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TÍTULO Em Ruínas
IMAGENS DA CAPA © Depositphotos
ILUSTRAÇÃO & DIAGRAMAÇÃO Artessa Covers
REVISÃO & PREPARAÇÃO DE TEXTO Carla Fernanda
REVISÃO Amandda Bennett
1. Romance | 2. Newadult | 3. Drama
AGRADECIMENTOS
PRÓLOGO
UM
DOIS
TRÊS
QUATRO
CINCO
SEIS
SETE
OITO
NOVE
DEZ
ONZE
DOZE
TREZE
QUARTOZE
QUINZE
DEZESSEIS
DEZESSETE
DEZOITO
DEZENOVE
VINTE
VINTE & UM
VINTE & DOIS
VINTE & TRÊS
VINTE & QUATRO
EPÍLOGO
NOTA DA AUTORA
Para:
NANE FRAGNAN.
Ainda bem que você está aqui para ler esse livro, que está aqui para ser
minha parceira. Está aqui, viva, para ser mãe, amiga, esposa e uma guerreira.
OBRIGADA!
AGRADECIMENTOS
BREATHE ME | SIA
Por mais que eu queira continuar na minha cama fofa e quente, tem
algum ser desprovido de inteligência que não parou de apertar a campainha
nos últimos vinte minutos, porque se fosse esperto já teria entendido que:
número 1: não tem ninguém; ou
número 2: ninguém quer atender.
Jogando as cobertas para longe, levanto da cama procurando minha
blusa. Dormi com a roupa de ontem, já que não tomei banho. No entanto,
como sou calorento, enquanto dormia tirei a camisa de manga comprida.
Resmungando pela forte dor na cabeça aperto os olhos e me arrependo.
— Merda! — Dou um berro e, passando pelo corredor do segundo
andar, olho meu reflexo no espelho. Meu olho está inchado. Ontem eu
exagerei.
Não tenho muito tempo para pensar, a campainha toca mais uma vez e
grito que já estou indo descendo as escadas. Mas que porra de pessoa
ansiosa! Não sabe esperar não?!
— Que droga! — resmungo e abro a porta.
Dou de cara com uma garota magra (até demais), os olhos azuis bem
claros, passivos e curiosos. Está vestida com uma calça jeans clara, bota que
já deve ter visto dias melhores e provavelmente uns cinco casacos. Na mão
carrega uma mala e nas costas, a mochila que, com certeza, está cheia. Franzo
a testa e ela abre um sorriso, que é claramente um pedido para deixá-la entrar.
Olhando atrás dela, vejo minha rua coberta de neve e, para melhorar, um
vento forte que forma uma geada. Ela deve estar congelando, porque eu
estou.
— Pois não? — Tento ser educado.
— Posso entrar? Sua mãe disse que você estaria me esperando.
O quê? Eu perdi alguma conversa no caminho?!
— Quem diabos é você?
— Belinda. Sua mãe me contratou pra ajudar você... — fala e seus olhos,
com um rápido movimento, vislumbram minha casa por trás de mim,
formando uma careta de nojo — com a casa.
Okay. Eu sei que minha casa já viu dias melhores (e isso tem muito
tempo mesmo), mas não vou ficar aqui vendo uma qualquer fazer cara de
desdém para minha residência. Quem ela pensa que é?
Antes mesmo de eu abrir a boca e profanar algum insulto para ela, tem
outra pessoa que não perde por esperar por minha ligação.
Fecho a porta na cara da garota com uma batida forte e evidentemente
com raiva. Soltando uma dúzia de palavrões subo as escadas para pegar meu
celular no meu quarto. Rapidamente faço a ligação para minha mãe, já
descendo ao encontro da garota. Dessa vez, ela passou dos limites. Vai ter
que me explicar o que, merda, está passando na sua cabeça.
No terceiro toque ela atende com sua alegre saudação. Minha mãe
parece aquelas protagonistas de filmes de Natal em família. Ela, no caso, é
aquela mãe rica com um casamento feliz e os filhos realizados na vida
(mesmo que, na realidade dela, não seja assim). Ela sempre está feliz e
disposta. E isso me irrita tanto. Não sei como alguém consegue ser assim
vinte e quatro horas por dia. E se me cansa estar perto, imagina ser ela.
— Oi, meu filho querido. O que você quer? — fala meiga como se não
soubesse por que estou ligando às oito da manhã de um domingo, onde
claramente eu estaria dormindo ainda.
— Eu quero que a senhora me explique por que tem uma mulher na
minha porta com um olhar de nojo para minha casa dizendo que veio a
mando da senhora? O que tem na sua cabeça?
— Filho...
— Mãe — interrompo-a —, eu não mandei arrumar nada para mim. Já
não falei pra parar de se meter na minha vida. Por que é tão difícil me largar e
deixar eu viver minha vida da maneira que eu acho melhor?!
Christal Stella solta uma respiração pesada, demonstrando como está
esgotada de mim. Ela não sabe o quanto também fico às vezes.
— Filho, eu só queria ajudar você. Ela não será ninguém.
— Ela já é alguém, mãe. E entenda, eu não quero mais nada. Está muito
bom do jeito que está. Não tem que melhorar nada.
— Querido, eu só quero o seu bem.
— Já sei, mas eu não quero. É tão difícil entender?
— Não fala assim.
Sinto em sua voz a profunda tristeza de ouvir seu filho profanar algo tão
obscuro. No entanto, é a verdade.
— Adam, me escute, por favor.
— Hum? — Faço exasperado e espero.
— A menina só vai limpar sua casa e fazer comida pra você. Cuidar de
você já que eu não posso ir todo dia aí. Então, aceite. Eu pedi para ela não
perturbar você. Ela será invisível e você nem a notará.
— Pera aí. Você está querendo me dizer que ela vai ficar pra sempre?
Mamãe ri alto e consigo imaginá-la balançar a cabeça como se eu fosse
um menino fazendo birra e perguntando algo estúpido.
— Não para sempre, Adam — explica como já imaginava. Como se eu
fosse uma criança. — Ela só ficará aí por um tempo. Belinda não tem...
— Nem vem com essa. Eu não quero ninguém na minha casa.
— Adam, seja flexível.
— Eu?! Por Deus! A senhora está se metendo na minha casa agora. Não
sou eu que preciso ser flexível aqui.
— Para com isso agora, menino. Já faz seis anos. Seis anos que eu tento
convencer você a viver. A voltar a viver. Não sou obrigada a assistir meu
filho morrer dia após dia pelo remorso que não cabe a ele. Foi um acidente!
Um acidente, Adam. Ninguém foi culpado. Quando chega a hora de partir,
infelizmente não tem jeito e as perdas sempre deixam desculpas. Então, por
favor, tente por mim. Você pode não querer muita coisa, mas pelo menos ter
um pouco de limpeza e decência em sua casa, seria muito bom. Belinda será
uma companhia neutra. Fique tranquilo. Eu conversei com ela.
— Ótimo, a garota me acha maluco. — Não que eu me importe.
— Ela não sabe de nada. Eu apenas disse para ela que você é reservado
e não gosta que o perturbem. Por favor, querido, seja flexível só desta vez e é
Natal. Você poderia aproveitar o clima e ser bonzinho para mim.
Reviro os olhos e, por respeito e amor aos meus pais, irei ceder desta
vez, mas juro por mim mesmo que será a primeira e única vez que acontece.
Eu não tenho mais esperança. Não há mais nada para mim. Infelizmente
sobreviver àquele acidente, não é algo que eu tenha por que agradecer. Eu
não merecia estar aqui. Minha família diz que não fui culpado, mas eles
sabem que oitenta por cento da culpa foi minha. Por que não aceitam e me
dão o que mereço? A destruição que eu implantei na vida daquelas pessoas,
na vida deles mesmo. Merda de vida!
— Uhum — resmungo. — E o que ela vai fazer por aqui?
— Ela vai fazer comida, limpar a casa e cuidar dos telefonemas, porque
você tinha prometido para mim que iria voltar a trabalhar e com isso
precisará de uma secretária.
Respiro bem fundo, tão forte que chega a doer meu peito e quando solto
o ar sei que minha mãe consegue sentir no seu rosto.
— A senhora não vai desistir?
— Nunca.
Assinto olhando para o chão e, por alguma razão, lembro do meu tempo
quando via minhas fotos sendo expostas e até quando eu simplesmente
trabalhava e registrava as fotografias.
— Está bem. Como eu disse: vou tentar.
— Fico muito feliz de você tentar, meu amor. Você sabe que tudo é
porque amo você.
— Está bem, mãe. Desta vez você venceu, mas só desta vez.
— Filho, um dia você vai me agradecer por não desistir de você como
está fazendo estes seis anos. Eu te amo e sempre vou amar e lutar por você,
entendeu?
— Uhum — resmungo. — Agora preciso atender a garota.
— Certo e, por favor, não a maltrate. Ela não tem culpa de você sentir
raiva de si mesmo o tempo todo. Agora, vai lá e qualquer coisa me ligue.
Como se eu alguma vez liguei. Eu nunca incomodo ninguém e adoraria
que fizessem o mesmo comigo.
Encerro a ligação sem me despedir, pois foi explícito nas minhas últimas
palavras que a ligação acabou. Deixo o celular no bolso da calça e caminho
para a porta de casa, e abro com rispidez.
A garota está sentada na mureta da varanda, encolhida, abraçada à
mochila e de cabeça baixa. Assim que percebe que estou parado olhando-a da
porta, ela se levanta desajeitadamente, coloca a mochila pendurada em um
dos ombros e se aproxima como uma presa em perigo. Não digo que não seja,
mas não sou um monstro.
— Entre logo. Se você morrer com este frio, minha mãe ainda vai me
culpar.
Mais um remorso para minha conta.
Minhas palavras devem ter tido um efeito bem dramático e inesperado,
pois a garota prende o fôlego e, enquanto passa por mim e entra na minha
casa, solta a respiração vagarosamente. Ela está nervosa.
Fecho a porta e me viro, deparando-me com a tal garota parada no meio
do corredor observando sutilmente minha casa.
Cerro os olhos e consigo vislumbrar suavemente quando seu nariz
enruga ao olhar para a sala de estar. Estufo o peito, enchendo os pulmões de
ar e vou (como quem não quer nada) ver o que a fez fazer cara feia (pela
segunda vez) para minha casa.
Ah... ela está com nojo das caixas de pizza, as caixinhas de batatas fritas
do McDonald’s, e as latinhas de cerveja e refrigerante sobre a mesa de centro
e no sofá. Também tem caixa de yakisoba na cômoda da TV, e umas roupas
sujas jogadas pelo sofá, chão, cadeira da sala de jantar. Franzo a testa quando
vejo uma meia jogada em cima no abajur. Como ela foi parar ali?
A garota limpa a garganta e caminha. Vou atrás e é impossível não fazer
uma reflexão sobre minha casa agora pelos olhos de outra pessoa. Está tudo
imundo. Onde vivo é um lixo e para os que me conheceram anos atrás, essa
casa nunca seria minha. Eu era cuidadoso e posso dizer limpo, pois é óbvio
que se eu fosse limpo ainda não estaria vivendo aqui neste estado lastimável.
— Onde eu vou ficar? — ela pergunta parando abruptamente, se virando
para mim e eu quase caio em cima dela.
Respiro fundo e sou obrigado a frear meus passos segurando seus
ombros com força. Ela engole em seco e pisca como se estivesse com medo.
(Ela tem olhos muito bonitos. Não sei por que, mas observo isso
atentamente). E, por favor, eu não sou um monstro. Se bem que o estado que
vivo parece que sou uma fera e ela a bela jovem, indefesa, invadindo minha
casa.
— Desculpe — peço me afastando dela.
— Sem problema.
Viro-me, querendo o máximo de distância e vou para as escadas, indo
para o segundo andar apresentar a casa.
— Aqui tem quatro quartos e o seu será o primeiro depois da escada. O
meu é o último, que é o terceiro andar todo junto com meu estúdio.
— Uhum... — escuto-a concordar atrás de mim.
No corredor do segundo andar, faço uma careta para o espelho que está
tão sujo que não reflete mais nada. A poeira é a outra moradora desta casa
depois de mim. Que horror! Estou ficando inquieto com isso. Não é bem
vergonha, já que ninguém tem alguma coisa a ver com a minha vida, mas fico
incomodado com os julgamentos de alguém estranho, que no caso é a garota
que olha com a testa franzida o topo da porta do seu futuro quarto com uma
teia digna de ter uma aranhazinha passeando. Que grande merda!
— É aqui. Pode entrar e se acomodar, depois começa a limpar como
minha mãe disse — aviso e dou as costas, indo para o meu quarto.
Não aguento mais ver sua cara de nojo. Não gostou, então limpa, porra!
— Seu nome é Adam, certo? — Consigo escutá-la antes de subir as
escadas e paro.
— Sim — respondo sem encará-la.
— Está certo. Prazer, sou Belinda.
Fecho os olhos e conto até dez antes de me virar e andar até ela. Faço um
aceno de cabeça como se estivesse registrando seu nome e percebendo que
tem mais alguma coisa a dizer, espero sem muita paciência.
— Eu queria dizer que não é minha intenção perturbar sua vida. De
verdade. E-e... — ela engole em seco — e me desculpe sobre fazer a cara feia
pra sua casa. Não foi minha intenção.
Hum... ela me ouviu falando isso pra minha mãe, ou percebeu que eu
notei sua cara feia, e não gostei.
Dou de ombros para não dizer o que penso sobre ela, que não é nada. Ela
não significa nada na minha vida.
— Agora posso ir? — indago sem esboçar algum sentimento.
— A-a-ah... po-pode sim — gagueja.
Reprimo a vontade de rir. Acho bom mesmo ela ter medo de mim.
Assim fica longe.
Esfregando meu rosto, dou-lhe as costas novamente e vou para o meu
quarto. Eu mereço dormir mais um pouco. Acho que o corpo quando fica
muito tempo parado acaba querendo ficar mais tempo sem fazer nada. No
caso, quanto mais eu durmo, mais eu quero dormir.
Tenho nada pra fazer mesmo. Já poderia morrer, mas Deus não quis
obviamente e nem meus pais querem. Então, o jeito é dormir e esquecer.
Chego do mercado uma hora depois e nem acredito que demorei tanto.
Saio do carro e o contorno para pegar as compras no porta-malas.
— Adam? — Escuto e viro-me para ver quem é.
Algo dentro do meu peito aperta quando nossos olhos se encontram. O
que ela está fazendo aqui? Eu não a via há seis anos. Desde o...
— Que surpresa — diz com suavidade e abre um sorriso pequeno. —
Você parece... parece bem.
Assinto engolindo em seco e ajeito a sacola de papelão nos braços.
— Não pensei que você morasse ainda aqui — fala mais uma vez,
porque eu simplesmente acho que perdi a capacidade de falar.
Mexo os ombros e meneio a cabeça. O que eu deveria dizer?
Sim, eu moro aqui ainda depois que perdi meu desejo de viver. Depois
que vi duas pessoas muito importantes da minha vida partirem por minha
culpa.
— É — solto e deixo de encará-la e pego a outra sacola e depois fecho a
mala.
— Hum... — ela murmura e eu volto a olhá-la. — Pensei que você
tivesse se mudado, senão já teria vindo aqui... te visitar.
— Não tem problema. Está tudo bem — essa é a maior mentira que já
contei na vida, claro que depois de dizer para a minha mãe que irei tentar de
novo seguir com minha vida e minha carreira.
— Que bom – diz com um sorriso acolhedor, mas seus olhos
transparecem toda a pena e julgamento que tem sobre mim, que visivelmente
não pareço bem com o supercílio machucado e uma barba cultivada pelo
relaxamento e desprezo.
Se ela está pensando que não estou bem, mas acredita que estou porque
digo que sim, ela faz o mesmo que eu. Ignora a realidade.
Eu nunca mais fiquei bem depois de tudo que aconteceu e cultivo
arduamente o único sentimento que consigo reconhecer ainda: a dor. Eu
deixo a dor fazer parte de mim. Deixei as janelas e as portas escancaradas
dando liberdade ao medo e a dor.
E agora dar de cara com Sarah (a cópia fiel da minha dor) é como atear
fogo nas memórias. Um filme passa na minha cabeça e as recordações boas
não são bem-vindas. Elas morreram. Morreram junto com tudo mais.
Parece que passa uns dez minutos inteiros que ficamos nos olhando em
silêncio. Até que ela puxa uma respiração profunda e desvia os olhos
rapidamente, para quando me encarar de volta, esteja mais tranquila.
— Bem, tenho que ir.
— Eu também. — Indico as compras.
— É — ela ri. — Desculpe perturbar você.
— Sem problema.
Ela assente e segura a alça da sua bolsa com força.
— Hum... foi muito bom ver você, Adam. Até a próxima.
Assinto com a cabeça e curvo o canto da boca. Nós dois sabemos que
não desejamos nos esbarrar de novo. Nós não damos boas lembranças para
cada um.
— Até — ela fala de novo e vira-se, atravessa a rua e caminha sem olhar
para trás ou hesitar.
Estranhamente acompanho-a até que some ao virar a esquina e solto a
respiração pesada. Balanço a cabeça e subo as escadas.
Dentro de casa vou direto para a cozinha, que está vazia e limpa como
não vejo há muito tempo. Deixo as compras sobre a mesa que tem no canto.
Vou até o portal que dá para as salas e não vejo a garota. Ergo as
sobrancelhas e volto minha atenção para as compras, tirando das sacolas.
Quando termino de colocar as coisas da geladeira para refrigerar, saio da
cozinha e subo.
— Ai, que susto! — a garota reclama assim que entro no banheiro do
meu quarto.
Ótimo, agora ela está por aqui.
Levanto a sobrancelha esquerda e depois franzo as duas. Ela respira
fundo e pega o balde com pressa e sai. Mas antes aviso:
— Comprei um monte de coisa. Vê lá na cozinha e coma algo.
Ela assente e, pela primeira vez, vejo um sorriso. Está relaxando na
minha presença. Acho bom. Eu não mordo, porra.
— Está bem. Vou ver o que dá pra fazer rápido pro jantar.
— Não se incomode. Eu me contento com um lanche.
Ela dá de ombros, mexendo a cabeça de forma engraçada e finalmente
sai do meu quarto fechando a porta.
Fico um tempo encarando o nada e não sei o que pensar. Sarah mexeu
comigo de um jeito estranho e essa garota me intriga. Não sei se minha mãe
me falou tudo que eu preciso saber.
Mas quem se importa com a vida dela? Depois de ver a casa limpa, ou
melhor ficando limpa já que o dia está acabando e ela não terminou ainda,
acho que consigo me acostumar em ter alguém para cuidar das coisas. No
fundo, eu não gosto de sujeira. Só deixei chegar no estado que estava porque
não tenho ânimo para nada.
A esperança se alimenta de sonhos. E todo sonho é um futuro. E eu não
penso no futuro, não quando não me livro do passado. Não há sonhos nos
meus amanhãs. Minha esperança está condenada a apenas existir e nada
mais.
Sou como um homem que entra na igreja, mas que não acredita mais.
Um homem que assiste à missa com a fé perdida.
DOIS
Acho que nunca trabalhei tanto na minha vida como nesses últimos três
dias, mas estou feliz. É gratificante ver minha obra de arte sendo construída.
Porque vou confessar. Limpar essa casa foi como pintar uma obra e eu
consegui fazer algo digno comparado a Pablo Picasso.
Nesses dois dias eu limpei o primeiro andar todo e no segundo só
consegui limpar os outros quartos, incluindo o meu que estava com rastros de
cupim. Comprei veneno para colocar antes que Adam perca tudo.
E hoje estou aproveitando que Adam saiu e entrei no quarto dele e estou
quase acabando. Meu Deus, esse homem está doente ou não sei, talvez seja
uma fase. A cama dele provavelmente não via uma roupa de cama limpa há
muito tempo. O chão de madeira está triste e a única parte menos
“abandonada” é o banheiro.
Coloco as mãos na cintura e solto a respiração cansada.
— Pelo menos, aqui ele limpava — falo olhando o banheiro recém-
lavado. O vidro do box está brilhando.
Pegando os panos sujos, coloco dentro do balde e carrego a vassoura
para fora do quarto comigo, fechando a porta.
Vou direto para a área de serviço e deixo as coisas lá. Lavo as mãos com
vontade e volto, entrando na cozinha. O almoço está quase pronto.
Estou fazendo algo simples, que todo mundo que eu conheço gosta de
comer, e espero que Adam não seja chato para comer, o que eu já desconfio.
Na primeira vez que o vi comer foi cereal (acho que nunca vou esquecer
aquele dia) e depois um sanduíche de peito de peru. Ontem ele comeu
macarrão com queijo no almoço e na janta. Ele que fez e pelo menos, dessa
vez, lembrou de mim.
Sei lá, eu não consegui sentir raiva dele em nenhum momento até agora,
mesmo sendo tratada como uma intrusa e ele dificultando tanto tudo.
Ontem à noite fiquei pensando... Ele detesta minha presença e eu não
estou cem por cento feliz de precisar estar na casa dele, mas não tenho outra
opção. Preciso do dinheiro e dessa ajuda.
Tenho que juntar uma boa grana para fazer o plano de saúde e os
exames, que adiei por tempo demais. Só meu corpo sabe o quanto fui
negligente e relaxada com minha saúde. Sempre pensando no amanhã, no
depois e nada de cuidar da maldita dor que me faz contorcer nas noites mais
doloridas. Agora estou desesperada depois de conversar com uma médica e
contar meus sintomas e ela dar várias opções do que pode ser. Estou
morrendo de medo.
O cheiro do arroz queimando no fundo da panela me tira dos
pensamentos caóticos.
— Merda! — Desligo o fogo. — Eu não preciso disso.
Corro até a gaveta de talheres e pego uma faca e a enfio no meio do
arroz. Minha avó me ensinou esse truque para que não fique o gosto de
queimado.
Alguns minutos depois, inclino-me e cheiro o arroz. Perfeito. Satisfeita,
pego o frango temperado e coloco para grelhar.
Vinte minutos depois, a mesa está posta e apetitosa. Fico parada olhando
como uma boba. Não sei o que penso. Por que eu estou preocupada se Adam
vai chegar a tempo de pegar a comida quente. Ele nem liga pra mim. É um
mal-educado do caramba.
— Sabe de uma coisa? Vou comer e voltar ao trabalho.
Estou parada há meia hora em frente a uma porta que fica embaixo da
escada. Na verdade, estou tentando adivinhar o que é e se eu devo ou não
abrir. Tenho medo de que seja aqueles porões assombrados e se levar em
conta que o dono desta casa é um cara obscuro e o prédio tem uma aparência
suja e abandonada, pode ter muitas chances de que essa casa tem fantasma.
— Ai, para com esses pensamentos, Bel! — repreendo-me cruzando os
braços e fazendo careta.
A única coisa que você precisa se preocupar, é do senhor mal-humorado
chegar logo. Estou me sentindo muito bem hoje para ele estragar o meu dia
com sua presença.
Tem dias que eu sinto tanta dor que minha vontade é de ficar na cama e
não levantar nunca mais. Deus sabe o esforço que faço há mais de um ano
para lidar com essa cólica infernal. E também sabe que eu não tinha dinheiro
antes para ir ao médico.
Então, quando eu acordo bem e disposta, gosto de aproveitar cada
segundo do dia. E é por isso que minha mão está na maçaneta, girando a
mesma e empurrando a porta.
Meus olhos se arregalam com a escuridão, mas me arrependo, a poeira
quase seca minhas retinas.
— É, pelo jeito vou ter um grande trabalho por aqui.
Rapidamente volto à área de serviço e pego o balde, panos limpos e
desinfetante. Aquele lugar, por mais escondido que esteja, precisa de um
cheiro melhor do que de meia suja. Carregando tudo de um jeito atrapalhado,
mas eficiente, entro no porão depois de acender a luz que dou graças a Deus
por estar funcionando e iluminar todo o ambiente.
Enquanto desço as escadas observo as paredes ao lado. São de ripas de
madeira e depois que passo o concreto da casa, posso ver o porão todo, e é
bem grande, mas nada assustador. Posso dizer que é triste e abandonado
como todo o prédio e a casa antes de eu limpar, é claro.
O balde faz um barulho alto quando finalmente chego ao “chão” e me
atrapalho com tudo em minhas mãos.
— Não pode ser! — exclamo indignada com o que vejo no canto.
Eu me matei esses dias todos, essas horas todas, como uma louca para
tirar a poeira dessa casa e olha o que temos aqui. Um aspirador de pó. Céus!
Isso seria de tanta ajuda. Argh! Agora já era e pelo menos nas próximas
limpezas vou usá-lo. Se estiver funcionando.
Curiosa como sempre, começo a caminhar pelo porão e tento achar
alguma pista para o estado de espírito de Adam. Eu conheço toda a família
dele e sinceramente não consigo entender como um cara de uma família tão
alegre e educada pode ser tão grosso e mal-humorado.
Tudo bem que todo mundo tem seus problemas e algumas crises na vida
nos deixam diferente, estressados, mas confesso não consigo aceitar o jeito
dele. Acho que eu só fico quieta todas as vezes que ele é mal comigo, porque
não tenho outra opção, porém vai chegar uma hora que eu não irei me
sucumbir. Em algum momento, ele vai falar alguma graça ou vai fazer
alguma coisa. E não irei ficar calada.
Esquecendo isso, observo o lugar.
Têm três armários, dois sofás velhos, uma pia, fogão e geladeira,
provavelmente para se caso acontecer um terremoto ou apocalipse (que nem
nos filmes). No entanto, Adam não sobreviveria de todo modo. O armário da
despensa está vazio (como estava o lá de cima), a geladeira também não tem
nada. Está bem, tem sim, cerveja e mais cervejas. No armário que seria de
roupas e roupa de cama, está praticamente sem nada. Parece que o fim dos
tempos já chegou por aqui.
Do jeito que ele vive...
Contudo, o armário nos fundos, quase escondido, na direção dos fundos
da escada, têm várias coisas e sei deste detalhe sem abri-lo, porque as portas
são de vidro. É aquele armário de buffet para colocar louças que nunca são
usadas. Acho que era da mãe dele, pois na casa dos Stella agora tem um duas
vezes maior do que este. Talvez dona Christal tenha trocado e dado este aqui
para o filho.
Com passos lentos, chego mais perto e observo tudo. Na última
prateleira tem um violão, pastas grossas, cadernos e uma jaqueta de couro. Na
de cima um capacete (daqueles pequenos e ridículos) e alguns livros. E nas
duas prateleiras de cima, em destaque, tem várias máquinas de retrato.
São seis máquinas, algumas antigas e outras novas. Tem duas caixinhas
de acrílico com filmes para fotografar, lentes de vários tamanhos. E tem oito
caixas brancas, que parecem novas. Limpas, diferente de todo resto dentro
desta casa.
E é óbvio que pego e abro as caixas. São filmes de fotos não reveladas,
ou se foram ele guardou por recordação. Na outra caixa tem mais filmes.
Pego mais uma e acho desta vez negativos, mais outra e encontro fotos.
São quatro caixas só de fotos e álbuns de retrato, que folheio. Várias
fotografias lindas. Fotos de paisagem, de crianças, de pessoas brincando e
vivendo. De casamento, de todos os tipos de fotografias. Coloridas, preto e
branco, em sépia. E são fotografias lindas. Dignas de exposição em um lindo
museu de fotos ou até mesmo serem emolduradas e guardadas em casa.
Será que foi ele que tirou? Será que antes de se trancar dentro de casa
que nem um bicho selvagem (e deixar aquela barba crescer monstruosamente,
porque obviamente ele não cuida, pois há homens que têm barbas grandes e
não parecem abandonados.) e nem quero falar do cabelo que já vira dias
melhores e uma boa tesoura. Enfim... será mesmo que antes dele se tornar
esse cara obscuro era um fotógrafo talentoso? Porque isso eu não tenho
dúvidas.
Estou olhando as fotos distraidamente, observando cada detalhe e seu
jeito de fotografar. Depois pego as máquinas e vejo se alguma delas funciona.
Surpreendentemente consigo bater uma foto em cada máquina.
Curiosa pego o capacete e virando descubro o nome dele atrás e dentro
do violão, que parece ter tido dias melhores. Está faltando duas cordas e
talvez eu testasse tocar. Meu irmão me ensinou há muitos anos. Eu não canto
bem, mas toco violão maravilhosamente.
— O que você está fazendo aqui?
Sabe aqueles momentos dos filmes que a personagem morre, ou tem
uma parada cardíaca, ou simplesmente dá comercial para criar um clima ou
aliviar o choque da cena. Então... é este momento agora.
Eu queria muito um “break”, um comercial longo e tedioso, para não
estar morrendo do coração agorinha. Merda!
Por que que ele tinha que voltar logo agora? Por que ele não podia
passar o dia inteiro fora? Ele não faz nada dentro de casa mesmo. Não faz
diferença ele aqui, só me atrapalha a limpar tudo e... O que que eu estou
fazendo aqui também?
Que pergunta idiota? Eu estou limpando essa maldita casa que não acaba
de ficar limpa nunca.
Tudo bem! Respiro fundo aliviando meu estresse e irritação. E o meu
medo por ele ter me pego aqui xeretando. Às vezes, um porão é como uma
caixa escondida debaixo da cama. Não é para ninguém mexer. É para ficar
guardando bugigangas e segredos que ninguém nunca deverá saber.
Então... já que eu sou uma enxerida (já é a segunda vez que ele me
chama assim, agora não chamou, mas foi como fosse uma acusação).
Largo as coisas, levanto (porque eu estava sentada distraída e
confortável vendo tudo da vida dele, tentando desvendar “Qual é a real face
de Adam ser um amargurado”. Aprumo minha postura e viro-me de frente
para ele lentamente.
Ele está todo de preto, o que não é incomum. As únicas roupas que eu já
o vi usar é essa calça jeans, o casaco preto, o cinto arrebentando e as blusas
brancas ou pretas. Quem olha pensa que talvez ele não tenha outras roupas,
ou outras cores de blusas pelo menos. Mas a verdade é que no armário dele
existem várias roupas, e muitas coloridas. Ele tem sapatos coloridos, calças
coloridas, todos os tipos de roupas: de qualidade, de marca e de tecido, mas
ele só usou as mesmas nesses dois dias e meio que estou aqui.
Não sei qual é o problema e, sinceramente, vou ficar maluca se tentar
desvendá-lo.
Talvez com o tempo, eu... Poxa, cheguei “ontem” como eu quero do
nada saber quem ele é? Isso é um absurdo. Espera aí, eu estou me
questionando por estar dentro da casa de uma pessoa estranha? Esse é o
questionamento mais louco que já tive. Cala a boca, Belinda!
— Eu estava limpando.
Ele puxa a respiração com força e cerra os olhos.
— Tenho certeza de que minha mãe não mandou você limpar o porão,
afinal de contas ninguém liga para ele.
— Eu conheço gente que limpa, mas talvez você nunca tenha limpado...
— Pauso ouvindo a vozinha: “Cala a boca e saia daqui agora”.
— Mas eu não falei para você limpar aqui.
Pisco com força e mordo a boca.
Eu era para me sentir insultada? Porque, sinceramente, a única coisa que
estou sentindo é raiva e um pouco humilhada. Estou um pouco puta da minha
vida por eu não poder responder ele como desejo. Minha vontade... A minha
vontade... A minha vontade é...
— Algum problema? Você não entendeu o que eu falei por acaso? Você
mudou de língua.
Balanço a cabeça lentamente.
— Ótimo, então não entre mais aqui nunca mais e, por favor, suba e
entre no seu quarto ou vá para cozinha, saia, dê um passeio, qualquer coisa.
Apenas saia daqui. Eu não quero você aqui embaixo nunca mais. Eu não
coloquei regras, você entrou na minha casa porque minha mãe quis e ponto.
Mas já que a casa é minha e você vai ficar aqui por sei lá qual necessidade, eu
não estou ligando. Mas talvez seja bom, eu vou ajudar alguém, no entanto
quero que você entenda, Belinda. O porão é uma área restrita a você. Não
quero que você entre aqui nunca mais. Está me entendendo?
Assinto freneticamente.
— Me desculpa. Eu realmente... — pauso me sentindo culpada.
Eu não deveria ter entrado aqui e só vim mexer para implicar com ele e
tentar desvendar quem é ele, mas não é da minha conta. Eu tenho que estar
aqui porque preciso, então se ele não quer que eu Nunca Mais venha aqui
embaixo. Eu Nunca Mais venho aqui embaixo.
Preciso dar o braço a torcer e pedir desculpas e sair com o rabinho entre
as pernas subindo as escadas. Sinto-o vindo atrás de mim com a respiração
ofegante, e não porque está fazendo este exercício de subir a escada, e sim
porque está bem irritado.
Quando chegamos ao corredor e ele vai bater a porta e está prestes a
trancar (provavelmente esconder a chave), eu falo rápido:
— Eu deixei o balde e os panos e tudo que eu uso para limpar a casa lá
embaixo. E não tem outros. E-e-e... eu sei que você não queria que eu tivesse
ido lá, mas vi que tem um aspirador de pó e ele me ajudaria muito a limpar a
casa.
Ele para, olha para baixo e respira fundo. A mão vai para a cabeça
mexendo nos seus cabelos rebeldes e que precisa urgente ser aparado. Solta a
respiração e olha para mim sem demonstrar absolutamente nenhum resquício
de sentimento. Ele parece um robô.
— Vai lá embaixo e pega, depois você fecha a porta e me dê a chave. Eu
vou ficar esperando na sala. Você tem uns dez minutos.
— Tudo bem. Eu não vou demorar.
Me viro para entrar novamente no porão e pegar minhas coisas. Quando
estou no meio da escada escuto a voz dele.
