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1

período
º

CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Antropologia
Cultural
Fernanda Veloso Lima
Flávio de Oliveira Carvalho
Fernanda Veloso Lima
Flávio de Oliveira Carvalho

Antropologia
Cultural

Montes Claros/MG - 2013


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2013
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Coordenadora da UAB/Unimontes Chefe do Departamento de Política e Ciências Sociais/Unimontes


Maria Ângela Lopes dumont Macedo isabel Cristina Barbosa de Brito
Autores
Fernanda Veloso Lima
Mestre em Desenvolvimento Social pela Unimontes. Bacharel em Ciências Sociais pela
Unimontes. Professora de Antropologia do Departamento de Política e Ciências Sociais
– Unimontes. Professora pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Homocultura –
NEHOM/Unimontes.

Flávio de Oliveira Carvalho


Mestre em Desenvolvimento Social pela Unimontes. Bacharel em Ciências Sociais pela
Unimontes. Analista Educacional da Superintendência Regional de Educação de Unaí –
SRE Unaí-MG.
Sumário
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Unidade 1 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
A antropologia como ciência: surgimento, teoria, método e a especificidade do campo
antropológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1.2 Antropologia na história: os primeiros contatos com a alteridade . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

1.3 Um novo contexto histórico: surgimento da antropologia como ciência,


conceituação, objeto de estudo e especificidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

1.4 A construção do conceito antropológico de cultura, o etnocentrismo e o relativismo


cultural. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Unidade 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
A antropologia e a análise das sociedades primitivas – organização social, sistemas de
parentesco, economia, poder e expansão colonial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

2.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

2.2 Conceituando as sociedades primitivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

2.3 Considerações sobre os sistemas de parentesco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

2.4 As trocas econômicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

2.5 Expansão colonial e as consequências para os povos não ocidentais . . . . . . . . . . . . . 37

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

Unidade 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
A Antropologia e o estudo das sociedades complexas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

3.1 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

3.2 Os métodos e técnicas da Antropologia e sua utilização nos estudos das sociedades
complexas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

3.3 A antropologia urbana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3.4 A Antropologia no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54

Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

Referências básicas, complementares e suplementares . . . . . 59

Atividades de aprendizagem - AA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Apresentação
Caro(a) acadêmico(a),

A disciplina Antropologia Cultural é parte integrante da estrutura curricular do primeiro mó-


dulo do Curso Ciências da Religião da Universidade Aberta do Brasil – UAB – da Universidade
Estadual de Montes Claros – Unimontes.
Na disciplina, discutiremos um conjunto de questões sobre algumas perspectivas do pensa-
mento na Antropologia. Para tanto, este curso está direcionado para uma exposição introdutória
e crítica dos conceitos basilares da perspectiva antropológica. Preferentemente, organiza-se em
uma reflexão acerca de alguns conceitos e métodos que caracterizaram e caracterizam a espe-
cificidade da Antropologia como uma ciência no quadro das Ciências Sociais e/ou das Ciências
Humanas.
Nessa direção, almeja-se atingir os objetivos que se seguem:
• oportunizar reflexões críticas acerca de conceitos fundamentais da teoria antropológica;
• habituar o(a) acadêmico(a) com os conceitos basilares da Antropologia, para que consigam
compreender, de maneira crítica, as diferenças sociais e culturais que compõem a humani-
dade e, também, entender as diversidades étnicas e culturais da humanidade;
• principiar o(a) acadêmico(a) na problemática capital da Antropologia como ciência do ou-
tro, ou ainda, ciência da alteridade;
• conduzir o(a) acadêmico(a) à compreensão das especificidades da Antropologia Cultural
como uma ciência social e/ou humana;
• discutir as análises antropológicas sobre as sociedades primitivas: organização social, siste-
mas de parentesco, economia e poder;
• explicitar as relações construídas a partir do contato dos europeus com as sociedades primi-
tivas no contexto da expansão colonial;
• apreender, introdutoriamente, a trajetória da antropologia nas sociedades capitalistas e, em
especial, no Brasil, abordando questões como raça, heterogeneidade cultural e populações
indígenas.
Diante disso, o presente caderno foi dividido em três unidades, nas quais abordaremos os
temas descritos anteriormente, para fins de cumprimento dos objetivos propostos para esta dis-
ciplina. Ou seja:
Unidade 1: A Antropologia como Ciência: surgimento, teoria, método e a especificidade do
campo antropológico.
Unidade 2: A Antropologia e a análise das sociedades primitivas: organização social, siste-
mas de parentesco, economia, poder e a expansão colonial.
Unidade 3: A Antropologia e o estudo das sociedades complexas.
E então, pronto(a) para começarmos nossos estudos? Lembre-se que a leitura deste caderno
é de suma importância para o seu aprendizado. Além disso, sua participação nas ferramentas in-
terativas da sala de aula virtual proporcionará o contato contínuo com o professor e o tutor para
o esclarecimento de dúvidas, indicações de outras leituras e acompanhamento das atividades
propostas. Portanto, organize o seu tempo e bons estudos!

Os autores.

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Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Unidade 1
A antropologia como ciência:
surgimento, teoria, método
e a especificidade do campo
antropológico
Fernanda Veloso Lima
Flávio de Oliveira Carvalho

1.1 Introdução
Esta primeira parte da disciplina Antropologia Cultural tem por intuito principiar o(a)
acadêmico(a) do Curso de Ciências da Religião no entendimento das problemáticas fundamen-
tais da Antropologia. É, pois, uma Unidade centrada na análise de conceitos e abordagens antro-
pológicos. Almejamos que os(as) acadêmicos(as), ao se confrontarem com o esqueleto conceitual
desta disciplina, consigam refletir sobre as singularidades da Antropologia como uma Ciência pe-
rante outras Ciências da Humanidade, compreendendo, portanto, a Antropologia como um saber
erigido sobre um alicerce histórico, formado por indivíduos que colaboraram em cada contexto
distinto, para sua fundação. Assim sendo, a formatação da Antropologia, como disciplina, se emol-
dura em um contexto no qual alguns pensadores intentavam analisar as diferenças percebidas Glossário
sob uma forma sistematizada, proporcionando uma representação e compreensão mais elabora- Antropologia: antro-
das sobre as diferenças, especialmente em sociedades com características particulares. Portanto, pos, homem; logos,
constatamos que perceber as diferenças e concebê-las como um exercício da alteridade consiste estudo (LAPLANTINE,
2000).
em uma primeira forma, um rascunho de um pensamento antropológico.
Nesse sentido, verificaremos como se cunharam as primeiras reflexões sistematizadas so-
bre o confrontamento com a diversidade, inclusive verificando as especificidades das primeiras
descrições sobre o “Outro”, o diferente, por soldados, comerciantes, viajantes, cronistas, e missio-
nários, refletindo, assim, sobre qual eram seus discursos sobre outras populações, outros povos.
Poderemos ponderar, então, como, a partir da perspectiva de pensadores, uma discussão mais
metódica a respeito da diversidade cultural inaugurou o movimento de instituição da Antropolo-
gia como Ciência. Por fim, examinaremos, nesta Unidade, as representações do conceito de cul-
tura embasadas no referencial antropológico, bem como discutiremos as conceituações de etno-
centrismo e relativismo cultural, basilares para uma compreensão da Antropologia como ciência
que transita entre a unidade e a diversidade, procurando compreender a humanidade em sua
totalidade. Não obstante, estudaremos esta unidade a partir dos temas relacionados em subuni-
dades, que se apresentam da seguinte forma:
1.1 Introdução;
1.2 Antropologia na História: os primeiros contatos com a alteridade;
1.3 Um novo contexto histórico: surgimento da antropologia como ciência, conceituação,
objeto de estudo e especificidade;
1.3.1 Antropologia e método: a imersão na cultura do outro;
1.4 A construção do conceito antropológico de cultura, o etnocentrismo e o relativismo cul-
tural;
1.4.1 Etnocentrismo;
1.4.2 Relativismo Cultural.
Agora que você já conhece a estrutura desta Unidade, leia com atenção, uma, duas, ou
quantas vezes forem necessárias para assimilação do conteúdo.

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UAB/Unimontes - 1º Período

PArA SABer MAiS


Para aprofundar a
discussão sobre o
1.2 Antropologia na história:
surgimento do Homem
como objeto de estudo
da ciência, leia o artigo
os primeiros contatos com a
“As ciências humanas
na arqueologia de Mi-
chel Foucault”. O artigo
alteridade
pode ser encontrado
no endereço eletrônico:
http://www.unicamp. O homem encarou a diversidade cultural desde os primórdios de sua história. Isso porque
br/~aulas/pdf3/05.pdf. acreditamos que embora o homem sempre tenha pensado e refletido sobre si mesmo e sobre os
diversos povos com os quais tivesse contato, esses pensamentos sempre foram guiados por seu
próprio modo de interpretar o mundo, ou seja,
seus valores, crenças, etc. Isso ocorreu pelo
menos até o fim do século XVIII, quando uma
nova realidade, a sociedade industrial, suscitou
no homem a necessidade de colocar-se como
objeto da ciência, como já fazia com a nature-
za (FOUCAULT, 2000). Assim, o pensamento do
homem sobre si mesmo deixa paulatinamente
o campo das especulações para tornar-se cada
vez mais metódico, segundo os preceitos da
ciência da época. Contudo, por hora, nos ate-
remos às formas como os homens se classifica-
ram ao longo da história.
Segundo Laplantine (2000) e DaMatta
(1987), o hábito, entre os homens, de se ob-
servarem e levantarem reflexões uns sobre os
outros é tão antigo quanto a própria humani-
dade. E são dessas relações, desses confronta-
▲ mentos, que aparecem as primeiras reflexões
Figura 1: Invasões ao acerca das diferenças. Nessa direção, a história da humanidade é marcada por vários períodos
Império Romano. de encontros entre o “nós” e os “outros”, os iguais e os diferentes. Diante disso, de acordo com La-
Fonte: Wikipédia. plantine (2000, p.13), “o homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as socie-
Disponível em: <http:// dades existiram homens que observavam homens”. O referido autor acrescenta, ainda, que para
pt.wikipedia.org/. Acesso
em 29 jul. 2013.
Lévi-Strauss, essa percepção sobre o “outro” consiste em modelos elaborados “em casa”, ou seja,
categorias criadas pelo próprio observador. Resumindo, na percepção de Laplantine (2000, p.13),
a ideia do homem sobre o homem e “sua sociedade e a elaboração de um saber são, portanto,
tão antigos quanto a humanidade, e se deram
tanto na Ásia como na África, na América, na
Oceania ou na Europa”.
Todavia, convém lembrar que essa enor-
me diversidade da humanidade infrequen-
Figura 2: Representação ►
de “bárbaros” temente sobressaiu aos olhos dos homens
saqueando Roma. Obra como um fato, pelo contrário, figuram, na
de Heinrich Leutemann, maioria das vezes, como uma monstruosidade
455 DC. que carecia de justificação. Assim, por exem-
Fonte: Wikipédia. Disponí- plo, eram designados como sendo bárbaros,
vel em:<http://pt.wikipedia.
org/wiki/Ficheiro:Heinrich_ pelos gregos antigos, tudo e todos aqueles
Leutemann>. Acesso em 29 que não participavam da helenidade. Essa ati-
jul. 2013. tude, que consiste em “expulsar” da cultura,
da condição de humanidade todos aqueles
que não participam de nosso modo de pen-
sar, sentir e agir, configura-se, para Laplantine
(2000), em um comportamento dos mais co-
muns entre as sociedades humanas, inclusive
as ditas primitivas.
Nesse sentido, conseguimos fazer uma
ideia de quais foram as impressões europeias

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Ciências da Religião - Antropologia Cultural

sobre os povos da América, esse Novo Mundo em vias de “descobrimento”. É claro que não de-
Glossário
vemos esquecer que, nesse contexto, século XVI, a Europa, além de viver um intenso movimento
humanista, já contava com várias nações em condições de enviar navios para exploração de ou- Helenidade: relativo
tras terras. Também já contava com um comércio bastante avançado com o Oriente. Logo, não ao período Helênico ou
Helenismo; do grego
é de se estranhar que, do século XVI até o século XVII, vários escritos tenham sido elaborados hellenizein, falar grego,
acerca das mais variadas culturas, em distintos espaços sociais, especialmente se pensarmos a in- viver com os gregos.
tensificação da expansão mercantil, bem como movimentos culturais como o Renascimento. En- Caracterizou-se pelo
tretanto, cabe ressaltar que esse contato, essas primeiras impressões dos europeus sobre os não ideal de Alexandre,
europeus ainda continuavam seguindo a lógica do estranhamento não sistematizado, isto é, o cujo propósito foi levar
e difundir a cultura Gre-
diferente como uma aberração. Nessa direção, não é de se estranhar que as populações do Novo ga, sobretudo, aos terri-
Mundo fossem sempre colocadas na condição de bestializados. Não obstante, os depoimentos a tórios conquistados
respeito desses novos “seres”, sempre se valiam de metáforas zoológicas, evidenciando sucessões (JAPIASSÚ; MARCON-
de faltas, como exemplos os seguintes discursos sobre os povos do Novo Mundo: não acreditam DES, 2001).
em Deus, não têm alma, não possuem escrita, são imorais, comem como animais, não possuem
arte, enfim, não tem passado nem futuro (LAPLANTINE, 2000). É óbvio que devemos mencionar
que todos esses relatos foram escritos por soldados, mercadores, colonos, viajantes, entre outros,
provindos da Europa que, por um motivo ou outro, travaram contato com essa nova realidade.


Figura 3: Contato entre
índios e europeus.
Fonte: Canal do educador.
Disponível em: <http://
educador.brasilescola.
com/estrategias-ensino/.
Acesso em 29 jul. 2013.

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UAB/Unimontes - 1º Período

BOX 1
DICA
Os Lusíadas
O Darwinismo consti-
tui-se em um princípio
pelos quais as espécies [...] A gente se alvoroça e, de alegria,
sofrem uma seleção Não sabe mais que olhar a causa dela.
natural, ou seja, os - «Que gente será esta?» (em si diziam)
indivíduos mais adap-
«Que costumes, que Lei, que Rei teriam?»
tados à determinada
condição ecológica [...] Comendo alegremente, perguntavam,
eliminam aqueles des- Pela Arábica língua, donde vinham,
providos dessa mesma Quem eram, de que terra, que buscavam,
condição. A origem Ou que partes do mar corrido tinham?
do termo se deu a
Os fortes Lusitanos lhe tornavam
partir da publicação
da obra “A Origem das As discretas repostas que convinham:
Espécies”, de Charles - «Os Portugueses somos do Ocidente,
Darwin. Posteriormen- Imos buscando as terras do Oriente.
te, o evolucionismo se [...]- «Somos (um dos das Ilhas lhe tornou)
apropria desse discurso
Estrangeiros na terra, Lei e nação;
para pensar o próprio
desenvolvimento da Que os próprios são aqueles que criou
humanidade. A Natura, sem Lei e sem Razão.
Nós temos a Lei certa que ensinou
O claro descendente de Abraão,
Que agora tem do mundo o senhorio;
A mãe Hebreia teve e o pai, Gentio.

Fonte: CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas de Luís Camões. Direção Literária Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão.
Disponível em <http://web.rccn.net/camoes/camoes/index.html . Acesso em 12 mai. 2013.

Figura 5: Livro de Charles Darwin, “A Origem


das Espécies”, de 1859. A imagem refere-se à
publicação de 2009.
Fonte: Linuxmall. Disponível em <http://www.linux-
mall.com.br/produto/livro-a-origem-das-esp-eacute-
-cies.html. Acesso em 12 mai. 2013.


Apenas no século XVIII, na Europa, esse
Figura 4: A
discurso, que qualifica o outro como não hu-
catequização dos
índios. mano, começa a enfraquecer. Em grande
Fonte: História Digital. Dis- parte, isso se deve aos relatos dos missioná-
ponível em:<http://www. rios jesuítas que conviviam com os nativos na
historiadigital.org/histo- América. Assim sendo, as ideias sobre os selva-
ria-do-brasil/brasil-pre-co-
lonial/povos-indigenas/ gens maus, sem moral, sem humanidade, pau-
questao-enem-2008- latinamente vão sendo substituídas por outras
-catequizacao-indigena- que concebem a existência de uma natureza
-na-america/>. Acesso em
29 jul. 2013. moral pura nesses povos. A questão, então, se- que esse discurso aproxima um pouco mais os
ria de apenas direcioná-los rumo à civilização. indígenas da condição de humanos, ainda que
De qualquer forma, o que podemos notar é considerados atrasados.

14
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

provava a necessidade de novos métodos e


Nesse sentido, percebemos a instauração teorias, bem como a necessidade de planeja-
de uma conjuntura embasada em interpreta- mento para o crescimento industrial e urbano,
ções com maior grau de sistematização, mas a expansão para outros espaços.
ainda distantes de desenvolver um método Tais necessidades proporcionaram o
científico. Contudo, nesse contexto de revolu- alargamento de horizontes, dados os con-
ções, tanto políticas quanto industriais, assim tatos entre diferentes povos e nações, além
como a crescente valorização da Ciência Na- de trazer à baila mais questionamentos para
tural, quando especialmente química e biolo- o homem sobre si mesmo. Enfim, nessa con-
gia ganham corpo em uma Europa encantada juntura, agregaram-se diversos elementos
com o Darwinismo e perturbada com as rá- que contribuíram para o surgimento e conso-
pidas transformações, surge uma recorrente lidação das Ciências Humanas. Diante disso,
questão entre os indivíduos: por que não vol- como esse processo se deu com a Antropo-
tar à ciência para o conhecimento do homem, logia? É justamente isso que estudaremos a
na sua totalidade, colocando-o como objeto seguir.
de um conhecimento metódico? Tudo com-

1.3 Um novo contexto histórico:


surgimento da antropologia como
ciência, conceituação, objeto de
estudo e especificidade.
Estudamos na subunidade anterior que atitudes de estranhamento, recusa, indagações,
observar, pensar e refletir sobre a própria con- assombro ou mesmo, com menor frequência,
dição de existência permeia a vida dos seres o encantamento pelo exótico. À vista disso,
humanos desde tempos remotos. Além disso, ainda que compreendamos que as reflexões
ainda que uma experiência em menor grau que do homem sobre o homem sejam tão antigas
o proporcionado pela expansão colonial euro- quanto a própria humanidade, e que possamos
peia, os homens sempre travaram encontros conjecturar, como nos demonstra Maybury-
com a alteridade. Esses encontros, dos quais -Lewis (2002), que a Antropologia deriva de um
temos vários exemplares no decorrer da histó- arrebatamento da curiosidade acerca de outros
ria, como exemplo, cristãos e pagãos; gregos e povos, intercalada com uma reflexão a respeito
bárbaros; e por fim europeus/ocidentais e não do próprio eu, de um anseio por compreender
europeus /não ocidentais, perfizeram as primei- a diversidade da cultura humana, concordamos
ras e rudimentares impressões que balizaram as com Laplantine que afirma:

[...] o projeto de fundar uma ciência do homem – uma Antropologia – é, ao


contrário, muito recente. De fato, apenas no final do século XVIII é que come-
PARA SABER MAIS
ça a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico) que toma Para enriquecer os es-
o homem como objeto de conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa tudos sobre a História
época é que o espírito científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio da Antropologia, con-
homem os métodos até então utilizados na área física ou da biologia. (LAPLAN- fira o artigo “A Antro-
TINE, 2000, p.13). pologia como ciência”
escrito por José Lisboa
Ainda, além disso, como nos mostra Da- co que atendesse a certos métodos, para que Moreira de Oliveira.
O artigo pode ser en-
Matta (2000), seria infecundo buscar as ori- pudesse ascender à condição reconhecida
contrado no endereço
gens da história da Antropologia, na antigui- de ciência. Assim sendo, o comportamento eletrônico: http://www.
dade, esquadrinhando trabalhos como o de humano, agora, a partir de um nascente eixo ucb.br/sites/000/14/
Heródoto ou de outros gregos. Nesse mesmo teórico-metodológico, passava à condição de PDF/Aantropologiaco-
sentido, Copans (1971) e Mercier (1974) argu- fenômeno observável e analisável. Aprofun- mociencia.pdf.
mentam que foi somente a partir do século dando a perspectiva que trata da Antropolo-
XIX que realmente se erigiu um empenho na gia como Ciência, Copans (1971, p. 35) pondera
direção de formatar um discurso antropológi- que “a história da Antropologia é também a
15
UAB/Unimontes - 1º Período

Isso nos conduz, portanto, a um primei-


ro elemento que caracteriza a especificidade
do fazer antropológico, a saber, a singulari-
dade de um objeto de estudo que lhe é pró-
prio. Sendo assim, podemos dizer que a An-
tropologia, constituindo-se basicamente em
espaços ocidentais (Estados Unidos e Europa
mais precisamente), encontra no outro (o não
ocidental) seus principais questionamentos.
É então nessa esfera dicotômica, nós/outros,
na compreensão dessas diferenças, às vezes
radicais, que está assentada a preocupação
recorrente da Ciência antropológica. Como
pondera Sanchis (1999), é a procura por uma
argumentação metódica a respeito da dife-
rença que vai delinear inicialmente uma ati-
tude, depois uma observação sistemática e,
por fim, uma nova Ciência, a Antropologia.
Com tais características, caro (a) acadêmi-
co (a), você pode concluir que a Antropologia
objetiva estudar o homem, mais especifica-
história das relações entre as sociedades euro- mente as ações sociais do homem como ser

peias e as sociedades não e europeias”. integrante de uma determinada coletividade,
Figura 6: Canibalismo e que ela, a Antropologia, diferencia-se das
Tupinambá. Sendo assim, você consegue perceber
que, no instante inaugural da Antropologia, outras ciências que também estudam o ho-
Representação do mau
selvagem. os estudos voltaram-se para a narrativa his- mem uma vez que os questionamentos cen-
Fonte: Brasil: Terra de tórica do encontro desses dois povos? Não trais que ela procura solucionar dizem respeito
Santa Cruz. Disponível obstante, sob o prisma de Da Matta (2000, às diferenças culturais. Por esse motivo, consi-
em:<http://brasilterrade- deramos que a Antropologia é a ciência da di-
santacruz.com.br/wp-con- p. 87), a constituição da Antropologia, como
tent/uploads/2011/07/ a conhecemos hoje, “[...] é especular sobre o versidade cultural e social. Nesse sentido, po-
CanibalismoTupinamba. modo pelo qual os homens perceberam suas demos dizer que o que ocupa a Antropologia
jpg>. Acesso em 29 jul. é o empreendimento de tentar compreender
2013. diferenças ao longo de um dado período de
tempo”. Especialmente, como vimos na subu- e interpretar a multiplicidade das culturas hu-
nidade 1.2, se pensarmos as relações que fo- manas. Sintetizando, a Antropologia pleiteia
ram travadas no espaço social compreendido ser uma Ciência da humanidade e da cultura,
PARA SABER MAIS como sendo o “Novo Mundo”. especialmente a Antropologia Cultural, que
A antropóloga Mirela Completando esse raciocínio, Laplan- intenta desvelar a diversidade e complexidade
Berger, em seu esque- tine (2000), considera que, no século XVI, os da cultura humana. É claro que, como nos de-
ma “Breve histórico da monstra Laplantine (2000), passaram-se algu-
Antropologia: cronistas europeus descortinam e exploram novos am-
bientes, além de proferir um discurso trucu- mas dezenas de anos antes que a antropologia
e viajantes”, apresenta
a percepção dos missio- lento sobre suas populações. O século XVIII conquistasse um refinamento instrumental de
nários e viajantes sobre vem, por sua vez, iluminado sob as ideias investigação para oportunizar a coleta de da-
os povos primitivos. dos filósofos e das viagens filosóficas, mas dos no campo das observações e informações.
Portanto, para conhe- Contudo, logo após ter consolidado seus
cer um pouco mais é somente no século XIX que a Antropolo-
gia se constitui realmente como disciplina e particulares métodos de pesquisa e obser-
sobre o tema acesse
o artigo completo passa a analisar as sociedades primitivas em vação, no começo do século XX, os antropó-
disponível em: http:// suas mais diversas facetas (econômica, bio- logos constatam que o objeto empírico que
www.mirelaberger.com. lógica, linguística, política, dentre outras). eles tinham atribuído à sua ciência (as socie-
br/mirela/download/ dades ditas primitivas, rudimentares) estava
breve_historico. Agora você pode concluir que, no seu início,
a Antropologia intenta construir um saber em vias de desaparecimento, visto que o pró-
examinando as sociedades não europeias, ou prio universo dessas populações não é pre-
Glossário servado pela evolução social. Nesse tocante,
melhor, não ocidentais. Dito de outra forma,
Epistemológica: inauguralmente o “outro”, o distinto, é aque- surge uma crise de identidade, especialmen-
relativo à epistemolo- te questionando se a morte do seu objeto
le que não é ocidental, é o “selvagem”, o “pri-
gia; estuda a origem, a de interpelação (o “selvagem”) representaria
estrutura, os métodos mitivo”, aquele que está muito mais próximo
da natureza que da cultura. Nesse sentido, as também o fim do projeto daqueles que se
e a condição de certeza
do conhecimento cien- sociedades consideradas simples, pela sua or- propuseram a estudá-los dentro de determi-
tífico em suas diversas ganização social, tornaram-se objeto privile- nadas regras que atendessem a critérios cien-
áreas (AIRES, 2003). tíficos. O próprio Laplantine (2000) nos indica
giado dessa Ciência nascente, a Antropologia.

