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A.F.

OLIVEIRA
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Copyright© ANDREIA OLIVEIRA

Este e-book é uma obra de ficção. Embora possa ser feita


referência a eventos históricos reais ou locais existentes,
os nomes, personagens, lugares e incidentes são o
produto da imaginação da autora ou são usados de forma
fictícia, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas
ou mortas, estabelecimentos comerciais, eventos, ou
localidades é mera coincidência.

CAPA: Y3Y ASSESSORIA LITERÁRIA

DIAGRAMAÇÃO: Y3Y ASSESSORIA LITERÁRIA

ASSESSORIA DE MARKETING: Y3Y ASSESSORIA


LITERÁRIA

REVISÃO: SONIA CARVALHO

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SUMÁRIO

PRÓLOGO

CAPÍTULO UM

CAPÍTULO DOIS

CAPÍTULO TRÊS

CAPÍTULO QUATRO

CAPÍTULO CINCO

CAPÍTULO SEIS

CAPÍTULO SETE

CAPÍTULO OITO

CAPÍTULO NOVE

CAPÍTULO DEZ

CAPÍTULO ONZE

CAPÍTULO DOZE

CAPÍTULO TREZE

CAPÍTULO QUATORZE

CAPÍTULO QUINZE

CAPÍTULO DEZESSEIS

CAPÍTULO DEZESSETE
CAPÍTULO DEZOITO

CAPÍTULO DEZENOVE

CAPÍTULO VINTE

CAPÍTULO VINTE E UM

CAPÍTULO VINTE E DOIS

CAPÍTULO VINTE E TRÊS

CAPÍTULO VINTE E QUATRO

CAPÍTULO VINTE E CINCO

CAPÍTULO VINTE E SEIS

CAPÍTULO VINTE E SETE

CAPÍTULO VINTE E OITO

EPÍLOGO
PRÓLOGO

Os acordes de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky,


escapavam dos meus dedos, como se houvesse fios

invisíveis me ligando às teclas do piano. Ele era meu


melhor amigo, na alegria e na tristeza, pois seria também
no luto.

A casa estava mais vazia do que nunca, e eu tinha a

impressão de que as coisas foram minguando. Há cinco


anos, éramos quatro pessoas. Agora, só restava eu. A

morte da minha irmãzinha caçula, em um terrível acidente,

levou mais do que apenas a maior alegria da casa, mas


também as energias dos meus pais, que foram se
deixando abater e se perder em uma depressão terrível,

até que cada um foi tirado de mim por um motivo.

Também fazia cinco anos que não me permitiam

tocar em casa quando havia outras pessoas presentes. Eu

só conseguia fazer isso quando visitava minha melhor


amiga, cuja mãe fora minha professora de piano por muitos

anos, ou quando eu ficava sozinha, o que era raro.

Por isso, qualquer um pensaria que eu estava louca,

por entoar uma melodia – por mais melancólica que fosse


– pouco depois do enterro do meu pai, ainda usando um

vestido preto, de luto.

Em Aurora dos lagos, a pequena cidadezinha onde

morávamos, isso se tornaria um comentário que seria feito

por dias e dias, alegando que a filha do padeiro tinha ficado


louca. Padeiro falido, ainda por cima.

Enquanto eu tocava, esperava pelo advogado


contratado pelo meu pai para ver suas questões
financeiras, mas ele não precisava me dizer que ele tinha
me deixado em péssimas condições.

Mas como poderia culpá-lo? Depois da morte da

filha caçula, ele nunca mais foi o mesmo e não conseguia

mais trabalhar como antes. Não apenas deixava a padaria

fechada por vários dias, mas como também não conseguia

mais fazer seus quitutes deliciosos e famosos na cidade

com tanto afinco.

Quando a concorrência chegou, com uma padaria

de franquia grande, com um dono que era bom nos

negócios – e que tinha um interesse bem inconveniente em

mim –, não tivemos a menor chance.

E as dívidas começaram a aparecer, além dos

gastos que já tinham sido feitos para o tratamento de


Gabriela, minha irmã, e as coisas foram indo ladeira

abaixo.

As notícias não poderiam ser boas, mas eu já

estava preparada para elas. O problema seria pensar no


que fazer dali em diante.

A campainha tocou, entrando em desarmonia com a


nota que toquei naquele momento, mas então eu parei a

melodia, levantando-me e indo até a porta.

Sob a chuva que caía, avistei o Sr. Moreira,

advogado do meu pai há muitos anos, em quem


confiávamos plenamente.

Como me conhecia desde pequena, a expressão de


pesar em seus olhos era enorme, e eu cheguei a ser

puxada para seus braços, para um abraço cálido e


paternal.

— Sinto muito, querida. Sabe que Laerte era meu


amigo pessoal e que eu lamento imensamente tudo pelo

que está passando — falou logo depois de nos afastarmos,


segurando meus braços e olhando em meus olhos. —
Sabe também que eu e minha esposa estamos à

disposição para ajudar no que for possível.


Eu sabia que sua oferta era de coração, mas

mesmo que eu estivesse passando por uma situação


complicada, não poderia, de forma alguma, usar da boa

vontade de pessoas gentis que eu sabia que apareceriam


no meu caminho.

— Obrigada, Sr. Moreira, eu sei disso — minha voz


quase não saiu. Eu já não estava mais chorando, mas

ainda sentia meu peito pesado e como se houvesse um


caroço na minha garganta.

O homem suspirou, e eu pensei que estava sendo

uma péssima anfitriã. Minha mãe com certeza iria me


repreender por não pegar o paletó do homem e não lhe

oferecer uma bebida quente, sendo que ele estava todo


molhado. Também não permitiria que ele se sentasse no
nosso sofá de couro, e sim o levaria para a mesa de jantar,

mas não me importava mais. Em breve nada daquilo seria


meu.

Nós nos acomodamos, e ele começou a abrir sua

maleta, que também estava molhada, tirando de lá alguns


papéis.

— Vou ser direto, querida. A situação não é uma

surpresa para você, mas tenho a obrigação de dizer que,


ao menos, o valor da casa paga todas as dívidas. E temos

uma oferta por ela.

Eu sabia muito bem de quem era a oferta. Doía meu


coração aceitá-la, porque meu pai odiava aquele homem,
mas eu não tinha alternativa.

— O Sr. Fernando Garcia tem duas propostas, mas

eu também fiquei sabendo de algo em particular que pode


lhe interessar. Talvez não seja a melhor opção, mas

gostaria que ficasse sabendo, porque... vai que, né? — ele


tentou usar de alguma leveza ao falar, mas eu não sorri.

Então, prosseguiu: — O Sr. Garcia ofereceu comprar a


casa e... — O Sr. Moreira hesitou. — E, bem, ele disse que
tem um interesse em você; que gostaria de se casar, caso

você também queira.

Arregalei meus olhos, quase chocada.


— Mas isso é ridículo! Estamos no século XXI! O
que ele quer? Um casamento arranjado? — minha voz até
pareceu voltar, porque a indignação era grande a esse

ponto.

O Sr. Moreira deu de ombros.

— Foi o que ele me pediu para dizer quando viesse

apresentar sua proposta para a casa.

— E ainda manda um intermediário! — exclamei,

ainda sem acreditar que aquilo poderia estar acontecendo


comigo. — Isso está fora de cogitação. Eu não vou me

casar com aquele cara. Não tenho a menor simpatia por

ele, e sei que meu pai odiaria.

— Mesmo que seja sua única alternativa?

— Bem, você me disse que tinha outra coisa para


me dizer, não? Algo que poderia ser do meu interesse.

O Sr. Moreira ficou parado por um tempo, quase

como se não quisesse continuar a falar, porque a


informação não lhe agradava. Ainda assim, era seu papel,

por isso, prosseguiu:

— Acredito que conheça o Sr. Noah Smith...

Claro que conhecia. Aurora dos lagos inteira,

provavelmente, sabia de quem se tratava. O cara morava

na casa mais isolada e erma possível e pouco era visto.

Havia lendas e mais lendas sobre sua história, muitas,


inclusive, de que era louco, que saía à noite para cometer

crimes e que era como a Fera do conto de Fadas.

Também sempre diziam que era feio, corcunda,

cheio de cicatrizes, mal-humorado e antipático. Não


sabiam se vivia sozinho, se tinha companhia, mas as

crianças acreditavam que sua enorme mansão era mal-

assombrada.

Eu obviamente não acreditava em nada disso, mas,


ainda assim, o nome dele me fez estremecer.

— Não sei se você sabe, mas eu trabalho para ele...

— Assenti, esperando que ele acabasse com a minha


curiosidade. — Bem, a verdade é que, aparentemente, o

Sr. Smith está procurando uma professora de piano.

— Para ele? — indaguei com surpresa.

— Não sei. Mas ele quer alguém que fique lá na

casa. Aparentemente a pessoa terá outras funções


também e tem a ver com uma criança.

— Uma criança? — Será que havia uma naquela

casa? Isso era extremamente surpreendente.

— Foi o que eu entendi. Posso apurar melhor para

você, mas pelo que soube, o salário é muito bom.

Um salário ótimo, moradia e um emprego que eu iria


amar? Isso poderia ser o suficiente para que eu nem

lembrasse quem seria o empregador. Além, é óbvio, da

outra opção ser horrorosa.

Tudo o que eu sabia era que eu precisava decidir. E


rápido, porque o tempo estava completamente contra mim.
CAPÍTULO UM

A vida é feita de escolhas. Sim, essa é uma frase

extremamente clichê, mas é a mais pura verdade. O que a


gente não sabe é que somos péssimos em fazê-las. Não
importa o quão sensato, estrategista ou lógico sejamos,

nossos corações estão fadados a seguirem caminhos

errados. Porque nossas intenções são boas, mas nunca


pensamos nas consequências.

Foi nisso que pensei quando me vi fazendo as

malas, tentando afastar meus pensamentos do que estava


prestes a acontecer.
Demorei a me preparar totalmente, porque a cada

segundo parava e hesitava um pouco mais. Ainda havia


tempo de desistir, já que nenhum contrato fora firmado,

minha carteira não fora assinada. Eu apenas concordei e a

notícia foi passada para meu futuro contratante.

Eu me considerava uma pessoa calma

normalmente, mas minhas mãos estavam trêmulas,

pensando no dia seguinte. Minha chegada na mansão de


Noah Smith estava marcada para dez da manhã, mas

sabia que não conseguiria dormir. Queria chegar inteira,

com a maior integridade possível, e o Sr. Moreira viria me


buscar pontualmente às nove e meia, em seu próprio carro,

o que me proporcionava uma imensa gratidão.

Tentei ser prática, arrumando uma mala com apenas

as coisas que iria precisar muito. Outras, separei para

doação. Sem contar em tudo o que tive que fazer em

apenas uma semana, depois que fechei o acordo do meu

novo emprego. Foi muito doloroso guardar as coisas do

meu pai, tendo recordações tristes das outras vezes em

que tive que fazer o mesmo. Eram muitas perdas


consecutivas, e eu ainda ia viver mais uma: perder minha
casa.

Foi naquele lugar que cresci, que guardava tantas

memórias. Algumas boas, outras ruins, mas eram minhas.

Cada canto daquela propriedade continha uma parte de

mim, da pessoa que eu tinha me tornado. Mas assim era a

vida, não? Uma sucessão de recomeços, que nem sempre

eram agradáveis, mas eu esperava amadurecer com cada


um deles.

Eu já estava quase terminando de guardar minhas

coisas quando o dia começou a anoitecer e a campainha

tocou. Não esperava visitas, mas sabia que algumas

pessoas, principalmente vizinhos mais próximos, poderiam

aparecer, para se despedir. Isso sem contar o quanto de


alertas recebi, de gente me implorando para que eu não

fosse para aquela casa. Muitos até me chamaram de

maluca por aceitar um emprego da “Fera da cidade”, mas

era a minha melhor opção.


E isso se tornou uma prova ainda mais concreta

depois de atender à porta.

Atrás dela estava Fernando Garcia com uma

expressão de poucos amigos. Isso não me agradou em

nada.

Em qualquer situação, eu até poderia achá-lo um


homem bonito. Era alto, moreno, com cabelos castanhos
em um corte quase militar – até porque ele era do exército,

até onde eu sabia, mas só até o momento em que comprou


sua enorme padaria na cidade – e sabia se arrumar muito

bem. Do tipo vaidoso, vestia-se com ternos caros, sapatos


sempre brilhando e eu tinha uma impressão de que usava
algum tipo de base no rosto, para ter a aparência perfeita,

quase de cera que tinha. Mas eu não conseguia achá-lo


atraente, porque era inconveniente, arrogante e sempre

ficava me tocando nas horas mais impróprias, como se não


conseguisse tirar as mãos de mim, mas não tinha a menor

permissão para isso.


— Posso ajudar? — indaguei, tentando parecer

educada, só que ele simplesmente começou a dar passos


para frente, e eu tive a impressão de que iria me atropelar

se eu não saísse da frente.

Eu tinha pouco menos de um metro e sessenta de


altura, e Fernando passava de um e oitenta. Com certeza
seria esmagada, se ele quisesse.

— Boa tarde, Valentina. Acho que não vai se

importar se eu entrar, né? Afinal é a minha casa.

Era o tipo de coisa que eu precisava suportar, não?


Ele tinha mesmo comprado a minha casa, mas não iria

conseguir comprar a mim.

— Claro que não, é a sua casa, de fato. — Continuei

muito séria, de pé, com os braços cruzados.

— De fato... — repetiu minha fala com desdém. —


Sempre muito metidinha a culta, não é? Sempre se
achando superior a todos dessa cidadezinha mequetrefe.
Eu não achava que a expressão “de fato” era assim
tão incomum ou difícil de se usar; muito menos algo que
me caracterizaria como uma pessoa arrogante, mas se

Fernando queria pensar isso de mim, o problema era dele.

— Vai se vender para o demônio, princesa? Eu te


ofereci muitas coisas e não costumo aceitar não como

resposta.

Ele deu um passo na minha direção, e eu recuei.

Começamos nessa cadência até um ponto que eu colidi


com uma parede, e Fernando se agigantou diante de mim,

encurralando-me. Colocou as duas mãos na parede, uma


de cada lado da minha cabeça, deixando-me presa entre

seus braços. Sentindo-me assustada, ofeguei, arregalando


os olhos, indefesa.

— Você é uma coisinha deliciosa, sabe? Mas não é


a única mulher bonita no mundo.

— Ainda bem que não sou, ou você teria um grande


problema... — falei baixinho, mas por entre dentes, irada.
Em um rompante de raiva, Fernando agarrou
minhas duas mãos e as prendeu à parede, fazendo-me
gemer de nojo quando aproximou seu nariz do meu

pescoço, me cheirando.

— Muito metidinha. Que pena que eu gosto disso.


Você tem pedigree que nem eu.

Tentei me desvencilhar, mas era impossível. O que

diabos aquele idiota estava pensando? O que pretendia


fazer?

Quando senti sua respiração se aproximando da

minha pele e sua boca pronta para encostar em mim, não

pensei duas vezes, apenas ergui meu joelho, atingindo-o

com força entre as pernas. A reação foi imediata, e o


homem pulou para trás, chegando a cair no chão.

Sem nenhuma piedade, peguei um vaso que estava

sobre a mesinha próxima ao local onde estávamos e ergui,

chegando bem perto dele.


— Levante-se e saia agora desta casa. Ela pode ser

sua, mas eu não sou! — exclamei com veemência,


alterada. Minha respiração parecia pesada no peito, e eu

tentava controlá-la, mas sentia minhas mãos trêmulas

enquanto segurava o objeto, sem nenhuma segurança de


que ele de repente não iria cair na minha cabeça.

— Tudo que está aqui dentro é meu! — ele gritou

como um louco, ainda com a mão entre as pernas e caído

no chão.

Então era assim?

Se era assim, eu poderia resolver...

Ainda segurando o vaso para me defender, fui até o

meu quarto, fechando a minha mala, sem nenhuma

coordenação motora, mas consegui girar o zíper com uma

única mão, segurando com a perna. Não tinha tudo que eu


iria precisar lá dentro e havia roupas minhas dentro de

gavetas – algumas delas ainda estavam até abertas –, mas


o idiota poderia ficar com tudo. Eu só queria a minha

integridade intacta.

— O que pensa que está fazendo? — Ainda no

chão, ele vociferou, começando a se levantar. Nem lhe dei


atenção e saí correndo para a porta, abrindo-a, antes que

viesse atrás de mim.

Apressei o passo pelas ruas, parecendo uma louca,

ainda com o vaso na mão, sem nem me importar que

ficassem me olhando, nem que estava usando uma roupa


que não era exatamente o tipo que eu usava para sair. Não

que fosse indecente, mas era completamente fora do meu

normal.

Eu não tinha ideia do que deveria fazer, mas saí


andando sem rumo. Para a minha sorte, Fernando não

veio atrás de mim. Se isso acontecesse, eu não sabia

como iria agir. Talvez começasse a gritar como uma louca,

para que alguém me ajudasse, mas infelizmente sabia que


ninguém me ajudaria, porque depois do prefeito, ele era a

pessoa mais ilustre da cidade. Eu era só a garota estranha,


de luto, que recusou uma boa oferta de casamento para

trabalhar na casa daquele que todos temiam.

Meus pés me levaram direto para o escritório do Dr.


Moreira. Bati em sua porta ofegante, assustada e ainda

com o vaso na mão. Era como se a adrenalina tivesse

finalmente dado espaço para o susto e o desespero.

— Menina, pelo amor de Deus, o que foi? — Ele


ficou igualmente assustado, colocando a mão no meu

ombro e me puxando para dentro.

Tirou o vaso da minha mão e o pousou sobre sua

mesa, conduzindo-me até o sofá no canto da sala. Pegou


também a minha mala, arrastando-a até perto de mim.

— O que aconteceu? — perguntou, enquanto servia

um copo d’água e o entregava a mim.

O líquido movimentando-se ali dentro me fez

perceber o quanto minhas mãos estavam instáveis.


— Fernando... Fernando Garcia. Ele entrou na

minha casa e tentou me agarrar. Ele... — gaguejei, ainda

me sentindo muito vulnerável. Levei o copo à boca,

tomando um gole generoso. — O senhor me deixa passar


a noite aqui? Não tenho para onde ir.

O homem hesitou, ficando em silêncio, e eu temi

que ele dissesse que não. Sabia que, assim como as

outras pessoas, ele também não gostava muito da ideia de


eu ir trabalhar para Noah Smith, mas o que eu poderia

fazer? A outra opção tinha se provado pior ainda do que eu

pensava. O cara tivera coragem de ir à minha casa para

me importunar. O que não seria capaz de fazer se eu lhe


desse abertura?

O Sr. Moreira agachou-se à minha frente, com uma

expressão penalizada que sempre me deixou muito

incomodada. Naquele momento, ela me deu alguma


esperança, porque percebi que ele iria me ajudar.

— Posso te levar à casa do Sr. Smith hoje. Tudo

bem por você?


Engoli em seco, mas em quê mudaria? Se não fosse

naquela noite, teria que ir na seguinte. Meu destino já


estava traçado, eu só precisava saber o que ele me

reservava.
CAPÍTULO DOIS

A chuva começou a cair de repente, com pingos

fortes e súbitos açoitando a minha janela, mas não dei a


mínima atenção, pois estava focado no e-mail que
precisava enviar a Moreira, meu advogado, que era quem

cuidava de todos os meus negócios, incluindo meus

funcionários. E, aparentemente, a partir do dia seguinte eu


teria uma nova. Uma garota...

Onde eu estava com a cabeça quando permiti que

Charlotte me convencesse de algo assim?


Quando concordei com a ideia de que Charlie

tivesse uma professora de piano, já que ela era


apaixonada pelo instrumento, como sua mãe fora um dia, e

pedi a ajuda a Moreira com isso, jurei que ele me indicaria

uma mulher mais velha, principalmente uma que não se


apavorasse com a ideia de ficar na minha casa, como uma

moradora integral, uma vez que todos pareciam temer a

mansão como se um fantasma fosse escapar de suas


chaminés a qualquer momento.

Eu achava a maioria daquelas pessoas patéticas...

Só que ele surgiu com todo o papinho de que era

uma moça em uma situação problemática, que não tinha

para onde ir e toda a história de caridade que não


combinava em nada comigo. Mas isso até ele

simplesmente usar o argumento mágico: Fernando Garcia

era levemente obcecado por ela e chegara a propor um

casamento para que não perdesse a casa onde morava.

Isso foi o suficiente para que eu apenas consentisse

sem pensar nas consequências. Ninguém deveria ficar nas


mãos de Fernando Garcia, especialmente uma garota tão
jovem.

Mas eu ainda não achava a ideia nem um pouco

boa. Pelo contrário. Achava catastrófica, porque tinha

certeza que alguma coisa daria errado.

E isso só se tornou uma certeza ainda maior quando

a campainha tocou.

Chequei o relógio e vi que já era tarde. Ou ao


menos tarde para visitas... embora, na minha opinião, não

houvesse um momento bom para isso. Se minha velha avó

ainda estivesse viva, diria que eu deveria viver o tempo

todo com uma vassoura atrás da porta para espantar

pessoas indesejadas.

Não me preocupei muito, porque poderia ser uma

daquelas crianças irritantes e mal-educadas, que tocavam

a campainha do portão e simplesmente saíam correndo.


Não havia seguranças em guaritas na casa, porque isso
não era necessário. Ninguém que não era convidado tinha

coragem de se aproximar da Mansão de Noah Smith.

Continuei fazendo o meu trabalho, mas um bater na

porta me atrapalhou. Ergui os olhos e vi a cabecinha de

Marta, minha governanta, se colocar por entre a fresta,


parecendo um pouco constrangida.

— Senhor, é o Dr. Moreira. E a menina...

A frase não fez sentido algum para mim.

— Que menina? — minha voz saiu quase como um

rosnado. Ainda bem que Marta não se assustava mais


comigo.

— A professora de piano.

Não tinha mudado absolutamente nada. Eu

continuava não entendendo.

— Se me lembro bem, marcamos para que


chegasse amanhã, às dez.
— Sim, senhor, mas aparentemente houve um

problema.

— Que tipo de problema?

— Fernando Garcia.

Novamente... não eram necessárias muitas outras


explicações para que eu simplesmente sentisse meu

sangue correr por minhas veias com todo o ódio


acumulado que eu sentia por aquele homem. Ainda
assim... jurei que teria pelo menos uma noite de paz, com a

minha rotina inalterada.

— Chame-o aqui. Sem a moça. Quero falar com ele.

Marta assentiu, saindo e fechando a porta.

No exato instante em que me vi sozinho, comecei a

andar de um lado para o outro, com uma das mãos na


cintura, enquanto a outra passeava pelos meus fartos

cabelos castanhos e lisos, que provavelmente ficariam


completamente desgrenhados. Estavam um pouco maiores
do que eu gostaria, passando das orelhas, mas não estava
nem um pouco a fim de me preocupar com isso.

Esperei que meu advogado surgisse, mas cada


segundo que ele demorava, me dava a impressão de uma

eternidade.

Quando ele entrou, ainda batendo na porta com


toda a formalidade, mesmo que trabalhássemos juntos há
anos, fiz um gesto exagerado, demonstrando todo o meu

característico mau humor

Aquilo fugia demais da minha zona de conforto. Eu


não estava nem um pouco preparado para ter uma

desconhecida na minha casa, comendo na minha mesa,


bisbilhotando minhas coisas. Era errado, impensável.

Deixava-me fora de mim.

— Noah, me perdoa. Sei que estou sendo

inconveniente, mas... — ele começou a falar, com aquela


expressão que pedia compaixão, por trás dos óculos
enormes que usava.
— O que Garcia fez? — eu o interrompi, pouco me
importando com sua inconveniência. Ele estava, de fato,
agindo de uma forma que sabia que eu não gostava, mas

qualquer coisa que aquele filho da puta pudesse ter feito


era bem mais relevante. Conhecia seu comportamento

com jovens moças indefesas e por mais que eu não


quisesse bancar o cavaleiro de armadura para ninguém,
também não queria pensar em alguém sendo vítima de um

homem que eu realmente odiava.

Moreira abaixou a cabeça, tirando os óculos do

rosto e começando a limpá-los. Estava encharcado de


chuva, provavelmente porque eu não permitia que nenhum

carro entrasse pelos portões da minha casa, somente o

meu. De lá até a entrada principal era uma caminhada


considerável.

— Ele tentou fazer mal à moça. Se é que me

entende.

Fechei minha mão em punho e dei um soco na

mesa, mas aquilo não deveria me surpreender em nada.


Aquele era o tipo de coisa que ele fazia. O tipo de coisa

que o tornara ainda mais desgraçado aos meus olhos.

— Ele chegou a tocar nela? — Eu nem a conhecia,


mas isso não importava. Era uma moça. Pelo que eu tinha

entendido, não passava dos vinte anos, acabara de ficar

completamente sozinha no mundo. Ou seja, era uma presa


e tanto para Fernando, que parecia ter um fraco por

donzelas indefesas, mas não para salvá-las. Ele era o

próprio lobo mal.

Mas a ironia era que a cidade considerava a mim


como uma fera. Ele era o príncipe.

— Não. A garota é mais esperta do que parece.

Pelo que me disse, acertou-lhe uma joelhada.

Eu poderia sorrir se fosse o tipo de homem que fazia

isso. Mas fazia um bom tempo que eu não conseguia fazer


meus lábios se curvarem em um sorriso. Não depois de

tanto pelo que passei.

— Ainda foi pouco para o que ele merece.


— Mas o máximo que ela conseguiu fazer. Quando

a vir, vai entender. A moça é pequena como uma criança.

Não sei como teve forças para lutar contra um homem


adulto.

Era o instinto de sobrevivência, algo que nos

transformava em verdadeiras rochas, quando necessário.

E se minha opinião contasse de alguma coisa, aquela

moça já tinha me dado duas provas de que tinha coragem:


uma delas fora se defender de um paspalho como

Fernando. A outra era ter aceitado trabalhar para mim.

Ao menos eu não representava um perigo para ela,

de forma alguma. Contanto, é claro, que ficasse longe dos


meus assuntos.

— Bem, seja como for... ela está aqui — Moreira

começou a dizer. — Sei que não foi o combinado e que

não o avisei, mas não poderia deixá-la no meu escritório

até amanhã. Não sozinha. Quem me garantiria que Garcia


não iria até lá terminar o que começou?
— Tudo bem. Você fez o certo.

O certo para quem? Para a moça, provavelmente,

mas eu não tinha muita noção do que aconteceria dali para


frente. Como seria a convivência? Eu tentaria ficar o

máximo longe, mas não sabia como ela era. E se fosse

uma fofoqueira, ou uma intrometida? Se tentasse descobrir


coisas que eu não queria que ninguém descobrisse?

Provavelmente cada uma dessas perguntas estava

bastante evidente na minha expressão carrancuda, porque

Moreira se aproximou e colocou a mão no meu braço. Eu

não costumava gostar que muitas pessoas me tocassem,


que tivessem uma proximidade daquele jeito, mas algumas

– como Moreira e Marta – me conheciam há muitos anos.

Antes de eu me tornar aquela pessoa que era tão diferente


do homem que um dia eu fui.

Lancei um olhar para sua mão, tentando entender

por que ela estava ali, mas ele não a tirou.

— Você está salvando aquela moça, Noah.


— Eu não sou um herói, Moreira. Estou longe

disso...

— Para ela, você é, embora ainda não saiba disso.

Ainda está assustada com a possibilidade de viver aqui, de

conhecer um homem que todos temem, mas quem sabe


não consigam ser amigos e...

Afastei-me dele quase de um rompante.

— Eu não preciso de amigos! — exclamei,

retornando ao que estava fazendo antes de ele chegar. —

Aliás, estava terminando de te enviar um e-mail,


formalizando tudo o que vou precisar com a contratação

dessa garota. Vai cuidar dela como faz com todos os meus

outros funcionários, ok?

Moreira deu uma risadinha, enquanto devolvia o


óculos ao rosto.

— Vai chegar o dia em que vai entender que eu sou

advogado, Noah. Não um profissional de RH.


Resmunguei qualquer coisa ininteligível, porque ele

estava certo. Mas eu não daria a mão à palmatória.


CAPÍTULO TRÊS

Estar molhada, com a roupa toda grudada no corpo

– especialmente sendo um vestido –, tremendo e me


sentindo completamente imóvel no meio da sala de um
completo estranho já seria uma situação constrangedora.

Mas havia uma mala pousada ao meu pé, indicando que

eu iria ficar ali por um bom tempo. Tudo bem que isso era
algo já planejado, mas eu estava chegando um pouco

antes do combinado, e eu não conhecia Noah Smith para

saber se isso seria visto com bons olhos.

Apesar da companhia do Dr. Moreira... e se o

homem desistisse de me contratar e eu ficasse no olho da


rua, à mercê de gente como Fernando Garcia? O que

poderia fazer? Não tinha quase nada de dinheiro, tudo que


estava na casa e que pudesse ser vendido fora tirado de

mim. Se eu tentasse vislumbrar um futuro onde aquela

minha única oportunidade fosse negada, eu só veria uma


folha em branco.

Estremeci mais uma vez e abracei meu próprio

corpo, embora isso não fosse exatamente dar certo. Mal


conseguia imaginar como estava a minha aparência,

depois de passar pelo que eu passei e ainda com os

cabelos todos molhados e grudados na testa. Sem contar


os fios que pingavam sobre o chão de porcelanato

caríssimo da casa.

Ou seja, eu era a intrusa mais sem noção da face da

terra.

Ouvi passos e me senti estremecer. Sabia que eram

eles. Dr. Moreira voltando – ou ao menos eu esperava que

ele não sumisse, me deixando ali completamente sozinha

sem nenhum tipo de apresentação – e Noah Smith.


Todo o mundo pareceu começar a entrar no modo
câmera lenta, como se a chegada do homem fosse ser

performada em uma entrada triunfal. Eu estava começando

a criar expectativas, mas da pior forma possível.

Nos últimos dias cheguei a sonhar com o que eu

encontraria à minha frente quando fôssemos apresentados.

Em um primeiro sonho, eu me depararia com uma criatura

exatamente como no conto de fadas, já que a cidade


brincava que Noah era a Fera.

Em outros, surgia à minha frente um homem

deformado, com cicatrizes, para as quais eu teria

dificuldade de olhar em um primeiro momento, mesmo que

sentisse o maior respeito possível.

Só que, para ser sincera, nada me preparou para


Noah Smith.

O homem era grande. Em todos os sentidos.


Deveria passar de um metro e noventa de altura, e seus

ombros eram tão largos, e os braços eram tão poderosos,


que eu imaginei que ele poderia quebrar uma pessoa como

eu ao meio sem nenhuma dificuldade.

Havia uma expressão carrancuda em seu rosto, um

cenho franzido, e sua boca estava contraída em uma linha

reta que poderia denotar uma eterna expressão de


descontentamento, mas a verdade era que somente esses
pequenos detalhes traziam algum tipo de aparência

desconfortável de se olhar.

Noah Smith não tinha aquela beleza óbvia. Talvez o


nariz fosse um pouco grande demais, mas nada tão

desproporcional que pudesse torná-lo feio. Os cabelos


eram um pouco compridos, passando das orelhas, e eram
lisos, castanhos, aparentemente sedosos e muito limpos.

Havia uma barba rala no rosto, como se ele não se


importasse em fazer constantemente, e os maxilares eram

proeminentes. Os olhos eram castanhos também, mas


tudo nele gritava masculinidade. Apesar de não poder ser

considerado exatamente belo, era um dos homens mais


atraentes que já tinha visto tão de perto.
E olhava para mim como se eu fosse uma ovelha

perdida e encharcada que ele precisara salvar de cima de


uma árvore, para que não se perdesse do rebanho. Não

dava para se sentir pior do que eu estava me sentindo


naquele momento.

— Noah, esta é Valentina. A moça de quem te falei.

O homem continuou me olhando, com uma


sobrancelha erguida, parecendo muito ameaçador. Se eu

estivesse menos trêmula e com os músculos menos duros


pelo frio, teria recuado, nem que fosse por instinto.

Mas assim como a aparência dele me surpreendeu,

seu primeiro gesto para mim teve o mesmo impacto. Noah


simplesmente tirou o próprio casaco e me entregou.
Tratava-se de uma peça de couro marrom, grande, grossa

e pesada, e com certeza parecia tão quentinha que eu não


consegui resistir e estendi a mão, pegando-a.

— Obrigada — respondi baixinho, com os dentes


batendo um no outro.
Ele não respondeu absolutamente nada, apenas me
assistiu vestir o casaco com um pouco de dificuldade, por
ser tão pesado e por eu estar extremamente trêmula, mas

no momento em que senti o calor envolver meus ombros,


isso não importou mais. A sensação foi tão boa que eu

poderia fechar os olhos e dormir ali mesmo, em pé.

— Ela realmente é só uma menina — o homem


resmungou, em uma voz grave e poderosa, que chegou a
me fazer sobressaltar, depois do pequeno transe. O

comentário também não me passou despercebido.

Eu não era uma menina. Tinha vinte e um anos. Não


tinha o direito de ser uma criança há muito tempo, desde

que praticamente assumi o cuidado com minha casa


inteira.

— E como você disse, é tão pequena que não sei


como ainda está de pé com essa roupa toda molhada e

depois da chuva que pegou.


Respirei fundo, tentando controlar a minha língua,
mas era impossível.

— Pensei que tinha sido contratada como


professora de piano e que minha compleição física não era

requisito. Se vou fazer algum trabalho braçal, gostaria, pelo


menos, de ser avisada.

Os dois homens à minha frente ficaram

completamente calados, olhando para mim. Noah estava


impassível, observando-me com algum tipo de curiosidade.

Já o Sr. Moreira parecia horrorizado. Eu estava orgulhosa

da minha resposta. Era uma pena que tivesse soado tão

frágil por causa da tremedeira e do frio.

Cheguei a me arrepender por um momento,


temendo que me colocasse para fora, que me demitisse,

mas aparentemente eu o surpreendi, porque a forma como

balançou a cabeça me fazia entender que ele tinha sido


derrotado.
Uma primeira batalha ganha? Nada mal,

especialmente depois de descobrir que o tal monstro que


todos temiam não passava de um ser humano. Um bem

ranzinza, aparentemente, mas que não iria me devorar

como o lobo mau faria à Chapeuzinho.

— Vou chamar Marta para te ajudar — o homem


falou naquele tom de resmungo. — Moreira, sabe onde

encontrar a saída.

Dizendo isso, deu-nos as costas e saiu marchando,

afastando-se, com um andar decidido, sem olhar para trás.

Não pude deixar de me voltar para o Sr. Moreira,


depois de um suspiro, e dizer:

— Adorável ele, não?

Com uma expressão reprovadora, o Sr. Moreira

voltou-se para mim, olhando-me por cima dos óculos,

parecendo muito sério.


— Não, ele não é. Mas certamente não vai fazer o

que Fernando fez. Tem muitos defeitos, você vai odiá-lo na

maior parte do tempo, mas será respeitada.

— O que é o mínimo.

— É o mínimo, mas não podemos assegurar o


mesmo a respeito de muitos homens.

Ele estava certo. Isso me fez abaixar a cabeça,

envergonhada.

— Acho que lhe dei uma resposta injusta — assumi.

— Talvez devesse pedir desculpas na primeira


oportunidade.

— Não. Não faça isso. Não é necessário. Noah

gosta de certa insolência e odeia ser bajulado. Contanto

que o obedeça no que é necessário, tudo vai dar certo.

Assenti, sabendo que não havia muito mais a ser


dito. Além disso, a mesma mulher de meia idade que
atendera à porta para nós surgiu, e eu quase me derreti

com o sorriso maternal que abriu ao me ver.

— Pobrezinha, deve estar congelando. Vamos... —


Colocou um braço ao redor dos meus ombros, e fazia tanto

tempo que ninguém me tratava daquela maneira que eu

tive vontade de deitar a cabeça em seu ombro.


Provavelmente, se tivesse feito isso, ela corresponderia ao

carinho, de uma forma doce, mas não consegui. — Vou

pedir que venham pegar sua mala. Agora vou te

acompanhar ao seu quarto e você vai poder tomar um


banho quente.

