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NICTOFOBIA

Dias Ferpella
Copyright © 2009 Dias Ferpella
Todos os direitos reservados.
ISBN-13: 9798698997795

Primeira edição
2020
Alles gut zum Geburtstag.

3LW
PARTE I
I

E
la agarrou a mão dele sobre a mesa. Estava gelada.
- Uma horinha apenas, Lui, vai ser incrível e você nem vai
ver passar.
Ele gostava quando ela o chamava assim, a única pessoa no
mundo a chamá-lo assim. E aquilo trouxe um senso de segurança,
mesmo que por apenas um breve segundo, o tempo de se
pronunciar uma única sílaba.
- Está com medo? - sua fala trazia um tom quase de desafio,
como se de fato houvesse uma resposta certa para a pergunta.
Lucian apenas respirou fundo, segurando um sorriso nervoso.
- Quando eu era pequeno, uma vez eu e minha mãe ficamos
acordados até às sete horas. É sério! - ele se adiantou ao ver um
sorriso se formar nos olhos dela. Como ele adorava aqueles olhos,
um par de buracos negros, absorvendo toda a luz do restaurante
para si. Mas ao contrário de um buraco negro, eles devolviam tudo
para o mundo, ainda mais brilhante. Ou seria aquilo radiação e
não luz?
- Um dia ela leu pra mim um livro onde uma menina
encontrava uma estrela perdida no deserto. E eu ficava me
perguntando o que era uma estrela. Quando ela lia pra mim, eu
imaginava um tipo de animal.
- Estrela do mar é um animal, logo, você não estava totalmente
errado. - ela piscou um olho para ele.
- Obrigado. Minha mãe quis me mostrar o que era. O livro que
ela lia não tinha ilustrações, acho que era um livro de poesias, não
era coisa de criança. Claro que minha mãe poderia ter pegado uma
foto, ou simplesmente me explicado o que era. Mas ela queria me
mostrar, assim como o avô dela mostrou quando ela era ainda
mais nova do que eu na época.
- E imagino que o Sol não conta.
- Perto demais, perde todo o charme. - eles se divertiam e ele
pensou em segredo como ela era incrível por tentar distraí-lo,

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faltando pouco mais de uma hora para o grande momento. Ele


continuou:
- Minha mãe quis fazer disso um segredo nosso, mas talvez ela
tivesse dito o mesmo para meu irmão, quando foi a vez dele de
perguntar o que era uma estrela. E talvez faria o mesmo com
minha irmã quando ela chegasse na idade de perguntar coisas.
Então nós combinamos que, depois que todos dormissem, ela iria
me buscar no meu quarto. Logo depois que Nico se deitou, ela
apareceu na porta e me chamou com um movimento.
- E como foi?
- Eu chorei. Eu ainda achava que era um bicho e fiquei
assustado com o fato dele só sair a noite, quando todos dormiam.
- Oh não! - ela gemeu compadecida e beijou sua mão. Lucian
sorriu e virou os olhos.
- Ela me levou pro telhado e me contou sobre o universo. Sobre
planetas e estrelas, a escuridão, o infinito. O Sol estava se pondo e
ela me apontou Vênus. E as primeiras estrelas no céu. Nós ficamos
até tudo ficar escuro, mas eu não me lembro do escuro. Eu não
conseguia tirar meus olhos de todo aquele brilho no céu. E eu me
lembro de me perguntar se mais alguém sabia daquele segredo. E
por que, em primeiro lugar, tinha que ser segredo?
- Olha só pra você! Fazendo perguntas! - e no fundo de seus
pensamentos ela percebeu que talvez pudesse vir a amar aquele
homem sentado à sua frente.
O garçom chegou trazendo a refeição. O relógio na recepção
badalou cinco vezes. Os dois se olhavam apertando os lábios,
segurando o riso, ela olhava o garçom pelo canto dos olhos, como
se eles estivessem fazendo algo errado, ou tentando esconder uma
peraltice. E se aquele garçom conseguisse ler pensamentos alheios,
ele certamente ficaria constrangido.
Assim que ele saiu, ela levantou sua taça para Lucian. Ele
respirou fundo e correspondeu.
- Ainda dá pra desistir. - ela testou.
Dois meses depois, ao passar em frente aquele mesmo hotel,
Lucian se arrependia de não ter repensado tudo naquele
momento. Ainda dava pra ter desistido. Ela também parecia estar
insegura e talvez só precisasse de um pequeno empurrão para que
a razão voltasse à superfície. Mas juntos eles se achavam jovens,

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impulsivos, intocáveis, incríveis. Então seguiram com o plano sem


temer as consequências. Ou sem dar importância para esse temor.
E agora havia acabado, já há um par de meses.
Lucian chegava a uma altura da vida onde tudo parecia
lentamente se acomodar. Estava tudo mais ou menos consolidado:
o emprego ao qual ele se prenderia, o apartamento pago, o
pequeno círculo de amizades que ele herdara da faculdade, a
rotina, suas treze horas preenchidas com passatempos solitários,
estatísticas, refeições, higiene, socializações, tarefas domésticas,
masturbação. Embora, com esse último, ele ainda se sentisse preso
na adolescência que há um tempo já o deixara. E ele pensava nela
e como ele a perdeu e agora tudo aquilo parecia ter sido em vão.
Se ele já iria perdê-la, porque teve que chegar àquele ponto? Por
que ele correu aquele risco apenas para impressioná-la, se aquilo
não iria salvá-los, afinal?
Sua vida se consolidando e talvez a única coisa viva a dividir a
rotina com ele seria mesmo Eres, Ceres, Plutão e Makemake.
Agora ele era um criminoso e sabia que não terminaria bem. A
primeira audiência tinha sido um desastre completo e ele não
tinha a menor cabeça para aquilo. Ele tinha vontade mesmo era de
ficar em silêncio e concordar com tudo o que dissessem. Será que
eu deveria ver um médico, ele pensou.
Não era por causa do fim, não era por causa do tédio, não era
por causa do processo nem da infâmia abrupta que veio bater à sua
porta. Era por causa da noite:
A primeira vez que ele acordara foi por volta das duas e meia.
Era como se ele tivesse sido sugado para dentro de suas próprias
roupas, como se ele estivesse embrulhado numa massa escura e
fria, pegajosa e letal. Lucian se arrepiou inteiro, seu estômago doía.
Ele estava cego!
Como foi acontecer? Ele recorreu a sua última refeição ou
tentou se lembrar de sintomas antes de ir pra cama, mas nada de
anormal tinha chamado a sua atenção. Seria talvez um efeito
colateral de Sono? Uma alergia que ele desenvolvera de um dia pro
outro, quem sabe? Ele tateou no escuro, procurando a beirada do
colchão. Ele precisava apenas chegar até o telefone. Ela iria
aparecer para socorrê-lo, ao menos numa ocasião como essa ela
iria aparecer. Era isso... havia de ser uma cegueira somatizada.

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No momento em que ele se virou para a porta, seus olhos já


estavam acostumados com a escuridão e ele conseguiu ver uma
tira clara no chão. Era a luz que vinha da sala, passando por baixo
da porta. Era a luz artificial do aquário. Lucian ficou sem ar ao se
dar conta da realidade, voltou para a cama num pulo e puxou as
cobertas até a altura do nariz. O frio apertando os dedos de seus
pés, subindo por seus joelhos e lambendo seus braços. Ele ficou ali,
paralisado por quase uma hora, até conseguir se controlar um
pouco e retomar a calma de sua respiração. Em seguida ele pensou
nela, como ela reagiria àquela situação e nitidamente ouviu em sua
mente aquela risada cheia de vida. E depois pensou na ironia do
universo. E depois ficou aliviado em não ter ficado cego
repentinamente. E por um curto momento ele cogitou olhar pela
janela, mas afastou a ideia com um par de números: “Apenas três
por cento da população recorre a um aumento da dosagem de
Sono. E quase oitenta por cento possui menos de trinta e cinco
anos.” Ele poderia estar inserido nesses dados.
A segunda vez se dera na noite seguinte. Lucian acordara por
volta das três horas da madrugada e mais uma vez ficou deitado,
gastando pensamentos até o sol nascer.
“E você? Tem medo de alguma coisa?” dois meses antes ele
perguntara para ela, naquela última hora de paz, naquele
restaurante que lentamente se esvaziava. Sessenta dias sem uma
palavra.
- Lucian, eu tenho medo de tudo. Menos de sentir medo.
- Agora também?
- Agora eu estou apavorada. Quer desistir e ir pro quarto? - ela
disse sem deixar claro se brincava ou se falava sério. E ele adorava
o fato de não conseguir ler suas intenções.
Na terceira noite ele acordara no mesmo horário e, assim que
seus olhos se acostumaram com a escuridão, ele decidiu sair da
cama. Afastou as cortinas e deu uma espiada lá fora. Era como se
tivessem colocado uma chapa negra contra o vidro. Uma noite sem
lua, sem estrelas, o som de chuva.
Ele foi até a sala, seguindo a luz fraca do aquário. O cômodo
estava adormecido nas sombras e Lucian hesitou por um instante
em cruzar a porta. O filtro de ar borbulhava na água. Lucian

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imediatamente foi até o abajur e o acendeu, afastando com a luz


qualquer sensação estranha que aquele ambiente produzia.
Ele bebeu um copo d’água e se esticou no sofá. Verificou o
relógio na parede. O que estava acontecendo? Por acaso ele tinha
de fato criado uma resistência rara ao tranquilizante? Ou eram
seus pensamentos exaustos, carregados com a emoção do
momento em que vivia, que o despertavam sempre na mesma
hora? No dia seguinte ele teria a primeira audiência, uma chance
de se explicar perante a Socoma. Durante dois meses ele esteve
preparando uma defesa, mas tudo se tornava uma mentira sem
fundamentos: perdi meu frasco de Sono, ou melhor, esqueci meu
frasco de Sono no carro e estava indo pegar, ou não, nem sabia o
que estava fazendo, foi apenas um lapso, não me lembro de nada,
estava confuso. Eu já mencionei que tive episódios de
sonambulismo no passado? Tudo bem, eu confesso, eu fui forçado,
ameaçaram minha família.
E que provas o réu apresenta para atestar suas alegações?
Nenhuma. O réu é apenas um idiota mentiroso, que tentava
impressionar uma garota. Essa é a verdade. E quem nunca tiver
amado e feito besteiras por amor, que o declare culpado. Que
razão melhor para se cometer um crime do que o fazer por amor?
Sim, o réu é um criminoso. O réu continua sentado no seu sofá,
acordado no meio da noite, numa postura que invoca um
gigantesco dedo do meio na cara da lei. O réu não dorme.
Na verdade, o réu está tão revoltado com o resultado do seu ato
de bravura, que ele decide abraçar esses momentos em claro e
talvez o réu vá adiantar seu trabalho, ou ler um livro, coisa que ele
não faz há anos, ou até montar um quebra-cabeça, por que não?
Ou apenas ficar sentado, encarando e conversando com seus
peixes pelas horas antes do Sol nascer. Porque o réu talvez esteja
ficando louco.
Será que eu deveria ver um médico, Lucian pensou durante a
audiência, quando as acusações eram lidas diante dele e de mais
sete pessoas em volta da mesa, dentre advogados da Socoma, um
juiz, um redator, aquela agente que o restringiu, sua advogada e
seu irmão mais velho, que vinha oferecer sua palavra como a única
prova do caráter de Lucian. Sua advogada não tentava nenhuma
manobra, apenas um acordo, baseado nas intenções ingênuas do

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réu de “pegar um ar antes de se deitar”. O crime não havia sido


cometido nem por dez minutos e não há como afirmar o tempo
total a ser almejado pelo réu, caso não houvesse a intervenção dos
agentes envolvidos. Não fomos chamados para lidar com
suposições, mas fatos. E o fato aponta que, de acordo com o
horário que consta no relatório de restrição, o réu atuou por
apenas oito minutos e trinta e quatro segundos. Espera-se que a lei
seja aplicada proporcionalmente.
- Essa audiência não durou nem meia hora, Nico, não tem como
isso ser um bom sinal. - Lucian esbanjava pessimismo no saguão
do fórum.
- Pode ser. Mas também pode ser o indicativo de um caso
muito simples. Nós não estamos rebatendo as acusações, não
estamos tentando provar que foi um mal entendido e que você é
inocente. Os dois lados concordam com o ocorrido, então não há
muito o que debater.
- Não venha achar que somos aliados agora. Você viu a cara da
Feller e como ela suspirava, debochando, quando você
testemunhou? Aquela mulher, por alguma razão, quer pegar
pesado comigo, me fazer de exemplo.
- Lucian, não é nada pessoal. Então não torne pessoal. - Nico
disse enfim, pondo as duas mãos sobre seus ombros.
Quando a advogada apareceu, ela trazia um semblante calmo.
A Socoma alegava um crime premeditado, por conta de toda
aquela coisa de se hospedar num hotel e ficar no restaurante até
bem próximo do limiar. Eles acham que Lucian está agindo de má
fé e omite informações de um esquema bem mais elaborado.
- O que? Eles estão dizendo que meu irmão violou o limiar para
cometer algum outro crime? Como se fosse um ladrão de banco? -
Nico se adiantou, perdendo um pouco da calma que antes
apresentava.
- Não, mas eles acham que era uma rotina. E eles querem a
cúmplice. - ela disse mordendo o lábio e olhando para Lucian.
- Não. Não vou testemunhar contra ela.
- Lucian, acho nobre da sua parte, mas pense: ela não faria o
mesmo por você. Se não, ela já teria se acusado.
- Não. Há muito mais em jogo pra ela do que pra mim. É como
você disse, o meu caso é fácil.

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- E o caso já estaria ganho se você desse um nome e um


testemunho. Não é doutora? Não seria como dizer que ele foi
persuadido? Com todo o histórico dele e o histórico dela… - Nico
interviu.
- Certo, um momento, vamos deixar uma coisa clara aqui. -
Lucian ergueu as mãos pedindo a atenção de ambos e encerrando
o assunto. - Eu estava sozinho. Eles pegaram uma pessoa. Eles
viram apenas uma pessoa no lobby. Eles não têm evidência
nenhuma de uma cúmplice, ou uma quadrilha, ou um “esquema
maior”. Em que momento eles viraram o jogo, quando até então
você afirmava que meu caso era fácil? Os fatos são esses, e nós não
vamos mudar a história simplesmente porque a Socoma não está
gostando do final.
A próxima sessão ainda não estava marcada. Mas a defesa
pressionaria a agilização do processo, para que não se arrastasse
até o fim do semestre.
Enquanto almoçavam próximos dali, Nico não cedeu e insistia
em saber por que Lucian estava determinado a assumir essa culpa
sozinho.
- O que você ganha ao protegê-la? Você não deve nada a ela.
Aliás, ela te deve. Ela foi a causa disso.
- Não. Eu causei isso a mim mesmo.
Nico abanou a cabeça, enfim desistindo. Olhou para a praça lá
fora, um cachorro na coleira pulava feliz numa garota que parou
para agradá-lo. Um casal tirava uma foto perto da fonte. Uma
criança acompanhada da mãe jogava pipoca para um pombo. Uma
manhã de sol, secando as poças da noite anterior.
- Como você está? Bem?
- Sim. - Lucian se ocupava em comer.
- Você não parece bem.
Lucian largou o talher e parou de mastigar, reprovando o irmão
com o olhar. Ele entendeu imediatamente.
- Eu sei, eu sei. Mas quero dizer, tirando isso tudo. Você parece
um pouco mais preocupado do que ultimamente.
Lucian formulou sua resposta no tempo de engolir:
- Você já saiu à noite alguma vez na vida?
- Nunca foi algo que eu quis fazer. E não acredito que tenha
algo de especial na noite. É como o dia, mas sem o Sol.

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- Sono sempre funcionou bem pra você?


- Se eu parei de responder à dose? Nunca tive problema
nenhum. Já a mamãe parece que teve que aumentar a dela, pouco
depois da Anna nascer. Sabia disso?
- Então deve ser algo hereditário…
Nico não mostrou preocupação. E pelo seu olhar, Lucian sabia
que ele já tinha entendido tudo antes mesmo que ele falasse
abertamente.
- Quando começou?
- Três dias.
- Acho que já dá pra pedir um ajuste na dose. Ou pode ser só
ansiedade por causa disso tudo. - Nico gesticulou com o garfo. -
Faz um teste. E eu sei que não deveria te sugerir isso, - ele se
inclinou para frente e falou em voz baixa - mas tenta tomar Sono
mais tarde que o normal. Quando você acorda?
- Três horas antes, mais ou menos.
- Então vá dormir às nove horas e veja se acorda no horário.
Lucian comprou um quebra-cabeça antes de voltar pra casa.

***

Ela se equilibrava na mureta do canteiro, enquanto ele ia ao


lado dela, ameaçando empurrá-la nos girassóis que se erguiam da
terra escura. Ela sabia que ele não a empurraria, mas ainda assim
ela gritava e ria nervosamente toda vez que sua mão se aproximava
da cintura dela. Eles subiam a rua por aquele largo passeio central,
os carros passando pelo calçamento numa velocidade turística.
Haviam bolhas de sabão no ar, era domingo.
A vida de Lucian estava chegando a um ápice e ele via tudo se
consolidar. Ele ia acabar se casando com aquela mulher. E teria
filhos e uma casa afastada da cidade. E ela atenderia só algumas
vezes por semana, porque seria o bastante. E ele logo poderia estar
trabalhando à distância, apurando aqueles dados em casa, e
precisar ir apenas em uma ou duas reuniões mensais. Eles teriam
um gato e ele viveria livre. E seus filhos cresceriam brincando no
bosque atrás da casa.
- Os filhos do gato?

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- Nossos filhos. - ele respondeu puxando ela pra fora da mureta


e para seus braços.
- Parece meio…
Ela não terminou. Ele encorajou ela a dizer, mas ela não sabia
que palavra usar. Aquela sensação que temos quando estamos
indo pelo caminho mais fácil e perdemos algo muito maior que
poderia estar aguardando no final do caminho mais difícil. Mas
não é como se fosse mais difícil, é apenas difícil de enxergar. Ela
desconversou:
- Por exemplo, vamos ter filhos agora!
Eres, Ceres, Plutão, Makemake.
A morte trágica e misteriosa traçada para eles, quase um ano
depois, naquela noite em que Lucian esperava pacientemente
pelas nove horas da noite, cozinhando sua refeição em longas e
lentas etapas, com o som tocando uma estação de rádio alternativa
na sala. O bolo de carne foi para o forno faltando quinze minutos
para as seis. Lucian ergueu a caixa na altura de seus olhos. “A
criação do homem” fragmentada em três mil pedacinhos
padronizados.
“Entramos agora na reta final da nossa programação, você que
está me ouvindo no seu carro, já chegando em casa…” a voz no
rádio interveio. Lucian fingiu não ouvir e levou a caixa para a mesa
de centro. Pegou um pequeno pote dentro de uma gaveta e levou
até o aquário.
- Bom apetite, garotada. Não esperem por mim, hoje eu janto
um pouco mais tarde. - ele disse salpicando os pequenos grãos na
superfície da água. Quando foi que ele começou a falar com seus
peixes?
Ele espalhou as peças do quebra-cabeça sobre a mesa e se
sentou no chão. Tinha terminado de separar cores e padrões
quando a cortina automática começou a percorrer o trilho. Lucian
se levantou e se deu conta do que fazia apenas a meio caminho do
quarto. Ele já estava condicionado a responder à cortina daquela
forma, assim como a cortina respondia ao relógio. Sacudiu a
cabeça pra si mesmo, achando graça.
“E aí está, o limiar. À todos uma boa noite, obrigado pela
companhia e até amanhã.” o rádio se despediu antes de uma
vinheta animada, seguida de um silêncio absoluto. Lucian acendeu

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o abajur na sala, a única luz elétrica em sua casa tirando a luz


azulada do aquário. Entre as cortinas ele viu a cidade lá fora, os
prédios que se erguiam ao redor do seu, todas aquelas cortinas
fechadas. Alguém mais estaria acordado? Alguém mais estaria
olhando pela janela, como ele, indagando por uma consciência
ativa em algum lugar lá fora?
O sol já não estava visível, mas deixava escapar alguma luz por
trás do horizonte, as nuvens no céu explodindo em cores. A última
vez que ele vira o anoitecer tinha sido pelos vidros daquele hotel,
no elevador, com ela ao seu lado, apertando suas mãos, ansiosa
pela escuridão. Vênus.
O bolo de carne começava a espalhar seu aroma para fora do
forno. Lucian abriu uma garrafa de vinho e voltou a se sentar no
chão, analisando as peças de Michelangelo. Levantou a taça na
direção do aquário, propondo um brinde para seus quatro
companheiros, e foi então que percebeu. Havia algo errado.
Talvez ele não estivesse enxergando direito, poderia ser um
reflexo no vidro. Quando ele se aproximou foi possível confirmar
que aquilo boiando na superfície era um dos peixes. Lucian
suspirou, lamentando. E ao pescar o corpo com uma redinha de
limpeza, ele decidiu que aquele seria Makemake. Afinal, eles eram
todos iguais. Lucian apenas optou pelo nome que menos gostava.
- Você já vai ficar com a guarda, nada mais justo que eu
escolher os nomes! - ela protestara quando eles instalaram o
aquário na sua casa.
Depois de jantar, Lucian retomou o quebra cabeça. Ele
concluíra os cantos, fechando o limite da imagem que ocuparia a
mesa quase inteira. No centro, pequenos agrupamentos iam
surgindo. Três peças unidas aqui, duas ali, cinco lá. A próxima
peça que ele pegou se encaixava no ângulo de outras três. Um
desenho começava a se formar, ainda difícil de ser identificado.
Mas ele reconheceu aquelas manchas e pontos: era um rosto.
Estava de ponta cabeça, mas quando ele o girou para si, pode ver
perfeitamente o rosto borrado de um anjo. Parecia estar olhando
para ele, numa súplica. A boca aberta, sem definição, era apenas
uma pincelada escura de dor ou pânico. E ele podia quase sentir a
maciez aflitiva daquela palidez tocar seus olhos. Os pelos de seus

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braços se levantaram num calafrio. Dedos esguios como vermes,


demoníacos, se entrelaçando numa orgia de tons rosados.
Lucian desviou o olhar para espantar aquele efeito sinistro de
seus pensamentos. Mas acabou por se deparar com algo talvez
mais perturbador ainda, pois não era uma sugestão ótica causada
por pixels coloridos. Era bem real e estava logo ali, boiando na
água do seu aquário.
Intrigado, ele apanhou o segundo peixe com a redinha.
Violentamente o redemoinho da descarga sugou a carne flácida e
fria encanamento abaixo. Adeus, Eres, querida criança, inocência
injustiçada. Adeus.
Ao voltar para a sala, Lucian sentiu outro calafrio. Aquele
silêncio começava a incomodar. Aquela “coisa” encarando o vazio
pelas peças de um jogo. Ele a cobriu com a caixa, fingindo para si
mesmo não ser algo intencional. É claro que ele não estava
assustado com uma coisa boba daquelas, mas porque ele deveria
ter o cuidado de deixá-la exposta se a caixa ficava melhor na mesa
do que no chão?
Ele ligou a televisão para ter um pouco mais de vozes, um
pouco mais de presença na casa. Ele passava os canais, testando
seu interesse.
Uma lasanha “...é muito mais sabor, muito mais queijo…”. Uma
mulher apresentando seu vestido a uma outra mulher “Que ma-ra-
vi-lha! Deixa eu ver, dá uma voltinha...” Um homem idoso olhando
para a câmera com um fundo neutro “...mais de dois dias depois da
investigação. Quando ela…” Alguém mexendo uma massa “... o
segredo é bater até ficar bem homogênea, quase como um…”
Desenho animado, um garoto subindo em uma árvore “Eu acho
que ele foi por aqui. Se a gente pudesse…”
Uma mesa redonda “...eu sei, eu sei. Mas a gente tem que
considerar que a última prisão da Socoma foi quase há sessenta
anos. Hoje é praticamente impensável alguém sair. Tem gente que
fica acordada em casa? Com certeza, eu não tenho dúvidas que
sim…” Os outros participantes reagem com risadas ou protestos.
Uma mulher intervém “Não, não. Eu discordo. As doses não
permitem! Se você toma uma fração, não faz efeito. Se você diz
que alguém vai ficar acordado a noite inteira, preso em sua casa
por onze, doze horas…” Outra pessoa ri. “O que eu não entendo é,

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por que alguém tem interesse em ficar acordado se não é para


cometer crimes? Pode haver sim um esquema elaborado e parece
que a Socoma inclusive já declarou suspeitar de mais gente
envolvida. Agora, se…”
Uma raposa em alerta na grama alta “...mas ela não pretende
desperdiçar outra chance.” Uma família desfocada atrás de um
logotipo “Drogarias Calini, treze horas por dia, treze horas por
você.” Um carro atravessando um vidro, uma música de ação. Uma
tela preta, um retângulo cinza no centro e um texto com letras
brancas:
Programação indisponível.
Lucian trocou os canais em ambas as direções, vendo sempre a
mesma mensagem. Ele tentou a TV aberta, usando o outro
controle remoto. Estática, estática, estática.
Ele deveria ter imaginado. Olhou no relógio, sete horas da
noite. Era emocionante estar acordado tão tarde, pela primeira vez
na vida. “Quer desistir? Ainda dá tempo.”
E então, algo diferente. O canal 25 transmitia uma imagem
dividida em quatro seções. Imagens esverdeadas, monótonas, de
baixa definição. Eram imagens das câmeras de segurança do
prédio. A garagem; parte de uma calçada; o hall de entrada; o
jardim. Era fascinante ver um pouco da noite lá fora, ao vivo. Não
havia movimento algum: vez ou outra uma mariposa passava perto
da lente do jardim ou da calçada, na garagem era visível apenas as
pilastras e os carros mais próximos. O resto se refugiava na
escuridão.
Lucian começava a ficar entediado. As pessoas da mesa redonda
tinham razão: como alguém conseguiria ficar acordado a noite
inteira sem sair de casa? Por um momento ele cogitava sair, pelo
menos para andar nos corredores ou até o jardim. Mas ele temia
estar sendo vigiado e, assim que abrisse sua porta, agentes
estariam esperando do lado de lá.
Ele escovou os dentes, leu algumas páginas de um livro que sua
irmã lhe dera no último aniversário, lavou a louça. E quando seus
olhos esbarraram no aquário, ele notou, incrédulo, a terceira
morte da noite. Havia algo errado, talvez com o filtro. A comida
estava na validade, ele tinha conferido logo depois de Eres morrer
e o cheiro estava normal. A temperatura da água estava normal. E

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como ele logo constatou depois de verificar, o filtro também


funcionava normalmente. Que seja Ceres, que seja o último dânio
a deixar Plutão solitário nas águas lívidas da sala de estar. Lucian
testou o pH e os níveis de amônia: não havia nada de errado com o
aquário.
Já eram oito horas quando Lucian voltou ao quebra-cabeça.
“Apenas uma horinha, Lui, vai ser incrível.” Ele já não via a hora de
usar aquele comprimido. Ele deixou a caixa do quebra-cabeça
sobre o sofá atrás de si, revelando mais uma vez aquele rosto
disforme. Ele juntou mais algumas peças de outras áreas da
imagem e chegou a montar quase um quarto em apenas meia
hora. Agora sim, o tempo parecia passar normalmente, até mesmo
um pouco mais rápido, ele poderia dizer.
Quando consultou a caixa para posicionar o que já estava
pronto, um golpe de confusão atingiu seu entusiasmo.
Michelangelo Buonarotti pintara doze figuras cercando o grande
homem de barba branca. Anjos entre deuses. Oito deles possuíam
o semblante completamente visível. Mas Lucian engasgou com seu
fôlego quando concluiu que nenhum deles, de forma alguma, se
assemelhava àquele rosto fantasmagórico que ele havia montado.
Ele verificou de novo. Um.
Olhando bem de perto e comparando cada rosto. Dois.
A fisionomia. Três.
O ângulo de cada figura. Quatro.
Os cabelos. Cinco.
A cor da pele. Seis.
Eles simplesmente não olham na mesma direção. Sete.
Nenhum deles, de forma alguma. Oito.
E cada vez que Lucian olhava, o rosto parecia olhar de volta,
desafiando. Num impulso ele separou as peças, como se aquilo
fosse encerrar o caso, e começou a jogar tudo de volta dentro do
saco plástico que antes abrigavam as peças. Algo o distraiu de sua
tarefa. Na tela, na câmera de segurança, aquela que mostrava a
calçada. Ele ficou parado, encarando, tentando não piscar e
prendendo a respiração sem perceber. A lente da câmera apontava
para baixo, pegando a calçada num ângulo fechado, e parte do
asfalto. Por um momento nada aconteceu, apenas o granulado da
imagem se movimentava nas sombras.

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E então, lá estava, bem no canto, onde o infravermelho quase


não alcançava, onde o campo de visão se interrompia: a anatomia
inconfundível de um pé. Lucian deu um salto e se aproximou da
tela. Era um pé descalço, grande, desproporcional, dedos longos.
Ou seriam unhas?
Ele se moveu um pouco para frente. E o par de pés, em passos
vacilantes, trouxeram as pernas nuas e esqueléticas para o
enquadramento. Lucian afastou seu rosto, repelido como se aquilo
pudesse tocá-lo, ou sentir o calor de seu corpo a observá-lo. E
então as pernas se viraram e seguiram para fora da imagem.
Lucian aumentou o volume. E aumentou mais ainda, ao máximo,
quase dava para escutar a nota constante da eletricidade nas caixas
de som. Mas era apenas isso. Lucian olhou o relógio, bastava por
aquela noite. Ele foi até o quarto e pegou o frasco de Sono. Já
pegando um comprimido, voltou para sala para desligar tudo.
Onde ele deixara o controle remoto? Olhou debaixo da mesa, no
sofá, entre as almofadas, debaixo da caixa do quebra-cabeça, ao
lado do televisor. Onde estava?
Um golpe abafado, lá fora, no corredor, como uma porta
batendo ao longe. Lucian congelou. O zumbido das caixas de som,
o borbulhar do filtro no aquário, os ponteiros do relógio, a
geladeira. Passos.
Lucian apagou o abajur e se agachou, tendo a falsa sensação de
proteção perto da mesa de centro. Escutou. Os passos
continuavam, desritmados. Um, dois. Um, dois, três. Um. Um.
Um, dois, três, quatro. Lucian se adiantou para o televisor,
mirando o botão de desligar, o mais silencioso que conseguia ser,
lentamente. Ele olhava para a porta e para o botão, sem ver onde
seu próximo passo tocaria. Era um objeto retangular e duro, que
assim que o peso de Lucian agiu contra ele, mudou o canal da
televisão, lançando o silêncio, sem piedade, numa estática
ensurdecedora. Lucian se jogou assustado, batendo o joelho na
mesa e dando um tapa no botão lateral do aparelho. A sala se
inundou de escuridão. Lucian, permaneceu no chão, absorvendo a
dor nos seus ossos, apertando os dentes uns contra os outros.
E então ele ouviu o som de algo farejando por baixo da porta.
Um garoto sobe uma árvore em chamas. Aqui está ele! Uma
raposa em alerta na grama alta. Eles não podem mais parar. Uma

16
DIAS FERPELLA

família desfocada atrás de um vidro e um carro se desmonta em


pedaços grotescos. Uma música se executa de trás pra frente.
Girando, até ficar homogênea, e os pedaços se desfazem nos olhos
de um homem idoso. Os participantes gargalham. Por que alguém
ficaria acordado? Michelangelo Buonarotti pintou doze figuras
cercando o homem de barba branca. Ou seria um deus? Oito delas
com as feições perfeitamente visível. Três delas com o rosto
parcialmente coberto. Duas delas sem rosto. Ou seriam treze?
Deixa eu ver, dá uma voltinha. Uma raposa abocanhou uma
ratazana do campo. Com o coração disparado, buscou com os
lábios o comprimido perdido entre seus dedos. Ela dilacera a presa
numa explosão de tripas e escamas entre seus dentes afiados.
Muito mais sabor, quando a ratazana solta um último guincho. O
sangue é tão quente quanto a urina. Plutão solitário, morto nas
águas podres da sala de estar. Ma-ra-vi-lha.
Uma tela preta, um retângulo cinza no centro. E não há nada
escrito. Ele adormece imediatamente, ali mesmo no chão.

17
II

A
manda foi chamada pelo número da sua ficha, não pelo seu
nome. Isso aconteceu vários anos antes de seu caminho
cruzar com o de Lucian, e aquele episódio do hotel parecia
impossível de ocorrer um dia. Ela entrou confiante na sala
marcada com o número doze. Meu número da sorte, ela pensou.
Está acontecendo, eu vou conseguir.
Era a entrevista que ela sempre desejou, ela só precisava
daquela chance. O seu anfitrião apontou uma cadeira e se sentou
do outro lado da mesa. Era um salão grande, ornamentado com
quadros impressionistas e esculturas pós-modernas, a mesa era
grande e a madeira escura brilhava dando um ar impecável ao
ambiente. Pela grande janela ela conseguia ver o Parque lá
embaixo. Ela ficou esperando que ele verificasse seus papéis. Um
homem grande e robusto, intimidador, mas aquilo não funcionava
com ela. Ela poderia acabar com ele, fisicamente e verbalmente se
fosse preciso.
- Vinte anos mês que vem? - ele comentou sem tirar os olhos do
papel. Ela se recostou na cadeira, e esse foi o ápice de sua reação.
O homem virou a página e varreu as informações com os olhos, e
ao notar a postura da garota já acrescentou mentalmente alguns
pontos a favor. Ela não se intimidava, ela não estava nervosa. Era
como se ela nem se importasse.
Amanda sabia que aquilo seria rápido e estava nos detalhes.
Haviam muitos candidatos antes dela e muitos viriam depois. A
ficha não decidia nada, todos eles teriam aprovação no perfil
psicológico, todos eles teriam mérito na academia, todos eles
teriam uma nota alta no teste escrito e exames médicos
excepcionais.
- Me fale sobre a noite.
Amanda não pode deixar de sorrir, desviando os olhos para a
janela. Ela tinha uma resposta pronta para aquela pergunta, todo
mundo tinha. Mas aquela entrevista era diferente de todas as
demais, e ela tinha que corresponder. Ela seria diferente, ela

18
DIAS FERPELLA

tentaria algo novo, improvisado, começando por seu sorriso


sarcástico.
- Algo errado? - o homem perguntou, sério.
- Eu apenas esperava algo diferente. A noite é o primeiro
assunto óbvio quando se quer conhecer o caráter e ideais de uma
pessoa. Todas as empresas que já trabalhei, todas as fichas que tive
que preencher, todo questionário, todas as entrevistas… Tudo
sempre pergunta sobre a noite. Não, eu nunca fiquei acordada,
tudo que eu sei sobre a noite é o que nos ensinam na escola. Eu sei
sobre morcegos, sobre mariposas, sobre corujas, eu sei sobre
estrelas e a escuridão. E eu digo, isso é fascinante para uma
criança. Mas não é pelo assunto em si, é pelo mistério, é pela
proibição. Criança adora isso. É como dinossauros. Criança adora
dinossauro. Por quê? Porque nunca viram e nunca vão ver, é
impossível, é um mistério dos sentidos. Você pode saber sobre
dinossauros, conhecer todos os nomes e espécies, mas você nunca
vai saber nada sobre dinossauros. Você não sabe como eles se
moviam, que barulho eles faziam... Praticamente todos os
dinossauros possuíam penas, e essas crianças, que adoram
dinossauros, ainda os vê como lagartos desbotados e não aves
coloridas. O meu ponto é: eu posso dizer que eu sei sobre a noite,
e eu conheço a noite, mas se eu nunca vi a noite, se nunca a senti e
experimentei na pele a ausência do sol, eu prefiro te responder
com uma pergunta: “noite”, o que é isso?
O homem balançou a cabeça de modo afirmativo e seus lábios
se contraíram para baixo, como de fato ele tivesse ouvido algo
diferente, enfim. Era agora, Amanda tinha que conseguir aquela
vaga. Ela rapidamente analisou o impacto de sua resposta. Talvez
ela tivesse passado a impressão errada e agora ele tomava fôlego,
talvez para dispensá-la, talvez para uma próxima pergunta e ela
nunca teria a chance de esclarecer. Antes que ele falasse ela
continuou:
- Eu não me pergunto o que é a noite, eu sou uma pessoa
normal nesse sentido, eu me contento com as horas do meu dia.
Humanos são diurnos. Eu digo isso apenas pois me coloco na
posição modesta de que não tenho autoridade de falar sobre a
noite da mesma forma que um agente da Socoma falaria, por
exemplo, ou como nossos tataravós falavam. Mas é essencial a

19
NICTOFOBIA

formação de indivíduos com essa autoridade, assim como um


paleontólogo tem autoridade sem nunca ter visto um dinossauro
vivo. É isso.
Insegurança. Ela mostrou insegurança com essa última frase.
Com tudo, na verdade. Ela tinha acabado de se justificar, explicar
uma resposta que tinha dado há um minuto, como se o
entrevistador fosse incapaz de interpretá-la decentemente. “É
isso.” Amanda, você estava indo tão bem antes de começar a falar…
- Você diz que esperava alguma coisa diferente. O que seria?
- Nessa entrevista?
O homem respondeu com um aceno da cabeça. Amanda viu
sua segunda chance, sua última chance. O que ela esperava? Ela
não sabia, ela não tinha uma resposta para aquilo, mas não queria
começar com “não sei.” Então ficou calada, enquanto seus
pensamentos disputavam o caminho até sua boca. Ela olhou para o
parque.
Amanda nunca tinha visto as árvores daquele ângulo. Às vezes
ela andava pela cidade e observava as janelas dos prédios e
pensava como seria lá dentro, como seria estar lá em cima,
olhando lá para baixo. E como alguém, nessas milhares de janelas,
poderia estar observando ela naquele momento.
Ela tinha dezessete anos quando viu a noite pela primeira vez.
O nome do lugar era Nyctidromus.
- Sabe o que é engraçado? Aquela coruja na logo deles.
Nyctidromus é um gênero de curiango, nada a ver com coruja.
- Eu pensava que curiango era uma espécie de coruja. - Amanda
se interessou pela observação da amiga.
- Amanda, não entra na dela. Geo, nem mesmo quem escolheu
o nome deve saber disso! Só você que é obcecada. - Nina disse
agarrando a mão de Amanda e a levando para a recepção. Ela
estava de pé próxima à entrada, vendo cartazes com a
programação do lugar. As duas esperavam Nina voltar com seu
namorado. Ela apresentou o rapaz para as duas. Amanda foi rápida
em julgá-lo, ele parecia aqueles tipos que ficam em canto de festa,
que falam apenas com quem já conhece por se acharem exclusivos
demais. Aquela pessoa que leu mais livros que você e faz questão
de exibir esse fato. E era incrível ele e Nina estarem juntos, porque

20
DIAS FERPELLA

Nina era o tipo de pessoa que misturava meia de Sono com


limonada porque “ouviu dizer” que clareia a pele.
O grupo chegou animado na recepção, Georgia chamava o
recepcionista de “Patinho”. Ele parecia achar graça. Ela insistia na
semelhança dos dois, coisa que apenas ela via.
- Como assim? - Amanda perguntou confusa.
- Pacho, o goleiro! Não acha? São praticamente gêmeos.
- Eu não saberia, Geo, eu não assisto hockey. - Nina opinou.
- É a primeira vez dela aqui! Dá uma dica imperdível pra gente
Pacho!
E quando eles entraram, entraram juntos com mais três grupos.
A sala era pequena e branca, luzes potentes brilhavam atrás da
parede, difusores gigantescos. Era difícil não fechar os olhos. Mas
suas amigas a encorajaram a mantê-los abertos, disseram que fazia
parte da experiência. “Pra você amar ainda mais.”
- Também é minha primeira vez aqui. Eu costumava ir no
Insônia, até eles fecharem. - Victor, da Nina, puxou conversa.
- Não, cara. É minha primeira vez de todas. - Amanda revelou.
Victor ficou surpreso. E a alertou que, depois daquilo, ela nunca
mais seria a mesma. Era incrível, diferente de tudo que ela já tinha
visto. Amanda tentava manter as expectativas baixas, mas com
toda aquela propaganda, até mesmo manter os olhos abertos era
mais fácil do que não ficar ansiosa. Georgia e Nina diziam que
Insônia comparado com Nyctidromus era uma piada mal contada.
Mais pessoas iam chegando e se sentando nos pufes e
almofadas espalhados pela sala.
Cinco minutos depois Nina se levantou e guiou todos para uma
cortina branca, disse que aquele tempo já era o suficiente. Atrás da
cortina havia um corredor, comprido, com luzes âmbar no chão, as
paredes cobertas com um tecido negro. A pupila de Amanda se
dilatou de uma maneira que seus olhos nunca sentiram antes. Um
segundo grupo entrou no corredor atrás deles e vieram animados,
em fila, com as mãos nos ombros um dos outros. Uma garota
colocou suas mãos nos ombros de Amanda e cantava alto,
pulando. Uma cantiga infantil, nas vozes embriagadas de jovens
deslumbrados.

“Vejam, vejam o brilho pálido,

21
NICTOFOBIA

na dança ele faz o seu papel,


que longe já se foi o sol,
e a lua soberana toma o céu.”

Amanda se deixou contagiar e fez o mesmo com Georgia, que


fez o mesmo com Victor, que fez o mesmo com Nina e logo todos
estavam na brincadeira rumo a cortina negra no final do corredor.
E a música que vinha de lá ficava cada vez mais audível, pulsando,
cada vez mais forte, até ecoar em suas veias quando atravessaram
o pano.
À direita havia uma pista de dança com luzes coloridas girando
entre as caixas de som. O grupo de trás se precipitou para lá,
atalhando pela grama. As amigas de Amanda continuaram pelo
caminho de pedra, ladeado por lanternas engarrafadas que
pendiam de estacas na altura dos seus olhos. O brilho era fraco,
mas a escuridão já não parecia tão intensa. Ela olhou para cima e
tentou enxergar o teto. Era incrível como pareciam estar ao ar
livre.
- Ah, você não vai conseguir ver daqui! - Nina gritou por cima
da música ao reparar sua amiga admirada. Em seguida a pegou
pela mão e a conduziu pelo caminho de pedra, morro acima, entre
as árvores. Era tão real, os troncos tão detalhados, tão únicos,
cobertos de musgo e líquen, com marcas e cicatrizes. E um vento
soprava entre as folhas.
- Isso é vento? Eles simulam vento?- Victor percebeu.
Georgia olhou para ele com um sorriso. Vocês não viram nada.
Por entre as árvores o caminho se abriu, Amanda sentiu a
temperatura baixar. Era um jardim, com luzes nos canteiros,
fontes, arbustos podados em diferentes formatos. Ela viu um
grupo de garotos novos passar, por volta dos treze anos de idade. E
ali seu caminho cruzou com o de Leonora pela primeira vez, sem
que ela soubesse. A próxima vez seria em circunstâncias muito
mais dramáticas, anos e anos mais tarde, mesmo depois do
episódio do hotel, muito depois de Lucian.
- Abriram os portões da creche? - Amanda apontou para o
grupo de crianças.
- Amandinha, você ainda não entendeu qual é a desse lugar?
Não é uma boate, não é um clube, nada desses restaurantes caros

22
DIAS FERPELLA

com iluminação fraquinha, ou esses simuladores básicos de


esquina. Isso aqui, quando abriu, tinha fila de espera de cinco
meses!
- E o lugar não é pequeno… - Georgia comentou, já aparecendo
com um drinque e um arco de néon na cabeça.
- Eles têm vento! Eles têm um céu preciso e em tempo real.
Porra, eles tem insetos! Olha só, um besouro! Se as pessoas vem
aqui pra dançar, pra beber, pra acampar, pra fazer um piquenique
noturno, para observar estrelas, fazer uma fogueira e contar
histórias de terror, isso é escolha delas.
- Você vai ver gente de toda idade e todo tipo. É bem realista.
Bem diferente do Insônia, que tinha restrições pra entrar. Claro,
aqui você ainda vai precisar da sua identidade falsa pra conseguir
um desses. - Georgia ergueu seu copo.
- Isso aqui é a noite. Pura e melhorada. A gente está dentro de
um salão! Difícil de acreditar, né? Vem, você precisa ver a colina,
eles fizeram uma reconstrução de como era a cidade iluminada,
vista ao longe... E de lá dá pra ver o céu todinho! A porra da Via
Láctea, se não tiver Lua!
- Parece que hoje a Lua nasce daqui a uma hora. A gente podia
ir pra colina, ficar lá até a Lua nascer e depois passar nesse balé
com fogo que vai ter, aí aproveita e mostra a gruta pra eles, é
perto. - Georgia trazia na sua mão um folheto de programação.
Amanda começou a se perguntar por que, por tanto tempo, ela
evitara entrar num simulador. E a resposta era óbvia, e Victor já
tinha dado a dica: ela jamais seria a mesma. A noite poderia ser
viciante.

***

As cortinas automáticas corriam no trilho com um zumbido, o


laranja do sol nascente entrou pelo vidro, despertando Lucian. Ele
estava no chão da sala, e imediatamente se lembrou do motivo. Se
tivesse acordado na cama, certamente tomaria aqueles
acontecimentos por um sonho. Seu joelho doía e um hematoma
marcava onde a mesa havia acertado. Plutão nadava sozinho no
aquário.

23
NICTOFOBIA

Enquanto preparava um café, Lucian refletiu sobre os eventos


da noite passada. Agora, na claridade do dia, seu território, ele
sentia o alívio de estar livre de todo aquele terror. Ainda assim, ele
não conseguia encontrar uma explicação lógica para nada daquilo.
Pelo menos não daquela forma, apenas repassando os
acontecimentos. Se ao menos ele tivesse tido a frieza de investigar
o que era aquilo no corredor, ou o que era aquilo nas câmeras de
segurança…
“Olha só pra você, fazendo perguntas.” A voz dela veio na sua
cabeça.
- Se ao menos eu tivesse te conhecido antes, Lui… - naquela
ocasião ela dirigia com o teto solar aberto, a luz iluminava o
interior do carro e coloria seu cabelo em tons outrora escondidos.
- Seria difícil você me convencer. - ele respondia ocupado em
analisar os CD’s no seu porta-luvas.
- Eu também era resistente no início. Mas quando você dá uma
chancezinha, uma hora que seja, é impossível não se encantar. E
era gigantesco, era um mundo à parte, muito bem construído. A
Nyctidromus tinha parceria com universidades, sabia disso? Tinha
gente que fazia pesquisa lá dentro. Sem falar nos documentários
sobre animais noturnos, tudo filmado lá.
- Eles tinham parceria com a Socoma também? - Lucian se
interessou por uma daquelas bandas e colocou o CD pra tocar.
- Não, coloca esse na capinha certa, se não nunca vou encontrar
de novo. Mas não, Socoma era praticamente a concorrência, pensa
bem.
- Pra mim parece que um complementa o outro…
- Faz sentido. Mas a Nyctidromus promovia a noite, fazia uma
ode ao noturno; enquanto a Socoma sempre pregou o repúdio e a
restrição. É óbvio que o parlamento votou pela proibição de
simuladores por conta da pressão da Socoma.
Ela suspirou por trás dos seus óculos escuros, com os
pensamentos perdidos em algum lugar entre o passado e a fantasia
de um presente alternativo.
Não, quinze anos atrás Lucian não se interessava por
simuladores, nunca nem cogitava. Todos seus amigos daquela
época dividiam os mesmos interesses: esportes, praia, arcades,
jogos de tabuleiro, tardes de poker, rouba bandeira no gramado do

24
DIAS FERPELLA

Parque. O único ambiente escuro que frequentavam era no


máximo um teatro ou cinema ocasional. Ou o trem fantasma do
parque de diversões. Para ir a um simulador, só mesmo se eles
tivessem se conhecido naquela época, como ela dizia.
Agora, atualmente, depois de ter violado o limiar por mais
quatro vezes, Lucian poderia até considerar a noite como parte de
seus hábitos. Ele se sentia aliviado por ter seu irmão para
compartilhar suas experiências e mistérios. Ele gostaria de poder
contar a ela também, talvez ela ficasse mais intrigada e curiosa que
Nico. E talvez ela tivesse até respostas para suas perguntas, já que
parecia entender tanto sobre a noite.
Ele foi à escola que seu irmão trabalhava. Fazia um belo dia de
Sol e a visão de água por si só já refrescava. Nico atentava ao
movimento dos seus alunos e nem percebeu quando Lucian
contornou a piscina para encontrá-lo. As crianças pulavam de
ponta ao som do seu apito e imediatamente saíam da água para
voltar ao fim da fila e pular novamente.
Eles se cumprimentaram com um abraço rápido e Lucian
aguardou ao seu lado durante os últimos minutos de treino. Nico
anunciou a última rodada de mergulhos. Algumas crianças saíam
da água e iam direto pro vestiário, outras ficavam um pouco mais,
brincando e conversando entre as raias.
- Eu deixei um quebra-cabeça pra você no seu armário. - Lucian
começou.
- Já montou? Em uma noite?
- Nico, tinha alguém no corredor.
- Socoma? A gente falou sobre isso, é provável que eles estejam
te monitorando.
- Alguma coisa farejou por baixo da porta.
- É… Até onde eu sei, a Socoma não tem cães farejadores.
Algum vizinho talvez? O que você acha?
- Eu acho... - Lucian se conteve, olhando em volta. Nico sugeriu
que fossem para um lugar com mais privacidade, como a sala do
departamento. Ele fechou a porta, isolando o barulho da outra
turma que começava o treino na piscina olímpica.
- Você já se perguntou por que é ilegal atravessar o limiar? -
Lucian começou, tentando afastar da cabeça a ideia de que ali,
talvez, tivessem microfones escondidos pela Socoma. Ele não

25
NICTOFOBIA

poderia ser tão importante assim, poderia? A primeira retenção em


mais de cinquenta anos.
- Existe um motivo para a proibição, Lucian.
- Sim, mas qual? Consegue me dizer?
Nico ficou calado e sua expressão indicava que não gostava do
rumo da conversa.
- Para nossa segurança? Para nossa saúde mental? Cada hora
alegam um motivo: que precisamos de doze horas de
inconsciência, que não existe tecnologia para iluminar a cidade
toda, que o ar noturno é muito frio, é nocivo aos pulmões, que as
plantas liberam toxinas cancerígenas, que há uma infestação de
morcegos… Ninguém tem uma resposta clara para isso, ninguém
fala sobre isso, Nico. Você costumava se perguntar, quando foi que
parou?
- Eu era criança, Lucian. As pessoas crescem. E você quer o quê,
dormir durante o dia?
- Ao menos eu poderia ter a liberdade de escolha, não? Por que,
afinal, fecharam os simuladores?
- A escassez de luz causa problemas nos olhos, todo mundo
sabe disso… - ele se levantou e se aproximou do irmão ao perceber
que estavam quase gritando. - Lucian, foi por esses pensamentos
que você terminou assim, com esse processo. Pede um reajuste de
Sono e esquece isso, não vale a pena, você já passou por isso e sabe
que não vale o esforço.
- É, mas daquela vez eu tinha feito por ela. Agora eu faria por
mim.
Nico abaixou a cabeça e deu um longo suspiro, procurando seu
próximo argumento.
- Não basta só cruzar o limiar? Você tem mesmo que sair? O
que você vai ver lá fora que não pode ver da sua janela?
- É exatamente isso que eu quero saber. - Lucian cravou com
um sorriso. Ele sentia o irmão começar a ceder. - Meia hora, Nico.
A gente dá uma volta no quarteirão só, não mais longe que isso.
- Espera, você quer que eu vá com você?
Na mente de Lucian se formou a pior das hipóteses. A Socoma
o pega de novo, reincidência, ele ainda tinha uma carta na manga
para negociar um acordo, por mais que ele não quisesse usá-la.
Nico com ele, exposto nos jornais, a Socoma questionando sua

26
DIAS FERPELLA

esposa, o mesmo exaustivo processo pelo qual Lucian passara há


dois meses e estava longe de acabar. Mas ele não podia fazer isso
sozinho e não dava para contar com mais ninguém. Nico cogitou
por um momento, talvez também pensando na pior das hipóteses
e em seguida falou decidido:
- Tudo bem, eu não vou sair, mas vou ficar acordado. Meia hora
depois do limiar e só. Se você precisar de alguma coisa, me liga ou
vai lá pra casa. Eu estou confiando na sua intuição e que você vai
ser responsável e não vai correr riscos desnecessários.
Lucian aceitou a oferta. Era o melhor que ele poderia ter e não
ousava pedir mais do que isso. Nico, disposto a dividir seu delito.
Mesmo se fosse mentira, mesmo se ele fosse pra cama dez minutos
depois do limiar, mas ali ele firmava um compromisso e Lucian de
alguma forma se sentia protegido. E ele prometeu fazer valer a
pena, ele descobriria algo, ele arranjaria uma defesa sólida para se
livrar daquela confusão e nunca mais, nunca mais daria tanto
trabalho assim para a família.
- Você tem alguma luz elétrica?
- Um abajur, para os dias chuvosos.
- Deixe-o desligado. - Lucian aconselhou abrindo a porta e
deixando os sons da piscina adentrarem.

***

Era Ronie, sua irmã Luana e seu marido Tom. Elas conversavam
na sala enquanto ele guardava a louça. Os típicos representantes
da geração lowprofile, que cresceram ouvindo aqueles novos
clássicos de Viral Axis e os riffs de Bradley Rolsen. Que amavam a
gastronomia oriental e viram a primeira febre dos simuladores
noturnos durante a adolescência. Que assistiram todos os
episódios de Call it a Night mais de uma vez e usavam fitas nos
cabelos. Os anos dourados da Socoma, a paz de uma lei vigente, o
coletivo consciente e responsável. O conceito de noite nunca
esteve tão na moda, a verdadeira noite nunca foi tão ultrapassada.
“Cruzar o limiar é tão século passado.”
- Eles dizem que vai ser revolucionário. Parece que tiveram
consultoria de ex-Insones, algo assim. - Luana dizia com as pernas
cruzadas em cima do sofá.

27
NICTOFOBIA

- Eu ouvi que o próprio CEO é um ex-Insone. - Tom interveio


da cozinha, entre o som de armários se fechando.
- Boatos, nada mais que boatos. Eles querem criar uma
expectativa e assim vender entradas antecipadas. Quando
inaugurarem vai ser tão decepcionante que ninguém nunca mais
vai voltar. É isso que eles estão vendendo: a expectativa. - Ronie
criticou, orgulhosa de sua própria conclusão.
- Maninha, o lugar vai ser do tamanho de um shopping. Um
simulador dessa dimensão já vale a pena, mesmo se for só um
quarto escuro com um loop de grilo tocando em algum canto. Se
me prometerem uma deepTV maior que a do Epílogo eu faço
minha reserva.
- Vamos ter que esperar pra ver. - Tom terminou sua tarefa e se
juntou a dupla na sala. Passando por sua filha sentada à mesa, esta
lhe chamou a atenção.
- Pai, não quero mais. Acabei.
Ele deu uma rápida conferida no seu prato, ela tinha comido
bem melhor do que no dia anterior. Estava numa fase carnívora.
Ele a ergueu da cadeira, dando-lhe um beijo no pescoço, e assim
que a pôs no chão ela correu e pulou no sofá, pros braços da tia.
- O que seria uma deepTV? - sua mãe perguntou. A tia
demonstrou surpresa pela alienação de sua irmã, ao mesmo tempo
em que dividia a atenção com a sobrinha, que brincava com as
fitas que pendiam de suas mechas escuras.
- DeepTV vai mudar sua vida! Lá no Epílogo eles colocam como
se fossem janelas. E tem uma parede no fundo que deve ter uns
trinta monitores sincronizados. Ela muda o ângulo da imagem de
acordo com a sua posição. E como estar diante de um vidro! Eles
fizeram uma simulação da cidade lá fora, todos os prédios na exata
posição, mas como se fosse noite. Tudo iluminado, é lindo!
O casal se empolgou e imediatamente Luana sugeriu fazer uma
reserva para que ela pudesse mostrar pessoalmente. O problema é
que não tinham com quem deixar a filha, geralmente era a própria
Luana que ficava de babá.
- Não, a Lenny também vai com a gente, né? - Luana se virou
para a sobrinha, que se animou mesmo sem saber do que se
tratava. Em seguida Luana esclareceu para a irmã: Epílogo era um

28
DIAS FERPELLA

restaurante aberto à família, a garotinha não teria problemas para


entrar.
Leonora tinha apenas quatro anos quando viu a noite pela
primeira vez. Ela ainda se lembra nitidamente, o pai dela a
carregava, as mesas iluminadas com luminárias clássicas que
pendiam da parede, o biscoitinho de amêndoas, o cheiro de queijo.
Tudo se tornou marcante apenas por aquela atração na parede do
fundo. Os monitores eram como vidro, e enquanto chegavam
perto, a pequena Leonora via os prédios se erguendo, iluminados,
em direção ao negro do céu. Lá embaixo, a rua e carros passavam
com faróis ligados, e luzes se projetavam da calçada, lançando
sombras no asfalto. As janelas perdidas na distância da cidade
eram pontos brilhantes de brasa e faíscas de vela de aniversário.
Dali em diante, ela começou a se interessar por aquilo que
antes nem existia. Quando ia dormir ela indagava pra mãe sobre o
que ia acontecer enquanto ela estaria inconsciente, sonhando,
alheia à noite. “E por que, mamãe, eu não posso ficar acordada?”
Leonora se esforçava para ser uma boa filha: não brigava na
escola, comia tudo sem reclamar, desligava a televisão sem que
mandassem, arrumava seus brinquedos no quarto, não ficava
descalça na garagem, não passava meleca nos móveis, não riscava a
parede, não pegava nada sem pedir. E todo entardecer, quando se
deitava na cama, perguntava se podia ficar acordada só um
pouquinho mais. O coração de Ronie se comprimia toda vez que
ela tinha que dizer não. E se era Tom, sem pensar muito no peso
daquelas palavras, dizia “ainda não, Lenny, talvez quando você for
mais velha.”
Dois aniversários se passaram. Seus pais a levavam para
almoçar no Epílogo ou tomar um sorvete no Via Láctea. Este
último, era equipado com a primeira projeção de estrelas no teto
em alta definição e oferecia um mapa celeste em suas mesas para
os fregueses se divertirem encontrando constelações. Leonora
assistia filmes antigos com cenas noturnas, e fantasiava com
aqueles personagens antes de dormir, que eles estariam lá fora, na
sua rua mesmo, vivendo toda aquela ficção escondidos. Ronie e
Tom por vezes iam a simuladores ou cinemas e tia Luana aparecia
com suas histórias de terror. Elas se metiam debaixo da mesa do
escritório e fechava a frente com um cobertor grosso, ficando

29
NICTOFOBIA

imersas na escuridão com um isqueiro. Ela ganhou um pôster com


as fases da lua naquele natal, para decorar seu quarto já repleto de
corujas, gálagos e lobos de pelúcia, um outro pôster com espécies
nativas de morcegos, uma luminária de estrelas, seu moletom de
pantera-nebulosa.
Mais dois aniversários vieram, e Leonora agora com oito anos
ainda tinha várias coisas com o tema noturno em seu quarto. No
entanto a novidade foi se dissipando em algo corriqueiro,
maçante, monótono, e ela começava a ganhar aviões, jogos de
tabuleiro, livros de colorir, histórias em quadrinhos, fantasias de
piratas. Ela já não pedia para ficar acordada, nem Ronie entrava
em seu quarto já pensando numa barganha para que ela tomasse
sua dose de Sono. Ela preferia acordar cedo, passear no Parque e
ouvir os pássaros, tomar café da manhã na varanda, brincar com a
terra e plantar cenouras com seu pai.
A alguns meses de completar nove anos, tia Luana trouxe um
envelope durante uma visita.
- Consegui! Por um momento pareceu impossível, depois
pareceu muito próximo, e depois pareceu impossível de novo, mas
eu consegui! Pra daqui a dois meses!
Aquela coruja estampada em todos os anúncios da cidade e em
todos os comerciais na televisão, que saturava a mídia
gradativamente há dez meses, agora estava na mesa da sala de
jantar. Leonora leu aquela palavra pela primeira vez na vida e
pronunciou mentalmente: Ni...tí...niquiti...do… dromus.
Nyctidromus.

30
III

“E
ssa é pra você, já voltando pra casa depois de mais um dia
produtivo…” a voz no rádio falava entre uma música e
outra. Lucian parou numa hamburgueria para pedir seu
jantar. O céu lá fora estava alaranjado, raios de um sol
enfraquecido passavam pelo vidro, colorindo as mesas de madeira.
A balconista nem perguntou: já assumindo que seria para levar,
embrulhou seu sanduíche num saco de papel. Não havia ninguém
pedindo depois dele, os poucos clientes que restavam à mesa já
terminavam suas refeições. Era seguro assumir que eles moravam
ali ao lado. O relógio na parede marcava sete minutos para as seis
horas.
Ele voltou para o carro já dando a primeira mordida. O gosto
artificial lembrava sua infância e ele não pode deixar de ouvir
Anna, dramática, dizendo em sua cabeça que aquela carne era de
minhoca e o queijo era feito com um derivado do plástico. Mas ele
e Nico vibravam toda vez que seus pais o levavam ali, e Anna não
deixava de se divertir nos brinquedos.
Lucian parou o carro à cinco quarteirões de sua casa, já quase
no Parque. Era melhor se prevenir em relação à Socoma, que
muito provavelmente estaria de tocaia na sua rua após o limiar. Ali
dentro ele aguardou, terminando de comer.
Foi o tempo da última música tocar. “Aí está, o limiar.” O
laranja do céu se apagava. Vênus.
Lucian fechou as janelas do carro, ficando escondido atrás da
película escura. Não havia ninguém na rua, nenhum carro,
nenhum pedestre, nem mesmo pássaros. Mas aquela sensação de
estar vulnerável e de, a partir daquele minuto, estar fazendo algo
muito, muito errado, era suavizada por aquele escudo de vidro. As
sombras dos prédios começavam a seu fundir com o asfalto, num
único tom de piche. Cortinas automáticas se fechavam,
sincronizadas num pacto programado entre seres inanimados de
tecido, alheios aos semelhantes por uma falta de ciência ou
consciência. O motor do carro esfriava com estalos que

31
NICTOFOBIA

perturbavam uma delicadeza sacra do anoitecer. O som se


expandia para os cosmos e Lucian se sentiu mais que um
criminoso, mas um pecador: a criatura infeliz no seu egoísmo a
espalhar notas ofensivas numa desarmonia equiparável a sua
própria alma.
Ele começou a questionar seu plano. Ainda dava tempo de
desistir? No relógio do painel, dezoito horas e quatro minutos. O
céu se recolhia num púrpura profundo. E elas foram aparecendo.
“Sírius, Canopus, Arturus…” a pequena Leonora apontava na
projeção celeste.

Na areia, não sabe o que faz


Ora branca, ora amarela, ora vívida e fugaz,
Pulsa em luz própria e a menina, veraz:
‘Eis estrela, um belo afago o Leste me trás!’

Ela poderia ter explicado ou desenhado, mas ela quis mostrar.


Lucian chorou, com medo de sair da cama.
Agora ele abria a porta do carro, hipnotizado por aqueles
pontinhos cintilantes. Nas fotos eles não brilham, eles não se
movem, não estão vivos. Nas fotos eles respeitam o fôlego de uma
criança curiosa que nada conhece e tudo sabe. Aqui, eles tomam
de súbito o ar de um adulto que nada conhece e tudo já esqueceu.
Uma névoa de luz cortava o céu como um rio leitoso, as estrelas se
confundiam no meio de nebulosas e aglomerados, brancas,
amarelas, verdes, roxas, vermelhas, lilás. E pela primeira vez
Lucian quase pode vislumbrar o infinito, antes que seu cérebro
primitivo imediatamente o jogasse de novo na ignorância para
preservar sua sanidade.
Na conta que veio ele escreveu o número do quarto. Ela,
ansiosa, o puxava pela mão e ele se atrapalhou com a assinatura.
Ela ria, aquela risada nervosa incontrolável que aquecia seu
mundo. No elevador panorâmico ele apertou o vigésimo e eles se
beijaram durante toda a subida, banhados pelo pôr do sol que
surgia entre os prédios a medida que subiam. Amanda conferiu o
relógio: dezoito horas em ponto.
“Vai ser incrível, você vai ver.”

32
DIAS FERPELLA

Lucian admirava o céu, resguardado entre a porta e o interior


do carro. E com todo aquela miríade de astros em seu esplendor
celeste, ele ganhou confiança e abriu a porta completamente. No
entanto, se ele deixasse de olhar o céu para olhar ao seu redor,
talvez ele consideraria entrar no carro, trancar as portas, se
encolher entre o banco e o volante e tomar aquele Sono ignorado
no porta-luvas. Dormir com a luz acesa, até a bateria arriar. Mas
ele jamais, ao se deparar com o breu da cidade, e em posse das
lembranças da noite anterior, se afastaria do carro.
Mas ele olhava para a luz salpicada no céu e seus pensamentos
iam longe do horror passado. As pernas brancas, os pés finos na
imagem esverdeada, os passos no corredor, os peixes morrendo,
um por um. Alguma coisa farejando por baixo da porta. E aquele
semblante de agonia e pavor como um borrão sobre sua mesa. Ele
pegou a lanterna em seu carro e fechou a porta delicadamente.
Ainda assim temia que aquele som tivesse ecoado pela cidade
inteira.
A escuridão o envolvia como se estivesse mergulhado numa
água negra, e lá em cima, distante, as estrelas demarcavam a
superfície. Sua lanterna era do tipo lamparina, iluminando não
mais que três metros ao seu redor. Ele andava próximo à calçada,
no asfalto, seguindo o meio fio como referência. Dava para ver o
recorte dos prédios contra o céu, apenas silhuetas negras se
erguendo imponentes contra ele, observando, julgando.
Lucian olhava atento para todos os lados, com ouvidos alertas
para qualquer som de motor. Lá atrás ficou seu carro, ele podia ver
graças a luz interna, que ainda permanecia acesa por alguns
minutos após o fechamento das portas. Era sua referência, a
âncora pela qual ele estava conectado por um cabo psicológico. Ele
iria até a próxima esquina e voltaria, já seria o bastante.
Aquela luz se afastava dele, ou ele se afastava da luz. Trinta
metros, quarenta metros. Até que Lucian se virou a tempo de vê-la
se extinguir, enfim. Uma brisa leve soprava contra ele, como se
algo enorme a sua frente tivesse se movido, ou um mal presságio
despertava o cumprimento de uma profecia milenar. Lucian
percebeu seu coração disparado, seus passos lentos, cuidadosos.
Ele parava, olhava em volta, escutava, dava mais alguns passos.
Seu corpo completamente tensionado. As estrelas já não

33
NICTOFOBIA

fascinavam, mas conspiravam contra aquele ser vulnerável, lá


embaixo, nas ruas escuras.
Pela esquina ele pode ver o contorno de folhas contra o céu,
sussurrando no ar que se movia. O Parque. Atravessando a rua,
Lucian se sentiu mais exposto do que nunca e acelerou seus
passos. E entre o som do vento, das árvores, do seu pisar e da sua
respiração, ele teve a impressão de ouvir algo mais.
Ele parou na calçada oposta, até mesmo prendendo a respiração
para tentar escutar novamente o que ele pensava ser. E lá estava,
um carro se aproximava. Lucian não soube dizer de qual direção, e
sabia que quando descobrisse seria tarde demais. Procurou um
lugar para se esconder. Havia um portão aberto à sua direita e sem
pensar duas vezes ele se virou para lá.
Mas havia algo ali. O sangue de Lucian gelou e ele segurou seu
próximo passo. Estava à dez metros de onde ele parou, alguma
coisa escondida no escuro, próxima a parede. Lucian forçou a
vista, tentando distinguir o que era. Parecia uma pessoa agachada,
de cabeça baixa, como se chorasse. Mas suas proporções não eram
humanas. Talvez ela estivesse abraçando um casaco, ou um
animal, ou uma criança.
“Oi?” a voz de Lucian saiu engasgada, entre um sussurro e um
grunhido. Ele olhou ao redor, o barulho do carro estava muito
mais nítido agora, era provável que estivesse na rua seguinte.
Lucian voltou a andar, hesitante, erguendo a lanterna numa
tentativa de aumentar o alcance de sua luz. A sua direita ele
identificou um carro estacionado e correu para se esconder atrás
dele. Colou suas costas contra a lataria e esperou, o som do motor
acelerando, mudando as marchas. E aquela coisa agachada ali por
perto, na mesma posição, também esperando. Lucian ousou
desligar a lanterna e se concentrou na sua respiração. Controle-se.
A brisa soprava um pouco mais forte.
Ele não tirava os olhos da coisa. Agora ele não pensava em
tentar nenhuma abordagem, nenhum chamado. Talvez fosse
melhor não perturbar o sujeito. Talvez estivesse dormindo.
O carro virou a rua, jogando a forte luz do farol por todo o
pátio, e Lucian pode ver rapidamente do que se tratava e, como
uma ação involuntária, seu corpo relaxou e ele suspirou em alívio.
Eram sacos de lixo e caixas de papelão, largadas, pela ironia de

34
DIAS FERPELLA

uma coincidência, numa configuração ambígua. O farol passou


conforme o carro fez a curva e soltou a escuridão de volta ao lugar.
Agora que já sabia o que era, Lucian não mais enxergava o homem
agachado de antes.
Lucian ainda esperou dois ou três minutos para ligar sua
lanterna novamente, até o barulho do motor voltar a se
aconchegar sob o sopro da noite. Lucian olhou para o teto
estrelado e decidiu que era hora de voltar. Ainda queria andar
mais, mas não precisava continuar se afastando. Usaria a avenida
que circundava o parque e seguiria para a casa de Nico. Com sorte
encontraria algo atípico durante o percurso, mas já desacreditava
no seu sucesso. Aquela empreitada acabaria culminando apenas
numa segunda captura.
Foi no meio desses pensamentos que ele ouviu uma melodia,
abafada, vindo de algum lugar. E de novo, algumas notas soltas
chegaram aos seus ouvidos. Era música, definitivamente, tocando
em algum lugar próximo dali. Ele guiou a luz da lanterna até a
parede daquele prédio grande e envelhecido, coberto de manchas
e limo. E deixando-se guiar por aquele obstáculo, se sentiu
novamente seguro ao ter uma parede sólida para proteger um de
seus lados. Passou pelo homem agachado, agora revelado na sua
verdadeira natureza de sacos de lixo e encontrou uma porta de
metal.
A música vinha lá de dentro. Ele escutava as notas marcadas de
instrumentos de sopro. Ao dar um passo pra frente, ele ouviu o
som inconfundível de água sob seus pés. Uma poça rasa, água
acumulada nas imperfeições do concreto. A luz refletida também
denunciava umidade na superfície da porta. Ele sentiu um impulso
de testá-la e virou a maçaneta sem expectativas.
A porta se soltou do trinco e se abriu na sua direção. A música
ressoava no corredor escuro. Ele deu uma última olhada no céu
estrelado e seguiu para investigar. Fechou a porta atrás de si, se
sentindo mais protegido sabendo que ouviria se alguém o seguisse
para dentro. Era um corredor estreito, sua lanterna conseguia
iluminar ambas as paredes e até mesmo o teto. Lucian passou por
portas fechadas que não lhe interessavam, a música vinha mais
forte do outro extremo do corredor. Lá havia uma escada não
muito extensa. E lá em cima, um quadrado de luz pálida.

35
NICTOFOBIA

Era o vidro de uma porta fechada. Do outro lado, um pátio


cheio de caixas empilhadas até se perder de vista. E Lucian podia
ver tudo perfeitamente sob a luz das lâmpadas que iluminavam o
armazém. O som de jazz o convidava a entrar, ou dizia para dar
meia volta e não se meter. Nesta comunicação dúbia, Lucian
escutou sua curiosidade, assim como seu medo, pois a escuridão o
intimidava a apenas cinco degraus atrás de si. E eles diziam alto e
claro “vai em frente.”

***

Ninguém de fora do seu grupo sabia. Ela não ousava contar


para ninguém, pois era um segredo tão grande e tão
comprometedor, que não dava para prever a reação de quem o
ouvisse. Talvez seus pais não julgariam, mas ainda assim ela
preferia não testá-los. Ela não acreditava que eles fossem
denunciá-la, mas poderia abalar a relação deles. Então ninguém de
fora do seu grupo sabia.
Mas havia algo naquele cara, uma conexão profunda, ao menos
naquele momento, ao menos depois daquele contato tão íntimo
dos dois, que a fez considerar se expor. Afinal, ele também estava
literalmente nu ao seu lado, e havia acabado de revelar seu grande
segredo comprometedor. A conversa veio naturalmente, entre
elogios e recusas. “Eu não sou tão boa quanto eu tento parecer pra
você.” E ele questionou o que de tão ruim ela poderia ter feito em
toda sua vida, por exemplo, a coisa mais ilegal que ela já tivesse
feito. Ela virou o jogo “Não Lui, você primeiro, qual é seu maior
crime?”
Ele pensou por um momento. A primeira coisa que lhe ocorreu
foi quando ele perguntou inocentemente o que era uma estrela e
chegou a ficar acordado por cinco minutos depois do limiar. Mas
ele era criança naquela ocasião, e sua mãe ainda responderia por
seus supostos crimes, então descartou.
Ele nunca tinha parado para analisar sua conduta. Pequenos
furtos na adolescência, entrar no cinema sem pagar, falsificar
assinaturas em boletins escolares, parar em local proibido, copiar
CD’s para os amigos.
- Eu invadi propriedade particular.

36
DIAS FERPELLA

- Esse é o maior crime que você já cometeu? Pular o muro de


uma casa vazia? - ela não pode perder a chance de dar uma
cutucada. Ele lançou aquele olhar que ela adorava antes de entrar
em detalhes.
- Não, longe disso. E é bom que você tenha baixas expectativas,
melhor será sua cara de surpresa no fim. Logo que entrei pra
Corium, eu andava mais com o pessoal do time de hockey. Era
aquela época em que a gente acha que nada pode dar errado, e que
se der errado, vai ficar tudo bem.
- Sei como é, saudades dos meus vinte e poucos. - ela
interrompeu num suspiro. Se aproximou um pouco mais dele,
entre as almofadas, curiosa.
- A gente tinha acabado de ganhar as eliminatórias estaduais, e
só depois eu fiquei sabendo que meio time tinha feito uma
promessa. E todo mundo estava tão empolgado, que estava
aceitando qualquer coisa. Quando eles chamaram, todos nós
fomos. E foi uma missão toda elaborada, quase como um filme de
espionagem.
- Fala logo! - ela sabia que ele a deixava ansiosa de propósito.
- A gente jogou no Artemis. - Lucian revelou orgulhoso e
gravando na sua mente a expressão no rosto dela. O Artemis, mas
o Artemis mesmo? O estádio? Aquele gigante?
Ela estava legitimamente impressionada. Um grupo de jovens,
numa tarde de terça-feira, no fechamento da temporada de jogos,
quando o estádio fica desativado, levando seus patins nas costas,
entrando pelo estacionamento, se esgueirando entre seguranças e
câmeras nos arredores e conseguindo, ilesos, jogarem uma partida
no maior estádio do país, passava uma mensagem escondida que
ela captou de imediato:
Aquele cara na frente dela, o bonitinho da equipe da Corium,
que sua amiga Anna apresentou como seu irmão, um dos poucos
que ela manteve contato depois de se formarem, e que agora, num
acaso dos dois estarem solteiros, finalmente darem espaço a
atração que sentiam um pelo outro, aquele cara, Lucian, tinha um
senso de aventura adormecido. Se hoje ele não se arriscava e não
quebrava uma regrinha aqui e outra ali, era simplesmente porque
não tinha ninguém para puxar sua mão e dizer “vamos.”

37
NICTOFOBIA

E assim, ela sentiu uma cumplicidade ainda maior e sem


perceber, sorriu para ele diante desse pensamento. Ela cogitava
compartilhar aquele segredo, seu maior crime, e se expor, confiar,
sob o risco de arruinar tudo que eles tinham ou poderiam ter,
mudar toda a maneira que ele a enxergava, para melhor ou para
pior. Seu coração palpitava, pois ela sabia que logo ela teria que
decidir, num segundo, se contava ou não.
“É isso! E você?”
Ela agarrou uma almofada e escondeu seu rosto. “Não” ela dizia
entre risos nervosos. Ele arrancou a almofada de suas mãos e
insistiu. E no seu fôlego seguinte, ela soltou de uma vez:
“Eu saio à noite! É isso, simples assim.”
E foi o começo do fim.

***

Lucian se aproximou cauteloso. Vozes e risadas se misturavam


com a música atrás de alguma daquelas altas prateleiras tomadas
por caixas. Ele deu a volta em uma delas, mas não conseguia
apontar com precisão de onde vinha o som. Ali, longe das paredes,
ele se propagava pelo armazém de forma curiosa, abafado por
tanto papelão e dissipado em espaços estreitos.
Todos os músculos de Lucian se contraíram e ele salvou um
grito quando atrás de si, bruscamente, ouviu alguém dizer.
- Estamos aqui, desse lado.
Eram duas pessoas, uma delas carregava uma bandeja com um
bule e algumas canecas.
- Aceita lévica? Acabamos de fazer lá embaixo. - ela ofereceu.
Era uma mulher jovem, ao lado de um garoto ainda mais jovem
usando um boné para trás.
Imediatamente Lucian entendeu tudo: Insones. Ele fez as
conexões da noite passada em posse dessa descoberta, a aparição
na câmera de segurança, os passos no corredor. Provavelmente
alguém que bebera lévica em excesso e cambaleava de volta pra
casa. Aquilo farejando? Lucian já não tinha certeza se ouvira
corretamente, poderia ser apenas alguém arrastando os pés, ou se
apoiando nas paredes.

38
DIAS FERPELLA

Ele se recuperou do susto e sorrindo, aliviado, recusou a bebida.


Eles convidaram Lucian a acompanhá-los até o grupo.
- Você é o convidado da Olie? Disseram que talvez você não
aparecesse. - a jovem moça puxou papo de forma acolhedora.
Lucian ainda tentava se desfazer da impressão inicial, aquele
preconceito a respeito de Insones, toda a polêmica por detrás do
movimento. Ele pensou nas palavras de seu pai, ditas para todos
eles, mas especialmente para Anna. “Vocês não precisam provar
nada pra mim, vocês não precisam lutar pela minha admiração. Eu
já admiro vocês. Apenas não acabem com suas vidas por más
influências ou um idealismo já mais que ultrapassado.”
Se Anna o visse agora… Se seu pai o visse agora…
- Caralho! É ele! - de repente, o garoto de boné, que o encarava
intrigado desde o momento em que o viu, pareceu ganhar vida. Ele
o puxou pelo braço e Lucian acompanhou seus passos apressados
até o terceiro corredor. Ali havia um espaço maior, provavelmente
o meio do armazém, como a divisão de um setor e outro, onde
empilhadeiras se espalhavam adormecidas. E entre as
empilhadeiras, sentados sobre as caixas, em pé sobre engradados,
dançando sobre as marcas no chão, pessoas interagiam e se
animavam com uma vitrola, canecas de lévica, taças de vinho,
pratos de aperitivos picantes, revistas estrangeiras. Quando Lucian
percebeu, ele estava diante de um jogo de cartas, que acontecia
sobre uma caixa grande de madeira.
- Senhores, como dito e prometido, dois meses e oito dias. - o
garoto apresentou Lucian com uma firula. Os jogadores, ao
reconhecê-lo, se manifestaram energeticamente, gritando em
surpresa, lamentando, irritados ou gargalhando. Alguns já tiravam
notas de dinheiro e contavam moedas em seus bolsos. Um homem
robusto deu um leve tapa no ombro de Lucian, cobrando que ele
deveria ter esperado mais três semanas antes de aparecer. Agora
além de perder o dinheiro, eles teriam que aguentar esse moleque
se gabando de ter ganhado a aposta não por aproximação, mas
exatamente da forma que profetizou. “Dois meses e oito dias.” Eles
riram da forma que Viana posicionava seu palpite com tanta
exatidão.
Ele recolheu seu lucro com um sorriso arrogante.

39
NICTOFOBIA

- Eu te daria uma parte, mas eles desconfiariam que foi


combinado. - Viana sussurrou para Lucian.
- Lucian! - ela vinha na sua direção como uma velha conhecida,
saltitando no ritmo da música.
- Amigo seu, Olívia? - a jovem moça chegou trazendo a
bandeja.
- Não, meu amigo furou, pelo jeito. Mas eu conheço esse cara.
Todo mundo conhece! É aquele que a Socoma pegou, aquele dos
jornais. Cara, eu não sei se eu te bato ou se te beijo! - ela deu um
empurrão amigável, como se realmente fosse uma velha
conhecida.
- A gente se conhece? - Lucian disparou, desistindo de resgatar
aquela feição de seu passado.
- Não. Mas é inacreditável que você tenha sido pego e reabriu
essa discussão toda. A Socoma estava respirando por aparelhos e
você trouxe uma injeção de adrenalina. E ao mesmo tempo, aqui
está você! Apesar de tudo você não desistiu, não importa o que
aqueles babacas façam, eles não podem com a gente.
- Acredite, eu lamento mais do que você por ter sido pego.
Viana se apresentou oficialmente e Marna, a moça simpática,
voltou após passar o bule de lévica para um grupo sentado em
volta de uma empilhadeira.
- Esses caras aqui fizeram uma aposta que você apareceria. E eu
jurava que depois do que aconteceu você estaria sob vigilância
pesada. Como você conseguiu sair?
- Lucian! Foi maravilhoso você ter sido pego, você virou uma
celebridade, nosso porta voz, você vai inspirar milhares de pessoas
a sair e cruzar o limiar, a gente vai retomar o controle da situação.
Tem gente que nem cogitava a possibilidade, nem questionava o
direito de ficar acordado, a decisão de tomar Sono ou não. - Olívia
interveio mais uma vez, empolgada, impedindo que ele
respondesse Marna.
- Espere um momento, não é melhor manter isso no escuro? -
ele mudou de assunto apontando para as lâmpadas frias no teto.
- E atrair “noturnos”? - Viana debochou. O resto pareceu não
entender o conselho.
- A Socoma passou aqui por perto agora mesmo. - ele revelou
esperando uma mobilização. Mas a reação do grupo foi

40
DIAS FERPELLA

decepcionante. Todos continuaram em silêncio, como se


aguardassem uma conclusão.
Foi Marna que lembrou a todos que Lucian era novo ali, que
talvez ele não soubesse. Foi durante uma semana inteira que
alguns integrantes seguiram as patrulhas de bicicleta, a distância,
escondidos sob mantos negros e camuflados pela noite. Uma
operação arriscada, mas genial. As rotas de todas as patrulhas
estavam agora escancaradas, mapeadas e monitoradas. O jogo
virara, agora eram eles a vigiar a Socoma.
- Todas as patrulhas? - Lucian se admirou.
- Sim, todas as três!
Aquele momento em que você ergue um objeto na expectativa
do peso, algo com uma massa aparente, e se surpreende. Como
uma caixa vazia que você julgava como cheia. Lucian sentiu como
se a noite estivesse oca e que aquela força, que ele empregava em
seus músculos para erguê-la, o traísse com a surpresa da
irrelevância. Três patrulhas!? Por todo esse tempo, por todos esses
anos, ele não questionava a quantidade incalculável de agentes em
ronda durante as noites, preenchendo toda a cidade com o peso de
seus veículos. Mas a cidade sempre esteve leve.
- A Socoma ainda acredita que todos estão dormindo. E mesmo
entre eles, quanto menos gente acordada melhor.
- Ninguém te avisou sobre as roupas? - Olívia estava inquieta.
Foi então que Lucian percebeu que todos ali vestiam preto. Viana
se prontificou para ver se alguém possuía um casaco sobrando.
- Caso contrário, não seria melhor ele voltar pra casa? - a garota
perguntou de forma expressiva, quase teatral.
- Não, é só a gente ficar de olho nos Fenômenos e ter mais
cuidado. Não vamos te dispensar na primeira noite. - Marna
respondeu tranquila e se dirigiu a Lucian.
- Fenômenos? - ele indagou se envergonhando de saber tão
pouco. Olívia ficou em êxtase, deu um gritinho e girou batendo
palmas, animada com a presença de um novato no grupo. Ela
agarrava Marna pelos ombros e esta tentava se desvencilhar e
responder Lucian.
- Manifestações. Sinais. Avisos, como diz a Socoma. Coisas
estranhas. Objetos mudando de lugar, comida estragando, luzes
piscando, sombras se movendo no limite da sua visão…

41
NICTOFOBIA

A essa altura Olívia já tinha se desgarrado e foi compartilhar


sua empolgação com quem dançava um pouco mais à frente no
saguão.
- É surreal! Sobrenatural! Inacreditável! - ela gritou.
Marna virou os olhos em cumplicidade. Lucian retribuiu dando
de ombros e rindo sem jeito.
- Colocaram alguma coisa no chá dela?
- Cafeína…
Subitamente a música parou. E no silêncio, se ouvia a sineta de
um despertador de cozinha antes de alguém desligar. As luzes se
apagaram. Todos se calaram como se apagassem junto. Lucian
olhou para cima, para aquele retângulo extenso de estrelas
recortado na parede. Aos poucos ele distinguiu a forma de duas
cabeças olhando pela janela, lá em cima na passarela que
circundava todo o armazém. E somente aquelas duas pessoas
tinham o visual dos faróis e holofotes virando a esquina.
- Socoma. É a mesma patrulha. Eles passam duas vezes por
aqui. - Marna sussurrou para ele, mais próximo do que ele
imaginou que ela estivesse.
- E se eles mudarem a rota?
Ela demorou um pouco para responder, como se nunca tivesse
pensado a respeito ou como se a pergunta fosse absurda.
- Por que eles fariam isso?
Há quanto tempo eles faziam aquilo? Ela soava tão segura, tão
confiante, tão rotineira. Lucian começou a se questionar se não era
ele que estava paranóico, sendo o único ali a ter sido capturado e
logo na sua primeira tentativa de sair. Alguns diriam que era uma
chance mínima, um bilhete premiado da loteria do azar, uma
patrulha passando no exato momento em que ele deixava o hotel.
Mas eles não estiveram lá, eles não sabiam dos detalhes. E se
soubessem, talvez estivessem também um pouco paranóicos.
Algo rugiu no escuro sufocante. Um som maquinal, seguido
pelo som de vidro se quebrando. Era alto, próximo, constante.
Alguém xingou, outro perguntou o que era aquilo, o que estava
acontecendo, outra voz respondeu aflita que uma das
empilhadeiras havia ligado sozinha. Alguém gritou para que
desligassem. Alguém disse algo que não deu pra entender,
repetindo várias vezes por cima de uma outra voz.

42
DIAS FERPELLA

Lucian ouviu Marna dizer ao seu lado:


- Um Fenômeno…
Outros já haviam constatado o mesmo e ordenavam que
acendessem as luzes. Lá de cima, uma voz se debruçou e falou que
a Socoma tinha acabado de passar por eles, que em trinta
segundos virariam na outra rua e aí então seria seguro acender as
luzes. Lucian ouviu alguma coisa se mover atrás de si, como uma
caixa se arrastando. Mas era difícil distinguir qualquer coisa
naquela escuridão. Ele procurou Marna ao seu lado, mas não havia
ninguém ali. Forçando a vista, se concentrando, não havia
ninguém ali, as sombras eram uniformes, sem volume. Ele esticou
sua mão com cuidado: não havia ninguém ali. E uma
vulnerabilidade aterradora inundou seus pensamentos.
Ele não queria estar ali, ele queria estar na sua casa, na casa de
Nico, de volta na rua que fosse, dentro de uma patrulha da
Socoma, no telhado com sua mãe, na sala de audiência, nas
escadas daquele hotel, nas ruínas de um simulador, sozinho. Mas
ali, algo o pegaria desprotegido e ele nem ao menos sabia dizer o
que.
Medo, apenas o medo, Lucian. “A noite é como o dia, mas sem
o Sol.” Aqueles longos dedos eram os dedos de sua mãe, o
acariciando e dizendo que estava tudo bem. O desenho, uma foto
de uma estrela. O Sol é uma estrela, a mais próxima de nós,
quente, acolhedora, grandiosa, um globo explodindo em fogo e
magma, radiação e gases. Queimando nossa pele, tirando a água
de nossos corpos, fritando nossas retinas. E um dia irá crescer e
engolir Mercúrio, Vênus e a Terra e toda a bela e insignificante
história do nosso planeta irá se apagar. E então o Sol ficará
pequeno, vermelho, frio, lamentável, morto.
E num clarão, o golpe de luz latejou em seus olhos. O armazém
estava lá, iluminado. Lucian viu um grupo de quase dez pessoas
rodeando a empilhadeira, tentando abafar o som ou desligá-la,
acessar o motor e calá-lo. Agora ela estava em silêncio, como se
tivesse sido pega fazendo algo proibido ao acender das luzes.
Garrafas quebradas no chão, o vinho se espalhando numa poça
escura.

43
NICTOFOBIA

- Eles nos viram! O carro está voltando! - uma mulher


bronqueou da janela. A outra, que estava próxima a um painel,
também na passarela, rebateu:
- Desculpa Hanna, mas eu prefiro mais lidar com a Socoma do
que com um noturno.
A partir de então se instaurou a política de fuga. Todos se
apressaram para recolherem suas coisas, o baralho, as comidas, as
bebidas, o bule esvaziado no piso e jogado para dentro de uma
mochila. Lucian procurou sua lanterna, mas naquela confusão ele
não se lembrava da última vez que a segurara e em cima de qual
caixa a deixara descansando. Ninguém esperava ninguém, era cada
um por si e Lucian não sabia se seguia o fluxo, voltava por onde
veio, ou se escondia em algum lugar. Então alguém passou por ele,
encorajando-o a sair dali e por reflexo, Lucian correu na mesma
direção.
Eles atravessavam o armazém, as prateleiras enormes criavam
corredores à sua direita. As pessoas que iam à sua frente pareciam
aflitas, olhando para os vãos a todo momento em que passavam
por um, olhando para trás, conferindo quem vinha na retaguarda.
Lucian também não pode evitar olhar ao redor, era angustiante
não saber de onde a Socoma viria, e para onde de fato ele estava
indo. Ele tentou esclarecer com a dupla que o acompanhava:
- Há uma rota de fuga? Sabemos pra onde estamos indo?
- Eu não sei! Mas eu espero que alguém saiba. - um deles disse
ofegante.
- Sim, o portão lateral. Deixamos destrancado. - uma mulher
ruiva disse com convicção.
Um assovio ecoou em todo o local. Lucian pode ver alguém
bem à frente acenando e apontando para a direita com gestos
exagerados. Outras pessoas corriam de volta e entravam naquele
corredor. Parecia que o plano havia se modificado de repente e
eles procuravam outra rota.
- Por aqui. - disse a mulher. Lucian ouviu alguns atrás de si
xingando em aflição. Um estrondo retumbou pelo armazém como
um trovão, algo pesado caindo no chão ou batendo em algo ainda
mais duro.
- Eles entraram. - alguém disse quando Lucian se virou para
conferir se todos entravam no corredor atrás dele. E foi quando ele

44
DIAS FERPELLA

percebeu que estava no grupo retardatário. Com ele, estavam


apenas mais quatro. Aquela sensação de ser deixado para trás, de
não escapar, como presas fáceis que se desgarram do rebanho.
Suas pernas começavam a falhar.
No outro extremo do armazém, o resto do grupo estava reunido
em frente à um portão grande de metal. Alguém parecia tentar
abrir o trinco enquanto outros chegavam ofegantes. Quando
Lucian se aproximou o bastante, conseguiu ouvir os comentários
sobre a Socoma ter entrado e sobre alguém que de alguma forma
obstruiu a passagem, lhes ganhando tempo.
O portão se abriu. Todos passaram correndo e apressando uns
aos outros. E quando o último deles passou, um baque seco do
portão.
Alguém comemorou lá fora, uma garota ria sem acreditar.
Lucian reconheceu a voz de Olívia se deliciando com a notícia.
- O que foi?
- Eles estão trancados lá dentro!
- Mesmo? - todos se animavam com a conclusão da fuga. Eles
andaram pela avenida que ladeava o Parque, ouvindo as árvores
acompanhando sua cantoria ao vento, e Lucian os acompanhou
por alguns quarteirões, impressionado com a tranquilidade e
confiança do grupo. E isso o deixou mais relaxado, eles pareciam
ter tudo sob controle, eles pareciam ser profissionais, intocáveis,
invisíveis. Eles eram ninjas, um clã de vestes negras, percorrendo a
noite imperturbável.
- Lucian! Agora você pode dizer que viu um Fenômeno! - Marna
se aproximou dele. E logo eles trocavam impressões da fuga entre
si, assim como todos faziam entre risadas, brincadeiras e exageros.
Era fácil fazer amigos numa situação como aquela e ele já se sentia
parte do grupo. Ele poderia ficar com eles por mais um tempo,
mas não queria dar chance ao azar. E já estava satisfeito com todas
suas descobertas.
Então quando o grupo mudou de direção, se virando para o sul
numa rua estreita, Lucian declarou para os que estavam próximos,
que ali se despediria. Eles estavam indo para o Teatro Koya, parece
que outro grupo estava por lá e todos concordaram em dar uma
olhada no lugar. Ele cogitou ir. E se ela estivesse lá? Como ela
reagiria a um encontro acidental? Ele queria vê-la, queria

45
NICTOFOBIA

surpreendê-la. Mas dessa vez ele não tinha feito por ela, tinha feito
por ele, e para provar essa declaração para si mesmo, ele decidiu
definitivamente encerrar a noite ali.
Se despediram, deixando em aberto o convite para se juntar a
eles, ou encontrá-los na noite seguinte no coreto do Parque.
Lucian deu uma resposta vaga, sem querer firmar um
compromisso e sabendo que assim se tornaria a nova incógnita do
grupo. Aquele que não saberiam se apareceria ou não.
E assim ele seguiu, sozinho, pela ampla avenida agraciada com
árvores. O céu estrelado brilhando lá em cima e a luz das lanternas
dos Insones ficando para trás. Ele sentia o cheiro das folhas no ar
fresco da noite e sorria pra si mesmo, animado com todo aquele
universo oculto. Os Insones, as três previsíveis patrulhas da
Socoma e principalmente o motivo daquela proibição: os
“Fenômenos noturnos”, seja lá o que for. Lucian tentava fazer
sentido, imaginando o quão perigosos eles poderiam ser para
tornar a noite inacessível. Certamente tornavam as coisas mais
difíceis, mas seria isso motivo de uma exclusão tão radical?
E ele pensou nela, as coisas que ela sempre quis mostrar. “Vai
ser incrível!” Então era isso, ele concluiu. Ela fazia parte de um
grupo de Insones. Ela sabia que a presença da Socoma era
contornável, ela sempre teve tudo sob controle e ele não confiou.
Não inteiramente, não o tempo todo.
Imerso em seus pensamentos e distraído com a Via Láctea,
Lucian não percebeu aquela presença se esgueirando atrás de si. E
quando finalmente ele pensou ouvir algo e se virou para olhar, já
era tarde demais e a força desproporcional daquele ataque o levou
ao chão.