16
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

três reflexões para essa problemática, apon- Dado o exposto, acredi-


tando, inclusive, uma que considera mais fru- tamos que se torna muito
tífera e que também redireciona o paradigma mais clara a necessidade
que confere especificidade à construção do de sistematizar e assimilar
conhecimento antropológico. Dessa maneira, a percepção do outro so-
se por um lado o antropólogo pode aceitar, bre o mundo da vida.
por assim dizer, seu aniquilamento, e dedicar- Assim, o antropólo-
-se a outros campos de outras ciências huma- go precisa mergulhar e
nas, por outro ele pode se voltar para um ob- submergir na cultura, na
jeto de estudo diferente, a saber, o camponês comunidade e no gru-
– este selvagem interno – que se transforma- po social que procura
ria em objeto ideal, visto que também não é interpretar. Ademais, a
contemplado por outros ramos das ciências formatação dessa visão
da humanidade. “de dentro”, segundo o
Nesse ponto, desabrocha a terceira ver- conhecimento antropoló-
tente que, aos olhos de Laplantine (2000), re- gico, é o que transforma
solve a questão do aniquilamento na medida em possibilidade a apre-
em que traz à baila a discussão sobre a mu- ensão do ponto de vista
dança do objeto de estudo da Antropologia. do outro. Em outras pa-
Em outras palavras, a especificidade da An- lavras, usando um termo
tropologia não está mais atrelada ao objeto próprio do meio antro-
de estudo que ela assumiu (o não ocidental, pológico, trata-se de um
ou o camponês ainda ignorado por outras procedimento que cria a ▲
ciências sociais/humanas), mas a uma certa possibilidade de evidenciar o “ponto de vista
Figura 7: Aprender
prática epistemológica. Portanto, a Antropo- do nativo”. Antropologia. François
logia evidencia sua singularidade não mais Não obstante, de acordo com Sanchis Laplantine
pelo objeto a que dedica suas atenções, mas (1999), outro elemento que contribui para ca- Fonte: Biblioteca da Uni-
sim pela forma que interpela, analisa e inter- racterizar essa especificidade da Antropologia versidade de São Paulo.
preta as possibilidades de ordenamento des- é a probabilidade de, através dessa relação Disponível para download
em: <http://disciplinas.
se objeto. com o outro, com o exótico, o pesquisador co- stoa.usp.br/pluginfile.
Então, você compreendeu que é a partir meçar a indagar seus próprios valores a respei- php/80913/mod_resour-
dessa relação com o outro (externo ou inter- to de comportamentos, visão de mundo, entre ce/content/3/Apren-
der%20Antropologia%20
no), que a Antropologia, pouco a pouco, se outros. Porquanto, enxergar o outro como um %28Fran%C3%A7ois%20
consolida como Ciência? Consequentemente, espelho nos dá a possibilidade de questio- Laplantine%29.pdf. Acesso
essa relação proporcionou o advento de uma nar nossos próprios valores, normas, regras, em 29 jul. 2013.
reflexão metódica sobre um modo de vida, a crenças, enfim, confere-nos a capacidade de
princípio visto como excêntrico, e desenca- principiar a estranhar o que nos é familiar. Em
deou a organização de um pensamento rela- consonância com esse pensamento, Laplanti-
tivista. Por conseguinte, o outro deixa de ser ne (2000) pondera que, restritos a uma única
esquisito, esquizofrênico, e passa a ser visto cultura, ficamos não apenas inconscientes so-
como diferente, mas possuidor de uma razão bre a dos outros, mas também incapazes de PARA SABER MAIS
própria que lhe confere capacidade para in- perceber a nossa. Observe esse argumento, Márcio Goldman, em
terpretar a si mesmo e a sua realidade social. nas palavras de Laplantine: seu artigo intitulado “O
fim da Antropologia”,
discorre sobre a ques-
A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver
tão do aniquilamento
aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em
da Antropologia como
fixar atenção no que é habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ‘evi-
ciência que estuda os
dente’. Aos poucos notamos que o menor de nossos comportamentos (ges-
povos primitivos. Sen-
tos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’.
do assim, sugerimos
Começamos então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mes-
a leitura desse traba-
mos, a nos espiar. O conhecimento antropológico de nossa cultura passa ine-
lho que se encontra
vitavelmente pelo conhecimento de outras culturas, e devemos especialmen-
disponível em: <http://
te reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a
www.scielo.br/pdf/nec/
única. (LAPLANTINE, 2000, p.20).
n89/12.pdf>.

Nesse sentido, torna-se oportuno, já que ramos da Antropologia.


a Antropologia se propõe a estudar o homem Desse modo, torna-se mister individu-
em sua totalidade, acompanharmos o racio- alizar cada uma dessas ramificações e evi-
cínio de DaMatta (2000) quando ele propõe denciar sobre qual ou quais facetas dessa
que, para determinar o lugar da antropologia totalidade do homem elas projetam suas
cultural, é preciso não esquecer dos outros luzes. Além disso, Laplantine (2000) adver-

17
UAB/Unimontes - 1º Período

te que nenhum pesquisador conseguiria ser a Etnografia, a Etnologia e o Folclore ainda


um experto em todos os desdobramentos assim advertem que tais divisões pertencem
da Antropologia, porém nem por isso deve- ao mesmo ramo da Antropologia Cultural.
mos abster-nos de A despeito de Marconi e Presotto (2006),
conhecê-los. Por as autoras explicitam seus pressupostos a
conseguinte, apro- partir da impossibilidade de entender um
veitando-nos das ob- ramo da Antropologia sem o outro, a saber,
servações constru- o Cultural, o Social e a Etnologia. Como con-
ídas por esses dois sequência desses argumentos e, conforme
últimos pensadores já esclarecemos, trataremos a Antropologia
citados, podemos Cultural como sinônimo da Antropologia So-
distinguir alguns dos cial e da Etnologia, em outras palavras, no
principais campos presente caderno você estudará sobre a An-
da Antropologia, dis- tropologia Cultural, Social ou Etnologia. Ago-
cutindo panorami- ra que você está inteirado(a) das argumenta-
camente seus enfo- ções de Lévi-Strauss (1967), DaMatta (2000),
ques, características Laplantine (2000), Marconi e Presotto (2006)
e procedimentos bá- acerca da Antropologia Cultural, Social ou Et-
▲ sicos. Então temos: a nologia, vamos conhecer um pouco mais so-
Antropologia Biológica, a Arqueologia, a Et- bre os desdobramentos dessa Ciência?
Figura 8: O Antropólogo
Roberto DaMatta.
nografia, a Antropologia Linguística, o Folclo- A Antropologia Biológica, que no pas-
Fonte: FM 90,5. Disponível
re e, por fim, a de nosso maior interesse, visto sado foi designada pela nomenclatura de
em:<http://www.905fm. que consiste na discussão aqui empreendida, Antropologia Física, caracteriza-se pelo estu-
com.br/estado/915- a Antropologia Cultural ou Social ou mesmo do dos traços biológicos do homem levando
-roberto-damatta-sera-pa-
lestrante-do-secop-2013-
Etnologia. Do ponto de vista de Lévi-Strauss em consideração tempo e lugar. Se valendo
-em-vitoria>. Acesso em (1967, p.396), a Etnografia, Etnologia e Antro- de métodos comuns ao campo da biologia,
29 jul. 2013. pologia não são três disciplinas diferentes sua preocupação central é as interfaces en-
ou três percepções diferentes de um mesmo tre nosso patrimônio genético e os diversos
PARA SABER MAIS estudo, mas três fases ou três “momentos de meios que nos circundam. Ou seja, como a(s)
Sugerimos a leitura uma mesma pesquisa, e a preferência por cultura(s) e esse patrimônio genético se in-
do artigo “Etnografia este ou aqueles desses termos exprime so- fluenciam? Em suma, o interesse desse ramo
e pesquisa qualitativa: mente uma atenção predominante voltada
apontamentos sobre da Antropologia é pela genética das popula-
um caminho metodo- para um tipo de pesquisa que não poderia ções, bem como por suas culturas, do mesmo
lógico de investiga- nunca ser exclusivo dos dois outros”. modo que procura, ainda, desvelar questões
ção” para aprofundar Dessa maneira, estudiosos como DaMat- que dizem respeito ao inato e ao adquirido
os estudos sobre a ta (2000), Laplantine (2000) e Lévi-Strauss (LAPLANTINE, 2000). Mas, também, há o es-
percepção do outro (1967) explicam que os ramos da Antropolo-
acerca do mundo da tudo das sociedades de primatas superiores
vida. O trabalho está gia Cultural mantém interfaces com a Antro- como babuínos e gorilas que envolvem espe-
disponível em:<http:// pologia Social e Etnologia e, embora Marconi culações sobre a evolução biológica do ho-
www.unisc.br/portal/ e Presotto (2006) conceituem separadamente mem no geral.
upload/com_arquivo/
etnografia_e_pesqui-
sa_qualitativa_aponta-
mentos_sobre_um_ca-
minho_metodologico_
de_investigacao.pdf>.
Figura 9: Ossada ►
encontrada no sítio
PaRA SABER MAIS arqueológico em
Buritizeiro, norte de
Confira o vídeo “Ossa- Minas Gerais.
das de mais de 6 mil Fonte: Circuito Turístico
anos encontradas em Guimarães Rosa. Disponível
Buritizeiro no norte- em: <http://circuitoguima-
-mineiro” para que você raesrosa.com.br>. Acesso
tenha uma ideia de em 10 mai. 2013.
como os arqueólogos
fazem as suas esca-
vações. O vídeo está
disponível em:
<http://www.youtube.
com/watch?v=Z1MC
WCsq1nE>

18
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

A Arqueologia, por outro lado, é uma di- ossadas, em suma, qualquer traço de atividade DICA
visão da Antropologia Cultural, que pesquisa humana. Seu intuito é restaurar sociedades já Roberto Augusto
o homem por meio de vestígios materiais que desaparecidas, especulando sobre suas técni- DaMatta é graduado e
as culturas deixaram para trás, ao longo do cas, arte, religião, organização social, entre ou- licenciado em Histó-
tempo. Muitas vezes, esses vestígios são en- tros. Em DaMatta vamos encontrar os seguin- ria pela Universidade
contrados enterrados no solo, ou na forma de tes argumentos: Federal Fluminense
(1959 e 1962). Curso
pinturas em paredes (pinturas rupestres), ou de Especialização em
Antropologia Social do
De fato o arqueólogo está interessado em pedaços de cerâmica, cemitérios mi- Museu Nacional (1960);
lenares, cacos de pedra e restos de animais, enquanto tais resíduos permitem M.A e Ph.D em, respec-
deduzir modos concretos de relações sociais ali existentes. A Arqueologia, as- tivamente, 1969 e 1971,
sim, é uma Antropologia Social, só que debruçada em cima do estudo de um pelo Peabody Museum
sistema de ação social já desaparecido. (DA MATTA, 2000, p.29) da Universidade de
Harvard. Foi Chefe
Dessa maneira, observamos que a Ar- pologia Arqueológica, cujos estudos se con- do Departamento de
queologia divide-se, ainda, em: a) Arqueolo- centram nos “primórdios da cultura, relativa Antropologia do Museu
Nacional e Coordena-
gia Clássica, que “tenta reconstruir as antigas às populações extintas”, a saber, “culturas do dor do seu Programa
civilizações letradas”, como exemplo, Egito, Paleolítico, Mesolítico e Neolítico” (MARCONI; de Pós-Graduação em
Grécia, Mesopotâmia, entre outras; b) Antro- PRESOTTO, 2006, p.05). Antropologia Social (de
1972 a 1976). É Profes-
sor Emérito da Univer-
sidade de Notre Dame,
USA, onde ocupou a
◄ Figura 10: Processo de Cátedra Rev. Edmund
Hominização. Joyce, c.s.c., de Antro-
Fonte: Curte a História. pologia de 1987 a 2004.
Disponível em: <http:// Atualmente é Professor
curteahistoria7.blogspot. Titular da Pontifícia
com.br/2010/09/processo-
Universidade Católica
-de-hominizacao.html>.
Acesso em 10 mai. 2013. do Rio de Janeiro. Reali-
zou pesquisas Etnolo-
gicas entre os índios
Gaviões e Apinayé. Foi
pioneiro nos estudos
de rituais e festivais em
sociedades industriais,
tendo investigado o
Brasil como sociedade
e sistema cultural por
meio do carnaval, do
futebol, da música, da
Como descrito por Marconi e Presotto é “fornecer uma contribuição à teoria antropo- comida, da cidadania,
(2006, p.05), a etnografia (éthos, povo; gra- lógica”. A obra, segundo o autor, não foi cogi- da mulher, da morte,
phein, escrever) “é um dos ramos da ciência da tada como uma descrição etnográfica, pois do jogo do bicho e das
cultura que se preocupa com a descrição das “[...] a maioria dos fatos a que me refiro foram categorias de tempo e
espaço.
sociedades humanas”. Porém, para o presen- publicados anteriormente. Não se deve, pois,
te momento, caro(a) acadêmico(a) ficaremos procurar qualquer originalidade nos fatos de
apenas com esse conceito, pois na subunida- que trato, mas na interpretação desses mes-
de 1.3.1 estudaremos mais detidamente sobre mos fatos” (LEACH, 1996, p. 65).
esse método e seus principais autores. Contu-
do, cabe ressaltar que essa é uma divisão da ◄ Figura 11: “Tribespeaple
Antropologia Cultural que possibilitou o cará- of the Kachin”.
ter relativista da Antropologia, bem como sua População da tribo
Kachin, Brimânia.
elevação à Ciência. Marconi e Presotto (2006, Leach, 1940-1949.
p.05) conceituam que a Etnologia (éthos, Fonte: Fields of study: Sir
povo; logos, estudo) “é outro ramo da ciência Edmund Leach, the social
da cultura, cujos pesquisadores utilizam os anthropologist Disponível
em: <http://www.kings.
dados coletados e oferecidos pelos etnógra- cam.ac.uk/ archive-cen-
fos”. Como exemplo, em “Sistemas Políticos da tre/archive-month/febru-
Alta Birmânia: um estudo da estrutura social ary-2013.html. Acesso em
09 mai. 2013.
Kachin” de Edmund Ronald Leach, publicado
em 1964, vamos encontrar o esclarecimento
de que o livro versa sobre a população kchin Entre os ramos da Antropologia Cultural,
e chan do nordeste da Birmânia, cujo objetivo a Antropologia linguística estuda especifica-

19
UAB/Unimontes - 1º Período

mente a linguagem como exteriorização de tropologia, porque trabalham com interesses


valores, pensamentos, sentimentos, pois, so- comuns à essa Ciência; a saber, o homem e a
mente através do estudo da língua é que con- cultura (MARCONI; PRESOTTO, 2006, p. 07).
PARA SABER MAIS seguimos compreender como os indivíduos Resumindo, a Antropologia Cultural pre-
Assista ao filme “Dança pensam o que vivem; elaboram suas interpre- tende compreender o homem como elemento
com Lobos” do diretor tações; como categorizam o que sentem, isto de um dado sistema de valores, normas, cren-
Kevin Costner. A obra é, através desse desdobramento da Antropo- ças, etc. Entende a sociedade humana como
conta a história do logia alcançamos suas categorias psicoafetivas sendo um agregado de ações e comportamen-
tenente John Dunbar
(Kevin Costner) que, e psicocognitivas (LAPLANTINE, 2000). Além tos organizados conforme um esquema de re-
após ser condecorado disso, a linguagem constitui-se em um meio gras que ela mesma criou. Desse modo, o cam-
por bravura na Guerra de comunicação e, também, em um “instru- po da Antropologia Cultural diz respeito a tudo
de Secessão, é enviado mento do pensamento”, portanto, uma “gran- que compõe uma coletividade: suas crenças,
para um forte isola- de diversidade de línguas acompanha a gran- relações de parentesco, modos de produção
do na fronteira com
as terras selvagens de diversidade de culturas, cada uma delas econômica, regras jurídicas, arte, conhecimen-
Sioux. Além do choque com suas formas e estruturas básicas defini- to, entre outros. Sendo assim, a Antropologia
de culturas, o filme das” (MARCONI; PRESOTTO, 2006, p.06). Cultural, que dá nome à nossa disciplina, é,
aborda, também, a O Folclore, por sua vez, consiste em um portanto, o ramo no qual mais nos deteremos,
expansão colonial dos dos campos de investigação da Antropologia especialmente porque é sobre ela que continu-
Estados Unidos para o
oeste e como se deu Cultural, que observa a cultura “espontânea aremos discorrendo ao longo de nosso curso.
a ocupação das terras dos grupos rurais ou urbanizados”. Trata-se, Assim sendo, todas as vezes que já utilizamos
indígenas pelo homem portanto, de uma “ciência socioantropológica, ou venhamos a utilizar o termo genérico Antro-
branco. uma vez que se dedica ao estudo de determi- pologia é à Antropologia Cultural que estamos
Fonte: Disponível nados aspectos da cultura humana”. Dedica- nos referindo. E, como já mencionamos, um
em: <http://www.
cinedublados.com. -se, também, aos “fatos da cultura material e traço distintivo da Antropologia é o seu méto-
br/2013/06/ espiritual que, originados espontaneamente, do e metodologia, ou seja, o arcabouço teórico
download-danca-com- permanecem no seio do povo, tendo deter- utilizado pelo pesquisador, bem como as suas
-lobos-dublado.html. minada função”. Em outras palavras, analisa condutas para auferir evidências empíricas.
os “fenômenos em sua dimensão espacial e Agora, você está curioso sobre as caracterís-
temporal”, com métodos e técnicas de pesqui- ticas particulares do método antropológico e
sa científica que lhes são próprios. Contudo, como ele se constituiu, já que repetidas vezes
apesar de sua autonomia, são campos da An- citamos sobre isso. Então, vamos estudá-los?

1.3.1 Antropologia e método: a imersão na cultura do outro

Como discutimos anteriormente, na descolado do contexto investigado.


subunidade 1.2, a maior parte do material Somente no final do século XIX é que al-
produzido sobre o Novo Mundo, ou mesmo guns antropólogos, como Spencer e Gillen,
sobre o oriente, adveio das percepções de co- que investigaram os aborígines australianos,
lonos, soldados, viajantes, dentre outros. Isso começaram a se preocupar com essa experiên-
ainda foi válido até o final do século XIX, so- cia de sair do conforto do gabinete e inserir-se
bretudo, porque quase nenhum antropólogo na cultura do outro. Isso se deu pois compre-
havia travado contato físico com as popula- enderam que somente assim, com um trabalho
ções primitivas sobre as quais escrevia. Como de campo sistematizado, seria possível produ-
demonstra DaMatta (1987), durante todo esse zir interpretações sobre as ações sociais dos na-
período, o etnólogo consumou sua prática tivos, perfazendo-as como sendo um sistema
e experiência no seu aconchegante gabine- integrado e dotado de lógica própria.
te ou numa confortável poltrona em uma DaMatta (1987) por exemplo, defende
biblioteca qualquer da Europa. O problema essa postura dizendo ser essencial buscar o
disso é que como os dados recolhidos eram sentido a partir do ponto de vista do outro. As-
superficiais e breves, dada a pouca perma- sim sendo, é imprescindível esse contado di-
nência dos coletores nas aldeias e/ou comu- reto, pois possibilita que o conhecimento pro-
nidades, o trabalho etnográfico resumia-se a duzido seja sempre intermediado pelo próprio
uma seleção e listagem de costumes exóti- nativo. Dessa forma, o antropólogo polonês se
cos. Quer dizer, havia uma enorme quantida- inseriu na cultura do nativo de maneira dura-
de de informações, todavia a complexidade doura, aprendendo sua língua e afastando-se
de significados que envolvem o cotidiano da do contato com o homem branco. Tal inicia-
vida social não eram desvelados. O conheci- tiva trouxe uma enorme contribuição para
mento produzido então, acabava por flutuar a Antropologia, uma vez que o pesquisador

20
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

realmente pôs em prática a pesquisa de cam- Um importante elemento que integra a


po, porquanto, os métodos de investigação prática do antropólogo que faz a observação PARA SABER MAIS
sobre o outro foram alterados, fortalecendo participante é o diário ou caderno de campo, Leia a definição de
a premissa de que a Antropologia é uma Ci- uma vez que é nesse instrumento que o pes- cultura apresentada no
ência. Em outras palavras, Malinowski (1976) quisador rascunha todas as suas impressões “Dicionário de Con-
ceitos Históricos” que
prenunciou um empreendimento etnográfico para depois então sistematiza-las. Ribeiro pode ser acessado no
em consonância com os preceitos científicos (1996), por exemplo, comenta a enorme im- endereço eletrônico:
de uma forma mais radical. Quer dizer, deixan- portância de seu caderno de campo quando http://www.igtf.rs.gov.
do seu mundo para trás e indo viver entre os esteve entre os índios Urubus-Kaapor, entre br/wp-content/uplo-
nativos, participando de seu cotidiano e reco- 1949 e 1951. Eram anotações diárias sobre ads/2012/03/concei-
to_CULTURA.pdf>.
lhendo ele mesmo os dados acerca da cultura tudo que os índios faziam ou diziam, mate-
estudada, a saber, comportamentos, valores, rial que depois é sistematizado e interpreta-
normas, mitos, cosmologias, etc.. Por isso, esse do. Igualmente, Brandão (2007) pondera que
antropólogo inaugura e é o precursor de uma tudo, qualquer situação, mesmo as mais insig-
nova percepção sobre o trabalho de campo. nificantes devem ser anotadas; a observação
Sendo assim, foi também quem cunhou o precisa ser sempre seguida pelas anotações
termo “observação participante” como sendo e essas notas devem ser descritivas. É impor-
um sinônimo da pesquisa de campo, eviden- tante ressaltar que essa especificidade do
ciando ainda mais a antinomia existente entre método antropológico possibilita operações
o pesquisador que consuma este tipo de estu- mentais para as quais o pesquisador deve es-
do e o antropólogo de gabinete. Desse modo, tar preparado teoricamente. Em primeiro lu-
o entendimento da pesquisa de campo como gar a observação participante, haja visto que
observação participante trouxe à lume uma transforma o antropólogo em um sujeito ativo
transformação interessante ao campo da an- e participante na cultura estudada; permite-
tropologia, pois fazendo esse tipo de pesqui- -lhe, virtualmente, tornar-se um nativo. Assim
sa, elimina-se a questão do coletor de dados sendo, como nos mostra Malinowski (1976),
e o pesquisador que os analisará serem indiví- mais importante do que experimentar modos
duos diferentes, o que possibilita, então, que a de vida diferentes é captar as visões de mundo
cultura pesquisada seja interpretada de forma do outro com respeito e verdadeira compre-
contextualizada. Outro importante pensador ensão. Dessa maneira, torna-se imprescindível
da Antropologia que também defende o tra- controlar nossos preconceitos, pois somente
balho de campo é Evans-Prichard (1999). Se- assim conseguiremos compreender as per-
gundo esse pesquisador a etnografia consiste cepções do outro, bem como nossos próprios
em uma pesquisa minuciosa de uma única po- pontos de vista, re-elaborando nossa própria
pulação ou mesmo de um conjunto de povos experiência cultural fora dela. Para o último
correlacionados. Também defende que um es- autor citado é, então, essa capacidade de “tor-
tudo etnográfico deve durar pelo menos dois nar-se o nativo” que irá definir a profundidade
anos, pois nesse período o pesquisador pode da interpretação realizada.
aprender a língua nativa, aumentando a sua O antropólogo precisa, também, apren-
interação com o grupo. É o trabalho de campo der a ver o que lhe é comum com olhos de
que possibilita ao antropólogo se tornar um estranheza, pois somente dessa forma é possí-
etnógrafo. vel reconhecer práticas cotidianas e familiares
como sendo construções sociais e culturais
específicas. Esse procedimento, definido na
antropologia como o ato de “estranhar o fa-
miliar”, permite que o antropólogo identifique
o que é esquisito em sua própria cultura. Des-
se modo, para DaMatta (1987), o pesquisador
deve fazer um esforço para transmudar o exó-
tico em familiar e o familiar em exótico, trans-
formando sua relação com o outro e consigo
mesmo. Segundo Velho (2004), fazer etnogra-

fia depreende desse estranhamento do que é
familiar, de uma busca por um certo grau de
Figura 12: Malinowski e os Trobriand (Nova imparcialidade e neutralidade, uma vez que
Guiné) durante trabalho de campo em 1918 (foto:
Wikimedia Commons). somente dessa maneira logra-se comparar, in-
Fonte: Antropologia, notícias do campo e do gabi- telectualmente, as diversas interpretações re-
nete. Disponível em: <http//://agreste.blogspot.com. lativas às realidades existentes.
br/2011/02/antropologia-e-ciencia.html. Acesso em 29 Vimos, portanto, que fazer etnografia
abr. 2013.
pressupõe um preparo por parte do pesquisa-

