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Dias Ferpella
Copyright © 2009 Dias Ferpella
Todos os direitos reservados.
ISBN-13: 9798698997795
Primeira edição
2020
Alles gut zum Geburtstag.
3LW
PARTE I
I
E
la agarrou a mão dele sobre a mesa. Estava gelada.
- Uma horinha apenas, Lui, vai ser incrível e você nem vai
ver passar.
Ele gostava quando ela o chamava assim, a única pessoa no
mundo a chamá-lo assim. E aquilo trouxe um senso de segurança,
mesmo que por apenas um breve segundo, o tempo de se
pronunciar uma única sílaba.
- Está com medo? - sua fala trazia um tom quase de desafio,
como se de fato houvesse uma resposta certa para a pergunta.
Lucian apenas respirou fundo, segurando um sorriso nervoso.
- Quando eu era pequeno, uma vez eu e minha mãe ficamos
acordados até às sete horas. É sério! - ele se adiantou ao ver um
sorriso se formar nos olhos dela. Como ele adorava aqueles olhos,
um par de buracos negros, absorvendo toda a luz do restaurante
para si. Mas ao contrário de um buraco negro, eles devolviam tudo
para o mundo, ainda mais brilhante. Ou seria aquilo radiação e
não luz?
- Um dia ela leu pra mim um livro onde uma menina
encontrava uma estrela perdida no deserto. E eu ficava me
perguntando o que era uma estrela. Quando ela lia pra mim, eu
imaginava um tipo de animal.
- Estrela do mar é um animal, logo, você não estava totalmente
errado. - ela piscou um olho para ele.
- Obrigado. Minha mãe quis me mostrar o que era. O livro que
ela lia não tinha ilustrações, acho que era um livro de poesias, não
era coisa de criança. Claro que minha mãe poderia ter pegado uma
foto, ou simplesmente me explicado o que era. Mas ela queria me
mostrar, assim como o avô dela mostrou quando ela era ainda
mais nova do que eu na época.
- E imagino que o Sol não conta.
- Perto demais, perde todo o charme. - eles se divertiam e ele
pensou em segredo como ela era incrível por tentar distraí-lo,
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II
A
manda foi chamada pelo número da sua ficha, não pelo seu
nome. Isso aconteceu vários anos antes de seu caminho
cruzar com o de Lucian, e aquele episódio do hotel parecia
impossível de ocorrer um dia. Ela entrou confiante na sala
marcada com o número doze. Meu número da sorte, ela pensou.
Está acontecendo, eu vou conseguir.
Era a entrevista que ela sempre desejou, ela só precisava
daquela chance. O seu anfitrião apontou uma cadeira e se sentou
do outro lado da mesa. Era um salão grande, ornamentado com
quadros impressionistas e esculturas pós-modernas, a mesa era
grande e a madeira escura brilhava dando um ar impecável ao
ambiente. Pela grande janela ela conseguia ver o Parque lá
embaixo. Ela ficou esperando que ele verificasse seus papéis. Um
homem grande e robusto, intimidador, mas aquilo não funcionava
com ela. Ela poderia acabar com ele, fisicamente e verbalmente se
fosse preciso.
- Vinte anos mês que vem? - ele comentou sem tirar os olhos do
papel. Ela se recostou na cadeira, e esse foi o ápice de sua reação.
O homem virou a página e varreu as informações com os olhos, e
ao notar a postura da garota já acrescentou mentalmente alguns
pontos a favor. Ela não se intimidava, ela não estava nervosa. Era
como se ela nem se importasse.
Amanda sabia que aquilo seria rápido e estava nos detalhes.
Haviam muitos candidatos antes dela e muitos viriam depois. A
ficha não decidia nada, todos eles teriam aprovação no perfil
psicológico, todos eles teriam mérito na academia, todos eles
teriam uma nota alta no teste escrito e exames médicos
excepcionais.
- Me fale sobre a noite.
Amanda não pode deixar de sorrir, desviando os olhos para a
janela. Ela tinha uma resposta pronta para aquela pergunta, todo
mundo tinha. Mas aquela entrevista era diferente de todas as
demais, e ela tinha que corresponder. Ela seria diferente, ela
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Era Ronie, sua irmã Luana e seu marido Tom. Elas conversavam
na sala enquanto ele guardava a louça. Os típicos representantes
da geração lowprofile, que cresceram ouvindo aqueles novos
clássicos de Viral Axis e os riffs de Bradley Rolsen. Que amavam a
gastronomia oriental e viram a primeira febre dos simuladores
noturnos durante a adolescência. Que assistiram todos os
episódios de Call it a Night mais de uma vez e usavam fitas nos
cabelos. Os anos dourados da Socoma, a paz de uma lei vigente, o
coletivo consciente e responsável. O conceito de noite nunca
esteve tão na moda, a verdadeira noite nunca foi tão ultrapassada.
“Cruzar o limiar é tão século passado.”
- Eles dizem que vai ser revolucionário. Parece que tiveram
consultoria de ex-Insones, algo assim. - Luana dizia com as pernas
cruzadas em cima do sofá.
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III
“E
ssa é pra você, já voltando pra casa depois de mais um dia
produtivo…” a voz no rádio falava entre uma música e
outra. Lucian parou numa hamburgueria para pedir seu
jantar. O céu lá fora estava alaranjado, raios de um sol
enfraquecido passavam pelo vidro, colorindo as mesas de madeira.
A balconista nem perguntou: já assumindo que seria para levar,
embrulhou seu sanduíche num saco de papel. Não havia ninguém
pedindo depois dele, os poucos clientes que restavam à mesa já
terminavam suas refeições. Era seguro assumir que eles moravam
ali ao lado. O relógio na parede marcava sete minutos para as seis
horas.
Ele voltou para o carro já dando a primeira mordida. O gosto
artificial lembrava sua infância e ele não pode deixar de ouvir
Anna, dramática, dizendo em sua cabeça que aquela carne era de
minhoca e o queijo era feito com um derivado do plástico. Mas ele
e Nico vibravam toda vez que seus pais o levavam ali, e Anna não
deixava de se divertir nos brinquedos.
Lucian parou o carro à cinco quarteirões de sua casa, já quase
no Parque. Era melhor se prevenir em relação à Socoma, que
muito provavelmente estaria de tocaia na sua rua após o limiar. Ali
dentro ele aguardou, terminando de comer.
Foi o tempo da última música tocar. “Aí está, o limiar.” O
laranja do céu se apagava. Vênus.
Lucian fechou as janelas do carro, ficando escondido atrás da
película escura. Não havia ninguém na rua, nenhum carro,
nenhum pedestre, nem mesmo pássaros. Mas aquela sensação de
estar vulnerável e de, a partir daquele minuto, estar fazendo algo
muito, muito errado, era suavizada por aquele escudo de vidro. As
sombras dos prédios começavam a seu fundir com o asfalto, num
único tom de piche. Cortinas automáticas se fechavam,
sincronizadas num pacto programado entre seres inanimados de
tecido, alheios aos semelhantes por uma falta de ciência ou
consciência. O motor do carro esfriava com estalos que
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surpreendê-la. Mas dessa vez ele não tinha feito por ela, tinha feito
por ele, e para provar essa declaração para si mesmo, ele decidiu
definitivamente encerrar a noite ali.
Se despediram, deixando em aberto o convite para se juntar a
eles, ou encontrá-los na noite seguinte no coreto do Parque.
Lucian deu uma resposta vaga, sem querer firmar um
compromisso e sabendo que assim se tornaria a nova incógnita do
grupo. Aquele que não saberiam se apareceria ou não.
E assim ele seguiu, sozinho, pela ampla avenida agraciada com
árvores. O céu estrelado brilhando lá em cima e a luz das lanternas
dos Insones ficando para trás. Ele sentia o cheiro das folhas no ar
fresco da noite e sorria pra si mesmo, animado com todo aquele
universo oculto. Os Insones, as três previsíveis patrulhas da
Socoma e principalmente o motivo daquela proibição: os
“Fenômenos noturnos”, seja lá o que for. Lucian tentava fazer
sentido, imaginando o quão perigosos eles poderiam ser para
tornar a noite inacessível. Certamente tornavam as coisas mais
difíceis, mas seria isso motivo de uma exclusão tão radical?
E ele pensou nela, as coisas que ela sempre quis mostrar. “Vai
ser incrível!” Então era isso, ele concluiu. Ela fazia parte de um
grupo de Insones. Ela sabia que a presença da Socoma era
contornável, ela sempre teve tudo sob controle e ele não confiou.
Não inteiramente, não o tempo todo.
Imerso em seus pensamentos e distraído com a Via Láctea,
Lucian não percebeu aquela presença se esgueirando atrás de si. E
quando finalmente ele pensou ouvir algo e se virou para olhar, já
era tarde demais e a força desproporcional daquele ataque o levou
ao chão.
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IV
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manda aguardava de olhos fechados, concentrada na
escuridão de suas pálpebras. “Pai, por que dentro da gente é
escuro?” ela dizia quando pequena.
- Feller.
Eles não mais chamavam pelo número. A sala que ela entrou
agora era uma sala sem identificação, a janela mostrava a cidade e
a rodovia, o Parque ficava do lado invisível. Quem a entrevistou
dessa vez foi uma mulher, nos seus cinquenta e poucos anos e de
aparência jovem, sem maquiagem ou joias de qualquer tipo.
Amanda se sentou de forma natural e aos poucos ajustou sua
postura para encontrar a rigidez e formalidade que lhe faltaram da
última vez. A mulher passava os olhos por sua ficha, segurando os
óculos entre o indicador e o polegar.
- Você já veio aqui antes? - ela pareceu surpresa, a resposta
estava na própria ficha.
- Sim, eu tentei dois anos atrás.
- Poucos tentam de novo. Uma pena. - a mulher suspirou e
baixou os papéis na mesa. Amanda sentiu que já tinha ganhado
alguns pontos por sua persistência. Mas continuou vigilante
quanto ao seu excesso de confiança. - Me diga, por que você ainda
quer fazer parte disso? - a entrevistadora disse gesticulando com
uma mão para em seguida apoiá-la em seu queixo.
- Por causa do meu avô. Na verdade, minha avó. Ela perdeu o
marido enquanto ainda estava grávida, criou minha mãe sozinha e
nunca mentiu sobre o que tinha acontecido. Tudo foi sempre
aberto em relação à isso… Meu avô era um dos “Sete do Memorial”.
A mulher não tentou esconder sua reação ao ouvir aquilo,
ofereceu suas condolências com um sorriso suave. Amanda
continuou:
- Minha mãe cresceu com essa noção de que a noite foi
responsável pelo o que aconteceu. Ela nunca sequer desconfiou do
envolvimento da Socoma no caso, nunca deu ouvidos a toda
aquela polêmica. E era essa história que ela compartilhava comigo,
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Socoma continuava se provando visionária: antes mesmo
da ideia de proibição cair na boca do povo, a empresa
pedira aprovação do Estado para um projeto de prevenção.
- Isso é ridículo! Isso só prova como eles são todos uns
vendidos! - Leonora chegava a suar de raiva ao ouvir as notícias.
- Lenny, o projeto estava disponível para contestação durante
meses.
- Ah sim, aqueles meses em que só se falava como os
simuladores iam te deixar cego ou explodir seu cérebro! Eles
sabiam, tia! Eles encobriram uma polêmica com outra!
Luana comia um crepe enquanto elas andavam entre as tendas.
Lâmpadas incandescentes pendiam acima de suas cabeças,
escondendo o céu estrelado. O evento gastronômico, o último da
Nyctidromus, atraíra quase trezentas mil pessoas. Naquele dia em
especial, o simulador quebrou o recorde de público, ficando
completamente lotado. O número superava até mesmo aquele da
inauguração, uma vez que a expansão do ano anterior tinha
aumentado a capacidade máxima.
- Ali está ela. Ronie! - Luana chamou a mãe de Lenny, que
estava acompanhada de duas amigas. Ela acenou e apresentou a
filha quando esta se aproximou.
- Leonora veio com a turma dela. Eles vem sempre.
- Ah sim, imagino. O Vinícius também adora, ele veio ontem.
Está arrasado que vai fechar. E realmente é uma pena.
Lenny tinha se simpatizado com as amigas da mãe, mas não
conseguia se livrar do seu semblante amargo. Ronie percebeu.
- Lenny também não se conforma.
- Ela e o Vinícius iam se dar bem…
- O que foi, filha? Não quer ir embora ainda?
- Não é isso, mãe. É essa besteira que eles estão instalando nas
ruas. Sabia que é coisa da Socoma?
A segunda amiga se mostrou interessada:
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eles diziam, Avisos. Por que eram tão perigosos afinal? E o que
foram aqueles tiros? Insones realmente vieram ao resgate? O que
tinha acontecido? Era difícil escolher uma pergunta apenas.
Alex agarrou a ração, impaciente:
- Eu faço isso. É pra ser rápido, cara, você tem que ir dormir. A
situação dessa noite está crítica.
- Você vai passar a noite aqui? - Lucian enchia o copo no filtro.
- Não, não é esse o procedimento. Eu estou só recarregando
minha lanterna por uns cinco minutos. - ele respondeu da outra
extremidade da sala, já despejando um pouco de comida na água.
Lucian quase perguntou onde estava o outro agente, mas não
quis desperdiçar a paciência de Alex. Ao invés disso tentou,
vacilante:
- O que… O que aconteceu lá atrás, com o carro?
Alex se aproximou do balcão para trocar o frasco de ração pelo
copo d'água. Ele trazia um sorriso irônico no rosto.
- Eu tenho uma proposta: uma resposta por um nome. Pode me
fazer quantas perguntas quiser, mas eu quero o resto do seu grupo.
- ele bebeu o conteúdo do copo de uma vez só enquanto Lucian
refletia em silêncio. Ele não tinha nada para dar ao agente, sabia
apenas o primeiro nome de uns três ou quatro Insones. Talvez
pudesse inventar o resto.
- O que me diz? - ele colocou o copo vazio no espaço entre os
dois, pontuando sua pergunta.
- E se eu te falar onde eles estão? Podemos esquecer que me
viram hoje?
Alex contraiu os lábios. Talvez ele não estivesse em posição de
fazer acordos, mas poderia interceder em nome dele.
O copo estalou. Trincas marcavam o vidro.
Alex constatou horrorizado, já se mobilizando.
- Merda, tem um aqui! - ele correu para tirar sua lanterna da
tomada e, da porta, ordenou:
- Não saia daqui, fique perto da luz.
Lucian tentou se manifestar, mas o agente se foi antes que ele
pudesse dizer qualquer coisa. Ele foi para perto da luz e percebeu a
semi-automática na mesa. Sem hesitar, pegou as peças e foi até a
porta. A escuridão se estendia para ambos os lados.