46
IV

A
manda aguardava de olhos fechados, concentrada na
escuridão de suas pálpebras. “Pai, por que dentro da gente é
escuro?” ela dizia quando pequena.
- Feller.
Eles não mais chamavam pelo número. A sala que ela entrou
agora era uma sala sem identificação, a janela mostrava a cidade e
a rodovia, o Parque ficava do lado invisível. Quem a entrevistou
dessa vez foi uma mulher, nos seus cinquenta e poucos anos e de
aparência jovem, sem maquiagem ou joias de qualquer tipo.
Amanda se sentou de forma natural e aos poucos ajustou sua
postura para encontrar a rigidez e formalidade que lhe faltaram da
última vez. A mulher passava os olhos por sua ficha, segurando os
óculos entre o indicador e o polegar.
- Você já veio aqui antes? - ela pareceu surpresa, a resposta
estava na própria ficha.
- Sim, eu tentei dois anos atrás.
- Poucos tentam de novo. Uma pena. - a mulher suspirou e
baixou os papéis na mesa. Amanda sentiu que já tinha ganhado
alguns pontos por sua persistência. Mas continuou vigilante
quanto ao seu excesso de confiança. - Me diga, por que você ainda
quer fazer parte disso? - a entrevistadora disse gesticulando com
uma mão para em seguida apoiá-la em seu queixo.
- Por causa do meu avô. Na verdade, minha avó. Ela perdeu o
marido enquanto ainda estava grávida, criou minha mãe sozinha e
nunca mentiu sobre o que tinha acontecido. Tudo foi sempre
aberto em relação à isso… Meu avô era um dos “Sete do Memorial”.
A mulher não tentou esconder sua reação ao ouvir aquilo,
ofereceu suas condolências com um sorriso suave. Amanda
continuou:
- Minha mãe cresceu com essa noção de que a noite foi
responsável pelo o que aconteceu. Ela nunca sequer desconfiou do
envolvimento da Socoma no caso, nunca deu ouvidos a toda
aquela polêmica. E era essa história que ela compartilhava comigo,

47
NICTOFOBIA

primeiro de forma leve, depois, quando fui crescendo, ela dizia


para eu conversar com minha avó, e dela eu arrancava mais
detalhes. Minha avó não se intimidava com o assunto. Ela nunca
escondeu o fato do marido dela ter sido um dos últimos Insones.
Claro, ela sofreu por não ter ele por perto. Mais do que ninguém,
ela queria que a situação tivesse sido diferente. Mas ela se
orgulhava da força que teve para lidar com a gravidez e a
maternidade sozinha, ainda mais naquela época.
- Sim, depois dos “Sete do Memorial” foi difícil acalmar a
população. Muitos boatos. E o que você acha?
- Minha opinião sobre isso é simples. Eles sabiam da lei, eles
sabiam do limiar. Não existe nenhuma razão para ignorar tudo
isso. E agora a gente viu esses simuladores que distorciam a noite,
não apresentavam a realidade, e isso... Essa votação me preocupa.
Porque existe toda uma geração aí fora que não faz ideia do que
pode acontecer com Insones.
- Sim, isso também me preocupa. Os tempos estão prestes a
mudar mais uma vez.- a mulher olhava pela janela com um ar de
reflexão, como se o futuro do qual falavam já estivesse ali,
acontecendo nas ruas. Amanda podia sentir mais pontos a favor
dela, ela havia fisgado o peixe, agora faltava apenas puxá-lo para
fora da água, com cuidado e paciência para não arrebentar a linha.
A mulher acordou de seu transe com um suspiro:
- Interessante. O seu avô ainda está vivo?
- Imagino que esteja.
- Você não mantém contato com ele?
- Para minha mãe ele morreu naquele memorial. Minha avó
nunca a levou para visitá-lo e eu também nunca o conheci. Foi
depois de muitos anos, no ensino médio, que eu descobri que ele
estava vivo.
- E você nunca quis conhecê-lo? Conversar com ele a respeito
daquela noite?
Amanda apenas balançava a cabeça negativamente. Ela tentava
não entregar nada além daquilo, e apenas aguardava, já
antecipando o rumo da conversa, ansiosa e preparando sua
próxima resposta. Xeque mate.
- Feller, a gente já falou um pouco disso, mas só pra ter mais
uma idéia do seu ponto de vista, me fale sobre a noite.

48
DIAS FERPELLA

Amanda sorriu por dentro. O peixe exausto pendendo de suas


mãos.
- A noite é perigosa. E isso já vai além do que deveríamos saber.
Temos que apenas dormir. Mas eu me disponho a sacrificar isso
pela necessidade de proteger as pessoas e manter a ordem.
- Não se preocupe, você não vai precisar sacrificar todas as
noites, temos um sistema de rotação. - a mulher disse com um
sorriso cúmplice, como se já falasse com uma recruta.

***

Algo segurava Lucian pesadamente contra o asfalto. Ele sentiu


suas mãos molhadas de sangue, feridas pelo impacto. Ele retorceu
seu torso numa tentativa de escapar, tentou apoiar os joelhos no
chão para se lançar fora do alcance do seu agressor. E então ouviu
as palavras atrás da sua cabeça, enquanto dedos agarravam seus
cabelos ferozmente:
- Não tente resistir, vai acabar se machucando de verdade. Isso
é para sua própria segurança.
Lucian reconheceu aquela última frase. Estava acabado.
Ele ouviu uma voz mais distante repetir “alameda do Parque” e
um breve ruído de estática.
- Onde estão os outros? - o braço de Lucian foi puxado para
suas costas, limitando ainda mais seus movimentos. Ele sentiu o
peso sobre si ser aliviado, mas não ousou se mexer. Alguém o
agarrou pelo ombro e o virou, ofuscando sua visão com uma forte
luz.
- Para onde estão indo? - a segunda voz perguntou num tom de
urgência. Lucian mal conseguia distinguir os agentes por trás da
lanterna. Ele ouviu um carro se aproximar.
- Eu já estava voltando para casa. Não sei dos outros. - Lucian
balbuciou com o coração disparado. Sua coluna inteira doía, da
base ao pescoço, seus joelhos, seu cotovelo direito também
sangrava. Pedregulhos negros do asfalto se misturavam com a pele
ensanguentada. Os dois agentes abaixaram a lanterna por um
momento e falaram algo entre eles que Lucian não conseguiu
entender.

49
NICTOFOBIA

- Você ao menos sabe o perigo que está correndo? Você precisa


dormir imediatamente. Onde você mora? - a luz novamente no
seu rosto. Lucian já conhecia aquele procedimento.
- Por favor, me escutem. Eu já estava voltando, eu já entendo os
riscos, não pretendo continuar com isso. Não precisam me levar,
eu estou indo para a casa do meu irmão, é perto daqui. - ele tentou
demonstrar seu arrependimento, com toda a sinceridade que
conseguia em sua voz, na esperança de convencer apenas um que
fosse. Mas os agentes não davam atenção, pois o carro chegava
atrás deles, imponente, como um veículo de luz.
Lucian se levantou devagar, mostrando as mãos.
- Olha, vocês estão perdendo tempo comigo. Deveriam
procurar pelos outros. Eu já estou indo dormir. Podem acreditar
em mim.
Um dos agentes se aproximou, e pela voz, Lucian identificou
como aquele que o havia derrubado. Ele o agarrou pelo braço:
- Quem deixou você se levantar?
- Alex, pode deixar, ele vai se comportar. Não é, Lucian? - ela
desceu do carro e se aproximou. Os holofotes do carro iluminavam
uma grande área ao redor, e tornava possível distinguir as feições.
Mas Lucian já sabia quem era mesmo antes de vê-la.
- Amanda! Por favor, me escuta. Eu entendo, de verdade eu
entendo. Eu já estou indo pra casa.
- Andando? Um pouco longe, não? A gente te leva. Agora você
só precisa dormir. Vamos, é para sua própria segurança.
- Amanda…
- Agente Feller. - ela interrompeu com autoridade. Pôs uma
mão sobre seu ombro e com a outra indicou o caminho para o
carro. Lucian, com passos lentos, entendia cada vez mais que não
daria para argumentar. Ele observou os arredores, perdidos na
escuridão além da fronteira da luz. Um dos agentes se desgarrou
para dar a volta no carro. Feller se adiantou para abrir a porta
traseira.
- Eu sabia, Lucian. Eu sabia que você não iria desistir. E agora
você está completamente ferrado. Mas eu te digo, você pode
melhorar sua situação, eu posso amenizar as coisas pra você se me
disser onde estão os outros.

50
DIAS FERPELLA

- Aman… Agente Feller. Eu te imploro. Eu já aprendi minha


lição. - ele a viu pegando um pequeno estojo no seu cinto.
- Não, não aprendeu. Senão já estaria dormindo. - ela estendeu
sua mão aberta para ele. Nela, uma comprimido de Sono brilhava.
Lucian suspirou:
- Isso é realmente necessário?
- Lucian, por favor, não torne as coisas piores do que já estão. -
ela tentou soar amigável e ele quase poderia confiar naquelas
palavras.
- Meu carro está logo ali! Vocês me acompanham até em casa.
- Apenas tome sua dose e nós cuidamos do resto.
Ele permaneceu parado, olhando nos olhos dela, insistindo sem
dizer nada. Ele flexionou levemente os joelhos. Amanda percebeu,
numa fração de segundo. Então quando Lucian começou a correr,
ela se adiantou praticamente ao mesmo tempo, o agarrando pela
gola da camisa e, num giro, o jogando contra a lataria do carro.
Antes que Lucian recuperasse o equilíbrio, os outros dois agentes
já estavam em cima dele, forçando-o para o interior do veículo.
Uma pancada na orelha esquerda, deixando-o zonzo por alguns
segundos. Sentiu seu estômago pressionado por um joelho, quase
o impedindo de respirar. Sua cabeça imobilizada contra o banco
de couro. Lucian viu o motorista olhando para ele, viu Amanda se
sentar no banco da frente e fechar a porta, ajeitando seu rabo de
cavalo. Ela olhou seu relógio de pulso e pegou uma ficha no porta-
luvas: o formulário de retenção.
- Amanda, eu não ia ficar acordado! Por favor, vamos resolver
isso de outra forma. - ele apelou uma última vez antes de ver uma
mão buscando seu rosto. Ele fechou a boca, pressionando os
dentes com força, lutando contra os dedos que tentavam abri-la..
- Lucian, vai ficar tudo bem. Não resista. - um dos agentes
argumentou.
O motorista finalmente se manifestou:
- Anda logo com isso. Vamos perder os outros.
Lucian sentiu uma dor lancinante na ponta do seu indicador e
brevemente perdeu a força do seu maxilar, exausto. Foi o bastante.

***

51
NICTOFOBIA

- Espera, deixa eu adivinhar. Você reagiu de forma exagerada,


ela ficou irritada, você tentou ganhar a discussão sem argumentos
lógicos, ela ficou mais irritada ainda, você levou pro lado pessoal…
E aí vocês brigaram.
Anna e Lucian cozinhavam o jantar na casa de Nico. Ele e sua
esposa estavam na sala com alguns amigos, ocupados admirando
livros de arquitetura artística, a coleção de isqueiros de Gabi e
aqueles videoclipes psicodélicos na televisão como plano de fundo.
Na cozinha, o assunto começara quando Anna questionou a falta
de companhia do irmão naquela noite. Ele rebateu, enquanto
picava tomates:
- É, foi mais ou menos isso que aconteceu. Mas como você
reagiria, como qualquer um reagiria, se o grande segredo fosse
algo muito errado? E perigoso…
- Lucian, eu não vou conseguir julgar a situação por completo
se você não me contar. E ela é minha melhor amiga cara, é bem
provável que eu já saiba.
Não. No momento em que escutou o segredo, Lucian se
certificou de que ninguém mais sabia. Era a primeira vez que
aquilo fora dito em voz alta. Nem os pais dela, nem a tia, nem a
melhor amiga. Uma única pessoa a quem ela confiou sua vida
dupla, e essa pessoa recusou a confidência, ressaltando o sabor
agridoce da ignorância.
- É algo ilegal, Anna. Isso é tudo que eu posso revelar.
Anna fez uma cara de impaciência, erguendo sua faca. Sem
perceber, ele contava o segredo. Bastava ligar os pontos e se
lembrar daquela polêmica na adolescência, depois da proibição
dos simuladores. Mas ela fingiu não entender.
- Tudo bem, não precisa me contar. Mas vocês estavam
justamente se abrindo a respeito do “lado obscuro” de cada um, se
eu bem entendi. Então não importa o que ela dissesse, ela confiou
que você fosse entender. Ela confiou em você! E você a repreendeu
por isso! - Anna ficou levemente irritada e jogou um pedaço de
cebola no irmão.
Na sala, eles riam. Lucian desejou que ela estivesse ali. O jantar
de despedida de Anna, antes da viagem de volta para Berghinton e
o começo do semestre. Agora ela teria que se encontrar no último

52
DIAS FERPELLA

dia, talvez almoçar juntas, ou acompanhar até o aeroporto para


que tivessem mais tempo.
- Eu sei. Eu deveria ter ao menos tentado entender. Eu reagi
mal. Mas depois ela me acusou de não questionar nada, de ser
uma “marionete do Estado”. Como era?... Ah: “pensamento
passivo-submisso.” O que é estranho, porque eu estava
questionando ela naquele momento. Não?
Anna jogou um pouco de óleo numa panela e ligou o fogo,
suspirando:
- Se você gosta dela e ela te mostrou seu lado mais condenável,
você tem que ver se é condenável o bastante pra mudar a maneira
que você se sente. Se não, maninho, é irrelevante. É apenas uma
chance de vocês se conhecerem mais, se aproximarem mais. Tenta
entender ela. Você julgou baseado na sua percepção, na sua
história, apenas vendo o seu lado. Mas se você começar a ver o
lado dela, escutar sua opinião, entender a situação por outro ponto
de vista, vai ficar mais fácil de você aceitar e até mesmo admirar
esse “lado obscuro”.
Os tomates em cubos diante dele. O suco escorria na fenda da
tábua, levando sementes pelo perímetro.
- Você tem razão.
- Se você ligar agora, ela ainda consegue chegar a tempo da
entrada. - Anna piscou pra ele, e as cebolas chiaram ao cair na
panela.
E ela de fato chegou antes da entrada chegar à mesa. Nico a
recebe cantarolando uma música italiana, aquela que Ronie
escutara pela primeira vez quase trinta anos atrás, enquanto
grávida, e decidiu o nome de sua filha,
Che luce è questa, che sole prevale nei miei giardini, Leonora?
Ela cumprimenta a todos, deixando Lucian por último. Ela
sorri, como se estivesse tudo bem, ou como se quisesse muito que
tudo estivesse bem, e lhe dá um rápido beijo no rosto.
E ali ele decide que vai tentar entender, de verdade, o que a
atrai tanto na noite a ponto de fazê-la sair. A tarde cai
rapidamente enquanto todos se divertem ao redor da mesa,
agraciados com a boa culinária de Anna, as histórias mentirosas
das viagens de Giuseppe, as respostas afiadas de Gabi, a sobremesa
impecável e os planos de cruzar o país e ver as cataratas do rio

53
NICTOFOBIA

Solário, Lucian tocando o joelho de Lenny por baixo da mesa, para


indicar que está tudo bem, ou que tudo vai ficar bem.
Todos vão embora ao mesmo tempo, sem tempo a perder, que a
luz já se enfraquece no céu. Eles se despedem de Anna com um
longo abraço e promessas de visitá-la em breve. E já na rua, Lucian
deixa Lenny em seu carro, mas ao invés de se despedir, ela abre a
porta para ele e o convida a entrar. Mas eles acabam decidindo,
logo no primeiro cruzamento, ir para a casa dele, que era mais
perto. Caso contrário não daria tempo de mais nada, apenas
escovar os dentes e dormir.
Que luz é essa? Qual Sol prevalece nos meus jardins, Leonora?
Na manhã seguinte ele acordou poucos segundos depois dela.
Ela ainda se espreguiçava e abria os olhos lentamente, se
deliciando no aconchego daquela cama. Eles ainda ficaram
deitados por uma hora, como se não houvesse nada lá fora além do
sábado. Juntos levaram Anna ao aeroporto, voo N138 com destino
a Berghinton. Foram conversando animadamente por todo o
percurso, as duas na frente, Lucian no banco de trás, na
companhia daquela ideia que rapidamente amadurecia.
E aquele momento, na rodovia vazia, a cento e trinta
quilômetros por hora, lhe trazia uma sensação incomum de
desfecho. Ele se lembraria, dois meses depois, como um dos
últimos momentos agradáveis da sua vida, antes de tudo sofrer
uma guinada brusca mirando a perdição. Anna passando pelo
portão de embarque com sua mochila surrada sobre um dos
ombros, Lenny lhe dando a mão de volta para o carro. Ela pegou
um caminho diferente na volta, e daquele viaduto conseguiam ver
o shopping, as paredes reformadas do que um dia foi como um lar.
O teto solar aberto, Lucian explorando os CD’s no porta-luvas. “Se
ao menos eu tivesse te conhecido antes, Lui…”
Mas não foi antes, foi bem depois. Ela já era amiga de Anna,
tinham começado uma amizade na sétima série, no auge da
Nyctidromus. Lucian conhecia apenas de nome, de ouvir sua irmã
mencioná-lo em todo caso que contasse ou para onde ia e com
quem ia. Tinha visto ela algumas vezes no colégio, andando com
Anna. Ela tinha inclusive ido a sua casa e eles se cumprimentaram
e sabiam da existência de cada um. No entanto, garotos de 18 anos
nada se importam com garotas de 15, então nunca conversaram,

54
DIAS FERPELLA

nunca se aproximaram, sequer notaram um ao outro antes da


universidade.
Naquela época a proibição de simuladores já estava
encaminhada no parlamento para votação e Lenny, agoniada,
implantava ideias rebeldes na cabeça de suas companheiras. Foi
durante um almoço em família, que ela ouviu a notícia vindo de
Nico em tom de deboche:
“Aquela sua festinha vai fechar em Outubro.”
Por um momento ela ficou sem reação. Um segundo depois ela
soltava impetuosamente:
“Eu não ligo! A gente vai cruzar o limiar.”
Fosse piada, fosse provocação, aquilo gerou um sermão paterno
instantâneo. Anna tinha ido com suas amigas à Nyctidromus cinco
vezes no último mês e seus pais temiam por seu emocional e sua
atitude quando a inevitável lei de proibição vigorasse. Não
adiantava o discurso de que era viciante, improdutivo, superficial e
que além de tudo era prejudicial à saúde. Naqueles anos de
rebeldia, o máximo que conseguiram negociar foi uma redução de
suas idas e limitar a duas vezes por mês. Como uma
“desintoxicação”, esperando que, passada a adolescência, seus
interesses mudassem.
Quando ela se tornou uma frequentadora casual da
Nyctidromus, sua amizade com Lenny enfraqueceu. Elas se
reaproximariam alguns anos depois, prestes a ingressar na
universidade.
É mais fácil um garoto de 22 anos notar uma garota de 19.
Lucian não tinha uma memória nítida dela quando conversaram
pela primeira vez. Para ele, Lenny era uma nova amiga de Anna,
até um dia em que ela mostrou uma foto antiga de um aniversário,
achando graça de todas aquelas mudanças da puberdade. Era
curioso lembrar de coisas daquela época, trocar percepções de
vidas tão próximas mas ainda desconectadas. Ela estava ali o
tempo todo e ele também, mas aquilo entre eles estava
aguardando para acontecer mais tarde, num outro momento,
numa outra época, depois da escola, depois da faculdade e até
mesmo depois de Anna se mudar pro outro lado do país para fazer
seu mestrado.

55
NICTOFOBIA

Aquele último conflito tinha sido o mais sério entre eles,


quando compartilharam seus delitos secretos. E depois disso, algo
se quebrou. Não que fosse permanente, mas sem dúvida era
impactante.
Ali, voltando do aeroporto, parecia estar tudo bem entre eles.
Mas não estava. As conversas não eram mais sinceras, eram
pensadas e repensadas em velocidades impressionantes antes de
serem expressadas. Pois ele tentava impressionar e ela buscava
uma aprovação. Ele na tentativa de se tornar outra pessoa; ela na
cautela para ser aceita como ela mesma. Eles preferiram fingir que
nada tinha acontecido e nenhuma ofensa tivesse sido dita.
Tentavam tratar o assunto com naturalidade, disfarçando seus
medos e seus julgamentos.
A maneira que Lenny rememorava as noites da Nyctidromus
deixava Lucian, no mínimo, curioso. E ela pouco falava das suas
saídas corriqueiras, ainda hesitante pelo medo de mais uma
reprovação, mas tecia comentários como “se me contassem eu não
acreditaria” ou “não dá pra imaginar, é preciso ver” ou ainda
“ninguém deveria morrer sem antes ver a Lua cheia, ao menos
uma vez.”
Não demorou e ele se rendeu: “Então me mostra.”

***

- Anda logo com isso. Vamos perder os outros.


O agente pressiona os dedos de Lucian com força, que por sua
vez cede brevemente na sua resolução. O interior de suas
bochechas se ferem contra seus dentes e ele não mais consegue
manter a boca completamente cerrada. O comprimido de Sono é
enfiado agressivamente entre seus molares.
Lucian sente o gosto de sangue. Como um último recurso
invisível, com a língua ele empurrara o comprimido para o lado no
exato momento em que o agente o forçava a morder. Mascarando
a dor, ele se faz estático e tenta relaxar o corpo apesar de todo o
esforço muscular do momento. Adota uma respiração lenta e
profunda. Seu mundo vira sons e sensações:
O motor do carro, o movimento sobre o asfalto. Todos
comemoram com gritos, palavrões, risadas.

56
DIAS FERPELLA

- O que eu falei? O que eu falei?! - a voz de Amanda se gaba em


alto som.
- Mas precisava de tanto, Alex? - o rapaz à sua frente, do banco
do motorista.
- O desgraçado quase torceu meu pulso tentando escapar… Da
próxima eu dirijo e você lida com eles, já que você é tão gentil e
profissional. - a resposta à sua esquerda.
- Vire ali. - a voz feminina.
Silêncio por alguns segundos. O carro trocando as marchas.
Uma curva para a direita. Um suspiro ao seu lado.
- Quer dizer então que é o seu “ratinho”, Feller. Você acha que
ainda vale alguma coisa?
- É óbvio que o ideal era pegar todos eles. Ou pelo menos um
“rato” novo. Mas ter um reincidente também ajuda. Isso vai
encerrar o processo num segundo e sem dúvida prova eficiência.
- Ou vão entender que ele é o único e vão achar que três
bastam. - diz a voz à sua direita.
- Marlon, para com isso. Todo mundo aqui viu que tem mais. E
se nossa palavra não vale, tem a bagunça que eles fizeram lá atrás.
Vai ser difícil alguém engolir que foi só uma pessoa.
- A noite não acabou, pessoal. - a voz do motorista se impõe
sobre as outras.
Silêncio. O agente a sua esquerda se move, se acomodando
longe de seu peso. O som de unhas contra escalpo, à sua direita. O
carro reduz a marcha, um clique mecânico.
- Que foi?
O carro anda lentamente ou está parado. Os dois agentes ao
seu lado se movem no banco. Falam em tom baixo.
- Ah sim.
- É o carro dele?
- É. Acha que o viram? - Amanda diz quase sussurrando.
- Eu o veria até de olhos fechados. E ele assim, exposto,
andando no escuro, sem lanterna… Não tenho dúvidas. - o
motorista responde irritado.
- Que cara de sorte… Minha nossa, que sorte… - a voz à sua
direita.
- Certo… Espanta essa coisa daí e vamos... - a voz de Amanda,
seguida daquele clique discreto. O carro ganha velocidade.

57
NICTOFOBIA

- Próxima à direita e vai até o final. - Amanda instrui.


Lucian desenha o trajeto na sua mente, tendo uma vaga ideia
onde podem estar. Nico mora por ali, em alguma rua à esquerda,
mas é impossível saber se já passaram ou não.
- Falta muito Amanda? A gente não deveria pedir pra outra
unidade patrulhar a área enquanto isso?
- Eu concordo, temos que aproveitar que eles estão na rua, se é
que já não se enfiaram em outro buraco.
- Cinco minutos. - ela declara sem preocupação na voz.
- Vocês querem mesmo dar os méritos pra uma outra unidade?
Estou dirigindo o mais rápido que posso.
- E é o que eu disse: pegar um reincidente já nos ajuda demais,
pode acreditar. A gente vai acabar com essa farra cedo ou tarde,
não vai ser tudo apenas nessa…
- Merda! - o motorista interrompe.
Lucian sente a inércia o jogando para frente. Uma mão no seu
peito o segura a tempo. O barulho dos pneus travados, deslizando
pelo asfalto, um solavanco nas rodas da frente e o veículo para. Seu
corpo é jogado de volta contra o encosto.
- O que foi isso?
- A lombada estava ativada!
Agora Lucian sabe que está exatamente no cruzamento da rua
de Nico. Uma porta se abre, o carro balança de leve. Outra porta se
abre, agora do lado direito.
- Não pode ser. Como eles conse…
O barulho da porta se fechando corta o final da fala de Amanda.
A conversa vem abafada pelo vidro. A respiração dos agentes ao
seu lado. Até que um deles corta o silêncio.
- Foi um Aviso?
- Eu acho que foram eles. Coincidência demais para ser um
Aviso.
- Eu não os subestimaria...
- Claro, mas também não podemos subestimar os “ratos.” - a
porta se abre de um lado, o estofado se move, a porta se fecha num
estrondo. O mesmo acontece do outro lado.
Lucian está sozinho dentro do carro, mas ele não ousa se
mexer, tampouco abrir os olhos. Tenta escutar a conversa por cima
do barulho do motor.

58
DIAS FERPELLA

A porta do motorista se abre, o carro balança. Barulho de


objetos no compartimento entre os bancos.
- Agente Feller, Primeira Unidade, requisitando extração.
Um clique. Uma segunda vez. E depois um estalo leve.
- Merda! Eu sabia! - o som de um objeto pesado acertando o
compartimento. O carro balança novamente. Passos apressados no
asfalto, se distanciando. Lucian está sozinho mais uma vez e agora
pensamentos extremos são cogitados. Ele está há alguns metros da
casa de Nico, uma oportunidade única se apresenta. De fato pode
ser um resgate, algo planejado pelos Insones, e agora cabe a ele o
próximo movimento. Seu corpo não obedece, precisa juntar mais
coragem. O que ele tem a perder, afinal? É abrir a porta de uma
vez e correr. Ou abrir devagar e se esgueirar, se esconder nas
sombras, ir pra casa de Nico, dormir, fingir que nada aconteceu e
negar qualquer acusação feita no dia seguinte.
Um estouro não longe dali cala seus planos. Ecoa pela extensão
da rua, como um rojão. E uma segunda vez. Lucian tenciona seus
ombros, assustado. E então um baque, bem acima de sua cabeça,
ressoa no interior do carro. O barulho da lataria afundando. E
aquela explosão lá fora, uma terceira vez, ainda mais perto e mais
alto. Alguém grita uma ordem ao longe. O carro balança de leve,
acompanhado do som do teto se acomodando. Silêncio.
Lucian ouve o som de múltiplos passos se aproximando,
correndo.
- Espera um pouco. - uma voz abafada, bem na frente do carro.
- Temos que ir, agora! - alguém grita próximo da porta. Os
passos se afastam correndo. Um clique e o carro soma o peso de
uma pessoa sobre o banco do motorista. A porta se fecha. Lucian
escuta uma respiração ofegante. Depois de alguns segundos,
acompanha um sussurro aflito:
- Vamos, vamos, vamos…
Passos correndo, cada vez mais próximos pelo lado direito. O
som da porta se batendo ao mesmo tempo em que alguém joga seu
peso sobre o banco do carona.
- O que ela disse? O que foi? - a voz à esquerda.
As costas de Lucian pressionam o encosto levemente e ele sente
a inércia se instalando no seu corpo enquanto o motor se
manifesta num ronco. O carro levanta, o carro desce, rapidamente,

59
NICTOFOBIA

e Lucian é jogado alguns centímetros para cima. Ele não tenta se


equilibrar, cede a gravidade e cai deitado no banco, da forma
convincente que alguém adormecido faria.
- Acha que vai dar? - a voz da direita pergunta. O carro ganha
velocidade, o motor canta uma nota áspera, crescente.
- Temos que chamar ajuda. - uma curva para a direita. Os pneus
gemem assustados.
- Cadê o rádio?
- Téo!
- Você foi pegar!
- Não! Ela disse que estava com você!
- Eu entreguei pro Marlon, você viu!
- Dá pra voltar?
- Se eu voltar a gente não chega. A gente precisa se livrar dele
nesse minuto, prioridade máxima.
- Mas que merda! Que grande merda! - uma batida contra o
plástico acompanha um resmungo. Uma curva fechada à esquerda
e Lucian é jogado contra a porta. Se alguém nota, nada diz.
- Droga… Tá ouvindo?
- O quê?
- Os pneus, caralho!
O motor continua. Lucian se esforça para manter a respiração
controlada e seu peito treme ao soltar o ar lentamente.
- É a próxima, é a próxima! Vai dar.
- Eu não entendo, ele já está dormindo. O que deu neles?
Uma curva à esquerda. A porta pressionando sua cabeça.
O carro para bruscamente, Lucian cai entre os bancos e prende
um gemido, abafado pela fala de um dos agentes.
- Eu pego a maca! - duas portas se abrem. O motor silencia. Lá
fora, o outro responde:
- Não precisa, não há tempo. - a porta se abre, Lucian sente
mãos agarrando-o pelas axilas. Seu corpo puxa o tapete junto. A
outra porta se abre. Mãos apalpam seus bolsos, entra num deles, as
chaves saem tilintando. - Toma, cuida disso.
As chaves soam num baque, do outro lado do carro. Passos
apressados se afastam.
Lucian sente seu corpo na vertical, seus joelhos tocando o
tapete e ele perde completamente o senso de orientação. Quando

60
DIAS FERPELLA

a gravidade é percebida de novo ele sente algo contra seu torso,


uma mão agarrando seu antebraço e outra em volta de sua perna.
Pequenos solavancos, ritmados como passos e uma sensação
nauseante chegando ao seu estômago.
O rangido de uma dobradiça, uma fechadura batendo. Passos o
ultrapassam.
- Rápido, por favor. - uma voz ofegante abaixo de si.
Outras dobradiças.
- Cadê a porra do interruptor?
- Alex!
Uma nota suave, portas deslizam. Inércia.
Um discreto clique ritmado sobre as respirações cansadas.
- Você não verificou a bateria antes de sair? - a voz abaixo.
- Estava cheia.
- Lanterna viciada… Pega a minha.
Uma nota suave, portas deslizam.
- Vai na frente, abre a porta, acende a luz e mira a lanterna em
mim.
Passos se afastam. Cada vez mais, até serem encobertos pelo
fôlego de quem o carregava. Faltava pouco, aquilo acabava ali. Sua
boca está seca, suas mãos esfoladas, seus cotovelos e joelhos
doloridos, suas costas rígidas, seu pescoço tensionado, seu coração
disparado, sua língua sangrando. E aquela sensação desesperadora
de adentrar em um corredor escuro, mesmo sem abrir os olhos.
Passos abaixo de si, jogando seu corpo para cima e para baixo.
Lucian calcula a distância: um terço do caminho, metade, dois
terços.
O preto de suas pálpebras se torna avermelhado ao adentrar a
luz. Os passos continuam, atravessando a sala. Ele escuta a
geladeira, ele escuta os ponteiros do relógio, ele escuta água
borbulhando ao redor de Plutão.
Lucian escorrega pelos ombros e sente uma superfície macia
acolher suas costas. Ele não pode evitar um sorriso.
Passos distribuídos sobre a madeira.
Um clique. As pálpebras negras. A porta se fecha.

61
V

A
Socoma continuava se provando visionária: antes mesmo
da ideia de proibição cair na boca do povo, a empresa
pedira aprovação do Estado para um projeto de prevenção.
- Isso é ridículo! Isso só prova como eles são todos uns
vendidos! - Leonora chegava a suar de raiva ao ouvir as notícias.
- Lenny, o projeto estava disponível para contestação durante
meses.
- Ah sim, aqueles meses em que só se falava como os
simuladores iam te deixar cego ou explodir seu cérebro! Eles
sabiam, tia! Eles encobriram uma polêmica com outra!
Luana comia um crepe enquanto elas andavam entre as tendas.
Lâmpadas incandescentes pendiam acima de suas cabeças,
escondendo o céu estrelado. O evento gastronômico, o último da
Nyctidromus, atraíra quase trezentas mil pessoas. Naquele dia em
especial, o simulador quebrou o recorde de público, ficando
completamente lotado. O número superava até mesmo aquele da
inauguração, uma vez que a expansão do ano anterior tinha
aumentado a capacidade máxima.
- Ali está ela. Ronie! - Luana chamou a mãe de Lenny, que
estava acompanhada de duas amigas. Ela acenou e apresentou a
filha quando esta se aproximou.
- Leonora veio com a turma dela. Eles vem sempre.
- Ah sim, imagino. O Vinícius também adora, ele veio ontem.
Está arrasado que vai fechar. E realmente é uma pena.
Lenny tinha se simpatizado com as amigas da mãe, mas não
conseguia se livrar do seu semblante amargo. Ronie percebeu.
- Lenny também não se conforma.
- Ela e o Vinícius iam se dar bem…
- O que foi, filha? Não quer ir embora ainda?
- Não é isso, mãe. É essa besteira que eles estão instalando nas
ruas. Sabia que é coisa da Socoma?
A segunda amiga se mostrou interessada:

62
DIAS FERPELLA

- As lombadas de espinhos? Aquilo é total controle de massa. É


uma coisa absurda e ninguém está vendo isso.
- O que é essa lombada? - Ronie tentou se inteirar. Tinha visto
valas sendo abertas em diversas ruas pela cidade, mas concluía ser
alguma manutenção hidráulica.
- São aquelas estacas pra furar pneu de carro. Elas ficam
retraídas ou expostas, é uma coisa pra controlar o tráfego, ou
evitar roubo de carros em estacionamentos públicos. Parece que a
Socoma vai usar para dificultar a circulação à noite.
- Mas durante o dia vai ficar liberado normalmente, só vai ser
acionada durante a noite mesmo. Lenny está revoltada, acha um
exagero desnecessário. - Luana acrescentou.
- Entendi. É claro, eles devem achar que os Insones podem
voltar no fim do ano. E é bem possível.
- Mas mãe, se alguém quiser sair depois do limiar, deveria ser
escolha da pessoa. A Socoma não pode querer controlar uma
cidade inteira, ameaçando detonar seu carro. - Lenny protestou.
As amigas se deliciavam com o discurso anarquista da jovem de
quinze anos, mas disfarçavam seus sorrisos para não darem a
impressão de desdém.
- Bom, em primeiro lugar, ninguém deveria ficar acordado
durante a noite, muito menos sair. Não é uma escolha da pessoa,
porque é crime.
- Matar também é crime, e ainda assim dão a escolha da pessoa
ter ou não uma arma. - a amiga comentou em voz baixa, ainda
assim sendo ouvida por Ronie e repreendida com um olhar por
fortalecer o argumento da sua filha.
- E aliás, por quê? Por que é proibido sair à noite? Qual é o
problema disso aqui? Eu venho aqui desde meus oito anos e nunca
tive nada.
- É perigoso, Lenny. - Luana tentou amenizar. As amigas
concordaram, ecoando seu comentário.
- Claro que é perigoso: o asfalto está cheio de estacas.
Ronie, constrangida, achou melhor mudar de assunto.
E logo, Setembro. Lombadas funcionando por toda a cidade,
aquele sensor se erguendo perto do meio fio, por sessenta
centímetros, espiando o tráfego diurno, apenas aguardando o
limiar para levantar as chapas pontiagudas de titânio. Um reinado

63
NICTOFOBIA

marcado para durar uma década inteira, derrubado apenas por um


corte de verba.
E logo, Outubro.
“É com grande pesar que anunciamos o encerramento de
nossas atividades. Por oito anos, a Nyctidromus foi referência
absoluta em entretenimento realista, apoiando iniciativas
educacionais e projetos de pesquisa das principais universidades
do país. Agradecemos nossos colegas, funcionários, parceiros e
principalmente os milhares de amigos que sempre...”
O resto estava encoberto com um protesto em tinta vermelha:
SOCOMADO.
Alguns dias depois, o cartaz foi completamente removido. A
última coisa que Socoma queria era reacender aquela chama dos
“Sete do Memorial”. Mas aquilo não foi o suficiente.
Poucas semanas depois, a fachada, acumulando injúrias, foi
escondida por uma foto gigantesca de um casal jovem sorrindo e
se abraçando num dia ensolarado. O anúncio do futuro shopping
center provocava com letras rebuscadas: “Carpe Diem”. O
movimento das obras se iniciou naquele mesmo mês, e a revolta
dos antigos frequentadores foi lentamente se apaziguando num
suspiro conformado.

***

Lucian se alongou na cama, alinhando suas costas com um


estalo. Abriu os olhos e percebeu a faixa de luz por baixo da porta.
Os agentes tinham deixado o abajur da sala aceso.
Lucian cuspiu a dose de Sono e a enfiou no bolso. As horas
eram um mistério para ele, mas ainda assim ele se sentiu tentado a
verificar. Achava improvável, mas se Nico ainda estivesse
acordado, telefonaria para ele para dizer que estava seguro em
casa e que no dia seguinte contaria tudo. Não mencionaria as más
notícias ainda. Deixaria comida para Plutão. Apagaria a luz. Mais
nada.
Abriu a porta despreocupado. O agente se levantou do sofá em
menos de um segundo, resmungando um palavrão. Sua mão
repousava inquieta sobre o coldre, tentando disfarçar o fato que

64
DIAS FERPELLA

não continha nada. A outra estava estendida para Lucian, como se


ele lidasse com um animal encurralado e prestes a atacar.
- Parado aí! Fica aí, nem um passo. Que porra é essa?! Eu sabia
que tinha alguma coisa errada… Do jeito que eles estavam
agitados… Você estava acordado o tempo todo, não é? Você tem
sorte que não fui eu que te carreguei, eu poderia te arrebentar
agora. Volta pra lá!
Lucian ficou sem reação. Ele olhou para baixo, para a mesa de
centro, e viu a arma em três pedaços. Imediatamente desviou o
olhar, numa tentativa vã de fingir que não reparara. O agente
desarmado insistiu:
- Cada minuto, cada segundo que passa, as coisas pioram pra
você. Pioram pra todo mundo.
Lucian tinha tantas perguntas sobre o que tinha acontecido,
mas não sentia abertura para perguntar. Qualquer interrogação
naquele momento apenas irritaria o agente. A única coisa que ele
conseguiu dizer foi:
- Eu só queria alimentar meu peixe.
O agente olhou para o aquário. Esteve observando o dânio nos
últimos minutos e aquilo o tinha relaxado antes de Lucian
aparecer. Tinha o distraído enquanto ele limpava sua arma,
tentando aliviar a ansiedade. Sua companhia silenciosa depois de
toda aquela tensão, para cima e para baixo, de um lado pro outro,
entre a vegetação aquática. Ele permitiu que Lucian o fizesse, mas
rapidamente e sem truques.
Lucian reconhecia aquela voz. Enquanto pegava a ração no
armário da cozinha, tentou apaziguar a situação chamando-o pelo
nome.
- Aceita um copo d’água, Alex? - o agente não tirava os olhos
dele, de pé do outro lado do balcão que separava um cômodo do
outro. Ele hesitou um pouco, mas não podia negar que estava com
sede e, contrariado, cedeu.
Lucian deixou o potinho de ração em cima da bancada,
querendo ganhar tempo. Ele nunca teria uma oportunidade como
aquela, de falar com um agente da Socoma, sozinho, conseguir
uma resposta vaga que fosse. Pegou um copo enquanto pensava a
melhor maneira de preparar terreno para a pergunta mais
fundamental daquela noite: o que eram os Fenômenos, ou como

65
NICTOFOBIA

eles diziam, Avisos. Por que eram tão perigosos afinal? E o que
foram aqueles tiros? Insones realmente vieram ao resgate? O que
tinha acontecido? Era difícil escolher uma pergunta apenas.
Alex agarrou a ração, impaciente:
- Eu faço isso. É pra ser rápido, cara, você tem que ir dormir. A
situação dessa noite está crítica.
- Você vai passar a noite aqui? - Lucian enchia o copo no filtro.
- Não, não é esse o procedimento. Eu estou só recarregando
minha lanterna por uns cinco minutos. - ele respondeu da outra
extremidade da sala, já despejando um pouco de comida na água.
Lucian quase perguntou onde estava o outro agente, mas não
quis desperdiçar a paciência de Alex. Ao invés disso tentou,
vacilante:
- O que… O que aconteceu lá atrás, com o carro?
Alex se aproximou do balcão para trocar o frasco de ração pelo
copo d'água. Ele trazia um sorriso irônico no rosto.
- Eu tenho uma proposta: uma resposta por um nome. Pode me
fazer quantas perguntas quiser, mas eu quero o resto do seu grupo.
- ele bebeu o conteúdo do copo de uma vez só enquanto Lucian
refletia em silêncio. Ele não tinha nada para dar ao agente, sabia
apenas o primeiro nome de uns três ou quatro Insones. Talvez
pudesse inventar o resto.
- O que me diz? - ele colocou o copo vazio no espaço entre os
dois, pontuando sua pergunta.
- E se eu te falar onde eles estão? Podemos esquecer que me
viram hoje?
Alex contraiu os lábios. Talvez ele não estivesse em posição de
fazer acordos, mas poderia interceder em nome dele.
O copo estalou. Trincas marcavam o vidro.
Alex constatou horrorizado, já se mobilizando.
- Merda, tem um aqui! - ele correu para tirar sua lanterna da
tomada e, da porta, ordenou:
- Não saia daqui, fique perto da luz.
Lucian tentou se manifestar, mas o agente se foi antes que ele
pudesse dizer qualquer coisa. Ele foi para perto da luz e percebeu a
semi-automática na mesa. Sem hesitar, pegou as peças e foi até a
porta. A escuridão se estendia para ambos os lados.

66
DIAS FERPELLA

Ele tentou chamar, mas não ousou gritar, intimidado pelo


silêncio das trevas. Voltou para a mesa, indeciso. Como ele pôde
esquecer sua arma? Lucian andava de um lado para o outro, pêgo
entre a porta e a mesa, sentindo a pressão do momento. Então,
num impulso, encaixou o ferrolho e o carregador na pistola. Levou
um momento até entender o funcionamento, mas não era nada
muito diferente do que mostravam tantos filmes e programas de
TV. Foi até o armário da cozinha, pegou cinco velas em uma caixa
e acendeu todas elas, de uma vez, no fogão.
Da porta ele tentou ouvir alguma coisa. As velas não
iluminavam além de três metros a sua volta. Do lado direito havia
o elevador, vinte metros ao final do corredor. Se houvesse alguém
naquele espaço, Lucian já teria percebido.
A segurança de seu apartamento foi deixada para trás. Aquela
escuridão o envolvia de uma forma claustrofóbica e, pare se sentir
mais protegido, Lucian evitou ficar no centro do corredor. Ia
acompanhando a parede à sua esquerda, porta após porta surgindo
no halo alaranjado que o cercava. Um brisa leve oscilou a chama e,
para se sentir ainda mais seguro, Lucian engatilhou a pistola. Uma
pancada metálica ecoou distante.
Ele olhou para trás: a luz fraca do abajur saia de sua porta
aberta, mais longe do que ele gostaria. Ele tentou chamar mais
uma vez, mas sua voz não obedecia. Era como se a escuridão o
isolasse do mundo, e não havia mais nada ali, apenas a chama
trêmula, apenas a porta ao seu lado, e atrás daquela porta mais
escuridão, um vazio que suprimia o próprio som do espaço. O ar
congelando atrás dele, caindo denso no chão e se desfazendo em
sombras grotescas e um corredor se estendendo infinito à sua
frente, algo sinistro o atraía para suas garras. Mais um passo e as
paredes se abriram para os lados, o corredor trespassando-o da
direita para a esquerda e da esquerda para a direita. Lucian não via
nada, mas sabia que poderia ser facilmente visto. As cinco chamas
que lhe mostravam o caminho eram as chamas que o traíam, pois
também revelavam sua localização para olhos desconhecidos.
Lucian virou a esquerda, com a mão tensionada contra a arma.
Onde ele estava?
Ele ouviu um tamborilar trazido pelas paredes, mas não
conseguia apontar a direção. Constante, ritmado, como uma

67
NICTOFOBIA

goteira, logo atrás dele, cada vez mais nítido. Ele se virou para
distinguir um círculo luminoso oscilando para cima e para baixo,
se aproximando. O som eram passos. Lucian soltou a respiração
aliviado.
- Eu falei pra você esperar! Você está fazendo exatamente o que
eles querem, está se expondo, está vulnerável aqui. - Alex começou
a falar já a vinte passos de distância. Lucian não conseguia ver seu
rosto contra a luz até ele adentrar no alcance de suas velas.
- E que porra é essa? Minha lanterna já não é forte o bastante
contra eles, quem dirá essas velas. Vamos, não é seguro. O agente
Andrade já não está aqui, deve estar em outro andar. Eu vou te
levar pra casa e depois eu cuido disso. Já vai ser uma grande ajuda
se você dormir.
E então ele viu a arma em sua mão. Sua expressão mudou, sua
postura mudou, suas pernas vacilaram e ele parou a cinco passos
de Lucian. Levou a mão ao coldre vazio e sussurrou para si mesmo
um palavrão.
- Calma cara, vamos voltar para o apartamento e a gente
negocia um acordo. Eu posso dizer que você cooperou, mesmo que
você não me dê nada. Eu digo que se entregou, que se perdeu…
Eu… Eu digo que seu pneu furou naquela lombada a caminho de
casa. Eu te livro dessa, pode acreditar. Você pega serviços
comunitários e monitoramento ocasional...
Lucian não escutava mais nada que ele dizia. Ele tentava se
concentrar em outro som, escondido pela sua voz, a impressão
perturbadora de um tamborilar lento e inconstante. Um, dois. Um,
dois, três. Um. Um. Um, dois, três, quatro. Lucian, que estava
prestes a entregar a arma ao legítimo dono, resolveu se agarrar a
ela por mais um segundo: algo gritava dentro dele para que não a
soltasse.
Ele pediu para o agente se calar por um momento.
- O que foi? - Alex apontou a lanterna por cima do ombro de
Lucian e para trás de si. O feixe de luz não ia muito longe.
- Escuta, Lucian. Eu sei que a situação parece irreversível para
você e que não há mais nada a perder, mas pense bem… - ele
continuou falando enquanto arriscava mais um passo, lentamente.
E foi então que Lucian viu.

68
DIAS FERPELLA

Na areia, não sabe o que faz. Ora branca, ora amarela, ora vívida
e fugaz. O temor de seus anos infantis, o grotesco esgueirar nas
sombras, pulsando um aperto nauseante em seu corpo. Eis estrela.
Eis o sopro secreto da noite, o tirano que apaga a luz solar e
mergulha a humanidade em piche. Eis estrela, que suga o pranto
de meninos assustados, que cega cidades e arranha portas com
seus finos dedos. Eis pólvora, eis ferro. A mão firme se ergue. Ali,
além da luz, a escuridão se move de maneira bestial. Alguma coisa
se aproxima. E a menina, veraz: ‘que terrível ameaça o Leste me
trás!’
Por um segundo Alex percebeu que não era nele que Lucian
mirava. Num último recurso, ele jogou a luz da lanterna em seus
olhos, ofuscando sua visão no exato momento em que Lucian
disparava.
O tiro explodiu no corredor estreito com um estrondo
ensurdecedor. Alex derrubou Lucian e alguma coisa passou
correndo por eles. Lucian pensou ter ouvido um guincho doloroso,
mas seu ouvido zumbia uma nota aguda e ele não podia ter
certeza. As velas rolavam pelo chão, apagadas. Quando Alex se
levantou e o puxou pelo braço, sua lanterna revelou a cera quente
pingando contra algo viscoso e escuro no chão.
Alex correu para o apartamento, levando Lucian pela gola da
camisa. Ele estava atordoado demais e nem percebeu que a arma
agora já estava em posse do agente. Ele bateu a porta atrás de si.
Lucian se apoiou nos próprios joelhos, movendo seu maxilar,
tentando acabar com o zumbido. Ele via o clarão do tiro queimado
em sua retina toda vez que piscava. Seu punho latejava de dor.
Alex se afastou dele, murmurando alguma coisa com as mãos
na cabeça. Lucian sentiu que iria desmaiar e caiu sentado no chão.
Respirou fundo. Seu coração parecia uma britadeira esmurrando
suas costelas. O cheiro de pólvora, o trovão, o raio, o golpe do
chão, a escuridão. A cena martelava sua cabeça repetidas vezes.
Algo se aproximava.
Lucian sentiu um toque no seu ombro o chacoalhar. Alex
chamava seu nome, mas sua voz estava distante, sufocada por
inúmeras camadas de feltro e areia. Lucian ouvia a própria voz
apenas como uma vibração quando perguntou, trêmulo:
- O que era aquilo? O que eu fiz?

69
NICTOFOBIA

Alex se afastou de novo, lhe dando as costas. Quando Lucian se


levantou, ainda com as pernas bambas, mas com os tímpanos
regenerados, o encontrou sentado no sofá, com a cabeça entre as
mãos e a perna balançando nervosamente.
- Alex. O que era aquilo?
- Cara… acabou. Estamos fodidos… Vamos morrer. Todos.
- Alex!
Ele se levantou e ergueu a voz, gesticulava com a arma na mão:
- Você quebrou a trégua, cara! Destruiu anos de um pacto
fundamental! Agora aquelas coisas vão vir com tudo e a gente não
está nem de longe preparado.
- Do que você está falando?
- Noturnos, Lucian. A razão pela qual você deveria estar
dormindo. E se você soubesse, você certamente estaria dormindo.
Os dois ficaram em silêncio. Alex soltava um palavrão
ocasional. Lucian repetia mentalmente que aquilo não poderia
estar acontecendo, que era tudo um mal entendido, uma
brincadeira, que Alex não sabia o que estava dizendo e ia ficar
tudo bem.
- Eu acho que quebrei meu pulso…
- Quebrou nada. Você tem um telefone?
- No quarto, na escrivaninha perto da janela…
Lucian se sentou no sofá, zonzo, e jogou a cabeça para trás,
fechando os olhos. A voz veio do quarto:
- Ela vai morrer Lucian… cedo ou tarde aquela coisa vai morrer.
A gente precisa tirar todo mundo das ruas, avisar a Socoma de
alguma forma antes que aconteça, deve haver um procedimento
para isso. Eu sei que tem um número de emergência… E você
precisa dormir, agora!
Lucian não iria discutir. Não havia porque ficar acordado. Ele
não queria mais ficar acordado. Ele não queria saber o que
aconteceria, não queria responsabilidade sobre aquilo, queria
apenas se desligar por horas e horas até que suas cortinas se
abrissem com a luz do Sol. Pegou a dose de Sono no seu bolso.
- Espera… A gente precisa tirar todo mundo das ruas? Alex?
- Qual é mesmo o número? Merda! - ele segurava o fone
próximo à orelha e discava uma nova combinação de cinco

70
DIAS FERPELLA

números a cada sinal de ocupado. Lucian se aproximou. Teatro


Koya, ele entregou com convicção.

71
VI

“E
ra eu, Felipe, Osias, Brener, Érika, Juno e Alícia.
Faz tempo que eu não escrevo, eu sei. Mas o rumo das
coisas me deixou meio preguiçoso, meio acomodado. Ou
eu apenas não tinha uma boa ideia para levar adiante. Quem
começou com essa maluquice foi Brener, Alícia e Felipe. Foi Felipe
quem me ligou numa tarde de quarta-feira e, por telefone mesmo,
disse que estava reunindo um grupo confiável, pessoas dispostas a
correr riscos e explorar um dos maiores mistérios das últimas
gerações. Um território que apenas os mais estúpidos, os mais
ousados e os mais radicais se atreveram a adentrar, mas nunca
aprofundar. E assim nos tornamos Insones.
Éramos os retardatários de uma finada tendência. Houve um
momento em que o movimento crescia a cada semana, os Insones
estavam no auge, os bons e velhos tempos, quando Socoma ainda
lutava para fortalecer a Política do Limiar, Sono se resumia a uma
única dosagem e alguns ainda conseguiam adormecer
naturalmente, pelo cansaço do próprio corpo.
Mas não agora. Nós já nascemos num mundo consolidado, tudo
é perfeitamente determinado. O limiar existe há quase quarenta
anos e o Sono é mais que indispensável, é obrigatório. Nos
tornamos Insones, os primeiros Insones em vinte e um anos e
provavelmente os únicos durante muito tempo.
Convidar Érika foi ideia minha. Ela tinha me dado uma força na
matéria mais importante da minha vida até então, sem sombra de
dúvida confiável. Era um escândalo imobiliário, uma empresa
menor, emergente, mas ainda assim cagando dinheiro e limpando
a bunda com uma nota promissória. Em três meses a gente
conseguiu uma capa. Eu consegui uma capa. Mas eu me sentia em
débito com Érika e era ali que eu mostraria minha gratidão.
Osias foi o último a integrar o grupo. Juno o convidou porque
ele tinha uns holofotes poderosos que arranjou entre as sucatas da
produtora dele. E a gente precisava estar preparado caso houvesse

72
DIAS FERPELLA

alguma verdade naquelas lendas urbanas dos tempos de nossos


avós e que ainda respingava em nossos pais.
Na nossa primeira reunião, eles me revelaram o quanto ficaram
surpresos em ver meu entusiasmo. Eles não esperavam que eu
fosse ainda do tipo que arrisca uma prisão. “Você vai ser pai!”
Exatamente. Eu vou ser pai. Eu vou ter uma família para sustentar,
logo eu preciso de um furo digno de best seller. “Significa que
temos oito meses para conseguir algo” era o que eu respondia.
O maior carro a nossa disposição era um Áquila. E nenhum de
nós tinha um carro preto. Brener estava resoluto que não usaria
spray preto na lataria, então tivemos que pensar em algo que
nenhum Insone antes de nós apresentou para camuflar um carro
impróprio. Aquilo adiou nossa primeira empreitada em uma
semana. Mas foi uma das coisas mais satisfatórias de todo o
processo.
Criamos uma roupa para o Áquila prata. Costurada sob medida,
justa, resistente, fácil de tirar, compacta. Com o velcro bastava
apenas um puxão, cinco pontos de força; e a coisa toda saía em
quatro tempos: “um, dois, três, já.”
Foi também a semana em que o grupo entrou em sintonia, os
laços se estreitaram. Todos confiavam em todos. A gente
costurava, cortava, colava, desenhava mapas, marcava os locais de
avistamentos, equipava o veículo, fazia ligações. Dominique, no
primeiro mês de gravidez, não escondia seus ciúmes. Eu dizia que
era coisa do trabalho e não entrava em detalhes. Mas ela sentia
que eu escondia algo e eu não podia nem me dar ao luxo de ficar
chateado com sua desconfiança. A única razão pela qual eu não a
incluí no projeto estava crescendo no seu ventre. Seria injusto
duvidar de sua capacidade e dedicação.
Que decisão acertada, a de alienar Nique. Com certeza a única
escolha bem feita de toda aquela loucura.
É muito difícil retornar àquela noite específica. Eu gostaria de
poder dar mais um tempo, esperar minha cabeça absorver tudo e
encontrar uma maneira de lidar. Eu gostaria de ter acesso à um
psicólogo ou um psiquiatra e parar de ter pesadelos com as coisas
que vi. Mas preciso narrar enquanto está fresco na memória,
enquanto o trauma ainda não suprimiu ou deformou nenhum
detalhe, por mais besta que seja.”

73
NICTOFOBIA

Assim terminava o manuscrito. Amanda o dobrou com cuidado


nas marcas antigas e o enfiou em sua mochila, entre um livro
grosso de Geometria e seu caderno de Química. Na manhã
seguinte, depois da última aula, ela voltou a visitar o avô.

74
PARTE II
I

A
manda Feller estava sentada a uma mesa próxima à porta.
Pelo vidro ela observava os carros subindo o morro
morosamente, o sol da tarde pintando sombras compridas
na rua. Ela tentava não se abalar pelos boatos, mas ainda assim
cogitava outro cargo, pelo menos para ter uma alternativa
engatilhada caso recebesse aquela temida notificação. Eles já
foram setecentos e oitenta, agora eram trinta e cinco. Ela parecia
ser a única a se esforçar para evitar o fim iminente.
Ambos os ponteiros do relógio se encontravam no quarto
dígito. O restaurante estava começando a encher, em poucos
minutos metade das mesas estavam ocupadas por famílias, grupos
de amigos, casais, sócios. Os solitários como ela se amontoavam
no balcão do bar.
Aquilo já estava incorporado à sua rotina. Quatro horas da
tarde, restaurante do hotel, seu caderninho sobre a mesa. A
denúncia tinha chegado a ela há quase duas semanas, mas
ninguém da Socoma tinha se dado ao trabalho de investigar o que
parecia mais um trote do que uma dica. No mesmo dia ela
conseguira guiar a patrulha para aquela rua, e esse foi o máximo
que ela conseguiu de atenção para aquele caso. Sem resultados, a
obsessão de Amanda começava a virar piada entre os agentes.
Um casal jovem entrou, ela sorrindo, se agarrando ao braço
dele, ele fazia alguma gracinha ou falava alguma asneira. Eles se
sentaram à duas mesas de distância, levemente incomodando
Amanda com seus risinhos animados. Ela desviou os olhos para o
cardápio, tentando decidir qual prato experimentar agora. Aquela
missão pessoal estava saindo cara, mas Amanda preferia ver como
um investimento. Algo validava suas ações, algo como intuição,
dizendo que sim, alguma coisa ia sair daquele hotel, alguém
envolvia aquele local em seus planos criminosos.
Ela pediu uma pasta carbonara e uma água gasosa. O garçom
levou o cardápio e ela se virou para seu caderninho. Naquelas
páginas ela conseguia reconhecer quase todos ali. Ela anotava os

77
NICTOFOBIA

hóspedes frequentes, designando três linhas para cada um deles:


duas características e o assunto mais falado. Cabelo
ralo/bigode/golfe, normalmente se senta com loiro/olhos
claros/mulheres e grande/barba/celebridades. Cachos/risada
estridente/cachorro vem junto com idosa/cabelo tingido/arte pós-
contemporânea. E por aí vai, por páginas e páginas.
Amanda se lembrava bem das feições. Ela queria mesmo era
notar o padrão, quem realmente estava hospedado ali pelo tempo
em que estavam na cidade e quem poderia usar o hotel como
ponto de encontro. Naquela tarde em especial, Amanda notara
cinco novos rostos: um homem com expressão tranquila e cabelos
grisalhos; um jovem negro de óculos com um outro jovem também
de óculos e com a pele marcada de espinhas; aquele casalzinho
feliz que agia como crianças.
Foi depois das cinco horas da tarde que o casal começou a cair
nas suspeitas da agente. Eles pareciam ansiosos, nervosos com
alguma coisa, principalmente o rapaz. Seus dedos na mesa ou o
balançar de sua perna denunciavam sua inquietude. Amanda fez
uma grande seta no seu caderno, ficaria de olho naqueles dois,
consultaria a recepcionista ao sair.
Agora o restaurante estava cheio. Ela não conseguia pescar
palavras em meio ao murmurinho e nem tinha mais uma visão
privilegiada dos seus suspeitos principais. Ela pediu um café, o
garçom reiterou que não serviam cafeína depois das cinco da
tarde. Amanda mostrou sua identificação da Socoma com uma
cara de tédio. Era a segunda vez que ela via aquele garoto
trabalhando ali. Talvez fosse ele o seu alvo. Amanda percebeu que
nunca havia suspeitado dos funcionários do hotel e esse poderia
ser um erro grave. Talvez por isso não tivessem a boa vontade de
lhe dar acesso às câmeras de segurança. Se a Socoma oficialmente
olhasse para aquele caso tudo seria tão mais fácil… Fez uma
anotação quando o garçom se precipitou para a cozinha.
As mesas começavam a esvaziar por volta de cinco e meia,
cinco e quarenta. Os funcionários recolhiam as louças e
arrastavam cadeiras. Sobravam ali Amanda, o casalzinho suspeito,
a família do décimo oitavo, a moça com ar sofisticado e batom
escuro e o homem alto de cabelo raspado que flertava com ela.

78
DIAS FERPELLA

Amanda se levantou às cinco e cinquenta, saindo junto com a


família.
Ela esperou junto à recepção, onde os funcionários arrumavam
as coisas para encerrar o dia. Uma antiga amiga de Amanda
trabalhava ali, Nina.
- Como estava a comida hoje, senhorita Feller?
- Excelente como sempre. Ultimamente é só isso que tem valido
a pena.
- O pessoal estava achando que você era uma crítica
gastronômica. Por causa das anotações. - ela se despediu com um
aceno de seu colega que já se retirava para o dormitório da equipe.
A moça sofisticada e o homem alto passavam em direção ao
elevador. Amanda deu uma olhada para dentro do restaurante, o
casal se levantava. Ele assinava a conta, ela o puxava pelo braço.
Cinco minutos para o limiar.
- O que pode me dizer desses dois?
- Você sabe que eu não posso dizer nada.
- Me diz apenas se eles tinham reserva.
- Amanda, eu só posso compartilhar informações sobre
hóspedes se você me trouxer uma procuração oficial da Socoma.
Eles passaram por ela pouco depois da recepcionista dizer
“Socoma”. Amanda observou preocupada se havia alguma reação
nos dois, mas eles não pareciam ter escutado, distraídos demais
um com o outro. Estavam apressados, mas não corriam. Seria para
chegar ao quarto antes do limiar? Mais um dia sem resultados,
pensou Amanda. As luzes do restaurante se apagaram. A outra
recepcionista desejou uma boa noite para Amanda e chamou a
colega.
- Não me corrija se eu estiver certa: eles não tinham reserva.
- Boa noite, Feller. Até amanhã… quer dizer, a não ser que… é,
até amanhã.
Ela hesitou e apagou as luzes de ambientação. Amanda ficou
sozinha no saguão, luz débil do anoitecer entrando pelos vidros.
Ela hesitou, pensou Amanda, se aproximando do elevador. Os
números mudavam no mostrador: quinze, dezesseis, dezessete.
Parou no dezessete, por cinco segundos. Depois retomou a subida.
O que foi isso?
Amanda conferiu o relógio: dezoito horas em ponto.

79
NICTOFOBIA

Ela se aproximou da porta das escadas. Pensou ter ouvido uma


pancada ecoar. Ela se apressou para fora do hotel, o céu estava
púrpura, as primeiras estrelas surgindo. Lá fora apenas o som
distante de cigarras. Amanda logo estava correndo para seu carro,
estacionado do outro lado da rua. Ela pegou o rádio jogado no
banco e anunciou:
- Agente Feller, dois-um-um-cinco-nove-três, temos uma
possível quebra no Lion. - ela hesitou por um momento. - Atenção,
temos uma quebra confirmada no Hotel Lion, requisito auxílio
imediato de uma patrulha.
Ela voltou para o hotel e a meio caminho percebeu que não
pegara a pistola no porta-luvas. Deu meia volta, amaldiçoando sua
distração e afobação. Seu coração estava disparado, ela estava
prestes a mudar a história. Mas tudo podia ainda dar terrivelmente
errado. Ela estava sozinha, tinha que ser impecável.
Assim que entrou, subitamente a porta das escadas de incêndio
se abriu e uma pessoa pareceu parar no ar entre os passos de sua
corrida, tamanha a velocidade que mudou de direção e sumiu
atrás da porta. “Ei!” Amanda gritou. Chamou o elevador para
prevenir caso eles tentassem usá-lo. E quando estava prestes a
abrir a porta das escadas, esta se lançou para fora, quase
atingindo-a e uma pessoa saiu em disparada, empurrando
Amanda.
No movimento mais rápido de sua vida, meio por reflexo, meio
por habilidade, meio por desespero e meio por sorte, Amanda
agarrou o braço dele antes que o contato fosse desfeito. Ela passou
o desequilíbrio dela para ele e o derrubou contra o piso de
mármore. Lucian não conseguia lutar, seu braço imobilizado, um
joelho sobre seu ombro.
- Acabou. É para sua própria segurança. Onde ela está?
- Sou só eu. Só eu.
O rosto de Lucian estava voltado para a rua e ele pode ver
quando os fortes faróis anteciparam a chegada da viatura.

***

Um mal entendido. Lucian não teria cometido o maior erro da


sua vida, mesmo com toda a cadeia de eventos que havia se

80
DIAS FERPELLA

desenrolado, se não fosse por um mal entendido. As armas


portadas pelos agentes não eram para os noturnos, eram para
intimidar os Insones. Poucos contestam a autoridade de quem tem
um dedo no gatilho.
Lucian não mais tentou se justificar. Ele interpretara errado
aqueles disparos na rua. Era melhor não tentar dividir a culpa com
aquele agente inexperiente, pelo menos não naquele momento em
que ele tentava ganhar sua simpatia. Mas Lucian também não teria
cometido o maior erro da sua vida, mesmo com toda a cadeia de
eventos, mesmo com o mal entendido, se não fosse pela arma que
Alex deixara na sua mesa de centro.
- Mas que merda! Não consigo lembrar o número de
emergência! Vamos ter que esperar o Andrade.
- Temos tempo de esperar? Não precisamos mandar alguém
para o teatro imediatamente? - Lucian tentou fazer parecer uma
sugestão.
- Sinta-se livre para tentar todas as combinações possíveis. -
Alex esticou o fone para ele, irritado.
- Onde está seu parceiro? O que ele está fazendo? - Lucian se
sentou na cama.
- A gente ia procurar um carro, tentar a sorte com alguma porta
destrancada.
- E iam pegar o carro de alguém?
Alex bufou e não respondeu. Fez mais uma tentativa nas teclas
do telefone, murmurando os três primeiros números. Invadir a
casa de alguém e fazer uso do seu veículo parecia algo improvisado
pelos dois agentes. Mas Lucian não duvidava que aquilo fosse
protocolo padrão da Socoma em caso de emergência. As pessoas
tinham perdido o direito ao espaço privado há muitos anos, apesar
de todos fingirem que não. Ele pensou em Lenny, como ela
reagiria àquela informação.
- Podem usar meu carro, vocês viram onde está. - ele tentou
amenizar o questionamento anterior. Alex pareceu cogitar por um
momento, virando os olhos para Lucian. Decidiu fazer apenas mais
três tentativas. Estava irritado consigo mesmo, por não ter
decorado o número. Se consolava que durante o próprio
treinamento era dito que aquela linha deveria ser usada apenas em
casos extremos, para sempre priorizarem a comunicação interna,

81
NICTOFOBIA

que era quase certo que nunca precisariam usá-la. Andrade deveria
saber. Feller certamente sabia.
Já ele se lembrava apenas dos três primeiros dígitos, mas não
estava seguro quanto a ordem. E sabia que os dois últimos eram
repetidos.
579...22? Não, mais duas tentativas. Antes de fazer a segunda,
pensou bem.
- Lucian, me dá um minuto! - ele deu um fim as perguntas e
sugestões do outro, tentando se concentrar.
597...77? Não, não haviam três números 7. Na verdade, não
havia três repetições de nenhum número, excluindo assim 55, 99 e
77.
597...33? Não. Uma tentativa apenas.
795… ou talvez, 975.
975...66?
Alex bateu o telefone frustrado.
- Que foi? - ele descarregou em Lucian.
- Passos, no corredor. Eles não podem entrar aqui, podem?
A porta se abriu de repente. Mas não era um noturno.
Andrade entrou com a arma numa mão e a lanterna em outra.
Ao ver Lucian parado ao lado do abajur exclamou em surpresa e
ergueu sua mira. Tinha ouvido o disparo ecoar no prédio e
imediatamente assumiu o pior. Ele imaginou a cúmplice de
Lucian, que Amanda assegurava a existência com todas as forças,
havia aparecido. Ou o resto do grupo veio resgatá-lo. Tinha
esperança de ter sido um tiro de alerta de Alex, para intimidar o
grupo, superar a desvantagem numérica. Mas temia que fosse
mesmo um confronto e alguém estivesse morto ou ferido. E então
ele viu Lucian, mas não viu Alex.
Num instante Alex veio do quarto e esclareceu a situação.
Andrade se alterou mais com Alex do que com Lucian.
- Como você deixou a arma para trás, garoto?
- Eu tinha certeza que estava com ela. Tinha um noturno por
perto e você estava sozinho.
- E daí? O que poderia acontecer?
- Amanda disse para mantermos distância dos noturnos, não
provocá-los, não surpreendê-los. Eles estão agitados hoje.

82
DIAS FERPELLA

- Era porque esse merda estava acordado! - Andrade apontou


para Lucian, irritado.
- E por que não poderia ser um noturno a quebrar o pacto? Ela
estava preocupada que algo fosse acontecer essa noite.
A discussão não durou muito mais. Andrade assumiu o
protocolo de emergência, discando o número que poucos agentes
se davam ao trabalho de memorizar. Lucian se afastou, dando
espaço a eles e se retirando da situação. Talvez as coisas se
resolvessem facilmente e ele poderia ficar um pouco mais
tranquilo para dormir.
Andrade esperou um curto sinal. O sistema de emergência
localizava a fonte da ligação e direcionava automaticamente para o
sistema de comunicação da unidade mais próxima.
- Segunda Unidade, Correia. - quando ouviu o agente se
identificando pelo fone, as formalidades foram abandonadas e
Andrade disparou com urgência:
- Um noturno foi ferido. O pacto já era! Aqui é o agente
Andrade, da Primeira. Temos atividade no Teatro Koya,
precisamos tirar as pessoas de lá antes dos ataques começarem.
Silêncio. Andrade se preocupou:
- Alô?
- Vocês feriram um noturno?
- Um rato o feriu. Provavelmente o matou.
- Você consegue confirmar?
- Não, ele fugiu. Não há sinal.
- Foi fatal. Tinha muito sangue. - Alex acrescentou ao seu lado.
- Ele está mortalmente ferido. Não vai demorar. Há pessoas em
risco no Teatro Koya, um grupo grande, talvez dois.
- Estamos a caminho, calma. Não estamos longe. Ainda estão
no local?
- Nunca estivemos. Estamos sem carro. Mas não estamos longe.
Se conseguirmos outro, chegaremos em poucos minutos.
O teatro Koya se encontrava a seis quarteirões dali, mais perto
do que o local onde Lucian deixara seu carro. Os agentes
conversavam no quarto, num tom baixo, tentando decidir o que
fazer. Andrade saiu primeiro, passos firmes e gesticulando para
Lucian se levantar do sofá:
- Você vem com a gente.

83
NICTOFOBIA

- Eu? Por quê?


- Você quebrou o tratado, agora é a única pessoa que pode fazer
outro. Vamos te levar para a Socoma.
Lucian não se opôs, entendia que cooperar era a melhor
maneira de lidar com a Socoma. Ir andando até o teatro era uma
opção, mas não era a primeira. Eles continuariam a busca pelo
veículo, e não confiavam em deixar Lucian sozinho esperando.
Também concordaram que se separar naquela situação era
impensável. Logo, a solução foi levar Lucian para a busca. Ele
pegou mais algumas velas na caixa. Lamentou ter perdido sua
lanterna no armazém.
Eles foram direto para o elevador: continuariam a busca de
onde Andrade havia parado. Desceram um andar. Eles andavam
apressadamente, cada um verificando as portas do seu lado do
corredor. Lucian se sentia mais seguro em meio aos dois agentes
treinados e equipados. Tentava caminhar ao lado deles,
sincronizando suas passadas com o ritmo deles, protegendo as
chamas das velas com a mão. Compartilhou uma estatística que
veio à mente, uma que havia apurado poucos dias atrás: cerca de
trinta por cento da população não se preocupava em trancar a
porta à noite. Os agentes ignoraram secamente, concentrados na
tarefa e atentos a qualquer ruído no corredor.
Foi quando Alex girou uma maçaneta e a porta se abriu. Ele
entrou, seguido de Andrade. Lucian esperou na porta, hesitante
em invadir a casa de alguém, mas ao mesmo tempo começou a
ficar apreensivo com a escuridão que o cercava além do alcance
das velas. Ele via os fachos de luz se movendo lá dentro, varrendo
superfícies de mesas e prateleiras. Andrade pareceu encontrar a
chave que procurava.
Ao sair do apartamento ele se viu na necessidade de se explicar
para Lucian. Aquele era um procedimento emergencial e havia
todo um protocolo a ser seguido. Na Socoma eles preencheriam
um formulário e devolveriam o carro na mesma noite. O
proprietário, no dia seguinte, encontraria uma notificação na sua
mesa, explicando a necessidade do empréstimo e aconselhando a
se dirigir a Socoma para uma compensação financeira. Pensando
dessa forma, as pessoas até se sentiriam encorajadas a deixar as
portas destrancadas e as chaves do carro à vista.

84
DIAS FERPELLA

A porta do elevador se abriu, revelando o primeiro andar da


garagem. Andrade foi na frente, com o braço erguido,
pressionando freneticamente o botão na chave, mas nenhum sinal
do carro. Alex e Lucian ficaram mais para trás enquanto ele se
movia entre as pilastras e latarias. Ele já estava próximo da rampa
quando constatou:
- Deve estar no andar de baixo. - e desceu rapidamente.
Lucian ficou para trás. Havia notado gotas escuras no chão
entre dois carros. Ele chamou Alex, a alguns passos à sua frente.
- Dê uma olhada nisso. Não acho que seja óleo.
Ele se aproximou e se abaixou ao lado de Lucian. Tocou o
líquido viscoso e a ponta do seu dedo ficou coberta de vermelho
vivo.
- Ele está aqui… Téo, olhos abertos, ele está aqui. - Alex
anunciou se levantando.
- Pode ser que ele tenha apenas passado por aqui, não?
- Lucian, ele está ferido, provavelmente morrendo. Não acho
que estaria a plena vista ou tentando nos atacar. Deve ter se
enfiado embaixo de algum carro ou em algum canto escuro. Téo? -
chamou pelo parceiro, sem resposta.
Ao se aproximarem da rampa viram a lanterna brilhando na
outra extremidade da garagem. Alex o chamou mais uma vez.
- Não funciona. Não está aqui. - a resposta de Andrade ecoou
pelas paredes.
- Pode ser um Aviso. Vamos embora daqui.
Mas Andrade não queria desistir, estavam perto demais de
conseguir um veículo, ele sabia que poderia encontrá-lo. Ele
verificou o logotipo da montadora gravado na chave e concentrou
melhor sua busca.
- É um Millard. Vejam se encontram um Millard aí em cima. -
ele instruiu.
- Já poderíamos estar chegando ao teatro se fôssemos
andando… - Alex reclamou entre dentes.
Lucian estava apavorado. Olhava inquieto para todos os lados,
sentindo a presença do noturno que ele condenara. Ele ouvia sons
que antes não o incomodariam: uma gota pingando, um
camundongo explorando, a água passando pelo encanamento…
Mas agora tudo parecia fora de hora, qualquer ruído espetava seu

85
NICTOFOBIA

estômago com a possibilidade de um Aviso. Um Fenômeno, como


diziam os Insones.
Andrade se movia rápido entre os carros, iluminando a traseira
de cada um com sua lanterna. Não entendia muito de veículos,
não saberia diferenciar um Millard de um Tayomi ou de um
Heimat e os únicos modelos que conseguia reconhecia eram o seu,
de sua esposa e o da Socoma.
Um atrito. Alguma coisa arrastando contra uma superfície
áspera, bem atrás de si. Pelo contexto, Andrade tinha suas
suspeitas e esperou para confirmar. O limpador de para-brisa
passou mais uma vez, a borracha gemendo pelo vidro seco. Seu
tempo tinha acabado.
Ele subiu a rampa a passos largos.
- Um Aviso, vamos embora. Podem nos encurralar facilmente
aqui embaixo.
- Tem um aqui. - Lucian tentou ser prestativo, apontando um
Millard ao seu lado.
Andrade fez sua última tentativa, pressionou os botões na
chave e nada aconteceu. Enfiou a chave na porta, mas ela não
girava.
- Não. Vamos. Agora. Consegue abrir o portão da garagem?
Lucian assentiu. Eles subiram a rampa e Lucian apertou o
interruptor a meio caminho do portão. Ele abria para cima e o trio
não esperou sua abertura total para sair. A noite fria os acolheu na
rua, o céu estrelado no recorte entre os prédios acima. O barulho
do portão se abrindo soava como uma turbina, dilacerando o ar
adormecido em sua calma.
- Alex, fica de olho.
Alex não parou de mirar a lanterna para trás enquanto se
afastavam. Por trinta segundos tudo ficou em silêncio. Então o
barulho se repetiu enquanto o portão se fechava automaticamente
e eles só ficaram tranquilos quando se calou novamente, não
deixando que nada saísse atrás deles.

***

Os pais de Ivan já eram superprotetores quando ele ainda


estava no útero. Agora como um bebê, os olhos grandes clamando

86
DIAS FERPELLA

por cuidado e amor, Ivan dormia no meio dos dois todas as noites.
Ivan tinha cólicas fortes e chorava a cada duas horas. Sua mãe
tinha medo dele morrer durante a noite, mas todo mundo,
médicos, amigos, pediatras, família, marido, governo e mídia,
todos falavam que Sono em Gotas fora desenvolvido para bebês e
recém nascidos, que combatiam qualquer problema, até sintomas
de cólicas. E ela nunca tinha ouvido nenhum relato, nenhum
boato, nenhuma notícia, nenhuma mentira e nenhuma verdade
sobre bebês morrendo de frio, fome ou engasgados durante a
noite.
“É totalmente seguro. O que você acha que eu te dava quando
era bebê? Uma gotinha de Sono, dez ou quinze minutos antes do
limiar. Naquela época tinha outro nome. E hoje com certeza é
ainda melhor do que vinte anos atrás. Você acordava tão bem pela
manhã!”
Sua mãe era a única que conseguia tranquilizá-la. Algo na sua
voz, no jeito que ela falava, tão confiante, tão acolhedora e sóbria.
E ela sabia, não poderia deixar Ivan acordado a noite inteira
enquanto ela dormia. Nem ela poderia ficar acordada com o bebê.
Então ela se curvava à lógica e pouco antes de tomar sua dose,
pingava uma gotinha entre aqueles lábios tão perfeitos, tão seus.
E ele acordava tão belo pela manhã. O sol entrava pela janela
sobre a cama e a primeira coisa que Clara via era seu marido,
também despertando lentamente. E então ela se lembrava daquele
amor tão novo dentro de si e descia seu olhar até aquele garotinho,
tão miúdo, entre os dois. Ele era o primeiro a acordar. E acordava
tão bem e tão belo! Seus olhos grandes agraciando a luz matinal.
Ele tinha oito meses, quase nove, quando uma manhã Clara
acordou e percebeu seus olhos mareados, avermelhados.
Imediatamente, em sua ignorância leiga, ela diagnosticou uma
alergia. Pegou Ivan no colo e ligou pra mãe, antes mesmo que
Hector despertasse totalmente. Ele, confuso, ouviu a esposa dizer
“Eu sei mãe, mas você pode dar uma olhada nele mesmo assim? Eu
levo ele aí agora mesmo, antes de você ir pra clínica. Tá bom. Sim,
melhor ainda. Eu amo você! Até já.”
Era sábado. Eles tiveram tempo de tomar café da manhã e ir
direto para a clínica, chegando praticamente juntos com a pediatra
do pequeno Ivan.

87
NICTOFOBIA

O casal respirou aliviado ao ouvir que estava tudo bem com o


filho. Nada de errado, absolutamente nada de errado com aqueles
lindos olhos saudáveis. A doutora também percebeu que sua
garganta estava levemente irritada e apenas para ter certeza
perguntou para a filha:
“Você parou de dar Sono pra ele?”
“Não, mãe. Uma gotinha antes do Limiar, todos os dias.”
O diagnóstico da doutora Romanie soou como uma
brincadeira: era choro. Ivan esteve despertando no meio da noite e
chorava por horas. Seu DNA fazia parte daqueles três por cento
que adquirem resistência à dosagem e precisava de um reajuste.
“Duas gotas devem bastar.”
A doutora pegou o neto no colo, paparicando-o ao se despedir.
Ela os levou até a porta e passando o bebê para a filha, perguntou
serenamente:
“E você, como tem dormido?”
“Tá tudo bem agora.” ela tranquilizou a mãe. Em sete anos ela
havia mudado tanto. E sentia que continuava mudando, ainda
mais depois que Ivan nasceu. Ela queria apenas mantê-lo a salvo e
que fosse feliz, sem nunca sentir o medo que um dia ela sentiu e
com que seus pais cresceram e quase se acostumaram.
Ivan nunca mais viu a noite. A cada três meses sua mãe se
certificava com doutora Romanie se a presente dose de Sono era a
ideal. Ele nunca mais acordou com os olhos mareados e lágrimas
secas em suas bochechas macias. Se tornou uma criança
obediente, sempre tomava suas doses no horário e não reclamava
de ir às suas consultas trimestrais. Ele gostava de ver a avó
trabalhando e gostava dos jogos de montar castelos na sala de
espera.
Já na idade da razão, Romanie deixava ele manusear seus
equipamentos e eles invertiam os papéis ao fim da consulta. Ele
gostava de olhar seu canal auditivo e de contrair suas pupilas com
a pequena lanterna. Mas nada se comparava com as batidas do
coração subindo pelo estetoscópio. “Coração de vó bate diferente.”
“Com mais amor?” Clara provocava. “Não, com teimosia.” Sua mãe
completava e as duas riam e Ivan acompanhava, mesmo sem
entender o que aquilo significava.

88
DIAS FERPELLA

E aquilo virou uma piada recorrente. E muitos anos depois,


Clara iria retomar para suas próprias netas, após Hector fazer uma
cirurgia para colocar um marca-passo. “Coração de vô bate por
teimosia.” Porque se é verdade para as avós, como negar o mesmo
aos corações frágeis dos homens?
Ivan um dia perguntou, para um trabalho de escola, como seus
pais tinham se conhecido. Hector disse que havia conhecido ela
numa roda de discussão. “Numa briga?” o menino tentou
entender. Clara riu, concordando em parte. “Era um grupo de
conversa, sobre novas ideias, novos pensamentos.” “Ah, como um
debate.” Ivan exibia seu vocabulário em expansão. Ele se
interessou mais pela história dos dois, deixando o casal cauteloso
ao pisar num terreno tão instável que mais parecia um atoleiro.
“Antigamente as pessoas sentiam sono sem tomar nada, elas
eram livres para… Bom, elas dormiam quando quisessem, quando
estivessem muito cansadas. E naquele tempo a gente achava que
deveria continuar assim.”
“E porque mudou?”
Dias depois, Clara conversava sobre o assunto com as outras
professoras na escola em que ela trabalhava.
- E o que você respondeu? - uma delas perguntou.
- Eu só falei que era melhor desse jeito. Que a noite podia ser
perigosa.
- Clara, não. Você deveria ter falado que a noite é perigosa, e
não que pode ser perigosa. - outra opinou.
- Eu não quero assustar meu filho.
- Mas ele tem que saber. E se ele não levar a sério e violar o
limiar?
- Ele toma Sono quinze minutos antes, sem ninguém precisar
lembrá-lo. Ele é responsável.
- Sabe, eu concordo com você. Minha menina também já me
perguntou porque tinha que ir pra cama e eu falei algo parecido.
Não precisava entrar em detalhes. Não quero ela fazendo xixi na
cama ou tendo pesadelos. - outra interveio.
- Eu também acho. Meus filhos cresceram sabendo que a vida é
assim, eles não precisam ter medo pra respeitarem o limiar. - um
professor mais velho se juntou a conversa.

89
NICTOFOBIA

Clara se sentiu melhor. Ela o alienava para protegê-lo, como


toda boa mãe faria. Quando a verdade não traz nenhum benefício,
por que vale a pena dizê-la?
Cinco anos depois, foi o próprio Ivan que a trouxe à tona,
quando seu pai o buscou na escola. Uns amigos dele estavam
contando histórias no recreio, lendas urbanas, coisas sobre a noite.
Diziam que ficar acordado era proibido porque havia vampiros
comedores de crianças, que eles conseguiam detectar atividade
cerebral de alguma forma e permanecer inconsciente era o único
jeito de ficar em segurança.
Hector tentou amenizar sem tirar o crédito da descoberta. Não
são bem vampiros, são seres noturnos. E sim, é uma lenda antiga,
mas algumas pessoas afirmam com toda certeza que já viram.
- Você já viu?
- Não.
- E a mamãe?
- Não sei, pergunta pra ela. - ele preservou a esposa. A verdade
não traria nenhum benefício.
A mãe negou, nunca tinha visto nada. Disse que era só uma
história de terror, que quem defendia sua veracidade não passava
de mais um personagem. E encorajou: se ele quisesse ficar no
escuro e no frio depois do limiar para comprovar pros amigos, ela
o acompanharia só pra ele tirar isso da cabeça.
“Nah… coisa de criança.” ele respondeu perdendo o interesse e
Clara ficou aliviada por seu blefe ter funcionado.
Na faculdade, Ivan chegou a questionar durante uma palestra
sobre economia. Em pleno o auditório, ele se levantou para fazer a
pergunta se os gastos de iluminar uma cidade inteira a noite não
seriam compensados com o retorno de jornadas noturnas. Não é
apenas escuro, o palestrante retrucou, é perigoso, há um maior
número de insetos transmissores de doenças, ratos e morcegos
raivosos… Muitas cobras são mais ativas durante a noite, sabia
disso? A escuridão desorienta, faça você mesmo o experimento,
fique alguns minutos num quarto escuro ou mal iluminado. O
primeiro sintoma que você vai sentir é dor de cabeça. Sem falar
que a noite é fria, seria necessário investir em aquecedores. E é
solitária. A Socoma faz rotação de seus funcionários para que eles
não precisem dormir durante o dia e possam ver a luz do sol e

90
DIAS FERPELLA

interagir com a sociedade. Agora, imagine alguém que não pode se


dar ao luxo de rotacionar num cargo? Trabalhar todas as noites,
dormir todos os dias… E sim, é muito caro iluminar uma cidade
inteira.
Ivan ficou com a sensação de que fora uma pergunta estúpida e
achou melhor não dizer mais nada. Todos no auditório acharam
um absurdo tentar ser produtivo à noite e aquilo virou motivo de
piada durante o intervalo. Já o palestrante, tendo enumerado
vários obstáculos, optou por não mencionar os seres noturnos,
com medo de perder sua credibilidade.
Aos vinte e cinco anos, Ivan ouviu a intrigante notícia no seu
carro, a caminho do seu estágio. Um grupo de jovens delinquentes
infringiram a Lei do Limiar em segundo grau. Ou seja, não apenas
foram encontrados acordados, mas como também fora de casa. Os
mistérios daquela noite tinham o potencial de abalar as crenças de
uma geração inteira. Era a primeira retenção da Socoma em
cinquenta e quatro anos, num episódio que ficaria conhecido
como Os Sete do Memorial.
Ele ligou para sua noiva, Flora, na hora do almoço. Aquele
parecia ser o único assunto do dia.
- Você ficou sabendo?
- Ivan, que loucura! Parece que eles eram ladrões de arte e
atuavam em vários outros países. Eles circulavam com um carro
camuflado, mostrou na televisão.
- Eu ouvi que eles estavam envolvidos com rapto de crianças e
que é uma rede de tráfico que existe há anos. Aquelas lendas de
vampiros agora fazem todo o sentido!
Ao fim do dia já havia mais informações e os noivos
compartilharam no momento em que se encontraram em casa,
depois enquanto cozinhavam juntos e depois quando jantavam.
Nenhum dos criminosos tinham antecedentes, nada foi
encontrado no carro a não ser lanternas e câmeras fotográficas de
acionamento remoto. Até então os criminosos se negavam a se
identificar. Entre os pertences de um deles, havia nomes e
anotações aparentemente sem conexão entre si. Tudo levava a crer
que não era a ação em si, mas uma sondagem para um plano
maior.

91
NICTOFOBIA

No dia seguinte vazou um fato chocante: aquele acontecimento


havia deixado dois mortos. As especulações eram surreais. A
princípio, foi sabido que um dos mortos era um agente da Socoma
e o outro era um dos criminosos. No final da manhã alguns canais
já anunciavam que os dois mortos eram criminosos. No meio da
tarde, diziam que um estava morto e o outro em estado crítico no
hospital, a natureza dos ferimentos não fora revelada, tampouco a
causa da morte do primeiro.
- Flora, estão dizendo agora que são três mortos: dois
criminosos e um da Socoma. Encontraram uma arma em um dos
canteiros do memorial, estão dizendo que foi uma troca de tiros. -
ele disse entre um gole e outro de seu café, quando sua noiva se
juntou a ele depois de tomar um banho ao amanhecer.
- O quê? Eles demoram três dias para vasculhar a cena? E só
depois que as mortes vazaram que eles magicamente encontram a
arma? - ela duvidou.
Quando os depoimentos dos agentes se tornaram públicos,
tudo pareceu ensaiado e qualquer criança encontraria
contradições. Era fim de semana e Ivan levou Flora para um
almoço na casa dos pais. Clara não se mostrava nem um pouco
interessada no assunto e tentava mudar o foco a cada comentário.
Hector por outro lado apenas concluía a cada cinco minutos “é,
tem alguma coisa muito errada nessa história…”
- Pai, eles alegam que nenhum agente disparou. Como é que
morrem dois criminosos e um agente?
- Eles dizem que os criminosos tiveram uma discussão, um
deles tirou a arma de um dos agentes, o matou e atirou no seu
companheiro. - Flora complementou.
- E depois se matou?
- Ninguém sabe.
- É, ninguém sabe... Eles dizem que houve um terceiro disparo,
dizem que pode ter sido o criminoso que, antes de morrer, atirou
de volta. O vovô não te falou nada? - Ivan sondou o pai. Hector
abanou a cabeça:
- Agda fez ele assinar sigilo total.
- Agda? - Flora ficou confusa com o novo personagem.
- Agda Tchertkov, a porta-voz da Socoma.

92
DIAS FERPELLA

- Dona da Socoma, Ivan. - Hector corrigiu o filho, parecendo


tomar o equívoco como uma ofensa.
- Ah sim, aquela puxa-saco da Koya. - Flora provocou.
- A última vez que ela apareceu publicamente ainda era uma
menina. Atualmente estava aposentada na Baía das Valquírias, eu
acho. Voltou às pressas.
- É… Tem alguma coisa muito errada nessa história. - Flora
concluiu e olhou para o futuro marido com um sorriso malicioso.
Ele entendeu a referência e tentou não rir diante de “um assunto
tão mórbido”, como diria sua mãe.
Os depoimentos dos criminosos não foram divulgados, pois
alegaram ser “de cunho fantasioso e com a intenção de confundir o
público e desviar o foco da investigação.”
Aquela declaração do Tribunal Investigativo serviu
perfeitamente para a teoria da conspiração mais audaciosa e
atraente. Ivan e Flora a espalhavam com ar zombeteiro, mas havia
sim alguns poucos que a levavam a sério e acreditavam acima de
qualquer outra versão. Aquilo havia sido obra de seres noturnos, as
lendas urbanas eram reais. Charges eram publicadas em jornais,
trazendo monstros vestindo o uniforme da Socoma, provocando a
organização com uma acusação não verbal.
- Não há dúvidas de que a Socoma os matou. O agente
responsável provavelmente foi mandado pra fora do país e, pra
evitar a polêmica, estão dizendo que ele morreu. - Ivan combinava
teorias com fragmentos lidos em tabloides e especulação
midiática.
Depois de uma semana de investigação, os nomes anotados no
caderno de um dos Sete do Memorial (a essa altura o epíteto já
havia se popularizado) foram atribuídos a ex-integrantes de um
movimento boêmio anterior à Lei do Limiar. Poucos ainda
estavam vivos, na faixa dos noventa anos de idade e seus relatos
eram confusos e imprecisos. Os outros nomes eram de seus
herdeiros, as pessoas que poderiam ter ouvido aquelas histórias
dos pais antes que se perdessem para sempre na senilidade.
O extinto movimento marginal ganhou notoriedade e foi
reavivado no imaginário coletivo. Insônia. A televisão chegou
àqueles nomes e alguns poucos concordaram em ceder uma breve
entrevista, mais na tentativa de remover o preconceito do que em

93
NICTOFOBIA

divulgar a história de seus ancestrais. “Nossos avós eram muito


loucos mesmo.” Flora concordava, sem conseguir levar aqueles
programas a sério. Coração de avós batem com teimosia.
Protestos contra a Socoma ganharam força. Cartazes exigiam
uma exposição total da empresa, um histórico de operações e
acesso a documentos sigilosos. A Socoma era dona da noite, fazia
sua própria lei e não respondia a ninguém. Quem, além de seus
próprios funcionários estariam acordados para testemunhar a
conduta violenta e abusiva? Quem, se não as próprias vítimas,
poderia corroborar a culpa dos agentes? E o monumento de
Katerina foi violado com sangue daqueles executados pelas mãos
do tirano que ela alimentara.
“Não se enganem, eu também quero destrinchar tudo até a
verdade aparecer.” Agda Tchertkov atuava diante de microfones.
Antes que o mês acabasse, as notícias sobre o assunto foram
escasseando. Flora e Ivan voltaram a conversar mais sobre o
casamento do que sobre o caso. Tudo estava confuso demais,
ridículo demais, especulativo demais, e a paciência do público com
muitas perguntas e poucas respostas foi chegando ao fim e cada
um aceitou sua teoria particular como o desfecho do mistério. Para
muitos, a Socoma era a responsável; para a maioria, eram os Sete
do Memorial; e para poucos, pouquíssimos, havia certa verdade
naquelas histórias assustadoras que seus avós costumavam contar.
Ivan tentou falar sobre isso com sua avó, mas Romanie foi vaga
sobre sua juventude.
- Havia uma mística grande a respeito da noite. Existem coisas
que nós, humanos, somos limitados demais para entender ou
sequer tentar entender. A melhor coisa que podemos fazer para
não nos queimarmos é evitar tocar o fogo.
No fim do ano a família celebrou um casamento. Quatro anos
depois, Romanie morreu durante a noite, em paz, sob os efeitos de
Sono e com um sorriso sereno no rosto, provavelmente sonhando
com as bisnetas que jamais conheceria. Naquele dia Flora se
descobriu grávida. E quando a linda garotinha de olhos grandes e
curiosos nasceu, lhe foi dado como nome o apelido da bisavó:
Ronie.
Insônia precisou somar mais duas décadas de esquecimento até
ser resgatado da história novamente, através de uma marca.

