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IDENTIDADE E DIVERSIDADE

Formação e Saber indígena

NESTA TERRA TINHA GENTE!


“Nós descobrimos esta terra! Possuímos os livros acompanhei. Ele me levou para uma clareira e
e, por isso, somos importantes!”, dizem os brancos. Mas são sob a copa de uma mangueira secular me
apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que
tomar as terras das gentes da floresta para pôr a devastá-las. contou uma história.
Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos
brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso Os filhos do centro da terra
existe desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez
- Meu filho – ele disse – você tem feito
existir. É por isso que não creio nessas palavras de descobrir
a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos muitas perguntas e quase nenhuma resposta.
querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que Não pense, no entanto, que sua mãe e eu
repetem essas palavras”. (Davi Kopenawa Yanomami)1 estamos surdos ao que quer saber. Apenas
não estava na hora de você ouvir o que vou
contar. Nós acompanhamos cada passo seu.
De Onde viemos? Sabemos por onde anda nas horas em que se
Quando criança, vivendo em uma isola para conversas com os seres invisíveis
aldeia no Pará, sofria de uma grande que moram dentro das árvores, dentro da
curiosidade com tudo o que passava em terra, dentro dos animais, dentro dos peixes,
minha frente. Não importava se era o vulto de dentro dos pássaros, dentro dos rios que
uma grande onça ou as imagens pouco nítidas banham nossa aldeia. Observamos você
das histórias contadas pelos velhos da quando sobe nas árvores e fica se embalando
comunidade. Eu não tinha uma exata noção nos galhos delas buscando respostas.
das coisas, mas eu sabia que elas me Fiquei perplexo com o que ele dizia.
inquietavam e do alto dos meus nove anos Parecia que mamãe e ele não ligavam para
queria entendê-las. mim, mas o que descrevia era exatamente
Minhas perguntas nasciam juntas com como eu me comportava nesses momentos de
a observação que eu fazia do ambiente em que solidão. Deixei que ele continuasse.
crescia: por que vivíamos daquela maneira? - Quando eu tinha sua idade eu
Por que era importante acordar todos os dias também fazia muitas perguntas. Meus pais
na mesma hora, tomar o primeiro banho no diziam que iria chegar a hora de eu entender
igarapé, ir à roça plantar mandioca ou coletar como as coisas tinham chegado a ser como
frutas no mato? Por que eu deveria sentir são. Mais tarde eles disseram que fazia parte
medo da noite ou temer os assobios do meu aprendizado permanecer “na sombra”.
assombrosos do curupira ou da matinta- Na hora não entendi direito. Somente algum
perêra? Por quê? Por quê? tempo depois é que a expressão significa algo
Meus pais riam das minhas perguntas. como “não comer o fruto do conhecimento”.
Crescia achando que eles não sabiam a Não foi uma compreensão automática, pois à
resposta. E eu até ficava magoado com o época eu não tinha muito mais que sua idade.
silêncio que faziam. Para mim era pouco caso Meu pai me vendo atordoado com aquela
o comportamento deles. Por isso não era informação me chamou para debaixo dessa
incomum que eu me isolasse algumas horas mesma mangueira e foi explicando coisas que
por dia para continuar fazendo as perguntas só agora entendo bem.
que ninguém queria ouvir. Foi assim que Fui ficando curioso na medida em que
alimentei a idéia de que as “coisas” podiam me meu pai ia se aprofundando na história. O
ouvir e falar comigo. Assim, no grande quintal legal é que ele não tinha pressa e o tempo
sem muro onde cresci, fui aprendendo a ler os parecia passar bem devagar. E com a calma de
sinais das “coisas”. quem era dono do tempo contou-me a
Um dia, meu pai me chamou a um seguinte história:
canto. Disse que queria falar comigo. Fiquei “Não sabemos exatamente de onde
um pouco assustado, pois o rosto dele viemos. O que sabemos é que antes o mundo
expressava certa preocupação. Meu pai era não estava aqui em cima. O mundo de verdade
sempre muito brincalhão. Vivia causando é onde moram nossos antepassados que
alegria para todos da aldeia. Obediente, eu o jamais morrem. Deles nos vem a alegria de
viver, os conhecimentos para prosseguirmos
nossa caminhada em busca do encontro que
1
Extraído do livro Outra margem do ocidente. um dia teremos com eles. Contam nossos avós
Companhia das letras, 1999.
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que nossa gente primeira vivia no coração da maravilhas que havia no mundo de cima e que
terra e foi o menino Rairu – amigo de Karu- queria que todos subissem pela corda para
Sakaibê, nosso criador – quem a descobriu conhecer esse novo mundo. Como ele havia
naquele lugar. Contam que Rairu estava falado das facilidades, os primeiros a subir
querendo se divertir e por isso fez a figura de foram os feios e preguiçosos. Depois subiram
um tatu juntando folhas, galhos, gravetos e os bonitos e os formosos. No entanto, quando
cipós. Ele achou o desenho tão perfeito que estes últimos estavam quase alcançando o
resolveu colá-lo com resina feita com a cera de topo, a corda arrebentou e grande número de
mel de abelha para que nunca mais gente bonita caiu no buraco e permaneceu no
desaparecesse. Para secar a resina, Rairu fundo da terra”.
enterrou o tatu embaixo da terra deixando Papai fez nova pausa. Olhou para mim
para fora apenas o rabo. Ficou ali segurando como se quisesse saber o que eu havia
“seu” tatu. Acontece que ao tentar retirar a entendido. Não falei nada. Deixei que
mão não conseguiu, pois ela ficara grudada no continuasse.
rabo do tatu”. “Como eram muitos, Karu-Sakaibê
Eu ri. Achei aquilo bem estranho. Meu quis diferenciá-los uns dos outros. Assim
pai riu também. Apenas fez um gesto com o chamou uns de Munduruku, outros de Kayapó,
dedo indicador colado na boca. Arara, Mawé, Panará e assim por diante. Cada
“Acontece que o menino Rairu era um seria de um povo diferente. Fez isso
muito poderoso e quando viu que não pintando uns de verde, outros de vermelho,
conseguia tirar a mão dali, deu vida ao outros de amarelo e outros de negro. No
desenho e para seu espanto ao invés de entanto, enquanto Karu-Sakaibê pintava um
querer sair do buraco adentrou-se ainda mais por um, os que eram feios e preguiçosos
carregando consigo o jovem que estava preso adormeceram e isso o deixou furioso. Como
e que por mais que tentasse soltar a mão, não castigo por sua preguiça, os transformou em
conseguia. O tatu-desenho foi cada vez mais passarinhos, porcos-do-mato, borboletas e em
fundo e quando chegou ao centro da terra, outros bichos que passaram a habitar a
