Mulheraço | Sexo Fragíl | Aninha de Ninho | Violência Obstétrica
Sobre
Essa coletânea de quatro textos, compõem a minha narrativa sobre
aquilo que tem sido as batalhas diárias de sobrevivência da mulher Angolana.
Narrativas que carregam na sua criatividade textual imagens capazes
de nos teletransportar a lugares, sentir cheiros e acima de tudo conhecer as personagens, seus corpos e histórias.
É sobre a mulher Angolana, porém acredito com bastante convicção
que toda e qualquer mulher africana e não só, conseguirá encontrar dentro deles pedaços de si própria, afinal , somos iguais dentro das nossas singularidades e detalhes pelo simples facto de sermos mulheres. MULHER-AÇO ANO DE PRODUÇÃO: 2019 Eu nasci em um bairro humilde de Luanda. Lá Fomos acolhidos por uma senhora que, na banda, usamos "humildade" para falar de para mim, parecia mais um homem do que pobreza, nunca entendi o por quê, aprendi a mulher. Tinha o corpo todo subdividido, não aceitar apenas. Esse bairro chama-se calemba, por ancas nem curvas, mas por músculos não admirem que tive de ter paciência ao me tão longos e grandes que nenhum homem adaptar a uma outra realidade! a fazia frente. A mim dava medo! Mas era fixe fazer Aos 7 anos, fui arrancada do primeiro chão que revisão da matéria história sem custos eu beijei, o ralador dos meus joelhos, os cantos adicionais. Era só olhar para ela parecia que entoaram os meus primeiros gemidos. Sem uma guerreira dos tempos antigos: Nzinga consenso, sem cordialidade e sentimento, meus Mbande. pais se mudaram para um território muito À medida que fui crescendo, nada mais me distante daqui, longe... Onde o sol faz a curva e inspirava temor por que eu percebi que o ar é para todos. Um bairro de inicial B (bita), aquelas mãos não São de pedreiros é mão um B de Bem-vindo a uma nova realidade. de mulher guerreira que se diz! De mulher que não se limita simplesmente em E aquelas mãos cheias de calos... Xe, calo, pegar uma colher, não se alimenta de sobras e cala, não são calos! São estrelas que o na sombra entoa louvor aos cantares dos universo lhe concedeu, diplomas de pássaros. É um espelho para quem não se méritos. Com aquelas palmas limpou enxerga e um pouco de luz para quem vive no lágrimas, calou lutos e destrancou escuro. cadeados. Abençoada com um bom ventre , não admirem que de 3 partos produziu 9. Tem mestiçagem mas não sabe. Mistura de Não inveja vitórias alheias e no cazukuta da MKimpa Vita e rainha Ngola nas veias. vizinha faz palmas e mexe a silhueta. É da Terra do Kwanza, do ouro e do petróleo mas de palancas foi gerada. Vende banana frita, assada e fervida sou fã de Senhora vaidosa! Hora batom, hora lápis banana pão mais três vezes dela por fazer dele mas sempre maquiada com a poeira do o seu ganha pão. calemba 2. Mulher de pulungunza, sangue quente correndo nas veias igual as cachoeiras do norte. Os quatros elementos da natureza não Pérola a descreve em sua música "Deus te fez conseguem lhe fazer frente ao menos que mulher" . existissem mais dois. Ela é abrigo contra o vento, resguarda até a Vizinha mas, mais família que muitas tias chuva e a Terra recolhe os seus Passos leves que só aparecem quando a barriga da que até terremoto acalma. sobrinha também aparece, hipocrisia! Nossa guerreira Hora zungueira, hora doméstica mas sempre Superwoman jeitosa. Carrega na mochila de sua vida o Mulheraço princípio que perdura em sua família há já vai Mulher de aço três gerações: "pobre não pode ser porco". E no Ese a veres descalça por aí de peitos pra chão de areia estende as tangas das crianças fora por favor não te rias que de cabelo tão limpo piolhos não fazem moradia. Ela é liberdade pura Poesia marginal Essa