo no parque atrás do filhote de Teodoro. Seu cachorro não pode
morrer virgem, já te falei sobre isso.
— Você não vem mais aqui! — Eu o belisquei.
— Ai, sua sanguinária, ciumenta! A menina precisa de apoio, ainda
deve estar no puerpério. Seja amiga dela. Nunca te pedi nada, Alicia.
— Cínico.
Dia do casamento

Passava das duas da tarde, meia hora antes de sermos chamados, e


Felipe não tinha chegado de viagem e nem atendia o telefone.
Os avós dele não foram, como previ. Mas não tinha problema. Só
queria o neto deles. E mataria Felipe se ele não aparecesse naquele cartório
em meia hora.
— Mimo quer falar com você. — Heitor se aproximou e me estendeu
o celular.
— Agora não, Heitor. Preciso me controlar ou essa crise de ansiedade
vai me matar. — Me afastei, encostei minhas costas no pilar da sala de
espera e sorri para mamãe, que ao lado da vozinha estava me dando um
sorriso reconfortante.
— Olha ela ali!
Virei minha cabeça e encontrei o tio de Felipe entrando com sua
esposa e pais.
— Onde está meu noivo, seu Eduardo? — Minha voz saiu
embargada.
— O avião teve problemas, filha — a avó dele respondeu.
— Caiu? Ele morreu, por isso não me avisou? — Pisquei para afastar
as lágrimas.
— Não, ele está bem, se acalme. — A loira bonita, tia do Felipe, me
abraçou. — Ele chegou hoje cedo em São Paulo e mais uma vez o voo
atrasou. Mas já deu tudo certo. O motorista foi pegá-lo no aeroporto.
— Vou matá-lo por não ter me avisado. Vou usar minhas próprias
mãos. — Engoli o soluço e tentei me acalmar.
— Não te disse que ela era encantadora, Maria Fernanda? — Seu
Eduardo fechou a mão no cabelo da mulher e afastou-o de mim. — Está
abafado aqui... — explicou e recebeu um olhar severo da mulher.

— Me espere aqui! — Puxei o cinto de segurança e saí do carro.


— Boa sorte!
Ouvi o grito do motorista dos meus avós e subi correndo a escada do
cartório, segurando a barriga, tentando amenizar o mal-estar que comecei a
sentir em São Paulo.
O avião já saiu atrasado de Toronto e pousou duas vezes na rota de
avaliação. Cheguei em São Paulo cedo e recebi garantias da companhia
aérea que estaria no aeroporto Santos Dumont antes do meio-dia. Nada saiu
conforme o planejado e isso me deixou muito estressado.
Remarcar a data do casamento atrasaria o longo processo de adoção.
Entrei na área interna do edifício mórbido e um tanto gelado e vi a
careca do padrasto de Alicia à distância. Sinal de que ela ainda estava lá.
Continuei caminhando lentamente com a palma da mão no meu
abdômen e então a vi sentada em uma das cadeiras daquela área, com a
cabeça apoiada no ombro da mãe, ao lado da avó que sorria e tricotava um
remendo.
— Alicia! — gritei de longe.
Ela levantou a cabeça e, meio atordoada, olhou para todos os lados.
Acelerei os passos.
Eu só queria dar um abraço nela e dizer que estava lá para honrar
minha palavra.
— Meu filho, como você está? — Vó Suzi me interceptou no
caminho.
— Foi uma viagem muito complicada, mas estou bem, vó.
— Já pensou que pode ser um sinal — meu avô resmungou e ganhou
um beijo na testa.
— É bom ver o senhor aqui.
— Vá ver sua mulher, isso aqui está parecendo um funeral.
O deixei e fui me encontrar com Alicia.
— Não tive como chegar antes... — disse, minhas mãos segurando
seu rosto triste.
— Por que tem um brinco na sua orelha? — perguntou chorosa.
— Por que você está vestindo preto? — Estudei seu vestido justo,
demorando-me nas mangas bufantes transparentes.
Porra, preparada para tudo. Casamento ou enterro.
— Você me ofereceu um casamento sem graça no foro, queria
grinalda branca? — ela reclamou, seu lábio inferior tremendo.
— Ok, já estou aqui, agora vamos nos casar. — Coloquei sua cabeça
contra meu peito e acariciei seus fios sedosos e incrivelmente perfumados.
— Já perdemos a hora. Vão chamar o próximo casal. — Ela soltou
uma fungada de consternação e beijei seus cabelos.
— Vô Olavo! Você conhece o juiz de paz? — perguntei, Alicia atada
ao meu peito.
— É o José Mariano. Estudou comigo na universidade. Tinha tudo
para ser um juiz de direito, mas acabou se conformando com um emprego
meia-boca. É o que acontece com quem perde o foco...
— Vovô! — gritei e Alicia se afastou. — Já volto.
Coloquei a mão nas costas do meu avô e o levei comigo.
Passei por outras pessoas que, possivelmente fariam parte do próximo
casamento, bati três vezes na porta e, sem tempo para formalidades, invadi.
O velho barrigudo, sentado atrás da mesa, parou a xícara no ar e me
estudou com o bico formado.
— Não podem entrar assim! — reclamou o auxiliar que passava
manteiga em biscoitos salgados.
— Sou o noivo das duas e meia. — Segui até o mais velho. — Acabei
de chegar. Já podemos começar.
— Você pode remarcar o casamento hoje mesmo. Estamos com
agenda para o próximo mês. Os documentos valem por noventa dias, mas
você já deve estar ciente — pronunciou o juiz de paz ao levar a xícara de
café até a boca e saborear o conteúdo. — Temos outra cerimônia marcada
em instantes.
— Por que você não larga o café e faz o casamento agora? — Tio Edu
perguntou.
— Estou no meu intervalo.
Meu tio riu insatisfeito e se aproximou de meu avô sussurrando:
— Pai, posso ser preso por usar meus métodos para forçá-lo?
— Sim, Eduardo. Eu mesmo te denuncio — meu velho respondeu.
— O que podemos fazer, vô? Tenho que me casar hoje de qualquer
jeito. Um mês é muito para o processo de adoção.
— Já deu baixa na data? — vô Olavo perguntou sem muita
empolgação.
— Fiz isso há cinco minutos — respondeu o auxiliar do cartório, mas
titubeou ao notar o olhar severo do velho Olavo. — Lembrei que, só hoje,
apenas hoje, deixei para dar baixa no final do dia.
— Apenas hoje? — tio Eduardo resmungou. — Você tem cara de
preguiçoso, rapaz. E é um mentiroso.
— Tio, não complica, por favor.
— De qualquer maneira, o próximo casal será chamado em oito
minutos. — O velho juiz começou a repor o líquido preto na xícara.
Foda-se a porra do tempo!, gritei em pensamento. Não era louco de
ofender um colega de profissão no âmbito do trabalho.
— Isso é ótimo. — Andei até a porta. — Sei que você consegue
realizar a cerimônia em oito minutos. — Abri a porta. — Alicia! Venham
todos — chamei, gesticulando com as mãos.
— Não podemos pular os votos. É sagrado — Tio Edu disse,
organizando todos em fileiras. — Só peço trinta segundos para cada noivo.
O momento é importante e precisa ser registrado.
— Ah, pelo amor de Deus! — O juiz se opôs, batendo a xícara na
mesa.
— Você primeiro, Felipe. — Meu tio levantou o celular com o flash
ligado.
— Bem-vinda à família, Alicia. Prometo cuidar de você e da menina
— falei rapidamente, olhando nos olhos dela, sem perder tempo com as
invenções do meu tio.
— Sua vez, mocinha. — Tio Edu virou o celular para Alicia.
— Lipe, há poucos meses eu só queria que um carro passasse por
cima de você ou que você batesse a cabeça em algum lugar...
— Alicia! — minha sogra repreendeu a filha.
— Melhor adiarmos os votos para mais tarde. — Tio Edu desligou o
celular. — Pode continuar a cerimônia.
— Luiz Felipe Moedeiros Russell? — perguntou o Juiz de paz, com
os papéis do casamento em mãos.
— Exato — respondi.
— É de sua livre vontade que concorda em se casar com Alicia
Álvares Azevedo.
— Sim.
— Senhora Alicia, da mesma forma eu lhe pergunto. É de sua livre
vontade casar com Luiz Felipe?
— Não. — Alicia fez palhaçada e o juiz nos olhou por baixo dos
óculos, possivelmente se arrependendo de não ter pegado o atestado médico
naquele dia. — Sim — ela confirmou, dando uma risada cordial.
— Na vontade de Deus que acaba de se manifestar livremente, na
minha presença, juiz perante este ofício, em nome da lei, os declaro
casados. Assinem os documentos e saiam daqui.
O homem falou tão rápido que só percebi o decreto quando o auxiliar
começou a ler a ata.
Como minha esposa, a ruiva passou a se chamar Alicia Azevedo
Moedeiros. O cartório já havia autorizado a retirada do "Álvares" quando
ela alegou ter ficado com o nome muito longo.
Eu poderia tê-la aconselhado a manter o nome de solteira, pois daria
menos trabalho no divórcio, mas optei por não interferir em sua escolha.
Com o meu nome de família, ela recebeu a aliança de ouro rosa em
sua mão esquerda e me agradeceu mais uma vez por assumir sua bebê.
— Preparamos um jantar simples, mas faço questão que todos
participem — minha sogra comunicou na saída da sala e fui atrás de Alicia
que voltava do banheiro com a avó.
— Seu rosto está abatido. Será que vai aguentar dar no couro hoje,
sacana? — Tio Edu bloqueou meu caminho. — Se não conseguir, agrade a
moça antes do soninho. — Bateu as mãos em meus ombros.
— Não começa com suas palhaçadas. Vou descansar, só quero banho
e sossego. — Dei a volta nele e fui atrás de Alicia.
— Você está bem mesmo, meu menino? — vó Suzi perguntou.
— Cansado, vó. Só preciso descansar. Vem comigo, Alicia?
A ruiva olhou para a mãe e voltou para mim, confirmando com o
rosto.
— Vão e façam muitos bebês, seus danadinhos — A velhinha de
olhos verdes sorriu ao falar isso.
Esperei Alicia beijar a bochecha da avó para agarrar seu pulso e
deslizar meus dedos até que nossas palmas estivessem unidas.
Ouvindo o barulho de seus saltos ecoando no espaço fechado, eu a
carreguei para fora e juntos entramos no banco de trás do carro.

— Vamos ficar aqui? — Alicia perguntou quando entramos em meu


quarto, na casa dos meus avós.
— Vou tomar banho, pegar algumas coisas e meu carro na garagem.
— Vai ficar no apartamento comigo?
— Por alguns dias. Estou cansado e sem paciência para os sermões de
meu avô.
— Não me preparei e não temos comida na geladeira. — Sorrindo,
ela se sentou na cama e desabotoou as sandálias altas. — Não sabia e
planejei passar mais uma semana com minha mãe.
— A gente compra amanhã.
— Juntos? Eu e você no supermercado? — indagou curvada, com a
mão no fecho da sandália de salto.
— Não quer ser vista comigo? — perguntei e um rubor subiu em seu
rosto.
— Pensei o contrário. — Ela colocou os pés branquinhos no chão.
Unhas bem cuidadas, pintadas de branco e sem defeitos. Bem, ela
tinha um pouco de joanete, mas, ainda assim, eram pés incrivelmente
bonitos.
— Não pense bobagem, Alicia. Vou tomar banho. Já volto.
Corri para o banheiro e joguei água no rosto antes de entrar no
chuveiro para tomar um longo banho. O desconforto abdominal vinha e
voltava. Era hora de tomar outro analgésico.
Quando saí do banheiro, encontrei Alicia ressonando baixinho,
encolhida em posição fetal na minha cama.
Fui ao meu guarda-roupa, procurei três peças de roupas necessárias e
me vesti sem mover os olhos do alvo, me perguntando quanto tempo viveria
com ela sem dar uns tapas em sua bunda branca.
Droga, a situação era muito complicada para esse tipo de pensamento.
— Vamos, Alicia — vestido, chamei, sentando-me ao lado dela. —
Acorde, mulher. — Meus dedos foram direto para seus lábios, que se
viraram para cima, ostentando um beicinho naturalmente esnobe.
— Por que não dormimos aqui? — perguntou de olhos fechados. —
Essa cama é tão confortável... — Se espreguiçou sem sair do lugar.
— Vó Suzi percebeu que estou com dor e vai chegar querendo me
internar. Você ainda não conhece o drama das pessoas da minha família.
Precisamos sair agora.
— O que você tem? — Ela abriu os olhos e se concentrou em mim.
— São fisgadas no centro do abdômen, quase abaixo do umbigo. Vai
e vem na mesma velocidade.
— Quando começou sentir? — Seu tom transmitiu preocupação e
quase apertei suas bochechas.
— Quando saí de São Paulo.
Deitada, ela afastou a barra da minha camisa e tocou abaixo do meu
umbigo com o indicador e o dedo médio.
— Dói? — Pressionou os dois dedos e senti um leve desconforto.
— Incomoda, mas não muito.
— Você comeu no aeroporto? — Deslizou as pontas dos dois dedos
do meu umbigo até o cós da bermuda.
— Precisei almoçar ou não aguentaria chegar aqui vivo.
— Então foi isso. A comida não te fez bem. Como vamos passar em
frente ao pronto-socorro, paramos rapidinho para você tomar medicação.
— É besteira. Vou tomar um analgésico e vai passar.
— Pare de ser teimoso, Felipe. — Continuou fazendo a massagem.
Ela toda preocupada e cuidadosa, eu me excitando.
— Para, Alicia. Não estou confortável.
— Dores abdominais são realmente chatas. Talvez seja melhor
colocar uma compressa quente aqui.
— Sim... talvez melhore com a água morna — concordei enquanto
fechava meus olhos.
— Você está mesmo com dor, Felipe?
— Sim, uma dor do caralho.
— Só no abdômen?
— Próximo ao umbigo. Aí mesmo onde estão seus dedos.
— E, porque estou vendo uma cabeça se encorpando na minha
direção?
— Ê, porra! — Levantei-me e fui até o guarda-roupa.
Eu não fazia sexo há quatro meses, poderia me justificar com isso,
mas escolhi bancar o desentendido. Precisava saber exatamente onde pisar
em relação a ela.
— Coloque seus tamancos. Vou separar algumas coisas aqui e já
desço.
Peguei uma mochila e coloquei roupas confortáveis, diferentes das
que eu tinha nas malas da viagem.
— Quer ajuda? — Ela parou ao meu lado, suspirou alto com as mãos
na cintura fina e deu uma examinada indiscreta na minha bermuda de
moletom.
— Vamos, agora. — Fechei a bolsa, coloquei nas costas e me afastei.
— Quer dividir o peso? — indagou atrás de mim.
— É pesado. Deixa comigo.
— Essa bermuda cinza ficou bem em você — disse enquanto cruzava
a minha frente no corredor e, com as sandálias nas mãos, descia as escadas
dando um ou dois saltos. — Vamos ver nossa filha amanhã às oito horas.
Tudo bem? — Virou para mim quando chegou ao último degrau. — Saí do
orfanato um pouco antes do meio-dia e ela ficou chorando nos braços de
Julia. Meu coração está aqui, pequenino.
— Podemos passar lá agora. Comprei presentes para ela.
— Uhm, sua filha vai amar os presentes. — Continuou caminhando e
abriu a porta da sala. — Mas você não está muito bem e precisa descansar
da viagem. Julia disse que ela dormiu e acordou bem. Vou cuidar de você e
amanhã vamos ao orfanato. — Saiu, deixando a porta aberta.
— Vou lá pegar o carro na garagem e transferir as malas. — Soltei a
mochila sobre os ladrilhos.
— Enquanto isso vou lá buscar flores para decorar nossa sala. Gosto
de rosas e posso sentir o cheiro delas aqui. — Apontou para o jardim,
enquanto seus olhos ardiam no acúmulo natural da minha bermuda. —
Flores cor de rosa dão uma vista incrível, minha boca até saliva. — Estalou
a língua e engoliu em seco. — Ops! Minhas flores! — Saiu saltitando sobre
a grama, dando-me toda a certeza de que nada seria fácil.
Ela sabia exatamente o que estava fazendo, mas eu precisava me
lembrar em todos os momentos que por trás de sua ousadia havia camadas
que exigiam atenção e cuidado.
Abri o apartamento e Alicia entrou descalça, abraçando as flores que
surrupiou no jardim dos meus avós.
Observei a decoração aconchegante do apartamento, soltei a alça da
mala e caminhei até o aparador que havia reservado para bebidas, mas que
agora tinha algumas molduras vazias.
— Vou pedir comida, o que você quer? — perguntei, mexendo nas
molduras e olhando para a ruiva de preto.
A imagem na minha frente poderia ser perfeitamente registrada e
enquadrada naqueles porta-retratos.
— Pizza. — Inalou as flores. — Ah, e suco de laranja.
— Acha que sua mãe vai ficar chateada se não formos ao jantar? —
indaguei, examinando o corte elegante de seu vestido e me rendendo ao
contraste divino que fazia com seu tom de pele.
— Mamãe vai entender perfeitamente. É nossa lua de mel —
sussurrou, pincelando as pétalas com a ponta do indicador.
— Lua de mel? — Desarrumei meu cabelo e cheguei mais perto dela.
— Seria, se não fôssemos apenas melhores amigos. — Ela fez
beicinho e passou por mim balançando os brincos de pêndulo. — Vá
descansar, Luiz Felipe. Vou fazer o mesmo. A renda da lingerie está
marcando minha pele, preciso me livrar dela.
Porra!
— Lingerie, coração?
— Isso, amigo. Preta, rendada e pequena — soprou as palavras e
traguei a saliva.
— Melhor tirar logo — falei bruscamente e duas esferas verdes me
atingiram. — Para não marcar sua pele, que é branquinha.
— Vou fazer isso agora mesmo, amigo.
Ela se virou e me deixou hipnotizado, admirando sua bunda pequena
e empinada desaparecer no corredor.
Alicia não precisava fazer nenhum esforço para me ter nas mãos.

Deixei as flores na poltrona, desci o zíper lateral do meu vestido e me


joguei de calcinha e sutiã na cama.
Casei com Felipe, tenho o nome de Felipe e sou mãe da filha de
Felipe.
Abracei o travesseiro e ri sozinha, sentindo minha pele inteira
formigar.
Calma, Alicia. É apenas um contrato de dois anos, no máximo, e ele
já deixou todas as condições claras.
Inspirei fundo e soltei pela boca.
Virei o rosto e meus olhos nublaram com a visão da caminha
acoplada ao lado da minha. Em pouco tempo minha filha estaria ali,
dormindo comigo, sob afeto, proteção e conforto.
Felipe estava trazendo meu verdadeiro amor, e ele sempre teria minha
gratidão.
Levantei e respirei fundo. Tirei o sutiã e fui ao banheiro assim.
Precisava de um banho. Havia uma padaria na rua de trás e eu certamente
encontraria chá de hortelã-pimenta lá. Judite fazia para mim e as dores de
estômago logo passavam.
No caminho ele não reclamou da dor, mas eu cuidaria para que ela
não voltasse. Tudo no meu lugar de amiga. Me iludi por treze anos e bastou.
Agora que estávamos bem, eu não poderia corromper nosso bom
relacionamento familiar esperando um sentimento que nunca me pertenceu,
que não era para mim.

Em meia hora eu já estava voltando. Comprei chá e frutas.


— Obrigada. — Sorri para a velhinha de cabelos curtos e grisalhos
que segurou o elevador.
— Você é a nova vizinha do 142, não é?
— Sim. Me mudei definitivamente hoje. Sou Alicia.
— Sou a Joquebede e moro no mesmo andar. Seja bem-vinda.
— Obrigada.
— Aquele tipão loiro é seu marido ou irmão?
— Felipe, é meu marido — respondi, sentindo uma tremulação na
barriga. — Somos recém-casados — completei.
— Seus olhos brilharam. — Ela sorriu colocando o cabelo curto para
detrás da orelha. — É difícil ver isso hoje em dia. As mocinhas não querem
mais se casar. Quando se casam, é porque engravidam para manter um
marido rico.
— É, hoje está complicado. — Limpei minha garganta e estabilizei as
sacolas em minhas mãos.
— Dei o golpe da barriga no meu marido há cinquenta anos —
Joquebede confidenciou em um sussurro. — Não me arrependo de nada.
Nós nos amamos muito. — Ela sorriu suavemente, com seus olhinhos
castanhos cheios de lágrimas. — Ele se foi há cinco anos. Foi o melhor
marido que eu poderia ter. Fazia tudo por mim, era apaixonado na minha
chave de coxa. — Fungou e puxou um lenço da bolsa.
— É uma linda história de amor. — Pisquei para afastar a nuvem de
lágrimas.
— Você precisa tomar chá conosco. Vou organizar com as meninas
do prédio. — O elevador parou no décimo quarto andar e saímos juntas. —
Felicidades com o lindão — disse e foi para o lado oposto do meu.
Entrei e fui direto para a cozinha. Guardei as frutas, segurei a caixa de
chá e encarei o monstro de cinco bocas. A última vez que me aproximei de
um deles, esqueci a panela no fogo e quase coloquei fogo na cozinha da
minha mãe.
Desisti. Fui para o micro-ondas. Percy Spencer tinha o meu total
respeito por ter criado aquele bendito eletrodoméstico.
Coloquei dois saquinhos na caneca com água do purificador,
selecionei o tempo necessário e observei pelo vidro escuro o momento que
o líquido começou a borbulhar.
Depois de uma maratona para encontrar um pano, troquei o líquido de
caneca, fui ao meu quarto pegar um envelope e respirei fundo antes de
espiar pela fresta da porta de Felipe.
Deitado na cama e concentrado no celular, ele me pegou em flagrante,
então entrei com o envelope debaixo do braço.
— Trouxe chá. Está melhor?
— Era apenas cansaço. — Ele largou o celular sobre o colchão e
recebeu a xícara.
Olhei para o display aceso do celular e vi a foto da outra mulher no
bate papo do aplicativo. Algumas mensagens chegando.
— Atrapalhei você? — Levantei a cabeça, lutando contra a sensação
de impotência que apertou minha garganta.
— Era a Mariana. Ela pegou folgas acumuladas, está viajando e
queria saber como foi a minha viagem — explicou direitinho, tomando um
gole de chá quente, me deixando dividida entre o ódio e a satisfação.
— Vou deixar esse documento aqui, depois você lê e assina, por
favor. — Coloquei o documento perto dele.
— O que é? Vejo agora.
— Não, termine de falar com ela. É a mãe de seu bebê também. —
Minha voz saiu trêmula.
— Esperei você me perguntar sobre isso, Alicia. — Felipe pousou a
xícara na mesinha de cabeceira e pegou o envelope.
— Escolhi assim. Não vou me intrometer na sua vida. E não quero ter
que pensar sobre isso.
— O procedimento falhou. Ela não está grávida.
— Não? — A tensão em meus músculos diminuiu e me vi sorrindo,
sentindo a esperança se espalhar pelos meus poros. — Acabou, Felipe?
— Vamos tentar mais uma vez.
Me abracei, pensando em como fazer aquilo parar de uma vez por
todas. Se o bebê viesse no próximo procedimento, seria impossível lutar
contra ele.
Felipe tirou o documento do envelope, correu os olhos pelo papel,
olhou para mim e voltou ao documento.
— Licença maternidade, Alicia? — perguntou sério.
— Remunerada, como está escrito aí. O número da minha poupança é
esse na última linha.
— Isso aqui é falso.
— Sim, peguei um modelo da internet e fiz alterações. É besteira
tentar enganar um advogado. Nunca foi minha intenção. Só preciso que
você deixe sua assinatura. Vou autenticar no cartório.
— Isso é piada, né?
— Isso é bem sério, Felipe. Há também uma nota perto do final do
contrato. Leia com calma. A multa é de um salário para cada mês de vida de
Anna Flor. Você deve me pagar essa quantia no prazo de dez dias após a
adoção.
— Fizeram uma grande mudança na CLT. — Ele riu, mostrando
aqueles caninos branquíssimos.
— É justo que toda mãe receba. — Esfreguei meus braços.
— Não me lembro de ter assinado sua carteira de trabalho —
continuou zombando.
— Preciso guardar dinheiro para depois do divórcio, Felipe.
— Que divórcio? — perguntou com os olhos fechados, mas
rapidamente se recompôs e pigarreou. — Ah, sim. — Saiu da cama. — Não
precisa autenticar nada. Fica entre nós. — Ele abriu o zíper da mala menor
e pegou uma caneta. — Isso não terá nenhum valor lá fora e não quero
ninguém te chamando de vigarista.
— Quero minha mesada também — aproveitei para informar —, e
você vai comprar meus produtos de cabelo e maquiagem por fora. Depois
do divórcio eu me viro.
— Você tem feito muitos planos para o divórcio. — Ele assinou o
papel e inspecionou meu rosto. — Isso porque nos casamos hoje.
— Termina de beber o chá e tente dormir. — Peguei o envelope e
guardei meu precioso documento.
— O que foi?
— Nada.
— Quer um abraço?
— Não.
— Vem aqui.
— Não, Felipe.
— Somos amigos, Alicia. — Ele se aproximou e fechou os braços em
volta do meu corpo. — Você agora é mãe da minha filha. Nunca vou deixar
faltar suas coisas.
Cheirou meu cabelo e meus braços continuaram na mesma posição,
abraçados ao documento.
— Obrigada. Você tem sido muito generoso comigo.
— Quando precisar de um abraço, não tenha receio. Peça. — Beijou
meus cabelos. — Peça o que quiser. — Acariciou meu rosto com a ponta do
nariz, causando uma cócega deliciosa que foi do meu peito até a barriga. —
Quer tirar um cochilo comigo?
— Melhor não. — Escovei meu nariz contra sua camisa. — Não
quero me acostumar.
— Qual o problema em se acostumar?
— Não deu certo da última vez e não quero desandar as coisas.
Anninha precisa conviver em um ambiente saudável, de respeito e sem
brigas. — O envelope caiu e minhas palmas deslizaram no tecido que
cobria suas costas.
— Precisamos conversar mais — disse entre carícias, seus lábios
tocando minha pele, devagar o suficiente para minhas pernas amolecerem.
— Vem.
Ele pegou minha mão, subiu na cama, deitou a cabeça no travesseiro
e me fez deitar ao lado.
— Posso ficar assim? — Deslizei meu pé na panturrilha dele e enrolei
minha perna ali.
— Pode. — Exalando com um ruído baixo, seu pomo-de-adão subiu e
desceu. — Desabafe sobre o que quiser.
Aconcheguei minha cabeça em seu peito e escutei seu coração.
— Desde que encontrei a Anninha, me sinto mais responsável. Mas,
às vezes, tenho medo. Medo de não poder trazê-la para casa, de não
conseguir protegê-la do mundo, de falhar em algum momento... e... não
quero que ela cresça com meus medos.
— É normal se sentir assim, mas acredite na sua capacidade. Você
está desenvolvendo valores para desenvolver a maternidade. Vejo isso. —
Seus dedos corriam suavemente ao longo do meu couro cabeludo. — Tenho
fé em você e no seu amor por Anna Flor. Fazia muito tempo que queria te
ver bem, assim como agora, só não sabia como ajudar.
— Eu não... eu...
— O que, Alicia? — Seu polegar correu pela umidade em meus
cílios.
— Não quero que isso acabe — sussurrei, baixinho, com os olhos
fechados. — Não quero que você vá embora.
— Acabamos de nos casar, por que está pensando tanto na separação?
— Porque tenho muito pouco de tudo. E é bom ter você aqui.
— Você é mais forte do que pensa, coração. Só precisa aprender a
ficar bem sozinha — falou em um tom didático, igual a minha mãe usava.
— Me sinto segura quando estou com você, Felipe.
— Sempre vou te oferecer segurança. E estamos unidos por um elo
importante agora. Mas preciso que você pare de me superestimar. Sua vida
não depende da minha, nunca dependeu. Foi essa dependência que arruinou
tudo lá atrás. Lembra?
Me calei e analisei suas palavras.
Era tudo tão complicado dentro de mim.
Fiz centenas de terapias, mas ainda me sentia submersa. A cada
gatilho, o medo batia em meu pescoço.
Era tão difícil respirar sozinha.
O que eu realmente precisava era de chão. Além da minha família, ele
sempre foi isso para mim. Mesmo quando estávamos distantes, eu
costumava pensar em sua mão segurando a minha para passar pelas crises.
— Não posso lidar com isso, Felipe. Já tenho muita coisa para superar
— consegui dizer. — Só quero que você fique aqui, beije minha testa nos
dias difíceis, e não volte para aquela mulher. Ela é perfeita e não consigo
medir esse esforço.
— Alicia, não tenho nada com Mariana desde que você me roubou
dela.
— Você me beijou naquele dia! — Sentei na cama. — Quer mesmo
ressuscitar esse assunto?
— Volte aqui. — Ele segurou meu pulso. — Não vai, quero dormir
sentindo seu cheiro. Tenho esse direito.
Meu rosto esquentou e ele ergueu a cabeça para beijar meu braço.
— Se você tem esse direito, eu posso ter exigências. — Esfreguei
meu nariz em seu cabelo cheiroso e úmido.
— Quero fazer perguntas íntimas, Alicia, tudo bem?
Engoli em seco. Fiquei angustiada.
— Pergunte.
— Na cama, você gosta de ouvir nomes sujos ou prefere o silêncio?
— Me estudou, esperando por sinais de alerta.
Meu peito acelerou e apertei minhas mãos, incapaz de encará-lo.
— Nunca foi saudável, Felipe. Você sabe.
— Vem, deitar aqui.
Chamou e enterrei meu rosto em seu peito, desabando sobre ele,
fazendo sua cabeça cair no travesseiro.
— Eu... não gosto que me xingue.
— Não gosta ou eu não posso?
— Sempre ouvi lá fora e nunca quero ouvir da sua boca. — Mantive
meus olhos fechados e seus lábios alcançaram minha testa. — Quando me
chama de coração, sinto que sou parte de você.
Recebi outro beijo na testa, agora mais longo.
— Algum lugar em seu corpo não pode ser tocado?
— Se for você, pode tudo... — Enrolei minha perna em volta dele. —
Mas gosto muito quando beija minha testa.
Ele riu contra meu cabelo e tentei empurrar o constrangimento para o
fundo da minha mente. Com Felipe eu sempre me sentia voltando ao início.
— Usa qual método contraceptivo?
— Não posso tomar anticoncepcionais, fico inchada e passo mal.
Também sou alérgica a preservativos. Mas sempre usei. Só quando bebia
muito que as coisas saíam do controle.
Outra vez a boca de Felipe me recompensou com um beijo na testa.
— Não menstruo com frequência. Tenho desequilíbrio hormonal —
completei.
— Já viu isso com o médico?
— Sim. É sobre a alimentação e... a médica falou sobre o meu peso
também.
— Venho almoçar aqui todos os dias de agora em diante. Tudo bem?
— Movi o rosto e deixei um beijo em seu peito. — E quero que veja a
possibilidade de colocar o implante contraceptivo. Você não pode
engravidar agora e não quero que tenha alergias.
— Vamos viver como casal?
Sorri com um estalo choroso e Felipe acariciou minhas bochechas
com os polegares.
— Podemos tentar — sussurrou e sua respiração me fez estremecer.
— Eu quero muito... — Fechei os olhos e ele me virou bruscamente
sobre o colchão. — Ai, Felipe!
Pisquei e ele colocou as costas na cabeceira acolchoada.
— Senta aqui. — Bateu na coxa.
Meio tonta, levantei, escorreguei até ele, passei o joelho sobre seu
colo e me ajeitei ali.
— Tenho algumas exigências, Lipe. — Descansei minhas mãos em
seu pescoço.
— Shh, depois.
Me puxou pelos quadris e fez meu púbis grudar em seu pau.
— Ai, Lipe? — Escondi meu rosto em seu pescoço.
Ele moveu as mãos pelas minhas coxas e deslizou sob o vestido,
parando na alça fina da calcinha.
— Qual a cor?
— Branca.
Balancei meus quadris e escorreguei sobre aquele volume.
— Bem devagar, coração, não quero que se canse.
Pegou minha mão esquerda, olhou para a aliança e deixou sua boca
descansar no centro da palma.
— Apaga a luz, por favor, Lipe.
— Sem insegurança, Alicia. Sou eu aqui com você. — Encostou a
boca na minha e lentamente seus lábios entreabertos roçaram os meus,
espalhando uma cócega deliciosa.
Sorri nervosamente.
Agarrei o tecido macio de sua camisa, peguei seu lábio entre os
dentes e soltei aos poucos.
— Esse seu cheiro... — Ofeguei com o pulso acelerado. — Seu
perfume fica tão apurado quando está com tesão.
— Você está provocando isso. — Ele acariciou meu cabelo, e sua
língua entrou sutilmente, tocando meus dentes, acariciando o céu da minha
boca. Nenhum sinal de pressa, apenas tortura lenta.
Suspirei.
Ele engoliu minha respiração e enroscou a língua na minha.
Gemi.
Calor inundou minhas coxas e levantei a mão, fechando-a com força
nos cabelos dele.
Ele recuou e nossos olhos se encontraram.
— Você tem o dom de me fazer sentir como se fosse a primeira vez
— revelei, balançando meu quadril dolorosamente, sentindo-o se contorcer
sob mim. — Mas posso te virar do avesso.
Apertei meus dedos em seus cabelos e seus dentes rangeram.
— Gosto de ver você como uma virgem que está prestes a
experimentar os primeiros passos. Sua experiência não me interessa, Alicia.
— Tem certeza?
Desci minha mão livre entre nós e mergulhei em seu moletom, mas
ele a puxou antes que passasse por sua cueca.
— Espere um pouco mais — disse com voz rouca, os olhos nervosos,
cheios de desejo e cautela. — Permita-se sentir primeiro.
Seus dedos se enrolaram em volta do meu pulso, seus lábios roçaram
as costas da minha mão e foi descendo para o braço.
Fechei os olhos e senti a excitação correndo em minhas veias.
A eletricidade me deixava agitada. Nunca me permiti passar dali,
daquele grau de vontade. Mas Felipe era o meu príncipe. Ele nunca me
machucaria. Com ele eu não precisava da dor.
Esfreguei minha boca na dele e raspei sua barba com meus dentes.
No mesmo ritmo lento, ele segurou meu rosto, beijou meu pescoço,
inalou meu cheiro e fechou a mão sobre meu seio, fazendo-me implorar
sem perceber:
— Por favor...
Ele me abraçou e suas mãos trabalharam nos botões das costas do
meu vestido.
— É só o começo, coração. — Desabotoou e deslizou o tecido nos
meus ombros, beijando cada pedacinho de pele que descobria.
— Felipe... — choraminguei em um sussurro quase silencioso.
Respirando com dificuldade, ele descobriu meus seios pouco a pouco,
em seguida, raspou a borda do decote em meus mamilos e deixou o tecido
cair no meu quadril.
— Pega neles? — pediu.
Movi meu rosto em negação e ganhei um beijo na testa.
Ele mesmo pegou minha mão e caminhou naquela direção. Foi
circulando meus mamilos levemente com nossos dedos, seguindo a curva
das aréolas.
— Assim não é mais gostoso?
Seu olhar deliciosamente terno quis me devorar. Ele largou minhas
mãos e fechou a boca em meus seios massageando suavemente na ponta da
língua e chupando com gosto.
— Sim... — Mordi meu lábio inferior, ofegando, meu corpo inteiro
em estado de choque. — Sim, Felipe...
— Isso é prazer — sussurrou, mordiscando meu mamilo. — Vai ficar
melhor.
Me virou, fazendo-me deitar na cama.
— Veja, querida.
Ajoelhado de pernas abertas, ele se tocou sobre o moletom, me
mostrando como estava inchado, esticado e virado para o lado. Tão grande
e robusto como eu nunca acreditei ser possível.
Salivei.
Senti picadas entre minhas pernas e esfreguei minhas coxas.
Ele sorriu.
Pegou minha perna esquerda, beijou a panturrilha e mordiscou a base
da coxa.
Murmurei um gemido, fechei os olhos e suspirei pesadamente,
sentindo-me lânguida de uma maneira que nunca estive.
Quando sua barba curta esfregou contra o tecido da minha calcinha e
ele inalou meu cheiro profundamente, abri meus olhos e fixei no teto.
Era a primeira vez que eu deixava alguém chegar ali com a boca.
Obriguei-me a manter a calma. Felipe não se importava com meu passado e
não estava com nojo de mim. Eu também não deveria ter.
É natural, é sadio, é Felipe.
Respirei lentamente.
Ele se esfregou como um gato e meus olhos vacilaram. Movimentou a
renda de um jeito provocante e relaxei meus quadris. Massageou minha
pélvis e mordi meu lábio inferior. Puxou a calcinha e o bolo do vestido e
empinei para ajudá-lo.
— Tão linda quanto eu imaginava.
Separou minhas coxas e capturou meu olhar.
As imensidões azuis brilhavam obsessivamente, como se admirasse
algo valioso.
— V-você imaginava? — indaguei afetada.
Felipe passou a língua nos lábios em confirmação.
— Me dê sua mão — pediu e dei sem hesitar. — Sinta. — Levou
meus dedos e os moveu em círculo, umedecendo-os na minha lubrificação.
— Uhmm... — Chupei meus lábios e apertei um seio na mão livre.
— Não é gostoso?
— Sim...
— Me deixa provar. — Ergueu minha mão, colocou a língua para fora
e lambeu meus dedos com os olhos fixos em mim. — Não há nada mais
prazeroso para um homem do que saborear sua mulher.
— Sua mulher? — Lágrimas tomaram conta dos meus olhos.
— Minha. — Beijou meu joelho, escorregou a língua na minha coxa e
mergulhou o rosto no meu sexo, acariciando-me suavemente, passando a
língua para cima e para baixo.
Tranquei meus lábios, apertei meus mamilos e soltei um gemido
trêmulo, quase choroso.
Felipe começou a me beijar como se estivesse saboreando a última
refeição da vida e me engasguei com um grunhido.
— Sua bocetinha é tão quente — ele deixou escapar e cobri meu rosto
com a mão.
— Prín... cipe?
— Devasso — disse com a boca cheia, levantando meus quadris e me
lambendo lentamente por trás, me deixando ensandecida.
— Felipeee!
Rindo, ele voltou mordiscando e pressionou a ponta da língua contra
meu clitóris. Lento, então mais rápido e mais forte, reduzindo meus medos,
fazendo-me querer mais dele, profundamente, intensamente.
Lágrimas escorreram dos meus olhos e levantei meu quadril,
mexendo rápido contra ele, que soltou meu clitóris e lambeu minha entrada,
colocando sua língua lá em movimentos firmes.
— Ahhhhhh!
Meus pés embolaram-se no lençol, minhas mãos agarraram a parte de
trás de sua cabeça com força e meus quadris balançaram sem controle.
Gritei quando desferiu um golpe certeiro. Rolei para o lado, mas ele
parecia querer beber minha alma. Colocou as costas na cama e me guiou
para montar em seu rosto.
Não consegui me equilibrar na posição. Fiquei meio deitada e
empinada, esfregando-me contra seu rosto, para frente e para trás, até que
ele capturou meu ponto fraco, abraçou minha bunda e me empurrou para o
limite de tudo.
Tremi de um jeito louco, ele me soltou do aperto, levantou meu
quadril e respirou necessitado.
— Ai, caramba... coração.
Minhas pernas afrouxaram, caí no rosto dele e ele começou a me
limpar como um felino faminto. Quando terminou, escorregou daquela
posição, beijou minha bunda por um longo tempo, subiu pelas costelas e
alcançou o ombro.
— Lipe... Estou... desmaiando.
— Você foi incrível. — Ele me ajeitou na cama. Me colocou de lado.
— Dorme. — Ofegou. — Seu corpo precisa disso agora. — Abraçou
minhas costas e beijou meus cabelos.
— Vamos... fazer... sempre?
— Sim.
— Você é feio, mas é gostoso.
— Você é uma pimenta doce, coração.
— Não me deixe.
— Estou aqui. — Beijou meu ombro.
— Sempre?
— Sempre.
— Acho que esqueci a chave do carro na mesa do restaurante. —
Tateei meus bolsos e só encontrei a carteira.
— Volta lá rápido. Vou te esperar aqui. — Alicia se encostou na
porta do meu carro e aproveitei para roubar um beijo. — Vai. — Ela riu
com a boca na minha.
— Está na hora de batizarmos o carro...
— Primeiro precisamos da chave. — Firmou indicador e polegar
contra meu queixo. — Vai, gostoso!
— Já volto. — Beijei os lábios dela mais uma vez e me afastei, indo
em direção da rampa do restaurante italiano.
Senti uma picada aguda no lado direito do meu abdômen e apertei o
local. Praticamente corri para a mesa onde jantei com Alicia. Felizmente, o
garçom já havia encontrado a chave e me devolveu imediatamente.
Voltei na mesma velocidade, morrendo de vontade de chegar em casa
e me enroscar com minha mulher em nossa cama.
Me esquivei de um grupo de pessoas e vi dois caras conversando com
minha ruiva, o que me fez acelerar os passos. Corri para ela e afastei os
dois com um empurrão.
— Entra no carro, Alicia. — Abri a porta do passageiro e direcionei
minha esposa para o assento do veículo.
Ela entrou e me olhou apreensiva.
— Não, é sério? Casou mesmo, ruiva? — perguntou um dos homens.
— Sou o marido. Vaza, porra! — Me preparei para quebrar o nariz
dos dois.
— E você vai se contentar com apenas um metendo em você, ruiva?
— Felipe, não!
Fechei minha mão e ferozmente soquei o olho do bastardo. O outro
tentou me acertar, mas acertei o joelho em seu ponto mais fraco.
Alicia saiu do carro e perdi o equilíbrio quando a vi enfrentando o
cara. Levei o primeiro soco no rosto quando tentei colocá-la de volta no
carro. Então veio outro golpe, e outro.
Vagamente, vi minha garota ruiva sendo jogada longe sem reação.
Eles a machucaram, e com uma névoa na frente dos meus olhos e um
espasmo potente no abdômen, derrubei o cara com um soco que certamente
fraturou alguns de meus dedos, a julgar pela dor de ossos quebrados.
— Alicia...
Esfreguei meus olhos, tentando limpar minha visão, então senti a
queimação do objeto pontiagudo rasgar o lado inferior direito do meu
abdômen. O outro homem, que antes estava no chão, me acertou com uma
adaga afiada e puxou o objeto, rasgando tudo.
A dor latejante se tornou insuportável. Senti minhas forças esvaindo-
se. O caldo grosso escapou de dentro da ferida e manchou minha blusa
clara de vermelho vivo. Senti o gosto na boca.
— Felipe! Felipe! Por favor! Não faz isso!
Segui cambaleando e me joguei no chão e cobri o corpo de Alicia
com o meu.
Coração...
Perdi o sentido da visão gradualmente, estremeci gelado e ouvi vozes
desconhecidas.
— Felipe! Abre os olhos. Felipe, por favor!