94
DIAS FERPELLA

Insônia deixaria de ser conhecido como um movimento rebelde e


se tornaria um dos primeiros simuladores noturnos do país. E
quando Ronie chegasse à maioridade e comemorasse seu
aniversário ali, Ivan não se interessava nem um pouco por toda
aquela comoção. E continuou sem ver a noite ou ao menos o
simulacro. Suas lembranças pré-um-ano perdidas no decorrer de
sua vida.

95
II

L
enny achou que seu relógio estava errado. A Segunda
Unidade da Socoma deveria ter passado pela sua janela há
vinte minutos. Ela confirmou as horas e ajustou sua teoria:
talvez as rotas tivessem mudado.
Andar na rua, ciente da patrulha, certamente era mais seguro.
Mas dessa vez Lenny não teve escolha e saiu de casa cautelosa,
ouvidos atentos e sua lanterna no modo noturno para não chamar
a atenção. A luz avermelhada se espalhava a sua frente, dando um
aspecto fantasmagórico à cidade. Ela não gostava daquilo, a
lembrava os filmes de terror que costumava ver com sua tia Luana.
O medo ao ver filmes era inofensivo, depois dos créditos as
cortinas da sala de TV se abriam, ou as luzes do cinema se
acendiam e tudo ficava para trás. Mas o medo real, aquele medo
que vem do instinto de sobrevivência, trazendo uma descarga forte
de adrenalina, esse era diferente.
Lenny acelerou seus passos. Ela nem ao menos sabia para onde
direcionar seus medos. A noite já não era tão misteriosa quanto
era na sua adolescência. Ela nunca tinha visto um noturno, apenas
escutado histórias que mais pareciam lendas urbanas. Os Sete do
Memorial, por exemplo, fazia muito mais sentido apresentado
como resultado de uma conduta violenta da Socoma. Algumas
pessoas do seu grupo alimentavam a mitologia dos noturnos,
diziam que os Fenômenos eram diretamente conectados a
presença de um, e que já inclusive tinham visto aparições ou
conheciam alguém que possuía evidências fotográficas.
Então por que Lenny se sentia tão apreensiva, como se estivesse
vulnerável pelas calçadas e a cada esquina, como se a observassem
das sombras e se esgueirassem lentamente numa emboscada?
Ela afastou esses pensamentos. Estava caindo na lavagem
cerebral de todas aquelas pessoas. “A noite é perigosa.” “É para sua
própria segurança.” Por quase cinco anos ela saía à noite, pelo
menos duas vezes na semana, e nunca tinha ouvido a respeito de
incidentes graves. Tia Luana saía há mais de dez, embora com

96
DIAS FERPELLA

menos frequência, e compartilhava da mesma percepção. Ela, no


entanto, tinha suas dúvidas a respeito dos noturnos.
- Lelê, a gente já viu tanta coisa bizarra acontecer…
- Sim, beleza. Mas entre objetos se portando de maneira
estranha e criaturas da noite, existe um espaço enorme. Não dá pra
falar que é a mesma coisa.
- Mas pelo benefício da dúvida, há tantos animais noturnos do
qual sabemos tão pouco...
E Lenny se calava com a possibilidade. Ela poderia escutar
aquilo e aceitar a lógica dos argumentos, mas preferia não
acreditar. Ela escolhia não acreditar. Ali não teriam cortinas ou
luzes acesas após a última cena.
Foi há três anos que tia Luana veio compartilhar com ela, em
tom de urgência, quando Ronie se retirou do quarto por um
segundo: “ontem eu vi um noturno!” E foi aí que ela passou a sair
cada vez menos. “Talvez a Socoma tenha razão…” ela pensava, mas
jamais ousou expressar aquilo para a sobrinha.
Lenny viu a praça surgir na esquina, as árvores que a
contornavam se erguiam como monstros de sombras enraizadas
em suas criptas subterrâneas, as folhas balançavam com a brisa,
sussurrando alertas incompreensíveis. E além da praça, janelas
iluminadas indicavam onde o Teatro Koya descansava imponente.
Em sua fachada, os arcos da arquitetura sustentavam enormes
panos impressos com a tinta vermelha do espetáculo em turnê.
Ela entrou pela porta da bilheteria, genialmente escondida em
um nicho de modo a não comprometer a simetria dos adornos. No
salão as luzes se levantavam de círculos no chão, debilmente
lançando fachos que se perdiam a meia altura nas paredes
aveludadas. Lenny teve um calafrio e seguiu o quanto antes, sem
perceber que em uma das lixeiras cromadas, bem no canto, uma
ferrugem se espalhava rapidamente, como água num jornal.
Passando pelas portas de madeira negra, passando pelo
corredor, ela adentrou no grande teatro. Todas as luzes estavam
acesas, as fileiras de lâmpadas no teto, as luzes de ambiente, as
indicações nas escadas, as decorações sofisticadas nas paredes, os
holofotes no palco, as luzes de apoio nas coxias. E ali, no centro
do vasto palco, estavam sentadas mais pessoas que Lenny poderia
contar. Não era apenas seu grupo, ela constatou. Apenas duas

97
NICTOFOBIA

pessoas estavam de pé, de costas para ela e conversando entre si


num canto próximo às escadas de acesso.
Lenny estranhou como estavam todos muito quietos e tomou
fôlego para gritar uma provocação a todo aquele tédio. Mas sentiu
algo agarrando seu ombro direito e outra puxando sua mão
esquerda para suas costas, segurando seu indicador numa posição
extremamente desconfortável.
- Não resista, é para sua própria segurança.
Lenny imediatamente se deu conta: aquelas duas pessoas de pé
eram agentes da Socoma. O agente às suas costas a conduziu ao
palco.
- Tem mais alguém? Tem? - o outro agente perguntou quando
ela passou por ele, subindo as escadas.
- Vim sozinha. - ela respondeu baixo.
- Senta com as pernas cruzadas, por favor.
Eles a revistaram, confiscaram sua lanterna e apertaram uma
braçadeira unindo seus punhos atrás de si. Alguns dos Insones
olharam para ela, compartilhando uma expressão de lamento e
vergonha. Outros estavam apenas cabisbaixos. Parte do grupo ela
não reconheceu.
Todos estavam dispostos num emaranhado aleatório, virados
para lados diferentes e em distâncias irregulares. Lenny estava
sentada ao lado de um rosto familiar. Ela esperou o agente se
afastar e se juntar aos outros dois. Um movimento chamou sua
atenção na plateia. Ela notou um quarto agente no mezanino,
andando entre as poltronas, como se procurasse algo.
- Vinícius… Vinícius. - ela chamou o amigo num sussurro. Os
outros que escutaram ficaram apreensivos. Ele apenas olhou para
ela discretamente, atento aos agentes.
- O que é isso? - Lenny perguntou.
Ele abanou a cabeça, permanecendo em silêncio.
- … e peça para eles trazerem doses extras. - um agente, forte e
calvo, com uma voz envelhecida, terminou de falar para os outros
dois que sumiam na coxia. Ele assobiou e o agente do mezanino
olhou de volta, vendo-o gesticular para que descesse.
- Atenção, por favor, pedimos a colaboração de todos. Temos
uma situação atípica acontecendo e precisamos sair daqui o mais
breve possível. Hoje terão que dormir na Socoma.

98
DIAS FERPELLA

Algumas manifestações discretas no grupo, suspiros, bufadas,


muxoxos.
- Pela manhã levaremos vocês para suas casas, após o
fichamento. Como somos muitos, vamos ter que esperar a chegada
de um veículo maior. Faremos uma fila e sairemos todos juntos.
Antes de entrar na van, vão receber uma dose de Sono. Por favor,
mordam a dose apenas após se sentarem. É muito importante que
vocês durmam o quanto antes uma vez que sairmos daqui, então
vamos fazer isso rapidamente e sem confusão. Enquanto isso peço
que continuem colaborando e permaneçam sentados e em
silêncio.
O agente do mezanino vinha pelo corredor central, já na plateia
inferior. Então é isso, Lenny pensou, é assim que acaba. Ela
projetou o momento em que subiria numa das vans, as lanternas
apontando o caminho, uma luz interna alaranjada e a escuridão se
mostrando pelas janelas. Ela se sentaria e morderia seu Sono
devagar, sentindo a cápsula romper e o líquido se espalhando por
sua boca. Ela ia acordar em algum dormitório, algemada à cama,
agentes a postos, pontualmente esperando o despertar com uma
prancheta na mão. Ela pensou na sua mãe e o quanto ela choraria
com sua tia Luana e a culparia por tudo. Seu padrasto talvez não
conseguisse lidar, talvez ele passasse mal. E seu pai odiaria sua
mãe para sempre e nunca mais iria visitar. E Lucian… Lucian.
A escuridão caiu pesadamente sobre o teatro, com um estalo.
Duas lanternas se acenderam imediatamente. Uma delas veio
correndo pela plateia e subiu no palco num instante.
O grupo ficou agitado, encoberto pelo breu se sentiam seguros
para se aproximarem uns dos outros e cochichar.

- É um Fenômeno! Temos que sair daqui…


- Não tem como correr nesse escuro.
- Hanna, você está com seu isqueiro?
- Eles pegaram tudo, tudo.

- Você ouviu? Eles falaram que estão atacando.


- Sim, acho que um noturno pegou um deles.

- É o amigo da Olive, aquele dos jornais. Ele voltou!

99
NICTOFOBIA

- Meu amigo? O quê?


- Sim, ele tinha um plano. Foi ele.
- Do que vocês estão falando? Tem mais gente no seu grupo?
- Um resgate?

- Então todos nós estamos em perigo.


- Temos que ir.
- Não, aqui é mais seguro.
- Andrei, isso aqui é um Fenômeno!

- Precisamos agir, agora.


- Lenny, eles estavam conversando sobre um ataque. Os
noturnos…
- Não interessa, temos que ir. É nossa chance!

- … nos banheiros.
- Não, vamos pro camarim. Naqueles armários grandes.
- Que cheiro é esse?

- Ei, fiquem quietos! - um dos agentes tentava controlar os


Insones com sua lanterna.
- Voltem pra cá imediatamente, precisamos checar o padrão. - o
outro falava ao rádio, sem perder a calma. A resposta veio cortada
em meio à estática.
- … turnos… ti… daí agora!
- Bernardes? Na escuta?
Lenny viu, num relance da lanterna, um deles com a mão na
arma. Ela sentiu um cheiro de queimado. Alguém cochichava aflito
atrás dela:
- Ali, está vendo?
- Eu vi! O que foi aquilo? Ai...
Lenny sentiu um calafrio por todo seu corpo. Entre as
poltronas. Pelas paredes. Por cima dos arcos cobertos de noite. Se
esgueirando em silêncio, cada vez mais perto. Cheiro de queimado
e as lágrimas de sua mãe. Um irmão prematuro. Morte. “Ontem eu
vi um noturno!” O rosto vermelho de seu pai, enfurecido. E se
espalha como mofo, como ferrugem, como a luz vermelha de
sangue sobre um jornal com seu nome. Seu rosto, seu sangue,

100
DIAS FERPELLA

queimando. O som de estática arranhando seus tímpanos. Como


uma parede aveludada, sufocando a voz das árvores negras, Corra,
Corra…
- Ei! - um agente gritou. A lanterna apontava para além de si.
Ela ouviu passos. Olhou para trás. Alguém ao seu lado se levantou.
Outro passou correndo por ela. Ela ouviu Vinícius, de pé a
chamando, Vamos. E se deu conta do que acontecia.
Uma garota do outro grupo também se deu conta da
movimentação entre os flashes de luz. Os agentes se aproximavam
correndo e gritavam para detê-los. Uma estática ensurdecedora
veio do rádio. “É um Fenômeno” a garota ouviu alguém se
levantar. Ela acompanhou, sem jeito, desequilibrada, com as mãos
atadas às costas e correu em meio à confusão. Quase tropeçou
numa pessoa, ouviu alguém chorando, recebeu a luz diretamente
nos seus olhos e viu a beirada do palco logo a sua frente. A garota
não conseguiu parar de correr e para evitar a queda, pulou, sem
pensar nas consequências do seu desespero.
O chão desapareceu. Ela sentiu um golpe no seu ombro e outro
na sua têmpora. E então não sentiu mais nada. Silêncio. Escuridão.

***

Olívia viu a noite pela primeira vez aos dezenove anos. Naquela
ocasião, ela acordara uma hora antes do sol nascer, já sem os
efeitos de Sono. Ver a alvorada foi a melhor coisa que lhe
acontecera até então, o céu clareando, o cantar gradativo dos
pássaros até tomar por completo a cidade. Apenas o som dos
pássaros, subindo do parque até o terraço do seu prédio. Ela
meditava com uma xícara de lévica. O ar gelado da antemanhã
refrescando seu corpo febril. As nuvens trazendo o Sol pelo
horizonte e as cortinas se abrindo pelas janelas ao redor.
Ela falou com seus pais. Eles ficaram preocupados com a
imprudência dela, de ter se levantado e ido para o terraço antes do
dia clarear. Ela prometeu que não iria se repetir e eles pediram um
reajuste de dose naquele mesmo dia.
E ali, Olívia teve a grande revelação da continuidade do tempo
e seu mundo se transformou. Não era um dia após o outro, não era
uma crescente de números no calendário; era uma coisa apenas,

101
NICTOFOBIA

um dia gigantesco que ficava escuro por algumas horas e claro


novamente conforme o planeta girava.
Ela quis imediatamente compartilhar aquilo com o garoto que
ela gostava na época. Ele também parecia gostar dela, mas os dois
eram tímidos demais, ou apegados demais ao suspense
romantizado do relacionamento. Ele inventou um álibi para os
pais, que dormiria na casa de um amigo. E uma hora após o limiar,
ele esperava Olívia do lado de fora do seu prédio.
Eles foram ao Parque, porque ela queria ouvir os animais,
principalmente as aves, ao amanhecer. Foram se esgueirando pelas
ruas, extasiados pela adrenalina da aventura, o risco de se
depararem com uma patrulha da Socoma. No Parque, próximo ao
lago, foram atraídos pela luz de uma pequena fogueira acesa sobre
uma bandeja de alumínio. E ali, próximo ao fogo, havia quatro
pessoas. Insones. E de fato o mundo de Olívia se transformou.
Os eventos de sua vida e suas escolhas a levaram ao Teatro
Koya, três anos e cinco meses depois. E ela teve a sorte de ficar
desacordada por todo o tempo daquele que poderia ter sido, de
longe, o momento mais aterrorizante da sua vida.
Ela voltou à consciência aos poucos, sentindo primeiro um
carpete áspero contra seu rosto, depois um objeto duro e gelado
contra sua panturrilha. Ela tentou mover os braços, mas algo fino
segurava seus pulsos atrás de suas costas. Sua cabeça latejava no
ritmo dos seus batimentos. Ela abriu os olhos. Piscou várias vezes
antes de se dar conta de que não havia nada de errado com eles:
era a escuridão do ambiente.
Só então ela conseguiu se localizar. Estava no teatro. Se
lembrou com dificuldade de pessoas correndo, a luz frenética de
uma lanterna. Um Fenômeno? Gritos, um chiado de estática… Ela
havia machucado alguém? A beirada do palco… O salto no vazio.
Devia ter desmaiado ali, pois não se lembrava de mais nada depois
disso. Parecia ter sido um sonho. E ela parecia continuar
sonhando, sentindo o corpo lentamente voltando a si.
Esperou seus olhos se ajustarem à escuridão. Por baixo das
poltronas ela via um volume junto ao chão, cerca de dez fileiras
acima. Parecia ser uma pessoa. Olívia chamou atenção para si,
sussurrando, na tentativa de identificar quem era. Mas não houve
resposta. Ela se pôs de joelhos e decidiu chegar mais perto. Era

102
DIAS FERPELLA

difícil distinguir formas na penumbra, as sombras se confundiam


em seus olhos e ela não conseguia enxergar muito além de onde
seus braços alcançariam. Subia a rampa com as costas curvadas, se
guiando pela visão escusa dos assentos à sua direita.
Ela pensou ter ouvido vozes abafadas mas não conseguia saber
de onde. Talvez fossem seus ouvidos zumbindo, sua cabeça
latejando. Não, realmente haviam vozes vindo de algum lugar. Ela
não sabia quanto tempo havia ficado desacordada, provavelmente
seus amigos ainda estavam se escondendo ali. Ela não teve
coragem de chamar por alguém. O silêncio no teatro era mais do
que sacro, era ameaçador.
Sete fileiras já haviam se passado quando Olívia pisou em algo
macio e instável, perdendo seu equilíbrio. Ela virou seu corpo o
suficiente para não cair de cara no chão, caindo com todo o peso
sobre sua anca esquerda. Sentada no chão, ela apertou os olhos
para entender o que era aquele objeto cilíndrico invadindo o
corredor. Ela não conseguiu evitar um lamento assustado quando
se deu conta ao se inclinar para frente. Era um braço!
Ela ouviu aquelas vozes de novo, agora nitidamente, vindo das
coxias. Feixes de luz dançavam nos bastidores. Os agentes da
Socoma ainda estavam ali. Ela se virou de lado, deitando no chão e
se encolhendo toda contra as poltronas. Tentou ficar imóvel e
acalmar sua respiração.
Com a luz das lanternas adentrando o palco ela pode ver um
pouco melhor. Por baixo do assento à sua frente, ela vislumbrou o
resto daquele braço se estendendo em um corpo ao longo da
fileira. Parecia ser um homem deitado de bruços. E no palco as
vozes diziam:
- Olha quanto sangue…
- Ali! Tem alguém ali.
Os passos atravessavam o tablado de uma coxia a outra. De
relance ela viu três pessoas, duas com lanternas, uma com velas,
parecendo estar num ritual sinistro. Quando ela julgou seguro,
impulsionou suas pernas para cima, se arrastando para longe do
corpo.
- Ele está bem?
- Parece que sim. Está dormindo.

103
NICTOFOBIA

Olívia ficou de pé e continuou subindo, agora de costas, sem


tirar os olhos do palco. Já na metade do caminho as lanternas se
movimentaram e surgiram iluminando a plateia. Ela se apressou
para uma fileira e ficou agachada atrás do encosto quando o facho
de luz passou por ela.
- Minha nossa… olha isso.
- Um, dois… três… quatro, cinco… Acha que estão mortos?
- Pode ser que estejam dormindo também. Consegue ver algum
agente?
Ela olhou para trás e à meia luz gravou na mente o caminho até
a porta. Assim que as luzes apontaram em outra direção, ela
voltou ao corredor. Agora confiante que sua passagem estava livre
de obstáculos ela pode subir mais depressa, mesmo no escuro.
Uma última olhada para trás: os agentes tinham descido do
palco e olhavam alguma coisa no chão, na primeira fileira. Ela
sentiu a rampa ficar plana sob seus passos e conseguiu distinguir
as cortinas negras que escondiam as portas duplas.
Do outro lado estava tão escuro que doía a vista. Ela se guiou
pela parede aveludada, seguindo para a direita até o corredor virar
uma esquina. Uma luz vermelha esperava na outra extremidade do
corredor.
Ali, no foyer, luzes de emergência iluminavam a cena
precariamente. Primeiro ela viu um corpo acomodado em um
pequeno sofá numa área de convivência. Supôs que estivesse
dormindo, mas não quis se aproximar para verificar. A segunda
coisa que ela viu foi tão bizarra e inesperada que ela sentiu um
arrepio nas suas costelas e, involuntariamente, assumiu uma
postura de alerta.
Aquilo estava de costas para ela, uma mancha escura, a coluna
envergada pendia para frente de modo que ela não via sua cabeça.
O ser se curvava sobre um corpo inerte, sem vida ou sem
consciência, jorrando sobre ele uma respiração pesada, um chiado
de múltiplas traqueias arranhadas pelo tempo; e maltratava suas
vestes remexendo com seus membros raquíticos.
Ela não precisou dizer nada, o homem se virou sentindo sua
presença como uma mosca aguçada. Em sua expressão exaltada ela
reconheceu feições familiares. Ela o cumprimentou, cuidadosa e o
alertou:

104
DIAS FERPELLA

- Temos que ir. Chegaram mais deles.


- Reforços? - os olhos do homem, naquela luz vermelha, eram
apenas duas cavidades em seu rosto, abrigando sombras e
desconfiança.
- Não sei. Parece que sim. Eles falam como se tivessem chegado
agora.
- Eu contei três. Esse daqui e dois apagados lá dentro. - ele
apontou para o corpo vestido com o uniforme da Socoma.
- Como você se soltou? Pode me ajudar? - ela se virou
mostrando a braçadeira apertando seus pulsos. O homem ignorou
e continuou revirando o agente adormecido. Olívia achou melhor
não insistir e começou a olhar em volta por alternativas.
- Merda, não está aqui. - o homem se levantou.
Olívia foi até o corrimão das escadas e tentou desgastar suas
amarras contra os ornamentos de ferro. Ela viu o sujeito se
aproximar como que para compartilhar uma novidade.
- Eu te solto, mas tem que se mandar daqui. Se eu te ver
xeretando vamos ter problemas.
- Do que você está falando, cara?
- O outro Sono é meu. Você pode se esconder ou dar o fora,
tanto faz, mas se estiver procurando a última dose você vai ter que
parar se eu te ajudar.
- Não. Eu não sei o que está acontecendo. Como eu disse, não
vou ficar. A Socoma está aqui. Eu só quero saber onde estão meus
amigos.
- Onde você se escondeu?
- Eu caí e desmaiei. Na plateia.
- Então você não viu nada? Esteve esse tempo todo apagada?
Eles vieram pegar todo mundo, estavam atacando, foi assustador.
Os agentes foram os primeiros a dormirem quando viram o que
estava acontecendo. Venha. - ele começou a subir as escadas.
Agora não parecia tão ameaçador: estando numa posição elevada,
Olívia conseguiu ver seus olhos. Ele lembrava um professor que ela
teve na primeira série, só que mais magro. Ele trazia um corte na
maçã do rosto e um leve inchaço abaixo do olho esquerdo. Ela o
seguiu para o segundo andar.
- Noturnos? Vai me dizer que acredita nisso?

105
NICTOFOBIA

- Assim que os agentes dormiram, quem estava por perto


correu para pegar uma dose.
- E porque você tem tanta certeza que tem outra dose por aí?
Vamos embora, não tem mais nada.
Agora eles andavam pelo corredor superior, as luzes de
emergência se espremiam entre os espaços mal iluminados.
Cortinas escuras pendiam do seu lado direito em intervalos
regulares, escondendo a passagem para o mezanino. Olívia
sussurrava, pensando estar perto o suficiente para os agentes lá
embaixo a ouvirem. O homem andava a sua frente e respondeu
sem se virar:
- Eu contei dezoito e está faltando um agente. Estou assumindo
que ele esteja por aí, dormindo em algum lugar. Dezenove. E até
agora não encontrei a vigésima pessoa.
Olívia não achou o argumento forte. Se ele queria uma dose,
poderia simplesmente se entregar para os reforços que chegaram.
Ela também começava a cogitar se entregar, caso o relato do
homem não fosse exagerado. Mas até então ela tinha suas dúvidas.
Noturnos eram apenas histórias criadas por avós para convencer
crianças a tomarem Sono antes do limiar.
- Mas espera um pouco. - o homem parou de andar. Olívia ficou
aflita quando ele se virou para ela exatamente numa área obscura
do corredor. - Você estava apagada na plateia. Então estão faltando
duas doses!
- Eu só quero sair daqui… Para onde os outros foram? - Olívia
choramingou.
- Vamos, os escritórios são por aqui. Vamos achar uma tesoura
pra você. - ele respondeu contrariado.
Era um longo corredor curvo. Os dois percorreram em silêncio,
apesar de Olívia ter várias perguntas. Havia algo a respeito daquele
homem, algo no seu olhar, como se estivesse a beira de um ataque
de pânico e tentasse se controlar a todo custo. Ela odiaria ficar
com ele por mais tempo que o necessário e pensou se ele estava
mesmo disposto a ajudá-la.
Ao final do corredor havia um elevador, mas ela assumiu
corretamente que iriam pelas escadas estreitas logo ao lado. A luz
conseguia subir não mais que três degraus antes de entregar o
resto para a noite. Olívia hesitou.

106
DIAS FERPELLA

- Não se preocupe, é apenas um lance... - e de repente ele


olhava para além dela, perdendo sua fala no ar. Ela se virou e
seguiu a direção do seu olhar. Ele passou por ela com certa pressa.
Ele ia para os banheiros como se tivesse se lembrado de algo.
- Ei, o que foi? O que aconteceu?
Ele não respondeu, apenas entrou por uma das portas. Ela ficou
observando enquanto ele procurava por todas as cabines.
- Tudo bem, eu posso seguir daqui, só me fala onde estão os
escritórios.
- Só vou olhar o outro. Não acredito que deixei passar…
A outra porta não cedeu como a primeira. Parecia estar
bloqueada por dentro por um pesado objeto. Olívia pensou ter
escutado uma voz ecoando do outro lado do corredor. Socoma.
Olívia estremeceu de ansiedade ao pensar que poderiam
encurralá-la.
- Eles estão vindo. Eles podem te dar uma dose, tenho certeza
disso.
- Do que você está falando? - o homem empurrou a porta com
força, que se abriu lentamente, resistindo ao movimento.
- Da Socoma, dos reforços. Você está bem? - o homem espiou
pela brecha e soltou um ganido ao ver o que bloqueava a porta: um
corpo adormecido. O desespero subiu pelo fôlego do homem e,
ofegante, ele abria as portas das cabines violentamente. Olívia se
sentiu mal por ele, mas ficava cada vez mais aflita com a situação.
Ela gaguejou sem jeito:
- Assumindo que o agente tomou a outra…
Como um ímã ele abriu a porta do banheiro de uma vez e se
postou diante dela, intimidador:
- Falta mais uma dose, você mesma disse! Deve ainda estar com
o agente em algum lugar! Se quiser que eu te ajude vai ter que me
ajudar nessa.
- Tudo bem… calma. - ele a ignorou e se virou, entrando no
banheiro escuro mais uma vez. Olívia ficou apreensiva e decidiu
deixá-lo com sua loucura. Poderia encontrar a administração
sozinha, não confiava naquele sujeito, sabia que assim que ele
encontrasse a dose a tomaria e a deixaria na mão. Ele hesitou,
olhando para a porta semi aberta, escutando as cabines batendo lá

107
NICTOFOBIA

dentro. E quando se virou, seu primeiro passo estourou alguma


coisa no carpete.
Olívia levantou o pé e o afastou, na esperança de estar errada
no seu palpite. Mas ela estava certa: era um comprimido de Sono.
Ela contraiu o rosto como se tivesse quebrado um artefato milenar
num museu de prestígio. Mas não durou muito para dar lugar a
outro semblante, uma mistura de terror e desamparo, quando se
deu conta de que aquilo era um Fenômeno.
Ela se aproximou da porta e disse num só fôlego:
- Ei. Temos que ir! Um Fenômeno! Ei!
Não houve resposta, apenas o som das cabines se abrindo
violentamente. Olívia não queria entrar, o mais longe que ela se
atreveu a ir foi a distância de um passo. Ela viu a cabeça do corpo
deitada no chão, despontando por trás da porta, e ficou
extremamente desconfortável com sua respiração pesada.
- Ei. Eu encontrei a dose. - ela se arriscou a dizer, pensando que
aquilo fosse convencê-lo a desistir de sua busca. Ela ouviu os
passos vindo pela escuridão e começou a ver o volume do seu
corpo se destacando a medida que se aproximava dela. Ele vinha
determinado e rígido, deixando Olívia temerosa do que poderia
fazer.
- Onde está? Se você estiver…
Ele não conseguiu terminar sua frase. Como se tropeçasse em
algo ou mais ainda como se tivesse seus pés puxados para trás, o
homem foi de encontro ao chão, batendo cruelmente nos azulejos.
Sem se levantar completamente, ainda sobre quatro apoios, ele
perdeu um segundo precioso ao olhar para trás. Olívia se virou
para correr, mas teve seu tornozelo agarrado por mãos
desesperadas e perdeu o equilíbrio. Tudo aconteceu muito rápido:
- Onde está? Me dê! - o rosto dele ensanguentado, o nariz
fraturado com a queda.
- Me desculpa! Eu pisei sem querer.
Sem se soltar dela, o homem jogou seu rosto contra o carpete e,
perplexa, Olívia o viu sugar ferozmente o líquido impregnado nas
fibras, com toda a força que lhe restava. Ele finalmente a soltou e
foi puxado para a escuridão, ainda tentando se agarrar na porta.
Ela se escancarou e voltou lentamente a se fechar. O rangido das
dobradiças parecia zombar da garota sem reação.

108
DIAS FERPELLA

Quando a porta se fechou, Olívia despertou do transe e por um


momento se questionou se aquilo não era apenas um terrível
pesadelo. Havia de ser. Sua respiração estava inconstante, ela
tremia e seu rosto estava molhado de lágrimas. Ela queria ficar ali
o resto da noite, banhada com a luz sangrenta, no nicho escondido
de um vácuo extenso, e morrer como num sopro inconsciente,
como um sonho que bruscamente chega ao seu fim. Mas ela não
poderia, seu instinto de sobrevivência falou mais alto quando ela
ouviu o som de algo farejando por baixo da porta.

***

- Nada. Sem rádio, sem lanterna, sem Sono, sem arma…


Levaram tudo dele também.
Andrade conferia os equipamentos do agente adormecido no
foyer. Alex se aproximou depois de uma rápida busca pela área,
sem encontrar mais pessoas do que aquelas que dormiam por ali.
- Pelo menos todos eles estão dormindo. - Lucian tentou
parecer otimista.
- Até agora sim. - Andrade rebateu com cautela.
- Vamos ver se os outros dois estão no mezanino. - Alex
sugeriu, se adiantando para o andar superior.
Eles atravessaram a primeira cortina que se ofereceu, logo no
topo das escadas. O cenário ali em cima era ligeiramente diferente
da platéia já verificada: as luzes de emergência do piso estavam
acesas em círculos vermelhos brilhando discretamente nos
degraus. Alex seguiu para a direita enquanto Lucian e Andrade
desceram verificando os grupos de poltronas que os cercavam.
- Não se afaste muito, garoto.
O agente assentiu com o polegar e desceu no próximo corredor.
Lucian e Andrade encontraram uma mulher adormecida sobre
uma poltrona, ela não parecia ferida. Lucian a tinha visto mais
cedo no armazém, dançando alegremente próxima a uma
empilhadeira.
- Deve ter um agente aqui em cima. Não acho que ela tenha se
afastado muito para tomar sua dose.
- Tem um aqui. - Alex gritou e acenou com a lanterna.

109
NICTOFOBIA

Com a luz da vela, Lucian pôde ver a reprovação no rosto de


Andrade. Mesmo sem ter presenciado um Aviso ele instruíra os
dois a serem discretos, não ficarem muito à vontade com a ilusão
de segurança. Não é sempre que alguém consegue notar um Aviso
quando acontece.
Eles se aproximaram cortando caminho por uma fileira.
Andrade repreendeu seu colega por ter gritado e ajudou a iluminar
o corpo sobre o qual ele se debruçava. Lucian notou outro corpo
ali por perto e chegou um pouco mais perto para confirmar que
estava respirando. Sob o som da fala dos dois agentes que
constatavam a falta dos equipamentos do terceiro, Lucian pensou
ter escutado um retumbar distante, uma batida de um tambor
num campo de batalha.
- Então agora falta um. Acho que o Giovani também estava na
segunda hoje.
- Deve ter sido ele que pegou o carro. Pode até ter levado um
rato com ele, quem sabe.
Lucian chegou pedindo silêncio.
- Ouviram isso?
Mais uma vez aquela pancada ecoando do outro lado da plateia,
surgindo dissipada pelo teatro escuro, um abismo infinito à frente
deles, se abrindo como a garganta de um leviatã faminto. Outra
pancada. E outra. E outra um pouco mais forte.
- Alguém preso, talvez? - Lucian sugeriu.
- Pode ser um noturno tentando nos emboscar.
- Eles fariam isso?
- Não subestime a inteligência deles.
- Todos nós já subestimamos um dia. - Andrade comentou
como que para si mesmo, num suspiro cansado.
As batidas pararam. Andrade sugeriu que continuassem a busca
pelo quarto agente, a última possibilidade de encontrar um rádio.
Um grito rompeu seu discurso, distante, vindo da mesma direção
das batidas que antecederam. Um grito curto, mas
indiscutivelmente um grito apavorado. Os dois agentes sacaram
suas armas e sem dizer nada começaram a subir as escadas da
plateia, voltando para o corredor a passos largos.
Havia algo angustiante naquele corredor que Lucian não
conseguiu identificar com exatidão. Áreas iluminadas de vermelho

110
DIAS FERPELLA

se intercalando com sombras. Enquanto andavam, a própria


temperatura parecia se alternar. O corredor não permitia o olhar ir
mais longe do que vinte metros, escondendo seu desenrolar na
arquitetura curva. Lucian protegeu a chama com uma das mãos,
tentando acompanhar a pressa dos agentes. Ao passar por áreas
escuras, era facilmente perceptível como a luz de uma das
lanternas estava mais fraca que a outra.
- Economize sua bateria. - Andrade lembrou Alex num
sussurro. Seus passos eram abafados pela maciez do carpete. O
som de alguma coisa correndo pesadamente na direção do trio
antecipou a aparição abominável.
A forma se apresentou como uma silhueta recortada contra o
vermelho. Naquele segundo em que passou por um trecho sem
luz, o que chamou a atenção foi a postura curvada e o torso largo e
ausente de braços. O bípede ofegava e gemia na sua investida cega.
Os agentes ergueram as armas e lanternas por reflexo, no exato
momento em que a criatura adentrava na ilha de luz vermelha que
os separava.
- Não atirem! Por favor, me ajudem! Eu me entrego! - a garota
suplicou, se jogando sobre os joelhos.
Lucian, que vinha atrás, a reconheceu imediatamente e o nome
brotou de um lugar de sua memória que ele nem conhecia.
- Olívia?
Alex recolheu sua arma e foi ao seu auxílio, verificando se ela
estava ferida e tentando acalmá-la. Andrade se postava alguns
passos à frente, além da garota, apontando sua arma e lanterna
para o túnel que se estendia, pronto para qualquer coisa que a
estivesse perseguindo.
- Ele está no banheiro! Ele o pegou! Por favor, me tirem daqui.
- Tem mais alguém com você? - Andrade perguntou sem tirar
os olhos de sua mira.
- Eu não sei se ele morreu ou se conseguiu dormir! Algo o
puxou para o banheiro! Um noturno… Caralho, um noturno!
Aquela coisa o pegou! Vamos embora!
Alex ajudou-a a se levantar e notou suas mãos amarradas. Ele
pegou a vela de Lucian, que agora já estava no seu último terço, e
rompeu a braçadeira com a chama.
- Era um agente?

111
NICTOFOBIA

Se vendo livre, ela se agarrou ao braço de Lucian com as duas


mãos, também o reconhecendo.
- Não. Todos os agentes dormiram. Por favor!
Alex reagiu balançando a cabeça. Andrade pediu silêncio com
um chiado curto. Olívia passou a choramingar baixinho até
suprimir seus gemidos por completo. O corredor estava calmo.
- Tinha algo vindo atrás de você? - ele sussurrou.
- Eu não sei… acho que não. Ele ficou no banheiro. Não sei se
tinha outro nas escadas. Não sei quantos são. - ela pareceu
confusa.
- Certo, vamos.
Alex ligou sua lanterna e sacou sua arma novamente,
estendendo a ordem para Lucian e Olívia com um aceno de
cabeça.
- O quê? Não! Não podemos voltar lá! Vamos embora! Lucian? -
Olívia protestou.
- Temos que encontrar um telefone. Pra pedir ajuda pra outra
unidade, precisamos de um telefone.
- Não! Vamos embora.
Andrade se aproximou pacientemente:
- Mocinha, veja bem: seu amigo matou um noturno, isso
significa que, mais do que nunca, eles estão hostis. Não só com
vocês, mas também com a Socoma. Temos que voltar para a
central, onde estaremos mais seguros.
Sua respiração normalizou enquanto ela tentava seguir o
discurso do agente. Ele se distanciou e Alex pressionou os dois
para que começassem a andar. Olívia resistiu, segurando o braço
de Lucian e tentando puxá-lo para a direção contrária. Alex ia na
retaguarda.
- Lucian, por favor, não podemos voltar lá. Tem um noturno…
Vem comigo, não quero ir sozinha. - ela sussurrou.
- É melhor ficarmos juntos deles do que por conta própria. Eu
fiz merda, Olívia, eu atirei numa dessas coisas. Precisamos
consertar isso, é o único jeito.
- Eu entendo, tudo bem, mas… - ela desistiu e se adiantou para
falar com Andrade. Ele não parou de andar e nem reduziu seu
passo.

112
DIAS FERPELLA

- Senhor, espere. Eu entendo, eu me entrego, me levem, tudo


bem. Mas por que temos que voltar lá? Estamos indo de encontro
a um noturno! Eu juro!
- Não se preocupe com isso, você estará segura. Mas precisamos
de um telefone para conseguirmos transporte. Não quer ir até a
Socoma andando, quer?
- O quê? E o seu carro? E o carro da outra unidade? Ai…
Ela se encolheu toda ao ver onde chegava. As portas do
elevador se revelavam por trás da curva. Andrade esperou por seu
parceiro, apontando a lanterna para a bifurcação dos banheiros.
- O que está pensando? - Alex indagou.
- Se ele quisesse, abriria a porta sem problemas.
- Pode estar trancada…
- Quer dar uma olhada?
- O que ele quer então? O que está fazendo?
Andrade se conteve. Não queria falar na frente dos dois
Insones. Então fez um gesto que só Alex viu, apontando para sua
própria boca e fingindo morder algo. Alex teve um calafrio, nunca
havia pensado que isso fosse possível, nunca havia parado para
medir as consequências de romper o limiar. Nos treinamentos e
orientações da Socoma não se falava da dimensão do perigo, não
eram dados detalhes sobre aquelas criaturas. Apenas se falava que
era extremamente perigoso para um civil ficar acordado após o
limiar. Mas não para um agente: havia o Pacto a protegê-lo.
- Ou talvez ele tenha saído…
- Quer dar uma olhada? - Andrade insistiu na retórica. Olívia
choramingava negações atrás dos dois e Lucian tentava acalmá-la.
- Vamos achar esse telefone de uma vez.
Eles seguiram andando na mesma formação, Alex na retaguarda
e Andrade guiando. Subiram as escadas.
O Teatro Koya possui, entre seus arcos, um pequeno conjunto
de salas e quartos se erguendo por três andares. Ali, além dos
escritórios da administração, havia suítes luxuosas para receber
artistas, produtores e convidados ilustres. Ao subir o primeiro
lance, uma única luz de emergência recebeu o grupo no que
parecia uma sala de convivência, projetando sombras sinistras das
plantas contra o chão. Um bipe sutil, ignorado num primeiro
momento, se repetiu. E vinte segundos depois, mais uma vez.

113
NICTOFOBIA

- O que é isso?
- São as luzes. Essas não duram mais que uma hora. Melhor a
gente se apressar. - Alex explicou atrás deles.
“Então as luzes estão acesas há quase uma hora…” Olívia
constatou e ali teve uma estimativa do tempo em que ficou
inconsciente. Ela imaginou todo aquele caos se espalhando pelo
teatro, as pessoas se escondendo, brigando por doses, tentando se
soltar, fugindo e se esgueirando pelos corredores evitando agentes
e noturnos. Não tinha sido uma questão de segundos: o medo e
desespero foram se instaurando lentamente por vários minutos.
As portas à direita possuíam uma pequena janela na parte
superior, permitindo ver o que havia dentro da sala. A parede
esquerda trazia amplos vidros, salpicados de estrelas da Via Láctea
contrastando no breu externo. Andrade verificava, pelas janelas
das portas, se havia algum telefone em cima das mesas. Mas as
salas pareciam ser do setor criativo, uma cheia de manequins e
tecidos, outra com computadores, outra com objetos de cena,
outra com papéis espalhados com rascunhos e vários cartazes
enrolados.
Já quase no meio do corredor, havia uma porta fechada que
deixava escapar um facho de luz pelo chão. Pela janela era possível
ver várias lanternas espalhadas pelos cantos e pelas mesas,
apontando em várias direções, sem deixar qualquer resquício de
sombra na sala vazia.
A porta estava trancada. Andrade tentou chamar por alguém,
mas não houve resposta.
- Quem quer que tenha feito isso deve estar dormindo aí
dentro. Vamos. Não podemos perder tempo. - ele deu as costas e
avançou pelo corredor.
Lucian já não conseguia segurar sua vela, de tão pequena que
estava. Ele aproveitou a chama para acender outra que tirou do
bolso. O cotoco gasto ele apagou e deixou próximo a porta. Olívia
foi a última a olhar pela janela da sala e quando se virava para
seguir o grupo, pensou ter ouvido vozes sussurrando do outro lado
da porta.
Ela bateu no vidro com a ponta dos dedos:
- Tem alguém aí?

114
DIAS FERPELLA

Ela esperava que fosse alguém de seu grupo e que ao


reconhecê-la poderia abrigá-la. Aquela parecia uma sala segura
para passar a noite.
Chamaram o nome dela, a quase cinco salas de distância. Ela
tentou mais uma vez, batendo na porta e se identificando entre os
bipes das luzes condenadas. Os outros se afastavam cada vez mais
e ela já não se sentia tão confiante de que seria acolhida e
começava a ficar apreensiva por estar ficando para trás. Talvez
tivesse imaginado as vozes. Olívia xingou mentalmente e apoiou a
testa na porta. Próximo a seus pés, um pontinho laranja surgiu,
ficando cada vez mais brilhante, até que se acendeu uma chama,
consumindo o pavio gasto. Ela quase engasgou com seu fôlego.
- Um Fenômeno! Por favor! Me deixe entrar!
Se houvesse alguém lá dentro, não se comoveu ou acreditou em
seu apelo. Ela não insistiu. Correu para Lucian e os agentes, agora
à sete salas de distância. O bipe soando acima, persistindo no seu
aviso, na sua ameaça. Ela chamou a atenção deles com um grito,
alertando sobre o Fenômeno. Eles estavam a poucos passos da
próxima porta quando se viraram para escutá-la.
- Certo, temos que ir, eles podem nos encurralar aqui. -
Andrade decidiu. Mas ao mesmo tempo Alex conferiu a última sala
e declarou:
- Téo! Espera, um telefone! - ele tentou girar a maçaneta em
vão. Quando olhou de novo pela janela, com a fraca luz da sua
lanterna, conseguiu ver de relance um movimento saindo do foco
e se escondendo fora do alcance da vista.
- Vamos! Agora! - Olívia insistia puxando Lucian, ele fez coro a
sua demanda e começou a se afastar com ela. O bipe intensificava
a urgência da situação, como uma bomba relógio sem mostrador.
Andrade afastou Alex da porta e, com um só golpe de seu cotovelo,
quebrou a pequena janela. Ele tentou abrir por dentro, mas não
conseguiu alcançar a maçaneta, mesmo enfiando o braço por
completo.
- Ei! Esperem! - ele gritou para a dupla de Insones que iam
apressados pelo corredor, já colocando uma boa distância entre
eles. - Esquece Alex, vamos.

115
NICTOFOBIA

- Téo, a gente consegue lidar com um noturno apenas, me


ajude. - ele tentava alcançar a maçaneta, receoso por saber que
havia uma criatura lá dentro.
- Não é apenas um noturno. Deve haver mais nos andares de
cima e, se eles resolverem descer para cá antes de chegarmos às
escadas, estaremos encurralados. Vamos! - e em seguida gritou
para que Lucian e Olívia o esperassem. Eles obedeceram. Cada
bipe que soava era como uma esperança cruel de que não fosse o
último, mas todos sabiam que logo seria.
Alex não acompanhava: continuava lá atrás, agora chutando a
fechadura, tentando arrombar a porta. Olívia e Lucian chamavam,
amedrontados, já quase no final do corredor quando viram
Andrade parar mais uma vez. Ele se virou para Alex e o chamava
insistentemente. O jovem agente finalmente cedeu, com um grito
de frustração.
Andrade se virou para retomar sua corrida. A porta seguinte
estava aberta, o que lhe causou certo estranhamento. Não se
lembrava de estar assim. Mas antes que formulasse qualquer
pensamento, algo o atacou, pulando como um animal de tocaia na
sala escura.
Alex viu o que acontecia e apressou sua corrida, gritando para
chamar a atenção do agressor. Lucian e Olívia se assustaram tanto
quanto Andrade e só depois que conseguiram discernir melhor a
cena, é que correram para ajudar o agente.
Aquela figura negra se lançara contra ele, num bote, acertando-
o no rosto e o jogando contra o vidro. Duas outras figuras, mais
esguias, saíram da sala e agarraram as pernas de Andrade.
Rapidamente ele voltou a si, mas já havia sido pego pela primeira
figura, que prendeu seus braços junto ao torso num abraço
constritor. Ele podia apenas se contorcer e gritar. Uma quarta
figura correu para fora da sala enquanto as outras carregavam
Andrade para dentro. Ela se abaixou no meio do corredor e se
apossou da lanterna e da arma que se perderam com o golpe.
Alex chegou dois segundos depois que trancaram a porta. Ele já
foi atirando contra a fechadura, cravando cinco tiros na madeira.
Lucian e Olívia se mantiveram afastados, repelidos pelas
explosões. Alguma coisa era arrastada dentro da sala e quando

116
DIAS FERPELLA

Alex chutou a porta, ela cedeu apenas uma fração, uma fresta da
largura de quatro dedos. Um armário bloqueava a entrada.
Eles conseguiram ouvir alguém dizer algo lá dentro como
“ajudem, ele é muito forte!”, os grunhidos e xingamentos de
Andrade, algumas pancadas, cadeiras se arrastando, sons de briga.
Mas era difícil distinguir nitidamente entre as súplicas de Olívia e
ameaças de Alex. Lucian se espremia para tentar abrir a porta com
eles, mas o armário permanecia resoluto em sua posição.
Silêncio do lado de lá. Alex chamou pelo parceiro, preocupado.
Lucian pensou ter ouvido um estalo no andar de cima.
- Alex, eles estão vindo…
Alex esmurrava a porta, furioso.
Um som diferente: três bipes curtos e rápidos. E as luzes de
emergência lentamente diminuiram a intensidade até se perderem
na escuridão. Olívia exclamou, aflita e se aproximou dos demais,
de costas para a parede.
- Não posso deixar ele aí.
Passos no fundo do corredor. Um baque. Alex quebrou um dos
vidros da janela e se esforçou para empurrar o armário,
completamente em vão. A vela de Lucian tremulava, projetando a
sombra dos três pela parede. Olívia encarava o fundo do corredor,
invisível, tremendo de ansiedade. Ela e Lucian insistiram:
- Vamos embora daqui… vamos…
- Alex...
- Merda. - Alex socou a porta. Ele sabia o que tinha que fazer,
não havia outra opção. - Vamos, fiquem por perto.
Os três correram até as escadas, cautelosos, tentando ouvir,
olhando para trás constantemente. O céu estrelado se estendia lá
fora, por trás dos reflexos da lanterna no vidro. O silêncio agora
era aterrorizante, nada além de respirações e passos.

***

Marna passou pela última cortina do lado esquerdo do teatro e


entrou no corredor saturado de luz vermelha. Duas pessoas
passaram por ela sem nem olhar, subiram as escadas no final do
corredor aos tropeços. Sem pensar duas vezes, ela seguiu. Ouviu
disparos na plateia, seguidos de gritos.

117
NICTOFOBIA

Uma das pessoas na dianteira correu para o mezanino, a outra


subiu mais um andar, ganhando distância. Num segundo ela se
decidiu: subiria mais, o máximo que conseguisse. Atrás vinham
passos abafados no carpete, mas ela não teve coragem de olhar.
Eram outros do grupo, um rapaz passou à frente dela e foi o
segundo a chegar àquele andar. O primeiro já estava quase no
meio do corredor, tentando abrir as portas com as mãos atadas às
costas. O segundo já tinha as mãos livres, por isso corria mais
rápido. Ela viu eles sumirem para dentro da parede esquerda e
mudou seus planos de subir, decidiu tentar:
- Espera! Não, não, não! Não fecha! - ela gritou. Atrás dela soava
como se alguém tivesse caído. Ela deu uma rápida olhada e viu
uma garota urrando, tentando com todas suas forças tomar uma
sacola de um sujeito. Ela já estava sem a braçadeira e teve uma
leve vantagem no embate. O homem jogou suas pernas em cima
da sacola, a garota puxou e o zíper se abriu mais, derrubando parte
do conteúdo. Eram as lanternas, todas as lanternas que a Socoma
havia confiscado dos Insones. A garota pegou três e continuou a
subir. Outra pessoa subiu as escadas e passou direto, sem nem
olhar para o homem que se levantava e recuperava a sacola o mais
rápido que sua mobilidade permitia.
Marna chegou à sala completamente sem fôlego e sem
esperanças, mas os dois rapazes de fato haviam esperado por ela e
o que estava com as mãos livres já estava agarrado a porta e
gesticulava para ela se apressar ainda mais. O homem da sacola
gritou de forma bestial, mas não conseguiu convencê-los:
fecharam a porta assim que Marna cruzou o batente, desabando
no chão. Ela viu o rosto do homem na janela, meio iluminado
pelas luzes de emergência e conseguiu balbuciar:
- Abre pra ele… Ele tem lanternas.
O homem entrou, largou a sacola e ficou prostrado sob a porta,
olhando para o fundo do corredor. O que estava com as mãos
livres acendia cada lanterna que tirava da sacola. Marna olha em
volta e se familiarizou com a sala em que estava: algumas mesas,
uma máquina de costura, panos, manequins, armários com
figurinos. Alguém se aproximou dela e cortou sua braçadeira com
uma tesoura. Imediatamente ela foi à sacola e ajudou com as
lanternas, espalhando-as pelo cômodo.

118
DIAS FERPELLA

O rapaz com a tesoura agora libertava o homem junto à porta,


que não tirava os olhos do corredor. De repente ele se agitou,
avançou alguns passos para fora da sala, chamou alguém, assobiou
alto, insistiu, mas parecia não haver retorno.
- O que foi? - Marna perguntou preocupada.
- Tem gente voltando, descendo as escadas…
- Devo ir atrás deles? - perguntou o jovem com a tesoura.
- Não acho uma boa ideia sair daqui, está uma confusão lá
embaixo.
- Merda! - o homem se apressou em voltar para a sala.
- Noturnos. Desceram as escadas. Três deles. - ele declarou.
- Te viram?
- Apenas fechem a porta!
A sala já estava completamente iluminada. Marna viu o rosto de
todos eles, nenhum era de seu grupo, todos já estavam no teatro.
Estavam vermelhos, suados, ofegantes. Se sentaram no chão,
recostados na porta, a parede… O outro se deitou numa mesa.
Marna os observou em silêncio, se apresentar naquele momento
parecia inconveniente.
Por vezes ouviu passos no andar de cima e gritos abaixo, no
grande teatro.
- O que está acontecendo? - ela tentou. A resposta levou um
tempo para vir, do homem recostado na porta:
- Eles estão nos caçando… Vão matar todos que estão
acordados.
- Precisamos de Sono! - um outro constatou.
- Vai ser impossível pegar as doses dos agentes. Se é que ainda
sobrou alguma…
Os quatro ficariam ali, remoendo seus medos, repassando
aquelas memórias recentes. As lanternas os envolvia num bolsão
de segurança, fazendo daquela sala um pequeno santuário cercado
por uma penumbra imensa. Além da porta, o vermelho das luzes
de emergência aguardava com um olhar malicioso.
Ninguém precisou dizer mais nada, ninguém pensava em
qualquer outro plano que não fosse passar a noite ali, sair apenas
quando as estrelas desaparecessem atrás da atmosfera crua que
destaca o Sol, quando as sombras se guardassem para o próximo
ocaso.

119
NICTOFOBIA

Eles tentavam relaxar em silêncio. Marna pensou ter escutado


um carro. Talvez outra unidade da Socoma que chegava. Se
entregar era uma opção? Eles estariam seguros naquela sala, pelo
resto da noite? Mas nada mais aconteceu e ela decidiu que aquele
motor lá fora era apenas um zumbido em sua confusão mental.
Ninguém mais apareceu buscando refúgio. Aquele corredor
incorporou o silêncio e a solidão como se fosse parte da
arquitetura. Horas pareciam ter se passado. Mas Marna não se
enganava, a noite era sempre mais longa que o dia, aquelas horas
equivaliam a minutos sob um céu azul. E então o homem
recostado na porta, distraindo-se com um pedaço de linha,
pareceu ouvir uma voz.
- Eu também ouvi. - o rapaz que meditava num canto de
repente levantou. Eram portas batendo no andar de baixo.
- Um dos nossos?
- Pode ser o vento batendo uma janela.
E então um grito feminino.
Um deles estava pronto para destrancar a porta, mas foi
desencorajado pelos outros dois. Marna concordou: eles estavam
indo bem, estavam sobrevivendo até aquele momento, não
podiam pôr tudo a perder. A garota em apuros já poderia estar
morta lá embaixo.
- Mas pode ser que não esteja!
Ninguém se convenceu pela atitude heroica que mais parecia
atuação, uma fala reproduzida de alguma narrativa fictícia. Tal
martírio na vida real não passa de estupidez. O jovem se acalmou,
sentindo sua consciência limpa de ter se oposto, mesmo que por
um segundo, a negar socorro.
Alguns minutos depois, o homem que estava mais próximo à
porta gesticulou para o resto do grupo para que se aproximasse.
Ele se encostou na parede e levantou o indicador para que os
outros atentassem aos ruídos. Eram passos pelo corredor. Todos se
espremeram contra a parede vizinha à porta.
- Devemos apagar as lanternas?
- Não, se apagarmos será mais fácil eles nos pegarem.
Mas não eram noturnos. Batidas na porta se seguiram de uma
pergunta e uma fala. Marna se animou, mas foi censurada com um
abano de cabeça. O grupo respirava devagar, em silêncio absoluto.

120
DIAS FERPELLA

O homem pareceu desistir e seguiu pelo corredor,


acompanhado de outros passos.
- É a Socoma! Eles podem nos ajudar. - Marna sussurrou.
- Não, não podem. Eles não conseguiram nos ajudar antes e
agora também não vão.
Uma voz feminina cortou os sussurros através do vidro,
acompanhada de leves batidas.
- Alguém aí?
Eles continuaram em silêncio.
- Um Fenômeno! Por favor! Me deixe entrar!
- Não é a Socoma, é um dos nossos! - Marna constatou
enquanto os passos se afastavam pelo corredor. Um abriu a porta e
espiou lá fora: uma garota corria para longe deles e lá no fundo
havia duas lanternas verificando as salas.
- São pelo menos dois da Socoma, tenho certeza.
- Só dois? Podemos dominá-los.
- Sim! Temos que tentar. Podemos pegá-los de surpresa, se
tirarmos a arma de um já teremos o controle da situação.
- Nós somos maioria! Com os outros lá fora são seis contra dois!
Tem doses suficientes para todos.
- Mas como vamos fazer isso? Como vamos atraí-los pra cá?
Duas pessoas passaram correndo pela porta, interrompendo a
discussão.
- Eles estão dispersando! Se conseguirmos isolar um…
- Podemos trazê-lo para cá e bloquear a porta. - um deles
testava o peso do armário próximo ao batente. O grupo trocava
ideias rapidamente, mas sem formalizar um plano. Outro se
ocupava de apagar as lanternas.
- O que você está fazendo? - Marna se desesperou.
- Vamos esperar o último deles passar e pegá-lo pela porta.
- Deixa comigo, vou nocauteá-lo. - o homem se postou
agachado próximo a porta e abriu uma fresta. Um grito soou perto
demais:
- Alex! Vamos! Agora! Alex!
A última lanterna se apagou na sala, o homem escancarou a
porta. “Tem que ser agora", ele pensou. Os outros estavam a postos
dentro da sala. A luz da lanterna surgiu primeiro no corredor e
pelo reflexo do vidro oposto, era visível o agente a poucos passos

121
NICTOFOBIA

da porta. Ele se virou para olhar ao passar pela sala e foi nesse
momento que o homem o atacou. Como um arriete, ele o acertou
com um golpe pesado no rosto. O agente perdeu o equilíbrio e
caiu atordoado contra o vidro.
- Ele é grande, vem, me ajuda! - o rapaz chamou o outro que já
se preparava para empurrar o armário. Os dois saíram e Marna
ficou olhando da porta. Alguém vinha gritando pelo corredor à
esquerda, era outro agente. Ela viu a lanterna no chão e se arriscou
a pegá-la enquanto os outros carregavam o homem uniformizado
para dentro da sala. A arma também estava ali, próxima ao vidro e
ela pegou num último impulso antes de correr de volta ao abrigo,
fechando a porta atrás de si e girando o trinco. Ela iluminou a cena
para seus companheiros, enquanto tentava empurrar o armário
com todo o peso de seu ombro.
- Ajuda ela! A porta! - um deles disse e outro largou uma das
pernas do agente em resposta. O armário se tornou muito mais
leve quando as duas forças se somaram. Por um momento, Marna
hesitou ao ouvir tiros, que pensou vir de dentro da sala.
- Vamos, não para! - ela ouviu o rapaz que a ajudava e
continuou empurrando até que toda a porta estava encoberta.
Enquanto isso, o agente, ao ter sua perna esquerda livre, chutou
o outro que o segurava e se viu com os dois pés no chão. Ele jogou
seu corpo para trás, empurrando aquele que o agarrava pelas
costas, arrastando as mesas pelo caminho até a parede. Eles
brigaram no escuro enquanto o armário era posto no lugar. Ele
gritou por ajuda para subjugá-lo. Marna procurou pela arma. Onde
havia deixado? Olhou em volta no chão, no calor do momento não
conseguia se lembrar. A arma colocaria um fim naquilo tudo. Ela
ouvia o caos na sala e não conseguia lidar com a pressão: cadeiras
sendo derrubadas, golpes, urros, passos, sons brutais de violência.
E então tudo parou. Uma lanterna se acendeu do outro lado da
sala. Os três rapazes estavam no chão, sentados em volta de um
corpo estirado. Um deles levava a mão à boca, que pingava sangue
de um corte fundo no lábio. O outro olhava para seu antebraço,
ralado de cima a baixo e para os cortes nos nós dos dedos.
Marna encontrou a arma em cima da estante do armário e
decidiu deixá-la por lá, escondida. Sem falar nada, um deles se
levantou e começou a acender as outras lanternas espalhadas pelo

122
DIAS FERPELLA

chão. O cômodo logo ficou claro mais uma vez. Outro,


vasculhando os bolsos do homem desacordado, encontrou o
pequeno estojo que procurava. E sem dizer nada, pegou uma dose
e a ingeriu, ali mesmo.
Os outros três terminaram de posicionar todas as lanternas e
recuperaram o fôlego. Eles não trocaram nenhuma palavra, apenas
gestos de cumplicidade, um tapinha no ombro, um olhar
agradecido. Os rapazes acalmaram a hemorragia de seus
ferimentos com trapos espalhados pelo chão durante a briga.
Depois compartilharam as outras doses no estojo. Marna foi a
última a tomar. Depois que os outros adormeceram em seus
cantos, ela foi até o armário e pegou a pistola. Pegou um
amontoado de tecido e fez um pequeno ninho para se aconchegar.
Deixou a pistola ao alcance de suas mãos, como um pequeno cão
de guarda. Mas antes de dormir, ela foi até o agente, com a
consciência pesada. Seu rosto estava vermelho e seu supercílio
sangrava. Ele respirava pela boca semi aberta, colorida pelo sangue
que escorria das narinas.
Marna juntou umas roupas num bolo, enrolando um
travesseiro improvisado e posicionou embaixo da cabeça do
agente. Eles deviam isso a ele. A dose que havia sobrado no estojo
parecia tão solitária quanto ela.
Abaixo dela, três corriam, cercados pela escuridão que os
sufocava num túnel de carpete e veludo. A vela apagada há muitos
passos, a garota aflita resistindo ao impulso de olhar para trás, a
luz fraca da lanterna guiando inquieta. E ruídos grotescos e sutis
se espalharam por trás das cortinas negras.
Eles cruzaram a porta da bilheteria e a noite lá fora pareceu
estranhamente iluminada. Pararam de correr já no meio da praça.
Olívia se curvou sobre os joelhos e tremia inteira, as lágrimas
pingando no chão. Lucian repetia para Alex ou para si mesmo “eu
sinto muito”, sentindo o peso da culpa mais do que nunca. Eu
sinto muito mesmo.
E Alex levava as mãos à cabeça e desabafava num só grito:
Merda.

123
III

F
oi numa sessão terapêutica que Taila teve a epifania. Todos
aqueles quarenta anos de rancor, toda aquela resistência,
todos aqueles cartões de aniversário queimados ainda
selados, toda aquela aversão ao pai, era apenas reflexo dos
sentimentos da sua mãe. Ela cresceu ouvindo a versão de uma
mulher abandonada e enganada, que, orgulhosa, decidiu criar sua
filha sozinha. Sua filha, apenas sua. E agora essa filha era mãe, e
mantinha aquele ódio vivo em uma terceira geração, como se fosse
genético.
Mas o que o desprezado pai fizera para ela? Mais ainda, o que o
desprezado pai de fato fez para sua mãe? Ela nunca ouvira a versão
dele para fazer um julgamento próprio.
Taila o viu no enterro da mãe e aquilo a abalara. Ele veio lhe dar
um abraço e falou algumas palavras que ela nem se deu ao
trabalho de escutar, até que seu marido veio ao seu auxílio. Mas
isso já tinha sido há quase dois anos e por todo esse tempo ela
ficou dividida entre o rancor herdado e a carência de amor
paterno, intensificada ainda mais com a perda da mãe.
E então, se sentindo preparada para se livrar dessa carga, ela
decidiu, a caminho de casa, que ligaria para o pai naquela tarde.
Ela começou a chorar assim que ouviu sua voz e mal conseguiu
falar tudo aquilo que a engasgava. Ele quis visitá-la no dia
seguinte.
- Amanhã não posso, minha filha tem um exame de Judô.
- Eu gostaria de ir, se possível.
- Melhor não. É um dia importante pra ela e não sei como ela
reagiria com sua presença. Mas sexta estou livre. Fica bom pra
você, sexta à tarde?
Taila sabia, sua filha não estaria em casa na sexta-feira. Ela
avisou que ficaria direto do colégio, ia com uns amigos para a
Festa das Flores, no Parque. Ainda havia uma insegurança de
como abordar a questão da existência de um avô. Naquela noite,
Taila sonhou com a mãe.

124
DIAS FERPELLA

Ele veio por volta das duas horas da tarde. Ela o recebeu na sala,
mostrando as fotos da família nos porta retratos. No corredor
haviam fotos de Dominique, em seus gloriosos dias de bailarina.
Uma outra foto dela aconchegando Taila em seus braços. Uma
foto dela, mais velha, com a pequena Amanda agarrada em seu
pescoço. Ele compreendeu que ali não haveriam fotos dele.
Pai e filha conversaram, choraram, riram. E ele sentiu seu
coração se expandir um pouco com a lufada de admiração pela
mulher que Dominique criara. Ela, apenas ela, sozinha. Eles
trocaram histórias e ele se desculpou inúmeras vezes por ter
perdido tanto e ela o perdoou outras inúmeras, em meio à própria
culpa de privá-lo de sua vida.
Depois de comerem uma fatia de bolo, foram dar uma volta
pela vizinhança, quando o sol começava a baixar no céu. Ele
lamentou Amanda não estar ali, gostaria de conhecê-la. Ela não
esteve no funeral de Dominique, disse que seria muito difícil para
ela e preferiu prestar sua homenagem à avó escutando Punta del
Sueño sozinha, a todo volume, no mirante. A coreografia que
consagrara Dominique.
Y la ciudad se pierde la abajo. Ele citou a letra, imaginando sua
neta e já sentindo um amor intenso e novo expandir ainda mais
seu coração.
Eles se despediram no jardim. Ela prometeu que conversaria
com Amanda e eles ainda teriam a oportunidade de conviverem.
Ele se arriscou a dar um beijo em sua testa e ela o aceitou,
segurando suas mãos enrugadas entre as suas. “Até mais, pai.” Ele
deu a volta no carro e percebeu, na janela da casa, algumas mechas
loiras por trás das cortinas. Ele se conteve para não acenar para a
garota que espiava a cena. Dirigiu para casa, com um cuidado
triplicado: ele achava que poderia morrer naquele dia, tamanha
sua felicidade. E ele talvez nem se importasse se não acordasse no
dia seguinte, se seu coração atrofiado de repente falhasse com o
súbito crescimento. Mas ele se importava sim, ele ainda tinha que
conhecer Amanda.
Taila entrou na casa quando o carro sumiu na esquina.
- Quem era, mãe?
Ela preferia ter essa conversa quando seu marido voltasse de
viagem. Se Amanda ficasse com raiva dela, precisaria de seu pai

125
NICTOFOBIA

para dar suporte. E ela também esperava ter outra sessão de


terapia para trabalhar seus receios. Mas ela não quis mais mentir, e
foi assim que Amanda, aos dezesseis anos, soube que seu avô
estava vivo.
Amanda ficou furiosa e pela primeira vez na vida chorou de
raiva. Não entendia porque a mãe escondera tudo aquilo, e ficou
ainda mais possessa quando ela culpou a avó. E por um momento
odiou a avó, e se odiou por isso. Tentou ligar para o pai, mas não
conseguiu. Então ligou para Georgia, trancada em seu quarto, e
despejou toda a angústia e frustração pelo telefone. Depois de
quarenta minutos já se sentia melhor e o assunto mudou e ela se
distraiu e seu rosto, molhado de lágrimas, conseguiu até formar
um sorriso. Ela não queria desligar e ter que encarar a mãe ainda,
não queria mais pensar naquilo, poderia até cruzar o limiar
conversando com Georgia, mas a amiga a trouxe de volta a razão.
Quando ela desligou, se jogou na cama e suspirou longamente. E a
imagem daquele senhor em frente a sua casa não saía da sua
cabeça. Amanda sentiu compaixão por ele, excluído de sua vida,
sem nunca segurar um bebê nos braços, nem a filha, nem a neta.
Ela sentiu um aperto no peito que não deveria pertencer a ela,
afinal, não era a culpada. Então ela começou a sentir pena de si
mesma e para não chorar, tomou Sono quase meia hora antes do
limiar.
Ela conversou com o pai no dia seguinte, ao telefone. Ele já
sabia, Taila havia ligado chateada e ao mesmo tempo aliviada e
feliz. Contou o dia que teve com o pai e depois a necessária
discussão com a filha. Amanda falou com a mãe sobre o assunto
mais algumas vezes, discutiram até esgotar a raiva e já no domingo
fizeram as pazes.

***

Um veículo da Socoma acelerava pelas ruas vazias. No seu


interior, além do motorista, se apertavam duas pessoas no banco
do carona, seis no banco de trás e duas no porta-malas. Todos
falavam alto e ao mesmo tempo:
- Estou dizendo, é nossa melhor opção!

126
DIAS FERPELLA

- Não quero saber, eu vou pra casa. De jeito nenhum vou me


entregar.
- Eles também estão atacando a Socoma!
- Não vão conseguir passar pela segurança deles. E eles têm
armas.
- Nós também estamos armados agora. Se formos pra casa de
alguém e acender algumas luzes, vamos ficar bem.
- O Francis não vai ficar bem! Ele precisa de um médico!
- Não podemos deixar ele sangrar até morrer!
- Aguenta firme, aguenta firme.
- Não precisamos ir todos…
- Ninguém precisa ir! O agente leva ele, não é?
- Qual é! Esse cara não está em condições de dirigir!
- Cara, dá pra ir mais devagar, tem gente morrendo aqui atrás!
- Como ele está? Francis, como você está?
Ele segurava uma camisa empapada de sangue junto ao seu
ombro direito.
- Está sangrando menos. Mas caralho, como isso queima!
- A gente tem que tirar essa bala daí.
- Como? Com o dedo?!
- A gente tem que ir pra Socoma! Eles têm um hospital noturno.
E vamos estar mais seguros lá. Essas coisas vão nos pegar se
formos pra casa, eles nos farejaram com certeza.
- Não se estivermos dormindo! Me escuta!
- Ele morreu? O agente já morreu?
- Ele não vai morrer!
- Não deixa ele apagar, continua falando…
O carro parou. O motorista desligou o motor e saiu. Uma
pessoa no banco de trás abriu a porta e o veículo cuspiu os corpos
para fora.
- Por que parou aqui? O que estão fazendo?
- Eu vou pra casa. Quem quiser se juntar a mim será bem-
vindo. - o motorista falou dando a volta no carro e se dirigindo
para o prédio em frente.
- Ele só pode estar brincando. - uma garota do banco da frente
abriu a porta.
- Ei, espera, Zeca! - outra pessoa saiu do banco de trás.

127
NICTOFOBIA

- Eu tô caindo fora, desculpa pessoal. Francis, vai dar tudo


certo. - outra pessoa saiu pelo outro lado.
- O quê? Que babaca! - uma garota que estava no meio
reclamou e não se mexeu.
- Obrigado. Boa sorte pra você também… - Francis grunhiu,
compartilhando o porta-malas com o agente grogue. A outra
pessoa que se sentava no meio, segurava uma camisa junto a
cabeça do agente, seus cabelos escorrendo sangue pelo rosto.
- Consegue segurar isso aqui? Bom, muito bom. Francis,
conversa com ele, eu vou ver o que está acontecendo. - A pessoa
deixou o agente cuidando do próprio ferimento e saiu do carro.
- Giulia, acho que você deveria ir com eles. - Francis liberou a
única garota que permaneceu ali.
- Maninho, cala a boca. Eu vou com você pra Socoma.
- Correa, certo? - ele se dirigiu ao agente.
- Perdão?
- Seu nome não é Correa?
- Não, Correa ficou no teatro. Eu sou Freitas… Giovani.
- E como você está? Melhor?
- Eu consigo me lembrar um pouco mais do que aconteceu, mas
algumas coisas ainda são muito confusas. A ordem das coisas.
- Ainda sangra? - a garota perguntou, se virando para ele e
apontando para a cabeça.
- Menos. Bem menos. Mas está latejando, uma dor de cabeça
muito forte...
- Acha que eles vão ficar bem?
- Quem?
- Eles, o pessoal que quer ficar aqui e dormir. Eles estarão
seguros?
- Não devemos subestimar os noturnos. Eles vão dar um jeito de
chegar até eles…
- Mesmo com as luzes acesas?
- Não foi o que fizeram no teatro? Porque não foi nenhum de
vocês e nenhum de nós. O que me leva a crer que foram eles que
destruíram o disjuntor…
- E se estiverem dormindo? Não tem um pacto sobre isso? -
Giulia tentou.

128
DIAS FERPELLA

- Não mais… Eles vão pegar todo mundo… Claro, acho que vão
atacar primeiro quem estiver acordado e depois quem esteve
acordado essa noite. E depois, não sei… Acho que vão atrás de
todos os outros…
- E a Socoma não pode fazer nada? Não vamos estar a salvo na
sede?
Antes que Giovani respondesse, alguém abriu o porta-malas.
Era um garoto que aparentava ter não mais que dezessete anos.
- Vamos, vocês merecem um pouco de conforto. Deixa que eu
vou aqui atrás.
Ele ajudou os dois a descerem e irem para o banco de trás.
Enquanto isso Giulia questionava a amiga que voltou ao banco da
frente.
- O que foi? Eles vão mesmo ficar?
- Vão. Não teve jeito. Eles acham que aqui é mais seguro.
- Será mesmo esse o motivo? - Giulia provocou.
Mais uma pessoa embarcou no porta-malas e outra ocupou a
direção. E mais ninguém entrou.
- Vocês vão me desculpar, mas seus amigos são ridículos. - o
motorista disparou antes de ligar o carro e dar a partida.
- Não são meus amigos. São do meu grupo, mas não são meus
amigos… - Viana se explicou do porta-malas.
- Bom, espero que fiquem bem. Eles ainda quiseram dividir as
armas igualmente. Calma Giulia, a gente só deixou uma.
- Por que eles precisariam de armas? Eles não vão dormir? - ela
se indignou.
Os pneus cantaram quando o carro fez uma curva para a
esquerda.
- Vai pela Avenida do Parque? - a garota no banco do carona
confirmou com o motorista que parecia conhecer bem o caminho
a partir dali.
- Por acaso você ligou…
- Ninguém está pedindo sua opinião! - o motorista interrompeu
o agente de forma áspera.
- Vinícius, não precisa disso! Estamos do mesmo lado agora. -
Giulia o defendeu.
- Agora, né? Porque há quinze minutos ele estava atirando na
gente…

129
NICTOFOBIA

- Não foi ele, cara. E foi um acidente, eles estavam atirando nos
noturnos. - Francis interveio.
Todos foram lançados para a esquerda quando o carro virou a
esquina.
- Cuidado! Estamos soltos aqui atrás! - Andrei reclamou do
fundo do carro.
- Também vai dirigir como um bêbado, Vini? - Giulia se irritou,
puxando o cinto de segurança para ela e para o irmão ferido.
Giovani se inspirou a fazer o mesmo.
- Me escuta, é importante! São os holofotes! - ele tentou
novamente num tom mais urgente.
- Qual é o problema? - Lenny se virou para trás para ouvir o
agente.
- Acho que estão desligados. É melhor conferir.
- Eles já estavam ligados, o que aconteceu? - Vinícius se
interessou, tentando decifrar os símbolos no painel e os comandos
nas alavancas. Mais uma curva. Lenny reconheceu onde estava,
aquela avenida dos girassóis onde um dia comprou peixinhos com
Lucian. Ela afastou aquele pensamento, se voltando para a
explicação do agente. A cidade escura passava como um borrão
pelas janelas.
- Quando o carro é desligado eles reiniciam. A luz é muito
potente, então a bateria não consegue acioná-los direto na
partida…
Lenny prestava atenção a Giovani. Vinícius procurava o
comando para ligar os holofotes. Francis olhava pela janela ao seu
lado, tentando ignorar a dor do projétil queimando em seu ombro.
Vianna e Andrei conversavam sobre o que presenciaram no teatro.
Giulia estava sentada no meio e era a única a olhar para frente. Ela
forçou a vista, tentando focar no movimento que pensou ter visto
cerca de cem metros à frente do carro. Estava suspenso na avenida,
pairando à meia altura. A princípio ela pensou que era uma folha
caindo ao vento, ou uma pluma e não se preocupou. Mas num
segundo ela percebeu que aquilo era muito maior e, mal
iluminado pelos faróis, se aproximava muito mais rápido do que
ela poderia defini-lo.
- … já os faróis não. É um sistema estúpido, a Socoma poderia
facilmente melhorar, mas não vão investir nos veículos tão cedo…

130
DIAS FERPELLA

- Aonde que liga essa merda, afinal?


- Cuidado! - Giulia gritou apontando para frente. Ela teve
apenas um segundo para se preparar para o impacto inevitável.
Algo massivo bateu impiedosamente no para-brisa, com tamanha
violência que o vidro se rompeu, quase se soltando
completamente. Pequenos cristais se espalharam pelo ar,
bombardeando os passageiros que iam na frente. Lenny, que
naquele segundo estava virada para Giovani, teve seus olhos
poupados. Mas Vinícius levantou a cabeça para olhar no exato
momento de infortúnio. Ele levou as mãos aos olhos ao sentir as
ferroadas do vidro em seu rosto. Lenny, por reflexo, agarrou o
volante descontrolado, tirando o carro do rumo dos girassóis. E ao
mesmo tempo, o pé de Vinícius afundou no pedal do freio tão
rapidamente que os pneus travados pareceram se fundir ao asfalto.
Mas o peso do carro se somou à velocidade que ainda o regia e
a borracha, que não havia se fundido de fato, perdeu seu contato
com o piche. O gigante de metal virou, abatido em sua própria
força, girando uma vez sobre suas costas, raspando sua carcaça na
pista negra com um grito assustador e uma vibração brutal. Ele
ainda teve energia para sofrer meio giro e agarrou o solo com suas
portas. E então parou, esfriando seu coração no ar da noite em
estalos tristes e derramando seu sangue amarelado num leito
discreto.

131
IV

“V
ai ser incrível e você nem vai ver passar.”
Ele agora não estava tão nervoso. Ela havia
conseguido distraí-lo e deixá-lo confiante para encarar
aquele mundo oculto. O sol surgia entre os prédios à medida que o
elevador subia. O hotel ficava ao leste do Parque e Lenny, por todo
aquele tempo, escondera o motivo de estarem ali. Havia uma lagoa
menor, dividida por uma ponte de madeira. As pessoas chamavam
aquilo de brejo. Ela gostava de se referir a ele como Laguinho. E
ninguém conseguia descrever as primeiras horas da noite tão bem
quanto os habitantes do Laguinho.
Lucian apertou qualquer botão, apenas para que o elevador
subisse, para que a visão da rua cinzenta fosse trocada pelo
dourado refletido nas janelas, um segundo pôr do Sol tocando o
horizonte. Eles se beijaram até sentirem em suas pálpebras a luz
débil os receber nas alturas. Ela segurou a mão dele e admiraram a
vista durante três andares. Então ela apertou o próximo número:
dezessete.
- Vamos! Eu quero que você veja do início. - ela o puxou para
fora do elevador e eles desceram as escadas, cada vez mais rápido,
dois degraus de uma vez, três degraus de uma vez, embalados
numa brincadeira perigosa e fechando um ao outro nas curvas do
corrimão. Logo virou uma corrida e Lucian tomou a dianteira,
colocando quase quatro andares de diferença entre os dois.
Ele chegou à última porta abrindo-a de uma vez, dando de cara
com uma pessoa prestes a entrar no hotel. Ele deu meia volta,
surpreendendo seu corpo com uma agilidade impressionante. Mas
ele sabia que já tinha sido visto. Quando a porta se fechou atrás
dele, Lenny surgiu no último lance. Lucian subiu de encontro a
ela, em poucos passos.
- A Socoma está aqui. Me desculpa. - ele falou com uma calma
quase ofensiva.
- O que você está dizendo? É sério? O que você fez?
Ele a segurou pelos ombros:

132
DIAS FERPELLA

- Eles me viram. Você precisa voltar. - ele deu o cartão de


acesso do quarto e a deixou, escorrendo suas mãos pelo braço dela.
Quando ele passou pela porta, Lenny ouviu um barulho de sola
raspando no piso de mármore do lobby. E então ela correu de
volta, subindo as escadas o mais rápido que já subira em toda a sua
vida. Ela cruzou a porta do segundo andar e chamou o elevador.
Viu o mostrador ignorar seu número e continuar descendo. A
Socoma! Ela não podia deixar a Socoma passar por ela, agentes
acima e abaixo de si. E se eles soubessem o número do quarto? E
se eles chegassem antes?
Ela correu mais dois andares, no quinto ela deu uma olhada no
mostrador: estava passando pelo primeiro e parou no segundo. Era
essa a solução: ela teria que atrasar a subida deles a todo custo.
Correa e Freitas subiam irritados com o elevador parando em
todos os andares. Correa tamborilava impaciente no botão de
fechar as portas. “Eles são espertos…” reclamou.
Bernardes e Toraku subiam as escadas com dez vezes mais
fôlego que Lenny. A cada andar que ela ganhava de vantagem em
relação à primeira dupla, ela perdia para a segunda. Eles ouviam as
portas batendo e sabiam que se aproximavam. Lenny olhava para
baixo a cada lance que iniciava e via sombras ou braços de relance:
eles estavam dois andares abaixo e ela desistiu de atrasar o
elevador e apenas correu. Nono, décimo, décimo primeiro.
Apertando o cartão na mão com tanta força que seus dedos
quase atravessavam o plástico, ela disparou pelo tapete do
corredor. Suas pernas pareciam escorrer toda a energia de seu
corpo a cada passada e ela achou que iria cair se não parasse logo.
O elevador subiu direto e ela nem viu, Correa mirava o vigésimo
andar, aquele que Lucian apertara ao acaso e Amanda tomou
como uma pista.
Mas Bernardes e Toraku não se enganaram quanto à origem do
som da última porta a bater nas escadarias. Décimo primeiro.
Quando chegaram ao corredor, não havia ninguém ali.
No quarto, Lenny não quis nem esperar seu fôlego voltar ao
normal. Pegou uma dose e pulou na cama já com ela na boca. Mas
antes de morder, aquela frase ecoou uma última vez nos seus
pensamentos, a mesma que ela repetiu pra si mesma durante toda
a subida e arranhava maldosamente seu coração. “A Socoma está

133
NICTOFOBIA

aqui. Me desculpa.” E ela dormiu antes que lágrimas despejassem


sobre o travesseiro, escapando, ao menos naquele momento, da
dor de ter sido traída.

***

Numa confusão de sentidos, ela não sabia o que era cima e o


que era baixo. Sua consciência voltou devagar, primeiro sons,
depois um cheiro forte que revirou seu estômago. Um espasmo de
seu diafragma e ela expulsou uma solução gástrica espessa e azeda.
Depois ela conseguiu distinguir luzes, pontos coloridos. Piscou
algumas vezes para limpar os olhos: estavam molhados. Ela passou
os dedos no rosto e sentiu sua pele escorregadia. Ela descobriu a
direção que puxava a gravidade, abaixo de suas costas, suas pernas
estavam para cima, seus joelhos à frente do seu rosto. Ela tentou se
acomodar e sentiu seu corpo inteiro doer. Alguma coisa a prendia
no lugar.
Uma pessoa desceu ao seu lado.
- Lenny? Está me ouvindo? Você está bem.
Ela tentou falar e sua voz soou distante e abafada na sua cabeça.
Agora ela reconhecia as luzes, era o painel do carro. Finalmente
ela compreendeu onde estava e se lembrou do acontecido.
- Se segura em mim, vou soltar seu cinto. - Andrei pegou sua
mão e a soltou. Ela sentiu todo seu peso derrubá-la na janela a
suas costas. Olhando para cima ela viu um rosto através da janela
oposta, era aquele garoto do outro grupo. Enquanto ela se
levantava, Andrei se agarrou ao volante para se erguer e lhe dar
mais espaço. Alguém gritou algo lá fora e Viana pulou de cima do
carro que virava mais noventa graus, morosamente. Andrei se
apressou para o lado de Lenny e a abraçou enquanto o cenário se
reorientava.
Agora os dois estavam deitados sobre o teto do carro e tiveram
que rastejar até a abertura da janela do motorista. Ele a levou
através da rua, para baixo da marquise de um supermercado. Ela
se juntou a Giulia e Francis, sentados próximos à parede. Viana e
Vinícius estavam cada um em uma janela do banco traseiro. Na
noite escura, uma luz foi facilmente percebida ao se somar a cena.

134
DIAS FERPELLA

O fogo começou discretamente dentro do capô e a fumaça


subia numa quantidade irrelevante. Em poucos segundos, os
fluidos entraram em combustão e espalharam as chamas por toda
a frente do carro. Andrei se apressou para buscar o extintor, mas
não conseguiu nem se aproximar da janela devido ao calor. Ele
apressou os outros dois, que ainda tentavam resgatar Giovani
firmemente preso ao cinto de segurança.
- O cinto está agarrado. Vamos ter que cortar de alguma forma.
- Viana engatinhou para trás, tirando o torso de dentro do veículo.
Vinícius ainda estava lá dentro, tentando forçar a fivela ou
afrouxar o cinto para que Giovani se livrasse.
- Precisamos ajudar de alguma forma. - Lenny se prontificou
diante do fogo cada vez mais intenso no exterior do carro. A luz do
fogo não ia muito longe, criava uma ilha de luz em volta do carro e
se perdia no asfalto brilhante.
- Lenny, cuidado… Tem alguma coisa lá em cima. - Giulia
apontou para o céu.
- Morcegos.
- Não. Maior…
O fogo já consumia o painel e chegava aos bancos da frente.
Vinícius teve que proteger o rosto do calor, seus olhos arderam, a
fumaça já ocupava todo o espaço lá dentro. Ele olhou em volta,
procurando algo para tentar queimar o cinto.
Várias vozes gritavam seu nome lá fora. Todos os esforços para
apagar o fogo foram em vão e ele já envolvia o carro
perigosamente. Os pneus frontais estouraram, assustando a todos.
- Vamos, Vini! Não vai dar, sinto muito! - Lenny gritou pela
janela.
Vinícius recuou rapidamente. Iluminado pelo fogo, ele viu o
rosto de Lenny úmido de lágrimas, lamentando a situação ou
simplesmente devido a fumaça. Ela correu para se juntar aos
outros sob a marquise do supermercado, se certificando de que o
amigo a acompanhava.
Faíscas atingem o asfalto, o combustível se acende. O fogo se
alastra com uma pequena explosão. O calor chega ao tanque em
menos de um segundo. O clarão iluminou a avenida de uma
extremidade a outra. Ninguém teve coragem de olhar para o fogo.
Chocados e sem palavras, encaravam o tremular laranja se

135
NICTOFOBIA

espalhando pela calçada ou buscavam refúgio nos olhos uns dos


outros. Alguém haveria de dizer que aquilo não estava
acontecendo de verdade.
Uma casa em chamas. Vinícius escuta o choro de sua mãe
quando ele tinha apenas seis anos. Era meio-dia quando o fogo
saiu de controle e a família evacuou a casa. Seu pai jogou para fora
todos os objetos próximos à porta e continuava indo mais fundo,
achando que ainda dava tempo, que o telhado iria avisar minutos
antes de desabar. Não desabou, não naquele momento. Seu pai
morreu dois dias depois, num feriado, numa cama de hospital,
intoxicado pela fumaça ao qual se expôs.
- Ele já estava morto… - Vinícius disse em voz baixa.
- Temos que sair daqui! - Giulia quebrou o transe. Havia um
som diferente escondido pelo crepitar, vindo de algum lugar acima
deles. Aquele fogo talvez os protegesse com sua luz, mas também
funcionava como um sinalizador para qualquer criatura à espreita
naquele bairro.
- Precisamos entrar, somos presas fáceis aqui fora. Não temos
nada! - Francis ajudou.
- Posso tentar arrombar a fechadura. - Andrei correu ao longo
das vitrines buscando a entrada do supermercado. Vinícius tirou
uma pistola da cintura e disparou três tiros no vidro, se forçando a
voltar para o momento presente, quebrando a sequência de
memórias na sua cabeça, antigas e recentes. Os outros o olharam
assustados com o barulho e com sua atitude, reclamando da falta
de aviso.
- E temos que testar se é seguro entrar!
- Onde vamos encontrar água para isso, Andrei? - Vinícius
rebateu secamente.
Lá dentro fazia frio. O calor do fogo ficou para trás, assim como
sua luz. Uma fileira de caixas e esteiras se estendia para ambos os
lados, infinitamente, abandonada. O grupo entrou num acordo
sobre o que precisavam: curativos, lanternas, pilhas, água.
- Fiquem atentos a qualquer barulho. Se acontecer um
Fenômeno, não hesitem em voltar para cá, onde tem luz. Quem
conseguir lanternas primeiro, assobiem dessa forma - Andrei
demonstrou, com dois longos silvos - até nos encontrarmos.

136
DIAS FERPELLA

E então se separaram em três duplas, sustentando a ilusão de


que aquilo era apenas um mal entendido, um sonho do qual logo
acordariam, pois a morte não deveria ser assim, tão possível, tão
próxima, tão presente como havia se tornado.
Lenny seguiu com Vinícius para a esquerda, beirando os caixas
pelo lado de dentro, esperando enquanto seus olhos se ajustavam
à escuridão. Ela deu uma olhada para trás, e a luz das labaredas
infernais ficam cada vez mais distantes. Viana, Andrei, Francis e
Giulia sumiam na distância obscura do lado oposto. Os corredores
os convidavam de forma traiçoeira a se meterem entre as
prateleiras mas, por ora, eles resistiam. Até que chegaram à
extremidade, onde havia geladeiras respirando gentilmente, como
embaladas por um sono profundo.
Os dois pararam diante do corredor, gradativamente mais
escuro. Lenny sentiu seu coração batendo forte e tentou acalmá-lo,
respirando fundo algumas vezes. “Eles estão lá fora. Não tem
nenhum aqui dentro. Tudo está como deveria estar.” Motivados
pela perspectiva de riscar o primeiro item da lista, seguiram em
frente. As prateleiras não eram como muros que protegiam, mas
como muros que aprisionavam.
Carregando duas garrafas de dois litros, cada um, agora se
sentiam mais confortáveis. “A água é o elemento mais suscetível às
manifestações sobrenaturais, suas moléculas são hipersensíveis ao
invisível.” Luana dissera na primeira noite que levara Lenny para
um passeio. E Lenny chegou a acreditar que era uma dica valiosa,
uma técnica única criada pela tia. Quando ela se deu conta que era
lugar comum entre Insones, ficou surpresa. Ainda assim continuou
achando que era a tia Luana a autora e difusora da ideia. Agora,
portando garrafas de água, a dupla prontamente canalizaria um
Fenômeno. Lenny se sentiu segura o bastante para romper o
silêncio incômodo num tom quase sussurrado:
- Quando a gente começou a sair à noite com a tia Luana, eu
não fazia ideia pra que servia essa coisa de “testar o lugar”. Acho
que ela também não sabia direito, ela não entrava em detalhes, ela
dizia que era pra captar Fenômenos e ver se era seguro entrar, só
isso. E é claro que eu associei uma coisa à outra: eu achava que os
Fenômenos que eram perigosos, que poderiam deixar a gente
doente.

137
NICTOFOBIA

Eles iam pelo corredor central, olhando os primeiros produtos


das prateleiras de ambos os lados. Estavam na seção de alimentos.
- Já eu achava que era um código, para marcar o lugar de
entrada pros outros. Eu tinha tanta certeza que nunca cheguei a
perguntar. Depois que eu soube dos noturnos tudo fez sentido pra
mim. Jogar água nas portas era uma questão de superstição, um
ritual folclórico baseado numa lenda urbana.
- Qual foi a primeira vez que você ouviu sobre noturnos?
- Não me lembro exatamente. Mas foi há pouco tempo. Ah, foi
naquela vez que fomos na marina… Não, acho que você não estava.
Eu tinha visto algo se mexendo na cabine de um iate, pela janela.
Pensei que fosse alguém do grupo e perguntei como ele havia
entrado e o que ele estava procurando. Mas o grupo todo estava
ali, como eu pude ver. “Acho que você viu um noturno.” E eu
achava que era só um outro nome pra Fenômeno, até que
esclareceram minha confusão. Disseram que poucas pessoas
conseguiam vê-los, que eram ariscos e tímidos. Uma criatura da
noite, só isso.
- Você viu um noturno e nunca me falou?
- Eu acho que vi. Foi de relance, estava escuro.
- É claro que estava escuro… Eles detestam luz. Eu já tinha
ouvido falar antes, minha amiga Anna tinha contado uma vez na
Nyctidromus, quando contamos histórias de terror no Bosque das
Ruínas. Mas era isso, só uma lenda urbana. Três anos atrás, a tia
Luana me disse, durante uma visita, que tinha visto um na noite
anterior. Eu pensei que ela queria só me assustar, ou que planejava
alguma brincadeira para a próxima vez que saíssemos. Ela não
conseguiu contar mais, porque minha mãe voltou pro quarto e
tivemos que encerrar a conversa. Eu vi que ela estava abalada e
perguntei depois o real motivo. “Eu já te falei o porquê!” Ainda
assim, era difícil acreditar.
- Que bom que eu não te contei, então.
- Depois disso ela saía menos e menos. Mas eu nunca liguei
uma coisa com a outra. Eram sempre desculpas de que ela estava
indisposta ou cansada, ou queria ficar em casa para adiantar um
trabalho ou ver um filme. E pra mim ela estava perdendo o
interesse apenas, que seus tempos de Insônia haviam passado.
- E ela contou depois como foi?

138
DIAS FERPELLA

- Ela teve um pesadelo uma noite. É raro, mas não é impossível.


Espero nunca ter… Consegue imaginar, um pesadelo a noite
inteira? No despertar ela estava acabada, ligou pra minha mãe e
chorou por horas. Ela não quis falar sobre isso, nem pra minha
mãe nem pra mim. Eu já estava no último semestre da faculdade e
diagnostiquei aquilo na minha cabeça sem questionar: estresse
emocional, trauma. Ela estava com medo. Um medo muito
verdadeiro, paralisante. E eu pensei: “se ela realmente acha que viu
um noturno, talvez isso não seja a causa, mas a consequência. Ela
já estava com medo, já estava sugestionável e impressionada.
Talvez não conseguiu lidar com a morte do vovô Ivo e a piora da
vovó Flora logo em seguida. E assim viu, no que era provavelmente
uma lebre-campina, o vulto de uma figura folclórica.” Eu levei
aquilo menos a sério ainda. Pobre tia Luana.
- E agora, o que você acha?
- Quanto mais eu penso a respeito, mais eu me arrependo de
não ter decidido dormir como os outros. Agora não tem mais jeito.
Acho que já vivi traumas o suficiente por essa noite para meus
pesadelos serem mais fortes que Sono.
- É… Eu lembrei do meu pai… No incêndio...
Eles chegavam na seção de produtos de limpeza. Lenny parou
por um momento e tentou olhar seus olhos no escuro, cobertos de
sombras. Ela evitava esse assunto, como se falar a respeito fosse
tornar real. Uma pessoa havia morrido. Uma pessoa, tão jovem
quanto ela, morrera devido a circunstâncias que ela ajudou a
construir. O agente Giovani Freitas, identificação dois-um-seis-
um-quatro-zero, filho, neto, irmão, namorado, colega, amigo,
aluno, professor. Seu corpo ainda queimava lá fora e ninguém teve
tempo de lamentar ou dizer seu nome uma última vez.
Se ele tivesse ficado no porta-malas, se ele tivesse conseguido
tomar uma de suas doses no Teatro Koya, se Vinícius não o tivesse
interrompido e ouvisse sobre os holofotes antes, se o carro não
estivesse tão rápido, se ela não tivesse agarrado o volante, se ela
não tivesse saído naquela noite, se ela tivesse seguido o impulso de
ligar para Lucian depois de ficar sabendo sobre a audiência, se
tivessem cortado o cinto de segurança com pedras, com vidro,
com a força de seis pessoas, com os dentes que fosse…

139
NICTOFOBIA

Antes que ela pudesse fazer aquela pergunta que a perturbava,


duas notas de um assobio ecoaram pelos corredores.