Quase chorei ao ouvir a oferta, mas enquanto era

conduzida, ainda com a jaqueta ao redor dos ombros, olhei

para o Sr. Moreira, que me observava, parecendo


preocupado, e murmurei um:

— Obrigada.

Era o mínimo que eu poderia fazer, já que aquele

homem tinha me salvado de muitas formas.


Mas Noah Smith também. Mesmo com suas

maneiras rudes e sua expressão carrancuda, eu lhe devia

muito. Se não fosse por ele, ainda estaria nas mãos de

Fernando Garcia e não queria nem imaginar o tipo de


coisas que precisaria fazer para sobreviver.

Eu tinha um emprego, uma casa onde ficar e...

bem... era um recomeço, não era? Um estranho recomeço,

mas uma esperança ainda assim.


CAPÍTULO QUATRO

Eu não fazia ideia de como tinha conseguido dormir

naquela casa estranha, em uma cama estranha, sem saber


o que acontecia ao meu redor. A única explicação era o
cansaço absurdo que sentia, depois de todas as emoções

dos últimos tempos.

E não que fosse muito difícil descansar naquela


cama. Na noite anterior, quando fui levada ao quarto,

sentia-me tão exausta que mal consegui reparar em tudo

ao meu redor. Pela manhã, a primeira coisa que fiz ao me


levantar da cama foi abrir as cortinas e contemplar o local.
Era um cômodo amplo, muito mais do que se

poderia esperar para uma empregada, como eu seria. A


cama era enorme, e por mais que tudo tivesse um aspecto

antigo, algumas coisas me tiravam a sensação de que eu

estava em uma casa do século XIX, como a TV plana


projetada na parede, o laptop sobre a escrivaninha – que

eu não sabia se tinha sido colocado ali para mim –, além

do teclado de boa qualidade em um canto.

Eu ainda estava explorando as coisas, passando as

mãos pelo instrumento, meio perdida, quando ouvi um som

vindo de muito próximo. Um piano muito maltocado, como


se a pessoa estivesse apenas apertando as teclas

aleatoriamente, sem nenhum senso de harmonia ou de


afinação.

Como se hipnotizada, comecei a seguir a música –

se é que aquela confusão de sons poderia ser chamada

assim – e parti para o quarto ao lado. Estávamos no

terceiro andar da casa, e aparentemente éramos as únicas

pessoas ali. Não havia mais cômodos em um corredor,


mas havia uma escada em caracol, que levava a mais
algum lugar. Um sótão, talvez?

A curiosidade poderia ter me vencido se uma nota

completamente dissonante não tivesse quase estourado

meus tímpanos.

A porta do cômodo estava aberta, e eu contemplei

um belíssimo quarto feminino, com alguma decoração

infantil, embora não de uma criança pequena. Havia


bonecas de porcelana muito bem organizadas, penteadas

e limpas; havia um balanço em um canto, todo cercado por

flores, além de uma penteadeira, uma cama de princesa,

com dossel cor de rosa, e um piano branco, muito bonito,

de onde uma garotinha de uns dez anos tentava tirar o som

estranho que era tocado.

Ela tinha cabelos castanhos longos, ondulados, e

estavam despenteados, provavelmente pelo sono. Usava

uma camisola branca, cheia de rendas e babados, como se

completasse a aparência daquela mansão inteira de

pertencer à época vitoriana. Era linda. Uma princesinha.


Mas agora eu entendia o motivo de precisar de uma

professora de piano.

Aquele era um cômodo frio, e a janela estava

aberta, então fechei o casaco que coloquei sobre a minha

roupa de dormir, e fiquei parada observando-a, até que me


enxergou.

Pensei que abriria um sorriso simpático, mas a


melancolia da casa parecia estar entranhada em todas as

pessoas. Ao me ver, a menininha simplesmente suspirou.

— Sou péssima, não sou? — ela começou,


parecendo decepcionada consigo mesma.

Aproximei-me, com uma tentativa de sorriso,


colocando-me ao lado dela.

— Todos somos antes de nos tornarmos excelentes.


Acho que você tem potencial — falei, tentando animá-la.

— Para irritar Noah com o que ele chama de som do

demônio. — Arregalei os olhos, pensando em como aquele


homem podia dizer tal coisa a uma garotinha, enquanto ela

se esforçava para ser boa. Percebendo minha surpresa,


ela acrescentou: — Ele fala daquele jeito dele, sabe? Com

ironia. Mas não acho que seja mentira. Eu sou péssima.

Ela era articulada para uma criança da idade que


parecia ter. Dez anos, no máximo.

Apontei para o banco ao lado dela, pedindo espaço,


e a menina rapidamente o abriu, permitindo que me

acomodasse.

— Você sabe tocar alguma música? — indaguei,


curiosa para saber em que nível ela estava.

— Nenhuma. Eu só gosto do som. Sempre fico


mexendo nas teclas, mas não faço ideia de como tocar

algo que seja agradável, pelo menos.

Não consegui conter um sorriso.

— Para isso, você vai precisar conhecer as notas.


Sabe quais são?
— Dó, ré, mi, fá, sol, lá, si — ela repetiu
mecanicamente, sem colocar nenhum som nelas.

Então eu toquei cada uma das teclas, em uma


oitava qualquer, acompanhando os sons com a boca. Eu

não era uma boa cantora, mas sabia ser afinada. Quando
se tem um ouvido musical, você aprende pelo menos isso.

Pedi que a menina imitasse o que eu fazia, com


seus dedinhos magros e imprecisos, e ela o fez apenas

com o indicador, repetindo as notas com sua vozinha bem


mais afinada do que a minha. Isso me surpreendeu. Ela

sabia cantar.

Fui pedindo que começasse a usar outros dedos e


que fosse subindo as oitavas. Ao final de uma repetição

sucessiva, ela poderia estar estressada, mas sorria.

— Que legal! — comentou, com o rosto iluminado.

Ali estava a prova. A menina realmente gostava de piano e


queria tocá-lo.
— É mais do que legal. Quando você aprender a
tocar, vai ver que criar música é como fazer mágica. — Os
olhinhos dela brilharam, e eu fiquei feliz por isso. Era a

primeira vez que me sentia daquela forma em um bom


tempo. — Ainda não sei o seu nome...

— Alyssa. Com Y — enfatizou, o que aumentou meu

sorriso. Parecia ser importante para ela, e esses pequenos

detalhes me mostravam que ela era, sim, uma criança.


Ainda bem.

— Muito prazer, Alyssa com Y. Eu sou a Valentina.

Sorrimos juntas, e, sem dizer nada, voltamos ao

nosso exercício que poderia ser chato e repetitivo, mas

Alyssa não parecia se importar.

Comecei a ousar um pouco mais, misturando notas

e trocando a ordem das repetições, para que ela se

acostumasse a usar os dedinhos apenas, e a cada novo

som, afinado, mesmo que ainda estivéssemos longe de


qualquer progresso realmente significativo, porque ela
ainda era bem lenta, fui percebendo Alyssa mais e mais

animada.

— Eu estou tocando, Valentina! Estou tocando! —


Sim, ela estava. E a animação em seus olhinhos e em seu

rostinho de boneca me deixaram igualmente empolgada.

Na noite anterior, quando cheguei àquela casa,

quase como uma clandestina, depois de ser agredida por


um homem que poderia ter me feito muito mal, jurei que as

coisas seriam piores do que imaginei. Quando vi aquele

ambiente austero, aquela casa com a aparência sombria,


com seu dono severo e rabugento, que seria meu chefe, a

ideia de felicidade parecia muito distante.

Ainda parecia. Eu tinha perdido pessoas queridas

demais em pouco tempo para conseguir me sentir

verdadeiramente alegre, mas aquela garotinha poderia ser


um lampejo de esperança no meio do caos.

Nós duas nos perdemos em sorrisos e risadas,

enquanto eu começava a tocar algo de verdade, e ela me


acompanhava com dois dedinhos, um de cada mão, até

que percebi que não estávamos mais sozinhas. Minhas

mãos imediatamente saíram das teclas do piano, como se


um bicho tivesse aparecido nelas e me assustado.

Empertiguei minha coluna, provavelmente imitando

a postura perfeita dele, com aqueles ombros largos

erguidos, as mãos para trás das costas, o queixo

levantado.

— Não sabia que as aulas já tinham começado —


ele disse assim que nós duas demos conta de sua

presença.

— Não é isso, Noah. A Valentina só me ouviu tocar

e me ensinou algumas coisas — Alyssa comentou de um


jeito muito descontraído. Percebi que ela não chamava o

homem de pai, nem de tio, nem de nada em específico.

Apenas de Noah. E ela falava com ele com certo carinho.

— Ainda assim, Marta está te esperando para as


aulas de hoje. Foi o que combinamos. Primeiro os estudos,
depois a música — o tom severo quase me fez ter vontade

de me levantar e lhe dar um sermão por falar daquele jeito


com a menina. Só que eu não tinha esse poder.

E, mais do que isso, a menina simplesmente se

levantou, diante da demonstração de autoridade, mas não

parecendo nem um pouco irritada por isso. Ao passar por


Noah, ela simplesmente colocou-se na ponta dos pés,

esperando que ele se abaixasse e o beijou no rosto. Foi

quase como assistir a um ritual que era repetido

constantemente, embora o homem parecesse constrangido


ao fazê-lo na minha frente. Ainda assim, a menina parecia

nutrir algum carinho.

Noah Smith era ou não uma enorme incógnita?

— Espero que tenha dormido bem — ele comentou,

para mim, naquele tom que mais parecia um resmungo,


com um alto grau de pouca boa vontade, o que me fazia

pensar que ele realmente não era bom com pessoas. Muito

menos uma garota que, de acordo com suas próprias


palavras, não passava de uma menina.
— Sim, obrigada. E mais uma vez obrigada por me

dar o trabalho. Alyssa é encantadora.

— Faça por merecer e o trabalho continuará sendo

seu. Tenha um bom dia, senhorita.

E saiu porta afora, da mesma forma como entrou,

silencioso e sem avisar.

Senhorita... quem é que chamava as outras pessoas

dessa forma? Dentro daquela casa eu realmente me sentia

em uma mansão vitoriana, de um romance gótico, e não

sabia se gostava disso. Ainda assim, me sentia segura. Só


não sabia o motivo.
CAPÍTULO CINCO

Fazia muito tempo que não havia música de

verdade na minha casa. A última vez que ouvi um piano


bem-tocado devia fazer uns... oito ou sete anos. Não
esperava que a sensação fosse tão agridoce.

Fui seguindo o som e me surpreendi mais ainda

quando percebi que a melodia estava acompanhada por


risadas. Este era outro som que não se ouvia muito ao meu

redor. Eu também não sabia há quanto tempo não

escutava a minha.
A garota estava ali há menos de um dia e já

conjurava dois milagres. Eu deveria estar grato, mas não


conseguia não me sentir preocupado.

Havia muitas coisas em jogo, muitas que eu

precisava e queria esconder. Apesar de ter pessoas


trabalhando na minha casa, todas elas eram de minha

inteira confiança e só mexiam no que era permitido mexer.

Uma moça tão jovem poderia chegar cheia de curiosidades


e influências do lado de fora, isso sem contar a paranoia

que preenchia a minha cabeça sobre ela estar

mancomunada com Fernando.

Era algo bastante escroto de se pensar, mas eu não

conseguia evitar.

Se pudesse esbarrar com ela o mínimo possível,


seria o essencial. Até porque não queria ficar reparando

em coisas que não eram para sequer serem vistas. Tipo...

o quanto ela era bonita.


Os cabelos castanhos tinham um tom suave e
caíam até seus ombros, entre lisos e ondulados. Os olhos

tinham um tom entre o verde e o amendoado, e tinham

uma expressão vulnerável que poderia corroer a alma de

qualquer um. Mesmo uma de pedra como a minha. Além

disso tinha aquela compleição delicada que inspirava ares

protetores...

Eu não era um protetor. Era a Fera da cidade. Não


era isso que diziam de mim? Precisava fazer valer a minha

fama.

Meu celular tocou, vibrando sobre a minha mesa e

marcando o nome de Moreira na tela. Não que eu

suspeitasse que pudesse ser outra pessoa, porque não

recebia muitas ligações, mas sempre poderia ser alguém


enganado ou pregando uma peça.

— Estava demorando — resmunguei, porque já

imaginava que ele ligaria. — Não devorei a Chapeuzinho.

Ela está intacta. Ainda. — Eu obviamente não era um


piadista da melhor qualidade, mas tinha um humor

sombrio, que não parecia agradar muito ao meu advogado.

— Não faça esse tipo de brincadeira com ela, depois

do que a menina passou — ele repreendeu.

— Não sou assim tão sem noção. — Fiz uma pausa.

— Mas o que você quer?

— Só queria mesmo saber se está tudo bem e dizer

que se qualquer coisa acontecer, entre em contato comigo.


Caso não dê certo, não a expulse da casa sem me chamar.

Vou buscá-la, se for preciso.

Aquilo me deixou muito intrigado.

— O que tem nessa menina que te inspira tanto

cuidado? — perguntei, enquanto me remexia na minha


cadeira, encostando-me e cruzando as pernas.

— Seu pai era uma pessoa querida para mim, e


você vai ver que ela própria é uma boa moça, se lhe der

uma chance.
Dei uma risada de escárnio.

— Eu nunca dou chances a ninguém, Moreira, sabe

disso.

O silêncio do outro lado da linha foi resposta


suficiente de que ele sabia muito bem. Ninguém, com

exceção de Alyssa, fora capaz de sequer criar uma


pequena rachadura nas barreiras pesadas e altas que
construí ao redor do meu coração. Não depois de tudo que

aconteceu. Apenas aquela menina, com seu jeitinho doce,


conseguira me despertar sentimentos contra os quais eu

lutava todos os dias, mas não podia ser indiferente.


Especialmente porque ela também tinha seus próprios

demônios para lidar.

— Não vou teimar, Noah, mas sabe que precisa de

amigos. E eu não levaria para a sua casa alguém que não


fosse decente o suficiente para isso.

Continuei calado, porque... o que poderia


responder? Eu não queria fazer amizades, muito menos
uma garota que era dezessete anos mais nova do que eu
e, por mais bonita que fosse, não me despertaria nenhum
interesse. Fazia muito tempo que uma mulher não

despertava.

— Mais alguma coisa, Moreira? — quase rosnei, já


me sentindo frustrado, porque aquele assunto estava

tomando caminhos inesperados e me despertando


pensamentos completamente indesejáveis.

— Não, Noah. Só... cuide bem daquela moça. Ela já


passou por muita coisa.

E quem não tinha passado, não é mesmo?

Ainda assim, a forma gentil como olhara para Alyssa


e a forma como fez a garotinha rir não poderiam me passar

despercebidas.

Quando desliguei o telefone, portanto, dirigi-me


imediatamente ao quarto de Alyssa, decidido a descobrir
alguma coisa. Eu nem sabia o quê, mas precisava que me
falasse mais sobre a tal Valentina, coisas que apenas uma
menina esperta de dez anos poderia me transmitir.

Bati na porta e ouvi as vozes de Alyssa e de Marta


lá dentro. Além de ser minha governanta, a mulher mais

velha a ensinava. Ela fora professora no passado e,


quando descobri suas habilidades, mexi alguns pauzinhos

para que pudesse dar aulas para a menina. Não era uma

prática comum, no Brasil, que as crianças estudassem em


casa, era até proibido, mas as condições de Alyssa eram

especiais e a permissão foi concedida.

Abri uma fresta e entrei. Aparentemente as duas

estavam estudando língua portuguesa. Sabia que em


breve teria que contratar outras pessoas para ensinarem

outras coisas a Alyssa, em níveis mais avançados, o que

acarretaria levar mais gente para dentro da minha casa, e


nem todo mundo aceitaria minha condição de morar na

mansão. E eu também não poderia abrigar uma coleção de

professores debaixo do meu teto.


— Estou atrapalhando? — eu sabia que estava, mas

queria falar com Alyssa.

— Podemos fazer um intervalo — Marta comentou,


sorrindo, mas eu nunca retribuía. Ela já estava

acostumada.

As duas arrumaram suas coisas, e Marta prometeu

que retornaria em quinze minutos, perguntando se estava


bom para mim. Assenti, mantendo as mãos atrás das

costas, enquanto ela saía do quarto.

Sozinho com Alyssa, a menina sorriu para mim, me

mostrando seu caderno.

— Olha, Noah, o que eu aprendi hoje mais cedo em

matemática. Qualquer dia já posso trabalhar na empresa.

— Ela nem sabia muito bem o que eu fazia. Não fazia ideia

de que eu era o criador de alguns sites e aplicativos,


incluindo um e-commerce muito famoso que revendia

marcas grandes, de cunho popular.


Pousei a mão na sua cabeça, da forma mais gentil

possível.

— Sim, acredito que este dia esteja muito perto —

entrei na brincadeira, enquanto me sentava ao lado dela,


pegando a cadeira que antes fora ocupada por Marta. —

Me responda uma coisa, Alyssa... sei que ainda não teve

tempo para isso, mas o que achou da professora de piano?

— A Valentina? — Ela pareceu se animar.

— Sim. A Valentina. — Era a primeira vez que eu

repetia seu nome, e ele rolou na minha boca de uma forma


estranha. Era um nome bonito, para uma moça bonita. Um

nome novo na minha vida. Uma pessoa nova no meu

convívio.

Isso era assustador.

— Ela é legal — Alyssa respondeu isso com um

enorme sorriso que chegava a ser contagiante. — Muito

legal.
Balancei a cabeça, pensativo, surpreso por aquela

reação da menina, já que ela não era de se apegar


facilmente às pessoas. Não que conhecesse muita gente,

mas tínhamos tentado algumas babás, e ela sempre fora

muito arredia. Suspeitei que sua vontade desesperada de


aprender piano a fazia gostar muito mais da mulher, o que

afetava sua percepção.

— Quero que entenda que ainda não sabemos se

ela vai ficar, ok? — Era sempre doloroso dizer aquele tipo

de coisa, mas Alyssa me conhecia muito bem. Não sabia


se ela me amava de verdade, como dizia raramente, mas

eu era tudo o que ela tinha.

Pobre garota.

Alyssa deu de ombros, pegando seu lápis e

começando a fazer alguns desenhos aleatórios nas


margens do caderno.

— Sei disso. Mas acho que ela gostou de mim.


Suspirei, sentindo-me mal pelo que ela disse e pela

expressão tristonha.

— Não é você, Alyssa. Sou eu. Eu afasto as

pessoas. Você é... — Engoli as palavras, esticando a mão

e acariciando seus cabelos de forma paternal. — Você é


uma boa menina. — Ela era mais do que isso, mas era

tudo o que eu conseguia dizer.

Ela se voltou para mim com um sorriso, mas não

parecia acreditar. Nós dois tínhamos mais em comum do


que sabíamos, porque ambos não confiávamos em nós

mesmos.

Sem ter mais o que dizer, levantei-me, apertando o

ombro dela da forma mais carinhosa que consegui e me


aproximei da porta. Peguei Marta por perto, pronta para

voltar, e me virei para ela:

— Vou me fechar no escritório para trabalhar, mas

avise à moça que o jantar será às oito. Quero conversar


com ela a sós.
A mulher assentiu, e eu apenas me afastei,

esperando que aquele dia começasse de uma forma mais


normal, porque muitas coisas estavam mudando, e eu não

era muito adepto a fugir da minha rotina. Por mais

desagradável que ela fosse...


CAPÍTULO SEIS

Se eu fizesse terapia, qualquer psicóloga me diria

que eu era adepta a sentimentos catastróficos, porque


passei a ter a impressão de que qualquer coisa que
acontecia dentro daquela casa era o prelúdio de uma

tragédia. Como eu iria conseguir morar em um lugar onde

um homem, com quem iria conviver e esbarrar várias


vezes durante o dia, me deixava tão desconfortável?

Mas mais do que isso... ele tinha me convidado para

jantar. Somente nós dois. De acordo com Marta, era uma


prática que mantinha com novos funcionários, porque havia

algumas regras a serem seguidas, mas até que ponto eu


estaria disposta a me submeter? E se ele me pedisse algo

completamente bizarro?

Ok, eu estava sendo ridícula e me deixando levar

pela crendice do povo. Não era como se eu também

pensasse que Noah era um monstro ou uma Fera,


principalmente porque eu vira o homem de carne e osso.

Só que homens reais também conseguiam ser demônios

quando queriam. Fernando Garcia me provara isso da pior


forma possível.

Passei boa parte do dia no quarto, só descendo

para almoçar junto com os outros funcionários na hora do

almoço e começando a socializar com eles. Pareciam boas

pessoas, mas tinham feito um bolão para apostar quanto


tempo eu ia durar. Havia um motorista, a cozinheira, Marta,

a governanta, o jardineiro e um brucutu que deduzi que

fosse uma espécie de segurança, para quando necessário.

Todos eles moravam na propriedade, como eu teria que

fazer a partir daquele momento.


O mais curioso de todos era Thomas, um menino de
uns dezoito anos de idade, com síndrome de Down, que

era o mascote – e por quem Marta parecia nutrir um

carinho especial. Ele era o menino de recados. Ia e vinha

da mansão para fazer os serviços externos que Noah não

fazia.

Era um conjunto de pessoas extremamente diverso,

e eu me perguntava o motivo de estarem trabalhando


naquela casa há tanto tempo. O que Noah vira neles que

não vira em outras pessoas, para mantê-los em sua casa

por anos? Porque essa era a verdade. Todos ao meu redor

eram veteranos. Eu era a novata. Estava esperando o

momento em que receberia um trote.

Fui bem recebida em um todo, e ao menos no


quesito “colegas” eu me senti acolhida. Não podia negar

que minha aluna, também, fora uma agradável surpresa.

Talvez eu conseguisse me manter em paz ali dentro.

Ao menos era o que eu esperava.


Passei o dia inteiro no meu próprio quarto, utilizando

o teclado que fora deixado lá. Não me explicaram o motivo,


já que havia um piano no quarto de Alyssa, mas tomei meu

tempo para continuar uma composição que iniciei logo


depois da morte do meu pai. Eu a chamava de “Dark
Butterfly”, ou “Borboleta Obscura”, porque era como me

sentia, afogada no luto, tentando voar, embora sempre me


fosse proibido.

Quando chegou a noite, comecei a me arrumar,

colocando-me o máximo formal possível, porque se tratava


de um jantar com o meu chefe, mesmo que fôssemos ficar

dentro da casa.

Escolhi um vestido bonito, que fora da minha mãe,

em um tom de azul-turquesa – comportado e muito


discreto.

Desci, caminhando em direção à sala de jantar,

acompanhada por Marta. Noah já estava lá.


Aparentemente eu estava certa quanto a se tratar de

uma refeição mais formal, porque ele vestia um blazer


preto, uma blusa no mesmo tom, embora os cabelos

continuassem rebeldes e não tivesse feito a barba.

Deus, ele realmente era bonito.

— Está atrasada — foi o resmungo que soltou


enquanto se levantava. Para a minha surpresa, puxou a
cadeira ao seu lado para mim, em um ato de

cavalheirismo.

Dei uma olhada no relógio da parede e percebi que


eram oito e cinco.

— Perdão, mas foram cinco minutos.

Noah deu de ombros e fez um sinal para Marta,


dando a entender que ela podia servir. O almoço tinha sido

uma delícia, eu imaginava que o jantar não seria diferente,


especialmente quando um belo prato de salada, como
entrada, foi colocado diante de mim.
— Alyssa não faz as refeições com você? —
perguntei, esperando não estar sendo muito intrometida.

— Ela prefere comer sozinha.

Eu imaginava que para uma criança de dez anos,


aquilo não poderia ser uma questão de preferência, mas,

sim, de disciplina. Só que eu não fazia ideia de qual era a


posição de autoridade que Noah exercia na vida dela. Ou
melhor, eu nem sabia o que eles eram um para o outro. E

também não ia perguntar.

Começamos a comer em silêncio, e eu fui me


perguntando, a cada minuto que passava, qual era o intuito

daquele jantar. Suspeitava que Noah não tinha intenções


de saber se eu era educada à mesa, porque mal olhava

para mim, só foi me deixando mais e mais nervosa.

O prato principal, que se tratava de um peixe fresco

assado com algumas batatas temperadas com alecrim,


também estava delicioso, mas prosseguimos com nossa
refeição ouvindo apenas os sons dos talheres, dos pratos e
da casa ao redor – que não eram muitos.

Foi só quando o musse de chocolate foi servido que


Noah finalmente abriu a boca.

— Há regras nesta casa — ele soltou sem mais nem


menos, quase me surpreendendo. Seria possível que

depois de tanto tempo calados, aquele fosse o único

assunto? Ele não ia perguntar absolutamente nada sobre


mim? Ou será que Moreira já tinha lhe contado o

suficiente?

— Sim. Estou disposta a segui-las — falei com

sinceridade.

— Ótimo. A primeira delas é que nada do que


acontece aqui dentro pode ser contado lá fora. Não

fazemos nada de errado, não somos foras da lei, mas

temos uma vida privada. Sou um homem recluso e muitas

pessoas se interessam pelo que não conhecem. Meu nome


é uma atração para a cidade, e eu não quero que fiquem
alimentando as baboseiras que são espalhadas, estamos

entendidos? — ele mais parecia um general falando com


sua tropa.

— Estamos. Perfeitamente.

— Ótimo — ele repetiu. — Você está aqui porque

Alyssa é apaixonada por piano. Sempre quis aprender,

mas agora acho que é a hora. Ela já não é mais tão


pequena e nem tão imatura. Pode levar as coisas mais a

sério. Sei que a contratei para uma função, mas vai acabar

sendo uma companhia para ela.

— Como uma babá? — perguntei, só por


desencargo de consciência.

— Se prefere dar um nome... sim. Marta cuida bem

dela, mas está cansada. Preciso de alguém mais jovem.

Se tivéssemos uma professora de piano menos moça, isso


não seria uma boa ideia, mas neste caso pode dar certo.

Ela parece ter gostado de você.


Aquela era a primeira coisa lisonjeira que tinha me

dito desde que cheguei à casa, e mesmo assim não era

nada grandioso e também não era uma opinião dele. Mas


eu precisava agradar à menina, então isso já me deixava

feliz.

— Que bom.

— Sim. É muito bom, porque ela não costuma se

apegar a ninguém. Tivemos muitas babás e nenhuma

funcionou. Espero que isso não mude. Se Alyssa tiver


algum problema com você, precisará deixar esta casa.

Estudando um pouco o homem que estava à minha

direita, não era muito difícil perceber que seu

comportamento não tinha a ver apenas com um jeito


ranzinza de ser. Ele tinha um coração partido, por algum

motivo. Não era feliz. Algo de sua alma fora quebrado, e

ele não se recuperara bem. Ele afastava as pessoas, tinha

medo delas, e temia que Alyssa tivesse o mesmo tipo de


decepção.
Por mais que não demonstrasse, a menina era

importante para ele.

— Tudo bem. Vou me esforçar ao máximo para que


ela se sinta bem comigo.

— Sim, mas isso não quer dizer que precisa ser

completamente permissiva. Se precisar repreendê-la,

contanto que faça de uma forma gentil, será bem


interpretado.

Assenti, esperando que ele continuasse.

Provavelmente havia mais regras, não?

Claro... como não haveria?

— Por último, mas não menos importante. Quero

que saiba que é estritamente proibido que vá ao sótão da


casa, no quarto andar. — Ele fez uma pausa. — É um

ambiente onde guardo documentos pessoais, que não

quero que sejam do conhecimento de ninguém. Se eu


souber que foi até lá, será demitida imediatamente.

Entendido?
— Sim, senhor. — Não tive a intenção de soar

debochada, mas ele realmente parecia estar comandando

um exército na forma como falava. Eu teria rido, se a

expressão em seu rosto não parecesse tão severa.

Percebi que mal tinha tocado na sobremesa, assim


como eu também não. Apesar disso, levou o guardanapo

de pano à boca, limpando-a, levantou-se, jogou o tecido na

mesa ao lado do doce que não fora comido, e apenas


falou, tão baixo que mais parecia um sussurro:

— Boa noite, Valentina.

Era a primeira vez que dizia meu nome, e ele soou

cálido, mesmo que eu soubesse que não era essa a sua

intenção.

Foi, sem dúvidas, a refeição mais estranha da minha


vida, e eu esperava que isso não fosse um prenúncio de

como seria minha vida ou nossa convivência dali em

diante.
CAPÍTULO SETE

Era muito peculiar a forma como nos

acostumávamos à estranheza, se é que poderia ser


chamado assim. Mas, definitivamente, éramos seres
adaptáveis às mudanças. Quando me dei conta, já tinha

entrado na rotina da casa de Noah Smith.

Os horários eram rigorosos, e as pessoas pareciam


obedecê-lo sem contestar, e não parecia ser apenas por

subserviência ou por medo, elas, de fato, o respeitavam.

Por algum motivo que eu ainda queria descobrir qual era,


Noah conquistara a lealdade incondicional de seus

funcionários ao ponto de nenhum deles falar sobre o patrão


pelas costas e nem reclamar de seus serviços. Na

verdade, todos trabalhavam animados, e o resultado era


uma casa harmônica, apesar de tudo.

Eu passava a maior parte dos meus dias com

Alyssa, o que não era, de forma alguma, cansativo,


entediante ou um trabalho difícil. Era uma menina doce,

tranquila, embora não fosse exatamente... feliz. Havia algo

nela que me intrigava. Sua paixão pela música beirava a


obsessão, e ela se condenava muito quando sentia alguma

dificuldade de aprendizado, por mais que eu sempre

dissesse que estava indo muito bem.

Minha impressão era a de que Noah a pressionava,

mas ele sempre parecia tão indiferente aos avanços dela,


ao menos quando eu estava por perto. Eu o via nos

observando de longe, como se fosse uma águia, mas

dificilmente falava com a menina quando eu estava por

perto.

Eles pareciam se dar bem, e ele não era agressivo.

Confesso que por mais que fosse errado, cheguei a


procurar sinais de maus tratos, mas não parecia ser o
caso. Alyssa gostava de Noah, de verdade, por mais que

não falasse dele tanto quanto eu gostaria.

Ninguém parecia disposto a sanar minha

curiosidade, aliás. Pelo tempo que eu permanecesse

naquela casa, aparentemente continuaria sem conhecer

meu chefe. Só o veria como aquele brutamonte grande,

ranzinza e severo, com olhos melancólicos e uma


aparência surpreendentemente atraente.

Mas fora isso, eu não poderia reclamar da minha

estadia naquela bela mansão. Além do meu quarto

extremamente confortável, da comida deliciosa, da cama

macia e do banheiro digno de uma revista vintage de

decoração – que ainda por cima era só meu –, havia uma


biblioteca à qual eu tinha acesso ilimitado.

Eu amava ler e, aparentemente, Noah também,

porque colecionava os mais variados títulos, desde

romance a thrillers, passando por fantasia e ficção

científica. Havia uma imensa parede só com clássicos, e


eu pirei quando vi tudo aquilo pela primeira vez. Música era

uma paixão enorme na minha vida, mas a literatura


também.

Havia um pequeno bosque, nos fundos da

propriedade, que Alyssa me mostrou. Ela não estava


autorizada a entrar lá sozinha, mas Marta me mostrou as
trilhas seguras e disse que eu poderia passear quando

quisesse um pouco de privacidade. Enquanto não


conhecesse perfeitamente o espaço, pedi à criança que

tivesse paciência. Também não a levaria lá sem a


autorização do dono da casa. Pretendia conversar com ele

assim que tivesse a chance.

Eu preferia me embrenhar em meio às árvores e

seguir para a clareira, onde havia uma pedra grande – do


lado da qual eu costumava me sentar para ler –, ao

anoitecer, depois de terminar a aula de Alyssa e depois


que ela já estava mais calma, jantando ou assistindo a

algum filme em sua cama.


Naquela noite, peguei “O Sol é para todos” na

biblioteca da mansão, levando-o comigo agarrado ao peito.


Era uma caminhada confortável até a parte arborizada, e

eu fui aproveitando para testemunhar o crepúsculo, o sol


mergulhando no horizonte, enquanto me movimentava.

Meu espaço preferido, ao lado da pedra, estava lá


me esperando. Ele não era exatamente confortável, mas

era privado o suficiente, e eu gostava dos sons que me


rondavam, para entrar no clima da leitura. Levava comigo

um lençol, uma garrafa térmica com chá, além de uma


lanterna, que eu usava para enxergar a página, quando

começava a ficar realmente escuro.

Qualquer pessoa poderia achar que eu era maluca


por me aventurar daquela forma em um lugar como aquele,
mas sempre gostei da natureza e nunca tive medo da

escuridão. Gostava do silêncio e da paz que os momentos


me traziam, e eu imergia na história de uma forma muito

mais interessante.
Naquele dia em particular, eu estava bem cansada,
porque tinha dormido um pouco mal – uma crise de insônia
sem muita explicação – e acabei me aconchegando sobre

o lençol, sentindo a grama macia sob meu corpo, voltando


à leitura naquela posição. Acabei adormecendo, sem nem

perceber, deixando-me levar a um sono mais tranquilo do


que eu poderia esperar, levando em consideração onde eu
estava.

Perdi a hora e só despertei com o som de pegadas

amassando as folhinhas secas que tinham caído no chão.


Havia alguém ali.

Por mais que o bosque pertencesse ao terreno da

casa de Noah, eu não fazia ideia se ele tinha abertura por


outro lado, que desse acesso a alguma pessoa da cidade,
então rapidamente me coloquei em alerta. Nem me

preocupei em recolher as coisas que tinha levado, só o


livro e a lanterna, e comecei a tentar ver se encontrava

alguma coisa. Dependendo do que visse, talvez, me


esconder fosse a melhor saída.
Só que não tive muitas oportunidades para ver
nada, porque a luz da minha lanterna simplesmente
apagou. Provavelmente por causa de bateria fraca, mas foi

o suficiente para que eu ficasse mais nervosa. Eu conhecia


bem a trilha de volta para a casa, e se não fossem os

barulhos, não estaria me sentindo tão insegura, mas o


medo era real.

Tornou-se mais ainda, no entanto, quando fui


literalmente agarrada e derrubada no chão, o que me

deixou um pouco sem ar, por mais que a pessoa tivesse

sido razoavelmente delicada, apenas com a intenção de


imobilizar. Meus dois punhos foram agarrados e presos ao

chão por uma única mão enorme, e uma luz foi acesa

diante dos meus olhos o que me fez fechá-los


imediatamente com o impacto da iluminação inesperada.

— Valentina!? — o rosnado que a voz masculina

soltou não me deixou muitas dúvidas a respeito de quem

estava sobre mim. Era um corpo pesado, e a força do

homem que me segurava era completamente evidente,


porque sua mão parecia uma corrente prendendo meus

pulsos.

Abri os olhos em um rompante, arregalados, e vi o


rosto de Noah bem acima do meu, com aquele cenho

franzido e a carranca quase charmosa, e por um momento

nossos olhares se encontraram de uma forma muito


intensa. Nenhum dos dois disse nada, mas as posições em

que nos encontrávamos, a privacidade do local e da noite,

além do fato de nossas respirações estarem conectadas,


tudo isso contribuía para uma conotação que não deveria

existir.

— O que você está fazendo aqui? E no escuro! —

ele falou em um grunhido, mas sua voz estava mais baixa,

quase um sussurro rouco.

— Eu venho ler, quase todos os dias. Gosto desse


ambiente.

Era irônico que ainda não tivesse me soltado, que

permanecêssemos na mesma posição de antes, com o


peito dele se movimentando, colado ao meu, em uma

respiração cadenciada, mas pesada, como se precisasse

lutar para recuperar o ar que havia perdido.

E o olhar... Olhos semicerrados, mais escuros do


que o normal, quase como um predador.

Respirei fundo, tentando me livrar daqueles

pensamentos. Noah Smith não era sexy. Ele era a Fera da

cidade. Era o cara mais amargo que eu conhecia e tinha

tanto desprezo por mim quanto se eu fosse uma mosca


passando pela sua sala.