— Quer tomar um café? — uma desconhecida perguntou ao tocar em


meu ombro. — Vai ajudar você atravessar a madrugada.
Aérea, não pude responder. Apenas encarei seu rosto, e ela
rapidamente se afastou dizendo que traria café.
Descalça, com dois celulares na mão e encolhida na cadeira da
recepção do hospital particular, tentei ficar acordada enquanto enfrentava
uma queda repentina na pressão arterial.
— Alicia!
Virei o rosto e pude ver o tio do meu marido vindo em minha direção.
Depois de bloquear a senha de Felipe, liguei para a irmã do meu
irmão e pedi que ela avisasse a família Moedeiros. Eu não tinha nenhum
contato deles no meu celular. Fiz isso enquanto me lavava e esperava os
médicos da ambulância subirem no elevador do prédio.
— Seu Eduardo... — Levantei e apertei a cintura dele.
— Como aconteceu?
— Ele estava dormindo e delirando... Muita, muita febre... Ele não
abria os olhos... Quase se engasgou com o vômito.
— Vamos saber dele. Se acalme. — Senti dedos afagarem meus
cabelos e um chiado bem perto do meu ouvido. — O que o médico te falou?
— Eles fizeram uma tomografia e o levaram para a sala de cirurgia.
— Engasguei-me com o choro. — Lipe me falou da dor... fui negligente e
desatenta.
Olhei na direção que, há quase duas horas, tinham levado o meu
marido e seu Eduardo me levou até o balcão de atendimento. Não me soltou
por nenhum momento.
— Minha jovem, quero informações sobre o paciente Luiz Felipe
Moedeiros Russell. É o meu sobrinho.
— O senhor Felipe deu entrada no hospital com suspeitas de
apendicite aguda. Foi confirmado uma inflamação em estado avançado e o
encaminharam imediatamente ao centro cirúrgico. A laparoscopia dura em
torno de uma hora. O paciente está há quarenta minutos no procedimento.
Em breve teremos notícias. Se quiserem um pouco mais de conforto, posso
levá-los a outra sala.
A mulher explicou calmamente, da mesma maneira que já tinha me
explicado algumas dezenas de vezes.
— Obrigado. Vamos esperar aqui mesmo — seu Eduardo agradeceu e
me levou de volta às poltronas acolchoadas da recepção.
— Não cuidei de Felipe como deveria — desabafei. — Meu marido
poderia ter morrido antes do amanhecer. — Esfreguei as costas da mão
contra meus olhos.
— Ele vai ficar bem.
— Sim. Ele precisa ficar bem. — Fixei nos olhos azuis do homem,
lembrei de Felipe e solucei. — Os avós e os pais dele já estão sabendo?
— Achei melhor verificar como ele estava primeiro. Vou ligar para
minha irmã. — O homem levantou, retirou o celular do bolso da jaqueta e
se afastou.
— Filha! — Ouvi a voz da minha mãe e logo ela apareceu com Rex.
— Ele já está na cirurgia... Quase morreu, mamãe. — Agarrei a
cintura dela.
— Logo ele estará bem, meu amor. — Ela ergueu meu rosto e
arrumou meu cabelo.
— Essa cirurgia é tranquila, Alicia. É só arrancar o apêndice e se
recuperar — meu padrasto falou, tentando me confortar do jeito dele.
— Estava a ponto de explodir, Rex.
— Cacete! — Rex soltou e foi repreendido pelo olhar da minha mãe.
— Vamos ali aferir sua pressão. Seu marido estará em casa em breve
e você precisa ter saúde para cuidar dele.
O olhar confiante de minha mãe me acalmou, me fez acreditar que
tudo realmente ficaria bem.
Tive que passar três dias no hospital esperando meu corpo se
reorganizar para voltar a funcionar corretamente. Alicia ficou ao meu lado.
Só saía do hospital para visitar Anna Flor no orfanato. E embora eu
estivesse com dor, só conseguia me preocupar com sua estabilidade
emocional.
Ela foi sozinha para a nossa primeira entrevista com o serviço social,
mas teve que reagendar para que eu também pudesse estar presente. Como
estou em pós-operatório, conseguimos remarcar e será feita em nosso
apartamento.
Saí do banheiro com a toalha na cintura e o corpo molhado. Senti
tonturas lá dentro. Estava cheio de dores nos pontos. O lado inferior direito
ainda latejava fortemente.
— Felipe, por que não me chamou?
Alicia levantou assustada de seu cochilo. Seus olhos estavam miúdos,
evidenciando o cansaço.
— Acabamos de chegar do hospital e você precisa descansar, coração.
— Você precisa mais de mim. — Ela desatou a toalha do meu corpo e
começou a deslizar o tecido felpudo sobre meu corpo molhado.
— Quase ficou viúva no dia do casamento, hein? — brinquei,
alisando o cabelo dela, enrolando a ponta do rabo de cavalo. Nunca vi o
cabelo dela tão preso no alto.
— Agora temos uma filha para criar, não brinque com isso. — Ela
permaneceu dedicada ao que estava fazendo.
— Deita, Alicia. — Beijei a testa dela e fiz carinho em sua nuca.
— Depois, Felipe. Temos entrevista com a assistente social em três
horas e estou nervosa.
Ela deu alguns beijos no meu esterno e se abaixou com a toalha.
— Estamos desenvolvendo intimidade na marra. — Sorri,
observando-a secar meu pau e minhas bolas. — Você foi parceira e
continua me surpreendendo.
Alicia liberou um sorriso vaidoso e deu de ombros.
— Só estou cuidando de quem gosto. — Secou minha glande com
esmero. — Quando você se recuperar, espero que me recompense. —
Beijou meu quadríceps e secou minhas canelas.
Ri, puramente encantado pela mulher meiga, safada e com enorme
poder de persuasão.
— Você precisa ir às compras.
— Minha mãe já fez. Nossa geladeira está cheia de comida. —
Levantou foi ao guarda-roupa, pegou cueca e camiseta, e trouxe para me
vestir.
— Se você quiser, podemos dividir esse quarto agora.
— Não quero... — ela disse, afundando-me por dentro.
— Também não quero apressar as coisas. Anna Flor vai dormir com
você até se acostumar com a casa. Você está certa. — Sorri sem muita
vontade.
— Não quero que pense de outra forma, marido. Isso é o que eu
estava dizendo quando você me interrompeu.
— Foi? — Sorri amplamente, meu coração batendo forte no peito.
— Não estou brincando de família, Luiz Felipe. — Ela desceu a
camiseta pela minha cabeça. — Tenho me sentido completa e não vou
perder você outra vez. — Deslizou sua língua entre meus lábios. — Nem as
coisas maravilhosas que você sabe fazer.
Beijei sua boca e sua bochecha. Não tinha garantias de que daria
certo, mas estava muito envolvido e disposto a pagar para ver.
— Vai se cuidar e vem deitar um pouco comigo. Ainda temos tempo.

Ouvi a campainha tocar e saí do quarto, descalça, fechando o zíper


lateral do meu vestido de tecido leve.
Deixei Felipe dormindo, pois faltavam quarenta minutos para a
entrevista da assistência social. Só poderia ser Heitor.
Passei as mãos pela parte presa do meu cabelo e, quando girei a chave
na fechadura e abri a porta, fiquei cara a cara com Mariana e sua bolsa
Prada original.
— Oi, boa tarde — disse, visivelmente desconfortável.
— Te conheço de algum lugar? — Arqueei uma sobrancelha.
— Mariana. — Mudou a bolsa de braço e me encarou por alguns
segundos.
Não precisei ler seus pensamentos para saber que ela estava me
xingando por abrir a porta por dentro.
— Ah sim. Ex-namorada do meu marido. Como vai a senhora?
Ela riu, insatisfeita com minha dissimulação.
— Eu estava viajando, liguei todos esses dias, mas como ele não dá
notícias e aparentemente o celular está desligado, não vi outro jeito. Preciso
ver como ele está. Se ficou com alguma sequela.
— Oi? — indaguei abismada, entendendo exatamente o que ela
queria dizer.
— Quero vê-lo. Você pode... — Insinuou que eu saísse da frente.
— Meu marido está bem alimentado, limpo, mais interessante do que
ontem e ficou com o celular todos os dias. Se ele não te atendeu, foi por não
querer contato — falei, esforçando-me para me manter estável diante da
intrusa.
Mariana liberou um sorriso debochado, que me obrigou esganá-la
mentalmente.
— Tenho certeza de que foi você quem ignorou minhas ligações. Mas
não é assim que você vai amarrar o boy, garotinha — me confrontou,
liberando uma nota velada de ressentimento.
Estremeci com a ousadia e hesitei, mas meus pés foram rápidos,
dando um passo à frente, forçando-a a se afastar da minha porta.
— Vou falar bem devagar para a senhora entender. Você. Não. Vai.
Interromper. A harmonia. Da minha. Família! — exclamei, acuando a
intrusa na direção da parede.
— Ah, menina, você ainda precisa aprender muito sobre o Felipe.
— Você é quem precisa aprender sobre mim! O amadurecimento do
meu relacionamento pertence a apenas dois.
— Relacionamento? — desdenhou com lágrimas nos olhos. — Você
está feliz e satisfeita por ter agarrado o boy com mentiras e trapaça?
— O que você quer? É o dinheiro da família Moedeiros? —
perguntei, abalada.
— Sempre trabalhei para não depender de dinheiro de macho,
garotinha. Não estou aqui para brigar, nem tenho tempo a perder com sua
insegurança. Só quero cuidar dos meus interesses e isso envolve o seu
marido. Agora saia do meu caminho. Vou ver o Felipe.
Ela recuperou a confiança, estremeci, mas não me movi do lugar.
— Foda-se. Você se meteu com a mulher errada — gritei e meu
subconsciente me alertou da entrevista.
— Você está me ameaçando? — Ela agarrou meu pulso e percebi que
minha mão estava perto de sua garganta.
— Se eu não tivesse a responsabilidade que tenho hoje, você já teria
voado por aquela vidraça sem direito a avisos. — Me afastei com a mão na
cabeça, lutando com todas as minhas forças para não estragar tudo.
— Meu único interesse aqui são as sementes do Felipe — ela disse e
cerrei o punho. — Temos um interesse comum, não é? Ambas encontramos
o pai ideal para nossa prole.
Engoli o nó na garganta e pensei em minha filha para afugentar os
impulsos perversos que cresciam em mim.
— O fato dele ser meu marido não te incomoda? — perguntei,
olhando em seus olhos.
— Por um filho eu desço ao nível mais subterrâneo da humilhação —
ela esclareceu, segura de suas próprias convicções.
— Então vá atrás de porra no inferno, porque a do meu marido você
nunca mais verá uma gota. — Cruzei na frente dela, impedindo-a de tocar
na porta. — Sai da minha casa!
— Felipe sempre foi tão maduro e responsável, não sei como foi se
envolver com uma garotinha maléfica como você. — Ela me mediu de cima
a baixo e fez uma cara de nojo.
— Sai! — ordenei, dividida entre a raiva, a insegurança e a hesitação.
— Conheço o Felipe, sei que ele tem palavra — me confrontou.
— Sai daqui! — Perdendo a compostura, eu a empurrei para longe da
minha porta.
Ela se equilibrou nas sandálias de salto alto e riu amargamente.
— Foi você que se envolveu com um homem comprometido, menina.
Mas não vai demorar para que ele reconheça que você não passa de uma
ninfeta baixa, sem escrúpulos e decoro!
A maneira arrogante de dizer a verdade fez meu peito doer e um
sufoco agonizante bloqueou minha garganta. Seus olhos vacilaram, mas era
tarde demais. Minha reação padrão foi provocada. Mirei em seu cabelo e
segurei com força.
— Não tenho escrúpulos e decoro. Você consegue lidar com isso?
— Felipe! — ela começou a gritar, me forçando a empurrá-la outra
vez.
Ela era muito maior do que eu, mas a classe a impediu de reagir.
— Você tem muita sorte que agora tenho uma filha para criar, mas se
Felipe passar mal, te jogo pela janela — ameacei, certa de que faria aquilo.
— Você não pode adotar uma criança, alguém precisa intervir.
— Tente e acabo com você! — Praticamente voei em cima da mulher,
mas fui impedida de alcançá-la. Mãos intrusivas me pegaram por trás.
— Calma, moça!
— Quero parir quíntuplos se essa criança nascer com o DNA do
Felipe! — gritei, tentando alcançá-la, meu corpo dividido pelo braço do
estranho. — Você planejou tudo, mas não contava comigo! Confessa!
— Moça, se controla.
O homem me puxou com um aperto. Dei uma cotovelada nele, me
virei e meti a mão em sua cara.
— Selvagem! Problemática. Isso é um absurdo! — A mulher se
afastou, indo de costas, na direção do elevador.
— Você já entrou no escritório com a intenção de pertencer à família!
— acusei com o que me veio à mente e segui em frente, mas fui novamente
capturada por trás.
Mariana entrou no elevador, virou de costas e desapareceu, me
deixando afetada, tremendo da cabeça aos pés.
— Pensei que já tinha visto mulher valente antes.
Me virei e encarei o estranho. Um homem alto e forte em seus trinta e
tantos anos. O lado esquerdo de seu rosto estava vermelho com a marca da
minha mão.
— Desculpa, eu não deveria ter batido na sua cara. — Descansei
minhas costas contra a parede e deslizei para o chão.
— É a primeira vez que tento ajudar uma mulher e levo uma bofetada
— ele comentou. — Não que eu não tenha recebido de forma isolada.
— Eu teria feito uma besteira se você não tivesse me segurado. —
Fechei os olhos.
— Você é minha nova vizinha, estou certo?
— Se você mora no prédio, sim. — Respirei fundo, buscando
equilíbrio para entrar no apartamento.
Felipe dormia profundamente. Foi melhor assim. Ele precisava estar
saudável para dar um fim naquela situação.
— Você quer água? Está tão trêmula.
— Não aceito nada de estranhos.
— Ok, não está errada. — O ouvi expelir ar pela boca. — Posso
medir sua pressão arterial e ver se está tudo bem?
Abri meus olhos e contemplei o intruso mais uma vez. Vestido com
uma roupa formal, ele era meio grisalho, exalava um certo charme e...
Desviei antes de olhar muito.
— Só vou respirar um pouco aqui. Meu marido está em um pós-
operatório e tenho que me controlar para não apertar o pescoço dele.
— Não queria estar no lugar dele. — Sentou-se sobre os calcanhares.
— Sou Paulo Henrique. Trabalho na área da saúde e moro com minha filha
no apartamento ao lado. Me dê sua mão — pediu, mas hesitei. — Só quero
ver seu pulso. Você está muito trêmula.
— Que porra é essa aqui? — Felipe apareceu na porta, só de boxer e
camiseta.
— Você não deveria ter saído do quarto, Felipe — levantei —, vamos
voltar.
— Quem é? — questionou com uma das mãos no abdômen.
— É o vizinho, Felipe. Vamos.
— Por que estava gritando, Alicia?
— Vamos entrar.
— Você mexeu com minha mulher, vagabundo? — Felipe apontou o
dedo na direção do homem e deu um passo à frente.
— Felipe!
— Sou o Paulo. — O homem estendeu a mão e Felipe recusou. —
Vejo que você está em um pós-operatório. — Ele recolheu a mão. —
Vesícula biliar? Intestino?
— Apêndice — Felipe respondeu raivoso, medindo o homem com
inimizade. — Venha, coração. — Abraçou meu pescoço, beijou minha testa
e me levou para dentro do apartamento.
Trêmula e com os olhos melancólicos, Alicia entrou no quarto e foi
mexer nas minhas roupas.
Lutei para não confrontar sobre o vizinho, mas a verdade era que eu
não suportava a ideia de vê-la com outros homens.
— Não vai me falar o que aconteceu? — perguntei com falsa
despretensão.
— Estou focada na entrevista. Faça o mesmo — respondeu fria,
mexendo na parte das calças.
— Aquele cara mexeu com você? Já o conhecia?
— Não estive na cama de todos os homens desta cidade, Felipe. É
isso que você quer saber?
— Alicia, o que é isso? — Me alterei e ela suspirou como se estivesse
exausta.
— Levanta o pé — ordenou, se abaixando com uma calça nas mãos.
— Preciso me concentrar para não vacilar na hora da entrevista. Faça o
mesmo e me deixe quieta — disse embargada e tive certeza de que as coisas
estavam fora dos eixos.
— Vem cá.
— Não!
— Agora, mulher! — Usei o mesmo tom. Ela levantou e vi uma única
lágrima despencar de seu olho direito. — O que está acontecendo?
— Sua ex-namorada esteve aqui — declarou, com o rosto tenso e o
choro reprimido.
— Então os gritos... Vocês discutiram?
— Você está usando a influência da sua família para acelerar o
processo de adoção e ela vai usar isso para me prejudicar.
— Claro que não. Mariana é minha amiga, não passaria sobre uma
decisão minha e não estamos fazendo nada ilegal.
— Ela está com o orgulho ferido, Felipe. E acabei de puxar os cabelos
dela.
— Porra, Alicia! Que imaturidade do caramba! — Deixei escapar,
sem conseguir imaginar Mariana em uma situação como aquela.
— Já estou me sentindo muito mal, Felipe. Não preciso de mais
acusações.
— Desculpe. — Suavizei minha voz. — Só não quero que você se
comporte assim. Principalmente agora, na véspera da adoção.
— Tenho um passado vergonhoso e ela sabe de tudo, porque você
falou!
— Não falei nada do que me confidenciou.
— Ela me humilhou.
— Porra, Mariana não tinha que vir aqui. — Segurei o rosto de Alicia
entre minhas mãos. — Desculpa por isso.
— Procurei você e não tinha o direito de exigir nada, mas agora estou
fazendo planos, Felipe. Planos que só envolvia a Anna Flor — disse com os
lábios trêmulos e seu sofrimento doeu em mim.
— Não quero fazer nenhuma de vocês sofrerem. As duas já foram
muito machucadas. — Passei meus polegares nos olhos dela, limpando o
excesso de lágrimas.
— Não quero que vocês tenham um filho fora de casa. Agora tenho o
direito de não aceitar.
— Me dispus ajudá-la, Alicia. Alimentei o sonho dela e dei minha
palavra. Não posso virar as costas e ser mais canalha do que já fui.
— Tem tantos homens no mundo. Doadores anônimos...
— Mariana quer estabilidade emocional para a criança. Um pai
presente e que seja referência. Fiz todos os exames. Sou saudável, jovem,
não tenho vícios e posso dar uma boa qualidade de vida para o bebê. Ela
investigou tudo depois que me dispus ajudá-la.
— Tudo bem, Felipe. Não me envolvo mais nessa história e
continuamos apenas pais da Anna Flor. — Se afastou, falando esse absurdo.
— Como?
— Se não posso exigir mais nada, também não dou.
— Não inventa isso, Alicia. É só mais uma tentativa. Só uma e estarei
livre, sem culpa.
— Ela me olha como se eu fosse um ser desprezível.
— Você não é desprezível. — Tentei abraçá-la, mas se esquivou.
— Não me chamou de puta com todas as letras, mas o olhar dela me
lembrou de quem eu realmente sou.
Sentei-me na cama com a mão no curativo. Ouvir aquelas palavras
era como receber uma punhalada no peito.
— Você agora é minha esposa, Alicia. Não lembre desse tormento.
Foi apenas uma fase. Já passou.
— Me sinto pequena diante de vocês e dessa parceria que continua
forte depois de tanta reviravolta. — Ela se abaixou novamente e enfiou a
calça no meu pé. — Não vou mais voltar nesse assunto. Preciso de paz,
você não está bem e a assistente social está chegando.
— Quando eu puder sair de casa, a primeira coisa que vou fazer é
conversar com a Mariana.
— Fiz suco de laranja e esquentei os salgadinhos que minha mãe
trouxe. Quero causar uma boa impressão na assistente social. — Alicia
mudou de assunto e fungou, sufocando as lágrimas.
Precisava resolver aquela situação. A cota de tristeza da minha
mulher já tinha excedido todos os limites.
— Você está linda neste vestido, coração. — Suspendi a alça fina e
corri o indicador entre o tecido e a pele aveludada.
— Levanta — pediu com a calça no limite das minhas coxas.
— Me dá um beijo — pedi em tom de adulação.
— Nosso casamento está em crise, Felipe.
— Em apenas uma noite e três dias? — Levantei e ela subiu a calça.
— Sim! Não força ou piora.
Porra!
— Alicia...
— Estou meditando. Não me amola.
— Você...
— Não quero saber.
— Minha primeira ereção foi com você, lembra? — Comecei a apelar
e ela me olhou enviesado. — Somos mais íntimos do que você imagina,
coração.
Alicia amarrou o cordão da minha calça e revirou os olhos.
— Senta aí. Vou pentear seu cabelo.
— E vamos ficar assim, brigados? — Fixei dentro do decote dela. —
Quero um beijo.
— Nossa única saída é sermos amigos — falou fria, ferindo o meu
coração.
— Caramba, Alicia, falei que vou resolver essa situação.
— Se concentre na entrevista, Felipe. Elisabete deve chegar logo.

— Vamos fazer só mais algumas perguntas — Elisabete, a assistente


social, falou ao se sentar no nosso sofá, depois de observar tudo dentro do
apartamento.
Para agilizar o processo, a psicóloga apareceu de surpresa e isso me
pegou desprevenida em um dia tão agitado.
— Você tem irmãos Alicia? — perguntou Elisabete, com um sorriso
calmo no rosto.
— Tenho dois. Luiz Miguel, o mais velho, é delegado da Polícia
Federal.
— É uma profissão muito importante — comentou.
— É... O mais novo, Heitor, desenvolve aplicativos e está no primeiro
semestre de ciência da computação.
— Outra excelente profissão. Um dos meus irmãos é gerente de TI —
ela comentou outra vez.
Sorri, nervosa, pressentindo qual seria a próxima pergunta.
— E você? Está estudando... Trabalhando...?
— Só fiz o ensino médio — respondi, sentindo a mão de Felipe sobre
a minha. — Passei em três vestibulares, mas não prossegui.
— E, por que não prosseguiu?
— Não senti entrosamento na prática — respondi com a voz
arranhada.
Deus, por favor, não me deixe perder a minha menininha.
— Certo... — Ela desceu os olhos para a ficha que estava nas mãos.
A psicóloga também anotou algo na agenda.
— Minha mulher está com um projeto que vai beneficiar crianças da
comunidade carente — Felipe disse, e apertou minha mão com mais
intensidade. — Alicia toca piano. Não é porque estamos falando da minha
mulher, mas, essa ruiva aqui é a melhor musicista que conheço.
Ri daquele exagero e não consegui segurar as lágrimas. Quase deitei
minha cabeça no peito dele.
— Sua esposa se emocionou — Elisabete comentou e sorriu com a
outra mulher.
— Ela é emotiva. — Felipe beijou minha têmpora.
— É uma escola de música — completei, mergulhando naquela nova
ideia. — Quero levar arte para as crianças que não tem acesso ao piano e
todos os outros instrumentos musicais — falei com tanta propriedade que
pareceu ser um velho projeto.
Agora teríamos que fazer aquilo funcionar de qualquer maneira.
— Vou financiar o projeto — Felipe acrescentou. — Na verdade toda
a minha família vai se envolver.
— Isso é ótimo. — A assistente social descansou a caneta sobre a
ficha. Querendo saber mais. — O projeto é recente?
— O capital, que é o principal, já está liberado — Felipe se
empolgou. — Mas recentemente tive que viajar ao Canadá para fazer um
curso de gestão e visitar meus pais, aí veio a cirurgia, então tivemos que
adiar o projeto.
— Seus pais moram no Canadá, Luiz Felipe?
— Meu pai é um cientista canadense e leciona em uma universidade
em Toronto. Minha mãe é brasileira, mas estudou lá e trabalha como
pediatra.
— Estão cercados das melhores profissões — a psicóloga se
expressou. — Como é a sua relação com os seus pais, Alicia?
— O meu pai já faleceu. Minha mãe se casou com o amigo do meu
irmão mais velho... — Felipe apertou minha mão. — Rosinaldo, meu
padrasto, é novo, mas faz a minha mãe feliz. Também tenho um
cachorrinho vira-lata e somos muito apegados. — Sorri, lembrando de
Teodoro. Sentia muita falta dele, mas não pude trazê-lo com o Felipe
doente.
— Recentemente saiu uma pesquisa em uma revista americana
falando sobre bebês e cachorros — a mulher falou enquanto escrevia algo
no papel.
Engoli em seco.
— O cachorro vai ficar com minha sogra. Anna Flor ainda é muito
pequena — Felipe declarou e encontrou o meu olhar de confronto.
— Ficou comprovado que cães e gatos ajudam a amadurecer o
sistema imunológico da criança no primeiro ano de vida — completou a
mulher, nos olhando por baixo dos óculos. — A criança não é alérgica,
então não vejo problemas. Desde que o cachorro seja manso e domesticado.
— O Teodoro é muito meigo e amoroso — expliquei e Felipe beijou
minha mão.
— Tenho acompanhado Alicia de perto, nas visitas que faço ao
orfanato. Ela é hábil no cuidado de crianças. E a bebê é muito apegada a ela
— a assistente social falou para a psicóloga.
— Alicia é uma mãe maravilhosa — Lipe completou, beijando minha
bochecha.
— Vocês sabem que a menina foi abandonada próximo a um lixão,
certo? — a psicóloga indagou, olhando-me fixamente.
— A Joana, diretora do orfanato, me contou e não consigo entender
como alguém pode abandonar um bebê na rua — argumentei, deixando
claro minha indignação.
— Pretendem mudar o nome da criança, certo? — Elisabete
perguntou.
— Sim. Anna Flor. Ela já atende assim. — Derramei lágrimas
naquele momento. — Eu a amo. Amo muito. Quero dar um lar digno para
ela.
— Anna Flor Azevedo Moedeiros — Felipe completou. — É assim
que nossa filha vai se chamar.
— Vou passar uma ficha para vocês dois preencherem. É
procedimento. — Elisabete nos entregou folhas de papel. — Vamos fazer o
nosso relatório e em breve vocês receberão notícias.
— Você pode nos adiantar algo, Elisabete? — Felipe perguntou. — A
ansiedade está grande. Alicia dorme e acorda pensando na filha.
— Bem, o outro casal teve problemas com os documentos e atrasou o
processo. Considerando que poucos pais escolhem crianças diagnosticadas
com uma condição genética, e que a criança é muito apegada a sua esposa,
vocês já podem montar o quarto da pequena. — Ela levantou do sofá. —
Em breve vocês receberão a notícia oficial através de um oficial de justiça.
— Vou apesentar um pedido de guarda provisória em caráter de
urgência. Antes mesmo do final do processo, estaremos com nossa filha. —
Felipe beijou minha mão e sorrimos juntos, embalados por uma emoção
indescritível.
Sempre gostei de fazer planos e, aos treze anos, quando meu avô me
levava para conhecer as áreas do escritório, decidi que não iria realizar a
vontade do meu pai, mas seguiria meu próprio caminho, na área do Direito
civil.
No mesmo período, planejei casar com Duda e ter meia dúzia de
filhos correndo no jardim de uma casa grande.
Mas se a vida me ensinou algo valioso, é que às vezes nosso destino
muda sem avisar e precisamos estar prontos para receber o novo, o que na
maioria das vezes é o contrário e absurdamente desafiador para o nosso
planejamento.
Saí do quarto de pijama, vi a porta do quarto de Alicia aberta e entrei.
Ela não estava lá, mas me aproximei da cama, passei a mão pelas calcinhas
dobradas e não resisti. Peguei uma delas e inalei aquele cheiro maravilhoso
que há alguns dias envolvia meus sentidos.
Foi magnífico ouvir seus sons, sentir seus movimentos e experimentar
tudo dela enquanto se descobria.
No fundo, me sentia responsável por parte da culpa. Embora não
estivesse em minhas mãos, acredito que poderia ter evitado a violência se
naquele dia em que nos beijamos em meu quarto a tivesse acolhido em vez
de mandá-la embora.
Fui rude quando expus meus sentimentos por Duda logo após nosso
primeiro beijo. Acabei machucando um coração que já estava sofrendo e a
deixei mais vulnerável e indefesa durante aquela semana.
Isso assombrou minha mente durante a viagem. Não parei de pensar
nela e não quis parar de pensar.
Quando seus olhos se fecharam após o prazer, senti uma pressão
estranha no peito, uma ansiedade repentina dentro do abdômen, um desejo
intenso de tê-la sempre comigo...
Alicia vinha ocupando todos os lugares da minha vida, nossa conexão
já era inegável e eu me sentia pronto para organizar sua bagunça.
Larguei a peça na cama, segui no corredor e ouvi sussurros afinados
vindo da cozinha.
Parei na guarnição da porta e me mantive quieto. Observei-a.
Cabelos soltos, pijama de seda e pantufas de coelho.
Linda, sexy e feliz.
Dei três batidas contra a guarnição. Ela inclinou o pescoço e sorriu
graciosamente, me paquerando com uma piscadela. O coração chegou a
sambar no peito. A ruiva já era linda, mas agora parecia tão única e
especial.
— Larga isso aí, você precisa descansar — sussurrei ao me aproximar
e abraçá-la por trás, deslizando minha mão por sua barriga, deixando um
beijo em seu ombro direito.
— Já vou dormir. Tomou o remédio?
— Tomei — respondi suavemente, acariciando seu pescoço com
beijos suaves.
— Ótimo, agora sente-se à mesa para jantar e tome cuidado com o
curativo. — Ela abriu meus braços e se afastou. — Um funcionário da
mamãe trouxe purê de legumes e peito de peru desfiado para você. —
Puxou uma cadeira e observei a mesa montada. — Vem, vou esquentar o
feijão. Mamãe mandou na panela e me fez prometer comer um pouco antes
de dormir.
Me aproximei da mesa, ela se esquivou e parou em frente ao cooktop
com as mãos na cintura. Não sentei. Observei. Quando ela começou a
balançar os botões e bater no aparelho, dei cinco passos rápidos e a
alcancei.
— Ei! — Coloquei a mão sobre o curativo.
— Isso não presta, Felipe! Te enganaram na loja — reclamou.
— Esses são os queimadores desses botões — instruí. — Pressione e
gire no sentido anti-horário e o acendimento será automático. Tenha mais
cuidado.
— Rum! — ela murmurou petulantemente.
— Tudo bem. — Sorri, beijando sua testa. — Vou ligar para a agência
e contratar duas funcionárias para cuidar da casa...
— Não, Judite vem — interveio, ajustando a panela no fogo. — Já
combinamos. Mamãe vai liberá-la para mim quando a outra funcionária
voltar das férias.
— Certo. É ainda melhor. Essa senhora é cuidadosa com você —
brinquei com os cabelos ruivos, enrolando-os na ponta do meu dedo.
— Falando assim, até parece que sou uma criança.
— Gosto de saber que você está em boa companhia quando não estou
por perto.
— Depois não reclame se eu ficar mais mimada.
Mordisquei o lóbulo de sua orelha e senti seu corpo estremecer.
— Sobre nossa conversa com uma assistente social... o projeto de
música... — Dei um beijo em sua bochecha e voltei para a mesa. — É o que
você quer?
— É um projeto muito caro, Felipe... — Ela veio, me entregou a
colher e sentou-se à minha frente, os olhos fixos e esperançosos.
— Você pensa em tentar mais um curso na faculdade? — Mergulhei a
colher no prato e saboreei a deliciosa comida da minha sogra.
— Sou fluente em três idiomas, passei em alguns vestibulares, mas
não tenho mais paciência para estudar. Também tenho dificuldade em me
dar bem em grupos e não quero mudar isso — explicou do jeito dela, pegou
um prato vazio e começou a montá-lo com pequenas porções.
— Mas você gosta de conviver com as crianças do orfanato, certo?
— Eles não me julgam com os olhos. — Deu de ombros. — Podem
até brigar por atenção, mas se perdoam sem falsidade. Só precisam de
cuidado e proteção para não crescerem como as pessoas aqui de fora.
Senti um nó na garganta, meu peito apertou e fiquei sem palavras por
um momento. Minha esposa era astuta, mas sempre deixava escapar uma
nota de inocência que me fazia querer segurá-la para sempre em meus
braços. Era como se em algum lugar de sua alma ela ainda fosse a criança
que encontrei chorando atrás de uma árvore treze anos atrás.
— Se dar às crianças um futuro diferente é o que você gosta de fazer,
vou investir no que te faz bem. Assim que Anna Flor estiver conosco, vou
procurar um espaço amplo e te ajudar a desenvolver seu projeto.
Alicia suspirou, largou o prato e pegou minha mão.
— Você é o marido mais generoso do mundo. — Ela deixou beijos
nos meus dedos. — As crianças vão adorar aprender sobre música. —
Beijou meus dedos outra vez. — Vou buscar parcerias e talvez o projeto se
expanda para outras áreas.
— Faça isso, querida. Você é incrível e seu coração é doce. — Trouxe
sua mão e a beijei de volta.
— E nunca terei que trabalhar, porque você é um herdeiro milionário
e vai me dar a vida de uma rainha — completou emocionada, com lágrimas
nos olhos.
— Se eu não estivesse de repouso você me agradeceria ali na cama,
né coração? — sugeri e ela soltou uma curta gargalhada.
— Não confunda as coisas, Luiz Felipe. Primeiro coloque sua vida
em ordem. — Levantou da cadeira e pegou o prato. — Por enquanto você
está de castigo. — Foi para o fogão.
— Quê?
— Castigo, marido — insistiu.
— Então só vou te dar meu presente da viagem quando o castigo
acabar.
Ela esticou o pescoço, me mediu com os olhos, deu de ombros e
disse:
— Vai ser meu de qualquer maneira.