— Aproveita que você desceu e guarda tudo que você tirou do lugar de
volta no armário. Sem mexer em nada mais. — Sua voz para de repente. —
Quer saber?
Escuto os passos dele atrás de mim e o sinto um degrau acima de onde
estou. Lentamente, viro-me e dou de cara com seus olhos impetuosos.
— Eu vou ficar esperando aqui — diz sem humor. — Se quiser me dá o
aspirador e o balde que já levo e te ajudo. Mas eu quero que você coloque
tudo no lugar que tirou, por favor.
Mm... Adam Stella sabe falar “por favor”.
Embora ele tenha sido grosso, como sempre, e me fazer sentir como um
rato de esgoto. Estou realmente surpresa com esse “por favor”.
Acho que o resquício de educação que a família tenha lhe dado ainda
está dentro dele. Só precisa de... prática?
Será que a “fera” ainda pode ser adestrada?
TRÊS
O Natal era uma época que eu adorava. Não tinha o porquê uma criança não
gostar, a não ser aquelas que foram traumatizadas por algo que aconteceu no
dia. E durante a minha infância e adolescência nada aconteceu, tudo estava
bem. Eu amava o Natal. Era um dos dias em que eu almejava com fervor. Ia
ganhar presentes e rever tios e primos que só conseguiam aparecer em festas
ou funerais.
Mas então em dois mil e treze mudou completamente minha expectativa.
A graça para o dia vinte e quatro de dezembro não existe mais. Morreu junto
com meus sonhos e planos. Morreu junto com Selena no carro.
Às vezes me questiono não apenas o fato de tê-la perdido, mas o dia. Eu
estraguei o dia de todo mundo e para mim, estraguei o Natal para sempre.
Nunca mais vou ficar feliz neste dia. É demais para mim.
Por isso não entendo minha mãe continuar com o entusiasmo natalino,
como se nada tivesse acontecido. Eu só quero ficar na minha cama dormindo
ou vendo algum filme de terror, que provavelmente tenho que alugar. Na TV
só passa filmes idiotas de Natal, que eu detesto. Sempre mostram a magia
natalina e como a vida de todo mundo fica perfeita por causa de um simples
dia. Os problemas são resolvidos. As famílias se reúnem depois de tempos.
Os filhos voltam, os fantasmas bons vêm visitar e contar o que precisamos
para acreditar na vida. E fora os filmes de Natal de romance. É tudo muito
brega e mentiroso. Assim como o amor é uma falsa felicidade e finita.
Mas a realidade é bem diferente, totalmente diferente para mim, porque,
afinal de contas, hoje estou sendo obrigado a ir à festa de Natal da minha
família.
Aperto a buzina de novo e olho para a porta de casa. Tem uns dez
minutos que estou esperando Belinda. Minha mãe insistiu que eu a levasse e
sem contar que a mãe dela estará lá.
Ela aparece na porta com uma bolsa quase caindo pelo ombro e desce as
escadas correndo. Entra apressada no carro e, enquanto coloca o cinto de
segurança, explica:
— Desculpe. Eu estava procurando meu celular.
— Tá bom — assinto e acelero.
Seguimos o caminho à casa dos meus pais em silêncio. Eu perdido em
pensamentos e atento ao trânsito e a garota mexendo no celular, que de vez
em quando reclama de algo.
Curioso viro o rosto para ela, parando no semáforo, e indago:
— Você está conversando com alguém ou jogando?
Ela sorri com os olhos atentos ainda no aparelho e estende a mão
pedindo para eu esperar. Tenho vontade de rir. Volto a andar com o carro e
depois do que parece dez minutos, ela larga o celular sobre sua bolsa em cima
das pernas e vira o rosto para mim.
— Eu estava jogando e não podia perder a fase, por isso demorei para
responder.
— Eu logo imaginei isso. Você estava muito concentrada para estar
falando com alguém, a não ser que fosse uma coisa séria.
Ela solta uma gargalhada forte e balança a cabeça. Quase reviro os
olhos, mas me concentro no trânsito.
— O que você está jogando?
— Candy Crush — ela responde com muito orgulho e mentalmente
tento achar o motivo para isso. Esse jogo não é para criança?
— Sério? — indago com desdém e torço o nariz.
— Ah, não faz essa cara. É um dos jogos mais legais que tem. — Prende
os lábios para não rir, revirando os olhos, e continua: — Tudo bem que
algumas pessoas acham besta, mas se você prestar bem atenção tem que ser
até esperto.
— Se você tá dizendo — murmuro.
— Eu estou afirmando, afinal de contas estou na fase cento e vinte e
oito.
— Uau! Isso é muita coisa. — Olho para ela de relance. — Qual é a
última fase? Quando você encontra o Poderoso Chefão?
Ela ri.
— Definitivamente você nunca jogou Candy Crush ou chegou perto
porque não tem fim e nem um Chefão. Ninguém até agora chegou ao fim.
— Talvez porque é tão chato que desistem.
— Pode ser, mas vai dizer que você nunca jogou um game e desistiu por
ser longo e difícil.
— Talvez — respondo seco. — E também esse Candy Crush é viciante e
cansativo. Deve irritar passar de fase e nada de novo acontecer. Não ganhar
nada.
— Se você olhar por esse ângulo.
— E por acaso tem outro?
— Deixa pra lá. Eu esqueci com quem estou falando.
Olho para ela de soslaio e franzo a testa. Acho que ela já conseguiu
enxergar quem sou. Ignoro a vozinha dentro de mim incomodada com suas
palavras e me concentro em chegar à casa dos meus pais.
E assim passamos mais quinze minutos dentro do carro e em total
silêncio. Acho bom ela ter colocado fone na merda do celular. Não queria
ouvir o barulho dela jogando. Na verdade, gosto de ter a sensação de que
estou somente eu no carro.
Como prometido chego à casa dos meus pais na hora que minha mãe
pediu. Na verdade, cheguei vinte minutos antes do horário que normalmente
eles acordam para tomar o café da manhã, portanto ajudo a fazer o café e
como merecidamente oitenta por cento das panquecas. Mas minha mãe não
liga. O importante para ela é minha presença, não eu comer por três pessoas.
— Não sei como você come tanto e não é gordo — minha irmã fala do
outro lado da mesa.
Olho para o prato dela e sorrio. Está cheio, mas ela tem um desconto por
estar amamentando. Falando nisso, minha sobrinha está no carrinho ao lado
dos pais fazendo sons de bebês. Ela traz um ar doce para o Natal.
Como esperado, o café da manhã é tranquilo e cheio de regalias. Esse
ano (apesar de que para mim é um dia ruim por culpa das recordações) tem
um motivo feliz para brindar e alegrar o dia: a chegada da nova membro da
família.
Estou ajudando a tirar a mesa quando meu pai aparece na porta.
— Quando acabar quero falar com você.
Concordo com um aceno e ele some. Viro-me para a minha mãe e a vejo
sorrindo.
— O que foi dessa vez? — indago sem ânimo.
— Juro que não sei, filho.
Balanço a cabeça, resmungando. Ela nunca sabe.
Minutos depois, caminho ao escritório do meu pai. Ele só pode estar
aqui.
Abrindo a porta de madeira da antiga sala de atelier do meu irmão, vejo
meu pai sentado na enorme poltrona que fica no canto do seu escritório.
Depois de anos trabalhando como contador de uma grande empresa, ele
decidiu ser seu próprio chefe e hoje trabalha para seus clientes como contador
particular. Ele diz que agora é bem melhor por ganhar mais e estar em casa.
Minha mãe adora pelos dois motivos também.
— Feche a porta e sente-se.
Aceno com a cabeça, obedecendo-o.
Quando me sento em frente a ele, pego um dos seus livros na estante,
que é a parede toda do escritório.
Se engana quem pensa nessa estante como uma aquisição de luxo. Papai
é um devorador de livros desde pequeno e muitos livros que tem aqui ele já
mandou reformar porque estavam literalmente se partindo. São livros de
primeira edição e verdadeiras relíquias. Eu e meus irmãos nunca pudemos
sequer mexer neles. Além de estarem no topo da estante (que antes ficava
entre as salas de jantar e estar), meu pai mandou colocar portas de vidro com
cadeados nessa estante mais atual. Ele leva muito a sério seus queridinhos,
como mamãe chama os livros favoritos de papai.
— O que o senhor quer falar comigo? O que fiz dessa vez?
— Não precisa ficar arisco, rapaz — fala com sua voz baixa largando o
jornal em cima da mesa do abajur ao lado e me encara. — O que eu tenho pra
falar é quase a mesma coisa que sua mãe vem falando nesses seis anos. E
diga-se que eu também, mas dessa vez estamos mais esperançosos.
— Ah, não começa.
— Começo, sim — afirma acenando com a cabeça. — Eu não vou
continuar assistindo meu filho jogando a vida fora. Estou falando como um
amigo. Se você demorar muito, quando perceber o tempo passou e você
estará solitário e sozinho. São duas coisas diferentes. Sozinho é quando
ficamos num quarto por um tempo. Solitário, é uma pessoa abandonada.
Então mesmo que você tenha a sua irmã e o Harry, isso em algum momento
não bastará, Adam.
— Eu não tenho apenas eles.
— Garoto — ele solta a respiração com força e deixa de encarar. Ele só
faz isso quando está nervoso —, você tem trinta anos, é inteligente, tem duas
faculdades e deveria aproveitar que é bonito. As garotas gostam dos caras
como você, filho.
Isso me arranca uma gargalhada.
— Não estou pensando em garotas, pai. Se você estivesse falando do
meu trabalho e como gastar meu tempo, eu até ficaria para ouvir. — Levanto
deixando o livro na poltrona. — Porém, como não se trata disso, obrigado
pela conversa, mas já vou.
Viro as costas e caminho sem pensar duas vezes para a porta. Quando
vou sair, ele fala:
— Você é muito teimoso, Adam. Mas espero que uma hora reconsidere
o que eu disse hoje. Não queira uma vida solitária. Ninguém suporta a solidão
por muito tempo.
Como meu pai conseguiu fazer esse dia ficar pior, estou preferindo ficar
longe de todos. Eu já que sou um revoltadinho, como eles pensam, que gosta
de ser sozinho, então vim curtir a merda da minha solidão. E também não é
porque não gosto mais do dia, que tenho que estragá-lo para todo mundo.
Estou na varanda dos fundos da casa e nem tão solitário. A neve está me
fazendo companhia. Vendo-a cair me perco em pensamentos, nada tão
fulgente para ser compartilhado ou debatido. São apenas pensamentos
caóticos.
Dou um gole no meu vinho depois de encher o copo a quinta vez. Eu não
sou bobo e trouxe uma garrafa comigo para não ter que entrar e ver a cara de
decepção da minha mãe.
A neve está caindo forte, já está tudo coberto de branco. A
churrasqueira, o balanço que meu pai improvisou na árvore velha. Minha
irmã pediu tanto, que ele fez sua vontade. Olho o aparador de grama e
balanço a cabeça com a lembrança do meu irmão e eu usando como moto.
Minha mãe ficava louca conosco.
Esfregando as mãos junto ao rosto, puxo o ar por dentro delas e solto.
Está muito frio e, quando um vento forte passa por mim, chio sentindo meus
ossos doerem.
Confesso que prefiro o inverno, pois diferente do verão o frio nós
podemos controlar. Nos agasalhamos, nos enfiamos debaixo das cobertas e
um chá melhora, mas o verão nem dentro da água alivia o calor. Eu detesto
calor. Por mais que eu já tenha visitado o Brasil uma vez, não curto.
Provavelmente vou morreria se tivesse que passar mais tempo lá que uma
semana.
A porta dos fundos da cozinha abre e automaticamente tenta fechar pelo
sistema que meu pai mandou colocar.
Meu pai é um cara que pensa em tudo e para os guaxinins não invadirem
nossa cozinha e comer nossa comida, colocou aquilo na porta.
Viro para ver quem é e encontro Belinda com um prato equilibrado pelo
copo que segura com a mão. Ela tenta não derramar tudo enquanto passa pela
porta e ajeita o casaco.
Rio olhando-a sobreviver a um calafrio, posso apostar. Ela consegue e
olha para mim. Faço um aceno com a cabeça e a espero sentar na outra
cadeira, colocar o copo e o prato na mesa. Tento desviar os olhos, mas como
ela não para de me olhar, eu também faço o mesmo. O que ela quer? E por
que está aqui?
— Eu não sou da casa e a minha mãe já foi. Me sinto mal ficando lá
dentro sem realmente conhecer alguém.
— Por acaso, você estava me procurando? — pergunto.
— Na verdade, não. Eu também não te conheço e você parece que não
gosta de mim ou... de ninguém.
Uau! Essa resposta me pegou de surpresa. Não esperava um fora desses.
A garota tem uma beleza tão meiga que é duvidoso quando sai frases desse
tipo da sua pequena boca rosada.
Cruzo com mais força os braços e fito a churrasqueira coberta de neve
enquanto falo:
— A gente realmente não se conhece. No entanto, eu sou a pessoa mais
próxima de você hoje, mais ou menos. — Pondero e a olho. — E você está na
minha casa há uma semana. Não dá para se sentir excluída.
— Estou mais do que uma semana.
— Você entendeu.
Ela dá uma risadinha e pega seu prato, deixa perto do rosto e começa a
comer o Chester com purê. E tem bastante. Ela é magra de ruim.
— Você já comeu? — ela pergunta.
— Não. Não estou com fome.
— Mas você está bebendo. Seria bom comer alguma coisa para não ficar
bêbado no Natal e estragar a festa da sua família. Eles parecem tão felizes.
Acho que essa menina bebeu. Toda essa coragem tem que vir de algum
lugar. Anteontem me olhava cheia de medo, agora fica saindo com umas
frases muito desconcertantes. Não que eu não mereça, mas ela está até
abusando da minha paciência.
— Eu vou comer depois. Não gosto de muvuca. Amo minha família e
gostava do Natal. Hoje, não gosto mais dessa aglomeração toda. Gosto de
comer em paz.
Ela assente e mantém a boca ocupada com a comida.
— Por que que você não foi com a sua mãe?
Ela termina de engolir uma garfada e responder:
— Porque ela não vai voltar hoje e eu não quero ficar na casa dela.
— Você não se dá bem com seu pai?
— Ele não é meu pai, — afirma parecendo insultada, — é meu padrasto.
Meu pai morreu quando eu tinha cinco anos.
— E você não se dá bem com seu padrasto?
— Não é... — Desvia o olhar. — Não é bem isso. Só acho que... — Ela
mexe a cabeça perdida em pensamentos e muda de assunto. — Eu prefiro
ficar aqui e voltar para casa quando a festa acabar.
A casa que ela se refere é a minha, que agora é a casa dela. Pelo menos
por enquanto.
— Você tem irmãos?
— Tenho cinco irmãos mais velhos e dois mais novos.
— Seus pais não pararam, hein.
Ela solta uma gargalhada e a olho surpreso.
Gostei da risada dela.
— Não são todos filhos da minha mãe e, obviamente, não do meu pai.
— Sim, claro. Mas os seus irmãos mais velhos sim.
— Sim, mas tenho uma irmã mais velha que não é filha da minha mãe.
Assinto, ouvindo. Ficamos em silêncio de novo, e enquanto ela acaba de
comer eu bebo meu vinho.
— Posso fazer uma pergunta? — pede colocando o prato vazio na mesa
um tempo depois.
— Claro, carta branca para você hoje. Presente de Natal. — Pisco o
olho.
Viu, sei ser sarcástico também.
Ela sorri, com as bochechas vermelhas, e parece muito satisfeita.
— Você não gosta do Natal por algum motivo ou por conta das pessoas?
Qual o seu problema com a data ou com a sua família?
Engulo a saliva sentindo um bolo estranho na garganta e encaro-a
firmemente, virando meu corpo para ela.
— Como acabei de dizer, eu gosto da minha família. Gosto de verdade,
amo todos eles, só que o Natal já teve seu momento de graça pra mim. Hoje
não tem mais. É só um dia de festa onde têm presentes e reencontros que são
nem um pouco genuínos. O Natal era para ser um símbolo muito bonito. Uma
mensagem única de confraternização, perdão e amizade. Afinal é o
nascimento do Menino Jesus e etc. Só que há muito tempo, a magia do Natal
não é a mesma. Ela só existe quando a gente é pequeno e para mim morreu
seis anos atrás — concluo porque estou falando demais. — Eu não tenho
nada contra essa época e as pessoas, Belinda. Foi apenas uma mudança de
gosto.
— Hum... desculpe e... — pausa, gaguejando — Deixa pra lá. —
Levanta, pegando seu prato e o copo. — Vou buscar doce para mim. Quer
que eu traga algo para você comer?
Assinto.
— Já que você está insistindo. Faz um prato que nem você fez para você,
que já está bom.
— Vai comer a mesma coisa? Não quer mais nada especial? Tem tanta
coisa pra comer.
— Isso é bom. Vamos ter sobras até o réveillon.
Ela ri e sai me deixando com meus pensamentos de que talvez eu
devesse maneirar todo esse rancor que cultivo dentro de mim. Minha família
está empenhada, meus amigos e agora essa garota a fazer eu enxergar que não
vale a pena estragar, ou continuar a desperdiçar minha vida.
Acho que esse Natal tem algo a me dizer. Talvez seja isso que eu precise
melhorar o rumo da minha vida. Para começar a tratar as pessoas melhor.
Elas não são as culpadas, e nem eu.
Certas coisas têm que acontecer e ponto final. E eu preciso aceitar isso
de uma vez por todas.
QUATRO
Meu peito parece pesado. Sinto como se tivesse algo pendurado nele e
puxasse meu coração para fora de mim. Tomo o ar e sinto a brisa gelada e
fresca do inverno.
Quando abro os olhos tenho a sensação de que ainda estão fechados.
Não vejo nada. Tudo é preto. Vou me acostumando com o breu, e depois de
alguns segundos consigo vislumbrar um pontinho claro, depois mais um e
logo um céu estrelado em meio às nuvens brancas me saúda.
Mesmo sendo uma imagem linda e contagiante, sinto que tem algo
estranho. A sensação dentro do meu peito não é boa.
“Adam.” Uma voz suave me chama.
Estou de pé e me viro para ver quem é. Me deparo com seus cabelos
compridos e suaves, a luz amarela do sol se mistura e ilumina os fios claros.
Ela é tão linda. Sinto uma saudade incrível e sinto meu sorriso suavemente
aparecer.
Ela continua a caminhar para mim e eu para ela.
Estamos cara a cara e estico minha mão para segurar a dela, mas não
consigo. Estamos tão longe de novo.
“Selena!”
“Adam”, chama com a voz sumindo. “Adam...”
Entro no bar do Vlad, que é realmente o único perto de casa e peço uma
cerveja. Sei que, se eu ficar muito bêbado, ele vai ligar para o Harry, porém
estou tranquilo quanto a isso.
Respirando fundo, ergo a cabeça aprumando a postura e enquanto espero
minha bebida, não consigo tirar meus pensamentos da reação de Belinda.
Eu nunca esperei que ela fosse falar comigo daquele jeito. Fiquei tão
surpreso que a deixei falar tudo aquilo e, como sempre faço com todo mundo
que tenta confrontar as decisões da minha vida e me ajudar, virei as costas
depois. Merda! Ela realmente ficou com raiva de mim e meu inconsciente
está me alertando de que posso chegar em casa e não vê-la mais por lá.
Minha mãe vai ficar uma fera comigo se eu conseguir expulsar a garota
da minha casa. Com certeza vai pensar que fiz de propósito, mas Deus é
testemunha que não. Eu só gritei com ela e a tratei tão rude porque eu mesmo
não estou conseguindo lidar comigo mesmo. Aquele pesadelo acabou com o
meu dia e talvez minha semana.
— Aqui, Adam. — Vlad coloca uma garrafa de Stella Artois na minha
frente e abrindo, fala: — Se você passar dos limites, vou ligar para o Harry.
Mas fique sabendo que antes de quebrar meu bar ou a cara. Não que eu me
importe com você. — Vira-se, me dando as costas e vai atender outra pessoa.
Com um sorriso amargo, eu pego a cerveja e dou um grande gole. Vlad
pode ter dito isso, mas no fundo se importa comigo, assim como minha
família, meus amigos e Belinda. Se ela não ligasse para mim iria ignorar
como eu estava e se eu ia sair tarde da noite. E não sentiria raiva por eu tratá-
la mal.
— Eu sou um imbecil mesmo — digo em voz alta e tomo outro gole da
cerveja.
Eu queria não estar assim. Sinto cada vez mais a necessidade de fazer a
vontade de todos e refazer minha vida, porém eu realmente não sei por onde
começar.
Às vezes, querer não é poder, e é isso que acontece comigo. Eu quero,
mas não sei por onde começar. Me sinto tão perdido e bagunçado que é difícil
achar o ponto inicial para esse recomeço. No entanto, existe uma voz dentro
de mim, lá no fundo, que me faz pensar e repensar sobre isso. Ela duela com
o meu “eu” negativo e estacionado na culpa.
— Você não parece bem — diz uma voz desconhecida que ao me virar
para ver de fato é desconhecida. Uma morena com olhos esverdeados e um
sorriso confiante fala comigo e coloca a mão no meu ombro.
— E você acertou — respondo sem emoção.
— Posso fazer seu dia melhorar?
— Na verdade — termino de beber minha quarta cerveja, ponho o copo
sobre o balcão e me viro para ela ficando de pé —, não. Eu preciso ir para
casa, mas obrigado pela... oferta. — Dou um tapa forte no bar com uma nota
de vinte. — Tchau, Vlad.
Olhando para mim estranho, ele dá um aceno e chega perto até pegar a
nota e meu copo.
— Até mais, garoto. — Escuto-o falando atrás de mim e só respiro
quando o som da música brega que fica tocando no rádio do bar some e a
cacofonia de Nova York me saúda.
O caminho de casa é sombrio e solitário. Reflexivo também, digamos.
Não consigo parar de pensar que posso chegar e não ver Belinda. droga! Por
que eu estou me importando tanto? Ela não é problema meu. Nunca foi e não
quero que seja.
CINCO
Eu devo ter dormido de novo. A dor, às vezes, faz isso. Rouba toda
nossa energia e nos nocauteia como um campeão de MMA.
Com muita calma, me mexo minuciosamente para não piorar as coisas.
Sinto meu interior como se estivesse inchado e sensível. E como sinto isso há
um tempo considerável (uns dois anos), sei exatamente como me mover para
não sofrer mais.
Deitando na cama, empurro a mala pra longe, fazendo as roupas caírem
espalhadas no chão e puxo o edredom para cima de mim com dificuldade.
Estou suando frio e minhas pernas moles. Sem força alguma para ficar de pé.
E fazendo um movimento brusco tirando uma toalha úmida debaixo de
mim, sinto uma dor terrível. Sem querer fazer barulho, dou um grito alto me
revirando na cama, procurando uma nova posição para fazer a dor parar um
pouco.
— Ai, que dor. Que dor. Que dor... — gemo com o pensamento de que
isso é mais do que dores menstruais. — Merda!
Aperto os olhos com força e conto até cem. Eu só preciso me recuperar
para sair daqui. Eu tenho que levantar e sair dessa casa antes que ele apareça.
Chega de confrontos com Adam Stella. Aquele homem é uma perda de
tempo. Não estou nem aí para ele. Como diz uma frase que li em um livro:
“Não confunda minha bondade com fraqueza”.
E talvez, só talvez, essa frase seja ambígua para mim e para ele. No
entanto, para mim seria: “Não confunda ser boa com ser idiota”. Altruísmo
não é ser babaca.
A verdade é que eu não quero mais ficar aqui perto dele. O plano era eu
ficar até conseguir resolver meu problema grave e urgente. Eu sei disso. E eu
poderia continuar e simplesmente ser a empregada dele; muda e invisível.
No entanto, acho que não consigo ficar aqui sem me importar com ele.
Já é automático e a mãe dele queria que ajudasse, então se torna uma missão
impossível ficar sem poder cuidar dele além da sua casa. Sem contar que
sinto e sei que preciso dele tanto quanto ele precisa de mim.
Essa é a verdade das verdades, mas não importa. Eu vou me mandar
daqui antes que ele chegue, que está demorando. Deve voltar bêbado e chato.
— Argh! Não, Belinda! É por isso que você precisa ir embora aqui. —
Olho para o teto do quarto que vai deixar de ser meu e voltar a estar vazio
nessa boa casa que ficará abandonada e suja de novo. Entregue às traças.
Porém, que se dane isso tudo! Problema dele e da mãe dele. Christal me
empregou para limpar, cuidar e organizar a casa, não ser saco de pancada.
Um barulho vindo do primeiro andar, acaba roubando minha atenção da
dor dilaceradora. Me preparo para o impacto do seu temperamento irritante.
Ele deve estar bêbado e ainda mais insuportável. Infelizmente, isso é
possível.
— Belinda! Ei, garota — ele chama parecendo ainda estar no primeiro
andar. — Cadê você?
Meu coração parece parar de nervoso. O que ele quer agora? Se antes eu
estava com receio da sua reação ao voltar, saber agora que ele está me
procurando, tudo fica ainda pior. Droga! Eu ainda estou uma fera com ele.
— Você está aí?
Meu Deus! Ele está gritando às quatro da manhã já. Que homem louco.
Levanto, tirando forças não sei de onde e caminho com dificuldade até o
corredor das escadas, e vejo, em uma tentativa ridícula, Adam subindo
segurando-se no corrimão.
Estou estática. Não estou a fim de ser pisoteado agora. Ele parece que
despertou uma fera dentro de mim e, estando preparado ou não, vai ouvir
tudo que eu quiser falar antes de sair da sua maldita casa. Só não irei ficar
quieta de novo e deixá-lo ser um babaca comigo.
— Aí está você. Pensei que tinha fugido como todos fazem.
— Essa ideia ainda está na minha cabeça pra falar a verdade — respondo
amargamente e recuo quando ele chega ao segundo andar. — E não é bem
fugir, já que não estou presa a você.
— Você é uma ingrata. Estou dando moradia a você.
— Como é que é, seu idiota? — Aperto os olhos. — Eu não vou deixar
você falar comigo assim. Chega! Chega disso. Eu não tenho culpa que a sua
vida é uma merda, ou que alguém partiu o seu coração, ou seja lá o que faz
você pra se sentir tão culpado e com vontade de estragar sua vida e levar os
que estão ao seu redor para o poço também. Ninguém tem o direito de levar
os outros à ruína porque está destruído. Caia sozinho!
Eu esperava qualquer reação sua. Raiva, irritação comigo. Sua fera
incontrolável com sede de ser mau. Mas ele não faz nada. Pisca algumas
vezes, olhando-me de cima a baixo.
— Você está bem? — indaga me olhando parado.
— O quê?! Não lhe importa.
Ele ergue as sobrancelhas despreparado com minha resposta.
— Calma, Belinda. Eu só.... Você não parece bem e eu sei que sou
horrível. Fui horrível com você mais cedo, eu sei disso. — Engole em seco e
penteia os cabelos para trás com os dedos. — Mas eu não sou um monstro e
agora só queria saber o que foi que aconteceu?
— O que aconteceu? — Sou irônica. — Adam, eu não sei qual é a sua. E
você tem razão, você foi um grosso sem noção e rude comigo. E eu não
mereço isso de você. Até agora, eu aturei você e suas grosserias e seu jeito.
Eu respeitei seu espaço, mesmo você achando que não. Porque eu invadi seu
porão para limpar. Mas... droga, a sua mãe mandou justamente fazer isso.
Limpar a merda da sua casa. Então, eu não invadi nada. Eu estava fazendo o
meu trabalho. Fazendo o que vim fazer aqui. Cuidar da casa e... de você. Foi
o que Christal pediu, embora você não esteja nem aí ou se importe que as
pessoas queiram o seu bem.
— Belinda
— Não. Eu vou falar agora.
Ele assente e solta a respiração, exasperado.
— O pouco tempo que estou aqui e conheço você, realmente muito
pouco tempo, já entendi que se sente culpado por algo que fez há muito
tempo e acha que o melhor jeito de se punir é jogando seus dias fora. Mas
você não está se dando conta de que nesse processo está ferindo as pessoas
que se importam com seu bem. Você não levou em consideração sua família.
— Pauso e tomo uma respiração profunda. — Eu vi no Natal como sua
família quer que você fique bem.
— Mas eu tô bem.
Ergo as sobrancelhas expressando minha descrença.
— Sim, eu sei que não como eles queriam.
— Você está bem, talvez fisicamente, porém mentalmente eu não
preciso ser uma psicóloga para ter certeza de que não está e precisa de ajuda.
— Eu só preciso que as pessoas me deixem em paz. Eu me sinto bem
como estou.
Baixo a cabeça e fito o chão de madeira corrida. Ele é pior do que falar
com uma porta.
— E você não precisa ligar para isso. Eu não sou problema seu. E foi
isso que quis falar antes de sair.
— De uma forma terrível — completo encarando-o de novo. — Olha...
eu sei que vamos ficar a noite toda nesse impasse e já me decidi. Não tenho
nada a ver com a sua vida e não vou ficar aqui servindo de saco de pancadas
quando você estiver nos seus piores dias, porque você sempre está ruim, mas
consegue se superar às vezes.
Ele cerra a mandíbula e tira os cabelos rebeldes da frente do rosto de
novo deixando a mão na nuca. Por segundos, me perco em sua beleza.
Mas ela engana. É como ser um mosquito hipnotizado pela lâmpada de
LED com repelente. Brilhante e assassina.
— Eu vou embora porque não dá mais. Eu acabei sendo grossa com
você, claro que da mesma forma que foi comigo, e me sinto mal.
— Não se sinta assim. É sério. Eu mereci.
— Mereceu mesmo, mas não vai mudar. O que eu vi de você até agora é
isso. Sendo grosso com todo mundo, sem ninguém fazer nada com você. Só
te perguntam se está bem. Adam, ninguém é seu saco de pancada; e, se
precisa tanto jogar essa raiva para fora, procura alguma coisa para dissipá-la,
menos em quem quer seu bem e muito menos na sua família.
— Mas eu...
— Você faz sim, Adam — corto-o. — E eu posso afirmar uma coisa.
Compaixão é gratuita, mas ninguém permanece com a mão estendida para
quem não quer. Existem outras pessoas precisando de ajuda. E eu só acho que
sua mãe uma hora vai cansar de lutar por alguém que não quer lutar por si
mesmo.
Ele assente e fala com a voz baixa:
— Eu só queria que eles me deixassem em paz.
— Mas eles te amam e isso não vai mudar. — Dou um suspiro e quando
tento dar um passo, sinto uma fisgada forte, congelando-me no lugar. Puxo
uma respiração e mantenho a postura para ele não perceber. — Enfim... eu
vou embora e fique feliz. Você vai ter menos uma pessoa para tentar te
ajudar. E saiba, esse rancor todo dentro de você está matando muito mais que
sua fé no amanhã.
Vejo seu peito estufar quando respira com força. E dando um sorriso
amigável, me viro para o meu quarto. Não sei como vou fazer, mas vou pegar
minhas coisas e ir embora.
E essa vontade toda é atropelada quando sinto outra fisgada e me curvo
para frente.
— Ei, você está bem? — Adam aparece ao meu lado, segurando-me
antes que eu caia.
Merda! Eu pensei que ele tinha descido já.
— Sim. Sim. Eu só... — Aprumo minha postura e olho para ele. — Só
estou com cólica. Vai passar.
— Não parece que está bem. Você está pálida e suando frio. E eu já
tinha reparado nisso.
— É normal isso. Pode me soltar. — Minha voz sai hesitante.
— É você que está sendo teimosa agora. Deixa eu te ajudar. Depois...
você vai embora.
Dentro de mim parece que tem uma brasa. Não sei explicar direito, mas
meu coração está dolorido e quente. E uma vontade inconveniente de chorar
me abranda.
— Eu não quero a sua ajuda. — Balanço a cabeça devagar. — Não
quero ajuda de ninguém. Isso vai passar e eu vou ficar bem.
Eu sei que é uma mentira e talvez quero chorar porque as minhas
chances de parar de sofrer com essas dores morrerá assim que for embora
dessa casa e não ter mais o dinheiro que ganho.
— Olha — ele vem para minha frente, sem soltar meus ombros —, eu
sei que você está zangada comigo e entendo. Mas você acabou de falar que
compaixão é gratuita e eu estou...
— Tendo compaixão por mim — completo e ele assente.
— Sim e você não pode ser que nem eu. Negar minha ajuda te torna um
“Adam teimoso e orgulhoso”. — Ele abre um sorriso amarelo. — Sinto muito
por não ser a melhor pessoa para ajudá-la, mas eu sou a única que está aqui
agora.
Meus olhos enchem de lágrimas e baixo o rosto. Eu realmente não tenho
ninguém e a dor da minha virilha e nas minhas entranhas é insuportável. E é
só por causa disso que me permito demonstrar essa fraqueza na frente dele e
balanço a cabeça concordando em aceitar sua ajuda.
Com calma, Adam me pega nos braços e leva para quarto. Olhando
minha cama bagunçada, minha mala no chão com minhas roupas jogadas e o
armário quase vazio, vejo-o cerrar a mandíbula. No entanto, continua. Me
deita na cama e me cobre.
— O que você precisa agora? Você sempre sente isso mesmo?
Assinto de boca fechada. Não quero falar mais do que devo. Irei ficar até
minha dor passar.
— Não precisa ir ao médico? Eu te levo — diz parecendo genuíno e
realmente preocupado.
— Não, quer dizer... — Baixo os olhos. — Na verdade, eu queria muito
ir.
— Tudo bem. — Levanta disposto. — Sem problema. Eu a levo agora.