Rairu encontrou muita gente que por lá floresta. Para os outros, disse: - “Vocês serão o
morava. Tinha gente de todo jeito: bonitas, começo, o principio de novos tempos e seus
feias, boas, más, ranzinzas e preguiçosas”. filhos e os filhos de seus filhos serão valentes
Meu pai deu uma pausa. Sabia que um e fortes”. E para presenteá-los, o grande herói
bom contador de histórias tem que dar tempo preparou um campo, semeou e mandou chuva
a quem ouve. Depois continuou. para regá-lo. E tão logo a chuva caiu nasceram
“Rairu ficou tão impressionado com a mandioca, o milho, o cará, a batata-doce, o
aquela novidade que decidiu rapidamente sair algodão, as plantas medicinais e muitas outras
do buraco para contar a Karu-Sakaibê, que já que servem, até os dias de hoje, de alimento
devia estar preocupado com sua demora. E para esta gente. Ainda os ensinou a construir
estava mesmo. Ele irritou-se tanto com o seu os fornos para preparar a farinha. Contam
companheiro que resolveu castigá-lo batendo nossos avós que foi assim que Karu-Sakaibê
nele com um pedaço de pau. Para se defender transformou nosso gente num povo forte,
o jovem contou sua aventura ao centro da valente e poderoso”.
terra e como ele havia encontrado gente lá. Quando meu pai terminou a história
Estas palavras chamaram a atenção de Karú, estava emocionado. Eu não senti nada de
que decidiu trazer toda esta gente para o diferente, se bem me lembro. Parecia uma
mundo de cima. E olhe que nem Rairu contava história comum demais, mas eu não quis
com essa decisão. Ficou preocupado de como estragar a emoção daquele momento, por isso
trariam toda aquela gente para ali. Karu- esperei que meu pai se refizesse e então fiz a
Sakaibê nem sequer tomou conhecimento da mais incrível pergunta: - E daí, papai?
dúvida do jovem e foi logo fazendo uma pelota Ele riu, sacudiu a cabeça e me
e enrolou-a na mão. Em seguida jogou a pelota abraçou. Disse que a partir dali não sabia mais
no chão e imediatamente nasceu um pé de de nada. O significado daquela história eu
algodão. Colheu o algodão e com suas fibras mesmo teria que encontrar observando as
fez uma corda que passou na cintura de Rairu “coisas” do mundo e as coisas que eu iria
e ordenou que fosse ao centro da terra buscar vivenciar dali em diante. Voltamos para casa.
as pessoas que lá ele vira. O menino obedeceu Meu pai estava satisfeito, eu um pouco
e meteu-se no mesmo buraco do tatu. Quando decepcionado por ter sido me dado apenas um
chegou por lá reuniu toda gente e falou das pedaço do fruto do conhecimento. Só mais
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tarde eu iria entender que o fruto inteiro não outra obrigação trazida pelo (des)encontro
nos é possível engolir. entre culturas diferentes: ela tinha que lavar
as roupas que usávamos. E era um trabalho
Conte outra, vovó! duro.
Minha vida na aldeia sempre foi um Era nisso que pensava quando minha
constante aprendizado. Desde a hora de avó acocorou-se ao meu lado. Seu corpo já
acordar até o adormecer somos inseridos estava tatuado pelas marcas do tempo, mas
numa constante e envolvente ação que nos seus cabelos guardavam uma dignidade muito
remete às necessidades básicas de mística e seus olhos revelavam mistérios que
sobrevivência. Sobra pouco tempo para a noite do tempo teimava esconder. Ela me
buscar respostas que, quase sempre, olhou com tamanho carinho que eu precisei
desejamos que estejam fora de nós. afirmar minhas mãos no chão para não cair
A verdade é que a história que meu para trás. Depois me disse:
pai contou – e para a qual não me deu - A gente não sabe de onde vieram
explicação alguma – ficou dentro de mim todas estas coisas que a gente não pode pegar
querendo brotar como se ele tivesse jogado que é o brilho do sol, a correnteza das águas, a
uma semente que precisasse ser cuidada. direção do vento. A gente não sabe onde é o
Sementes precisam de silêncio. Meu pai coração da mãe-terra de onde nossa gente foi
silenciou. Eu também. Mais uma vez me senti “pescada” por Rairu e Karu-Sakaibê. A gente
jogado no vazio de minha história. Embora eu não sabe por que não quer saber de verdade.
já soubesse que havia uma diversidade de Não tem precisão de saber. O que a gente tem
gente no mundo e que teve um começo que saber meu neto, é como cuidar do nosso
semelhante, pouco eu sabia sobre aqueles corpo para que os outros corpos que existem
outros povos que eram, segundo a história, no mundo não fiquem sem alimento também.
um único povo que vivia sob a terra e que fora - Por que vovó está me contando
separado por graça e obra de um ser criador. essas coisas?
O que me importunava eram as dúvidas que - Porque meu neto precisa entender
me surgiam sobre o lugar embaixo da terra. com a alma e não com a cabeça. Quando meu
Confesso que conversei por horas neto entender com a alma todas as perguntas
com os seres invisíveis da floresta. Andava de já estarão respondidas.
um lado para outro me esforçando para - Vovó sabe que não consigo
entender a história da origem dos povos. compreender ensinamentos tão difíceis e...
Perguntei para a árvore mais velha da aldeia. A velha mulher fez um gesto com as
Ela silenciou. Perguntei para o igarapé, avô mãos enquanto mantinha os olhos fechados.
que atravessa o mundo. Ele silenciou. Eu silenciei. Ela tirou o surrado vestido de
Perguntei para a mãe-terra. Ela nada explicou. chita e mergulhou nas águas do igarapé.
Todos queriam me dizer algo com aquele Quando voltou, trazia nas mãos uma pedra.
silêncio, mas eu nada ouvia, nada entendia e Mostrou-me com orgulho como se tivesse
isso me desesperava. ganhado um troféu. Sentou-se ao meu lado
Um dia estava sentado à beira do novamente.
igarapé enquanto minha mãe batia roupa em - O corpo de meu neto precisa do quê
companhia de vovó. Era um trabalho duro, para se manter em pé?
pensei. Em tempos antigos meus - Comida.
antepassados não usavam roupas tecidas de - E o que mais?
algodão. As roupas eram quase invisíveis - Bebida.
porque o corpo não tinha vergonha de se -?
mostrar. A vergonha estava em não saber Pensei por um instante. Depois
obedecer a tradição que alimentava o corpo, a balancei a cabeça negativamente. Ela
mente e o espírito. O corpo era apenas um entendeu que eu não sabia a resposta.
instrumento que carregava em si as - O corpo precisa de abrigo também. E
necessidades de alimento, de gozo, de guerra e a mente, do que precisa?
lazer. Sem o corpo a alma não goza, diz Adélia - Pensar – disse eu rapidamente antes
Prado. O corpo é um adereço necessário à que minha mãe – que já ouvia nossa conversa
alma, digo eu. E digo por que em tempos – respondesse.
antigos meus antepassados não usavam - Isso mesmo. Nossa mente precisa de