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goteira, logo atrás dele, cada vez mais nítido. Ele se virou para
distinguir um círculo luminoso oscilando para cima e para baixo,
se aproximando. O som eram passos. Lucian soltou a respiração
aliviado.
- Eu falei pra você esperar! Você está fazendo exatamente o que
eles querem, está se expondo, está vulnerável aqui. - Alex começou
a falar já a vinte passos de distância. Lucian não conseguia ver seu
rosto contra a luz até ele adentrar no alcance de suas velas.
- E que porra é essa? Minha lanterna já não é forte o bastante
contra eles, quem dirá essas velas. Vamos, não é seguro. O agente
Andrade já não está aqui, deve estar em outro andar. Eu vou te
levar pra casa e depois eu cuido disso. Já vai ser uma grande ajuda
se você dormir.
E então ele viu a arma em sua mão. Sua expressão mudou, sua
postura mudou, suas pernas vacilaram e ele parou a cinco passos
de Lucian. Levou a mão ao coldre vazio e sussurrou para si mesmo
um palavrão.
- Calma cara, vamos voltar para o apartamento e a gente
negocia um acordo. Eu posso dizer que você cooperou, mesmo que
você não me dê nada. Eu digo que se entregou, que se perdeu…
Eu… Eu digo que seu pneu furou naquela lombada a caminho de
casa. Eu te livro dessa, pode acreditar. Você pega serviços
comunitários e monitoramento ocasional...
Lucian não escutava mais nada que ele dizia. Ele tentava se
concentrar em outro som, escondido pela sua voz, a impressão
perturbadora de um tamborilar lento e inconstante. Um, dois. Um,
dois, três. Um. Um. Um, dois, três, quatro. Lucian, que estava
prestes a entregar a arma ao legítimo dono, resolveu se agarrar a
ela por mais um segundo: algo gritava dentro dele para que não a
soltasse.
Ele pediu para o agente se calar por um momento.
- O que foi? - Alex apontou a lanterna por cima do ombro de
Lucian e para trás de si. O feixe de luz não ia muito longe.
- Escuta, Lucian. Eu sei que a situação parece irreversível para
você e que não há mais nada a perder, mas pense bem… - ele
continuou falando enquanto arriscava mais um passo, lentamente.
E foi então que Lucian viu.
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Na areia, não sabe o que faz. Ora branca, ora amarela, ora vívida
e fugaz. O temor de seus anos infantis, o grotesco esgueirar nas
sombras, pulsando um aperto nauseante em seu corpo. Eis estrela.
Eis o sopro secreto da noite, o tirano que apaga a luz solar e
mergulha a humanidade em piche. Eis estrela, que suga o pranto
de meninos assustados, que cega cidades e arranha portas com
seus finos dedos. Eis pólvora, eis ferro. A mão firme se ergue. Ali,
além da luz, a escuridão se move de maneira bestial. Alguma coisa
se aproxima. E a menina, veraz: ‘que terrível ameaça o Leste me
trás!’
Por um segundo Alex percebeu que não era nele que Lucian
mirava. Num último recurso, ele jogou a luz da lanterna em seus
olhos, ofuscando sua visão no exato momento em que Lucian
disparava.
O tiro explodiu no corredor estreito com um estrondo
ensurdecedor. Alex derrubou Lucian e alguma coisa passou
correndo por eles. Lucian pensou ter ouvido um guincho doloroso,
mas seu ouvido zumbia uma nota aguda e ele não podia ter
certeza. As velas rolavam pelo chão, apagadas. Quando Alex se
levantou e o puxou pelo braço, sua lanterna revelou a cera quente
pingando contra algo viscoso e escuro no chão.
Alex correu para o apartamento, levando Lucian pela gola da
camisa. Ele estava atordoado demais e nem percebeu que a arma
agora já estava em posse do agente. Ele bateu a porta atrás de si.
Lucian se apoiou nos próprios joelhos, movendo seu maxilar,
tentando acabar com o zumbido. Ele via o clarão do tiro queimado
em sua retina toda vez que piscava. Seu punho latejava de dor.
Alex se afastou dele, murmurando alguma coisa com as mãos
na cabeça. Lucian sentiu que iria desmaiar e caiu sentado no chão.
Respirou fundo. Seu coração parecia uma britadeira esmurrando
suas costelas. O cheiro de pólvora, o trovão, o raio, o golpe do
chão, a escuridão. A cena martelava sua cabeça repetidas vezes.
Algo se aproximava.
Lucian sentiu um toque no seu ombro o chacoalhar. Alex
chamava seu nome, mas sua voz estava distante, sufocada por
inúmeras camadas de feltro e areia. Lucian ouvia a própria voz
apenas como uma vibração quando perguntou, trêmulo:
- O que era aquilo? O que eu fiz?
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VI
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ra eu, Felipe, Osias, Brener, Érika, Juno e Alícia.
Faz tempo que eu não escrevo, eu sei. Mas o rumo das
coisas me deixou meio preguiçoso, meio acomodado. Ou
eu apenas não tinha uma boa ideia para levar adiante. Quem
começou com essa maluquice foi Brener, Alícia e Felipe. Foi Felipe
quem me ligou numa tarde de quarta-feira e, por telefone mesmo,
disse que estava reunindo um grupo confiável, pessoas dispostas a
correr riscos e explorar um dos maiores mistérios das últimas
gerações. Um território que apenas os mais estúpidos, os mais
ousados e os mais radicais se atreveram a adentrar, mas nunca
aprofundar. E assim nos tornamos Insones.
Éramos os retardatários de uma finada tendência. Houve um
momento em que o movimento crescia a cada semana, os Insones
estavam no auge, os bons e velhos tempos, quando Socoma ainda
lutava para fortalecer a Política do Limiar, Sono se resumia a uma
única dosagem e alguns ainda conseguiam adormecer
naturalmente, pelo cansaço do próprio corpo.
Mas não agora. Nós já nascemos num mundo consolidado, tudo
é perfeitamente determinado. O limiar existe há quase quarenta
anos e o Sono é mais que indispensável, é obrigatório. Nos
tornamos Insones, os primeiros Insones em vinte e um anos e
provavelmente os únicos durante muito tempo.
Convidar Érika foi ideia minha. Ela tinha me dado uma força na
matéria mais importante da minha vida até então, sem sombra de
dúvida confiável. Era um escândalo imobiliário, uma empresa
menor, emergente, mas ainda assim cagando dinheiro e limpando
a bunda com uma nota promissória. Em três meses a gente
conseguiu uma capa. Eu consegui uma capa. Mas eu me sentia em
débito com Érika e era ali que eu mostraria minha gratidão.
Osias foi o último a integrar o grupo. Juno o convidou porque
ele tinha uns holofotes poderosos que arranjou entre as sucatas da
produtora dele. E a gente precisava estar preparado caso houvesse
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PARTE II
I
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manda Feller estava sentada a uma mesa próxima à porta.
Pelo vidro ela observava os carros subindo o morro
morosamente, o sol da tarde pintando sombras compridas
na rua. Ela tentava não se abalar pelos boatos, mas ainda assim
cogitava outro cargo, pelo menos para ter uma alternativa
engatilhada caso recebesse aquela temida notificação. Eles já
foram setecentos e oitenta, agora eram trinta e cinco. Ela parecia
ser a única a se esforçar para evitar o fim iminente.
Ambos os ponteiros do relógio se encontravam no quarto
dígito. O restaurante estava começando a encher, em poucos
minutos metade das mesas estavam ocupadas por famílias, grupos
de amigos, casais, sócios. Os solitários como ela se amontoavam
no balcão do bar.
Aquilo já estava incorporado à sua rotina. Quatro horas da
tarde, restaurante do hotel, seu caderninho sobre a mesa. A
denúncia tinha chegado a ela há quase duas semanas, mas
ninguém da Socoma tinha se dado ao trabalho de investigar o que
parecia mais um trote do que uma dica. No mesmo dia ela
conseguira guiar a patrulha para aquela rua, e esse foi o máximo
que ela conseguiu de atenção para aquele caso. Sem resultados, a
obsessão de Amanda começava a virar piada entre os agentes.
Um casal jovem entrou, ela sorrindo, se agarrando ao braço
dele, ele fazia alguma gracinha ou falava alguma asneira. Eles se
sentaram à duas mesas de distância, levemente incomodando
Amanda com seus risinhos animados. Ela desviou os olhos para o
cardápio, tentando decidir qual prato experimentar agora. Aquela
missão pessoal estava saindo cara, mas Amanda preferia ver como
um investimento. Algo validava suas ações, algo como intuição,
dizendo que sim, alguma coisa ia sair daquele hotel, alguém
envolvia aquele local em seus planos criminosos.
Ela pediu uma pasta carbonara e uma água gasosa. O garçom
levou o cardápio e ela se virou para seu caderninho. Naquelas
páginas ela conseguia reconhecer quase todos ali. Ela anotava os
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que era quase certo que nunca precisariam usá-la. Andrade deveria
saber. Feller certamente sabia.
Já ele se lembrava apenas dos três primeiros dígitos, mas não
estava seguro quanto a ordem. E sabia que os dois últimos eram
repetidos.
579...22? Não, mais duas tentativas. Antes de fazer a segunda,
pensou bem.
- Lucian, me dá um minuto! - ele deu um fim as perguntas e
sugestões do outro, tentando se concentrar.
597...77? Não, não haviam três números 7. Na verdade, não
havia três repetições de nenhum número, excluindo assim 55, 99 e
77.
597...33? Não. Uma tentativa apenas.
795… ou talvez, 975.
975...66?
Alex bateu o telefone frustrado.
- Que foi? - ele descarregou em Lucian.
- Passos, no corredor. Eles não podem entrar aqui, podem?
A porta se abriu de repente. Mas não era um noturno.
Andrade entrou com a arma numa mão e a lanterna em outra.
Ao ver Lucian parado ao lado do abajur exclamou em surpresa e
ergueu sua mira. Tinha ouvido o disparo ecoar no prédio e
imediatamente assumiu o pior. Ele imaginou a cúmplice de
Lucian, que Amanda assegurava a existência com todas as forças,
havia aparecido. Ou o resto do grupo veio resgatá-lo. Tinha
esperança de ter sido um tiro de alerta de Alex, para intimidar o
grupo, superar a desvantagem numérica. Mas temia que fosse
mesmo um confronto e alguém estivesse morto ou ferido. E então
ele viu Lucian, mas não viu Alex.
Num instante Alex veio do quarto e esclareceu a situação.
Andrade se alterou mais com Alex do que com Lucian.
- Como você deixou a arma para trás, garoto?
- Eu tinha certeza que estava com ela. Tinha um noturno por
perto e você estava sozinho.
- E daí? O que poderia acontecer?
- Amanda disse para mantermos distância dos noturnos, não
provocá-los, não surpreendê-los. Eles estão agitados hoje.
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por cuidado e amor, Ivan dormia no meio dos dois todas as noites.
Ivan tinha cólicas fortes e chorava a cada duas horas. Sua mãe
tinha medo dele morrer durante a noite, mas todo mundo,
médicos, amigos, pediatras, família, marido, governo e mídia,
todos falavam que Sono em Gotas fora desenvolvido para bebês e
recém nascidos, que combatiam qualquer problema, até sintomas
de cólicas. E ela nunca tinha ouvido nenhum relato, nenhum
boato, nenhuma notícia, nenhuma mentira e nenhuma verdade
sobre bebês morrendo de frio, fome ou engasgados durante a
noite.
“É totalmente seguro. O que você acha que eu te dava quando
era bebê? Uma gotinha de Sono, dez ou quinze minutos antes do
limiar. Naquela época tinha outro nome. E hoje com certeza é
ainda melhor do que vinte anos atrás. Você acordava tão bem pela
manhã!”
Sua mãe era a única que conseguia tranquilizá-la. Algo na sua
voz, no jeito que ela falava, tão confiante, tão acolhedora e sóbria.
E ela sabia, não poderia deixar Ivan acordado a noite inteira
enquanto ela dormia. Nem ela poderia ficar acordada com o bebê.
Então ela se curvava à lógica e pouco antes de tomar sua dose,
pingava uma gotinha entre aqueles lábios tão perfeitos, tão seus.
E ele acordava tão belo pela manhã. O sol entrava pela janela
sobre a cama e a primeira coisa que Clara via era seu marido,
também despertando lentamente. E então ela se lembrava daquele
amor tão novo dentro de si e descia seu olhar até aquele garotinho,
tão miúdo, entre os dois. Ele era o primeiro a acordar. E acordava
tão bem e tão belo! Seus olhos grandes agraciando a luz matinal.
Ele tinha oito meses, quase nove, quando uma manhã Clara
acordou e percebeu seus olhos mareados, avermelhados.
Imediatamente, em sua ignorância leiga, ela diagnosticou uma
alergia. Pegou Ivan no colo e ligou pra mãe, antes mesmo que
Hector despertasse totalmente. Ele, confuso, ouviu a esposa dizer
“Eu sei mãe, mas você pode dar uma olhada nele mesmo assim? Eu
levo ele aí agora mesmo, antes de você ir pra clínica. Tá bom. Sim,
melhor ainda. Eu amo você! Até já.”
Era sábado. Eles tiveram tempo de tomar café da manhã e ir
direto para a clínica, chegando praticamente juntos com a pediatra
do pequeno Ivan.
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II
L
enny achou que seu relógio estava errado. A Segunda
Unidade da Socoma deveria ter passado pela sua janela há
vinte minutos. Ela confirmou as horas e ajustou sua teoria:
talvez as rotas tivessem mudado.
Andar na rua, ciente da patrulha, certamente era mais seguro.
Mas dessa vez Lenny não teve escolha e saiu de casa cautelosa,
ouvidos atentos e sua lanterna no modo noturno para não chamar
a atenção. A luz avermelhada se espalhava a sua frente, dando um
aspecto fantasmagórico à cidade. Ela não gostava daquilo, a
lembrava os filmes de terror que costumava ver com sua tia Luana.
O medo ao ver filmes era inofensivo, depois dos créditos as
cortinas da sala de TV se abriam, ou as luzes do cinema se
acendiam e tudo ficava para trás. Mas o medo real, aquele medo
que vem do instinto de sobrevivência, trazendo uma descarga forte
de adrenalina, esse era diferente.
Lenny acelerou seus passos. Ela nem ao menos sabia para onde
direcionar seus medos. A noite já não era tão misteriosa quanto
era na sua adolescência. Ela nunca tinha visto um noturno, apenas
escutado histórias que mais pareciam lendas urbanas. Os Sete do
Memorial, por exemplo, fazia muito mais sentido apresentado
como resultado de uma conduta violenta da Socoma. Algumas
pessoas do seu grupo alimentavam a mitologia dos noturnos,
diziam que os Fenômenos eram diretamente conectados a
presença de um, e que já inclusive tinham visto aparições ou
conheciam alguém que possuía evidências fotográficas.