— Não dá, Adam. O que eu preciso... — Droga! Se eu não contar o
problema, ele não vai entender. — Olha, eu só quero que você pegue minha
bolsa. Lá tem remédio de dor, cólica. E só basta isso. Vai passar.
— Só isso?
Realmente ele é um homem teimoso e insistente. Por que ele não pega
essa energia de querer saber da minha doença para cuidar de si mesmo? Santo
Inferno!
— Você vai me dizer a verdade ou não?
— E você se importa?
Ele engole em seco e vem sentar na beira da cama, perto de mim. Porém,
me surpreendendo, não fica de frente para mim. Fica de lado e apoia com os
cotovelos nos joelhos, entrelaçando os dedos.
— Você realmente tem razão. Eu me sinto culpado e preciso mudar.
Tomar um rumo na minha vida — admite distraído. — Eu não sinto mais
nada, apenas uma culpa esmagadora por tudo, inclusive por não ter seguido
em frente ainda. Minha família e meus amigos fazem de tudo.
Ele está fazendo minha cólica monstruosa ser brincadeira de criança
agora.
— Mas é muito difícil e lamento não ser uma boa pessoa mais. No
entanto — vira-se para mim —, nem sempre eu fui assim. E se eu deixar você
aqui, sofrendo e sem saber o que realmente você tem, vai matar aquele Adam
mais ainda. Vai afirmar que estou morto. Eu quero... Eu estou tentando agora
mostrar que não sou tão mau assim.
— Eu não disse que você era mau. — Meus olhos ficam quentes porque
os dele estão vermelhos.
Ele sofre com seu próprio sofrimento.
Há pessoas que não querem estar destruídas, mas estão danificadas
demais para procurarem suas partes perdidas pelo caminho que as destruíram.
— Eu sei que não.
Encará-lo me faz sentir sua perda e entender que Adam não gosta de se
sentir assim. Fecho os olhos, conto até dez e os abro para fitar sua barba, pelo
menos.
— O que acontece, Adam, é que eu só aceitei e estou na sua casa por
causa disso.
— Disso? Como assim?
Arfo com força e meneio a cabeça.
— Eu estou doente e preciso de dinheiro para fazer exames adequados.
— O que você tem?
— A última médica que fui, que foi do hospital público, disse que
poderia ser endometriose ou alguma outra doença feminina. Só que isso tem
que ser averiguado com mais profundidade. Sintomas não revelam de fato se
é uma coisa ou outra.
— E você não fez.
— Não — confirmo. — Não porque precisa de dinheiro. Os hospitais
públicos fazem os cuidados até uma parte, parte que eu já uso. O resto é
comigo.
— Há quanto tempo você está sentindo isso?
— Há uns... quinze meses. E é só por causa disso que estou aqui, porque
você pode não acreditar. Eu não adoro essa grosseria toda.
— Desculpe. — Dá de ombros.
— É... — repito o gesto. — E eu só fiquei calada antes quando foi mau
comigo e também maltratou seus pais, ou ignora sua mãe, por causa disso.
Não queria perder a oportunidade de ficar, porque se não fosse por este
motivo já tinha ido embora, mas precisava ficar.
— Precisava?
— É — Mexo os ombros sem jeito. — Tipo, quando nós conversamos
no Natal... eu achei que, depois daquela conversa, a gente poderia ser amigos
ou pelo menos nos respeitar, e eu podia continuar te ajudando, sendo sua
empregada ou o que poderia te ajudar, até conseguir o dinheiro para poder
fazer um tratamento, mas quer saber a verdade. Eu não sei se vou conseguir.
Na verdade, já me decidi. Vou embora. Prefiro morrer a continuar lidando
com você desse jeito. Não posso lidar com a minha doença e os seus
problemas.
— Isso tudo é por minha culpa?
— Não, Adam. Para de achar que o mundo gira em torno de você. Nem
sempre tudo é culpa sua. Agora eu só estou zangada com você, pela sua
grosseria, mas a verdade é que já passou. Minha dor superou tudo.
— Eu sinto muito, mesmo.
— Sem problema. Você não me magoou e só perguntei se estava bem
quando estava saindo àquela hora da noite pelo seu histórico de chegar
bêbado.
— Como sabe disso?
Respiro fundo sentindo minhas bochechas esquentarem de vergonha.
Não deveria ter falado isso.
— É que, quando eu cheguei aqui, você estava de ressaca; e segundo, o
Harry me contou algumas coisas. Não fique bravo com ele. Harry só quer o
seu bem e conversou comigo para eu poder te ajudar.
— Sem problema. — Volta a apoiar os cotovelos nos joelhos, só que
dessa vez enfia as mãos nos cabelos, como se sentisse um peso sobre os
ombros. — Eu não fico zangado por eles quererem me ajudar. Fico com raiva
por não fazer o que eles querem.
— Beleza e eu não tenho nada a ver com a sua vida. Você tem razão e
nem sei se eu deveria estar aqui.
— Não fala isso. Quem precisa se sentir assim sou eu e quem deve pedir
desculpas. Eu não deveria falar daquele jeito — afirma parecendo
envergonhado demais para me encarar. — Eu vou tentar. Se você ficar, vou
tentar ser amigável.
— Adam...
— Escuta — olha para mim —, você precisa ficar. Não precisa de mim,
eu sei. Porém, pela sua saúde, precisa ficar aqui. Precisa de uma casa boa,
perto do hospital e de uma pessoa que possa te ajudar.
— Você não pode cuidar de si mesmo, Adam.
Ele baixa o rosto fazendo um som como se algo tivesse o queimado.
— Desculpe. Fui rude.
Ele ri e levanta a cabeça.
— Não. Você foi sincera e quer saber da verdade. Você fica e eu
cuidarei de você; isso é um jeito de me ajudar também. Vou deixar de ser
inútil e me preocupar com algo que não seja minha incessante tentativa de me
fazer sofrer pelo que fiz anos atrás.
— Uau!
— Nossa!
Falamos em uníssono e acabamos rindo.
— Parece que você foi picado pelo bichinho da sinceridade.
— Ou talvez seja a cerveja.
— Provavelmente — digo rindo.
— Enfim, quero dizer que, se você ficar, será bom para ambos. Nós
cuidaremos um do outro. E não será para sempre. Só até você ficar boa.
— Gosto dessa esperança sobre mim.
— Você não acha que vai ficar boa?
Dou de ombros.
— Você vai ficar boa — afirma —, e até lá prometo não tratar você mal.
Não vou fazer de novo, pois tem toda razão. Você não merece minha ira. Não
é culpada. Aliás, não é sua culpa ou de ninguém. Talvez a culpa nem seja
minha...
— Para. Para. Para. Agora eu fiquei confusa.
O que uma coisa tem a ver com outra? Será que ele está falando no geral
sobre a vida dele? Minha nossa! O que será que aconteceu para ele ficar
assim? Por que tanto remorso e essa culpa que ele mesmo agora duvida se é
ou não dele?
— Eu quero que você fique — pede retomando a compostura. — A
minha mãe pediu e eu não posso deixar você sair assim, mesmo sabendo que
não está me contando tudo. Mas, okay.
Ele tem razão. Não estou dizendo nada e não é porque me sinto
miserável demais para dizer em voz alta que não tenho dinheiro para fazer
exames periódicos, não tenho casa e nem para onde ir. Não vou morar com
minha mãe e Johnny de novo. Eu nunca mais quero estar sob o mesmo teto
que eles. E, se eu sair daqui, estou praticamente me candidatando a viver na
rua e até morrer com essa doença. Porque, sinceramente, acredito que essas
dores podem me levar à loucura ou a óbito.
Eu fui muito irresponsável não cuidando de mim. Fui deixando para lá e
agora talvez seja tarde demais. E o que preciso pode ser muito mais do que
antibióticos. Me sinto envergonhada, fracassada e estou preferindo ser uma
gata borralheira dessa casa, do que morrer de algo que seria simples se fosse
mais zelosa com minha saúde. Espero que não sejam muitas as mulheres a
sofrer disso pelo mesmo motivo que eu. Que não é a falta de dinheiro, e sim
uma preguiça sem tamanho.
E antes eu estava de boa em ser empregada da fera, agora isso mudou. A
fera quer me ajudar a ajudá-lo, e tudo bem. Não é?
— Adam, você não tem que se preocupar comigo. Eu só peço para que
enxergue sua vida de outra forma. Você tem tanto para oferecer. Sei que
ficou zangado quando mexi nas fotos lá em baixo, mas eu vi que tem talento.
Ele meneia a cabeça concordando e olha para as mãos. Um silêncio, que
obviamente é sua mente trabalhando nas memórias perdidas, nos faz
companhia por alguns minutos. Então vejo suavemente seus ombros subirem
e descerem quando arfa.
— Eu adorava fotografar. — Balança a cabeça, perdido em
pensamentos. — E... é difícil... voltar. Foi há muito tempo.
— Você ainda está vivo, Adam. Agora só precisa recomeçar.
Ele faz um movimento com a cabeça que poderia ser interpretado como
um aceno, mas não tenho certeza. De repente, se levanta e vira-se para mim.
— Enfim, falamos tanto que acho que sua dor diminuiu um pouco, né?
— muda de assunto bruscamente.
Dou de ombros.
— Onde estão os seus remédios?
— Pega a minha bolsa. Aquela vermelha jogada no chão.
Ele me obedece e pergunta quando volta:
— O que aconteceu aqui? Você ia embora, não é?
Assinto pegando minha bolsa da sua mão, sem dar continuidade nesse
assunto. Procuro meu estojo de remédios e acho os comprimidos.
— Pode pegar água para mim?
— Claro, já volto. — Dá as costas, pulando minhas roupas para não
pisar nelas.
Sozinha, olho para a parede e suspiro.
— Não sei o que estou fazendo. Acho que é um grande erro, isso sim —
resmungo e tampo meu rosto com minhas mãos. Como se isso fosse me fazer
desaparecer e meus problemas sumir.
SEIS
— Ai, meu Deus! Adam Stella, você quer me fazer enfartar, menino?!
— mamãe exclama assim que abre a porta de casa para mim e Belinda.
— Não — Respondo dando um abraço nela.
— Você tirou a barba — fala cheia de orgulho tocando meu rosto e
sorrindo de orelha a orelha. — Deus ouviu minhas preces.
— Deve mesmo. Porque não foi planejado. Eu só ia limpar, mas...
Ela ri e me abraça de novo.
— Não importa. Você fica lindo de todas as formas, mas prefiro meu
filho assim. Com o rosto limpo.
— Por quê? Também me achava com cara de depressivo e rebelde de
barba? Sujo?
— Quem disse isso? Que absurdo! — Faz um movimento com mão em
desdém. — Deixa pra lá. Eu gosto de você sem aquela barba porque posso
ver melhor seu rosto lindo. Meu menino dos olhos azuis.
Rio e recebo um beijo no rosto com todo carinho que ela é capaz de me
dar. Não recuo. Eu gosto de receber carinho da minha mãe. É a única mulher
que posso confiar que nunca vai quebrar meu coração. Talvez eu devesse ter
pensado nisso antes.
Ela se afasta e olhando para trás de mim, vê a garota e vai cumprimentá-
la.
— Você está linda, minha jovem.
Viro me sentindo desconfortável e olho Belinda.
Ela tirou a calça de moletom e o casaco maior que seu corpo e substituiu
por um vestido vermelho longo com mangas compridas e os ombros nus,
mostrando sua pele alva. É um vestido lindo, num corpo bonito e numa
garota bonita, que hoje está produzida. Ela não tem aquelas belezas
arrebatadoras, é mais para angelical.
Hoje, seus olhos parecem mais escuros, mais para cinza do que azul,
porém acesos, a boca pintada de rosa claro e os cabelos escovados e soltos.
Não tinha percebido que eles eram tão longos. Alcançam sua lombar e
balançam conforme ela caminha.
Uma droga tudo isso. Porque essa garota bonita e vestida tão bem é
Belinda. Isso não é muito bom. Na verdade, é péssimo depois daquilo que
rolou à tarde. Ficou um clima estranho entre a gente até agora. Ficar no
mesmo carro que ela foi difícil.
O que está acontecendo? Primeiro, as verdades jogadas na cara, depois
revelações e logo em seguida um clima que não tinha despertado em nós.
Me sinto sufocado.
Não era para isso acontecer. Não era para eu me importar, muito menos
me sentir atraído por ela. Isso só piora tudo. Quero correr para o lado oposto
de seus passos. Mas não posso deixá-la ir sabendo que precisa de um lar e de
ajuda com sua saúde. Droga!
Como se meus pés estivessem pegando fogo, me viro e vou para os
fundos da casa. Longe dela e da minha mãe conversando sobre bobagens e a
merda do doce de morango, que é minha fruta favorita.
Por que eu acho que minha mãe está fazendo de propósito? É
impressionante. Ela sempre está um passo à frente. Só queria que tivesse
feito sua mágica antes do meu mundo desmoronar.
Chegando à cozinha deixo a caixa de papelão com o doce no balcão, e
saio indo para o escritório do meu pai porque sei que é lá que ficam as
bebidas fortes. Entrando, fecho a porta dando uma volta no trinco. Preciso
desse tempo sozinho. Longe dessa pressão toda.
Eu sei lidar com pressão. Questionamentos e dúvidas ao meu respeito e o
que vou fazer na minha vida. Desde adolescente minha vida não é tomada
inteiramente por minhas escolhas. Como um gênio e dotado de talentos. A
faculdade de fotografia foi apenas um aprimoramento para o que sempre fiz
sem ninguém me ensinar nada sobre luz, foco e ângulos. Engenharia foi a
mesma coisa. Sempre tive o olho muito bom para construções e desenvolver
coisas para que outras coisas funcionassem (mesmo quando pequeno), assim
como gostava da área de construção civil. Lembro que, aos oito anos,
conversava com os homens da empreiteira que reformou esta casa que estou,
como se eu fosse gente grande e entendesse tudo sobre o que eles estavam
fazendo. Mas segundo o responsável pela obra, eu levava jeito e os ajudei. O
centrifugador dentro da pia da cozinha, que levava adubo para o jardim nos
fundos da casa, que ajudou a crescer a imensa árvore, foi uma ideia minha, e
o teto refletor de luz solar também.
Meu pai tinha muito orgulho de mim. Da minha mente brilhante, das
minhas escolhas e do meu amor por matemática e português, que passou a ser
apenas física no terceiro ano escolar e minha paixão na primeira faculdade,
que foi engenharia mecânica. Apesar de gostar da engenharia civil e ter
ótimas ideias para construções de casa, encontrei meu ramo em construir
mecanismos que ajudavam na concepção, produção e operações. Foram
tempos bons quando ajudava a criar máquinas capazes de facilitar a vida de
uma fábrica inteira. O que seria das automotivas sem os engenheiros
mecânicos?
Soltando uma respiração exasperada, relaxo meu corpo na poltrona do
meu pai (que ele não saiba que estou nela) e fecho os olhos. Eu só preciso de
um pouco disso.
Algumas pessoas não conseguem ficar sozinhas com elas mesmas, e
talvez porque nunca encontraram em si um refúgio. Nunca encontraram seu
equilíbrio e silêncio. Eu aprendi a ter dentro de mim essa paz porque, quando
tudo aconteceu, eu não queria ninguém por perto. Detesto pena e desculpas.
Aconteceu e pronto. Para que ficar falando ou justificando?
Concentrado e permanecendo de olhos fechados, tomo o uísque
envelhecido do meu pai. Ele não liga de usarmos suas bebidas, o maior
problema aqui é eu estar na poltrona do “rei”.
— Acha que Adam foi embora. Não acredito nisso!
Ergo as sobrancelhas ouvindo minha irmã. Ela parece zangada. Desde
pequena, Ava é agarrada comigo e não aceita quando eu não quero ficar com
ela. Ela odiava quando eu não queria brincar.
— Eu acho que ele está pela casa, querida. Não fique assim — mamãe
fala como se realmente Ava fosse criança.
— Também não acredito que ele foi embora — Belinda fala e não sei
por que, mas fico feliz dela acreditar que eu não sou babaca em ir embora da
festa da minha mãe.
Ajeitando minha gravata, levanto e caminho até o bar. Me sirvo de outra
dose de uísque – tomando de uma vez só – e deixo o copo na pia. Está na
hora de enfrentar minha família, Belinda e todos que sempre querem demais
de mim.
— Estou aqui. — Abro a porta, dando de cara com Belinda. Parece que
minha mãe e irmã não conseguiram esperar.
A garota fica me olhando nos olhos fixamente por longos minutos e
quando se torna incômodo demais, ela pisca e recua dois passos.
— Sua irmã foi ver se você está no seu antigo quarto.
Aceno com a cabeça e me viro indo para as escadas.
— Vai ficar assim por muito tempo?
Paro e franzo a testa quando a encaro.
— Do que está falando?
— Você está estranho. Está me tratando com frieza e eu não lembro de
ter feito nada a você.
— É impressão sua. Eu... só estou com dor de cabeça.
Ela baixa o rosto enquanto assente. Eu sei que não acreditou.
— Está bem. Não importa.
Cerro o maxilar arfando com força e a deixando no corredor, me viro
indo atrás da minha irmã. Dane-se! Não quero saber de Belinda agora.
Preciso respirar.
Harry está conseguindo me deixar a ponto de socar a cara dele ou
terminar de beber a garrafa de uísque no escritório do meu pai.
— Para de me encarar, merda!
Ele ri e ajeita a filha nos braços. Dou uma olhada neles e balanço a
cabeça para o sorriso idiota dele.
— Você não tinha que se concentrar na sua filha em vez de perturbar
meu juízo, não?
— É engraçado ver você assim.
Franzo a testa e termino minha bebida. Estou apenas no champanhe,
embora não faça efeito nenhum no meu sistema.
— Você é louco. Estou normal.
— U-hum.
Dou um olhar atravessado para ele e me levanto indo para a varanda.
Vim para o quarto da minha irmã fazer companhia ao meu cunhado, que está
tentando adormecer a filha. Bebês precisam dormir, mas minha pequena
sobrinha não concorda.
O meu cúmplice de sempre me faz companhia e eu aprecio. O silêncio é
o melhor aliado nos momentos onde os pensamentos estão cheios, pelo
menos para mim.
Respiro fundo sentando-me em uma das cadeiras da mesa onde minha
irmã brincava de boneca ou estudava quando adolescente. Meus pais são
nostálgicos e não desfizeram os quartos dos filhos. Todos estão do mesmo
jeito que nós deixamos a última vez que entramos neles. Minha irmã Ava
adora ver o dela e recordar o tempo onde foi líder de torcida até o último ano
do High School e sua coleção de bonecas. Mas eu não gosto nem de passar na
porta do meu antigo quarto. Deixei tudo para trás. Foram muitos momentos
gastos com Selena e nesses seis anos eu tentei esquecê-los o quanto pude.
Entrar naquele quarto não ajudaria e fiquei feliz que minha mãe nunca
insistiu para eu tentar vê-lo e pegar algo de que gostava quando mais novo.
Droga! Não tem nada que eu precise nele. Nada!
— Adam, me desculpe, cara. — A voz de Harry rouba minha atenção.
Meneio a cabeça em negativa encarando-o. Deve ter conseguido colocar
Rose para dormir. Toda vez que falam o nome dela ou eu mesmo penso
lembro da fascinação de Ava com o filme Titanic.
— Está tranquilo. Eu realmente estou inquieto. Não sei. — Viro o rosto
e foco na neve caindo com força esta noite. — Não queria ter vindo. Só estou
aqui para agradar minha mãe.
— Adam. — Sinto a advertência e me preparo para o sermão. — Não
acho que é só isso. Aconteceu alguma coisa? Você sabe que pode falar
comigo.
Aconteceu alguma coisa é eufemismo. Aconteceu muita coisa em menos
de duas semanas. Como pode uma simples presença me fazer sentir que as
coisas saíram do lugar? É como se ela tirasse tudo de ordem e causasse o
caos. Não estou falando de Belinda, porém ela faz parte disso ou o começo.
Tudo começou na manhã que ela surgiu na porta da minha casa e fosse
piorando, e quando vi Sarah na minha frente levei um soco no estômago.
Perdi o equilíbrio e fui levado para o ponto onde rejeitava tudo, mas também
reivindicava os motivos.
— Se você tivesse um amor roubado, perdido, traído e ele tivesse uma
cópia dele andando por aí — falo com a cabeça erguida, para frente, mas sem
focar em nada. Só preciso realmente falar um pouco sobre isso com alguém.
— E depois de longos anos de tentativas falhas para esquecer, encontrar e
perdoar, você desse de cara com essa cópia... — puxo o ar para os meus
pulmões com tamanha força, sentindo o ar gelado e viro-me para Harry —
como você se sentiria?
Ele fica estático, talvez confuso e sem fala. Muda de posição apoiando
os cotovelos nos joelhos e arfa com força. A expressão em seu rosto é
aprazível.
— Você viu a Sarah? — Não é uma pergunta, e quando olha para mim
franze a testa. — Por que não disse nada?
— Sei lá. Ninguém consegue entender até hoje por que me culpo tanto
pela morte de Selena, por aquela noite.
— Eu não sou uma delas e posso garantir que entenderia você estar pior
esses dias depois de ver a irmã gêmea da sua ex.
Assinto agradecido pela compreensão. De fato, ele é um dos únicos que
não me acusa ou aponta o dedo. Me ouve e tenta me ajudar no que preciso.
Por isso também me deixava beber até perder a cabeça.
— Eu sei, mas, sendo sincero, minha cabeça está uma merda.
— E quando não está?
Curvo o canto da boca com um sorriso desprezível.
— Você é um babaca, Harry!
— Estou brincando, cara. Enfim, quando foi isso?
— Acho que tem uns quinze dias. Foi no dia seguinte que a garota
chegou na minha casa.
Ele franze a testa e cruza os braços.
— Garota?
— Belinda.
— Sério que você ainda a chama assim? Pensei que vocês... — Move os
ombros estranho.
— Nós o quê? Não existe um nós só para começar.
— Calma, merda! — Levanta me olhando de cara fechada. — Não sei
por que toda vez que toco nesse assunto você fica assim.
— É a primeira vez que falamos sobre isso.
— Não é — responde com a voz enigmática. — Quando estávamos lá
dentro, eu estava falando sobre isso. O jeito como você está perto dela ou
quando tocam no nome dela. O que Belinda fez para você se sentir assim?
— Quer saber? Não está dando certo isso aqui. — Agora eu me levanto,
passo por ele e atravesso o quarto, com a porta aberta e prestes a sair, viro o
rosto e o encaro. — Você está ficando igual a todos. Enxergando coisas onde
não tem, não prestando atenção ao que quero falar e forçando a barra. Me
deixa também, Harry.
— Acho que você precisa ficar sozinho mesmo. Talvez assim enxergue
melhor as coisas e como todos nós vimos.
SETE
Meu Deus do céu! Acho que estou ficando com a doença do Adam. Só
faço besteira e fico me remoendo depois. E agora eu entendo por que que ele
tem esse remorso. A mulher da foto que eu vi no porão foi quem fez ele ser
tão rude e obscuro. Com certeza, ela deve ter partido o coração dele.
Eu não sei direito como ou porquê. Só que é evidente a saudade e que
isso o fez se entregar à dor. Merda mil vezes. Eu não deveria tê-lo beijado
hoje. Fui tão burra. Uma completa idiota.
Estou aqui de favor e não tinha que ter beijado ele. Caramba, não sei de
onde veio a coragem para beijá-lo como fiz. Toda confiante e atirada. Meu
Deus! Eu confundi tudo. Tudo mesmo. Eu pensei que ele era revoltado, de
mal com a vida e com os demais membros da família, porque era seu jeito,
embora soubesse que tinha acontecido uma coisa com ele, mas não sabia
(ainda não sei o que aconteceu) que foi por causa de uma mulher. Ele sente
saudade dela e não consegue se recuperar.
— Ai que idiota você é, Belinda! — repreendo-me olhando-me no
espelho do banheiro. — Quero me enterrar debaixo de um buraco como se
fosse um rato. Estou muito zangada comigo mesma.
Volto para o quarto, enfio minhas coisas de higiene na nécessaire e
guardo na minha mochila. Indo até a cômoda, pego mais roupas e coloco
mais uma muda dentro da mala e me apresso. Quero ir antes que ele chegue.
Estou com muita vergonha para encará-lo e pelas horas, já passa das três da
manhã, ele deve estar chegando, talvez. Mas eu não tenho nada a ver com sua
vida e nem se ele gosta tanto de sair pelas madrugadas e voltar de manhã.
Adam não é meu problema.
— Eu sou patética — resmungo dobrando um casaco grosso de frio que
teima em não entrar na mala.
Merda! Realmente sou patética em pensar, cogitar e querer ficar na casa
de um homem, que nitidamente nunca me quis aqui. Eu fui errada e avancei
até ele. Não sei o que me deu. Tudo bem que ele me atrai, é bonito e depois
daquele clima estranho, quando desabafei meus problemas, sei lá. Pensei que
a gente tinha alguma sintonia, mesmo que seja muito cedo ainda.
Meu Deus! Eu errei tão feio. Estraguei tudo confundindo as coisas, mas
ele não precisava fugir, mesmo que ainda seja apaixonado pela tal de Selena.
Eu nem sabia da existência dela e nem aonde estar, ou o que aconteceu, por
que que eles terminaram, é óbvio que Adam mudou com todo mundo. A vida
dele se destruiu por causa da saudade. Será que tem muito tempo? Acho que
não. Parece ser recente para ele sentir-se desse jeito e é um saco e ele me
irrita com sua grosseria. A vida que ele leva me dá vontade de socar a cara
dele.
Mas dane-se, o problema não é meu. Ele que encontre o caminho e por
que eu preciso continuar aqui?! Chega! É a segunda vez que tento ir embora e
dessa vez eu vou conseguir. Não preciso ficar aqui. Eu não sou mendiga, uma
sem-teto. Vou embora e ficar na casa da minha tia, conseguir outro trabalho e
até fazer diárias em várias casas. Tudo bem que nenhum patrão quer ficar
comigo porque eu sinto dores e sempre crio desculpas para faltar ou me
atrasar. O último, que foi na loja de conveniência perto da casa da minha tia,
eu pedi para ir ao banheiro e fiquei meia hora lá dentro curvada e quase
desfalecendo.
— Belinda! — Escuto o berro e sei que Adam está na porta.
Mas que droga! De novo isso? Quando estou prestes a ir embora, ele
chega. Porém, dessa vez ele não vai me convencer e eu posso perder uma
perna, e mesmo assim vou embora.
Termino de colocar minhas coisas na bolsa correndo e pego minha mala
e a mochila depois que visto meu casaco e coloco a touca. Eu vou para a casa
da minha tia. Saio do quarto um pouco desengonçada e descendo as escadas,
dou de cara com Adam ainda na porta como se estivesse me esperando.
— O que você está fazendo? — pergunta com a voz baixa e hesitante.
— Estou indo embora, Adam.
— Está indo embora só porque eu não continuei com o nosso beijo. Por
que eu falei o nome da Selena?
— Não tem nada a ver com isso, Adam — rebato irritada com sua
acusação e solto minhas bolsas no chão. — Eu confundi as coisas e você é
uma pessoa vulnerável por toda essa saudade que guarda dentro de si. Eu
errei ontem. Você errou e até disse... — Pauso e reformulo a frase. — Como
você falou antes, precisamos pensar. Você precisou sair. Não sei para onde e
não importa, e sim que você teve seu momento. Pensou longe de mim e,
enquanto você estava não sei onde, fiz o mesmo aqui na sua casa.
— E a conclusão que você chegou é que tem que ir embora.
— Sim! E você não pode se meter na decisão que tomei, que é a de que
preciso ir embora. Deixar você em paz. Viver a sua vida do jeito que achar
melhor. Você já está horrível aos meus olhos, não precisa piorar.
— Mas eu não quero que você vai embora. Não precisa.
— Você não tem que querer que eu fique e nem que eu vá. — Até eu
estranho a firmeza em minha voz. — Não acho que está nada bem conosco e
de qualquer forma, não somos nada um para o outro e não tem mal algum
você não me querer em sua casa.
O rosto dele fica ilegível. Adam dá um passo ficando mais próximo.
— Eu não falo isso pra você tem um bom tempo — diz ele parecendo
nervoso —, então não fique colocando palavras na minha boca. Não tem nada
a ver eu ter beijado você com outras coisas que disse e pensei, que não faz
muito tempo, porém o fato é que mudei de opinião. Eu não quero que você
vá embora. Você não precisa ir... — Faz uma pausa. — Eu me acostumei
com você aqui.
— Você se acostumou comigo e mesmo assim ainda continua me
tratando mal.
— Eu não tratei você mal.
— Tem certeza? — Sou irônica. — Esqueceu o que você me deu na casa
dos seus pais algumas horas atrás.
— Belinda, não seja hipócrita, você me trata da mesma forma. Nós
trocamos farpas, devolvemos na mesma moeda e está tudo bem, era disso que
eu precisava. Que me tratassem da mesma forma. O que aconteceu comigo,
faz muita gente ver o jeito que vivo ser horrível. Acham que não é certo e
você foi a única que não ficou tentando achar uma desculpa de fazer eu
pensar que tenho que parar de me remoer. Você só acha que tenho que viver
da melhor forma que eu posso e fala isso sem rodeios.
— Sim, é verdade e você é bonito, tem uma situação boa, talento e é
inteligente. Acha que não vi nas suas fotos como são lindas? Que não sei que
você fez faculdade de engenharia? É por isso que não me conformo de você
jogar fora todas essas oportunidades. Suas fotos são maravilhosas, mas você
prefere deixar dentro da geladeira, assim como todo o resto.
— Eu sei disso e todo santo dia de uma forma nova escuto que preciso
acordar pra vida. — Ele respira fundo e seus olhos parecem que perfuram
minha alma. — E o jeito que você fala é diferente, sem julgamentos. Talvez
questionamentos, mas está tudo bem. Você está certa e eu sei que não te trato
bem, mas não quero que precise ir. Eu realmente quero te ajudar.
— O que? Por quê? — solto exasperada e chocada com sua declaração
final. — Você acha deve me ajudar? Porque você não me deve nada e nem a
ninguém. Na verdade, ninguém deve nada a ninguém nessa vida, Adam. E se
você pensa assim está se afundando, confundindo tudo, porque nem todos
pensam que precisa ajudar o próximo ou até mesmo fazer por compaixão.
Você não tem que fazer isso. E... não sei por que, mas sinto que você acha
que deve algo ao mundo. Eu consigo enxergar nitidamente sua dor através de
você.
— Por que você faz isso consigo mesma?
Franzo a testa.
— Faço o quê? O que você quer dizer?
— Você realmente consegue ver quem sou. Seja meu lado bom ou ruim.
O destrutivo e o gentil. Mas não consegue ver em si mesma a pessoa incrível
que é. Você consegue ver as coisas perfeitamente e tudo que precisa
melhorar, menos para si mesma. Eu sei que é forte, pois tudo que disse ou
deixou frases soltas no ar sobre sua vida prova o quão forte você realmente é
e não merece ficar na minha companhia.
— Por favor, não começa com isso — peço impaciente. — O que mais
me irrita em você é essa lamentação o tempo todo, Adam. Meu Deus! Você
está falando de mim e das minhas supostas qualidades, e se é assim somos
iguais. Fazemos o mesmo. Eu consigo consertar suas burradas e você tenta
me ajudar, mas não damos essa chance para nós mesmos. Somos iguais nisso,
Adam, e eu concordo, mas somos diferentes em questão de oportunidade.
Você teve tudo para recomeçar sua vida a qualquer momento e não
aproveitou. Já eu... — Deixo de encará-lo olhando o chão.
— Belinda, eu... — Ele dá um passo ficando mais perto e termina: — Eu
sinto muito e é por isso que quero ajudar você.
Respiro fundo, tomando coragem que, sendo honesta, não entendo o
porquê.
— Eu agradeço você por isso, mas acho que primeiro você tem que se
ajudar para querer cuidar de alguém. — Mexo os pés me sentindo inquieta.
— Olha, eu não sei o que aconteceu com você. Na verdade, tudo que ouvi
foram boatos e mesmo assim coisas que, se eu juntar, sinceramente não
consigo formar um quebra-cabeça, mas uma coisa eu sei que é certa: você
não conseguiu retomar sua vida de novo. É óbvio. Eu vi isso na sua casa, no
seu rosto, nos seus dias de... com todo respeito. De merda. Sua casa estava
entregue às baratas e não pense que sua aparência não era desagradável. Pois
era até assustadora e, graças a Deus, se machucou e seu rosto apareceu.
Agora só resta parar de usar preto e dormir de verdade para perder as
olheiras. Não pode continuar assim.
Adam cambaleia e coloca as mãos na cabeça. Acho que atingi algum
nervo nele e assisto em câmera lenta ele se curvar para frente como se
estivesse sentindo dor. Respira fundo e por fim joga o corpo para trás,
encosta na parede e escorrega até sentar no chão. Ele enterra os dedos nos
cabelos e baixa o rosto. Obviamente está se escondendo de mim, mas sei que
ciente de que não está sozinho.
Engulo em seco e fico congelada. A culpa me corrói. Acho que peguei
muito pesado. Meu Deus! O que feriu ele foi profundo demais e agora sei que
não foi ontem ou mês passado, e nem o ano passado. Essa dor já perpetua por
longos anos. E não sei como eu posso ajudá-lo. Não sei como algo
enferrujado pode consertar algo quebrado, e mesmo assim me aproximo dele,
me ajoelho na sua frente e coloco minha mão em seu ombro. Quando consigo
capturar sua atenção, o encaro fixamente.
— Eu não sei o que aconteceu e não quero que você me diga. Só preciso
que você pare.
— Parar o quê?