roupas e se sentiam perfeitamente vestidos. desafios. Os desafios chegam até nós para que
Nos meus tempos de criança minha mãe tinha possamos responder às necessidades do
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corpo. Para isso aprendemos a calcular as descobri que todos os povos contam sua
distâncias, a preparar nossas ferramentas, história de um jeito todo seu, mas a história da
fabricar nossos equipamentos. Tem algo mais humanidade – ou como os homens chegaram
que nosso corpo precisa? a dominar tudo – segue uma linha que precisa
Fiquei pensando um pouco fingindo ser repensada e reinterpretada para as outras
procurar uma resposta que eu não tinha. Ela histórias sejam inseridas a partir do ponto de
percebeu minha artimanha e sorriu. Passou a vista do outro.
mão na minha cabeça e falou sem pestanejar. Sei que ao narrar essa história
- Nosso corpo precisa acreditar em contada pelo povo Munduruku, alguém pode
algo também. ter tido duas reações: 1] Não compreensão do
- Como assim, vovó? que foi narrado e, portanto, ter se sentido
- Quando você ouviu a história da desmotivado para continuar a leitura; 2] A
saída dos antepassados do mundo debaixo partir do narrado começou a fazer ponte com
para o mundo de cima, o que achou que outros conhecimentos que traz consigo seja
estavam contando? por conta do curso superior que fez, pela
Silenciei. Não saberia explicar ainda educação de casa ou pela formação religiosa.
que a história tivesse suscitado em mim Essa tríade de formação nos coloca
diferentes reações. sob pontos de vistas que são modelados de
- Você duvidou sobre a veracidade acordo com o enfoque das histórias que
dela, não é mesmo? Eu também duvidaria. É ouvimos. Isso mesmo, a história é contada a
uma história que parece acontecer do nada. A partir de referenciais culturais e traz a visão
verdade é que não sabemos com certeza de quem a conta. Tem sido assim desde
absoluta como aconteceu no principio do sempre. Ou melhor, desde que o ser humano
mundo. O importante não é saber como colocou-se acima da natureza e passou a
aconteceu, mas sentir que o que aconteceu foi contar a história tendo como referência a si
um evento importante. Esse evento se chama mesmo e deixando os outros seres vivos às
consciência. Tomar consciência foi a grande margens. As conseqüências disso estão sendo
revolução que Rairu trouxe às pessoas que notadas diariamente através de teorias
estavam no mundo debaixo. Elas não sabiam equivocadas a respeitos dos outros seres
que havia outra maneira de viver. Quando humanos que não aceitaram essa visão
desejaram partir em busca desse novo mundo dominadora e truculenta.
puseram-se a caminho e muitos conseguiram
chegar lá em cima, mas outros não quiseram... Como nos é contada a outra
- Foi por isso que a corda se partiu – história?
eu disse num repente. Até agora contei a minha história.
- A corda é um símbolo que une e Contei como minha Gente Verdadeira –
separa os dois mundos. Undejnha, para os Munduruku – narra a
- Como minha avó sabe tanto? separação dos povos indígenas. Nessa
- Eu sou uma mulher velha, meu neto, história, os grupos são divididos por cores e
mas nunca fui cega. cada um segue seu caminho no mundo “da
- Posso fazer só mais uma pergunta? luz” uma vez que foram trazidos das trevas da
- Faça. ignorância. Cada povo se dispersou e passou a
- Karu-Sakaibê e Rairu existem de viver de acordo com seu conhecimento da
verdade? natureza criando seus instrumentos e
Minha avó olhou de soslaio para usufruindo das benesses que a grande Mãe-
minha mãe que escutava atenta nossa Terra lhes proporcionou. Aprenderam a caçar,
conversa. Depois me chamou bem pertinho pescar, coletar, enfim, retirar da terra tudo o
dela e encostando sua boca em meu ouvido que precisavam para satisfazer o próprio
disse: corpo. Além disso, organizaram-se em
- Para quem precisa deles, sim; para sociedades onde havia controle social que
quem não precisa, não. impedia que a população crescesse de tal
modo que se tornasse impossível alimentar a
Interpretando a vida. todos. Tal organização se sustentava na
Pode parecer enigmático o que foi disputa pelo poder interno que acabava sendo
dito até aqui, mas o fato é que isso aconteceu medido conforme a capacidade de liderança
de verdade. Foi assim que aprendi a vida de demonstrada no enfrentamento com outros
meu povo: ouvindo histórias. Assim eu povos, tornados inimigos.
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Olhando assim logo nascem milhares de anos até que, mais uma vez,
perguntas: essa gente não evoluiu? Eles decidiram seguir em frente. Alguns foram
ficaram parados no tempo? De onde vieram se para o oeste e ocuparam a região onde fica a
quando os europeus por aqui chegaram, eles Europa; outros seguiram para o leste onde
ainda eram primitivos? encontraram a Ásia, dando origem aos
É justamente aí que começa a ser asiáticos. Os habitantes das Américas são
contada a outra história. Ela será contada por descendentes dessa leva que rumou para o
aqueles que aqui chegaram trazendo consigo leste. Essa nova onda migratória é datada
uma visão da realeza humana (por isso eram entre 15 e 20 mil anos a.C. e pesquisas mais
governados por reis que se auto-intitulavam recentes como a da arqueóloga brasileira
deuses) e, portanto, com poderes de subjugar Niede Guidon garantem que a presença
a quem considerasse fora da esfera humana. humana em terras brasileiras são anteriores
Ou seja, os primitivos habitantes daquele novo há 10 mil anos. Na verdade, chega há 12 mil
mundo “descoberto”. anos esta presença levando em consideração o
E essa história – para o europeu de achado da ossada de uma mulher que ficou
1500 – começou com um mito criador contado conhecida como Luiza e que trazia aspectos
pelos hebreus há milhares de anos e que foi físicos muito parecidos com o dos africanos.
recontado para nós – de forma sutil e A teoria mais aceita é, portanto, a
convincente – ao longo de toda nossa asiática. Segundo ela, houve um tempo em que
trajetória histórica. Quando por aqui a Ásia viveu uma era glacial e levas sucessivas
chegaram, os europeus traziam marcadas na de mongóis atravessaram uma ponte de gelo
pele e na convicção de que estavam fazendo que se formou no Estreito de Bering, entre o
valer a ordem que o criador – conforme Alasca e a Sibéria rumando para a América
descrito no livro do Gênesis – lhes dera de onde foram se instalando em alguns casos, ou
dominar e submeter o mundo criado. desceram pelo litoral do Pacífico onde
Chegaram com a firme convicção de que, formaram civilizações como a dos astecas,
assim fazendo, estariam conquistando um maias e incas. A teoria diz também que pela
pedaço no paraíso celeste criado para acolher Colômbia, Peru e Bolívia estes grupos