— Bom dia, moça bonita — interceptei Alicia na cozinha e deixei


beijos em seu rosto. — Hum, cheirosa... Saiu cedo da cama e não me
acordou.
— Bom dia, marido. — Se aproveitou do meu chamego e depois saiu.
Abriu a geladeira, capturou uma jarra de suco e levou para a mesa.
— E o meu beijo?
— Ah, que distraída, né? — Veio até mim, ficou na ponta do pé e
beijou os dois lados da minha bochecha.
— Agora na boca. — Abracei sua cintura fina.
— Beijos na boca estão temporariamente suspensos. — Pressionou os
dedos no meu queixo.
— Não precisa ser assim, coração. Você dormiu ao meu lado e não
me deixou encostar o pé em você. Fez frio. Estou debilitado. Preciso de
beijos na boca.
— Quero um marido sem filhos na rua, Felipe. Até você se resolver,
será assim. — Cheirou meu pescoço. — E não me pegue tão forte. Preciso
que você se recupere sem sequelas. — Desatou minhas mãos e tive que
ceder. — Veja nossa mesa como está bonita. — Sentou e afastou outra
cadeira para mim. — Venha.
Sentei e peguei um pão. Rasguei com ignorância e antes de colocá-lo
na boca levei um tapa na mão.
— Também não posso comer? — reclamei igual a porra de um
moleque mimado.
— Você ainda não foi liberado para comer pão. — Ela levantou um
prato e colocou perto de mim. — Seu mingau de aveia já está morninho.
Coma. Fiz sozinha. — Sorriu com orgulho.
— Você? — Fitei a papa de grãos grossos e sorri nervosamente. —
Parece gostoso.
— Então experimenta.
Me encorajou com um sorriso no rosto e coloquei uma pequena
porção da comida na colher.
— O cheiro está bom, hein? — Olhei para a ruiva e vi seus olhos
brilhando de expectativa. — Vou comer tudo.
Levantei a colher, levei aos lábios e me senti o próprio Zé Jacaré, que,
ao tentar comer o pica-pau ruivo, só mastigava o próprio rabo.
O mingau estava tão salgado que senti minha língua entalhar.
— Então, Lipe?
Enrolou na minha garganta, mas lutei e consegui fingir normalidade.
— Gostoso...
Ela sorriu presunçosamente e colocou uma mecha de cabelo atrás da
orelha. Continuei comendo a salmoura como se fosse uma iguaria. Não
estava louco para criticá-la no meio de nossa primeira crise.
Despejei o café na xícara, mas quando o levei à boca, com a intenção
de afastar o mingau, engasguei e manchei minha camisa.
Sal puro.
— Toma devagar, Felipe. Tem muito café aí e posso fazer mais
depois. — Ela usou um tom afetuoso, muito presunçoso para ser proposital.
— Você adoçou seu suco? — sondei.
— Já basta o açúcar natural, marido. — Levou um punhado de salada
de frutas à boca e mastigou.
A campainha do apartamento tocou e me levantei da cadeira,
agradecendo aos céus por me livrar da próxima colher de salmoura.
— Não, não, marido. Eu atendo a porta. — Passou por mim e sumiu
da cozinha.
Aproveitei e levei o prato até a pia. Joguei a metade do conteúdo na
cuia e deixei a água levar embora.
— Bom dia, cunhado. — Heitor apareceu na cozinha quando eu
estava voltando para a mesa. — Posso me sentar? — Já perguntou sentado
na cadeira. — Como vão as coisas por aqui?
Com o indicador e o polegar, ele sacudiu o suéter de tricô azul que
usava sobre uma camisa social abotoada até o pescoço.
— Quase morri, mas estou bem — respondi, observando o visual
totalmente diferente do que ele costumava usar.
— Por pouco Alicia não herdou sua fortuna na primeira noite. —
Inquieto, ele levantou a armação preta dos óculos que eu nunca tinha visto
em seu rosto. — Isso é ser azarenta.
— Heitor! — Alicia chegou e beliscou o irmão.
— Alicia, deixa. — Tentei acalmar a mulher.
Heitor se esquivou da irmã, pegou pão de queijo, mastigou e disse:
— Eu não queria aparecer aqui tão cedo, mas preciso resolver uma
situação importante aqui perto.
— Por que você desenterrou os óculos da gaveta? E essa camisa
fechada ao talo? — Alicia perguntou, despejando café em uma xícara e
colocando-a ao lado de seu irmão.
— Resolvi adotar o visual geek raiz, sabe como é? Ganhei mais dois
anos com ele. Cara de vinte. Minha avó aprovou.
— Você não está usando drogas, não é garoto? — Alicia perguntou.
— Só se for a mesma droga que meu cunhado usou para casar com
você — Heitor falou com a boca cheia e levou um tapa na cabeça. A irmã
fez isso.
— Vou à terapia, depois vou direto ver a minha filhinha — disse
Alicia, antes de tomar a última colherada de salada de frutas. — Faça
companhia ao meu marido.
— Alicia... — Peguei a mão dela e me levantei da cadeira para roubar
um beijo na boca, mas ela virou o rosto e recebeu meus lábios no rosto. —
Só um beijinho, coração — reclamei perto do ouvido dela.
— Estou atrasada, marido. Tome o seu remédio na hora certa. — Me
largou, saiu da cozinha e não olhou para trás.
— É impressão minha ou tem uma tensão no ar? — Heitor comentou
antes de virar a xícara na boca e retornar o líquido de volta. — Mas que
porra é essa?
— Sua irmã não conhece a cozinha e como não consome açúcar,
trocou pelo sal. Vou mudar o conteúdo dos potes e tudo estará resolvido.
— Tem meio quilo de sal na minha boca e essa merda vai cortar
minhas entranhas — Heitor resmungou, colocando a boca debaixo da
torneira da pia.
— Sua irmã está se esforçando, Heitor — zombei, jogando o mingau
no vaso de lixo.
— Seu kamikaze do caramba.
— Ela me surpreende a cada dia. — Continuei rindo e raspando a
papa do prato.
— Ela é uma terrorista. — O engomadinho tatuado encheu um copo
com água do purificador e bebeu um longo gole. — Mas é bom saber que
você está se tornando devoto. Alicia já sofreu muito. — Tomou outro gole.
— E vou precisar de você também. — Largou o copo na pia. — Quero
convidar sua vizinha para tomar um sorvete e pela primeira vez preciso de
ajuda.
— Que vizinha? Não conheço ninguém aqui. — Coloquei iogurte no
copo, precisando eliminar a sensação de esôfago em carne viva.
— Ela mora na porta ao lado. É menor de idade, mas já tem uma
filha. Eu a encontrei ontem aqui perto, mas fui com sede ao pote e estraguei
tudo.
— Está emancipada? Solteira? Quer você? Não aconselho nem
aprovo seu envolvimento com uma menor.
— O que Alicia, sendo uma vida louca, viu em você, Felipe?
— Você pode não gostar da resposta. — Levantei uma sobrancelha.
— Foda-se, bastardo. — Heitor derramou iogurte no copo e o colocou
na boca. — A garota certamente mora com os pais. — Ergueu a mão
tatuada. — Tentei maquiar, mas não deu certo. Se forem idosos, só isso vai
me condenar como maconheiro. Preciso da referência de um advogado
pomposo. Vai lá vestir uma roupa decente. Vou esperar na sala.
— As pessoas da sua família têm uma grande queda por caminhos
tortuosos. — Fui atrás dele.
— Quem ainda fala “caminhos tortuosos”?
— Os pais da menina quando virem o piercing na sua língua.
— Porra, sabia que estava esquecendo de alguma coisa.
— Eu a vi entrar aqui. — Heitor pressionou o dedo na campainha do
apartamento ao lado.
— Se a criança estiver dormindo você vai se ferrar — eu disse logo
atrás, com as costas na parede do corredor, não muito satisfeito com a
iniciativa do meu cunhado.
— Qual a emergência? — perguntou o vizinho que encontrei
conversando com Alicia outro dia naquele corredor. Suas roupas sociais
estavam amarrotadas e os olhos vermelhos, como se não dormisse há dias.
— Sou o Heitor Azevedo. Como você está? — Meu cunhado
estendeu a mão e o homem só a apertou após estudá-lo por alguns
segundos.
— João Paulo Henrique. — Apertou e soltou a mão de Heitor. — Sua
sorte é que minha filha tem um sono pesado.
— Então, você é o pai da criança? — Vi meu cunhado engolir em
seco e passar o dedo indicador entre o colarinho apertado e o pescoço.
— Isso, sou o pai — o homem confirmou.
— Mas... você e a mãe dela ainda estão juntos? — Heitor insistiu.
O moleque era corajoso. Maluco igual à irmã.
— Somos separados. Você conhece minha ex-mulher? — O homem
semicerrou os olhos.
— Estamos nos conhecendo. Ela é um pouco arredia, mas linda pra
cara... Porra, desculpa. Apenas bonita. Não só bonita, mas ... você
entendeu — Heitor continuou se enrolando e comecei a me divertir.
— Não sabia que ela estava saindo com um garoto da sua idade — o
homem comentou com ar divertido e cruzou os braços.
— Então, tudo beleza se eu e ela...?
— Eu a apoio totalmente. Somos amigos e só a quero bem — disse o
homem e Heitor relaxou com um suspiro. — Foi ela quem te mandou aqui?
— Não, ela nem sabe que estou aqui. É que ontem eu tentei, só
tentei... Enfim, quero convidá-la para tomar um sorvete de creme... com
passas.
O homem riu incrédulo e comecei a questionar a história.
— Se suas intenções com a mãe da minha filha são sérias, vá em
frente, garotão.
— Cara, você não é muito velho para a idade dela? O sogrão aceitou
sem problemas? — Heitor questionou e o vizinho gargalhou.
— Olha, garoto, acabei de chegar de um plantão. Estou morto de
sono. Se você quiser voltar outra hora a gente conversa sobre isso, mas já
garanto que a sogra é difícil de lidar.
— Não, tudo bem, só queria mesmo convidá-la para tomar sorvete de
creme.
— Eu imagino que seja importante, mas agora preciso tomar um café
forte e ver se minha filha vai com Alicia para o passeio da manhã, porque
realmente estou morto.
Afastei-me da parede quando ouvi o nome da minha ruiva.
— Minha mulher, Alicia? — Me aproximei dos dois.
— A cachorra... — ele disse naturalmente e meu soco foi automático
em sua boca.
— Filho da puta! — Senti uma dor potente no abdômen, me afastei
curvado e apoiei a mão na parede.
— Não chama minha irmã de cachorra, porra! — Heitor empurrou o
vizinho para dentro do apartamento.
— De que inferno vocês saíram? — o dono do apartamento
esbravejou e empurrou Heitor de volta.
Fechei os olhos e tentei respirar pela boca.
— Ela tem seus defeitos, mas merece respeito. Na minha frente e do
marido dela, caramba? Você quer morrer? — Heitor continuou defendendo
a irmã enquanto eu só conseguia tragar ar para os pulmões.
— Entra, Alicia! — o homem gritou.
— Droga, shh, não, não faça isso! — Heitor gritou, seguido por
latidos finos e rosnados, então me forcei a olhar.
Uma cachorrinha spitz alemão rosnava e meu cunhado balançava a
perna tentando se livrar dos dentes da pequena fera.
— Alicia! — o homem gritou outra vez e a cadelinha se afastou
rosnando.
— Ela é Alicia? — Heitor perguntou e se calou quando uma jovem
cabeluda apareceu na porta.
— Ela é a cachorra da minha filha — o homem disse alterado,
limpando o sangue da boca.
— Quem bateu em você, pai? — perguntou a menina de pijama e
olhos assustados.
— Foi ele que bateu no seu pai. — Com a perna da calça suspensa e
sangue escorrendo, Heitor apontou para mim.
— Desculpa pela confusão... — Liberei um gemido de dor. — Meu
cunhado é perturbado... — expliquei entre engasgos. — Alicia é o nome da
minha esposa, por isso soquei seu rosto. Achei que você estava.... de
qualquer maneira, acho que...
Tudo em minha volta girou.
— Você precisa ir ao pronto-socorro agora. — O médico levantou
minha camisa, ignorando todo nosso atrito recente.
— Minhas férias estão terminando sem descanso, mas o problema
com o documento foi resolvido e estamos adotando meus dois bebês —
disse Michelle ao meu lado, me ajudando com os bebês brincando no
gramado do orfanato.
— Gabriel e o João são unidos e é bom que cresçam juntos. — Sorri
com lágrimas nos olhos, feliz pelos bebês e pela mulher ao meu lado, que
agora parecia esperançosa e menos deprimida.
— Eu também ganhei uma mamãe e um papai sem cabelo — Milena
disse sorrindo, abraçando a boneca com proteção.
— Minha mãe e meu padrasto pediram a custódia dela e estão
entrando no processo de adoção — expliquei a Michelle. — Se o juiz
liberar, ela e Anninha deixam o orfanato nas próximas semanas. Meu
marido entrou com pedido de guarda em caráter de urgência.
Beijei os cabelos curtinhos da minha irmãzinha.
— Também estamos providenciando a custódia provisória dos
meninos. Tivemos sorte de serem todos órfãos, Alicia — a médica
sussurrou a última frase e tive que concordar com ela.
— Michelle, você já hesitou em adotar pelo bebê não ser gerado no
seu ventre? — perguntei, querendo desabafar um pouco.
— Eu não tinha mais esperança, Alicia. A decisão de adotar foi um
bálsamo para minha alma ferida — Michelle respondeu, enquanto um dos
bebês subia nas pernas dela. — Filhos nascem no útero e no coração —
completou.
— A ex-namorada do meu marido tem dificuldade de ter filhos e
antes do meu casamento eles fizeram várias tentativas no laboratório... Eles
se separaram, mas ela continua obcecada em ter o filho.
— É um desejo tão intenso e real, Alicia, que algumas mulheres
desenvolvem peculiaridades psicológicas. Tive que cuidar da minha mente
e só então encarar a realidade e pensar em receber um filho escolhido pelo
coração.
— Mas o problema é que ela quer um filho com o DNA do meu
marido, que enaltece a amizade dela e se mantém fiel a este projeto. Você
entende o tamanho do meu problema?
— Certamente ela vê nele alguém especial para se apoiar durante a
maternidade. Um porto seguro. Tudo o que a mãe e o bebê precisam. Se ele
nutre esperança e ela está emocionalmente ligada, é muito sério. Ela precisa
de ajuda psicológica para começar.
— Entendo que me meti entre o projeto deles, mas vou continuar
defendendo minha família. Ela não vai ter um filho do meu marido. Isso eu
não vou permitir — murmurei com convicção.
— Sim, não aceite de outra forma. Afinal, é seu marido. Se fosse filho
de outro relacionamento, precisaria aprender a amar como parte de sua
família, mas não é o caso.
Aninha subiu no meu colo e espalhei beijos em seus cabelos
perfumados.
— O papai é só nosso, filhinha. Temos esse direito, né, amor?
— Alicia, seu celular está chamando. — Michelle me entregou o
dispositivo.
Felipe.
— Felipe? — falei ao telefone, tentando desviar a mão da Anninha.
— Fiz um pequeno esforço e alguns pontos se romperam, mas já está
tudo no lugar. Estou voltando com o Heitor.
— Eu te deixei bem, Luiz Felipe! — Levantei com Anninha.
— É, mas soquei a cara daquele médico do corredor. O vizinho.
— Irresponsável! — me exaltei. — Vou terminar de arrancar seus
pontos com minhas próprias unhas.
—Tinha uma cachorra com o seu nome, coração...
— Você está piorando a situação, todo feio — avisei, enfurecida.
— Te encontro em casa, Alicia. Estou vivo e bem. Venha com calma e
traga uma foto da minha filha.
Gritei e ele encerrou a ligação.
Doze dias depois

Saí do carro e caminhei na calçada, de frente para a praia.


Aproveitei o fato de a Alicia ter saído com a mãe e combinei um
encontro com Mariana. As coisas não estavam fáceis para mim. A ruiva
ainda regrava os beijos que me dava durante o dia, beijos castos que
conquistava por meio de chantagem emocional.
— Felipe!
Mariana acenou de uma mesinha do quiosque e me aproximei.
— Oi, Mari. — Beijei o rosto dela. — Por que não colocou um
casaco? A noite está fria — comentei ao me sentar na cadeira ao lado.
— Esse seu cuidado me faz falta, bonito. — Ela sorriu e seus olhos
como jabuticabas brilharam sob a iluminação amena da noite.
— Seu cabelo cresceu? — perguntei e levei meu indicador para um
dos cachos que eu adorava acariciar entre meus dedos.
— Cresceram um pouco... — Mari pousou a mão no meu braço e
alisou. — Você emagreceu, Felipe. Não estão cuidando bem de você.
— Foi a cirurgia. — Recuei minha mão, sentindo como se os olhos da
ruiva estivessem nas minhas costas. — Alicia faz um pouco mais do que eu
mereço, Mariana.
— Alicia... — Mariana arfou em tédio. — Ainda não consigo
imaginar você com aquela moleca.
— Não fala assim dela.
— Não, não quero parecer intrometida. Mas é tudo tão forçado,
Felipe. Ela é imatura, mimada e muito soltinha para o seu gosto. Lembra da
boate, que ela...
— Ei, não! Pare, Mariana. Alicia é minha mulher agora e estou
realmente fazendo meu casamento dar certo. Esqueça essa merda.
— Ok. — Ela revirou os olhos e chupou o suco com um canudo.
— Fui um canalha com você e assumi. Mas não é confortável ouvir
sobre o passado de Alicia de sua boca, então esqueça.
— Falando assim, parece que estou com picuinha por macho — ela
zombou, rodando o canudo no copo. — Se enxerga, Felipe.
— Decidi não continuar — falei de uma vez, ela me encarou com
decepção, mas sorriu.
— Não vai pedir um suco? Esse de frutas vermelhas está divino.
— Você entendeu o que falei, Mari?
— Dessa vez estou com muita esperança. Vai dar certo — disse com
lágrimas nos olhos. — Não faça isso comigo.
Respirei fundo, precisando fazer aquilo e tendo a certeza de que iria
feri-la de qualquer maneira.
— Por que não começa a pensar em adoção, Mari? Os abrigos estão
lotados de crianças precisando de uma boa mãe como você.
— Quero passar pela gestação, sentir meu bebê crescendo dentro de
mim e vê-lo nascer. Já conversamos tantas vezes sobre isso... — disse em
um tom profundamente triste, sua mão acariciando a barriga.
— Me perdoe, Mari. Eu realmente sinto muito, mas estou disposto a
fazer meu casamento dar certo e para isso acontecer, preciso dizer não para
você.
Lágrimas caíram de seus olhos. Era cruel ter que machucá-la assim.
— Tudo bem, Felipe. Não se sinta culpado. Já era de se esperar.
— Visita um orfanato, Mariana. Você vai se encantar com as crianças.
— Tentei tocar o rosto da minha ex-namorada para acalmá-la, mas ela não
deixou.
— Vou pensar na possibilidade. — Ela enxugou os olhos com a
ponta dos dedos. — Obrigada por tentar até agora. — Desviou o olhar. —
Minhas amigas estão chegando, se você puder ir embora... — Praticamente
me chutou da mesa.
— Não quero esse clima tenso entre nós. Ainda somos amigos. —
Levantei da cadeira e peguei a carteira no intuito de pagar o que ela
consumiu.
— Não precisa. Vou ficar até tarde. — Ela me cortou antes de abrir a
carteira.
— Então se cuida. — Beijei sua bochecha. — Pense com carinho na
adoção.
— Hoje eu só quero beber, Felipe — disse e sorriu para as amigas que
chegaram.
— Só quero que você fique bem. — Desviei do olhar de condenação
de uma das mulheres.
— Eu vou ficar — Mari falou e virou para dar atenção às amigas que
sentaram à mesa.
Ignorado e com a sensação de conversa inacabada, afastei-me, voltei
para o meu carro e quando abri a porta, vi um amigo descendo o calçadão
com o filho pequeno sentado no braço. Ele acenou para mim, então me
inclinei contra o veículo para esperá-lo chegar.
Filho de um ex-deputado, Enrico Chevalier, foi estagiário no
escritório da minha família quando eu era uma espécie de menor aprendiz.
Apesar da diferença de dez anos em nossa idade, éramos amigos próximos
naquela época e ainda mais tarde, antes dele se casar, seguir o caminho do
pai e deixar de ir à balada.
Deputado da Assembleia Legislativa do Paraná, ele se preparava para
o segundo mandato como deputado estadual.
— Luiz Felipe! — ele disse enquanto estendia a mão. — Você
perdeu peso ou é impressão?
— Estou em pós-operatório, Enrico. O apêndice inflamou e foi uma
correria — expliquei, brincando com a mãozinha do bebê.
— Cara, que situação. É bom te ver bem. Você já está podendo sair?
— Não, mas eu tinha que resolver um assunto importante fora de
casa.
— Quando você melhorar, vamos jantar lá em casa. Você e sua
namorada. Doutora... Fernanda.
— Mariana, Enrico, mas não estamos mais juntos. Casei com uma
amiga de infância.
— Casou? Quando foi isso, que eu nem fui convidado?
— Foi muito rápido e só nos casamos civilmente. É uma longa
história. Conversamos depois, preciso ir agora. Está quase na hora do
remédio.
— Vou ligar para marcarmos antes das eleições.
— Ligue, sim. Tchau, garotão.
Cutuquei o menino na barriga e ele me mostrou o sinal de um
dentinho, o que me deu uma vontade absurda de ver a pequena Anna.
Me despedi, entrei no carro e corri de volta para a minha casa, para
minha esposa.
Observei Alicia sair do banheiro cantarolando e vestida com um de
seus pijamas de seda. Com um pote de creme na mão, ela se sentou na
poltrona, espalhou o produto nos pés e piscou para mim.
— O quarto dela já está pronto na casa da mamãe. Milena vai amar as
roupas novas. — Ela largou o creme e veio para a cama, desenvolvendo o
assunto que começou antes de ir para o banheiro. — Foi a mesma equipe
organizadora que me ajudou no quarto da nossa filha. — Levantou o
edredom da cama, mergulhou por baixo do tecido grosso e voltou-se para a
mesinha de cabeceira. — Boa noite, bebezinha. — Acariciou, beijou e
devolveu a moldura com a foto de Anna Flor.
— Amanhã vou ver Anna. — Deixei um beijo em seu ombro. — Já
estou melhor. Quero ver minha filha.
— Ela vai amar ver você, mas não pode pegá-la. Vou ficar de olho
nos dois — concordou com um bocejo. — Hoje só queria dormir cheirando
os cabelinhos dela.
— Ela estará aqui em breve — falei, admirando-a, observando suas
bochechas corarem e um sorriso caloroso decorar seus lábios visivelmente
hidratados por um de seus cremes noturnos. — Você está com muito sono?
— Um pouco. O que foi?
— Seu presente da viagem está debaixo do seu travesseiro.
Ela olhou para os dois lados e meio atordoada, se virou e puxou a
caixa.
— É uma joia? — Desamarrou o laço e, quando abriu o zíper do
fecho, seu queixo caiu, tão maravilhada quanto eu esperava que ela ficasse.
— Ouro amarelo com diamantes e safiras azuis. Ouro rosa com
ametista. Ouro branco com pedra água-marinha. — Apontei para os três
pares de brincos e pulseirinhas da mesma composição que estavam em cada
lado.
— Felipe... Caramba... — Ela passou a mão pelas joias. — Ai, meu
Deus, pulseirinhas para a nossa bebê! — Seus olhos brilharam, então ela
tirou uma das joias e colocou-a perto da bochecha, como se estivesse
abraçando a própria filha. — Você pensou em nós duas, marido.
— Não é assim que tem que ser?
— Três pares... Nós nem estávamos juntos, Lipe. — Ela guardou a
pulseira, pegou um par de brincos e os pressionou habilmente contra as
orelhas. — Olha, esse combina com seus olhos? — Balançou a cabeça e os
pêndulos da joia dançaram.
— Ficaram lindos.
— Veja a riqueza disso, Felipe. — Pegou outro par.
— Vinte anos de trabalho e um rim — brinquei, encantado e satisfeito
com sua empolgação.
— Se você não estivesse de repouso, meu amanhecer seria doloroso,
porque eu quicaria a noite toda — completou em sua voz doce, distraída
com as joias. — Acho que meu par favorito é esse. Amo ouro rosa. Amo
ouro em geral. Obrigada, marido.
Ela olhou para mim com aqueles olhos verdes incrivelmente perfeitos
e tudo que fiz foi fechar minha mão possessivamente atrás de seu pescoço
esguio e reivindicar sua boca em um beijo duro.
Ofegando com o choque, ela segurou meu rosto, pegou minha língua
e devolveu na mesma moeda. A excitação logo me envolveu e pude sentir o
mesmo prazer voraz crescendo nela.
Mordiscamos, gememos, lambemos e, quando não conseguimos
suportar a falta de ar, ficamos em silêncio, aspirando um ao outro, nossos
cheiros se misturando e intoxicando nossos sentidos, nossas mãos
possessivas recusando-se a liberar a pressão. A deliciosa mistura de
sentimentos dançando livremente entre nós.
— Quando cheguei, vi um de seus sapatos fora do lugar.
Ela quebrou o silêncio e ri contra sua pele.
— Sempre preciso lembrar que estou lidando com você.
— Para onde foi? — perguntou. Olhos fechados e excitação presente
em cada linha de seu rosto bonito.
— Fui resolver minha vida. — Rocei minha boca contra seu queixo.
— Escolhi minha família. Escolhi você.
Levantei meus olhos, contemplei as duas esferas verdes cheias de
lágrimas e fui rápido em mimá-la. Cobri cada ponto daquele rosto lindo
com beijos.
— Você ainda não pode, Lipe... — ela disse, parando minha mão que
estava levantando sua camisa.
— Quero te dar prazer outra vez — declarei, deixando seus seios
expostos e puxando minha camisa em volta do meu pescoço. — Tira suas
calças — ordenei, e ela olhou para minha cicatriz. — Vai dar certo, querida.
Confia em mim.
— Não vai ficar excitado?
— É impossível, coração, veja como estou. — Ajoelhei-me, tirei meu
pau semiereto da calça e vi sua língua correr pelos lábios enquanto um par
de lágrimas caíam de seus olhos. — O que foi, Alicia?
Me curvei e selei sua testa afetuosamente.
— Quero mamar, mas você não pode contrair...
Suas palavras me puxaram do campo da preocupação e recuei para
espiá-la.
Ela fungou e meu mastro se moveu sozinho na direção dela. Foi
automático.
— Bem, acho que posso lidar com isso. — Levantei seu queixo e vi
que ela estava realmente triste. — Não chore. Meu pau é todo seu.
— Quero te ver bem, marido... — disse com uma voz chorosa,
agarrando meu pau e beijando a glande com ternura, um leve toque que fez
o sangue correr selvagem em minhas veias. — Vamos dormir, Felipe. —
Deslizou sua língua ao longo do comprimento das veias e beijou minhas
bolas, provocando um formigamento delicioso que endureceu meu
abdômen. — Tá vendo. Você não pode. — Se afastou e voltou no segundo
seguinte. — Último beijo da noite. — Mergulhou os lábios apenas na
cabeça e deu três tragadas fortes e quentes.
— Porra! — Fechei minha mão em seu cabelo, esperei por mais, mas
ela me soltou.
— Venha dormir. — Esfregou os olhos e eu vi preocupação em seu
rosto.
— Não vou gozar. Vou ficar quieto. Vai dar certo. Vem.
— Não me subestime, marido. — Lambeu os lábios, enfiou minha
ereção de volta nas calças e deu um tapinha nele. — Descanse, gostoso.
— Não vou conseguir dormir assim, Alicia.
— Vai, vou acariciar seu cabelo. — Fungando, ela fechou a caixa de
joias e a colocou na mesa de cabeceira. — Ou você prefere que eu vá para o
outro quarto?
— Quero sua boca quente...
— Não, não! Não seja teimoso, Felipe.
— Tudo bem, mas... — Sentei na cama e deitei a cabeça no
travesseiro. — Estou doente, você não. Tire as calças, deite-se aqui e abra
as pernas.
— Felipe, você é um descarado — resmungou com os braços
cruzados, mas deu uma longa olhada para mim e começou a puxar sua calça
sorrateiramente com a calcinha e tudo.
— Isso, venha aqui, mulher.
Revelou aquele pequeno triângulo e ajoelhou na cama para se livrar
dos tecidos.
— Ainda é tão estranho viver com esse seu lado. Você deveria ser
sempre meu príncipe conservador. — Nua, ela se deitou de lado e colocou a
cabeça no meu braço. — Mas a verdade é que conhecê-lo plenamente está
me dando uma liberdade que nunca pensei que encontraria.
— Eu não poderia estar mais honrado.
Mergulhei dois dedos em sua boca e esperei que ela os molhasse para
colocá-los sem cerimônia no caminho entre suas pernas.
Beijei seu ombro, alcancei o paraíso lisinho e deslizei pela fenda.
Subi, desci e acariciei levemente a entrada, sem desviar os olhos dela,
que logo soltou um rosnado doce.
Me endireitei tão confortavelmente quanto pude e mergulhei um de
seus seios em minha boca. Peguei tudo. Pressionei minha língua contra sua
aréola e comecei a mamá-lo lentamente.
Sua barriga dançou e coloquei meu polegar sobre a crista do ponto
sensível. No mesmo ritmo, provoquei seus dois pontos e rosnei quando o
cheiro de prazer feminino atingiu minhas narinas.
— Ai... — guinchou entre suspiros.
— Tão quente, querida — murmurei de boca cheia, sentindo o nervo
inflamado ficar elétrico sob meu polegar.
— Sim... — choramingou.
Soltei um suspiro ganancioso e inseri dois dedos no espaço estreito,
removi e esfreguei. Alguns minutos e já estava pingando, então me
empurrei novamente e ela sugou meus dedos, pulsando e soltando contra
eles.
Meu pau estremeceu de inveja em minhas calças, me forcei a
controlá-lo, mas o estalo excitante do líquido feminino contra a borda da
carne só me enrijeceu mais.
Senti uma fisgada no abdômen, mas não pensei em parar. Comecei a
circular meus dedos dentro dela, estimulando o ponto interno mais erógeno
e sensível da mulher.
Cerrou os dentes e empurrou contra meus toques.
Soltei seu seio e mergulhei em sua boca, mas ela não conseguiu
acompanhar o beijo, então recuei para admirá-la.
Pele avermelhada, pequenas sardas brilhantes, olhos semicerrados,
lábios entreabertos e respiração pesada. Foda-se tudo! Vê-la na borda do
orgasmo era a cena mais perfeita do mundo.
— Deixa vir, minha princesa...
— Aí... eu... eu... Ahhh!
Senti o primeiro jato quente e beijei seus olhos.
Não parei de estimulá-la.
Minha ruiva merecia muito mais. Usei toda a minha experiência para
tatear a mina de prazer dentro dela.
Duro como uma rocha, espalhei beijos em sua bochecha e continuei a
manipular sua pequena área, trazendo sua sensibilidade interior para a
abertura suculenta. Aumentando seu nível de prazer. Mostrando como ela
era linda e sensual. Que o passado triste foi substituído por afeto e
intimidade.
— Isso é bom, querida? — provoquei roucamente, meus dedos
molhados espalhando o barulho pelo quarto.
— Hummmmm...
Gemendo, tragou meus dedos em um aperto tão esmagador que fui
obrigado a acelerar os movimentos. As investidas firmes fizeram seu corpo
convulsionar no limite, então recuei.
Virei para o teto e chamei:
— Agora senta na minha cara. — Arfando, esperei por ela, que não
demorou em acomodar as pernas trêmulas de cada lado da minha cabeça. —
Espera...
Sustentei o peso de seu quadril. Admirei a carne rosada, suculenta e
totalmente exposta da minha mulher.
Minha.
Ela pulsou diante dos meus olhos e soprei contra seu embalo.
— Não vou... aguentar... — gemeu abafado e de relance a vi morder a
própria mão.
Precisei ser rápido. Beijei sua intimidade com vontade, provando-a
direto da fonte, sem reservas ou restrições. Circulei a língua nos sucos e
prendi o clítoris em meus lábios, só então a deixei sentar.
Se esfregou rápido, gritou, chorou e gemeu, mas continuei firme. Só
dei sossego quando o calor escorreu forte em minha boca e seu corpo ficou
bambo em minhas mãos.
— Delícia... — murmurei entre lambidas, ela vibrou a cada toque.
— Preciso... de você... disso... para sempre. — Conseguiu dizer
enquanto eu dava o meu melhor para sentá-la sobre a cama.
— Deita e tenta dormir. Já vou te limpar — ofeguei, levando minha
mão à minha ereção que estava dolorida. — Eu preciso disso, porra, eu
preciso.
Embriagado com seu prazer, fechei os olhos com força e bombeei
incontrolavelmente. Quando o formigamento começou a me atingir da
cabeça aos pés, um calor me envolveu no topo e me forcei a olhar.
Alicia tirou a língua da minha glande para se posicionar nas minhas
coxas. Bem na beirada do mastro. Quando ela engoliu alguns centímetros
de mim e fez um oito com o quadril, não aguentei, ejaculei com tanta força
que ele deu um sobressalto.
— Ai, caralho!
Arremeti contra sua boceta lambuzada e ela amoleceu, tendo que ser
rápida para desviar as mãos do meu abdômen e se apoiar no colchão.
— Felipe? Machucou? — perguntou, arfando com o cabelo no rosto,
tentando não me tocar.
Senti uma pressão em meu abdômen, mas empurrei para o segundo
plano. Valeu a pena. Dane-se!
— Nunca vou deixar você ir de novo, mulher. — Sorri sem fôlego.
Ainda assustada e verificando minha cicatriz, ela se equilibrou,
ergueu os quadris e me puxou para fora dela.
Eu só pude sorrir.
Ela deitou fraca ao meu lado, cheia de culpa, me dizendo que não
faríamos amor de novo até que eu estivesse cem por cento recuperado.
“... o sábio respondeu a todas as perguntas e, desafiadas, as meninas
decidiram que descobririam uma pergunta que ele nunca saberia
responder.
Pensaram muito, até que uma delas viu uma linda borboleta-azul e
achou que havia encontrado a melhor pergunta para pregar uma peça no
velho.
— O que você vai fazer? — perguntou a irmã.
— Vou esconder a borboleta em minhas mãos e perguntar se ela está
viva ou morta. Se ele disser que ela está morta, vou abrir minhas mãos e
deixá-la voar. Se ele disser que ela está viva, vou apertá-la e esmagá-la. E
assim qualquer resposta que o sábio nos der estará errada!
As duas meninas foram então encontrar o sábio, que estava
meditando. Uma delas fez a pergunta:
— Tenho aqui uma borboleta-azul. Diga-me, sábio, ela está viva ou
morta?
Calmamente o sábio sorriu e respondeu:
— Depende de você. Ela está em suas mãos.”[2]
— É tão bom acordar com você, marido — Alicia sussurrou,
sonolenta em meu peito. — Quero ouvir essa mesma história bonita todos
os dias.
Sorri sonolento, abraçado ao corpo esguio.
— Acredite em mim, querida, em alguns dias você vai querer acordar
gemendo enquanto eu extraio o mel da sua boceta.
— Felipe, seja mais romântico! — Ela bateu com o punho no meu
peito, em seguida, beijou o local duas vezes. — Você me enganou
direitinho. — Esfregou a bochecha em mim.
Sorrindo, inalei seus cabelos, levantei seu rosto e, quando as esferas
verdes me atingiram, encontrei uma incrível sensação de conforto,
intimidade e confiança.
— Seu casulo foi quebrado antes do tempo, coração, mas estamos
recuperando suas asas e você nunca mais vai parar de voar.
— Você é maravilhoso — ela disse, plantando beijos no meu esterno
e, silenciosamente olhou para mim com as duas pupilas dilatadas, fazendo-
me sentir uma pulsação intensa onde estava sua bochecha.