21
UAB/Unimontes - 1º Período

dor, uma disposição para questionar certezas tes que todo pesquisador deve observar antes
Atividade
até então cristalizadas por sua cultura. Imergir de arremessar-se ao trabalho de campo. São
Leia o texto a seguir e na cultura do outro requer uma entrega física, elas: a) o pesquisador deve ter objetivos ge-
depois comente e es- dado o deslocamento, e também uma íntegra nuinamente científicos e deve conhecer bem
creva sobre a diferença
entre o trabalho de intelectual, tendo em vista os esforços que as teorias antropológicas; b) assegurar boas
campo e os relatos de devem ser empreendidos para uma interpre- condições de pesquisa: viver entre os nativos e
missionários, soldados tação que se tencione minimamente neutra aprender a língua deles; c) aplicar métodos es-
e viajantes. Vá até o e imparcial. Nesse sentido, Malinowski (1976), peciais de coleta (informantes), manipulação e
fórum de discussão e deixa três diretrizes metodológicas importan- registro de evidências (diário de campo).
deixe seu comentário.
BOX 2
Os Argonautas do Pacífico Ocidental

[...] consistem, sobretudo, em isolar-se da companhia de outros homens brancos e em


permanecer em contato tão estreito quanto possível com os nativos, o que, na realidade, só
pode ser alcançado pela residência efetiva em suas aldeias. [...] Há uma grande diferença entre
uma estada esporádica em companhia dos nativos e estabelecer um contato verdadeiro com
os mesmos. O que quer dizer isto? Do ponto de vista do etnógrafo, significa que sua vida na
aldeia, que a princípio era uma aventura estranha, às vezes desagradável e às vezes intensa-
mente interessante, logo adquire um curso natural, em perfeita harmonia com os seus arredo-
res. [...] Logo depois que me instalei em Omarakana comecei, de certa forma, a tomar parte na
vida da aldeia, a buscar quais acontecimentos importantes e festivos, a adquirir um interesse
pessoal no diz-que-diz e no desenrolar das ocorrências da pequena aldeia; o acordar cada ma-
nhã para um dia que se apresentava mais ou menos como se apresenta para o nativo. Saía do
meu mosquiteiro para encontrar ao meu redor a vida da aldeia principiando a desdobrar-se,
ou os indivíduos já bem adiantados nas suas tarefas diárias, de acordo com a hora e também
com a estação, pois eles se levantam e começam as suas labutas cedo ou tarde, segundo o
trabalho exige. Durante o meu passeio matinal pela aldeia, podia observar os íntimos deta-
lhes da vida familiar, a higiene, a cozinha, as refeições; podia ver os preparativos para o dia de
trabalho, as pessoas saindo para atender aos seus interesses, ou grupos de homens e mulhe-
res ocupados em algumas tarefas manufatureiras. Disputas, piadas, cenas familiares, eventos
usualmente triviais, às vezes dramáticos, mas sempre, significativos, formavam a atmosfera da
minha vida diária, assim como da deles.

Fonte: MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 43 (Os
Pensadores).

1.4 A construção do conceito


antropológico de cultura, o
etnocentrismo e o relativismo
cultural
Estudamos nas subunidades 1.2 e 1.3 que Ciências Sociais algumas retificações sobre o
Antropologia é a Ciência que se ocupa da di- que consideramos como sendo natural. Assim
versidade da cultura humana, especialmente sendo, desde os tipos de comida aceitáveis
questionando sobre o inato e o adquirido, ou para cada sociedade, quem consideram como
seja, o que é da natureza do homem e o que é parente, as vestimentas ou tarefas de homens
adquirido, construído pelo meio sociocultural. e mulheres, até suas formas de expressar a dor
Nesse sentido, foi exatamente a ampliação dos ou o que os indivíduos classificam como sen-
conhecimentos acerca dos diversos modelos do sagrado, passa a interessar à Antropologia
culturais da humanidade que possibilitou às nessa constante busca por compreender a

22
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

natureza humana e sua enorme diversidade grande medida, à ação uniforme de causas
cultural. Ao travar contato com essa gama de uniformes; de outro, seus vários graus podem
diferentes comportamentos, começamos a ser vistos como estágios de desenvolvimento
questionar hábitos que antes considerávamos ou evolução [...] (LARAIA, 2005). Assim, pode-
naturais e a percebê-los como construções de mos dizer que, desde o século XIX, a Antropo-
uma cultura específica, a nossa. logia construiu e se apropriou do conceito de
Então um dos conceitos mais básicos da cultura. Também percebemos que desde sua
teoria antropológica diz respeito ao concei- constituição até os dias atuais um vigoroso
to de cultura. É claro que antes devemos es- deslocamento conceitual perpassa a comu-
clarecer que a concepção de cultura adotada nidade antropológica, que ainda se descobre
pela Antropologia não tem o mesmo sentido interpretando e procurando um melhor en-
que a utilizada pelas pessoas comuns em seu tendimento sobre esse conceito. À vista disso,
cotidiano, no qual cultura está relacionada a como nos demonstra Laraia (2005), continuam
apresentações artísticas, grau de conhecimen- existindo agudas discordâncias entre as mais
to, erudição acumulada, dentre outros, pois variadas conceituações de cultura. Kroeber e
isso nos dirige à perspectiva de que algumas Kluckon, dois antropólogos, compilaram nada
pessoas seriam detentoras de cultura e outras mais nada menos que impressionantes 164
não. A grosso modo, podemos dizer que em definições distintas de cultura.
Antropologia a cultura está relacionada a for-
mas de agir, pensar e sentir. Desse modo, é
algo que se aplica a todas as pessoas e socie-
dades, sendo impensável, para a perspectiva
antropológica, dizer que existem indivíduos
sem cultura.
O primeiro autor a formular o conceito de
cultura foi Edward Tylor, em 1971, quando pu- ◄ Figura 13: Cultura:
blicou o livro Primitive Culture. Em sua obra, o um conceito
autor sintetiza o termo germânico Kultur (liga- antropológico. Roque
do à espiritualidade de uma sociedade) e o ter- de Barros Laraia.
Fonte: Google Search.
mo francês civilization (que define realizações Disponível para down-
materiais) com o intuito de compreender as re- load em: < https://www.
lações estabelecidas em uma dada sociedade google.com.br/search?q=
cultura+um+conceito+a
a partir da expressão Culture (LARAIA, 2005). ntropol%C3%B3gico&ie>.
A principal contribuição do desenvolvi- Acesso em 29 jul. 2013.
mento de um conceito de cultura, à luz dos
ensinamentos de Tylor, foi evidenciar o cará-
ter de aprendizado da cultura em detrimento
às ideias de natureza humana, de inato. As-
sim, Tylor (1958, p. 01) define que cultura “[...] é
este todo complexo que inclui conhecimento,
crença, arte, leis, moral, costumes, e quaisquer
outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
homem enquanto membro da sociedade”.
Cultura, então, passa a ser vista como tudo Todavia, para nossos propósitos, nos cen-
que aprendemos como elementos de uma traremos em pensar a cultura como sendo
certa coletividade, mediante processos de so- um sistema organizado, afugentando assim a
cialização. Cabe ressaltar, contudo, que a defi- perspectiva da cultura como um amontoado
nição de Tylor (1958), partiu de uma premissa de leis, valores, crenças, moral, sem nenhuma
evolucionista, portanto continua no interior de ligação entre si. Isso quer dizer: refletir o “todo
uma perspectiva altamente hierarquizada, não complexo” de Tylor enxergando-o como uma
pluralista e não relativista, visto que o autor totalidade interligada, dotada de coerência,
enxergava todas as culturas como estágios de organização e lógica próprias. A partir desse
evolução de uma única cultura. horizonte, a cultura pode ser pensada como
A situação da cultura entre as várias so- um conjunto de regras e códigos que direcio-
ciedades da humanidade, na medida em que nam as ações coletivas das populações, bem
possa ser investigada segundo princípios ge- como lhes fornecem significados para inter-
rais, é um tema adequado para o estudo de pretarem suas realidades. Por fim, compre-
leis do pensamento e da ação humana. De endendo a cultura sob esse prisma, torna-se
um lado, a uniformidade que tão amplamente possível notar que toda cultura possui lógica e
permeia a civilização pode ser atribuída, em organização próprias, superando assim a con-

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UAB/Unimontes - 1º Período

jectura de que as culturas diferentes da nossa de cultura, pois materializam por meio de ati-
DICA
são monstruosidades bizarras e irracionais. tudes em relação às formas de pensar, sentir e
“Para os evolucionistas Veremos agora dois conceitos que são fun- agir do outro. Tais materializações serão, por-
do século XIX a evo-
damentais para a teoria antropológica, e que tanto, pensadas a partir do conceito de Etno-
lução desenvolvia-se
através de uma linha estão intimamente relacionados ao conceito centrismo e o conceito de Relativismo Cultural.
única; a evolução teria
raízes em uma unidade
psíquica através da 1.4.1 Etnocentrismo
qual todos os grupos
humanos teriam o mes-
mo potencial de desen- Como vimos, o homem sempre travou contatos com a alteridade ao longo de sua história.
volvimento, embora Vimos, também, que em grande parte das vezes o outro era visto como uma aberração. É a essa
alguns estivessem mais
tendência de classificar o outro a partir de nossos próprios valores que os antropólogos chamam
adiantados que outros.
Esta abordagem unili- de Etnocentrismo. De uma forma mais sistematizada, de acordo com Herskovits (1963), o etno-
near considerava que centrismo consiste em ser “[...] o ponto de vista segundo o qual o próprio modo de vida de al-
cada sociedade seguiria guém é preferível a todos os outros”. Nas palavras de Everardo Rocha:
o seu ouso histórico
através de três estágios: Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado
selvageria, barbaris- como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através dos
mo e civilização. Em nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é existência. No pla-
oposição a essa teoria, no intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença, no
e a partir de Franz Boas, plano efetivo, como sentimento de estranheza, medo, hostilidade, etc. Pergun-
surgiu a ideia de que tar sobre o quê é etnocentrismo é, pois, indagar sobre um fenômeno onde se
cada grupo humano misturam tanto elementos intelectuais e racionais quanto elementos emocio-
desenvolve-se através nais e afetivos. No etnocentrismo residem dois planos do espírito humano: sen-
de caminho próprio, timento e pensamento vão compondo um fenômeno não apenas fortemente
que não pode ser sim- arraigado na história das sociedades como também facilmente encontráveis
plificado na estrutura no dia-a-dia das nossas vidas. (EVERARDO ROCHA,1999, p. 7).
tríplice dos estágios.
Esta possibilidade de
desenvolvimento múlti- Portanto, caro(a) acadêmico(a), você é ca- cionamos. Para ajudar, pense: qual é o melhor
plo constitui o objeto paz de concluir que o etnocentrismo é uma time de futebol do Brasil? Pensou? Baseado em
da abordagem multili- concepção que nos leva a colocar nossos valo- que você escolheu esse time? Você já defendeu
near”. (LARAIA, Roque res e características culturais como modelo de algum time e não percebeu que por algum
de Barros. Cultura: um
normalidade, como sendo natural. Além disso, motivo particular você o fez? Se sim, o etno-
conceito antropológico.
Rio de Janeiro: Zahar, o etnocentrismo é um sentimento corriqueiro centrismo é parte integrante do ser humano e
2005., p. 59). entre todos os seres humanos, uma vez que é trata-se do primeiro encontro com o diferente;
resultado da socialização de um indivíduo no muitas vezes nem percebemos que estamos
interior de uma cultura específica. Em certo praticando. Porém, somente a forma hostil,
sentido, o etnocentrismo tem valores positivos, desrespeitosa com a qual os indivíduos mani-
PARA SABER MAIS uma vez que contribui para a solidificação dos festam esse encontro é que vai gerar as violên-
Para ampliar os conhe- laços sociais que unem o grupo, pois valoriza cias físicas e simbólicas. Caso você não tenha
cimentos sobre o tema suas características compartilhadas em oposi- escolhido um time por preferência, discuta
abordado, assista ao ção a outras coletividades. Contudo, cabe sa- com os colegas e tente observar quais as prá-
filme “Mister Johnson: lientar que quando o etnocentrismo justifica ticas que vocês realizam e que antes não con-
no coração da África”.
Direção: Bruce Beres-
ações para deteriorar ou aviltar outras culturas sideravam como sendo uma característica do
ford. EUA, Baseado no ele passa a ser uma vicissitude. Temos vários etnocentrismo. A própria Antropologia nasce
romance de Joyce Cary. exemplos disso na história, a colonização eu- etnocêntrica e, ao perceber que essa não era a
Na trama, Johnson ropeia na América, o apharteid na África do melhor forma de lidar com a diversidade, essa
apresenta-se como Sul, o tratamento dispensado pelos nazistas às Ciência busca, paulatinamente, compreender
uma pessoa negra que
assimila as normas da
pessoas não arianas, para citar apenas alguns. o outro em sua dimensão de riqueza, aspecto
cultura branca e acaba Agora que você sabe o que é etnocentrismo, esse que estudaremos a partir de agora. E en-
agindo de maneira et- reflita sobre alguns exemplos que não men- tão, vamos continuar as nossas reflexões?
nocêntrica em relação à
sua própria cultura.
1.4.2 Relativismo cultural
Discutimos que a avaliação que fazemos é a partir de uma ampliação do conhecimento
de culturas distintas da nossa são elabora- sobre a existência de padrões de comporta-
das a partir de nossa experiência, ou seja, ela mentos diferentes que tem feito com que os
é informada por nossa própria lógica cultural. homens reflitam um pouco mais sobre a na-
Lembra da pergunta que fizemos agora a pou- turalização desses mesmos comportamentos.
co? Qual o melhor time de futebol? Contudo, Isso vem contribuindo para que um novo po-

24
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

sicionamento a respeito das diferenças, e que cultural é Salhins (2004), quando pondera
procura reconhecer suas especificidades como que a própria prática antropológica se torna-
legítimas, façam parte permanente da relação ria infrutífera sem a postura relativista. Dito DICA
entre o “grupo do eu” e o “grupo do outro”. de outra forma, esse autor coloca que a com- A antropóloga Rita
Assim sendo, o Relativismo Cultural pode ser preensão genuína do outro perpassa por uma Laura Segato em seus
considerado como ideologia que, ao reco- atitude de respeito e uma busca para elaborar estudos sobre direitos
nhecer os padrões fixados em cada socieda- um mínimo de imparcialidade e neutralidade, humanos aponta que
de para dirigir sua própria existência, sustenta pois apenas nos despindo de nossos próprios existe um conflito entre
a ética a moral e a lei
que cada conjunto de costumes possui legi- valores é que conseguiremos, de certo modo, para a compreensão
timidade e reforça a necessidade da tolerân- estar no lugar do outro. Esse ponto é essencial, das populações ditas
cia perante organizações diferentes da nossa pois, como podemos perceber, o relativismo primitivas. Isso porque,
(HERSKOVITS, 1963). para esse pensador não se constitui apenas segundo a referida
Quem também tece considerações in- em uma postura, mas em um método do fazer autora, os direitos uni-
versais tomam como
teressantes sobre essa noção de relativismo antropológico. Segundo Salhins: pressupostos a relação
da dignidade da pessoa
O relativismo cultural é, antes de mais nada e sobretudo, um procedimento an- humana segundo
tropológico interpretativo – ou seja, metodológico. Ele não consiste no argu- preceitos ocidentais.
mento moral de que qualquer cultura ou costume é tão bom quanto qualquer Diante disso, povos
outro, se não melhor. O relativismo é simples prescrição de que, para que pos- que possuem costumes
sam tornar-se inteligíveis, as práticas e ideais de outras pessoas devem ser “res- diferentes acabam
situadas em seus contextos históricos, e compreendidas como valores posicio- sendo acometidos a
nais no campo de suas próprias relações culturais, antes de serem submetidas a interpretações etno-
juízos morais e categóricos de nossa própria lavra”. A relatividade é a suspensão cêntricas. Não obstante,
provisória dos próprios juízos de modo a situar as práticas em pauta na ordem Segato (2006) aponta
cultural e histórica que as tornou possíveis. Afora isso, não se trata de forma al- o relativismo cultural
guma de uma questão de advocacia [grifos nossos]. (SALHINS, 2004, p. 59). como uma forma de
mediação do conflito
Independente de pensar o relativismo Pensando nisso, estudaremos, a partir de entre ética, moral e lei
como uma atitude ou mesmo como método, agora, as sociedades que outrora foram consi- (SEGATO, 2006).
podemos notar que se constitui em uma pos- deradas primitivas com o intuito de analisar os
tura diferente do etnocentrismo, quase con- conceitos basilares da Antropologia, para que
trária. Essa postura configura-se na busca por você consiga compreender, de maneira crítica,
tentar compreender que cada cultura possui as diferenças sociais e culturais que compõem
suas singularidades e que elas são derivadas a humanidade e, também, entender as diversi-
de elementos sócio-históricos complexos que dades étnicas e culturais. Além disso, objetiva-
influenciaram e influenciam a identidade de mos localizá-lo na problemática capital da An-
seus integrantes. Nesse sentido, torna-se im- tropologia como Ciência do outro, ou ainda,
pensável a existência de culturas superiores e Ciência das diferenças. Aspectos esses que são
inferiores, pois cada uma delas tem seus cri- de suma importância para a sua formação em
térios e conceitos que estruturam valores, re- Ciência da Religião. Embora você tenha consci-
gras, etc. Quer dizer, cada cultura sabe o por- ência de que essa diversidade não é primitiva
quê valoriza sua organização, seu modo de nos moldes que o evolucionismo tratou, ainda
vida. Isso implica no fato de que, para compre- assim usaremos o termo, pois a bibliografia
endermos realmente uma cultura, precisamos consultada traz essa nomenclatura. Trata-se,
reconhecer e respeitar a existência do outro portanto, de um mecanismo de distinção uti-
como sendo diferente e não como uma varian- lizado pelos autores para analisar uma cultura
te inferior do eu. Convém, ainda, acrescentar que não a europeia, estadounidense e tantas
que isso significa enxergar que a cultura da outras sociedades capitalistas. Daí a perma-
qual somos fruto é apenas uma possibilidade nência do uso do termo, apesar de alguns au-
de organização social, meramente mais uma tores preferirem a seguinte grafia: “sociedades
entre várias. pré-capitalistas”.

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UAB/Unimontes - 1º Período

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26
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

UNIDADE 2
A antropologia e a análise
das sociedades primitivas –
organização social, sistemas de
parentesco, economia, poder e
expansão colonial
Fernanda Veloso Lima
Flávio de Oliveira Carvalho

2.1 Introdução
Estudamos na Unidade 1 que o homem, no interior da Antropologia Geral; e, também,
desde épocas remotas, alimenta uma curio- discorremos sobre a especificidade de seus
sidade sobre si mesmo e suas diversas práti- métodos, que procuram além de conviver com
cas. Basta relembrarmos discussões de auto- o nativo de forma duradoura, dar-lhe voz. Isto
res como Laplantine (2000), DaMatta (1987) e é, analisar e interpretar a cultura do nativo sob
Maybury-Lewis (2002) para rapidamente nos o ponto de vista do próprio nativo.
convencermos de que o homem sempre se Nessa direção, trataremos, nesta segunda
interrogou sobre si mesmo. Percebemos, além unidade, quais foram as relações da Antropo-
disso, que esses contatos com a alteridade (e logia com seu primeiro objeto: as sociedades
os discursos elaborados sobre ela) aumen- primitivas ou selvagens. Como se deram essas
taram consideravelmente com a expansão interpretações, que sentidos de organização
marítima principiada no século XVI e a conse- foram captados? Posto isso, abordaremos al-
quente descoberta de novos mundos. Cons- gumas contribuições específicas dessa Ciência
tatamos, também, que ainda que possamos na interpretação das sociedades primitivas no
considerar a Antropologia como sendo fruto que diz respeito às suas crenças, seus valores,
dessa curiosidade do homem sobre a diferen- normas, regras, enfim, sobre a organização
ça, falar da constituição de uma Ciência antro- social da sociedade primitiva, bem como ela
pológica é pensar em uma época muito mais adquire sentido. Para tanto, o nosso primeiro
recente, que engloba o final do século XVIII e intuito é definir dentro de uma perspectiva
o século XIX. antropológica quais são as características, os
Concordando com esse raciocínio, discu- traços de uma sociedade dita selvagem. Dito
timos como a Antropologia se institui como de outra forma, analisaremos quais foram (e
Ciência e como ela adquire identidade ao de- são) os critérios usados para classificar uma so-
finir seu objeto de estudo: as sociedades ditas ciedade como sendo primitiva, selvagem, ou
primitivas. E, posteriormente, percebemos o ainda como se diz correntemente em antropo-
paulatino desaparecimento desse objeto; a logia, uma sociedade simples.
maneira com a qual a Antropologia refluiu para Posteriormente, estudaremos como a An-
dentro de sua própria cultura e debateu sua tropologia compreende as relações que os nati-
singularidade em termos de método, ou seja, vos estabelecem entre si em diversas esferas da
o olhar que lançava sobre seu objeto e agora vida social. Assim sendo, examinaremos como
o homem em sua totalidade. Por fim, pondera- as relações de parentesco formam percebidas
mos sobre as ramificações da Antropologia; so- pelos antropólogos; quais lógicas estão subja-
bre a especificidade da Antropologia Cultural centes às classificações das linhagens de des-

27
UAB/Unimontes - 1º Período

cendência; como os nativos compreendem suas De posse dos temas que abordaremos na
obrigatoriedades parentais e em que medida se Unidade 2, apresentamos em seguida os títu-
PARA SABER MAIS sujeitam a elas. Observaremos, também, quais los das subunidades:
são as racionalidades que conferem significa- 2.1 Introdução;
Lévi-Strauss (1997), em
ção às trocas econômicas; como os nativos con- 2.2 Conceituando as sociedades primitivas;
seu livro “O Pensa-
mento Selvagem”, cebem o intercâmbio de bens, a que preceitos 2.3 Considerações sobre os sistemas de
publicado em 1962, sociais as trocas estão atreladas; enfim, qual é parentesco;
critica veementemente a concepção de comércio que permeia suas vi- 2.4 As trocas econômicas;
a nomenclatura de “sel- das. Por último, traçaremos um panorama das 2.5 Expansão colonial e suas consequên-
vagem” atribuída à po-
consequências da expansão colonial européia, cias para os povos não ocidentais.
pulação não européia,
conforme discutiremos analisando-a, especialmente, sob as luzes de Agora que já conhece as divisões desta
nesta Unidade. Por- dois conceitos já tratados aqui: o etnocentris- Unidade, você está pronto para uma nova ca-
tanto, para aprofundar mo, que nesse contexto podemos chamar de minhada intelectual no campo da Antropolo-
sobre essa temática, eurocentrismo, e o relativismo cultural. gia? Então vamos nessa!
sugerimos a leitura des-
ta obra de Lévi-Strauss.
(LÉVI-STRAUSS, Claude.