as boas pessoas que andaram por esta terra adentraram em território brasileiro. E foram
fazendo o bem. Assim foi o começo do Brasil. estes habitantes que os europeus
No dizer de Roberto Gambini “o começo do encontraram vivendo uma vida
povo brasileiro é o começo do fim da alma completamente diferente daquela
ancestral da terra. É um instante de interseção, experienciada por eles que viviam em
em que algo principia e algo começa a ser sociedades complexas, organizadas de forma
extinto” (GAMBINI, 2000. p.23). piramidal. Esse era o modelo político e social
que conheciam e por isso não foi pequeno o
Teorias que contam história espanto que sofreram quando perceberam
Quando os portugueses por aqui que havia aqui, na terra brasilis, populações
chegaram encontraram grupos humanos. inteiras que teimavam viver num modelo
Ficaram aturdidos por conta disso, pois eram totalmente diferente. E porque estavam
pessoas, ainda que possuidoras de hábitos acostumados a uma sociedade estratificada –
estranhos a eles. No início até julgaram que reis, nobres, clero e povo – não conseguiram
não tinham alma tamanha a simplicidade ao atinar para a riqueza que aquela outra
relacionar-se com a natureza. Sim, eles experiência de vida oferecia. O caminho mais
estavam mais próximos da natureza do que da natural foi arrancar a riqueza possível,
cultura por eles representada. colonizar, catequizar e escravizar aquela
As pesquisas arqueológicas datam gente por serem consideradas fora do padrão
que a espécie humana apareceu pelo planeta a civilizacional.
cerca de 130 mil anos atrás. Sua origem A este propósito, vejam o que diz o
comum é a África. Durante muitos milhares de historiador Benedito Prezia:
anos permaneceram naquela mesma região
sem nunca sair dali. Somente há 50 mil anos é “A ocupação das terras do Brasil pelos
colonizadores portugueses, começou com a escravidão: a
que resolveram buscar outros recantos e se escravidão indígena. Rico, no período colonial, não era
espalhar pelo resto do mundo. As pesquisas quem tinha muita terra, mas quem tinha muitos escravos.
garantem que estes humanos caminharam por E não é de se admirar que a economia colonial tenha se
milhares de anos até chegarem ao Oriente estruturado a partir do trabalho escravo. Os primeiros
portugueses que aqui chegaram a partir de 1532, eram na
Médio e ali permaneceram por mais alguns realidade aventureiros, comerciantes e degredados, que
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pouca inclinação tinham para a lavoura. Nessa época, em visões opostas a cerca do mundo pode alterar
Portugal, era tida em desprezo e, em Lisboa, os escravos
a compreensão que temos do Outro. No caso,
eram em maior número do que a população lusitana”
(PREZIA. P. 26). os portugueses que chegavam e traziam em
sua teia de conceitos, crenças, medos e
O fato é que em 1500 – ano da ganância olhavam para aquela gente nativa
chegada dos portugueses – a terra que depois com um misto de curiosidade e espanto
viria a se chamar Brasil já era habitada por pensando, inclusive, terem chegado ao paraíso
aproximadamente 900 povos que falavam descrito no livro do Gênesis. Da parte dos
entre si algo em torno de 1300 línguas e indígenas havia também curiosidade, receio,
estavam espalhados por todo o território que mas especialmente, traziam consigo a vã
se constituiria, depois, o Brasil. Alguns esperança de aqueles forasteiros serem
historiadores e antropólogos – entre eles enviados dos deuses, de coração generoso e
Darcy Ribeiro – chegaram a garantir que havia bom. Naquelas grandes canoas que vinham
uma população que variava entre 5 e 8 sobre as ondas salgadas do mar estariam o
milhões de pessoas. Eram, em sua maioria, transporte que os levaria para “a terra sem
nômades – e o nomadismo tem a ver com uma males” propagada pelos profetas, os Karaíba,
concepção de pertencimento ao território que garantiam que era onde Maíra, o Deus
onde se vive e às necessidades de fundador, morava e a todos esperava
sobrevivência – e vagavam por diferentes (RIBEIRO, 1995. p.38).
geografias buscando alternativas econômicas. Eram, portanto, olhares difusos que
Os portugueses encontraram, em despertavam certo grau de esperança e medo.
primeiro lugar, os povos litorâneos, pois foi na A história, contada a partir da ótica dos
Bahia que ancoraram suas naus. Estes foram colonizadores, mostra quem foi o vencedor
suas “vitimas” preferenciais, porque foram nessa contenda.
pegas de surpresa por uma gente que esta Para ilustrar o que quero dizer,
totalmente diferente do que estavam transcrevo abaixo o depoimento de Davi
acostumadas a encontrar. Eram falantes do Kopenawa Yanomami. Ele narra seu primeiro
tupi, língua que foi aprendida por encontro com os “homens brancos”. Notem
colonizadores e missionários e que se tornou que esta liderança de nossos dias conta um
oficial até o século XVIII quando foi proibida acontecimento como se fosse a cena de um
pelo Marquês de Pombal. Os tupis – assim filme de aventura. E isso não foi no século XVI,
chamados por causa da língua – tinham uma e sim em pleno século XX. Ele diz:
“(...) Foi na época em que habitávamos
tradição agrícola e se fixavam mais ao solo.
Marakana que os brancos visitaram nossa casa pela
Essa experiência foi uma desculpa para a primeira vez. Eu era um menino, mas começava a tomar
escravização dos indígenas da família tupi que consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e
foram submetidos a maus tratos e descobri os brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada
deles. Nem mesmo pensava que eles existissem. Quando
desconsiderados em sua sabedoria ancestral.
os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam
Os outros povos que eram nômades – e que, encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que
portanto, pouco sabiam sobre plantar – eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os
acabaram sendo perseguidos, maltratados, achava muito feios, enbranquecidos e peludos. Eles era
tão diferentes que me aterrorizaram. Alem disso não
exterminados e desqualificados para o
compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas.
trabalho. Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas”.
Aqui valeria (Yanomami, 1999. Pág.17)
a pena pensar sobre
estas diferentes O texto abaixo pode ajudar a
concepções sobre o compreender melhor estes dois olhares
tempo e o trabalho. díspares, pois toca no cerne da questão da
Na verdade, essa escravidão indígena. Por outro lado, traz a
reflexão é necessária perspectiva indígena sobre sua compreensão
para podermos de tempo e trabalho...e isso interfere em muito
entender como na organização de sua vida.