— De se lamentar — digo com a voz macia, confortando-o. — Que pare
de maltratar as pessoas, pare de colocar a culpa no universo por seja lá o que
não aconteceu ou aconteceu na sua vida. Por que você não enxerga por outro
ângulo todas as coisas que fez você chegar até onde está?
Ele franze a testa.
— Eu sei que não é fácil, mas falo isso por experiência, não como um
conselho, porque se conselho fosse bom todo mundo vendia. Então, Adam,
eu falo por experiência. Por morrer de dor há algum tempo e hoje querer
muito poder fazer todos os meus exames e não ter grana, sendo que foi culpa
minha. — Balanço a cabeça afirmando minhas palavras. — Eu já tive o
dinheiro e se estou assim hoje, foi por ser relaxada comigo, mas eu não culpo
ninguém. Não culpo minha genética, os remédios por serem inacessíveis para
quem não tem uma situação boa. Eu não culpo nem a sua mãe por ter me
colocado aqui dentro, mesmo você não gostando e me dado alguns foras, que
me levou a fazer minhas malas duas vezes. Eu não fico culpando tudo.
Apenas tento levar e ajeitar outra forma de resolver minha vida. Eu fico sobre
o céu onde vou ter luz e chuva, que cabe a mim fazer os dias serem bons.
Então, saia da escuridão também. É só o que tenho a te falar.
— Você podia escrever um livro. Tem boas ideias. Você fez um poema
— sugiro sem ser irônico.
Faço um biquinho e dou de ombros.
— Viu, você é engraçado e, às vezes, até gentil — confesso. — Não sei
como você era antes. Mas creio que não foi sempre do jeito que é agora e...
todo mundo tem novas chances, oportunidades. Você não enxerga a sua
porque se sente muito mal para agarrá-la.
— Se eu fizer agora, você vai embora.
— Por que você está falando isso? — Franzo a testa completamente
confusa.
— Porque a ideia que tive você não vai gostar e... — vira o rosto — você
já está com as malas prontas. Prestes a ir embora. — Me encara novamente.
— Olha, Adam — suspiro e acabo me sentando no chão na sua frente.
— Eu não tive ninguém para lutar por mim, para me ajudar e, quando eu
pensei que as coisas iriam melhorar, perdi todo mundo. Acho que eu sou tão
desprezível quanto você e não estou falando no sentido de você ser alguém
que não pode ser amado porque está danificado por culpa do seu passado.
Estou dizendo desprezível no sentido de nós não amarmos a nós mesmos. De
nos desprezarmos e ficarmos pensando nisso. Que somos desprezíveis. —
Baixo meu rosto. — Sabe, eu não tive o amor do meu pai. Ele foi embora,
depois teve sua nova família e, por fim, morreu sendo um estranho. Depois
não tive o amor do homem que amei e não tive o apoio da minha mãe quando
mais precisei. Então — olho para ele —, eu fui embora. Vivi com minha tia
até quando podia e depois sua mãe estendeu a mão para mim. Christal me
ajudou, me trouxe até aqui e foi uma ajuda gigantesca em todos os sentidos.
E não estou falando de limpar sua casa e nem arrumar essa bagunça. Estou
falando até mesmo de cuidar de você, porque eu sou uma pessoa que não vou
conseguir ver alguém afundando e não fazer nada. Eu quero saber o que a
levou até aquele momento. Quero saber o que a fez viver assim. E não
importa se para você, Adam, estou aqui só para limpar sua casa. Não consigo
não lhe ajudar. E sobre seu passado... só me conte se quiser.
— Você é legal e minha mãe consegue enxergar a qualidade nas pessoas
boas como você. — Respira fundo. — Por isso quero que prometa que não
vai embora. Não apenas por mim, mas por ela. Minha mãe ficará muito
furiosa se souber e... me desculpa se estar aqui foi um presente de grego.
Dou uma risada, balançando a cabeça.
— Tudo bem e estar aqui pode não ser aquilo que eu queria que fosse
para mim, mas não é tão ruim como poderia ser se não estivesse.
Adam faz uma cara de lamentação e assente. E após um tempo pensando
levanta os olhos para mim novamente e ergue as sobrancelhas.
— Eu pensei em passar um tempo na casa de praia em Hampton.
— Ficar longe de mim? — Ergo as sobrancelhas e movo os ombros
antes de reformular a frase. — Quer dizer, você precisa mesmo ficar sozinho?
Mais sozinho?
— Não! E não se despreze tanto assim — diz parecendo zangado. — Eu
só preciso disso e se você quer que eu melhore, tem que pensar em si
também. Vamos melhorar juntos.
— Está bom — concordo e ele solta uma risada. — E vai ser por quanto
tempo?
— Um mês, ou menos talvez. Só quero pensar e encontrar as pistas. Tais
quais você disse que aparecem como sinais. Vlad falou disso também.
— Quem é Vlad?
— É um dos meus melhores amigos. Ele é o dono do bar que eu sempre
vou.
— E era lá que você estava? Você foi beber?
— Fui, mas nem passou de dois drinks. Fiquei mesmo é conversando.
Me lamentando, sabe... tem tempo que faço isso, já é um hobby.
— Esse lamento... Essa culpa que remói... é tudo por causa que você
perdeu a mulher bonita da foto. É isso, não é?
— É.
— Quanto tempo faz?
Ele desvia os olhos e foca na porta. Acho que pensa em fugir, no
entanto, me responde:
— Seis anos. — Sua voz é sombria. — Esse Natal completou seis anos
que ela morreu.
— Sinto muito de verdade
— Eu sei — diz e olha para mim de novo.
— Ela era sua esposa?
— Minha noiva — respira fundo quando fala. — Nós íamos nos casar no
Dia dos Namorados, mas ela resolveu partir meu coração dois meses antes.
Só... que ela não contava que eu ia ver e... que ia fugir. Como sempre, Selena
foi atrás de mim, para se explicar e...
— E morreu? — sussurro um pouco incomodada com a frieza das
explicações.
— Foi um acidente. O carro dela capotou e, quando os bombeiros
chegaram, ela morreu no meio do fogo. — E como eu esperava, ele desvia a
atenção mais uma vez. — O carro explodiu na frente, o motor, e mesmo que
tenham me falado que ela morreu no hospital, sei que não foi. E hoje eu odeio
passar na estrada onde ela morreu. Na verdade, eu não dirigi por um tempo
e... eu não ando muito com meu carro. Tinha uns bons quatro meses desde a
última vez que usei ele, por isso estava meio abandonado. A última vez foi
quando a gente foi pra casa dos meus pais.
Isso me faz pensar tantas coisas sobre ele, sobre sua noiva, sobre o
porquê sua família está tão desesperada para ele melhorar. Agora muita coisa
faz sentido.
— Está tudo bem eu ir para Hampton? — Ele me pega de surpresa,
capturando minha atenção para o agora.
— Bem... você faz o que desejar, Adam. Não tenho o que opinar.
Fechando a cara como se estivesse zangado, como se fosse um céu
bonito que precede a tempestade e fica escuro, turvo e sem vida, Adam se
levanta, passa as mãos uma na outra e espera eu estar de pé para falar:
— Acho que você não está me entendendo.
— Por quê?
— Eu quero que você fique aqui.
— Esperando você. Como assim? Isso não faz sentido algum. Não
ficarei aqui sem você. Eu...
— Por favor, deixe-me...
— De maneira nenhuma vou ficar aqui na sua casa sem você.
— Belinda, pare de falar! Por favor.
Arregalo os olhos e tento não rir, mas é difícil. Solto uma gargalhada
chegando a colocar as mãos na barriga.
— Me desculpa, mas é que...
— Por favor, deixa eu falar. Caramba, você é igual a Ava. Não espera
ninguém explicar nada.
Faço uma cara de culpada e suspiro, convencida de que preciso escutar.
— Pode dizer.
— Então, o que eu queria era que você estivesse aqui enquanto estou lá
porque assim você pode cobrir minha retaguarda.
— O quê?! Como assim? Você está me deixando confusa.
— Minha família não vai gostar de saber que estou, como você mesma
disse, querendo ficar ainda mais sozinho. — Meneia a cabeça e cruza os
braços. — Eles não vão entender e por isso preciso que fique aqui para cuidar
de tudo.
— Cuidar de tudo como?
— Você e Vlad irão passar informações para minha mãe, que mais
procura por mim, e despistar Harry.
Rio alto e dou de ombros.
— Ele gosta de você de verdade, por isso fica no seu pé. Todos gostam
de você.
— Não estou reclamando, Belinda. — Vira-se e caminha para a cozinha,
falando sobre os ombros. — Sei que todos fazem, de alguma forma, o dever
deles, mas às vezes quero que eles entendam.
— Você sente saudade dela?
A garrafa de água que está em sua mão é abandonada no balcão e
virando-se lentamente para mim mostra seu rosto em branco, sem emoção.
— A questão não é saudade, Belinda. Ela fez parte de mim, do que fui.
Acompanhou minha vida desde que estava na pré-escola até eu terminar a
primeira faculdade. Perdê-la não foi apenas doloroso para mim, minha
família sofreu também. Ela fez um vácuo em nossos corações, mas o que
sinto não é saudade. Não sinto a falta dela. — Ele dá dois passos e me
olhando nos olhos. — O que sinto é remorso por ter causado a morte dela e
por nunca — faz uma pausa como se sentisse dor — saber o motivo dela
partir meu coração naquela tarde. Por não ter conseguido fazer nada quando o
carro dela estava atrás de mim e por nunca...
— Você não pode ficar se machucando para sempre com isso. Tenho
certeza de que não é fácil, mas precisa superar ou trabalhar essa situação de
alguma forma, te tornará mais forte.
Adam engole em seco e assente em silêncio como se não tivesse nada
mesmo para falar. Dá as costas para mim, bebe sua água e assim que termina
passa por mim como se não tivéssemos a conversa mais profunda.
Uau! Esse homem é doido.
Mas antes de eu ficar pensando na sua loucura e toda sua amargura,
corro atrás dele e o pego subindo as escadas.
— Você ainda quer que eu fique aqui ou vai dar uma de crianção e me
ignorar como se não tivesse falado nada para mim porque dói demais tocar
neste assunto, que é passado? Passado, Adam! E você precisa estar aqui.
Ele para no meio da escada e vira para me encarar.
— Precisa estar aqui no pre-sen-te, então eu topo. — Subo os lances que
nos afasta e digo: — Fico aqui para você melhorar, não muito tempo, e faço
sua família achar que você continua na mesma vida de merda de antes, mas
na verdade você estará se cuidando e tentando achar o homem que vi
naquelas fotos e que sua mãe tanto se orgulha e enche o saco para você ser de
novo.
— Olha, eu...
— Nem vem. Você já tinha decidido isso e só contava com a minha
ajuda, já que tem o seu amigo do bar, portanto agora só resta você fazer as
malas e ir. Aqui tudo vai ficar bem, Adam. E lá? — Cerro meus olhos, sendo
incisiva. — Vai ficar tudo bem com você em Hampton?
DEZ
Hoje faz dez dias que estou na casa de praia que passei muitos verões e
outonos com minha família nas férias e feriados como o quatro de julho, que
meus pais fazem questão de festejar por serem republicanos convictos. Eu
adoro Hampton e sua pequena população, o clima fresco e suas praias com
áreas não tão claras e limpas, porém bonitas. Como fotógrafo aprendi a ser
crítico com a paisagem e ter um olho bom para a luz. E aqui tem uma
iluminação perfeita, sempre parecendo meio nublado, portanto as fotos ficam
definidas. Muita luz ofusca a lente da câmera. É contraditório, mas é assim
mesmo.
Respirando fundo, termino de tomar minha xícara de café preto, sem
açúcar e forte do jeito que gosto, e dou as costas à praia e entro em casa, que
mesmo modesta, é aconchegante.
Minha mãe é uma mulher que gosta de coisas boas, qualidade e conforto,
mas nossa casa aqui não é nada muito extravagante como costuma ser as
casas das pessoas que vem passar uma temporada por aqui. Pessoas ricas e
poderosas. Hampton não é para peixe pequeno e quando eles brotam por
aqui, os tubarões os engolem sem pensar.
Realmente gosto muito daqui por ser longe da cidade e por ninguém me
conhecer também. Nem o antigo e nem o atual Adam Stella. Eu curto muito o
fato de ser o estranho da casa da praia mais distante. Minha mãe não apenas
quis algo simples como longe dos outros. Nós não somos tubarões e
gostamos de manter distância para sobreviver ao glamour das mentes
perigosas.
No entanto (sempre tem que ter um porém), eu não sou desconhecido
para todos. Tenho alguns amigos por aqui e isso me levou a evitar esse lugar
por todos esses seis anos. E não posso negar essa evidência que é constante.
Selena e eu tivemos muitos tempos bons aqui, eu nem consigo recordar esse
lugar sem ela e seu sorriso largo, a risada contagiante e seus cabelos ruivos
contra o vento da costa.
Massageio meu peito e o questionamento de Belinda volta a tomar
minha mente. O que aconteceu durante toda a viagem até aqui e as noites
desses dez dias, que passei em branco refletindo ou lutando para não pensar
no que ela falou para mim naquela noite. Saudade não é o problema maior
que vivi nesses anos, eu me culpo e talvez se Selena tivesse morrido por
outras circunstâncias com certeza sentiria saudade e superado.
Porra são seis anos. Ninguém vive um luto intenso por tempo demais,
por mais que ame aquela pessoa. Vai haver algo, um novo alguém, um
motivo para impulsionar a lutar por novos dias. Eu acredito de verdade que
só vivi essa merda de vida durante esse tempo todo por causa do remorso,
não é saudade.
Eu mal pensava em Selena antes de Belinda chegar, antes dela mexer
naquelas fotos no porão, antes de ver a irmã gêmea e antes de beijar outra
mulher após seis anos sem me aproximar de alguém dessa forma e a última
ser Selena. E não sei se é bom ou ruim pensar tanto nela assim como estou
fazendo agora.
Às vezes, acho que é terrível, mas também acho necessário. Eu preciso
exorcizar esse fantasma de uma vez por todas e estar longe de todos está
sendo muito bom. Ontem fiz minha caminhada pela praia recordando os bons
momentos e pedindo em pensamentos que todos os ruins desapareçam. Que
eu possa perdoá-la e me perdoar. Que eu consiga dar o primeiro passo e
seguir.
No domingo cheguei até a comprar uma máquina de retratos
convencional para me distrair e ver se ainda tenho a manha de antes. Foi
bom. Me deixou animado e irritado também porque percebi com tanta clareza
que perdi tempo. Eu nem consigo mais ficar com raiva da minha mãe, Harry
e Ava. Agora compreendo-os perfeitamente e acho até que eles foram legais
comigo. Creio que eu não teria tanta paciência como eles tiveram comigo.
Não estou me obrigando a nada ou punindo, bem longe disso. No entanto, eu
devo a eles toda a fé que têm em mim.
Preciso fazê-los se sentir com missão cumprida em relação a mim. Eu
necessito vencer essa mágoa e superar a derrota. Por minha família, por meus
amigos, pela memória de Selena e até por Belinda. Aquela garota é uma
gladiadora e eu não devo mais do que deixá-la tranquila e, como ela mesma
disse, para eu ajudar alguém preciso estar bem também.
E eu vou ficar bem para todos eles. Acho até que já dei os primeiros
passos.
Grandes esperanças,
isso me leva de volta para quando nós começamos
Grandes esperanças,
quando você deixa tudo para lá, sai e começa novamente
Grandes esperanças...
sim e o mundo continua a girando
São dez para as onze da noite e vou me deitar parecendo que carreguei o
mundo nas costas hoje, e eu não fiz nada para ser franca, já que a casa se
mantém bem limpinha apenas comigo. Aquela conversa toda com Vlad me
deixou apreensiva e incomodada, principalmente por ter falado com Adam
assim que cheguei em casa e ele ter contado que está se sentindo muito bem e
até se divertindo com a tal amiga de infância. Fiquei zangada comigo por ter
me incomodado com a informação. Eu não tenho nada a ver com a vida dele
e o que ele faz ou deixa de fazer com ela. Droga! Eu deveria ter pensado
nisso antes de ter aberto a boca e dito coisas que hoje não falaria nada. Acho
que agora ele pensa que eu preciso saber tudo o que faz. Por Deus, que ele
não me dê detalhes de como está passando o tempo com a amiga dele.
Soltando a respiração, me sento na cama e pego meu celular. Como um
vício abro a rede social e procuro por uma foto, vídeo, qualquer coisa para
saber o que Adam está fazendo ou fez. Para o meu desgosto, ele voltou
“realmente” à vida e decidiu que todos saberiam disso há uma semana ao
postar uma foto da praia onde fica a casa de veraneio. E não só isso, como
várias fotos de paisagem e lugares onde certamente ele foi ou gosta de ir.
Será que foi com a amiga dele ou é apenas para o acervo de fotos aleatórias?
Praticar a segunda profissão dele que fazia tão bem. As fotos do porão são
provas disso.
É, falando no bem dito porão, aproveitei que ele saiu (como diz a frase:
Quando os gatos saem, os ratos fazem a festa) e fui lá novamente. Dessa vez
mexi no armário todo e vi muitas fotos, assim descobrindo muitas coisas e
uma delas eu vou precisar encarar Adam e perguntar quem era. Ou senão a
irmã dele. Ava parece ser sem filtro como eu. Nós somos ótimas pessoas para
interrogar.
Passando pelas postagens que não me interessa, vou direto no perfil do
Adam quando surge uma foto nova. É de um píer longo com a madeira
desgastada pelo tempo. É uma linda paisagem que dá vontade de conhecer e
sentir o vento com aroma do mar. Balançando a cabeça aperto na foto do
perfil dele, a imagem de um pôr do sol e vejo os vídeos curtos que são
postados instantaneamente. E nelas encontro ele sorrindo atrás da câmera
enquanto grava uma loira de olhos alegres bebendo o que suponho ser uma
bebida alcoólica que a está deixando feliz até demais.
Irritada, fecho o aplicativo e bloqueio o celular de uma vez. Não vou
ficar me martirizando com o que Adam faz ou deixa de fazer. Que se dane!
Eu não tenho nada a ver com a vida dele.
Balanço a cabeça, reviro os olhos e solto a respiração pelo nariz. Deixo o
celular na mesa de cabeceira e me deito cobrindo até minha cabeça.
— Queria um remedinho para dormir e acordar só semana que vem —
murmuro entre as cobertas e puxo um dos travesseiros para o meio das
minhas pernas.
Fecho os olhos. Conto até vinte. Lembro do filme que vi ontem, era
sobre zumbis em 1800 e alguma coisa. Uma adaptação de Orgulho e
Preconceito. E a cena que está passando na minha cabeça é a moça morrendo
na mesa do chá.
Droga! Qual é o meu problema?
Mais cinco minutos e eu não paro de pensar.
Mais dez e eu não pego no sono.
E mais vinte e eu levanto da cama, e quando menos espero escuto meu
celular tocar. Desisto de ir pegar um copo d’água e pego o aparelho.
ADAM STELLA – a tela brilha com seu nome. O aparelho vibra em
minha mão. E meu coração não consegue se controlar dentro de mim.
Meu Deus! O que ele quer? Por que está me ligando?
Respirando profundamente, tomo coragem e atendo.
— Pensei que você não fosse atender — diz parecendo mal-humorado.
O de sempre.
— Eu estava distante do celular — minto porque é a melhor saída. —
Aconteceu alguma coisa?
— Não. Por quê?
— É uma da manhã e você está me ligando, sendo que nem em horas
normais liga. — Reviro os olhos para o óbvio.
Escuto-o resmungar antes de responder gélido.
— Você me faz parecer um babaca.
Não que você não seja. Às vezes.
— Não foi minha intenção.
— Tudo bem. Eu não liguei para discutir e sim para avisar que vou
precisar adiar minha volta.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa? — Detesto a forma deprimida que
minha voz soa.
— Eu consegui um trabalho.
— De fotografia?
— Sim e será justamente no fim de semana que eu ia voltar.
— Ah, entendo.
Mas por que ele está me dando satisfação?
— Então, queria saber se está tudo tranquilo e... — ele faz uma pausa
longa e irritante — se você poderia vir para cá?
— O quê? Por quê?
Escuto-o soltar a respiração exasperada e aposto que passou a mão nos
cabelos, jogando a franja para trás.
— Eu vou precisar de alguém para me ajudar e pensei em você.
— Por que não convida sua amiga? — Fui sarcástica e sei disso.
— Lydia não vai poder. Vai estar trabalhando na hora que estarei
fazendo as fotos — diz rápido, emendando as palavras. — E se não quiser
vir, tudo bem. Acho que consigo alguém por aqui. Só pensei em te chamar
porque você disse que gosta de ajudar e sei lá. Pensei que seria legal você
conhecer aqui também.
Sinto meus olhos arregalar pelo espanto de Adam me querer por perto.
Os segundos passam e vou me acostumando com a ideia, e mais calma, o
respondo:
— Tudo bem, eu vou.
— Tem certeza? Eu não estou obrigando você a vir. Não mando em
você, está bem.
— Adam, eu não vou me incomodar de ir para Hampton. Na verdade,
prefiro ficar aí do que aqui.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa? Não me esconda nada.
— Não. Não aconteceu nada — respondo às pressas. — Eu só não estou
me sentindo confortável em estar na sua casa sozinha e, ainda por cima,
mentir para sua mãe. Mesmo que seja por uma boa causa.
— Tirou as palavras da minha boca em relação a ser uma boa causa eu
estar aqui — diz firme e um pouco humorado. — E tenho certeza de que,
depois de um tempo, minha mãe vai se dar conta disso e, no fim, o resultado
será bom.
“Ele não é o Adam que foi embora”, penso com a testa franzida e meus
olhos seguem para a minha porta com os pensamentos no quarto vazio dele.
— E você não precisa se sentir assim. Eu posso ter sido um babaca no
início, porém mudei minhas atitudes e disse para ficar à vontade na minha
casa. Se eu não a quisesse aí teria tomado providências.
Agora sim é o Adam grosso e mal-humorado que conheci. Rio
internamente com esse pensamento.
— Eu sei — murmuro por falta do que dizer.
— Que bom. — Ele é convencido. — Agora quero saber se pode vir
depois de amanhã. Vou mandar o dinheiro na sua conta para a passagem de
ônibus.
— Uhum — concordo.
— Quando chegar me envia uma mensagem e vou te encontrar no ponto
de parada dos ônibus rodoviários.
— Tudo bem.
— E não se esqueça de falar com Vlad antes de vir.
— E a sua mãe? E Harry? Eles vão ficar desconfiados se ligar e eu não
atender.
— Eu me resolvo com eles. Não se preocupe.
— Você está deixando seu celular ligado agora?
Ele foi tão esperto que, assim que chegou à casa de praia, desligou o
celular e comprou outra linha para fazer ligações para mim e Vlad, ou liga do
telefone fixo. O fato era que ele queria fugir da realidade dele realmente. Pelo
menos dessa vez foi para o bem e eu acho (só acho mesmo) que está dando
certo. Ele vai fotografar e parece mais leve. Mais inteiro.
— O meu número de sempre voltou a estar ligado, mas não me atrevi a
ligar para minha mãe ainda e nem ela para mim. O que você fez, hein? —
Sua voz é sarcasmo e alegria pura.
— Nada, só o que você pediu. Disse que você estava indisposto e não
queria falar com ninguém. Sua mãe quase veio aqui, mas menti dizendo que
você estava trancado no quarto há dias e só saía de madrugada para comer.
— Assim parece que você seguia meus passos antes ou que me conhece
há anos. Conhece tão bem que sabe o que faço.
— Fazia, Adam. Você não é mais assim — afirmo com um sorriso. Ele
não é nada meu, mas me importo.
— Verdade, eu fazia. — Respira fundo. — Agora deixa eu voltar a
dormir e você também.
— Boa noite.
— Boa noite, Belinda.
Com um sorriso idiota e inexplicável, encerro a ligação e levo o celular
para o andar de baixo já que a sede ficou mais forte.
Descendo as escadas, não consigo deixar a sensação estranha de alegria
ir embora. Agora eu consigo enxergar o cara legal e generoso que todos
falam que Adam era. E ele é surpreendente. Gosto do Adam legal.
DOZE
Com uma dor de cabeça infernal e o humor ainda pior do que antes da
corrida, tentativa falha para esquecer o maldito sonho, cheguei em casa,
peguei o carro e saí para almoçar no restaurante de Martha.
— Boa tarde, Adam.
Aceno como sinal de cumprimento e sento em uma das banquetas do
balcão. Em silêncio pego o cardápio.
— E aí? — Lydia aparece do meu lado empurrando meu ombro.
— Hum.
— Nossa! Parece que alguém acordou do outro lado da cama.
— Como durmo sozinho não me parece ruim acordar do outro lado.
Tanto faz. Acordo do lado que eu quiser.
Lydia solta uma gargalhada e empurra meu ombro com o dela mais uma
vez.
— Você está um chato hoje. O que aconteceu?
— Nada.
Escuto-a resmungar e para demonstrar que está bem irritada comigo
pega da minha mão o cardápio e lê em voz alta seu pedido e o meu, acertando
na escolha. Os anos se passaram, mas ela ainda me conhece muito bem.
— Depois eu que estou chato.
Olho para ela a tempo de vê-la revirar os olhos e resmungar fechando o
cardápio com força o bastante para criar um vento e escovar seus cabelos
para trás.
— Por que está me olhando assim? — indaga me encarando.
— Assim como?
— Com esse sorrisinho úmplice e bobo.
Dou de ombros e viro-me para focar na janelinha da cozinha que sai os
pedidos.
— É que fico impressionado que você não mudou nada esses anos todos
e... — baixo minha cabeça — às vezes fico incomodado com isso.
— Te incomoda eu manter minha essência.
— Não. O que me incomoda é que isso me traz memórias que preferia
não lembrar.
Ela toca no meu ombro e eu me viro.
— Entendo perfeitamente o que está dizendo. Também fico assim perto
de você. — Abre um sorriso sem mostrar os dentes. — Mas... não devemos
viver no passado. Temos que seguir em frente não importa se isso às vezes
doa, Adam.
Cerro a mandíbula e concordo com um aceno em silêncio.
— Olha, Adam, eu sei que nossas histórias com nossos ex são distintas.
Completamente diferentes. Eu apenas me separei, terminei e você... — Ela
faz um minuto de silêncio e continua: — Ela morreu e eu nem gosto de
imaginar como deve ter sido difícil.
— Foi depois.
— Como assim? — pergunta com a testa franzida.
— A dificuldade foi depois. Em ter que lidar com o jeito que ela morreu.
Realmente não queria falar sobre isso. Não queria abrir a porta das
feridas que me levavam àquelas lembranças. A partida dela de um jeito tão
brusco e a culpa que me corroeu durante seis anos. Eu não queria ter
afundado nesse mar de culpa e arrependimento, mas foi inevitável.
Deixando de encarar, conto para Lydia tudo, sem me prolongar. No
entanto, falo dos anos que fiz tudo errado, inclusive todo o desprezo que dei
para a minha família e os meus amigos, que estavam preocupados com a
forma como eu estava levando tudo. Conto tudo o que aconteceu, a verdade e
sem omitir nenhum fato, nenhum dos meus erros e acertos, nem dos acertos e
erros de Selena. E falo até a pior parte desse segredo, dessa dor que matou
um pedaço da minha família, pois não foi apenas a família de Selena que
morreu e deixou de ser feliz e abençoada. Eu não só arruinei a família dela,
arruinei a minha também e a mim. No fundo, sempre soube, a partir do
momento que vi o carro dela destruído, que eu era um homem em ruínas
naquele segundo.
Depois de um tempo que deixo Lydia absorver a história viro meu rosto
para encará-la e a encontro sem expressão, porém em seus olhos há tristeza e
estão um pouco marejados.
— Por que não me disse? Por que não contou que ela tinha morrido, que
foi um acidente?
— Porque eu tive vergonha e, na verdade, meu intuito de vir para cá foi
para fugir desses anos de culpa. Só estou aqui porque ando confuso e talvez
essa confusão é o que está fazendo eu falar disso com você. — Respiro fundo
e deixo de encará-la mais uma vez.
— Você sente falta dela?
— Não é esse o problema. Acho que nunca foi. — Fito o guardanapo
destruído em minhas mãos. — Quero dizer, ela morreu e foi horrível. Óbvio
que eu não queria isso, mas aconteceu. O que estou querendo dizer é que
minha história com Selena morreu um pouco antes dela partir. Eu não tinha
conseguido enxergar isso, mas há algum tempo percebi que a única coisa que
me levou a viver essa perda por mais tempo foi apenas por culpa. Me senti
terrivelmente culpado pelo acidente.
— Você acha que, se você não tivesse entrado no quarto e visto eles dois
e fugido, ambos estariam vivos? Acredita mesmo que foi o maior culpado do
carro capotar e explodir, Adam? Da rua estar fechada justamente naquele
trecho e no caminho deles? — Sua voz soa irritada, instável, mas solta a
respiração e pede com mais calma: — Olha para mim, por favor.
Cerro a mandíbula e encaro seus olhos.
— Eu sei que não deve ter sido fácil, e sim, se você não tivesse visto
nada e continuado a viver na sua ignorância sobre o caso deles,
provavelmente ainda estariam vivos e acredito que em algum tempo você e
ela romperiam e cada um seguiria seus caminhos. Mas, Adam — coloca a
mão sobre as minhas, detendo-me de continuar a destruir o guardanapo —,
você não foi culpado. Foi um acidente e poderia ter sido diferente. Eles
poderiam ter te alcançado e conversado com você e novamente você e Selena
terminariam e cada um seguiria seu destino. — Dá de ombros. — Só que
acredito de verdade que nada nessa vida é por acaso. Não existe coincidência
ou sem querer. Embora isso, em algumas situações, seja terrível de dizer, é a
verdade, basta nós olharmos atentamente. Os caminhos, sejam eles com
términos ruins ou bons, deixa sua pegada. Deixa sua marca, deixa a culpa
para aquilo acontecer. Eu sinto muito, muito mesmo pelo que você passou —
diz com toda emoção que um ser humano pode sentir —, mas tudo que
aconteceu talvez, ninguém nunca vai saber, tinha que acontecer. Ferindo,
doendo ou não, quem quer que seja.
Percebo como se estivesse fora do meu corpo e do controle das minhas
ações, minha cabeça balança calmamente, concordando com seu pensamento,
pois a verdade é que eu já pensei assim também. Ou, no fundo, eu queria que
não importasse o que eu fizesse terminaria daquele jeito.
— Adam?
— Hum? — Olho para ela porque sua voz pediu isso.
— Estou aqui como sua amiga e sem julgamento. Você sabe, não é?
Entendo seus motivos, todos eles, porque provavelmente eu teria feito o
mesmo. — Ri sem vontade, movendo os ombros sem jeito. — Quase passei
pelo mesmo, embora eu e John apenas terminamos um namoro de anos,
também fiquei por alguns meses entregue à dor e saudades. Me perguntando
onde errei e o que eu poderia ter feito diferente, até me dar conta de que
acabou e eu não tinha que ficar me machucando assim. Fim. Game over!
Vida que segue.
— Fico feliz que você tenha superado rápido.
Ela solta uma gargalhada e toma um gole da sua bebida, que segura com
as duas mãos o copo e fixa os olhos num quadro que fica atrás do balcão.
— Eu queria ter superado antes — admite distante e melancólica. —
Perdi muita coisa. Perdi muito tempo para entender que na vida nem sempre
tudo acontece para o nosso bem. Que, às vezes, precisamos cair, mas cair
feio, para aprendermos a levantar e seguir, de verdade, em frente.
— Eu sei — falo com sarcasmo soltando uma gargalhada.
Lídia ri também e sacudindo a cabeça bate seu copo no meu brindando
seja lá o que for. Talvez ao nosso futuro próximo. À nossa nova chance. Até
mesmo às cicatrizes, que embora ainda machuquem, estão cicatrizando.
Lydia termina sua bebida e não só vira o rosto para mim como o corpo.
Apoia um dos braços no balcão e com seus olhos interrogativos e um sorriso
secreto, indaga:
— Mas agora eu quero saber o real motivo de você querer me contar isso
tudo hoje? — Pisca o olho direito. — O que aconteceu ontem? Ou sei lá?
Não sei o que houve para fazer você querer colocar tudo isso pra fora e talvez
falar coisas que nunca teve coragem de contar a quem esteve com você esse
tempo todo, porque provavelmente ninguém nunca te entendeu. Talvez
porque ninguém nunca se colocou no seu lugar.
— Realmente revelei para você , porque, como você disse, ninguém
nunca conseguiu compreender o fato de eu me culpar. No fundo nem eu, mas
não estou reclamando e dizendo que eles não me apoiaram de toda forma,
só...
— Não conseguiram opinar como se fosse a coisa mais fácil do mundo
pegar a noiva te traindo e depois assisti-la morrer segundos depois de você
gritar com ela. Ela simplesmente partiu sem você ouvir o motivo de ter feito
o que fez. Consigo entender os motivos e provavelmente ficaria do mesmo
jeito ou até pior.
— Se fosse o caso, eu gostaria de estar aqui para você.
— Eu sei disso, Adam. Você é uma das pessoas mais generosas que
conheço e fico triste de ter ficado tão rancoroso e mal por um sentimento de
culpa que estava lhe corroendo de dentro para fora. Foi triste.
— Eu sei e preciso pedir desculpas a eles, mas sinceramente não sei
como fazer isso mais. — Baixo minha cabeça e foco um risco na madeira do
balcão. — Foram seis anos, Lydia, não seis semanas ou meses. — Arfo com
forte, sentindo o peso sobre mim dessa merda toda que causei. — Durante
seis anos, eu fui horrível com meus pais, com a minha irmã, com meu
cunhado. Que é muito mais do que isso. Harry é meu melhor amigo e, se não
fosse ele, provavelmente eu já estaria morto de tanto entrar em brigas. Ele
sempre apareceu e me salvou me tirando das confusões. E também tem Vlad.