2.2 Conceituando as sociedades


O pensamento selva-
gem. 2 ed. Trad. Tânia
Pellegrini. Campinas/

primitivas
SP: Papirus, 1997.)

As sociedades ditas primitivas consistem fundamental para distingui-las das sociedades


naquelas que, a princípio, são consideradas complexas. O essencial é, sobretudo, que a so-
como possuidoras de uma organização social ciedade simples desconhece a divisão política
homogênea, ou seja, muito mais simples que entre dominantes e dominados; dito de outra
as sociedades ditas complexas ou industriais. forma, é uma sociedade sem Estado. Do ponto
Como pondera Lienhar- de vista de Clastres (2004), a falta de percep-
dt (1965), são populações ção acerca de relações antagônicas, explora-
cujas comunidades se dor/explorados, sempre intrigou os ocidentais,
aglomeram em pequena visto que desde a antiguidade grega sempre
escala, ocupam territórios se admitiu a oposição entre dominantes e
limitados, e a amplitude dominados (no sentido político) como sendo
das relações sociais são uma marca intrínseca da sociedade humana.
simples, especialmente se Assim sendo, as primeiras visões sobre as so-
comparadas às sociedades ciedades simples acabavam por classificá-las
mais avançadas, com tec- como uma massa uniforme dirigida por instin-
nologia mais desenvolvi- tos e sem qualquer racionalização sobre sua
da e maior especialização própria organização social.
▲ e diversidade de funções sociais. Ainda sob o Na mesma direção de Clastres (2004), em
Figura 14: Pierre Clastres prisma de Lienhardt (1965), foi nesse sentido Sahlins (1983) encontramos o seguinte escla-
(à direita) junto com o que os antropólogos investiram nos estudos recimento: em termos amplos a discrepância
cacique mbya-guaraní, dessas sociedades, pois acreditavam que, ali, entre sociedades complexas e primitivas resi-
Angelo Garay. as peculiaridades essenciais das instituições diria na mesma dicotomia entre paz e guerra,
Fonte: Casa de Vidro. sociais estariam mais evidentes que nas socie- respectivamente. Isso porque a complexida-
Disponível em:<http://
acasadevidro.wordpress. dades modernas. de da sociedade moderna depende da lei e
com/2012/09/25/o-narci- Concordando com essa assertiva, mas da ordem institucional para a manutenção de
sismo-dos-povos-patrio- aprofundando a concepção de sociedade sim- uma ordem, ao passo que as sociedades sim-
tarios-clastres-todorov-
-em-choque-com-o-etno- ples, Clastres (2004) argumenta que embora a ples viveriam em um “estado de natureza”.
centrismo/>. Acesso em 29 sociedade primitiva seja não dividida, homo- Observamos, portanto, a definição de uma
jul. 2013. gênea e ignore diferenças entre ricos e pobres, sociedade complexa nas palavras do próprio
ou exploradores e explorados, isso não é o Sahlins:

Mais analiticamente, um Estado ou uma sociedade civilizada é uma socieda-


de na qual: 1) existe uma autoridade pública oficial, um conjunto de serviços
da sociedade como um todo conferindo poder de governar sobre a socieda-
de como um todo; 2) “sociedade como um todo”, o domínio dessa autoridade
governante é territorialmente definida e subdividida; 3) a autoridade reinante
monopoliza a soberania – nenhuma outra pessoa ou assembleia pode por di-
reito usar o poder (ou força) exceto através de delegação, permissão ou con-

28
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

sentimento do soberano; 4) todas as pessoas e grupos do território são como PARA SABER MAIS
tal – em virtude da residência no domínio – súditos do soberano, de sua jurisdi-
ção e coerção. (SAHLINS,1983, p. 16): Para conhecer um
pouco mais sobre a
perspectiva de Pierre
Sendo assim, a dicotomia entre guerra e Diante do exposto, cabe ressaltar a im- Clastres sobre paz e
paz seria insuficiente para distinguir socieda- portância de um dos maiores pesquisadores guerra, recomendamos
des simples e complexas, uma vez que todo que contribuiu para romper com a ideia de a leitura do artigo “A
o sistema de parentesco ou as regras de tro- etapas de evolução, ou, ainda, que as socieda- sociedade contra o
Estado”, disponível em:
cas econômicas repousam em uma complexa des ditas primitivas consistem em etapas an-
https://we.riseup.net/
estrutura de normas e regras que contribuem teriores da sociedade européia, a saber, Franz assets/71282/clastres-
para coibir o conflito entre as sociedades pri- Boas. Você lembra das discussões que proferi- -a-sociedade-contra-o-
mitivas. Lienhardt (1965) utiliza-se da mesma mos na Unidade 1? Sobre o desenvolvimento -estado.pdf>.
argumentação quando explica que as labirín- do conceito de cultura? Que para refletir sobre
ticas estruturas de parentesco e de obrigações o outro se fez necessário romper com ideia de
sociais atendem às mais diversas funções e estágios de evolução? Então, vamos repensar
têm por finalidade a manutenção da convi- um pouco mais sobre esse aspecto para rati-
vência pacífica e organizada entre as socieda- ficar o que acabamos de estudar sobre o pen-
des simples. Nesse sentido, como afirma Lévi- samento de Sahlins (1983), Lienhardt (1965) e
-Strauss (1967, p. 122) “Um povo primitivo não Lévi-Strauss (1967) acerca das sociedades sim-
é um povo ultrapassado ou atrasado; num ou ples e complexas.
noutro domínio pode demonstrar um espíri-
to de invenção e realização que deixa muito
aquém os êxitos dos civilizados”.
É claro que a ideia de reduzir a diversida-
◄ Figura 16: Franz Boas
de das culturas humanas às cópias atrasadas
em campo com trajes
da civilização ocidental se choca com uma esquimó.
dificuldade: todas as sociedades possuem his- Fonte: Das Boas-
tória. E, para admitir que cada uma delas seja -Projekt. Disponível em:
uma etapa do desenvolvimento de outras, te- <http://www.franz-
-boas.de/content/index.
ríamos que consentir que enquanto em algu- php?n=7&c=71>. Acesso
mas sociedades muitas coisas aconteciam, em em 29 jul. 2013.
outras nada ocorria. Em geral, com exceção de
algumas sociedades (como as da América), to-
das as sociedades possuem uma história que
é basicamente da mesma grandeza. Porém,
como nos lembra Lévi-Strauss (1967, p. 123); “A
história desses povos nos é totalmente desco-
nhecida e, devido à ausência ou pobreza de
tradições orais e vestígios arqueológicos, nun-
ca será atingida: não poderíamos daí concluir
sua inexistência”.
Glossário
Difusionismo: pers-
pectiva teórica que ver-
sa sobre as diferenças
O alemão naturalizado americano, Franz das sociedades a partir
Boas, pensou a cultura como um emaranhado da ideia de mudança e
de relações, sendo que os indivíduos e grupos progresso segundo a
apropriação de traços
criariam para essas relações soluções, media- de uma cultura pela
ções, ou formas de convivência particulares. outra. Esses traços são
Segundo esse antropólogo culturalista, estu- aperfeiçoados e trans-
dar uma cultura é perceber a sua totalidade e feridos pela cultura
considerar as maneiras com as quais cada uma que o adquiriu, daí a
ideia de difusão (AIRES,
delas lida com o seu próprio desenvolvimento. 2003).
Antes mesmo de Malinowski ou Lévi-Strauss,
Franz Boas instituiu as primeiras observações
▲ diretas com as sociedades ditas primitivas,
Figura 15: O Antropólogo Claude Lévi-Strauss. quando estabeleceu, por um ano, contato ín-
Fonte: Enciclopédia Britannica. Disponível em:<http:// timo com os esquimós, os Inuit, da Ilha de Ba-
www.britannica.com/EBchecked/media/141902/Claude- ffin. Tal experiência possibilitou ao antropólo-
-Levi-Strauss-2001>. Acesso em 29 jul. 2013.

29
UAB/Unimontes - 1º Período

go um interesse sobre a Geografia Cultural e num conjunto de ideias bem arrumadas e aca-
DICA o direcionou para a compreensão do papel da badas” (EVERARDO ROCHA, 1988, 17).
tradição social e suas interfaces com os com- Agora você pode concluir que não so-
Clifford Geertz, em sua
obra “A Interpretação
portamentos humanos. Em outras palavras, mente o pensamento de Franz Boas contri-
das Culturas”, descre- como a cultura pode ser determinada a partir buiu, sobremaneira, para a mudança no pa-
ve a importância do de uma tradição cultural (LAPLANTINE, 2000). radigma acerca dos estudos das sociedades
desenvolvimento de As reflexões de Franz Boas trouxeram simples e complexas? Bem como a maneira
cultura para a compre- à baila um questionamento crítico sobre os com a qual os antropólogos engendraram
ensão de que o homem
também é diverso.
métodos difusionistas e evolucionistas, pois seus estudos rumo ao relativismo cultural?
Assim, como Franz pensou as culturas humanas como diversas Então, foram esses esforços que acabamos
Boas, Geertz passou a e plurais. Logo, a difusão não seria suficiente de estudar que possibilitaram à Antropologia
interpretar a cultura para pensar tal diversidade. Além disso, su- uma compreensão sobre que tipo de compa-
em uma perspectiva de geriu que a comparação entre as culturas so- ração poderá ser feita em suas pesquisas, bem
totalidade, refutando,
portanto, a ideia de
mente poderia ser realizada entre sociedades como interpretar as diversidades segundo o
progresso e evolução que possuíssem as mesmas leis, isto é, estudar que cada cultura valoriza e concebe. O intuito
do homem segundo o sociedades que possuíssem o mesmo concei- aqui não foi o de negar que existem diferentes
processo de hominiza- to de parentesco ou economia, por exemplo. graus de desenvolvimento tecnológico entre
ção (GEERTZ, Clifford. Assim, Franz Boas inaugurou duas tarefas para diferentes culturas e nem dirimir o fato de que
A Interpretação das
Culturas. Rio de Janeiro:
Antropologia: a) reconstruir “a história de po- algumas sociedades alcançam uma complexi-
Guanabara, 1989). vos ou regiões particulares”; b) comparar “a dade e diversidade social maior que outras.
vida social de diferentes povos, cujo desenvol- Como demonstrou Lévi-Strauss (1967),
vimento segue as mesmas leis” (LAPLANTIE, poderíamos distinguir duas histórias sociais:
2000, p.35). uma progressiva que acumula suas aquisições
Desse modo, a “História da Humanidade” somando-as, e outra, talvez igualmente inven-
perdeu o “H” maiúsculo e passou a ser estuda- tiva, mas que não teria a característica cumu-
da com “h” minúsculo. Consequentemente, o lativa. Contudo, isso não significa que as so-
conceito de “homem” perdeu a característica ciedades não cumulativas (digamos, simples)
PARA SABER MAIS
de universal, ou seja, falamos, portanto, em e as sociedades cumulativas (digamos, com-
Para conhecer sobre “homem” com “h” minúsculo devido à influên- plexas) constituam um só caminho do desen-
o estruturalismo de
Lévi-Strauss, indicamos
cia do impacto do conceito de cultura sobre o volvimento humano, no qual a primeira seja
a leitura do artigo “O conceito de homem. Outro argumento utiliza- a infância da segunda. Portanto, ainda que
estruturalismo de Lévi- do por Franz Boas para os estudos das culturas aceitemos, em diversos níveis, que as socieda-
-Strauss: significação do consistiu na relação que o autor fez com diver- des primitivas possam ser consideradas mais
estrutural inconscien- sas áreas do conhecimento. Assim, estudar as “simples” em relação às sociedades modernas
te”, escrito por Acílio E.
Rocha. O trabalho está
culturas, para o antropólogo, era pensar ora a (complexas), partiremos do princípio de que
disponível em: http:// língua que determinada sociedade falava; ora sendo múltiplas as culturas dos seres huma-
www.repositorium. a personalidade dos indivíduos; ora a relação nos, são múltiplos, também, os caminhos que
sdum.uminho.pt/bits- que mantinham com o ambiente no qual vi- cada povo resolve trilhar no curso de seu de-
tream/1822/8719/1/ viam; entre outros aspectos da totalidade da senvolvimento.
Estr.L.S.pdf.
cultura em estudo. Não obstante, seus discí- Estudamos a importância da substituição
pulos sofreram forte influência no fazer etno- do termo cultura (no singular) por culturas (no
gráfico. Como exemplo Gilberto Freyre e Mar- plural), sendo que a partir desse pressuposto
gareth Meed, só para citar alguns, e fundação foi possível a construção de uma nova ideia
de escolas como: Ambiente e Cultura; Persona- acerca da diversidade cultural. Lembra que
GLOSSÁRIO lidade e Cultura. Franz Boas foi quem inaugurou a escola cul-
Endogâmico: relativo à
Apesar de uma ampla discussão acer- turalista e proporcionou uma ampla discussão
endogamia; casamento ca das categorias que permeiam as culturas, sobre as diversas categorias que poderiam ser
entre pessoas que per- Franz Boas, em suas obras, não fixa nitidamen- incluídas no conceito de cultura? Assim sen-
tencem à mesma tribo. te um conceito para a cultura como fez Tylor, do, nas próximas subunidades examinaremos
Exogâmico: relativo à por exemplo. O pensamento de Franz Boas como a antropologia discutiu alguns dos sig-
exogamia; casamento
entre pessoas que
voltou-se mais para um levantamento de hi- nificados que permeiam a cultura dos diversos
pertencem a tribos póteses novas do que “torná-las sistematica- grupamentos humanos, especialmente o que
diferentes. mente formuladas”. “Era um homem de deixar os membros desses grupamentos dizem a res-
pistas férteis, instigante, inquieto, com interes- peito das relações de parentesco, e as modali-
ses demasiadamente múltiplos para se conter dades de trocas e intercâmbios econômicos.

30
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

2.3 Considerações sobre os GLOSSáriO


Matrilinear: “Diz-se de
uma regra de filiação

sistemas de parentesco que determina que o


indivíduo adquire os
principais elementos
do seu estatuto, e
A união entre dois seres é um fenôme- nas populações mais tradicionais, o casamento nomeadamente a sua
inclusão num determi-
no biológico. Contudo, o casamento é uma é algo além da união de duas pessoas ou mes- nado grupo de paren-
construção específica da sociedade humana, mo de suas famílias adjacentes, formatando, tesco, tendo exclusi-
que tem por finalidade estabelecer laços en- na verdade, relações entre grupos inteiros, de vamente em vista os
tre pessoas e coordenar as obrigações de uns maneira que qualquer casamento tem signi- laços genealógicos que
para com os outros, formando uma família. ficações sociais de grande importância. Isto passam pelas mulheres.
Por extensão, diz-se
Assim sendo, de uma forma mais ampla, po- posto, podemos dizer que os tipos de relações igualmente matrilinear
demos dizer que as relações de parentesco são de parentesco ou grupos de descendência se um grupo (linhagem,
similares, ainda que mais complexas, à nossa encontram organizados de acordo com os clã, etc.) cujo recruta-
noção de família. Segundo Lienhardt (1965), mais variados fundamentos. mento é determinado
pela aplicação desta
regra de filiação” (PA-
NOFF; PERRIN, s/d).
Patrilinear: “Regra
que determina que o
indivíduo receberá au-
tomaticamente do pai
os principais elementos
do seu estatuto e, no-
meadamente, que esse
indivíduo pertencerá
ao mesmo grupo de
filiação (linhagem, clã,
etc.) que o seu pai e o
pai do seu pai” (PANO-
FF; PERRIN, s/d).

◄ Figura 17: A recepção


do Capitão Cook, em
Hapaee, atualmente
Polinésia.
Fonte: Revista de História.
Disponível em:<http://
www.revistadehistoria.
com.br/secao/capa/
conquista-nada-pacifica>.
Segundo Sahlins (1983, p. 77), “A tribo é segmentada e hierarquizada. O tempo Acesso em 29 jul. 2013.
uma constelação de comunidades e relações genealógico é a primeira regra de hie-
entre comunidades.” As descendências po- rarquia desse clã; assim, as pessoas são
dem ser dos mais diversos tipos, matrilineares, classificadas conforme sua longitude
patrilineares ou cognatas, isto é, não unilinea- do fundador da linhagem. Ramificações
res. Pode acontecer mesmo de, em uma úni- equivalentes, por exemplo, são categori-
ca tribo, existir a combinação funcional entre zadas a partir do posicionamento de seus PArA SABer MAiS
grupos patrilineares e matrilineares. correspondentes fundadores na genealo-
A resenha do livro de
Ademais, esses grupos de parentesco po- gia do clã. Esse tipo de clã é, a priori, pa-
Sahlins “Ihas de His-
dem estar circunscritos ou espalhados; podem trilinear. Contudo, existem também casos tórias” trata de forma
ser igualitários ou hierarquizados, endogâ- de valorização da descendência materna. sucinta as ideias do
micos, exogâmicos ou agâmicos. Nesse senti- Além disso, não são endogâmicos nem antropólogo sobre a
do, percebemos que existe uma considerável exogâmicos. “A tribo é formada por um recepção do Capitão
Cook. Recomendamos,
gama de combinações que permeiam a vida ou vários desses clãs, organizados em
portanto, a leitura
das populações ditas primitivas, e coordenam uma ou (normalmente) várias chefias in- do trabalho que está
suas relações sociais de forma a organizar as dependentes” (SAHLINS, 1983, p. 79); disponível em: <socio-
interações e trocas sociais entre os diversos • Sistemas de Linhagem Segmentários: são logiaeantropologia.blo-
grupos. Vejamos alguns dos tipos organizacio- sistemas descentralizados e igualitários, gspot.com/.../normal-0-
-21-false-false-false_1.
nais de parentesco e suas principais caracterís- assemelhando-se aos Clãs Cônicos ape-
ticas, discutidas por Sahlins (1983, 79-81): nas na sua forma, pois em substância e
• Clãs Cônicos: possuem uma formação função são muito distintos. Esse tipo de

31
UAB/Unimontes - 1º Período

sistema não é hierarquizado; nidade forte demais para casamentos,


em fato, além das camadas dos portanto são exogâmicos. Também são
segmentos autônomos míni- igualitários, ou seja, não existe a hierar-
mos, não existe organização ou quização (SAHLINS, 1983);
liderança. Não existem políticas • Grupos de Descendência Local Cognáti-
perenes de chefia ou regionais, cos: são estruturas mais descentralizadas
mas sim negociações e arran- que os clãs, assim esse tipo de comunida-
jos em momento de tensão. de é quase sempre maior do que o é de
Sugere-se que essa formação é fato, e alguns de seus possíveis aderentes
uma resposta adaptativa rápida são componentes reais de outros grupos.
às oportunidades de expansão Os grupos cognáticos não são exogâmi-
geradas pela permanência de cos nem endogâmicos e sua descendência
tribos fracas em territórios pró- pode ser tanto materna quanto paterna
ximos e desejáveis (SAHLINS, para legitimar seu pertencimento total ao
1983); grupo. Contudo, o usual é que a pessoa
• Clãs Territoriais: esse tipo de pertença ao lugar onde vive, portanto, ain-
clã assume e defende um espa- da que a dispersão de seus antepassados
ço territorial definido no interior abra alternativas na escolha de residência,
do qual vive a maior parte dos o indivíduo vai participar do grupo no qual
homens adultos. São geralmen- se encontra. A filiação ao grupo é então

te de descendência patrilinear e tam- uma combinação entre descendência e re-
Figura 18: Sociedades bém exogâmicos. Dentro do clã existem sidência (SAHLINS, 1983).
Tribais.
pequenos grupos de descendência, nos Nesse emaranhado de configurações
Fonte: Sebo do Messias.
Disponível em: <http:// quais os indivíduos podem citar sua ge- sociais, como nos mostra Lienhardt (1965), a
sebodomessias.com.br/ nealogia até o fundador da tribo. Mas os predileção pessoal na escolha do par para o
sebo/detalheproduto. Clãs Territoriais não apresentam a mesma casamento é com frequência obliterada por
aspx?idItem=68768>.
Acesso em 29 jul. 2013. relação que os Clãs Cônicos com sua ge- convenções de importância pragmática, po-
nealogia; assim sendo, os indivíduos e os lítica e econômica. Isso não quer dizer que o
segmentos não se encontram hierarqui- amor, nos termos ocidentais, esteja completa-
zados daquela forma. Ademais, não existe mente ausente dessas relações, mas sim que
uma sistematização de cargos de chefia, a finalidade precípua do casamento não é a
mas sim líderes locais que re- companhia ou o prazer sexual, mas, primei-
presentam seus subclãs ou seus ramente, o nascimento de filhos legítimos.
clãs em questões intergrupais Nesse sentido, Sahlins (1983), demonstra que
(SAHLINS, 1983); várias linhagens estão inteira e solenemente
• Clãs Dispersos: essa forma unidas pelas trocas de suas filhas. Portanto, as
de clã é a mais comum, sendo relações de parentesco suprimem possibilida-
encontrada em quase todos os des de conflitos, estabelecem regras para tro-
continentes. Conquanto esteja cas econômicas e criam normas matrimoniais
baseado também em descen- que estipulam quais indivíduos podem casar
dência comum, matrilinear ou com quais e que obrigações derivam dessas
patrilinear. Esse tipo de clã é uniões. Assim sendo, o parentesco é um fun-
bastante distinto dos que vimos damento para o pensamento humano paci-
▲ anteriormente; é uma classe de fico, visto que as relações de parentesco nas
Figura 19: Marshall pessoas, não coordenada, que possuem sociedades tribais podem ser representadas
Sahlins mesma ancestralidade, mas não agem como uma outra forma de manter a ordem e
Fonte: Michiganto Day. como coletividade. Os membros desses buscar a paz.
Disponível em:<http:// clãs vivem espalhados e misturados com Ainda, como discute Lévi-Strauss (1967),
michigantoday.umich.
edu/01/ pessoas de outros grupos. As comunida- essas relações estão transpassadas por princí-
Sum01/mt5s01.html>. des locais, então, costumam ser compos- pios de reciprocidade e troca; assim, as oferen-
Acesso em 19 mai. 2013. tas por diferentes linhagens de diversos das matrimoniais (o que chamamos de dote)
clãs. Um aspecto interessante dessa for- são as mais comuns formas de trocas entre os
mação é que como homens de uma mes- grupos. Contudo, pode existir também a troca
ma linhagem estão espalhados por diver- direta de filhas entre dois grupos, e cada uma
sos outros clãs, quando há encontros para dessas filhas se tornará esposa em sua nova
trocas econômicas ou outras entre os clãs residência. De uma maneira inteligível o au-
de diferentes locais, isso pode contribuir tor demonstra que o sistema de trocas mais
para facilitar as negociações e mesmo simples ocorre em comunidades formadas
para formação de alianças. Todavia, ape- por apenas dois grupos onde seja proibido o
sar dessa separação, formam uma frater- casamento dentro do mesmo grupo, assim,

32
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

portanto, o grupo A deveria trocar suas mu- recebê-las do grupo C, enquanto o grupo B
lheres com o grupo B. Quando o número de poderia enviar mulheres ao grupo C e assim
grupos aumenta, as regras tendem a ficar mais sucessivamente. É claro que aqui estamos ci-
complexas. Nesse caso, o grupo A pode ceder tando apenas um simplificado exemplo das
mulheres ao grupo B, mas somente poderia possibilidades das relações de parentesco.

◄ Figura 20: Divindade e


experiência: a religião
Dinka estudada por
Godfrey Lienhardt.
Fonte: Facebook Godfrey
Lienhardt. Disponível em:
<https://www.facebook.
com>. Acesso em 29 jul.
2013.