***

Do lado de fora, um jasmim florido chamava a atenção. Havia


um Fatrole antigo na garagem e uma mangueira fazendo círculos e
curvas pelo gramado. A casa era de madeira clara e recém-
envernizada. Na porta da frente, um vaso com uma planta de
folhas largas e um capacho dando as boas-vindas. Na sala, uma
foto em preto e branco de Dominique Koya, tirada por ninguém
mais e ninguém menos que Antonio Jones. Ela se curvava
elegantemente com o figurino de seu primeiro espetáculo solo,
“Dom”. E seus olhos encaravam a lente, acolhedores e desafiadores
ao mesmo tempo, tenros e sombrios, frios e quentes. Amanda não
conseguiu admirar a avó por menos de cinco minutos.
- O documentário que vai sair esse ano vai usar essa foto como
pôster, não é pai?
- Vai. Essa foto foi um presente do Toni, ele disse que era uma
foto inédita daquele ensaio e que eu poderia ser a única pessoa a
vê-la, se assim eu quisesse.
- Ele te deu essa foto enorme? Deve valer milhões! - Amanda
ficou fascinada diante da ampliação em tamanho real.
- Melhor ainda: ele me deu o negativo dela. - o avô respondeu
com uma piscadela.
- Entendi… - a garota julgou.
- Bom, eu fico feliz que tenha aceitado a oferta do estúdio. Essa
foto da mamãe precisa ser vista pelo mundo! E você também
precisa de conforto na sua velhice. - Taila amenizou, com um olhar
repreensivo para a filha.
Ela ainda estava no processo de conhecer o avô, estava
totalmente aberta e até ansiosa para tal. Taila estava temerosa de
que ela pudesse se decepcionar com tantas expectativas e virou
uma espécie de assessora de imagem do pai. Para ela, um ótimo
exercício para sua própria tolerância e compreensão. E ao invés de
continuar perpetuando a facilidade em julgar, ela se viu
admirando e aos poucos se afeiçoando àquele velho.

140
DIAS FERPELLA

Para Amanda, aquilo pulverizava sua atitude crítica e os traços


de desconfiança originada no desprezo de Dominique. Ela quis
prontamente encontrá-lo, depois de brevemente remoer a solidão
de um homem excluído de sua família. Não significava que ela já o
amava incondicionalmente apenas pelo parentesco. “Amanda é um
pouco difícil de se cativar. E ela está naquela idade, o que só
aumenta o desafio.” Taila alertara o pai antes do primeiro
encontro, que fora arranjado num restaurante de comida africana,
o preferido da família. Seu marido já tinha voltado de viagem e
fora incluído no almoço. A primeira e única vez que vira Ênio
havia sido no enterro de Dominique, dois anos antes, e nem
haviam sido propriamente apresentados.
Tudo correu muito bem e Amanda, ainda um pouco na
defensiva, aceitou a extensão do convite feito à Taila na semana
seguinte, durante um telefonema.
“Meu pai… Seu avô nos convidou pra tomar café da manhã na
casa dele, amanhã.”
E ali estavam elas. E Amanda confrontava com a simplicidade
do avô refletida em sua casa, muito abaixo do poder de compra
que ele recentemente conquistara. Ele não buscava ostentar sua
pequena fortuna, ele nunca teve a intenção de explorar a memória
de sua adorada avó. Ele apenas tentava viver com o mínimo de
conforto e dignidade, afinal de contas, também era famoso de
certa forma. Porém, uma fama maléfica.
Ali foi a primeira vez que Amanda ouviu sobre o episódio dos
Sete do Memorial. E ficou feliz com a oportunidade de ouvir de
alguém envolvido diretamente no caso. Antes de mostrar os
recortes de jornais, edições inteiras de revistas e especiais da
televisão, Ênio deu a neta um manuscrito.
- Esse é um bom ponto de partida pra gente. Quero que você
leve pra casa e leia com calma. Quando terminar, pode me visitar a
qualquer hora, quando quiser. Menos à noite, espero. - ele brincou
e Amanda só foi entender depois que começou a ler.

***

Viana e Andrei seguiram os assobios no escuro. Não pareciam


estar longe. Estavam numa área de produtos de acampamento,

141
NICTOFOBIA

uma barraca tamanho família se encontrava armada no corredor


principal. Então eles viram as luzes de lanternas disparando
através de uma prateleira.
Lá estavam Giulia e Francis, cada um já equipado com uma
lanterna. A dupla recém chegada fez o mesmo, abrindo as
embalagens como crianças no natal.
- Aqui tem pilhas, peguem! - Francis avisou do fim do corredor
e mandou alguns pacotes deslizando pelo piso. O grupo alternava
assobios, ainda guiando Lenny e Vinícius de encontro a eles.
- Pega aquela lanterna maior também. Peguem tudo que
conseguirem carregar. - Andrei instruiu. Francis enchia os bolsos
de baterias. Giulia pegou a lanterna grande que ele havia indicado.
Enquanto isso Viana ainda se ocupava inserindo as pilhas, tendo a
princípio invertido os pólos na sua afobação.
- Temos o suficiente, vamos! - Francis passou por eles. O resto
seguiu, concordando, exceto Viana. Andrei chamou por ele, sem
parar de correr e sem olhar para trás. O garoto acabava de
enroscar a tampa da lanterna e um poderoso feixe de luz branca se
soltou da extremidade do objeto. Ele agora se sentia invencível, era
uma sensação maravilhosa de segurança. Calmamente ele colocou
a lanterna debaixo do braço, refletindo a luz no chão encerado e
iluminando uma grande área ao seu redor. Ele pegou mais algumas
lanternas numa bolsa improvisada com sua camiseta.
O assobio foi se afastando rapidamente e logo era apenas um
eco. Era imprudente, extremamente imprudente ficar ali sozinho e
ele percebeu isso ao ouvir um estalo vindo do corredor principal e
o som de algo caindo. Viana reproduziu o assobio, esperando uma
resposta próxima, talvez fossem Lenny e Vinícius. Mas não houve
resposta alguma. Era um Fenômeno que premiava sua
imprudência, sua extrema imprudência.
Ele teria que passar pelo corredor principal, exatamente pela
fonte do barulho. Se aproximou devagar e deu uma olhada pra
trás, calculando um caminho mais sensato. Algumas lanternas
balançavam silenciosamente em seus ganchos. De um lado para o
outro, como se juntas dissessem “não”. “Fui eu. Desloquei o ar
quando passei… Só isso. Eles não vão me pegar, eu tenho uma
lanterna agora. Melhor do que qualquer arma.” ele tentou se
convencer.

142
DIAS FERPELLA

Avançou cauteloso pelo corredor, passando pela barraca,


iluminando sua solidão que se estendia para bem longe em todas
as direções. E sentiu um arrepio e interpretou aquilo como sua
intuição. Ele começou a correr, até que uma das lanternas caiu de
sua camiseta exatamente sob seu pé. O garoto foi ao chão,
perdendo sua lanterna que girou para longe de sua mão e rolou
caprichosamente por baixo da prateleira à sua direita. Viana
xingou mentalmente seu próprio azar. Recolheu as lanternas de
volta em sua camiseta, rapidamente.
Alguém passou no final do corredor, da direita para a esquerda,
sumindo atrás da prateleira. Ele vira de relance e incerto da
natureza da sua companhia, arriscou:
- Giulia? - chamou num sussurro. Ele sabia que não era ela, mas
tudo o que mais queria era ouvir sua resposta.
E ele ouviu, quase como o silvo do vento pela fresta de uma
janela, mas suave, como se tentasse ser discreto ou como se tivesse
dificuldades em reproduzir o som: duas notas, o assobio. Vinha do
corredor ao lado.
Viana ficou paralisado, ele não sabia se deveria seguir em frente
ou dar meia volta. Aquela coisa poderia estar avançando pelo
outro corredor, tentando pegá-lo pelas costas. Ele largou as outras
lanternas no chão, delicadamente e ficou apenas com uma. Foi
tirando-a da embalagem devagar, enquanto recuava olhando em
volta. O assobio de novo no corredor à direita, vacilante, com uma
pausa antinatural entre uma nota e outra, quase como se aquilo
não tivesse lábios, ou fôlego, ou sequer pulmões. Viana tentou
calcular a distância: estava um pouco a sua frente, andando talvez
na mesma velocidade que ele, acompanhando cada passo seu.
Então ele se virou e correu. Passou pela barraca e continuou
para o corredor das lanternas, até o final, até onde se encontravam
as pilhas. Sentado no chão ele rompia a embalagem aflito, diante
da visão de um vulto negro se destacando da escuridão ao longe.
Era como a sensação de movimento numa tela monocromática,
como um truque óptico. Era preciso concentrar a visão para
delinear uma forma.
Viana desenroscou a extremidade da lanterna e enfiou as
pilhas, sem conferir os pólos. Quando ele olhou de novo, ouviu o
assobio se repetir, agora bem diante dele, fraco, tímido,

143
NICTOFOBIA

antinatural. A criatura estava adentrando no mesmo corredor que


ele estava. Aquela coisa vinha se rastejando, como um predador
prestes a arrancar num ataque, se esgueirando próximo ao piso
encerado, sem pressa de chegar até ele.
Ele enroscou a tampa da lanterna. Ouviu passos velozes pelo
corredor à sua direita, atrás da prateleira. Eles estavam o cercando.
Era apenas uma distração! Viana ligou a lanterna ao mesmo tempo
em que ouviu uma voz atrás de si:
- Viana! Mas que merda! O que você está fazendo? - era Andrei.
Apontou a lanterna para frente e viu apenas produtos
balançando levemente nos ganchos.

***

O grupo se reuniu na sessão de higiene pessoal, cercado de


lanternas acesas. Ali faziam uso de antissépticos e bandagens em
seus ferimentos. Francis tentava não gritar enquanto limpavam o
buraco que a bala abrira em seu ombro. A região em volta estava
vermelha, inchada, as veias saltadas sob a pele rasgada. Giulia
desviou os olhos durante todo o procedimento realizado por
Lenny.
O resto do grupo ajudou uns aos outros com seus cortes
superficiais ou luxações.
- Você precisa de uma cirurgia agora mesmo. No máximo na
próxima hora. - Lenny declarou tirando as luvas descartáveis.
- O quão longe estamos da Socoma?
Vinícius respondeu: de carro, o mais rápido que poderiam
chegar, era de dez a doze minutos. Giulia observou que não era
possível ir andando, seu irmão perdera muito sangue e não
aguentaria ir muito longe. Separar o grupo também não era uma
opção. Havia noturnos ali dentro e, pelo o que ouvira Giovani dizer
no carro, eles poderiam dar um jeito de pegá-los, independente de
quantas lanternas os protegessem.
Era possível escutar ruídos vindo das profundezas do local, ecos
que chegavam fracos aos seus ouvidos, como um suspiro de uma
pancada que já soou em outros tempos. Eles se olhavam, sabendo
que além daquele trecho iluminado, havia algo oculto rondando
pelos corredores. Pelas várias direções que vinham os sons, era

144
DIAS FERPELLA

certo que não era apenas um. Aquelas criaturas estavam se


aglomerando ali dentro, se agitando com o odor de carne humana,
com o rastro estimulante de adrenalina e medo impregnado no ar
confinado.
Os pedaços de algodão e gazes no chão, tingidos com sangue
dos seis.
- Espera um momento, eu sei onde estamos. Esse é aquele
Centro Comercial ao lado do Parque. A Socoma fica do outro lado.
Podemos cortar caminho pelo Parque. Se conseguirmos um jeito
de levar Francis, nem que seja num carrinho de supermercado… -
Viana interveio.
- Temos que tentar, Giulia. Não tem outro jeito... - Lenny
apoiou.
- Sim, um carrinho parece uma boa ideia. - Francis tentou
encerrar o assunto.
Giulia não encontrou motivos para se opor. Se fossem
cuidadosos, o Parque não seria um problema: as trilhas
pavimentadas eram acessíveis para cadeirantes, logo, um carrinho
de supermercado passaria por ali.
Colocaram então o plano em prática. Havia um segundo acesso
ao local, um que dava para o interior do centro comercial, no
fundo da loja. Giulia esperou com Francis, Andrei e Viana. O resto
juntou algumas lanternas e se afastou rapidamente, levando a luz
para além das prateleiras.
- O que foi?
- Fico um pouco inseguro de cruzar o Parque. Já ouvi histórias…
Sempre me pareceram fictícias, só para assustar. Até porque nunca
tinha visto um noturno sendo tão incisivo, tão hostil. - Andrei
compartilhou com os dois.
- Mas já tinha visto um? - Giulia quis mudar o rumo do assunto
para não se contaminar com seus anseios.
- Já. De canto de olho, em áreas escuras ou mal iluminadas. Mas
eles se intimidavam com a luz, não pareciam querer atacar,
fugiam, se escondiam. Todas as histórias eram assim, eles te
pegariam quando você não estivesse olhando, se aproximariam por
aquele trecho de sombras, onde sua luz não toca. Ficariam na
espreita, aguardando um momento em que se estivesse sozinho,
em que se isolasse do grupo. Mas…

145
NICTOFOBIA

- Andrei. Não está ajudando… - Viana censurou.


- Verdade, desculpe. Ainda assim eu preferia dar a volta, ir pela
avenida.
- Claro, todos nós. Mas não temos tanto tempo assim. E de
certa forma o risco é o mesmo. Se por um lado teríamos uma
visibilidade maior a nossa volta, por outro também seríamos mais
visíveis, estaríamos mais expostos. - Giulia defendeu a decisão do
grupo.
- E por mais tempo. - Francis acrescentou.
- Seria bom termos mais roupas. Vai estar gelado dentro do
bosque. Espero que eles pensem nisso também. - Viana chamou a
atenção para o fato de Francis estar sem camisa, tendo a sua
empapada de sangue.
- Droga… Tem razão. Mas eu não contaria com isso…
- Eu posso correr e pegar.
- Está falando sério, garoto? Logo depois do Andrei nos
aterrorizar sobre histórias de vítimas solitárias? - Giulia riu. Mas
ele tinha razão, estaria muito frio, mesmo para quem não estivesse
ferido como seu irmão estava. Todos eles apreciariam uma camada
extra de roupa. Mas não poderiam esperar os outros voltarem?
Viana insistia, dizia que estaria de volta antes deles.
- Viana, cuidado com esse seu excesso de confiança… Você
deveria estar mais humilde depois do sufoco que passou lá atrás… -
Andrei alertou o que todos ali estavam pensando mas não
encontravam as palavras certas para dizer.
- Vai com ele, Andrei. - Giulia sugeriu.
- Tem certeza? Não é melhor esperar e irmos todos juntos?
- Seria bom já estarmos prontos pra sair daqui quando eles
chegassem. Enquanto isso, eu posso já separar aqui mais algumas
coisas pra levar.
Francis conseguia ver ainda mais fundo as intenções da irmã.
Ela queria se livrar de Andrei e daquele pessimismo dele. A última
coisa que ela queria era ficar insegura a respeito do plano, o único
plano que parecia palpável. Ele a desmascarou assim que eles
saíram e ela concordou rindo.
- Cara, estou errada? É pedir demais? A situação já está tensa o
suficiente sem a gente precisar ressaltar o fato…

146
DIAS FERPELLA

Naquele momento os dois tiveram a mesma lembrança


reavivada: uma pessoa havia morrido. Eles haviam presenciado,
eles estiveram lá, foram as últimas pessoas a falar com ele. E agora
ele estava morto, não longe dali, seu corpo ainda queimando em
uma coluna que se estendia para a atmosfera, carregando
borracha, gasolina, plástico, cabelo, pele e vapor num negrume
tóxico.
- Eu sei o que você está pensando. E não, não quero falar sobre
isso…
- Nem eu. - ele concordou e se recostou na prateleira fechando
os olhos, visualizando a luz da manhã.
Giulia ficou olhando para ele por alguns segundos, já estando a
alguns passos de distância. Então voltou sua atenção novamente
para os medicamentos, buscando analgésicos e antiinflamatórios,
qualquer coisa que aliviasse a situação do irmão. Ela se lembrava
de quando eles brincavam de espião com os primos, ela fingia ter a
habilidade de desviar de balas e ele implicava que as balas do
inimigo eram teleguiadas. Ela se irritava logo e ameaçava desistir
da brincadeira até que Francis cedia aos seus caprichos. Ela achava
que se levasse um daqueles tiros imaginários ela morreria
instantaneamente, sem tempo nem ao menos de sentir dor. Seus
primos caiam no chão, levando a mão ao peito, ao braço, à perna,
colocando a língua de fora e fechando os olhos. “Morri. Me salva.”
Ela não podia imaginar a dor que ele sentia. Ela nunca tinha
visto seu irmão chorar, não de dor física. Quando pequeno, ele
parecia nunca se machucar. As poucas vezes que ele apareceu com
um joelho ou cotovelo ralado, ele o tratava com uma naturalidade
sobrenatural. “Isso? Esbarrei no muro de chapisco do fundo da
quadra.” Dessa vez ela tinha a impressão que tinha visto um brilho
úmido no canto de seus olhos quando Lenny limpava o estrago da
bala.
Como ela explicaria isso para os pais no dia seguinte? Como era
bom poder se preocupar com o dia seguinte, ela pensou. Ela não
sabia, mas era graças a Francis que ela estava otimista e tranquila
na medida do possível. Ele se esforçava, até então com bastante
sucesso, para superar a dor e a fraqueza que sentia. A camisa
encharcada de sangue, tudo aquilo deveria estar dentro das suas

147
NICTOFOBIA

veias, não nas fibras de uma roupa. E o seu corpo agora clamava
pelo o que havia perdido.
Francis era o irmão mais velho. Pela ordem, ele pensava, era ele
quem tinha que cuidar de Giulia. Mesmo abatido, mesmo ferido e
debilitado. Mas eles nunca foram de seguir a ordem.
Quando Giulia nasceu, era ela quem tinha ataques de ciúmes,
não ele. Ele sempre teve toda a atenção de um primogênito e a
afeição já consolidada por quatro anos. Já a bebê via o desafio pela
frente, de conquistar o amor dos pais completamente para si,
superando aquele rival que por vezes ocupava o colo de sua mãe e
os ombros de seu pai. Ela se irritava, batia toda vez que ele se
aproximava para conhecer a irmãzinha. Já aos sete anos ela não se
curvava aos pedidos do irmão, como a vez em que ele quebrou o
delicado maestro do coral de camundongos de porcelana da avó e
pediu a ajuda dela para inventar uma mentira convincente. “Tenho
certeza que você consegue se virar sozinho, gênio.”
Sim, seu raciocínio lógico era mais rápido que o dela e ela se
ressentia sem levar em conta a diferença de idade. Mas ela amava
seu irmão, eles se davam bem, eles brincavam juntos desde
pequenos, também sem levar em conta a diferença de idade.
Francis a incluía em tudo e apresentava a seus amigos e amigas e
ela adorava como ela podia fazer o mesmo. Ele tratava todos com
companheirismo, sem a arrogância dos seus outros colegas de
classe, que alcunhavam os mais novos de “fedelhada” e o prédio do
ensino fundamental como “pirralheiro”.
Quando ela fez quinze anos e ele dezenove, eles pararam de
brigar toda semana por qualquer motivo. Simplesmente porque
parecia mais proveitoso quando se entendiam - algo que os dois
constataram aos poucos, num processo individual que se concluiu,
por coincidência ou não, na mesma época.
Ele havia ensinado tudo sobre a noite pra ela, contra sua
vontade, mas ela não lhe dera escolha. Não valia a pena arriscar a
chantagem que ela fazia naquela manhã. Giulia foi acolhida em
seu grupo e a cumplicidade dos dois se tornou verdadeiramente
fraterna pela primeira vez.
Agora ele estava ali, sangrando, como ela nunca imaginou que o
veria. Ele estava pálido, fantasmagórico, a área ao redor dos seus
olhos estava escura e ela só soube que ele não estava morto pelo

148
DIAS FERPELLA

leve subir e descer da bandagem cruzando seu tórax. Ele não


parecia uma pessoa, mas um autômato bastante realista. Por um
segundo ela ficou incomodada de estar ali, na sua companhia, um
medo surreal de ele acordar diferente ou transformado em algo
bizarro. Mas trouxe seus pensamentos de volta para a razão.
Ela ouviu um carrinho se aproximando e suspirou aliviada.
- Eles chegaram. - ela anunciou para Francis, que balançou a
cabeça sem se incomodar em abrir os olhos ou dizer qualquer
coisa em resposta, como se aquilo fosse gastar uma energia
preciosa. Ela já podia ouvir o burburinho vindo ao longo do
corredor central. E então, um estrondo metálico.
- O que foi isso?
Mais uma vez Francis não respondeu, mais interessado na sua
meditação. Ela se irritou com ele, enfiou as caixas de remédio nos
bolsos e foi verificar.
- Tudo bem aí? Lenny? Vinícius?
Silêncio. Ela ficou preocupada. Trouxe a arma à sua mão livre.
Ela e Andrei eram os únicos que já tinham atirado ou ao menos
segurado uma arma antes. Ela era a que havia segurado, o que
automaticamente já lhe assegurava a posse daquela arma. A
terceira havia ficado com Vinícius, que se voluntariou sem se
intimidar, imaginando que fosse tão fácil e intuitivo como
mostram os filmes.
Giulia se afastou ainda mais de Francis ao caminhar para o
outro extremo do corredor. E foi então que ela estranhou a dupla
ter voltado pelo lado oposto.
Quando ela se aproximou com sua lanterna, ouviu passos
apressados fugindo para longe. Um arrepio percorreu todo seu
corpo e ela pôde ver dali o carrinho tombado no meio do corredor.
Ela olhou para trás e viu o irmão perdido num círculo de luz,
numa escuridão sem teto nem chão. Uma massa vermelha
embolada como vísceras irreconhecíveis, carregando o sangue que
lhe pertencia. Os projéteis do inimigo entram quente em sua
carne, mais rápido do que ela consegue desviar, e se deliciam ao
estourar suas veias e espalhar dor e destruição por seus órgãos de
camundongo. Pois há camundongos habitando seu estômago,
devorando-a por dentro, regendo uma orquestra coberta de

149
NICTOFOBIA

pólvora e chumbo. E o maestro é esquartejado, numa


demonstração de sua sina inevitável.
Os produtos mofam e estragam dentro de suas latas. Garras
afiadas correm para longe da luz. Uma armadilha e agora tudo
estava perdido. Um longo pescoço serpenteando por trás das
prateleiras e as asas grotescamente recolhidas. E o irmão como um
fantasma, engolindo aquela escuridão com seus próprios ossos e
deixando sua alma escapar por um buraco em seu torso.
Giulia correu para Francis, com os olhos encharcados de medo
e se ajoelhou na frente dele, agarrando seus ombros e o
chacoalhando desesperadamente. Ele grunhiu de dor e ela se deu
conta do ferimento, retirando sua mão.
- Eles estão aqui!
E foi quando um brilho esbranquiçado atacou os olhos. A luz se
lançou do teto sobre os dois e todo o supermercado surgiu ao
redor.

***

Punta del Sueño havia estreado há três dias quando ele foi fazer
uma entrevista com a dançarina principal. Dominique Koya, já se
destacava nos palcos desde os dezesseis; agora, aos vinte e um
anos de idade, estava prestes a ser a maior artista do país. Os
críticos estavam encantados e o público extasiado: a temporada já
estava esgotada.
Ênio era um repórter em ascensão, escrevendo para o caderno
de cultura de um jornal secundário de circulação estadual. Ele
aspirava jornalismo investigativo, o que ele considerava a
verdadeira face da profissão. Provocava seus colegas, disfarçando
sua opinião controversa com um tom jocoso: “O resto é tudo
matéria de gaveta para deixar o jornal mais volumoso, apenas para
emoldurar a obra principal.” E naquele momento, naquele jornal,
quem fazia isso era Glauber Panza. Longe de ganhar prêmios ou
ter seu nome mencionado em palestras e faculdades, mas
empenhado e passional. Ele era um pouco excêntrico demais para
os padrões da redação, e ligeiramente irritante. Mas Ênio se
aproximava dele como o jovem pupilo que gostaria de ser e aquilo
tinha um efeito entorpecente para o ego de Panza.

150
DIAS FERPELLA

Panza ainda o chamava de Foca, indiferente aos dois anos de


casa do rapaz. E quando o veterano espiou a pauta do outro,
declarou com típica irreverência: “Foca, não vá se apaixonar pela
garota! Uma bailarina famosa pode ser pior que uma raba-do-
oriente.”
- Uma “rabadoriante?” - Amanda se confundiu. Ela despejava
cobertura no seu sorvete fazendo uma espiral.
- Raba, do, oriente. É uma ave que coleciona objetos brilhantes
para enfeitar o ninho. - seu avô esclareceu objetivamente.
Entendendo a comparação, Amanda franziu o cenho e entortou os
lábios.
A entrevista aconteceu no restaurante do Jardim Botânico,
Dominique sugeriu o local porque “era agradável e ela podia ir a
pé”. Se ela se equiparava a uma ave, era inteiramente por outros
motivos, ele notou. Era a graça e leveza com a qual andava, era o
brilho de seus cabelos sob a luz solar, era a melodia impregnada
em sua voz alegre. Era a imponência de suas asas, era a altura de
seu voo, eram os movimentos fascinantes de seu corpo em dança.
Ênio conseguiu uma boa entrevista e ela se divertiu com a
maneira que ele correspondia seu flerte. Mas nenhum dos dois
levou aquilo a sério, duvidando da legitimidade do interesse um
do outro. Criou-se uma relação profissional, levantando uma
barreira de tabu que apagava o caráter humano daquele encontro.
Dominique não almejava romance, não naquela fase em que se
encontrava. Mas uma garota bonita como ela, tendo suas
qualidades reforçadas pela mídia, não era encorajada a ficar
solteira. Ela podia não aspirar uma história de amor, mas o público
se encantaria em ver a jovem bailarina vivendo uma paixão além
da dança. Como se o amor fosse universal e a dança seletiva. Como
se não bastasse a arte do movimento para acalentar a carência do
espírito.
Mas Dominique, diante das fofocas e do indevido interesse
alheio por sua vida pessoal, não dançou conforme a música.
Tamanha era sua influência, foi a música que teve que mudar o
compasso para acompanhá-la. E a garota acrescentou, por
iniciativa própria, uma máscara ao seu figurino, retirando a
atenção de suas feições e jogando-a de volta naquilo que ela queria
verdadeiramente oferecer ao mundo.

151
NICTOFOBIA

E aquela atitude, para o alívio de seus agentes, angariou ainda


mais aceitação e admiração do público do que qualquer estratégia
sexista ultrapassada. Dominique, antes de ser mulher, era dança.
Antes de ser pessoa, era música. Antes de ser noite, era o mais
sublime dia de sol. E para aqueles que já fantasiavam com uma
carreira profissional, a vida no palco era comumente mencionada
nas salas do jardim de infância, entre garotos e garotas.
O sucesso de Riok Lam, sua primeira produção própria, cruzou
fronteiras e oceanos. E com a agenda distensa e o trabalho
demandando toda sua criatividade, ela não conseguia ter
relacionamentos, mesmo se os quisesse. Ela se envolvia apenas
com membros de sua equipe e logo descobriu que aquilo
antagonizava seus objetivos. Mas ao mesmo tempo, quem mais ela
poderia conhecer e manter distante de si enquanto cruzava o
mundo? “Eu não sou solitária mãe, eu sou artista.”
Riok, aurora. Lam, tempo. Termo de um dialeto ancestral, uma
língua perdida na terra revolta: amanhecer. O Despertar.
- E então, como foi?
- Foi um ano antes da Taila nascer. Ela tinha voltado pra cidade
com um espetáculo novo. Naquela época eu já estava trabalhando
em outro jornal, muito mais expressivo, tiragem nacional. E como
cortesia, recebemos alguns ingressos para sortear na redação.
- E você ganhou? Quais eram as chances? - Amanda se
empolgou.
- Não exatamente. Um tempo antes disso, um dos meus colegas
trabalhava num especial sobre os trinta anos da Lei do Limiar. Sua
matéria era sobre os efeitos do Sono, como as pessoas estavam se
adaptando. Eu tinha dado o contato de uma médica pediatra que
estudava os primeiros casos de crianças acordando no meio da
noite, como se estivessem criando uma resistência às doses. Você
sabe como isso é raro hoje em dia, mas naquele tempo estava
acontecendo cada vez mais: quinze, vinte por cento. Hoje em dia é
o quê?
- Três por cento, eu acho.
- Pois então. Ele conseguiu esse furo graças a mim. E foi um
furo importantíssimo, foi depois disso que começaram a
manipular diferentes dosagens e oferecer acompanhamento para
reajustes. Enfim, esse meu colega ficou extremamente grato e disse

152
DIAS FERPELLA

que me devia um favor. Mais tarde, quando eu vi que ele havia


ganhado um ingresso, achei que fosse o momento de usar aquele
trunfo.
Dominique estava com trinta anos quando o recebeu nos
bastidores, junto com os convidados. Ela não o reconheceu de
imediato, mas a lembrança ainda vivia nela e o reencontro a
alegrou. Uma das colegas de Ênio, que parecia já manter contato
com a artista pela maneira que a parabenizou, fez questão que ela
fosse conhecer a redação. Dominique se animou e prometeu
tentar. Ali Ênio hesitou em falar com ela, se acomodou na
possibilidade de vê-la novamente em breve. E quando se
despediram, ela propôs sem rodeios “Quer almoçar comigo
amanhã? Minha vez de te entrevistar.” ela brincou.
Dali em diante, Dominique encontrou seu refúgio de
intimidade física. Quando ela passava por aquela cidade, se
demorava uns dias a mais para encontrar Ênio. Algumas vezes se
viam em outros estados, quando num capricho do acaso ele era
designado para cobrir uma notícia em uma cidade compreendida
em sua turnê.
A gravidez foi uma surpresa. Ela tinha planos de abrir uma
escola de dança, ele gestava a ideia de escrever um livro. Eles nada
mais eram além de bons amigos, agora unidos para sempre na
combinação de seus materiais genéticos. Mãe e Pai. Ou pelo
menos assim deveria ter sido.
- E você nunca tentou ver a mamãe?
- Assim que eu cumpri minha pena, eu procurei saber da sua
avó. Por ela nunca ter dito nada e nem aparecido na Clausura, eu
imaginei que ela tivesse perdido o bebê. Eu fiquei sabendo dela
através de um amigo meu, da época em que eu trabalhava no
jornal. Cheguei a falar com Nique, mas ela disse que… Bom, não
deu em nada. Mas eu mandava cartas e cartões de aniversário pra
Taila… Mesmo que eu não tivesse resposta. Às vezes eu mandava
uma folha em branco, sem saber o que dizer, certo de que o
conteúdo não importaria pra ela. Mas eu continuava mandando,
pelo menos pra que ela soubesse que eu nunca desisti dela.
Amanda abriu a mochila e tirou o manuscrito amarelado.
Colocando-o cuidadosamente sobre a mesa, olhou séria para o avô.
- Você leu. Bom. Bom…

153
NICTOFOBIA

- Por que você nunca terminou? Por que não publicou sua
versão? Por que não falou nada?
- A Socoma não permitiu. Ofereceram um acordo de liberação
condicional para que nenhum dos envolvidos nunca falasse
publicamente sobre o assunto. Mas não é como se eu tivesse
escolha. Mesmo que eu escrevesse, eles iriam se assegurar que
nunca fosse publicado. Minha única escolha era tirar alguma
vantagem da minha posição. Então aceitei o acordo e minha pena
foi reduzida. Comecei a escrever assim que voltei pra casa, sem
pretensões de publicar, mais com o intuito de tirar isso da minha
cabeça.
- Mas por que abafaram o caso? O que a Socoma queria
esconder?
- O que você sabe sobre o ocorrido? O que sua mãe e sua avó te
contaram?
- Ah, elas nunca jogaram a culpa na Socoma. Disseram que
houve uma troca de tiros, só isso. Que vocês resistiram, tentaram
fugir e atiraram.
Ênio se levantou e andou até a janela. Ele se privava da dor do
arrependimento. Não era de se admirar que Dominique não
quisesse vê-lo e fora manipulada pelas mentiras da Socoma,
seguindo suas recomendações de não encorajar a presença daquele
criminoso. O jornalista que não reproduz mentiras é um
criminoso. Minha vez de te entrevistar, mesmo que seja tarde
demais, mesmo que seja através de minha neta. Mas que bom seria
se o tempo não passasse. Se ao menos aquele manuscrito fosse
elaborado numa publicação escandalosa, não para ganhar prêmios,
não para revelar os perigos da noite para uma população alienada,
mas para dar explicações a uma bailarina, uma doce raba-do-
oriente. Para que ela não sofresse, para que ela não tivesse que
estar sozinha, para que não acreditasse nesse sentimento de
decepção. Para que fosse Mãe e Pai. Mesmo que para isso fosse
suprimida a liberdade de um criminoso, que muito mais fez além
de apenas burlar o limiar, que atirou, fugiu e possivelmente
matou. Que reproduziu mentiras a se calar com sua verdade.
- Me fale sobre a noite. - ele se virou para Amanda.
- Eu nunca vi a noite.

154
DIAS FERPELLA

Ele sorriu cabisbaixo, meio aliviado, meio satisfeito. - Imaginei.


Vamos dar uma volta.
A amiga de Amanda, Nina, falava dos simuladores noturnos que
ela frequentava já há um tempo e insistia, pelo menos uma vez por
mês, em ter sua companhia. Ela começou a se abrir para a ideia
depois daquele relato do seu avô.
E andando pela vizinhança tranquila, sob o Sol da tarde que
aquecia os gramados, ele contou para a neta o que permanecia
ainda límpido na sua cabeça e que até então lhe causava pesadelos
noite ou outra.

***

- Por que vocês demoraram tanto?! - Giulia estava furiosa.


Viana e Andrei chegaram juntos com Lenny e Vinícius. Dentro do
carrinho havia roupas, travesseiros e cobertores.
- A gente encontrou a entrada pro estoque. Demorou um pouco
pra descobrir onde acendia as luzes.
- É, mas valeu a pena. O lugar estava atraindo cada vez mais
noturnos. - Lenny completou a fala de Vinícius.
- Disso eu sei bem! Eles estavam tentando nos pegar, mexendo
com nossas cabeças. - Giulia continuava abalada pela experiência.
- A gente tinha certeza de que as luzes tinham sido coisa deles,
uma armadilha pra fazer a gente apagar as lanternas. - Francis
observou. As lanternas continuavam acesas em volta deles.
Sem perder mais tempo, ajudaram Francis a entrar no carrinho,
cuidadosamente forrado com travesseiros e edredons para lhe dar
mais conforto. Junto dele, iam as garrafas d’água e as lanternas
restantes, apontando para diversas direções. Atravessaram o
supermercado a passos largos, apesar da segurança de um recinto
iluminado.
Lenny se aproximou de Giulia e perguntou como ela estava,
num tom mais baixo que o da conversa dos rapazes. Ela abanou a
cabeça. Seus cílios estavam unidos pelas lágrimas que por ali
passaram, se secando em seu rosto.
- Eu realmente pensei que vocês tivessem nos abandonado. Não
por egoísmo, mas por falta de opção. Pensei que alguma coisa
pudesse ter acontecido e vocês tiveram que fugir para fora do

155
NICTOFOBIA

supermercado e não mais voltariam. Mas o pior de tudo é que eu


cogitei fazer o mesmo. Por um momento, por um segundo, eu não
me importei com Francis, não achei justo me sacrificar por ele.
Mas isso é horrível, ele é meu irmão e precisa da minha ajuda…
Não poderia simplesmente deixá-lo. Mas essa era minha ética
falando, não minha vontade.
- Eu sei o que você quer dizer. Acho que essa é uma situação em
que a gente não sabe como vai agir, apesar de todo nosso caráter,
educação e cultura. Porque quando sentimos medo, essas coisas
não importam muito. O medo nos leva a um lugar desconhecido,
nos mostra um lado de nós mesmos que preferimos nunca ver.
Mas é quando vem à superfície o instinto mais primário de toda
criatura viva.
- Instinto de sobrevivência… - Giulia constatou e Lenny
concordou em silêncio. - Isso me faz pensar… Nenhum de nós é
confiável. Esse ser egoísta está em todo mundo e a gente se
importa com o outro apenas enquanto estamos seguros. Ninguém
aqui pode afirmar que te protegeria numa situação de perigo, e
que não pensaria primeiro em salvar a própria pele. Está além do
nosso controle…
Lenny ficou em silêncio, não havia uma boa resposta para
aquilo. Não queria fazer uma promessa e tampouco queria
aumentar a desconfiança de Giulia. O altruísmo pode ser
facilmente esquecido diante de uma situação de risco. Era algo que
eles teriam que descobrir de acordo com o desenrolar da noite. E
ela não estava otimista o bastante para pensar que a travessia do
Parque seria tranquila e descontraída. Uma pessoa havia morrido e
ela não conseguia tirar aquele fato da cabeça, que retornava assim
que ela se distraía, como se seu inconsciente não estivesse disposto
em deixá-la esquecer. Uma pessoa morreu, Leonora. Vocês não são
invencíveis, não são intocáveis. Vocês estão vulneráveis, Leonora.
Quem será o próximo?
Portas de vidro. Agora, com a eletricidade reinando no
supermercado, elas se separaram ao detectar a presença do grupo
com seu sensor de movimento. Diante deles, a escuridão do
corredor avançava contra a luz que escapava pelo piso, apenas por
alguns passos. Era como uma caverna profunda e habitada por
algum carnívoro faminto e hostil. As lanternas se perdiam ao

156
DIAS FERPELLA

longo do corredor, perturbando a escuridão, tão imaculada que


chegava a causar um desconforto, como se eles estivessem
ofendendo a noite e fossem em breve pagar por seus pecados.
Giulia se adiantou para uma das portas e jogou um pouco de água
contra o vidro. Nada de incomum aconteceu. Sabia que, mesmo se
tivesse acontecido, não teriam outra opção. Mas era melhor estar
preparado caso algo os aguardasse lá fora.
O grupo trocou olhares, se preparando mentalmente e
confirmando todo o procedimento. Viana empurrava o carrinho,
Lenny e Vinícius iam na frente, Giulia e Andrei na retaguarda,
olhando mais para trás do que para frente. Todos atentos a
qualquer ruído, a qualquer fenômeno. Francis também contribuía
com uma lanterna na sua mão esquerda, vigiando os lados com
Viana. Avançaram devagar, aproveitando ao máximo a claridade
do supermercado. E então, a fronteira da luz ficou para trás. Era
um corredor largo, talvez levasse vinte passos para cruzá-lo da
esquerda para a direita. Eles se sentiam bem organizados e
ganharam confiança para avançar.
O carrinho trepidava ao passar pelo rejunte dos mármores no
piso. E esse ritmo de alguma forma soava como um coração
batendo: rodas da frente, rodas de trás, silêncio, rodas da frente,
rodas de trás, silêncio.
As lojas fechadas os cercavam, escondendo figuras no breu
atrás das vitrines. Corpos acéfalos, decapitados e esquartejados,
corpos de plástico, arrumados elegantemente. O corredor se abriu
para os lados numa bifurcação: o grupo seguiu para a esquerda, já
conseguindo visualizar a saída.
Vasos gigantescos abrigavam seres silenciosos, erguendo suas
folhas negras por entre os seixos do tamanho de punhos humanos.
O ar estava tão carregado que parecia negar qualquer ruído, como
se movimentos ali dentro fossem desprezados e pudessem acordar
a mais preguiçosa das plantas. Blocos de madeira morta,
esculpidos em formas abstratas e assimétricas, tomavam o meio do
corredor, dispostos a acolher o fardo de pernas cansadas. As veias
cadavéricas das árvores transpareciam secas por baixo do verniz. E
as lanternas seguiam queimando aquela paz mórbida e gelada.
O caminho terminava numa chapa de metal sanfonada, que
descia de um rolo no teto e barrava a passagem para o externo.

157
NICTOFOBIA

Havia um pequeno cilindro de metal junto ao chão, preso ao canto


direito, desafiando o grupo com uma fechadura. Andrei
provavelmente conseguiria abri-la com alguns clipes de papel, mas
não havia nenhum ali, exceto talvez no supermercado. Mas agora
os corredores pareciam infinitos diante da possibilidade de voltar.
Andrei se adiantou para o vaso mais próximo e trouxe uma
pedra grande:
- Espero que isso resolva.
Ele se ajoelhou e golpeou fortemente a tranca, sem resultado
nenhum além do protesto afinado do metal ecoando para longe,
no confinamento da galeria. Lenny notou, não era como se
estivessem protegidos; eles estavam encurralados. Ela continuou
iluminando o corredor atrás deles, junto com Viana e Giulia.
Vinícius obsrevava Andrei, achando que seus comentários seriam
úteis de alguma maneira.
- Vamos logo, tem alguma coisa errada… - Lenny ficou inquieta.
Aquelas repetidas pancadas eram um chamado: estamos aqui,
venham nos pegar. O lamento de um animal ferido e vulnerável,
um novilho que acaba por atrair um lobo ao suplicar pela mãe. O
sino tocava para anunciar uma refeição.
A aflição se espalhou para seus companheiros. Agora era
Vinícius que golpeava, de todas as direções, e o único dano que a
tranca aceitava eram arranhões. Entre as batidas era possível ouvir
um outro som: um estalo discreto.
- Não está funcionando. Vamos ter que voltar, tentar outra
coisa. - Andrei argumentou de pé ao lado de Vinícius. Este, por sua
vez, chacoalhou a tranca impacientemente e descobriu que ela
estava bamba. Um pouco de progresso reanimou seus esforços.
Pegou a pistola em sua cintura, mas não pretendia dispará-la e
correr o risco de um ricochete. Ao invés disso, ele enfiou a coronha
entre o portão e o trinco, usando a arma como uma alavanca.
Agora que as pancadas haviam cessado, Lenny conseguia
identificar aqueles estalos. Estavam vindo para aquela direção, do
outro extremo do corredor, passos invisíveis. As luzes se lançavam
pelo piso, mas nada atingiam além dos vasos e bancos.
- Estão ouvindo? - Lenny quase sussurrava, como se sua voz
fosse dissolver o ruído.

158
DIAS FERPELLA

- Onde estão? - Viana correspondeu. Os passos continuavam,


sobrepondo uns aos outros, algo se arrastava ou arranhava.
- No forro! Estão no forro! - Lenny constatou, ainda
sussurrando e apontando sua lanterna para o teto. Os outros a
imitaram. Giulia sacou a arma e já apontava para o possível alvo
escondido por trás das placas brancas. O som estava ali em cima,
há dois metros, e agora parecia se mexer sem sair do lugar, apenas
se revirando ou se acomodando. Giulia engatilhou e segurou o
punho firmemente.
O trinco estalou, se soltando aos poucos do portão.
- Vamos, vamos…
Andrei mudou o ponto de apoio, agora posicionando a arma
contra o chão e puxando para cima.
Lenny pousou a mão sobre o antebraço de Giulia, num gesto
que pedia para ela esperar. Giulia entendeu, mas não tirou o dedo
do gatilho. Viana tinha dado alguns passos para trás.
Um estampido ressoou quando o cilindro metálico se soltou do
portão.
- Consegui!
O portão se enrolou acima deles quando Vinícius e Andrei o
levantaram de uma vez. Uma porta de vidro insistia em manter o
grupo lá dentro.
- Ah não! Já chega. - Vinícius ergueu sua arma e antes que
alguém pudesse impedi-lo, disparou contra a porta. Uma bala saiu
com a explosão e estilhaçou o vidro, que caiu derrotado nos
degraus lá fora. Mas não foi o único estrago feito pela pólvora. O
cano da arma não conteve a pressão e a liberou através de suas
peças. O som foi mais agressivo do que seus tímpanos esperavam.
Giulia tomou controle do carrinho quase num movimento
involuntário e o empurrou para fora do corredor, virando para a
direita, onde uma rampa descia em dois lances. Andrei e Vinícius
desceram as escadas num pulo, seguidos de Viana. Lenny teve uma
inspiração súbita de puxar o portão para baixo ao passar.
Enquanto ela descia as escadas, podia ver as lanternas reunidas
próximas ao carrinho e Giulia repetindo “não… não…” com uma
voz trêmula. Enquanto ela iluminava os degraus para seus passos,
ela viu gotas de sangue pelo caminho, cada vez mais frequentes até
se tornarem uma única linha. “Foi um Fenômeno! Caralho, não

159
NICTOFOBIA

pode ser!” Francis se desesperava vasculhando dentro do carrinho


com Viana. “Aguenta firme, cara, aguenta.” Vinícius estava de
frente para Andrei, que por sua vez nada dizia. No meio do rastro,
os restos de uma arma coberta de sangue jaziam no chão.
Lenny se acercou para ver um cobertor envolvendo a mão do
amigo, já passando algo de rubro para seu padrão limpo e claro.
- Vini… - ela olhou em seus olhos, mais confusos do que
assustados, como para quem olha para uma criança com uma
notícia ruim. - Deixa eu ver.
Por baixo do tecido, a mão se perdia num brilho espesso de
sangue e osso.

160
V

U
m vento gelado corria pelas ruas, varrendo folhas,
colidindo com paredes, respirando fundo. As estrelas
piscavam na distorção atmosférica, bem acima dos prédios
que se levantavam ao redor do trio. Alex economizava a bateria da
lanterna, guiando os dois criminosos no escuro, pelo meio da
avenida. Acendia a lanterna apenas quando ouvia um barulho
vindo de algum beco ou esquina. Já andavam há um bom tempo
em silêncio.
Na vida, passamos por aquela fase em nossa infância onde o
“eu” se insere no mundo. Já sabemos o básico da vida, o que
gostamos de comer, sabemos reconhecer e nomear alguns animais,
o que fazer quando a luz do dia acaba, a dualidade ilusória do bem
e do mal. É quando a criança começa a olhar para “os outros” e
para aquelas entidades invisíveis que os rege: a sociedade, os
hábitos, a cultura. Alex tinha por volta dos seis anos quando
conseguiu compreender o que a Socoma representava. Os guardas
da noite, ele pensava. Os detentores dos segredos de outro mundo,
os domadores de sonhos, os patrulheiros da cidade adormecida,
confiáveis, protetores, corajosos, heróis.
Para aqueles que já fantasiavam com uma carreira profissional,
o título de Agente da Socoma era comumente mencionado nas
salas do jardim de infância. Apenas uma porcentagem, tão
insignificante que nem vale a pena mencionar, mantinha o sonho
vivo depois que cresciam. Alex permaneceu irredutível nesta
porcentagem até o dia em que recebeu a notícia de seu
recrutamento.
No entanto, o jovem se decepcionou com a natureza do
trabalho. Durante seu treinamento ele percebeu que não iria
patrulhar, que sua função se daria na sede, naquele prédio
moderno e imponente ao norte do Parque, o mesmo em que ele
havia feito a entrevista. Eles não quiseram falar o motivo de ser
direcionado para um escritório, tentavam apenas ressaltar sua
aptidão e potencial para o trabalho burocrático. Mas Alex

161
NICTOFOBIA

desconfiava do desempenho insuficiente em alguma área


fundamental para um agente de campo.
Naquela época, a quantidade de agentes que se revezavam nas
patrulhas já havia sido reduzida para menos da metade. Os
agentes na sede permaneceram intocados e ali ficou Alex,
trabalhando junto a um computador, durante a monótona luz do
dia. Mas ele persistiu, seus colegas falavam de promoções e de
mobilidade e ele sabia que, já estando dentro da Socoma, havia
andado mais da metade do caminho até seu objetivo.
Aqueles meses iniciais na Socoma, todo aquele sacrifício de
trabalhar na logística e burocracia, foram uma aposta acertada no
final das contas. Levaram quarenta semanas para que ele recebesse
a notificação do seu supervisor: ele entraria na rotação do período
noturno. O conselho havia aprovado uma segunda R.O. e a folha
de pagamento foi novamente reduzida.
Parte do seu treinamento se deu junto com a nova turma de
agentes de campo. Alex percebeu que não havia nenhuma cara
nova, não eram recém contratados, eram agentes promovidos.
Agora ele sentia que estava perto.
Nesse treinamento dois instrutores falavam. Dois agentes
veteranos, com bastante experiência e conhecimento. Eles
apresentaram mais alguns segredos, coisas que não chegavam e
nem deveriam chegar ao conhecimento público. Coisas que não
eram ensinadas nas aulas de Biologia ou nas aulas de História.
Alex ouviu sobre a presença dos noturnos. A seriedade do
ambiente e do instrutor que introduziu o assunto não deixava
margem ao ceticismo. Todos ali já tinham ouvido boatos, mas
nada oficial vindo da Socoma.
A segunda coisa que Alex descobriu durante o treinamento foi a
presença de transgressores. E ninguém ali conseguia entender
porque nunca souberam daquilo, mesmo já sendo funcionários da
Socoma. A falta de detenções levava a crer que a instalação das
lombadas havia sido um sucesso.
- Bom, de fato foi. Vocês nunca verão um carro sequer pelas
ruas. Mas isso não os impediu de sair. Eles são como ratos:
sorrateiros, rápidos, ágeis. Eles se escondem e se locomovem
despercebidos. Só sabemos que eles estão por aí por causa dos
sinais que deixam. Quem for para as ruas vai ver mais detalhes

162
DIAS FERPELLA

disso comigo no próximo módulo. - um dos instrutores esclareceu


e mudou o assunto.
Alex tinha vinte e dois anos quando viu a noite pela primeira
vez. Viu da janela do seu escritório, no vigésimo nono andar, o céu
escurecendo gradualmente após o Sol sumir no horizonte. Mas era
assim que ele vivia a noite, alguns dias por mês, através de um
vidro, mais como um plano de fundo desfocado do que como um
cenário em evidência.
Agora, andando ali no meio da rua com dois transgressores, ele
estava carregando uma responsabilidade em seus ombros muito
mais pesada do que ele poderia imaginar. Nenhum agente da
última década havia sido preparado para tal situação. Com a
atividade noturna tão reduzida, as chances do pacto ser quebrado
eram praticamente nulas. Alex gostaria ao menos de ter um colega
consigo, ou que tivesse sido ele, e não Andrade, a ser capturado.
Andrade saberia o que fazer, ele teria um plano que não fosse ir
andando até a Socoma. Andrade sabia os procedimentos
emergenciais. Andrade trazia sempre uma lanterna carregada.
Andrade nunca esquecia sua arma para trás.
- Meu carro não está longe daqui. - Lucian reconheceu a área.
Eles estavam a dois quarteirões do armazém. Alex cogitou a ideia.
Da última vez que havia visto o carro havia um noturno o
rondando, curioso. Olívia encorajava, insistindo que dificilmente
ele ainda estaria por lá. Entretanto, era um desvio da rota que lhes
roubaria vinte minutos, e caso não fosse frutífero, levariam mais
vinte para retomar o rumo.
- Mas e se der certo? Chegaríamos à Socoma num instante. -
Lucian palpitou.
- E podem me deixar em casa! - Olívia testou o agente, que
fingiu não ouvir.
Lucian tinha razão. Valería a pena arriscar. O noturno
certamente não estaria lá, mas o que o preocupava era a
integridade do carro. Um Aviso poderia ter estourado os pneus, ou
causado uma pane elétrica, ou evaporado a água do radiador,
qualquer coisa. Eles se aproximavam da esquina seguinte.
- E então? Se a gente virar aqui e seguir a rua até o final… -
Lucian sugeriu mais uma vez. Então Alex trabalhou na lógica do
procedimento. Numa situação emergencial, como ele havia

163
NICTOFOBIA

acabado de presenciar, encontrar um carro era a prioridade. Eles já


haviam arriscado ir até o teatro de encontro ao resgate, o que se
mostrou como uma escolha errada. Agora ele estava próximo da
escolha que teria sido a melhor, era uma segunda chance. Era
novamente uma aposta, mas andar toda aquela distância até a sede
também não deixava de ser.
- Tudo bem. Mas vamos andar um pouco mais rápido, não
podemos perder tempo.
Eles entraram na outra rua numa marcha acelerada. Segundo
Lucian, eram três quarteirões, no máximo quatro e eles estariam
na rua onde havia estacionado. Alex não podia deixar de sentir
certa realização naquilo, por mais crítica que a situação fosse. Ele
estava no comando, ele estava tomando decisões. Se conseguisse
conduzir tudo corretamente a partir dali, sozinho, aparecendo na
sede com duas prisões, se redimindo de suas trapalhadas que
ninguém precisava ficar sabendo, ele poderia ir ainda mais longe.
Lucian se viu de volta ao início, aquela mesma rua, num tempo
que agora parecia terrivelmente distante e com toques de
nostalgia, em que a noite ainda era perigosa, mas não tão perigosa
quanto ele deixara. Ali, diante do seu carro que surgia por trás da
esquina, ele retomava seu modesto objetivo agora reduzido à
ingenuidade, quando ele queria descobrir alguma coisa sobre a
noite, qualquer coisa, em apenas meia hora e alguns metros.
O trio diminuiu o ritmo ao final da rua, se protegendo na
esquina, atrás de Alex. O agente primeiro observou no escuro e
depois ligou sua lanterna.. Não havia movimento algum próximo
ao carro, pelo menos não até onde alcançava a luz enfraquecida.
Ele avançou, lentamente, ainda verificando os arredores, somando
sua atenção à cautela dos dois que o seguiam.
À primeira vista, o carro parecia intacto. Alex teve a impressão
que um dos vidros traseiros estava quebrado, mas ao ver o reflexo
da lanterna confirmou que de fato o carro estava como Lucian o
havia deixado. Lucian se precipitou para o lado do motorista e
Alex achou melhor não criar caso. Se o motor não respondesse a
ele, não queria Lucian alegando-o como responsável. E ele
também não precisaria se preocupar com todos aqueles
formulários de apropriação temporária de veículo, uma vez que o
proprietário era o condutor.

164
DIAS FERPELLA

Olívia foi no banco traseiro e Alex tomou o lugar ao lado de


Lucian. A chave girou na ignição e despertou a máquina com
satisfação, orgulhosa de seu feito. Alex suspirou tranquilizado.
- Pela distância que aquela coisa estava do seu carro, demos
sorte que tudo ainda funciona perfeitamente. - ele compartilhou
seu alívio. Lucian ligou o farol alto e acelerou, seguindo a rua até a
avenida do Parque.
- E então, como vamos fazer isso? Primeiro me deixam e vão
pra Socoma, ou vão pra Socoma e eu fico com o carro? - Olívia se
aproximou dos bancos da frente depois que passaram pelo
armazém e viraram a direita, ainda contornando o Parque.
- Onde você mora?
- Pra lá. Você tem que fazer o retorno e…
- Vamos todos pra Socoma. - Alex interrompeu com autoridade.
- Mas onde eu me encaixo nessa história?
- Você ignora o fato de que quebrou a Lei do Limiar? Está sob
minha custódia. Os dois estão.
- Sinto muito, Olívia… - Lucian passou indiferente pelo retorno.
O asfalto ia se revelando na frente do veículo sob as luzes do farol,
num vazio perturbador.
- Tá bom, tanto faz, cara, pode me processar pela manhã. Agora
eu só preciso dormir. Não é assim o procedimento? Eles
explicaram tudinho no teatro. - ela provocou Alex, sem prestar
atenção à Lucian. Mas Alex estava irredutível. Aquela noite havia
mudado o procedimento, a situação agora era outra.
- Meu colega Andrade também explicou quando te
encontramos: estarão mais seguros na central. Precisamos de
orientação de como reaver o pacto, o mais rápido possível. Vidas
estão em jogo.
- Você nem ao menos sabe como firmar esse pacto do qual você
falou. É mesmo possível negociar uma nova trégua? Você não faz
ideia, não é? - Olívia continuou a questionar a autoridade de Alex.
Ele passou a ignorá-la e ela apelou para ouvidos diferentes:
- Lucian, você confia nesse cara? Ele parece saber o que está
fazendo? Vamos pra minha casa, eu te dou uma dose e você pode
dormir no meu sofá. A gente pode muito bem sair dessa. Eu não
sei quanto a você, mas ele ainda não me autuou, ele nem sabe
onde eu moro!

165
NICTOFOBIA

- Pra mim já era Olívia… Eu só quero colaborar e amenizar


minha situação. Eu sou reincidente, lembra? - Lucian rebateu.
- Mas por que não pode me livrar dessa? Por favor! Isso vai
acabar com meus pais! Alex… eu juro que não saio mais à noite! Eu
já estava querendo parar… Depois de hoje eu seria louca de
continuar acordada. Acredita em mim!
- Não cabe a mim julgar seu caso. - Alex se limitou a dizer, sem
se comover com sua cena.
Ela ficou calada por um tempo, meio conformada, meio
irritada. Ela se recostou no banco, suspirando e olhando para as
árvores borradas pela velocidade. Lucian seguia contornando o
Parque, já chegando à metade do caminho.
- É engraçado… É como se fosse um deles dirigindo.
- O que quer dizer? - Lucian indagou a garota pelo retrovisor.
- É como se a Socoma tivesse a vantagem numérica aqui. Como
se tivessem dois agentes me levando… Mas nós somos a maioria,
Lucian. Você colabora por uma promessa sem garantias. Esse aí
disse que não tem o poder de julgar meu caso, não pode me
absolver… E eu me pergunto por que, por outro lado, ele teria o
poder de fazer um acordo com você.
Lucian não havia se dado conta até então: a Socoma nunca
tinha oferecido um acordo. Não ali, não diante daquela situação.
Na verdade, nem mesmo na audiência. Nunca apresentaram uma
proposta formal em troca de seus supostos cúmplices.
“Nunca te ocorreu que talvez a Socoma tenha interesses
próprios?” ele ouviu a voz de Lenny reprisar na sua cabeça.
Já era possível ver as luzes da sede clareando o céu. Naquele
ponto, a pista cortava uma pequena seção do Parque. Do outro
lado daquela reta, o prédio da Socoma estaria esperando por eles à
direita. Lucian reduziu a marcha e virou na última interseção,
numa curva de quase cento e oitenta graus, guiando o carro para
Sudoeste.
- Me fala o caminho. - ele instruiu aos olhos surpresos de Olívia
no espelho retrovisor. Ela soltou uma exclamação e mandou ele
continuar subindo aquela avenida, não contendo uma risadinha de
satisfação.

***

166
DIAS FERPELLA

Ela nunca quis tomar Sono, achou absurda aquela lei prestes a
entrar em vigor. Naquela época ela estava no auge de sua
adolescência, ainda acreditando no poder do coletivo e que a
juventude poderia mudar algo que seus pais não tiveram a força ou
coragem de mudar. Clara ia a protestos, maldizia a Socoma, criava
grupos de discussão. E foi num desses grupos que ela conheceu
Hector.
“Primeiro tiram nossa liberdade, agora querem tirar nossas
horas!” ela discursava passionalmente, inflamando a discórdia. E
ele não conseguia parar de olhar para ela, mesmo quando era
outro a tomar a palavra. Ela era alguns anos mais nova que ele e
falava como os adultos do grupo, como uma pequena líder. Mesmo
quando falava besteiras, as diziam com tanta propriedade que
quem discordasse poderia até se questionar se não era ele o
desinformado. E assim que Hector se sentiu quando a ouviu dizer:
“Se a Socoma quer nos proteger, não deveriam ser mais abertos
com a população? Eles foram pelo caminho mais fácil sem nem
tentar outra solução. E acham que é mais fácil trancafiar as pessoas
do que combater esses seres noturnos. Será?”
- Você quase me convenceu ali. - ele se aproximou dela depois
da reunião.
- Em qual parte? - ela não se intimidou pelo garoto mais velho
que a confrontava.
- Que é mais fácil combater do que se esconder.
- Você discorda? Acha mesmo mais fácil se certificar de que
todo mundo esteja dormindo?
- Bom, o pai de um amigo meu trabalha na Socoma…
- Seu pai, você quer dizer.
O garoto perdeu a fala, desconcertado, e desviou o olhar,
sorrindo. E ali ele chamou a atenção dela. Ele era tímido, mas se
aproximara para uma conversa. Ele era alto e bonito.
- Não, não é meu pai. Mas o que interessa é que a Socoma foi
criada com o intuito de combatê-los. Parece que tinham uma
estratégia sólida e eficaz, mas ainda assim os números pareciam
não diminuir. Eles são muitos, são fortes, rápidos… Durante o dia
sim, talvez não tivessem a menor chance.

167
NICTOFOBIA

- Então a Socoma deveria estar se esforçando pra descobrir


onde eles se escondem durante o dia.
- Claro, mas durante a noite nós é que seríamos caçados.
- E já não caçam? Olha o número de vítimas nesta semana.
Quantas pessoas amanheceram mortas hoje?
- Provavelmente estavam acordadas…
- De que lado você está?
Hector se afastou, sem graça. Clara abanou a cabeça para si
mesma, se sentindo levemente culpada por ter repelido o rapaz.
Sua mãe, Romanie, preferia que a filha se interessasse mais por
garotos e menos por política. Ela acabaria arrumando confusão
com a Socoma. Sabe-se lá até quando esses protestos seriam
pacíficos. Cedo ou tarde alguém teria a ideia estúpida de fazer uma
demonstração mais radical, algemarem a si mesmos em algum
monumento público, se recusando a irem para casa ao anoitecer.
- Isso é genial mãe, talvez eu devesse sugerir na próxima
reunião.
Já seu pai conseguia conversar melhor com ela, tendo sua
compaixão durante o rompimento, mas não a guarda.
- Eu prometo, pai, fica tranquilo que eu sempre volto pra casa.
Agora, tomar Sono é outra história.
- Clara… Mês que vem será obrigatório. Se te pegarem
acordada, quem vai estar encrencado somos eu e sua mãe.
- E como eles vão saber? Vão monitorar o uso de luz elétrica?
Provavelmente vão cortar a energia a noite pra obrigar as pessoas a
dormirem… Aposto que vão. E mesmo se não cortarem, aposto que
a doutora Romanie vai desligar o padrão e trancar com cadeado. -
ela debochou.
- Tente conviver bem com sua mãe. Ela se preocupa. Nós dois
nos preocupamos.
- Ela mandou você falar comigo?
- Eu disse que nós dois nos preocupamos. Um dia você vai
entender, quando tiver filhos…
- Pronto, agora sim você está falando igualzinho a ela.
Talvez por isso Clara afastava qualquer chance de
relacionamentos, para afrontar a mãe, para nunca se preocupar,
para nunca virar o reflexo da doutora Romanie. “Se um dia eu tiver

168
DIAS FERPELLA

filhos, vou deixar eles ficarem acordados se quiserem” ela decidia


prematuramente.
Ela deixava a luz do quarto acesa à noite antes de pegar no
sono. E observava da varanda os prédios pela cidade em seu
protesto silencioso. Várias janelas iluminadas, a resistência, os
Insones, mostrando uns aos outros que o movimento não havia
morrido, que não estavam sozinhos. Eles podem tirar nossa
liberdade, mas jamais por completo. Ainda não. Por enquanto não.
Mas nenhum jornal dizia nada, nenhum canal na televisão
falava sobre as luzes acesas, sequer mencionava a porcentagem
opositora. Clara sabia, havia de ter jornalistas em uma daquelas
janelas dourando a noite, mas eles não queriam se expor, não
tinham a coragem de comprar briga com a Socoma a custo do
emprego. Ou até tinham, mas faltava o mesmo para seus editores.
As propagandas pré-Lei do Limiar começaram a ser veiculadas
na mídia impressa, no rádio e na televisão. A palavra de ordem era
segurança. Fique seguro, durma tranquilo, tenha uma boa noite.
Clara odiava aqueles sorrisos falsos de solidariedade, mudava de
canal, cantava em voz baixa para abafar pronunciamentos, evitava
ler cartazes e peças publicitárias, rasgava comunicados. E os
grupos de discussão aos poucos foram se tornando mais como uma
terapia e um grupo de desabafo, pois eles já haviam perdido, nada
poderia ser feito.
Os integrantes foram escasseando com o passar dos dias. Se não
pode convencê-los, junte-se a eles. Ao anoitecer, antes de tomar
sua dose, Romanie podia ouvir Clara chorando em seu quarto. Mas
a garota não tinha nada para falar com ela, que nem ao menos
escutava seu ponto de vista.
“Ela deve trabalhar pra Socoma! Ou está super feliz que, todos
os dias, vai passar mil receitas de Sono em Gotas.” Clara
desabafava com as amigas que ainda dividiam sua opinião. Mas
essas amigas começaram a mudar o discurso para uma
flexibilidade perturbadora, de que não valia a pena ficar acordada
apenas para provar um ponto e provocar fantasmas. Ninguém
estava vendo, ninguém nunca veria, talvez a Socoma. “Talvez esses
seres noturnos vejam e acabem logo com isso! Talvez eles devorem
todos esses idiotas ignorantes que acham que estão seguros ao
dormir!” E ela chorava em seu quarto, cada vez mais sozinha.

169
NICTOFOBIA

Hector ainda frequentava os protestos e os debates. E foi numa


demonstração medíocre, na última semana antes da Lei do Limiar
entrar em vigor, que eles conversaram de novo.
Trinta pessoas haviam confirmado. Menos da metade
realmente compareceu. Todos de preto, uma maquiagem
exagerada de olheiras em volta dos olhos, cartazes e travesseiros
em frente ao parlamento. Um fotógrafo apareceu, registrando num
jornal de bairro a foto de cinco centímetros por sete, com uma
matéria de cem palavras na sessão “Você viu?”. Não, ninguém viu.
Ninguém viu a dúzia de jovens deitados nas escadarias,
atrapalhando a passagem daqueles que votaram pelo
aprisionamento, se acovardando da responsabilidade de realmente
dar segurança à população. Ninguém viu Clara discursar
emocionada a plenos pulmões, sem nenhum megafone, sem
nenhum texto ensaiado, sobre a morte da noite. Ninguém viu as
estrelas escondidas atrás do azul da atmosfera. Ninguém viu os
cartazes no lixo.
Voltando para casa, num ônibus tomado pelo grupo, Clara viu
Hector sentar ao seu lado. Ele elogiou a atitude dela, do começo ao
fim. Suas olheiras estavam borradas de lágrimas, assim como as
dela.
- É assim que acaba. Se o bem sempre vence no final, talvez
sejamos nós os maus da história.
Hector pôs a mão no seu ombro. Pela primeira vez viu Clara
fraquejar. E de fato era a primeira vez que ela fraquejava, meio
conformada, meio frustrada, na companhia daquele garoto bonito
que ela mal conhecia mas que fez ela se sentir à vontade o
suficiente para abdicar de sua força e revolta. Ela estava exausta. E
o outro combatente não precisou fazer esforço nenhum.
- Mas eles fizeram. Olha toda essa campanha. - ele apontou
para a publicidade que passava por eles. - Só que eles tinham uma
arma que tornou a batalha injusta: dinheiro. A gente só tinha
paixão e um ideal.
- Não deveria ser assim… Ideias deveriam ser mais poderosas
que dinheiro.
Eles ficaram em silêncio por algumas paradas. Alguns
integrantes desceram, se despediam, prometiam ligar e se
encontrar na sexta para uma reunião de encerramento. E Clara

170
DIAS FERPELLA

decidiu reconhecer o esforço do garoto em consolá-la. Ela


demonstrou interesse:
- Então me conta: o que seu pai diz sobre a Lei do Limiar?
- Meu pai que trabalha na Socoma, ou meu pai mesmo? - ele
brincou.
- Seu pai que trabalha na Socoma.
Ele sorriu aquele sorriso constrangido de quem não sabe mentir
e que acalentava a angústia no peito dela.
- Bom, o pai do meu amigo, que trabalha na Socoma, disse que
a Lei do Limiar foi a única forma que encontraram de deixar a
população segura, um último recurso. Eu não sei se posso te
contar isso… Mas acho que eles vão fazer um pronunciamento no
Domingo, então não é tão confidencial assim.
O ônibus estava vazio naquele final de tarde, então ele não
precisou sussurrar:
- Eles fizeram um tratado, uma trégua.
- Como? Essas criaturas falam? Dialogam?
- Eu não sei como eles se comunicaram. Mas conseguiram
firmar esse pacto. Eu disse que eles talvez estivessem vulneráveis
durante o dia, tanto como estamos vulneráveis durante a noite.
Mas eles se escondem muito bem, não há sinal deles, nós sabemos
que há algo de sobrenatural nisso tudo. Já nós, somos facilmente
encontrados em nossas camas. Percebe a desvantagem?
- Então nós nos rendemos e vamos todos dormir? - ela começou
achando um absurdo, mas com sua própria fala encontrou um
sentido, constatando. - E assim… abdicamos da noite… deixamos
para eles, em troca de paz.
Hector estalou os dedos apontando para ela, confirmando a
veracidade da sua conclusão. Ele completou:
- Nós não os caçamos durante o dia, eles não nos caçam
durante a noite. Eles ficam com a noite e nós podemos ter nossos
dias sob o Sol. Eles não vão atrás dos que respeitam o pacto,
daqueles que dormem.
Clara sentiu um gosto amargo na boca. A resistência era de fato
o vilão daquela história.
- Isso é o que seu pai… Perdão, o “pai do seu amigo” diz. E o que
você me diz? - ela provocou.

171
NICTOFOBIA

- Eu não sei se eu acredito nisso. Mas se for verdade, acho que


deveria caber a cada indivíduo decidir se quer correr o risco ou
não. Ninguém deveria ser obrigado, apenas aconselhado. O Limiar
deveria ser uma sugestão, não uma lei. Eles nunca deveriam ter
feito um pacto que envolve todos nós sem nunca ter nos
consultado. Mas de novo, eu não sei se acredito nisso, Clara.
Ela percebeu que não se lembrava do nome dele e não teve
vergonha de perguntar.
Ela pôs sua mão sobre a mão de Hector e o convidou para
tomar café no dia seguinte, usando seu nome recém aprendido.
- Preciso me distrair um pouco, voltar a ter catorze anos. - ela
disse ao descer do ônibus.
Da janela do seu quarto ela podia contar nos dedos as luzes
acesas na vizinhança. Seis. Um pouco relutante, ela apagou a sua e
foi para a cama. Ela sempre achou que seria a última.

***

- Lucian! O que você está fazendo? Temos que consertar a


cagada que f… você fez! - Alex se corrigiu no último segundo.
- Olívia não tem nada a ver com isso. E sabe, Alex, ela tem
razão: que garantia eu tenho que minha ajuda vai ser reconhecida?
E como você pode afirmar que eu sou necessário pra negociar um
novo pacto?
- Se eles dependem tanto de você, Lucian, você pode pedir o
que quiser! O perdão para todos nós. A revisão de toda a Lei do
Limiar. A liberação de simuladores noturnos! - ela se empolgava
cada vez mais no banco de trás.
Alex se virou e mandou que ela se calasse. Ela respondeu com
uma lufada de escárnio.
- Dê meia volta agora. Estou falando sério. Ainda sou
autoridade aqui.
- Alex… você está no meu carro, eu estou dirigindo. Pode descer
aqui se quiser.
Alex sacou a arma, deixando-a à vista sobre seu colo. Lucian
não precisou olhar para ver o que ele havia pegado.
- Pela última vez, faça o que eu mando.
- Ele não pode fazer nada, Lucian! Vai ter que amarrar nós dois.

172
DIAS FERPELLA

Lucian acelerou ainda mais. A avenida se estendia numa reta


infinita a perder de vista. Placas de trânsito passavam por cima
deles, brilhando com o farol alto, indicando retornos que Lucian
deixava para trás. Alex apontou a arma, com as mãos firmes.
Lucian engoliu em seco, sentindo um nervosismo instintivo e tirou
um pouco o pé do acelerador, apenas um pouco.
- Vai mesmo atirar? Pensei que precisasse dele. - Olívia
provocou. Alex mandou mais uma vez que ela se calasse. Sem
abaixar a arma ele mudou de estratégia:
- Lucian, eu não tenho certeza de como firmar o pacto, eu não
sei o procedimento em detalhes, essa é a verdade. Provavelmente a
Socoma conseguiria sem você, mas com sua ajuda pode ser
possível conseguir uma trégua hoje mesmo. Esses seres vão pegar
todos que você conhece e estima, enquanto eles dormem sem ter a
menor ideia do quão vulneráveis estão. A única coisa impedindo
esse massacre somos todos nós, que ainda estamos acordados. Mas
assim que eles acabarem com a gente, eles vão pegar os outros.
Olívia sentiu a necessidade de contra argumentar, mas as
palavras não lhe vinham. Ela mesma sentiu o baque daquela
afirmação, verdadeira ou não. Se ela dormisse, se todos ali
dormissem, eles morreriam de qualquer forma, se não naquela
noite, na seguinte. E se ficassem acordados, continuariam sendo as
presas prioritárias, com chances de morrer naquelas próximas
horas. Lucian pensava a mesma coisa e acrescentava à essa lógica o
sentimento de culpa e responsabilidade. As mortes daquela noite
seriam consequência de um ato seu e poderiam ser evitadas assim
que um novo pacto fosse firmado.
- A gente já estaria na Socoma à essa altura. Então cada morte, a
partir desse momento, vai cair sobre seus ombros.
A oração verbalizada por Alex continha as exatas palavras
necessárias para convencer Lucian. Fosse um blefe, fosse verdade,
ele preferia pagar para ver. Havia muito a perder em uma aposta
errada.
- Lucian, não… - Olívia ficou receosa com a velocidade do carro
que reduzia.
- Sinto muito. Temos que ir. Não podemos perder mais tempo.
Alex guardou a arma e apertou os lábios, segurando uma
comemoração. Ele continuou com uma postura séria:

173
NICTOFOBIA

- É o certo a se fazer. Você pode salvar todos nós.


Olívia se lamentava no banco de trás.
- Cara, não… Ele está te manipulando… Não acredito nisso…
Mas que grande merda… Ai...
Lucian agora virava o carro.
- Me deixa descer então. - ela declarou resoluta.
- Sem chance. - Alex rebateu com autoridade.
Ela ignorou e abriu a porta do carro. Lucian freou
imediatamente e ela saiu, forçando uma reação de Alex: ele saiu do
carro e ficou parado próximo a porta, sacando sua arma.
- Ei! Volta pro carro!
- Vai se foder! - Lucian ouviu ela gritar, já distante.
- Alex, deixe-a ir. Não temos tempo para isso.
Mas o agente já tinha se afastado a passos largos. Lucian olhou
pelo retrovisor, a lanterna fraca indicava a distância dos dois. Mas,
independente da lanterna, ele podia ver com clareza suas formas, a
escuridão estava mais amena.
Alex a tinha alcançado e parecia segurá-la pelo braço, enquanto
ela tentava se desvencilhar com empurrões e golpes. Ele podia
ouvir seus protestos apesar do motor do carro. Lucian suspirou
irritado, já prevendo a conclusão daquele confronto. Ele engatou a
marcha ré e se virou para trás, acelerando. Mas o carro não
obedeceu. Pelo contrário, o motor engasgou e silenciou com um
solavanco.
Lucian sentiu seus ombros tensionados subirem até as orelhas.
Ele girou a chave. Uma fumaça clara subia pelo capô, se
espalhando pela luz dos faróis. Lucian não tentou novamente.
- Não se mete. - Alex ordenou ao ver Lucian saindo do carro
num salto desajeitado. Ele já pegava uma braçadeira de um de seus
bolsos para imobilizar Olívia quando o outro se aproximou
chiando por silêncio:
- Shhh. Eles estão aqui. O carro já era! - Lucian veio
sussurrando e com a postura curvada, como se aquilo por si só
pudesse escondê-lo. De fato, estava estranhamente mais claro. O
escuro não incomodava mais sua visão como fazia algumas horas
atrás. Olívia, deitada contra o chão, inerte sob o peso de Alex,
inspirou rapidamente com um som de terror.

174
DIAS FERPELLA

- Debaixo do carro! - sua voz vacilou. Dali, de pé, Lucian não


tinha ângulo para ver. Mas Alex parecia ter confirmado. Membros
se desenrolavam de uma massa confusa, nas sombras, se
rastejando junto ao asfalto, se retorcendo em articulações
maleáveis e desconjuntadas, ora animalesco, ora indubitavelmente
humano.
Olívia se sacudiu tentando se levantar o mais rápido possível.
Alex a levantou e recorreu à sua lanterna. Mas a luz estava tão
fraca que sequer alcançava a traseira do carro. Ele sacou sua arma.
Olívia, numa marcha nervosa, se afastou ainda mais, sem tirar os
olhos do veículo.
- Alex, não! Acho que não nos viu. Precisamos nos esconder! -
Lucian tocou seu antebraço, convidando-o a sair dali. Olívia já
avançava para uma rua adjacente, entre uma corrida e uma
marcha, tentando não chamar atenção. Lucian estava
impressionado como agora podia ver longe, como era possível
distinguir formas ao seu redor mesmo sem uma lanterna. Alguma
luz suave parecia vir refletindo de algum lugar, algum prédio.
Alex cedeu e o acompanhou, andando de costas, lentamente,
ainda mirando o carro. Os faróis se apagaram bruscamente, assim
como a luz interna, ativada pelas portas abertas.
O jovem agente acelerou um pouco mais, se virando e
conferindo a retaguarda de segundo em segundo. Aquela coisa
estava agora dentro do carro, como ele podia perceber
movimentos através do vidro traseiro. Ela sentia o cheiro fresco, o
calor de seus corpos ainda se atrasando nos assentos, a
transpiração discreta da mão impressa no volante.
Os dois chegaram junto à Olívia, já no meio do quarteirão que
se afastava da avenida, testando a porta de um edifício antigo, uma
grade esculpida em galhos e folhas arabescas. Eles passaram
gesticulando com urgência para que ela os acompanhasse e
desistisse de seu plano vão.
Mais à frente o trio cortou caminho por uma passagem sob um
arco, culminando num pátio de uma pequena livraria e um café.
Algumas mesas e cadeiras observavam em silêncio, inertes num
suspense solitário de objetos. No muro da direita, uma hera
sufocava os tijolos sob suas folhas escuras e frias. Elas pareciam se
mover na visão periférica, por conta própria ou pela ação de um

175
NICTOFOBIA

outro elemento invisível externo que não o vento. Olívia tentou a


porta do café e depois da livraria, fazendo um leve ruído ao
chacoalhar a maçaneta.
Alex estalou os dedos uma vez e balançou a cabeça para ela.
Lucian percebeu que ele não mais carregava a lanterna, se atendo
apenas a arma. Saindo do outro lado do beco, deram numa rua
calçada com paralelepípedos de um vermelho escuro e profundo.
Eles seguiram para a direita, entre mesas e vitrines de confeitarias
e panificadoras. Lucian olhou para trás assustado, certo de que
ouvira o som de uma cadeira se arrastando alguns centímetros, o
som de algo esbarrando acidentalmente numa quina. Ele e Olívia
trocaram um olhar assustado e se apressaram para a próxima rua à
esquerda.
Na passagem que cortava o quarteirão havia uma fonte na
parede, como uma grande pia de mármore. Linhas passavam
acima de suas cabeças, varais sustentando origamis de peixes
coloridos, decorando o pátio de uma loja de presentes. Pela água
na fonte subiam pequenas bolhas, se agarrando à bacia, prestes a
ferver. Olívia apontou para Alex, que afirmou com a cabeça
rapidamente e gesticulou para que continuassem. Algo grande
parecia esperar por eles na saída do beco, de pé, meio escondido
atrás do muro, espreitando a passagem. Ninguém pareceu reparar
até estarem a poucos passos.
Lucian seguia distraído, olhando para trás, e foi Olívia que
segurou seu braço e recuou um pouco, prendendo a respiração.
Alex ligou a lanterna, praticamente inútil, uma última vez antes
que a luz se extinguisse por completo. Ele se aproximou da figura,
percebendo que não se mexia. E então sinalizou para que a dupla o
seguisse. Quando eles passaram pelo homem, conferiram a
superfície de madeira que compunha suas feições. Uma escultura
de um felino humanoide, segurando uma lousa com a última
sugestão do chef. Seus olhos sem vida, suas presas arreganhadas
num sorriso arrepiante sob aquela luz natural.
Vejam, vejam o brilho pálido que na dança faz o seu papel...
E ao adentrar naquela rua, Lucian recebeu o choque de uma
visão asfixiante. Olhando-o de cima, estava a fonte daquela luz e
agora ele entendia porque, já há alguns minutos, a noite parecia
mais clara. Não eram seus olhos que se adaptaram, - seres diurnos

176
DIAS FERPELLA

para sempre serão cegos nas trevas - era aquele fantasma


manchado, aquele semicírculo ofuscante vigiando os fascínios e
horrores da noite, testemunha presente em canções e literatura
proibida.
...Pois há muito já se foi o Sol e a Lua soberana toma o céu.
Olívia pôs uma das mãos no ombro de Lucian, reparando seu
deslumbre singular. E ficando na ponta dos pés, se aproximou:
- Precisa ver quando ela está cheia. - ela sussurrou em seu
ouvido, muito perto para que o som de sua voz não escapasse, o
nariz gelado tocando sua orelha e seu fôlego quente contrastando
em sua pele.
Alex já tinha avançado alguns passos pela rua larga, calçada e
recortada por árvores frondosas. Olívia se apressou para alcançá-
lo. E Lucian ainda hipnotizado pelo astro, incrédulo, decifrava sua
circunferência, percebendo a sombra em suas crateras e a face
direita oculta nos cosmos.
Se deslocando, ele a escondeu brevemente atrás das copas das
árvores, seu brilho vazando pela folhagem. E antes de entrar na
próxima ruela cercada de restaurantes, ele admirou por mais um
instante. E então algo caiu.
Foi como se uma fruta enorme se desprendesse do interior dos
galhos e pingasse pesadamente ao solo. Ali, à sombra da árvore de
origem, o objeto era escassamente identificável. Mas os instintos
de Lucian definiram antes de seus olhos, mandando um arrepio
através de sua espinha e deixando suas pernas em estado de alerta.
Um movimento na sua visão periférica chamou seu olhar. Ele
podia escutar um tapear pelo beco que haviam deixado e à medida
que se aproximava ele soube que eram pés descalços cambaleando
em sua direção. Ele voltou os olhos para o objeto jogado próximo
ao tronco, o objeto que caíra com um golpe surdo, um saco de
carne, um emaranhado orgânico, alguma coisa viva ou quase viva,
despertando, ouvindo, recebendo odores e abrindo os olhos
guiados à falta de luz e à escassez dela. A coluna arqueando como
um gato. Não, mais do que um gato, como um verme. O corpo
espasmático em voracidade e furor, se erguendo em movimentos
quase anti-naturais.
E a lua amargando no céu, que há muito o Sol padeceu em
agonia para nunca mais voltar, deixando o fantasma inchado e

177
NICTOFOBIA

gélido apagando estrelas com sua luz assombrosa. E golpes de pele


gasta ressoam nos tijolos incrustados em terra infértil, e se
acercam do enorme felino esculpido na celulose de corpos
preservados, mas Lucian sequer enxerga a criatura atingir a luz.
Ele se vira e corre, sem pensar nos cervídeos, sem pensar nos
predadores que espreitam, se segurando no impulso de uma
perseguição, sem se dar conta que seu movimento brusco inflama
os instintos e entrega a permissão magnética de um ataque.
Num instante ele alcança Olívia e Alex, que se demoravam
esperando por ele. Ao vê-lo correndo, eles não questionam, apenas
o acompanham, assumindo o papel de presa. Durante a corrida,
Alex olha para trás e percebe, de relance, um noturno entrando na
rua em que estavam. Ele atira, sem o cuidado de mirar com
precisão, sem parar de correr, mais com o intuito de assustar do
que acertar. Olívia grita, apavorada, alguns metros à frente. Ele
não olha de novo para ver o resultado, se preocupa mais em chegar
ao fim da rua e virar a esquina.
Uma praça se estende, erguendo em seu centro uma enorme
estátua equestre. Os músculos de pedra refletidos na luz fosca da
lua crescente. Abaixo, uma placa azul, um símbolo familiar que
inspira Lucian a conduzir a fuga. Eles atravessam a rua e seguem
correndo pela praça.
- O que estão fazendo?
Alex não percebe o objetivo e, por um momento, se desespera
por se exporem num descampado ao invés de procurar abrigo.
Então ele vê a sinalização próxima às portas, logo abaixo do
pedestal que exibe a estátua imponente: TAT. Transporte
automatizado sobre trilhos.
Com um pouco de esforço, é possível escalar a grade de dois
metros de altura. Mas a adrenalina em seus corpos facilita a
execução rápida do movimento. Parece contraintuitivo descer as
escadas para a escuridão, mas naquele momento, ironicamente,
era a única opção.
O luar escorre pelos degraus sob seus pés apenas até metade da
descida. O corrimão central os conduz pelo resto do caminho ao
subterrâneo, não podendo evitar tropeços e passos no vazio.
As máquinas de bilhetes fornecem um mínimo de luz com
detalhes de LED e os atraem como se fossem mariposas confusas.

178
DIAS FERPELLA

A claridade se limita a um raio de três metros. Nada garantia que


noturnos não os cercavam, que não se aproximavam sem pressa
uma vez que os encurralaram. O trio tentava segurar a respiração
ofegante para ouvir o som de passos. Gatos brincando com ratos já
totalmente vencidos, sem chance de escapar.
- Quantas balas você ainda tem? - Lucian divide sua pergunta
em três fôlegos. Alex pede silêncio. Mas nada se ouvia, além do
zumbir das máquinas atrás deles. Olívia gesticula para atrair a
atenção dos dois. Ela aponta para além da luz e espera por uma
reação. Por um momento eles não entendem. Mas quando suas
pupilas se ajustam à iluminação, é possível ver uma porta
entreaberta a direita. Eles se olham em dúvida, sem dizer nada,
cogitando se é uma boa ideia sequer sugerir.
- Me dê cinco minutos. - Alex se enfia entre duas máquinas, de
lado, se espremendo e buscando algo lá atrás. Seus dedos
encontram o cabo de energia de uma delas e o segue até a parede.
Ele o puxa e mantém sua mão naquele exato ponto, onde consegue
sentir o relevo da tomada. Ele tenta ser o mais rápido possível,
pois sabe que tem a arma e neste momento não conseguiria usá-la.
A coloca em cima de uma das máquinas enquanto pega a lanterna
presa em seu cinto.
Com a força da luz ainda menor, Lucian e Olívia redobram a
atenção. Ela segura seus punhos fechados próximos a boca,
tentando controlar sua ansiedade e nervosismo. O que ela faria,
prestes a morrer? Correria para a escuridão? Lutaria? Gritaria a
plenos pulmões, expulsando o desespero em busca de paz de
espírito? Seguraria a mão de Lucian, apenas para não passar por
isso sozinha? O abraçaria pranteando seu fim? Fecharia os olhos e
pensaria em todos que um dia amou. Tocaria em seus
pensamentos a canção que mais a emocionou na vida. Choraria em
silêncio aguardando uma dor física breve que parecesse eterna,
mas que terminaria num vazio e depois escuridão e nada. Nada
mais importaria. Ela estaria morta e não precisaria se arrepender
de suas decisões e nem lamentar a vida que não viveria.
- Eles estão vindo. Alex… Eles estão aqui.
Olívia prestou atenção aos ouvidos e calou seus pensamentos.
Lucian tinha razão: algo descia as escadas. Eram vários, eram três
ou quatro. Seria rápido. Quando fosse para ser, seria rápido e ela

179
NICTOFOBIA

não perceberia quando seu sangue se exteriorizasse de suas veias e


quando seus órgãos não mais pudessem sustentar seu corpo.
Eles desciam devagar, como uma alcateia avaliando o terreno,
farejando o ar, já matando a fome com o cheiro do medo.
Alex arrancou a lanterna da tomada, pegou a arma e se
apressou para a porta depois de instruir:
- Fiquem na luz, esperem por meu sinal.
Primeiro tentou escutar, depois abriu a porta de uma vez e
jogou a luz da lanterna lá dentro. Logo ele acenava para a dupla
agoniada, que só conseguiu respirar novamente quando Alex
fechou a porta atrás deles e girou a chave.

180
VI

P
or ora, eram jardins. Eles seguiam cautelosamente pelo
pavimento, o peso do carrinho trepidando com o som de
grilos. E o clarão da Lua crescente se levanta na noite limpa
de nuvens e agora é possível enxergar além do alcance de suas
lanternas.
E aquela forma amarelada que se afasta do horizonte,
resplandecente ao contemplar o planeta, nenhum simulador
jamais conseguiu reproduzir. Nyctidromus chegou perto, verdade.
Mas existe uma mística que acompanha o luar, uma energia mansa
que influencia a vida terráquea tanto no mar quanto no ar, nos
bosques, desertos e cidades.
O sangue não mais jorra. Agora são dois os que precisam de
cuidados. Ao menos um ainda pode caminhar, a mão comprimida
por gazes e esparadrapos, apoiada numa tipóia. O caminho pelos
jardins é longo por ser sinuoso e os grilos se calam com a
proximidade de forasteiros.
- Eu me pergunto se eles controlam os Fenômenos, se é algo
que eles fazem deliberadamente. - Viana suspirou.
- Se for mesmo assim, o que eles estão esperando? Por que eles
perdem tempo fervendo água ou mudando coisas de lugar se eles
podem simplesmente explodir toda a pólvora em nossas armas? -
Lenny duvidou.
- Então foi apenas uma coincidência?
- Eu não entendo de armas pra dar um diagnóstico de
probabilidades.
- Estou falando do teatro. Da queda de energia.
- Aquilo não foi um Fenômeno. - Vinícius se manifestou. - O
padrão ficava numa área escura atrás do palco. Eles poderiam
acessar sem problemas.
- Eu acho que foi tudo coincidência. Um fusível queimou por
alguma razão, sem nenhuma intervenção natural ou sobrenatural.
A probabilidade podia ser pequena, mas se ela existe ainda pode

181
NICTOFOBIA

acontecer. Uma chance em mil continua indicando que há uma


chance. - Giulia opinou.
Lenny se lembrou de Lucian e seus papos sobre estatística. Um
discurso que poderia facilmente ser dito por ele. Mas Lenny
achava que em toda essa coincidência havia uma conexão, um
sistema buscando a homeostase, fazendo ajustes aqui e ali para
atingir o equilíbrio harmônico do caos que rege o universo.
Ela e Lucian discordavam de tantas coisas e essa era uma
dinâmica que a atraía no relacionamento. Eles trocavam opiniões
sem tentar impor uma verdade. Mas ele era convicto no senso
comum e ela o encorajava a questionar, duvidar, investigar, apurar
informações e formar seu próprio julgamento. Talvez essa fosse a
verdade que ela gostaria de impor: verdade da dúvida. Mas era
tudo um grande paradoxo, ela pensava. “Mas eu duvido, sim. Estou
duvidando de você agora, por exemplo.”
“Lucian, você não pode questionar um questionamento sem
cair de volta na armadilha do consciente coletivo!”
Aquela briga culminou no fim, mesmo após fazerem as pazes,
quando a divergência de opiniões abalou o nível de respeito e
admiração. E Lucian agiu como um babaca que ela se arrependeria
de ter perdoado. Mas isso era algo que ela não gostava de remoer.
Em mais alguns meses, talvez, ela acabaria perdendo o hábito de
pensar nele, assim como ele rapidamente se esqueceu da
existência dela.
- Eu também não acredito que eles possam controlar os
Fenômenos. Talvez essas manifestações sejam apenas o ambiente e
os objetos reagindo a uma distorção de realidade. - Andrei opinou.
- Você acha que eles não são dessa realidade, é isso? - Viana se
interessou. Nunca havia ouvido suposições a respeito do assunto
fora de seu grupo.
- Já ouvi teorias de que eles são de outra dimensão, viajantes
com a habilidade de fazer rasgos no espaço-tempo. Por isso a
Socoma nunca conseguiu simplesmente exterminá-los. Eles
simplesmente se materializam em outro tempo, onde já é noite.
Ou ainda é noite.
- É no mínimo mais fascinante do que eu já ouvi por aí, que são
mutações que vivem nos esgotos há séculos. - Vinícius
compartilhou.