Ele me soltou, mas me ajudou a levantar, e eu

comecei a limpar minha roupa, como se isso fizesse

alguma diferença.

— Você deve ser louca se acha que isso aqui é um

lugar seguro — novamente falou como se fosse um animal

rosnando, o que me fez erguer o queixo.

— Você está aqui, não está?


— Acho que a possibilidade de alguém fazer mal a

você é um pouco maior do que comigo.

— Porque eu sou mulher? — Ergui uma


sobrancelha, desafiadora, embora ele parecesse

genuinamente preocupado.

— Sim. E não estou menosprezando o seu gênero,

só estou dizendo que talvez eu tenha mais chances de me


defender e...

Mais uma vez fui surpreendida, não só quando Noah

parou de falar subitamente, mas quando novamente

colocou suas mãos em mim, puxando-me contra uma


árvore e cobrindo o meu corpo com o dele, muito maior.

Por um momento fiquei assustada, pensando que seria

assediada.

O que poderia fazer contra aquele homem imenso,


naquele local tão ermo? E se ele fosse mesmo um

monstro, como diziam as más línguas, e eu estivesse à sua

mercê?
Um barulho me despertou do meu devaneio, e foi

quando eu entendi que Noah estava simplesmente

tentando me esconder... me defender de algo. Mas de

quê?

Com a minha altura, meu rosto estava literalmente


enterrado em seu peito largo, o que me impedia de ver

qualquer coisa ao meu redor, mas aparentemente Noah

viu, porque se afastou um pouco. A lanterna ainda em sua


mão, um pouco erguida, me fez ter um vislumbre de seu

rosto, e eu quase consegui ver um curvar de lábios muito

discreto, com uma expressão indulgente.

Então eu ouvi aquela mesma voz que sempre


parecia um resmungo cruel e insensível adquirir um tom

cálido e gentil. Dei alguns passos e o vi se abaixando,

pegando algo do chão.

Mal pude acreditar quando me deparei com um

filhotinho de cachorro, tremendo e assustado,


acomodando-se em seus braços com alivio.
— Ei, amiguinho, você está perdido? — Era o

mesmo Noah Smith falando? Parecia uma pessoa


completamente diferente; um homem terno e amável. O

bichinho deu uma lambida no rosto dele, e finalmente vi um

sorriso discreto.

Um homem que gostava de animais, especialmente


uma bolinha de pelos indefesa, ganhava alguns pontos

comigo.

Com uma expressão completamente diferente da

que reservava para o filhote, Noah voltou-se para mim:

— Venha. Não vou te deixar aqui sozinha.

Ok, eu também não queria mais ficar sozinha, mas


tudo a respeito daquela situação estava me deixando

surpresa.

— O que vai fazer com ele? — Apontei para o

cachorro, e Noah novamente ergueu aquela sobrancelha,


com o cenho franzido, parecendo bastante ofendido com a

minha pergunta.
— O que acha que vou fazer? Vou lhe dar um banho
e comida. Alyssa me pediu um cachorro meses atrás. Acho

que ela pode gostar deste aqui.

E ele simplesmente saiu andando, dando-me as

costas, com o bichinho nos braços, sem dizer mais nada e


sem maiores explicações. Não que me devesse alguma,

mas com certeza sua atitude me deixou confusa.

Quem era Noah Smith? Era algo que eu realmente

queria descobrir.
CAPÍTULO OITO

Seguimos marchando em silêncio para casa, Noah


tomando a dianteira, com o cachorrinho no colo, sem olhar

para trás, como se eu não passasse de um estorvo que ele


precisava escoltar. Mas quando entramos na propriedade,

ele finalmente olhou por cima do ombro, mostrando que

queria falar comigo. Apressei-me para me juntar mais a


ele, porque suas pernas longas não desaceleraram em

nenhum momento para acompanhar o meu ritmo.

— Vou precisar de ajuda. Marta já está deitada a


essa hora e não quero incomodá-la. Também não quero
causar um rebuliço na casa, porque Alyssa não pode ver o

cachorro ainda.

Assenti, dando a entender que o ajudaria, o que ele

pareceu tomar como resposta suficiente.

Fui acompanhada até o seu quarto, o que me


surpreendeu. Ficava no segundo andar, exatamente sob o

meu, e era opulento como o de um rei medieval, em tons

de marrom, com pequenos detalhes em dourado, mas tudo

muito masculino.

Chegamos ao banheiro e o cômodo não era

diferente. Por ser um recluso, imaginava que queria a

maior quantidade de luxo possível por perto, para poder

realmente se sentir à vontade e confortável em casa.

Noah começou a fazer tudo com precisão, lidando

com o cachorrinho como se fosse uma pecinha de cristal.

Pediu que eu enchesse a banheira com água morna e


pegasse uma toalha dentro de um armário. Fui fazendo

tudo o que ele pedia, mas parei para observá-lo colocando


o animalzinho dentro da água, o que causou um chorinho
muito dolorido de se ouvir, e o pequeno começou a se

debater ao ponto de molhar a nós dois.

Não consegui deixar de rir com a cena, mas por

alguns instantes temi a reação de Noah. E se ele se

enfurecesse e mudasse totalmente seu comportamento? O

que eu poderia fazer para proteger o cãozinho?

Só que lá estava ele rindo também, enquanto a


blusa branca que usava começava a grudar no corpo

conforme a água o atingia e conforme as patinhas do

nosso amiguinho aceleravam a velocidade, lutando contra

o banho.

Tentei não focar meus olhos no que estava bem à

minha frente, e fui disfarçando conforme possível, mas...


pelo amor de Deus. O homem era cheio de músculos e

cada um deles ficou ainda mais evidenciado conforme o

tecido ia grudando na pele e ganhando contornos. Além de

tudo, os sorrisos suavizavam suas feições, embora elas

não deixassem de ser bastante másculas, e tudo o que eu


disse anteriormente sobre ele não ser exatamente um

homem bonito poderia ser esquecido. Ele era lindo. Até as


ruguinhas que se formavam ao lado de seus olhos

castanhos quando sorria para o bichinho eram perfeitas.

Sua paciência e a forma como suas mãos enormes


passeavam pelo pêlo castanho do animal, espalhando um
pouco de sabonete, também me hipnotizaram, e sem

dúvidas era melhor do que ficar olhando para o peitoral


dele. Talvez eu pudesse fingir que estava encantada com o

bichinho.

Ele me pediu ajuda ao final, entregando-me o bebê,


que eu peguei agradecida. Era tão fofinho e parecia tão
relaxado depois do banho, de espernear tanto, que se

aconchegou ao meu peito como se buscasse alento no


colo de uma mãe. Eu amava cachorrinhos, mas nunca

pude ter um.

Em silêncio, eu e Noah montamos uma cama no


quarto dele, com um edredom dobrado em um quadrado,
deixando-o bem fofo, e colocamos o filhote ali para que
descansasse. Era estranho pensar em realizar uma tarefa

com outra pessoa, sem dizer absolutamente nada, mas


parecermos em sintonia, por mais desconhecidos que

fôssemos.

Quando o cão já estava acomodado e dormindo


limpinho, jurei que poderia ir para o meu quarto, mas
peguei Noah olhando para mim, parecendo novamente

muito sério, como se não tivesse acabado de cuidar de um


animalzinho abandonado com uma ternura que nem

parecia possível.

— O que foi? — perguntei, sem nem saber se era


algo correto de se fazer a um chefe.

— Você realmente não deveria ir àquele lugar


sozinha.

Minha vontade era responder que ele não poderia


me dizer o que eu deveria ou não fazer nas minhas horas

de folga, porque isso não estava incluso no meu contrato


de trabalho, mas fiquei calada. Não apenas porque não era
prudente, já que estávamos em uma posição de hierarquia,
mas também porque algo na imagem dele cuidando de
uma criatura indefesa me fez pensar que estava, de fato,

preocupado com a minha segurança.

— Não pensei que fosse perigoso. A verdade é que


fico um pouco entediada depois que termino minhas

obrigações com Alyssa — confessei, embora não em um


tom de reclamação. Tanto que abri um sorriso: — Tenho
passado muito tempo com uma criança, e os adultos aqui

da casa estão sempre muito ocupados para conversar. Por


mais que me considere uma menina, eu sinto falta de uma

conversa um pouco mais madura.

Noah pareceu analisar a situação com cautela; ao


menos seus olhos não saíam dos meus, e eu daria tudo
para descobrir o que se passava pela sua cabeça.

Mas ele não demorou a esclarecer minhas dúvidas:

— Costumo caminhar por lá todas as noites. Posso


te fazer companhia. Não vou atrapalhar sua leitura. Te
deixo em segurança naquele ponto onde te encontrei e
depois me afasto, se for o caso... — ele parecia inseguro,
quase constrangido, como se não tivesse acabado de me

fazer o convite mais gentil e trocado as palavras mais


educadas comigo desde que nos conhecemos.

Era uma caminhada curta até chegarmos ao

bosque, mas, mesmo assim, como seriam aqueles minutos

em companhia do homem silencioso, misterioso e que me


despertava sentimentos tão contraditórios, por ser

extremamente atraente, mas severo e rabugento como

nenhum outro deveria ser?

— Tudo bem. Obrigada. Vou aceitar.

Seria inofensivo, sem dúvidas. Eu poderia confiar


nele; não fora o que o Dr. Moreira dissera?

Noah assentiu, e nós dois ficamos nos olhando

naquele instante desconfortável que sempre se forma entre

meros desconhecidos quando o assunto acabou, mas


nenhum dos dois dá o passo necessário para que a

conversa seja encerrada.

— Você está gostando de trabalhar aqui? — ele


indagou, sem que eu esperasse, parecendo realmente

interessado em saber.

— Sim. Não tenho nada do que reclamar. Alyssa é

ótima, e todos são muito gentis comigo. — Até horas atrás


eu poderia ter acrescentado “menos você”, mas algo

naquela noite havia mudado. Eu conheci um lado diferente

daquele homem e todas as minhas certezas – se é que


algum dia puderam ser chamadas assim – foram por água

abaixo.

— Que bom. Alyssa parece gostar de você, e eu

não gostaria que se magoasse caso decidisse ir embora.

Dei uma risada desanimada e com um pequeno


toque de ironia.

— Eu nem tenho para onde ir. — Ao final da frase,

dei de ombros, tentando dar menos importância ao que


inevitavelmente pareceu uma confissão.

Mas Noah pareceu compadecer-se, porque seus

olhos perderam ainda mais a obscuridade e assumiram um

tom mais leve. Para tirar a impressão de que estava


buscando compaixão, apontei para o filhotinho que dormia

sereno e aconchegado.

— Não sou muito diferente daquele garotão ali.

Acho que nós dois encontramos um lugar, afinal.

Noah mais uma vez assentiu, mas voltou seus olhos

para um ponto aleatório no quarto. Lembrei, aliás, que eu


estava no espaço dele, que se alguém precisava se retirar

seria eu. Era nada mais do que uma intrusa, e talvez ele

estivesse sem graça de me pedir para sair.

Mas novamente me surpreendeu:

— Infelizmente não é exatamente um lar, mas

ambos estarão seguros — afirmou com convicção. Tanta

que eu cheguei a ficar surpresa. Senti como se ele

estivesse dizendo que pessoalmente iria cuidar de proteger


a mim, e aquele filhote e a qualquer um que morasse

naquela casa.

Aliás, não era uma impressão mais. Algo me dizia


que havia um instinto protetor muito aguçado em Noah. Um

que ele tentava esconder o tempo todo.

E foi pensando nisso que lhe desejei boa noite e

voltei para o meu quarto.

Continuei com imagens de Noah cuidando daquele


cachorrinho indefeso com toda a sua delicadeza, de como

parecia falar com Alyssa com cuidado e de como as

pessoas da casa o respeitavam e pareciam admirá-lo com


uma devoção ferrenha.

Será que um dia eu viria a sentir as mesmas coisas?

Ou será que aquela súbita atração que me acometeu no

momento em que o tive sobre mim iria prevalecer e


estragar tudo?

Eram muitas perguntas, e apenas o futuro poderia

respondê-las.
CAPÍTULO NOVE

Eu costumava acordar cedo, especialmente

morando na mesma casa onde eu trabalhava. Não gostava


de parecer uma abusada, nem mesmo nos finais de
semana – como era o caso –, até porque eram os dias em

que Alyssa não tinha aulas, e nós duas ficávamos juntas.

Naquela manhã, porém, fui acordada um pouco antes do


meu despertador, com uma batida insistente na porta.

Jurei que algo de errado tinha acontecido,

especialmente quando me deparei com Noah na minha


porta.
Sem nem perceber o que fazia, fechei meu roupão,

tentando arrumá-lo da melhor forma possível e passei as


mãos pelos cabelos, imaginando que deveriam estar

completamente bagunçados do travesseiro.

Somente depois consegui perceber que em meio


àqueles braços fartos, cobertos por uma blusa de manga

comprida preta, estava o filhotinho. Acordado, com os

olhinhos enormes nos fitando, curioso e assustado,


mantinha-se quietinho, e havia uma fitinha azul amarrada

em seu pescoço, embora bem folgada, só para que

parecesse um presente.

— Marta fez isso — ele falou em um tom indulgente,

mas explicando-se, apontando para o enfeite colorido.


Claramente achara um ato bobo, mas permitira porque, no

fundo, tinha sentimentos pela garotinha que ia receber o

presente.

Abri um sorriso. O maior desde que o conheci.


— Ela vai amar o presente. — Estiquei a mão para
fazer carinho no filhote e sem querer rocei-a no punho forte

de Noah, o que causou quase um choque elétrico.

Ele percebeu também, aparentemente, porque

ergueu os olhos para mim no momento em que olhei para

ele, e nós dois parecíamos extremamente confusos.

Noah balançou a cabeça, como se afastasse um

pensamento indesejado, e logo me proporcionou a


explicação do que estava fazendo ali:

— Eu queria te pedir um favor... — ele falou com

certo embaraço, e eu assenti, curiosa para saber que tipo

de coisa um homem como ele poderia precisar de mim. —

Você pode dizer que encontrou o cachorro e dá-lo como

um presente seu a Alyssa?

Franzi o cenho, ainda mais intrigada.

— Mas isso não é justo. Não é a verdade.


— Mas também não é uma mentira completa. Você

estava comigo e me ajudou em tudo. Só vamos alterar um


pouco a realidade.

Cruzei os braços contra o peito, observando-o com

atenção, cada vez mais curiosa para saber os segredos


que escondia.

— Talvez ela ficasse muito feliz em saber que o


presente é seu — tentei, com cautela, mas isso pareceu

deixá-lo um pouco nervoso.

— Se não disser que é seu , vou falar que foi Marta.


Só espero que não seja uma dedo duro, senhorita! —

Novamente aquele senhorita cheio de desdém. Era como


se tivéssemos voltado duas casas no tabuleiro da empatia.

Noah deu-me as costas e já estava quase indo


embora quando o chamei, e ele se virou para mim:

— Tudo bem. Vai ser como o senhor quiser —


respondi com o mesmo desdém, pagando na mesma

moeda.
Ele fez uma careta impaciente, mas conseguiu o

que queria, não? O fato de que tivera todo o cuidado de


pegar e cuidar de um cachorrinho para dar de presente à

menina que criava ficaria incógnito, e Noah manteria sua


fama de ranzinza e indiferente. Só que algo me dizia que

somente ele acreditava que as pessoas não tinham olhos


para verem além. Para enxergarem mais do que ele
realmente queria demonstrar.

Partimos para o quarto de Alyssa, e diante da porta,

Noah me entregou o cachorrinho, com a delicadeza que


não parecia possível para um homem de seu tamanho, e

disse:

— Pode dizer a ela que eu relutei, mas aceitei temos


um cachorro em casa... E... — Noah parecia hesitante,
como se seu coração estivesse em conflito com sua mente.

Senti que não ia sequer terminar a frase, que ia fugir, mas


coloquei a mão em seu ombro, impedindo-o.

— Por que não fica para ver a reação dela? —

ofereci, compreendendo todo o seu dilema. Por algum


motivo, Noah não queria que aquela menininha percebesse
que ele a amava. Ainda assim, ele sofria por isso. — Posso
inventar uma história, qualquer coisa, mas imagino que vá

ser uma imagem adorável quando ela e o cachorrinho se


encontrarem.

Como se fosse um menino que ganhou um presente

maravilhoso, Noah prendeu a respiração e seus olhos


brilharam como duas estrelas perdidas no meio do céu
noturno.

— Você acha que... — começou a falar, mas

interrompeu a si mesmo, provavelmente percebendo que


abriria demais o seu coração. Então engoliu em seco e

mudou completamente o rumo: — Tudo bem. Vou confiar


no seu poder de imaginação.

Sorri, concordando, e ele foi o responsável por bater


na porta de Alyssa. Ouvimos um “pode entrar” vindo lá de

dentro, e eu vi a garotinha, de camisola, sentada em sua


penteadeira de princesa, escovando os lindos cabelos

ondulados.
Noah colocou-se imediatamente na minha frente,
escondendo-me com seu corpanzil, provavelmente para
manter a surpresa.

— Alyssa... eu e Valentina queremos falar com você.

Sua professora tem um presente para te dar... — Vi os


olhinhos de Alyssa se arregalarem, surpresos.

Noah não sabia muito mais o que dizer, então eu

complementei.

— Ele foi bem contra, sabe? Mas insisti que você


merecia por ser uma garotinha incrível. — Noah olhou para

mim, por cima do ombro, com gratidão, embora fosse uma

situação muito estranha, já que eu estava discursando não

a seu favor, mas contra.

Então saiu da minha frente, porque a pequena já

estava começando a ficar visivelmente ansiosa, revelando

o que estava nos meus braços. A bolinha de pelos

marrons, tímida e desconfiada, que meio que se escondia


na virada dos meus cotovelos e meio que tentava ver o que

estava acontecendo.

— AH, MEU DEUS! — a menina exclamou, dando


pulinhos e vindo andando até mim, saltitando, pegando o

bichinho e levando-o ao seu colo. — Ele pode ficar comigo,

Noah? Pode?

Olhei para Noah e o observei dar de ombros,


carrancudo. Ele poderia ganhar um Oscar por aquela

interpretação.

— Pode, desde que cuide dele direito. Será

responsabilidade sua. Não quero que Marta tenha mais


trabalho do que já tem.

A menina balançou a cabeça, assentindo, várias

vezes. Então correu na minha direção e de Noah,

colocando o cachorrinho no chão, e puxando nós dois para


um abraço. Ela agarrou nossos punhos de forma tão

súbita, para nos aproximar de seu corpinho, que eu

cheguei a cambalear, tropeçando no tapete. O homem foi


rápido em me amparar, e eu acabei indo parar em seus

braços, literalmente.

Alyssa não percebeu o constrangimento da cena,

porque aproveitou que eu estava colada em seu tutor para


nos abraçar, o que nos manteve ainda mais juntos. Nossos

rostos estariam mais próximos se eu fosse mais alta, mas

se Noah se inclinasse apenas um pouco...

Não, eu não podia nem pensar nisso. Era errado.

Sem sentido.

E ainda bem que o abraço durou pouco tempo, mas


eu sabia que o olhar que Noah dirigiu a mim ficaria

marcado na minha memória por tempo suficiente para que

eu começasse a sentir coisas que não deveria sentir.

— Ele é perfeito! — Alyssa falou, tirando tanto eu

quanto Noah da estranha hipnose que nos manteve com

os olhos fixos um no outro. Quando olhei para ela, já

estava com o cachorrinho no colo novamente. — Posso


dar um nome? — A menina se voltou para mim,
exatamente como o esperado, já que inventamos que o

bichinho era um presente meu.

Lancei um olhar para Noah, meio que sem saber o


que fazer, e ele se manteve parado, impassível, olhando-

me de cima, provavelmente me desafiando a manter a

farsa, sendo que fui eu que insisti tanto para que ele
participasse do momento.

— Claro que pode… Alguma ideia?

Alyssa se sentou sobre o tapete, em seu quarto, e

eu a acompanhei. Virei-me para olhar para Noah –

duvidando imensamente que iria nos imitar –, mas ele já


estava saindo do quarto, fechando a porta devagarzinho,

dando-nos privacidade.

Ele queria fazer parte. Estava escrito em seus olhos.

Neles também havia uma coleção de dores indecifráveis,


que eu queria conseguir desvendar. Não fazia ideia do

motivo, já que não éramos sequer amigos, mas ele era um


mistério intrigante. Tudo ao redor dele me deixava curiosa.

Sem contar a estranha atração que começara a surgir.

Eu não era muito experiente naquele tipo de coisa,

mas a forma como Noah olhava para mim me fazia

acreditar que havia desejo de sua parte. E isso também me


intrigava.

Tentei afastar os pensamentos daquele tipo de

coisa, focando minha atenção inteira em Alyssa e no

cachorrinho que, depois de muito deliberar, decidimos


chamar de “Olaf”, embora ele não fosse branco como o

boneco de neve do desenho da Disney, mas a menina era

apaixonada pelo personagem, e assim ficou escolhido.

O dia foi muito divertido, e uma combinação como


aquela de um cachorrinho pequeno e cheio de energia com

uma criança que eu adorava foi um remédio para qualquer

coisa negativa que eu pudesse estar vivendo. Deixei de

lado as memórias do luto, os medos de não ter para onde ir


caso fosse mandada embora, as tristezas no geral, as

incertezas... Eu estava feliz. Sorrindo como uma boba.


E foi sorrindo que Noah me encontrou mais tarde,

no jardim da casa, recolhendo a bagunça que fizemos,


quando Alyssa foi levada por Marta para tomar banho e

jantar. Era sua horinha de começar a relaxar para dormir, já

que tinha uma vida bastante disciplinada. O que significava

que eu estava de folga.

Havia uma televisão no meu quarto, com acesso à

internet. Havia um teclado para que eu pudesse compor

algo. Havia livros na biblioteca; um deles, inclusive, que eu

ainda estava lendo, porque não consegui terminar no dia


anterior, mas quando alguém bateu na minha porta –

imitando o som que ouvi de manhã – e eu vi Noah lá

parado, por algum motivo meu estômago se revirou, em


pura excitação.

— Vou caminhar. Quer ir comigo? — o convite foi

feito naquele seu tom de voz que mais parecia um

comando, sem muita paciência, mas ele poderia não ter ido

até ali nem se dado ao trabalho.


Noah lutava demais contra si mesmo para não
demonstrar o que queria nem que era uma pessoa emotiva

ou sentimental. Da mesma forma como fazia com Alyssa,

ele nunca demonstraria que gostava da minha companhia.

Ótimo, porque eu também nem sabia se gostava da


dele.

Mesmo assim, assenti, aceitando o convite, e

pedindo apenas um minuto para buscar um casaco,

esperando descobrir um pouco mais daquele homem que


era puro mistério.
CAPÍTULO DEZ

Nossos passos começaram a entrar em sintonia, na

mesma cadência, conforme começamos a caminhar para o


bosque. Não deixei de perceber que Valentina não tinha
pegado livro nenhum para acompanhá-la, o que me fazia

crer que estava indo para ser minha companhia.

Não sabia o que pensar a respeito disso. Eu não


costumava permitir que ninguém chegasse tão perto, muito

menos alguém que eu conhecia há tão pouco tempo. A

única pessoa que me conhecia um pouco melhor era


Marta, e mesmo assim demorei muito para permitir que

visse um pouco mais de quem eu era.


Talvez outro motivo para isso fosse que Valentina

era um pouco mais perceptiva e empática do que os


outros. Não adiantava esconder muitas coisas dela, até

porque se histórias fossem contadas, ela ligaria as peças.

Naquela manhã, quando se deu conta de que eu


queria muito ver a reação de Alyssa ao receber o

cachorrinho de presente, cheguei a me assustar e temer

ter uma mulher como ela por perto. Sempre me considerei


um cara fechado o suficiente e que conseguia esconder

minhas emoções ao máximo, mas em pouco tempo fui

desvendado por uma menina de vinte e um anos, que


parecia não saber tanto da vida assim.

— Alyssa ficou muito feliz com o presente —


comentou, no meio do caminho. Não esperei que fosse

puxar conversa, mas o erro foi meu quando decidi chamá-

la para aquele passeio. A verdade era que eu esperava

apenas escoltá-la, mas aparentemente não era o que iria

acontecer.
Eu sabia o que ela queria. Os olhos lindos e
curiosos eram suficientemente transparentes para que eu

compreendesse. Valentina estava em busca de

informações. E eu tinha a impressão de que, apesar de ser

aquela coisinha pequena e com aparência indefesa, ela

poderia ser implacável quando queria.

— Sim, ela ficou — foi a minha resposta econômica,

cautelosa.

— Ficaria ainda mais se soubesse que foi você que

deu.

Pronto. Ela estava abrindo caminho.

— Acho que para ela tanto faz, contanto que tenha o

cachorro — respondi, mal-humorado. Aquela conversa

poderia facilmente começar a ficar desconfortável para

mim.

Olhei de soslaio para Valentina e a vi assentindo,

levando as mãos para trás das costas, entrelaçando-as e


abaixando a cabeça, olhando para o chão, para as folhas
que voavam em círculos em volta de nossos pés,

espalhadas pelo vento.

Entramos no bosque em silêncio, e eu peguei o

caminho do espaço no qual a encontrei no dia anterior,

esperando que pudesse deixá-la ali sozinha e seguir meu


caminho. Eu gostava de malhar de manhã, no espaço que
havia na minha casa, com aparelhos de musculação, mas

a caminhada à noite sempre me fazia bem, especialmente


ao ar livre. Não queria me privar desse prazer só porque

uma garota enxerida estava tentando descobrir coisas


sobre mim. Porque eu sabia que era o caso.

Só que, para a minha surpresa, por mais que eu não


tivesse feito nenhum esforço para abandoná-la ali mesmo,

voltando algum tempo depois para buscá-la e acompanhá-


la até em casa em segurança, não foi o que quis. Segui

outra trilha, caminhando em silêncio ao lado da garota,


enquanto ela também não dizia nada. Poderia parecer algo

desconfortável, mas não foi o caso. Foi até reconfortante.


Os sons ao nosso redor eram dos nossos passos,

das árvores balançando com o vento e da noite que


parecia sussurrar segredos em nossos ouvidos.

Aquela não foi a única noite em que saímos juntos

para tal parte da propriedade. Tornou-se um hábito diário,


mas nem sempre havia silêncio entre nós. Só que
Valentina era uma detetive muito mais competente do que

esperei, porque não saiu fazendo perguntas explícitas em


um primeiro momento, sabendo esperar a hora certa. Fui

descobrindo coisas sobre ela também e sobre sua família.


Muitas eu já tinha verificado com Moreira, porque não

contrataria alguém sem saber exatamente quem era.

Conversávamos sobre literatura – ou melhor, eu


mais ouvia do que falava –, mas tinha uma ou outra coisa a
acrescentar, porque era um leitor ávido. Também tínhamos

gostos parecidos para música, embora eu não passasse


muito tempo ouvindo qualquer coisa há uns bons anos.

Ela me contou como aprendeu a tocar com a mãe,

como as duas compartilhavam essa paixão, enquanto a


irmã tinha um talento enorme para o desenho, assim como
seu pai. Eu percebia que falava com carinho da família, e
as perdas que sofrera a entristeciam visivelmente. Só que

ela era forte. Muito mais do que eu, por exemplo.


Conseguia sorrir e ainda seguir com sua vida. Sobrevivia

sozinha mesmo não tendo absolutamente nada.

Eu escapava de suas perguntas como um sabonete


escorregadio, mas podia ver que era paciente. Não
colocaria os pés pelas mãos com um comportamento

indevido, mas foi, provavelmente, na décima vez em que


saímos para nossa caminhada noturna rotineira que me fez

uma pergunta mais pessoal:

— Por que você me ajudou? — Foi bem inesperado.


Estávamos em um dos nossos momentos de silêncio,
daqueles que parecíamos conhecer de cor, quando

simplesmente soltou o questionamento.

— Eu não te ajudei. Precisava de uma professora de


piano para Alyssa... — Será que eu conseguia convencer

alguém com aquela afirmação fajuta?


Valentina abriu um sorriso, e um lampejo da luz da
lua recaiu sobre seu rosto, iluminando-o de uma forma que
ela inteira parecia brilhar por si só. Era uma moça muito

bonita, e isso eu já tinha percebido desde o primeiro dia em


que a vi, mas conforme a conhecia e percebia seu jeito

maduro e delicado, começava a chegar à conclusão que


era ainda mais bela do que eu imaginava.

— Alyssa me contou, sem querer, que já tinha te


pedido aulas de piano várias vezes antes. Foi, então, uma

grande coincidência que tenha decidido contratar alguém

na mesma época em que eu perdi tudo.

— Está se superestimando, senhorita. — Aquela era


a forma como eu colocava um distanciamento entre nós.

Desde que começamos nossos passeios em companhia

um do outro, sempre a chamava de Valentina, e fazia isso


normalmente quando precisávamos nos falar em casa. Só

que quando era tirado do sério, tornava-se quase

automática a tática de impor alguma formalidade.


O sorriso tornou-se uma risada, e eu comecei a me

estressar. Estaria zombando de mim?

— Você é o cara que resgata cachorrinhos perdidos


no meio de um bosque. Por que não poderia resgatar uma

professora de piano que estava prestes a cair em

desgraça? — deu uma entonação dramática à sua fala,


levando até a mão virada à testa, em um movimento

teatral.

— Não resgatei ninguém. Foi oferta e demanda. —

Só que eu não conseguia mais olhá-la, e senti que fui


pego.

— Por que tem tanto medo de que as pessoas

vejam seu coração? Ele não é de pedra como muitos

acreditam que seja.

— Meu coração não é de pedra. Ele é só um órgão


que fica dentro do meu peito. Preciso dele para continuar

bombeando sangue para o meu corpo, que é bem grande,

se ainda não reparou.


— Ah, eu reparei...

Aquilo me surpreendeu. Ao ponto de me fazer parar

no meio do caminho, obrigando-a a fazer o mesmo. Olhei

para Valentina, em busca de uma conotação diferente de


uma brincadeira, mas eu estava enganado. Ela não

poderia estar admirando qualquer coisa em relação a mim.

Poderia?

Seu sorriso era divertido, apenas isso.

— Com todo o respeito, Noah... — Não me passou

despercebido o fato de que me chamou pelo nome. Não


sabia se era uma afronta feita de uma forma meiga, mas

não a corrigi. Era melhor assim. — Eu acho que você quer

mentir para si mesmo. Só que está perdendo muita coisa


com isso. As pessoas naquela casa têm uma admiração

grande por você e há um motivo para isso.

— Um motivo que você quer descobrir, não é?

Ela deu de ombros, parecendo mais adorável do

que nunca.
— A curiosidade é um defeito que nunca

conseguiram tirar de mim. Especialmente a respeito de


uma pessoa a quem eu devo tantas coisas...

— Não me deve nada, Valentina. Só faça o seu

trabalho, deixe Alyssa satisfeita e tudo estará pago. Seu

salário será entregue na data correta, e isso é o que


importa — respondi de forma bruta, em uma tentativa de

cortar o assunto.

Ela pareceu um pouco frustrada, talvez até

magoada, e eu me arrependi imediatamente. Só que não

seria uma boa ideia pedir desculpas ou retirar o que falei.


Era melhor assim. Que pensasse que eu era um babaca,

grosseiro e que não tinha compaixão por ninguém. Não era

isso que todos pensavam de mim?

— Tudo bem — ela disse, muito séria, escondendo


o sorriso bonito de antes e continuou a caminhada.

Naquele dia não houve conversas sobre música,

nem livros. Só o silêncio. Era o que eu merecia.


CAPÍTULO ONZE

A minha curiosidade a respeito de Noah só crescia.

Assim como os sentimentos que começavam a nascer em


relação a ele. Mas, obviamente, uma coisa era
proporcional à outra, porque ao gostar de alguém, mesmo

em um nível de amizade, eu queria saber o máximo de

coisas sobre essa pessoa. Ao me apaixonar isso se


tornava ainda mais imprescindível.

Bem... então era isso mesmo? Eu estava

apaixonada ou me apaixonando por Noah Smith.


Várias vezes, deitada na minha cama, eu me

perguntava o motivo para isso. Por que, afinal, aquele


homem conseguira entrar no meu coração?

Havia algumas respostas óbvias que envolviam a

aparência dele, mas isso obviamente era ridículo de se


pensar, levando em consideração que eu não era uma

pessoa que me importava com beleza exterior. O que havia

de mais belo em Noah era a alma – a mesma que ele não


queria demonstrar a ninguém. Nem a mim, mas eu

começava a aprender coisas sobre ele que me davam

respostas.

Só que eu queria ir além. Queria descobrir mais do

que apenas as coisas que ele me dizia em nossas


caminhadas diárias, especialmente porque ele não falava

muito.

Havia uma fonte que poderia me passar

informações, e era Marta. Eu sabia que era leal ao seu

patrão, que não contaria nada que pudesse constrangê-lo


ou deixá-lo em maus lençóis, mas, na verdade, eu queria o
oposto.

Depois de observar muito as pessoas que

trabalhavam naquela casa, tirando minhas próprias

conclusões, e juntando isso à minha história e ao ocorrido

com o cachorrinho – Olaf –, além de algumas impressões

que eu tinha a respeito de Alyssa, algo me dizia que Noah

tinha uma quedinha por salvar pessoas indefesas.

Naquele dia eu não acordei me sentindo muito bem,

mas mesmo assim não queria ficar parada. Embrenhei-me

na biblioteca, com a desculpa de que estava entediada em

um domingo, enquanto Alyssa tirava uma soneca à tarde,

porque tinha pegado uma gripe e ainda se recuperava do

estado febril, e peguei Marta por lá, lendo. Fiquei algum


tempo tentando escolher um livro e peguei um qualquer,

sentando-me próxima a ela, que sorriu para mim.

Imaginava que iria ficar muito irritada com a

interrupção, mas era por um motivo nobre. Comecei a

folhear o livro, ler e reler a sinopse, percebendo que se


tratava de um thriller bem interessante. Para uma escolha

aleatória, até que eu não tinha ido tão mal assim.

Comecei a ler algumas páginas, mesmo que não

prestasse atenção em uma única palavra, porque minha

cabeça estava uma bagunça, mas queria que a conversa


soasse o mais natural possível.

— Alyssa está muito feliz com o cachorrinho, né? —


foi a forma que encontrei para tentar puxar o assunto, por

mais que não fosse algo tão direto.

Marta pareceu até se surpreender. Lamentava tirá-la


da concentração de seu livro, que era um romance de Jane

Austen, mas ela não pareceu se importar em corresponder


à conversa.

— Ela está, não é? — respondeu com ar sonhador.


Amava aquela garotinha com um instinto materno que era
visível para qualquer um.

Eu estava prestes a cometer um pequeno ato de

deslealdade, mas, novamente, seria por uma boa causa.


— Eu não sei por que Noah não contou a ela que o

presente era dele. Aliás, me surpreendi com a forma como


cuidou do cachorrinho. Parece sempre tão severo e tão

impaciente com qualquer pessoa ou criatura — joguei a


semente esperando colher algo.

Foi um tiro certeiro, porque Marta se remexeu na


poltrona, voltando-se para mim e deixando de vez o livro

de lado. Pronta para a fofoca.

— Severo... Tá bom! Isso é o que ele quer que as


pessoas pensem. Ele as quer afastadas, desde que tudo

aconteceu... — Eu poderia perguntar o que era aquele


tudo, mas sabia que poderia tirar o entusiasmo de Marta de

falar todo o resto. Por isso deixei que ela guiasse a


conversa. — Um homem que acolhe o tipo de pessoa que
ele acolheu em casa, dando uma oportunidade para cada

um, nunca poderia ser considerado uma Fera, como todos


o chamam e como ele quer que seja.

— Como assim... tipo de pessoa?


Marta sorriu. Um daqueles sorrisos sábios que uma
pessoa dá quando tem o conhecimento de algo que outra
não tem.

— Noah Smith é um protetor, querida. Ele me livrou

de um marido abusivo, que me espancava todos os dias.