(Ilustração de Maurício Negro)


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Sobre o tempo e o trabalho Viver o presente é olhar para si a cada dia e
“Índio é preguiçoso”, reza a lenda popular saber a necessidade daquele momento para o bom
calcada numa visão de trabalho tipificada pela andamento da comunidade e fazer o que for bom para
revolução industrial que defendia a máxima “tempo é ela e não para si. É dar mais atenção ao coletivo do
dinheiro”. que ao individual. E isso exige um esforço e
Embora seja óbvio o viés etnocêntrico – treinamento do corpo e da mente tão intensos que
teoria que preconiza a superioridade de um povo sobre torna o jovem indígena uma pessoa integral.
o outro se colocando como referência para tudo – o O mais importante, no entanto, do que quero
ocidente construiu um olhar sobre o trabalho dizer é que quem vive o presente não tem necessidade
colocando-o como o centro da vida, da realização e da de planejar. Planejamento é a tentativa de congelar os
dignidade da pessoa humana. E jogou por terra outros acontecimentos que virão. É ter a ilusão de que se está
pensamentos, outras teorias, outras práticas que não prevendo o futuro. E o futuro é pura ilusão.
levavam em consideração uma visão de tempo Quando, em tempos antigos, os portugueses
centrada na produção. tentaram escravizar os indígenas esses não aceitaram
Por que, dizem, que o índio é preguiçoso aquela imposição. Trabalhar, para o português
fazendo as pessoas criarem um estereótipo perigoso de colonizador, era acumular. Acumulação é uma das
povos tão diversos e distintos entre si? dimensões do futuro. Acumula-se, poupa-se, guarda-se
Para o indígena existem dois tempos: o com a intenção de utilizar depois, amanhã. Os
passado e o presente. O passado é memorial. Serve indígenas não sabem o que é o amanhã. E fugiram da
para nos lembrar quem somos, de onde viemos e para escravidão. Os portugueses inventaram, então, que
onde caminhamos. Um povo sem memória ancestral é eles eram preguiçosos demais para aquela função
um povo perdido no tempo e no espaço. Não sabe para nobre.
onde caminha e por isso se preocupa tanto aonde vai E assim ficou.
chegar. O passado é a ordenação de nosso ser no Tempo e trabalho não são sinônimos.
mundo. É ele que nos obriga a sermos gratos, a cantar Trabalho e dinheiro também não. Trabalho não
e dançar ao Espírito Criador. É ele que nos lembra o dignifica se ele escraviza. Trabalho demais nos dá
tempo todo que somos seres de passagem. tempo de menos. E tempo de menos tira da gente a
O outro tempo é o presente. Para estes povos alegria do encontro com os pais, com os filhos, com os
o tempo que importa é o presente. Meu avô afirmava amigos. Só o presente é um presente. O futuro é uma
sempre: “se o momento atual não fosse bom, não se promessa que pode nunca chegar. Os indígenas sabem
chamaria presente”. Os indígenas são, portanto, seres disso. Por isso vivem o momento.
do presente. Só sabem viver o e no presente. “A cada Daí depreende-se também muitas explicações sobre a
dia basta sua preocupação”, disse um certo pajé essência do ser indígena. Quem tem sensibilidade
chamado Jesus. saberá distinguir diferentes pensamentos presentes em
Viver o presente quer dizer que é preciso nosso mundo e descobrirá que a diversidade nos torna
significar cada momento. Desde o acordar pela manhã ainda mais coloridos.
até o momento do sonho tem que ser vivido com E queria dizer que é muito mais difícil viver
intensidade. Isso obriga o indígena a estar inteiro o presente. Exige muito mais de cada um. O sonho – o
numa ação sem desviar-se dela. Uma caçada será futuro – nos desobriga a olhar para o lado e ver a
frutífera à medida em que o caçador estiver envolvido necessidade diária do outro. O futuro nos torna
nela, caso contrário não levará nada para casa. egoístas e mesquinhos. Só o presente nos compromete.