Então por que Lenny se sentia tão apreensiva, como se estivesse
vulnerável pelas calçadas e a cada esquina, como se a observassem
das sombras e se esgueirassem lentamente numa emboscada?
Ela afastou esses pensamentos. Estava caindo na lavagem
cerebral de todas aquelas pessoas. “A noite é perigosa.” “É para sua
própria segurança.” Por quase cinco anos ela saía à noite, pelo
menos duas vezes na semana, e nunca tinha ouvido a respeito de
incidentes graves. Tia Luana saía há mais de dez, embora com
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- … nos banheiros.
- Não, vamos pro camarim. Naqueles armários grandes.
- Que cheiro é esse?
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Olívia viu a noite pela primeira vez aos dezenove anos. Naquela
ocasião, ela acordara uma hora antes do sol nascer, já sem os
efeitos de Sono. Ver a alvorada foi a melhor coisa que lhe
acontecera até então, o céu clareando, o cantar gradativo dos
pássaros até tomar por completo a cidade. Apenas o som dos
pássaros, subindo do parque até o terraço do seu prédio. Ela
meditava com uma xícara de lévica. O ar gelado da antemanhã
refrescando seu corpo febril. As nuvens trazendo o Sol pelo
horizonte e as cortinas se abrindo pelas janelas ao redor.
Ela falou com seus pais. Eles ficaram preocupados com a
imprudência dela, de ter se levantado e ido para o terraço antes do
dia clarear. Ela prometeu que não iria se repetir e eles pediram um
reajuste de dose naquele mesmo dia.
E ali, Olívia teve a grande revelação da continuidade do tempo
e seu mundo se transformou. Não era um dia após o outro, não era
uma crescente de números no calendário; era uma coisa apenas,
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- O que é isso?
- São as luzes. Essas não duram mais que uma hora. Melhor a
gente se apressar. - Alex explicou atrás deles.
“Então as luzes estão acesas há quase uma hora…” Olívia
constatou e ali teve uma estimativa do tempo em que ficou
inconsciente. Ela imaginou todo aquele caos se espalhando pelo
teatro, as pessoas se escondendo, brigando por doses, tentando se
soltar, fugindo e se esgueirando pelos corredores evitando agentes
e noturnos. Não tinha sido uma questão de segundos: o medo e
desespero foram se instaurando lentamente por vários minutos.
As portas à direita possuíam uma pequena janela na parte
superior, permitindo ver o que havia dentro da sala. A parede
esquerda trazia amplos vidros, salpicados de estrelas da Via Láctea
contrastando no breu externo. Andrade verificava, pelas janelas
das portas, se havia algum telefone em cima das mesas. Mas as
salas pareciam ser do setor criativo, uma cheia de manequins e
tecidos, outra com computadores, outra com objetos de cena,
outra com papéis espalhados com rascunhos e vários cartazes
enrolados.
Já quase no meio do corredor, havia uma porta fechada que
deixava escapar um facho de luz pelo chão. Pela janela era possível
ver várias lanternas espalhadas pelos cantos e pelas mesas,
apontando em várias direções, sem deixar qualquer resquício de
sombra na sala vazia.
A porta estava trancada. Andrade tentou chamar por alguém,
mas não houve resposta.
- Quem quer que tenha feito isso deve estar dormindo aí
dentro. Vamos. Não podemos perder tempo. - ele deu as costas e
avançou pelo corredor.
Lucian já não conseguia segurar sua vela, de tão pequena que
estava. Ele aproveitou a chama para acender outra que tirou do
bolso. O cotoco gasto ele apagou e deixou próximo a porta. Olívia
foi a última a olhar pela janela da sala e quando se virava para
seguir o grupo, pensou ter ouvido vozes sussurrando do outro lado
da porta.
Ela bateu no vidro com a ponta dos dedos:
- Tem alguém aí?
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Alex chutou a porta, ela cedeu apenas uma fração, uma fresta da
largura de quatro dedos. Um armário bloqueava a entrada.
Eles conseguiram ouvir alguém dizer algo lá dentro como
“ajudem, ele é muito forte!”, os grunhidos e xingamentos de
Andrade, algumas pancadas, cadeiras se arrastando, sons de briga.
Mas era difícil distinguir nitidamente entre as súplicas de Olívia e
ameaças de Alex. Lucian se espremia para tentar abrir a porta com
eles, mas o armário permanecia resoluto em sua posição.
Silêncio do lado de lá. Alex chamou pelo parceiro, preocupado.
Lucian pensou ter ouvido um estalo no andar de cima.
- Alex, eles estão vindo…
Alex esmurrava a porta, furioso.
Um som diferente: três bipes curtos e rápidos. E as luzes de
emergência lentamente diminuiram a intensidade até se perderem
na escuridão. Olívia exclamou, aflita e se aproximou dos demais,
de costas para a parede.
- Não posso deixar ele aí.
Passos no fundo do corredor. Um baque. Alex quebrou um dos
vidros da janela e se esforçou para empurrar o armário,
completamente em vão. A vela de Lucian tremulava, projetando a
sombra dos três pela parede. Olívia encarava o fundo do corredor,
invisível, tremendo de ansiedade. Ela e Lucian insistiram:
- Vamos embora daqui… vamos…
- Alex...
- Merda. - Alex socou a porta. Ele sabia o que tinha que fazer,
não havia outra opção. - Vamos, fiquem por perto.
Os três correram até as escadas, cautelosos, tentando ouvir,
olhando para trás constantemente. O céu estrelado se estendia lá
fora, por trás dos reflexos da lanterna no vidro. O silêncio agora
era aterrorizante, nada além de respirações e passos.
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da porta. Ele se virou para olhar ao passar pela sala e foi nesse
momento que o homem o atacou. Como um arriete, ele o acertou
com um golpe pesado no rosto. O agente perdeu o equilíbrio e
caiu atordoado contra o vidro.
- Ele é grande, vem, me ajuda! - o rapaz chamou o outro que já
se preparava para empurrar o armário. Os dois saíram e Marna
ficou olhando da porta. Alguém vinha gritando pelo corredor à
esquerda, era outro agente. Ela viu a lanterna no chão e se arriscou
a pegá-la enquanto os outros carregavam o homem uniformizado
para dentro da sala. A arma também estava ali, próxima ao vidro e
ela pegou num último impulso antes de correr de volta ao abrigo,
fechando a porta atrás de si e girando o trinco. Ela iluminou a cena
para seus companheiros, enquanto tentava empurrar o armário
com todo o peso de seu ombro.
- Ajuda ela! A porta! - um deles disse e outro largou uma das
pernas do agente em resposta. O armário se tornou muito mais
leve quando as duas forças se somaram. Por um momento, Marna
hesitou ao ouvir tiros, que pensou vir de dentro da sala.
- Vamos, não para! - ela ouviu o rapaz que a ajudava e
continuou empurrando até que toda a porta estava encoberta.
Enquanto isso, o agente, ao ter sua perna esquerda livre, chutou
o outro que o segurava e se viu com os dois pés no chão. Ele jogou
seu corpo para trás, empurrando aquele que o agarrava pelas
costas, arrastando as mesas pelo caminho até a parede. Eles
brigaram no escuro enquanto o armário era posto no lugar. Ele
gritou por ajuda para subjugá-lo. Marna procurou pela arma. Onde
havia deixado? Olhou em volta no chão, no calor do momento não
conseguia se lembrar. A arma colocaria um fim naquilo tudo. Ela
ouvia o caos na sala e não conseguia lidar com a pressão: cadeiras
sendo derrubadas, golpes, urros, passos, sons brutais de violência.
E então tudo parou. Uma lanterna se acendeu do outro lado da
sala. Os três rapazes estavam no chão, sentados em volta de um
corpo estirado. Um deles levava a mão à boca, que pingava sangue
de um corte fundo no lábio. O outro olhava para seu antebraço,
ralado de cima a baixo e para os cortes nos nós dos dedos.
Marna encontrou a arma em cima da estante do armário e
decidiu deixá-la por lá, escondida. Sem falar nada, um deles se
levantou e começou a acender as outras lanternas espalhadas pelo
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III
F
oi numa sessão terapêutica que Taila teve a epifania. Todos
aqueles quarenta anos de rancor, toda aquela resistência,
todos aqueles cartões de aniversário queimados ainda
selados, toda aquela aversão ao pai, era apenas reflexo dos
sentimentos da sua mãe. Ela cresceu ouvindo a versão de uma
mulher abandonada e enganada, que, orgulhosa, decidiu criar sua
filha sozinha. Sua filha, apenas sua. E agora essa filha era mãe, e
mantinha aquele ódio vivo em uma terceira geração, como se fosse
genético.
Mas o que o desprezado pai fizera para ela? Mais ainda, o que o
desprezado pai de fato fez para sua mãe? Ela nunca ouvira a versão
dele para fazer um julgamento próprio.
Taila o viu no enterro da mãe e aquilo a abalara. Ele veio lhe dar
um abraço e falou algumas palavras que ela nem se deu ao
trabalho de escutar, até que seu marido veio ao seu auxílio. Mas
isso já tinha sido há quase dois anos e por todo esse tempo ela
ficou dividida entre o rancor herdado e a carência de amor
paterno, intensificada ainda mais com a perda da mãe.
E então, se sentindo preparada para se livrar dessa carga, ela
decidiu, a caminho de casa, que ligaria para o pai naquela tarde.
Ela começou a chorar assim que ouviu sua voz e mal conseguiu
falar tudo aquilo que a engasgava. Ele quis visitá-la no dia
seguinte.
- Amanhã não posso, minha filha tem um exame de Judô.
- Eu gostaria de ir, se possível.
- Melhor não. É um dia importante pra ela e não sei como ela
reagiria com sua presença. Mas sexta estou livre. Fica bom pra
você, sexta à tarde?
Taila sabia, sua filha não estaria em casa na sexta-feira. Ela
avisou que ficaria direto do colégio, ia com uns amigos para a
Festa das Flores, no Parque. Ainda havia uma insegurança de
como abordar a questão da existência de um avô. Naquela noite,
Taila sonhou com a mãe.
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Ele veio por volta das duas horas da tarde. Ela o recebeu na sala,
mostrando as fotos da família nos porta retratos. No corredor
haviam fotos de Dominique, em seus gloriosos dias de bailarina.
Uma outra foto dela aconchegando Taila em seus braços. Uma
foto dela, mais velha, com a pequena Amanda agarrada em seu
pescoço. Ele compreendeu que ali não haveriam fotos dele.
Pai e filha conversaram, choraram, riram. E ele sentiu seu
coração se expandir um pouco com a lufada de admiração pela
mulher que Dominique criara. Ela, apenas ela, sozinha. Eles
trocaram histórias e ele se desculpou inúmeras vezes por ter
perdido tanto e ela o perdoou outras inúmeras, em meio à própria
culpa de privá-lo de sua vida.
Depois de comerem uma fatia de bolo, foram dar uma volta
pela vizinhança, quando o sol começava a baixar no céu. Ele
lamentou Amanda não estar ali, gostaria de conhecê-la. Ela não
esteve no funeral de Dominique, disse que seria muito difícil para
ela e preferiu prestar sua homenagem à avó escutando Punta del
Sueño sozinha, a todo volume, no mirante. A coreografia que
consagrara Dominique.
Y la ciudad se pierde la abajo. Ele citou a letra, imaginando sua
neta e já sentindo um amor intenso e novo expandir ainda mais
seu coração.
Eles se despediram no jardim. Ela prometeu que conversaria
com Amanda e eles ainda teriam a oportunidade de conviverem.
Ele se arriscou a dar um beijo em sua testa e ela o aceitou,
segurando suas mãos enrugadas entre as suas. “Até mais, pai.” Ele
deu a volta no carro e percebeu, na janela da casa, algumas mechas
loiras por trás das cortinas. Ele se conteve para não acenar para a
garota que espiava a cena. Dirigiu para casa, com um cuidado
triplicado: ele achava que poderia morrer naquele dia, tamanha
sua felicidade. E ele talvez nem se importasse se não acordasse no
dia seguinte, se seu coração atrofiado de repente falhasse com o
súbito crescimento. Mas ele se importava sim, ele ainda tinha que
conhecer Amanda.
Taila entrou na casa quando o carro sumiu na esquina.
- Quem era, mãe?
Ela preferia ter essa conversa quando seu marido voltasse de
viagem. Se Amanda ficasse com raiva dela, precisaria de seu pai
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- Não mais… Eles vão pegar todo mundo… Claro, acho que vão
atacar primeiro quem estiver acordado e depois quem esteve
acordado essa noite. E depois, não sei… Acho que vão atrás de
todos os outros…
- E a Socoma não pode fazer nada? Não vamos estar a salvo na
sede?
Antes que Giovani respondesse, alguém abriu o porta-malas.
Era um garoto que aparentava ter não mais que dezessete anos.
- Vamos, vocês merecem um pouco de conforto. Deixa que eu
vou aqui atrás.
Ele ajudou os dois a descerem e irem para o banco de trás.
Enquanto isso Giulia questionava a amiga que voltou ao banco da
frente.
- O que foi? Eles vão mesmo ficar?
- Vão. Não teve jeito. Eles acham que aqui é mais seguro.
- Será mesmo esse o motivo? - Giulia provocou.
Mais uma pessoa embarcou no porta-malas e outra ocupou a
direção. E mais ninguém entrou.
- Vocês vão me desculpar, mas seus amigos são ridículos. - o
motorista disparou antes de ligar o carro e dar a partida.
- Não são meus amigos. São do meu grupo, mas não são meus
amigos… - Viana se explicou do porta-malas.
- Bom, espero que fiquem bem. Eles ainda quiseram dividir as
armas igualmente. Calma Giulia, a gente só deixou uma.
- Por que eles precisariam de armas? Eles não vão dormir? - ela
se indignou.
Os pneus cantaram quando o carro fez uma curva para a
esquerda.
- Vai pela Avenida do Parque? - a garota no banco do carona
confirmou com o motorista que parecia conhecer bem o caminho
a partir dali.
- Por acaso você ligou…
- Ninguém está pedindo sua opinião! - o motorista interrompeu
o agente de forma áspera.
- Vinícius, não precisa disso! Estamos do mesmo lado agora. -
Giulia o defendeu.
- Agora, né? Porque há quinze minutos ele estava atirando na
gente…
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- Não foi ele, cara. E foi um acidente, eles estavam atirando nos
noturnos. - Francis interveio.
Todos foram lançados para a esquerda quando o carro virou a
esquina.
