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Um Pouco de NóS

Esta não é apenas uma autobiografia. Esta é uma verdadeira história de superação.
ÍNDICE

I PARTE

Capítulo 1 - 1982/1992 – ÉPOCA DE NASCER E BRINCAR


Capítulo 2 - 1995 – ÉPOCA DE ESTUDAR E SONHAR
Capítulo 3 - 1995/1997 – ÉPOCA DE APRENDER A CRESCER
Capítulo 4 - 1998 – ÉPOCA DE MUDANÇAS DRAMÁTICAS
Capítulo 5 - 1999 – ÉPOCA EM QUE OS ANJOS NOS VISITAM
Capítulo 6 - 2000/2003 – ÉPOCA EM QUE QUASE NADA ERA AMOR
Capítulo 7 - 2004 – ÉPOCA DE PERDAS
Capítulo 8 - 2005/2007 – ÉPOCA DE APRENDER A VIVER
Capítulo 9 - 2008/2009 – ÉPOCA DE LUTAR
Capítulo 10 - 2010 – ÉPOCA DE RECOMEÇAR

II PARTE

Capítulo 11 - “CASA DE SEU AMADEU”


Capítulo 12 - “CASA PEQUENA”
Capítulo 13 - “CASA DOS RATOS”
Capítulo 14 - “CASA DA RUA CEARÁ”
Capítulo 15 - “CASA PERTO DO GEO”
Capítulo 16 - “APARTAMENTO DO PRIMEIRO ANDAR I”
Capítulo 17 - “APARTAMENTO DO PRIMEIRO ANDAR II”
Capítulo 18 - “APARTAMENTO DE MARCELLU´S PIZZARIA”
APÊNDICE
DEDICATÓRIA
Às minhas filhas: Cayane (in memorian), Amanda, Jamyly, Giulia, Clara e Lara... responsáveis por me
fazer continuar vendo sentido na vida e me ensinar cotidianamente a buscar formas de acreditar nela
através das suas existências.
Enquanto escrevo essas linhas, uma das pequenas responsáveis por nutrir os meus dias de vida, dá-
me um beijo amoroso no rosto e pergunta:
Mamãe, cuscuz com ovo é almoço?
E eu sorrio agradecida, somente pela oportunidade de ouvir uma voz tão doce.
No entanto, quero deixar registrado aqui um pensamento. Apesar de ser mãe, houve um período em
minha vida em que eu não quis ser adulta (se é que vocês me entendem), e o motivo é muito simples: Ser
criança (até os sete anos de idade) me proporcionava a possibilidade de ser quem eu quisesse ser.
Quando menina, apreciava a ideia da pureza, da paz e tranquilidade que rondava a minha mente da
mesma forma que apreciei a nuance de ingenuidade contida na frase da minha pequena flor. As lembranças
mais sublimes daqueles anos de criança ainda estão em minha memória, e volta e meia eu flutuo em cada
uma delas, e lá me percebo de verdade.
E se você é gente adulta ou não, quero primeiro lhe agradecer pelo tempo em que se dispuser a
costurar as palavras contidas nesta história, tal qual uma colcha de retalhos, e te dar uma dica infalível para
reviver quem você nunca deveria ter deixado morrer algum dia; a criança que sonha. Ou para se redês-
dobrar como adulto, caso você ainda esteja se descobrindo como um. A dica é:
Vá para um lugar calmo, leve seus fones de ouvido e folheie esse livro acompanhado (a) de uma
melodia instrumental da sua preferência (foi dessa forma que escrevi essas linhas). Caso a ideia não agrade,
ignore-me completamente e leia essas páginas da forma que você preferir.

E lembre-se:
Crescer é estar em lugares que você nunca imaginou, fazendo coisas que nunca fez, mas que são
absolutamente indissolúveis e muitas vezes, inevitáveis.

Aos que me conhecem,


Se o seu nome está aqui (dito ou não dito), você é/foi importante nesse processo.
Obrigada por sua existência.
Ela ensinou-me a evoluir.

Boa leitura.
I PARTE
Lembro que o lugar tinha um verde que aos meus olhos parecia indescritível

Das folhas caídas pelo chão e pés de jacas cheios de cigarras que cantavam um canto tão estridente
quanto agradável

Das árvores que davam um mel que a gente gostava de beliscar e pôr na boca enquanto brincava

Da sensação deliciosa dos pés pisando nas folhas secas com medo de pisar em bichos

Das marcas deles sujos de lama no tapete encardido quando voltava para casa ao entardecer

Do cansaço no corpo depois de um dia exaustivo de tanto brincar e correr

De adultos gritando que horas são essas para chegar

Do banho que nos davam com o solado do chinelo e que tirava todo o grude do corpo

Da janta quentinha antes da novela das oito

Das camas amontoadas no mesmo quarto

Dos irmãos se implicando feito gato e rato

Das conversas de criança sem sentido e das risadas fora de hora antes que os olhos pesassem

Da mãe resmungando da sala enquanto via a novela: - Shiiiii... vão dormir!

E de dormirmos um sono despreocupado querendo logo que o dia amanhecesse

Que era para gente brincar de novo, tudo de novo outra vez.

1982/1992 – ÉPOCA DE NASCER E BRINCAR

1982 - Antes, quando eu ainda nem existia, diziam que tudo começou em uma casinha que não era
dos meus pais, mas sim do pai de criação do meu pai, e que essa casinha ficava nos arredores de uma
cidade no interior da Paraíba chamada Arara, que os moradores do lugar dizem até hoje que nunca chegará
a lugar algum em termos de crescimento, assim como também nunca se extinguirá, pois reza a lenda que a
cidade estagnou, assim como o seu nome. E se você tiver dúvidas sobre isso, escreva o nome da cidade de
trás para frente e depois de frente para trás. Eu tenho lá minhas dúvidas acerca dessa superstição por
acreditar que onde existem pessoas existe também a primazia absoluta da capacidade de sobreviver e de
evoluir, apesar de tudo. Soube mais tarde que foi para essa casa que meu pai levou minha mãe depois que
ela fugiu da casa da minha avó para viver com ele. Era costume levar embora da casa dos pais moça virgem
antigamente. Também soube que nela tinha tudo o que tem nas casas das pessoas daquele lugar.

Uma estrutura de alvenaria, com uma rede na sala e um pote de água visível, que era para os
passantes cansados poderem matar sua sede após um longo dia no roçado. Tinha também fotos de santos
em todo lugar que nas paredes não podiam faltar, pois eram esses santos que protegiam a todos das mazelas
humanas. A principal delas, uma foto do Padre Ibiapina, o religioso precursor daquela região, que mesmo
depois de morto, continuava fazendo milagres na vida dos moradores. Um fogão a lenha, umas panelas de
barro, um quintal que servia de lavoura, cisternas gigantes abastecidas com água para acudir quando a seca
surgia, perto de lá tinha um rio poluído para as mulheres lavarem as roupas, e também um velhinho
moribundo à espera da sua hora num colchãozinho de agave, que depois de tanta luta da minha mãe
cuidando-o na sua velhice, ele enfim descansou, e assim minha mãe e meu pai foram embora dali continuar
a viver suas vidas de recém-casados numa terra vizinha.
Solânea é o nome da cidade. Uma região que diferente de Arara, emancipa-se todos os dias, com
seus diversos comércios, seu grande Mercado Público, seu clima tipicamente semiárido e seu povo
trabalhador.

...

1983 - Foi nessa cidade que minha mãe engravidou alguns meses depois que foi morar com meu
pai, e teve seu primeiro aborto aos oito meses de gestação, causado por um triste episódio, onde um
cachorro de rua um dia entrou em sua casa enquanto ela estava no armazém comprando alguns
mantimentos. Acontece que ela esqueceu de fechar a porta no ferrolho, e quando voltou para casa deparou-
se com o animal vindo impulsivamente em sua direção sem que ela esperasse, subindo em sua barriga
como que para brincar. No dia seguinte um sangramento com dores muito fortes ocorreu, fazendo com que
ela recorresse a uma vizinha e senhora parteira que lhe disse que ela tinha perdido o seu bebê, ajudando-a,
depois de muita força, a tirá-lo de dentro dela. E depois de alguns meses, ela engravidou outra vez.

...

1984/1986 - Nasci na casa que minha mãe teve seu primeiro aborto, mas antes de mim, quem
nasceu foi meu irmão (1984), e desse lugar não tenho mais recordações, além das que ouço dos meus pais,
e sinto que só comecei a existir quando, ainda menina, comecei a assimilar os novos ambientes que agora
descreverei.

...

1990 – Para chegar até lá era preciso descer a rua sem calçamento até a última casa.

Lá em baixo dava para ver uma casinha simples e mal iluminada pela falta de eletricidade e que
acolhia minha mãe, meu pai, meus irmãos e eu. O chão era de piso queimado e na sala tinha uma estante
com uma TV em preto e branco, próximo a umas cadeiras que serviam para a visita se sentar. Nas paredes
tinham, como de costume: um quadro de Santo Antônio apoiado em seu cajado com seu carneirinho e uma
foto recente da minha mãe com minha irmã no colo, tendo ao seu lado, meu irmão, e do outro lado estava
eu. No estreito corredor tinham dois pequenos quartos. Num dos quartos tinha uma cama de casal e um
guarda-roupas velho de madeira tubular. No outro, tinham duas camas de solteiro já gastas, onde dava para
dormir emaranhado. Na cozinha tinha uma mesa de madeira sucinta com quatro cadeiras e um armário
marrom marfim. No quintal tinha um pequeno banheiro, um buraco gigantesco de esgoto, uns tocos de
árvores caídos no chão, um fogareiro de lenha e carvão, um chão muito lamacento e muita vegetação. O
cenário perfeito para alimentar a minha imaginação infantil. Ainda dentro de casa e sobre a pia da cozinha
tinha um filtro de barro, que meu irmão um dia fez de conta que era um cavalo, ou bode, ou cabra, ou coisa
parecida, amarrando-o e puxando-o, fazendo com que seus pedaços se estraçalhassem pelo chão, inundando
toda a cozinha de água e deixando nossa mãe muito brava e muito preocupada, vindo correndo ver o que
tinha acontecido, pensando que tivéssemos feridos. Do outro lado do quintal tinham muitas árvores, e eu
me lembro de uma ribanceira onde tinha uma ponte improvisada de madeira apodrecida, que servia como
atalho para chegar à parte central da cidade através de um beco estreito que dava acesso a escola que
futuramente iríamos estudar. Enquanto a idade não chegava e a escola não era uma obrigação, acordávamos
de manhãzinha para irmos brincar no quintal daquela casa, mas antes, tomávamos café quentinho com
bolachas meticulosamente compartilhadas de forma igual pela nossa mãe. Depois disso, íamos correndo ser
crianças sem medo do amanhã. De vez em quando ela se esquecia que estávamos ali, porque tinha que
ficar revezando seus cuidados conosco, entre as roupas sujas para lavar, a comida no fogo, a casa para
arrumar e o bebê que acabara de nascer e que dormia e acordava na rede e pedia colo o tempo todo. Desta
feita então, aproveitávamos seu descuido para passar por uma cerca de arame farpado e ir brincar do outro
lado, onde tinha um pequeno sítio. E era ali que toda a magia acontecia. Aquele lugar nos proporcionava
verdadeira liberdade. Lá podíamos colocar os pés na lama e sujar as mãos e as roupas, sem nos sentirmos
sujos, mas sim cobertos de infância, e éramos completamente felizes até nossa mãe nos chamar no
finalzinho do dia.

...

MÃE

A minha mãe tem o dom de economizar. Ela é uma nordestina nata, que se adaptou com as
dificuldades e a típica escassez das pessoas simples do lugar, zelando cuidadosamente das poucas coisas
que possuía. Nasceu e cresceu em Arara, um lugar de onde eu tenho grandes recordações da minha
infância, pois é lá que minha avó mora, e foi lá que ela também ajudou a nos criar.

Desde muito criança minha mãe conhece a pobreza e as tristezas da vida. As viu incialmente nos
olhos da minha avó quando ainda era uma menina. As viu refletidas em cada lágrima que caía dos olhos
dela. Uma mulher, cujo marido esquizofrênico e que não conhecia a própria esquizofrenia, batia-lhe com
socos e pontapés sempre que o vício da bebida era maior e as crises surgiam. Minha mãe e suas irmãs e
irmãos também eram vítimas das violências causadas por ele. Minha avó ficou surda de um ouvido por
causa das pancadas recebidas quando meu avô. Ele morreu quando eu ainda era bem pequena e a única
recordação que tenho da sua existência, são os lapsos de memória de um quadro em preto e branco que
tinha na casa da minha avó. Antes do meu avô adoecer, diziam que ele era um agricultor que plantava
agave nas terras dos fazendeiros da família Caricé e que ele era um homem bom antes de se deixar levar
pelo vício da bebida e começar a manifestar a sua doença, da qual sofreu até os últimos dias de vida.

Certo dia, em uma das suas crises esquizofrênicas, ele foi internado em um manicômio da cidade
grande e essa ficou sendo sua rotina em um longo período de tempo sempre que as crises surgiam. Foi num
desses dias, que como alternativa de tratamento, a última descarga de choque elétrico que era aplicada para
acalmá-lo o paralisou, extinguindo a sua existência algum tempo depois. Minha avó ficou aqui, viúva e
jovem, com seus oito filhos sobreviventes ainda pequenos e precisou pedir esmolas e fazer faxinas para
conseguir criá-los. Enquanto isso, minha mãe crescia e a ajudava no que fosse preciso na época para que
minha avó pudesse prover o sustento de todos.

Estudar nunca foi prioridade para minha mãe, mesmo que ela gostasse, nem poderia ser. Era
preciso cuidar dos irmãos, fazer a comida, arrumar a casa e lavar as roupas enquanto minha avó trabalhava
em casas de famílias como empregada doméstica quando as oportunidades surgiam. Era preciso sobreviver,
por isso sempre que ela tinha que fazer algo que não fossem essas coisas importantes naquele instante
(estudar, por exemplo), minha avó a repreendia pedindo que ela priorizasse o que era prioridade, além do
mais, o dinheiro mal dava para comer, imagine para comprar lápis e cadernos. Era preciso conciliar os
estudos com as obrigações da casa e com os cuidados com os irmãos mais novos, e foi assim que ela se
tornou uma mulher apropriada para casar. Era bonita, conhecia todas as técnicas domésticas, além de ser
alguém que conhecia o valor do próprio corpo, e eu ouso dizer que ela aprendeu isso com minha avó.
Imagino que sempre que a via sendo agredida fisicamente pelo meu avô ou quando ela própria era
agredida, pensava: Eu nunca permitirei que outro homem faça isso comigo. E nunca permitiu.

Minha mãe fugiu com meu pai quando ainda tinha dezessete anos de idade. Ela tinha o sonho de
muitas meninas daquele lugar. Constituir uma família e ser uma mulher feliz. E, apesar desse livro contar a
minha história, sinto que essa parte precisava estar aqui, especificamente nesta página. Na minha mãe não
existe perfeição, no entanto, algumas de suas atitudes muitas vezes me moldaram e hoje sou partícula de do
que ela representou em minha existência. Se há alguém nesta vida para quem que eu possa dedicar o texto a
seguir, esse alguém é minha mãe. Uma mulher que tanto ainda sente e tanto ainda chora, fazendo de conta
que já foi verdadeiramente amada como deveria ser. Alguém tão rude quanto um adulto exaurido, tão frágil
quanto uma criança perdida, e tão forte e corajosa quanto uma super mulher.

“Faz de conta que ela era uma princesa azul pelo crepúsculo que viria, faz de conta que a infância
era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que sangue
escarlate não estava em silêncio branco escorrendo e que ela não estivesse pálida de morte, estava pálida
de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz-de-conta falar a
verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz-de-conta verde cintilante de olhos que veem, faz
de conta que ela amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que
estava deitada na palma transparente da mão de Deus, faz de conta que vivia e que não estivesse
morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não
ficava de braços caídos quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino
fio frio, faz de conta que era sábia bastante para desfazer os nós de marinheiros que lhe atavam os pulsos,
faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua, faz de conta que ela fechasse os
olhos e os seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos da gratidão mais límpida, faz de conta
que tudo o que tinha não era de faz-de-conta, faz de conta que se descontraíra o peito e a luz dourada a
guiava pela floresta de açudes e tranquilidade, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela
não estava chorando.”

Poema “Faz de Conta”, de Clarisse Lispector.

...

1992 - Existe algo sublime no sofrimento. Ele é doloroso, no entanto, quando vivido
conscientemente, produz força e esperança, mesmo quando as circunstâncias não permitem que a
tenhamos, e esse é o motivo de ainda insistirmos em querer sobreviver.

Onde nasci a grande maioria das pessoas não costuma ler ou escrever e isto causa um tipo de
cegueira e limitação crítica acerca da realidade. Esse analfabetismo pedagógico não tira dessas pessoas a
essência inocente da esperança de dias melhores, tornando-os alheios e submissos às máscaras que colocam
em seus rostos. Uma espécie de submissão que permite que a cultura política do meio em que elas estão
inseridas economicamente as delimite a aceitar, ter e ser o que dizem que elas nasceram para ser. Meu povo
é um povo lapidado para o trabalho braçal e para ganhar a vida às custas de muito esforço físico para
conseguir o sustento diário, com homens plantando em pequenos pedaços de terras doados e construindo
suas pequenas lavouras, enquanto protege e cuida das grandes fazendas e cabeças de gado dos seus patrões,
e mulheres limpando casas enormes e tratando dos filhos e filhas das famílias mais prósperas do lugar,
enquanto os seus próprios são forçadamente largados e cuidados pelas irmãs e irmãos mais velhos, ou pelo
acaso. Arara e Solânea proporcionavam para as famílias tradicionalmente estruturadas da época, bem como
para as suas futuras gerações a oportunidade de crescer em seus mercados comerciais, na agropecuária, na
política ou na educação. Já minha família faz parte da classe do proletariado, e foi no meio dessa gente que
eu cresci. Uma menina tranquila de cabelos claros e de sorriso fácil, que acreditava nos próprios sonhos de
crescer e se tornar parte daquela gente, enquanto brincava de pega-pega, de esconde-esconde, de casinha,
de bonecas de palha... e de viver.

Teve um tempo em que ficou muito difícil para os nossos pais nos sustentar, forçando meu pai a
uma única opção: ir para o Sudeste trabalhar para nos criar. Lembro que durante esse tempo sua presença
não foi sentida em nossa pequena casa e que minha mãe nos colocou em uma creche para que pudéssemos
fazer as três refeições diárias, porque eram épocas difíceis e o dinheiro que surgia mal dava para o nosso
alimento. Tenho boas recordações desse lugar. Lembro da parede externa com figuras da turma da Mônica
e da minha euforia para a abertura dos portões antes das sete da manhã, da fila de meninas e meninos na
hora do banho, das roupas limpas que as tias colocavam na gente depois de verificar se as nossas cabeças
estavam sem piolhos, da comida quentinha, das crianças correndo ou dormindo depois do almoço e do meu
irmão traquino procurando alguma traquinagem para fazer.

...

Naquela tarde meio nublada, minha mãe não permitiu que fôssemos para a creche ou para a rua,
pois nosso pai iria chegar de São Paulo. Então, em um dia qualquer em que todos os nossos vizinhos
estavam ocupados com as suas próprias existências, nos deparamos com nosso pai trazendo consigo um
violão e uma tela colorida para a nossa televisão preto e branco. A imagem mais marcante que tenho desse
dia é da expressão de felicidade da minha mãe, e de sua euforia por poder reencontrá-lo, e a lembrança
mais inesquecível que tenho desta época após a sua chegada, é de um lampião de gás iluminando as nossas
caras durante a noite, com o meu pai sentado na beirada da nossa cama, cantando uma música que, até hoje
quando vejo uma casa amarela, remeto-me ao momento:

“Ainda me lembro aquela casa onde eu nasci


Onde vivi com os meus irmãos e o meus pais
Muitos conselhos de mamãe eu recebi
Papai ali me ajudou-me até de mais
Era amarela aquela casa ainda me lembro
Quando chegava dezembro
Papai renovava ela
E ai mandava convidar o nosso povo
Pra passar o ano novo na nossa casa amarela

Tive vontade de deixar o meu torrão


na intensão de conhecer outro país
papai choroso deu-me a santa permissão
Dizendo Deus faça você ser bem feliz
tomei a bênção e meus irmãos abracei
Me despedi e chorei
Debruçado em uma janela
Sai vagando noutra terra diferente
Nunca mais vi minha gente
Da nossa casa amarela

Tive vontade de voltar pra meu lugar


Para morar na mesma casa onde morei
Essa saudade me convida pra voltar
A mesma terra em que nasci e me criei
Naquela casa morar eu não posso mais
que meus irmãos e meus pais
Já não são mais donos dela
Como eu queria dessa terra um pedacinho
Pra fazer o meu ranchinho
Vizinho à casa Amarela

Naquela casa morar eu não posso mais


que meus irmãos e meus pais
Já não são mais donos dela
Como eu queria dessa terra um pedacinho
Pra fazer o meu ranchinho
Vizinho à casa Amarela.”

Música “Casa Amarela”, cantoria de viola de autoria de Antônio Jocélio.

...

Algum tempo depois que meu pai chegou de viagem mudamos daquela casa para outra maior, mas
na mesma rua em que morávamos, porque a família iria crescer mais uma vez.

Não iríamos mais morar especificamente na rua enladeirada sem calçamento, mas numa espécie de
beco, que também era coberto por muitos pés de bananeiras, abacates, jacas e goiabas, e tinha um muro tão
alto que eu me sentia uma formiga quando olhava para cima. Era o muro do DER, que seria futuramente o
muro do nosso quintal. Meu pai é um pedreiro exímio e construiu aquela casa com suas próprias mãos, e
sempre que ele dizia que ia trabalhar naquela construção junto com meu irmão, eu perguntava se podia ir
também. Lá eu o ajudava, levando comida ou água quando o trabalho ficava exaustivo e eles ficavam
cansados, revezando-me entre servi-los de vez em quando ou rodeando a planta da nossa casa, ainda no
chão, observando-os e por vezes ajudando-os a colocar cada tijolo que moldava aquelas paredes onde
futuramente seria o nosso lar. Hoje em dia esse lugar é repleto de outras residências, mas lembro que minha
família foi uma das primeiras moradoras e que no início, quando meu pai começou a construção da nossa
casa, quase tudo naquele lugar era mato.

...

PAI

O meu tem alma e coração de artista.

Sua mãe morreu quando ele nasceu, então ele e seus irmãos foram distribuídos para famílias
distintas aqui da região. Algumas de sangue, outras não. Meu pai cresceu submerso a fome e as
necessidades, mas conseguiu sobreviver como um bom nordestino faz.

Enquanto escrevo essas linhas, lembro do som melodioso no nosso ambiente familiar em nossa
casa, que ecoava enquanto crescíamos com músicas de forró compostas por ele e pelos seus artistas
preferidos, os quais inspirava-o a criar e escrever, mesmo com sua pouca leitura e escrita, apresentando-nos
ao saudoso Teixeirinha, que cantava em nossa vitrola a sua inesquecível autobiografia “coração de luto”
(1961).
O que mais admiro em meu pai é a sua personalidade entusiasmada por cantar e viver e por ele ser
totalmente desprovido de ganância. Nele só contém amor pela vida e paixão pela arte de cantar. O senhor
Antônio “Da Paz” é um galanteador e eterno sonhador. Que seu brilho artístico continue levando-o por
caminhos onde a música faça morada e que seu canto e carisma permaneçam ainda por muitos anos sendo
ecoados na rádio local, através da sua locução, trazendo alegria para vida dos que ouvem sua voz brejeira e
tem como presente a sua amizade.

Na época das suas escolhas e dos conflitos no casamento alguns anos depois com minha mãe, eu
era apenas uma criança que nutria um amor imenso por eles e os desejava felicidade sem fim.
Lá tinha...

Um rádio que tocava

Uma mãe que brigava

Um pai que cantava

Um irmão que arengava

Uma irmã que revidava

Uma avó que cozinhava

Uma tia que arrumava

Um tio que trabalhava

Um sobrinho que chorava

Uma sobrinha que apanhava

Um primo que acordava tarde

Uma prima que acordava cedo

Um vizinho que brigava

Uma vizinha que fofocava

Um amigo que escutava

Uma amiga que falava

Lá tinha amor.

1995 – ÉPOCA DE ESTUDAR E SONHAR

Comecei a compreender as nuances que existiam entre a minha infância e a vida que acontecia,
apesar dela. Agora me percebia em um mundo onde as brincadeiras se misturavam com as vivências
cotidianas dos adultos. Descobri que a realidade era composta, ora por momentos felizes, ora por
momentos confusos.

Às vezes a felicidade estava contida na rotina com meus irmãos, quando íamos para o sítio próximo
a nova casa que morávamos pegar frutas do pé e brincar de faz de conta. Às vezes, na vivência doméstica,
onde passávamos nosso tempo assistindo aos desenhos animados pela manhã e os filmes de terror nas
sessões da tarde, e nas conversas com os amigos e amigas da rua onde morávamos. Às vezes, nas
brincadeiras antes de dormir. Na escola, que ficava a quatro quarteirões da nossa casa indo pela rua de cima
(mas que a gente nunca os enfrentava, pois pegávamos o atalho da ribanceira) quebrávamos a rotina da vida
em família, construindo novas relações enquanto aprendíamos a ler e a escrever. Eu era apaixonada por
aquele ambiente escolar. Acordava cedo e vestia a minha melhor roupa doada, tomava café da manhã,
pegava a minha mochila com os cadernos, lápis e livros, e ia descobrir as novidades da vida, sedenta de
curiosidades, ao contrário do meu irmão que odiava ir para a escola. Eu ficava eufórica com o barulho da
sirene que fazia a gente ficar em fila para cantar o hino nacional com a mão no peito, e em seguida entrar
na sala de aula.

Adorava a ideia de ter um lugarzinho só meu, onde eu pudesse colocar meus materiais
organizadamente, ouvindo as músicas cantadas pelas professoras quando a aula começava ou na hora do
recreio depois que terminávamos a lição. As brincadeiras entre os colegas, a comida da cantina que dona
Maria fazia com tanto carinho, eu amava perceber que existia outro mundo além do mundo contido por trás
das paredes da minha casa. Um mundo que proporcionava a possibilidade de uma vida com novidades.
Recordo-me que fazia as tarefas com afinco e me empenhava em aprender e mostrar para as professoras e
para os meus familiares o meu desenvolvimento, orgulhosa de mim mesma. Me sentia especial quando as
tias Elizete e tia Doda no Jardim de Infância da Escola Antônio da Costa Souto me parabenizavam pelo
esforço e o capricho quando fazia as minhas primeiras pinturas e letras corretamente. Foram suas palavras e
ações que me incentivaram a querer sempre aprender mais, me estimulando a buscar novas formas de
conhecimento mesmo com tão pouca idade. Foi essa ligeira base sólida da educação básica que me motivou
a querer evoluir nos meus primeiros anos de vivência escolar, e por mais que algumas situações tenham
moldado os rumos do meu futuro estudantil, foram as lembranças que tive dessas duas professoras tão
carinhosas e dedicadas profissionalmente que contribuíram para que eu desenvolvesse o gosto pelo saber e
me tornasse o que sou hoje.

...

Em casa, minha família já não era mais a mesma em termos de união e eu comecei a perceber que
minha mãe andava frequentemente aborrecida e triste, brigava muito conosco e perdia a paciência com
mais facilidade do que de costume, sobretudo com o meu pai. Mesmo assim, eu amava tudo aquilo, e
apesar de já estar crescendo e começando a compreender as vicissitudes da vida, era bom estar ali. Mesmo
que minha família não fosse perfeita, a melhor parte dela eram os meus irmãos e irmãs e conviver com eles
me trazia segurança e alegria. É claro que brigávamos como cães e gatos alguns dias e por vezes não nos
suportávamos, mas isso durava pouco e logo estávamos unidos outra vez. Tínhamos problemas como
qualquer outra família simples. Meu pai trabalhava sozinho para prover o nosso sustento, pois minha mãe
precisava cuidar de mim e dos meus irmãos, mas como já mencionei nessas linhas, não é fácil conseguir
emprego em uma cidade pequena, e com pouca escolaridade tudo fica mais difícil. Meus pais estudaram até
o nível fundamental, e essa condição em termos de perspectivas de futuro era desfavorável para conseguir
um bom emprego, comparado as famílias mais instruídas, fazendo com que meu pai nos sustentasse muitas
vezes através de “bicos”.

Apesar de ser apaixonado pela música, meu pai sabia das dificuldades em conseguir manter os
cinco filhos cantando seus ritmos brejeiros em uma cidade do interior. Então, para conseguir nos criar, ele
construía casas trabalhando como pedreiro, frentista e também como pintor, e praticava sua verdadeira
vocação nas horas vagas como se pratica um hobby. Para ajudar na nossa criação quando ainda éramos
pequenos, minha mãe precisou maciçamente da ajuda da minha avó, que com os filhos já mais crescidos e
agora aposentada, tinha um pouco mais de condições do que nós. Minha avó demorou para aceitar a ideia
de minha mãe ter fugido com o meu pai. Já tinha sofrido muito com o meu avô e não quis mais casar-se
com ninguém depois da sua morte. Ela temia que minha mãe também sofresse, pois achava que ela merecia
alguém melhor, motivo pelo qual minha mãe namorava escondido antes de fugir. Para ela, minha mãe
deveria ter se casado na igreja direitinho, e não ter fugido. Mas quem disse que nos importamos com o que
nossos pais querem quando estamos apaixonados?
Minha mãe era uma jovem cheia de sonhos que acreditava que poderia ser feliz com o homem que
fazia seu coração palpitar, e meu pai sabia o valor que ela tinha, por isso conquistou-a rapidamente, como
fazem os homens dispostos a ser felizes com uma mulher de atributos domésticos e morais admiráveis.

Certa vez ela me contou que pouco tempo depois de ter fugido com o meu pai, se arrependeu
porque percebeu que, apesar do amor que sentia, ele não era uma pessoa inteiramente fiel. Descobriu isso
quando, ainda na primeira semana de casada, encontrou embaixo da porta da casa de seu falecido sogro um
bilhete suspirante e lamentoso de uma de suas paixões. Então ela colocou numa mala seus poucos
pertences, arrependida de tudo, e voltou para a casa da minha avó determinada a não mais reatar aquele
relacionamento. No entanto, minha avó não a aceitou de volta, visto que minha mãe já não era mais uma
moça virgem. Aceitá-la ia contra todos os princípios de uma família “direita” como era a dela. Então minha
mãe voltou para a junto do meu pai e foi construir uma vida com ele, mesmo agora sabendo das suas
amorosas aventuras pueris. Eu cresci cheia de conceitos familiares religiosos e morais.

Nas concepções tradicionais da minha família, para uma mulher ter valor ela precisava se manter
pura para ter a sorte de casar com o homem que lhe daria um nome e a tornaria alguém futuramente
importante. Também era de extrema importância fazer esse casamento dar certo por toda uma vida. Sem
isso, ela viveria perdida e jamais seria feliz novamente. Quando criança ouvia muito essas histórias, pois
passei a maior parte da minha infância dividida entre a convivência em casa de meus pais e de minha avó, e
essa época da minha vida foi uma das mais felizes e tranquilas. Meus finais de semana raramente eram em
Solânea.

Como tinha uma vida de cantorias, além de ter que trabalhar o dia inteiro, salvo algumas noites em
que meu pai ensaiava as suas canções em casa, no restante dos dias ele era um pai ausente, cabendo a nossa
mãe a responsabilidade pela maior parte da nossa criação, nunca nos deixou faltar o pão de cada dia, mas
cabia a minha mãe fazer todo o resto. Então, sempre que as coisas em minha casa ficavam mais difíceis em
termos, ou de convivência, ou de dificuldades financeiras, minha mãe nos levava para a casa da minha avó,
e lá, temporariamente, eu esquecia os problemas que tinham em minha família. Meus irmãos, primos e eu
passávamos o dia brincando em quintais enormes. Às vezes, minha avó me levava para igreja com ela, e
quando chegávamos, eu ficava revezando entre as casas dos meus tios que ficavam na mesma calçada.

Quando o dia amanhecia, minhas primas e eu brincávamos de casinha e de bonecas enquanto meu
irmão e meu primo saiam para abater passarinhos com suas balinheiras. Quando estávamos juntos,
subíamos em árvores que tinham nos quintais e passávamos o dia nos implicando e dando apelidos
engraçados uns aos outros. Minha irmã, minhas primas e eu vivíamos nos escondendo do meu irmão e do
meu primo travesso, que passavam o dia maquinando para pregar peças na gente inspirados pelos desenhos
animados da época. Lembro de um episódio que quase fez minha tia arrancar os cabelos. Numa manhã,
minha prima acordou com quatro palitos de fósforos entre os dedos dos pés. O objetivo daqueles moleques
era reproduzir uma cena de Pica Pau, onde ele acende os fósforos no pé do seu inimigo. Minha prima
acordou a tempo de eles pararem, saindo xingando e avisando para nossa tia, que observava a tudo com o
olhar atento e protetor. No fim das contas seus castigos eram só umas palavras de repreensão, mesmo com
nossas reclamações e o desejo de que eles levassem mesmo era uma boa surra. No final do dia, quando
tudo era esquecido e voltávamos a ser amigos novamente, comíamos uma janta improvisada de farinha ou
cuscuz e leite feita no fogo à lenha da nossa avó, sem querer voltar para casa no dia seguinte. Na casa da
minha avó, o dia começava quando o sol ainda teimava em nascer e o galo começava a cantar. Sentia
quando o corpo da minha avó levantava da cama para alimentar as galinhas e fazer o nosso café (às vezes
eu dormia com ela), e ficava olhando para as réstias das telhas quebradas, esperando que o sol enfim,
surgisse, para então levantar e começar mais um dia de brincadeiras com meus irmãos, primos e primas.
Nas épocas de festas juninas, minha avó descascava milho para fazer pamonha, canjica, milho assado,
mungunzá e bonecas de sabugos para gente poder brincar.
Aquelas casas eram o nosso refúgio e aqueles parentes, o nosso acalento seguro. Naquele tempo eu
não compreendia o quanto era difícil para os meus pais e minha avó prover a nossa criação, no entanto,
aquela simplicidade e toda aquela algazarra típica de famílias numerosas trazia paz ao meu coração e
felicidade a minha alma de criança desinteressada com o próprio futuro. Eu não percebia a pobreza
material, eu só experienciava uma capacidade de suportar impressionante, compartilhando as dificuldades
da vida daqueles adultos tão conformados com a própria realidade, e me moldando a ela como se aquela
fosse a única forma que existisse de viver. Cada novo dia era uma nova oportunidade de fazer tudo igual.
As materialidades permaneciam fúteis. O importante para aqueles adultos era buscar meios possíveis (e as
vezes até improváveis) para sobreviver.

...

FAMÍLIA

Eu amo cada um dos parentes com os quais pude conviver no meu tempo de criança e os tenho
guardados no peito e na lembrança.

Minha tia Lúcia e seu esposo Rubens, que também cuidaram de mim e dos meus irmãos enquanto
ainda éramos crianças;

Minha tia Bia, que na época de infância era mais minha irmã do que tia por causa da nossa idade
próxima. Quando cresceu ela se casou com Gi e teve duas filhas lindas. Camila e Tainá;

Meu tio Lucas, o tio preferido na época de criança, porque brincava com a gente mesmo sendo
adolescente, sempre que nos visitava. Ele também se casou, constituindo uma família com sua esposa Paula
e sua filha Júlia;

Meu tio Vero, sempre discreto, mas dono de um enorme coração, e que até hoje mora com minha
avó;

Meu tio Nino e sua esposa Darci, o casal mais perseverante que eu já conheci, que juntos tem duas
filhas, Taís e Keliane;

Meu tio Lulu, o homem mais calado que eu conheço. Ele sempre foi assim e também mora com
minha avó até os dias atuais;

Minha tia Marilene, que conheci quando já tinha crescido, porque minha avó a deu para outra
família quando ela ainda era um bebê, por falta de condições de criá-la (essa história eu conto depois);

Minha prima Luziane, a mulher mais decidida da família, e os seus dois filhos. Isa e Biel;

Meu primo Nildo (in memoriam) que partiu de repente, depois que já tínhamos crescido, deixando
na gente muita saudade. Guardei em uma caixinha dentro do meu coração a lembrança do seu sorriso doce
com barrocas nas bochechas vermelhas, da sua beleza única e do seu grande coração, e joguei a chave fora
para nunca mais esquecer do quanto o amei quando ainda podíamos dividir as nossas vivências de crianças
aqui nesse mundo;

Minha prima Cley, a caçulinha que sempre nos acompanhava nas brincadeiras de criança;

Meu bisavô José (in memoriam) com seus olhinhos verdes e lindos. Eu adorava andar quilômetros
de distância até chegar em seu sítio só para subir naquele balanço do seu gigante quintal;

E minha Vó Maria, a velhinha mais bela e mais forte do mundo para mim.
Quando ela passa na rua escura

Fecha os olhos e reza

De medo e de tristeza

Medo do lobo (humano) mau

E de tristeza por ele existir.

1995/1997 – ÉPOCA DE APRENDER A CRESCER

1995 - De repente eu comecei a sentir na minha existência, a pressão dos que precisavam ser
“grandes”.

Com nove anos eu já tinha praticamente a mesma rotina de minha mãe quando ela ainda morava
com minha avó, com uma única diferença, para minha mãe era importante que eu estudasse e ela sempre
ficava muito feliz quando alguma professora lhe fazia elogios sobre meu desempenho para ela na escola.
Eu a ajudava nos afazeres domésticos e cuidava da minha irmã caçula para que ela conseguisse fazer a
comida e lavar as roupas, em parceria com minha irmã do meio, e por mais que aquela rotina parecesse
difícil, eu gostava dela, mas somente quando conseguia conciliá-la com as minhas necessidades de criança
“grande”, que eram brincar, conversar com algumas poucas amigas e estudar. Mas isso também mudou,
porque eu não tinha mais tanta liberdade para isto (ter muitos amigos), pois segundo minha mãe, eu estava
crescendo e precisava de limites. Lembro que adorava passar as tardes em casa sozinha estudando e
escrevendo, ou no meu pequeno quarto, ou no sofá da sala enquanto via televisão, ou na mesa da cozinha
(quando lá tinha silêncio), ou no quintal de casa, embaixo de um pé de goiaba.

Na escola, os olhos do meu irmão estavam sempre voltados para mim e tudo o que eu dizia ou fazia
era observado por ele. Não considerava isso algo ruim e muitas vezes até agradecia aos céus por ele existir
para me proteger, mas devo confessar que algumas vezes eu só queria ter a liberdade de ser quem eu
quisesse ser, e às vezes ele até me proporcionava isto, mas sempre mantendo um limite que ele mesmo
estipulou para os meus comportamentos. Meu irmão era muito ciumento. Sempre fui uma menina
comunicativa, sorridente e esforçada nos estudos. Nunca colecionei inimigos na escola ou entrei em
confusões. Muito pelo contrário. Fugia de todas elas.

...

Enquanto eu crescia, percebi que a proteção e o medo dos meus pais em relação ao meu
crescimento era algo visivelmente exagerado. Com o passar dos anos meus horários foram controlados e eu
precisava tomar cuidado com as amizades que cultivava, apesar de sentir que nenhuma delas fosse
prejudicial. Lembro que o meu corpo já estava sendo modificado e isto era resultado das transformações da
puberdade feminina, uma época que foi completamente confusa para mim, pois minha mãe não conversava
sobre esses assuntos em particular, e na escola, somente entre amigas ele era debatido confusamente. As
meninas diziam que seus seios doíam e agora eles cresceriam, e que passar cebola ajudaria a desenvolvê-
los mais rápido, mas eu não queria passar cebola nos meus seios, porque eu nem sabia se crescer era algo
tão bom assim. Algumas poucas informações que eu tinha vinham dos livros de ciências que eu lia, as
demais descobertas foram feitas empiricamente. Quando menstruei pela primeira vez foi uma confusão
psicológica absurda para mim. Eu sabia que aquilo iria acontecer comigo porque eu via minha mãe dizendo
que aquelas eram coisas de mulher (via seus panos sujos de sangue no banheiro), e que uma hora eu
também teria que passar por aquilo. Dizia que eu não me preocupasse com isso, pois na hora eu saberia.
Não tinha uma conversa franca sobre o que, como ou porquê tudo aconteceria. Era como se crescer fosse
algo perigoso. Eu não conseguia compreender o sentido contido em toda opressão relacionada ao meu
corpo ou ao meu crescimento físico e isto causava em mim um sentimento de frustação por não
compreender situações relacionadas a minha própria existência. Eu até gostava de quem eu era e do que eu
estava me tornando, mas para as pessoas com quem eu convivia era como se isso fosse algo negativo.
Gostava do que sentia, mas sentia medo de sentir, como se o que eu estivesse sentindo fosse um erro e isso
pudesse sujar-me de alguma forma. Era uma sensação de estranheza ter sobre mim todos aqueles olhares
inquisidores sempre que meus comportamentos não condiziam com as expectativas criadas por eles em
relação a quem eu deveria ser. No entanto, com exceção da pressão feita pelos meus pais, eu gostava da
ideia de estar crescendo. Sentia que havia um mundo desconhecido pelo qual em algum momento eu
deveria passar, sem culpa por ele estar acontecendo.

...

1997 - Na escola, recebia bilhetinhos apaixonados de alguns garotos e às vezes, até os retribuía,
dependendo de quem tivesse me enviado, mas percebia que esse assunto em minha casa não podia ser
debatido porque meus pais não permitiam. Nem o meu irmão. Se ele desconfiasse que algum garoto de
escola estava interessado por mim, queria brigar com ele e não permitia que o tal garoto se aproximasse.
Lembro de um dia que recebi um bilhete de um garoto que morava na mesma rua que eu, onde o garoto se
declarava dizendo que gostava de mim. Lembro-me que meu irmão não o suportava, criando até uma briga
certa vez por causa disto. Eu era uma menina que sonhava com as melhores coisas da vida. Nos intervalos
entre ser criança e sonhar de ser gente grande, eu lia histórias infantis de sapos que beijavam princesas e em
seguida viravam príncipes. Assistia novelas onde casais apaixonados faziam juras de amor eterno,
beijando-se apaixonadamente e sentia que aquele acontecimento era perfeito. Mas minha mãe sempre pedia
para que fechássemos os olhos ou saísse da sala quando aconteciam cenas em que os casais ficavam nus e
isso era constrangedor. Eu acreditava que um dia também iria viver as sensações de estar apaixonada, tal
qual os casais das novelas viviam, e sonhava em um dia poder construir esse sentimento com alguém., mas
só um dia. Primeiro eu precisava crescer.