Como pode perceber, esse olhar que A cultura grita pela história
apresento joga por terra a ideia de que os O que é cultura? Quando ela se inicia?
povos indígenas são preguiçosos. Na verdade, Quem faz cultura?
considerar a visão de trabalho que estes povos É relativamente comum falarmos
desenvolveram – e que tem uma leitura sobre sobre isso quando lidamos com o tema dos
a realidade que os cerca – e comparar com o povos indígenas. É um tema forte porque nos
“progresso” trazido pela revolução industrial coloca no “olho do furacão” inclusive para
e pelo sistema capitalista, é tirar conclusão podermos compreender as teorias que “fazem
precipitada e injusta, pois isso pode levar ao nossa cabeça” quando tratamos da
preconceito, à intolerância e ao juízo de valor diversidade cultural.
que desmerece o desenvolvimento que outros Os Munduruku, por exemplo, somos
povos se impõem. Infelizmente, no entanto, undejenha. Essa palavra quer dizer Gente. Os
essa visão equivocada ainda está presente no Xavante são awé-uptabi, que também quer
cotidiano da vida dizer Gente verdadeira. Os Bororo, são boé,
Gente. E assim continuaríamos até
brasileira, sendo reproduzida pela escola que repassarmos os mais de 300 povos que
não tem se atualizado sobre os novos habitam nosso país nos dias de hoje. O que é
conhecimentos gerados por pesquisadores. incrível é perceber que todos eles se auto
intitulam gente verdadeira.
IDENTIDADE E DIVERSIDADE
Formação e Saber indígena
O que está expresso aqui é uma de atraso cultural, pois isso seria
reação cultural tomada por cada povo em desconsiderar o tempo e a necessidade que
particular: todos são gente verdadeira. O que cada povo precisa para reelaborar seus
os diferencia é a forma que encontraram para comportamentos. Ao focar uma cultura
manifestar a originalidade própria. Ser Boé ou qualquer sob a ótica da cultura que vivemos
Awé-Uptabi não é a mesma coisa. São duas estaremos cometendo o que a antropologia
maneiras de compreender o mundo. Tal chama etnocentrismo2.
compreensão e seu desenvolvimento é o que
chamamos cultura. E ela é múltipla como são Resumo da Oca
múltiplas as experiências de humanidade. Os povos indígenas estão presentes no
território brasileiro há milhares de anos – cerca de 12 mil
Estas experiências inventariam modos de – mesmo antes de o Brasil ter esse nome. Aqui chegaram
sobrevivência, de crença, de educação. Cada atravessando agruras geográficas, climáticas e culturais.
cultura basta a si mesma e não há como medir Muitos dos grupos originários que enfrentaram o desafio
a felicidade alcançada por uma ou outra de terem melhores condições de vida foram se
estabelecendo em determinadas regiões e criaram seu
sociedade. No dizer de Câmara Cascudo “não estilo de vida próprio a que chamamos cultura. Esse estilo
há culturas inferiores e nem culturas foi sendo aprimorado ao longo do tempo, mas era
superiores. Há sempre culturas, reuniões de basicamente movido pelo instinto de sobrevivência
técnicas suficientes para a vivência grupal. Não baseado numa concepção de pertencimento ao cosmos.
Tal visão de humanidade provocou constantes
se sentem inferiores e nem subalternos. Têm aperfeiçoamentos seja na cultura material (criação de
quanto precisam. A diferença é pura objetos cada vez mais sofisticados para o uso cotidiano)
confrontação de padrões estrangeiros”. seja na compreensão de humanidade (repassada às novas
(Cascudo, 2004. Pag. 18). gerações por um sistema educacional baseado na
oralidade).
Dito isso, e dessa maneira, penso Quando os colonizadores europeus por aqui
poder avançar na saga de contar a história do aportaram foi assim que encontraram estes povos
ponto de vista dos povos indígenas. Que fique organizados. Embora fascinados com toda essa riqueza
claro de início: o Brasil é um país cultural, foram incapazes de valorizar tal experiência e
seguiram pelo caminho que lhes parecia mais natural: a
multicultural. Suas culturas são fluidas porque escravização, o extermínio, a desmoralização cultural.
em constante contato entre si. São também Assim faziam por pertencerem a uma cultura dita
permanentes, porque embasadas numa civilizada que não aceitava (hoje ainda não aceita) outros
tradição que perdura há milênios. modos de pensamento que não aquele organizado
hierarquicamente. A não aceitação desse pensamento
Como os povos indígenas entendem criou uma barreira conceitual que ainda hoje impede um
sua cultura? O indígena pensa-se como encontro possível entre estes olhares diversos.
pertencendo ele mesmo à natureza, como uma O Brasil não conhece sua sociodiversidade
espécie entre as outras, ainda que mais nativa. Ainda está à mercê de [pré]conceitos
quinhentistas, pois não consegue acompanhar a riqueza
importante. Ao pensar assim, o indígena da diversidade reproduzindo estereótipos e
compreende que sua participação na grande desvalorizando os saberes ancestrais dos povos indígenas
teia da vida é, basicamente, fortalecê-la para brasileiros.
que todos os seres vivos possam usufruir das
dádivas que ela oferece. Dessa maneira os
indígenas sentem que estão contribuindo para
“manter o céu suspenso” e partícipes na co-
criação do cosmos. Isso tudo em parceria 2
Etnocentrismo é um conceito da Antropologia definido como
direta com todos os viventes. a visão demonstrada por alguém que considera o seu grupo
A cultura vai, portanto, além da étnico ou cultura o centro de tudo, portanto, num plano mais
confecção de objetos que ofereçam melhores importante que as outras culturas e sociedades. O termo é
formado pela justaposição da palavra de origem grega "ethnos"
condições de sobrevivência. Ela é condição que significa "nação, tribo ou pessoas que vivem juntas" e
sine qua non para que a humanidade de um centrismo que indica o centro.
Uma visão etnocêntrica demonstra, por vezes,
povo se mostre com toda sua intensidade. desconhecimento dos diferentes hábitos culturais, levando ao
Lembro que nenhuma cultura é estática, desrespeito, depreciação e intolerância por quem é diferente,
originando em seus casos mais extremos, atitudes
parada no tempo. A cultura se caracteriza por preconceituosas, radicais e xenófobas.
seu dinamismo. Para alguns povos essas É importante reter que o relativismo cultural é uma ideologia
que defende que os valores, princípios morais, o certo e o
mudanças acontecem lentamente, pois o errado, o bem e o mal, são convenções sociais intrínsecas a
tempo que elas dispõem para isso não tem a cada cultura. Um ato considerado errado em uma cultura não
velocidade da tecnologia capaz de criar significa que o seja também quando praticado por povos de
diferente cultura. (Fonte
comportamentos de forma instantânea como http://www.significados.com.br/etnocentrismo/ - acessado em
a que se vive no mundo globalizado. Também 04/09/12)