Atividade
Assista ao filme “Mes-
sias do Mal”, baseado
em fatos reais de uma
comunidade cujo líder
(Roch Thérault) man-
tém relações poligâ-
micas de matrimônio
e, portanto, foge aos
padrões estabelecidos
nos Estados Unidos da
América. Na trama, e na
vida real, Roch Thérault
pratica rituais para rati-
Lienhardt (1965), ponderando sobre a Nesta subunidade, discutimos de forma ficar o seu status social,
abrangência das relações de parentesco na introdutória as representações dos sistemas o que gera mutilações
físicas, mortes e uma
vida das sociedades ditas primitivas, ainda ar- de parentesco na vida social das sociedades sentença. Em seguida,
gumenta que elas não são apenas doutrinas ditas primitivas. Percebemos que tais socie- poste no fórum de
fundamentais das relações econômicas, jurídi- dades se desenvolvem de várias formas entre discussões como você
cas e políticas dessas sociedades, mas contri- os diversos grupos, mas que estão ligadas a interpretou as relações
buem, também, para delimitar conceitos liga- preceitos muito maiores que dizem respeito de parentesco. MESSIAS
do Mal. Direção: Mario
dos à moralidade e até mesmo a questões de à organização social e às obrigações de cada Azzopardi. Canadá,
ordem religiosa. Dito de outro modo, esse ele- indivíduo ou grupo para com os outros. Assim Flashstar, 2002. DVD (94
mento moral e religioso pode ser percebido sendo, constatamos que a delimitação de pes- mim), color.
não apenas nas oferendas e rituais que circun- soas “proibidas” ou “permitidas” para o casa- O material está dis-
dam as trocas matrimoniais, mas na percepção mento encontra-se estreitamente ligada à ma- ponível no endereço
eletrônico: http://www.
que na base mesmo de qualquer sistema de nutenção da ordem e da paz sociais. Portanto, telona.org/messias-do-
parentesco está uma proibição religiosa, a do de acordo Sahlins (1983, p.18) “[...] homens de -mal-dvdrip-xvid-rmvb-
incesto, pois é essa proibição que as relações tribo vivem em agrupamentos e comunida- -dublado/.
de parentesco estabelecem para seus mem- des de parentesco dentro dos quais a briga é
bros no exato momento em que constroem usualmente suprimida [...]”. Vimos também
categorias de mulheres com as quais os ho- que essas organizações prestam-se a um pa-
mens podem ou não podem casar-se. pel moral e religioso, na medida em que são

33
UAB/Unimontes - 1º Período

regras proibitivas do incesto. “O incesto está primitivas, selvagens ou simples, estudaremos


incluído entre as transgressões que resultam a partir de agora suas relações econômicas. O
na perda da condição humana e destroem a intuito é perceber quais são as racionalidades
ordem humana e divina” (LIENHARDT, 1965, que dão sentido às suas trocas, assim como
p. 124). Nessa direção, continuando nossas suas concepções de prestígio ou riqueza; en-
análises sobre as instituições que atravessam fim, como essas sociedades executam e com-
e compõem a vida social das sociedades ditas preendem as trocas econômicas.

2.4 As trocas econômicas


Para Lienhardt (1965), os aspectos eco-
nômicos podem ser mais visíveis nas socieda-
des simples por não estarem transpassados
por um complexo sistema financeiro ou fis-
cal. Contudo, nem por isso poderíamos inferir
que esses sistemas são rudimentares simpli-
ficações do sistema ocidental. Nesse sentido,
afirma o autor supracitado que os antropó-
logos devem ficar atentos às características
do comportamento social e econômico das
tribos que normalmente funcionam por lógi-
cas distintas das que interessam à economia
moderna. Isto é, existem paradigmas que se
baseiam muito mais em um status social do
que propriamente no ganho pessoal. Nesse
sentido, a troca de presentes, a ajuda bilateral
entre parentes, vizinhos e amigos, os rituais
mágicos, bem como as festividades e exibi-
ções se tornam motivações e finalidades da
produção.

▲ A organização econômica diz respeito à


Figura 21: O gado: um maneira com a qual as pessoas ou grupos ad-
dos sistemas de troca quirem, gerenciam, utilizam e comercializam
Dinka estudado por seus bens e recursos. Está intimamente ligada
Godfrey Lienhardt. com a organização social, existindo em todas
Fonte: Facebook Godfrey as sociedades, mesmo nas consideradas mais
Lienhardt. Disponível
em:<https://www.face- simples. De acordo com Marconi e Presotto
book.com>. Acesso em 29 (2006), por esse motivo as primeiras obser-
jul. 2013. ▲
vações sobre a economia e suas diferenças
nas diversas culturas seguiram a lógica evo- Figura 22: Capítulo do livro “A Religião Dinka”.
lucionista. Tal perspectiva elabora um quadro Fonte: Facebook. Disponível em: <https://www.face-
book.com/GodfreyLienhardt>. Acesso em 19 mai. 2013.
no qual as economias seriam colocadas em
estágios de desenvolvimento, sendo as so- Completando esse raciocínio, Lienhardt
ciedades industriais as mais evoluídas. Contu- (1965) argumenta que, nas organizações so-
do, com o amadurecimento da Antropologia, ciais não industriais, a redistribuição da rique-
bem como a intensificação dos trabalhos de za desempenha um papel muito importante
campo, assim como estudados na Unidade 1, nas formas como as tribos se relacionam so-
e, também, nas subunidades anteriores, di- cialmente. Dessa maneira, o que um indivíduo
versas foram as informações coletadas que possui de excedente é utilizado para sanar as
apontavam para uma complexidade muito deficiências de seus amigos, parentes ou vi-
maior das relações econômicas. zinhos, constituindo uma rede que tem por

34
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

PArA SABer MAiS


Para ampliar os estu-
dos, sugerimos o artigo
intitulado “De Sahlins
a Claude Lévi-Strauss:
no setor transpacífico
do sistema mun-
dial. O trabalho está
disponível em: http://
www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext
&pid=S0104-7183200
1000200013.

◄ Figura 23: Localização


das Ilhas Trobriand
onde Malinowski
estudou o sisstema
Kula.
Fonte: Wikipédia. Dispo-
nível em: <http://upload.
wikimedia.org/wikipedia/
commons/e/ea/Tro-
princípio corrigir as anomalias locais do pro- pelas mais diversas culturas, assim como os be- briand.png>. Acesso em
vimento de alimentação e tragédias individu- nefícios pretendidos, que frequentemente não 29 jul. 2013.
ais. Em alguns casos, ainda, essa redistribui- são materiais. O kula, por exemplo, constitui-se
ção pode estar ligada a fatores religiosos que como uma instituição extremamente comple-
estipulam o valor da doação; assim, a religião xa que abarca várias tribos em um extenso sis-
também admite um caráter econômico. Nessa tema de trocas. Os dois principais artigos des-
direção, Malinowski (1976), pondera que é um sas trocas são os Soulava (colares de conchas
equivoco classificar a economia desses povos vermelhas) e os Mwali (Braceletes de conchas
como sendo um “comunismo primitivo”, haja brancas). Os agrupamentos que mantêm inte-
visto que as reivindicações nas relações desses rações estão dispostos em um amplo conjunto
povos nunca se encontram restritas às ideias de ilhas que formam um círculo fechado.
de propriedade individual ou coletiva. Os Soulava e os Mwali partem em rotas
Sahlins (1983), corroborando essa pers- contrárias e quando se
pectiva, argumenta que as trocas nas socie- cruzam são trocados em
dades tribais infrequentemente estão base- cerimônias que, além
adas em competição ou ganho, mas sim na dessas trocas diretas,
construção de relações amistosas ou hostis envolvem também tro-
que podem ser estabelecidas. Dessa manei- cas secundárias que são
ra, podemos perceber que em uma elevada essenciais ao funciona-
quantidade de transações tribais, o valor ma- mento do sistema. Nessas
terial não é valorizado, mas sim, e o que é mais cerimônias do Kula, quan-
prestigiado, as vantagens ‘relacionais’ que um do uma pessoa ganha de
negócio (ou troca) pode proporcionar. Pode outrem uma doação, fica
acontecer, portanto, das duas partes trocarem obrigada, em um inter-
quantidades idênticas de bens (inclusive que valo de tempo, a retribuir
já possuem) para terminar contendas, estabe- com uma oferta de cor-
lecer fraternidades sanguíneas ou acordar um respondente e honrado
matrimônio. Assim sendo, está claro um forte valor. Se a retribuição
objetivo moral, no qual o mais importante não for de relevância inferior ▲
é o ganho material (exceto se for para a outra pode-se romper a ligação de reciprocidade
Figura 24: Sistema kula:
parte), mas sim a manutenção da paz, das re- que ela poderia estabelecer. Isso porque, para Saulava e Mwali.
lações harmoniosas entre as partes envolvidas. esses povos, a generosidade que é um sinal Fonte: Clã. Disponível
Ou seja, essas trocas constituem-se em estra- de riqueza; quanto mais se tem mais se deve em: <http://cla.calpoly.
tégia social; configuram-se, portanto, em tra- doar. A avareza, por consequência, torna um edu/~lcall/213/kula1.gif>.
Acesso em 29 jul. 2013.
tados de paz. indivíduo digno de desprezo.
Baseando-se em um raciocínio similar, Outro dos exemplos antropológicos mais
Malinowski (1976), também nos chama a aten- frutíferos provém da análise de Mauss (2003),
ção para o fato de que o trabalho ou o esforço investigando uma atividade não econômica
podem ser interpretados de distintas maneiras designada de Potlatch, situada entre os índios

35
UAB/Unimontes - 1º Período

Figura 25: Chegando ►


ao potlatch. Alert Bay,
British Columbia.
Fonte: Clã. Disponível em:
<http://peabody2.ad.fas.
harvard.edu/potlatch>.
Acesso em 29 jul. 2013.

da Columbia britânica. Entre esses índios, ex- E então, você consegue perceber que os
tremamente afortunados mesmo em compa- conceitos de economia pura adotados pelas
ração às mais ricas economias de subsistência, sociedades industriais estão longe de ope-
existia um labiríntico sistema de status e posi- racionalizar categorias que possam explicar
ções que era sustentado por uma competição, as motivações das transações comerciais das
Figura 26: Livro Os Nuer, segundo a qual as pessoas destruíam ou doa- sociedades ditas primitivas? Para isso, basta
de Evans-Pritchard. vam demasiadamente enormes quantidades relembrar as argumentações utilizadas pelos
Fonte: Better word books. de seus bens. Nessas relações, bens como fo- autores supracitados para ratificar que as tro-
Disponível em: <http:// lhas de cobre eram supervalorizadas, mesmo cas entre os povos selvagens estabelecem-se
images.betterworldbooks.
com/019/The-Nuer- sendo pouco úteis aos índios, ao passo que levando em consideração várias esferas da
-Evans-Prichard- cobertores ou roupas, com utilidade potencial, vida social, que não necessariamente alme-
-E-9780195003222.jpg. valiam poucas ou quase nenhuma dessas fo- jam o acúmulo de ganhos pecuniários. Essas
Acesso em 02 de jun. de
2013. lhas de cobre. Contudo, convém observar que trocas, antes, encontram-se pautadas em rela-
a finalidade dessas trocas consistia em afirmar ções pessoais que buscam fortalecer os laços

ou reafirmar uma posição so- de solidariedade, mesmo que isso signifique
cial; por conseguinte, quem (e isso é impensável para o homem ocidental)
comparecia ao Potlatch era perder, doar ou mesmo destruir grandes quan-
obrigado a aceitar “presen- tidades de seus bens (talvez até com certo
tes” e retribuí-los, mesmo que prazer, pois o individuo que doa menos é clas-
passado um ano, superando o sificado como um párea nessas sociedades).
valor da doação recebida an- Como comenta Lienhardt (1965), é apenas nas
teriormente. sociedades ocidentais modernas que o dinhei-
Nesse mesmo sentido, ro e o acúmulo de bens materiais assumem
Evans-Pritchard (1978) men- uma força transcendental e torna-se um com-
ciona que negociar (trocar) portamento altamente desejável. Contudo,
mercadorias com preços e pa- cabe ressaltar que essas sociedades simples
drões de valor determinados só se tornaram conhecidas, para nós, a partir
soava como uma anomalia a dos contatos com o homem branco. Contatos
muitos povos. Os Nuer, por estes, como observado na Unidade I, que se
exemplo, consideravam suas intensificaram a partir do século XVI com as
negociações com os merca- Grandes navegações, e consolidaram-se com
dores árabes como sendo a expansão colonial européia dos séculos se-
uma troca de presentes, pois guintes. Sendo assim, quais foram as conse-
na perspectiva Nuer não exis- quências dessa expansão para os povos não
te uma relação entre merca- ocidentais? É justamente sobre isso que vamos
dorias, mas sim entre pessoas. estudar agora. Vamos nessa, então?

36
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

2.5 Expansão colonial e as PARA SABER MAIS


Para compreender me-

consequências para os povos não lhor os discursos acerca


das sociedades simples,
ou tipos primitivos, à

ocidentais luz dos autores Lienhar-


dt, Evans-Pritchard e
outros mencionados
nesta unidade, sugeri-
mos a aula do professor
Faz pouco tempo que podemos falar antes do contato com os colonizadores havia Erneto Veiga de Oliveira
na existência de um mundo chamado de ci- uma população indígena de cerca de 2 a 2,5 que está disponível em:
vilizado e outro mundo classificado como milhões de pessoas. Em 1900, existiam 230 <http://ceas.iscte.pt/et-
primitivo. Em diversos rincões do planeta tribos no território nacional, sendo que, em nografica/docs/vol_10/
N1/Vol_x_N1_08-Gold-
(florestas da América do Sul, pradarias nor- 1957, restavam apenas 143. Ademais, a popu-
man-AEVO.pdf..
te- americanas ou do leste africano, ilhas do lação indígena havia sido reduzida e contava
pacífico, dentre outros) povos selvagens es- no máximo com um contingente de 99.700
tavam ainda formatando interpretações de indivíduos (RIBEIRO, 1957).
um tipo de cultura há muito já considerado Segundo Clastres (2004), existem dois
obsoleto pelos europeus. Atualmente, a civi- conceitos parecidos, porém distintos entre
lização moderna desconhece fronteiras, pois si, que servem muito bem ao propósito de
essas diferentes populações selvagens foram caracterizar esse pro-
subjugadas por quatro séculos de explora- cesso, especialmente
ção européia a nível planetário. Num mun- porque a história da
do que paulatinamente passou ao domínio construção dos im-
dos Estados-nação para fazerem dele o que périos coloniais das
bem entendem, esses povos descobertos (ou potências europeias
dominados/invadidos) foram ligeiramente está recheada de
colonizados, classificados e traumatizados massacres metódicos
culturalmente. Aculturados seria o conceito contra as popula-
técnico correto. Dessa maneira, a expansão ções nativas. São os
da sociedade industrial moderna se coloca conceitos de geno-
como um processo evolucionário de “suces- cídio e etnocídio. O
so”, quer dizer, é o processo pelo qual um genocídio pressupõe
grupo ascende, se amplia e diversifica e, por a noção de raça e o
conseguinte, provoca o solapamento dos ti- desejo de extermínio
pos primitivos (SAHLINS, 1983). físico dessa mesma
Nesse momento, você deve se lembrar raça; já o etnocídio
que foi no bojo dessas concepções sobre a mata a cultura de um
alteridade, conforme estudamos na Unida- povo, ou seja, aniqui- ▲
de 1, que a antropologia se consolida como la suas maneiras de agir, pensar e sentir. “Em
Figura 27: O
Ciência, no final do século XVIII e início do suma, o genocídio assassina os povos em seu Antropólogo Darcy
século XIX. Nesse contexto, como discute corpo, o etnocídio os mata em seu espírito” Ribeiro.
Lienhardt (1965), a nascente ciência antropo- (CLASTRES, 2004, p. 83). Esses dois concei- Fonte: Blog de Pedro Eloi.
lógica foi influenciada por problemas morais tos têm uma visão similar do outro, o outro Disponível em: <http://
www.blogdopedroeloi.
das metrópoles europeias que se expandiam é o diferente, mas especialmente o diferente com.br/2013/03/o-povo-
cada vez mais e, consequentemente, se ques- ‘mal’. O que diferencia esses dois conceitos é -brasileiro-darcy-ribeiro.
tionavam sobre a natureza e situação dos que enquanto o genocídio nega a diversida- html>. Acesso em: 15 mai.
2013.
povos ditos selvagens. Assim sendo, numa de e pretende destruí-la fisicamente, o etno-
conjuntura de humanitarismo europeu, eram cídio nega a diferença, mas pretende domá-
constantes as preocupações sobre suas res- -la, transformando-a o máximo possível no
ponsabilidades, na condição de povos colo- modelo que é concebido como padrão de
nizadores, para com os povos colonizados. normalidade e civilização. Poderíamos mes-
Contudo, essas preocupações não significa- mo dizer que genocídio e etnocídio seriam
ram um refreamento no afã expansionista eu- comparáveis a duas formas perversas de pes-
ropeu. No Brasil, por exemplo, estima-se que simismo e otimismo (CLASTRES, 2004).

37
UAB/Unimontes - 1º Período

Figura 28: Campanha ►


de conscientização “Voz
Ancestral”.
Fonte: Voz Ancestral.
Disponível em:<http://
yosoyxinka.blogspot.com.
br/2012/02/voz-ancestral-
-serie-de-postales.html.
Acesso em 12 mai. 2013.

DICA
Darcy Ribeiro foi “an-
tropólogo, educador e
romancista. Nasceu em
Montes Claros (MG), em
26 de outubro de 1922,
e faleceu em Brasília,
DF, em 17 de fevereiro
de 1997. Diplomou-se Podemos perceber, então, que a história das relações dos europeus com os povos não euro-
em Ciências Sociais
peus foi marcada por uma série de conflitos que decretaram o desaparecimento de diversos des-
pela Escola de So-
ciologia e Política de ses povos. Não obstante, a Antropologia, conforme estudamos no início desta Unidade, começou
São Paulo (1946), com a refletir sobre a extinção de seu objeto de estudo, e, por conseguinte, o fim da própria Ciência
especialização em da alteridade. E você, o que pensa sobre isso? Será mesmo o fim dos estudos antropológicos? É
Antropologia. Etnólogo sobre esse tema que versaremos os nossos estudos a partir de agora.
do Serviço de Proteção
aos Índios dedicou os
primeiros anos de vida

Referências
profissional (1947-56)
ao estudo dos índios
de várias tribos do
país. Fundou o Museu
do Índio, que dirigiu
até 1947, e colaborou Aires, Almeida, org. (2003) Difuisonismo. In:___ Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano.
na criação do Parque Versão online: http://www.defnarede.com/a.html.
Indígena do Xingu. Es-
creveu uma vasta obra CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
etnográfica e de defesa
da causa indígena. Ela- EVANS-PRITCHARD, E. E. Evans. Os Nuer. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1978 (Série Estudos Antro-
borou para a UNESCO pologia).
um estudo do impacto
da civilização sobre EVERARDO ROCHA, P. O que é etnocentrismo? 11. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Coleção Pri-
os grupos indígenas
brasileiros no século
meiros Passos; 124), p.07-55.
XX e colaborou com
a Organização Inter- GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
nacional do Trabalho
na preparação de um LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2000.
manual sobre os povos
aborígenes de todo o LÉVI-STRUASS, Claude. A antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
mundo”.
Fonte: Academia. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. 2. ed. Trad. Tânia Pellegrini. Campinas/SP: Pa-
Disponível em: <http:// pirus, 1997.
www.academia.org.br/
abl/cgi/cgilua.exe/sys/ LIENHARDT, Godfrey. Antropologia Social. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
starthtml?infoid=438
&sid=158>. MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacifico Ocidental: Um relato do empreendimento
e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guine Melanésia. São Paulo: Abril Cultural,
1976. 436 p. (Coleção Os Pensadores).

38
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

MARCONI, Mariana de Andrade; PREZOTTO, Maria Neves. Antropologia: uma introdução. 6 ed.
2ª impressão, São Paulo: Atlas, 2006.

MAYBURY-LEWIS, David. A Antropologia numa Era de Confusão. In: Revista Brasileira de Ciên-
cias Sociais. Vol. 17, n. 50, 2002.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MERCIER, P. História da Antropologia. São Paulo: Editora Moraes, 1974.

MESSIAS do Mal. Direção: Mario Azzopardi. Canadá, Flashstar, 2002. DVD (94 mim), color.

PANOFF, Michel; PERRIN, Michel. Dicionário de Etnologia. Lisboa: Edições 70, s/d.

RIBEIRO, Darcy. Diários Índios: os Urubus Kaapor. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SANCHIS, P. A Crise dos Paradigmas em Antropologia. In: DAYRELL, Juarez (org.). Múltiplos Olha-
res Sobre Educação e Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

SAHLINS, Marshall. Sociedades Tribais. Tradução: Yvonne Maggie Alves Velho. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983.

39
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Unidade 3
A Antropologia e o estudo das
sociedades complexas
Fernanda Veloso Lima
Flávio de Oliveira Carvalho

3.1 Introdução
Na Unidade 2, nosso objetivo foi apresen- irracionais por indivíduos das sociedades ca-
tar algumas das análises que a Antropologia pitalistas ocidentais (ou mesmo as ditas socia-
construiu sobre as sociedades consideradas listas) respondem a regras sociais que alme-
primitivas. Nessa altura, acadêmico(a), você jam bens simbólicos em detrimento dos bens
deve relembrar que as sociedades selvagens materiais. Por esse motivo, entre os indivíduos
foram o primeiro objeto de estudo da Antro- que praticam o Kula ou o Potlatch é extrema-
pologia. Você se lembra também que esse fato mente coerente doar ou mesmo destruir enor-
aconteceu por causa da influência das ciências me quantidade de seus bens, ou, como diria o
naturais que tinham como prerrogativa a ob- ocidental, de suas propriedades.
jetividade? Nessa direção, foi definido que a Primeiramente, como já discutimos, a An-
distância do pesquisador (ocidental) com seu tropologia se viu em uma espécie de “beco
objeto de observação (não ocidental) servi- sem saída”, essa foi a primeira motivação que
riam ao propósito de garantir a neutralidade a fez voltar os olhos para a própria cultura: o
do pesquisador em relação ao universo pes- desaparecimento paulatino das sociedades
quisado. Não obstante, podemos recordar, simples. Esse deslocamento, como você deve
também, como mostra Laplantine (2000), que, se lembrar, proveio de uma crise de identida-
no contexto do evolucionismo, as primeiras de quando a ciência antropológica previu o
comparações usadas para referir-se às popu- desaparecimento de seu primário objeto de
lações primitivas evocavam sempre metáforas pesquisa. Isto é, as sociedades selvagens. Esse
zoológicas. Em verdade, foi apenas com o for- primeiro ensejo possibilitou à Antropologia
talecimento do trabalho de campo que a ciên- uma reflexão completamente nova: sua espe-
cia antropológica passou a se preocupar mais cificidade derivava de seu objeto de estudo ou
em entender a vida do nativo segundo seu de seu “olhar” sobre ele? Dito de outra forma,
próprio ponto de vista. o que diferencia a Antropologia das demais
Assim sendo, a partir das ponderações ciências, que também tomam o homem por
de autores como Lévi-Strauss (1967), Sahlins objeto de questionamento, é o homem que é
(1983), entre outros, começamos a vislum- interpelado ou a forma como esse homem é
brar que as relações de parentesco dos povos interpelado? Além disso, as mudanças sociais,
selvagens, por exemplo, transitavam em um na civilização ocidental, colocaram novas inda-
campo muito mais amplo que a família ime- gações que diziam respeito a como o homem
diata. Seus complexos sistemas de afinidade se adequaria à urbanização, à industrialização
e obrigações respondiam não só às suas ne- e aos inéditos padrões relacionais que surgiam
cessidades diretas de sobrevivência, mas a um juntamente à nova ordem. A ciência antropo-
complicado esquema político que compreen- lógica deslocou-se, então, e principiou a tentar
dia, entre outros, a consolidação de alianças responder questões que diziam respeito aos
políticas ou econômicas ou mesmo a conquis- valores de sua própria civilização.
ta de aliados e até a manutenção da paz. Além Nesse sentido, veremos, nessa terceira
disso, com Malinowski (1976) e Mauss (2003), Unidade, como o homem ocidental passa a
observamos, também, que as transações eco- pensar a si próprio no interior de um contex-
nômicas nem sempre almejam os ganhos que to que se modifica diuturnamente. Conforme
são valorizados pelo homem ocidental. Desse aponta Bhabha (1998), dentro de uma conjun-
modo, ações que seriam consideradas como tura que está sempre inacabada, visto que fru-

41
UAB/Unimontes - 1º Período

to de um devir moldado sobre contingências Para tanto, dividimos essas análises nas
momentâneas. Por conseguinte, discutiremos seguintes subunidades:
temáticas que concernem à forma como o ho- 3.1 Introdução
mem se localiza nesse complexo emaranhado 3.2 Os métodos e técnicas da Antropolo-
de relações, buscando compreender as diver- gia e sua utilização nos estudos das socieda-
sas formas de pensar e se posicionar frente à des complexas
realidade social e pleiteando sua legitimidade. 3.3 A Antropologia Urbana
Assim sendo, em um contexto de aglomera- 3.4 Antropologia no Brasil
ção urbana, concentração de riqueza e cres- Sendo assim, o intuito nesta Unidade
cente divisão social do trabalho, intentamos perpassa pela análise de fenômenos que
identificar como o homem “civilizado” se ar- constituem as relações urbano-industriais, as
ticula nos mais variados espaços sociais. Para novas relações de trabalho, bem como as per-
tanto, abordaremos tanto as metamorfoses cepções acerca de uma diversidade cada vez
sociais quanto as reflexões que são erigidas a maior. E aí, pronto(a) para continuarmos os
partir dela. nossos estudos? Então vamos nessa!

