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Copyright © 2019 by Alessa Ablle.

TÍTULO Em Ruínas
IMAGENS DA CAPA © Depositphotos
ILUSTRAÇÃO & DIAGRAMAÇÃO Artessa Covers
REVISÃO & PREPARAÇÃO DE TEXTO Carla Fernanda
REVISÃO Amandda Bennett
1. Romance | 2. Newadult | 3. Drama

Todos os direitos desta obra reservados à Alessa Ablle.


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copyrights.
Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa (Decreto Legislativo n° 54, de 1995).
INDICE

AGRADECIMENTOS
PRÓLOGO
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
QUARTOZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE & UM
VINTE & DOIS
VINTE & TRÊS
VINTE & QUATRO
EPÍLOGO
NOTA DA AUTORA
Para:
NANE FRAGNAN.
Ainda bem que você está aqui para ler esse livro, que está aqui para ser
minha parceira. Está aqui, viva, para ser mãe, amiga, esposa e uma guerreira.
OBRIGADA!
AGRADECIMENTOS

Dessa vez resolvi agradecer as pessoas que ACREDITAM em mim, que


reclamam quando penso em desistir e dá bronca quando deixo as pessoas me
magoarem e falam comigo SEMPRE!
A elas todo o meu amor, admiração, carinho e gratidão.
Vocês são o carvão do trem!
A pilha do brinquedo.
O combustível da máquina.
O gás do balão.
O oxigênio da chama (aprendi com o Tom Hanks que para ter fogo
precisa de ar. Filme é arte. Hahaha...).
VOCÊS de verdade são os impulsos involuntários dos compassos do
meu coração. Sério, está bem difícil, mas vocês acreditaram em mim é o que
me faz continuar. Nada importa. Dane-se se não for como sonhei, se tiver
vocês na fila do autógrafo, os comentários, as estrelas e pensamentos
positivos.
OBRIGADA, Amanda! Mais que minha irmã, assessora. Hahaha. Você
sabe que é muito além disso. Não sei como seria “eu” sem você. Ainda bem
que Deus me deu a melhor irmã que existe. Acredite nos seus sonhos
também, pois acredito em você.
OBRIGADA, Carla Fernanda. Mais que revisora, amiga, incentivadora e
companheira das madrugadas. Meu Deus, você é um anjo que Amanda Maia
colocou na minha vida.
E, portanto, OBRIGADA, Amanda Maia. Mais que amiga de profissão e
editora de vídeo, uma fofa guerreira. Não desista! Você escreve tão bem
quanto uma “famosona” lá de fora. Um dia, o mundo lhe dará o devido valor
que merece.
OBRIGADA, Andressa Gomes. Você é sem dúvida a pessoa que eu
pensei que não me aturaria por tanto tempo e olha para NOIX aqui. Obrigada
por todo apoio, carinho e paciência comigo. FORÇA, GUERREIRA!
OBRIGADA, Zoe X. Nossa, você é tipo “UAU!” e não deve se sentir
menos que isso. Você é o “UAU!”. Que pessoa doce. Que olhos tão
transparentes que transcendem além de rostos que se mostram. Você é a
pessoa sem máscara que não mostra o rosto. Sabe o que é isso? RARIDADE!
Fico feliz que me escolheu para colocar debaixo das suas asas de anjo negro
protetor e defensivo. É tipo minha irmã. ;) Te adoro!
OBRIGADA, Anathielle. Parceira? Não! Muito mais que isso. É a líder
de torcida das betas, das parceiras, das divulgadoras, das meninas do zap.
OBRIGADA, TM Kechichian. Para mim, Tetê! =P Você surgiu, de
repente, na Bienal de 2018 e nem acredito que hoje somos amigas que faz
LIVE (de duas horas. Haha...) e conversas de áudios monstruosos (todos os
amigos ganham eles. Está na lista dos: Pode enviar áudio de 10 min que vai
ouvir). Acredite que vai dar certo, porque vai!
OBRIGADA, Cau Gomes. Você sabe que é a madrinha do Adam (ela
que escolheu o avatar pro Wattpad) e mora no meu coração. Gratidão pelo
apoio, força e carinho que sempre me dá. Sinto sua falta, mas fico feliz de
estar trabalhando, a vida em ação!
OBRIGADA, Poli Cunha. Obrigada por me aguentar há três intensos,
profundos e longos anos. Você é meu pontinho de luz também; e que você
consiga conquistar a paz dentro de si que precisa. Que seja feliz de verdade.
OBRIGADA, não menos importante, aos meus pais, minha avó e meus
catioros. Minha família, que faz eu almejar grandezas para se orgulharem e
baterem no peito e falarem: “Essa é Alessa Ablle, a escritora” Rs...
E OBRIGADA, não menos importante, as minhas betas por aguentar
capítulos atrasados, ansiedade e o drama de Adam. Vocês foram muito
importantes para mim nesse livro!
Galera do grupo do WhatsApp, não esqueci de vocês. OBRIGADA!
OBRIGADA! E OBRIGADA!
E OBRIGADA a você leitor (novo e antigo). Fiz esse livro para trazer
um alerta para as nossas saúdes.
Viva. Ame. Cuide-se.
Com toda gratidão,
Alessa Ablle >.<
ATENÇÃO!
Autorrisco de passar raiva. (risos)
Adam vai deixar você com muita vontade de bater nele, mas isso é o
mais legal porque quando ele “surge” entre suas rachaduras, você vai querer
abraçá-lo e guardar num pontinho.
Manas, esse livro quase se chamou “A Redenção de Adam”. Não! É sério
isso.
Enfim, boa leitura e no final não esqueça sua avaliação. Ela é MUITO
importante para eu saber o que acharam.
XOXO (beijos e abraços)
Se você gosta de música como eu.... ouça a playlist de #EmRuínas no
Spotify. Lá tem todas as músicas citadas no livro.
CLIQUE AQUI :) LINK.
PRÓLOGO

Eu lembro disso agora,


isso me leva de volta para onde tudo começou
Mas eu só tenho a mim mesmo para culpar por isso,
e eu aceito isso agora
É hora de deixar tudo para lá,
sair e começar novamente
Mas isso não é tão fácil

HIGH HOPES | KODELINE

Novamente um soco é distribuído em meu rosto, já sangrando e


marcado. Cambaleio para trás, me escorando pela pilastra do bar para não
cair. Dói, mas nada nunca superará a maior dor da minha vida, que me assola
noite e dia. Sendo sincero, as noites me assombram, pois é quando os
pesadelos chegam. Os pesadelos que são as lembranças terríveis daquele dia.
— Adam, chega, cara. Você vai acabar se matando.
Viro-me para Harry e simplesmente cuspo o sangue que se acumulou na
minha boca e o ignoro.
Eu sei que, assim como a minha família, Harry quer o meu bem. Ele é
meu melhor amigo desde a infância. Esteve comigo a vida inteira e sabe o
que sofri, contudo ele não foi o culpado. Ele não perdeu tanto assim. Não
sente o mesmo que eu, e nunca saberá como dói se sentir infeliz por estar
vivo diante de tudo que vejo refletido nos olhos das pessoas que perderam o
mesmo que eu. Estar vivo diante do que causei me consome.
Coloco-me de pé novamente, meio tonto, e vou para cima do cara
novamente.
Estamos brigando tem uns quinze minutos e, para ser franco, nem me
lembro mais o que inventei como pretexto para arranjar essa briga com um
cara duas vezes o meu tamanho num bar que sempre venho.
Mas quer saber? Foda-se! Eu quero mesmo sentir um mínimo de dor
física para, talvez, conseguir diminuir a dor que esmaga meu coração.
Mais alguns socos e empurrões, o cara para abruptamente com a mão em
riste na minha cara e franze a testa, que está intacta ao contrário da minha
com o supercílio sangrando.
— Não vale a pena. Você é louco. Cresça, garoto.
— Vai se ferrar! — O empurro e saio do caminho.
Jogo-me na cadeira da mesa onde eu estava há meia hora atrás e bebo o
resto da minha cerveja, agora quente e insossa. Merda!
— Vlad, traz uma gelada! — grito.
— Traz merda nenhuma! — Harry berra tirando a carteira do bolso e
colocando uma nota de vinte dólares sobre a mesa. — Vamos embora agora.
— Está pensando que é minha mãe? Não me enche, Harry!
— Ele tem razão, Adam. Você precisa ir para casa e limpar este rosto,
talvez até ganhar uns pontos na sobrancelha — Vlad fala.
— Ah, quer saber? — reclamo, levantando-me. — Vou pra casa mesmo.
Lá eu tomo minha cerveja em paz e ninguém vai monitorar minha vida. Vão
se foder os dois!
— Você está perdendo a cabeça.
Solto uma gargalhada irônica e fito Harry.
— Eu tinha mesmo que perder. Assim morria logo.
— Você não tem noção nenhuma das besteiras que fala, Adam.
— Harry — coloco as mãos nos seus ombros —, vai pra casa também.
Daqui a pouco, Ava aparece aqui te procurando. Você tem uma família, uma
vida, então esquece a minha — solto e viro-me resmungando. — Uns com
tanto e outros com nada, e ainda achando no direito de interferir na vida dos
outros.
— Não fala assim. — Meu amigo aparece do meu lado.
Reviro os olhos e solto um suspiro com força. Eu estou tão cansado
disso tudo. Sem responder, cortando a chance de ouvir mais frases de
incentivo para eu tomar rumo na minha vida, saio do bar.
Sei que tudo que eles fazem é para o meu bem. Todos que me
conheceram antes querem o Adam de volta, mas isso não vai acontecer nunca
mais. Certas coisas que quebram não têm como emendar. Alguns cacos estão
estilhaçados demais e viraram partes perdidas para nunca mais. Alguns erros
são irreparáveis, como o que causei.
Olho para os dois lados da rua e atravesso, sentindo Harry atrás de mim,
mas sua presença logo some quando ele pega seu carro estacionado um pouco
antes da esquina da rua. Ele veio do trabalho apenas para me importunar.
Ando em silêncio olhando para as árvores da rua como todas as vezes
que saio do bar, que até a minha casa é apenas andar em linha reta. Por isso
nunca me perdi mesmo bêbado. Basta eu virar, seguir em frente e estou na
minha rua, isso indo a pé. Para Harry é contramão. Ele passa por dois
quarteirões para chegar até lá.
Por ora, ganho uns bons minutos a sós até chegar no mesmo destino
sabendo que ele estará na porta. Sempre que ele tem tempo para fazer seu
trabalho de babá, que ultimamente está acontecendo com frequência já que
minha irmã (esposa dele. Sim, eu achei bem estranho ela casar com meu
melhor amigo) está cuidando da minha sobrinha de três meses.
Já estou na rua de casa quando, após longos quinze minutos
(normalmente o trajeto faz apenas cinco, oito minutos), estou do lado da rua
que fica minha casa e vejo Harry. Chegando nos degraus vejo o carro dele,
que estaciona um pouco atrás, já que o meu veículo está na frente da minha
casa. Eu poderia muito bem entrar e fechar a porta na cara dele, ignorando
sua presença, mas não consigo ser cretino desse jeito. Paro no topo da escada
e acompanho seus passos até o final. Ele para e solta uma respiração
exasperada.
— Você poderia facilitar a minha vida às vezes.
Reviro os olhos e assinto para não o deixar mais irritado.
— Está bem. Da próxima vez, eu venho pelo mesmo caminho que você.
— Deixa de ser infantil, Adam. Agora entre, tome um banho gelado e
vai dormir.
— Cara, você não é minha mãe.
— Não sou, mas sou uma das pessoas que se preocupa com você e quer
o seu bem. Agora entre. Só vou embora quando ver você trancar a porta.
Sem poder me controlar, solto uma gargalhada forte e balanço a cabeça.
Harry é hilário.
— Boa noite — despeço-me dando-lhe as costas.
Entrando em casa, tranco a porta como ele queria. Faço porque é óbvio,
não porque ele me manda. Ninguém me manda.
Respiro fundo e parado, fito o quadro de uma Santa que minha mãe
colocou na parede no final do corredor. Puxo uma respiração profunda e
fecho os olhos. Não tenho muito o que fazer, apenas subir para o meu quarto
e me jogar na cama. Meus dias se repetem. Nada de novo, de novo.
UM

ME AJUDE, EU FIZ ISSO DE NOVO


JÁ ESTIVE AQUI MUITAS VEZES ANTES
ME MACHUQUEI DE NOVO HOJE
E O PIOR É QUE NÃO
HÁ NINGUÉM PRA CULPAR

BREATHE ME | SIA

Por mais que eu queira continuar na minha cama fofa e quente, tem
algum ser desprovido de inteligência que não parou de apertar a campainha
nos últimos vinte minutos, porque se fosse esperto já teria entendido que:
número 1: não tem ninguém; ou
número 2: ninguém quer atender.
Jogando as cobertas para longe, levanto da cama procurando minha
blusa. Dormi com a roupa de ontem, já que não tomei banho. No entanto,
como sou calorento, enquanto dormia tirei a camisa de manga comprida.
Resmungando pela forte dor na cabeça aperto os olhos e me arrependo.
— Merda! — Dou um berro e, passando pelo corredor do segundo
andar, olho meu reflexo no espelho. Meu olho está inchado. Ontem eu
exagerei.
Não tenho muito tempo para pensar, a campainha toca mais uma vez e
grito que já estou indo descendo as escadas. Mas que porra de pessoa
ansiosa! Não sabe esperar não?!
— Que droga! — resmungo e abro a porta.
Dou de cara com uma garota magra (até demais), os olhos azuis bem
claros, passivos e curiosos. Está vestida com uma calça jeans clara, bota que
já deve ter visto dias melhores e provavelmente uns cinco casacos. Na mão
carrega uma mala e nas costas, a mochila que, com certeza, está cheia. Franzo
a testa e ela abre um sorriso, que é claramente um pedido para deixá-la entrar.
Olhando atrás dela, vejo minha rua coberta de neve e, para melhorar, um
vento forte que forma uma geada. Ela deve estar congelando, porque eu
estou.
— Pois não? — Tento ser educado.
— Posso entrar? Sua mãe disse que você estaria me esperando.
O quê? Eu perdi alguma conversa no caminho?!
— Quem diabos é você?
— Belinda. Sua mãe me contratou pra ajudar você... — fala e seus olhos,
com um rápido movimento, vislumbram minha casa por trás de mim,
formando uma careta de nojo — com a casa.
Okay. Eu sei que minha casa já viu dias melhores (e isso tem muito
tempo mesmo), mas não vou ficar aqui vendo uma qualquer fazer cara de
desdém para minha residência. Quem ela pensa que é?
Antes mesmo de eu abrir a boca e profanar algum insulto para ela, tem
outra pessoa que não perde por esperar por minha ligação.
Fecho a porta na cara da garota com uma batida forte e evidentemente
com raiva. Soltando uma dúzia de palavrões subo as escadas para pegar meu
celular no meu quarto. Rapidamente faço a ligação para minha mãe, já
descendo ao encontro da garota. Dessa vez, ela passou dos limites. Vai ter
que me explicar o que, merda, está passando na sua cabeça.
No terceiro toque ela atende com sua alegre saudação. Minha mãe
parece aquelas protagonistas de filmes de Natal em família. Ela, no caso, é
aquela mãe rica com um casamento feliz e os filhos realizados na vida
(mesmo que, na realidade dela, não seja assim). Ela sempre está feliz e
disposta. E isso me irrita tanto. Não sei como alguém consegue ser assim
vinte e quatro horas por dia. E se me cansa estar perto, imagina ser ela.
— Oi, meu filho querido. O que você quer? — fala meiga como se não
soubesse por que estou ligando às oito da manhã de um domingo, onde
claramente eu estaria dormindo ainda.
— Eu quero que a senhora me explique por que tem uma mulher na
minha porta com um olhar de nojo para minha casa dizendo que veio a
mando da senhora? O que tem na sua cabeça?
— Filho...
— Mãe — interrompo-a —, eu não mandei arrumar nada para mim. Já
não falei pra parar de se meter na minha vida. Por que é tão difícil me largar e
deixar eu viver minha vida da maneira que eu acho melhor?!
Christal Stella solta uma respiração pesada, demonstrando como está
esgotada de mim. Ela não sabe o quanto também fico às vezes.
— Filho, eu só queria ajudar você. Ela não será ninguém.
— Ela já é alguém, mãe. E entenda, eu não quero mais nada. Está muito
bom do jeito que está. Não tem que melhorar nada.
— Querido, eu só quero o seu bem.
— Já sei, mas eu não quero. É tão difícil entender?
— Não fala assim.
Sinto em sua voz a profunda tristeza de ouvir seu filho profanar algo tão
obscuro. No entanto, é a verdade.
— Adam, me escute, por favor.
— Hum? — Faço exasperado e espero.
— A menina só vai limpar sua casa e fazer comida pra você. Cuidar de
você já que eu não posso ir todo dia aí. Então, aceite. Eu pedi para ela não
perturbar você. Ela será invisível e você nem a notará.
— Pera aí. Você está querendo me dizer que ela vai ficar pra sempre?
Mamãe ri alto e consigo imaginá-la balançar a cabeça como se eu fosse
um menino fazendo birra e perguntando algo estúpido.
— Não para sempre, Adam — explica como já imaginava. Como se eu
fosse uma criança. — Ela só ficará aí por um tempo. Belinda não tem...
— Nem vem com essa. Eu não quero ninguém na minha casa.
— Adam, seja flexível.
— Eu?! Por Deus! A senhora está se metendo na minha casa agora. Não
sou eu que preciso ser flexível aqui.
— Para com isso agora, menino. Já faz seis anos. Seis anos que eu tento
convencer você a viver. A voltar a viver. Não sou obrigada a assistir meu
filho morrer dia após dia pelo remorso que não cabe a ele. Foi um acidente!
Um acidente, Adam. Ninguém foi culpado. Quando chega a hora de partir,
infelizmente não tem jeito e as perdas sempre deixam desculpas. Então, por
favor, tente por mim. Você pode não querer muita coisa, mas pelo menos ter
um pouco de limpeza e decência em sua casa, seria muito bom. Belinda será
uma companhia neutra. Fique tranquilo. Eu conversei com ela.
— Ótimo, a garota me acha maluco. — Não que eu me importe.
— Ela não sabe de nada. Eu apenas disse para ela que você é reservado
e não gosta que o perturbem. Por favor, querido, seja flexível só desta vez e é
Natal. Você poderia aproveitar o clima e ser bonzinho para mim.
Reviro os olhos e, por respeito e amor aos meus pais, irei ceder desta
vez, mas juro por mim mesmo que será a primeira e única vez que acontece.
Eu não tenho mais esperança. Não há mais nada para mim. Infelizmente
sobreviver àquele acidente, não é algo que eu tenha por que agradecer. Eu
não merecia estar aqui. Minha família diz que não fui culpado, mas eles
sabem que oitenta por cento da culpa foi minha. Por que não aceitam e me
dão o que mereço? A destruição que eu implantei na vida daquelas pessoas,
na vida deles mesmo. Merda de vida!
— Uhum — resmungo. — E o que ela vai fazer por aqui?
— Ela vai fazer comida, limpar a casa e cuidar dos telefonemas, porque
você tinha prometido para mim que iria voltar a trabalhar e com isso
precisará de uma secretária.
Respiro bem fundo, tão forte que chega a doer meu peito e quando solto
o ar sei que minha mãe consegue sentir no seu rosto.
— A senhora não vai desistir?
— Nunca.
Assinto olhando para o chão e, por alguma razão, lembro do meu tempo
quando via minhas fotos sendo expostas e até quando eu simplesmente
trabalhava e registrava as fotografias.
— Está bem. Como eu disse: vou tentar.
— Fico muito feliz de você tentar, meu amor. Você sabe que tudo é
porque amo você.
— Está bem, mãe. Desta vez você venceu, mas só desta vez.
— Filho, um dia você vai me agradecer por não desistir de você como
está fazendo estes seis anos. Eu te amo e sempre vou amar e lutar por você,
entendeu?
— Uhum — resmungo. — Agora preciso atender a garota.
— Certo e, por favor, não a maltrate. Ela não tem culpa de você sentir
raiva de si mesmo o tempo todo. Agora, vai lá e qualquer coisa me ligue.
Como se eu alguma vez liguei. Eu nunca incomodo ninguém e adoraria
que fizessem o mesmo comigo.
Encerro a ligação sem me despedir, pois foi explícito nas minhas últimas
palavras que a ligação acabou. Deixo o celular no bolso da calça e caminho
para a porta de casa, e abro com rispidez.
A garota está sentada na mureta da varanda, encolhida, abraçada à
mochila e de cabeça baixa. Assim que percebe que estou parado olhando-a da
porta, ela se levanta desajeitadamente, coloca a mochila pendurada em um
dos ombros e se aproxima como uma presa em perigo. Não digo que não seja,
mas não sou um monstro.
— Entre logo. Se você morrer com este frio, minha mãe ainda vai me
culpar.
Mais um remorso para minha conta.
Minhas palavras devem ter tido um efeito bem dramático e inesperado,
pois a garota prende o fôlego e, enquanto passa por mim e entra na minha
casa, solta a respiração vagarosamente. Ela está nervosa.
Fecho a porta e me viro, deparando-me com a tal garota parada no meio
do corredor observando sutilmente minha casa.
Cerro os olhos e consigo vislumbrar suavemente quando seu nariz
enruga ao olhar para a sala de estar. Estufo o peito, enchendo os pulmões de
ar e vou (como quem não quer nada) ver o que a fez fazer cara feia (pela
segunda vez) para minha casa.
Ah... ela está com nojo das caixas de pizza, as caixinhas de batatas fritas
do McDonald’s, e as latinhas de cerveja e refrigerante sobre a mesa de centro
e no sofá. Também tem caixa de yakisoba na cômoda da TV, e umas roupas
sujas jogadas pelo sofá, chão, cadeira da sala de jantar. Franzo a testa quando
vejo uma meia jogada em cima no abajur. Como ela foi parar ali?
A garota limpa a garganta e caminha. Vou atrás e é impossível não fazer
uma reflexão sobre minha casa agora pelos olhos de outra pessoa. Está tudo
imundo. Onde vivo é um lixo e para os que me conheceram anos atrás, essa
casa nunca seria minha. Eu era cuidadoso e posso dizer limpo, pois é óbvio
que se eu fosse limpo ainda não estaria vivendo aqui neste estado lastimável.
— Onde eu vou ficar? — ela pergunta parando abruptamente, se virando
para mim e eu quase caio em cima dela.
Respiro fundo e sou obrigado a frear meus passos segurando seus
ombros com força. Ela engole em seco e pisca como se estivesse com medo.
(Ela tem olhos muito bonitos. Não sei por que, mas observo isso
atentamente). E, por favor, eu não sou um monstro. Se bem que o estado que
vivo parece que sou uma fera e ela a bela jovem, indefesa, invadindo minha
casa.
— Desculpe — peço me afastando dela.
— Sem problema.
Viro-me, querendo o máximo de distância e vou para as escadas, indo
para o segundo andar apresentar a casa.
— Aqui tem quatro quartos e o seu será o primeiro depois da escada. O
meu é o último, que é o terceiro andar todo junto com meu estúdio.
— Uhum... — escuto-a concordar atrás de mim.
No corredor do segundo andar, faço uma careta para o espelho que está
tão sujo que não reflete mais nada. A poeira é a outra moradora desta casa
depois de mim. Que horror! Estou ficando inquieto com isso. Não é bem
vergonha, já que ninguém tem alguma coisa a ver com a minha vida, mas fico
incomodado com os julgamentos de alguém estranho, que no caso é a garota
que olha com a testa franzida o topo da porta do seu futuro quarto com uma
teia digna de ter uma aranhazinha passeando. Que grande merda!
— É aqui. Pode entrar e se acomodar, depois começa a limpar como
minha mãe disse — aviso e dou as costas, indo para o meu quarto.
Não aguento mais ver sua cara de nojo. Não gostou, então limpa, porra!
— Seu nome é Adam, certo? — Consigo escutá-la antes de subir as
escadas e paro.
— Sim — respondo sem encará-la.
— Está certo. Prazer, sou Belinda.
Fecho os olhos e conto até dez antes de me virar e andar até ela. Faço um
aceno de cabeça como se estivesse registrando seu nome e percebendo que
tem mais alguma coisa a dizer, espero sem muita paciência.
— Eu queria dizer que não é minha intenção perturbar sua vida. De
verdade. E-e... — ela engole em seco — e me desculpe sobre fazer a cara feia
pra sua casa. Não foi minha intenção.
Hum... ela me ouviu falando isso pra minha mãe, ou percebeu que eu
notei sua cara feia, e não gostei.
Dou de ombros para não dizer o que penso sobre ela, que não é nada. Ela
não significa nada na minha vida.
— Agora posso ir? — indago sem esboçar algum sentimento.
— A-a-ah... po-pode sim — gagueja.
Reprimo a vontade de rir. Acho bom mesmo ela ter medo de mim.
Assim fica longe.
Esfregando meu rosto, dou-lhe as costas novamente e vou para o meu
quarto. Eu mereço dormir mais um pouco. Acho que o corpo quando fica
muito tempo parado acaba querendo ficar mais tempo sem fazer nada. No
caso, quanto mais eu durmo, mais eu quero dormir.
Tenho nada pra fazer mesmo. Já poderia morrer, mas Deus não quis
obviamente e nem meus pais querem. Então, o jeito é dormir e esquecer.

Acordo com uma pontada forte na cabeça e resmungo sentando na cama.


Santo inferno. Que dor de cabeça infernal. Eu deveria parar de beber e
canalizar essa dor toda em outra coisa, mas acontece que não consigo. Eu
simplesmente preciso sentir alguma coisa e tudo o que eu mereço é dor.
Levanto da cama indo direto ao banheiro e depois que faço minhas
necessidades, olho-me no espelho e vejo os hematomas no meu rosto. Está
pior que antes. Está horrível e a causa da dor de cabeça é meu olho roxo.
Passo o dedo delicadamente e chio sentindo arder.
— Droga! — resmungo e, decidido, tiro minha roupa e entro no banho.
A água quente queima minha pele e limpa toda a sujeira e sangue de
ontem à noite. Eu daria tudo pra ser um jato de água fria sobre mim, mas não
há ninguém em sã consciência que tome banho frio neste inverno. Se bem
que o aquecimento global está acabando com o inverno bonito de Nova York.
Nevar (algo que era esperado na época do Natal) é algo a ser realmente
comemorado quando acontece nos tempos atuais.
Saio do banho e me enrolo na toalha assim que me seco. Parado em
frente à pia, abro o armário e pego o remédio de dor de cabeça, tomo com o
copo que deixo no banheiro depois e pego o anti-bactericida e passo nos
lugares machucados do meu rosto e na mão. “Eu sou um idiota!”, é o
pensamento que me ocorre ao sentir a ardência do remédio.
No quarto caminho até o closet e rapidamente visto minhas calças, a
blusa e o suéter novo que minha mãe me deu no dia de Ação de Graças,
quando trouxe a faxineira dela para limpar a casa e o jantar, já que eu não
quis ir em sua casa. Não tenho por que agradecer nada, então preferi ficar em
casa do que estragar o dia deles.
Estou saindo do quarto quando escuto alguns barulhos no andar de
baixo. Franzo a testa e desço as escadas correndo.
O que diabos é isso?
Chegando no corredor vejo um balde com esfregão, pano de chão num
canto e um cheiro bom de limpeza.
Ah! É a garota que veio cuidar da casa.
— Pelo visto, você já começou — constato entrando e olhando-a na
cozinha.
Ela está em cima de uma escada, que eu nem me lembrava mais,
limpando em cima do móvel. Surpresa, ela vira-se para mim e encolhe os
ombros. Realmente ela tem medo de mim e isso já está ficando
desconfortável.
— Sim. Achei que não houvesse problema.
— É, claro que não. Você veio pra isso mesmo.
Seus olhos arregalam e ela assente mantendo-se em silêncio.
Balanço a cabeça e finalmente entro na cozinha a fim de procurar algo
para comer. Na geladeira só encontro cerveja, uma pizza velha, uma caixinha
de comida japonesa que eu comprei sexta passada e leite para acompanhar
meus cereais. Eu preciso fazer umas compras.
Pego uma vasilha e me sirvo de uma porção generosa de cereais com
leite, ponho sobre a pia. Colocando o pó de café na cafeteira, a ligo e volto a
pegar a vasilha e vou comer na sala. Mas antes paro e dou uma olhada na
garota.
— Você já comeu?
Ela desce o rosto e me fita com o semblante que não sei descrever.
— Não — murmura.
Bem, talvez seja por isso que é tão magra. E sem contar que não tem
muitas opções para ela comer aqui em casa. Vou resolver isso depois, agora
eu vou comer e deixar o remédio que tomei fazer efeito.
— Tá — digo e me viro, indo para o sofá.
Merda! Eu devo ter cochilado depois que comi e por causa do remédio
que tomei, porque a primeira coisa que vejo agora são grandes olhos azuis me
encarando com curiosidade e algo mais. O que ela quer?
A garota olha para mim como se eu fosse dar um bote em cima dela a
qualquer momento e devorá-la. Sinceramente, não sei até quando vou
aguentar ela com medo de mim. Porra, eu sei que não fui a melhor pessoa que
provavelmente a recebeu em sua casa, mas eu não estava esperando-a e para
mim ela é uma estranha. Foi minha mãe que trouxe e assim sendo, ela vai
continuar sendo uma estranha até eu achar que não tem que ser.
Certo, eu estou sendo um cretino, porém quando eu não quero, nem
adianta insistir. Não vou mudar e nada vai fazer eu mudar. Sou de leão e
gosto das coisas do jeito que eu quero, não como as pessoas querem.
— Você quer alguma coisa?
Ela fica surpresa com meu questionamento e sua postura muda de
apavorada para alarmante. Sério que eu tenho essa cara toda de mau?
— Não... Quer dizer... — ela para, engole em seco e, por incrível que
pareça, seus olhos conseguem ficar mais arregalados. Qual o problema dessa
garota?
— Você quer alguma coisa? — repito com a voz um pouco mais firme.
— Hum... é que eu estou limpando aqui e você está deitado... no so-so...
sofá — gagueja. — E eu queria limpar aí.
Cerro os olhos fitando-a concentrado e depois que eu acho que tenho um
colapso, respiro exasperado e balanço a cabeça. Desço meus olhos e encaro o
sofá. Realmente ele está do mesmo estado que boa parte da casa, o que
costumava manter. Roupas sujas, caixas de comida e... meu Deus, o que uma
cueca está fazendo ali? Rapidamente pego-a esticando minha mão e puxando
dentre o vale das almofadas do sofá e levanto como se tivesse algo muito
urgente para fazer nesse momento.
— Está tudo bem. Pode limpar o sofá agora. — Faço uma pausa e dou
uma boa olhada na sua aparência. — Você comeu alguma coisa?
Ela balança a cabeça sutilmente e eu assinto soltando a respiração
irritada.
— Certo, vou ao mercado comprar algumas coisas para comer, porque,
pelo que você viu, não tem nada. Eu não sei se a minha mãe falou que você
precisava ir no mercado. Não sei, fazer alguma compra ou ela vai vir trazer.
Ela te colocou aqui dentro e nem me preparou para isso... — Penteio meus
cabelos para trás com os dedos e passo a mão na minha barba. — Enfim, vou
resolver esse problema antes que você morra de fome.
Eu não acredito que falei isso tudo em voz alta. Saco! Tem momentos
que eu quero muito cortar minha língua. Falo demais quando durmo pouco,
ou talvez seja essa garota com seus olhos curiosos.
Não espero ela fazer algum gesto ou falar algo, me viro e vou procurar
as chaves do carro nos ganchinhos que ficam perto da porta. Como eu
esperava encontro-as e as pego saindo de casa, carregando meu casaco que
usei ontem à noite e deixei minha carteira.

Chego do mercado uma hora depois e nem acredito que demorei tanto.
Saio do carro e o contorno para pegar as compras no porta-malas.
— Adam? — Escuto e viro-me para ver quem é.
Algo dentro do meu peito aperta quando nossos olhos se encontram. O
que ela está fazendo aqui? Eu não a via há seis anos. Desde o...
— Que surpresa — diz com suavidade e abre um sorriso pequeno. —
Você parece... parece bem.
Assinto engolindo em seco e ajeito a sacola de papelão nos braços.
— Não pensei que você morasse ainda aqui — fala mais uma vez,
porque eu simplesmente acho que perdi a capacidade de falar.
Mexo os ombros e meneio a cabeça. O que eu deveria dizer?
Sim, eu moro aqui ainda depois que perdi meu desejo de viver. Depois
que vi duas pessoas muito importantes da minha vida partirem por minha
culpa.
— É — solto e deixo de encará-la e pego a outra sacola e depois fecho a
mala.
— Hum... — ela murmura e eu volto a olhá-la. — Pensei que você
tivesse se mudado, senão já teria vindo aqui... te visitar.
— Não tem problema. Está tudo bem — essa é a maior mentira que já
contei na vida, claro que depois de dizer para a minha mãe que irei tentar de
novo seguir com minha vida e minha carreira.
— Que bom – diz com um sorriso acolhedor, mas seus olhos
transparecem toda a pena e julgamento que tem sobre mim, que visivelmente
não pareço bem com o supercílio machucado e uma barba cultivada pelo
relaxamento e desprezo.
Se ela está pensando que não estou bem, mas acredita que estou porque
digo que sim, ela faz o mesmo que eu. Ignora a realidade.
Eu nunca mais fiquei bem depois de tudo que aconteceu e cultivo
arduamente o único sentimento que consigo reconhecer ainda: a dor. Eu
deixo a dor fazer parte de mim. Deixei as janelas e as portas escancaradas
dando liberdade ao medo e a dor.
E agora dar de cara com Sarah (a cópia fiel da minha dor) é como atear
fogo nas memórias. Um filme passa na minha cabeça e as recordações boas
não são bem-vindas. Elas morreram. Morreram junto com tudo mais.
Parece que passa uns dez minutos inteiros que ficamos nos olhando em
silêncio. Até que ela puxa uma respiração profunda e desvia os olhos
rapidamente, para quando me encarar de volta, esteja mais tranquila.
— Bem, tenho que ir.
— Eu também. — Indico as compras.
— É — ela ri. — Desculpe perturbar você.
— Sem problema.
Ela assente e segura a alça da sua bolsa com força.
— Hum... foi muito bom ver você, Adam. Até a próxima.
Assinto com a cabeça e curvo o canto da boca. Nós dois sabemos que
não desejamos nos esbarrar de novo. Nós não damos boas lembranças para
cada um.
— Até — ela fala de novo e vira-se, atravessa a rua e caminha sem olhar
para trás ou hesitar.
Estranhamente acompanho-a até que some ao virar a esquina e solto a
respiração pesada. Balanço a cabeça e subo as escadas.
Dentro de casa vou direto para a cozinha, que está vazia e limpa como
não vejo há muito tempo. Deixo as compras sobre a mesa que tem no canto.
Vou até o portal que dá para as salas e não vejo a garota. Ergo as
sobrancelhas e volto minha atenção para as compras, tirando das sacolas.
Quando termino de colocar as coisas da geladeira para refrigerar, saio da
cozinha e subo.
— Ai, que susto! — a garota reclama assim que entro no banheiro do
meu quarto.
Ótimo, agora ela está por aqui.
Levanto a sobrancelha esquerda e depois franzo as duas. Ela respira
fundo e pega o balde com pressa e sai. Mas antes aviso:
— Comprei um monte de coisa. Vê lá na cozinha e coma algo.
Ela assente e, pela primeira vez, vejo um sorriso. Está relaxando na
minha presença. Acho bom. Eu não mordo, porra.
— Está bem. Vou ver o que dá pra fazer rápido pro jantar.
— Não se incomode. Eu me contento com um lanche.
Ela dá de ombros, mexendo a cabeça de forma engraçada e finalmente
sai do meu quarto fechando a porta.
Fico um tempo encarando o nada e não sei o que pensar. Sarah mexeu
comigo de um jeito estranho e essa garota me intriga. Não sei se minha mãe
me falou tudo que eu preciso saber.
Mas quem se importa com a vida dela? Depois de ver a casa limpa, ou
melhor ficando limpa já que o dia está acabando e ela não terminou ainda,
acho que consigo me acostumar em ter alguém para cuidar das coisas. No
fundo, eu não gosto de sujeira. Só deixei chegar no estado que estava porque
não tenho ânimo para nada.
A esperança se alimenta de sonhos. E todo sonho é um futuro. E eu não
penso no futuro, não quando não me livro do passado. Não há sonhos nos
meus amanhãs. Minha esperança está condenada a apenas existir e nada
mais.
Sou como um homem que entra na igreja, mas que não acredita mais.
Um homem que assiste à missa com a fé perdida.
DOIS

Mas você se tornou


outra pessoa perto dos outros
Você está cauteloso,
como se não conseguisse relaxar
Você está tentando ser legal
Mas parece um idiota para mim

COMPLICATED | AVRIL LAVIGNE

Acho que nunca trabalhei tanto na minha vida como nesses últimos três
dias, mas estou feliz. É gratificante ver minha obra de arte sendo construída.
Porque vou confessar. Limpar essa casa foi como pintar uma obra e eu
consegui fazer algo digno comparado a Pablo Picasso.
Nesses dois dias eu limpei o primeiro andar todo e no segundo só
consegui limpar os outros quartos, incluindo o meu que estava com rastros de
cupim. Comprei veneno para colocar antes que Adam perca tudo.
E hoje estou aproveitando que Adam saiu e entrei no quarto dele e estou
quase acabando. Meu Deus, esse homem está doente ou não sei, talvez seja
uma fase. A cama dele provavelmente não via uma roupa de cama limpa há
muito tempo. O chão de madeira está triste e a única parte menos
“abandonada” é o banheiro.
Coloco as mãos na cintura e solto a respiração cansada.
— Pelo menos, aqui ele limpava — falo olhando o banheiro recém-
lavado. O vidro do box está brilhando.
Pegando os panos sujos, coloco dentro do balde e carrego a vassoura
para fora do quarto comigo, fechando a porta.
Vou direto para a área de serviço e deixo as coisas lá. Lavo as mãos com
vontade e volto, entrando na cozinha. O almoço está quase pronto.
Estou fazendo algo simples, que todo mundo que eu conheço gosta de
comer, e espero que Adam não seja chato para comer, o que eu já desconfio.
Na primeira vez que o vi comer foi cereal (acho que nunca vou esquecer
aquele dia) e depois um sanduíche de peito de peru. Ontem ele comeu
macarrão com queijo no almoço e na janta. Ele que fez e pelo menos, dessa
vez, lembrou de mim.
Sei lá, eu não consegui sentir raiva dele em nenhum momento até agora,
mesmo sendo tratada como uma intrusa e ele dificultando tanto tudo.
Ontem à noite fiquei pensando... Ele detesta minha presença e eu não
estou cem por cento feliz de precisar estar na casa dele, mas não tenho outra
opção. Preciso do dinheiro e dessa ajuda.
Tenho que juntar uma boa grana para fazer o plano de saúde e os
exames, que adiei por tempo demais. Só meu corpo sabe o quanto fui
negligente e relaxada com minha saúde. Sempre pensando no amanhã, no
depois e nada de cuidar da maldita dor que me faz contorcer nas noites mais
doloridas. Agora estou desesperada depois de conversar com uma médica e
contar meus sintomas e ela dar várias opções do que pode ser. Estou
morrendo de medo.
O cheiro do arroz queimando no fundo da panela me tira dos
pensamentos caóticos.
— Merda! — Desligo o fogo. — Eu não preciso disso.
Corro até a gaveta de talheres e pego uma faca e a enfio no meio do
arroz. Minha avó me ensinou esse truque para que não fique o gosto de
queimado.
Alguns minutos depois, inclino-me e cheiro o arroz. Perfeito. Satisfeita,
pego o frango temperado e coloco para grelhar.
Vinte minutos depois, a mesa está posta e apetitosa. Fico parada olhando
como uma boba. Não sei o que penso. Por que eu estou preocupada se Adam
vai chegar a tempo de pegar a comida quente. Ele nem liga pra mim. É um
mal-educado do caramba.
— Sabe de uma coisa? Vou comer e voltar ao trabalho.

Estou parada há meia hora em frente a uma porta que fica embaixo da
escada. Na verdade, estou tentando adivinhar o que é e se eu devo ou não
abrir. Tenho medo de que seja aqueles porões assombrados e se levar em
conta que o dono desta casa é um cara obscuro e o prédio tem uma aparência
suja e abandonada, pode ter muitas chances de que essa casa tem fantasma.
— Ai, para com esses pensamentos, Bel! — repreendo-me cruzando os
braços e fazendo careta.
A única coisa que você precisa se preocupar, é do senhor mal-humorado
chegar logo. Estou me sentindo muito bem hoje para ele estragar o meu dia
com sua presença.
Tem dias que eu sinto tanta dor que minha vontade é de ficar na cama e
não levantar nunca mais. Deus sabe o esforço que faço há mais de um ano
para lidar com essa cólica infernal. E também sabe que eu não tinha dinheiro
antes para ir ao médico.
Então, quando eu acordo bem e disposta, gosto de aproveitar cada
segundo do dia. E é por isso que minha mão está na maçaneta, girando a
mesma e empurrando a porta.
Meus olhos se arregalam com a escuridão, mas me arrependo, a poeira
quase seca minhas retinas.
— É, pelo jeito vou ter um grande trabalho por aqui.
Rapidamente volto à área de serviço e pego o balde, panos limpos e
desinfetante. Aquele lugar, por mais escondido que esteja, precisa de um
cheiro melhor do que de meia suja. Carregando tudo de um jeito atrapalhado,
mas eficiente, entro no porão depois de acender a luz que dou graças a Deus
por estar funcionando e iluminar todo o ambiente.
Enquanto desço as escadas observo as paredes ao lado. São de ripas de
madeira e depois que passo o concreto da casa, posso ver o porão todo, e é
bem grande, mas nada assustador. Posso dizer que é triste e abandonado
como todo o prédio e a casa antes de eu limpar, é claro.
O balde faz um barulho alto quando finalmente chego ao “chão” e me
atrapalho com tudo em minhas mãos.
— Não pode ser! — exclamo indignada com o que vejo no canto.
Eu me matei esses dias todos, essas horas todas, como uma louca para
tirar a poeira dessa casa e olha o que temos aqui. Um aspirador de pó. Céus!
Isso seria de tanta ajuda. Argh! Agora já era e pelo menos nas próximas
limpezas vou usá-lo. Se estiver funcionando.
Curiosa como sempre, começo a caminhar pelo porão e tento achar
alguma pista para o estado de espírito de Adam. Eu conheço toda a família
dele e sinceramente não consigo entender como um cara de uma família tão
alegre e educada pode ser tão grosso e mal-humorado.
Tudo bem que todo mundo tem seus problemas e algumas crises na vida
nos deixam diferente, estressados, mas confesso não consigo aceitar o jeito
dele. Acho que eu só fico quieta todas as vezes que ele é mal comigo, porque
não tenho outra opção, porém vai chegar uma hora que eu não irei me
sucumbir. Em algum momento, ele vai falar alguma graça ou vai fazer
alguma coisa. E não irei ficar calada.
Esquecendo isso, observo o lugar.
Têm três armários, dois sofás velhos, uma pia, fogão e geladeira,
provavelmente para se caso acontecer um terremoto ou apocalipse (que nem
nos filmes). No entanto, Adam não sobreviveria de todo modo. O armário da
despensa está vazio (como estava o lá de cima), a geladeira também não tem
nada. Está bem, tem sim, cerveja e mais cervejas. No armário que seria de
roupas e roupa de cama, está praticamente sem nada. Parece que o fim dos
tempos já chegou por aqui.
Do jeito que ele vive...
Contudo, o armário nos fundos, quase escondido, na direção dos fundos
da escada, têm várias coisas e sei deste detalhe sem abri-lo, porque as portas
são de vidro. É aquele armário de buffet para colocar louças que nunca são
usadas. Acho que era da mãe dele, pois na casa dos Stella agora tem um duas
vezes maior do que este. Talvez dona Christal tenha trocado e dado este aqui
para o filho.
Com passos lentos, chego mais perto e observo tudo. Na última
prateleira tem um violão, pastas grossas, cadernos e uma jaqueta de couro. Na
de cima um capacete (daqueles pequenos e ridículos) e alguns livros. E nas
duas prateleiras de cima, em destaque, tem várias máquinas de retrato.
São seis máquinas, algumas antigas e outras novas. Tem duas caixinhas
de acrílico com filmes para fotografar, lentes de vários tamanhos. E tem oito
caixas brancas, que parecem novas. Limpas, diferente de todo resto dentro
desta casa.
E é óbvio que pego e abro as caixas. São filmes de fotos não reveladas,
ou se foram ele guardou por recordação. Na outra caixa tem mais filmes.
Pego mais uma e acho desta vez negativos, mais outra e encontro fotos.
São quatro caixas só de fotos e álbuns de retrato, que folheio. Várias
fotografias lindas. Fotos de paisagem, de crianças, de pessoas brincando e
vivendo. De casamento, de todos os tipos de fotografias. Coloridas, preto e
branco, em sépia. E são fotografias lindas. Dignas de exposição em um lindo
museu de fotos ou até mesmo serem emolduradas e guardadas em casa.
Será que foi ele que tirou? Será que antes de se trancar dentro de casa
que nem um bicho selvagem (e deixar aquela barba crescer monstruosamente,
porque obviamente ele não cuida, pois há homens que têm barbas grandes e
não parecem abandonados.) e nem quero falar do cabelo que já vira dias
melhores e uma boa tesoura. Enfim... será mesmo que antes dele se tornar
esse cara obscuro era um fotógrafo talentoso? Porque isso eu não tenho
dúvidas.
Estou olhando as fotos distraidamente, observando cada detalhe e seu
jeito de fotografar. Depois pego as máquinas e vejo se alguma delas funciona.
Surpreendentemente consigo bater uma foto em cada máquina.
Curiosa pego o capacete e virando descubro o nome dele atrás e dentro
do violão, que parece ter tido dias melhores. Está faltando duas cordas e
talvez eu testasse tocar. Meu irmão me ensinou há muitos anos. Eu não canto
bem, mas toco violão maravilhosamente.
— O que você está fazendo aqui?
Sabe aqueles momentos dos filmes que a personagem morre, ou tem
uma parada cardíaca, ou simplesmente dá comercial para criar um clima ou
aliviar o choque da cena. Então... é este momento agora.
Eu queria muito um “break”, um comercial longo e tedioso, para não
estar morrendo do coração agorinha. Merda!
Por que que ele tinha que voltar logo agora? Por que ele não podia
passar o dia inteiro fora? Ele não faz nada dentro de casa mesmo. Não faz
diferença ele aqui, só me atrapalha a limpar tudo e... O que que eu estou
fazendo aqui também?
Que pergunta idiota? Eu estou limpando essa maldita casa que não acaba
de ficar limpa nunca.
Tudo bem! Respiro fundo aliviando meu estresse e irritação. E o meu
medo por ele ter me pego aqui xeretando. Às vezes, um porão é como uma
caixa escondida debaixo da cama. Não é para ninguém mexer. É para ficar
guardando bugigangas e segredos que ninguém nunca deverá saber.
Então... já que eu sou uma enxerida (já é a segunda vez que ele me
chama assim, agora não chamou, mas foi como fosse uma acusação).
Largo as coisas, levanto (porque eu estava sentada distraída e
confortável vendo tudo da vida dele, tentando desvendar “Qual é a real face
de Adam ser um amargurado”. Aprumo minha postura e viro-me de frente
para ele lentamente.
Ele está todo de preto, o que não é incomum. As únicas roupas que eu já
o vi usar é essa calça jeans, o casaco preto, o cinto arrebentando e as blusas
brancas ou pretas. Quem olha pensa que talvez ele não tenha outras roupas,
ou outras cores de blusas pelo menos. Mas a verdade é que no armário dele
existem várias roupas, e muitas coloridas. Ele tem sapatos coloridos, calças
coloridas, todos os tipos de roupas: de qualidade, de marca e de tecido, mas
ele só usou as mesmas nesses dois dias e meio que estou aqui.
Não sei qual é o problema e, sinceramente, vou ficar maluca se tentar
desvendá-lo.
Talvez com o tempo, eu... Poxa, cheguei “ontem” como eu quero do
nada saber quem ele é? Isso é um absurdo. Espera aí, eu estou me
questionando por estar dentro da casa de uma pessoa estranha? Esse é o
questionamento mais louco que já tive. Cala a boca, Belinda!
— Eu estava limpando.
Ele puxa a respiração com força e cerra os olhos.
— Tenho certeza de que minha mãe não mandou você limpar o porão,
afinal de contas ninguém liga para ele.
— Eu conheço gente que limpa, mas talvez você nunca tenha limpado...
— Pauso ouvindo a vozinha: “Cala a boca e saia daqui agora”.
— Mas eu não falei para você limpar aqui.
Pisco com força e mordo a boca.
Eu era para me sentir insultada? Porque, sinceramente, a única coisa que
estou sentindo é raiva e um pouco humilhada. Estou um pouco puta da minha
vida por eu não poder responder ele como desejo. Minha vontade... A minha
vontade... A minha vontade é...
— Algum problema? Você não entendeu o que eu falei por acaso? Você
mudou de língua.
Balanço a cabeça lentamente.
— Ótimo, então não entre mais aqui nunca mais e, por favor, suba e
entre no seu quarto ou vá para cozinha, saia, dê um passeio, qualquer coisa.
Apenas saia daqui. Eu não quero você aqui embaixo nunca mais. Eu não
coloquei regras, você entrou na minha casa porque minha mãe quis e ponto.
Mas já que a casa é minha e você vai ficar aqui por sei lá qual necessidade, eu
não estou ligando. Mas talvez seja bom, eu vou ajudar alguém, no entanto
quero que você entenda, Belinda. O porão é uma área restrita a você. Não
quero que você entre aqui nunca mais. Está me entendendo?
Assinto freneticamente.
— Me desculpa. Eu realmente... — pauso me sentindo culpada.
Eu não deveria ter entrado aqui e só vim mexer para implicar com ele e
tentar desvendar quem é ele, mas não é da minha conta. Eu tenho que estar
aqui porque preciso, então se ele não quer que eu Nunca Mais venha aqui
embaixo. Eu Nunca Mais venho aqui embaixo.
Preciso dar o braço a torcer e pedir desculpas e sair com o rabinho entre
as pernas subindo as escadas. Sinto-o vindo atrás de mim com a respiração
ofegante, e não porque está fazendo este exercício de subir a escada, e sim
porque está bem irritado.
Quando chegamos ao corredor e ele vai bater a porta e está prestes a
trancar (provavelmente esconder a chave), eu falo rápido:
— Eu deixei o balde e os panos e tudo que eu uso para limpar a casa lá
embaixo. E não tem outros. E-e-e... eu sei que você não queria que eu tivesse
ido lá, mas vi que tem um aspirador de pó e ele me ajudaria muito a limpar a
casa.
Ele para, olha para baixo e respira fundo. A mão vai para a cabeça
mexendo nos seus cabelos rebeldes e que precisa urgente ser aparado. Solta a
respiração e olha para mim sem demonstrar absolutamente nenhum resquício
de sentimento. Ele parece um robô.
— Vai lá embaixo e pega, depois você fecha a porta e me dê a chave. Eu
vou ficar esperando na sala. Você tem uns dez minutos.
— Tudo bem. Eu não vou demorar.
Me viro para entrar novamente no porão e pegar minhas coisas. Quando
estou no meio da escada escuto a voz dele.
— Aproveita que você desceu e guarda tudo que você tirou do lugar de
volta no armário. Sem mexer em nada mais. — Sua voz para de repente. —
Quer saber?
Escuto os passos dele atrás de mim e o sinto um degrau acima de onde
estou. Lentamente, viro-me e dou de cara com seus olhos impetuosos.
— Eu vou ficar esperando aqui — diz sem humor. — Se quiser me dá o
aspirador e o balde que já levo e te ajudo. Mas eu quero que você coloque
tudo no lugar que tirou, por favor.
Mm... Adam Stella sabe falar “por favor”.
Embora ele tenha sido grosso, como sempre, e me fazer sentir como um
rato de esgoto. Estou realmente surpresa com esse “por favor”.
Acho que o resquício de educação que a família tenha lhe dado ainda
está dentro dele. Só precisa de... prática?
Será que a “fera” ainda pode ser adestrada?
TRÊS

Você pode ficar viciado em um certo tipo de tristeza


Como renúncia ao fim, sempre o fim
Então, quando descobrimos que não podíamos fazer sentido
Bem, você disse que ainda seríamos amigos
Mas vou admitir que fiquei feliz que tudo acabou

SOMEBODY THAT I USED TO KNOW | GOTYE (FEAT. KIMBRA)

De todas as coisas que ela poderia mexer e limpar na minha casa, o


porão era a última delas. E aquele armário seria com toda certeza o último
dos móveis, mas olha o que vejo agora; a dona enxerida mexendo onde não
foi chamada.
Pegando-a de surpresa demonstro minha desaprovação com a voz e a
mando sumir do porão. E ela vai prontamente mostrando todo seu pavor. No
entanto, quando estou fechando a merda da porta, ela me vem com um papo
de “aspirador de pó”.
Mas que garotinha... O que tem de bonita (nada muito chamativo. Ela é
pequena demais. O nariz dela me dá vontade de tocá-lo pra ver se é de
verdade), ela tem de insistente.
Assim que falo para ela ir e não demorar, uma ideia surge na minha
cabeça e desço as escadas, encontrando-a no meio do caminho. É engraçado a
forma como me encara depois que falo que vou ficar e ajudá-la a terminar
logo. Só estou fazendo isso porque do jeito que ela é, vai acabar fuxicando
mais minhas coisas e sabendo o que não deve.
— Vai continuar me olhando ou vai pegar o que você deixou aqui? —
pergunto olhando-a nos olhos, mas desvio. Ela me deixa inquieto.
Ela limpa a garganta e assentindo repetidas vezes, termina de descer e
pega o balde e a vassoura, me entregando.
— Deixa que eu levo o aspirador. Não se incomode.
— Não será incômodo algum — principalmente se eu estiver com os
olhos em você e nas suas mãos.
Sua boca se curva suavemente para o lado e eu me viro. Subo rápido e
deixo tudo no canto perto da porta do porão. Ao me virar, esbarro nela e sou
obrigado a segurá-la para não cair escada abaixo e quebrar a droga do
pescoço.
Meu Deus! Eu preciso da minha paz de volta, coisa que não tenho há três
dias.
— Obrigada — ela murmura e olha minhas mãos ainda a segurando.
Fito seus olhos, com os meus cerrados, e solto um resmungo. Eu seria
um maluco se a deixasse cair, não é? Não precisava agradecer, porra!
Meneio a cabeça e como ela é leve demais e eu, apesar de muitos
acharem que só sei viver para beber e reclamar da vida nesses seis anos,
passo um tempo na academia do Henry (o dono da academia de artes
marciais que frequento no Broadway, levo um bom tempo indo até lá, que
vale muito a pena por vários motivos, incluindo o dono. Henry e eu acabamos
nos tornando amigo), a levanto como se fosse uma boneca e coloco de pé em
frente a porta.
Ela abre um sorriso nervoso e confuso, e depois franze a testa olhando
para si mesma. Recuo e balanço a cabeça. Não sei o que está passando em
sua cabeça e não quero saber. Dou-lhe as costas e desço dizendo sobre os
ombros:
— Não precisa vir ajudar. Vai descansar.
Com certeza é o que está precisando. Ela não parou desde que chegou e
eu aparento que não me importo com ela, mas não é verdade. Eu só não digo
ou demonstro porque, sinceramente não a conheço de verdade. Para mim, ela
continua sendo uma surpresa, que está deixando de ser desagradável para
aceitável. Vejamos, minha casa está limpa e eu tenho comida fresca. Se eu
reclamar disso, sou um filho da puta.
O silêncio aqui embaixo é algo que começa a me incomodar quando vou
me aproximando do armário. Tem uma frase que diz: “Mente vazia é oficina
do diabo”, e para mim o silêncio com toda certeza é a oficina da amargura e
pensamentos depressivos. Eu sei disso há seis anos. Todas as vezes que quis
me afundar na tristeza do meu passado, preferi o silêncio e a solidão. Elas me
confortaram muito bem, pois representavam perfeitamente o vazio dentro de
mim. As perguntas sem respostas que fazia o tempo todo ao nada.
Meus passos congelam quando estou em frente ao armário. Eu fecho os
olhos e meu coração parece que vai sair pela boca. Eu deixei essas coisas
aqui porque eram dolorosas demais quando estavam muito perto de mim,
perto do alcance das minhas mãos, que as pegavam para recordar de um
tempo que nunca mais vai voltar.
Eu não vejo essas câmeras há cinco anos, porque depois do acidente
fiquei como um louco tirando fotos de todos os detalhes do local onde
aconteceu.
Não subo na minha moto, não pego esse capacete há três anos. E essa
distância foi porque minha mãe sabia o que eu andava fazendo às noites. Eu
disputava “pega” de motos com o único intuito de trazer mais uma dor a ela,
que para mim parecia o meu alívio. Eu apenas corria e não ligava para porra
nenhuma.
Esses livros empoeirados nem são meus. Estão aqui como uma memória,
um fato de que ela não foi obra da minha imaginação. Que ela foi real.
E eu tenho milhares de fotos dentro dessas caixas para provar isso. Que
ela foi real na minha vida em algum momento que hoje sinto muito por ter
sido há tempo demais. Faz tempo demais que ela esteve aqui, que foi parte de
mim. Hoje deixo sua falta ser parte de mim. E isso me torna vazio. Ela não
existe mais.
Sentindo algo muito estranho dentro de mim, dou mais alguns passos e
finalmente estou de frente para o armário. Respiro e baixo o rosto, e quando
as imagens que caíram no chão pela garota finalmente são registradas por
meus olhos, parece que fui atingido no meio do peito.
Santo inferno! Ela está sorrindo para mim na casa de inverno da família
dela. Ela está apaixonada por mim, feliz e viva.
Por que essa tinha que ser a imagem virada para cima e tão deslocada
das outras, que posso ver todos os detalhes? Meu Deus. Por que isso?
Sinto-me fraquejar e caio de joelhos no chão como o homem fraco que
acabei me tornando esses anos. Como o homem fraco que realmente sou. Tão
fraco que minhas mãos pousam ao lado da foto dela e choro. Uma lágrima
grossa cai livremente sobre a fotografia, manchando. Agora o cabelo dela
ruivo, de um tom tão vivo de cobre, se mistura à árvore que tinha no quintal
da casa e ao céu azul da Carolina do Norte. Eu amava essa foto. Eu amava
esse lugar e Deus sabe o quanto eu amava essa garota. Porque, para mim, ela
sempre será uma garota. A minha garota.
A garota que sempre sorria e ficava feliz por tudo que eu fazia e era. A
garota espontânea e animada, que infelizmente não chegou a ser uma mulher
realizadora de sonhos como pretendia ser e me contava seus planos na nossa
cama quando íamos dormir. Selena tinha um costume de ficar falando seus
sonhos e planos quando íamos para a cama cansados de mais um dia de
faculdade. Eu a escutava noites a fio até que sua voz cessava e apenas restava
sua respiração no meu pescoço. Ela gostava de dormir agarrada a mim como
um bebê chimpanzé. Eu amava que ela dormia assim comigo. Me sentia
completamente completo com ela.
Eu amava poder dizer que tinha a melhor namorada do mundo, que nós
éramos felizes e, apesar de muitos ficarem falando que nós não duraríamos
por muito tempo depois de terminar a escola, nós provamos que estavam
errados. Namoramos dos meus onze anos até o término da minha faculdade
de engenharia mecânica, porque foi no baile de formatura do meu diploma,
com vinte e cinco anos, que pedi a Selena para ser tornar minha esposa. A
dona da minha vida, o que ainda sem querer ainda a deixo ser.
Ela foi minha primeira namorada de verdade. Meu quinto beijo e de fato
o primeiro beijo de língua.
“O beijo de verdade sempre será o meu”, ela disse quando paramos de
nos beijar no primeiro Natal que passei na casa dela. Antes de sermos
amigos, namorados, sempre fomos vizinhos. E nossas mães se davam
muitíssimo bem. O que foi bom para todos, até tudo ir por água abaixo.
Selena foi minha “primeiro” em tudo depois disso.
Foi com ela que perdi a virgindade e ela comigo. Foi com ela que viajei
sozinho. Com ela que comprei minha moto. Com ela que deixei minha paixão
igual a do meu irmão por fotos falar mais alto e me arrisquei. E com ela que
comprei essa casa depois de expor as fotos (da nossa viagem e outras que
andava tirando como hobby) e ganhei uma grana preta. Foi graças a ela que
mandei meu portfólio para uma revista famosa e fui contratado e consegui
fazer meu estúdio e meu carro, que hoje está entregue aos ratos. Uso de vez
em quando.
É fácil alguém dizer para seguir em frente e deixar as lembranças no
passado, mas não é fácil você fechar os olhos para o fato de que sem aquela
pessoa você nem seria o que é hoje.
Selena foi meu início, meio e... estarei cometendo uma blasfêmia se
disser que não penso que ela é meu fim.
Eu a amava com tudo de mim e não foi apenas a morte dela que me feriu
de uma forma que não soube mais como seguir em frente. Foi o que
aconteceu antes. No fundo, eu sei que é isso. Eu fugi do óbvio. Eu me culpo
todo santo dia, mas porque não a deixei falar. Não a deixei se explicar. Mas
para quê explicações quando tudo estava bem na minha frente.
Abrindo os olhos, saio da intensa depressão e encaro sua foto. Seu
sorriso feliz, os olhos acesos e os cabelos esvoaçantes pela brisa forte que
fazia no outono. Nós estávamos na casa de inverno para o aniversário do pai
dela relaxando antes das aulas recomeçarem na faculdade. Estávamos felizes
e ela estava linda demais. Sempre esteve perfeitamente linda.
Eu ainda a amo com tudo de mim, e sei que é isso que não me deixa
seguir, sair desse luto. Há dois anos escuto isso do Dr. Belson, meu terapeuta.
Henry Frinsheens e eu nos tornamos amigos não por causa que frequento
sua academia e sim porque acabamos compartilhando o mesmo psicólogo.
Henry é um empresário incrível, tem uma esposa encantadora, uma filha
linda, professor de artes marciais e um amigo para todas as horas (depois de
Harry, sempre conto com ele), mas engana-se quem pensa que a vida dele é
só felicidade. Ele enfrenta um problema terrível na família de doença, e por
isso precisa recorrer a Belson.
Aquele médico de malucos é tão louco quanto seus pacientes, mas chega
no cerne das questões que rondam na minha cabeça como ninguém. É
ridículo pagar a ele para falar o que já sei. Para admitir que lá no fundo o
problema não são os outros ou algo, e sim eu mesmo. Pensar e repensar até
concluir o que por várias vezes confesso em voz alta olhando para o espelho.
No início odiava Belson fazendo perguntas repetitivas sobre como estou
me sentindo. No fundo ninguém gosta de ficar sendo questionado pelos seus
pensamentos. Pelo que se sente culpado ou não. Que prefere morrer do que
viver. Eu gosto disso e se alguma pessoa faz psicanálise e acha legal essa
abordagem terapêutica, é louco.
No entanto, confesso que depois de um tempo eu acabei percebendo que
Belson não apenas me fazia repensar e falar em voz alta, mas como exorcizar
alguns pensamentos mórbidos. Ele sempre fala que eu preciso dessa
descarga, muito além de apenas socar os caras da academia e o saco de
pancada. Hoje, enquanto estou lutando, é automático pensar e pensar a
mesma coisa até realmente sentir lá dentro a resposta aparecer. É como beber
água depois de dez dias no deserto.
Meus pais não sabem que eu faço terapia, ninguém sabe a não ser o
Henry e a esposa dele. Cecillia é tranquila, ela apoia sempre o marido e é
muito boazinha. Ele tem sorte por tê-la na sua vida.
Às vezes, invejo a vida dele. Ele tem tudo que um dia eu sonhei em ter
com Selena, mas simplesmente não aconteceu e algumas vezes penso, e até
digo em voz alta, que Deus sabe o que fez. Que por algum motivo tudo
acabou.
Acabou de uma forma desastrosa e dolorosa, mas acabou e eu não tenho
mais aquela felicidade. Não tenho mais aquela gana de viver, aquela energia
para querer realizar meus sonhos. Não tenho mais nada e sinto muito por
pensar assim.
Eu quero mudar e acho que mesmo que a pessoa esteja no fundo do poço
entregue aos ratos querendo a morte, com os dedos escorregando na beira do
abismo no fundo ninguém quer cair. E eu faço terapia justamente por isso.
Porque eu não quero que meus pais sofram de novo como foi há seis anos.
Fiz todo mundo cair junto comigo.
E talvez esses pensamentos hoje estejam tão vividos porque acabei de vir
de uma terapia. Não vou enganar, pensei que chegaria em casa tranquilo,
comeria e depois me jogaria na cama, dormindo até amanhã. Mas essa garota
me bombardeou com esse armário aberto, essas fotos no chão e meu passado
me encarando.
Um choque do que pode ser meu futuro se continuar do jeito que estou.
Me arrastando.
Merda! Sinceramente preciso perguntar ao doutor Belson se essas fotos,
essas recordações, serão boas ou não para mim, porque no momento só quero
sentir a dor.
É como beber água e correr, os poros saindo do nosso corpo enquanto
corremos sem parar, nosso coração acelerado, nosso cérebro concentrado em
um passo de cada vez, mais rápido possível, sem parar. E quando você vê,
tudo sai de você escorrendo pelo seu corpo. No meu caso, o que escorre são
lágrimas, e vou deixando assim essa dor passar. Meu coração correndo em
direção ao sofrimento pós-alívio.
Deixo a foto do aniversário do pai dela cair e pego outra. Eu devo gostar
de sofrer.
Nessa foto, nós estamos na viagem que fizemos para o Brasil. Estamos
no Cristo Redentor abraçados e sorrindo com a estátua atrás de nós e um pôr
do sol. Nós estávamos viajando para comemorar nosso noivado. Largo a foto
e pego outra, e depois mais outra.