182
DIAS FERPELLA

- Como uma outra espécie do gênero Sapiens? Um parente


distante que nunca descobrimos? Essa eu nunca ouvi. - Francis
entrou no assunto.
- Mais como uma subespécie de seres humanos. Os rejeitados
de povoados antigos, que se adaptaram à noite durante inúmeras
gerações. Existe um livro banido, o nome é Wenn Dunkel Ist, eu
encontrei um dia no sótão dos meus avós quando ajudei eles a se
livrarem de umas coisas velhas. É um livro muito antigo, escrito há
uns dois séculos ou três. Basicamente o autor faz um apanhado de
lendas ao longo da história de várias civilizações, sobre criaturas
noturnas. Esse grupo se expandiu e populou o planeta, seguindo
sociedades nômades, adquirindo hábitos canibais e dando origem
a todas essas lendas.
- Você ainda tem esse livro?
- Assim que minha avó viu, o entregou para a Socoma. Ela não
fazia ideia que ainda tinha literatura proibida na sua casa. Ela disse
que tinha visto pela última vez quando era bem novinha, na
biblioteca do seu pai e morria de medo. Tinha umas ilustrações
que nenhuma criança deveria ver…
- Minha tia acha que eles vieram de outro planeta. - Lenny
compartilhou.
- Mas por quê? Coisas sobrenaturais e inexplicáveis não podem
nascer e evoluir aqui? Existem coisas absurdas vivendo no fundo
do oceano, outras que parecem saídas de um estúdio de cinema
vivendo escondidas em cavernas. E tem toda uma enormidade de
seres noturnos que nunca tivemos a oportunidade de catalogar.
Nós sabemos tão pouco sobre a noite… Tão pouco sobre a Terra… -
Giulia divagou e o grupo todo mergulhou nessa reflexão proposta.
Mistérios permanentes e mentes sedentas de explicação e lógica. E
aquelas coisas cuja melhor definição se enquadra no mistério e
assim deveriam ser aceitas. Uma tempestade tropical, um
terremoto, uma água que evapora, um fungo que se multiplica, um
parasita que altera o comportamento de seu hospedeiro, um
primata que destrói seu lar, que voa em máquinas gigantes, que
manipula o fogo, o fogo em si, a textura da água, a invisibilidade
dos gases. Tudo. Como separar o natural do sobrenatural quando o
mundo todo é uma coleção bizarra - de eventos, seres, objetos e
substâncias, todos interligados - que, no fundo, na essência, por

183
NICTOFOBIA

trás de uma carapaça de arrogância e dominação ilusória, é


irremediavelmente inexplicável?
O grupo parou diante de um mapa do Parque gravado numa
placa de madeira. O caminho a seguir era óbvio: sempre a noroeste
chegariam ao prédio da Socoma. Uma trilha levava à lagoa
principal e a beirava por um bom trecho até deixá-la para trás, na
tangente, e adentrar o bosque. Uma rota tortuosa entre as árvores,
depois passando pelos parquinhos, cruzando a ciclovia, o campo,
mais um bosque e estariam na rua, bem ao lado do destino.
Depois de ter uma representação visual da distância, o grupo
aumentou o ritmo. Eles estavam confiantes que conseguiriam
fazer o percurso em menos de uma hora, talvez quarenta minutos
numa marcha apressada. Os canteiros ficaram para trás enquanto
um declive discreto convidava as rodas do carrinho a experimentar
a inércia. Aquilo contribuiu para ditar a velocidade dos passos.
Giulia se esforçava para não perder o controle na descida e Andrei
agarrou a barra do carrinho junto com ela, para que não corresse
demais e acabasse desgovernado. Francis encorajava-os a soltar, se
divertindo com a situação.
Algumas árvores se erguiam ao redor, formando uma cobertura
sobre o luar. Viana correu junto ao carrinho e Lenny ficou um
pouco para trás com Vinícius, conversando entre o fôlego pesado
de quem tem pressa.
- Ele parece melhor.
- Ele ainda precisa de cirurgia, Vini. Tem uma bala dentro dele.
A dor foi apenas mascarada pela morfina, mas o corpo dele
continua sofrendo os danos do ferimento. E isso pode ser ainda
mais perigoso, ele pode achar que está melhorando ou que não é
tão grave e logo vai se atrever a sair do carrinho ou fazer algum
esforço.
- Ou pior... Ele pode desistir de se entregar e querer apenas
dormir.
- Como você está? - ela apontou pra mão dele enfaixada sobre o
peito.
- Preocupado. Eu não quis olhar muito. Tenho medo da coisa
estar feia.
- Você só precisa de alguns pontos e talas. - Lenny tentou
tranquilizá-lo, mas ela sabia que a situação era ruim. Altas eram as

184
DIAS FERPELLA

chances dele ter tendões e ligamentos com lesões irreparáveis e


perder o movimento daquela mão ou de pelo menos alguns dedos.
E seu pulso também não fora poupado de queimaduras graves.
Mas ela não queria dar nenhum prognóstico, ela era apenas uma
psicóloga tentando se lembrar das suas aulas complementares de
primeiros socorros.
- E aqui? Como está? - ela cutucou sua própria cabeça,
perguntando sobre a dele. Pelo canto dos olhos, Lenny pensou ter
visto um ponto esverdeado se acender para além dele.
- Vem rápido, vocês precisam ver isso! - Viana convocou mais à
frente.
Além das árvores, o declive se aplainava mais uma vez e o chão
parecia feito de vidro. A grande lagoa recebia o luar e o refletia em
toda sua superfície, estática como gelo. E sobre a água, próximo a
margem e ao redor deles, por toda parte, vagalumes flutuavam
piscando diversos sinais com sua bioluminescência mesmerizante.
Todos apontavam suas lanternas para o chão e Francis desligara as
luzes laterais do carrinho. Eles andavam devagar, admirando
aquelas criaturas diminutas reunindo-se num espetáculo
reprodutivo. Nenhum deles havia visto aquilo antes, nem mesmo
Vinícius, que dentre os presentes era quem frequentava a noite há
mais tempo. Sim, já encontraram vagalumes no passado, mas
nunca naquela quantidade.
Quem poderia imaginar tamanha beleza no meio de uma
metrópole? Por onde o homem não anda, a natureza prospera. E
ali, longe de qualquer poluição visual, na verdadeira ambientação
noturna, insetos adornavam seus voos com uma comunicação
singela e peculiar.
Vez ou outra, escutavam um movimento na água, um
borbulhar, uma perturbação. “Peixes”, Andrei os tranquilizou. E
todos lamentavam que não podiam simplesmente se sentar em um
daqueles bancos, apagar todas as lanternas e apenas observar e
escutar. As luzinhas refletindo na água, no cascalho, nas folhas, no
pavimento, nas árvores, suas roupas e peles. Mas eles sabiam que
não podiam se distrair ali por mais tempo e deveriam acelerar
novamente.
O caminho era tão largo quanto uma rua e, conforme se
afastava da margem da lagoa, escasseava em vagalumes. E de

185
NICTOFOBIA

repente a noite já não parecia tão gentil. Uma brisa soprou,


raspando folhas secas pelo chão. Os grilos se calaram. Lenny
sentiu como se estivesse entrando em território hostil, saindo do
sublime para o nefasto.
- Tem certeza que é por aqui? - pois uma bifurcação havia
ficado para trás, numa curva fechada que se opunha à lagoa numa
leve subida. E agora eles acabavam de passar por um caminho
sinuoso de pedra que se oferecia à esquerda. Ainda assim não
diminuíram o passo. Quem liderava era Vinícius.
- Eu estou com essa mesma sensação… De que estamos nos
perdendo. - Viana apoiou Lenny. Giulia parou com o carrinho,
esperando por uma decisão. Vinícius parou e olhou para o céu,
buscando uma orientação a partir da Lua, agora já bem alta e
esbranquiçada. Ele usava os braços para traçar as direções
mentalmente.
- Não, é isso mesmo, o caminho faz uma curva assim. - Andrei
demonstrou projetando o rumo do pavimento com sua mão.
Vinícius se virou para noroeste e constatou que a curva prevista os
colocava na direção certa.
- Gente, por favor, não vamos nos perder… - Giulia
choramingou.
- Não, está tudo certo, é por aqui. - Vinícius confirmou,
disfarçando a insegurança de sua voz com passos decididos.

***

Cinco anos atrás, Amanda conversava no refeitório com seus


colegas. Chegava a ser deprimente ver todas aquelas mesas vazias,
saudosas de acomodar centenas de agentes. Agora somente uma
dúzia serviam o propósito.
- É provável que na próxima R.O. eles fechem esse andar. - ela
reproduziu o boato.
Aquela era a segunda “Reestruturação Operacional”, como a
diretoria oficialmente chamava. Mas os agentes todos sabiam se
tratar de um eufemismo para “Corte de Verba”. A grande perda
daquela vez havia sido o sistema automático de bloqueio viário,
implantado junto com a proibição de simuladores. Foi doloroso
saber que aquele equipamento novinho - apenas sete anos de uso -

186
DIAS FERPELLA

viraria sucata urbana. A diretoria via as lombadas de espinhos


como um gasto desnecessário, argumentando com uma lógica
equivocada: não se via mais atividade civil após o limiar, não havia
Insones dirigindo por aí como antigamente, nenhum carro para
ser detido. E os agentes riam da incoerência. “Se não tem carros é
justamente por causa das lombadas!”
E alguns outros poucos agentes sabiam que aquele sistema era
bem sucedido apenas em evitar a circulação de veículos não
autorizados. Mas os Insones tinham outros meios de se locomover,
meios mais discretos, mais silenciosos.
- Como assim eles alegam que não há mais atividade civil? Eles
não receberam os relatórios de patrulha! Só essa semana eu
preenchi uns vinte formulários de avistamento! - Correa se
revoltava e Amanda rebatia a dura verdade: eles não ligam para
avistamentos, eles querem prisões. Se ninguém foi detido até
então, significa que não há ninguém para se deter.
O que eles não percebiam era que não se tratava apenas de um
trabalho dos agentes de campo. Grande parte das operações
dependia do setor de inteligência, aquele mesmo setor tido como
principal alvo da primeira “Reestruturação Operacional”. Agora
agentes de campo em “esfriamento” - jargão usado para aqueles
que não saíam numa patrulha devido à rotação semanal -
assumiam a tarefa, carentes de um treinamento especializado.
Com isso, um terço do prédio teve suas portas trancadas.
Aqueles andares receberam o apelido de Tártaro, o inferno grego,
o abismo insondável, as trevas.
O setor de inteligência não foi o único a sofrer cortes
homéricos. A patrulha urbana, já defasada em quase sessenta por
cento desde a primeira R.O., recebeu novo golpe. A mudança foi
implementada aos poucos, reduzindo gradativamente as viaturas
na garagem, os equipamentos no almoxarifado, os agentes nas
ruas. A intenção era disfarçar um corte radical, executando-o com
um conta-gotas ao longo de dois anos.
- Dez carros? Eles estão loucos. Como dez unidades vão dar
conta de uma cidade inteira? - Amanda não conseguia acreditar
como chegaram àquele ponto.
- Eles não acham mais necessário, Feller. Se tinha alguma
geração que poderia criar caso com o limiar, era essa. Mas não foi

187
NICTOFOBIA

isso o que aconteceu. Vai fazer dez anos que os simuladores


fecharam e, aos olhos deles, a cidade inteira continua dormindo.
- Téo, eles estão lá fora. A gente tinha que estar apertando o
cerco, e não dando brecha!
A perdição de uns é a ascensão de outros. Alex Villares,
trabalhando já há três anos na sede, no período da noite, não
precisou esperar pelo terceiro R.O. para realizar seu sonho de ir à
campo.
- Em Setembro vai ter uma cerimônia de aposentadoria de
alguns veteranos. Eles vão precisar de novos agentes de campo e
hoje eles vão divulgar os nomes aptos para o teste. - seu colega
anunciou. Alex não teve dificuldades em encontrar seu nome, o
primeiro da lista em ordem alfabética. Ele fez sua inscrição
naquela mesma noite.
Em Dezembro, o refeitório foi lançado ao Tártaro. Metade do
prédio da Socoma estava desocupado e mudar a localização da
sede já era cogitada pela diretoria. As patrulhas foram reduzidas
ao número que conhecemos e Amanda já começava a amadurecer
uma mudança de carreira. Até mesmo seus colegas já acreditavam
no sucesso absoluto da Lei e se consolavam dizendo que deveriam
estar felizes, que aquilo significava um bom trabalho por parte
deles. A noite estava em silêncio, apenas agentes na rua
patrulhavam inutilmente as horas restritas entre o limiar e o
despertar. Três Unidades batendo papo furado pelo rádio,
escutando música, espantando noturnos, desafiando uns aos
outros a bater o recorde de velocidade na Avenida Costa Branco.
- Vejam só…
- O quê?
- Estamos virando ratos.
E assim era uma questão de tempo até que o programa de
monitoramento fosse completamente extinto. Quanto menos
pessoas acordadas, melhor. Os andares superiores foram
ocupados, o Tártaro foi tomado por alquimia moderna,
manipulando elementos e criando fórmulas durante o dia. À noite,
continuava abrigando as trevas em sua solidão perpétua.
Amanda “esfriava” nos domingos e nas quintas. Quinta era sua
folga, Domingo ela fazia trabalho diurno. Ela sentia o peso de um
setor inteiro e não temia carregá-lo. Não estava pronta para deixar

188
DIAS FERPELLA

a Socoma, se dependesse dela e apenas dela, ela chegaria à uma


resposta. Havia sim atividade civil noturna, ela não se enganava
quanto a isso. Para ela e mais um punhado de agentes, quando os
avistamentos e evidências cessam, é porque os ratos estão mais
organizados.
Se a cada três anos o balanço era feito e uma R.O. acontecia,
então eles tinham mais um ano apenas para encontrá-los. De
preferência capturá-los, uma prova irrefutável de que tal crime
ainda não fora erradicado e que a Socoma ainda era necessária.
O telefone tocou. Amanda atendeu certa de que era uma
chamada interna:
- Feller.
- Eu gostaria de fazer uma denúncia.
Amanda ficou sem reação por um momento. Ela ouviu colegas
falando de denúncias anônimas nos últimos dez anos, mas
nenhuma delas gerou resultado algum. E ainda assim era um
número insignificante e era surpreendente o fato daquele disque
denúncia ainda estar em funcionamento. “Eu posso contar nos
dedos quantas vezes aquele telefone tocou” Marlon compartilhou
mais tarde, tendo trabalhado na Inteligência por treze anos antes
de ser realocado para as ruas depois do segundo corte.
- Pode falar. - Amanda avançou numa caneta e procurou por
um pedaço de papel.
- Bom, parece que no Lion… Eu sei de pessoas que… - a voz do
outro lado da linha hesitou, parecendo incerta.
- Sim? Você tem o nome dos suspeitos? - Amanda encorajou.
Não houve resposta. Ela tentou outra pergunta:
- Qual é o local?
A ligação havia caído. Os minutos que se seguiram passaram
ansiosos por mais uma tentativa, mas nunca voltaram a ligar.
Lion. Amanda pesquisou nos registros:
Rua Lion Mazard
Imobiliária Lion
Lion Consultoria
Salão Golden Lion
Mountain Lion Artigos Esportivos
Hotel Lion
Gráfica Big Lion

189
NICTOFOBIA

“Parece que no Lion...”, ela se lembrou. E assim ela excluiu


todos os artigos femininos da lista, ficando com o hotel e o salão.
O último, ela conferiu, era um pequeno salão de beleza no centro
da cidade. O hotel parecia um palpite mais coerente. E por quase
duas semanas ela frequentou o restaurante, persistindo sozinha na
sua única pista, sua única chance concreta, até então, de chegar a
algum lugar, de trazer a Socoma de volta ao jogo, recompensar o
grande felino derrotado a caçar ratinhos atrevidos.

***

Aquele lugar era conhecido como “fonte das escadas”. Havia um


chafariz ornamentado com estátuas barrocas, suas águas desciam
pelas escadas, entre pequenas muretas centralizadas. Era uma
escadaria larga, extensa, três lances de treze degraus. No verão era
um ponto preferido por crianças e pássaros, banhando suas penas
ou molhando seus pés descalços no manto de água que escorria
até a segunda fonte, aquela que jazia no centro da praça inferior.
À noite tudo se cala, a água morre nos canos e se estagna nas
bacias de pedra polida. Os olhos lisos das figuras de granito
contemplam o vazio do ar, divagando em uma paz perpétua,
escutando os ruídos noturnos, rígidos em suas poses. As lanternas
perturbaram gentilmente seu transe e aquelas pessoas tentaram
não encarar as estátuas, como se tal afronta fosse de fato
engatilhar uma reação. Mas não são olhos e não são rostos. São
pedras manipuladas em curvas familiares e nos engana ao se
disfarçarem de corpos humanos.
Um pequeno painel com o mapa das trilhas aguardava próximo
ao parapeito, à direita das escadas. Um ponto vermelho indicava a
localização atual, numa área central do Parque. O grupo se
aproximou para estudar o percurso.
- Ali embaixo. Aquele caminho ali atravessa o bosque. - Vinícius
se adiantou, parecendo reconhecer o caminho que indicou do alto
da escadaria: um pavimento além da praça, além do fontanário.
- Não há outra maneira de chegar lá? - Giulia se preocupou com
o obstáculo para o carrinho de supermercado que levava seu
irmão. Ele se manifestou diante do silêncio incerto que tomou o
grupo:

190
DIAS FERPELLA

- Tudo bem, eu posso descer. - ele se ajeitou, tentando se


levantar. Giulia o impediu com um toque no ombro ileso. Tinha
que haver outra maneira, dar uma volta, ou mesmo carregar o
carrinho com ele dentro. Mas, de acordo com o mapa, aqueles
trinta e nove degraus continuavam sendo a melhor opção, e
Francis estava disposto - ou ainda mais: estava decidido - a descê-
los com suas próprias pernas.
- Apenas vamos, não podemos perder mais tempo.
Ele se levantou com dificuldade, se apoiando na lateral interna
do carrinho. Lenny fez coro aos protestos de Giulia, que seria
melhor evitar tal esforço. E bem verdade que, ao se levantar, ele
sentiu sua visão turva se fechando em estrelas negras e uma
pontada de dor nas suas têmporas. Mas respirando fundo ele
manteve o equilíbrio de seu corpo enfraquecido e mascarou seu
abatimento. Ele desceria devagar, um degrau a cada respiração.
Giulia e Viana ofereceram seus ombros e braços como apoio.
Viana permanecia cravando o mapa do Parque na memória. O
percurso pelo bosque era sinuoso e bifurcado e se perder ali
poderia ser o fim. Seus olhos findáveis consumiam os detalhes, tão
intensamente que era como se soubessem que não muito lhes
restava para ver.
O carrinho ficou a cargo de Lenny e Vinícius, precariamente
carregando com sua mão esquerda pela barra enquanto a garota
agarrava a grade frontal com ambas as mãos. Ela jogou sua
lanterna para dentro do carrinho, repetindo o gesto de Vinícius e
iniciaram a descida um pouco depois de Francis e seus ajudantes.
- Viana, vamos!
Ele repassou o caminho mais uma vez, sussurrando
repetidamente instruções a fim de decorá-las. E então se deu a
ordem de seguir e alcançar seus colegas, que já chegavam ao
segundo lance de escadas. Mas assim que ele se virou, seu olho
esquerdo captou um movimento bem no limite da sua visão. Ele
parou por um segundo e mirou sua lanterna nas grandes peças
rochosas da fonte.
Durante a descida, Andrei notou algo na fonte de baixo:
- Estranho… eu tinha certeza de que eram cinco.
- Do que você está falando? - Francis murmurou em resposta.
- Eram cinco estátuas. Tinha uma agachada do lado esquerdo…

191
NICTOFOBIA

- Também estou com a mesma impressão… - Giulia


E ao mesmo tempo, lá em cima, Viana escutou um farfalhar dez
metros atrás de si, como se algo saísse do meio das plantas do
jardim. Sem parar de andar, ele verificou a retaguarda e sua
lanterna nada encontrou. Mas quando se virou, o ser já estava a
menos de dois passos, vindo como um cão feroz pela sua esquerda.
Por reflexo, Viana tentou se esquivar, dando alguns passos
desesperados para sua direita. O parapeito o acertou na coxa e
aquela coisa se lançou sobre ele.
Alguns eventos acontecem de forma tão rápida que uma
descrição não faz jus aos segundos e os estendem ao tempo de
uma leitura. Nesse caso foram três. Viana viu a criatura investir
pela esquerda e com o susto projetou seu corpo para longe, se
chocando contra o parapeito e de relance ver o momento do
ataque. Aqui se passaram quase dois. O terceiro segundo foi o
último da sua vida.
As mãos buscam uma salvação sólida contra a gravidade. Mas a
força implacável o puxa com violência e as mãos se debatem no
vazio do ar gelado e nada tocam. Ele viu seus pés se erguerem e
percebeu suas costas livres para receber o impacto. Ele puxou o ar
em pânico e lágrimas embaçaram a cena. E tudo que passou pela
sua cabeça foi um desamparo grotesco de uma única sílaba: “não!”
Ele tentou virar seu torso e jogar seu braço para trás, como se
aquilo fosse protegê-lo do baque. E ele sentiu o peso do seu corpo
despencar sobre seus ossos quando um golpe o atingiu
brutalmente pelas costas. O ar escapou de seu peito como um
balão que se rompe sonoro de agonia e dor. À essa altura, sua vida
atinge os últimos milésimos de segundo. Sua cabeça segue o
movimento da inércia, vencendo os músculos rígidos de seu
pescoço e, com um breve solavanco, encontra os tijolos do chão.
Sua visão rapidamente escurece e ele se deixa levar pela
inconsciência, para um lugar sem dor e medo. Sem coisa alguma.
Viana viu a noite pela última vez aos dezessete anos.
O grupo já terminava o segundo lance de escadas quando viu o
lampejo de uma lanterna despencando à direita. Em seguida
ouviram o som oco de uma pancada sobrepondo um ganido baixo.
Todos se entreolharam espantados.

192
DIAS FERPELLA

Lenny largou o carrinho e em quatro pulos desceu os degraus


restantes. Ela xingava em silêncio numa prece indecente, já
adiantando a cena que veria. Andrei se desvencilhou de Francis e a
seguiu. O próprio Francis esqueceu a letargia e com uma descarga
brusca de adrenalina desceu os degraus com Giulia num instante.
Vinícius terminou de descer o carrinho, de forma barulhenta, os
poucos degraus até o terceiro lance e se deslocou até o parapeito.
De lá pode ver Lenny e Andrei já ajoelhados diante de um volume
escuro. Ele identificou pernas e amaldiçoou em voz baixa. Andrei
se levantou com as mãos na cabeça e Vinícius pode ouví-lo xingar.
- Ele está bem?
Ninguém o respondeu. Agora Francis e Giulia se aproximavam
com suas lanternas. Vinícius se preocupou, olhando para trás e
para os lados, se sentindo terrivelmente vulnerável e sozinho.
“Temos que ir…” ele pensou.
- Temos que ir. - ele disse para si mesmo e em seguida gritou
por Lenny, descendo as escadas como uma enxurrada.
Francis abraçava Giulia, murmurando algo para acalmá-la. E
Lenny lá estava, ainda ajoelhada diante daquele garoto que ela
conhecera por algumas horas e gradualmente cativava a todos.
Suas mãos pesadas com o sangue dele, fluindo através de seus
cabelos encharcados e preenchendo os sulcos do calçamento. Por
quê? Como isso aconteceu? Onde estava aquela autoridade que
logo chegaria e anunciaria um engano ou a esperança de uma
cura? Como se não fosse o fim, como se não fosse a morte.
Vinícius a agarrou pelos ombros, buscando-a fundo em seu
transe. Ele dizia que havia noturnos por ali e que tinham que ir. O
noturno impiedoso que cravou em Viana a marca da morte,
impondo o fim de sua vida num ataque de três segundos. E que se
regozijava coberto de trevas em algum canteiro ali embaixo,
aguardando os espólios de sua conquista, o sangue quente de sua
vítima, sua presa. E se reagrupando, envolvendo o grupo através
de pontos secretos onde a luz não alcança, onde nem mesmo o
luar crescente pode perturbar, preparando o desenrolar do
próximo abate.
Lenny se levantou e se viu sozinha. Não, Francis e Giulia
estavam ali. E logo ela viu Andrei e Vinícius descerem com o
carrinho, com uma pressa preocupante. “Não podemos deixar ele

193
NICTOFOBIA

aqui.” Lenny tentou dizer, mas as palavras não chegavam à sua


voz. E ela soube que aquele aperto, aquela angústia, aquela
fatalidade e amargura a tomar todo seu corpo deveria ser o estado
mais puro do medo: aquele que veio mostrar um lado seu que ela
preferia nunca ver. E que traz à superfície o instinto mais primário
de toda criatura viva.
Eles correram, para além da fonte, para longe daquele lugar
amaldiçoado e eivado com sangue jovem. As lanternas
concentradas nos passos que deixavam para trás. O carrinho desce
o meio fio para o pavimento num estrondo que poderia danificar
suas juntas, mas ele resiste, pois o próprio carrinho concorda em
sair dali, buscando na distância um porto seguro. Giulia não
parava de repetir um vocabulário empobrecido em palavrões,
perdendo em volume a medida que seu fôlego se alterava. Andrei
apenas choramingava, fragilizado, em palavras distorcidas. Francis
tapava a boca com ambas as mãos, sua cabeça inclinada para trás.
Vinícius empurrava o carrinho aflito, quase com raiva. Lenny
seguia em silêncio.

***

Quase um século atrás, quando a avó de Ronie e Luana tinha


apenas nove anos de idade, ninguém falava sobre a Lei do Limiar,
nem mesmo dentro da Socoma. Clara passava por uma fase de
sono inquieto: ela insistia em ficar acordada para assistir àqueles
documentários de vida selvagem com seu pai ou aos
divertidíssimos jogos de Perde-Três que sua mãe promovia na sua
casa duas vezes por semana com alguns amigos. E quando ela
finalmente cedia às insistências e negociações do seu pai, antes
que viessem as ordens e castigos de sua mãe, ela ficava no mínimo
duas horas virando de um lado para o outro em sua cama. Ela
adormecia com as risadas do carteado ou aquela música da vinheta
dos documentários. E quando ela finalmente cedia ao sono, ela
acordava pelo menos uma vez por noite e gritava por água, que
seus pais fielmente se revezavam para atender. Pela manhã ela
acordava exausta de tanto sonhar ou sobre uma poça úmida de
urina noturna.

194
DIAS FERPELLA

E já se tornava um hábito tentar se esgueirar entre os


cobertores do casal reclamando de pesadelos ou fantasmas na
casa.
- Clarinha, meu bem, você já está bem crescida pra dormir com
a gente. - Romanie conversava.
- Bem crescida para ter esse tipo de medo, isso sim. - Daya
murmurava entre dentes, acidentalmente alimentando uma
hipocrisia rasgada da época. Os pais se faziam de corajosos para
seus filhos e, a portas fechadas, engoliam os temores que, há não
muito, eram deuses de seus pensamentos.
Um dia, na escola, durante uma aula de educação física, ela
comentou dos barulhos insistentes que chegavam do quintal e às
vezes de dentro da casa, no andar de baixo.
- Não são fantasmas, burrinha. São os seres noturnos. - uma
amiga debochava enquanto outro se preocupava:
- Eu já vi um. Na casa da minha avó, no sótão. Depois daquele
dia, nunca mais fiquei acordado até tarde. Eu vou pra cama umas
sete da noite e tranco a porta. E se eu não consigo dormir…
A menina o interrompeu:
- Mas não adianta trancar o quarto. Se eles te marcaram, eles
vão te pegar de qualquer jeito. Pensa: como ele conseguiu entrar
no sótão?
- Ai, não quero falar disso, tenho medo. - uma garota que ouvia
resistiu ao assunto.
- Eu não tenho medo. Tem os patrulheiros que protegem a
gente. - um outro interviu.
E assim que Clara tomou conhecimento da Socoma, todos
aqueles carros que ela via pela janela, circulando pelas ruas
equipados com fortes luzes. Ela trouxe aquela descoberta para o
almoço e seus pais confirmaram, atribuindo o nome à organização.
Mas, por mais que houvesse a proteção da Socoma, ainda assim
era perigoso andar na rua depois do anoitecer.
- Por causa dos seres noturnos? - a criança curiosa testou.
Romanie lançou um olhar desafiador para Daya, esperando que
ele respondesse. Ela não podia esconder a satisfação vitoriosa em
seus lábios que lutavam para negar um sorriso. E então Daya teve
que engolir seus ideais e teve a conversa mais franca que poderia

195
NICTOFOBIA

ter com uma garotinha em pleno final de sua primeira década.


Afinal, ela já era bem crescida para lidar com a realidade.
- Clara, existem umas criaturas durante a noite que são hostis,
isto é, são perigosas, podem nos machucar muito, até matar. Por
isso ninguém sai de casa quando escurece. Nem se a gente
quisesse poderia sair: é proibido.
- Ninguém nunca saiu?
- Houve um tempo em que as pessoas ainda podiam sair. Os
seres noturnos ainda não eram tantos e eram mais discretos e
tímidos. Seus avós saíam na época em que se conheceram, por
exemplo, bem antes de eu nascer. Eles diziam que tinha muita
gente na rua, tudo costumava ser iluminado e vez ou outra
acontecia alguma Anomalia ou um avistamento. Era bem raro.
Diante da expressão de confusão da filha, Romanie explicou os
termos. O primeiro fascinou a menina; o segundo a deixou
apreensiva. Ela adoraria ver uma Anomalia, as leis da física
suspensas por um momento, como mágica, só que de verdade.
Mas ela jamais gostaria de testemunhar uma aparição daqueles
seres que supostamente rondavam ou adentravam sua casa.
- Você já viu um?
- Eu e sua mãe já vimos…
- Ui… é mesmo? - ela ficou assustada.
- Uma Anomalia, Clara. Fique tranquila. Até onde eu sei nunca
viram uma dessas criaturas por esses lados. - Romanie esclareceu.
- Legal! E o que aconteceu?
- A televisão ligou sozinha, só isso, não foi nada de mais. -
Romanie se esforçou para transmitir tédio.
Mais tarde, Daya provocou a esposa enquanto ela escovava os
dentes e ele já aguardava deitado na cama.
- Então os papéis se inverteram, foi? Agora é a doutora Romanie
que decidiu alienar a filha?
- Eu percebi que ela não se lembra. E se ela já esqueceu, que
bem faria trazer aquilo de volta?
- Parece que você finalmente entendeu que é desnecessário
assustar a menina com esse papo. Logo a Socoma vai dar um jeito,
você vai ver. Antes que a Clara tenha sua primeira espinha, as
coisas vão se tranquilizar de novo. Eles dizem que estão perto de
encontrar uma solução.

196
DIAS FERPELLA

- Daya, sabe o que é engraçado? Não é nem o seu otimismo de


achar que isso vai passar. Da maneira como eles proliferam essa
mensagem, é de se esperar que as pessoas realmente passem a
acreditar num futuro tão próspero quanto o passado. Você diz que
eles estão perto de encontrar uma solução. Tá certo... O que é
engraçado mesmo é como eles alegam isso há vinte anos.
- E você não acha que a tendência é que eles acabem resolvendo
tudo com o passar do tempo? Certamente estamos mais perto da
solução do que há vinte anos.
- É o que se espera, que eles estejam falando a verdade; e não
tentando ganhar tempo enquanto não fazem a menor ideia do que
estão fazendo. Mas eu ainda acho, as coisas vão piorar muito,
muito mesmo, antes de finalmente começarem a melhorar. - ela
foi encontrá-lo na cama, apagando as luzes do banheiro.
- O que eu tenho de otimismo você tem de pessimismo.
- Doze ataques em cinco dias, Daya? As pessoas estão morrendo
em suas próprias casas. Nesse caso o otimismo beira a
ingenuidade.
Porque aqueles números computados nos jornais, aumentando
diariamente, eram como a ventania indicando o início de uma
tempestade. Aquela geração se considerava intocável, pois
cresceram na era pós-Recolhida. Aqueles que nunca saíram não
poderiam ser marcados, jamais deixaram um odor fresco nas ruas
do anoitecer. E as portas fechadas, a casa isolada do externo,
deveria ser uma barreira eficaz contra criaturas bestiais,
animalescas, selvagens. Pois eles não pensam, eles não falam, eles
não planejam, eles não são tangíveis. Se houvesse alguma fagulha
de inteligência nesses seres, na certa não era mais brilhante do que
a de um cão doméstico. Se eles entravam nos lares sem sinais de
arrombamento e aguardavam silenciosamente pelo apagar das
luzes, necessariamente agiam por instinto ou pelo sobrenatural.
Mas o ponto principal era: ninguém estava seguro. Agora eram
pessoas que nunca haviam saído, os filhos crescidos dos últimos
Insones, que viviam o pesadelo dos pais. E Daya vivia na esperança
de que Clara não precisasse perpetuar esse medo, que “logo teria
um fim”.
- Esses barulhos que ela escuta… Você acha que são eles? Você
acha que eles vieram atrás dela?

197
NICTOFOBIA

- Ronie, querida, nossa filha tem pesadelos e faz xixi na cama.


Você é a médica aqui e está culpando fantasmas e monstros ao
invés de algum trauma? A causa são essas brigas constantes que
ela presencia. Por isso, mais uma vez eu insisto, vamos fazer isso
dar certo, vamos tentar evitar os conflitos.
- Agora você vai dizer que o que eu vi na casa antiga também
foi um pesadelo? Caramba, Daya, é quase como se você estivesse
em negação. É como se você não quisesse aceitar que isso é uma
realidade porque você não saberia lidar com o medo. E é por isso
que a Clara tem pesadelos e morre de medo de toda e qualquer
madeira que estala: porque você está criando ela numa bolha de
covardia. - Romanie sussurrou rispidamente, evitando elevar o
tom. Daya revirou os olhos e suspirou impaciente.
- O seu discurso mudou de novo… Há dez minutos você
defendia que ela não precisava saber dos detalhes de quando ela
era bebê. Agora você defende o quê? O que você sugere? Porque
quando é pra falar, você volta atrás. Quer que traga ela aqui e abra
o jogo sobre tudo? Sobre o aumento dos ataques, os tais
“avistamentos domésticos”; que essa guarda aí fora, da Socoma,
mal consegue proteger a si mesma, quanto mais a população? Que
essas criaturas entram nas casas que quiserem sem nenhum
impedimento? E que não é só ela, mas a mãe dela também tem
problemas para dormir e quase toda noite precisa de calmantes? E
que há vinte anos falam que está tudo sob controle, quando
claramente é só uma mentira, tudo para evitar o pânico geral da
verdade de que estamos todos fodidos!
Sua fala terminou na mesma intensidade que a esposa
empregara. Romanie olhava admirada, com um sorriso malicioso
mal escondido.
- Finalmente você falou o que pensa.
- Parabéns Ronie, você ganhou. - ele respondeu irônico e
cansado, apagando a lâmpada ao seu lado e se deitando em
seguida.
Ela ainda ficou sentada sobre o colchão, de frente pra ele, as
pernas cruzadas, seus cabelos longos caindo ao redor do rosto
cabisbaixo. Ela olhou ao redor do quarto, como se buscasse um
pensamento que a pouco lhe fugira. Ela ouviu uma patrulha
acelerar há algumas ruas de distância. O frasco de Sono fechado

198
DIAS FERPELLA

sobre seu criado mudo. Então ela colocou a mão suavemente sobre
a panturrilha dele, escondida pelas cobertas, e acariciou duas vezes
com o polegar.

***

O ar dentro do bosque era ainda mais frio, como se a privação


do luar também eliminasse o calor ilusório da luz solar refletida.
Ou como se as árvores segurassem aquele privilégio dentro de seus
troncos e pouca relação tivesse com os astros.
Ninguém ali conseguia abrir um assunto. Falar de outras coisas,
após o acontecido, parecia inapropriado. Mas falar sobre o
acontecido tornaria tudo dolorosamente real. Então eles seguiram
em silêncio, primeiro acobertados pela corrida para longe das
escadas; e depois cúmplices da atmosfera do próprio bosque. Era
como se aquele lugar repelisse a vida ruidosa dos grilos, morcegos,
besouros, os passos de lagartixas, o alimentar de formigas, o
farfalhar da folhagem.
Agora eles não mais corriam: nada parecia persegui-los. Mas
não conseguiam deixar de olhar para trás a todo minuto. As pernas
doíam, a garganta queimando, o coração disparado, os pés
quentes. As árvores criavam sombras umas nas outras, se
movimentando de acordo com o deslocamento das lanternas.
Quando o grupo chegou à primeira bifurcação, ninguém quis
tomar a iniciativa de escolher um caminho, mesmo tendo a
absoluta certeza de qual deles seguir. Então a necessidade trouxe a
fala:
- É pela esquerda, não é? - Vinícius mostrava a total abdicação
do papel de guia. Bastou Lenny confirmar para que todos fizessem
coro, exceto Francis, que poupava suas energias e mesmo sussurrar
parecia um esforço tão grande quanto cantar uma ópera.
Enquanto eles percorriam o pavimento sinuoso, Lenny resolveu
compartilhar algo que ela se sentia na obrigação de debater.
- Eu tenho uma sensação horrível de que estamos fazendo
exatamente o que eles querem. Como se eles estivessem
manipulando nosso percurso e antecipando cada movimento
nosso.

199
NICTOFOBIA

- É um jogo de xadrez e não estamos jogando… - Andrei


concordou.
Mas não havia como jogar de igual para igual. Estavam
claramente em desvantagem, tanto numérica quanto
circunstancial. Pois nenhuma retina humana está preparada para
receber os espectros da noite, e eles poderiam estar se movendo
por entre as árvores, algumas dezenas de metros adentro do
bosque, dissipando o som de seus passos entre a madeira
adormecida. Apenas observando e se deslocando ao modo de uma
matilha faminta, se certificando de que aqueles intrusos diurnos
permanecessem no roteiro de sua perdição, sem improviso, sem
imprevistos, até a última cena e a última fala.
Vinícius se aproximou de Giulia. A amizade dos dois passava
por Francis, seu amigo dos tempos de escola. Francis era a
primeira das duas únicas pessoas a quem ele confiou o grande
motivo de seu orgulho: ele havia feito um “mini-simulador” no seu
quarto, vedando qualquer interferência do Sol e compilando uma
coletânea de sons noturnos. Ele tinha noites de vários biomas
espalhados pelo mundo, com hienas e gálagos, demônios e dingos,
lobos e linces. Tudo ficou completo quando Francis construiu para
ele seu próprio projetor de estrelas, objeto há muito tempo
retirado do mercado.
A segunda pessoa com quem ele compartilhou sua coleção de
noites foi Lenny. E foi aos dezenove anos que ela retribuiu a
confiança e o convidou a sair com ela e tia Luana após o limiar,
durante uma noite de eclipse da lua.
- Como você está? - ele sussurrou, não para que os outros não
ouvissem, apenas para não perturbar o silêncio do bosque. Giulia
empurrava o carrinho de compras, convertido em veículo de
resgate do irmão.
- É difícil acreditar, Vini. Antes de hoje eu nunca havia visto
alguém morrer. Eu já tinha visto pessoas mortas, vi minha avó
num caixão quando eu tinha onze anos, depois meu tio avô aos
quatorze… Mas essa situação, de estar presente na hora da morte
de alguém… E agora já são duas vezes. Eu não quero mais disso…
- Nós vamos conseguir. Já passamos da metade do caminho. Ele
vai aguentar, tenho certeza. - ele tentava se convencer com suas
próprias palavras de otimismo. Mas Francis parecia mais fraco a

200
DIAS FERPELLA

cada minuto, sua pele perdendo cor, sua respiração pesada e os


cabelos úmidos de suor. As bandagens roubando seu sangue,
acobertada por três camadas de pano.
- E você, está bem?
- O sangramento estancou, eu vou ficar bem. Parecia mais feio
do que realmente é. No máximo acho que vou ter que aprender a
ser canhoto.
- Eu estava pensando, vocês não precisam…
Andrei interrompeu Giulia, chiando num pedido de silêncio e
ergueu o dedo no ar. Ela parou de andar, calando o trepidar do
carrinho.
- O que é isso? - Lenny questionou depois de uns segundos.
Também havia escutado.
- O que foi? Um Fenômeno? - Giulia ainda não escutava.
- Não… espera um pouco.
Eles ficaram em silêncio novamente. Giulia ficava ansiosa, não
podiam perder mais tempo. E aquelas árvores que os cercavam a
deixava inquieta. A circulação da seiva no interior de seu tronco,
seres misteriosos numa forma de vida tão diversa de mamíferos.
Quando ela era pequena desenvolveu um medo de mato, quando
numa trilha fechada ela foi vítima de uma lagarta urticante, ao
esbarrar acidentalmente a perna na calma do seu alimentar. Um
medo injustamente atribuído aos vegetais, medo que apenas agora
lhe ocorria no inconsciente, uma vez dissolvido durante sua
adolescência. A torre rígida, a carne em fibras e farpas, braços se
projetando para o céu, tortos, raquíticos, e lâminas verdes a
devorar o Sol.
Então ela ouviu: o assovio fino, deslizando por baixo da terra,
discreto como uma brisa.

201
VII

A
quela primeira noite no Parque foi inesquecível. O
amanhecer foi estonteante. Mas ele não se sentia à vontade
para fazer aquilo com frequência, então assim ele a deixou.
“Olívia, não é uma questão de se formos pegos, mas de quando
formos pegos.” Aquele garoto de quem ela gostava não conseguiu
se apaixonar pela noite, não o suficiente para arriscar seu bem
estar.
Olívia achava que era uma questão de nunca. Lhe disseram que
havia cada vez menos patrulhas em atividade, a cada mês que
passava. Escárnios do tempo, agindo sobre a gigante Socoma,
apenas mais uma mortal no final das contas. Ela há de ver aquela
noite em que a liberdade triunfará e as doze horas negadas à
consciência humana estarão enfim escancaradas, sem restrições.
Três patrulhas agora, expostas em suas maquinações cíclicas,
lua após lua. Um espetáculo de tolos, perseguindo seus próprios
rastros, sem jamais se alimentar, até que o estômago se atrofie por
completo numa pífia bola de sedimento. Uma pedra, expelida nas
fezes de carniceiros, de onde brotarão flores, de onde nascerão
besouros e moscas e a vida mais uma vez prosperará.
Olívia chora. Sentada no piso frio, debruçada sobre seus
joelhos, a garota chora sem saber porquê. É o medo, que nunca se
identifica ao chegar. Olívia entende seu destino, apenas mais uma
mortal. Ela foi pega e não podia escapar, pois as flores que brotam
são carnívoras.
Lucian e Alex não perceberam os lamentos solitários de Olívia.
Eles escutavam atentamente através da porta e confirmavam a
presença de noturnos do lado de lá. Na parede ao lado, um vidro
refletia a luz da lanterna, cinco cadeiras se perfilavam ao longo de
um balcão. Estavam na bilheteria.
- E agora? Eles sabem onde estamos? - Lucian sussurrou o mais
baixo que pôde.
- Não estão tentando entrar, mas parece que estão procurando.
Vamos ter que esperar para ver se eles desistem.

202
DIAS FERPELLA

- E se não desistirem?
- Então vamos ter que esperar pelo despertar e torcer para que
eles não descubram uma maneira de entrar.
- Não pode matá-los?
- Quantos são, Lucian? Um tiro aqui dentro vai chamar todos
que estejam se escondendo nos túneis. Não é sensato. Não como
primeira opção.
Alex encerrou a conversa e se sentou no chão, de costas para a
porta. E só então Lucian percebeu as fungadas de Olívia.
Ela estava sentada quase no meio da sala, embaixo do balcão.
Ele foi agachado ao seu encontro, evitando o vidro dos guichês.
Agora eram os dois que cochichavam, quando sentando ao seu
lado ele começou:
- Está tudo bem? - e imediatamente se sentiu um idiota por
instigar uma resposta tão óbvia. Sem erguer a cabeça ela levou um
tempo para murmurar sua queixa. Ela o fazia tão baixinho, que ele
precisou se aproximar a ponto de seus braços se tocarem.
- Só quero ir pra casa, só quero dormir. Eu não fiz nada. Eu não
estou envolvida no que quer que vocês tenham feito. Por que eu
tenho que fazer parte disso?
Lucian sentiu um rochedo se formar sobre sua clavícula. Ele se
desculpou e Olívia não entendeu a verdadeira razão para aquele
arrependimento, assumindo que tivesse a ver com o fato dele não
ter sido fiel à decisão de levá-la para casa. Mas Lucian via sua culpa
ainda mais além, e isso ele temia compartilhar com ela. Era ele que
tinha traído a todos e revelado a localização do grupo no teatro. A
vida em troca da liberdade. Ela deveria agradecê-lo por salvá-la,
mas era ele quem se desculpava por prendê-la.
“Eu saio à noite! É isso, simples assim.”
E ele incrédulo começou uma discussão com Leonora:
- Atualmente? Você sai? Sempre?
- Sempre não. Algumas vezes por semana. O que foi? - ela
indagou perante aquele olhar de decepção ou desprezo ou
simplesmente confusão.
- Você sabe que isso é grave, não sabe?
- Ai Lui, não é grande coisa. Eu sei, eles fazem parecer uma
coisa absurda, impensável…
- Eles? Todo mundo.

203
NICTOFOBIA

- Todo mundo, mas… Tem sempre alguém que disse primeiro.


- E todo mundo está errado ao respeitar o limiar? Todo mundo,
Leonora.
Ela percebeu que tinha inflamado uma briga e o tom dele agora
era claramente de repreensão. Ela tentou uma última vez ignorar a
dinâmica que invadia o diálogo:
- Lui, tenta se abrir pra essa possibilidade. Existem coisas
maravilhosas à noite que eu gostaria muito de te mostrar, que
podem mudar sua opinião num piscar de olhos.
- Por exemplo?
- É do lado leste do Parque. Geralmente o que eu faço é pegar
um quarto no Hotel Lion e depois do limiar vou andando até lá.
Não dá pra contar o que é, você tem que ver. - ela sentiu uma
abertura, mas não durou mais que uma fala.
- Lenny, isso é ridículo. Não é apenas ilegal, é perigosíssimo! -
ele se levantou do sofá e começou a pegar as roupas espalhadas
pela sala.
- Cara, você não sabe disso. Só porque eles disseram você
acredita cegamente. Tenta tirar suas próprias conclusões de vez
em quando.
- “Eles.” Quem são eles, Leonora? - Lucian vestia sua camiseta.
Ela bufou num sorriso impaciente, como se respondesse qual
era a cor do céu:
- A televisão, os jornais, a publicidade. A internet… Os médicos,
as escolas, o Estado, a Socoma… Principalmente a Socoma.
- Aí está! Tudo se resume à sua birra com a Socoma. E eu não
entendo porquê…
Ela se levantou irritada e pôs a se vestir, com uma citação
provocativa:
- “A Socoma mente.”
- Ah, são os simuladores? É porque ela proibiu os simuladores?
Aliás, você acha que foi ela. - Lucian se corrigiu.
- É claro que foi. Só não vê quem não quer.
- Inacreditável…
- Nunca te ocorreu que talvez a Socoma tenha interesses
próprios? Você precisa aprender a questionar mais as coisas… - ela
deu a volta no sofá para recuperar suas meias jogadas no chão.

204
DIAS FERPELLA

- Tudo bem, você pode até estar certa. Mas eu escolho confiar
na Socoma, eles estão aí pra proteger a população.
Para Lenny foi como levar uma marretada no estômago. Ela não
sabia como reagir a tamanho absurdo, então apenas gargalhou.
Socomado. Ela gostaria de abrir os olhos dele, mas ela não poderia
sem que ele estivesse pronto. Aquela gargalhada irritou Lucian
além do limite da razão.
- Tá legal, cara. Acredita no que você quiser. E é minha escolha
abrir mão dessa gentileza da Socoma. - ela pegou suas coisas e
calçou seu tênis.
- Não. Não é. - ele foi ao telefone de modo impulsivo.
- Vai ligar pro meu pai? - ela zombou e ele ignorou o
comentário.
- Boa tarde, pode me ligar com a Socoma por favor? Sim.
Obrigado.
- Até parece…
- Você duvida? Está chamando.
Lenny deu de ombros e entortou os lábios, como se não se
importasse. Ela puxou a maçaneta da porta e saiu sem dizer mais
nada. Lucian travou seu maxilar, unindo os dentes numa mordida
poderosa. Quando a porta bateu ele ouviu uma voz se identificar
pelo fone.
- Eu gostaria de fazer uma denúncia. - ele respirou fundo. Eres,
Ceres, Plutão e Makemake nadando alegremente.
- Bom, parece que no Lion… Eu sei de pessoas que… - Lucian
hesitou.
“Lucian, essa é a Leonora. Lembra dela? A Lenny. Ela era minha
melhor amiga no colégio. Lenny, esse é meu irmão Lucian.”
“Eu sei.” ela sorriu.
Lucian desligou e pegou uma almofada para abafar a frustração
em seu grito.

***

Alex se ergueu lentamente, apenas o suficiente para seus olhos


alcançarem o vidro. A lanterna, antes conectada a uma tomada,
agora estava em suas mãos com uma recarga considerável. Ele se
arriscou a perturbar o breu da estação com a luz, encorajado pelo

205
NICTOFOBIA

silêncio que se instalara do outro lado da porta. O largo corredor


encontrava uma parede depois de trinta metros e se separava em
dois. Havia uma peça publicitária espalhando um borrão de luz
alaranjada por alguns centímetros ao redor, pela parede em que
estava instalado e pelo chão abaixo. Um mapa das rotas
subterrâneas à direita, um extintor de incêndio à esquerda.
Ele observou por alguns minutos, esperando algo acontecer. O
corredor permaneceu como uma fotografia.
Lucian consolava Olívia. Ela já estava mais calma e convencida
de que poderia amenizar sua pena. Eram circunstâncias atípicas,
certamente conseguiriam fazer um acordo se ela colaborasse. Ele
pensou consigo mesmo o quão irônico era seu discurso, cópia do
que um dia Amanda Feller e seus colegas lhe disseram. E ele fora
extremamente eloquente dado seu histórico: um quase-
condenado, alguém que passou por todo o processo que ela logo
conheceria e poderia falar com convicção.
Havia uma porta fechada, próximo ao outro extremo do
cômodo. Dali de onde estava, Lucian conseguia ver claramente
escondida na penumbra. Ele sussurrou para Alex se aproximar e
quando este veio, sugeriu:
- Podemos tentar acender as luzes da estação. O que tem ali?
- As luzes provavelmente são acionadas junto com todo o
sistema de alimentação dos trens, na central de controle. Ali deve
ser o vestiário, ou algum escritório…
Ainda assim, Alex resolveu conferir. Ele abriu a porta
lentamente e iluminou o lado de lá por uma fresta. Lucian cutucou
Olívia, deitada no chão ao seu lado, com a cabeça próxima de suas
pernas. Eles se levantaram e foram de encontro a Alex, que sumia
através da porta.
Era um pequeno corredor. A lanterna batia e rebatia nas
paredes, iluminando todo o ambiente. A primeira porta, logo em
frente, estava aberta mostrando uma cozinha estreita. A porta
seguinte era um armário com produtos de limpeza, baldes,
vassouras, esfregões. E a terceira porta, oposta a segunda, era uma
salinha com monitores escuros.
Alex teve uma súbita inspiração:

206
DIAS FERPELLA

- A sala da segurança… - ele disse para si mesmo e adentrou o


cômodo sem maiores satisfações, ansioso por confirmar suas
suspeitas.
- Um rádio! - Olívia percebeu o que o agente buscava e também
se animou. Estava sobre a mesa, abaixo dos monitores,
descansando no silêncio inquietante das máquinas desligadas.
Alex o iniciou com facilidade.
- Podemos pegar o canal da Socoma por aqui. Me lembro de ter
visto as conexões quando eu trabalhava na Operacional. - Alex se
enchia de orgulho por providenciar uma solução. Aqueles anos
atrás de uma mesa definitivamente não foram em vão. Ele
descobria ali seu grande diferencial como agente de campo.
Ele percorreu as frequências no mostrador até o número
desejado e apertou o botão do microfone.
- Agente Villares, cinco-três-zero-oito-quatro-um, requisitando
extração. - o nervosismo batalhava contra o crescente orgulho em
sua postura e ele tamborilava os dedos na mesa esperando pela
resposta. Lucian prendia a respiração, completamente dominado
pelo suspense. Olívia mordia o lábio inferior com os olhos
fechados.
E todos sentiram o indescritível alívio vibrar através do
aparelho. A Socoma respondia alheia ao incidente, julgando se
tratar apenas de um problema com o carro. Aquela noite já havia
trazido um chamado de extração: agente Feller contactara a
caráter emergencial. A central estava ciente da dissolução da
Primeira Unidade, desconhecendo apenas o paradeiro dos outros
agentes. Coube a Alex informar a respeito da quebra do pacto e o
perigo imediato que corriam com a hostilidade agravada das
criaturas noturnas. O grupo se encontrava na estação Praça
Atlântica, a quinta da linha púrpura do TAT e confirmaram a
necessidade de um veículo. Alex não se ocupou dos detalhes, na
urgência de conseguir ajuda e a central erroneamente assumiu a
presença de ambos agentes, Villares e Andrade. A trégua não mais
existia, não havia feridos. E com recursos limitados, a Socoma
ofereceu uma alternativa de transporte, convenientemente
inspirada pela sua localização:
- Podemos te dar acesso ao TAT. Faremos uma ativação remota
do sistema, está bem?

207
NICTOFOBIA

Alex se animou. Eram sete estações que os separavam da sede.


E ficariam confortavelmente confinados num trem de última
geração durante uma rápida viagem à meta. Ele conseguira, ele era
o fungo, o parasita a se instalar no cérebro do roedor e que levaria
um par de ratos, ilesos e assustados, diretamente para o estômago
do gato.
Mas não estava acabado, faltava um último capítulo antes do
epílogo: precisavam chegar ao trem primeiro. E as estações do TAT
eram famosas por sua extensão em labirintos de corredores, onde
se mostravam artes visuais, novidades tecnológicas, uma variedade
comercial e gastronômica.
Alex deu o aval. Não era uma questão a ser debatida, pensava
ele. Mas pouco importava, pois nem Olívia nem Lucian se
opunham ao plano. Era muito mais atraente a ideia de um breve
percurso até o transporte ao invés da longa caminhada até a
Socoma pela superfície, ou mesmo a espera angustiante na
estreiteza daquele espaço escuro, por sabe-se lá quantas horas até
um resgate aparecer. E no escuro, eles sabiam, predadores
ansiavam por sangue humano.
Olívia pegou um copo na cozinha e encheu com água da pia.
Quando jogado de uma vez contra a porta, ela viu o conteúdo
borbulhar, chiando numa nuvem de vapor. Ela olhou hesitante
para os dois, que permaneceram impassíveis:
- Independente de qualquer reação, temos que ir. - Lucian
afirmou o óbvio.
Se a ciência do perigo inevitável era melhor do que a ignorância
do mesmo, ninguém sabia dizer. Abriram a porta aos poucos,
testando a resposta do corredor. E com interpretações divididas,
seguiram porta afora. A escuridão que os aguardava era a mesma
que os recebera, roubando o calor da carne morna que se expunha
vulnerável.
Eles iam a passos rápidos, como acossados por gotas geladas de
uma chuva fora de hora. Olívia era a mais apreensiva dos três,
ouvindo barulhos distantes, portas se batendo, metal ecoando e
ela imaginava aquelas coisas se atracando numa descarga de fúria
inflamada pelo odor intruso de mentes despertas.
Os anúncios decorados com LED ajudavam na iluminação dos
corredores, ao mesmo tempo em que construíam a fantasmagoria

208
DIAS FERPELLA

subterrânea com cores quentes. E ao virar num corredor, retratos


governavam as paredes com semblantes enigmáticos. O trio era
julgado por olhos reproduzidos em contraste permanente e foi
quando Lucian captou um movimento impossível em sua visão
periférica, no último milímetro em que era capaz de enxergar sem
virar a cabeça.
- Alex, espera. - ele chamou o portador da luz.
- Eu sei, um Aviso.
- Eu disse que eles estavam próximos! - Olívia olhava aflita para
o escuro que os seguia.
E a placa sobre a última bifurcação indicava a direção daquele
discreto ruído agudo que se acercava pelos trilhos. Pegaram o
caminho da direita, e a besta alongada irrompeu com uma lufada
de vento naquele buraco revestido de ardósia e sustentado por
pilastras corpulentas. Desceram as escadas aos pulos e avistaram o
trem oferecendo suas portas abertas. A escuridão continuava no
interior do largo vagão e passava a estranha sensação de
inoperância. Um veículo cruzando a noite cegamente, pesado,
cansado e semi-adormecido. Um sonâmbulo.
As portas se fecharam com um sinal. As luzes se acenderam
brevemente como se averiguasse os passageiros por entre
pálpebras confusas. E o trem ganhou inércia, guinchando em seus
sapatos de ferro, mergulhando numa extensa rede de cavernas
artificiais.

***

Romanie estava grávida de cinco meses quando recebeu no seu


consultório pela primeira vez um representante de fármacos. Ele
se antecipava ao primeiro paciente da tarde e aguardava a doutora
retornar do almoço, comportadamente sentado na sala de espera.
- Menetra-Nal. - seu secretário, que já havia retornado há dez
minutos, anunciou em voz baixa. Era um garoto que Romanie
conhecera num congresso, um estudante de enfermaria que
precisava de um emprego de meio período e ela contratou, já
vendo a necessidade de um funcionário para organizar sua agenda
cada vez mais ocupada.

209
NICTOFOBIA

- O doutor Selar me disse que coisa do gênero aconteceria, só


não achei que seria tão rápido. - ela se dirigiu para o rapaz que a
esperava.
- Depois que o velho se aposentou, Katerina tem aprovado
estratégias mais agressivas.
- “Velho”, “Katerina”… É assim que tratam seus superiores? - ela
o recebeu com um sorriso, estendendo a mão para cumprimentá-
lo.
- Apenas quando não estão presentes. Como vai? - ele se
apresentou de maneira informal, retribuindo o sorriso, como se já
a tivesse encontrado anteriormente.
Ela lhe ofereceu o caminho para o consultório. Era a primeira
vez que recebia representantes e via aquilo como um ótimo sinal.
Seu nome estava ficando conhecido, seu tutor começava a lhe
repassar pacientes, conforme a idade avançava e a disposição
reduzia. Dr. Selar estava chegando numa fase em que a companhia
de seus netos era mais gratificante que a das crianças sob seu
estetoscópio.
Romanie já supunha o assunto mesmo antes que ele lhe
entregasse o panfleto.
- Sim, estou familiarizada. Ainda não me ocorreu receitar.
- A Menetra-Nal se orgulha de ter a confiança de profissionais
da pediatria por mais de três décadas agora. Já somos preferência
mundial e temos o reconhecimento de excelência do setor, com o
prêmio Gordon Levinsky e vencedora do ISP por doze anos
seguidos. Ano passado fomos homenageados na Panaceia pelo
notável e consistente crescimento.
- Eu sei. Parece que vocês se consolidaram no mercado, enfim.
Mas é difícil de engolir quando você me fala da “confiança de
pediatras”. - ela olhou o panfleto com desdém e o largou em cima
da mesa.
- Eu sei que existe ainda muita resistência aos nossos
medicamentos...
- Não por parte do público, ao que me parece. Infelizmente,
encorajar a automedicação parece um caminho mais lucrativo do
que a pesquisa.
- Doutora, eu lhe asseguro que todos nossos medicamentos são
certificados pela Odmus e são rigorosamente averiguados.

210
DIAS FERPELLA

Ele ofereceu outro panfleto, que retirou com uma discreta firula
de sua pasta.
- Nossos laboratórios trabalharam para reduzir os efeitos
colaterais. Agora são praticamente nulos. E hoje muitos
profissionais já reconhecem a excelência de nossas fórmulas e nos
recomendam com toda a segurança. Converse com seu colega,
pense a respeito. É fundamental que você se sinta confortável com
esse medicamento. Não estou aqui para te coagir com propostas,
presentes e comissões como vemos acontecer por aí. Temos o
mesmo objetivo: a saúde. A saúde acima do lucro, sempre. E como
você, queremos o melhor para nossos pacientes. Por isso acredito
que essa amizade poderá construir muitas coisas. - ele prolongou a
última vogal de “muitas”, entregando sua busca por um final de
impacto em meio a sua argumentação improvisada, mas
decepcionou na falta de um termo melhor. “Coisas.”
Romanie sentiu seu rosto se contrair levemente numa careta
involuntária que ela disfarçou a tempo com um sorriso. Ela sentiu
compaixão pelo garoto. Ele ainda tinha espinhas no rosto e ela o
comparou a seu secretário.
- Tudo bem, vou refletir sobre isso.
Ele se animou e deixou com ela algumas amostras grátis do
medicamento que promovia. Romanie os jogou dentro de uma
gaveta e fez uma rápida pesquisa sobre Menetra-Nal. Havia
aquelas coisas que todos sabiam, o escândalo da bula adulterada
que quase custou a vida da empresa e a sutil apologia não
declarada da automedicação. Mas de fato o reconhecimento de sua
conquista recente era legítimo. Pelo jeito, grandes laboratórios
também podem aprender com seus erros.
Ela tentou falar com seu mentor mas não conseguiu, deixando
um recado. À uma da tarde, abriu a porta do consultório para o
primeiro paciente vespertino, um lindo garotinho de dois anos
com a garganta inflamada que olhava curioso para sua barriga
gestante.
- Tem um neném? Posso ver? - ele pediu com sua vozinha
rouca. Ela deixou ele tocar sobre seu jaleco e explicou que não era
possível vê-la, apenas sentí-la. Antes da segunda consulta, ela ligou
para um colega. Ele disse que Menetra-Nal tinha acertado em

211
NICTOFOBIA

cheio dessa vez e não havia nada melhor no mercado. Ele


recomendava. E seus pacientes estavam satisfeitíssimos.
Ela tomou nota, mas mantinha sua desconfiança. O paciente
das duas horas era uma bebê de cinco meses, filha de um pai
solteiro que veio com a irmã. A criança estava com pontos
vermelhos na pele, que nada mais eram do que picadas de inseto.
Ela foi adorável durante a consulta, rindo para Romanie e
apaixonada com sua lanterna de exame.
Terminada a consulta ela falou com uma amiga da faculdade,
que não seguira a pediatria, mas tinha bom discernimento e era
alguém que Romanie confiava.
- Ronie, eu não costumo receitar. Mas também não tenho nada
contra. Eu tenho amigas que inclusive já deram para suas crianças
e disseram ser bem tranquilo.
Depois da última paciente - uma menininha de três anos, com
febre e choramingando de dor durante toda a consulta - Romanie
se arrumou e foi para casa. Raramente ela tinha um paciente às
quatro horas. Muitos achavam que sobrava pouco tempo para
chegar em casa antes da Recolhida. De fato, quando era esse o caso
e ela voltava para casa pouco depois das cinco da tarde, as ruas já
estavam quase vazias. As pessoas se recolhiam uma hora antes do
estipulado, não se arriscando serem surpreendidas por um
anoitecer brusco ou um imprevisto que fizesse delas um alvo -
tanto para seres noturnos quanto para os patrulheiros e suas
pesadas multas para quem não tivesse a licença de circulação
crepuscular.
Daya preparava um sanduíche e a saudou com um longo
abraço. Ele percebeu uma incerteza no olhar da esposa e a
questionou sobre seu dia. Ela tentou disfarçar, disse que não era
nada, estava cansada… Mas em seguida decidiu se abrir e contou
sobre a visita do representante. Daya não enxergou o dilema, ele
tinha usado o medicamento quando criança e, não sendo da área,
nunca soube das polêmicas envolvendo o laboratório. Na verdade,
ele nem assimilava o remédio ao fabricante.
- Verdade? Você tomava Soporiclona?
- Sim. E olha que naquela época era novidade e quase todo
mundo via com desconfiança. Imagino que eles tenham
melhorado a fórmula, não? Um medicamento não consegue

212
DIAS FERPELLA

resistir tanto tempo assim no mercado se não funcionar bem, eu


acho.
Depois do jantar, os dois assistiam a um filme no escuro da sala,
encolhidos sob cobertas, quando o telefone tocou. Romanie
atendeu, reconhecendo a voz de Cláudio Selar.
- Desculpe, sei que está tarde, espero não ter te acordado.
Romanie olhou para o relógio na cozinha. Eram oito e meia.
- Geralmente não me deito antes das dez. Tentei falar com você
mais cedo…
- Eu soube. Não consegui retornar a ligação. Não tive uma única
brecha sequer. Tive que encaixar muitas crianças. - doutor Selar
não gostava do termo “paciente”. Ele suspirou pesadamente e
Romanie estava prestes a falar quando ele retomou:
- Sabe, as coisas estão cada vez piores. A quantidade de crianças
com crise de ansiedade… Vi um menino hoje com síndrome do
pânico, Romanie. Ele tinha cinco anos. Eu nunca vi isso em todos
meus anos de profissão. Nem mesmo antes da Recolhida era assim.
- O que você acha que aconteceu?
- Acho que eles começaram a contar. Os pais. Antes era algo
lúdico, monstros debaixo da cama, bicho-papão, cuca, lobo mau.
Era um medo saudável, inofensivo e no fundo tinha a certeza de
que estavam seguras. Quando eu comecei a clinicar nenhuma
criança falava de “seres noturnos”. De certa forma parecia que os
pais escondiam, achavam que aquilo ia passar e escondiam a
realidade dos filhos. Você ouvia falar disso somente aos nove, dez
anos.
- Cláudio, eu soube desde pequena. Meus primos souberam
desde pequenos. A maioria das minhas amigas também. E vivemos
uma infância relativamente tranquila. Sim, tínhamos medo. E por
isso nunca saímos de casa depois que escurecia. Mas nunca
tivemos aquele choque de descobrir de repente, ou de descobrir
por conta própria e da pior maneira. Nós crescemos acostumados
com isso, fazia parte do nosso mundo. Não acho que os pais
escondiam, acho que simplesmente não havia tantas aparições
antes da Recolhida. Hoje, nem se quisessem, conseguiriam
esconder.
- Pode ser, minha cara, pode ser… Como está Daya? E o bebê?

213
NICTOFOBIA

- Daya está bem, ele está te mandando um oi. O Bruno está


mais quietinho, não está chutando e se movendo tanto quanto
ontem. Acho que ele cansou finalmente. - ela sorriu ao pensar no
filho que se desenvolvia, sem nunca imaginar que aquele processo
se interrompia naquela mesma noite. Ela nunca mais diria aquele
nome. E precipitadamente ela iria prometer, no meio de sua dor,
nunca mais engravidar, pois ela não servia para ser mãe. As
crianças na sua vida seriam sempre de outras mães, jamais criação
de seu ventre, de maneira alguma resultado de um amor de
primavera.
- E então, imagino que não tenha me ligado apenas para
papear. Me diga, qual é o problema? - Selar atalhou. A essa altura
Romanie já não sabia qual resposta esperar.
- Queria saber a sua opinião sobre Soporiclona Infantil.
Ela ouviu um risinho aliviado do outro lado da linha.
- Romanie, parece que é a única coisa capaz de dar uma noite
tranquila a essas crianças. Eu nunca receitei tanto quanto agora.
Ela não precisava ouvir mais nada.

***

Eram sete estações entre a Praça Atlântica e a Socoma. As luzes


estavam acesas pelo vagão e Alex se sentiu confortável para
economizar bateria de sua lanterna. De fato, ele imaginava não
precisar mais da lanterna naquela noite.
- Então, como vai ser?
- Quando a gente chegar eu vou precisar fazer um relatório
detalhado com Amanda. Olívia, antes de dormir, vai nos dar seu
relato como testemunha do ocorrido no teatro…
- Eu não vi o que aconteceu. Eu estava apagada. - ela
interrompeu.
- Apenas conte o que você viu. Eu vou preencher os formulários
de retenção. Como é uma situação atípica, não vou declarar o
horário, o que deve ajudar vocês na defesa. E não se preocupem,
eu vou tentar conseguir o atenuante de colaboração.
A luz vacilou, mas se manteve acesa. O trem parou numa
estação, abrindo as portas para a escuridão lá fora. O trio ficou em

214
DIAS FERPELLA

silêncio instintivamente, encarando a abertura ameaçadora. Um


sinal anunciou o fechamento iminente das portas e o trem partiu.
- E quanto ao pacto? - Lucian retomou, se sentindo novamente
em segurança.
- Depois que eu fizer o relatório de tudo que aconteceu eles
devem te orientar. Como eu disse, provavelmente farão ainda
nesta noite.
- Acho que você não vai dormir hoje, Lucian. - Olívia lhe sorriu
cansada, pendendo a cabeça para olhá-lo.
- Um novo recorde para mim. - ele brincou.
- Você vai ver o amanhecer, desde sua origem. Os animais da
noite se calando e os do dia despertando. - ela suspirou e jogou seu
olhar para o teto, tentando retomar o deslumbre no meio de tanto
horror. Alex bufou ridicularizando.
- Vale mesmo a pena se arriscar tanto? Vocês ao menos sabem
por que fazem isso? - ele desafiou e no momento seguinte as luzes
se apagaram. Ele pronunciou um palavrão e acendeu sua lanterna,
já enfraquecida com sua bateria incapaz. Lucian e Olívia se
inclinaram para frente, ficando um pouco mais próximos da luz de
Alex, sentado oposto a eles.
- Um Aviso? - Lucian sugeriu, sussurrando.
- Não. Apenas má sorte. - Alex iluminava ao redor. Ouvia-se
apenas o correr do trem. A luz voltou aos poucos até trazer a
claridade total mais uma vez. Alex apagou a lanterna e os dois se
recostaram no assento, um pouco mais relaxados e com esperança
de estabilidade. Lucian ainda se preocupava com seu futuro. O
trem reduziu a velocidade.
- Mas, Alex, o que você acha que eu preciso para firmar um
pacto? E com quem?
- Uma vez na sede, eles vão te explicar tudo.
- Ele não sabe, Lucian. - Olívia não resistiu a provocação.
O trem parou e as portas se abriram. Mas uma vez a escuridão
os observou lá de fora.
- Eu não gosto nada disso… - Olívia reclamou consigo mesma.
- Eles não poderiam entrar, poderiam?
- Eu me preocupo com essa luz. Talvez devêssemos trocar de
vagão. - Alex cogitou.

215
NICTOFOBIA

- Acha que é um problema com o vagão? - Olívia se encolheu


no assento.
- E se for? Não temos nada a perder em trocar. - Lucian
defendeu.
- Não sei se fico a vontade em sair daqui.
O apito. As portas se fecharam. O trem deixou a escuridão para
trás, se lançando em outro túnel. Lucian começou a ficar ansioso
ao olhar para o mapa acima da porta. Mais cinco estações. As
janelas trepidaram. As paredes rochosas passavam como um
borrão e o trilho parecia se erguer numa inclinação suave para a
superfície. Mais cinco estações. Vai dar tudo certo, nós
conseguimos. A luz piscou algumas vezes, inquieta. Alex a
censurou como se fosse um cachorro desobediente:
- Não. - ele acendeu a lanterna, se adiantando à possibilidade. A
luz se acalmou, mantendo a claridade no vagão. Alex apagou a
lanterna. O trem começou a frear quando a inclinação dos trilhos
se desfez.
- E aí, vamos ou não? - Lucian propôs antes que o veículo
parasse. Alex parecia refletir os prós e contras. Olívia
imediatamente se opôs, atestando que não valia a pena arriscar, e
a luz parecia estável agora, não havia mais se apagado. E quais
eram as chances de se apagarem enquanto parados numa estação?
O trem parou, as portas se abriram, dessa vez do lado esquerdo,
o lado em que eles se sentavam.
- Alex? - Lucian se inclinou, pronto para se levantar. O agente
acendeu sua lanterna e iluminou através da janela. A luz não
conseguia ir além do trecho em que a própria iluminação do vagão
chegava.
- Merda, espere um pouco… - ele se levantou e chegou à
abertura da porta, avançando um passo para fora e escutando
atentamente. Lucian também se levantou. Olívia observava pelo
vidro, cercando seu rosto com as mãos, como se segurasse um
binóculo.
- E então? - Lucian insistiu. O apito veio em resposta e a
escuridão inundou o espaço. Foi numa perfeita sincronia, como se
o som tivesse causado o apagão ou as sombras anunciassem seu
embarque pelos alto-falantes. Alex voltou para dentro às pressas e
Lucian se abaixou como que por reflexo. Ele ouviu o barulho das

216
DIAS FERPELLA

portas se unindo. A lanterna de Alex se aproximou. A luz tão


enfraquecida que servia mais para dizer onde ele estava do que
para iluminar a cena em si.
- Certo, os outros vagões parecem normais. Na próxima estação
vamos descer. Não vou arriscar ficar no escuro. - ele declarou sem
se sentar.
- Merda… Mas que merda! - Olívia protestou.
- Se você quiser, pode tentar sua sorte aqui.
- Não, eu vou.
As luzes voltaram e Alex apagou a lanterna. Mais quatro
estações. Olívia se juntou aos dois no corredor, se apoiando nas
barras para reencontrar seu equilíbrio na inércia. Lucian tentou
tranquilizá-la dizendo que seriam apenas alguns passos no escuro,
seis, sete, não mais que dez. Ele deixou ela passar na frente dele,
como garantia de que ela não ficaria para trás. Lucian seguia na
retaguarda, enquanto eles avançavam em direção à última porta
do vagão.
Lucian gostaria que aquilo não tivesse ganhado traços de um
dilema. Mudar de vagão poderia ter sido algo corriqueiro, sem
peso algum, mas agora dava a sensação de uma aposta, de um
risco. Eram apenas alguns passos, de uma porta a outra, o que
poderia dar errado? Poderia estar um deles sobre o trem, apenas
esperando um movimento passar pela porta? Lucian tentou afastar
todos esses pensamentos. O perigo havia ficado para trás, as
estações estavam desertas, eles sairiam de uma luz para outra luz.
O que poderia dar errado?
Túneis, buracos, e a superfície isolada contra a abóbada celeste,
perdida acima de toneladas de terra. E a besta alongada,
deslizando como um verme, velozmente num grito agonizante,
piscando em espasmos de trevas. Quatro agora. Quatro
estômagos, quatro covas, quatro bolsões de desespero, completos
até o último milímetro cúbico com pesadelos, quatro úteros
transbordando de dentes gastos e dedos alongados. O frio da
rocha que aguarda a vida, como um túmulo recebe o cadáver ainda
pulsando de memórias vãs.
- Talvez a gente devesse ficar.
E o túnel cospe o tubo metálico, e as vidas minúsculas que nele
se refugiam, num enorme salão que ninguém vê. Pois nele habita a

217
NICTOFOBIA

massa negra da noite, ocultando suas paredes distantes e seu teto


infinito que clama por superfície, por um pouco de céu. A inércia
agarra seus corpos e seus pés se contraem contra o piso, segurando
o peso de seus receptáculos orgânicos, frágeis, efêmeros. Mãos se
agarram em barras cromadas, perdendo seu calor para a forma.
- O que? - a garota se vira com olhos confusos. O agente segue
sem escutar. Lucian tenta mais uma vez, sobre o som dos freios.
- Talvez a gente…
E as luzes se apagam, sem aviso nenhum.
- Não, não, não, não! Era disso que eu estava falando! Vocês
dois, se preparem.
Ele acende sua lanterna, sem qualquer efeito. Lucian não vê,
mas eles já avançam na escuridão, deixando que suas mãos
guiassem seus passos, sem esperar pela total parada do trem.
Apenas quando ele sente a velocidade deixar seu corpo com um
solavanco e o barulho dos trilhos se dissipar, é que ele escuta os
passos que se afastam. As portas se abrem de ambos os lados.
Lucian vê um círculo âmbar flutuar para a direita, a alguns
metros de distância. Seus olhos se esforçam para rapidamente
distinguir formas. Os assentos próximos e as barras de metal
começam a se delinear no véu monocromático. Ele vê o
movimento que se segue por trás do círculo da lanterna que
desaparece ao passar pela porta. E ele vê um recorte de Olívia
quando a lanterna esbarra nela, no momento em que Alex recua
rapidamente, tão desesperado que poderia passar através da garota
caso ela não fosse sólida. Ele viu algo que o fez desistir de sair por
aquela porta. Ele passa por Olívia sussurrando sem parar “volta”,
tão rapidamente quanto seus passos. Ela o segue correndo para a
porta oposta. Lucian hesita por um segundo e um segundo basta.
Os seus olhos já captam movimentos contra a escuridão e
esboçam formas grosseiras. E assim ele consegue ver um terceiro
elemento na cena que se desenrola. Assim que os dois
desaparecem pela porta da esquerda, um sujeito esguio e alto
entra pela porta da direita. Lucian percebe seus contornos se
destacarem com dificuldade no escuro, mas o “homem” parece ter
mais de dois metros. Braços longos e tortos. E a cabeça é fina
demais para ser humana.

218
DIAS FERPELLA

A temperatura do corpo de Lucian cai repentinamente e todos


os pelos de seu corpo se eriçam quando um arrepio doloroso o
abraça. Ele contrai os lábios segurando a respiração, tão
fortemente contra seus dentes que ele sente o gosto de sangue.
Seu corpo recua mais rápido que suas pernas e ele cai sentado no
chão. Mas a criatura parece não notá-lo, ou apenas não se
importar. Ela para de se mover, como se desse muito trabalho
seguir Alex e Olívia. Ao invés disso, se curva lentamente, se
apoiando em quatro membros, enquanto suga o ar tão ferozmente
que quem ouvisse juraria que seus componentes são sólidos.
Lucian engatinha para longe, mais por instinto do que por
decisão, porque sua razão lhe diz que é inútil fugir e que ali
termina sua vida. Mas ele se afasta, desajeitado, tentando não fazer
barulho e ainda prendendo sua respiração, como se aquilo o
deixasse invisível. Apenas uma palavra vem a sua cabeça: mãe.
“O que é uma estrela?”
“É melhor eu te mostrar do que só contar.”
E ele sente uma tristeza enorme em saber que sua vida acaba
ali. Mas ele se afasta e encontra um vão entre os assentos. Seus
pensamentos berram em sua mente “É outra porta! Vai!” Ele não
olha para trás, não quer saber o quão perto aquela coisa está, nem
a velocidade em que se aproxima. Ele já pode ouvir os passos e a
respiração áspera e é aterrorizante. Ele passa pela porta e segue
agachado ao longo do trem, bem próximo a lataria. Mais à frente
ele vê a luz vazar de dentro do vagão seguinte. Alex olha pela
porta, com sua lanterna em uma mão e a arma na outra.
E algo, três andares acima, chama a atenção de Lucian. A luz de
quatro lanternas.
- Vai! Mais rápido! - uma das pessoas grita cruzando a passarela
lá em cima. De relance, Lucian vê pelo menos três criaturas
passando em seguida, andando a galopes, de maneira
desconjuntada como uma corça com o quadril fraturado. Lucian
agora alcança a primeira porta do vagão escuro e acelera ainda
mais o passo, o máximo que alguém poderia conseguir mantendo
uma postura agachada.
E então, o apito.
Lucian se levanta e corre. Alex tenta segurar a porta com o
antebraço, pois suas mãos estão ocupadas. Ele perde um tempo

219
NICTOFOBIA

precioso e não consegue impedir que a abertura se feche quase


completamente, deixando apenas o espaço de três dedos. Lucian
tenta somar sua força a dele, mas a porta não aceita perder e se
fecha sem paciência.
Lucian corre junto, com as mãos postas sobre o veículo que o
abandona, como que pedindo para esperar. Mas em poucos
segundos o trem ganha velocidade sobre-humana e Lucian vê o
vagão iluminado ser empurrado pelo vagão escuro, que agora pisca
indeciso. O resto passa como um forte vento, carregando a luz
indiferente às lamentações de quem fica. Um, dois, três, quatro
vagões se vão. E Lucian é lançado na escuridão.
Ele se abaixou, se sentindo um pouco mais protegido e
invisível. E assim esperou a dilatação máxima de suas pupilas.
Ouviu um baque ecoar em algum lugar. Era uma estação
grandiosa, onde quatro linhas do TAT se encontravam. Lucian
conseguiu ver a ponta de seus pés se mostrando abaixo dos joelhos
dobrados, assim como sua mão direita que se apoiava no chão. Ele
conseguia até ver detalhes dos ladrilhos do piso, que formavam
um mosaico colorido. Mas as cores ele não via.
Ergueu a cabeça e olhou em volta. Tudo escuro, no completo
breu, impossibilitando qualquer distinção de forma, cor,
profundidade ou textura. Lucian sabia que à sua direita estavam os
trilhos apenas pela orientação que manteve desde que o trem se
fora. Então, andando de lado para não perder a referência, ele foi
para a esquerda com o braço esticado, esperando pelo toque de
uma parede. Ele ouvia rastros sonoros do trem à distância,
potencializados pela acústica dos túneis.
Lucian torcia para que outro veículo aparecesse em breve.
Estava completamente incapacitado, não havia outra opção senão
esperar outro trem. Ele jamais acharia a saída apenas com o tato e
as luzes escassas de máquinas de vendas e anúncios de LED. Seus
dedos encontraram uma superfície dura e fria e guiou seu corpo
para se abrigar junto a ela. E Lucian decidiu, ali, ficar colado à
parede até o dia amanhecer, o próximo trem chegar ou um
noturno estripá-lo, o que acontecesse primeiro. Já não mais
importava seus desejos: Lucian estava entorpecido pela aceitação
da morte. Deve ser esse o último estágio do medo, algo que vai

220
DIAS FERPELLA

além dos instintos de sobrevivência, subjugando-os diante do


perigo onipotente.
Pois o ser humano não é tudo isso. É apenas um mortal
constantemente escapando das infinitas possibilidades de
finamento. No fim, é apenas efêmero.
Lucian fechou os olhos. Era como tê-los abertos, de qualquer
forma. Mas aquilo o ajudava a relaxar os músculos da testa e a
focar na sua respiração. Algo se aproximava.

221
VIII

O
bosque à noite era tão diferente, que os caminhos
pareciam depender dos movimentos do Sol e da Lua. Nem
Francis, nem Giulia, nem Andrei, nem Lenny, nem
Vinícius podiam dizer com absoluta certeza onde estavam. Mas
aquele som, pelo simples fato de ser audível, dava ao grupo uma
ideia aproximada da localização. Pois era sabido que naquele
parque havia duas estações da linha amarela do TAT: uma na parte
leste, outra na parte oeste.
Mas para Lenny aquele som era uma oportunidade imperdível
que se abria.
- Os trens estão funcionando.
- Como isso é possível? Por que motivo estariam? - Giulia
duvidou.
- Socoma… - Vinícius sugeriu, indo para a retaguarda do grupo,
procurando uma alternativa com sua lanterna.
- O TAT pertence à Socoma? - Andrei interveio.
- Eu não duvido.
- Eu já não me surpreendo quando descubro que algo está
ligado à Socoma. - Lenny murmurou sua fala com desprezo.
- Tem uma estação bem na sede deles. - Andrei se animou.
- Era exatamente isso que eu estava pensando. Não estou muito
confortável em continuar aqui. Esse pode ser nosso improviso, o
movimento que eles não previram. - Lenny encorajou, se juntando
a Vinícius na retaguarda.
- Acho que não é longe, aquele caminho ali atrás nos jogaria na
estação, pelo menos na direção dela. - ele disse para a amiga que
se aproximava.
- Vamos. Não temos muito tempo, ele está mal. - Giulia
adiantou a decisão, virando o carrinho com seu irmão febril. Por
baixo da terra eles chegariam muito mais rápido do que por entre
as árvores. E, todos concordavam, um descanso para as pernas
seria muito bem vindo.

222
DIAS FERPELLA

Lenny sentia chegar ao seu limite. Ela queria apenas se sentar


um pouco e deixar tudo nas mãos de um outro alguém, andar no
banco de trás, confiando aos seus pais o caminho e as decisões
seguras. E ela apenas no banco de trás, com tia Luana, brincando
de encontrar o número escolhido na placa de outro carro. De volta
aos tempos em que tudo era bom, seus pais e sua tia, sua família,
sua realidade, sua total segurança e mais ninguém no mundo. A
noite perpétua da Nyctidromus, do Via Láctea, do Epílogo, do
Insônia, do Pipistrello, as histórias de terror debaixo das cobertas,
as tardes de jogos.
Ela havia adotado Vinícius como um irmão. E Lucian como a
esperança de redimir o relacionamento fracassado dos seus pais.
Anna, sua alma gêmea, deixara a cidade. Sua tia abdicara à noite. E
aquele garoto que ela deixou morrer. Não é culpa sua Lenny. Mas
sim, você poderia ter esperado por ele. E ela que julgava Vinícius
no início daquela noite, por ter desistido de Giovani, agora estava
ao lado dele no banco dos acusados. Giovani já estava morto.
Viana já estava morto. E os réus se declaram inocentes. Por que
então a culpa se agarra aos seus tornozelos, pesando seus passos
que se esforçam em se afastar daquelas escadarias?
- Ele era tão jovem…
O caminho serpenteia entre as raízes, ferido por lanternas
agressivas que varrem a escuridão. Mas a escuridão persiste e ali,
pelo menos naquele momento do dia, ela é vitoriosa. Wenn Dunkel
Ist. E Lenny sabia que nunca mais seria a mesma. “Não é apenas
ilegal, é perigosíssimo.” E o olhar preocupado de Lucian. Essa
mulher não pode morrer… Não agora que nos encontramos. Não
ela, não agora, não assim.
- Ele era tão jovem…
- Está acabando, Lenny. Vamos conseguir.
O carrinho se arrasta, também exausto, pelo pavimento,
deslocando pedregulhos que mais parecem montanhas. Se eu
conseguir, eu paro. Eles estavam certos. “Quem são ‘eles’,
Leonora?” E a trilha se abre numa praça circular, um cubo de
concreto e vidro e um buraco no chão. E as letras T e A dispostas
num sinal magnífico. A tranquilidade agora triunfa. O terror
abdica o trono. Todo amor transcende. Toda angústia termina.

223
NICTOFOBIA

E tudo ali transpirava um certo tipo de alívio tímido, numa


tentativa de amenizar a tensão, mas teimando ainda em trazer
uma atmosfera um tanto ameaçadora. Um trem se aproximava
torrencialmente.
Uma longa esteira rolante descia a partir da entrada. Mais uma
atração, pois poucas rampas eram extensas como aquela, e
impressionantes fotografias de natureza se exibem nas paredes
para quem sobe e para quem desce. Normalmente, um percurso
agradável. Mas à noite as rampas não funcionavam. Andrei, sendo
o mais forte dos mais aptos ali, segura o carrinho para que o
mesmo não ceda à gravidade e mantenha uma velocidade decente.
Ele joga o corpo para trás, firmando os pés no chão a cada passo
que encontra.
Aquele conjunto de músculos nas suas pernas e suas costas já
eram acostumados com um esforço assim. É sua filha e seu filho
que adoram desafiá-lo no cabo-de-guerra, ele contra os dois. E
desde aqueles três segundos fatais nas escadarias, ele não
consegue parar de pensar nas duas crianças. Ele fazia de tudo por
aquele par.
Desde que sua professora da quarta série aprofundou a turma
no conceito de noite, Andrei passara a adolescência inteira
esperando pela inauguração da Nyctidromus. Ele viu a noite pela
primeira vez quando fez dezesseis anos.
“Não mostra pra ninguém. Só posso chamar cinco.” Um de seus
melhores amigos entregou um envelope com uma coruja
desenhada. Ele comemoraria o aniversário na primeira noite do
simulador e Andrei ficou extasiado em ser um de seus convidados.
Como aquilo poderia ser perigoso?
E foi já no ano seguinte que ele começou a questionar: por que
pagar, se poderiam ter a noite de graça? Então, numa sexta-feira,
não só ele, mas sete outros garotos se organizaram para sair na lua
cheia. Foi no sítio de um deles, próximo à praia, durante um fim
de semana no verão. Eles se instalaram todos num só quarto,
equipado com beliches. Na primeira noite eles não saíram da casa:
passaram as primeiras duas horas no quarto conversando sobre
garotas, depois assistiram a um filme apenas para fazer piadas de
todas as falas. Por fim foram para a varanda com uma garrafa de
gim e contemplaram as crateras e mares da lua.

224
DIAS FERPELLA

Foi na noite seguinte que se arriscaram a sair. Invadiram os


quintais vizinhos, provocaram cães através dos portões, atacaram
uns aos outros com mangueiras, escalaram árvores e foram brincar
de bola na praia. Chegaram até a fazer uma fogueira antes do
despertar. As fagulhas e o âmbar ascendendo no ar aquecido,
desaparecendo em outra dimensão. E no dia seguinte a casa ao
lado fez uma denúncia à Socoma depois que a piscina amanheceu
coberta de cinzas.
O amigo que possuía o sítio negou tudo diante dos pais, mas
nenhum dos garotos escapou de um sermão ao voltar para casa no
Domingo à tarde.
Andrei não saiu mais. Continuou esporadicamente
frequentando a Nyctidromus e às vezes ia ver uma banda tocar no
Pipistrello. Mas tomou Sono todas as noites, deixando aquele
episódio marcado apenas como uma aventura de ensino médio,
dos seus dezessete anos, quando ele tinha a idade de Viana e, por
algum detalhe em sua sorte, ele sequer vira um noturno. Em algum
lar, os pais de Viana dormiam, e por algum motivo que Andrei
nunca chegou a conhecer, Viana fora atraído pela noite, certo de
que sua juventude o protegeria da morte. Pela manhã, os pais de
Viana receberiam um telefonema que mudaria suas vidas
violentamente, da mesma forma que seus pais receberam um
telefonema naquele Domingo de manhã com notícias bem menos
extremas. Pois quem mais sofre pelos erros dos filhos são sempre
os pais e agora ele pensava em seus próprios filhos.
Foi por eles que Andrei rompera o limiar novamente, depois de
vinte anos. Foi sua esposa que teve a idéia, talvez de brincadeira,
talvez com um pouco de seriedade:
- Quando eu fiz dez anos, meus pais levaram eu e meu irmão
pra ver a Lua cheia.
- Seus pais? Rompendo o limiar?
- Não, claro que não. Foi naquele simulador enorme,
Nyctidorum.
- Nyctidromus. - Andrei corrigiu quase irritado.
- Isso. Mas a Lua foi inesquecível. Todo o céu na verdade.
- Na inauguração eles fizeram uma chuva de meteoros… Foi
incrível.

225
NICTOFOBIA

- É mesmo. Eles fizeram outra na última noite antes da


proibição e eu tive a chance de ver. Que sorte a nossa, de ter tido o
privilégio de uma experiência noturna. É uma pena que acabou. Eu
sempre pensava “se eu tiver um filho, quando ele fizer dez anos, eu
também vou levá-lo pra ver a Lua”.
Naquele ano o primogênito fecharia sua primeira década. A
caçula vinha um ano atrás. E Andrei, mais que sua esposa,
lamentou não poder dar isso aos filhos, pois somada a restrição
deles estava a frustração dela.
- Andrei… Mas não é perigoso?
- Eu tenho um amigo que sai de vez em quando. Nós podemos
ir com ele por algumas noites. Durante um mês talvez, como uma
pesquisa de campo. Se for seguro o bastante a gente pode sair no
aniversário do Lucca. Imagina o quanto ele vai ficar feliz? Ele e a
Sara sempre tiveram uma curiosidade sobre a noite.
Mas ela não ficou à vontade para ir com ele e deixar as crianças
dormindo sozinhas. E desde a escadaria, Andrei pensava nele
mesmo e pensava em seus pais. E pensava em Sara e Lucca aos
dezesseis e dezessete anos, passando por um instante fatal. Pois a
idade não protege a vida.
Não, seu aniversário seria à luz do dia e a Lua cheia seria vista
apenas contra uma imensidão azul claro. E ele reforçaria o
corolário do desconhecido perigo noturno. A noite é para dormir.
Pessoas são diurnas.
Ao final da rampa, um corredor largo esperava para guiar o
grupo. Uma goteira ecoava em algum lugar pelo subterrâneo. Eles
se apressaram, temendo perder o trem que, a qualquer momento,
poderia ser o último a passar. E então o corredor se expandiu num
salão. Giulia mirou sua lanterna para o teto, assustada.
- Acho que ouvi alguma coisa lá em cima. Um farfalhar. - ela
explicou para os outros. Para onde eles miravam, o teto nada
mostrava além de uma mancha de mofo ou infiltração no
concreto.
- Giulia, talvez você esteja paranoica. - Vinícius rebateu.
- Antes paranoica do que distraída… - Lenny tomou partido,
iluminando à sua volta. Lojas, bancos, lixeiras. E um brilho vindo
de um corredor que chegava à direita. Por ali eles foram, numa
marcha rápida. Identificaram na outra extremidade o LED das

226
DIAS FERPELLA

máquinas de vendas se destacando no escuro. E de repente, um


baque e o carrinho de compras foi sugado para o chão. Francis foi
ejetado para frente e rolou sobre o ombro bom, num movimento
providencial. Andrei, na sua queda, acertou o joelho numa das
rodas traseiras e aterrissou sobre suas costas. Todos reagiram ao
susto do ruído estridente da trama de metal golpeando o chão.
Eram apenas dois degraus. As rampas desciam pelas
extremidades, suavemente, fora do caminho das rodas. Andrei se
mostrou ileso, quando Vinícius foi ao seu auxílio, tirando o joelho
dolorido. Lenny e Giulia se ocupavam de Francis.
- A gente não viu os degraus. Nenhum de nós viu. E se for um
Fenômeno?
- Giulia, estava escuro, só isso. - Francis tentou acalmá-la.
- Como está se sentindo? Espere, não se levante ainda. - Lenny
investigou, tocando seu cotovelo de leve. E ela percebeu, entre o
fecho do casaco dele, uma mancha de sangue se esboçar entre as
fibras de sua roupa.
Andrei e Vinícius avaliavam os danos sofridos pelo meio de
transporte. A roda da frente, do lado esquerdo, havia se soltado. E
só então eles repararam o estado de todas as rodas, maltratadas
por pisos impróprios. Giulia se aproximou para pegar a mochila
embaralhada entre cobertores e travesseiros e lanternas acesas.
- Ele está bem? - Vinícius se levantou, preocupado.
- Só vamos reforçar o curativo. E dar mais alguma coisa pra dor,
que está ficando forte de novo.
Andrei permaneceu sentado, tentando reparar a roda quebrada.
- Talvez tenhamos que ir andando daqui… - Vinícius foi dar a
notícia para o amigo. - Como você está?
- Posso dar alguns passos, claro. Eu e você vamos ter boas
cicatrizes para ilustrar a história dessa noite… - Francis tentou
parecer otimista, mas sua irmã insistiu no conserto do carrinho
como primeira opção. Andrei confirmou, alguns passos atrás. O
parafuso que unia a roda ao frame estava partido, mas ele tinha
uma ideia que poderia funcionar.
- Isso foi agora? - Vinícius se incomodou com a visão das
bandagens rubras.