3.2 Os métodos e técnicas da


Antropologia e sua utilização
nos estudos das sociedades
complexas

Figura 29: Malinowski ►


em trabalho de campo.
Fonte: Sciapode. Dispo-
nível em: <http://www.
sciapode.net>. Acesso em
29 jul. 2013.

Percorremos, na Unidade 2, o novo ca- imperativo captar as interpretações do nativo


minho intelectual que Antropologia seguiu a partir do ponto de vista do próprio nativo.
a partir do advento do trabalho de campo. Estudamos, ainda, que as pesquisas an-
Relativizar, nesse contexto, tornou-se impres- tropológicas, tradicionalmente, associaram-
cindível para a compreensão das sociedades -se aos estudos das sociedades consideradas
ditas primitivas, uma vez que o saber “selva- primitivas, que em sua maioria, são tribais e
gem” se apresentou com uma forma própria vivem no campo. Isso porque, a princípio, as
cuja lógica era diferente daquela conhecida etnografias consideravam que essas socieda-
pelos povos do Velho Mundo. Nesse sentido, des, dada a sua simplicidade, seriam mais fa-
como aponta Malinowski (1976), tornou-se cilmente assimiladas. Também se considerava

42
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

que a objetividade da pesquisa seria maior sociedade complexa que permita preservar
uma vez que o “outro” era muito diferente do a particularidade das situações concretas que
PARA SABER MAIS
observador. Não obstante, desvelamos a ma- analisa” (DURHAN; CARDOSO, 1973, p.54). Isso
neira dizimadora com a qual o colonialismo porque a experiência do trabalho de campo Para obter mais
informações sobre os
solapou esses povos na forma do genocídio e deveria ser orientada pelo distanciamento do
impactos da revolução
etnocídio. pesquisador de sua própria cultura, conforme industrial na sociedade
Por outro lado, em países que não pos- vimos nas Unidades 1 e 2. Assim, o antropólo- e na ciência, sugeri-
suíam colônias, a Antropologia concentrou go deveria viver entre os nativos. mos a leitura do artigo
seus esforços nos estudos de populações in- Portanto, caro(a) acadêmico(a), surge intitulado “Depois da
Revolução Industrial”.
dígenas, de grupos rurais e, por ventura, ur- para a Antropologia uma questão fundamen-
Disponível em: <http://
banos, sendo esses últimos reconhecidos por tal: quando o nativo passou a ser a própria www.antropologia.
“camadas menos favorecidas da população” cultura do pesquisador? A partir de tal ques- com.br/pauloapgaua/
(OLIVEN, 2007, p.11). Diante disso, pensare- tionamento, vários foram os esforços reflexi- trab/dep.pdf>.
mos, a partir de agora, sobre o “novo” campo vos de diversos pesquisadores que visavam
de investigação dos antropólogos: a socieda- compreender como a ciência antropológica
de complexa capitalista que vive na cidade. deveria lançar seus olhares para dentro de
Você se lembra dos avanços oriundos da re- sua própria civilização.
volução industrial? A máquina a vapor, entre
outros? Nesse momento, a Europa, já no final
do século XVIII, deixou de apresentar carac-
terísticas rurais; sofreu um grande êxodo que
provocou um inchaço populacional nas cida-
des (CARVALHO, 2007; LIMA, 2008).
◄ Figura 31: A
Interpretação das
Culturas, Clifford
Geertz.
Fonte: Skook. Disponí-
vel em: <http://skoob.
s3.amazonaws.com/
livros>. Acesso em 09 mai.
2013


Figura 30: Cena do filme “Tempos Modernos”
de Charlin Chaplin onde o artista faz uma crítica
à revolução industrial e ao modo de produção
capitalista.
Fonte: História para todos. Disponível em:<http://www.
artigosdehistoria.blogspot.com>. Acesso em 29 jul. 2013. A experiência proveniente do trabalho de
campo com as sociedades consideradas pri-
Enquanto algumas sociedades consi- mitivas possibilitou, ao antropólogo, o estra-
deradas primitivas deixavam de existir, as nhamento, ou seja, observar fenômenos que
cidades encontram dificuldade em seu or- podem parecer insignificantes: distinguir pis- PARA SABER MAIS
denamento territorial, o que gerou diversos cadelas de piscadelas. Geertz (1989), em seu Para compreender
fenômenos sociais, isto é, o espaço citadino livro “A Interpretação das Culturas”, argumenta melhor o conceito de
passou a se constituir um campo de lutas e que o fazer etnográfico consiste em um esfor- identidade, assista ao
vídeo Identidade de
reivindicações de grupos que outrora não ço intelectual para elaboração de uma descri- Fernando Meireles.
receberam às atenções dos estudos das Ciên- ção densa. Sendo assim, cabe ao etnógrafo O vídeo está dispo-
cias Sociais e Humanas. saber distinguir o ato de contrair a pálpebra nível em: <http://
Pensar, portanto, nesse processo de mu- (uma piscadela); de um tique nervoso (outra www.youtube.com/
dança, é extrair, dos fenômenos sociais, algu- piscadela); de uma imitação de outrem que watch?v=yKG8no8OK
Dg.
mas categorias de análise que emergem nas acabou de piscar; ou, ainda, uma piscadela por
sociedades complexas e se tornam passíveis ato de conspiração entre duas ou mais pesso-
de investigação, como exemplo a identida- as. São essas distinções que fazem da etnogra-
de, a urbanização, a violência, a prostituição, fia um saber semiótico, uma vez que a cultura,
para citar apenas alguns exemplos. Eis que segundo Geertz (1989), consiste em uma teia
surge um impasse para Antropologia: ”ela- de significados que o próprio homem teceu e
borar um modelo geral, mas não formal da na qual ele se encontra amarrado.

43
UAB/Unimontes - 1º Período

Além disso, a etnografia é interpretati- social segundo as mensagens, representa-


va, uma vez que o que ela interpreta “é fluxo ções e discursos que não passam de uma fic-
do discurso social” de uma dada cultura, por ção da própria estrutura real de relações so-
isso a importância de se saber distinguir uma ciais.
piscadela de outra. Não obstante, o que o et-
nógrafo interpreta envolve “tentar salvar o
dito”, ou seja, materializar a “coisa” falada (o
discurso que ouvimos) em um discurso que
possibilite a compreensão dos fenômenos es-
tudados (GEERTZ, 1989, p. 15).

Figura 32: Clifford ►


Geertz.
Fonte: Tela de Rayon.
Disponível em: <http://
www.teladerayon.com/
Articulos/Articulo.
aspx?id=18758. Acesso em
09 mai. 2013.

DICA
“Pierre Bourdieu -
sociólogo francês cuja Para tornar mais claro a discussão supra-
contribuição teórica citada, vamos relembrar, como exemplo, o
mostrou-se particular-
mente importante para sistema Kula que descrevemos na Unidade 2?
diversificadas áreas, Então, o Kula desapareceu, ou se transformou
tais como a antropolo- ao longo do tempo, porém, a obra de Malino- ▲
gia, história e ciência wiski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” Figura 33: Pierre Bourdieu.
política - dedicou-se, ainda existe e está em constante reimpres- Fonte: Café História. Disponível em: <http://cafehistoria.
em especial, ao estudo ning.com>. Acesso em 09 mai. 2013.
dos mecanismos que são, portanto, o “dito” dos nativos acerca do
difundem e legitimam sistema Kula não perecerá, possibilitando que
as diversas formas de outros estudiosos façam análises constantes Ademais, a diferenciação entre o cam-
dominação. Sua refle- sobre tal sistema. Podemos dizer, assim, que po simbólico e as simulações dos sujeitos é
xão teórica estabeleceu “salvar o dito” consiste em “fixá-lo” de uma de suma importância para que possamos
e consolidou conceitos
importantes para as ci- maneira que sempre um maior número de compreender uma determinada imagem da
ências humanas, como pessoas possa participar dele. O caso mais sociedade, sobretudo, a capitalista. Pois, nas
o de “violência simbóli- comum é a escrita (GEERTZ, 1989). sociedades complexas, o desenvolvimento
ca”, entre outros”. (Café Em Bourdieu (1992), vamos encontrar o dessa imagem é reflexo da divisão do trabalho
História. Disponível em: seguinte esclarecimento acerca da interpreta- social, assim como de todas as relações prove-
http://cafehistoria.ning.
com). ção da cultura: é preciso apreender os meca- nientes dessa divisão. Sendo assim, as catego-
nismos de produção simbólica da cultura que rias de análise que servem como instrumento
integram suas linhagens e representações, interpretativo da divisão do trabalho sugerido
assim como a maneira com a qual tais linha- por Bourdieu (1992), pode ser encontrado no
PARA SABER MAIS
gens e representações adquirirem uma reali- capital econômico e capital social.
Para ampliar seus dade própria. Segundo Bourdieu (1992), o capital eco-
conhecimentos sobre o
Da perspectiva adotada por Bourdieu nômico consiste na forma em que diferentes
as relações de poder na
hierarquia social, suge- (1992), porém, o que interessa é discernir as fatores de produção (terras, fábricas, trabalho)
rimos a leitura do arti- relações de sentido para além das represen- e do conjunto de bens econômicos (dinheiro,
go “Relações de poder tações que os sujeitos materializam em suas patrimônio, bens materiais) são acumulados e
segundo Bourdieu e ações (ou não ações). Em outras palavras, o reproduzidos. Ao passo que o capital cultural
Foucault: uma proposta
pesquisador deve compreender e reconstruir refere-se a um conjunto de regras, valores e
de articulação teórica
para análise das organi- a teia completa de relações simbólicas e não arranjos promovidos, sobretudo, pela família,
zações”. O trabalho está simbólicas, isto é, as circunstâncias materiais pela escola e pelos demais agentes da educa-
disponível em:<http:// e a hierarquia social que resultam dessa teia ção, que predispõem os indivíduos a uma ati-
ageconsearch.umn. de significados. Isso porque o intuito do re- tude dócil e de reconhecimento ante as práti-
edu>.
ferido autor é conhecer o arranjo interno do cas educativas.
campo simbólico cuja aplicabilidade está na De acordo com Bourdieu (1992, p. 24),
expectativa de ordenar o mundo natural e “jogo das distinções simbólicas se realiza,

44
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

portanto, no interior dos limites estreitos de- antropólogo terá que admitir nos estudos da DICA
finidos pelas coerções econômicas e, por esse sociedade complexa, consideramos, portan- Para aprofundar a
motivo, permanece um jogo de privilegiados to, que tal distanciamento é uma tarefa árdua discussão sobre a
das sociedades privilegiadas”. Dessa forma, e esquizofrênica. Estranhar o familiar, nesse divisão do trabalho
faz-se necessário “tentar apreender as regras contexto, é mais difícil que examinar um siste- social, sugerimos a
do jogo e da divulgação da distinção segun- ma que nos parece completamente estranho, leitura do livro de Émile
Durkheim, ”Da Divisão
do as classes sociais exprimem as diferenças como o Kula, por exemplo. Isso porque quan- do Trabalho Social”
de situação e de posição que as separam”. Isso do nos voltamos para a nossa própria socie- (DURKHEIM, Émile. Da
porque a interpretação do campo simbólico dade, além de correr o risco de não conseguir divisão do Trabalho So-
deve pautar-se em uma “abstração que deve distinguir as piscadelas, estaremos diante da cial. São Paulo: Martins
revelar-se como tal, um perfil da realidade so- possibilidade de romper com certezas que Fontes, 1995).
cial que, muitas vezes, passa despercebido, ou acreditávamos serem verdades absolutas. Em
então, quando percebido, quase nunca apare- outras palavras, como descrito por Diniz (2001,
ce enquanto tal”. p.40-41), “o conflito como um valor é criação
recente da história moral da humanidade [...] DICA
isso não quer dizer que a diferença e a dis-
Débora Diniz, em seu
córdia morais não possuam passados”. Antes, artigo “Antropologia e
pelo contrário, como salienta a autora “[...] os limites dos direitos
onde houve seres humanos organizados em humanos: o dilema
sociedades existem diferenças, diferenças es- moral de Tashi”, trata
tas que conduziram ao conflito”. da possibilidade de
romper com certezas
Diante disso, “o dilema do antropólogo que acreditávamos ser
não deve ser resultante apenas do enfreta- verdades absolutas.
mento cotidiano com as etnografias impossí- Confira o artigo no
veis”, mas com o paradoxo dos dilemas morais endereço eletrônico:
que se converte, também, “no dilema pessoal http://www.abant.org.
br/conteudo/livros/
do antropólogo”. A referida autora adverte, DIREITOS%20HUMA-
ainda, que o dilema moral é uma das ilusões NOS%201%5B1%5D.
mais próximas “no campo do pensamento hu- pdf.
manista”, porém, somente o “futuro poderá
assegurar qual é a medida da desilusão que os
antropólogos serão capazes de suportar” (DI- DICA
NIZ, 2001, p.40-41).
Para aprofundar o
No que se refere ao pensamento huma- tema, sugerimos a leitu-

nista, segundo Hall (2006, p.10), pensar sobre ra do livro de Stuart
suas mudanças é questionar a transformação Hall e Tomaz Tadeu da
Figura 34: Homi Bhabha. que a própria modernidade passou. Conse- Silva intitulado “Identi-
Fonte: Universiteit Utrecht. Disponível em:<https:// dade e Diferença”- (Hall,
encrypted-tbn2.gstatic.com>. Acesso em 29 jul. 2013.
quentemente, é, também, perguntar-se acerca
Stuart ; Tadeu, Tomaz.
de novas dimensões relativas à concepção es- Identidade e Diferença :
Ainda refletindo sobre a dimensão da sencialista ou fixa de identidade. a perspectiva dos estu-
cultura e sua forma de interpretação, Bhabha dos culturais. São Paulo:
(1998) salienta que não podemos analisá-la de Vozes, 2005.).
maneira única e acabada. Portanto, para que
possamos tornar evidentes as funções da cul-
tura, devemos concebê-la em sua condição
de plural. Isto é, o arranjo de forças simbólicas
que determina o objeto teórico e discursivo ◄ Figura 35: A
identidade cultural
do conjunto de bens de identificação de uma na pós-modernidade,
dada cultura. Assim, o conceito operacional Stuart Hall.
de cultura permeia tanto a contingência quan- Fonte: Armazém dos
to a contiguidade, ou seja, a possibilidade de Livros. Disponível
diversas culturas apoderarem-se de bens de em:<https:// armaze-
mdoslivros.blogspot.
identificação de outras e elaborar um determi- com>. Acesso em 29 jul.
nado bem cujo mérito e arranjo o direcione a 2013.
ser admitido por uma cultura de âmbito mais
abrangente.
Diante da complexidade de interpretação
da cultura e retomando a noção de distancia-
mento do sujeito/objeto de pesquisa que o

45
UAB/Unimontes - 1º Período

Lembra o que estudamos na Unidade terior que é o ‘eu real’, mas este é formado e
PARA SABER MAIS 1? Sobre a capacidade do homem em pen- modificado num diálogo contínuo com mun-
Para ampliar os conhe- sar sobre si mesmo? E as formulações que ele dos culturais ‘exteriores’ e as identidades que
cimentos, assista ao elaborou sobre o outro? É claro que naquele esses mundos oferecem [grifos do autor]”.
filme “O Diário de uma momento descrevemos esse outro como um Diante disso, chegamos ao terceiro tipo de su-
Babá” (2006). Annie estranho, o exótico, portanto, é justamente jeito que completa o raciocínio de Hall (2006)
Braddock depois de se sobre essa identidade fixa que o autor de- acerca da crescente complexidade do mundo
formar na faculdade de
antropologia procura nomina de sujeito do Iluminismo. Ou, ainda, moderno, ou seja: o sujeito pós-moderno.
um emprego em uma nas palavras do próprio Hall (2006, p.10-11), “o Não obstante, retomaremos essa discus-
grande empresa da sujeito do Iluminismo estava baseado numa são na subunidade 3.3, quando trataremos de
Upper East Side, em concepção da pessoa humana como um in- um dos ramos da Antropologia, que é a Antro-
Manhattan. Porém, ela divíduo centrado [...] o centro essencial do eu pologia Urbana. Por hora, concluímos que en-
ainda não sabe que
caminho deseja seguir. era a identidade de uma pessoa”. Em outras tre as diversas categorias de análise das socie-
Os questionamentos palavras, “pode-se ver que essa era uma con- dades complexas, a identidade emerge como
reforçam os laços com a cepção muito ‘individualista’ do sujeito e de um campo de estudo para os antropólogos
Antropologia, visto que sua identidade (na verdade, a identidade dele: que estudam sua própria sociedade. Sendo
a personagem começa já que o sujeito do Iluminismo era usualmente que esse campo torna-se absorto por tratar de
a estudar a família para
a qual trabalha. descrito no masculino) [grifos do autor]”. conflitos morais de sua própria sociedade, pro-
porcionando, portanto, um estranhamento do
familiar. Embora tal estranhamento apresente-
-se complexo tal qual esse novo objeto da An-
tropologia: as sociedades complexas.
Figura 36: Movimento ►
Punk de liberdade Agora você compreende a dimensão des-
Cultural. se novo caminho traçado pela Antropologia?
Fonte: Letter James. Dis- Porém, as análises não findam com os discur-
ponível em:<http://www. sos sobre identidade, pois a gama de fenôme-
letterjames.de>. Acesso nos que possibilitam a análise das sociedades
em 29 jul. 2013.
complexas é múltipla, tornando-se, portanto,
um campo fértil para novas pesquisas e mini-
mizando a crise de identidade que a ciência
antropológica passou quando percebeu que
as sociedades primitivas estavam se extingui-
do. Sendo assim, estudaremos na subunidade
3.3 outro ramo da Antropologia Cultural, a An-
PARA SABER MAIS tropologia Urbana.
Conheça mais sobre
A mudança, portanto, que Hall (2006, Tal vertente da Antropologia empreende-
Identidade segundo p.11) chama nossa atenção, refere-se àquilo rá seus estudos sobre os fatos sociais ocorridos
Bhabha. Para isso que estudamos na Unidade 2, ou seja, o sujei- na cidade. Aqui, entendemos “urbano” e “ci-
sugerimos a leitura do to sociológico que refletiu “a crescente com- dade” como sinonímias, uma vez que falar de
capítulo “Interrogando plexidade do mundo moderno”. Percebemos, urbano refere-se, portanto, discorrer sobre a
a Identidade” que está
disponível em:<http://
portanto, na Unidade 2, como a cultura passou cidade e a complexa rede de relações na qual
www.ufrgs.br/cdrom/ a ser considerada múltipla e, por conseguinte, o homem encontra-se emaranhado. Sendo as-
bhabha/bhabha.pdf>. o homem que também passou a ser cada vez sim, você está pronto(a) para desvelar mais um
mais observado na sua dimensão cultural. Hall campo de estudo da Antropologia? Leia com
(2006) aprofunda um pouco mais a discussão atenção para que você possa debater com o
da diversidade ao afirmar que o sujeito socio- professor e o tutor as ponderações que vamos
lógico “ainda tem um núcleo ou essência in- apresentar.

3.3 A antropologia urbana


As análises da Antropologia Urbana nos primeiramente, algumas teorias a respeito da
reportam à conjuntura similar aos estudos da cidade e das consequências da vida urbana
Sociologia Urbana que, também, versam sobre sobre seus habitantes. Observamos, sumaria-
a interpretação dos fenômenos que aconte- mente, na subunidade 3.2, alguns fenômenos
cem na cidade. Porém, para compreender tais oriundos do êxodo rural, ainda no final do sé-
interpretações, faz-se necessário discutirmos, culo XVIII. Pensaremos, agora, sobre a forma-

46
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

ção dessas cidades e como se desencadearam um conceito de territorialidade centrada na Glossário


os fenômenos que são passíveis de investiga- delimitação de Estados soberanos. Assim, per- Espaço Social: “espaço
ção pela Antropologia. cebe-se que a noção de território, em sua gê- que o território se cons-
O processo de formação das cidades foi nese, foi associada estritamente à de território titui em identidades
marcado por dinâmicas territoriais, que dizem nacional, ou seja, uma entidade que represen- individuais e coletivas,
respeito não somente aos conflitos por de- ta o estabelecimento de uma territorialidade despertando a sensa-
ção de pertencimento
marcações de fronteiras, mas também a um fundada no conceito legal de soberania, que e de especificidade”
campo de lutas e representações simbólicas, postulava a exclusividade do controle de seus (LIMA, 2008, p.30).
conforme estudamos na subunidade 3.2 à luz territórios nas mãos do Estado. Como descrito Espaço Simbólico:
dos argumentos de Bourdieu (1992) e Bhabha por Braga (2004, p. 27), o conceito de território, consiste nas “represen-
(1998). Nesse sentido, para discorrer sobre a em princípio, foi associado no mundo ociden- tações sociais de ima-
gens, símbolos e mitos
cidade, é necessário pensar, também, sobre o tal à base física dos Estados, “incluindo o solo, que se projetam e se
seu território, espaço social e espaço simbóli- o espaço aéreo e as águas territoriais”. Entre- materializam de acordo
co. Algumas considerações devem ser aponta- tanto, a territorialidade contempla mais do com o tempo e o
das no sentido de compreender o significado que um “significado jurídico e não diz respeito espaço, configurando-
desses conceitos, uma vez que, no decorrer da apenas à territorialidade do Estado” (BRAGA, -se, então, a identidade
territorial” (LIMA, 2008,
história das civilizações ocidentais, as repre- 2004, p. 27). p.30).
sentações sociais atribuídas a tais conceitos se É claro que o conceito de território contri-
modificaram. buiu para a compreensão do próprio conceito
O termo território, para Braga (2004, p. de cidade. Isso posto devido ao fato de a de-
26), origina-se de uma expressão que vem finição dos territórios consistirem em uma das
do latim, territorium, que por sua vez deriva primeiras demarcações do espaço citadino, PARA SABER MAIS
de terra cujo significado consiste em pedaço suas leis, normas e jurisdição. Obviamente, es- Gilberto Velho, em seu
de terra apropriado. Por outro lado, a língua ses não são os únicos fatores que contribuem livro “A Utopia Urbana”,
discorre mais detida-
francesa territorium deu origem às palavras para a análise de uma cidade, mas, iniciam,
mente sobre Escola
terroir e territoire. O primeiro não se reduz também, uma demarcação dos grupos que vi- de Chicago. Outro
somente à noção física de uma determinada vem nela. Na visão de Carvalho (2007), a Escola autor que se dedica aos
área, mas também aos atributos que distin- de Chicago proferiu discursos acerca de uma estudos da Escola de
guem e agregam valor aos produtos de uma nova configuração cultural dentro do espaço Chicago é Ruben Oliver,
na obra “A Cidade como
dada região ou localidade. Ao passo que, o citadino, uma vez que nesse espaço configu-
Categoria Sociológica”.
segundo, territoire, significa “o prolongamen- ram-se papéis sociais bem delimitados; isola- Portanto, se quiser
to do corpo do príncipe. Aquilo sobre o qual o mentos; aproximações; anonimato; fugacidade aprofundar mais na
príncipe reina, incluindo a terra de seus habi- dos envolvimentos sociais, entre outros fenô- leitura sugerimos os
tantes” (BRAGA, 2004, p. 27). menos. autores mencionados,
bem como o livro
“Espaço Urbano e Cri-
minalidade: Lições da
Escola de Chicago”, de
Wagner Cinelli de Paula
Freitas.

◄ Figura 38: Danielle


de Oliveira de Souza,
32 anos, é uma das
120 alunas do projeto
“Mão na massa” que
qualifica mulheres para
a construção civil.
Fonte: Inforsuhoy. Disponí-
vel em:<http://infosurhoy.
com>. Acesso em 29 jul.
2013.