não deve fazer comparações ou insinuações


IDENTIDADE E DIVERSIDADE
Formação e Saber indígena
CRIANDO PIOLHOS parcela de ancestralidade há em você? Ela é
O que fazer com isso que agora sei? europeia, africana, indígena? Como seu
espírito se percebe habitando seu corpo?
Minha sugestão é que você, amigo/a, Onde mora sua origem?
faça uma reflexão em torno de sua identidade No final, leia o texto abaixo:
étnica. Você sabe de onde veio? Quem são
seus pais e de onde eles vieram? Qual a
os mulçumanos; os evangélicos; os pajés da Sibéria, dos
NÃO SOMOS DONOS DA TEIA DA VIDA Estados Unidos; os Ainu do Japão, os Pigmeus; os
Daniel Munduruku educadores e mestres...descobri que todas estas pessoas,
em qualquer parte do mundo, praticando suas ações
Meu avô costumava dizer que tudo está buscando o equilíbrio do universo, estão batendo seu
interligado entre si e que nada escapa da trama da vida. maracá. Entendi, então, a lógica da teia. Entendi que cada
Ele costumava me levar para uma abertura da floresta e um dos elementos vivos segura uma ponta do fio da vida e
deitava-se sob o céu e apontava para os pássaros em o que fere e machuca a Terra, machuca também a todos
pleno vôo e nos dizia que eles escreviam uma mensagem nós, os filhos da Terra.
para nós. "Nenhum pássaro voa em vão. Eles trazem Foi aí que entendi que a diversidade dos povos,
sempre uma mensagem do lugar onde todos nos das etnias, das raças, dos pensamentos é imprescindível
encontraremos", dizia ele num tom de simplicidade, para colorir a Teia, do mesmo modo que é preciso o sol e
simplicidade dos sábios. a água para dar forma ao arco-íris.
Outras vezes nos colocava em contato com as
estrelas e nos contava a origem delas, suas histórias. Fazia
isso apontando para elas como um maestro que comanda
uma orquestra.
Confesso que não entendia direito o que ele
queria nos dizer, mas o acompanhava para todos os
lugares só para ouvir a poesia presente em sua maneira
simples de nos falar da vida.
Numa certa ocasião ele disse que cada coisa
criada está em sintonia com o criador e que cada ser da
natureza, inclusive o homem, precisa compreender que
seu lugar na natureza não é ser o senhor, mas um
parceiro, alguém que tem a missão de manter o mundo
equilibrado, em perfeita harmonia para que o mundo
nunca despenque de seu lugar. "Enquanto houver um
único pajé sacudindo seu maracá, haverá sempre a
certeza que o mundo estará salvo da destruição". Assim
nos falava nosso velho avô como se fossemos - eu e meus
irmãos, primos e amigos - capazes de entender a força de
suas palavras.
Só bem mais tarde, homem adulto, conhecedor
de muitas outras culturas, pude começar a compreender a
enormidade daquele conhecimento saído da boca de um
velho que nunca tinha sequer visitado a cidade ao longo
de seus mais de 80 anos. Percebi, então, que meu avô era
um homem com uma visão muito ampla da realidade e
que nós éramos privilegiados por termos convivido com
ele.
Estas lembranças sempre me vêm à mente
quando penso na diversidade, na diferença étnica e social.
Penso nisso e me deparo com a compreensão de mundo
dos povos tradicionais. É uma concepção onde tudo está
em harmonia com tudo; tudo está em tudo e cada um é
responsável por esta harmonia. É uma concepção que não
exclui nada e não dá toda importância a um único
elemento, pois todos são passageiros de uma mesma
realidade, são, portanto, iguais. No entanto, não se pode
pensar que esta igualdade signifique uniformidade. Todos
estes elementos são diferentes entre si, tem uma
personalidade própria, uma identidade própria.
Através de minhas leituras e viagens fui
compreendendo, aos poucos, aquilo que o meu avô dizia
sobre a sabedoria que existem em cada um e todos os
seres do planeta. Descobri que não precisa ser xamã ou
pajé para chacoalhar o maracá, basta colocar-se na
atitude harmônica com o todo, como se estivéssemos
seguindo o fluxo do rio, que não tem pressa...mas sabe
aonde quer chegar. Foi assim que descobri os sábios
orientais; os monges cristãos; as freiras de Madre Teresa;
IDENTIDADE E DIVERSIDADE
Formação e Saber indígena
Para ilustrar o tema, cantem a letra Editora: Objetiva, 1998.
da música Mestiçagem, de Antonio Nóbrega.
Título: O banquete dos Deuses – Conversas sobre a
origem e a cultura brasileira.
Mestiçagem Autor: Daniel Munduruku
Editora: Global, 2009.
Uma negra com um branco
Vi casar na camarinha, Título: Mundurukando
Um branco com uma índia Autor: Daniel Munduruku
Vi casar lá na matinha, Editora: Uka Editorial, 2009.
Um negro com uma índia
Vi casar na capelinha.
Um negro com uma negra
Título: O Karaíba – Uma história do pré-Brasil
Vi casar atrás do muro, Autor: Daniel Munduruku
Um branco com uma branca Editora: Amarilys, 2009.
Vi casar lá no escuro,
Um índio com uma índia Sites e blogs:
Casaram em porto seguro. www.danielmunduruku.blogspot.com
Eu vi nascer um mulato www.socioambiental.org
Do casal da camarinha,
Vi nascer um mameluco
www.funai.gov.br
Do casal lá da matinha, www.museudoindio.org.br
Eu vi nascer um cafuzo www.indiosonline.org.br
Do casal da capelinha. www.inbrapi.org.br
Eu vi nascer um crioulo www.coiab.com.br
Do casal de atrás do muro, www.videonasaldeias.org,br
Eu vi nascer um mazombo
Do casal lá do escuro,
Eu vi nascer outro índio
Filmes e Vídeos
Do casal porto seguro.
Uma mulata moleca No site da ONG Vídeo nas Aldeias, o professor poderá
Vi casar com um japonês, baixar diversos filmes sobre a temática indígena. Alguns
Uma catita cafuza deles realizados por cineastas indígenas.
Com um sírio-libanês, Alguns títulos:
Crioulo com alemoa A gente luta, mas come fruta – Povo Ashaninka/AC
Vejo casar todo mês.
Me casei com uma mestiça
Cineastas Indígenas – Diversos realizadores indígenas
Eu mestiço por inteiro, mostram seus trabalhos
Tivemos muitos mestiços Olhares indígenas – Curtas metragens que apresentam
Cada vez mais verdadeiros, recortes da vida indígena.
Cada vez mais misturados,
Cada vez mais brasileiros. Vale a pena conferir os filmes:
(fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ThZ4Df33S6A)
A Missão, com Robert De Niro
Narra a saga dos missionários jesuítas dispostos a
Para saber mais catequizar os indígenas da América Espanhola. É um
Abaixo deixo algumas sugestões de leituras, sites e filmes filme épico. Com ele é possível discutir diversos aspectos
que podem ajudar no aprofundamento do estudo sobre a da ação colonizadora nas Américas.
história brasileira. Ela foi a base de minha pesquisa para https://gloria.tv/video/3hF314UDFYMBARE1dCdnCtcqf
contar a vocês esta história.