Deu uma bela surra nele para aprender e me trouxe para

trabalhar aqui. Sabe Hugo, o nosso jardineiro? É um ex-


presidiário, que foi colocado na cadeia por roubar para
alimentar os filhos. A cozinheira? Ela era uma viciada, com

passagem também pela polícia, e mesmo assim ele a


contratou. E ainda temos Thomas... — Mais uma vez Marta

abriu um sorriso maternal, porque eu sabia que adorava


aquele menino. — Os pais morreram, e um tio não o quis.
Noah o trouxe assim que soube.

Precisei de um momento para respirar e

compreender o que tinha acabado de ouvir. Se eu tivesse


ouvido aquela história dias atrás, poderia até duvidar e

pensar que Marta estava exagerando ou imaginar que as


intenções de Noah não eram tão boas assim, apenas

conseguir mão de obra barata – e isso se eu fosse muito


injusta, mesmo sabendo que o salário que pagava para
mim era bem maior do que eu ganharia em qualquer outro
lugar, tendo a mesma função. Só que eu tinha tido um

gostinho da bondade daquele homem. Eu o vira pegar uma


criatura completamente indefesa e levá-la para sua casa,

acolhendo-o e lhe dando um lar. Por que não poderia


imaginá-lo fazendo o mesmo com todas aquelas pessoas?

— E como ele descobre esses casos? — indaguei,


ainda mais curiosa.

— O Dr. Moreira é a fada-madrinha, se é que posso

chamar assim — brincou. — Sempre que ele fica sabendo

de um caso, vem ao patrão para alertar.

— Foi assim comigo?

Marta ergueu uma sobrancelha.

— O que você acha? — Mais uma vez eu nem

precisava insistir na pergunta, porque claramente sabia a

resposta.
Eu era uma das criaturas indefesas de Noah.

Alguém que ele acolheu sob suas asas extremamente


generosas. Alguém a quem ele salvou.

Meu coração disparou de tal forma que eu senti

meus olhos pinicarem, com o prelúdio de um choro. Sentia-

me em um estado um pouco fragilizado, porque já não


estava me sentindo bem desde cedo, e quando Marta

tocou minha mão, ela pareceu sentir isso.

— Querida, você está bem? Sua pele está quente!

— Ela ia colocar a mão na minha testa, mas eu me levantei


de um pulo, porque não queria que se sentisse na

obrigação de cuidar de mim mais do que aquelas pessoas

já cuidavam.

— Estou... Vou ficar. Obrigada por tudo o que me

disse — falei sem pensar, mas Marta não pareceu se


incomodar. Não queria que pensasse que tinha sido uma

conversa com segundas intenções, embora essa fosse a

verdade.
— De nada. Se precisar de alguma coisa, me avise.

Sorrindo, saí da biblioteca, levando o livro comigo,

embora eu nem soubesse o título.

Corri para o meu quarto e peguei um antitérmico,

dentro da bolsinha que levei comigo na mudança, e o tomei


imediatamente, deitando um pouco.

Não consegui dormir muito bem, porque tive alguns

sonhos agitados, e todos eles envolviam Noah e tudo o

que Marta me contou. Não conseguia parar de pensar que

se não fosse por ele, eu teria acabado nas mãos de uma


pessoa horrível.

Imagens de Fernando também surgiram, nas piores

situações possíveis, e eu sempre era uma vítima de suas


investidas. Sempre acabava caindo em suas mãos, das

piores formas possíveis.

Quando decidi que não queria continuar na cama,

levantei-me, tomei um banho, e vi que ainda eram cinco da

tarde. Não tinha muito a fazer, então fiquei no meu quarto,


andando de um lado para o outro, inquieta, até que meus

pés me obrigaram a algo que talvez eu não tivesse feito se


estivesse em meu estado normal.

Fui ao escritório de Noah.

Bati na porta, e ele mesmo foi abrir, parecendo

intrigado ao me ver.

— Desculpa te interromper. Não quero tomar muito

de seu tempo... — Respirei fundo, sentindo minha


respiração pesada.

— Você está pálida. Está tudo bem? — Ele era

mesmo perceptivo, embora precisasse admitir que minha

aparência realmente não era das melhores.

— Está, sim. Eu só queria agradecer. Sei que já fiz


isso algumas vezes, mas fiz por mim. Pela forma como me

ajudou. Só que... acho que você merece gratidão por ser

quem é e por não esperar nada em troca. Só por ser quem


é...
Noah franziu o cenho, parecendo muito confuso.

— O que você está falando? Tem certeza de que

está tudo bem? Parece não fazer sentido algum...

Assim como Marta fizera, ele estendeu a mão, para

me tocar, só que eu estava um pouco agoniada. Sabe a

sensação que nos acomete quando estamos no início de


uma doença e tudo o que queremos é nos jogar em uma

cama, mas, ao mesmo tempo, não conseguimos ficar

parados? Era assim que me sentia.

Sem permitir que me tocasse, peguei sua mão na


minha, apertando-a com carinho. Provavelmente ele já iria

sentir o quão quente eu estava sob aquele toque, mas era

o máximo que queria permitir.

— Mais uma vez... obrigada.

Com isso, eu simplesmente saí correndo,

provavelmente parecendo completamente louca.


Se é que eu realmente não estava me tornando

uma.
CAPÍTULO DOZE

Aquela garota me confundia. Começou com alguns

pensamentos impróprios sobre ela ser bonita demais para


o meu próprio bem. Então, conforme fui conhecendo-a,
percebi que havia muito mais. Havia um coração

apaixonado, uma alma cheia de sonhos e um espírito

meigo que poderia ter sido destruído com a quantidade de


coisas ruins que aconteceram em sua vida. Mas além de

tudo ela era forte. Divertida. Sensível. Serena.

Encantadora.

Todos os dias eu jurava para mim mesmo que era

mais prudente me afastar, porque o que eu poderia lhe


oferecer? Por mais rico que fosse, por mais que tivesse

posses e pudesse dar uma vida de rainha para qualquer


mulher, no âmbito material, eu não sabia mais amar.

Valentina dissera que meu coração não era de

pedra, como eu fazia parecer, mas ele estava ressecado,


cheio de espinhos. Eu não saberia retribuir o carinho de

uma mulher como ela, que parecia ter tanto para dar.

Ainda assim, eu vinha conseguindo deixar de lado o

sentimento que claramente começava a crescer. Não com


tanto sucesso quanto gostaria, principalmente porque não

conseguia deixar de ir chamá-la, todas as noites, para

nossa caminhada rotineira. Sempre jurava que seria a

última vez, mas lá estava eu, todos os dias, batendo em


sua porta, esperando ansioso por nossos momentos

juntos.

Mas, naquele dia, a garota simplesmente complicou

muito mais a minha vida aparecendo no meu escritório e

falando todas aquelas coisas. Isso sem contar o quanto

não parecia bem. Quis não me preocupar, mas... porra, era


impossível, especialmente porque sabia que Alyssa andara
doente nos últimos dias. Nada grave, de acordo com o

médico que nos atendia a domicílio, mas uma daquelas

viroses chatas por algo que comeu.

Valentina poderia ter comido a mesma coisa e não

estar completamente saudável. Nem sequer me deixou

tocá-la para saber se estava com febre, embora sua mão

pegando fogo me desse provas suficientes disso.

E o fato de ela não ter atendido à porta quando fui

chamá-la, à noite, também.

Estava um pouco mais tarde do que o horário usual,

porque hesitei muito antes de fazê-lo. Ainda havia

esperança se me afastasse e não pensasse mais no

absurdo que de tentar imaginar que uma garota como ela


pudesse ter interesse em mim, embora seus olhares me

dissessem um milhão de coisas diferentes.

Tentei mais algumas vezes, chegando a chamá-la

pelo nome, mas não obtive resposta. Tive vontade de


entrar sem nem ser convidado e ver se estava tudo bem,

mas não queria invadir sua privacidade.

Desci as escadas correndo e fui buscar Marta, na

esperança de que soubesse o que havia acontecido. Bati

em sua porta também, porque já estava recolhida, e


daquela vez fui atendido, ainda bem.

— Você viu Valentina? Fui ao quarto dela agora e...


— interrompi a mim mesmo, sentindo-me completamente

tolo pela forma desesperada com que estava falando. Do


que eu tinha medo, afinal? Que ela tivesse ido embora?

— Eu a vi saindo com um livro. Acho que foi para o

bosque — explicou, como se não fosse nada.

— Sozinha? — alterei o tom de voz, e Marta chegou

a se assustar.

— Creio que sim, mas...

Não permiti que terminasse de falar, porque saí

apressado, sem nem ter muita noção do motivo. Eu só


sabia que havia algo de errado. Sentia isso. Podia pecar

pelo excesso, mas queria ver se estava tudo bem.

Talvez eu realmente tivesse um fraco por


vulneráveis em perigo.

— Valentina? — comecei a chamar, enquanto

rodava o bosque, indo na direção que sempre seguíamos,


especialmente partindo para o local onde ela ficava antes
que começássemos a passear juntos. — Valentina?

Continuei caminhando a passos largos, olhando de

um lado para o outro, com a lanterna do celular acesa.

Poderia ter respirado aliviado quando a encontrei,

mas o estado em que estava não me proporcionou


nenhuma satisfação. Ela estava caída no chão, com o livro

aberto ao seu lado, de bruços.

Aproximei-me, agachando-me ao seu lado e


virando-a com cuidado. Deixei o celular sobre uma pedra,
para que iluminasse os arredores, e consegui vê-la

completamente pálida, mais ainda do que anteriormente,


quando fora ao meu escritório. Levei a mão à sua testa e
senti que estava novamente queimando.

— Valentina? — tentei acordá-la, dando tapinhas


delicados em seu rosto, e eu a vi resmungar alguma coisa

e se remexer, como se estivesse delirando. Só que não


acordou.

Eu não podia deixá-la ali, de jeito nenhum, então a


ajeitei em meus braços, tirei-a do chão e comecei a

carregá-la para casa. Era um caminho relativamente longo,


mas a moça não pesava nada, e naquele momento isso

era o menos importante.

Meu coração pulsava dentro do peito em um ritmo


agoniado, e eu queria fingir que não estava entendendo o

que sentia, mas a verdade era que a minha preocupação


com aquela garota era enorme. Podia imaginar que estava
com os mesmos sintomas de Alyssa, que se tratava

apenas de uma virose, alguma bactéria que ingeriram em


algum alimento, mas não conseguia deixar de desejar que

ficasse bem.
Só que não era apenas uma vontade normal, como
a compaixão que eu sentia por pessoas que precisavam de
ajuda. Eu queria que ficasse bem, porque...

Porque não queria perdê-la. Não havia nada de

altruísta no meu sentimento. Era algo egoísta. Como


acontecia com qualquer pessoa apaixonada.

Merda... eu estava me apaixonando por ela. E não

podia sequer imaginar o quanto de destruição isso


causaria.

Continuei levando-a com cuidado, com a cabeça

encostada no meu ombro e sentindo o calor que emanava

de sua testa, quando esta tocava minha bochecha.

Quando cheguei em casa, Marta ficou assustada e


veio correndo nos ajudar. Coloquei-a em sua cama, com

cuidado, e rapidamente começamos a agir. Assustei-me

quando minha governanta começou a tirar a roupa dela

bem na minha frente.


— O que diabos você está fazendo? — perguntei

em um rosnado. Eu não queria ver a garota em roupas de


baixo e...

Porra, claro que eu queria, mas não daquele jeito.

Não sem o consentimento dela. Não sem ter o direito a

isso.

— Não seja bobo! Precisamos dar um banho morno


nela, vai ajudar a amenizar a temperatura. Por favor, vá

enchendo a banheira. Nada de água gelada, para não

causar um choque térmico, e nem muito quente.

Um pouco atordoado, corri para a minha suíte, pois


era a única que tinha uma banheira, e comecei a enchê-la,

da forma como Marta tinha orientado. Fiquei andando de

um lado para o outro, como um leão enjaulado, meio que

sem saber o que fazer. Era uma situação extremamente


delicada, porque eu queria ajudar a garota, queria cuidar

dela, mas não queria ultrapassar nenhum limite.


Ouvi a voz de Marta me chamando e fui até lá,

deixando a banheira enchendo. Quando cheguei ao quarto,

deparei-me com Valentina enrolada em um cobertor, quase


como se fosse uma encomenda. Fiquei parado,

observando-a, e o resmungo da minha governanta se fez

ouvir.

— O que está esperando? Leve-a para o banheiro.

Eu não tenho forças para carregar a menina, mesmo ela


sendo tão pequena.

Obedeci como se estivesse me movendo no

automático, tirando Valentina da cama e levando-a para o

meu banheiro. A torneira ainda deixava a água cair e ainda


seriam necessários alguns minutos para que estivesse

cheia como deveria ficar.

— Coloque-a na sua cama, eu posso vigiar a

banheira e te avisar quando estiver tudo pronto — Marta

disse, com paciência.


— Não! — foi minha resposta categórica. Eu não

soltaria Valentina de jeito nenhum. Já seria doloroso deixá-


la para colocá-la dentro d’água, mas enquanto pudesse

segurá-la ali, para senti-la respirando, para ter a impressão

de que eu a estava protegendo, mesmo que fosse algo


completamente tolo de se pensar.

Quando tudo ficou pronto, precisei ser ajudado por

Marta para tirarmos o cobertor do corpo de Valentina, e eu

fiz todo o esforço para não olhar para o corpo dela, ao

menos não com desejo. Mesmo quando a lingerie branca


começou a ficar transparente conforme a água a molhava,

fiz tudo que pude para não reparar nos mamilos que se

destacavam no tecido, evidenciando os seios pequenos,


mas redondos e firmes.

A preocupação ali era com ela, com seu bem estar.

Mantive-me atento a qualquer movimento e a cada suspiro

e sussurro que ela soltava; a cada expressão de alívio e de


desconforto.
Marta foi muito cuidadosa, carinhosa e gentil, e ela

fez todo o trabalho enquanto eu servia apenas para

segurar e virar a moça, tentando tocá-la o mínimo

enquanto não estava vestida.

Ao fim, Marta a secou, e eu a levei para a cama


novamente enrolada em uma toalha, deixando-as em um

rompante, porque não suportava mais.

Não apenas o fato de que a mulher que tinha se

tornado extremamente desejável para mim estava


praticamente nua na minha frente, mas de uma forma

quase imprópria, como também a agonia de vê-la mal,

semiconsciente, ardendo em febre e, provavelmente,


sentindo dor.

Eu me compadecia da fragilidade de várias pessoas.

Por ter tido minha cota de sofrimento na vida – embora mal

pudesse ser comparado com o da maioria –, não queria

que pessoas que não mereciam tanto mal


experimentassem aquele tipo de dor. E Valentina não

merecia.
Eu só esperava que ela ficasse bem.
CAPÍTULO TREZE

Eu odiava ficar doente. Odiava sentir dor. Tinha

horror a precisar ficar de cama e, principalmente, dar


trabalho para os outros. Naquele caso, especialmente, a
situação ainda era pior, porque quem estava cuidando de

mim não eram minha família. Nem sequer podia chamá-los

de amigos, embora Marta fosse tão doce e amável que


muitas vezes eu podia confundi-la com uma mãe dedicada.

Só que eu sabia que Noah também andava por

perto. Ouvia sua voz quando estava cochilando e, para não


constrangê-lo, fingia estar ainda dormindo. Escutava seu

tom preocupado conversando com Marta, querendo saber


sobre minha recuperação, se estava comendo, se tinha

tomado os remédios. Ele tentava manter a postura


indiferente, dizendo que estava ansioso para que eu

voltasse para o trabalho, porque Alyssa já tinha melhorado,

mas havia algo na forma como falava que me fazia


acreditar que havia carinho também. Preocupação

genuína.

E isso só se concretizou quando eu acordei certa


manhã, sentindo-me muito melhor do que nos dias

anteriores. Ainda um pouco grogue de sono e com o quarto

bem escuro por causa dos blackouts na janela, parti direto


para o banheiro, para fazer xixi e aproveitei para escovar

os dentes, pelo gosto ruim que a doença e os remédios


deixaram, e também dei uma rápida penteada no cabelo.

Quando voltei, feliz por não estar com a cabeça

latejando, e com o corpo mais forte, enxerguei uma forma

enorme em um canto, sentada na poltrona, de maljeito. Por

mais que o móvel fosse grande, não era páreo para o

tamanho do homem ali acomodado.


Fui me aproximando aos poucos, reparando que
estava completamente apagado, com a cabeça pendendo

para trás, apoiada no encosto da poltrona, ressoando

baixinho, aparentemente muito cansado.

Não havia dúvidas de que estava velando meu

sono, e eu tinha imagens muito turvas na minha lembrança

dele cuidando de mim no dia em que comecei a ficar

doente, levando-me para a banheira, segurando-me contra


si com todo o cuidado e delicadeza, demonstrando aquele

seu lado terno que mal parecia combinar com a fachada

bruta e rabugenta.

Hesitei em tocá-lo, mas queria que despertasse,

porque parecia estar totalmente incomodado naquela

posição, então levei os dedos ao seu ombro, tentando


acordá-lo com um toque quase fantasmagórico, e eu o vi

se remexer.

Ainda de olhos fechados, pareceu zonzo de sono,

naquele limiar entre a inconsciência e o despertar.


— Noah? — chamei-o em um tom baixinho, não

querendo assustá-lo.

— Valentina... — uma voz rouca sussurrou também,

mas ele não despertou.

Estava prestes a tentar mais uma vez, quando a

mão cujos dedos tocavam sua pele foi agarrada, e eu fui


puxada diretamente para seu colo, caindo sobre suas
pernas.

Mal tive tempo de dizer qualquer coisa, porque

lábios ávidos tomaram os meus em um beijo


completamente inesperado.

Não consegui pensar, agir ou me mover. Ele me


segurava com força, abrindo meus lábios com sua língua e

mergulhando-a dentro da minha boca, transformando as


coisas muito rapidamente, criando um verdadeiro incêndio.

Era uma pena que ele estivesse tão entorpecido,


porque eu queria acreditar que era parte do seu desejo
fazer aquilo. Ainda assim, decidi que era meu momento de

aproveitar, porque poderia não ter outra chance.

Passei os braços ao redor de seus ombros


poderosos, começando a corresponder com toda a minha

inexperiência. Eu já tinha sido beijada antes, mas apenas


uma vez, e por um garoto que com certeza não tinha
metade das habilidades de homem de Noah.

Ele explorava minha boca de um jeito

completamente diferente, incitando a mais, demonstrando


uma ânsia por mim que não poderia ser fruto de uma

ilusão. Muito menos quando começou a suspirar meu


nome, fazendo-o soar como uma carícia.

Mas foi exatamente o meu nome que o fez retornar


a si. Como uma palavra em meio a um feitiço que o trouxe

de volta à consciência, eu o senti se afastar abruptamente,


arregalando os olhos ao olhar para mim.

Temi que se levantasse, que me expulsasse de seu


colo ou que simplesmente dissesse que era um erro... E
talvez ele tivesse planos de fazer realmente isso, mas algo
o impediu. Provavelmente a forma como meus olhos
pesados se fixaram nos dele, embriagados pelo que tinha

acabado de acontecer.

— Perdão. Eu não devia ter feito isso — disse, mas


sem me soltar. Se eu tentasse me desvencilhar,

provavelmente permitiria que eu saísse de onde estava,


mas não foi o que aconteceu, até porque eu não tinha o
menor interesse de me afastar.

— Não estou reclamando, estou? — respondi,

depois de reunir toda a minha coragem.

Noah pareceu um pouco surpreso, mas foi por


pouco tempo. Logo seus olhos adquiriram o mesmo nível

de luxúria dos meus, e eu entendi que nada fora apenas


um produto de um delírio. Estávamos na mesma sintonia.
Eu o queria. Ele me queria. Da forma mais simples e

natural possível entre um homem e uma mulher.


Sem dizer nada – porque ele, de fato, era um
homem de poucas palavras –, agarrou minha nuca e me
puxou para si, novamente me beijando como se quisesse

me devorar. Só que diferente da primeira vez, que parecia


estar ainda inebriado e um pouco zonzo, Noah se

empenhou ainda mais, com uma voracidade que me fez


compará-lo a um homem selvagem tomando posse de algo
que sempre foi seu.

Meu cabelo foi puxado para trás, e ele passeou a

boca pelo meu pescoço, causando arrepios infinitos e uma

reação muito específica no meio das minhas pernas. Meu


corpo latejava por ele, como nunca antes acontecera com

nenhum outro homem, embora quase nenhum tivesse me

tocado.

Quando me dei conta, ele tinha me erguido no colo,


como se eu não pesasse absolutamente nada, levando-me

para a cama. Deitou-me lá, e eu tive a certeza de que

permitiria qualquer coisa que quisesse fazer, que não o

impediria de nada. Estava me sentindo bem depois de


vários dias de dores e febre, mas ainda não me sentia
cansada de queimar. Só que queria queimar com as mãos

e a boca de Noah em mim.

Mas ainda estávamos no meio de nosso beijo


desesperado quando a porta do quarto foi aberta. Nós dois

interrompemos o contato, voltando-nos na direção do som,

com os olhos arregalados. A pessoa que chegava não


parecia muito diferente. Marta se assustou, e não era para

menos. Deveria ser uma situação estranha ver seu próprio

patrão atracado na cama com outra funcionária da casa.

— Oh, meu Deus, me perdoem... eu... eu deveria ter


batido, mas achei que a menina ainda estava dormindo...

Eu... — Marta segurava uma bandeja na mão, e pela forma

como tremia era difícil acreditar que esta ainda não havia

caído. Ao menos até que foi pousada sobre a cômoda. —


Vou sair... mil perdões.

— Não! — eu e Noah falamos ao mesmo tempo.

Olhamos um para o outro e sorrimos, como se fôssemos

cúmplices em um crime. Claro que o sorriso dele se


mantinha discreto, quase imperceptível, mas estava lá.
Talvez eu já conhecesse bem suas expressões e

conseguisse lê-las, mesmo quando não eram assim tão

óbvias.

Ele saiu de cima de mim em um pulo e se colocou


ao lado da cama, empertigando-se.

— Vou deixar vocês em paz — falou com

veemência, mas deixou um olhar cheio de promessas na

minha direção, e eu me senti uma boba, uma adolescente,

sonhadora, até que Marta pigarreou, o que me fez voltar


para ela.

Pensei que me daria um sermão, que explicaria que

não era uma boa ideia eu me envolver com meu chefe,

ainda mais ele sendo um homem tão fechado e tão difícil,


mas seu sorriso maternal, enquanto remexia na bandeja

para me levar o café da manhã.

— Cuide bem daquele rapaz, hein. Ele precisa de

alguém como você, que lhe dê amor.


Fiquei calada, meio que sem saber o que dizer, mas

nem precisava falar nada, a mensagem de Marta fora a


mais importante. Noah realmente precisava de amor. Ele

merecia amor.

Aquela, portanto, se tornaria minha missão a partir

daquele momento. Encher a casa de amor. Havia uma


criança, um cachorro, pessoas maravilhosas e um homem

generoso ali dentro. Era impossível que não pudéssemos

transformar aquele ambiente no mais harmônico possível.

Eu queria ser feliz. E queria que as pessoas que me

cercavam também fossem. O beijo de Noah me fizera


acreditar que havia uma esperança. Também me fizera ter

toda a certeza de que aquele homem era importante para

mim, não apenas porque me salvara, mas porque eu


também poderia salvá-lo de alguma forma.

De alguma forma eu queria cuidar de Noah Smith,

assim como ele cuidara de mim.


CAPÍTULO QUATORZE

Todas as noites, depois que voltávamos do bosque,

de nossa caminhada, eu a ouvia tocando. A mesma


melodia, que era interrompida de momento em momento,
sendo composta, criada, moldada. Era boa. Muito boa, de

fato. Os dedos de Valentina eram ágeis quando precisava

demonstrar mais emoção, mas tornavam-se suaves


quando o tom pedia algo mais melancólico.

Muitas vezes eu fechava os olhos e me sentia

transportado para outro tempo. Outro local. Outra vida. Por


mais que eu gostasse das pessoas que me cercavam,

apreciasse minha casa e fosse feliz no meu trabalho – que


me trazia um retorno mais do que suficiente para que eu

pudesse viver confortável por muitos anos, mesmo que


parasse naquele momento –, eu sabia que havia uma

incompletude muito sombria ao meu redor. Eu me culpava

por tantas coisas e me obrigava a ver em mim um lado que


não merecia ser amado e nem amar, o que tornava minha

existência muito triste.

Mas a música de Valentina, por mais obscura que


pudesse parecer, com seus tons menores e crescendo

dramáticos, me trazia apenas paz. Talvez fosse o fato de

saber que ela estava, de fato, ali. Que era uma parte da
minha rotina; que dentro de algumas horas eu a chamaria

para sairmos e caminharmos. Eram os meus momentos


favoritos do dia.

E naquela noite eu tinha uma surpresa... Algo que

ela merecia mais do que imaginava.

Nos últimos dias, senti uma mudança em seu

comportamento. Depois do beijo – no qual eu não

conseguia parar de pensar nem por um segundo, mesmo


que tivesse acontecido há umas duas semanas –, ela
passara a se tornar a coisinha mais doce que já encontrei

no meu longo caminho pela vida. Havia cheiro de biscoitos

vindos da cozinha, latidos de cachorro misturados a

risadas, uma criança correndo em meio a brincadeiras

lúdicas. Ela contaminara a casa inteira com sua luz. Eu

sentia, dentro de mim, que era tudo proposital. Valentina


estava tentando tornar as pessoas que conviviam comigo

mais felizes. E eu seria empurrado no pacote.

Porque... sim... eu me sentia mais...

Feliz talvez não fosse a palavra, porque eu ainda

era muito relutante em relação a esses sentimentos, mas

eu me sentia mais sereno. Como se conseguisse respirar

com mais facilidade. Como se o ar que chegava aos meus


oxigênios fosse mais puro e não contaminado com toda a

maldade das memórias que estavam presas à minha

mente como se houvesse correntes firmemente fechadas

ao redor delas.
Valentina era a responsável pela harmonia. Então

eu queria retribuir de alguma forma.

Naquela noite, bati à sua porta um pouco mais cedo,

e ela me recebeu com um sorriso. Um que me deixava de

pernas bambas, mesmo que eu não fosse do tipo que se


impressionava facilmente. Não era apenas por ela ser
linda, o que era extremamente óbvio, mas sua meiguice e

gentileza pareciam quase palpáveis. E eu sentira, na única


vez em que consegui prová-la um pouco, que era real. A

garota era doce como eu jamais poderia sonhar.

Até porque... nem mesmo em meus sonhos mais


aleatórios eu poderia me imaginar beijando alguém
novamente. Fazia anos que isso não acontecia. Eu estava

quase virando um eunuco.

Partimos para nossa caminhada diária e, por algum


motivo, de uma forma quase automática, estendi a mão,

tomando a dela na minha. Isso pareceu deixá-la surpresa,


ao ponto de erguer os olhos para mim, mas eu decidi nada
responder, apenas entrelacei nossos dedos, esperando

que correspondesse, o que aconteceu.

Eu não poderia ter a esperança de que uma garota


como ela, tão mais jovem, tão inocente, pudesse se

apaixonar por um homem como eu. Seria uma sorte que eu


não contava que teria. Ainda assim, eu poderia alimentar
aquela ilusão por alguns instantes.

Caminhamos em silêncio, como acontecera tantas

vezes antes, e passamos pelo ponto onde a encontrei


naquela vez, parecendo tão pálida, desmaiada e febril. Era

a primeira vez que eu seguia esse caminho, pois sempre


desviava, mas cheguei a estremecer ante a lembrança.

— O que foi? — ela perguntou, sempre atenciosa e


com aquela voz que me parecia cada vez mais angelical.

Eu poderia fingir ou inventar qualquer outra coisa,


mas queria que Valentina entendesse o quanto era

especial para mim.


— Não consigo me esquecer do pavor que senti
quando te encontrei doente, aqui no bosque, sozinha. Por
que veio? Por que não me esperou?

Valentina abaixou a cabeça, sem responder de

imediato, e eu a virei para mim, ainda com nossas mãos


unidas.

— Eu estava confusa...

— Em relação a quê?

Ela ergueu os olhos para mim outra vez, mas ao


invés de confusão, eu vi uma profundidade e uma
vulnerabilidade que poderiam me desmontar sem nenhuma

dificuldade.

— Em relação a você...

Franzi o cenho. Naquele momento, quem ficou


confuso fui eu.

Valentina soltou minha mão e se afastou um pouco,

caminhando em círculos, inquieta. Deixei que tomasse seu


tempo, até que soltou a bomba:

— Porque eu acho que estou me apaixonando por


você.

Cheguei a dar um passo para trás de tão forte que


foi o choque.

Tinha acabado de pensar exatamente o contrário;


que aquela menina linda, jovem, doce e tão angelical

nunca poderia se interessar por um homem como eu. Mas

lá estava ela me afirmando o contrário. Era mais fácil


imaginar que estava se equivocando, que tinha a ver com o

fato de eu tê-la salvado quando precisou de ajuda, de que

seus pensamentos estavam um pouco bagunçados,

principalmente porque vivia naquela casa vinte e quatro


horas por dia, sem contato com outras pessoas... No

entanto... seus olhos... Deus, aqueles olhos estavam me

observando como se eu fosse o dono do mundo.

E por um instante eu realmente me senti assim.


— Sei que você não pensa em mim da mesma

forma, mas... — ela começou a falar, entrelaçando uma


mão na outra, demonstrando nervosismo, então eu peguei

as duas nas minhas novamente, em um rompante, quase

em desespero, porque não podia permitir que pensasse


daquela maneira.

— Não! Pare com isso. Acabei de falar que fiquei

apavorado quando te encontrei aqui, desmaiada. Mal sabia

o que fazer... Acha que isso não conta como uma


demonstração de importância para mim? — Por que era

tão difícil para mim repetir as palavras que ela dissera?

Talvez eu ainda não conseguisse admitir a mim mesmo o

que sentia.

— E você foi um cavalheiro... precisou me carregar


até em casa — falou em um tom de brincadeira. — Sua

coluna deve me odiar e...

Eu não era um homem de rompantes românticos,

mas ela parecia tão linda brincando daquele jeito e


tentando parecer mais à vontade comigo que
simplesmente a tirei do chão, agarrando-a pela cintura e

levando-a até a árvore mais próxima, imprensando-a nela e

deixando-a próxima demais.

— Nada em mim te odeia, Valentina. Nada nunca


poderia te odiar — respondi em um sussurro que a fez

suspirar. Era isso que eu queria. Queria arrepios, gemidos,

qualquer som ou reação que demonstrasse que eu era

capaz de lhe dar prazer, de deixá-la tão fascinada quanto


eu mesmo estava por ela.

Valentina não respondeu absolutamente nada, mas

seus olhos desceram até a minha boca, e eu soube que

queria ser beijada. Ao menos foi o que compreendi, o que


quis compreender. Esperava não estar enganado.

Ainda mais ousado, aproveitando que estava

suspensa, segurei-a pelas coxas e entrelacei suas pernas

em minha cintura, o que a fez ofegar. Então mergulhei em

seus lábios, como se eles fossem a única salvação para a


minha alma.
Naquele momento, talvez eles fossem, de fato.

Valentina correspondeu ao beijo quase que

imediatamente, e eu estava plenamente consciente


daquela vez. Não era um impulso, uma reação automática

do meu corpo, como acontecera antes.

Eu não me arrependia, talvez apenas do fato de não

ter aproveitado desde o início, porque estava tão fora de


mim. Aparentemente ainda estava, na verdade, porque não

era certo. Por mais que eu quisesse, ela também, pelo que

demonstrava, nós deveríamos desistir daquela loucura.

Mas já tínhamos chegado longe demais para voltar.

Eu queria que minha boca pudesse passear por

todo aquele corpo macio e delicado que tinha nos braços,

mas iria me contentar em fazer com que nossas línguas

dançassem suavemente, explorando-a e possuindo-a


como se o mundo inteiro pudesse nos esperar. Ela passou

os braços ao redor dos meus ombros, encaixando-se ainda

mais perfeitamente em mim, e eu pude me fartar ainda


mais, desejando me perder em sua suavidade, na magia
que ela exalava para mim. Como uma fada. Um ser mítico

que surgira da forma mais surpreendente possível,

bagunçando e arrumando tudo.

Quando a coloquei no chão, ainda não consegui

afastar-me de seus lábios e continuei beijando-a por mais


um tempo, com ambas as mãos em seu rosto, até que o

beijo foi evanescendo como uma tempestade que se

transforma em calmaria.

Olhei para ela e a vi demorar a abrir os olhos,


respirando fundo, parecendo inebriada.

Quando finalmente olhou para mim, fiz o meu

melhor para abrir um sorriso e disse:

— Eu tenho uma surpresa para você. Podemos

voltar para casa?

Valentina assentiu, e eu tomei sua mão novamente,

esperando que ela realmente ficasse feliz com o que eu

tinha a lhe mostrar.


CAPÍTULO QUINZE

Eu tenho uma surpresa para você

Noah, definitivamente, não parecia o tipo de homem


dado a surpresas. Mas também ele não parecia do tipo que
beijava desesperadamente, sob o luar em meio a um

bosque quase romântico. Havia muitas nuances dele que

eu, aparentemente, ainda desconhecia.

Fui seguindo-o apressada, quase correndo para

acompanhar suas pernas longas, subindo as escadas e

parando diante do meu quarto. A porta estava fechada, e


Noah me olhou, em sua versão mais animada que eu
poderia testemunhar. Era um quase sorriso o que curvava

seus lábios, e ele nunca me parecera tão bonito.

— Feche os olhos — falou baixinho, naquele tom

sensual que me fazia derreter.

Obedeci, ainda intrigada, e ouvi o ranger da porta


sendo aberta. Minhas mãos foram pegas pelas dele, que

me guiou em cada passo, e eu fui deixada em um ponto do

quarto. Ouvi alguns sons de Noah caminhando, abrindo

cortinas e remexendo em coisas, até que me disse:

— Pode abrir.

No momento em que o fiz, deparei-me com um lindo

piano de cauda no lugar do teclado que fora deixado lá

para mim desde o primeiro dia. Este ainda se encontrava

no quarto, em outro espaço, provavelmente para o caso de

eu precisar, mas o outro instrumento, maior e mais

imponente, destacava-se lindamente, como se tivesse


brotado do chão.
— Meu Deus... Noah... — Levei as mãos à boca,
cobrindo meu espanto.

— Você trouxe música para a minha casa, Valentina.

Nada mais justo do que ter um piano só seu, para poder

compor. — Eu ainda estava chocada demais para dizer

qualquer coisa, então Noah pigarreou, com aquele seu

jeitão sisudo, provavelmente para tirar a importância do

momento. Como se fosse possível... — Sua música é


linda... como se chama?

— Dark Butterfly — respondi, quase sem fôlego,

ainda olhando o piano como uma boba.

— Você poderia tocá-la para mim?

Eu deveria fazer mil perguntas. Uma delas,

principalmente, era o que significava aquele piano. Claro

que seria uma bobagem, porque ele estava no meu quarto,

destacando-se como uma estátua de luxo, mas eu não


queria acreditar que se tratava de um presente. Era algo

muito caro para que um homem comprasse para uma


garota que entrara em sua vida há tão pouco tempo.

Mesmo que fosse um homem rico como um rei.

Fosse como fosse, eu não poderia ignorar seu

pedido, tanto que me sentei no banco, abrindo a tampa e

deslizando meus dedos pelas teclas com cuidado, sentindo


a textura, com as pontas dos dedos.

Iniciei a melodia que já conhecia, que tinha repetido


e repetido tantas vezes, e que ainda não estava terminada.

Eu era uma perfeccionista e queria que minha primeira


composição fosse o mais próximo da perfeição possível.