Figura 37: O leviatã, Thomas Hobbes. Discorre Nessa direção, retomaremos as ponde-
sobre a formação dos estados. rações de Hall (2006) sobre o terceiro enten-
Fonte: Dado concreto. Disponível em: <http://dadocon- dimento da identidade, isto é, o sujeito pós-
creto.blogspot.com.br>. Acesso em 29 jul. 2013. -moderno. À luz das premissas de Hall (2006,
p.13), aquele sujeito que possuía uma identi-
Nesse sentido, de acordo com Braga dade unificada e estável, com a vida na cida-
(2004), a formação de diversos estados na Eu- de, torna-se, assim como ela, fragmentado.
ropa, bem como as transformações ocorridas Composto, porquanto, de uma multiplicidade
no mundo feudal constituiu a instauração de de percepções que se constitui em várias iden-

47
UAB/Unimontes - 1º Período

DICA tidades, dito de outra maneira, “a identidade A normalidade está contida no fato de existir
O esquadrinhamento torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e atos delituosos e não nos números que eles
diz respeito às formas transformada continuamente em relação às podem atingir.
como o Estado se formas pelas quais somos representados ou Ora, diante disso, podemos inferir que a ci-
debruça sobre a vida interpelados nos sistemas culturais que nos dade não é a geradora do aumento da crimina-
privada das pessoas,
investigando-a. A partir
rodeiam” [grifos do autor]. Essas postulações lidade. Em verdade, o fato ocorrido é que o es-
daí torna-se possível nos remetem também a Bhabha (1998), quan- paço urbano se consolida concomitantemente
investir nos corpos do argumenta que as designações geopolí- ao aumento da severidade da justiça. Ou seja,
dos indivíduos para ticas são deslocadas do centro de referência a formação da cidade industrial coincide com o
discipliná-los. Dito de das identidades dos indivíduos por uma se- processo de transformação de práticas sociais
outra forma, é uma
maneira de controlar os
quência de localizações que cada pessoa ocu- antes toleradas, em crimes passíveis de puni-
comportamentos hu- pa na estrutura social, tais quais gênero, raça, ção. Nesse sentido, a violência urbana ou na
manos, higienizando- geração, dentre outros, isso sem mencionar cidade esboçada por nossos meios de comuni-
-os, tanto quanto pos- as múltiplas vinculações locais, profissionais cação torna-se bastante inquietante. Nos tem-
sível para a adequação ou mesmo institucionais. Portanto, o que po- pos atuais, ela se configura em tema bastante
de uma ordem vigente.
A intenção é tornar as
demos notar é que as cidades, agrupando um debatido pelo senso comum, permeia agendas
pessoas cada vez mais crescente número de pessoas em um reduzido de propostas políticas, basta nos lembrarmos
adaptadas às regras e, espaço físico, tornam-se gradualmente um es- das últimas eleições, além de já ser amplamen-
consequentemente, paço de conflagração constante. te discutida cientificamente.
torná-las mais produ- Convergindo para a questão das cidades, Ademais, ocupa espaços significativos nas
tivas e dóceis. Enfim,
o esquadrinhamento
Foucault (1982a, 1982b) as percebe como um pautas de reunião dos poderes públicos que
transforma os indivídu- lugar que, permeado por uma diversidade procuram engendrar medidas contra a crimi-
os em peças “saudáveis” cada vez maior, agrupa paulatinamente mais nalidade. O crime, então, se converte no maior
da engrenagem social conflitos e, consequentemente, esses conflitos símbolo da violência urbana ou na cidade.
que os domina e opri- vão se tornando a principal razão que justifica Se pensarmos, então, a sociedade com-
me. Fonte: (FOUCAULT,
Michel. Vigiar e punir:
o esquadrinhamento e a vigilância das popu- plexa segundo o preceito de que ela consiste
história da violência lações. Desse modo, no final do século XVIII, a em um emaranhado de relações sociais, trocas
nas prisões. São Paulo: arquitetura citadina passa a ser cobrada como simbólicas e delimitações de espaços, não po-
Vozes, 2005, 262p.) técnica que seja capaz de organizar o espaço. deriam deixar de mencionar os bens de iden-
Nesse sentido, completa Foucault (2005) que tificação que, segundo Bhabha (1998), gera
PARA SABER MAIS tais medidas podem ser consideradas como todo esse fenômeno. Nessa tessitura, relem-
sendo muito mais responsáveis pela crença, brando a perspectiva de jogo de privilegiados
No capítulo dois, da
dissertação de Carva- bastante difundida, desse aumento incessante e sociedades privilegiadas analisado por Bour-
lho (2007), intitulado e perigoso dos crimes, do que propriamente dieu (1992) emerge, portanto, outro campo de
“Sobre mulheres, um aumento real dessas taxas de violência. E interesse da Antropologia Urbana, a saber, os
história e crime”, en- aí, caro(a) acadêmico(a), você consegue imagi- bens simbólicos não negociáveis, tais como
contramos argumentos nar qual o fenômeno social que temos como identidade gênero, sexualidades, os novos
para elucidar questões
sobre criminalidade e objeto de estudo a partir das discussões que movimentos sociais, para citar apenas alguns.
o envolvimento de mu- fizemos? Se você pensou em criminalidade, fez No que diz respeito aos novos movimen-
lheres com o tráfico de bem! E como os estudiosos da cidade perce- tos sociais, Durães, Lima, Carvalho (2005) argu-
drogas. Sendo assim, biam tal fenômeno? mentam que se trata de uma reconfiguração
sugerimos a leitura do De acordo com Carvalho (2007), das demandas dos grupos que não dizem res-
trabalho para que você
possa ampliar os seus Durkheim (1995) contribui, sobremaneira, para peito à reivindicações por moradias, melhores
conhecimentos sobre o o avanço da análise criminal quando aproxima condições de trabalho, entre outras manifesta-
tema. Fonte: A disser- o crime da noção de normalidade em um du- ções provenientes do “problema urbano”. Con-
tação está disponível plo sentido. Quer dizer, o crime é normal não siste, portanto, em manifestações que lutam
em:<http://www.ppg- só por estar presente em todas as sociedades, por bens não negociáveis, como a identidade
ds.unimontes.br/index.
php/2007>. mas também por desempenhar uma função de gênero, para citar um exemplo. Lembra das
dentro delas, ligada à própria manutenção de premissas estudadas no início desta subuni-
seu funcionamento. Nessa direção, a punição dade? A identidade do sujeito pós-moderno?
que o infrator chama sobre si funciona como Recorde que, em contraposição ao sujeito do
um revitalizador e fortalecedor dos laços so- Iluminismo, o sujeito pós-moderno não possui
ciais na medida em que reafirma a validade uma identidade fixa e acabada, logo esse su-
da vontade e do pensamento coletivos. Con- jeito é múltiplo. Contudo, esse sujeito pós-mo-
tudo, cabe-nos destacar que, embora o crime derno tornou-se fragmentado, isolado e são
seja considerado um fato normal, constituinte justamente através dos novos movimentos so-
da própria organização social, sua incidência, ciais que os sujeitos fragmentados encontrarão
principalmente quando apresenta níveis mui- pares para lutar em prol de direitos não nego-
to elevados, assume contornos patológicos. ciáveis, como exemplo a identidade de gênero.

48
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

saber, a religião como uma extensão do cam- pAra saber mais


po Antropológico. Certamente, os estudos so- Assista ao filme “CRASH:
bre religião não perfazem apenas as pesquisas no limite” (2004). A
sobre a cidade e tal categoria começou a ser película traz à baila a
analisada muito antes dos estudos das socie- complexidade da vida
dades complexas. Porém, deixaremos a análise urbana, especialmente
levando em considera-
sobre a religião nas sociedades consideradas ção os conflitos étnicos
primitivas para a disciplina Antropologia da que permeiam as
Religião e nos dedicaremos, brevemente, à grandes cidades esta-
compreensão de como a Antropologia conce- dosunidenses, discu-
beu esses estudos nas sociedades complexas. tindo como cada etnia
constrói estereótipos
Diante disso, Oliven (2007, p.57) salienta em relação às outras.
que “autores com posições teóricas muito dife- Fonte: Disponível em:

rentes enfatizaram o processo de secularização <http://www.down-
Figura 39: Prostituição na Idade Média: um grande que estaria ocorrendo nas sociedades comple- loadsfilmesdublados.
dilema, pecado ou necessidade? org/download-crash-
xas”. Não obstante, estudiosos como Durkheim
Fonte: História no Mundo. Disponível em:< http://www. -no-limite-dvdrip-avi-
historiadomundo.com.br>. Acesso em 29 jul. 2013. “achava que os vínculos integrativos da religião -rmvb-dublado.
estariam sendo ameaçados pela divisão social
Diante disso, cabe ressaltar que vimos, do trabalho e a estaria tomando o seu lugar”.
anteriormente, como a cidade foi pensada, le- Além disso, acrescenta Oliven (2007, p.57), We-
vando em consideração seu território; alguns ber, contribuiu, significativamente, para o pen-
conflitos nele gerado e como os antropólogos samento acerca do processo de racionalização
analisaram esses fenômenos. Assim, desta- secular uma vez que trouxe à baila argumentos
camos outro fato social que chamou atenção que propunham o “desencantamento do mun-
dos estudiosos visto que se tornou, também, do”. Marx, por sua vez, pensou que “o socialis-
passível de punição, trata-se, portanto, da ca- mo eliminaria a necessidade do que ele consi-
pacidade de ordenar o espaço urbano segun- derava o ‘ópio do povo’ [grifos do autor]”.
do uma lógica de moralização dos corpos. Cer-
tamente, esses conceitos eclodiram ainda no ◄ Figura 40: Karl Marx: “A
século XIX, porém trouxeram consigo alguns religião é o suspriro da
criatura aflita, o estado
fundamentos que permeiam os discursos atu- de ânimo de um mundo
ais sobre a cidade. O fenômeno que nos refe- sem coração, porque é
rimos consiste naquele que é chamado, pelo o espírito da situação
senso comum, de as mais antigas profissões sem espítito. A religião
do mundo: a prostituição feminina. Segundo é o ópio do povo”
(Tradução livre dos
Lima (2008, p.66), a cidade, no final do século autores).
XIX, passou a ser pensada “como vício, e, por Fonte: Faculdade Alvorada,
conseguinte doente. Ela [a cidade] surge [por- Turma de Direito 2010.
tanto] como objeto de estudo médico, além Disponível em:< http://
de estar sob a vigilância do saber da medici- Certamente que o objeto de estudo da alvoradadireito2010.word-
press.com/>. Acesso em 29
na”. Dito de outra maneira, fenômenos como Antropologia Urbana não se esgota com os jul. 2013.
a prostituição eclodiu do problema urbano e, exemplos descritos anteriormente. Portanto,
logo, deveria ser combatida com estratégias o objetivo dessas descrições foi localizar os es-
de disciplinarização dos corpos. Daí a inter- tudos antropológicos em um contexto de aná-
venção do saber médico para tratar o corpo lise das sociedades complexas para que você
social viciado e doente (LIMA, 2008). pudesse compreender a abrangência de pos-
sibilidades de investigações que a cidade nos pAra saber mais
Vimos, nesta Unidade, diversas formas de
sociabilidade no contexto da cidade. Por últi- oferece. Assim, tratar de fenômenos no qual Sugerimos a leitu-
já possuímos algum conceito previamente es- ra do artigo “Novos
mo apreendemos, ainda, que em decorrência movimentos sociais e
da vida na cidade a cultura urbana configurou- tabelecido, como estudamos nesta unidade,
movimentos de mulhe-
-se em desorganização social e cultural cuja vai exigir do pesquisador uma habilidade e co- res”, caso você queira
responsabilidade abateu-se sobre alguns fe- nhecimento dos métodos antropológicos de ampliar seus estudos
nômenos como a violência (criminalidade) e forma mais detida. sobre gênero. O tra-
Com esses argumentos, caro(a) balho está disponível
prostituição. Esses são apenas alguns exem- em:<http://www.ruc.
plos da cidade entendida como vício, que para acadêmico(a), você percebeu, mais uma vez, a
unimontes.br>.
o presente momento encerramos essa discus- diversidade de estudos que o campo da cidade
são, porém ela não se esgota. O intuito, agora, pode proporcionar ao Antropólogo? E não pen-
é compreender outras formas de sociabilidade se que na sua área de atuação será diferente,
que tangem, especificamente, o seu curso, a pois a Ciência da Religião vai perpassar todos

49
UAB/Unimontes - 1º Período

essas relações simbólicas que estudamos até o estuda, não é mesmo? Bem, sobre esse assunto
PARA SABER MAIS
presente momento. Sendo assim, acreditamos você terá que esperar um pouco mais, uma vez
Assista ao filme “A que você está curioso para saber como essas que somente na disciplina Antropologia da Re-
Antropóloga”. Direção:
Zeca Nunes Pires, Brasil. relações irão se processar na Ciência que você ligião é que essas conexões serão amarradas.
Imagem Filmes, 2010.
DVD (90min), color.
“Aos 33 anos, Maria de
Lourdes Gomes Azeve-
do Ramos (Malu) realiza
na Costa da Lagoa –
3.4 A Antropologia no Brasil
reduto açoriano na Ilha
de Santa Catarina (Flo-
rianópolis/SC/BR) – sua Estudamos como a Antropologia confi- Portanto, toda a discussão que fizemos
pesquisa de doutorado gurou-se em Ciência; o método adotado para na Unidade 1 aplica-se, no caso brasileiro, tam-
na área de etnobotâ- as pesquisas antropológicas; e nos detemos bém aos séculos XVII e XVIII. Ora, essa terra foi
nica. Sua vinda a Costa às descrições dos ramos da Antropologia. Pos- considerada inabitada, portanto, passível de
da Lagoa não será me-
ramente um marco em teriormente, examinamos como essa ciência ser povoada. É só você se recordar das aulas
sua carreira acadêmica partiu de uma análise evolucionista até conce- de História do Brasil. Porém, a análise que fa-
mais uma série de de- ber a cultura segundo os princípios do Relati- remos possibilitará uma compreensão teórica
safios emocionais que vismo Cultural. Para tanto, observamos con- de fatos que na maioria das vezes só ouvimos
coloca a protagonista
no limite entre a razão ceitos e análises de alguns antropólogos sobre falar. Sendo assim, pensar em uma Antropolo-
e a imaginação, ciência as sociedades primitivas e complexas. Agora, gia no Brasil e seu amadurecimento é buscar
e misticismo, crença perceberemos, de forma introdutória, como compreender a superação de conceitos como
e ceticismo, amor e esses estudos começaram no Brasil e quais as o de raça, superioridade e inferioridade.
paixão.
Com dona Ritinha, ben- vertentes que os antropólogos brasileiros se- Diante disso, pensar em uma Antropolo-
zedeira mais conhecida guiram. gia no Brasil remete-nos ao passado que não
na comunidade, Malu Lembre-se que Antropologia, em seu iní- está tão longe assim. Isso porque, segundo
inicia o aprendizado
da cultura mística que
cio, contou com os depoimentos de missioná- Melatti (1984), foram os memorialistas e cro-
os descendentes de rios, soldados e viajantes para a compreensão nistas que contribuíram para os primeiros rela-
açorianos preservam dos povos primitivos e, conforme a atividade tos sobre as “sociedades primitivas” do Brasil.
no local”. que você desenvolveu na Unidade 1, postando Sendo assim, as análises desses relatos têm
Fonte: Disponível em:
<http://castordownloa- seus comentários sobre o BOX 1, você com- pouco mais de 200 anos, uma vez que antes
ds.net/download-a-an- preendeu o posicionamento desses primeiros disso as Ciências Sociais ainda não existiam.
tropologa-dvdrip-avi- relatos. Diante disso, pense, agora, no Brasil do Portanto, para o referido autor, esses “missio-
-rmvb-nacional-50063. século XVI em um contexto que alguns países nários, navegantes, diplomatas, empresários”,
html.
da Europa trilhavam caminhos para além-mar. entre outros, ao escreverem suas crônicas e
Pensou? E aí? Qual foi a percepção dos portu- desenharem mapas acabaram criando, sem
gueses ao desembarcarem no Brasil, levando perceber é claro, instrumentos de coletas de
Figura 41: em consideração os estudos que fizemos na dados. Em outras palavras, foi a partir de mate-
Desembarque de Unidade 1? Se você pensou que os índios aqui riais como esses que pesquisadores, como Flo-
Cabral em Porto
Seguro, por Oscar encontrados foram considerados selvagens, restan Fernandes, desenvolveram os primeiros
Pereira da Silva. você conclui e entendeu perfeitamente qual trabalhos sociológicos no Brasil.
Fonte: Portal do Governo foi a primeira percepção dos portugueses
Brasileiro. Disponível em:< diante os povos indígenas que encontraram,
www.brasil.gov.br>. Aces-
so em 29 jul. 2013.
ou como nos narrou a historiografia por muito
tempo “descobriram”, no Brasil.


Figura 42: Florestan Fernandes entre índios
Xavante em 1986.
Fonte: Scielo. Disponível em: <http://www.scielo.br>.
Acesso em 05 mai. 2013.

O encontro dos europeus mediado pelo


descobrimento da América, nesse contexto,

50
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

◄ Figura 43: Artefato


Sambaqui. Zoolíto em
forma de peixe.
Fonte: Museu Nacional,
Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Disponível
em: < http://www.museu-
nacional.ufrj.br>. Acesso
em 05 mai. 2013.

PARA SABER MAIS


A identidade de gênero
consiste no autor
reconhecimento que
o indivíduo faz acerca
das suas relações com o
masculino ou o femini-
no, ou seja, uma mulher
pode considerar sua
identidade de gênero
como sendo masculino,
por exemplo. Tal pers-
pectiva teórica contri-
fomentou uma série de questionamentos com gundo a perspectiva de raças, configurou-se buiu, sobremaneira,
o intuito de explicar a origem desses povos. em um dos entraves para o desenvolvimento para a desnaturalização
dos comportamentos
Assim, os estudos arqueológicos e paleontoló- do país. Não obstante, fizeram-se necessárias sociais atribuídos,
gicos, de acordo com Marconi e Prezotto (2006 políticas embraquecimento da população bra- culturalmente, para
p.215), demonstraram que no caso brasileiro, sileira cujo intuito era minimizar a influência homens e mulheres
“as datas mais antigas da presença do homem degenerativa e “impura” provenientes das ra- (LIMA, 2008).
situam-se em torno do ano de 8.000 a.C, cons- ças indígenas e negras.
tatadas pelos testemunhos de fósseis do Ho-
mem da Lagoa Santa, em Minas Gerais”. Além
disso, as autoras acrescentam que “recentes
pesquisas da arqueóloga Conceição Beltrão
talvez permitam recuar essa data para 12.000
ou 14.000 anos”. Concomitantemente, as des-
cobertas de cerâmicas na Amazônia, contribu-
íram, também, para a datação da presença do
homem na América. Essas cerâmicas encontra-
das na Amazônia datam por volta de “500 anos
antes de Cristo [...]”, sendo assim, a qualidade
técnica desses artefatos possibilitou a consta-
tação da “presença de grupos portadores de
nível de cultura avançado, em relação ao ho-
mem [de outras localidades do Brasil], cujas
manifestações culturais limitavam-se aos ins-
trumentos de pedra lascada e posteriormente
polida” (MARCONI; PREZOTTO 2006, p.216).
Vale ressaltar que, até 1930, grande par-
te da produção antropológica acerca desses

povos foi realizada por estudiosos de outras O interessante desses estudos, em especí-
áreas, como exemplo, juristas, médicos, bo- fico o caso indígena, é que, de acordo com os Figura 44: O Homem
de Lagoa Santa, Museu
tânicos, entre outras que se interessaram por interesses políticos de cada período histórico Gruta da Lapinha,
índios, negros e sertanejos. Os estudos cen- que o Brasil passou, a construção do imaginá- Lagoa Santa, Minas
tram-se, portanto, na preocupação com o fu- rio social acerca desses povos foi se modifican- Gerais.
turo do país, visto que as teorias de raças pre- do. Ou seja, na época do descobrimento, o ín- Fonte: Panoramio. Dispo-
dominavam os discursos acerca da civilidade dio foi percebido como selvagem e sem alma nível em: < http://www.
panoramio.com>. Acesso
dos povos. devido às diferenças em relação aos europeus, em 05 mai. 2013.
Portanto, à luz do pensamento de conforme estudamos nas Unidades 1 e 2. Não
Schwarcz (1993), a miscigenação no Brasil, se- obstante, quando do processo de expansão

51
UAB/Unimontes - 1º Período

Figura 45: Alfabetização ►


de Índios.
Fonte: Luzmar Paz Leite.
Disponível em: <http://
lusmarpazleite.blogspot.
com.br >. Acesso em 29
jul. 2013.

DICA
“Florestan Fernandes
(22/07/1920-10/8/1995)
nasce na cidade de São
Paulo, de origem pobre,
estuda com dificulda-
de e destaca-se pela
disciplina e esforço.
Torna-se professor da
Universidade de São
Paulo (USP), na década
de 40, sendo afastado
pelo regime militar em
1969. A partir daí, passa
a lecionar em universi- do cristianismo, esse mesmo índio foi consi- Brasil permeia discursos quanto à ausência de
dades do Canadá e dos derado como uma “criança”, logo, detentor sua capacidade adaptativa à sociedade brasi-
Estados Unidos. Denun-
de alma e passível de ser catequizado, leia-se leira. Esse pensamento, de acordo com Ribeiro
cia a marginalização
do negro na sociedade convertido à normalidade cristã. Por fim, no (1977), é proveniente da ideia de que o pro-
na tese A Integração período da independência do Brasil e em anos blema da inadaptação do índio à sociedade
do Negro nas Socieda- posteriores quando se pensava a identidade brasileira consiste no fato de se vincular a uma
des de Classe (1964). nacional, o índio elevou-se à categoria de he- tradição pré-colombiana a manutenção dos
Dedica-se, também, ao
rói, ou ainda, como parte reconhecida da na- costumes e hábitos indígenas.
estudo das sociedades
indígenas, da educação cionalidade brasileira.
e da modernização, Nessa direção, Melatti (1994, p.1), em sua
além da análise crítica obra “Os Índios do Brasil”, propõe uma revisão
da sociologia. Aborda o acerca da imagem do índio e que essa deve
processo revolucionário
se apresentar muito mais próxima da realida-
latino-americano em
Capitalismo Dependen- de. Descreve, portanto, um índio “humano” e
te e Classes Sociais na tenta combater “uma série de ideias precon-
América Latina (1973). ceituosas que sobre ele se mantêm [...]”. Sendo
Em 1975, escreve A assim, o autor demonstra que as populações
Revolução Burguesa no
indígenas não se configuram em um corpo
Brasil, sobre as classes
dominantes do país e homogêneo, ou seja, “as línguas, os costumes,
sua resistência às mu- variam de tribo para tribo”. Consequentemen-
danças históricas. Volta te, o referido autor chama nossa atenção para
ao Brasil, em 1977, o próprio conceito de índio, pois tal conceito
passa a lecionar na
nada mais é que uma categoria criada pelos
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo europeus. Destarte, esclarece que nem todos
(PUC), a partir de 1979, os povos indígenas falavam Tupi e a imagem
retornando à USP em de unicidade da língua é proveniente de sua
1986. É considerado o apropriação para a dominação e catequização.
fundador da sociologia
Em outras palavras, no primeiro contato com
crítica no Brasil”.
os indígenas, os jesuítas e alguns colonizado-
res trataram de aprender a língua Tupi para
facilitar o processo de catequização e coloni-
zação. Portanto, os povos indígenas “converti-
dos” e “dominados” serviram como facilitado-
res para novas catequizações e dominações.
Destacamos, ainda, outro estudioso que ▲
contribuiu, sobremodo, para os estudos das Figura 46: Índios do Brasil, Júlio César Melatti.
populações indígenas, a saber, Darcy Ribeiro. Fonte: Mercado Livre. Disponível em: <http://produto.
Para o referido autor, a questão indígena no mercadolivre.com.br>. Acesso em 29 jul. 2013.