Me apaixonei pela primeira vez pelo garoto que me deu o bilhetinho dizendo que gostava de mim e
que meu irmão quis bater, e nele dei meu primeiro beijo, mas não deixei de brincar nem de estudar por
causa disto. Eu ainda era uma menina. Sentia que tudo o que vivia era reflexo do amor manifestado na vida
da qual eu fazia parte. Naquela época eu não pensava em casar, eu só queria viver um dia de cada vez.
Algum tempo depois eu acredito que consegui entender, pelo menos em partes, porque meus pais se
preocupavam tanto com a questão de que eu crescesse. O problema não era eu, o problema eram os outros.

...
VIZINHOS/AMIGOS

Algumas pessoas da minha infância tiveram importância significativa para mim.

Guere (in memoriam), era um amigo angolano que meus pais tinham e que um dia foi nos visitar,
quando eu ainda nem sabia segurar um lápis direito na mão, trazendo para mim um caderno de desenho
com capa de tigre e uma caixa de lápis de pintar, que me fizeram feliz enquanto duraram.

Sr. Pedro (tinha medo dos seus bodes porque um dia um deles correu atrás de mim, fazendo com
que eu caísse e me machucasse), dona Lúcia e seu esposo Baita com seus três filhos (Lembro-me bem
pequena, comendo doce de coco feito na hora por ela, e de sua imagem em minha memória batendo um
pilão no quintal da sua casa), dona Geralda (mãe de Marquinhos, um vizinho de infância arengueiro que eu
nunca brinquei com medo de que ele me batesse, mas que se tornou especial e amado quando cresceu),
Fátima e suas três filhas (Elidiane, Eline e Elayne), dona Carminha e suas filhas e netas (Cleide, Loura e as
gêmeas Taís e Taiane), Finha, Sr. Maro, dona Naíde e seu esposo, Sr. Antônio, Tânia e suas duas filhas
Eline e Érica.

Sr. João de Góis, um senhor evangélico que tinha uma serralharia e vários filhos, mas eu só
brincava com uma. Sua filha Vaninha. Ainda guardo na lembrança memórias da gente atrás da serralharia
de seu pai fazendo mobília com pedaços de madeira e brincando de bonecas, e de como eu fiquei triste
quando soube que ela havia perdido os dois dedos acidentalmente na oficina. Depois desse dia minha mãe
não deixou mais que brincássemos juntas. Célia, uma amiga de infância que era mais velha do que nós e
por isto cuidava da gente, fazendo de conta que era nossa mãe quando brincávamos de casinha no quintal
da nossa casa.

Angelita e seu esposo Antônio (Tabuleta), com seus quatro filhos, Kilson, Kenilson, Kilma e Ilma.
Ela era uma das melhores amigas da minha mãe na época e eu lembro que muitas vezes a vi chorar
contando para minha mãe as dificuldades que também vivia em seu casamento, enquanto eu e minhas irmãs
brincávamos com suas filhas no quintal da sua casa.

Genilda, melhor amiga e confidente de minha mãe quando morávamos na mesma rua enladeirada e
lamacenta. Uma mulher respeitável e digna, casada com Arlindo (in memoriam) e mãe de três filhos, dois
deles responsáveis por memórias deliciosas de infância. Jailma, uma menina que esbanjava beleza pela
vizinhança, e Jailson, melhor amigo do meu irmão e seu cúmplice de traquinagens, e com quem ele queria
que eu me casasse quando crescesse.

Maria, uma mãe solteira que tinha uma filha linda chamada Patrícia e a criava praticamente
sozinha. Algum tempo depois lembro-me que ela arranjou um namorado que hoje é seu marido. Eu a
admirava por conseguir sozinha cuidar de si mesma e da filha, se submetendo a olhares que a julgavam
simplesmente por ela ser uma mãe solo. Jhow, irmão de Maria. O admirava por admitir a sua
homossexualidade com coragem e sem receio de ser quem ele realmente era em um contexto totalmente
machista e preconceituoso como o nosso.

Lurdes, uma vizinha bem humorada que tínhamos, porque eu sempre a via sorrindo (foi seu filho
Magno quem presenciou uma das cenas mais terríveis que ocorreu em minha família). Luca, uma mulher
forte e determinada, mãe solteira de três filhos que foi abandonada pelo pai das crianças quando elas ainda
eram pequenas. Essa mulher não sabia, mas ainda haveria de inspirar-me a ser forte no futuro. Amava
brincar com suas duas filhas Galega e Nona, e delas, guardo eternas lembranças de minha infância pulando
cordas.
Madrinha Terezinha e madrinha Maria, duas mulheres incríveis que me apresentaram a Deus
quando eu me batizei e fiz a minha primeira comunhão. Zenaide, uma amiga do meu pai que adorava cantar
forró na época e que também se tornou minha amiga. Quando a conheci ela não era casada, mas tinha um
filho (chamado carinhosamente de Dó). Depois ela casou com Efigênio e teve mais dois filhos. Ela
continua amando cantar forró. Dona Salete, uma mulher determinada e forte que tinha três filhos homens,
os quais ela também criou praticamente sozinha. Dos seus filhos, só me lembro de um. Geovácio (autor do
meu primeiro beijo). Edileuza, Elizabete e Cidinha, colegas de sala no Ensino Fundamental, que eu
compartilhava aprendizados em sala de aula, risos e amizades fora dela.

Tia Elizete e Tia Doda. As minhas primeiras e melhores professoras do Jardim de Infância, e que
foram responsáveis por fazer-me amar a área da educação com seus exemplos e suas formas de ensinar.

E me lembro, entre outras coisas, de rostos sem nomes e nomes sem rostos. Perdoe-me se você me
conhece desde criança e eu não lembrei de mencionar você. Muitas dessas pessoas aqui mencionadas já
partiram, mas a recordações das vivências que tive com cada uma delas faz parte concreta das minhas
recordações de criança.

...

Nem todas as minhas lembranças de criança eram sobre boas pessoas. Descobri enquanto crescia
que alguns seres humanos são naturalmente ruins.

Tinha uma senhora na nossa vizinhança. Dona Emília. Ela costumava nos levar para a igreja
Evangélica Assembleia de Deus do pastor Edvanildo. Lembro que adorava ouvir os hinos que aquelas
mulheres entoavam ali, e de apreciar aquela imagem de fundo que tinha um céu cheio de nuvens e de anjos.
Me sentia em paz quando estava naquele lugar tão calmo. Dona Emília costumava passar em nossa casa
para nos buscar uma vez por semana para irmos aquela igreja junto com meus irmãos. Recordo-me até hoje
da sua imagem de senhora franzina com sua bíblia embaixo do braço convidando-nos para aceitar Jesus.
Um dia, após o culto, ela disse que passaríamos em sua casa porque ela precisava fazer algo lá antes de nos
deixar em casa. Sua residência era muito organizada, com capas nos sofás e objetos de porcelana na estante
coberta por panos de crochês acompanhados de outra bíblia, mas esta não saia da estante e ficava sempre
aberta no Salmo 91. Minha irmã e eu sentamos no sofá para esperarmos ela fazer o que precisava. De
repente, ouvimos alguém chamar do quarto. Minha irmã e eu nos entreolhamos, então ela me cutucou
pedindo que eu fosse até lá, porque ela não iria. No quarto tinha um senhor, que presumi no momento que o
vi, ser o esposo de dona Emília, e que pela sua aparência prostrada, estava adoentado. Não consigo recordar
com precisão como se deu a interação que me levou até seu quarto (uma breve lembrança me faz crer que
ele chamou alguém). Quando cheguei na porta do quarto ele pediu que eu me aproximasse e entregasse
para ele um copo com água que tinha em cima de uma espécie de banquinha. Lhe entreguei o copo e fiquei
esperando que ele tomasse a água, para que quando acabasse, eu colocasse o copo no lugar e voltasse para
a sala. Ele tomou a água, e quando foi entregar-me o copo, puxou-me pelos braços forçando-me a beijá-lo.
Foi aterrorizante. Fiz uma força tremenda para que ele me soltasse e saí correndo para a sala com o coração
aos pulos, sentando-me novamente ao lado da minha irmã, que aparentemente não percebeu o meu
desespero, ou percebeu e preferiu não falar nada. Agradeci internamente ao Deus da igreja que íamos
quando dona Emília surgiu, levando-nos daquele lugar, e naquela assustadora casa nunca mais eu quis
voltar.

Outra ocasião que me recordo, é que tinha uma colega de escola que eu gostava de ir estudar em
sua casa quando minha mãe permitia. Um dia estávamos em seu quarto estudando, e de repente entrou um
rapaz que eu não conhecia e que parecia alguns anos mais velho do que nós. Ela me disse que aquele era o
seu irmão e que ele tinha acabado de chegar de viagem. Ele sentou ao nosso lado e ficou puxando assuntos
paralelos enquanto estudávamos. Lembro que em algum momento da conversa minha colega precisou sair
do quarto para fazer alguma coisa do seu interesse. Por dentro eu sentia uma espécie de tensão e rezava
para que ela voltasse logo. Não queria ficar ali sozinha com aquele rapaz. Quando ela saiu, seu irmão me
roubou um beijo, forçando-me contra seu corpo. Foi uma situação perturbadora e eu senti muito medo.
Temia que minha colega demorasse a voltar. No entanto, foi algo muito rápido. Ele agiu impulsivamente e
saiu do quarto como se aquilo fosse algo absolutamente normal. Nunca mais vi aquele rapaz depois daquele
dia, pois não quis mais ir estudar em sua casa. Também lembro de uma tarde qualquer, e nesta época meu
corpo já estava ganhando formas femininas, em que eu estava indo para a casa de uma amiga de infância, e
é impressionante como essa tarde ficou gravada em minha mente como algo absolutamente desagradável.
Eu estava caminhando calmamente pela calçada da rua em que morava minha amiga, quando percebi que
vinha em minha direção um homem desconhecido. Um homem aparentemente comum e inofensivo que
não parecia ter nenhuma intenção maldosa. Ao cruzar por mim, esse homem passou as mãos em um dos
meus seios fazendo com que eu petrificasse por dentro com a atitude do mesmo, embora continuasse
fisicamente caminhando. A rua estava deserta, então ele aproveitou a oportunidade. Senti um pudor enorme
e meu corpo ficou trêmulo de pavor daquele estranho. Então eu acelerei os passos como que quase
correndo e rezei para chegar na casa de minha amiga antes que aquela situação se repetisse ou que aquele
estranho voltasse. Passei alguns dias sem sair de casa com medo de cruzar com aquele desconhecido
novamente, e para evitar essas situações, resolvi tomar alguns cuidados a partir desse dia, como sair menos
de casa sozinha ou colocar roupas que me expusessem demais, pois assim eu esconderia o meu corpo e
evitaria esse tipo de constrangimento. Depois desse dia, não vi mais aquele estranho, mas alguns anos após
esse incidente, pude vê-lo de outra forma. O vi refletido nas atitudes de outros homens. Até hoje quando
faço o mesmo percurso na calçada onde tudo aconteceu, vem à tona a mesma sensação de repulsa e de
pavor que senti ao passar por aquela situação. Em todas as ocasiões senti-me extremamente amedrontada,
vulnerável e suja. Passava dias sentindo-me confusa e muitas vezes pensava: O que eu fiz para passar por
aquilo?

Não compreendia na época que todas aquelas eram situações de abuso, e para me proteger das
punições dos meus pais e evitar que eles me proibissem de sair de casa, guardava tudo aquilo para mim ou
tentava apagar da minha mente aqueles episódios, como forma de defesa. Somente alguns anos depois eu
pude, enfim, compreender que nunca foi minha culpa nenhum daqueles momentos. Que eu nunca os
provoquei.
É que viver é isso mesmo

Amar e odiar

Sorrir e chorar

Cair e levantar

Costurar e rasgar

Errar e acertar

Sofrer e sarar

Confiar e se decepcionar

Machucar e se desculpar

Ir e voltar

Viver é prazeroso e doloroso.

1998 – ÉPOCA DE MUDANÇAS DRAMÁTICAS

Tinham dias que eu só queria desesperadamente sumir. Queria ter mais de doze anos, não ser mais
uma menina. Queria um emprego, outra casa, outra família. Ir para outro lugar.

De repente aquela casa estava muito barulhenta. Meus pais brigavam quase o tempo todo e o
ambiente em que vivíamos tinha se tornado um campo de guerra. Eu ia para a escola e queria ficar lá para
sempre, porque lá, apesar do barulho das outras crianças, havia uma harmonia humana. Aquele barulho não
era de briga, era de brincadeiras. De repente meus pais não se entendiam mais, só brigavam. E brigavam
por absolutamente tudo. Muitas vezes meus irmãos e eu acordávamos no meio da noite com os gritos da
minha mãe e as batidas de portas do meu pai. Nós não compreendíamos o motivo de tantas brigas e nos
sentíamos tristes por estar vivendo aquele tipo de situação em nossa família. Eu nunca tive a família mais
amorosa do mundo. Minha mãe nunca foi alguém que demostrava carinho com beijos e abraços e meu pai,
apesar do seu jeito risonho e carismático, também não tinha esse comportamento. Meu irmão já não tinha
mais aquela obsessão exagerada em me proteger, acredito que por perceber que não tinha controle sobre o
que poderia acontecer comigo ou porque talvez não queria mais para ele aquela responsabilidade de ser
meu cuidador, pois também estava crescendo e precisava cuidar da sua própria vida. No entanto, nos
sentíamos protegidos com a existência dos nossos pais. Apesar das muitas dificuldades que vivíamos em
termos de estrutura e de bem-estar familiar financeiro, éramos uma família digna. Eles nos criavam com
humildade e tentavam nos ensinar caminhos corretos, repreendendo-nos sempre que fazíamos algo que
fosse considerado errado. O problema é houve uma época em que parecia impossível viver naquele
ambiente de fúria, pois eles não conseguiam mais conversar e as suas discussões estavam nos atingindo
negativamente. De repente nos víamos encurralados em um ambiente de discussões acaloradas e palavrões
indecentes, e como eu não era mais tão criança nessa época, conseguia compreender algumas conversas
que minha mãe tinha com algumas amigas vizinhas e com familiares, chegando à conclusão de que aquelas
brigas estavam sendo causadas por causa da falta de confiança que a minha mãe nutria pelo meu pai.
Entretanto, houve um momento das nossas vidas em que nos acostumamos com aquelas brigas e
percebemos que elas tinham se tornado rotineiras, e que precisávamos nos adaptar a elas, apesar de isto não
parecer certo. Para piorar ainda mais a situação, aconteceu algo em minha vida particular que contribuiu
ainda mais com essas discussões familiares.

Na rua em que morávamos foi morar uma família da qual algum tempo depois eu vim a fazer parte
por um curto período de tempo. Aquela era a família do meu primeiro namorado.

...

Nossa história de namoro começou quando eu ainda não sabia o verdadeiro sentido da palavra
“namorar”. Quando o conheci foi paixão à primeira vista. Aquele era o garoto mais bonito que eu já tinha
visto, e eu acredito que ele sentiu a mesma coisa, pois não parava de me olhar, e uma semana depois de nos
conhecermos, ele quis me dar um beijo, e depois desse beijo, ele foi até minha casa me pedir em namoro
depois de eu dizer para ele que não podíamos ficar de todo jeito e que era preciso conversar com meus pais
se quiséssemos realmente namorar. Então meus pais consentiram. Não vou narrar minha história romântica
com esse rapaz neste livro porque acredito que ele não é digno desse crédito, mas vou resumir o meu
sentimento em relação a ele na época em que namorávamos com uma única palavra. Avassalador.
Apaixonei-me inteiramente por ele permitindo-o que ultrapassasse um universo antes só meu. O meu
universo de sonhos e de paixões juvenis. Um lugar de paz e de felicidade plena, onde a fidelidade, o
companheirismo, a amizade, a confiança e a ternura faziam morada. Assim, acreditei por um tempo em um
amor que eu via nas novelas e descrevia em meu diário, mas que nunca existiu da parte dele, e esse foi o
motivo pelo qual todos os outros acontecimentos que virão no decorrer desta narrativa, surgiram.

...

Aos doze anos comecei a namorar um rapaz de dezessete e que me controlava por inteira. No início
era algo inocente e mágico. Ele era terno e carinhoso e me respeitava em todos os sentidos da palavra.
Tinha hora para me ver, namorávamos sentados no sofá da minha casa e ele era alguém que valia a pena ter
como namorado. Eu sentia como se jamais fosse amar alguém como o amava, por um tempo ele foi tudo o
que eu sonhei. Mas alguns meses depois do nosso namoro ele começou a demonstrar um ciúme
descontrolado por mim, porém, eu não compreendia isso na época. Eu estava tão encantada com esse
relacionamento que não percebia os excessos e acreditava que tudo aquilo era prova de amor. Ele não
gostava que eu tivesse amigos na rua que eu morava nem na escola e também brigava comigo quando eu
colocava determinadas roupas, convencendo-me muitas vezes a parar de usá-las para não provocar brigas
desnecessárias, afinal de contas, eu nutria um sentimento muito forte por ele e não queria brigas ou
discussões. Dizia para ele que queria que fôssemos um casal diferente dos meus pais e tentava, com
algumas atitudes de omissão, me calar diante de coisas absurdas para preservar a nossa relação. Por ser
uma garota que sempre cumpriu ordens vindas dos meus pais, ter essas atitudes para mim era natural. Não
me recordo de ser uma namorava obcessivamente ciumenta, mas lembro-me de saber alguns boatos de
traições vindas da parte dele através de algumas amigas e de muitas vezes termos brigado por, após meus
questionamentos, ele desmentir as pessoas alegando que elas criavam essas histórias mentirosas em relação
a ele por maldade ou para nos prejudicar. Eu achava isso um tanto insano, mas logo ele contornava a
situação fazendo com que eu acreditasse muito mais na versão dele do que na versão das pessoas que
estavam falando a verdade. E assim namoramos por aproximadamente seis meses.

Enquanto isso as discussões em minha casa estavam indo de vento em polpa, mas eu já não me
sentia tão atingida, pois ocupava minha cabeça com os estudos e com o namoro, nutrindo a ideia de que
algum dia iria sair daquele ambiente e ser feliz para sempre com o homem que eu acreditava ser o príncipe
encantado da minha vida. Eu percebia que, apesar das discussões que as vezes tínhamos por ciúmes, vindo
muito mais da parte dele do que na minha, isso não era motivo para terminarmos o nosso relacionamento, e
mesmo que eu ainda fosse uma adolescente, projetava dentro de mim a ideia do amor para a vida inteira,
pois de alguma forma, aquele namorado havia sido o meu porto.

Certo dia aconteceu um episódio em nosso relacionamento que fez com que eu desmoronasse. Sem
quê nem porquê ele disse que queria acabar o nosso namoro. Fez isso sem me dar nenhuma explicação que
justificasse aquela atitude e eu me lembro que esse foi um dos piores dias da minha vida. Eu não conseguia
me conformar com aquele término sem sentido. Passei uma noite inteira chorando de dor por causa do fim
daquela relação. Uma dor tão forte e lancinante que eu sentia como se estivesse perdido um pedaço de
mim, porque eu não imaginei que algum dia o nosso namoro pudesse acabar e ele simplesmente pudesse
sumir, me deixando sofrendo sem que eu entendesse o motivo daquele rompimento. Lembro que os
primeiros dias foram os piores, pois eu estava tão condoída com aquele fim que não queria nem comer.
Minha mãe sentia raiva do meu comportamento, me chamava de boba e as vezes até brigava por eu estar
sofrendo por aquele rapaz e dizia que eu deveria seguir a minha vida, pois nenhum homem merecia as
minhas lágrimas. Minha mãe dizia isto indignada por também chorar pelo meu pai, que também não
merecia a sua consideração. Eu compreendia as suas atitudes e entendia que ela não sabia lidar com tudo
aquilo também.

Com o passar dos dias a dor foi amenizando e eu fui me acostumando com a ideia de que ele não
voltaria mais, e só chorava às vezes quando ouvia alguma música que lembrava a nossa história. Eu sentia
que estava superando a tristeza da perda daquele amor não correspondido. Algumas amigas a escola me
diziam para eu levantar a cabeça e seguir em frente, me assegurando que isso ia passar e eu iria esquecer
aquela situação. Não conseguia acreditar que isto seria possível, tamanho era o meu sentimento, mas torcia
para que tudo aquilo fosse verdade. Então quando tudo parecia sarar dentro de mim algumas semanas
depois que terminamos, o inesperado aconteceu. Eu estava seguindo em frente e vivia a minha rotina. Ia
para a escola, ajudava minha mãe nos afazeres domésticos, cuidava das minhas irmãs, saía e conversava
com algumas amigas da rua e vinha para casa antes do anoitecer. De repente ouvi alguém bater na porta de
minha casa, era ele pedindo para voltar. Pediu desculpas por ter ido embora sem explicações, disse que
estava com saudades e que queria ser meu namorado outra vez, pois eu era alguém muito importante em
sua vida e ele não estava conseguindo me esquecer. Eu também estava com saudades e também queria
voltar, mesmo procurando esquecê-lo. Ver ele ali mais uma vez reacendeu em meu coração o amor que eu
sentia. Aceitei seu pedido de desculpas e reatamos sem muita relutância da minha parte. Voltamos a
namorar e eu estava muito feliz com aquele recomeço, tão feliz que faria qualquer coisa para que ele
ficasse para sempre. No dia seguinte ele me veio com uma proposta que mudou todo o rumo de minha vida.
Quando nos conhecemos eu o namorava e estudava. Já ele não estudava porque não gostava da escola,
preferia trabalhar e eu respeitava isso. No entanto, eu amava ir para a escola, encontrar com meus colegas
de sala, e apesar de imaginar que aquele namoro tinha um futuro e que eu pretendia passar o resto da minha
vida ao seu lado, eu não queria que isso fosse imediato. Queria continuar estudando, namorando e
convivendo com a minha família, apesar todas as nossas dificuldades.

Embora fosse muito jovem, eu conhecia as minhas capacidades e já imaginava o que queria ser
quando fosse adulta. Eu queria ser professora porque adorava a ideia de educar e transmitir conhecimento
para outras pessoas. Queria finalizar os meus estudos, fazer uma faculdade e ter um bom futuro
profissional, eu acreditava em mim e na nossa história. Então um dia ele me disse que eu precisava provar
que o amava. No momento eu não entendi o que ele queria dizer, mas ele foi muito direto alegando que se
eu o amasse verdadeiramente teria que transar com ele, pois só assim oficializaríamos a nossa relação. Na
hora eu me assustei e disse para ele que aquilo era uma loucura, mas ele conseguiu me convencer de que eu
não precisava fazer isto concretamente naquele momento, só tornar isso público para as outras pessoas para
que elas levassem mais a sério a nossa relação. Eu teria que dizer isto para todo mundo, inclusive para os
meus pais. Então, imaginando que isto não traria nenhum problema futuro, contei para minha mãe que
havíamos praticado relações sexuais, sem nunca termos feito isto, e desde essa mentira, tudo mudou.

...

SEXO

Eu não sabia praticamente nada sobre isto.

A única certeza que eu tinha é que nos atraíamos muito um pelo outro e todo aquele sentimento me
fazia muito bem. No mais, tudo ou mais que aconteceu posteriormente foi orquestrado por ele. Lembro-me
que durou aproximadamente uma semana até que conseguíssemos concretizar o ato sexual, e que foi muito
doloroso, apesar de tanto sentimento envolvido. Alguns dias depois ele começou a criar brigas
desnecessárias por causa da minha rotina escolar, dizendo que não confiava nos garotos de lá. Então,
chateado por nos ver brigando o tempo todo, meu pai decidiu que eu não precisava mais ir para a escola,
pois agora eu ia viver uma vida de mulher casada. Ele tomou essa decisão porque eu ainda morava em sua
casa e o incomodava muito ver nossas discussões por causa dos ciúmes que o meu namorado/ marido sentia
de mim, alegando que tínhamos que evitar esses tipos de situações. No entanto, essa não foi a solução dos
nossos problemas. Continuávamos brigando e por vezes até terminando por causa da imaturidade contida
numa relação adolescente, mas esse término durava dias, então voltávamos outra vez. Lembro de ter ido à
escola trancar a minha matrícula e também dos olhares de julgamento dos meus colegas de sala, mas a
lembrança mais dolorosa é do olhar de pena e de decepção da minha professora do Ensino Fundamental.
Por mim, aquele momento não deveria ter acontecido, eu amava aquele lugar e tudo o que ele me
proporcionava, no entanto, eu estava tão anestesiada com todos os novos acontecimentos que não
conseguia reagir a eles. Eu simplesmente os aceitei por não saber como lutar pelo meu futuro ou lidar com
as novas situações.

Tomar as atitudes impensadas e típicas de uma adolescente apaixonada que eu tomei naquela época
fez com que minha mãe sentisse vergonha da filha que ela havia criado. Para deixar a situação ainda mais
complicada, ela também descobriu que o meu pai estava tendo realmente um caso extraconjugal com outra
mulher à mais de um ano e esses dois golpes certeiros a nocautearam por completo. Cinco filhos totalmente
dependentes para criar, uma delas mal falada e perdida dentro de casa, além de um marido infiel mais as
dificuldades financeiras. Esse era um fardo muito pesado para ser carregado somente por uma mulher. Foi
um período de muita tristeza em nossa família. Resolvi ignorar a dimensão dos problemas e aceitar a minha
realidade. Acreditava que o amor superava tudo aquilo, que tudo não passava de uma fase. Eu tentava levar
uma vida relativamente normal, apesar dos olhares atravessados e constantes vindos de algumas pessoas da
vizinhança. É fato que eu não desejei que tudo aquilo acontecesse, mas eu não podia ficar me lamentando.
Minha mãe não podia me abandonar e não teve outra alternativa que não fosse me “aceitar”. Tudo aquilo
doía muito e ela não escondia. Ela precisava descontar em alguém toda aquela dor. Era nítido o desgosto
que ela sentia da pessoa que eu tinha me tornado e esse seu comportamento até nos fez brigar algumas
vezes, pois não raramente ela fazia eu me sentir uma pessoa pequena, lembrando-me constantemente dos
meus erros e fazendo com que eu sentisse a necessidade de me defender. Imaginando que nada mais
desnorteador fosse possível, o previsível aconteceu. Poucos meses depois tendo relações sexuais
desprotegidas com o meu agora marido, eu engravidei. E dois meses depois, minha mãe também engravido
do meu pai. Todas aquelas situações deixaram dentro de mim um misto de confusão e de medo. Para mim a
vida passava com um filme sem desfechos, eu era uma adolescente que estava me preparando para ter a
vida de uma mulher adulta. Para minha mãe, a vida acontecia, agora, como o pior de todos os martírios ou a
maior de todas as esperanças, pois por algum momento eu sinto que ela imaginou que aquele bebê que ela
estava esperando poderia ser a salvação do seu casamento. Meu pai poderia se conscientizar do mal que a
faria cometendo a traição e deixaria a família extra que ele decidiu assumir, cuidando só da gente. Esse
inesperado bebê iria salvar o seu casamento. Resolvemos seguir esperando, e foi uma espera agoniante. A
lembrança mais intensa que tenho dessa época é do clima de tensão e de sofrimento que existia em nossa
família, das brigas intermináveis e de minha mãe com um cigarro na boca, um copo de café do lado e as
lágrimas que nunca secavam, E das suas conversas amargas com algumas vizinhas e amigas de confiança.

...

Continuei morando com meus pais e irmãos durante todo o período da minha gestação precoce.
Meu namorado/marido não tinha condições de nos manter, então minha mãe não teve outra alternativa
senão me permitir ficar na sua casa, já que eu não queria morar com a mãe dele. Éramos dependentes dos
nossos pais e ficaríamos assim até que conseguíssemos nos organizar. No início, mesmo com tantos
conflitos familiares, tentamos ter uma convivência harmoniosa, mas logo minha mãe ficou com raiva de
algumas atitudes dele, fazendo-o perder a paciência nos primeiros meses da minha gravidez e sumir
novamente. Lembro que também sofri e que também chorei, mas dessa vez a dor não era maior em
comparação com a primeira vez. Eu estava muito ocupada com os preparativos para receber a minha
criança e não queria ficar me preocupando com situações dolorosas. Também estava magoada com
algumas atitudes grosseiras e de possessão que ele começou a apresentar e acredito que foi até bom darmos
um tempo para que eu pensasse nas coisas que estavam acontecendo em minha vida e tivesse um pouco de
paz. Além do mais, bastavam para mim as discussões constantes de meus pais.

Para minha mãe, nossa família tinha se deteriorado e mesmo que as palavras nunca tivessem saído
de sua boca, o seu olhar inquisidor e as suas ações me diziam que eu também fui culpada por tudo aquilo.
Apesar de tantas desavenças familiares e de tantas confusões emocionais, me recordo dos momentos felizes
que eu tinha com meus irmãos e essa era a melhor parte da minha vida em família.

...

Um dia acordei com um desejo absurdo de comer um limão inteiro.

Perguntei para o meu irmão: Você consegue um para mim? Ele me chamou de louca e saiu me
dando as costas. Passei a manhã inteira pensando naquele limão e minha boca enchia d`água quando eu me
imaginava descascando e devorando cada gomo dele. Mas ninguém na vizinhança tinha um limão para me
dar, então eu tentei me conformar com o vinagre na salada, mas vinagre não era limão.

No fim da tarde, quando eu já tinha aceitado que aquele desejo não seria realizado, desisti. Parei de
pensar no limão porque o dia já estava acabando e aquele desejo estava me torturando. Qual não foi a
minha surpresa quando vi meu irmão chegar com três lindos limões, oferecendo-me como se fossem
tesouros. Lembro que meu coração quase saltou do peito de tanta felicidade. Agarrei os limões das mãos
dele rapidamente, descascando-os com a mesma rapidez e comendo-os como se fossem os únicos e mais
saborosos alimentos da face da terra. Meu irmão me olhava fazendo careta e provavelmente se
perguntando: Como alguém come limão com tanto gosto?

Eu o agradecia internamente por tamanha generosidade em ter ido buscar os limões para saciar o
meu desejo de grávida, ainda que alguns minutos depois eu os tenha vomitado completamente. Não sei se
meu irmão tinha consciência da importância daquele seu ato, mas eu tinha. Aquele era um ato de amor.
...

IRMÃOS

Sou a segunda irmã mais velha de cinco filhos vivos. Um menino e quatro meninas.

Contando com o último bebê da minha mãe, ela teve ao todo sete filhos. Como já contei, sua
primeira gravidez não vingou. A última gravidez, eu já conto para vocês.

Cronologicamente Ari nasceu em Junho de 1984; eu nasci em Março 1986; minha irmã Keilha
nasceu em Março 1988; minha irmã Keli nasceu em Maio de 1990; minha irmã Wlinha nasceu em Janeiro
de 1993 e minha irmã caçula nasceu em Novembro de 1999.

Ari foi o meu guardião e chiclete na época da escola e meu companheiro nas brincadeiras de rua. É
alguém que eu amo intensamente e sei que esse amor é recíproco.

Keilha é a mulher mais autêntica e corajosa que eu já conheci em toda a minha vida. Ela é a mulher
do século XXI.

Keli é uma das pessoas mais importantes da minha história. Sua personalidade calma e sensível é o
que me faz ser apaixonada por ela. Não sei o que seria de mim sem a sua presença na minha existência.
Acho que sem ela faltaria um pedaço da vida em mim.

Wlikênia (Wlinha) sempre será para mim a menina que nunca vai crescer. Foi com ela que eu
aprendi sobre cuidar de uma criança quando eu também ainda era uma.

Irmãos são presentes que a vida nos empresta para nos ajudar a progredir humanamente.
Um dia ela acreditou no amor

Mas o amor não era amor

Ele só se fazia

Só fazia de conta que era amor

Mas ela não fazia de conta

Ela só fazia amar

Um amor que nem existia

Era tudo coisa da sua imaginação.

1999 – ÉPOCA EM QUE OS ANJOS NOS VISITAM

A dor do parto é insuportável e pode durar dias. Depois passa. Mas ela nunca passa sem deixar as
marcas que ficam para sempre gravadas no nosso corpo, nossa alma e em nosso coração.

De repente me peguei imaginando essa dor no dia do nascimento de Cayane antes mesmo que ela
viesse. Era assustador ouvir tantas histórias de mulheres parideiras que vinham me ensinar como eu deveria
agir nos meses que se sucediam e quando as primeiras dores viessem. Diziam que a dor era como de morte,
que minha vida ficaria pior e que eu precisava me preparar na minha missão materna, pois filhos davam um
trabalho eterno e eu precisava ser forte. No entanto e apesar de tantos agouros, eu não absorvia aquelas
negatividades. Sabia intrinsecamente que nada depois do nascimento da minha filha seria fácil, mas eu não
sentia medo porque já tinha aceitado a minha sina de ser mãe. Cayane estourou a minha bolsa doze horas
antes do seu nascimento quando eu já estava me preparando para deitar. Pensei que estivesse fazendo xixi
sem querer e ignorei a situação. Não contei nada para ninguém. Depois das 23:00 percebi que estava
sentindo as dores do parto. Durante os nove meses que ela crescia no meu ventre, aconteceram muitas
coisas que eu não conseguia compreender com clareza. Minha menstruação parou, meu quadril alargou,
minha barriga cresceu e minha vida mudou. Sentia enjoos, desejos e remelexos dentro de mim... O meu
corpo já não era só meu. Em setembro de 1999, Cayane já não cabia mais em mim.

Levantei as três da manhã e passei a madrugada andando pela casa, da sala para a cozinha e da
cozinha para a sala, mas quando a dor se tornou insuportável eu tive que acordar a minha mãe para irmos
para o hospital. Quando chegamos no hospital da cidade não consegui ficar ali. Pedi que minha mãe me
levasse para outro hospital, pois o ambiente daquela recepção fria, o olhar acusador da enfermeira, o cheiro
forte de álcool etílico, o ambiente escuro e o aspecto sujo daquele lugar me fizeram sentir que eu estava em
um filme de terror, me apavorando e fazendo com que eu implorasse para minha mãe que saíssemos
daquele lugar. Pegamos um carro e fomos para o hospital vizinho, na cidade de Bananeiras. Quando
cheguei, tinha uma moça na recepção, então minha mãe lhe disse que achava que eu tinha entrado em
trabalho de parto. Ela pediu para que aguardássemos e que minha mãe lhe entregasse os meus documentos
pessoais. Algum tempo depois, chamou-me para uma salinha onde tinham duas enfermeiras de meia idade,
que me pediram para tirar toda a roupa porque iriam fazer um exame ginecológico para se certificar se eu
estava com contrações de verdade ou que aquilo era apenas um alarme falso. Há um mês eu já estava
vivendo esses momentos em meu Pré-Natal, mas naquela madrugada meu sofrimento solitário me fez em
algum momento acreditar realmente que eu iria morrer. Quando a enfermeira acabou de me tocar, pediu
para que eu me vestisse e foi falar com minha mãe. Em seguida saímos dali. Eles me encaminharam para
outro hospital porque disseram que ali não tinha estrutura obstétrica para me atender, pois eu era muito
jovem e eles não queriam se responsabilizar por eventuais complicações durante o parto. Então entramos
no carro novamente e fomos para a maternidade que eles encaminharam. Durante o percurso, mordi todo o
braço da minha mãe para não gritar. Lembro da dor lancinante de Cayane querendo sair do meu corpo, das
enfermeiras colocando soros em minhas veias, do médico me acalmando, conversando comigo como se
nada tivesse acontecendo, e depois não me lembro de mais nada além de perceber que o sol surgia quando
Cayane nasceu na manhã daquele dia. E que depois que aquela dor passou, eu só conseguia sentir amor
pelo pequenino ser que agora dormia ao meu lado.

Lembra a cena da menina com a boneca emprestada da amiga no colo, ainda criança, na parte de
trás de uma serralharia, brincando de casinha e construindo móveis com pedaços de madeira? A diferença
daquela cena para o momento presente é que agora eu tinha uma boneca de verdade. Cayane tinha a pele
parda, os olhos e os cabelos negros e era o bebê mais fofo do mundo inteiro. Eu não sabia amamentar,
então ela precisou aprender a chupar o leite da mamadeira, e para mim a parte mais cansativa, triste e
frustrante de ser mãe era quando ela acordava chorando e sentindo dores de cólica no meio da noite. Sentia-
me inútil e incapaz, e ficava irritada por não conseguir resolver aquela situação. Meu corpo todo doía nos
primeiros dias de puerpério e parecia que aquela sangria menstrual nunca mais iria acabar. Com o passar do
tempo, a dor passou. Lembro que parei de gostar de quem eu era, porque, para mim eu já não era mais a
pessoa com o corpo e a mente de antes. Com exceção desses maus pensamentos, eu tentava ao máximo
lidar com a nova tarefa da maternidade. Cayane era uma novidade linda na família. Recordo-me
nitidamente de uma madrugada em claro com meu pacotinho de gente, de ficarmos nos olhando refletidas
no espelho enquanto eu a consolava das suas dores de cólicas noturna, e do seu choro sentido no meio da
noite quando alguns minutos depois, ela enfim, conseguiu dormir. Naquele momento, apreciei aquela cena
singela de amor em que eu a segurava e a embalava em meus braços protetores enquanto ela ressonava
imersa em um sono profundo, e que em algum instante daquela hora da madrugada, pedi a Deus para que o
tempo parasse e aquele momento nunca mais acabasse, para que eu pudesse eternamente roçar meu rosto
naqueles cabelos negros e sentir para sempre aquele cheirinho de bebê, de leite e de paz.

Quando eu e Cayane chegamos da maternidade minha mãe resolveu mais uma vez se afastar e só
observava como eu cuidava dela, às vezes dizendo como eu deveria fazer determinadas coisas e corrigindo-
me com repreensões quando eu fazia algo errado como mãe, sempre de forma automática e distante. Eu a
entendia. Ela não estava passando por uma fase gloriosa e precisava aceitar a ideia de que agora era avó por
causa das irresponsabilidades da filha adolescente. Já estava com sete meses de gestação da sua última filha
e se preparando para dar à luz, então não tinha tempo para paparicos com esse novo bebê. Além do mais,
meu pai continuava com a outra família, apesar de continuar também a cuidar da gente como possível. Ele
adorava a ideia de ter se tornado avô, e apesar de todas as dificuldades familiares que vivíamos, eu soube
que meu pai e meus irmãos amaram Cayane assim que a viram. Dois meses depois no nascimento da minha
filha, minha mãe começou a sentir as primeiras dores de parto e foi para o hospital. Fiquei em casa
organizando os preparativos para a chegada do mais novo membro da família, minha irmãzinha caçula e
cuidando de Cayane e dos meus irmãos enquanto meu pai trazia notícias do hospital. Minha mãe foi dar a
luz no hospital vizinho da nossa cidade, o mesmo que me rejeitou por causa de minha tenra idade. Ela saiu
para parir de manhã bem cedo, e como ter filhos não era nenhuma novidade para ela, ficamos tranquilos e
aguardando que tudo ocorresse normalmente. Foi um dia empolgante e marcante para todos nós. Os
médicos disseram que, por não ter se cuidado devidamente durante a gestação por causa dos problemas
emocionais, o bebê da minha mãe era muito grande e estava demorando muito para nascer, e ela não tinha
mais forças para empurrá-lo. Com muita dificuldade ela conseguiu parir a sua última filha depois de quase
um dia sentindo as dores de parto. No entanto, a bebê nasceu com alguns problemas respiratórios devido ao
excesso de cigarros que minha mãe fumava durante a gravidez. Caêna (In memoriam), nasceu no dia 15 de
novembro de 1999 e faleceu quarenta e cinco minutos após o seu nascimento, vítima de insuficiência
respiratória grave. Foi o meu pai quem preparou o seu funeral, trazendo o seu minúsculo caixão branco,
levando-a para a nossa casa para que pudéssemos nos despedir dela. Minha mãe ainda estava internada e
deu o último adeus a sua filha caçula lá mesmo, no hospital.

Minha última irmã caçula era a branquela e gorduchinha mais linda de todos os irmãos, mesmo
sem vida e dentro daquele caixão, e esta foi a única lembrança dela que ficou em minha memória. Teria
sido um prazer enorme poder vê-la crescer em nosso convívio

...

Minha mãe cuidou física e fisiologicamente de Cayane. Cayane cuidou emocionalmente da minha
mãe. Elas precisavam uma da outra. Minha mãe tinha que esvaziar o leite empedrado, Cayane gostava de
mamar e eu não sabia fazer isso. Além do mais, elas eram as companhias mais necessárias naquele
momento de perda, e eu precisava das duas para sobreviver. Acompanhei e participei de cada momento
como faz uma mãe/irmã, porque foi isso que me tornei com o passar do tempo, e isso não era ruim. Era
reconfortante. A vida seguiu como seguem todas as outras depois que a dor já não é a única coisa que
temos enquanto vivemos. O pai de Cayane ainda não a conhecia e ela já estava com três meses quando ele
reapareceu. E ele veio com o intuito de nos levar. Disse que tinha ido embora para trabalhar porque na
cidade não tinha emprego e que agora tinha condições de nos manter. Eu ainda o amava, ela era o pai da
minha filha, mas quis retomar a minha vida quando ele foi embora porque imaginei que ele não voltaria
mais.