- Cuidado! Estamos soltos aqui atrás! - Andrei reclamou do
fundo do carro.
- Também vai dirigir como um bêbado, Vini? - Giulia se irritou,
puxando o cinto de segurança para ela e para o irmão ferido.
Giovani se inspirou a fazer o mesmo.
- Me escuta, é importante! São os holofotes! - ele tentou
novamente num tom mais urgente.
- Qual é o problema? - Lenny se virou para trás para ouvir o
agente.
- Acho que estão desligados. É melhor conferir.
- Eles já estavam ligados, o que aconteceu? - Vinícius se
interessou, tentando decifrar os símbolos no painel e os comandos
nas alavancas. Mais uma curva. Lenny reconheceu onde estava,
aquela avenida dos girassóis onde um dia comprou peixinhos com
Lucian. Ela afastou aquele pensamento, se voltando para a
explicação do agente. A cidade escura passava como um borrão
pelas janelas.
- Quando o carro é desligado eles reiniciam. A luz é muito
potente, então a bateria não consegue acioná-los direto na
partida…
Lenny prestava atenção a Giovani. Vinícius procurava o
comando para ligar os holofotes. Francis olhava pela janela ao seu
lado, tentando ignorar a dor do projétil queimando em seu ombro.
Vianna e Andrei conversavam sobre o que presenciaram no teatro.
Giulia estava sentada no meio e era a única a olhar para frente. Ela
forçou a vista, tentando focar no movimento que pensou ter visto
cerca de cem metros à frente do carro. Estava suspenso na avenida,
pairando à meia altura. A princípio ela pensou que era uma folha
caindo ao vento, ou uma pluma e não se preocupou. Mas num
segundo ela percebeu que aquilo era muito maior e, mal
iluminado pelos faróis, se aproximava muito mais rápido do que
ela poderia defini-lo.
- … já os faróis não. É um sistema estúpido, a Socoma poderia
facilmente melhorar, mas não vão investir nos veículos tão cedo…
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IV
“V
ai ser incrível e você nem vai ver passar.”
Ele agora não estava tão nervoso. Ela havia
conseguido distraí-lo e deixá-lo confiante para encarar
aquele mundo oculto. O sol surgia entre os prédios à medida que o
elevador subia. O hotel ficava ao leste do Parque e Lenny, por todo
aquele tempo, escondera o motivo de estarem ali. Havia uma lagoa
menor, dividida por uma ponte de madeira. As pessoas chamavam
aquilo de brejo. Ela gostava de se referir a ele como Laguinho. E
ninguém conseguia descrever as primeiras horas da noite tão bem
quanto os habitantes do Laguinho.
Lucian apertou qualquer botão, apenas para que o elevador
subisse, para que a visão da rua cinzenta fosse trocada pelo
dourado refletido nas janelas, um segundo pôr do Sol tocando o
horizonte. Eles se beijaram até sentirem em suas pálpebras a luz
débil os receber nas alturas. Ela segurou a mão dele e admiraram a
vista durante três andares. Então ela apertou o próximo número:
dezessete.
- Vamos! Eu quero que você veja do início. - ela o puxou para
fora do elevador e eles desceram as escadas, cada vez mais rápido,
dois degraus de uma vez, três degraus de uma vez, embalados
numa brincadeira perigosa e fechando um ao outro nas curvas do
corrimão. Logo virou uma corrida e Lucian tomou a dianteira,
colocando quase quatro andares de diferença entre os dois.
Ele chegou à última porta abrindo-a de uma vez, dando de cara
com uma pessoa prestes a entrar no hotel. Ele deu meia volta,
surpreendendo seu corpo com uma agilidade impressionante. Mas
ele sabia que já tinha sido visto. Quando a porta se fechou atrás
dele, Lenny surgiu no último lance. Lucian subiu de encontro a
ela, em poucos passos.
- A Socoma está aqui. Me desculpa. - ele falou com uma calma
quase ofensiva.
- O que você está dizendo? É sério? O que você fez?
Ele a segurou pelos ombros:
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veias, não nas fibras de uma roupa. E o seu corpo agora clamava
pelo o que havia perdido.
Francis era o irmão mais velho. Pela ordem, ele pensava, era ele
quem tinha que cuidar de Giulia. Mesmo abatido, mesmo ferido e
debilitado. Mas eles nunca foram de seguir a ordem.
Quando Giulia nasceu, era ela quem tinha ataques de ciúmes,
não ele. Ele sempre teve toda a atenção de um primogênito e a
afeição já consolidada por quatro anos. Já a bebê via o desafio pela
frente, de conquistar o amor dos pais completamente para si,
superando aquele rival que por vezes ocupava o colo de sua mãe e
os ombros de seu pai. Ela se irritava, batia toda vez que ele se
aproximava para conhecer a irmãzinha. Já aos sete anos ela não se
curvava aos pedidos do irmão, como a vez em que ele quebrou o
delicado maestro do coral de camundongos de porcelana da avó e
pediu a ajuda dela para inventar uma mentira convincente. “Tenho
certeza que você consegue se virar sozinho, gênio.”
Sim, seu raciocínio lógico era mais rápido que o dela e ela se
ressentia sem levar em conta a diferença de idade. Mas ela amava
seu irmão, eles se davam bem, eles brincavam juntos desde
pequenos, também sem levar em conta a diferença de idade.
Francis a incluía em tudo e apresentava a seus amigos e amigas e
ela adorava como ela podia fazer o mesmo. Ele tratava todos com
companheirismo, sem a arrogância dos seus outros colegas de
classe, que alcunhavam os mais novos de “fedelhada” e o prédio do
ensino fundamental como “pirralheiro”.
Quando ela fez quinze anos e ele dezenove, eles pararam de
brigar toda semana por qualquer motivo. Simplesmente porque
parecia mais proveitoso quando se entendiam - algo que os dois
constataram aos poucos, num processo individual que se concluiu,
por coincidência ou não, na mesma época.
Ele havia ensinado tudo sobre a noite pra ela, contra sua
vontade, mas ela não lhe dera escolha. Não valia a pena arriscar a
chantagem que ela fazia naquela manhã. Giulia foi acolhida em
seu grupo e a cumplicidade dos dois se tornou verdadeiramente
fraterna pela primeira vez.
Agora ele estava ali, sangrando, como ela nunca imaginou que o
veria. Ele estava pálido, fantasmagórico, a área ao redor dos seus
olhos estava escura e ela só soube que ele não estava morto pelo
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Punta del Sueño havia estreado há três dias quando ele foi fazer
uma entrevista com a dançarina principal. Dominique Koya, já se
destacava nos palcos desde os dezesseis; agora, aos vinte e um
anos de idade, estava prestes a ser a maior artista do país. Os
críticos estavam encantados e o público extasiado: a temporada já
estava esgotada.
Ênio era um repórter em ascensão, escrevendo para o caderno
de cultura de um jornal secundário de circulação estadual. Ele
aspirava jornalismo investigativo, o que ele considerava a
verdadeira face da profissão. Provocava seus colegas, disfarçando
sua opinião controversa com um tom jocoso: “O resto é tudo
matéria de gaveta para deixar o jornal mais volumoso, apenas para
emoldurar a obra principal.” E naquele momento, naquele jornal,
quem fazia isso era Glauber Panza. Longe de ganhar prêmios ou
ter seu nome mencionado em palestras e faculdades, mas
empenhado e passional. Ele era um pouco excêntrico demais para
os padrões da redação, e ligeiramente irritante. Mas Ênio se
aproximava dele como o jovem pupilo que gostaria de ser e aquilo
tinha um efeito entorpecente para o ego de Panza.
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- Por que você nunca terminou? Por que não publicou sua
versão? Por que não falou nada?
- A Socoma não permitiu. Ofereceram um acordo de liberação
condicional para que nenhum dos envolvidos nunca falasse
publicamente sobre o assunto. Mas não é como se eu tivesse
escolha. Mesmo que eu escrevesse, eles iriam se assegurar que
nunca fosse publicado. Minha única escolha era tirar alguma
vantagem da minha posição. Então aceitei o acordo e minha pena
foi reduzida. Comecei a escrever assim que voltei pra casa, sem
pretensões de publicar, mais com o intuito de tirar isso da minha
cabeça.
- Mas por que abafaram o caso? O que a Socoma queria
esconder?
- O que você sabe sobre o ocorrido? O que sua mãe e sua avó te
contaram?
- Ah, elas nunca jogaram a culpa na Socoma. Disseram que
houve uma troca de tiros, só isso. Que vocês resistiram, tentaram
fugir e atiraram.
Ênio se levantou e andou até a janela. Ele se privava da dor do
arrependimento. Não era de se admirar que Dominique não
quisesse vê-lo e fora manipulada pelas mentiras da Socoma,
seguindo suas recomendações de não encorajar a presença daquele
criminoso. O jornalista que não reproduz mentiras é um
criminoso. Minha vez de te entrevistar, mesmo que seja tarde
demais, mesmo que seja através de minha neta. Mas que bom seria
se o tempo não passasse. Se ao menos aquele manuscrito fosse
elaborado numa publicação escandalosa, não para ganhar prêmios,
não para revelar os perigos da noite para uma população alienada,
mas para dar explicações a uma bailarina, uma doce raba-do-
oriente. Para que ela não sofresse, para que ela não tivesse que
estar sozinha, para que não acreditasse nesse sentimento de
decepção. Para que fosse Mãe e Pai. Mesmo que para isso fosse
suprimida a liberdade de um criminoso, que muito mais fez além
de apenas burlar o limiar, que atirou, fugiu e possivelmente
matou. Que reproduziu mentiras a se calar com sua verdade.
- Me fale sobre a noite. - ele se virou para Amanda.
- Eu nunca vi a noite.
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m vento gelado corria pelas ruas, varrendo folhas,
colidindo com paredes, respirando fundo. As estrelas
piscavam na distorção atmosférica, bem acima dos prédios
que se levantavam ao redor do trio. Alex economizava a bateria da
lanterna, guiando os dois criminosos no escuro, pelo meio da
avenida. Acendia a lanterna apenas quando ouvia um barulho
vindo de algum beco ou esquina. Já andavam há um bom tempo
em silêncio.
Na vida, passamos por aquela fase em nossa infância onde o
“eu” se insere no mundo. Já sabemos o básico da vida, o que
gostamos de comer, sabemos reconhecer e nomear alguns animais,
o que fazer quando a luz do dia acaba, a dualidade ilusória do bem
e do mal. É quando a criança começa a olhar para “os outros” e
para aquelas entidades invisíveis que os rege: a sociedade, os
hábitos, a cultura. Alex tinha por volta dos seis anos quando
conseguiu compreender o que a Socoma representava. Os guardas
da noite, ele pensava. Os detentores dos segredos de outro mundo,
os domadores de sonhos, os patrulheiros da cidade adormecida,
confiáveis, protetores, corajosos, heróis.
Para aqueles que já fantasiavam com uma carreira profissional,
o título de Agente da Socoma era comumente mencionado nas
salas do jardim de infância. Apenas uma porcentagem, tão
insignificante que nem vale a pena mencionar, mantinha o sonho
vivo depois que cresciam. Alex permaneceu irredutível nesta
porcentagem até o dia em que recebeu a notícia de seu
recrutamento.
No entanto, o jovem se decepcionou com a natureza do
trabalho. Durante seu treinamento ele percebeu que não iria
patrulhar, que sua função se daria na sede, naquele prédio
moderno e imponente ao norte do Parque, o mesmo em que ele
havia feito a entrevista. Eles não quiseram falar o motivo de ser
direcionado para um escritório, tentavam apenas ressaltar sua
aptidão e potencial para o trabalho burocrático. Mas Alex
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Ela nunca quis tomar Sono, achou absurda aquela lei prestes a
entrar em vigor. Naquela época ela estava no auge de sua
adolescência, ainda acreditando no poder do coletivo e que a
juventude poderia mudar algo que seus pais não tiveram a força ou
coragem de mudar. Clara ia a protestos, maldizia a Socoma, criava
grupos de discussão. E foi num desses grupos que ela conheceu
Hector.
“Primeiro tiram nossa liberdade, agora querem tirar nossas
horas!” ela discursava passionalmente, inflamando a discórdia. E
ele não conseguia parar de olhar para ela, mesmo quando era
outro a tomar a palavra. Ela era alguns anos mais nova que ele e
falava como os adultos do grupo, como uma pequena líder. Mesmo
quando falava besteiras, as diziam com tanta propriedade que
quem discordasse poderia até se questionar se não era ele o
desinformado. E assim que Hector se sentiu quando a ouviu dizer:
“Se a Socoma quer nos proteger, não deveriam ser mais abertos
com a população? Eles foram pelo caminho mais fácil sem nem
tentar outra solução. E acham que é mais fácil trancafiar as pessoas
do que combater esses seres noturnos. Será?”
- Você quase me convenceu ali. - ele se aproximou dela depois
da reunião.
- Em qual parte? - ela não se intimidou pelo garoto mais velho
que a confrontava.
- Que é mais fácil combater do que se esconder.
- Você discorda? Acha mesmo mais fácil se certificar de que
todo mundo esteja dormindo?
- Bom, o pai de um amigo meu trabalha na Socoma…
- Seu pai, você quer dizer.
O garoto perdeu a fala, desconcertado, e desviou o olhar,
sorrindo. E ali ele chamou a atenção dela. Ele era tímido, mas se
aproximara para uma conversa. Ele era alto e bonito.
- Não, não é meu pai. Mas o que interessa é que a Socoma foi
criada com o intuito de combatê-los. Parece que tinham uma
estratégia sólida e eficaz, mas ainda assim os números pareciam
não diminuir. Eles são muitos, são fortes, rápidos… Durante o dia
sim, talvez não tivessem a menor chance.
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VI
P
or ora, eram jardins. Eles seguiam cautelosamente pelo
pavimento, o peso do carrinho trepidando com o som de
grilos. E o clarão da Lua crescente se levanta na noite limpa
de nuvens e agora é possível enxergar além do alcance de suas
lanternas.
E aquela forma amarelada que se afasta do horizonte,
resplandecente ao contemplar o planeta, nenhum simulador
jamais conseguiu reproduzir. Nyctidromus chegou perto, verdade.
Mas existe uma mística que acompanha o luar, uma energia mansa
que influencia a vida terráquea tanto no mar quanto no ar, nos
bosques, desertos e cidades.
O sangue não mais jorra. Agora são dois os que precisam de
cuidados. Ao menos um ainda pode caminhar, a mão comprimida
por gazes e esparadrapos, apoiada numa tipóia. O caminho pelos
jardins é longo por ser sinuoso e os grilos se calam com a
proximidade de forasteiros.