O celular vibrando no bolso de trás da minha calça me acorda como uma


bazuca. Levanto rápido e me arrependo porque fico tonto imediatamente.
— Droga!
Passo a mão no rosto, para tentar despertar; e enquanto pego meu celular
para atender a essa pessoa insistente, noto que eu peguei no sono no chão em
frente ao armário e com as fotos em minhas mãos. Minha nossa, como eu
posso ser tão imbecil?!
— Por que demorou tanto para atender? Pensei que teria que acionar a
polícia para te achar — minha mãe reclama.
Solto uma respiração exasperada e a respondo:
— Estava dormindo.
— Grande novidade, Adam.
— Mãe não começa. São — viro meu pulso e vejo as horas — oito e
meia da noite, está tarde pra receber sermão seu hoje.
— Não tem tempo ou dia para uma mãe pegar no pé do filho.
Sorrio com sarcasmo e fico quieto ouvindo-a falar sobre a festa de Natal
que falta apenas seis dias, mas parece que é amanhã. Como havia dito,
mamãe ama o Natal, na verdade ama festas de todos os tipos. Ela gosta de
felicidade, embora sua vida já foi melhor do que é hoje.
— Eu quero você aqui bem cedo, Adam. Não estou de brincadeira. Se
você me fizer ter que ir até aí te buscar, eu juro que tranco você no seu
antigo quarto.
Rio, levantando-me do chão.
— Está bem, mãe. Eu vou chegar bem cedo. Acho que vou tomar café
com vocês, principalmente se tiver biscoitos de Natal.
Desde pequeno, eu adoro os biscoitos amanteigados com açúcar da
minha mãe. A receita é da minha avó e talvez por isso é maravilhosa. Vem de
geração.
— É claro que vai ter, filho.
— Está bem — falo apaziguador e penteio meus cabelos para trás,
tirando das minhas vistas. — Agora preciso resolver uma coisa aqui e depois
comer para finalmente deitar. Estou cansado.
— Foi de novo naquela academia bater nos outros? Eu não gosto de
violência.
— Para sua informação artes marciais não é violência, é esporte. Então
para de falar isso e de se preocupar. Está tudo bem, na verdade mais do que
bem — acho que exagerei, mas não aguento mais ela ficar se esquentando
por pouca coisa.
— Tudo bem, filho. Boa noite e amanhã eu ligo.
— Para me lembrar de ir no dia vinte e quatro?
— Sim — responde séria.
Balanço a cabeça com um esboço de sorriso.
— Boa noite, mãe. — Desligo senão não acaba nunca a ligação.
Coloco o aparelho no bolso de volta e paro, encarando a bagunça no
chão. Não tem jeito, eu preciso mexer nisso e fugir daqui.
Eu deixei tudo guardado aqui embaixo por um motivo único e decisivo.
Não queria nunca mais ver essas coisas, queria esquecer meu passado, trancar
essas recordações que no momento não estou pronto para reviver. E, apesar
de eu sofrer todos os dias a amargura de viver o pós dessa tragédia, eu só
queria não ver mais nada que tem dentro desse maldito armário, desse
maldito porão.
Me abaixo e pego uma das fotos que a garota deixou cair e escorregou
para perto do sofá. Fito Selena, Ian e eu, nós três felizes sem a mínima noção
de que tudo iria ser destruído um tempo depois. Acho que foi dois meses
atrás da briga, do acidente.
Aquele dia não cansa de passar na minha cabeça e o remorso de que
nunca deixei ela se explicar, falar comigo, mas eu estava tão magoado por
tudo, que peguei meu carro e fugi o mais longe de tudo e de todos, e ainda
continuo fugindo.
Se eu soubesse que minha vontade de nunca mais vê-la seria atendida,
não teria pensado isso. Às vezes, a gente não tem noção de como o universo
entende os nossos pedidos. Nós precisamos ser específicos para não
acabarmos perdendo ao invés de ganhar.
Terminando de vez de arrumar tudo, fecho o armário, dou-lhe as costas
para essas lembranças novamente e saio do porão sentindo o coração pesado.
Meus passos parecem arrastados como se eu estivesse fazendo um
grande esforço em caminhar até o andar de cima e ir para o meu quarto. Eu
queria mesmo comer, tomar um banho e relaxar na minha cama, mas tudo
isso foi antes de eu olhar a última foto. Nós três éramos inseparáveis e hoje
só restou a poeira de tudo. Eu sou um homem quebrado e ao mesmo tempo
engessado. Não sei como mover minha vida para frente, estou congelado no
mesmo lugar. Congelado, olhando para aquele carro em chamas. Assistindo
não apenas Selena queimar, mas uma parte de mim se espatifando.

O Natal era uma época que eu adorava. Não tinha o porquê uma criança não
gostar, a não ser aquelas que foram traumatizadas por algo que aconteceu no
dia. E durante a minha infância e adolescência nada aconteceu, tudo estava
bem. Eu amava o Natal. Era um dos dias em que eu almejava com fervor. Ia
ganhar presentes e rever tios e primos que só conseguiam aparecer em festas
ou funerais.
Mas então em dois mil e treze mudou completamente minha expectativa.
A graça para o dia vinte e quatro de dezembro não existe mais. Morreu junto
com meus sonhos e planos. Morreu junto com Selena no carro.
Às vezes me questiono não apenas o fato de tê-la perdido, mas o dia. Eu
estraguei o dia de todo mundo e para mim, estraguei o Natal para sempre.
Nunca mais vou ficar feliz neste dia. É demais para mim.
Por isso não entendo minha mãe continuar com o entusiasmo natalino,
como se nada tivesse acontecido. Eu só quero ficar na minha cama dormindo
ou vendo algum filme de terror, que provavelmente tenho que alugar. Na TV
só passa filmes idiotas de Natal, que eu detesto. Sempre mostram a magia
natalina e como a vida de todo mundo fica perfeita por causa de um simples
dia. Os problemas são resolvidos. As famílias se reúnem depois de tempos.
Os filhos voltam, os fantasmas bons vêm visitar e contar o que precisamos
para acreditar na vida. E fora os filmes de Natal de romance. É tudo muito
brega e mentiroso. Assim como o amor é uma falsa felicidade e finita.
Mas a realidade é bem diferente, totalmente diferente para mim, porque,
afinal de contas, hoje estou sendo obrigado a ir à festa de Natal da minha
família.
Aperto a buzina de novo e olho para a porta de casa. Tem uns dez
minutos que estou esperando Belinda. Minha mãe insistiu que eu a levasse e
sem contar que a mãe dela estará lá.
Ela aparece na porta com uma bolsa quase caindo pelo ombro e desce as
escadas correndo. Entra apressada no carro e, enquanto coloca o cinto de
segurança, explica:
— Desculpe. Eu estava procurando meu celular.
— Tá bom — assinto e acelero.
Seguimos o caminho à casa dos meus pais em silêncio. Eu perdido em
pensamentos e atento ao trânsito e a garota mexendo no celular, que de vez
em quando reclama de algo.
Curioso viro o rosto para ela, parando no semáforo, e indago:
— Você está conversando com alguém ou jogando?
Ela sorri com os olhos atentos ainda no aparelho e estende a mão
pedindo para eu esperar. Tenho vontade de rir. Volto a andar com o carro e
depois do que parece dez minutos, ela larga o celular sobre sua bolsa em cima
das pernas e vira o rosto para mim.
— Eu estava jogando e não podia perder a fase, por isso demorei para
responder.
— Eu logo imaginei isso. Você estava muito concentrada para estar
falando com alguém, a não ser que fosse uma coisa séria.
Ela solta uma gargalhada forte e balança a cabeça. Quase reviro os
olhos, mas me concentro no trânsito.
— O que você está jogando?
— Candy Crush — ela responde com muito orgulho e mentalmente
tento achar o motivo para isso. Esse jogo não é para criança?
— Sério? — indago com desdém e torço o nariz.
— Ah, não faz essa cara. É um dos jogos mais legais que tem. — Prende
os lábios para não rir, revirando os olhos, e continua: — Tudo bem que
algumas pessoas acham besta, mas se você prestar bem atenção tem que ser
até esperto.
— Se você tá dizendo — murmuro.
— Eu estou afirmando, afinal de contas estou na fase cento e vinte e
oito.
— Uau! Isso é muita coisa. — Olho para ela de relance. — Qual é a
última fase? Quando você encontra o Poderoso Chefão?
Ela ri.
— Definitivamente você nunca jogou Candy Crush ou chegou perto
porque não tem fim e nem um Chefão. Ninguém até agora chegou ao fim.
— Talvez porque é tão chato que desistem.
— Pode ser, mas vai dizer que você nunca jogou um game e desistiu por
ser longo e difícil.
— Talvez — respondo seco. — E também esse Candy Crush é viciante e
cansativo. Deve irritar passar de fase e nada de novo acontecer. Não ganhar
nada.
— Se você olhar por esse ângulo.
— E por acaso tem outro?
— Deixa pra lá. Eu esqueci com quem estou falando.
Olho para ela de soslaio e franzo a testa. Acho que ela já conseguiu
enxergar quem sou. Ignoro a vozinha dentro de mim incomodada com suas
palavras e me concentro em chegar à casa dos meus pais.
E assim passamos mais quinze minutos dentro do carro e em total
silêncio. Acho bom ela ter colocado fone na merda do celular. Não queria
ouvir o barulho dela jogando. Na verdade, gosto de ter a sensação de que
estou somente eu no carro.

Como prometido chego à casa dos meus pais na hora que minha mãe
pediu. Na verdade, cheguei vinte minutos antes do horário que normalmente
eles acordam para tomar o café da manhã, portanto ajudo a fazer o café e
como merecidamente oitenta por cento das panquecas. Mas minha mãe não
liga. O importante para ela é minha presença, não eu comer por três pessoas.
— Não sei como você come tanto e não é gordo — minha irmã fala do
outro lado da mesa.
Olho para o prato dela e sorrio. Está cheio, mas ela tem um desconto por
estar amamentando. Falando nisso, minha sobrinha está no carrinho ao lado
dos pais fazendo sons de bebês. Ela traz um ar doce para o Natal.
Como esperado, o café da manhã é tranquilo e cheio de regalias. Esse
ano (apesar de que para mim é um dia ruim por culpa das recordações) tem
um motivo feliz para brindar e alegrar o dia: a chegada da nova membro da
família.
Estou ajudando a tirar a mesa quando meu pai aparece na porta.
— Quando acabar quero falar com você.
Concordo com um aceno e ele some. Viro-me para a minha mãe e a vejo
sorrindo.
— O que foi dessa vez? — indago sem ânimo.
— Juro que não sei, filho.
Balanço a cabeça, resmungando. Ela nunca sabe.
Minutos depois, caminho ao escritório do meu pai. Ele só pode estar
aqui.
Abrindo a porta de madeira da antiga sala de atelier do meu irmão, vejo
meu pai sentado na enorme poltrona que fica no canto do seu escritório.
Depois de anos trabalhando como contador de uma grande empresa, ele
decidiu ser seu próprio chefe e hoje trabalha para seus clientes como contador
particular. Ele diz que agora é bem melhor por ganhar mais e estar em casa.
Minha mãe adora pelos dois motivos também.
— Feche a porta e sente-se.
Aceno com a cabeça, obedecendo-o.
Quando me sento em frente a ele, pego um dos seus livros na estante,
que é a parede toda do escritório.
Se engana quem pensa nessa estante como uma aquisição de luxo. Papai
é um devorador de livros desde pequeno e muitos livros que tem aqui ele já
mandou reformar porque estavam literalmente se partindo. São livros de
primeira edição e verdadeiras relíquias. Eu e meus irmãos nunca pudemos
sequer mexer neles. Além de estarem no topo da estante (que antes ficava
entre as salas de jantar e estar), meu pai mandou colocar portas de vidro com
cadeados nessa estante mais atual. Ele leva muito a sério seus queridinhos,
como mamãe chama os livros favoritos de papai.
— O que o senhor quer falar comigo? O que fiz dessa vez?
— Não precisa ficar arisco, rapaz — fala com sua voz baixa largando o
jornal em cima da mesa do abajur ao lado e me encara. — O que eu tenho pra
falar é quase a mesma coisa que sua mãe vem falando nesses seis anos. E
diga-se que eu também, mas dessa vez estamos mais esperançosos.
— Ah, não começa.
— Começo, sim — afirma acenando com a cabeça. — Eu não vou
continuar assistindo meu filho jogando a vida fora. Estou falando como um
amigo. Se você demorar muito, quando perceber o tempo passou e você
estará solitário e sozinho. São duas coisas diferentes. Sozinho é quando
ficamos num quarto por um tempo. Solitário, é uma pessoa abandonada.
Então mesmo que você tenha a sua irmã e o Harry, isso em algum momento
não bastará, Adam.
— Eu não tenho apenas eles.
— Garoto — ele solta a respiração com força e deixa de encarar. Ele só
faz isso quando está nervoso —, você tem trinta anos, é inteligente, tem duas
faculdades e deveria aproveitar que é bonito. As garotas gostam dos caras
como você, filho.
Isso me arranca uma gargalhada.
— Não estou pensando em garotas, pai. Se você estivesse falando do
meu trabalho e como gastar meu tempo, eu até ficaria para ouvir. — Levanto
deixando o livro na poltrona. — Porém, como não se trata disso, obrigado
pela conversa, mas já vou.
Viro as costas e caminho sem pensar duas vezes para a porta. Quando
vou sair, ele fala:
— Você é muito teimoso, Adam. Mas espero que uma hora reconsidere
o que eu disse hoje. Não queira uma vida solitária. Ninguém suporta a solidão
por muito tempo.

Como meu pai conseguiu fazer esse dia ficar pior, estou preferindo ficar
longe de todos. Eu já que sou um revoltadinho, como eles pensam, que gosta
de ser sozinho, então vim curtir a merda da minha solidão. E também não é
porque não gosto mais do dia, que tenho que estragá-lo para todo mundo.
Estou na varanda dos fundos da casa e nem tão solitário. A neve está me
fazendo companhia. Vendo-a cair me perco em pensamentos, nada tão
fulgente para ser compartilhado ou debatido. São apenas pensamentos
caóticos.
Dou um gole no meu vinho depois de encher o copo a quinta vez. Eu não
sou bobo e trouxe uma garrafa comigo para não ter que entrar e ver a cara de
decepção da minha mãe.
A neve está caindo forte, já está tudo coberto de branco. A
churrasqueira, o balanço que meu pai improvisou na árvore velha. Minha
irmã pediu tanto, que ele fez sua vontade. Olho o aparador de grama e
balanço a cabeça com a lembrança do meu irmão e eu usando como moto.
Minha mãe ficava louca conosco.
Esfregando as mãos junto ao rosto, puxo o ar por dentro delas e solto.
Está muito frio e, quando um vento forte passa por mim, chio sentindo meus
ossos doerem.
Confesso que prefiro o inverno, pois diferente do verão o frio nós
podemos controlar. Nos agasalhamos, nos enfiamos debaixo das cobertas e
um chá melhora, mas o verão nem dentro da água alivia o calor. Eu detesto
calor. Por mais que eu já tenha visitado o Brasil uma vez, não curto.
Provavelmente vou morreria se tivesse que passar mais tempo lá que uma
semana.
A porta dos fundos da cozinha abre e automaticamente tenta fechar pelo
sistema que meu pai mandou colocar.
Meu pai é um cara que pensa em tudo e para os guaxinins não invadirem
nossa cozinha e comer nossa comida, colocou aquilo na porta.
Viro para ver quem é e encontro Belinda com um prato equilibrado pelo
copo que segura com a mão. Ela tenta não derramar tudo enquanto passa pela
porta e ajeita o casaco.
Rio olhando-a sobreviver a um calafrio, posso apostar. Ela consegue e
olha para mim. Faço um aceno com a cabeça e a espero sentar na outra
cadeira, colocar o copo e o prato na mesa. Tento desviar os olhos, mas como
ela não para de me olhar, eu também faço o mesmo. O que ela quer? E por
que está aqui?
— Eu não sou da casa e a minha mãe já foi. Me sinto mal ficando lá
dentro sem realmente conhecer alguém.
— Por acaso, você estava me procurando? — pergunto.
— Na verdade, não. Eu também não te conheço e você parece que não
gosta de mim ou... de ninguém.
Uau! Essa resposta me pegou de surpresa. Não esperava um fora desses.
A garota tem uma beleza tão meiga que é duvidoso quando sai frases desse
tipo da sua pequena boca rosada.
Cruzo com mais força os braços e fito a churrasqueira coberta de neve
enquanto falo:
— A gente realmente não se conhece. No entanto, eu sou a pessoa mais
próxima de você hoje, mais ou menos. — Pondero e a olho. — E você está na
minha casa há uma semana. Não dá para se sentir excluída.
— Estou mais do que uma semana.
— Você entendeu.
Ela dá uma risadinha e pega seu prato, deixa perto do rosto e começa a
comer o Chester com purê. E tem bastante. Ela é magra de ruim.
— Você já comeu? — ela pergunta.
— Não. Não estou com fome.
— Mas você está bebendo. Seria bom comer alguma coisa para não ficar
bêbado no Natal e estragar a festa da sua família. Eles parecem tão felizes.
Acho que essa menina bebeu. Toda essa coragem tem que vir de algum
lugar. Anteontem me olhava cheia de medo, agora fica saindo com umas
frases muito desconcertantes. Não que eu não mereça, mas ela está até
abusando da minha paciência.
— Eu vou comer depois. Não gosto de muvuca. Amo minha família e
gostava do Natal. Hoje, não gosto mais dessa aglomeração toda. Gosto de
comer em paz.
Ela assente e mantém a boca ocupada com a comida.
— Por que que você não foi com a sua mãe?
Ela termina de engolir uma garfada e responder:
— Porque ela não vai voltar hoje e eu não quero ficar na casa dela.
— Você não se dá bem com seu pai?
— Ele não é meu pai, — afirma parecendo insultada, — é meu padrasto.
Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos.
— E você não se dá bem com seu padrasto?
— Não é... — Desvia o olhar. — Não é bem isso. Só acho que... — Ela
mexe a cabeça perdida em pensamentos e muda de assunto. — Eu prefiro
ficar aqui e voltar para casa quando a festa acabar.
A casa que ela se refere é a minha, que agora é a casa dela. Pelo menos
por enquanto.
— Você tem irmãos?
— Tenho cinco irmãos mais velhos e dois mais novos.
— Seus pais não pararam, hein.
Ela solta uma gargalhada e a olho surpreso.
Gostei da risada dela.
— Não são todos filhos da minha mãe e, obviamente, não do meu pai.
— Sim, claro. Mas os seus irmãos mais velhos sim.
— Sim, mas tenho uma irmã mais velha que não é filha da minha mãe.
Assinto, ouvindo. Ficamos em silêncio de novo, e enquanto ela acaba de
comer eu bebo meu vinho.
— Posso fazer uma pergunta? — pede colocando o prato vazio na mesa
um tempo depois.
— Claro, carta branca para você hoje. Presente de Natal. — Pisco o
olho.
Viu, sei ser sarcástico também.
Ela sorri, com as bochechas vermelhas, e parece muito satisfeita.
— Você não gosta do Natal por algum motivo ou por conta das pessoas?
Qual o seu problema com a data ou com a sua família?
Engulo a saliva sentindo um bolo estranho na garganta e encaro-a
firmemente, virando meu corpo para ela.
— Como acabei de dizer, eu gosto da minha família. Gosto de verdade,
amo todos eles, só que o Natal já teve seu momento de graça pra mim. Hoje
não tem mais. É só um dia de festa onde têm presentes e reencontros que são
nem um pouco genuínos. O Natal era para ser um símbolo muito bonito. Uma
mensagem única de confraternização, perdão e amizade. Afinal é o
nascimento do Menino Jesus e etc. Só que há muito tempo, a magia do Natal
não é a mesma. Ela só existe quando a gente é pequeno e para mim morreu
seis anos atrás — concluo porque estou falando demais. — Eu não tenho
nada contra essa época e as pessoas, Belinda. Foi apenas uma mudança de
gosto.
— Hum... desculpe e... — pausa, gaguejando — Deixa pra lá. —
Levanta, pegando seu prato e o copo. — Vou buscar doce para mim. Quer
que eu traga algo para você comer?
Assinto.
— Já que você está insistindo. Faz um prato que nem você fez para você,
que já está bom.
— Vai comer a mesma coisa? Não quer mais nada especial? Tem tanta
coisa pra comer.
— Isso é bom. Vamos ter sobras até o réveillon.
Ela ri e sai me deixando com meus pensamentos de que talvez eu
devesse maneirar todo esse rancor que cultivo dentro de mim. Minha família
está empenhada, meus amigos e agora essa garota a fazer eu enxergar que não
vale a pena estragar, ou continuar a desperdiçar minha vida.
Acho que esse Natal tem algo a me dizer. Talvez seja isso que eu precise
melhorar o rumo da minha vida. Para começar a tratar as pessoas melhor.
Elas não são as culpadas, e nem eu.
Certas coisas têm que acontecer e ponto final. E eu preciso aceitar isso
de uma vez por todas.
QUATRO

Agora, estou em um estado de espírito


No qual eu quero estar o tempo todo
Não tenho mais lágrimas para chorar
Então, estou correndo atrás, correndo atrás (ah, sim)

NO TEARS LEFT TO CRY | ARIANA GRANDE

Meu peito parece pesado. Sinto como se tivesse algo pendurado nele e
puxasse meu coração para fora de mim. Tomo o ar e sinto a brisa gelada e
fresca do inverno.
Quando abro os olhos tenho a sensação de que ainda estão fechados.
Não vejo nada. Tudo é preto. Vou me acostumando com o breu, e depois de
alguns segundos consigo vislumbrar um pontinho claro, depois mais um e
logo um céu estrelado em meio às nuvens brancas me saúda.
Mesmo sendo uma imagem linda e contagiante, sinto que tem algo
estranho. A sensação dentro do meu peito não é boa.
“Adam.” Uma voz suave me chama.
Estou de pé e me viro para ver quem é. Me deparo com seus cabelos
compridos e suaves, a luz amarela do sol se mistura e ilumina os fios claros.
Ela é tão linda. Sinto uma saudade incrível e sinto meu sorriso suavemente
aparecer.
Ela continua a caminhar para mim e eu para ela.
Estamos cara a cara e estico minha mão para segurar a dela, mas não
consigo. Estamos tão longe de novo.
“Selena!”
“Adam”, chama com a voz sumindo. “Adam...”

— Selena! — Sento-me na cama, despertando todo suado e respirando


com dificuldade. — Minha nossa!
Coloco a mão sobre meu coração e tento recuperar meu ponto de
equilíbrio que o Dr. Belson me ensinou para momentos onde sinto-me cair.
Droga. Eu não precisava disso agora. Não precisava mesmo ter um sonho
desses e detonar com a minha cabeça.
Levanto jogando as cobertas para longe e entro no banheiro. Me encaro
no espelho, apoiando-me na pia e respiro fundo várias vezes. Porra! Por que
isso tinha que acontecer? Por que agora quando eu estava indo tão bem?
Em um rompante de raiva jogo tudo para o fora da pia, caindo e se
espatifando no chão. Dou um soco no espelho com um grito, tentando me
libertar dos resquícios do pesadelo.
Essa tristeza me assola de uma forma desumana. Eu queria poder dizer
que depois de seis anos sonhar com ela não me castiga, mas talvez eu seja
fraco demais e isso é um tormento ainda. Não consigo sorrir ao pensar nela.
Não consigo agir naturalmente com o fato de falar dela no passado.
Como quisesse lavar essa mal-estar, tiro minhas roupas e entro no banho
deixando a água gelada me castigar e de todas as formas me despertar.
Deus! Eu só queria não sentir essa dor tão grande... Essa culpa...
Pegando minha jaqueta sobre a cadeira da escrivaninha do meu quarto,
fecho a porta com uma pancada forte e desço as escadas depressa.
— Adam? — Belinda sai da sala com uma manta cobrindo-a e uma cara
amassada.
Ela estava dormindo no sofá?
— Está tudo bem?
Sibilo um som afirmativo, mas que não passa firmeza alguma.
— Você está saindo? — questiona, olhando o relógio no fim do
corredor. — São três da madrugada. Aonde você vai a essa hora?
Franzo a testa e aperto com mais força a jaqueta em minha mão. E sem
lhe dar uma resposta, pego a chave do meu carro e caminho para a porta.
— Adam? — ela chama de novo.
Cerro os dentes e, irritado, me viro falando entre os dentes:
— Você não tem nada a ver com a minha vida. Se eu saio ou não às três
da manhã é problema meu. Seu dever aqui não é tomar conta da minha vida.
— Nossa! Você está de volta. Voltou a ser o grosso e mal-educado. Vai
à mer... — Para abruptamente e respira fundo. — Sabe, Adam. Eu estou de
saco cheio de você. Eu não te fiz nada para ser tratada assim, seu idiota! Só
perguntei se você ia sair a essa hora porque é perigoso e você não parece
bem.
Pisco os olhos com força, tentando manter a calma. Mesmo que ela
tenha razão e eu de fato não estou bem, ainda não é da conta dela.
— Isso não é da sua conta.
— Ah, quer saber? Você tem é que ficar sozinho. Eu não sei o que passa
na sua cabeça. Não sei qual motivo para tratar todos com tamanha frieza e ser
tão grosso, mas não me importo. Chega disso.

Ela vira-se me dando as costas e sobe correndo as escadas. Fico parado


olhando para o vazio que ela deixou. Balanço a cabeça e tomo uma respiração
profunda antes de me virar para a porta e sair. Não quero mais ficar nessa
casa.

Entro no bar do Vlad, que é realmente o único perto de casa e peço uma
cerveja. Sei que, se eu ficar muito bêbado, ele vai ligar para o Harry, porém
estou tranquilo quanto a isso.
Respirando fundo, ergo a cabeça aprumando a postura e enquanto espero
minha bebida, não consigo tirar meus pensamentos da reação de Belinda.
Eu nunca esperei que ela fosse falar comigo daquele jeito. Fiquei tão
surpreso que a deixei falar tudo aquilo e, como sempre faço com todo mundo
que tenta confrontar as decisões da minha vida e me ajudar, virei as costas
depois. Merda! Ela realmente ficou com raiva de mim e meu inconsciente
está me alertando de que posso chegar em casa e não vê-la mais por lá.
Minha mãe vai ficar uma fera comigo se eu conseguir expulsar a garota
da minha casa. Com certeza vai pensar que fiz de propósito, mas Deus é
testemunha que não. Eu só gritei com ela e a tratei tão rude porque eu mesmo
não estou conseguindo lidar comigo mesmo. Aquele pesadelo acabou com o
meu dia e talvez minha semana.
— Aqui, Adam. — Vlad coloca uma garrafa de Stella Artois na minha
frente e abrindo, fala: — Se você passar dos limites, vou ligar para o Harry.
Mas fique sabendo que antes de quebrar meu bar ou a cara. Não que eu me
importe com você. — Vira-se, me dando as costas e vai atender outra pessoa.
Com um sorriso amargo, eu pego a cerveja e dou um grande gole. Vlad
pode ter dito isso, mas no fundo se importa comigo, assim como minha
família, meus amigos e Belinda. Se ela não ligasse para mim iria ignorar
como eu estava e se eu ia sair tarde da noite. E não sentiria raiva por eu tratá-
la mal.
— Eu sou um imbecil mesmo — digo em voz alta e tomo outro gole da
cerveja.
Eu queria não estar assim. Sinto cada vez mais a necessidade de fazer a
vontade de todos e refazer minha vida, porém eu realmente não sei por onde
começar.
Às vezes, querer não é poder, e é isso que acontece comigo. Eu quero,
mas não sei por onde começar. Me sinto tão perdido e bagunçado que é difícil
achar o ponto inicial para esse recomeço. No entanto, existe uma voz dentro
de mim, lá no fundo, que me faz pensar e repensar sobre isso. Ela duela com
o meu “eu” negativo e estacionado na culpa.
— Você não parece bem — diz uma voz desconhecida que ao me virar
para ver de fato é desconhecida. Uma morena com olhos esverdeados e um
sorriso confiante fala comigo e coloca a mão no meu ombro.
— E você acertou — respondo sem emoção.
— Posso fazer seu dia melhorar?
— Na verdade — termino de beber minha quarta cerveja, ponho o copo
sobre o balcão e me viro para ela ficando de pé —, não. Eu preciso ir para
casa, mas obrigado pela... oferta. — Dou um tapa forte no bar com uma nota
de vinte. — Tchau, Vlad.
Olhando para mim estranho, ele dá um aceno e chega perto até pegar a
nota e meu copo.
— Até mais, garoto. — Escuto-o falando atrás de mim e só respiro
quando o som da música brega que fica tocando no rádio do bar some e a
cacofonia de Nova York me saúda.
O caminho de casa é sombrio e solitário. Reflexivo também, digamos.
Não consigo parar de pensar que posso chegar e não ver Belinda. droga! Por
que eu estou me importando tanto? Ela não é problema meu. Nunca foi e não
quero que seja.
CINCO

Este garoto quer jogar


Não há tempo sobrando hoje
Isso é uma pena, porque ele tem de ir pra casa
Este garoto tem de trabalhar, tem de suar
só para pagar o que ele precisa ser deixado de lado
Mas vamos andar lá fora
Vamos dar uma volta só por um tempo
Não, nós não ficaríamos presos
Bem, isso é o que eu imaginava, até chorarmos

THIS BOY | JAMES MORRISON

Eu não deveria me sentir tão incomodada porque Adam me tratou


daquele jeito, mas a verdade é que a raiva que sinto é enorme, incomum e
nem sei como explicá-la. Só senti-la.
— Argh! Aquele grosso filho de uma...
Sem me importar muito, jogo com força minhas roupas dentro da mala,
que parece menor. Mas que diabos de mala! Por que sempre é assim? Se
antes entrou e coube aqui dentro, por que agora não?! Essa lei da física é
alguma pegadinha com as pessoas que viajam ou precisam fugir do lugar que
está.
“E também tacar as coisas dentro da mala não ajuda!”, minha
consciência acusa.
— Droga! — reclamo me sentando no chão e basta esse movimento ser
um pouco mais rude do que poderia, para eu sentir a fisgada de volta.
Duas horas atrás, eu tinha ido lá embaixo esquentar água para molhar
uma toalha e colocar sobre minha barriga, já que aqui não tem a compressa
para água quente. E depois de meia hora, a dor realmente começou a
diminuir, tanto que adormeci no sofá.
Mas Adam tinha que ter seus momentos rebeldes e lunáticos justamente
hoje, me tirando daquele repouso reconfortante e curador. Que saco!
Quando levantei com o susto que levei do barulho que fez no andar de
cima, no quarto dele, nem lembrei da dor. E logo me vi confrontando e
gritando com ele, sem sentir nada ainda. A dor tinha cessado totalmente. No
entanto, aqui estou e ela de novo, jogadas no chão.
— Deus, agora não! Daqui a pouco, o Senhor me faz sentir essas
fisgadas e culpa por eu ser tãooo cabeça-dura — choramingo e jogo o braço
sobre meus olhos. — Eu preciso sair daquiii...

Eu devo ter dormido de novo. A dor, às vezes, faz isso. Rouba toda
nossa energia e nos nocauteia como um campeão de MMA.
Com muita calma, me mexo minuciosamente para não piorar as coisas.
Sinto meu interior como se estivesse inchado e sensível. E como sinto isso há
um tempo considerável (uns dois anos), sei exatamente como me mover para
não sofrer mais.
Deitando na cama, empurro a mala pra longe, fazendo as roupas caírem
espalhadas no chão e puxo o edredom para cima de mim com dificuldade.
Estou suando frio e minhas pernas moles. Sem força alguma para ficar de pé.
E fazendo um movimento brusco tirando uma toalha úmida debaixo de
mim, sinto uma dor terrível. Sem querer fazer barulho, dou um grito alto me
revirando na cama, procurando uma nova posição para fazer a dor parar um
pouco.
— Ai, que dor. Que dor. Que dor... — gemo com o pensamento de que
isso é mais do que dores menstruais. — Merda!
Aperto os olhos com força e conto até cem. Eu só preciso me recuperar
para sair daqui. Eu tenho que levantar e sair dessa casa antes que ele apareça.
Chega de confrontos com Adam Stella. Aquele homem é uma perda de
tempo. Não estou nem aí para ele. Como diz uma frase que li em um livro:
“Não confunda minha bondade com fraqueza”.
E talvez, só talvez, essa frase seja ambígua para mim e para ele. No
entanto, para mim seria: “Não confunda ser boa com ser idiota”. Altruísmo
não é ser babaca.
A verdade é que eu não quero mais ficar aqui perto dele. O plano era eu
ficar até conseguir resolver meu problema grave e urgente. Eu sei disso. E eu
poderia continuar e simplesmente ser a empregada dele; muda e invisível.
No entanto, acho que não consigo ficar aqui sem me importar com ele.
Já é automático e a mãe dele queria que ajudasse, então se torna uma missão
impossível ficar sem poder cuidar dele além da sua casa. Sem contar que
sinto e sei que preciso dele tanto quanto ele precisa de mim.
Essa é a verdade das verdades, mas não importa. Eu vou me mandar
daqui antes que ele chegue, que está demorando. Deve voltar bêbado e chato.
— Argh! Não, Belinda! É por isso que você precisa ir embora aqui. —
Olho para o teto do quarto que vai deixar de ser meu e voltar a estar vazio
nessa boa casa que ficará abandonada e suja de novo. Entregue às traças.
Porém, que se dane isso tudo! Problema dele e da mãe dele. Christal me
empregou para limpar, cuidar e organizar a casa, não ser saco de pancada.
Um barulho vindo do primeiro andar, acaba roubando minha atenção da
dor dilaceradora. Me preparo para o impacto do seu temperamento irritante.
Ele deve estar bêbado e ainda mais insuportável. Infelizmente, isso é
possível.
— Belinda! Ei, garota — ele chama parecendo ainda estar no primeiro
andar. — Cadê você?
Meu coração parece parar de nervoso. O que ele quer agora? Se antes eu
estava com receio da sua reação ao voltar, saber agora que ele está me
procurando, tudo fica ainda pior. Droga! Eu ainda estou uma fera com ele.
— Você está aí?
Meu Deus! Ele está gritando às quatro da manhã já. Que homem louco.
Levanto, tirando forças não sei de onde e caminho com dificuldade até o
corredor das escadas, e vejo, em uma tentativa ridícula, Adam subindo
segurando-se no corrimão.
Estou estática. Não estou a fim de ser pisoteado agora. Ele parece que
despertou uma fera dentro de mim e, estando preparado ou não, vai ouvir
tudo que eu quiser falar antes de sair da sua maldita casa. Só não irei ficar
quieta de novo e deixá-lo ser um babaca comigo.
— Aí está você. Pensei que tinha fugido como todos fazem.
— Essa ideia ainda está na minha cabeça pra falar a verdade — respondo
amargamente e recuo quando ele chega ao segundo andar. — E não é bem
fugir, já que não estou presa a você.
— Você é uma ingrata. Estou dando moradia a você.
— Como é que é, seu idiota? — Aperto os olhos. — Eu não vou deixar
você falar comigo assim. Chega! Chega disso. Eu não tenho culpa que a sua
vida é uma merda, ou que alguém partiu o seu coração, ou seja lá o que faz
você pra se sentir tão culpado e com vontade de estragar sua vida e levar os
que estão ao seu redor para o poço também. Ninguém tem o direito de levar
os outros à ruína porque está destruído. Caia sozinho!
Eu esperava qualquer reação sua. Raiva, irritação comigo. Sua fera
incontrolável com sede de ser mau. Mas ele não faz nada. Pisca algumas
vezes, olhando-me de cima a baixo.
— Você está bem? — indaga me olhando parado.
— O quê?! Não lhe importa.
Ele ergue as sobrancelhas despreparado com minha resposta.
— Calma, Belinda. Eu só.... Você não parece bem e eu sei que sou
horrível. Fui horrível com você mais cedo, eu sei disso. — Engole em seco e
penteia os cabelos para trás com os dedos. — Mas eu não sou um monstro e
agora só queria saber o que foi que aconteceu?
— O que aconteceu? — Sou irônica. — Adam, eu não sei qual é a sua. E
você tem razão, você foi um grosso sem noção e rude comigo. E eu não
mereço isso de você. Até agora, eu aturei você e suas grosserias e seu jeito.
Eu respeitei seu espaço, mesmo você achando que não. Porque eu invadi seu
porão para limpar. Mas... droga, a sua mãe mandou justamente fazer isso.
Limpar a merda da sua casa. Então, eu não invadi nada. Eu estava fazendo o
meu trabalho. Fazendo o que vim fazer aqui. Cuidar da casa e... de você. Foi
o que Christal pediu, embora você não esteja nem aí ou se importe que as
pessoas queiram o seu bem.
— Belinda
— Não. Eu vou falar agora.
Ele assente e solta a respiração, exasperado.
— O pouco tempo que estou aqui e conheço você, realmente muito
pouco tempo, já entendi que se sente culpado por algo que fez há muito
tempo e acha que o melhor jeito de se punir é jogando seus dias fora. Mas
você não está se dando conta de que nesse processo está ferindo as pessoas
que se importam com seu bem. Você não levou em consideração sua família.
— Pauso e tomo uma respiração profunda. — Eu vi no Natal como sua
família quer que você fique bem.
— Mas eu tô bem.
Ergo as sobrancelhas expressando minha descrença.
— Sim, eu sei que não como eles queriam.
— Você está bem, talvez fisicamente, porém mentalmente eu não
preciso ser uma psicóloga para ter certeza de que não está e precisa de ajuda.
— Eu só preciso que as pessoas me deixem em paz. Eu me sinto bem
como estou.
Baixo a cabeça e fito o chão de madeira corrida. Ele é pior do que falar
com uma porta.
— E você não precisa ligar para isso. Eu não sou problema seu. E foi
isso que quis falar antes de sair.
— De uma forma terrível — completo encarando-o de novo. — Olha...
eu sei que vamos ficar a noite toda nesse impasse e já me decidi. Não tenho
nada a ver com a sua vida e não vou ficar aqui servindo de saco de pancadas
quando você estiver nos seus piores dias, porque você sempre está ruim, mas
consegue se superar às vezes.
Ele cerra a mandíbula e tira os cabelos rebeldes da frente do rosto de
novo deixando a mão na nuca. Por segundos, me perco em sua beleza.
Mas ela engana. É como ser um mosquito hipnotizado pela lâmpada de
LED com repelente. Brilhante e assassina.
— Eu vou embora porque não dá mais. Eu acabei sendo grossa com
você, claro que da mesma forma que foi comigo, e me sinto mal.
— Não se sinta assim. É sério. Eu mereci.
— Mereceu mesmo, mas não vai mudar. O que eu vi de você até agora é
isso. Sendo grosso com todo mundo, sem ninguém fazer nada com você. Só
te perguntam se está bem. Adam, ninguém é seu saco de pancada; e, se
precisa tanto jogar essa raiva para fora, procura alguma coisa para dissipá-la,
menos em quem quer seu bem e muito menos na sua família.
— Mas eu...
— Você faz sim, Adam — corto-o. — E eu posso afirmar uma coisa.
Compaixão é gratuita, mas ninguém permanece com a mão estendida para
quem não quer. Existem outras pessoas precisando de ajuda. E eu só acho que
sua mãe uma hora vai cansar de lutar por alguém que não quer lutar por si
mesmo.
Ele assente e fala com a voz baixa:
— Eu só queria que eles me deixassem em paz.
— Mas eles te amam e isso não vai mudar. — Dou um suspiro e quando
tento dar um passo, sinto uma fisgada forte, congelando-me no lugar. Puxo
uma respiração e mantenho a postura para ele não perceber. — Enfim... eu
vou embora e fique feliz. Você vai ter menos uma pessoa para tentar te
ajudar. E saiba, esse rancor todo dentro de você está matando muito mais que
sua fé no amanhã.
Vejo seu peito estufar quando respira com força. E dando um sorriso
amigável, me viro para o meu quarto. Não sei como vou fazer, mas vou pegar
minhas coisas e ir embora.
E essa vontade toda é atropelada quando sinto outra fisgada e me curvo
para frente.
— Ei, você está bem? — Adam aparece ao meu lado, segurando-me
antes que eu caia.
Merda! Eu pensei que ele tinha descido já.
— Sim. Sim. Eu só... — Aprumo minha postura e olho para ele. — Só
estou com cólica. Vai passar.
— Não parece que está bem. Você está pálida e suando frio. E eu já
tinha reparado nisso.
— É normal isso. Pode me soltar. — Minha voz sai hesitante.
— É você que está sendo teimosa agora. Deixa eu te ajudar. Depois...
você vai embora.
Dentro de mim parece que tem uma brasa. Não sei explicar direito, mas
meu coração está dolorido e quente. E uma vontade inconveniente de chorar
me abranda.
— Eu não quero a sua ajuda. — Balanço a cabeça devagar. — Não
quero ajuda de ninguém. Isso vai passar e eu vou ficar bem.
Eu sei que é uma mentira e talvez quero chorar porque as minhas
chances de parar de sofrer com essas dores morrerá assim que for embora
dessa casa e não ter mais o dinheiro que ganho.
— Olha — ele vem para minha frente, sem soltar meus ombros —, eu
sei que você está zangada comigo e entendo. Mas você acabou de falar que
compaixão é gratuita e eu estou...
— Tendo compaixão por mim — completo e ele assente.
— Sim e você não pode ser que nem eu. Negar minha ajuda te torna um
“Adam teimoso e orgulhoso”. — Ele abre um sorriso amarelo. — Sinto muito
por não ser a melhor pessoa para ajudá-la, mas eu sou a única que está aqui
agora.
Meus olhos enchem de lágrimas e baixo o rosto. Eu realmente não tenho
ninguém e a dor da minha virilha e nas minhas entranhas é insuportável. E é
só por causa disso que me permito demonstrar essa fraqueza na frente dele e
balanço a cabeça concordando em aceitar sua ajuda.
Com calma, Adam me pega nos braços e leva para quarto. Olhando
minha cama bagunçada, minha mala no chão com minhas roupas jogadas e o
armário quase vazio, vejo-o cerrar a mandíbula. No entanto, continua. Me
deita na cama e me cobre.
— O que você precisa agora? Você sempre sente isso mesmo?
Assinto de boca fechada. Não quero falar mais do que devo. Irei ficar até
minha dor passar.
— Não precisa ir ao médico? Eu te levo — diz parecendo genuíno e
realmente preocupado.
— Não, quer dizer... — Baixo os olhos. — Na verdade, eu queria muito
ir.
— Tudo bem. — Levanta disposto. — Sem problema. Eu a levo agora.
— Não dá, Adam. O que eu preciso... — Droga! Se eu não contar o
problema, ele não vai entender. — Olha, eu só quero que você pegue minha
bolsa. Lá tem remédio de dor, cólica. E só basta isso. Vai passar.
— Só isso?
Realmente ele é um homem teimoso e insistente. Por que ele não pega
essa energia de querer saber da minha doença para cuidar de si mesmo? Santo
Inferno!
— Você vai me dizer a verdade ou não?
— E você se importa?
Ele engole em seco e vem sentar na beira da cama, perto de mim. Porém,
me surpreendendo, não fica de frente para mim. Fica de lado e apoia com os
cotovelos nos joelhos, entrelaçando os dedos.
— Você realmente tem razão. Eu me sinto culpado e preciso mudar.
Tomar um rumo na minha vida — admite distraído. — Eu não sinto mais
nada, apenas uma culpa esmagadora por tudo, inclusive por não ter seguido
em frente ainda. Minha família e meus amigos fazem de tudo.
Ele está fazendo minha cólica monstruosa ser brincadeira de criança
agora.
— Mas é muito difícil e lamento não ser uma boa pessoa mais. No
entanto — vira-se para mim —, nem sempre eu fui assim. E se eu deixar você
aqui, sofrendo e sem saber o que realmente você tem, vai matar aquele Adam
mais ainda. Vai afirmar que estou morto. Eu quero... Eu estou tentando agora
mostrar que não sou tão mau assim.
— Eu não disse que você era mau. — Meus olhos ficam quentes porque
os dele estão vermelhos.
Ele sofre com seu próprio sofrimento.
Há pessoas que não querem estar destruídas, mas estão danificadas
demais para procurarem suas partes perdidas pelo caminho que as destruíram.
— Eu sei que não.
Encará-lo me faz sentir sua perda e entender que Adam não gosta de se
sentir assim. Fecho os olhos, conto até dez e os abro para fitar sua barba, pelo
menos.
— O que acontece, Adam, é que eu só aceitei e estou na sua casa por
causa disso.
— Disso? Como assim?
Arfo com força e meneio a cabeça.
— Eu estou doente e preciso de dinheiro para fazer exames adequados.
— O que você tem?
— A última médica que fui, que foi do hospital público, disse que
poderia ser endometriose ou alguma outra doença feminina. Só que isso tem
que ser averiguado com mais profundidade. Sintomas não revelam de fato se
é uma coisa ou outra.
— E você não fez.
— Não — confirmo. — Não porque precisa de dinheiro. Os hospitais
públicos fazem os cuidados até uma parte, parte que eu já uso. O resto é
comigo.
— Há quanto tempo você está sentindo isso?
— Há uns... quinze meses. E é só por causa disso que estou aqui, porque
você pode não acreditar. Eu não adoro essa grosseria toda.
— Desculpe. — Dá de ombros.
— É... — repito o gesto. — E eu só fiquei calada antes quando foi mau
comigo e também maltratou seus pais, ou ignora sua mãe, por causa disso.
Não queria perder a oportunidade de ficar, porque se não fosse por este
motivo já tinha ido embora, mas precisava ficar.
— Precisava?
— É — Mexo os ombros sem jeito. — Tipo, quando nós conversamos
no Natal... eu achei que, depois daquela conversa, a gente poderia ser amigos
ou pelo menos nos respeitar, e eu podia continuar te ajudando, sendo sua
empregada ou o que poderia te ajudar, até conseguir o dinheiro para poder
fazer um tratamento, mas quer saber a verdade. Eu não sei se vou conseguir.
Na verdade, já me decidi. Vou embora. Prefiro morrer a continuar lidando
com você desse jeito. Não posso lidar com a minha doença e os seus
problemas.
— Isso tudo é por minha culpa?
— Não, Adam. Para de achar que o mundo gira em torno de você. Nem
sempre tudo é culpa sua. Agora eu só estou zangada com você, pela sua
grosseria, mas a verdade é que já passou. Minha dor superou tudo.
— Eu sinto muito, mesmo.
— Sem problema. Você não me magoou e só perguntei se estava bem
quando estava saindo àquela hora da noite pelo seu histórico de chegar
bêbado.
— Como sabe disso?
Respiro fundo sentindo minhas bochechas esquentarem de vergonha.
Não deveria ter falado isso.
— É que, quando eu cheguei aqui, você estava de ressaca; e segundo, o
Harry me contou algumas coisas. Não fique bravo com ele. Harry só quer o
seu bem e conversou comigo para eu poder te ajudar.
— Sem problema. — Volta a apoiar os cotovelos nos joelhos, só que
dessa vez enfia as mãos nos cabelos, como se sentisse um peso sobre os
ombros. — Eu não fico zangado por eles quererem me ajudar. Fico com raiva
por não fazer o que eles querem.
— Beleza e eu não tenho nada a ver com a sua vida. Você tem razão e
nem sei se eu deveria estar aqui.
— Não fala isso. Quem precisa se sentir assim sou eu e quem deve pedir
desculpas. Eu não deveria falar daquele jeito — afirma parecendo
envergonhado demais para me encarar. — Eu vou tentar. Se você ficar, vou
tentar ser amigável.
— Adam...
— Escuta — olha para mim —, você precisa ficar. Não precisa de mim,
eu sei. Porém, pela sua saúde, precisa ficar aqui. Precisa de uma casa boa,
perto do hospital e de uma pessoa que possa te ajudar.
— Você não pode cuidar de si mesmo, Adam.
Ele baixa o rosto fazendo um som como se algo tivesse o queimado.
— Desculpe. Fui rude.
Ele ri e levanta a cabeça.
— Não. Você foi sincera e quer saber da verdade. Você fica e eu
cuidarei de você; isso é um jeito de me ajudar também. Vou deixar de ser
inútil e me preocupar com algo que não seja minha incessante tentativa de me
fazer sofrer pelo que fiz anos atrás.
— Uau!
— Nossa!
Falamos em uníssono e acabamos rindo.
— Parece que você foi picado pelo bichinho da sinceridade.
— Ou talvez seja a cerveja.
— Provavelmente — digo rindo.
— Enfim, quero dizer que, se você ficar, será bom para ambos. Nós
cuidaremos um do outro. E não será para sempre. Só até você ficar boa.
— Gosto dessa esperança sobre mim.
— Você não acha que vai ficar boa?
Dou de ombros.
— Você vai ficar boa — afirma —, e até lá prometo não tratar você mal.
Não vou fazer de novo, pois tem toda razão. Você não merece minha ira. Não
é culpada. Aliás, não é sua culpa ou de ninguém. Talvez a culpa nem seja
minha...
— Para. Para. Para. Agora eu fiquei confusa.
O que uma coisa tem a ver com outra? Será que ele está falando no geral
sobre a vida dele? Minha nossa! O que será que aconteceu para ele ficar
assim? Por que tanto remorso e essa culpa que ele mesmo agora duvida se é
ou não dele?
— Eu quero que você fique — pede retomando a compostura. — A
minha mãe pediu e eu não posso deixar você sair assim, mesmo sabendo que
não está me contando tudo. Mas, okay.
Ele tem razão. Não estou dizendo nada e não é porque me sinto
miserável demais para dizer em voz alta que não tenho dinheiro para fazer
exames periódicos, não tenho casa e nem para onde ir. Não vou morar com
minha mãe e Johnny de novo. Eu nunca mais quero estar sob o mesmo teto
que eles. E, se eu sair daqui, estou praticamente me candidatando a viver na
rua e até morrer com essa doença. Porque, sinceramente, acredito que essas
dores podem me levar à loucura ou a óbito.
Eu fui muito irresponsável não cuidando de mim. Fui deixando para lá e
agora talvez seja tarde demais. E o que preciso pode ser muito mais do que
antibióticos. Me sinto envergonhada, fracassada e estou preferindo ser uma
gata borralheira dessa casa, do que morrer de algo que seria simples se fosse
mais zelosa com minha saúde. Espero que não sejam muitas as mulheres a
sofrer disso pelo mesmo motivo que eu. Que não é a falta de dinheiro, e sim
uma preguiça sem tamanho.
E antes eu estava de boa em ser empregada da fera, agora isso mudou. A
fera quer me ajudar a ajudá-lo, e tudo bem. Não é?
— Adam, você não tem que se preocupar comigo. Eu só peço para que
enxergue sua vida de outra forma. Você tem tanto para oferecer. Sei que
ficou zangado quando mexi nas fotos lá em baixo, mas eu vi que tem talento.
Ele meneia a cabeça concordando e olha para as mãos. Um silêncio, que
obviamente é sua mente trabalhando nas memórias perdidas, nos faz
companhia por alguns minutos. Então vejo suavemente seus ombros subirem
e descerem quando arfa.
— Eu adorava fotografar. — Balança a cabeça, perdido em
pensamentos. — E... é difícil... voltar. Foi há muito tempo.
— Você ainda está vivo, Adam. Agora só precisa recomeçar.
Ele faz um movimento com a cabeça que poderia ser interpretado como
um aceno, mas não tenho certeza. De repente, se levanta e vira-se para mim.
— Enfim, falamos tanto que acho que sua dor diminuiu um pouco, né?
— muda de assunto bruscamente.
Dou de ombros.
— Onde estão os seus remédios?
— Pega a minha bolsa. Aquela vermelha jogada no chão.
Ele me obedece e pergunta quando volta:
— O que aconteceu aqui? Você ia embora, não é?
Assinto pegando minha bolsa da sua mão, sem dar continuidade nesse
assunto. Procuro meu estojo de remédios e acho os comprimidos.
— Pode pegar água para mim?
— Claro, já volto. — Dá as costas, pulando minhas roupas para não
pisar nelas.
Sozinha, olho para a parede e suspiro.
— Não sei o que estou fazendo. Acho que é um grande erro, isso sim —
resmungo e tampo meu rosto com minhas mãos. Como se isso fosse me fazer
desaparecer e meus problemas sumir.
SEIS

Sinto como se estivesse respirando meu último suspiro


Sinto como se estivesse andando meus últimos passos
Olhe para todas essas lágrimas que eu chorei
Olhe para todas as promessas que eu tenho mantido

PURPOSE | JUSTIN BIEBER

Parado em frente ao guarda-roupa, cerro os punhos incomodado com a


situação. Não sei o que devo vestir, ainda mais porque sei que minha mãe não
vai permitir que eu fique em casa em pleno Ano Novo. Essa coisa de festa é
irritante, às vezes. Vou precisar colocar algo que ela aprove.
Apesar de hoje, o que quer que eu diga seja uma suposta mentira ou
defesa da minha pessoa; de verdade, nem sempre fui ranzinza. Eu gostava de
sair, curtir os fins de semana e celebrar. Ainda posso lembrar do meu bom
humor, e só de vez em quando consigo voltar no tempo e ser espontâneo.
Esses momentos se concentram na academia ou quando estou bêbado demais
para controlar meus pensamentos trancafiados nessa merda de culpa.
No entanto, atualmente sinto que algo mudou. Desde que vi Sara na
minha porta, meu presente – quebrado e sem vida – se chocou com meu
passado – o causador do meu presente ser o que é – de forma irrefreável e
dolorosa. Eu já tinha que lidar com minha família no meu pé, meus amigos
enchendo minha paciência, e como se não bastasse veio a garota para a
minha casa cuidar de mim, que na verdade acabei de descobrir que eu que
vou cuidar dela no final. Isso é bom? Não sei, mas é algo para eu fazer e sem
querer que alguém descubra, ter algum tipo de responsabilidade obrigatória é
o único jeito de me tirar do lugar.
Às vezes, sinto que pisei numa poça de cimento, que agora é um
concreto duro e impenetrável. Estou paralisado na amargura, e só uma
pancada forte para quebrar esse “chão” duro e me tirar do lugar.
Fazendo uma cara nem um pouco feliz, pego uma camisa de linho
branca, a jaqueta preta e uma calça jeans. Jogo tudo na cama e vou fechar a
porta do quarto para tomar meu banho tranquilo. Não sou adepto às
surpresas, principalmente as que podem ser evitadas.
Debaixo do chuveiro, meus pensamentos, sem eu ter qualquer tipo de
controle sobre eles, vão para Belinda. Certo. Eu não estou pensando nela no
sentido carnal, e sim no que ela disse. Tudo o que ela disse há três dias.
Dizer que foi um choque saber da sua doença, é um eufemismo. Ela me
pegou desprevenido totalmente e esmagou meu ser estúpido até virar nada.
Me senti tão terrível por tudo que fiz com ela. Todas as frases malcriadas, as
grosserias e sem contar meus pensamentos de mandá-la ir embora na primeira
semana.
Sacudo a cabeça fitando o chão, resignado, e apoio minhas mãos na
parede da torneira refletindo aquela noite, as palavras dela e não sei o porquê,
mas tenho uma estranha sensação em relação ao seu relacionamento com o
padrasto. Isso não sai da minha cabeça. Será que ele tentou fazer algo com
ela? Que bastardo ele é se fez. É ser um homem muito crápula para tal ato.
Finalizo o banho, me enrolo na toalha e vou fazer a barba na pia. O certo
seria dizer limpar a barba, coisa que não faço há muito tempo. Nem lembro a
última vez que peguei no barbeador. Espero que esteja funcionando.
Encarando meu reflexo no espelho torço o rosto em repúdio. Merda! Eu
deveria ter pelo menos antes aparado as pontas. Minha barba é tenebrosa.
Tenho cara de homem relaxado. Certo, eu estava mesmo deprimido e
disposto a morrer com as baratas, mas não era para tanto. E por que ninguém
me disse o quão terrível minha aparência estava? Amigos da onça!
E hoje, por algum motivo estranho, quero dar uma limpeza na cara. É
Ano Novo e talvez eu possa colocar em prática definitivamente todas as
palavras de incentivo que recebi nesses longos seis anos. Eu posso não voltar
a ser o que era, porém acredito que consiga encontrar novos meios de viver.
Voltar a fazer o meu trabalho, me cuidar melhor e tratar as pessoas com
educação, já é um bom começo.
Belinda falou coisas para mim naquela noite dolorosas demais, porém
verdadeiras. Ninguém tem nada a ver com o que sinto dentro de mim.
Ninguém tem nada a ver com meus problemas para eu as tratar mal.
Com certeza, minha mãe apreciará esse entusiasmo de minha parte. E
sendo clichê. Ano novo, vida nova.