Deixei que a melodia me conquistasse aos poucos,

como sempre acontecia. Eu amava música. Era parte de


quem eu era; minha maior ligação com a minha mãe, e,
sim, tinha sonhos de um dia tocar com uma orquestra, ter

minhas composições em um filme ou até mesmo tocar com


alguém importante. Eram ilusões muito grandes para uma

garota como eu, filha de um padeiro. Mas sempre me


permiti voar alto, mesmo que houvesse a chance de uma
grande queda no final das contas.
Enquanto me perdia em minha própria composição,

senti as mãos grandes de Noah nos meus ombros,


massageando-os suavemente, como se não quisesse me

atrapalhar. Então afastou meu cabelo, deixando meu


pescoço livre, e sua boca começou a deixar beijos cálidos

por minha pele, causando-me arrepios.

A sensação era tão intensa que meus dedos se

perderam um pouco nas notas, errando-as, causando um


som bastante dissonante e nada harmônico.

— Não vou conseguir me concentrar com você me

tocando assim — nem sei como consegui proferir essas


palavras, porque a mão firme de Noah já estava

passeando pelo meu corpo, enquanto sua boca prosseguia


na suave tortura, chegando ao meu ombro.

— Nem comecei, Valentina. Vou até onde me


permitir, mas posso fazer muito mais.

Se não era a coisa mais sexy, na voz mais rouca e


sedutora que alguém já tinha dito na vida, eu não
conseguiria nem imaginar o que poderia ser.

Não sabia se Noah tinha alguma noção do quão

inexperiente eu era, mas continuou me beijando,


acariciando e estimulando a um ponto em que não

conseguia me imaginar negando-lhe nada. Parecia


impossível dizer que queria esperar mais algum tempo

quando meu corpo inteiro, desde o primeiro beijo, gritava


que queria pertencer a ele.

Nunca guardei minha virgindade porque achava isso


um tabu ou porque pretendia esperar até um casamento.

Só queria que fosse especial. Com alguém que me


despertasse desejos que até aquele instante foram

reprimidos.

— Não vou te impedir de nada — respondi, muito


convicta e certa do que queria.

— Tem certeza? — ele perguntou, dando-me


espaço para negar ou me afastar, embora ainda estivesse
próximo demais.
— Tenho. Absoluta.

Isso foi suficiente para que Noah abaixasse as alças


do meu vestido, até o ponto de me deixar com os seios
expostos. Ele estava de costas, ainda não conseguia vê-

los, mas era a primeira vez que eu me via tão vulnerável a


um homem, tão nua.

Rodeando meu corpo, os dedos polegar e indicador

de ambas as mãos de Noah se fecharam em meus


mamilos, girando-os, apertando-os e puxando-os, enviando

uma onda de prazer inexplicável que estimulou cada célula

do meu corpo. A reação no meio das minhas pernas foi

imediata, e eu rocei uma na outra, involuntariamente,


buscando algum alívio.

Era tudo muito novo, e eu mal sabia onde aquilo ia

parar. Ou melhor... conhecia a mecânica da coisa, a teoria,

mas imaginava que na prática as coisas eram muito


diferentes.

Aparentemente muito melhores do que imaginei.


Arqueei a cabeça para trás e encostei-a no

abdômen sólido de Noah, sentindo-o se mexer com uma


respiração profunda e cadenciada. Ele não parecia ter

pressa, apenas continuava brincando com meus mamilos,

de diferentes formas, até o ponto de eu me sentir


totalmente molhada.

Em um movimento súbito, Noah girou o banco onde

eu estava sentada, ajoelhando-se à minha frente e

abocanhando um dos seios que ele estava massageando


momentos antes.

Gemi baixinho, quase ronronando, mas esse som se

tornou um pouco mais alto e desesperado quando sua mão

se enfiou por dentro da minha saia, afastando a calcinha, e

um dedo me penetrou certeiro, deslizando facilmente pela


fenda úmida. Assim como fez com os bicos dos meus

seios, ele ficou testando ritmos e movimentos, até

encontrar um ponto que me fez soltar um quase grito,


então ele se manteve ali, estocando, entrando e saindo.
Sua língua alternava de um seio para o outro, e eu

não conseguia mais suportar tantos estímulos. Era

impensável, delirante.

Senti que estava prestes a atingir um clímax – ou o


que eu imaginava que fosse um – quando Noah mais uma

vez agiu de seu jeito bruto e me pegou, colocando-me

sentada sobre o piano.

Era uma fantasia erótica completa, e se tornou mais

ainda quando se agachou, tirando minha calcinha, abrindo


minhas pernas e usando a boca para me dar mais e mais

prazer.

Ele era bom. Experiente. Intenso. Eu não tinha

chance nenhuma de resistir. E nem queria.

Peguei-me arqueando-me, como se pedisse mais,

dando mais de mim mesma a ele, que se fartou, como se

estivesse mesmo me devorando, como se mal pudesse se

conter de tanto que queria me provar com aquela boca e


língua maravilhosas.
Cheguei ao meu primeiro orgasmo, sentindo-me

mais vulnerável do que poderia me sentir, abandonando-


me sobre aquele instrumento que sempre me proporcionou

um imenso prazer, embora nunca daquele jeito.

Noah me levou para a cama, me despiu e me

deitou, ajoelhando-se sobre o colchão e começando a se


despir. Ele era uma perfeição; uma confusão de músculos

que mais pareciam uma rocha, uma estátua grega, mas

quente e palpável, com tudo o que uma mulher poderia

sonhar.

Observando-o, pensei que não poderia evitar


mencionar algo importante. Até porque, não queria

enganá-lo e muito menos que não tivesse o conhecimento

de que precisava agir com um mínimo de delicadeza.

— Noah, eu sou um pouco inexperiente — falei


baixinho. Deveria ter dito com todas as letras, mas não o

fiz. Não que fosse um motivo de vergonha para mim, mas,

mesmo estando nua sob ele, pronta para me entregar,


havia um pouco de timidez.
— Não tem problema. Posso conduzir. Espero que

tenha tido boas experiências antes, ao menos...

Por um momento dei-me conta de que não entendeu

o que quis dizer. Não compreendeu que eu era

completamente inexperiente, porque era virgem. Ele seria


o meu primeiro.

Deixei de lado essa preocupação, pois poderíamos

conversar sobre isso depois e apenas assenti, bem

devagar, sentindo Noah sendo delicado ao máximo,


começando a me penetrar aos poucos, abrindo-me,

alargando-me, tomando seu espaço. Ele foi se

acomodando lentamente, e eu fui aproveitando cada uma


das sensações até que a dor veio. Foi menos intensa do

que imaginei, talvez porque tivesse sido muito bem

estimulada, então consegui disfarçá-la ao máximo.

Mesmo sem saber que eu era virgem, tomou

cuidado, mostrando-me que toda a sua brutalidade era


apenas fachada; que aquele seu jeito amoroso, que

escondia firmemente atrás da armadura, era sua real face.


E eu estava realmente apaixonada por cada uma de

suas nuances.

Sua boca desceu sobre a minha, e Noah me fez


suportar a dor com seu beijo, ao ponto de ele não perceber

o que estava acontecendo, até que suas investidas

começaram a se encaixar melhor e melhor, e nós


encontramos um ritmo.

As estocadas se intensificaram, conforme fui

demonstrando que estava gostando, e ele grunhiu quando

soltei um gemido, demonstrando que me proporcionava

prazer.

A delicadeza tornou-se mais crua. Eu o sentia


completo dentro de mim, tornando-me sua. Possuindo-me.

Cada centímetro, cada resquício.

Então nós dois nos tornamos um só através de um


orgasmo que me fez compreender que Noah era a minha

escolha, e eu não poderia ter feito uma melhor.


CAPÍTULO DEZESSEIS

Noah estava completamente adormecido quando eu

acordei. Era estranho pensar que um homem que causava


tanto medo nas pessoas que não o conheciam e que tinha
uma aparência tão bruta, quase selvagem, podia se

colocar em um estado tão vulnerável, ao alcance do meu

toque.

As feições másculas pareciam um pouco mais

relaxadas, e o lençol não cobria seu corpo inteiro,

possibilitando-me observar melhor o peitoral largo, no qual


eu queria muito me aconchegar e continuar dormindo,

porque mal tinha amanhecido.


Eu não estava mais com sono, porque pensamentos

acelerados criaram morada dentro da minha cabeça,


causando uma inquietação perturbadora.

Eu tinha entregado minha virgindade na noite

anterior. Isso não me causava nenhum arrependimento,


porque eu estava apaixonada e porque o homem que a

recebeu me fez sentir como talvez nenhum outro fosse

capaz. Ele fora terno, delicado e me tratara com tanto


carinho que eu realmente me senti amada, mesmo que o

que existisse entre nós não fosse amor. Ou ainda não

fosse.

Só que... se eu estava disposta a mergulhar na vida

de Noah e me tornar alguém importante para ele, como ele


era para mim, precisava conhecê-lo.

Claro que eu sabia o que realmente tinha relevância.

Sabia que apesar da fama, apesar da forma bruta que

queria demonstrar aos outros, ele tinha um coração que

mal cabia em seu corpo imenso. Era um pai para uma

garotinha que eu mal sabia se tinha ligação de sangue com


ele. Salvara pessoas de situações complicadas – inclusive
eu – e adotara um cachorrinho perdido para presentear

uma criança solitária.

Eu poderia conviver com isso. Poderia aceitar um

relacionamento com um homem – se fosse o caso – que

tinha seus demônios e seus segredos. Só que aquilo

sempre seria uma barreira entre nós. Ao menos para mim.

Sempre seria um motivo de dúvidas.

Levantando-me da cama, lembrei-me do que me

dissera no primeiro dia em que conversamos sobre as

regras da casa: não ir ao sótão. Algo me dizia que seria lá

que eu encontraria as respostas que estava procurando.

Seria errado, porque eu fui proibida. Seria desleal.

Mas naquele momento não pensei em nada disso. Eu


queria saber mais sobre Noah; e minhas intenções eram

nobres. Talvez só conseguisse ajudá-lo a voltar

completamente à vida, a ser... quem sabe... feliz, se tivesse

as informações necessárias para tentar mudar as coisas.


Peguei minhas roupas que estavam espalhadas

pelo chão e as vesti com cautela, temendo acordá-lo.


Peguei também meu celular e saí, fechando a porta de

mansinho. Aproveitei o silêncio da casa e me embrenhei


pelo corredor, caminhando descalça a passos lentos,
subindo para o último andar, na escada caracol, estreita e

escura, que fui iluminando com a parca luz da lanterna do


celular.

Subi degrau por degrau, quase desistindo em cada

um deles. Teria feito isso se não estivesse tomada por um


impulso. Era como ter um diabinho e um anjinho sobre um

ombro, falando sem parar, deixando-me confusa. Por fim, o


mal ganhou.

Cheguei ao ambiente e busquei um interruptor na


parede, acendendo uma luz. Tratava-se de um lugar muito

menos bem-cuidado do que o resto da casa, o que me


fazia acreditar que ninguém entrava lá, apenas Noah. Não

havia porta para ser trancada, mas todos o obedeciam sem


pestanejar, e ele confiava nas pessoas. Provavelmente
aquela era a maior prova de que eu estava agindo como a

pior pessoa do mundo, traindo-o.

Eu o perdoaria se estivesse em seu lugar? Não


saberia dizer.

Ainda assim, novamente, nada disso passou pela

minha cabeça naquele instante. Era como se eu estivesse


hipnotizada, entrando naquele ambiente sagrado para
Noah, invadindo seus segredos.

Parecia um ambiente comum, velho, daquele tipo

que usamos para guardar nossos pertences que não


usaremos mais, embora não houvesse tanta coisa. O que

mais me chamou a atenção foi um armário pequeno,


antigo, de madeira de boa qualidade, para o qual eu segui,
abrindo-o e pegando tudo o que havia dentro e me

acomodando no chão para verificar.

Havia pastas com nomes de pessoas. A maioria

delas, funcionários de Noah. Eu estava incluída.


Comecei a achar estranho, até mesmo assustador,
mas o que encontrei lá eram dossiês das situações
perigosas das quais Noah nos livrou. Havia também cópias

de nossos documentos e os contratos de trabalho, os


termos de confidencialidade que assinamos, algumas

outras informações, mas nada muito comprometedor. Noah


não era um stalker lunático, como poderia parecer. Era
apenas um patrão cuidadoso.

Havia outra pasta, um pouco mais robusta, com o

nome de Fernando Garcia. Peguei-a e comecei a folheá-la,


encontrando uma minuciosa investigação a respeito do

homem, de sua grande e imponente padaria, como se


Noah estivesse, há muito tempo, buscando evidências para
incriminá-lo de algo.

Era fácil ver que Noah tinha sentimentos negativos

por Garcia, pela forma como o mencionava e como sua


expressão se tornava inteiramente violenta, como se

tivesse vontade de matar o filho da mãe com suas próprias


mãos. Não poderia culpá-lo, de forma alguma. Fosse como
fosse, havia uma história entre os dois. Algo que gerara
não apenas farpas e uma inimizade, mas um ódio ferrenho.

Continuei folheando a pasta e encontrei uma sessão


sobre uma mulher chamada Anna de Castro. Havia fotos

dela, e eu quase perdi o ar com o quanto era bonita. Uma


garota ainda mais nova do que eu, com dezenove anos,

cabelos castanhos, longos e ondulados, um rosto delicado

e um sorriso largo. Tinha uma semelhança imensa com


Alyssa, algo que não me passou despercebido.

A pasta terminou nela, sem mais nenhuma

informação, mas havia mais algumas coisas dentro do

armário. Cadernos no estilo diário, que eu peguei e folheei


sem prestar muita atenção ao que estava escrito, mas

verificando que se tratava de uma caligrafia feminina, muito

elegante. Nas primeiras páginas lia-se: Diário de Anna de


Castro – e a data específica de cada um.

Seria muito invasivo ler as memórias de outra

pessoa, mas fui me perdendo nas palavras da moça,

pulando coisas mais cotidianas, saindo em busca de algo


que eu sabia que iria encontrar. Se os diários daquela

moça estavam ali, junto das coisas secretas de Noah;


coisas que ele não queria que ninguém encontrasse, havia

algo a ser descoberto.

Não demorou muito – ou eu pensei que não – até

que eu chegasse a algo que foi evoluindo para o que eu


considerei uma pequena tragédia. Anna reclamava

constantemente do assédio sofrido por Fernando, mais ou

menos da mesma forma como ele fazia comigo. Ele não a


deixava em paz, abordando-a nos momentos mais

inoportunos. Aparentemente Anna vivia apenas com uma

tia, não tinha quem a defendesse, e por isso aconteceu o

inevitável.

Ela foi estuprada.

O dia em que contou tal coisa, pude sentir em sua


letra o quanto estava nervosa, o quanto seus sentimentos

estavam em frangalhos. Minha compaixão por aquela

moça só aumentara.
Continuei passando os olhos pelos cadernos,

compreendendo o que acontecera depois: ela engravidara,

e Noah se casou com ela.

Alyssa era filha de Fernando Garcia.

Meu Deus! Noah criava a filha do homem que mais


odiava no mundo. E por mais que não quisesse demonstrar

seu carinho por ela, a criança estava bem-tratada,

saudável e tinha tudo o que uma menininha de sua idade

poderia sonhar, apesar de sua solidão. Apesar do fato de


não estudar em uma escola normal, de não sair da mansão

– o que eu ainda não entendia.

Planejava descobrir mais coisas, mas um som me

chamou a atenção. Quando ergui os olhos, lá estava Noah,


olhando para mim, vestindo apenas uma calça jeans, sem

camisa, com aquele cenho franzido que lhe era

característico, mas que passara a suavizar desde que

começamos a nos aproximar.


Eu não poderia sequer esconder o que vinha

fazendo. Havia pastas e cadernos espalhados pelo chão,


ao meu redor, que me denunciavam. Pretendia guardá-los

antes de sair do sótão, mantendo-os em seus devidos

lugares, mas era tarde demais.

— O que diabos você está fazendo aqui? — ele


vociferou em um tom animalesco que em nada se parecia

com a voz suave e sensual com que falou comigo

momentos antes.

— Eu... — O que eu poderia dizer? Tinha sido pega

no flagra, não havia nenhuma chance de mentir ou tentar


me livrar daquela situação. Noah estava furioso, e com

razão.

Levantei-me com pressa, quase me

desequilibrando, mas o que me restava era pedir


desculpas.

— Noah, me perdoa, eu só queria saber mais sobre

você... só queria te entender.


— Deveria ter aceitado o que eu queria te contar.

Um dia saberia de toda a verdade, mas por mim!

— Eu sei... mas entenda. Estou apaixonada por um

homem que mal sei direito quem é.

— Se estivesse mesmo apaixonada teria acatado a

minha ordem! — ele cuspiu as palavras, lançando-as como


se fossem punhais.

Levei a mão ao peito, chocada. Ele não podia

duvidar dos meus sentimentos. Não depois do que havia

acontecido entre nós!

Só que... sexo não provava nada, não é? E

aparentemente Noah sabia disso, porque se aproximou em

passos largos, decididos, visivelmente irado comigo.

— Você está mancomunada com Fernando, não


está? Tudo até agora foi um teatrinho para me convencer e

chegarmos até aqui! — foram suas conclusões. Minha

primeira resposta foram olhos arregalados, em total

choque.
— Não! É claro que não! Eu...

— Você é uma víbora como ele! — Noah me

interrompeu, vociferando e chegando a me assustar. —


Entrou na minha casa em meio a mentiras, me seduziu e

na primeira oportunidade deu o bote.

— Você está completamente enganado! — comecei

a ficar indignada.

— Não estou! Até este momento eu vinha me


perguntando o que uma menina como você poderia querer

com um cara como eu. Cheguei a pensar que se tratava de

dinheiro, mas agora já entendi. Entendi tudo.

Aquilo me deixou irada. Mais do que poderia


explicar.

— Eu não sou uma interesseira! Sou curiosa,

infelizmente. E se queria tanto guardar seus segredos,

deveria ter trancado a porta!


— ESTA É A MINHA CASA! — ele gritou. — Aqui
faço o que eu quiser. Sempre confiei nas pessoas, e elas

nunca me decepcionaram. Você me decepcionou. Te dei

muito mais do que apenas a minha confiança. Quase abri


meu coração e olha no que deu.

Aquelas palavras me magoaram muito mais do que

qualquer outra coisa. Ele não estava errado. Talvez

estivesse fazendo acusações injustas, chegando longe


demais em algo que eu não poderia ser culpada, mas em

todo o resto, eu realmente fui uma decepção. Desacatei o

único pedido que me fez.

— O que foi que descobriu? Encontrou o que vinha

buscar?

Sim, eu tinha encontrado... mas perdi muito mais.

Não consegui lhe responder, e Noah simplesmente

ergueu uma das mãos.

— Não importa. Não responda. Sabe que se contar

qualquer coisa que descobriu aqui, Alyssa será a


prejudicada. Se tem algum tipo de compaixão nesse
coração falso, ao menos pense na menina.

Coração falso... Eu provavelmente merecia.

— Quero que vá embora desta casa. Quero que


saia daqui imediatamente. Não posso continuar com uma

traidora debaixo do meu teto. Se encontrá-la aqui pela


manhã, será escorraçada na frente de todos. Saia com um
pouco de dignidade.

Dizendo isso, ele simplesmente deixou o sótão,

dando-me as costas e desaparecendo da minha vista.

Por um momento fiquei parada, tentando absorver o


que havia acabado de acontecer. Fui demitida, como temi

desde o princípio que aconteceria.

O que faria a partir daquele momento? Como


sobreviveria?

Eram preocupações que começavam a fazer meu


coração acelerar, que deixavam o pânico crescer e se
tornar mais latente, só que Noah não estava interessado
em nenhuma delas.

Eu sabia que a culpa era minha e que foi um erro,


uma traição. Só que ele sabia que eu não tinha para onde

ir. Que seria deixada na rua e em uma dificuldade imensa


se me abandonasse daquele jeito...

Ele também estava me traindo, de alguma forma.

Mas não poderia culpá-lo. Tudo o que me restava era sair


daquela casa e encontrar uma solução. Noah Smith ficaria
no passado; se tornaria apenas uma lembrança agridoce,

em meio a tantas outras que eu queria esquecer.


CAPÍTULO DEZESSETE

No momento em que despertei na cama, sozinho,

imediatamente soube que havia algo de errado. Até


cheguei a cogitar que se tratasse de uma paranoia,
pensando que Valentina poderia estar em qualquer lugar,

mas meu coração me guiou ao certo. Foi por pura

precaução que segui primeiramente ao sótão com a


desculpa de que precisava passar lá para ver algumas

coisas. Era mentira. Eu sabia que a encontraria lá.

Quando a vi, em meio a todas aquelas pastas e


diários, quase desmoronei. Por mais que quisesse

acreditar que era um engano, que fora apenas uma


curiosidade, minha mente me pregava peças dizendo que

ela era uma impostora, uma ratinha ordinária que estava ali
apenas para conseguir informações para Fernando e se

embrenhara até mesmo na minha cama para isso.

A imagem de inocência era apenas uma fachada.


Muito bem construída, aliás, porque ela realmente parecera

muito inexperiente na cama. Mas uma mulher bem-treinada

poderia conseguir o que queria, não é mesmo? Até iludir


um cara de trinta e oito anos que se achava vivido o

suficiente para não cair em um golpe como aquele.

Fui comprado com sexo. A gatuna me enredou em

sua teia e saiu da minha cama na calada da madrugada

para descobrir meus segredos. Não podia ser coincidência.

Saí do sótão como um vendaval, partindo para o


meu escritório e me trancando lá. Sem nem pensar, peguei

uma garrafa de uísque e quase me servi uma dose, mas

decidi que não queria sequer usar um copo. Seria melhor

tomar direto da garrafa mesmo. A ocasião pedia.


Lancei-me na minha poltrona de couro, com a
garrafa na mão, começando a pensar no quão estúpido eu

era. Como era possível que tivesse me deixado levar por

algo tão fútil como sentimentos quase adolescentes? Como

pude ter me deixado iludir, depois de todas as coisas pelas

quais passei? Não havia amor para mim. Não havia a ideia

de uma companhia, de uma pessoa para dividir minha vida,


meu futuro. E por que será que cheguei a pensar em algo

assim, sendo que já tinha decidido que precisava deixar

esse tipo de coisa de lado?

Percebi uma lágrima amarga escorrer pelo meu

rosto, sentindo-me ainda mais tolo por me permitir chorar.

Ela não merecia. Era uma traidora. Nem sequer esperou

passar algum tempo, ganhar mais ainda minha confiança.


Devia estar ansiosa para se livrar de mim. Apenas me

seduziu, conseguiu me desestabilizar e partiu para o

ataque.

Fui tomando goles e goles da bebida, que descia

forte pela minha garganta, dando-me esperança de que em

algum momento eu conseguiria fazer o nó que se formara


nela descer. Só que não estava dando certo. Era mais uma

decepção. E eu jurei que Valentina era a imagem da


inocência, que era perfeita para mim.

Não fiquei satisfeito com uma garrafa só e me

afundei em uma segunda e até iniciei uma terceira, até que


caí no sono naquela mesma posição. Tive sonhos
confusos, sombrios, e em todos eles eu a via passando

fome, sozinha, desamparada e jogada na rua, como uma


mendiga. Vendendo o corpo por dinheiro, entregando-se a

vícios, suja, com roupas rasgadas, doente.

Ao mesmo tempo, via Fernando maltratando-a,


obrigando-a a fazer o que fizera, estuprando-a como fizera
com Anna.

Havia muitos cenários na minha mente. Muitos que

eu sabia que poderiam ser apenas produtos do meu


inconsciente me traindo também. A opção mais plausível

era que Garcia fosse seu amante, e ela seria muito bem-
tratada quando chegasse com as novidades que
descobrira. Dali a alguns dias alguém bateria na minha
porta para tirar Alyssa de mim. Eu tinha certeza disso, o

que apenas me apavorava.

Acordei várias vezes sobressaltado, só para dormir


de novo e me enfiar em mais e mais pesadelos. Todos eles

eram piores do que o anterior, e eu tinha certeza de que


continuaria sonhando indefinidamente se mantivesse
minha decisão.

Não confiava mais em Valentina. Talvez não

pudesse mantê-la na minha casa, depois de ter remexido


em meus segredos sem o menor pudor. Mas também não

poderia mandá-la embora com apenas as minhas


conjecturas, sem lhe prestar algum auxílio. Precisava saber

se sua ligação com Fernando era real ou apenas um


produto da minha mente perturbada.

Eram pouco mais de oito da manhã quando me


levantei, me sentindo apenas meio sóbrio, e fui até a porta,

gritando por Marta. Pela força da minha voz, a mulher me


ouviria em qualquer canto da casa.
A mulher chegou correndo, ofegante, com a mão no
peito.

— Onde está Valentina? — perguntei sem lhe dar


qualquer chance de falar. No momento em que a

expressão de Marta mudou, eu soube. A garota tinha ido


embora. E minha governanta não estava nem um pouco

feliz com isso.

— Quem me dera eu soubesse, senhor. A menina

saiu daqui há algumas horas, sem saber para onde ir.


Levou suas coisas, chorando como uma condenada. Não

me explicou o que aconteceu, só disse que cometeu um


erro terrível.

Meu coração se apertou dentro do peito, como se

alguém o segurasse na mão e o amassasse como um


papel descartável. Imaginá-la chorando, saindo da minha
casa escorraçada era doloroso. Mas necessário, não? E

se...
Ah, merda! “E se” porra nenhuma. Eu não poderia
tê-la mandado embora sem apurar a verdade.

Cambaleando, tanto pela embriaguez quanto pelo


desnorteamento, segui até a mesa e peguei o telefone,

discando o número de Moreira, que eu sabia de cor. Só


que ele não me atendeu.

Eu não poderia ficar parado.

Corri para o quarto dela, onde tínhamos feito amor

na noite anterior, e onde estava o piano no qual tocou para


mim tão lindamente, e abri os armários. Não havia nada lá.

Ela realmente fora embora.

Só que meus olhos sem querer recaíram na cama, e

eu vi o lençol manchado. De sangue. O que contribuiu


ainda mais para o meu desespero.

Porra, a menina era virgem. Virgem.

Naquele mesmo estado, sentindo-me ainda mais

merda do que anteriormente, preocupando-me apenas em


ir ao meu quarto para vestir uma camisa, fui caminhando

pela casa, com Marta nos meus calcanhares, falando tanto


que, com todo o respeito, mais parecia uma galinha

cacarejando. Nem me dei ao trabalho de prestar atenção,

porque se tratava de um sermão. Por mais que merecesse,


não estava no clima. Deixaria para depois. Se conseguisse

trazer Valentina de volta e em segurança para casa, para

que pudéssemos conversar, Marta poderia falar o que

quisesse para mim, porque eu estaria mais aliviado.

Parti para a garagem da casa, pegando o carro que

não usava há muito tempo. Ele era ligado e lavado

constantemente, ficando ali só para emergências, e eu não

dirigia há anos. A última vez foi quando precisei levar Anna


ao hospital. Tinha péssimas lembranças, e sabia que

outras ruins seriam construídas naquele momento.

O escritório de Moreira foi o meu destino. Ao chegar

lá, passei por sua secretária como um furacão e entrei em


sua sala, pronto para arrombar a porta se fosse preciso.
— ONDE ELA ESTÁ? — foi a primeira coisa que

perguntei, sem qualquer cumprimento. Meus olhos

estreitos eram consequência da dor de cabeça da ressaca,


mas também do meu desespero.

— Meu Deus, Noah! O que aconteceu? — ele

perguntou, olhando para mim. Eu deveria estar em um

estado bem caótico.

— Valentina! Eu a mandei embora, ela

provavelmente veio te pedir ajuda. Onde está? Para onde


foi? — falei correndo, como se cada palavra estivesse

apostando corrida uma com a outra.

— Você a mandou embora? — ele exclamou,

apavorado. — Por quê?

— Porque ela foi ao sótão. Me desobedeceu. —

Aproximei-me, espalmando as mãos na mesa de Moreira,

inclinando-me e olhando-o nos olhos. — Diga-me uma

coisa... mas me diga a verdade, em nome da amizade de


anos que temos: ela pode estar ligada a Fernando? Pode
ter vindo à minha casa a mando dele para descobrir meus

segredos?

Pela forma como Moreira reagiu, logo vi que minha


constatação era completamente absurda. Depois da

bebedeira e dos sonhos, também consegui entender isso,

mas era cabeça dura demais para assumir.

— Com Fernando? Pelo amor de Deus, Noah! De


onde você tirou um absurdo desses? A menina quase foi

estuprada por ele. Eu te contei isso. Pensei que, de todas

as pessoas, você fosse compreender melhor.

Sim, de todas as pessoas, eu deveria ser o mais


empático com aquilo. Eu sabia como Fernando era. E por

mais que não fosse garantia de nada, tinha conhecido

Valentina. Não profundamente, porque não tivemos tempo

para isso, mas via em seu olhar o quanto era sincera,


dedicada, amorosa e o quanto se empenhara para levar

algo de bom para aquela casa que era tão soturna. Em sua

estadia de alguns meses, conseguiu me fazer sorrir e


levara alegria para Alyssa, que era uma menina que

merecia tanto amor.

Claro que poderia ser uma artimanha de alguém

muito bem-treinado. Alguém pronto para me trair, mas

obviamente não era o caso.

— Não sei onde ela está, Noah — disse Moreira. —


Não veio me procurar. Faz muitas horas que saiu?

Lancei-me na cadeira, dando-me por vencido.

— Foi de madrugada. Eu a peguei no meu sótão,

remexendo minhas coisas. Sem dúvidas descobriu sobre


Alyssa.

— E você achou que ela queria fazer o quê com a

informação? Talvez estivesse só curiosa. Marta me disse

que vocês andaram se aproximando nos últimos tempos...


— a insinuação na voz de Moreira era clara. Isso me

provocou um pensamento revoltante: eu tinha tirado a

virgindade dela, sem nem saber, e a expulsei da minha

casa horas depois.


Eu a violei e a abandonei, sem lhe dar chances de

se explicar.

Que tipo de homem eu era?

Ainda com os pensamentos girando na minha


cabeça, levantei-me e comecei a sair da sala e do

escritório de Moreira, ouvindo-o falar como acontecera com

Marta, sem compreender exatamente o que dizia.

Estava vagando como um zumbi até o meu carro,


sem nem perceber que era a primeira vez que eu

caminhava pela rua como uma pessoa comum, a céu

aberto, depois de anos recluso. Era essa a importância de

Valentina para mim. O que eu era capaz de fazer por ela.

Mas também fui capaz de mandá-la embora sem

nenhuma piedade.

Estava pensando nisso quando uma voz familiar me

interrompeu:

— Noah Smith? Quem diria...


Lá estava Fernando Garcia. O homem que eu mais
odiava no mundo, bem à minha frente.
CAPÍTULO DEZOITO

Dizem que merdas nunca vêm sozinhas; que

sempre quando algo parece ruim ainda pode piorar. Já


tinha sentido isso na pele mais de uma vez, mas, daquela,
o destino caprichara.

Um milhão de coisas se passava pela minha

cabeça, enquanto eu imaginava Valentina sozinha,


desamparada e se sentindo péssima por ser abandonada

pelo mesmo homem que tirara sua virgindade. Sempre me

julguei tão honrado, apesar da culpa que me corroía e da


imagem que fizeram de mim, mas quem era o canalha
agora? Como poderia me livrar daquele fantasma se não

achasse uma forma de encontrá-la?

Só que mal tive tempo de processar a ideia de

começar a procurá-la, quando tive que olhar na cara

daquele filho da puta.

Eu sabia que o prudente seria sair dali, entrar no

meu carro e voltar para casa. Contratar um detetive,

começar a pesquisar locais para onde poderia ter ido ou ao

menos colocar minha cabeça no lugar. Também havia


Alyssa. Eu não poderia deixar a responsabilidade de contar

sobre a partida de Valentina nos ombros de Marta;

precisava assumir a culpa, mesmo que a fizesse me odiar.

Eram muitas coisas a fazer, mas não conseguia

ignorar o quanto de vontade eu tinha de ver aquele sujeito


e extravasar todos os meus sentimentos ruins em uma

única cara de merda.

— Acho que é um momento histórico, não? A Fera

da cidade passeando por aí, à luz do dia. Até achei que


você só podia sair à noite, tipo um vampiro — falou com
desdém, e eu me controlei para não voar em cima dele.

Fechei os punhos em garra, pronto para lhe dar um soco,

mas fincando meus pés no lugar, esperando não ser

necessário.

— Saia da minha frente, Fernando. Não estou de

bom humor hoje.

Ele ergueu uma sobrancelha, ainda provocador.

— Ah, não? Eu até posso imaginar o motivo. A

princesinha fugiu, não foi? Um dos meus homens a viu, de

madrugada, partindo para a rodoviária, de mala e cuia.

Eu sabia que Fernando tinha olhos em todos os

lugares. Seus capangas, que Aurora dos Lagos nem

imaginava que lhe prestavam serviços, enquanto mantinha

um negócio respeitável aos olhos do povo, eram como

corvos, observando a tudo e a todos, coletando


informações que poderiam ser úteis um dia.
Não consegui deixar de pensar que algum deles

poderia ter interceptado Valentina e a pegado


desprevenida. E se ela estivesse com Fernando? Não por

vontade própria, mas sendo levada à força?

Voei para cima dele, agarrando a gola de sua


camisa e empurrando-o contra o muro de concreto que
havia próximo a nós. Ele fez uma careta, que me deu uma

imensa satisfação pessoal, mas ainda não era o suficiente.

— O que fez com ela? — rosnei, atordoado. Não


estava pensando, não conseguia encontrar equilíbrio. Se

ele tivesse tocado em Valentina, iria quebrá-lo inteiro com


meus próprios punhos.

Mas eu tinha tocado nela, não tinha? E


provavelmente deixei seu coração partido. Também

merecia umas porradas muito bem-dadas. Talvez fosse


isso que eu estava procurando, uma boa briga para me

punir.
Fernando abriu um sorriso malicioso que fez minhas

entranhas se revirarem.

— Acha mesmo que eu vou te responder essa


pergunta? Há tempos eu espero por uma oportunidade

para te foder como você tentou fazer comigo. A garota vai


ficar melhor onde está, só posso responder isso. Se está
ao meu alcance ou não, vai ter que ficar na dúvida.

Merda! Porra! Eu sabia que podia ser só uma

provocação, que era provável que mal soubesse para onde


Valentina tinha ido, mas e se não fosse um blefe? Aquele

filho da puta nunca me diria, e eu iria agonizar na


incerteza.

Estava tão transtornado que meu punho voou em


sua cara sem que eu nem me desse conta do que fazia. E

aconteceu uma segunda vez, com mais ímpeto ainda, o


que jogou Fernando no chão.

Minha vontade era partir para cima e descontar toda


a minha frustração naquele pedaço de bosta, que eu sabia
que não valia nem metade do que comia, mas no momento
em que me preparei para me aproximar, ele começou a
alterar o tom de voz:

— Socorro! Estou sendo atacado pela Fera. É Noah

Smith! É Noah!

Comecei a olhar de um lado para o outro e vi as


pessoas nos observando. Uns começavam a fugir, mas
outros vinham em nossa direção, não parecendo nem um

pouco amigáveis. Um homem segurava um pedaço de


madeira, uma mulher trazia uma panela que parecia cheia

de algum líquido fumegante, além de outros, que poderiam


facilmente criar um caos. Uma cidade unida para defender

um de seus mais honorários habitantes – aos olhos deles,


é claro – poderia ser perigosa.

Na situação em que eu me encontrava, poderia


aceitar tudo aquilo, não apenas para me punir, mas porque

eu poderia me defender, caso fosse necessário, só que


não estava no meu melhor humor para lidar com pessoas.
Como um covarde, abaixei a cabeça e saí correndo
o mais rápido que pude, entrando no meu carro e partindo.
Senti algumas coisas atingindo a lataria, mas nem dei

atenção. Só vi que se tratavam de frutas, que mancharam


as portas e o bagageiro de várias cores. Uma até chegou a

amassar, mas não era importante.

Aquele dia estava sendo um inferno, e eu sabia que

ainda não tinha terminado.