é a tia Maria: doutora, advogada e um bocado médica, não admitem que até na Mas, se não Sabes o que é calMaria então comida das galinhas ela põe antibióticos baza, mas, por favor, não atrapalhe nas Não riam ! bênçãos. Estou a falar da tia Maria SEXO FRAGÍL ANO DE PRODUÇÃO: 2021 Mama chegou à casa cansada com o pano da - "Saiam daí, saiam! Não me comam os cintura pendurado no ombro do lado esquerdo. lucros''. No rosto, gotas secas de lágrimas corriam em Mas sem muito esforço, então nós sorriamos, direção aos lábios para acariciar o sorriso pois já sabíamos que era propositado, tão forçado. Tão logo percebi que não era foi bom propositado que já estava se tornando tradição mamãe voltar à casa com 4 pacotes de dia o que ela tiverá deixado escapar dentre os banana todos os dias todos. Dois para nós, e lábios. Era na verdade, um grito de socorro dois para nós partilhar com os meninos da prendido nas letras do alfabeto que se usam casa ao lado. para escrever um bom dia. Mama era calculista, uma verdadeira Já com a banheira no chão, pediu-me de volta o economista também. Tão calculista que troco do dinheiro que disponibilizará para o comprava o sal de casa contando com as almoço. E num período sequencial, como que vezes que a vizinha da casa ao lado viesse lutando pela sobrevivência, crianças suas e das pedir um bocado, ou com palavras impensadas vizinhas corriam em direção a banheira para deixar bem claro que como vizinha é cassumbular o bocado de banana frita que obrigatório que levasse um bocado de cada sal restara da venda. e fósforo e se a ousadia lhe permitisse , E ela dizia : naquele dia um pouco de arroz também . Na manhã seguinte, raios de sol descortinaram Com outras palavras mas traduzindo dá no a minha janela. Lembrei do papá! mesmo. Na verdade, ela proferiu um discurso Ele costumava abrir a janela do nosso quarto de palavras doces e leves de carregar que para que também era a nossa sala e cozinha em mim foi mais uma de suas muitas orações. todos os amanheceres, nunca nos deu uma Ela disse: explicação coerente sobre mas aquilo era tão -"Filha!" costumeiro que o sol fazia a sua vez sempre Pela primeira vez me chamou de filha embora que ele não estivesse. Tinha uns 7 anos que sempre fosse sua . não o via. -Qual é o seu maior medo? Mama dava passos lentos em direção a parede por Mamãe perguntou sobre o meu maior medo, onde sobre um prego colocava a banheira das mas era dos seus que ela queria ouvir. vendas, levantava a minha cabeça devagarinho Sem gaguejar com as palavras, assim como se para tirar a rodilha que de noite era a minha já as tivesse preparado há anos eu disse: almofada também, enquanto ouvia cada um de nós -Meu maior medo é te perder! Quando você sai dormindo. Mas naquele dia foi diferente: ela por essa porta eu fico contando as horas para chegou até mim e disse vamos orar. que entres de volta. Ela sorriu, fiquei sem entender, havia aberto Nós somos tão frágeis que até palavras vinda da pedaços meus, meus maiores segredos e ela boca de sua mãe, alguém que não as sabe simplesmente sorriu. escrever direito mexe com a sua sensibilidade -A vida é um lugar ruim para as crianças. Um fazendo buracos na alma. dia vais crescer e perceber que além de ruim Tão frágeis que não conseguimos nos cegar a existência alheia. Nossos ouvidos não se ela é perigosa para os adultos. E quando se é ensurdecem ao chorar do órfão e aos gemidos da mulher ela é umas 4 vezes mais perigosa. viúva. Mas, não se preocupe basta se comportar Tão frágeis que meu corpo ganhou escudos a como um homem que tudo muda. Aí ela se chibatadas do polícia na rua e cada banheira do torna umas 7 vezes mais perigosa e ruim negócio levada por eles é