Eu deveria desconfiar da vida. Levantei humorado demais para que nada


estragasse meu dia. É sempre assim e depois colocam a culpa em mim por
não querer começar a melhorar. Merda de vida. Eu estava bem até terminar
de fazer a barba.
Desço as escadas de casa quase correndo, dando passos fundos e
pesados. Vou comer alguma coisa antes de ir para casa dos meus pais. A festa
começa às vinte horas e eu tenho longas cinco horas para me preparar
psicologicamente.
— Adam? — Escuto a voz baixa e fraca de Belinda atrás de mim e me
viro para encontrar seus olhos interrogativos. — O-o... o que houve? —
gagueja piscando sem parar.
Franzo a testa porque não compreendo seu estado tão alarmado com
minha aparência. Eu sei que não sou um galã de filme de Hollywood, mas
não sou feio. Aos olhos da minha mãe e irmã sou bonito, mas elas não
contam e nem coração de mulher apaixonada. Mera ilusão da paixão.
Dou de ombros e viro-me pegando o caminho que já estava fazendo: a
cozinha.
No trajeto, é claro que me deparo com meu reflexo no espelho do
corredor. Tomo um leve susto com meu rosto, mas passa rápido. Vai levar
um tempo para eu me acostumar com minha cara limpa de novo.
— Você está melhor? — pergunto quando a vejo parada na soleira da
porta com os braços cruzados.
— Uhum.
Deixo a bandeja de ovos na pia com a manteiga e viro-me para ela de
novo. Ainda está na mesma posição e com a mesma expressão de espanto e...
não sei o que mais.
— Vai continuar me encarando? — indago sem querer ser grosso, mas é
difícil quando ela está puxando meu lado sombrio para fora.
— Desculpe. — Baixa o rosto e vai se sentar na cadeira do canto. —
Não queria ser inconveniente, mas é que... estou surpresa.
— Em me ver sem barba?
Ela dá de ombros e reprime um sorriso.
— Já era quase uma característica sua. Nem conseguia... — faz uma
pausa — imaginar você sem ela.
— Hum... — resmungo fazendo um aceno com a cabeça e dou-lhe as
costas para começar a preparar o meu café da manhã, embora seja quase três
da tarde.
— Você já comeu? — pergunto mexendo os ovos na frigideira.
— Já. Na verdade, acordei bem cedo e fiz café.
Dou de ombros e em silêncio termino de fazer os ovos, depois frito os
bacons e coloco num prato. Pegando uma latinha de refri na geladeira, vou
me sentar. Dou a primeira garfada e levanto a cabeça, dando de cara com
Belinda e seus olhos admiradores.
— Antes você me olhava com medo, agora... Não sei, mas está me
assustando.
Estou quase baixando os olhos para focar na minha comida quando sua
gargalhada domina o ambiente. Belinda ri de colocar a mão na barriga e
balançar a cabeça. Sem esperar, acabo rindo também pela espontaneidade do
momento.
— Desculpe — pede enquanto limpa embaixo dos olhos que
lacrimejaram de tanto rir. — Foi mal mesmo.
— Humpf! — Anuo e dou de ombros.
Estou ocupado comendo para respondê-la, e mesmo assim não sei se o
que ela falou da barba foi bom. Porque se para ela ter aquela barba sem fazer,
relaxada e feia era minha característica, com certeza ela me acha um ridículo
fracassado e porco. Legal! O dia só melhora.
O sossego volta a preencher o espaço quando ela para de rir e se levanta.
Olho-a de soslaio e vejo pegar uma garrafa de água. Apoia os quadris
estreitos na bancada da cozinha, embora não alcance porque ela é baixinha, e
bebe a água olhando para frente, mas sem foco.
Mexo as sobrancelhas, dou um suspiro alto e rapidamente acabo de
comer. Levantando, vou deixar as coisas na pia e preciso pedir licença para
sair do caminho. Como se estivesse sonhando acordada, ela pisca algumas
vezes e me encara.
Uma atmosfera carregada e estranha nos captura. Devolvo o olhar e algo
acontece. Alguma coisa que faz nós dois respirar fundo e relaxar os ombros.
Seria um suspiro, mas é mais forte. É diferente.
Nos encaramos por consideráveis segundos. Seus olhos azuis-claros me
faz recordar de um céu claro, sem nuvens. E eles fitam os meus sem receio.
Quase conseguindo enxergar dentro de mim, ver a minha alma; e eu sem
dúvida, se me esforçar mais um pouco, posso fazer o mesmo.
Porra!
Agoniado, pisco os olhos com força e sacudo a cabeça. Deixo o prato
para trás e saio de perto dela. Eu não quero esse tipo de problema para mim.
Não vale a pena.
— Adam?
Sua voz estagna meus passos no corredor. Fecho os olhos soltando o ar
pela boca.
— Sim?
— É... — ela faz uma longa pausa, me obrigando a virar e encará-la.
— Sim? — repito.
Engole em seco auditivamente e abre um sorriso amarelo.
— É... que. Eu queria saber se... você vai... — respira como se fosse
difícil de falar — sair hoje?
Franzo a testa sem entender.
— É porque é Ano Novo — explica. — Pensei que sairia hoje ou...
— Eu vou na minha mãe. Ela sempre faz festas.
— Sim! — Dá dois passos, ficando mais perto, e eu quero recuar dois
passos, querendo ficar longe. — Era isso que eu queria falar. Você vai para lá
que horas?
— Estava indo pegar minhas coisas agora, para falar a verdade. Por quê?
— Eu vou também — responde assentindo repetidas vezes.
— Minha mãe te convidou? — pergunto e me odeio por ter parecido tão
apático à sua ida para a festa também.
— Sim.
Dou um aceno com a cabeça e voltamos a ficar mudos enquanto nos
encaramos. Só que, dessa vez, não dura muito. Belinda termina com o espaço
entre nós e fala:
— Você pode me esperar? Vou pegar minhas coisas bem rapidinho.
— Não tem problema não. Eu espero você.
— Okay, obrigada. Vou terminar de fazer o doce e já subo pra pegar
minha bolsa.
Franzo a testa confuso, e ela abre um sorriso contido explicando:
— Sua mãe pediu para eu fazer o doce que uma vez fiz na casa dela
quando minha mãe me levou junto para uma diária, e sua mãe adorou. É de
morango.
Anuo com a cabeça compreendendo e ergo as sobrancelhas como
cortejo, viro-me e finalmente subo as escadas. Por que ela sempre dá
informação demais? Parece um disco arranhado. O pior é quando ela me faz
falar.

— Ai, meu Deus! Adam Stella, você quer me fazer enfartar, menino?!
— mamãe exclama assim que abre a porta de casa para mim e Belinda.
— Não — Respondo dando um abraço nela.
— Você tirou a barba — fala cheia de orgulho tocando meu rosto e
sorrindo de orelha a orelha. — Deus ouviu minhas preces.
— Deve mesmo. Porque não foi planejado. Eu só ia limpar, mas...
Ela ri e me abraça de novo.
— Não importa. Você fica lindo de todas as formas, mas prefiro meu
filho assim. Com o rosto limpo.
— Por quê? Também me achava com cara de depressivo e rebelde de
barba? Sujo?
— Quem disse isso? Que absurdo! — Faz um movimento com mão em
desdém. — Deixa pra lá. Eu gosto de você sem aquela barba porque posso
ver melhor seu rosto lindo. Meu menino dos olhos azuis.
Rio e recebo um beijo no rosto com todo carinho que ela é capaz de me
dar. Não recuo. Eu gosto de receber carinho da minha mãe. É a única mulher
que posso confiar que nunca vai quebrar meu coração. Talvez eu devesse ter
pensado nisso antes.
Ela se afasta e olhando para trás de mim, vê a garota e vai cumprimentá-
la.
— Você está linda, minha jovem.
Viro me sentindo desconfortável e olho Belinda.
Ela tirou a calça de moletom e o casaco maior que seu corpo e substituiu
por um vestido vermelho longo com mangas compridas e os ombros nus,
mostrando sua pele alva. É um vestido lindo, num corpo bonito e numa
garota bonita, que hoje está produzida. Ela não tem aquelas belezas
arrebatadoras, é mais para angelical.
Hoje, seus olhos parecem mais escuros, mais para cinza do que azul,
porém acesos, a boca pintada de rosa claro e os cabelos escovados e soltos.
Não tinha percebido que eles eram tão longos. Alcançam sua lombar e
balançam conforme ela caminha.
Uma droga tudo isso. Porque essa garota bonita e vestida tão bem é
Belinda. Isso não é muito bom. Na verdade, é péssimo depois daquilo que
rolou à tarde. Ficou um clima estranho entre a gente até agora. Ficar no
mesmo carro que ela foi difícil.
O que está acontecendo? Primeiro, as verdades jogadas na cara, depois
revelações e logo em seguida um clima que não tinha despertado em nós.
Me sinto sufocado.
Não era para isso acontecer. Não era para eu me importar, muito menos
me sentir atraído por ela. Isso só piora tudo. Quero correr para o lado oposto
de seus passos. Mas não posso deixá-la ir sabendo que precisa de um lar e de
ajuda com sua saúde. Droga!
Como se meus pés estivessem pegando fogo, me viro e vou para os
fundos da casa. Longe dela e da minha mãe conversando sobre bobagens e a
merda do doce de morango, que é minha fruta favorita.
Por que eu acho que minha mãe está fazendo de propósito? É
impressionante. Ela sempre está um passo à frente. Só queria que tivesse
feito sua mágica antes do meu mundo desmoronar.
Chegando à cozinha deixo a caixa de papelão com o doce no balcão, e
saio indo para o escritório do meu pai porque sei que é lá que ficam as
bebidas fortes. Entrando, fecho a porta dando uma volta no trinco. Preciso
desse tempo sozinho. Longe dessa pressão toda.
Eu sei lidar com pressão. Questionamentos e dúvidas ao meu respeito e o
que vou fazer na minha vida. Desde adolescente minha vida não é tomada
inteiramente por minhas escolhas. Como um gênio e dotado de talentos. A
faculdade de fotografia foi apenas um aprimoramento para o que sempre fiz
sem ninguém me ensinar nada sobre luz, foco e ângulos. Engenharia foi a
mesma coisa. Sempre tive o olho muito bom para construções e desenvolver
coisas para que outras coisas funcionassem (mesmo quando pequeno), assim
como gostava da área de construção civil. Lembro que, aos oito anos,
conversava com os homens da empreiteira que reformou esta casa que estou,
como se eu fosse gente grande e entendesse tudo sobre o que eles estavam
fazendo. Mas segundo o responsável pela obra, eu levava jeito e os ajudei. O
centrifugador dentro da pia da cozinha, que levava adubo para o jardim nos
fundos da casa, que ajudou a crescer a imensa árvore, foi uma ideia minha, e
o teto refletor de luz solar também.
Meu pai tinha muito orgulho de mim. Da minha mente brilhante, das
minhas escolhas e do meu amor por matemática e português, que passou a ser
apenas física no terceiro ano escolar e minha paixão na primeira faculdade,
que foi engenharia mecânica. Apesar de gostar da engenharia civil e ter
ótimas ideias para construções de casa, encontrei meu ramo em construir
mecanismos que ajudavam na concepção, produção e operações. Foram
tempos bons quando ajudava a criar máquinas capazes de facilitar a vida de
uma fábrica inteira. O que seria das automotivas sem os engenheiros
mecânicos?
Soltando uma respiração exasperada, relaxo meu corpo na poltrona do
meu pai (que ele não saiba que estou nela) e fecho os olhos. Eu só preciso de
um pouco disso.
Algumas pessoas não conseguem ficar sozinhas com elas mesmas, e
talvez porque nunca encontraram em si um refúgio. Nunca encontraram seu
equilíbrio e silêncio. Eu aprendi a ter dentro de mim essa paz porque, quando
tudo aconteceu, eu não queria ninguém por perto. Detesto pena e desculpas.
Aconteceu e pronto. Para que ficar falando ou justificando?
Concentrado e permanecendo de olhos fechados, tomo o uísque
envelhecido do meu pai. Ele não liga de usarmos suas bebidas, o maior
problema aqui é eu estar na poltrona do “rei”.
— Acha que Adam foi embora. Não acredito nisso!
Ergo as sobrancelhas ouvindo minha irmã. Ela parece zangada. Desde
pequena, Ava é agarrada comigo e não aceita quando eu não quero ficar com
ela. Ela odiava quando eu não queria brincar.
— Eu acho que ele está pela casa, querida. Não fique assim — mamãe
fala como se realmente Ava fosse criança.
— Também não acredito que ele foi embora — Belinda fala e não sei
por que, mas fico feliz dela acreditar que eu não sou babaca em ir embora da
festa da minha mãe.
Ajeitando minha gravata, levanto e caminho até o bar. Me sirvo de outra
dose de uísque – tomando de uma vez só – e deixo o copo na pia. Está na
hora de enfrentar minha família, Belinda e todos que sempre querem demais
de mim.
— Estou aqui. — Abro a porta, dando de cara com Belinda. Parece que
minha mãe e irmã não conseguiram esperar.
A garota fica me olhando nos olhos fixamente por longos minutos e
quando se torna incômodo demais, ela pisca e recua dois passos.
— Sua irmã foi ver se você está no seu antigo quarto.
Aceno com a cabeça e me viro indo para as escadas.
— Vai ficar assim por muito tempo?
Paro e franzo a testa quando a encaro.
— Do que está falando?
— Você está estranho. Está me tratando com frieza e eu não lembro de
ter feito nada a você.
— É impressão sua. Eu... só estou com dor de cabeça.
Ela baixa o rosto enquanto assente. Eu sei que não acreditou.
— Está bem. Não importa.
Cerro o maxilar arfando com força e a deixando no corredor, me viro
indo atrás da minha irmã. Dane-se! Não quero saber de Belinda agora.
Preciso respirar.
Harry está conseguindo me deixar a ponto de socar a cara dele ou
terminar de beber a garrafa de uísque no escritório do meu pai.
— Para de me encarar, merda!
Ele ri e ajeita a filha nos braços. Dou uma olhada neles e balanço a
cabeça para o sorriso idiota dele.
— Você não tinha que se concentrar na sua filha em vez de perturbar
meu juízo, não?
— É engraçado ver você assim.
Franzo a testa e termino minha bebida. Estou apenas no champanhe,
embora não faça efeito nenhum no meu sistema.
— Você é louco. Estou normal.
— U-hum.
Dou um olhar atravessado para ele e me levanto indo para a varanda.
Vim para o quarto da minha irmã fazer companhia ao meu cunhado, que está
tentando adormecer a filha. Bebês precisam dormir, mas minha pequena
sobrinha não concorda.
O meu cúmplice de sempre me faz companhia e eu aprecio. O silêncio é
o melhor aliado nos momentos onde os pensamentos estão cheios, pelo
menos para mim.
Respiro fundo sentando-me em uma das cadeiras da mesa onde minha
irmã brincava de boneca ou estudava quando adolescente. Meus pais são
nostálgicos e não desfizeram os quartos dos filhos. Todos estão do mesmo
jeito que nós deixamos a última vez que entramos neles. Minha irmã Ava
adora ver o dela e recordar o tempo onde foi líder de torcida até o último ano
do High School e sua coleção de bonecas. Mas eu não gosto nem de passar na
porta do meu antigo quarto. Deixei tudo para trás. Foram muitos momentos
gastos com Selena e nesses seis anos eu tentei esquecê-los o quanto pude.
Entrar naquele quarto não ajudaria e fiquei feliz que minha mãe nunca
insistiu para eu tentar vê-lo e pegar algo de que gostava quando mais novo.
Droga! Não tem nada que eu precise nele. Nada!
— Adam, me desculpe, cara. — A voz de Harry rouba minha atenção.
Meneio a cabeça em negativa encarando-o. Deve ter conseguido colocar
Rose para dormir. Toda vez que falam o nome dela ou eu mesmo penso
lembro da fascinação de Ava com o filme Titanic.
— Está tranquilo. Eu realmente estou inquieto. Não sei. — Viro o rosto
e foco na neve caindo com força esta noite. — Não queria ter vindo. Só estou
aqui para agradar minha mãe.
— Adam. — Sinto a advertência e me preparo para o sermão. — Não
acho que é só isso. Aconteceu alguma coisa? Você sabe que pode falar
comigo.
Aconteceu alguma coisa é eufemismo. Aconteceu muita coisa em menos
de duas semanas. Como pode uma simples presença me fazer sentir que as
coisas saíram do lugar? É como se ela tirasse tudo de ordem e causasse o
caos. Não estou falando de Belinda, porém ela faz parte disso ou o começo.
Tudo começou na manhã que ela surgiu na porta da minha casa e fosse
piorando, e quando vi Sarah na minha frente levei um soco no estômago.
Perdi o equilíbrio e fui levado para o ponto onde rejeitava tudo, mas também
reivindicava os motivos.
— Se você tivesse um amor roubado, perdido, traído e ele tivesse uma
cópia dele andando por aí — falo com a cabeça erguida, para frente, mas sem
focar em nada. Só preciso realmente falar um pouco sobre isso com alguém.
— E depois de longos anos de tentativas falhas para esquecer, encontrar e
perdoar, você desse de cara com essa cópia... — puxo o ar para os meus
pulmões com tamanha força, sentindo o ar gelado e viro-me para Harry —
como você se sentiria?
Ele fica estático, talvez confuso e sem fala. Muda de posição apoiando
os cotovelos nos joelhos e arfa com força. A expressão em seu rosto é
aprazível.
— Você viu a Sarah? — Não é uma pergunta, e quando olha para mim
franze a testa. — Por que não disse nada?
— Sei lá. Ninguém consegue entender até hoje por que me culpo tanto
pela morte de Selena, por aquela noite.
— Eu não sou uma delas e posso garantir que entenderia você estar pior
esses dias depois de ver a irmã gêmea da sua ex.
Assinto agradecido pela compreensão. De fato, ele é um dos únicos que
não me acusa ou aponta o dedo. Me ouve e tenta me ajudar no que preciso.
Por isso também me deixava beber até perder a cabeça.
— Eu sei, mas, sendo sincero, minha cabeça está uma merda.
— E quando não está?
Curvo o canto da boca com um sorriso desprezível.
— Você é um babaca, Harry!
— Estou brincando, cara. Enfim, quando foi isso?
— Acho que tem uns quinze dias. Foi no dia seguinte que a garota
chegou na minha casa.
Ele franze a testa e cruza os braços.
— Garota?
— Belinda.
— Sério que você ainda a chama assim? Pensei que vocês... — Move os
ombros estranho.
— Nós o quê? Não existe um nós só para começar.
— Calma, merda! — Levanta me olhando de cara fechada. — Não sei
por que toda vez que toco nesse assunto você fica assim.
— É a primeira vez que falamos sobre isso.
— Não é — responde com a voz enigmática. — Quando estávamos lá
dentro, eu estava falando sobre isso. O jeito como você está perto dela ou
quando tocam no nome dela. O que Belinda fez para você se sentir assim?
— Quer saber? Não está dando certo isso aqui. — Agora eu me levanto,
passo por ele e atravesso o quarto, com a porta aberta e prestes a sair, viro o
rosto e o encaro. — Você está ficando igual a todos. Enxergando coisas onde
não tem, não prestando atenção ao que quero falar e forçando a barra. Me
deixa também, Harry.
— Acho que você precisa ficar sozinho mesmo. Talvez assim enxergue
melhor as coisas e como todos nós vimos.
SETE

Oh, pessoas ajudam pessoas


E se você tem saudades de casa
Dê-me a mão e eu vou segurá-la
Pessoas ajudam pessoas
Nada vai arrastar você para baixo
Ah, e se eu tivesse um cérebro
Ah, e se eu tivesse um cérebro
Eu seria frio como uma pedra e rico como o tolo
Que rejeitou todos aqueles bons corações

PEOPLE HELP THE PEOPLE | BIRDY

Desde que sou pequena tenho a impressão de que as pessoas desgostam


de algo, ou de pessoas, com muita facilidade. Quando tinha quatro anos, meu
pai preferiu sair de casa e construiu uma nova família onde teve dois filhos
em tempo recorde, e um mês antes de eu completar seis anos ele morreu. O
“x” da questão é que ele deixou de amar minha mãe e não ligou de deixar três
filhos para trás com muita facilidade.
Aos dez anos, eu tive um namorado, Patrick. Ele foi meu primeiro beijo,
meu primeiro amante. Com dezesseis anos achei que estava pronta para
transar. Não foi ruim, pois ruim mesmo foi sete meses depois quando
terminou comigo e com dois meses já estava em outro relacionamento.
Novamente a teoria de que as pessoas esquecem as outras com muita
facilidade foi comprovada.
E por que eu estou pensando isso enquanto vejo a família de Adam
celebrar a chegada do novo ano, o badalar dos ponteiros que se aproximam
da meia-noite. Porque quem me trouxe, quem deveria pelo menos fingir que
se importa comigo por simples empatia já que moro na casa dele, não está na
sala e eu estou me sentindo uma estranha no meio dessas pessoas. Ele sumiu.
E eu só consigo pensar sem parar desde que ele fez a tão costumeira grosseria
no corredor, que mudou comigo.
Nós estamos estranhos e acho que embora Adam nunca tenha
demonstrado gostar de alguém, inclusive de mim, agora ele desgosta
totalmente. Nem consegue ficar mais perto como se eu tivesse uma doença
contagiosa.
Respiro fundo e cruzo os braços me sentindo mal por estar aqui. Essa
família não é estranha, os conheço há muito tempo porque mamãe sempre
trabalhou com eles, mas por algum motivo estar sozinha (sem o Adam por
perto) me causa desconforto.
— Vem, Belinda — Harry chama e faz um sinal com a mão.
Mesmo me sentindo uma intrusa, aceito o convite. Pegando uma taça de
champanhe, abro um sorriso e quando todos gritam: “Feliz Ano Novo” e os
fogos de artifício começam a explodir, eu vou no embalo deles comemorando
e festejando o novo começo.
Depois que a euforia diminui, me afasto e no canto fecho os olhos e
apenas desejo que no próximo ano as coisas sejam mais fáceis do que esse.
E quer saber da verdade, acho que todo mundo no fundo quer isso. Que
o próximo ano tenha menos obstáculos para passar. Entretanto, a vida não é
assim que funciona. Não é para ser fácil.
— Feliz Ano Novo! — Todos gritam mais uma vez celebrando a
chegada de dois mil e dezenove.
— Belinda, querida. — Christal se aproxima de mim sorrindo. — Você
pode pegar mais champanhe lá na cozinha para mim?
— Claro que sim, Christal.
— Obrigada! — agradece sorridente e até alegre demais. Arrisco em
dizer que está bêbada, mas só em pensamento porque eu a respeito como se
fosse minha mãe. Toda a minha vida, minha mãe trabalhou para os Stella.
Virando-me para cozinha dou de cara com Adam e junto sua expressão
obscura e triste. O jeito que ele olha para mim é visível sua dor. Algumas
pessoas não sabem pedir socorro. Não têm forças para recomeçar. E o fato de
eu conseguir falar meus problemas, faz eu ser mais forte. Há pessoas que se
assolam em sua dor e não sabem sair desse círculo vicioso.
Sua postura e sua expressão me dão vontade de pegar o caminho oposto.
Eu realmente o ignoraria da mesma forma que ele faz com meio mundo se
não estivesse na porta da cozinha e noto que ele foi encher o seu copo
novamente. Não sei por que precisa tanto ficar bêbado no dia de hoje. É tão
melancólico.
Recuperando a postura e respirando fundo, ando. E Adam acompanha
meus passos até eu estar na sua frente e preciso parar, erguer o rosto.
— Você poderia me dar licença?
Adam franze a testa e, após alguns minutos, solta uma respiração pesada
e parece que finalmente ganho foco na sua frente. Sem dizer uma única
palavra e matando minha esperança de que vou ganhar um “Feliz Ano Novo”
dele, sai do caminho e assim eu passo.
No percurso, meu ombro raspa em seu braço e mesmo que ele esteja
com paletó por cima da sua camisa de linho e o meu vestido tem mangas
compridas, a eletricidade arrepia, passando pelo meu corpo e eu imagino o
que sentiria se sentisse nossas peles se tocando. Merda, que besteira. Não sei
qual é o meu problema.
Na cozinha pego a champanhe com os pensamentos de que nós nunca
nos tocamos, nem sem querer. Eu nem sei mais o que estou pensando. Nem
sei mais por que me incomoda sua frieza comigo além do fato de eu não
representar nada para ele. Não deveria sentir nada. Nós não somos nada,
nunca fomos.
Apesar de conhecer os Stella há muito tempo, eu e Adam nunca fomos
sequer conhecidos ou algo do tipo. Então, sinceramente, não sei por qual
razão me incomoda ser ignorada. Ele é assim há anos e eu nem sei o motivo
real. É como se fosse um assunto proibido. Adam é uma incógnita e não
quero desvendar esse enigma.
Esses pensamentos todos e dúvidas é apenas porque estou tentando não
enlouquecer de preocupação com o fato de tudo estar ruindo. Desde meu
desabafo, ele está pior. E eu jurava que não fosse possível ele ser mais
distante. Merda. Eu ferrei com tudo. Eu não quero voltar para a casa da
minha mãe ou para Nova Jersey, na casa da minha tia.
Colocando um sorriso no rosto volto com o champanhe e todos se
servem. Adam agora está conversando com Harry no canto e meus olhos
insistem em olhar para aquele ângulo. E como imã, seus olhos correm pelo
ambiente até alcançarem os meus porque não sei como disfarçar que estou
olhando-o. Engulo em seco, baixo o rosto focando no chão e viro-me para ele
dando as costas. Queria que essa festa acabasse agora. Mas de nada
adiantaria, afinal, moramos na mesma casa. É, hoje vai ser constrangedor.
São pouco mais de duas horas da manhã e, após uma viagem de vinte
minutos, que mais pareceu cem minutos, chegamos em casa. Adam sai do
carro mudo e entra em casa calado indo direto para a cozinha.
Fechando a porta, tiro meu cachecol e deixo no cabideiro que fica no
lobby. E fico parada no corredor pensando se vou para a cozinha ou subo
para o meu quarto.
Meus pés tomam a decisão de seguir em frente. Na soleira da porta da
cozinha assisto Adam comendo o macarrão que fiz ontem. Ele deve estar com
fome para comer gelado, e o meu lado mãe (que toda mulher tem) logo está
em ação pegando a vasilha que ele deixou abandonada na pia e levando para
o micro-ondas.
— Você não come macarrão gelado?
Faço um biquinho enquanto analiso ele estar falando comigo e dando de
ombros viro-me e respondo:
— Eu não sou cachorro para comer comida fria. — Acho que devolvi a
grosseria de mais cedo.
Adam levanta as sobrancelhas me olhando com repulsa e
questionamento.
— Toda vez que você é grossa comigo, eu fico pensando o quanto nós
somos parecidos, e o tanto que você não admite.
— Só porque eu respondi o óbvio? Nada a ver. Eu sei que tem pessoas
que gostam de comer comida gelada, mas eu não sou uma delas.
— Tudo bem. Eu concordo, só que não precisava me responder com
grosseria. Não acho que você é um cachorro.
— Eu também não acho que sou isso para você. Porque, afinal de contas,
até os cachorros têm mais atenção do que eu recebo de você e, sinceramente,
não sei o que fiz de errado para você estar me tratando friamente. Você foi
grosso comigo na casa dos seus pais hoje e, enquanto todo mundo estava
festejando a chegada do novo ano e desejando boas vibrações, você nada
disse. E estava olhando em minha cara. Ficou no meu caminho e parecia nem
me conhecer.
— Você está querendo dizer que eu não lhe desejei Feliz Ano Novo? Se
é assim, Feliz Ano Novo.
— Agora não precisa. Não é assim que as coisas funcionam. E, por mais
que eu saiba que nós não somos nada um do outro, não precisa fingir que não
existo. Não... precisamos ser...
— Ser o quê?
— Completamente estranhos? Porque é assim que eu me sinto. Eu
conheço sua família há tanto tempo e, embora nós nunca tenhamos sido
sequer apresentados, você não é um estranho para mim.
— Não é porque você vê uma pessoa todo dia que ela é sua conhecida.
Não é porque você sabe o nome dela que você a conhece. Às vezes há
pessoas que tem o documento inteiro de alguém na cabeça, sabe descrever
perfeitamente a fisionomia e não quer dizer nada. Você pode saber meu
nome, o que eu gosto de comer e a hora que acordo. Onde, no que trabalho e
quanto eu ganho. Mas você nunca vai me conhecer de verdade a não ser que
eu deixe. Que mostre para você. Isso é comigo com qualquer pessoa.
Conhecer alguém não é saber o básico.
— Então me mostre o complexo.
E como isso ele se levanta empurrando a cadeira para trás fazendo
barulho no chão quando a madeira arranha o chão de porcelana. Me dá as
costas e sai como sempre. Ele tem as melhores frases e talvez esteja certo. Eu
descobri algumas coisas enquanto estou aqui nesse curto tempo, porém eu
não sei quem ele é e talvez só vou saber quando decidir se abrir. A gente não
conhece um livro só pela capa dele. Precisamos abri-lo e lê-lo da primeira à
última página para ter alguma opinião.
Sim, eu estou dando razão a ele e concordo. Só que não estou satisfeita
com isso. Meus pés novamente tomam a decisão por mim e estou atrás dele.
— Será que é só eu que não te conheço, Adam? Porque parece que nem
a sua família mais sabe quem você é. E você gosta disso. Do que adianta ter
um livro na prateleira, se ele nunca é aberto.
Eu o assisto ranger os dentes enquanto cerra a mandíbula. Seus passos se
detêm no início da escada e vira-se para mim tão lentamente, que parece que
estou assistindo a um filme, em um daqueles momentos fatais. Decisivos.
— Talvez eu não queira que todo mundo saiba a minha história — diz
olhando dentro dos meus olhos, bem sério. — Algumas histórias são muito
tristes e não apenas comovem as pessoas como também levam para elas as
mesmas dores e lembranças. Você pode querer saber da minha história, por
que que eu sou do jeito que sou hoje. Mas eu sei que, no final, você não vai
gostar de saber. Vai se arrepender.
— Você quer que eu vá embora?
Seria melhor eu calar a boca.
E eu posso estar maluca, mas minha pergunta o pega de surpresa. Sua
respiração fica pesada e é visível seus ombros se moverem, seu peito se
expandir e esvaziar com o ar, como se estivesse controlando sua respiração.
Não sei se é para não gritar ou respirar fundo mostrando que não é tão
vulnerável quanto gosta que as pessoas pensam que ele é. Talvez Adam
também não quer ficar sozinho mais. Eu não sou nada, mas também não
deixa de ser alguém. É ambíguo e complexo, contudo é real.
— Eu não disse isso. — São suas únicas palavras. Tão frio como
sempre.
— Mas você se incomoda com a minha presença. Então, eu precisava
perguntar. Uma coisa que eu sou desde criança é observadora e detesto estar
incomodando as pessoas. E se eu estou apenas lhe incomodando, eu posso ir
embora e te deixar em paz.
— Você disse que não tinha para onde ir. E eu posso não ser a melhor
pessoa do mundo agora, mas não sou um carrasco. Você quer ou não voltar
para a casa da sua mãe?
— Na verdade, eu tenho a casa da minha tia em Nova Jersey. Não é a
melhor opção, mas eu não posso ficar onde não sou desejada.
— E a parte onde você disse que precisa do dinheiro? Da ajuda que
estou dando a você? Você disse que precisava. Ou você mentiu sobre tudo?
Aquela cena chorando e dizendo que estava morrendo de dor foi mentira?
Uma cena comovente.
Parece que ele realmente se importa e quer que aquilo não seja mentira.
Não sei se é para ele não ter a sensação de ter sido o idiota que caiu na minha
conversa ou porque realmente se importa com as pessoas. Nem todos os
monstros são tão frios.
— Não. Não é mentira. Eu realmente preciso de dinheiro. Preciso estar
aqui e — dou de ombros — preciso de você querendo ou não, mas também
não preciso ser uma intrusa na sua vida.
— Eu acho que você assiste muitos filmes de drama porque é
melancólica. — Sua feição fica marcada pela irritação. — Não é bem assim
que acontece as coisas, Belinda. Eu não sou tão babaca, você pode ficar e eu
só... estou num dia ruim. O Natal é um momento ruim para mim. No fundo,
esse mês é um inferno e eu queria que dezembro não existisse. Ou que eu
tivesse uma família tão religiosa, seria de boa serventia.
— O que aconteceu com você foi no Natal?
— Eu acho que está na hora da gente se deitar. — Ele vira-se, voltando a
subir para o seu quarto, eu presumo.
— Por que que você não pode me responder? Só me responda sim ou
não. É apenas uma pergunta sem detalhes, Adam.
— Da mesma forma que eu quero dizer que o Natal e esse mês é difícil,
tocar nesse assunto também — afirma de costas para mim. — E se eu
pudesse de alguma forma fazer esquecer aquele dia e tudo que vivi, eu faria.
Por longos minutos fico pensando nas suas palavras e começando a subir
a escada falo me aproximando:
— Talvez eu possa fazer você esquecer. A minha vida também não é
muito fácil e eu consigo esquecer muita coisa quando faço isso.
Enquanto vou dizendo, subo ficando cada vez mais perto dele, como se
fosse um puma precipitando o ataque à sua presa. Adam gira e fica de frente
para mim e tenta recuar subindo os degraus de costas e olhando para mim
com o pânico em seus olhos. Muito diferente do normal, que é na defensiva e
também medo. Mistura de coragem e receio. Como alguém que opera a boca
e só pode comer gelado, mas está tomando sopa quente. Sabe que é errado e
deixa a vontade ser maior do que as regras.
Quando dou por mim estamos no segundo andar e ele com as costas na
parede. Sinto meu coração saindo pela boca e estico minhas mãos. Seguro
seu rosto e fixo nossos olhares. Ah, meu Deus!
Não sei por que essa ideia passou pela minha cabeça de forma que fosse
ser maravilhosa. Agora eu acho que foi um erro. Respiro fundo e pisco
lentamente. A sensação que presumi que sentiria quando minha pele tocasse a
sua não chega nem perto. E é apenas a palma da minha mão na maçã do seu
rosto.
— Não importa. Continua — ele incentiva como se lesse meus
pensamentos.
Seus dedos tocam meu pescoço de forma hesitante antes de espalmar a
mão em meu colo, na única parte do vestido que não estou coberta. No caso,
é o decote. Eu tenho certeza de que ele consegue sentir a minha pulsação
acelerada agora. Até o leve tremor de todo meu corpo.
Creio que, quando uma pessoa pensa em pular do precipício
(metaforicamente, estou dizendo), ela nunca de fato analisa todos os riscos,
embora a vida seja uma grande aventura. Quando a pessoa está prestes a
cometer um erro, ela simplesmente faz. E eu não vou pular do precipício. Eu
só quero beijá-lo, porém ele é o Adam. Não sei por que que ele está me
permitindo chegar tão perto e fazer isso. Talvez o problema dele seja
justamente isso. Solidão e ninguém para enxergar o que quer.
Certas feridas se curam sozinhas, não se deve mexer para não abrir a
casca que se cria sob o machucado. Mas em outros casos é preciso remover
essa casca e fazer arder, para que assim finalmente crie a cicatriz. E seja lá o
que aconteceu, é disso que ele precisa e tenta todos os dias. E eu também com
a minha vida. As minhas feridas do passado.
Tomo coragem e deixo o desejo ser mais forte. Ficando na ponta dos
pés, silenciosamente peço para que incline-se. Ele faz porque parece que tem
uma aura corajosa sobre nós. Nós fechamos os olhos, aproximamos nossos
corpos, trocamos o mesmo ar antes dos nossos lábios se tocarem.
O beijo que eu pensei que seria um erro, estranho, impossível, logo se
torna feroz. Adam enfia os dedos entre meus cabelos, a outra mão nas minhas
costas, puxando-me para si. Literalmente toma-me em seus braços e beija-me
intensamente. Seus lábios são macios e mesmo que pensem que é nojento, o
leve gosto do queijo do macarrão que ele estava comendo gelado (que nos
levou a uma leve discussão e para este momento, nesse exato segundo),
parece ser uma perfeita combinação.
Eu abraço o seu pescoço jogando meu corpo para cima. Enlaço sua
cintura com a minhas pernas. Adam segura-me agora pela bunda, apalpando
meu bumbum, e minhas costas. Soltando meu rosto porque finalmente sente
que não vou me afastar e ele me beija desesperadamente. Como se fosse uma
pessoa abandonada no deserto que acaba de receber um copo d'água. E eu
nem sei descrever o que estou sentindo. Não sei o que estou fazendo. Mas
prefiro não pensar em nada a não ser que isso é como um sopro de vida.
Quando ele começa a se mover, eu sei para onde está me levando. E sob
o inverno que castiga em Nova York, estou morrendo de calor. Almejo
fervorosamente que esse vestido saia de mim e suas roupas dele. Precipitada,
contudo, encantada e excitada.
OITO

Eu prometo que um dia estarei por perto


Te manterei a salvo
Te manterei segura
No momento, as coisas estão meio loucas
E eu não sei como parar ou diminuir o ritmo disso

NEVER BE ALONE | SHAWN MENDES

Sinceramente, não faço a mínima ideia do que estou fazendo. Merda! Eu


não sei o que estou fazendo, e mesmo assim não detenho meus passos.
Continuo a beijando e a levo para o meu quarto. Enlouquecido com o
momento e seu beijo, a deito na cama sem me desgrudar dela. Tenho certeza
de que se eu parar, vou sair correndo o mais longe desse erro. Então, eu
apenas me entrego às inúmeras sensações que passam por meu corpo
enquanto devoro seus lábios e recebo sua entrega que vem com desespero.
Fazia seis anos que não beijava ninguém, que não tentava me aproximar
de uma mulher (embora tenho que ser realista e dizer que foi Belinda que se
aproximou) e tentava um relacionamento casual, pelo menos. Eu deveria ter
feito isso há muito tempo, tinha que ter recomeçado minha vida
principalmente por ter acabado tudo como acabou.
Por querer respeitar a memória de uma mulher que não deu a mínima
para os meus sentimentos. Por me sentir culpado por querer saciar os desejos
da carne, por querer transar para aliviar a tensão e beijar uma mulher. Selena
foi a razão da minha vida. Eu dei tudo de mim para ela. Nós éramos
completos.
A maioria das vidas que são destruídas já teve seus momentos de glória.
Já foram perfeitas. Eu podia ser jovem e não ter vivido metade da vida, mas
sabia o que era ser feliz e o quanto desejava ter aquilo por longos anos. Só
que tudo ruiu muito cedo. E por um erro meu.
E neste beijo todas as memórias que tive com Selena explodem dentro
da minha cabeça. Merda mil vezes! Não havia uma hora pior para isso. Eu
me sinto como se tivesse errado tanto na vida que agora não tem como eu
consertar. Sei que a vida sempre encontra um caminho, mas não sei. Talvez
para mim o caminho mais fácil seja o pior. Mesmo não sendo o caminho
ideal desistir ou se revoltar, é o que eu fiz e quero ainda. Não tenho vontade
de nada, apenas dormir e se possível por longos dias.
Eu tento esquecer tudo e me envolver neste momento. Fecho os olhos
com força almejando o desejo e não o desejado. Há um poema, não sei de
quem, que fala justamente disso. Que, às vezes, queremos o desejo não o
desejado. Eu quero esse beijo. Essa sensação, a adrenalina e tesão, não quem
está me propondo isso. Porque eu não quero sentimentos. Quero sensações.
Enquanto eu a beijo vou me entregando e mergulhando numa espiral de
sensações. Vou cobrindo seu corpo com o meu. Sinto seu arrepio e o frenesi
que atravessa por minha espinha. E assim vou me deixando esquecer de tudo.
Cada vez mais fico absorto de tudo que me remete a culpa e o erro. Só existe
o efeito da excitação. Eu devoro sua boca, chupo sua língua.
— Adam — ela deixa escapar, os seus lábios nos meus, as unhas
arranham meu couro cabeludo, meus ombros.
Ela abraça meu corpo com as pernas, e eu a agarro o mais próximo
possível. Meu coração acelera. Vou começando a sentir uma excitação mais
forte para ser ou querer apenas um beijo dela. Mas eu cometo o erro de me
afastar, e abrir os olhos de leve e, sem ter tempo de frear meus pensamentos,
eu sussurro o nome entre uma respiração:
— Selena.
E é como um balde de água fria em meu corpo fervente. Todo o tesão
que estava sentindo morre e os olhos de Belinda refletem a decepção que eu
mesmo sinto. Porque posso lembrar da mulher que parece ter levado o meu
coração com ela, mesmo que não mereça ou eu queira. Eu faço. Eu sim
lembro.
Algumas saudades são tão esmagadoras que são silenciosas. São
embrenhadas dentro de nós. Eu não sentia falta de Selena desse jeito desde o
dia que ela completou um mês de morta. É tão doloroso e condensado. Meu
corpo se acostumou a sentir sua falta. E eu só esperei passar. Tem memórias
de pessoas e sentimentos que ficam guardados na caixinha da saudade, da
inconsciência, e elas aparecem nas piores horas. Da maneira que acabei de
fazer.
Com meu corpo pegando fogo, projeto-o para trás com fúria sentando
em meus calcanhares. Indo mais longe do remorso e dos olhos de reprovação
de Belinda.
Ela não merece quem eu sou. Ninguém merece quem eu sou agora. É
muito injusto continuar com isso, é até um ato irresponsável continuar. Não
posso. Tenho que parar antes que seja irreparável. Eu não quero isso para ela,
nem para mim.
— Me desculpa. Eu errei! — Minha voz sai rouca, falha. — Isso foi um
erro. Me desculpe, Belinda.
Olho para os lados à procura de uma resposta pelo vazio do quarto.
Passo as mãos nos cabelos, nervoso e angustiado.
— Não... Eu... — pauso a encarando rapidamente. — Agora eu tenho
que ir.
— Adam, não. Não precisa se sentir culpado. — Ela está hesitante,
preocupada. — Fui eu que te agarrei.
Ela está tentando botar panos quentes nas minhas merdas. Assim como
todo mundo.
— Não! — esbravejo irritado comigo mesmo. — Eu errei. Não deveria
ter continuado. Me desculpe.
Como se estivesse correndo de uma floresta em chamas, pulo para fora
da cama e saio do quarto. Desço as escadas correndo, mas não tão rápido que
não posso ouvir Belinda vindo atrás de mim.
— Adam. Espere, por favor.
Eu continuo e já estou chegando no primeiro andar da casa.
— Não precisa ir embora — ela insiste. — Você vai aonde?
— Eu preciso pensar. — Dou uma pausa para respirar. Droga!
— Pensar no quê, Adam?
— Não. Eu tenho que sair. Tenho que... Eu tenho que ir.
— E para onde?
— Não importa. Não se preocupe comigo. Eu sei me virar. — Volto a
descer.
— Eu entendo que para você é difícil. — Escuto sua voz por cima dos
meus ombros porque eu não paro. — Mas você não tem que fugir e eu
entendo.
— Talvez você entenda, mas eu juro que preciso ir. — Termino de
descer rapidamente, pego a chave do carro, meu casaco e saio.
Bato a porta de casa com força vestindo meu casaco sentindo o frio me
abraçar. E estranhamente o frio é bem-vindo. Desço os cinco degraus da
fachada da minha casa e, parando na calçada, olho para um lado e para o
outro, e não sei bem o que estou fazendo. O que eu quero fazer.
Talvez eu só precise pensar mesmo. Encontrar um jeito de voltar para
casa e não piorar as coisas. Eu não posso deixá-la ir embora. Eu não sou tão
mau assim. Ela precisa de mim. Precisa da minha ajuda. Então eu preciso me
controlar e achar algum jeito de ficarmos bem de novo. Eu já me sinto bem
essas últimas duas semanas com ela, porém eu posso ter acabado de ferrar
com tudo confundindo a minha solidão, e certamente carência, com desejo.
Que grande burrada, Adam!

Parado no bar, com as mãos na cabeça, a única coisa que eu quero é


tomar um remédio que me faça esquecer.
— O que você está fazendo aqui a uma hora dessas? — Vlad acaba com
meu momento de reflexão.
Parece que ele não entende que eu escolhi ficar no canto para ficar
sossegado. Tem gente que não entende a referência nem se tiver manual.
— Não era para você estar na casa dos seus pais comemorando o Ano
Novo?
— A festa já acabou para mim.
O silêncio dele me faz levantar a cabeça e encará-lo. Foi de propósito.
Ele queria que eu enxergasse sua cara de “comeu e não gostou”.
— Eu quis ir embora mais cedo, mas se eu soubesse o que ia acontecer,
tinha continuado lá.
Vlad ergue as sobrancelhas e faz algo incomum. Senta na cadeira de
frente para mim. Ele é dono do bar, porém nunca senta com os clientes,
mesmo eu sendo mais que isso.
— O que aconteceu? — pergunta e um garçom traz a droga da cerveja
que pedi há cinco minutos.
— Eu não sei se te falei, mas tem uma intrusa na minha casa.
Sei que ficou horrível falar assim da Belinda. Só que não é mentira. Ela
é uma intrusa e estranha. Eu não a chamei, ela foi se metendo na minha casa
por intermédio da minha mãe. Outra que é uma intrusa.
— Como assim?
Tomo um grande gole e deixo o copo sobre a mesa de volta.
— Minha mãe ofereceu a minha casa pra filha da empregada ficar. —
Vou explicando da melhor forma, e mais rápido também. — A garota tem
uma doença e não tem dinheiro para se tratar. Então minha mãe teve a
brilhante ideia de ela ficar na minha casa. Ela está cuidando.
— Cuidando como? — O vinco no meio da testa dele é engraçado.
Nunca o vi tão curioso.
— Ela limpa, passa, lava minhas roupas e faz comida para mim. E faz
tudo direito e com isso ganha um dinheirinho para poder fazer os exames.
— Ah... — compreende pensativo — entendi. E você não gosta.
— Claro que não — resmungo. — Fiquei seis anos enfurnado sozinho
dentro da minha “caixa” e não queria ninguém para acabar com minha paz.
— Dou de ombros e deixo de encará-lo porque já até sei o que ele pensa,
portanto prossigo: — Eu sei que todo mundo acha que não tem que ser desse
jeito, mas não... Eu não estava preparado e queria que as pessoas
entendessem que eu gosto de ficar sozinho.
— Eu odeio ter que repetir a mesma frase para você, Adam, mas vou
falar. Não é errado você querer ficar sozinho, você e qualquer pessoa. Mas é
diferente ficar sozinho e ser solitário. E você não é sozinho. Você é solitário.
— Eu não acho que sou solitário! — replico rabugento. — Eu venho
todo dia aqui. Chego em casa e faço as coisas que tenho que fazer. Vou ao
mercado e até vou assistir o campeonato de beisebol e hóquei no gelo. Não
sou solitário como vocês ficam falando.
— Adam, isso não quer dizer merda nenhuma. Você sai e ponto final.
Você não retomou sua vida. Cara, você nem tentou trabalhar ou fotografar
por hobby como fazia. Fazer algo além de passar o tempo.
Bato com a palma da mão na mesa em automático, por sorte o copo está
vazio. Fico puto com ele.
— Vlad, vai à merda! — solto do fundo da minha alma. — Você está
maluco. É claro que eu tentei. Há dois anos, eu tentei voltar ao trabalho, sim.
— Foi e que grandes vitórias, não é? — ironiza. — Tentou por apenas
um mês e meio, e fracassou. — Ri balançando a cabeça. — Você conseguiu
por cinquenta dias fazer algo de útil com sua vida, mas parou e não tentou
mais. Eu entendo como deve ter sido difícil pra você. Não gosto nem de
imaginar o que era estar na sua pele. Por tudo que passou, no entanto, não é
certo continuar vivendo para sempre assim. E o problema não é que você
sinta saudade. Ou que ainda esteja passando pelo luto. O pior dessa situação,
Adam, é que você colocou na sua cabeça que é culpado.
Eu não tenho outros argumentos, outra forma de dizer que foi sim minha
culpa. Iniciei aquela briga com eles, eu não quis ouvir ninguém. Peguei meu
carro e saí correndo, querendo ficar o mais longe deles. Só não esperava que
iria conseguir, pois há seis anos estou o mais longe de encarar aquela
conversa.
— Todos falam que não, mas eu causei aquele acidente — digo meus
pensamentos em voz alta. Distraído e esgotado. — Ela foi atrás de mim.
Selena queria conversar comigo, explicar. — Ergo o rosto e olho para os
olhos de Vlad. — Explicar mesmo que tudo tenha ficado mais do que
explícito na minha frente no meio daquele quarto e talvez até pedir desculpas.
Não sei. — Dou de ombros. — Não sei e nunca vou saber. Ela foi atrás de
mim e pegou a rota errada. Eu sei disso. Sei que não mandei ir pela estrada
quebrada. Eu fui... esperto, sei lá. Ou tive sorte como alguns ousaram falar
quando souberam.
— Adam, para de pensar assim. — Ele coloca a mão no meio das
minhas sobre a mesa. — Cara, vocês foram para o mesmo lugar, querendo o
mesmo. Fugir da merda que aconteceu e ela queria conversar. Você não tem
culpa por ela pegar o caminho errado. E sei que sabe disso. Vocês foram para
o mesmo lugar só que o seu carro não capotou, não explodiu e você não
morreu porque talvez não era para ter morrido.
— Todo mundo fala isso — solto sem entusiasmo.
— Sim e falando isso aqui, agora, mais uma vez, sei que você entende.
— Eu entendo e sei que você também entende meu lado.
— Sempre, cara. Eu entendo o seu lado porque sou seu amigo e não
porque você vem beber no meu bar e acaba me deixando rico, mas porque eu
sei que é uma pessoa boa. Eu cheguei a conhecê-lo antes de se afundar nessa
culpa.
Curvo o canto da boca em um sorriso amarelo e dou de ombros.
— Eu sei, man.
Vlad assente e se levanta pegando meu copo.
— Vem sentar no balcão para você continuar a falar da garota e o que
aconteceu essa noite. Vamos mudar de assunto enquanto ajeito as bebidas e te
sirvo algo melhor que cerveja.
Vou atrás dele e me sento no banco de sempre, no meio dos quinze. Não
sei se é TOC, mas gosto de me sentir no meio de todos os bancos, estejam
eles vazios ou ocupados.
Espero ele ficar atrás do balcão e servir a tal bebida melhor que cerveja.
Uma taça com Martini e lima-da-pérsia para na minha frente.
— Beba e comece a falar.
Dou um gole deixando quase vazia a taça e começo a falar vendo Vlad
colocando mais Martini e outra azeitona.
— Ela é bonita, sabe.
— Quem?
— Belinda, a garota que está na minha casa.
— Uhum... Fala-me mais.
Rio, balançando a cabeça.
— Ela é bonita e até atraente, mas eu sinto que se acha horrível. Pelo
menos inferior às outras pessoas. — Faço uma careta. — Tem algumas
pessoas que possuem complexo de inferioridade por serem pequenas ou
magras demais. Altas e gordas.
— Eu sei. Elas não conseguem enxergar o lado melhor delas: o exterior.
— É e estou falando isso justamente porque todo mundo consegue
enxergar quem eu era. Conseguem ver o cascadura e maltrapilho que sou
hoje. Me viam através da barba, desse cabelo desgrenhado e mesmo só
andando de preto e com olheiras e mal cumprimentando as pessoas. Todo
mundo consegue enxergar quem eu sou ou o que eu era. Então, elas mesmas
enxergam eu muito além do exterior. E Belinda é uma delas. Ela é muito
bonita e gentil. — Deixo de fitar o ponto cego na minha frente e encaro Vlad.
— Vou te falar. A garota é uma fera porque atura minhas grosserias e não fez
o que todo mundo tem costume. Me deixou falando sozinho. Ela foi a
primeira a falar um monte de verdades na minha cara sem ter medo das
consequências.
— Eu falo um monte de verdades para você.
Reviro os olhos.
— Você veio falar um monte de verdades para mim depois de dois anos.
Ela falou depois de duas semanas e fui grosso com ela. — Sinto o remorso
nitidamente. — E tudo que ela falou tem razão e isso me deu agonia. Raiva
por estar fazendo isso com todo mundo.
— Está dizendo que acha que ela mexe com você?
— É claro que ela mexe comigo. — Franzo a testa. — A verdade vindo
de uma pessoa que parcialmente é uma estranha, ainda dentro da minha casa,
sem medo de dizer o que pensa. Não teve como eu não sentir vergonha. Ela
falou o que pensa e tudo sobre a relação da minha família, minha mãe e pelas
milhões de tentativas de fazer eu melhorar. Ela ficou zangada como os tratei
no Natal e hoje também.
— Você falou para ela que o acidente que aconteceu anos atrás foi nessa
data?
— Eu tentei e esse foi o meu pior erro de hoje à noite.
— Por quê?
— Porque eu só disse meias-palavras. Apenas que odeio o mês de
dezembro. E aí ela falando que tinha um jeito de acabar. De fazer parar de
sentir dor. Pelo que eu entendi, ela não teve um bom relacionamento com o
padrasto e a mãe dela não aceitou isso.
— Porra, cara, que merda! É muito foda quando a mãe não consegue
enxergar esse tipo de coisa.
Assinto me sentindo enojado só de pensar neste assunto.
— Eu sei e desde que ela falou comigo, esse assunto martela na minha
cabeça, mas eu não quis me aprofundar. Diferente das pessoas ao meu redor,
eu sei respeitar a dor delas e não fico tocando a cicatriz que, às vezes, nem
estão totalmente curadas. Não precisa que todo mundo fique cutucando as
minhas dores.
— Você sabe que a gente faz isso porque ama você.
— Eu não disse ao contrário — rebato sem humor para sua cara feia. —
Só queria que você compreendesse.
— A gente já compreendeu, Adam. Quando deu dois anos entendemos
que era recente, deu quatro e ainda entendíamos, mas agora são seis anos.
Será que a sua cicatriz ainda não está formada? Será que você realmente não
consegue enxergar que o que você vive não é vida? Você precisa melhorar.
Reviro os olhos balançando a cabeça e entorno o resto da bebida que
estava no meu copo e mudo de assunto, volto para o foco e motivo de eu estar
aqui.
— Enfim, a Belinda me beijou.
— Ela o quê? — Ele chega a me ofender com seu entusiasmo.
— Sim — confirmo de má vontade. — Ela me beijou na boca.
— E você ficou lá parado enquanto ela te beijou?
— Talvez eu devesse ter feito isso, mas não. Eu a agarrei como fosse um
bote salva-vidas e estivesse me afogando no mar turbulento. Aproveitei
aquele beijo irresponsável e a levei para a minha cama.
— Vocês transaram?
— Não porque a Selena resolveu aparecer na minha cabeça justamente
naquele momento.
— Que merda — Vlad resmunga baixo, prestando atenção em mim.
— Na verdade, no início fiquei pensando nela e — continuo — no
porquê eu tinha que respeitar a memória dela e aí... fui me esquecendo. Me
envolvendo e por algum motivo, quando as coisas estavam ficando muito
avançadas — respiro e deixo de encará-lo —, eu me afastei e saí correndo
longe dos olhos azuis dela. Olhos que me fitavam com desaprovação, tristeza
e sinto que ela não é merecedora do “nada” que sou hoje. Eu só ia acabar de
piorar a situação. Sou um cretino.
— Adam, você não fez de propósito. Se você conversar, ela vai
entender.
— Talvez sim, porém agora a única coisa que estou pensando em fazer é
encher a minha cara para ver se me esqueço.
Apoio minha cabeça nas mãos, enterrando os dedos nos meus cabelos.
Eu não quero lembrar do que fiz, nem lembrar do porquê eu fiz. Porque eu
parei. Eu não beijava ninguém, não abraçava, não sentia nos meus braços
uma mulher há anos e quando acontece, eu faço essa merda. Que raiva!
— Não rolava nada com uma mulher há seis anos e você sabe, Vlad, e
agora faço isso com uma mulher que não merece. Ela já tem tantos problemas
na vida dela e não quero ser mais um. Entende? Eu realmente sinto que ela
não merece minhas merdas.
— Eu estou entendendo você e quero saber se vale a pena se sentir
assim. Mesmo que sinta uma conexão com ela?
Olho para ele e dou de ombros.
— Diante de tudo, hoje eu sinceramente não quero arriscar magoar mais
ninguém. Fico brincando com ela desde o dia que chegou que se qualquer
coisa acontecer com ela, vai ser mais uma na lista para eu ter remorso, mas a
verdade é que não quero mais isso. Não quero ter mais uma pessoa na lista.
Estou cheio de culpa, não preciso de mais uma.
— E o que você vai fazer? Vai ficar aqui no bar para sempre até tomar
coragem para encará-la?
— Não — nego com a cabeça para confirmar minha resposta. — Eu vou
para Hampton, para a casa de praia esfriar um pouco minha cabeça e
encontrar uma saída.
— Encontrar uma saída para quê?
— Oras, para os meus problemas e... eu preciso ajudar ela. Belinda sente
dores horríveis.
— Que merda!
— É, e eu não sentia necessidade de proteger ninguém. Não tinha
ninguém para cuidar há muito tempo, mas agora tenho, mesmo que seja
parcialmente.
— Parcialmente?
— É, como ela é minha funcionária, eu tenho que zelar por ela. Sem
contar, que essa bomba minha mãe me deu de presente e assisti-la sentir dor,
me comoveu. Por isso também quero ajudá-la. Quero cuidar dela pelo menos
enquanto está na minha casa. — Permito meus ombros caírem. — Às vezes
sinto necessidade de me redimir com Deus pelo que fiz. Então, tomei a
decisão de ajudá-la e por isso também que não quero magoá-la agora
desenvolvendo ou deixando as coisas mais complicadas. Ela não é uma
qualquer que eu posso beijar e transar na rua e voltar para a minha casa
tranquilamente. Eu vou ter que encará-la na manhã seguinte e dizer que foi
casual, que foi vontade que dá e passa. Isso é muito errado.
Ele fica em silêncio e isso nem sempre é bom.
— Tem gente que consegue levar o sexo como casual. — Continuo
olhando para ele. — Mas outras não e as mulheres, a maioria delas pelo
menos, não conseguem não desenvolver expectativa. Então, não quero fazer
isso com a Belinda.
— Você quer ajudá-la — finalmente ele se pronuncia. — Só isso. Já
entendi. Você vai fazer dela a sua redenção. Desculpas que você acha que
merece carregar.
— Pode ser isso. É apenas o meu jeito de me redimir com Deus.
Desvio meus olhos da cara dele. Não vou ficar vendo-o rir de mim por
eu pensar que devo algo a Deus. Dever algo a alguém pelas coisas que causei.
É minha opinião. Eu tenho que me redimir por mim mesmo.
— Você tinha que ter um jeito de se libertar. — Sinto sua ironia. — E
ajudar essa menina é a forma que você encontrou para ter essa “redenção”.
Adam. — faz uma pausa dramática e estica a mão para mim —, eu te dou
todo o apoio.
— Valeu! — resmungo sem entusiasmo.
— Vai lá, man. Vai ficar um mês em Hampton. Eu posso cuidar dela.
Olhando as coisas por aqui e não vou contar para ninguém. Posso até ligar
para Harry e falar que você está bem. Que apareceu por aqui, só para ele não
encher seu saco e você não precisar falar para a sua família que está lá. Faço
tudo para o seu bem, Adam, e espero que dessa vez você consiga. Porque
você quer sua redenção, cuidando dessa menina, mas é porque, se continuar
desse jeito, vai ser um homem arruinado para sempre. Você não é o tipo de
pessoa que eu quero ver assim.
— Eu sei lá. — Dou de ombros. — Eu vou conversar com ela. Deixar
um dinheiro para ela e depois vejo o que faço. E eu sei que vou magoá-la
quando chegar em casa e falar o que tenho que dizer.
— Você é mais gentil do que pensa.
— Isso não é verdade. — Solto uma gargalhada rápida.
— Pode ser, mas não se preocupe. — Vlad dá um soco no meu ombro de
brincadeira. — Faça como tem que ser feito. Depois eu converso com ela.
— Você parece uma mãe que gosta de passar pano quente em cima do
filho.
— Eu te amo, cara. Você é como um irmão também para mim.
— Sei disso. Sei que você e todos estão cansados de jogar o bote salva-
vidas.
— É, mas a única que conseguiu jogar o bote e você pegar, foi a garota
que é tão destruída quanto você. — Sua voz é enigmática. — A vida, às
vezes, prega peças. Então, eu só peço que você abra os olhos. Siga em frente
e enxergue tudo que a vida lhe dá como sinais de uma nova chance.
Concordo com um aceno, filtrando sua mensagem. Guardando o hoje, o
agora, no lugar onde eu possa depois recordar para refletir. A minha vida é
uma grande piada, isso sim.
NOVE

Você não precisa se esforçar tanto


Você não precisa entregar tudo
Você apenas precisa se levantar, se levantar
Você não precisa mudar nada
Você não precisa tentar, tentar, tentar, tentar