Dias depois

O carro entrou em uma rua já conhecida na periferia da cidade e vi


pelo espelho retrovisor o vira-lata caramelo latir para um gato na calçada.
Ele chegou lá no apartamento há uma semana. No começo foi difícil,
mas os dias foram passando e ele foi se acostumando com a limitação de
não ter um grande jardim para cavar durante o dia.
Tive que usar a influência da minha família para fazer com que o juiz
agilizasse meu pedido de custódia provisória e, como Anna não precisava
ser desconectada de uma família biológica e não se encaixava entre os
favoritos dos adotantes na fila, isso nos economizou tempo para aguardar a
conclusão do processo de adoção no conforto da nossa casa.
— Você está linda hoje. — Deixei o elogio quando vi através do
reflexo que Alicia estava passando batom vermelho nos lábios.
E ela estava realmente deslumbrante. Calças elegantes, blusa de alças
ultrafinas e decote falsamente discreto.
— Me disse a mesma coisa ontem, marido. — Ela sorriu, colocando o
batom na bolsa e depois olhando para o celular tocando.
— Algum problema? — perguntei, o carro estremecendo nos buracos
da estrada de terra vermelha.
— É do norte do país — respondeu em um tom melancólico.
Alicia sofria com a distância sentimental que estabeleceu de seu
irmão e permanecia inflexível sobre o perdão. Estar longe dele a machucava
tanto que era visível.
— Por que você não liga de volta? — encorajei. — Se eu tivesse uma
irmã...
— Você bateria nela? — me interrompeu. — Você teria coragem de
machucar quem mais o admira no mundo?
— Acredito que não. Mas...
— Então fique quieto, Felipe.
Porra!
— Não quero diminuir sua dor, querida, mas não dá para viver assim.
É cruel. A tristeza é uma bola de neve prolífica que destrói aqueles que a
sentem. Se quer falar com seu irmão, ligue hoje. Se achar melhor
pessoalmente, levo você ao Norte. Mas você precisa libertar seu coração.
Silenciosamente, ela virou o rosto para a janela do carro e o cheiro
delicioso de seu cabelo atingiu minhas narinas com força.
Era muito difícil lidar com sua teimosia, mas eu já estava pegando o
jeito. De uma maneira doce, mostraria a ela que se libertar era um bom
caminho a percorrer.
Só não era bom arriscar tanto agora, faltando apenas um dia para
sermos liberados das restrições médicas.
— Vem aqui, querida — chamei enquanto estacionava o carro em
frente ao orfanato.
— Agora só preciso ver nosso bebê, isso é tudo — resmungou,
carrancuda.
— Alicia! — Usei o tom de voz mais severo.
— Fale. — O raio laser em tons de jade quase me derreteu.
— Não quero ver você triste.
Ela inclinou o corpo e selou a minha boca.
— Esse problema é só meu, Felipe. — Ganhei outro beijo, agora no
pescoço. — O dia certo chegará, mas ainda não consigo perdoar meu irmão.
Ele era tudo, mas falhou de uma forma que só eu posso entender. Vimos
nosso pai bater em nossa mãe quando ela só queria proteção, com ele não
foi diferente.
— Só quero você bem. — Acariciei suas bochechas rosadas.
— Ficou uma marquinha... — Coração veio com seus dedos, mas eu
os segurei e beijei sobre os anéis finos que ela usava. — Tá engraçado,
Felipe...
Eu a deixei correr o polegar em meus lábios e me esquivei quando
tentou mexer no meu pescoço.
— Vou limpar mais tarde. — Espiei pelo espelho frontal do veículo e
me senti o cara mais envolvente do mundo com aquela boca vermelha ao
lado do meu colarinho.
Minha amante carregava um anel com meu nome no dedo, pensar
sobre isso me trouxe uma sensação de prazer indescritível. Tio Edu nunca
mais se gabaria tão facilmente na minha frente.
— Você fica tão maduro e charmoso com essas roupas de alfaiataria,
marido — ela murmurou com um olhar que beirava a malícia.
— Você é linda de qualquer maneira. — Aproximei-me de seus lábios
e o cachorro latiu no banco de trás, nos fazendo rir. — Vou deixar o
caramelo no pet, você e Anna Flor no shopping e na hora do almoço vou
buscá-los. Consegue fazer as compras em três horas?
— Sim. Vou deixar pago nas lojas e esperar você na praça de
alimentação. — A ruiva mexeu na minha gravata e arrebitou o biquinho
vermelho. — Não fique de conversinha com a caçadora de sementes
alheias. Não quero ter que cortar seu músculo mais veiudo.
Engoli em seco.
— Alicia, que conversa é essa, coração?
— Confio em você, mas não posso deixar de avisá-lo sobre isso,
marido. — Ela escovou nossos narizes e puxou minha gravata, me dando
um leve engasgo. — Você sabe que corto, não sabe?
— Que indecência é essa na frente de um orfanato? — Heitor
apareceu na janela do carro com a mão diante dos olhos da menina Milena.
— O que é indecência, irmão do meio? — Milena perguntou
enquanto eu ajustava as janelas para deixar o cachorro confortável.
— Algo que você não fará antes dos trinta e cinco, pequena — Heitor
respondeu, segurando o peso miúdo da menina de sete anos.
— Já resolveram tudo, Heitor? — Alicia perguntou ao deixarmos o
veículo.
— Sim, as coisas dela já estão no carro. Estamos apenas esperando
por você. A mãe e o Rex estão com a diretora.
— Vou dormir na casa da mamãe e do papai — Milena comentou,
agarrada ao pescoço do meu cunhado.
— Sua casa, Mileninha.
Alicia passou a mão pelos cabelos curtos da garota e eu abracei sua
cintura, dando um beijo na alça fina que cobria seu ombro.
— Tem uma boca no seu pescoço, irmão — Heitor apontou,
intrometido.
— Eu sei. — Sorri tranquilamente, me sentindo a moldura mais
sortuda por carregar aquela valiosa obra de arte.
— Homem apaixonado realmente perde sua dignidade — ele
murmurou, e entramos no primeiro pavilhão.
Na diretoria, encontrei minha pequena Anna Flor nos braços da
enfermeira Julia.
Peguei-a nos braços, acariciei seus cabelos com carinho e admirei a
roupinha jeans que usava.
— Pronta para conhecer seu quarto, bebezinha?
Ela fez um beicinho engraçado, cheirou o ar e me mostrou as
gengivas, mas quando viu Alicia entrar, me chutou com o tênis, primeiro
sorrindo, depois chorando. Só parou o choro manhoso quando se
aconchegou nos braços da mãe.
— Você é pequena, mas a força é enorme, meu bebê! — Beijei a
mãozinha e desatei os dedinhos da minha gravata. — Forte como sua mãe.
Minha sogra, que estava na mesma sala, beijou a bochecha da filha e
eu cumprimentei o padrasto de Alicia.
— Coloquei aqui apenas as roupas e a pulseira que ela usava quando
foi encontrada — disse a assistente social.
— Não quero. Pode deixar tudo para os próximos bebês — Alicia
falou com o rosto tenso. — Fique com a pulseira também. Minha filha não
precisa saber que foi jogada no lixo e quase morreu por causa disso.
— É importante guardar, amiga. Um dia ela vai te encher de
perguntas e querer saber a origem — Julia comentou.
— Ela veio do meu coração, Julia. Quero minha filha longe desse
fantasma triste do passado.
— Então deixe isso comigo, filha. — Samanta abriu a sacola, enfiou a
mão dentro e saiu com um saquinho de veludo e como estava aberto, deixou
a pulseira cair no chão.
De longe percebi que era preciosa, então pedi permissão à minha
sogra e peguei a joia para analisá-la de perto.
Ouro amarelo. Comprimento e diâmetro pequeno. No centro havia
uma espécie de brasão com uma delicada lua entalhada. Diamantes puros.
Foi fácil identificar que era raro.
Olhei para Anna Flor, para seu sorriso desdentado, e vi os olhos
inquietos de Alicia. Voltei para a joia e levantei-a diante dos meus olhos, foi
quando vi que havia quatro números gravados no fecho.
— Ela vai querer saber um dia e tem esse direito. — Peguei o
pacotinho de veludo das mãos da minha sogra, coloquei a pulseira e enfiei
no bolso da calça.
A primeira pessoa que avistei na recepção do quarto andar do
escritório foi Mariana. Ela estava de costas, na frente do balcão de
atendimento e conversava com a secretária.
— Mari... — falei atrás dela, a uns dois metros de distância.
Ela virou, olhou-me de cima a baixo e sorriu.
— Oi, bonito. — Se aproximou e beijou um lado do meu rosto. Nos
atrapalhamos no segundo beijo e nossos lábios roçaram-se. — Desculpa...
— Ela riu sem graça.
— Como você está, Mari? — perguntei para aliviar o clima, vendo a
secretária fingindo que digitava enquanto mantinha o ouvido voltado para
nossa direção.
— Aqui, tudo tranquilo — Mariana respondeu cálida, mexendo no
cabelo, visivelmente desconcertada. — Ah, seu avô colocou uma máquina
de café expresso em nosso corredor e deixou claro na reunião que o
objetivo é evitar idas desnecessárias ao refeitório.
— É a cara do vovô fazer isso.
Rimos juntos.
— E a menina?
— Anninha saiu hoje do...
— A outra menina — me interrompeu. — Pensei que ela tinha
colocado você em cárcere privado. — Levantou o copinho de café e deu
uma tragada.
— Mariana, não faz assim...
— Estou viajando com minhas amigas todo fim de semana. Sempre
volto revigorada. — Ela tomou outro gole de café.
— Pensou na adoção? — perguntei enquanto a observava,
identificando confusão em seus olhos.
— Estou vendo um método mais rápido. Barriga de... — Ela freou as
palavras, pareceu se arrepender, mas já era tarde.
Segurei sua mão no mesmo instante que absorvi a informação e a
levei para longe do balcão de atendimento.
— Isso é crime aqui no Brasil, Mari — sussurrei sobre o que ela já
sabia e soltei sua mão. — Você pode ser presa. — Olhei em volta e voltei
para ela.
— Não é barriga de aluguel. Me expressei errado. — Bateu o
indicador na minha gravata e evitou meus olhos. — É solidária. Uma amiga
vai fazer isso por mim. Estou muito animada. Você não faz ideia.
— Conheço sua amiga? — indaguei, ouvindo a voz do meu avô vindo
de algum dos corredores daquele andar.
— Não. Você nunca a conheceu. É uma velha amiga. Estudamos
juntas na escola. Ela mora em outro Estado.
— Essa sua amiga tem um nome? — quis saber um pouco mais da
história que me soava estranha.
— Olha o doutor Olavo. Ele está te procurando. — Deixou escapar
um sorriso nervoso.
— E o doador, Mariana? É anônimo? — insisti.
— Totalmente desconhecido. Preciso trabalhar agora, bonito. Bem-
vindo de volta. — Dizendo isso, ela saiu rápido demais, me deixando muito
preocupado.
— Luiz Felipe! — Meu avô se aproximou, segurando um copinho
descartável com café até a borda. — Você não está pensando em manter um
relacionamento extraconjugal com a Doutora Mariana, não é, meu filho?
— Claro que não...
— Não vou tolerar esse comportamento dentro da minha empresa,
Felipe. Por que o vestígio da sua colega de trabalho está no seu pescoço?
Vou ligar para sua mãe e ter uma conversa séria com ela.
— Vovô, se controla. O batom é da minha mulher. — Levantei a mão
com a aliança e dei um beijo estalado na testa dele. — Agora preciso ver
minha sala e começar a trabalhar. Tenho uma filha para criar e meu chefe
costuma ser casca-grossa.
— Vou ser casca-grossa quando deixar tudo o que tenho para o seu
primo Olavinho — ele resmungou e tomou um gole de café. — Preciso ver
meu veleiro. Fazer ao menos uma viagem antes de infartar de desgosto.
— Você não muda, meu velho. — Me distanciei dele, antes que a
bronca desnecessária aumentasse.
— Seja bem-vindo, meu neto. Você quase matou seu avô do coração
— o velho disse, dando sinal de que ia chorar e eu voltei para deixar um
abraço em sua grande circunferência.
— Já está tudo bem, vovô. — Dei dois tapinhas nas costas dele.
— Então volte ao trabalho! — ordenou com a voz chorosa. — Têm
biscoitos e uma garrafa de café sobre a sua mesa. Mandei que levassem
mais cedo, no horário que você deveria ter chegado.
— Fui buscar sua bisneta, senhor Olavo. Você precisa passar lá no
apartamento para ver minha bonequinha de porcelana bem de perto.
— Enquanto você brinca de casinha, carrego seu futuro nas costas. —
Meu avô jogou o copo na lixeira e me deu as costas.
Balancei minha cabeça, nem um pouco desapontado. Era seu jeito
natural. Felizmente, ele não se lembrava de quando, há alguns anos, Alicia
fez uma grande bagunça com meu nome nas redes sociais da empresa.
— Felipe! — me chamaram e quando me virei, encontrei meu amigo
Enrico vindo do segundo corredor que dava acesso à recepção.
— Como vai, Enrico? — Apertei a mão dele.
— Cheio de trabalho e pepinos da família. Meu irmão mais novo
entrou em uma briga de trânsito e estou tendo que correr atrás para limpar a
bagunça.
— Já foi atendido?
— Já, sim. Tudo encaminhado. Só espero que ele seja absolvido,
porque, honestamente, se isso prejudicar minha reeleição, sou capaz de
matá-lo — ele disse sério, mas então riu e deu um tapa nas minhas costas.
— Você está com muita pressa? Quer entrar, tomar um café e me
contar essa história direito?
— Eu não consigo dispensar café, você sabe. É bom ver que você
está recuperado.

Coloquei a senha em um dos cartões de débito de Felipe e esperei a


funcionária terminar de empacotar as compras do meu bebê, que estava
sentado no grande balcão, protegida contra o meu peito e com as costas
apoiadas na minha mão.
Minha filhinha não entendia nada, mas estava feliz em meus braços.
Sua risada gostosa contagiou as vendedoras, que até tiraram fotos com ela
para os stories das redes sociais da loja infantil. Com isso, ganhamos um
grande desconto para compensar o furo que deixamos na conta do papai.
— Não, Junior! — uma mulher sussurrou ao lado e chamou minha
atenção por ser o mesmo nome do meu falecido pai.
Porém, o Junior em questão era um anjinho, um pouco maior que a
Anninha. Loiro, ele tinha dois dentinhos e um lindo sorriso. A loira de
cabelos curtos que o segurava deu um sorriso estreito e voltou a remexer
nas mercadorias que a funcionária estava dobrando no balcão.
— Você vai levar as compras agora ou deixá-las guardadas? — a
moça do caixa me perguntou.
— Vou deixar guardada. Venho pegar depois do almoço com meu
marido — falei, me sentindo a esposa de um rei.
— Não, filho, não pega, ela é doente.
As palavras vieram da mulher ao meu lado e já virei com sangue nos
olhos.
— Esse alerta foi direcionado a minha filha? — perguntei com meu
coração disparado.
A loira arregalou os olhos e agarrou o menino com tanta força que o
pobrezinho gritou.
— É que sua menina é doente e pode babar no meu filho — disse ela,
roubando minha reação.
— Que absurdo! — a moça do caixa sussurrou afetada, puxando-me
para a realidade.
— Escute aqui infeliz, onde você achou o direito de ofender a minha
princesa? — Agarrei Anninha e coloquei um dedo no rosto da mulher, tão
angustiada e trêmula que tive que me encostar no balcão.
— Meu filho nasceu saudável. Sou mãe e tenho o direito de preservar
meu bebê — disse a loira, colocando o menino no carrinho. — Por isso que
odeio fazer compras no Brasil.
Engasguei com a ofensa e lágrimas vieram aos meus olhos. Tudo ao
meu redor girou. As pernas ficaram moles, a boca secou e memórias me
vieram à mente, algumas que enfrentei, outras que cometi. Certa ou errada,
naquele momento, me vi como uma leoa esticando as unhas para defender
seu filhote.
— Aqui está sua nota, senhora. Sinto muito. — A moça do caixa
estendeu o papel, tentando me dispensar e evitar um conflito.
— Você pode segurar, só um pouquinho? — Entreguei Anninha na
mão da vendedora que estava ao meu lado.
— Mocinha, também quero a minha nota — a loira reclamou. —
Estou com pressa e não preciso passar por esse desconforto. Nunca mais
volto aqui. Essa gente débil deveria ser proibida de entrar.
— Cala essa boca, maldita! — gritei loucamente, silenciando a
mulher. — Isso é para você nunca mais ofender uma criança. — Meti a mão
em seu rosto de bom grado e seu pescoço virou para o lado. — E isso é por
enfrentar a mãe errada! — Explodi em outro golpe quando ela olhou para
mim.
Duas funcionárias da loja me seguraram pelos braços e meus olhos
voltaram para a Anninha que começou a chorar no colo da vendedora.
— Vou... chamar a polícia! — a loira murmurou, trêmula, assustada
com a minha reação e cobrindo a vermelhidão do rosto com a mão.
— Da próxima vez que você pensar em ofender uma criança, vai se
lembrar dessa mão. E não reclame que dou mais.
— Meu bebê é saudável... — Os ombros da mulher caíram e de
repente ela derramou lágrimas. — Ele não nasceu doente, entendeu? Ela... a
menina... ela é fraca... não vai conseguir... vai morrer...
Apenas um tranquilizante de elefante poderia me segurar. Meti a mão
na cara dela outra vez e apertei seu pescoço entre minhas unhas.
— Repete isso, infeliz — falei entredentes e a mulher chorou
asfixiada.
— É o batom da minha esposa — expliquei entre risos. — Eu meio
que não seria louco de sair da linha e correr o risco de perder as bolas.
— Vejo um aviso escrito "soldado rendido" na sua testa, meu amigo.
— Enrico riu, levando a xícara aos lábios.
— É realmente como estou me sentindo. — Bebi um gole de café e
liguei o computador. — E você, tomou jeito?
— Depois da perda e depressão pós-parto da minha mulher, nunca
mais me envolvi com ninguém.
— É bom que continue assim — aconselhei, envolvido na atualização
de minha senha inspirada.
— As eleições estão chegando e não posso nem sonhar com um
escândalo. — Ele riu, colocando mais café na xícara. — Mas outro dia fui
ao casamento do meu funcionário e encontrei a minha melhor amante.
Porra, sabe aquelas diabinhas que nos deixam desidratados? — Ele estalou
a língua e se balançou na cadeira.
— Não aprovo, você sabe — falei com uma nota de culpa.
O que fiz com Mariana enquanto estávamos juntos ainda me
assombrava. Foi um erro que nunca mais repetirei.
— E eu te invejo por isso, meu amigo. Mas confesso, que só não
falhei porque Marcela estava comigo e a diabinha também não me viu. Se
ela tivesse me olhado nos olhos, porra, ferrava tudo, porque daria um jeito
de arrastá-la para qualquer lugar onde eu pudesse fodê-la com força, do
jeito que ela gosta. Droga, meu sangue até ferve quando lembro daquele
rabo apertadinho...
— Cara, que escroto!
— Você não conheceu a diabinha, Felipe. — Ele bebeu o último gole
de café e levantou. — Preciso trabalhar e esquecer a tentação. Vamos
marcar de jantar no próximo final de semana? Marcela está precisando se
distrair e será uma boa conhecer gente nova.
— Vamos ver... Eu te ligo. — Levantei para apressá-lo, depois
inventaria uma desculpa para fugir do jantar.
Não era necessário colocar Alicia em um ambiente tão cheio de
mentiras e traição.
— Até mais, meu amigo. — Ele apertou minha mão. — Desejo
felicidade nessa nova etapa e que você nunca enfrente uma tentação como a
minha.
— Não preciso me preocupar com isso, acredite.
Senti o celular vibrar no bolso da calça, puxei o aparelho e o saquinho
de veludo caiu no carpete.
Era Alicia, então atendi o celular e deixei Enrico, que estava se
abaixando, pegar a joia.
— Alicia? Alicia, querida? — chamei, ouvindo um assobio de
interferência na linha. Alicia! — Tirei o aparelho do ouvido e vi a linha
ativa. — Coração, você está aí?
— Onde você encontrou essa pulseira? — Enrico perguntou,
enquanto eu chamava Alicia.
— É da minha filha... Alicia!
— Felipe! Estou... — Eu a ouvi sobre o barulho.
— Onde você está, coração?
— Que filha? Você não tem filha... — Enrico se recostou na cadeira.
— Depois a gente se fala, Enrico. — Tirei a pulseira da mão dele. —
Seu celular está tocando. Vá atender lá fora.
— Preciso de um advogado, Felipe.
Ouvi Alicia dizer entre soluços e meu coração disparou.
Enrico saiu da sala com o celular no ouvido e segui atrás, tentando
ouvir o que Alicia estava dizendo através da interferência do sinal.
Saí do carro e caminhei rapidamente em direção à entrada da
delegacia. Ao longo do caminho, continuei tentando falar com Alicia, mas
provavelmente o celular descarregou ou alguma outra merda.
Foi fácil descobrir que a confusão havia acontecido entre ela e a
esposa de Enrico. Chegamos a essa conclusão juntos depois que as ligações
foram encerradas. Na tentativa de evitar o escândalo, meu avô foi
acompanhar Marcela, que ainda estava no IML fazendo exame de corpo de
delito.
Embora a agitação emocional fosse preocupante, saber que Alicia não
estava mais lá me aliviou.
— Bom-dia. Felipe Moedeiros, Advogado. — Entreguei a minha
carteira da OAB para o policial que estava de plantão na recepção. — Vou
acompanhar Alicia Álvares Azevedo — falei seu nome de solteira. Ela
certamente estava com a cédula de identidade e ainda não tínhamos alterado
aquele documento.
Enquanto o homem examinava minha carteira, eu examinei a sala,
procurando por um sinal de minha mulher. Não encontrei. O desespero me
atingiu com força.
— Sua cliente está incomunicável. — O homem foi ácido ao me
devolver o documento.
— Como incomunicável? Não existe cliente incomunicável! Tenho a
prerrogativa de conversar com minha cliente e quero saber o que aconteceu.
Me leve até ela! — exigi, nervoso, tentando ser equilibrado diante do
sistema para não deixar o meu lado emocional quebrar tudo até encontrá-la.
O policial desviou o olhar, lançou um sorriso de escárnio e, puto por
não poder desafiar meu privilégio, levantou-se e caminhou silenciosamente
à minha frente, entrando em um corredor que dava acesso às salas.
Encontrei Alicia sentada nas cadeiras da sala. Algemada e
visivelmente desorientada.
— Alicia! Onde está Anna Flor?
— Felipe... — Ela levantou e se jogou no meu abraço. — Minha
filha. Traz a Anninha, por favor — implorou em completo desespero.
— Onde ela está? — indaguei com as duas mãos contra seu rosto.
— O escrivão... Ele está com ela. Por favor, traz ela para mim —
suplicou, entre soluços, quase sem voz. — Ele gritou comigo e trancou a
sala. — Indicou o policial da recepção.
— Onde está a criança? — Encarei o sujeito. — Por que separaram a
criança da mãe? Por que a algemaram? Onde está o delegado?
— Sua cliente estava nervosa. Foi necessário afastar a menor por
questão de segurança.
— Me leve até a criança. Sou pai!
— Quero minha filha! — Alicia quase tombou o policial militar, mas
eu a segurei, desejando em pensamento que ela não xingasse. — Meu irmão
é um delegado federal, representante da Interpol! Isso não vai ficar assim.
— Se encostar em mim, vai direto para a cela. Não estou brincando!
— O homem fardado apontou o dedo próximo ao rosto da minha garota.
Ele estaria morto se aquela porra de dedo avançasse só mais um
centímetro. Sempre estive em paz com o sistema em qualquer porra de
ocasião, mas para defender minha família, não me importava de perder a
carteira e começar do zero.
— Se você abusar do seu poder, me dará liberdade para opor a sua
atitude arbitrária e agir de homem para homem. — Entrei na frente de
Alicia e o empurrei sem usar os braços.
Vi em seus olhos o quão covarde ele era para enfrentar um homem
com conhecimento suficiente para sujar sua carreira. Indignado, ele se
afastou e não olhou mais para minha esposa.
— Vem, Alicia. — Segurei a mão em volta da cintura dela e a levei na
direção da porta, tirando minha menina daquela sala vazia e fria. — O que
aconteceu? Não esconda nada — falei próximo ao rosto dela, no lado de
fora da sala, usando meus polegares para secar abaixo de seus olhos.
— Bati e apertei o pescoço de uma infeliz lá no shopping — explicou
com a voz embargada e me esforcei para segurar o sermão.
— Me leve até a criança. Sou o pai — pedi ao homem fardado.
— Ela fica — disse o desgraçado, antes de nos deixar sozinhos no
corredor.
— Vou buscá-la e já volto. Não fale com ninguém. — Beijei a testa e
a bochecha da ruiva e saí na direção do homem.
Antes mesmo de ver minha filha, reconheci sua risada. Anna estava
sentada em um lençol branco no chão de uma das salas e o policial à sua
frente sacudia um chocalho colorido.
Minha filha era uma criança muito desenvolta, sorria e ficava com
qualquer pessoa se Alicia não estivesse por perto. Era hora de ensiná-la a
maneira correta de lidar com estranhos, porque a humanidade nunca foi
confiável.
— Você a conhece? — perguntou o policial com o chocalho enquanto
Anna me mostrava suas gengivas e plantava as mãos no chão para rastejar.
— Sou o advogado e pai da criança — informei, deixando um beijo
na cabeça da minha filha.
— Sua mulher estava muito nervosa. Os policiais que a trouxeram
acharam por bem contê-la com as algemas. Mas cuidei bem da criança.
Diga isso ao seu cunhado. — O homem muito jovem sorriu meio
estabanado, parecendo um bisonho sonhador, recente na academia de
polícia.
— Obrigado por cuidar da segurança dela. — Peguei meu bebê e me
levantei com ela. Ele também levantou e me entregou o brinquedo de Anna
Flor. — O delegado está na sala?
— Sim, e sua senhora não falou nada sobre o ocorrido. Aconselhei
dessa maneira — o jovem disse, me seguindo ao lado. — Estudei na mesma
faculdade que o irmão dela, mas cursei história. Na verdade, tranquei a
faculdade quando passei no concurso... Meu sonho também era a Federal.
— Obrigado pela colaboração, soldado. — Avancei os passos com ele
ao meu lado.
— Foi flagrante, mas o juiz ainda não foi informado. Veja com o
delegado a possibilidade de...
— Vou pagar a fiança antes — interrompi o jovem antes que ele
saísse prejudicado. — Obrigado pela colaboração.
— Filhinha... — Alicia me encontrou no caminho. Lábios trêmulos,
voz rouca e rosto avermelhado. — Mamãe estava tão preocupada. — Beijou
o rosto da Anna, que começou a chorar, reivindicando o colo da mãe.
— Me dê licença, preciso ficar a sós com minha cliente — falei,
olhando para o fodido que me levou até Anna e voltou para vigiar Alicia. —
Abra as algemas. Ela vai segurar a criança.
O homem diminuiu os passos e segurou as mãos da minha ruiva antes
de abrir as algemas. Estava contrariado e impossibilitado de cantar de galo.
Abriu as algemas e saiu sem falar nenhuma palavra.
— Você pode me defender, Felipe? — Alicia perguntou, segurando a
filha com dificuldade, sendo auxiliada por mim.
— Posso, coração. Nada me impede. Não tenho poder de decisão, só
persuasão.
— Ela falou coisas horríveis para a Anna, na minha frente. Não me
controlei, Felipe. Você acha que podemos perder a guarda da Anninha?
— Você não deu depoimento a ninguém, certo?
— Não falei nada. Estava te esperando. Fiz exame, mas não tenho
nada. A mulher está com a minha mão na cara e meus dedos no pescoço.
— Vou conversar com o delegado. Se ele te perguntar alguma coisa,
não fale nada. Não responda perguntas. Você tem esse direito. Da próxima
vez... Não, não haverá próxima vez, mas se algo assim acontecer, saia antes
que a polícia chegue.
— Venha comigo, quanto antes você resolver, melhor — o jovem
policial disse atrás de mim.
Depois de deixar o beijo na testa da minha mulher, seguimos para a
sala do responsável.
Conversei com o delegado e acabei descobrindo que ele já havia sido
estagiário no escritório da minha família antes de passar no concurso. Os
encontros já eram comuns, pois o escritório sempre foi uma referência e os
estudantes de Direito cobiçavam estágios conosco.
Marcela ainda não tinha aberto BO contra Alicia, pois, foi direto ao
médico, então com muita facilidade, o delegado arbitrou uma pequena
fiança, ficou o dito pelo não dito e assim consegui livrá-la do flagrante.
Era certo que haveria um futuro processo, mas iríamos contorná-lo
novamente. Para isso, eu tinha profissionalismo e boas habilidades.
Nunca pensei em ser mãe. Sempre fui indiferente a conversas,
revistas, roupas e tarefas relacionadas à maternidade. Só de imaginar meu
corpo com mais estrias, celulite e deformações... Tudo me assustava, mas
no instante em que Anna encontrou meu coração, minha vida deu uma
guinada de cento e oitenta graus. Seus olhinhos me encantaram no primeiro
dia. Me apeguei, amei, só queria ficar com ela, olhar para ela, ser melhor
para ela...
Minha filhinha se tornou a coisa mais importante da minha vida. A
peça central do meu mundo. Não saiu de mim, mas nasceu no meu coração.
Quando aquela mulher usou palavras infelizes na frente de Anna, não
pensei nas consequências. Só queria defendê-la. Anninha sorria enquanto o
mundo a humilhava, mas a inocência nem sempre envolveria seu
coraçãozinho.
Minha trajetória foi cruel. Morri muitas vezes em vida. Fiquei
vulnerável e me aliei ao lado errado da força quando roubaram tudo de
mim. Bondade, liberdade sobre meu corpo, esperança...
Ninguém vai destruir a mente da minha Anna. Ela não será como eu.
Não terá o caráter forjado, nem será uma vítima. Era capaz de tudo para
protegê-la dos atos violentos, intencionais e repetidos que enfrentei desde
os cinco anos de idade e que me causaram danos físicos e psicológicos para
o resto da minha vida.
— Vai ficar tudo bem, minha princesa. — Lipe deixou uns beijos na
minha bochecha, ali mesmo na recepção da delegacia, e levou o copo
d’água à minha boca. Anninha dormia em meus braços, contra meu peito.
— Quero sair daqui! — Solucei, tentando controlar o choro de
indignação.
Lipe jogou o copo fora e com cuidado tirou Anninha do meu colo. Ela
choramingou, mas estava com tanto sono que alguns tapinhas na parte
inferior da fralda foram suficientes para fazê-la adormecer.
— Vamos.
Meu marido pegou minha mão e me conduziu até a saída, só então vi
o avô dele entrar na delegacia ao lado da loira que espanquei. Atrás deles,
vinha um homem alto de terno, segurando o bebê com um braço e, apesar
de não o ter visto há muito tempo, foi impossível não me lembrar das vezes
que o procurei para alimentar minha doença.
Enterrei meu rosto no ombro do meu homem e me agarrei em seu
braço, sentindo meu choro aumentar e o tremor enfraquecer minhas pernas.
— Tudo resolvido aqui, vovô. Ok? — disse Felipe em tom de
advertência e não tive coragem de levantar a cabeça.
— Ela vai sair assim? — a mulher reclamou.
— Por que não experimenta parar de olhar para minha mulher,
Enrico? — A voz de Felipe saiu ciosa e meu peito gelou quando ele falou o
nome.
Se conheciam. Foi como se o chão se abrisse debaixo dos meus pés.
— Não... eu... vou ver como vão ficar as coisas — Enrico balbuciou
palavras soltas. — Mas não vamos abrir BO.
— Como não, você enlouqueceu? — a mulher continuou gritando e
apertei o braço de Felipe.
— Calada, Marcela! — o homem gritou e seu bebê chorou.
— Leve sua mulher para casa. Ela não está bem — disse seu Olavo e
o agradeci mentalmente.
Felipe seguiu em frente, me levando e solucei ainda mais forte sem
conseguir soltá-lo.
Meu marido tinha uma visão perspicaz e comecei a implorar aos céus
para que nada abalasse a estabilidade de minha família.
O carro entrou na garagem do prédio e um desespero louco me
sacudiu por dentro. No caminho, Felipe ficou em silêncio o tempo todo,
ocasionalmente olhava para mim através do espelho frontal, mas depois
desviava para a estrada.
Fiquei quieta para não o distrair no trânsito, mas não conseguia mais
conter tanta angústia. Olhei para Anninha em um sono profundo e me
preparei para enfrentar seu pai. Faria qualquer coisa, mas não perderia
minha família para o meu passado.
— Vou ficar com Anna Flor. — Ele quebrou o silêncio, parou o carro
e saiu.
— O quê? — Agarrei minha bebê como se ela fizesse parte do meu
corpo.
Felipe abriu a porta traseira.
— Você vai subir, tomar banho e vamos descer. Vou te deixar com sua
mãe — ele disse em um tom duro e mais lágrimas caíram dos meus olhos.
— Não!
— Preciso esfriar a cabeça e não vou deixar você sozinha.
— Vou ficar com você e minha filha, Lipe.
— Tenta me entender, caramba! — gritou e estremeci da cabeça aos
pés. — Estou de cabeça quente. Não vou conversar com você assim.
Virou e se afastou do veículo, então saí com minha filha, empurrei a
porta e ouvi o clique do carro sendo travado.
— Felipe, me espera... — Solucei, mas ele só avançou. — Não vou
sair daqui. Minha mãe não precisa saber disso...
Calado, ele alcançou o elevador, apertou o botão e quando a porta se
abriu, ordenou que eu entrasse.
Fiquei em silêncio com Anninha no canto. Ele escolheu o andar e
colocou as duas mãos contra a porta. Arfou por alguns segundos, mas
enquanto estávamos subindo, virou e encarou meus olhos.
— Diz que não é verdade — pronunciou as palavras com o rosto
quase colado ao meu. Seu olhar dizia tudo, menos equilíbrio e mansidão. —
Me diz que você não é a porra da diabinha com quem meu amigo traía a
esposa... — Hesitou, seu maxilar trincando.
— Lá em cima a gente conversa. — Inclinei a cabeça, envergonhada,
então o elevador abriu e ele me deu as costas.
— Precisa de ajuda, vizinha?
Levantei a cabeça e vi Joquebede entrando com outra velhinha magra
e alta.
— Obrigada, Joquebede. Só estou cansada — murmurei com a voz
sofrida.
— Eles chegam assim. Cara de príncipe, olhar sedutor, dotadão e
experiente. Quando menos esperamos surgem os abusos psicológicos e
físicos — disse a velhinha que estava ao lado de Joquebede e Felipe se
virou para ela. — Não tenho medo de você, rapaz.
— A senhora está equivocada. Eu jamais faria mal a uma mulher —
ele disse alterado e hesitou quando o elevador parou no nosso andar. —
Vamos, Alicia! — Colocou a mão em minha coluna e me levou para fora,
em direção ao nosso apartamento.
— Ligue para o 180, minha filha. Vamos ficar observando. Lugar de
agressor é na prisão e debaixo da terra.
Eu não estava em condições psicológicas para falar com mais
ninguém. Continuei andando. Felipe manteve a mão nas minhas costas, mas
quando fechou a porta, ele me soltou. Foi para o quarto e não titubei em
seguir seus passos.
Calado, ele entrou no banheiro, então respirei entre soluços e decidi ir
com calma. Não adiantava insistir naquele momento. Saber que outro
homem em seu círculo de amigos conhecia sua esposa da maneira mais crua
e íntima, arruinava a mente de qualquer marido.
Levei Anninha para meu quarto, que servia agora de closet. Deixei a
porta aberta, coloquei minha filha sobre a cama e deitei ao lado dela. Ali me
perdi em lágrimas e desejei que Felipe me abraçasse depois do banho. Que
ele não quebrasse a promessa de novo. Eu não poderia nem garantir que
seria a última vez que enfrentaríamos aquela situação.
Fechei os olhos. Fiquei mais de meia hora deitada. Vergonha e medo
me fizeram companhia. O corpo exausto pediu sono, mas logo reagi e me
arrastei para fora da cama.
Depois de proteger Anninha com travesseiros, segui para o banheiro e
me sentei nua debaixo do chuveiro. A água quente não conseguiu aplacar
meu frio e tremia de bater os dentes.
Se Felipe me deixasse ainda restava minha filhinha. Eu lutaria por ela.
Tentei me confortar e ser otimista, mas fiquei ainda mais desesperada. Não
queria criar minha filha sem pai. Ele era um bom pai. Bom tudo...
Sufocada, passei meus braços em volta dos joelhos e chorei por
longos minutos. Minha cabeça começou a latejar forte e falhei quando
deslizei meus dentes pelo antebraço e mordi aquele ponto até sentir o gosto
metálico na língua.
Estava procurando alívio na segunda mordida quando ouvi passos
perto da porta e parei.
— Você não vai comer, Alicia?
— Estou... tomando banho. — Levantei rápido e lavei o sangue. —
Entra, marido.
— Vou sair. Me ligue se precisar de algo. — Seu tom de voz
melindroso revelou o quanto estava nervoso.
— Tudo bem. Vou deitar com Anninha e dormir. Espero você voltar
— murmurei em uma voz quebrada.
— Coma antes de deitar — disse em um longo intervalo de segundos,
então ouvi seus passos se distanciando da porta.
Ele iria me deixar. Tive certeza.
— Felipe, espera! — Puxei o roupão felpudo, vesti rápido e abri a
porta.
Saí molhando o chão, escorregando e batendo nas paredes. Nada
adiantou. Antes mesmo de chegar à sala, ouvi a porta se fechar.
— Não te disse, Joquebede. Ele estava mesmo espancando a mocinha.
As duas senhoras apareceram em meu campo de visão, no hall de
entrada.
— Não estávamos brigando. Eu que sou puta e estive com um dos
amigos dele — expliquei.
— Não, não seja tão cruel consigo mesma, querida. — Joquebede
segurou minha mão, na tentativa de me confortar. — Fui puta e andava na
vida difícil, mas consegui fisgar meu desembargador generoso. Você
também vai dar um jeito de contornar.
— Se ele agrediu, não esconda. Você não é culpada de nada e vamos
te ajudar — disse a segunda velhinha, aquela que confrontou Felipe no
elevador.
— Meu marido foi o único que não me machucou — sussurrei aérea,
encostando-me na parede do corredor. — Ele é generoso e amoroso, só não
é obrigado a engolir tudo.
— É que a Marlene sofreu muito com o falecido. Agora é
atormentada, pobrezinha — Joquebede explicou. — Dizem que foi ela que
matou o marido.
— Você não pode sair por aí inventando calúnias sobre a vida das
pessoas, Joquebede. Também porque o seu passado é mais sujo do que
poleiro de galinha.
— Eu nunca escondi que fui puta, Marlene.
— Vou entrar... Boa tarde. — Coloquei a mão na cabeça, me sentindo
tonta e exausta.
— Se acalma, querida. — Joquebede apoiou a mão no meu braço. —
No último caso, engravide e segure seu homem. Se não segurar, ao menos
restará a gorda pensão. — Tentou me confortar do jeito dela.
— Já temos uma filha e não posso engravidar. — Passei a manga do
roupão nos olhos. — Obrigada pela preocupação. — Segurei na porta e
esperei a tontura passar.
— Você precisa marcar uma consulta com o Doutor Paulo. Ele é
ótimo ginecologista e obstetra. Trabalha à noite na maternidade, mas atende
alguns dias no consultório particular. Vou todo mês. Mesmo que não
precise, levo alguns biscoitos. Ele tem uma mão grande, mas é tão leve. Oh,
tentação.
— Toma jeito nessa vida, mulher! — a outra reclamou.
Conseguiram me fazer rir, e quando levantei a cabeça, vi Joquebede
colocando o dedo na campainha do vizinho que Felipe implicava.
— Não, por favor, não precisa. Muito obrigada, mesmo — agradeci,
evitando piorar minha situação, mas a porta foi aberta, mesmo assim.
— Qual é a emergência, Dona Joquebede? — perguntou o vizinho, de
pijama e com um pano de prato no ombro esquerdo.
— Nossa vizinha precisa engravidar, mas ela está sem as regras
menstruais, coitadinha.
— Não, ciclo menstrual não é um problema agora. — Me abracei,
desviando os olhos na direção do elevador, na esperança de Felipe voltar.
— Você não parece bem. Está com algum problema urgente? — o
médico perguntou em um tom preocupado.
— Só preciso descansar e resolver minha vida. — Me perdi no choro
outra vez, permitindo que as lágrimas corressem por minhas bochechas. —
Meu marido está fora de casa e não sei como vai ser quando ele voltar.
— Vou pegar água. Entre — o homem convidou, mas balancei meu
rosto em recusa. — Então, espere só um minuto. — Ele entrou e apoiei a
mão na guarnição da porta.
— Ai, eu não aguento com esse homem. Ele é tão apetitoso, quero
dizer, atencioso — comentou a velhinha.
— Nunca o vi entrar aqui com uma namorada. Provavelmente gosta
das mesmas coisas que você — resmungou a outra.
— Mas, Marlene, deixa de ser falastrona. O homem trabalha dia e
noite. Já entra aqui cansado, coitadinho.
O médico voltou naquele exato momento e Joquebede sorriu para ele.
— Pegue meu cartão. — Ele me estendeu o papel. — Ligue se
precisar de mim.
— Obrigada pela preocupação, Paulo. — Peguei o cartão. — Com
licença, meninas.
Fechei a porta, joguei o cartão em qualquer lugar e voltei ao banheiro.
Terminei de me lavar e entrei debaixo das cobertas com minha filha. Fiquei
horas deitada. Só levantei quando ela acordou para comer.