52
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Diante do exposto, esclarecemos que a Certamente, a criação dessas instituições PaRA SABER MAIS
Antropologia no Brasil institucionalizou-se en- ampliou o campo de investigação da Antropo- Leia o artigo “A Antro-
tre os anos de 1930 a 1960. No que diz respeito logia no Brasil e, paulatinamente, essa Ciência pologia como Ciência
às décadas de 1930, inaugurou-se, em 1933, a se consolidou no contexto brasileiro. Temas Social no Brasil” de Ma-
Escola de Sociologia e Política de São Paulo; como mudança social, mudança cultural, in- riza Peirano para apro-
em 1934, criou-se a Faculdade de Filosofia e terpretação do Brasil, identidade, cidadania, fundar seus estudos
sobre o tema. O artigo
Letras do Brasil. Em 1955, a partir do fomento para citar alguns exemplos, emergem nas está disponibilizado no
de algumas instituições das Ciências Sociais pesquisas antropológicas e contribuem para Centro de estudos de
e Humanas, institui-se a Associação Brasileira compreensão da cultura brasileira. No que diz Antropologia. Fonte:
de Antropologia (ABA). Desde então, a ABA respeito à cidadania, ou ao “jeitinho brasilei- Disponível em: <http://
passou a reunir interesses da Antropologia no ro”, citamos Roberto DaMatta que ao analisar ceas.iscte.pt/etnogra-
fica/docs/vol_04/N2/
Brasil e se mantém até os dias atuais, realizan- esses temas recorrentes no Brasil aponta uma Vol_iv_N2_219-232.
do congressos e pesquisas na área (MELATTI, outra percepção acerca das relações sociais pdf>.
1984). Destacamos, ainda, o surgimento do estabelecidas no contexto brasileiro. Para o
Departamento de Antropologia da UNB, fun- referido autor, a cidadania vivenciada no Bra-
dado em 1962, porém foi desativado em 1965 sil nos remete à relação entre “a casa e a rua”, PARA SABER MAIS
retornado ao funcionamento em 1969. pois quando:
Assista ao filme “BE-
SOURO” (2009). A trama
[...] a casa é englobada pela rua vivemos frequentemente situações críticas e se passa no recôncavo
em geral autoritárias. Situações onde momentaneamente se faz um rompi- baiano, década de
mento com a teia de relações que amacia um sistema cujo conjunto legal não 1920. A película retrata
parte da prática social, mas é feito visando justamente a corrigi-la ou até mes- a discriminação com
mo a instaurar novos hábitos sociais (DAMATTA, 1997, p.10). qual negros libertos
eram acometidos
Em posse dos argumentos de DaMat- grande maioria de homens. Esses fatos, ainda embora a abolição já
ta (1997), que também nos demonstra que o segundo o autor, podem contribuir para expli- havia sido declarada.
Brasil é uma sociedade hierarquizada, conclu- car o porquê da imensa miscigenação no Bra- Manoel (Aílton Carmo),
personagem principal
ímos que quando nos sentimos ameaçados sil, ao passo que nos Estados Unidos há uma aprendeu capoeira
da posição hierárquica, que concebemos ter, separação tão escancarada. Não obstante, Da- como Mestre Alípio
invocamos o jargão “você sabe com quem Matta (1990) aborda a questão religiosa para (Macalé), seu tutor não
está falando?” para retomar a posição que su- compreender algumas das diferenças entre somente em golpes de
postamente perderíamos, caso não nos iden- os dois países. Seguindo um raciocínio pareci- capoeira, mas, também,
as virtudes da con-
tificássemos em um status superior. Isso se dá do com o de Max Weber em seu livro “A Ética centração e da justiça.
porque, como as relações no Brasil são muito Protestante e o Espírito do Capitalismo”, o an- Besouro, como ficou
pessoais, as pessoas não conseguem se ade- tropólogo brasileiro demonstra como a crença conhecido Manuel, vai
quar à impessoalidade das leis, portanto sem- religiosa dominante em cada um desses Esta- defender o seu povo e
pre se valem de algum laço relacional para dri- dos contribui para que as pessoas tenham in- lutar contra o precon-
ceito de sua época.
blar a burocracia. Nesse sentido, os estudos de terpretações distintas acerca do trabalho.
DaMatta (1997) tornaram-se expoentes para a
compreensão das relações na sociedade brasi-
leira, bem como a concepção múltipla do con-
ceito de cidadania.
Aprofundando suas análises em um es-
tudo comparativo, DaMatta (1990), também ◄ Figura 47: A Casa & a
constrói uma ampla comparação entre Brasil Rua: espaço, cidadania,
mulher e morte
e Estados Unidos, levando em consideração no Brasil, Roberto
vários aspectos culturais das duas socieda- DaMatta.
des. Dessa forma, o autor supracitado aborda Fonte: Arquitetônico. Dis-
características que fazem com que, nessas so- ponível em: <http://www.
arquitetonico.ufsc.br/>.
ciedades, as pessoas se relacionem de formas Acesso em 29 jul. 2013.
distintas tanto entre si quanto com o próprio
Estado. Um dos exemplos que DaMatta (1990)
traz consiste na forma de colonização que foi
empreendida em cada uma dessas nações,
pois enquanto nos Estados Unidos ocorreu
uma colonização de povoamento, no Brasil
desenvolveu-se um empreendimento de ex-
ploração. No primeiro caso, foram famílias in-
teiras que saíram da Europa rumo aos Estados
Unidos, ao passo que para o Brasil veio uma

53
UAB/Unimontes - 1º Período

Atividade Por fim, o mencionado autor conclui uma maior, ao passo que nos Estados Unidos as
Assista à entrevista de diferença interessante entre os dois países, pessoas vivem separadas (por exemplo exis-
Darcy Ribeiro, “Índios e especialmente no que diz respeito às leis, a tem bairros de brancos e bairros de negros, as-
Portugueses: encon- hierarquia social e a forma como as pessoas sim como restaurante, programas de TV, etc.),
tros & desencontros” e convivem. Nesse sentido, enquanto no Brasil porém nos Estados Unidos pessoas são mais
poste no fórum o seu as pessoas vivem juntas (brancos e negros) e iguais perante a lei.
comentário levando
em consideração os até se misturaram por meio de casamentos, Em fim, você estudou diversas vertentes
argumentos que estu- nos Estados Unidos a separação foi (e ainda da Antropologia Cultural neste caderno. Per-
damos até o presente é) muito mais rígida, visto que existem luga- cebeu a trajetória da Antropologia rumo ao
momento. O Vídeo está res sociais muito bem definidos para brancos relativismo para a interpretação das culturas,
disponível em: <http:// e negros. Contudo, não podemos deixar de assim como os métodos que possibilitou a sua
www.youtube.com>.
mencionar que as leis nos Estados Unidos, elevação à Ciência e os estudos das socieda-
onde as relações pessoais são muito mais fra- des primitivas e complexas. Agora que você
cas que no Brasil, são aplicadas com maior conhece essa trajetória, os principais conceitos
DICA impessoalidade. Resumindo essas ideias, Da- e métodos, é hora de ler mais uma vez este ca-
Matta (1990) conclui que no Brasil as pessoas derno para reforçar o conteúdo.
A política indigenista
proposta pelos irmãos
vivem juntas, mas existe uma desigualdade
Villas Bôas foi de sua
importância para com-

Referências
preensão da riqueza
cultural da população
indígena Xingu. Nesse
sentido, Darcy Ribeiro
afirmou que “os Villas
Bôas dedicaram todas BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.
as suas vidas a conduzir
os índios xinguanos do BOURDIEU, Pierre; PRADO, Silvia de Almeida. A Economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Pau-
isolamento original em lo: Perspectiva, 1992. 361 p.
que os encontraram
até o choque com as BRAGA, Christiano et. al. Território e territorialidade. In:___. Territórios em movimento: cultura
fronteiras da civilização.
e identidade como estratégia de inserção competitiva. Brasília: SEBRAE, 2004. p. 25-69.
Aprenderam a respeitá-
-los e perceberam a
necessidade imperio-
CARVALHO, Flávio de Oliveira. Desenvolvimento, mulheres e criminalidade: uma análise dos
sa de lhes assegurar relatos das presidiárias detidas por envolvimento com tráfico de drogas na cadeia pública de
algum isolamento para Montes Claros/MG. 2007. 106f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Social) - Universidade
que sobrevivessem. Estadual de Montes Claros, Montes Claros.
Tinham uma consciên-
cia aguda de que, se os DAMATTA, Roberto. A Casa e a Rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de
fazendeiros penetras- Janeiro: Rocco, 1997.
sem naquele imenso
território, isolando os DAMATTA, Roberto. Carnavais Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 5
grupos indígenas uns
dos outros, acabariam ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1999.
com eles em pouco
tempo. Não só matan- DINIZ, Débora. Antropologia e os limites dos Direitos Humanos: o dilema moral de Tashi. In: NO-
do, mas liquidando as VAES, Regina Reyes; LIMA, Roberto Kant de (Org.). Antropologia e direitos humanos. v. 1. Niterói:
suas condições ecoló- Ed. UFF/ABA, 2001, p. 17-46.
gicas de sobrevivência.”
(RIBEIRO, 1997, p. 194). DURÃES, Sarah Jane Alves; Lima, Fernanda Veloso; CARVALHO, Flávio de Oliveira. Novos Movi-
mentos Sociais e o Movimento de Mulheres. Revista Unimontes Científica. v. 7, n. 2, jun/dez de
2005, p. 91-100.
PARA SABER MAIS
Para melhor compre- DURHAM, Eunice Ribeiro; CARDOSO, Ruth C. Leite. A investigação antropológica em áreas urba-
ensão das políticas nas. In: Revista de Cultura. Petrópolis: Vozes, v. 67, n. 2, 1973.
indigenista, sugerimos
o filme XINGU. Direção: DURKHEIM, E. Da divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
Cao Hamburger, Brasil.
DownTown Filmes, FOUCAULT, Michel. O nascimento da medicina social. In:__. MACHADO, Roberto. Microfísica do
2012. DVD (102min), poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982a, p. 79 -98.
color. Fonte: Disponí-
vel em: <http://www. __________. O olho do poder. In:__. MACHADO, Roberto. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
baixarfilmesdublados. Graal, 1982b, p. 209-227.
net/baixar-filme-xingu-
-nacional/>. __________. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. São Paulo: Vozes, 2005, 262p.

54
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.


PARA SABER MAIS
HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. Visite o sítio http://
www.arquitetonico.
HALL, Stuart. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, ufsc.br/a-casa-e-a-rua-
2000. -resenha, caso queria
conhecer um pouco
LAPLANTINE, F. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 2000. mais sobre a obra de
Roberto DaMatta “A
LÉVI-STRUASS, Claude. A Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967. Casa & a Rua”.

LIMA, Fernanda Veloso. Produção do corpo e produção da cidade: um estudo sobre os espa-
ços sociais e simbólicos da prostituição feminina em Monte Claros/MG (1940-1970). 136 f. Disser-
tação de Mestrado, Unimontes: Montes Claros, 2008.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacifico Ocidental: Um relato do empreendimento


e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guine Melanésia. São Paulo: Abril Cultural,
1976. 436 p. (Coleção Os Pensadores).

MARCONI, Mariana de Andrade; PREZOTTO, Maria Neves. Antropologia: uma introdução. 6 ed.
2ª impressão, São Paulo: Atlas, 2006.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

MELATTI, Júlio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1984a.

MELATTI, Júlio Cezar. A antropologia no Brasil: um roteiro. Boletim Informativo e Bibliográfico


de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, n. 17. p. 3-52, 1º Semestre, 1984b.

A Missão. Direção: Roland Joffé, Inglaterra. Warner Bros, 1986. DVD (126 min), color.

OLIVEN, Ruben George. A Antropologia dos Grupos Urbanos. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. Petrópolis: Vozes, 1977.

___________. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

SAHLINS, Marshall. Sociedades Tribais. Tradução: Yvonne Maggie Alves Velho. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Bra-
sil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

55
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Resumo
Na Unidade 1, você aprendeu a definição de Antropologia e dos campos de abordagens
antropológicos, bem como a comparação entre a Antropologia e outras Ciências. O objetivo é
fazer uma reflexão sobre a especificidade do discurso antropológico e a produção de um conhe-
cimento dessa Ciência. Refletimos, também, sobre métodos e trabalho de campo na Antropolo-
gia, buscando explicitar a singularidade do saber antropológico. Para tanto, estudamos:

• como a Antropologia surge como Ciência em um contexto histórico específico e como ela
foi, a princípio, influenciada pelas Ciências Naturais;
• percebemos que a ciência antropológica definiu como seu primeiro objeto de estudo as so-
ciedades consideradas primitivas e que essa foi a primeira característica que lhe conferiu es-
pecificidade na qualidade de um campo científico de investigação;
• que o paulatino desaparecimento das sociedades ditas selvagens colocou a Antropologia
em uma crise de identidade, fazendo-a refluir sobre sua própria civilização e questionar sua
razão de ser;
• a distinção da Antropologia e demais ciências que também estudam o homem, bem como a
especificidade de seu método de investigação, ou seja, a observação participante que quer
dizer uma vivência prolongada junto à cultura que pretende interpretar;
• as divisões da ciência antropológica em diversos ramos, tais quais: Arqueologia, Antropolo-
gia Biológica, Antropologia Cultural, entre outras;
• que para a Antropologia o conceito de cultura não se refere a erudição ou acúmulo de co-
nhecimento, mas sim a formas de agir, pensar e sentir as quais são vividas de forma distinta
por populações mundo afora;
• o conceito de Etnocentrismo, que faz um grupo identificar seus valores como sendo preferí-
veis a todos os demais;
• o conceito de Relativismo Cultural, que procura compreender os comportamentos segundo
as explicações e pontos de vista da própria cultura que os origina.

Na Unidade 2, descrevemos especificamente as sociedades consideradas primitivas, visto


que se constituíram como o primeiro objeto de pesquisa da ciência antropológica. Nesse senti-
do, o objetivo consistiu em discutir conceitos que evidenciem de forma mais contundente quais
são os aspectos que singularizam as sociedades “selvagens”, assim como apresentar os discursos
antropológicos que foram construídos a respeito dessas sociedades. Desse modo, você pode
analisar:
• as características básicas que distinguem uma sociedade complexa de uma sociedade sim-
ples;
• como as relações de parentesco, entre as sociedades selvagens, são regidas por um comple-
xo esquema de alianças e procuram construir uma ordem social tanto no interior da tribo
(relações endogâmicas) quanto entre tribos distintas (relações exogâmicas), visando a ma-
nutenção, na medida do possível, da harmonia social;
• os tipos de clãs e suas organizações de parentesco;
• como o arranjo de forças simbólicas é que determina o objeto teórico e discursivo do con-
junto de bens de identificação de uma dada cultura;
• que as trocas econômicas tribais se desenvolvem pautadas em valores sociais que são dis-
tintos do pensamento ocidental e respondem a necessidades que raramente são materiais,
ou seja, infrequentemente visam o acúmulo de bens;
• como o contato do europeu com o não europeu (expansão colonial) desencadeou uma de-
vastação na diversidade cultural, especialmente apreendendo conceitos como os de genocí-
dio (assassinato físico de um povo) e de etnocídio ( aniquilamento da cultura de uma popu-
lação);
• algumas análises antropológicas acerca das sociedades primitivas, bem como algumas con-
siderações sobre as sociedades capitalistas.

Por fim, na Unidade 3 estudamos que:


• os métodos antropológicos para o estudo das sociedades complexas e que, nesse contexto,

57
UAB/Unimontes - 1º Período

estranhar o familiar torna-se mais complicado, uma vez que o pesquisador estuda sua pró-
pria cultura;
• que a experiência oriunda do trabalho de campo possibilitou uma interpretação científica
das sociedades complexas;
• que para estudar a cultura é preciso apreender os mecanismos de produção simbólica que
integram suas linhagens e representações, assim como a maneira com a qual tais linhagens
e representações adquirirem uma realidade própria;
• que a diferenciação entre o campo simbólico e as simulações dos sujeitos é de suma impor-
tância para a compreensão de uma determinada imagem da sociedade, sobretudo a com-
plexa;
• as três concepções de identidade e que podemos entendê-la de forma diferente em cada
contexto histórico, isto é, a percepção de identidade do sujeito do Iluminismo, do sujeito
sociológico e do sujeito pós-moderno;
• um dos campos de análise das sociedades complexas, a saber, a Antropologia Urbana, bem
como a cidade e os grupos que nela vive;
• o conceito de território e como ele contribuiu para a compreensão do espaço citadino;
• a visão da Escola de Chicago sobre os fenômenos urbanos;
• a associação equivocada entre crime e pobreza proferida por alguns discursos antropológi-
cos do século XIX;
• o esquadrinhamento e a vigilância que as populações que vivem na cidade são acometidas
cujo intuito é mediar o conflito proveniente da vida na cidade;
• a cidade complexa é dotada de um emaranhado de relações e conflitos sociais cujas reivin-
dicações versam por bens inegociáveis, como gênero, identidade, raça, entre outros;
• que no contexto da cidade, e diante dos conflitos dela provenientes, os novos movimentos
sociais eclodem em prol da dessa reivindicações;
• o modelo de controle de alguns grupos que ferem a ordem da cidade, como exemplo, a
prostituição;
• foram os memorialistas e cronistas que contribuíram para os primeiros relatos sobre as “so-
ciedades primitivas” do Brasil;
• que a partir das escavações feitas por estudos arqueológicos descobri-se que a presença do
homem no Brasil é muito antiga, podendo datar em até 14.000 a. C;
• que, até 1930, grande parte da produção antropológica acerca desses povos foi realizada
por estudiosos de outras áreas, como exemplo, juristas, médicos, botânicos, entre outras
que se interessou por índios, negros e sertanejos.;
• que durante muito tempo os estudos Antropológicos no Brasil sofreram influência do evolu-
cionismo, sobretudo no que diz respeito ao entendimento da miscigenação como um entre-
ve à pretensão de um Brasil civilizado;
• as três diferentes visões sobre o índio em períodos distintos, ou seja, na época do descobri-
mento ele era selvagem, quando da expansão do cristianismo uma criança que tem alma e
precisa ser salva, ao passo que no pós-independência, um herói;
• a proposta de revisão acerca da imagem do índio e que essa deve se apresentar muito mais
próxima da realidade;
• o problema na interpretação sobre o índio está nos discursos que pensam a questão indí-
gena, no Brasil, como uma ausência ou incapacidade adaptativa à sociedade brasileira;
• que Antropologia somente se institucionalizou no Brasil a partir das décadas de 1930 a
1960, quando divervas Faculdades de Filosofia e Ciências Humanas foram inauguradas no
Brasil;
• a importância da criação da Associação Brasileira de Antropologia como um canal de estu-
dos e pesquisas nessa área;
• a compreender o conceito de cidadania no Brasil com uma relação entre a casa e a rua.

58
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Referências
Básicas

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BOURDIEU, Pierre; PRADO, Silvia de Almeida. A economia das trocas simbólicas. 3. ed. São Pau-
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Complementares

DURHAM, Eunice. A dinâmica da cultura: ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

FERNANDES, F. A função social da guerra na sociedade tupinambá. São Paulo: Pioneira:


Edusp, 1970.

MELATTI, Júlio Cezar. A antropologia no Brasil: um roteiro. Boletim Informativo e Bibliográfico


de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, n. 17. p. 3-52, 1º Semestre, 1984.

PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no


meio urbano. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. In.: __ Velho, O. (org.). O Fenômeno Urbano. Rio
de Janeiro: Zahar, 1979.

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RADCLIFFE-BROWN, Alfred R. Estrutura e função na sociedade primitiva. Rio de Janeiro: Edi-


tora Vozes, 1973.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

VELHO, Gilberto. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contem-
porânea. 7 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

WIRTH, Louis. O urbanismo como modo de vida. Trad. Marina Corrêa Treuherz. In: __ Velho, Gil-
berto (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

59
Ciências da Religião - Antropologia Cultural

Atividades de
aprendizagem - AA
1) Assinale a alternativa CORRETA sobre o conceito de ETNOCENTRISMO:
a) É a visão do mundo em que nosso próprio grupo é tomado como centro e todos os outros são
pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a
existência.
b) A ação humana é perfeitamente explicável a partir de uma determinação biológica.
c) É o respeito e a não negação da diversidade cultural.
d) Os hábitos e os costumes são provenientes da reação ao instinto de sobrevivência dos seres
humanos.

2) O RELATIVISMO CULTURAL consiste em:


a) Um sentimento “natural” a todos os seres humanos, uma vez que é resultado do processo de
criação de uma pessoa no interior de uma cultura.
b) Repudiar as formas culturais, morais, estéticas diferentes daquelas com as quais nos identifica-
mos.
c) Recusar a admitir as diversidades culturais.
d) Um esforço de compreender a diferença, sem pensar que existe apenas uma única forma pos-
sível de se viver em sociedade.

3) Sobre a Arqueologia é CORRETO afirmar:


a) O estudo do homem como ser biológico, dotado de um aparato físico e uma carga genética,
com um percurso evolutivo definido e relações específicas com as outras ordens e espécies de
seres vivos.
b) O estudo do homem no tempo, através de monumentos, restos de moradas, documentos, ar-
mas, obras de artes e realizações técnicas que foi deixando no seu caminho enquanto civiliza-
ções davam lugar a outras no curso da História.
c) Dedica-se ao entendimento dos mecanismos e combinações genéticas fundamentais que per-
mitem explicar diferenciações de populações e não mais as raças.
d) O estudo do homem convivendo, produzindo e reproduzindo as regras de vivência em sua
própria sociedade e as sistematizações acerca dos fenômenos.

4) De acordo com Franz Boas, o evolucionismo não é capaz de explicar as diversidades culturais.
Assim, atribuiu à antropologia a execução de algumas tarefas que estão representadas nas alter-
nativas abaixo, EXCETO:
a) A reconstrução da história de povos ou regiões particulares.
b) A comparação da vida social de diferentes povos cujo desenvolvimento segue as mesmas leis.
c) As diversidades culturais são resultados do estágio de evolução no qual cada sociedade se en-
contra.
d) Através do particularismo histórico, cada cultura segue os seus próprios caminhos em função
dos diferentes eventos históricos que enfrentou.

5) Considerando a conceituação sobre as sociedades primitivas, marque, entre as alternativas


abaixo, qual a característica fundamental que diferencia as sociedades simples das sociedades
complexas.
a) Nas sociedades simples há ausência do Estado.
b) Nas sociedades simples não existem relações econômicas.
c) Nas sociedades simples existe uma estrutura de relações de parentesco.
d) Nas sociedades simples não existem relações de poder.

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UAB/Unimontes - 1º Período

6) Refletindo sobre as discussões empreendidas acerca da noção de Sistemas de Parentesco,


marque a alternativa INCORRETA:
a) A descendência pode ser tanto matrilinear como patrilinear, dependendo do grupo tribal.
b) As relações de parentesco respeitam normas que vão muito além da união entre duas pessoas.
c) A escolha individual é o principal critério para a definição de um par para o casamento.
d) Uma das maiores preocupações das normas de parentesco é possibilitar o nascimento de fi-
lhos legítimos na tribo.

7) Sobre as trocas econômicas entre as sociedades tribais, podemos afirmar:


a) Existe uma grande preocupação com o acúmulo de bens materiais.
b) Seu principal objetivo é o estabelecimento de relações amistosas.
c) Os sistemas econômicos das sociedades tribais são versões simplificadas das economias de
mercado modernas.
d) Estruturam-se sobre um complexo esquema de preços estabelecidos.

8) Pensando nas transformações sociais no contexto da urbanização e da industrialização do


mundo, Hall (2006) fala da existência, ao longo desse processo, de três sujeitos que se sucedem.
Entre as alternativas abaixo, qual não corresponde a um sujeito apontado pelo Autor?
a) Sujeito pós-moderno.
b) Sujeito sociológico.
c) Sujeito do iluminismo.
d) Sujeito filosófico.

9) Sobre a cidade, levando em consideração os pensamentos da Antropologia Urbana, marque a


alternativa INCORRETA:
a) Torna-se espaço de crescente conflito, visto que aglomera cada vez mais as diferenças em um
mesmo local.
b) Constitui-se em objeto privilegiado do saber médico, para tanto foi esquadrinhada e teve seus
espaços e populações vigiados constantemente.
c) Tornam-se mais pacíficas, visto que a aglomeração de pessoas permite a construção de laços
de proximidade.
d) Seu processo de formação foi marcado por dinâmicas territoriais que dizem respeito não so-
mente aos conflitos por demarcações de fronteiras, mas também a um campo de lutas e repre-
sentações simbólicas.

10) Sobre a Antropologia no Brasil, podemos afirmar, EXCETO:


a) Institucionalizou-se entre os anos de 1930 e 1960.
b) Paulatinamente foi reduzindo seu campo de atuação dedicando-se somente ao estudo das so-
ciedades simples.
c) Tem realizado descobertas arqueológicas que apontam para a presença do homem, em terras
brasileiras, há milhares de anos.
d) Discute características da cultura nacional, como o famoso “jeitinho brasileiro”.

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