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DINO DE ALCÂNTARA

A LENDA DA MANDIOCA

Para Alinice Costa Cavalcante.


Este texto é seu.

Curiosidade de criança é algo que não se cura, a não ser


satisfazendo suas vontades. Foi assim que aconteceu comigo,
após saber que várias frutas que figuravam no livro A Mágica
do Saber, que usávamos na escola, não existiam no Brasil
antes de 1500. A uva, segundo nosso livro, era de origem
persa. A maçã havia sido introduzida na América, pelos
europeus, e era oriunda da Ásia Ocidental. A banana teria
vindo da Indonésia para o Brasil. A jaca tem origem na Índia.
O coco chegou ao Brasil vindo da Ásia. A laranja foi trazida
da China. A manga, com a qual tanto nos deliciávamos, os
colonizadores teriam ido buscar na Índia. De repente, veio
uma curiosidade imensa: que frutas eram nossas de
nascença. A professora Alinice, consultando o livro de Yves
d'Évreux, Viagem ao Norte do Brasil, enumerou dezenas e
dezenas de frutas que eram nossas de origem. Estavam aqui
no Maranhão, quando os franceses chegaram para fundar a
famosa França Equinocial. Eram tantas e tantas, que ficamos
eu e meus colegas da única escola do Cujupe admirados, com
olhos e ouvidos bem atentos. Ananás, anajá, araticum, araçá,
babaçu, bacuri, buriti, cajá, caju, gapeua, goiaba, ingá, juntaí,
juçara, jenipapo, maçaranduba, marajá, mejuba, murici, oiti,
pitomba, tucum, titara, tuturubá. E a lista seguia. Foi uma
aula inesquecível. Todos perplexos. Eu me sentia valente,
afinal, tinha sido eu quem provocara aquilo tudo. Mas eu
queria mais. Indaguei se a mandioca não entrava nessa lista.
A professora me perguntou se eu considerava a mandioca
uma fruta. Cocei a cabeça e disse que não. Porém, não me dei
por satisfeito e quis logo saber de onde tinha vindo aquele
alimento que era o mais comum no prato dos moradores do
Cujupe. A professora me olhou bem nos olhos e perguntou se
eu queria saber a origem da mandioca, de onde ela veio? Eu,
curioso, gritei logo que sim. E a professora disse que era um
assunto para a aula do dia seguinte.
Na aula seguinte, todos os alunos com uma curiosidade
maior que o mundo. Não me aguentei e indaguei logo se
teríamos a origem da mandioca no início da aula. A
professora, para nos matar de ansiedade, disse que deixaria
para o final. Naquele dia, quase morremos de esperar. Até
que enfim chegou momento, e a docente passou a discorrer
sobre a origem daquela raiz milagrosa, que saciava a fome de
milhares de pessoas, todos os dias.
Hoje, recordando o que nos foi contado naquela manhã
dos anos 70, sei que nossa mestra foi buscar no livro de
Lendas e Mitos do Brasil, que não saía de sua estante, senão
para pesquisa ali mesmo na sua casa, a famosa lenda, tendo o
trabalho de reconstruí-la com traços de nosso lugar, dando à
narrativa outros elementos, para torná-la mais próxima da
gente.
A professora Alinice nos contou que, muitos séculos
antes da chegada dos franceses no Maranhão, vivia uma índia
muito amada pelos seus pais, de nome Anahi, uma bela flor
do céu. O pai, que era o cacique da aldeia e um dos maiores
de toda a região de Tapuitapera, queria a filha para
sacerdotisa da tribo. Mas um dia, sem que ninguém soubesse
como, ela apareceu grávida. O pai, Abaeté, ficou furioso e
expulsou a filha da aldeia, dizendo a ela que nunca mais
deveria voltar à tribo. Ela, chorando, pegou seus objetos e
saiu rumo ao desconhecido. Embrenhou-se na mata e só
parou quando, na beira de um rio, encontrou um lugar
majestoso, ao lado de uma buritizeira, para repousar. Como
nessa noite teve um sonho com Tupã, resolveu fazer uma
casinha de pindova. Nessa pequena casinha, que, para os
índios se chamava oca, Anahi, esperou que o menino ou
menina crescesse no ventre e pudesse nascer forte, valente,
corajoso. Quando nasceu a criança, para surpresa da índia,
era uma menina de olhos bem fortes e penetrantes. O cacique
Abaeté, arrependido do que havia feito, mas sem dar o braço
a torcer, pelo orgulho que tinha, sabia onde a filha estava
morando e, inclusive, mandava deixar comida, para que não
passasse necessidades. Quando viu a neta, ficou com o
coração partido. Era a criatura mais linda que ele já havia
visto. E passou a ir todos os dias à oca da filha, para ver a
neta. Chamou-a de Mani. A forma como a criança olhava o
avô era de tocar o mais duro coração humano, e o cacique
ficava cada dia mais comovido com aquela criaturinha.
Amava a neta como jamais amara a própria filha. Numa
manhã, disposto a pedir perdão à filha, para que ela voltasse
a morar na aldeia, é surpreendido pelo choro de Anahi.
Correu até a entrada da casinha e quase desmaiou diante da
cena de horror: a neta estava morta. Caiu em prantos e se
abraçou à filha, pedindo perdão por tudo que havia feito.
Depois de um longo abraço, pai e filha cavaram a sepultura
dentro da oca e enterraram o corpo da indiazinha Mani.
Todos os dias, o pai e a filha iam levar flores para colocar na
sepultura do anjinho morto. No sétimo dia, uma surpresa:
havia nascido uma planta bem no local em que Mani havia
sido enterrada. A notícia se espalhou. Começaram a ir todos
os dias mais e mais índios, inclusive de outras aldeias, ver
aquela planta. Molhavam-na todos os dias. E ela cresceu,
formando galhos com uma folha que nunca haviam visto na
região. Com um ano, Abaeté e a filha Anahi decidiram
escavar para ver o que encontravam, já que a planta não
botava frutas. E descobriram muitas raízes. Retiraram
apenas uma para não enfraquecer a planta, que passaram a
chamar de maniva, uma homenagem à índia tão
precocemente arrebatada da vida. Quando experimentaram a
raiz, ficaram maravilhados com o sabor, que era único.
Consultando o pajé da tribo, ficou decidido que era uma
planta milagrosa, porque fora mandada por Tupã em honra
da criança morta. E disse que deveria ser chamada de
mandioca, porque nascera dentro da sepultura da menina,
isto é, casa (oca) de Mani. Quando descobriram que bastava
cortar um pedacinho do caule da planta e lançar no chão, que
nascia logo um pé de maniva, vários caciques de outras tribos
pediram uma mudinha para ter em suas aldeias. E assim essa
planta se espalhou por toda a terra, que mais tarde passou a
se chamar de Maranhão. A mandioca passou, em menos de
um século da morte de Mani, a ser o alimento mais
consumido em toda a Tapuitapera, que hoje se chama
Alcântara.
Ao olhar o fascínio dos alunos, a professora Alinice,
após narrar a história, ou melhor, a lenda da “raiz
milagrosa”, disse a todos que é um dever continuar
plantando esse alimento tão rico em nutrientes e tão
importante para nossa história. Ninguém aqui no Cujupe
pode deixar de plantar, seja no próprio quintal, os seus pés
de mandioca, o grande presente que a mãe natureza deu a
todos nós. Salve a mandioca!