Eu tinha resolvido voltar para a escola e tentar retomar a minha vida. Fui até a escola e pedi que
reabrissem a minha matrícula, e consegui um emprego de babá para ajudar nas despesas com a minha filha.
Ele não gostou de saber disso e desesperado por acreditar que tinha nos perdido, decidiu lutar até o fim. Eu
trabalhava durante o dia e estudava durante a noite. Então ele ficava me esperando próximo a esses lugares
para tentar me convencer de que teríamos que viver juntos e de que a vida dele não fazia nenhum sentido
sem minha filha e eu. Minha mãe não gostava do que estava acontecendo. Sentia vergonha por mim e pedia
para que eu tomasse um rumo na vida, mas sabia que o pai de Cayane era apenas um rapaz inconsequente.
Ela também não tinha estrutura psicológica para me orientar, pois sua situação com meu pai ficava cada dia
mais complicada em termos de convivência conjugal. Quando o pai de Cayane voltou, nos convenceu de
que tinha mudado, que estava trabalhando e que agora podia cuidar da gente, mesmo nós dois sendo tão
jovens, e minha mãe o apoiou por imaginar que fosse verdade, e por mais que sofresse com a ideia de que
eu levaria sua neta comigo se fosse embora, para ela isso era o melhor para mim, pois eu estava indo
embora tentar ajustar minha vida com o pai da minha filha e isso parecia muito justo. Além do mais,
mesmo com tudo o que ele tinha feito, eu ainda mantinha os meus sentimentos e também confiei que ele
tinha mudado para melhor. Pensava: - E se ele realmente estava disposto a cuidar de nós?

No início eu não queria ir. Eu não queria nem sequer vê-lo porque estava muito machucada com
sua falta de noção em relação a toda a situação, mas depois de muitas insistências, ele acabou me
convencendo. Eu estava magoada, mas realmente queria construir uma base familiar e as suas palavras e
promessas pronunciadas naquela época garantindo que dessa vez tudo seria diferente soaram como
verdades para os meus ouvidos. Meu pai se absteve completamente e simplesmente permitiu que eu
tomasse a melhor decisão para mim. E sei que ele só queria que eu fosse feliz. Com o passar dos dias, eu já
não estava mais indo para e escola, tinha saído do trabalho de babá e empregada doméstica e estava me
preparando para ir embora com o pai da minha bebê. Eu via nos olhos da minha mãe que ela estava
sofrendo por Cayane, e ela até sugeriu em algum momento para que eu a deixasse, mas o pai de Cayane e
eu não aceitamos. Minha mãe temia que eu vivesse com um e com outro naquela cidade e me tornasse uma
mulher mais mal falada do que eu já estava por ser mãe solteira. Então, mesmo sem confiar inteiramente se
aquela tentativa daria certo ou não, ela aceitou que aquilo era o melhor para nós.

Arrumamos nossas bagagens e fomos na mesma semana para Pernambuco, eu, minha filha e o pai
dela. E lá, longe dos meus pais, eu o conheci verdadeiramente. Naquela época, e para mim, a única pessoa
do mundo com quem eu poderia e deveria construir uma relação de família era com o pai da minha filha.
O que é ter fé?

- Ter fé é querer um pé de roseira no quintal

Comprar uma semente de um desconhecido

Plantá-la e esperar pacientemente que ela nasça

Nem um salgueiro

Nem uma mangueira

Nem um pessegueiro

Nem um girassol

Nem um limoeiro

Nem uma margarida

Nem uma macieira

Uma roseira.

2000/2003 – ÉPOCA EM QUE QUASE NADA ERA AMOR

2000 - Pernambuco era um lugar absurdamente quente e muito agitado, mas tinha uma feira linda
de artesanato na cidade de Caruaru que eu adorei visitar. Não tínhamos ainda uma casa para morar quando
chegamos. Na realidade não tínhamos nada.

Nos primeiros três dias ficamos em um quartinho improvisado de uma pensão ou algo do tipo, que
tinha uma cama e um pequeno banheiro. Comíamos em bares e ele aproveitou esses três dias para levar-
nos para nos apresentar aos seus amigos. Depois ele conseguiu alugar uma casa para morarmos. Era na
parte de baixo de um sobrado, onde também morava outra família em oura casa ao lado da nossa, e tinha
uma cisterna enorme na cozinha, porque Pernambuco era um lugar escasso de água e aquela cisterna
serviria para nos abastecer quando a água da torneira acabasse. A casa tinha uma sala, um quarto, uma
cozinha, um banheiro e uma peste de escorpiões que não permitia que eu dormisse um sono tranquilo, pois
tinha medo que algum mordesse a minha filha. Eu não sabia o que ele fazia lá profissionalmente, mas como
seu único ofício era trabalhar com consertos, pinturas e polimentos de carros, presumi que era isso que ele
fazia naquela cidade. Ele era um mecânico e pintor. Ele também tinha um amigo. Um melhor amigo que
morou conosco durante algum tempo. Tudo era novo e confuso para mim, mas eu estava confiante e feliz.
Tinha minha filha e meu marido e acreditava que dessa vez tudo daria certo em nossas vidas a partir do
momento que decidimos crescer juntos. Mas depois de alguns dias percebi que me enganei. Me enganaram.
Lá, descobri muitas coisas sobre as quais eu nunca queria ter conhecimento. Através de alguns dos seus
colegas de trabalho soube que ele tinha outra pessoa e que não estava sozinho me esperando como eu
presumia enquanto cuidava da nossa filha e o esperava. Ele me pediu desculpas e disse que estávamos
separados, por isso ele ficou com outra mulher, mas que não era nada importante e que eu não deveria me
preocupar porque já tinha acabado.

Não foi fácil para mim entender essa situação, mas resolvi acreditar que ele tinha mudado e decidi
esquecer essa história para sempre. Não tínhamos nada além de um fogão de quatro bocas e uns colchões
para dormir. Agora era só eu ele e a nossa filha. Eu precisava fazer isso valer a pena. Passava o dia inteiro
cuidando de Cayane e ele ia trabalhar na oficina. Às vezes a única coisa que ele deixava em casa para
comer eram uns pães e bolachas para que eu me alimentasse durante o dia, e de vez em quando fazia uma
pequena feira. Aprendi a cozinhar arroz, feijão e frango, mas nos primeiros dias não saiu nada de
proveitoso. Quando morava com minha mãe, era ela quem cozinhava. Aprender a cozinhar sozinha foi um
pouco complicado para mim. A única coisa que eu gostava e sabia fazer de verdade era cuidar da minha
filha e protegê-la.

Ele não era um bom pai e não sabia como lidar com ela. A pegava de vez em quando no colo, mas
logo me devolvia. Brincava com a menina como se ela fosse um animalzinho de estimação e eu não
gostava dessa forma de brincadeira. Com o passar do tempo comecei a cobrar dele algumas atitudes mais
maduras. Ele saía para trabalhar e às vezes não voltava e isso me deixava irritada e com medo. Eu não
gostava de ficar sozinha naquele lugar e brigava sempre que o via chegando em casa bêbado com o amigo.
Agora ele tinha adquirido esse hábito que eu não conhecia. Um dia ele decidiu beber em casa para que eu
não ficasse brigando, mas foi pior do que se ele estivesse saído. Ele organizou um espaço na frente da
nossa casa e chamou o vizinho e o dono na casa que morávamos. Me senti totalmente vulnerável naquela
noite. Aqueles homens pareciam primatas e eu odiava a forma que eles falavam, se comportavam ou me
olhavam quando eu precisava sair de casa para comprar ou fazer algo. O pai da minha filha bebeu muito
neste dia, e passei a creditar que ele também usava algum tipo de entorpecente, pois seus comportamentos
oscilavam entre amoroso e agressivo demais, indo sempre de um extremo a outro e me mostrando ser
alguém que eu nunca havia conhecido.

Quando eu ainda estava na casa dos meus pais ele já tinha demonstrado algumas atitudes agressivas
para comigo. No entanto, não era nada que me machucasse fisicamente. Suas atitudes grosseiras não
passavam de empurrões e palavrões, e mesmo que isso me incomodasse e ferisse de maneira profunda
emocionalmente, eu nunca imaginei que ele pudesse ultrapassar esses limites. Só depois de algum tempo
compreendi que ele tinha essa capacidade. Naquela noite ele estava com os amigos e pediu para que eu não
saísse do quarto, pois ele ia beber e aquele não era espaço para mulher. Fiquei em meu quarto escutando as
gritarias e algazarras típicas de pessoas embriagadas e essa bagunça durou até depois da meia noite. Não
estava habituada a esses tipos de situações e fiquei surpresa por conhecer esse novo comportamento dele,
mas relevei por acreditar que isto não iria interferir nas nossas vidas. Era apenas alguém se divertindo após
um longo dia de trabalho.

De repente escuto alguém bater forte na porta e dizer: - Ele está bêbado demais, precisa deitar. Era
um dos amigos dele e que também estava embriagado, porém, lúcido. Abri a porta e permiti que uns dois
homens o colocassem no colchão. Tremi de medo imaginando o que seria de mim com aqueles homens
desconhecidos dentro da minha casa e o meu marido bêbado sem poder proteger a mim e a minha filha.
Mas eles apenas o deixaram lá e saíram sem nada dizer com palavras, apenas com olhares. No dia seguinte
ele acordou muito bravo perguntando o que tinha acontecido. Expliquei-o que tinha bebido demais e que os
seus amigos o haviam trazido para dentro de casa. Ficou muito agressivo, disse que eu permiti que homens
estranhos entrassem na minha casa e me deu um tapa na cara. Fiquei parada sem saber como reagir. Em
seguida, tomou um banho e saiu para trabalhar. Pediu que eu fechasse a porta da casa de chaves e que não
abrisse para ninguém além dele, e assim eu fiz. E essa era se tornou a minha rotina. Eu vivia trancada
dentro de casa e não podia fazer amizade com ninguém.
Eu sentia uma saudade absurda da casa dos meus pais. De repente me peguei chorando de saudade
até das brigas e discussões com a minha mãe, mas não conseguia falar com ninguém, pois nessa época
pessoas simples como a gente não tinha aparelhos celulares e eu não sabia o número do orelhão que tinha
próximo à rua que meus pais moravam. Sentia também a necessidade de sentir o calor do sol e de sair com
Cayane daquele buraco com cheiro de mofo e cheio de escorpiões. Então quando ele não estava eu saia
para dar uma volta na rua e não via mal algum nisto, exceto quando cruzava com alguém, mesmo sem
conhecer, pois temia de fizessem algo ruim comigo ou que contassem para ele que me viram fora de casa.

...

Foi saindo de casa de vez em quando que eu percebi algumas coisas. Tinha uma família que
morava ao lado da minha casa. Era um homem alto e negro, uma mulher, também alta e negra que tinha
duas crianças de aproximadamente três e sete anos de idade. Eu ouvia muita gritaria vindo da casa deles, e
um dia vi quando a esposa do homem foi embora levando seus dois filhos. Ele não perecia uma má pessoa
e eu não percebi nenhuma maldade quando ele me cumprimentou a primeira vez, quando sua esposa ainda
morava com ele ou quando eu saía de casa escondida do pai da minha filha para pegar sol ou estender as
nossas roupas em um terreno baldio que tinha ao lado da nossa casa. Além desses vizinhos, tinha também o
dono da casa que eu tinha visto uma única vez no dia que fomos morar naquele lugar. Ele nos disse que era
casado, tinha uma filha e que eu poderia ir a sua casa quando quisesse conhecer e interagir com a sua
esposa quando eu me sentisse, no entanto, nunca a vi, pois nunca me dispus a ir a sua casa por vontade
própria. Lembro que aquele homem foi muito gentil e prestativo e se dispôs a nos ajudar no que
precisássemos. Depois dessa situação, só conversei com ele alguns dias depois, quando preocupado, ele foi
até a minha casa pedir um favor. Disse que não sabia nada sobre cozinhar e pediu que eu fosse verificar se
o arroz que a esposa deixou no fogo após sair para resolver uma questão emergencial já estava no ponto.
Não tem como esquecer ou definir esse dia, mas eu vou tentar. Peguei minha filha no colo e fui até lá. Não
sei por que, não consegui dizer não. Subi até o andar de cima acompanhando aquele homem, e quando
chegamos, lhe perguntei aonde ficava a cozinha. Ele apontou para um lugar um pouco a frente e eu fui em
direção ao fogão. Enquanto caminhava, percebi como a casa era arrumada e organizada, diferente da nossa
que ficava no andar de baixo. No chão haviam alguns brinquedos de criança e um carrinho de bebê. Eu
nunca tinha visto a sua esposa, então perguntei: Sua esposa chega rápido? Ainda falta um pouco para
desligar. Ele disse que não e pediu para que eu esperasse até que o arroz ficasse no ponto. Nesse momento
senti um estalo na minha cabeça e uma vontade enorme de sair daquela casa. Senti vontade de fugir. Disse
para ele que não poderia esperar porque minha filhinha estava com sono e eu precisava colocá-la para
dormir. Em seguida o percebi vindo em minha direção e se dispondo a segurar minha filha no colo, dizendo
que eu não precisava me preocupar com isso. Impedi que ele a pegasse e saí em direção a porta para ir
embora daquela casa. Senti ele puxando o meu braço e tentando me agarrar, mas fui mais rápida que ele e
saí correndo descendo as escadas rapidamente, chegando até minha casa. Enquanto corria freneticamente,
sentia que ele estava correndo atrás de mim. Consegui chegar até minha casa e fechar a porta de chaves por
dentro. Meu coração estava aos pulos e minha cabeça rodava, Cayane era um bebê e não entendia o que
estava acontecendo. Ela dormiu em meus braços enquanto eu a segurava com força tentando me confortar
na sua paz.

De repente, escuto alguém bater em minha porta. Era o dono da casa. Ele ficou do outro lado
pedindo desculpas pelo que tinha acontecido e dizendo para eu abrir, pediu que eu não tivesse medo dele,
pois ele não iria me machucar A única coisa que eu fazia era chorar baixinho e pedir a Deus para tocar no
coração daquele homem fazendo com que ele fosse embora dali. Quando percebeu que eu não iria
responder, ele subiu e foi embora. Percebi pela sua fala durante o momento em que ele pedia desculpas,
bem como pelas suas atitudes, que ele não estava normal. Parecia bêbado ou drogado.

Passei o dia trancada e com medo, rezando para que o pai da minha filha chegasse. E quando ele
chegou, depois das 20:00, fui contar para ele o que aconteceu. Quando acabei de lhe contar a história, o que
aconteceu posteriormente me fez concretizar que naquela relação existia tudo, menos amor. Minha filha
estava deitada no colchão e se encontrava dormindo, e só estávamos ele e eu conscientes após aquela
conversa. O seu amigo já não dormia com tanta frequência em nossa casa. Num impulso de raiva, ciúmes
ou indignação por ter se sentido enganado, ele deu-me um tapa no rosto após escutar toda a história que fez
o meu ouvido zunir. Em seguida puxou meus cabelos e começou a me bater com pontapés seguidos de
tapas na cara. Eu não conseguia reagir, estava atônita demais para tomar uma iniciativa. A única coisa que
lembro que passava pela minha cabeça, era: - Senhor, me tira daqui. Esse homem é um monstro.

Eu não sei o que mais doía... aqueles socos, puxavantes de cabelos e pontapés, ou o homem que eu
acreditava que me amava e me protegeria me batendo daquela forma, resumindo-me a um saco de pancadas
ou uma lata de lixo sem nenhum valor. Não conseguia falar, eu só sabia chorar, mas lembro que, em algum
momento na sessão de pancadas, ter pedido para ele parar... lembro que ele pegou os meus cabelos, meu
fitou olhou com olhos de fúria e disse: - Nunca mais faça isso. Depois me beijou como se nada tivesse
acontecido, tirou as minhas roupas e manteve relações sexuais comigo por quase uma hora. Dormimos, e
no dia seguinte quando eu acordei, ele já não estava mais ao meu lado. Meu corpo estava todo machucado e
dolorido e eu percebi que tinha menstruado. Cayane também acordou, então eu precisei levantar para lhe
dar de comer, pois ela estava chorando e eu sabia que era de fome. Ela dormiu a noite inteira e não acordou
no meio da noite, como sempre fazia para tomar mamadeira. Ou acordou, e eu não ouvi. Fiz seu mingau
com ela em meus braços e lembro que me sentia levemente anestesiada, e que parecia que havia um nó na
minha garganta. Levantar do colchão e pegar minha filha no colo foi muito doloroso. Passei o dia com ela
nos braços e sentindo-me atordoada de dor, física e emocionalmente. Quando ele chegou do trabalho a
noite eu não conseguia olhá-lo nos olhos. Não sei se por vergonha, mágoa, desgosto ou decepção. Sempre
que ele falava ou perguntava algo eu gesticulava ou balbuciava alguma coisa e saia para que aquele assunto
terminasse. Queria que ele percebesse que eu estava com raiva e que não falasse comigo, mas ele queria
ficar conversando e fingindo que nada tinha acontecido e isso era repugnante.

Passei alguns dias sem conseguir olhar para ele, e algum tempo depois do episódio quando eu já
conseguia falar sobre o assunto, perguntei-lhe porque ele havia sido tão violento naquela noite. Ele
simplesmente me olhou com desdém e disse: - Você me fez raiva. O pai da minha filha não era a pessoa
que pensei que fosse, e por mais que eu o amasse (ou achava que o amava), não iria mais permitir que ele
fizesse aquilo comigo. Misteriosamente, depois daquele dia ele não me bateu mais enquanto estávamos
naquela cidade, talvez por ter percebido que dessa vez eu não suportaria calada. Pedi para ele para voltar
para casa dos meus pais, pois não tínhamos como sobreviver financeiramente naquele lugar, nos faltava
tudo. Além do mais, eu estava com saudades de casa e aquela altura eu já tinha percebido que ele não tinha
responsabilidade alguma, nem com ele mesmo.

O dinheiro que ganhava na oficina mal dava para pagar o aluguel e comprar a comida.
Continuávamos tendo como móveis a mesma mobília de quando chegamos, um fogão de duas bocas e dois
colchões de solteiro, e o dinheiro que sobrava, acredito que ele usava para bebidas, pois raramente ele
chegava em casa sóbrio. Eu estava preocupada porque já ia fazer três meses que estávamos morando no
Pernambuco e as coisas só pioravam. Ele se recusou. Disse que não tinha intenção alguma de ir embora
dali, mas esse discurso misteriosamente mudou alguns dias depois. Descobri que ele também não estava
pagando o aluguel devidamente. Soube disto porque o dono da casa foi até mim alguns dias antes de irmos
embora para cobrar o aluguel. Eu não via aquele homem desde o dia da sua atitude inesperada comigo e das
agressões do pai de Cayane. Foi um momento muito tenso reencontrá-lo aquele dia, mas graças aos céus
não durou mais que alguns poucos minutos. Numa tarde qualquer ele bateu em minha porta. Quando olhei
pela janela, ele disse: - Seu marido não pagou o aluguel esse mês e eu quero que ele saia da minha casa.
Você pode ficar se quiser com sua filha, mas ele tem que sair. Respondi que tudo bem e fechei a janela.
Dessa vez não comentei com o pai da minha filha que o dono da casa tinha ido até lá. No dia seguinte
quando estava quase anoitecendo, ele chegou do trabalho antes do horário previsto e pediu que eu
arrumasse as nossas poucas coisas. Fiquei sem entender o que estava acontecendo, mas mesmo assim
arrumei as coisas como ele pediu. Deus ouviu as minhas preces. Nós íamos voltar para casa. Pegamos um
carro e fomos para Solânea. Lembro que cheguei na casa da minha mãe quase meia noite... e que não tinha
perspectiva de nada que viria depois. Ela não sabia que viríamos e nos recebeu com surpresa e ares de
alívio, mas também de decepção. Alívio por Cayane e eu estarmos bem, e decepção por minha vida não ter
dado certo mais uma vez. No dia seguinte, no fim da tarde, eu me sentia salva e isso para mim já era mais
do que motivo para agradecer, independente do que pudesse vir depois.

...

Foi difícil voltar. Eu já não era a mesma pessoa que tinha ido para o Pernambuco. Estava ainda
magoada, confusa e infeliz. Todas as minhas certezas tinham se esvaído como água corrente na palma das
mãos. Meus pais não podiam saber que o homem que escolhi para ser a pessoa da minha vida tinha me
machucado de formas horríveis. Meu pai o mataria e minha mãe com certeza me menosprezaria ainda mais,
questionando-me por que eu permitia manter em minha vida alguém como ele. Não tive coragem nem
oportunidade de debater esse assunto com eles. Minha família estava com problemas maiores. Meu pai não
estava conseguindo prover a família e por causa disto estávamos passando por muitas necessidades. Para
completar, eu cheguei com Cayane. Mais bocas para alimentar.

...

Tentando evitar ainda mais desconfortos, eu resolvi ir morar na casa que o pai de Cayane alugou
em Solânea um mês depois que voltamos, a essa altura, ele já estava causando brigas constantes em minha
família por seus comportamentos inadequados, para não dizer irresponsáveis de paternidade e como
marido, na casa dos meus ele não em batia, mas me traía e humilhava como as possibilidades permitiam.
Dessa vez minha mãe não deixou que eu levasse minha filha comigo. Disse que ela estaria bem mais
cuidada com ela, me autorizando leva-la para ficar comigo somente por alguns momentos em dias
esporádicos, e que depois a devolvesse. Eu compreendi. Ela tinha razão. Não tínhamos condições
financeiras de cuidar de Cayane e ela sabia que eu estava saindo de casa por que a situação estava
insustentável. Pelo menos eu poderia ver Cayane sempre que quisesse e isso já era reconfortante.

Apesar de estar machucada, eu queria viver em um ambiente tranquilo. Nutri uma esperança
inexplicável de que tudo iria dar certo, mesmo que as circunstâncias mostrassem o contrário. No entanto,
com o passar do tempo essa esperança foi indo embora. O pai de Cayane continuava sendo o mesmo
inconsequente de sempre. Continuou seu ofício com carros, fazendo bicos que surgiam de quando em
quando, e eu continuei morando em uma casa que só tinha uma cama com colchão e um fogão a lenha,
esperando que ele conseguisse se reconstituir, pois ele não me permitia trabalhar para ajudá-lo. Nesta casa
também sofri agressões físicas. Mas algo havia mudado desde então. De alguma forma, eu também aprendi
a “me defender”.
Sempre que ele estava bravo por algum motivo e vinha em minha direção para me agredir e
descontar suas raivas em mim, eu também o agredia para me defender. É claro que eu não tinha a mesma
força física que ele, mas eu aprendi a me desvencilhar. Por causa das marcas vermelhas e roxas pelo meu
rosto e pescoço, passei a ir cada vez menos visitar a minha mãe e evitava levar Cayane para aquela zona de
guerra. Ele não precisava mais de um motivo para me agredir. Ele só precisava sentir necessidade daquilo.
Me agredir tinha se tornado um hábito grotesco. Um dia eu estava em casa esperando que ele trouxesse
algo para comermos. Ao entrar em casa, percebi que ele estava embriagado e começamos uma discussão.
Foi então que ele veio em minha direção para puxar os meus cabelos, mas eu segurei suas mãos fazendo
com que ele ficasse com ainda mais raiva. Eu o segurava o mais forte que podia e muitas vezes retribuía os
tapas que levava para que ele parasse de me espancar. Naquele dia eu consegui livrar meu rosto de muitos
tapas, mas somente no rosto pude evitar as agressões, pois ele encontrou um guarda-chuvas que estava
próximo e conseguiu quebrá-lo por inteiro em minhas costas e pernas.

Em outra situação em que ele chegou durante uma madrugada de inverno, lembro-me que
perguntei onde ele estava até aquela hora da noite. Ele tinha criado o hábito de sair sem dar explicações e
às vezes passava mais de um dia para voltar para casa. Ele se exaltou com meus questionamentos e
começou novamente a sessão de pancadarias. De repente, ele estava em cima da minha barriga prendendo
os meus dois braços com suas pernas para que eu não conseguisse me mexer. Num ímpeto de ódio, ele me
pegou pelo pescoço e começou a apertá-lo com muita força. Recordo-me que já estava perdendo os
sentidos e sentindo minha respiração parar. Quando ele percebeu que eu estava perdendo a consciência,
soltou o meu pescoço e saiu de cima de mim. Senti que ia morrer naquela noite. No dia seguinte ele saiu
dizendo que ia trabalhar, como se nada tivesse acontecido. Todos os dias eu queria fugir, mas o medo das
ameaças que ele me fazia se eu contasse para os meus pais das agressões era muito maior.

...

Certo dia ele chegou em casa dizendo que iria viajar com o amigo que sempre o acompanhava na
época que morávamos em Pernambuco. Disse que eles iriam ganhar muito dinheiro e que iriamos mudar de
vida. Perguntei-lhe como seria aquilo, mas ele não me respondeu. Só pediu que eu esperasse para ver.
Horas antes da sua viagem, lembro que ele passou a manhã inteira no quintal da casa que alugamos falando
baixo e escondendo algum objeto com o seu melhor amigo. Pedi para que ele me dissesse o que estava
acontecendo, mas ele não queria falar sobre o assunto, só dizia que eu não me envolvesse e que tudo daria
certo. Os objetos que eles escondiam naquela manhã eram revólveres.

Disse para ele que não importava o que fossem fazer, aquilo era uma loucura e eu não concordava
em absoluto com nada do que eles planejaram, mas me sentia uma parede falando. Na tarde do mesmo dia,
ele se despediu de mim e de Cayane com um beijo dizendo que a nossa vida ia ser outra depois que tudo
estivesse concluído, e saiu com seu amigo. Eu tinha pedido permissão para minha mãe para que ela
dormisse conosco aquele dia porque eu sabia que iria ficar sozinha. Assim que ele foi embora com o amigo,
peguei algumas roupas da minha filha e minhas, coloquei dentro de uma bolsa e fui para a casa de uma
prima da qual nutria um carinho muito grande. Éramos muito próximas, mas não contei para ela o motivo
de estar ali. Estava confusa e amedrontada com toda aquela situação e precisava ficar perto de alguém que
eu confiasse, ela era essa pessoa. Então começamos a conversar sobre outros assuntos, ela fez algo para
comermos, e logo dormimos. Minha mãe já sabia que quando ela ia me ver e eu não estava em casa, era na
casa dessa prima que eu estava. Luciana o nome dela. Uma mulher com uma história de lutas e de perdas,
mas com uma fé inabalável na vida e nas pessoas. Depois desse dia, muitas coisas aconteceram e eu não
mais a vi, mas a lembrança de sua doçura e força jamais saíram da minha memória. Acordei cedo naquele
dia após um sono agoniado. No fundo eu sabia que aquela situação iria mudar de alguma forma a minha
vida, e mais uma vez, de maneira negativa. Quando estava me despedindo de minha prima e agradecendo
pela hospitalidade na porta de sua casa, vi minha mãe de longe e meu coração disparou. Alguma coisa tinha
acontecido. Naquela manhã do mês de junho do ano de 2000 soube que o pai de Cayane tinha sido preso
com o seu amigo na cidade de Pernambuco, acusados de tentativa de assalto à mão armada a um ônibus
cheio de passageiros. Depois disto o elo que nos unia se fechou junto com os poucos sentimentos de
dependência que por ventura eu ainda nutria por ele. Não era essa vida que eu sonhava para mim. Eu
precisava acordar para a minha realidade. Voltei para a casa da minha mãe e rebobinei a fita da minha
existência. Eu precisava continuar, apesar de tudo. Por mim e pela minha filha, eu precisava continuar e o
primeiro passo era acabar com aquela relação tóxica.

...

Na rua em que morávamos antes do meu ex-marido ser preso, tinha um homem que vinha visitar
uma irmã e sempre pedia para que ele consertasse o seu carro, geralmente uma vez por semana. Foi esse
homem que, de alguma forma, ajudou-me a fugir de tudo o que eu queria naquela época, mas como nunca
devemos fugir das nossas dores (aprendi isto muitos anos depois) surgiram novos acontecimentos que me
ensinaram, entre outras coisas, a tornar-me uma mulher ainda mais forte. Tive a oportunidade de contar
para ele o que eu estava vivendo, numa tarde em que tomávamos café na casa desta irmã dele, que eu tinha
conhecido através de Val, sua sobrinha, que comovida com a forma difícil que eu vivia com o meu ex-
marido, de vez em quando me ajudava com doações de alguns alimentos. Ela gostava de Cayane e isso fez
com que nos tornássemos próximas. Foi durante essa conversa, depois de ter ouvido boa parte do que me
aconteceu (eu tinha vergonha de falar sobre as violências que sofri e não mencionei essa parte da história
logo de início, mas já tinha decidido que não queria mais reatar aquela união falida), que ele, o homem que
sempre procurava meu ex para consertar o seu carro, questionou: - Por que você vai deixá-lo? Apenas
porque ele foi preso? Então, por um momento eu perdi a vergonha e disse: - Não. Vou deixá-lo porque ele
me bateu e me machucou de todas as formas e eu decidi que nunca mais vou deixar outro homem fazer esse
tipo de coisa comigo novamente.

Ele se encantou por mim e eu também nutri um sentimento de admiração por ele quando passamos
a nos conhecer melhor. Quando aquele homem surgiu eu estava vivendo um dos momentos mais
conturbados de minha adolescência confusa. Eu me lembro que uma das maneiras que ele tinha de se
aproximar era falando sobre o meu ex marido. Ele queria saber tudo. Um dia até se dispôs, caso eu
quisesse, ir até a cadeia onde ele estava para resolver a nossa história de vez. Sentir que tinha alguém que
me ouvia e se importava com os meus sentimentos foi algo muito importante para mim. Algum tempo
depois, aquele homem me pediu em namoro e disse que estava gostando de mim. Fiquei confusa com tudo
aquilo, mas me deixei levar pela situação, sobretudo depois dele me propôs ir embora para São Paulo com
ele para reescrever a minha história e me permitir viver uma nova vida. Ele disse que era solteiro, que tinha
um emprego e condições de me ajudar a superar toda aquela situação. Mas eu morava com meus pais e
precisava da autorização deles para concretizar aquela relação. Então contei para minha mãe que tinha
alguém que estava disposto a me ajudar e minha mãe então pediu para conhecê-lo. Ele foi até a minha casa
pedir permissão e autorização para me namorar e me levar daquele lugar. Disse para meus pais que iríamos
fazer uma tentativa, e se por acaso não desse certo, da mesma forma que ele me levou, ele me traria de
volta. Meus pais consentiram. É possível que meu pai e ele tenham, na época, buscado uma forma de
assegurar sobre a garantia da minha viagem, dando para o homem a segurança de que ninguém o acusaria
de ele estar me sequestrando no percurso até a cidade grande. Nunca tive plena certeza desta parte da
história ou coragem para perguntar ao meu pai se isto realmente aconteceu, mas depois que cresci, presumi
que legalmente não era possível permitir a um adulto desconhecido de 32 anos levar uma menor de 14 anos
para a cidade grande sem que fosse parado pela PRF, então eles precisariam ter certos cuidados jurídicos
quanto a isto. Mas todos estavam de acordo, então estava tudo bem.

Eu iria para São Paulo reestruturar a minha vida com alguém mais velho e mais experiente do que
eu e tudo ficaria bem. Lá tinha escola e emprego e eu daria a volta por cima. Ele só me pediu que eu
concordasse com uma única coisa; deixar minha filha temporariamente, pois como ainda iríamos começar
a nossa vida, não seria sensato levá-la de imediato. Seria muito arriscado para ela toda a mudança, e que o
mais aconselhável era que ela ficasse com meus pais que já tinham mais experiência para cuidar dela e que
ele ajudaria com algum valor mensal até que ela fosse morar conosco quando nos ajustássemos. Como ele
garantiu que Cayane iria morar conosco futuramente, eu aceitei a proposta. Era tudo uma questão de tempo
até que eu a visse outra vez e eu não tinha motivo para me preocupar. Confiava totalmente que tudo seria
da forma que combinamos antes de viajar. Me despedi dos meus pais, meus irmãos e minha filha e fui para
São Paulo “refazer” a minha vida na esperança de que dessa vez tudo seria diferente. Nós iríamos nos
reestruturar e eu iria trazer a minha filha para morar conosco quando nossa casa estivesse pronta para
recebê-la. Futuramente eu iria estudar, conseguir um emprego bom e ter condições de me cuidar e cuidar da
minha filha. Dessa forma, fui embora da pequena cidade de Solânea com a perspectiva de que dias
melhores viriam. Eu sabia que enquanto eu estivesse fora minha mãe iria cuidar muitíssimo bem da minha
filha, então senti completa segurança, por isso não teve sofrimento nessa despedida. Fui para a casa da mãe
dele por uns dias até viajarmos definitivamente. Foi um choque para aquela senhora tudo aquilo.

Num dia seu filho morava em São Paulo, era solteiro e decidiu vir para o nordeste passar uns dias
de férias em sua companhia. No outro dia ele estava namorando com uma menor, mãe solo e que
aparentemente não valia absolutamente nada. Talvez tenha sido esse o motivo de ela nunca ter me aceitado.
É complicado para uma mãe com mais de 70 anos e todos os seus conceitos tradicionais de vida, aceitar
facilmente tal situação. E foi nesse clima de polêmica e rejeição por parte de alguns familiares desse
homem, que viajamos algum dia do mês de agosto do ano 2000.

...

Três meses após a viagem, me arrependi amargamente de ter ido para São Paulo. Não gostei do
clima muito frio nem de estar rodeada por estranhos. Sentia muita saudade da minha família, sobretudo da
minha filha, e quando conversávamos por telefone, o desespero por estar longe de tudo era pior. O homem
que me levou para tentar me resgatar de uma vida pobre e insignificante e de um relacionamento abusivo
passava o dia fora e como eu não conhecia ninguém no bairro aonde morávamos nem tinha afinidade com
os seus familiares, passava o dia inteiro sozinha dormindo, assistindo e/ou chorando. Ele tentava amenizar
a situação trazendo novidades para me agradar e nos finais de semana me levava para a casa de uma irmã
dele para que eu desopilasse a minha mente, mas nada disso me fazia feliz. Eu me sentia uma completa
estranha infiltrada na vida de pessoas que não tinham nenhum vínculo afetivo comigo e só faziam de conta
que me aceitavam por educação. Quando eu perguntava para ele quando eu ia estudar, ele dizia que
falaríamos sobre isto depois.

Uma tarde quando ele chegou em casa e me viu chorando, perguntou o que eu tinha. Eu disse que
queria voltar para minha casa. Que agradecia por tudo de bom que ele estava fazendo e que aquilo era para
o meu bem, mas que eu não estava feliz e que sentia saudade da minha filha. Como ignorou completamente
o que eu dizia, fiquei irritava e comecei a dizer para ele que comprasse a minha passagem de volta porque
eu não queria mais ficar naquele lugar. Então ele se irritou comigo e concordou que compraria as
passagens, mas que eu era uma mal agradecida que tinha vindo de um buraco de favela, que ele estava
tentando me ajudar e que se eu não quisesse ser ajudada era um problema meu. Eu só sentia vontade de
chorar nessas situações. Ele nunca comprou as passagens. Conseguiu me convencer de que o melhor para o
meu bem estar era ficar em São Paulo com ele. Que eu não tinha futuro na cidade que morava e que eu
merecia algo melhor na vida. Que essa saudade era normal e que com o tempo eu iria me acostumar com
ela. Aceitei porque não tinha outra opção e porque acreditava de verdade que tudo iria se resolver, e assim,
tentei acalmar meu coração. Recebi uma carta da minha mãe um mês depois, com uma foto de Cayane que
foi tirada no dia do seu aniversário. Lembro do aperto no peito que senti quando vi aquele rostinho e do
desejo que tive de correr para ir buscá-la. Eu precisava da minha filha perto de mim para conseguir suportar
tantas mudanças. Já estávamos visivelmente estruturados, não tinha mais desculpas para não a trazer. Ele já
tinha alugado uma boa casa e ela já estava toda mobiliada, então eu não via motivos para minha filha não
vir morar conosco. Foi então que o perguntei quando podíamos trazer ela para perto de nós, e neste dia,
percebi que ele não nutria esse interesse. Como nunca conviveu com Cayane, ele não tinha nenhum
sentimento afetivo por ela e acredito que esse era o motivo pelo qual ele não fazia questão de que ela
morasse conosco. Ele não era o pai dela e não tinha interesse algum em nada que lhe dissesse respeito.
Uma vez ouvi sua mãe perguntar até quando ele iria ficar mandando dinheiro por mês para ajudar minha
mãe na criação dela, ouvi ela dizer que ele não tinha nenhuma obrigação com isso. Algum tempo depois ele
parou de enviar o dinheiro. Com o tempo comecei a aceitar a ideia de que ele realmente não queria que
minha filha fosse morar conosco e parei de lhe pedir para trazê-la para junto de mim. Aceitei o fato de que
ela estava mais bem cuidada e amada com minha mãe, apesar das dificuldades, e sabia que ela sofreria se
eu a tirasse do seu convívio, pois já tinha construído laços maternos com ela e eu não queria destruir isso.
Minha mãe substituiu o amor da minha filha pelo amor da sua filha que morreu, e isto era compreensível
para mim.

...

2001 – Tédio e falta de perspectivas me resumiam intrinsecamente.

Eu passava o dia inteiro dentro de casa. Madrugava vendo TV, acordava apenas a tarde e passava a
maior parte dos meus dias nostálgica e deprimida. Ele passava o dia inteiro na rua cuidando dos seus
negócios. Era um homem com experiência em comércios e tinha uma vida muito corrida, que
aparentemente dava muito resultado todo aquele trabalho, pois apesar de ser um homem desprovido de
romantismo e de carisma amoroso, não me deixava faltar nada no início da nossa relação. Eu não estava
feliz. Queria me sentir útil. Estudar, trabalhar, mas ele dizia que São Paulo era uma cidade muito perigosa e
que não tinha tempo e nem disponibilidade para me ajudar a buscar as oportunidades com as quais eu
sonhava, pois estava sempre muito ocupado. Isso me irritava bastante, mas eu não reagia. Ele não queria
que eu falasse com os vizinhos e as únicas pessoas que ele ainda me permitia ter algum tipo de relação era
com alguns dos seus familiares. Em virtude disto, situações e acontecimentos inesperados eram inevitáveis,
porque apesar de não ter afinidade com nenhuma das pessoas da rua em que eu morava, encontrá-las fazia
parte do processo de convivência social.

Às vezes, quando eu saia para varrer a calçada da casa onde morávamos, via uma mulher de meia
idade com três filhos pequenos na frente do seu portão, que ficava ao lado do meu, e em um desses dias
resolvemos nos cumprimentar, e numa dessas conversas corriqueiras de vizinha, ela me pediu para
tomarmos um café para que eu pudesse conhecer a sua casa. Receber esse convite soou como ganhar um
presente, pois ultimamente estava me sentindo muito sozinha e conversar com outras pessoas iria me fazer
bem. Sua casa tinha cheiro de comida sendo preparada e a sensação era de que eu estava em um ambiente
que tinha vida agitada, choro de criança e alegria. Estava bagunçada e ela pediu desculpas pelo
constrangimento, mas apesar de ter realmente percebido a grande bagunça, aquilo não era nenhum
problema para mim. Muito pelo contrário. Sentia o aconchego daquela família e a vivência com aquelas
pessoas fazia com que eu me sentisse de alguma forma, próxima da minha.

O homem com quem eu convivia não gostou quando eu disse que tinha feito uma amiga na
vizinhança. Pedia que eu tomasse cuidado com as pessoas, sobretudo com vizinhos fofoqueiros. Falei para
ele que não via problema algum em conversar com alguém que não fosse as paredes ou os personagens da
bíblia ou da televisão, e que iria tomar cuidado. Então depois desse dia, evitava falar sobre isso com ele
para não criar atritos e para que ele não interferisse na minha relação com ela, pois eu não via nada demais
em ter uma amiga vizinha. Passamos quase um ano inteiro morando naquela casa e somente alguns meses
depois é que eu e a vizinha começamos e conversar, mas eu não recordo seu nome. No entanto, guardei na
memória suas ações e ainda lembro do seu sotaque paulista, da sua perseverança materna e do som da sua
voz. Aquela vizinha parecia a Mulher Maravilha. Passava o dia cuidando das crianças, organizando a casa,
lavando as roupas e fazendo a comida da família, e pela forma que falava do marido, era feliz em seu
casamento. Só tinha uma coisa que ela fazia que me deixava impaciente. Ela gritava muito com os filhos e
eu pensava: - Tem mesmo necessidade disto?

Durante o tempo em que fomos vizinhas, teve apenas uma vez em que ela entrou na minha casa.
Sabia que o homem que morava comigo não gostava que eu convivesse com outras pessoas e não queria
me colocar “em encrencas”, como ela mesmo dizia. Lembro da sua surpresa quando entrou em minha casa
pela primeira vez, sorrindo e dizendo: - Sua casa parece até a casa de uma boneca. Mas isso é normal, não
tem criança para sujar, né? Lembro de ter rido de volta e pensado: De jeito nenhum que eu não deixarei
minha casa ficar como a dela nem gritarei com meus filhos como ela faz quando me tornar mãe.

Ah... pobre e preconceituoso pensamento!

Eu precisava ter um filho.

Não tinha uma relação perfeita com o homem que me levou para São Paulo, mas eu precisava
aceitar que aquela agora era a minha vida. Eu precisava de companhia e de alguém para cuidar e dar
sentido a minha rotina vazia. Como não tomava nenhum contraceptivo nem me protegia de nenhuma
forma, 8 meses depois de nosso relacionamento, eu engravidei. Não consigo definir o que senti no
momento, mas lembro que tinha alguma coisa a ver com felicidade e esperança, que logo acabou. Sofri um
aborto espontâneo por causa de um susto quando estava com aproximadamente um mês de gestação.
Aquela situação me entristeceu, mas dois meses depois eu estava grávida novamente, e a felicidade e a
esperança voltaram a fazer morada dentro de mim.

O pai da minha bebê parecia estar feliz. Queria que nosso filho fosse um menino, e para alegrá-lo
lembro que também desejei isto. Mas quando bateram a ultrassonografia, o que causava reboliços no meu
ventre era uma linda garotinha que me deixava enjoada e com a pressão arterial excessivamente baixa nos
primeiros meses de gestação, mas também com um desejo profundo de conhecer o seu rostinho. Sei que
tinha que esperar por nove meses até que ela nascesse, mas as vezes me corroía de ansiedade para vê-la e
para poder segurá-la no colo.