- Eu me pergunto se eles controlam os Fenômenos, se é algo
que eles fazem deliberadamente. - Viana suspirou.
- Se for mesmo assim, o que eles estão esperando? Por que eles
perdem tempo fervendo água ou mudando coisas de lugar se eles
podem simplesmente explodir toda a pólvora em nossas armas? -
Lenny duvidou.
- Então foi apenas uma coincidência?
- Eu não entendo de armas pra dar um diagnóstico de
probabilidades.
- Estou falando do teatro. Da queda de energia.
- Aquilo não foi um Fenômeno. - Vinícius se manifestou. - O
padrão ficava numa área escura atrás do palco. Eles poderiam
acessar sem problemas.
- Eu acho que foi tudo coincidência. Um fusível queimou por
alguma razão, sem nenhuma intervenção natural ou sobrenatural.
A probabilidade podia ser pequena, mas se ela existe ainda pode
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sobre seu criado mudo. Então ela colocou a mão suavemente sobre
a panturrilha dele, escondida pelas cobertas, e acariciou duas vezes
com o polegar.
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VII
A
quela primeira noite no Parque foi inesquecível. O
amanhecer foi estonteante. Mas ele não se sentia à vontade
para fazer aquilo com frequência, então assim ele a deixou.
“Olívia, não é uma questão de se formos pegos, mas de quando
formos pegos.” Aquele garoto de quem ela gostava não conseguiu
se apaixonar pela noite, não o suficiente para arriscar seu bem
estar.
Olívia achava que era uma questão de nunca. Lhe disseram que
havia cada vez menos patrulhas em atividade, a cada mês que
passava. Escárnios do tempo, agindo sobre a gigante Socoma,
apenas mais uma mortal no final das contas. Ela há de ver aquela
noite em que a liberdade triunfará e as doze horas negadas à
consciência humana estarão enfim escancaradas, sem restrições.
Três patrulhas agora, expostas em suas maquinações cíclicas,
lua após lua. Um espetáculo de tolos, perseguindo seus próprios
rastros, sem jamais se alimentar, até que o estômago se atrofie por
completo numa pífia bola de sedimento. Uma pedra, expelida nas
fezes de carniceiros, de onde brotarão flores, de onde nascerão
besouros e moscas e a vida mais uma vez prosperará.
Olívia chora. Sentada no piso frio, debruçada sobre seus
joelhos, a garota chora sem saber porquê. É o medo, que nunca se
identifica ao chegar. Olívia entende seu destino, apenas mais uma
mortal. Ela foi pega e não podia escapar, pois as flores que brotam
são carnívoras.
Lucian e Alex não perceberam os lamentos solitários de Olívia.
Eles escutavam atentamente através da porta e confirmavam a
presença de noturnos do lado de lá. Na parede ao lado, um vidro
refletia a luz da lanterna, cinco cadeiras se perfilavam ao longo de
um balcão. Estavam na bilheteria.
- E agora? Eles sabem onde estamos? - Lucian sussurrou o mais
baixo que pôde.
- Não estão tentando entrar, mas parece que estão procurando.
Vamos ter que esperar para ver se eles desistem.
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- E se não desistirem?
- Então vamos ter que esperar pelo despertar e torcer para que
eles não descubram uma maneira de entrar.
- Não pode matá-los?
- Quantos são, Lucian? Um tiro aqui dentro vai chamar todos
que estejam se escondendo nos túneis. Não é sensato. Não como
primeira opção.
Alex encerrou a conversa e se sentou no chão, de costas para a
porta. E só então Lucian percebeu as fungadas de Olívia.
Ela estava sentada quase no meio da sala, embaixo do balcão.
Ele foi agachado ao seu encontro, evitando o vidro dos guichês.
Agora eram os dois que cochichavam, quando sentando ao seu
lado ele começou:
- Está tudo bem? - e imediatamente se sentiu um idiota por
instigar uma resposta tão óbvia. Sem erguer a cabeça ela levou um
tempo para murmurar sua queixa. Ela o fazia tão baixinho, que ele
precisou se aproximar a ponto de seus braços se tocarem.
- Só quero ir pra casa, só quero dormir. Eu não fiz nada. Eu não
estou envolvida no que quer que vocês tenham feito. Por que eu
tenho que fazer parte disso?
Lucian sentiu um rochedo se formar sobre sua clavícula. Ele se
desculpou e Olívia não entendeu a verdadeira razão para aquele
arrependimento, assumindo que tivesse a ver com o fato dele não
ter sido fiel à decisão de levá-la para casa. Mas Lucian via sua culpa
ainda mais além, e isso ele temia compartilhar com ela. Era ele que
tinha traído a todos e revelado a localização do grupo no teatro. A
vida em troca da liberdade. Ela deveria agradecê-lo por salvá-la,
mas era ele quem se desculpava por prendê-la.
“Eu saio à noite! É isso, simples assim.”
E ele incrédulo começou uma discussão com Leonora:
- Atualmente? Você sai? Sempre?
- Sempre não. Algumas vezes por semana. O que foi? - ela
indagou perante aquele olhar de decepção ou desprezo ou
simplesmente confusão.
- Você sabe que isso é grave, não sabe?
- Ai Lui, não é grande coisa. Eu sei, eles fazem parecer uma
coisa absurda, impensável…
- Eles? Todo mundo.
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- Tudo bem, você pode até estar certa. Mas eu escolho confiar
na Socoma, eles estão aí pra proteger a população.
Para Lenny foi como levar uma marretada no estômago. Ela não
sabia como reagir a tamanho absurdo, então apenas gargalhou.
Socomado. Ela gostaria de abrir os olhos dele, mas ela não poderia
sem que ele estivesse pronto. Aquela gargalhada irritou Lucian
além do limite da razão.
- Tá legal, cara. Acredita no que você quiser. E é minha escolha
abrir mão dessa gentileza da Socoma. - ela pegou suas coisas e
calçou seu tênis.
- Não. Não é. - ele foi ao telefone de modo impulsivo.
- Vai ligar pro meu pai? - ela zombou e ele ignorou o
comentário.
- Boa tarde, pode me ligar com a Socoma por favor? Sim.
Obrigado.
- Até parece…
- Você duvida? Está chamando.
Lenny deu de ombros e entortou os lábios, como se não se
importasse. Ela puxou a maçaneta da porta e saiu sem dizer mais
nada. Lucian travou seu maxilar, unindo os dentes numa mordida
poderosa. Quando a porta bateu ele ouviu uma voz se identificar
pelo fone.
- Eu gostaria de fazer uma denúncia. - ele respirou fundo. Eres,
Ceres, Plutão e Makemake nadando alegremente.
- Bom, parece que no Lion… Eu sei de pessoas que… - Lucian
hesitou.
“Lucian, essa é a Leonora. Lembra dela? A Lenny. Ela era minha
melhor amiga no colégio. Lenny, esse é meu irmão Lucian.”
“Eu sei.” ela sorriu.
Lucian desligou e pegou uma almofada para abafar a frustração
em seu grito.
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Ele ofereceu outro panfleto, que retirou com uma discreta firula
de sua pasta.
- Nossos laboratórios trabalharam para reduzir os efeitos
colaterais. Agora são praticamente nulos. E hoje muitos
profissionais já reconhecem a excelência de nossas fórmulas e nos
recomendam com toda a segurança. Converse com seu colega,
pense a respeito. É fundamental que você se sinta confortável com
esse medicamento. Não estou aqui para te coagir com propostas,
presentes e comissões como vemos acontecer por aí. Temos o
mesmo objetivo: a saúde. A saúde acima do lucro, sempre. E como
você, queremos o melhor para nossos pacientes. Por isso acredito
que essa amizade poderá construir muitas coisas. - ele prolongou a
última vogal de “muitas”, entregando sua busca por um final de
impacto em meio a sua argumentação improvisada, mas
decepcionou na falta de um termo melhor. “Coisas.”
Romanie sentiu seu rosto se contrair levemente numa careta
involuntária que ela disfarçou a tempo com um sorriso. Ela sentiu
compaixão pelo garoto. Ele ainda tinha espinhas no rosto e ela o
comparou a seu secretário.
- Tudo bem, vou refletir sobre isso.
Ele se animou e deixou com ela algumas amostras grátis do
medicamento que promovia. Romanie os jogou dentro de uma
gaveta e fez uma rápida pesquisa sobre Menetra-Nal. Havia
aquelas coisas que todos sabiam, o escândalo da bula adulterada
que quase custou a vida da empresa e a sutil apologia não
declarada da automedicação. Mas de fato o reconhecimento de sua
conquista recente era legítimo. Pelo jeito, grandes laboratórios
também podem aprender com seus erros.
Ela tentou falar com seu mentor mas não conseguiu, deixando
um recado. À uma da tarde, abriu a porta do consultório para o
primeiro paciente vespertino, um lindo garotinho de dois anos
com a garganta inflamada que olhava curioso para sua barriga
gestante.
- Tem um neném? Posso ver? - ele pediu com sua vozinha
rouca. Ela deixou ele tocar sobre seu jaleco e explicou que não era
possível vê-la, apenas sentí-la. Antes da segunda consulta, ela ligou
para um colega. Ele disse que Menetra-Nal tinha acertado em
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VIII
O
bosque à noite era tão diferente, que os caminhos
pareciam depender dos movimentos do Sol e da Lua. Nem
Francis, nem Giulia, nem Andrei, nem Lenny, nem
Vinícius podiam dizer com absoluta certeza onde estavam. Mas
aquele som, pelo simples fato de ser audível, dava ao grupo uma
ideia aproximada da localização. Pois era sabido que naquele
parque havia duas estações da linha amarela do TAT: uma na parte
leste, outra na parte oeste.
Mas para Lenny aquele som era uma oportunidade imperdível
que se abria.
- Os trens estão funcionando.
- Como isso é possível? Por que motivo estariam? - Giulia
duvidou.
- Socoma… - Vinícius sugeriu, indo para a retaguarda do grupo,
procurando uma alternativa com sua lanterna.
- O TAT pertence à Socoma? - Andrei interveio.
- Eu não duvido.
- Eu já não me surpreendo quando descubro que algo está
ligado à Socoma. - Lenny murmurou sua fala com desprezo.
- Tem uma estação bem na sede deles. - Andrei se animou.
- Era exatamente isso que eu estava pensando. Não estou muito
confortável em continuar aqui. Esse pode ser nosso improviso, o
movimento que eles não previram. - Lenny encorajou, se juntando
a Vinícius na retaguarda.
- Acho que não é longe, aquele caminho ali atrás nos jogaria na
estação, pelo menos na direção dela. - ele disse para a amiga que
se aproximava.
- Vamos. Não temos muito tempo, ele está mal. - Giulia
adiantou a decisão, virando o carrinho com seu irmão febril. Por
baixo da terra eles chegariam muito mais rápido do que por entre
as árvores. E, todos concordavam, um descanso para as pernas
seria muito bem vindo.
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parte da carga que escapuliu pelo chão. Jogou também para dentro
a roda embrulhada no tecido. Trabalharia naquilo dentro do trem,
pois desconfiava que Francis não manteria aquela disposição por
muito tempo.
No movimento de se levantar, apoiou o joelho dolorido no
chão, se lembrando da sua lesão. Se jogou sentado para trocar de
perna rapidamente, vendo Vinícius se distanciar, certo de que
Andrei o acompanhava. Aquilo não era bom. Quando ele se
preparava para gritar e pedir que o esperasse, ouviu um farfalhar
atrás de si, vindo pelo corredor, encoberto por toda aquela
escuridão que transbordava do salão lá no fundo.
Aquela coisa se lançou para cima dele no momento em que ele
tentava se levantar. Ele foi levado ao chão com a brutalidade de
uma quimera. Seu corpo inteiro se contraiu e ele sentiu um frio
perfurante tomar seus ossos. O peso da criatura imobilizou seu
cotovelo esquerdo junto ao chão e seu quadril inutilizado numa
dor insuportável. E uma mão esquelética e repugnante comprimiu
seu rosto e começou a lhe apertar a cabeça contra o chão. Andrei
não conseguiu gritar, não conseguiu lutar, todo seu esforço era
direcionado simplesmente para o ato de respirar. Ele virou a
cabeça de leve, a mão se cravou na sua têmpora. Toda a dor em
todos os seus membros desapareceu. Existia apenas seu crânio,
empurrado com uma força descomunal para aquela superfície dura
e gelada. Seu coração disparado agonizava em desespero,
expurgando adrenalina em modo sobrevivência. Se sua cabeça não
explodisse antes, certamente o coração iria. Sua arma estava posta
na cintura do lado esquerdo, onde supostamente ele deveria
alcançar com a mão direita, sua mão livre. Mas havia aquela coisa
debruçada sobre ele, logo tudo o que Andrei podia fazer, era
esticar seu braço ao longo de sua nuca, quase deslocando o ombro
com o esforço. Sua salvação estava ali em algum lugar e ele a
buscou com os dedos. Sua visão escurecia e, já aprisionado num
corredor escuro, Andrei soube apenas por causa dos pontos roxos
e brancos que formigavam diante de seus olhos.
E foi com a ponta do dedo médio que ele resvalou na lanterna.
Se acomodando nas imperfeições do ladrilho, ela rolou um
centímetro na sua direção. Assim que ele a conquistou com dois
dedos, ele sentiu seu corpo repelido levemente pelo chão. Sua
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Clara tinha oito meses quando viu a noite pela primeira vez.
Anterior a isso, ela não via apenas porque seus olhos não tinham
se desenvolvido por completo e tudo que via eram vultos, luzes e
cores próximas a ela.
Daya acordava com o choro da bebê, no quarto logo em frente
ao seu. Ele se levantava prontamente e nem precisava acender as
luzes: o caminho até o berço estava gravado no seu DNA e fora
ativado com o nascimento de Clara. Algo no choro dela, algo que
ela precisaria para sobreviver.
Ele levava aquela pessoinha mal-humorada até o colo da mãe,
também no escuro, pois a essa altura seus olhos já aproveitavam o
luar que passava pelas frestas das cortinas. Romanie sequer se
mexia. Daya a virava de lado caso ela estivesse de costas e expunha
seus seios para a criança, deitando-a delicadamente. Clara se
aninhava cheia de satisfação ao receber o leite morninho em seu
estômago, gemendo ternamente, como um filhote apaziguado. O
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Hoje essa média passou para além das vinte e três horas.” E
afirmavam ainda que quanto mais tarde, mais ativas as criaturas
ficavam e se incomodavam com luzes artificiais, razão pela qual se
aproximam das casas, muito provavelmente para buscar uma
maneira de suprimir a iluminação.