Eu sei que várias vezes ele botou água no meu conhaque para ver se eu ficava
menos bêbado. Bem, é isso e eu não tenho como pagar ou me redimir. Acho
que desculpa é muito pouco.
— Então faça diferente. Prove a eles que você mudou. Demonstre para
todos que você magoou o Adam, aquele cara incrível que eu conheci, está aí
dentro. Esse é o conselho que posso lhe dar para conseguir fazer todos
enxergarem que agora você está bem de verdade.
Solto um riso sem muito ânimo recordando de Belinda, e falo em voz
alta isso.
– Quem é Belinda? — Lydia pergunta curiosa.
— É a menina que mora na minha casa.
— O quê? Como assim? Você não me disse nada disso. — Ri com
entusiasmo.
— É uma menina que minha mãe queria ajudar porque ela tem
dificuldade de ficar nos trabalhos e está doente e precisa fazer uns exames.
Então, minha mãe pensou que seria bom ajudar ela me ajudando, e
simplesmente mandou a garota para minha casa para ficar lá.
— E o que ela faz na sua casa?
— Para começar, ela fez uma faxina que me fez perceber depois de anos
que meu carpete na verdade é azul-escuro e não cinza.
Lydia dá gargalhada e um soco de brincadeira no meu ombro.
— É sério — afirmo. — Ela limpou a casa tão bem que fiquei bobo, e só
demorou... acho que uns cinco dias. Não foi nem uma semana. E ela é um
pouco displicente, curiosa e mexeu em coisas que eu não queria que...
— Quê?
— Que nem eu mesmo queria ver mais.
Relembro do momento que vi Belinda no porão mexendo naquele
armário, nas fotos que eu não via há tanto tempo. Eu queria queimar as
imagens de felicidade entre Selena, ele e eu. Cheguei a pensar nisso.
Coloquei tudo numa caixa, levei para dentro da mala do carro e para a
beira de um rio. Procurei qualquer lugar que eu pudesse depois apagar o fogo
e jogar na água para aquelas lembranças irem para o mais longe possível de
mim, porque me magoava tanto. Doía de um jeito que não posso mensurar.
— No entanto, ela simplesmente entrou lá. Curiosa e mexeu em tudo. —
Volto a contar para Lydia. — Eu queria que ela nunca tivesse entrado lá,
porque algo desencadeou tão forte dentro de mim desde aquele dia.
Lydia concorda com a cabeça e desvio minha atenção, pois nem tudo
quero falar para ela. Algumas coisas, eu não conto para ninguém. Fica na
minha mente. Não quero compartilhar.
E posso dizer que vendo aquelas imagens, as lembranças que ressurgiu,
toda a verdade veio à tona. Todo sentimento e tudo que aconteceu desde o
início. Toda minha dedicação, meu amor, momentos felizes. O dia em que eu
a pedi em casamento. E depois veio a desilusão, a traição, o acidente, a morte
e a culpa que carreguei durante todos esses anos. E consequentemente o
tempo que joguei fora e a grosseria como tratei todos. O homem que acabei
me tornando. O homem que tratou Belinda naquele dia.
Aquelas fotos... foi como uma chave que abriu a porta da realidade para
mim. Da vida de merda que eu estava levando. Por mais que eu tenha falado
para ela sair e tudo mais, o bem que ela me fez desde aquele dia está sendo
refletido agora.
Refletindo no fato de hoje estar conseguindo me abrir de verdade com
alguém e pensar em coisas boas. E talvez pela forte influência que ela teve na
minha vida nesses dias, nesses poucos dias, esteja causando os sonhos
malucos com ela.
Santo Inferno! Posso admitir pelo menos para mim mesmo que sinto sua
falta. Falta dela se intrometendo e falando as coisas na minha cara me
machucando. Porque é isso que ela fez. O que ela faz sem pedir desculpas.
Joga na minha cara a realidade e não tem, mesmo, como eu ficar com raiva
dela. Não tem como eu não ser agradecido.
— Por acaso você está sentindo alguma coisa?
Giro meu corpo para ficar cara a cara com Lydia e franzo a testa,
perguntando silenciosamente o que ela quis dizer.
— Estou querendo saber — fala com a voz baixa e um sorrisinho — se
você está sentindo algo por ela. Algo carnal.
— Não sei.
Suas sobrancelhas se erguem juntamente com seu sorriso morrendo.
— “Eu não sei”, não quer dizer não, Adam.
— E é isso mesmo que eu quero dizer — afirmo cerrando o maxilar.
— Então talvez você esteja... gostando dela?
— Não sei. Acho que não é esse o caso. — Dou de ombros e balanço a
cabeça porque estou confuso. — Atraído é o mais correto.
— Olha, se não quiser falar comigo sobre isso, tudo bem. Acho que por
hoje você já se abriu demais. — Ri baixo, sendo amigável.
Fecho os olhos e respiro fundo querendo apenas dormir. Essa situação,
os sonhos, me deixam perturbados.
Para interromper meus pensamentos e esse assunto que não quero ter
com ninguém, a comida chega.
Não quero pensar sobre isso. O caso é que eu não quero me envolver
com ninguém. Não estou no clima. Meu foco é ficar bom. Voltar a ser quem
eu era. Um cara que tinha tudo sob controle e uma carreira em progresso.
Relacionamento, seja ele da forma que for, até casual, não vai ser bem-vindo
agora.
Enquanto estou no meu carro, a caminho da cidade, os pensamentos
turbulentos só pioram. Pensei que falar dos problemas aliviasse, mas acho
que é o contrário.
Essa noite tudo foi ainda pior. Eu sonhei de novo com Belinda e dessa
vez até um pouco pior porque, além de nós transarmos no sonho, foi
absolutamente real todas as coisas. Que não deveria. Inclusive as sensações,
os sentimentos. Tudo uma grande merda.
Meu celular toca avisando uma mensagem. É ela novamente dizendo que
está esperando onde o ônibus a deixou. Bem perto de onde estou.
Ergo a sobrancelha, exasperado e sendo corroído por algum sentimento
inominável. Me preparando para vê-la e conseguir controlar a situação.
Ligo a seta para a direita, sigo passando por três ruas e, quando vejo um
ônibus, reduzo. Como se meus olhos fossem mariposas hipnotizadas pela luz,
vejo Belinda com uma mochila enorme pendurada por uma única alça no
ombro direito. Ela parece um pouco desengonçada e sem jeito. Mexe os pés
inquieta e olha para os lados, provavelmente me procurando.
Eu deveria logo buzinar para chamar sua atenção e ela vir para o carro,
mas em vez disso levo um tempo observando-a. E nem sei porque faço isso,
talvez eu esteja procurando em algo uma resposta.
Que babaquice a minha.
Decidido, finalmente dou uma buzinada, chamando sua atenção. Belinda
ajeita sua mochila, que provavelmente está muito pesada, e caminha, se
aproximando. Rapidamente saio do carro para ajudá-la. Babaca sempre, rude
nunca.
Ficamos nos olhando sem dizer nada. Um esperando o outro tomar a
iniciativa. O primeiro passo.
— Oi, Adam — cumprimenta-me um pouco acanhada como na primeira
vez que me viu.
Ergo as sobrancelhas e devolvo o cumprimento me aproximando mais
para pegar sua mochila, que confirmo o peso exagerado, e levo para o porta-
malas.
TREZE
Quando são sete da noite, fecho meu estojo de maquiagem e solto meus
cabelos, em frente ao espelho do banheiro. Tinha os prendido com vários
prendedores para fazer cachos improvisados. Percebi que as pessoas aqui são
chiques e algumas poderosas. Adam não disse para onde vamos, em que casa
é a festa, e mesmo assim não importa. Qualquer uma que seja deve ser
razoavelmente chique e não posso ir menos do que apresentável ou bem o
suficiente para me misturar. Por isso coloquei um vestido preto que deixam
meus joelhos de fora — moderno, sofisticado e comportado — e minhas
sandálias brancas com strass na parte da frente nas três fitas.
Encarando-me no espelho agradeço mentalmente ao Vlad. O cara deve
ser vidente. Ele que me recomendou trazer umas roupas mais sofisticadas e
chiques para cá. Nada de colocar apenas shorts, biquínis e camisas de
algodão e manga curta na mala. Ainda bem, que sorte a minha. Ele precisa de
uma bela gorjeta quando eu for ao bar assim que chegar em Nova York.
Antes de voltar para o quarto, penduro minha toalha e retoco o batom
vermelho. Não gosto de usá-lo, mas é o único que sobrou. Preciso comprar
maquiagem. Detesto usar o que tem para não deixar de estar com algo e
batom vermelho é só para quem se sente confortável em usar. No meu caso,
eu detesto.
Pegando um casaco bege de lã que era da minha tia. Ela pagou uma
grana preta quando comprou numa loja de departamento em Manhattan. Nada
naquela ilha é barato. A sorte é que moro (no caso Adam) no Brooklyn, que é
mais econômica na parte de Nova York, senão estava falida.
Saio do quarto e caminho pela casa silenciosa e escura. Há apenas alguns
focos de luzes que vem da sala. Indo para a cozinha, encontro a porta fechada
e a persiana baixada. Decido sair pela saída da sala dos fundos e é nela que
encontro Adam.
Ele está parado na varanda, os cotovelos apoiados no corrimão de
madeira que é a mesma do deque. A casa é linda e do lado de fora toda de
madeira escura. E se adequa tanto a Adam que acho que ele deveria morar
aqui.
— Oi — digo calmamente para não assustá-lo e fico ao seu lado,
colocando minhas mãos no corrimão, bem perto do seu cotovelo direito.
— Adoro essa vista. — Sua voz está distante enquanto admira o mar ao
longe.
Está uma noite sem estrelas e uma lua gigantesca, ou parece ser enorme
por conta da falta de prédios e poluição visual que uma cidade grande traz.
— Me acalma — completa ele e vira o rosto para mim. E tão logo seus
olhos se arregalam, fica de pé, aprumando a postura e vejo-o engolir em seco
franzindo a testa.
— Algum problema? — pergunto com a voz baixa.
— Não! — Balança a cabeça negando e pisca rápido. — Vamos. Não
quero chegar atrasado.
Agora eu pisco rapidamente e observo suas costas, pois está se afastando
de mim como se eu fosse fogo e ele uma garrafa de álcool. Daria uma bela
explosão e eu tenho certeza de que ele não gosta de incêndio.
Aff... Que piada fora de hora, Belinda!
Ah, juro que estou tentando não entrar em pânico ou me irritar com
Adam. Mas fica difícil com essas atitudes. Na próxima não vou conseguir me
controlar. Argh! Esse homem me tira do sério.
Fechando pelo menos a porta da casa, o sigo pela praia e não demora
muito para que eu veja uma tenda branca enorme sobre a areia um pouco
próxima à água em frente a uma casa linda e toda iluminada por vários
pontos de luzes pequenas.
Chegando finalmente à festa, observo a decoração das mesas. Flores
simples com ervas e velas compridas com aroma de lavanda. Tudo elegante e
aconchegante. Ainda bem que eu coloquei esse vestido e uma maquiagem
iluminada.
Há uma musiquinha calma tocando, pessoas rindo, bebendo em taças de
cristal e conversando sobre algo que não pertence ao meu mundo, porém
todos dão breves olhadas na minha direção e sorriem. Socialite educada é
outro nível.
Desviando minha atenção dos convidados, apresso meus passos para
ficar perto de Adam e não ser uma pateta no meio desses estranhos.
Ele entra na casa depois de me dar uma olhada e subir as escadas de
vidro e vai em direção a uma mulher loira vestida de branco com um sorriso
encantador e hipnotizante. Eles se abraçam e trocam um beijo singelo no
rosto.
— Essa daqui é a Belinda — Adam me apresenta quando se afasta da
mulher.
— Ah! É um grande prazer conhecê-la — ela diz ao me abraçar rápido e
sorri completando: — Adam me falou um pouco sobre você. Eu sou a Lydia.
Faço um pequeno aceno com a cabeça. A voz dela é doce e simpática.
Lydia parece ser bem legal pessoalmente. Não sei por que fiquei com raiva
quando Adam me contou sobre estar passando um tempo com uma amiga
antiga. Fui muito imatura.
— É um grande prazer conhecê-la também, Lydia. E Adam também me
falou de você.
Dando uma risada, ela enlaça meu braço e me guia pela casa.
— Hum... fiquei curiosa em saber o que ele falou de mim. — Olha pra
trás e dá uma piscadela para Adam e logo me encara. — Pronto! Agora vou
poder contar tudo que você quiser saber sobre Adam.
Escuto-o resmungar atrás de mim antes de pegar o caminho oposto.
— Deixa ele pra lá — Lydia fala com humor. — Fique comigo. Quero te
oferecer uma bebida e te apresentar alguns amigos. Você já tinha vindo aqui
em Hampton?
Realmente tento prestar atenção nela e nos seus amigos. Fico sabendo
que Lydia passou a morar em Hampton há dois anos depois de terminar seu
namoro de anos, e também que é designer e sua família toda veio morar aqui
e sua mãe é médica, clínica geral do hospital da cidade. Não sei por que ela
quis com tanta vontade me passar essa informação, mas acho que Adam
andou contando para ela minhas dores. Se for o caso, eu estou com muita
vontade de abraçá-lo neste momento.
Os minutos passam sem eu perceber enquanto estou na companhia de
Lydia, e é quando ela é roubada de mim, por um homem lindo e ruivo de
olhos verde-claros, que tenho minha chance de escapar e ir atrás de Adam. O
encontro nos fundos da casa, sozinho como sempre. Franzo a testa deixando
minha taça vazia no patamar antes de descer as escadas de madeira que dão
para a praia, coisa que os convidados não estão muito animados para
apreciar.
O tempo está úmido e enevoado. Não se tem mais uma visão limpa do
mar como estava mais cedo. Acho que deve chover amanhã ou uma frente
fria está por vir.
Compartilho desse pensamento em voz alta sentando ao lado de Adam.
— Talvez — murmura ele sem se virar para mim.
Eu realmente poderia ficar calada e deixá-lo com seu mau humor em
paz, mas eu realmente não consigo. Não consigo não fazer nada. Queria tanto
que ele sorrisse um pouco, ficasse feliz. Achei que a viagem fosse lhe fazer
bem. Um mês aqui e ele continuou de mau humor ou, pelo menos, parece que
está num dia ruim hoje.
— Está tudo bem? — pergunto. — Porque parece que você não está bem
ou sei lá, Adam. Você parecia feliz ao telefone dois dias atrás. O que houve?
— Não aconteceu nada. Só estou com dor de cabeça.
— Então por que veio se você está se sentindo mal? Tinha que ter ficado
em casa.
Ele me dá um olhar intenso e diz:
— Eu não queria que você ficasse em casa trancafiada. As minhas
escolhas e vida é uma coisa, a sua não me diz respeito. Eu não quero que
fique presa porque eu quero ficar — explica em um único fôlego. — E queria
que você conhecesse a Lydia.
— Aham... entendi, mas eu poderia conhecê-la amanhã cedo. Vocês são
vizinhos e tenho certeza de que ela apareceria por lá quando você dissesse
que eu cheguei. — E eu nem sou tão extraordinária assim. Não compreendo a
importância que ele dá a isso. — Enfim, eu só acho que você poderia não vir
à festa, principalmente por um motivo tão bobo. Não precisava vir só por
minha causa.
— Não é só por causa de você.
Franzo a testa. Sério. Ele faz meu cérebro dar um nó. Santo Inferno!
Preciso ter muita paciência com Adam.
— Eu precisava distrair minha cabeça.
E eu o observo levantar e começar a caminhar pela praia. Vou atrás, e
paramos na tenda que não tem ninguém e sento em uma das espreguiçadeiras,
ao lado de Adam. Ele me dá uma olhada como se tentasse entender por que
estou ao seu lado. Como se eu o estivesse perseguindo e fosse uma estranha.
Às vezes, ainda me sinto uma estranha para ele. Não mudou.
— Achei que a viagem fosse fazer bem a você de verdade — digo
focando em minhas unhas porque não quero encará-lo depois de ficar irritada
com o silêncio entre nós.
— E a viagem me fez bem. Tenho pensado muito sobre... — Faz uma
pausa e cruza os braços sobre o peito. — Eu só estou com dor de cabeça hoje.
— Então vamos pra casa. Você toma um remédio e relaxa. A gente
pode... — Pauso pensando numa ideia que ele concorde.
No fundo, não sei mais o que sai da minha boca. Eu só quero que ele
fique feliz. Que fique bem. Vlad me falou tantas coisas sobre como ele era
que criei expectativas de que, quando o visse aqui em Hampton, que essa
viagem fosse trazer o Adam de seis anos atrás de volta. E eu chego aqui e o
encontro calado e pensativo, porém mais calmo. Não posso mentir e dizer
que ele está igualzinho como deixou Nova York. Não posso ser leviana a isto.
Ele parece mudado, só um pouco calado demais. Pensativo e concentrado em
tudo, menos que eu estou aqui com ele, ou qualquer um.
— Podemos? — Ele está de frente para mim com os olhos fixos em meu
rosto de um jeito embaraçado.
Minhas bochechas ficam quentes e preciso engolir em seco.
— Eu não sei. Não sei o você gostaria de fazer nessas circunstâncias.
— Que circunstâncias? — Ele franze a testa e ainda por cima cerra os
olhos.
Caramba, não tinha percebido como ele é atraente fazendo essa careta.
Ele é bonito, mas assim... fica sexy.
Pisco os olhos com força e forço um sorriso.
— Da sua dor de cabeça — explico antes que fique muita estranha essa
conversa, se já não está. — O que você gostaria de fazer depois que... tomar o
remédio?
— Claro — murmura se divertindo com um aceno de cabeça como se
soubesse de algo que eu não sei.
Doido.
— Você está com essa cara fechada por culpa dessa dor de cabeça? Será
que isso é impossível?
— Eu estou com a cara fechada?
— Eu tenho certeza, afinal de contas estou olhando para ela neste exato
momento, Adam.
— E você fica enjoada de olhar para mim assim? Zangado.
— Enjoada?
— De saco cheio?
— Não necessariamente.
Isso desencadeia uma risada entre nós, que para ele acaba muito rápido,
e eu aproveito para dizer:
— Na verdade, eu não ligo. É até estranho quando você sorri, mas eu
gosto quando acontece. E... não importa. Você não me assusta mais e até de
cara fechada fica bonito.
Merda mil vezes! Eu poderia não ter comentado isso.
Ele morde os lábios como se tivesse perdido as palavras e, por fim,
apenas sorri.
— Desculpe, Adam. Foi mal. Não deveria ter falado isso.
— Por quê? — indaga rápido demais. — Eu não me incomodei e
também acho você muito bonita. Isso não é errado. — Dá de ombros e se
levanta da espreguiçadeira. — Nós somos solteiros. Não tem nada de errado
em elogiar um ao outro.
E até nos beijamos. Um beijo que não consigo esquecer por nenhum
motivo aparente.
— Eu sei que não. É que...
— É que você não é de falar este tipo de coisa para um homem —
completa por mim. — Nunca imaginei você falando uma frase assim para
mim ou para nenhum homem. É acanhada demais. — Meneia a cabeça como
se lembrasse de algo e conclui: — Eu pensava que era só comigo.
— O que você quer dizer?
— Eu pensava que você ficava acanhada só perto de mim, porque eu
tenho essa cara de mau e só vivo de mau humor. Mas vi você hoje e percebi
que não. Você é sempre assim. E já tinha percebido na festa de Natal como
interage com todo mundo, principalmente perto dos homens. Isso me intriga.
— Cerra os olhos.
Levanto para estar no mesmo nível que ele, quer dizer, mais ou menos.
Adam é uns vinte centímetros mais alto que eu, até de salto, que não conta,
pois estamos sobre a areia.
— Por que você é assim? Já aconteceu alguma coisa?
— Em que sentido?
— Naquela vez que a gente conversou no Natal, você falou sobre o seu
padrasto de uma forma muito negativa e deu graças a Deus por não estar mais
na mesma casa que ele. E que a sua mãe sempre foi a favor dele. Eu sinto
como você sempre se retrai perto dos homens. — Aperto os lábios, dando de
ombros. — Desculpa se eu estou sendo um idiota, mas por acaso ele fez algo
ruim com você? Ele abusou de você?
— Não! — afirmo rápido. — Nunca aconteceu algo assim e minha mãe
nunca permitiria.
— Então o que aconteceu?
— Nada. Não aconteceu nada.
Seus olhos deixam claro que não acreditou em mim, e se aproximando,
enfia as mãos dentro dos bolsos da sua calça jeans escura e ergue os ombros.
— Eu sei que aconteceu alguma coisa e já fui honesto com você tantas
vezes que esperava que você fosse comigo.
— Mas estou sendo honesta. Não tem nada para contar. Eu juro. —
Minha voz sai baixa demais, incerta.
— Então quer dizer que só não se dá bem com ele? E que é
extremamente envergonhada?
— Eu não sei. Talvez seja isso. — Desvio meu olhar para o mar e imito
sua postura de antes, cruzando os braços. — Eu nem percebo que faço isso.
Que sou assim. Sei lá.
— Certo, talvez você seja assim mesmo, fico mais aliviado.
— Por quê? — Viro-me para ele.
— Por vários motivos — responde vago como sempre. — Porque você
não ter sido abusada ou molestada pelo seu padrasto tira um peso enorme da
minha cabeça. Nenhuma criança ou enteado tem que passar por isso.
Nenhuma sobrinha, irmã. Nenhuma mulher.
— Concordo com você. — Engulo em seco por reflexo. — Deve ser
terrível.
— É terrível só de imaginar — fala e com um aceno de cabeça, vira-se e
segue em frente, indo para casa.
Nas escadas, ficamos parados diante dos degraus. Fico o observando se
aproximar e se sentar nos primeiros degraus, olhar para mim com um sorriso
convidativo.
— Vem! Vamos admirar o mar.
— Sério?
— Uhum.
Dou de ombros e me sento do seu lado.
Ficamos um bom tempo apenas vendo as ondas se formando e
quebrando na areia, num silêncio sereno. Mas eu tinha que bocejar.
— Acho que está na hora de entrar e deitar — ele diz olhando para mim.
Assinto automático. Estamos muito perto. Nossos ombros estão colados,
nossos rostos tão próximos que vejo com total nitidez todos os detalhes do
seu rosto, vejo os leves pelos disformes da sua sobrancelha e da barba onde a
gilete passa com menos frequência e os pelos crescem mais lentos. E meus
olhos encontram os dele, que estão vidrados.
— Oi — sussurro sorrindo pra ele.
— Eu não deveria.
— O quê?
— Me sentir atraído por você.
— Não?
Caramba! De onde vem essa coragem às vezes.
— Estou lutando para que isso pare. Eu não queria isso, talvez nunca
mais.
— Ficar com alguém? — pergunto dúbia e de voz baixa. Muito covarde,
embora confiante para dar um passo e sentir seu fôlego mais perto. Perto o
suficiente para ele segurar meu rosto.
— Não sei se é certo, Belinda. Não sei se é o que eu preciso. Que eu
posso aguentar.
Dou de ombros com insegurança, porque eu também não sei. Apenas sei que
a vida é um jogo de riscos. De erros e acertos. E por isso, e por tudo que está
acontecendo dentro de mim (desde que o vi esperando por mim hoje), que
faço meu corpo ficar mais perto e de frente para o dele e tomo a iniciativa. Na
vida, a gente nunca sabe quando vamos ter uma nova chance para sentir
certas emoções, e o que ele me faz sentir é algo que eu preciso arriscar para
não me arrepender e perguntar “e se eu...”.
QUARTOZE
Sinto a hesitação nos seus lábios que tocam os meus inseguros. Nós
estamos sentindo o mesmo, no entanto, acredito que o que me impede de me
entregar totalmente, é o que me impediu a vida toda de prosseguir minha
vida. Culpa misturada de medo.
Mas, agora, eu a quero, de verdade, a quero muito. Não consigo mais
esconder e parar de pensar em Belinda.
O resquício daquele beijo, que cheguei a levá-la para a minha cama,
ainda está na minha mente. Foi uma merda ter jogado por água abaixo
quando abri minha boca. Só que agora, dessa vez, não há nada no mundo que
me faça parar.
Tomo as rédeas da situação e pego seu rosto, reivindicando sua boca
para mim sem mais hesitação. Fecho os olhos e me concentro nela.
Droga. Eu sei que minhas palavras foram duras demais, mas não posso
mentir e prometer para ela nada. É real meu medo da vida e confiar
novamente em sentimentos, relacionamentos, sejam eles quaisquer.
Já fui estilhaçado, quebrado, traído e arruinado. Nenhum ser humano que
passou pelo que passei pensa em querer ter de volta todas as sensações de
uma amizade ou paixão iminente, de nenhum relacionamento seja ele qual
for. É por isso que nunca arranjei nenhum amigo novo nesses seis anos.
Henry veio por circunstâncias porque talvez ele também precisasse de um
amigo. Minhas amizades pararam no mesmo momento que a minha vida.
Parou quando desisti de tudo. É como se eu tivesse parado o relógio, então
Belinda apareceu e não posso mentir em dizer que ela não me conquistou.
Eu disse para Lydia que vir para Hampton me fez ver as coisas com
clareza e pensar na minha vida, mas eu já estava fazendo isso desde o
momento que Belinda apareceu na minha porta.
Ela me transformou completamente e por isso que estou aqui a beijando
e querendo mais, porque é um fato que preciso de mais. Que ela de alguma
forma me faz ficar melhor. Não posso negar.
Sua inocência, até mesmo seus conselhos sem freio e limite, sua boca
grande e a curiosidade em mexer em tudo, me faz querer mais. Mesmo que
seja um risco, estou apostando todas as minhas fichas nas sensações que ela
me faz sentir. Mesmo as ruins porque é como curar um machucado. De vez
em quando arde curar uma ferida.
Querer eu não quero mesmo um relacionamento, porém talvez nós
possamos dar certo. Talvez possamos aproveitar essa química que é inegável
para, enfim, acabar com essa atração que sentimos alguma hora. E essa
atração não faz pouco tempo. Tentei negar o máximo, agora não dá mais.
Santa merda! Não pensei que trazer ela para cá fosse causar o que
estamos fazendo agora. Não imaginei que a noite de hoje terminasse assim.
Contudo, não tenho como frear.
Minhas mãos correm por seus braços, acariciando sua pele enquanto
meu objetivo é guiar seu rosto para mim. Eu a quero mais perto.
Beijá-la é bom de muitas formas. Ela é doce e carinhosa, sensível e
disposta. E eu sou um homem que não tenho praticado sexo há seis anos. Me
sinto um pouco enferrujado. É meu corpo que está me guiando. O calor, a
ansiedade, o arrepio da minha pele e o desejo.
Levanto dos degraus da escada e tomo Belinda em meus braços. Enrosco
uma das minhas mãos em seus cabelos a beijando profundamente, com
fervor, e a outra, deslizo por suas costas até apalpar sua bunda.
Ela é pequena em meus braços. Quente e macia. Ela cabe perfeitamente
e aprecio isso. Suas mãos apertam os músculos dos meus bíceps sem mais
embaraço.
Meu corpo deseja mais. Gosto de sentir suas mãos em mim. Gosto do
seu cheiro. De escutar seus sons suaves. Ela é realmente doce e posso admitir
pelo menos para mim que preciso disso.
Acaricio-a, os braços, as costas, seus quadris. Belinda levanta mais o
rosto, empurra o corpo para mim e, por fim, envolve meu pescoço.
— Adam, eu... — ela sussurra meu nome quando brevemente nossos
lábios se afastam.
— Shhh... não diga nada.
Eu quero que fiquemos em silêncio. Quero que apenas nossos corpos
“falem” por nós.
E voltamos a enlouquecer nesse beijo, que ganha mais sentido, mais
intensidade e sem perceber estamos subindo as escadas. Entramos em casa,
não esqueço de fechar a porta.
Minhas mãos passam por suas curvas até a bainha do seu vestido, que
subo para fazê-la envolver as pernas em mim e sinto sua pele pela primeira
vez. A sensação é gigantesca de boa.
Não estava pronto para ficar contente com isso, com ela, e nunca vou
estar e sei o porquê. Eu tentei por muito tempo esperar essa dor passar.
Perdoar tudo o que aconteceu, me perdoar, mas nunca aconteceu. Nunca veio
o perdão. Nunca veio o alívio. Contudo, para dizer a verdade, só ela me faz
sentir mais calmo. Me faz dizer que “está okay”, “estando okay”. E tem
muito tempo que eu não faço isso. Me sinto “okay”. Me sinto em paz sem o
peso sobre minhas costas.
Nós continuamos a não dizer uma única palavra por enquanto, mas nos
afastamos, nos olhamos parados sem fôlego no meio da sala e quando vejo a
sombra de um sorriso em seu rosto, frenético, eu guio minha mão para trás da
sua cabeça e volto a beijá-la arduamente.
Suas mãos vagueiam por meus braços e ombros. Soltamos leves gemidos
arfantes. Estamos entregues, fixados o suficiente para subirmos para o quarto
sem prestar atenção direito no caminho.
E é neste momento que nos afastamos mais uma vez. No meio do meu
quarto, sem fôlego e cientes do que vai acontecer. Do que queremos.
Belinda abre a boca, porém fraquejando nas palavras apenas caminha
para mim e me agarra. Merda. Ela não se detém. Suas mãos tremendo
começam a abrir os botões da minha camisa e as minhas seguram sua cintura
aproximando-a de mim.
— O que é isso?
Abro os olhos, afasto meu rosto do seu ombro, enquanto salpico beijos
em sua pele, e encaro seus olhos que estão intensamente azuis. Franzo a testa
e demora um pouco para entender o que ela está admirando.
Belinda encara surpresa lentamente meu peitoral. Acho que descobrir
que eu tenho uma tatuagem é extraordinariamente inusitado, pois ela pisca
algumas vezes antes de erguer o rosto e fixar os olhos nos meus com um
sorriso tímido e ao mesmo tempo discreto.
Assim que vi meu mundo ruir e não encontrei solução para aliviar a dor
que sentia, entrei no estúdio de tatuagem na Broadway, que há muito tempo
conheci com Ian, e fiz um leão com uma juba rebelde, enorme, e um olho
rasgado. Sua aparência demonstra derrota após uma luta. Era como eu me
sentia, selvagem e com uma marca permanente do caos que vivi. Embora que
não seja honrosa como a de uma batalha.
— É, eu tenho uma tatuagem — digo curvando meu lábio para o lado
discretamente.
— Percebi — murmura e solta uma risadinha.
Não espero que ela diga mais nada. Curvo meu corpo para baixo,
acaricio meu nariz no dela enquanto seguro seu rosto, arrastando minhas
mãos do seu pescoço para o maxilar. Ela arfa, um suspiro excitante e
convidativo, que aceito colando nossos lábios.
Sinto suas mãos voltarem ao trabalho de tirar minha blusa, que é
empurrada dos meus ombros com calma e logo afagam meus braços enquanto
termina a tarefa jogando no chão a peça de roupa. Seus dedos me causam
calafrios passando por meu peitoral, e por minha vez desço as minhas do seu
rosto, passando por cada sentimento do seu corpo, cada curva, e alcanço mais
uma vez a bainha do vestido, que dessa vez procuro o zíper, deslizo com
lentidão até conseguir retirar a peça do seu corpo. Preciso me afastar para ver
seu corpo. Inferno! Ela está apenas de calcinha, e é toda linda. Pequena, pele
alva, que chega a brilhar, aroma doce em sua pele fresca e os cabelos lisos,
escorridos em suas costas e sobre os seios. Um retrato em 4D.
Não preciso estar tocando-a para notar que seu coração está acelerado e
ela está nervosa. Me aproximo, guio minha mão para os seus ombros e uma
das minhas mãos para sua nuca a fim de inclinar seu rosto e eu poder beijá-la.
E dessa vez ganha proporções gigantescas. Nossas peles nuas perto uma da
outra, o calor, o desejo crescendo e, sem pensar, agarro-a e a levo para a
cama.
Belinda fica no meio da cama me esperando e eu encaixo meu corpo no
dela. Nos abraçamos e nos entregamos a paixão. Acaricio seu corpo, sentindo
o arrepio em sua pele e fecho os olhos quando suas mãos tocam meu rosto, se
demorando em minha barba.
— Acho que você gosta dela assim — murmuro descontraído beijando
seu pescoço e ombro.
— Uhum — concorda com um gemido, e é tudo que preciso.
Não lembro da última vez que me senti realmente feliz, tranquilo.
Levanto minha cabeça e nos encaramos. Não dizemos uma única palavra,
ainda. A ponta do seu dedo caminha da maçã do meu rosto, meu pescoço, a
curva do meu ombro e para no meu peito, sobre a tatuagem ela espalma a
mão.
Meu coração acelera e para não dizer nada precipitado, porque sei que
não tem nada a ver com o momento, tiro as últimas peças que nos impede de
ceder ao desejo, e finalmente nos unimos. Encaixados como um só.
Nos entregamos a forte química que temos e não há mais palavras, só
respiração, beijos, caricias. É uma noite de amor frenética. Sentir seu corpo,
seu calor, ouvir seus gemidos e saborear seu sabor. Santo Inferno! Está sendo
melhor do que imaginei.
Pronto, calço meus tênis e levanto da cadeira da mesa que fica no meu
quarto com meu notebook em cima e minha máquina fotográfica. Por
segundos penso em aproveitar a luz da manhã para registrar algo (sempre é
interessante às seis e meia da manhã). Por fim, a pego e coloco a alça no
pescoço.