TRY | COLBIE CAILLAT

Meu Deus do céu! Acho que estou ficando com a doença do Adam. Só
faço besteira e fico me remoendo depois. E agora eu entendo por que que ele
tem esse remorso. A mulher da foto que eu vi no porão foi quem fez ele ser
tão rude e obscuro. Com certeza, ela deve ter partido o coração dele.
Eu não sei direito como ou porquê. Só que é evidente a saudade e que
isso o fez se entregar à dor. Merda mil vezes. Eu não deveria tê-lo beijado
hoje. Fui tão burra. Uma completa idiota.
Estou aqui de favor e não tinha que ter beijado ele. Caramba, não sei de
onde veio a coragem para beijá-lo como fiz. Toda confiante e atirada. Meu
Deus! Eu confundi tudo. Tudo mesmo. Eu pensei que ele era revoltado, de
mal com a vida e com os demais membros da família, porque era seu jeito,
embora soubesse que tinha acontecido uma coisa com ele, mas não sabia
(ainda não sei o que aconteceu) que foi por causa de uma mulher. Ele sente
saudade dela e não consegue se recuperar.
— Ai que idiota você é, Belinda! — repreendo-me olhando-me no
espelho do banheiro. — Quero me enterrar debaixo de um buraco como se
fosse um rato. Estou muito zangada comigo mesma.
Volto para o quarto, enfio minhas coisas de higiene na nécessaire e
guardo na minha mochila. Indo até a cômoda, pego mais roupas e coloco
mais uma muda dentro da mala e me apresso. Quero ir antes que ele chegue.
Estou com muita vergonha para encará-lo e pelas horas, já passa das três da
manhã, ele deve estar chegando, talvez. Mas eu não tenho nada a ver com sua
vida e nem se ele gosta tanto de sair pelas madrugadas e voltar de manhã.
Adam não é meu problema.
— Eu sou patética — resmungo dobrando um casaco grosso de frio que
teima em não entrar na mala.
Merda! Realmente sou patética em pensar, cogitar e querer ficar na casa
de um homem, que nitidamente nunca me quis aqui. Eu fui errada e avancei
até ele. Não sei o que me deu. Tudo bem que ele me atrai, é bonito e depois
daquele clima estranho, quando desabafei meus problemas, sei lá. Pensei que
a gente tinha alguma sintonia, mesmo que seja muito cedo ainda.
Meu Deus! Eu errei tão feio. Estraguei tudo confundindo as coisas, mas
ele não precisava fugir, mesmo que ainda seja apaixonado pela tal de Selena.
Eu nem sabia da existência dela e nem aonde estar, ou o que aconteceu, por
que que eles terminaram, é óbvio que Adam mudou com todo mundo. A vida
dele se destruiu por causa da saudade. Será que tem muito tempo? Acho que
não. Parece ser recente para ele sentir-se desse jeito e é um saco e ele me
irrita com sua grosseria. A vida que ele leva me dá vontade de socar a cara
dele.
Mas dane-se, o problema não é meu. Ele que encontre o caminho e por
que eu preciso continuar aqui?! Chega! É a segunda vez que tento ir embora e
dessa vez eu vou conseguir. Não preciso ficar aqui. Eu não sou mendiga, uma
sem-teto. Vou embora e ficar na casa da minha tia, conseguir outro trabalho e
até fazer diárias em várias casas. Tudo bem que nenhum patrão quer ficar
comigo porque eu sinto dores e sempre crio desculpas para faltar ou me
atrasar. O último, que foi na loja de conveniência perto da casa da minha tia,
eu pedi para ir ao banheiro e fiquei meia hora lá dentro curvada e quase
desfalecendo.
— Belinda! — Escuto o berro e sei que Adam está na porta.
Mas que droga! De novo isso? Quando estou prestes a ir embora, ele
chega. Porém, dessa vez ele não vai me convencer e eu posso perder uma
perna, e mesmo assim vou embora.
Termino de colocar minhas coisas na bolsa correndo e pego minha mala
e a mochila depois que visto meu casaco e coloco a touca. Eu vou para a casa
da minha tia. Saio do quarto um pouco desengonçada e descendo as escadas,
dou de cara com Adam ainda na porta como se estivesse me esperando.
— O que você está fazendo? — pergunta com a voz baixa e hesitante.
— Estou indo embora, Adam.
— Está indo embora só porque eu não continuei com o nosso beijo. Por
que eu falei o nome da Selena?
— Não tem nada a ver com isso, Adam — rebato irritada com sua
acusação e solto minhas bolsas no chão. — Eu confundi as coisas e você é
uma pessoa vulnerável por toda essa saudade que guarda dentro de si. Eu
errei ontem. Você errou e até disse... — Pauso e reformulo a frase. — Como
você falou antes, precisamos pensar. Você precisou sair. Não sei para onde e
não importa, e sim que você teve seu momento. Pensou longe de mim e,
enquanto você estava não sei onde, fiz o mesmo aqui na sua casa.
— E a conclusão que você chegou é que tem que ir embora.
— Sim! E você não pode se meter na decisão que tomei, que é a de que
preciso ir embora. Deixar você em paz. Viver a sua vida do jeito que achar
melhor. Você já está horrível aos meus olhos, não precisa piorar.
— Mas eu não quero que você vai embora. Não precisa.
— Você não tem que querer que eu fique e nem que eu vá. — Até eu
estranho a firmeza em minha voz. — Não acho que está nada bem conosco e
de qualquer forma, não somos nada um para o outro e não tem mal algum
você não me querer em sua casa.
O rosto dele fica ilegível. Adam dá um passo ficando mais próximo.
— Eu não falo isso pra você tem um bom tempo — diz ele parecendo
nervoso —, então não fique colocando palavras na minha boca. Não tem nada
a ver eu ter beijado você com outras coisas que disse e pensei, que não faz
muito tempo, porém o fato é que mudei de opinião. Eu não quero que você
vá embora. Você não precisa ir... — Faz uma pausa. — Eu me acostumei
com você aqui.
— Você se acostumou comigo e mesmo assim ainda continua me
tratando mal.
— Eu não tratei você mal.
— Tem certeza? — Sou irônica. — Esqueceu o que você me deu na casa
dos seus pais algumas horas atrás.
— Belinda, não seja hipócrita, você me trata da mesma forma. Nós
trocamos farpas, devolvemos na mesma moeda e está tudo bem, era disso que
eu precisava. Que me tratassem da mesma forma. O que aconteceu comigo,
faz muita gente ver o jeito que vivo ser horrível. Acham que não é certo e
você foi a única que não ficou tentando achar uma desculpa de fazer eu
pensar que tenho que parar de me remoer. Você só acha que tenho que viver
da melhor forma que eu posso e fala isso sem rodeios.
— Sim, é verdade e você é bonito, tem uma situação boa, talento e é
inteligente. Acha que não vi nas suas fotos como são lindas? Que não sei que
você fez faculdade de engenharia? É por isso que não me conformo de você
jogar fora todas essas oportunidades. Suas fotos são maravilhosas, mas você
prefere deixar dentro da geladeira, assim como todo o resto.
— Eu sei disso e todo santo dia de uma forma nova escuto que preciso
acordar pra vida. — Ele respira fundo e seus olhos parecem que perfuram
minha alma. — E o jeito que você fala é diferente, sem julgamentos. Talvez
questionamentos, mas está tudo bem. Você está certa e eu sei que não te trato
bem, mas não quero que precise ir. Eu realmente quero te ajudar.
— O que? Por quê? — solto exasperada e chocada com sua declaração
final. — Você acha deve me ajudar? Porque você não me deve nada e nem a
ninguém. Na verdade, ninguém deve nada a ninguém nessa vida, Adam. E se
você pensa assim está se afundando, confundindo tudo, porque nem todos
pensam que precisa ajudar o próximo ou até mesmo fazer por compaixão.
Você não tem que fazer isso. E... não sei por que, mas sinto que você acha
que deve algo ao mundo. Eu consigo enxergar nitidamente sua dor através de
você.
— Por que você faz isso consigo mesma?
Franzo a testa.
— Faço o quê? O que você quer dizer?
— Você realmente consegue ver quem sou. Seja meu lado bom ou ruim.
O destrutivo e o gentil. Mas não consegue ver em si mesma a pessoa incrível
que é. Você consegue ver as coisas perfeitamente e tudo que precisa
melhorar, menos para si mesma. Eu sei que é forte, pois tudo que disse ou
deixou frases soltas no ar sobre sua vida prova o quão forte você realmente é
e não merece ficar na minha companhia.
— Por favor, não começa com isso — peço impaciente. — O que mais
me irrita em você é essa lamentação o tempo todo, Adam. Meu Deus! Você
está falando de mim e das minhas supostas qualidades, e se é assim somos
iguais. Fazemos o mesmo. Eu consigo consertar suas burradas e você tenta
me ajudar, mas não damos essa chance para nós mesmos. Somos iguais nisso,
Adam, e eu concordo, mas somos diferentes em questão de oportunidade.
Você teve tudo para recomeçar sua vida a qualquer momento e não
aproveitou. Já eu... — Deixo de encará-lo olhando o chão.
— Belinda, eu... — Ele dá um passo ficando mais perto e termina: — Eu
sinto muito e é por isso que quero ajudar você.
Respiro fundo, tomando coragem que, sendo honesta, não entendo o
porquê.
— Eu agradeço você por isso, mas acho que primeiro você tem que se
ajudar para querer cuidar de alguém. — Mexo os pés me sentindo inquieta.
— Olha, eu não sei o que aconteceu com você. Na verdade, tudo que ouvi
foram boatos e mesmo assim coisas que, se eu juntar, sinceramente não
consigo formar um quebra-cabeça, mas uma coisa eu sei que é certa: você
não conseguiu retomar sua vida de novo. É óbvio. Eu vi isso na sua casa, no
seu rosto, nos seus dias de... com todo respeito. De merda. Sua casa estava
entregue às baratas e não pense que sua aparência não era desagradável. Pois
era até assustadora e, graças a Deus, se machucou e seu rosto apareceu.
Agora só resta parar de usar preto e dormir de verdade para perder as
olheiras. Não pode continuar assim.
Adam cambaleia e coloca as mãos na cabeça. Acho que atingi algum
nervo nele e assisto em câmera lenta ele se curvar para frente como se
estivesse sentindo dor. Respira fundo e por fim joga o corpo para trás,
encosta na parede e escorrega até sentar no chão. Ele enterra os dedos nos
cabelos e baixa o rosto. Obviamente está se escondendo de mim, mas sei que
ciente de que não está sozinho.
Engulo em seco e fico congelada. A culpa me corrói. Acho que peguei
muito pesado. Meu Deus! O que feriu ele foi profundo demais e agora sei que
não foi ontem ou mês passado, e nem o ano passado. Essa dor já perpetua por
longos anos. E não sei como eu posso ajudá-lo. Não sei como algo
enferrujado pode consertar algo quebrado, e mesmo assim me aproximo dele,
me ajoelho na sua frente e coloco minha mão em seu ombro. Quando consigo
capturar sua atenção, o encaro fixamente.
— Eu não sei o que aconteceu e não quero que você me diga. Só preciso
que você pare.
— Parar o quê?
— De se lamentar — digo com a voz macia, confortando-o. — Que pare
de maltratar as pessoas, pare de colocar a culpa no universo por seja lá o que
não aconteceu ou aconteceu na sua vida. Por que você não enxerga por outro
ângulo todas as coisas que fez você chegar até onde está?
Ele franze a testa.
— Eu sei que não é fácil, mas falo isso por experiência, não como um
conselho, porque se conselho fosse bom todo mundo vendia. Então, Adam,
eu falo por experiência. Por morrer de dor há algum tempo e hoje querer
muito poder fazer todos os meus exames e não ter grana, sendo que foi culpa
minha. — Balanço a cabeça afirmando minhas palavras. — Eu já tive o
dinheiro e se estou assim hoje, foi por ser relaxada comigo, mas eu não culpo
ninguém. Não culpo minha genética, os remédios por serem inacessíveis para
quem não tem uma situação boa. Eu não culpo nem a sua mãe por ter me
colocado aqui dentro, mesmo você não gostando e me dado alguns foras, que
me levou a fazer minhas malas duas vezes. Eu não fico culpando tudo.
Apenas tento levar e ajeitar outra forma de resolver minha vida. Eu fico sobre
o céu onde vou ter luz e chuva, que cabe a mim fazer os dias serem bons.
Então, saia da escuridão também. É só o que tenho a te falar.
— Você podia escrever um livro. Tem boas ideias. Você fez um poema
— sugiro sem ser irônico.
Faço um biquinho e dou de ombros.
— Viu, você é engraçado e, às vezes, até gentil — confesso. — Não sei
como você era antes. Mas creio que não foi sempre do jeito que é agora e...
todo mundo tem novas chances, oportunidades. Você não enxerga a sua
porque se sente muito mal para agarrá-la.
— Se eu fizer agora, você vai embora.
— Por que você está falando isso? — Franzo a testa completamente
confusa.
— Porque a ideia que tive você não vai gostar e... — vira o rosto — você
já está com as malas prontas. Prestes a ir embora. — Me encara novamente.
— Olha, Adam — suspiro e acabo me sentando no chão na sua frente.
— Eu não tive ninguém para lutar por mim, para me ajudar e, quando eu
pensei que as coisas iriam melhorar, perdi todo mundo. Acho que eu sou tão
desprezível quanto você e não estou falando no sentido de você ser alguém
que não pode ser amado porque está danificado por culpa do seu passado.
Estou dizendo desprezível no sentido de nós não amarmos a nós mesmos. De
nos desprezarmos e ficarmos pensando nisso. Que somos desprezíveis. —
Baixo meu rosto. — Sabe, eu não tive o amor do meu pai. Ele foi embora,
depois teve sua nova família e, por fim, morreu sendo um estranho. Depois
não tive o amor do homem que amei e não tive o apoio da minha mãe quando
mais precisei. Então — olho para ele —, eu fui embora. Vivi com minha tia
até quando podia e depois sua mãe estendeu a mão para mim. Christal me
ajudou, me trouxe até aqui e foi uma ajuda gigantesca em todos os sentidos.
E não estou falando de limpar sua casa e nem arrumar essa bagunça. Estou
falando até mesmo de cuidar de você, porque eu sou uma pessoa que não vou
conseguir ver alguém afundando e não fazer nada. Eu quero saber o que a
levou até aquele momento. Quero saber o que a fez viver assim. E não
importa se para você, Adam, estou aqui só para limpar sua casa. Não consigo
não lhe ajudar. E sobre seu passado... só me conte se quiser.
— Você é legal e minha mãe consegue enxergar a qualidade nas pessoas
boas como você. — Respira fundo. — Por isso quero que prometa que não
vai embora. Não apenas por mim, mas por ela. Minha mãe ficará muito
furiosa se souber e... me desculpa se estar aqui foi um presente de grego.
Dou uma risada, balançando a cabeça.
— Tudo bem e estar aqui pode não ser aquilo que eu queria que fosse
para mim, mas não é tão ruim como poderia ser se não estivesse.
Adam faz uma cara de lamentação e assente. E após um tempo pensando
levanta os olhos para mim novamente e ergue as sobrancelhas.
— Eu pensei em passar um tempo na casa de praia em Hampton.
— Ficar longe de mim? — Ergo as sobrancelhas e movo os ombros
antes de reformular a frase. — Quer dizer, você precisa mesmo ficar sozinho?
Mais sozinho?
— Não! E não se despreze tanto assim — diz parecendo zangado. — Eu
só preciso disso e se você quer que eu melhore, tem que pensar em si
também. Vamos melhorar juntos.
— Está bom — concordo e ele solta uma risada. — E vai ser por quanto
tempo?
— Um mês, ou menos talvez. Só quero pensar e encontrar as pistas. Tais
quais você disse que aparecem como sinais. Vlad falou disso também.
— Quem é Vlad?
— É um dos meus melhores amigos. Ele é o dono do bar que eu sempre
vou.
— E era lá que você estava? Você foi beber?
— Fui, mas nem passou de dois drinks. Fiquei mesmo é conversando.
Me lamentando, sabe... tem tempo que faço isso, já é um hobby.
— Esse lamento... Essa culpa que remói... é tudo por causa que você
perdeu a mulher bonita da foto. É isso, não é?
— É.
— Quanto tempo faz?
Ele desvia os olhos e foca na porta. Acho que pensa em fugir, no
entanto, me responde:
— Seis anos. — Sua voz é sombria. — Esse Natal completou seis anos
que ela morreu.
— Sinto muito de verdade
— Eu sei — diz e olha para mim de novo.
— Ela era sua esposa?
— Minha noiva — respira fundo quando fala. — Nós íamos nos casar no
Dia dos Namorados, mas ela resolveu partir meu coração dois meses antes.
Só... que ela não contava que eu ia ver e... que ia fugir. Como sempre, Selena
foi atrás de mim, para se explicar e...
— E morreu? — sussurro um pouco incomodada com a frieza das
explicações.
— Foi um acidente. O carro dela capotou e, quando os bombeiros
chegaram, ela morreu no meio do fogo. — E como eu esperava, ele desvia a
atenção mais uma vez. — O carro explodiu na frente, o motor, e mesmo que
tenham me falado que ela morreu no hospital, sei que não foi. E hoje eu odeio
passar na estrada onde ela morreu. Na verdade, eu não dirigi por um tempo
e... eu não ando muito com meu carro. Tinha uns bons quatro meses desde a
última vez que usei ele, por isso estava meio abandonado. A última vez foi
quando a gente foi pra casa dos meus pais.
Isso me faz pensar tantas coisas sobre ele, sobre sua noiva, sobre o
porquê sua família está tão desesperada para ele melhorar. Agora muita coisa
faz sentido.
— Está tudo bem eu ir para Hampton? — Ele me pega de surpresa,
capturando minha atenção para o agora.
— Bem... você faz o que desejar, Adam. Não tenho o que opinar.
Fechando a cara como se estivesse zangado, como se fosse um céu
bonito que precede a tempestade e fica escuro, turvo e sem vida, Adam se
levanta, passa as mãos uma na outra e espera eu estar de pé para falar:
— Acho que você não está me entendendo.
— Por quê?
— Eu quero que você fique aqui.
— Esperando você. Como assim? Isso não faz sentido algum. Não
ficarei aqui sem você. Eu...
— Por favor, deixe-me...
— De maneira nenhuma vou ficar aqui na sua casa sem você.
— Belinda, pare de falar! Por favor.
Arregalo os olhos e tento não rir, mas é difícil. Solto uma gargalhada
chegando a colocar as mãos na barriga.
— Me desculpa, mas é que...
— Por favor, deixa eu falar. Caramba, você é igual a Ava. Não espera
ninguém explicar nada.
Faço uma cara de culpada e suspiro, convencida de que preciso escutar.
— Pode dizer.
— Então, o que eu queria era que você estivesse aqui enquanto estou lá
porque assim você pode cobrir minha retaguarda.
— O quê?! Como assim? Você está me deixando confusa.
— Minha família não vai gostar de saber que estou, como você mesma
disse, querendo ficar ainda mais sozinho. — Meneia a cabeça e cruza os
braços. — Eles não vão entender e por isso preciso que fique aqui para cuidar
de tudo.
— Cuidar de tudo como?
— Você e Vlad irão passar informações para minha mãe, que mais
procura por mim, e despistar Harry.
Rio alto e dou de ombros.
— Ele gosta de você de verdade, por isso fica no seu pé. Todos gostam
de você.
— Não estou reclamando, Belinda. — Vira-se e caminha para a cozinha,
falando sobre os ombros. — Sei que todos fazem, de alguma forma, o dever
deles, mas às vezes quero que eles entendam.
— Você sente saudade dela?
A garrafa de água que está em sua mão é abandonada no balcão e
virando-se lentamente para mim mostra seu rosto em branco, sem emoção.
— A questão não é saudade, Belinda. Ela fez parte de mim, do que fui.
Acompanhou minha vida desde que estava na pré-escola até eu terminar a
primeira faculdade. Perdê-la não foi apenas doloroso para mim, minha
família sofreu também. Ela fez um vácuo em nossos corações, mas o que
sinto não é saudade. Não sinto a falta dela. — Ele dá dois passos e me
olhando nos olhos. — O que sinto é remorso por ter causado a morte dela e
por nunca — faz uma pausa como se sentisse dor — saber o motivo dela
partir meu coração naquela tarde. Por não ter conseguido fazer nada quando o
carro dela estava atrás de mim e por nunca...
— Você não pode ficar se machucando para sempre com isso. Tenho
certeza de que não é fácil, mas precisa superar ou trabalhar essa situação de
alguma forma, te tornará mais forte.
Adam engole em seco e assente em silêncio como se não tivesse nada
mesmo para falar. Dá as costas para mim, bebe sua água e assim que termina
passa por mim como se não tivéssemos a conversa mais profunda.
Uau! Esse homem é doido.
Mas antes de eu ficar pensando na sua loucura e toda sua amargura,
corro atrás dele e o pego subindo as escadas.
— Você ainda quer que eu fique aqui ou vai dar uma de crianção e me
ignorar como se não tivesse falado nada para mim porque dói demais tocar
neste assunto, que é passado? Passado, Adam! E você precisa estar aqui.
Ele para no meio da escada e vira para me encarar.
— Precisa estar aqui no pre-sen-te, então eu topo. — Subo os lances que
nos afasta e digo: — Fico aqui para você melhorar, não muito tempo, e faço
sua família achar que você continua na mesma vida de merda de antes, mas
na verdade você estará se cuidando e tentando achar o homem que vi
naquelas fotos e que sua mãe tanto se orgulha e enche o saco para você ser de
novo.
— Olha, eu...
— Nem vem. Você já tinha decidido isso e só contava com a minha
ajuda, já que tem o seu amigo do bar, portanto agora só resta você fazer as
malas e ir. Aqui tudo vai ficar bem, Adam. E lá? — Cerro meus olhos, sendo
incisiva. — Vai ficar tudo bem com você em Hampton?
DEZ

Isso me deixa pra baixo


Eu tento continuar em frente, mas isso dói muito
Eu tento perdoar, mas isso não é suficiente
Para tornar tudo bem
Você não pode tocar em cordas rompidas
Você pode não sentir nada
Que seu coração não quer sentir
Eu não posso te dizer uma coisa que não seja real
A verdade dói
E mentiras mais ainda
Como eu posso te dar algo mais?
Quando eu te amo um pouco menos que antes

BROKEN STRINGS | JAMES MORRISON

Hoje faz dez dias que estou na casa de praia que passei muitos verões e
outonos com minha família nas férias e feriados como o quatro de julho, que
meus pais fazem questão de festejar por serem republicanos convictos. Eu
adoro Hampton e sua pequena população, o clima fresco e suas praias com
áreas não tão claras e limpas, porém bonitas. Como fotógrafo aprendi a ser
crítico com a paisagem e ter um olho bom para a luz. E aqui tem uma
iluminação perfeita, sempre parecendo meio nublado, portanto as fotos ficam
definidas. Muita luz ofusca a lente da câmera. É contraditório, mas é assim
mesmo.
Respirando fundo, termino de tomar minha xícara de café preto, sem
açúcar e forte do jeito que gosto, e dou as costas à praia e entro em casa, que
mesmo modesta, é aconchegante.
Minha mãe é uma mulher que gosta de coisas boas, qualidade e conforto,
mas nossa casa aqui não é nada muito extravagante como costuma ser as
casas das pessoas que vem passar uma temporada por aqui. Pessoas ricas e
poderosas. Hampton não é para peixe pequeno e quando eles brotam por
aqui, os tubarões os engolem sem pensar.
Realmente gosto muito daqui por ser longe da cidade e por ninguém me
conhecer também. Nem o antigo e nem o atual Adam Stella. Eu curto muito o
fato de ser o estranho da casa da praia mais distante. Minha mãe não apenas
quis algo simples como longe dos outros. Nós não somos tubarões e
gostamos de manter distância para sobreviver ao glamour das mentes
perigosas.
No entanto (sempre tem que ter um porém), eu não sou desconhecido
para todos. Tenho alguns amigos por aqui e isso me levou a evitar esse lugar
por todos esses seis anos. E não posso negar essa evidência que é constante.
Selena e eu tivemos muitos tempos bons aqui, eu nem consigo recordar esse
lugar sem ela e seu sorriso largo, a risada contagiante e seus cabelos ruivos
contra o vento da costa.
Massageio meu peito e o questionamento de Belinda volta a tomar
minha mente. O que aconteceu durante toda a viagem até aqui e as noites
desses dez dias, que passei em branco refletindo ou lutando para não pensar
no que ela falou para mim naquela noite. Saudade não é o problema maior
que vivi nesses anos, eu me culpo e talvez se Selena tivesse morrido por
outras circunstâncias com certeza sentiria saudade e superado.
Porra são seis anos. Ninguém vive um luto intenso por tempo demais,
por mais que ame aquela pessoa. Vai haver algo, um novo alguém, um
motivo para impulsionar a lutar por novos dias. Eu acredito de verdade que
só vivi essa merda de vida durante esse tempo todo por causa do remorso,
não é saudade.
Eu mal pensava em Selena antes de Belinda chegar, antes dela mexer
naquelas fotos no porão, antes de ver a irmã gêmea e antes de beijar outra
mulher após seis anos sem me aproximar de alguém dessa forma e a última
ser Selena. E não sei se é bom ou ruim pensar tanto nela assim como estou
fazendo agora.
Às vezes, acho que é terrível, mas também acho necessário. Eu preciso
exorcizar esse fantasma de uma vez por todas e estar longe de todos está
sendo muito bom. Ontem fiz minha caminhada pela praia recordando os bons
momentos e pedindo em pensamentos que todos os ruins desapareçam. Que
eu possa perdoá-la e me perdoar. Que eu consiga dar o primeiro passo e
seguir.
No domingo cheguei até a comprar uma máquina de retratos
convencional para me distrair e ver se ainda tenho a manha de antes. Foi
bom. Me deixou animado e irritado também porque percebi com tanta clareza
que perdi tempo. Eu nem consigo mais ficar com raiva da minha mãe, Harry
e Ava. Agora compreendo-os perfeitamente e acho até que eles foram legais
comigo. Creio que eu não teria tanta paciência como eles tiveram comigo.
Não estou me obrigando a nada ou punindo, bem longe disso. No entanto, eu
devo a eles toda a fé que têm em mim.
Preciso fazê-los se sentir com missão cumprida em relação a mim. Eu
necessito vencer essa mágoa e superar a derrota. Por minha família, por meus
amigos, pela memória de Selena e até por Belinda. Aquela garota é uma
gladiadora e eu não devo mais do que deixá-la tranquila e, como ela mesma
disse, para eu ajudar alguém preciso estar bem também.
E eu vou ficar bem para todos eles. Acho até que já dei os primeiros
passos.

Saio do banho e, secando meu cabelo esporadicamente, enrolo a toalha


no quadril e caminho até a cozinha. Estar sozinho de verdade tem essa
vantagem. Posso andar do jeito que eu quiser pelos cômodos e, se preferir,
dormir no sofá da sala.
No armário pego o pó de café e coloco na cafeteira; e na geladeira, os
ovos e bacon. Belinda aguçou meu paladar, principalmente as manhãs com
seu saboroso café preto forte e o omelete e algumas vezes bacon. Ela me
acostumou nesses dias que está lá em casa a comer bem e, como sempre tive
isso, agora é até difícil comer salgadinho e refrigerante às oito da manhã.
Terminando de preparar meu café, sento em uma das banquetas da
cozinha e como em silêncio. Bem, na realidade, eu nunca estou em silêncio
ou tranquilo. Juro por Deus que não sou a melhor pessoa para fazer ioga ou
meditação. Sou inquieto e nervoso. Ansioso ao extremo e gosto que as coisas
se resolvam e é por isso que lutei esses anos com o luto. Não tem como
“resolver” a partida de alguém para sempre. Não tem jeito certo de consertar
a morte e, no meu caso, não teve nem como eu conversar para deixar tudo em
pratos limpos.
Meus pensamentos andam sempre divagando por caminhos confusos e
até tranquilos. Pensamentos bobos e que me fazem rir sozinho. E terminando
os ovos, tomo um grande gole do que restou do café e levanto, levando a
louça para a pia e a lavando de uma vez, e novamente penso em Belinda. Ela
bateria palmas para mim limpando a casa, lavando a louça e trocando de
roupa, que por até influência dela não estou só usando preto.
Subo para o quarto, largo a toalha na cama e visto uma roupa para
correr. Descobrir que paguei durante quase dois anos Belson à toa, pois
correr ao ar livre é a melhor terapia que estou fazendo. Meus pensamentos
que já andam férteis, quando corro ficam a mil por hora e muitas das vezes
encontro respostas.
Eu já decidi que rumo vou tomar quando voltar para Nova York. A
começar a trabalhar, acho que no momento preciso fazer algo fácil e que não
precise de tanta pressão. Vou voltar a fotografar paisagens e, se aparecer
algum convite para uma sessão de foto ou até eventos grandes (isso inclui
casamento), faço. Antes cheguei a fotografar para revistas conhecidas e o
primeiro casamento foi o da minha irmã. Foi divertido e fácil.
Por isso estou pensando em começar pelo que dá menos trabalho e,
sendo franco, não quero entrar numa grande empresa para ser engenheiro e
precisar responder a um chefe. Não estou no clima para isso. Agora preciso
criar, expandir minhas vontades e sentimentos. Testar minha disposição e
treinar minha atividade. Tudo na vida é questão de treino e dedicação para
virar hábito e ficar bom. E como estou voltando à ativa, não quero regras e
limites. Eu tenho a capacidade de ser meu chefe. Fiquei parado, mas não
morto.
Atravessando a passarela que leva para as escadas chego à praia e me
alongo, ligo o som, ajeito o fone e sugando uma respiração profunda começo
a correr.
Na terceira música, meus passos ganham o ritmo da batida do hip-hop e
acelero, acompanhando a aceleração do meu coração. Desde que era moleque
gosto de ouvir hip-hop e eletrônica para correr, nunca consegui ouvir coisas
calmas. Esse lance de encontrar equilíbrio na leveza, não é comigo. Sou
intenso demais para meditar.
Meia hora depois, meu corpo está molhado pelo suor e quente. Ofegante,
sugo respirações fortes e insistente. É como se a música entrasse dentro de
mim tão forte. Meus sentidos são comandados conforme a batida e eu nem
noto quando um cachorro surge na minha frente e caio quase sobre ele, então
me jogo para o lado, na areia fofa da praia, perdendo o equilíbrio.
Assim que me recupero do tombo, levanto agarrando o iPad e o fone, e
bato a mão no meu short resmungando.
— Mas que merda! De onde surgiu esse maldito cachorro?
De repente, ouço passos apressados e viro-me. Uma mulher com um
vestido branco leve que a maré faz balançar de uma forma angelical
moldando seu corpo. A cintura fina, os seios fartos e duros, pernas longas e
os cabelos loiros. É uma visão ela vindo para mim e eu poderia jurar que
estou sonhando.
— Não fale assim dele. Foi sem querer — fala na defensiva, pois parece
que me ouviu e talvez seja a dona do animal.
— Eu não duvido disso, mas levei um susto — digo assistindo-a
acariciar as orelhas do labrador castanho-escuro, e muito bonito por sinal. —
Sem contar que eu poderia ter lhe machucado.
Dessa vez, quem resmunga é ela enquanto parece verificar o cachorro e
por fim levanta me encarando, e é só neste momento que reconheço sua
fisionomia não estranha desde o início.
— Lydia? Lydia Bennett?
Sua testa enruga quase por completo quando ela me encara e eu consigo
ver as engrenagens do seu cérebro querendo me reconhecer.
— Adam Stella?
Assinto abrindo um sorriso neutro.
— Caramba, quanto tempo! — Ela dá um passo a fim de me abraçar,
mas se detém quando vê que estou parecendo um frango à milanesa. Suor
com areia não deram certo. — Depois eu dou um abraço em você.
— É melhor — concordo e rio.
— Ai, meu Deus! Nem acredito que você está na minha frente. Já faz
quanto tempo? — pergunta e a mesma responde. — Acho que desde a minha
primeira férias da faculdade, então faz uns seis anos.
Balanço a cabeça lentamente e mexo os ombros. Lydia (que mora aqui)
foi a primeira amiga que minha irmã fez assim que nos mudamos para uma
casa maior aqui em Hampton, tornando vizinha na garota alegre, inteligente e
falante, o oposto de Ava, e eu também, mas é uma excelente amiga e talvez
por ser tão diferente de nós que era uma peça chave para o nosso grupo.
Lydia era a fonte de humor para nós.
— Minha nossa! Não consigo acreditar que é você. Eu vi Ava e seus pais
ano passado assim como todos os outros anos menos você. O que aconteceu?
Enjoou daqui? — Dá um soco brincalhão no meu ombro. — Ou você se
casou com a Selena? Eu senti tantas saudades de vocês e sei lá. Seus pais mal
falaram comigo e Ava estava estranha. Eu fiz alguma coisa?
Tento tomar uma respiração profunda sem chamar sua atenção e abro um
sorriso que pede para ela mudar de assunto. Porra! Ela não tem culpa por
tudo que aconteceu e eu ter me ausentado todo esse tempo. Meus pais
continuaram a vir nos feriados com Ava, como ela mesma acabou de dizer.
Meu silêncio deve ter deixado-a constrangida, pois ela pisca rápido e
sorri sem jeito.
— Adam? Eu fiz algo de errado ou disse?
— Não... é que — perco a voz como se tivesse travado.
Droga! Eu não tenho que ficar mais assim e vim para cá querendo
superar essa merda toda. Tomando coragem e decidido, explico a ela sem
dizer os detalhes do que aconteceu seis anos atrás e nem precisa explicar o
motivo de eu não vir mais para cá, pois Selena amava este lugar. Vínhamos
finais de semanas sim e não passar aqui, só nós e fingíamos que já tínhamos a
vida que queríamos. Que tanto sonhamos viver.
— Nossa, eu... — Lydia para e balança a cabeça com pesar. — Eu sinto
muito mesmo. Deve ter sido difícil para você e eu, com certeza, no seu lugar
não viria aqui mais, ou tão cedo. Eu lamento por tudo para dizer a verdade.
— baixa o rosto ficando emocionada e se esforça para não chorar.
“Por favor, não chore. Por favor, não chore”, peço mentalmente porque
não irei suportar choradeira, pois estou aqui para superar essa tragédia não
piorar minha cabeça. Meu Deus! Isso por acaso é uma prova divina pra ver o
quanto estou melhorando?
— Está tudo bem agora, Lydia.
Ela levanta os olhos para mim com um ponto de interrogação na testa, e
eu continuo:
— É claro que não foi fácil e tem vezes piores do que outras, mas eu...
— pauso decidindo se falo ou não que meu objetivo foi estar aqui para
finalmente poder dizer que superei. Que estou bem com tudo que aconteceu,
bem, ela não sabe de tudo e vai continuar assim. Respiro fundo rápido e
concluo: — Eu estou bem agora. Certas coisas na vida precisam acontecer.
Deve ser isso.
— Sim, deve ser isso — repete e parece tão cabisbaixa.
Cerra os olhos tentando enxergar além da aparência sempre impactante.
Mesmo quando namorava Selena, não podia deixar de perceber quão bonita e
atraente Lydia era. Seus cabelos loiro-escuros, os olhos castanho-esverdeados
de uma intensidade penetrante e o sorriso sempre aberto e cuidado. Ela era
uma jovem linda quando a conheci anos atrás, hoje é uma mulher espetacular
tirando, é claro, a tristeza que é óbvia agora para os meus olhos.
— E você como tem passado? — pergunto curioso e querendo talvez
mudar a aura densa sobre ela.
Lydia abre seu sorriso convencional e chamando o cachorro, caminha
para onde estava, a varanda da sua casa. Ando ao seu lado.
— Bem — solta espontânea. — Terminei minha faculdade ano passado,
hoje sou dona de uma loja de artesanato e desse amiguinho aqui. — Ela
acaricia o labrador dizendo o nome dele. — Buzz é meu melhor amigo.
— Buzz?
— É — ri alto e vira-se para mim. — Buzz Lightyear, do Toy Story.
Você sabe como eu amava esse filme.
— Eu me lembro.
Ela dá de ombros e se abaixa pegando a coleira, uma bolinha amarela e
seu chinelo. Aprumando a postura caminha para dentro de casa me dando um
sorriso que é um convite, e como ela era minha amiga eu vou. Não é nada de
mais. Eu a conheço a vida toda.
— Só isso? E como está John?
Isso a faz prender a respiração e por fim soltar um suspiro.
— Ele está bem, pelo menos na última vez que o vi estava perfeitamente
perfeito. — Sua voz está carregada de sarcasmo.
Franzo a testa seguindo até a cozinha, onde ela pega uma garrafa de
água, dois copos e um deles me oferece sem dizer nada. É, parece que ela
ainda me conhece bem. estava com sede mesmo depois de oito quilômetros
correndo na areia.
— Vocês não estão mais juntos? — Dou um gole na água.
Ela assente de cabeça baixa e senta-se em uma das banquetas.
— No final parece que o nosso amor não era para sempre e a loira
peituda tinha mais o que oferecer, mas quer saber? — Me encara com o rosto
neutro. — Eu fiquei feliz por ele. John foi honesto comigo. Não me traiu
como todos da cidade gostam de falar. Ele... veio até mim e disse que estava
interessado em outra pessoa e que, se isso estava acontecendo, ele tinha que
ver e não me magoar. Não podia trair o que tínhamos. Então, terminamos e
hoje ele se casou e tem uma filha linda de dois aninhos com a loira peituda.
— Uau, Que história! Eu nem sei o que dizer. Jurava que vocês eram
para sempre.
Assim como pensei que Selena fosse a mulher ideal para mim, mas antes
de partir ela destruiu meu coração em mil pedaços.
— Também pensei isso, mas a vida é uma caixinha de surpresas. —
Baixa o rosto e suspira e puxa o laço que prende seu vestido, que na verdade
é uma saída de praia. — E assim como você, está tudo bem agora.
Concordo com a cabeça e sei que como eu ela está mentindo.
— Então — diz de repente com o humor recuperado —, que tal uma
pizza mais tarde? Podíamos colocar o papo em dia, mas falaremos apenas de
coisas boas, se é que teve algo bom nesse tempo que estivemos longe. —
Sorri sem mostrar os dentes.
— É... eu acho
— Ah, droga. Eu nem me toquei. Você tem compromisso ou... um outro
alguém? — me interrompe.
— Calma, Lydia. — Rio e dou a volta no balcão e coloco as mãos nos
seus ombros. — Eu não tenho absolutamente nada para fazer mais tarde. Pra
dizer a verdade, não vim com objetivo de fazer nada, apenas pensar e... nada.
Só isso.
Assente lentamente como se compreendesse o que estou passando ou até
sentisse o mesmo, mas eu não acho que seja. John não ficou com ela estando
com Lydia, ele não a traiu e muito menos deixou perguntas sem respostas.
Escolhas sem desculpa. Ele não fez o que fez e morreu ou desapareceu sem
mais e nem menos. Então, duvido muito que seja a mesma coisa que eu
passei, no entanto, não estou aqui querendo comparar nossos ex-
relacionamentos. Eu jamais seria tão mesquinho e babaca desse tipo.
Separação é dolorosa de qualquer forma até para os relacionamentos com
certidão de óbito é difícil. Dizer adeus não é simples.
— Entendo e... pra dizer a verdade, eu tive essa vontade várias vezes,
mas para onde eu iria – de verdade – se já vivo em um lugar pitoresco, calmo
e com tudo que eu preciso para me sentir conectada e pronta para outra de
novo? Por isso fiquei e decidi recomeçar daqui mesmo e como o John falava:
Pagar pra ver.
Concordo com um aceno e sorrio.
— Então, a que horas eu chego para pegar você?
Seu sorriso se abre gradativamente e por alguma razão me deixa leve e
feliz. Lydia sempre trouxe esse tipo de sensação, e não apenas para mim
como para todos nós: Ava, Selena, Harry, eu e...
— Na verdade, eu vou fazer a pizza. — Dá uma gargalhada. — Tive
muito tempo livre e a mente também. — Move os ombros como se
desculpasse. — Assisti muitos programas de culinária, fiz curso e
praticamente hoje tenho uma cozinha industrial na antiga casa de visitas.
Lembra dela?
— Claro. Nós fazíamos muita merda por lá.
— É, sim. — Ri alto. — E eu transformei a pequena casinha dos fundos,
ou casa da piscina, no espaço para os meus hobbies.
Franzo a testa, e ela explica:
— Eu não só aprendi a cozinhar como a mexer com velas, cerâmica,
argila e amo ler. Agora minha casinha tem uma biblioteca, estúdio de
artesanato e, claro, a megacozinha. Você vai gostar.
— Eu posso ver?
— Sim. — Assente e me virando, me empurra para as portas duplas de
sua casa que dão para a praia. — Mais tarde.
Rio com força e, quando já estou na areia, viro-me para encarar seu rosto
com o sorriso sapeca e, claro, o cão que não sai do lado dela por nada. Ele
podia estar fazendo isso quando estava correndo não entrando na minha
frente. Desvio desse pensamento, e olho para Lydia novamente.
— Às sete?
— Às sete está perfeito, vou precisar comprar umas coisinhas na cidade.
Assinto encaixando o fone no meu ouvido.
— Vou trazer um vinho para acompanhar.
— Ótima ideia.
Faço um sinal de “okay” com a mão e recuo de costas me afastando e
logo viro-me e corro para casa com um sentimento bom. Eu vim querendo
fugir do passado, mas talvez o passado tem coisas boas para eu querer
melhorar e construir um futuro.
ONZE

Grandes esperanças,
isso me leva de volta para quando nós começamos
Grandes esperanças,
quando você deixa tudo para lá, sai e começa novamente
Grandes esperanças...
sim e o mundo continua a girando

HIGH HOPES | KODALINE

— Oi, Vlad. Como está?


Ele sorri para mim e logo coloca um copo com gelo e me serve uma dose
de conhaque. E logo vai atender outro cliente com sua típica voz galanteador.
Quando o Adam disse que eu receberia orientações e apoio de Vlad, sendo
bem sincera não formei nenhuma opinião ou característica de como esse
homem poderia ser ou agir, entretanto ele é surpreendente e posso dizer
singular. É espalhafatoso, humorado, agitado e fala bem alto. Não há uma
pessoa que fique em sua presença e não se empolgue ou esteja constrangido.
— Bem e você?
— Só bem? — diz ao me dar uma resposta, o normal. Vlad de certa
forma não precisa dizer se está bem ou não, ele é transparente a este ponto.
— Sim, só bem. — Franzo a testa. — E qual mal há nisso? Queria que
eu dissesse que estou mal?
— Claro que não.
— Ótimo. — Assinto e tomo um gole da bebida que desce quente.
— E como está nosso homem?
Acho muito engraçado a forma como ele trata Adam, principalmente
comigo.
— Parece muito bem, na verdade, acho que está ótimo.
— E por que você não está entusiasmada com isso? Pensei que queria
ele assim.
— E quero, é claro, mas... — baixo a cabeça e mexo o copo fazendo a
bebida rodopiar e criar um funil no meio — ele disse que quer ficar mais
tempo por lá.
Vlad solta um resmungo. Assisto-o franzir e balançar a cabeça de forma
exasperada e um tanto irritada. E lá vem o sermão.
— Eu vou ligar agora para ele. Adam não pode ficar mais por muito
tempo lá. O que que ele disse para você?
— Que está bem, se divertindo, pensando... — Dou de ombros. — E ele
encontrou uma velha amiga e eles estão saindo, conversando e só... E que não
estão revivendo e curtindo como antes porque não tem mais todo mundo. Foi
o que ele disse.
Os olhos de Vlad ficam compenetrados, a testa franze e sei que ele está
pensando em algo enquanto perco o foco na sua frente.
Não interessa o que Adam está fazendo. Ele tem que voltar. Não pode
ficar por lá a vida toda. Ele tem obrigações aqui.
— Se você está dizendo que uma dessas obrigações sou eu —
interrompo-o mais do que depressa —, sinceramente vou ficar ofendida. O
Adam e eu não temos nada e... — pauso procurando as palavras certas — eu
não me incomodo de ele ficar lá. Só fico irritada por estar na casa dele sem
ele. É tão estranho.
— Belinda, a questão não é essa — Vlad replica. — Ele disse para você
que ficaria um mês e já está na hora de voltar. Já deu tempo para ele pensar
em todas as merdas que fez durante esses seis anos. Em todos os momentos
que perdeu. Eu realmente acredito que ele está mais do que pronto para voltar
e completo. Quero Adam aqui bem como era antes. Até melhor. Não pronto
pra outra porque eu não desejo o que ele passou para ninguém, mas quero que
ele volte a estruturar sua vida. Querendo viver. Adam já passou um bom
tempo remoendo tudo que aconteceu.
— Concordo com você e olha que eu nem sei de tudo.
— É melhor você ficar sem saber mesmo — diz seco e firme. — Foi
uma pena tudo que ele sofreu e a família dele e a dela também. No fundo,
todos nós sofremos com a perda, mas já passou e não é motivo para a gente
ficar toda hora falando isso, principalmente quando o idiota do Adam já faz
isso com frequência.
— Fazia. Nós temos que pensar assim — corrigi-o com um sorrisinho.
— Sim, fazia e tenho você aqui, que é uma forma para ele voltar. Aquele
garoto vai chegar em Nova York melhor do que pensamos e você é a culpada.
— Eu sou a culpada?! Como assim? — falo em um fio de voz.
— Adam nunca teve de fato algo que o incentivasse nesses seis anos ao
ponto de querer mudar. De dar um choque de realidade. Era como se todas as
tentativas não o forçasse a sair da zona de conforto e você, não sei por que,
sinceramente, o tirou, o forçou a sair dessa zona e correr atrás. Você intimou
Adam a querer acordar, o que ninguém nunca conseguiu que ele tivesse
vontade de largar o que chamava de vida. E agora estamos quase vendo-o
começar a viver de verdade.
Meu coração parece comprimir com pesar, não quero dizer que é dor,
pois não acho que seja este sentimento no fundo.
— Depois do acidente... tudo ficou tão triste e, de repente, você chegou e
em menos de um mês fez uma reviravolta na vida dele, que Adam foi para
um dos lugares que ele mais amava com Selena e foi pra justamente pensar,
quer dizer melhor. Então eu acredito que você tem uma coisa mágica que foi
bem positiva para ele e, além disso — ele me encara com os olhos intensos e
coloca a mão sobre a minha —, eu torço muito para que você não desista de
Adam. Ele precisa de alguém como você, não de mim, nem a família dele e
nem do Harry, que é a família também, mas enfim. O que estou querendo
dizer é que você de alguma forma conseguiu virar a chave. Conseguiu tirar o
Adam do eixo dele, então seja lá o que tenha feito ou esteja fazendo,
continue.
Sinceramente, essa conversa toda não faz o mínimo sentido. Eu não fiz
nada com Adam, na verdade, me arrependo de ter falado com ele como falei.
Nunca fui de ser direta ou grossa com ninguém, no entanto, com ele eu não
aguentei apenas assistir. A Belinda fofa, amável e quieta evaporou diante da
sua teimosia e negatividade, e é por isso que não compreendo o que Vlad está
querendo dizer. Ajuda?! Como assim, eu estou ajudando o Adam sendo má
com ele? Meu Deus do céu! Que contraditório.
Mas para não piorar a situação, dou de ombros sorrindo de lado, um
pouco sem graça. Eu sei que estou fugindo do assunto e não ligo.
— Você uma hora vai ver o que eu estou lhe dizendo. Sua presença
mexeu com o mundo dele. Como se o tivesse tirado da zona de conforto, do
eixo e colocado em uma catarse de arrependimento. Seja lá o que tenha feito,
está funcionando.
— Juro que não sei do que está falando. Não fiz nada.
Ele sorri abertamente e coloca sua mão livre sobre as minhas em cima do
balcão do bar.
— Não importa. Apenas fique e não desista. Sei que, como uma pessoa
de fora, é mais fácil de você ir embora e não ligar, mas eu peço que tente ao
máximo estar com ele.
Estar com ele? A frase parece ter entrado na minha cabeça com todos os
significados do mundo. E não sei se é bom eu entender ao pé da letra todos os
significados. Droga, Belinda! É sim no sentido de companheira, amiga, nada
mais do que isso. Preciso estar para ser sua amiga.
— Eu vou fazer meu máximo — murmuro com a voz baixa e solto um
suspiro quase que automático.

São dez para as onze da noite e vou me deitar parecendo que carreguei o
mundo nas costas hoje, e eu não fiz nada para ser franca, já que a casa se
mantém bem limpinha apenas comigo. Aquela conversa toda com Vlad me
deixou apreensiva e incomodada, principalmente por ter falado com Adam
assim que cheguei em casa e ele ter contado que está se sentindo muito bem e
até se divertindo com a tal amiga de infância. Fiquei zangada comigo por ter
me incomodado com a informação. Eu não tenho nada a ver com a vida dele
e o que ele faz ou deixa de fazer com ela. Droga! Eu deveria ter pensado
nisso antes de ter aberto a boca e dito coisas que hoje não falaria nada. Acho
que agora ele pensa que eu preciso saber tudo o que faz. Por Deus, que ele
não me dê detalhes de como está passando o tempo com a amiga dele.
Soltando a respiração, me sento na cama e pego meu celular. Como um
vício abro a rede social e procuro por uma foto, vídeo, qualquer coisa para
saber o que Adam está fazendo ou fez. Para o meu desgosto, ele voltou
“realmente” à vida e decidiu que todos saberiam disso há uma semana ao
postar uma foto da praia onde fica a casa de veraneio. E não só isso, como
várias fotos de paisagem e lugares onde certamente ele foi ou gosta de ir.
Será que foi com a amiga dele ou é apenas para o acervo de fotos aleatórias?
Praticar a segunda profissão dele que fazia tão bem. As fotos do porão são
provas disso.
É, falando no bem dito porão, aproveitei que ele saiu (como diz a frase:
Quando os gatos saem, os ratos fazem a festa) e fui lá novamente. Dessa vez
mexi no armário todo e vi muitas fotos, assim descobrindo muitas coisas e
uma delas eu vou precisar encarar Adam e perguntar quem era. Ou senão a
irmã dele. Ava parece ser sem filtro como eu. Nós somos ótimas pessoas para
interrogar.
Passando pelas postagens que não me interessa, vou direto no perfil do
Adam quando surge uma foto nova. É de um píer longo com a madeira
desgastada pelo tempo. É uma linda paisagem que dá vontade de conhecer e
sentir o vento com aroma do mar. Balançando a cabeça aperto na foto do
perfil dele, a imagem de um pôr do sol e vejo os vídeos curtos que são
postados instantaneamente. E nelas encontro ele sorrindo atrás da câmera
enquanto grava uma loira de olhos alegres bebendo o que suponho ser uma
bebida alcoólica que a está deixando feliz até demais.
Irritada, fecho o aplicativo e bloqueio o celular de uma vez. Não vou
ficar me martirizando com o que Adam faz ou deixa de fazer. Que se dane!
Eu não tenho nada a ver com a vida dele.
Balanço a cabeça, reviro os olhos e solto a respiração pelo nariz. Deixo o
celular na mesa de cabeceira e me deito cobrindo até minha cabeça.
— Queria um remedinho para dormir e acordar só semana que vem —
murmuro entre as cobertas e puxo um dos travesseiros para o meio das
minhas pernas.
Fecho os olhos. Conto até vinte. Lembro do filme que vi ontem, era
sobre zumbis em 1800 e alguma coisa. Uma adaptação de Orgulho e
Preconceito. E a cena que está passando na minha cabeça é a moça morrendo
na mesa do chá.
Droga! Qual é o meu problema?
Mais cinco minutos e eu não paro de pensar.
Mais dez e eu não pego no sono.
E mais vinte e eu levanto da cama, e quando menos espero escuto meu
celular tocar. Desisto de ir pegar um copo d’água e pego o aparelho.
ADAM STELLA – a tela brilha com seu nome. O aparelho vibra em
minha mão. E meu coração não consegue se controlar dentro de mim.
Meu Deus! O que ele quer? Por que está me ligando?
Respirando profundamente, tomo coragem e atendo.
— Pensei que você não fosse atender — diz parecendo mal-humorado.
O de sempre.
— Eu estava distante do celular — minto porque é a melhor saída. —
Aconteceu alguma coisa?
— Não. Por quê?
— É uma da manhã e você está me ligando, sendo que nem em horas
normais liga. — Reviro os olhos para o óbvio.
Escuto-o resmungar antes de responder gélido.
— Você me faz parecer um babaca.
Não que você não seja. Às vezes.
— Não foi minha intenção.
— Tudo bem. Eu não liguei para discutir e sim para avisar que vou
precisar adiar minha volta.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa? — Detesto a forma deprimida que
minha voz soa.
— Eu consegui um trabalho.
— De fotografia?
— Sim e será justamente no fim de semana que eu ia voltar.
— Ah, entendo.
Mas por que ele está me dando satisfação?
— Então, queria saber se está tudo tranquilo e... — ele faz uma pausa
longa e irritante — se você poderia vir para cá?
— O quê? Por quê?
Escuto-o soltar a respiração exasperada e aposto que passou a mão nos
cabelos, jogando a franja para trás.
— Eu vou precisar de alguém para me ajudar e pensei em você.
— Por que não convida sua amiga? — Fui sarcástica e sei disso.
— Lydia não vai poder. Vai estar trabalhando na hora que estarei
fazendo as fotos — diz rápido, emendando as palavras. — E se não quiser
vir, tudo bem. Acho que consigo alguém por aqui. Só pensei em te chamar
porque você disse que gosta de ajudar e sei lá. Pensei que seria legal você
conhecer aqui também.
Sinto meus olhos arregalar pelo espanto de Adam me querer por perto.
Os segundos passam e vou me acostumando com a ideia, e mais calma, o
respondo:
— Tudo bem, eu vou.
— Tem certeza? Eu não estou obrigando você a vir. Não mando em
você, está bem.
— Adam, eu não vou me incomodar de ir para Hampton. Na verdade,
prefiro ficar aí do que aqui.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa? Não me esconda nada.
— Não. Não aconteceu nada — respondo às pressas. — Eu só não estou
me sentindo confortável em estar na sua casa sozinha e, ainda por cima,
mentir para sua mãe. Mesmo que seja por uma boa causa.
— Tirou as palavras da minha boca em relação a ser uma boa causa eu
estar aqui — diz firme e um pouco humorado. — E tenho certeza de que,
depois de um tempo, minha mãe vai se dar conta disso e, no fim, o resultado
será bom.
“Ele não é o Adam que foi embora”, penso com a testa franzida e meus
olhos seguem para a minha porta com os pensamentos no quarto vazio dele.
— E você não precisa se sentir assim. Eu posso ter sido um babaca no
início, porém mudei minhas atitudes e disse para ficar à vontade na minha
casa. Se eu não a quisesse aí teria tomado providências.
Agora sim é o Adam grosso e mal-humorado que conheci. Rio
internamente com esse pensamento.
— Eu sei — murmuro por falta do que dizer.
— Que bom. — Ele é convencido. — Agora quero saber se pode vir
depois de amanhã. Vou mandar o dinheiro na sua conta para a passagem de
ônibus.
— Uhum — concordo.
— Quando chegar me envia uma mensagem e vou te encontrar no ponto
de parada dos ônibus rodoviários.
— Tudo bem.
— E não se esqueça de falar com Vlad antes de vir.
— E a sua mãe? E Harry? Eles vão ficar desconfiados se ligar e eu não
atender.
— Eu me resolvo com eles. Não se preocupe.
— Você está deixando seu celular ligado agora?
Ele foi tão esperto que, assim que chegou à casa de praia, desligou o
celular e comprou outra linha para fazer ligações para mim e Vlad, ou liga do
telefone fixo. O fato era que ele queria fugir da realidade dele realmente. Pelo
menos dessa vez foi para o bem e eu acho (só acho mesmo) que está dando
certo. Ele vai fotografar e parece mais leve. Mais inteiro.
— O meu número de sempre voltou a estar ligado, mas não me atrevi a
ligar para minha mãe ainda e nem ela para mim. O que você fez, hein? —
Sua voz é sarcasmo e alegria pura.
— Nada, só o que você pediu. Disse que você estava indisposto e não
queria falar com ninguém. Sua mãe quase veio aqui, mas menti dizendo que
você estava trancado no quarto há dias e só saía de madrugada para comer.
— Assim parece que você seguia meus passos antes ou que me conhece
há anos. Conhece tão bem que sabe o que faço.
— Fazia, Adam. Você não é mais assim — afirmo com um sorriso. Ele
não é nada meu, mas me importo.
— Verdade, eu fazia. — Respira fundo. — Agora deixa eu voltar a
dormir e você também.
— Boa noite.
— Boa noite, Belinda.
Com um sorriso idiota e inexplicável, encerro a ligação e levo o celular
para o andar de baixo já que a sede ficou mais forte.
Descendo as escadas, não consigo deixar a sensação estranha de alegria
ir embora. Agora eu consigo enxergar o cara legal e generoso que todos
falam que Adam era. E ele é surpreendente. Gosto do Adam legal.
DOZE

E agora, o tempo está passando


Mas eu ainda não consigo te dizer por quê
Me machuca toda vez que te vejo
Perceber o quanto preciso de você
...
Eu te odeio, eu te amo
Odeio te amar
Não quero, mas não posso
colocar mais ninguém acima de você

I HATE U, I LOVE U | GNASH

— Adam — Belinda murmura meu nome.


Ela estica uma das mãos.
Prendo a respiração quando seus dedos fazem contato com minha pele e
vejo sua respiração ficar cada vez mais ofegante. Seu peito sobe e desce
enquanto ela tenta controlar as lufadas de ar que exala e tocam meu corpo.
Ela dá um passo.
Espalma as mãos no meu peitoral e vejo quando seu corpo inteiro se
arrepia. Consigo ver por baixo da sua blusa colada ao corpo o quanto está
excitada em apenas me tocar.
Dou um passo, minhas mãos apressadas seguram sua cintura e a puxam
para mim, mas mantenho distância. Só quero ficar mais perto para tocar seu
pescoço com a ponta dos meus dedos, que fazem um caminho para o vale dos
seus seios e Belinda fecha os olhos e deixa a boca aberta recebendo meu
toque.
— Ai... meu Deus... — ela sussurra antes de engolir em seco e me olhar
com os olhos brilhando. Estão marejados pela excitação.
— Eu só estou te tocando — minha voz é baixa e dúbia.

Com um rompante acordo sentando-me no meio da cama.


— Porra, o que foi isso? — Penso em voz alta.
Esfrego meus olhos e levanto da cama assim que jogo as cobertas para
longe. No banheiro jogo uma água no rosto e encaro meu reflexo perplexo.
Acabei de ter um sonho erótico com Belinda. Fecho os olhos soltando a
respiração. Bem, não foi erótico, mas além do normal. Além do que eu já
tinha sonhado com ela na outra vez.
E de qualquer forma: Por que eu estou sonhando com ela?
Eu não deveria sonhar com ela de maneira nenhuma, nem se fosse um
pesadelo.
— Merda! — solto em meio a um arfar pesado antes de sair do banheiro,
consequentemente saindo do quarto e indo até a cozinha beber uma água
extremamente gelada, tanto que congela meu cérebro.
Os fragmentos do sonho não saem da minha cabeça e a sensação
estranha do toque dela. Toque que nunca aconteceu. Que nunca almejei. Que
eu não quero que aconteça. Sentimentos são uma merda, até os carnais e
passageiros. Não preciso deles em minha vida, justamente agora que estou
começando a retomar o rumo da minha vida, que já foi tão desperdiçada.
Arfando mais uma vez, volto para o quarto e coloco uma roupa de
correr. E só neste momento reparo que acordei excitado, fato que agora está
menor, porém ainda existente e descaradamente.
Minha nossa! O que aconteceu comigo? Só pode ter sido porque falei
com ela de madrugada ontem e a convidei para vir aqui. Agora percebo a
grande merda que fiz. Amanhã ela chegará e não sei se vou conseguir
esquecer o sonho mais idiota e estranho da minha vida.
Trancando a casa, pego o caminho do horizonte e corro sem ao menos
me aquecer. Preciso esquecer essa loucura toda. Merda, não são nem seis da
manhã e já estou mal-humorado. Se Belinda chegar e me ver assim vai pensar
que não adiantou nada vir para cá. Porra. A culpa é dela.