Em um dos seus dias de folga, o pai da bebê resolveu enfim que iríamos para a rua 25 de Março
comprar o enxoval da nossa filha. Quando voltamos das compras (e mesmo com sete meses de gravidez),
desembalei todas aquelas roupinhas, uma por uma, organizando-as por categorias de boris, sapatinhos,
mantas e toquinhas, em seguida lavei-as, passando o ferro e guardando tudo no cantinho do guarda-roupas
que seria da nossa bebê. Para que o tempo passasse depressa, fiz embainhados de costura e crochê em todas
as fraudas de pano, contando os dias para que aquela criança chegasse. Certo dia, ele trouxe-me uma
inesperada notícia. Conseguiu uns dias de férias e decidiu que iria visitar a Paraíba e eu senti naquele
momento que ele estava me salvando de uma tristeza profunda. Ver meus familiares mais uma vez parecia
ser um sonho. Fiquei absurdamente feliz com aquela novidade. Depois de quase um ano em São Paulo, eu
ia rever as pessoas que eu amava, incluindo a que eu MAIS amava, minha primogênita. Eu estava grávida
de quase oito meses e com um barrigão enorme quando viajamos.

Ao chegarmos no Nordeste, reencontrei uma menininha cheia de vida no colo da minha mãe, que
me olhava sem jeito como se tentando lembrar quem eu era. Cayane estava enorme, com quase dois
aninhos e tinha os mesmos cabelos negros da época em que nasceu, só que agora maiores e incrivelmente
macios. Aquele tempo que fiquei longe a tornaram ainda mais linda e mais esperta. Dei-lhe um abraço bem
forte e um beijo no rosto assim que ela veio, tímida, ao meu encontro. Foi delicioso rever as pessoas que eu
amava, principalmente a minha filha. Queria estar sempre junto dela e não mais largá-la, e sempre que eu
dormia na casa da minha mãe ela queria dormir comigo. Como eu estava um pouco pesada e cansada da
gravidez, não podia colocá-la muito nos braços ou cuidar dela, então só fazia o meu possível. Mas o
possível que eu fazia e que nos aproximava era de extrema importância para nós. Foi durante essa viagem
que minha mãe percebeu que o homem que morava comigo realmente não conseguia gostar da minha filha,
e isso era muito nítido. O seu comportamento distante e, por vezes, até grosseiro, deixava isso muito claro.
Acredito que ele ficou enciumado com a atenção excessiva que eu estava dando a minha primeira filha,
mas eu não podia evitar, tinha que aproveitá-la ao máximo. Minha mãe ficava um pouco sentida com essa
situação, e lembro de um dia em que insinuei que levaria minha filha para São Paulo. Vi no semblante dela
uma expressão incomodada e aparentemente preocupada. Ela sentia medo que eu a tirasse de perto de si.
Disse que Cayane deveria ficar com ela e que não conseguia imaginar a ideia de vê-la indo para longe.
Percebi seu sofrimento e disse que só estava brincando e que Cayane ficaria. mas eu não estava brincando.
Eu realmente queria levar a minha filha junto comigo e compartilhei isso com o pai da minha bebê antes
mesmo de irmos visitá-la, mas ele logo se opôs com a justificativa de que isso não seria possível porque a
bebê que eu estava esperando já daria trabalho e despesas demais, apesar de isto não me importar. Percebi
em suas palavras que não conseguiria convencê-lo a mudar de ideia e temia que ele não se adaptasse com o
tempo a convivência com Cayane e que quisesse mau tratá-la. Então aceitei o fato de que ela ficaria com
minha mãe porque assim ela estaria não apenas mais cuidada, mas também mais segura e mais amada. E
não toquei mais nesse assunto. Curti cada segundo com Cayane durante o mês que fiquei com ela, e
lembro-me com clareza que a pior parte foi ter que voltar para São Paulo era ter que deixá-la novamente, e
desta vez, na certeza de que nunca a morando teria comigo.

Despedi-me dos meus pais e irmãos e fui ver minha pequenina enquanto ela ainda dormia naquela
madrugada. Dei-lhe um beijo demorado cheio de amor e de lágrimas enquanto dizia no seu ouvidinho que
nunca deixaria o nosso amor morrer. E fui embora chorando, com o coração apertado e um desejo gigante
de carregá-la escondida para que ela ficasse sempre para perto de mim.

...

2002 – Depois de alguns dias de tensão por causa de um parto complicado, Amanda enfim nasceu,
e junto com seu nascimento a certeza de dias melhores em minha existência solitária. Foi inexplicável para
mim reviver a sensação de cuidar de um bebê, bem como viver a experiência da maternidade outra vez.
Amanda foi um verdadeiro presente. Uma criança que trouxe esperança aos meus dias monótonos e vazios.
Foi com Amanda que eu aprendi a ser verdadeiramente Mãe, no sentido mais empírico da palavra. Decidi
amamentá-la, mesmo apesar da dor insuportável que a boca de um bebê traz a um seio sem o bico materno.

Queria aproveitar cada choro, cada cólica e limpar cada xixi e cada cocô. Passava o dia inteiro
cuidando da minha filha como se ela fosse o único ser no mundo que precisava de mim, e ela era. Dava
banho, passava pomada e talco, trocava a roupinha e a colocava para dormir. Amanda era totalmente ligada
aos meus cuidados e mimos e bastava um minuto sequer longe para ela abrir o berreiro sentindo a minha
ausência. Éramos uma da outra e isso me fazia feliz. Refletindo essa época, me dei conta de uma coisa.
Amanda foi a filha que mais me deu trabalho nos primeiros meses de vida porque foi a filha que eu mais
tornei dependente dos meus cuidados e da minha presença, pis eu não gostava que ninguém além de mim
cuidasse dela. Lembro que para que eu conseguisse tomar banho, era preciso colocá-la dentro de uma
banheira de frente para mim, pois ela não conseguia ficar muito tempo fora do meu raio de ação, e se
acordasse e não me percebesse, era um escândalo só.
Minha casa era uma verdadeira bagunça porque ela só queria ficar nos meus braços sendo
embalada, roubando praticamente todo o meu tempo de vida, então recordei do absurdo que pensei quando
vi a casa daquela minha vizinha. Que loucura de pensamento! A maternidade pode ser destruidora! Mas eu
amava na mesma medida que odiava aquela bagunça, como fazem todas as pessoas que amam de verdade.
Com Amanda, passei a assistir programas para bebês e conhecia todas as músicas e programações para
crianças, aprendendo rapidamente a linguagem dela. Sabia quando Amanda estava com dor, com fome,
com sono, com mãnha, carente e com frio e isso fazia com que eu me sentisse alguém útil. Tinha dias que
eu estava profundamente cansada de tudo e até chegava a me perguntar se aquilo era eterno, mas na grande
maioria das vezes eu amava cada minuto daquela vida. O pai dela assistia a tudo aparentemente satisfeito.
Tentava nos dar uma boa vida e sentia segurança na vida que tinha.

Eu era uma mulher submissa que acreditava que Deus tinha sido absurdamente generoso comigo
me tirando de perto de alguém que poderia ter me matado. Lembro de ter lido a bíblia praticamente inteira,
e nela a mulher valiosa deveria abdicar dos seus desejos e viver em função do seu marido, e como eu
acreditava no amor, considerava que tudo o que lia sobre mulheres e que era verdade, estava contido ali
naquele livro, sem refletir as mudanças dos tempos e das circunstâncias da vida, moldando a minha mente a
aceitar aquela realidade. Não queria separar, mesmo não estando satisfeita com a falta de afinidade
emocional que existia em meu casamento, porque tinha aprendido que separação era algo errado. E assim,
seguimos.

...

2003 – Alguma coisa estava acontecendo.

O pai da minha filha parecia ter perdido o controle das suas responsabilidades financeiras e eu
comecei a sentir isso quando percebi que ele não estava conseguindo cumprir com algumas obrigações
dentro de casa. Ainda conseguia comprar alimentos, mas as contas de água, luz e aluguel estavam sempre
atrasadas, chegando ao cúmulo que permitir que cortassem a nossa luz. O percebia sempre nervoso e
agitado e acredito que esse comportamento de dava porque ele não estava conseguindo equilibrar a vida
financeira. Nós quase nunca conversávamos e eu não sabia como funcionavam os seus negócios, só sabia
que era algo relacionado a bares. Um dia ele chegou em casa e disse que estava planejando voltar para o
Nordeste porque os negócios em São Paulo estavam muito difíceis, e aquele foi o dia mais feliz da minha
vida. Fiquei eufórica com a notícia e extremamente contente por saber que iria morar perto dos meus pais,
meus irmãos e minha primogênita. Apesar de ter Amanda como companhia, sentia vontade de conviver
com os meus familiares. Ele disse que ia abrir um negócio em Solânea e que tudo iria dar certo. Então
arrumamos as nossas bagagens e alugamos um caminhão para levar alguns dos nossos móveis para a
Paraíba, e voltamos para o Nordeste em maio de 2003. Eu estava feliz.

Rever meus familiares e minha filha foi a melhor sensação da minha vida. Agora era só organizar
as coisas e esperar para que os negócios do pai de Amanda dessem certo. Não foi fácil no início e passamos
por alguns apertos nos primeiros meses. Ele investiu o dinheiro que trouxe no aluguel de um bar com
músicas ao vivo. Eu vivia a perspectiva de conviver perto das pessoas que me faziam bem, mesmo que, em
alguns momentos, alguns atritos surgissem. Acontece que aparentemente o pai de Amanda não gostava da
minha felicidade. Ele ficava terrivelmente irritado quando Cayane ia ficar comigo nos dias que minha mãe
permitia, e ela já havia percebido e não estava feliz com essa situação. Então um dia manifestou sua
insatisfação para mim, dizendo que não suportava a maneira que o pai de Amanda tratava a sua filha/neta e
que se ele continuasse agindo dessa maneira, ela não iria mais permitir que minha filha fosse à minha casa.
De fato, eu também percebia essa repulsa, mas ignorava por compreender que ele fazia isso por não a
conhecer verdadeiramente. E sim, isso também me machucava profundamente, mas eu estava tão feliz por
estar perto dela, que não assimilei a gravidade daquela situação. Nossa relação afetiva tinha mudado de
alguma maneira. Cayane não me via mais como sua mãe e um afastamento natural aconteceu, mas isso não
modificou em absoluto o amor que eu sentia por ela, mesmo que esse amor parecesse mais o de uma irmã.
Dizem que crianças sentem o amor, ou a falta dele. Cayane também percebia que não era bem vinda por
ele. Certa vez minha mãe me relatou que em um dia qualquer, enquanto a banhava, ela perguntou: - Vovó,
porque o marido da minha mãe não gosta de mim?

Senti meu coração diminuir, de tanto que apertou, quando ouvi minha mãe dizer isso.

...

Até que essas picuinhas se tornaram empecilhos, pois meus familiares perceberam que ele também
não gostava da convivência deles comigo, fazendo em pouco tempo com que eles se afastassem de mim
para evitar outras confusões. Descobri que o pai da minha filha nutria uma obsessão sem sentido e um
ciúme exagerado de mim e de Amanda, e o seu jeito controlador passou a ser o motivo das nossas brigas
constantes. E foi no meio de tantas brigas que eu engravidei novamente dois meses após minha chegada a
Solânea. Durante minha gravidez, percebi que as coisas não estavam se saindo como foram programadas
pelo pai de Amanda. O bar estava com cada vez menos movimento e ele estava começando a ter prejuízos.
Somente algum tempo depois descobri o motivo das coisas não estarem dando certo por meio de
informações dos seus familiares. O pai de Amanda era viciado em jogos de azar e estava priorizando os
seus vícios. Ele sempre foi viciado (desde antes de ficarmos juntos) e eu nunca tinha percebido isto. Era
muito irritante e cansativo para mim ter que saber essas coisas. Um dia ele chegou em casa e disse que ia
fechar o bar pois não estava mais conseguindo mantê-lo. Quando descobri seu vício, passei a cobrá-lo por
mais responsabilidade, deixando-o nervoso e com raiva com minhas cobranças. Culpava ele pelo
afastamento da minha família e lhe perguntava porque a raiva inexplicável dela, mas como fazem a maioria
dos homens, ele ignorava e fingia que nada de ruim estava acontecendo, vencendo-me pelo cansaço. Ele
fez o que disse. Vendeu o bar e começou a vender salgados na feira da cidade. Enquanto isso minha
terceira menina crescia dentro de mim. Sim. Era mais uma menina. Uma garotinha tão boazinha que só me
fez enjoar na gravidez duas ou vezes por causa do cheiro constante do óleo dos salgados que fazíamos para
vender. Fora isso, tive uma gravidez tranquila e engordei apenas o bebê que estava dentro da minha barriga,
nenhum quilograma a mais. Minha vida seguia como seguem as vidas de tantas mulheres nordestinas.
Cuidava de Amanda, ia de vez em quando ver Cayane para matar a saudade que eu sentia dela, organizava
a casa, lavava a roupa e fazia a comida, além de ajudar todas as madrugadas de feira-livre a preparar os
salgados que seriam vendidos todas as quartas e sábados de manhã. Criei um hábito quase que religioso de
guardar um salgadinho para levar para Cayane sempre que a feira acabava e eu estava livre dos afazeres das
vendas. Fazia isso para compensar os dias que não a via durante a semana. Quando eu chegava, ela já
estava ansiosa à minha espera aguardando-me no portão. Em dias que eu não podia ir, pedia para o meu
irmão levar. Mas na maioria das vezes eu podia e fazia questão de levar aquelas coxinhas porque adorava a
carinha de felicidade que ela fazia.

Eu entregava o salgadinho e pedia um beijo, perguntava como ela estava se comportando e ela
balançava a cabeça afirmativamente. Cayane tinha feito um novo amigo. Um gatinho que ficava no quintal
da casa da minha mãe, e ultimamente sua rotina era ficar para cima e para baixo com aquele filhote.
Sempre que nos despedíamos, dizia para ela me esperar na próxima semana, por que enquanto eu fizesse
salgadinho, ela ia comer deles. Aí ela sorria como que concordando, e saia correndo para mostrar para o
seu amigo o que ela tinha ganhado.
Toda história merece ser contada

Mas nem toda história merece ser vivida

Porque contar história linda faz a gente sonhar

Mas viver história triste faz a gente sofrer

Eu tenho mais uma história para contar

Daquelas que salpicam a alma de lágrima

Quer ouvir?

Só não esquece o lencinho

Ela vai fazer seu coração doer

Só não esquece o lencinho

Ela vai fazer seu coração partir.

...

2004 – ÉPOCA DE PERDAS

A lembrança mais intensa que tenho daquele dia é da inquietação que senti enquanto olhava pela
janela e observava uma tarde chuvosa, me perguntando: - Porque eu estou com essa sensação ruim?

A voz de Amanda me chamando para brincar afastou de mim os pensamentos confusos, e eu


esqueci por um momento a angústia que estava sentindo. Como estava frio, ficamos em cima da cama
fazendo bagunça embaixo dos cobertores, dando risadas altas, fazendo vozes engraçadas e jogando
brinquedos para o alto. Eu não esperava nenhuma visita naquela tarde. Era sexta-feira e eu estava
calculando mentalmente enquanto brincava, quanto salgado seria necessário fazer para as próximas feiras.
Talvez menos do que na semana anterior, pois se o dia seguinte amanhecesse chuvoso, o movimento seria
pequeno e haveria desperdício de comida, caso eu exagerasse na produção. De repente escuto alguém me
chamando do lado de fora. Era minha mãe e uma amiga vizinha.

Estranhei a visita, e indaguei: - Que surpresa inesperada é essa? Abrindo a porta para que elas
entrassem. A vizinha da minha mãe sorriu forçadamente e eu percebi que minha mãe estava quieta e
calada, então perguntei: Aconteceu alguma coisa? A vizinha então respondeu:

- Sim, aconteceu, mas antes que eu te fale, deixa eu te fazer um chá, senão você vai ficar nervosa e
pode afetar o seu bebê. Nesse momento, eu fiquei realmente nervosa, então disse:

Não. Não quero chá, Érica. Quero que você me diga o que está acontecendo e pare de enrolação.
Como percebeu a minha agitação, ela disse: - Tudo bem. Vou contar.

Foi Cayane. Aconteceu um acidente envolvendo ela e o seu irmão.

Nesse momento senti minha cabeça rodar. Tive que buscar forças dentro de mim para continuar
aquela conversa. Enquanto falava, a voz de Érica ia sumindo nos meus ouvidos e meus olhos enchiam-se
de lágrimas. Lembro de ter trazido Amanda para o meu colo e de dizer que precisávamos fazer alguma
coisa. Minha cabeça estava pesada e confusa e eu estava um pouco enjoada, só queria sair dali e ver
Cayane e o meu irmão, mas o pai de Amanda chegou e não deixou que eu saísse. Pediu que eu tivesse um
pouco de paciência e que esperasse as notícias, pois ela já estava nas mãos dos médicos e agora só nos
restava esperar. Em seguida, minha mãe saiu dizendo que ia para o hospital e sua amiga saiu
acompanhando-a. Somente a noite pude ir à casa de minha mãe para tentar entender como tudo teria
acontecido, e aqui tentarei relatar o que meus dedos me permitirem digitar.

Minha mãe era doméstica e nesse dia ela tinha saído para trabalhar, como de costume e deixado
uma de minhas irmãs cuidando de Cayane. As duas estavam em casa vendo TV. Keliane disse que por
causa do tempo chuvoso, elas iriam passar a tarde assistindo e comendo pipoca. Então pediu para que ela
esperasse o meu irmão sair de casa, porque assim sobraria mais pipocas para elas. Meu irmão tinha
chegado da rua fazia alguns minutos. Ele veio mostrar um caderno que tinha comprado, para um amigo que
pediu para ver. Depois que mostrou o caderno e quando já estavam saindo, perceberam que estava
chovendo. Então, foram até o quarto onde minha irmã e minha filha estavam e lá ficaram conversando e
esperando a chuva passar. Em algum momento da conversa, meu irmão percebeu que na parte de cima da
soleira da casa tinha um objeto coberto que ele nunca tinha visto. Curioso, ele pegou o objeto para
descobrir o que era. Quando abriu, constatou que se tratava de uma carabina, uma arma caseira muito usada
no interior para abater passarinhos. Na ingênua, imatura e impensada consciência de que aquela carabina
era algo inofensivo e sem imaginar que ela estava carregada, o meu irmão começou a puxar o gatilho,
apontando e fingindo atirar em alguns cantos específicos do quarto, como se brincasse de caçador, quando
numa dessas tentativas, a carabina disparou atingindo a cabeça de Cayane e fazendo minha irmã e o amigo
do meu irmão correrem assustados com o barulho estrondoso e também com o que acabara de acontecer.

Meu irmão ficou. Ao perceber que Cayane tinha sido atingida, ele soltou a carabina e a pegou
rapidamente. Aos prantos, desesperado, correu para pedir ajuda. Como estava chovendo, ele parou na porta
da casa que meus pais moravam com ela inconsciente em seus braços e começou a gritar pedindo por
socorro, na esperança de que alguém o ouvisse. Um vizinho que escutou o barulho estrondoso, saiu para
ver o que estava acontecendo. Quando percebeu a gravidade da situação, ele rapidamente ligou a moto e
pediu para que meu irmão subisse para levar a minha filha para o hospital. Eles saíram na chuva, correndo
à plena velocidade. Chegando ao hospital, minha filha foi imediatamente encaminhada para outra cidade,
pois ali os médicos perceberam que não tinham como socorrê-la por causa dos ferimentos graves que ela
tinha sofrido e pela falta de estrutura hospitalar para atendê-la. Uma enfermeira perguntou ao meu irmão o
que tinha acontecido, e ele respondeu desnorteado, que tinha sido ele quem tinha atirado na sobrinha, que
ele era um assassino. A enfermeira, percebendo seu estado emocional perturbado, o levou para um lugar
reservado, cumprindo os protocolos adequados nessas situações. Em seguida ligou para a polícia, e meu
irmão foi encaminhado para a delegacia enquanto Cayane lutava para sobreviver dentro da ambulância que
seguia para outro hospital.

O acidente aconteceu na sexta-feira por volta das 15:45 da tarde, e eu me lembro que, pouco antes
desse horário, olhei pela janela naquela tarde chuvosa, antes da minha mãe surgir com a sua vizinha,
sentindo meu coração pesar. Da janela, vi um asfalto alagado e ouvi barulhos de chuva e de trovões, e
soube alguns dias depois do acidente, que se eu tivesse feito esse gesto um pouco depois desse horário,
teria presenciado meu irmão na garupa de uma moto desenfreada, enxarcado de água e de sangue, a
caminho do hospital, tentando salvar Cayane. Já à noite, por volta das 19:00, fui até a casa da minha mãe
para tentar entender e conseguir assimilar toda aquela situação catastrófica. Quando cheguei, vi que o
quarto onde minha filha tinha sido baleada estava quase da mesma forma do momento do acidente. A
vizinhança ainda estava atônica e minhas irmãs estavam assustadas sem conseguir falar, minha mãe estava
no hospital com Cayane enquanto o meu irmão estava na delegacia prestando depoimento. Minhas irmãs
não conseguiram entrar no quarto onde aconteceu tudo depois que a polícia liberou o local e algumas
vizinhas já tinha ido ajudar a limpar toda aquela cena. Quando cheguei elas ainda estavam lá, então as
ajudei a tirar o colchão e os lençóis ensanguentados do quarto e a limpar o lugar com desinfetante,
enquanto lágrimas caíam dos meus olhos. Alguém do hospital tinha ligado para nos informar que Cayane
estava na sala de cirurgia. Que ela estava viva e lutando para sobreviver, então, juntamos as nossas preces
pedindo a Deus que os médicos a salvassem. Meu irmão foi detido e era preciso esperar o colhimento de
mais informações para a concretização dos fatos juridicamente, e esse foi apenas o primeiro de oito
angustiantes e atormentadores dias na vida da nossa família.

Sexta. Cayane passa por uma cirurgia complexa na cabeça para a retirada dos projéteis de chumbo
que ficaram alojados em seu cérebro, assim como a retirada do seu olho direito, e fica em coma induzido
respirando com ajuda de aparelhos.

Sábado. A família, os amigos e a cidade inteira se reúnem em oração para que a cirurgia salve a sua
vida. Meu coração sangra de dor e de sofrimento por saber que minha filha está baleada e meu irmão está
preso. Estamos todos sofrendo.

Domingo. Minha mãe vem para casa a pedido dos médicos, que a orientaram a descansar e ter fé,
pois agora só as respostas do corpo dela é que iriam definir a sua recuperação. Nesse mesmo dia, vou com
ela até a cadeia para vermos o meu irmão, e lá ele faz perguntas atordoantes que não sei responder. Vejo
um homem coberto de tristeza, de culpa e de dor.

Segunda. Os médicos informam a nossa família que os ferimentos foram muito graves e que alguns
projéteis não foram retirados por estar alojados em partes específicas do cérebro que a medicina ainda não
conseguiu atingir, nos conscientizando que caso ela sobreviva, superando os 5% de chance que tem, ficará
com sequelas permanentes para o resto de sua vida.

Terça. Os médicos nos ligam novamente nos informando que ela teve Morte Cerebral. Eles querem
saber se a família concorda com o desligamento dos aparelhos e em doar os seus órgãos. Minha família não
autoriza o desligamento e a família paterna dela decide não autorizar a doação. Todos ainda têm fé em ver
minha filha viva, mas a minha vai diminuindo e a dor vai aumentando a cada nova notícia. Começo a
aceitar a ideia de que terei que enterrar uma pessoa que eu amo. Vou a cadeia novamente. Meu irmão não
consegue conversar devidamente por causa da dor emocional imensa que sente, então eu escrevo-lhe uma
carta dizendo o quanto o amo e que nunca o julgarei por isso, e saio antes de desmoronarmos.

Quarta. Vou a cidade que minha filha está internada, em Campina Grande num hospital infantil
chamado CLIPSY, mas quando chego lá não tenho estrutura emocional para conseguir vê-la e passo mal
antes de entrar na sala da UTI em que ela está. Fico em observação por causa do meu estado de gravidez.

Minha mãe e minha irmã conseguem ir até seu quarto e lá tocam em seu rosto e em suas mãos e
pedem chorando para que ela volte para gente. Neste momento os aparelhos disparam e parece que ela quer
voltar a viver, mas são apenas os impulsos nervosos da minha irmã sendo transmitidos para os aparelhos
que a conectam.

Quinta. Meu pai talha uma cabeça de madeira e deixa no Santuário Padre Ibiapina na esperança de
que um milagre aconteça. Eu já aceitei que não verei mais a minha filha viva e só oro para que tudo aquilo
acabe logo e que, tanto ela quanto nós, descansemos. Busco forças no amor que sinto por Amanda.

Sexta. O hospital liga nos informando que a família precisa se preparar. Não temos mais lágrimas
para chorar.

Sábado. Cayane ainda não tinha sido batizada e essa era uma preocupação da minha mãe, por isso
ela estava tentando providenciar com um padre, um dia de visita para batizá-la, mas não estava dando certo.
No entanto, na tarde daquele sábado, surge um padre a convite de uma enfermeira para batizar Cayane em
seu leito de morte, algumas horas mais tarde, às 17:00, sua morte é confirmada pelo hospital e eles pedem
para que alguém vá buscar o corpo da minha filha para ser velado e enterrado. Minha mãe se dispõe a ir.
Passo uma noite inteira me preparando espiritualmente para despedir-me da minha filha pela última vez,
imaginando como será vê-la em um caixão, e não consigo expressar como foi aquela sensação. Me
desculpem.

Domingo. Toda a cidade sabia do que tinha acontecido e estava na capela para vê-la e para dar o
último adeus ao corpinho que um dia foi a matéria da nossa criança. Cayane foi enterrada às 15:00 no
cemitério local, e todos nós fomos para casa chorar a nossa perda e viver o nosso luto.

...

Eu não podia parar. Tinha um ser dentro de mim se preparando para nascer e eu precisava ser forte.
Tinha dias que a dor parecia sufocar, principalmente quando era dia de ir ver o meu irmão. Lembro-me
como foi difícil contar para ele que Cayane tinha morrido. Como se não bastasse tanta tristeza, eu estava
magoada com o pai de Amanda, porque no dia do enterro da minha filha, depois que saímos do cemitério,
ele disse uma frase que me fez sangrar por dentro até hoje: - Veja pelo lado bom, você agora não tem
ligação nenhuma com o pai dela.

Mas eu não conseguia ver esse “lado bom”. Já não existia nenhuma ligação entre o pai de Cayna e
eu. Eu não via o desde a sua prisão e ele nunca foi alguém presente na vida da minha filha enquanto ela
morava com minha mãe, salvo alguns momentos em que ele chegava de viagem depois que foi solto, e
como os avós paternos dela eram ainda vizinhos da minha família, então ele a via de vez em quando, mas
nunca foi um pai presente, se abstendo inclusive da responsabilidade de ajudar financeiramente, ou seja,
nunca teve ligação e a única coisa que eu via naquela frase era o reflexo de um homem frio que não estava
nem um pouco preocupado com que estava acontecendo ou com o que eu estava sentindo. Nossa família
precisou de muita força, muito amor e muita união para superar tudo aquilo. Todos se preocupavam com a
minha saúde física e mental. Era um golpe muito grande para uma mãe grávida. E eu me preocupava com
todos eles. Apesar de toda dor, eu me sentia forte e passava forças para as pessoas ao meu redor. Eu não
podia mudar aquela situação, eu só precisava aprender a ter sabedoria para lidar com ela. E era isso que
pedia a Deus sempre que quando orava. Sabedoria. No mais, deixava que minhas lágrimas caíssem e me
permitia sentir aquela dor porque eu não podia fazer nada além de sentir e suportar tudo aquilo. Mas tinha
uma pergunta que eu sempre me fazia em relação a minha mãe quando tudo aconteceu... e até hoje me faço:
- De onde ela tirou tanta força? Afinal de contas, Cayane era 2x sua filha, ela foi seu suporte emocional
desde a perda do seu último bebê. Se para mim a dor era quase imensurável, imagine para ela que criava
minha filha como se fosse sua própria?

Foi ela quem ficou no hospital com Cayane na UTI recebendo em primeira mão as piores notícias e
nos transmitindo quando informada. Também foi ela quem foi buscá-la e a viu sendo vestida e preparada
para o velório antes de ser trazida para a nossa cidade. Não tem calmante que justifique tanta força. Não
consigo assimilar em sentimentos ou em palavras como foi para ela saber que o filho e a neta que ela criava
como filha estavam passando por tudo aquilo. Eu não conseguia definir, eu não conseguia explicar, eu só
conseguia tentar sentir a mesma coisa, e até hoje quando faço esse exercício de empatia, ainda me
surpreendo.

...

Toda semana minha mãe e eu íamos ver Ari na cadeia.


Queria que ele soubesse que eu estava ali, que sentisse a minha força e que não se culpasse, porque
eu não o culpava. Eu só queria que ele sentisse o meu amor, que voltasse para casa e retomasse a sua vida,
na medida do possível, e que entendesse através das minhas palavras que era muito difícil para mim ver ele
naquela situação. Quando soube que ele tinha tentado suicídio no primeiro dia de prisão, chorei muito
imaginando a dor que seria perder duas pessoas que eu amava tanto, e pedi a Deus que sondasse e
acalmasse a sua alma, elevando as suas forças humanas para conseguir passar por aquilo, pois estávamos
juntos em família e ele era muito importante para nós. Durante o período que ficou preso surgiram
inúmeros boatos, mas eu nunca levei em consideração nenhum deles, por dois únicos motivos: Primeiro,
porque eu sabia que ele nunca teria a capacidade de cometer aquele ato intencionalmente, depois porque eu
sabia como era a relação dele com Cayane na casa da minha mãe antes do acidente. Ela era muito amada.
Era a irmãzinha caçula da família, tratada assim por todos os meus irmãos. Durante o processo de
julgamento, os vizinhos tinham plena consciência disto e ninguém nunca depôs contra ele. Três meses após
o acidente, meu irmão foi julgado por homicídio culposo e sentenciado a pagar um ano de serviço social a
justiça pelo acidente que ceifou a vida da minha primogênita, mas até hoje quando conversamos, percebo o
quanto ele seria capaz de pagar para tê-la de volta conosco e para que nada disso tivesse acontecido.

...

CAYANE

Ela veio ao mundo quando o sol estava nascendo, e morreu quando o sol estava se pondo, o que
comprova que ela era a nossa própria luz. Se eu soubesse que sua passagem por nossas vidas seria tão
breve, nunca teria ido embora de perto dela, mas sinto que ela já me perdoou por isto. Cayane foi um como
um livro no qual a maior lição que aprendi foi como amar alguém além de mim. Eu agradeço a vida pela
oportunidade de ter sido sua mãe, de vê-la e de fazê-la sorrir naquelas tardes em que levava os seus
salgadinhos, passava as mãos em seus cabelos negros e lhe dava muitos beijinhos. Ela nunca saberá que
quando tudo aconteceu, naquela sexta-feira, eu estava contando as horas para encontrá-la mais uma vez no
dia seguinte, que em muitos momentos chorei me lamentando por saber que esse dia nunca mais chegaria...
e que ainda choro quando penso no nosso fim. Aprendi, depois que ela se foi, que filhos são presentes
passageiros que nascem para nos ensinar a evoluir como seres humanos, e que nunca devemos abandoná-
los. Que devemos sempre estar por perto, cuidando e protegendo, ainda que eles cresçam e mesmo que não
permitam, porque nunca saberemos até quando estaremos ou eles estarão por aqui.

“ Era uma vez o azul do céu que pinta o papel e molha no mar

Era uma vez uma menininha, uma princesinha querendo voar

Ela mistura o céu com sonho e fantasia

Ela imaginou que se transformaria em borboleta

Viajaria o mundo e não se cansaria, e pousaria aonde houvesse alegria

A borboleta

E asa ela ganhou, pra longe ela voou, foi colorindo tudo onde passou

foi colorindo tudo onde passou... “


Trecho da música Era uma vez, da cantora Xuxa.

Em memória de Kettyley Cayane Sousa da Silva – 27/09/1999 07/02/2004.

...

Dois meses após a morte de Cayane dois meses depois, Jamyly nasceu para, de certa forma, salvar-
me com Amanda daquela dor recente de luto que eu insistia em sentir. Ela era uma linda gorduchinha de
cor parda e cabelos negros, e o bebê mais calmo da face da terra e em todos os seus dias de criança, exceto
por uma birra ou outra, resultado dos mimos que damos para aqueles que amamos. Meus pais mudaram da
casa aonde aconteceu a tragédia. Meu pai a vendeu e reconstruiu outra, em outro lugar. Foi um golpe
emocional muito grande para ele, perder sua filha/neta. Eu lembro que por muito tempo meu irmão
precisou tomar antidepressivos para conseguir dormir e retomar, na medida do possível, a sua vida alguns
anos depois. Enquanto tudo isso acontecia, o pai das minhas meninas tinha desfeito o negócio com as
vendas de salgados e agora estava administrando uma padaria, que alguns meses depois também faliria,
resultado dos seus maus relacionamentos e vícios em jogos de azar. A sua relação com a minha família
também continuava conturbada, o que tornava ainda mais desagradáveis as nossas vivências.

Ele odiava (hipocritamente) o meu irmão pelo que tinha acontecido, e acho que tinha raiva da
minha decisão de nunca o ter odiado. Lembro de um dia em que conversávamos sobre o assunto, e ele
disse: - Não sei como você consegue. Se tivesse sido com Amanda, eu o teria matado. Suas posturas
impositoras e preconceituosas não eram recentes, mesmo antes do acidente com minha filha ele já
demonstrava atitudes mesquinhas e grosseiras e eu lembro de uma situação em particular em que eu decidi
que o melhor para nós dois seria a separação.

Nossa relação de conveniência já estava em crise a muito tempo e eu já tinha percebido que após o
acidente com minha filha ficou pior. O sentimento de desprezo pelo meu irmão e irmãs não fazia nenhum
sentido. De repente ele queria escolher quais pessoas da minha família poderia fazer parte da minha vida e
frequentar a minha casa, como se eu também não tivesse autonomia sobre o lugar em que morávamos.
Então me enfureci com suas atitudes, peguei minhas coisas e as das minhas filhas e fui para a casa da
minha mãe. Contei para ela e para o meu pai sobre as atitudes nocivas que ele vinha provocando e que nos
prejudicavam. Meu pai disse que eu poderia ficar o quanto quisesse. Mas não demorou uma semana, lá
estava ele indo se redimir pelos absurdos e pedindo para voltar. Algum tempo depois desse episódio, ele
disse que precisava voltar para São Paulo porque em Solânea ele não tinha mais condições de ficar, pois
tinha acumulado dívidas e precisava conseguir dinheiro para nos manter. Que ele ia primeiro e depois
organizaria para nos levar. Confesso que quando ele disse que ia embora projetei não mais ir para São
Paulo. Quando ele viajou eu fui para a casa dos meus pais com Amanda e com Jamyly, mas alguns meses
depois convivendo com minha mãe, percebi que não era mais possível morarmos juntas e que sozinha com
minhas filhas eu não tinha condições de sobreviver em Solânea, eu também não gostava da cidade e
acredito que isso também contribuiu para minha decisão. Minha mãe se tornou uma mulher incrivelmente
amargurada e não conseguia firmar uma relação saudável comigo porque não gostava das minhas atitudes.
Dizia que eu mimava muito Amanda e que não aceitava a forma que eu a tratava. Eu realmente criava
minhas filhas diferente da maneira que fui criada. Sempre gostei de demonstrar carinho por elas e
raramente brigava, principalmente depois da morte de Cayane. Passei a sentir um medo absurdo de perdê-
las também e essa situação fortaleceu ainda mais a minha relação de amor e cuidados por minhas filhas.
Minha mãe dizia que eu as estava estragando à medida em que as mimava tanto, principalmente Amanda, e
que se eu continuasse criando-as dessa forma, um dia elas iriam crescer e querer bater na minha cara. Na
verdade, eu não entendia o comportamento amargo da minha mãe comigo e com minhas filhas, associei-o
também ao seu luto. Eu não a julgava por isso. No entanto eu percebia que essa amargura por vezes era
jogada sobre mim e muitas vezes senti-me culpada por suas tragédias, mesmo tendo consciência de que
nenhuma das minhas ações visavam prejudicá-la, então precisei aprender a me defender de suas ofensas
sempre que a sua aspereza me (nos) atingia, chegando inclusive a ser rude quando ela brigava sem motivos
comigo ou com minhas filhas, causando assim mal-estar entre os meus irmãos e meu pai que não gostavam
das nossas discussões e por respeito, a defendiam. Diante dessa situação, eu acabei compreendendo que não
cabia mais naquela casa, resolvi aceitar ir para São Paulo morar com o pai das minhas filhas três meses
depois que ele viajou.

Ele ligava dizendo que estava com saudades delas (da gente) e eu sentia muito por isso também.
Então fiz minhas malas e de minhas filhas e fomos para São Paulo tentar outra vez.
Lá no alto da montanha está o outro lado

Lá do outro lado está a melhor versão de todos nós

Tem gente que olha a montanha e tem preguiça de subir

Tem gente que sobe, mas desiste no meio do percurso

Tem gente que chega lá em cima, mas não vai para o outro lado

Fica só olhando do alto com medo do que tem lá

E tem gente que vai mesmo com medo

Porque tem a impressão de que vale a pena chegar.

...

2005/2007 – ÉPOCA DE APRENDER A VIVER

2005 - Morávamos num quintal onde mais duas famílias moravam.

Uma era composta por uma mulher que era casada e tinha dois filhos; uma moça e um garoto, outra
por um casal que tinha três filhos; dois rapazes e uma moça. Nesta época eu já me sentia uma mulher
inteira, no sentido bruto da palavra, ainda que, com dezenove anos. Não era mais aquela adolescente
medrosa que se submetia a coisas que não queria viver e o pai das minhas filhas já tinha percebido isto.
Quando voltei para São Paulo, voltei com o intuito de criar as minhas meninas com dignidade e confiei que
ele iria me ajudar nisto mesmo que eu percebesse que nós dois não nos amávamos verdadeiramente. O que
ele sentia por mim era muito mais uma paixão obsessiva do que necessariamente amor. Ele gostava da
forma que eu era e de como ele conseguia me moldar para me encaixar às suas necessidades. Já eu, me
sentia carente e algumas das suas atitudes me traziam segurança, proteção e cuidado, me fazendo concluir
que eu não estava sozinha e acomodando-me nessa pseudoproteção, respeitando-o e me dispondo enquanto
essa segurança fosse sólida. Estávamos tentando e isso para mim era válido. Só queria que minhas filhas
tivessem uma vida digna e naquela época eu acreditava que apesar de todos defeitos que o pai delas tinha,
sua capacidade de cuidar de nós era possível. Não tínhamos uma ligação amorosa romanticamente, mas
tínhamos algo em comum, amávamos as nossas filhas na mesma proporção e esse era o motivo que nos
unia. Sempre reconheci o seu esforço em querer cuidar de todas nós no início do nosso relacionamento,
mas sabia dos seus vícios e que ele precisava aprender a controlá-los. Também o considerava
obcessivamente ciumento e controlador, mas ali o que estava em jogo não eram as minhas percepções, mas
sim o futuro que minhas filhas teriam. Naquela época eu não era prioridade para mim. Elas eram a minha
prioridade. Passávamos o dia juntas vendo TV e brincando, eu acompanhava os seus crescimentos e via
elas desenvolvendo felizes, agasalhadas e alimentadas. Isso me completava. O pai delas parecia tão
satisfeito com a evolução das nossas vidas, que quando lhe pedi para que uma de minhas irmãs viesse
passar um tempo morando conosco, ele não se opôs, mesmo não tendo uma boa relação com ela.

Keilha estava precisando trabalhar e foi para São Paulo tentar conseguir algum emprego, mas ela
tinha que enfrentar um desafio maior, o de ficar longe do namorado. Então, foi apenas uma experiência.
Uma experiência que durou menos de dois meses. Quando ela percebeu que não conseguiria suportar a
saudade, pediu para voltar para casa. Eu compreendi, o pai das meninas, não. Ficou com raiva porque teve
que comprar sua passagem de volta, mesmo sem gostar da estadia dela em nossa casa, já que ela não tinha
conseguido um emprego neste curto período de tempo. Ele odiava gastar com coisas desnecessárias para
ele. Aproveitei cada dia da minha irmã morando conosco, e senti muito pela sua ida. Ela era uma
companhia incrível naquele lugar onde eu ficava longe de todos os nossos, mesmo que passasse a maior
parte do tempo chorando com saudade de casa.

...

Alguns meses depois que cheguei a São Paulo e pouco tempo depois que minha irmã foi embora,
engravidei da minha quarta filha. Sim, minha quarta filha. Nesta altura dos acontecimentos o pai das
meninas já não sofria tanto quanto das primeiras vezes quando sabia o sexo do nosso próximo filho. E eu já
havia aceitado a ideia de que nasci para ser mãe de menina e que isso me fazia muito feliz, pois eu não
conheço sensação melhor do que a de cuidar de uma vida feminina. É magnífico em todos os sentidos.
Considerando que morávamos em um lugar pequeno, o pai das meninas decidiu mudar para uma casa
maior em um bairro melhor. Disse que estava ganhando bem e que tinha condições de nos proporcionar
isto.

A casa era um segundo andar com uma varanda espaçosa, dois quartos grandes, uma sala iluminada
e confortável, uma cozinha com azulejos até o teto e um banheiro com bidê. Nada luxuoso, mas muito
acolhedor quando comparado as casas que já haviam morado até então. O dono da casa morava na parte de
baixo e só passava os finais de semana lá, e a casa ficava localizada num bairro muito centralizado, na zona
leste de São Paulo, chamado Tatuapé, rodeado de edifícios e próximo ao shopping. Eu estava feliz em ver
que estávamos evoluindo em termos de estrutura financeira. Houve realmente um tempo em que não nos
faltava absolutamente nada. Ele comprou as mobílias e não deixava nos faltar alimentos, e eu adorava
aquele bairro porque tinha escolas muito boas para as meninas e eu precisava morar em um lugar assim,
pois Amanda já ia começar a estudar e eu queria que ela se sentisse bem onde estava, além disso, ficava
perto de supermercados, padarias, farmácias, frigoríficos, parques (embora raramente fôssemos), e tudo o
que uma dona de casa com filhos deseja é estar em um lugar assim. O pai das meninas estava em um bom
emprego, além de ter sempre negócios paralelos dois quais eu não tinha conhecimento, mas que não
ajudavam a nos manter. Ele sempre foi um homem discreto em relação a sua vida financeira e profissional
e isso nunca me incomodou, porque eu realmente não me importava. A única coisa que queria era que ele
não deixasse faltar nada para elas. Para mim, nunca me importei (ou parei de me importar).