Saindo do quarto e fechando a porta, aproveito para dar uma olhada em
Belinda. Ainda está do mesmo jeito. Dormindo de barriga para baixo
abraçada ao travesseiro, o rosto virado para a parede. Balanço a cabeça e dou
as costas, descendo as escadas em disparada. Querendo me afastar dos
pensamentos irritantes.
Como posso, depois de uma noite como a que eu tive ontem, estar tão
aborrecido. Irritado. Eu deveria estar relaxado, afinal me senti muito bem.
Sinceramente sem ser um babaca, estar com uma mulher depois de seis anos
é para se comemorar, não lamentar.
Troco a música para algo mais heavy metal e acelero o passo, correndo
pela rua. Hoje não quis correr pela praia. Sei muito bem que a probabilidade
de encontrar Lydia era grande. E não estou com ânimo para a alegria
contagiante de princesa da Disney dela.
Que saco! Não saí de casa para ficar pensando nesses problemas. Não
estou fugindo, apenas quero relaxar e parar de me castigar. Acho que a minha
vida é me castigar. Merda mil vezes. E já fiz isso durante seis anos, basta.
Está na hora de resolver as coisas, não remoer.
Encho meus pulmões com ar e me concentro na corrida.
Como se fosse de propósito vejo o prédio onde fiz minhas primeiras
fotografias profissionais. Era um trabalho para a faculdade e precisava
capturar imagens que tivessem algum significado. Naquela época eu gostava
de registrar coisas abstratas ou paisagens, principalmente o pôr do sol do alto
de um prédio, como um bom nova-iorquino que sou.
Como conheço o prédio muito bem, escolho entrar pela parte dos fundos,
onde não tem porteiro e quase ninguém usa. Subo depressa, correndo até o
topo. Ainda bem que encontro a porta aberta.
Parado no meio do terraço observo com certa nostalgia que aqui não
mudou nada. Limpo a caixa d'água cinza e uma cadeira de ferro, que deve ter
sido pintada mais de uma vez para continuar verde-escura. E vendo a cidade
do alto com o sol no alto, assinto pensativo. Continua tão bonito quanto há
seis anos.
Para ser mais exato, não tem seis anos que não venho para Hampton.
Acho que uns sete. O último ano antes do acidente, minha família chegou a
vir, mas eu não, nem Selena. Ela estava cursando o mestrado em arquitetura,
e como eu não fazia nada sem ela fiz companhia a ela. E fora que eu estava
muito focado em terminar minha faculdade de fotografia.
Depois do que parece que me acostumei com a festa, que deixei de ficar
deslumbrada e me sentindo desconfortável com a escolha da minha roupa (já
que todos, como sempre, estão muitíssimo bem-vestidos), concentro-me em
ajudar Adam.
Nós trabalhamos em silêncio, sem nenhuma conversa paralela. Nenhum
assunto a não ser que ele precisa de pilha, focar a luz em certo lugar, ou
carregar o fio de um lado para o outro. Nada além disso, e no fundo não estou
surpresa.
Sempre soube que seria assim (quero dizer; na minha mente fértil, é
claro), que Adam estaria em silêncio depois de nós sucumbir ao forte desejo e
química que sentimos.
Então, acordar sem ele do meu lado foi algo que, primeiro, preciso
confessar que jurava que ele fosse me colocar na minha cama ou dormir no
sofá, o mais longe de mim, mas acho que no fim não foi tão ruim. Não fiquei
nem um pouco surpresa.
Mas ele dormir do meu lado, na mesma cama e perceber isso, posso
imaginar. Ele despertar do meu lado, se dando conta da situação, do que
fizemos e logo pulando fora. E a melhor decisão, correr como se estivesse
fugindo do que houve. Fugindo de mim, fugindo da realidade. O que seja.
Não sei como vamos ficar depois disso.
Estamos monossilábicos e nos comportando como estranhos. Não sei se
eu devo esperar ele falar ou eu falo algo. Talvez não. Creio que não mesmo.
Já basta que eu iniciei ontem o beijo, o abraço e só então ele intensificou e
deu iniciou as carícias que nos levou para o quarto.
Mas foi bom. Foi um jogo de sedução muito excitante e gostoso. E nós
dois somos responsáveis e não devemos nos sentir culpados ou ressentidos.
Eu não sei o que está passando na cabeça dele. Na minha, só sei pensar que
foi maravilhoso. Eu não dormia com um homem há uns dois anos. Minha
vida não andou muito bem nos últimos anos, então... foi ótimo ontem e, para
dizer a verdade, sempre existiu essa energia magnética entre nós.
Primeiro despertou uma curiosidade muito irritante, que eu por vezes
não consegui controlar. Depois atração física e, lógico, a carência junto com a
solidão, e a solidariedade que acabou nos aproximando mais ainda. Não estou
dizendo que eu gosto dele por pena. É mais no sentido de que nós dois nos
sentimos sozinhos e precisamos de atenção e amor de outra forma que nossa
família nos dá, e até mesmo os amigos. No caso dele, pois eu diferente dele,
sou realmente de fato absolutamente sozinha.
Como ele mesmo diz, só eu consegui falar com ele colocando as coisas
em pratos limpos. Sem rodeio e mesmo machucando-o com as verdades, me
sinto orgulhosa de ter sido tão sincera. Era preciso, assim como também era
preciso alguém estar preocupado comigo de verdade.
Não quis pensar assim, mas eu sentia mesmo que precisava que alguém
se importasse comigo e quisesse me levar para resolver os meus problemas
carregando pela mão se fosse preciso.
E falando da minha vida para outras pessoas, ou não, me sinto feliz em
ter compartilhado tudo com Adam. Tanto que agora estou a passos de
começar a resolver esse problema.
Contudo, preciso confessar que estou morrendo de medo. Tenho medo
de que não seja algo simples, que vai me destruir de alguma forma e que eu
vá precisar de muito tempo para melhorar. Céus! Já tem muito tempo que
sinto essas dores.
É como uma rachadura numa casa velha. Enquanto era só uma sombra
numa parede, ela é inofensiva, mas aí ela vai se abrindo, se alastrando até
criar uma abertura e logo um buraco. Indo muito além... e destruindo a
estrutura do nível da casa. Rachando o chão partindo ao meio. Nesse ponto é
mais difícil consertar, mas não impossível.
É assim que eu me sinto em relação a essa dor. Passei tanto tempo
negando, tomando remédio em cima de remédio para aliviar. Fazendo todos
os tipos coisas malucas, tomando chás porque diziam que melhorava. Rezei,
fiz promessas malucas para Deus. Parei de comer isso, aquilo. Até que todas
essas tentativas começaram a atrapalhar minha vida, já que me sinto só há
tanto tempo.
Eu sei que nem todo mundo consegue compreender e aceitar o fato de eu
não pedir ajuda a minha mãe para fazer os exames e me manter nos trabalhos.
É mais complicado do que parece. Ninguém aceita uma garota se
contorcendo de dor, que de vez em quando precisa fazer uma pausa, sentar e
tomar remédio que a deixa sonolenta. Ou tem que faltar porque está quase
morrendo, então é isso. Eu prefiro trabalhar na casa de alguém limpando e
não me sinto menos valorizada. É digno como qualquer outro emprego.
Mas é claro que eu queria ser muito mais do que isso. Por muitas vezes
senti uma raiva incrível de como essa doença não apenas me fez curvar de
dor, para ela, como me fez curvar para a vida. Deixei de fazer tantas coisas
por conta disso. Tantos momentos e oportunidades deixados pra depois.
É isso. Me curvei para a vida. Deixei para lá, deixei para depois e nunca
resolvi essa doença, que não sei o que é, mas é uma doença. Ponto final.
Minha vida não é fácil desde o início, não lembro de um momento que
fui feliz e leve. Essas dores só pioraram tudo e veio na pior hora.
Quando minha mãe casou de novo, parecia que tudo ia ficar bem. Ledo
engano, porque tudo piorou quando Richard surgiu nas nossas vidas. Os
problemas dela com meu pai já me consumiam. Meu pai não foi o melhor
marido, mas aí eles se separaram e cada um seguiu sua vida, e eu não
demorei muito para entender que, na verdade, o problema é minha mãe. Ela
não sabe escolher marido, francamente.
Então, tive muitas dores de cabeça por conta do meu pai, meus irmãos,
filhos dele, e minha mãe tentando me convencer de que ele era terrível, mas
prestes a se casar com Richard. Difícil defender e escutá-la.
E falo assim porque minha mãe é minha única parente que realmente me
importo e amo. Me preocupo por sua felicidade, mas não a ponto de viver na
mesma casa que seu marido.
Adam teve uma desconfiança que se fosse real não seria tão pior quanto
a realidade. Porque assistir o que Richard fez ficou na minha memória: ver
meu padrasto agredindo minha mãe.
Eu não aguentava mais aquilo e muito menos a minha mãe deixando
para lá, fingindo que não estava acontecendo. De que era normal ele quebrar
a casa inteira quando ficava revoltado. Depois passou a beber e até mesmo
largar o trabalho. Ele falava para ela que quem tinha que trabalhar era ela, já
que a casa era dela. Era tanta coisa errada, mas tudo piorou quando ele
começou a bater de verdade nela e a me ameaçar. Até que me deu o primeiro
tapa, depois disso foi o fim. Eu praticamente assisti o iceberg chegar e não
desviei, esperei ele encostar em mim e se espatifar como se eu estivesse
congelada esperando acontecer.
Mas o que importa é que eu dei as costas para aquilo. Para aquele erro
que eu não tinha como consertar de jeito nenhum e fui morar com a minha
tia. Ela poderia ter se recusado, no entanto, me aceitou como se fosse minha
mãe.
Tia Mary foi melhor do que a minha mãe para mim no tempo que vivi
com ela, e é triste dizer isso. Ninguém quer que um parente, que não seja sua
mãe, seja melhor do que a própria fazendo a função de uma mãe. De verdade,
eu não queria que ninguém fosse melhor “mãe” que a minha, que sabe, tem
consciência de que é isso, os cuidados e responsabilidades, era ela que tinha
que fazer. Porém permitiu que essas preocupações comigo tenha sido
tomadas por outra pessoa que não seja ela.
É impossível quem passa por isso não se sentir frustrado, até renegado.
Fiquei pensando se não era eu que estava exigindo demais, que talvez eu
devesse me contentar pela aquela mãe que tinha.
Mas então eu encontrei um cara em ruínas, despedaçado, sem esperança,
se corroendo todos os dias por algo que não foi culpa dele, querendo me
ajudar sem obrigação alguma. No início tentou me expulsar, eu sei. Ainda
bem que se acostumou comigo e quando soube dos meus problemas,
estendeu a mão, e eu nem pedi.
E não tem não como ter algum sentimento por Adam. O primeiro deles é
gratidão, é claro. Depois carinho. Eu gosto muito de ver que ele sorri, brinca
e até faz piadas de vez em quando agora. Adoro saber que sou uma parcela
responsável de ele estar fazendo esse evento. Que todo mundo fica o
assistindo tirar fotos e conversar como se soubesse de tudo no mundo.
Gosto de saber que aquele Adam de antigamente está conseguindo
emergir diante da sombra. Claro que, às vezes consigo ver que ainda está
rachado. Eu vejo isso claramente quando as pessoas não estão olhando para
ele.
Mas ele disfarça muito bem. É educado com todos. Adam não esteve há
mais de seis anos em Hampton e todos falam com ele com a maior alegria do
mundo, como se ele fosse um jogador de futebol famoso ou um artista de
Hollywood. Alguém muito importante e talvez a gente não precisa ter uma
estatueta do Oscar ou ganhar milhões e ser conhecido no mundo inteiro para
as pessoas nos adorar. Às vezes basta a gente ser bom, autêntico e manter
nossa verdade, quem somos de verdade, para as pessoas gostarem de nós. Se
inspirar e sentir falta de nós.
Agora parece que a festa está no fim e por isso sento-me um pouco, mas
meus pensamentos não param e talvez eu esteja deixando transparecer em
meu rosto, pois Adam se aproxima franzindo a testa e pergunta:
— Você está bem?
— Sim, estou.
Ele faz um resmungo longo e se senta ao meu lado colocando a máquina
de retratos sobre a mesa.
— Você não parece que está bem.
Curvo a boca dando de ombros.
— Eu só estou pensando.
— E o que está atormentando você? — indaga, mas logo emenda como
um pedido de desculpas. — Se quiser falar estou aqui.
— Sei lá. — Dou de ombros e desvio meus olhos dele. — Eu fiquei
tantos anos sentindo essas dores e depois da última vez que eu fui no médico
e teve algumas suspeitas do que seria, que eu não dei continuidade e tantas
coisas aconteceram uma atrás da outra, fui deixando para depois. E agora...
que — prendo a respiração e solto de uma vez, encarando o chão. — Agora
que eu tenho uma chance de fazer os exames, estou com medo.
— Medo por quê?
— De ser algo grave. — Encaro-o. — Tenho medo de... Não sei.
Sinceramente, não sei o que esperar e têm possibilidades que assustam. Poxa,
eu demorei tanto tempo procurar essa ajuda e agora fico receosa de achar que
é tarde demais.
— Se você está viva ainda não é tarde demais, Belinda — diz com
tranquilidade e confiança.
— Eu sei disso. Só que... de qualquer forma é preocupante. Imagina se
você sentisse uma dor durante anos e ela basicamente consumisse sua vida e
aí quando você está na porta, do que pode parecer uma futura solução, como
você se sentiria? Será que não sentiria pressionado e preocupado mesmo
antes de saber se é algo pequeno ou grande. Se é muito grave ou não. —
Movo os ombros.
— No fundo não importa o que seja. — Adam coloca a mão sobre a
minha e aperta. — Nós vamos resolver isso e você vai ficar bem. Não fica
pensando essas coisas. Eu sei que é um pouco inevitável. Todo mundo fica
preocupado com a saúde, principalmente quando já se tem uma preocupação
por via das dores e tudo mais, porém você não tem que ficar pensando isso.
Seja positiva. Vai dar tudo certo independente do que seja diagnosticado a
gente resolve isso.
— Eu espero que seja assim tão fácil.
— Não, não é tão fácil, mas também não é impossível.
— Tá bom. — Finjo um sorriso.
— Olha, vamos combinar uma coisa. Você vai ficar mais calma sobre
isso tudo.
— Posso apenas prometer tentar.
Ele assente e abre um sorriso para.
— Certo. Acho que assim é melhor. — Levanta e pega a máquina. — Eu
vou tirar mais algumas fotos e vamos pra casa. Tudo bem?
Levanto-me junto com ele, mas sou detida com sua mão no meu ombro.
Adam balança a cabeça negativamente e diz:
— Não. Pode ficar aqui. Agora é coisa simples, eu já acabei.
— Se você está dizendo.
Ele assente e abre um sorriso fofo.
— Você gostou de fazer esse evento? Porque parece que sim.
— Foi bom pra colocar a máquina em prática e ver se eu ainda tenho
uma boa visão — responde limpando a lente da máquina fotográfica. — Eu
nunca fui de fazer fotos assim, sou mais de fotos abstratas e algumas que
sejam externas, mas eu fazia eventos assim. São legais e distrai a mente.
— É, parece que você gostou de vir.
— Acho que sim.
— Que bom e não é tão difícil assim acompanhar. Você não é um chefe
chato.
— Eu não sou seu chefe.
— Tudo bem — digo assentindo, o nervosismo toma conta de mim só
por causa do seu sorriso.
— Okay, agora eu vou lá e você fica aqui. E pode fazer um favor para
mim?
— O que você quer?
— Pega algo para comer e beber. Estou nessa festa inteira com o
estômago vazio.
— Tá, é claro. Quando você voltar daqui a pouco vai estar aqui na mesa.
— Certo, obrigado e pega para você também.
Ele assente e com uma piscadela, se afasta e eu me jogo na cadeira,
sentando e pensando que esse Adam não é o Adam que comeu cereal na
minha frente e não ofereceu. Esse é o Adam que todo mundo elogia e fala
que sente falta.
Sabe quando estamos tentando não pensar num assunto, só que o assunto
está bem na nossa cara. É isso aí. Estou tentando não racionalizar que em
poucas horas vou fazer os exames.
Eu parecia tão confiante no almoço de domingo, e só bastou um dia para
toda aquela certeza enfraquecer, mesmo que Adam tenha sido algo perto de
maravilhoso comigo depois do almoço de ontem e hoje, eu não consegui
dormir direito.
— Está pensando demais — Adam diz sentado do meu lado na sala de
espera do hospital.
Estamos esperando a mãe de Lydia, a Dra. Sarah Bennett me chamar. Eu
a conheci há pouco, logo que chegamos ao hospital, mas vou conhecê-la
melhor em breve, e ela a mim. Inclusive, todas as partes de mim.
Pisco algumas vezes e o encaro.
— Estou só... rezando.
Adam cerra os olhos e curva a boca para o lado, num sorriso fofo. Ah,
fala sério. Ele está querendo o quê comigo?!
— Está me olhando assim por quê?
— Nada — respondo rápido demais e isso parece uma mentira.
— Você não sabe mentir.
— Belinda Biacho — diz a enfermeira bem na hora que eu precisava de
ajuda.
“Obrigada”, penso com um sorriso ao levantar e entrar na sala, antes dou
uma olhada em Adam.
— Vai dar tudo certo.
Assinto engolindo em seco.
— Estarei esperando aqui, okay.
— Tá.
DEZESSEIS
DIAMONDS | RIHANNA
Eu não posso imaginar o que Belinda está pensando e há três dias tudo
que ela faz é dormir. Está trancada no quarto desde a terça-feira, assim que
chegamos da consulta com a Doutora Bennett.
Não sei como prosseguir. O que fazer. Queria ser útil e ajudá-la de
alguma forma. Não sei se forço ela a sair um pouco do seu casulo, tomar um
banho e se distrair. Ou se a deixo sentir um pouco a dor. Merda! O pior é que
ela nem sabe de todo o resultado e já está desse jeito. Eu fico realmente
preocupado com ela já estar assim.
Me sinto perdido porque também estou preocupado. Quase não preguei
os olhos esses dias por ter que vê-la tão triste e saber do que pode ser. Tive
até pesadelo. Estou torcendo para que tudo se resolva com um tratamento
rápido e fácil. Que a alternativa seja a que a faça sofrer menos. Ela não
merece passar por mais desgostos. Já não basta ter uma família que nem liga
para saber como ela está. Quinta-feira faz uma semana que ela está fora de
Nova York, longe da mãe, e a mulher nem ligou para saber da filha. Sei que
isso a deixa muito triste e deprimida. Sei lá. Se não fosse por mim, Belinda
estaria completamente sozinha.
Sacudo a cabeça, termino o café que estava tomando e pego a bandeja de
café da manhã que eu fiz. Subo para o quarto, paro na porta e dou dois toques
antes de entrar.
A encontro encolhida no canto da cama abraçada a um travesseiro.
Parece tão frágil e triste. Odeio vê-la desse jeito.
Apoio a bandeja no criado-mudo do outro lado de onde ela está virada, e
me sento na ponta da cama.
Sinto-a retrair o corpo, sinal de que está acordada ou ressonando.
Um pouco relutante, estico minha mão até seus cabelos e os afago
suavemente. Escuto-a soltar um suspiro baixinho antes de abrir os olhos e se
virar para mim. Dá algumas piscadas e cerra os olhos.
— Oi — falo com calma. — Está se sentindo melhor?
Belinda puxa o ar com força e distraidamente, pega a minha mão e
começa a brincar com meus dedos. Contorna-os e depois entrelaça os seus
nos meus. E seu rosto fica sério, os olhos focados na frente, fitando o teto.
— Ei, está dormindo acordada? — brinco.
— Quem dera fosse isso — diz distraída e mexe os ombros sem vontade.
— E o que é?
Ela balança a cabeça, puxa o ar e segura, e assisto seus olhos ficarem
marejados quando finalmente resolve fazê-los encontrar os meus.
— Tive um pesadelo.
— Mas foi só isso. Um sonho.
Tiro uma mecha do seu cabelo da frente do seu rosto, chamando sua
atenção para minha mão novamente. Ela a pega, encosta no seu rosto e fecha
os olhos. Uma lágrima escapa bem suave, como se fosse um segredo, por
baixo das suas pálpebras. Isso me quebra.
— Estou sendo um hipócrita com você — digo baixo.
Belinda abre os olhos e franze a testa me encarando.
— Por que está dizendo isso?
— Porque durante anos eu me martirizei pelo que aconteceu. — Desvio
meus olhos dos dela. — No primeiro ano me entreguei à dor e
arrependimento. Não conseguia encontrar uma forma de viver com a culpa e
ausência. E agora estou aqui querendo arrancar de você — fito-a de volta —
algo que não fui capaz quando também sofri. Embora sejam circunstâncias
diferentes, não deixo de ser um babaca querendo fazer você levantar dessa
cama e tocar a vida como se nada estivesse diferente.
— Adam... — sua voz suave soa como música — escuta. — Ergue-se,
sentando na cama e ficando bem perto de mim, tanto que nossas mãos
continuam unidas. — Não é a mesma coisa.
— Eu sei que não é.
— Sei que você sabe.
— São completamente diferentes, mas você está sofrendo.
Baixa os olhos, piscando e respirando com dificuldade, talvez
procurando as palavras certas. Quando as encontra, seus olhos voltam para
mim com carinho.
— Sim, são situações diferentes sim. Eu não perdi ninguém e não é
como se eu fosse morrer.
— Não! Não é mesmo — falo rápido demais porque não quero que isso
aconteça de jeito nenhum. Não consigo nem imaginar.
— O que estou sentindo é medo. E é normal. Compreensível. Não é?
— Claro que sim, Belinda.
— O engraçado é que eu quis tanto saber o que é e agora que eu sei a
metade, quero esquecer porque não sei o que vai acontecer.
— O que vai acontecer é que vai dar tudo certo.
— E se não der?
Sinto uma pontada no peito.
— Nós podemos, por enquanto, não pensar nisso. Podemos apenas
absorver o que foi recomendado. Que é relaxar e viver. Deixa pra pensar
nisso na quinta-feira e... — seguro firme suas mãos — lembre-se: Não
importa o resultado, você precisa ser forte e corajosa, de outra forma, tudo
fica mais difícil. A fraqueza apenas nos leva para a perdição e você vai
vencer essa, Belinda.
Com lágrimas nos olhos, ela concorda com alguns acenos e se joga nos
meus braços, envolvendo-me num abraço forte. Engulo em seco e fecho os
olhos. Sou um mentiroso. Estou enlouquecendo pensando no que pode ser.
Merda! Não será apenas ela atropelada por esse trem que vem com a notícia
da quinta-feira.
Meu Deus, que seja algo simples. Algo curável e fácil. Não me dê mais
essa dor.
DEZESSETE
Fecho meus olhos e permito que o frio da maresia passe pelo meu corpo,
espalhando meus cabelos castanhos e preencha meus pulmões de ar com
gosto salgado. Deixo que o calor do sol me aqueça, atravessando a superfície
do meu casaco e até parece que atinge meu coração. Ouço as ondas se
quebrar na orla da praia, as gaivotas no fundo gritando.
Aproveito esse momento para não pensar. Apenas esquecer por um
segundo sequer que o meu coração dói. Dói mais que qualquer crise de dores
que já tive na vida. E eu já senti chegar no extremo, mas aquela dor estava a
um passo de um analgésico. Essa não posso fazer nada, só sentir.
Não! Para!
Eu preciso esquecer. Não lembrar as palavras da Dra. Bennett. Sendo
honesta, nem sei se entendi tudo, porque quando ela disse aquelas palavras,
as primeiras palavras, o meu mundo simplesmente ruiu sobre meus pés.
Como se eu estivesse em pé sobre um chão lamacento, que descobri, de
repente, que era areia movediça. Ela está me engolindo lentamente, e no fim,
metade de mim já não existia, a outra, lutava com a consciência da verdade.
Como a rachadura em um copo de cristal chegando ao centro. Faltando
um milímetro para se espatifar. BUM! Virei cacos espalhados.
— Deus! — clamo abrindo os olhos e fitando o céu. — Estou prestes a
cair. Tudo está doendo e de uma forma...
Suspiro, sorvendo o ar com força e fecho os olhos, dessa vez acontece o
que estava em meus pensamentos. Caio no chão, ajoelhando-me na areia de
cabeça baixa.
Quando eu sentia aquelas dores, eu podia até apalpar, mas o que eu sinto
agora é oco, inexistente, abstrato. É o pior tipo de dor que existe. Eu queria
que fosse um sonho, melhor um pesadelo terrível, no entanto, não. É de
verdade.
As primeiras lágrimas começam a aquecer sob minhas pálpebras, e abro
os olhos e admiro o oceano. Sua beleza, ambiguidade de vida, sua imensidão
e respiro fundo. Minhas mãos automaticamente vão para frente da minha
barriga em direção ao meu ventre.
Procuro a paz dentro de mim para pensar com clareza. Quando a gente
está prestes a desmoronar, o ideal é manter o equilíbrio e a paz. Está difícil,
só que preciso ser forte, não é o fim.
O problema é que não paro de pensar numa coisa. Eu sempre nutri uma
vontade de ser mãe, nem todas as mulheres têm esse grande desejo e querem
essa missão na vida. Contudo, já tem outras que ser mãe é mais do que uma
dádiva, é o presente mais imensurável que a vida pode dar.
Sei que ser mãe traz grandes responsabilidades e talvez eu nutria a
vontade dentro de mim de ser mãe para ver se podia ser melhor do que a
minha foi para mim. Porque no fundo sentia um vazio, ausência do cuidado
de uma mãe. A minha nunca foi boa ao ponto de eu querê-la como exemplo.
Cerro o maxilar com desgosto só de pensar nisso. O único tipo de exemplo
que eu tenho dela é: como não ser uma mãe como ela.
Caramba, ela de fato não se importa com a filha, acredito que com todos
nós (eu e meus irmãos). Célia sabe que vivo com essa dor há mais ou menos
dois anos e nunca prontificou nada, absolutamente nada e muito menos se
preocupou. Exemplo, antes de vir para Hampton falei com ela, recebi um
simples “boa viagem”. E no dia que descobri que iria fazer os exames mandei
uma mensagem para ela, que ainda não foi visualizada. Ou seja, ela pouco se
importa. Sério, não sei o que tem na cabeça dela, e agora que eu sei o que
tenho não penso por um minuto em ligar e contar para ela. Vou contar com
quem já está ao meu lado: Adam. E eu sei que ele detesta o que ela faz
comigo. Sua total e completa ignorância. Silêncio.
Ele não diz em voz alta o que sente sobre isso, no entanto, me questiona
sempre que pode quando surge uma brecha para fazer a pergunta. Ele não
está errado, eu sei.
É uma droga. Não dei sorte com pai e mãe como Adam Stella, muito
menos nos pais substitutos. Meu padrasto foi um pesadelo vivo e eu nunca
tive contato com a nova mulher do meu pai. Acho que a única sorte que tive
em questão de família foi minha tia, mas ela não poderia me dar mais do que
me deu. Ela mal consegue sobreviver com o que tem e mesmo assim, foi
incrível para mim enquanto morei na sua casa. Pequena em tamanho, grande
em aconchego.
Agora, eu que sempre sonhei em ser mãe, e com certeza iria ser incrível.
Um soluço é cortado e imagens de mulheres grávidas, roupinhas de bebê e
tudo relacionado a este laço único e eterno, vem à minha mente acompanhado
a um choro fraco.
Nunca vou poder gerar uma vida, nunca vou poder sentir a sensação do
corpo se transformando. De um bebê se mexendo e se comunicando dentro de
mim. O nervosismo, o medo, as incertezas. Nada! Nada disso vou ter, na
verdade, eu nem sei se vou...
Freio meus pensamentos levantando meu rosto e ficando de pé e logo
encarando o céu. Eu não quero que Deus me dê uma justificativa. Sempre fui
muito coerente em uma questão: de que tudo na vida acontece porque tem
que acontecer. Apenas tenho que aceitar o resultado.
Talvez eu estivesse sentindo, por isso que estava com tanto medo. Meu
Deus, sinto como se tivesse descoberto a história de outra pessoa, que o que
eu sei não é sobre mim. As palavras da médica ficam rondando minha
cabeça. Eu não consigo acreditar. Pior de tudo, é que o que estou sentindo é
muito mais que medo. Estou preocupada com o que vai acontecer daqui pra
frente.
É, vou ter que aguentar as consequências, fazer a cirurgia, passar pelo
tratamento e ficar em observação. Tentar viver. O problema é que fico
pensando nele.
Eu não queria, nunca planejei, me apaixonar por Adam. Nunca senti o
que sinto por ele e eu me sinto terrível em ter que dar uma notícia ruim. Fazê-
lo sofrer, passar por algo ruim de novo.
Antes eu queria resolver essas dores porque não aguentava mais, agora
quero sobreviver a essa doença porque não posso fazer Adam se arruinar
novamente. Ele não merece.
Hoje mais cedo, parecia que eu sabia de tudo, absolutamente tudo, tanto
que nem deixei Adam entrar na consulta comigo. Mesmo que ele fosse me
dar coragem, preferi que me esperasse do lado de fora e agora vou ter que ir
falar com ele. Bem, não é o que estou fazendo. Na verdade, estou fugindo,
pois não sei se vou suportar dar essa notícia para ele.
Droga! Droga! Droga!
Foi tão difícil trazê-lo de volta à vida. voltar a querer sair, viver, ser
legal. Volta a ser o cara que todos falaram que ele era. Meu coração dói por
saber como ele vai lidar com isso.
Ah, Deus! Me dê forças para não amarelar. Para não falhar e viver. Viver
ao lado dele. É uma verdade, amo Adam e não porque dormimos juntos e nos
beijamos. Não é sobre uma relação carnal, amo o homem que ele é. O filho,
amigo e protetor. O Adam Stella que me abraçou, confortando, durante meu
sono enquanto chorava e ele pensava que eu estava sonhando. Eu amo esse
cara com todo o meu coração.
Como se estivesse escutando meus pensamentos, e também porque deve
ter me procurado pela casa depois que saiu do carro, escuto-o me chamar.
Virando-me, o assisto correndo pela praia se aproximando. Quando chega na
minha frente, observa-me em silêncio, lendo meu rosto e corpo, enquanto
seus olhos sempre tão expressivos (até quando estão frios e bravos) estão
vazios. É o mesmo medo que eu sinto.
Meus olhos enchem d'água de novo e dou de ombros imitando um
sorriso amarelo, pois nem isso estou conseguindo fazer. Um sorriso falso de
verdade.
— Te procurei pela casa toda — Fala sério. — Até que te vi aqui.
Assinto e fito meus pés, meu All Star rosa sujo e úmido pela areia
molhada, assim como meus joelhos.
— O que está fazendo aqui sozinha? — Dá uma olhada no céu e volta-se
para mim. — Vai chover, vamos entrar.
— Já estou indo.
Adam franze o cenho, me olhando com desconfiança.
— Está tudo bem? — Dá um passo, ficando mais perto. — O que a
médica disse?
Sua voz parece estranha, fraca.
— Você saiu correndo assim que eu estacionei o carro e desculpa eu...
ter demorado. Fui atender minha mãe. — Engole em seco e eu assinto. — Ela
também quer saber o que a Dra. Bennett disse.
— Então ela descobriu que você está aqui e finalmente você atendeu ela.
— Forço minha voz a sair.
— Sim e eu precisava atendê-la. Ela não parava de ligar pro Vlad e não
era justo com ele.
— Eu sei. Está tudo bem com ela?
— Podemos não falar disso agora. Não é o importante.
— Tá.
— Você não parece que está bem. Está tão calma que eu nem reconheço
você. — Dá mais um passo. — Parece que está em choque.
Ele tem toda razão. Me sinto um robô congelado no lugar. Sem reação e
sensibilidade. É como se meus lábios se movimentassem sem coordenadas.
Sem ao menos sentir o que estou dizendo.
— É impressão sua. Eu... estou bem. Não se preocupe.
— Acho que a essa altura você sabe que é inútil falar para eu não me
preocupar com você. — Ergue as sobrancelhas, ressaltando sua opinião. — E
você acabou de vir de uma consulta importante. Acabou de receber o
resultado que estávamos esperando ansiosos a semana toda. Então, nem vem
me dizer que sua reação é menos do que preocupante.
Como eu posso dar as costas para alguém como este homem? Sem
perceber, ele me dá o que foi ausência na minha vida toda: atenção de
verdade.
E por isso meus olhos transbordam. O enxergo sob uma névoa de
lágrimas.
— Ei, Belinda. — Me puxa para si, abraçando-me bem apertado. —
Fique calma e fale comigo. Okay?
— Uhum — concordo com um murmuro.
Com delicadeza, me afasta. Deixa as mãos nos meus ombros, afagando
sem nem notar o carinho.
— Vai me dizer o que a médica descobriu?
Meu coração fica tão... tão pequeno. Olhando seus olhos, mergulho
naquele azul, que hoje me traz calma.
— Adam... — Minha garganta fecha, com um soluço preso.
— O quê? — Sua voz sai hesitante.
Engulo o choro, mas uma lágrima escapa e ele limpa.
— Não pode ser tão grave — Adam murmura inseguro. — Não é?
Mordo meu lábio inferior, prendendo o choro. E ele segura meu rosto,
obrigando-me a encarar seus olhos aflitos.
— Ah, não me olhe assim.
— Assim como?
— Como se o que eu fosse falar, não fosse importante pra você.
— E é — diz com toda certeza, assentindo e fitando dentro dos meus
olhos, dentro de mim. — Acredite em mim.