Com uma dor de cabeça infernal e o humor ainda pior do que antes da
corrida, tentativa falha para esquecer o maldito sonho, cheguei em casa,
peguei o carro e saí para almoçar no restaurante de Martha.
— Boa tarde, Adam.
Aceno como sinal de cumprimento e sento em uma das banquetas do
balcão. Em silêncio pego o cardápio.
— E aí? — Lydia aparece do meu lado empurrando meu ombro.
— Hum.
— Nossa! Parece que alguém acordou do outro lado da cama.
— Como durmo sozinho não me parece ruim acordar do outro lado.
Tanto faz. Acordo do lado que eu quiser.
Lydia solta uma gargalhada e empurra meu ombro com o dela mais uma
vez.
— Você está um chato hoje. O que aconteceu?
— Nada.
Escuto-a resmungar e para demonstrar que está bem irritada comigo
pega da minha mão o cardápio e lê em voz alta seu pedido e o meu, acertando
na escolha. Os anos se passaram, mas ela ainda me conhece muito bem.
— Depois eu que estou chato.
Olho para ela a tempo de vê-la revirar os olhos e resmungar fechando o
cardápio com força o bastante para criar um vento e escovar seus cabelos
para trás.
— Por que está me olhando assim? — indaga me encarando.
— Assim como?
— Com esse sorrisinho úmplice e bobo.
Dou de ombros e viro-me para focar na janelinha da cozinha que sai os
pedidos.
— É que fico impressionado que você não mudou nada esses anos todos
e... — baixo minha cabeça — às vezes fico incomodado com isso.
— Te incomoda eu manter minha essência.
— Não. O que me incomoda é que isso me traz memórias que preferia
não lembrar.
Ela toca no meu ombro e eu me viro.
— Entendo perfeitamente o que está dizendo. Também fico assim perto
de você. — Abre um sorriso sem mostrar os dentes. — Mas... não devemos
viver no passado. Temos que seguir em frente não importa se isso às vezes
doa, Adam.
Cerro a mandíbula e concordo com um aceno em silêncio.
— Olha, Adam, eu sei que nossas histórias com nossos ex são distintas.
Completamente diferentes. Eu apenas me separei, terminei e você... — Ela
faz um minuto de silêncio e continua: — Ela morreu e eu nem gosto de
imaginar como deve ter sido difícil.
— Foi depois.
— Como assim? — pergunta com a testa franzida.
— A dificuldade foi depois. Em ter que lidar com o jeito que ela morreu.
Realmente não queria falar sobre isso. Não queria abrir a porta das
feridas que me levavam àquelas lembranças. A partida dela de um jeito tão
brusco e a culpa que me corroeu durante seis anos. Eu não queria ter
afundado nesse mar de culpa e arrependimento, mas foi inevitável.
Deixando de encarar, conto para Lydia tudo, sem me prolongar. No
entanto, falo dos anos que fiz tudo errado, inclusive todo o desprezo que dei
para a minha família e os meus amigos, que estavam preocupados com a
forma como eu estava levando tudo. Conto tudo o que aconteceu, a verdade e
sem omitir nenhum fato, nenhum dos meus erros e acertos, nem dos acertos e
erros de Selena. E falo até a pior parte desse segredo, dessa dor que matou
um pedaço da minha família, pois não foi apenas a família de Selena que
morreu e deixou de ser feliz e abençoada. Eu não só arruinei a família dela,
arruinei a minha também e a mim. No fundo, sempre soube, a partir do
momento que vi o carro dela destruído, que eu era um homem em ruínas
naquele segundo.
Depois de um tempo que deixo Lydia absorver a história viro meu rosto
para encará-la e a encontro sem expressão, porém em seus olhos há tristeza e
estão um pouco marejados.
— Por que não me disse? Por que não contou que ela tinha morrido, que
foi um acidente?
— Porque eu tive vergonha e, na verdade, meu intuito de vir para cá foi
para fugir desses anos de culpa. Só estou aqui porque ando confuso e talvez
essa confusão é o que está fazendo eu falar disso com você. — Respiro fundo
e deixo de encará-la mais uma vez.
— Você sente falta dela?
— Não é esse o problema. Acho que nunca foi. — Fito o guardanapo
destruído em minhas mãos. — Quero dizer, ela morreu e foi horrível. Óbvio
que eu não queria isso, mas aconteceu. O que estou querendo dizer é que
minha história com Selena morreu um pouco antes dela partir. Eu não tinha
conseguido enxergar isso, mas há algum tempo percebi que a única coisa que
me levou a viver essa perda por mais tempo foi apenas por culpa. Me senti
terrivelmente culpado pelo acidente.
— Você acha que, se você não tivesse entrado no quarto e visto eles dois
e fugido, ambos estariam vivos? Acredita mesmo que foi o maior culpado do
carro capotar e explodir, Adam? Da rua estar fechada justamente naquele
trecho e no caminho deles? — Sua voz soa irritada, instável, mas solta a
respiração e pede com mais calma: — Olha para mim, por favor.
Cerro a mandíbula e encaro seus olhos.
— Eu sei que não deve ter sido fácil, e sim, se você não tivesse visto
nada e continuado a viver na sua ignorância sobre o caso deles,
provavelmente ainda estariam vivos e acredito que em algum tempo você e
ela romperiam e cada um seguiria seus caminhos. Mas, Adam — coloca a
mão sobre as minhas, detendo-me de continuar a destruir o guardanapo —,
você não foi culpado. Foi um acidente e poderia ter sido diferente. Eles
poderiam ter te alcançado e conversado com você e novamente você e Selena
terminariam e cada um seguiria seu destino. — Dá de ombros. — Só que
acredito de verdade que nada nessa vida é por acaso. Não existe coincidência
ou sem querer. Embora isso, em algumas situações, seja terrível de dizer, é a
verdade, basta nós olharmos atentamente. Os caminhos, sejam eles com
términos ruins ou bons, deixa sua pegada. Deixa sua marca, deixa a culpa
para aquilo acontecer. Eu sinto muito, muito mesmo pelo que você passou —
diz com toda emoção que um ser humano pode sentir —, mas tudo que
aconteceu talvez, ninguém nunca vai saber, tinha que acontecer. Ferindo,
doendo ou não, quem quer que seja.
Percebo como se estivesse fora do meu corpo e do controle das minhas
ações, minha cabeça balança calmamente, concordando com seu pensamento,
pois a verdade é que eu já pensei assim também. Ou, no fundo, eu queria que
não importasse o que eu fizesse terminaria daquele jeito.
— Adam?
— Hum? — Olho para ela porque sua voz pediu isso.
— Estou aqui como sua amiga e sem julgamento. Você sabe, não é?
Entendo seus motivos, todos eles, porque provavelmente eu teria feito o
mesmo. — Ri sem vontade, movendo os ombros sem jeito. — Quase passei
pelo mesmo, embora eu e John apenas terminamos um namoro de anos,
também fiquei por alguns meses entregue à dor e saudades. Me perguntando
onde errei e o que eu poderia ter feito diferente, até me dar conta de que
acabou e eu não tinha que ficar me machucando assim. Fim. Game over!
Vida que segue.
— Fico feliz que você tenha superado rápido.
Ela solta uma gargalhada e toma um gole da sua bebida, que segura com
as duas mãos o copo e fixa os olhos num quadro que fica atrás do balcão.
— Eu queria ter superado antes — admite distante e melancólica. —
Perdi muita coisa. Perdi muito tempo para entender que na vida nem sempre
tudo acontece para o nosso bem. Que, às vezes, precisamos cair, mas cair
feio, para aprendermos a levantar e seguir, de verdade, em frente.
— Eu sei — falo com sarcasmo soltando uma gargalhada.
Lídia ri também e sacudindo a cabeça bate seu copo no meu brindando
seja lá o que for. Talvez ao nosso futuro próximo. À nossa nova chance. Até
mesmo às cicatrizes, que embora ainda machuquem, estão cicatrizando.
Lydia termina sua bebida e não só vira o rosto para mim como o corpo.
Apoia um dos braços no balcão e com seus olhos interrogativos e um sorriso
secreto, indaga:
— Mas agora eu quero saber o real motivo de você querer me contar isso
tudo hoje? — Pisca o olho direito. — O que aconteceu ontem? Ou sei lá?
Não sei o que houve para fazer você querer colocar tudo isso pra fora e talvez
falar coisas que nunca teve coragem de contar a quem esteve com você esse
tempo todo, porque provavelmente ninguém nunca te entendeu. Talvez
porque ninguém nunca se colocou no seu lugar.
— Realmente revelei para você , porque, como você disse, ninguém
nunca conseguiu compreender o fato de eu me culpar. No fundo nem eu, mas
não estou reclamando e dizendo que eles não me apoiaram de toda forma,
só...
— Não conseguiram opinar como se fosse a coisa mais fácil do mundo
pegar a noiva te traindo e depois assisti-la morrer segundos depois de você
gritar com ela. Ela simplesmente partiu sem você ouvir o motivo de ter feito
o que fez. Consigo entender os motivos e provavelmente ficaria do mesmo
jeito ou até pior.
— Se fosse o caso, eu gostaria de estar aqui para você.
— Eu sei disso, Adam. Você é uma das pessoas mais generosas que
conheço e fico triste de ter ficado tão rancoroso e mal por um sentimento de
culpa que estava lhe corroendo de dentro para fora. Foi triste.
— Eu sei e preciso pedir desculpas a eles, mas sinceramente não sei
como fazer isso mais. — Baixo minha cabeça e foco um risco na madeira do
balcão. — Foram seis anos, Lydia, não seis semanas ou meses. — Arfo com
forte, sentindo o peso sobre mim dessa merda toda que causei. — Durante
seis anos, eu fui horrível com meus pais, com a minha irmã, com meu
cunhado. Que é muito mais do que isso. Harry é meu melhor amigo e, se não
fosse ele, provavelmente eu já estaria morto de tanto entrar em brigas. Ele
sempre apareceu e me salvou me tirando das confusões. E também tem Vlad.
Eu sei que várias vezes ele botou água no meu conhaque para ver se eu ficava
menos bêbado. Bem, é isso e eu não tenho como pagar ou me redimir. Acho
que desculpa é muito pouco.
— Então faça diferente. Prove a eles que você mudou. Demonstre para
todos que você magoou o Adam, aquele cara incrível que eu conheci, está aí
dentro. Esse é o conselho que posso lhe dar para conseguir fazer todos
enxergarem que agora você está bem de verdade.
Solto um riso sem muito ânimo recordando de Belinda, e falo em voz
alta isso.
– Quem é Belinda? — Lydia pergunta curiosa.
— É a menina que mora na minha casa.
— O quê? Como assim? Você não me disse nada disso. — Ri com
entusiasmo.
— É uma menina que minha mãe queria ajudar porque ela tem
dificuldade de ficar nos trabalhos e está doente e precisa fazer uns exames.
Então, minha mãe pensou que seria bom ajudar ela me ajudando, e
simplesmente mandou a garota para minha casa para ficar lá.
— E o que ela faz na sua casa?
— Para começar, ela fez uma faxina que me fez perceber depois de anos
que meu carpete na verdade é azul-escuro e não cinza.
Lydia dá gargalhada e um soco de brincadeira no meu ombro.
— É sério — afirmo. — Ela limpou a casa tão bem que fiquei bobo, e só
demorou... acho que uns cinco dias. Não foi nem uma semana. E ela é um
pouco displicente, curiosa e mexeu em coisas que eu não queria que...
— Quê?
— Que nem eu mesmo queria ver mais.
Relembro do momento que vi Belinda no porão mexendo naquele
armário, nas fotos que eu não via há tanto tempo. Eu queria queimar as
imagens de felicidade entre Selena, ele e eu. Cheguei a pensar nisso.
Coloquei tudo numa caixa, levei para dentro da mala do carro e para a
beira de um rio. Procurei qualquer lugar que eu pudesse depois apagar o fogo
e jogar na água para aquelas lembranças irem para o mais longe possível de
mim, porque me magoava tanto. Doía de um jeito que não posso mensurar.
— No entanto, ela simplesmente entrou lá. Curiosa e mexeu em tudo. —
Volto a contar para Lydia. — Eu queria que ela nunca tivesse entrado lá,
porque algo desencadeou tão forte dentro de mim desde aquele dia.
Lydia concorda com a cabeça e desvio minha atenção, pois nem tudo
quero falar para ela. Algumas coisas, eu não conto para ninguém. Fica na
minha mente. Não quero compartilhar.
E posso dizer que vendo aquelas imagens, as lembranças que ressurgiu,
toda a verdade veio à tona. Todo sentimento e tudo que aconteceu desde o
início. Toda minha dedicação, meu amor, momentos felizes. O dia em que eu
a pedi em casamento. E depois veio a desilusão, a traição, o acidente, a morte
e a culpa que carreguei durante todos esses anos. E consequentemente o
tempo que joguei fora e a grosseria como tratei todos. O homem que acabei
me tornando. O homem que tratou Belinda naquele dia.
Aquelas fotos... foi como uma chave que abriu a porta da realidade para
mim. Da vida de merda que eu estava levando. Por mais que eu tenha falado
para ela sair e tudo mais, o bem que ela me fez desde aquele dia está sendo
refletido agora.
Refletindo no fato de hoje estar conseguindo me abrir de verdade com
alguém e pensar em coisas boas. E talvez pela forte influência que ela teve na
minha vida nesses dias, nesses poucos dias, esteja causando os sonhos
malucos com ela.
Santo Inferno! Posso admitir pelo menos para mim mesmo que sinto sua
falta. Falta dela se intrometendo e falando as coisas na minha cara me
machucando. Porque é isso que ela fez. O que ela faz sem pedir desculpas.
Joga na minha cara a realidade e não tem, mesmo, como eu ficar com raiva
dela. Não tem como eu não ser agradecido.
— Por acaso você está sentindo alguma coisa?
Giro meu corpo para ficar cara a cara com Lydia e franzo a testa,
perguntando silenciosamente o que ela quis dizer.
— Estou querendo saber — fala com a voz baixa e um sorrisinho — se
você está sentindo algo por ela. Algo carnal.
— Não sei.
Suas sobrancelhas se erguem juntamente com seu sorriso morrendo.
— “Eu não sei”, não quer dizer não, Adam.
— E é isso mesmo que eu quero dizer — afirmo cerrando o maxilar.
— Então talvez você esteja... gostando dela?
— Não sei. Acho que não é esse o caso. — Dou de ombros e balanço a
cabeça porque estou confuso. — Atraído é o mais correto.
— Olha, se não quiser falar comigo sobre isso, tudo bem. Acho que por
hoje você já se abriu demais. — Ri baixo, sendo amigável.
Fecho os olhos e respiro fundo querendo apenas dormir. Essa situação,
os sonhos, me deixam perturbados.
Para interromper meus pensamentos e esse assunto que não quero ter
com ninguém, a comida chega.
Não quero pensar sobre isso. O caso é que eu não quero me envolver
com ninguém. Não estou no clima. Meu foco é ficar bom. Voltar a ser quem
eu era. Um cara que tinha tudo sob controle e uma carreira em progresso.
Relacionamento, seja ele da forma que for, até casual, não vai ser bem-vindo
agora.
Enquanto estou no meu carro, a caminho da cidade, os pensamentos
turbulentos só pioram. Pensei que falar dos problemas aliviasse, mas acho
que é o contrário.
Essa noite tudo foi ainda pior. Eu sonhei de novo com Belinda e dessa
vez até um pouco pior porque, além de nós transarmos no sonho, foi
absolutamente real todas as coisas. Que não deveria. Inclusive as sensações,
os sentimentos. Tudo uma grande merda.
Meu celular toca avisando uma mensagem. É ela novamente dizendo que
está esperando onde o ônibus a deixou. Bem perto de onde estou.
Ergo a sobrancelha, exasperado e sendo corroído por algum sentimento
inominável. Me preparando para vê-la e conseguir controlar a situação.
Ligo a seta para a direita, sigo passando por três ruas e, quando vejo um
ônibus, reduzo. Como se meus olhos fossem mariposas hipnotizadas pela luz,
vejo Belinda com uma mochila enorme pendurada por uma única alça no
ombro direito. Ela parece um pouco desengonçada e sem jeito. Mexe os pés
inquieta e olha para os lados, provavelmente me procurando.
Eu deveria logo buzinar para chamar sua atenção e ela vir para o carro,
mas em vez disso levo um tempo observando-a. E nem sei porque faço isso,
talvez eu esteja procurando em algo uma resposta.
Que babaquice a minha.
Decidido, finalmente dou uma buzinada, chamando sua atenção. Belinda
ajeita sua mochila, que provavelmente está muito pesada, e caminha, se
aproximando. Rapidamente saio do carro para ajudá-la. Babaca sempre, rude
nunca.
Ficamos nos olhando sem dizer nada. Um esperando o outro tomar a
iniciativa. O primeiro passo.
— Oi, Adam — cumprimenta-me um pouco acanhada como na primeira
vez que me viu.
Ergo as sobrancelhas e devolvo o cumprimento me aproximando mais
para pegar sua mochila, que confirmo o peso exagerado, e levo para o porta-
malas.
TREZE

Todas sabem sobre a minha direção


E dentro de alguma parte do meu coração,
quero ir para lá
Mas ainda sim,
não vou
Todos dizem?
Fale alguma coisa?

SAY SOMETHING | JUSTIN TIMBERLAKE

— Oi — ele solta, seco e parecendo que é um grande esforço.


Engulo em seco e fico igual uma estátua assistindo-o pegar minha
mochila, sem eu perceber, e levar para o porta-malas.
Minha reação não tem nada a ver com o fato de não o ver por um mês, e
internamente sentir falta da sua falta de educação e grosseria de vez em
quando, o fato é que ele está de barba de novo. Os cabelos estão maiores
também e mesmo que eu não tenha reparado muito antes, acho que está mais
forte e bronzeado com certeza. Posso dizer (claro que só mentalmente) que
Adam está muito mais bonito e pelo menos, dessa vez, isso me impacta. Da
vez que o vi na porta da sua casa, o que me impactou foram seus olhos tristes
e distantes. E hoje esses mesmos olhos estão brilhantes e diferente, ainda
distantes, porém mais abertos. Esses me dão acesso de entrar, conhecer e até
ler o que querem transparecer.
— Obrigada — murmuro dando de ombros, após um longo minuto.
Fechando o porta-malas, em silêncio ele dá a volta no carro. O
acompanho e entramos juntos, as portas batendo em sincronia.
O constrangimento abraça o interior do carro, enquanto do lado de fora
as pessoas andam distraídas fazendo compras, passeando ou apenas passando.
Hampton é lindo e é impossível não lembrar de “As branquelas” e da minha
série favorita, “Revenge”.
— Você comeu alguma coisa? — Adam pergunta assim que pega uma
avenida, que tem como visão a costa da praia.
— Eu só tomei café e já tem um tempinho — respondo distraída.
— Certo. — Ele assente distraído olhando para frente, focado no
trânsito. — Vamos almoçar e depois levar suas coisas pra casa e você se
acomoda. Vai dar tempo.
Vai dar tempo de quê?
— Hum... tudo bem — concordo para não discordar. Não sei como está
o humor dele hoje. E não tenho mais o que falar, então puxo um assunto
aleatório: — Esse lugar é tão chique. As pessoas se vestem bem. Eu ia
comprar uma água, mas desisti.
— Por quê?
Reviro os olhos antes de responder:
— Achei caro demais, então decidi beber água quando chegasse na sua
casa. Eu não estou com muita sede ou sendo mão de vaca. É só porque não
estou acostumada com valores altos desse jeito.
Adam assente pensativo e, por fim, dá uma gargalhada e balança a
cabeça.
— Aqui não é tão caro assim — diz dando uma olhada rápida para mim.
— Tudo bem que é uma área turística basicamente, no entanto tem coisas não
tão caras. Mas o maior problema daqui é que se tornou uma área turística até
para os moradores por culpa dos filmes e séries. É ruim até pra gente que tem
um pouco mais de...
— Dinheiro? — completo rápido, antes de concluir o raciocínio.
— Pode ser, mas eu diria pessoas mais afortunadas. Alguns aqui vem de
grandes heranças. São os ricos de berço, o que torna a economia daqui alta.
Embora esses vêm de vez em quando, tudo por aqui é direcionado para eles,
nem sempre para a população local.
— Acho que posso concordar com você. Pois uma garrafa de duzentos
ml de água mineral custar cinco dólares, porque tem um nome estranho, é um
absurdo, Adam!
— Sim e eu não estou dizendo que você está errada — concorda
enquanto pega o caminho do cais e se aproxima do que parece ser um
comércio. Ao longe vejo o letreiro “Restaurante Novo Mar”. — Enfim,
mesmo aqui sendo diferente do que você está habituada, tenho certeza de que
vai gostar. Vale a pena conhecer Hampton.
— Eu aposto que sim — murmuro encarando seu perfil.
Nossa parada é o restaurante que vi de longe o nome. Adam estaciona
bem em frente, e sai do carro sem dizer uma palavra, como o fato dele ter
parado quer dizer: “Me acompanhe”. E é isso que faço. Estou meio que
fazendo papel de boba hoje.
Entrando no “Restaurante Novo Mar”, noto que além de chique é
também um bar muito bonito. Me lembra muito o seriado que assistia na casa
da minha tia. Por graça divina, ela assinava a TV a cabo.
O restaurante fica no porto, é de madeira com janelas grandes e vidros
amarelados. O chão é envernizado, e as cadeiras e mesas acompanham a cor
de mogno claro com vasos pequenos com flores brancas de verdade. O dono
não poupa dinheiro. São muitas mesas e fico pensando o quanto ele gasta
para repor todas essas flores todos os dias. Uau! É muita ostentação.
Sem controlar solto uma risadinha fazendo um Adam curioso me olhar
com a testa franzida.
— Qual o problema?
— Nada, é que eu lembrei do filme “As Branquelas” e também do
seriado que minha tia adora assistir que passava em Hampton. Era um que
tinha uma loira querendo vingança contra uma família rica.
— Ah, você está falando de Revenge.
— Esse mesmo.
— Hum... Eu sei. Todo mundo fala isso e depois desse filme, aqui meio
que virou um “personagem”. Ficou muito mais caro e com muito mais gente.
— Para os comerciantes daqui deve ter sido muito bom, com certeza.
— Foi sim — afirma parando quando nos aproximamos do balcão.
Adam se senta primeiro e, enquanto fico ao seu lado, ele acena para uma
mulher de cabelos ruivos, óculos de grau com a armação nada chamativa, um
verde neon, e um sorriso branco.
— Veio cedo hoje — comenta e foca em mim com seus olhos castanho-
claros por trás das lentes. — Prazer, sou Mona.
— Mona?
— Sim, esse é meu nome. — Dá uma gargalhada. — Eu sei que é
diferente, mas é real.
Dou de ombros sorrindo e baixo os olhos deixando claro que quero
acabar com esse assunto.
— Okay, Mona. Agora traz duas águas geladas e o cardápio.
Olho de canto de olho para Adam, agradecida por ele ter me salvado. Eu
nem sei por que o nome dela virou assunto. E fico feliz quando se afasta.
— Não liga pra ela. Mona é estranha.
Dou de ombros e aperto os lábios num sorriso sem jeito, e viro o rosto
para frente e decido que o silêncio é a melhor saída.
Assim, comemos sem falar mais nada durante os trinta minutos que
ficamos no restaurante, e depois entramos no carro e pegamos o caminho de
casa, ainda no silêncio. Eu não sei se era para achar normal ou não como
estamos interagindo. Resolvo não pensar sobre e esperar chegar na casa.
Adam ainda, continua, sendo um enigma para mim.

Solto um suspiro colocando minha mala sobre a cama do quarto que


deve ser de Ava. As roupas de cama são claras, assim como a cortina que vai
até o chão, e o que entrega que este quarto era de uma menina são as pinturas
de bonecas de pano em molduras rosas e o abajur, também rosa, com uma
boneca de louça ao lado. Me lembra a boneca do filme Toy Story. É bem
bonito.
— Está tudo bem? — A voz rouca de Adam me dá um susto e me viro
para encarar seu rosto sério. — Algum problema com o quarto? Era da Ava
quando vinha aqui.
— Ela não vem mais? — E minha língua descontrolada ataca mais uma
vez. Como sempre.
Ele fica pensativo e congelado, talvez procurando palavras para
responder algo tão comum. O que tem de mais esse lugar. Ou essa casa?
Hum... acho que Selena ainda é uma forte influência sobre Hampton.
— Não ultimamente — responde firme e seco.
Dou um sorriso de desculpa, mesmo que eu não precise pedir. Não fiz
nada de errado e me viro, abro minha mala e tiro com cuidado a muda de
roupa que trouxe e ponho sobre a cama.
— Nós vamos sair hoje.
Suspiro e paro meus movimentos. Estava crente que ele tinha ido
embora. E por isso me viro para ele, novamente.
— E em qual tipo de lugar vamos?
— Uma festa. Numa casa. — Seus olhos me observam lentamente de um
jeito bem desconcertante enquanto fala. — Não precisa se arrumar muito,
mas também não vá de qualquer jeito.
— Uhum — minha concordância sai num tom irônico e debochado, que
não surge efeito algum porque ele vira as costas e sai. — Mas Santo Inferno!
O que mordeu esse homem agora? — resmungo e fecho a porta do quarto. Na
verdade, eu tranco-a e tiro minha roupa indo para o banheiro. Um banho
quente e relaxante é tudo o que preciso.

Quando são sete da noite, fecho meu estojo de maquiagem e solto meus
cabelos, em frente ao espelho do banheiro. Tinha os prendido com vários
prendedores para fazer cachos improvisados. Percebi que as pessoas aqui são
chiques e algumas poderosas. Adam não disse para onde vamos, em que casa
é a festa, e mesmo assim não importa. Qualquer uma que seja deve ser
razoavelmente chique e não posso ir menos do que apresentável ou bem o
suficiente para me misturar. Por isso coloquei um vestido preto que deixam
meus joelhos de fora — moderno, sofisticado e comportado — e minhas
sandálias brancas com strass na parte da frente nas três fitas.
Encarando-me no espelho agradeço mentalmente ao Vlad. O cara deve
ser vidente. Ele que me recomendou trazer umas roupas mais sofisticadas e
chiques para cá. Nada de colocar apenas shorts, biquínis e camisas de
algodão e manga curta na mala. Ainda bem, que sorte a minha. Ele precisa de
uma bela gorjeta quando eu for ao bar assim que chegar em Nova York.
Antes de voltar para o quarto, penduro minha toalha e retoco o batom
vermelho. Não gosto de usá-lo, mas é o único que sobrou. Preciso comprar
maquiagem. Detesto usar o que tem para não deixar de estar com algo e
batom vermelho é só para quem se sente confortável em usar. No meu caso,
eu detesto.
Pegando um casaco bege de lã que era da minha tia. Ela pagou uma
grana preta quando comprou numa loja de departamento em Manhattan. Nada
naquela ilha é barato. A sorte é que moro (no caso Adam) no Brooklyn, que é
mais econômica na parte de Nova York, senão estava falida.
Saio do quarto e caminho pela casa silenciosa e escura. Há apenas alguns
focos de luzes que vem da sala. Indo para a cozinha, encontro a porta fechada
e a persiana baixada. Decido sair pela saída da sala dos fundos e é nela que
encontro Adam.
Ele está parado na varanda, os cotovelos apoiados no corrimão de
madeira que é a mesma do deque. A casa é linda e do lado de fora toda de
madeira escura. E se adequa tanto a Adam que acho que ele deveria morar
aqui.
— Oi — digo calmamente para não assustá-lo e fico ao seu lado,
colocando minhas mãos no corrimão, bem perto do seu cotovelo direito.
— Adoro essa vista. — Sua voz está distante enquanto admira o mar ao
longe.
Está uma noite sem estrelas e uma lua gigantesca, ou parece ser enorme
por conta da falta de prédios e poluição visual que uma cidade grande traz.
— Me acalma — completa ele e vira o rosto para mim. E tão logo seus
olhos se arregalam, fica de pé, aprumando a postura e vejo-o engolir em seco
franzindo a testa.
— Algum problema? — pergunto com a voz baixa.
— Não! — Balança a cabeça negando e pisca rápido. — Vamos. Não
quero chegar atrasado.
Agora eu pisco rapidamente e observo suas costas, pois está se afastando
de mim como se eu fosse fogo e ele uma garrafa de álcool. Daria uma bela
explosão e eu tenho certeza de que ele não gosta de incêndio.
Aff... Que piada fora de hora, Belinda!
Ah, juro que estou tentando não entrar em pânico ou me irritar com
Adam. Mas fica difícil com essas atitudes. Na próxima não vou conseguir me
controlar. Argh! Esse homem me tira do sério.
Fechando pelo menos a porta da casa, o sigo pela praia e não demora
muito para que eu veja uma tenda branca enorme sobre a areia um pouco
próxima à água em frente a uma casa linda e toda iluminada por vários
pontos de luzes pequenas.
Chegando finalmente à festa, observo a decoração das mesas. Flores
simples com ervas e velas compridas com aroma de lavanda. Tudo elegante e
aconchegante. Ainda bem que eu coloquei esse vestido e uma maquiagem
iluminada.
Há uma musiquinha calma tocando, pessoas rindo, bebendo em taças de
cristal e conversando sobre algo que não pertence ao meu mundo, porém
todos dão breves olhadas na minha direção e sorriem. Socialite educada é
outro nível.
Desviando minha atenção dos convidados, apresso meus passos para
ficar perto de Adam e não ser uma pateta no meio desses estranhos.
Ele entra na casa depois de me dar uma olhada e subir as escadas de
vidro e vai em direção a uma mulher loira vestida de branco com um sorriso
encantador e hipnotizante. Eles se abraçam e trocam um beijo singelo no
rosto.
— Essa daqui é a Belinda — Adam me apresenta quando se afasta da
mulher.
— Ah! É um grande prazer conhecê-la — ela diz ao me abraçar rápido e
sorri completando: — Adam me falou um pouco sobre você. Eu sou a Lydia.
Faço um pequeno aceno com a cabeça. A voz dela é doce e simpática.
Lydia parece ser bem legal pessoalmente. Não sei por que fiquei com raiva
quando Adam me contou sobre estar passando um tempo com uma amiga
antiga. Fui muito imatura.
— É um grande prazer conhecê-la também, Lydia. E Adam também me
falou de você.
Dando uma risada, ela enlaça meu braço e me guia pela casa.
— Hum... fiquei curiosa em saber o que ele falou de mim. — Olha pra
trás e dá uma piscadela para Adam e logo me encara. — Pronto! Agora vou
poder contar tudo que você quiser saber sobre Adam.
Escuto-o resmungar atrás de mim antes de pegar o caminho oposto.
— Deixa ele pra lá — Lydia fala com humor. — Fique comigo. Quero te
oferecer uma bebida e te apresentar alguns amigos. Você já tinha vindo aqui
em Hampton?
Realmente tento prestar atenção nela e nos seus amigos. Fico sabendo
que Lydia passou a morar em Hampton há dois anos depois de terminar seu
namoro de anos, e também que é designer e sua família toda veio morar aqui
e sua mãe é médica, clínica geral do hospital da cidade. Não sei por que ela
quis com tanta vontade me passar essa informação, mas acho que Adam
andou contando para ela minhas dores. Se for o caso, eu estou com muita
vontade de abraçá-lo neste momento.
Os minutos passam sem eu perceber enquanto estou na companhia de
Lydia, e é quando ela é roubada de mim, por um homem lindo e ruivo de
olhos verde-claros, que tenho minha chance de escapar e ir atrás de Adam. O
encontro nos fundos da casa, sozinho como sempre. Franzo a testa deixando
minha taça vazia no patamar antes de descer as escadas de madeira que dão
para a praia, coisa que os convidados não estão muito animados para
apreciar.
O tempo está úmido e enevoado. Não se tem mais uma visão limpa do
mar como estava mais cedo. Acho que deve chover amanhã ou uma frente
fria está por vir.
Compartilho desse pensamento em voz alta sentando ao lado de Adam.
— Talvez — murmura ele sem se virar para mim.
Eu realmente poderia ficar calada e deixá-lo com seu mau humor em
paz, mas eu realmente não consigo. Não consigo não fazer nada. Queria tanto
que ele sorrisse um pouco, ficasse feliz. Achei que a viagem fosse lhe fazer
bem. Um mês aqui e ele continuou de mau humor ou, pelo menos, parece que
está num dia ruim hoje.
— Está tudo bem? — pergunto. — Porque parece que você não está bem
ou sei lá, Adam. Você parecia feliz ao telefone dois dias atrás. O que houve?
— Não aconteceu nada. Só estou com dor de cabeça.
— Então por que veio se você está se sentindo mal? Tinha que ter ficado
em casa.
Ele me dá um olhar intenso e diz:
— Eu não queria que você ficasse em casa trancafiada. As minhas
escolhas e vida é uma coisa, a sua não me diz respeito. Eu não quero que
fique presa porque eu quero ficar — explica em um único fôlego. — E queria
que você conhecesse a Lydia.
— Aham... entendi, mas eu poderia conhecê-la amanhã cedo. Vocês são
vizinhos e tenho certeza de que ela apareceria por lá quando você dissesse
que eu cheguei. — E eu nem sou tão extraordinária assim. Não compreendo a
importância que ele dá a isso. — Enfim, eu só acho que você poderia não vir
à festa, principalmente por um motivo tão bobo. Não precisava vir só por
minha causa.
— Não é só por causa de você.
Franzo a testa. Sério. Ele faz meu cérebro dar um nó. Santo Inferno!
Preciso ter muita paciência com Adam.
— Eu precisava distrair minha cabeça.
E eu o observo levantar e começar a caminhar pela praia. Vou atrás, e
paramos na tenda que não tem ninguém e sento em uma das espreguiçadeiras,
ao lado de Adam. Ele me dá uma olhada como se tentasse entender por que
estou ao seu lado. Como se eu o estivesse perseguindo e fosse uma estranha.
Às vezes, ainda me sinto uma estranha para ele. Não mudou.
— Achei que a viagem fosse fazer bem a você de verdade — digo
focando em minhas unhas porque não quero encará-lo depois de ficar irritada
com o silêncio entre nós.
— E a viagem me fez bem. Tenho pensado muito sobre... — Faz uma
pausa e cruza os braços sobre o peito. — Eu só estou com dor de cabeça hoje.
— Então vamos pra casa. Você toma um remédio e relaxa. A gente
pode... — Pauso pensando numa ideia que ele concorde.
No fundo, não sei mais o que sai da minha boca. Eu só quero que ele
fique feliz. Que fique bem. Vlad me falou tantas coisas sobre como ele era
que criei expectativas de que, quando o visse aqui em Hampton, que essa
viagem fosse trazer o Adam de seis anos atrás de volta. E eu chego aqui e o
encontro calado e pensativo, porém mais calmo. Não posso mentir e dizer
que ele está igualzinho como deixou Nova York. Não posso ser leviana a isto.
Ele parece mudado, só um pouco calado demais. Pensativo e concentrado em
tudo, menos que eu estou aqui com ele, ou qualquer um.
— Podemos? — Ele está de frente para mim com os olhos fixos em meu
rosto de um jeito embaraçado.
Minhas bochechas ficam quentes e preciso engolir em seco.
— Eu não sei. Não sei o você gostaria de fazer nessas circunstâncias.
— Que circunstâncias? — Ele franze a testa e ainda por cima cerra os
olhos.
Caramba, não tinha percebido como ele é atraente fazendo essa careta.
Ele é bonito, mas assim... fica sexy.
Pisco os olhos com força e forço um sorriso.
— Da sua dor de cabeça — explico antes que fique muita estranha essa
conversa, se já não está. — O que você gostaria de fazer depois que... tomar o
remédio?
— Claro — murmura se divertindo com um aceno de cabeça como se
soubesse de algo que eu não sei.
Doido.
— Você está com essa cara fechada por culpa dessa dor de cabeça? Será
que isso é impossível?
— Eu estou com a cara fechada?
— Eu tenho certeza, afinal de contas estou olhando para ela neste exato
momento, Adam.
— E você fica enjoada de olhar para mim assim? Zangado.
— Enjoada?
— De saco cheio?
— Não necessariamente.
Isso desencadeia uma risada entre nós, que para ele acaba muito rápido,
e eu aproveito para dizer:
— Na verdade, eu não ligo. É até estranho quando você sorri, mas eu
gosto quando acontece. E... não importa. Você não me assusta mais e até de
cara fechada fica bonito.
Merda mil vezes! Eu poderia não ter comentado isso.
Ele morde os lábios como se tivesse perdido as palavras e, por fim,
apenas sorri.
— Desculpe, Adam. Foi mal. Não deveria ter falado isso.
— Por quê? — indaga rápido demais. — Eu não me incomodei e
também acho você muito bonita. Isso não é errado. — Dá de ombros e se
levanta da espreguiçadeira. — Nós somos solteiros. Não tem nada de errado
em elogiar um ao outro.
E até nos beijamos. Um beijo que não consigo esquecer por nenhum
motivo aparente.
— Eu sei que não. É que...
— É que você não é de falar este tipo de coisa para um homem —
completa por mim. — Nunca imaginei você falando uma frase assim para
mim ou para nenhum homem. É acanhada demais. — Meneia a cabeça como
se lembrasse de algo e conclui: — Eu pensava que era só comigo.
— O que você quer dizer?
— Eu pensava que você ficava acanhada só perto de mim, porque eu
tenho essa cara de mau e só vivo de mau humor. Mas vi você hoje e percebi
que não. Você é sempre assim. E já tinha percebido na festa de Natal como
interage com todo mundo, principalmente perto dos homens. Isso me intriga.
— Cerra os olhos.
Levanto para estar no mesmo nível que ele, quer dizer, mais ou menos.
Adam é uns vinte centímetros mais alto que eu, até de salto, que não conta,
pois estamos sobre a areia.
— Por que você é assim? Já aconteceu alguma coisa?
— Em que sentido?
— Naquela vez que a gente conversou no Natal, você falou sobre o seu
padrasto de uma forma muito negativa e deu graças a Deus por não estar mais
na mesma casa que ele. E que a sua mãe sempre foi a favor dele. Eu sinto
como você sempre se retrai perto dos homens. — Aperto os lábios, dando de
ombros. — Desculpa se eu estou sendo um idiota, mas por acaso ele fez algo
ruim com você? Ele abusou de você?
— Não! — afirmo rápido. — Nunca aconteceu algo assim e minha mãe
nunca permitiria.
— Então o que aconteceu?
— Nada. Não aconteceu nada.
Seus olhos deixam claro que não acreditou em mim, e se aproximando,
enfia as mãos dentro dos bolsos da sua calça jeans escura e ergue os ombros.
— Eu sei que aconteceu alguma coisa e já fui honesto com você tantas
vezes que esperava que você fosse comigo.
— Mas estou sendo honesta. Não tem nada para contar. Eu juro. —
Minha voz sai baixa demais, incerta.
— Então quer dizer que só não se dá bem com ele? E que é
extremamente envergonhada?
— Eu não sei. Talvez seja isso. — Desvio meu olhar para o mar e imito
sua postura de antes, cruzando os braços. — Eu nem percebo que faço isso.
Que sou assim. Sei lá.
— Certo, talvez você seja assim mesmo, fico mais aliviado.
— Por quê? — Viro-me para ele.
— Por vários motivos — responde vago como sempre. — Porque você
não ter sido abusada ou molestada pelo seu padrasto tira um peso enorme da
minha cabeça. Nenhuma criança ou enteado tem que passar por isso.
Nenhuma sobrinha, irmã. Nenhuma mulher.
— Concordo com você. — Engulo em seco por reflexo. — Deve ser
terrível.
— É terrível só de imaginar — fala e com um aceno de cabeça, vira-se e
segue em frente, indo para casa.
Nas escadas, ficamos parados diante dos degraus. Fico o observando se
aproximar e se sentar nos primeiros degraus, olhar para mim com um sorriso
convidativo.
— Vem! Vamos admirar o mar.
— Sério?
— Uhum.
Dou de ombros e me sento do seu lado.
Ficamos um bom tempo apenas vendo as ondas se formando e
quebrando na areia, num silêncio sereno. Mas eu tinha que bocejar.
— Acho que está na hora de entrar e deitar — ele diz olhando para mim.
Assinto automático. Estamos muito perto. Nossos ombros estão colados,
nossos rostos tão próximos que vejo com total nitidez todos os detalhes do
seu rosto, vejo os leves pelos disformes da sua sobrancelha e da barba onde a
gilete passa com menos frequência e os pelos crescem mais lentos. E meus
olhos encontram os dele, que estão vidrados.
— Oi — sussurro sorrindo pra ele.
— Eu não deveria.
— O quê?
— Me sentir atraído por você.
— Não?
Caramba! De onde vem essa coragem às vezes.
— Estou lutando para que isso pare. Eu não queria isso, talvez nunca
mais.
— Ficar com alguém? — pergunto dúbia e de voz baixa. Muito covarde,
embora confiante para dar um passo e sentir seu fôlego mais perto. Perto o
suficiente para ele segurar meu rosto.
— Não sei se é certo, Belinda. Não sei se é o que eu preciso. Que eu
posso aguentar.
Dou de ombros com insegurança, porque eu também não sei. Apenas sei que
a vida é um jogo de riscos. De erros e acertos. E por isso, e por tudo que está
acontecendo dentro de mim (desde que o vi esperando por mim hoje), que
faço meu corpo ficar mais perto e de frente para o dele e tomo a iniciativa. Na
vida, a gente nunca sabe quando vamos ter uma nova chance para sentir
certas emoções, e o que ele me faz sentir é algo que eu preciso arriscar para
não me arrepender e perguntar “e se eu...”.
QUARTOZE

Você só quer ficar comigo pela manhã


Você só me abraça quando durmo
Eu fui feito pra caminhar sobre a água
Mas agora fui fundo demais
Para cada pedaço meu que te quer
Há um outro pedaço que se afasta
...
Porque você me causa algo
Que me assusta
Isso poderia ser nada
Mas estou disposto a tentar
Por favor, me dê um sinal
Porque, algum dia, poderei conhecer meu coração
...
Mas poderia ser um segundo tarde demais
E as palavras que eu nunca falaria
Vão sair de qualquer jeito

YOU GIVE ME SOMETHING | JAMES MORRISON

Sinto a hesitação nos seus lábios que tocam os meus inseguros. Nós
estamos sentindo o mesmo, no entanto, acredito que o que me impede de me
entregar totalmente, é o que me impediu a vida toda de prosseguir minha
vida. Culpa misturada de medo.
Mas, agora, eu a quero, de verdade, a quero muito. Não consigo mais
esconder e parar de pensar em Belinda.
O resquício daquele beijo, que cheguei a levá-la para a minha cama,
ainda está na minha mente. Foi uma merda ter jogado por água abaixo
quando abri minha boca. Só que agora, dessa vez, não há nada no mundo que
me faça parar.
Tomo as rédeas da situação e pego seu rosto, reivindicando sua boca
para mim sem mais hesitação. Fecho os olhos e me concentro nela.
Droga. Eu sei que minhas palavras foram duras demais, mas não posso
mentir e prometer para ela nada. É real meu medo da vida e confiar
novamente em sentimentos, relacionamentos, sejam eles quaisquer.
Já fui estilhaçado, quebrado, traído e arruinado. Nenhum ser humano que
passou pelo que passei pensa em querer ter de volta todas as sensações de
uma amizade ou paixão iminente, de nenhum relacionamento seja ele qual
for. É por isso que nunca arranjei nenhum amigo novo nesses seis anos.
Henry veio por circunstâncias porque talvez ele também precisasse de um
amigo. Minhas amizades pararam no mesmo momento que a minha vida.
Parou quando desisti de tudo. É como se eu tivesse parado o relógio, então
Belinda apareceu e não posso mentir em dizer que ela não me conquistou.
Eu disse para Lydia que vir para Hampton me fez ver as coisas com
clareza e pensar na minha vida, mas eu já estava fazendo isso desde o
momento que Belinda apareceu na minha porta.
Ela me transformou completamente e por isso que estou aqui a beijando
e querendo mais, porque é um fato que preciso de mais. Que ela de alguma
forma me faz ficar melhor. Não posso negar.
Sua inocência, até mesmo seus conselhos sem freio e limite, sua boca
grande e a curiosidade em mexer em tudo, me faz querer mais. Mesmo que
seja um risco, estou apostando todas as minhas fichas nas sensações que ela
me faz sentir. Mesmo as ruins porque é como curar um machucado. De vez
em quando arde curar uma ferida.
Querer eu não quero mesmo um relacionamento, porém talvez nós
possamos dar certo. Talvez possamos aproveitar essa química que é inegável
para, enfim, acabar com essa atração que sentimos alguma hora. E essa
atração não faz pouco tempo. Tentei negar o máximo, agora não dá mais.
Santa merda! Não pensei que trazer ela para cá fosse causar o que
estamos fazendo agora. Não imaginei que a noite de hoje terminasse assim.
Contudo, não tenho como frear.
Minhas mãos correm por seus braços, acariciando sua pele enquanto
meu objetivo é guiar seu rosto para mim. Eu a quero mais perto.
Beijá-la é bom de muitas formas. Ela é doce e carinhosa, sensível e
disposta. E eu sou um homem que não tenho praticado sexo há seis anos. Me
sinto um pouco enferrujado. É meu corpo que está me guiando. O calor, a
ansiedade, o arrepio da minha pele e o desejo.
Levanto dos degraus da escada e tomo Belinda em meus braços. Enrosco
uma das minhas mãos em seus cabelos a beijando profundamente, com
fervor, e a outra, deslizo por suas costas até apalpar sua bunda.
Ela é pequena em meus braços. Quente e macia. Ela cabe perfeitamente
e aprecio isso. Suas mãos apertam os músculos dos meus bíceps sem mais
embaraço.
Meu corpo deseja mais. Gosto de sentir suas mãos em mim. Gosto do
seu cheiro. De escutar seus sons suaves. Ela é realmente doce e posso admitir
pelo menos para mim que preciso disso.
Acaricio-a, os braços, as costas, seus quadris. Belinda levanta mais o
rosto, empurra o corpo para mim e, por fim, envolve meu pescoço.
— Adam, eu... — ela sussurra meu nome quando brevemente nossos
lábios se afastam.
— Shhh... não diga nada.
Eu quero que fiquemos em silêncio. Quero que apenas nossos corpos
“falem” por nós.
E voltamos a enlouquecer nesse beijo, que ganha mais sentido, mais
intensidade e sem perceber estamos subindo as escadas. Entramos em casa,
não esqueço de fechar a porta.
Minhas mãos passam por suas curvas até a bainha do seu vestido, que
subo para fazê-la envolver as pernas em mim e sinto sua pele pela primeira
vez. A sensação é gigantesca de boa.
Não estava pronto para ficar contente com isso, com ela, e nunca vou
estar e sei o porquê. Eu tentei por muito tempo esperar essa dor passar.
Perdoar tudo o que aconteceu, me perdoar, mas nunca aconteceu. Nunca veio
o perdão. Nunca veio o alívio. Contudo, para dizer a verdade, só ela me faz
sentir mais calmo. Me faz dizer que “está okay”, “estando okay”. E tem
muito tempo que eu não faço isso. Me sinto “okay”. Me sinto em paz sem o
peso sobre minhas costas.
Nós continuamos a não dizer uma única palavra por enquanto, mas nos
afastamos, nos olhamos parados sem fôlego no meio da sala e quando vejo a
sombra de um sorriso em seu rosto, frenético, eu guio minha mão para trás da
sua cabeça e volto a beijá-la arduamente.
Suas mãos vagueiam por meus braços e ombros. Soltamos leves gemidos
arfantes. Estamos entregues, fixados o suficiente para subirmos para o quarto
sem prestar atenção direito no caminho.
E é neste momento que nos afastamos mais uma vez. No meio do meu
quarto, sem fôlego e cientes do que vai acontecer. Do que queremos.
Belinda abre a boca, porém fraquejando nas palavras apenas caminha
para mim e me agarra. Merda. Ela não se detém. Suas mãos tremendo
começam a abrir os botões da minha camisa e as minhas seguram sua cintura
aproximando-a de mim.
— O que é isso?
Abro os olhos, afasto meu rosto do seu ombro, enquanto salpico beijos
em sua pele, e encaro seus olhos que estão intensamente azuis. Franzo a testa
e demora um pouco para entender o que ela está admirando.
Belinda encara surpresa lentamente meu peitoral. Acho que descobrir
que eu tenho uma tatuagem é extraordinariamente inusitado, pois ela pisca
algumas vezes antes de erguer o rosto e fixar os olhos nos meus com um
sorriso tímido e ao mesmo tempo discreto.
Assim que vi meu mundo ruir e não encontrei solução para aliviar a dor
que sentia, entrei no estúdio de tatuagem na Broadway, que há muito tempo
conheci com Ian, e fiz um leão com uma juba rebelde, enorme, e um olho
rasgado. Sua aparência demonstra derrota após uma luta. Era como eu me
sentia, selvagem e com uma marca permanente do caos que vivi. Embora que
não seja honrosa como a de uma batalha.
— É, eu tenho uma tatuagem — digo curvando meu lábio para o lado
discretamente.
— Percebi — murmura e solta uma risadinha.
Não espero que ela diga mais nada. Curvo meu corpo para baixo,
acaricio meu nariz no dela enquanto seguro seu rosto, arrastando minhas
mãos do seu pescoço para o maxilar. Ela arfa, um suspiro excitante e
convidativo, que aceito colando nossos lábios.
Sinto suas mãos voltarem ao trabalho de tirar minha blusa, que é
empurrada dos meus ombros com calma e logo afagam meus braços enquanto
termina a tarefa jogando no chão a peça de roupa. Seus dedos me causam
calafrios passando por meu peitoral, e por minha vez desço as minhas do seu
rosto, passando por cada sentimento do seu corpo, cada curva, e alcanço mais
uma vez a bainha do vestido, que dessa vez procuro o zíper, deslizo com
lentidão até conseguir retirar a peça do seu corpo. Preciso me afastar para ver
seu corpo. Inferno! Ela está apenas de calcinha, e é toda linda. Pequena, pele
alva, que chega a brilhar, aroma doce em sua pele fresca e os cabelos lisos,
escorridos em suas costas e sobre os seios. Um retrato em 4D.
Não preciso estar tocando-a para notar que seu coração está acelerado e
ela está nervosa. Me aproximo, guio minha mão para os seus ombros e uma
das minhas mãos para sua nuca a fim de inclinar seu rosto e eu poder beijá-la.
E dessa vez ganha proporções gigantescas. Nossas peles nuas perto uma da
outra, o calor, o desejo crescendo e, sem pensar, agarro-a e a levo para a
cama.
Belinda fica no meio da cama me esperando e eu encaixo meu corpo no
dela. Nos abraçamos e nos entregamos a paixão. Acaricio seu corpo, sentindo
o arrepio em sua pele e fecho os olhos quando suas mãos tocam meu rosto, se
demorando em minha barba.
— Acho que você gosta dela assim — murmuro descontraído beijando
seu pescoço e ombro.
— Uhum — concorda com um gemido, e é tudo que preciso.
Não lembro da última vez que me senti realmente feliz, tranquilo.
Levanto minha cabeça e nos encaramos. Não dizemos uma única palavra,
ainda. A ponta do seu dedo caminha da maçã do meu rosto, meu pescoço, a
curva do meu ombro e para no meu peito, sobre a tatuagem ela espalma a
mão.
Meu coração acelera e para não dizer nada precipitado, porque sei que
não tem nada a ver com o momento, tiro as últimas peças que nos impede de
ceder ao desejo, e finalmente nos unimos. Encaixados como um só.
Nos entregamos a forte química que temos e não há mais palavras, só
respiração, beijos, caricias. É uma noite de amor frenética. Sentir seu corpo,
seu calor, ouvir seus gemidos e saborear seu sabor. Santo Inferno! Está sendo
melhor do que imaginei.

Às seis, pulo da cama me sentindo enérgico e até um pouco eufórico.


Tive um sonho não muito agradável. Esfrego o rosto com as duas mãos e
encaro Belinda do outro lado da cama. Está dormindo tranquilamente em um
sono profundo sem saber que eu estou entrando em pânico. Ou quase isso.
Levanto da cama logo de uma vez tomando cuidado para não despertá-la
e entro no banheiro. Tomo um banho gelado, deixando a água bater com
força em minhas costas. Meus olhos em automático encaram minha
tatuagem. Eu nunca tive muito autoestima por ela. Fiz quase por rebeldia.
Queria sentir um pouco de dor.
Nos dois primeiros anos depois da morte de Selena, entrei em uma
espiral, à procura de sentir dor. Me punir de qualquer forma que fosse. E a
tatuagem no peito, que tinha ouvido dizer que doía muito, foi uma das
tentativas. Porém, não resultou o esperado. Não posso dizer que não senti
nada, só que não foi nada comparado ao que eu procurava. Minha
autodestruição ia além de um estado mental saudável.
Toda essa loucura fora antes de começar a terapia com Benson. Ele deu
fim aos meus pensamentos caóticos e destrutivos. Minha família tinha uma
dívida eterna com ele. Palavras da minha mãe.
Termino o banho e vou direto procurar uma roupa de correr. Preciso
liberar essa inquietação dentro de mim.

Pronto, calço meus tênis e levanto da cadeira da mesa que fica no meu
quarto com meu notebook em cima e minha máquina fotográfica. Por
segundos penso em aproveitar a luz da manhã para registrar algo (sempre é
interessante às seis e meia da manhã). Por fim, a pego e coloco a alça no
pescoço.
Saindo do quarto e fechando a porta, aproveito para dar uma olhada em
Belinda. Ainda está do mesmo jeito. Dormindo de barriga para baixo
abraçada ao travesseiro, o rosto virado para a parede. Balanço a cabeça e dou
as costas, descendo as escadas em disparada. Querendo me afastar dos
pensamentos irritantes.
Como posso, depois de uma noite como a que eu tive ontem, estar tão
aborrecido. Irritado. Eu deveria estar relaxado, afinal me senti muito bem.
Sinceramente sem ser um babaca, estar com uma mulher depois de seis anos
é para se comemorar, não lamentar.
Troco a música para algo mais heavy metal e acelero o passo, correndo
pela rua. Hoje não quis correr pela praia. Sei muito bem que a probabilidade
de encontrar Lydia era grande. E não estou com ânimo para a alegria
contagiante de princesa da Disney dela.
Que saco! Não saí de casa para ficar pensando nesses problemas. Não
estou fugindo, apenas quero relaxar e parar de me castigar. Acho que a minha
vida é me castigar. Merda mil vezes. E já fiz isso durante seis anos, basta.
Está na hora de resolver as coisas, não remoer.
Encho meus pulmões com ar e me concentro na corrida.
Como se fosse de propósito vejo o prédio onde fiz minhas primeiras
fotografias profissionais. Era um trabalho para a faculdade e precisava
capturar imagens que tivessem algum significado. Naquela época eu gostava
de registrar coisas abstratas ou paisagens, principalmente o pôr do sol do alto
de um prédio, como um bom nova-iorquino que sou.
Como conheço o prédio muito bem, escolho entrar pela parte dos fundos,
onde não tem porteiro e quase ninguém usa. Subo depressa, correndo até o
topo. Ainda bem que encontro a porta aberta.
Parado no meio do terraço observo com certa nostalgia que aqui não
mudou nada. Limpo a caixa d'água cinza e uma cadeira de ferro, que deve ter
sido pintada mais de uma vez para continuar verde-escura. E vendo a cidade
do alto com o sol no alto, assinto pensativo. Continua tão bonito quanto há
seis anos.
Para ser mais exato, não tem seis anos que não venho para Hampton.
Acho que uns sete. O último ano antes do acidente, minha família chegou a
vir, mas eu não, nem Selena. Ela estava cursando o mestrado em arquitetura,
e como eu não fazia nada sem ela fiz companhia a ela. E fora que eu estava
muito focado em terminar minha faculdade de fotografia.

Suado, entro em casa no pique da corrida. Tiro minha camisa, jogando


no banco da cozinha e coloco a sacola do mercado sobre da mesa. No
armário, pego o pó de café para fazer e me virando para a pia, enchendo a
garrafa com água, vejo Belinda. Está com um vestido branco solto, os cabelos
presos num coque bagunçado e uma cara amassada de sono.
— Bom dia — cumprimento erguendo as sobrancelhas rapidamente e
virando para terminar o que estava fazendo.
— Bom dia — ela devolve.
Com a cafeteira ligada, pego os ovos e o bacon na sacola, e com isso
olho para Belinda.
— Já tomou café?
— Não.
Assinto, me viro colocando tudo na bancada e pego a frigideira no
armário debaixo da pia. Estou faminto. Entrei no mercado disposto a comprar
tudo que gosto para tomar um bom café da manhã para recuperar a energia.
Nem sei como consegui correr com o estômago vazio desde ontem à noite.
Começo a fritar os ovos e o bacon, e dou uma olhada para ela, que está
quieta demais. Resolvo puxar assunto, mesmo que eu não seja um cara que
faz isso:
— Vai querer comer? Está com fome?
— Estou sim — responde e cruza os braços. — Tem muito tempo você
saiu?
Olho-a de soslaio, ela abre um pequeno sorriso e observa minha máquina
fotográfica por alguns segundos e volta a me encarar.
— Deve ter umas duas horas que acordei — respondo franzindo a testa,
mas preciso mexer nos ovos e pôr no prato.
— Parece que você acordou animado. Foi até tirar foto.
— Eu fui correr e levei a máquina — digo colocando seu prato na sua
frente, aproveitando para olhar em seus olhos. — O céu estava bonito.
— O dia está nublado, como é que está bonito?! — repele confusa.
Rio, dando de ombros e vou fazer bacon e ovos para mim.
— A melhor luz para se tirar foto ao ar livre é o céu nublado ou quando
o sol está quase nascendo. Quando a luz está muito forte queima o filme até.
Fica muito claro e incomoda a lente, e meus olhos também. É aceitável
quando ela é própria para luzes fortes e autorreflexo. — Viro-me para ela. —
Enfim, a melhor luz é a controlada pela máquina e nas edições.
— É assim pra todos?
Acho a careta confusa dela fofa. Ela é meiga demais.
— Todos os fotógrafos sabem que a melhor luz natural é a que dá para
modificar quando editamos a foto.
— Você nunca registra foto no sol de verão que deixa a gente morrendo
de calor dentro da piscina?
— Não, eu tiro, mas prefiro nublado. E até para filmar também é o ideal
também.
— Legal, não pretendo ser fotógrafa, mas é bom saber.
— Bem, hoje nós temos o evento e espero que você esteja animada.
— Eu estou — ela diz de um jeito nem um pouco convincente.
A menos que eu não saiba mais ler as pessoas, ela está ao contrário de
animada. Ergo a sobrancelha ironicamente e digo:
— Você não parece muito animada? Algum problema?
Em seu rosto um sorriso de lamento é marcado.
— A verdade é que eu não estou me sentindo bem. Estou com cólica.
Merda! Quase caio pra trás porque minha cabeça parece que vai explodir
com a notícia. É inevitável não me sentir culpado, já que sabia muito bem do
seu problema e transei com ela ontem.
— Será que foi porque nós transamos ontem? — pergunto assim, direto,
sem delongas.
— Não, acho que não. Sei lá. — Dá de ombros. — Pode ser ou não. Eu
nunca senti dor antes ou depois de ter relação sexual, então não sei se tem a
ver.
— Pelo menos, você tem algum palpite? Eu realmente preciso saber se
fui culpado.
— Adam — baixa o tom da voz —, eu realmente acho que não tem nada
a ver. Devo ficar menstruada esses dias, então é normal sentir dor. Comecei a
inchar, me sentir irritada e...
— Mas você está se sentindo mal. Não finge que não está. Estou
percebendo nitidamente em sua cara, que não está boa.
— Olha, por mim eu estava deitada ainda.
— Então, vai deitar! — Reprimo a vontade de falar um palavrão. — Eu
não quero que você se sobrecarregue à toa se está se sentindo mal. Vai se
deitar, e outra coisa. Eu ia falar com você isso quando a gente fosse almoçar
com a Lydia amanhã.
— O quê?
Assinto com a face neutra.
— Esse convite está feito tem três dias. Desde quando falei de você com
ela. Enfim, a mãe dela é clínica geral do hospital da cidade e ela vai
conseguir marcar para você uma consulta. E já é para fazer os exames. Todos
que você precisar. Creio que não seja no mesmo dia, pode ser no seguinte.
Mas eu pedi com urgência.
— Contou para ela sobre meus problemas?
— Resumidamente e ela deu a ideia. Lydia é assim mesmo. Prestativa e
generosa. Uma santa. — Dou de ombros. — Eu não vejo mal nenhum nisso.
Não era isso que você queria? Conseguir os exames.
— É... é que... não esperava. — Abre um pequeno sorriso. — E obrigada
por pensar em mim.
— Não precisa me agradecer. Eu detesto ver as pessoas sentirem dor
porque detesto sentir dor também.
— Ah... obrigada de qualquer forma. É muito legal da sua parte.
— De nada.
Assinto e vou me sentar na mesa após terminar de fazer os ovos e as
torradas, mas para ela esquento um pão. Levo a jarra de café e leite para a
mesa, e comemos o café da manhã em silêncio.
É um pouco difícil comer ao lado dela hoje. Belinda repete por certas
vezes o som prazeroso ao desfrutar do café com leite. E quando viro para ela,
seus olhos estão acesos e alegre. Parece que está melhor e seu aroma logo de
manhã é um afrodisíaco e tanto. Quero beijá-la, contudo prefiro ficar no meu
canto (com meu desejo reprimido) e terminando mais rápido do que o
recomendável para a digestão fazer bem, levanto dando uma última garfada
nos ovos e termino meu café com um gole. Merda! Está quente.
— Vou tomar uma ducha e você termina aí. — Dou um toque no seu
ombro como se ela fosse meu “brother”.
Estou bancando um otário hoje. Melhor eu me afastar mesmo antes que
piore a situação.