Nunca gostei de pedir dinheiro para comprar roupas, sapatos ou perfumes e ele adorava isto. O fato
de eu nunca gostar de pedir nada. Sempre fui alguém fácil de agradar. Naquele momento estava morando
em um bom bairro, numa casa muito grande, mas isso nunca me fez sentir que eu fosse melhor do que
ninguém. O pai das meninas, diferente de mim, era muito ambicioso e sempre tentou levar uma vida sem
apertos, o que era muito admirável, demonstrava sua vontade de vencer na vida, pois ele também veio de
uma família pobre do interior da Paraíba, embora quando o conheci, ele já morava na capital a treze anos,
indo ao nordeste apenas para visitar familiares. Mas algumas pessoas de sua família não concordavam com
sua maneira de viver, alegando que ele cometia muitos erros por causa dos seus impulsos em sempre querer
mais do que poderia ter e nisto eu precisava concordar. Ele realmente tinha um espírito de grandeza que
não condizia com a sua realidade. Eu ficava feliz simplesmente por saber que minhas filhas estavam
seguras e por podermos proporcionar essa segurança para elas naquela época. As lembranças mais
inesquecíveis que tenho dessa época é de minhas meninas correndo pela casa e pintando todas as paredes
dando-me o trabalho de limpá-las ou de pintá-las depois, e da TV o dia inteiro ligada conectada a um
aparelho de DVD que só passava músicas e desenhos infantis, e da minha insistência incessante em querer
manter uma casa com duas crianças pequenas arrumada. E de muitas vezes eu decidir esquecer tudo e ir
brincar e fazer bagunça com elas, pois me dava por vencida na tentativa de manter as coisas organizadas. E
que sempre que isso acontecia, eu lembrava da minha antiga vizinha, e pensava: - Ela tinha razão. Como é
difícil manter tudo limpo.
Minhas costas doíam, minha barriga pesava e meus pés estavam sempre doloridos, mas isso nunca
foi motivo para que eu quisesse desistir. Eu já conhecia a rotina da maternidade e, apesar de todo o
cansaço, tudo valia a pena quando o final do dia chegava e eu olhava para aqueles rostinhos dormindo. As
vidas que tinham em minha casa eram a minha fonte para também viver.

...

2006 – Giulia era uma bebê incrivelmente linda.

Durante a gestação me deixava enjoada com o cheiro do feijão, de um perfume que comprei para
ela (nunca usei) e de miojo. No dia do seu nascimento eu estava ansiosa pela sua chegada, suas irmãs
também. Minha mãe tinha vindo do Nordeste meio que a contragosto para cuidar do meu puerpério. Ela
sabia que não tínhamos uma boa relação por termos maneiras diferentes de pensar sobre a vida, mas não se
opôs a vir, tentando ao máximo fazer o seu papel de mãe. No dia em que cheguei em casa após o
nascimento de Giulia não faltavam braços para querer segurá-la. Alguns dias depois, uns familiares
maternos e paternos vieram vê-la e ficaram admirados com tanta beleza. Trouxeram presentes e tiraram
muitas fotos. Foi um dia muito feliz. Ela nasceu no inverno e minha mãe sentia muito frio assim que
chegou. Disse para ela que também sofri muito para me acostumar, tentando reconfortá-la daquela
realidade. O pai das meninas passava a maior parte do tempo trabalhando. As coisas já não estavam mais
tão fáceis quanto quando chegamos naquela casa. Ele tinha sido demitido de um dos empregos e estava
preocupado com as contas da casa, mas não deixou transparecer isso quando minha mãe estava conosco.
Queria causar uma boa impressão. Eu não tinha afinidade para conversar sobre meus problemas com minha
mãe, então nunca conversamos sobre isso. Ainda hoje ela se surpreende com o fato de só ter descoberto as
agressões do pai de Cayane muito tempo depois de nos separarmos.

Minha mãe tinha uma irmã em São Paulo e disse que tinha ido também porque queria muito revê-
la. Tia Marilene. Filha que a minha avó deu para uma família quando bebê. Sua história é bem interessante
e eu não a conhecia. Foi apenas nessa época em que minha mãe foi cuidar do meu puerpério que eu soube
da sua existência, ela contou que a minha avó a deu para uma família com mais condições de criá-la
quando ela ainda era bem pequena e as coisas estavam muito mais difíceis do que sempre foram, e que essa
família veio morar em São Paulo e a criou muito bem. Foi emocionante ver o encontro das duas, minha
mãe e minha tia, após anos de ausência e de saudade.

Lembro de ter conversado com minha avó sobre isto alguns anos após conhecer minha tia
Marilene, e dela dizendo com os olhinhos pesados de lágrima que se arrependeu desse ato, mas que na
época não tinha outra alternativa que não fosse entregá-la para uma família que não a deixasse sofrer, e até
hoje esse arrependimento a machuca. No entanto, o passado é um lugar para visitarmos e não para
ficarmos. Eu sempre lhe digo isso quando tocamos nesse assunto. Minha tia até hoje sente um pouco de
tristeza e de mágoa por essa situação e me disse que queria ter passado por todas as dificuldades da sua
vida com minha avó, mas que ela nunca a tivesse dado para outra família. Que isto lhe deixou sequelas
emocionais e eternas. Depois desse reencontro com minha mãe, minha tia foi ao interior rever a minha avó,
e até os dias atuais ela vai a sua casa para vê-la sempre que visita a Paraíba. Fiquei próxima dessa tia depois
que minha mãe foi embora e ela foi testemunha de muitas coisas que vivi nesta época. Tia Marilene foi
criada sem apertos, apesar de não ter riquezas. Estudou em boas escolas e tinha uma família muito boa. Ela
sabia o que era ter uma família pobre, mas digna. Quando lhe contei a minha história de vida ela ficou
boquiaberta porque não conseguia acreditar que alguém tão jovem já tinha passado por tantas coisas.
Quando eu a conheci, ela já passava com trinta e oito anos e só tinha um filho. Ela é aquele tipo de mulher
que busca pelas coisas que as faz bem. Sempre autônoma, vendia cosméticos e sempre pedia que eu
comprasse algo a ela. Fosse um perfume ou algo tipo, porque isto seria muito bom para a minha
autoestima. Comprei-lhe apenas uma vez um produto, depois não comprei mais, porque o pai das minhas
filhas reclamou do valor e me disse que eu não comprasse produtos tão caros, que isso iria “quebrá-lo”.
Minha tia ficou indignada quando eu lhe disse isso. Eu também fiquei triste com a situação, mas já estava
tão acostumada com ele sempre impondo coisas que isso se tornou costumeiro e normal para mim, disse
que eu era muito linda e que precisava cuidar da minha beleza para ficar ainda mais bonita, e que eu
merecia isto. Merecia, e o pai das minhas meninas podia me dar, porque essa era a obrigação dele. Cuidar
de mim enquanto estivéssemos juntos. Tinha uma frase que ela sempre dizia e que sempre me fazia rir, a
frase era: - “mulher e luxo só têm quem pode.”

Também lembro da sua indignação quando lhe disse que eu não costumava pedir esses tipos de
coisa para ele porque imaginava que ele já fazia demais por nós, e ela não aceitava essa justificativa por um
único motivo: Se ele não me deixava trabalhar, era justo que ele provesse os meus desejos, já que eu não
podia por conta própria. Achei essa justificativa louvável. Eu nunca tinha pensado por esse lado. A partir da
convivência com ela, percebi que estava mesmo permitindo que o pai das meninas me controlasse além dos
direitos que ele tinha. Decidi observar aonde eu estava errando como mulher e o primeiro passo para isto
foi começar a expressar os meus desejos e vontades para ele e assim compreender até que ponto ele me
respeitava e me valorizava como mulher. Na verdade, desde aquele dia, comecei a fazer uma coisa que
nunca tinha feito em todos esses anos de existência e que minha tia me fez enxergar. Olhar para quem eu
era.

...

Estávamos passando por dificuldades. Financeiras e pessoais.

O pai das minhas filhas não estava conseguindo manter o padrão de vida que escolheu e também
sustentar os seus vícios. E as brigas começaram a surgir. Sugeri para ele que mudássemos de casa, pois eu
não me importava em morar em um lugar menor, contanto que conseguíssemos pagar as nossas despesas.
Ele disse que eu não me preocupasse porque ele sabia o que estava fazendo. Enquanto ele dizia saber o que
estava fazendo a dívida do aluguel se acumulava e as meninas e eu passávamos a sentir as limitações da
falta dos recursos que até então tínhamos. Até que um dia sugeri para ele que eu também precisava
trabalhar para ajudar nas despesas, que as pequenas estudavam um dia inteiro e que isso não seria
problema, que se eu conseguisse um emprego de pelo menos meio período, fosse do que fosse, já ajudaria a
nos manter. Ele se opôs veementemente alegando que eu não podia trabalhar, senão a nossa casa ia virar
um chiqueiro e as meninas ficariam abandonadas. Brigamos por causa disto, e por muitos outros motivos
após essa imposição. Ele estava muito estranho. Não tinha hora para chegar em casa, não cumpria com suas
obrigações de pai, escondia o celular ou o atendia longe de mim para que eu não ouvisse com quem ele
conversava e pelos seus comportamentos, estava se relacionando com outra pessoa. Depois de um tempo,
essa teoria meio que, se confirmou. Confesso que eu não me importava, mas não aceitava a ideia de ser
desrespeitada, afinal de contas, ainda morávamos na mesma casa e devíamos respeito um ao outro. Nunca
busquei saber detalhes sobre aquela história com uma tal loira que trabalhava com ele. Eu já tinha decidido
que queria me separar. Comecei a perceber que aquele homem não suportava ser contrariado, sobretudo
quando o assunto era minha independência e liberdade de expressão. Eu precisava de um tempo para
conseguir entender como poderia resolver aquela situação. Estávamos passando por dificuldades e isso
estava atingindo diretamente as nossas filhas. Por algum tempo senti-me encurralada. Era completamente
dependente dele para absolutamente tudo. Não conhecia nada na cidade de São Paulo porque não saía de
casa, e quando saía, era com ele, de carro. Nunca peguei um ônibus ou metrô sozinha e as únicas pessoas
que eu conhecia eram as da nossa família. Então comecei a expressar para alguns familiares dele que eu
tinha mais afinidade, o que estávamos passando. Sempre que alguém da sua família vinha nos visitar, eu
fazia questão que eles notassem e soubessem o que estava acontecendo. Ele tinha uma irmã a qual eu nutria
muito carinho e que gostava muito de conversar. Dionice. Construí uma relação de confiança com ela e
passei a lhe dizer tudo o que acontecia conosco.
Dionice era uma mulher independente, que já tinha passado por muitas dificuldades na vida, mas
que tinha superado, justamente por causa dessa autonomia e vontade de vencer. Ela conhecia a
personalidade controladora do irmão. Então, diante das exposições que eu lhe fazia sobre os
acontecimentos em minha casa ela passou a me aconselhar a tomar uma iniciativa e não permitir que ele me
impedisse de fazer as coisas que eu acreditava que eram corretas para mim e para minhas filhas, e ficava
indignada ao constatar o quanto o seu irmão nos prejudicava com as suas irresponsabilidades. Ela, assim
como muitas mulheres fortes que surgiram na minha vida em épocas de dificuldades, se tornou uma
inspiração vinda daquela família.

...

Durante os anos de convivência com o pai das minhas filhas conheci algumas poucas pessoas
maravilhosas da sua família.

Dionice foi uma delas. Durante os dez anos de convivência que eu tive com seu irmão ela foi
alguém que se indignou desde o primeiro momento com suas posturas inconsequentes. Embora nos
víssemos pouco porque ela tinha receio de prejudicar ainda mais a situação, envolvendo-se em nosso
relacionamento, foi nas poucas vezes que conversamos que ela me ajudou a enxergar que eu precisava
acordar para a vida e que merecia bem mais do que uma vida de privações e limitações com minhas filhas.
Tenho alegres lembranças dos seus filhos Felipe e Elivelton, ainda crianças convivendo e brincando com as
minhas meninas, todos ainda pequenos. Eram nesses momentos que eu via o reflexo de uma família,
quando eles nos acolhiam como se fizéssemos parte da sua.

Linda, esposa de um dos irmãos de Dionice. Ela sempre me deixou a sensação de que eu estava
diante de uma mulher guerreira e digna de todo o respeito do mundo. Nas poucas vezes que a vi admirei
sua gentileza genuína e sua forma amorosa de ser mãe de seus filhos Michele e Charles.

Dona Lídia, tia avó das minhas filhas. Uma senhora simpática e encantadora. A vi somente duas
únicas vezes em dez anos, mas nunca esqueci do seu sorriso doce nem da sua receptividade genuína.

A todos que, de alguma forma, passaram e deixaram algo bom. Obrigada.

...

Sobre as demais pessoas, uns me suportavam por necessidade, outros me desprezavam sem motivo.
Nunca busquei justificativas para esses comportamentos. Levo em consideração apenas o que construí de
verdadeiro e de concreto durante os dez anos em que fiz, por poucas vezes, parte da vida dessas pessoas. As
posturas contrárias jamais me influenciaram em nada além do que no exercício constante de descartar e
ignorar o que em nada me acrescentava. Sempre que essas pessoas queriam criar conflitos ou inventar
injúrias para me prejudicar, delas eu me afastava. Compreendia a realidade de que tentar agradar todo
mundo sendo quem você é, é um fardo muito pesado para se carregar. Percebia que a minha diferença de
idade com o pai das meninas era motivo para que alguns familiares dele acreditassem que eu o traía ou dele
queria me aproveitar, por mais que não compreendesse esse absurdo, pois eu não tinha vida social e meu
único defeito ser muito jovem para ele. Acredito que eles atribuíam essas características à falta de caráter,
por isso me julgavam. A ignorância atrelada as raízes culturais tradicionalmente conservadoras (embora
hipócritas) provocam esses tipos de pensamentos distorcidos.

...

2007 - Eu não sabia que ainda tinha algum valor.


Quando o pai das minhas filhas me levou para São Paulo eu pensei que ele fosse um herói que
estava me salvando de uma vida de miséria e me tornando uma mulher valiosa. Eu não sabia que tinha um
valor porque acreditava no que as pessoas do meu contexto de vivência me diziam quando eu ainda estava
formando minhas concepções pessoais, moldando-as junto com as suas vivências e a medida que elas
construíam as suas vidas marcadas por limitações. Não ser virgem era motivo de impureza, e eu não era
mais virgem. Ter um filho sem um pai era motivo de vergonha, e eu tinha uma filha sem um pai na
adolescência. Para as pessoas que eu convivia, uma mulher que tivesse filhos e não tivesse um homem para
lhe salvar, dificilmente se tornaria alguém na vida. O pai das minhas filhas trazia enraizados em si todos
esses conceitos pré-concebidos. Ele achava que era melhor do que eu e que sem ele eu nunca me tornaria
nada. Acreditava que eu devia a minha vida a ele por ele ter tido a coragem de me assumir mesmo sabendo
que eu não era mais uma mulher digna, e que poderia fazer tudo o que quisesse comigo e que fosse do seu
interesse por esse motivo. Mas depois de refletir sobre tantas histórias que ouvi e também de muito pensar
eu passei a não acreditar mais nesta versão. Isto não fazia mais nenhum sentido para mim nem definia o
meu valor como pessoa. Depois de tantas reflexões, comecei a me perceber através de outras histórias.

Passei a observar outras vidas quando ele comprou um computador. Aprendi sozinha a manuseá-lo
e criei uma rede social chamada Orkut. Lá eu tinha acesso a várias histórias de vida através de perfis e de
grupos. Isso me fazia compreender que eu estava dentro de uma bolha e que o meu conhecimento não era
suficiente. Eu precisava aprender mais, conhecer mais. Eu não sabia nada sobre a vida, mas queria
descobrir, então tomei uma decisão. Enquanto eu não pudesse voar com as minhas próprias asas, iria
aproveitar que estava presa naquela gaiola para conhecer o mundo através de outras histórias e também dos
livros. Não que eu já não os lesse, eu sempre amei a leitura, mas me limitava aos contos de fadas infantis e
aos romances das coleções de “Júlia”, onde o príncipe vinha salvar a princesa das mazelas da vida. Eu não
queria mais esperar que ninguém me salvasse. Agora o que eu queria era aprender como me salvar sozinha.

Minhas filhas estudavam em uma escola do bairro chamada EMEI Mari Buarque que tinha ao seu
lado, uma biblioteca. Fiz o meu cadastro para ter acesso a todo tipo de conhecimento que eu julgava
necessitar sobre tudo no quesito independência. Construí com minhas filhas uma rotina de leituras
prioritárias nos seus contextos mais variados e passei a colocá-la no mesmo patamar de todas as minhas
obrigações, revezando-me entre cuidar das minhas filhas, arrumar a casa, lavar a roupa, fazer comida... e
ler. As levava e as trazia da escola porque o pai delas não podia mais pagar a perua escolar que as levavam
antes, e quando íamos para casa, passávamos antes na biblioteca e pegávamos os livros de semana. Era
uma infinidade de mundos infantis, juvenis e adultos. Lia os livros delas e também os meus e misturávamos
nossos saberes enquanto crescíamos juntas. Eu adorava ler, junto com aquelas meninas, histórias infantis
em voz alta sobre sapos, princesas, passarinhos, cachorros, gatos, grilos, elefantes, papagaios, gorilas,
Mônica e Cebolinha. E à noite, enquanto elas dormiam, as histórias que eu lia sozinha me faziam
compreender o quanto eu ainda precisava saber. Eram histórias de mulheres, crianças e homens que, assim
como eu, não estavam satisfeitos com as opressões e precisavam lutar para conseguir realizar seus ideais.
Encontrei um livro particularmente inesquecível nas prateleiras dessa biblioteca, que eu suspeito que foi
responsável por me fazer enxergar, através daquela narrativa, a minha própria história escrita de forma
diferente, me possibilitando adquirir por meio daqueles personagens, a força necessária que eu precisaria
para também sobreviver a minha própria realidade. O mundo estava desmoronando por fora, mas por
dentro tudo estava se reconstruindo em mim. Descobri que não sou sozinha no mundo. Que existem várias
de mim espalhadas por aí. Algumas perdidas e outras a minha procura para me mostrar que precisamos unir
forças para conseguir nos libertar. Era como se todas as imposições feitas pelo pai das minhas filhas
tivessem virado poeira e sumido no ar. Para mim, elas não tinham mais justificativas, então passei a escutá-
lo cada vez menos e a falar cada vez mais, irritando-o cada vez mais, mais e mais. Ainda estávamos juntos
mas eu não o queria, ele sabia disto porque eu lhe dizia. Falei para ele da minha insatisfação em vê-lo
deixar a nossa família sofrer por causa dos seus vícios e descontroles e que não era obrigada a aceitar tudo
o que ele queria para mim. E que iria lutar para sair daquela situação. Lembro de sua expressão de deboche
enquanto eu manifestava o meu desejo de mudar aquela vida, como se pensasse: - Até onde ela pensa que
vai com tantos filhos para criar?

Para ele, eu não sabia fazer nada além de trocar fraldas, cuidar de criança, lavar, passar e arrumar, e
que eu nunca teria o futuro que estava projetando, pois não tinha estudo nem conhecia aquela cidade, e com
certeza ele não iria me ensinar sobre ela. Eu amava ser dona de casa, amava ser mãe, mas eu compreendi
que poderia ser mais. Que eu poderia ser o que eu quisesse ser. E eu queria ser tantas coisas! Vendedora,
estudante, garçonete, secretária, professora, recepcionista, psicóloga, escritora, diretora, atendente, analista,
frentista, operadora de telemarketing, babá (...). Já ele nunca imaginou outro caminho para mim que não
fosse o que ele traçou durante os anos de nossa convivência nem tão pouco imaginou que eu poderia
descobrir que existiam esses outros caminhos. Lembro ainda que no início do nosso relacionamento ele até
falava que eu era alguém inteligente e que eu poderia chegar aonde quisesse na vida, mas depois de um
tempo conclui que ele dizia isso apenas para camuflar seu desejo de posse. Para que eu pensasse que ele
acreditava que eu poderia ser alguém. Na prática, os conceitos eram diferentes. Ele queria ser meu alguém.

Acreditava na ilusão de que vivíamos uma relação que seria eterna porque concretizou a certeza de
que eu era a sua propriedade, pois estava ali, e não (como ele mesmo dizia), jogada dentro de um buraco.
Tudo aquilo era graças a ele. Não sabia a força nem a consciência que o conhecimento pode proporcionar.
Eu estava aprendendo sobre isso e as nossas concepções se chocavam desde então. Agora éramos como
inimigos por que eu o estava confrontando e ele não iria permitir. Agora ele nutria uma espécie de desejo e
de desprezo por mim. Queria que eu fosse sua, mesmo que eu não quisesse ser de ninguém, e muitas vezes
eu não podia evitar, pois ainda morávamos juntos e ele sentia que tinha esse direito. E foi num desses
momentos que eu engravidei da minha quinta filha. Percebi que eu seria mãe de alguém, cujo pai eu não
projetava mais ter um futuro ao lado, e isso foi muito difícil para mim. No entanto eu compreendia que
enquanto fosse dependente dele esses riscos eram possíveis, por isso não fiquei surpresa. Aceitei minha
gravidez de cabeça erguida. Eu sabia que isso não seria motivo para me fazer parar por mais que de alguma
forma me estagnasse por um tempo. Mas era só por um tempo. Nenhuma gravidez é eterna e eu sentia que
depois que meu bebê nascesse eu iria retomar os meus planos de me emancipar. Vivi essa gravidez como se
a minha vida acontecesse além dela, porque depois que eu passasse por essa etapa, iria precisar ter muito
discernimento para sair daquela situação de verdade, mesmo sem saber absolutamente nada sobre como e
nem por onde começar.

Se optarmos por ficar calados e paralisados, por medo de tirar a paz alheia

A felicidade própria não chega.


...

2008/2009 – ÉPOCA DE LUTAR

2008 – Continuei cuidando das minhas filhas e fazendo tudo por elas, mas dessa vez eu não fazia só por
elas. Eu também fazia por mim. A gravidez não mudou os meus planos, ela somente os adiou por um
período e eu sabia disto. Aproveitava o tempo para organizar a minha rotina puxada.

Cuidava sozinha de três crianças pequenas e esperava por outra. Essa não era uma missão muito
simples. Continuei lendo muito e educando minhas filhas para que elas gostassem da escola. Elas eram
pequenininhas e não entendiam o quanto minhas palavras significavam, mas elas gostavam do que eu dizia
e do que eu fazia. Sabia disto porque, sempre que algo acontecia e não podíamos interagir, elas me
cobravam:

Mamãe, porque hoje não teve leitura?

Mamãe, que história vamos conhecer hoje?

Líamos um livro infantil que contava a história de uma menininha que perdia a avó e ensinava
como ela deveria lidar com a situação para não sofrer tanto com a perda, e nele tinha a ilustração da avó
dentro do caixão. Lembro de como elas ficaram angustiadas pela menininha, e essa parte da história está
aqui porque elas pediram para que eu colocasse, para que elas nunca esquecessem quando foi a primeira
vez que viram um desenho tão triste. Através de histórias infantis eu também estava preparando-as para
entender a separação com o pai delas. Sempre conversávamos sobre isso e, apesar da pouca idade, eu
percebia que elas me compreendiam e que me apoiavam, principalmente depois que li para elas um livro
infantil chamado Pai que voa. Tínhamos também uma rotina de estudos. Elas saíam para a escolinha às
8:00 e voltavam às 15:00. Giulinha ainda não estudava, somente Amanda e Jamyly. Assim que chegavam
da escola, comiam alguma coisa e eu ia ajudá-las nas lições de casa. Eram tardes adoráveis de aprendizado
e de diversão. Eu nunca fiz as lições das minhas filhas porque elas amavam descobrir os caminhos para
fazer algo por causa das suas curiosidades típicas de criança. Eu era apaixonada pelo mundo delas (sou até
os dias atuais). Ensinei minhas filhas a aprender brincando, observando, ouvindo e criticando.

Dizia para elas que estudar nunca deveria ser um fardo, mas sim um objetivo de vida e que a escola
era o melhor lugar do mundo. Que as pessoas poderiam roubar-lhes tudo, absolutamente tudo, menos o que
elas colocavam dentro de suas cabeças. Que o conhecimento, a partir do momento que fosse adquirido por
elas, ninguém poderia arrancar-lhes, e criei um método para fazê-las compreenderem essa importância.
Sempre que elas faziam algo que não era considerado correto, como fazer birras fora de hora ou qualquer
outra traquinagem típica de criança, eu as deixava de castigo sem ir para a escola, assim elas aprenderam
que não ir para a escola era um castigo e que isso era muito ruim. Além do mais, a escola realmente estava
sendo um ambiente melhor para elas. Lá elas não precisavam presenciar brigas domésticas que ainda
existiam, por mais que eu as tentasse evitar. Elas não entendiam isto porque eram muito pequenas, mas o
fato é que estava difícil criá-las com a dignidade que elas mereciam. O pai delas não conseguia mais pagar
o aluguel a mais de um ano e virou uma rotina para mim inventar desculpas ao proprietário da casa que
morávamos para que ele entendesse que eu não podia fazer nada para ajudá-lo. Senhor Wilson construiu
uma espécie de compaixão por mim.

Me via com um barrigão e com três filhas para criar e não tinha coragem de me despejar, mesmo sentindo-
se enganado pelo pai das minhas filhas, e eu o agradecia pelo que ele fazia por nós. A casa estava caindo
aos pedaços porque desde que fomos morar nela não a reformamos, mas ela estava mantendo minhas filhas
em baixo de um teto e eu sempre orava para que Deus tocasse no coração daquele senhor e ele tivesse um
pouco mais de paciência. Como se não bastasse tantas provações, quando eu estava com sete meses de
gestação aconteceu algo que me fez ficar atordoada. Eu estava na cozinha lavando a louça e minhas filhas
estavam brincando na sala, numa tarde corriqueira qualquer. De repente, escuto um barulho vindo de lá e
corro para ver o que tinha acontecido.

Giulia estava brincando de pular de um sofá para uma cadeira, quando a cadeira se afastou do sofá
fazendo com que suas pernas se abrissem enquanto ela caia e a machucando com o impacto. Na hora não
percebi que nada grave tinha acontecido enquanto a acalentava para que ela parasse de chorar. Como não
parava e parecia um choro sofrido, resolvi procurar se algo estava sangrando. Quando a deitei na cama,
percebi que sua perna não estava querendo firmar, então constatei que precisávamos ir para o hospital
imediatamente. Liguei para o pai dela entre choros e soluços e contei-lhe o ocorrido, ele pediu que eu
esperasse e disse que já estava a caminho. Passei exatos quarenta minutos com ela em meus braços, a
segurando em uma única posição, pois sempre que a movimentava ela chorava de dor. E como estava com
a barriga muito grande, lembro que foram os quarenta minutos mais demorados da minha vida. O pai dela
chegou e corremos para o hospital mais próximo com Giulia no meu coloco com a perninha quebrada e as
suas irmãs nos acompanhando. Lá os médicos bateram um raio-x e constataram que Giulia tinha quebrado
o fêmur com o impacto da queda e que ela precisava fazer uma cirurgia para colocá-lo no lugar. A essa
altura eu só fazia me lamentar vendo-a naquela situação, mas os médicos pediram que eu me acalmasse e
que não me preocupasse porque tudo ficaria bem. Disseram que Giulia era pequena e estava em fase de
crescimento, e que ela ficaria um tempo no gesso, mas que iria se recuperar e que eu precisava ter muita
paciência durante o período em que ela ficaria engessada, pois seria preciso imobilizar suas duas pernas.
Como eu estava grávida, seria muito difícil a minha rotina porque Giulia ficaria com o dobro de seu peso e
totalmente dependente dos meus cuidados.

Durante os trinta e cinco dias que Giulia ficou no gesso minha rotina mudou drasticamente ficando
ainda mais exaustiva. Passava o dia tentando revezar os meus horários entre a atenção que as outras
meninas precisavam, os compromissos com a casa e os cuidados com ela. Transformamos a sala num lugar
adaptado para que ela ficasse permanentemente até que se recuperasse, pois ela não podia se locomover
com as pernas imobilizadas e eu precisava deixá-la o mais confortável possível. Dormíamos com ela, as
meninas e eu, e estávamos sempre juntas e fazendo companhia umas para as outras. O pai das meninas
nunca tinha tempo de me ajudar com elas. Nem sabia. Então, de certa forma, éramos só nós. Depois que
tirou o gesso Giulia precisou reaprender a andar, mas não precisou de fisioterapia. Em casa ela conseguiria
se readaptar aos poucos se acostumando novamente com o próprio peso, segundo o ortopedista. Comecei a
lutar contra o tempo para ajudá-la a voltar a andar antes que as dores de parto surgissem. Giulinha era um
anjo perseverante e rapidinho tudo se consertou. Alguns dias depois desse susto e quando tudo já estava
preparado para a chegada do meu mais novo bebê, a minha bolsa estourou pela quinta vez trazendo minha
menina ao mundo. Clara nasceu numa tarde do mês de julho e tudo ocorreu bem. Era uma menininha linda
e franzina, dona de uns olhos castanhos claros enormes apaixonantes e que adorava sorrir. Uma lembrança
inesquecível que tenho da minha gravidez é de como fiquei feliz quando na ultrassonografia disseram que
anatomicamente eu esperava mais uma menina, e de como o pai dela se iludiu pensando que ela era Ele, e
do quão imensamente feliz eu fiquei quando soube que ela era Ela. Independentemente do resultado, ele
estava muito confiante. Meu jeito omisso o tranquilizava e na sua mente talvez cogitasse a ideia de que eu
tinha desistido de continuar insistindo nos meus objetivos. O pai das meninas estava sem condições
financeiras de pagar as passagens da minha mãe para vir me ajudar e eu não queria que a mãe dele viesse,
então eu preferi cuidar delas sozinha se não fosse a minha mãe ou alguém da minha confiança.
Cuidei de Clara e de suas irmãs nos primeiros meses praticamente sem ajuda e foi um período de
grandes dificuldades. Mas eu estava de pé e continuava lutando e sonhando com dias melhores. Sempre
que olhava para aquelas meninas, pensava: - Quero que minhas filhas sejam as pessoas mais felizes do
mundo e que tenham um futuro brilhante e independente. Que elas sintam orgulho de mim e de quem eu
me tornarei quando formos apenas nós. Que aprendam a caminhar com as suas próprias pernas e que nunca
permitam que homens sejam as suas muletas, porque nenhuma mulher suficientemente forte necessita de
muletas para caminhar. Elas podem criar asas, se assim desejarem.

...

2009 – Minha mãe me ligou para dizer algo:

Minha irmã (Keilha), aquela que tinha vindo a alguns anos atrás, mas que não conseguiu ficar por
muito tempo queria voltar novamente para São Paulo porque no Nordeste estava muito difícil conseguir
algum emprego digno e ela precisava de uma estabilidade financeira. Então eu disse para o pai das minhas
filhas que ela iria vir para a nossa casa porque precisava de um lugar para ficar por um tempo e seria bom
para mim ter esse suporte em minha casa, mas que ele não se preocupasse com nada, pois era ela quem iria
pagar por sua passagem de ida e de volta, se fosse o caso de ela querer voltar. Não preciso nem discorrer
aqui qual foi a sua reação quando ele soube que minha irmã viria morar comigo, dado o fato de que ele não
gostava de algumas pessoas da minha família. Insatisfações a parte, minha irmã chegou e eu fiquei muito
feliz com o seu retorno. Exceto por uma coisa. Infelizmente não pude recepcioná-la oferecendo o melhor
que eu tinha. Em 2009 eu não consigo nem definir como estava a situação financeira da minha família. O
aluguel não era pago a quase um ano e meio e a casa continuava sem reforma, o alimento em minha casa
era limitado e eu não sei de onde tirava forças para suportar tanto. Conviver com minha irmã foi um
bálsamo para mim. Enquanto dividíamos o mesmo teto e nos ajudávamos ela percebia o quanto as coisas
estavam insustentáveis e me dava um suporte emocional incrível. Eu não queria que ela me salvasse, eu
queria ajudá-la, e só. Ela veio determinada a mudar de vida e eu quis seu apoio. Queria conseguir um
emprego bom e ter uma vida independente, e eu a apoiava e a incentivava a buscar os seus objetivos.

Fizemos um currículo para ela e alguns meses depois ela conseguiu o seu primeiro emprego na
capital. Não era algo que dava muito dinheiro, mas era um primeiro passo. Ela não via a hora de começar a
trabalhar. O pai das meninas já estava começando a implicar porque as despesas tinham aumentado e ele já
estava começando a demonstrar suas insatisfações acerca disso. Mas não era apenas por isto. Ele não
gostava do jeito frenético de mulher obstinada à independência que a minha irmã tinha nem das suas
iniciativas, e imaginou que ela pudesse fermentar a minha vontade de me separar dele. No entanto, ela não
fermentou. A ideia já existia e tinha se transformado em um objetivo. Mas não posso negar que a sua
participação foi indescritível em minha vida, pois mais tarde ela me ajudou a concretizar de forma mais
sólida e confiável os meus planos mais intrínsecos. Enquanto o tempo certo dos acontecimentos necessários
não chegavam ele passou a querer controlar também a forma de viver dela, por considerar que tivesse esse
direito já que tinha concordado em abrir as portas da sua nossa para que ela pudesse ficar. O que ele não
sabia é que ela e eu éramos pessoas totalmente diferentes. Minha irmã conhecia toda a minha história e
costumava dizer que os erros que nossos pais cometeram comigo certamente não cometeriam também com
ela. Na época que perdeu a virgindade ela não falou para a minha mãe porque sabia que ela poderia obrigá-
la a casar ainda jovem. Ela aprendeu a brigar pelas coisas que acreditava que fossem melhores para si e não
para as outras pessoas, e por mais que eu soubesse que essa não deveria ser a forma correta de aprender,
pois o ideal seria que ele tivesse orientação e apoio familiar, me sentia feliz por servir de lição para ela. Ela
odiava a vida que eu vivia e sempre me perguntava: - Quando você vai entender que isso que você vive não
é bom para você ou para suas filhas?

A essa altura eu já sabia o que merecia, embora não soubesse reivindicar por isto, e a amava
profundamente por também achar que eu merecia mais. Quando começou a trabalhar, ela ajudava nas
despesas da casa, mas não podia fazer muito, então esse também foi um motivo para o pai das meninas
criar empecilhos. Ela já estava irritava com a personalidade dele e com o fato de ele querer controlar a sua
vida, pois como ela mesmo dizia, ele era o meu marido, não o dela. Eu ficava frustrada e envergonhada por
ele estar criando esses tipos de situações, mas ela sabia que aquilo não era culpa minha e eu a agradecia por
isto. Um dia eles tiveram uma discussão porque o pai das meninas pediu a parte do dinheiro mensal que ela
contribuía, alegando que era para pagar despesas da casa, como água e luz, mas acabou gastando com
outras coisas sem prioridade. Durante esses conflitos eu tinha tomado uma decisão e aproveitei que minha
irmã estava sendo o meu suporte para conseguir concretizá-la. À princípio eu iria buscar um emprego, mas
depois percebi que isto não seria possível porque minhas filhas ainda eram muito pequenas e dependentes
de mim e minha irmã não poderia cobrir os turnos que porventura eu ficasse fora por também precisar
trabalhar. Então eu coloquei em prática o plano B. Decidi voltar a estudar mesmo sabendo que o pai das
meninas não permitia. Esse impulso me veio depois que Amanda foi para o 1ª Ano do Ensino Fundamental.

Um dia, conversando com uma supervisora da escola e manifestando para ela o meu desejo de
voltar a estudar, ela me estimulou a fazer a matrícula ali mesmo, onde minha filha estudava. Disse que a
escola estava com um programa de educação para jovens e adultos (EJA) e eu me enquadrava nos
requisitos necessários para participar. Desde de que soube do programa me inquietei para fazer parte dele, e
ter minha irmã morando comigo me ajudaria a aproveitar essa oportunidade. Combinamos que as minhas
filhas ficariam com ela quando voltasse do trabalho e que eu estudaria durante a noite. Fazia muito tempo
que eu nutria esse desejo, principalmente depois dos livros que sempre lia, mas naquele tempo ainda não
era o momento. Àquele era o momento. Sim. Foi uma briga horrível no dia que eu disse para ele que ia
voltar para a escola. Ele não aceitava em absoluto, quis me ofender e me proibir, mas sabia que Keilha e eu
estávamos unidas e que agora eu estava mais forte, e como não tinha formas concretas para me impedir,
então não teve outra alternativa senão aceitar forçadamente. Eu não estava preocupada em como seriam os
nossos dias cansativos e nem no que o pai das minhas filhas dizia. Eu só pensava no momento, queria
apenas dar o primeiro passo. O resto viria depois. Fiz a minha matrícula na escola Artur Azevedo quando
Clara ainda tinha seis meses de vida. Minha irmã passava o dia trabalhando e eu passava o dia organizando
a casa e cuidando das minhas filhas menores enquanto as mais velhas estavam na escola. À noite quando
minha irmã chegava, ficava com as pequenas para que eu fosse estudar. Faziam exatamente dez anos que
eu tinha tentando voltar os meus estudos e as circunstâncias emocionais tinham me impedido de prosseguir.
Não consigo descrever como estava orgulhosa de mim mesma por estar fazendo aquilo outra vez. Amava a
sala de aula, amava os meus professores, amava aprender. Era prazeroso fazer as lições que os professores
passavam para casa, e embora ainda precisasse de muita perseverança para dar continuidade aquela rotina
escolar e de vida, eu estava disposta a enfrentar as dificuldades que viriam, porque eu tinha um sonho e ele
era maior do que tudo de negativo que eu estava vivendo. O pai das minhas filhas não estava feliz. Todos
os dias ele criava uma história diferente para me tirar da escola. Me ameaçava dizendo que se chegasse em
casa algum dia e visse minhas filhas sozinhas enquanto eu fosse estudar, me denunciaria para a polícia e
tiraria as minhas filhas de mim porque eu estava trocando as minhas responsabilidades por “machos”. Ele
dizia que eu não ia para escola estudar, mas sim buscar aventuras amorosas. Eu dizia para ele que ele podia
abrir os meus cadernos e constatar o que eu fazia, que eu não me importava com os seus julgamentos e que
tinha minha consciência tranquila em relação a isso, e continuei estudando, apesar das brigas. A água da
nossa torneira estava cortada já faziam alguns meses por falta de pagamento, e para termos água era preciso
subir uma escada e pegar a água da caixa do senhor Wilson. Minha irmã ficava indignada com aquilo, mas
se mantinha quieta para não brigar com o pai das meninas. Ela não queria falar com ele. Um dia, mais uma
vez, cortaram nossa luz e nesse dia ela não aguentou. Xingou muito ele, mas não para que ele ouvisse, ela
dizia tudo para mim, para que eu percebesse que precisava sair dali. Eu continuava estudando, mas estava
sobretudo incomodada porque minha casa tinha virado um campo de guerra, não pela minha irmã, mas por
ele, que estava tentando me convencer a desistir dos estudos provocando discussões desnecessárias.

Ele queria fazer com que minhas filhas acreditassem que eu as estava abandonando quando ia para a escola,
as colocando contra mim, e isso me chateava bastante. Como se já não bastasse, minha irmã cansou das
suas implicâncias e disse que estava indo embora da minha casa, mas que não iria me deixar só. Antes de
sair ela me assegurou que sua nova casa era pequena, mas que estaria sempre de portas abertas para me
receber com minhas quatro filhas caso eu decidisse deixar aquele homem, segundo ela, “inescrupuloso”.
Ela não acreditava que eu iria fazer isso. Me achava muito dependente. Então ela foi e nós ficamos. Como
não tinha mais quem ficasse com as meninas para eu ir para a escola, acreditei que o melhor seria realmente
abandonar os estudos. Minha irmã tinha alugado uma quitinete não muito distante da minha casa, então me
incentivou a não desistir, se disponibilizando a ficar com elas sempre que chegasse do trabalho, eu só
precisava levá-las para a sua casa antes de ir para a escola quando ela não pudesse ir buscá-las. Não foi
fácil construir essa rotina, mas conseguimos equilibrar os nossos horários, e assim, nos ajudar como
podíamos. Enquanto isso, o pai das meninas seguia insistindo em dizer que eu ia para a escola com o
pretexto de traí-lo. Mas eu nem o ouvia mais. Lembro que ele ficou um tempo sem falar comigo de tanto
que o ignorei. Às vezes quando voltava da escola e ia buscar as meninas na casa da minha irmã, ficávamos
em sua casa conversando enquanto as pequenas brincavam porque o clima na minha estava horrível, então
isso acabava fazendo com que ele concretizasse as suas paranoias. Recordo-me de um episódio em que
minha irmã e um namorado que ela tinha e que futuramente se tornou o pai do filho dela, resolveram vir me
acompanhando até pertinho de casa com as meninas para que não viéssemos sozinhas, e ficamos
conversando na frente de casa antes de entrarmos. O pai delas estava lá em cima e cogitou que o namorado
da minha irmã fosse alguém com quem eu estivesse tendo um caso, e no dia seguinte soltou uma indireta
relacionada a seus pensamentos. Ri da situação, mas no fundo aquilo me assustava. Aquele homem era
doente. Depois desse dia ele disse que não queria que as filhas dele ficassem na casa de ninguém, e acabou
me encurralando. Eu não queria confusões e estava evitando ao máximo confrontos, mas precisava que
alguém ficasse com elas. Então sugeri que se ele não queria deixar as meninas aos cuidados de outras
pessoas, ficasse ele com elas porque eu não ia deixar de estudar. Ele foi forçado a aceitar. Tentava ao
máximo deixar tudo organizado antes de sair para a escola para que ele não criasse situações desagradáveis,
pois implicava sempre que a casa ficava desorganizava, e eu não me recordo como se deu o motivo para a
situação que relatarei agora, mas vou tentar resumir da forma que está na minha memória. Por algum
motivo não deu tempo lavar a louça antes de ir para a escola. Não me recordo por não consegui lavar a
louça a tempo, acredito que por algum acontecimento extra que eu estava tendo, além das demais
responsabilidades rotineiras, como precisar fazer as lições da escola e estudar algumas disciplinas,
atividades que foram acrescentadas a minha rotina além das que eu já tinha.