Fecho os olhos sentindo meu peito pequeno demais para suportar
tamanha dor. A voz da médica vem em minha mente e agora estou
arrependida de ele não estar comigo na consulta. Ter que falar em voz alta
tudo aquilo... ah, Deus!
Sempre tive orgulho do homem que sou. Das palavras, promessas, que
fiz e cumpri, e eu fui um grande mentiroso dizendo que estou sendo forte
com o resultado dos exames de Belinda.
Minha nossa! Eu quase senti meu coração sair de mim. Porra! Câncer?!
Um maldito câncer pode me tirar a luz que invadia minha casa, minha
vida. A pessoa que surgiu como um anjo no meu caminho e me trouxe de
volta.
MERDA! Não posso sentir raiva. Não tem um alguém para merecer
minha fúria. É apenas o destino pregando mais uma peça na minha vida.
Porque, no fundo, ninguém nasce quebrado, é a vida que faz o trabalho sujo.
Eu sempre soube que ela tinha um problema, porém não imaginei que
fosse um câncer. Um risco de morte.
Tentei negar, fugir e mentir para mim que o que estava acontecendo
comigo e Belinda era nada. Que não significava grandes coisas, que eu me
importava tanto com ela e seus sentimentos, sonhar com ela, me preocupar e
todos os temores que passou por meu corpo quando nos tocamos nus
(Belinda não sabe como foi minha total entrega naquela noite), não eram
nada.
Fecho os olhos e estico minha mão encontrando a sua. Ela está dormindo
profundamente desde ontem à tarde, não por vontade própria. Tive que lhe
dar um calmante. Nossa conversa na praia foi além de seu limite, o meu
também não posso negar. Não sei como não enlouqueci.
Para muitos parece que sou frio, sempre pareci, não tem nada a ver com
o que me aconteceu. Pobres mortais, mal sabem que dentro desse homem
sério habita um cara fraco e que se pergunta agora se se apaixonou tão rápido
pela garota porque sentia a iminência da sua ausência. Que amá-la foi meu
bote salva-vidas, da vida que estava desperdiçando.
Fecho os olhos e deixo todo o peso dessa angústia me tomar, se apoiar
em minhas costas e fazer-me deitar por breves segundos ao seu lado. Abro os
olhos e admiro seu pequeno nariz, a boca rosada e as pálpebras que agora
escondem o azul das suas irises. Olhos que enxergaram minha alma desde o
início e provavelmente viu algo que merecia ser resgatado.
Respiro fundo e, quando decido ficar na cama, sinto meu celular vibrar
no bolso e logo a melodia soar. Droga!
Levanto sem fazer movimentos bruscos, saio do quarto atendendo a
ligação e fecho a porta. Mal digo “alô” e minha mãe me bombardeia de
perguntas.
— Adam, por que não ligou ontem? — acusa-me e nem me deixa
responder. — Esperei a tarde e a noite toda sua ligação. Está tudo bem?
— Oi, mãe — falo com a voz irônica. — Não liguei ontem porque fiquei
ocupado.
— Belinda está bem? — Sinto a preocupação em sua voz.
— Não sei se a resposta certa é sim porque a verdade é que ela não está
bem. — Foco num ponto cego no chão e engulo em seco. — Ela pegou o
resultado ontem e... mãe... Será que estou fadado ao sofrimento?
— Adam, meu filho, não pense assim. Tenho fé de que ela vai ficar bem.
Assinto e desço, vou em direção à cozinha.
— Você já conversou com a médica?
— Vou hoje. Na verdade, daqui a pouco. Marquei um horário para
saber de tudo. — Passo a mão no rosto, tenso. — Sei lá. Talvez eu só
acredite quando ouvir da boca dela e não só isso. Quero saber tudo o que
pode ser feito.
Mamãe fica em silêncio por um longo tempo, quando fala sua voz está
emotiva:
— Você gosta dela, não é?
Concordo com um aceno primeiramente, e depois me lembro de que ela
não pode me ver e profano as palavras:
— Gosto muito. Belinda é meu bote salva-vidas. Você tanto quis e
conseguiu.
— O quê, querido?
— Me trazer de volta, mãe. Você lutou esses anos todos e agora me tem
de volta. O triste é que... estou passando por isso antes de tentar ser feliz de
novo. — Abro um sorriso amargo. — Quando colocou ela na minha casa
pensou que eu iria me apaixonar por ela?
Ela suspira do outro lado da linha. É! Essa ela não esperava ouvir de
mim agora.
— Na verdade, minha ideia era te dar uma amiga e alguém para te
ajudar a voltar a trabalhar. Não planejei vocês se envolverem. — Pausa e
posso imaginá-la sorrindo. — Mas estou feliz e estarei mais ainda quando
vocês voltarem daí bem. Essa menina merece todo o amor que podemos dar.
Cerro os olhos desconfiado e indago:
— Você sabia do padrasto dela?
— Bem — limpa a garganta —, eu passei a desconfiar quando Célia
apareceu com machucados no rosto duas vezes seguidas e logo me contou
que Belinda foi morar com a tia. Senti que tinha algo errado e procurei saber
o que aconteceu e a irmã de Célia me explicou tudo. O padrasto de Belinda
quebrava a casa, batia na mãe e uma vez bateu nela. Para a Belinda de
dezenove anos não era certo e ainda mais com a mãe o defendendo. Então,
ela simplesmente foi embora de casa e, francamente, Célia nunca foi uma
mãe atenciosa.
— Por que não lembro direito da Belinda aí em casa?
— Ela vinha aqui muito pouco. Praticamente a conhecia de vista. Passei
a saber mais dela quando foi morar com a tia e fiz amizade com Rose.
— Foi assim que descobriu que ela precisava de dinheiro para fazer os
exames?
— Sim e fiquei muito preocupada quando Rose me falou. E a minha
ideia era deixá-la na sua casa para te ajudar, filho. Juro que não estava
dando uma de cupido. Não sonhava com você se apaixonando de novo.
Assinto e cerro a mandíbula.
— Confesso que eu também não, mas aconteceu, fazer o quê?!
Ela solta uma risada.
— Não importa. Quero que você seja feliz e se Belinda faz você se sentir
bem, trate de fazê-la bem também e, se precisar de mim, é só ligar. E quando
voltar da consulta com a médica ligue para mim. Quero saber de tudo. —
Faz uma pausa rápida, deve ser para respirar, né. — Qual foi o resultado dos
exames?
— Câncer no ovário.
— Ah, meu Deus!
— Ela vai ter que tirar o esquerdo e parece que tem um problema no
direito. Vou saber melhor com a doutora Bennett e te ligo depois pra conta.
— Uhum. Tudo bem e qualquer coisa me ligue.
— Pode deixar, mãe.
Ela manda beijo, para mim e Belinda, e desliga. Ponho o celular sobre a
bancada da cozinha e apoio as mãos no mesmo, soltando o peso nos ombros e
a respiração. Lembro do que minha mãe disse e trago como uma droga: “Ela
merece todo amor que podemos dar”. “Principalmente o que nunca teve”,
completo mentalmente as palavras que faltaram para a minha mãe. Sim. Ela
merece todo amor do mundo.
Empurro a porta de casa e logo grito seu nome. Belinda não responde,
então presumo que ela ainda esteja dormindo.
Fui correr depois que conversei com a Dra. Bennett. Minha cabeça
estava muito cheia com toda a informação sobre o problema de Belinda. E
meu coração em um dilema se batia ou parava. Por isso, a solução que
encontrei foi correr numa tentativa de despejar minha energia.
São duas da tarde agora e consegui pegar o almoço no restaurante da
Mona. Deixo o embrulho na cozinha e subo para o quarto para ver como ela
está. A encontro no meio da cama coberta até a cabeça encolhida. Não sei por
que, mas tenho a sensação de que ela teve um pesadelo.
Desde que fomos ao hospital, ela passou a ter pesadelos muito fortes; e
após o resultado, ontem, essa noite foi difícil para ela. E eu sei muito bem
como é essa luta contra a imaginação perturbada, um coração angustiado.
Meus pesadelos após o acidente sempre foram muito reais; alguns revivi
o que passei e outros era bem pior. Eu acordava me sentindo vulnerável,
impotente e totalmente sem forças para fazer qualquer coisa a não ser chorar
como uma criança em posição fetal. Já sofri muito em silêncio e saber que
Belinda agora está passando por tal sofrimento, ou maior, me atormenta.
Preciso fazer algo para distraí-la. A médica disse que não vai adiantar em
nada ela ficar assim.
Sentando-me na beirada da cama, tiro a coberta de cima do seu rosto e
escuto-a apenas murmurar se mantendo tranquila em seu sono. Fito seu rosto
atentamente e percebo que abaixo dos olhos está um pouco úmido como se
ela tivesse chorado.
— Ei — a chamo baixo, despertando-a com toda a calma que posso
oferecer. Afago seu rosto, tirando o cabelo da frente, e acaricio-a até os
ombros.
Belinda pisca algumas vezes antes de soltar um resmungo e finalmente
abre os olhos. Atordoada olha para os cantos como se estivesse perdida, então
ela me vê e parece se acalmar.
— Está tudo bem? — indago para seus olhos distantes.
— Uhum — murmura baixinho. — Você saiu.
— Fui correr e aproveitei para comprar o almoço pra gente.
— Ah, tá.
Não sei por que, mas minha ausência fez um grande estrago no seu dia.
Não pensei que deixá-la permitiria ficar abalada. A minha vida é sempre
assim. Entre erros e tentativas de acerto.
— Quando estava correndo pensei que a gente podia passear um pouco
hoje. — Não vou contar para ela que conversei com a doutora Bennett.
— Passear?
— É — afirmo. — Conhecer os lugares de Hampton. Tenho certeza de
que você vai gostar. Tem muitos lugares aqui que são muito bonitos e que
não aparecem nos filmes que você falou naquele dia.
Solta uma risada baixa.
— Eu falei dos filmes porque era a única referência que tinha desse
lugar. Nunca pensei que iria conseguir sair de Nova York. Acho que eu só
conheço Nova Jersey porque fui morar lá com a minha tia. Fora isso, nunca...
teria oportunidade de sair do meu bairro.
— Bem, então nós temos que mudar isso. — Afago seu rosto. — Você
vai ficar boa logo logo e nós poderemos fazer uma viagem. Qual o lugar que
você mais gostaria de ir?
Sua reação é totalmente diferente do que poderia imaginar que fosse
tomar. Seus olhos ficam marejados e num rompante, que me deixa confuso,
senta-se na cama e vem me abraçar. Envolvo seu corpo bem junto de mim e
fecho os olhos, respirando fundo para sorver o seu cheiro de lavanda. Esse
cheiro que comecei a ficar hipnotizado desde a festa de Natal. Eu só não
conseguia identificar antes. É seu xampu.
Saio do devaneio, por causa do seu cheiro e apreciação do seu abraço,
para preocupação quando seu corpo sacode conforme chora.
— Ei, não fica assim. — Acaricio suas costas, que por sinal estão nuas.
Ontem, quando nós viemos dormir, tomamos um banho quente e
cheiroso na banheira. E fiz questão de secá-la e ajudar a colocar uma roupa,
mas Belinda quis ficar apenas de calcinha e me pediu gentilmente para
abraçá-la enquanto dormia. Não consigo, nunca vou conseguir, esquecer suas
palavras. “Quero que hoje você seja a única coisa a me aquecer durante a
noite.” Ela me disse sussurrando e rompendo minha estrutura. Minha gentil
garota curiosa.
— Belinda, olha para mim.
Ela sai um pouco dos meus braços e limpa os olhos.
— Por que você está chorando assim?
— É porque... enquanto estou aqui morrendo de medo, você está fazendo
planos para gente e eu não sei... — Pausa respirando fundo. — Eu estava
vendo num seriado que, por mais que não seja uma cirurgia tão grave, tudo
pode acontecer, Adam e eu... — Ela não consegue terminar a frase, fica
engasgada com as lágrimas.
Carinhosamente pego o seu rosto em minhas mãos, traga-o para mim e
seus lábios. Beijo seu nariz, as bochechas e sobre suas pálpebras quando
fecha os olhos. Me afasto e fito seus lindos olhos azuis que antes eram tão
curiosos, me trazia uma espécie de aventura e hoje estão tristes, que me faz
querer arrancar todo esse mal de dentro dela. Infelizmente, não posso fazer
nada a não ser ficar do seu lado. Isso é tão pouco. Merda!
— É claro que estou fazendo planos. Você vai ficar boa e, por favor,
para de assistir esses seriados. Vamos lá, eles sempre são dramáticos
propositalmente. É pra gente ficar pensando nas consequências de não nos
cuidarmos. — Toco seu nariz de brincadeira. — Então para de pensar nisso.
— Trago suas mãos para cima e beijo cada uma delas. — Você já está se
cuidando, não é tarde demais e vai ficar boa, meu anjo. — Assinto e
pergunto: — Você sabe disso, não sabe?
— O quê? — Seus olhos ficam marejados novamente.
— Que você é um anjo na minha vida e só por isso é um motivo maior e
vários outros para que Deus faça ficar boa. Você é um anjo, uma pessoa boa e
generosa. E é desse tipo de pessoa que o mundo precisa. Entre o caos e a
tranquilidade o mundo se equilibra para manter a harmonia; embora pareça
confuso dizer isso, é a verdade desde que o mundo é mundo. Existe o certo
ou errado. Existe o bom e o mau. Existe o verdadeiro e o mentiroso. E, graças
a Deus, você está entre os bons e certos nesse mundo, então é por isso que
precisa ficar aqui e salvar pessoas como eu que não conseguem enxergar com
clareza que no equilíbrio da vida existem ganhos e perdas, mas que não é
pelas perdas que devemos desistir de ganhar mais um dia, de tentar outra vez
e quem sabe acertar.
— Adam — toca meu rosto —, você não é errado em nada. Você só
estava triste e se eu sou tudo isso que disse, se eu sou tudo isso para você, é
muito mais responsabilidade para deitar naquela mesa de cirurgia. — Respira
fundo. — Sei que não deveria falar isso, mas vim de uma família que não
soube me dar amor e nem atenção. Nós nos conhecemos em tão pouco tempo
e você já me deu muito mais do que já ganhei nesses vinte e cinco anos. —
Ajoelha-se na cama, ficando mais perto. — Eu prometo, Adam Stella, que
vou tentar ficar mais segura. Mas não posso prometer que vou deixar de ter
medo e chorar e sempre pensar no que pode acontecer, já que tudo na vida
não tem probabilidades de garantia certa.
— Tudo bem. Eu aceito e se você vai ser o duvidoso deixa eu ser o
confiante.
Concorda, chorando, sem emitir nenhum som.
— Porque para mim... — confesso olhando dentro dos seus olhos. —
Dentro de mim, você vai se sair muito bem. Vai ter uma recuperação muito
boa e eu vou estar do seu lado antes, durante e depois. E aí, depois que você
ficar cem por cento, nós podemos viajar e conhecer onde você quiser.
Ela concorda lentamente com a cabeça e molha os lábios com a língua e
continua movimentando a boca como se quisesse falar algo, mas no fim se
joga nos meus braços de novo. Me aperta bem forte, sussurrando em meu
ouvido:
— Eu nunca vou conseguir ser grata o suficiente pelo que você está
fazendo por mim.
Sorrio, um pouco mórbido, e digo o que estou sentindo:
— Fico triste de você não conseguir ver que fez mais por mim do que eu
estou fazendo por você agora.
Beijo seus cabelos e fecho os olhos para sentir o seu aroma, as fortes
batidas do seu coração acelerado, suas mãos nas minhas costas, acariciando
com timidez, como se estivesse descobrindo cada nuance do meu corpo.
— Eu não estaria aqui, agora, cuidando de você se não tivesse cuidado
de mim antes. E só posso confessar que — me afasto para olhar seus olhos
enquanto falo — não era o que eu imaginava. Que eu queria que acontecesse,
mas não posso fugir disso ou negar. Eu adoro muito você para fugir disso e a
gente sofrendo ou não. Com algumas lágrimas no caminho, eu vou estar do
seu lado porque você me fez voltar acreditar no amanhã. E sim, sou
eternamente grato por você na minha vida, Belinda.
— Adam — murmura o meu nome e meneia a cabeça procurando as
palavras, confusa e repleta de sentimentos em seus olhos, atos e lágrimas.
— Você é linda — digo o que meu coração sempre sente, o que meus
olhos veem e a minha boca não consegue controlar. — E não gosto de ver
você chorando e sofrendo. Assim você deixa uma sombra em sua beleza e
gosto de ver você linda de vestido vermelho e jogando Candy Crush do meu
lado no carro.
E solta um som suave, um sorrisinho descontraído. E sem que eu me
prepare, ela me puxa e caímos na cama.
Enfia seus dedos em meus cabelos, puxando minha cabeça para ela e
logo nossos lábios se unem num beijo ardente, apaixonado e emocionante.
Por todos os dias da minha vida, nunca imaginei sentir algo tão forte.
Mais forte até do que já senti uma vez na vida por outra pessoa. E volto a
pensar se o que estou sentindo, se estou me apaixonando tão perdidamente
por ela, é porque tenho medo de perdê-la ou simplesmente porque ela é o
resgate da minha existência. Eu não quero amá-la só por causa da doença ou
porque me ajudou. Porque me impediu de me afogar. Santo Inferno! Sei que
não é só por causa disso. Não é! Eu a amo por quem ela é.
— E eu te amo — murmuro entre nossos lábios sem pensar, sem sentir,
sem programar. As palavras saíram de mim por força maior. E já que eu falei,
foda-se! É a verdade.
Ela nos afasta, me encara com os olhos alarmados e decido dizer tudo:
— Belinda, você me fez abrir mão do medo de me apaixonar de novo.
De quebrar a cara; e depois de tal traição em minha vida... pensei que nunca
mais conseguiria amar alguém de novo e... eu não sei quando foi o momento
que comecei a gostar de você, a desejá-la e tampouco consegui perceber que
te amo. Porém, eu a amo e não tem nada a ver com o que pode acontecer. Me
apaixonei por você porque simplesmente...
Seus lábios tremem enquanto segura o choro.
— Porque é pura, gentil, linda e me faz tão bem. Adoro ter você ao meu
lado. Sua alegria, curiosidade e altruísmo.
Seus lindos olhos azuis brilham de alegria, embora não esconda o
espanto. Eu consigo lê-la muito bem e sei que o que disse a deixou feliz, mas
aflita. Eu entendo que talvez pense que eu apenas disse isso porque tenho
medo de que ela morra.
— E eu não te amo porque acho que você vai me deixar. A amo porque
você é você. Adoro quando você me toca. Todos os nervos do meu corpo
ficam em alerta, até mesmo quando segura a minha mão.
Ela chora mais um pouquinho, solta um soluço silencioso e, lentamente,
desliza suas mãos do meu rosto para o meu pescoço e espalma em meu peito.
Ela nota como meu coração está acelerado, na verdade desesperado. É assim
que me sinto sobre ela. Um amor desesperado.
— Também te amo e, quando a médica falou para mim o resultado, a
única pessoa que eu mais temia em ter que contar era você. — Acaricia meu
rosto, passando a mão lentamente na barba que não faço há quatro dias. —
Eu nunca mais quero que você sofra! Por nada nessa vida, porque eu sei que
no fundo esses seis anos que você jogou fora, foi porque não conseguiu fazer
mais do que assistir as pessoas que amava irem embora para sempre.
Concordo com um aceno. Finalmente alguém me entendeu. Ela sempre
me entendeu.
— Você é tão bom e generoso, Adam, e mal nota isso.
— Não. Não sou.
— É sim e é por isso que me apaixonei por você, não porque tenho medo
de morrer e também não sei quando comecei a sentir isso e nem quero tentar
adivinhar. — Estica o rosto e beija minha boca. — Só quero sentir o mais
forte possível todo esse sentimento. Ficar ao seu lado e sim, tudo bem. Nós
podemos fazer todas as viagens que você quiser. Eu prometo que... darei tudo
de mim para poder continuar com você... nessa vida.
Meu sorriso não é um simples sorriso de felicidade. É de alívio, gratidão
e fragilidade. Prefiro não falar mais nada, apenas beijá-la e fazer amor bem
lentamente. Amar a minha garota curiosa e agora corajosa. A minha doce
redenção.
DEZENOVE
É com muita relutância que levanto da cama, mas minha bexiga vai
estourar se não for agora ao banheiro. Eu conversei isso com a médica. Essa
forte pressão na bexiga para urinar às vezes. Meu Deus do céu! Chego a
congelar os movimentos quando estou assim. Entretanto, a médica me
tranquilizou. Disse que é normal eu ficar assim após beber uma quantidade
significativa de líquido, principalmente quando for água. Presumi que é coisa
da minha cabeça e, de certa forma, culpa minha. Não é influência do meu
problema.
Hoje o problema não foi esse. De madrugada quis levantar para ir ao
banheiro, mas os braços do Adam em minha volta estão bons demais para eu
me afastar. Rio com o pensamento bobo.
Estranho me sentir feliz com tudo o que está acontecendo, mas Adam,
ontem, me convenceu da melhor forma que poderia fazer (dizendo que está
apaixonado por mim e ficará ao meu lado): que preciso confiar. Então, estou
fazendo o que posso para não enlouquecer antes do tempo.
Saio do banheiro e o admiro deitado na cama. Está de barriga para baixo,
o rosto virado para mim, o travesseiro no chão e o lençol cobre suas pernas e
o bumbum. Ele é um homem lindo e é difícil não babar nele.
Quando eu pensei que conquistaria o ogro da casa suja?!
Pegando sua camisa do chão, visto-a e desço para preparar o café da
manhã para nós. Ontem resolvemos não sair. Depois que fizemos amor, por
um longo tempo, ficamos deitados e assistimos filmes. Um, inclusive, foi de
minha insistência. Adam não queria, pois o filme conta a história de uma
mulher que morre com câncer no útero. É lindo, triste e comovente.
Semelhante e é impossível não pensar em mim como ela e em Adam como o
noivo que ficou triste. Chorei de soluçar e fui obrigada a assistir depois uma
comédia idiota apenas para esquecer o filme anterior, que não esqueci nada.
Ele estava certo em não querer que eu veja tipos de filmes assim, mas
sempre gostei de dramas e não será agora que vou parar. Não será porque
minha vida é um romance dramático que deixarei de ler ou assistir “A culpa é
das estrelas”. Aliás, eu sempre tive a visão de que a vida de todo mundo é
uma terrível história de mau gosto sobre altos e baixos.
Acabo de aprontar os ovos mexidos, o bacon e as torradas. Limpo os
morangos e faço um café forte, no entanto pego o suco de laranja. Não estou
com cabeça para café.
— Bom dia — escuto ao pé do meu ouvido sendo abraçada por trás.
Sorrio e viro-me em seus braços. Trocamos um beijo rápido.
— Dormiu bem?
— Maravilhosamente — respondo. — E você?
Adam cerra os olhos e, ao invés de responder, me dá um selinho. E mais
um, mais outro e rindo nos beijamos. Meu coração feliz tamborila em meu
peito.
— Melhor seria se não tivesse assistido aquele filme de terror.
Dou uma gargalhada e me separo dele para sentar à mesa da cozinha. Ele
senta ao meu lado e enche a caneca de café.
— Você disse que era para eu esquecer o outro.
— Adiantou? — pergunta erguendo a sobrancelha direita.
Rio e balanço a cabeça.
— Mas é lindo o filme.
— Dramático e para você ruim. Querendo ou não, você ficou
impressionada.
Reviro os olhos pensando em assistir novamente. É de uma plataforma
de streaming. “Perfeita pra você.” A história é linda. Os protagonistas se
conhecem desde crianças e a forma da menina de dizer que queria ficar com o
menino foi dar uma mordida nele. Rio muito dessa parte em contraponto
quando ela morreu.
— Mas diferente deles, nós vamos ficar juntos. — Ele levanta a cabeça e
me encara. — Você mesmo disse.
— Humpf!
Rio dando de ombros e mordo um pedaço da torrada. É bom eu parar de
falar sobre morte perto dele. O assunto do irmão que morreu junto com a ex
não foi tocado novamente. Acho que Adam não superou de verdade. Portanto
falar de mortes e partidas perto dele não é bom.
“E de qualquer forma, vou ficar boa”, pondero com um sorrisinho de
lado. Sendo positiva.
Eu sempre fui uma mulher para frente e forte. Tive que aprender cedo a
ser independente e gritar pelas minhas próprias dores. Sem tempo para
frescura e isso me tornou um ser humano capaz até de ajudar Adam no seu
pior. Portanto, não será agora que serei uma boba medrosa.
BREATHE ME | SIA
Eu sabia que não seria algo muito simples e rápido. E já se passaram três
horas de operação e nenhuma resposta. Nenhum sinal da Dra. Bennett para
deixar a minha alma em paz. Caralho!
Pego o meu celular e mando uma mensagem para Harry. Ele queria ter
vindo para cá com Ava para dar apoio, mas escolhi ficar sozinho. Vlad
também se ofereceu a vir para Hampton, e de novo, descartei a ideia. Ele
precisa ficar em Nova York. Vlad cuida de tudo para mim quando viajo e,
claro, quando eu esqueci de viver. Minha mãe o chamava de anjo da guarda
ou o segundo mosqueteiro, já que Harry é o primeiro. O líder, com certeza.
Contudo, quando pensei que as ofertas de companhia tinham acabado,
eis que tenho Lydia Bennett. Ela chegou agora há pouco e sumiu pelas portas
duplas do hospital. Escutá-la falar além do volume recomendado dentro de
um hospital é engraçado. Trouxe um pouco de alívio para a minha alma
preocupada.
Ri vendo todos os enfermeiros e médicos a olhando feio, mas sem dizer
nada. A mãe dela é chefe, né?
Lydia é uma personagem de desenho animado gaiata, aventureira,
totalmente destemida e abusada. De qualquer forma, estamos na ala de
emergência e todo mundo faz muito barulho de vez em quando por aqui.
Acho desnecessário brigar com ela porque chega fazendo quase que uma
algazarra.
Eu fico reclamando que a Lydia é muito feliz, encantadora o tempo todo,
porém, não é de todo mal. Como uma princesa da Disney, ela deixa todos em
sua volta muito felizes e animados. Até mesmo estressado como uma
princesa da Disney faz.
E falando no diabo aparece Lydia Bennett segurando em uma mão a
bandeja com dois copos de café e na outra uma caixinha de Dunkin’ Donuts.
Eu não falo que ela é perfeita?!
— Trouxe de chocolate com caramelo, que você sempre gostou, mas não
sei se seu gosto mudou. Porém, fiz com as melhores intenções.
Faladeira. Ela é muito parecida com Ava, mais nova. É cômico o fato de
parecer que ela não mudou absolutamente nada dos dezesseis anos para os
vinte e oito.
— Está bom para mim.
— Hum... Sr. Rabugento. Tira essa cara amarrada e séria. Ela vai estar
saindo da operação linda e curada e pronta para viver essa vida louca.
Sorrio para o seu otimismo e aceito o café e sou obrigado a pegar um dos
donuts quando ela abre para mim, quase esfregando na minha cara.
— Eu só vou aceitar porque é gostoso e não porque você está me
obrigando. E, de qualquer forma, não comi nada hoje.
— Posso apostar um donuts de morango com meu cachorro que você,
além de não ter comido nada, também não dormiu e, pelo visual aí – que está
fúnebre –, que nem tomou banho. Acertei?
— Já foi à merda hoje?
Lydia solta uma gargalhada altamente proibida dentro de um hospital (a
não ser talvez na ala da maternidade) e dá uma mordida no seu donut
confeitado com confetes coloridos e glitter. Meu Deus, até nisso ela precisa
parecer ter saído de um desenho animado!
Assim que tomei a decisão e aceitei (escolher não é a palavra certa para
aquele dia) a data da operação, TUDO aconteceu rápido demais. Não sei se
era para eu ficar feliz ou não. Neste exato momento só sei sentir os resultados
da operação, e não estou falando das dores pós-operatórias. Falo do fato de
ter perdido o ovário esquerdo e as possíveis sequelas do direito.
Contudo, o Dr. Peterson – o cirurgião que me operou – disse que pode
ter a possibilidade de coletar meus óvulos, fecundá-los com o esperma e fazer
uma inseminação in vitro no meu útero, que tudo indica que está bom.
Ser mãe poderá ser mais complicado e nada de surpresas.
Ergo as sobrancelhas e pisco rápido reprimindo minhas reclamações que
vinham com lágrimas quentes e aborrecidas.
— Você queria o quê, sua tonta? Morrer ou perder tudo? Cala a boca!
— Oi? — A cabeça de Adam aparece na porta do quarto.
Sorrio para ele e o admiro enquanto entra e fecha a porta da suíte do
hospital. Foi graças a ele que estou tendo um atendimento desses. De
primeira linha. Sinto muita gratidão também por Lydia. Aquela doidinha é
minha fada madrinha.
— Estava gritando com quem? — pergunta sentando-se na ponta da
cama e me dá um beijo.
— Com meus pensamentos infelizes.
Solta uma risada, que eu adoro, e tira uma mecha de cabelo da frente do
meu rosto. Pretexto para me fazer um carinho.
Adam Stella é carinhoso também.
— O que eu vou fazer com esses pensamentos?
Abro um sorriso que, com certeza, me deixou feia. Aqueles sorrisos
ridículos que mostram a gengiva além dos dentes. Feio!
— Como está se sentindo? — muda de assunto e num gesto fofo ajeita
as cobertas sobre mim. O ar no hospital é muito gelado mesmo.
— Um pouco de dor, mas o sedativo ainda está valendo. A anestesia
podia ter durado mais do que durou — resmungo.
— Não concordo.
— Por quê?
— Porque eu queria confirmar com você se estava se sentindo bem e se
estivesse dormindo não conseguiria.
— Oh, que fofo! — Estico minha mão e faço um carinho no seu rosto.
— Por onde esse Adam fofinho estava, hein?
— Dormindo e sem anestesia tem alguma coisa a ver.
Dou uma risada e me arrependo. Sinto uma fisgada terrível no ventre e
fecho os olhos me concentrando para não gritar ou gemer alto.
Sinto-me irritadíssima, chata, enjoada, dolorida e inchada. Cheia de
espaço oco dentro de mim. Explicando de forma entendível – como fica o
médico –, é como estar cheia de gases, e não só na barriga. Em toda parte.
É estranho e, infelizmente, vou ter que aguentar isso mais ou menos duas
semanas, fora a menstruação que pode durar dois meses. Isso depende de
cada organismo, segundo o médico e o melhor enfermeiro do mundo. Adam
andou estudando sobre o caso e, sério, ele podia fazer medicina
tranquilamente.
— O que foi? — Adam pergunta alarmado.
— Uma fisgada. — Engulo em seco e sacudo a cabeça. — Já passou. E,
por favor, não me faça rir.
— Desculpe. Não foi minha intenção.
— Toc, toc! Atrapalho?
Viramos para a porta e vimos Christal e Greg.
— Mãe, você não disse que viria hoje. — Adam vai atendê-los. Dá um
abraço na mãe e aperta a mão do pai. — Chegaram há muito tempo?
— Acabamos de chegar. O carro está no estacionamento do hospital com
as malas. — A Sra. Stella explica vindo em minha direção. Contorna a cama,
ficando do outro lado onde Adam permanece, e abre um sorriso para mim. —
Como está, querida?
Paralisada, pareço assistir ela pegar minha mão e apertar com carinho.
Carinho de uma mãe. E a minha mãe nem ligou para mim. Acho que ela nem
sabe que operei. Ela é uma desnaturada. Tento não ter raiva pelo fato de ela
ter tido o dom de ser mãe e eu corro o risco de não ser. Que injustiça!
É, têm muitos casos assim. Mães que batem, mães que abandonam, mães
que abortam por simples vontade, mães que “abortam” e jogam o bebê no
lixo. Enquanto tem várias mulheres por aí querendo engravidar e lutando para
conseguir uma adoção. Sonhando em ter um filho.
Ah... Deus! Onde isso é justo? Quando penso nisso fico procurando o
equilíbrio que Adam fala sobre o mundo.
Aí meus olhos encontram os de Christal Stella e encontro o equilíbrio do
amor de mãe. É aquilo: uns com tantos e outros com tão pouco. Uma rosa
entre espinhos.
— Mais ou menos — lembro de respondê-la, afinal. — É assim mesmo.
Fizeram boa viagem?
— Sim — diz suave e troca um olhar com o filho rapidamente. — Você
vai ficar quanto tempo aqui?
— Provavelmente mais seis dias. O médico deu uma semana em
observação, apenas por praxe. Depois posso ficar em repouso em casa. As
dores não vão passar com facilidade.
— Oh, querida, é uma pena, mas o mais importante é que você agora
está saudável. As dores uma hora passa e, com certeza, logo você estará
gozando da vida.
Assinto agradecida. O senhor Greg, na ponta da cama, sorri e diz,
lembrando a esposa:
— A tia dela.
— Ah, sim. Rose ligou — comenta Christal. — Ela estava muito
preocupada com você. Ficou ligando direto para mim querendo saber se tinha
notícias suas durante a operação.
— Humpf!
Sinto o aperto no peito com saudades dela. Ela sim é minha mãe de
verdade. Viu, mãe é muito mais que gerar um filho. O meu medo é que para
adotar não é a oitava maravilha do mundo. Demora muito e o medo da
rejeição é enorme.
— Não se preocupe, eu já a tranquilizei e disse que estava vindo para ver
pessoalmente como está. — Sorri e se afasta. Abre a bolsa enorme vermelha
e tira um embrulho, me entregando. — Isso é um presente para você de boa
recuperação.
Ergo as sobrancelhas surpresa e pego o presente. É uma caixa de papelão
dura e dentro contém chocolates, trufas e doces delicados de uma loja de
chocolates muitos conhecida em Nova York.