Ponho meu celular no bolso e me viro para as escadas quando escuto


passos. Uau! Eu pedi para ela colocar uma roupa agradável e elegante, a mais
confortável que tivesse, e me parece que na sua mala gigantesca tinha espaço
para um vestido branco, com os ombros nus, mangas três-quartos e a saia de
renda. Ela está sexy e parece confortável em ir trabalhar comigo.
Eu aprovo com um sorriso. E como não pudesse frear meus passos,
caminho até ela e seguro a sua mão para terminar de descer os dois últimos
degraus.
— Obrigada — diz com um sorrisinho divertido e acanhado.
Estou começando a desconfiar que esse sorriso não é porque ela tem
vergonha, é apenas o seu jeito mesmo. Doce.
— Não há de quê — devolvo assentindo.
Passando por mim, para na minha frente e sorri, mais espontânea. Cerro
os olhos analisando seu rosto. Ela está usando maquiagem, bem suave, que a
deixa com o ar angelical.
— Já podemos ir?
— Sim, podemos. Só estava esperando por você.
Belinda concorda com um aceno e caminha para a porta.
— Quer que eu ajude a levar alguma coisa pro carro?
— Não — respondo atrás dela, que descaradamente analiso sua bunda.
Eu já cruzei essa linha com ela. Não preciso fingir que não me sinto atraído
por ela. E é muito.
— Hum?
Levanto a cabeça e percebo que está de frente para mim com a testa
franzida em completa confusão.
— O quê?
— Não quer que eu leve nada? — repete me olhando estranho.
— Ah, não — digo rápido. — Eu já levei tudo. Como disse estava
apenas esperando você para podermos ir.
Detesto quando eu pareço um panaca falando.
— Então vamos. — Sorri e vira-se saindo de casa.
QUINZE

Sim, estou aqui


Tentando deixar claro
que tendo apenas metade de você
não é suficiente
...
Não vou esperar até que você termine
Fingindo que não precisa de ninguém
Eu estou aqui exposto

NAKED | JAMES ARTHUR

Depois do que parece que me acostumei com a festa, que deixei de ficar
deslumbrada e me sentindo desconfortável com a escolha da minha roupa (já
que todos, como sempre, estão muitíssimo bem-vestidos), concentro-me em
ajudar Adam.
Nós trabalhamos em silêncio, sem nenhuma conversa paralela. Nenhum
assunto a não ser que ele precisa de pilha, focar a luz em certo lugar, ou
carregar o fio de um lado para o outro. Nada além disso, e no fundo não estou
surpresa.
Sempre soube que seria assim (quero dizer; na minha mente fértil, é
claro), que Adam estaria em silêncio depois de nós sucumbir ao forte desejo e
química que sentimos.
Então, acordar sem ele do meu lado foi algo que, primeiro, preciso
confessar que jurava que ele fosse me colocar na minha cama ou dormir no
sofá, o mais longe de mim, mas acho que no fim não foi tão ruim. Não fiquei
nem um pouco surpresa.
Mas ele dormir do meu lado, na mesma cama e perceber isso, posso
imaginar. Ele despertar do meu lado, se dando conta da situação, do que
fizemos e logo pulando fora. E a melhor decisão, correr como se estivesse
fugindo do que houve. Fugindo de mim, fugindo da realidade. O que seja.
Não sei como vamos ficar depois disso.
Estamos monossilábicos e nos comportando como estranhos. Não sei se
eu devo esperar ele falar ou eu falo algo. Talvez não. Creio que não mesmo.
Já basta que eu iniciei ontem o beijo, o abraço e só então ele intensificou e
deu iniciou as carícias que nos levou para o quarto.
Mas foi bom. Foi um jogo de sedução muito excitante e gostoso. E nós
dois somos responsáveis e não devemos nos sentir culpados ou ressentidos.
Eu não sei o que está passando na cabeça dele. Na minha, só sei pensar que
foi maravilhoso. Eu não dormia com um homem há uns dois anos. Minha
vida não andou muito bem nos últimos anos, então... foi ótimo ontem e, para
dizer a verdade, sempre existiu essa energia magnética entre nós.
Primeiro despertou uma curiosidade muito irritante, que eu por vezes
não consegui controlar. Depois atração física e, lógico, a carência junto com a
solidão, e a solidariedade que acabou nos aproximando mais ainda. Não estou
dizendo que eu gosto dele por pena. É mais no sentido de que nós dois nos
sentimos sozinhos e precisamos de atenção e amor de outra forma que nossa
família nos dá, e até mesmo os amigos. No caso dele, pois eu diferente dele,
sou realmente de fato absolutamente sozinha.
Como ele mesmo diz, só eu consegui falar com ele colocando as coisas
em pratos limpos. Sem rodeio e mesmo machucando-o com as verdades, me
sinto orgulhosa de ter sido tão sincera. Era preciso, assim como também era
preciso alguém estar preocupado comigo de verdade.
Não quis pensar assim, mas eu sentia mesmo que precisava que alguém
se importasse comigo e quisesse me levar para resolver os meus problemas
carregando pela mão se fosse preciso.
E falando da minha vida para outras pessoas, ou não, me sinto feliz em
ter compartilhado tudo com Adam. Tanto que agora estou a passos de
começar a resolver esse problema.
Contudo, preciso confessar que estou morrendo de medo. Tenho medo
de que não seja algo simples, que vai me destruir de alguma forma e que eu
vá precisar de muito tempo para melhorar. Céus! Já tem muito tempo que
sinto essas dores.
É como uma rachadura numa casa velha. Enquanto era só uma sombra
numa parede, ela é inofensiva, mas aí ela vai se abrindo, se alastrando até
criar uma abertura e logo um buraco. Indo muito além... e destruindo a
estrutura do nível da casa. Rachando o chão partindo ao meio. Nesse ponto é
mais difícil consertar, mas não impossível.
É assim que eu me sinto em relação a essa dor. Passei tanto tempo
negando, tomando remédio em cima de remédio para aliviar. Fazendo todos
os tipos coisas malucas, tomando chás porque diziam que melhorava. Rezei,
fiz promessas malucas para Deus. Parei de comer isso, aquilo. Até que todas
essas tentativas começaram a atrapalhar minha vida, já que me sinto só há
tanto tempo.
Eu sei que nem todo mundo consegue compreender e aceitar o fato de eu
não pedir ajuda a minha mãe para fazer os exames e me manter nos trabalhos.
É mais complicado do que parece. Ninguém aceita uma garota se
contorcendo de dor, que de vez em quando precisa fazer uma pausa, sentar e
tomar remédio que a deixa sonolenta. Ou tem que faltar porque está quase
morrendo, então é isso. Eu prefiro trabalhar na casa de alguém limpando e
não me sinto menos valorizada. É digno como qualquer outro emprego.
Mas é claro que eu queria ser muito mais do que isso. Por muitas vezes
senti uma raiva incrível de como essa doença não apenas me fez curvar de
dor, para ela, como me fez curvar para a vida. Deixei de fazer tantas coisas
por conta disso. Tantos momentos e oportunidades deixados pra depois.
É isso. Me curvei para a vida. Deixei para lá, deixei para depois e nunca
resolvi essa doença, que não sei o que é, mas é uma doença. Ponto final.
Minha vida não é fácil desde o início, não lembro de um momento que
fui feliz e leve. Essas dores só pioraram tudo e veio na pior hora.
Quando minha mãe casou de novo, parecia que tudo ia ficar bem. Ledo
engano, porque tudo piorou quando Richard surgiu nas nossas vidas. Os
problemas dela com meu pai já me consumiam. Meu pai não foi o melhor
marido, mas aí eles se separaram e cada um seguiu sua vida, e eu não
demorei muito para entender que, na verdade, o problema é minha mãe. Ela
não sabe escolher marido, francamente.
Então, tive muitas dores de cabeça por conta do meu pai, meus irmãos,
filhos dele, e minha mãe tentando me convencer de que ele era terrível, mas
prestes a se casar com Richard. Difícil defender e escutá-la.
E falo assim porque minha mãe é minha única parente que realmente me
importo e amo. Me preocupo por sua felicidade, mas não a ponto de viver na
mesma casa que seu marido.
Adam teve uma desconfiança que se fosse real não seria tão pior quanto
a realidade. Porque assistir o que Richard fez ficou na minha memória: ver
meu padrasto agredindo minha mãe.
Eu não aguentava mais aquilo e muito menos a minha mãe deixando
para lá, fingindo que não estava acontecendo. De que era normal ele quebrar
a casa inteira quando ficava revoltado. Depois passou a beber e até mesmo
largar o trabalho. Ele falava para ela que quem tinha que trabalhar era ela, já
que a casa era dela. Era tanta coisa errada, mas tudo piorou quando ele
começou a bater de verdade nela e a me ameaçar. Até que me deu o primeiro
tapa, depois disso foi o fim. Eu praticamente assisti o iceberg chegar e não
desviei, esperei ele encostar em mim e se espatifar como se eu estivesse
congelada esperando acontecer.
Mas o que importa é que eu dei as costas para aquilo. Para aquele erro
que eu não tinha como consertar de jeito nenhum e fui morar com a minha
tia. Ela poderia ter se recusado, no entanto, me aceitou como se fosse minha
mãe.
Tia Mary foi melhor do que a minha mãe para mim no tempo que vivi
com ela, e é triste dizer isso. Ninguém quer que um parente, que não seja sua
mãe, seja melhor do que a própria fazendo a função de uma mãe. De verdade,
eu não queria que ninguém fosse melhor “mãe” que a minha, que sabe, tem
consciência de que é isso, os cuidados e responsabilidades, era ela que tinha
que fazer. Porém permitiu que essas preocupações comigo tenha sido
tomadas por outra pessoa que não seja ela.
É impossível quem passa por isso não se sentir frustrado, até renegado.
Fiquei pensando se não era eu que estava exigindo demais, que talvez eu
devesse me contentar pela aquela mãe que tinha.
Mas então eu encontrei um cara em ruínas, despedaçado, sem esperança,
se corroendo todos os dias por algo que não foi culpa dele, querendo me
ajudar sem obrigação alguma. No início tentou me expulsar, eu sei. Ainda
bem que se acostumou comigo e quando soube dos meus problemas,
estendeu a mão, e eu nem pedi.
E não tem não como ter algum sentimento por Adam. O primeiro deles é
gratidão, é claro. Depois carinho. Eu gosto muito de ver que ele sorri, brinca
e até faz piadas de vez em quando agora. Adoro saber que sou uma parcela
responsável de ele estar fazendo esse evento. Que todo mundo fica o
assistindo tirar fotos e conversar como se soubesse de tudo no mundo.
Gosto de saber que aquele Adam de antigamente está conseguindo
emergir diante da sombra. Claro que, às vezes consigo ver que ainda está
rachado. Eu vejo isso claramente quando as pessoas não estão olhando para
ele.
Mas ele disfarça muito bem. É educado com todos. Adam não esteve há
mais de seis anos em Hampton e todos falam com ele com a maior alegria do
mundo, como se ele fosse um jogador de futebol famoso ou um artista de
Hollywood. Alguém muito importante e talvez a gente não precisa ter uma
estatueta do Oscar ou ganhar milhões e ser conhecido no mundo inteiro para
as pessoas nos adorar. Às vezes basta a gente ser bom, autêntico e manter
nossa verdade, quem somos de verdade, para as pessoas gostarem de nós. Se
inspirar e sentir falta de nós.
Agora parece que a festa está no fim e por isso sento-me um pouco, mas
meus pensamentos não param e talvez eu esteja deixando transparecer em
meu rosto, pois Adam se aproxima franzindo a testa e pergunta:
— Você está bem?
— Sim, estou.
Ele faz um resmungo longo e se senta ao meu lado colocando a máquina
de retratos sobre a mesa.
— Você não parece que está bem.
Curvo a boca dando de ombros.
— Eu só estou pensando.
— E o que está atormentando você? — indaga, mas logo emenda como
um pedido de desculpas. — Se quiser falar estou aqui.
— Sei lá. — Dou de ombros e desvio meus olhos dele. — Eu fiquei
tantos anos sentindo essas dores e depois da última vez que eu fui no médico
e teve algumas suspeitas do que seria, que eu não dei continuidade e tantas
coisas aconteceram uma atrás da outra, fui deixando para depois. E agora...
que — prendo a respiração e solto de uma vez, encarando o chão. — Agora
que eu tenho uma chance de fazer os exames, estou com medo.
— Medo por quê?
— De ser algo grave. — Encaro-o. — Tenho medo de... Não sei.
Sinceramente, não sei o que esperar e têm possibilidades que assustam. Poxa,
eu demorei tanto tempo procurar essa ajuda e agora fico receosa de achar que
é tarde demais.
— Se você está viva ainda não é tarde demais, Belinda — diz com
tranquilidade e confiança.
— Eu sei disso. Só que... de qualquer forma é preocupante. Imagina se
você sentisse uma dor durante anos e ela basicamente consumisse sua vida e
aí quando você está na porta, do que pode parecer uma futura solução, como
você se sentiria? Será que não sentiria pressionado e preocupado mesmo
antes de saber se é algo pequeno ou grande. Se é muito grave ou não. —
Movo os ombros.
— No fundo não importa o que seja. — Adam coloca a mão sobre a
minha e aperta. — Nós vamos resolver isso e você vai ficar bem. Não fica
pensando essas coisas. Eu sei que é um pouco inevitável. Todo mundo fica
preocupado com a saúde, principalmente quando já se tem uma preocupação
por via das dores e tudo mais, porém você não tem que ficar pensando isso.
Seja positiva. Vai dar tudo certo independente do que seja diagnosticado a
gente resolve isso.
— Eu espero que seja assim tão fácil.
— Não, não é tão fácil, mas também não é impossível.
— Tá bom. — Finjo um sorriso.
— Olha, vamos combinar uma coisa. Você vai ficar mais calma sobre
isso tudo.
— Posso apenas prometer tentar.
Ele assente e abre um sorriso para.
— Certo. Acho que assim é melhor. — Levanta e pega a máquina. — Eu
vou tirar mais algumas fotos e vamos pra casa. Tudo bem?
Levanto-me junto com ele, mas sou detida com sua mão no meu ombro.
Adam balança a cabeça negativamente e diz:
— Não. Pode ficar aqui. Agora é coisa simples, eu já acabei.
— Se você está dizendo.
Ele assente e abre um sorriso fofo.
— Você gostou de fazer esse evento? Porque parece que sim.
— Foi bom pra colocar a máquina em prática e ver se eu ainda tenho
uma boa visão — responde limpando a lente da máquina fotográfica. — Eu
nunca fui de fazer fotos assim, sou mais de fotos abstratas e algumas que
sejam externas, mas eu fazia eventos assim. São legais e distrai a mente.
— É, parece que você gostou de vir.
— Acho que sim.
— Que bom e não é tão difícil assim acompanhar. Você não é um chefe
chato.
— Eu não sou seu chefe.
— Tudo bem — digo assentindo, o nervosismo toma conta de mim só
por causa do seu sorriso.
— Okay, agora eu vou lá e você fica aqui. E pode fazer um favor para
mim?
— O que você quer?
— Pega algo para comer e beber. Estou nessa festa inteira com o
estômago vazio.
— Tá, é claro. Quando você voltar daqui a pouco vai estar aqui na mesa.
— Certo, obrigado e pega para você também.
Ele assente e com uma piscadela, se afasta e eu me jogo na cadeira,
sentando e pensando que esse Adam não é o Adam que comeu cereal na
minha frente e não ofereceu. Esse é o Adam que todo mundo elogia e fala
que sente falta.

Chegamos em casa depois da meia-noite e exaustos nos sentamos no


sofá ou melhor nos jogamos no sofá.
— Estou tão cansada. Não pensei que eles iriam convidar a gente para a
pós-festa.
Adam resmunga com a voz rouca:
— Eu também e eu estava com muita vontade de chegar em casa e
descansar.
— Ah, mas foi legal.
— Foi sim.
Ficamos em silêncio e eu fito o teto, relaxando meu corpo.
— E você está melhor agora? — pergunta.
— Sobre o quê?
— Seu medo.
— Ah... — suspiro. — Eu não sei.
— É um pouco complexo, sei lá. Agora que posso fazer os exames o
medo é eminente, sabe. Antes era só uma suposição do que poderia ser, do
que eu iria sofrer. Se é grave ou não. Então é impossível não ter medo de que
seja o que a médica tinha dito da outra vez e que talvez seja tarde demais. É
como se tudo estivesse só na minha imaginação, nos meus pensamentos. Não
sendo concreto, mas, a partir do momento que eu colocar o nome, e quando
eu falar em voz alta, vai ser real e é isso que me dá esse medo. Essa
insegurança como da outra vez lá.
Ele coloca a mão sobre a minha, e dessa vez entrelaça os dedos nos meus
e aperta. Viro meu rosto para ele e nos encaramos em silêncio por alguns
segundos, até que ele ergue a sobrancelha e diz com a sua voz rouca de
cansaço.
— Eu quero que você relaxe porque tudo vai dar certo. Tenta se manter
firme assim como você se manteve até agora.
— Estou tentando, Adam.
Ele solta minha mão e faz seu indicador correr pelo meio da minha
palma indo até meu braço e chegar no meu ombro. Então ele levanta um
pouco o corpo e inclina-se para mim, sobre o meu corpo e sua mão está na
minha nuca, envolta do meu rosto. E me beija.
No início seus lábios pedem permissão, são suaves e quase nem os sinto,
mas logo se tornam pesados e exigentes.
Então, nós nos entregamos a uma paixão irrefreável. Eu me sinto quase
que delirando quando ele tira minha roupa com tamanha doçura e lentidão.
Quase choro com suas mãos afagando minha pele enquanto tira meu vestido.
Cada pedacinho da minha pele nua sente suas carícias. Fecho os olhos
quando seus lábios beijam meus ombros, meu colo, minha barriga.
É tão suave e ao mesmo tempo tenso demais.
Adam está mais exigente hoje e depois de me fazer delirar, fica
apressado e eu também não tenho mais vergonha. Ajudo-o a tirar sua roupa e
o acomodo sobre mim no sofá. Eu quero tanto quanto ele demonstra me
querer.
Ele me afasta um pouco e beija meu pescoço e vai descendo até o vale
dos meus seios. Arfo, procurando ar e puxo seus cabelos querendo-o mais
perto de mim. Ele me atende e sua boca está junta a minha quando ele acaba
com qualquer distância que poderia existir entre nós.
Sua pele está fria em algumas partes, as quais o vento gelado do lado de
fora o atinge pela janela aberta. Abraço-o com minhas pernas e braços.
Aprecio a incrível sensação dos músculos das suas costas sobre as palmas das
minhas mãos conforme ele se mexe.
Quando digo que ele está exigente, quero dizer mais próximo, sem
inibições ou limites. Ele quer me abraçar, beijar, lamber e chamar meu nome.
Meu coração bate tão rápido.
Eu sinto tudo. Absolutamente tudo enquanto ele faz amor comigo. Nós
parecemos tão certos. Tão perfeitos.
— Adam... — sussurro seu nome passando as unhas na sua pele,
arranhando seu ombro.
Ele nada diz, contudo não precisa. Eu apenas quero que ele continue, e
ele faz.
Quando finalmente chegamos no ápice do nosso desejo, Adam me dá um
beijo suave na boca e me solta caindo para o lado, porém fica muito perto, já
que somos muito grandes e o sofá não é lá essas coisas. O jeito é ficarmos
abraçados, o que parece que ele aceita e gosta. Fecho os olhos e deito a
cabeça no seu peito e ele puxa a manta que fica no sofá e nos cobre. Antes de
pegar no sono, sinto-o deixar um beijo nos meus cabelos e penso que isso
parece um sonho. E no meu coração, ainda acelerado, tenho medo. Meu
Deus. Que tudo fique bem comigo. Conosco. Não posso machucá-lo. Ele não
merece, não de novo.
Novamente acordo sozinha. Dessa vez no sofá da sala e com cheiro de
café passando na cafeteira. Gradativamente ganho consciência e abro os
olhos. Observo as cortinas fechadas, o que mantém um breu aconchegante,
que é até difícil de levantar.
Bocejo e, por fim, tomo coragem de sentar. Esfrego os olhos e com a
manta enrolada, procuro com os olhos minha bolsa e a encontro no sofá de
dois lugares. Pego e procuro meu celular para saber as horas.
— Uau! — resmungo para o visor do aparelho que marca dez horas da
manhã. Acordei muito tarde. Nossa! Não lembro a última vez que eu fiz isso.
Ficando de pé, finalmente, me espreguiço. Encontrando meu vestido e a
calcinha na poltrona, coloco rapidamente e vou ao banheiro quase que
correndo.
Ainda sem sinal de Adam, o que acho estranho. Mas não é o momento
de pensar sobre isso e sim que eu preciso ficar um pouco digna para encará-
lo. Eu não sei o que estamos fazendo, porém não quero nem perguntar. Não
quero rotular e muito menos me preocupar com isso. Estamos nos falando e
nos dando muito bem. Pelo menos, eu me sinto muito bem quando estou nos
seus braços.
— Minha nossa! — digo encarando-me no espelho.
Estou parecendo uma boneca despenteada que fica em cima do armário
abandonada. Rio e a primeira coisa que faço depois que faço minha
necessidade, é pegar o pente que fica na gaveta e dar um jeito nos meus
cabelos. Passo uma água no rosto, tirando o excesso de maquiagem borrada
da cara que consigo e passo uma água na boca e saio do banheiro seguindo
em direção do cheiro maravilhoso de café, que foi o que me despertou.
Paro meus passos abruptamente vendo-o depois da noite de ontem.
Seguro a respiração e tomo um tempo admirando-o.
Adam está sentado em uma das banquetas da bancada da cozinha
tomando café. Está com uma calça de moletom e apenas ela. Descalço e sem
camisa, descabelado e olhando para o horizonte pensativo. Ele é lindo.
Sempre pensei isso, não sou idiota e muito menos cega, mas depois que ele
tirou um pouco a barba e cortou o cabelo — graças a uma cabeleireira aqui de
Hampton. Ah, quando ele me mandou a foto do novo corte, quase surtei.
Prefiro ele do jeito que está. Parece mais ele. E claro, está mais sexy. Depois
da barba, do cabelo e do novo humor, feliz e animado, ele está muito mais
bonito. Na verdade, lindo.
Solto a respiração, pisco e pigarreio para chamar sua atenção adentrando
a cozinha.
— Bom dia — murmuro sem encará-lo.
Vou até a cafeteira, pegando uma caneca no armário e coloco uma dose
boa desse néctar dos deuses que se chama café. Quando me viro, ele está na
minha frente em pé segurando sua caneca. Um sorriso bobo se abre
suavemente e sinto minhas bochechas ficarem vermelhas.
Ele me avalia por alguns segundos e por fim diz:
— Bom dia. Pensei que você não iria acordar mais hoje.
Assinto e dou passagem para ele quando pede com gestos que quer pegar
mais café.
— Eu sei — digo sorrindo, um pouco esquisita —, acordei muito tarde.
— Tudo bem.
— O cheiro do café que me acordou.
— Hum... — Ele assente passando por mim, dando a volta pela bancada
da pia sem necessidade até onde estava e senta. — Nós temos um almoço
com a Lydia.
— É hoje?
— Uhum. Acredito que deva ser à uma hora; e se você quiser comer um
pouco, tudo bem, mas não muito, senão vai perder o almoço.
— Ok. — Dou de ombros. — Eu vou... sei lá. Eu não estou com muita
fome.
Adam concorda e cerra os olhos me olhando.
— Ainda está com medo? Ou está melhor?
— Ah... — suspiro e desvio meus olhos, encarando o café fumegando
em minhas mãos. — Não. Eu estou mais calma agora.
— De verdade?
Bebo um pouco o líquido, assinto e o fito.
— Sim.
— Então está certo — fala animado e coloca a caneca no balcão e
levanta. — Eu vou correr um pouco e quando voltar vou tomar banho e aí nós
já podemos ir, claro se estiver pronta.
— Está bom — digo e baixo o rosto mordendo o meu lábio inferior.
Eu não sei por que ele tem tanta necessidade de correr. E será que acha
que eu preciso de duas horas para ficar pronta para um almoço? Com essa
dúvida levanto a cabeça e apoio meus cotovelos na bancada e falo:
— Como que eu devo me vestir para ir à casa dela almoçar?
— Do jeito que você quiser.
— Não é bem assim, Adam.
Ele respira exasperado, balança a cabeça e solta a respiração.
— Coloca algo simples, mas elegante e vai se sair bem. E você precisa
parar de pensar no que as pessoas vão pensar sobre você.
— Não é isso.
— Olha, sinceramente. Eu não me incomodo com isso e você pode ir
como se sentir melhor. Para mim isso é importante. Agora tenho que ir. —
Bate no mármore da bancada e se vira, indo correr, já correndo.
— Ah... Adam. Você é tão sensível. — Penso em voz alta, irônica.
Estou lendo um livro pelo celular enquanto Adam nos leva para o
almoço com Lydia. Fiquei um pouco sem entender do por quê ele está usando
o carro quando a casa dela é alguns passos da sua, nada tão distante que
precise de ir de carro, mas a confusão logo passou quando percebi que ele
estava indo em direção à cidade.
De vez em quando desvio minha atenção para ele dirigindo. Está com a
expressão neutra, mas parece pensativo.
Passamos um quebra-molas e meus olhos focam nos barcos que ficam
nas docas, e logo para o restaurante muito bonito e chique, que Adam para
em frente, em uma das vagas. Desliga o carro e saímos.
— Eu disse para você que poderia ser um lugar muito chique. Ainda
bem que coloquei esse vestido — comento quando ele abre a porta do
restaurante para mim e passo por ele.
— Não se incomode. Aqui as pessoas não têm essa mania de apontar o
dedo para os outros. Você está bonita. — Faz uma pausa e me olha franzindo
a testa.
Para aliviar seu constrangimento pelo elogio, sorrio e agradeço
rapidamente, mas somos salvos pelo gongo quando aparece o recepcionista
do restaurante.
— Boa tarde. Tem reserva?
— Mesa em nome de Lydia Bennett — Adam informa.
O homem rapidamente nos leva para a mesa onde Lydia está tomando
um chá gelado com uma rodela de laranja fatiada na taça de cristal.
É, realmente o restaurante não é chique.
O lugar não é chique.
A roupa dela não é chique.
Aff... Às vezes, eu não sei o que se passa na cabeça dos homens,
principalmente na de Adam em questão de roupa e lugar. Por ele, eu estaria
de chinelo calça, jeans e uma blusa branca sem graça. Talvez até descabelada.
Para ele, isso tudo é normal. Homem doido.
— Até que enfim vocês chegaram. — Lydia se levanta e vem me
abraçar. — Demoraram tanto.
Se solta de mim e vai abraçar Adam.
— Não seja exagerada — ele resmunga ao se sentar na cadeira entre nós
duas.
— Não demorei nada. Você que chegou cedo demais, como sempre.
Rio baixinho ouvindo-o reclamar como se fosse um adolescente. É bem
divertido porque conhecê-lo agora, de verdade, é muito melhor do que o cara
que atendeu a porta para mim na sua casa dois meses atrás.
— Tudo bem. Você venceu dessa vez, seu rabugento.
E assim foi o nosso almoço. Entre risadas e histórias antigas de como
Adam sempre foi chato com Lydia, e dela como sempre se antecipava para
tudo.
É uma tarde gostosa, que me faz esquecer totalmente do real motivo que
estamos aqui. Por mais que pareça uma reunião de amigos, uma leve
conversa amistosa numa tarde ensolarada em Hampton, esse lugar lindo e
chique, também é para falar sobre mim e minhas dores.
E esse momento chega mais cedo do que eu esperava. É incrível que,
quando estamos a passos de resolver algo, o medo fica maior. É como
descobrir um formigueiro e temos o remédio, mas sabendo que antes de as
formiguinhas morrerem, elas correrão e tentarão revidar, sobreviver. E eu
estou em modo defesa. Estou atacando porque tenho medo do que pode
surgir. Tudo ganha vida quando falamos em voz alta, quando outras pessoas
fazem parte.
— Você não está à vontade com a conversa. — Lydia observa e pega
minha mão, dando um aperto. — Você não gostou que eu soube?
— Não é isso.
— Então, qual é o problema?
Baixo o rosto e fito o líquido do meu suco de uva.
— Ela está com medo — Adam comenta de forma amena.
— Medo do quê?
— Do que pode ser — respondo e me forço a olhar para Lydia. — Estou
há tanto tempo nesse dilema que agora estou morrendo de medo do que pode
ser e... se é tarde demais.
— Ei, não pense assim. Eu sei que nós não queremos ficar doente, mas
eu vou estar te dando apoio e minha mãe também. Vai ficar tudo bem,
Belinda, e não se esqueça de que você terá pessoas do seu lado e sei que
Adam vai estar lá.
Aceno concordando e viro meu rosto para Adam. Seus olhos são tão
meigos. Queria abraçá-lo neste momento.
Acho que estou ficando “caidinha” por Adam Stella. Que droga! Isso
não poderia ser menos idiota da minha parte. Espero que tudo dê certo. Que
fiquemos bem. É o que penso o tempo todo.
— Tudo bem. Eu vou fazer o meu melhor para ficar confiante e calma.
— Tenho certeza de que desse jeito vai ser muito melhor — Lydia fala e
abrindo um sorriso, que posso descrever como feliz, chama o garçom. —
Vamos conversar mais, no entanto, com o estômago cheio.
Rio dando de ombros e viro meu rosto para Adam, e o pego me
encarando. Escondo meu sorriso e baixo a cabeça. Sério, estou sendo idiota!
Caramba, nós já nos beijamos, transamos, não há necessidade de ficar do
jeito que estou agora. O momento vergonha por paquera era para ser antes.
Acho que “meio” que pulamos essa fase.

Sabe quando estamos tentando não pensar num assunto, só que o assunto
está bem na nossa cara. É isso aí. Estou tentando não racionalizar que em
poucas horas vou fazer os exames.
Eu parecia tão confiante no almoço de domingo, e só bastou um dia para
toda aquela certeza enfraquecer, mesmo que Adam tenha sido algo perto de
maravilhoso comigo depois do almoço de ontem e hoje, eu não consegui
dormir direito.
— Está pensando demais — Adam diz sentado do meu lado na sala de
espera do hospital.
Estamos esperando a mãe de Lydia, a Dra. Sarah Bennett me chamar. Eu
a conheci há pouco, logo que chegamos ao hospital, mas vou conhecê-la
melhor em breve, e ela a mim. Inclusive, todas as partes de mim.
Pisco algumas vezes e o encaro.
— Estou só... rezando.
Adam cerra os olhos e curva a boca para o lado, num sorriso fofo. Ah,
fala sério. Ele está querendo o quê comigo?!
— Está me olhando assim por quê?
— Nada — respondo rápido demais e isso parece uma mentira.
— Você não sabe mentir.
— Belinda Biacho — diz a enfermeira bem na hora que eu precisava de
ajuda.
“Obrigada”, penso com um sorriso ao levantar e entrar na sala, antes dou
uma olhada em Adam.
— Vai dar tudo certo.
Assinto engolindo em seco.
— Estarei esperando aqui, okay.
— Tá.
DEZESSEIS

Encontre a luz no belo mar


Eu escolho ser feliz
Você e eu, você e eu
Somos como diamantes no céu
...
Você é uma estrela cadente, eu vejo
Uma visão de êxtase
Quando você me segura, sinto-me viva
Somos como diamantes no céu

DIAMONDS | RIHANNA

Eu nunca fui muito bom em mentir ou fingir, e passar calma para


Belinda é o maior esforço que estou fazendo em anos. Acredito que, depois
de fingir para os meus pais que eu estava bem após o acidente que matou
Selena, nunca mais me sacrifiquei por ninguém.
Nunca mais sorri sem vontade, disse que estava bem sendo mentira e
muito menos dei força quando estava me sentindo fraco.
Porém, aqui estou eu. Sendo o que Belinda precisa que eu seja: amigo,
protetor e a família que ela não tem. É triste pensar que ela está sozinha.
Droga! Eu não deveria reclamar tanto por ter uma família, que embora seja
chata, fica no meu pé. Com certeza é melhor ser importante e a preocupação
de alguém do que parecer ser invisível.
Um tempo passa e minha cabeça não para de pensar nela lá dentro. Será
que está bem? Será que se mexer pode machucar ela?
Respiro fundo e me levanto. Começo a andar de um lado para o outro.
Agoniado vou até a recepção. Saio do hospital e compro um refrigerante na
barraquinha de hot-dog.
— O senhor não quer um? — O homem me oferece um hot-dog.
— Não, obrigado. Estou sem fome.
Ele assente e volta a prestar atenção no que estava fazendo e logo em um
menino, que pede muito molho e com pimenta.
Me afasto, termino de beber minha Coca-Cola e entro no hospital.
Caminho em passos lentos até a sala de Sara Bennett. (O nome dela me tira
um pouco dos eixos por ser igual o da gêmea de Selena). Chegando vejo
Belinda com uma roupa hospital, e seus tênis rosa, acompanhada da médica.
— Ah, você está aqui. Pensei que tinha ido embora — ela fala, e parece
vulnerável e tensa.
— Não. Só fui tomar alguma coisa. O que está havendo?
— Vamos para a sala de ressonância. Fique aqui. não iremos demorar —
responde a médica.
— Ah! Certo. — Assinto e não sei bem o que fazer. Vou? Fico? Sento-
me e espero?
— Fique aqui, Adam. Já volto — Belinda diz com um sorriso.
Ela vai junto com a médica e eu só faço o que me resta. Sentar na
cadeira e pegar despretensiosamente uma revista que não tem nada a ver
comigo. Designer de casa não faz mesmo meu feitio. Apesar de ser
engenheiro, eu mexo com eletricidade.
Os segundos passam e forço minha mente a focar em tudo, menos na
minha preocupação. No entanto, o que acabo pensando é sobre o que está
rolando entre mim e Belinda. Acho que já passou de amizade em algum
momento entre me preocupar, beijar e fazer amor com ela. Não podemos ser
considerados amigos, mas também não quero dar um nome ao que somos. Se
eu fizer isso vou amarelar. Vou correr para longe. Fugir sempre pareceu mais
fácil, e no fundo eu sei que não quero fazer isso agora. Na verdade, me
importo o bastante para não querer fazer isso com ela e também me sinto bem
em tê-la comigo.
É tudo muito confuso e, portanto, estou bloqueando os pensamentos
sobre o assunto. Quando eu acordo e vou correr, ou levanto sem olhar para
ela nua e linda no sofá, é minha maneira de ignorar os fatos. De fugir sem de
fato estar fugindo completamente.
O que estou fazendo agora é apenas minha forma de manter o que está
acontecendo sem criar riscos e nervosismo. E agora com os exames dela e
sua preocupação. Não vou levantar o assunto. Vou deixar essa poeira debaixo
do tapete. Assim é melhor. Prefiro cuidar dela e fazer o que eu puder para
deixá-la bem.
Preciso dar a ela o que recebi: apoio, carinho e até mesmo amor. Nada
além do que ela me ofereceu desde o primeiro momento que abriu a boca e
me despertou como ninguém fez. Claro que eu não a tratarei do mesmo
modo, afinal, não se faz necessário.
O que Belinda precisa é de uma família. Alguém que cuide e se importe
com ela de verdade. Okay, eu consigo fazer isso e ainda por cima tê-la
comigo. Vou ajudá-la me ajudando. Não tem como ser mais perfeito esse
conjunto.
Caramba! Acho que esse é aquele momento onde eu deveria ficar
nervoso por estar tendo pensamentos afetuosos por alguém novo, sabendo das
implicâncias de me envolver. Sendo honesto comigo. Gostar de alguém, ter
alguém, é muito difícil depois do que aconteceu. Todo mundo que foi traído
sempre vai ter esse sentimento de desconfiança. É impossível não ter, e o
jeito que o meu relacionamento acabou — isso é um eufemismo — fica
difícil não racionalizar.
Roubando minha atenção, que já estava me levando para a berlinda de
dúvidas e a rota de fuga, vejo Belinda voltando em uma cadeira de rodas
guiada por uma enfermeira. Ela parece estar com a cabeça em outro lugar,
nem troca um olhar comigo.
— Onde está a médica? — indago levantando e indo até elas.
— Está pegando os exames que saem na hora — a enfermeira explica.
— O senhor pode acompanhar ela se quiser agora na sala. A Dra. Bennett já
vem.
Assinto e vou atrás achando estranho não ouvir uma única palavra de
Belinda. Fechando a porta, a enfermeira nos deixa a sós. Encaro o perfil dela
e a espero se posicionar. Como não faz, sou obrigado a tomar iniciativa.
— Belinda?
Ela não esboça reação.
— Qual o problema? O que a médica disse?
Uma lágrima solitária escorre por sua bochecha e pinga no seu colo,
fazendo uma mancha na roupa azul hospitalar ficar mais escura, num tom de
azul petróleo.
Porra! Já começo a ficar preocupado.
— Nada concreto. — Sua voz baixa e fraca aparece. — Mas... o que
disse. Não sei, Adam. — Olha para mim, deixando mais lágrimas escaparem.
— Não sinto que seja algo simples. Estou apavorada.
— Não. — Abraço-a bem forte permitindo que chore nos meus braços.
— Não pense assim. Vamos esperar ela dizer o que viu.
Belinda soluça e concorda com um pequeno aceno, sem se soltar de
mim. Afago seus cabelos e fecho os olhos apoiando meu queixo sobre sua
cabeça.
Deus, permita que não seja nada muito grave. Por favor.
— Desculpe a demora — Sara Bennett diz entrando na sala, e eu e
Belinda nos afastamos para observar a médica se sentar atrás da sua mesa.
Ela cerra os olhos nos observando e, com certeza, nota o rosto abatido e
molhado de Belinda.
— Não fique assim.
— Não dá. O que você disse...
— Ah, meu Deus! Eu só disse o que suspeito e vi. — Oferece uma
caixinha de lenço. — Não fique assim. Vamos conversar. Certo?
— E o que a senhora suspeita? — pergunto já que Belinda parece
chocada demais para falar.
— Bem, como agora eu já tenho alguns resultados, os que saem
imediatamente, eu não vou dizer só o que pensei que fosse como irei dar o
diagnóstico. Pelo menos, os primeiros.
— Sim, senhora — digo e olho para Belinda, que está de cabeça baixa e
concordando vagarosamente. Estico minha mão e pego a sua, dando um
aperto de leve. Ela levanta a cabeça e, por fim, seus olhos encontram os
meus.
— Bem — a médica toma nossa atenção —, o que eu vi foi, a princípio,
um corrimento um tanto forte e incomum já que você disse que seu período
não está por vir.
Engraçado que ela me disse que as dores que estava sentindo era por
causa disso. Ela mentiu para mim. Agora eu só não sei se é porque fazer
relação sexual fez ela sentir dor ou porque sentir dor é normal para ela. Se eu
sou ou não uma parcela culpado. Merda! Não irei levantar esse assunto. Ela
já está abalada demais.
— Quando eu disse que não está pra vir é porque, provavelmente, deve
chegar na segunda ou no talvez no domingo, então para mim não está tão
perto. Hoje ainda é terça.
“Então ela não mentiu para mim”, penso sentindo meu coração
desacelerando um pouco.
— Pelo visto nós temos perspectivas diferentes de tempo — diz a
doutora com um leve sarcasmo. — Enfim, embora seja normal corrimentos
ficarem mais intensos e mais espessos no período fértil, nos cinco dias antes
da menstruação, eu achei um pouco irregular. Os primeiros exames não
detectaram nada de mais no corrimento, porém, quando chegar os novos
exames e complexos, saberemos bem melhor sobre esse assunto. No
ultrassom que fizemos, além do transvaginal encontramos um mioma. Ele
deve ter em torno de quinhentos gramas. É grande, mas não tão alarmante
assim. Pelo menos, de princípio, é o que posso dizer. Vou saber melhor com
os exames completos. O que quero dizer mesmo, é que hoje, neste momento,
só tenho o tamanho dele e aonde ele está: no seu ovário esquerdo.
— E o que é um mioma? Isso é muito grave?
— Mioma é uma massa, no caso um tumor benigno no útero ou ovário,
que pode se desenvolver durante a idade fértil da mulher.
— E o que pode causar isso? Eu fiz alguma coisa errada?
— Não. Claro que não, Belinda. Os miomas são tumores não cancerosos,
que muitas vezes aparecem durante a idade mais adulta da mulher entre vinte
a quarenta anos. Eles não estão associados a câncer de útero e quase nunca se
transformam em câncer. No entanto, tem alguns casos que são raros. Às
vezes, é necessário retirar os tipos miomas policísticos.
— E os sintomas são as dores que sinto e o corrimento que você achou
estranho? — ela indaga bem rápido. Aperto sua mão para ficar calma.
— Tem algumas mulheres que sentem todos os tipos de contração e
desconforto como se estivessem grávidas. De fato muitas relatam que sentem
até eles mexerem como se fosse um bebê.
Franzo a testa porque essas informações são bem bizarras.
— Essas mulheres que relatam isso já devem ter ficado grávidas — diz
parecendo sem humor, e eu não entendo o porquê. — Como eu nunca fiquei,
não sei. Eu apenas sinto desconforto e algumas coisas se mexendo, mas é
como se fossem gases. Não tem nada a ver com gravidez. E tipo, elas sentem
isso conforme o tamanho? Quinhentos gramas está muito grande? Tem
maior? Fica até que tamanho?
Com calma, a médica explica:
— Existe variedade de tamanhos sim, diferentes diagnósticos e tipos de
miomas. Existe o policístico, os raros. Alguns fáceis, sendo removidos
facilmente com antibióticos em tempo médio e longos, pois são inofensivos e
tem os tipos mais difíceis e demorados. Esses é preciso uma cirurgia para
serem retirados e até mesmo é preciso remover, o útero ou o ovário, se estiver
muito comprometido.
— Sério? — Belinda indaga num fio de voz, os olhos molhados.
— Ei, calma! — peço indo para sua frente envolvendo suas mãos. — Ela
não disse que esse é o seu caso.
— Justamente, Belinda. O que estou dizendo aqui são explicações que
qualquer paciente tem. Não se precipite, okay. Vamos nos falar na consulta
da próxima quinta-feira que vem e aí sim poderei dizer tudo sobre o seu
mioma. Agora posso até dizer que não tem nada.
Belinda assente e engole em seco. A médica sorri e dá a volta na mesa,
ficando à nossa frente. Nos levantamos e a olhamos com expectativa.
— Quero agora que você troque de roupa e vá para casa. Descanse, você
fez muitos exames hoje e deve estar exausta e com certeza esgotada
emocionalmente. Durma e pense positivo. Quando nos virmos vai ter
novidades boas.
— Vou tentar, doutora. Mas eu só queria saber... o que é um mioma
policístico? É a mesma coisa? Qual é a diferença? É mais grave?
— O mioma é um tumor benigno, com risco de malignidade muito
baixo. A degeneração ocorre quando falta adequada nutrição e oxigenação
para o mioma. Existem diversos tipos de degeneração: gordurosa, mixoide,
hemorrágica, cística, hialina, etc. Entendeu? E não é questão de pior ou
melhor. Todos os casos precisam de atenção e cuidado, a diferença é que, às
vezes, é preciso cirurgia.
— E eu vou precisar?
— Não sei, Belinda. No momento não posso prever nada. Se eu falar
algo aqui que não seja sobre você, posso me arrepender. O que eu posso lhe
dar como recomendação é ir para casa e descansar. Pensar em outra coisa e,
na quinta, nós conversamos de novo.
De cabeça baixa e parecendo contrariada, ela concorda com um aceno e
se vira, indo para a sala onde fez os primeiros exames. Vou atrás e seguro sua
mão antes de entrar no banheiro.
— Ei, vai ficar tudo bem.
Um soluço preso faz seu corpo sacudir, e ela não me encara.
— Escuta — viro-a para mim —, nós vamos para casa e fazer o que a
médica disse. Não se preocupe agora.
Ela assente e me abraça. Puxo o ar com força e afago seus cabelos. Eu
também não estou feliz com o que ouvi e ter que ser forte para ela é difícil,
mesmo assim vale o esforço.

Eu não posso imaginar o que Belinda está pensando e há três dias tudo
que ela faz é dormir. Está trancada no quarto desde a terça-feira, assim que
chegamos da consulta com a Doutora Bennett.
Não sei como prosseguir. O que fazer. Queria ser útil e ajudá-la de
alguma forma. Não sei se forço ela a sair um pouco do seu casulo, tomar um
banho e se distrair. Ou se a deixo sentir um pouco a dor. Merda! O pior é que
ela nem sabe de todo o resultado e já está desse jeito. Eu fico realmente
preocupado com ela já estar assim.
Me sinto perdido porque também estou preocupado. Quase não preguei
os olhos esses dias por ter que vê-la tão triste e saber do que pode ser. Tive
até pesadelo. Estou torcendo para que tudo se resolva com um tratamento
rápido e fácil. Que a alternativa seja a que a faça sofrer menos. Ela não
merece passar por mais desgostos. Já não basta ter uma família que nem liga
para saber como ela está. Quinta-feira faz uma semana que ela está fora de
Nova York, longe da mãe, e a mulher nem ligou para saber da filha. Sei que
isso a deixa muito triste e deprimida. Sei lá. Se não fosse por mim, Belinda
estaria completamente sozinha.
Sacudo a cabeça, termino o café que estava tomando e pego a bandeja de
café da manhã que eu fiz. Subo para o quarto, paro na porta e dou dois toques
antes de entrar.
A encontro encolhida no canto da cama abraçada a um travesseiro.
Parece tão frágil e triste. Odeio vê-la desse jeito.
Apoio a bandeja no criado-mudo do outro lado de onde ela está virada, e
me sento na ponta da cama.
Sinto-a retrair o corpo, sinal de que está acordada ou ressonando.
Um pouco relutante, estico minha mão até seus cabelos e os afago
suavemente. Escuto-a soltar um suspiro baixinho antes de abrir os olhos e se
virar para mim. Dá algumas piscadas e cerra os olhos.
— Oi — falo com calma. — Está se sentindo melhor?
Belinda puxa o ar com força e distraidamente, pega a minha mão e
começa a brincar com meus dedos. Contorna-os e depois entrelaça os seus
nos meus. E seu rosto fica sério, os olhos focados na frente, fitando o teto.
— Ei, está dormindo acordada? — brinco.
— Quem dera fosse isso — diz distraída e mexe os ombros sem vontade.
— E o que é?
Ela balança a cabeça, puxa o ar e segura, e assisto seus olhos ficarem
marejados quando finalmente resolve fazê-los encontrar os meus.
— Tive um pesadelo.
— Mas foi só isso. Um sonho.
Tiro uma mecha do seu cabelo da frente do seu rosto, chamando sua
atenção para minha mão novamente. Ela a pega, encosta no seu rosto e fecha
os olhos. Uma lágrima escapa bem suave, como se fosse um segredo, por
baixo das suas pálpebras. Isso me quebra.
— Estou sendo um hipócrita com você — digo baixo.
Belinda abre os olhos e franze a testa me encarando.
— Por que está dizendo isso?
— Porque durante anos eu me martirizei pelo que aconteceu. — Desvio
meus olhos dos dela. — No primeiro ano me entreguei à dor e
arrependimento. Não conseguia encontrar uma forma de viver com a culpa e
ausência. E agora estou aqui querendo arrancar de você — fito-a de volta —
algo que não fui capaz quando também sofri. Embora sejam circunstâncias
diferentes, não deixo de ser um babaca querendo fazer você levantar dessa
cama e tocar a vida como se nada estivesse diferente.
— Adam... — sua voz suave soa como música — escuta. — Ergue-se,
sentando na cama e ficando bem perto de mim, tanto que nossas mãos
continuam unidas. — Não é a mesma coisa.
— Eu sei que não é.
— Sei que você sabe.
— São completamente diferentes, mas você está sofrendo.
Baixa os olhos, piscando e respirando com dificuldade, talvez
procurando as palavras certas. Quando as encontra, seus olhos voltam para
mim com carinho.
— Sim, são situações diferentes sim. Eu não perdi ninguém e não é
como se eu fosse morrer.
— Não! Não é mesmo — falo rápido demais porque não quero que isso
aconteça de jeito nenhum. Não consigo nem imaginar.
— O que estou sentindo é medo. E é normal. Compreensível. Não é?
— Claro que sim, Belinda.
— O engraçado é que eu quis tanto saber o que é e agora que eu sei a
metade, quero esquecer porque não sei o que vai acontecer.
— O que vai acontecer é que vai dar tudo certo.
— E se não der?
Sinto uma pontada no peito.
— Nós podemos, por enquanto, não pensar nisso. Podemos apenas
absorver o que foi recomendado. Que é relaxar e viver. Deixa pra pensar
nisso na quinta-feira e... — seguro firme suas mãos — lembre-se: Não
importa o resultado, você precisa ser forte e corajosa, de outra forma, tudo
fica mais difícil. A fraqueza apenas nos leva para a perdição e você vai
vencer essa, Belinda.
Com lágrimas nos olhos, ela concorda com alguns acenos e se joga nos
meus braços, envolvendo-me num abraço forte. Engulo em seco e fecho os
olhos. Sou um mentiroso. Estou enlouquecendo pensando no que pode ser.
Merda! Não será apenas ela atropelada por esse trem que vem com a notícia
da quinta-feira.
Meu Deus, que seja algo simples. Algo curável e fácil. Não me dê mais
essa dor.
DEZESSETE

Não desistirei de nós


Mesmo que os céus fiquem violentos
Estou lhe dando todo meu amor
Ainda olho para cima
...
E quando precisar de seu espaço
Para navegar um pouco
Esperarei pacientemente
Para ver o que você descobrirá

I WON’T GIVE UP | JASON MRAZ

Fecho meus olhos e permito que o frio da maresia passe pelo meu corpo,
espalhando meus cabelos castanhos e preencha meus pulmões de ar com
gosto salgado. Deixo que o calor do sol me aqueça, atravessando a superfície
do meu casaco e até parece que atinge meu coração. Ouço as ondas se
quebrar na orla da praia, as gaivotas no fundo gritando.
Aproveito esse momento para não pensar. Apenas esquecer por um
segundo sequer que o meu coração dói. Dói mais que qualquer crise de dores
que já tive na vida. E eu já senti chegar no extremo, mas aquela dor estava a
um passo de um analgésico. Essa não posso fazer nada, só sentir.
Não! Para!
Eu preciso esquecer. Não lembrar as palavras da Dra. Bennett. Sendo
honesta, nem sei se entendi tudo, porque quando ela disse aquelas palavras,
as primeiras palavras, o meu mundo simplesmente ruiu sobre meus pés.
Como se eu estivesse em pé sobre um chão lamacento, que descobri, de
repente, que era areia movediça. Ela está me engolindo lentamente, e no fim,
metade de mim já não existia, a outra, lutava com a consciência da verdade.
Como a rachadura em um copo de cristal chegando ao centro. Faltando
um milímetro para se espatifar. BUM! Virei cacos espalhados.
— Deus! — clamo abrindo os olhos e fitando o céu. — Estou prestes a
cair. Tudo está doendo e de uma forma...
Suspiro, sorvendo o ar com força e fecho os olhos, dessa vez acontece o
que estava em meus pensamentos. Caio no chão, ajoelhando-me na areia de
cabeça baixa.
Quando eu sentia aquelas dores, eu podia até apalpar, mas o que eu sinto
agora é oco, inexistente, abstrato. É o pior tipo de dor que existe. Eu queria
que fosse um sonho, melhor um pesadelo terrível, no entanto, não. É de
verdade.
As primeiras lágrimas começam a aquecer sob minhas pálpebras, e abro
os olhos e admiro o oceano. Sua beleza, ambiguidade de vida, sua imensidão
e respiro fundo. Minhas mãos automaticamente vão para frente da minha
barriga em direção ao meu ventre.
Procuro a paz dentro de mim para pensar com clareza. Quando a gente
está prestes a desmoronar, o ideal é manter o equilíbrio e a paz. Está difícil,
só que preciso ser forte, não é o fim.
O problema é que não paro de pensar numa coisa. Eu sempre nutri uma
vontade de ser mãe, nem todas as mulheres têm esse grande desejo e querem
essa missão na vida. Contudo, já tem outras que ser mãe é mais do que uma
dádiva, é o presente mais imensurável que a vida pode dar.
Sei que ser mãe traz grandes responsabilidades e talvez eu nutria a
vontade dentro de mim de ser mãe para ver se podia ser melhor do que a
minha foi para mim. Porque no fundo sentia um vazio, ausência do cuidado
de uma mãe. A minha nunca foi boa ao ponto de eu querê-la como exemplo.
Cerro o maxilar com desgosto só de pensar nisso. O único tipo de exemplo
que eu tenho dela é: como não ser uma mãe como ela.
Caramba, ela de fato não se importa com a filha, acredito que com todos
nós (eu e meus irmãos). Célia sabe que vivo com essa dor há mais ou menos
dois anos e nunca prontificou nada, absolutamente nada e muito menos se
preocupou. Exemplo, antes de vir para Hampton falei com ela, recebi um
simples “boa viagem”. E no dia que descobri que iria fazer os exames mandei
uma mensagem para ela, que ainda não foi visualizada. Ou seja, ela pouco se
importa. Sério, não sei o que tem na cabeça dela, e agora que eu sei o que
tenho não penso por um minuto em ligar e contar para ela. Vou contar com
quem já está ao meu lado: Adam. E eu sei que ele detesta o que ela faz
comigo. Sua total e completa ignorância. Silêncio.
Ele não diz em voz alta o que sente sobre isso, no entanto, me questiona
sempre que pode quando surge uma brecha para fazer a pergunta. Ele não
está errado, eu sei.
É uma droga. Não dei sorte com pai e mãe como Adam Stella, muito
menos nos pais substitutos. Meu padrasto foi um pesadelo vivo e eu nunca
tive contato com a nova mulher do meu pai. Acho que a única sorte que tive
em questão de família foi minha tia, mas ela não poderia me dar mais do que
me deu. Ela mal consegue sobreviver com o que tem e mesmo assim, foi
incrível para mim enquanto morei na sua casa. Pequena em tamanho, grande
em aconchego.
Agora, eu que sempre sonhei em ser mãe, e com certeza iria ser incrível.
Um soluço é cortado e imagens de mulheres grávidas, roupinhas de bebê e
tudo relacionado a este laço único e eterno, vem à minha mente acompanhado
a um choro fraco.
Nunca vou poder gerar uma vida, nunca vou poder sentir a sensação do
corpo se transformando. De um bebê se mexendo e se comunicando dentro de
mim. O nervosismo, o medo, as incertezas. Nada! Nada disso vou ter, na
verdade, eu nem sei se vou...
Freio meus pensamentos levantando meu rosto e ficando de pé e logo
encarando o céu. Eu não quero que Deus me dê uma justificativa. Sempre fui
muito coerente em uma questão: de que tudo na vida acontece porque tem
que acontecer. Apenas tenho que aceitar o resultado.
Talvez eu estivesse sentindo, por isso que estava com tanto medo. Meu
Deus, sinto como se tivesse descoberto a história de outra pessoa, que o que
eu sei não é sobre mim. As palavras da médica ficam rondando minha
cabeça. Eu não consigo acreditar. Pior de tudo, é que o que estou sentindo é
muito mais que medo. Estou preocupada com o que vai acontecer daqui pra
frente.
É, vou ter que aguentar as consequências, fazer a cirurgia, passar pelo
tratamento e ficar em observação. Tentar viver. O problema é que fico
pensando nele.
Eu não queria, nunca planejei, me apaixonar por Adam. Nunca senti o
que sinto por ele e eu me sinto terrível em ter que dar uma notícia ruim. Fazê-
lo sofrer, passar por algo ruim de novo.
Antes eu queria resolver essas dores porque não aguentava mais, agora
quero sobreviver a essa doença porque não posso fazer Adam se arruinar
novamente. Ele não merece.
Hoje mais cedo, parecia que eu sabia de tudo, absolutamente tudo, tanto
que nem deixei Adam entrar na consulta comigo. Mesmo que ele fosse me
dar coragem, preferi que me esperasse do lado de fora e agora vou ter que ir
falar com ele. Bem, não é o que estou fazendo. Na verdade, estou fugindo,
pois não sei se vou suportar dar essa notícia para ele.
Droga! Droga! Droga!
Foi tão difícil trazê-lo de volta à vida. voltar a querer sair, viver, ser
legal. Volta a ser o cara que todos falaram que ele era. Meu coração dói por
saber como ele vai lidar com isso.
Ah, Deus! Me dê forças para não amarelar. Para não falhar e viver. Viver
ao lado dele. É uma verdade, amo Adam e não porque dormimos juntos e nos
beijamos. Não é sobre uma relação carnal, amo o homem que ele é. O filho,
amigo e protetor. O Adam Stella que me abraçou, confortando, durante meu
sono enquanto chorava e ele pensava que eu estava sonhando. Eu amo esse
cara com todo o meu coração.
Como se estivesse escutando meus pensamentos, e também porque deve
ter me procurado pela casa depois que saiu do carro, escuto-o me chamar.
Virando-me, o assisto correndo pela praia se aproximando. Quando chega na
minha frente, observa-me em silêncio, lendo meu rosto e corpo, enquanto
seus olhos sempre tão expressivos (até quando estão frios e bravos) estão
vazios. É o mesmo medo que eu sinto.
Meus olhos enchem d'água de novo e dou de ombros imitando um
sorriso amarelo, pois nem isso estou conseguindo fazer. Um sorriso falso de
verdade.
— Te procurei pela casa toda — Fala sério. — Até que te vi aqui.
Assinto e fito meus pés, meu All Star rosa sujo e úmido pela areia
molhada, assim como meus joelhos.
— O que está fazendo aqui sozinha? — Dá uma olhada no céu e volta-se
para mim. — Vai chover, vamos entrar.
— Já estou indo.
Adam franze o cenho, me olhando com desconfiança.
— Está tudo bem? — Dá um passo, ficando mais perto. — O que a
médica disse?
Sua voz parece estranha, fraca.
— Você saiu correndo assim que eu estacionei o carro e desculpa eu...
ter demorado. Fui atender minha mãe. — Engole em seco e eu assinto. — Ela
também quer saber o que a Dra. Bennett disse.
— Então ela descobriu que você está aqui e finalmente você atendeu ela.
— Forço minha voz a sair.
— Sim e eu precisava atendê-la. Ela não parava de ligar pro Vlad e não
era justo com ele.
— Eu sei. Está tudo bem com ela?
— Podemos não falar disso agora. Não é o importante.
— Tá.
— Você não parece que está bem. Está tão calma que eu nem reconheço
você. — Dá mais um passo. — Parece que está em choque.
Ele tem toda razão. Me sinto um robô congelado no lugar. Sem reação e
sensibilidade. É como se meus lábios se movimentassem sem coordenadas.
Sem ao menos sentir o que estou dizendo.
— É impressão sua. Eu... estou bem. Não se preocupe.
— Acho que a essa altura você sabe que é inútil falar para eu não me
preocupar com você. — Ergue as sobrancelhas, ressaltando sua opinião. — E
você acabou de vir de uma consulta importante. Acabou de receber o
resultado que estávamos esperando ansiosos a semana toda. Então, nem vem
me dizer que sua reação é menos do que preocupante.
Como eu posso dar as costas para alguém como este homem? Sem
perceber, ele me dá o que foi ausência na minha vida toda: atenção de
verdade.
E por isso meus olhos transbordam. O enxergo sob uma névoa de
lágrimas.
— Ei, Belinda. — Me puxa para si, abraçando-me bem apertado. —
Fique calma e fale comigo. Okay?
— Uhum — concordo com um murmuro.
Com delicadeza, me afasta. Deixa as mãos nos meus ombros, afagando
sem nem notar o carinho.
— Vai me dizer o que a médica descobriu?
Meu coração fica tão... tão pequeno. Olhando seus olhos, mergulho
naquele azul, que hoje me traz calma.
— Adam... — Minha garganta fecha, com um soluço preso.
— O quê? — Sua voz sai hesitante.
Engulo o choro, mas uma lágrima escapa e ele limpa.
— Não pode ser tão grave — Adam murmura inseguro. — Não é?
Mordo meu lábio inferior, prendendo o choro. E ele segura meu rosto,
obrigando-me a encarar seus olhos aflitos.
— Ah, não me olhe assim.
— Assim como?
— Como se o que eu fosse falar, não fosse importante pra você.
— E é — diz com toda certeza, assentindo e fitando dentro dos meus
olhos, dentro de mim. — Acredite em mim.
Fecho os olhos sentindo meu peito pequeno demais para suportar
tamanha dor. A voz da médica vem em minha mente e agora estou
arrependida de ele não estar comigo na consulta. Ter que falar em voz alta
tudo aquilo... ah, Deus!