No sofá, de camisa comprida e quente, eu levava a mamadeira à boca


de Anninha, quando o som da chave na porta fez meu coração pular no
peito.
Felipe entrou com passos cautelosos, se aproximou de mim e sentou
nos calcanhares para beijar a nossa filha. Quando Anninha ergueu a mão,
abriu e fechou na direção do rosto dele, lágrimas vieram aos meus olhos.
— Boa noite, papai. — Ele conversou com ela e cheirou sua
mãozinha. — Foi sua mãe quem te deixou assim, tão perfumada?
Sorri confortada.
— Ela acabou de sujar a fralda. Tive que dar mais um banho —
expliquei, ousando abaixar minha cabeça para beijar o cabelo do meu
homem, querendo tocar seu rosto bonito e torná-lo menos tenso.
— Ela dormiu a tarde toda? — ele perguntou, me olhando de soslaio.
— Não. Brincamos a maior parte do tempo.
— Por isso ela está sonolenta?
— Ela sempre dorme depois do banho, Lipe. Logo você aprende a
rotina dela.
— Você fez esse mingau?
— Joana me ensinou lá no orfanato. Já deixei três mamadeiras da
madrugada prontas, só preciso colocar a água morna.
— Vou tomar um banho e voltar para ficar com ela. Acho melhor
você descansar.
— Não precisa. Ela tem o sono pesado. Só vai acordar depois da
meia-noite.
— Certo. — Levantou.
— São quase oito horas... Por que demorou tanto, Felipe? —
perguntei com o choro preso na garganta.
— Fui trabalhar, depois dei um tempo na casa dos meus avós.
— Eu estava preocupada, mas não quis te incomodar...
— Você já comeu? — perguntou sisudo, sem olhar no meu rosto.
— Leite com biscoitos.
— Coma mais alguma coisa antes de dormir.
— Vou ninar Anninha, depois coloco sua comida. É da Judite. Eu só
fiz o arroz.
— Já jantei. — Ele se afastou. — Precisa escolher mais duas
funcionárias — disse de costas, puxando a gravata do pescoço. — Você
nunca trabalhou na cozinha da sua mãe, aqui não será diferente.
— Hoje eu só quero que você fique comigo.
— Vou descansar. — Foi direto para o corredor dos quartos, me
deixando mais triste.
— Papai não quer mais a mamãe, filhinha, mas ele te ama muito e
sempre vai cuidar de você. — Deixei minhas lágrimas caírem no pijama
dela. —Vou ser forte todos os dias. Por você. Para você.
Aproximei meu rosto da cabecinha cheirosa e fiquei ali, tentando me
tranquilizar. Anninha era o meu novo antidepressivo.
Esperei minha filha terminar o mingau, e depois de niná-la no quarto,
deitei meu pequenino ser de luz na caminha acoplada e fechei a saída.
Frustrada, olhei para a cama larga que me esperava. Felipe não tocou
no assunto principal, mas era uma conversa que não deveríamos adiar.
Pensei em insistir um pouco mais. Ele queria um tempo para se
acalmar, eu não tinha um minuto a perder.
Abri o guarda-roupa, peguei uma camisola sexy e um dos brincos que
ele me deu. Coloquei tudo na cama e parei na frente do espelho.
Levantei a cabeça para sufocar as lágrimas, abri os botões da camisa
completamente e quando meus olhos focaram no reflexo, encontrei excesso
de gordura em meus quadris e cintura.
— Droga, como isso aconteceu em duas semanas?
Virei de costas e inspecionei minha bunda. A listra branca que
apareceu lá alguns meses atrás parecia maior e mais proeminente.
Rapidamente fechei a camisa e descansei as mãos em meus seios. Eles
também estavam maiores.
Olhei para as coisas sobre a cama e desisti de procurar Felipe daquela
maneira. Só precisávamos conversar. Talvez ele me recebesse no quarto.
Conferi o cobertor da minha filha, abracei a babá eletrônica e
caminhei descalça, articulando a melhor maneira de puxar conversa.
Respirei fundo quando alcancei a porta do quarto. Rodei a maçaneta
bem devagar e entrei sem fazer barulho. Quando girei o corpo e levantei a
cabeça, me deparei com olhos azuis intensos me encarando.
Meu marido estava deitado sobre a cama, usando apenas um roupão
aberto e uma cueca boxer branca. O braço um pouco acima da cabeça,
como se estivesse tampando os olhos antes de perceber minha invasão.
Mordi meu lábio por dentro e deslizei meu dedão pelo carpete.
Aquele homem era muito meu para estar fora de minhas mãos.
— Quer alguma coisa? — perguntou.
Você.
— Você pode me emprestar um aparelho de barbear, Luiz Felipe?
— Não — ele respondeu seco, sentando-se na cama e amarrando o
roupão.
— Vai me negar um aparelho de barbear? — O tremor em minha voz
foi suficiente para demonstrar meu estado. — Vou procurar um trabalho,
não quero mais sua mesada — falei ressentida, torcendo para ele não aceitar
minha decisão de última hora.
— O dinheiro é seu por direito. Não seja orgulhosa. — Ele deu passos
em minha direção e colocou a mão no meu rosto. O choro queimou na
minha garganta com mais intensidade, mas seu toque fez meu coração
encontrar alívio. — Você precisa descansar, Alicia. Vamos deixar a
conversa para amanhã.
— Eu... não sabia que ele era seu amigo — falei entre soluços. —
Não teria chegado perto...
— Não chore.
— Hoje foi um dos dias mais felizes da minha vida, mas tudo
desandou muito rápido. Fiquei sozinha. Pensei em ligar para minha mãe ou
para os meus irmãos, mas tive vergonha de me explicar. Meu passado me
humilha muito.
— Shh... Amanhã a gente conversa.
— Sei que é difícil para você, mas tente me perdoar por isso e por
outras situações como essa que podem aparecer — pedi com os olhos
baixos, sendo sincera, me segurando em qualquer fio de esperança que
ajudasse recuperar a minha família.
— O que você está sentindo? — perguntou, ganhando minha atenção.
— Estou assustada e com muito medo de você ir embora — respondi
com os lábios trêmulos, olhando dentro de seus olhos.
— E mais o quê?
— Minha cabeça dói...
— Certo. Vou cuidar de você, depois te colocar para dormir.
— Cuidar de mim? — Passei o punho nos olhos.
— Sim. O dia foi muito difícil. Você está cansada para se cuidar
sozinha. Além disso, está com pelinhos e não vou deixar uma lâmina na sua
mão — disse sério, deixando-me vermelha, em seguida, trazendo a
memória das mordidas.
— Melhor não, Felipe.
— Sim. Banho quente, comida e descanso é tudo que você precisa
hoje. Sou o pai da sua filha, de qualquer maneira, tenho obrigações aqui.
— Mas, Felipe...
— O quê, Alicia?
— É uma coisa que... fiz lá no banheiro. — Levantei o punho da
blusa até o cotovelo e mostrei as duas mordidas que estavam agora
doloridas apesar do remédio que passei mais cedo.
— Porra, mulher, me ajuda a te ajudar! — ele exclamou,
visivelmente desapontado.
— Desculpa...
— Vamos já para o banheiro.
Ele tomou o pequeno monitor da babá eletrônica que estava em minha
mão e o colocou na cama, então agarrou meus dedos e me puxou para o
banheiro.
— Agora vamos tirar essa roupa feia. — Avançou nos botões da
minha camisa.
— Quero tomar banho na banheira, lá no meu quarto — declarei,
tentando me esconder dele.
— Já vi tudo em você, Alicia.
— Mas engordei desde a última vez.
— E só percebeu hoje?
— Felipe, não fala assim...
— Eu já tinha notado e isso é ótimo.
Ele abriu o último botão, escorregou o tecido para fora dos meus
ombros e teve cuidado com as mordidas. Dois segundos e eu estava apenas
de calcinha de algodão.
— Entra aqui. — Empurrou a porta do box e tirou o roupão,
deixando-o no canto.
— Não olha minha bunda, por favor. — Coloquei as duas mãos para
trás.
— Espera! — Me puxou pelos quadris, fez a calcinha rolar por
minhas coxas e para fora dos pés. — Agora me deixa ver o que tem na
bunda.
— Não, Luiz Felipe!
— Cadê? — Me virou e lutou comigo para afastar minhas mãos.
— É estria, Felipe. Me deixa!
Ele segurou minhas mãos no alto e disse:
— Branca, assim como meu pau. Agora entra no chuveiro. — Deu
um tapa na minha bunda.
— Ai!
— Se reclamar, leva outro. Entra! — disse bruscamente e obedeci
com o rosto quente. — Onde estão seus pelos? — Pegou meu sabonete
líquido no nicho de porcelana.
— Foi uma desculpa para te ver, marido. Faço manutenção a laser a
cada três meses. — Parei na frente do chuveiro e esperei com as mãos
cruzadas na minha frente.
— Você não precisa dar desculpas para me ver. — Sem nenhum sinal
de harmonia, ligou o chuveiro e deixou no jato mais fraco.
Entrei na água para me aquecer e ele despejou uma quantidade
generosa de sabonete líquido na mão. Depois de devolver o frasco ao nicho,
fez ondas leves com as palmas nos meus seios, barriga, ombros e pescoço.
Não fazia duas horas desde que tomei banho, mas foi bom não falar sobre
isso.
Quando levantou meus braços para ensaboar minhas axilas, fechei os
olhos e sorri, confortada pela profundidade de sua dedicação a mim.
— Ainda é tão estranho ser mimada por você, meu marido... Vamos
nos reconciliar?
Ouvi um rosnado enquanto o líquido caiu na curva do meu cóccix,
então sua mão ensaboou minhas nádegas e aproveitei a oportunidade para
me esfregar contra ele.
— Quieta, Alicia! — reclamou, descendo para minhas coxas e
canelas.
Colocou mais sabonete na mão e circulou os dedos na minha pélvis.
Desceu um pouco mais e fez os mesmos movimentos entre meus lábios
íntimos.
— Uhmm, Lipe, assim é bom... — Soltei e ele fez uma careta
impaciente.
— É só um banho. Pare com isso. — Desceu os dedos e lavou lá
embaixo, subiu e circulou sobre meu clitóris.
— Ai, como, se você está fazendo assim? — Acariciei seus cabelos,
ele ajoelhou na minha frente e esfregou minhas pernas. — Vamos namorar
um pouco, marido?
— Não é assim que resolvemos tudo. Preciso dormir e pensar no que
vou fazer
— Comigo?
— Com ele. — Felipe soprou pelas narinas, como um touro. — Só
não ferrei com tudo, porque tenho minha filha e ele também tem um bebê.
Estou puto, Alicia. Ele comeu a porra da sua bunda e disse para mim!
— Felipe... — Chorei de vergonha.
— Não sei para quem mais aquele bastardo disse isso. — Voltou a me
ensaboar — Vou me acalmar e pensar no que vou fazer.
— Por favor, não me deixe. Não vai embora.
— Só vou se você for comigo. Porque aonde quer que eu vá, você
também vai — disse em um embargo doloroso e me abaixei para fechar
meus braços em torno dele. — Decidi viver o presente e construir o futuro
no primeiro dia que dormimos juntos na mesma cama, Alicia.
Ele virou o rosto quando tentei beijá-lo, então coloquei minha cabeça
na curva de seu pescoço e solucei.
— Vou ser digna da sua confiança, Felipe. Prometo por nossa filha.
— Você recebia dinheiro dele?
— Não.
— Ele te machucava?
— Nunca fez o que eu não pedi.
— Maldito!
— Já faz três anos...
— Olhe para mim. — Lipe ergueu meu rosto pelo queixo. — Você é
minha, Alicia. Só minha! — declarou, me fazendo sorrir no choro.
— Sim. Sempre sua. Toda sua. — Passei os dedos pelo rosto bonito
do meu homem, agradeci por ele ficar ao meu lado, então pressionei nossas
bocas e todas as emoções correram em minhas veias. — Por favor, faça
amor comigo.
— Você está exausta, mulher.
— Só um pouquinho, príncipe.
— Alívio e cama? — Sua mão deslizou sobre a pele da minha coxa,
ele sentou no chão e me puxou para seu colo, já beijando meu mamilo
esquerdo.
— Sim...
— Amo chupar os teus seios... — Mordiscou minha aréola, usou a
língua e a pressão dos lábios para fazer o barulho de sucção ecoar entre os
azulejos.
— Só quero você, Felipe. — Beijei seus cabelos.
— Sinta. — Ele colocou minha mão sobre a transparência da cueca.
— Esse caralho é todo seu.
— Todo meu. — Movi meu dedo indicador sobre a cabeça lisa e bem
definida e fui retribuída com um beijo intenso.
— Agora venha virar os olhinhos. — Me fez levantar, ajoelhou na
minha frente e enterrou a cabeça no meio das minhas pernas.
— Sim... — murmurei, vendo-o descer a cueca e libertar o membro
branco e de extremidade rosada.
A visão perfeita fez minha boca salivar, mas perdi o foco quando
Felipe fez algo lá embaixo que roubou meu fôlego. Intenso, firme, cheio de
necessidade e, mesmo assim, pensando em mim antes de tudo. Passei uma
perna sobre seu ombro e ondulei meus quadris contra sua boca, acariciando
seus cabelos loiros, prendendo meus dentes nos lábios para sufocar o
gemido.
Felipe abandonou meu clitóris e endureceu a língua para enterrá-la
dentro da minha carne. Um pouco daquilo e as sensações eróticas correram
violentas dentro da minha barriga. Minha perna dobrou e perdi a
sustentação do corpo. Em segundos flutuei com ondas de calor dos pés à
cabeça. Cada vez ele me dava algo mais intenso que o interior, mas sua
boca ainda era a minha maior fraqueza.
Choraminguei trêmula.
Ele firmou as mãos em minhas coxas, sustentou meu peso e se
aproveitou da posição para finalizar o que sabia fazer com perfeição.
— Sem forças, coração? — Se fartando, desceu minha perna de seu
ombro.
— Você é malvado — Sustentei as mãos em seus cabelos e fechei os
olhos.
— Hoje você já estava excitada. — Levantou e me abraçou debaixo
da água morna. — Se tocou mais cedo?
— Não, é que estou mais acostumada e sempre fico assim quando
sinto seu cheiro. Não consigo sentir nada sozinha.
— Vamos treinar isso?
— Não quero. Gosto disso aqui. — Fechei a mão em volta do meu
homem e sorri, vendo-o estalar a língua. — Você disse que é meu, quero ver
se está em perfeito estado.
— Porra, sim!
Escorreguei nele, coloquei meu joelho no chão e agarrei aquele
mastro pesado.
— É o mais lindo que já vi — confessei, olhando nos olhos dele,
vendo vaidade brilhar ali.
Amorosamente deslizei a ponta do meu indicador no revestimento das
veias, testei a língua na base lisinha e acariciei a fenda suculenta. Provei o
gosto dele e suguei por longos segundos.
Felipe usou os dedos para pentear meus cabelos e me assistiu correr a
língua ao longo de seu comprimento. Quando passei várias vezes sobre a
aresta entre a cabeça e o corpo do pênis, ele vibrou com um chiado e tive
que parar.
Masturbei, esfreguei no meu rosto e beijei. Quando ele relaxou,
protegi meus dentes com os lábios, deslizei a boca até a metade e movi
minha cabeça para cima e para baixo, suave e continuamente.
Com uma expressão excitante, ele sorveu o ar com força, soltou um
som plangente da garganta e firmou as mãos na parede de azulejo.
Querendo vê-lo mais perdido, dei sugadas sonoras e macias. Subi,
desci a língua até o final e massageei suas bolas na boca.
— Não aguento assim, princesa... — gemeu rouco e tive que fazer
uma manobra rápida.
— Descobri uma fraqueza... — cantarolei sorrindo, já voltando para o
topo.
Soprei contra a fenda da uretra e, na segunda sucção suave, ele
enganchou a mão no meu cabelo e alcançou minha garganta. Rápido. Firme
e duro. Pegando-me desprevenida, provocando engasgo e me deixando sem
fôlego.
— Droga! — Ele se afastou rápido, colocou as duas mãos contra a
parede na minha frente e abaixou a cabeça, dando-me uma visão
privilegiada de sua bunda bem torneada. — Perdão! Desculpa.
— Você pode... — Tossi quando não deveria e ele se ajoelhou na
minha frente, o pau tão alto e duro que eu podia imaginar sua dor.
— Me desculpa, coração. — Beijou minha testa. — Tá machucada?
— Massageou minha garganta.
— Eu não quebro, marido.
— Não quebra, mas desmorona. — Me apertou entre os braços. —
Não vou mais fazer assim.
— Goza na minha garganta...
— Não, não fale assim, isso me deixa fora de controle. Vamos
continuar na cama. Com conforto.
Deitei Alicia na cama e fui com ela, beijando seu rosto
carinhosamente, desculpando-me pela grosseria. Minha preocupação maior
era seu psicológico.
— Como está sua cabeça? O que você está pensando?
— Não sou cristal como você pensa. — Ela piscou, sorrindo. Toda
embrulhada em um roupão de capuz, apenas o rostinho de fora.
— Sim, você é meu pequeno cristal.
— Me deixa continuar, Lipe...
— Sei que você é gulosa, querida. Foi incrível, mas meu prazer agora
é ver você sentindo prazer.
— Você me mima demais, marido — disse com a voz dengosa. —
Quero sentir como é ter você dentro de mim.
— Sou louco por você — confessei e abri seu roupão.
Beijei sua garganta por um longo tempo, lembrando dos segundos que
coloquei ali sem piedade. Inferno, eu queria repetir. Mas não! Não seria um
bastardo egoísta com meu coração.
Beijei os dois biquinhos rosados e escorreguei a mão até sua entrada
estreita, fiscalizando o nível de sua lubrificação.
Encharcada, inchada e quente.
Provei meus dedos, virei para o lado e coloquei minhas costas na
cama.
— Quero você por cima, sentada em mim — sussurrei pesado. —
Senta.
Ela levantou o tronco, percorreu o meu corpo com olhos sequiosos e
passou uma das pernas sobre meu quadril, firmando os joelhos na cama.
Toda exposta. Rosada nos lugares mais íntimos.
Estendi a mão e deslizei meus dedos pelo formato de sua barriga,
parando no centro, onde havia uma camada leve e recente de gordura.
Queria vê-la cada dia mais saudável e estávamos conseguindo isso juntos.
Enquanto eu a observava, ela me guiou até sua entrada e desceu
lentamente, escorregando com dificuldade, fazendo-me cerrar os dentes e
guinchar a cada centímetro meu que desaparecia dentro dela.
— Você quer assim, Lipe? — Ela moveu os quadris em círculo e a
visão da penetração incompleta enviou um arrepio pela minha espinha.
Morreria feliz naquele momento. Droga, não podia. Eu tinha uma
filha para criar.
— Você me tem em suas mãos, mulher.
Com um meio sorriso, ela se ergueu um pouco, ampliou a visão do
meu paraíso e desceu de vez, deixando o peso do corpo cair sobre mim,
gritando com o impacto que nem ela esperava.
Ca... caralho!
Entrei em uma grande luta para segurar o gozo. Meu sangue pulsou
forte, minha garganta ficou seca e meus olhos rolaram para trás. Nunca
aguentei uma sentada por muito tempo, mas com ela planejava fazer
diferente. E consegui segurar. Porra!
Ela começou reagir e sorriu abafado contra meu peito.
— Você está bem? — murmurei em um tom doloroso, completamente
enterrado dentro dela. No fundo dela. Sentindo seu calor me sufocar. Uma
delícia.
Ela pressionou beijos nos músculos do meu peito e voltou à sua
antiga posição. Totalmente segura de si. Meu orgulho em forma de mulher.
Minha mulher.
Com os olhos fechados, moveu os quadris para frente e para trás, indo
e voltando, me colocando à beira do abismo. Eu cairia fácil com ela.
— Veja como você é poderosa... — Coloquei minhas mãos na cintura
fina e segui os movimentos dela.
— Gostoso... — Ela desceu para beijar minha boca e ganhou o aperto
dos meus braços.
Tentei sair dela, querendo voltar com um golpe forte, mas Alicia me
apertou com suas paredes internas e me tirou o fôlego.
— Porra!
— Não vai sair agora. — Ela riu e se sentou outra vez.
Colocou as mãos no meu abdômen e rebolou sobre mim, me
engolindo por inteiro, sem deixar escapar nada.
Fechei os olhos. Perdi o ar outra vez. Minha esposa começou a
rebolar rápido, mudando a direção dos movimentos, me enlouquecendo em
todas as direções, me comendo sem piedade.
— Eu te amo... — Ouvir isso me fez abrir os olhos rapidamente. —
Eu te amo, Felipe — repetiu, totalmente perdida na poderosa sincronização.
Meu coração saltou dentro do meu peito. Alicia nunca tinha me dito
isso e, porra, era mais íntimo do que a união que desfrutávamos.
Mantive minha boca aberta, chocado com a confissão inesperada,
rouco de luxúria, tentando não me perder em seu aperto quente.
Vi seus lábios se moverem mais algumas vezes, pronunciando a
mesma frase, trazendo uma pressão estranha para meu peito.
Alicia era sentimento e explosão. Ousadia e delicadeza. Tudo ao
mesmo tempo e... Porra, eu amava minha mulher. Não sei quando
aconteceu, mas eu amava muito e nunca tive tanta certeza disso.
Tentei gritar as palavras, mas não tive condições. Ela começou
cavalgar rápido e forte, me fazendo escutar os sons molhados de sua
excitação. Fiquei insano, convulsionando sobre a cama. Quando me
preparei para virá-la, senti seu impacto quente e me aquietei.
Choramingou e desabou sobre mim.
— Vo-cê pode continuar... — Tremeu em meus braços.
— Descansa, coração. — Tentei sair dela para uma pausa, mas Alicia
pressionou seu quadril e me prendeu com força. Perfeita. Tinha experiência
com pompoarismo e agora era só minha. — Minha!
Gritei entalado. Virei-a na cama, ajoelhei-me sem sair completamente
de dentro e puxei seus quadris para mais perto. Olhando nos olhos cor de
jade, pedi permissão para ditar meu ritmo e ela assentiu. Deitou as pernas
sobre meus ombros e me ofereceu acesso para algo mais intenso.
Foi lindo vê-la se libertando das amarras do passado.
Eu estava tão orgulhoso daquela mulher.
— Nunca me senti tão completo — falei em voz alta, virei o rosto e
beijei suas duas panturrilhas, sentindo lágrimas em meus olhos, feliz por
ela, por nossa união, por nossa família.
Ela pulsou me chamando e não demorei para atender. Segurei firme
em suas coxas e comecei dominá-la com veemência. Alicia gemeu, sendo
libertina, compatível com a minha necessidade, querendo mais de mim.
Ela me completava em todos os sentidos.
Mantive-me firme. Soltei um ruído bruto e bati bem no fundo. Duro.
Inicialmente lento, depois completamente insano. Tentei parar, mas não
consegui. Continuei buscando mais e mais até que senti o começo do
clímax. Desejei abraçá-la, por isso desci meu tronco e a trouxe para meus
braços, deixando-a sentada em minhas pernas, bem perto de mim, com a
cabeça deitada no meu ombro.
— Eu te amo, Lipe — ela disse, me mastigando, tremendo sobre
mim.
Tensionei e fui comprimido outra vez. Vibrei, sobressaltado. Gemi no
ouvido dela. Alicia não parou de me provocar. Quis trocá-la de posição,
mas me contive.
— Eu amo você, Alicia.
— Me ama?
— Amo. Minha mulher!
— Me marca. — Ela me soltou do aperto.
Só tive tempo de dar cinco, apenas cinco estocadas antes de me deixar
nela. Tudo. Intensamente. Minha.
— Minha!
Enterrei meu rosto em seu cabelo e a ouvi soluçar baixinho.
Fiquei sem forças e tirei alguns segundos para respirar em silêncio.
— Você me fez sentir como se tudo tivesse começado agora. Você é
um príncipe. Sempre foi.
— Você é uma bruxinha. Me enfeitiçou desde cedo e agora me
domesticou para sempre.
— Foi tão... bom... — disse suavemente, massageando meu pau já
flácido.
— Você está bem? — Acariciei seus cabelos.
— Eu não consigo andar, mas estou feliz... Tudo o que importa.
Levantei o rosto miúdo do meu ombro e fitei os olhos sonolentos.
— Sério? Então te machuquei.
— Você é tudo... — Ela sorriu com os olhos entreabertos. — Não
quebro, já disse. — Deu uma cochilada.
— Alicia, meu amor. Você não está bem?
— Estou com sono. Vou tomar banho e dormir com minha filhinha...
— Também vou.
Ela beijou o meu peito e levantou o tronco, saindo de mim, me
deixando sem o calor gostoso e macio.
— Olha para lá ou fecha os olhos. — Apontou para a porta.
— Vou te dar uns tapas, mulher. — A peguei sem aviso e me levantei
da cama, distribuindo beijinhos no rosto sonolento. — Você aguenta fazer
um amorzinho durante o banho? — Fiz um chamego no pescoço dela. —
Bem de leve. Só para fecharmos a noite?
— Nem pensar.
— Tudo bem. Amanhã vou comprar uma joia nova para você...
comemorar o nosso amor.
— Um conjunto de colar, brincos, anel e duas pulseiras?
— Tudo isso?
— E um bracelete.
— Tenho que fazer alguns investimentos ou logo fico sem grana para
pagar as contas de casa.
— Pão duro! — Me estapeou e fechou os olhos, bêbada de sono. —
Você é herdeiro de duas heranças milionárias. Tem uma casa na Ilha do Mel
que vale cinco milhões e está alugada para uma família que paga em dólar.
— Me mostrou os dedos da mão. — E você ainda vai fazer vinte e quatro
anos. Pode trabalhar muito para me encher de joias. Muitas joias. Gosto de
ouro, já disse...
— Como sabe de tudo isso?
— Sei há um tempão. Não tente me enganar. — Bocejou e a levei
para o banheiro.
Tomamos banho rápido, levei para dar comida na cozinha e ela já
chegou na outra cama dormindo.
Uma cena perfeita.
Alicia, toda linda, sob a luz de duas luminárias.
De frente para mim, com uma perna sobre a outra, ela vestia uma
camisola branca, tão curta e transparente que deixava suas coxas delgadas e
parte do quadril descobertos.
Minha linda joia bruta que demandava cuidados diários.
Não me cansava de admirá-la. Durante a madrugada, enquanto
roncava baixinho no meu peito, agradeci aos céus por ter me dado um
paraíso particular, e pedi perdão por todas as vezes em que negligenciei
nossos sentimentos.
Amor, paixão e intensidade.
Alicia era tudo e um pouco mais.
Mesmo exausta e dengosa, ela acordou diversas vezes para checar a
respiração e temperatura da filha. Mostrou-se um pouco exagerada, mas
acreditei ser o cuidado de mãe gritando dentro dela. Eu não conhecia a
extensão do sentimento maternal, mas experimentei sua força através da
minha mãe.
Sentindo o cheiro de neném, levantei a cabeça e observei minha filha,
na caminha acoplada ao lado.
Linda e plena, ela dormia profundamente depois de acordar várias
vezes e me colocar no ritmo de chefe da família.
— Príncipe... — Minha deusa se mexeu sobre a cama com um sorriso
lindo nos lábios.
— Bom dia, menina.
Passei os dedos por seus cabelos perfumados e ela me lançou um
olhar tão carregado de intensidade que, naquele momento, meu cérebro
conseguiu colocar o mundo, meu universo e tudo que eu era capaz, aos seus
pés.
— Me olhou de um jeito tão bonito, marido... — Ela moveu os lábios
em um tom sonolento.
— Minha mulher é incrível, ela merece nada menos do que minha
devoção total. — Enrolei uma pequena mecha entre meus dedos, admirando
o formato de seu rosto comprido, pintado com sardas dispersas e fracas...
Os lábios carnudos e rosados enchendo minha cabeça de pensamentos
eróticos... — Durma um pouco mais, querida. Fique na cama esta manhã.
Eu cuido de tudo.
— Estou muito cansada, mas não quero que falte ao trabalho. Você
voltou agora da licença e seu avô vai me culpar.
Ignorando sua preocupação, corri as costas dos meus dedos sobre a
suavidade do braço branquinho.
— Sonhei com você. É tão bom acordar e ver que tudo é real...
— Luiz Felipe, você está tão apaixonado por mim que seus olhos
brilham... — Ela riu, espreguiçando-se para esfregar o nariz no meu. —
Tem noção de quantas vezes sussurrou “eu te amo” no meu ouvido?
— Não lembro exatamente, mas sei que foi enquanto eu estava sendo
terrivelmente esmagado nos confins de sua bocetinha.
— Felipe, seja um príncipe romântico ao amanhecer... — Fez aquele
lindo biquinho emproado.
— Você é uma deusa e é toda minha. Eu te amo, ruiva, vou te dizer
isso o tempo todo. Na cama ou fora dela.
— Hmmm... acho que vou aproveitar a oportunidade para pedir
coisinhas caras... — ela murmurou astutamente.
— Preciso te dar limites, mulher. — Virei seu corpo sobre o meu,
prendi com um braço e deixei um tapa bater em sua bunda.
— Ai... — reclamou em um sussurro, fazendo cócegas na curva do
meu pescoço. — Tenho um marido rendido, preciso aproveitar...
— Você é muito atrevida. — Acariciei sua pequena bunda avidamente
e ela deu uma empinada sutil.
— Uma atrevida que te ama, Felipe — completou, beijando meu
peito, deitando a cabeça ali. — Você me aceitou sem reservas, me mostrou
o que é liberdade e trouxe meu verdadeiro e puro amor, nossa filhinha.
Nunca vou agradecer o suficiente, marido. Só posso te amar e ser melhor a
cada dia.
— Seja melhor para você, para nossa filha, então para nosso amor,
Alicia — deleguei a ordem certa, como deveria ser, e ela assentiu. — E teria
trazido outro bebê durante a noite se você estivesse ovulando.
— Nem repita isso... — Ela riu preguiçosamente, circulando meu
mamilo com a ponta do dedo. — Marquei uma consulta. Vou falar com
minha médica sobre o implante contraceptivo.
— Sim, meu amor. Se o implante contraceptivo não funcionar no seu
organismo, teremos que viver perigosamente até os meus 25 anos, quando
poderei fazer uma vasectomia reversível. Sua saúde é delicada e não quero,
em hipótese alguma, que você fique doente.
— Você é muito homem para ser tão novo, Felipe.
— Seu homem, Alicia. — Corri minhas mãos por suas costas,
levantando sua camisola, deixando minha garota ainda mais nua em cima
de mim. — Essa posição é maravilhosa para cuidar dos assuntos da rotina,
não acha?
— Sim, mas se comporte. Nossa bebê está aqui. — Ela mordeu meu
queixo e meu pau se animou, fazendo com que uma pequena risada
escapasse de sua garganta e me envolvesse.
— Sua amiga vem fazer fisioterapia com ela hoje? — Mudei de
assunto, tentando me comportar na necessidade de ter mais dela.
— Vem.
— Quero visitar meus avós esta noite com você e nossa filha.
— Seu avô não gosta de mim.
— Não é pessoal, amor. O velho é teimoso e acredita que construir
família agora atrasará meu progresso profissional. Quero desfazer essa má
impressão entre vocês e mostrar a ele do que sou capaz.
— Tudo bem. Confio em você, então vamos...
Abriu as pernas sobre meu corpo, na tentativa de se levantar e gemeu
dolorosamente.
— O que foi? — Fiscalizei o rosto dela.
— Minhas coxas estão doloridas. — Virou para o lado e colocou as
costas na cama, se espreguiçando, deixando o tecido fino da camisola acima
do umbigo e o delicioso sexo totalmente exposto.
Eu estava amando nossa intimidade.
Sentei-me na cama, abaixei minha boca entre suas pernas e saboreei a
carne quente sem qualquer restrição.
— Delícia de café da manhã... — consegui dizer com a boca cheia.
Ganhei um beliscão, mas não parei.
— Felipe... — Dedos finos me puxaram pelos cabelos.
— Não me canso de provar você, mulher.
Lambi os lábios e ela me puxou. Levantou o tronco e mordeu minha
boca.
— Estou com fome — disse ao me soltar. — Quero ovos mexidos. —
Despencou a cabeça no travesseiro.
— Vou fazer agora. — Endireitei-me, sem conseguir conter a
empolgação. — Mais o quê?
— Bacon frito na frigideira e... Você pode colocar o bacon e os ovos
em duas fatias de pão integral.
— Coloco tudo. — Desci o rosto e beijei seu abdômen, abençoando
aquele lugar. — Suco de laranja?
— Isso.
— Já volto. — Circulei meus dedos sobre seu púbis e terminei com
dois tapinhas certeiros.
— Ai, seu feio... — sussurrou entre risos e nossa filha resmungou na
caminha.
— Shh! — Puxei o lençol, deixei no limite de sua cintura e me afastei
da cama.
— Na lateral do micro-ondas tem a medida certa do mingau. Prepara
uma mamadeira e traz. Ela vai acordar com fome.
Deixei um beijo em sua testa e fui me lavar no banheiro. Quando
voltei, Alicia estava debruçada sobre a caminha de Anna Flor, admirando
nossa filha.
— Use o termômetro para medir a temperatura da água — ela
sussurrou a última instrução e apenas assenti com um sorriso.