— Uau! Eu adorei. — Fito os pais de Adam. — Muito obrigada mesmo
pelo carinho. Espero poder retribuir.
— Imagina — ele fala, e a esposa completa:
— Você já nos deixa feliz ficando boa, Belinda.
Rio assentindo, aceitando o agrado. Os doces e o carinho, é claro.
— Enfim, não queremos deixar você exausta. Precisa descansar. Não é,
querida? — Greg diz ficando ao lado da esposa e sorrindo.
— É, sim. — Christal pega minha mão e dá uns tapinhas incentivadores.
— Amanhã voltaremos, está bem.
— Vocês vão ficar em Hampton? — Adam pergunta.
Nossa, ele ficou tão quieto que achei que tinha saído do quarto!
— Vamos sim.
— Hoje é segunda e os trabalhos de vocês?
— Filho, seu coroa é aposentado e sua mãe é apenas a chefe da nossa
casa — provoca a esposa, que responde à altura:
— Que sem mim não seria o que é, inclusive você.
— Eu sei, amor. — Greg beija o rosto da Sra. Stella e fala para mim: —
Agora nós vamos. Precisamos levar as malas para casa e descansar um pouco
da viagem.
— Vão sim e não se preocupem.
Eles acenam que sim e me dão um beijo doce na testa como se fossem
meus pais. Ah... que fofos. Pais e filho se despedem e é só quando eles partem
que Adam se aproxima e senta na cama de volta.
— Qual o seu problema? — indago com a voz baixa.
— Nada. — Não olha em meus olhos. — Eu só acho que preciso
conversar com eles. Eu vim para cá pensando em melhorar. Mudar a minha
vida. O jeito que eu estava vivendo, minha mãe não sustentava mais. Tomei a
decisão de vir, sem avisar e agora eu me sinto bem de verdade, ao ponto de
conversar com eles e pedir desculpas.
— Adam — digo solidária ouvindo-o.
— É! Preciso ter uma conversa franca com meus pais e pedir perdão. Eu
sinto que sem querer os forcei a lidar com a perda de dois filhos e, embora
minha mãe tenha repetido mais vezes do que posso lembrar que não fui o
causador daquele acidente, eu a fiz sofrer com a minha culpa e ausência.
Ele pausa pensativo e ergue a cabeça, os olhos sem focar em nada.
— Quando eu penso nisso, me ponho no lugar deles, e sinto que preciso
dar um enorme pedido de desculpas porque, embora eu tenha sido um babaca
com eles — me encara —, meus pais sempre estiveram ao meu lado mesmo
ainda sofrendo por meu irmão. Humpf! Eles perderam o Ian, eu perdi o meu
irmão e a Ava também, e aquele garoto era um grande alicerce da nossa
família. — Seus olhos ficam marejados. — Fez uma falta tremenda e por isso
que eu não consegui lidar muito bem com a morte dele. Independente da
forma que tivesse acontecido, eu sei que não conseguiria ficar bem logo em
seguida.
— Entendo — murmuro.
— Eu amava meu irmão, Belinda — afirma com uma saudade palpável.
— Ele era meu melhor amigo e então eu o perdi sem poder me despedir ou
simplesmente escutá-lo. Fui covarde e fugi. — Morde o maxilar. — E sabe o
que eu peço hoje depois desses anos todos?
Não pergunto o que ele pensa, aperto sua mão dando apoio.
— Ian se importava tanto comigo que foi atrás de mim sem olhar pros
lados. Tenho certeza de que ele queria me pedir desculpas e explicar a
situação. — Inspira com força. — Infelizmente, eu nunca vou saber.
— Eu já disse para você não ficar pensando mais nisso. — Acaricio sua
mão em meu colo. — Eu sei que é difícil, Adam. Não posso mensurar o que
passou já que nunca sofri algo semelhante, porém acredito de verdade que
você precisa superar. E com certeza o seu irmão te amava e ainda te ama,
onde quer que esteja, e quer que você seja feliz. Que você se liberte dessa
culpa.
— Eu sei. — Meneia a cabeça concordando e fita meus olhos. — Ele iria
adorar você, assim como minha mãe. Sabe, eu perguntei a ela se foi de caso
pensado colocar você lá em casa.
— E o que ela disse?
— Que simplesmente queria ajudar você porque merecia ser feliz.
Meus olhos ficam marejados, os desvio rapidamente e balanço a cabeça.
— Sua mãe é uma pessoa muito boa. Que sorte que você a tem. Na
verdade, sua família toda é muito boa. Fico feliz por você.
— E eu também fico feliz por você, porque essa família também é sua.
— Entrelaça nossos dedos. — Não sei se você quer ficar ainda lá em casa
agora que está boa, mas eu gostaria.
— Adam... é claro que vamos ficar juntos. Eu disse que te amo e é
verdade. Eu não sei o que passou na sua cabeça enquanto eu estava operando,
mas nada mudou para mim. Ainda amo você e se você ainda me ama —
engulo em seco — ficaremos juntos.
— É claro que ainda te amo, Belinda. Você conquistou meu coração
sombrio em ruínas — diz sarcasticamente.
Solto uma risada e fecho os olhos quando ele beija meus lábios.
Queria poder fazer mais do que isso, mas a morfina que me deram não
me garante todas as minhas coordenações motoras. Mas eu amo a morfina,
afinal se não fosse ela eu estaria chorando de dor agora.
Já falei como está doendo tudo? Pareço um coco oco com formigas
dentro. Incomoda muito os gases, o mal-estar e a sonda.
— Acho que você precisa dormir um pouco agora. — Adam me dá outro
beijo de leve nos lábios e se afasta.
Ajeita de novo os lençóis sobre mim, afofa o meu travesseiro e, todo
lindo e elegante, vai até a janela e fecha as cortinas. Voltando para mim, não
consigo deixar de abrir um sorriso gigantesco para o seu rosto.
Agora eu posso dizer com todas as palavras que ele é lindo.
Não tem mais escuridão em seus olhos, nem as olheiras pela insônia
perturbada. Não tem mais a barba gigantesca desleixada e muito menos o
cabelo comprido embaraçado.
Agora este é definitivamente Adam Stella, o filho pródigo, o amigo
querido, o filho amado e meu namorado. Foi a primeira coisa que ouvi
quando estava acordando após a cirurgia.
Hoje é sexta-feira, seis dias que a Belinda operou e o médico achou que
não haveria mais necessidade da sua internação e a liberou, dando alta total.
Agora vamos nos consultar com um médico recomendado pelo Dr. Peterson
em Nova York.
— Está feliz de voltar para casa hoje? — pergunto para a minha garota
jogando Candy Crush no banco do carona do carro.
Ela está muito bonita usando um vestidinho rosa cheio de flores azuis e
lilás, presente de Lydia. É muito a cara dela um presente assim. E nas mãos,
Belinda segura um buquê de rosas cor-de-rosa de vários tons, que recebeu de
mim.
— É claro que estou feliz, mas ainda cheia de dor — resmunga. —
Provavelmente vou passar mais uma semana deitada na cama até passar esse
inferno. Como pode... eu passei tanto tempo com dor e agora vou ficar com
mais essa dor? Que droga, viu?!
Com a atenção no trânsito, comento:
— Mas o médico disse que vai durar mais ou menos mais duas semanas
ou três, e depois você não vai sentir mais nenhuma. Vamos pensar positivo.
Vejo-a de canto de olho revirar os olhos, soltando o ar pelo nariz, e uma
linha malcriada marcando sua boca.
— Eu estou pensando positivo! Yep! — Ergue o punho como uma líder
de torcida, porém desanimada.
— Humpf! — resmungo.
— Mas... — ela continua — é doloroso, chato e incômodo. É uma
mistura de tantas coisas juntas que dormir é a melhor opção. Contudo, se eu
dormir muito e meu estômago ficar vazio por tanto tempo forma mais gases.
Sinceramente... — faz um suspiro dramático — eu não sei o que faço.
— Você vai ficar deitadinha, bonitinha, porque assim gera menos
incômodo. Recomendação da Dra. Bennett, lembre-se disso.
— É... mas a doutora também disse que é importante eu caminhar e me
mexer um pouco. Até mesmo para os gases saírem.
— E só de vez em quando você dá uma voltinha na casa. É, acho que
você vai ter que dormir na sala.
— Aonde?
— Em Nova York.
— Quando a gente vai voltar?
— Depois de amanhã, junto com meus pais.
— Ah... Que horas?
— Não sei, amor — respondo exasperado com suas indagações sem
freio. Olho para ela e franzo a testa. — Talvez à tarde. Por que tanta
preocupação?
— Espero que a estrada não fique cheia no domingo. Não sei se vou
aguentar tanto tempo dentro de um carro sentindo dor.
— Não se preocupe, não vai estar cheia. Não é época de temporada.
Ninguém está viajando.
— Mmm... Estou com saudade do Vlad.
— Eu também estou sentindo falta de conversar com ele.
— Imagino. Você está aqui há dois meses. Se eu que apenas fiquei um
estou... Está com saudade de casa?
— Mais ou menos. Eu sou meio desprendido de achar que algum lugar é
o meu lar. Para mim onde está minha família é minha casa.
— Então... nesses seis anos, o que aquela casa suja lá de Nova Iorque foi
para você?
Para a sorte dela o semáforo fica vermelho, e eu respondo-a olhando nos
olhos:
— Um lugar para me esconder, com certeza.
Ela suspira, desvia o olhar rapidamente e saco os ombros abrindo um
sorriso.
— Que papo fúnebre, não é? — diz rindo.
— Nem é tanto. Hoje não mais. Quando lembro o que eu vivi, sei lá...
Foi só foi um tempo que eu passei e já acabou. — Estico minha mão e pego
a sua, entrelaço nossos dedos. — Agora eu estou feliz e apaixonado. O que é
muito bom.
Seu sorriso fica maior, os olhos brilhando.
— Meu Deus! Você sempre foi fofo assim ou... não sei. Acho que estou
com saudade do Adam barbudo e mal-humorado. O gentil que me dá rosas é
novidade demais para mim. — Dá uma gargalhada.
Levanto sua mão, trazendo para perto da minha boca, e beijo os nós dos
seus dedos, como sempre faço quando não tem como beijar sua boca.
— Eu não lembro uma época da minha vida que as pessoas não tenham
me elogiado por ser educado, gentil e amoroso. Eu sempre fui muito assim,
Belinda.
— Sério?
— Sim, estou falando sério. Eu sempre fui gentil com os meus pais,
meus avós e meus irmãos e... — travo lembrando de Selena. — Você sabe
quem.
Ela assente subindo a sobrancelha direita.
— Então — continuo —, quando eu fiquei rude daquele jeito e tão
sozinho, ninguém conseguia ficar perto de mim. As pessoas falavam que eu
tinha sido possuído por alguma coisa. — Rio recordando disso. — Enfim, só
foi uma fase e agora não sou mais assim e espero que você se acostume. E se
não, eu posso te dar uns foras de vez em quando.
— Não! — Bate brincando no meu peito, bem de leve. Não está com
muita força ainda. — Eu gosto de você assim. O Adam Stella de verdade.
— E antes eu era o quê?
— Adam, a Fera.
Caio na gargalhada e sigo o caminho de casa ouvindo a música Shallow,
de Lady Gaga, com Belinda acompanhando.
— Essa música tem um pouco a ver com a gente — pondera ela
cantando o refrão.
Cerrando os olhos presto atenção na letra, e ela tem razão. Não estamos
mais no raso agora. Não estamos mais correndo o risco de nos espatifar e
machucar.
Ter ficado tanto tempo fora de casa é fato de que ela estaria suja de
novo, mas não estava esperando o estado que realmente está. O pior é que
estou frustrada em não poder fazer nada.
— Você nem pensa em limpar essa casa. — Adam surge na sala de estar.
— Está me ouvindo.
Faço cara feia para ele e ajeito a manta em minhas pernas. Estou deitada
no sofá da sala em repouso, de novo, e o pior é que eu nem posso deixar de
repousar porque não quero. Acontece que simplesmente ainda sinto algumas
dores após oito dias e não posso carregar peso ou fazer esforço de jeito
nenhum. Portanto, repouso.
— Você já viu como essa casa está imunda? Como é que a gente vai
ficar assim desse jeito até eu ficar boa, Adam?
— Eu poderia limpar.
Cerro os olhos para ele, fitando-o bem séria.
— Como é que é? Eu sei que agora você é todo fofinho, legal,
apaixonado, humorado, maaas... agora você aprendeu a fazer stand-up? Deve
ser algum tipo de piada que você está contando.
— Não, meu amor. — Ele se aproxima, inclina o corpo até deixar o rosto
bem perto do meu e diz: — Estou falando sério. Eu poderia limpar a casa e
não tem problema algum nisso.
— Uhum — arrasto o som. — Se você sabe limpar a casa, por que que
ela ficava naquele estado? Sério, parecia que você era uma pessoa
disfuncional porque tinha teias de aranha com aranhas pela casa quando eu
cheguei.
Ele ri, mas faz cara de culpado.
— Eu sei. Eu sei... É que eu não ligava nem para mim, meu amor. Você
acha que eu ia limpar a casa? Você reparou bem meu estado quando chegou
aqui? Barbudo, cabeludo, sujo e desleixado.
— Roupas pretas com olheiras e de mau humor o tempo todo. Claro que
eu reparei.
Ele solta a sua gargalhada gostosa e segura meu rosto dando um beijo
em minha boca.
— E mesmo assim se apaixonou por mim.
— A verdade... é que eu reparei que você era bonitão no réveillon
quando tirou a barba. Fora isso, continuava espantoso. Aquela barba não
combina com você. — Acaricio suas bochechas. — Você tem um rosto tão
bonito que fica escondido nessa barba aqui, embora ela seja menor.
— Mas está bem menor e limpa.
— Eu prefiro quando está sem. Fica com cara de garoto levado.
Ele cerra os olhos sedutores.
— E assim eu fico com cara de quê?
— Mm... — Finjo pensar. — Hum... assanhado? Não sei. Quando você
se arruma, cerra os olhos e me olha com malícia fica até parecendo um galã
de filme de Hollywood.
Ele ri de novo e acaba se sentando na pontinha de sofá, já que não
sobrou muito espaço.
— Então, você quer que eu fique sem barba nenhuma para ficar com
cara de garotinho ou você quer que eu fique com barba para parecer um galã?
— Na verdade, a única coisa que eu quero mesmo é ver você sem roupa
de novo.
— Isso eu posso fazer agora.
— Ah... não teria graça. Não ia poder fazer nada mesmo. — Faço
beicinho.
— Quando puder, meu amor — ele murmura, a boca bem perto da
minha. — Eu vou tratar de fazê-la ver estrelas.
— Você sempre faz isso, principalmente quando olha dentro dos meus
olhos. E nem precisa estar sem roupa. Quando faz amor comigo, fitando-me
nos olhos, sorrindo e dizendo que me ama, eu vou até as estrelas.
— Eu também me sinto assim e é até um pouco bobo.
— Também acho, mas fazer o quê? Começo de namoro é assim mesmo.
— Pisco o olho.
— Eu vou tentar não fazer esse sentimento ser só no começo — ele
assegura. — Vou tentar resgatá-lo até o nosso futuro.
— Ai, que lindo! Eu te amo, meu Adam Stella!
— Também amo muito você, minha Belinda Biacho.
Estou olhando as fotos que Adam registrou enquanto estávamos em
Hampton. Encontro algumas minhas que ele fotografou sem eu nem perceber.
Algumas dos passeios que fizemos, outras estou dormindo, outras estou
distraída na praia pensativa. Uma dessas fotos eu até consigo lembrar o que
estava pensando. Estava com medo de morrer.
E tem algumas fotos minhas na festa que fizemos no sábado, assim que
cheguei. Isso me faz sentir ainda mais amada por ele.
Adam foi como descascar uma cebola com a casca dura. Me fez chorar
muito, mas consegui encontrar um diamante raro.
E pensando em raridade, dou uma olhada no corredor e finjo puxar o ar
com força, como se eu fosse um cachorro farejando e digo em voz alta para
ele me ouvir do segundo andar na casa:
— Parece que alguém está fazendo o serviço direitinho. Vai até ganhar
gorjeta.
— Então, eu vou merecer o real sentido da palavra gorjeta. A casa está
ficando um brinco! — ele berra descendo as escadas.
Solto uma risada tão forte que consigo soltar os malditos gases que
estavam presos. Ainda estou me sentindo muito mal.
Após, foco no meu namorado. Adam está vestindo uma bermuda de ficar
em casa, sem blusa e um avental rosinha que uso de vez em quando para
lavar a louça.
Sacudindo o espanador, ele vem andando até a mim fazendo uma cara
sexy.
— O que você acha? Estou pensando em sair assim para o Halloween.
— Acho que você vai ficar resfriado. — Há uma pontinha de ciúme
nessa declaração.
— É só por causa disso que você não vai querer que eu saia assim? —
Ele dá uma voltinha mostrando os seus braços fortes, as costas, o peito e os
ombros cobertos de músculos. Ele é lindo. Gastou toda sua energia nos
últimos anos na academia, isso sim.
— Claro que é. Estou pensando na sua saúde.
— Você não sabe mentir, sabia?
Meneio a mão, ignorando-o, e me sento no sofá para ele se sentar ao
meu lado. Logo me encaixo nos seus braços, deito minha cabeça no seu peito
e fecho os olhos.
— Vai demorar muito para você terminar?
— Por que a pergunta? — Ele afaga meus cabelos devagarinho. Eu
adoro quando faz isso.
— Porque eu queria você coladinho a mim para eu dormir como um
bebê.
— Acho que só falta agora a sala e o corredor daqui de baixo —
comenta.
— Eu queria poder te... — a campainha me interrompe.
Desvencilhando-se de mim, Adam vai até a porta. Escuto-o falando com
alguém, mas não identifico o que estão falando e com certeza quem é a
pessoa.
Logo, escuto quando ele fala: “Tudo bem, pode entrar. Ela está na sala”.
Em seguida surge de volta, abre um sorriso e se projeta para o lado, saindo da
frente da visita e eu descubro que é minha mãe.
— Mãe?
— Oi, querida. Finalmente consegui encontrar você. — Ela me pega
desprevenida quando vem rápido demais para cima de mim e me abraça
sentando-se ao meu lado. — Estava tão preocupada com você todos esses
dias sem notícia, Belinda. Por que não ligou para mim?
— A senhora está se sentindo bem? — questiono sem paciência. — Por
que eu não liguei para a senhora? Você não ligou para mim! Nunca. Isso é
algum tipo de brincadeira?
Ela se exalta e se afasta um pouco de mim.
Ótimo!
— O quê?
— Mãe, a senhora tem algum problema?
— Não, querida. Por que está falando isso? Por que está falando assim?
— Eu liguei para a senhora várias vezes desde que fui para Hampton.
Deixei recado na sua caixa postal já que não me atendeu.
— Oh, eu que não consigo atender a caixa postal e a senhorita vem me
dizer que...
— Pare! — Não permito que ela continue. Agora é a minha vez de falar:
— Estava preocupada comigo esses dias todos? Está dizendo agora que
queria me ver, ou seja lá o que você está tentando dizer. Francamente, eu não
acredito que está fazendo esse papel ridículo.
— Papel ridículo de quê, Belinda? E por que está falando assim comigo,
minha filha?
— Você está fazendo papel de mãe.
— Mas eu sou sua mãe. Olha como é que fala comigo, mocinha.
— Você é minha mãe? É, você é apenas a minha mãe e é só isso. Você é
a mãe que deixou o seu novo marido bater na sua filha e deixa ele bater em
você e destruir sua casa. E nunca se defendeu e ainda por cima fazia o
inverso, defendia aquele marginal, mau-caráter e vagabundo que não quer
trabalhar e não faz nada em casa.
— Por que tanto rancor? Não fale assim.
— Eu falo assim, sim. Passei o pão que o diabo amassou durante a maior
parte da minha vida e se não fosse a minha tia, eu ainda estaria sofrendo. E se
não fosse ela nem estaria aqui agora. — Meus olhos ficam marejados.
— Não venha dar os créditos para Rose de você estar trabalhando na
casa dos Stella.
— Mãe, eu só vim trabalhar aqui porque a titia falou com a Sra. Stella e
aí ela contou que eu estava precisando de um emprego urgente. E é sim por
causa da minha tia que estou aqui. Você os conhecia, mas isso não quer dizer
nada. Você nunca pensa em mim. Nunca pensou em mim, na verdade. Você
nunca pensa nos seus filhos e não pensastes com certeza no meu pai, senão
teria percebido os erros dele bem antes de tudo desmoronar. Teria impedido o
seu novo marido de destruir sua casa. Teria colocado o juízo na cabeça dele
para trabalhar, porque ele é bem grandinho. Tem muita saúde para trabalhar,
e lógico, que se fosse boa teria percebido a tempo o canalha que ele era e que,
em breve, você seria o saco de pancadas dele.
— Pare, Belinda! — só pede isso porque Adam está na sala, no canto,
observando, cuidando de mim de longe.
— A única coisa que você fez foi... nada. Continuou aturando ele e
apanhando daquele homem e ainda o defende, mesmo até — uma lágrimas
escorre — quando ele me deu um tapa no rosto. Você não fez nada!
— Não lembro disso.
— Lembra sim. Você estava vendo, sentada no chão, calada, ele gritando
comigo e depois acertar meu rosto.
De soslaio vejo Adam cerrar os punhos.
— Incrivelmente você deixou ele me bater... também. Não fez nada para
mim a vida toda. Portanto, não vem bancar a preocupada comigo. Porque
você nunca se preocupou com as minhas dores. Você parecia que nem me
enxergava e agora chega aqui sentimental? — falo mais calma. — Ah, pelo
amor de Deus!
— Dores? Do que você está falando?
Engulo em seco e fico sem reação. Vejo Adam se desencostar da parede
e sair da sala. Acho que ele não aguenta tanta hipocrisia.
— Estamos sozinhas agora. Pode falar o que quer comigo.
— Só saber como você está.
— Mãe, sério, não quero mais saber de você, porém eu ainda a amo
muito, pois aprendi a te amar e porque é minha mãe. Mas sabe de uma coisa,
muito triste por sinal. Eu percebi que mereço ser amada, que sou merecedora
de carinho, de amor, de afeto e aprendi isso de uma forma um pouco dolorosa
e, no fundo, eu não ligo. A única coisa que eu quero é que você me deixe um
pouco em paz. A sua ausência de atenção e cuidado comigo, já me causaram
muitos estragos. Você me fez acreditar que eu não merecia amor, porque
você não me deu. Eu nem sabia o que que era alguém me amar, embora
minha tia sempre tenha sido incrível comigo e nem sabia que o que ela fazia
para mim era o que você deveria fazer.
— Filha, depois que o seu pai...
— Não bote a culpa numa pessoa que não pode se defender. Ele não está
mais aqui entre nós e embora eu tenha ficado muito decepcionada quando ele
partiu, construindo outra família, dando as costas para mim, aquilo me doeu
tanto quanto você negligenciar o seu papel de mãe.
— Eu não fiz por...
— Qual é o seu problema, mãe? Eu, sinceramente, não quero saber
agora. Estou me recuperando ainda de tudo que me aconteceu e estou
tranquila. Preciso descansar.
— O que aconteceu com você?
— Mãe, a senhora poderia sair, por favor? Já deu.
— O quê?
— Eu estou lhe oferecendo com educação a porta de saída — Adam fala
com uma voz tão séria que me dá até medo.
Não é aquela voz sem emoção habitual que usava no início comigo, é
severa e sem brechas para argumentos. Ele está me defendendo, contra-
atacando.
De onde veio a camisa e o moletom?
Meus pensamentos interrompem quando minha mãe vira-se para Adam
colocando a mão no peito como se tivesse sido ofendida. Uma artista
encenando.
— Belinda, não quer mais falar com a senhora hoje — ele fala olhando-a
fixamente. — E está cansada e precisa repousar.
— Mas ela é minha filha.
— Maior de idade e tem o direito de não querer falar com a senhora
agora — rebate rapidamente. — Por favor, a deixe em paz. Quando ela se
sentir melhor, ela liga e vocês conversam. Não é, Belinda? — Olha para mim.
— É sim, mãe. — Ela vira para mim. — No momento eu preciso
repousar e ficar tranquila. Depois eu vejo se ligo para você.
— Por que está tão fria comigo? E por que está acatando as ordens dele?
— Primeiro que ele não está dando ordem nenhuma, e mesmo que fosse
eu não estou o obedecendo. Adam está me protegendo e ele sabe que a sua
presença neste momento está me machucando, então por ora só direi que
depois vejo se ligo para senhora.
— Mas...
— Vou reformular o que Adam disse. — Pauso para respirar. — Vai
embora e me deixe em paz.
Ela parece que foi atropelada. Não entende nada. Ou talvez sim e está se
fazendo de ofendida. Ofendida fico eu com sua falsa preocupação.
Infelizmente ela é desse jeito, e apenas sinto pena dela. Espero que minha
ausência a faça repensar seus atos. Vou sempre estar esperando-a de braços
abertos. Eu a amo. É minha mãe, né?
Atordoada Célia levanta e abraçando sua bolsa velha de couro
falsificado, caminha até a porta de cabeça baixa. Antes de sumir das minhas
vistas, me dá uma olhada parecendo um tanto arrependida.
A vida é assim (para a maioria das pessoas, pelo menos). Você sempre
colhe o que planta.
Adam volta assim que a leva até a porta, e senta ao meu lado. Ficamos
calados nos encarando e quando sinto um aperto no coração, me jogo em seus
braços. E ele me acolhe, afaga-me lentamente e beija meus cabelos.
— Talvez ela entenda o quão incrível você é e que precisava do carinho
dela.
Assinto, fungando.
— Não queria que fosse assim, mas eu precisava.
— Eu entendo, meu amor. Está tudo bem. Você não fez por mal. — Ele
me afasta, segura meu rosto com suas mãos e delicadamente limpa minhas
lágrimas com os polegares. — Você colocou pra fora anos de mágoas e
sentimentos reprimidos. Foi inspirador, viu? — Termina dando-me um
selinho.
Sorrio agradecida e prefiro não dizer nada. Peço sem palavras para
ficarmos mais perto, e Adam abre espaço para eu sentar em seu colo. Nos
aconchegamos no sofá quentinho. Fecho os olhos sentindo suas mãos me
acariciando. Uma nas costas, e a outra faz um caminho das nossas mãos
unidas até meu rosto, e muito delicado, ele beija meus lábios.
Suspiro e profundamente o beijo, não quero me soltar dele tão logo. E eu
disse à ele. É fácil estar nas estrelas.
VINTE & QUATRO
Ela, como tudo que fala, tem razão. Somos a segunda chance de nós
dois. E já vivemos muitos bons momentos até agora. Realizamos desejos,
como conhecer a África. Eu precisava ver com meus próprios olhos o que Ian
contou, e ele tinha razão. Mas como tudo no mundo mantém o equilíbrio (um
pouco distorcido, às vezes), vi também muita tristeza e os pontos sem luz
com sua beleza distinta. Ian era um sábio. Vovô dizia que ele era uma velha
alma.
Belinda e eu curtimos muito esses anos e tudo o que pudemos viver, mas
agora eu posso dizer que estamos prestes a viver uma nova experiência. Uma
que dá um frio na barriga.
Levanto minha cabeça e dou de cara com Harry. Ele está tão tranquilo
que me deixa puto.
— O que foi? — indaga meu cunhado e abre um sorriso neutro.
— Nada não, seu panaca.
— Você não deveria falar assim comigo — debocha.
Escolho a ignorância e olho para o lado. Vejo Belinda com a mão na
boca, os olhos vidrados para frente (sem focar em nada) e compulsivamente
sacudindo o pé. De repente, levanta, anda pra lá e pra cá. Pega uma
guloseima naquelas geladeiras que põe dinheiro, nem abre e já desiste de
comer. Olha para os lados e vira-se para mim.
— Deve ter acontecido alguma coisa e não querem me falar.
— Amor — digo, fingindo calma, e levanto ficando perto dela e
segurando seus ombros. — Não aconteceu nada. Vamos esperar.
— Você não está nem um pouco calmo, Adam.
Essa foi golpe baixo.
— É verdade, mas não estou como você. — Seguro suas mãos trêmulas.
— Já vão te chamar.
Mal termino a frase e a chamam:
— Belinda!
— O quê? — Minha esposa sai correndo até a enfermeira.
— Pode vir. Está na hora.
Belinda concorda com um aceno e fica parada. Congelou de medo.
Resignado, caminho até ela e a viro para mim. Seus lindos olhos azuis
me fitam cheios de pânico.
— Não precisa ficar assim. Vai lá e dê sua confiança e amor. Vou estar
esperando aqui.
— Queria que você visse — murmura com os olhos marejados.
— Eu vou ver, amor. — Coloco o cabelo atrás da sua orelha. — Agora
vai logo. Estão te esperando.
Ela assente repetidas vezes e fica na ponta dos pés, me dá um beijo e
segue a mulher que a chamou.
E é a minha vez de congelar no lugar. Fico parado olhando-a sumir entre
as portas francesas. Meus batimentos aceleram e sei que não sairei daqui até
ela voltar.
— É assim mesmo.
Olho meu cunhado, que veio para o meu lado.
— Respira fundo — diz apertando meu ombro.
— Por que você está tão calmo? Sério! — Harry me indigna.
— Costume, irmão — responde. — Agora vem sentar comigo ali. Ela
não vai voltar tão cedo.
— Tem certeza?
— Pelo menos meia hora.
Harry tinha razão, pois quarenta minutos depois Belinda surge na porta
me chamando. Eu a sigo pelo corredor sendo guiado pela emoção.
Minha esposa pede permissão e entra na sala. Antes preciso me limpar.
Ela se apronta na frente de onde está o que mais queríamos há dois anos.
Tentamos tanto, tanto, mas infelizmente ela não pôde engravidar. Quase
fomos à loucura. Só que Belinda é a Belinda e não desistiu. Procurou todos
os métodos prováveis para realizar nosso sonho e, embora tivemos todas as
condições de adotar, e pensamos nisso, ela viu a esperança em uma ideia
assustadora.
Numa noite chuvosa e abafada de novembro, batemos na porta da casa
de quem poderia realizar nosso pedido muitooo especial.
Uma vez Belinda disse que eu tinha sorte de ter a família que tenho, com
toda razão. Ava, minha irmã, não teve problemas para engravidar nas duas
vezes (sim, tenho dois sobrinhos hoje), e sabendo disso, minha esposa fez o
pedido:
E, hoje, neste exato momento, vejo Belinda pegando seu maior sonho
nos braços: nossa menininha. Me aproximo delas e inclino-me para ver a
nossa Hope (esperança). Ela está chorando, abrindo o berreiro. Gritando em
alto e bom som, e correndo o risco de acordar os coleguinhas do berçário,
onde estamos, que ela chegou ao mundo.
— Oi, filhota — murmuro pegando sua mãozinha.
Ela para de chorar e me encara. Seus enormes olhos azuis da cor dos
meus, escuros, e uma boquinha que logo forma um biquinho.
— Acho que ela vai ser igual a você — comento e viro-me para Belinda,
e a pego chorando.
Sorrindo e me sentindo diferente. Muito diferente. Não sei qual adjetivo
descreveria o que sinto. Talvez minha filha seja a palavra. Estou cheio de
esperanças. Passo meus braços pela cintura de Belinda, encaixando em seus
braços que protegem Hope e murmuro:
— Ela é sua.
Ela assente, engole em seco e suspira um reflexo de um soluço.
— É sim. É minha. — Dá um beijinho na testinha da neném. — Minha
Hope.
— Sim, nossa esperança.
Não tinha nome melhor. Esperança! Porque ela foi tudo que sempre
esteve em minha vida e sempre terá. A esperança é o símbolo da fé e nunca
devemos deixá-la morrer, não importa o quanto ganhamos, perdemos e
sofremos. Temos que “regar” nossa esperança para ela florescer. Eu irei, com
certeza, sempre estar com a minha esperança, em ambos os sentidos, e minha
Belinda.
NOTA DA AUTORA
Escrever "EM RUÍNAS" foi o livro mais difícil que eu fiz em toda a
minha carreira de escritora e, embora o início dele tenha vindo de uma forma
leve e descontraída, sempre foi meu intuito abordar um assunto que ficasse na
cabeça das pessoas e em seus corações. Só não pensei que no processo, eu
descobriria tantas histórias semelhantes à de Belinda e tão tristes, realmente
não imaginei que uma das minhas parceiras tivesse passado por algo
semelhante ao que Belinda passa no livro.
Isto partiu meu coração e ainda mais com outras histórias. Histórias com
um final não tão bonitos assim. Ainda bem que a Nane conseguiu resolver a
tempo esse assunto e eu também pude fazer algo importante para esclarecer
sobre doenças femininas.
No fundo, o que eu mais quero é que a mulherada que leu esse livro
tenha um incentivo a mais para cuidar da sua saúde, ficar atenta aos sinais
que toda doença nos dá, e não deixar para depois.
As piores coisas sempre acontecem na calada da noite, naquele dia, hora,
ou em qualquer momento, sempre no silêncio; e quando a gente descobre
acabamos rompendo essa quietude bem alto, gritando aos quatro ventos,
clamando por uma justificativa.
Então, não espere acontecer. Vai lá e faça por você mesma os cuidados
necessários com sua vida.
Cuidar da nossa saúde é a melhor forma de nos amar.
Espero que todos, sem exceção, que tenham lido este livro, guardem a
vida de Belinda em seus corações.
MUITO OBRIGADA
POR CHEGAR ATÉ AQUI.
Se quiser, deixe sua avaliação, ela é muito importante.
Até a próxima.
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