Os filhos do escuro, crianças que viriam a uma realidade sem o
âmbar intervalado de postes. Romanie ainda conseguia puxar de
sua memória aquela imagem. Por mais que ela não pudesse sair,
ela observava da janela do seu quarto a luz acumulando mariposas
na noite. Até que numa manhã, ela foi pega de surpresa ao acordar
com o som de técnicos da companhia elétrica desmantelando
aquela sua estrela artificial. Ela tinha treze anos quando a noite
urbana foi devolvida para a escuridão. Aquela seria a realidade de
sua filha, as noites escuras, a apreensão do desconhecido se
esgueirando lá fora.
“Não se preocupe, é temporário.” seu pai dizia. Ela não estava
preocupada, ela gostava das noites de lua cheia e das noites
estreladas. Não se preocupe. Havia algo com o que se preocupar?
Mas as luzes nunca foram restauradas. O temporário se
expandia rumo ao permanente.
Os primeiros meses em que Clara existiu foram desafiadores
como haveriam de ser para pais principiantes. Fora isso, tudo
conspirava a favor da felicidade: a casa era segura, o leite era
abundante, a saúde de Clara era impecável, o dinheiro nunca era
um problema e as regalias que Romanie recebia complementavam
o conforto já garantido. Eles dormiam cedo, seguindo a sugestão
de apagar as luzes antes das vinte horas e nunca se surpreenderam
com avistamentos ou mesmo Anomalias.
Mas com o passar dos meses, Romanie começou a se irritar por
pequenas coisas, perdia a paciência com o choro de Clara, estava
distante de Daya, não queria receber visitas, ficava angustiada por
ser uma péssima mãe. Ela queria voltar a trabalhar o mais rápido
possível e assim foi.
Foi então que seu mentor, Dr. Cláudio Selar, agora aposentado,
percebeu os sinais durante um almoço e compartilhou suas
suspeitas abertamente. Romanie procurou ajuda e confirmou:
depressão pós parto não é incomum se manifestar muitos meses
depois do nascimento.
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- Foi logo depois que Vinícius me chamou pra sair com vocês. A
gente tinha dezenove, não é? Então a Giulia tinha quinze. Dois
anos depois da proibição dos simuladores.
Lenny não se lembrava, mas tinha sido apresentada para Giulia
naquela ocasião. “A irmã mais nova do Francis”, que figurou no
grupo na noite do campo de golfe, quando colaram fitas de néon
em vários frisbees e jogaram até caírem exaustos.
- A gente pedalou até o campo de golfe pra… - um som
interrompeu a recordação da primeira noite de Giulia. Era um
trem, irrompendo na estação.
- Acho que é o nosso! - Vinícius constatou e se destacou do
grupo numa marcha rápida . O corredor terminava numa passarela
e lá de cima ele viu o trem se acomodando entre as plataformas,
percorrendo no sentido em que o grupo almejava. Voltou correndo
para os três que tentavam acompanhá-lo.
- Vini, não sai muito de perto da gente. - Lenny censurou. Ele
ignorou, relatando com urgência:
- É o nosso! Acabou de chegar! Temos que correr!
- Não dá pra perder esse. - Giulia passou a mão em volta da
cintura do irmão, que retribuiu se apoiando em seu ombro.
Num instante eles estavam cruzando a passarela, as lanternas
em riste, seguindo o vai e vem frenético dos braços que correm.
- Vai! Mais rápido!
Francis tirou a disposição do fundo do seu ser, toda a energia
que ele não mais tinha, refabricada por uma carga violenta de
adrenalina em seu sangue. Instinto de sobrevivência. A última
etapa, o último trecho de esforço e depois disso ele poderia
descansar. Não ia precisar andar, correr, descer, lutar, fugir,
prestar atenção a todo ruído mínimo, forçar suas pernas a
obedecerem e espantar os pensamentos negativos apenas para
manter viva a esperança da sua irmã. A Socoma o esperava como
um oásis, um santuário ou um paraíso. Ou simplesmente uma
cama. A promessa de inconsciência temporária repentina, sua vida
nas mãos de estranhos, a esperança de Giulia, o choro de seus pais.
Mais alguns metros para frente, mais alguns metros para baixo.
Está quase lá. Agora as escadas. Apenas dois lances. Vinícius
oferece suas costas. Sua vida, a esperança de sua irmã, o choro de
seus pais, as costas de seu amigo. Lenny desce de dois em dois. Ela
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- Tudo bem. Vamos descer… Mas eu queria falar com você. Não
sei se vai dar tempo… - ela se virou para Lucian e seus olhos se
encontraram enfim, numa distância que há muito não se viam.
Eles se afastaram do grupo, descendo pelo corredor, buscando
um assento para conversar.
Ela ouviu a surpresa de Giulia escapar dos comentários atrás de
si. “Quê? Aquele Lucian?” Apenas Vinícius o conhecia, mas ainda
assim não sabia de toda a história do hotel. O resto sabia apenas
do nome daquele que deixara Lenny entristecida por um tempo.
Até o dia em que ela decidiu “Cansei de falar desse cara. É página
virada. Não deixem mais eu tocar nesse assunto.”
- Lui, como será esse pacto?
Ele não sabia. Alex não sabia.
- Você vai achar que é implicância minha, mas por favor me
escuta. A Socoma não deixaria você sair livre. Depois de todo o
circo que eles fizeram com a sua prisão, eles não chegariam
amanhã na televisão para te declarar um herói, nem ao menos te
agradeceriam. Eles estão te usando, Lucian.
- E o que você sugere que eu faça? - ele perguntou desanimado,
mais como um argumento do que uma pergunta. Não restava nada
a não ser confiar na Socoma.
- Vem com a gente. Não faça o pacto. Se a Socoma te pede algo,
faça exatamente o contrário.
- A Socoma mente… - ele adiantou, vencido.
- Lucian. Por favor, pense a respeito. Você viu coisas hoje à
noite que eles te esconderam a vida inteira. E esconderam dos
nossos pais e esconderam dos nossos avós. Eu não acredito que
eles não consigam firmar um pacto por conta própria. E se eles
precisam de você, certamente é para te descartar, não te
condecorar.
- O que você acha que vai acontecer? Que eles vão me oferecer
como sacrifício?
- Pra mim é bastante óbvio. Você matou, você deve morrer. Eles
fazem a própria lei, Lucian.
- Eles não estão acima do Estado.
- O que você chama de Estado é apenas mais um setor da
Socoma… - ela abanou a cabeça, perdendo as esperanças de
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- Na passarela…
Um sinal alertou para o fechamento das portas. Lenny levantou
a mão com um sorriso triste no rosto, acenando da plataforma
quando o trem começou a se movimentar. “Se cuida”, ela
mentalizou, esperando não ser a última vez que o via.
As últimas janelas passaram como um borrão, deixando a
folhagem das árvores adormecidas com um vento forçado.
Seguindo a curvatura dos trilhos que beiravam o Parque, mais à
frente, o imponente prédio da Socoma se erguia iluminado até a
metade. Os andares superiores, o apelidado “Tártaro”, parecia um
organismo morto ou um aparelho defeituoso, sendo visível apenas
pelo discreto luar crescente, agora parcialmente coberto por uma
nuvem.
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IX
N
aquele tempo ainda havia vinte e três patrulhas da Socoma
circulando pelas ruas. Naquela noite, depois de vários
meses de calmaria, uma moto cortava as ruas em alta
velocidade. A Décima-oitava Unidade foi a primeira que avistou e
perdeu o rastro do transgressor quando ele cortou caminho por
uma praça. Logo, todas as viaturas estavam cientes do desafio e se
dedicavam a encontrar o motoqueiro. A Sétima Unidade cruzou
com ele e, durante a perseguição, trabalhou com outras duas
viaturas tentando cercá-lo. Mas ele era irritantemente esguio e
habilidoso.
Ênio esperava junto a uma árvore quando um Áquila revestido
virou a esquina. Os faróis apagados piscaram duas vezes,
sinalizando sua presença. Ênio respondeu com sua lanterna e
caminhou até o meio fio. Havia cinco pessoas dentro do carro.
- Está invisível. Nós fizemos um carro desaparecer! - ele se
empolgou ao abrir a porta de trás e se apertar junto aos três que lá
já estavam. - E Felipe?
- Já está nas ruas entretendo a Socoma. - Alícia avisou.
Brener guiou o carro até o fim da rua e virou à direita.
- Quer dizer que você corre o risco não apenas de ser preso,
mas também de perder o emprego, Escritor? - Érika provocou o
amigo.
- Eu vou publicar com um pseudônimo, não sou louco de me
expor assim. Vou ser pai, lembra?
- O que foi? - Osias, no banco da frente, não entendeu.
- O jornal em que ele trabalha pertence à Socoma. - Érika
esclareceu.
- Na verdade, o dono possui ações da Socoma. Só isso. - Ênio
corrigiu. Érika fez um gesto com a mão aberta, como se dissesse
“pois então, é da Socoma.”
- Se te pegarem, publicando livro ou não, você está na rua. -
Brener piscou o farol brevemente para gravar a imagem da rua na
sua cabeça e voltou a dirigir no escuro.
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X
O
único som que se propagava nas ruas era de um trem que
se afastava. A pista sutil de um clarão revelava nas nuvens
a posição da lua escondida. As casas adormecidas, janelas
fechadas. Um movimento no ar, uma criatura ancestral que se
lança de um telhado sem fazer o menor ruído. Garras que
perfuram, dilaceram, apertam contra a pele até romper a frágil
superfície sob a arma pontiaguda.
Lenny, agarra o braço de Vinícius diante da visão, impedindo
que ele avançasse mais um passo. Ela aponta a coruja voando de
um lado ao outro da rua, mirando algo que se movimenta no chão.
Habitantes dos bueiros, um país de encanamentos e galerias
inundadas. As patas da ratazana fazem um barulho distinto toda
vez que toca as pedras da calçada. E ela nem se dá conta do
momento de sua morte, que chega no impacto daquelas garras que
voam silenciosas e se cravam em seu dorso, pegando de uma vez o
fígado, o pulmão esquerdo, um rim, três alças de intestino, o
fundo do estômago, a traquéia, o ombro direito, além de quebrar
sua coluna em dois pontos.
- É uma Múnia-diabo. Olha como ele engole o pobrezinho de
uma vez só. - Lenny sussurrou, fascinada com o tamanho da ave.
Era um jovem macho. Tufos se erguiam do alto de sua cabeça, em
forma de pequenos chifres negros. E quando ele virou a cabeça
para olhar a fonte da perturbação, a luz bateu no fundo de seus
olhos, refletindo um brilho arrepiante.
Vinícius apagou a lanterna. Ele nunca tinha visto uma Múnia
caçando. A ave buscou a presa com seu bico afiado e, jogando a
cabeça para cima, fez rápidos movimentos repetidos com o
pescoço. A ratazana foi desaparecendo, sendo sua cauda a última a
deslizar pelo bico já cerrado. A coruja encarou o par de humanos
no escuro, analisando a ameaça. Seus enormes olhos amarelos
encobertos pela noite.
E então ele capta algo mais, se não com a visão, com a sua
audição. Ele ergue suas enormes asas e, em perfeita harmonia
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quem abre uma cortina com desprezo e fúria. Lenny vê, são
vísceras, é uma porção do intestino que é arrancada no movimento
e bombardeia o asfalto de sangue. É o grito agonizante que morre
num gorgolejar lamentoso. É a outra garra que esmaga o peito em
espasmos, para que não mais se mova, para que assim a coisa
possa devorá-lo de imediato. E antes que ele morra
completamente, uma cabeça grotesca mergulha em seu ventre
exposto, consumindo os órgãos pulsantes com visível ódio.
Lenny não quer mais ver e corre para a calçada. Pois há ali um
totem publicitário que se oferece para escondê-la, uma vez que a
esquina agora parece longe demais. Ela cola as costas numa
aparente tentativa de se fundir com o objeto. Seu coração esmurra
todo seu corpo e ela respira em tamanha disritmia que acha que
pode sufocar. As mãos e o peito tremem descontroladamente.
Medo, pavor, instinto de sobrevivência. Ela está ficando paralisada.
Não pode ser, não é real. Pesadelos são reais até o momento em
que se acorda. Mas nunca foram reais.
Ela precisa agir, antes que nunca mais consiga se mexer e morra
ali mesmo, esfolada viva. A lanterna, a arma… A chave da casa de
Giulia! Lenny move sua cabeça devagar, olhando para trás, apenas
até conseguir ver algum movimento. A criatura continua lá, agora
se alimentando com menos voracidade, agora que o sangue não
mais esguicha, apenas jorra. Ela escuta o barulho das lambidas, os
gemidos de satisfação e arrotos. Um timbre estranhamente
humano, destoante da forma que o produz. A lanterna rolou para
o outro lado da rua, junto ao meio fio. Lenny se obriga a respirar
fundo, acalmando seu corpo e mente, buscando qualquer tipo de
impulso para sobrepor todo aquele pavor. E quando ela está a
ponto de correr para o tudo ou nada, vê um segundo noturno
surgindo da penumbra, atraído pelo cheiro de morte.
A coragem de Lenny se dissipa como uma gota de chuva no
solo. Ela permanece escondida, mas agora pode ouvir aquela coisa
se aproximando. Ela não se arrisca a conferir. Um ronco vem de
algum lugar à direita. Ou seria a criatura? Sim, é um ronco. Um
ronco maquinal.
Lenny precisa chegar até a esquina. Ou até a lanterna e depois à
esquina. Mas ela viu o quão rápido podem ser e não consegue
encontrar um só grão de esperança. Ela percebe: está paralisada.
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Alguma coisa escura escorre pelas paredes de seu quarto. Ela toma
Sono apenas para escapar daquele pesadelo. Há um buraco
sangrento com um forte odor de suco gástrico. E a carne dos
órgãos mastigados compõe uma deformidade repulsiva, onde nada
se identifica, pois ali, a monstruosa figura consome não apenas o
corpo, mas sua voz, seus medos e sua alma. Seus dentes dilaceram
e mastigam almas.
Ela escuta uma risada de criança, bem baixa e discreta, abafada
como se disfarçasse o riso. Mas está bem ali, atrás dela, do lado
oposto do totem que a esconde. Lenny não consegue olhar, não
consegue fugir e faz um esforço enorme para apenas respirar. Algo
está farejando com impaciência.
Subitamente, um clarão atordoa Lenny por dois segundos. O
carro virou a esquina, transformando a rua com seus holofotes e
faróis. Ela se apressa para o meio do asfalto, sem nem olhar para
trás, erguendo os braços e acenando desesperadamente. A viatura
freia de imediato e três portas se abrem. Dois agentes passam
direto por Lenny, como se não a enxergasse. Lenny olha para trás,
eles se ajoelham junto ao corpo de Vinícius, agora abandonado.