Tentei ser rápido na cozinha.


Preparei o que Alicia pediu e separei as medidas do mingau com os
olhos grudados na cola. Até o jeito de sacudir a mamadeira ela escreveu ali.
Detalhes que me encantavam. Era incrível como uma mulher que não se
identificava com a maternidade tão rapidamente se adaptou a ela.
Enquanto arrumava a bandeja, Judite, nossa funcionária, entrou na
cozinha com a bolsa e a chave de seu carrinho na mão, pronta para mais um
dia de trabalho.
— Bom dia, seu Felipe. — Ela inspecionou a bandeja.
— Bom dia, Judite. Cortou o cabelo?
— Já faz uns dois meses... Por que o senhor está sorrindo assim?
— Porque o dia amanheceu lindo, senhorita Judite.
— Senhorita...? — Lançou-me um olhar investigativo. — A menina
Alicia está bem? Ontem ela me pediu para pegar Teodoro no pet shop,
depois me dispensou da porta...
— Ela está mais linda e com a pele exuberante. Pediu ovos mexidos e
bacon, não é maravilhoso? — Com a jarra na mão, cuidadosamente
derramei o suco nos copos da bandeja.
— Sim, isso é ótimo — disse a mulher de meia-idade, em um tom
leve e sincero. — Vou guardar minhas coisas e voltar para limpar essa
bagunça. Sujou todas essas panelas agora?
— A maioria. — Levantei a bandeja. — Consiga para mim, uma ou
duas mulheres de sua confiança, que estejam dispostas a assumir as tarefas
do apartamento. Você é cozinheira e preciso que se concentre apenas nisso.
— Equilibrei a bandeja e caminhei até a porta da cozinha.
— Conheço excelentes arrumadeiras...
— Ótimo. Ah, e na panela sobre a pia tem uma papa de arroz
branco... Dê um fim naquilo antes que Alicia apareça na cozinha. Mude de
assunto se ela perguntar.
Instruí e levei o café das minhas meninas no quarto. Em uma hora, no
máximo, precisava sair para o escritório.
No quarto, encontrei Alicia ajoelhada na cama conversando com
Anna Flor, que, sentada no braço da mãe e coberta de pó branco, parecia
entender cada palavra na linguagem infantil.
— Deu banho nela? — perguntei, colocando a bandeja na cama.
— Banho de gato, porque ainda está muito cedo. — Alicia colocou a
filha na cama, subiu a fralda calça pelas pernas da criança e começou
abotoar um macacão quentinho. — Você acredita que ela queria pegar meu
peito?
— Tadinha, Alicia...
— Ela nunca fez isso. Mas foi só ver meu peito saindo da camisola
que avançou com a boquinha desesperada.
— A mamãe não tem leite, princesinha. — Peguei minha bebê e a
trouxe cuidadosamente em meus braços. — Olha o que o papai fez... —
Mostrei a mamadeira e vi sua boquinha se mexer ligeiramente, como se
estivesse saboreando o alimento.
Tudo que fiz foi colocar o bico de borracha em sua boca, do mesmo
jeito que aprendi durante a madrugada, quando Alicia trouxe as mamadeiras
prontas da cozinha.
— Lipe...
— Oi, amor?
— Por favor, não procure aquele homem — pediu em um sussurro, e
fiquei tenso instantaneamente.
As palavras de Enrico sobre ela ganharam vida na minha cabeça e
mentalizei meia dúzia de maldições.
— Coma e esqueça esse assunto.
— Não quero que você tenha problemas por minha causa, Felipe. —
Ela mordeu o pão gourmet e manteve os olhos baixos. — Por favor, não
faça nada que suje seu nome e caráter.
Engoli minha raiva e me esforcei para suavizar a voz.
— Tudo bem. Agora coma tudo. Não gosto de ouvir sua voz
embargada. Só quero isso aqui. Amor. Nossa família. Vocês duas sorrindo.
— Te amo, marido. — Colocou um pedaço de pão na minha boca e se
inclinou para selar meus lábios. — Obrigada. Confio no seu autodomínio.
— Beba mais suco e prove os ovos.
— Você pode passar nas lojas do shopping para pegar as compras de
nossa filha? Não quero ir lá tão cedo.
— Pego tudo no final do dia. — Olhei para Anna flor e encontrei seus
lindos olhos azuis presos em mim. Ela amava o contato visual, tão esperta,
minha bebezinha. — Fique largada até mais tarde com a pequena. Você está
exausta e precisa recuperar as forças o mais rápido possível.
— Você é um príncipe sem-vergonha, Luiz Felipe. Sua sorte é que
gosto disso.
Virou o copo de suco na boca e admirei sua disposição com um
sorriso satisfeito.

Cheguei ao escritório e, ao sair do elevador, encontrei meu avô e


Enrico em um canto reservado da recepção. A ideia de que o assunto era
Alicia passou pela minha cabeça e fez meu sangue ferver. Quando percebi,
já tinha empurrado o bastardo brutalmente contra a parede.
— Preciso conversar com você! — Enrico disse, ambas as mãos
suspensas no ar, olhos inspecionando todo o perímetro da recepção.
— Fora! — Recuei, apontando diretamente para ele, deixando uma
ameaça clara. — Você tem muito mais a perder!
— Felipe, que comportamento é esse? — perguntou meu avô, seu tom
deixando claro que não sabia de nada.
— Quero esse cara longe daqui. De agora em diante, ele vai buscar
aconselhamento jurídico, seja o que for, no inferno ou na casa da porra. Ele
escolhe onde prefere se ferrar mais.
— O que está acontecendo, Felipe? — Meu avô colocou a mão no
meu peito. — Enrico quer falar com você e provavelmente deve ser algo
sério, a julgar pela sua falta de controle!
— Não é sobre sua... É a bebê — Enrico disse.
Suas palavras me confundiram e algo em meu cérebro avisou que era
um bom momento para socá-lo com força. Foi exatamente isso que fiz.
— Pode me atacar... — murmurou o desgraçado, limpando o sangue
da boca. — Mas, mesmo assim, preciso que você me faça entender o
motivo da sua filha adotiva, como acabei de saber, ter uma pulseira igual a
que fiz exclusivamente para minha bebê que faleceu no parto.
Um entorpecimento me engolfou quando ouvi essas palavras e
congelei por segundos enquanto a história que me contaram sobre Anna
Flor passava pela minha cabeça e seu rostinho traçava cada linha do homem
à minha frente.
Droga, não fazia sentido, mas era estúpido não querer resolver uma
dúvida tão impertinente.
Sabendo que o assunto exigia cautela, caminhei em direção ao meu
escritório. Deixei a porta aberta e depois desabei na poltrona com as mãos
na cabeça.
— Eu estava viajando, lembra? — A voz profunda de Enrico foi
ignorada, então ele fez como meu avô e sentou-se na segunda poltrona à
minha frente. — Quando cheguei, soube que a Marcela agiu sozinha,
cancelou o parto na maternidade para fazer humanizado e dentro de casa...
— Enrico hesitou e puxou o ar para os pulmões —, ontem vi nossas
histórias se cruzarem, coloquei minha mulher contra a parede, mas ela
resolveu fazer um maldito voto de silêncio.
Algumas lágrimas caíram dos olhos do homem e confesso que desejei
que fosse diferente, que ele não estivesse tão emocionado. Egoísta, eu sei,
mas foi um sentimento que não consegui controlar.
— Ela é minha filha! — exclamei em um tom duro.
— Precisava de respostas antes de vir até você, Felipe, então fui ao
médico que fez o parto e ele deixou claro que a menina nasceu saudável,
apesar de sua condição genética, e que a deixou aos cuidados da mãe, da
doula e da avó... Afirmou que só mais tarde soube da notícia. Tudo me diz
que ele não é tão inocente, mas não posso mexer tanto antes de ter certeza
das coisas.
— Anna Flor é minha filha — insisti.
— Anna Flor... — Enrico repetiu, e tive que me conter para manter a
calma que aquele momento exigia. — Me fale sobre como você a
encontrou.
Repus ar em meus pulmões. Não sabia o que pensar, a não ser que
Anna era minha e de Alicia, mãe dela.
— Felipe, acalme-se — vovô chamou minha atenção e o encarei. —
Respire devagar, meu filho. Isso precisa ser resolvido com cautela.
— Descobrimos na 11ª semana de gravidez que a menina tinha uma
síndrome — Enrico continuou e meus olhos bateram nele. — Marcela ficou
arrasada. Diante dos riscos, os médicos nos aconselharam a não fazer os
exames específicos para detectar o tipo. Mexer no líquido amniótico de
duas bolsas, duas placentas, poderia perfurar, causar complicações graves e
até aborto espontâneo. — Enrico estremeceu. — No início da 39ª semana
tive que fazer uma viagem de trabalho e só quando cheguei, dois dias
depois, fui informado do nascimento dos bebês e do falecimento da menina
nas primeiras horas. Marcela ficou em silêncio e assim permaneceu por
quase três meses, quando aceitou o tratamento para a depressão pós-parto,
ansiedade e síndrome do pânico que desenvolveu naquele período. Você
lembra como fiquei destruído.
— Vou pedir água — disse meu avô, mas foi interrompido por
Enrico, que recusou.
— Eu mesmo desenhei a joia. — Enrico tirou um papel do bolso e
estendeu na minha direção. Quando o peguei, ele fez uma caixinha de
veludo deslizar pela mesa e parar na minha frente. — A data, a mesma que
está gravada na pulseira da sua filha, é a mesma do meu casamento, que
aconteceu em um luau na praia e você estava presente.
Abri o papel e corri meus olhos sobre o desenho grotesco.
Precisando de mais evidências, destranquei a caixa e meus olhos se
fixaram na pulseira. Era a mesma joia. Nenhuma pedra fora do lugar.
— Anna Flor é minha filha — repeti com a joia na altura dos olhos.
— Conversei com minha sogra durante a madrugada. — Sem fôlego,
Enrico continuou. — A velha só abriu a boca quando levou uns dois tapas e
o marido colocou uma arma na minha cabeça.
— Santo Deus! — vovô exclamou.
— A velha explicou que desapareceu com as provas de vida, criou o
enredo da morte e me fez ver um caixão vazio sendo enterrado, pois
presenciou o descontrole da filha durante o parto e teve certeza de que ela
deu a ordem para levarem a criança. A pulseira foi colocada para tirar as
primeiras fotos, mas quando ela voltou não encontrou a neta.
— Inferno! — Coloquei as mãos na cabeça e puxei meu cabelo com
força, tentando encontrar alívio para minha mente atordoada.
— Estou sufocado desde ontem. Como um louco correndo de um lado
para o outro. Marcela não fala. Não posso envolver a polícia. A doula
mudou-se para outro país... Não tenho como saber onde está minha filha,
mas o fato é que sua menina é adotada, tem uma pulseira exclusiva e é
portadora de uma síndrome. Vi lá na delegacia.
— O que você quer? — perguntei enquanto deixava cair a corrente na
caixa.
— Fazer um mapeamento genético em sigilo — disse ele, circulando
os dedos em torno das têmporas, apertando os olhos como se o problema
queimasse dentro de sua cabeça. — Já pesquisei um lugar confiável. O
resultado sai em cinco dias úteis, a partir do momento em que as amostras
chegam ao laboratório.
— Você sabe que o DNA secreto não pode ser aceito em processos
judiciais de reconhecimento de paternidade, certo? — meu avô antecipou
minha pergunta e Enrico olhou para mim com um olhar confuso e
destruído.
Todos naquela sala sabiam como sobreviver em uma situação como
aquela. Restava saber quem estava menos disposto a arriscar.
— Melhor nem tentar — declarei agressivo, com a certeza de que iria
virar tudo do avesso, jogar baixo e a porra toda, mas encontraria um jeito
de ficar com minha filha. — Você sabe como funciona — avisei. Enrico
continuou em silêncio me olhando, então achei necessário acrescentar: —
Coloco sua esposa na cadeia até você conseguir, com todas as dificuldades
impostas, um laudo ou qualquer evidência que prove que ela não
abandonou a filha só porque nasceu com três cromossomos no par 21. E,
sim, a velha, sua mãe, vai ficar mais tempo. Certamente será julgada...
— Felipe, não é assim que você vai resolver — meu avô me
interrompeu e ofeguei algumas vezes, vendo nos olhos de Enrico que era
exatamente assim que funcionava e ele havia pensado em tudo antes de me
procurar.
Perturbado pelo bombardeio de informações, aproveitei seu silêncio
para colocar mais peso na balança:
— Só nesse movimento sua carreira política vai para o espaço, mas se
for preciso, vou mais longe, sem deixar de usar a lei a meu favor. Você sabe
que consigo.
— Cala a boca, porra! — Enrico bateu contra a mesa e me levantei.
— Minha cabeça está uma bagunça. Meu coração está partido e tenho que
me conter o tempo todo para não agir de cabeça quente. Você pode, em
nome da nossa amizade, usar um pouco de empatia para me entender?
— Eu não pensaria duas vezes antes de jogar tudo o que tenho para o
alto e lutar pela minha filha! Sua dúvida deixa claro que você é um covarde
egocêntrico de merda! — questionei seus sentimentos e ele levantou para
me encarar. — Você só está preocupado com o escândalo. Com sua carreira!
Sabe que vou atrás, que investigo até o fim e encontro evidências contra sua
esposa e todos os envolvidos em um estalar de dedos.
— Onde ela foi encontrada? — o homem perguntou entre lágrimas.
— Quero saber de tudo. Tenho o direito.
— Em um lixão na periferia. E o descaso causou uma grave infecção
pulmonar que quase a matou — achei necessário dizer.
Meu avô, com os olhos arregalados, desabou as costas no espaldar da
poltrona. Foi a primeira vez que ele ouviu a verdadeira história da bisneta.
— O sistema de segurança capturou algo? — Enrico questionou,
fazendo-me abrir um sorriso deprimente.
— Não. Não há evidência de nada. Apenas a pulseira que você
reconheceu — informei, identificando alívio nos olhos do homem e na
longa expiração que ele deu.
— Quero saber se sou o pai dela e quero...
— Você não tem que querer nada! — o interrompi e vovô me disse
para sentar. — Vamos fazer o DNA — informei, friamente, enquanto caía
na cadeira. — Mas você, nem ninguém da sua família, poderá tirar Anna
Flor de mim.
— Se for comprovado, quero que ela estude na mesma escola que o
irmão, quero poder vê-la em datas especiais e exijo que ela saiba a verdade
na hora certa — começou a dar ordens e continuei indignado com toda
aquela podridão.
— O momento certo será quando você se aposentar da política, ou
quando o Junior fizer isso? — questionei em tom depreciativo.
— Não posso deixar uma bomba assim explodir em ano eleitoral ou
durante meus mandatos — falou ele em um tom sufocado, e não fiquei
surpreso, apenas enojado.
— Agende o exame e me envie as instruções por e-mail. Vou
encontrar um segundo laboratório e fazer o mesmo. Agora saia.
Não olhei mais para ele. Minha mente só conseguia amaldiçoá-lo por
tudo.
— Acredito que você também manterá tudo em segredo, então nem
preciso lembrá-lo — disse Enrico, e por reflexo o vi se afastar.
— O assunto é entre nós. Nunca, pelo resto da sua vida de merda,
chegue perto da minha mulher, nem mesmo olhe para ela de longe. Você
conhece as consequências. Tem muito a perder na vida, mas não me custa
nada mandá-lo para o inferno.
A porta bateu e afundei na poltrona, minha cabeça explodindo com
toda a situação.
— Desde quando, para você, resolver um problema tão sério significa
se comportar como um delinquente que faz ameaças de morte?
— Desde que sinto a menor possibilidade de que ações externas
possam colapsar o que é meu. Minha esposa, minha filha, minha família!
Acabei com a tentativa de sermão e liguei o computador para procurar
um laboratório que fizesse aquele tipo de exame em segredo, recebendo
material genético por correspondência e enviando o resultado por e-mail.
Eu precisava absorver tudo e esfriar minha cabeça antes de falar com
Alicia.
— Vem, meu amor... — chamei minha princesa, que rastejava no
tapete colorido.
— Esse exercício ativa a musculatura agonista e antagonista. Contrai
e relaxa com suavidade e promove o engatinhar efetivo e funcional — Julia
explicou, movimentando os joelhinhos da minha filha, trazendo-a para
mim.
— Ela está cada dia mais forte, Julia. — Sacudi o brinquedo e
Anninha me mostrou as gengivas antes de apressar os movimentos e jogar a
cabeça sobre minhas pernas. — Isso, meu amor! — Virei seu corpinho
pesado.
— E por hoje é só. Amanhã teremos crossfit da bebê. — Minha amiga
levantou e Anna soltou um gritinho engraçado.
— Terminei o jantar e deixei tudo quentinho. — Judite apareceu na
sala com a bolsa na mão, se despedindo.
— Obrigada, querida. Lipe almoçou besteira no trabalho externo e vai
chegar faminto.
— Posso pegar uma carona até o ponto de taxi, Judite? — Julia
perguntou, pendurando a bolsa no ombro.
— Sim, minha filha, vamos. — Judite puxou a porta. — Estava só
encostada, Alicia...
— Deve ter sido quando abri para Julia.
— Até amanhã, amiga. — Ju beijou minha bochecha. — Tchau,
princesinha — disse, correndo atrás de Judite, então fechando a porta.
— Tia Ju nem ajuda com a bagunça, né filhinha? — comentei,
olhando para os cantos da sala, sentindo falta do cachorrinho safado.
— Teodoro! — gritei com a Anninha no colo, indo em direção à área
da cozinha e voltando para a sala. — Téo!
Entrei no corredor dos quartos e me certifiquei de que ele não estava
lá.

Com minha mente concentrada no assunto que surgiu naquela manhã,


tomei uma lufada de ar e saí do carro, na garagem do prédio.
Enquanto eu caminhava para pegar as compras de minha filha no
porta-malas, um latido familiar, meio lacrimoso e covarde, me fez andar na
direção oposta ao elevador.
Dez passos depois vi o caramelo de Alicia cheirando o traseiro de
uma raça pura. Chegando mais perto, identifiquei a cadela que tinha o
mesmo nome de minha esposa.
— Teodoro! — gritei, ele se assustou e abaixou o rosto como se
estivesse envergonhado. — Fugiu de casa para namorar, sem-vergonha?
Quando falei isso, o caramelo me mostrou os dentes, parou na frente
da cachorrinha peluda e me impediu de olhar para ela.
— Bastardinho possessivo, vamos para casa agora! Alicia deve estar
preocupada.
Um passo e ele se encolheu, então a cachorrinha rosnou em seu lugar.
— Você é uma decepção, caramelo.
Travei o carro, guardei a chave no bolso e enquanto a pequena fera de
dentes afiados preparava o ataque, me abaixei e peguei o cachorro de Alicia
nas mãos.
— Pare de valentia e venha, mocinha!
Estalei meus dedos e ela seguiu ao meu lado. Quando o elevador da
garagem abriu, Alicia entrou no meu campo de visão, com Anna nos braços
e olhos chorosos esbugalhados.
— Teodoro, você quer me matar do coração, seu safado? — Ela
soltou um soluço de alívio e não demorei um segundo para estar ao seu
lado.
— Fugiu e carregou a cachorrinha da vizinha. — Coloquei o cão no
chão e selecionei o andar no painel. — Estavam em um momento íntimo.
Focinho no traseiro e tudo...
— Téo é puro. É essa safada com nome de santa que está levando
meu cachorrinho para o mau caminho. Tá de castigo, Teodoro! — Alicia
disse em um tom duro, fazendo o caramelo choramingar em seus pés.
— Já passou, se acalme. — Aliviei seus braços e uni nossos lábios —
O importante é que eles estão bem. — Acariciei Anna e ela segurou minha
gravata com força. — Tá vendo a mamãe brava, meu amor?
— Pegou as compras dela no shopping?
— Estão no carro, mais tarde desço e pego. Não vamos mais na casa
dos meus avós hoje. — Fitei os olhos de Alicia. — Precisamos conversar
um assunto sério.
— O que é? — Ficou apreensiva e recebeu beijos na bochecha.
— Lá dentro a gente conversa, coração.
Passei meu braço em volta da cintura dela, esperei a porta de aço abrir
e os cachorros saírem, para conduzi-la.
— O que é? — Paulo apareceu na porta, ajeitando a camisa no corpo.
— Sua cachorrinha estava lá na garagem — Lipe disse, depois de ter
pressionado a campainha do homem por quase um minuto.
— Obrigado. Entre, Alicia! — ele gritou, a cachorrinha largou
Teodoro e imediatamente enfiou-se por baixo de suas pernas. — Ainda bem
que ela não está no cio.
— Não tem como mudar o nome dela? — perguntei incomodada.
— Infelizmente, não. Com licença. Boa noite.
— Esse perfume... — Lipe farejou o ar. — Você está com alguém aí?
— Quê? — o homem indagou sem paciência.
— Felipe, vamos. — Coloquei a mão em seu cotovelo, mas o loiro
não cedeu ao meu comando.
— Aquela bolsa... — Ele apontou para dentro do apartamento do
homem.
— O que tem? — perguntou Paulo. — É da minha namorada —
completou.
— Namorada? — Uma voz feminina veio lá de dentro.
— Mariana? — Lipe gritou, esticando o pescoço.
— Oi, boni... Felipe. — A mulher apareceu por trás do médico. Seu
rosto levemente sonso, os cabelos presos no alto da cabeça e resquícios de
batom rosa perto da bochecha.
Eu, que nunca fui maldosa nem nada, quando não vi batom no rosto
do médico, desci despretensiosamente para a calça. Não deu outra, me
deparei com um pacotão alto e torto para o lado.
Acabamos com a farra do homem e isso explicava seu mau humor.
Sorri por dentro, feliz por ela ter superado meu homem e, acima de
tudo, estar dando o golpe da semente em outra freguesia.
— O que está fazendo aqui, Mariana? — Felipe perguntou,
murchando minha alegria. Tive vontade de esganá-lo por parecer
desapontado.
— Paulo é meu novo ginecologista e estávamos conversando sobre
alguns procedimentos... Eh... hã, como você está, Felipe?
— Encrencado! — respondi por ele e vi sua postura mudar.
— Boa noite... Espera, Alicia! — Ouvi o feio dizer quando rodei a
chave na fechadura e coloquei Teodoro para dentro.
Joguei a chave no sofá e me virei quando ouvi a porta se fechar.
— Coração...
— Não ouse ficar incomodado com o que acabamos de ver! —
Coloquei meu dedo em riste, na direção dele.
— Não estou. Só fiquei surpreso...
— Corto seu terceiro braço e jogo pela janela. Você sabe que corto.
— Que conversa é essa? Vem cá, mulher. — Tentou me alcançar,
desviei, mas ele me pegou de todo jeito.
— Vá tomar banho e me largue. — Afastei o rosto.
— Precisamos conversar, então pare com o ciúme bobo. Hoje vamos
dormir assim, os três abraçados, sem desentendimentos. Precisamos disso.
Depois de um banho coletivo de chuveiro, vestimos nossos pijamas,
jantamos e voltamos para o quarto. Alicia sempre me estudando. Sem
pressionar, esperava o momento certo da nossa conversa.
— Está saindo um dente — comentei, higienizando as gengivas da
minha filha com um massageador de dedo.
— Não brinca, Lipe.
Alicia deixou o creme na pia e se abaixou na frente da poltrona em
que eu estava sentado com Anna.
— Olha só isso branco... — Mostrei e Anna escorregou no meu colo,
querendo se jogar nos braços da mãe.
— Não é muito cedo, Lipe? — Alicia aceitou os bracinhos, e com a
bebê sentada em suas coxas, continuou verificando.
— Não sei. Melhor agendar uma consulta na dentista. — Levantei,
lavei e guardei o massageador no protetor ao lado de nossas escovas. —
Lave a boquinha dela e venha. Vou esperar por você na cama.
No quarto, endireitei o cobertor e sentei com as costas na cabeceira
acolchoada.
Alicia não demorou muito no banheiro, logo subiu na cama, colocou a
filha entre as pernas e olhou para mim.
— Quando cheguei no escritório, Enrico estava esperando por mim,
Alicia.
— Suspeitei que fosse isso. Você fez algo com ele?
Vi pânico nos olhos verdes da minha garota.
— Queria, amor, mas não, não é sobre isso. — Segurei sua mão. —
Há alguns meses, a Marcela, mulher dele, teve um casal de gêmeos. A
menina era portadora de uma síndrome e ficamos sabendo que ela não
resistiu ao parto.
— Não estou entendendo nada.
— Vou explicar... — Beijei a mão dela. — Marcela ficou
psicologicamente abalada e não aceitou a ideia de ter uma filha com
características fora do planejado...
— E por isso ofendeu nossa filha? É uma maldita mesmo. Não aceito
justificativas. E, por favor, corte laços de amizade com ele. Isso me ofende
profundamente Felipe.
— Ele não é mais meu amigo, nunca faria isso com você.
— Então acabou o assunto. Vamos dormir.
— Meu amor, antes do nascimento, Enrico mandou fazer um par de
pulseiras exclusivas para os bebês, com alguns elementos importantes para
ele e a mulher.
— Não. — Alicia puxou a mão e abraçou a filha. Inteligente e astuta,
já tinha entendido onde eu queria chegar. — Não mesmo. Minha filha tá
viva. Bem viva. Vamos dormir.
— Ele viu a pulseira da nossa filha, Alicia, caiu do meu bolso no dia
da confusão. Hoje ele me mostrou uma idêntica.
— Eu disse que não queria aquilo, você insistiu em pegar!
— Amor, também não quero acreditar, mas ele pediu um mapeamento
genético e achei melhor não recusar. Ele viu o caixão fechado, não pode
fazer uma exumação nem nada que corra risco de sair na mídia. Isso nos
ampara. Essa gente vende até a alma para não perder voto.
— Isso é um pesadelo, não pode estar acontecendo.
Vi lágrimas preencherem os olhos da minha mulher e a abracei bem
forte, prometendo por tudo o que eu possuía que ninguém, nunca, ousaria
tentar nos separar.