na verdade um incentivo também. para comprar uma nova. Eu comecei a tremer e lembro como se fosse Tão frágeis que acordamos antes do galo cantar, hoje meu coração batendo sem parar. E num transformamos lágrimas em sorrisos , engolimos intervalo entre um respirar e o outro ela salivas no lugar da água para matar a sede, nossos dizendo: pés a muito que desconhecem o cheiro de um -Eu sei como te sentes filha chinelo novo e ainda assim beijamos o sol todos os dias às 12 e Isso faz de nós frágeis. s para que entres de volta. Tão frágeis que cada grito de socorro nosso é Um dia eu já não vou estar aqui e você vai abafado, só serve para dar audiência na televisão e perceber que a nossa única fraqueza como quando surge um outro grito bem mais decorado mulher é ser forte. de sensacionalismo ele é descartado e deixa de ser manchete nos jornais. Mas mesmo assim nós prosseguimos, nunca desistimos e isso faz de nós frágeis por que nunca baixamos a guarda Tão frágeis, que eu sustento a ti e aos seus irmãos todos os dias , 365 dias do ano com uma banheira e rodilha, mas se for um homem vira notícia. Tão frágeis que nossa verdadeira história foi sepultada, enterrada a mil metros côvados, mas com a oralidade fizemos jus e mantemos ela viva tal como brasa acende a brasa. ANINHA DE NINHO ANO DE PRODUÇÃO: 2021 Eu sabia que perder uma mãe parte-nos o Minha mãe chama-se Aninha e é coração. Nunca estive tão perto desta realidade impressionante a forma como ela nos aninha toda vez que ela batia a porta eu não a deixava em suas asas. Mãe de 7+2 o universo entrar. E quando via pessoas se derretendo ao presenteou-lhe com um par de gêmeos. chão , chorando quase aos prantos eu Minha mãe era poeta sem lapiseiras e papéis, simplesmente partia para a compreensão. ela escrevia sobre o chão versos de rimas Foi inculcado em mim desde criança que mãe é emparelhadas, cantava bem quando calhava. um dos maiores tesouros. Eu tive de crescer e Melhor que os pássaros? Não! Mas era a minha ver por mim que mãe é o próprio tesouro. É mãe e em todos os seus passos eu via poesia. ouro, Luz, fonte de água que nunca acaba. Mãe Sua companhia era uma bela cortesia. é eterna, até quando morre ela vai e corre… se A Deusa dos Deuses transformando na nossa estrela servindo de luz, Os céus sentiam inveja de mim anjo da guarda. Diz a lenda que no passado ela foi a virgem É sacrifício vivo e puro Maria Seu amor não acaba, não é curto E se não fosse, ainda assim a amaria. Seu carinho é bálsamo, cura Rainha da Liberdade, voava sem medo do Mãe é esperança e razão escuro e do vazio, tão pouco do desconhecido. Uma vez, enquanto voava, um vento forte Confesso que eu quis ser um paraquedas e soprou-lhe quebrando uma das asas. De longe parar aquela queda mas o vento soprava tão observei minha mãe tentando segurar as penas forte e fazia poeira o que me impediu de ver os para as costurar em si. E só não confesso que olhos com vida de minha mãe pela última vez. fiquei com pena por que ela me ensinou que pena é um sentimento muito mesquinho. Minha bela gaivota havia morrido e já não havia _"Devemos é sentir amor e empatia, o amor volta. motiva a agir e a pena nem têmpera a galinha." Dizer adeus a um corpo outrora cheio de brilho, Assim dizia ela. hoje esbranquiçado e congelado, essa foi a _"Ela vai sair dessa!" sussurrei. minha pior derrota. Não era a primeira vez que eu via minha Naquele dia eu me tornei poeta e ser poeta é mãe pegando pedaços seus para tampar os ruim. seus próprios buracos , mas eu me enganei. Poetas sentem com o coração e a alma e isso Ela estava cansada, já toda molhada de às vezes me enforca. lágrimas. Eu não tinha forças para segurar uma lapiseira Eu vi minha