Eu já tinha me arrumado para ir para a escola e o estava esperando. Já estava bem atrasada, e
quando a porta se abriu, eu não tive tempo de me justificar. Já faziam uns dias que ele estava ficando com
as meninas quando chegava do trabalho. Dizia que preferia fazer isso do que deixá-las com minha irmã, e
era perceptível que aquilo o estava irritando profundamente. Eu lembro que ele não falou comigo quando
entrou, simplesmente jogou seu olhar desconfiado enquanto eu que me preparava para sair. Então dei um
beijinho nas meninas e falei: - Estou indo para a escola, amores. Se comportem. Nesse momento ele foi
veio da cozinha enquanto eu pegava meus materiais de estudo, e ao notar que eu não tinha lavado a louça,
disse: - Essa casa, parece um chiqueiro. Você está tão irresponsável que não lava mais nem um prato. Isso
está ficando insuportável e eu não vou mais permitir que você abandone as meninas para ir estudar. Na
hora senti um misto de raiva e de medo e comecei a tremer por dentro. Não sei de onde tirei coragem para
dizer quase gritando: - Vou para a escola sim e ninguém vai me impedir! Depois disso ele começou a me
expulsar de casa e me ofender. Disse que se eu quisesse virar puta, que fosse, mas que eu fosse sozinha
porque as meninas iriam ficar com ele. Num ímpeto de coragem, comecei a pegar umas bolsas e arrumar as
minhas malas e das meninas para ir embora. Já que ele tinha me expulsado eu ia para a casa da minha irmã.
Como percebeu que eu também estava preparando as meninas para sair, ele se enfureceu e disse que eu não
sairia daquela casa com as filhas dele. Eu escutava sem me importar e continuava arrumando tudo.

A lembrança mais triste que tenho deste momento é das minhas filhas presenciando toda aquela
situação desprezível. Elas ficavam me acompanhando de um lado para o outro e eu me sentia frustrada
com tudo aquilo. Então teve um momento em que eu precisei ir ao banheiro pegar algo e Jamyly me
acompanhou, mas antes que eu saísse, ele me encurralou dizendo que eu não iria sair daquela casa. Eu
nunca o tinha visto tão furioso como naquele dia. Seus olhos pareciam labaredas cuspindo fogo de raiva em
cima de mim. Então quando eu forcei minha saída do banheiro, ele segurou forte pelo meu braço e disse: -
Você não vai. Eu posso fazer o que quiser com você aqui e ninguém nunca vai saber. Disse isso e preparou
os punhos para me esmurrar. Minha filha estava angustiada ao meu lado e vendo toda aquela situação, e até
os dias atuais ela ainda recorda esse episódio triste que eu sinto tanto por ela ter presenciado. Antes que seu
soco me atingisse, consegui me desvencilhar e saí correndo daquela casa. Ele ainda me puxou pelo braço,
mas não conseguiu me deter. Saí correndo daquela casa destinada a ligar para a minha irmã e contar tudo o
que tinha acontecido para ela, mas ao invés de fazer isso, fui direto para a escola. Eu precisava assimilar
aqueles acontecimentos. Não lembro o quê nem como aconteceu, mas antes de sair correndo tive o ímpeto
de pegar a minha bolsa, e pensando em me proteger, caso ele viesse atrás de mim, fui para lá, porque assim
eu ficaria segura e ninguém na escola permitiria que ele me agredisse.

Entrei na sala onde o professor já estava escrevendo algo na lousa e sentei-me num canto para
assistir a aula tentando me recompor e me comportar como se nada tivesse acontecido. Mas meu corpo
tremia e meu coração batia forte por temer o que poderia vir a seguir. Pensei enquanto o professor dava
uma explicação: - Assim que terminar essa aula, vou até o orelhão ligar para a minha irmã. Ela vai me
ajudar. E foi isso que fiz. Quando terminei de discorrer toda a situação ela disse que já estava esperando
que isso acontecesse, e que estava indo me buscar e buscar as meninas. Que eu fosse para casa terminar de
arrumar as nossas coisas e que eu não tivesse medo, tudo iria dar certo. Ela já não morava mais na mesma
quitinete próximo a minha casa quando tudo aconteceu, então eu precisei esperar algum tempo por ela.

Decidi, mesmo apavorada, ir para casa. Quando entrei, o pai das meninas estava deitado no sofá e
duas de nossas filhas estavam perto dele. Clara estava dormindo e Giulia vendo TV. Entrei dentro do
quarto e retomei a arrumação das nossas coisas como estava fazendo antes do episódio em que ele me
impedia de sair de casa. Então ele se levantou e insistiu que eu não iria levar as meninas, que eu não tinha
condições de cuidar delas e que ele tinha chamado a polícia para me impedir, caso eu insistisse. Sua
justificativa era de que eu era uma mãe irresponsável e estava abandonando a casa e as minhas, que ele
poderia provar na justiça que aquilo que eu estava fazendo era abandono de incapaz. Eu não sei de onde
tinham vindo todas aquelas acusações, mas para mim nada do que ele dizia fazia o menor sentido. Em
nenhum momento desde quando comecei os estudos deixei minhas filhas sozinhas e me senti indignada
com tantas calúnias. Não sei de onde estava vindo tanta coragem diante daquela situação, mas eu não podia
mais permitir que aquele tipo de coisa acontecesse. Então comecei a agir movida por aquele sentimento de
frustração e de raiva. Desci as escadas da nossa casa e fui para o mesmo orelhão que tinha usado para ligar
para a minha irmã e liguei para a polícia pedindo que eles viessem até a minha casa porque o pai das
minhas filhas tinha tentado me agredir e não estava permitindo que eu saísse dali com elas. Passei o
endereço e eles pediram que eu aguardasse, pois a ocorrência já tinha sido feita e logo a polícia iria chegar.
Então voltei para casa para continuar arrumando as nossas roupas. Quando cheguei, o pai das minhas filhas
estava segurando o portão para que eu não entrasse e minhas filhas estavam presas do lado e dentro. Ele
disse que eu não iria mais entrar naquela casa. Poucos minutos depois, minha irmã chegou com o seu
namorado para nos buscar, se deparando com a mesma cena patética que eu. Começou na frente da casa
onde morávamos uma discussão entre o pai das meninas e minha irmã fazendo com que toda vizinhança
percebesse aquela confusão. Foi um dia perturbador para mim e para as minhas meninas e eu não via a hora
de aquilo tudo acabar. Passados aproximadamente quinze a vinte minutos após a ligação da ocorrência, a
polícia chegou e eu agradeci ao universo. Um policial desceu da viatura e foi até o pai das meninas, eu
também me aproximei. Então o policial perguntou o que estava acontecendo, se dirigindo diretamente ao
pai das minhas filhas. Ele disse para o policial que aquilo tinha sido apenas uma briga de casal sem
importância e que ele estava só protegendo as filhas dele, pois eu tinha ameaçado levá-las para a casa da
minha irmã, que ficava em uma favela, e era por isso que ele tinha tomado aquela atitude. Depois que ele
falou, o policial pediu para ouvir a minha versão.

Contei tudo o que aconteceu, e depois que terminei de falar ele me perguntou se eu não queria fazer
um corpo de delito e oficializar aquela ocorrência na delegacia. Disse para ele que não. Que a única coisa
que eu queria era sair dali e levar as minhas filhas comigo, porque não me sentia mais segura em ficar
debaixo do mesmo teto que aquele homem. O policial pediu que o pai das meninas abrisse o portão para
que eu pudesse subir para pegar elas e as nossas coisas. Então ele abriu o portão e eu subi pegando tudo o
que era nosso e que tinha ali, enquanto os policiais nos aguardavam. Quando desci, minha irmã me ajudou
a pegar as meninas e a colocá-las no carro e um policial devolveu o meu documento, advertindo o pai
delas: - Elas vão para lá por um tempo até que as coisas se resolvam entre vocês. Quando você estiver de
cabeça mais fria amanhã, ligue para a mãe das suas filhas e tente resolver tudo da melhor forma possível.

O pai das meninas agradeceu aos policiais, fechou o portão e subiu. Eu também os agradeci e entrei no
carro da minha irmã para ir para a sua casa. Depois desse dia, me tornei uma mulher quase livre.
Quem quer alcançar os voos mais alto

Precisa perder o medo de cair enquanto voa.

10

2010 – ÉPOCA DE RECOMEÇAR

Antes de dormir, eu sonhava acordada com a nossa liberdade, mesmo sentindo um medo
desconcertante do futuro. Enquanto observava minhas filhas dormirem um sono tranquilo, eu fazia planos
para um futuro mais tranquilo com elas. Iria continuar os estudos e encontrar um emprego. Iria reconstituir
a minha vida da maneira que eu imaginava que fosse melhor para nós. Eu só tinha um desafio. Não. Eu
tinha vários. Mas naquele momento eu só tinha um. Conseguir alguém de confiança que cuidasse das
minhas filhas enquanto eu buscava um emprego. Conversei com minha irmã e ela me sugeriu que eu
voltasse para o Nordeste. Disse que em São Paulo para mim seria mais difícil ficar, porque o pai das
meninas não iria sossegar enquanto eu não voltasse para ele. Eu não tinha pensado por esse ângulo.

Ela estava certa. No dia seguinte ele veio atrás de mim. Pediu que eu voltasse para casa com as
meninas e disse que estava muito arrependido e que tudo iria mudar. Mas eu não queria mais voltar e
precisava fazer ele compreender isto sem causar mais conflitos ou confusões. Conversamos e eu falei para
ele que queria ir embora para Solânea com as meninas. Que lá minha família me ajudaria e que essa seria a
melhor maneira de finalizarmos aquela relação de maneira saudável. Ele se opôs no início, mas quando
percebeu que viajar não seria empecilho para mim, pois minha irmã me ajudaria com as passagens, ele se
dispôs a contribuir, se prontificando a comprá-las. Disse que queria que as nossas filhas ficassem bem e
que iria me ajudar no que fosse preciso. Fiquei surpresa com sua postura, algo nele tinha mudado de juma
hora para outra. De repente, ele se preocupava em não deixar faltar nada para elas e tudo o que elas pediam,
ele não se opunha em comprar. De repente todas as dificuldades acabaram e não faltava dinheiro para mais
nada. Durante o tempo que fiquei na casa da minha irmã até o dia da nossa viagem, ele se prontificou a dar
o suporte que nós precisávamos, sempre tentando me convencer que o melhor seria retarmos aquele
casamento, mas as suas insistências não me comoviam. Eu realmente estava saturada daquela vida de
privações, e mesmo sem conseguir discernir o tamanho dos desafios que vinham pela frente, eu estava
disposta a enfrentá-los em troca da minha liberdade de escolher o que eu queria viver a partir dali. Então
vendo que eu não mudaria de ideia, ele comprou as nossas passagens de ida para a Paraíba.

Depois de alguns meses morando com a minha irmã, fomos para o Nordeste tentar retomar as
nossas vidas lá. Agradeci a Keilha por tudo o que ela tinha feito por mim, e fui embora. Lá na Paraíba,
minha família já me esperava. Eu não tinha casa, não tinha um emprego nem nenhuma reserva de dinheiro,
eu só tinha quatro filhas e muitos sonhos. Nas bagagens levei apenas o que minhas filhas e eu tínhamos
para sobreviver. Umas poucas roupas, alguns brinquedos e muita vontade de vencer. Fui para a casa dos
meus pais e o pai das meninas se prontificou em dar tudo o que elas precisassem enquanto eu estivesse lá.
Assim que cheguei na cidade fui fazer as nossas matrículas nas escolas públicas mais próximas para que
pudéssemos dar continuidade aos nossos estudos. Eu também consegui um “bico” como vendedora de
placas, através das amizades das minhas irmãs. Trabalhava com o intuito de juntar algum dinheiro porque
não planejava morar com meus pais para sempre, eu já sabia que aquela hospitalidade era temporária. Eu
precisava aprender a andar com as minhas próprias pernas.

...
Alguns meses depois que cheguei em Solânea, numa tarde qualquer enquanto eu ainda morava na
casa dos meus pais, alguém bateu na porta procurando por minha irmã caçula. Por algum motivo, ela
demorou para o atender, então eu fui até a porta pedir para a pessoa que a procurava que a esperasse um
pouco mais. Era um rapaz alto e educado que tinha uma voz muito bonita.

Eu ouvi minha irmã dizer o nome dele. Tiago.

Ela foi atendê-lo e eu fui para dentro de casa. Aquela conversa não me cabia.

Minhas filhas brincavam com outras crianças na frente da casa da minha mãe, e eu as observava de
longe, enquanto eles conversavam. Então, ouço minha irmã me chamando para ir até eles. Ela queria que
eu conhecesse o seu amigo. E depois daquela tarde de conversa com aquele amigo educado e doce da
minha irmã, enfim, uma história de verdadeira conexão começou a surgir.

Falamos sobre teatro, crianças e livros. Apesar de toda conexão, não nutri nada além de uma futura
amizade com aquele rapaz. Sempre tive consciência de quem eu era. Uma mulher, que apesar de jovem, já
conhecia as dores da vida. Não pensava na possibilidade de viver nenhum tipo de amor que não fosse o das
minhas filhas. Preferia me focar na minha realidade. Fazia pouco mais de um mês que eu tinha chegado a
Solânea e ainda estava buscando viver em paz.

O pai das meninas estava estranhamente bom e eu ainda não tinha me convencido de que aquela
bondade era verdadeira. Sentia que ele queria algo. Na verdade, eu sabia. Além do mais, eu conhecia os
pensamentos e julgamentos alheios. Sabia que era “mal vista” simplesmente por ter deixado um homem
que não me fazia feliz e por agora estar sozinha criando as minhas filhas, então para me proteger, decidi
neutralizar meus instintos naturalmente sexuais o máximo que pudesse, como fazem os soldados com seus
escudos em guerras. Naquele momento eu só podia ser mãe.

Certo dia Wlinha perguntou: - Carla, Tiago pediu seu contato. Posso passar?

Primeiro meu coração disparou, depois fingi naturalidade e perguntei: - Por quê?

E ela respondeu: - Ah, ele me disse que te achou interessante e bonita e que queria te convidar para
ir assistir a nossa apresentação de teatro. E eu não sei porquê, mas aquela atitude dele, assim como aquela
primeira tarde de conversa que tivemos, foi algo muito importante para mim. Eu era uma espécie de
novidade na cidade por ter passado tantos anos fora, e mesmo que já tivesse filhas e que essa possibilidade
de ficar com alguém fosse muito remota para mim, esse desejo passava pela cabeça de alguns homens que
eu conheci ou revi depois que cheguei. Mas eu não dava atenção nenhuma para eles, porque eu não queria
o que eles queriam.

Lembro de um dia em que vinha andando na rua e alguém parou atrás de mim. Era o pai de
Cayane. Não o reconheci quando o vi. Apenas quando ele falou é que os meus ouvidos reconheceram o
dono daquela voz.

- Oi. Tudo bem? Quanto tempo.

- Ah... Olá. Tudo bem sim, e com você?

- Estou bem também.

- Você veio para ficar?

- Sim.

- Soube que você tem quatro filhas. Porque teve tantos filhos?
- Soube que você tem quatro filhos. Parabéns.

- Qualquer dia desses podíamos ir comer uma pizza na sua casa, o que você acha?

- Eu não sei, ainda estou me organizando por aqui e está tudo uma confusão.

- Tudo bem. Você continua muito bonita.

- Muito obrigada. Tchau.

- A gente se vê por aí. Tchau.

Nunca mais nos vimos, para a minha sorte.

...

Mas então, de repente, eu estava brincando com minhas meninas e surgia na minha mente a
imagem daquele olhar, e eu comecei a ficar amedrontada com isto, mas era um medo bom, daqueles que
dão um reboliço na barriga, dando a impressão de que tem borboletas dançando no estômago da gente.
Lembro de uma tarde em que ele me ligou me convidando para ir vê-lo em uma apresentação sua que teria
no teatro. Então fui. A peça se chamava Vício Mortal e contava a história de uns jovens que perdiam suas
liberdades quando se deixavam consumir pelo vício das drogas, fazendo narrativas das histórias das suas
vidas antes e depois de serem dominados por elas. Tiago representava a droga que dominava os jovens. Ele
era o Drog. Seu personagem usava um sobretudo escuro e tinha o rosto todo pintado de branco com
contrastes pretos na boca e nos olhos. Nas mãos ele trazia uma corrente, a qual usava para aprisionar
aqueles jovens, seduzindo-os com as ilusões provocadas pelo seu uso. Tinham vários atores na peça, minha
irmã era um deles. Ela fazia o papel de uma prostituta viciada e tinha me falado isso antes de sairmos para
o espetáculo, por isso eu sabia desse detalhe enquanto a peça acontecia. No entanto, para mim, o único
personagem que importava era o Drog. Sempre que ele precisava fazer alguma performance em que
interagia com a plateia, aproveitava alguma oportunidade para vir em minha direção, me olhando com
aqueles olhos castanhos, e eu pensava: - Eu estou perdida. Pessoalmente falando, aquela apresentação foi
um espetáculo completo, sobretudo emocionalmente dentro de mim.

Quando tudo acabou, eu ainda queria mais daquele olhar que tinha no palco, então, quando minha
irmã me chamou para subir lá em cima quando todos os atores já tinham terminado a apresentação, com o
intuito de me apresentar a alguns amigos, eu fiquei procurando Drog com os olhos para ver se o
encontrava. Na verdade, queria o olhar do ator que o representava. Enquanto conversava com alguém que
não me recordo quem, parabenizando pelo excelente trabalho artístico, percebi Tiago no camarim tirando a
maquiagem, e ele me olhava sem que eu notasse. Quando o notei, retribui o olhar, e ali eu percebi que
estava me apaixonando por aquele homem. Nos olhamos por alguns minutos, depois ele sumiu. Fui embora
para casa quando percebi que ele estava ocupado. E naquela noite, depois de anos sem viver essa sensação,
eu dormi o sono dos enamorados. Eu nunca planejei tudo o que aconteceu depois.

Quando ainda estava passando por todas as dificuldades da minha vida e depois que percebi o
quanto eu deveria lutar a partir das coisas que vivi para conseguir colocar tudo no lugar, imaginava que não
poderia envolver pessoas inocentes naquilo tudo. Tudo era muito complexo e eu tinha muitas coisas para
consertar antes de pensar na possibilidade de viver um romance.

Eu sabia que uma hora ou outra alguém surgiria, e que eu iria voltar a amar, mas eu não imaginei
que isso iria acontecer tão rápido. Minha conexão com Tiago nos aproximou naturalmente. Ele sentia o
desejo de querer conversar comigo e isso me fazia sentir necessidade dele também. Meus irmãos o
conheciam muito bem, então perguntei para eles o que achavam dessa loucura. E eles me disseram para eu
ir adiante porque Tiago valia a pena. E eu sabia disto. Minha dúvida não era em relação a Tiago, minha
dúvida era em relação a mim. Será que eu valia a pena para Tiago?

Às vezes, quando eu estava saindo da escola, ele estava lá na frente conversando com amigos, e eu
adorava vê-lo. Nós não combinávamos nada, e de repente ele estava ali, mas eu tinha a impressão que era
para me ver que ia até lá, e me sentia especial por isso. Ainda estávamos conversando, mas tudo com muita
calma. Eu não queria ir com muita sede ao pote. Ainda estava na casa da minha mãe e ela não iria entender
isto. Ela ainda cogitava a esperança de que o pai das minhas filhas e eu voltássemos, porque ele vivia
ligando para ela e dizendo que sentia saudade, e que queria voltar, e todas aquelas besteiras de quem não
sabe o que fazer da própria vida sozinho, não por amor, mas por dependência emocional e desespero de não
se saber o que fazer. Nunca menti para Tiago. Nunca disse que era nada além do que ele conheceu quando
nos conhecemos e conversamos aquela tarde. Ele soube aos poucos da minha história difícil e o que mais
me encantava nele era isso. Ele soube da minha história, mas ele não se importava com ela, pelo menos não
parecia ser importar. Às vezes eu me perguntava: - Ele não tem juízo? O que ele viu em mim?

Não que eu me sentisse inferior a nenhuma outra mulher. Não era isso. Era uma questão de
consciência lógica. Eu não era inferior, mas eu também não era igual as mulheres que ele parecia se
interessar. Eu não era o que ele sonhou ou o que sua família projetou para ele. Um dia estávamos
conversando e eu percebi que aquela conversa estava ficando intensa demais. Queríamos ficar um com o
outro e isso era muito visível por quem conhecia o nosso envolvimento, e depois de um mês conversando,
planejamos o nosso primeiro encontro. Meu irmão e sua esposa se dispuseram a ser os nossos cúmplices.
Então uma noite quando eu fui para a escola, ele foi me buscar e fomos para a casa deles. Quando
chegamos, a casa estava vazia. Então sentamos no sofá e começamos a conversar, e eu me lembro que foi
uma conversa agradável e constrangedora ao mesmo tempo. Eu me sentia uma boba olhando para ele
enquanto ele falava, tentando tomar coragem para me beijar. Eu não sei como foi que aquilo aconteceu,
mas no meio da sua conversa, e enquanto olhava os movimentos da sua boca, perguntei:

- Ok, mas quando você vai me beijar? Então ele parou o assunto no meio do caminho e disse: -
Agora. E depois do “agora” o tempo parou.

Não tinha, nunca teve nada avassalador nos meus sentimentos por Tiago. Ao contrário. É como se
sua existência trouxesse a certeza da paz e da felicidade, e por esse motivo, as noites eram serenas e os dias
tranquilos. Eu não projetava nada, eu não planejava nada além de viver os momentos em que estávamos, e
queríamos, e éramos um do outro. Eu só queria aproveitar a sensação de amar e me sentir amada por
alguém enquanto a vida me permitisse sentir.

...

Eu não sabia o que ia acontecer depois daquele beijo, mas isso não me preocupava mais. No
entanto, um mês depois de estarmos ficando um com o outro, passei a me preocupar.

O pai das meninas ligou para a minha mãe e disse que estava pensando em voltar para a Paraíba,
para ver as meninas, mas isso não era verdade, isso era um pretexto. Contei para Tiago que o pai delas
estava vindo e que isso estava me assustando. Mas ele disse que isso não o preocupava. Que a única coisa
que o preocupava na situação era imaginar a ideia de ele me fazer algum mal. Eu estava trabalhando e
poderia pagar um aluguel, então decidi alugar uma pequena casa para ir morar com minhas filhas. Com o
pouco que recebia e a ajuda que o pai das meninas ainda dava, eu poderia administrar aquelas despesas. No
entanto, eu estava realmente preocupada com o futuro de Tiago. Sentia receio que o pai das meninas o
fizesse algum mal, não para mim, mas para ele. Tentei criar pretextos para me afastar de Tiago no intuito
de fazê-lo se afastar de mim, mas a necessidade de cuidarmos um do outro era maior do que tudo. Quando
faltavam três dias para ele chegar de viagem, Tiago me pediu em namoro.
Um dia ele chegou de São Paulo trazendo bicicletas para as crianças, além de outras novidades. O
pai das meninas já sabia que eu estava com outra pessoa, mas ele ainda achava que poderíamos dar certo,
então, mesmo sabendo disto, ele tentou me convencer a voltar para ele. Mas eu não quis, eu não queria
mais. Comecei a me incomodar com o fato de ele não compreender isto. Como percebia que eu não cedia
as suas pressões, ele passou a criar situações para tentar atrapalhar a minha relação. Às vezes batia na
minha porta durante a noite, dizendo que estava tarde para ir para a casa da mãe, perguntando-me se ele
não poderia passar aquela noite em minha casa. Dizia que tinha sido assaltado e traçava as características
de Tiago e de seu primo para que eu pensasse que fossem eles os autores do assalto. Ele julgou que Tiago
fosse uma má pessoa porque ele morava numa periferia, e criava histórias absurdas sobre ele. Passou a
querer vigiar todos os meus passos e contava mentiras sérias para minhas filhas em relação a Tiago e eu.

Ele não sabia, mas a única coisa que ele fazia quando tentava nos distanciar, era nos unir. Tiago e
eu passamos a cuidar um do outro quando percebemos que ele estava querendo nos prejudicar. Foi o pai
das meninas quem contou para os meus pais que eu estava namorando, e eu nem estava. Lembro-me do
show que ele fez para contar para eles sobre a índole da pessoa com quem eu estava ficando. Certo dia ele
disse que precisava me ver na minha casa, junto com os meus pais e que já tinha agendado tudo com eles.
Achei aquilo muito estranho, mas autorizei a situação. Ele disse que não podia ser na frente das crianças,
então pediu que minha mãe levasse as meninas para a sua casa para conversarmos como “adultos”, porque
o que ele tinha para nos contar era algo muito grave. O dia chegou, meus pais vieram e se sentaram à mesa
comigo para ouvirmos o que ele tinha tão grave para nos dizer. Na conversa, o pai das minhas filhas disse
para os meus pais que eu estava namorando um criminoso e que infelizmente ele iria ter que tomar as
providências jurídicas cabíveis para tomar minhas filhas de mim. Disse que já tinha todas as provas e que
só precisava mostrá-las a um juiz para que eu perdesse todos os meus direitos de mãe. Ele sabia que a única
coisa que eu tinha de mais valioso nesta vida eram minhas filhas e resolveu jogar sujo. Depois que ele
terminou de falar todas as lorotas que criou, eu simplesmente falei:

- O Tiago que estou namorando, como você diz, não é o mesmo Tiago que você está dizendo aí..
Estou disposta a lutar para provar isso para você. Infelizmente meus pais acreditaram na versão alienante
dele e passaram a querer se envolver em minha vida, doutrinando-me a esquecer a história com Tiago,
voltar para ele e criar as nossas filhas juntos. A partir desse dia, nossas vidas (minha e de Tiago) viraram
um verdadeiro inferno. Evitávamos nos ver para que o pai das meninas não criasse ainda mais situações.
Tiago se preocupava com bem-estar das minhas filhas e também com a minha segurança. Aquela situação
estava começando a me deixar amedrontada. Mas Tiago não permitiu que eu desanimasse.

Olhava nos meus olhos com olhos de amor e dizia: - Carla, você vai conseguir. Não deixe esse cara
lhe intimidar. Não se preocupe comigo. Eu não devo nada a ninguém e sei me defender. Como não tinha
conseguido que eu voltasse para ele, o pai das meninas fez com que as pessoas acreditassem que eu o tinha
traído com Tiago, fazendo-as pensar que quando eu cheguei de São Paulo nós ainda estávamos juntos, e
que eu teria planejado todo o meu caso “extraconjugal” com Tiago antes mesmo de vir para o Nordeste, e
esse era apenas um dos tantos absurdos que aconteceram naquela época. Tinha dias que eu queria desistir.

Minha mãe não falava mais comigo. Meu pai o ajudava, contribuindo com as suas histórias
absurdas, e as únicas pessoas que ficaram ao meu lado foram os meus irmãos e as minhas filhas. Ele
colocava minhas filhas contra mim. Dizia que eu ia abandoná-las para ficar com Tiago, e Amanda criou
uma espécie de pânico, chegando a ter convulsões nervosas por causa das situações estressantes que
vivíamos cotidianamente. Um dia ele me disse que Tiago só queria me usar, que eu não era mulher para
casar. Que quem ficaria por muito tempo com uma mulher com quatro filhos como eu. Pensei em terminar
o relacionamento com Tiago, mas me imaginava derrotada se fizesse isto. Eu não acreditava na versão que
foi criada de Tiago e não me importava se ele iria me abandonar ou não depois de tudo aquilo. Naquele
momento eu não podia deixar de fazer algo bom para mim porque outras pessoas se incomodavam com as
minhas escolhas. Tiago fazia eu me sentir a mulher mais corajosa do mundo. Quando eu pensava que ia
desmoronar, ele vinha e me reerguia. Se não fosse por ele, se ele não tivesse surgido, aquele homem teria
conseguido concretizar os seus desejos mais insanos de posse por pura obsessão. Ele planejava isso, e
planejava desde de que se dispôs a pagar nossas passagens para o Nordeste. Ele queria me deixar sem saída
para que a minha única saída fosse ele.

...

Uma noite ele entrou em minha casa e disse que não iria mais sair. O motivo?

Pedi para que o primo de Tiago viesse tirar um bicho de dentro de um tanque de água que tinha na
minha casa. O pai das minhas filhas colocou alguém para monitorar os meus passos e quem entrava e saia
da minha casa. Ele disse que não queria que nenhum homem entrasse na casa em que eu morava porque
precisava proteger as filhas dele. Assim que soube que o primo de Tiago tinha ido até a minha casa, se
sentiu no direito de intervir nisto. Aconteceu uma briga muito feia porque eu pedi para que ele fosse
embora, mas ele não quis ir. Disse que não sairia. Enviei uma mensagem para Tiago perguntando o que
fazer. Então ele disse: - Carla, sei que você quer resolver isso da maneira mais amigável possível, mas ele
não quer. Chame a polícia. Não chamei a polícia aquela noite. Presumi que seria muito traumatizante para
as meninas. Mas tive outra solução. Disse para Tiago que não se preocupasse. Eu já sabia o que fazer.
Peguei todas as minhas filhas e as coloquei dentro do meu quarto. Depois coloquei a cama na frente da
porta, caso ele tentasse abri-la no meio da noite. Passei a noite inteira acordada planejando o dia seguinte.

Ele dormiu no quarto ao lado. Quando o sol raiou, vesti uma roupa, tirei as camas da frente da porta,
escovei os meus dentes e sai para o Fórum da cidade. Eu estava com muito medo, mas eu precisava fazer
alguma coisa para me proteger daquele homem. No Fórum encontrei uma advogada pública cível e lhe
contei toda a nossa história, do início ao fim. Eu precisava de orientações de como proceder com aquela
situação. Quando terminei de falar, ela me pediu para que eu fosse até a delegacia e fizesse uma queixa
contra aquele homem, pois como estávamos separados, isso era caracterizado judicialmente como invasão
domiciliar, e que ele poderia ser preso por isso. Agradeci pelas informações e fui até a delegacia. Quando
cheguei a delegacia, ainda era muito cedo, então um escrivão que me atendeu pediu para que eu esperasse
um pouco, pois o delegado logo chegaria. Ele também me pediu para que eu lhe contasse o que tinha
acontecido, e ficou em silêncio quando acabei de falar, andando de um lado para o outro e conversando
com os policiais, que àquela altura, também já sabiam de toda história. Duas horas depois, o delegado ainda
não tinha chegado. Então comecei a manifestar minha impaciência e preocupação pelas minhas filhas.
Disse para os policiais que quando saí elas ainda estavam dormindo e que me preocupava se elas já tinham
tomado café da manhã. De repente, escuto quando um policial olha para o outro e diz:

- Ei, vamos tirar esse indivíduo da casa dessa senhora? E me chamaram a acompanhá-los para que
eu mostrasse onde ficava a minha casa. Quando a viatura parou em frente à casa onde eu e minhas filhas
morávamos, percebi que a porta estava aberta e que minhas filhas brincavam tranquilamente. Lembro que
senti um alívio enorme por constatar que elas estavam bem.

Os policiais então desceram da viatura e chamaram o pai das minhas filhas, que prontamente os
atendeu, cumprimentando-os como se nada tivesse acontecido. Então perguntaram seu nome, e após a
resposta os policiais questionaram: - É verdade que o senhor é ex-marido dessa senhora e que quem mora
nessa casa é ela e as suas filhas? Ele respondeu que sim.

Os policiais então pediram para que ele vestisse uma camisa e os acompanhasse até a delegacia. Eu
tinha que ir junto, mas manifestei para os policiais a preocupação em não ter com quem deixar as minhas
filhas na vizinhança, que só conhecia ali nas redondezas a minha família. Então eles as colocaram na
viatura e as deixaram na cada da minha mãe, e o pai delas e eu fomos para a delegacia. Dentro da viatura,
ele não falou nada. Só olhava para baixo com uma expressão atordoada e raivosa, como que se
perguntando: “Eu não acredito que ela fez isto”. Quando chegamos na delegacia, o delegado ainda não se
encontrava. Então, percebendo a inquietude dele, o escrivão pediu para ouvir a sua versão ou algo que
justificasse aquele ato tão impensado, segundo ele. O pai das minhas filhas disse então que não confiava no
meu namorado e que tinha quatro filhas meninas que provavelmente estavam em perigo porque tinha um
desconhecido convivendo comigo que futuramente conviveria também com elas, e ele era apenas um pai
preocupado com o bem estar das filhas. Quando ele terminou de falar, o escrivão disse: - Senhor, suas
filhas podem estar em perigo com qualquer pessoa, inclusive com você. Se o senhor suspeita que esse
jovem, que é namorado da sua ex-esposa, seja mesmo um indivíduo perigoso, procure a justiça, prove isso
para ela, e busque os seus direitos. Não invada a casa de ninguém, porque isto não é certo. O delegado só
chegará à tarde, então eu os irei liberar, mas a tarde você vai precisar estar aqui de volta, porque sua ex-
esposa precisa concretizar a queixa. Só lhe peço uma coisa, não se aproxime mais dela, o senhor não pode
mais.

O pai das meninas consentiu com a cabeça e se levantou para se retirar. Perguntei para o escrivão: -
Posso ir embora também? - Ele disse que sim, mas que eu voltasse a tarde para conversar com o delegado.
Então fui para a minha casa e no meio do caminho senti um pavor enorme por constatar que os policiais
não estavam mais comigo, pois fiquei com medo de que o pai das meninas quisesse me fazer algum mal.
Mas nada aconteceu. Naquela mesma tarde fui até a delegacia novamente, e quando cheguei, o pai das
meninas já estava lá também, acompanhado de um advogado. O delegado nos chamou, e quando nos
sentamos à sua frente, ele nos tranquilizou dizendo que aquilo era só uma conversa. Que ninguém estava ali
para prejudicar ninguém, apenas para esclarecer algumas dúvidas. Ele então perguntou, desta vez primeiro
para mim, o que estava acontecendo e porque eu estava denunciando o pai das minhas filhas. Contei-lhe as
partes mais importantes da história. Ele meneava a cabeça enquanto eu falava, e quando eu acabei, ele
perguntou para o pai das meninas: - Então, o que o senhor tem para dizer sobre tudo isto?

O pai das meninas contou para o delegado a mesma coisa que contou para o escrivão. Quando
terminou de ouvi-lo, o delegado lhe disse: - Quero que o senhor saiba que, a partir de hoje, o senhor
responderá um processo na justiça para tentar regularizar essa situação de separação da forma mais
tranquila possível com essa senhora. O senhor não pode mais se aproximar dela e qualquer coisa que
acontecer com ela relacionado a sua integridade física será diretamente relacionada ao senhor, ou seja, o
senhor será o principal suspeito. O pai das meninas ouviu calado, e quando o delegado perguntou se ele
tinha entendido tudo, ele disse que sim. Depois disso, o delegado me tranquilizou dizendo que agora a
justiça iria cuidar daquele caso, e que eu poderia, a partir daquele dia, dormir em paz. E eu fui para casa
agradecer ao universo por existirem pessoas que podem nos proteger quando estamos vulneráveis, ainda
que com tudo aquilo, eu não estivesse me sentindo complemente em paz. Depois desse dia meus problemas
com o pai das meninas não estavam totalmente resolvidos. Ele realmente nos deixou respirar um pouco,
voltando para São Paulo uma semana depois de ter causado tanta confusão, e essa foi a parte boa.

A parte ruim é que, até o dia da audiência, que aconteceu quase seis meses depois, ele quis parar de
dar o dinheiro que ajudava nas despesas com minhas filhas, pois, segundo ele, já que eu o tinha colocado na
justiça e forçado toda aquela situação, e o juiz não tinha determinado nenhum valor fixo, ele não teria mais
obrigação com elas até lá, chegando a depositar míseros 50,00 reais semanais. Eu continuava fazendo meus
“bicos” como vendedora, tentando sustentar as meninas com o valor que recebia do Bolsa Família do
governo, estudando, cuidando das minhas filhas com a ajuda das minhas irmãs e namorando Tiago. Dessa
vez namorando. Namorando de verdade.

...
2011 – O pai das minhas filhas veio de São Paulo só para resolver a questão judicial no dia
marcado para a audiência

Depois que o juiz terminou de dar o seu sermão da montanha costumeiro, dizendo que casamentos
são passageiros, mas que filhos são para a vida inteira. Que ele já foi casado por duas vezes e que até hoje
paga pensão alimentícia, inclusive para a mãe dos seus filhos, e que mesmo que eles cresçam e alcancem a
sua maioridade, ele ainda se sentirá na obrigação de dar tudo o que eles necessitam, pois filhos são eternos.
Só depois que ele disse tudo isso, perguntou para os advogados de defesa de ambos, quais eram as suas
propostas. O advogado de defesa particular do pai das meninas alegou para o juiz que seu cliente era um
trabalhador autônomo que não tinha emprego fixo, e que só poderia firmar um acordo mensal de 100,00
reais mensais para cada criança, mas que eu não me preocupasse com isso, pois ele estaria se colocando à
disposição para dar tudo o que as crianças precisassem. Eu só precisava dar um telefonema. O juiz
perguntou para a minha advogada o que ela achava. Minha advogada de defesa pública, dra. Elizete, disse
que esse era um valor muito pequeno. Que imaginava ser muito difícil criar quatro crianças com apenas
100,00 reais mensais para cada criança, independente de valor extra que o pai se dispusesse a pagar. Eu não
combinei isso com a advogada, eu nem sabia que ela falaria por mim. Eu só queria que aquele dia tivesse
chegado e um valor fosse estipulado, porque eu não aguentava mais viver ligando para pedir migalhas
aquele homem. O juiz olhou para o pai das meninas e falou: - Combinemos dessa forma: - O senhor irá
pagar para as suas quatro filhas o valor mensal de um salário mínimo, que é o mínimo que elas precisam
para sobreviver. E sempre que a mãe delas ligar para pedir qualquer coisa para elas, o senhor dará, porque
se ela fizer isto, será porque ela realmente estará precisando. Bateu o martelo e encerrou a sessão.

Agradeci a minha advogada pelo apoio, dela e do Estado, desde o primeiro dia em que eu os
procurei e fui para casa tranquila. Agora minhas filhas passariam menos necessidade. O pai das meninas
nunca levou adiante as acusações que tinha contra Tiago, nem nunca conseguiu incriminá-lo judicialmente
por absolutamente nada.

...

POR FALAR NO PAI DAS MENINAS

Apesar de tudo, eu o perdoei.

Sempre torci para ele tivesse a consciência e o discernimento para perceber que não dávamos mais
certo, e que seguisse o seu caminho em paz. Tínhamos perspectivas diferentes de vida e não tinha mal
algum nisto. O mal estava em brigarmos perto de nossas filhas. O mal estava em eu querer viver de uma
forma e ele não aceitar minha forma de viver, privando-me de pensar por mim mesma e querendo me
impor formas de ser e de me comportar que eu não concordava, como se eu fosse seu objeto e ele, o meu
dono.Nunca o considerei um pai ruim, muito pelo contrário. Atribuí inclusive muitas de suas atitudes
impensadas durante o processo de separação ao medo de não poder acompanhar os crescimentos de suas
filhas. Mas eu sempre o dizia que nunca me opus a convivência dele com elas. Que independente se
tínhamos dado certo ou não, elas precisavam do pai. Continuo desejando para ele saúde e prosperidade,
para que ele veja nossas filhas crescerem, não apenas em estatura, mas também na vida, tornando-se
pessoas com as quais ele possa um dia se orgulhar, e para que ele nunca as abandone, pois, como disse o
juiz, filhos são para a vida inteira.

...

Um pouco antes de tudo isto, enquanto o processo de luta para cuidar das minhas filhas e me
proteger se desdobrava na justiça ,e depois que o pai das meninas foi embora ao perceber que a batalha para
tentar me convencer a voltar com ele estava vencida, alguns acontecimentos afetaram a minha vida pessoal
com Tiago.
Eu seguia apaixonada. Incrivelmente apaixonada. Mas essa história perturbadora que o pai das
meninas causou fez tumulto em seus pensamentos e nos pensamentos já preocupados da sua família. Sua
mãe começou a ficar aflita em saber com quem o filho dela estava se envolvendo. Como podia alguém tão
jovem e inteligente passar por essa situação? E eu a entendia. Eu juro que a entendia. Minha vida realmente
era uma bagunça. Talvez se fosse com o meu filho, essa também seria a minha reação. Lembro que durante
essa época pedi que déssemos um tempo no nosso namoro. Como todos já sabem, eu me preocupava com
Tiago e com o seu futuro. Mas era muito difícil ficar longe dele. Ele compreendia minha decisão em querer
me afastar para nos proteger, e dizia que esperaria o tempo necessário para que tudo se resolvesse. Que só
queria que eu e as minhas meninas ficássemos bem. Tentávamos ficar longe um do outro por um tempo,
mas no dia seguinte estávamos enviando mensagens um para o outro, dizendo que estávamos com
saudades, que nos amávamos e que queríamos nos ver. E acabávamos nos encontrando. Estar com Tiago
enquanto o mundo caía sobre a minha cabeça dava-me a sensação de proteção e de apoio, e quando eu
dormia em seus braços em um colchão de solteiro naquela pequena sala, ouvindo as nossas músicas
enquanto minhas filhas dormiam em paz, protegidas em meu quarto, sentia que nenhum mal podia nos
atingir. Era como se, depois que ele entrasse na minha casa e eu fechasse aquela porta, o mundo lá fora
explodisse, mas minha casa estivesse protegida pelas forças magnéticas e invisíveis do nosso amor.
Somente no dia seguinte, quando abríamos a porta, aqueles estilhaços insistiam em nos atingir.

Meus irmãos foram testemunhas de muitas situações tristes, sobretudo Wlinha e Ari. Se disponde a
estarem ao nosso lado para nos apoiar em ajudar no que fosse preciso. Ari, por ser amigo de coração de
Tiago, conhecer a sua índole e torcer para que tudo desse certo, afinal, dessa vez ele realizaria o sonho de
ver um amigo namorando com uma de suas irmãs. Isso era inédito. Wlinha, por conhecê-lo intrinsecamente
e por compreender que tudo o que estava sendo dito sobre ele não passavam de calúnias. Choramos muito
juntas passando forças uma para a outra.