Título: O povo brasileiro – Formação e o sentido do Apocalipto – dirigido por Mel Gibson
Brasil. Um filme muito bem escrito e dirigido. Mostra a luta pela
Autor: Darcy Ribeiro sobrevivência de povos anteriores ao contato com a
Editora: Companhia de Bolso, 1995. cultura ocidental. Licenças poéticas a parte, o filme
retrata o modo indígena de viver.
Título: A outra margem do ocidente https://www.youtube.com/playlist?list=PLP43cU4SU9
Ailton Krenak, Davi Yanomami e outros autores mXE1m9V1T0gJYABYoJbI1Il
Editora: MINC-FUNARTE/Companhia das Letras, 1999.

Título: Civilização e cultura Terra Vermelha – Produção Nacional vencedora de


Autor: Câmara Cascudo vários prêmios, dirigida por Marco Bechis e roteirizado
Editora: Global, 2004. por Luiz Bolognesi.
É um longa-metragem falado em Guarani que se passa no
Título: Espelho Índio – a formação da alma Mato Grosso do Sul. Retrata a luta desse povo para
brasileira. conseguir sobreviver em meio às lutas por terra naquele
Autor: Roberto Gambini Estado.
Editora: Axis Mundi/Terceiro Nome. 2ª. Edição, 2000. https://www.youtube.com/watch?v=nOCFZWF_Wb4

Título: Uma breve história do Brasil Juruna, o espírito da Floresta, do cineasta Armando
Autores: Mary Del Priore e Renato Venancio Lacerda
Editora: Planeta, 2010. É um longa-metragem que documenta a trajetória do
líder xavante, único indígena a ocupar uma cadeira na
Título: A viagem do Descobrimento: a verdadeira câmara federal. Sua presença no cenário político
história da expedição de Cabral questionou o modo brasileiro de fazer política baseado
Autor: Eduardo Bueno na troca de favores e em promessas nunca cumpridas.
IDENTIDADE E DIVERSIDADE
Formação e Saber indígena

Corumbiara, de Vicent Carelli.


Um filme documentário sobre um dos mais covardes
massacres contra um povo indígena que se tem notícia.
Nos dias atuais, a colonização violenta ainda faz parte de
nossos noticiários.
Filme Completo
https://www.youtube.com/watch?v=QiBh5jNGSpI

Martírio, de Vicent Carelli


Uma análise da violência sofrida pelo grupo Guarani
Kaiowá, uma das maiores populações indígenas do Brasil
nos dias de hoje e que habita as terras do Centro-Oeste,
entrando constantemente em conflito com as forças de
repressão e opressão organizadas pelos latifundiários,
pecuaristas e fazendeiros locais, que desejam exterminar
os índios e tomar as terras para si.
Thriller de abertura
https://www.youtube.com/watch?v=5zVzRAiDR78

Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi


Thriller de abertura
http://www.adorocinema.com/filmes/filme-
261394/trailer-19558141/

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