Demorei para saltar, encostando a cabeça no

volante, pensando em Valentina e no que tinha feito. A

mancha no lençol ainda parecia vívida na minha memória e

a vergonha de ter tratado uma moça inocente como fiz.


Nunca, em meus trinta e oito anos, imaginei que poderia

ser tão cruel com alguém; e olha que isso queria dizer

alguma coisa, porque eu não era o mais simpático ou gentil


dos homens. Empenhava-me em salvar um cãozinho

abandonado, mas expulsei de casa uma moça sem lhe dar

qualquer tipo de ajuda, depois de ter tirado sua virgindade.


Saltei do carro como um moribundo, e a primeira

coisa que vi quando entrei em casa foi a bolinha de pelo


vindo em minha direção, completamente alheio ao que

acontecia, e sua dona me olhando como se eu fosse a pior

espécie de ser humano possível.

Provavelmente eu era.

— Você a mandou embora! — Alyssa gritou. Parecia


muito mais velha do que seus dez anos indicavam, o que

provavelmente era um sinal de que eu não a estava

observando como deveria.

— Como sabe? — era uma pergunta estúpida e


totalmente sem noção, porque não era o mais importante,

mas queria saber.

— Ela foi embora e uma vez disse a mim que nunca

iria, a não ser que você mandasse. Por que demitiu a


Valentina, Noah? Ela é minha amiga! — Alyssa estava

chorando, e isso partiu meu coração. Como era possível

que eu fosse capaz de magoar duas pessoas a quem eu


estimava tanto num mesmo dia? Duas garotas inocentes a

quem eu estava manchando com minha escuridão.

— Porque eu sou um monstro, Alyssa. Você já

deveria saber disso.

Era a pior resposta que eu poderia dar a uma


criança, mas foi mais uma atitude de impulso. Outros dos

meus funcionários chegaram, colocando-se ao redor de

Alyssa, todos olhando para mim como se eu realmente

fosse um demônio. A menina, que era como uma filha para


mim, arregalou os olhos, assustada, e eu não conseguia

mais testemunhar nada daquilo. Estava cansado daquele

dia, cansado daquela vida. Precisava pensar em uma


forma de encontrar Valentina. Precisava convencê-la a

conversar comigo, para que pudéssemos explicar nossas

atitudes.

Tudo ficaria bem.

Ao menos era nisso que eu pensava quando me


enfiei novamente no meu escritório, fugindo de todas as
pessoas que me julgavam, embora o meu pior carrasco

fosse eu mesmo.

Pegando mais uma garrafa de uísque, decidi me dar


aquele dia para me afundar em compaixão por mim

mesmo, mas que no dia seguinte eu começaria a buscar

Valentina, nem que precisasse rodar o mundo inteiro atrás


dela.

Tudo ficaria bem...

Tudo ficaria bem.


CAPÍTULO DEZENOVE

Ainda era doloroso. Quase três meses tinham se

passado, desde que saí da casa de Noah, escorraçada


como uma ladra, e os sonhos não me abandonavam. Tanto
os ruins quanto os bons. Porque mesmo os bons ainda me

confundiam o suficiente para que eu me sentisse

extremamente tentada a voltar à casa dele e pedir perdão


de joelhos, apesar de não merecer.

Foi isso que tentei manter em mente o tempo todo:

Noah podia ser um homem maravilhoso em vários


sentidos, mas isso não mudava o fato de que ele me

magoara e que fora cruel comigo.


Naquela noite, eu saí de sua casa no escuro, em

meio à noite, chorando e me sentindo a pior criatura do


mundo, vagando a pé – porque era impossível chamar um

táxi naquela cidade àquela hora –, chegando exausta à

rodoviária. Sabia que estava sendo vigiada, sabia que


eram os homens de Fernando, e morri de medo de que

ainda viessem me perturbar, mas nada aconteceu. Ainda

assim, não havia dúvidas de que repassaram a informação


para seu chefe. O que eu estava pouco me lixando que

acontecesse.

Só queria chegar em algum lugar, tentar dormir um


pouco e começar a pensar no meu futuro. Por sorte, o

salário dos meses em que trabalhei para Noah estava todo


na minha conta bancária, porque mal precisei mexer nele,

e conseguiria me manter por algum tempinho, até

encontrar um emprego.

O que nem demorou muito para acontecer, graças a

Deus. Fiquei hospedada em um pequeno hotel no Rio de

Janeiro, na Lapa, que também era um barzinho. O dono

era um senhor meio boêmio, mas bastante gente boa, que


quando me ouviu tocar me contratou na hora,
especialmente porque o ganhei com uma bela melodia de

jazz.

Nosso combinado era um pagamento mensal mais o

quartinho onde eu estava ficando e a alimentação lá no bar

mesmo. Ou seja, um arranjo que me serviu perfeitamente.

Fiquei muito amiga de uma das garçonetes, a Jaqueline,

rapidamente, e, por mais que continuasse chorando quase


todas as noites, minha vida começou a entrar nos eixos.

Eu ainda sofria por Noah. Não apenas porque tinha

me apaixonado de verdade, mas porque feri sua confiança,

porque cometi um erro, e a culpa me pesava nas costas

como se houvesse uma mochila de uma tonelada, e eu

precisasse carregar por uma longa estrada.

Afogava minhas mágoas na música. Seu Geraldo,

dono do bar onde trabalhava, liberava que eu usasse seu

piano durante o dia, quando o estabelecimento estava

fechado, e eu consegui terminar minha composição, a Dark

Butterfly. Jaqueline insistiu muito para que eu fizesse um


vídeo tocando-a e o colocasse no Youtube, mas não o fiz.

Deixei apenas o registro guardado, mas me faltou coragem


de upá-lo. Um dia talvez...

O tempo foi passando devagar, e por mais que a

saudade – não só de Noah, mas de Alyssa, de Olaf e de


todos daquela casa – ainda me incomodasse, eu teria
ficado bem, a não ser por um pequeno detalhe.

Enjoos matinais, tonturas e um cansaço que mal

parecia fazer parte de mim, começaram a me preocupar.


Eram claros sinais de algo que eu não queria assumir que

poderia acontecer.

Eu tinha feito sexo uma única vez na vida.


Estávamos tão perdidos no frenesi que esquecemos
qualquer tipo de proteção, o que foi de uma imprudência

absurda. Além disso, eu sabia que estava atrasada.

Quando comentei com Jaqueline, sua reação foi

ficar completamente calada, sem olhar para mim, enquanto


se fixava em sua tarefa de passar um pano no balcão.
— Você não vai dizer nada? — perguntei, sentindo

meu estômago revirar. Não havia nenhuma dúvida do que


estava acontecendo, mas ainda tinha esperanças de que

alguém me desse outra opção.

— O que eu posso dizer, Val? Você já sabe muito


bem o que está acontecendo, não sabe? Se quiser ter cem
por cento de certeza vai ter que fazer um exame ou um

teste.

Minhas pernas quase perderam as forças naquele


momento, e eu me segurei discretamente no mesmo

balcão que ela estava limpando, tentando disfarçar o


desespero. Não era novidade. Não era algo que não

passara pela minha cabeça. Provavelmente até mesmo


Jaqueline sabia, mas não dissera nada até que eu mesma
percebesse.

— Val... — Jack colocou a mão sobre a minha, em

um gesto de carinho. — Você ter a confirmação não muda


nada. Adiar o inevitável só vai te prejudicar. Se for mesmo
um bebê, precisa começar a se cuidar, fazer ultrassom...
Sabe como funciona.

Ela estava certa. Não havia jeito. Eu precisava voltar


à realidade e parar de me iludir.

No dia seguinte, que era nossa folga, ela me

acompanhou à farmácia, para comprarmos o exame, e


voltamos para o bar, juntas. Fiquei aliviada por tê-la como
companhia, porque não conseguiria fazer nada daquilo

sozinha.

Especialmente quando o resultado deu positivo.

Fiquei alguns momentos parada, meio que sem

saber o que fazer, sentada no vaso cuja tampa estava


fechada.

Era inimaginável. Ok, não era algo impossível,

porque não tivemos responsabilidade para nos


prevenirmos; e eu nem queria pensar na situação como
falta de sorte, porque odiaria passar aquele tipo de
pensamento negativo para um bebê, mas... por que
comigo?

Por que eu precisava receber a bênção de


engravidar, de ganhar um bebezinho – que era algo que

sempre quis –, vindo de um relacionamento que nem


acontecera realmente. Sempre pensei que teria um

casamento tranquilo, um bebê nascido de um amor

estável, mas as coisas nunca aconteciam como queríamos,


certo?

Comecei a soluçar sem controle, e ouvi a porta do

banheiro abrindo, imaginando que se tratava de Jaqueline.

Saí da cabine, deparando-me com ela e me jogando em


seus braços, sendo acolhida com carinho.

Jack me deixou chorar em seu ombro, afagando

minhas costas para que eu me acalmasse, o que não era

exatamente simples. Eu ia ser mãe. Sozinha. Sem Noah.

— Você precisa falar com ele, Val. O cara precisa


saber que vai ser pai — Jaqueline afirmou, segurando
meus braços e me afastando para me olhar nos olhos.

— Como? Noah me expulsou. Acha que eu tinha

algum tipo de acordo com o cara que me odeia? Se bobear


vai achar que o filho não é dele.

— A história de vocês é completamente mexicana,

amiga. Seja como for, ele é um idiota. Você vale ouro e se

não conseguiu perceber isso, não merece esse bebezinho


também. — Jaqueline colocou a mão na minha barriga,

com tanta ternura, que eu desmontei novamente.

Ela passou os braços ao meu redor mais uma vez,

beijando o topo da minha cabeça – por ser um pouco mais


alta –, e eu fiquei ali, pensando no que seria minha vida

dali em diante.

Por ser minha folga, pude ir para o meu quarto e

ficar um pouco sozinha. Por mais que a companhia de


Jaqueline estivesse me ajudando e me dando apoio, eu

precisava organizar meus pensamentos. A ideia de contar

para Noah estava fora de cogitação, e eu sabia que era um


pouco do meu orgulho falando mais alto. Isso poderia ser

prejudicial ao meu bebê, que cresceria sem um pai, mas

ele teria a mim, e eu lhe daria tudo o que fosse possível.

Estava exatamente acariciando a barriga e fazendo


a promessa, quando meu telefone tocou ao meu lado,

sobre a cama. Quase me assustei quando vi o nome do Dr.

Moreira na tela, porque, por um momento de paranoia, temi

que tivesse descoberto alguma coisa.

Só que não fazia sentido. Em absoluto. Dr. Moreira


não era vidente, não lia mentes. Não podia ter descoberto

nada, sendo que apenas eu e Jaqueline sabíamos. Ele só

estava me ligando como fazia quase todos os meses,


preocupado.

— Ei, querida. Como você está? — Apesar de saber

que ele não poderia ter adivinhado o que estava

acontecendo comigo, ainda respirei aliviada ao perceber

que seu tom de voz estava igual a sempre, que


aparentemente era uma ligação de cortesia, como era de

praxe.
— Tudo bem, Dr. Moreira. — Fiquei por um triz de

contar a ele a verdade. De dizer que não estava tudo bem,


que eu tinha acabado de descobrir uma gravidez e que não

tinha ideia do que fazer a partir dali.

— Como vai o trabalho?

— Bem, obrigada. — Normalmente eu contava mais

coisas, mas, naquele dia, estava completamente sem


vontade.

Só o havia atendido porque o homem era sempre

muito gentil comigo, mantendo a promessa que fizera ao

meu pai de que cuidaria de mim. Também se mantivera leal


a mim, escondendo de todos onde eu estava, além de não

falar do dito cujo. Algumas vezes tentara começar, mas eu

simplesmente o cortei, pedindo que não falasse nada.

— Está precisando de alguma coisa? Posso te


ajudar em algo? — Esta era mais uma pergunta que

sempre fazia, e a minha resposta era sempre a mesma:

— Não, estou bem.


Só que na maioria das vezes eu lhe dizia a verdade.

Daquela, não passava de uma mentira. Eu precisava de

ajuda, sim. Mas não consegui revelar. Fiquei apenas

ouvindo o silêncio mais uma vez. Dr. Moreira estava


percebendo alguma coisa, mas não quis insistir.

Tanto que encerramos a chamada momentos

depois, com ele sempre se oferecendo para qualquer coisa

que eu precisasse, embora eu nunca pedisse.

Desliguei meu telefone, deixando-o de lado,


aconchegando-me um pouco mais em meu travesseiro.

Minha intenção era dormir, mas não conseguia pegar no

sono. Eram muitas coisas na minha cabeça, muitas


escolhas, muitos dilemas.

Fiquei pensando no meu bebê e no que eu poderia

dar a ele, para compensar o fato de que não haveria um

pai. Especialmente ao pensar que o homem que o gerara

era imensamente rico e poderia lhe dar um futuro muito


melhor.
Foi então que pedi um sinal a Deus. Qualquer coisa

que pudesse servir para que eu tivesse alguma esperança.

Fechei os olhos bem apertados, quase rezando.

Então o sinal veio.

Lá do salão do bar, alguém começou a tocar o


piano. Alguns clientes, às vezes, se aventuravam um

pouco no instrumento, e alguns eram bem talentosos,

como o caso daquele. Só que não me passou


despercebido o fato de que a música que começou a tocar

começava no mesmo tom da minha composição.

Depois elas seguiam caminhos diferentes, mas

aceitei o sinal do mesmo jeito.

Naquela noite, upei o tal vídeo que Jaqueline


gravara, mas colocando o take onde apenas minhas mãos

apareciam. Não usei meu nome, nomeando o canal

também como Dark Butterfly, assim como a música. Não


era minha intenção me esconder nem nada do estilo, só

queria testar.
De início jurei que não daria em nada, mas quem
sabe a vida ainda estivesse disposta a me surpreender?
CAPÍTULO VINTE

Eu não fazia ideia de que minha vida iria mudar

tanto de um dia para o outro. Ou melhor... eu tinha


esperanças de que realmente mudasse, mas para melhor.
Quando tomei uma decisão naquela noite em que

presenteei Valentina com o piano e que a beijei no bosque,

minha intenção era que começássemos algo especial.


Quando aceitou ser seduzida por mim, não tinha noção da

magnitude de sua entrega.

Eu não tinha noção de nada. Nem mesmo do quanto


sofreria com sua ausência.
Foram meses e meses passados como um borrão,

até que formaram um ano. Depois um ano e meio. Parecia


uma eternidade. Era como se eu tivesse envelhecido

décadas.

A casa voltara a ser silenciosa. Nem mesmo Alyssa


tocava. O piano novo, que comprei e que estava no quarto

de hóspedes, nunca fora usado além daquela noite em que

ouvi a linda música de Valentina, que ela tocara para mim.

Passava muito tempo trancado no meu escritório,


afundando-me em trabalho e nas minhas pesquisas para

tentar encontrar algum vestígio de Valentina em algum

lugar. Procurava em mídias sociais, em sites, em qualquer

coisa à qual tivesse acesso. Cheguei a pensar em


contratar um detetive, mas achei que seria invasivo

demais, e eu não queria que pensasse que eu era um

stalker, por mais que... bem, eu, de fato, a estivesse

perseguindo.

Queria encontrá-la nem que fosse para ter a chance

de lhe pedir perdão. Provavelmente não podia ter


esperanças de que ainda tivéssemos uma chance juntos,
mas eu precisava me redimir. De algum jeito, desejava

compensar o que lhe causei. Mostrar que nunca foi minha

intenção tratá-la como tratei, embora não pudesse mudar o

passado.

Às vezes eu ainda ia caminhar no bosque, sempre

me lembrando de quando tinha sua companhia, de como

era gostoso ouvir sua risada, de como ela sempre parecera


um ponto de luz em meio à minha escuridão. Algo que eu

deixei se esvair.

Foi depois de pouco mais de um ano e meio de sua

ausência que Alyssa começou a tocar, de forma aleatória.

Ela era muito principiante, tocava apenas com a mão

direita, mas claramente Valentina era uma boa professora,


porque já não parecia mais um som desagradável de se

ouvir.

A menina começou a tocar uma música que me era

familiar, mesmo com suas habilidades limitadas. Os tons

menores, melancólicos e sombrios me remetiam a algo,


mas eu deixei passar. Provavelmente alguma música que a

ouvi praticar durante as aulas, mas que eu jamais


conseguiria lembrar o nome.

Ainda assim, fiquei com aqueles acordes o dia

inteiro na cabeça, martelando, assombrando-me. Trabalhei


com a linha melódica flutuando ao meu redor como um
fantasma, até que me lembrei de onde conhecia a música,

quando estava prestes a desligar meu computador para


dar meu expediente encerrado – pouco depois das oito da

noite.

Era a música de Valentina. Aquela bela melodia que


ela tocara para mim antes de fazermos amor, naquele dia
em que tudo aconteceu. Naquele dia que fora sonho e

pesadelo ao mesmo tempo.

Tentei puxar pela memória o título da música,


chegando a me levantar para andar de um lado para o

outro, como se os pés se movimentando me ajudassem a


pensar com mais clareza.
Borboleta... tinha a ver com uma borboleta, não

tinha?

Merda, eu podia jurar que sim.

Mas o que mais...?

Cheguei a socar a mesa de frustração, sentindo-me


um idiota por não lembrar algo que era tão importante. Mas

minha cabeça estava um caos desde que ela fora embora


e me forçar exatamente a me lembrar dela era algo que me
machucava.

Borboleta... Butterfly...

DARK BUTTERFLY!

Quase dei um pulo quando o título voltou com força


total e corri para o computador como se tivesse encontrado

a cura para o câncer. Meus dedos pareceram frenéticos no


teclado, buscando alguma coisa. Poderia ser mais uma

tentativa frustrada, mas a minha intuição me dizia que algo


iria sair dali. Alguma coisa que talvez me levasse a outra e
que me faria enxergar o que não vi durante todos aqueles
meses.

E lá estava.

O título da música me levou direto a um vídeo no


Youtube, onde não havia nenhum rosto, apenas duas mãos

delicadas que passeavam por teclas de um piano velho e


gasto. Não estava muito bem produzido, mas a música era
extremamente boa, e o vídeo já passava de cem mil

acessos.

Entrei no canal, que tinha o mesmo nome da


música, e vi que havia muitos outros vídeos, todos eles

com um número considerável de views. Claro que não era


uma explosão ao ponto de torná-la uma pianista famosa,

mas eu podia ver que havia muitos comentários e até


mesmo um disclaimer com o endereço de uma espécie de
empresário.

Qual não foi minha surpresa quando me deparei


com o nome de Moreira como sendo a pessoa que deveria
ser contatada em caso de alguém querer contratar
Valentina?

Nem pensei duas vezes. Enfurecido, larguei tudo –


inclusive o computador ligado –, peguei minha jaqueta que

estava pendurada no encosto da cadeira, e saí como uma


tempestade porta afora, novamente pegando meu carro,

agradecendo por não passar por ninguém que pudesse

tentar me impedir.

Eu me lembrava da última vez em que saí à cidade,

que deixei que todos vissem o meu rosto. Lembrava-me

muito bem da recepção que Aurora dos Lagos me deu, e

não queria que se repetisse, não apenas porque não era


algo agradável, mas porque não estava no meu melhor

humor. Havia um foco em minha mente, e eu queria mantê-

lo.

Parti direto para a casa de Moreira, porque imaginei


que não estaria mais em seu escritório. Fui recebido por

sua esposa, que me conhecia, mas ele veio logo atrás.


Controlei o impulso de agarrá-lo pela gola da

camisa, porque, apesar de tudo, ele não merecia, mas,


mais do que isso, sua esposa não merecia testemunhar

uma cena como aquela.

— Você sabe onde ela está! — rosnei como um

animal, e eu vi Moreira fazendo um sinal para a mulher,


pedindo que os deixasse sozinhos. Ela hesitou, e ele

insistiu.

O que pensavam de mim? Que eu era selvagem a

ponto de machucar alguém ali dentro? Tudo bem que a


esposa de Moreira não me conhecia tão bem, mas a fama

que sustentava não era exatamente verdadeira. Eu poderia

estar puto como o inferno, mas não machucaria um amigo.

Especialmente porque eu imaginava que ele estava


cuidando de Valentina.

Muito melhor do que eu tinha feito.

— Não adianta mentir para mim, Moreira — falei

baixo, mas com um tom de voz cortante, no momento em


que sua senhora nos deixou sozinhos. — Achei o vídeo

dela e vi seus contatos.

— Sim. Eu sei — respondeu finalmente.

— Mentiu para mim esse tempo todo! — alterei o

tom, mas ele nem recuou.

— Não menti. Você nunca me perguntou se eu


sabia.

Cheguei a ficar um pouco confuso, tentando me

lembrar nossas últimas conversas, mas ele estava certo.

Para ser sincero, eu nunca perguntei com todas as letras, e


ele nunca confirmou ou negou.

— Mas você sabia que eu a estava procurando!

— Não importa. Fiz um juramento a ela que não

contaria nunca a ninguém. Valentina não quer falar de

você, muito menos com você. Precisa respeitar isso.

Como já era de se esperar... ela não queria falar


comigo. Não queria me ver nem pintado, obviamente. Eu
tinha feito por merecer.

— Não importa. Eu não iria perturbá-la ou obrigá-la

a nada. Iria propor que conversássemos apenas. Mandaria


flores, não sei... Só queria uma chance de lhe pedir

perdão.

Moreira respirou fundo e se jogou na poltrona,

parecendo derrotado.

— Eu sei. Eu já queria te contar há um tempo.


Fernando sabe onde ela está, e eu acho que a tem vigiado.

Ela me disse que andou se sentindo seguida, que tem

recebido umas mensagens e...

— Há quanto tempo? — indaguei, extremamente


preocupado.

— Umas semanas, talvez. Não sabemos se é ele

e...

— Porra, Moreira! Mesmo que não seja, alguém tem

que apurar essa história. Se for Fernando, e ele colocar as


mãos nela... — novamente soltei um som que era um misto

de grunhido com rosnado.

— Ela não é nada sua, Noah. Não é sua

responsabilidade.

— Não importa. É uma mulher que pode estar em

perigo. Sabe que eu faria isso, mesmo que ela não fosse
importante para mim.

A palavra importante pareceu surtir algum efeito em

Moreira. Até aquele momento eu não tinha demonstrado o

quanto Valentina tinha relevância para mim, o quanto eu


sofria com sua partida. O quando me remoía todos os dias

por ter feito o que fiz.

Sem dizer nada, ele se levantou e pegou um bloco e

uma caneta que ficavam ao lado do telefone.

Uma luz de esperança começou a nascer dentro de

mim, enchendo-me de ansiedade.


— Vou quebrar minha promessa à menina, mas por

uma boa causa. Aliás, você pode ter uma surpresa quando
encontrá-la.

Uma surpresa? O que poderia ser?

Ainda assim... não importava. Eu queria falar com

Valentina, mas esperaria o momento certo para isso. Minha

intenção, naquele momento, era saber se estava bem, se


aquele miserável não a estava importunando.

Olhei o papel que Moreira me entregou e vi que ela

estava morando no Rio de Janeiro. Aquele, então, seria o

meu destino.
CAPÍTULO VINTE E UM

Ele gostava de música. Meu pequeno príncipe abria

um sorriso todas as vezes que eu começava tocar alguma


coisa, mas, infelizmente, sua preferida era Dark Butterfly.

Eu não poderia renegar essa música, porque fora

ela que abrira muitas portas para mim naquele último um

ano e meio, desde que descobri minha gravidez e que meu


bebê nasceu. Agora era um garotinho forte, de um ano,

que só me dava alegrias, embora, um dia, eu tivesse

sentido tanto medo de sua existência que chegava a me


arrepender.
Mas sobre a música... ela me trazia lembranças

agridoces da primeira vez em que a toquei para o homem


que amava, no mesmo dia em que lhe entreguei tudo.

Desde minha virgindade até meu coração inteiro, só para

ser partido logo em seguida.

Era irônico que o filho deste mesmo homem fosse

tão apaixonado por ela.

Eram pouco mais de dez da manhã, e eu já tinha

começado a aquecer meus dedos desde um pouco mais


cedo, porque naquele dia eu tinha uma composição

encomendada para fazer. Tratava-se da trilha sonora de

um filme nacional, com um orçamento até decente, com

um elenco muito bom, e seria meu primeiro trabalho


grande. Já tinha feito composições para comerciais de TV,

para novelas de emissoras pequenas, até para uma série

infantil de um canal de streaming iniciante.

Tudo aconteceu de uma forma muito natural.

Coloquei a Dark Butterfly no Youtbe e também em alguns

aplicativos de música. Por ser uma obra instrumental, jurei


que não teria muitos acessos, mas uma pessoa me ouviu
tocá-la no bar onde eu trabalhava e me pediu se poderia

colocá-la como trilha de um de seus vídeos. Autorizei, ele

linkou os créditos, e eu não fazia ideia, mas o rapaz tinha

algum sucesso no Youtube.

Com isso, fiz outras composições para ele, que

começou a me indicar e a indicar meus vídeos em seu

canal. Quando vi, estava com algumas demandas e


precisei de ajuda para criar um CNPJ, para lidar com

contratos e etc. Não consegui pensar em ninguém além de

Moreira, pois era de confiança.

Quando ele chegou no Rio para me encontrar, viu-

me com um barrigão de oito meses de gravidez, e eu o fiz

prometer que nunca iria contar nada a Noah. Todas as


vezes que precisávamos conversar, ele tentava me

convencer a mudar de ideia, e eu começava a amolecer

cada vez mais.

Não porque quisesse vê-lo. Mas para que meu filho

pudesse conhecer o pai.


Meu pequeno Adam, meu garotinho que me salvou

quando jurei que não conseguiria mais acreditar em amor e


em nada relacionado a isso. Mas o meu coração precisou

se abrir para ele, e foi a melhor coisa que poderia ter


acontecido. Eu queria ser a melhor mãe possível para meu
menininho, criá-lo e educá-lo, transformá-lo em um homem

bom.

Troquei de música pouco depois de ele pegar no


sono, enquanto Jaqueline passava por mim, ajeitando a

bolsa no ombro.

— Amiga, não sei que horas volto hoje, ok? Peguei


uma hora extra, porque preciso comprar umas coisas e...

Revirei os olhos.

— Jack, você sabe que não precisa se matar lá no


bar. As coisas estão melhores para nós...

— Para você, amiga. Eu não sou exploradora. Você


tem um bebê. Precisa guardar dinheiro, para a educação

dele e para transformá-lo em um reizinho. — Madrinha do


meu filho, Jaqueline era apaixonada por ele. Debruçou-se

no berço, observando-o tirar seu cochilo. Adam era muito


quietinho e nunca dava trabalho, mas ela tinha razão ao

dizer que eu precisava guardar dinheiro. Ainda assim, não


era motivo para eu não poder ajudar uma amiga.

— Uma coisa não elimina a outra. Sabe que posso


te emprestar.

— Seja como for, vou ter que fazer horas extras

para te pagar. Você sabe que eu não me importo.

Não era como se Jack curtisse o que fazia. Ela tinha


sonho de estudar e trabalhar como psicóloga um dia, mas

sua vida sempre fora difícil. Queria muito poder ajudá-la


nisso. Se minhas músicas realmente dessem certo, eu
daria um jeito de convencê-la a aceitar a minha ajuda.

Despedimo-nos, e eu voltei ao meu trabalho,


aproveitando que Adam tinha dado uma trégua. Ele

realmente não era um bebê agitado, mas em algumas


ocasiões demandava minha atenção, principalmente para
brincar. Eram momentos que eu amava, os quais nunca
pretendia negligenciar, mas precisava também produzir.

Passei horas tocando, criando, fazendo notas se


encaixarem umas nas outras para que se transformassem

em melodias harmônicas, e só parei para o almoço, dando


também a comidinha de Adam.

Depois ele ficou um pouco mais agitado, mas


coloquei-o no meu colo, transformando minha tarefa em

uma brincadeira, deleitando-me com sua gargalhada


quando colocava um dos dedinhos gordinhos sobre uma

tecla e o ajudava a pressioná-la, causando um som


determinado.

Ainda estava entretendo o meu bebê quando a

campainha tocou.

Desde que as coisas ficaram melhores para nós,

financeiramente falando, eu e Jaqueline alugamos uma


casinha na Lapa, próxima ao bar onde ela ainda
trabalhava. Não era uma propriedade que seria
considerada segura, porque tinha um muro baixo, apenas
protegido por algumas estacas e um portão que sempre
dava defeito, mas era nosso cantinho.

Era estranho recebermos visita, mas eu coloquei

Adam no cercadinho, na sala, ouvindo-o protestar, e fui ver


quem era. Imediatamente senti meu corpo se retesar.

Do outro lado do portão estava Fernando Garcia,

com um enorme buquê de rosas vermelhas. Sua


expressão era a mais cínica possível e tudo o que eu

queria era simplesmente entrar e deixá-lo do lado de fora.

Há meses eu vinha sentindo que alguém me vigiava.

Desde que saí de onde morava, deixando toda a vida que

conhecia para trás, eu sabia que alguém estava na minha


cola. Constantemente uma pessoa aparecia no bar,

olhando demais para mim, e todos tinham o mesmo perfil

dos estranhos capangas de Fernando. Grandes, tatuados,


com expressões de poucos amigos, amedrontadores.
Só que daquela vez lá estava ele, em pessoa, e no

momento em que eu recuei, ele ergueu um dedo em riste.

— Se não abrir a porta agora, vou ser bem menos


delicado da próxima vez. Vou vir com meus homens, e eles

não são muito respeitosos com mulheres e crianças.

Então ele sabia do meu bebê. Um calafrio percorreu

minha espinha, porque não queria aquele monstro


chegando perto de Adam. Ainda assim, ele não me

permitiria escapar, tanto que deu um passo à frente,

levando a mão ao portão, indicando que eu deveria abri-lo.


A expressão que surgiu em seu rosto não dava muito

espaço para que eu o desobedecesse. Eu estava sozinha,

se decidisse entrar, conseguiria sem muito esforço, e sabia

que seria pior.

Abri, e ele fez um sinal para que eu entrasse


primeiro. Não tive coragem de lhe dar as costas, então

fiquei caminhando de lado, quase com medo, o que

parecia diverti-lo de uma forma muito perturbadora.


Para o meu desespero, ele começou a andar na

direção do cercadinho, passando por mim, mas me

coloquei à sua frente. Ainda segurava as flores nas mãos,


sem me entregar.

— O que está fazendo aqui, Fernando? —

perguntei, tentando manter a coragem, mas esta se esvaiu

no momento em que ele esticou a cabeça para olhar dentro

do cercadinho e ver melhor meu bebê.

— É um garoto bonito. Pena que tenha o pai errado.


Deveria ser eu — ele simplesmente jogou isso, sem

nenhuma noção do que dizia.

Eu poderia estar magoada com Noah. Poderia estar

com o coração partido, sem vontade de vê-lo nem pintado


de ouro na minha frente, mas, ainda assim, mesmo

sabendo que ele fora um canalha comigo, ainda preferia

que ele fosse o pai de Adam do que Garcia.

— Eu sou mãe e pai dele — afirmei com convicção.


— Estou fazendo um trabalho muito bom nisso.
Ele sorriu, ainda de forma cínica, e colocou as flores

sobre o meu piano. Era um instrumento de segunda mão,


mas que me servia muito bem. Eu tinha um teclado

também, que fora um investimento um pouco mais alto,

mas era para trabalho.

— Você poderia ter uma vida de rainha, se quisesse.


Foi o que eu te ofereci — ele disse, dando um passo à

frente, e eu recuei.

— E eu neguei. Não tenho interesse. Estou muito

bem como estou.

— Ninguém me nega nada, garota — com esta frase


ele mostrou sua verdadeira cara. Dentes cerrados, punhos

fechados, respiração pesada. Recuei mais uma vez, mas

Garcia veio para cima de mim.

— Lamento. Eu acho melhor você ir embora.

— Não me mande embora! — ele gritou e deu um


tapa no ar, derrubando uma das cadeiras da minha mesa

de jantar simples, pela qual passamos enquanto eu tentava


escapar. Meu filhinho imediatamente começou a chorar. —

Estou aqui para acertar contas. Você é minha, Valentina.

Não consigo acreditar que aquele filho da puta do Noah

Smith conseguiu levá-la para cama, e eu não consegui. O


que prometeu? Dinheiro? Se foi, não te deu muito e ainda

deixou mais uma fonte de despesa.

Eu não sei o que era pior, se ele insinuar que eu era

capaz de me vender, se foi seu olhar de desprezo para a


minha casa ou se foi chamar meu filho de “despesa”.

Queria gritar para que saísse da minha casa, xingá-

lo e fazer com que entendesse que não haveria nada entre

nós. Mas isso era a minha vontade, e, aparentemente,


Garcia não estava nem um pouco disposto a levá-la em

consideração, muito menos quando me vi encurralada por

uma parede.

A cena foi muito parecida com a que aconteceu na

minha casa. Ele se agigantou diante de mim, colocando as


mãos na parede ao meu redor, como se eu pudesse achar

isso sexy de alguma forma. Tentei mais uma vez chutá-lo,


como tinha feito anteriormente, mas Fernando já estava

preparado, esquivando-se.

— Se não for boazinha comigo, posso machucar


seu bebê.

Arregalei os olhos, apavorada, congelando como se

fosse uma estátua.

— Você não teria coragem — disse baixinho, quase

sem forças. Quase me agarrando a uma esperança de que


aquele monstro poderia ser menos cruel do que estava

tentando demonstrar.

— Teste-me.

Eu não poderia colocar a segurança do meu filho em

jogo. Adam ainda chorava, e eu pensei que seria capaz de


qualquer coisa por ele. Até o inimaginável.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Eu odiava a cidade grande. Não apenas porque

tinha alguma espécie de fobia social não diagnosticada,


mas porque os barulhos, os cheiros, o clima... tudo me
deixava muito agoniado. Se eu vivia no interior, tinha um

belo de um motivo: a minha sanidade.

Só que aquele era um preço muito pequeno a pagar


pelo perdão de Valentina.

Eu tinha o endereço dela, que Moreira me dera, mas

perdi a coragem no momento em que pisei na cidade.


Hospedei-me em um hotel próximo de onde ela morava,
que não era nem de longe um cinco estrelas, e tentava não

stalkeá-la, apenas tentava me munir de palavras


suficientes para que conseguisse, ao menos, fazê-la

entender o quão arrependido estava.

Já a tinha visto uma manhã, quando aparentemente


saiu para comprar alguma coisa, sozinha, mas sempre via

sua colega de quarto. Uma moça negra bonita, talvez um

pouco mais velha do que ela, o que me deixava um pouco


aliviado por saber que não estava sozinha; que tinha

alguém lhe fazendo companhia.

Eu conseguia ver sua casa da janela do meu hotel.

Evitava olhar ao máximo, porque achava que seria muito

abusivo da minha parte, mas volta e meia me pegava


passando os olhos e jurando que era apenas sem querer.

Só que, no final das contas, acabei agradecendo por

ter feito isso, porque surgi no momento exato em que vi

Fernando Garcia, com um buquê de flores, parado,

esperando.
Eu deveria ter saído dali e parado de olhar. A
primeira conclusão que poderia ter tomado seria de que os

dois realmente estavam juntos, mesmo que fosse algo

improvável, levando em consideração que eu já sabia que

Valentina odiava aquele cara quase tanto quanto eu. E

quando ela recuou, não precisei de muito mais provas de

que aquela não era uma visita bem-vinda.

Não conseguia ver o rosto dela direito àquela


distância, mas algo me dizia que seu corpo pequeno

estava todo tenso, principalmente quando Fernando

entrou, e eles fecharam a porta.

Havia algo de errado, isso era óbvio. E mesmo que

não tivesse, eu não iria pagar para ver. O filho da puta já

tinha tentado fazer mal a ela uma vez, eu não queria estar
por perto e permitir que a machucasse. Mesmo que não

quisesse minha presença, eu teria que intervir.

Saí do hotel onde estava hospedado, o mais

apressado que consegui, atravessando a rua praticamente

sem olhar, e parei diante de sua casa. Toquei a campainha,


mas ouvi lá de dentro os gritos de Valentina e o chorinho

de um bebê.