227
NICTOFOBIA

- Não… acho que voltou a sangrar há um tempo, pelo o que


parece. - Lenny atestou. Nesse instante, Andrei pediu por uma
tesoura e Vinícius foi atendê-lo. - E há muito tempo, olha aqui.
Ela apontou para Giulia o sangue já seco na extremidade
interna do curativo, próximo à clavícula. Giulia reparou em outro
ponto seco, bem sobre o ombro, acima do ferimento. Ela
estranhou como era uma área seca rodeada por tecido ainda
úmido. Uma ilhota de cor marrom cercada por um mar vermelho.
- Mas que porra… - Lenny ficou intrigada ao confirmar a
observação da outra. Em seguida, viu acontecer, sob a vigia de seus
olhos, algo ainda mais bizarro sem deixar de ser fascinante.
- Está se expandindo, consegue perceber?
- É como uma flor...
E de fato o sangue secava como uma flor desabrochando,
lentamente, pelas bordas, espalhando manchas disformes como
pétalas maleáveis, crescendo em diâmetro, escorrendo pelo ombro
e se alongando através do peito e ao redor do tórax, se fundindo
com a mancha seca da clavícula que também se expandia numa
velocidade improvável.
E num instante, toda aquela cor profunda de sangue havia se
tornado ocre envelhecido, como o que tinge panos que figuraram
em batalhas antigas e lamberam feridas já mortas.
- Vamos logo com isso... - Giulia já se adiantou em cortar tiras
de esparadrapo.
- Um Fenômeno, olhos abertos. - Lenny alertou os dois rapazes
inclinados sobre o carrinho.
Eles, por sua vez, já tinham cortado um pedaço de fronha e, no
meio do retalho, fizeram um rasgo, uma fenda por onde passaram
a roda desmembrada. Agora eles amarravam firmemente, com
várias voltas e vários nós, a roda de volta ao carrinho. Quando
Lenny concluiu o curativo de Francis, eles ainda não haviam
concluído o reparo. Elas já se levantavam, convocando-os com
urgência na voz a seguirem em frente.
- Só mais um pouco. - Andrei insistiu.
- Vamos, esquece o carrinho. - Vinícius se levantou ao ver que
Francis já avançava, com a curiosa relação entre seu curativo e seu
ânimo, amparado por sua irmã. Ele seguiu e Andrei não aceitou
ainda desistir do seu projeto. Ele levantou o carrinho e juntou

228
DIAS FERPELLA

parte da carga que escapuliu pelo chão. Jogou também para dentro
a roda embrulhada no tecido. Trabalharia naquilo dentro do trem,
pois desconfiava que Francis não manteria aquela disposição por
muito tempo.
No movimento de se levantar, apoiou o joelho dolorido no
chão, se lembrando da sua lesão. Se jogou sentado para trocar de
perna rapidamente, vendo Vinícius se distanciar, certo de que
Andrei o acompanhava. Aquilo não era bom. Quando ele se
preparava para gritar e pedir que o esperasse, ouviu um farfalhar
atrás de si, vindo pelo corredor, encoberto por toda aquela
escuridão que transbordava do salão lá no fundo.
Aquela coisa se lançou para cima dele no momento em que ele
tentava se levantar. Ele foi levado ao chão com a brutalidade de
uma quimera. Seu corpo inteiro se contraiu e ele sentiu um frio
perfurante tomar seus ossos. O peso da criatura imobilizou seu
cotovelo esquerdo junto ao chão e seu quadril inutilizado numa
dor insuportável. E uma mão esquelética e repugnante comprimiu
seu rosto e começou a lhe apertar a cabeça contra o chão. Andrei
não conseguiu gritar, não conseguiu lutar, todo seu esforço era
direcionado simplesmente para o ato de respirar. Ele virou a
cabeça de leve, a mão se cravou na sua têmpora. Toda a dor em
todos os seus membros desapareceu. Existia apenas seu crânio,
empurrado com uma força descomunal para aquela superfície dura
e gelada. Seu coração disparado agonizava em desespero,
expurgando adrenalina em modo sobrevivência. Se sua cabeça não
explodisse antes, certamente o coração iria. Sua arma estava posta
na cintura do lado esquerdo, onde supostamente ele deveria
alcançar com a mão direita, sua mão livre. Mas havia aquela coisa
debruçada sobre ele, logo tudo o que Andrei podia fazer, era
esticar seu braço ao longo de sua nuca, quase deslocando o ombro
com o esforço. Sua salvação estava ali em algum lugar e ele a
buscou com os dedos. Sua visão escurecia e, já aprisionado num
corredor escuro, Andrei soube apenas por causa dos pontos roxos
e brancos que formigavam diante de seus olhos.
E foi com a ponta do dedo médio que ele resvalou na lanterna.
Se acomodando nas imperfeições do ladrilho, ela rolou um
centímetro na sua direção. Assim que ele a conquistou com dois
dedos, ele sentiu seu corpo repelido levemente pelo chão. Sua

229
NICTOFOBIA

cabeça, livre, se levantou como por mágica e sua coluna


acompanhou o movimento, levando Andrei a se sentar numa
fração de segundo. A lanterna apontava para o fundo do corredor,
e nada havia por toda sua extensão. Ele olhou para a outra
extremidade e viu o LED das máquinas, ainda longínquas,
flutuando no escuro. Ele mirou o teto. E ali havia sequer uma
sombra.
Ele se apoiou nas mãos para se levantar e sentiu uma tontura
nauseante. Seu rosto ardia em carne viva, tendo lacerado contra o
chão de tijolos polidos. Ele pôs as costas contra a parede e gritou o
mais alto que pôde.

***

Quando as duas lanternas que vinham pelo corredor


iluminaram Andrei, encontraram um homem em frangalhos. Ele
organizava um semicírculo de luz, uma versão tosca e apressada
daquele executado no supermercado, parecendo não ter visto a
dupla que corria ao seu encontro. Ou apenas os ignorava.
A segunda opção foi confirmada quando Lenny chamou por ele
à meia distância. Ele terminou sua tarefa, se sentou no chão,
contra a parede, e buscou algo em seu bolso. Vinícius também o
chamou, acrescentando uma pergunta preocupada sobre seu
estado.
Andrei olhou para os dois, manipulando um objeto escondido
entre suas mãos. Eles já estavam a menos de dez passos.
- Eu não consigo. Me desculpa, mas não posso mais.
Ele virou o frasco displicentemente sobre uma de suas palmas e
pescou um comprimido com seus dedos.
- Andrei, espera. Nós estamos muito perto de conseguir.
- Pelo menos vai com… - a fala de Vinícius perdeu em volume e
velocidade até morrer em sua garganta. Andrei não mais ouvia, já
dominado pelo efeito de Sono. Os dois adentraram no círculo de
luz, recuperando o fôlego sobre seus joelhos. Vinícius se apoiou na
parede.
- Não podemos deixar ele aqui. Vamos ao menos levá-lo até o
trem, para a claridade.

230
DIAS FERPELLA

Lenny negou com a cabeça. Em termos práticos, Vinícius


também sabia que aquele esforço os atrasaria no tempo em que
passassem mais dois trens. Amarrar a roda, carregá-lo para o
carrinho, descer todos aqueles degraus. Novamente, a escolha
certa se embrulhava na frieza de deixar alguém pelo caminho,
corpos sem consciência, temporária ou definitiva. Um grupo
caindo aos pedaços, até sobrar apenas um, até sobrar ninguém.
Mas era preciso acreditar que ele ficaria bem. E que quem
precisava de ajuda imediata naquele momento era Francis, com
seu tempo se esvaindo a cada gota de sangue, a cada espasmo do
seu coração.
- Mas é isso, não é? Ele está seguro aqui.
Eles correram de volta, fugindo da culpa do dilema. E fugindo
da tentação de pegar uma dose, mesmo como precaução, para
manter no bolso como Andrei manteve, pois tudo a respeito
daquela noite beirava o limite do suportável.
Francis e Giulia já tinham descido para a plataforma e
esperavam o trem, sentados nos bancos próximos à parede. Ao ver
apenas dois descendo as escadas, assumiram o pior. Mas Lenny
não deixou aquele luto durar, esclarecendo o ocorrido:
- Ele trouxe um frasco de Sono do supermercado. Ele estava
aterrorizado.
- Merda… Deve ter visto um noturno. Ou até mais de um.
- Acho que tentaram atacá-lo. Ele estava sangrando. Aqui. -
Vinícius acrescentou, descendo o indicador pela maçã do rosto.
O sinal agudo ficava mais próximo pelos trilhos, enquanto o
freio era acionado. Eles se levantaram, mas não saíram do lugar até
que o trem parou. A máquina veio arrastando o ar consigo e
perdendo força perante a estação. Dentro de si, armazenava todo
aquele éter visual, partículas de Sol aprisionadas em fios de cobre.
Era até comovente receber toda aquela luz, tão velozmente
atendendo a um socorro. E naquele momento, o trem se tratava
por casa. Era demais querer morar ali?
- Eu entendo, ele mudou de ideia. Talvez seja melhor mesmo se
arriscar dormindo do que ficar acordado.
- Se for pra morrer, é melhor que seja dormindo… - Francis
concordou com a irmã.

231
NICTOFOBIA

Eles ficaram em silêncio por um tempo quando o trem fechou


as portas e partiu. Seis minutos de descanso. A linha amarela
seguia para oeste, sem se preocupar com a sede da Socoma, e pela
primeira vez na noite eles se afastavam do destino final. Se aquele
blefe não servisse para despistar os noturnos, então eles estavam
mesmo condenados.
- Eu estava pensando… Vocês não precisam ir com a gente. -
Giulia dividiu naquele quarteto de assentos. Ela se sentava
próxima ao corredor, de frente para Lenny.
- Giulia, vamos até o final.
Lenny tentou parecer firme na sua decisão, mas sua postura lhe
traía. Ela balançava a perna nervosamente. Ungulados se
arrebanham como mecanismo de defesa, a segurança dos
números. Uma gazela se esconde no meio de semelhantes para se
proteger do guepardo faminto, pois quanto mais alvos em
potencial, menor a chance de se tornar um. Lenny se via agora na
posição de um para quatro. Vinte e cinco por cento. Mas de novo,
em rebanhos, é a carne de doentes e feridos a que mais atrai o
predador.

***

Clara tinha oito meses quando viu a noite pela primeira vez.
Anterior a isso, ela não via apenas porque seus olhos não tinham
se desenvolvido por completo e tudo que via eram vultos, luzes e
cores próximas a ela.
Daya acordava com o choro da bebê, no quarto logo em frente
ao seu. Ele se levantava prontamente e nem precisava acender as
luzes: o caminho até o berço estava gravado no seu DNA e fora
ativado com o nascimento de Clara. Algo no choro dela, algo que
ela precisaria para sobreviver.
Ele levava aquela pessoinha mal-humorada até o colo da mãe,
também no escuro, pois a essa altura seus olhos já aproveitavam o
luar que passava pelas frestas das cortinas. Romanie sequer se
mexia. Daya a virava de lado caso ela estivesse de costas e expunha
seus seios para a criança, deitando-a delicadamente. Clara se
aninhava cheia de satisfação ao receber o leite morninho em seu
estômago, gemendo ternamente, como um filhote apaziguado. O

232
DIAS FERPELLA

pai permanecia sentado no chão, guardando as costas do bebê e


compadecido com a situação de Romanie. Ela sequer se mexia.
Os lençóis ficavam com um aroma adocicado de mãe, única
pista para a mulher de que seu fluido fora mamado. Ela se
levantava comprometida com o café da manhã e chegava a
cozinha com apenas uma escala: o banheiro. Daya era quem se
levantava e retirava Clara do berço tedioso, dando bom dia com
um abraço e um sorriso amoroso.
- Já falou com ela hoje? - ele a trazia no colo para a cozinha.
Romanie se aproximava e fazia um carinho suave no braço da
criança. Em seguida se voltava para a mesa. Daya já não tentava
cobrar mais atenção, cansado das respostas automáticas de “eu
estou tentando, está melhor a cada dia”. E ele podia ver o
progresso dela, realmente: ela já olhava Clara nos olhos por mais
de três segundos.
A geladeira cheia de leite e Romanie saía para seu consultório,
para cuidar das filhas de outras mães. Aquele medo de sofrer mais
um aborto a acompanhara durante toda a gravidez. Ela não quis
saber do sexo, não quis escolher o nome. Esperou para ver se
vingava, se resguardando de uma afeição prematura por algo que
não passava de uma expectativa. “Parece que você não quer ter
esse filho.” E ela rebatia, histérica: “Olha só o que está
acontecendo!”
Ela queria ter, sim queria. Ela queria redenção, ela queria
encerramento daquilo que ela não teve. Ela queria por motivos
muito egoístas e egocêntricos de poder cuidar de algo e conceber o
resultado de um amor juvenil. Um romântico incurável que queria
se casar numa geração em que ninguém se casava. Não existe
vínculo maior entre duas pessoas do que ser a causa comum de
uma nova vida.
Mas ela se preocupava com a época, com o que estava
acontecendo. Eles estavam voltando, os seres noturnos. Visto em
jardins, rondando lares, farejando debaixo das portas, arranhando
paredes, deixando marcas nos muros, pegadas na grama. E a
segurança da Socoma garantia que não era o caso de eles estarem
voltando: eles nunca tinham ido embora. “Os avistamentos
diminuíram devido aos hábitos da população. Há dez anos, as
pessoas estavam dormindo por volta das vinte horas, vinte e trinta.

233
NICTOFOBIA

Hoje essa média passou para além das vinte e três horas.” E
afirmavam ainda que quanto mais tarde, mais ativas as criaturas
ficavam e se incomodavam com luzes artificiais, razão pela qual se
aproximam das casas, muito provavelmente para buscar uma
maneira de suprimir a iluminação.
Os filhos do escuro, crianças que viriam a uma realidade sem o
âmbar intervalado de postes. Romanie ainda conseguia puxar de
sua memória aquela imagem. Por mais que ela não pudesse sair,
ela observava da janela do seu quarto a luz acumulando mariposas
na noite. Até que numa manhã, ela foi pega de surpresa ao acordar
com o som de técnicos da companhia elétrica desmantelando
aquela sua estrela artificial. Ela tinha treze anos quando a noite
urbana foi devolvida para a escuridão. Aquela seria a realidade de
sua filha, as noites escuras, a apreensão do desconhecido se
esgueirando lá fora.
“Não se preocupe, é temporário.” seu pai dizia. Ela não estava
preocupada, ela gostava das noites de lua cheia e das noites
estreladas. Não se preocupe. Havia algo com o que se preocupar?
Mas as luzes nunca foram restauradas. O temporário se
expandia rumo ao permanente.
Os primeiros meses em que Clara existiu foram desafiadores
como haveriam de ser para pais principiantes. Fora isso, tudo
conspirava a favor da felicidade: a casa era segura, o leite era
abundante, a saúde de Clara era impecável, o dinheiro nunca era
um problema e as regalias que Romanie recebia complementavam
o conforto já garantido. Eles dormiam cedo, seguindo a sugestão
de apagar as luzes antes das vinte horas e nunca se surpreenderam
com avistamentos ou mesmo Anomalias.
Mas com o passar dos meses, Romanie começou a se irritar por
pequenas coisas, perdia a paciência com o choro de Clara, estava
distante de Daya, não queria receber visitas, ficava angustiada por
ser uma péssima mãe. Ela queria voltar a trabalhar o mais rápido
possível e assim foi.
Foi então que seu mentor, Dr. Cláudio Selar, agora aposentado,
percebeu os sinais durante um almoço e compartilhou suas
suspeitas abertamente. Romanie procurou ajuda e confirmou:
depressão pós parto não é incomum se manifestar muitos meses
depois do nascimento.

234
DIAS FERPELLA

A Menetra-Nal se comprometera em dar todo o suporte


necessário, sem custo algum, durante todo o tratamento
hormonal. Para ajudá-la a combater a insônia, um fornecimento
gratuito de Soporiclona foi providenciado. E nesse cenário se
encontrava sua mãe, quando Clara, por volta dos oito meses, viu a
noite em sua completude.
- Oi, meus amores! - Romanie chegava bem humorada do
trabalho, parecendo esquecer por um momento a ansiedade que se
agravava com a chegada da noite. Mas naquele dia em especial ela
estava ainda mais radiante. Durante o jantar ela compartilhou com
Daya o que ouviu de sua psicoterapeuta, que seu progresso estava
consistente e até o fim daquele mês poderiam reduzir os
medicamentos de forma significativa.
- Tenho me sentido mais disposta, acho que correr me ajudou
muito também. Quer tomar banho com a mamãe? - ela propôs
quando percebeu que Clara começava a recusar as colheradas.
Daya se precipitou para tirá-la da cadeirinha.
- Daya, fica tranquilo, eu não vou afogar nossa filha.
E ele deu aquela oportunidade para ela, confiando no seu
progresso e recompensando seu esforço. Ainda assim, ele
inventava desculpas para passar de um lado pro outro no corredor,
pela porta do banheiro, escutando as histórias e risadinhas que
seguiam o barulho de água inquieta. Ele notou a falta do Sol, e
notou que Romanie estava tão distraída com a atividade que ela
mesma não percebeu o chegar da noite e continuava radiante.
Ela viu o pai de sua filha a vigiando do batente da porta e
ameaçou fechar a cara. Mas ele não vigiava, ele admirava o
momento tão raro de mãe e filha, e Romanie, então, retribuiu o
sorriso que ele trazia no olhar. Mechas molhadas de seus cabelos
se prendiam em sua face, suas calças jogadas num canto e sua
camisa amarrada bem abaixo do busto. Ela tinha vinte e sete, mas
naquele momento ela voltava aos seus vinte e dois e repetiu em
Daya os sentimentos dos primeiros dias. Um romântico incurável,
de fato.
- Pega ela? - Romanie o chamou e ele foi com uma toalhinha
azul para embrulhar Clara. E erguendo a menina, ele viu aquela
bela mulher se despir de sua camisa.

235
NICTOFOBIA

- Já vou aproveitar e tomar um banho rápido. Vai pondo ela pra


dormir que logo eu assumo.
E Daya se sentiu incrivelmente só. Mas aquela criança se
aconchegando em seu abraço dizimou aqueles pensamentos
destrutivos. Romanie apareceu no quarto quando ele já embalava a
menina à luz de um abajur, lhe dando uma mamadeira por força
do hábito. Mas ali estava Ronie, acordada, disposta a tomar sua
filha no colo e lhe oferecer um seio maternal. Daya também quis
ficar e assistir, mas achou melhor dar aquele momento para as
duas e somente para elas. O reparo de laços rotos, que, mesmo por
um fio, nunca se rompem.
Ele ficou no sofá, vendo um filme no escuro, aguardando o sono
chegar. Romanie veio antes, se postando ao seu lado. Aquilo era
inesperado, ele pensou. Ele estava certo de que ela já tinha se
recolhido, seguindo a rigidez de sua medicação. Mas ela se dispôs
a postergar mais um pouco, encostada em seu torso, o perfume do
xampu em seus cabelos, a frescura de sua pele. E o momento era
somente para eles, sob a luz pálida de um ecrã. Os corpos
procurando aquele ajuste mútuo quase extinto.
Então ela se interrompeu, se erguendo de uma vez e olhando
para ele assustada.
- O que foi?
Ela olhou atenta para o corredor, como se escutasse algo.
- Ronie? Tudo bem? - ele insistiu, acomodado entre suas coxas
e ansioso pela retomada.
- Acho que ela acordou.
Ela se levantou, ajeitando a camisola amarrotada a caminho do
quarto da bebê. A luz do televisor a guiava na escuridão, se
dissipando a cada metro, até entregar a forma sugerida de uma
porta na penumbra. Mas as cortinas recebiam o luar com
suavidade e amparavam uma claridade precária. E, com um golpe
arrepiante, Romanie ouviu- se gritar num soluço atordoado. Havia
uma figura de pé, um metro e vinte de altura, diante do berço,
espreitando Clara como um chacal que encontra um ninho de
lebre. Aquela coisa apoiava as mãos, as patas dianteiras, na
madeira e Clara parecia hipnotizada por seus olhos esbugalhados,
um eco adentrando seus tímpanos, arranhando o vácuo sonoro.
Aquela coisa crescia com um tremelique espasmático, um corpo

236
DIAS FERPELLA

que agride a si mesmo, como uma esponja absorvendo água, um


balão acumulando ar.
Romanie recuou em pânico, buscando o interruptor. Daya
imediatamente apareceu atrás dela e tudo que viu foi uma mãe
avançar desesperada de encontro aos berros de sua filha. Ela
agarrou a pequena Clara com força e se voltou para Daya
pranteando, trêmula.
- Um ser noturno! Eu vi. - ela soluçava contra seu ombro. Ele
olhava apreensivo por cima dela, o pequeno quarto vazio. As
pelúcias na estante, o espelho de girafa, o móbile de abelhas e
borboletas, talcos e fraldas em cima da cômoda, brinquedos num
canto, peças de um tatame junto a parede, o berço vazio, o abajur
de estrelas. E a cortina que se movia como um fantasma,
estimulada pelo vento que invadia o cômodo por uma fresta tão
larga quanto um polegar.
A Menetra-Nal não apenas encontrou a casa nova como
também agilizou a mudança.

***

A viagem durou cerca de seis minutos. O trem foi perdendo


velocidade, um indicativo de que se aproximavam da estação.
Francis, Giulia, Vinícius e Leonora se puseram de pé, se apoiando
nas barras metálicas. Francis cambaleou.
- Fiquei tonto por um segundo. Mas acho que foi porque
levantei rápido demais.
- Todos prontos? - Lenny verificou.
Pelas janelas não era possível distinguir uma escuridão da
outra. A visibilidade na estação era idêntica à que tinham no túnel,
fazendo do vidro um espelho. O trem parou, as portas, dos dois
lados, se abriram e a luz escapou por menos de dois metros sobre
o chão da plataforma. Lenny apontou o caminho: saíram pela
esquerda.
Placas indicavam as escadas para a superfície, os banheiros, a
linha azul, a linha rosa e a linha púrpura. Giulia encorajava o
irmão a se manter forte toda vez que ele pedia para andarem um
pouco mais devagar. Ela via aquilo como a última etapa para eles,
uma vez na linha púrpura o trem se encarregaria do resto do

237
NICTOFOBIA

caminho. E havia no ar a aflição de uma pressa enquanto eles


fugiam da possibilidade de um Fenômeno.
- Eu me lembro de como eu te forcei a me incluir… Eu estava na
cozinha quando você abriu a porta devagar, todo cuidadoso. -
Giulia se virou para Lenny, continuando:
- Ele tinha passado a noite inteira fora! Voltou só na hora do
despertar.
- No que você estava pensando? - ela riu e envolveu Francis no
assunto, tentando distraí-lo.
- Ia dar certo. Eu fui pego por causa de dois minutos.
- Eu falava que se ele tivesse chegado dois minutos antes, eu
teria acreditado que ele se levantou antes de mim. Mas eu ouvi o
portão da garagem fechando.
- Foi a corrente da bicicleta… eu tive que parar no caminho pra
colocar no lugar. Se não fosse por isso, teria dado certo. Eu nem vi
ela quando abri a porta, de repente ela dá um berro da cozinha
“onde você estava?” como se fosse nossa mãe. Quase morri de
susto, não consegui inventar nenhuma desculpa na hora.
- Aí eu falei que se ele não me levasse com ele, eu contaria tudo.
Naquela época a gente brigava o tempo todo e eu estava louca pra
ele negar minha chantagem e eu poder dedurar.
- Não era o tempo todo, era bem menos. - Francis protestou.
- Por que não simplesmente dedurou então? - Vinícius
questionou, achando graça.
- Mas eu também queria ir. Eu estaria feliz nas duas situações.
Viu? Eu sairia vencedora de todo jeito. - Giulia aproveitou para
alfinetar o irmão. Ele abanou a cabeça, segurando o riso de uma
forma que ele sempre fazia, mas fazia pela primeira vez naquela
noite. Giulia se sentiu vitoriosa com aquela visão.
- É, eu aceitei, achei que você estava blefando e iria desistir no
último momento. E aí no caso eu venceria, você não ia poder
contar porque eu aceitei sua condição, mas eu também não ia
precisar te levar debaixo da minha asa.
- E quando foi isso? - Lenny encorajou a permanência no
assunto.
- As lombadas ainda estavam ativas…

238
DIAS FERPELLA

- Foi logo depois que Vinícius me chamou pra sair com vocês. A
gente tinha dezenove, não é? Então a Giulia tinha quinze. Dois
anos depois da proibição dos simuladores.
Lenny não se lembrava, mas tinha sido apresentada para Giulia
naquela ocasião. “A irmã mais nova do Francis”, que figurou no
grupo na noite do campo de golfe, quando colaram fitas de néon
em vários frisbees e jogaram até caírem exaustos.
- A gente pedalou até o campo de golfe pra… - um som
interrompeu a recordação da primeira noite de Giulia. Era um
trem, irrompendo na estação.
- Acho que é o nosso! - Vinícius constatou e se destacou do
grupo numa marcha rápida . O corredor terminava numa passarela
e lá de cima ele viu o trem se acomodando entre as plataformas,
percorrendo no sentido em que o grupo almejava. Voltou correndo
para os três que tentavam acompanhá-lo.
- Vini, não sai muito de perto da gente. - Lenny censurou. Ele
ignorou, relatando com urgência:
- É o nosso! Acabou de chegar! Temos que correr!
- Não dá pra perder esse. - Giulia passou a mão em volta da
cintura do irmão, que retribuiu se apoiando em seu ombro.
Num instante eles estavam cruzando a passarela, as lanternas
em riste, seguindo o vai e vem frenético dos braços que correm.
- Vai! Mais rápido!
Francis tirou a disposição do fundo do seu ser, toda a energia
que ele não mais tinha, refabricada por uma carga violenta de
adrenalina em seu sangue. Instinto de sobrevivência. A última
etapa, o último trecho de esforço e depois disso ele poderia
descansar. Não ia precisar andar, correr, descer, lutar, fugir,
prestar atenção a todo ruído mínimo, forçar suas pernas a
obedecerem e espantar os pensamentos negativos apenas para
manter viva a esperança da sua irmã. A Socoma o esperava como
um oásis, um santuário ou um paraíso. Ou simplesmente uma
cama. A promessa de inconsciência temporária repentina, sua vida
nas mãos de estranhos, a esperança de Giulia, o choro de seus pais.
Mais alguns metros para frente, mais alguns metros para baixo.
Está quase lá. Agora as escadas. Apenas dois lances. Vinícius
oferece suas costas. Sua vida, a esperança de sua irmã, o choro de
seus pais, as costas de seu amigo. Lenny desce de dois em dois. Ela

239
NICTOFOBIA

vai segurar a porta. Giulia desce logo atrás da mesma maneira.


Giulia vai segurar o trem inteiro. Agarrar com o rigor de suas
unhas, cravar a âncora de sua esperança na serpente de alumínio e
arrastá-la até o adestramento total. Fique, espere, não fuja, não se
vá. Não se preocupe, sinaliza o trem, outros virão. Não se
preocupe, mas é tarde demais.
Lenny escorrega e cai, se agarrando ao corrimão bem a tempo.
Sua lanterna rola por baixo do guarda corpo de vidro e se espatifa
um andar abaixo. A porta se fecha. O trem não escuta e não
espera. O verme luminoso, a larva de vagalume mecânica leva suas
janelas incandescentes para longe, deixando um som que mais
parece um lamento.

***

Eles se sentaram nos degraus, desanimados. Uma máquina de


refrigerante oferecia um pouco de luz ao final das escadas. Francis
parecia não poder mais, sua respiração estava acelerada e sua pele
estava cadavérica. A sua cabeça pesava toneladas e protestava cada
movimento seu com um golpe dolorido. E uma náusea repugnante
subia e descia na oquidão de seus órgãos.
Eles permaneceram ali, cabisbaixos, recuperando o fôlego e em
silêncio. Aquele último passo fora adiado, à mercê de um sistema
automatizado que pouco se importa com vidas humanas.
- Vamos. O próximo trem está chegando. - Vinícius sussurrou
com uma voz áspera de ar gelado. O próximo trem estava
chegando, de fato. Mas estava distante o suficiente para que suas
pistas sonoras não confirmassem a declaração do rapaz. Aquilo
pareceu apenas um mantra esperançoso. O próximo trem estava
chegando, mas em quanto tempo? Toda aquela comoção ainda
ecoava nas paredes e toda criatura escondida naqueles túneis e
corredores agora sabiam da presença do grupo.
“Isso não está acontecendo… Não está acontecendo…” Giulia
repetia mentalmente. Pois aquela cena viera de uma maneira
familiar, como um pesadelo de infância. Porém ela não se sentava
nos degraus de uma estação, mas de uma tumba. Uma lâmpada
pendia de um teto, balançando docemente em um fio vermelho. E
as escadas estavam cobertas de unhas. Havia alguém com ela,

240
DIAS FERPELLA

passos que subiam ou desciam, deixando-a completamente


paralisada. Seus pais estavam ali, sentados um de cada lado,
cabisbaixos, desesperançosos por algum motivo que não queriam
dizer. A pequena Giulia chamava por eles, que não a escutavam,
pois ela não conseguia falar. Ela queria ajuda, ela queria alertá-los
daquela coisa que subia ou descia na sua direção. “O que foi
Periguinha? A gente já sabe.” E eles ficavam ali, com um sorriso no
rosto, esperando como cúmplices, deslocados do papel de
protetores. E era aí que ela começava a chorar baixinho. Ela não se
lembrava do resto.
Ela se aproximou de Francis buscando segurança e, se
agarrando ao seu braço, ela pode sentir seu pulso. E sua esperança
se fragilizou em diversos pontos, a beira de se quebrar em bilhões
de pedaços tristes por uma quase certeza. Meu irmão está
morrendo. Esta é a noite em que ele morre. Amanhã vai ser tudo
diferente.
- Vamos. - Lenny fez coro à sugestão de Vinícius e se levantou
devagar, se virando para oferecer a mão à Giulia.
Eles desceram as escadas juntos, ajudando Francis que voltava a
reclamar da dor. Andavam devagar entre as pilastras, evitando
maiores esforços, quando ouviram o movimento do trem
disparando pelo túnel. Giulia quis chorar e apertou os lábios para
segurar suas emoções. Vai dar certo, ela pensou e o som ficava
cada vez mais claro.
E foi então que ela viu, escapando por trás de uma pilastra, o
movimento discreto de algo que se esconde, algo que vigiava do
escuro até ser repelido pela luz de sua lanterna. E eles estavam
perto demais. Ninguém além dela parecia ter visto, ocupando seus
olhos com os passos de Francis que apoiavam de ambos os lados.
Mas Giulia estava certa do que vira e não conseguia alertar o
grupo, tendo sua língua paralisada entre o susto e o medo. Pois o
som de uma palavra no vazio da estação era como uma sirene.
Ela agarrou o braço de Lenny, impedindo seu próximo passo.
- O que foi?
E o trem irrompeu numa poderosa onda sonora, correndo para
se alinhar com a plataforma.
- Temos que ir! - Vinícius encorajou do outro lado com
urgência e retomou a caminhada com um pouco mais de pressa.

241
NICTOFOBIA

- Um noturno! Bem ali na frente! Está esperando por nós. -


Giulia gritou, abafada pelos ganir dos freios do trem.
- Não podemos perder este! Cadê sua arma? - Lenny sugeriu
sem diminuir o passo e só então se deu conta que tinha deixado a
arma de Andrei para trás, junto a ele.
Giulia sacou a arma contrariada e apontou junto com a lanterna
para a grossa pilastra em que se escondera a criatura. Podia estar
atrás de qualquer quina, podia até mesmo ter se movido para
outra cobertura. Giulia tentou manter as mãos firmes, mas aquele
corpo parecia nem ser mais o seu. O trem parou, as portas se
abriram. Cinco metros agora. Mais cinco metros e estariam
protegidos na claridade do vagão.
Todos os olhos estavam voltados para a pilastra à esquerda,
seguindo a luz de cada lanterna usada como um escudo contra um
ataque iminente. Mas eles não diminuíram o passo.
E então algo bruscamente se desprendeu da parede e avançou
na direção do trem com voracidade. Giulia gritou com o susto e
disparou. A explosão do tiro ecoou seus inúmeros decibéis pelas
paredes distantes. Lenny gritou mais como efeito do barulho do
que da visão. A criatura assustada despencou através das portas e
se recolheu fora de vista.
Eles haviam parado, apenas por dois segundos, para depois se
darem conta de que aquilo não poderia impedi-los. Aquela coisa
estava encurralada e cega por luzes impiedosas. Eles tinham a
vantagem dessa vez e não se intimidaram ao entrar no vagão.
Giulia, particularmente irritada por ter errado o tiro, sentindo toda
a carga daquela noite, enlouquecida pelo medo e pela satisfação
ilusória de vingança, se adiantou com a arma fumegando.
O noturno se escondia entre os assentos, Giulia podia ouvir sua
respiração animalesca. Estava ali, à esquerda, a uns três ou quatro
assentos de distância da porta. Vinícius levou Francis para a outra
direção, para longe daquele embate. Lenny foi atrás de Giulia, pois
nela corroía uma incerteza. Havia algo que ela conhecia, algo no
jeito em que aquela coisa se movera, algo na postura, algo em suas
cores que mais pareciam roupas.
Ali, no espaço entre a quinta e a sexta fileira, espremido contra
a parede, ele se protegeu com um gesto das mãos abertas diante da
arma e suplicou:

242
DIAS FERPELLA

- Espera! Por favor, espera!


A garota pareceu confusa ao vê-lo. A que veio logo atrás o
reconheceu por cima do ombro da primeira e ele ouviu aquela
sílaba que movia universos inteiros dentro de seus ouvidos:
- Lui?

***

Tudo aquilo parecia uma grande trama planejada para algum


experimento psicológico em que Lenny era objeto. Encontrar
Lucian naquelas circunstâncias despertava em seu cérebro
sentimentos que ainda não haviam sido nomeados simplesmente
pela raridade em que ocorreram na curta história da humanidade.
Num pequeno arquipélago ignorado no Pacífico sul, habita uma
tribo que se denomina Guedkami, ou “povo das águas rasas”. Em
seu complexo idioma, existe uma palavra pouco usada que se
aproxima bastante do que Lenny sentiu: baya-lau-revvn. “Cima
falso real”. A suspensão da falsa realidade.
Para tentar descrever essa sensação/sentimento, os locais
empregam o momento em que você se lembra de um sonho e
percebe que o que acontecia era tão surreal, tão impossível, que se
impressiona por não ter se dado conta de que sonhava. Em outras
palavras, quando você experiencia o sonho sem estranhamento,
como se aquilo fosse real, por mais bizarro que fosse.
Somado ao baya-lau-revvn, Lenny sentiu algo próximo de alívio,
surpresa, receio e raiva. Enquanto ela ouvia a narrativa de Lucian
sobre aquela noite e como ele se envolvia diretamente na quebra
do pacto, ela sentiu um desamparo quase infantil. Lucian, que
nunca havia saído, que nunca havia questionado uma única ordem
autoritária, que nunca havia caçado ou abatido qualquer tipo de
animal com uma arma de fogo, o Lucian que ela adorava pela sua
ingenuidade e detestava pela sua submissão, o Lucian que a
conquistara e que a traíra, aquele cara por quem ela se preocupou,
se culpou, chorou e quase ligou várias vezes, matara um noturno.
Ele estava num corredor escuro, sendo impulsivo ao usar uma
arma, enquanto ela estava na sua casa escovando os dentes antes
de sair para o teatro.

243
NICTOFOBIA

O que havia acontecido naqueles dois meses em que não se


falavam? Como se deu tal transformação?
Ela o observava de perto enquanto ele contava a história
resumidamente até o presente momento. Era mesmo ele. Lucian.
Baya-lau-revvn.
- Espera, se ele está indo pra Socoma, eu e Francis podemos ir
com ele. Vocês não precisam se entregar. - Giulia subitamente teve
a ideia.
- Mas e Vinícius? - Francis resmungou encostado contra a
janela.
- Eu acho que posso procurar atendimento médico pela manhã.
Certo?
Lenny balançou a cabeça afirmativamente. Seu ferimento não
demandava o sacrifício de sua liberdade.
- O que acha Lenny? Podemos pegar o trem pra minha casa. -
Vinícius sugeriu.
Ela sentia o olhar de Lucian sobre sua face esquerda e imaginou
que agora era ele quem processava o encontro. Quais eram as
chances deles terem se encontrado naquela noite. Ela evitou seus
olhos e fugiu do pensamento que poderia corar suas bochechas.
- Desculpe, o que foi?
- Podem também descer na próxima estação e ficar na minha. -
Giulia tirou as chaves de casa do bolso da calça e ofereceu,
pinçando o chaveiro entre o polegar e indicador.
- Tem certeza? - Vinícius exalava gratidão em sua voz ao pegar
o objeto.
- Por favor. Vocês fizeram muito por mim. Por nós. Não quero
que se sacrifiquem mais. Não precisam mesmo se entregar. Já que
o Lucian vai refazer o pacto essa noite, vocês estarão seguros.
Podem usar minhas doses se não quiserem esperar até o despertar,
está sobre minha cômoda.
- Lenny?
- O Lucian nos acompanha até lá. Vamos ficar bem. Estamos
praticamente entregues agora. - Giulia insistiu no argumento.
Lenny questionou a possibilidade mentalmente e não
encontrou oposição alguma. A partir daquele ponto não havia
nada mais a fazer por Francis. O trem se inclinava, subindo para a
superfície, se aproximando cada vez mais da estação lá em cima.

244
DIAS FERPELLA

- Tudo bem. Vamos descer… Mas eu queria falar com você. Não
sei se vai dar tempo… - ela se virou para Lucian e seus olhos se
encontraram enfim, numa distância que há muito não se viam.
Eles se afastaram do grupo, descendo pelo corredor, buscando
um assento para conversar.
Ela ouviu a surpresa de Giulia escapar dos comentários atrás de
si. “Quê? Aquele Lucian?” Apenas Vinícius o conhecia, mas ainda
assim não sabia de toda a história do hotel. O resto sabia apenas
do nome daquele que deixara Lenny entristecida por um tempo.
Até o dia em que ela decidiu “Cansei de falar desse cara. É página
virada. Não deixem mais eu tocar nesse assunto.”
- Lui, como será esse pacto?
Ele não sabia. Alex não sabia.
- Você vai achar que é implicância minha, mas por favor me
escuta. A Socoma não deixaria você sair livre. Depois de todo o
circo que eles fizeram com a sua prisão, eles não chegariam
amanhã na televisão para te declarar um herói, nem ao menos te
agradeceriam. Eles estão te usando, Lucian.
- E o que você sugere que eu faça? - ele perguntou desanimado,
mais como um argumento do que uma pergunta. Não restava nada
a não ser confiar na Socoma.
- Vem com a gente. Não faça o pacto. Se a Socoma te pede algo,
faça exatamente o contrário.
- A Socoma mente… - ele adiantou, vencido.
- Lucian. Por favor, pense a respeito. Você viu coisas hoje à
noite que eles te esconderam a vida inteira. E esconderam dos
nossos pais e esconderam dos nossos avós. Eu não acredito que
eles não consigam firmar um pacto por conta própria. E se eles
precisam de você, certamente é para te descartar, não te
condecorar.
- O que você acha que vai acontecer? Que eles vão me oferecer
como sacrifício?
- Pra mim é bastante óbvio. Você matou, você deve morrer. Eles
fazem a própria lei, Lucian.
- Eles não estão acima do Estado.
- O que você chama de Estado é apenas mais um setor da
Socoma… - ela abanou a cabeça, perdendo as esperanças de

245
NICTOFOBIA

convencê-lo. Apenas continue questionando, Lucian, continue


duvidando.
- Não se preocupe. Vai dar tudo certo. Ninguém vai morrer.
O trem varou a superfície, se endireitando horizontalmente. O
luar delineava as ruas de um lado e as árvores do outro.
- Vem com a gente. Espera até amanhã. Mais algumas horas e o
dia clareia e todo mundo fica bem. - ela tentou mais uma vez,
aflita ao ver Vinícius ajoelhado perto de Francis e Giulia, se
despedindo, agradecendo e desejando boa sorte.
Lucian estava preso no dilema daqueles olhos que ele tanto
adorava. Estavam úmidos de preocupação e seu coração virava do
avesso com a responsabilidade que ele não queria. Ele tinha que ir,
ele precisava saber. Ele acompanharia Giulia e Francis e ouviria o
que a Socoma tinha a dizer. Ele prometeu para Lenny que não
seguiria instruções cegamente, que iria ponderar os fatos, que iria
julgar todos os interesses envolvidos. Ele faria um pacto com a
Socoma para depois fazer um pacto com os noturnos. Se a Socoma
é o Estado, ela tem um ponto fraco: pois todo Estado morre de
medo de seu povo.
O trem reduziu a velocidade ao avistar a estação. Lenny
segurou as mãos de Lucian entre as suas. Ele notou um resquício
de sangue seco. E quando ela se levantou ele percebeu o sangue na
sua calça, abaixo do joelho.
- Você está bem? - Lucian apontou para a mancha escura.
- Tudo bem. Não é meu… - ela se virou evitando o assunto e foi
dar um abraço em Giulia e Francis.
- É deles? Você pegou um noturno? - Lucian foi junto.
- Por incrível que pareça, eu ainda não vi um noturno.
- Espero que mantenha sua sorte. - Vinícius desejou ao passar
por ela e ficar próximo a porta. O trem parou.
- Não viu? E na estação? - Lucian recordou.
- Ah é, você. - ela riu, julgando ser uma piada sobre o mal
entendido.
As portas se abriram. Ela se despediu com um olhar terno e um
toque em seu cotovelo. Mas ele não estava convencido e insistiu
em saber o que acontecera. Aquelas pessoas fugindo de um bando
de noturnos eram eles, não eram?
- Do que você está falando?

246
DIAS FERPELLA

- Na passarela…
Um sinal alertou para o fechamento das portas. Lenny levantou
a mão com um sorriso triste no rosto, acenando da plataforma
quando o trem começou a se movimentar. “Se cuida”, ela
mentalizou, esperando não ser a última vez que o via.
As últimas janelas passaram como um borrão, deixando a
folhagem das árvores adormecidas com um vento forçado.
Seguindo a curvatura dos trilhos que beiravam o Parque, mais à
frente, o imponente prédio da Socoma se erguia iluminado até a
metade. Os andares superiores, o apelidado “Tártaro”, parecia um
organismo morto ou um aparelho defeituoso, sendo visível apenas
pelo discreto luar crescente, agora parcialmente coberto por uma
nuvem.

247
IX

N
aquele tempo ainda havia vinte e três patrulhas da Socoma
circulando pelas ruas. Naquela noite, depois de vários
meses de calmaria, uma moto cortava as ruas em alta
velocidade. A Décima-oitava Unidade foi a primeira que avistou e
perdeu o rastro do transgressor quando ele cortou caminho por
uma praça. Logo, todas as viaturas estavam cientes do desafio e se
dedicavam a encontrar o motoqueiro. A Sétima Unidade cruzou
com ele e, durante a perseguição, trabalhou com outras duas
viaturas tentando cercá-lo. Mas ele era irritantemente esguio e
habilidoso.
Ênio esperava junto a uma árvore quando um Áquila revestido
virou a esquina. Os faróis apagados piscaram duas vezes,
sinalizando sua presença. Ênio respondeu com sua lanterna e
caminhou até o meio fio. Havia cinco pessoas dentro do carro.
- Está invisível. Nós fizemos um carro desaparecer! - ele se
empolgou ao abrir a porta de trás e se apertar junto aos três que lá
já estavam. - E Felipe?
- Já está nas ruas entretendo a Socoma. - Alícia avisou.
Brener guiou o carro até o fim da rua e virou à direita.
- Quer dizer que você corre o risco não apenas de ser preso,
mas também de perder o emprego, Escritor? - Érika provocou o
amigo.
- Eu vou publicar com um pseudônimo, não sou louco de me
expor assim. Vou ser pai, lembra?
- O que foi? - Osias, no banco da frente, não entendeu.
- O jornal em que ele trabalha pertence à Socoma. - Érika
esclareceu.
- Na verdade, o dono possui ações da Socoma. Só isso. - Ênio
corrigiu. Érika fez um gesto com a mão aberta, como se dissesse
“pois então, é da Socoma.”
- Se te pegarem, publicando livro ou não, você está na rua. -
Brener piscou o farol brevemente para gravar a imagem da rua na
sua cabeça e voltou a dirigir no escuro.

248
DIAS FERPELLA

- Você sabia disso, Escritor?


- Que meu chefe é sócio? Acho que todo mundo do ramo
midiático tem uma fatia da Socoma. Se a gente for mais a fundo
nisso e investigar o quadro de acionistas, vamos ver muitos nomes
importantes. Então sim, eu já imaginava.
Brener virou outra esquina e seguiu a rua até a metade do
quarteirão. Ali ele desligou o motor e deixou o carro se mover
livremente até parar. O motivo era a luz que vinha pela rua
adjacente, antecipando a patrulha que a gerava.
Assim que ela passou, ele deu a partida e virou a rua atrás dela,
mantendo uma distância segura. De repente a viatura acelerou e
fez uma curva fechada, cantando os pneus, sumindo numa rua à
esquerda. Todos dentro do carro riram.
- É o Felipe, não é?
- Eles devem ter ouvido no rádio e foram tentar a sorte.
Brener piscou o farol e toda a extensão da rua se mostrou por
um segundo. Ele seguiu, agora com um pouco mais de velocidade.
Piscou mais uma vez. Era a próxima rua.
- Escritor, pergunta pro Osias sobre o memorial. - Érika
começou.
- Ele acha que é uma homenagem aos que morreram antes do
pacto. - Juno revelou com um tom jocoso.
- Eu não sou o único que achava isso. Felipe também. Mas ao
invés de civis ele dizia que era para os “bravos heróis que
perderam suas vidas na missão de proteger a cidade.” - Osias se
defendeu.
- Sim, os patrulheiros. Não é isso?
- Não, Alícia! Foi uma homenagem póstuma pra Socoma!
- Viu, não sou o único. - Osias se sentiu vitorioso.
- É mesmo? É ridículo o quanto eles a adoram. Morrem de
orgulho dela ter nascido aqui.
- O pacto foi feito aqui! Eles deveriam se orgulhar disso, talvez.
Mas ainda assim o monumento é para homenagear os feitos da
Socoma.
- Bom, querendo ou não, foi graças a ela que o pacto foi
firmado.
- Não foi o que eu ouvi...

249
NICTOFOBIA

- Merda! - Brener interrompeu bruscamente e fez uma curva


repentina.
- Eles nos viram? - Osias se preocupou. Apenas quem estava na
frente conseguiu ver a forte luz dos holofotes surgindo na avenida
logo à frente.
Brener acelerou e virou em outra rua para despistar. Desligou o
motor. Todos ficaram em silêncio, atentos aos ruídos que os
cercavam. O roncar de uma moto soou em algum logradouro
próximo, tranquilizando o grupo: Felipe estava atento ao
perímetro, um raio de dois quarteirões que envolvia o Áquila e
seus passageiros, atraindo e despistando cada viatura da Socoma
que se aproximasse demais. Era a ave que se faz de ferida para
atrair as raposas para longe dos filhotes escondidos no capim. Mas
a ave se esquece de que não é intocável. Ao mudar o foco do alvo,
ela vira o alvo; e todo caçador tem seu dia.
Brener retomou o percurso e quatro curvas depois encontrou
um lugar para estacionar, um beco sem saída, escondido o
suficiente para deixar o veículo.
- Felipe deve nos encontrar no memorial assim que despistar
esse último carro. Vamos já levar as coisas pra lá. - o motorista
assumiu a liderança.
- Já devo ir gravando? - Osias pegou a bolsa de sua filmadora no
porta-malas.
- Não acho que vamos ter atividade aqui fora ainda. É muito
cedo. Espera até a gente entrar. - Ênio respondeu, distribuindo
lanternas.
Alícia e Érika vestiam luvas de inverno. Juno pegou seu
equipamento fotográfico. Ênio trazia um pequeno gravador de
áudio. Brener reuniu o grupo em volta de um pequeno mapa,
iluminando com sua lanterna de bolso. Era um panfleto oferecido
na própria recepção da Biblioteca Nacional.
- A gente entra por aqui, não está sinalizado, mas tem um
acesso de funcionários. Vamos nos dividir em dois grupos, um vem
por aqui e deixa a saída de emergência liberada, nossa rota de fuga
caso dê tudo errado . O outro vai para a recepção e destranca o
elevador. A gente se encontra aqui e desce até… - ele indicava com
o dedo, passando pelos andares:

250
DIAS FERPELLA

- ...aqui. Seguimos por aqui, aqui e entramos no Salão de


Arquivos. Dizem que eles gostam do mezanino, mas pode ser que
estejam nesse canto do fundo.
O grupo assentiu. Não era um percurso difícil, mas era bom
repassar. Era bom estar pronto para tudo.
- Brener, dá pra confiar mesmo nessa sua fonte? - Juno hesitou.
- Outros confirmaram a informação.
- Eu digo, pelo fato dele ser ex-Socoma.
- Eu também fico com um pé atrás em relação a isso. - Érika
soltou.
- O cara é padrinho do meu irmão, eu asseguro que ele não tem
mais nenhum vínculo, nem mesmo qualquer simpatia por essa
diretoria. Ele diz que trabalhava para a Socoma e, desde que ela se
foi, não vê o porque beneficiaria um bando de amadores. - Alícia
reforçou a legitimidade das intenções.
- “Jogadores de Super Trunfo que ainda cheiram à fralda” nas
palavras dele. - Brener riu.
- Como? O que ele quer dizer? - Juno estava confusa.
- Que eles ainda vão meter a Socoma em maus lençóis. - Ênio
concordou, fechando o porta-malas delicadamente.
- Os frutos que eles colherão vão estar todos bichados. - Alícia
fez coro, passando a tira de uma bolsa sobre os ombros.
Eles seguiram para fora do beco, atravessando o breu da rua
deserta. O céu estrelado, o mesmo céu a ser contemplado em sua
essência dali a sessenta anos pela neta de Ênio, salvo algumas
estrelas apagadas, mortas há muitas eras do seu nascimento, há
muitas eras do nascimento do próprio Sol, cuja luz finalmente
cruzaram a atmosfera terrestre por uma última vez.
Não era a primeira vez que Ênio via a noite. Na verdade, era a
segunda vez de todos ali. Na semana anterior haviam ficado de
tocaia na antena de rádio, observando e registrando o movimento
de todos aqueles faróis lá embaixo, buscando um sentido naquele
padrão, à primeira vista, aleatório.
O memorial surgiu por trás da esquina, pesados blocos de
granito, mármore e cobre, emaranhados numa bela confusão
estranhamente harmônica. À noite, o monumento podia ser visto
cruamente, por si só, e parecia vazio de alma. Pois eram as
sombras trazidas pelo dia, especialmente às nove da manhã e às

251
NICTOFOBIA

três da tarde, que construíam o atrativo. Aqueles blocos e torres,


arestas e ângulos, encontros e repulsões, jogavam no piso de
arenito um mosaico mesmerizante, como uma revoada de pássaros
a caçar libélulas e borboletas numa tarde de pólen. Agora, a noite,
sob a luz de lanternas, era apenas pedra e metal inertes.
- Alícia, vem dar uma olhada. - Ênio chamou a atenção da
companheira, apontando a lanterna para um placa cravada em
uma das pedras. Nas letras douradas se lia:

Uma Noite em Cem Anos


Artista: Virgínia Motta Bynal
“Os últimos tijolos de um muro estão acima de todos os outros
e parecem não carregar nenhum peso sobre si. Mas não se
encontram em posição de mais prestígio, pois jamais alcançariam
as alturas sem o suporte dos primeiros. A estrutura funciona
quando estão todos alinhados, unidos e em sinergia, ocupando a
posição que lhe foi confiada para construir o todo.”

E abaixo, em destaque, a continuação em letras maiores:

“Aquele que confia, se fortalece no outro.”


K. Socoma

- Vale ressaltar que ela foi a principal financiadora desta praça.


- Érika revelou, alfinetando.
- O quê? Ela financiou o próprio memorial? Tem como ser mais
egocêntrica que isso?
- Pode acreditar. Na primeira página do testamento.
Nesse momento, Juno, Osias e Brener estavam um pouco mais
distantes, iluminando a fachada da Biblioteca Nacional, sua
arquitetura gótica-moderna, motivo de cartões postais em vários
ângulos e detalhes. Osias foi o primeiro a ouvir o motor se
aproximando:
- Ótimo, ele está chegando.
E ele não estava de todo errado, era sim Felipe que vinha. Mas
não sozinho.
Sem aviso, a Nona Unidade da Socoma irrompeu na praça como
se o asfalto se expandisse para além do meio fio. Veio no escuro,

252
DIAS FERPELLA

ligando seus holofotes apenas nas cercanias do memorial. Sem


hesitar, Juno partiu em disparada pela escadaria da Biblioteca.
Brener tentou gritar para impedí-la e guiá-la para a melhor rota,
mas ela já havia subido metade dos degraus, forçando-o a ir atrás.
Osias desaparecera numa fuga individualista.
- Juno, por aqui! Podemos nos esconder lá atrás. - ele a chamou,
seguindo pela varanda que circundava a construção, repleta de
quimeras e gárgulas em suas colunas ornamentadas com heras
floridas.
Érika, Ênio e Alícia não tiveram a chance de correr mais do que
cinco metros. O carro avançou diante do trio, bloqueando o
caminho e, antes que pudessem mudar o rumo, dois agentes - um
homem e uma mulher - abriram as portas, empunhando armas e
dando ordens.
Eles levantaram as mãos e se ajoelharam, rendidos. Encostem
ali, sentem-se com as pernas cruzadas, braços cruzados. E quem
saísse da posição teria sérios problemas.
Com o memorial pressionando em suas costas, os três viram
Felipe descer do carro e se juntar a eles, trazido por um terceiro
agente.
- Vão atrás dos outros. E alertem as outras Unidades para
circularem a área. Nós vamos tentar reverter isso agora mesmo. -
um agente mais velho instruiu aquele que trazia Felipe. Ele
consentiu e voltou ao carro, que por sua vez partiu imediatamente
de volta ao asfalto.
Felipe se sentou com uma feição assombrada.
- Me perdoem… Eu não queria isso…
- O que aconteceu? - Érika se preocupou.
- Ele matou um deles. - a agente mais nova respondeu pelo
rapaz, ainda empunhando sua arma. O trio ficou incrédulo,
reagindo com mais perguntas confusas. Felipe esclareceu com a
voz abalada:
- Eu parei a moto na viela, peguei o alicate… Eu já estava vindo
pra cá. Eu não sei de onde ele veio, estava escuro demais e ele se
aproximou sem o menor barulho. Quando eu vi, ele já estava em
cima de mim.
A viatura encontrou Felipe desnorteado, salpicado de sangue
no rosto e nas roupas. Ele estava à três quadras de distância da

253
NICTOFOBIA

viela em questão, onde jazia o corpo da criatura. Mas a patrulha


nunca soube, pois, na sua confusão e choque, ele não sabia dizer
por onde viera. Dizia apenas que tinha sido atacado por algo e o
matara com um corta-vergalhão, a ferramenta que ele trazia para
cortar o cadeado da entrada de funcionários. A Socoma
perguntava se ele estava sozinho e ele afirmava que sim. Até que
explicaram que ele tinha quebrado o pacto e uma retaliação era
iminente.
- Eu apenas me defendi. Aquela coisa me atacou primeiro, foi
ela que quebrou o pacto.
- Você se feriu?
- Um pouco. - o ser noturno o havia agarrado forte pelos
braços, deixando hematomas.
- Você está vivo, a criatura não. - outro agente interferiu.
- Se você tiver algum amigo com você, é bom falar logo, antes
que as coisas se compliquem para ele. - o primeiro encerrou. E
assim Felipe entregou Alícia, Érika, Brener, Juno, Osias e Ênio. Os
Sete do Memorial.
Sentado ao lado de Érika, Felipe se encontrava no dilema moral
de ter salvado a vida de seus amigos ao traí-los. Com a notícia do
perigo que corriam, os três que ali estavam não se opuseram à
retenção e se preocuparam pelos outros três que fugiram. Mas não
durou muito, o rádio do agente mais velho declarou:
- Virgílio, já estamos com os outros.
- Podem seguir com o procedimento normal. A gente vai
resolver o problema por aqui, não vai demorar. - ele respondeu,
sinalizando para a agente que o acompanhava. Ela se aproximou
para ouvir a decisão:
- Eu vou entrar com eles. Espera aqui, a outra Unidade deve
estar chegando. Vocês dois, venham comigo por favor. - ele
apontou para Felipe e Ênio, que se levantaram e seguiram Virgílio
a passos apressados, cada um com sua lanterna.
O agente aparentava uma preocupação controlada, como quem
lida com uma crise mantendo a calma mas sem perder a dimensão
do problema. Virgílio Douvan era um veterano na Socoma, tendo
pessoalmente treinado todos os agentes na sua presente equipe.
Ele viu muitos colegas na lista de descarte quando a nova diretoria
propôs uma Reestruturação Operacional, quase uma década

254
DIAS FERPELLA

depois do estabelecimento da Lei do Linear. Outros pediram


dispensa, insatisfeitos com o rumo que a empresa tomava após o
afastamento de Tchertkov.
A Biblioteca Nacional, berço do pacto primordial, se postava
diante deles, no escuro, pronta para digeri-los. Insones,
transgressores, tijolos fora do eixo, incapazes de firmar um muro
conciso, ruindo toda uma ordem penosamente estabelecida.
Virgílio não conseguia entender o prazer da desobediência.
Insones, transgressores, aqueles que nasceram num mundo sem
noite, poupados do medo anterior ao pacto, anterior à Lei. Eles
não valorizam a sorte de uma segurança garantida e desafiam o
perigo noturno a provar sua bestialidade. Agora pessoas
morreriam. E se fosse seu filho? Poderia ter sido seu filho. Eles
tinham todos a mesma idade. Ênio, filho de dois, neto de quatro,
pai de…
Virgílio, curioso, perguntou. E Ênio menciona Taila, ainda sem
nome, ainda sem gênero, mas já esperada com uma promessa de
vida. E aquilo puxa Virgílio pelo pé de apoio, pois ele pensa em sua
própria família num momento de empatia. Ele pensa em Hector e
Petra crescendo sem um pai.
- E as outras? - porque o agente quer reduzir os danos e
apaziguar a culpa que lhe cabe.
Alícia tem uma menina. Érika não tem filhos.
E pelo rádio uma troca é conduzida. Virgílio manda Ênio de
volta e recebe Érika. Exatos quarenta e dois passos os separam, e
eles se cruzam no meio do caminho. A luz dos agentes cobrindo
suas costas e, a cada passo, a ansiedade aumenta junto com a
sensação de exposição e vulnerabilidade na extensa praça do
memorial. Ênio não para de andar, mas Érika tenta segurá-lo.
- O que aconteceu?
Ele não sabe. Mas ele promete estar ali quando ela voltar.
A mesma pergunta lhe é feita por Alícia quando ele se acerca do
monumento.
- Eu não sei. Para onde eles vão? - Ênio pergunta para a agente
que está com eles.
- Para o Salão de Arquivos. Vão tentar compactuar novamente.
E juntando as informações, tanto Ênio quanto Alícia logo
supuseram o pior. Mas a agente evitava entrar em detalhes,

255
NICTOFOBIA

afirmando não ter conhecimento do processo. Era algo que nunca


tinha acontecido antes e para o qual ela nunca fora treinada.
Quando a Décima-quinta Unidade chegou, trouxe junto o alívio
dos holofotes e faróis. Os quatro agentes não seguravam seu
entusiasmo, comemorando a captura sem dar importância aos
capturados. Em seguida deram início ao procedimento padrão,
esclarecendo as circunstâncias óbvias:
- Vocês estão sendo retidos por infringir a Lei do Limiar. Serão
encaminhados para suas residências e pela manhã serão intimados
a comparecer na sede da Socoma. E… Acho que é isso. Mais
alguma coisa? - a agente recorreu aos seus colegas, parecendo
insegura com a declaração, algo que ela aprendera há muito tempo
e nunca teve a oportunidade de usar.
- Sono. - alguém lembrou.
- Ah sim: vocês podem optar por já tomar uma dose, o que
ameniza um pouco a situação.
- E precisamos dos endereços, claro. - outro agente contribuiu,
gerando risadas.
Alícia o fez primeiro, diante de uma prancheta, já sentada no
banco de trás com a porta aberta. Lhe foi dado um comprimido de
Sono, que ela prontamente pôs entre os lábios. Antes de mordê-lo,
ela olhou para Ênio buscando aprovação. Ele maneou a cabeça,
compreendendo. Ela adentrou um pouco mais no carro, se
acomodando no meio do assento, dando espaço ao amigo que ela
julgou tomar a mesma decisão. E deixou para trás todo aquele
medo e incerteza.
Ênio deu seu endereço, mas surpreendeu o agente ao declarar
que ficaria acordado. Não apenas isso, mas esperaria ali até que
Felipe e Érika voltassem. Eles tentaram argumentar, convencê-lo
que seria melhor dormir, insistiram, pediram. E Ênio percebeu que
aquelas pessoas não queriam seu mal, queriam ajudá-lo. Não
queriam que ele se ferrasse com a lei e fosse para a Clausura, ou
fosse condenado com uma multa maior do que pudesse pagar, ou
tivesse que dedicar metade da sua vida a trabalhos comunitários.
Ele olhou para cada um daqueles rostos e viu pessoas, não
uniformes e armas. Pessoas atuando num papel que o sistema
ditara e ninguém se deu conta das reais necessidades. Nelas foram

256
DIAS FERPELLA

incrustadas a fala firme, a formalidade, a imposição e agressividade


que perseguem o paradigma do autoritarismo.
“Ninguém deveria ser obrigado, apenas aconselhado. O Limiar
deveria ser uma sugestão, não uma lei.” fora anos atrás que Hector
passava num ônibus a dois quilômetros dali, sentado ao lado de
Clara. Olhava para frente, timidamente evitando o olhar
avassalador de Clara, inspirado por seu discurso passional do fim
de uma era. A noite, proibida, retirada dos sentidos humanos por
um grupo seleto de privilegiados com o dom da ordem e poder.
Aquele que confia se fortalece no outro. E, naquele ônibus de fim
de tarde, a história futura de Ivan, de Ronie e de Lenny se garantia.
“Não se preocupe. Vai dar tudo certo. Ninguém vai morrer.”
anos à frente, Lucian passaria num trem a vinte e cinco
quilômetros dali, sentado ao lado de Lenny.
Ênio esperou, ouvindo as conversas descontraídas dos agentes
da Socoma. Quase uma hora se passou. E finalmente ele viu
pontos luminosos surgindo ao longe, por trás do gigante de livros.
A medida que se aproximavam, foi confirmada a presença de um
par. Alguém balbuciava algo com uma voz desafinada.
Felipe se adiantou quando viu Ênio junto ao carro. Abraçando o
amigo ele explodiu em lágrimas.
- Me desculpe! Minha nossa, o que eu fiz?! Perdão! Perdão!
Ênio não precisou de explicações. Seu peito foi atingido por um
coice violento da impotência. Não havia nada a ser feito, era
irreversível, acabou. Sua visão se turvou de lágrimas que escorriam
sem que ele piscasse. Não era real, não poderia ser. Baya-lau-revvn.
Ênio resume todas aquelas emoções em uma única palavra:
acabou. Mas a morte não lhe veio em seis letras, tampouco um
parágrafo ou um ensaio. Era uma biblioteca inteira. E ela crava
suas unhas no rosto e na orelha do homem. O outro se soma ao
primeiro e a agarra pela cintura. Ele a puxa e a prende contra uma
estante. Ela vira seu corpo e se lança para longe de suas mãos,
desequilibrando todo o conjunto, que vai ao chão. Ela fratura o
cotovelo na queda e seu grito sai como um ganido, pois ela não
tem os pulmões cheios o suficiente: cada fôlego é usado por seus
instintos de sobrevivência. Lutar, fugir, correr, se esconder.
Ela se agarra ao nicho de uma prateleira e tenta se desvencilhar
daquele que segura suas pernas. Ela implora, por favor, não. Ela

257
NICTOFOBIA

chacoalha as pernas com tanta força e vivacidade, dando chutes


descontrolados, que consegue uma brecha para se pôr de quatro e
engatinhar dois passos enquanto se levantava. E o primeiro surge a
suas costas, agarrando sua camisa pela gola e ela escuta a costura
ceder um pouco. O tecido fere a pele do seu pescoço.
Agora ela cai sentada e a quantidade de adrenalina no seu
corpo é suficiente para cortar qualquer comunicação de dor que
parta do seu cotovelo quebrado. O primeiro, aquele que deveria
estar do seu lado, aquele que conquistara sua confiança ao longo
da semana, passa o braço direito por baixo do queixo dela. Ela se
desespera quando sente sua traqueia constrita e, com seu braço
apto, desfere golpes enfraquecidos pelo ângulo. O agressor à suas
costas não ameniza e ela aumenta a intensidade dos socos, o que
acaba por diminuir sua eficácia ainda mais. O outro, que nada lhe
deve, mas há de ser humano, há de ser pai e ter um coração, se
posta à sua frente e prende seus punhos junto ao seu colo. Ela
agora nada pode.
Mas o corpo dela não desiste. Há um órgão que pulsa acelerado,
irrigando todos os músculos com a força para escapar. Mas não é o
bastante. Há um músculo ligado aos pulmões que se esforça ao
ponto de se romper, apenas para fazer um movimento, um único
movimento para baixo e o ar pode ser sugado. Pois os outros
órgãos suplicam por oxigênio. Cada e toda célula se estremece e
urra num uníssono primal. Ar! Mas não é o bastante.
As pernas se debatem. Tudo se enrijece e se comprime. Um
espasmo. As pupilas se arreganham e as veias das córneas
explodem, uma por uma. Os braços buscam se agarrar em algo. As
pernas se contorcem. A cabeça pulsa. Ela sente seu coração bater
na sua cabeça, tão poderoso que parece ter mudado de lugar. E a
cada pulsação, sua visão se escurece mais. Como manchas, como
estrelas negras. Nebulosas e aglomerados. Éter, vácuo, nada.
Nenhuma cor, nenhuma luz. A sua consciência se esvai, mas ela
ainda conta com seu inconsciente. E seus reflexos, numa breve
tentativa, assume o controle daquele corpo oco que vibra travado
num rasgo temporal.
Ele não larga. Enquanto ela se move e reage, ele não larga. Ele
aperta cada vez mais forte, pensando assim abreviar o sofrimento,
tornar tudo mais repentino. Ele sente a cervical dela estalando. E

258
DIAS FERPELLA

durante os espasmos violentos ele percebe que também não


respira, que prende a própria respiração de tanta força que aplica.
O sangue sobe todo para seu rosto, seus lábios formigam, ele grita,
seus olhos molhados. E a solta. E se afasta apavorado com o
resultado de seus atos.
Acabou.
E ali fora, diante de Ênio, a dimensão daquela culpa o subjuga e
devora suas entranhas antes mesmo de ele se dar conta. A cena se
repete, gravada em escala subatômica, incorporada
permanentemente em seus genes. E quando Ênio o afasta,
repelindo seu remorso assassino, ele escuta Virgílio chegar atrás de
si, instruindo para os outros agentes:
- Temos um corpo na Sala de Arquivos, por favor. - e a equipe
se adianta para pegar uma maca.
Ênio se cala por um momento. A única vez que falou sobre o
acontecido foi em seu depoimento há quase sessenta anos. Estão
sentados num banco de praça. Crianças brincam no balanço de
forma não convencional, girando, ficando de pé, subindo nas
cordas. Amanda dá tempo ao avô, percebendo o momento
delicado da narrativa. No gramado, passarinhos buscam sementes
e insetos.
- Bom… Felipe pegou a arma de um agente e se matou. Na
minha frente. Sem aviso. Assim mesmo.
- Nossa vô…
- Mas já faz muito tempo. O trauma também suprimiu muitos
detalhes e eu mal lembro da cena. - Ênio mentiu, poupando a neta
de sentir por ele.
- E aí o que aconteceu?
- É isso. Eu dormi, me levaram pra casa e começou toda aquela
confusão da mídia na manhã seguinte. Como eu fiquei acordado
por mais tempo e “me recusei a cooperar”, minha pena foi mais
severa e acabei indo pra Clausura. O que não era assim tão ruim
quanto parece. Era um andar na sede da Socoma, com quartos
pequenos e simples. A gente recebia doses inconcebíveis de Sono:
dormia das três da tarde até às nove da manhã. Mas tinha uma
área de jogos e os agentes eram amigáveis. E a comida era até boa,
no início.
- “A gente recebia”?

259
NICTOFOBIA

- Ah sim. Brener também ficou lá um tempo. Como ele era o


proprietário do carro, aumentaram a responsabilidade dele.
- E os outros?
- Osias, Juno e Alícia tinham que se apresentar na Socoma todo
dia, uma hora antes do limiar.
- Tá, mas… Não foram três mortes?
- Amanda, querida… A Socoma mente.
- E esse pacto… Qual a relação da Socoma com essas criaturas?
O que eles sabem e escondem do público?
- Realmente, essas são coisas que só quem está lá dentro deve
saber. E só mesmo o alto escalão. Os agentes aposentados ou que
foram dispensados não sabem de nada desses detalhes.
- Ou dizem não saber… - Amanda falou consigo mesma e seu
avô concordou com um preguiçoso gesto. O mistério regava a
curiosidade de alguém antes alheio às horas obscuras, e cada vez
mais a noite exercia sua atração sobre aquela menina. Mas
Amanda já tinha o hábito de medir seus impulsos, então deixou a
informação se acomodar. Até que aqueles planos inconsequentes
de uma aventura juvenil, os últimos da idade dos ossos quebrados,
se transformam em algo ainda mais ousado e perigoso: uma
carreira.

260
X

O
único som que se propagava nas ruas era de um trem que
se afastava. A pista sutil de um clarão revelava nas nuvens
a posição da lua escondida. As casas adormecidas, janelas
fechadas. Um movimento no ar, uma criatura ancestral que se
lança de um telhado sem fazer o menor ruído. Garras que
perfuram, dilaceram, apertam contra a pele até romper a frágil
superfície sob a arma pontiaguda.
Lenny, agarra o braço de Vinícius diante da visão, impedindo
que ele avançasse mais um passo. Ela aponta a coruja voando de
um lado ao outro da rua, mirando algo que se movimenta no chão.
Habitantes dos bueiros, um país de encanamentos e galerias
inundadas. As patas da ratazana fazem um barulho distinto toda
vez que toca as pedras da calçada. E ela nem se dá conta do
momento de sua morte, que chega no impacto daquelas garras que
voam silenciosas e se cravam em seu dorso, pegando de uma vez o
fígado, o pulmão esquerdo, um rim, três alças de intestino, o
fundo do estômago, a traquéia, o ombro direito, além de quebrar
sua coluna em dois pontos.
- É uma Múnia-diabo. Olha como ele engole o pobrezinho de
uma vez só. - Lenny sussurrou, fascinada com o tamanho da ave.
Era um jovem macho. Tufos se erguiam do alto de sua cabeça, em
forma de pequenos chifres negros. E quando ele virou a cabeça
para olhar a fonte da perturbação, a luz bateu no fundo de seus
olhos, refletindo um brilho arrepiante.
Vinícius apagou a lanterna. Ele nunca tinha visto uma Múnia
caçando. A ave buscou a presa com seu bico afiado e, jogando a
cabeça para cima, fez rápidos movimentos repetidos com o
pescoço. A ratazana foi desaparecendo, sendo sua cauda a última a
deslizar pelo bico já cerrado. A coruja encarou o par de humanos
no escuro, analisando a ameaça. Seus enormes olhos amarelos
encobertos pela noite.
E então ele capta algo mais, se não com a visão, com a sua
audição. Ele ergue suas enormes asas e, em perfeita harmonia
NICTOFOBIA

aérea, decola em absoluto silêncio. A nuvem que cobre a Lua se


afasta para delinear a cena sob o halo prateado.
Foi algum pressentimento, uma paranoia, uma sensação
inexplicável no estômago que fez Vinícius olhar para trás. Lenny
ainda admirava a Múnia-diabo planando em seu voo esplendoroso
quando seu amigo grita com urgência:
- Vai! Corre!
Ele ainda lhe dá um impulso nas costas para encorajá-la e ela
mal tem tempo de conferir o que vinha. Mas havia um volume,
uma massa que avançava incrivelmente rápido, uma criatura
indefinida num ataque desgovernado e ainda assim inaudível.
Lenny partiu em disparada, tentando agarrar o braço de Vinícius
para que a acompanhasse. Ele hesita por um segundo apenas, se
desvencilhando para apontar a lanterna e esperando assim repelir
o noturno. Ao mesmo tempo, com a outra mão, ele procura a arma
em sua cintura, aquela que Giulia lhe passou antes de se despedir.
Mas não há outra mão.
Somente quando seus dedos falham em tomar a coronha,
devido a bandagem que os une numa única luva, que Vinícius se
lembra de sua limitação. Ele se atrapalha com a lanterna, não sabe
se joga, se larga, se põe debaixo do braço, mas ele precisa de sua
mão esquerda livre a todo custo. Lenny percebe que ele hesita, e
tudo dura não mais que cinco segundos.
Um: “Vai! Corre!”
Dois: Lenny reage e corre. Ela tenta puxar Vinícius consigo.
Três: Ele se desprende dela, levanta a lanterna e busca sua
arma.
Quatro: Não há outra mão.
E pouco antes do quinto segundo, Lenny está gritando por ele.
Mas parece tarde demais e ele tropeça nas próprias pernas numa
manobra desajeitada de esquiva. Quando ele vai ao chão, a
criatura se lança sobre ele, pressionando-o entre seu peso e o
asfalto. E Lenny vê, no quinto e no sexto segundo, o horror. Aquilo
que Ronie desconhecia, que Ivan duvidava, que Clara temia e
Romanie tinha pavor.
O ser corpulento tinha uma postura animalesca. Os ombros
largos, com membros que afinavam rapidamente, até tomar a
aparência ossuda e esguia. E as garras se erguem no ar, como

262
DIAS FERPELLA

quem abre uma cortina com desprezo e fúria. Lenny vê, são
vísceras, é uma porção do intestino que é arrancada no movimento
e bombardeia o asfalto de sangue. É o grito agonizante que morre
num gorgolejar lamentoso. É a outra garra que esmaga o peito em
espasmos, para que não mais se mova, para que assim a coisa
possa devorá-lo de imediato. E antes que ele morra
completamente, uma cabeça grotesca mergulha em seu ventre
exposto, consumindo os órgãos pulsantes com visível ódio.
Lenny não quer mais ver e corre para a calçada. Pois há ali um
totem publicitário que se oferece para escondê-la, uma vez que a
esquina agora parece longe demais. Ela cola as costas numa
aparente tentativa de se fundir com o objeto. Seu coração esmurra
todo seu corpo e ela respira em tamanha disritmia que acha que
pode sufocar. As mãos e o peito tremem descontroladamente.
Medo, pavor, instinto de sobrevivência. Ela está ficando paralisada.
Não pode ser, não é real. Pesadelos são reais até o momento em
que se acorda. Mas nunca foram reais.
Ela precisa agir, antes que nunca mais consiga se mexer e morra
ali mesmo, esfolada viva. A lanterna, a arma… A chave da casa de
Giulia! Lenny move sua cabeça devagar, olhando para trás, apenas
até conseguir ver algum movimento. A criatura continua lá, agora
se alimentando com menos voracidade, agora que o sangue não
mais esguicha, apenas jorra. Ela escuta o barulho das lambidas, os
gemidos de satisfação e arrotos. Um timbre estranhamente
humano, destoante da forma que o produz. A lanterna rolou para
o outro lado da rua, junto ao meio fio. Lenny se obriga a respirar
fundo, acalmando seu corpo e mente, buscando qualquer tipo de
impulso para sobrepor todo aquele pavor. E quando ela está a
ponto de correr para o tudo ou nada, vê um segundo noturno
surgindo da penumbra, atraído pelo cheiro de morte.
A coragem de Lenny se dissipa como uma gota de chuva no
solo. Ela permanece escondida, mas agora pode ouvir aquela coisa
se aproximando. Ela não se arrisca a conferir. Um ronco vem de
algum lugar à direita. Ou seria a criatura? Sim, é um ronco. Um
ronco maquinal.
Lenny precisa chegar até a esquina. Ou até a lanterna e depois à
esquina. Mas ela viu o quão rápido podem ser e não consegue
encontrar um só grão de esperança. Ela percebe: está paralisada.

263
NICTOFOBIA

Alguma coisa escura escorre pelas paredes de seu quarto. Ela toma
Sono apenas para escapar daquele pesadelo. Há um buraco
sangrento com um forte odor de suco gástrico. E a carne dos
órgãos mastigados compõe uma deformidade repulsiva, onde nada
se identifica, pois ali, a monstruosa figura consome não apenas o
corpo, mas sua voz, seus medos e sua alma. Seus dentes dilaceram
e mastigam almas.
Ela escuta uma risada de criança, bem baixa e discreta, abafada
como se disfarçasse o riso. Mas está bem ali, atrás dela, do lado
oposto do totem que a esconde. Lenny não consegue olhar, não
consegue fugir e faz um esforço enorme para apenas respirar. Algo
está farejando com impaciência.
Subitamente, um clarão atordoa Lenny por dois segundos. O
carro virou a esquina, transformando a rua com seus holofotes e
faróis. Ela se apressa para o meio do asfalto, sem nem olhar para
trás, erguendo os braços e acenando desesperadamente. A viatura
freia de imediato e três portas se abrem. Dois agentes passam
direto por Lenny, como se não a enxergasse. Lenny olha para trás,
eles se ajoelham junto ao corpo de Vinícius, agora abandonado.
- Você está bem? Está ferida? - o terceiro agente toca em seu
braço, assustando Lenny que está no máximo de seu estado de
alerta. É uma mulher. Lenny tenta, mas não consegue falar.
- Feller! - um dos agentes atrás de si convoca sua colega.
Quando Lenny olha, ele está aparando a cabeça de Vinícius com
uma das mãos. E Vinícius corresponde, agarrando o braço dele
com rigidez. Lenny perde o ar.
Ela vai atrás de Amanda, em passos entorpecidos. “Parada
cardiorrespiratória.” ela escuta a outra agente dizer, já de pé e
correndo para o veículo. Amanda se abaixa e levanta a camisa de
Vinícius, preparando-o para o desfibrilador. Mas nenhum oxigênio
circula pelo cérebro do rapaz e, se ele se agarra ao agente, é mais
um espasmo do que um pedido de ajuda. Lenny se aproxima o
suficiente, trêmula, perante a vida que sai do corpo do amigo
numa última brisa que ninguém ali consegue sentir. Não há
sangue no asfalto, não há tripas, não há pele dilacerada nem
órgãos devorados. O ventre de Vinícius está como sempre esteve.
Baya-lau-revvn.

264
PARTE III
I

O
despertar de Agda Tchertkov tinha início com seu gato.
Ela sabia que ele provavelmente se mexia e corria pela
casa inteira durante a noite, mas Sono não deixava que ela
acordasse. Era apenas ao amanhecer, quando o efeito de sua dose
começava a se dissipar junto com a escuridão do céu, que ela
sentia as mordiscadas nos seus pés.
Sua mãe, quando a visitava, se surpreendia com a longevidade
do animal. “Ainda é o mesmo?” ela provocava. E Agda respondia
pacientemente que aquela casa era completamente segura à noite.
Qualquer coisa que andasse ali dentro depois do limiar, que não
fosse do tamanho de um gato, acionaria as fortes luzes repelentes
em todos os cômodos.
- Você não confia nos seus agentes?
- Casablanca me assegura que designou três unidades para cá,
exclusivamente para cá. E eu confio nela.
- Então qual é o problema? Todos esses gastos por causa de um
gato?
Não. Agda ainda não tinha se acostumado com aquela trégua.
Ainda sentia aquela ansiedade toda vez que ia se deitar. Todas as
precauções eram financiadas apenas para que ela conseguisse
apaziguar seus temores que trazia da adolescência. O despertar de
Agda Tchertkov tinha início com seu gato e continuava com o
nascer do Sol. Um desses arquitetos renomados, que projetou sua
mansão, posicionou seu quarto no alto da estrutura, com uma
grande vidraça para o leste e outra para o oeste. O Sol disposto, o
Sol cansado. E Agda, mantendo os mesmos hábitos que a jovem
estrela, se sentia em sincronia tanto em importância quanto poder.
A manhã tinha prosseguimento com seu assistente pessoal
trazendo uma caneca de chocolate-negro cafeinado. Ele aparecia
sempre no mesmo horário e Agda adorava o constrangimento dele
quando o mandava entrar ainda deitada na cama, vestindo apenas
uma camisola cara. Ele não era muito mais velho que ela.

267
NICTOFOBIA

- Quantos anos você tem, Max? - ela tentava se aproximar do


rapaz que se mantinha extremamente profissional naqueles
primeiros dias.
- Trinta e três, senhorita. - Maximus respondia como se fosse
um teste.
- A idade do meu pai quando ele me teve. Você tem filhos?
- Não, senhorita.
- Pretende ter?
- Quando eu encontrar alguém que me faça querer ter… - e por
um momento ela conseguia ver quem ele realmente era, até ele
voltar ao seu papel de assistente. - … sim, senhorita Tchertkov.
E as brumas se levantavam da floresta nativa de pinheiro-
castelo, uma das últimas dos país, se estendendo pelas colinas
através do panorama de seu quarto. A primeira vez que os dois
tocaram no assunto. A segunda seria já na sede da Socoma, cinco
anos depois, cravando uma decisão que mudaria radicalmente o
rumo da companhia.
Ela tinha tomado as rédeas no início do ano, logo depois de
completar trinta. A mais nova no comando da Socoma e aquilo foi
visto com uma esperada desconfiança. Alguém que nasceu num
mundo pós-Insônia, assumindo o controle num momento de paz,
não estaria apto para quando uma crise viesse. Mas ela tinha todo
o apoio de sua madrinha, que defendia publicamente sua aposta:
- Não haverá crise. Está na hora de reaprender a viver sem
medo. Agda tem absoluto preparo para lidar com qualquer
situação. Não se esqueçam de que ela esteve ao meu lado durante
a política do Limiar. Não tem ninguém mais indicado para
encabeçar a Socoma do que ela.
E a fortuna da jovem quadruplicou de um mês para o outro,
apenas com a assinatura de alguns papéis. Agora ela tinha uma
mansão afastada da cidade, o apartamento da sede, um assistente
pessoal apenas para ela, doze agentes cuidando da segurança de
seus jardins, três motoristas, cinco funcionários internos, oito
advogados, dois chefes de cozinha, quatro jardineiros e uma
companhia avaliada em nove dígitos.
A rotina de Agda continuava depois do seu café da manhã. Um
motorista dirigia ela e seu assistente para a cidade industrial e ali
dentro do carro não havia espaço para flertes. Nos trinta e cinco

268
DIAS FERPELLA

minutos que separavam sua mansão da sede da Socoma, eles


discutiam assuntos práticos: os termos da terceirização da frota, as
obras do TAT, os relatórios de atividade noturna, a regularização
de um lote próximo ao Parque para a construção da nova sede.
- Pra quê? A sede atual é livre de impostos.
- A senhora Socoma aconselha deixar ali funcionando apenas
como fábrica. Ela acha que mudar as operações para a cidade vai
deixar a empresa mais presente. É importante para a população
saber que está segura.
- Tanto faz, Maximus. Se é o que ela diz… - Agda desdenhava
com claro desinteresse.
- A decisão é sua, senhorita Tchertkov.
- Ai, Max… Ela sempre falava disso, da presença da Socoma. A
torre de vigia. Mais pra intimidar a população do que para
monitorar os seres noturnos. Os seres noturnos não são o
problema, é a desordem que eles podem causar, o pânico, o caos.
A gente não faz isso por caridade, a gente faz isso por lucro. Se ela
acha que um prédio com o emblema da Socoma na fachada vai
resolver o problema melhor do que a propaganda tem feito, então
deve ser porque há melhores perspectivas de crescimento da
receita, imagino.
- Ela disse que o Pacto fere a estratégia.
- Ela te disse? - Agda se assustou com o próprio tom de voz.
- Não, foi uma nota publicada no último balanço setorial. Eu
escrevi para a senhorita na ata.
- Por que eu não me lembro disso?
- Se não me engano, a senhorita tinha se retirado.
Agda se recordou mas nada disse. Deve ter sido naqueles
minutos em que ela se deu uma pausa para fazer um lanche na
cafeteria e usar o banheiro. “Por favor, continuem.” ela disse ao
sair da sala de reuniões, louca para que eles continuassem com
aquele falatório maçante sem a presença dela.
- Max, o Pacto foi há sete anos. Nada aconteceu até então. São
sete anos de nada. Ninguém é louco de ficar acordado. É suicídio.
- Compreendo. Por conseguinte a senhorita se opõe à
translocação?
- À o quê? Max, porra, fala normal comigo. E me chama de
Agda, nós vamos trabalhar juntos por um bom tempo e eu não

269
NICTOFOBIA

quero ter que me acostumar com toda essa formalidade. Não tem
ninguém assistindo. - ela falava como uma amiga próxima.
Maximus teve suas dúvidas se aquilo faria bem ou mal à Socoma.
- Não é apropriado, senhorita.
- Então a decisão é sua? - ela mudou para um tom firme.
Ele ficou calado, sem saber o que responder.
Ela sorriu. E ele tentou se manter sério, mas cedeu depois de
alguns segundos, com uma risada discreta de alívio. “Droga, ela é
muito bonita. O que será de nós?” ele pensou, mais preocupado
com seu cargo do que com o futuro da Socoma. Pois Agda confiava
totalmente na sua madrinha, nos contadores, nos advogados, nos
gerentes, nos veteranos e em seu assistente. Agda era a nova cara
da Socoma, mas o coração da companhia continuava o mesmo. Ela
tinha a presidência apenas no papel e ela mesma sabia disso e se
sentia confortável e amparada. Nenhuma grande decisão era sua,
não era ela ditando as regras, ela ainda tinha tempo para aprender
as artimanhas do cargo.
E então, três anos depois, com a morte de sua madrinha, o
mundo finalmente pareceu notar que era Agda Tchertkov a se
sentar no topo daquele prédio recém-inaugurado. Era ela a única
herdeira, a proprietária, o grande nome a assinar todo documento,
o músculo a bombear o sangue por toda uma corporação. As
árvores do Parque se estendendo aos seus pés.

***

Ela se sentou próxima à janela, Maximus à sua frente. Lá fora o


Sol esquentava a pista de decolagem.
- Eu não me lembrava que era tão bonito assim. Trocaram os
estofados?
- Trocaram já faz tempo. - o assistente respondeu, tentando
resgatar a data precisa em sua memória. O piloto passou por eles,
rumo a cabine e o ajudou:
- Cinco anos. E essa mesinha era de plástico, não de madeira.
- Nossa. A última vez que entrei nesse jato foi quando a
madrinha se pronunciou na Cúpula de Políticas Mundiais. Isso foi
quando, Max? Sete, oito anos atrás? - Agda lembrou.
- Nove.

270
DIAS FERPELLA

Um sujeito corpulento, com voz poderosa, entrou no avião com


o resto da equipe de Agda. Ele suava e reclamava do calor,
exaltando o frescor do ar condicionado. Se sentou ao lado de Max
com um suspiro e abriu uma pasta que trazia embaixo do braço.
- Certo, Agda, este é o itinerário…
- Marvin, agora não. Eu disse quando decolarmos.
Ele se desculpou e devolveu os papéis à pasta. A primeira
viagem diplomática de Agda, firmando relações com países onde a
Socoma ainda não atuava. Mas havia sim interesse em estabelecer
bases e oferecer orientação e treinamento para as autoridades de
outras nações. O ideal era deslocar parte do batalhão para um
destacamento da Socoma. Mas havia abertura para a possibilidade
de uma parceria: a polícia local atuando como agentes da Socoma
e garantindo o cumprimento do Pacto. Em cinco meses ela
visitaria cerca de quarenta países e, num cenário pessimista,
alcançaria pelo menos oitenta por cento da meta.
O setor de relações internacionais mandava relatórios
trimestrais diretamente para Agda, mas não deixavam de
encaminhar uma cópia para a antiga presidente, na esperança de
que ela fosse orientar corretamente a afilhada.
- Max, resume pra mim.
- As ocorrências em solo estrangeiro tem aumentado
exponencialmente.
- Quê? E isso é o quê? - ela interrompia irritada.
- Desculpe. Estão vendo noturnos cada vez mais em outros
países.
- Ou seja, eles precisam de nós.
- Muitos estão dispostos a adotar a Lei do Limiar. Vamos ter
que remanejar os recursos para expandir nossa atuação…
- Porra Max! Cadê a câmera? - ela achava graça do seu jeito de
falar.
- Desculpe, Agda, desculpe. Quero dizer que temos que pôr
mais dinheiro na exportação. A senhora Socoma aconselha reunir
com os seguintes líderes…
Mais e mais governos se convenciam de que as operações da
Socoma garantiam a ordem e segurança da população. Desde o
momento em que a companhia estabelecera o Pacto em seu país
de origem, os ataques ali haviam cessado. Era uma conduta

271
NICTOFOBIA

simples, bastava dormir. “Noturnos não matam pessoas


inconscientes.”
Agora o avião decolava Agda em sua primeira viagem
diplomática e ela se animava com a perspectiva de conhecer vários
países que nunca vira e ter várias fotos ao lado de pessoas
importantes. E dessa vez ela seria o centro das atenções, a voz a ser
ouvida. Aquele avião era seu.
- Senhorita Tchertkov e equipe, tempo de voo estimado em
cinco horas e vinte minutos. Uma boa viagem para todos nós. - o
piloto anunciou. Marvin tomou aquilo com uma deixa.
- Certo, o itinerário. Esses são os assuntos de hoje. O ministro
da segurança e o diretor de políticas públicas também
confirmaram presença. E eu preciso de um posicionamento sobre
a casa de lazer, o pessoal da imagem vai redigir uma orientação até
quinta-feira.
- Casa de lazer, Marvin? - Agda se perdeu.
- Eu te enviei um documento na segunda…
A jovem olhou para Max, buscando auxílio.
- O prostíbulo. - ele resumiu.
- Refresque minha memória. - ela apertou os olhos em sinal de
concentração.
- Parece que está virando uma tendência nos países baixos. Eles
não tem janelas.
- Sim?
- Eles simulam a…
- Ah, é. As “casas noturnas”. Não me parece um problema. Na
verdade, isso nos ajuda a manter os “saudosistas” na linha, não? Ao
invés de romper o limiar, eles vão trepar sob uma luz azulada e
estrelas nos lençóis.
- Pode vir a ser um problema se virar uma tendência.
- Tá legal, Max, o que a Lady Socoma diz? - Agda ironizou.
- Que pode vir a ser um problema se virar uma tendência.
- Só isso? Ela fala por enigmas agora?
- Ela quer intervir menos, Agda, quer que você seja mais ativa,
que tome decisões. - Marvin arriscou.
- Está bem, então. Fecha tudo. Se conseguir um jeito de acusar
os proprietários de alguma coisa, melhor ainda. Se não, use a
vigilância sanitária, ou a receita federal, tanto faz.

272
DIAS FERPELLA

- Não seria melhor uma abordagem mais sutil?


- Maximus, querido, se a gente der um único centavo pra essa
porra, ano que vem todo puteiro na Europa vai estar nos
extorquindo.
- Não é isso. Quero dizer que talvez possamos criar um
licenciamento, uma fiscalização que passe por nossas mãos.
- Patentes. - Marvin se impacientou com a velocidade da
conversa.
A opção não era tão absurda. O mercado de arte era a prova de
que patentes inconcebíveis também poderiam ser registradas.
Marvin seguiu exemplificando:
- Aquele imbecil, não-sei-o-quê Jones, o fotógrafo… Patenteou
uma pose. Ano passado um moleque patenteou um tom de verde.
Não é piada, tem gente patenteando cores. Então vamos patentear
a noite. Ou a representação de estrelas. Ou um espectro de luz
azulada…
- Max? - Agda pareceu gostar da ideia, mas precisava do aval de
seu assistente. Ele apresentou uma possibilidade ainda melhor:
- A simulação da noite. Podemos alegar que a Socoma usa
quartos que simulam a noite para treinar agentes.
- Vamos ter que construir coisas assim?
- Não precisa. Basta dar a entrada num projeto, um simples
conceito que seja, e registramos como propriedade intelectual.
Ninguém vai poder simular a noite sem nossa autorização. -
Marvin atalhou.
- Ótimo. Max, cuida disso pra mim. E quando comunicarem
Katerina, por favor digam que foi ideia minha.
Cinco anos depois, alguns proprietários de casas de lazer, na
Ásia e Europa, chegaram para abrir seus negócios na manhã
seguinte e os encontraram reduzidos a cinzas, ainda fumegantes e
encharcadas pelas mangueiras. A brigada de incêndio da Socoma
chegara a tempo de evitar estrago ainda maior, mostrando eficácia
e agilidade.
“São essas lâmpadas que simulam o luar… Extremamente
instáveis na rede elétrica. Recomendamos a todos os
estabelecimentos ou residências que fazem o uso desse tipo de
iluminação que entrem em contato com a Socoma. Obrigado.” o

273
NICTOFOBIA

superintendente responsável pela investigação resumiu na frente


de uma amostragem dos jornalistas mais agressivos daquela época.
Glauber Panza não hesitou em publicar uma foto de Agda
Tchertkov, visivelmente insensível aos eventos, num aperto de
mão amigável com o tal superintendente. Uma única palavra como
manchete: Socomado. No dia seguinte, seu editor chefe foi
demitido. Um mês depois, o jornal declarou falência.

***

Natália chegou ao seu quinquagésimo quarto aniversário de


uma maneira que nunca imaginara: infeliz. Pois se a perguntassem
no início daquele ano, ela diria que “não há do que reclamar”.
Agora, quando suas lindas filhas assaram um bolo de morango
e decoraram na mesa da sala com quatro velas cor de rosa, ela
pensou que não precisava passar por tudo aquilo. Semanas antes,
Agda tinha alertado em particular, depois de seu discurso de
partida: “Casablanca, eles querem sua cabeça.”
Os outros detalhes vieram por telefone e, assentando
pesadamente em seu discernimento ao longo do mês, a levaram a
uma decisão corajosa no momento em que apagou aqueles quatro
pavios.
Como diretora do departamento de Monitoramento Urbano, na
época o setor mais importante da Socoma, ela liderava a atividade
das patrulhas de sua sala de comando, situada no décimo oitavo
andar da nova sede. Uma vez por mês ela compilava um relatório
completo, uma vez por semana ela se juntava a uma patrulha para
acompanhar as operações de perto. As ruas fatalmente monótonas,
a noite inteira, durante anos. Gastos desnecessários, de fato.
Quando o céu começava a clarear e todo o brilho no
firmamento eram planetas, os carros se voltavam para baixo das
asas da Mãe como pintinhos saudosos. Um degradê de um azul
profundo, passando por um púrpura, desbotando num azul claro
até atingir um contraste gritante de laranja que antecipava o Sol
no horizonte.
Seu carro foi um dos primeiros a chegar, junto com os outros
dois, entrando morosamente pela rampa de acesso, com os

274
DIAS FERPELLA

holofotes já frios. Pelo retrovisor mais três surgiram fielmente.