— Belinda, quero que você entenda primeiro que é um mioma policístico


para, quando eu disser seu diagnóstico, você entender perfeitamente.
— Tá. Tudo bem. — Minha voz saiu com uma leve confiança. Total
ignorância do que estava prestes a ouvir.
— Então, geralmente mioma, até mesmo os policísticos, são benignos.
São pequenos tumores, massas que se formam no útero. Os benignos são
tratados com antibióticos e praticamente indolor. Mas...
Quando surgiu o MAS... meu coração parou.
Tinha chegado a hora de saber.
— ...encontramos sinais de câncer no seu ovário. — Ela continuou: — E
quando fizemos todos os exames, pegamos amostras e fizemos a biópsia, que
confirmou.
Tem como estar viva sem respirar?!
O coração congelado?!
Os pés sem tocar o chão?!
— Na verdade, o que encontramos não foi exatamente um mioma.
Infelizmente é um leiomiossarcoma. Um tipo diferenciado do diagnóstico do
mioma, pois este é cancerígeno e não um factoide de mioma.
— E?
— Nós precisaremos remover seu ovário esquerdo para que você possa
viver. Entende? — perguntou com calma. — Sei que não é a notícia que
esperava e que gostaria de ouvir, mas estou tranquila que não está muito
avançado e agravado. Ainda tem como resolvermos isso com uma
ooforectomia.
— O quê?
— Perdão. Uma ooforectomia é o nome científico para a retirada do
ovário, um ou os dois. Se fosse apenas um mioma trataríamos com uma
laparoscopia, no entanto o seu leiomiossarcoma atingiu todo o ovário,
infelizmente.
— Isso quer dizer que... não vou engravidar?
— Vou explicar melhor o que é um leiomiossarcoma. É um tumor
maligno, imprevisível e raro, originado de algum músculo liso. Geralmente
surgem no útero, vasos sanguíneos ou tubo digestivo. Portanto, com o câncer
nas paredes do seu ovário esquerdo, junto com um conjunto de vários cistos
e secreções hormonais chamado síndrome do ovário policístico, você
apresenta um tipo raro de diagnóstico que não se resolve com medicamento.
Apenas a cirurgia tem efeito. E também nos exames vimos que no seu ovário
direito tem endometriose, que pode ser tratada com hormônios ou uma
excisão cirúrgica. Vamos tentar ao máximo salvar o ovário direito, mas não
posso garantir. Não sabemos se o câncer já tomou ele também. Saberemos
quando abrirmos você na sala de cirurgia.
— Quais a chances... de eu poder engravidar depois? Quais os riscos se
eu... não fizer essa cirurgia?
— Não recomendo que você não faça a cirurgia. Se eu falasse isso
estaria colocando sua vida em risco. Todo câncer, assim que detectado,
precisa ser tratado de todas as formas. Alguns pacientes vão direto para a
quimioterapia e outros o recomendado é a retirada, quando é possível —
falou veementemente. — Você precisa entender que tem sorte por ter a
chance de tirar o câncer com uma cirurgia apenas. Há casos muito
avançados que não tem jeito operação e quimioterapia, nem radioterapia.
Entenda, Belinda, a opção que estou lhe dando é a melhor e mais segura
para o seu caso.
— Sorte? É sério?
— Parece que estou sendo incoerente e mesquinha, mas estou falando a
verdade. Eu ficaria muito mais arrasada em ter que lhe dar uma notícia pior
como: “seu câncer virou metástase e você está morrendo e tem dois meses de
vida”. — Ela parece lembrar de algo dizendo isso e tinha sentimento em suas
palavras. — Sem ser insensível, você preferia isso ou simplesmente retirar
esse câncer de você e viver? Ter a chance de envelhecer e procurar ser feliz.
— Eu só tenho vinte e cinco anos. Não tenho nada. Não tenho ninguém e
se um dia Deus me desse uma criança... — Baixei minha cabeça, encarando
minhas mãos e solucei.
— Pensei que você tinha o Adam. Vocês não estão juntos?
Engulo em seco o gosto salgado e volto a encará-la.
— Não sei. Quero que... sim. — Uma lágrima escorreu em meu rosto.
A doutora Bennett suspirou e sorriu em lamento. Pena e solidariedade.
Não consegui sentir desprezo. Nunca tive isso: pessoas preocupadas comigo
e com meu bem-estar de verdade.
— Acho que para ele também. Converse com ele e descubra o que vocês
são.
— Agora? — Meus lábios tremeram e limpei meus olhos.
— Não entendi.
— Agora que eu posso morrer? Que estou doente. — Meu corpo sacudiu
conforme chorava. — Você sabe como foi difícil trazer ele de volta? Fazer
aquele homem educado e atencioso, que está sentado lá fora, estar aqui?
Tudo pelo que ele passou e fez a família dele passar. — Fechei os olhos. —
Não quero machucá-lo de novo.
— Você não vai, querida.
Ela saiu de trás da sua cadeira e se sentou ao meu lado, pegando minha
mão e apertando.
— Escuta, você não está morrendo e eu prometo que não vai machucar
ninguém e nem a si mesma. Fique tranquila e confia, nem que seja um
pouquinho, na minha palavra.
Concordei com um aceno inseguro e puxei o ar com força.
— Belinda?
Abro os olhos e levanto a cabeça. O encaro, voltando para o presente.
Tomo ar, melhor dizendo, tomo coragem e falo:
— Antes... de eu dizer o resultado, me responde uma coisa.
— O quê? — Franze a testa, confuso.
— Se for grave, você... vai ficar bem? Vai ficar do meu lado?
— É grave?
— Não, primeiro me responde. Você vai ficar bem comigo doente? Sou
importante pra você ao ponto de se importar?
— Você não acreditou em mim? Acabei de dizer que é importante.
— Você mal me conhece, Adam.
— E tempo muda o que sentimos pelas pessoas? Fala como se gostar de
alguém em pouco tempo fosse irreal quando é muito mais provável gostar de
quem sentou ao seu lado no metrô do que um parente seu que você conhece
desde sempre. — Segura minhas mãos. — Nós — faz um movimento de vai
e vem com a mão entre a gente e continua — podemos ter começado com o
pé esquerdo, mas com o tempo foi ficando bom. — Abre um curto sorriso de
lado. — Acho que você não sabe o que fez por mim. Fez “em” mim, Belinda.
Ai... meu coração. Soluço e o abraço.
— Se eu pudesse escolher, eu estaria bem aqui, com você. Deixei de me
importar comigo há muito tempo e quando você apareceu trouxe um
propósito real para mim, Belinda. — Me afasta, segura meu rosto e os
polegares, movem-se com lentidão, num carinho em minha bochecha. — Um
sentimento de que precisava compensar meus erros, acertando com alguém
puro e de bom coração. Você!
— Não é justo — sussurro chorando.
— Muita coisa nesse mundo não é justa e não será por isso que temos
que parar de tentar. — Me leva para os seus braços de novo e eu fecho os
olhos. — Não é o que queríamos e mesmo assim não será por isso que temos
que nos afastar.
— Não quero que você sofra de novo.
Seu coração bate rápido, ele respira fundo, parece contar até dez e me
afasta. Pega meu rosto entre as mãos e olha dentro dos meus olhos.
— Você... está morrendo? É isso? Não tem cura.
— Não. Não é isso.
— Então por que está tão desesperada e me deixando nervoso? Eu juro,
Belinda, você está me deixando com a cabeça quente.
— Me desculpe. De verdade é que... eu...
— Você mesma não está sabendo lidar. — Beija minha testa e limpa as
lágrimas que escorrem em minha face. — Está com medo e não só por mim
te abandonar? Acha que eu seria capaz disso?
Fico em silêncio. Tenho medo de ferir seus sentimentos com o que pode
sair da minha boca. Só digo o que tenho como experiência.
— Todo mundo deu as costas para mim. Na verdade, nunca tive
ninguém e você... parece que é a primeira pessoa na minha vida a querer ficar
ao meu lado e tenho medo disso – o que tenho – me afastar.
— Belinda, vou te contar uma coisa que nunca falei para ninguém. —
Desvia os olhos, focando nos botões da minha jaqueta. — Que compartilhei
com alguém. Algo que aconteceu naquele dia e que sempre que falam o que
aconteceu parece ter uma lacuna na história. Porque parece que eu e minha
família decidimos fingir que não aconteceu. Que nossa família tem um
buraco. — Seus olhos encontram os meus novamente. — O homem que
estava beijando Selena naquele quarto era o meu irmão.
Ah, meu Deus! Suspiro alto com a revelação.
— Ian era o meu melhor amigo. Eu o amava tanto que fiz o curso de
fotografia para me sentir perto dele, de algum jeito, depois que morreu. Esses
seis anos que vivi amargurado foi por culpa de ter perdido ele. Eu podia amar
Selena e sonhar em construir uma família com ela, mas, na verdade, a dor que
mais senti foi perder meu irmão e... durante o primeiro ano fiquei com raiva
dele. Sabe — dá de ombros —, por ter feito o que fez. Mas hoje o que eu
mais queria era poder dizer que tudo bem. Que o perdoo e... sei lá. Que eu
iria amá-lo de todas as formas. — Seus olhos ficam molhados, tanto que uma
lágrima escapa quando pisca. — Eu só queria meu irmão de volta e se ele
quisesse ficar com a Selena, e ela o escolhesse, tudo bem. Não queria ter
perdido eles, principalmente da forma como foi. — Engole em seco e muda o
semblante, ficando calmo. — Enfim, tem uma coisa sobre ele que tem tudo a
ver com você.
Franzo a testa e pergunto:
— O quê?
— Você lembra ele. A mania de querer saber de tudo, querer ajudar e
falar as coisas na cara. — Assisto sua mão lentamente se aproximar do meu
rosto e afagar minha bochecha. — Esse jeito seu me fez adorar você nas
horas que eu queria, de verdade e infelizmente, expulsar da minha casa.
Não é para rir, mas faço.
— Sei que quis.
— Ainda bem que não fiz. — Me puxa para ele e encosta sua testa na
minha. — Não duvide que estarei do seu lado, Belinda. — Afasta-se e olha
meus olhos. — Adoro você.
— Também te adoro, Adam Stella. Você é meu malvado favorito.
Ele ri e beija meus lábios de leve.
— Agora você vai me contar o que tem?
E meu coração se comprime novamente. Agarro suas mãos sob meu
peito e murmuro:
— Vou ter que fazer uma operação, senão... pode piorar e... eu morrer.
Adam engole em seco e seus olhos ficam nublados.
— Isso que você tem é o quê?
— Meu mioma, aquele negócio que a médica disse que tinha no meu
ovário, então... ele é.... — Perco as palavras. — Tipo assim, ele não é o
problema. O problema é no ovário, nas paredes dele surgiu uma massa
cancerígena e ela tomou tudo. O jeito é tirar — pauso recuperando a voz. —
Ela disse que precisa tirar tudo, pois não tem jeito e se não fizer... Bem, corre
o risco de agravar a situação e o câncer virar metástase, que é quando passa
para outros órgãos, e... aí é ladeira abaixo.
Ele desvia os olhos dos meus e franze a testa. Ah, Deus, acabei de atingi-
lo com um trem-bala no meio do peito.
— Viu por que eu estava com medo de falar com você? Era por isso. —
Choro baixinho. — Você está arrasado.
— E você queria que eu sorrisse? — Levanta a cabeça e me fita
zangado. — Que coisa, Belinda. Você queria que eu não sentisse nada?! —
Recua afastando-se totalmente de mim, mas sinto que não é de maldade. —
Eu sinto tudo. É claro. Você é importante pra mim.
Sinto meu rosto contorcer conforme tento segurar o choro.
Areia movediça.
Areia movediça.
ESTÁ ME ENGOLINDO!
— Eu... — Baixo a cabeça e puxo o ar, segurando.
Quando vejo, estou correndo para casa e Adam vem atrás de mim.
— PARA! Aonde você vai? — berra e segura minhas mãos, fazendo-me
virar para ele. — Para. Me escuta.
— Não... — Meus lábios tremem e derramo as primeiras lágrimas. —
Deixa eu ir... cuidar de mim.
— Você não vê que precisa de mim?
— Não! Eu não preciso de você — minto.
— Não é verdade.
— E se for?
Um silêncio corta o ar entre nós permitindo o som das ondas fazer
presença ao nosso redor.
— E se talvez eu precisar de você? — Ele profana e parece que o mundo
para de girar. — E se talvez eu te... — para abruptamente.
Prendo a respiração e fixo meus olhos nos seus. Eu quase consigo ver
um ponto de luz em suas írises azuis. Quase vejo a esperança. No entanto,
quando parece que a névoa sai da frente, limpando minha visão para o que ele
quer dizer, o que está pedindo, vejo apenas desespero. Medo!
Uma voz dentro de mim diz que no fundo ele tem medo de parar de
sentir a culpa, que o fez viver a vida miserável dos últimos seis anos. Talvez
tenha medo de tentar de novo e voltar a se sentir assim.
No fundo, o medo de tentar é não superar. É cair no precipício. É sentir
que não consegue alcançar a expectativa.
Todos se sentem assim, mas talvez para Adam é pior. Acho que ele já
esteve do outro lado e foi engolido por seja lá o que o transformou nessa
casca de homem.
Por Deus. Nem eu com meu problema assustador me sinto assim. Estou
com muito medo, um sentimento desesperador, mas não penso em desistir.
Sempre que estive em um caminho sem retorno, segui a estrada até ela
acabar e encontrei uma forma de refazer e conseguir chegar no meu caminho.
A esperança e a fé, é isso. Dar o passo primeiro, depois esperar cair ou
flutuar.
— Você é a única que me confrontou sem ter pena de ferir meus
sentimentos. — Faz uma pausa e seus olhos abandonam os meus. — Você
fala comigo como... só Ian falaria comigo. Talvez foi por isso que detestei
você chegar. Você me faz lembrar diariamente dele e dela e do fim. Você
deixou eu tocar em você. Fazer amor com seu corpo quando eu não mereço
nenhum sentimento bom e não pode ir. Não pode simplesmente sumir.
— Não fala assim.
— É a verdade, Belinda. Só você me traz de volta para a superfície. Só
você fez isso. Eu estou me afogando há tanto tempo.
— Eu nunca quis ser grossa com você. Eu só... devolvi. — Dou de
ombros vendo-o levantar a cabeça e assentir.
— Sei disso e não é ruim. — Dá um passo e segura meu rosto. — O que
você... O que comecei a sentir depois de você me falar tantas coisas, foi bom.
Eu gosto.
Meu coração parece que vai sair pela boca. Adam respira fundo e
encosta sua testa na minha.
— Não para, por favor. Senão... eu vou voltar a me afogar e talvez não
tenha como salvar.
— Não fala assim. — O abraço muito forte.
— Então, fique comigo. Seja forte.
— Eu estou com medo.
— Tudo bem. — Coloca uma mecha de cabelo atrás da minha orelha e
deixa a mão em meu rosto. — É natural ter medo.
Assinto e agarra sua outra mão.
— Tenho medo... de deixar você e...
— Você não vai — me interrompe e vejo o desespero em seus olhos.
— Não quero que você... se parta ao meio de novo.
Seus lábios curvam-se com suavidade para o lado e ele solta a respiração
com força. Os olhos fixos nos meus deixam eu ver que, na verdade, aquela
sombra já está saindo.
Eu sou a causadora disso.
Deus! Eu não posso quebrá-lo novamente.
— Nós vamos ficar bem.
Concordo com um aceno.
— Só não tente me afastar por medo de me machucar. Porque você não
vai. — Faz uma pausa e vejo sua mandíbula cerrada. — Não vai se ficar aqui,
comigo. Vamos lutar juntos.
DEZOITO

O que estamos fazendo?


Estamos nos transformando em pó
Brincando de casinha em ruínas de nós
...
Correndo de volta para o fogo
Quando não há mais nada a salvar
É como perseguir o último trem
Quando é tarde demais
Tarde demais
...
Isso me deixa pra baixo
Eu tento continuar em frente, mas isso dói muito
Eu tento perdoar, mas isso não é suficiente
Para tornar tudo bem

BROKEN STRINGS | JAMES MORRISON

Sempre tive orgulho do homem que sou. Das palavras, promessas, que
fiz e cumpri, e eu fui um grande mentiroso dizendo que estou sendo forte
com o resultado dos exames de Belinda.
Minha nossa! Eu quase senti meu coração sair de mim. Porra! Câncer?!
Um maldito câncer pode me tirar a luz que invadia minha casa, minha
vida. A pessoa que surgiu como um anjo no meu caminho e me trouxe de
volta.
MERDA! Não posso sentir raiva. Não tem um alguém para merecer
minha fúria. É apenas o destino pregando mais uma peça na minha vida.
Porque, no fundo, ninguém nasce quebrado, é a vida que faz o trabalho sujo.
Eu sempre soube que ela tinha um problema, porém não imaginei que
fosse um câncer. Um risco de morte.
Tentei negar, fugir e mentir para mim que o que estava acontecendo
comigo e Belinda era nada. Que não significava grandes coisas, que eu me
importava tanto com ela e seus sentimentos, sonhar com ela, me preocupar e
todos os temores que passou por meu corpo quando nos tocamos nus
(Belinda não sabe como foi minha total entrega naquela noite), não eram
nada.
Fecho os olhos e estico minha mão encontrando a sua. Ela está dormindo
profundamente desde ontem à tarde, não por vontade própria. Tive que lhe
dar um calmante. Nossa conversa na praia foi além de seu limite, o meu
também não posso negar. Não sei como não enlouqueci.
Para muitos parece que sou frio, sempre pareci, não tem nada a ver com
o que me aconteceu. Pobres mortais, mal sabem que dentro desse homem
sério habita um cara fraco e que se pergunta agora se se apaixonou tão rápido
pela garota porque sentia a iminência da sua ausência. Que amá-la foi meu
bote salva-vidas, da vida que estava desperdiçando.
Fecho os olhos e deixo todo o peso dessa angústia me tomar, se apoiar
em minhas costas e fazer-me deitar por breves segundos ao seu lado. Abro os
olhos e admiro seu pequeno nariz, a boca rosada e as pálpebras que agora
escondem o azul das suas irises. Olhos que enxergaram minha alma desde o
início e provavelmente viu algo que merecia ser resgatado.
Respiro fundo e, quando decido ficar na cama, sinto meu celular vibrar
no bolso e logo a melodia soar. Droga!
Levanto sem fazer movimentos bruscos, saio do quarto atendendo a
ligação e fecho a porta. Mal digo “alô” e minha mãe me bombardeia de
perguntas.
— Adam, por que não ligou ontem? — acusa-me e nem me deixa
responder. — Esperei a tarde e a noite toda sua ligação. Está tudo bem?
— Oi, mãe — falo com a voz irônica. — Não liguei ontem porque fiquei
ocupado.
— Belinda está bem? — Sinto a preocupação em sua voz.
— Não sei se a resposta certa é sim porque a verdade é que ela não está
bem. — Foco num ponto cego no chão e engulo em seco. — Ela pegou o
resultado ontem e... mãe... Será que estou fadado ao sofrimento?
— Adam, meu filho, não pense assim. Tenho fé de que ela vai ficar bem.
Assinto e desço, vou em direção à cozinha.
— Você já conversou com a médica?
— Vou hoje. Na verdade, daqui a pouco. Marquei um horário para
saber de tudo. — Passo a mão no rosto, tenso. — Sei lá. Talvez eu só
acredite quando ouvir da boca dela e não só isso. Quero saber tudo o que
pode ser feito.
Mamãe fica em silêncio por um longo tempo, quando fala sua voz está
emotiva:
— Você gosta dela, não é?
Concordo com um aceno primeiramente, e depois me lembro de que ela
não pode me ver e profano as palavras:
— Gosto muito. Belinda é meu bote salva-vidas. Você tanto quis e
conseguiu.
— O quê, querido?
— Me trazer de volta, mãe. Você lutou esses anos todos e agora me tem
de volta. O triste é que... estou passando por isso antes de tentar ser feliz de
novo. — Abro um sorriso amargo. — Quando colocou ela na minha casa
pensou que eu iria me apaixonar por ela?
Ela suspira do outro lado da linha. É! Essa ela não esperava ouvir de
mim agora.
— Na verdade, minha ideia era te dar uma amiga e alguém para te
ajudar a voltar a trabalhar. Não planejei vocês se envolverem. — Pausa e
posso imaginá-la sorrindo. — Mas estou feliz e estarei mais ainda quando
vocês voltarem daí bem. Essa menina merece todo o amor que podemos dar.
Cerro os olhos desconfiado e indago:
— Você sabia do padrasto dela?
— Bem — limpa a garganta —, eu passei a desconfiar quando Célia
apareceu com machucados no rosto duas vezes seguidas e logo me contou
que Belinda foi morar com a tia. Senti que tinha algo errado e procurei saber
o que aconteceu e a irmã de Célia me explicou tudo. O padrasto de Belinda
quebrava a casa, batia na mãe e uma vez bateu nela. Para a Belinda de
dezenove anos não era certo e ainda mais com a mãe o defendendo. Então,
ela simplesmente foi embora de casa e, francamente, Célia nunca foi uma
mãe atenciosa.
— Por que não lembro direito da Belinda aí em casa?
— Ela vinha aqui muito pouco. Praticamente a conhecia de vista. Passei
a saber mais dela quando foi morar com a tia e fiz amizade com Rose.
— Foi assim que descobriu que ela precisava de dinheiro para fazer os
exames?
— Sim e fiquei muito preocupada quando Rose me falou. E a minha
ideia era deixá-la na sua casa para te ajudar, filho. Juro que não estava
dando uma de cupido. Não sonhava com você se apaixonando de novo.
Assinto e cerro a mandíbula.
— Confesso que eu também não, mas aconteceu, fazer o quê?!
Ela solta uma risada.
— Não importa. Quero que você seja feliz e se Belinda faz você se sentir
bem, trate de fazê-la bem também e, se precisar de mim, é só ligar. E quando
voltar da consulta com a médica ligue para mim. Quero saber de tudo. —
Faz uma pausa rápida, deve ser para respirar, né. — Qual foi o resultado dos
exames?
— Câncer no ovário.
— Ah, meu Deus!
— Ela vai ter que tirar o esquerdo e parece que tem um problema no
direito. Vou saber melhor com a doutora Bennett e te ligo depois pra conta.
— Uhum. Tudo bem e qualquer coisa me ligue.
— Pode deixar, mãe.
Ela manda beijo, para mim e Belinda, e desliga. Ponho o celular sobre a
bancada da cozinha e apoio as mãos no mesmo, soltando o peso nos ombros e
a respiração. Lembro do que minha mãe disse e trago como uma droga: “Ela
merece todo amor que podemos dar”. “Principalmente o que nunca teve”,
completo mentalmente as palavras que faltaram para a minha mãe. Sim. Ela
merece todo amor do mundo.

Empurro a porta de casa e logo grito seu nome. Belinda não responde,
então presumo que ela ainda esteja dormindo.
Fui correr depois que conversei com a Dra. Bennett. Minha cabeça
estava muito cheia com toda a informação sobre o problema de Belinda. E
meu coração em um dilema se batia ou parava. Por isso, a solução que
encontrei foi correr numa tentativa de despejar minha energia.
São duas da tarde agora e consegui pegar o almoço no restaurante da
Mona. Deixo o embrulho na cozinha e subo para o quarto para ver como ela
está. A encontro no meio da cama coberta até a cabeça encolhida. Não sei por
que, mas tenho a sensação de que ela teve um pesadelo.
Desde que fomos ao hospital, ela passou a ter pesadelos muito fortes; e
após o resultado, ontem, essa noite foi difícil para ela. E eu sei muito bem
como é essa luta contra a imaginação perturbada, um coração angustiado.
Meus pesadelos após o acidente sempre foram muito reais; alguns revivi
o que passei e outros era bem pior. Eu acordava me sentindo vulnerável,
impotente e totalmente sem forças para fazer qualquer coisa a não ser chorar
como uma criança em posição fetal. Já sofri muito em silêncio e saber que
Belinda agora está passando por tal sofrimento, ou maior, me atormenta.
Preciso fazer algo para distraí-la. A médica disse que não vai adiantar em
nada ela ficar assim.
Sentando-me na beirada da cama, tiro a coberta de cima do seu rosto e
escuto-a apenas murmurar se mantendo tranquila em seu sono. Fito seu rosto
atentamente e percebo que abaixo dos olhos está um pouco úmido como se
ela tivesse chorado.
— Ei — a chamo baixo, despertando-a com toda a calma que posso
oferecer. Afago seu rosto, tirando o cabelo da frente, e acaricio-a até os
ombros.
Belinda pisca algumas vezes antes de soltar um resmungo e finalmente
abre os olhos. Atordoada olha para os cantos como se estivesse perdida, então
ela me vê e parece se acalmar.
— Está tudo bem? — indago para seus olhos distantes.
— Uhum — murmura baixinho. — Você saiu.
— Fui correr e aproveitei para comprar o almoço pra gente.
— Ah, tá.
Não sei por que, mas minha ausência fez um grande estrago no seu dia.
Não pensei que deixá-la permitiria ficar abalada. A minha vida é sempre
assim. Entre erros e tentativas de acerto.
— Quando estava correndo pensei que a gente podia passear um pouco
hoje. — Não vou contar para ela que conversei com a doutora Bennett.
— Passear?
— É — afirmo. — Conhecer os lugares de Hampton. Tenho certeza de
que você vai gostar. Tem muitos lugares aqui que são muito bonitos e que
não aparecem nos filmes que você falou naquele dia.
Solta uma risada baixa.
— Eu falei dos filmes porque era a única referência que tinha desse
lugar. Nunca pensei que iria conseguir sair de Nova York. Acho que eu só
conheço Nova Jersey porque fui morar lá com a minha tia. Fora isso, nunca...
teria oportunidade de sair do meu bairro.
— Bem, então nós temos que mudar isso. — Afago seu rosto. — Você
vai ficar boa logo logo e nós poderemos fazer uma viagem. Qual o lugar que
você mais gostaria de ir?
Sua reação é totalmente diferente do que poderia imaginar que fosse
tomar. Seus olhos ficam marejados e num rompante, que me deixa confuso,
senta-se na cama e vem me abraçar. Envolvo seu corpo bem junto de mim e
fecho os olhos, respirando fundo para sorver o seu cheiro de lavanda. Esse
cheiro que comecei a ficar hipnotizado desde a festa de Natal. Eu só não
conseguia identificar antes. É seu xampu.
Saio do devaneio, por causa do seu cheiro e apreciação do seu abraço,
para preocupação quando seu corpo sacode conforme chora.
— Ei, não fica assim. — Acaricio suas costas, que por sinal estão nuas.
Ontem, quando nós viemos dormir, tomamos um banho quente e
cheiroso na banheira. E fiz questão de secá-la e ajudar a colocar uma roupa,
mas Belinda quis ficar apenas de calcinha e me pediu gentilmente para
abraçá-la enquanto dormia. Não consigo, nunca vou conseguir, esquecer suas
palavras. “Quero que hoje você seja a única coisa a me aquecer durante a
noite.” Ela me disse sussurrando e rompendo minha estrutura. Minha gentil
garota curiosa.
— Belinda, olha para mim.
Ela sai um pouco dos meus braços e limpa os olhos.
— Por que você está chorando assim?
— É porque... enquanto estou aqui morrendo de medo, você está fazendo
planos para gente e eu não sei... — Pausa respirando fundo. — Eu estava
vendo num seriado que, por mais que não seja uma cirurgia tão grave, tudo
pode acontecer, Adam e eu... — Ela não consegue terminar a frase, fica
engasgada com as lágrimas.
Carinhosamente pego o seu rosto em minhas mãos, traga-o para mim e
seus lábios. Beijo seu nariz, as bochechas e sobre suas pálpebras quando
fecha os olhos. Me afasto e fito seus lindos olhos azuis que antes eram tão
curiosos, me trazia uma espécie de aventura e hoje estão tristes, que me faz
querer arrancar todo esse mal de dentro dela. Infelizmente, não posso fazer
nada a não ser ficar do seu lado. Isso é tão pouco. Merda!
— É claro que estou fazendo planos. Você vai ficar boa e, por favor,
para de assistir esses seriados. Vamos lá, eles sempre são dramáticos
propositalmente. É pra gente ficar pensando nas consequências de não nos
cuidarmos. — Toco seu nariz de brincadeira. — Então para de pensar nisso.
— Trago suas mãos para cima e beijo cada uma delas. — Você já está se
cuidando, não é tarde demais e vai ficar boa, meu anjo. — Assinto e
pergunto: — Você sabe disso, não sabe?
— O quê? — Seus olhos ficam marejados novamente.
— Que você é um anjo na minha vida e só por isso é um motivo maior e
vários outros para que Deus faça ficar boa. Você é um anjo, uma pessoa boa e
generosa. E é desse tipo de pessoa que o mundo precisa. Entre o caos e a
tranquilidade o mundo se equilibra para manter a harmonia; embora pareça
confuso dizer isso, é a verdade desde que o mundo é mundo. Existe o certo
ou errado. Existe o bom e o mau. Existe o verdadeiro e o mentiroso. E, graças
a Deus, você está entre os bons e certos nesse mundo, então é por isso que
precisa ficar aqui e salvar pessoas como eu que não conseguem enxergar com
clareza que no equilíbrio da vida existem ganhos e perdas, mas que não é
pelas perdas que devemos desistir de ganhar mais um dia, de tentar outra vez
e quem sabe acertar.
— Adam — toca meu rosto —, você não é errado em nada. Você só
estava triste e se eu sou tudo isso que disse, se eu sou tudo isso para você, é
muito mais responsabilidade para deitar naquela mesa de cirurgia. — Respira
fundo. — Sei que não deveria falar isso, mas vim de uma família que não
soube me dar amor e nem atenção. Nós nos conhecemos em tão pouco tempo
e você já me deu muito mais do que já ganhei nesses vinte e cinco anos. —
Ajoelha-se na cama, ficando mais perto. — Eu prometo, Adam Stella, que
vou tentar ficar mais segura. Mas não posso prometer que vou deixar de ter
medo e chorar e sempre pensar no que pode acontecer, já que tudo na vida
não tem probabilidades de garantia certa.
— Tudo bem. Eu aceito e se você vai ser o duvidoso deixa eu ser o
confiante.
Concorda, chorando, sem emitir nenhum som.
— Porque para mim... — confesso olhando dentro dos seus olhos. —
Dentro de mim, você vai se sair muito bem. Vai ter uma recuperação muito
boa e eu vou estar do seu lado antes, durante e depois. E aí, depois que você
ficar cem por cento, nós podemos viajar e conhecer onde você quiser.
Ela concorda lentamente com a cabeça e molha os lábios com a língua e
continua movimentando a boca como se quisesse falar algo, mas no fim se
joga nos meus braços de novo. Me aperta bem forte, sussurrando em meu
ouvido:
— Eu nunca vou conseguir ser grata o suficiente pelo que você está
fazendo por mim.
Sorrio, um pouco mórbido, e digo o que estou sentindo:
— Fico triste de você não conseguir ver que fez mais por mim do que eu
estou fazendo por você agora.
Beijo seus cabelos e fecho os olhos para sentir o seu aroma, as fortes
batidas do seu coração acelerado, suas mãos nas minhas costas, acariciando
com timidez, como se estivesse descobrindo cada nuance do meu corpo.
— Eu não estaria aqui, agora, cuidando de você se não tivesse cuidado
de mim antes. E só posso confessar que — me afasto para olhar seus olhos
enquanto falo — não era o que eu imaginava. Que eu queria que acontecesse,
mas não posso fugir disso ou negar. Eu adoro muito você para fugir disso e a
gente sofrendo ou não. Com algumas lágrimas no caminho, eu vou estar do
seu lado porque você me fez voltar acreditar no amanhã. E sim, sou
eternamente grato por você na minha vida, Belinda.
— Adam — murmura o meu nome e meneia a cabeça procurando as
palavras, confusa e repleta de sentimentos em seus olhos, atos e lágrimas.
— Você é linda — digo o que meu coração sempre sente, o que meus
olhos veem e a minha boca não consegue controlar. — E não gosto de ver
você chorando e sofrendo. Assim você deixa uma sombra em sua beleza e
gosto de ver você linda de vestido vermelho e jogando Candy Crush do meu
lado no carro.
E solta um som suave, um sorrisinho descontraído. E sem que eu me
prepare, ela me puxa e caímos na cama.
Enfia seus dedos em meus cabelos, puxando minha cabeça para ela e
logo nossos lábios se unem num beijo ardente, apaixonado e emocionante.
Por todos os dias da minha vida, nunca imaginei sentir algo tão forte.
Mais forte até do que já senti uma vez na vida por outra pessoa. E volto a
pensar se o que estou sentindo, se estou me apaixonando tão perdidamente
por ela, é porque tenho medo de perdê-la ou simplesmente porque ela é o
resgate da minha existência. Eu não quero amá-la só por causa da doença ou
porque me ajudou. Porque me impediu de me afogar. Santo Inferno! Sei que
não é só por causa disso. Não é! Eu a amo por quem ela é.
— E eu te amo — murmuro entre nossos lábios sem pensar, sem sentir,
sem programar. As palavras saíram de mim por força maior. E já que eu falei,
foda-se! É a verdade.
Ela nos afasta, me encara com os olhos alarmados e decido dizer tudo:
— Belinda, você me fez abrir mão do medo de me apaixonar de novo.
De quebrar a cara; e depois de tal traição em minha vida... pensei que nunca
mais conseguiria amar alguém de novo e... eu não sei quando foi o momento
que comecei a gostar de você, a desejá-la e tampouco consegui perceber que
te amo. Porém, eu a amo e não tem nada a ver com o que pode acontecer. Me
apaixonei por você porque simplesmente...
Seus lábios tremem enquanto segura o choro.
— Porque é pura, gentil, linda e me faz tão bem. Adoro ter você ao meu
lado. Sua alegria, curiosidade e altruísmo.
Seus lindos olhos azuis brilham de alegria, embora não esconda o
espanto. Eu consigo lê-la muito bem e sei que o que disse a deixou feliz, mas
aflita. Eu entendo que talvez pense que eu apenas disse isso porque tenho
medo de que ela morra.
— E eu não te amo porque acho que você vai me deixar. A amo porque
você é você. Adoro quando você me toca. Todos os nervos do meu corpo
ficam em alerta, até mesmo quando segura a minha mão.
Ela chora mais um pouquinho, solta um soluço silencioso e, lentamente,
desliza suas mãos do meu rosto para o meu pescoço e espalma em meu peito.
Ela nota como meu coração está acelerado, na verdade desesperado. É assim
que me sinto sobre ela. Um amor desesperado.
— Também te amo e, quando a médica falou para mim o resultado, a
única pessoa que eu mais temia em ter que contar era você. — Acaricia meu
rosto, passando a mão lentamente na barba que não faço há quatro dias. —
Eu nunca mais quero que você sofra! Por nada nessa vida, porque eu sei que
no fundo esses seis anos que você jogou fora, foi porque não conseguiu fazer
mais do que assistir as pessoas que amava irem embora para sempre.
Concordo com um aceno. Finalmente alguém me entendeu. Ela sempre
me entendeu.
— Você é tão bom e generoso, Adam, e mal nota isso.
— Não. Não sou.
— É sim e é por isso que me apaixonei por você, não porque tenho medo
de morrer e também não sei quando comecei a sentir isso e nem quero tentar
adivinhar. — Estica o rosto e beija minha boca. — Só quero sentir o mais
forte possível todo esse sentimento. Ficar ao seu lado e sim, tudo bem. Nós
podemos fazer todas as viagens que você quiser. Eu prometo que... darei tudo
de mim para poder continuar com você... nessa vida.
Meu sorriso não é um simples sorriso de felicidade. É de alívio, gratidão
e fragilidade. Prefiro não falar mais nada, apenas beijá-la e fazer amor bem
lentamente. Amar a minha garota curiosa e agora corajosa. A minha doce
redenção.
DEZENOVE

Eu quero cantar, eu quero gritar


Eu quero gritar até as palavras secarem
Então colocá-lo em todos os jornais, eu não tenho medo
Eles podem ler tudo sobre isso, ler tudo sobre ele, ohh
...
Sim, todos nós maravilhosos, pessoas maravilhosas
Então quando ficamos tão medrosos?
Agora finalmente estamos encontrando nossas vozes
Então tente, me ajudem a cantar

READ ALL ABOUT IT | EMELI SANDÉ

É com muita relutância que levanto da cama, mas minha bexiga vai
estourar se não for agora ao banheiro. Eu conversei isso com a médica. Essa
forte pressão na bexiga para urinar às vezes. Meu Deus do céu! Chego a
congelar os movimentos quando estou assim. Entretanto, a médica me
tranquilizou. Disse que é normal eu ficar assim após beber uma quantidade
significativa de líquido, principalmente quando for água. Presumi que é coisa
da minha cabeça e, de certa forma, culpa minha. Não é influência do meu
problema.
Hoje o problema não foi esse. De madrugada quis levantar para ir ao
banheiro, mas os braços do Adam em minha volta estão bons demais para eu
me afastar. Rio com o pensamento bobo.
Estranho me sentir feliz com tudo o que está acontecendo, mas Adam,
ontem, me convenceu da melhor forma que poderia fazer (dizendo que está
apaixonado por mim e ficará ao meu lado): que preciso confiar. Então, estou
fazendo o que posso para não enlouquecer antes do tempo.
Saio do banheiro e o admiro deitado na cama. Está de barriga para baixo,
o rosto virado para mim, o travesseiro no chão e o lençol cobre suas pernas e
o bumbum. Ele é um homem lindo e é difícil não babar nele.
Quando eu pensei que conquistaria o ogro da casa suja?!
Pegando sua camisa do chão, visto-a e desço para preparar o café da
manhã para nós. Ontem resolvemos não sair. Depois que fizemos amor, por
um longo tempo, ficamos deitados e assistimos filmes. Um, inclusive, foi de
minha insistência. Adam não queria, pois o filme conta a história de uma
mulher que morre com câncer no útero. É lindo, triste e comovente.
Semelhante e é impossível não pensar em mim como ela e em Adam como o
noivo que ficou triste. Chorei de soluçar e fui obrigada a assistir depois uma
comédia idiota apenas para esquecer o filme anterior, que não esqueci nada.
Ele estava certo em não querer que eu veja tipos de filmes assim, mas
sempre gostei de dramas e não será agora que vou parar. Não será porque
minha vida é um romance dramático que deixarei de ler ou assistir “A culpa é
das estrelas”. Aliás, eu sempre tive a visão de que a vida de todo mundo é
uma terrível história de mau gosto sobre altos e baixos.
Acabo de aprontar os ovos mexidos, o bacon e as torradas. Limpo os
morangos e faço um café forte, no entanto pego o suco de laranja. Não estou
com cabeça para café.
— Bom dia — escuto ao pé do meu ouvido sendo abraçada por trás.
Sorrio e viro-me em seus braços. Trocamos um beijo rápido.
— Dormiu bem?
— Maravilhosamente — respondo. — E você?
Adam cerra os olhos e, ao invés de responder, me dá um selinho. E mais
um, mais outro e rindo nos beijamos. Meu coração feliz tamborila em meu
peito.
— Melhor seria se não tivesse assistido aquele filme de terror.
Dou uma gargalhada e me separo dele para sentar à mesa da cozinha. Ele
senta ao meu lado e enche a caneca de café.
— Você disse que era para eu esquecer o outro.
— Adiantou? — pergunta erguendo a sobrancelha direita.
Rio e balanço a cabeça.
— Mas é lindo o filme.
— Dramático e para você ruim. Querendo ou não, você ficou
impressionada.
Reviro os olhos pensando em assistir novamente. É de uma plataforma
de streaming. “Perfeita pra você.” A história é linda. Os protagonistas se
conhecem desde crianças e a forma da menina de dizer que queria ficar com o
menino foi dar uma mordida nele. Rio muito dessa parte em contraponto
quando ela morreu.
— Mas diferente deles, nós vamos ficar juntos. — Ele levanta a cabeça e
me encara. — Você mesmo disse.
— Humpf!
Rio dando de ombros e mordo um pedaço da torrada. É bom eu parar de
falar sobre morte perto dele. O assunto do irmão que morreu junto com a ex
não foi tocado novamente. Acho que Adam não superou de verdade. Portanto
falar de mortes e partidas perto dele não é bom.
“E de qualquer forma, vou ficar boa”, pondero com um sorrisinho de
lado. Sendo positiva.
Eu sempre fui uma mulher para frente e forte. Tive que aprender cedo a
ser independente e gritar pelas minhas próprias dores. Sem tempo para
frescura e isso me tornou um ser humano capaz até de ajudar Adam no seu
pior. Portanto, não será agora que serei uma boba medrosa.

— Vamos aproveitar o sábado — Adam fala animadamente pegando


minha mão quando nos encontramos na frente do seu carro.
— O que pretende fazer?
— Hum... não sei. Podemos visitar alguns pontos turísticos ou conhecer
a praia.
— A que aparece no seriado Revenge?
Ele franze a testa e entorta a boca.
— Que fixação com esse seriado.
Solto uma risada e bato meu ombro no dele.
— Está criticando porque não assistiu.
— Não. Estou criticando porque assisti e aquele fim foi patético. O cara
“morre” — Adam faz aspas com os dedos da mão livre, não soltou a minha
ainda — e volta do nada e trai a filha com aquela megera da Victoria. Puta
que pariu, viu. Eu nem sei por que terminei.
Franzo a testa e tombo a cabeça encarando-o seriamente.
— Está me olhando assim por quê?
— Nada — digo abrindo um sorriso. — Só não esperava essa análise
crítica de Revenge.
Ele dá de ombros e seguimos em frente indo até o bar/restaurante de
Mona, que por sinal é muito igual ao do seriado, que Adam tanto chia quando
comento, e acabei de descobrir que é um crítico excelente. Rio baixo e olho-o
de soslaio achando o máximo esse novo Adam Stella encantador. Finalmente
estou conhecendo o homem que todos comentavam com saudade antes.
Espero viver ao lado desse Adam por muito tempo.
— Olá, Belinda — cumprimenta o garçom.
— Oi, Magno — retribuo-o sentando à mesa no canto do restaurante. —
Tudo bem?
— Tudo sim e com você?
Antes de poder responder, Adam limpa a garganta, fazendo um som
muito estridente, chamando minha atenção. Está com a cara fechada. Eita, a
Fera está presente!
Ignoro-o e volto a atenção para Magno.
— Estou bem, obrigada. — Embora não seja uma verdade, externamente
estou me sentindo bem e positiva.
— Traz o cardápio e chame a Mona, por favor — pede Adam.
O garçom assente e com um sorriso (dirigido a mim) se afasta.
— Você já o conhecia por acaso?
— Não — respondo encarando Adam.
— Então de onde veio essa intimidade? Não lembro de vocês terem
conversado naquela quarta-feira que almoçamos aqui.
— Mas conversamos na festa da casa da Lydia. Ele era o garçom.
Magno puxou assunto comigo quando fiquei sentada sozinha.
— Ahhhhh… tá. — Ele arrasta a afirmação.
Sugo os cantos da boca cerrando os olhos, desafiadora.
— Por que está me olhando assim... de novo?
— É porque você é bonito — retruco sarcasticamente.
Ele sacode a cabeça e vira o rosto, que logo fica animado. Mona chega
com o cardápio e sem Magno.
Hum... será que ele está com ciúmes? Me poupe! Só rindo.
— Olha quem está aqui.
— Estão — corrijo.
Mona ri e dá o cardápio a Adam, que abre e escolhe o pedido de sempre:
a sopa de frutos do mar.
— Eu quero também uma porção de batatas fritas e, ao invés do suco de
laranja, quero uma Coca-Cola.
— Sim, senhora — ela confirma anotando no caderninho. — Adam?
— Quê? — Levanta a cabeça e fita Mona. Não sei o que perdeu no
cardápio.
— Nenhuma modificação? O mesmo de sempre, sem nada novo?
— Não e por que está perguntando isso parecendo com segundas
intenções?
Seus olhos se arregalam e ela solta uma gargalhada antes de dizer:
— Está chato hoje, hein. Só perguntei porque sua amiga fez.
Ele dá de ombros, me encara e volta para ela.
— Não quero nada novo não. O de sempre, obrigado.
— De nada. Vou preparar os pratos eu mesma e o Magno traz para
vocês.
— Por que você não traz? — ele pergunta rapidamente.
— Meu amigo, eu só lhe atendo porque, como acabei de afirmar, você é
meu amigo. Eu sou a dona e gerente deste lugar, mal sobra tempo para eu
comer ou dormir direito. Portanto, meu melhor garçom servirá vocês. Algum
problema com ele? Magno fez algo de errado?
— Não. Problema nenhum.
— Ótimo e qualquer coisa chama.
Concordamos com um aceno e ela se vai. A sós com ele indago:
— Está com ciúmes do Magno?
— Não!
— De verdade?
— Não, Belinda. Eu não estou com ciúmes dele, só... — Baixa a cabeça
e pega o guardanapo. — Ele fazia isso com a Selena também. Tipo, ele
gostava dela e ficava todo engraçadinho pro seu lado — ergue a cabeça e me
fita — e agora está fazendo o mesmo com você. Sei lá. Ele, por acaso, é
perseguidor ou não me enxerga?
— Não sei. — Dou de ombros e estico minha mão para pegar a dele. —
Deixa ele pra lá. Tem gente que é assim mesmo. Vamos esquecê-lo. Viemos
curtir o dia.
Ele assente entrelaçando nossos dedos sobre a mesa. Ficamos nos
olhando e acho que pensando o mesmo. Vamos aproveitar o sábado e o
domingo, afinal os preparativos para a cirurgia já é segunda-feira. Não há
tempo a perder.
VINTE

Ai, eu me perdi de novo


Me perdi e não estou em lugar nenhum pra ser encontrada
É, eu acho que devo estar quebrada
Eu me perdi de novo
e me sinto desprotegida

BREATHE ME | SIA

Contra fatos não há argumentos. Enquanto tudo não passava de ideias,


papéis e conversa, me mantive em equilíbrio. Um otimismo que eu mesmo
estava ficando enjoado. Contudo, chegou o dia e estou atrapalhado (coisa que
não sou), afoito e suando pelas mãos que nem um porco ridículo.
— Consigo ouvir seus pensamentos daqui — murmura uma Belinda
topada na cama do hospital pronta para entrar na sala de cirurgia. Deram-lhe
a primeira anestesia.
Uma semana foi muito pouco para nos preparar para isso. Mas, porra,
não tinha como tardar. Essa cirurgia é aqueles casos de opera hoje ou opera
hoje.
Nós passamos um fim de semana extraordinário, na medida do possível
sem fazer nenhuma extravagância, e quase esqueci que o pesadelo começaria
logo.
Infelizmente, não tínhamos tempo para perder. Belinda passou por um
pré-operatório às pressas, fez todos os exames sobre o risco cirúrgico. Tudo
em apenas quatro dias. Tudo já estava em ordem na quinta-feira, poderiam ter
operado ela ontem, mas a médica preferiu hoje, sábado.
Por mim tanto faz. Dá no mesmo. Estou afoito como um louco diante da
preocupação.
— Eu estou tranquilo. Só pensativo.
Ela faz uma tentativa inútil de uma careta, que é muito engraçada, e
estica a mão me convidando para me aproximar.
— Adam Stella, você lembra que disse que não adianta eu mentir porque
você sabe.
Assinto sentando na beirada da cama e segurando sua mão fria por conta
do ar-condicionado absurdamente gelado do hospital. Previne as bactérias e
causa pneumonia.
— Bem, lamento te informar que eu também sei quando está mentindo.
Consigo enxergar você e sei que está preocupado. — Puxa o ar lentamente e
dá um sorriso grogue. — E está tudo bem. Também não estou cem por cento.
Acho que é natural.
Erguendo sua mão, beijo os nós dos seus dedos e fixo meus olhos nos
seus.
— Vou tentar ficar tranquilo. Vai dar tudo certo. E só... fico pensando
que você mal se preparou.

— Tinha que ser assim. Não tinha outra opção.


— É verdade — concordo.
— Mm... — resmunga baixinho. — Maaas... agora eu já... — pausa,
ainda mais sonolenta e pisca vagarosa — estou convencida e vamos torcer
para que tudo dê certo na operação.
— Com certeza — digo suave e afago seu rosto. — Você já está ficando
grogue o suficiente? Aperte minha mão.
Ela tenta, contudo, é em vão. Mal sinto o aperto.
— Acho que... a resposta é sim.
Acho graça dela assim e me aproximo mais um pouco. Beijo sua testa e
logo encosto a minha na dela. Ficamos em silêncio com as mãos juntas e
depois de alguns segundos só a assisto dormir.
— Durma com os anjos, meu amor. — Dou um beijo nos seus lábios e
acaricio sua bochecha pálida.
— Olá! — A voz da doutora Bennett surge no quarto.
Me viro e a vejo com uma roupa azul hospitalar e de touca (muito
chamativa rosa-pink).
— Isso daí — indico com o queixo seu traje — é para a operação dela?
— Sim — responde humorada —, e embora eu não seja cirurgiã vou
participar para ficar perto de Belinda e ver tudo que estão fazendo. Vou lutar
por ela, pode ter certeza.
— Obrigado. Fico feliz em ouvir isso.
— Como ela está?
— Um pouco ansiosa, nervosa e...
— Animada? — interrompe-me.
— Animada com certeza não.
— Eu sei e tudo bem. — Sorri com pesar. — Tento falar essas coisas
para aliviar um pouco o medo, que está estampado na sua cara, por sinal
— Eu sei. Eu sei — digo de má vontade. — Estou tentando melhorar
isso. — Passo a mão na barba (agora grande) e me levanto da cama de uma
vez. — Já vai levá-la?
— Vamos sim. Está tudo pronto para começar.
— Okay. — Aceno com a cabeça. — Posso, pelo menos, me despedir
antes de levá-la?
— Claro. Assim que terminar me encontre lá fora. Estarei com os
enfermeiros na porta.
— Tudo bem. E onde fica a sala de cirurgia?
— Adam — diz com o tom ameno —, olha infelizmente não podemos
permitir você ficar por perto. Espere aqui. Assim que terminar, Belinda virá
para o quarto.
— Tudo bem e é até bom que você não saia para não pegar nenhuma
bactéria e assim Belinda fica segura.
Ela conseguiu me convencer de uma forma irreversível.
— Então, tá. Eu fico aqui — digo sem convicção.
— Vai ficar tudo bem, Adam. É uma cirurgia importante e no caso dela
urgente, mas não é tão complicado como as pessoas gostam de falar.
Portanto, tenho certeza de que vai ficar tudo bem e ela já vai estar aqui com a
gente.
— Tá! Agora posso me despedir dela antes de você levá-la?
— Tudo bem e, quando sair do quarto, estarei na porta lhe esperando.
— Já sei. Certo! — aceito a ordem e aceno que sim.
Sorrindo, ela vira-se e sai do quarto. Volto a sentar na beirada da cama e
entrelaço meus dedos com os de Belinda e aperto bem forte. Feche os olhos e
trago sua mão para o meu rosto. Faço uma prece silenciosa para que tudo dê
certo e que haja um milagre e o seu outro ovário possa ser salvo.
Ela ficou muita abalada com fato de ter que tirar os dois e não poder ter
filhos. Eu não sei se ficaremos para sempre juntos, se vamos nos amar e
formar uma família, mas com certeza se a resposta for sim, não vou gostar de
ver uma Belinda frustrada e triste por não poder conseguir engravidar. Sim,
podemos adotar, eu compreendo, porém, algumas mulheres realmente têm o
sonho muito grande de gerar uma vida.
Eu não posso saber qual é o tipo de sentimento que uma mulher passa ao
almejar ter uma vida dentro de si, no entanto, com certeza, é algo muito único
e bonito. Esse dom foi dado às mulheres porque elas são muito mais sábias,
doces e observadoras que os homens (embora existam pais que dão banho em
mães. Incluindo Célia, mãe de Belinda.
— Se você ainda consegue me ouvir — falo baixinho no seu ouvido me
abaixando —, mas está muito grogue para falar, eu só queria dizer que estou
esperando aqui no quarto. A médica disse que logo que você terminar lá, vão
trazer você. Eu vou estar aqui esperando, certo? Vai dar tudo certo! Eu amo
você, minha doce menina curiosa.
Dou um beijo em seus lábios de leve e me afasto, indo de uma vez para
fora do quarto antes que eu perca a coragem.
Estou sentindo um frio na barriga, as mãos suando e dor de cabeça.
Porra! É tipo uma cólera.
— Adam, vai ficar tudo bem! Se acalma — a doutora Bennett fala toda
atenciosa quando já está prestes a seguir pelo corredor com a maca que leva
Belinda.
— Obrigado, doutora, e cuide bem dela lá. Faça o possível. Essa menina
merece ser feliz nessa vida.
— Eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance, Adam. Pode ter
certeza.

Eu sabia que não seria algo muito simples e rápido. E já se passaram três
horas de operação e nenhuma resposta. Nenhum sinal da Dra. Bennett para
deixar a minha alma em paz. Caralho!
Pego o meu celular e mando uma mensagem para Harry. Ele queria ter
vindo para cá com Ava para dar apoio, mas escolhi ficar sozinho. Vlad
também se ofereceu a vir para Hampton, e de novo, descartei a ideia. Ele
precisa ficar em Nova York. Vlad cuida de tudo para mim quando viajo e,
claro, quando eu esqueci de viver. Minha mãe o chamava de anjo da guarda
ou o segundo mosqueteiro, já que Harry é o primeiro. O líder, com certeza.
Contudo, quando pensei que as ofertas de companhia tinham acabado,
eis que tenho Lydia Bennett. Ela chegou agora há pouco e sumiu pelas portas
duplas do hospital. Escutá-la falar além do volume recomendado dentro de
um hospital é engraçado. Trouxe um pouco de alívio para a minha alma
preocupada.
Ri vendo todos os enfermeiros e médicos a olhando feio, mas sem dizer
nada. A mãe dela é chefe, né?
Lydia é uma personagem de desenho animado gaiata, aventureira,
totalmente destemida e abusada. De qualquer forma, estamos na ala de
emergência e todo mundo faz muito barulho de vez em quando por aqui.
Acho desnecessário brigar com ela porque chega fazendo quase que uma
algazarra.
Eu fico reclamando que a Lydia é muito feliz, encantadora o tempo todo,
porém, não é de todo mal. Como uma princesa da Disney, ela deixa todos em
sua volta muito felizes e animados. Até mesmo estressado como uma
princesa da Disney faz.
E falando no diabo aparece Lydia Bennett segurando em uma mão a
bandeja com dois copos de café e na outra uma caixinha de Dunkin’ Donuts.
Eu não falo que ela é perfeita?!
— Trouxe de chocolate com caramelo, que você sempre gostou, mas não
sei se seu gosto mudou. Porém, fiz com as melhores intenções.
Faladeira. Ela é muito parecida com Ava, mais nova. É cômico o fato de
parecer que ela não mudou absolutamente nada dos dezesseis anos para os
vinte e oito.
— Está bom para mim.
— Hum... Sr. Rabugento. Tira essa cara amarrada e séria. Ela vai estar
saindo da operação linda e curada e pronta para viver essa vida louca.
Sorrio para o seu otimismo e aceito o café e sou obrigado a pegar um dos
donuts quando ela abre para mim, quase esfregando na minha cara.
— Eu só vou aceitar porque é gostoso e não porque você está me
obrigando. E, de qualquer forma, não comi nada hoje.
— Posso apostar um donuts de morango com meu cachorro que você,
além de não ter comido nada, também não dormiu e, pelo visual aí – que está
fúnebre –, que nem tomou banho. Acertei?
— Já foi à merda hoje?
Lydia solta uma gargalhada altamente proibida dentro de um hospital (a
não ser talvez na ala da maternidade) e dá uma mordida no seu donut
confeitado com confetes coloridos e glitter. Meu Deus, até nisso ela precisa
parecer ter saído de um desenho animado!

Mais algumas horas passam de pura agonia e ansiedade. O dia já


escureceu e estou quase furando o chão da sala de espera de tanto que levanto
e vou para lá e pra cá. Lydia já foi procurar a mãe três vezes e nada de
respostas, mesmo ela sendo a princesinha do hospital, ninguém dá uma
resposta para ela, afinal isso daqui não é uma baderna.
De repente, vejo uma médica muito nova com uma roupa parecida com a
que a Dra. Bennett foi buscar Belinda, entra na sala tirando a touca parecendo
“leve”.
Ela se aproxima, e quando olha para Lydia respiro até melhor. Acho que
elas se conhecem e talvez essa médica tem minhas respostas.
— Oi, doida — diz para Lydia.
— E aí?
A médica abre mais o sorriso e vira-se para mim.
— Você deve ser o Adam, certo? Sou a doutora Margaret.
— Sim, sou eu. Você veio trazer notícias da Belinda?
— Sim, é isso mesmo. — Dá uma risadinha. — Ela acabou de sair da
operação e já está sendo encaminhada para o quarto. Se quiser, já pode
esperá-la. A Dra. Bennett falou que pode ficar na porta esperando.
— Tudo bem — atropelo sua fala.
— Porque vamos precisar instalar ela devidamente para poder ter uma
recuperação boa o quanto antes.
— Tudo bem. Eu já estou indo.
— Antes, não se esqueça de se esterilizar. Já sabe, com álcool. Depois
coloque a luva, a máscara e a roupa estéril.
— Okay.
— Pois, embora você não tenha saído do hospital, é sempre bom se
prevenir já que ficará com ela no quarto. Assim ela não correrá nenhum tipo
de risco de infecções.
— Sem problema e obrigado.
— E a sua mãe quer falar com você na sala dela — diz olhando para
Lydia.
— Agora?
— Sim, o quanto antes. — Abre um sorriso, que parece não ser muito
amigável. Enxergo através dela que Lydia tomará um esporro da mãe. Agora
eu preciso voltar para lá.
— Muito obrigado — agradeço novamente.
Sorrindo, a doutora Margaret vai embora e eu nem tenho tempo de
pensar em nada, pois Lydia resmunga do meu lado.
— A minha mãe deve me dar um esporro por causa desses enfermeiros
linguarudos. Que saco! Só porque ficam irritados por eu ser uma pessoa feliz.
Isso é pura inveja, porque eles só vivem de mau humor. Nunca vi compaixão
com a vida das pessoas. Eles não tinham que ficar mal-humorados. Tinham
que mostrar felicidade. Mostrar para essas pessoas que acreditam na cura
delas. Aff! — Cruza os braços, fechando a cara.
Franzo o cenho, olhando para ela, nem um pouco simpático ao seu
monólogo.
— Você acha mesmo que é certo gritar dentro do hospital? Chegar
fazendo festa e soltar gargalhadas? Eu sei que o que você está dizendo tem
até coerência, contudo, tem gente aqui que não vai se curar e tem que
respeitar isso. Respeitar que cada pessoa lida com as doenças e a morte de
formas diferentes.
Lydia faz um biquinho irritado e vira a cabeça, mexendo nas unhas.
Insolente.
— Ah... Adam — suspira irônica. — Quase me esqueci de como você
sempre é um poeta na hora de falar. — Ergue o queixo e cerra os olhos me
encarando. — E sim, eu entendo que cada um é de um jeito. — Dá de ombros
e fala cabisbaixa: — Mas eu só gosto de trazer felicidade às pessoas e,
principalmente, àquelas que estão precisando. Eu acho que todo mundo que
está dentro de um hospital (menos na ala da maternidade) precisa disso.
— Tudo bem, Lydia. Você não está errada, okay. Só precisa respeitar
“um pouco mais” o espaço dos outros.
— Você acha que sou invasiva? — pergunta quase ofendida.
Quase rio e respondo colocando a mão em seu ombro:
— Meu Deus! Isso é o eufemismo do ano.
Surpreendendo-me ri baixo e dá um soco no meu braço de brincadeira.
— Eu amo esse Adam feliz e que gosta de fazer piadas. Espero que ele
não vá mais para as sombras e suma.
— Acho que, dessa vez, eu vou ficar pra valer. Só não tão feliz como
você princesa da Disney.
— Princesa da Disney? De onde você tirou isso?
Dando um olhar cúmplice, eu viro-lhe as costas indo em direção ao
quarto. Escuto-a me seguir e pedir insistente, para eu dar uma explicação.
Mas não dou. É legal deixá-la irritada. Acho que enlouqueço com Lydia e
Ava num mesmo ambiente, e claro, minha pequena sobrinha junto. Santo
Inferno! Elas vão cantar Frozen em alto e bom som para fazer a bebê dar
aquelas risadas bobas.
VINTE & UM

Perto o suficiente para iniciar uma guerra


Tudo o que eu tenho está no chão
Só Deus sabe o porquê de estarmos lutando
Tudo o que eu digo, você sempre diz mais
...
Eu não posso acompanhar as suas reviravoltas
Controlada por você, não consigo respirar
...
Então não vou deixá-lo chegar perto o suficiente para me machucar
Não, eu não vou te pedir, te pedir apenas para me abandonar
Eu não posso dar o que você pensa que você me deu
É hora de dizer adeus a essas reviravoltas

TURNING TABLES | ADELE

Assim que tomei a decisão e aceitei (escolher não é a palavra certa para
aquele dia) a data da operação, TUDO aconteceu rápido demais. Não sei se
era para eu ficar feliz ou não. Neste exato momento só sei sentir os resultados
da operação, e não estou falando das dores pós-operatórias. Falo do fato de
ter perdido o ovário esquerdo e as possíveis sequelas do direito.
Contudo, o Dr. Peterson – o cirurgião que me operou – disse que pode
ter a possibilidade de coletar meus óvulos, fecundá-los com o esperma e fazer
uma inseminação in vitro no meu útero, que tudo indica que está bom.
Ser mãe poderá ser mais complicado e nada de surpresas.
Ergo as sobrancelhas e pisco rápido reprimindo minhas reclamações que
vinham com lágrimas quentes e aborrecidas.
— Você queria o quê, sua tonta? Morrer ou perder tudo? Cala a boca!
— Oi? — A cabeça de Adam aparece na porta do quarto.
Sorrio para ele e o admiro enquanto entra e fecha a porta da suíte do
hospital. Foi graças a ele que estou tendo um atendimento desses. De
primeira linha. Sinto muita gratidão também por Lydia. Aquela doidinha é
minha fada madrinha.
— Estava gritando com quem? — pergunta sentando-se na ponta da
cama e me dá um beijo.
— Com meus pensamentos infelizes.
Solta uma risada, que eu adoro, e tira uma mecha de cabelo da frente do
meu rosto. Pretexto para me fazer um carinho.
Adam Stella é carinhoso também.
— O que eu vou fazer com esses pensamentos?
Abro um sorriso que, com certeza, me deixou feia. Aqueles sorrisos
ridículos que mostram a gengiva além dos dentes. Feio!
— Como está se sentindo? — muda de assunto e num gesto fofo ajeita
as cobertas sobre mim. O ar no hospital é muito gelado mesmo.
— Um pouco de dor, mas o sedativo ainda está valendo. A anestesia
podia ter durado mais do que durou — resmungo.
— Não concordo.
— Por quê?
— Porque eu queria confirmar com você se estava se sentindo bem e se
estivesse dormindo não conseguiria.
— Oh, que fofo! — Estico minha mão e faço um carinho no seu rosto.
— Por onde esse Adam fofinho estava, hein?
— Dormindo e sem anestesia tem alguma coisa a ver.
Dou uma risada e me arrependo. Sinto uma fisgada terrível no ventre e
fecho os olhos me concentrando para não gritar ou gemer alto.
Sinto-me irritadíssima, chata, enjoada, dolorida e inchada. Cheia de
espaço oco dentro de mim. Explicando de forma entendível – como fica o
médico –, é como estar cheia de gases, e não só na barriga. Em toda parte.
É estranho e, infelizmente, vou ter que aguentar isso mais ou menos duas
semanas, fora a menstruação que pode durar dois meses. Isso depende de
cada organismo, segundo o médico e o melhor enfermeiro do mundo. Adam
andou estudando sobre o caso e, sério, ele podia fazer medicina
tranquilamente.
— O que foi? — Adam pergunta alarmado.
— Uma fisgada. — Engulo em seco e sacudo a cabeça. — Já passou. E,
por favor, não me faça rir.
— Desculpe. Não foi minha intenção.
— Toc, toc! Atrapalho?
Viramos para a porta e vimos Christal e Greg.
— Mãe, você não disse que viria hoje. — Adam vai atendê-los. Dá um
abraço na mãe e aperta a mão do pai. — Chegaram há muito tempo?
— Acabamos de chegar. O carro está no estacionamento do hospital com
as malas. — A Sra. Stella explica vindo em minha direção. Contorna a cama,
ficando do outro lado onde Adam permanece, e abre um sorriso para mim. —
Como está, querida?
Paralisada, pareço assistir ela pegar minha mão e apertar com carinho.
Carinho de uma mãe. E a minha mãe nem ligou para mim. Acho que ela nem
sabe que operei. Ela é uma desnaturada. Tento não ter raiva pelo fato de ela
ter tido o dom de ser mãe e eu corro o risco de não ser. Que injustiça!
É, têm muitos casos assim. Mães que batem, mães que abandonam, mães
que abortam por simples vontade, mães que “abortam” e jogam o bebê no
lixo. Enquanto tem várias mulheres por aí querendo engravidar e lutando para
conseguir uma adoção. Sonhando em ter um filho.
Ah... Deus! Onde isso é justo? Quando penso nisso fico procurando o
equilíbrio que Adam fala sobre o mundo.
Aí meus olhos encontram os de Christal Stella e encontro o equilíbrio do
amor de mãe. É aquilo: uns com tantos e outros com tão pouco. Uma rosa
entre espinhos.
— Mais ou menos — lembro de respondê-la, afinal. — É assim mesmo.
Fizeram boa viagem?
— Sim — diz suave e troca um olhar com o filho rapidamente. — Você
vai ficar quanto tempo aqui?
— Provavelmente mais seis dias. O médico deu uma semana em
observação, apenas por praxe. Depois posso ficar em repouso em casa. As
dores não vão passar com facilidade.
— Oh, querida, é uma pena, mas o mais importante é que você agora
está saudável. As dores uma hora passa e, com certeza, logo você estará
gozando da vida.
Assinto agradecida. O senhor Greg, na ponta da cama, sorri e diz,
lembrando a esposa:
— A tia dela.
— Ah, sim. Rose ligou — comenta Christal. — Ela estava muito
preocupada com você. Ficou ligando direto para mim querendo saber se tinha
notícias suas durante a operação.
— Humpf!
Sinto o aperto no peito com saudades dela. Ela sim é minha mãe de
verdade. Viu, mãe é muito mais que gerar um filho. O meu medo é que para
adotar não é a oitava maravilha do mundo. Demora muito e o medo da
rejeição é enorme.
— Não se preocupe, eu já a tranquilizei e disse que estava vindo para ver
pessoalmente como está. — Sorri e se afasta. Abre a bolsa enorme vermelha
e tira um embrulho, me entregando. — Isso é um presente para você de boa
recuperação.
Ergo as sobrancelhas surpresa e pego o presente. É uma caixa de papelão
dura e dentro contém chocolates, trufas e doces delicados de uma loja de
chocolates muitos conhecida em Nova York.
— Uau! Eu adorei. — Fito os pais de Adam. — Muito obrigada mesmo
pelo carinho. Espero poder retribuir.
— Imagina — ele fala, e a esposa completa:
— Você já nos deixa feliz ficando boa, Belinda.
Rio assentindo, aceitando o agrado. Os doces e o carinho, é claro.
— Enfim, não queremos deixar você exausta. Precisa descansar. Não é,
querida? — Greg diz ficando ao lado da esposa e sorrindo.
— É, sim. — Christal pega minha mão e dá uns tapinhas incentivadores.
— Amanhã voltaremos, está bem.
— Vocês vão ficar em Hampton? — Adam pergunta.
Nossa, ele ficou tão quieto que achei que tinha saído do quarto!
— Vamos sim.
— Hoje é segunda e os trabalhos de vocês?
— Filho, seu coroa é aposentado e sua mãe é apenas a chefe da nossa
casa — provoca a esposa, que responde à altura:
— Que sem mim não seria o que é, inclusive você.
— Eu sei, amor. — Greg beija o rosto da Sra. Stella e fala para mim: —
Agora nós vamos. Precisamos levar as malas para casa e descansar um pouco
da viagem.
— Vão sim e não se preocupem.
Eles acenam que sim e me dão um beijo doce na testa como se fossem
meus pais. Ah... que fofos. Pais e filho se despedem e é só quando eles partem
que Adam se aproxima e senta na cama de volta.
— Qual o seu problema? — indago com a voz baixa.
— Nada. — Não olha em meus olhos. — Eu só acho que preciso
conversar com eles. Eu vim para cá pensando em melhorar. Mudar a minha
vida. O jeito que eu estava vivendo, minha mãe não sustentava mais. Tomei a
decisão de vir, sem avisar e agora eu me sinto bem de verdade, ao ponto de
conversar com eles e pedir desculpas.
— Adam — digo solidária ouvindo-o.
— É! Preciso ter uma conversa franca com meus pais e pedir perdão. Eu
sinto que sem querer os forcei a lidar com a perda de dois filhos e, embora
minha mãe tenha repetido mais vezes do que posso lembrar que não fui o
causador daquele acidente, eu a fiz sofrer com a minha culpa e ausência.
Ele pausa pensativo e ergue a cabeça, os olhos sem focar em nada.
— Quando eu penso nisso, me ponho no lugar deles, e sinto que preciso
dar um enorme pedido de desculpas porque, embora eu tenha sido um babaca
com eles — me encara —, meus pais sempre estiveram ao meu lado mesmo
ainda sofrendo por meu irmão. Humpf! Eles perderam o Ian, eu perdi o meu
irmão e a Ava também, e aquele garoto era um grande alicerce da nossa
família. — Seus olhos ficam marejados. — Fez uma falta tremenda e por isso
que eu não consegui lidar muito bem com a morte dele. Independente da
forma que tivesse acontecido, eu sei que não conseguiria ficar bem logo em
seguida.
— Entendo — murmuro.
— Eu amava meu irmão, Belinda — afirma com uma saudade palpável.
— Ele era meu melhor amigo e então eu o perdi sem poder me despedir ou
simplesmente escutá-lo. Fui covarde e fugi. — Morde o maxilar. — E sabe o
que eu peço hoje depois desses anos todos?
Não pergunto o que ele pensa, aperto sua mão dando apoio.
— Ian se importava tanto comigo que foi atrás de mim sem olhar pros
lados. Tenho certeza de que ele queria me pedir desculpas e explicar a
situação. — Inspira com força. — Infelizmente, eu nunca vou saber.
— Eu já disse para você não ficar pensando mais nisso. — Acaricio sua
mão em meu colo. — Eu sei que é difícil, Adam. Não posso mensurar o que
passou já que nunca sofri algo semelhante, porém acredito de verdade que
você precisa superar. E com certeza o seu irmão te amava e ainda te ama,
onde quer que esteja, e quer que você seja feliz. Que você se liberte dessa
culpa.
— Eu sei. — Meneia a cabeça concordando e fita meus olhos. — Ele iria
adorar você, assim como minha mãe. Sabe, eu perguntei a ela se foi de caso
pensado colocar você lá em casa.
— E o que ela disse?
— Que simplesmente queria ajudar você porque merecia ser feliz.
Meus olhos ficam marejados, os desvio rapidamente e balanço a cabeça.
— Sua mãe é uma pessoa muito boa. Que sorte que você a tem. Na
verdade, sua família toda é muito boa. Fico feliz por você.
— E eu também fico feliz por você, porque essa família também é sua.
— Entrelaça nossos dedos. — Não sei se você quer ficar ainda lá em casa
agora que está boa, mas eu gostaria.
— Adam... é claro que vamos ficar juntos. Eu disse que te amo e é
verdade. Eu não sei o que passou na sua cabeça enquanto eu estava operando,
mas nada mudou para mim. Ainda amo você e se você ainda me ama —
engulo em seco — ficaremos juntos.
— É claro que ainda te amo, Belinda. Você conquistou meu coração
sombrio em ruínas — diz sarcasticamente.
Solto uma risada e fecho os olhos quando ele beija meus lábios.
Queria poder fazer mais do que isso, mas a morfina que me deram não
me garante todas as minhas coordenações motoras. Mas eu amo a morfina,
afinal se não fosse ela eu estaria chorando de dor agora.
Já falei como está doendo tudo? Pareço um coco oco com formigas
dentro. Incomoda muito os gases, o mal-estar e a sonda.
— Acho que você precisa dormir um pouco agora. — Adam me dá outro
beijo de leve nos lábios e se afasta.
Ajeita de novo os lençóis sobre mim, afofa o meu travesseiro e, todo
lindo e elegante, vai até a janela e fecha as cortinas. Voltando para mim, não
consigo deixar de abrir um sorriso gigantesco para o seu rosto.
Agora eu posso dizer com todas as palavras que ele é lindo.
Não tem mais escuridão em seus olhos, nem as olheiras pela insônia
perturbada. Não tem mais a barba gigantesca desleixada e muito menos o
cabelo comprido embaraçado.
Agora este é definitivamente Adam Stella, o filho pródigo, o amigo
querido, o filho amado e meu namorado. Foi a primeira coisa que ouvi
quando estava acordando após a cirurgia.