No momento não processei a ideia de que poderia

haver uma criança ali dentro, mas imaginei que se tratava

do filho da amiga de Valentina, que saíra um pouco mais


cedo.

Se havia um bebê ali dentro, a situação era pior


ainda.

Quando a campainha tocou, ouvi a mulher berrando

um SOCORRO lá de dentro, o que fez minhas entranhas


revirarem. Logo seus gritos se tornaram murmúrios

abafados, e imaginei que o desgraçado a estava tentando


calar.

Olhei de um lado para o outro, vi que ninguém


estava passando, e escalei o portão, tomando cuidado com
as partes pontiagudas. Caí do outro lado e estava disposto

a arrombar a porta, mas encontrei-a aberta, precisando


apenas girar a maçaneta.
A cena que vi diante de mim foi Valentina, com as

roupas rasgadas, sobre a mesa de jantar, sendo


imobilizada por Garcia, com ambas as mãos presas em

uma das dele, a boca coberta por um pedaço de tecido que


ele enfiou dentro, para que ninguém a ouvisse gritar.

Meu Deus, eu queria matá-lo.

— Filho da puta! — vociferei, partindo para cima e


nem pensando em mais nada. Comecei a socá-lo, com

tanto ódio que eu mal sabia se estava realmente apenas


defendendo Valentina ou se minha intenção era também

descontar a frustração daqueles últimos meses.

Fernando não conseguiu nem se defender, porque


eu fui como um touro para cima dele, e eu não podia ouvir
nada ao redor, só o choro do bebê, para o qual eu mal

tinha olhado.

Só que quando apurei meus ouvidos, ouvi um baque

que chamou a minha atenção. Valentina tinha despencado


no chão, segurando sua roupa dilacerada. Não estava
desacordada, mas, sim, com os olhos abertos, vidrados,
em pânico.

Preocupado com ela, nem me dei conta de quando


o desgraçado se levantava e saía correndo, cambaleando,

como o covarde que era, passando pela porta. Ouvi o som


do portão batendo, e eu senti uma vontade imensa de ir

atrás dele e terminar de lhe dar a lição que merecia, mas


Valentina precisava de apoio.

Fui até ela que mal pareceu se dar conta de quem


estava à sua frente. A mulher tremia como se estivesse um

frio de menos dois graus, ainda agarrada à roupa que fora


rasgada, tentando manter sua dignidade. Agachei-me e

levei as mãos aos seus ombros, tentando trazê-la de volta


a si, mas Valentina sequer me deu atenção. Não parava de
olhar para um ponto aleatório, como se neste estivesse a

resposta para todas as perguntas.

— Querida, venha, vou te levar para um lugar mais


confortável. — Ao ouvir minha voz, ela simplesmente

começou a tremer mais ainda. Não saberia dizer se fora


porque não me queria por perto ou se apenas estava se
dando conta do que poderia ter acontecido.

Queria lhe perguntar o que aquele diabo tinha lhe


feito, se conseguira tocá-la, até onde chegara, mas não

tinha coragem de pressioná-la ainda mais.

Tudo o que consegui fazer foi pegá-la nos braços,

erguendo-a do chão só para levá-la até o sofá. Depois,

com Valentina já acomodada em um lugar mais


confortável, ocupei-me do bebê.

Ele era lindo. Cabelinhos castanhos e lisos, um

rostinho doce, olhinhos amendoados, e parou de chorar no

momento em que me viu. Olhou-me com leve curiosidade

por alguns instantes, da mesma forma como eu fazia para


ele, porque uma estranha comichão começava a se

manifestar dentro de mim; uma ideia muito assustadora,

mas ao mesmo tempo tão maravilhosa que eu senti uma


necessidade quase física de tomar aquela criança nos

braços.
Só que ele parecia mais quietinho, e, naquele

momento, sua mãe era minha maior preocupação.

Corri para a cozinha da casa, abrindo a geladeira e


pegando uma garrafa d’água. Enchi um copo e levei para

Valentina, que bebeu com a minha ajuda, aos poucos,

respirando lentamente.

Conforme foi retornando, seus olhos se focaram em


mim, e eu percebi que ajeitou ainda mais os pedaços do

vestido, o que me fez tirar a jaqueta que usava para

colocá-la ao redor de seus ombros e cobri-la.


Inevitavelmente, memórias do dia em que chegou à minha

casa, molhada e parecendo extremamente indefesa,

surgiram na minha mente.

— O que está fazendo aqui, Noah? — ela perguntou

em um fio de voz que chegou a me doer na alma.

— Eu cheguei há alguns dias. Queria conversar com

você. Acabei vendo aquele desgraçado entrando aqui.


— E não pensou que poderíamos ser amantes? — o

desdém e a ironia eram cortantes. Mas eu merecia.

— Não, Valentina. Eu só quis te defender. Foi só o

que passou pela minha cabeça — respondi, cansado.


Frustrado. Tudo isso e um pouco mais, embora eu já

devesse saber que acabaríamos chegando naquele

impasse. Era mais de um ano de mágoas, e ela tinha o

direito de lançar o que quisesse sobre mim. — Você está


bem, aliás?

Ela balançou a cabeça e, para provar o que dizia,

tentou levantar-se, visivelmente querendo pegar o bebê,

mas suas pernas falharam, e ela quase caiu, sendo


amparada por mim.

Coloquei-a sentada novamente, tentando ignorar os

olhares vulneráveis que me dirigiu, principalmente quando

eu mesmo fui ao berço e peguei seu bebê. Tinha a

intenção de entregá-lo a ela, para que se sentisse mais


calma, mas o garotinho fixou seus olhos curiosos em mim
e levou sua mãozinha pequena à minha barba, tocando-a,

como se me explorasse.

O que eu senti não foi a reação trivial de quando


temos uma criança adorável no colo; uma criança que não

nos pertence. De alguma forma, naquele instante, eu

soube. Aquele garotinho era meu.

E Valentina aparentemente percebeu a mudança na


minha expressão, porque seu corpo se retesou, e eu vi seu

peito subir e descer em uma respiração pesada,

assustada.

— Por favor, Valentina... não minta para mim. Este


garotinho é... meu?

Ela visivelmente não queria responder. Hesitou,

olhou para baixo, colocou o copo sobre a mesinha...

parecia calcular cada movimento para que sua resposta


demorasse mais e mais. A cada segundo que passava, eu

sentia meu estômago se revirando mais e mais. Tanto que

me acomodei na poltrona vaga, sentando o bebê no meu


joelho, porque eu não conseguiria continuar de pé. Assim

como Valentina, acabaria despencando de tanta

ansiedade.

Mas a resposta veio...

— Sim, Noah. Ele é seu filho.

E meu mundo inteiro desmoronou naquele exato


instante.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Eu era pai.

Uma frase simples, que poderia ser dita por


qualquer homem que gerasse uma criança. Muitos deles
faziam isso e simplesmente sumiam, servindo apenas para

postar fotos dos filhos em mídias sociais, mas não

passavam de doadores de esperma.

Eu sempre quis ser pai. Sempre quis ter um

bebezinho nos braços que me pertencesse, cujo sangue

que corria nas veias fosse meu.


Quando Alyssa nasceu, a sensação foi praticamente

a mesma. Eu a amei logo que a vi, jurando para mim


mesmo que nunca iria desprezá-la por ser filha de quem

era.

Coisas foram acontecendo, endurecendo meu


coração, e eu acabei me protegendo de me apegar

demais, embora quisesse muito me aproximar. Apesar

disso, fazia o meu melhor para aquela menininha, embora


nem sempre o meu melhor fosse o suficiente. Eu sabia ser

bastante rude e insensível quando queria, e a prova disso

estava ali à minha frente: uma mulher a quem magoei, e


um filho que eu nem sabia que existia.

— Claro que você pode duvidar disso... Mas não faz


diferença para mim, sinceramente. Estamos vivendo muito

bem sozinhos. — Havia tanta mágoa naquela afirmação

que se eu estendesse a mão, poderia tocá-la.

— Faz diferença para mim. Eu tenho um filho,

Valentina, e não fazia ideia disso.


Ela se levantou em mais um rompante, mas,
daquela vez, parecendo mais firme, embora ainda se

agarrasse ao meu casaco para não mostrar nada que não

queria mostrar. Parecia furiosa.

— Você não vai me culpar por não saber que é pai,

não é? Você me expulsou da sua casa, no meio da noite,

fazendo acusações, depois de transar comigo e sem se

preocupar para onde eu poderia ir. Você me beijou, me fez


acreditar que estávamos apaixonados e me escorraçou. —

Sua expressão mudou um pouco, seus ombros caíram,

cansados, mas ela prosseguiu: — Sei que errei, que invadi

sua privacidade, mas não foi um crime assim tão grave

para que eu fosse tratada como fui. Eu nunca te trairia,

Noah. Tudo que descobri naquela noite ficaria guardado


comigo, exatamente como ficou.

— Eu sei, Valentina — minha voz soou mais suave

que nunca, e minha resposta pareceu surpreendê-la. — No

dia seguinte da sua partida eu já sabia disso, e nunca parei

de te procurar para te pedir perdão.


Ela novamente pareceu confusa, mas empertigou os

ombros, altiva.

— Se era isso que queria, já está feito. Eu te

perdoo. Pode ir, se quiser... — a frieza com que me tratava

não combinava com ela. Valentina era pura doçura e


gentileza. Era difícil vê-la daquele jeito, agindo como se me
odiasse.

Bem... talvez odiasse mesmo.

— Eu não vou embora, Valentina! Eu... eu tenho um

filho!

— Que bom que você tem uma escolha, não é? E

que mesmo que eu te colocasse para fora da minha casa,


você ainda teria para onde ir e poderia se virar sozinho,

sem passar frio e medo à noite, sozinha.

Novamente o ressentimento. Em mim, a vergonha.

Como pude ser tão cruel e negligente com alguém que não
merecia nada disso? Valentina era só uma garota. Jovem,

inexperiente, inocente. Ela se entregara a mim e tinha o


direito de saber quem eu era, onde estava se metendo. Eu

não iria passar pano totalmente para sua atitude, porque


poderia ter me perguntado, poderia ter tentado descobrir

da forma mais honesta, mas será que eu teria lhe


respondido alguma coisa?

O estado de vulnerabilidade em que nos


encontramos quando estamos apaixonados é muito

grande. Quem poderia dizer que ela não sentira medo de


se render por completo – alma também, depois de render o

corpo –, enquanto não tivesse respostas para suas


perguntas.

Nós dois tínhamos errado, mas o meu erro poderia

tê-la colocado em perigo. Olhando para o bebezinho sobre


a minha perna, eu tinha mais certeza ainda disso.

— Eu jamais deveria ter feito o que fiz, Valentina.


Não sabe o quanto remoí por todo esse tempo durante a

sua ausência. O quanto eu queria ter uma única chance de


te ver só para dizer que sinto muito. E eu nem imaginava

que precisaria pedir perdão a outra pessoinha.


Voltei meus olhos para o garotinho no meu colo, e
ele olhava para mim, erguendo as mãozinhas para me
tocar. Quando lhe dei minha atenção, um sorriso banguela

se formou, com covinhas adoráveis, e eu senti meus olhos


arderem.

Foi impossível não chorar pensando que eu tinha

um filho. Que aquele garotinho era inteiramente meu.


Éramos imensamente parecidos fisicamente, o que me
enchia de orgulho. Infelizmente eu ainda não sabia se

havia algo de similar em nossa personalidade, porque não


o conhecia, mas pretendia reparar este erro. Assim como

prometi fazer com Alyssa, eu daria o meu melhor para ele.

— Como se chama? — Eu estava tão hipnotizado


pelo bebê que cheguei a esquecer que ainda não sabia o
nome do meu próprio filho.

— Adam — senti a emoção no tom de voz de

Valentina e cheguei a erguer os olhos para ela, vendo que


estavam levemente marejados. Sentia que estava se

controlando, como eu não conseguia fazer.


Ao ouvir o nome do bebê, fiquei ainda mais
balançado. Era um belo nome, mas, mais do que isso, ele
não apenas era real, como eu sabia de que maneira

chamá-lo. Eram pequenas coisas para qualquer um, mas,


para mim, naquele instante, significaram o mundo inteiro.

— Ele é lindo — mais uma vez deixei escapar como

um suspiro, sentindo meu coração expandir dentro do

peito.

Era como se o mundo inteiro tivesse começado a

fazer sentido. Como se, nos meus braços, estivessem as

respostas para absolutamente todas as perguntas.

Mas à minha frente também.

Eu não poderia fingir que meus sentimentos


estavam balançados pela linda mulher de cabelos

castanhos que eu não via há algum tempo. A mulher que

saíra da minha vida da forma mais cruel possível, quando a

expulsei, sem que merecesse.


Levantei-me, então, da poltrona, colocando o bebê

no cercadinho, voltando-me para a mãe dele. Com a


cabeça inclinada um pouco para o lado e com os olhos

cheios de arrependimento, lancei-me no chão, ajoelhando

aos pés de Valentina, que arregalou os olhos, assustada.

Peguei uma das suas mãos na minha, uma vez que


a outra estava ainda firmemente agarrada aos lados da

minha jaqueta, e a beijei.

Fiquei algum tempo olhando para os nós de seus

dedos, meio que sem saber o que fazer, perdido,


esperando que as palavras certas surgissem. Mas eu sabia

que isso não iria acontecer, porque... o que era certo ou

errado em uma situação como aquela? Quais eram as

frases corretas a se falar a uma mulher a quem eu expulsei


da minha casa, acusando-a de ter se deitado comigo só

para vender meus segredos ao meu maior rival, quando,

na verdade, ela era virgem, inocente e, ainda por cima,


carregava um filho meu no ventre?
— Eu não queria ter te magoado — foi o que saiu.

Péssimo, totalmente insuficiente, mas verdadeiro. Do fundo

do meu coração.

— A gente não quer muitas coisas, Noah. Eu


também não queria ter tido um filho sozinha. Não queria

sair fugida da sua casa, de madrugada, depois de

acusações tão horríveis.

O golpe veio certeiro, compatível com meus

pensamentos.

— Se eu pudesse voltar atrás...

— Mas não podemos... — Ela arrancou a mão da

minha, mas eu sabia que, no fundo, estava se esforçando

muito para se manter indiferente. — Você é pai de Adam,


tem direitos quanto a isso. Se quiser fazer um DNA...

— Não! — falei, levantando-me. — Eu sei que ele é

meu.
— Você não parecia ter tanta certeza de que eu não

tinha um amante naquela noite — disse com raiva, por


entre dentes.

— Eu vi a mancha no lençol, Valentina. Sei que você

era virgem, mas já estava arrependido antes mesmo de vê-

la.

Valentina engoliu em seco, remexendo-se no sofá,


desconfortável.

— Sim, eu era. Mas não sou mais, não é? Foi só

mais uma coisa que eu perdi naquela noite. Não faz

diferença. — Com um movimento, Valentina levantou-se,


largando minha jaqueta sobre o sofá, deixando um de seus

seios praticamente quase todo exposto. — Pode ficar com

isto. Não tem nada aqui que você ainda não tenha visto.

Com essa frase de efeito, saiu andando em direção


ao que imaginei ser um quarto, parando diante da porta e

olhando-me por cima do ombro:


— Vou só me trocar. Pode ficar com seu filho e

conhecê-lo. É um bom menino. Já volto.

Entrou no cômodo, fechou a porta, e eu fiquei

olhando para a porta, tentando entender como diabos eu ia

fazer aquela mulher acreditar que eu estava realmente


arrependido e queria compensá-la por todos os meus

erros?

Nem que eu levasse anos para isso. A vida inteira.

Eu teria o perdão de Valentina. E no dia em que isso


acontecesse, faria de tudo para ser um homem melhor

para ela.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Escorei-me na porta, apoiando as costas nela, como

se tivesse acabado de escapar de um predador em uma


floresta. De uma fera, por exemplo, para fazer uma
analogia bem ridícula ao apelido que Noah tinha em Aurora

dos Lagos.

Levei a mão ao coração, onde o decote do meu


vestido estava completamente rasgado, sentindo minha

respiração incerta. Era muita coisa para absorver em

pouco tempo – a visita completamente indesejada de


Fernando Garcia, o assédio que sofri, a presença de Noah,
ele conhecendo e descobrindo que tinha um filho. Seu

pedido de perdão de joelhos. Meus sentimentos por ele...

A última era a pior parte, aliás, porque eu não

deveria sentir absolutamente nada por ele. Nem mesmo

ódio, na verdade. Eu deveria apenas sentir indiferença. Só


que meu coração era um filho da mãe e lá estava,

acelerado por um homem que não merecia.

Abri meu armário e peguei uma roupa qualquer,

vestindo-a bem lentamente só para ganhar algum tempo.


Fiquei andando de um lado para o outro, sentindo-me um

pouco perdida, sem saber como reagiria quando

retornasse para a sala, especialmente porque a visão de

Noah com Adam no colo era algo especial. Por mais que
eu estivesse magoada, não poderia negar que ter pai e

filho juntos era um desejo que me acompanhara desde que

me descobri grávida e sozinha. Não por mim apenas, mas

por meu bebê.

Respirei fundo e me preparei para o que mais

parecia uma guerra, mas fui interrompida pelo meu celular


tocando, que eu nem me lembrava que tinha deixado no
quarto, sobre a cama. No visor, o nome de Jaqueline

pulsava.

— Ei, amiga — ela me cumprimentou no momento

em que atendi. — Você sabe se eu esqueci meu

carregador aí em casa? Não estou achando de jeito

nenhum.

— Amiga... — Não respondi a pergunta dela, mas


minha voz saiu como um gemido desesperado, enquanto

eu me sentava na cama, quase sem forças nas pernas.

— Val, o que houve? — ela entrou na vibe do

desespero também. Era impressionante como ela me

conhecia, como seu tom de voz mudou imediatamente ao

reconhecer o meu também.

Eu poderia contar a verdade inteira para ela,

inclusive sobre Fernando, mas não queria preocupar


Jaqueline daquela forma. Só que eu precisava da minha

amiga para desabafar. Se ela tinha ligado naquele


momento, era destino, certeza. Ao menos alguma coisa

estava me ajudando naquele dia.

— Noah está aqui.

Jaqueline sabia muito bem quem era Noah, tanto


que ela ficou em silêncio por um tempo, e eu conseguia

apenas ouvir sua respiração do outro lado da linha.

— O que ele está fazendo aí? — perguntou com

raiva.

— Veio pedir perdão. Fez isso de joelhos, Jack —

respondi aos sussurros, porque não queria que ele


ouvisse, do lado de fora do cômodo. — Sei que estou

parecendo uma boba, mas foi impossível não me comover.

— Não cai nessa, amiga. O cara te fez mal. Te jogou


na rua, estando grávida.

— Bem, isso ele não sabia, né?

— Não passa pano, Val. Não to dizendo que você


não possa perdoá-lo. Só que faz o cara sofrer um pouco.
Vou fazer o seguinte... O Carlos anda me enchendo o saco

pra passar uns dias na casa dele. Vou aceitar e deixar o


campo livre para vocês dois aí, se quiserem conversar,

para ele poder conhecer o Adam. Confia nele para ficar


sozinha aí?

— Sim. Confio. — Noah podia ter todos os defeitos


e, principalmente, ter partido o meu coração, mas ele era

íntegro, e eu sabia que não corria perigo nenhum em sua


companhia.

— Ótimo. Ainda assim... se precisar de qualquer

coisa, me liga.

— Obrigada, amiga. Eu só... — Soltei um suspiro,


sentindo-me completamente perdida.

— Eu sei, querida. Mas você ama esse cara. Dê


uma lição nele, para que a merda nunca se repita, mas não
segura esse sentimento. Se achar que ele realmente

merece, vai fundo. Pensa no Adam também.


Ela estava certa. Mas eu também precisava pensar
em mim. Como Jack dissera, apesar de tudo, ainda amava
Noah. Era algo que eu não poderia negar, nem esconder e

nem ignorar. Era algo que acabaria transbordando se eu


tentasse conter.

Falei um pouco mais com ela, perguntando se ela

poderia ficar sem o carregador, mas pediu que não me


preocupasse que já tinham lhe emprestado um, e Carlos,
seu namorado, tinha um sobressalente, já que ela iria para

lá.

Os dois tinham começado a namorar há uns cinco


meses e era um casal adorável. Ele era o novo músico do

bar onde trabalhava, e eu estava muito feliz por ela.

Quando encerrei a ligação, não havia muitos


motivos mais para permanecer naquele quarto, então, saí.
Tentei fazê-lo com o máximo de silêncio, para não ser

notada de imediato e conseguir decidir como agir. Só que a


visão de Noah com o pequeno Adam no colo me

desmontou.
O homem grande e intimidador segurava o
bebezinho contra o peito, com a mão em sua cabecinha,
sussurrando coisas em seu ouvido, principalmente frases

como “eu sou seu papai”, “você será muito amado”...


Coisas que nunca esperei que Noah diria, embora eu

tivesse tido alguns vislumbres do homem terno que ele


poderia ser quando queria. Quando tinha coragem para
demonstrar.

Demorou para perceber que era observado, mas

jurei que iria se sentir intimidado ao me ver, mas, não.

Parecia disposto a demonstrar seus sentimentos, mesmo


que eu soubesse que não era fácil, levando em

consideração o quão altas eram as barreiras ao redor do

seu coração.

— Eu não esperava, Valentina. De verdade. Não


fazia ideia que chegaria aqui e encontraria um presente

como este — falou, visivelmente emocionado, com o bebê

no colo. — Sempre quis ser pai...

— Você já é. Para Alyssa.


A expressão de Noah ficou subitamente séria.

— Não um muito bom. E não acho que ela me

considere assim.

— Pois eu acho que considera — afirmei,

caminhando na direção dos dois. Apesar disso, tentei

manter uma distância considerável, porque a proximidade,

naquele momento, me deixaria muito vulnerável. — Ela te


ama, Noah. — Não deveria ser eu a confortá-lo. Na

verdade, eu nem deveria estar sendo tão gentil com o cara

que me fez tanto mal, mas era impossível. Ao menos ao


vê-lo e senti-lo tão melancólico.

— Não acho que ame mais. Não depois de eu ter te

mandado embora. Ela ficou arrasada.

Se por um lado meu coração se encheu de amor por

aquela garotinha maravilhosa e de ternura por ela ter


sentido a minha ausência – porque eu também fiquei com

uma imensa saudade dela –, por outro, não me agradava

saber que, de alguma forma, tinha sido pivô de uma


discussão entre Noah e Alyssa. Para mim, não importavam

as ligações de sangue, ele era pai dela.

Aliás, foi por causa dessa história que tudo

aconteceu. Por causa da minha curiosidade.

Por mais que ele tivesse agido muito mal comigo, eu


também não tinha sido totalmente leal. E eu lhe devia um

pedido de desculpas.

— Olha, Noah... acho que nós dois erramos um com

o outro e... — interrompendo-me, ele ergueu uma das

mãos, sinalizando para que eu não dissesse mais nada.

— Não faça isso, Valentina. Você errou, sim, e eu

sei disso, mas nada justifica o que eu causei. Agora, vendo

Adam, as coisas tomam proporções ainda maiores. Eu te


deixei sozinha com um filho!

— Consegui me virar — respondi, mas não com

arrogância. Era só uma constatação, esperando que ele se

sentisse menos pior.


— Muito bem, por sinal. — Ele abriu um quase

sorriso. — Vi os acessos na sua música. E ouvi as outras


também. Você é tão talentosa, Valentina... — havia tanta

paixão em sua voz que eu quase desmoronei,

especialmente quando seus olhos se estreitaram, com uma


admiração que me encheu de um orgulho que poderia

inflar o meu peito.

Eu era muito boba.

— Obrigada — foi a resposta que me restou,

tentando não corar e não me sentir uma adolescente. Eu

nunca fui a garota deslumbrada que se encanta por


palavras fáceis vindas de um cara bonito. A prova disso era

que nunca dei bola para Fernando.

E por falar nele, meu olhar se perdeu por alguns

instantes, relembrando o que quase acabara de acontecer.


Se não fosse por Noah...

Pensando nisso, precisei me sentar, largando-me no

sofá.
— O que aconteceu aqui, antes de você chegar... —

comecei a dizer, um pouco sem fôlego.

Noah deixou Adam dentro do cercadinho, e por mais

que meu menino não tenha parecido gostar muito disso,

porque estava adorando a atenção recebida pelo pai, que


não conhecia até aquele momento, mantivemos assim.

Noah veio se sentar ao meu lado, mas se colocou do outro

lado do sofá, longe o suficiente para que não fosse


desconfortável.

— Perdão. Fiquei tão atordoado com Adam que não

perguntei como você está...

— Tudo bem. Eu já vinha me sentindo observada há

um tempo. Só que nunca pensei que ele chegaria aos


extremos. Ameaçou o bebê... Você tem noção disso?

Vi o punho de Noah se fechando em garra e seu

maxilar se contraindo.

— Eu acabo com ele, Valentina — rosnou, de forma

quase selvagem, e seu instinto protetor mexeu comigo de


uma forma que não deveria mexer.

— Você já fez bastante.

— Não. Não é nem a metade do que eu queria fazer

pelo que te causou e... — ele se interrompeu,


prosseguindo: — Mas eu também deveria apanhar, né?

Não fui o maior dos cavalheiros.

— Não se compare — respondi, com veemência.

Não queria bajulá-lo, mas não poderia permitir que se


equiparasse àquele desgraçado. Havia um abismo entre os

dois.

Suspirei, derrotada, sem querer que aquele assunto

se estendesse. Levantei-me, querendo sair de perto dele o


mais rápido possível, com qualquer desculpa.

— Minha colega de quarto não volta hoje. Não sei

onde você está hospedado, mas é bem-vindo para jantar.

Para ficar com Adam pelo tempo que quiser...


Noah segurou minha mão, e quando eu olhei para
ele, vi que seus olhos fitavam os meus, sua cabeça

erguida, e a expressão era a de um cachorro que caiu do

carro da mudança.

— Obrigado, Valentina. Muito obrigado.

Com um meneio de cabeça respondi à sua gratidão,


mas me afastei, indo para a cozinha para me afastar. Era

quase tóxico estar perto dele, e eu não conseguiria ignorar

isso por muito tempo. Por mais que quisesse ser forte, ele
ainda fazia parte de mim.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

A generosa e doce Valentina me deixou passar o

máximo de tempo com o meu filho. Eu ainda dormia no


hotel em frente ao seu prédio, revirando-me na cama de
arrependimento e me sentindo cada vez mais solitário. E

levando em consideração que eu sempre gostei da solidão,


sentir-me incomodado por ter apenas a minha própria

companhia era algo novo.

Mas a verdade era que passar o dia inteiro na

companhia do meu bebê e da mulher a quem eu desejava


desesperadamente, e depois ter que me afastar para

dormir em uma cama fria e vazia, era muito doloroso. Mais

doloroso ainda porque eu sabia que era minha culpa. Os


anos que perdi ao lado de Adam e de Valentina, por causa

do meu orgulho e da minha cabeça dura, não seriam


recuperados. Nunca. Eu nunca veria o rostinho enrugado

do meu filho, depois de ser tirado da barriga da mãe; nunca

veria seus olhinhos se abrirem pela primeira vez; nunca


ouviria seu chorinho, dando boas-vindas ao mundo.

Só que não era nisso que eu precisava pensar. Era

no fato de tê-los reencontrado. Nunca era tarde. Eu faria de


tudo para que os dois voltassem comigo de onde não

deveriam ter saído.

Naquela noite, eu estava com Adam enquanto

Valentina preparava algo para comermos. Ela havia

amamentado o bebê pouco antes, e ele já estava


sonolento nos meus braços, lutando contra o sono, quando

a mulher se aproximou de mim, com um pano de prato

pendurado no ombro – parecendo mais linda do que nunca

–, com as mãos na cintura. Ficou parada ali por um tempo,

parecendo pensativa, até que soltou:


— Tem três dias que você conheceu Adam e se
esqueceu de fazer uma coisa muito importante — ela falou

muito séria, e eu me preocupei.

Nos últimos dias, eu realmente me empenhei em

fazer tudo o que estivesse ao meu alcance para que Adam

me sentisse como seu pai. Ele já estava se acostumando

comigo, gostava do meu colo e sorria para mim da forma

mais deliciosa possível, então olhei para Valentina,


completamente atento.

— Alyssa ainda não sabe que tem um irmão —

anunciou como se fosse algo inaceitável.

— Valentina... — chamei seu nome com o tom de

voz mais suave que consegui emitir, mas havia uma nota

de repreensão que não pude conter, porque era algo que


se fosse alimentado dentro de mim, acabaria me causando

uma dor imensa. — Alyssa não é minha.

— Você é o único pai que ela conhece, então passe

a agir como um. — Sua determinação enfurecida me fez


amá-la ainda mais. A vontade que tive de me aproximar e

pegá-la nos meus braços só para beijá-la até deixá-la sem


sentidos foi devoradora. Parecia me comer por dentro.

Só que mal tive tempo para isso, porque em uma de

suas saídas triunfais ela simplesmente pegou seu celular e


começou a ligar para alguém. Esperou que a linha
chamasse, até que sorriu.

— Oi, Marta! — a voz doce que dirigiu à minha

governanta era completamente diferente da que usava


para falar comigo. — Alyssa está por perto? Ah, que ótimo,

posso falar com ela?

Valentina esperou um pouco, e seu sorriso se


alargou ainda mais, provavelmente quando a menina
entrou na linha. Então colocou no viva-voz.

— Oi, querida, como você está?

— Val! Eu não acredito! Você está me ligando! —


ela literalmente gritava do outro lado da linha.
As duas começaram a conversar como velhas

amigas, e eu fiquei em silêncio, concedendo-lhes aquele


momento.

Até que Valentina deu a tacada final.

— Alyssa, não sei se você sabe, mas Noah está

aqui comigo. — A menina ficou calada do outro lado da


linha. — Nós voltamos a ser amigos, porque eu o perdoei.
Acho que você pode perdoá-lo por mim também, não pode.

Você não o ama?

Meu coração acelerou no peito de tal forma que eu


poderia perdê-lo caso resolvesse sair voando como um

louco por aí. Não apenas pela antecipação da resposta de


Alyssa, mas por Valentina ter dito que me perdoara.
Poderia ser apenas algo que estava falando para a criança,

para incentivá-la, mas não me passou despercebido.

— Sim. Eu amo o Noah. Muito.

Valentina olhou para mim, e eu não consegui

esconder a emoção.
— E você o considera seu papai?

Ah, não... ela não podia fazer aquilo comigo. E se

Alyssa respondesse que não, o que eu faria? Como iria


lidar com tal rejeição?

A menina esperou um pouco, ouvi sua respiração

profunda do outro lado da linha, e novamente minha


pulsação acelerou.

— Ele é. Para mim ele é meu pai.

Eu desmoronei. Literalmente. Inclinei-me para


frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e cobrindo meu
rosto com as mãos. Aquela menina sempre foi minha filha.

Uma filha da alma, que eu acolhi e protegi desde pequena.


Que eu peguei nos meus braços quando era apenas uma

recém-nascida e que assumi, mesmo que sua mãe tivesse


se oposto, porque a criança era fruto de um estupro –

verdade que nunca permiti que conhecesse.

— Então temos algo para te contar. Podemos

colocar a chamada em vídeo?


— Simmmmm! — a animação de Alyssa me tirou do
transe e foi só então que eu percebi que iria aparecer para
a menina com os olhos todos molhados e provavelmente

vermelhos. Mas tudo bem. Eu queria vê-la. Quando


apareci, ela sorriu: — Oi... papai. — Soou em uma voz

hesitante, como se ela não soubesse muito bem se deveria


fazer isso ou não.

Naquele instante não tive mais vergonha das


minhas lágrimas, apenas deixei que se derramassem por

meu rosto, enquanto abria um sorriso que era tão raro, mas

tão verdadeiro, que eu poderia sorrir daquela forma para o


resto da vida.

— Oi, querida...

Com seu jeitinho especial de fazer as coisas,

Valentina conduziu uma conversa, apresentando Adam a

Alyssa. Explicou à menina que ele era meu filho com ela,
porque um dia nós fomos como namorados. Não poderia

negar que a sensação de que nosso relacionamento –

embora eu mal pudesse chamá-lo assim – ficara


completamente no passado. Eu precisava de mais daquela

garota, e a cada momento que passava a seu lado, isso se


tornava uma certeza ainda mais forte.

Alyssa pareceu maravilhada com a ideia de que

tinha um irmãozinho mais novo e que ele era um

bebezinho, de quem poderia cuidar. Nem eu e nem


Valentina tínhamos conversado ainda sobre como

faríamos, se ela iria se mudar e viver comigo, se iria voltar

para a cidade – embora eu não pudesse nem imaginá-la


perto de Fernando sem a minha supervisão. Ainda assim,

demos esperança à menina de que conseguiríamos ser

quase como uma família. E essa ideia fez meu estômago

revirar.

Assim como o desejo que simplesmente não


diminuía.

Não era apenas uma vontade carnal, embora ela

obviamente existisse. Era um sentimento muito mais forte,

muito mais significativo. Eu queria possuir Valentina com


meu corpo, mas com minha alma também.
Depois de jantarmos, naquela mesma noite,

colocamos Adam no quarto, em seu berço. Valentina falou

um pouco com sua amiga no telefone e fomos lavar a louça


juntos.

Era quase insuportável vê-la ali, com os cabelos

castanhos presos em um coque, cheio de mechas

soltando-se, usando um vestido simples e confortável,

casto, que fazia minha imaginação voar às alturas.

Ela estava secando as mãos depois da última peça


lavada, quando me aproximei e me coloquei atrás de seu

corpo. Cerquei-a com os braços, colocando as mãos na

pia, inclinando a cabeça bem devagar para sentir seu


cheiro de xampu e sabonete. Algo delicado como ela

inteira.

— Noah... — disse meu nome em um suspiro e

esperei para ver se iria me recusar. Ela parecia confusa,

insegura, mas não deu a entender que queria que eu me


afastasse.
— Não vou te pressionar e nem forçar a nada. Só

que eu sou louco por você, menina. Desde o dia em que


apareceu na minha casa, toda molhada, toda perdida.

— E que você disse que eu era pequena e jovem

demais — falou em um tom divertido que me agradou.

Não pude conter uma risadinha irônica.

— E você é. Tudo isso. Também linda. Perfeita.

Talentosa. E tão cheia de amor, com tanto para dar... —


sussurrei, deixando que meu nariz passeasse por seu

pescoço e ombro expostos. Ela estremeceu. — Eu quero

retribuir, com tudo o que você merece. Quero mostrar que


posso ser melhor para você.

Eu a magoei. Na primeira oportunidade em que me

senti traído, eu te abandonei e te fiz mal. Só preciso que

acredite que isso não vai se repetir.

Valentina abaixou a cabeça, e eu levei a boca à sua


nuca, beijando-a gentilmente, com carinho.
Então ela soltou:

— Está perdoado, Noah. Eu deixo você me provar

que podemos ter uma chance.

Nem pensei duas vezes. Apenas fiz seu corpo girar,

com as mãos em seus quadris, e ficamos cara a cara.

Ainda segurando-a pelo mesmo ponto, eu a ergui,


colocando-a sentada na bancada, tomando ambos os

lados de seu rosto nas minhas mãos. Encostei nossos

lábios, invadindo-os com minha língua, sedenta por sentir


seu gosto.

Comecei lento, explorando, como quem volta para

casa depois de muito tempo. Deixei que nosso beijo fosse

se reconhecendo, se reconectando, e que Valentina se


soltasse um pouco mais. Quando senti que se rendeu por

completo, aprofundei o contato.

Tornei o beijo um pouco mais intenso, como se

fosse uma dinamite poderosa que nos levaria a uma


perfeita explosão.
O que não demorou a acontecer. Colocando-a

entrelaçada na minha cintura, comecei a carregá-la na


direção do quarto que já sabia ser o dela. Em nenhum

momento paramos de nos beijar, e no exato instante em

que a deitei na cama, nos despimos em um frenesi insano,

aproximando nossas bocas sempre que havia espaço para


isso.