- Você está bem? Está ferida? - o terceiro agente toca em seu
braço, assustando Lenny que está no máximo de seu estado de
alerta. É uma mulher. Lenny tenta, mas não consegue falar.
- Feller! - um dos agentes atrás de si convoca sua colega.
Quando Lenny olha, ele está aparando a cabeça de Vinícius com
uma das mãos. E Vinícius corresponde, agarrando o braço dele
com rigidez. Lenny perde o ar.
Ela vai atrás de Amanda, em passos entorpecidos. “Parada
cardiorrespiratória.” ela escuta a outra agente dizer, já de pé e
correndo para o veículo. Amanda se abaixa e levanta a camisa de
Vinícius, preparando-o para o desfibrilador. Mas nenhum oxigênio
circula pelo cérebro do rapaz e, se ele se agarra ao agente, é mais
um espasmo do que um pedido de ajuda. Lenny se aproxima o
suficiente, trêmula, perante a vida que sai do corpo do amigo
numa última brisa que ninguém ali consegue sentir. Não há
sangue no asfalto, não há tripas, não há pele dilacerada nem
órgãos devorados. O ventre de Vinícius está como sempre esteve.
Baya-lau-revvn.
264
PARTE III
I
O
despertar de Agda Tchertkov tinha início com seu gato.
Ela sabia que ele provavelmente se mexia e corria pela
casa inteira durante a noite, mas Sono não deixava que ela
acordasse. Era apenas ao amanhecer, quando o efeito de sua dose
começava a se dissipar junto com a escuridão do céu, que ela
sentia as mordiscadas nos seus pés.
Sua mãe, quando a visitava, se surpreendia com a longevidade
do animal. “Ainda é o mesmo?” ela provocava. E Agda respondia
pacientemente que aquela casa era completamente segura à noite.
Qualquer coisa que andasse ali dentro depois do limiar, que não
fosse do tamanho de um gato, acionaria as fortes luzes repelentes
em todos os cômodos.
- Você não confia nos seus agentes?
- Casablanca me assegura que designou três unidades para cá,
exclusivamente para cá. E eu confio nela.
- Então qual é o problema? Todos esses gastos por causa de um
gato?
Não. Agda ainda não tinha se acostumado com aquela trégua.
Ainda sentia aquela ansiedade toda vez que ia se deitar. Todas as
precauções eram financiadas apenas para que ela conseguisse
apaziguar seus temores que trazia da adolescência. O despertar de
Agda Tchertkov tinha início com seu gato e continuava com o
nascer do Sol. Um desses arquitetos renomados, que projetou sua
mansão, posicionou seu quarto no alto da estrutura, com uma
grande vidraça para o leste e outra para o oeste. O Sol disposto, o
Sol cansado. E Agda, mantendo os mesmos hábitos que a jovem
estrela, se sentia em sincronia tanto em importância quanto poder.
A manhã tinha prosseguimento com seu assistente pessoal
trazendo uma caneca de chocolate-negro cafeinado. Ele aparecia
sempre no mesmo horário e Agda adorava o constrangimento dele
quando o mandava entrar ainda deitada na cama, vestindo apenas
uma camisola cara. Ele não era muito mais velho que ela.
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quero ter que me acostumar com toda essa formalidade. Não tem
ninguém assistindo. - ela falava como uma amiga próxima.
Maximus teve suas dúvidas se aquilo faria bem ou mal à Socoma.
- Não é apropriado, senhorita.
- Então a decisão é sua? - ela mudou para um tom firme.
Ele ficou calado, sem saber o que responder.
Ela sorriu. E ele tentou se manter sério, mas cedeu depois de
alguns segundos, com uma risada discreta de alívio. “Droga, ela é
muito bonita. O que será de nós?” ele pensou, mais preocupado
com seu cargo do que com o futuro da Socoma. Pois Agda confiava
totalmente na sua madrinha, nos contadores, nos advogados, nos
gerentes, nos veteranos e em seu assistente. Agda era a nova cara
da Socoma, mas o coração da companhia continuava o mesmo. Ela
tinha a presidência apenas no papel e ela mesma sabia disso e se
sentia confortável e amparada. Nenhuma grande decisão era sua,
não era ela ditando as regras, ela ainda tinha tempo para aprender
as artimanhas do cargo.
E então, três anos depois, com a morte de sua madrinha, o
mundo finalmente pareceu notar que era Agda Tchertkov a se
sentar no topo daquele prédio recém-inaugurado. Era ela a única
herdeira, a proprietária, o grande nome a assinar todo documento,
o músculo a bombear o sangue por toda uma corporação. As
árvores do Parque se estendendo aos seus pés.
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II
K
aterina se agarrava ao seu melhor amigo, relutante em
deixá-lo ir. “Dorme aqui” ela fazia manha com a voz
abafada contra o peito dele. Ele resistia, repetindo
lamentosamente a justificativa que tinha aula na manhã seguinte.
- Você está bem, Kaká. Toma um Soporiclona e amanhã eu te
busco pra gente almoçar juntos. - ele zombou.
- Eu JAMAIS tomarei aquele troço. - ela levantou a cabeça para
protestar com um olhar emburrado.
- Eu preciso ir, está tarde…
- Meu pai vai dormir no laboratório, por favor, fica. - ela
prolongava as vogais, reclamando.
- Não é isso. Logo não vai mais ter bonde. E mesmo se eu
dormir aqui, vou ter que voltar pra casa antes da aula pra pegar
meus livros.
- Eu peço um carro pra você. Melhor, eu peço pro motorista
trazer suas coisas.
Ela ainda estava triste demais para ficar sozinha. Era quase
meia noite quando ela adormeceu. Seu olhar choroso finalmente
descansava sob suas pálpebras e talvez ela até sonhasse com
aquele que a largou. Mas em sonho eles ainda estavam juntos e
para ela era tentador não acordar mais.
René se virou e apagou a luz, se aconchegando perto dela.
Semi-desperta ela o recebeu envolvendo suas mãos com dedos
febris e se aproximando, a ponto de se fazer sentir sua respiração
no rosto dele. E René pensava na promessa que ela havia proposto
pouco antes de ceder ao sono: “Se a gente continuar próximos até
os trinta, eu quero ter um bebê com você.”
Ele selou o acordo para que ela não se sentisse rejeitada
também por ele. Não que ele não gostasse da ideia, ele apenas não
acreditava. Em treze anos muita coisa poderia mudar. Aliás, ela
nem se lembraria de suas ideias sonolentas ao acordar. Mas René
adormeceu reconfortado pelo pensamento de que, pelo menos
naquele momento de carência, sua promessa foi sincera. Ter um
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que nenhuma dessas mortes tenha a ver com ataques. - ela calçava
o sapato próxima à porta. Micaela insistiu:
- Mas o irmão da minha amiga…
- … acha que viu um. Estou errada? Ou ele viu claramente que
era um desses animais?
Micaela ficou calada, braços cruzados, o ombro encostado na
parede fria.
- Fica tranquila, Mica, não vai acontecer nada. Não vou voltar
muito tarde.
E ela saiu. À noite. Mas Micaela, que já não saía há nove dias,
achava aquela atitude suicida e extremamente irresponsável.
Agora eram quase três da manhã e ela ainda não ouvira a chave
na porta. Relutante em voltar para a ansiedade dos lençóis, ela
ligou o cine-rádio. Trezentos e vinte e um mortos. A informação
fixada na tela como se fosse um placar. E uma âncora num estúdio
iluminado, com ar de urgência, noticiava cidades atrás de cidades.
“Representantes do governo se reuniram com as forças armadas,
não descartando a possibilidade de…” Ela mudou de estação. Uma
mulher comendo uma trufa ao som de um narrador “... trinta e
cinco anos de excelência em…” E de novo. Uma música alegre,
uma família brincando num gramado com um cão de raça
limpinho, um casal se abraçando ao pôr do sol em um mirante
turístico, a logo de um plano de saúde acima de letras brancas
caligráficas “Não se preocupe.” E de novo. Um repórter narrando
sua matéria enquanto cenas urbanas sucediam-se. “... a situação se
repete.” Corta para um jovem sob a forte luz de refletores, numa
rua movimentada do centro da cidade, ao cair da noite. Um
microfone diante de si. “É, dá um medinho, sim. Mas aqui tem
movimento. A gente evita ficar em lugares mais vazios e escuros. E
sai sempre com um grupo grande.” “Você já viu alguma coisa?” o
repórter pergunta de fora do enquadramento. O jovem sorri como
se fosse uma celebridade no tapete vermelho. “Não, não. Ainda
não. Bem que eu queria, mas ainda não.” Volta para o estúdio, um
casal de jornalistas de pé próximos a um monitor grande que
transmitia um correspondente. De acordo com as autoridades, a
presença de civis nas ruas durante a noite diminuiu apenas em
quinze por cento. A maioria permanece cética ou despreocupada.
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“Vai passar, sobre isso não precisamos nos preocupar. Mas por ora
a orientação é permanecer em casa depois das oito horas da noite.”
Micaela estremeceu. Três dias atrás a recomendação valia para
às oito e meia. Semana passada era às nove. Um mês atrás, quando
os ataques não passavam de vinte, era às onze e meia.
Quando sua colega de quarto chegou, uma hora depois,
encontrou Micaela adormecida no sofá, embalada por versos
tenebrosos do cine-rádio. Quatrocentos e setenta e oito mortos,
novecentos e cinquenta avistamentos confirmados. Não era atoa
que ela mal conseguia dormir. Não era por acaso que ela já
acordava ansiosa e aflita, sedenta de otimismo mas procurando
onde só havia tragédia. Pela janela um banner se erguia na
avenida. Uma transportadora tranquilizava: “Não se preocupe.”
- Mãe, eu quero ir pra casa. Não me interessa o coletivo, eu não
consigo mais dormir. Porque eu fico sozinha… Não, mas todo fim
de semana. Não sei… Só até isso tudo acabar. Como assim “isso o
quê”? Isso, dos ataques noturnos… Não, mãe, é bem sério. O
noticiário, mãe, todo mundo! Sim, mas não adianta, é como se
tivesse o efeito contrário, eu estou preocupada!
As passagens vespertinas eram escandalosamente mais baratas.
Mas, com sete horas de estrada, Micaela chegaria já à noite. Já para
viajar de trem, os horários eram destoantes: seis da tarde,
implicando uma viagem noturna; seis da manhã, implicando sair
de casa antes do amanhecer. Já para viajar de avião, não havia,
naquela época, uma companhia aérea que cobrisse aquele trecho a
preços acessíveis. Ainda assim, todas elas traziam modelos com
expressões serenas, posando acolhedoramente para a câmera,
acompanhados de “Não se preocupe.”
Micaela trabalhava como estilista em um ateliê coletivo. Era um
prédio antigo e indiscutivelmente charmoso, as janelas voltadas
para as copas das árvores de uma praça. Ali, ela e seus colegas se
sentavam para almoçar toda quarta, quando a pizzaria do outro
lado da rua oferecia combos promocionais. E foi sentada àquelas
mesas, entre os canteiros floridos, que ela ouviu de um colega que
vinha falando com outro até anunciar para todos. O governo
mandou fechar a cidade depois das oito horas da noite, todo o
comércio, todos escritórios e consultórios, todo restaurante e
lazer.
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tudo certo. Sua madrinha sabe o que está fazendo.” Soava mais
como uma esperança do que como uma certeza. E anos mais tarde,
quando Socoma não mais fazia parte da vida de ambas, Casablanca
confessou a fragilidade do pacto. Era uma questão de quando.
- A família do agente já foi notificada? - Pena formulou a
questão enquanto Agda mantinha os olhos pensativos nas nuvens
do meio dia.
- A essa altura já deve ter sido.
- Obviamente colocaram a culpa em um ser noturno… - Agda
divagou.
- Na verdade não. Não queremos divulgar os noturnos. Nesse
caso é vantajoso se ater aos fatos.
Agda soltou o fôlego numa bufada irônica e só então voltou seu
olhar para a conversa:
- Agora eu entendo a madrinha… Ela dizia que o Pacto feria a
estratégia. Pra mim era contra intuitivo, até então. Com a Lei do
Limiar, mais consumidores iriam procurar Sono. Mas as pessoas
não vão dormir porque são obrigadas, vão dormir porque estão
com medo. A questão é: as pessoas se esquecem, se sentem
seguras e se esquecem. É crucial lembrá-las do que estamos
evitando, contra o que estão sendo protegidas.
O rapaz se segurava para não interromper o discurso de Agda,
mas não conseguia disfarçar sua impaciência. Quando ela fez uma
pausa um pouco maior, tendo terminado sua fala ou não, ele
interveio:
- Senhora Tchertkov, voltar o foco para os noturnos iria apenas
causar pânico.
- Depende da forma em que o assunto for tratado, meu jovem.
Com as palavras certas podemos evitar a histeria coletiva ao
mesmo tempo em que fazemos a manutenção do medo. E o medo
é uma ferramenta extremamente poderosa e eficaz.
- Desculpe, Agda, Maximus foi bem específico sobre a
divulgação. O agente sequer será mencionado. Muito menos os
seres da noite. - o homem mais velho concluiu.
- Seria tão mais fácil… - ela se lamentou e voltou a buscar
conforto nas nuvens. Pena mudou o tópico para evitar
constrangimento:
- Testemunhas? Além dos agentes, claro.
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que o CEO fazia, nas poucas vezes em que aparecia, era ignorar
todas aquelas exigências e acusações.
- Max, esse é exatamente o caminho que queremos percorrer.
Quanto menos eles falarem do caso em si, melhor.
- Eu só quero adiantar essa sentença, Agda, pôr um ponto final
nessas especulações. Eu já não me importo com a reputação da
Socoma, num dia somos heróis, no outro somos vilões, é sempre
assim, com qualquer grande companhia.
- “O público esquece…” Casablanca entendia tudo exatamente
como é. Quer assumir a culpa, Max? Quer anunciar uma total
reestruturação na Socoma, demitir os envolvidos, dizer que foi um
acidente, pedir desculpas e tocar o barco?
- Seria muito mais fácil, não é? - ele demonstrou cansaço na
voz.
- Seria mais barato… Jamais fácil.
- De quanto você precisa pra apressar isso? Quanto eles
querem?
Porém Max não havia entendido ainda. Não era interessante
apressar o caso, era exatamente isso que o público queria. Melhor
seria tornar tudo tão lento e monótono que os telespectadores
mudariam de canal e a imprensa rapidamente desistiria.
“Ela passou por um momento de crise ao meu lado e está
perfeitamente preparada para assumir.” Dizia Socoma ao entregar
o cargo. Pois Agda já vira a madrinha usar de tal estratégia no
passado, enquanto as estatísticas cresciam por minuto,
instaurando o medo. E quando o último grupo de Insones fora
detido numa fábrica abandonada, nenhum jornal na época usara
mais que meia página para noticiar.
