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A Casa e o Monstro
Eu não estava realmente sozinho, minha avô Joanne sempre cuidava de
mim, não imagino que meus pais eram irresponsáveis o suficiente para
verdadeiramente me abandonar com minhas fantasias, mas a vovó Jô, como a
chamava, era a figura comum que eu procuraria durante os dias da minha
infância. Meus pais tinham obrigações maiores, eles precisavam proteger o país,
e mesmo enquanto uma criança eu conseguia entender isso. Afinal, eles nunca
mentiram para mim, sempre que retornavam, me alimentavam com as histórias
exageradas e fantásticas de seus triunfos. Ser como eles, ser um herói, era tudo
que eu queria, e as vezes aquela casa afastada ao norte de Ipswich deixava de ser
um cativeiro e se tornava um vivido mar para navegar entre os meus sonhos.
A primeira vez que o vi, foi como uma criança que se assusta com o
formato de um casaco pendurado em um cabide. Não havia casaco, no entanto,
apenas a sombra. É algo difícil de imaginar, pois dentro de um quarto escuro
tudo é naturalmente sombrio, mas havia uma diferença da penumbra do quarto,
para o absoluto breu que a sombra formava, era tão óbvio quanto uma mancha
de café em um papel sulfite, tão escuro, que era como observar o vazio do espaço.
Naquela noite, minha avó dormiu com seu terço em mãos, a bíblia ao lado
da cabeceira da cama. Eu não pude dormir, continuava inquieto, a essa altura
meus pais já deviam ter chegado em casa, afinal, o telefone foi usado. A vovó não
falou sobre mais sobre o assunto, e apenas justificou que eles “Estavam muito
ocupados mas chegariam pela manhã.”, mas isso não tinha sentido, pelo menos
não para mim. Vovó Jô deixou algumas luzes do quarto acesas, o que aumentou
minha dificuldade de dormir. E eventualmente, sem sono, e sem medo, decidi
me aventurar escadaria abaixo e dormir no sofá da sala, assistindo televisão.
Assim, enquanto a vovó roncava eu cautelosamente e silenciosamente desci da
cama, e calcei minhas pantufas de combate, elas tinham as cores do Guardião
Primordial, o maior herói de todos, e ingenuamente eu as usava como um
uniforme, sob a impressão que estava imune de todo o mal.
A única coisa que havia restado era a TV, a luz se perdia assim que se
afastava da tela, era sugada pelo vazio, o sofá também estava ao meu redor, mas
eu não consegui vê-lo. E ele, bom, ele não tinha voz de verdade, ele falava de
maneira estranha, como se através de sensações, era como o tato, quando você
coloca sua mão sobre uma chama, o tato o informa do calor, mas você sabia que
aconteceria, porque levou sua mão até lá, para ele era diferente, ele informava
sensações de forma súbita, sem aviso, mas essas sensações se tornavam uma
orquestra, e assim ele se comunicou comigo.
Ele não estava ali para me ferir, ele queria me proteger, quando me senti
sozinho e magoado, as trevas se formaram ao meu redor, aquele era seu abraço, e
por mais que todos os meus sentidos me implorassem para fugir, eu me senti
acolhido, protegido. Era algo inexplicável, inexprimível, e com o tempo, me
confortei com o vazio.
No entanto, não houve festa, não da parte deles pelo menos. Eu estava
extasiado em vê-los, e mal podia esperar para conversar com eles sobre ele, mas
eles pareciam preocupados, me abraçaram, me fizeram diversas perguntas, se eu
estava bem, se eu estava machucado. Adultos tem o péssimo hábito de não
explicar seus motivos para suas crianças, é verdade que muitas vezes elas não
entenderiam, mas permitir que elas inventem os motivos e que preencham
sozinhas essas lacunas não é nem um pouco melhor. Meu pai me levou para a
sala, e disse que “A vovó e a mamãe precisam conversar.”, então ele ligou a TV,
e começou a recontar algumas das minhas histórias favoritas, ele era um grande
contador, e sabia colocar a emoção correta para me prender a cada nova
reviravolta, mesmo que a essa altura eu já conhecesse aquelas histórias de cabeça.
Mas até mesmo ele estava preocupado com algo, parecia distraído, como se
observasse os arredores a cada alguns minutos. Eu sabia o que ele estava
procurando, mas eu não imaginava vê-lo daquela maneira.