Pela cidade, janelas se abriam num respiro.
Natália Casablanca esperou na garagem movimentada,
recebendo os parabéns daqueles que a notavam. O dia já
despontava, batalhando cordialmente com o frio impregnado no
ar, quando a Trigésima-segunda Unidade passou pelos portões. O
agente que ela aguardava desembarcou e imediatamente foi à ela.
- Douvan, queria falar com você antes do meu anúncio. Eu vou
cair fora.
Ele não demonstrou surpresa:
- Entendo… é por causa da Tchertkov?
- Não, ela já me falava das suas intenções desde antes do fiasco.
Eu já estava preparada.
- Eu percebi que depois de Katerina todos ficaram um pouco
desmotivados. A saída de Tchertkov traz uma renovação bem
vinda. Isso não te anima?
- Agda fez coisas incríveis pela Socoma, basta olhar os números.
Eles a acusam de estar perdendo o foco e expondo muito a
companhia. Ela tornou o nome Socoma mundialmente conhecido
e eles acham isso negativo.
- Mas você tem que concordar que a imagem da Socoma foi
pelo menos um pouco comprometida.
- Menetra-Nal, Virgílio, todo mundo sabia o grande vilão que
eles eram. E olha só como eles estão hoje.
- Nunca ouvi falar.
- Esse é meu ponto. As pessoas esquecem, o consumidor
perdoa. ViaFranco, RABE, Oskura… O público todo sabe da
podridão dessas empresas e ainda assim elas prosperam. Porque o
que elas oferecem, mesmo que seja por meios moralmente
duvidosos, é vendável.
Virgílio desviou o olhar, refletindo a respeito. Talvez Agda
tivesse escolhido mal seu sucessor. Ele imaginava se Casablanca
não se ressentia por isso. Ela continuou:
- Ninguém nunca vai desmantelar a Socoma porque somos
fundamentais para manter a sociedade. Esse pacto não se sustenta
sozinho a longo prazo.
- Então porque você está saindo?

275
NICTOFOBIA

- Eu sinto que vou sair de um jeito ou de outro. Eu vou apenas


me antecipar, assim como Agda.
- Você sabe de alguma coisa?
Natália hesitou por um segundo. O portão se fechava com um
ruído metálico atrás da última viatura a entrar. O sol escapou de
seu rosto. Ela diminuiu a voz, obrigando Virgílio a se aproximar
mais.
- Eles estão discutindo uma reestruturação. Como se a última
gestão tivesse causado um grande rombo. Eles se referem a nossa
divisão como “gastos desnecessários.”
- Já ouvi alguns colegas comentando insatisfação com essa
diretoria. Eles acham que conspiraram contra Tchertkov. A
própria Tchertkov só era tolerada por causa de Katerina. Eles
falam em rescisão. Devo encorajá-los?
- Acho que meu anúncio já vai ajudá-los a decidir.

***

O projeto de simulador noturno possuía doze páginas


descritivas que nada mais eram do que um apanhado de
características naturais observadas à noite. Foi apresentado sob o
título de Nictificação de Ambientes Internos e definia
resumidamente que “[...] uma NAI se configura a partir do uso de
dois ou mais aparatos com intuitos nictígenos [...] tais como:
condicionamento de temperatura, efeitos de iluminação,
reprodução sonora de fauna tipicamente noturna, quaisquer
tecnologia de simulação de corpos celestes.” O pedido de patente
foi encaminhado com caráter prioritário e levou cinco meses para
que a avaliação fosse concluída e o requerimento fosse negado.
Foi alegado que “intuitos nictígenos” era um conceito aberto a
interpretações diversas. Por exemplo, de acordo com o texto, se
uma criança desenhasse um sol e mantivesse em seu quarto tal
desenho, assim que as luzes se apagassem, o cômodo seria
considerado uma NAI. Era como alegar que um chuveiro aberto,
ou mesmo o som de uma torneira pingando, simula a chuva - caso
alguém algum dia viesse a patentear a simulação de fenômenos
meteorológicos.

276
DIAS FERPELLA

- Quem foi o imprestável que escreveu essa merda de projeto? -


Agda sentiu vontade de quebrar algo caro.
Maximus se acusou, apenas para proteger o emprego dos
verdadeiros responsáveis no setor de publicidade.
- Da próxima vez escreve com a porra de um advogado! - ela se
irritou por não poder demitir alguém, pois seu assistente pessoal
era o único intocável ali. Revistas de fofoca publicavam fotos dos
dois em conversas profissionais e distorcia em promessas de
romance. O protegido da Socoma. Porque a fantasia do público se
expande e alimenta os corações solitários ao ver dois jovens
bonitos e solteiros juntos.
E encorajada por uma má estratégia de marketing, ela entrou
na dança, ao contrário da bailarina.
- O público precisa ver que quem ocupa a presidência da
Socoma é um ser humano. Vai ser bom para a imagem da
companhia como um todo, pode ter certeza.
- Não há dúvidas que isso fazia parte de uma manobra para
derrubar Tchertkov. - Natália Casablanca desabafaria anos depois,
durante uma entrevista. - Dos cinco anos em que ela esteve no
comando, três foram nas sombras da antiga gestão e dois foram
tentando justificar gastos de expansão diante dos investidores.
Havia poucos países em que nenhuma ocorrência ou
avistamento de seres noturnos fora registrada. Apesar da Socoma
não atuar nesses locais, Agda considerava implementar programas
de prevenção para os governos interessados. Já nos países
infestados por noturnos, a Lei do Limiar era vigente e a população
dormia tranquila. Há quase uma década. As ruas vazias, sem sinal
de qualquer intenção rebelde. Mas os investidores não queriam a
segurança da população, eles queriam lucro.
E Agda, sentindo a pressão, muitas vezes pensava em desistir.
- Casablanca, eu estou ficando grisalha aos trinta e quatro.
Todo mundo parece estar torcendo por um errinho que seja. O
poder pode ser algo maravilhoso, mas só quando ninguém sabe
quem o tem.
E o tropeço que todos ansiavam veio sob o título de Nictificação
de Ambientes Internos. Três versões foram escritas, três foram
negadas. A declaração final dizia ser impossível registrar uma

277
NICTOFOBIA

tecnologia inexistente. Era como patentear uma máquina do


tempo.
“Não há nada, nenhum truque pirotécnico, nenhuma ilusão de
ótica e muito menos os mais simples equipamentos, que possam
reproduzir eficazmente a complexidade da noite.”
- Porra, Max! Eu só quero o conceito! Não estou pedindo a
patente de geringonças fodidas que esses fedelhos virgens, um dia,
talvez inventem pra ver estrelinhas e ouvir grilinhos! Tira isso
daqui!
O relatório mostrava o que ela temia, como uma maldição de
sua finada antecessora:
“Pode vir a ser um problema se virar tendência…”
Estava virando tendência e o interesse pela noite iria voltar, e a
curiosidade daqueles que ainda nasceriam iria crescer e seria uma
questão de tempo até a Lei do Limiar ser questionada. E a Socoma
estaria ofertando algo supérfluo e até mesmo indesejado, causando
a ruína de sua receita.
Foi quando Agda escutou o seu ímpeto inflamável, sem se
importar com todos os olhos que a vigiavam e faz declarações
polêmicas:
- Isso é só uma moda. Não vai durar muito, marque minhas
palavras.
Palavras que são como uma ameaça, lançam faíscas minúsculas,
porém suficientes para uma iniciar uma combustão. As labaredas
enfeitam a noite e ferem o ar com fumaça tóxica.
E existe um rastro apontando todas as tentativas frustradas de
patente. E os jornais se deliciam com a ideia da Socoma almejar os
direitos sobre a noite. Sobre o conceito de noite. “A companhia de
Tchertkov chega ao absurdo da arrogância divina, passando pela
criação de um monopólio mundial que mais se equipara a um
império, e culminando na loucura de se apossar da própria ideia
de noite.”
E o dia escurecerá apenas quando a Socoma permitir.
Agda não conseguiu se blindar contra a autoria da empreitada
de dois anos. E antes que aquilo virasse um caso internacional de
terrorismo, ela decidiu se afastar. E para isso ela fez uso da própria
arma que a destronava: a mídia.

278
DIAS FERPELLA

Aquele dia amanheceu frio e cinzento. Uma garoa deixava


gotículas escorrendo pelas janelas. E ali, no alto da sede da
Socoma, Agda acordava já agoniada com as notícias que se
espalhavam além dos jornais que ela podia controlar. Maximus
entrou com sua xícara de chocolate-negro cafeinado e uma cara
preocupada.
- Max… Ontem, já no limiar, eu me lembrei de algo que meu pai
me disse. As pessoas querem ser manipuladas, no inconsciente
elas querem, e por isso se permitem ser. O tempo todo. Elas
precisam reproduzir opiniões, fatos, boatos, dados... Dá menos
trabalho. A sociedade se mantém com mentiras, e os impérios se
mantêm com uma sociedade bem treinada. São os ingredientes
certos, nas medidas certas.
- E o que queremos que eles digam?
- Que o queridinho da Socoma e a presidente sem coração vão
ter um bebê.
E uma notícia atropelou a outra, quando “vazou” por uma
assessora que Agda Tchertkov estava se afastando da presidência
por causa de uma gravidez. Eles deixaram as especulações
cozinharem por algumas semanas e então Agda fez uma
declaração. Sorridente e emocionada ao lado de seu assistente
pessoal, dedos entrelaçados e uma maquiagem precisamente
maternal, ela discursou apaixonada sobre família e a raridade de
um matrimônio. O teatro montado, os espectadores ansiosos pelo
terceiro sinal e a peça ensaiada a ponto de se fundir com a
realidade. E logo tudo se explicava, tudo se perdoava. Pois toda
angústia termina e todo amor transforma.

279
II

K
aterina se agarrava ao seu melhor amigo, relutante em
deixá-lo ir. “Dorme aqui” ela fazia manha com a voz
abafada contra o peito dele. Ele resistia, repetindo
lamentosamente a justificativa que tinha aula na manhã seguinte.
- Você está bem, Kaká. Toma um Soporiclona e amanhã eu te
busco pra gente almoçar juntos. - ele zombou.
- Eu JAMAIS tomarei aquele troço. - ela levantou a cabeça para
protestar com um olhar emburrado.
- Eu preciso ir, está tarde…
- Meu pai vai dormir no laboratório, por favor, fica. - ela
prolongava as vogais, reclamando.
- Não é isso. Logo não vai mais ter bonde. E mesmo se eu
dormir aqui, vou ter que voltar pra casa antes da aula pra pegar
meus livros.
- Eu peço um carro pra você. Melhor, eu peço pro motorista
trazer suas coisas.
Ela ainda estava triste demais para ficar sozinha. Era quase
meia noite quando ela adormeceu. Seu olhar choroso finalmente
descansava sob suas pálpebras e talvez ela até sonhasse com
aquele que a largou. Mas em sonho eles ainda estavam juntos e
para ela era tentador não acordar mais.
René se virou e apagou a luz, se aconchegando perto dela.
Semi-desperta ela o recebeu envolvendo suas mãos com dedos
febris e se aproximando, a ponto de se fazer sentir sua respiração
no rosto dele. E René pensava na promessa que ela havia proposto
pouco antes de ceder ao sono: “Se a gente continuar próximos até
os trinta, eu quero ter um bebê com você.”
Ele selou o acordo para que ela não se sentisse rejeitada
também por ele. Não que ele não gostasse da ideia, ele apenas não
acreditava. Em treze anos muita coisa poderia mudar. Aliás, ela
nem se lembraria de suas ideias sonolentas ao acordar. Mas René
adormeceu reconfortado pelo pensamento de que, pelo menos
naquele momento de carência, sua promessa foi sincera. Ter um

280
DIAS FERPELLA

filho, em uma época que ninguém se casava, era o vínculo mais


poderoso entre duas pessoas. E ele já se sentia ligado demais a
Katerina.
“René, ele terminou comigo! Entende agora quando eu digo que
tudo que meu pai faz reflete na MINHA vida? Ele disse que não
quer ter o nome ligado à minha família. Mas não sou eu! A
Menetra-Nal não é minha e eu nem quero que seja! O idiota já vai
assumindo que eu vou herdar a empresa do meu pai. Chega!
Cansei! Todos esses garotos ricos só ligam pra reputação, nome,
legado… Fodam-se!”
Não ele. René Tchertkov estudara na mesma escola privilegiada
que Katerina, rodeado de crianças igualmente ricas de famílias
poderosas. Herdeiros e herdeiras de siderúrgicas, mineradoras,
bancos, jornais, companhias aéreas, construtoras, farmacêuticas…
Katerina sempre viveu na ilusão de que, acostumados com aquela
realidade financeira, seus amigos não se deslumbravam com os
negócios da família e nem misturavam o indivíduo com a empresa.
Ela, pelo menos, se alienava disso.
Mas após o escândalo das bulas ela se deu conta de que não era
apenas “Katerina”. Era “Katerina da Menetra-Nal”. E ninguém
queria estar relacionado a uma pessoa “da Menetra-Nal”.
René não os culpava. Ele entendia esse pré-julgamento como
algo normal, parte do mundo deles. Mas não se atrevia a consolar
a amiga minimizando sua revolta. Ele também entendia o seu
discurso e tinha empatia o bastante para se colocar no lugar dela,
um nome ligado a uma marca mal vista. Seria bom se pudesse ser
diferente. São os filhos os que mais sofrem com os erros dos pais.
Sim, meu pai, presidente e co-fundador dos laboratórios
Menetra-Nal; meu pai sob os dedos acusadores do Tribunal
Investigativo; meu pai, que mandou adulterar a bula de uma
fórmula bilionária; meu pai, que constrói impérios sobre as ruínas
de uma ética estagnada.
Durante toda a faculdade, Katerina usou o sobrenome da mãe.
Ela agarrou a possibilidade de recomeço e deixou o passado
trancafiado entre os muros de diamante daquela escola. Ao menos
ali, por um breve período da sua juventude, ela podia ser apenas
“Katerina”.
- Kaká, seu pai trabalha com o quê?

281
NICTOFOBIA

- Ele é farmacêutico. - era sua resposta discreta. Ninguém além


dela precisava de um lembrete da grande polêmica da década. Mas
era impossível não lembrar quando saiu o veredito após quatro
anos de apuração. A Menetra-Nal foi inocentada.
- Um erro de impressão! - seu pai anunciava pelos corredores
de sua nada modesta casa. As informações não foram ocultadas
por má-fé. Nada foi provado além de uma falha tecnológica
despercebida por negligência humana. A pena ficou estipulada em
multa e distribuição gratuita de cinco lotes de anestésicos leves.
Os “responsáveis” foram dispensados de seus cargos e,
secretamente, recebiam uma mesada considerável por servirem de
bode-expiatório.
Já o laboratório, entrou com um novo pedido de avaliação e
licenciamento para comercialização de fármacos e, meses depois,
recebeu um certificado atestando:
Efeitos secundários: LEVE/MODERADO
De sua cama, Katerina pôde ouvir seu pai exclamando ao
telefone tarde da noite, com uma pancada na mesa de seu
escritório. “É assim que se faz!”
O relançamento de Soporiclona ficou marcado para Novembro.
A garota implorou para que René a acompanhasse.
- E o seu namorado?
- Ele não sabe dessas coisas e nem quero que saiba. Por favor,
não me deixa ir sozinha. Parece horrível, eu sei, mas vai ter
comida, um jantar completo.
A caminho do evento, eles conversavam no banco traseiro de
um Sttarius preto enquanto o motorista dirigia escondido por uma
divisória.
- Eu não consigo entender por que não mudaram o nome.
- Meu pai disse que não quer fingir que é outro medicamento
enquanto é ÓBVIO que é o mesmo. Ele quer mostrar que estava
tudo certo com Soporiclona desde o princípio. Que mesmo agora,
com a bula completa, conseguimos a aprovação.
- “Conseguimos?”
- Conseguiram. - ela se corrigiu tardiamente.
- Admita Kaká, você está se acostumando a fazer parte disso.
- René, no final das contas, o sucesso da minha família também
é o meu sucesso.

282
DIAS FERPELLA

- Mas não o fracasso? - ele provocou.


- O fracasso não. O fracasso é só deles. - ela devolveu sem
conseguir conter uma risada jocosa.
Katerina ouviu de seu pai todo o movimento que foi necessário
em quatro anos de investigação para trazer Menetra-Nal de volta
ao jogo. Ela ficou fascinada por aquela trama política que se
desenrolara de fato como um jogo. Você mexe uma peça, observa a
reação, calcula os resultados, você altera algo aqui e lá na frente o
efeito aparece, você puxa um cordão ali e tudo se move numa
configuração diferente. Ingredientes para atingir seus objetivos,
basta saber quais usar e como usar.
“Farmacêuticas não manipulam apenas elementos químicos,
filha. Essa é a parte chata.”

***

Duas e meia da manhã e Micaela ainda não conseguia dormir.


Essa ansiedade, essa incerteza do amanhã, essa expectativa
coletiva não lhe dava nem um minuto de descanso. Era um
incômodo entomológico, que demandava resolução, pois apenas a
indiferença ao caso jamais seria o bastante para calar suas asinhas
de mosquito. Era o pior tipo de incômodo: o tipo que estava além
do seu controle.
No ponto de ônibus havia uma peça publicitária adotando
aquela máxima que se espalhava como uma gripe no jardim de
infância. Uma marca de cosméticos acalentava maternalmente:
“Não se preocupe”.
A cama lhe empurrava as costas e as cobertas sufocavam.
Micaela se levantou para tomar um copo d’água, acendendo todas
as luzes pelo caminho. A luminária da sala estava acesa, sinal de
que sua amiga, Tanira, ainda não voltara. Ao sair à noite, ela
costumava deixar uma luz à sua espera para guiá-la até o quarto.
- Você vai se arriscar na rua com tudo isso acontecendo?
- Mica, não tem nada acontecendo…
- O irmão de uma amiga minha já viu um. E um funcionário do
meu pai morreu terça passada, à noite.
- Parece que todo mundo que morre à noite, atualmente, entra
pras estatísticas. É provável que metade nem tenha… Aliás, é capaz

283
NICTOFOBIA

que nenhuma dessas mortes tenha a ver com ataques. - ela calçava
o sapato próxima à porta. Micaela insistiu:
- Mas o irmão da minha amiga…
- … acha que viu um. Estou errada? Ou ele viu claramente que
era um desses animais?
Micaela ficou calada, braços cruzados, o ombro encostado na
parede fria.
- Fica tranquila, Mica, não vai acontecer nada. Não vou voltar
muito tarde.
E ela saiu. À noite. Mas Micaela, que já não saía há nove dias,
achava aquela atitude suicida e extremamente irresponsável.
Agora eram quase três da manhã e ela ainda não ouvira a chave
na porta. Relutante em voltar para a ansiedade dos lençóis, ela
ligou o cine-rádio. Trezentos e vinte e um mortos. A informação
fixada na tela como se fosse um placar. E uma âncora num estúdio
iluminado, com ar de urgência, noticiava cidades atrás de cidades.
“Representantes do governo se reuniram com as forças armadas,
não descartando a possibilidade de…” Ela mudou de estação. Uma
mulher comendo uma trufa ao som de um narrador “... trinta e
cinco anos de excelência em…” E de novo. Uma música alegre,
uma família brincando num gramado com um cão de raça
limpinho, um casal se abraçando ao pôr do sol em um mirante
turístico, a logo de um plano de saúde acima de letras brancas
caligráficas “Não se preocupe.” E de novo. Um repórter narrando
sua matéria enquanto cenas urbanas sucediam-se. “... a situação se
repete.” Corta para um jovem sob a forte luz de refletores, numa
rua movimentada do centro da cidade, ao cair da noite. Um
microfone diante de si. “É, dá um medinho, sim. Mas aqui tem
movimento. A gente evita ficar em lugares mais vazios e escuros. E
sai sempre com um grupo grande.” “Você já viu alguma coisa?” o
repórter pergunta de fora do enquadramento. O jovem sorri como
se fosse uma celebridade no tapete vermelho. “Não, não. Ainda
não. Bem que eu queria, mas ainda não.” Volta para o estúdio, um
casal de jornalistas de pé próximos a um monitor grande que
transmitia um correspondente. De acordo com as autoridades, a
presença de civis nas ruas durante a noite diminuiu apenas em
quinze por cento. A maioria permanece cética ou despreocupada.

284
DIAS FERPELLA

“Vai passar, sobre isso não precisamos nos preocupar. Mas por ora
a orientação é permanecer em casa depois das oito horas da noite.”
Micaela estremeceu. Três dias atrás a recomendação valia para
às oito e meia. Semana passada era às nove. Um mês atrás, quando
os ataques não passavam de vinte, era às onze e meia.
Quando sua colega de quarto chegou, uma hora depois,
encontrou Micaela adormecida no sofá, embalada por versos
tenebrosos do cine-rádio. Quatrocentos e setenta e oito mortos,
novecentos e cinquenta avistamentos confirmados. Não era atoa
que ela mal conseguia dormir. Não era por acaso que ela já
acordava ansiosa e aflita, sedenta de otimismo mas procurando
onde só havia tragédia. Pela janela um banner se erguia na
avenida. Uma transportadora tranquilizava: “Não se preocupe.”
- Mãe, eu quero ir pra casa. Não me interessa o coletivo, eu não
consigo mais dormir. Porque eu fico sozinha… Não, mas todo fim
de semana. Não sei… Só até isso tudo acabar. Como assim “isso o
quê”? Isso, dos ataques noturnos… Não, mãe, é bem sério. O
noticiário, mãe, todo mundo! Sim, mas não adianta, é como se
tivesse o efeito contrário, eu estou preocupada!
As passagens vespertinas eram escandalosamente mais baratas.
Mas, com sete horas de estrada, Micaela chegaria já à noite. Já para
viajar de trem, os horários eram destoantes: seis da tarde,
implicando uma viagem noturna; seis da manhã, implicando sair
de casa antes do amanhecer. Já para viajar de avião, não havia,
naquela época, uma companhia aérea que cobrisse aquele trecho a
preços acessíveis. Ainda assim, todas elas traziam modelos com
expressões serenas, posando acolhedoramente para a câmera,
acompanhados de “Não se preocupe.”
Micaela trabalhava como estilista em um ateliê coletivo. Era um
prédio antigo e indiscutivelmente charmoso, as janelas voltadas
para as copas das árvores de uma praça. Ali, ela e seus colegas se
sentavam para almoçar toda quarta, quando a pizzaria do outro
lado da rua oferecia combos promocionais. E foi sentada àquelas
mesas, entre os canteiros floridos, que ela ouviu de um colega que
vinha falando com outro até anunciar para todos. O governo
mandou fechar a cidade depois das oito horas da noite, todo o
comércio, todos escritórios e consultórios, todo restaurante e
lazer.

285
NICTOFOBIA

- Isso é péssimo! Vai saturar as ruas de gente… O trânsito vai


parar. - uma colega opinou.
- Mas com certeza vai desencorajar as pessoas a ficarem fora até
às dez. Os ataques vão diminuir…
- Eles vão começar com um plano de contingência, tentar lidar
com esses animais.
- “Lidar.” - um outro gesticulou com os dedos.
- O problema é que nem sabe com o que estão lidando ainda…
Essas coisas são muito elusivas, evitam a luz direta como um gato
evita a água.
- Quem vai fazer isso? O exército?
- O exército não quer agir sem ter uma clara ideia do que vai
estar enfrentando. - Micaela participou.
- Uma empresa de segurança privada vai apurar a situação e
promete entregar o relatório nas mãos do Ministro da Defesa até o
final do mês.
Letras coladas nas portas de entrada de um shopping center
diziam “Vamos ficar bem!” E os jornais contradiziam, acumulando
setecentas e trinta e seis mortes.
Pela janela do apartamento Micaela podia ver as ruas desertas
depois das oito horas. O cine-rádio ligado na sala e Tanira
preparando um cozido para as duas. “Desliga isso!” ela gritava da
cozinha, tentando se esquivar da morbidez midiática. Mas Micaela
chamava aquilo de informação e queria ter arsenal para exibir no
ateliê.
“... o Ministro disse que a medida restritiva vai valer também
para o fim de semana em todo o território nacional. Agora, Carlos,
como isso afeta os negócios, principalmente de entretenimento? Já
temos diversos estabelecimentos, como casas noturnas, clubes,
pubs, teatros, mesmo restaurantes, que estão contestando a
medida.” um jornalista propunha a discussão para seu colega.
“Temos que estar cientes de que estamos vivendo um momento
muito delicado e sem precedentes. É uma medida temporária,
claro, e requer a compreensão e paciência da população inteira,
empresários e consumidores. Durante o fim de semana, é evidente
que há uma busca maior por atividades de lazer e
consequentemente mais pessoas ficam expostas à ataques. Essa

286
DIAS FERPELLA

medida é muito necessária para “frear” o número de fatalidades até


termos uma ideia da natureza desses animais.”
“Ou grupos.” um outro acrescentou.
“Sim, ou grupos, como alguns estão afirmando.”
E um comercial tomava a tela. Um jovem na faixa dos vinte
anos passa por uma sala vestindo seu pijama, a mãe escova os
cabelos molhados da filha mais nova. “Já vou pra cama, preciso
acordar cedo.” “Boa noite, meu filho.” “Boa noite!” e a garotinha
“Ótima noite.” Uma voz feminina, provavelmente da mesma atriz
que interpreta a mãe, narra em cima de uma cena em que o jovem
pega uma caixa de remédio em primeiro plano. “Por que ter
apenas uma ‘boa noite’ quando você pode ter uma ‘ótima noite’?
Com Soporiclona Plus uma noite de sono revigorante é garantida.”
Corta para uma animação de um comprimido passando pelo trato
digestivo e mandando sinais até o cérebro do modelo. “A
combinação dos seus ativos estimulam a produção natural de
hormônios essenciais para um descanso contínuo e profundo.” O
cérebro animado transpira pequenos pontos luminosos que
flutuam ao seu redor como partículas de poeira. O jovem está
deitado em sua cama, os pontos luminosos flutuam ao redor do
seu corpo. Aparentemente, ele dorme com um sorriso no rosto. “E
nada como dormir bem para ter um dia produtivo. Faça o teste e
sinta a diferença com Soporiclona Plus.” O filho se levanta
disposto com a luz da manhã, na cozinha ele aparece com uma
mochila e roupas esportivas, pega uma fruta e se despede de sua
mãe. “Tchau mãe!” “Tchau, querido, tenha um bom dia! Oh!” A
mãe põe os dedos sobre a boca, como se cometesse uma gafe. O
jovem passa pelas costas dela, lhe dando um beijo e entregando a
caixa do medicamento, que ela pega perto do rosto, evidenciando
para a câmera. Os dois riem. “Soporiclona Plus: ótima noite, ótimo
dia!”
- Tira isso, vamos ver um filme. - Tanira se sentou ao lado da
amiga e entregou uma tigela com seu jantar. Micaela aceitou a
sugestão. Ela sentia que precisava aliviar a tensão, se distrair, não
se preocupar. As coisas pareciam estar sob controle, ações eram
tomadas, o problema era encarado por aqueles que deveriam
prezar por sua segurança.

287
NICTOFOBIA

Ainda assim, Micaela acordava inquieta às três e meia da


madrugada com terríveis imagens de seus pesadelos incrustadas
nos recantos de sua mente. E no escuro de seu quarto, elas se
projetavam e se misturavam pelo teto e paredes como numa
centrífuga pulsante de horror e desamparo. Rostos disformes,
olhos fora das órbitas, ombros desconjuntados, a espinha dorsal de
um natimorto, um homem sem idade a observa pelos vidros de sua
janela e dedos esqueléticos e pequenos acariciam as cortinas. Tem
alguma coisa se enfiando por entre as cobertas.
E tudo que pode fazer mal, tudo que fere e agoniza em
desgraça, tudo que anseia em devorar sua alma, se desfaz com um
filamento de cobre superaquecido por uma corrente elétrica.
Micaela adquire o hábito de dormir com a luz acesa. E uma
montadora francesa garante “Vamos ficar bem!” E uma rede
internacional de hotéis consola “Não se preocupe.” Mais de mil
mortos.
Na sexta-feira ela consegue se desligar e se divertir. O cine-
rádio em silêncio, a cidade se recolhendo às sete da noite, as
atividades se encerrando às oito em ponto e Tanira entra pela
porta vinte minutos depois.
- O Duda e a Pipa vão vir aqui pra gente jogar Tributo!
As cartas, os dados, a ampulheta, o tabuleiro, as risadas, as
piadas, os amigos, o vinho. Sim, estamos bem.
E por volta das onze horas, Pipa confere seu relógio e atesta:
- Já está na hora, eles devem estar indo pra lá. Vamos?
Os três parecem ter mais planos para a noite, Micaela constata
surpresa e confusa.
- Vocês vão sair?
- Sim, vamos encontrar o resto do pessoal. Você não vai com a
gente?
- Mas está tudo fechado.
- Não tem problema, a gente só vai dar uma volta de carro. Ver
a cidade abandonada, bater papo, tirar umas fotos… Vamos, vai ser
legal! - Duda incentivou.
- É perigoso… Tanira, você também vai?
- Mica, antes que você perceba, eu vou estar de volta, não se
preocupe.
Mas a cada vez que ouvia isso, mais preocupada Micaela ficava.

288
DIAS FERPELLA

***

Corporações são como organismos vivos, parasitando seres


humanos para alimentarem-se. Ninguém possui uma corporação.
A partir do momento em que ela é criada, ganha uma vida
independente do seu fundador. Quando a vida deste finda, a
corporação não o segue para a sepultura. A corporação arranja
outro servo para atender seus interesses e assim perpetuar. Ela tem
vontade própria, ela tem seus caprichos, ela precisa ser tratada
bem para que não morra.
O organismo Menetra-Nal discretamente atraía Katerina, com
paciência, gradativamente, passando pelo intermédio de seu pai.
Pois Menetra-Nal e Katerina eram filhas do mesmo homem.
Enquanto uma era orgânica, a outra era conceitual. Apesar de suas
naturezas distintas, irmãs.
Katerina ficou fascinada pelo crescimento da companhia desde
o relançamento de Soporiclona. Cada vez mais ela se interessava
pelos relatórios e estratégias de seu pai, empolgadamente narrados
durante o jantar. Ele, por sua vez, ficava admirado com a
eloquência da filha e por isso fazia questão de levá-la à congressos,
premiações e qualquer tipo de evento em que pudesse apresentá-la
a figuras ilustres.
“Katerina, esse é o dr. Alberto Fialho da Comissão de
Receituários e Diagnósticos.”
“Dr. Hannis, essa é Katerina, minha filha. Dr. Hannis é
presidente da Câmara de Regulação de Psicotrópicos e Aditivos.”
“Querida, quero que você conheça a sra. Malvino, patrona da
Odnus.”
“Dra. Ramos, essa é minha filha Katerina. Ela tem muito
interesse na sua área. Até escreveu uma tese sobre ética de
mercado. Vou deixar vocês conversarem, com licença.”
E Katerina, numa habilidade instintiva, criava simpatia
instantânea. Ela conduzia a conversa na direção que quisesse, mas
sem se impor, sutilmente, delicadamente, como se fosse ideia do
outro. Ela ouvia, ela observava os trejeitos e espelhava expressões e
gestos. Ela guardava não apenas nomes e cargos, mas informações
pessoais, soltas durante um momento de descontração. Os cães, a

289
NICTOFOBIA

família, o autor preferido, o estilista de confiança, o carro novo, a


égua prenhe, uma obra embargada, a operação de próstata do
sogro, o apêndice da esposa, a depressão do sobrinho, a insônia, o
estresse.
No final da conversa, Katerina da Menetra-Nal era um alívio
bem-vindo no meio de tanta formalidade. Ela era a descoberta de
uma confidente num salão de hipócritas. Ela era uma amiga.
“Por favor, me chame de Samanta. Há muito tempo não
converso com uma jovem tão esclarecida como você. Este é meu
telefone pessoal, se precisar de qualquer coisa, venha até mim.”
“Pode me chamar só de Alberto. Meus amigos dispensam o
‘doutor’. Da próxima vez que seu pai for almoçar lá em casa, quero
que você vá com ele. Meu filho precisa te conhecer.”
“Katerina, adorei te conhecer. Conversar com você foi muito
agradável. Passa no meu gabinete que eu te dou os artigos dos
quais te falei.”
E quando recebia alguém em casa, os convidados sempre
perguntavam por Katerina e seu pai foi se acostumando a incluí-la
até mesmo nas conversas de negócios. E já aos trinta, ela não se
acanhava ao expressar uma opinião. Eles diziam que era bom ouvir
alguém de fora, na ilusão de que ela se equiparava a um leigo. Não
demorou para a considerarem como alguém de “dentro”,
extremamente consciente da mentalidade do público.
Por toda sua vida, Katerina trabalhou com relacionamento,
oratória, atendimento, vendas. E ao mesmo tempo era vista como
uma teórica de conduta mercantil. Ela não ousava, no entanto,
publicar seus polêmicos artigos usando seu nome de batismo.
Então inventou um, partindo de uma sutil homenagem: Renata
Tchertkova. A dinâmica do consumo passa por uma abordagem
manipuladora, começando com investidas publicitárias visando
plantar um desejo no consumidor; e culminando na aparente
satisfação desse desejo com a aquisição do produto. “Aparente”,
pois nenhum produto, Renata concluía, foi feito essencialmente
para suprir uma necessidade - legítima ou sugerida - mas sim para
reforçá-la.
Em outras palavras, o consumidor precisa ser manipulado. Ou
mais ainda, ele quer ser manipulado.

290
DIAS FERPELLA

Tal discurso bastou para causar a mais sólida impressão em seu


pai. E antes de Katerina alcançar sua terceira década de vida, ele
apresentou uma proposta. Era como se Menetra-Nal que tivesse
sugerido, como se fosse ideia dela ao insinuar “ela está pronta.
Minha irmã agora me enxerga.” E com isso, Katerina recebeu, num
dia de Março, um envelope azul marinho, lacrado com a logo
familiar M|N. Uma oferta de emprego.
E assim ela soube que não era por seu nome, não era por sua
filiação. Eles a queriam puramente por sua competência e sua
visão. Na época, ela tinha um emprego estável numa petrolífera,
respeitada e com uma remuneração exorbitante. Contudo, ela não
hesitou em escrever sua resignação.
Katerina virou a voz de Menetra-Nal.
Ela chegou em casa ansiosa para contar a novidade para seu
companheiro:
- É a empresa da família? - ele perguntou confuso e contendo
sua empolgação.
- Eu sei, eu disse que não ia me envolver. Por isso estou
insegura. Meu julgamento pode estar comprometido.
- Mas veja bem, se seu parentesco não influencia na decisão
deles, o mínimo que você pode fazer é retribuir a imparcialidade.
Então por um momento vamos ignorar que são negócios de família
e ver apenas como uma megacorporação com prospectos de
crescimento sem precedentes. Você aceitaria? - ele pintava a
consideração, ignorante de que Katerina já havia aceitado.
- São números maravilhosos… Mas eu ainda tenho tanto a
aprender sobre a indústria farmacêutica… Sinto que vou estar
tirando a vaga de alguém já inserido no meio e que poderia fazer
um trabalho melhor que o meu.
- Kat, você cresceu nesse meio. É perfeito. Você já conhece
praticamente todos os associados, parceiros, clientes… Eles te
adoram e vão te acolher muito bem, tenho certeza. Não tem
motivo para ficar insegura.
- Devo aceitar? E os nossos planos? Vamos ter que adiar. - ela
olhou para ele com um meio sorriso.
- Quem precisa de um bebê com tantos vira-latas carentes de
um lar?

291
NICTOFOBIA

Naquele mês, a mídia trouxe à luz um curioso tema antes


tratado apenas em folhetins e tablóides, sem a menor seriedade.
Eventos inexplicáveis assustavam os moradores de um condomínio
fechado, durante a noite. Cinco casos em diferentes lares já
rendiam pautas e matérias instigantes, estimulando o imaginário
coletivo e marcando a história de uma década. Eram os
Poltergeists do Vale Grande. A comunidade científica desmerecia
o sobrenatural, afirmando efeitos óticos ou o resultado de mentes
cansadas e estressadas. E a comunidade espiritual estava certa de
um campo energético singular naquela área e a manifestação de
um portal multidimensional captado por uma minoria sensitiva.
Mas os eventos não se restringiam ao Vale Grande e bastou um
empurrãozinho para que os relatos se multiplicassem como
coelhos em clínica de fertilidade.
E em pouco tempo, um rico empresário jurava sobriedade ao
ver um estranho movimento entre os ornamentos de seus jardins.
Um visitante misterioso, algum tipo de animal parecia rondar os
subúrbios tarde da noite.

***

Ele não tinha certeza se em treze anos continuariam próximos.


Ela já nem sabia por onde ele andava, mas de tempos em tempos
se perguntava. Era isso? Apenas isso? Os dois nunca mais se
veriam pelo o resto da vida.
E com a repulsão de um coração decepcionado ela questionou
suas aspirações. Porque Katerina cobria a dor da rejeição com
repulsa e indiferença. “[...] Priorizar as questões na minha vida.”
Talvez afinal, relacionamentos, filhos, família e afeto não fossem
compatíveis com poder.
Ela assinou uma folha de liberação em seu escritório e percebeu
na data o aniversário de René. E era apenas isso. Feliz aniversário,
onde quer que esteja. Trinta e dois anos.
E Katerina, mantendo um útero egoísta e um coração
indiferente, se transportou para seus dezessete anos, tão distantes,
tão ingênuos, irremediavelmente românticos e dramáticos como
uma ópera esdrúxula. Uma promessa, compromisso juvenil, mas
que belo seria se ao menos verdadeira.

292
DIAS FERPELLA

Um vagão de trem em sincronia com temores crônicos e


saudades de casa. Uma garota sozinha e triste tinha o assento ao
lado de René e assim a possibilidade de Agda se iniciava.
Katerina gastava seus sorrisos com relações mais lucrativas.
Produtivas, ela diria. Relações de negócios se sustentam sobre uma
base mais sólida do que o afeto: capital. E com uma coleção de
amizades produtivas, Menetra-Nal era soberana nas mãos de
Katerina. Talvez, afinal, relacionamentos, filhos, família e afeto
não sejam lá grande coisa. Talvez sejam esses os freios dos grandes
feitos. Pois Katerina seria o nome procurado por aqueles que tem a
ordem e a influência idiossincrática fugazes. E aquele que detém
tal posição não mais precisa almejar reciprocidade. A heroína
absoluta da estabilidade social, a argamassa que une os tijolos
vacilantes numa ventania de caos e indisciplina, a mente por trás
do Pacto, mesmo que não passe de uma pelotica tendenciosa. Não
seria Katerina a passar noites em claro pesquisando uma solução
em referências históricas, mas seria dela a assinatura no cheque
para o responsável. E o nome daquele que a guiou até o Salão de
Arquivos da Biblioteca Nacional, jamais seria mencionado.
René a procurou no fim daquele ano, passando pela cidade
industrial, visitando o laboratório em nostalgia, incerto de um
reencontro. Katerina poderia estar viajando, poderia ter mudado
de país, poderia até mesmo estar morta, pois a juventude não
garante imortalidade. Ou poderia simplesmente estar ocupada
demais para um velho amigo. E de fato, com uma agenda cheia,
Katerina não pode recebê-lo.
- É que meu pai está praticamente se aposentando. Eu o
represento em quase todas as reuniões, faço ligações, escrevo e-
mails e assino metade das coisas que antes ele assinava. Ele está
muito assustado com essa situação toda de ataques noturnos, diz
não ter mais cabeça para lidar com política e diplomacia. - ela
explicava para René no dia seguinte, enquanto passeavam pelo
Parque numa manhã fria de sol.
- Não precisava desmarcar nada pra me encontrar, Kaká. Era só
se você estivesse livre.
- Ah, mas eu estou livre. Tenho só um almoço com esse
empreendedor, Casablanca. Sabe quem é, não sabe? O dono da
Babel. Não?

293
NICTOFOBIA

Ele abanou a cabeça. Ela achou encantador alguém nunca ter


ouvido falar de Álvaro Casablanca e sua badalada firma de
segurança. O jovem visionário de trinta e seis anos, acumulando
uma considerável fortuna em contratos físicos e jurídicos, disposto
a oferecer seus homens para avaliar a extensão do problema
noturno.
- Eles vão entregar um relatório para o Estado na segunda-feira.
O cara desenvolveu um método de treinamento militar mais eficaz
do que o exército de muitos países. Estão dizendo que a força
policial vai ser coisa do passado, em breve tudo vai ser
terceirizado.
- E o que isso tem a ver com Menetra-Nal?
- Não está diretamente ligado aos interesses do laboratório.
Digamos que eu seja uma investidora.
- Pensei que você acabaria herdando a “MN”. Não está satisfeita
onde está? Eu confesso que estou bastante impressionado e
orgulhoso dos seus resultados.
Katerina sorriu, vaidosa. Eles se aproximavam de uma
escadaria, onde uma fonte escorria pelos degraus. Algumas
crianças desafiavam o frio da água com seus pés descalços,
gritando divertidas.
- A Menetra-Nal já é minha. Meu pai ouve meus conselhos e
sempre considera minha posição antes de decidir qualquer coisa.
Mas é como se ele restringisse todo o potencial da companhia.
Anestésicos, tranquilizantes, ansiolíticos. O máximo de inovação
que ele ousou foi Soporiclona, que foi quase um milagre ter ido à
mercado. Soporiclona era uma fórmula tosca, uma joia bruta.
Agora que eu estou conseguindo refinar um pouco.
- Já me parecia um sucesso…
- Ah, mas é um sucesso. Entretanto, não vende tanto quanto
poderia. É uma sutil diferença entre o desejo e a necessidade. O
querer e o precisar. A bebida mais consumida no mundo, desde os
primórdios, continua sendo água. Entende o que quero dizer?
- Sim, acho que sim. E fora isso, como vai sua vida? - ele mudou
de assunto, incomodado com o rumo que tomava.
- Eu estou tranquila. Essas mortes… Esses ataques não me
preocupam.
- Cinco mil mortos não te preocupa?

294
DIAS FERPELLA

- René, no meu ramo, lidamos com números assim todos os


dias. Toda droga que cura também mata.
- É… Acho que números sensibilizam menos do que rostos.
Eles subiram as escadas lentamente. O sol esquentou o bastante
para fazê-la tirar o capuz do casaco.
- Eu já fui sensível a isso, pode acreditar. Mas depois de um
tempo… Acho que podemos nos acostumar com qualquer coisa.
- Espero que sim… Eu vim conversando com uma menina no
trem, uma estilista. Ela estava apavorada que íamos chegar no
início da noite. Dividi um táxi com ela até a casa da mãe. Ela não
quis falar muito, mas parece que viu ou ouviu um deles, esses seres
noturnos.
E os dois trocaram telefones, fortalecendo ainda mais a
possibilidade de Agda.
E René se lembrava daquela antiga promessa corriqueira ao
ouvir o desabafo resumido da mais recente rejeição da amiga. “Ele
se queixava que eu levava o trabalho à sério demais.” Mas era ele
quem tinha ressentimento demais, ética demais. E uma ética
ultrapassada, como consolaria seu pai. Ele ganhava menos, tinha
menos poder, tinha menos influência que sua companheira.
Apenas mais um garoto intimidado pela força do nome de
Katerina.
Mas René, constrangido, não ousava tocar no assunto de bebês.
E Katerina, certa de sua infertilidade, tentava esquecer o passado.
Afinal, eles não eram mais próximos como no momento em que
aquela promessa debutante fora feita.
- Mas eu estou bem, René, foi no início do ano, já passou. Não
sou mais nenhuma criança carente de aceitação e romance. Agora
está na hora de priorizar as questões na minha vida. Preciso focar
no que realmente importa.
- Legado. - René adivinhou.
Pois filhos nada mais são que o desejo egocêntrico de legado.
Álvaro Casablanca adiou o almoço em cima da hora, pois
descobrira que sua esposa estava grávida de sua primeira filha e,
para ele, sua empresa multimilionária não importava tanto quanto
o sangue de seu sangue.
Depois de Natália, viria Isaac, quatro anos depois. E nesse
momento Álvaro decidiria por uma aposentadoria precoce para

295
NICTOFOBIA

viver a experiência paterna que sempre almejara. Ele já teria mais


dinheiro do que conseguiria gastar numa vida inteira e que
garantiria a riqueza não só de seus filhos, mas de seus netos. E a
ideia parecia ser dele quando abordou Katerina:
- Você me ajudou desde o princípio Katerina, a Babel é tão
minha quanto sua. Um contrato vitalício é uma proposta muito
justa, mas não dispensa minha gestão. Decidimos nos desfazer dos
ativos e eu queria que você fosse a primeira a saber. Caso você
esteja interessada, aqui está o valor total e aqui estão os termos de
compra.
Naquele mês, quem tinha ações da Menetra-Nal, se tornou
milionário bastando apenas um anúncio.
Álvaro ficou satisfeito com o desfecho. Mais do que prova de
gratidão, se desfazer de sua companhia foi também uma manobra
corporativa. A Babel não conseguiria manter sua credibilidade por
mais um ano sem apresentar resultados. Seus patrulheiros haviam
abatido várias criaturas, eles garantiam tão certos quanto a certeza
do próprio nome. Mas suas palavras jamais seriam mais valiosas do
que uma carcaça. Quando Katerina pintou o quadro da
imortalidade, ele vinha com uma pilha de corpos sob os pés de
seus patrulheiros, manchete de primeira página, uma foto que
jamais desbotará. Mas não havia nenhum.
- Eu juro por minha vida que o vi caindo da marquise. Ele não
se movia mais. O Carlo ainda disparou três vezes contra ele.
- Em algum momento vocês perderam o contato visual com o
alvo?
- Não. Quando nos aproximamos tinha só uma mancha na
parede, uns entulhos, um pneu velho... O desgraçado não estava
mais lá. Mas ele morreu, temos certeza.
A natureza dos animais noturnos era inconclusiva, mas sua
equipe assegurava que não era humano. E todas as análises
comportamentais apontavam para uma espécie desconhecida ou
mesmo espécie alguma. Não eram animais, não eram formas
estabelecidas de vida, eram indefinidas, abstratas, os patrulheiros
entravam em desacordo sobre as características das criaturas.
Antropomórficos, animalescos, fantasmagóricos, bípedes,
quadrúpedes, alados, rastejantes, pequenos, imponentes. Não

296
DIAS FERPELLA

havia registro em vídeo e nem mesmo câmeras térmicas


conseguiam captar a anatomia.
A Babel parecia cada vez mais como um fracasso, uma
promessa mentirosa de salvação. E Álvaro Casablanca tinha
calafrios ao pensar em toda aquela fortuna se esvaindo como as
balas de seu arsenal, seus sonhos morrendo como os patrulheiros
nas ruas e um legado se transformando em outra coisa, uma
mancha na parede. Pois o mercado é como uma montanha russa,
onde toda subida leva à uma queda.
Farmacêutica adquire empresa de segurança privada numa
transação discreta. E Álvaro pode estar com Isaac como sempre
desejou estar com Natália.

***

Nada se equiparava à segurança daquele lar. Micaela finalmente


dormia bem, graças àquele medicamento milagroso. Antes de ir
para a cama, ela se sentava na sala de leitura com seus pais e
folheava revistas de moda enquanto os dois discutiam
amistosamente sobre filosofia e arte. Era bom, em parte, que eles
não possuíssem um cine-rádio. Ficar longe das notícias apaziguava
seus temores. E a bendita Soporiclona protegia seus ouvidos do
som de tiros pela cidade tarde da noite.
- Ontem foi bem perto daqui. Eu e sua mãe acordamos gritando
de susto.
- Nossa, eu durmo a noite inteira. É como se eu entrasse num
aquário só meu e o mundo todo lá fora desaparecesse. É
maravilhoso.
- Não sei não, Miquita, você vai acabar viciada nesse remédio.
- Mãe, ele estimula um sono natural. Ele normaliza os ciclos de
sono do nosso corpo, nada mais. O normal é dormir assim, sem
interrupções.
- Mas como é isso? Ele induz a exaustão? - ela permanecia
cética.
- Mais ou menos isso, sim. É que a gente tem acostumado
nossos corpos a permanecer ativos mesmo à noite. Isso prejudica o
equilíbrio do nosso corpo. O sono de vocês não é eficiente para
descansar como deveria.

297
NICTOFOBIA

Micaela repetia o discurso publicitário. Um ator vestindo um


jaleco impecável, receitando Soporiclona como um especialista.
- É claro que nosso sono não é eficiente, parece uma guerra lá
fora! - seu pai reclamou.
- Se essa confusão não acabar logo, acho que o jeito vai ser
tentar Soporiclona. - a mãe se rendia à ideia, curiosa com a
satisfação da filha. Ela acordava tão disposta e feliz, tão alheia aos
disparos da madrugada, à ansiedade de um avistamento ou um
ataque.
Já fazia quase um ano desde que ela voltara para casa. Quase
um ano desde que o Estado recebera um relatório definitivo e
aprovara a ação combativa proposta por Álvaro Casablanca. “O
sobrenatural não cabe às forças armadas.” O alto escalão do
exército se abstinha em declarações polêmicas, duvidando do
relatório cauteloso da Babel. Mas, maliciosamente, a companhia
de Casablanca incluíra uma sessão no documento recomendando
estratégias de forma sucinta, apenas para fisgar o interesse do
Ministério, oferecendo um vislumbre de uma operação organizada
de extermínio, uma que não poderia ser executada por alguém sem
os métodos, equipamentos e conhecimentos de Casablanca.
Para Micaela, reatar velhas amizades foi fundamental para
apaziguar seus ataques de pânico. Ao contrário de Tanira - que
ignorava as campanhas de reclusão - os amigos, com quem
Micaela agora convivia, atestavam a gravidade da situação. Mas
não se preocupavam, pois o marketing otimista do primeiro ano
finalmente fazia efeito quando atitudes foram tomadas. Fique em
casa. Durma cedo. Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. E as
patrulhas nas ruas confirmavam com pólvora e fogo, vai ficar tudo
bem.
O apoio dado pelo Departamento de Polícia foi apenas para
manter a população afastada das zonas de conflitos. Em outras
palavras, fora das ruas, dentro de casa.
- Não eram nem seis horas e não tinha quase ninguém no
centro. Os patrulheiros já estavam se espalhando, todos armados.
Um policial chegou a me parar e perguntou onde eu morava, se já
estava voltando pra casa. - a voz vazava da sala para seu quarto.
Micaela se levantou da sua mesa de estudos, deixando um croqui
pela metade e foi participar da conversa de seus pais.

298
DIAS FERPELLA

- Eles estão orientando as pessoas a já estarem em casa ao


anoitecer. Querem as ruas liberadas para organizar o movimento
das patrulhas.
- Mas não me pareceu uma orientação. Foi mais como uma
repreensão.
- Estão todos muito tensos. Vai chegando esse horário e
ninguém sabe o que esperar. - o pai amenizou.
- Eu que não vou ficar na rua depois das cinco. É um pouco
assustador, esse cenário.
- É melhor mesmo mãe, não custa ser prevenida. Eu vou
começar a ir pra cama às sete da noite essa semana. Prefiro dormir
logo e nem saber o que está acontecendo lá fora.
E assim, mais e mais famílias se recolhiam antes do anoitecer, o
pôr do sol atrás de uma janela, na segurança do confinamento.
Explorando as possibilidades de distração e convivência antes do
sono chegar.
René contava disparos para esvaziar a cabeça e relaxar.
Encarando as luzes dos faróis deslizando pelo teto enquanto as
viaturas passavam por sua rua. Um, dois. Três. Quatro, cinco, seis.
Sete, oito. E as armas se calavam exaustas, respirando fundo antes
de outro confronto. Era assim em toda cidade que ele se
hospedava. Umas eram mais ativas, outras sonolentas. Mas as
milícias se expressavam livremente durante a noite, atraindo
jovens sedentos de ação e aventura. Fique em casa. Durma cedo.
Juntos vamos superar. Os jargões infectando a mídia, martelando
ordens, se transmutando em diversos idiomas enquanto os
avistamentos transcendem fronteiras.
Noventa e nove. Cem.
Eis a noite em que não mais retumbam. Nada mais adianta.
Mas é notável a contenção. Os números diminuíram. E Katerina
parece ser a única a aceitar o sucesso.
- Álvaro, meu caro! Como vai? E a família? Três aninhos, já?
Que linda. É, eu imagino. Engraçado você dizer isso, a gente está
mesmo desenvolvendo uma fórmula pediátrica. Talvez ano que
vem já, se tudo der certo. Obrigada.
E com bastante paciência, Katerina escutava as mazelas e
vicissitudes chegarem do outro lado da linha até seu interlocutor
se sentir leve e aliviado. E aí sim, ela introduzia o motivo da

299
NICTOFOBIA

ligação, como se tivesse se lembrado de repente, como se fosse por


acaso, uma feliz conveniência.
- Eu entendo perfeitamente sua posição. Mas acho que a
insatisfação do Estado tem muito a ver com as queixas da
população. Se você observar os números, a Babel conseguiu sim
combater o problema. Claro, o objetivo não era reduzir as
fatalidades? Não, mas não se preocupe, nós temos ferramentas
para isso. Sim, no parlamento. É do interesse de todos, com
certeza. Eu vou mandar uma proposta pra você ainda hoje, caso
realmente aconteça, a Menetra-Nal tem interesse na continuidade
do projeto. Indeterminado. Não se preocupe com meu pai, ele
confia na estabilidade do setor e se eu aprovo, ele aprova.
Katerina não era mais a voz, era a cabeça de Menetra-Nal.
Então, pouco tempo depois, emocionado pela notícia da segunda
gravidez de sua esposa, Álvaro Casablanca apresentou uma
contraproposta generosa depois de muito ponderar. A Babel se
dissolveria em Menetra-Nal. E o pai de Katerina, aposentado em
areias brancas e águas turquesas, sequer teve conhecimento do
movimento da filha.
Um. Dois. E quando as armas se calam, os grilos voltam a
sonorizar a noite. Acabou, eles pensam, já não há nada a fazer.
Pois os mortos não mais se acumulam e as pistolas não mais
disparam, logo não há contra o que disparar, não há o que temer.
E já faz tempo demais que não vemos as estrelas.
- O que você disse? Ele propôs o quê?!
- Ele quer sair à noite, Mica. Parece que as coisas estão mais
tranquilas agora. - Micaela não conseguia acreditar no que sua
prima lhe contava. A água do mar escorria de seus cabelos,
descendo pelo declive de suas costas.
- Mas ainda não estão. Se os ataques diminuíram é justamente
porque as pessoas estão se protegendo. Quando for seguro mesmo,
eles vão avisar.
- Não sei. Parece que já estão conformados. Essa coisa de
“durma bem, viva bem” parece uma aceitação dessa constante
ameaça. Essas empresas todas arranjaram um jeito de continuar
lucrando, mesmo com a recolhida.

300
DIAS FERPELLA

Sua prima se sentou e limpou a areia branca de seus cotovelos.


Micaela mordia o lábio, aflita, provando o sal marinho realçado
por um dia de verão.
- Quem vai? Só vocês dois?
- Não. A galera toda. A gente não vai longe. Vai só dar umas
voltas de carro, achar um lugar isolado pra se sentar e passar um
tempinho. Vai ser legal.
Micaela pensava em Tanira, de quem ela há muito não tinha
notícia. Talvez ela fosse parte das estatísticas, sempre se expondo,
se arriscando. E se ela ainda estivesse viva, certamente ignorava o
perigo e já saía com os amigos, provocando patrulheiros com sua
desobediência. “Eles não podem nos controlar.”
E no parlamento, uma discussão era proposta e cada vez mais
ganhava adeptos. Sussurros pelos corredores, anotações entre os
dedos. Katerina via a rua retomar seu movimento noturno, carros
circulando, jovens se divertindo em espaços vazios, aproveitando o
ar da noite que jamais respiraram. Ela tinha urgência, mas não se
preocupava. Ela sempre conseguia atingir seus objetivos, sua
persuasão era praticamente infalível, à prova de burocracia.
A população desconhece a lei. Pois a lei se escreve em
linguagem seletiva, propositalmente dúbia nas entrelinhas. E nem
todos os juízes do Tribunal Investigativo são inalcançáveis, é
apenas uma questão do número certo, do interesse pontual, do
lucro. Os prospectos de Menetra-Nal excitam a bolsa de valores
quando Soporiclona Baby é anunciado. “Basicamente a mesma
composição de Soporiclona, só que em menor concentração, então
me parece desnecessário dar início ao mesmo processo. Posso te
enviar os atestados dos nossos laboratórios mesmo e você agiliza
isso pra gente.” Katerina desliga o telefone certa de que a
aprovação estará em sua mesa ainda naquele mês. E muitos se
beneficiam. Katerina, afinal, é uma altruísta.
Naquela época, Daya ainda não conhecia Romanie. Ela estava
no seu segundo ano da faculdade de Medicina e lutava para
escolher entre ortopedia ou pediatria. As luzes da rua desaparecem
de suas janelas. E Daya, há quilômetros dali, se aventurava no
escuro dos bairros periféricos. Sua turma de cinco, “trupe” como
ele costumava chamar. Eles tinham um trunfo na manga, uma
cópia do decreto emergencial para exibir orgulhosamente diante

301
NICTOFOBIA

de qualquer repreensão. Ali, no parágrafo segundo, estava a linha


crucial para não ferir a Constituição mas que era ignorada não
apenas pela população, mas pelas autoridades. O cidadão que se
recusar a retornar para casa [...] após um flagrante, estará sujeito a
detenção imediata [...]
Permanecer em espaços e vias públicas após as dezoito horas
sem licença de circulação crepuscular (LCC): aplicação de multa e
retenção. Estabelecimentos comerciais em funcionamento após às
dezoito horas: aplicação de multa e interdição. Transmissões de
rádio, cine-rádio e/ou televisão após as dezenove horas: aplicação
de multa.
Daya argumentava com sua “trupe” diante de um patrulheiro
ocioso:
- Mas já estamos voltando para casa. Vocês só podem nos levar
se a gente se recusar. Não estamos nos recusando.
E depois reclamava do absurdo de ser forçado a abandonar o
carro e conduzido dentro de uma viatura para seu devido
endereço. Prometia processar a Babel, travar uma luta pessoal com
Álvaro Casablanca, acionar seus direitos civis, fazer um escarcéu
na mídia. Uma hora depois, ele ligava para a “trupe” e combinava
um novo ponto de encontro. Ele passava pelo portão triunfante, o
bolso imaculado pela perspicácia de uma confissão. “Já estamos
voltando, agora mesmo.” Na maioria das vezes, dava certo. Eles
não podem nos controlar.
Mas o que era apenas um decreto emergencial, se envolvia de
seda, num processo invisível de metamorfose. Decretos rastejam,
leis voam.
A população ignora o texto, desconhece seus direitos. É fácil
assumir que o verbo atrelado a recolhida é “dormir”, quando a
hipnose midiática ordena “durma bem”. E o hábito germina nos
lares desérticos como uma figueira-hércules, trincando o concreto
com a força de suas raízes sedentas e pesando os muros com o
abraço de seu tronco. A cidade nunca esteve tão quieta. As ruas
são linhas negras pelas quais deslizam pontos luminosos. Os
carros não mais farejam o mistério: eles se deleitam muito mais
com o familiar, pois agora é o ser humano que parece não
pertencer àquele ambiente. O ser humano é o intruso.

302
DIAS FERPELLA

Quando a Lei do Limiar entra em vigor, são poucos os que


estranham e resistem. Pois a maioria faz coro à voz imponente do
Estado. E aqueles que ficam acordados, põe em risco todos nós,
pois eles encontram um caminho para nossos lares.
“É para nossa própria segurança.”

***

Fazia frio e Agda se recusava a sair da cama. As cobertas se


agarravam manhosas ao seu corpo aquecido e ameaçava tomar seu
conforto toda vez que ela tentava se afastar. Sono a manteve
imperturbável durante a madrugada e assim as notícias se
acumularam para aquela manhã fria.
Pena entrou no quarto com uma caneca de sanha indiana e mel
vermelho.
- Pra que isso, Pena?
- Eu imagino que hoje você vai precisar se acalmar mais do que
se agitar.
- Que foi? Eu já sou a última a saber, é? - Agda retrucou
indiferente, se sentando na cama e arriscando tirar um braço para
fora do cobertor. Pela janela o mar se esticava para alcançar o
litoral da Baía das Valquírias, onde uma vegetação tropical se
aglomerava nas areias.
- Maximus já está tentando controlar o sangramento. O
conselho quer alienar o Tribunal Investigativo até a situação ficar
mais… “gerenciável”.
- O que foi, Pena? Mais gente querendo uma revisão do
composto?
- É melhor você falar com o senhor Douvan.
- Ele está aqui?
- Não. Mas pediu para você ligar imediatamente.
O tom de urgência não surtiu muito efeito. Adga Tchertkov,
membro honorável do conselho de acionistas da Socoma. Ela
entendia que aquele título era apenas simbólico, que não trazia
poder algum. Membros honoráveis não tomam decisões, não
influenciam políticas, não passam de um atestado de consideração.
Prova disso era a forma que Agda pode se retirar na sua ilha na
Baía das Valquírias por oito meses e ninguém questionou seu

303
NICTOFOBIA

retorno. Ela não atendia a uma reunião desde a morte de Natália e


absolutamente ninguém parecia se incomodar com isso, nem
mesmo Maximus.
Agora Virgílio aconselhava que ela voltasse para apaziguar uma
crise. Mais do que isso, ele insistia.
- A “molecada” deve estar histérica. - ela desligava divertida,
usando o apelido jocoso para se referir à diretoria.
- E então? - sua assistente aguardava ansiosa por uma decisão.
- Que merda… Isso não tem nada a ver com a gente, Pena. Eu
estou cem por cento desligada da Socoma, mas aquele babaca não
consegue me deixar em paz. Mas você acha que é remorso, que ele
quer me incluir? Não. Ele não quer mostrar a cara quando a fossa
transborda. Sou eu que tenho que mostrar minhas rugas na
televisão, a senhorinha simpática que todo mundo conhece mas
ninguém se lembra, a dona-da-lua retorna pra salvar o dia. Porque
o Max tem cara de vilão, mas Agda tem cara de vó. Bom… Vou me
trocar.
O helicóptero deixou a ilha às nove da manhã. Do alto, Agda
apontava a família de baleia-malhada que se alimentava na baía.
Ela quase podia ver um filhote nadando abaixo de uma fêmea. O
sol finalmente encontrara uma brecha entre as nuvens e o azul
profundo do mar ondulava com reflexos de luz. A sombra do
helicóptero navegava lá embaixo. Areia. Árvores. Mansões. Mais
mansões. E ele deve estar se cagando de medo de ser afastado do
cargo. Talvez exista um pouco de justiça cármica, no final das
contas.
Uma Fastlander a esperava no heliporto para transportá-la até o
hangar. Um homem na faixa dos quarenta e poucos anos e um
rapaz com metade de sua idade a receberam. Eram do setor de
imagem da Socoma. O rapaz se apresentou, sem causar a menor
impressão em Agda. Ela nem se deu ao trabalho de escutar seu
nome e o tratou por “jovem” a viagem inteira.
Enquanto eles explicavam a situação em detalhes, Agda sorria e
abanava a cabeça. “Pena, fico feliz que sua mãe não esteja aqui
para ouvir isso.” Natália Casablanca esteve no Salão de Arquivos
durante a negociação da trégua. Na ocasião, Agda tinha vinte e
três anos e não conseguiu arrancar da agente nenhum detalhe
sobre o acontecimento confidencial. “Só posso te falar que deu

304
DIAS FERPELLA

tudo certo. Sua madrinha sabe o que está fazendo.” Soava mais
como uma esperança do que como uma certeza. E anos mais tarde,
quando Socoma não mais fazia parte da vida de ambas, Casablanca
confessou a fragilidade do pacto. Era uma questão de quando.
- A família do agente já foi notificada? - Pena formulou a
questão enquanto Agda mantinha os olhos pensativos nas nuvens
do meio dia.
- A essa altura já deve ter sido.
- Obviamente colocaram a culpa em um ser noturno… - Agda
divagou.
- Na verdade não. Não queremos divulgar os noturnos. Nesse
caso é vantajoso se ater aos fatos.
Agda soltou o fôlego numa bufada irônica e só então voltou seu
olhar para a conversa:
- Agora eu entendo a madrinha… Ela dizia que o Pacto feria a
estratégia. Pra mim era contra intuitivo, até então. Com a Lei do
Limiar, mais consumidores iriam procurar Sono. Mas as pessoas
não vão dormir porque são obrigadas, vão dormir porque estão
com medo. A questão é: as pessoas se esquecem, se sentem
seguras e se esquecem. É crucial lembrá-las do que estamos
evitando, contra o que estão sendo protegidas.
O rapaz se segurava para não interromper o discurso de Agda,
mas não conseguia disfarçar sua impaciência. Quando ela fez uma
pausa um pouco maior, tendo terminado sua fala ou não, ele
interveio:
- Senhora Tchertkov, voltar o foco para os noturnos iria apenas
causar pânico.
- Depende da forma em que o assunto for tratado, meu jovem.
Com as palavras certas podemos evitar a histeria coletiva ao
mesmo tempo em que fazemos a manutenção do medo. E o medo
é uma ferramenta extremamente poderosa e eficaz.
- Desculpe, Agda, Maximus foi bem específico sobre a
divulgação. O agente sequer será mencionado. Muito menos os
seres da noite. - o homem mais velho concluiu.
- Seria tão mais fácil… - ela se lamentou e voltou a buscar
conforto nas nuvens. Pena mudou o tópico para evitar
constrangimento:
- Testemunhas? Além dos agentes, claro.

305
NICTOFOBIA

Ele tirou alguns segundos para revirar suas notas:


- Só uma. Ênio Verner, trinta anos, jornalista. Levamos ele
direto para a central, passou a noite detido, se recusou a cooperar.
- Mas não há razão para se preocupar. Ele testemunhou apenas
o suicídio. Não pode nos implicar na morte de… Érika Filardi. - o
jovem olhava suas próprias anotações.
- Ainda assim ele pode levantar suspeitas… - Pena rebateu antes
de ser interrompida por Agda:
- É a merda de um jornalista! Ele consegue juntar as peças. Até
eu consigo juntar as peças. Explicitamente falam de uma “quebra
do Pacto” - que pra começar nem era pra eles terem conhecimento
- Filardi vai, Filardi não volta, coincidentemente o Pacto é
mantido. O que te parece se não um sacrifício? Haja paciência…
Agda tinha contatos e tinha um bom plano. Com a abordagem
correta, poderia vender ao público a história que quisesse,
garantindo a soberania e o lucro. Mas Maximus deixava seu ego
ficar entre ela e a solução. Ele obviamente não queria sua ajuda,
queria apenas mais uma arma em seu arsenal para executar seu
próprio plano. Ele queria impressionar a diretoria e Agda sabia
exatamente onde aquela estrada poderia terminar.
O jato aterrissou no início da tarde e, no saguão do aeroporto,
já havia dois fotógrafos e cinco repórteres apontando câmeras e
gravadores.
Agda passou por eles, escoltada por Pena e um pequeno time de
agentes que a aguardava. Ela sequer ouviu as perguntas e não se
preocupou em sorrir por trás de seus grandes óculos de grife.
Aqueles jornais menores não se dobravam às vontades da Socoma.
Suas publicações serviam para forrar canil e nada mais. A grande
imprensa sim, essa ditaria os fatos e quem discordasse seria
rotulado como louco ou sensacionalista. E esses jornais bilionários
- com uma coleção de capas históricas, moldando e reescrevendo
opiniões ao redor do mundo - esses a Socoma cozinhava numa sala
de coletiva dentro de sua própria sede.
Ao ver a icônica anciã, os repórteres instintivamente
aplaudiram, os mais velhos com nostalgia e os mais jovens com
honra. Sua postura estava ótima, sua saúde reluzente, as rugas
suaves enfeitavam suas feições. Uma vida longe do pesadelo
corporativo a envelheceu bem, ao contrário de Maximus. Ali,

306
DIAS FERPELLA

muitos sentiram a discreta brisa de uma antiga dúvida, pois ela


lembrava tanto sua madrinha que mais parecia sua filha.
As especulações borbulhavam entre telefonemas e mensageiros.
Aquele anúncio marcado para às catorze horas prometia um
semestre inteiro de pauta, no mínimo. Uma nova política de
monitoramento? Um novo corte de verba? Ou seria o extremo da
legalização da noite? “É seguro ficar acordado, está tudo bem
agora.” Mas a notícia de uma retenção era tão melhor…
Na noite passada, agentes da Socoma flagraram e detiveram
cinco idiotas inconsequentes nas proximidades do Memorial da
Biblioteca. O Tribunal Investigativo receberia a documentação e o
depoimento do comandante chefe da patrulha urbana, Virgílio
Douvan, já realizado naquela manhã. Os outros agentes envolvidos
iriam depor no decorrer da tarde.
Durante a coletiva, Pena foi à procura de Virgílio. Ela o tratava
como um membro da família devido a forte amizade que existiu
entre ele e sua mãe. Se cumprimentaram com um abraço. “Como
ele envelheceu…” ela pensou.
- Tio Virgílio, eu acho incrível você ainda ter fôlego pra lidar
com tudo isso.
Ele sorriu, lisonjeado. Poucos agentes se mantinham na ativa
depois dos sessenta e cinco.
- Não é agitado assim todo dia. Quem me dera se fosse. E foi
sorte eu estar lá. Não são muitos os agentes que sabem dos
Arquivistas.
- Agda quer divulgar o Pacto e os noturnos.
- Não me parece sensato. Durante anos não tivemos nenhuma
ocorrência. As pessoas não questionam o Limiar.
- Isso não tornaria a Socoma obsoleta?
- Maximus não pensa no legado da Socoma. Ele quer apenas o
máximo de lucro que conseguir tirar dessa situação. Ele está de
mãos atadas: se permite que Agda tome as rédeas, ele vai contra à
diretoria; se faz o que a diretoria deseja, o resultado certamente
não os deixará satisfeitos.
- Independente de como acabar, o Max não passa por essa
crise… É como minha mãe falava: que essa diretoria será o fim da
Socoma.

307
NICTOFOBIA

Agda enxergava tudo isso e aceitou ajudar numa esperança de


minimizar os danos. Mas haveria danos, inevitavelmente.
Quando os nomes dos suspeitos foram revelados, todas as
atenções foram para o companheiro de profissão, Ênio Verner. Ou
melhor, para Dominique Koya em seu segundo mês de gravidez.
Poucos tiveram a decência de poupá-la da exposição e assédio: era
uma história boa demais para cortesias.
- Koya veio a mim pessoalmente pedir, como futura mãe, para
ao menos falar com Ênio Verner. O Estado nega visitas a
criminosos em flagrante, salvo familiares. Apesar de não
possuírem vínculo matrimonial, a criança que ela gera possui
vínculos sanguíneos. Me digam vocês se Koya e Verner são ou não
uma família?
Agda discursava para jornalistas no saguão do fórum. Um de
seus advogados ao seu lado, pronto para interceder pela jovem
bailarina aposentada. Tudo era válido para divergir a atenção até a
história de Maximus ser montada, ensaiada e executada. Então,
quando informações começaram a se espalhar, ela controlou o
vazamento com alguns telefonemas antes que os suspeitos
começassem a falar. “Não podemos controlar o que eles vão dizer,
mas podemos controlar o que os outros vão ouvir. Faça parecer o
mais ridículo possível, a ponto de tirar a credibilidade daqueles
que publicarem a história.”
Assim, Agda ditou a verdade que lhe convinha e os noturnos
nada mais significavam além de uma teoria absurda, risível. Ela via
Maximus através do vidro da sala de reuniões, passando apressado,
mais envelhecido do que ela se lembrava, quase em pânico. A
mídia mencionava “Insones”, retomando obstáculos já superados
pela Socoma, realçando os mistérios da noite e instigando o
público. E assim, os protestos foram começando. As árvores do
parque em frente a Socoma exibiam faixas e cartazes, exigindo
transparência. Passeatas pediam exposição da companhia, que o
Estado atualizasse a Lei do Limiar e dissolvesse o monopólio da
Socoma. A Socoma julgava e executava sua própria lei, possuía um
andar inteiro em seu prédio dedicado ao que chamavam Clausura,
injetando doses absurdas de Sono em seus detentos. A Socoma
abusava da autoridade. A Socoma tinha uma conduta violenta. A
Socoma foi a única responsável pelas mortes no Memorial. E tudo

308
DIAS FERPELLA

que o CEO fazia, nas poucas vezes em que aparecia, era ignorar
todas aquelas exigências e acusações.
- Max, esse é exatamente o caminho que queremos percorrer.
Quanto menos eles falarem do caso em si, melhor.
- Eu só quero adiantar essa sentença, Agda, pôr um ponto final
nessas especulações. Eu já não me importo com a reputação da
Socoma, num dia somos heróis, no outro somos vilões, é sempre
assim, com qualquer grande companhia.
- “O público esquece…” Casablanca entendia tudo exatamente
como é. Quer assumir a culpa, Max? Quer anunciar uma total
reestruturação na Socoma, demitir os envolvidos, dizer que foi um
acidente, pedir desculpas e tocar o barco?
- Seria muito mais fácil, não é? - ele demonstrou cansaço na
voz.
- Seria mais barato… Jamais fácil.
- De quanto você precisa pra apressar isso? Quanto eles
querem?
Porém Max não havia entendido ainda. Não era interessante
apressar o caso, era exatamente isso que o público queria. Melhor
seria tornar tudo tão lento e monótono que os telespectadores
mudariam de canal e a imprensa rapidamente desistiria.
“Ela passou por um momento de crise ao meu lado e está
perfeitamente preparada para assumir.” Dizia Socoma ao entregar
o cargo. Pois Agda já vira a madrinha usar de tal estratégia no
passado, enquanto as estatísticas cresciam por minuto,
instaurando o medo. E quando o último grupo de Insones fora
detido numa fábrica abandonada, nenhum jornal na época usara
mais que meia página para noticiar.
Quando o assunto dos Sete do Memorial deixou os holofotes, a
sentença foi dada duas semanas mais tarde. Ênio foi condenado à
Clausura por sete anos. Dominique nunca foi autorizada a vê-lo.
As opiniões sobre a Socoma foram fortemente influenciadas e, se
antes eram majoritariamente indiferentes, agora tendiam ao
dúbio: era melhor não opinar, não se comprometer com um
posicionamento diante de tanta incerteza. A Socoma era vilã e
heroína ao mesmo tempo, assassina e guardiã, noite e dia. E no
final das contas, Agda voltou para sua ilha satisfeita com os
resultados. Estava explicitado o que a Socoma poderia fazer com

309
NICTOFOBIA

Insones que se arriscam à noite. O medo foi reavivado na


supressão da curiosidade. Dessa vez, no entanto, era um medo
direcionado para algo muito mais perigoso.

***

É difícil apontar nossa lembrança mais antiga. Sensações de


familiaridade se confundem com fotografias de uma infância
distante. Ela não tinha fotos daquele dia, mas se lembrava muito
bem. E na inauguração do Memorial ela se pôs diante de câmeras
depois de muito tempo e , para um público de vinte mil pessoas, se
comoveu ao lembrar.
Ela era pequena, um coração novo e puro, a fase em que
começara a se comunicar com fluência, que suas vontades,
opiniões e perguntas encontravam o som das palavras que ela
aprendia.
- Por que tá molhado, papai?
- Onde?
- Ali no meio. Essa árvore também. - ela reparou no tronco da
árvore ao seu lado, escurecido pela umidade.
Uma chuva parecia ter caído à noite, deixando poças geladas
entre as pedras da rua.
- Como assim “noite”?
- É como a gente chama quando o dia escurece. Falamos que o
dia acaba e começa a “noite”. É quando a gente vai dormir.
Mas o Sol subia infalível contra a atmosfera terrestre e com
promessas de secar aqueles sinais. E a garotinha não sabia
exatamente para onde estava indo, apenas que estava indo para
“conhecer uma amiga do papai.”
Uma moça alta e elegante, com uma postura confiante e
cabelos curtos. Ela se abaixou para falar com a menina antes
mesmo de cumprimentar René.
- Oi! Quem é você?
- Agda… - ela estava hipnotizada com sua beleza e sua voz. A
moça olhou para cima brevemente, sorrindo para René. E depois
de volta para ela, pois ela era o centro do mundo.
- Agda! Eu sou Katerina. Mas você pode me chamar de Kaká! -
ela estendeu a mão. Quando Agda retribuiu o gesto, aqueles dedos

310
DIAS FERPELLA

longos de pianista envolveram sua mãozinha calorosamente e com


zelo. Ela ainda se lembrava das cores das gemas de seus anéis.
- Oi Kaká! Você conhece meu pai?
Katerina olhou para cima mais uma vez, os olhos umedecidos
com um sorriso emocionado.
- Sim. - sua voz desceu um tom, vacilante.
- Quantos anos você tem? - Agda a trouxe de volta.
- Eu? Trinta e seis. E você?
- Quanto é isso?
Katerina mostrou a palma de suas mãos três vezes e finalizou
com seis dedos.
- Eu tenho assim: - Agda esticou quatro dedos e ali decidiu, em
seu coração, que gostava de Katerina.
Em muitos momentos, a moça havia se questionado se ela e
René não viviam uma amizade ilusória: eles ficavam anos sem se
falar antes de algum deles retomar o contato; quando se
encontravam ficavam levemente constrangidos até recuperarem a
espontaneidade; se despediam com promessas irrealizáveis de
aproximação. Mas ambas as vidas os reclamavam de volta aos
projetos e responsabilidades de quem possui um legado a
perpetuar. E quando pensavam de novo um no outro, várias
estações já haviam se desfeito em anos turbulentos.
O mundo acabou e renasceu. Muitas vidas se foram, inúmeras
mentes findaram. Os três andavam por ruas despidas de gente,
escassas em automóveis. Parecia ter acabado, o problema não fora
derrotado, mas fora contornado. Não fora deixado para trás, ele
ainda seguia de perto, mas num passo semelhante ao da sociedade,
de forma que não ameaçava alcançá-la novamente. Já está claro
que não é sensato ficar nas ruas entre o ocaso e a alvorada.
Não era o fim da tempestade, no entanto. Era o olho do
furacão. Nenhuma janela era indestrutível, nenhum portão
intransponível, nenhuma casa tão segura. Enquanto uns distorcem
a ordem da Recolhida e criam hábitos soporíferos, outros buscam
o composto apenas quando convém, na hora que lhes apetecem.
Dormir a noite inteira parece extremo. Está tudo bem agora.
Crianças brincam de pique-alturinha entre as árvores
frondosas. É um apanhado diverso de idades, vidas de sete anos se
divertem com outras de nove e outras de onze. Virgílio era o mais

311
NICTOFOBIA

velho dos garotos, criando uma onda de gritinhos e correria ao


perseguir os que se aventuravam em seu caminho. Ali ele cruza o
caminho de Agda e Katerina pela primeira vez, uma mais nova,
outra mais velha, mas não as nota pois ainda não as conhece.
Agda se junta à brincadeira, buscando refúgio no balanço,
raízes, escorregadores. René observa zeloso sua filha se divertindo
naquela praça.
- E a mãe dela?
- Micaela queria te conhecer, mas tinha médico às sete e meia.
Talvez possa almoçar com a gente.
- Ela está bem? - Katerina se alarmou com a saúde da garota
simplesmente pela expressão nos olhos de René.
- Está sim. Não. Honestamente, acho que não. Passamos por
tempos difíceis, muitas pessoas foram transformadas para
sempre…
- Você foi?
- Está tudo bem agora. Estamos bem, estamos vivos. E essa
situação toda da Recolhida é temporária, eu sei disso. Já não
ouvimos falar de ataques, as pessoas entenderam a dimensão do
perigo, finalmente.
Doía ao coração de Katerina ouvir uma das pessoas mais
importantes da sua vida dizer tal coisa. Tinham tantas coisas que
ela poderia dizer para confortá-lo, tantos segredos que ela queria
lhe contar. Mas certas coisas, nem melhores amigos podem saber e
ela não aspirava se delongar naquele assunto pesado: algo mais
encantador cantava por todas suas artérias, ecoando desejos há
muito natimortos.
- Não acredito que só fui conhecer Agda agora. Ela é linda! - ela
observava a menininha escalando um banco com a agilidade de
uma tâmia-mel.
Katerina não evitava projetar o futuro de Agda. A garotinha
fertilizando, com brincadeiras, a jovem fantástica que ela seria e
que, por sua vez, impulsionaria a sina de uma grande mulher.
Corra, pequena Agda, escale, pule, ria, grite de excitação. Já
descansam as monstruosidades da noite e a estrela-Mãe te guarda
com ternura e piedade. Ainda não acabou. Que essa turbulência
não passa de um prelúdio, mas não há porquê se preocupar. Os
anos de ignorância não duram mais que uma gota de chuva, e o

312
DIAS FERPELLA

funcionamento desse universo ainda não se encontra em seu


vocabulário.
- Meu pai morreu.
- O quê? Quando? O que aconteceu? - René se incomodou com
a frieza com a qual ela entregou a notícia.
- Foi no início do ano. Meu pai sempre manuseou os compostos
diretamente. Foram muitos anos, muitos químicos. - Agda se
escondia atrás de uma árvore quando dois adversários passaram
correndo, espantando outras crianças para cima de uma gangorra.
Os pegadores buscaram outros alvos.
- Agora é oficial, René. A “MN” é toda minha. Eu assinei a
documentação na terça passada. - Katerina fazia aquela
informação parecer uma observação óbvia sobre meteorologia.
René segurou a mão dela entre as suas, numa mistura de “meus
pêsames” com “fico feliz por você”. Agda agora corria junto com os
pegadores, cada vez mais numerosos conforme o jogo se
desenrolava.
No primeiro mês de sua dinastia, Katerina se empenhou para
mudar o nome não apenas dos medicamentos, mas também de seu
império. Ela não era mais a voz, não era a cabeça: ela era a própria
Menetra-Nal. E simbolizando tal sinergia, a companhia transmuta
sua identidade para o sobrenome de Katerina, para que todos
conhecessem, para que todos dissessem e que todos se curvassem
em respeito àquelas três sílabas.

313
III

E
les já estão condicionados a reagir à luz. O céu se incendeia
com o ocaso e todos eles já se recolheram, pois assim
funciona a vida. Da decadência vespertina, a agitação tira
incentivos para expulsar a população da rua antes da escuridão. E
o relógio não precisa enfim exibir dezoito horas para que eles
estejam rompendo aquela fina película de gelatina com uma
mordida. E a solução, liberta, cumpre seu destino.
"Nox!” eles gritam confusos com as trevas que se repetem.
- Eu tinha sete anos. Eu lembro que o Lucian tinha uns dois,
três meses. Pra mim era muito estranho como ele de repente
desligava.
- É, bebês são todos desregulados. Eu ainda acho bizarro como
conseguem dormir de dia sem tomar nada. - Gabi marcava o livro
com o dedo indicador. Ela interrompera sua leitura para melhor
escutar o marido que, sentado na poltrona, costurava um botão
em uma calça azul marinho. Ela, do sofá, sentada com os joelhos
dobrados, lia um livro proibido. Noctívago (Uma história da noite),
de Robin Van Halt.
- Bom, - Nico continuou - eu era uma criança bem curiosa e
dona de si. Teve uma vez que eu me escondi no quintal pouco
antes do limiar, só porque eu queria ver a noite. Meu pai gritava,
ameaçando me deixar de castigo; mas foi minha mãe que me
convenceu a aparecer. Ela disse que me mostraria a noite, mas
antes queria se certificar da minha determinação. Eu teria que
esperar uma semana, sempre dormindo no horário. Se no sétimo
dia eu ainda quisesse ficar acordado, ela me ajudaria.
- Eu nunca quis ficar acordada. Tinha medo do escuro. Acho
que a primeira vez, a única vez que eu vi a noite foi num simulador
aos quinze anos. Mas e aí?
- Aí, uma semana depois, ela cumpriu o prometido. Perto do
limiar eu já estava na cama, encenando pro meu pai estar pronto
pra dormir. Minha mãe foi ao meu quarto e ao invés de dar minha
dose, sussurrou para que eu aguardasse em silêncio até ela dar o

314
DIAS FERPELLA

sinal. Ela combinou um código comigo: uma batidinha na minha


porta significava que meu pai tinha ido pra cama; duas batidinhas
queria dizer que ela estava indo dar Sono em Gotas pro meu
irmão; três batidinhas significava que todos dormiam. Agora, uma
pancada na parede significava que meu pai estava vindo, aí eu
tinha que virar pro lado e fingir dormir. Eu lembro que um
tempinho depois, quando ouvi três batidinhas de unha na minha
porta, fiquei muito animado em sermos os únicos acordados na
casa.
- Talvez os únicos acordados na cidade inteira. Vocês saíram?
- Ela me levou pro telhado. E vimos o Sol se pôr e o primeiro
ponto luminoso surgir no céu. Você já viu Vênus?
- De verdade não. Estou te falando, Nico, a única coisa mais
ousada que eu já fiz foi colocar as mãos nesse livro. - Gabi o
encontrara em um mercado de pulgas, uma caixa com vários
títulos antigos e empoeirados. Ela levou aquele pelo preço de uma
moeda, sob os protestos acelerados de seu coração.
- Quer me acompanhar? Meia hora. Podemos ver o céu. Até
hoje me lembro das estrelas… O céu todinho pontilhado, a Via
Láctea de um lado ao outro…
- E você nunca mais viu? E seus irmãos?
- Minha mãe propôs a mesma coisa pro Lucian quando ele
tinha, não sei, três anos? Ela colocou a Anninha pra dormir e foi
buscar nós dois no quarto, com aquelas batidinhas com a unha.
Mas o Lucian ficou com medo e desistiu. Até chorou. Já a Anna
nunca viu. Acho que minha mãe fez um reajuste de dose pra
tranquilizar meu pai e nunca mais sugeriu nenhum segredo do
tipo.
- Talvez ela tenha repensado essa pequena aventura, depois que
o Lucian chorou. Coitadinho. Pelo menos ele vai poder encarar
esse trauma hoje. Espero que tudo corra bem. Talvez você devesse
ter ido com ele.
Sim, talvez, Nico pensou arrependido. E Gabi se retirou para a
cama, dispensando a transgressão conjunta com desculpas de não
ter espaço na agenda para empurrar aquela meia hora de sono
para além do despertar. Parecia óbvia a noção de que Nico teria
uma experiência monótona, que buscaria catarse em literatura,
televisão ou açúcar.

315
NICTOFOBIA

Um beijo de boa noite. “Aproveite!” Ali da sala, ele consegue


escutar Gabi se ajeitando no colchão. E conforme o dia perde o
brilho, vazando suas cores pelas nuvens e gases atmosféricos, o
apartamento expande suas sombras. As ruas vazias e três bestas
negras de metal, roncando eletricidade e petróleo, vigiando com
nove olhos brilhantes, acordam com um sinal cronológico.
Unidade Terceira, Unidade Segunda, Unidade Primeira. A cidade
se cala.

***

Ninguém nunca soube o nome daquele senhor que se


apresentou no laboratório da Socoma na cidade industrial. E
aqueles que souberam, o esqueceram na sua irrelevância. Quem o
recebeu foi a jovem assistente de Katerina, aquela tida como
afilhada, cujo nome já constava no testamento.
Agda julgou se tratar de um fornecedor e estranhou como
aparecera sem agendar um horário. Ou talvez tivesse agendado e
fora vítima de um descuido de sua parte. Era um senhor na faixa
dos sessenta anos, vestido com uma camisa ocre e terno escuro de
um linho grosseiro. Ele tinha uma fala calma, como alguém que já
falou demais e cansou da própria voz, um acadêmico aposentado.
Quando ela escutou o que ele tinha a dizer, sete emoções a
bombardearam ao mesmo tempo: empolgação, otimismo,
confusão, insegurança, desconfiança, alívio e medo. Antes de
amolar Katerina com especulações, Agda mandou chamar Natália
Casablanca para apurar os detalhes daquele relato. A agente
conduziu o interrogatório durante quase uma hora e, afinal, se
convenceu de que estavam prestes a viver um momento histórico.
Mas quando colocaram o homem aos ouvidos de Katerina, ela
esboçou uma micro expressão de surpresa e pediu com ares céticos
“me mostra.” Sua postura confiante, desafiando a idade de seu
corpo, a pele não tão firme conservando a beleza. Os dedos
repletos de joias, materializando a força da portadora na dureza de
diamantes. O homem poderia até lhe pedir desculpas pelo simples
inconveniente de lhe causar dúvidas. Mas não porque a temia de
alguma forma. Pelo contrário, ele sentia uma simpatia desmedida,
como se ela fosse uma amiga há muito tempo esquecida. E a pré

316
DIAS FERPELLA

concepção errônea de uma tirania gélida daqueles que encabeçam


grandes corporações, se desfez no tempo de um sorriso. Ela foi a
única a se lembrar do seu nome, como se fosse o som mais
importante do seu vocabulário.
Naquele mesmo dia, três horas após o limiar, foi realizada uma
excursão de cinco carros rumo ao bairro histórico. Katerina ia no
mesmo carro que Casablanca. Por sua vez, a agente notou a
estranha ausência de Agda. Ela, que vivia no encalço da madrinha,
aprendendo, absorvendo, se esforçando para agradá-la e
impressioná-la. Meio distraída, meio desleixada, mas com boas
intenções, combatendo sua própria natureza juvenil para se tornar
adulta aos vinte e três anos de idade.
- Ela disse que não se sente confortável com a ideia de cruzar o
limiar, mesmo em circunstâncias como essa. - Katerina explicou.
- Isso é bom. Toda essa cobertura dos ataques mantém a
movimentação civil limitada. Faz anos que a gente não apanha um
Insone. Antigamente a gente via as janelas todas acesas. Hoje você
vai ver como está. Acho que é menos de um quinto.
- É… Se antes tinham medo de sair, agora também estão com
medo de ficar em casa. Tivemos que triplicar a produção de Sono
nos últimos dois anos pra conseguir atender a demanda do
mercado.
- Estão dizendo que não atacam quem está dormindo.
Katerina apenas sorriu de forma enigmática.
- Você também acha isso?
- Minhas meninas acham. E por mim, podem continuar
achando. Principalmente a mais velha, que nunca dormia antes de
meia noite. Agora ela não quer arriscar. Às sete e meia, ela e Pena
tomam uma dose de Sono. E as amigas delas todas tomam, ao que
parece.
A rodovia estava completamente deserta, como um largo rio
petrificado, uma rota usada apenas pelo vento. A comitiva pegou a
próxima saída, visando o bairro histórico e o gigante que ali
reinava com as entranhas recheadas de brochuras e fascículos.

***

317
NICTOFOBIA

Seguindo o conselho de Lucian, Nico venceu a tentação de ligar


seu abajur. Ao invés disso, ligou o televisor com dupla intenção:
iluminar e distrair. Olhou o relógio e imaginou se o irmão estava
bem. Vinte minutos já haviam se passado. O Sol há muito
desapareceu e se revelam os cosmos que sustentam o planeta, os
bastidores por trás de um canvas azul perpétuo.
Lucian insistia com os olhos e um sorriso aventureiro: “Meia
hora, Nico. A gente dá uma volta no quarteirão só, não mais longe
que isso.”
Na tela, a obra biográfica The Way She Moves, com a linda e
premiada Yael Thomas no papel de Dominique Koya. Nico se
perguntou se alguém mais estaria rompendo o limiar só pra ver o
final do filme. Era surpreendente a programação da TV continuar
noite adentro. O filme narrava a história do primeiro espetáculo
solo da bailarina, como ela fora descoberta após Punta del Sueño e
os ensaios de Dom, enquanto lutava contra o estereótipo de sua
beleza física. A icônica máscara que ela somou ao figurino. Era um
dos filmes preferidos de Gabi e Nico havia assistido apenas uma
vez. Ou era aquele documentário?
Tateando o caminho até a cozinha, ele chegou à geladeira. A
luz mutável das cenas de dança passava pela porta, trazendo uma
melodia dramática.
- De novo! E de novo! Gira, levanta, sete, oito.
- Koya! O que foi isso? - a música para.
- Eu… eu não sei. Desculpe, eu me deixei levar, foi um
movimento involuntário.
- Maurice, espere um pouco, não te parece mais fluido se ela
virar para a esquerda e jogar para cá?
A luz da geladeira despertou com o abrir da porta, revelando
para Nico uma fatia de torta.
Antes que ele percebesse, mais vinte minutos se passaram entre
garfadas e cenas. O prazo se esgotara, os reinos de Orfeu
convidam a mente ao esquecimento. Se você pudesse ao menos
confiar...
Sem grandes esperanças de resposta, Nico discou o número do
irmão no telefone e aguardou até o último toque.

318
DIAS FERPELLA

- Klaus, ela é apenas uma criança. Você não quer causar


nenhum dano permanente, quer? Toda essa atenção pode
traumatizá-la.
- Ela não pode ser criança para sempre. Quem vai para os
holofotes vai para ser vista.
- Apenas tenha cuidado, por favor.
Três batidinhas com as unhas. Nico atenta os ouvidos. Ele
abaixa o volume do filme até que sobre apenas imagem. É mais
fácil se convencer que foi um som da televisão, tão mais fácil de
explicar… Tec, tec, tec, ao final do corredor que foge da sala. O
coração de Nico dispara e, por um momento, se mover parece
impossível.
- Gabi?
O corredor transborda escuridão, mas ele sabe que ali no outro
extremo a porta do quarto e do banheiro se escondem. Sem
hesitar, ele se levanta e vai até lá, verificar sua certeza de que não
há nada de inesperado naqueles cômodos. Porém, ao dar as costas,
ele escuta claramente: tec, tec, tec. Ele põe a mão na maçaneta do
banheiro e cogita por um instante. O que poderia ser? O seu ato
carrega uma ousadia maligna ou inofensiva e, se ele pensar
demais, aquilo irá dominá-lo. Nico abre a porta.
O espelho, a pia, o armário, o chuveiro, as portas de vidro
fosqueado, o vaso sanitário, a lixeira, o bidê, a janela que exalta as
estrelas. Tudo em silêncio e imóvel no escuro. Ele deixa a porta
aberta ao voltar para a sala.
O cobertor sobre a cama se molda ao volume de Gabi, que
dorme no escuro do quarto. Morros e vales de tecido acomodados
sobre um corpo. Nico é o único acordado na casa e na cidade
inteira e isso subitamente lhe é angustiante. O mundo está vazio e
gelado, não há mais ninguém, não há mais nada. As avenidas são
rotas de vento.
Ele pega o telefone mais uma vez. Na casa de Lucian os pulsos
ecoam, mas não há ninguém para atender. É tão mais fácil se
convencer de que ele já dorme… E Nico já ficou acordado tempo o
suficiente para as coisas ficarem estranhas. Ele queria ver as
estrelas, só por um minuto, e ir para a cama, com a esperança de
estar tudo bem.