Depois que todo tormento do episódio com o pai das meninas indo comigo até a delegacia e de
todos os tormentos que nos fez passar, eu comecei a perceber que algum tempo depois, Tiago tinha se
distanciado. Confesso que isso me fez sofrer profundamente, mas no fundo eu o entendia. Um dia ele disse
que precisava ter uma conversar séria comigo, então eu fui até ele. Nos encontramos em uma tarde e
conversamos sobre um assunto que para mim foi ligeiramente curto e longamente doloroso. Eu cheguei e o
cumprimentei com um beijo, e ele sorriu sem jeito. Naquela tarde ele usava um boné e estava um pouco
sujo de tinta, porque estava pintando uma parede. Esperei que ele parasse de pintar e colocasse os materiais
que segurava no chão. Então ele me olhou e disse, sem colocar palavras desnecessárias a frente das que
fossem da sua necessidade, que precisava de um tempo para pensar porque estava se sentindo confuso.
Olhei-o de volta e disse: - Tudo bem. Eu entendo você, Tiago. Por dentro o meu peito sangrava, mas eu
precisava ser forte para não chorar na sua frente, então lhe disse “até mais” e que já estava de saída.

Ele disse: - Tudo bem. Eu te acompanho. E seguimos até o portão. Esperei que ele o abrisse, e
quando ele abriu, e eu estava quase atravessando para o outro lado, senti ele me puxar de volta para o lado
de dentro e me beijar com toda intensidade que uma boca poderia beijar. Me lembro que aquele beijo durou
um tempo muito longo, e quando ele acabou, eu me despedi com um sorriso triste e fui embora. Enquanto
caminhava, pensava:

- Nunca mais em minha vida eu quero me apaixonar. E chorava um choro de orgulho e de tristeza
de mim mesma.

Cheguei em casa e vi minhas filhas brincando com minha cunhada e minha irmã, então pensei: -
Não se preocupa Carla. Tudo vai dar certo. Você só precisa delas. Comemos juntas, brincamos, eu as
coloquei para dormir e também tentei dormir para esquecer aquela quinta-feira. Ela ia passar, como passam
todos os dias ruins. Na sexta-feira o primo de Tiago veio até a minha casa para tentar entender o que estava
acontecendo, e eu lhe disse que não estava acontecendo mais nada. Vânio. Ele é o seu primo/irmão. Um
dos caras mais legais que eu já conheci, o mesmo que foi me socorrer tirando o bicho de dentro do tanque
no dia da confusão com o pai das minhas filhas. Ele disse que não tinha entendido nada daquilo, e que
estava torcendo para que tudo desse certo entre a gente, pois via que o que sentíamos um pelo outro era
sincero e verdadeiro. Eu o agradeci pelas belas palavras, mas lhe disse que isso não estava ajudando em
meu processo de esquecimento, rimos juntos daquela frase. Nesta mesma noite, enquanto eu me preparava
para dormir, recebi uma mensagem no meu celular. Era Tiago. Ele tinha escrito algo meio poético, que na
hora me soou como uma espécie de lamentação e de pena de mim pelo que ele tinha feito. Agradeci pelas
palavras, mas pedi para que ele não me enviasse mais mensagens. Que eu iria ficar bem, e que ele também
ficasse bem. Lembro da última frase na última mensagem: - “Eu sou um idiota”. Concordei com a frase
dizendo para mim mesma: - você é mesmo, e continuei o que estava fazendo, com o coração apertado e
chorando pelas desgraças da existência do amor romântico, mas firme na decisão de deixar tudo aquilo para
lá. Seu primo veio em minha casa novamente no dia seguinte, e ficamos conversando sobre várias coisas.
Ele disse que Tiago e eu parássemos com essas besteiras porque a gente se amava, que aquilo era uma coisa
boba, que ninguém que ama deve acabar um amor por tão pouco, e que a gente parasse com aquilo. E
depois foi embora. Eu só queria cuidar das minhas filhas e que o tempo passasse bem rápido, para que a
tristeza minha tristeza passasse também.

Então o sábado chegou, e junto com o sábado, Tiago Salvador. Ele bateu na minha porta, me
entregou um CD com músicas que ouvíamos para namorar, e disse: - Não responde agora. Só escuta e
pensa. Amanhã à noite as 19:00 irei para a casa do seu irmão. Se você for, eu vou entender que “sim”. Mas
se você não for, eu vou entender que “não”. Então seguiremos as nossas vidas e nunca mais tocaremos
nesse assunto. E saiu. Eu fiquei pensando depois que ele saiu: - Que ousado! E sorri por dentro. Contei para
Wlinha e para Day o que tinha acontecido. E acho que contei para as piores pessoas. Nada do que elas
disseram me ajudaram a mudar de ideia em relação a decisão que eu queria, que era a decisão de ir.

Ele me magoou, mas eu sentia que o amava. E fui. Conversamos. Ele pediu perdão e nos
beijamos... e dois meses depois que voltamos e quando tudo ainda estava se consertando dentro da gente,
eu engravidei. E não foi nada fácil, porque eu ainda estava com um medo gigante do futuro, mesmo que
agora estivéssemos aparentemente bem. A gente sempre se protegia sexualmente, fiquei confusa com tudo
aquilo. Fiz um monte de besteiras por desespero. Cogitei veementemente não ter aquele bebê, porque tudo
estava muito tumultuado e aquele não era o momento para engravidar. Os familiares de Tiago ainda não
tinham aceitado a ideia de que ele estava se envolvendo com alguém como eu. Minha mãe ainda não estava
falando comigo desde a confusão com o pai das minhas filhas. Tiago ainda não sabia realmente se era eu a
pessoa certa para ele. Minhas filhas ainda estavam em processo de adaptação com as mudanças repentinas
em suas vidas. Eu precisava continuar trabalhando, estudando, cuidando delas, projetando uma rotina
tranquila para nós. Foi um misto de sentimentos.

...

2012 – Então, numa madrugada eu precisei ir para o hospital por causa de um chá que me deixou
vomitando durante todo o dia, me fazendo cuspir sangue. Após a consulta, finquei hospitalizada tomando
uma medicação na veia para me recuperar. Tiago tinha passado um dia inteiro trabalhando, mas nesta
madrugada ficou todo tempo ao meu lado, mesmo visivelmente cansado. Na mesma semana, precisei
realizar um exame de ultrassom para me certificar de que o remédio tinha feito o efeito esperado. Não
tinha. Lá estava aquele bebê, firme e forte. Todo perfeitinho. Neurológica e fisicamente. Tiago vibrou em
comemoração por tudo ter dado errado, porque ele não tinha medo. Quis aquele bebê assim que soube que
ele poderia existir e independente do nosso futuro. Eu já estava com dois meses de gestação quando tudo
isso aconteceu. No último mês da minha gravidez, ele escolheu o nome do nosso bebê e o pintou na parede
do nosso quarto antes de sua chegada, ilustrando-o com peixinhos e corações. Eu já amava aquele bebê
antes mesmo de ele nascer, e fiquei aliviada por saber que minhas tentativas em desistir dele tinham sido
em vão. Nosso bebê cresceu forte e saudável até seu último dia dentro de mim. Ele se escondeu por quase
oito meses, nos impedindo de descobrir o seu sexo, mas no último exame de ultrassonografia ele se
revelou. Meu coração ficou em festa ao saber que era outra menina.

Resolvi que ela seria a minha derradeira maravilha. Senti que já tinha dado a minha contribuição
humana e genuinamente feminina para o mundo e sentia orgulho de ter um ventre que tinha me
proporcionado isto. Estava projetando um futuro que não incluía mais enjoos matinais, barriga enorme, pés
doloridos ou emoções à flor da pele, e confesso que senti medo de me arrepender da minha decisão, e que
em alguns momentos cheguei a imaginar que eu estava me precipitando. Sophia era a primeira filha
biológica de Tiago e eu sabia que antes de conhecê-lo ele planejava se casar, ter uma esposa e muitos filhos
lindos além dela, então por que eu faria isso?

Justamente por isto. Porque antes de Tiago eu já tinha uma família. Minhas filhas eram a minha
família. E se tudo o que eu já tinha fosse suficiente e ele quisesse fazer parte do que já existia, nós
estaríamos ali.

...

POR FALAR EM FILHAS

Foi apenas depois do nascimento das minhas meninas que eu compreendi o real objetivo da
minha existência aqui nesse mundo. Plantar um jardim de lindas rosas, cada uma com seu aroma e
aparência. Compreendi que precisava desse jardim para também florescer, quando, mesmo diante de tantas
dificuldades, ainda o desejei. Amo ser mãe das minhas cinco meninas mulheres. Saber que elas existem faz
meu coração sentir-se em paz. Pensar que posso perdê-las o faz sofrer antecipadamente. É um misto de
amor e de medo de perdê-las. Alguém um dia teve muita razão ao dizer que ser mãe é padecer no paraíso.
Elas são a minha ponte em meio aos abismos diários que às vezes enxergo no percurso do meu caminhar.
Foram elas que me ensinaram e continuam me ensinando, através unicamente das suas existências, muito
mais do que eu as ensinei ou ensino. Sempre será assim. Elas sempre serão a superação de mim. Não as
criei para mim, mesmo que meu maior desejo sempre fosse o de colocá-las em uma caixinha blindada de
todas as maldades do mundo. As tive para enfrentar a vida e as suas vicissitudes.

Amanda é tudo o que eu sonhei enquanto ela ainda nem existia e minha vida passou a ter sentido
apenas quando eu soube que ela viria. Em nossa vivência, ela foi uma esponja absorvedora de emoções,
tanto positivas quanto negativas na época do meu processo de aprendizado da maternidade e também de
separação. Viu e ouviu situações confusas para a sua pouca idade por ter nascido em um ambiente tóxico e
carente de amor. Muitas vezes me culpei por acreditar que a fazia mal, colocando-me à frente da sua
necessidade, que era ver seus pais juntos, felizes e se sentir protegida. Depois pensava no que ela, suas
irmãs e eu merecíamos, e continuava com a minha teimosia insistente em buscar o melhor para nós. Ela é
uma espécie de boneca de porcelana em processo de lapidação. Sua inteligência e determinação por buscar
o que almeja muitas vezes faz-me questionar se eu mereço alguém assim.

Obrigada pela paciência, e por ter acreditado que conseguiríamos, mesmo que as circunstâncias
mostrassem muitas vezes que não. E me desculpe pelos erros cometidos querendo sempre acerta com você.

Jamyly é um bálsamo que me ajudou a superar uma perda terrível. Ela me trouxe a esperança de
dias melhores em momentos de dor. E ainda me traz. Tem uns olhos que irradiam alegria e uma capacidade
de moldar-se admirável sem, no entanto, deixar de ser quem é. Obrigada por ter vindo. Ser sua mãe me faz
sorrir.
Giulia é a surpresa mais linda que aconteceu em minha vida. Quando a observo, me vejo refletida
em suas ações. Ela é exatamente o que eu era quando criança. Sorridente, exageradamente simpática,
inocente e encantada pela vida e pelas pessoas.

Que a vida lhe traga os presentes que você merece ter. Eu sempre estarei aqui para lhe orientar
quando você se sentir perdida.

Clara foi o meu combustível enquanto eu ainda estava esquentando os motores para fazer minha
corrida rumo a minha independência pessoal, e é um ser humano LINDO.

Quando conheci Tiago ela ainda ia fazer dois anos, e entre eles foi amor à primeira vista. Um dia
ela o olhou e perguntou: - Posso te chamar de pai? Ele disse que sim, e até os dias de hoje é assim. Pai,
Papito, Paizão. Que esse sentimento sempre cresça. Que ele nunca se acabe. Eu vejo amor sem fim em
você.

Lara é o meu presente inesperado. Veio para firmar uma certeza, a de que só temos o que
merecemos ter, independente se achamos que merecemos ou não.

Vocês são meu horizonte, aqui e depois daqui.


II PARTE

11

“CASA DE SEU AMADEU”

Sobre as sementes do amor.


2011 - Era aqui que morávamos quando Lara Sophia nasceu no dia 25/11/2011, trazendo com ela
novas perspectivas, novos planos, novos desafios e novas esperanças. Mas antes da casa de seu Amadeu,
tinha a casa do Mercado Público, primeiro lugar que minhas filhas e eu moramos quando voltamos para o
Nordeste. Em 2010. Foi na cada do Mercado Público que ocorreram as discussões com o pai das minhas
filhas, quando ele invadiu o lugar e disse que não sairia enquanto não provasse que eu estava me
relacionando com um criminoso. Foi na casa do Mercado Público que iniciei o meu processo de liberdade
pessoal junto às minhas quatro filhas. Foi nela que repeti para mim mesma após dar continuidade a minha
gravidez, que tudo ficaria bem. Foi lá que Tiago e eu iniciamos a nossa história de amor e de família
quando, apaixonados um pelo outro, demos o primeiro passo rumo a construção das nossas vidas estando
juntos, mas preciso admitir que foi apavorante dar continuidade à nossa relação, mesmo tendo a sensação
que os ventos da felicidade finalmente estavam soprando sobre nós. Foi na casa do Mercado Público que
tudo começou de verdade.

Eu costumava sonhar acordada imaginando meu futuro com Tiago e com nossas filhas, e amava
viver cada momento que passávamos perto um do outro. As nossas famílias estavam começando a aceitar a
ideia de que existia a possibilidade de darmos certo, e aos poucos passaram a respeitar a nossa decisão de
ficarmos juntos. Nos víamos apenas uma vez por semana, geralmente nos sábados ou nos domingos. Então
durante a semana existia uma ansiedade inexplicável por esses dois dias. Depois que Tiago surgiu meu
interior ficou em festa. Eu cuidava das minhas filhas ouvindo as nossas músicas e sentia que o fardo do
mundo tinha se tornado mais leve. Saber que eu veria Tiago, que compartilharíamos conversas e emoções
fazia eu me sentir pronta para enfrentar qualquer desafio na vida. Não que eu não tivesse forças para fazer
isto sozinha ou que não tivesse medo do futuro, mas eu só queria viver o nosso presente na esperança de
que o nosso amanhã fosse melhor.

Adorava olhar o celular e ver que ele tinha mandado mensagem dizendo que estava com saudade,
de ouvir as músicas que ele me apresentava dizendo que lembrava de mim, porque ouvir aquelas músicas
era uma forma de tê-lo ao meu lado, mesmo na distância. Me sentia especial quando ligava para ele no
meio da noite me sentindo triste porque ele não estava comigo e de ouvir ele dizer que estava indo me ver,
me sentia protegida quando olhávamos a lua abraçados, sentados nos degraus que davam para o quintal da
minha casa. Ali, aquele aconchego me transmitia paz.

...

Ele tinha uns olhos castanhos claros penetrantes que deixavam transparecer a sua alma

E quando falava, sorria um sorriso tímido, mas que poderia iluminar o breu mais escuro que

existisse nos recônditos da terra

E de seus lábios saiam palavras encantadoras

Quando ele ia embora, uma parte da sua energia ficava em mim.

A casa do Mercado Público é o lugar onde dar para ver refletida em cada canto a conexão que
existia entre NÓS. Se aquelas paredes falassem diriam que me ouviram chorar muitas vezes com medo da
ameaça que o futuro me trazia com os acontecimentos vividos na época em que o pai das minhas filhas
veio nos atormentar, que ali naquela casa, apesar das tantas pressões emocionais, se ouvia o dia inteiro
vozinhas de alegria e barulho de crianças e de televisão, e que quando a noite caia e toda criançada dormia,
só se ouviam os risos e sussurros suplicados de dois corações apaixonados dispostos a escrever uma nova
história de amor.
...

Precisávamos morar em uma casa sem escadas para chegar até o quintal, pois à medida que o
tempo passava, a gravidez me deixava muito cansada e doente com os afazeres domésticos, então tivemos
que mudar dali e ir morar numa casa do outro lado do quarteirão, maior e mais confortável. Apesar de ser
mais antiga, a casa de Seu Amadeu tinha tudo o que precisávamos para iniciar a nossa história: dois
quartos, um bem espaçoso de casal e outro para as crianças (o berço de Lara ficou no nosso quarto, mas o
lugar preferido dela era a nossa cama). Lembro de Tiago decorando a parede com o nome da nossa filha,
desejando-lhe boas-vindas a nossa família e desenhando florezinhas, peixinhos e borboletas coloridas onde
só existia uma parede vazia. Lembro também de uma pequena sala, de uma cozinha enorme e de um quintal
que parecia um parque de diversões, com árvores, terra molhada e tudo o que crianças precisavam para
brincar e ser felizes. Nesta casa vivemos os melhores momentos de nossas vidas em família. Eu ainda
estava com muito medo de tudo, mas sempre tinha uma aura de felicidade que por vezes me fazia esquecer
o quanto foi difícil chegar até ali, então eu precisava aproveitar isto.

Tiago e eu ainda não morávamos definitivamente juntos. Ele não queria ir morar comigo sem antes
nos casarmos oficialmente, mas a necessidade de ele estar presente por causa da minha gravidez um tanto
preocupante por causa de alguns problemas que tive no início da gestação e do cansaço natural por ter que
cuidar de mais quatro crianças fez com que antecipássemos esta decisão. Tiago queria participar de tudo o
que dizia respeito às meninas, ao bebê que crescia em minha barriga e a mim, sempre se preocupando e
cuidando da gente, passando seu tempo livre conosco quando não estava trabalhando, pois Lara estava
pertinho de nascer e ele não queria me deixar sozinha quando ela decidisse conhecer o mundo.

Nesta casa, lembro das minhas filhas acordando cedo e tomando café rápido nos finais de semana,
quando estudar não era uma obrigação, para poder ir brincar no quintal enquanto Tiago saía para trabalhar,
e da minha agonia para tentar manter as roupas limpas e a casa livre dos pesinhos cheios de lama delas,
para que quando ele chegasse em casa tudo estivesse no lugar. De vê-las usando a imaginação enquanto
brincavam naquele parque de diversões improvisado enquanto eu lavava pilhas de roupas grandes e
pequenas à mão, de limpar cada pezinhos sujos de felicidade sempre que elas resolviam que era hora de
entrar para casa, e de agradecer ao universo pela paz que sentíamos naqueles dias tranquilos. De dar banho
e passar talco no nosso cachorro poodle chamado Bolt, e de termos sofrido quando ele aproveitou que a
porta estava aberta e fugiu com o pretexto de ir passear e nunca mais voltou. Suspeito que raptaram Bolt,
pois ele sempre fazia isto, mas em seguida voltava. Estávamos todos inteiramente envolvidos em fazer
aquela relação dar certo. De vez em quando a insegurança e o medo de que aquilo tudo acabasse assim
como começou tentavam me desnortear, mas no fundo eu estava confiante.

Nunca tinha sentido tanto amor por um homem ou me sentido tão amada quanto me senti por Tiago
após conhecê-lo de verdade durante a nossa convivência. Tudo nele me causava encanto e admiração. Me
apaixonei por seu jeito calmo e respeitoso, pela forma que ele tratava todas as minhas filhas sem fazer
distinção sobre quem era de sangue ou não, e pela sua disposição em querer aprender a se relacionar com
todas nós. Antes de Lara nascer Tiago me pediu em casamento. Disse que no dia que encontrasse a mulher
que ele sentisse que amaria para sempre, confessaria diante de Deus o seu amor. Que sentia que aquele era
o momento, e assim o fez. Á medida que o tempo passava criávamos com as meninas laços de confiança
para que elas compreendessem que Tiago faria parte da vida delas e da minha para sempre. Nossa intenção
não era torná-lo substituto do seu verdadeiro pai, mas fazê-las perceberem que estaríamos juntos para
ajudá-las a crescer em um ambiente de amor e de constante paz.

Eu sentia que o universo tinha sido generoso comigo, colocando em minha vida alguém que
quisesse me aceitar e me amar, porque naquela fase da minha existência era como se eu não fosse mais
merecedora de nada daquilo, e de repente, sem mais nem menos, ele surgisse e me mostrasse que existia
essa possibilidade.

Como já mencionei, eu já tinha desistido do amor romântico quando vim morar no Nordeste. Meu
objetivo aqui era cuidar de mim e das minhas filhas e buscar formas de me desvencilhar do pai delas para
conseguirmos viver em paz. Estava cansada, pois passei a minha vida inteira tentando mostrar para as
pessoas com as quais eu convivi nesse tipo de relação, quem eu era e como eu podia cuidar de um
casamento, mas era como se os meus esforços em querer fazer aquilo dar certo fossem inúteis. Quando
Tiago se dispôs a querer conhecer mais do que eu parecia ser, quando viu em mim mais do que uma mãe
solteira e sozinha com quatro filhas para criar, quando reconheceu minha força enxergando além da minha
aparência, criei um mundo confuso na minha cabeça onde tudo era possível em nossas vidas independente
da nossa realidade. Enfrentamos opiniões de pessoas que discordavam do nosso amor quando conheciam a
minha história, mas estávamos numa sintonia tão uníssona, que essa sensação me fazia querer continuar
lutando ao mesmo tempo em que o medo algumas vezes me fazia querer parar. Decidimos juntos que,
apesar de todas as dificuldades, iríamos fazer a nossa história acontecer, e movidos por trilhas sonoras que
falavam as nossas línguas, resolvemos tecer o tecido que construiria a nossa relação. Então, no meio de
todo aquele tumulto de sentimentos, numa madrugada qualquer quando eu nem tinha completado os nove
meses de gestação, senti as primeiras dores do parto, e no dia 25 de novembro, antes do tempo previsto e
sem quê nem porquê, Lara Sophia resolveu vir ao mundo, tão forte quanto saudável para nos mostrar com a
sua existência, assim como a das outras meninas, o quanto somos capazes de amar além das nossas próprias
compreensões.

...

2012 - Nos casamos no dia 30 de março de 2012 na Igreja Presbiteriana de Solânea quatro meses
após o nascimento de Lara, tendo como padrinhos de casamento escolhidos por ele, um casal de amigos
que havíamos conhecido na igreja, Sérgio e Magali Tomé, e por mim, sua irmã Adriana e seu esposo
Marquinhos (casal escolhido pelo amor que senti a partir do momento que os vi), e como damas de honra
as cinco meninas mais lindas do mundo, nossas filhas.

Amanda levava Lara no colo enquanto caminhava até o altar onde Tiago se encontrava. Giulia
espalhava pétalas de rosas despretensiosamente pelo caminho para que eu pudesse passar, abençoando
minha travessia. Jamyly e Clara as acompanhavam vergonhosamente, e atrás delas caminhávamos até o
púlpito, meu pai e eu. Quando chegou à Tiago, meu pai apertou a sua a mão e eu interpretei aquele gesto
como um pedido de desculpas sincero por tudo o que ele tinha feito de ruim para nós, alienado pelas ideias
paranoicas do pai das meninas. Minha mãe já tinha pedido desculpas para Tiago por ter duvidado do seu
caratér de homem quando eu estava nos meus primeiros meses de gravidez. Lembro como se fosse hoje.

Era mês de festejos juninos e ela ainda não estava falando comigo desde que soube que eu estava
grávida novamente. Estávamos todos reunidos na casa do meu irmão e íamos começar a acender a fogueira
quando ela chegou de repente e foi direto onde estava Tiago. Pediu desculpas pelas calúnias levantadas e
disse que tinha feito todas aquelas acusações, movida pelo calor da emoção. Em seguida veio até mim, me
olhando de soslaio e conversando como se nada tivesse acontecido. Ela nunca me pediu desculpas pelas
acusações e ofensas dirigidas a mim na época que conheci Tiago ou por ter desejado me jogar de uma
escada quando soube que eu estava grávida dele.

No dia do nosso casamento, lá no altar, vestida de noiva e olhando para Tiago, lembro que me
perguntava: Será que ele tem mesmo certeza disto?
Pelo seu olhar apaixonado eu sentia que sim. Ele queria me transmitir que não se preocupava com
nada, e mesmo que eu soubesse intrínseca e conscientemente que ele estava assustado com todas aquelas
novidades acontecendo em sua vida em tão pouco tempo, coloquei meu medo dentro de uma caixinha e
aproveitei aquele momento tão nosso e tão único em nossas vidas naquele dia. Na cerimônia do nosso
casamento tinham familiares e amigos, mas a presença mais importante para mim naquela noite era a
presença de Deus. Ela não era visível, mas dentro de mim era tão intensa que parecia palpável.

...

POR FALAR EM DEUS

Sem a fé que me movia e a firme certeza das coisas que eu não via, eu não sei se teria conseguido
enfrentar tantos percalços. Sentir que Deus existia, que fazia parte de tudo o que vivi e que era um amigo
fiel, daqueles que não te abandonam nem mesmo nas grandes tribulações me dava a motivação que eu
necessitava para querer continuar buscando o melhor que a vida pudesse me oferecer. Conceber
mentalmente que Deus nunca me deixaria só (mesmo que eu estivesse sozinha de fato), me confortava de
alguma maneira. Sentia que Ele estava comigo nos acontecimentos mais sombrios da minha vida e lembro-
me de muitas vezes chorar quando ainda estava sozinha em São Paulo me preparando para aquela
separação, orando baixinho e pedindo para que Ele me ajudasse a passar por tudo aquilo, me fazendo
prosperar dia-após-dia em termos de coragem, e de ter a sensação de que suas mãos protetoras acariciavam
os meus cabelos, como se me dissesse:

“- Tudo bem.

Eu conheço a sua dor.

Não se preocupe.

Isso tudo vai passar.

Eu sempre estarei aqui.”

(Hoje não tenho mais fé em Deus, mas continuo tendo fé em mim).

12

“CASA PEQUENA”
Sobre mudanças necessárias.

2013 - Tiago era o meu amor e o meu apoio, minhas filhas eram a base de tudo e minha força para
recomeçar quando o desânimo surgia. Tudo o que fiz naquela época foi pensando em como eu poderia agir
para dar uma vida digna para elas no futuro. Saber que tinha Tiago conosco para nos ajudar nesta missão
era reconfortante, mesmo com a sensação de insegurança e de pavor diários batendo em minha porta
emocional, insistindo que uma hora ele perceberia o quanto tudo aquilo era difícil e fosse embora. Afinal
de contas, em um momento ele era somente um jovem vivendo sua realidade e projetando um futuro
melhor para si, no outro continuava um jovem, mas agora com uma família enorme para aprender a cuidar,
e mesmo que ele não conseguisse discernir o tamanho dessa responsabilidade, eu entendia que não seria
fácil. Primeiro ele precisaria se adaptar a ideia de que agora tinha uma família enorme para cuidar, depois
ele teria que conseguir se adaptar a todas nós e a quem éramos para que conseguíssemos conviver em paz .

Certo dia ele chegou em casa dizendo que uma colega de trabalho tinha falado que ele tinha feito
uma besteira na vida ao assumir uma responsabilidade tão grande... sem nem imaginar como eu concordava
com ela. Os julgamentos eram muitos e eu me sentia muito pressionada por isto. Não queria ser
responsável pela destruição da vida de ninguém. Eu não sabia, mas naquela época já estava adquirindo uma
certa ansiedade por pensar em demasia no nosso futuro incerto, enquanto Tiago só se preocupava em viver
cada momento. Com exceção de Amanda, que desde o início teve relutância em aceitar que Tiago faria
parte das nossas vidas, todas as meninas o amaram desde o momento em que o viram. Seu jeito calmo e
paciente amenizavam meu medo do futuro, e enquanto eu agia defensivamente na perspectiva de manter a
nossa família unida, ele criava nelas o elo paterno necessário para a construção de uma família feliz.

Apesar de já haver quase um ano da nossa convivência, eu ainda me sentia como se estivesse em
um sonho e que a qualquer momento fosse acordar. Com o tempo passei me questionar com as mais
diversas dúvidas, acreditando que tudo aquilo que vivia com Tiago fosse irreal, esperando que a qualquer
momento ele acordasse para a realidade de que tinha feito uma escolha errada em sua vida e que a qualquer
momento fosse embora sem olhar para trás. Continuei estudando pela modalidade de ensino EJA
(Educação para Jovens e Adultos) enquanto cuidava de nós. Estava no meu último ano do ensino médio e
projetava ir além. Queria trabalhar na área das ciências humanas com algo relacionado a educação
inspirada pelas experiências educacionais que vivia com minhas filhas dentro de casa.

Quando cheguei ao Nordeste, percebi que o ensino público daqui era diferente do ensino público de
São Paulo. Foi um choque de realidade para Amanda, que amava a escola que estudava antes de morar no
Nordeste. Lá tinham parques e bibliotecas e era o único lugar onde eu sabia que ela adorava estar. Ela já
estava na 1º série e Jamyly no Jardim de Infância quando nos mudamos.

A estrutura educacional, física e metodológica era muito diferente e eu lembro que ela sofreu muito
para se adaptar as escolas que viriam depois. Sentia falta da antiga convivência com algumas amigas e
chorava muito querendo voltar. Mas tínhamos que nos adaptar com o que tínhamos naquele momento, pois
as melhores escolas eram particulares e eu não tinha condições financeiras de matriculá-las em uma. Sua
saúde psicológica e emocional foi a mais atingida nesse processo de transição. Amanda já era alfabetizada
quando viemos morar aqui. Sempre foi muito inteligente desde os primeiros anos letivos e quanto a isto não
teve nenhuma dificuldade. Seu maior desafio foi acerca da aceitação e da socialização, onde houveram
altos e baixos até o ensino Médio. Ela desenvolveu uma espécie de ansiedade ou estresse pós-traumático
causados por uma série de fatores. Sentia-me constantemente culpada por muitas vezes ter que agir de
maneira que sua rotina fosse modificada e era visível o quanto isto a incomodava. Ninguém sofreu tanto
nesse processo de transição quanto ela, e hoje, quando penso no passado, fico imaginando onde poderia não
ter errado para tornar esses momentos menos dolorosos.
Tive que ajudar na alfabetização de Jamyly porque a metodologia do ensino pedagógico de
alfabetização de São Paulo era diferente daqui, mas ela conseguiu aprender com muita facilidade. Giulia
não conseguiu aprender a ler na escola. Eu a ensinei. Depois disto, seu desenvolvimento educacional
espontâneo foi excepcional. Precisei dar um tempo em meus planos profissionais para dar vasão aos meus
estudos e prioridade às crianças, pois Lara e Clara eram muito pequeninas e a pessoa que tinha mais
disponibilidade em me ajudar a cuidar delas em Solânea, minha irmã Keli, havia casado e ido embora para
São Paulo, partindo meu coração ao meio. Ela foi para muito longe e eu chorei muitos dias com sua
ausência. Ela era minha melhor amiga e a pessoa que mais me ajudou quando eu vim morar aqui, ficando
com minhas filhas para que eu trabalhasse antes de engravidar e também quando eu ia para a escola a noite,
me ajudando a superar toda aquela maluquice que acontecia em minha vida a um ano e meio atrás. Em
minha família sempre priorizei a valorização pelos estudos e Tiago me apoiou desde o momento que
percebeu o quanto isso era importante para mim, me incentivando para que eu finalizasse os meus estudos e
estimulasse minhas filhas pela busca do conhecimento.

...

POR FALAR EM MATERNIDADE

Sempre tentei fazer o melhor que pude, mesmo entendendo que poderia ter feito mais.

Cometi erros que não imaginei que trariam traumas futuros. Meu medo do desamparo em um lugar
hostil e com tantas pessoas me julgando foi maior do que tudo. Tiago foi algo bom, mas as vezes me
percebo egoísta por ter pensado apenas em mim, precipitando, mesmo que inconscientemente, situações
por medo do futuro. Sempre amei Tiago. O amei assim que percebi seus olhos brilhantes e confiantes em
nós dois. Mas não tinha somente nós dois.

Eu estava apavorada com a ideia de que aquele amor pudesse escapar do meu raio de ação e tentei
mantê-lo, mesmo sabendo que minhas meninas iriam precisar mais de mim do que qualquer outra pessoa.
Sentia que na minha ânsia de tentar consertar as coisas, mostrando para Tiago que ele nunca iria se
arrepender por ter nos escolhido, e na minha consciência de que eu também precisava ser boa mãe,
mostrando para minhas filhas que tudo aquilo que eu fazia era também por elas, não conseguia ser nem
uma coisa nem outra, errando tanto com elas, quanto com ele. Sentia que tinha errado com Tiago por ter
engravidado e não lhe dado o tempo necessário para que ele decidisse se era mesmo casar que ele queria, o
pressionando, mesmo sem dizer uma só palavra, a tomar atitudes que tinham que ser responsáveis, o
sufocando com cobranças que iriam vir com a nossa decisão de ficarmos juntos. Tudo isso me assustava
muito, pois eu não tinha certeza se Tiago estava pronto para tudo o que viria depois. Errei com minhas
filhas, driblando momentos na tentava de ser boa mãe. Me culpo por ter feito quase tudo errado, porque eu
não estava em condições de ser quase, sobretudo para elas. Para elas eu deveria ter sido mais.

...

Quando conheci Tiago ele fazia muitas coisas. Sempre trabalhou artisticamente como ator amador
quando ainda era um adolescente, independente do seu emprego fixo, e chegou a manter um trabalho em
um frigorífico nos finais de semana para complementar a nossa renda mesmo sem ainda morarmos juntos.
Tiago adorava teatro, mas não conseguia se manter através da arte. Trabalhava neste campo por amor ao
conceito artístico, passando esse amor para mim e para nossas filhas quando ficamos juntos. Apesar dos
desafios de trabalhar a cultura artística numa região tão medíocre como a nossa, ele nunca abaixou a
cabeça, se submetendo muitas vezes a situações de negação dos administradores públicos do teatro
municipal da cidade para conseguir as chaves do lugar e assim ensaiar suas peças teatrais, mas sempre
insistindo, nunca desanimando. Sempre o admirei por sua força de vontade e o incentivava em seu sonho
de alavancar a cultura da região.

Um dia Tiago chegou em casa do trabalho dizendo que tinha recebido uma proposta de promoção.
Até então ele tinha a função de Auxiliar de Serviços Gerais em um colégio particular da cidade. Então,
reconhecendo o seu potencial profissional por presenciar em alguns momentos seu talento artístico em
alguns eventos temáticos criados pela escola, o diretor o convidou para trabalhar como Professor arte
educador, mas com algumas condições: Tiago não iria mais receber um salário mínimo como recebia e sua
renda seria baseada nas horas aulas ministradas por ele a partir dali. Conversamos e ele me perguntou o que
eu achava da proposta. Falei para Tiago que tudo o que fazemos para o nosso crescimento é válido e
compensador. Entendemos que o salário dele diminuiria, mas as oportunidades a partir dali melhorariam.
Ele já estava dando aulas substitutas uma vez por semana em uma Faculdade na cidade vizinha por causa
do Curso de Filosofia, queria ser um professor qualificado quando se formasse e a tendência é de que tudo
melhoraria com o passar do tempo. Não podíamos nos apegar na mesmice cômoda das nossas realidades e
precisávamos pensar no nosso futuro, então ele podia contar comigo para tudo o que precisasse. Éramos
uma família e iríamos conseguir passar por mais esse desafio. Na época eu ainda não estava trabalhando,
mas recebia um valor do Governo, vindo do meu cadastro do Bolsa Família que tinha sido aprovado em
janeiro de 2011, mais a pensão alimentícia das meninas, o que asseguraria nossa alimentação.

Por alguns meses foi bem difícil nos manter, por esse motivo decidimos alugar uma casa menor e
com o aluguel mais barato para conseguir suprir as nossas necessidades. Lembro que a nossa casa era tão
minúscula que as meninas dormiam amontoadas em um quartinho, mas que apesar das dificuldades, existia
muito amor. Era época de eleição e a família de Tiago, por ser de origem simples, sempre foi muito
envolvida com essas situações, escolhendo e acompanhando os candidatos da região na esperança de
conseguir algum benefício público. Foi em uma dessas situações que Tiago resolveu conversar com o
candidato a prefeito escolhido da família, Beto do Brasil. Seu intuito não era financeiro, mas sim
facilitador. Tiago queria que o candidato, caso fosse eleito, disponibilizasse as chaves do Cine Teatro local
onde aconteciam os ensaios e as peças teatrais em ocasiões em que bilheterias pudessem ser cobradas nos
espetáculos, aumentando assim a nossa renda. Foi nesta conversa que o candidato sugeriu que, caso
ganhasse, faria um sorteio público, e caso sorteado, Tiago seria o gestor cultural da cidade. Após as
eleições, Beto do Brasil saiu vitorioso e fez o que prometeu. Promoveu um sorteio entre os artistas da
cidade, onde Tiago teve a maioria dos votos, ocupando esse cargo e possibilitando que eu finalizasse os
meus estudos tranquilamente, sem me preocupar com trabalho nem com a parte financeira, ajudando a
prover o sustento da nossa família. Neste mesmo ano desfiz o meu cadastro no Programa Bolsa Família,
possibilitando para outras famílias o direito de também se alimentarem até que algo melhor pudesse surgir.

13

“CASA DOS RATOS”

Sobre percursos.
Após melhorarmos um pouco mais a nossa condição financeira por causa do novo trabalho de
Tiago na prefeitura, mudamos para uma casa maior do que a que morávamos e que ficava umas duas
quadras da casa pequena. As meninas apelidaram esta casa de “casa dos ratos” porque nela tinha um quintal
que enchia de mato, trazendo assim alguns animais de rua que às vezes insistiam em entrar na nossa casa, e
numa dessas situações teve uma confusão para matar um rato enorme e teimoso, mas apesar do nome e do
trauma que ficou nelas, a casa não era cheia de ratos, mas sim cheia de vida. Foi nesta casa que Lara passou
a ter traumas de cachorros, porque um dia um cão muito grande lhe deu um susto, latindo do outro lado do
portão enquanto ela brincava no quintal da nossa casa quando ainda estava aprendendo a dar seus primeiros
passos. Foi nela que começamos a compreender os verdadeiros desafios de compartilhar momentos felizes
e tristes. Lembro que foi nesta casa que tive meu primeiro episódio psicossomático de crise de ansiedade
por causa do meu medo constante, mas também me lembro que foi aqui, junto com minhas filhas e esposo,
que demos muitas risadas. Também foi aqui que recebi a notícia, depois de três anos de estudos e de ter
feito o meu primeiro VESTIBULAR, que eu tinha conseguido passar para a universidade nos cursos de:
Serviço Social (bolsa integral em uma EAD), História, Geografia e Pedagogia.

Escolhi fazer a faculdade de Pedagogia por me identificar infinitamente com a área da educação,
mas antes da faculdade de Pedagogia, teve o ensino médio... cheio de pessoas inesquecíveis que elevaram
minha fé em mim mesma quando, mesmo conhecendo a minha realidade, não permitiram que eu desistisse
dos estudos nos meses finais da minha gravidez de Lara Sophia, chegando inclusive a irem a minha casa
para me entregar atividades escolares, me incentivando com palavras, como:

- Você vai longe. Continue estudando, porque você tem potencial.

A Escola Alfredo Pessoa de Lima marcou minha história de forma significativa, como marcam
todas as experiências desafiadoras da vida.

Quero deixar registrada aqui a minha eterna gratidão e reconhecimento a cada professor(a) que
contribuiu para que eu conseguisse chegar onde hoje me encontro. Quero que saibam que foi graças ao
trabalho de vocês que até hoje me disponho a ir mais longe.

Agradeço imensamente aos professores:

 Sandra, Luzardo e Putifar Imperiano, pelo incentivo contínuo e incessante;


 Katrine Delgado pela paciência nas aulas de cálculo;
 Elizabeth, pelas excelentes aulas de português;
 Danúbia Andrade, pelo seu sorriso diário em sala aula e sua insistência em me ensinar exatas;
 Eliane, por me mostrar como a Sociologia é útil para o mundo;
 Elenilton Costa, por mostrar-me coordenadas geográficas com tanto carisma;
 Marconi Fox, por ensinar-me inglês da forma mais magnífica e encantadora do mundo;
 Jeferson Santos, por acreditar que eu poderia aprender as teorias sobre a Física;
 Oton Dantas, que me fez entender que prótons e elétrons podem ser compreensíveis;
 Beneilton Silva, por filosofar sobre as coisas da vida de maneira tão racional;
 Karla Anjos, pela força que me transmitiu, sobretudo em minha época de gravidez, encorajando-me a não
desistir do meu sonho de trabalhar pela educação algum dia.

A todos vocês, parabéns pelo que são como profissionais e muito obrigada pelo exemplo e
inspiração que foram em minha vida numa época em que eu precisava me reencontrar como ser humano e
pessoa capaz de contribuir com o mundo. Continuem sendo luz na vida de outras pessoas, que assim como
eu, também terão o prazer e a oportunidade de aprender com vocês, afinal de contas, ser professor é se doar
sem imaginar o tamanho da pedra bruta a se lapidar, na esperança de que ela um dia se torne um tesouro.
Quero também deixar registrado aqui o meu carinho por Shirley Brito, (colega de escola na época
de ensino médio, e que se tornou uma amiga para a vida inteira). Não há distância ou acontecimentos que
destruam o que eu sinto por você ou que a tire de dentro do meu coração. Obrigada pela consideração e
amizade sincera. Eu te amo, muito.

...

2014 - Entre trancos e barrancos (senti vontade de desistir dos estudos durante os últimos meses de
gravidez) ingressei para a Faculdade aos 28 anos. Fiquei tão surpresa quanto apavorada com a ideia de
continuar mais essa nova jornada, e apesar das dificuldades que eu sabia que existiriam, me dispus a viver
mais esta experiência. Lara já estava com dois anos e as meninas maiores me ajudavam a cuidar dela, indo
além das suas forças e capacidades infantis. Éramos uma equipe de meninas nos ajudando a crescer e eu
sinto que sem essa ajuda eu não teria conseguido chegar até aqui.

Tiago trabalhava como gestor cultural e como professor arte educador enquanto cuidávamos umas
das outras e eu estudava. Nos tornamos uma quase família tradicional brasileira. Ele era o marido ausente
(porém amoroso e paciente) que trabalhava para colocar as coisas dentro de casa e nos levava todos os
domingos para a igreja. Eu fazia o meu papel de esposa e de mãe, tentando conciliar minhas obrigações
corriqueiras com os meus estudos e nós estávamos tentando nos encaixar nos padrões das famílias
tipicamente normais. Eu ainda tinha medo de que Tiago a qualquer momento percebesse a besteira que fez
em sua vida se juntando a nós e transformava pensamentos intrusivos em brigas quando, por não
compreender, Tiago agia de forma vazia. Nesta altura do nosso casamento ele já tinha entendido quão
desafiador era conviver com uma mulher tão cheia de responsabilidades e em uma casa tão cheia de
crianças. Enquanto eu curtia a ideia de que tudo aquilo um dia passaria e que eu precisava aproveitar
aqueles momentos, mostrando para Tiago que tudo aquilo era passageiro, pois percebia que ele ainda
tentava se situar e caber naquele no nosso mundo tão bagunçado, percebia em seus comportamentos como
se ele se perguntasse: Onde eu fui amarrar o meu burro? E isto me apavorava.