Quando nos confortamos, e entramos debaixo do cobertor para


esperar o sono de Anna chegar, meu avô ligou, dizendo que estava na
vizinhança com vó Suzi e não queria parar na recepção do prédio para
esperar autorização.
— Não vou tirar o pijama da Anninha, o que você acha? — Alicia
disse enquanto colocava brincos na orelha.
— Não, não precisa — falei com Anna flor sentada no meu braço e os
olhos presos na ruiva agitada, precisamente em seu vestido longo com
fenda gigantesca e costas nuas. — Nunca vi esse vestido...
— Faz parte dos meus modelos conservadores, já te falei que tenho
alguns. O que você acha? — Deu uma volta e me olhou com expectativa.
— Gostosa.
— Não, Felipe. Estou apresentável para receber seus avós?
— Sim, está perfeita.
— Vou pôr um acessório. — Ela saiu da minha frente, foi para o outro
quarto, e eu a segui. Fiquei na porta, observando-a mexer no armário e
deixar cair algumas coisas. — Coloca, por favor...
Ela tirou Anna do meu colo e me entregou algumas correntes de ouro,
só depois identifiquei que era um colar invertido.
Fechei em volta do pescoço dela, encarei suas costas nuas, enfeitadas,
e sacudi as ideias obscenas da minha cabeça. Porra, era difícil não a desejar
em qualquer momento e hora errada.
— Use esse colar mais vezes. — Deixei um beijo em seu ombro e
penteei seus cabelos com meus dedos, deixando-os na lateral.
— Chegaram, Lipe. — Exalou lentamente, quando a campainha
tocou.
— Calma, são só meus avós. — Tirei Anna de seus braços. — E,
amor, a vovó não sabe de nada, então não toque no assunto do DNA.
— Sim, ela é um pouco falante... Não vou contar a ninguém.
— Ninguém mesmo, Alicia. Precisamos manter isso em segredo para
nosso próprio bem, pelo menos até termos a custódia definitiva de nossa
garota.

O velhinho sisudo, em meu sofá, levantou a xícara, e esperei alguns


segundos até que ele decidiu que merecia elogiar.
Nem falei que era chá de caixinha. Felipe sorriu para mim, depois
levantou e pegou o brinquedo, que Anninha, sentada em seu colo, atirou no
chão.
— Não vai abrir o presente? — seu Olavo perguntou, sem me olhar,
envolvido com o líquido da xícara.
— Sim, vou... — Nervosa, desamarrei o laço da sacola e vi uma
cabecinha de pano artesanal. Puxei e me emocionei quando encontrei uma
boneca sorridente e inclusiva, com todas as características físicas associadas
à trissomia do 21. — É linda. Obrigada, seu Olavo. Olha, Anninha...
Coloquei o presente no colo da minha menina e Lipe teve que segurá-
la quando abriu a boca e levou até a bochecha da bonequinha.
— Ele já chegou em casa com o presente — disse Suzane, com uma
névoa de lágrima nos olhos miúdos e azulados.
— Tive que buscar em uma cooperativa, na saída da cidade —
explicou o velhinho, entre um gole de chá.
— E queria entregar hoje, por isso viemos tão tarde — acrescentou
Suzane.
— Você me surpreendeu, vovô — Lipe comentou e o velho fez uma
careta para ele.
— No fundo da sacola tem mais um presente. Você não olhou tudo —
disse o senhor barrigudo, e não perdi tempo. Peguei a caixa plana e abri. —
É um colar para ela usar quando estiver maiorzinha.
Puro ouro.
Analisei cuidadosamente, encantada pela singeleza do minúsculo
pingente de cisne.
— Anninha ama receber joias, seu Olavo. Ela já usa pulseiras e vou
começar a testar os brincos. Morro de medo de alergia, por isso só vou
colocar pequeninos de ouro com diamantes.
Felipe limpou a garganta e levantou do sofá.
— O senhor não quer segurá-la um pouco?
— Será que eu ainda sei segurar um bebê? — O velhinho levantou e
esfregou as mãos na camisa social.
Levantei para ajudar na interação.
— Filhinha, esse velhinho gentil é seu bisavô. — Coloquei a
minúscula mão no rosto de seu Olavo. — Ele é o avô do papai e ama muito
sua mamãe.
— O olhinho esperto... Parece que ela entende, não é? — o bisavô
disse, com os cílios brancos molhados.
— Anna presta atenção em tudo. É muito inteligente. — Lipe colocou
a filha nos braços do bisavô e ela ganhou um beijo no cabelo. — Ele tem
essa cara de bravo, mas o coração derrete fácil, filha — completou,
levemente emocionado.
— Ela é loira como você, Suzane. — Seu Olavo deixou cair uma
lágrima e Anninha deitou a cabeça no peito dele. Achei tão fofo.
— Oh, meu marido. Não chore, benzinho. — A mulher de cabelos
curtinhos e maquiagem impecável consolou o marido.
Dois queridos. Eu e Felipe envelheceríamos como eles: fofos,
apaixonados e milionários. Será que ainda faziam coisinhas picantes?
— Aquela bagunça foi ela quem fez? — o bisavô perguntou, olhando
curiosamente para o canto da sala com o tatame colorido.
— É o melhor lugar que encontrei para ela fazer fisioterapia —
expliquei, meus olhos ganhando persuasão. — Mas logo vamos precisar de
mais espaço. Uma casa seria ideal para comportar as coisinhas dela. Felipe
vai comprar quando obtiver um bom aumento de salário.
— Alicia, meu amor, não é assim... — Lipe repreendeu baixinho,
cheirando meu cabelo.
— Minha bisneta realmente precisa de espaço para se desenvolver —
disse o bisavô, olhando em volta da minha sala. Anninha de língua de fora,
babava nele.
— Seria maravilhoso, para ela, morar em uma casa grande, aqui no
centro de Paranaguá, com piscina e área de lazer para montar o playground
da fisioterapia — acrescentei e recebi um beijo de Felipe, sua risada
abafada me fez cócegas na pele.
— Felipe, procure uma casa bonita, com jardim, área de lazer e tudo
que minha bisneta precisa. Você está me dando prazer e vai ganhar esse
adiantamento.
— Não, vovô, meu apartamento é novo. Alicia é brincalhona... —
Lipe disse, visivelmente impressionado, e apertei seu braço com uma
beliscada.
— Será o nosso presente de casamento atrasado — Suzane decretou.
— Vou começar a procurar amanhã — declarei, batendo palmas,
emocionada com aquela noite que começou com lágrimas e preocupação,
mas estava terminando com uma dose extra de aconchego. — Sentem-se.
Vou pegar um bolo delicioso que minha cozinheira fez.
Belisquei as lindas bochechas de Felipe e nem olhei em seus olhos
para não ser repreendida. Peguei o braço de Suzane e a levei para a cozinha
comigo, fazendo mil planos para a nova casa que acomodaria todo o
equipamento que minha filha precisava para se desenvolver
confortavelmente, sob os cuidados da minha amiga Julia.
Cinco dias depois

Estávamos apreensivos com o resultado do DNA, previsto para ser


divulgado no dia seguinte, véspera de um feriado prolongado.
Tive crises de ansiedade nos últimos dias, sempre de madrugada, após
pesadelos em que a minha filha era tirada dos meus braços.
Meu marido foi minha força em todos os momentos, sempre dizendo
que tudo ficaria bem, independentemente do desfecho. Mas ele também
estava com medo e apreensivo. Algumas vezes eu o peguei olhando para
nossa filha e enxugando os olhos escondido.
Naquela noite, ele chegou pedindo que eu colocasse uma roupa bonita
e preparasse nossa filha, que em uma hora sairíamos para jantar e aliviar a
preocupação de nossas cabeças.
Fomos a um bom restaurante com comida típica italiana, ali mesmo
no centro, mas não demoramos, pois o tempo fechou de repente e a
Anninha, mesmo com as roupas quentes, soltou alguns espirros.
Na volta, quando estávamos entrando no apartamento, o celular de
Felipe tocou e ele já entrou conversando com a mãe em uma videochamada.
Fiquei perto, esperando o momento em que ele falaria de mim, que
me apresentaria como mulher... Mas alguns minutos se passaram e nada
aconteceu, então me senti intrusa e fui para o quarto, tentando a todo custo
ocupar minha mente para não demonstrar tristeza.
Felipe apareceu no corredor quando eu voltava do quarto de Anninha
com o pijaminha dela.
Chateada, passei por ele e entrei no quarto.
— O que foi, amor? — perguntou.
— Nada. Vá tomar banho.
Tirei Anninha dos braços dele, virei para a cama, mas ele bloqueou
meu caminho.
— Você está sentindo alguma coisa? — indagou e virei meu rosto,
lutando para não deixar uma lágrima cair. — Fala Alicia.
— Você falou bem de mim para seus pais depois do casamento ou
eles ainda têm uma imagem ruim minha?
Felipe soltou um suspiro, depois fechou os olhos.
— Pensei que estivesse doente.
— Estou farta de tristezas, Felipe. Pode parecer nada perto de tudo
que você fez para mim, mas é importante. Sua mãe ainda me vê como a
filha do bandido que tentou matar o irmão dela? — Minhas lágrimas caíram
inevitavelmente.
— Minha mãe nem lembra que você é filha do Júnior, Alicia. Os dois
gostam muito de você, garanto. — Felipe segurou meu rosto com as mãos.
— Errei, desculpa. — Beijou meus olhos, mas me esquivei e coloquei
Anninha na cama. — Vou ligar agora e você fala com eles.
— Vá tomar banho! — Comecei a tirar o vestido da Anninha.
— Alicia, não faz assim, amor. Fui desatento, me perdoe. Não sabia
que era tão importante.
— Você não sabia que era importante para mim conhecer meus
sogros? — perguntei impaciente e ele se afastou.
— Estamos nervosos com tudo o que está acontecendo e não vou
deixar você mais agitada, mas vou reparar meu erro. — Foi para o banheiro.
Concentrei-me em cuidar da Anninha, depois entrei com ela pela
porta aberta do banheiro e procurei meu kit de skincare no balcão da pia.
Imediatamente, o loiro abriu a porta do box e ficou parado olhando
para mim, nu e molhado, com a cara de cachorro que caiu da mudança.
Nem liguei.
Peguei minhas coisas e saí com a Anninha enganchada na cintura.

Coloquei Anninha no berço, olhei para o sofá do quarto dela e pensei


em ficar lá, mas algo no meu peito me fez afastar essa ideia.
Peguei o monitor da babá eletrônica, deixei a lâmpada principal acesa
e saí do quarto cheiroso do meu bebê.
Entrei lentamente no quarto e tirei meu robe olhando para Felipe
deitado de lado, aparentemente dormindo.
Com um suspiro cansado, apaguei a luz principal, me arrastei para
debaixo do cobertor e me virei para o lado oposto dele.
Minutos depois, quando o sono estava quase chegando, senti o
cobertor se mexer e dei uma olhada de esguelha. Era ele, vindo de costas,
sorrateiramente sob o cobertor.
Fingi estar dormindo. Ele fez um novo movimento e logo senti suas
mãos nos meus cabelos, acariciando sutilmente, sem alarde.
Quando beijou por cima do meu ombro, usei todas as minhas forças
para conter as cócegas que sua barba baixa provocava, mas quando ele deu
o segundo beijo não aguentei, me virei abruptamente, o fiz deitar as costas
na cama e comecei, inutilmente, empurrar a montanha de músculos para o
outro lado da cama.
— Não vou conseguir dormir com você triste... Alicia! — Me
repreendeu quando tentei mordê-lo no braço para ganhar a vantagem. —
Chega, ruiva!
— Então vá para o seu lado da cama!
Virei-me, cobri minha cabeça com o cobertor e senti uma forte
vontade de chorar.
Logo ele chegou perto, me abraçou com insistência, enfiou o nariz no
meu cabelo e sussurrou:
— Tente não chorar, sua cabeça vai doer e amanhã será um dia difícil.
— Ele colocou a palma da mão direita no meu peito. — Meus pais estão
sempre ocupados, mas assim que o processo de adoção for concluído,
vamos passar alguns dias com eles no Canadá, você quer?
— E se eles não gostarem de mim? — Liberei um soluço mudo.
— Eles vão amar conhecer você princesa! — Beijou minha bochecha
com tanto esmero que meu orgulho foi drenado.

Felipe estacionou o carro no jardim da minha mãe e fixou os olhos no


celular, que enviava notificações sem parar.
— É o e-mail, amor? — No banco de trás, peguei minha pequenina na
cadeirinha e a coloquei de pé no meu colo.
— Sim — limitou-se a dizer.
— E...?
— Os dois resultados chegaram ao mesmo tempo. — Meu marido
enroscou os dedos nos cabelos e ouvi sua respiração pesada. — Anna tem o
DNA dele.
Não!
Ainda tínhamos esperança.
Abracei minha filha. O medo de perdê-la, que me assombrou nos
últimos dias em que tanto me esforcei para evitá-lo, logo tentou me
absorver com força.
O celular não parou de tocar. Felipe o desligou. Abriu o carro, deu a
volta e quando se sentou ao meu lado, lágrimas inundaram minha visão.
— Já é ele ligando, não é? — Forcei minha voz a sair.
— É, mas não sou obrigado a atendê-lo agora. — Lipe beijou minha
têmpora e enxugou meus olhos com os indicadores.
— Será que vai mudar de ideia e enfrentar o escândalo?
— Não, ele não troca a política por nada. Deixou bem claro. Mas
certa porcentagem de consciência o tornará um espinho na nossa carne.
Teremos que lidar com isso de agora em diante.
Meu olhar encontrou o de Felipe. Levantei a cabeça e inspirei de
forma entrecortada, depois bem fundo.
— Enfrentaremos tudo em sigilo, marido. Por ela, por nós, pelo bem
da nossa família. — Fui firme.
Felipe fechou os olhos rapidamente, como se estivesse fazendo uma
prece, depois me beijou na testa.
— Você é incrivelmente forte, Alicia. Não vamos ficar presos nisso.
Em breve teremos a custódia final e esse segredo continuará sendo
problema apenas para ele e sua mulher. — Felipe pegou a bolsa da nossa
filha. — Faremos o nosso melhor por ela todos os dias. Daremos tanto amor
que esse abandono nunca alimentará sua tristeza.
Lipe afagou os cabelos loiros da nossa bebê e seu olhar deu-me
confiança.
— Minha mãe não pode me ver triste, ou vai querer saber o motivo.
— Não, não force sorrisos, meu amor — repreendeu minha tentativa
de atuação.
— Desculpa, você tem razão. — Inspirei fundo outra vez. —
Entregamos Anninha na porta, depois corremos para o carro. Assim não vai
dar tempo para ela fazer perguntas. Na volta da consulta estarei mais calma.
— Sim, vamos fazer assim.
Meu marido me conduziu para fora do veículo e caminhamos em
silêncio.
Passamos pelos ladrilhos e, antes mesmo de alcançarmos a porta,
mamãe apareceu ali com Milena ao seu lado.
Fiz o meu melhor para não olhar nos olhos dela. Não era confortável,
mas estava totalmente correto no momento.
— Titia, eu estava com saudade. Seu quarto é tão bonito... — Milena
disse, abraçando minhas pernas.
— Alicia é sua irmã, Mileninha — mamãe corrigiu a menina e
recebeu Anna das minhas mãos.
— Se ela chorar, a senhora me liga e encosta o telefone pertinho do
ouvido dela. — Coloquei a alça da bolsa no ombro de minha mãe e me
preparei para fugir.
— Calma, filha. Entre um pouco. Venha.
— Não posso, mãe, estamos atrasados para o ginecologista. — Beijei
os cabelos de Milena.
— Tenho um irmão bem grandão... — Milena pulou eufórica.
Dois segundos foram suficientes para outro choque atingir meu peito.
Através do reflexo, vi a figura do meu irmão aparecer atrás da minha
mãe.
Luiz Miguel.
Mais forte e elegante do que realmente me lembrava.
— Então, você é a nova caçulinha da família? — Seu tom firme veio
tão afetuoso que conseguiu dividir meu orgulho ao meio.
Anninha olhou para o tio, estudando-o daquela forma curiosa. E sem
que eu fosse capaz de me mover, ele a pegou nos braços, me deu as costas e
entrou.
— Ele veio te ver, filha — mamãe murmurou e olhei para Felipe, que
me encorajou sem dizer uma palavra.
— A consulta...
— A gente remarca, coração.
Meu marido não me deu chance de hesitar, entrou pela porta e me
levou com ele, seus passos seguindo para o centro da sala.
Sentei. Felipe ao meu lado.
Assustada, fiquei em silêncio.
Logo vozes distantes invadiram minha cabeça e pressionei a têmpora
no ombro de meu marido, permitindo-me reviver algumas memórias do
passado, da infância.
“Eu estava sentada no chão, chorando, com meus pequenos braços
em torno dos joelhos, escondida atrás da cortina da vovó, quando Luiz
Miguel ajoelhou ao meu lado, perguntando o que tinha acontecido na
festinha do condomínio.
— A mamãe do menino disse a ele para dançar comigo... pisei no pé
dele... me chamou de bolota... Todos zombaram de mim... — expliquei entre
soluços.
— Eu deveria ter ignorado suas amigas que não me deixam em paz, e
ido com você.
— Elas... não... são minhas... amigas... Só me chamam... para
entregar cartinhas... para você...
— Não chora. — Mimo segurou meu queixo e ergueu meu rosto.
— Nunca... mais... vou... festinha.
— Shh. Daqui a pouco, vamos lá e você me mostra quem foi o garoto.
Quero bater um papo amigável com ele. — Pegou minha mão, puxando-me
para ficar de pé. — Mas agora, você vai dançar comigo.
— Não sei dançar. Meu corpo é muito redondo. Uma bolota pesada.
Repeti aquilo que sempre ouvia na escolinha.
— E você é linda assim, Alicia. — Recebi um beijo na ponta do nariz.
— Tira suas sapatilhas e venha. Pise no meu tênis.
— Não quero esmagar seu pé.
— Vovô falou que quem ama não liga para as dificuldades, só cuida.
— Ajoelhou na minha frente e afastou minhas sapatilhas, então levantou,
apoiando a mão na minha cintura. — Faço tudo por você, Alicia. Você é
minha irmãzinha.
— Meu coração sempre para de doer quando você cuida de mim... —
Descansei minha cabeça no peito do meu irmão e subi em seu tênis. — Se
doer, você me fala?
— Segurar você nunca vai doer, pequena Alicia. Sempre estarei aqui
para protegê-la. Não vou deixar você chorar,”
A memória fugiu quando os lábios de Felipe tocaram meu rosto.
Olhei para ele e respirei fundo, tentando não chorar. Mas não
consegui me controlar.
— Vou lá dentro, qualquer coisa me chama, estarei aqui no segundo
seguinte — Lipe disse, mexendo no meu cabelo, colocando-o para detrás da
orelha e exibindo meus brincos. — Vai ficar bem?
Assenti com a cabeça, então ele levantou, encarou Luiz Miguel e saiu.
Quando olhei em volta, não encontrei mais ninguém na sala, exceto
meu irmão.
Ele levantou do sofá, segurando minha filha em uma das mãos, com
os olhos fixos em mim.
— Você precisa colocar a mão nas costas dela. — Minha voz saiu
chorosa.
Ele sentou ao meu lado e colocou Anninha na perna.
— Ela está segura comigo, Alicia.
Eu sei...
— Você colocou esse laço no cabelo dela? — perguntou.
— Sim, ela tem um para cada roupa. — Estalei meus dedos e suspirei
de leve.
— Ela é linda, como você. — Levantou a mão direita e correu o
polegar abaixo dos meus olhos. — Como você está, minha irmã?
— Você sabe de tudo, sei que liga para mamãe e pergunta. Liga até
para o orfanato — falei teimosamente, com meus lábios trêmulos e voz
embargada.
— Quero saber de você, Alicia.
— Nos últimos meses, tenho me sentido bem de uma maneira que
nunca me senti antes — disse, meus olhos fixos no sofá da frente. — Não
vou ao orfanato desde que conseguimos a custódia temporária da minha
filha, porque estou me adaptando a essa nova fase de mãe e esposa...
— Está gostando? — perguntou cauteloso, cedendo à vontade da
sobrinha e deixando-a escorregar para o tapete à nossa frente.
— É bom ter uma filha e um marido. — Curvei os lábios, esboçando
um sorriso. — Felipe me aceitou com toda a minha bagunça... É um bom
homem e um pai dedicado. Eu o amo.
— Vocês estão vivendo como um casal de verdade?
— Sim, desde o casamento. Não foi planejado. Só aconteceu e
estamos felizes.
Ficou em silêncio por um momento, então perguntou no mesmo tom
sério:
— E a faculdade?
— Não vou voltar. Não quero.
— Não aprovo! — Deixou claro.
— Meu marido me entendeu — rebati. — Ele vai construir uma
escola de arte para as crianças da comunidade e entregar nas minhas mãos.
Vou me dedicar apenas às crianças.
— Não estava sabendo de nada disso. — Exalou em surpresa.
— Ainda não falamos com ninguém. — Dei de ombros. — Ainda
está no projeto. Estamos resolvendo problemas que surgiram e aguardando
o fim do processo de adoção. Não faremos nada até então.
— Problemas?
— Coisa nossa, Luiz Miguel — respondi em um tom petulante.
— Certo... — Ele soprou pelas narinas. — Mas, enquanto o projeto
não anda, por que não volta para a faculdade? Psicologia, você foi a terceira
maior nota no vestibular.
— Não tenho saco.
— Pedagogia...
— Não, quero, já disse! — Inspirei fundo para me acalmar.
— Tudo bem. — Se conteve, mas eu sabia que por dentro estava
contrariado. — Fiquei sabendo que vocês se casaram com separação total
de bens. É verdade?
— Casamos com a ideia de ficar pouco tempo juntos, por isso ele não
quis se comprometer naquele momento — justifiquei. — Mas Felipe
colocou o apartamento em meu nome e reabastece minha conta no final de
cada mês.
— Olha pra mim — pediu e estremeci querendo abraçá-lo, mas
apenas foquei em seus olhos castanhos.
— Sim?
— Peça a ele para mudar o regime para parcial de bens. Se ele apoia
sua ideia de não estudar, que dê mais garantias de estabilidade. Pode fazer
isso ou quer que eu tenha uma conversa amigável com ele?
Concordei, fazia sentido.
— Vou falar com ele. Felipe faz tudo por mim.
— O olhar dele deixa isso claro. — Meu irmão piscou, abrindo um
sorriso orgulhoso. — Eu sei que você é esperta.
— Você também consumava fazer tudo por mim, Mimo. — Lágrimas
desceram livremente pelas minhas bochechas.
— Foi preciso dar a punição da mesada, mas não me orgulho das
cintadas. —Disfarçadamente, ele bateu com o dedo indicador no canto dos
olhos para remover a umidade dos cílios. — Mas eu amo você, minha irmã.
Amo e espero que um dia você possa me perdoar pelo meu descontrole
naquele dia.
Me olhou de um jeito dolorosamente triste e não aguentei mais
segurar o orgulho, abaixei minha cabeça e chorei copiosamente. Eu o
amava, amava meus irmãos com todas as forças do meu ser.
Meu irmão ajoelhou na minha frente e, singelamente, levantou meu
rosto.
— O que você fez doeu na minha alma, porque eu estava muito
destruída e só queria um abraço. Mas eu também consigo entender que... O
que aconteceu lá no passado... — Me engasguei e dedos ásperos afagaram
minhas bochechas.
— Não, não fala nisso, pequenina.
— Sim... Você lembrou de tudo o que aconteceu, de quando você fez
justiça por mim, e ficou decepcionado...
— Shh... Não lembra. Já passou. Não se sinta culpada por nada.
Engoli, lutando contra as lágrimas, e vi meu marido na sala, pegando
Anninha no tapete e vindo sentar-se ao meu lado.
— Já terminaram de conversar? — Lipe perguntou, vi um pedido de
cautela dentro de seus olhos e comecei a respirar e soltar o ar pela boca.
— Não acabamos. — Me virei para Luiz Miguel e o vi estudando
Felipe. — Obrigada, Mimo. — Minha frase foi suficiente para chamar sua
atenção. — Eu não teria conhecido a Anninha sem o seu castigo. Você me
disse um dia que me ajudaria com as dificuldades, mesmo que isso te
doesse...
— Errei com você...
Coloquei meus dedos sobre os lábios do meu irmão.
— Você é e sempre será o meu pai, Mimo. Não vamos justificar
nossos erros, porque eu sairia em desvantagem.
— Já passou, meu amor. — Lipe beijou meu ombro duas vezes, com
a intenção de me poupar.
— Aprendi muito naquele orfanato. — Acariciei o cabelo curto e
crespo do meu irmão. — Lá encontrei o meu verdadeiro amor, que trouxe o
Felipe, que tem me ajudado a evoluir a cada dia... Somando tudo, ainda fico
te devendo. Minha esperança é poder pagar com um abraço, pois você não
precisa de dinheiro...
Meu irmão me sufocou em um abraço apertado e levantou meu corpo
do sofá, levando-me com ele, apertando minha cintura com seus braços
fortes e beijando o topo da minha cabeça várias vezes.
— Eu te amo tanto, tanto, minha irmã. É bom te ver assim, saudável,
madura e responsável.
— Você trouxe minha família, Mimo. Obrigada por isso — murmurei
no aperto de seus braços.
— Não é bem assim, querida... — A voz de Felipe soou enciumada e
fechei os olhos contra o peito do meu irmão. — Casei e cuidei de tudo,
mesmo antes de estarmos juntos. Ele só te colocou de castigo. Perdoe, mas
não esqueça que ele te bateu com cinto.
— Lipe, não fala assim!
— Você gosta mesmo desse cara? — Luiz Miguel perguntou.
— Amo tanto que meu peito chega a doer — confessei, rindo.
— Ouvi o barulho do orgulho de Alicia quebrando lá fora. — A voz
de Heitor soou por perto, quando me virei o vi chegando com a mochila do
notebook nas costas.
— Vem aqui, garoto — chamei, liberando um braço para ele.
— Ah, minha terrorista favorita.
Heitor me abraçou, mas quando beijou meu ombro e seu perfume
tomou conta das minhas narinas, ânsia de vômito subiu queimando o
caminho até minha língua e precisei me afastar rapidamente.
— Seu perfume, Heitor... — Coloquei a mão nos lábios e corri em
direção a um banheiro que ficava entre a sala e a cozinha. Só tive tempo de
abrir o vaso sanitário.
Deixei meu estômago ali, e em um piscar de olhos Felipe estava ao
meu lado, segurando meus cabelos e me sustentando com um dos braços.
— Eba! Vou ganhar outra bisnetinha! — Vozinha disse lá de fora e
levantei a cabeça para encarar Felipe.
— Não, não é — ele disse com os olhos assustados e tudo que fiz foi
me curvar outra vez sobre o vaso sanitário.
— Ela está mole. Alicia, filha, o que foi, meu amor? — Ouvi minha
mãe dizer e simplesmente desmaiei.
O relógio marcava dez e meia da manhã, Alicia estava bem atrás de
mim, na poltrona confortável da sala de observação. Com uma intravenosa
na mão delicada, ela dormia, sua cabeça apoiada no ombro do irmão, que
nem por um momento a deixou sozinha e foi quem assumiu o volante,
depois que eu quase bati o carro.
A primeira coisa que o médico de plantão perguntou quando
chegamos, foi a respeito do ciclo menstrual, e mesmo ela o informando
sobre o mau funcionamento de parte do seu sistema hormonal e o
tratamento que até então não tinha sido tão eficaz, ele pediu um exame de
sangue para sanar dúvidas e injetou suplementos específicos em suas veias.
Se aconteceu, foi na primeira vez, quando eu ainda estava em
repouso.
Não havia dúvida de que um bebezinho nosso seria recebido com
muito amor e proteção, mas Alicia ainda estava em processo de cura e a
culpa estava me matando.
Saí da janela quando ouvi passos suaves na sala.
Uma enfermeira baixinha estava sentada em seus tornozelos
acariciando a mão de Alicia, chamando-a do jeito gentil que minha ruiva
merecia e que o hospital particular poderia fornecer.
— O médico está chamando no consultório, saiu o resultado — meu
cunhado disse quando me aproximei deles.
— Consegue andar, amor? — perguntei, ajudando-a a se levantar e
suportando seu peso. O irmão já estava com ela há muito tempo, agora era
minha vez de mimá-la.
Com um sorriso fraco, ela acenou com a cabeça.
A enfermeira tirou a agulha da mão dela e a levei da sala.

Entramos no consultório juntos, o que fez o médico de meia-idade


hesitar enquanto olhava para mim e meu cunhado.
— Então, mocinha, como se sente? — ele perguntou.
— Grogue depois de todas aquelas vitaminas — respondeu ela,
sentada na cadeira.
— Ela está grávida, Doutor? — Fui direto ao assunto e massageei o
ombro de minha esposa.
— Pelo seu rosto assustado, acho que vou aliviar você. Não, ela não
está grávida.
— Graças a Deus! — Soltei um fardo de preocupação, e vi a mesma
reação no meu cunhado. — Temos alguns projetos para realizar, por isso
nosso medo, mas a criança seria uma bênção em nossas vidas — expliquei
ao velho.
— Ela não está grávida, mas está ovulando, então, se não quiserem o
bebê agora, precisam tomar precauções.
— Sim, vamos tomar. Ela vai pôr o implante anticoncepcional até que
esteja pronta — confirmei, abrindo um sorriso.
Alicia também olhou para mim e sorriu. Foi uma ótima notícia. Agora
ela estava instável e longe daquela deficiência.
— Prescrevi vitaminas e suplementos — o médico entregou o papel
nas mãos dela —, recomendo evitar o estresse nesse período de
vulnerabilidade emocional — ele completou, e prometi a mim mesmo que
seria assim, não apenas durante esse período de ovulação.

No caminho para casa, quando peguei meu celular, vi uma série de


ligações de Enrico.
Meu cunhado estava dirigindo quando Alicia deixou escapar
preocupação em perguntas quebradas, e foi impossível não abrir o jogo. Ele
conhecia os truques certos para obter a verdade sem esforços.
Me aconselhou atender e assim fiz.
Em tom abatido, Enrico pediu para ver Anna Flor de perto. Recusei
no primeiro momento, contudo, meu cunhado me aconselhou a levá-la,
dizendo que me acompanharia, pois queria olhar o político nos olhos.
— Volto amanhã no horário combinado — o irmão da ruiva disse,
curvando-se para beijar o rosto dela, que sentou no sofá assim que entramos
no apartamento.
— Sua mulher, ela veio? — Alicia perguntou, seus olhos imersos em
uma tristeza profunda.
Minha garota precisava fechar aquele capítulo para se desconectar de
um passado perverso, um passado onde ela foi ferida e feriu, os outros e ela
mesma.
— Sim, está na casa da família. Meu sogro fez chantagem emocional
para que a filha ficasse com eles, mas amanhã à tarde planejamos encerrar o
feriado na ilha do mel.
— Queria falar com ela amanhã — minha ruiva disse com a voz
embargada, enxugando os olhos com os nós dos dedos.
— Ela vem, pequenina — confirmou meu cunhado, sempre
acariciando gentilmente a irmã.
— Estou atrasada alguns anos para essa conversa. — A voz de Alicia
soou tão fofa que me deu vontade de apertar suas bochechas, mas me
contentei em beijar a mãozinha da minha bebê.
Eu amava tanto aquela mulher que a força do sentimento me
assustava.
— Estou muito orgulhoso de você, pequenina — falou o irmão,
fazendo-a suspirar, desfrutando um pouco mais da dedicação e do carinho
que ela merecia receber de todos que a amavam.