— Você quer ser minha namorada? — ele sussurrou no meu ouvido e


beijou meu nariz. — Eu te amo muito e ainda bem que você está aqui de volta
para mim. No que depender de mim, o mundo será seu.

Eu ainda não respondi e é uma droga que eu tenha lembrado justamente


quando a morfina começou a fazer muuuito efeito.
— Durma com os anjos, meu amor. Depois a gente conversa.
— Eu quero — balbucio.
— O que você quer?
— Ser suaaa... — a palavra se arrasta.
— Minha o quê?
— Namorada — sussurro de olhos fechados já.
— Ah! Mas eu já sabia disso — fala convencido e brincalhão. Ele dá um
beijo na minha testa e repete: — Agora durma quietinha que eu vou ficar bem
aqui.
Caio em um sono profundo, aconchegante e feliz. Pareço dormir sobre
um algodão-doce com aroma de Adam Stella. Perfume amadeirado e loção
pós-barba.
VINTE & DOIS

Amém, amém e amém


Leve-me à igreja
Eu adorarei como um cão no santuário de suas mentiras
Irei lhe contar meus pecados
Assim você poderá afiar sua faca
Ofereça-me essa morte imortal
Bom Deus, deixe-me dar-te minha vida

TAKE ME TO CHURCH | HOZIER

A vida é um quebra-cabeça perturbado que constantemente algumas


peças se modificam para se adaptar nos encaixes. Mas cabe a nós sabermos
formar os encaixes certos, nos lugares certos, nas horas certas e por muitas
vezes o medo de não ficar como achamos que tinha, deixamos pra lá.
Isso é uma bela metáfora sobre a minha vida e as minhas escolhas.
Preferi me aprofundar em uma solidão e culpa terrível em vez de encarar
meus pais. Eu deveria tê-los consolado da melhor forma que podia. Mesmo
que eu tenha colocado na minha cabeça que a culpa era minha, fui um
completo ignorante não dando apoio a eles, que estavam de luto. O
sentimento era o mesmo e fui egoísta naquele momento.
Sei que de uns dois anos para cá tudo foi mudando. Fui me adaptando
para o novo lugar. Fui me transformando em outra peça para me encaixar
exatamente aonde eu deveria estar há muito tempo.
Quebra-cabeças não são fáceis de lidar, porém o astucioso sempre
encontra fórmulas melhores de observar até as peças de cabeça para baixo,
que curiosamente se encaixam no cubículo. Penso isso sobre Belinda, ela
observou em mim o que precisa ajustar e cuidar. Enquanto passei a noite
velando seu sono após a operação, veio uma ideia na minha cabeça de que
Ian a colocou no meu caminho. É confuso, mas real. Os atos dela lembram
demais meu irmão.
Respiro fundo e pisco, despertando para a realidade.
Hoje deixei Belinda sozinha no hospital pela primeira vez em cinco dias,
desde sábado estava naquele hospital dormindo naquela poltrona
desconfortável que há no quarto.
Por isso, Belinda insistiu que eu viesse para casa tomar um banho,
dormir direito na cama e incentivou a conversa com os meus pais, e é isso
que estou fazendo.
Bem, na verdade, eu ainda estou dentro do carro refletindo sobre esses
seis anos que joguei na lata do lixo e todo o sentimento enraizado dentro de
mim. Desprezo, solidão, medo, traição e, claro, o afeto dos meus pais.
Eles nunca deixaram de me amar e eu deveria ter dado mais créditos a
eles, que não me culparam nenhuma vez. Eu não causei o capotamento do
carro. Foi, como a polícia declarou, uma fatalidade lamentável.
Desligando o motor, pego a bolsa que está com as minhas roupas, agora
sujas, e saio do carro. O dia está nublado e mesmo que não tivesse já passam
das seis horas. Saí do hospital a tempo das portas se fecharem para o horário
de visitas.
Entrando em casa sinto o cheiro de almôndegas e isso me acolhe com
lembranças da minha infância. Mamãe sempre gostou de fazer almôndegas
com macarrão para os filhos e os amigos deles. Lydia é uma devoradora de
almôndegas. Fazíamos competição de quem comia mais rápido. Essas são
lembranças felizes que não voltam. É, a vida é assim. Fazendo os momentos
serem bons, vivendo eles para que tenhamos boas recordações. Por isso é
sempre bom lembrar de viver com alegria. E eu não vivi plenamente da
melhor forma os longos anos que perdi.
— Boa noite — cumprimento meu pai.
Ele está sentado na poltrona do papai, que fica no canto da sala,
assistindo a um desenho animado. Só meu pai para gostar de ver animações
como passatempo.
— Oi, filho. Veio dormir em casa hoje?
— Vim sim — respondo colocando a bolsa no sofá e sentando no
mesmo. — A mãe está fazendo almôndega.
Ele ri assentindo e mexe nos óculos. Sinal de alerta. Está atento em mim,
esqueceu o desenho.
— Você está bem, filho?
Parece que entrei em transe. Fico parado pensando no que disse a
Belinda sobre o que preciso falar com eles e... porra!
Pisco rápido e foco em meu pai.
— Eu queria conversar com vocês.
— O que houve? A menina está bem?
— Belinda está perfeita, sou eu que quero conversar com vocês e não é
sobre ela.
— Pode falar.
— Primeiro vou chamar a mãe.
— Está bem, filho. — Ele assente.
Levantando vou até a cozinha. Paro na porta observando minha mãe com
um avental florido de margaridas. Era o seu favorito, e acho que ainda é. Ela
está cantarolando alguma canção que desconheço enquanto mexe algo na
vasilha de alumínio, que faz misturas para bolo.
Há muito tempo que eu não presencio minha mãe espontaneamente
alegre, embora o único da família que tenha ficado mórbido em relação à
morte do meu irmão, fui eu. E por esse motivo mesmo que não presenciei
momentos como estes nos últimos seis anos. Francamente, os últimos seis
anos foram nulos. Papel em branco. Se fosse pertencer a um livro seriam seis
capítulos sem qualquer palavra.
— Oi, querido — cumprimenta-me quando nota minha presença. — Que
susto! O que está fazendo aí me olhando?
— Quero falar com a senhora e o papai. Ele está esperando lá na sala.
Ela franze a testa não compreendendo direito, porém deixando a vasilha
na geladeira e desligando o fogo, me segue.
Volto a me sentar onde eu estava e minha mãe no sofá de dois lugares,
mais próximo do meu pai.
Sinto-me num divã, que nem quando vou às consultas do Dr. Benson.
Lembrando-me dele, tenho certeza de que ficaria muito orgulhoso das minhas
decisões ultimamente. O que ele mais tentava colocar na minha cabeça era
que eu precisava de um ponto chave para enxergar que a minha vida era
muito mais do que sentir culpa e viver na solidão.
— O que você quer falar conosco, querido? — mamãe questiona.
— Na verdade, eu não quero falar. Quero pedir desculpas.
— Por qual razão?
— Por todas as razões do mundo, mãe. Eu sei que os fiz sofrer muito
durante esses seis anos. Que vocês esgotaram todos os seus planos para me
ajudar, para me tirar daquela casa e do meu isolamento. O que eu fazia era
sair, ir ao bar todo dia e, de vez em quando, aparecer na casa de vocês e
deixar você, mãe, aparecer na minha casa não era o que vocês queriam de
mim. E hoje me sinto muito culpado por ter demorado a entender que, no
fundo, fui muito egoísta.
— Querido, você estava se sentindo sozinho e triste. Cada um passa pelo
luto de forma diferente e por isso o entendemos.
Meu pai afirma com um aceno de cabeça.
— Eu sei, pai e mãe, que vocês não quiseram pressionar e deixaram
rolar. Mas esses anos todos me deixaram viver meu medo, sempre ao meu
lado. Vocês são os melhores pais que existe. Só que hoje eu percebo que
poderia ter sido muito melhor para vocês, e para mim também. Acho que a
Belinda é, de certa forma, uma revolução da minha vida.
— Por que diz isso?
— Quando eu fiquei sabendo que a mãe dela literalmente negligenciava
atenção e cuidado, eu senti uma forte dor no peito e essa dor se chama culpa
e, dessa vez, não tem nada a ver com o acidente.
Eles tombam a cabeça para o lado ao mesmo tempo, curiosos e atentos.
— Eu me senti um completo idiota por ter desprezado todos os tipos de
ajuda que vocês quiseram me dar e atenção que tomaram para eu sair do meu
casulo de depressão. Vocês foram os melhores pais que eu poderia ter, sem
sombra de dúvidas, e quando penso isso vejo que eu podia ter sido melhor
para vocês.
— Você é bom, meu filho — mamãe afirma.
— Mas eu poderia ter sido melhor. Todos nós estamos sentindo a perda
do Ian e eu tinha que ter consolado vocês, não levado-os a se sentirem na
obrigação de cuidar de mim. Acho até que estavam lutando para não me
perder também. Eu não sei como é a dor de um pai em relação a perder um
filho, mas com certeza deve ser a pior do mundo, porque só em perder o meu
irmão pareceu que o mundo nunca mais seria o mesmo... Não gostaria de
estar na pele de vocês perdendo o Ian e eu naquele estado.
Nós ficamos em silêncio, apenas o som das nossas respirações profundas
se ouve na sala, por longos minutos. Mamãe engole em seco e olha para
baixo, respirando fundo; de repente, funga soltando um soluço baixo.
— Ah, meu filho. — Levanta o rosto para mim. — Eu fiz de tudo para
você se sentir bem porque eu sabia o quanto Ian era importante pra você.
Embora eu estivesse sofrendo muito pelo que aconteceu e por você estar
entrando em depressão, a coisa que eu mais pedi em minhas orações era para
você voltar a ser o que era.
Assinto ouvindo-a e sinto um bolo na garganta.
— Nunca em toda minha vida pensei que você fosse se tornar aquele
homem mal-educado que vivia numa casa suja. Você sabe que a gente
chamava você de Fera, não é?
— Sabia — respondo e dou de ombros.
— Enfim, quando eu coloquei a Belinda na sua casa, não foi de
propósito para vocês ficarem juntos. Eu já lhe disse isso. Estava apenas
querendo ajudá-la, mas faz todo sentido vocês dois juntos.
— É?
— Sim. Vocês têm grandes marcas da vida e agora se reencontraram de
verdade e tenho certeza de que vão ser muito felizes. Você não precisa pedir
desculpas, querido. Eu sabia que estava sofrendo e não iria desistir de você
nunca. Falava aquilo de brincadeira porque sua rebeldia me estressava.
Rio meneando a cabeça. Às vezes, eu era impossível.
— Eu sabia que sim, mas confesso que muitas vezes quis que fosse
verdade também. Não queria vê-la se esgotando tanto por causa de um idiota
como eu.
— Meu amor, você não é idiota. — Sua voz é suave. — Nenhuma
pessoa no mundo, que está sofrendo e fica incompreensível com os esforços
das outras pessoas para ela se sentir melhor, é um idiota. Dor é dor, e cabe a
nós, que estamos bem, ajudar essas pessoas. Você não fez isso depois que se
sentiu melhor?
Franzo a testa não compreendendo.
— Você não ajudou a Belinda a se sentir segura, feliz e até procurou, e
conseguiu, um tratamento para ela. Viu, querido, você entendeu
perfeitamente o sentido da empatia, afinal de contas, ninguém melhor do que
você, que sofreu todos os tipos de sentimentos ruins para compreender o que
é ser traído, desamado, abandonado e culpado. Tenho certeza de que você
será muito melhor daqui para frente. Melhor do que já foi.
— O que a sua mãe está dizendo é a pura verdade — diz papai. — E
para mim também não precisa pedir desculpas. E, com certeza, sua irmã não
vai aceitar. Todos nós amamos você e por isso não foi esforço algum estar ao
seu lado até você ficar bem novamente.
Sorrio sentindo meus olhos quentes. Baixo a cabeça sugando a vontade
de chorar, mas ela transborda, e em um choro de alívio. Lágrimas que eu não
derramo há muito tempo. Na verdade, eu não choro há muitos anos e neste
momento um peso enorme sai das minhas costas.
Meus pais se levantam e vêm me abraçar.
— Você é um bom filho, querido. Não duvide disso.
Fecho os olhos e os aconchego ao meu lado no sofá. Me sinto acolhido
em um abraço que consigo recordar da minha infância quando me machucava
andando de bicicleta ou no meu aniversário.
— Belinda disse que eu sou sortudo por ter vocês e a Ava — comento
quando nos afastamos um pouco. — Eu realmente tenho que concordar com
ela sobre isso.
— Nós também temos muita sorte de você ser da nossa família, filho.
— Obrigado por absolutamente tudo, mãe. Por você não ter desistido de
mim, que me trouxe até aqui.

Hoje é sexta-feira, seis dias que a Belinda operou e o médico achou que
não haveria mais necessidade da sua internação e a liberou, dando alta total.
Agora vamos nos consultar com um médico recomendado pelo Dr. Peterson
em Nova York.
— Está feliz de voltar para casa hoje? — pergunto para a minha garota
jogando Candy Crush no banco do carona do carro.
Ela está muito bonita usando um vestidinho rosa cheio de flores azuis e
lilás, presente de Lydia. É muito a cara dela um presente assim. E nas mãos,
Belinda segura um buquê de rosas cor-de-rosa de vários tons, que recebeu de
mim.
— É claro que estou feliz, mas ainda cheia de dor — resmunga. —
Provavelmente vou passar mais uma semana deitada na cama até passar esse
inferno. Como pode... eu passei tanto tempo com dor e agora vou ficar com
mais essa dor? Que droga, viu?!
Com a atenção no trânsito, comento:
— Mas o médico disse que vai durar mais ou menos mais duas semanas
ou três, e depois você não vai sentir mais nenhuma. Vamos pensar positivo.
Vejo-a de canto de olho revirar os olhos, soltando o ar pelo nariz, e uma
linha malcriada marcando sua boca.
— Eu estou pensando positivo! Yep! — Ergue o punho como uma líder
de torcida, porém desanimada.
— Humpf! — resmungo.
— Mas... — ela continua — é doloroso, chato e incômodo. É uma
mistura de tantas coisas juntas que dormir é a melhor opção. Contudo, se eu
dormir muito e meu estômago ficar vazio por tanto tempo forma mais gases.
Sinceramente... — faz um suspiro dramático — eu não sei o que faço.
— Você vai ficar deitadinha, bonitinha, porque assim gera menos
incômodo. Recomendação da Dra. Bennett, lembre-se disso.
— É... mas a doutora também disse que é importante eu caminhar e me
mexer um pouco. Até mesmo para os gases saírem.
— E só de vez em quando você dá uma voltinha na casa. É, acho que
você vai ter que dormir na sala.
— Aonde?
— Em Nova York.
— Quando a gente vai voltar?
— Depois de amanhã, junto com meus pais.
— Ah... Que horas?
— Não sei, amor — respondo exasperado com suas indagações sem
freio. Olho para ela e franzo a testa. — Talvez à tarde. Por que tanta
preocupação?
— Espero que a estrada não fique cheia no domingo. Não sei se vou
aguentar tanto tempo dentro de um carro sentindo dor.
— Não se preocupe, não vai estar cheia. Não é época de temporada.
Ninguém está viajando.
— Mmm... Estou com saudade do Vlad.
— Eu também estou sentindo falta de conversar com ele.
— Imagino. Você está aqui há dois meses. Se eu que apenas fiquei um
estou... Está com saudade de casa?
— Mais ou menos. Eu sou meio desprendido de achar que algum lugar é
o meu lar. Para mim onde está minha família é minha casa.
— Então... nesses seis anos, o que aquela casa suja lá de Nova Iorque foi
para você?
Para a sorte dela o semáforo fica vermelho, e eu respondo-a olhando nos
olhos:
— Um lugar para me esconder, com certeza.
Ela suspira, desvia o olhar rapidamente e saco os ombros abrindo um
sorriso.
— Que papo fúnebre, não é? — diz rindo.
— Nem é tanto. Hoje não mais. Quando lembro o que eu vivi, sei lá...
Foi só foi um tempo que eu passei e já acabou. — Estico minha mão e pego
a sua, entrelaço nossos dedos. — Agora eu estou feliz e apaixonado. O que é
muito bom.
Seu sorriso fica maior, os olhos brilhando.
— Meu Deus! Você sempre foi fofo assim ou... não sei. Acho que estou
com saudade do Adam barbudo e mal-humorado. O gentil que me dá rosas é
novidade demais para mim. — Dá uma gargalhada.
Levanto sua mão, trazendo para perto da minha boca, e beijo os nós dos
seus dedos, como sempre faço quando não tem como beijar sua boca.
— Eu não lembro uma época da minha vida que as pessoas não tenham
me elogiado por ser educado, gentil e amoroso. Eu sempre fui muito assim,
Belinda.
— Sério?
— Sim, estou falando sério. Eu sempre fui gentil com os meus pais,
meus avós e meus irmãos e... — travo lembrando de Selena. — Você sabe
quem.
Ela assente subindo a sobrancelha direita.
— Então — continuo —, quando eu fiquei rude daquele jeito e tão
sozinho, ninguém conseguia ficar perto de mim. As pessoas falavam que eu
tinha sido possuído por alguma coisa. — Rio recordando disso. — Enfim, só
foi uma fase e agora não sou mais assim e espero que você se acostume. E se
não, eu posso te dar uns foras de vez em quando.
— Não! — Bate brincando no meu peito, bem de leve. Não está com
muita força ainda. — Eu gosto de você assim. O Adam Stella de verdade.
— E antes eu era o quê?
— Adam, a Fera.
Caio na gargalhada e sigo o caminho de casa ouvindo a música Shallow,
de Lady Gaga, com Belinda acompanhando.
— Essa música tem um pouco a ver com a gente — pondera ela
cantando o refrão.
Cerrando os olhos presto atenção na letra, e ela tem razão. Não estamos
mais no raso agora. Não estamos mais correndo o risco de nos espatifar e
machucar.

Com muita insistência de Belinda resolvemos fazer um jantar de


despedida para Lydia. Ela está arrasada que nós vamos partir.
— Por que não ficam mais? — pergunta mais uma vez, creio que a sexta
vez nesses cinquenta minutos de jantar.
— Amo aqui, Lydia, todavia dois meses já é o suficiente — retruco bem
explicadinho. — Eu preciso voltar para a realidade e começar a trabalhar.
Ela revira os olhos e faz beicinho. Ah, meu Deus! Princesa da Disney
mimada versão Hampton.
Ignoro-a e penso no que lhe dar como resposta.
Preciso mesmo começar a trabalhar de verdade agora. Eu sou um
homem sério. Acabou a palhaçada de ficar me lamentando. O Adam, a Fera,
como todo mundo me apelidou pelo jeito, morreu absolutamente. Agora
tenho que voltar para Nova York, ajeitar minha vida, organizar meu emprego
– talvez abra meu estúdio de novo – e trabalhe, claro, junto com minha bela
Belinda.
Ela aceitou morar comigo, ser oficialmente minha namorada e com
certeza vou cuidar dela da melhor forma. Se Deus quiser, para sempre. Agora
é a nossa vez de ser feliz.
— Vocês não podem estar falando sério. Por que não moram aqui? Aqui
é tão bom. — Lydia insiste de novo.
Morar em Hampton? Isso nunca vai acontecer. Eu sempre vi esse lugar
como passatempo, férias e relaxar. Nova York é o meu lugar. Amo aquele
caos.
— Não adianta insistir, Lydia.
— Mas vocês precisam ficar mais um pouquinho.
— Olha, a gente vai voltar para a nossa casa. Já estamos há muito tempo
aqui e eu quero muito ver minha tia — Belinda responde calmamente para
minha melhor amiga de infância. — E eu vou sentir muito a sua falta, de
verdade, e com certeza vou te ligar e mandar mensagem todo dia.
— Ah, pode fazer isso e se prepara para os áudios de dez minutos.
— É sério que você manda áudio de dez minutos? — Belinda pergunta
surpresa arregalando os olhos e o copo suspenso no ar como se tivesse
esquecido de beber a limonada.
— É sim. Eu sempre tenho muito assunto para falar e acabo me
empolgando dependendo do tema. Eu sei que nem todo mundo atura áudios
longos demais, mas ninguém mandou ficar querendo falar por mensagem. Eu
sou mais da moda antiga. Ligar e conversar ouvindo a resposta da outra
pessoa, né? Interagindo. O áudio a gente não interage, por isso falamos pelos
cotovelos. Pelo menos, este é o meu caso.
— Até que o que que você disse faz sentido. — Belinda pensa em voz
alta.
— Infelizmente preciso concordar também — digo.
— A verdade é que essa juventude esqueceu os bons modos. — Papai se
mete. — As pessoas precisam realmente trocar ideias, debater, ouvir a pessoa
do outro lado da linha e, quando a gente manda uma mensagem que precisa
esperar a resposta, é muito chato. E pela mensagem, consequentemente
falamos tudo que pensamos já que vamos esperar outra pessoa fazer a réplica.
Honestamente é chato. Eu concordo com a Lydia. O melhor mesmo é
telefonar. Não estou falando isso porque eu sou velho.
Franzo a testa e balanço a cabeça.
Desde quando agora a gente vai começar a conversar sobre o quanto a
tecnologia tem seus prós e contras? Essa conversa está muito louca e claro
que tinha que ter partido da mente brilhante de Lydia. Essa garota é
impressionante.
— Vocês vão embora daqui a pouco? Está anoitecendo.
O relógio marca dezoito e trinta, e novamente preciso concordar com
ela, o que já está se tornando um hábito. Não é muito bom concordar com
Lydia muitas vezes. É sinal de que estou ficando que nem ela.
— Nós vamos daqui a pouquinho e acredito que até chegar em casa seja
umas onze da noite. Quem vai dirigindo sou eu. Vou deixar meu carro aqui.
— Então, tudo bem. Acho que vocês já poderiam ir se preparando. Não
quero atrapalhar.
— Ah, não. Pode ficar se quiser ajuda. Assim vai matando a saudade que
você vai sentir de nós. De qualquer forma, não posso fazer muita coisa
mesmo.
— Olha, é a Belinda que está me chamando. — Lydia aponta para a
minha namorada e a mesma solta uma gargalhada.
— Você é bem-vinda e o Adam não deveria reclamar de você, já que
insistiu tanto para eu conhecê-la.
— Ainda bem que ele fez isso. — A mensagem fica no ar.
Foi por conta de Lydia (a fada madrinha de Belinda, segundo ela mesmo
disse) que consegui os exames. Se não fosse por essa tagarela, alegre demais,
a cirurgia de Belinda não teria ocorrido com tanta maestria e facilidade.
VINTE & TRÊS

Minha igreja não oferece absolvições


Ela só me diz: "Louve entre quatro paredes"
O único paraíso para onde serei enviado
Vai ser quando eu estiver sozinho com você
...
Posso ter nascido doente, mas adoro isto
Ordene-me que eu me cure

TAKE ME TO CHURCH | HOZIER

Ter ficado tanto tempo fora de casa é fato de que ela estaria suja de
novo, mas não estava esperando o estado que realmente está. O pior é que
estou frustrada em não poder fazer nada.
— Você nem pensa em limpar essa casa. — Adam surge na sala de estar.
— Está me ouvindo.
Faço cara feia para ele e ajeito a manta em minhas pernas. Estou deitada
no sofá da sala em repouso, de novo, e o pior é que eu nem posso deixar de
repousar porque não quero. Acontece que simplesmente ainda sinto algumas
dores após oito dias e não posso carregar peso ou fazer esforço de jeito
nenhum. Portanto, repouso.
— Você já viu como essa casa está imunda? Como é que a gente vai
ficar assim desse jeito até eu ficar boa, Adam?
— Eu poderia limpar.
Cerro os olhos para ele, fitando-o bem séria.
— Como é que é? Eu sei que agora você é todo fofinho, legal,
apaixonado, humorado, maaas... agora você aprendeu a fazer stand-up? Deve
ser algum tipo de piada que você está contando.
— Não, meu amor. — Ele se aproxima, inclina o corpo até deixar o rosto
bem perto do meu e diz: — Estou falando sério. Eu poderia limpar a casa e
não tem problema algum nisso.
— Uhum — arrasto o som. — Se você sabe limpar a casa, por que que
ela ficava naquele estado? Sério, parecia que você era uma pessoa
disfuncional porque tinha teias de aranha com aranhas pela casa quando eu
cheguei.
Ele ri, mas faz cara de culpado.
— Eu sei. Eu sei... É que eu não ligava nem para mim, meu amor. Você
acha que eu ia limpar a casa? Você reparou bem meu estado quando chegou
aqui? Barbudo, cabeludo, sujo e desleixado.
— Roupas pretas com olheiras e de mau humor o tempo todo. Claro que
eu reparei.
Ele solta a sua gargalhada gostosa e segura meu rosto dando um beijo
em minha boca.
— E mesmo assim se apaixonou por mim.
— A verdade... é que eu reparei que você era bonitão no réveillon
quando tirou a barba. Fora isso, continuava espantoso. Aquela barba não
combina com você. — Acaricio suas bochechas. — Você tem um rosto tão
bonito que fica escondido nessa barba aqui, embora ela seja menor.
— Mas está bem menor e limpa.
— Eu prefiro quando está sem. Fica com cara de garoto levado.
Ele cerra os olhos sedutores.
— E assim eu fico com cara de quê?
— Mm... — Finjo pensar. — Hum... assanhado? Não sei. Quando você
se arruma, cerra os olhos e me olha com malícia fica até parecendo um galã
de filme de Hollywood.
Ele ri de novo e acaba se sentando na pontinha de sofá, já que não
sobrou muito espaço.
— Então, você quer que eu fique sem barba nenhuma para ficar com
cara de garotinho ou você quer que eu fique com barba para parecer um galã?
— Na verdade, a única coisa que eu quero mesmo é ver você sem roupa
de novo.
— Isso eu posso fazer agora.
— Ah... não teria graça. Não ia poder fazer nada mesmo. — Faço
beicinho.
— Quando puder, meu amor — ele murmura, a boca bem perto da
minha. — Eu vou tratar de fazê-la ver estrelas.
— Você sempre faz isso, principalmente quando olha dentro dos meus
olhos. E nem precisa estar sem roupa. Quando faz amor comigo, fitando-me
nos olhos, sorrindo e dizendo que me ama, eu vou até as estrelas.
— Eu também me sinto assim e é até um pouco bobo.
— Também acho, mas fazer o quê? Começo de namoro é assim mesmo.
— Pisco o olho.
— Eu vou tentar não fazer esse sentimento ser só no começo — ele
assegura. — Vou tentar resgatá-lo até o nosso futuro.
— Ai, que lindo! Eu te amo, meu Adam Stella!
— Também amo muito você, minha Belinda Biacho.
Estou olhando as fotos que Adam registrou enquanto estávamos em
Hampton. Encontro algumas minhas que ele fotografou sem eu nem perceber.
Algumas dos passeios que fizemos, outras estou dormindo, outras estou
distraída na praia pensativa. Uma dessas fotos eu até consigo lembrar o que
estava pensando. Estava com medo de morrer.
E tem algumas fotos minhas na festa que fizemos no sábado, assim que
cheguei. Isso me faz sentir ainda mais amada por ele.
Adam foi como descascar uma cebola com a casca dura. Me fez chorar
muito, mas consegui encontrar um diamante raro.
E pensando em raridade, dou uma olhada no corredor e finjo puxar o ar
com força, como se eu fosse um cachorro farejando e digo em voz alta para
ele me ouvir do segundo andar na casa:
— Parece que alguém está fazendo o serviço direitinho. Vai até ganhar
gorjeta.
— Então, eu vou merecer o real sentido da palavra gorjeta. A casa está
ficando um brinco! — ele berra descendo as escadas.
Solto uma risada tão forte que consigo soltar os malditos gases que
estavam presos. Ainda estou me sentindo muito mal.
Após, foco no meu namorado. Adam está vestindo uma bermuda de ficar
em casa, sem blusa e um avental rosinha que uso de vez em quando para
lavar a louça.
Sacudindo o espanador, ele vem andando até a mim fazendo uma cara
sexy.
— O que você acha? Estou pensando em sair assim para o Halloween.
— Acho que você vai ficar resfriado. — Há uma pontinha de ciúme
nessa declaração.
— É só por causa disso que você não vai querer que eu saia assim? —
Ele dá uma voltinha mostrando os seus braços fortes, as costas, o peito e os
ombros cobertos de músculos. Ele é lindo. Gastou toda sua energia nos
últimos anos na academia, isso sim.
— Claro que é. Estou pensando na sua saúde.
— Você não sabe mentir, sabia?
Meneio a mão, ignorando-o, e me sento no sofá para ele se sentar ao
meu lado. Logo me encaixo nos seus braços, deito minha cabeça no seu peito
e fecho os olhos.
— Vai demorar muito para você terminar?
— Por que a pergunta? — Ele afaga meus cabelos devagarinho. Eu
adoro quando faz isso.
— Porque eu queria você coladinho a mim para eu dormir como um
bebê.
— Acho que só falta agora a sala e o corredor daqui de baixo —
comenta.
— Eu queria poder te... — a campainha me interrompe.
Desvencilhando-se de mim, Adam vai até a porta. Escuto-o falando com
alguém, mas não identifico o que estão falando e com certeza quem é a
pessoa.
Logo, escuto quando ele fala: “Tudo bem, pode entrar. Ela está na sala”.
Em seguida surge de volta, abre um sorriso e se projeta para o lado, saindo da
frente da visita e eu descubro que é minha mãe.
— Mãe?
— Oi, querida. Finalmente consegui encontrar você. — Ela me pega
desprevenida quando vem rápido demais para cima de mim e me abraça
sentando-se ao meu lado. — Estava tão preocupada com você todos esses
dias sem notícia, Belinda. Por que não ligou para mim?
— A senhora está se sentindo bem? — questiono sem paciência. — Por
que eu não liguei para a senhora? Você não ligou para mim! Nunca. Isso é
algum tipo de brincadeira?
Ela se exalta e se afasta um pouco de mim.
Ótimo!
— O quê?
— Mãe, a senhora tem algum problema?
— Não, querida. Por que está falando isso? Por que está falando assim?
— Eu liguei para a senhora várias vezes desde que fui para Hampton.
Deixei recado na sua caixa postal já que não me atendeu.
— Oh, eu que não consigo atender a caixa postal e a senhorita vem me
dizer que...
— Pare! — Não permito que ela continue. Agora é a minha vez de falar:
— Estava preocupada comigo esses dias todos? Está dizendo agora que
queria me ver, ou seja lá o que você está tentando dizer. Francamente, eu não
acredito que está fazendo esse papel ridículo.
— Papel ridículo de quê, Belinda? E por que está falando assim comigo,
minha filha?
— Você está fazendo papel de mãe.
— Mas eu sou sua mãe. Olha como é que fala comigo, mocinha.
— Você é minha mãe? É, você é apenas a minha mãe e é só isso. Você é
a mãe que deixou o seu novo marido bater na sua filha e deixa ele bater em
você e destruir sua casa. E nunca se defendeu e ainda por cima fazia o
inverso, defendia aquele marginal, mau-caráter e vagabundo que não quer
trabalhar e não faz nada em casa.
— Por que tanto rancor? Não fale assim.
— Eu falo assim, sim. Passei o pão que o diabo amassou durante a maior
parte da minha vida e se não fosse a minha tia, eu ainda estaria sofrendo. E se
não fosse ela nem estaria aqui agora. — Meus olhos ficam marejados.
— Não venha dar os créditos para Rose de você estar trabalhando na
casa dos Stella.
— Mãe, eu só vim trabalhar aqui porque a titia falou com a Sra. Stella e
aí ela contou que eu estava precisando de um emprego urgente. E é sim por
causa da minha tia que estou aqui. Você os conhecia, mas isso não quer dizer
nada. Você nunca pensa em mim. Nunca pensou em mim, na verdade. Você
nunca pensa nos seus filhos e não pensastes com certeza no meu pai, senão
teria percebido os erros dele bem antes de tudo desmoronar. Teria impedido o
seu novo marido de destruir sua casa. Teria colocado o juízo na cabeça dele
para trabalhar, porque ele é bem grandinho. Tem muita saúde para trabalhar,
e lógico, que se fosse boa teria percebido a tempo o canalha que ele era e que,
em breve, você seria o saco de pancadas dele.
— Pare, Belinda! — só pede isso porque Adam está na sala, no canto,
observando, cuidando de mim de longe.
— A única coisa que você fez foi... nada. Continuou aturando ele e
apanhando daquele homem e ainda o defende, mesmo até — uma lágrimas
escorre — quando ele me deu um tapa no rosto. Você não fez nada!
— Não lembro disso.
— Lembra sim. Você estava vendo, sentada no chão, calada, ele gritando
comigo e depois acertar meu rosto.
De soslaio vejo Adam cerrar os punhos.
— Incrivelmente você deixou ele me bater... também. Não fez nada para
mim a vida toda. Portanto, não vem bancar a preocupada comigo. Porque
você nunca se preocupou com as minhas dores. Você parecia que nem me
enxergava e agora chega aqui sentimental? — falo mais calma. — Ah, pelo
amor de Deus!
— Dores? Do que você está falando?
Engulo em seco e fico sem reação. Vejo Adam se desencostar da parede
e sair da sala. Acho que ele não aguenta tanta hipocrisia.
— Estamos sozinhas agora. Pode falar o que quer comigo.
— Só saber como você está.
— Mãe, sério, não quero mais saber de você, porém eu ainda a amo
muito, pois aprendi a te amar e porque é minha mãe. Mas sabe de uma coisa,
muito triste por sinal. Eu percebi que mereço ser amada, que sou merecedora
de carinho, de amor, de afeto e aprendi isso de uma forma um pouco dolorosa
e, no fundo, eu não ligo. A única coisa que eu quero é que você me deixe um
pouco em paz. A sua ausência de atenção e cuidado comigo, já me causaram
muitos estragos. Você me fez acreditar que eu não merecia amor, porque
você não me deu. Eu nem sabia o que que era alguém me amar, embora
minha tia sempre tenha sido incrível comigo e nem sabia que o que ela fazia
para mim era o que você deveria fazer.
— Filha, depois que o seu pai...
— Não bote a culpa numa pessoa que não pode se defender. Ele não está
mais aqui entre nós e embora eu tenha ficado muito decepcionada quando ele
partiu, construindo outra família, dando as costas para mim, aquilo me doeu
tanto quanto você negligenciar o seu papel de mãe.
— Eu não fiz por...
— Qual é o seu problema, mãe? Eu, sinceramente, não quero saber
agora. Estou me recuperando ainda de tudo que me aconteceu e estou
tranquila. Preciso descansar.
— O que aconteceu com você?
— Mãe, a senhora poderia sair, por favor? Já deu.
— O quê?
— Eu estou lhe oferecendo com educação a porta de saída — Adam fala
com uma voz tão séria que me dá até medo.
Não é aquela voz sem emoção habitual que usava no início comigo, é
severa e sem brechas para argumentos. Ele está me defendendo, contra-
atacando.
De onde veio a camisa e o moletom?
Meus pensamentos interrompem quando minha mãe vira-se para Adam
colocando a mão no peito como se tivesse sido ofendida. Uma artista
encenando.
— Belinda, não quer mais falar com a senhora hoje — ele fala olhando-a
fixamente. — E está cansada e precisa repousar.
— Mas ela é minha filha.
— Maior de idade e tem o direito de não querer falar com a senhora
agora — rebate rapidamente. — Por favor, a deixe em paz. Quando ela se
sentir melhor, ela liga e vocês conversam. Não é, Belinda? — Olha para mim.
— É sim, mãe. — Ela vira para mim. — No momento eu preciso
repousar e ficar tranquila. Depois eu vejo se ligo para você.
— Por que está tão fria comigo? E por que está acatando as ordens dele?
— Primeiro que ele não está dando ordem nenhuma, e mesmo que fosse
eu não estou o obedecendo. Adam está me protegendo e ele sabe que a sua
presença neste momento está me machucando, então por ora só direi que
depois vejo se ligo para senhora.
— Mas...
— Vou reformular o que Adam disse. — Pauso para respirar. — Vai
embora e me deixe em paz.
Ela parece que foi atropelada. Não entende nada. Ou talvez sim e está se
fazendo de ofendida. Ofendida fico eu com sua falsa preocupação.
Infelizmente ela é desse jeito, e apenas sinto pena dela. Espero que minha
ausência a faça repensar seus atos. Vou sempre estar esperando-a de braços
abertos. Eu a amo. É minha mãe, né?
Atordoada Célia levanta e abraçando sua bolsa velha de couro
falsificado, caminha até a porta de cabeça baixa. Antes de sumir das minhas
vistas, me dá uma olhada parecendo um tanto arrependida.
A vida é assim (para a maioria das pessoas, pelo menos). Você sempre
colhe o que planta.
Adam volta assim que a leva até a porta, e senta ao meu lado. Ficamos
calados nos encarando e quando sinto um aperto no coração, me jogo em seus
braços. E ele me acolhe, afaga-me lentamente e beija meus cabelos.
— Talvez ela entenda o quão incrível você é e que precisava do carinho
dela.
Assinto, fungando.
— Não queria que fosse assim, mas eu precisava.
— Eu entendo, meu amor. Está tudo bem. Você não fez por mal. — Ele
me afasta, segura meu rosto com suas mãos e delicadamente limpa minhas
lágrimas com os polegares. — Você colocou pra fora anos de mágoas e
sentimentos reprimidos. Foi inspirador, viu? — Termina dando-me um
selinho.
Sorrio agradecida e prefiro não dizer nada. Peço sem palavras para
ficarmos mais perto, e Adam abre espaço para eu sentar em seu colo. Nos
aconchegamos no sofá quentinho. Fecho os olhos sentindo suas mãos me
acariciando. Uma nas costas, e a outra faz um caminho das nossas mãos
unidas até meu rosto, e muito delicado, ele beija meus lábios.
Suspiro e profundamente o beijo, não quero me soltar dele tão logo. E eu
disse à ele. É fácil estar nas estrelas.
VINTE & QUATRO

Me diga uma coisa, garota


Você está feliz neste mundo moderno?
Ou você precisa de mais?
Existe algo mais que você está buscando?
...
Estou caindo
Em todos bons momentos, me vejo ansiando por mudança
E nos maus momentos, sinto medo de mim mesma
...
Me diga uma coisa, garoto
Você não está cansado de tentar preencher esse vazio?
Ou você precisa de mais?
Não é difícil manter toda essa dureza?
...
Estou caindo
Em todos bons momentos, me vejo ansiando por mudança
E nos maus momentos, sinto medo de mim mesma
...
Eu estou fora do limite, veja enquanto eu mergulho
Eu nunca encontrarei o chão
Me espatifo pela superfície, onde não podem nos machucar
Estamos longe do raso agora

SHALLOW | LADY GAGA & BRADLEY COOPER


— Amor? — chamo virando-me na cama e puxando Belinda para mim.
Porra, perdi o sono com tantos pensamentos em minha mente
conturbada. Isso me tira do sério.
Ela resmunga apenas.
— Está acordada? — pergunto erguendo meu corpo para poder tirar o
cabelo do seu rosto virado oposto a mim.
Ela está dormindo toda despojada entre as cobertas. Barriga para baixo,
o rosto caído fora dos travesseiros e um dos braços jogados em mim, embora
esteja de costas para mim. Uma graça.
Estou contente que passou a fase das dores e reclamações. Ela tinha que
dormir como dava na primeira semana de operação. Hoje, dois meses depois,
está livre. Tudo está devidamente como deveria ser. Sem dores, sem cólica e
sem nenhum sinal de câncer. Sua última revisão foi segunda passada e nos
trouxe muito alívio.
— Uhum... — Faz baixo, sem ânimo.
— Não. Você não está acordada.
Belinda suspira alto, se move com desprezo virando-se para mim.
Acendo o abajur do meu lado e me ajeito para ela quase se encaixar em mim.
Vejo-a abrir os olhos só um pouquinho e franzir a testa antes de sussurrar:
— Adam, deixa de ser chato. — Dá um beijo rápido no meu peito e
deixa a mão no lugar. — O que você quer?
— Estou pensando uma coisa e não consigo dormir.
Ela assente vagarosamente e me encara por um longo minuto.
— Pensando o quê? Seja um pouquinho mais claro e eu posso estar
acordada, te ouvindo de verdade, mas... — respira sonolento — estou com
sono.
— Okay, vou explicar.
— Por favor.
Assinto e começo:
— Estou pensando que eu conversei com meus pais, pedi perdão a eles e
você confrontou sua mãe. O que foi incrível.
— Você já disse isso.
— Sim e eu queria ter filmado aquilo.
— Deixa de ser debochado.
— Não estou. Você é minha heroína.
Ela ri baixinho e empurra meu ombro.
— Fala logo o que você estava pensando.
— Okay. Okay! Eu estava pensando que nunca fui no túmulo do meu
irmão.
Seus olhos arregalam. Acho que despertei minha garota.
— Eu nunca pensei simplesmente, sabe? Desencravar esse remorso e,
embora eu esteja me sentindo mais leve agora, acho que só preciso disso para
me sentir totalmente livre daquele passado. Seria como perdoar ele — faço
aspas com os dedos — “fisicamente”.
— Você não foi ao enterro dele?
— Não e nem no velório. Me recusei a ir aos dois e, principalmente, do
meu irmão. Eu carregava muita culpa para aparecer lá. Eu queria estar no
lugar dele então... foi mais fácil ignorar os fatos e não vê-lo ser enterrado.
— Imagino. Deve ter sido muito difícil para você. — Ela levanta a
cabeça, arrasta seu corpo mais para cima e tocando meu rosto, fixa os olhos
nos meus e seu olhar me traz muita calma. — Acho mesmo que você deveria
ir lá. Aposto que se sentiria muito bem depois. Não sei, Adam. Acho que
você e eu, precisávamos desenterrar esses fantasmas que nos assombravam
para ficarmos livres. Ninguém que fica preso ao passado consegue ter um
futuro.
Beijo-a a derrubando na cama, fico por cima e me afasto apenas para
dizer:
— Viu como você é minha heroína?
Me atrapalha dando uma risada.
— Toda forte, sábia e abusada.
— Abusada?
— Só um pouquinho. — Dou um beijinho no seu nariz. — Mas eu amo
esse seu lado. Não deixe, nunca, ninguém passar por cima do que pensa. Pode
até ser errado para alguns, mas é como digo: opinião não pede permissão a
ninguém, é única e não deve ser discutida, talvez comparada e repensada. E
você tem uma opinião maravilhosa, sabia?
Belinda ri e sacode os ombros de leve.
— Você também é incrível e tem muita coisa aqui dentro — espalma a
mão no meu peito, sobre meu coração — que vale a pena. Esse coração é
gigante e espero que um dia você enxergue que, no fundo, o que você se
propôs a fazer foi sua melhor forma de pedir desculpas, só uma pena que
também se arruinou com ela. Mas — sua outra mão toca a maçã do meu rosto
— agora você está inteirinho de novo e é todo meu.
— Sim, minha garota. Sou seu. Um pouquinho em ruínas – pois nunca
vou esquecer – e todos os meus pedaços são seus e sempre serão.

Não consigo tirar minhas mãos do volante do carro.


— Adam?
Eu ouço Belinda, mas não escuto.
Estou de volta no tempo, sinto todas as coisas que tentei escapar durante
os últimos quatro anos, quando me dei conta de que esses sentimentos me
afundaram. Me levaram a um patamar que nada conseguia me tirar. Era por
isso que eu adorava entrar em brigas. Me concentrava na dor que emanava do
meu corpo ao invés da tristeza que sentia noite e dia.
— Você consegue.
Acho que sim, só que é muito difícil. Não sei se meu irmão vai me
perdoar. São seis anos de atraso. E estar aqui agora sinto como se estivesse
com medo de sentir aquela dor novamente. Não é tão fácil como sair do carro
e caminhar até seu túmulo. Não é tão fácil enterrar sentimentos como foi para
deixá-lo a sete palmos.
Infelizmente, o único que é culpado de fortalecer esse remorso sou eu.
Só posso culpar a mim, mas está na hora de deixar essa dor para trás. Me
perdoar além de pedir perdão a quem sofreu com minhas escolhas.
— Vamos, meu amor. Saia e enfrente. Estarei bem aqui do seu lado,
como você fez por mim.
Concordo com um aceno.
Decidido, solto as mãos do volante, desligo o carro e não há pensamento
na minha cabeça quando saio. Estou do lado de fora e dentro ao mesmo
tempo. Estou no lugar dele agora.
Belinda aparece do meu lado com os olhos marejados e um sorriso doce.
Acredito fielmente que ela consegue absorver meus sentimentos e ler meus
pensamentos.
— Vamos? — convida-me a seguir oferecendo sua mão.
Aceito não apenas sua mão como suas esperanças. Ela é simplesmente
isso. Minha “high hopes” (grandes esperanças) como a música que colocou
para ouvir hoje de manhã no café. Depois da conversa da madrugada, minha
garota resolveu pôr em prática minha ideia, e com boas vibrações.
Meu coração é preenchido por ela.
Com um aceno dela – de confiança –, eu sorrio agradecido e sigo em
silêncio ao seu lado.
Conforme vamos avançando o cemitério, confesso que o medo aparece,
e com ele, lembranças do meu irmão.
Dos Stella, Ian sempre foi o mais charmoso, galã e chamativo. O mais
bonito e de um sorriso que convencia até os mais turrões. Todos o adoravam,
independente de o conhecer. Com uma lábia fantástica, meu irmão
conquistava as meninas, os professores e meus pais, e até eu e Ava. Era o
líder da classe, o capitão do time de basquete. O fotógrafo que sorria
registrando as imagens e sonhava em voltar para a África. Ele dizia que nada
fora tão lindo quanto ver aquela selva e seus animais. Ian contou, todo
entusiasmado, que sentiu uma forte presença de algo Divino. Ele não era
muito religioso, mas guardava um senso de fé no futuro um tanto inspirador.
Não é porque ele era meu irmão, que o achava uma das melhores pessoas que
conheci na minha vida, e ainda acho. Com poucos três anos de diferença de
idade, ele era meu símbolo de exemplo e gentileza. Altruísmo e compaixão.
Tudo sempre tinha uma saída, um lado bom, uma possibilidade. Nada era
impossível para ele e eis que veio sua morte. Sem uma saída, sem uma nova
chance.
As lágrimas caem sem ao menos eu notá-las chegar. Em meu peito,
agora, meu coração bate fraco e doloroso. A poucos passos do túmulo, freio.
Um buraco se forma e minhas vistas turvas leem: “Ian George Stella. Que o
céu seja tão belo para você fotografá-lo”. Essa é uma típica frase reservada
apenas para o meu irmão.

— A falta de luz não impede de ver a beleza, brother — ele disse


enquanto caminhávamos pela praia de Hampton na madrugada, com sua
máquina pendurada no pescoço para eventuais momentos que ele dizia ser
de extrema necessidade registrar para a eternidade.
Dei de ombros e segui ao seu lado.
— Um dia, você vai conseguir ver o que estou falando.

— É, irmão, eu consigo agora — digo com um belo nó na garganta, a


voz fraca. — Sua ausência me fez ver beleza na escuridão.
Fecho os olhos e deixo-me cair de joelhos na grama tão verde, tão viva
diante de tantos corpos sem alma, sem vida. Um paradoxo.
Flores, grama, belas esculturas e bancos pintados de branco. Um
confortável lugar para se ler um jornal, talvez, ou... se despedir formalmente.
É apenas para a dor ser física, vista, “tocada”, mesmo que não seja. Não
é. Eu me despeço de Ian a cada dia que passa. Cada noite que cai. Em todos
os dias que se levantam.
A cada tique-taque do relógio, a distância do último momento que estive
em sua presença. Que ganhei seu abraço, senti seu cheiro e ouvi sua voz. Isso
é a despedida e ela é uma espiral. Nunca se vai. A levamos para o nosso
próprio túmulo.
Mas estou aqui diante da morada de seu corpo apenas para sentir que foi
real. Que acabou.
— Está tudo bem, irmão — balbucio. — Tudo bem você ter partido.
Estou tranquilo agora.
Minhas mãos tremem quando toco a grama para me levantar. De canto
de olho, movendo o rosto apenas um pouco para a direita, vejo que Belinda
está distante me dando meu momento e limpa os olhos constantemente.
Pego as flores que deixei cair e levo para pôr sobre os pés do túmulo.
Passo a mão sobre a gravação do seu nome, limpando a poeira, e baixo a
cabeça. Fecho os olhos e faço uma oração a ele. Onde quer que esteja.
Terminando, limpo meus olhos, engulo o bolo na garganta e converso
com ele sobre tudo que aconteceu comigo nos últimos seis anos. Conto sobre
nossa sobrinha e sobre Belinda. Digo o quanto ela parece com ele e como
isso me irrita às vezes, mas que a amo como nunca amei Selena, e que o
perdoo de todo meu coração.
— Às vezes era para ser assim. Você com ela e eu com a minha garota
curiosa, irmão. Então, tudo bem e... — abro os olhos e fito seu nome — eu
sempre irei te amar. Continua sendo minha inspiração e quem sabe um dia a
gente se encontra.
A emoção me pega forte e eu a deixo levar tudo que for preciso neste
momento, para nunca mais sentimento algum me separar do carinho que eu e
meu irmão sempre sentimos um pelo outro.
Respirando fundo, recupero o controle. Abro os olhos, aprumo minha
postura e me vou sem olhar para trás, de todas as formas.
— Terminou? — indaga Belinda.
Eu sei que a pergunta não é sobre a visita ao cemitério, e respondo:
— Com certeza. — Pego sua mão, dou um beijo no seu rosto.
E seguimos em frente. Sempre em frente.
Alguns cacos nunca voltarão para o lugar, mas isso não quer dizer que o
“vaso” é ruim, apenas imperfeito.
EPÍLOGO

Um mundo totalmente novo


Um lugar maravilhoso que eu nunca conheci
Mas quando eu estou longe daqui
É claro como cristal
Que agora estou num mundo novo com você
Vistas inacreditáveis
Sentimentos indescritíveis
Planando, caindo e livres
Em um céu infinito de diamante
Um mundo totalmente novo
Não ouse fechar seus olhos
Milhares de coisas para ver
Prenda seu fôlego - vai ficar melhor

A WHOLE NEW WORLD | ALADDIN

Meu coração não consegue se controlar e, porra, não posso ter um


infarto e morrer justamente hoje. O dia mais especial da minha vida.
Há quatro anos, minha vida voltou dos eixos. Eu posso dizer que renasci
quando Belinda bateu na minha porta. Ela me deu sua compaixão, depois seu
amor e sonhos.
Depois de um ano juntos a pedi em casamento. Mais seis meses e
vivemos nossa cerimônia. Foi um dia memorável e ela estava encantadora de
vestido branco caminhando para mim em nosso casamento na casa de Lydia
(nossa madrinha em Hampton). O sol no alto, brilhando e iluminando-nos
com seu esplendor. Foi emocionante e ela me fez derramar algumas lágrimas
com seus votos.

— Agora me dou conta de que estamos vivendo nossas segundas


chances.

Ela, como tudo que fala, tem razão. Somos a segunda chance de nós
dois. E já vivemos muitos bons momentos até agora. Realizamos desejos,
como conhecer a África. Eu precisava ver com meus próprios olhos o que Ian
contou, e ele tinha razão. Mas como tudo no mundo mantém o equilíbrio (um
pouco distorcido, às vezes), vi também muita tristeza e os pontos sem luz
com sua beleza distinta. Ian era um sábio. Vovô dizia que ele era uma velha
alma.
Belinda e eu curtimos muito esses anos e tudo o que pudemos viver, mas
agora eu posso dizer que estamos prestes a viver uma nova experiência. Uma
que dá um frio na barriga.
Levanto minha cabeça e dou de cara com Harry. Ele está tão tranquilo
que me deixa puto.
— O que foi? — indaga meu cunhado e abre um sorriso neutro.
— Nada não, seu panaca.
— Você não deveria falar assim comigo — debocha.
Escolho a ignorância e olho para o lado. Vejo Belinda com a mão na
boca, os olhos vidrados para frente (sem focar em nada) e compulsivamente
sacudindo o pé. De repente, levanta, anda pra lá e pra cá. Pega uma
guloseima naquelas geladeiras que põe dinheiro, nem abre e já desiste de
comer. Olha para os lados e vira-se para mim.
— Deve ter acontecido alguma coisa e não querem me falar.
— Amor — digo, fingindo calma, e levanto ficando perto dela e
segurando seus ombros. — Não aconteceu nada. Vamos esperar.
— Você não está nem um pouco calmo, Adam.
Essa foi golpe baixo.
— É verdade, mas não estou como você. — Seguro suas mãos trêmulas.
— Já vão te chamar.
Mal termino a frase e a chamam:
— Belinda!
— O quê? — Minha esposa sai correndo até a enfermeira.
— Pode vir. Está na hora.
Belinda concorda com um aceno e fica parada. Congelou de medo.
Resignado, caminho até ela e a viro para mim. Seus lindos olhos azuis
me fitam cheios de pânico.
— Não precisa ficar assim. Vai lá e dê sua confiança e amor. Vou estar
esperando aqui.
— Queria que você visse — murmura com os olhos marejados.
— Eu vou ver, amor. — Coloco o cabelo atrás da sua orelha. — Agora
vai logo. Estão te esperando.
Ela assente repetidas vezes e fica na ponta dos pés, me dá um beijo e
segue a mulher que a chamou.
E é a minha vez de congelar no lugar. Fico parado olhando-a sumir entre
as portas francesas. Meus batimentos aceleram e sei que não sairei daqui até
ela voltar.
— É assim mesmo.
Olho meu cunhado, que veio para o meu lado.
— Respira fundo — diz apertando meu ombro.
— Por que você está tão calmo? Sério! — Harry me indigna.
— Costume, irmão — responde. — Agora vem sentar comigo ali. Ela
não vai voltar tão cedo.
— Tem certeza?
— Pelo menos meia hora.

Harry tinha razão, pois quarenta minutos depois Belinda surge na porta
me chamando. Eu a sigo pelo corredor sendo guiado pela emoção.
Minha esposa pede permissão e entra na sala. Antes preciso me limpar.
Ela se apronta na frente de onde está o que mais queríamos há dois anos.
Tentamos tanto, tanto, mas infelizmente ela não pôde engravidar. Quase
fomos à loucura. Só que Belinda é a Belinda e não desistiu. Procurou todos
os métodos prováveis para realizar nosso sonho e, embora tivemos todas as
condições de adotar, e pensamos nisso, ela viu a esperança em uma ideia
assustadora.
Numa noite chuvosa e abafada de novembro, batemos na porta da casa
de quem poderia realizar nosso pedido muitooo especial.
Uma vez Belinda disse que eu tinha sorte de ter a família que tenho, com
toda razão. Ava, minha irmã, não teve problemas para engravidar nas duas
vezes (sim, tenho dois sobrinhos hoje), e sabendo disso, minha esposa fez o
pedido:

— Você seria minha barriga? Carregaria meu bebê por mim?


Ava ficou em choque e, para não a assustar, explicamos que iria fazer
uma inseminação in vitro.
Os óvulos, do lado direito no caso de Belinda estavam bons, digamos
assim, e unindo-se com o meu esperma, formaria um embrião e só
precisaríamos colocar a fecundação dentro de um útero “bom”. No caso,
minha irmã apenas abrigaria nossa prole.
— Vocês têm certeza? — Ava perguntou.
— Absoluta — respondemos em uníssono e Belinda continuou: — Não
conheço alguém mais perfeito para fazer isso por nós e... eu não tenho
ninguém além de você para pedir isso.
Ava olhou para o marido e Harry respirou fundo, ficou pensativo e
depois meneou a cabeça olhando para nós.
— Vai ser uma honra dar esse presente a vocês — respondeu porque
minha irmã naquele momento já estava abraçando minha esposa.

E, hoje, neste exato momento, vejo Belinda pegando seu maior sonho
nos braços: nossa menininha. Me aproximo delas e inclino-me para ver a
nossa Hope (esperança). Ela está chorando, abrindo o berreiro. Gritando em
alto e bom som, e correndo o risco de acordar os coleguinhas do berçário,
onde estamos, que ela chegou ao mundo.
— Oi, filhota — murmuro pegando sua mãozinha.
Ela para de chorar e me encara. Seus enormes olhos azuis da cor dos
meus, escuros, e uma boquinha que logo forma um biquinho.
— Acho que ela vai ser igual a você — comento e viro-me para Belinda,
e a pego chorando.
Sorrindo e me sentindo diferente. Muito diferente. Não sei qual adjetivo
descreveria o que sinto. Talvez minha filha seja a palavra. Estou cheio de
esperanças. Passo meus braços pela cintura de Belinda, encaixando em seus
braços que protegem Hope e murmuro:
— Ela é sua.
Ela assente, engole em seco e suspira um reflexo de um soluço.
— É sim. É minha. — Dá um beijinho na testinha da neném. — Minha
Hope.
— Sim, nossa esperança.
Não tinha nome melhor. Esperança! Porque ela foi tudo que sempre
esteve em minha vida e sempre terá. A esperança é o símbolo da fé e nunca
devemos deixá-la morrer, não importa o quanto ganhamos, perdemos e
sofremos. Temos que “regar” nossa esperança para ela florescer. Eu irei, com
certeza, sempre estar com a minha esperança, em ambos os sentidos, e minha
Belinda.
NOTA DA AUTORA

Escrever "EM RUÍNAS" foi o livro mais difícil que eu fiz em toda a
minha carreira de escritora e, embora o início dele tenha vindo de uma forma
leve e descontraída, sempre foi meu intuito abordar um assunto que ficasse na
cabeça das pessoas e em seus corações. Só não pensei que no processo, eu
descobriria tantas histórias semelhantes à de Belinda e tão tristes, realmente
não imaginei que uma das minhas parceiras tivesse passado por algo
semelhante ao que Belinda passa no livro.
Isto partiu meu coração e ainda mais com outras histórias. Histórias com
um final não tão bonitos assim. Ainda bem que a Nane conseguiu resolver a
tempo esse assunto e eu também pude fazer algo importante para esclarecer
sobre doenças femininas.
No fundo, o que eu mais quero é que a mulherada que leu esse livro
tenha um incentivo a mais para cuidar da sua saúde, ficar atenta aos sinais
que toda doença nos dá, e não deixar para depois.
As piores coisas sempre acontecem na calada da noite, naquele dia, hora,
ou em qualquer momento, sempre no silêncio; e quando a gente descobre
acabamos rompendo essa quietude bem alto, gritando aos quatro ventos,
clamando por uma justificativa.
Então, não espere acontecer. Vai lá e faça por você mesma os cuidados
necessários com sua vida.
Cuidar da nossa saúde é a melhor forma de nos amar.
Espero que todos, sem exceção, que tenham lido este livro, guardem a
vida de Belinda em seus corações.
MUITO OBRIGADA
POR CHEGAR ATÉ AQUI.
Se quiser, deixe sua avaliação, ela é muito importante.

Até a próxima.
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