Em alguns momentos, por não querer que ele se estressasse com toda aquela algazarra, criava
situações para amenizar os desconfortos causados por uma grande família. Me frustrava por não conseguir
manter a casa limpa ou silenciosa quando ele estava em casa, e muitas vezes cobrava das meninas posturas
mais adultas e responsáveis para evitar aborrecê-lo, aborrecendo desta forma Amanda, que nunca se
conformava com a minha postura em ter que agradar Tiago a qualquer custo.

Tiago tentou criar elos verdadeiros de paternidade com as meninas mesmo não sendo pai biológico
delas. Apesar de ele não conseguir lidar com determinadas situações, como ajudar nos afazeres domésticos
ou saber administrar os comportamentos desafiadores de Amanda, sempre tentou fazer o seu papel de
amigo e de pai adotivo de todas. Lembro de Amanda tentando construir algum elo com ele, participando de
eventos teatrais e tentando socializar com as pessoas da igreja, mesmo se sentindo deslocada em alguns
momentos, segundo ela. Eu vibrava quando percebia seu interesse em fazer amizades. Esta época em
particular foi muito desafiadora para ela, mas eu sinto que foi muito mais desafiadora e frustrante para
mim, que não sabia como lidar com seus comportamentos e sofria por isso, tendo a sensação que causei
dores que não sabia que machucavam tanto ela. Lembro que uma forma que eu sempre encontrava de fazer
com que todos nós nos envolvêssemos em uma mesma situação era adotando algum cãozinho, porque desta
forma iríamos buscar uma maneira de cuidar do animalzinho e todos precisavam contribuir. Além do mais
eu precisava ajudar Lara a superar o trauma de cachorros que ela adquiriu. Nesta casa tentamos dois
cachorros diferentes, mas eles fugiram, fazendo-nos concluir que cachorros machos não suportavam
conviver conosco, mesmo com Tiago dando apoio moral, então decidimos a partir desse dia que só
teríamos cachorras fêmeas em nossa casa.
Eu estava eufórica com a ideia de ir para a faculdade, e mesmo preocupada com as mudanças que
ocorreriam na nossa rotina, eu iria tentar de tudo para conseguir dar mais aquele passo em minha vida com
o intuito de ser exemplo para minhas filhas, e nós estávamos juntos nisto.

...

2015 - Tiago e eu estudávamos na mesma faculdade em uma cidade a uma hora de distância da
nossa no turno da noite e precisávamos de alguém da nossa confiança para ficar com as meninas enquanto
estávamos lá. Até que as meninas crescessem mais um pouco, precisávamos de ajuda, e tive muita
colaboração de algumas pessoas que foram cruciais para esse processo, pois sempre que puderam, se
dispuseram a permitir que Tiago e eu fôssemos pessoas melhores intelectualmente, ficando a noite com
nossas filhas quando tínhamos que ir estudar.

Wlinha (minha irmã caçula), Índia (irmã de Tiago), Day (minha cunhada) Dona Vera (mãe de
Tiago). Vocês foram suporte quando precisamos. Muito obrigada por tudo.

Quando os dias e horários das nossas aulas não condiziam, revezámos para ficar com as meninas a
noite, e essa foi nossa rotina até a nossa formatura, mas antes disto...

As meninas cresciam enquanto eu estudava e cuidava da nossa família, Tiago estudava e


trabalhava, cuidando também da gente. Amanda estava ficando adolescente e lembro que foi uma época
muito confusa para ela e para nós. Primeiro porque ela ainda estava superando o trauma da transição em
nossa nova vivência no Nordeste, e segundo porque a nova transição para a adolescência foi para ela muito
difícil em termos internos e externos. Às vezes eu me sentia impotente por não conseguir ajudá-la a tornar a
convivência conosco mais leve, não importava o que eu fizesse, e isto me afligia além das minhas
compreensões, fazendo com que eu cometesse erros diários na intenção de acertar. As demais meninas
cresciam e se desenvolviam sem grandes dificuldades além das corriqueiras. Elas não tiveram os mesmos
desafios emocionais que Amanda, o que é compreensível na primeira infância e acredito que por esse
motivo tiveram uma vivência mais leve. Lara já não era mais tão dependente e isso permitia que as meninas
maiores cuidassem dela sem muita dificuldade na minha ausência.

Tiago continuava os seus trabalhos culturais e artísticos e passava a maior parte do dia fora fazendo
seu nome político na região. Ele também continuava dando aulas de artes no Colégio particular e eu tentava
ajudá-lo como podia. Sabia que não era fácil manter aluguel, água, luz e internet sozinho, então usava o
valor da pensão das meninas única e exclusivamente para suprir a nossa alimentação. Nossa família
finalmente estava começando a ter segurança, mas eu sentia que precisava trabalhar para não depender
tanto de Tiago pessoalmente e também para ajudá-lo financeiramente, então surgiu minha primeira
oportunidade para trabalhar no final do ano de 2014. O colégio que Tiago trabalhava estava precisando de
uma auxiliar de educação infantil e ele me indicou para o cargo. Deixei meu currículo e fui chamada para
trabalhar pela primeira vez na área em que estudava, usando a experiência como laboratório de pesquisa
para minha formação na faculdade, tentando conciliar vida profissional e pessoal na medida do meu
possível. Foi nesse mesmo ano Tiago que decidiu pedir demissão do Colégio porque as atividades na
prefeitura estavam muito intensas e ele precisava de tempo para se dedicar mais a vida pública. Nós
também precisávamos do valor do seguro-desemprego para dar entrada na compra do nosso terreno e ter a
nossa casa própria. Como eu já o substituía nas suas aulas quando ele não podia ir, ocupei o lugar dele
como professora arte educadora a convite da coordenação do Colégio dadas as experiências artísticas que
eu tinha desenvolvido junto à Tiago através de oficinas teatrais e das atividades cotidianas que exercíamos
no campo da arte. O valor arrecadado do seguro-desemprego não foi suficiente para comprarmos o nosso
terreno, mas serviu para que ele comprasse uma moto nova e nos mantivesse em épocas que a prefeitura
não efetuava os pagamentos nos finais de anos quando ocorriam as exonerações dos funcionários públicos
contratados.
...

POR FALAR EM TIAGO SALVADOR

Quando o conheci ele fazia parte de um grupo de teatro amador, fazia um curso de Filosofia EAD,
trabalhava em um frigorífico nos finais de semana para complementar sua renda e já tinha um emprego fixo
com carteira assinada numa escola particular, como auxiliar de serviços gerais.

Tiago é o irmão caçula de cinco filhos e nasceu em uma família administrada majoritariamente por
mulheres que até os dias atuais moram em uma periferia da cidade que se chama Travessa Panorâmica e
não dependem de homens para conseguir sobreviver. Numa noite, quando ainda estávamos nos
conhecendo, ele me apresentou aquela periferia como sendo seu “gueto” enquanto dávamos uma volta na
cidade, e naquele momento eu senti um orgulho gigante por ter escolhido alguém como ele para namorar.

Sua avó Maria o criou junto com sua mãe e com todas as mulheres arretadas que compunham
aquela família. Quando a conheci em 2011 sua saúde já estava comprometida devido a complicações
causadas por um AVC que ela teve em 2009, portanto Vó Maria já vivia acamada e impossibilitada de ter
uma vida normal como tinha antes, cheia de compromissos e correrias familiares. No entanto, me apaixonei
pela sua pessoa assim que fitei aqueles olhinhos claros e cheios de amor e tenho a impressão que se a
tivesse conhecido quando ela ainda tinha saúde, seríamos melhores amigas uma da outra, daquelas que vão
tomar café e fofocar sobre a vida dos outros juntas. Era nítido que aquela mulher, antes daquela doença,
conseguia enfrentar as dificuldades da vida além do que suas forças físicas permitiam. Vó Maria, como
tantas mulheres, foi abandonada pelo pai dos seus filhos quando eles ainda dependiam de cuidados, e como
muitas mulheres também foi desvalorizada, mas isso não impediu que ela desistisse de assumir o seu papel
de mãe, pai e depois de avó- mãe de Tiago e dos seus irmãos e primos. Para mim ela era, assim como a
minha Vó Maria, a representação da força feminina e eu adorava quando ela pedia para a “muié de Tiago”
cortar seus cabelos brancos em épocas de calor. Me sentia lisonjeada pela confiança depositada a mim, que
nem era cabeleireira. Me lembro de ter chorado a sua perda em 2016, com tristeza e já apertado de saudade,
porque sua existência, assim como sua presença me inspiravam e querer ser alguém um pouco melhor. (Im-
memoriam).

Sua mãe, dona Vera é igualmente forte, e eu sinto orgulho de tê-la não apenas como sogra, mas
também como amiga. Suas tias e tios são pessoas tão simples quanto corajosas e têm histórias incríveis de
superação que eu adoro ouvir sempre que os visito. Suas primas e primos foram seus amigos de infância, e
até hoje quando se reúnem relembram traquinagens em épocas de criança. Seus irmãos são homens
incrivelmente trabalhadores e Tiago herdou deles todo o fascínio e loucura pelo time do Corinthians. Suas
irmãs se tornaram minhas irmãs. Eu amei o universo que Tiago vivia assim que o conheci.

Quando decidimos ficar juntos de verdade Tiago já era um homem, um jovem homem de vinte e
três anos. Quando começamos a conviver, ele virou um Super-Homem. O considero também um Superpai,
que adotou minhas filhas como sendo dele, me ajudando a cuidar saudavelmente de todas, jamais fazendo
distinção entre Lara e as demais meninas. Lara demorou para compreender que não era irmã completa das
delas. Por esse motivo acho nossa família perfeita, apesar dos meus receios, em às vezes acreditar que não
a mereço.

Já pensei (confesso que ainda penso) que fui o maior erro da sua vida, acredito que por ter vivido
tantas omissões e repressões, onde passei a acreditar ser alguém que não merece viver esse tipo de
felicidade. Desde o início, sempre o perguntei em nossas conversas e muitas vezes por cartas ou mensagens
virtuais: Você tem certeza disto? Sentia que Tiago não era para casar, apesar de também saber que de
alguma maneira ele gostava de nós. Sempre muito atarefado e com compromissos relacionados a sua arte,
às vezes eu sentia que aquele mundo só dele não permitia espaço para uma família tão grande, e com esses
pensamentos, acabava me afastando e me excluindo muitas vezes por imaginar que sabia mais do que ele o
que era melhor para si, sentindo raiva por ele não perceber isso.

Tive crises de ansiedade por imaginar que tinha estragado a vida de Tiago com a minha existência
quando o via confuso dentro da nossa família agitada e isso foi motivo para muitos momentos tristes em
nossa relação. Mas eu não conseguia me conter, os sentimentos de insegurança e medo sempre foram
maiores do que tudo. Pensava que ele ainda estava comigo porque a fase da paixão, aquela que nos deixa
cegos, ainda não tinha acabado, e ficava imaginando uma maneira de sair daquela relação antes que aquela
paixão que Tiago sentia se acabasse, porque eu não queria desmoronar vendo ele ir embora depois que
despertasse para a realidade de que tinha decidido viver irracionalmente com alguém como eu. Passei a
dizer para mim mesma que tudo aquilo era passageiro, projetando formas de viver sozinha quando ele fosse
embora, me desvencilhando emocionalmente aos poucos daquele sentimento enorme de amor, dando lugar
às dúvidas sobre o nosso amanhã.

14

“CASA DA RUA CEARÁ”


Sobre dar passos para trás.

De todos os lugares que já moramos, este foi o mais atormentador para todos nós. Quando eu disse
para Tiago que precisávamos ir morar nesta casa, pensei mais na economia do que necessariamente no
conforto. Nós estávamos trabalhando nesta época, mas tinham duas situações que nos impossibilitavam de
ter uma vida mais confortável: a primeira era o fato de que eu não recebia mais o Benefício Social do Bolsa
Família por Tiago já estar trabalhando na prefeitura e nós não estarmos mais tão necessitados
financeiramente como no início, a segunda é porque o pai das meninas estava atrasando constantemente o
valor da pensão, chegando a ficar até dois meses sem efetuar o pagamento delas e esses desfalques eram
sentidos durante os meses que não aconteciam esses depósitos. Sem contar que ele depositava o valor em
pedaços, dificultando o ato de fazer compras de alimentos mensais, o que atrapalhava todo o nosso
orçamento, pois Tiago e eu tínhamos um acordo em que cada um ficava com uma responsabilidade e
muitas vezes eu deixava de cumprir a minha pela falta de compromisso do pai das meninas, o que me
frustrava imensamente. Fomos à contragosto de Tiago morar nesta casa, mas quatro meses foram
suficientes para entregarmos as chaves e irmos morar em outro lugar. Relatarei resumidamente alguns
acontecimentos que nos fizeram sair dessa casa mais rápido do que prevíamos:

- A casa, apesar de bem conservada, era mais pequena do que a casa pequena que moramos logo
quando chegamos aqui. Isto justificava o valor mínimo do aluguel;

- A casa ficava próximo (era vizinha) aos meus pais, e isto não era bom. Quando Tiago e eu
resolvemos morar juntos, combinamos que não moraríamos perto da nossa família para evitar conflitos
familiares. Ele estava certo. Para mim isso foi uma lição. Não criei conflitos com meus pais porque sou
uma pessoa muito pacífica e odeio brigas, mas se tivesse dependido da minha mãe, sim;

- A casa não tinha uma aura ou uma energia positiva. Não sei se o fato de sabermos que senhor e
dono dela tinha morrido ali ajudava a concretizar essa sensação, mas a verdade é que a casa não nos fazia
bem espiritualmente e houve até uma situação em que Jamyly disse certo dia que estava indo ao banheiro
pela manhã viu “um homem todo preto” perto do banheiro. Depois desse dia começamos a procurar outras
casas para morar;

- Adotamos uma cadelinha de estimação para morar conosco. Ela ia crescer e precisávamos de um
espaço maior.

- A casa era distante do nosso trabalho e do ponto de ônibus da nossa Faculdade.

15

“CASA PERTO DO GEO”

Sobre voltar a andar pra frente.


2015 - Essa casa tinha algo que eu adorava como dona de casa. Uma cisterna enorme. Na época em
que mudamos para ela a cidade estava vivendo um momento de racionamento de água por causa do período
quente na região e da pouca quantidade de reserva da barragem. Com cinco crianças é muito difícil ficar
sem água na torneira, porque o consumo dos depósitos onde reservávamos era grande e precisávamos de
água para fazer tudo sete vezes mais. Nela eu tinha a possibilidade de armazenar 3.000 litros de água que
nos mantinham por sete dias, e apesar de a casa ter algumas infiltrações e um valor de aluguel mais alto, era
uma casa que facilitava as nossas vidas de inúmeras formas. Ela ficava próxima ao nosso trabalho, ao ponto
do ônibus da Faculdade que estudávamos e também tinha um quintal grande, onde Pandora poderia brincar
e correr à vontade junto com as crianças, mas eu não gostava de deixá-las ali sozinhas porque lá tinha uma
fossa que ao meu ver estava prestes a desmoronar (mas nunca desmoronou). O que mais me lembro nesta
casa é da nossa rotina nos finais de semana para ir para a igreja e das paredes iluminadas no final do ano
para comemorarmos o Natal. Essa sempre foi uma época que gostávamos de comemorar antes de conhecer
Tiago, mesmo sabendo que para ele os dias não tinham boas recordações. Ele dizia que foi na época do
Natal que a avó dele teve o AVC e adoeceu, e que foi nesta mesma época um ano antes que ele perdeu um
primo que gostava muito de forma muito violenta, portanto tínhamos que lhe mostrar que o Natal não
precisava ser uma época triste e que poderíamos mudar esse conceito a partir das nossas ações,
compreendendo que, apesar das lembranças tristes que os dias traziam, existia também a esperança de dias
melhores (infelizmente foi nesse ano que perdemos a Vó Maria de Tiago). A igreja também era um
ambiente em que tínhamos construído uma rotina religiosa que precisava ser seguida, afinal de contas,
casamos na igreja que frequentávamos e os padrinhos de Tiago, que são pessoas religiosas haviam nos
ajudado muito junto com a comunidade evangélica para que déssemos início as nossas vidas quando
decidimos ficar juntos. Foi através das pessoas dessa igreja que conseguimos ter os nossos primeiros
móveis e eletrodomésticos que foram adquiridos através de doações das pessoas que frequentavam aquele
lugar. Sentíamos que era preciso retribuir tantas bonanças por meio da nossa presença e das nossas orações
em agradecimento por tudo que aquele lugar nos proporcionava, portanto era rotineiro que quando chegava
o domingo de tardezinha em minha casa tudo virasse um grande alvoroço, porque eu tinha que fazer o
papel de mãe chata, pedindo para que as meninas maiores tomassem banho, ajudando nas escolhas das
roupas que seriam usadas na ocasião, dando banho e arrumando as meninas maiores, para só no final poder
tomar um banho e me organizar para irmos para o culto. Tiago não tinha muito jeito com essa parte, então
não participava desse processo tumultuado, e eu preferia assim, porque o conhecendo como conhecia, sabia
o quanto era estressante para ele ter que desempenhar o papel do pai que cobra. Essa parte sempre foi feita
por mim.

Na igreja Presbiteriana, agradecíamos a Deus por todos os acontecimentos bons que vivíamos
desde então. Não éramos ricos nem pessoas perfeitas, mas tínhamos saúde e muita coragem para trabalhar e
continuar lutando por nossa família. As meninas cresciam aparentemente saudáveis e não tinham tudo o
que desejavam, mas tentávamos não deixar faltar para elas o básico que necessitavam para ter uma vida
justa. Mas eu lembro que foi nesta casa que tivemos os primeiros abalos religiosos e que foram
fundamentais para definir o nosso conceito futuro de religião.

Apesar de a igreja ser um lugar onde adorávamos estar, era lá que também encontrávamos desafios
interiores que precisavam ser resolvidos. O primeiro desafio que encontramos com o passar do tempo foi o
de Tiago precisar rever atitudes no campo artístico, que muitas vezes precisava trabalhar com temas que
para a igreja eram vistos como contraditórios as nossas doutrinas religiosas. A arte é um campo sem
preconceitos. Nela podemos ser o que nos permitirmos. As músicas, os personagens, tudo são inspirações
que nascem através da observação e absorção dos conteúdos culturais, não cabendo ao artista julgar, mas
sim representar aquela ação. Lembro de Tiago dizer certo dia que o incomodava o fato de às vezes sua arte
ser criticada, mesmo que de forma vaga e despretensiosa por integrantes da igreja, e de ter visto tristeza em
seus olhos por ele perceber que a arte não era compreendida por todos. Tinha também a minha inquietação
acerca da postura das mulheres relacionadas a roupas, formas de se expressar que sempre me incomodavam
com suas submissões e regras compostas para agradar sobretudo aos homens do lugar. Certa vez ouvi de
uma das irmãs que eu precisava tomar cuidado com o tamanho da saia que usava no culto, porque minhas
pernas grossas tiravam a atenção de quem estava ministrando no púlpito e isso me inquietou
profundamente, porque eu nunca vi problema no tamanho das minhas saias nem as vestia para tirar a
atenção de ninguém, mas sim porque me sentia bem. Nossa família sempre teve a mente aberta para
conversar sobre qualquer assunto.

Desde o nascimento das minhas filhas e assim que elas começaram a se expressar verbalmente, eu
sempre as incentivei a falar e a sentir tudo o que se passava dentro delas, sem medo dos resultados de suas
ações, porque seria nesse processo de vivência e de convívio que iríamos aprender a conviver uns com os
outros. Fui criada em um ambiente em que minha voz não era ouvida e meus desejos não tinham nenhuma
relevância, e viver essa experiência foi algo muito doloroso para mim. Aprendi teórica e empiricamente
que minha voz não é a única nem a mais correta só porque eu sou mãe. Ser mãe não me dá o direito de
fazer ou ser melhor do que minhas filhas. Ao contrário, o processo de maternidade é de aprendizado
constante, então se eu aprendo a função de ser mãe com minhas filhas às vezes pelo simples fato de elas
existirem, elas podiam me ensinar infinitamente mais com as suas palavras e ações. Então à medida em que
elas cresciam e eu vivia situações que considerava pertinentes à críticas, dividia com elas as minhas
opiniões, abrindo dessa forma um leque de possibilidades que permitia que elas também se expressassem,
fossem suas opiniões benéficas ou negativas para mim, e elas cresceram com essa consciência, a de que eu
nunca seria perfeita nem estaria certa em tudo, permitindo assim que elas evoluíssem sabendo expressar as
suas próprias opiniões, corrigindo-me acerca de meus erros, ou me elogiando, caso me percebessem certas.

Amanda desde sempre soube expressar as suas opiniões e emoções, fossem elas cômodas ou não e
eu lembro que muitas situações que vivíamos se tornava motivo de debate (e muitas vezes de confusão) em
nossa família. Sempre tinha uma pauta e sempre ouvíamos uns aos outros, e foi na construção das
concepções e opiniões contidas nessas pautas que definimos individualmente nossos pontos de vistas,
percebendo que eles não eram unânimes, mas que precisavam ser respeitados, mesmo à contragosto. Foi
Amanda a primeira pessoa a se perceber como impossibilitada de conseguir seguir os conceitos religiosos
da igreja que frequentávamos, tomando a decisão de não mais querer ir. É difícil conceber a ideia de que a
decisão de uma pessoa desestrutura toda uma rotina familiar, mas éramos uma família e esta decisão
precisava ser ouvida, digerida e aceita por todos.

É bem verdade que essas situações causavam desconforto, mas isto fazia parte e disto eu tinha
consciência. Também tinha medo do que essas ações pudessem causar, mas tinha, acima de tudo,
consciência de que elas precisavam existir. Vivíamos uma fase de descobrimento e de conhecimento do
NOVO em todos os sentidos. Estávamos começando a perceber como dava a construção política e cultural
dos lugares em que estávamos inseridos. As meninas, dentro do conceito escolar e religioso, Tiago e eu nos
âmbitos político e acadêmico, respectivamente. Pensando assim era de se esperar que o caldeirão que
compunha a nossa família se tornaria magnificamente diverso, e era essa perspectiva que me assustava ao
mesmo tempo que me encantava, e como era de se esperar, o medo algumas vezes venceu.

Eu percebia que as opiniões de Amanda desconsertavam Tiago, mas também sabia que não era esse
o motivo que fazia com que algumas vezes ele se irritasse profundamente, preferindo se calar para não
causar desconfortos maiores. O maior incômodo para ele era acerca do seu comportamento muitas vezes
ríspido com todos nós e dessa opinião formada que ela tinha de que ele não podia se envolver porque “não
era o seu pai”. Então ele nunca se envolveu, ao contrário, quando o assunto dizia respeito a algo que viesse
de Amanda, ele preferia se abster, portanto cabia a mim administrar essas situações. Era confuso ter que
equilibrar tantos descompassos e muitas vezes eu me senti perdida e atordoada, julgando estar errada tanto
em querer mostrar para Tiago que ele precisava compreender aqueles comportamentos, quanto em ensinar
também para Amanda acerca daquelas situações. Além desse desafio, tinha também mais quatro filhas para
cuidar, as despesas para pagar, o trabalho para administrar, os estudos que precisavam ser concluídos para
que eu pudesse me formar, o pai das meninas com suas desculpas para não pagar o valor da pensão. Tudo
mexia comigo, tudo me fazia chorar. Percebia que Tiago ficava anestesiado com tudo aquilo e que quando
não sabia como lidar colocava seu trabalho político e sua arte no lugar para não ter que pensar em todos
aqueles problemas. Então quando eu sentia que não tinha capacidade de suportar tudo aquilo, ia para o meu
mundo solitário e esperava que todo aquele tormento emocional passasse. Meu mundo solitário era o meu
quarto, minha cama, meu cobertor e meu celular com filmes que me faziam esquecer aquela realidade. Eu
precisava me anular e deixar que eles entendessem que ali eu não conseguia agir. Aí depois eu voltava e
tentava acertar outra vez. Mas aí teve um dia eu não consegui mais.

Olhei para Tiago e disse que não dava mais para viver daquela forma. Que tinha percebido o
quanto ele estava perdido dentro da nossa família e como ele precisava de paz e de tempo para conseguir
entender aquilo tudo. Me sentia culpada por não conseguir administrar situações, por Amanda viver sempre
irritada, pôr as vezes passarmos apertos financeiros, sentia que era por minha culpa porque eu não
conseguia fazer com que o pai das meninas percebesse que o valor da pensão era necessário para nos
alimentar. Tiago e eu brigávamos e sofríamos por causa de tudo e eu sentia que isso não era justo com ele.
Que ele não precisava passar por nada daquilo. Que podia se libertar quando quisesse. Então resolvi que
deveria ir embora com minhas filhas. Aluguei um apartamento menor uma rua depois da nossa e fui morar
lá com elas, e ele voltou para a casa da mãe dele. Lembro que foi infinitamente difícil para mim viver
aquela situação, porque eu amava muito Tiago, mas eu não conseguia conviver com ele dentro de um
ambiente tão cheio de conflitos.

16

“APARTAMENTO DO PRIMEIRO ANDAR I”

Sobre repensar caminhos.

2016 - O lugar era um pequeno apartamento com dois quartos, uma sala, uma cozinha, um banheiro
e uma varanda. Na época do nosso afastamento eu convivia muito com minha mãe, mesmo que essa
convivência não fosse totalmente saudável. Minha mãe e minhas irmãs eram as únicas pessoas que sabiam
o que eu realmente vivia em minha família. Eu não sei quais eram os comentários que aconteciam entre
elas acerca do que eu vivia, mas eu sabia que aquelas pessoas eram meus parentes e que, se eu não pudesse
confiar neles eu não podia confiar em mais ninguém. Como conversávamos muito sobre tudo não era
novidade para minha mãe que Tiago e eu não estávamos conseguindo nos conectar e me lembro que dessa
vez ela foi mais maleável acerca da minha decisão de dar um tempo, primeiro porque minhas irmãs a
aconselhavam a não julgar a situação e segundo por que ela sabia que eu não iria depender dela de
nenhuma maneira, pois a essa altura da minha vida eu já sabia como resolver os meus problemas sem
precisar da ajuda financeira dos meus pais e isso a tranquilizava. Além do mais eu precisava ter uma pessoa
de confiança para me ajudar com minhas filhas quando eu precisasse passar o dia todo fora. Na verdade, eu
já tinha uma. Era a prima de Tiago, Vanessinha, que a gente pagava um valor mensal para que ela viesse
três vezes por semana fazer a parte de limpeza da nossa casa e a nossa comida enquanto passávamos o dia
fora. As meninas a adoravam e ela facilitava muito as nossas vidas. O problema é que eu queria evitar
comentários acerca da minha vida pessoal, e como ela era prima dele e ele estava morando na mesma rua
que elas, eu sabia que uma hora ou outra iríamos ter que falar dele porque em algum momento eu iria
perguntar e isso me machucaria muito, então decidi que o melhor seria buscar outra pessoa de confiança
para me ajudar. Minha mãe, mas esta não foi uma boa decisão.

Eu não podia deixar de dar uma contribuição para quem pudesse me ajudar com minhas filhas,
então precisava pensar uma forma de mostrar para minha mãe que eu não a estava contratando como
empregada, eu estava simplesmente retribuindo o favor que ela fazia cuidando as minhas filhas por um
período na minha ausência, lhe dando o mesmo valor que eu dava para Vanessinha quando ela estava
conosco, mas não acho que ela entendeu dessa forma com passar do tempo.

Depois que Cayane morreu minha mãe não quis mais me ajudar na criação das minhas filhas,
sobretudo depois de tudo o que aconteceu após a minha gravidez de Lara. Ela sempre me disse desde que
eu voltei para o Nordeste que não ficaria com as meninas para que eu fizesse as coisas que eu tinha
escolhido para mim, e até me criticava por eu ter dado continuidade aos meus estudos, alegando que nesta
altura do campeonato isso não iria fazer nenhum efeito em minha vida, apenas me dar dores de cabeça por
eu não poder fazer o meu papel de mãe. Isto me machucava, mas eu nunca pensei em desistir. Ignorava
suas opiniões contrárias as minhas e tentava fazer com que ela percebesse que essa decisão precisava ser
apenas minha. Quando percebeu que eu não iria lhe importunar pedindo ajuda, ela parou de me criticar e
parecia aceitar que isto era o melhor, então eu concluí que poderíamos ter uma boa relação, e assim pedi
que ela me ajudasse com as meninas na condição de que eu lhe desse um valor mensal.

Eu estava sentindo muito pela separação com Tiago e tudo parecia bem confuso para mim.
Tentamos não causar brigas e fazer as meninas entenderem que isto era o melhor para nós dois e para elas,
e estávamos tentando seguir sem causar dores maiores com intrigas desnecessárias. Fofocas surgiram
acerca do motivo da nossa separação, mas eu estava tão decidida a me curar daquela dor que não dava
ouvidos a nenhuma delas. Então seguimos, com minha mãe indo nos ajudar e com Tiago na casa da mãe
dele, e eu e minhas filhas no novo apartamento que ficava no primeiro andar daquele prédio.

A nossa cadela Pandora foi com Tiago para a casa da mãe dele, pois o lugar que eu estava com as
meninas era muito pequeno e ela já estava bem grande. Para aliviar a saudade que elas poderiam sentir de
Pandora, adotamos uma gatinha que já estava no prédio quando chegamos lá.

Tentei manter minha rotina sem pensar nos acontecimentos futuros. Trabalhava durante o dia
enquanto minha mãe ficava na parte da manhã com as meninas. À noite ia para a faculdade e as deixava
sozinhas, porque elas já eram bem crescidas e já sabiam como se cuidar.

Quanto mais o tempo passava mais a minha saudade de Tiago aumentava. Eu sentia saudade de
tudo, até das nossas brigas, e chorava todas as noites sentindo a sua falta. Mas tinha uma coisa que me
aliviava, saber que Tiago estava tentando levar sua vida, fazendo seu trabalho da mesma forma que fazia
quando estava conosco e vivendo tranquilamente sem a pressão dos conflitos que existiam quando ainda
estávamos juntos. Com o passar dos dias ele passou a nos visitar porque dizia que sentia muita falta da
nossa convivência e isso aliviava minha saudade.

Tiago disse que se dependesse dele não teríamos nos separado e eu sabia que ele sentia a nossa
falta, mas eu sentia que ele também sabia que precisávamos viver aquele momento separados para tentar
colocar todas as nossas confusões emocionais do lugar. Eu percebia que, apesar de tudo, ele parecia mais
leve, mais tranquilo, e isto me trazia um sentimento misto de alegria e de dor. As brigas na nossa casa
amenizaram porque não tinha mais motivos para brigas. Eu tentava suprir o buraco que sua falta causava as
meninas, preenchendo meu tempo livre com elas, mas era nítido como ele nos fazia falta. E quando eu
pensava que tudo parecia estar sob controle, outra situação foi desagradável aconteceu. Minha mãe
começou a se sentir desconfortável convivendo comigo e com minhas filhas.

Minhas filhas e eu sempre fomos muito introspectivas com relação a conviver com outras pessoas
que não fôssemos nós mesmas. Mesmo antes de minha mãe ir nos ajudar, ela nunca teve uma convivência
de afinidade ou intimidade conosco por que raramente minhas filhas iam lhe ver, porque minha mãe é o
tipo de pessoa que não gosta de mexam em nada dela e crianças gostam de mexer em tudo, então sempre
evitamos importuná-la. Acredito que ela tentou buscar algum tipo de aproximação quando passou por essa
experiência em nossa casa, acontece que as meninas já eram bem grandinhas e criar esse laço, assim, sem
mais nem menos e com elas já conscientes de tudo se tornou um pouco desafiador. Nesta época Lara já
estava com quatro anos como caçula e Amanda com treze como filha mais velha, então todas elas já tinham
uma percepção de que isto era muito difícil.

Minha mãe passou a reclamar do meu comportamento e das meninas e dizia que nós não sabíamos
conversar. Que quando eu chegava do trabalho não falava direito com ela e que as meninas passavam a
manhã inteira, ou com a cara enfiada no celular ou na televisão e que parecia que ela era uma empregada
para nós. Eu ainda conversei (briguei na verdade) com as meninas pedindo para que elas lhe dessem um
pouco mais de atenção, mas as meninas se defenderam dizendo que não tinham nada para conversar com
minha mãe, então eu percebi a partir dali que teríamos problemas futuros e que eu não tinha feito uma boa
escolha trazendo minha mãe para junto de nós. Ela realmente não tinha uma boa conexão conosco. Apesar
de ser minha mãe ela não tinha construído em mim ou nas minhas filhas esse tipo de ligação, então
sentíamos que suas cobranças não faziam sentido algum. Eu tentei fazer com que ela se sentisse menos
desconfortável, mas teve um dia que eu não consegui. Tinha tido uma manhã estressante no meu trabalho e
quando cheguei percebi que ela estava chateada.

Outra coisa que a incomodava é que ela não entendia porque Tiago e eu não tínhamos nos
distanciado mesmo com a nossa separação, e chamava a nossa relação de bagunçada, tornando tudo ainda
mais difícil para mim. Lembro de ter falado para ela que ela não tinha o direito de opinar dessa forma na
nossa vida pessoal, pois ela vivia coisas piores e nós (filhos e netos) tínhamos que entender, e disse que
parecia que ela sentia inveja da minha vida e foi essa frase que transformou essa situação numa briga
horrível, onde ela saiu com muita raiva e gritando que não era minha empregada, que eu era mau
agradecida e que nunca a respeitei. Já fazia quase um mês que Tiago estava na casa da mãe dele e de fato
estávamos voltando a conversar porque sentíamos muita falta um do outro, então essa situação serviu para
nos reconectar novamente. Contei para ele o que tinha acontecido e como ele já conhecia um pouco minha
mãe, não ficou surpreso com toda a história. Esta reconexão me fez sentir uma vontade constante de Tiago,
e acho que (eu realmente não tinha certeza) ele de mim, então decidimos reatar a nossa união. Sempre senti
que Tiago era a única pessoa do mundo que me entendia. Quando nos separamos ele estava distante por
causa do excesso de trabalho e também parecia confuso dentro do nosso contexto familiar, mas eu preferi
entender que aquilo era somente uma fase e que passaria. Então conversamos e decidimos tentar outra vez.
Conversamos com as meninas menores, que ficaram felizes por saber que Tiago voltaria ao nosso convívio.
Amanda resolveu se abster. Com treze anos ela já tinha uma mentalidade concreta e decidida acerca dos
seus pensamentos. Disse apenas que éramos adultos e que sabíamos o que estávamos fazendo.

Aquele pequeno apartamento me trouxe momentos confusos, mas tinha uma coisa que eu gostava
muito nele. Sempre tinha água nas torneiras e nós nunca precisávamos nos preocupar com isto.
17

“APARTAMENTO DO PRIMEIRO ANDAR II”

Sobre tentar mais uma vez.

Ficamos pouco mais de um mês morando em casas separadas. Quando ele voltou, disse que ali era
muito pequeno para todos nós. No mesmo andar que estávamos, tinham desocupado um apartamento um
pouco maior que o nosso. Alugar ele iria economizar dinheiro e energia, por que podíamos fazer a nossa
mudança sem precisar contratar nenhum transporte e o esforço de mudar de um apartamento para o outro
seria infinitamente menor do que de mudar de um prédio para outro. E assim fizemos. Lá estávamos nós,
recomeçando. Não éramos perfeitos. Nunca fomos. Errávamos constantemente um com o outro durante o
processo de convivência juntos, e também errávamos com as nossas filhas. Eu sentia que precisava mudar
muitos comportamentos e sentimentos de inferioridade para conseguir dar certo com Tiago. Era muito
insegura acerca de quem eu era ou doque poderia ser para ele ou para minhas filhas, mesmo tendo chegado
até ali, e ele percebia isto, mas não sabia o que fazer para lidar ou como poderia prosseguir para me ajudar,
e eu sempre o entendi. Ele não precisava saber. Ou precisava? Não sei. O fato é que estávamos tentando.

Nessa época já tínhamos parado de frequentar a igreja com a mesma assiduidade de antes.
Percebemos que ela não era essencial e que ninguém conhecia os nossos problemas verdadeiramente tanto
quanto nós. Que não era preciso estar inserido em uma doutrina para encontrar Deus e não precisávamos de
conselhos de pessoas bem intencionadas religiosamente, mas que não nos conheciam intimamente, a
compreendermo-nos em primeiro lugar para, a partir daí, conseguirmos nos encontrar, só assim poderíamos
aprender a discernir o sentido de tudo aquilo que estávamos vivendo, e isto só dependia da gente. A igreja
estava dentro de nós, independente de religião. Nesse apartamento vivemos momentos de tranquilidade,
mas com o tempo percebemos que mesmo ele sendo maior do que o anterior, ainda não era suficiente para
nós, então decidimos procurar outro lugar para morar.

Tentamos por mais sete anos, mas sem a condição de um suporte psicológico adequado que me
ajudasse a superar meus medos diários, que já tinham se transformado em traumas, se tornou insustentável
lutar.
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“APARTAMENTO DE MARCELLU´S PIZZARIA”

2023 – Desistindo de desistir de mim.

(Texto escrito em 19/04/2023).

Queria por um momento fazer um exercício mental de reflexão com você.

Esquece toda dor que estamos vivendo hoje por causa das nossas ações erradas dos últimos tempos e pensa
somente na situação a seguir.

Em 2016 passamos pela nossa primeira crise concreta dentro do nosso relacionamento.

Eu estava extremamente sobrecarregada, trabalhando muito em uma escola e em casa, cuidando das
meninas ainda muito pequenas, fazendo faculdade em Guarabira, tendo que lidar com uma fase super
difícil da adolescência de Amanda, tendo que suportar o pai das meninas me manipulando por causa do
valor da pensão, e ainda precisando lidar com os medos constantes na nossa relação por causa da minha
insegurança natural por acreditar que eu não devia ter envolvido você no meu mundo tão cheio de caos,
acreditando que você poderia estar vivendo algo muito melhor com pessoas muito melhores (que você
sabia que merecia).

Você estava submerso na euforia dos seus primeiros anos de trabalho na prefeitura.

Sempre envolvido em eventos culturais e políticos, cheio de perspectivas e esperanças acerca do futuro no
seu trabalho, e talvez, tão submerso, que não conseguia imaginar o que se passava, dentro de mim.

Pedi um tempo. Eu estava a beira de um colapso.

Você não entendia, e eu sofria por você não entender, mesmo assim saí. Eu precisava que você percebesse
o tamanho do problema em que tinha se envolvido... E também precisava ficar sozinha, pois compreendia
que você não sabia lidar com tudo aquilo. Eu queria a sua e a minha paz.

Peguei todo o amor q eu tinha por você, junto com alguns pertences, mais as minhas 5 filhas, e fui para
outro lugar tentar assimilar toda aquela situação. De longe, tal qual um observador sob uma pedra no alto
de uma montanha, assistindo a própria vida passar. Sofri e fiz você sofrer.

Mas eu percebi algo naquela época. Seu sofrimento não o impedia de "viver" outras situações.

Era como se eu fosse apenas algo utilitário, que substituído, dava lugar a outras utilidades melhores.
Percebi que você estava indo muito bem. E até que eu também estava.

Mesmo com imensa saudade, havia tirado das minhas costas a responsabilidade da cobrança diária.

Era para termos parado ali, porque ali você já tinha percebido que poderia viver o que realmente merecia
viver. E novamente eu estraguei tudo, indo até você e lhe roubando mais uma vez todas as suas
possibilidades.

Sim... Era perceptível que você não queria mais voltar a viver todo aquele caos pelo qual fiz você passar
nos anos anteriores, submetendo-o a estar em nossa (sobretudo na minha) convivência.
Voltei inteira do amor que nunca tinha passado, mas aterrorizada com o medo de que novamente estivesse
fazendo você cometer os mesmos erros.

Senti (vi) que você voltou pela metade, mais confuso do que entrou pela primeira vez.

Depois disso vieram as reais desconfianças, as reais traições.

Depois disso vieram à conta-gotas, os cotidianos fins.

Eu sei, de 2016 até aqui são muitos dias de muitas dores, sete anos especificamente.

Mas eu não quero falar de dores quando não estiver mais com você, Tiago.

Eu quero falar de amor. Daquele que eu senti pela primeira vez quando olhei em seus olhos depois daquela
apresentação de teatro que você me convidou para ver em junho de 2010.

Essa é a lembrança linda que eu quero levar da nossa relação. O momento em que percebemos que
poderíamos nos amar muito algum dia, e nos amamos.

Farei muitas sessões de terapia para superar cada dia difícil desses últimos sete anos. Mas eu prometi para
mim mesma que lutarei todos os dias para não olhar para eles com olhos de amargura ou de rancor, assim
como não olho para todas as vivências difíceis que existiram antes e que ainda irão existir depois de você.

Aprenderei a cuidar de quem sou como mulher para nunca mais permitir que me diminuam como tal, e
seguirei na tentativa de dias melhores.

Obrigada pela oportunidade do crescimento.

Lhe desejo (sempre lhe desejei) o melhor do melhor.

EPÍLOGO

Às vezes fico me perguntando...


Será que ter uma infância justa me proporcionaria um futuro mais mentalmente mais tranquilo? Ou
será que mesmo tendo todo o suporte e apoio necessários para o meu crescimento saudável eu iria plantar
as sementes que me levariam para os caminhos que eu percorri, inevitavelmente?

A verdade é que algumas dúvidas serão sempre incógnitas absolutas, porque elas não dependem
unicamente de nós e das nossas ações, mas sim de todas as vivências humanas do nosso meio.

Então, sendo assim, quais são as minhas certezas? São essas:

- Não tenho (nem quero) o poder de determinar ou de controlar a vida de ninguém.

- Minha vida é curta demais para ficar perdendo tempo com o que não importa.

- Conhecimento e sabedoria são a chave para uma vida bem vivida.

- Amor é ação.

- Ser mãe não é doar-se, é dividir-se.

- Dizer Não é necessário.

- Crescer é incrivelmente doloroso.

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