Quando o assunto dos Sete do Memorial deixou os holofotes, a
sentença foi dada duas semanas mais tarde. Ênio foi condenado à
Clausura por sete anos. Dominique nunca foi autorizada a vê-lo.
As opiniões sobre a Socoma foram fortemente influenciadas e, se
antes eram majoritariamente indiferentes, agora tendiam ao
dúbio: era melhor não opinar, não se comprometer com um
posicionamento diante de tanta incerteza. A Socoma era vilã e
heroína ao mesmo tempo, assassina e guardiã, noite e dia. E no
final das contas, Agda voltou para sua ilha satisfeita com os
resultados. Estava explicitado o que a Socoma poderia fazer com
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III
E
les já estão condicionados a reagir à luz. O céu se incendeia
com o ocaso e todos eles já se recolheram, pois assim
funciona a vida. Da decadência vespertina, a agitação tira
incentivos para expulsar a população da rua antes da escuridão. E
o relógio não precisa enfim exibir dezoito horas para que eles
estejam rompendo aquela fina película de gelatina com uma
mordida. E a solução, liberta, cumpre seu destino.
"Nox!” eles gritam confusos com as trevas que se repetem.
- Eu tinha sete anos. Eu lembro que o Lucian tinha uns dois,
três meses. Pra mim era muito estranho como ele de repente
desligava.
- É, bebês são todos desregulados. Eu ainda acho bizarro como
conseguem dormir de dia sem tomar nada. - Gabi marcava o livro
com o dedo indicador. Ela interrompera sua leitura para melhor
escutar o marido que, sentado na poltrona, costurava um botão
em uma calça azul marinho. Ela, do sofá, sentada com os joelhos
dobrados, lia um livro proibido. Noctívago (Uma história da noite),
de Robin Van Halt.
- Bom, - Nico continuou - eu era uma criança bem curiosa e
dona de si. Teve uma vez que eu me escondi no quintal pouco
antes do limiar, só porque eu queria ver a noite. Meu pai gritava,
ameaçando me deixar de castigo; mas foi minha mãe que me
convenceu a aparecer. Ela disse que me mostraria a noite, mas
antes queria se certificar da minha determinação. Eu teria que
esperar uma semana, sempre dormindo no horário. Se no sétimo
dia eu ainda quisesse ficar acordado, ela me ajudaria.
- Eu nunca quis ficar acordada. Tinha medo do escuro. Acho
que a primeira vez, a única vez que eu vi a noite foi num simulador
aos quinze anos. Mas e aí?
- Aí, uma semana depois, ela cumpriu o prometido. Perto do
limiar eu já estava na cama, encenando pro meu pai estar pronto
pra dormir. Minha mãe foi ao meu quarto e ao invés de dar minha
dose, sussurrou para que eu aguardasse em silêncio até ela dar o
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“Só pode ser ele. Quem mais viria aqui a essa hora?”
Nico corre para o interfone e abre o portão. Em seguida abre a
porta e espera pelo irmão, ou qualquer sinal de que esteja subindo
as escadas. Mas não há ninguém. Programação indisponível
passando pela porta escancarada e iluminando precariamente o
corredor.
Quatro lances de escadas, guiado pelo corrimão e o
automatismo do percurso. Nico cruza o jardim interno para
encontrar o portão encostado, completamente intocado. Ele
chama pelo irmão ausente.
E antes que possa ouvir a resposta ou a falta dela, rasgando a
noite, um ganido horrendo se arrasta lamentoso, ecoando até o
distante mundo onírico, mas originado perto demais dali:
borracha queimando no asfalto, uma freada brusca. Ao sair pelo
portão, o céu despeja toda a infinitude nos ombros despreparados
de Nico. O portão o chama de volta e ele não pode ignorar,
dividindo suas prioridades num dilema sádico.
Adrenalina inunda suas artérias, o mesmo sangue em dois
indivíduos, quando a pólvora explode com o puxar de um gatilho.
Um absurdo de decibéis se propaga e repropaga nas ruas,
agredindo tímpanos despertos e adormecidos. Lucian, no carro,
batimentos caóticos, constata inquieto: um tiro! A trezentos e dez
metros dali, seu irmão, na rua, batimentos caóticos, constata em
desespero: por hábito, fechou o portão atrás de si, sem levar em
conta que estava sem as chaves. Um segundo disparo. Nico
chacoalha as grades inutilmente, olha para cima, buscando uma
rota vertical. Um terceiro disparo e um grito indistinguível.
Socoma. Mas em que atiravam? O que mais havia ali?
Seus olhos já aceitam melhor a escuridão, o que o permite
captar um movimento em sua visão periférica.
- Lucian! Estou aqui. - ele persegue fantasmas, se sentindo
como um homem louco cujo bom senso há muito abandonou. Pois
está escuro demais para confiar em formas dúbias e caçar sutilezas
cinéticas, Mas ainda que não seja Lucian, pode ser um velho
doente e senil, com a idade de um bisavô e o discernimento de um
filhote, que falhou ao testar o caminho de casa.
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Estava na Socoma há seis anos e pela forma fria que sua mentora
se relacionava no começo, passou a acreditar que nunca receberia
tal reconhecimento.
- Hector, vou ter que trabalhar hoje. Vou ligar pra sua mãe e ver
se ela pode passar a noite aqui com vocês…
- Pai, não precisa, vai ficar muito apertado pra ela chegar aqui
antes da Recolhida.
- E vocês vão ficar aqui sozinhos?
- Eu já tenho catorze anos, não tenho medo de noturnos. -
Hector se exibiu orgulhoso.
- Mas a Petra tem.
- Eu posso dormir no quarto dela, se ela quiser…
Casablanca não dera nenhum detalhe ao telefone. Disse apenas
que aquela noite mudaria tudo. A explicação viria pessoalmente.
“Arquivistas”. Os livros deslocados para fora das estantes.
Virgílio era o mais novo dos agentes que compunham a equipe.
Além de Natália Casablanca, cujo cargo refletia sua experiência, as
outras duas agentes vinham do tempo em que Katerina ainda
tinha pais vivos. Virgílio era o único não inteirado do objetivo
daquela convocação. Casablanca começou depois de quinze
minutos de papo furado sobre filhos, Sono, noturnos, hockey e
acupuntura.
- Temos a seguinte situação: um professor da universidade
reuniu um grupo de estudos sobre a noite. Fascinante, não é
mesmo? - ela zombou. - O que eles queriam era descobrir sobre os
seres noturnos. Até então tudo bem, muitos tentaram e a cada mês
surgem novas teorias, mas nenhum resultado.
- Não me diga que eles descobriram o que são essas coisas. -
Virgílio se antecipou.
- Não, nada mudou. Ninguém faz ideia de onde surgiram e o
que são. Mas o que esse grupo descobriu abre a possibilidade de
acabarmos com os ataques.
- E antes que você assuma o melhor cenário, não, não é uma
forma de derrotá-los. - a colega que dirigia esclareceu. Do banco
do passageiro, Casablanca continuou:
- Essas pessoas foram gentis o bastante, aliás, sensatas o
bastante para procurar Socoma e ela gratificou seus esforços.
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onde ele estava e o seguia de longe. “Talvez ele nos leve pro resto
do grupo” ela sussurrava tão baixo que sua voz não era clara nem
para ouvidos caninos. E talvez o incidente da lombada de espinhos
tenha sido mesmo uma emboscada que não dera certo.
Ironicamente, teria efeitos contrários, Amanda se divertia com a
constatação.
Os pensamentos de Nico, sobre voltar para casa e tentar uma
invasão, foram rapidamente procrastinados ao se aproximar da
esquina seguinte. Não era uma certeza e talvez por isso o intrigou
ainda mais: uma pessoa virara à esquerda. “Sabe quando você não
vê direito, mas vê que alguma coisa mexeu?” Lucian tentava
convencer o irmão a verificar o quartinho no sítio dos avós,
garantindo que havia algo lá dentro. “Onde você vai?” “Vou pegar
uma lanterna.” Mas não há nenhuma lanterna que funcione. O
garoto acendeu então um isqueiro que encontrara na cozinha. Da
portinhola as crianças observavam hipnotizadas por aquela
sensação paralisante do medo, que repele e atrai ao mesmo tempo.
Nico se esquiva de teias de aranha e transpõe uma tralha de
objetos quebrados e cobertos por um manto de poeira. Garras
agridem o piso de madeira ao fundo do quartinho. Tem sim algo
ali, mas Nico já tem catorze anos e se recusa a sentir o medo dos
irmãos. Anna agarrada ao braço de Lucian, gemendo de aflição,
pois irmãos mais velhos são igualmente saborosos para monstros
infantívoros.
- Lucian? Estou aqui. Espere. - mas ao virar a esquina, Nico se
depara apenas com mais escuridão. Ele insiste em chamar pelo
irmão, moderando o volume de sua voz para ser ouvido apenas
pelo homem, ninguém mais. É que Nico não tem certeza alguma
de que seja Lucian, mas precisa verificar se é mesmo apenas um
velho demente e despido ou se é mesmo seu irmão sofrendo de
insanidade noturna. Um fantasma ou apenas um mustelídeo.
O som de um portão de ferro, as dobradiças ganindo com ares
de escárnio. Naquela rua havia um jardim japonês, cercado por
uma grade com barras estreitas, que gatos não são bem vindos. E
ele foi por ali.
Nico segue em passos ligeiros. O portão está entreaberto.
Amanda e Marlon escutam quando a passagem se fecha,
guardando o transgressor entre plantas ornamentais, lagos, pontes
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IV
O
horizonte subia cada vez mais, impulsionado por um giro
espetacular. E no outro extremo, outro horizonte - outro
lado do mesmo horizonte - despencava reagindo à mesma
força.
Para eles, no entanto, não era a terra que subia, era o Sol que
afundava. E a isso chamaram ‘occasum’, descida de um astro, cair,
morrer, findar.
“Nox!” eles gritam confusos com as trevas que se repetem. É o
mundo que se acaba, várias vezes, de novo e de novo: e eles se
abrigam nos braços uns dos outros, temendo tudo que não podem
ver. Noctes.
E enquanto a luz solar se esvai, gases atmosféricos refletem
diferentes cores. Uma estrela solitária é notada, um brilho estático,
o mais poderoso depois do Sol e da Lua. Estrela da tarde e Estrela
d’alva. Um admirador registra, não são duas estrelas distintas e
não é uma estrela: é a deusa do Amor e do Belo. Vênus.
Ela testemunha a vida terráquea transitar. Por centenas de
bilhões de anos ela observou criaturas surgirem e se extinguirem
na inegável influência da luz do dia. O ar começa a esfriar, e
aquele globo ardente não mais ofusca. Uns se recolhem com ele,
pois não há mais como enxergar; outros, escutam um chamado
silencioso: regozijem-se que já está acontecendo, aí está, ela já
vem. “Nox!” eles gritam.
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Em seguida jogou por cima dos livros. Dessa vez o papel não
voltou. Mas também nada aconteceu.
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Ninguém [...] Cidade [...] Vazia [...] Quando [...] Noite [...] Sair.
[...]Longe da [...] Casa [...] Extermínio [...] Vida [...] Quando [...] No
leito [...] Fim [...] Claro [...] Não [...]
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Modo [...] Luz [...] Não [...] Nunca [...] Violência [...] Perdão [...]
Acabar [...]
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chance de se levantar. Alex corre, mas não para ela: para a arma
caída no chão. Olívia se afasta como uma lebre assustada,
derrubando uma torre de livros pelo caminho. Alex poderia atirar,
um projétil direto nas costas, partindo a espinha dorsal e se
alojando em algum lugar de sua caixa torácica. Mas ele sabe: é
Lucian quem deve matá-la. A lebre desaparece no escuro.
- Vamos! Levanta! - Alex tenta ajudar a raposa atordoada. Ela
rosna furiosa:
- Foda-se! Isso é loucura! Eu não consigo, Alex! E não quero.
Não vou matar ninguém. Se não tiver outro jeito a gente
simplesmente fica sem acordo.
- Escuta aqui, seu merda, - Alex agarra Lucian pelos cabelos - eu
não vim até aqui pra você ficar choramingando com crise de
consciência e fazendo mais cagada.
Lucian se recupera do chute num instante e dá um tapa na mão
dele.
- Então faz você, Alex! Eu não vou assassinar alguém só porque
é o “único jeito.” Deve haver uma outra maneira de consertar as
coisas.
- Lucian… - ele respirou fundo, tentando absorver alguma calma
junto com o ar. - Eu também não aceitei isso tão fácil. Mas eles me
explicaram que não há outra opção.
- Eles? - Lucian apontou para a estante do Arquivista ao se
levantar.
- A Socoma.
- Alex… Não quer dizer que seja verdade, cara. Talvez seja a
opção mais fácil pra Socoma, a mais imediata. Mas não a única e
certamente não a melhor… A gente não sabe nem o que são essas
coisas, de onde vieram ou como pensam. Talvez amanhã tudo
passe, tudo seja perdoado sem pacto nenhum. Vamos tentar algo
novo, Alex, está em nossas mãos.
Lucian quase ganhou o agente. O desejo de deixar sua marca,
ser alguém, ser lembrado, ser grandioso. Ele tinha o poder de
mudar o rumo da história ao invés de apenas restaurá-lo. Não
salvar o mundo, mas transformá-lo. Alex quase cedeu. Quase.
Porque existe algo mais poderoso que um único homem ou
mulher. Mais poderoso que um grupo enorme de Homo sapiens.
Que todo governo pode até temer seu povo, mas o povo não tem
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E Lucian segue, sem olhar para trás uma única vez. Ele pensa
em Lenny, pois ali acha que finalmente a entende. E ela
caminharia lá fora apenas com o luar e Vênus, as últimas horas da
escuridão a guiariam até sua casa. Pois existe uma estrela colossal,
mas ainda assim diminuta, que varre a noite para o outro lado do
planeta.
Dyau, eles chamam. Aí está: o céu luminoso, o brilho. Um novo
dia, pois a noite é o mistério que entremeia, que separa um dia do
outro para que assim o tempo passe. E o que houve lá fora,
enquanto nossa existência dormia, não cabe aos diurnos saber.
Mas eles sabem, assim como todos os seres sabem: o estado
perpétuo do planeta é a noite. Solta no espaço, ela envolve toda a
superfície da Terra, projetando o infinito sobre seus solos e mares.
Até que o Sol se levanta e clareia a atmosfera, escondendo a noite
por trás de um véu azul, como se ela não estivesse ali. Como se, na
verdade, ela nunca tivesse existido.
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AGRADECIMENTOS