Erguendo sua coxa, abaixei-me um pouco, com ela

já nua, e tomei um mamilo na boca, chupando-o e

sugando-o, encontrando um ângulo para penetrá-la com


um dedo, o que a fez arquear o corpo em uma reação de

prazer que já me deixou ainda mais excitado

imediatamente.

Eu não conseguiria me conter de jeito nenhum, não


naquele momento. Literalmente devorei-a, mergulhando

minha boca em todas as partes de Valentina, querendo

absorver tudo. Querendo dar tudo.

Mordi, chupei, lambi e dediquei-me a um sexo oral

até que a fiz gritar, erguendo os quadris, pedindo mais. Eu


lhe daria mais. Muito mais.

Valentina gozou, mas eu não parei. Continuei

venerando-a por inteiro, sentindo-a estremecer e ouvindo

seus gemidos, que eram quase tão doces quanto a música

que ela tocava.

— Eu comecei a tomar anticoncepcional depois que


Adam nasceu. E não estive com mais ninguém. Você é e

foi meu único homem, Noah.

Não faria nenhuma diferença se não fosse assim,

mas saber que Valentina era intocada, que ela pertencia


apenas a mim, me deu um senso de possessividade

extremamente insano, então deslizei para dentro dela, com


o máximo de cautela possível, mas assim que cheguei ao

fundo, transformando-nos em um só, não consegui manter


a delicadeza.

— Eu te amei na primeira vez, Valentina. Agora vou


pegar mais forte, ok? É o que preciso...
— Sim... sim... — ela respondeu em um gemido, e
eu acatei seu consentimento, fazendo a cama ranger sob
nosso peso e bater contra a parede, em meio aos sons que

nossas vozes deixavam escapar.

Quando chegamos ao orgasmo, quase juntos, eu


mais uma vez entendi que não poderia vacilar com aquela
mulher. Ela era para sempre. Um tipo raro que eu tive a

sorte de encontrar, sem nem merecer.


CAPÍTULO VINTE E SEIS

Noah parecia incansável em me tocar e em olhar

para mim como se eu fosse a coisa mais bonita em que já


tinha colocado os olhos. Era desconcertante, mas também
fascinante. Era exatamente a forma como toda mulher

deveria ser observada ao menos uma vez na vida.

— No que você está pensando? — perguntei,

enquanto me remexia na cama, sentindo as pontas de


seus dedos passarem muito próximas aos meus mamilos.

Tínhamos feito amor duas vezes; a primeira na cama e a


segunda, no chuveiro, mas nenhum dos dois parecia

saciado o suficiente.
— Em como eu pude ser tão idiota em te deixar

escapar. — Sua mão, então, desceu ao meu ventre,


acariciando-o. — Em como eu gostaria de ter te visto

grávida de Adam. Ter podido cuidar de você.

— As coisas acontecem porque têm que acontecer.


No final das contas eu acho que pode dar certo. Foi só um

ano e meio de separação, mas...

— Só? — ele se espantou, em um tom quase

brincalhão.

— Se você me deixar terminar a frase... — também

entrei na brincadeira e prossegui: — Acho que nós dois

aprendemos, com o tempo, que precisamos respeitar um a

outro. Sei que você tem segredos que pode não querer

compartilhar comigo...

— Não quero manter nenhum segredo de você,

Valentina. Não quero mais. Aquela foi uma época da minha


vida que foi extremamente dolorosa, mas é parte de quem

eu sou hoje. Foi aquele momento que me tornou esse


homem quebrado e desajeitado para demonstrar o que
sente.

Abri um sorriso indulgente.

— Você não é. Tem muito amor aqui dentro... —

Deixei meus dedos passearem pela linha do seu peito,

bem no ponto onde seu coração batia apressado. Ele a

pegou e a beijou. — Ainda assim... eu gostaria de saber:

você a amou? A mãe de Alyssa?

Noah se remexeu, e eu temi que ficasse chateado

com a pergunta que fiz, mas apenas me puxou para si e

me acomodou em seu peito, acariciando lentamente

minhas costas nuas.

— Amei. Eu a amava desde garoto. Só que ela mal

me via. Se fosse bastante sincero, diria que era uma moça

bem esnobe, e naquela época eu não tinha dinheiro. As

coisas foram melhorando para mim aos poucos. Quando


Fernando chegou, ela simplesmente fez de tudo para

chamar a atenção dele. E chamou... só que ele saiu um


pouco dos limites, e ela percebeu que era cilada, começou

a fugir quando ele passou a assediá-la ao ponto de


assustá-la, mas era tarde demais.

— Então ele a estuprou... — concluí, e Noah

assentiu. Era uma história muito triste, e eu me comovi


pela moça que nem conheci.

— Ela engravidou e não quis contar para Fernando.


Àquela época, nós éramos amigos, e ela confessou para

mim e aceitou a proposta que fiz de casamento. Vivia com


uma tia que nunca aceitaria uma moça solteira e grávida

na sua casa, e como todos adoram o filho da puta nunca


acreditariam que ele a estuprou. Ou ainda colocariam a
culpa nela, o que é ainda mais ridículo.

— Assim como aconteceria comigo. Ele faria da

minha vida um inferno se eu aceitasse me casar.

— Faria. Ainda bem que você não aceitou. — Noah

beijou o topo da minha cabeça. — Mas pode aceitar se


casar comigo...
Foi algo tão súbito que eu cheguei a erguer a

cabeça para olhá-lo nos olhos. Confusa, quase


desnorteada, sem compreender.

— Como assim?

Ele deu uma risada sarcástica.

— Poderia jurar que se tratava de um pedido que

não precisa de segundas explicações. Existe outro tipo de


casamento? Alguma outra forma que eu não conheça?
Você é solteira, eu sou viúvo... Minha esposa morreu em

um acidente, Marta estava com ela e viu tudo. Eu não a


matei, aliás, como algumas pessoas da cidade alegam,

com o incentivo do Fernando.

Revirei os olhos, porque nunca acreditei naquela

baboseira toda.

— Não... mas você está falando sério?

— Por que brincaria com algo assim?


— Porque tem uma criança na história. Mais uma
vez. — Noah franziu o cenho, não gostando do rumo que a
conversa estava tomando. Levei a mão ao seu rosto

imediatamente. — Não, não me leve a mal. Só estou com


medo que queira me assumir por causa de Adam.

Podemos ser pais sem essa formalidade. Ou podemos


esperar... Como for melhor para os dois.

— Você não tem vontade de se casar comigo?

Uau. Era algo bem definitivo. Tornar-me esposa de


alguém. Mas ser mãe também era, não? E eu estava me

saindo muito bem. Além do mais, em todo aquele tempo


que passamos separados, eu sequer pensei na

possibilidade de conhecer outro homem, por mais que


alguns tivessem me abordado no bar onde trabalhava para
me convidar para sair, e tudo isso era porque ainda amava

Noah. Sabia que ele era o homem da minha vida, e eu


nunca poderia esquecê-lo.

Lá estava ele, portanto, me pedindo em casamento.

Seríamos uma família. Eu, ele, Adam e Alyssa. A


perspectiva me fez sorrir.

— Claro que eu quero.

— Eu quero também. Não tem nada a ver com

Adam, embora ele seja uma parte grande do pacote


maravilhoso que vou receber.

— Mas você não acha que é rápido demais?

— Rápido? Estou começando a duvidar da sua

noção de tempo, querida. Passamos um ano e meio

separados. Não quero passar nem mais um minuto...

Emocionada, inclinei-me um pouco, buscando sua

boca e beijando-o.

Teríamos aprofundando o beijo se não tivéssemos

ouvido um telefone tocando.

Nós nos entreolhamos, tendo plena noção de que

não se tratava de algo bom.


Pulamos da cama, e Noah começou a colocar sua

roupa, e eu fiz o mesmo. Encontrou seu telefone sobre a


mesinha da sala. Aproveitando o ensejo, fui ao quarto de

Adam, dar uma olhadinha nele e o vi dormindo, sereno,

completamente alheio a tudo o que acontecia.

— Oi, Moreira, pode falar. — Ouvi a voz de Noah se


aproximando. Quando me virei na direção da porta, lá

estava ele, sem camisa, apenas de jeans, segurando o

telefone ao ouvido.

Ele ficou calado por um tempo, mas podia ver em


suas expressões o quanto estava começando a ficar

preocupado. A linha forte de seu maxilar se contraiu, e

aquela carranca que eu conhecia muito bem se

aprofundou, formando uma linha entre suas sobrancelhas.

Seus murmúrios começaram a se tornar grunhidos,


e eu vi sua mão – aquela que não segurava o telefone –

fechar-se em punho, visivelmente irritado.


Uma coisa me surgiu na cabeça: Fernando. Isso me

causou um arrepio que percorreu meu corpo inteiro.

Ele tinha saído do Rio de Janeiro há alguns dias e já

poderia ter causado um estrago imenso, especialmente


pela forma como foi expulso da minha casa.

— Obrigado por avisar, Moreira. Estamos voltando

agora mesmo.

Encerrou a ligação e olhou para mim, com aquele

semblante de quem precisa dar uma notícia ruim.

— Fala logo, Noah — pedi, impaciente.

— OK. Vou ser direto. Fernando tirou Alyssa de


casa há algumas horas e a levou para a dele. Disse que

nos quer lá para conversarmos civilizadamente. E sim,

estou falando com a mesma ironia que Moreira disse que


ele usou.

Praticamente caí sentada na poltrona do quartinho

de Adam, sentindo minhas pernas fracas o suficiente para


não conseguir me manter de pé.

Aquele filho da puta! Como teve coragem de colocar

as mãos em uma criança?

— Ele já sabe que Alyssa é dele. Pelo que Moreira


me informou, ele sempre soube, mas nunca teve interesse

nela. Agora, aparentemente, quer se vingar do que

fizemos.

— Se vingar usando a própria filha? — quase cuspi


as palavras.

— É difícil acreditar que ele seria capaz de fazer

isso? — Noah levou uma das mãos à cabeça, suspirando

pesado, visivelmente controlando sua raiva. — Não


acredito que vá lhe fazer mal, mas, ainda assim, não

podemos deixá-la com ele.

— Claro que não podemos. Vou aprontar Adam para

partirmos, então iremos na casa dele para buscar Alyssa.


Estava preparada para começar a agir, mas Noah se

aproximou e agarrou meu braço, virando-o para ele.

— Valentina... você não vai comigo à casa dele —

afirmou com autoridade, mas eu o olhei com fúria nos

olhos.

— E você, Noah Smith, não vai me dizer o que


fazer. Aquele desgraçado está usando a menina para nos

atingir, tanto que ele pediu a presença de nós dois lá.

Nenhum de nós vai fazer nada sozinho.

Eu estava até ofegante depois de falar, e fiquei mais


ainda depois que o homem à minha frente se inclinou e

colou sua boca à minha, em um beijo que eu não sabia se

era por admiração, pela minha teimosia ou simplesmente


porque ambos estávamos tão desesperados, que era uma

forma de nos acalmarmos. Fosse o que fosse, eu

precisava. Ainda bem que, sem querer, ele conseguiu ler

meus pensamentos.
Assim que nos afastamos, começamos a preparar

tudo para a partida.

Ele foi até seu hotel para pegar sua mala e fazer o
check-out, enquanto eu arrumava algumas coisas minhas e

de Adam para levarmos. Voltou em tempo recorde e ainda

me ajudou um pouco. Então saímos, no carro dele.

Do banco do passageiro liguei para Jaqueline, para


lhe avisar o que precisaríamos fazer, e nem lhe poupei

nenhum detalhe, contando inclusive da malfadada visita de

Fernando à nossa casa. Minha amiga ficou indignada e

pediu que tomássemos cuidado.

Passamos boa parte do tempo de viagem calados,


conversando apenas quando precisamos parar em uma

loja de conveniência na estrada, porque Adam acordou,

Troquei sua fralda, dei-lhe de mamar e seguimos viagem


novamente.

Chegamos a Aurora dos Lagos em meio à

madrugada, e partimos para a casa de Noah. Marta, que já


estava avisada que chegaríamos, continuava acordada, e
eu duvidava muito que conseguiria dormir com Alyssa em

poder de Fernando. Ela também já sabia da existência de

Adam, e o recebeu com aquele seu jeitinho fraternal e


carinhoso.

Eu amava aquela mulher. Sabia que ela era a

adição mais maravilhosa que Noah poderia ter feito ao seu

staff de funcionários, embora todos fossem ótimos, mas ela


mantivera mais ainda o lado humano da casa.

Ela nos convenceu a descansar um pouco, porque

de nada adiantaria chegarmos à casa de Garcia àquela

hora da madrugada. Ele ainda poderia chamar a polícia

para nos incriminar.

Mas quando nos deitamos na cama, não


conseguimos dormir. Apenas ficamos abraçados, olhando
para a janela, esperando amanhecer.

Sabíamos que assim que o sol surgisse no


horizonte, chegaria a hora de enfrentarmos a realidade, e
ela não seria nada agradável. Só queríamos nossa
menininha de volta.
CAPÍTULO VINTE E SETE

O relógio mal tinha batido oito da manhã quando eu

e Valentina nos vimos na porta da casa de Fernando,


aguardando que nossa entrada fosse liberada. Moreira
estava avisado, assim como a polícia. Teoricamente seria

uma conversa civilizada, mas se demorássemos mais do

que meia-hora, já estavam avisados para fazer a denúncia.

Eu realmente esperava resolver tudo da melhor

forma possível. Só que sabia que isso era uma utopia. Por

qual outro motivo o cara levaria minha garotinha de sua


própria casa se não fosse para causar um verdadeiro

caos?
Com minha mão entrelaçada à de Valentina,

continuamos a esperar. Ficamos uns bons minutos de pé,


esperando, e ela não parava de bater o pé, completamente

impaciente. Eu me mantinha mais firme, porque sabia que

não havia outro jeito. Ele nos faria de palhaços o máximo


que pudesse. Sendo que ainda podia não nos permitir

entrar. Então eu teria que acusá-lo de sequestro, e aí as

coisas ficariam bem mais complicadas.

Mas para a minha surpresa, o portão foi aberto. Dois

de seus capangas vieram nos receber e começaram uma

revista, levando a coisa a sério demais. Fiquei olhando de


soslaio para o que se ocupou de Valentina, mas ele não se

meteu à besta. Ainda bem.

Novamente demos as mãos e caminhamos pela

trilha de entrada até a mansão, com os dois homens a nos

guiar. Entramos e fomos levados a uma sala de estar. Uma

governanta, no mesmo estilo de Marta veio nos oferecer

café ou água, mas Valentina respondeu, ácida e cortante:


— Não estamos aqui para uma visita social.
Queremos Alyssa e vamos logo embora.

A mulher não disse nada, apenas balançou a

cabeça e foi chamar seu patrão.

Mais uma vez Fernando nos fez esperar, como se

tivéssemos a vida inteira para aguentar suas palhaçadas.

Quando chegou, estava sozinho. Não havia nem sinal de

Alyssa.

Senti meu sangue ferver de ódio, mas estava

acostumado há muito tempo a precisar me controlar em

situações como aquela, porém, Valentina não parecia ter o

mesmo autocontrole. Tanto que deu um passo à frente,

quase se colocando na frente de Fernando, e eu precisei

segurá-la, enganchando um braço em sua cintura, porque


sabia que seu jeito passional poderia nos prejudicar.

— Cadê a menina? Me solta, Noah! Eu vou procurar


por Alyssa! — ela saiu falando, enfurecida, e eu nunca a

amei mais do que naquele momento, mas precisei contê-la


com mais força ou acabaria invadindo a casa do filho da

puta e nós seríamos culpados.

— Ela está em segurança. É minha filha, afinal. Eu

nunca faria mal a ela.

— Uma ova que não faria! — Valentina mais uma

vez cuspiu as palavras, completamente transtornada.

— Contenha sua mulherzinha, Noah, ou não

poderemos conversar. — Ele fez soar como uma ordem, e


só por isso eu já queria estrangulá-lo e deixar que

Valentina voasse em seu pescoço. No entanto, ela poderia


sair machucada, e eu não poderia permitir.

— Fale logo o que quer, nos dê a menina e vamos


resolver isso. Sei que não é dinheiro... — tentei a começar

a negociar, mesmo odiando cada segundo.

— Claro que eu não quero dinheiro. Isso eu tenho

muito. Eu quero te dar uma escolha...


Valentina relaxou um pouco nos meus braços, mas

eu sabia que não era por alívio. Não havia como se sentir
tranquila quando se estava negociando com o diabo. Ainda

assim, ela parou de se debater, colocando-se ao meu lado.


Olhei-a de soslaio e vi que sua expressão estava coberta

de preocupação. Não era para menos. Eu sabia que


Fernando não iria tornar as coisas mais fáceis.

— Não me olhem com essas caras. É uma coisinha


simples. E é Noah quem terá que escolher. A mulher ou a

menina. Uma delas será minha. Ele só precisa me dizer de


qual das duas consegue se livrar mais fácil.

Nós dois, tanto eu quanto Valentina, ficamos em

completo silêncio diante daquele absurdo. Como aquele


merda poderia querer que eu realmente escolhesse entre a
mulher que amava e a menina que eu considerava como

sendo minha filha? Aquela que criei desde bebezinha e


que me chamara de pai há pouco tempo?

— Não pode ser tão difícil, meu amigo. Em ambas

as situações você pode sair ganhando. Se deixar a ex-


virgenzinha comigo, vou te poupar um imenso trabalho, já
que sei que vai enjoar dela bem fácil. Se deixar a criança...
bem... crianças sempre são estorvos.

— Se acha Alyssa um estorvo, por que a quer? —

Valentina perguntou, com fogo na voz.

— Porque ela é minha. Como você deveria ser.

— Nenhuma de nós duas é um objeto que você


pode possuir, seu idiota! Somos pessoas. As escolhas são
nossas. Noah é o pai de Alyssa. Talvez não por sangue,

mas por direito. Ele a criou.

— E a trancou em casa esse tempo todo! Mal pôde

ir à escola. Que tipo de pai é esse? É um carcereiro, isso


sim! — ele vociferou.

— Eu não a tranquei — falei calmamente. Aquele

era mais um segredo que Valentina não sabia, e o motivo


pelo qual eu estava tão desesperado por Alyssa ter sido
tirada de casa. — Depois que a mãe morreu, a menina não
quis mais sair. De acordo com os psiquiatras e psicólogos
que contratei, ela se tornou agorafóbica.

Vi os olhos de Valentina se arregalarem,


compreendendo finalmente muitas coisas, sem dúvidas.

Principalmente o motivo pelo qual ela tinha aulas em casa.

— Isso é mentira, com certeza. Minha filha não é

louca!

— Claro que não! — rosnei. — Ela tem um distúrbio

e vinha sendo tratada. Só que a última psicóloga que a


atendia mudou-se de cidade, e Alyssa não se acostumou

com mais nenhuma. Os tratamentos com remédios

continuam, e eu tenho certeza de que ela vai melhorar.

— Eu a farei melhorar. Isso, é claro, se você


escolher ficar com a bonitinha aí. De repente sexo é mais

importante para você do que uma criança cheia de manias

e...

Naquele momento, todos nós ouvimos um barulho e


nos viramos na direção dele. Lá estava Alyssa, vestindo
uma camisola que ela usava na nossa casa,

provavelmente a roupinha com a qual estava quando fora


literalmente sequestrada.

Sua carinha assustada me partiu o coração, e eu

novamente precisei segurar o pulso de Valentina, quando

começou a querer se aproximar da menina em um


rompante.

— Papai? — ela perguntou olhando para mim. —

Você veio me levar de volta para casa? Eu quero ir. Estou

com medo.

Porra! Eu faria qualquer coisa para tirá-la dali, mas


temia a reação de Fernando em relação tanto a ela quanto

Valentina. Eu não deveria tê-la levado comigo para

negociar por Alyssa, porque me deixava vulnerável.

— Não ouse, Noah. Há seguranças meus por toda


parte — Fernando falou baixinho, muito sério e ameaçador,

mas ao se voltar para a criança tinha um sorriso falso no

rosto. — Eu sou o seu papai, querida. Já te falei isso! —


Reconheci uma nota de raiva em seu tom, de total

impaciência.

— Não. Meu papai é o Noah. Ele está comigo desde

que eu era pequenininha. Ele cuidou de mim e da minha


mamãe, antes de ela morrer.

Que garotinha maravilhosa. Que orgulho eu sentia

de ouvir suas palavras. Era uma pena pensar que eu tinha

cuidado tão mal das duas. Ainda assim, queria a chance de

dias melhores; de lhe dar uma vida melhor e de mostrar o


quanto a amava.

— Não, garota burra! — Fernando foi em direção a

Alyssa, mas eu segurei o ombro dele. Temia que pudesse

agredi-la, e isso eu não permitiria.

— Chegue perto dela e não importa quantos

capangas seus tem lá fora, vou terminar a lição que

comecei a te dar dias atrás — rosnei em um tom

ameaçador, que eu esperava que o intimidasse.


Não saberia dizer se surtiu o efeito desejado, mas,

ao menos, Fernando não se aproximou de Alyssa. Ficou


parado no mesmo lugar.

Só que a menina estendeu a mão para mim. Com

lágrimas nos olhos, sussurrando "papai". Como eu poderia

resistir a isso? Como poderia negar proteção à minha filha?


Porque era isso que ela era. Minha. Não importava o

sangue que corria em suas veias. Eu era seu pai.

Fernando tentou me impedir, colocando a mão no

meu peito e tentando me empurrar, só que eu já estava

completamente tomado pela angústia, como se houvesse


uma névoa diante dos meus olhos, cobrindo-os e me

tornando cego para qualquer outra coisa.

Girei o punho na cara do filho da puta, socando-o

tão forte ao ponto de fazê-lo cair no chão. Deveria ter um


pouco mais de respeito pela presença da criança, que não

deveria testemunhar nenhum tipo de violência, mas era a

ela que eu precisava proteger. Portanto, agarrei a mão de


Valentina, puxando-a comigo e correndo para Alyssa.
Colocando-me em um degrau abaixo e ficando um

pouco mais próximo de sua altura, peguei-a nos braços,

apertando-a contra mim, falando baixinho em seu ouvido:

— Papai está aqui. Vou te levar para casa.

Só que no exato momento em que me virei para

Valentina, ela estava distraída olhando a cena, enquanto


Fernando sacava uma arma, apontando-a para ela.

Não pensei duas vezes. Ele não ia atirar na minha

mulher, de jeito nenhum.

Apressei-me ao máximo para me colocar diante


dela, para receber o tiro. Para morrer, se fosse preciso.

O som veio, assim como a dor.

Eu só queria ter uma chance de dizer que as

amava... Só isso...
CAPÍTULO VINTE E OITO

Gritei como louca quando percebi que o tiro tinha

sido dado. Minha primeira reação foi agarrar a criança e


puxá-la contra mim, apertando seu rostinho contra o meu
peito para esconder seus olhinhos. Não podia permitir que

visse nada. Ao mesmo tempo, queria saber o que


aconteceu.

Segundos depois de o tiro soar, outros sons


preencheram o silêncio que se formou no momento que

sucedeu o tiro. Pessoas começaram a se movimentar, a


falar, e eu não entendia nada. Sentia-me congelada como

uma covarde, sem coragem de ver como Noah estava.


Ele tinha se colocado na minha frente para levar um

tiro por mim. Se morresse... Se ele morresse eu não sabia


o que faria...

Só que, às vezes, a vida pode nos oferecer

milagres...

— Valentina... — era a voz dele. E ela não soava

frágil, como a de um homem moribundo.

Além disso, uma mão firme e pesada pousou no

meu ombro com delicadeza.

— Querida, está tudo bem, olhe para mim — ele


pediu, e eu lentamente fui atendendo, afastando a criança

de mim, que parecia ser puxada por outra pessoa.

O primeiro rosto familiar que vi foi o Dr. Moreira, que

pegava uma Alyssa igualmente assustada e também a

confortava. Depois, duas mãos seguraram meus braços, e

eu fui girada na direção de Noah.


Lá estava ele, lindo, de pé. Busquei todo o seu
corpo, principalmente o peito, para onde a arma fora

apontada, procurando alguma ferida, mas ele parecia

intacto.

— O quê? O que aconteceu... Eu ouvi o tiro.

Noah ergueu uma sobrancelha, com uma expressão

quase cínica.

— Além de tudo o idiota não é um bom atirador. Ele


errou por pouco, mas o tiro só passou por cima do meu

ombro. — Assim que terminou de falar, ele apontou para

uma parte da parede onde havia um buraco.

Conforme conversávamos, alguns oficiais da polícia

seguravam Fernando e o algemavam, e eu podia ouvir

cada um dos desaforos que falava, só que o que realmente

importava era que estávamos bem: eu, ele, Alyssa e nosso

filho, que nos esperava em casa.

Tão tensa que estava, senti minhas pernas


falharem, mas Noah foi rápido em me amparar e me puxar
para seus braços, onde me aconcheguei sem nem pensar

duas vezes. Pouco depois, senti mais uma pessoinha


entrar naquele abraço, e eu também a apertei contra nós,

formando uma tríade que eu esperava que seria


inseparável.

Depois de realizarmos algumas burocracias, fomos


para casa, e pudemos finalmente apresentar Alyssa a

Adam. Foi amor à primeira vista. Ela mal conseguia largar


o irmão, pegando-o e enchendo-o de beijinhos, dizendo

que iria amá-lo para o resto da vida, que iria sempre


protegê-lo. Jurei que era a coisa mais linda que eu já tinha

visto, principalmente quando Noah sussurrou no meu


ouvido:

— Era uma vez uma família...

Não poderia haver uma escolha melhor de palavras


para nosso pequeno conto de fadas...

Naquela mesma noite, deitados em nossa cama, na


escuridão e no silêncio do nosso quarto, respirei bem
fundo, e Noah percebeu.

— O que foi? Algum problema? — indagou

preocupado, fazendo valer sua promessa de que nunca


mais iria negligenciar nada e que iria cuidar de mim.

— Não. Eu só fico me perguntando por que algumas

pessoas precisam passar por tantas coisas para ficarem


juntas. Por que algumas não têm a sorte de simplesmente
se conhecerem, se apaixonarem e terem um

relacionamento tranquilo e feliz?

Noah se remexeu e quando me dei conta, ele estava


pairando sobre mim, com nossos rostos próximos, a

centímetros de um beijo. Era estranho pensar que fazia


algum tempo que nos amávamos e que até tivéssemos um
filho juntos, mas que aquela proximidade ainda fosse algo

tão recente. Eu deveria me sentir intimidada ou


desconfortável, mas, não. Eu só me sentia em paz.

— Cada um tem a sua história. O importante é o que


vai ser escrito daqui em diante. A minha proposta de
casamento não mudou, Valentina. Ainda quero que seja
minha esposa, e não por causa de Adam, mas porque eu
te amo. Porque quero ficar do seu lado para sempre.

Não pude conter um sorriso bobo ao olhar para ele e

pensar que tínhamos seguido realmente um longo


caminho. Que foram muitos meses sofrendo e

completamente sem esperança de que algum dia


estivéssemos daquela forma, nos olhando apaixonados e
ouvindo-o dizer que me amava.

— E eu aceito. Porque também quero ficar com

você para sempre.

Com um daqueles seus sorrisos contidos, Noah


simplesmente inclinou a cabeça e me beijou, como uma

promessa. Uma prova concreta de que aquilo que


tínhamos dito não seria apenas da boca para fora. Eu
sentia, em sua respiração, na urgência de sua língua, na

calidez de seus lábios, que suas emoções espelhavam as


minhas. Fora um dia longo, com uma manhã assustadora,
mas se estávamos ali, juntos, era porque nossos destinos
estavam entrelaçados.

Noah ia se afastar, provavelmente pensando que eu


não estava pronta depois de tudo pelo que passamos, mas

eu agarrei sua blusa e comecei a tirá-la, indicando não só o


que eu queria, mas o que precisava.

Ele não hesitou, intensificando o beijo, e nós nos

despimos com tanta pressa que as roupas voaram pelo


quarto, indo, provavelmente, parar nos lugares mais

inusitados.

Com a força de seus braços Noah nos girou,

colocando-se sentado na cama, comigo montada em seus

quadris, e ele rapidamente tomou um dos meus mamilos


na boca, enquanto eu me encaixava, sentindo-o inteiro

dentro de mim, empalando-me e me dando uma sensação

de alívio. Nossa comunhão era mais uma evidência de que


tudo começaria a ser bom a partir daquele momento.
Movimentando-me, ainda inexperiente, tentei

encontrar um ritmo, enquanto ele se ocupava ainda dos


meus seios, e um de seus dedos encontrava meu clitóris,

massageando-me e fazendo-me acelerar as reboladas,

para que ele chegasse mais fundo.

Os grunhidos de Noah começaram a se tornar mais


e mais selvagens, o que me deixava ainda mais excitada.

Ele levou meus dentes à carne do meu ombro, mordendo-

me e começando a fazê-lo por outras partes também,


inclusive os seios, como se realmente quisesse me

devorar.

Levando as mãos aos meus quadris, Noah começou

a me ajudar com as estocadas, mais uma vez pegando

forte, sem a delicadeza da primeira vez. E eu gostava


disso. Talvez mais do que deveria...

Ou não, afinal, o prazer que me consumia naquele

momento era incomparável, e eu sabia que Noah estava se

sentindo da mesma forma. Tanto que chegamos ao


orgasmo quase juntos, com poucos segundos de diferença,
e eu despenquei em seu peito, sentindo-o ofegante, assim

como eu também estava.

Ficamos em silêncio por um tempo, mas não saí de

cima dele, mantendo-o dentro de mim, porque


simplesmente não conseguia me afastar, porque queria

aquela sensação o tempo todo.

Quando pensei que tínhamos terminado, Noah

simplesmente se levantou da cama, comigo entrelaçada

em sua cintura, e, sem dizer absolutamente nada, me


levou ao banheiro, entrando no chuveiro.

Soltei uma gargalhada quando me segurou com um

braço só e abriu o chuveiro com a outra mão, colocando-

nos sob o jato de água morna e deliciosa.

Como se não tivéssemos acabado de nos devorar,

ele me imprensou na parede, tomando meus lábios mais

uma vez, e nós nos beijamos pelo que pareceram horas,

enquanto a água nos encharcava. Enquanto nos


tornávamos escorregadios, e eu me preparava para ele

mais uma vez.

Ao me penetrar, Noah já estava duro como uma


pedra, e ele mais uma vez não foi gentil. Só que,

protegidos pelo som da água caindo, nós dois nos

perdemos um pouco mais em gemidos e sons de prazer.

Ele estava me deixando viciada em seu corpo, nas


coisas que podia fazer, no quanto tínhamos química juntos.

Mas ele tinha me prometido um “para sempre”, não

tinha? Eu não aceitaria menos do que isso.

E foi nisso que pensei quando mais uma vez

gozamos quase ao mesmo tempo, encontrando-nos nas


estrelas...
EPÍLOGO

TRÊS ANOS DEPOIS

Fechei os olhos sentindo como se a música


penetrasse por cada um dos meus poros. Era um deleite

ter uma esposa tão talentosa e uma filha que estava


chegando lá. As duas estavam sentadas no piano,

próximas à nossa árvore de Natal – que era

exageradamente grande, embora combinasse com o resto


da casa –, e elas riam e tocavam alguma música que a

adolescente Alyssa adorava, de algum desses cantores de


quem eu não sabia o nome.
Nosso pequeno Adam corria de um lado para o

outro com Olaf. O cachorro fora um presente para sua


irmã, mas os dois se tornaram completamente inseparáveis

desde que puseram os olhos um no outro, mesmo quando

meu filho era apenas um bebezinho.

Moreira e sua esposa também estavam presentes,

assim como Jaqueline e Carlos, seu namorado, e ela exibia

uma bela barriga de gravidez. Os dois tinham se mudado


para perto de nós, e Valentina ficara muito feliz com isso. E

se minha esposa estava feliz, eu também estava.

Desde que ela fora morar comigo, nós já tínhamos

acrescentado mais algumas pessoas em nossa lista de

funcionários; todas pessoas com seus problemas pessoais


e que tínhamos certeza de que não iriam conseguir outros

empregos tão facilmente. Além disso, criamos uma

pequena instituição para abrigar órfãos, animais

abandonados e pessoas que precisavam de um teto.

Valentina ensinava música para as crianças, e eu ajudava

ensinando algumas pessoas a empreenderem.


Fernando Garcia continuava preso, principalmente
depois de descobrirem várias falcatruas de sua enorme

padaria, incluindo sonegação de impostos. No âmbito

pessoal, depois que Valentina o denunciou, dias depois de

chegarmos em casa, outras mulheres também se

manifestaram a respeito de assédio e agressão sexual, o

que complicou ainda mais a vida do filho da mãe. Com


isso, as pessoas da cidade foram entendendo que ele não

era um príncipe. E que eu não era uma fera. Ao menos

isso foi o que minha linda esposa lutou para incutir em

suas mentes.

Com uma taça de champanhe na mão, observei-a

enquanto ela se levantava do banquinho do piano,

deixando Alyssa responsável pela música, e vinha até mim.


Colocou-se na ponta dos pés, mesmo que usasse uma

sandália de salto alto, beijando-me, e eu retribuí, tentando

me conter. Sempre que a tinha assim tão perto era difícil

fingir que não desejava jogá-la nos ombros como um

homem das cavernas e levá-la para a cama.


— Feliz Natal, meu amor — ela falou, com sua voz

doce, e eu olhei no meu relógio de pulso.

— Meia-noite, já? — surpreendi-me.

— Sim. Está na hora do seu presente... — Sua frase


me deixou surpreso. Ela já tinha me presenteado,

exatamente com aquele relógio que eu usava naquele


momento e no qual havia checado a hora.

Ergui uma sobrancelha, demonstrando minha


confusão. Ainda assim, deixei que pegasse minha mão e

me guiasse pelas escadas, até o nosso quarto.

Sobre nossa cama havia uma caixa vermelha. Não

era muito grande, mas ela se destacava sobre a colcha


branca, especialmente porque tinha um enorme laço a

fechá-la, de bolinhas, e era uma gracinha.

— O que você aprontou, mocinha? — Valentina

continuava indo muito bem com sua música, preparando


composições para alguns filmes, séries, e até mesmo a
nível internacional. Eu tinha muito orgulho dela e sabia que

podia ir muito mais longe, se quisesse.

— Eu? Nada... foi o destino.

Sua resposta misteriosa me deixou curioso, então


eu fui ansioso abrir a caixinha.

Precisei me sentar na cama assim que vi o pequeno

objeto lá dentro. Eu não entendi nada daquilo, mas


imaginei que Valentina não me daria de presente um teste
de gravidez se eu não estivesse prestes a me tornar pai

mais uma vez.

Segurando o palito do teste, eu o ergui, já sentindo a

emoção me dominar.

— Nós vamos ter mais um bebê? — minha voz soou


até embargada.

Alisando a barriga, ela balançou a cabeça,

assentindo, afirmando que estava grávida.


Levantando-me de um rompante, fui até ela e a
peguei nos braços, erguendo-a do chão, sentindo uma
explosão de felicidade que nunca pensei ser capaz de

sentir, depois de tantas coisas pelas quais passei. Mas ali


estava aquela mulher, dando-me mais um motivo para

amar a vida e me sentir o mais sortudo dos homens.

Beijei-a com paixão, sussurrando mil obrigados,


porque não havia outra coisa que eu poderia lhe dizer.
Agradecer por ela ter entrado na minha vida, por se

esforçar tanto para que tudo fosse perfeito diariamente. Por


ser muito mais do que eu sonhava. Por me dar uma

família. Por tornar minha existência algo com muito mais


sentido.

Assim que eu conseguisse falar, diria tudo aquilo


para ela. Eu só precisava me recuperar da emoção.

Eu seria pai outra vez. Teria a chance de vê-la

grávida.

Dali a alguns meses haveria outro bebê conosco.


Deus... como a vida podia ser boa!

FIM

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