mãe caindo sem nem ter poder e o meu peso era igual ao de um papel. para lhe segurar. Então eu não podia escrever, eu só podia ver. Ver meu coração querendo sair pela boca. Ver minha adolescência engavetada porque morria a minha mãe e nascia eu: uma menina que se tornaria Irmã e mãe de seus irmãos. E quando já não me sobravam forças eu gritei… entoei louvores de estilo fúnebre. Mas como não ser de estilo fúnebre? Se com 15 anos conheci a morgue e fui obrigada a dar de banhar quem ontem tivera me dado a vida. VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA ANO DE PRODUÇÃO: 2021 Eu não queria falar sobre esse assunto por não Não tenho medo de ser mãe, tenho medo do estar no meu real lugar de fala. Mas por ser que a maternidade me reserva. Se são agulhas mulher de palavra e da palavra levantei-me pelas nádegas o tempo todo para apressar o para falar alto e em bom tom, em nome das processo ou lâminas rasgando 10 centímetros muitas há quem o sistema cortou as vozes com da minha barriga por ser mais lucrativo para um par de desculpas e receita médica para as alguns. Que desumano! feridas. E eu me pergunto, mas quanto as feridas da É que há quem não perceba que tem entre as alma, quem as trata? mãos o poder sobre várias gerações que já passaram e sobre muitas que hão de vir. Nosso É que aqui não cortam só as vozes, cortam o sistema é precário, sim querido doutor. Mas prazer de carregar no ventre uma vida com a mais precário e caro ainda é o seu amor. esperança de a tela nos braços entre o colo Diariamente 1300 mulheres morrem pelo depois de 9 meses. Cortam a dádiva divina de mundo todo durante o serviço de parto e isso é ser mãe e a bênção de ver crianças correndo só o que as estatísticas mostram. pela casa toda. cortam a vida e a nascença e s para que entres de volta. pior, há quem perde os dois. Talvez devêssemos dizer todas sim ao aborto Eu não quero ver minha mãe chorando pelos mas antes diremos não a violência obstétrica. cantos entre o corredor por ser obrigada a escolher entre mim e o bebê devido a uma Pior é que há quem não sabe do que se trata. negligência médica. E é bom que ela escolha o Mulheres principalmente. Nosso sistema ensina bebê. Por que se escolher a mim, viverei para que violência contra mulher é só a doméstica. derrubar com palavras faladas esse sistema Somos educadas a se deslocar para o hospital 6 que acha que violência contra mulher é só a horas depois das dores de parto para evitar A doméstica. Enquanto que por dia milhares permanecer calada em meio às dores para evitar sofrem violência obstétrica. saladas na mesma xingamentos, ofensas ou qualquer outro tipo de sala como sardinhas enlatadas... brutalidade. Mas onde é que já se viu? que Deusa Nós não viemos parir porco, viemos parir se cala enquanto faz o mundo? pessoas que podem mudar o rumo dessa Me mandar calar a boca, ameaças de limpar meus próprios excrementos ,me fazer sentir inferior por história. ser adulta, por ter um número de filhos maior que o A criança é o futuro do amanhã, será que só vale número 5, por não ter um homem aguardando por quando tá fora? mim com um buquê de flores , por ser menor... E não é só de Angola que eu falo, falo do mundo Onde é que já se viu? todo. O Brasil é o segundo país do mundo com maiores porcentagens de partos realizados por cesariana e eu me pergunto: Quando é que isso virou moda? Nossos antepassados usavam amor e mãos limpas para dar à luz a quem quer vida e olha, nascemos todos bonitos. Por isso hoje eu escrevo para que mais nenhuma mulher se cale, e sim querido policial... Violência contra mulher não é só a obstétrica. Contacto: +244927659448 instagram: @irene_amosi07 facebook: Irene A´mosi