Escorreguei para fora da cama quando procurei meu marido e


encontrei apenas o cobertor revirado.
Não vi Anninha no monitor em cima da mesinha de cabeceira, meu
celular marcava três horas da manhã, então tive certeza de que os dois
estavam aprontando na cozinha.
Foi na sala que os encontrei em um cenário perfeito, o mais lindo do
meu mundo: meu marido deitado no sofá com nosso bebê no peito. Uma
mamadeira e um bolinho de fraldas jogados no tapete ao lado de Teodoro.
Os três em um sono profundo. Minha família, meu tudo.
Caminhei lentamente até o sofá, sentei sobre meus tornozelos e
encostei minhas narinas nos cabelos do meu homem. Ligeiramente se
mexeu, assustado, mas sorriu quando me viu bem perto.
— Andei com ela pela casa e acabamos dormindo... — disse ele
baixinho, com voz sonolenta e os olhos semicerrados.
— Vamos levá-la para o quarto. Suas costas vão doer aqui. — Não
resisti e tive que afundar o nariz no cabelo perfumado da minha filha. —
Vem, marido.
Segui ao lado de Felipe. Entramos no quarto da nossa bebê, onde a
deitamos confortavelmente.
— Tão linda, nossa filha. — Lipe acariciou meus cabelos
preguiçosamente enquanto eu ajustava o dossel do berço. — Minha cabeça
dói só de pensar que vou ter trabalho com pilantrinhas na pré-adolescência.
Sufoquei minha risada. Seu tom de voz realmente soou preocupado.
— Já está pensando nisso, marido?
— Sou pai de menina, acho normal.
— Não, não é, ciumento. Anninha é só uma bebê.
— O que você acha de contratar professoras particulares para ensiná-
la em nossa?
— Não, né, Lipe. — Virei, fiquei na ponta dos pés e abracei o
pescoço do meu marido, precisando senti-lo perto. — Estaremos lá,
torcendo de perto e protegendo, mas quero que nossa menina tenha voz na
sociedade. Além disso, ela é bonita demais para ser criada em uma torre.
— Tem razão... — Acariciou meus cabelos soltos. — Quando acho
que deixei de ter orgulho, você vem e se mostra ainda mais maravilhosa,
menina.
— Mulher, sua mulher — eu o corrigi.
— Minha menina e mulher. — Deslizou a mão pelo meu braço e
alcançou meu punho na parte de trás de sua cabeça. — Vamos dormir, seu
dia foi agitado. — Levou minha mão aos lábios e selou o pequeno sinal no
dorso, onde recebi vitaminas intravenosas antes do meio-dia.
— Você precisa parar de ser gostoso vinte e quatro horas por dia. —
Suspirei, meu coração latejando de amor por ele.
Seu jeito de me olhar, com tanto carinho, devoção e respeito, me fazia
sentir a mulher mais especial do mundo.
Um beijo na minha testa e ele me levou de volta para a nossa cama.
Deitou comigo sob o cobertor, me abraçou por trás e enterrou o nariz no
meu cabelo.
— Coração... — murmurou quando me esfreguei levemente, apenas
para sondar o terreno. — Você quer? — Distribuiu beijos em minhas
bochechas.
— Quero... — sussurrei com uma inspiração profunda quando a mão
ágil do meu marido se fechou em meu seios.
Rocei minhas coxas, o calor já me deixando lânguida. Porque com ele
era assim, profundo, mesmo nos toques mais suaves.
Seus beijos vieram leves, amorosos e firmes.
Alguns minutos de carinho e ele colocou sua mão hábil em mim,
testando minha receptividade, como sempre fazia antes do próximo passo.
Ali, por trás, senti quando ele puxou o sexo duro do pijama, seu
cheiro excitado já me fazendo babar.
Deixei puxar para baixo meu short de seda, apenas levantei minha
perna e soltei um murmúrio quando ele roçou a glande robusta contra a
minha entrada.
Ele entrou lentamente, rugindo com cada centímetro de dificuldade
que a posição proporcionava.
Eu adorava vê-lo assim, louco por mim, se contorcendo sempre que
se deparava com nosso conflito de tamanho. Impossível não me sentir
poderosa em seus braços.
Relaxando, rebolei a bunda e o mastiguei com força.
Um gemido gutural escapou da garganta do meu homem, formigando
todos os poros do meu corpo, fazendo-me mergulhar minha mão sob nosso
cobertor e alcançá-lo.
Contra sua vontade, eu o puxei para fora de mim. Seu protesto
terminou quando comecei a masturbar o lugar certo, apenas na aresta da
cabeça rosada que fazia minha boca salivar.
Felipe soprou uma obscenidade entre os dentes e seu ar ficou
entrecortado. Satisfeita, levantei minha coxa, coloquei-o de volta em mim e
empurrei, fazendo-o escorregar para dentro em um único golpe que
arrancou nosso fôlego.
— Porra... eu te amo, mulher — ofegou atrás de mim, movendo-se
em movimentos constantes, parando dois segundos em cada curva, beijando
meu ombro e baixando a mão para aquele ponto sensível no meu corpo que
latejava sem controle.
— Felipe... marido... — gemi, seguindo seus movimentos.
— Já, princesa? — Seus dedos trabalharam mais rápido.
Sorri, tentando não perder meu embalo sagaz.
— Você pode, por favor, meu marido... — Chupei seu pau com
minhas paredes internas e um gemido sofrido escapou de sua garganta. —
Mudar o regime do nosso casamento... — Relaxei e chupei novamente,
fazendo-o se contorcer. — Para parcial de bens?
— Tudo. Sim... o quê?
— Mudar o regime do casamento para parcial de bens.
Fiz aquele exercício novamente e sua língua lambeu meu ombro de
uma forma lascivamente excitante.
— Quer o mundo?
A mão que me estimulava levantou minha coxa e seu quadril bateu
com força contra minha bunda, fazendo o barulho do nosso sexo ecoar no
quarto.
Satisfeita com exatamente tudo, comecei a rolar sobre meu estômago.
Não tive sucesso, mas logo ele entendeu o que meu corpo buscava.
Saiu de mim, virou meu corpo e habilmente me ajudou a apoiar meus
joelhos na cama.
— Você é meu paraíso, mulher.
Sua língua percorreu um longo caminho e estacionou onde eu queria,
por trás.
Seus dedos procuraram o inchaço pulsante na frente e ondulei por
alguns segundos na tortura, então coloquei meus braços no travesseiro e
enterrei minha cabeça entre eles.
Ofegante, quase sem fôlego, deixei meu marido me preparar para um
contato mais íntimo e intenso. Éramos um só corpo. Para sempre.
Felipe beijou a bochecha da prima e eles trocaram palavras por alguns
minutos. Fiquei orgulhosa de mim mesma, por não sentir nenhum
desconforto com a cena.
— Sua filha é linda — sussurrou Nicole, irmã do meu irmão,
brincando com a mão de Anninha.
Não sabia que ela estava vindo, mas foi bom porque eu devia a ela
algum tipo de desculpa.
— Fica bem, amor — Lipe disse, seus lábios já perto da minha orelha
sobre o meu cabelo. — Volto logo.
— A mamãe vai ficar com o coração na mão, garotinha. — Beijei a
têmpora da minha filha e deixei que Felipe a levasse dos meus braços. —
Tenham cuidado com minha filha... — pedi, enquanto os dois homens
entravam no elevador com a parte mais perfeita da minha vida.
Quando desapareceram do meu campo de visão, respirei fundo e me
virei para a loira e a morena.
— Eles não vão apenas ao parquinho para nos dar privacidade? —
perguntou minha cunhada curiosa, com os olhos semicerrados. Ela se
parecia muito com meu marido.
— Vamos entrar. — Me esquivei do assunto e caminhei em direção ao
apartamento. Elas me seguiram, esperei que passassem e fechei a porta. —
Sentem-se, por favor.
— Se sente melhor, Alicia? — indagou minha cunhada, sentando-se
com a amiga no meu sofá.
— Foi apenas uma queda de pressão. — Sentei-me ao lado dela.
— Seus brincos são lindos... — A mão da loira alcançou um dos
meus acessórios. — Incrível como o modelo combina perfeitamente com
seu rosto bonito.
Ainda era estranho estar perto delas depois dos conflitos da nossa
adolescência, mas não me sentia mais intimidada pela amizade e beleza que
elas possuíam.
— Devo um pedido de perdão para as duas — falei em um rompante
de coragem.
— Não, não precisa, Alicia — disse minha cunhada, suas mãos
macias envolvendo a minha.
— Minha alma pede isso e não quero mais viver presa no passado. —
Respirei devagar, sentindo minhas mãos e pernas tremerem. — Vocês me
perdoam? — Lágrimas umedeceram meus olhos. — Por todas as vezes que
a ofendi usando sua deficiência — olhei para Nicole —, e sua antiga
condição social.
— Seu irmão já conversou comigo. — Duda acariciou meu cabelo. —
Você estava tão quebrada que não sabia fazer nada além de machucar o
mundo ao seu redor.
— Não justifica — rebati seu excesso de bondade.
— Tudo bem, cunhada, já passou...
— Atormentava, porque queria ser amada com todas as minhas
limitações, como você sempre foi — continuei, baixando os olhos,
envergonhada. — Primeiro o Felipe me deixou, depois tive que dividir meu
irmão...
— E você roubou meu cachorro — disse ela e retesei em meio às
lágrimas.
— Mimo roubou e deu para mim. Teo é meu. Meu cachorro! — rebati
afiada.
Minutos antes, tranquei Teodoro na área de serviço, só para evitar o
contato entre eles.
— Sim, Alicia, não vamos brigar outra vez. Ele está bem com você, é
o que importa.
— Me perdoa — insisti, precisando limpar essa parte do meu
passado. — Hoje tenho uma filha e não quero que ela sofra nem espalhe
sofrimento, como fiz.
— Já perdoei. — Minha cunhada me beijou na testa e senti-me leve,
com a sensação de ter tirado um fardo pesado das costas.
— Também estou com um pouco de medo, Alicia. — Nicole fungou,
limpando rapidamente uma lágrima discreta. — Vou pedir perdão, mesmo
para aqueles que não ofendi.
— Calma, Nicole. — Minha cunhada se virou para a amiga e apertou
sua mão.
— Só chamava você de Alicia Azeda... — Nicole confessou, e minha
cunhada deu uma risada furtiva. — Um dia planejei colocar chiclete no seu
cabelo. Foi antes daquela nossa briga na porta da escola. Lembra? Tapa na
cara, dedo no olho e gritaria. Quase deixei você careca, tadinha. — Deixou
escapulir um soluço comovente.
— Foi quando contei para Felipe que você — olhei para minha
cunhada —, estava namorando com ele de dia e fugindo na garupa do meu
irmão durante as madrugadas.
A loira fez cara de desentendida, e precisei segurar meus ânimos.
Estávamos fazendo as pazes, não era certo querer agarrá-la pelos cabelos.
— Duda sempre foi uma descarada.
Minha cunhada largou a mão da amiga quando ela falou isso.
— O irmão de vocês que me colocou no caminho errado. — A loira
fez cara de inocente. — Sempre fui pura, mas quando ele olhou para mim
com aquele olhar de bandido na condicional, ahh, eu simplesmente não
pude resistir. — Me mostrou o braço. — Fico arrepiada só de lembrar dele.
— Bandido... na condicional? — indaguei e as duas gargalharam de
alguma piada interna.
Continuei séria, porque realmente não achei engraçado. Eu precisava
ser mais sociável para rir de bobagens. Parecia legal.
— Nik está grávida de três semanas, descobrimos ontem, mas é
segredo — Maria Eduarda revelou impulsivamente, fazendo morrer o riso
na sala.
— Duda! — Nicole se manifestou, o rosto já vermelho e choroso.
— Ela é mãe, Nicole, pode te ajudar melhor do que eu.
— Não, não entendo nada de gestação e estou aprendendo sobre
maternidade... — Fiscalizei a barriga sequinha de Nicole.
— Só sei que meu paizinho e meu irmão vão matar o Kamon. —
Nicole deu uma leve engasgada. — Não quero criar um bebê sem pai...
Olhei rapidamente para o aparador da sala e pensei em pegar um
uísque de Lipe que estava lá dentro.
Quando voltei os olhos para elas, olhavam-me com expectativa,
esperando muito da minha pouca experiência.
Tive que tentar.
— Talvez seu pai fique bravo, assim como nosso irmão. E seu
namorado certamente vai apanhar com um pedaço de pau ou com a coronha
de uma arma, mas depois disso eles vão entender e dar o apoio que você
precisa.
— Obrigada, querida, consigo me sentir mais calma agora. — Nicole
tentou conter os soluços.
Continuei:
— Quando se der conta do amor que envolve a maternidade, Nicole,
nada além do seu bebê será tão importante. — Ela sorriu com minhas
palavras. — Tenha calma, e acredite, seu filho já está ensaiando o melhor
sorriso para te convencer a enfrentar o mundo. Eles também são os
melhores encantadores de avós e tios.
— Você tem razão. Vou manter a calma. — Nicole acariciou o ventre,
olhando para ele com amor.
— E em breve teremos um pequeno oriental nas festinhas de
aniversário da Anninha — completei e ela sorriu em um suspiro.
— Agora estou com vontade de ter um bebê fofinho — disse Duda,
indo na direção da minha varanda. — Alicia, vem conosco para a ilha —
convidou, abrindo a porta e deixando o vento bagunçar seus cabelos.
— Não é uma viagem de casal? — perguntei, pensando que seria bom
levar a Anninha ao mar pela primeira vez.
— Sim, mas podemos fazer disso uma celebração. Minha casa é
enorme, todos teremos privacidade.
— Vou esperar Felipe chegar — falei com o pensamento longe, meu
coração palpitando amedrontado depois daqueles minutos de distração.
Entramos no espaço deserto e amplo da fazenda e, ao volante, meu
cunhado sacou a pistola e a colocou entre as pernas.
Virei para Anna, na cadeirinha sobre o banco de trás, com a boca na
luva que protegia sua mãozinha, e me perguntei como alguém poderia
desprezar um ser tão puro e perfeito.
Triste, mas aconteceu como deveria ter sido, apenas para que ela
encontrasse o nosso amor. O amor dos pais que ela merecia.
— Acho que não vamos ter problemas, Felipe.
Me virei e vi Enrico encostado em um carro. Sozinho, ele segurava o
filho nos braços.
O veículo parou a alguns metros. Saímos e meu cunhado inspecionou
o perímetro com a arma na mão. Enrico gritou que estava sozinho, mas não
confiamos em tirar Anna do carro blindado até termos certeza disso.
O homem foi chamado com um gesto, então se aproximou beijando
os cabelos loiros do bebê. O menino estava adormecendo, apenas com a
cabeça desprotegida no vento.
— Estou sozinho. Não posso correr riscos. Fiquem tranquilos.
— Cuzão do caralho! — exclamei indignado. — Não me ligue mais.
Esta será a última vez que você chegará perto dela. — Meu cunhado
colocou a mão no meu peito. — Minha filha não tem que passar por isso.
— Quero vê-la. — Os olhos de Enrico encontraram os vidros escuros
do meu carro.
— Dez minutos, é o que você tem, camarada — meu cunhado disse
pacientemente, fazendo-me invejar sua calma autoridade. — Pega ela,
Felipe.
Voltei para o carro olhando para os lados. Apenas o vento uivou por
entre as árvores, então destranquei a porta, entrei e tirei o cinto de
segurança da cadeirinha.
— Papai não vai mais fazer isso com você, filha. — Beijei sua
pequena têmpora, puxei o cobertorzinho e a enrolei, deixando apenas o
nariz de fora.
— Cubra a cabeça do seu filho. — Ouvi meu cunhado ordenar a
Enrico, e rapidamente o capuz do casaco foi puxado para proteger a criança.
Abrandei meus passos e cheguei com a minha filha.
Enrico olhou para o pacote em minhas mãos e seus olhos, filhos da
puta, se encheram de ternura.
— Está ventando. Isso é tudo o que você verá dela — esclareci.
— Felipe... Por favor, certo, irmão? — contrapôs, me fazendo lançar
um sorriso infeliz.
— Irmão é o caralho, Enrico!
— Felipe, olha as crianças — meu cunhado me corrigiu e mexeu na
parte do cobertor jogada sobre o rosto da minha bebê. — Olhe camarada. —
Ele exibiu o rosto perfeito da minha menina e Anna colocou a língua para
fora, encarando tudo curiosamente. — Essa é a filha da minha irmã e do
meu cunhado, você consegue entender que sempre será assim?
— Já conversamos sobre isso. — Enrico não tirou o olhar de Anna
Flor.
— Não me lembro de ter ouvido isso da sua boca — disse Luiz
Miguel, chamando a atenção dos olhos de Enrico. — Repita exatamente o
que você ouviu da minha boca — ordenou.
Enrico engoliu em seco, como covarde que ele sempre foi, e começou
a dizer:
— Anna Flor é filha do Felipe e da Ali...
— Não se atreva — eu o interrompi.
— A bebê é filha do Felipe e da mulher dele — Enrico se retratou. —
Mas será bom que ela vá para a mesma escola do Junior quando estiver
maiorzinha. Também terei a oportunidade de contar a verdade aos dois
quando eles completarem dezoito anos.
— Isso só o tempo e seu comportamento dirão, camarada. — Meu
cunhado enfiou a pistola no cós da calça. — Me entregue seu filho — ele
chamou com as mãos no ar.
— O quê? — Enrico abraçou o filho possessivamente.
— É apenas um registro. — Luiz colocou a mão no cós da calça e
Enrico deu um passo para trás. — Calma, camarada. Me dê o menino e tire
uma foto nossa.
Intimidado, o covarde fez o que meu cunhado pediu: entregou a
criança e pegou o celular nas mãos.
— Por que isso? — perguntei quando Luiz parou ao meu lado com a
criança.
— Se em algum momento, as vidas deles cruzarem de maneira
preocupante, você precisará de evidências robustas e instantâneas para
intervir.
— Nem fala uma merda dessa, cara! — exclamei, sacudindo aquele
problema da cabeça.
— Não adianta procurar o que você não guardou aí, camarada. O
celular é totalmente virgem — disse meu cunhado, olhando para frente e
apoiando o rosto do bebê adormecido.
Enrico tirou as fotos e meu cunhado pegou o celular da mão dele.
O bebê foi entregue e Luiz ordenou que Enrico se inclinasse perto de
mim com o menino. Ele mesmo fez os registros e não deu ao deputado
oportunidade para fazer o mesmo.
— Eu te amo bebê — Enrico disse, acariciando o rosto da minha
filha. — Estou sendo egoísta e nunca serei digno do seu perdão, mas juro
que te amo.
Quando ele se inclinou para beijá-la, me virei e caminhei rapidamente
em direção ao carro. Entrei pela porta traseira.
Protegendo-a cuidadosamente em seu assento, prometi mais uma vez
que sua primeira rejeição nunca teria um terço da força do amor que ela
sempre receberia de mim e de sua mãe.

Três dias depois.

— O sol já está se pondo, meninas — disse a loira bonita, tia do meu


marido, ao entrar na sala onde ouvíamos conselhos da vozinha sobre
cuidados com o bebê.
Nossa família inteira foi convidada para o fim de semana na ilha. O
luau, preparado no último minuto, estava sendo oferecido para comemorar
aquele momento de união.
Rapidamente, endireitei o vestido branco da minha filha e a enganchei
na curva da minha cintura.
No corredor, vi Nicole abraçar seu namorado e um rosnado irromper
de algum lugar da casa.
O pai dela, que também estava na ilha, descobriu sobre a gravidez da
filha durante o café da manhã e esganou o genro sobre a pia da cozinha.
Depois de quase cometer um assassinato, o homem ficou lá fora,
tomando chuva, chorando e dizendo que morreria de desgosto até o final do
dia. Algumas horas naquela tempestade, e ele perguntou para quando era a
criança, porque fez as contas e estava batendo com seu aniversário.
O pai do meu irmão só não era mais dramático do que seu Eduardo,
que estava inconformado e chorando pelos cantos porque o amigo teria um
neto antes dele.
— Você demorou. — Meu marido pegou Anninha do meu colo e
beijou minha bochecha gentilmente. — Vamos sentar lá na frente. Não
aguento mais a choradeira do meu tio.
— Então vamos fazer um filho, mulher... — Ouvi seu Eduardo
negociar com a mulher e ri abafado, com o rosto no ombro de Felipe.
— Por favor, nunca fique dramático assim, marido — falei entre
risos.
— Fique tranquila, não herdei essa sina da família Moedeiros. — Ele
sentou na areia branquinha e me estendeu a mão.
— Foi o final de semana mais divertido da minha vida. — Me encolhi
ao lado dele e o vento espalhou meu vestido fino.
— O primeiro de muitos, amor. — Beijou meu rosto. — Está na hora,
faça um pedido.
— Eu já tenho tudo o que preciso. — Fitei o sol se ocultando na
direção oeste, escurecendo as águas do mar.
— Vamos, amor, peça o que quiser. Já estou fazendo o meu.
Virei-me para ele e encontrei seus olhos fechados, então fechei os
meus e silenciosamente pedi aos céus que cuidassem do futuro da minha
filha.
Que ela nunca aceite menos do que o amor verdadeiro. Que ela seja
amada e respeitada todos os dias, assim como sou ao lado de seu pai.
Antes que o sol desaparecesse por trás das ondas, recebi um beijo de
amor verdadeiro em meus lábios.
Enquanto ouvia um "eu te amo" do meu marido, senti a mãozinha
macia tocar meu rosto e fui presenteada com uma risada doce e contagiante.
Foi com aquele doce som que ela me encantou no orfanato, me fez
mudar de vida e superar meu orgulho para procurar seu pai. Anninha foi o
motivo da nossa união. O ponto mais alto da minha redenção.
"Por favor, nunca se sinta menos do que maravilhosa, minha filha."
Desejei com toda a minha alma, rodeada pelo verdadeiro amor da
minha família.
Três meses depois

Há três dias chegamos do Canadá. Ficamos duas semanas seguidas


com os meus sogros e embora trabalhassem muito, a Anninha e eu éramos
muito mimadas com eles.
Nossa primeira viagem em família foi incrível, só não podemos
emendar outros destinos, pois Felipe começaria a pós-graduação na
segunda-feira e seu avô antecipou apenas quinze dias de suas férias.
— Prova, Heitor. — Forcei a colher contra a boca do meu irmão,
implorando que ele provasse do meu molho branco.
— Tenho amor à minha vida. — O pirralho esquivou o rosto, mas
permaneceu no mesmo lugar, encostado ao balcão da cozinha. — Ainda
quero ter filhos e vê-los entrar na faculdade.
— Só um pouco, garoto. Felipe vai almoçar daqui a pouco e preciso
saber se acertei dessa vez.
— Não vou comer isso, irmã. Da última vez, não sei que diabos você
colocou na comida que me deixou no banheiro 24 horas seguidas. Que seu
marido prove e aguente as consequências.
— Fala baixo, ele está na sala! — Joguei o alimento da colher na pia
e dei um tapa no Nerd ingrato. — Não me peça mais ajuda com a vizinha!
— Não fala nela que o meu coração chora. — Heitor pressionou a
mão no peito e assumiu uma feição penosa.
— Ela é novinha, Heitor. Nunca tinha beijado, coitadinha, e você foi
lá e roubou beijo sem nem preparar o caminho.
— Eu não tinha tempo para cortejo. Droga, eu estraguei tudo! —
Deitou os braços sobre o balcão e inclinou a cabeça sobre eles. — Só de
pensar naqueles olhinhos grandes nadando em lágrimas, os lábios perfeitos
trêmulos... Ah, inferno, sou o canalha mais frustrado do mundo.
— Se tivesse ido mais devagar...
— Não sabia que ela era tão inocente, Alicia. — Levantou a cabeça.
— Desde muito cedo saio com mulheres mais velhas. Ela foi a primeira
garota e, infelizmente para mim, a única que entrou no meu peito.
— Você está muito apaixonado, Heitor. Nunca te vi assim. Prova
aqui, rapidinho. — Tentei enganá-lo, levando mais um pouco de molho
branco até seus lábios.
— Afasta de mim esse molho maldito, irmã — disse dramaticamente,
seu olhar distante. — O que me conforta é que vou embora amanhã. Lá fora
vou esquecer essa paixão doentia.
Meu irmão ia estudar no exterior, no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts. Não tinha dúvidas de que um dia ele seria conhecido
mundialmente. O menino era um gênio da tecnologia e tinha uma faca e
queijo na mão.
— Seu celular está vibrando, atenda longe daqui. — Arrastou o
aparelho pelo balcão. — Me deixe em paz, estou doente de amor e tenho
pouco tempo perto da minha amada.
— Homem descarado quando vira cadelinha fica tão engraçado —
murmurei, abrindo a mensagem de Felipe.
“Alicia. Vem aqui na sala, mas seja cautelosa. Não faça barulho.”
Não entendi, mas meu lado paranoico foi ativado.
Cheguei com pressa ao hall de entrada e meu coração se acalmou
quando vi Anninha sentada no assoalho acetinado, a dois metros de Felipe e
de seu impecável traje social.
— Que susto, Lipe.
— Shh! — ele me interrompeu suavemente, sem se mover de seu
lugar, sem olhar para mim. — Vem, papai... — Estendeu os dois braços.
Minha garotinha segurou as duas mãozinhas no chão e levantou a
parte inferior da fralda, testando a firmeza de suas perninhas, ganhando
impulso para conseguir levantar.
Minhas mãos cruzaram perto do meu peito e meus olhos choraram,
em silêncio esperei mais um de seus avanços.
Anninha ficou um pouco naquela posição, mas logo derreteu meu
coração.
Inclinou os joelhos para o chão, levantou as duas mãozinhas e aos
poucos foi firmando as pernas.
Deu dois passos bambos em direção ao pai. Sorriu com o próprio
progresso e caiu sentada no chão, batendo palmas e me mostrando os dois
recentes dentinhos de leite.
Corri até ela, mas Felipe chegou primeiro. Abraçou nossa garotinha e
chorou com ela nos braços.
Permaneci ajoelhada ao lado deles, beijando os cabelos do meu
marido.
— Você está caminhando, meu amor. — Acariciei os cabelos claros
da minha filha. — Você é o orgulho da mamãe, bebê.
— Titio vai te mostrar esta cena no seu aniversário de dezoito anos.
Você vai ver como seus pais eram chorões. — Heitor parou na nossa frente,
segurando seu telefone celular, registrando nosso momento. — Só espero
que não tenha um namoradinho do seu lado.
— Ninguém vai roubar você do papai — Lipe acariciou o rosto da
filha, me fazendo rir em meio as lágrimas de felicidade.
A campainha tocou e Heitor foi atender.
De longe, vi Camila do lado de fora da porta. Pensei em ligar para
Felipe para ter privacidade, mas ela entrou e caminhou em minha direção
sem nem mesmo olhar para o pobrezinho do Heitor.
A cachorra peludinha, Teodoro e os cinco miúdos mestiços vieram
logo atrás.
— Alicia, você pode ficar com os filhotes até mais tarde? Preciso
estudar e eles querem atenção.
— Sim, fico. — Olhei para meu irmão. — Heitor vai viajar cedo,
vizinha — falei, vendo a tristeza no semblante do garoto.
— Que ele tenha uma boa viagem — ela disse, seu rosto bem
torneado todo vermelho, as mãos esfregando o tecido rasgado do short
jeans.
— Preciso buscar Milena no salão de beleza. — Heitor passou pela
vizinha, beijou a mão de Anninha e me olhou dentro dos olhos. — Vejo
você à noite, lá em casa.
Lamentei por ele, entendendo o lado da garota.
Heitor virou e passou direito. Foi para a porta.
— Olha só mais uma coisa... — Ele voltou, agarrou a garota pela
cintura e com um único golpe pressionou os lábios nos dela. — Em alguns
anos, serei CEO da porra toda e voltarei para buscá-la — disse firme, e
provou os lábios da garota em duas tragadas tão exigentes que pude senti
como se as borboletas estivessem no meu estômago. — Isso é seu, morena.
Ele enfiou algo no bolso do short de Camila e recuou alguns passos
com os olhos fixos nela.
Na porta, ele fez alguma promessa com o olhar, depois desapareceu,
deixando a garota sem equilíbrio na minha sala de estar, rastejando no braço
do meu sofá com os olhos mais perdidos que eu já vi.
Felipe olhou para mim e juntos lamentamos a separação precoce.
Um dia Camila saberia como era bom ser amada pela pessoa certa.
Suas escolhas erradas ao longo dos anos a sobrecarregariam. Mas quando
chegasse a hora certa, o verdadeiro amor voltaria para reivindicá-la. Sim,
impulsivo e um tanto tatuado, ele voltaria para buscá-la.
“O mais triste era que eles se amavam. Mas eram jovens demais para
saber como amar… – O pequeno príncipe.”
Quatro anos depois

Com apenas a parte de baixo da lingerie vermelha no corpo, ela se


admirava no grande espelho frontal do closet principal.
Meu orgulho em forma de mulher. Minha mulher.
Cedendo ao desejo de cheirá-la, deixei a soleira da porta, larguei o
cinto aberto e fui até ela. O choque do meu peito nu em suas costas nos fez
estremecer. Tinha sido assim nos últimos quatro anos. Nossos corpos
simplesmente se amavam e lançavam faíscas a qualquer minuto íntimo de
nossos dias ocupados.
— É quase meia-noite, estão nos esperando, coração. — Meu nariz
correu ao longo do pescoço esguio.
Mordisquei o lóbulo vazio da orelha e passei as mãos pela pele viçosa
de sua barriga protuberante. Lá estava meu herdeiro caçula. Em dois meses
ele estaria em meus braços, depois de amamentar nos seios fartos de sua
mãe.
— É incrível como a barriga cresceu no último mês, marido... Olha
meus peitos. Tão grandes que nem consigo mais ver a tatuagem.
— Estão perfeitos assim. — Minhas mãos cobriram as carnes
redondas e seu corpo se arrepiou.
No espelho, enquanto os segurava, vi o traço da frase que ela agora
carregava abaixo do seio esquerdo.
“Por favor, nunca se sinta menos do que maravilhosa”
Fizemos aquela loucura dolorosa juntos. Os pezinhos de Anna Flor
estavam gravados em minha região escapular direita e havia uma borboleta
elegante com asas abertas nas proximidades.
Além da frase, a virilha da minha ruiva agora estava pintada com uma
pequena borboleta azul, a mesma que eu carregava nas costas. O símbolo da
sua evolução, liberdade e maturidade.
Há alguns anos, morávamos em uma casa grande e confortável.
Trabalhávamos muito, estávamos só no início de nossas vidas. Ela se
envolvia a maior parte do tempo no instituto Anna Flor, que recentemente
tinha sido expandido, e agora, além das oficinas culturais e esportivas,
promovia para jovens e crianças portadoras da trissomia do 21,
desenvolvimento potencializado, inclusão escolar e no mercado de trabalho.
Nossa filha estava mais brilhante e inteligente a cada dia. Linda, Anna
era tão vaidosa quanto a mãe e vinha desenvolvendo incríveis poderes de
persuasão.
Me sentia completo ao lado delas e do nosso caçulinha.
A gestação foi tumultuada no início com náuseas incansáveis. Mas
após os primeiros quatro meses, tudo voltou ao normal e minha mulher
pôde desfrutar do nosso bebê planejado com conforto e saúde equilibrada.
— Me veste, amor — pediu e me afastei para pegar o fabuloso
vestido vermelho na poltrona do cômodo.
Com cuidado, coloquei a peça aos pés dela e subi o tecido maleável,
observando como ela era perfeita.
As costas completamente nuas do vestido favoreciam as curvas
proporcionadas pela gravidez.
Sexy e maravilhoso. Minha mulher. Mãe dos meus filhos.
— Você realmente conseguiu ficar ainda mais linda — sussurrei,
voltando com as cascatas de rubi que enfeitariam suas orelhas.
— Estou com tesão, amor — ela disse quando coloquei seu primeiro
brinco.
— E quando você não está? — Deixei alguns beijos na tira fina que
passava em seu ombro. — Somos os anfitriões desta noite. Você toca aquela
música bonita, inventamos uma desculpa qualquer, e voltamos para uma
ligeira brincadeira. — Mordi seu queixo e enfiei meus dedos livres no
cabelo de sua nuca. — Consegue esperar até a virada do ano?
— Sim... — respondeu com os olhos fechados e uma deliciosa
expressão de prazer estampada em seu lindo rosto.
— Então vamos.
Selei minha boca sobre seus lábios e me abaixei para abotoar suas
sandálias planas forradas de pedra brilhantes.
Levantei-me abotoando minha camisa e enfiando o tecido na calça.
Minha mulher fechou meu cinto, e depois de um beijo profundo e
cheio de promessas, voltamos para a sala de nossa casa, para o piano branco
de cauda que estava lá no centro.
— Você está linda, mamãe — Anna disse, segurando a mão de sua
bisavó.
A senhorinha sorridente, toda chique, em um de seus originais colares
de pérolas, recebeu um carinho afetuoso da neta que tanto se parecia com
ela.
— Vou tocar para você, vozinha. — Alicia mexeu nos fios alvinhos
da avó.
— Aquela música que escolhi, filha? — indagou a doce senhora.
— Sim, vozinha.
— Então vou me sentar... Vão, vão logo. — Nos espantou com as
mãozinhas enrugadas e saiu cantarolando.
Doce visão... Guardo em mim aquela emoção... Eu te levo no
coração... Sempre estás comigo...[3]
Entrelacei meus dedos com os de minhas meninas e, no calor de toda
a nossa família, caminhamos até o piano, onde minha esposa se sentou em
seu banquinho forrado de capitonê e dedilhou a primeira música da noite.
Radiante e focada, ela olhou para nós e sorriu. Um sorriso lindo e
cheio de amor. O amor que revelou o nosso melhor.
Minha enorme gratidão a: Christine King e Crys Carvalho, por todo
amor, apoio emocional e por segurar minha mão em situações que me
deixam ansiosa; Lidiane Mastello; Jack; Kiti Miguel por trabalharem no
meu ritmo insano e meus queridos leitores que me permite trabalhar com o
que eu realmente amo. Vocês são tudo.

Espero encontrar todos vocês em breve!


Avaliação:

Apoie e incentive os autores nacionais na Amazon, avalie este livro e ajude a literatura brasileira.
Pry Olivier é uma autora baiana de comédia romântica, Drama e
romance policial. Seu principal objetivo é levar mensagens positivas para os
corações e mostrar que o remédio para qualquer ferida é o amor.
Redes sociais da autora:
Instagram:
https://instagram.com/pry.olivier?utm_medium=copy_link
Grupo de leitoras:
https://www.facebook.com/groups/350173628819378/?ref=share
Wattpad:
https://www.wattpad.com/user/PryOlivier_JadeB
https://amzn.to/2Slss4p

[1]
Transtorno Dimórfico Corporal É uma condição psicológica que se caracteriza pela preocupação,
sem controle, com a aparência. Seus portadores dão importância exagerada a defeitos pequenos que,
apesar de imperceptíveis para outras pessoas, assumem uma dimensão enorme aos seus olhos,
causando baixa autoestima e muito sofrimento.
Apesar de ser considerada uma doença grave, ela tem cura, desde que o tratamento seja realizado de
forma multidisciplinar.
Entretanto, a identificação e o diagnóstico do transtorno são bastante difíceis de serem realizados,
visto que, muitas vezes, os sinais são confundidos como excesso de vaidade.
Causas: Ainda não se sabe o que causa a dismorfofobia, mas os estudos mostram uma correlação
significativa com:
• Abuso físico e sexual na infância;
• A valorização familiar excessiva da aparência física;
• O aparecimento de modificações corporais pré-puberais;
• Baixa autoestima entre os portadores, dentre outros.
O tratamento consiste em psicoterapia, longa e trabalhosa. Há também a indicação do uso de
medicamentos para sintomas depressivos e ansiosos associados.
A condição foi descrita pela primeira vez na literatura médica pelo psiquiatra italiano Enrico
Morselli, em 1886. Quase um século depois, em 1980, a Associação Americana de Psiquiatria
reconheceu a condição e a incluiu na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Distúrbios Mentais, o DSM.

[2]
Trecho da Reflexão “O Sábio e a Borboleta Azul”.
Fonte: Internet
[3]

Você também pode gostar