IMANGENS

Detalhe: Nós, alunos, imaginávamos que a casa em que fora


enterrada Mani era semelhante a uma dessas.
Detalhe: Maniva (pé de mandioca).

Detalhe: Roça de mandioca. Alcântara- MA

Detalhe: Mandiocas para o cultivo da farinha. Alcântara- MA.


Em 2020, a Organização das Nações Unidas–ONU nomeou a
mandioca (como) o alimento mais relevante do século XXI.

Detalhe: Homens mexendo farinha de mandioca-MA


Detalhe: A professora Alinice com um dos seus filhos, na Praça
da Matriz, Alcântara, em 1965. Seu ideal de vida era promover a
independência e a liberdade das pessoas para que tivessem dignidade.

Narrativa construída há décadas, adormecida nos salões da


memória, finalmente materializada em texto em outubro de 2020.
Dino de Alcântara
Dino de Alcântara nasceu nos anos 70 em São Luís do Maranhão,
mas viveu os melhores anos de sua vida no Cujupe (Alcântara). Seu
bisavô, João Cavalcante, fugindo da mais terrível seca que assolou o
Cariri, no Ceará, em 1877, migrou, como retirante, para o Maranhão,
indo morar nas terras do Cujupe. Seu avô, Manoel Cavalcante, nascido
em 1881, depois que a cidade de Alcântara foi abandonada pela antiga
nobreza (ver o romance Noite sobre Alcântara, de Josué Montello),
comprou, por preços módicos, um pequeno lote de terras às margens do
Igarapé do Cujupe e o transformou de um espaço num lugar, conforme
definição de Yi-Fu Tuan. Seu pai, Francisco Cavalcante, lutou para que o
lugar pudesse ter melhores condições de moradia para os seus e para os
outros. Sua mãe, Alinice Costa Cavalcante, também filha do lugar, lutou
até o esgotamento de suas energias para a melhoria de vida dos
habitantes do povoado, dando-lhes, em muitos casos, até o nome de
batismo. Como professora, levou o conhecimento a quem não via, senão
a escuridão do analfabetismo. Costumava dizer que serão bem-
aventurados os que semeiam o conhecimento.
Dino de Alcântara, ao longo de sua infância, ouviu de sua mãe e
dos mais velhos, milhares de histórias sobre visagem, bravura,
esperteza, lendas, mitos, etc. Essas narrativas estão guardadas nos
salões mais nobres de suas memórias.
Sofreu forte influencia de muitos autores, sejam eles teóricos
(Marx, George Lukács, Antonio Candido, Roberto Schwarz), sejam
escritores (como José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo,
Arthur Azevedo, Cruz e Sousa, Maranhão Sobrinho, Humberto de
Campos, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Josué Montello, Stanislaw
Ponte-Preta), sejam professores (Alinice, Rita, Márcia, Rosário,
Sebastião, Sylvia, Arnoni, João Roberto).
Não resiste a uma boa conversa (sobre literatura, teatro,
política, educação, história, língua portuguesa, etc.) com os amigos,
desde que o interlocutor não seja um desmiolado ou analfabeto político.
“Aí eu sempre peço desculpas, bato em retirada, como um grupo de
soldados recuando frente ao inimigo mais poderoso”. Mesmo com todos
os vícios e misérias, o Maranhão tem sido uma terra de vícios e feitiços,
isto é, lugar do qual não se consegue sair, por se sentir preso, num
fanatismo, seja pela culinária, pela beleza de sua natureza, pela
cultura, etc.
Atualmente tem se dedicado ao ensino, à pesquisa, à literatura, à
escrita de textos (sobretudo minicontos à maneira de Humberto de
Campos e narrativas da chamada “literatura oral”) e à divulgação da
Cultura Maranhense, o maior patrimônio de sua terra.

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