319
NICTOFOBIA

As feições delicadas de Yael Thomas são violadas por uma tela


negra. Programação indisponível. Nico cruza a sala até parar
diante da varanda, impedido por portas de vidro. O céu ainda
pode ser o mesmo de trinta anos atrás, quando a luz de estrelas
extintas ainda cruzam a atmosfera e a radiação de supernovas não
terminaram a viagem pelo vazio cósmico. Não há ninguém. É
difícil ver do outro lado, a escuridão briga com a luminosidade
artificial de milhões de pixels que se contrastam numa única
mensagem, Programação indisponível. Nada é revelado aos olhos
destreinados do homem.
Há somente o reflexo, a imagem do próprio homem
enclausurado na contra-forma de um cubo de tijolos, argamassa e
tinta. E ali, no canto, bem no vértice do cubo, alguma coisa
cinzenta ocupa toda a quina, se movendo como uma lesma que se
encolhe para dentro de si mesma.
Nico se vira de uma vez. Os personagens do filme gargalham.
Que filme? Não há mais nada. A tela é escura e a luz não chega
inteira até o teto. Nico pode ouvir aquela coisa respirar
pesadamente e, com muito esforço e concentração, consegue
distinguir uma massa sem forma, como um bolor ou um câncer,
daqueles que crescem nos troncos de árvores após um acidente
nuclear. Mas ao se aproximar, não há nada ali, apenas um truque
para olhos cegos ao breu.
Nico desliza a porta para a direita, rompendo o lacre da noite.
Pela varanda ele vê uma faixa de céu entre seu telhado e o
horizonte de casas. É o mesmo céu que Lucian viu pela primeira
vez, mas não o céu de trinta anos atrás. O ar fresco da noite
esfriava sua pele e contaminava seus pulmões, as árvores do outro
lado da rua acariciam o vento com suas folhas, e esse sutil
chacoalhar soa como mares tranquilos.
Há um movimento próximo ao portão. Mãos pálidas agarram as
grades, puxando-as inutilmente para si. Dali, Nico não consegue
distinguir muito além, mas lhe parece que o homem nada veste.
Ele se vira e cambaleia pela calçada, como se estivesse prestes a
cair, por vezes até se apoiando sobre quatro membros.
- Lucian? É você?
Misturado com a escuridão, o ser reage às palavras, se
aproximando mais uma vez do portão.

320
DIAS FERPELLA

“Só pode ser ele. Quem mais viria aqui a essa hora?”
Nico corre para o interfone e abre o portão. Em seguida abre a
porta e espera pelo irmão, ou qualquer sinal de que esteja subindo
as escadas. Mas não há ninguém. Programação indisponível
passando pela porta escancarada e iluminando precariamente o
corredor.
Quatro lances de escadas, guiado pelo corrimão e o
automatismo do percurso. Nico cruza o jardim interno para
encontrar o portão encostado, completamente intocado. Ele
chama pelo irmão ausente.
E antes que possa ouvir a resposta ou a falta dela, rasgando a
noite, um ganido horrendo se arrasta lamentoso, ecoando até o
distante mundo onírico, mas originado perto demais dali:
borracha queimando no asfalto, uma freada brusca. Ao sair pelo
portão, o céu despeja toda a infinitude nos ombros despreparados
de Nico. O portão o chama de volta e ele não pode ignorar,
dividindo suas prioridades num dilema sádico.
Adrenalina inunda suas artérias, o mesmo sangue em dois
indivíduos, quando a pólvora explode com o puxar de um gatilho.
Um absurdo de decibéis se propaga e repropaga nas ruas,
agredindo tímpanos despertos e adormecidos. Lucian, no carro,
batimentos caóticos, constata inquieto: um tiro! A trezentos e dez
metros dali, seu irmão, na rua, batimentos caóticos, constata em
desespero: por hábito, fechou o portão atrás de si, sem levar em
conta que estava sem as chaves. Um segundo disparo. Nico
chacoalha as grades inutilmente, olha para cima, buscando uma
rota vertical. Um terceiro disparo e um grito indistinguível.
Socoma. Mas em que atiravam? O que mais havia ali?
Seus olhos já aceitam melhor a escuridão, o que o permite
captar um movimento em sua visão periférica.
- Lucian! Estou aqui. - ele persegue fantasmas, se sentindo
como um homem louco cujo bom senso há muito abandonou. Pois
está escuro demais para confiar em formas dúbias e caçar sutilezas
cinéticas, Mas ainda que não seja Lucian, pode ser um velho
doente e senil, com a idade de um bisavô e o discernimento de um
filhote, que falhou ao testar o caminho de casa.

321
NICTOFOBIA

Atrás de Nico, faróis se lançam por trás da esquina. Pontos de


luz se movimentam e se intensificam. Lanternas, vindo nesta
direção. Socoma. Está tudo acabado.
Mas ainda não, pois precisam pegá-lo primeiro.

***

- Anda logo com isso. Vamos perder os outros.


Alex agarra os dedos de Lucian. Falanges distais, falanges
mediais. Pressão, osso contra osso. O criminoso destrava o maxilar
e Alex tem uma janela de um segundo para enfiar o comprimido
entre seus dentes. Ele força seu queixo, obrigando-o a morder. E
toda a resistência acaba.
- Pronto. Já era! - Alex comemora. Seus colegas festejam de
volta, alegres com a conquista.
- O que eu falei? O que eu falei?! - Amanda empolgada soca o
ar. Marlon dá um empurrão amigável em seu ombro direito,
gargalhando.
- Mas precisava de tanto, Alex? - Andrade provoca sentado atrás
do volante enquanto Amanda e Andrade dão a volta para entrar no
veículo.
- O desgraçado quase torceu meu pulso tentando escapar… Da
próxima eu dirijo e você lida com eles, já que você é tão gentil e
profissional.
Ele ajeita Lucian no meio do banco traseiro, sentado entre ele e
Marlon. E a viagem se inicia com as instruções de Amanda. Há um
gosto forte de alívio no ar, missão cumprida. Ela o capturou uma
vez e o capturou de novo.
- Quer dizer então que é o seu “ratinho”, Feller. Você acha que
ainda vale alguma coisa? - Alex quebra o silêncio.
- É óbvio que o ideal era pegar todos eles. Ou pelo menos um
“rato” novo. Mas ter um reincidente também ajuda. Isso vai
encerrar o processo num segundo e sem dúvida prova eficiência.
- Ou eles entendem que ele é o único e vão achar que três
bastam. - Marlon opina, pessimista, sobre o destino das patrulhas.
- Marlon, para com isso. Todo mundo aqui viu que tem mais. E
se nossa palavra não vale, tem a bagunça que eles fizeram lá atrás.
Vai ser difícil alguém engolir que foi só uma pessoa.

322
DIAS FERPELLA

- A noite não acabou, pessoal. - Andrade crava com a sabedoria


de um veterano. Todos ficam em silêncio, acompanhados de suas
próprias reflexões. Ainda podem pegar o resto do grupo. É a
primeira hora do expediente e já conseguiram uma captura.
E então um volume arredondado reflete o farol da viatura. Um
movimento, como um gato, cruza a rua e se esconde. Distinguindo
o veículo abandonado, Andrade abaixa a intensidade dos faróis e
reduz a marcha, passando lentamente, analisando o cenário.
- Que foi?
Alex e Marlon se ajeitam no banco para ter uma visão melhor.
O carro de Lucian está sitiado por duas criaturas, que agora
buscam refúgio atrás da lataria do veículo, se escondendo da
luminosidade dos faróis.
- Que cara de sorte… Minha nossa, que sorte… - Alex sussurra
para si mesmo, grato por não ter um corpo dilacerado para
recolher naquela noite. Ele olha para Lucian de soslaio,
desprezando a inconsequência do rapaz.
- Certo… Espanta essa coisa daí e vamos... - Amanda ordena em
tom de sugestão e Andrade responde ligando os faróis altos. As
criaturas, como prevendo a ação, já haviam partido para as
sombras de becos e marquises. O carro acelera.
- Próxima à direita e vai até o final. - Amanda instrui, com o
endereço de Lucian fresco na memória.
- Falta muito Amanda? A gente não deveria pedir pra outra
unidade patrulhar a área enquanto isso?
- Eu concordo, temos que aproveitar que eles estão na rua, se é
que já não se enfiaram em outro buraco.
- Cinco minutos. - ela declara sem preocupação na voz.
- Vocês querem mesmo abrir mão dos méritos? Estou dirigindo
o mais rápido que posso.
E os faróis revelam metro após metro, devorando o asfalto
perante os pneus. E como num lampejo divino de percepção
aguçada, Andrade capta o reflexo ameaçador que se ergue à sua
frente. Dentes de aço anseiam por borracha.
- Merda!
E o pé afunda o pedal do freio, sem pudor, travando as rodas
que queimam o piche, riscando duas marcas lineares de quase seis
metros. Amanda se segura no painel para não ser ejetada de seu

323
NICTOFOBIA

assento e se ferir com o cinto de segurança. A inércia não larga o


carro até que seja tarde demais e as rodas dianteiras transpõem o
obstáculo como se ele não existisse.
- O que foi isso? - ela questiona sem disfarçar a irritação.
- A lombada estava ativada! - ele se apressa para sair do carro e
conferir de perto a veracidade da sua declaração. Amanda abre a
porta e vê as estacas erguidas, bem vivas, se projetando além das
fendas na faixa de metal. Ela escuta o som do ar que escapa dos
pneus.
- Não pode ser. Como eles conseguiram ligar essa sucata? Isso
ao menos estava funcionando? - ela questiona o ocorrido enquanto
vai atrás do parceiro.
Andrade, com a lanterna ligada, se afasta do carro, para o outro
lado da rua, onde uma pequena caixa de metal descansa afixada ao
meio fio.
- Então, a forma que isso funcionava: após às dezoito horas,
automaticamente a lombada é ativada, mas esse sensor deveria
captar o sinal da nossa viatura e liberar a passagem com
antecedência.
- Téo, não era pra isso estar funcionando. Nossos carros
provavelmente nem têm mais esse sensor.
- Sim, eles retiraram há uns cinco anos. Reestruturação
Operacional. - Alex se juntou a eles, acompanhado de Marlon.
- Fiquem de olho nos arredores, se foram os “ratos” eles devem
estar observando. - Amanda apontou a possibilidade e os dois
agentes ficaram alertas como cães treinados. O carro estava
emboscado próximo a uma esquina e ali estava o ponto cego do
grupo. Atrás e à frente, se estendendo em ambas as direções, a rua
seguia vazia.
- Téo, você consegue desativar? - Marlon estava esperançoso,
vendo que o veterano havia desparafusado a tampa traseira da
caixa e analisava o interior do mecanismo com sua lanterna.
- Temos que sair daqui. - Amanda constatou para si mesma e se
apressou de volta para o carro. Ela procurou o rádio que deixara
em cima do painel. Não estava lá, Andrade certamente o tinha. O
segundo estava acomodado no porta objetos. A respiração pesada
de Lucian chegava do banco de trás.
- Agente Feller, Primeira Unidade, requisitando extração.

324
DIAS FERPELLA

Ela girou o botão de volume até desligar o rádio, ligando-o


novamente em seguida. Mas nada aconteceu. Um aperto no peito
acompanhou a possibilidade. Então ela abriu o compartimento da
bateria. Mercúrio, cádmio, chumbo. Uma solução oleosa
encontrou seus dedos.
- Merda! Eu sabia! - Amanda soltou o rádio no porta objetos e
correu para avisar os companheiros.
Eles estão por perto, e não são pessoas. Eles criaram uma
emboscada e isolaram o grupo. Agora se aproximavam para
reclamar o prêmio. O cheiro de adrenalina humana, estresse
mental, ansiedade. Medo. Amanda vem com urgência e num quase
sussurro alerta seus colegas: um Aviso, ou melhor, outro Aviso.
Temos que sair daqui, temos que tirar Lucian daqui.
- Vamos ter que arriscar com os pneus furados. Não é longe,
podemos chegar até a casa dele.
- Eles estão aqui!
As lanternas traseiras do carro avermelhavam a penumbra. E
Marlon viu a massa rastejante se destacar do asfalto, se erguendo
com seu corpo disforme de inseto. Em passos silenciosos, visava a
porta escancarada, a presa vulnerável sobre o estofado.
Imediatamente Marlon apontou sua arma para o céu e disparou.
A criatura se assustou com a explosão e saiu de vista. A lanterna
de Alex passou num relance, tentando acompanhá-la, mas nada
captou além de um movimento atrás da lataria, entre as janelas.
Ele se aproximou alguns passos e também disparou para o alto. A
criatura não estava mais lá. Era rápida demais e criava distrações
em sua fuga, como um rabo solto de lagartixa. Mas Marlon ainda
parecia vê-la nas cercanias, ou então era uma segunda. Mais um
tiro de alerta, afugentando o predador.
“Eles estão aqui!” Marlon avisara erguendo sua arma. Nesse
momento Amanda assume um posicionamento estratégico,
correndo alguns passos ao longo da rua para cobrir o ponto cego,
ver além da esquina, a rua perpendicular se alongando para o
distante. E ela vê uma silhueta a meio quarteirão dali. E por seus
movimentos e suas formas, Amanda constata: humano demais
para ser um noturno.
Enquanto Alex executa o segundo disparo da noite, a agente
sinaliza para Andrade, que vem correndo ao seu encontro.

325
NICTOFOBIA

- Tirem Lucian daqui. Peçam extração e esperem na casa dele. -


ela instrui entre o segundo e terceiro tiro.
- Chega! Parem! - Andrade ordena com um grito. Marlon e Alex
correm para junto dos colegas, deixando que os holofotes e faróis
os envolvam. Eles encontram Andrade repetindo as direções de
Amanda, três vezes seguidas para memorizar. Ali os quatro
rapidamente se separam com um plano.
- Não! Podemos fazer essa outra captura depois! - Marlon
protesta.
- Ele está sozinho, e com noturnos por perto! Vamos atrás dele
antes que o vejam.
- Não vamos ficar aqui discutindo. Alex, vem comigo! - Andrade
se vira para o carro, seguido de perto. Mas então Alex se lembra de
algo crucial, negligenciado no calor do momento.
- Espera um pouco. - ele volta e alcança Amanda, deixando o
colega aflito próximo a porta do motorista. Marlon se adianta pela
outra rua, seguindo o rastro do Insone que já sumiu na esquina
oposta. Amanda se demora alguns segundos para escutar o pedido
de Alex.
- O rádio está com Andrade. Vão logo! E Alex, tentem evitar a
proximidade de noturnos, tem alguma coisa errada, eles estão
provocando, estão inquietos. - ela corre para se juntar a Marlon.

***

Por volta das dezesseis horas o telefone tocou. Não muito


depois, Virgílio chegou em casa com Petra após buscá-la da aula
de hipismo. Hector implicava com ela, sempre sugerindo que ela
fedia a cavalo ou que sua cama deveria estar cheia de carrapatos.
“Já viu cavalo cagando?” e levantava suas madeixas presas num
rabo, ao mesmo tempo em que simulava o som de flatulências.
Naquele dia em especial, ele não verbalizou nenhum
comentário quando os dois entraram.
- Casablanca te ligou, disse pra você ligar de volta assim que
chegasse.
Virgílio retornou a ligação, que não durou mais que trinta
segundos. “Eu sei que hoje é sua folga, mas preciso montar uma
patrulha com os melhores agentes.” Ele se sentiu lisonjeado.

326
DIAS FERPELLA

Estava na Socoma há seis anos e pela forma fria que sua mentora
se relacionava no começo, passou a acreditar que nunca receberia
tal reconhecimento.
- Hector, vou ter que trabalhar hoje. Vou ligar pra sua mãe e ver
se ela pode passar a noite aqui com vocês…
- Pai, não precisa, vai ficar muito apertado pra ela chegar aqui
antes da Recolhida.
- E vocês vão ficar aqui sozinhos?
- Eu já tenho catorze anos, não tenho medo de noturnos. -
Hector se exibiu orgulhoso.
- Mas a Petra tem.
- Eu posso dormir no quarto dela, se ela quiser…
Casablanca não dera nenhum detalhe ao telefone. Disse apenas
que aquela noite mudaria tudo. A explicação viria pessoalmente.
“Arquivistas”. Os livros deslocados para fora das estantes.
Virgílio era o mais novo dos agentes que compunham a equipe.
Além de Natália Casablanca, cujo cargo refletia sua experiência, as
outras duas agentes vinham do tempo em que Katerina ainda
tinha pais vivos. Virgílio era o único não inteirado do objetivo
daquela convocação. Casablanca começou depois de quinze
minutos de papo furado sobre filhos, Sono, noturnos, hockey e
acupuntura.
- Temos a seguinte situação: um professor da universidade
reuniu um grupo de estudos sobre a noite. Fascinante, não é
mesmo? - ela zombou. - O que eles queriam era descobrir sobre os
seres noturnos. Até então tudo bem, muitos tentaram e a cada mês
surgem novas teorias, mas nenhum resultado.
- Não me diga que eles descobriram o que são essas coisas. -
Virgílio se antecipou.
- Não, nada mudou. Ninguém faz ideia de onde surgiram e o
que são. Mas o que esse grupo descobriu abre a possibilidade de
acabarmos com os ataques.
- E antes que você assuma o melhor cenário, não, não é uma
forma de derrotá-los. - a colega que dirigia esclareceu. Do banco
do passageiro, Casablanca continuou:
- Essas pessoas foram gentis o bastante, aliás, sensatas o
bastante para procurar Socoma e ela gratificou seus esforços.

327
NICTOFOBIA

- Em outras palavras: comprou a pesquisa das mãos delas. - a


agente ao lado de Virgílio provocou, com a boca cheia de pão de
cenoura.
- Agora nós somos os únicos no mundo capazes de se
comunicar com os seres noturnos. - Casablanca concluiu,
causando surpresa em Virgílio:
- O quê? Como? Decifraram a linguagem deles? Essas coisas
possuem uma linguagem?
- Eu não sei exatamente como, mas na verdade foram eles a
decifrar nossa linguagem. Pelo menos a linguagem escrita. O que
vamos fazer hoje é entregar essa… essa...
- Proposta. - a motorista sugeriu.
- Sim, proposta. Um tratado. E já está tudo praticamente em
andamento. A Socoma teve a sagacidade de escrever os termos em
cima dessa tal “política do Limiar”. As pessoas já estão dormindo
logo depois da Recolhida, pouca coisa vai mudar. A única coisa é
que o Estado vai poder garantir que todos assumam a mesma
postura de dormir cedo.
E Agda se encantava com a destreza de sua madrinha.
Enquanto ela ditava a proposta naquela manhã, as peças se
encaixavam na lógica da jovem. Se adiantando ao resultado
daquela noite, Katerina também ditou uma outra proposta, agora
endereçada ao parlamento. “Caso as coisas ocorram como o
esperado, já quero ter essa carta pronta para envio.” ela justificou
para a afilhada. Nela, se fazia ciente a ocorrência de uma
negociação com as criaturas da noite, um pacto de não-agressão.
- Mas elas podem nos aniquilar facilmente, quando quiserem.
Não é como se fôssemos um adversário à altura. O que elas
ganham com isso? O que temos a oferecer? Aliás, o que você acha
que elas podem pedir em troca?
E Agda, que lutaria em vão para possuir o conceito de noite, se
admirava ao ver Katerina negociar as horas da noite em si, como se
lhe pertencessem e a mais ninguém coubesse aprovar.
E assim a “política do Limiar” virou lei. E os exércitos de várias
nações acumulavam estratégias fracassadas de controle e combate.
As ocorrências cruzavam mais e mais fronteiras e os governos se
convenciam de que a solução estava algemada em ambos os
punhos de Katerina Socoma. A Lei do Limiar, a Socoma e os

328
DIAS FERPELLA

noturnos eram como diferentes pares de patas de um mesmo


inseto, se espalhando como praga insaciável e incontrolável.

***

Nico tinha uma boa distância de vantagem e conseguiu virar a


esquina quase um minuto antes de seus perseguidores. Eles já não
gritavam ordens de contenção.
- Espere, Marlon, deixe ele acreditar que escapou. Apague a
lanterna.
Tudo desapareceu com o clique de um botão, apenas as estrelas
ficaram. Os agentes esperaram por um momento até conseguirem
ao menos distinguir o asfalto sob suas botas. Virando a esquina,
não era possível ver Nico, escondido na distância, mas era fácil
ouvir seus passos apressados ecoando entre janelas e muros.
Amanda e Marlon pisavam com cuidado, propagando o silêncio de
uma marcha rápida.
Nico diminuiu o ritmo e olhou para trás, esperando ver a luz
de seus perseguidores. A escuridão o encarou de volta, se
alongando para além do cruzamento e dizendo que estava tudo
bem. Eles desistiram e esses murmúrios que se confundem com
sua respiração ofegante são apenas um truque do vento.
Ele decidiu dar a volta no quarteirão e se empenhar em
encontrar uma maneira de entrar em casa. Era perturbador o
pensamento de passar a noite em algum beco, ao relento, num
banco de praça, numa cabine pública. Ele não tinha sua dose de
Sono consigo e veria cada hora passando por ele antes do
despertar.
E o frio começava a atacar sua pele exposta. O irmão mais
velho, o primogênito, tentando mostrar coragem diante dos
caçulas. Lucian com sete, Anna com quatro. “Onde está?” Ali em
cima, naquela portinhola de madeira no chalé da casa dos avós.
“Vocês viram?” Não, a Anna foi a primeira a ouvir. Lucian ouviu
depois que ela evidenciou. Mas lá dentro está escuro demais.
Um cachorro acordou atrás das grades de um portão e latia
para Nico, num alerta instintivo de que o vira próximo demais do
seu território. O rapaz se apressava em se afastar dali para não ser
denunciado pela comoção. Mas Amanda já o tinha visto, já sabia

329
NICTOFOBIA

onde ele estava e o seguia de longe. “Talvez ele nos leve pro resto
do grupo” ela sussurrava tão baixo que sua voz não era clara nem
para ouvidos caninos. E talvez o incidente da lombada de espinhos
tenha sido mesmo uma emboscada que não dera certo.
Ironicamente, teria efeitos contrários, Amanda se divertia com a
constatação.
Os pensamentos de Nico, sobre voltar para casa e tentar uma
invasão, foram rapidamente procrastinados ao se aproximar da
esquina seguinte. Não era uma certeza e talvez por isso o intrigou
ainda mais: uma pessoa virara à esquerda. “Sabe quando você não
vê direito, mas vê que alguma coisa mexeu?” Lucian tentava
convencer o irmão a verificar o quartinho no sítio dos avós,
garantindo que havia algo lá dentro. “Onde você vai?” “Vou pegar
uma lanterna.” Mas não há nenhuma lanterna que funcione. O
garoto acendeu então um isqueiro que encontrara na cozinha. Da
portinhola as crianças observavam hipnotizadas por aquela
sensação paralisante do medo, que repele e atrai ao mesmo tempo.
Nico se esquiva de teias de aranha e transpõe uma tralha de
objetos quebrados e cobertos por um manto de poeira. Garras
agridem o piso de madeira ao fundo do quartinho. Tem sim algo
ali, mas Nico já tem catorze anos e se recusa a sentir o medo dos
irmãos. Anna agarrada ao braço de Lucian, gemendo de aflição,
pois irmãos mais velhos são igualmente saborosos para monstros
infantívoros.
- Lucian? Estou aqui. Espere. - mas ao virar a esquina, Nico se
depara apenas com mais escuridão. Ele insiste em chamar pelo
irmão, moderando o volume de sua voz para ser ouvido apenas
pelo homem, ninguém mais. É que Nico não tem certeza alguma
de que seja Lucian, mas precisa verificar se é mesmo apenas um
velho demente e despido ou se é mesmo seu irmão sofrendo de
insanidade noturna. Um fantasma ou apenas um mustelídeo.
O som de um portão de ferro, as dobradiças ganindo com ares
de escárnio. Naquela rua havia um jardim japonês, cercado por
uma grade com barras estreitas, que gatos não são bem vindos. E
ele foi por ali.
Nico segue em passos ligeiros. O portão está entreaberto.
Amanda e Marlon escutam quando a passagem se fecha,
guardando o transgressor entre plantas ornamentais, lagos, pontes

330
DIAS FERPELLA

e quiosques. Ela sorri extasiada e corre para o portão com um


único ato em mente, apenas três movimentos para a vitória. O mar
está calmo na Baía das Valquírias.
A agente saca uma braçadeira de seu bolso, passa pelas grades
do portão e o lacra.
- Pegamos eles!
- Tem outra saída, do lado norte.
- Sim, e é onde vamos estar esperando caso decidam sair por lá.
- Amanda acendeu a lanterna e acenou com a cabeça, sua feição
era toda de satisfação.
Aquela coisa se acomodava num ninho de revistas velhas e
roupas rasgadas. Nico em desvantagem, armado apenas com a
força insuficiente de um adolescente, avançava pelo raio pífio do
círculo revelado pelo isqueiro. Não havia nele o medo da morte,
pois a juventude carrega o estigma de deuses imortais. O medo ali
era o de não morrer, virar o prisioneiro de uma dor perpétua, uma
lesão que deformasse seu corpo e o condenasse a uma vida
limitada. Mas naquele momento, parecia ser tarde demais. Ele
havia entrado no covil e selado o destino de um confronto. Agora a
única coisa sob seu controle era como ele se apresentaria: de
frente, avançando; de costas, fugindo.
O escuro do jardim japonês era mais primal que o escuro do
quartinho: era cru, bruto. Existe algo no escuro da noite que não
há no escuro de um lugar fechado. Algo que maltrata nossos
hábitos diurnos, que nos fala de forma ríspida. Aquele breu
intimidava o homem de uma forma que o menino nunca
experimentara. E em face da mesma incerteza do quartinho, Nico
sentiu suas fundações estremecerem.
O ritmo áspero dos grilos ao redor. Um pio de gelar os ossos
nas trevas lenhosa. E as folhas se mexiam apesar do ar estático.
Naquele momento, Nico pareceu sentir um tapa no peito quando
sua ficha finalmente caiu: ele estava sozinho e era noite. Não havia
mais ninguém, nenhum irmão ou irmã observando da porta. Ele
estava acordado e exposto a todos os perigos da noite que ele
desconhecia. “É para a sua própria segurança.”
- Qual é o problema, mãe? Por que ele tá chorando?
- O Lucian é muito novinho ainda. Ele ficou assustado.
- Então vamos só a gente.

331
NICTOFOBIA

- É melhor deixar pra outro dia. Vamos todos dormir agora.


Nico deu meia volta para sair do jardim e encontrou o portão
emperrado. Mais do que isso, as barras pareciam ter se fundido. A
cicatriz no seu joelho esquerdo pulsou uma vez. Um movimento
no escuro. Não, ele não estava sozinho. Aquela coisa pálida
perambulava por ali.
Nico seguiu pelo caminho, com passos curtos e hesitantes. Ele
arriscou fazer contato:
- Olá? Alguém aí?
Nenhum ruído além da sutil e bilenar trova noturna. Uma
gambá prenhe procura um lugar protegido para ter seus filhotes.
Há um espaço entre o telhado e o forro, uma tábua envelhecida
que cede para o lado com um movimento de focinho.
O caminho das pedras levava até uma ponte em arco que se
erguia sobre um lago de carpas. O som da água abaixo dos passos
de Nico, criaturas escamosas se alimentavam do outro lado da
superfície. E ali, lá na frente, no limite da visibilidade, ele viu
cruzar o caminho um ser horrendo, curvado, disforme, arrastando
seus membros numa alvidez cadavérica. Nico concluiu apavorado:
não era humano.
Instintivamente ele se abaixou, com a ilusão de se apequenar ao
ponto do invisível. O frio era intenso em suas orelhas, seu nariz,
seus dedos. O tecido fino do pijama não fazia esforço algum para
aquecê-lo.
O sangue escorrendo por sua panturrilha e o olhar assustado
dos irmãos. Anna grita e corre para longe da cena. Lucian se
apressa para fechar a porta do quartinho, prevenindo uma nova
investida do que quer que tenha atacado Nico. Uma estrela
desgarrada que habita lares escuros.
Nico ficou ali na ponte, imóvel, não se sabe por quanto tempo.
Cinco minutos, cinquenta minutos, que diferença faz quando o
infinito e a eternidade causam o mesmo desconforto?
A gambá explora a escuridão. Ela encontra uma aranha e a
devora num instante. Já a lagartixa consegue fugir. O cheiro de
mofo não incomoda. Ela se apossa de farrapos, espuma, isopor e
papéis e dá forma a um leito aconchegante para a delicadeza de
recém nascidos. Ali ela habita por dias, saindo a noite para caçar e

332
DIAS FERPELLA

fuçar, depois retornando para seu abrigo, gerando a vida em seu


útero.
Nico escuta um farfalhar na vegetação atrás de si. Ele decide
que não pode ficar nem mais um minuto naquela ponte, se
oferecendo como presa para um ataque frontal ou traseiro.
Avançando, nada se move. Mas Nico não se sente seguro: na
verdade, a sensação de perigo aumenta na calmaria hipócrita da
noite. E quando a ponte fica completamente para trás, Nico escuta
passos velozes sobre a madeira.
Ele olha para sua retaguarda apenas por um reflexo e não vê
muito além de um movimento. Seus instintos berram por cima de
sua razão: CORRA!
A adrenalina dilata suas pupilas ainda mais e à sua frente ele vê
o caminho bifurcar em volta de um canteiro. E pelo caminho da
esquerda uma criatura ameaçadora vem ao seu encontro como um
gato selvagem prestes a atacar. Nico não olha para trás, não olha
para os lados, nenhum pensamento se agarrava a sua cabeça
naquele momento. Ele não percebe que os grilos se calaram e uma
brisa sopra contra seu rosto à maneira de mal presságios.
Amanda e Marlon ainda não viraram a esquina. Nico foi cerca
de trinta segundos mais rápido. Ele encontrou o portão norte do
jardim e o abriu violentamente. Atravessa a rua já sem fôlego e
finalmente olha para trás. Ele não consegue ver, mas sente que
continuam vindo, e o ranger das dobradiças confirmam. Mais um
quarteirão, suas pernas fraquejam, sua garganta está seca, a cabeça
pesa. Eles continuam vindo e jamais perderão seu rastro. Nico foi
marcado e ele vai fugir até o fim dos tempos e, se ele não morrer
nas garras de seres noturnos, morrerá de cansaço.
A gambazinha é surpreendida enquanto amamenta seus cinco
filhotes. Um impulso interior ordena: ataque, morda, brigue, mate.
Mas não deixe ele se aproximar dos bebês. Ela se lança contra o
jovem Nico, o arranha e morde bem ao lado do joelho, cravando a
história de uma cicatriz que o acompanharia por toda a vida.
Girassóis cabisbaixos numa melancolia carente de dia. O escuro
revela o canteiro, mas, estranhamente, não está tão escuro assim.
O dia se compadece e interrompe a noite para salvar o irmão mais
velho. Não é o Sol, tampouco é salvação:

333
NICTOFOBIA

Nico pula do canteiro para atravessar a rua e um clarão se joga


contra ele. A velocidade é exagerada. A força é descomunal. O
quadril se despedaça com o impacto e alguma coisa se rompe ou
sai do lugar. Não há gravidade quando Nico é acertado no ombro
pelo para-brisa que se estilhaça. Seu corpo gira no ar, lançado por
uma potência enfurecida e ele já não sabe onde é céu e onde é
chão. Seu próprio peso atenta à sua vida, construindo o fim da
parábola. Nico tem um vislumbre do asfalto, dois segundos. Ele
estica o braço para aparar a queda sem nem se dar conta do que
faz. Respira fundo, vira o rosto. E sente todo o ar ser expulso com
um grunhido lamentoso quando a solidez negra o acerta,
dilacerando sua mão, quebrando seu braço em três lugares,
deslocando suas juntas e suprimindo cada aspecto de sua
consciência. Ele quica duas vezes e desliza por mais quatro metros
antes de parar completamente.

***

Um gato semi-doméstico se movia na calçada, joelhos


flexionados, postura baixa. Entre as raízes de uma árvore cresciam
flores silvestres e um capim rasteiro. Ali, um grilo cricrilava sem
perceber seu fim.
À direita, o jardim japonês. À esquerda, casas se erguiam
adormecidas à maneira dos guardiões de pedra, mais sombras do
que casas. Algo espreita dos telhados, traído por uma telha solta.
Marlon, atento, ilumina a fonte do ruído: outro gato, refletindo a
luz da lanterna em seus olhos macabros.
- Gatos me deixam inquietos.
- Você tem medo?
- Minha avó dizia que eles gostam de observar pessoas
dormindo, e que sabem se você deixou de dormir algum dia ou
violou o limiar uma vez que seja. E então eles te marcam.
- E aí?
- Eu não sei. Mas da forma que ela contava, boa coisa não era.
- Você tem com o que se preocupar, Marlon?
- Amanda, a gente viola o limiar de três a quatro vezes na
semana!
- Certo. E antes disso, antes da Socoma?

334
DIAS FERPELLA

- Eu era criança. Eu e meus primos fazíamos todo tipo de


bobagem. Depois, a gente vivia na Nyctidromus. Eu entrei pra
Socoma muito devido à proibição de simuladores. Foi um jeito de
continuar acordado sem me meter em encrenca.
Amanda disfarçou um sorriso. Quantas vezes já tinha ouvido
aquele mesmo motivo?
- Eu acho que… Eu sempre gostei de acreditar que entrei pra
Socoma por uma causa maior que meus próprios desejos egoístas.
Eu era uma idealista. “A Socoma mente”, esse tipo de coisa. E a
Socoma já tinha me enganado por muito tempo, até eu conhecer
meu avô e finalmente escutar o outro lado, de uma Socoma
assassina, perigosa, corrupta.
- Então você entrou pra ser uma espiã… - Marlon assumiu.
- Eu gostava da ideia de ser uma espiã, de expôr toda a verdade,
redimir meu avô, honrar minha avó. Eu achava que fazendo parte
da Socoma eu ganharia acesso a todos os segredos sujos. Hoje em
dia, Marlon, eu olho pra trás e vejo que eu me tornei uma agente
só mesmo pra ver a noite. Mas que droga… É sempre a mesma
coisa, não é? O fascínio pela noite.
- Nós somos exatamente como eles… Os “ratos”, os Insones,
Lucian… Nossos novos amigos ali dentro. - ele apontou para o
jardim japonês com o polegar. Ele soltou um longo suspiro,
tomando coragem para se abrir um pouco mais. Sem perder
tempo, para não perder o assunto, continuou:
- E sinceramente, eu acho que nada disso vai adiantar. Se o
conselho quiser encerrar o monitoramento urbano, ele vai
encerrar independente de uma captura ou duas. Ou mesmo que a
gente volte com uma dúzia até o fim da ronda. Eles já lançaram a
Clausura ao “Tártaro”. Isso diz muito sobre a intenção deles.
- Por isso que temos que tirar essa decisão das mãos deles,
Marlon. Tem que cair pra cima da mídia, pra cima do povo. A
pressão tem que ser tão grande que eles não vejam outra opção se
não a de agradar a opinião pública.
- Eu sei que vou parecer pouco profissional ao dizer isso… Mas
não seria melhor então deixar isso pra lá?
- Isso o quê? Eles? - Amanda apontou para dentro do jardim
gradeado, achando graça. - Tem razão… Nada profissional.

335
NICTOFOBIA

- Pense a respeito. Se a diretoria decidir focar só nos


laboratórios e na produção de novos compostos, vai acabar com
nosso reinado. E aí? Vamos tomar Sono todas as noites,
respeitando o limiar? É isso que os agentes aposentados fazem?
Você se vê fazendo isso, Feller? Foi isso que fizemos quando os
simuladores fecharam?
Amanda diminuiu o passo, carregando o peso que se somou
àquelas palavras. Qual era o propósito daquilo tudo, afinal? A
Socoma não ligava para a segurança da população. Ela era uma
corporação e visava o lucro, apenas o lucro. “Um gasto
desnecessário…”
- Somos rebeldes acomodados… - ela soltou o prelúdio de uma
epifania.
- Já pensou, se esse movimento dos “ratos” crescesse cada vez
mais, até chegar ao ponto em que a Lei do Limiar precisasse ser
suspensa porque seria impossível controlar tanta gente?
- Uma sociedade impossível de se controlar… Imagine só, o
quão bom seria. - Amanda divagava com sinceridade.
Os dois viraram a esquina sem saber que era tarde demais. “O
que foi isso?” Pois um estrondo irrompeu de algum lugar ali perto.
Uma besta de metal perece.
Eles aguardavam ao lado do portão.
- E então, quer entrar e acabar com a farra toda?
- Não seria melhor pedir reforços primeiro? - Marlon propôs.
- Seria o ideal. Mas vamos ter que fazer isso sozinhos. Talvez
deixá-los dormindo aqui dentro e depois…
Ele tirou o rádio da cintura, para a surpresa de Amanda.
- Eu posso requisitar. O que foi? - ele reparou no semblante
preocupado dela.
Aquilo significava que Alex e Andrade não tinham
comunicação. Mas Amanda não viu um problema naquilo. A única
mudança nos planos era que a outra dupla esperaria na casa de
Lucian e ela e Marlon pediriam a extração.
- Está bem. Pode requisitar, por favor.
A Unidade Terceira atendeu o chamado e se pôs a caminho. A
dupla decidiu esperar ao invés de agir de imediato. Os
delinquentes não deviam estar com a menor pressa, não iam a
lugar nenhum. Talvez ficassem naquelas imediações até o

336
DIAS FERPELLA

despertar e nem se dariam conta de que já estavam enclausurados


com dois guardas na saída.
Alguns minutos depois Marlon chamou a atenção para a
claridade que subia aos céus, detrás de dois quarteirões. A luz
vermelha-alaranjada dissipava uma fumaça densa que enegrecia os
astros lá em cima. Fogo.
Os pneus estouraram, ferindo a paz sonora da cidade.
- O que foi isso? O que esses vândalos estão fazendo? - Amanda
acusou os Insones.
- Estão queimando alguma coisa. E explodindo rojões, eu acho.
Mas olha como está claro ali! Melhor a gente dar uma olhada, não
acha?
Amanda tirou outra braçadeira de seu bolso e travou o segundo
portão. Por um momento ela pensou que aquele incêndio e
explosões poderiam ser mais tramóias de noturnos. Aquela noite
começara mais estranha do que todas as noites de sua carreira.
E então, três estouros rápidos. “Tiros? Isso foram tiros?”
Os agentes já haviam abandonado o plano de captura e
correram para o acidente. Insones portando armas, entrando em
conflito com noturnos. Amanda pensava no pior, ela temia viver
sua própria versão dos Sete do Memorial. A maioria dos agentes
eram escalados para a patrulha urbana ansiosos por um mínimo de
ação que fosse. Feller não era exceção, mas agora torcia para não
receber seus desejos em excesso. As labaredas dançavam eufóricas
com o combustível no tanque.
- Marlon, chame um veículo de emergência.
Ele usou o rádio sem vacilar, ao mesmo tempo em que Amanda
observava a cena com mais cuidado. Era um carro da Socoma,
Unidade Segunda e um corpo carbonizado se fundia na fornalha
caótica pós-moderna. Ela imediatamente ligou os tiros aos de seus
colegas, afastando noturnos ou intimidando Insones. Que seja o
segundo caso, ela pediu mentalmente. Que o carro não tenha sido
abatido por aquelas incógnitas da noite.
Ela anunciou para Marlon em tom de urgência, como se fosse
possível mudar o que acontecera.
- Onde estão os outros? Cadê o resto da unidade?
Amanda não respondeu, pois fazia nova descoberta junto ao
cenário de destruição modelado num espectro laranja-incêndio.

337
NICTOFOBIA

Cristais de vidro salpicados no asfalto, capturando a luz como


estrelas mortas. A vitrine do supermercado ainda gotejava da
moldura. Amanda logo supôs: os agentes invadiram o
estabelecimento, motivados por alguma emergência.
Um brilho em sua visão periférica, se agitando e piscando
copiosamente. Era Marlon que sinalizava com sua lanterna. Ele
estava a pouco mais de cem metros de distância, agachado e
dizendo algo ao rádio. Havia algo chamativo aos seus pés: um
pacote, uma mala, algum objeto quebrado. E a lanterna de
Amanda lhe mostrou as marcas escuras de sangue, guiando seus
passos com indiferença. Era uma pessoa. E pelas roupas, era fácil
declarar que era o suspeito que eles vinham perseguindo.
Amanda não conseguiu evitar uma careta ao ver os ferimentos
de Nico. Ela e Marlon trabalharam em conjunto para estancar o
sangue até a última viatura em atividade chegar. Se antes ela
tentava buscar um sentido na cena que ali jazia, agora ela nada
mais pensava além de estabilizar aquela vida que tão rapidamente
desistia de existir.
Quando chegaram à sede da Socoma e entregaram o ferido aos
paramédicos, o gosto que Amanda sentiu em nada se assemelhava
ao gosto sofisticado da vitória.

338
IV

O
horizonte subia cada vez mais, impulsionado por um giro
espetacular. E no outro extremo, outro horizonte - outro
lado do mesmo horizonte - despencava reagindo à mesma
força.
Para eles, no entanto, não era a terra que subia, era o Sol que
afundava. E a isso chamaram ‘occasum’, descida de um astro, cair,
morrer, findar.
“Nox!” eles gritam confusos com as trevas que se repetem. É o
mundo que se acaba, várias vezes, de novo e de novo: e eles se
abrigam nos braços uns dos outros, temendo tudo que não podem
ver. Noctes.
E enquanto a luz solar se esvai, gases atmosféricos refletem
diferentes cores. Uma estrela solitária é notada, um brilho estático,
o mais poderoso depois do Sol e da Lua. Estrela da tarde e Estrela
d’alva. Um admirador registra, não são duas estrelas distintas e
não é uma estrela: é a deusa do Amor e do Belo. Vênus.
Ela testemunha a vida terráquea transitar. Por centenas de
bilhões de anos ela observou criaturas surgirem e se extinguirem
na inegável influência da luz do dia. O ar começa a esfriar, e
aquele globo ardente não mais ofusca. Uns se recolhem com ele,
pois não há mais como enxergar; outros, escutam um chamado
silencioso: regozijem-se que já está acontecendo, aí está, ela já
vem. “Nox!” eles gritam.

***

Era um livro de vinte e duas páginas, capa dura, edição


comemorativa com prefácio da filha do autor e uma belíssima
ilustração na capa. Um conceito representado por uma única
palavra gerou meses de polêmica na época de sua publicação e
quase o levou a ser listado como literatura proibida.
Lavínia ganhou de seu marido quando se descobriu grávida pela
terceira vez.

339
NICTOFOBIA

- Eu tinha esse livro! Ganhei de aniversário da minha avó


quando fiz doze anos. Que lindo! Eu não sei o que aconteceu com
ele… Até queria reler uns tempos atrás mas não o achei. Escuta só:
[...]
Ela leu algumas páginas em voz alta, se preenchendo ao som
das palavras e com uma mão sobre seu útero. Dessa vez era uma
menina, a jovem mãe profetizou.
Lavínia lia o livro para seu segundo filho, mesmo que aqueles
versos fossem maduros demais. Mas ele gostava do som das rimas
e de vez em quando pedia para a mãe repetir as páginas à
tardinha. A garota, o deserto, a estrela. E a criança no seu colo que
pergunta o que é uma estrela.
Faziam três anos desde que ela levara o mais velho pra ver a
noite de cima do telhado. Uma memória que ele jamais esqueceria.
E para aquela doce criança de seu ventre que pergunta o que é
uma estrela, a mesma experiência é planejada. “Vou te mostrar.” E
quando o pai adormece e o filho mais velho aguarda no quarto, o
mais novo hesita.
- Mãe… o que vai acontecer?
- O Sol vai dormir e as estrelas vão aparecer.
- É mais de uma? São quantas?
- São muitas! Nem dá pra contar. Você vai ver!
- Eu acho que eu não quero ir…
Gotículas amarelas entre rabiscos ocre. Na camada mais
profunda existem tons de vermelho. Inúmeras criaturas
desconhecidas. O medo toma o pequeno coração ingênuo pois não
há mãe no mundo capaz de vencer todas elas. Algo sobe as escadas
do sonho de Giulia e seus pais esperam derrotados. Agora seu
irmão está numa mesa de cirurgia enquanto ela é autuada num
escritório do primeiro andar.
E Nico, de sua cama, se preocupa com a demora da mãe. Atrás
da porta do outro quarto, ela acalenta o seu irmãozinho assustado.
Ela o tem em seus braços, embalando-o com uma canção
tranquila. Ela gesticula para Nico, apontando com a cabeça o
frasco de Sono sobre o criado mudo. A luz do dia escorre
queimando pela parede. Lavínia coloca um comprimido entre os
lábios de sua criança. Suas bochechas já estão secas quando
adormece.

340
DIAS FERPELLA

“Por que ele tá chorando mãe?” Porque ninguém poderá


protegê-lo além dele mesmo. Que o Sol uma hora se põe e não
atende aos nossos apelos. E a Lua nem sempre é cheia. “Cheia de
quê, tia?” a pequena Leonora faz todos rirem.
Diante dele há uma pintura abstrata na parede. As gotículas
amarelas convergem para um ponto do segundo quadrante. Tem
uma mancha marrom projetando espinhos de um cacto. E
emoldurado por pinceladas negras de um pincel gasto, uma duna
amansa a composição com grãos de areia enferrujada.
O sofá que o acolhe é coberto por um tecido cinzento e Lucian
lamenta ter que deixá-lo quando chamam seu nome.
- Lucian? Pode vir comigo. - uma senhora alta e elegante o
convoca de maneira cortês. Ele a segue pelo corredor de
porcelanato escuro e o sapato dela bate num compasso autoritário
e objetivo. Era como se ela repreendesse Lucian com o som de seu
salto, levando a criança para a sala da diretora da escola. Você está
ferrado e não há mãe no mundo capaz de protegê-lo. Giulia fora
junto com Francis para a ala médica, ao menos foi o que disseram
para Lucian. Ele dera seu depoimento diante de promessas de
respostas. “Quando a gente terminar aqui eu te informo melhor.”
Alex e Olívia em alguma outra sala, em algum outro andar.
Sim, foi ele. Ele quebrou o pacto e apenas ele. Ele se apossou da
arma do agente quando teve a chance e a usou contra um noturno.
Um ato de agressão. Um ser do dia ataca um ser da noite, durante
a noite que não lhe pertence. Mas ele se apresentou como culpado,
assumindo a responsabilidade e disposto a reparar a grande merda
que fez. Ele delatou o resto de seu grupo e acompanhou o agente
até o local. A empreitada gerou frutos, pois uma segunda captura
ocorrera. E ele trabalhou ao lado do agente para trazê-la até a
sede. Tudo isso deve melhorar a situação, não?
Eles pegaram o elevador.
- Que presepada, hein? - a senhora falou como se falasse de fato
com uma criança travessa. Um sorriso compreensivo no rosto.
- Eu sinto muito. - Lucian adotou o papel infantil e sua voz saiu
num tom vitimizado, quase falso.
O elevador subia do terceiro andar para o vigésimo segundo.
- O que vai acontecer agora?

341
NICTOFOBIA

- Preciso pegar um documento no Tártaro pra você. Quero


dizer, lá em cima nos laboratórios. Ele tem as instruções para se
comunicar com os Arquivistas. Depois uma viatura vai te levar até
a Biblioteca Nacional.
- E como fica o meu processo?
Ela não respondeu. O silêncio constrangedor ganhou voz por
boa parte da subida.
- Vão me levar pra casa depois? - Lucian insistiu.
- Uma coisa de cada vez, Lucian. Primeiro o pacto, ok?
Ele se intimidou com a mudança de tom dela e aderiu ao
silêncio até as portas se abrirem. O andar estava escuro e com a
luz do elevador, Lucian conseguia ver uma porta de vidro mais
adiante.
A agente acendeu as luzes. Do lado de lá da porta de vidro, uma
grande mesa repousava junto com menos cadeiras do que
deveriam haver. Na parede do fundo, um buraco retangular, onde
anteriormente figurava uma tomada, agora exibia apenas fios
pendurados e um suporte de monitor inutilizado como
companhia, sem monitor algum para suportar. Lucian a seguiu
através da porta, incerto da necessidade, pois ela se adiantou sem
se preocupar com a distância entre eles. Tirou uma chave dentre
seus dedos como um truque de mágica e destrancou uma porta na
parede oposta: parecia um antigo escritório, agora abrigo de caixas
de papelão.
Ela vasculhava as gavetas de uma escrivaninha, folheando o
conteúdo e retirando alguns cadernos de registros. Ao perceber
Lucian observando timidamente pela porta, sentiu a necessidade
de justificar a bagunça:
- Ano que vem todos esses andares estarão totalmente
operantes de novo. Estamos ainda no processo de transição. Mas
está aqui em algum lugar, só um momentinho…
Ela tirou uma pasta do meio de uma pilha de papéis e verificou
o conteúdo rapidamente.
- Sim, é isso mesmo. Quem diria… Aqui, leia. - uma única folha
de papel amarelado foi entregue para Lucian. Na pasta do estudo
comprado por Katerina estava também um relato resumido de
Virgílio Douvan, pai de Hector, avô de Ivan, bisavô de Ronie,

342
DIAS FERPELLA

trisavô de Leonora. O restabelecimento do Pacto após o incidente


do Memorial.
A agente aguardou pacientemente, folheando o estudo
histórico envelhecido por fungos e traças, enquanto Lucian lia o
breve documento.
Começava com uma descrição do que chamavam de
“Arquivistas”. Em seguida era orientada a forma de estabelecer
uma comunicação. E depois um registro de como foram
conduzidas as negociações, se é que assim poderiam ser
denominadas as imposições dos termos.
- Isso aqui é sério? Tudo isso? É exatamente assim que vai ser? -
Lucian sentiu um gosto amargo contrair todo seu rosto.
- Não se preocupe, meu bem. Isso foi naquela ocasião. Hoje são
tempos diferentes, a situação é outra… Isso é apenas um guia, não
um manual. Vocês vão entrar num acordo, tenho certeza. - a
agente tomou o papel da mão dele com descaso, pouco ligando
para a idade avançada das fibras. As duas pessoas que importavam
já tinham tido acesso ao documento naquela noite. E a primeira
escreveria sua própria experiência com os Arquivistas para
atualizar as instruções, se fosse mesmo necessário.
A folha foi para a pasta, a pasta para a gaveta sob uma pilha de
outros papéis, atrás de uma porta trancada no Tártaro. As luzes
apagadas, o quarto esquecido. E aquelas informações foram
deixadas de volta na ignorância, esperançosa de um dia, que talvez
nunca chegasse, em que encontraria as mãos e os olhos de
Amanda.
Junto com Marlon ela havia relatado as condições em que
encontraram Nico. Havia fortes suspeitas de que o corpo
carbonizado, no interior do veículo da Segunda Unidade, pudesse
ser do agente Giovani Freitas, pois a placa de identificação do seu
uniforme fora encontrada entre as cinzas. “Algum rato pode ter
vestido as roupas dele, ou ele mesmo pode ter deixado no carro. Só
teremos a confirmação depois de alguns exames de perícia.”
Mas os agentes não se iludiam: eles haviam perdido um colega.
O paradeiro dos outros três ainda era desconhecido, e poderiam
estar incomunicáveis. A Unidade Terceira e um veículo
emergencial voltaram à cena para controlar o incêndio e recuperar

343
NICTOFOBIA

o corpo. “Estão vendo ali? Noturnos. Fiquem de olho caso eles se


aproximem demais.”
As luzes do supermercado do outro lado da rua estavam acesas.
Amanda garantiu que não estava assim no momento em que
deixara o local com a Unidade Terceira. O estabelecimento foi
verificado: estava completamente vazio. O piso atestava a
passagem de feridos por ali.
“Eles vão dar um jeito de voltar ou pedir ajuda.” Mas de volta à
sede, Feller não se conformava com a passividade da operação.
- Eu tenho também dois agentes da minha unidade lá fora,
incomunicáveis: Andrade e Villares. É possível que estejam
aguardando extração no endereço do suspeito.
- Amanda, a gente vai mandar uma viatura. Concentra nos
formulários dos dois veículos avariados e das duas capturas. Você
disse que sua Unidade perdeu um pneu?
- Quatro. Quatro pneus. E a vítima do atropelamento, como
está? Tem notícias?
- Não está nada bem… Deixe a ficha dele por último, até lá
talvez venha uma resposta da ala médica. De repente você nem
precisa preencher nada.
E a cada minuto que Amanda passava envolvida com
burocracia, sua ansiedade aumentava. Que a equipe da Unidade
Terceira fosse sem ela, então. Havia um agente ferido.
- … Gravemente ferido. Eles encontraram panos encharcados de
sangue dentro do supermercado.
- Não podemos ir ainda. Temos que esperar toda a equipe
relatar o ocorrido.
- Ah, me poupe… Vamos eu e você e mais dois ociosos. Pega
alguém da Operacional.
- Vou verificar se podemos deixar a sede com alterações na
equipe designada.
Demorou tempo o suficiente para que Amanda assinasse seu
último documento exigido. Ela guiou a viatura até a casa de Lucian
e interfonou algumas vezes, sem resposta. Dirigindo pelo bairro
ela deu falta do carro do transgressor e assumiu que seus colegas
haviam desistido de esperar e resolveram agir.
“A essa altura já devem ter voltado pra Socoma.” era a
esperança de Amanda falando através dela.

344
DIAS FERPELLA

- Então vamos pra lá também, minha equipe deve ter terminado


a papelada e precisamos voltar ao trabalho.
- Você está falando sério? E a Unidade dois? Foda-se?
- A gente não pode sair procurando por aí sem um pedido de
extração. Não somos autorizados.
- Tem alguém ferido! Quem liga pra protocolo? - ela se alterava,
impotente.
- Amanda, também estamos preocupados. Mas não podemos
agir assim, sem se importar com as ordens que nos foram dadas. O
máximo que podemos fazer é voltar lentamente, procurando pelo
caminho.
Ela se calou, revoltada com o descaso e preocupada com os seus
colegas. Os outros agentes da Unidade Terceira compartilhavam
do segundo sentimento, mas o primeiro era apaziguado num
conformismo triste. “É assim que as coisas são e não podemos
fazer nada além de acatar.”
Em dois momentos distintos, o grupo se exaltou na impressão
de ter encontrado os agentes perdidos. Num deles, Amanda
chegou a sair do carro para verificar. Mas eram apenas noturnos
vagando desinteressados pelas ruas.
Isso é inútil, ela amaldiçoou. Eles nunca vão estar nessa área.
Que diferença faz se gastarmos combustível aqui ou lá? Quem
saberia? E por que eles achariam ruim?
“Quem são ‘eles’, Leonora?” Lucian se irritava com a abstração.
São ao menos pessoas? São mesmo alguém? Ou são titereiros
conceituais a manusear os cordões de personagens secundários em
delírios de poder?
Num terceiro momento, uma figura vestindo roupas negras
irrompe na frente do carro, acenando os braços vigorosamente. Ela
traz sangue úmido em suas roupas, em suas mãos acima da cabeça
e em seu joelho. Ela clama por ajuda e parece desesperada, como
se encarasse os últimos segundos de sua vida. Atrás dela, uma
outra figura jaz deitada no asfalto. A noite ainda não acabou.
“Você está bem? Está ferida?” E Leonora está tão abalada que
nem sabe o que responder.

***

345
NICTOFOBIA

A atmosfera ficou transparente e as luzes distantes apareceram


no céu. Antares, Canopus, Aldebaran, Betelgeuse, Sírius, Arturus.
Se perdem no meio de tantas outras sem nome ou sem brilho
visível. E um rio branco mancha o escuro de um lado ao outro.
Um novo mundo ganha forma. Novos sons, novas canções.
Aqueles que eram acuados pelo excesso de luz e calor, agora
reinam na fase obscura do tempo solar. E os que antes
prosperavam num universo de claridade, se empoleiram, se
escondem, se recolhem, se retiram, se entocam, se abrigam. O
corpo descansa, a mente se aquieta.
Até que eles decidem que não é hora de parar ainda, há muito o
que ser feito e poucas horas de Sol. O fogo que esquenta, afugenta
animais. E mais do que tudo, ilumina, devolve a visão aos cegos. O
presente do desgraçado semi-deus, eternamente punido pelo
Olimpo. A chama a banir a noite e estender o dia. Lux!
Longe de seus domínios o plasma não perturba, nem mesmo
alcança. É a vez da caçadora silenciosa, paciente e tão esbelta
quanto esguia. Os insetos ganham vida por cima da grama e por
baixo das cascas das árvores. Gigantes cobertos de penas se lançam
aos ares num voo imperceptível. Primatas com olhos enormes a se
locomover entre galhos. Flores, antes adormecidas, exalam
perfume casto para olfatos famintos. E o único mamífero a voar se
banha de pólen entre disparos ultrassônicos. A pele negra entre
seus dedos são asas.
O ar imperturbável e o som de folhas secas. Roedores agitados
pelo ânima invisível do tardar das horas. Sapos se encontram em
uníssono num duelo vocal. Formigas batedoras determinam o
percurso da trilha de folhas ao subterrâneo, silenciosas num
mundo diminuto. Cobras seguem uma infinidade de pistas em
partículas redolentes. O instinto determina a refeição. Algo faz a
vegetação farfalhar. Olhos refletem como duas estrelas
desgarradas.
E no topo deste reino, um globo distante, mas eternamente
apegado ao planeta, se adorna da luz antagônica com suavidade e
mística esplendorosa. A Lua soberana toma o céu. O brilho
seccionado cresce, míngua, desaparece, repetindo o ciclo num
piscar de nebulosas, infinitamente no intervalo em que corpos

346
DIAS FERPELLA

celestes se chocam e se reinventam na força gravitacional. Uma


ciranda cósmica jamais desvendada.
E cativadas por um banho pálido, lendas e temores são paridos
e alimentados geração após geração, tão fortes quanto um povo.
Pois nessa diáspora não se vê além do alcance da lamparina, onde
queima a parafina, o querosene, o óleo, a lenha, os filamentos de
cobre. É o som que chega, livre das formas da matéria.
E por milhares de séculos, uma sucessão ímpar de civilizações,
igualmente patéticas e arrogantes, também tentam reinar no
mundo sem luz, como peixes divinos num deserto sem água.

***

Quando Lucian saiu do elevador na garagem da Socoma, Olívia


fez uma cena, vivendo o reencontro de um velho amigo exilado em
tempos de guerra e sem esperanças de reencontro. Mais que um
velho amigo, um filho, um único filho de uma mãe que já perdeu
tudo, inclusive as esperanças.
Ela foi ao seu encontro e o abraçou forte, exclamando seu
nome. Por cima do ombro dela, Lucian viu Alex de pé ao lado de
um veículo. Nem uma única gotícula da euforia de Olívia o atingia.
Lucian sabia o motivo, os dois tinham lido o mesmo documento.
Eles sabiam o que viria a seguir e nenhum reencontro era alegre o
suficiente para cobrir a tensão. Uma outra agente se postava ali
com seu colega, concentrada num quebra-cabeça de parafusos e
argolas. Olívia anunciou empolgada:
- Eles me deram o perdão parcial! Vão me processar por ficar
acordada, só. É como se eu nunca tivesse saído de casa! Disseram
que vai ser uma multa e mais nada, muito provavelmente. E você?
Como foi?
- Vão negociar meus atenuantes só depois do pacto. - Lucian
olhou para Alex mais uma vez, incomodado por buscar
cumplicidade nele e não nela. A veterana, que acompanhava
Lucian até então, conversava com os agentes em voz baixa, através
de sussurros, lançando olhares discretos. Em seguida ela passou
por Lucian com um aceno de cabeça, seu papel terminava ali.
Agora era a vez de Epstein e Villares.

347
NICTOFOBIA

A agente do quebra-cabeça entrou pela porta do motorista e


Alex, dando a volta no automóvel, chamou pela dupla de
dissidentes. “Está na hora. Vamos!”
Era um carro menor, diferente da viatura padrão da Socoma.
Certamente não era um veículo usado em patrulhas, apesar de
trazer uma modificação de holofotes traseiros e um farol mais
potente. Definitivamente apropriado para a noite.
Ao contornar a sede, cruzaram com um veículo que chegava.
- Unidade Terceira. Saíram a sua procura. - Epstein deu uma
cutucada em Alex. Sua voz era grave e agradável, como num
audiolivro ou em uma sessão de hipnoterapia.
- Amanda e Marlon? Eles sabem que eu voltei?
- Alguém deve ter avisado. Mas sabe como a Operacional é
distraída. Ainda mais com tanta coisa acontecendo de uma vez…
De um jeito ou de outro vão ficar sabendo. Olívia, escuta, vamos
primeiro firmar esse Pacto e depois levamos você pra casa. Tudo
bem, querida?
- Pode ser. Posso tomar Sono já? Essa noite pra mim já deu.
- Desculpe, meu bem. Não temos nenhuma dose aqui com a
gente. Mas vai ser bem rápido, não se preocupe. Talvez possamos
voltar e ver se a U-Três pode levá-la, o que acha, Alex?
Antes que eles discutissem a possibilidade, Olívia decidiu:
- Não, tudo bem. Vamos lá. Estou com você, Lucian. - ela deu
um tapinha amigável no joelho dele. E só então estranhou seu
silêncio, como se algo estivesse faltando ou fora de lugar.
- Não podemos fazer o pacto de outra forma?
- Lucian, não sabemos ainda como vai ser. Eles vão apresentar
algumas exigências que teremos que cumprir.
- Não deveríamos ter algum representante com a gente?
- Do que você está falando? - Alex interveio.
- Um diplomata, um mediador, alguém que saiba negociar um
tratado.
- A Socoma faz isso.
- É a Socoma. Sim. - os dois agentes responderam juntos.
Lucian virou seu olhar para a janela. As luzes do carro
escapavam para a lateral, criando uma área de penumbra. Era
difícil dizer quais ruas passavam lá fora. A cidade à noite era tão
diferente… Por um momento, Lucian pensou como teria sido se

348
DIAS FERPELLA

aquela aventura de dois meses atrás tivesse dado certo. Se ele


nunca tivesse feito a besteira de fazer a denúncia e ele e Lenny
saíssem despercebidos daquele hotel, se tudo fosse…
- O que leva vocês a romperem o limiar? Vocês sabem por que
fazem isso? - Alex interrompeu seus pensamentos.
- Se todos soubessem do pacto e dos noturnos, acho que
dificilmente ficariam acordados.
Alex achou graça. A outra agente tomou a palavra:
- Psicologia da Desobediência, meus amores. Existe um
experimento fascinante. Eles chamaram um grupo de pessoas para
responder um questionário longo, um teste de personalidade. Mas
o verdadeiro teste, o experimento, acontecia sem que eles
soubessem. Na sala em que estavam havia uma mesa de madeira
com um aviso: “recomenda-se não apoiar, verniz fresco.”
Ninguém apoiou a encadernação na mesa. Eles usavam as
paredes, se sentavam no chão e usavam a cadeira como apoio, se
curvavam com o questionário no colo... Ninguém questionou a
ordem, redigida como uma sugestão.
Depois de alguns minutos um funcionário entrava, verificava a
superfície da mesa e trocava o aviso: “uso permitido apenas
mediante pagamento prévio.” Adivinha o resultado. Uma pequena
parcela dos participantes, em absolutamente todos os grupos
testados, desrespeitaram o aviso e se sentaram à mesa. A
Psicologia da Desobediência mostra que uma porcentagem
significativa de indivíduos, numa sociedade hierárquica, tendem a
infringir regras quando sentem que sua autonomia está ameaçada.
Eles possuem a necessidade inconsciente de atestar que ainda são
donos de suas ações e livres para viver da maneira que acham
justa, apesar de regras e proibições.
As pessoas nunca deixam de fazer algo porque é proibido. Se é
algo que realmente querem, a proibição parece infundada, quase
injusta.
Eu concordo com você, Lucian, a noite não seria lá grande coisa
se não fosse ilegal. Mas temos criaturas aqui fora que sempre vão
preferir carne humana à carne de gato. E que tipo de pais seríamos
se não definíssemos limites para nossas crianças? Por mais que não
vejam agora e que desconheçam o motivo por ser um tópico

349
NICTOFOBIA

delicado, é preciso que confiem na autoridade que diz “é para sua


própria segurança.”

***

Por circunstâncias especiais, a Unidade Terceira não seguiu o


procedimento padrão de oferecer Sono para o transgressor e
transportá-lo de volta à sua casa. Lenny era testemunha de uma
morte bizarra e sua narrativa não conferia com a realidade que os
agentes encontraram. “Vamos ter que te levar pra sede da Socoma
e registrar sua versão enquanto está recente.”
Era quase punitivo. Lenny só queria ir para casa, dormir, se
livrar daquele caos de pensamentos. Ela estava exausta e precisava
dos efeitos entorpecentes de Sono.
- Eu só quero dormir… Eu não me importo… Só me deixem ir…
Em palavras confusas de choque, ela havia afirmado um ataque.
Um noturno matara seu amigo. E as interpretações divergentes de
uma mesma cena plantava uma dúvida no julgamento de todos os
agentes e inclusive da própria Lenny: será que ela estava
enlouquecendo? Mas se fosse o caso, Lucian a acompanhava na
trilha da insanidade desde a estação central.
Amanda também se apegava ao benefício da dúvida. Não era
tão impossível a ocorrência de um ataque naquela noite. Ela ainda
não havia superado a forma que os noturnos se comportaram ao
redor de Lucian. Era como seu avô dizia: talvez não sejamos nós a
quebrar o pacto um dia. Não devemos subestimá-los.
A viatura pega a última rua antes da sede, cruzando com uma
unidade de apoio que acabava de deixar a garagem.
- Aí, Amanda, devem estar indo procurar os seus.
- Bem provável… - ela respondeu irônica. Eles pararam junto à
entrada principal e Amanda e Marlon desembarcaram com Lenny.
A viatura partiu mais uma vez para cumprir seus deveres.
- Deixa que eu faço o atestado desse. Ninguém deveria ter que
assinar dois óbitos numa só noite.
- Obrigada, Marlon. Eu me ocupo dessa aqui.
Lenny já recobrava grande parte da sua calma e voltava a fazer
parte do presente. “Dois óbitos.” Alheia a todos os acontecimentos
da noite, ela interpretou aquilo como uma sentença de morte.

350
DIAS FERPELLA

Quando o agente se retirou para o interior do prédio, Amanda


recebeu as palavras de uma derrotada:
- Então é isso… Sem processo… Sem julgamento… Pelo jeito eu
vi demais.
- O que você quer dizer com isso? Acha que somos mafiosos?
Que vamos acobertar tudo? Fazer uma queima de arquivos? Não
somos os vilões que vocês pensam. - Amanda dava voz a uma ira
que se acumulava.
- Vocês não, a Socoma.
Diante do memorial, um disparo. Pedaços de crânio sobem
num esguicho de massa encefálica, sangue e memórias. As
sombras do monumento de Katerina incorporam os vestígios
como se fossem arte.
Do um ao três.
Quatro, cinco e seis.
Sete.
Virgílio Douvan teve que assinar três óbitos numa só noite. Me
fale sobre a noite, Feller. Uma composição altamente viciante, com
a capacidade de alterar a produção de melatonina no cérebro. E
que em períodos de abstinência intensifica os efeitos secundários.
Brener, Felipe, Érika.
Juno, Osias e Alícia.
Ênio.
O pai de Taila, o avô de Amanda. A mente dela ecoa um ímpeto
disfarçado de mantra. Quem decide são eles, quem lucra são eles.
E eles não se importam com mais nada. Talvez devêssemos deixar
para lá.
Somos rebeldes acomodados.
Tem razão… Nada profissional.

***

Uma mudança brusca assusta. A maioria se incomoda com o


novo e as transformações geram desconfiança e angústia. Em
Evitando Revoluções, Tanira G. Partinea escreveu:
“Se um único ato fosse estabelecido, desde o princípio, ou antes
mesmo do princípio de um novo regime, e esse ato fosse o mais
extremo, a nação inteira se voltaria contra a autoridade. [...]

351
NICTOFOBIA

Antecedendo o ato final, que é também o mais absurdo, pequenos


atos são implementados sutilmente, numa escala do mais aceitável
ao mais absurdo. Cada ato acompanha uma justificativa,
gradualmente convencendo a população de que o próximo ato é
também necessário [...] Em conjunto com estratégias de
propaganda, repetição ideológica, política do medo, falsas
bandeiras e o uso pontual de ferramentas de disseminação da
informação, o indivíduo é anestesiado a um ponto em que não
mais reconhece seus princípios e ideias, adotando a política estatal
como sua própria decisão, validando e defendendo sua
importância na manutenção da ordem social. E aquele que se
mantém íntegro em sua verdade, acaba por suprimir uma conduta
outrora tida como natural, seja por constrangimento público ou o
medo de legislações punitivas. [...] Se tornam rebeldes
acomodados. A população desenvolve uma consciência coletiva e
deposita plena confiança naquele que detém o poder, seja ele um
governo, uma instituição, uma corporação ou mesmo um único
líder isolado. Um absurdo não é mais absurdo quando todos
concordam.”

***

Há um momento na rotação da Terra que os povos ancestrais


chamavam de kïtr. A Quietude. A atividade noturna se acalma,
quase num completo silêncio. Acreditava-se que nesse curto
período, antes das primeiras aves cantarem, o próprio planeta
adormecia. É como um objeto lançado para cima, perdendo
velocidade, ganhando potencial até atingir o ponto no tempo e
espaço em que permanece suspenso, parado no ar, antes de ceder
à gravidade e voltar a se mover rumo ao oposto.
Noite e dia ocorrem em sentidos opostos. A noite está fixa em
uma mesma posição, sempre do lado externo da órbita dos
planetas. E a outra metade é agraciada pela mais significativa das
estrelas, alimentando a vida e o movimento. Ying e Yang. A estrela
d’alva e a estrela da tarde, o horizonte leste e oeste. É a mesma
estrela, é o mesmo horizonte, é o mesmo conceito. É o uno
transmutado em duo pelos povos do ocidente.

352
DIAS FERPELLA

O céu não fica azul de um segundo para o outro. Não existe um


momento certo em que começa o dia e termina a noite. A
mudança é gradativa. É sempre o mesmo dia, o mesmo tempo,
num processo contínuo de clarear e escurecer, desfazendo
penumbras, até que o planeta pare de girar ou até que a estrela
significativa queime sua última gota de gás.

***

O carro parou enfim. Quando Lucian desceu, se viu diante do


tardoz de um edifício antigo, com colunas rebuscadas e pequenas
gárgulas petrificadas. Os seis discos de números de um cadeado
agora eram botões numa tranca eletrônica.
Epstein tirou um papel do bolso e conferiu a senha.
- Pensei que a gente fosse esperar no carro. - Olívia se animou
com a possibilidade de presenciar o pacto.
- Você prefere? Podemos ficar aqui se você estiver
desconfortável. - Epstein ofereceu gentilmente. Mas Olívia negou,
mais seduzida pela primeira opção.
- Ok, não saiam de perto. Isso aqui é um labirinto. - os agentes
ligaram suas lanternas ao cruzar a porta.
O silêncio lá dentro era sufocante. A Biblioteca engolia o
quarteto para longe da superfície, enclausurando-os em seu hálito
de celulose. Até Epstein sentia certa aflição, mesmo com a carga
de lembranças positivas daquele lugar. As leituras voluntárias que
ela fazia para crianças quando era jovem. O jardim enfeitado pro
Festival de Crônicas quando ela era pequena e sonhava em ser
escritora, rabiscando dísticos na sua agenda escolar.
Epstein na frente, Villares na retaguarda, iluminando os
corredores até a porta do Salão de Arquivos. A luz dantesca
delineava os entalhes como rugas e tumores de uma superfície,
uma única superfície velha a selar o cômodo decisivo.
Lá dentro, estantes iam até o teto. Duas grandes mesas se
dispunham no centro da sala e, por ambas as paredes, escadas
estreitas levavam ao mezanino. Assim que cruzou a porta, Lucian
sentiu um calafrio, certo de que algo o observava lá dentro,
emanando ódio, desprezo e uma atração doentia. Seres aversos à
luz, mais antigos que todos aqueles documentos, canibalizando

353
NICTOFOBIA

noturnos pelos corredores, digerindo papéis degradados, alterando


a química do próprio edifício e as propriedades constantes dos
objetos. Passam a vida - ou o que quer que seja - enfurnados num
covil de letras.
- Vamos começar aqui por baixo. - Alex sugeriu num tom de
voz normal, ferindo o silêncio do salão. Lucian desejou que ele
tivesse sussurrado, mas, querendo ou não, era melhor não
surpreender os Arquivistas.
O som áspero de um papel que se rompe. Lentamente, uma
folha quilométrica.
Passando pelas mesas e se metendo entre as estantes, Olívia
reclamou:
- Essas coisas não vão nos esfolar assim que nos verem, vão?
Não estou gostando nada disso.
- Se eles estiverem dispostos a conversar, não. - Alex ia guiando
e ela percebeu suas duas mãos ocupadas: a lanterna e a arma. Ele
parecia ansioso, nervoso, no limite de fazer uma besteira e essa
imprevisibilidade só era amenizada pela presença de uma agente
com experiência.
A cada novo corredor que se revela, Lucian respira aliviado. Seu
coração tão agitado que ele acha que vai desmaiar. Ele quer adiar o
momento para sempre e ao mesmo tempo só quer acabar com isso
de uma vez. E ele se pergunta o que seria capaz de fazer para
acelerar o fim de tudo.
Já no fundo do salão ele escuta: um papel é rasgado. Difícil
dizer a direção exata.
- Espera um pouco, escuta.
Todos param e prendem a respiração, tentando identificar o
barulhinho das fibras que se partem. É uma música reproduzida
em um gramofone submerso em óleo de baleia, uma marcha
militar executada por fantasmas há muito abandonados. É a saliva
que pinga ritmada da mandíbula de um urso, mas não é saliva, é
algo mais espesso, mais doloroso, mais violento. É o gemer
pranteado de uma jovem moça que se afoga no desespero de um
corpo que só quer viver.
- O que é isso?
- Shhh… São eles. - Epstein sinaliza para Olívia.

354
DIAS FERPELLA

Lucian tenta definir de que ponto vem o som. Direita. Alguns


passos para trás. Do outro lado da prateleira. Para cima. Mais para
cima. Mais um pouco. Mais. Ainda mais.
- Estão no mezanino.
Olívia sente náuseas. Ela precisa se sentar ou irá vomitar. Não,
ela precisa é sair dali. Ela precisa se afastar dos raios parodiados da
lanterna e ver um pouco de luz verdadeira, a origem, a única fonte
de luz que pode salvá-la. Ela anseia por mergulhar por entre as
portas da Biblioteca e ter certeza de que o Sol está vivo. Seus olhos
estão cheios de lágrimas e ela faz força para não ceder. Ela pensou
que ia esperar no carro…
O grupo sobe as escadas. Onde ela está?
- Agente Epstein? - Olívia notou a ausência atrás de si. Uma
lanterna sinaliza lá de baixo, próxima à porta.
- Estou aqui. Meu joelho. Vou esperar.
- Ela tem um joelho ruim. Não gosta muito de escadas. - Alex
esclareceu. Olívia preferia ter ficado com ela, mas agora não quer
voltar sozinha. Lucian escuta o som mais uma vez, um pouco mais
rápido, como um sinal. “Por ali” ele indica para Alex, sem perceber
que está sussurrando. A luz da lanterna se aperta pelo caminho,
hostilizada por pilhas de livros no chão. Alguém parecia ter
largado uma faxina pela metade. Algumas das pilhas são tão altas
quanto uma pessoa de cento e oitenta centímetros. Há folhas
avulsas detalhando o piso.
E logo à frente, ainda no escuro, o som de uma folha solta no
ar, impotente contra a gravidade e inutilmente aparada por sua
própria horizontalidade. A lanterna ilumina o momento exato em
que ela toca o chão.
Aí está.
Na prateleira mais próxima ao chão existe um espaço entre os
livros, largo o suficiente para permitir a passagem de Lucian, fosse
essa sua vontade. Mas não é necessário. Na verdade, o fato do
noturno ter se retirado para trás da estante mostra que está
disposto a se comunicar. Um Arquivista, se mantendo longe da luz
incômoda, porém próximo de seus interlocutores. E o meio de
comunicação, ironicamente, criando uma barreira física entre eles.
- Ai… Ele escapou. - Olívia nada entende, espectadora de uma
peça surrealista em língua estrangeira. Lucian balança a cabeça e

355
NICTOFOBIA

aponta para a estante. Alex entrega a lanterna para ele e devolve a


arma ao coldre. Em seguida toma uma caderneta do bolso e
prepara sua caneta. “Está pronto?”
Olívia dá um passo para trás, sem saber o que vai acontecer.
Lucian seca as mãos suadas na própria camisa, uma de cada vez.
Limpa a garganta como se não falasse há uma década. As primeiras
palavras trocadas com uma aberração noturna.
- Ahm… Olá. Meu nome é Lucian… - mas Alex não escreve uma
só letra do que lhe é ditado. - O que foi?
O agente suspira e escreve contrariado. “Olá, meu nome é
Lucian.”
- Precisamos conversar. - ele continua a ditar. - Peço desculpas
pelo incidente… Não, pelo infortúnio que causei. Ou melhor ainda:
me responsabilizo e me desculpo pelo infortúnio causado esta
noite. Gostaria de discutir uma maneira… Gostaria de… Peço uma
oportunidade para me retratar e demonstrar meu pesar. Espero
que possamos chegar a um acordo.
- Atenciosamente, Lucian. Isso?- Alex atalhou sem paciência,
irônico
- O que você quer que eu fale?
Ele arrancou a folha e enfiou no vão acima dos livros até ela cair
para o outro lado. O bilhete voltou por baixo da estante, no tempo
da queda. Alex o pegou e mostrou para Lucian: seu bilhete
intocado. Em resposta ao gesto, Lucian deu de ombros.
- Você tem que lembrar que é uma comunicação muito direta e
primitiva. Temos que usar poucas palavras que comuniquem uma
ideia. Por exemplo…
Ele circulou no bilhete de Lucian as seguintes palavras em
destaque:

Olá, meu nome é Lucian. Precisamos conversar. Me


responsabilizo e me desculpo pelo infortúnio causado esta noite.
Peço uma oportunidade para me retratar e demonstrar meu pesar.
Espero poder chegar a um acordo.

Em seguida jogou por cima dos livros. Dessa vez o papel não
voltou. Mas também nada aconteceu.

356
DIAS FERPELLA

Pensando ter perdido a atenção do Arquivista, Lucian mirou a


lanterna na greta da prateleira, tentando ver o outro lado. Alex
avançou na sua mão para impedir e Lucian conseguiu ver apenas o
brilho de dois olhos, imóveis, distantes, como um gato paralisado
encarando-o de volta.
- Não, porra! Não provoca. Vamos tentar outra coisa.
Então Olívia apontou:
- Daqui dá pra ver um papel bem debaixo da estante.
Lucian teve que se ajoelhar e puxar o papel com a ponta dos
dedos. Era seu bilhete. Mas estava diferente. Manchas fúngicas
tomavam parcialmente as palavras:

Olá, meu nome é Lucian. Precisamos conversar. Me


responsabilizo e me desculpo pelo infortúnio causado esta noite.
Peço uma oportunidade para me retratar e demonstrar meu
pesar. Espero poder chegar a um acordo.

Pronto, a comunicação fora estabelecida. A partir dali era tudo


com Lucian. Aquelas palavras eram para seus olhos apenas.
- E aí? - Alex perguntou ansioso.
- Funcionou. “Precisamos demonstrar poder.”
- Agora é com você. - ele pousou a ponta da caneta no caderno.
Lucian pensou por um momento.
- Demonstre respeito, Lucian. Peça perdão. - Olívia sugeriu.
- Respeitamos. Noite sua. Dia meu. Perdoar.
Alex escreveu as palavras e jogou a folha para o outro lado.
- Fique de olho nos livros.
Lucian deu dois passos para trás e iluminou a estante. Mais dez
segundos se passaram até ele perceber um movimento no seu
campo de visão. Um livro se projetou da prateleira não mais que
um centímetro.
Lucian segurou a lanterna com o queixo e folheou à procura de
sinais. Manchas escuras em algumas páginas. Ele analisou
cuidadosamente as palavras marcadas:

Ninguém [...] Cidade [...] Vazia [...] Quando [...] Noite [...] Sair.
[...]Longe da [...] Casa [...] Extermínio [...] Vida [...] Quando [...] No
leito [...] Fim [...] Claro [...] Não [...]

357
NICTOFOBIA

Lucian virou mais algumas páginas até se deparar com mais


mofo:

Modo [...] Luz [...] Não [...] Nunca [...] Violência [...] Perdão [...]
Acabar [...]

- Eles não querem nenhum tipo de luz, eu acho. E querem as


cidades vazias à noite, que todos deixem suas casas e vão para bem
longe quando escurecer. Do contrário, vão atrás de todos, mesmo
os que dormem.
Alex abanava a cabeça.
- Não, isso não dá pra fazer. Impossível. - ele escreveu algo
rapidamente e jogou para o lado de lá.
Lucian pegou o livro que estava mais para fora e verificou as
páginas.

[...] Mataram [...] Sangrento [...] Execução [...] Pesadelos de [...]


Vítimas [...] Comida [...] Todas as crianças [...] Esquartejadas [...]
Morte [...] Negativo [...] Aprisionado em [...] Agonia [...] E terror
[...] Culpa [...] Fatalidade [...] Corte [...] Humanidade [...]
Desaparece [...] Agora [...]

- Ele não está nada feliz. O que você fez, Alex?


- Não dá, Lucian. Não dá. Você precisa apresentar uma
contraproposta.
- Eu pensei que a gente não estivesse em condições de exigir
nada.
- Não é exigir, Lucian, é oferecer.
Lucian pensou nas palavras do primeiro livro. Como ele poderia
oferecer algo mais atraente para eles do que aquilo? Ou talvez ele
tivesse interpretado errado. Era algo muito mais simples e Lucian
sabia, mas se recusava a ceder. E estava ainda mais claro no
segundo livro: não era uma ameaça, era uma proposta.
Ele olhou para Alex num complô discreto e repulsivo. Ele era
incapaz de fazer isso. Sim, o réu matara uma criatura no início da
noite, mas como ser reincidente em um crime tão condenável? A
morte de um inocente paga a vida de outra criatura também

358
DIAS FERPELLA

inocente. Essa segunda morte, no entanto, tinha uma carga


emocional acoplada ao disparo. Ela confiava nele, eles haviam
sobrevivido juntos, ela tinha um nome, ela tinha sentimentos
comuns a ele, sentimentos humanos. Ele a olharia nos olhos
sabendo que era a última vez. Um último fôlego. Pois não há
maior demonstração de poder do que tirar uma vida.
- Não há outra maneira? - Lucian gaguejou.
Sacrifício. Alex escreveu uma única palavra na caderneta e
mostrou para Lucian.
- Merda… Que grande merda…
- A gente sempre soube que não seria só pedir desculpas.
- O que foi? - Olívia se preocupou. O papel foi enviado para o
outro lado.
- Ainda não sabemos se vai dar certo. - Alex evitou a pergunta
com uma resposta vaga.
Por trás da prateleira, dedos empurraram um volume pesado,
seis milímetros para o lado de cá. Era um volume pesado não pela
massa, mas pelo significado. A culpa livra a culpa. E pela reação de
Lucian às palavras mofadas, Olívia entendeu exatamente o seu
papel ali.
- Lucian… Não… - as palavras lhe fugiam. Por toda sua
existência, Olívia teve a chance de construir um vocabulário ideal
que, naquele momento, posto numa combinação exata, criariam a
semântica que salvaria sua vida.
Alex também reagiu ao semblante de Lucian. Ele deu um passo
na direção de Olívia, guardando a caderneta com uma expressão
de pesar:
- Sinto muito. Mas não tem outro…
O grito de Olívia cortou o fim da frase vazia do agente. “Não!
Não se aproxime! Lucian! Me ajuda! Por favor, não!” A súplica da
garota molha os olhos dele com lágrimas de remorso. Me perdoa,
ele repete mentalmente, sem efeito algum sobre suas intenções.
Então Alex a agarra com força por um dos punhos e puxa para
baixo. No momento em que ela se desequilibra, ele avança no
outro braço e passa para suas costas travando-o numa chave. Ela
tenta lutar, tenta resistir, mas a dor clama para que ela aceite a
submissão. Logo irá terminar. Seus instintos de sobrevivência
entram de uma vez, num berro por socorro. Mas lá embaixo,

359
NICTOFOBIA

Epstein já sabia do desfecho ao colocar a vítima no mesmo carro


que o executor. Ela não se importa. Gostaria apenas que fosse mais
discreto, menos dramático. Aqueles gritos perigam despertar
compaixão humana e com isso nada seria alcançado, apenas um
remorso posterior, traumas e pesadelos.
- Vamos, Lucian! Agora! Pegue! - Alex estica a arma para o
rapaz hesitante. É ele o carrasco, o culpado a se livrar da culpa, o
criminoso a cumprir a pena e pagar o sangue que deve. Lucian não
vê a arma. Ele vê Ceres, Eres, Plutão e Makemake. Ele vê Lenny,
Nico, Gabi e Anna. Ele vê seu pai e vê sua mãe. Ele vê a meia-Lua,
pois a outra metade está coberta de sangue e crueldade. A culpa de
bilhões esmaga sua moral e aquele grito é na verdade da sua
própria consciência. E é um barulho insuportável porque é o pavor
daqueles que são amados. Redenção escapando de suas mãos e ele
tem que tomar a rápida decisão de agarrá-la.
E é quando ela desfere uma cotovelada no queixo do agente,
virando de uma só vez com o braço livre erguido num momento
de distração. Alex a solta na surpresa do golpe e agora ela foge com
toda a energia que lhe percorre as pernas. Neste momento, Lucian
agarra seu ombro, a empurrando contra uma estante. Ela reage
com um tapa certeiro na têmpora dele e, meio se esquivando de
um segundo ataque, Lucian estica o braço para impedi-la e é assim
que a lanterna cai, escurecendo o confronto ainda mais. Ele se
abaixa e a toma pela cintura, recebendo socos nas costas. Num
giro ela é lançada ao chão. O peso de um homem louco a mantém
colada ao piso, enquanto a lanterna se acomoda com o bocal junto
a uma pilha de livros. E quando a luz praticamente se extingue aos
seus olhos, Olívia entra em pânico, pois, ciente de que aquele é o
fim da linha, ela nada pode fazer. E ela chora ao ouvir sua própria
voz implorar “por favor, não… Não…”
Alex se aproxima e entrega a arma para Lucian num gesto
mafioso. Está engatilhada, basta puxar o gatilho. Um único
movimento, um movimento curto e tudo se resolve, não precisa
pensar. Não pense. Precisamos demonstrar poder.
Com uma força que Olívia nem sabia possuir, ela consegue
dobrar uma de suas pernas e aquilo é o suficiente. Ela se ergue
sobre o joelho e empurra Lucian para trás. Se virando
rapidamente, ela dá um chute no peito do agressor, ganhando a

360
DIAS FERPELLA

chance de se levantar. Alex corre, mas não para ela: para a arma
caída no chão. Olívia se afasta como uma lebre assustada,
derrubando uma torre de livros pelo caminho. Alex poderia atirar,
um projétil direto nas costas, partindo a espinha dorsal e se
alojando em algum lugar de sua caixa torácica. Mas ele sabe: é
Lucian quem deve matá-la. A lebre desaparece no escuro.
- Vamos! Levanta! - Alex tenta ajudar a raposa atordoada. Ela
rosna furiosa:
- Foda-se! Isso é loucura! Eu não consigo, Alex! E não quero.
Não vou matar ninguém. Se não tiver outro jeito a gente
simplesmente fica sem acordo.
- Escuta aqui, seu merda, - Alex agarra Lucian pelos cabelos - eu
não vim até aqui pra você ficar choramingando com crise de
consciência e fazendo mais cagada.
Lucian se recupera do chute num instante e dá um tapa na mão
dele.
- Então faz você, Alex! Eu não vou assassinar alguém só porque
é o “único jeito.” Deve haver uma outra maneira de consertar as
coisas.
- Lucian… - ele respirou fundo, tentando absorver alguma calma
junto com o ar. - Eu também não aceitei isso tão fácil. Mas eles me
explicaram que não há outra opção.
- Eles? - Lucian apontou para a estante do Arquivista ao se
levantar.
- A Socoma.
- Alex… Não quer dizer que seja verdade, cara. Talvez seja a
opção mais fácil pra Socoma, a mais imediata. Mas não a única e
certamente não a melhor… A gente não sabe nem o que são essas
coisas, de onde vieram ou como pensam. Talvez amanhã tudo
passe, tudo seja perdoado sem pacto nenhum. Vamos tentar algo
novo, Alex, está em nossas mãos.
Lucian quase ganhou o agente. O desejo de deixar sua marca,
ser alguém, ser lembrado, ser grandioso. Ele tinha o poder de
mudar o rumo da história ao invés de apenas restaurá-lo. Não
salvar o mundo, mas transformá-lo. Alex quase cedeu. Quase.
Porque existe algo mais poderoso que um único homem ou
mulher. Mais poderoso que um grupo enorme de Homo sapiens.
Que todo governo pode até temer seu povo, mas o povo não tem

361
NICTOFOBIA

vontade própria. É apenas a manifestação, a voz e o pensamento


de outra coisa muito mais poderosa. São células de um organismo
viciado. Um organismo egoísta.
- Não… sinto muito, mas não é assim tão simples. Você diz que
deve ser a opção mais fácil, mas não é. Nunca é fácil. Mas existe
um muro do qual fazemos parte. E se não ocuparmos o lugar que
devemos ocupar, o muro cai.
O agente refletiu por um momento.
- Certo, talvez não caia…
- Sim, Alex…
- … mas vai ficar um buraco. Será um muro imperfeito. Nós
temos um papel a cumprir e isso é viver em sociedade, Lucian. Não
existe algo novo a se tentar, não existe outra opção. Seria arriscar
algo que sempre deu certo por uma coisa que… que nem sabemos.
Lucian não tinha energias para debater. Os prospectos eram
desanimadores e a transformação impossível naquele estágio.
- De qualquer forma, não conseguimos chegar a um acordo. A
única opção não é uma opção. - ele deu o assunto por encerrado e
pegou a lanterna entre os livros espalhados.
Alex fechou os olhos e comprimiu os lábios. Seu maxilar tão
travado, que seus dentes doíam até trincarem. O ar saía trêmulo
de suas narinas e seus músculos viravam magma sólido. Um
dissidente agindo em sua ignorância e egoísmo, incapaz de pensar
no coletivo, jamais com a força e a coragem de realizar um
sacrifício necessário, de se retratar de um erro grotesco. Lucian
sustentava seu erro e Alex o desprezava por isso. Ele reduzia o
agente a um mero funcionário desmoralizado, uma autoridade
decadente, permissiva, impotente. A arma ainda presa à sua mão,
ferro forjado e montado em larga escala com um único propósito.
A arma, a mesma arma que serviu de gatilho para toda aquela
merda. Se ao menos ele não a tivesse esquecido em cima da mesa…
Era ele então, Alex Villares, agente cinco-três-zero-oito-quatro-
um, o grande culpado. Lucian apenas contribuíra, mas a culpa se
originava ali, nele, Alex. E aquela posição nunca fora tão bem-
vinda, pois com ela vinha o poder de redenção. A culpa livra da
culpa. E convencido disso, ele ainda vê a luz da lanterna que se
afasta com Lucian. A luz que delineia seu alvo na escuridão.
Precisamos demonstrar poder.

362
DIAS FERPELLA

E Lucian segue, sem olhar para trás uma única vez. Ele pensa
em Lenny, pois ali acha que finalmente a entende. E ela
caminharia lá fora apenas com o luar e Vênus, as últimas horas da
escuridão a guiariam até sua casa. Pois existe uma estrela colossal,
mas ainda assim diminuta, que varre a noite para o outro lado do
planeta.
Dyau, eles chamam. Aí está: o céu luminoso, o brilho. Um novo
dia, pois a noite é o mistério que entremeia, que separa um dia do
outro para que assim o tempo passe. E o que houve lá fora,
enquanto nossa existência dormia, não cabe aos diurnos saber.
Mas eles sabem, assim como todos os seres sabem: o estado
perpétuo do planeta é a noite. Solta no espaço, ela envolve toda a
superfície da Terra, projetando o infinito sobre seus solos e mares.
Até que o Sol se levanta e clareia a atmosfera, escondendo a noite
por trás de um véu azul, como se ela não estivesse ali. Como se, na
verdade, ela nunca tivesse existido.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço Sara. Sua contribuição, embora singela,


foi muito significativa. Foi lá atrás, em 2009, quando eu escrevia o
primeiro esboço da jornada de Lucian e Lenny. O entusiasmo com
que você lia cada novo capítulo que eu concluía me motivou a
deixar a ideia viva. Você ansiava em ver o desfecho da história e eu
não poderia te deixar ali, nos corredores daquele centro comercial.
Agradeço a ajuda imprescindível de Helena. Seus post-its coloridos
me ajudaram a organizar a cronologia de eventos e você, com
certeza, teve participação na organização da parte três. Te
agradeço por todas as tardes e noites a revisar o livro e por não me
deixar dispersar diante de trechos desafiadores. A forma que você
reagia às cenas e seus comentários foram a maior gratificação de
todo o processo de escrita.
Valorizo muito a ajuda de Ed, que atendeu meus vários
telefonemas cheios de incertezas e incoerências na narrativa. Você
tem um senso crítico insuportavelmente exigente e me ajudou a
evitar clichês e soluções fáceis, me estimulando a encontrar o
verdadeiro rumo dos personagens. Você foi fundamental na
escolha final da capa, incrementando a arte com seu trabalho de
marcenaria em apenas dois dias. Minha gratidão por sempre estar
lá.
E finalmente, te agradeço pai, que me ouvia pensando alto a cada
novo arco, interessado em todos aqueles simuladores noturnos,
manobras corporativas, confrontos e cultura do medo. Você
sempre me fez acreditar que eu escrevia o melhor livro que você
leria.

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