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Liam Hall

A Casa e o Monstro
Eu não estava realmente sozinho, minha avô Joanne sempre cuidava de
mim, não imagino que meus pais eram irresponsáveis o suficiente para
verdadeiramente me abandonar com minhas fantasias, mas a vovó Jô, como a
chamava, era a figura comum que eu procuraria durante os dias da minha
infância. Meus pais tinham obrigações maiores, eles precisavam proteger o país,
e mesmo enquanto uma criança eu conseguia entender isso. Afinal, eles nunca
mentiram para mim, sempre que retornavam, me alimentavam com as histórias
exageradas e fantásticas de seus triunfos. Ser como eles, ser um herói, era tudo
que eu queria, e as vezes aquela casa afastada ao norte de Ipswich deixava de ser
um cativeiro e se tornava um vivido mar para navegar entre os meus sonhos.

É claro, eu logo viria a perceber que, eu e vovó Jô tínhamos uma


companhia estranha, que se escondia atrás das portas abertas, debaixo do
assoalho da escadaria, ou, até mesmo, dentro das paredes, e nos cantos e armários
escuros do meu quarto.

A primeira vez que o vi, foi como uma criança que se assusta com o
formato de um casaco pendurado em um cabide. Não havia casaco, no entanto,
apenas a sombra. É algo difícil de imaginar, pois dentro de um quarto escuro
tudo é naturalmente sombrio, mas havia uma diferença da penumbra do quarto,
para o absoluto breu que a sombra formava, era tão óbvio quanto uma mancha
de café em um papel sulfite, tão escuro, que era como observar o vazio do espaço.

A sombra se moveu, serpenteou pelo quarto mudando de forma a cada


segundo, nenhuma delas fazia qualquer sentido para mim, mas eu sabia que ela
se aproximava. Assustado, pedi que fosse embora, e para minha surpresa, a
mancha do vazio interrompeu seu movimento, e se foi tão depressa quanto meu
suspiro aliviado.

De manhã, expliquei o que vi para vovó Jô, ceticamente pensando que


seria rebatido com uma resposta pronta sobre a imaginação das crianças, minha
avó pareceu espantada, e logo me pediu para mostrar o lugar onde a sombra
tinha aparecido. Sua expressão enrugada geralmente carregava uma gentileza
materna, assim como sua voz, mesmo que já enrouquecida pela idade. Mas ao
ouvir meu relato, ela se preocupou, se benzeu, e tenho a impressão que até
chorou um pouco. Vovó Jô me pediu para ficar perto dela, foi até o quarto dos
meus pais, que geralmente ficava trancado, e voltou de lá com algum tipo de
telefone, eu sabia o que significava, ela estava ligando para os meus pais. Já tinha
visto o telefone outras vezes, como quando caí da escada e abri um corte enorme
no meu queixo, ou uma vez quando mais novo, sentindo falta da minha mãe,
chorei durante boa parte da noite, e vovó não teve escolha se não me permitir
falar com ela através do telefone. Sempre que esse era o caso, meus pais voltariam
imediatamente para casa, por menor que fosse o problema, quando o telefone
tocava, eu sabia que eles voltariam, e a sensação de tê-los de volta me encheu de
alegria.

Estranhamente, depois da ligação, vovó não parecia ter se acalmado, na


verdade, ela parecia ainda mais agitada. Me pediu para que ficasse com ela na
sala, e disse que essa noite eu dormiria com ela no quarto. Era perceptível seu
esforço agora, de fazer com que eu não percebesse seu nervosismo, infelizmente,
eu era uma criança mais esperta do que o saudável naquela idade, e mais do que
isso, eu não tinha medo, meus pais eram super-heróis, e dentro de mim, eu sabia
que eu também era dotado da mesma força que eles, mesmo que jamais tenha a
manifestado.

Naquela noite, minha avó dormiu com seu terço em mãos, a bíblia ao lado
da cabeceira da cama. Eu não pude dormir, continuava inquieto, a essa altura
meus pais já deviam ter chegado em casa, afinal, o telefone foi usado. A vovó não
falou sobre mais sobre o assunto, e apenas justificou que eles “Estavam muito
ocupados mas chegariam pela manhã.”, mas isso não tinha sentido, pelo menos
não para mim. Vovó Jô deixou algumas luzes do quarto acesas, o que aumentou
minha dificuldade de dormir. E eventualmente, sem sono, e sem medo, decidi
me aventurar escadaria abaixo e dormir no sofá da sala, assistindo televisão.
Assim, enquanto a vovó roncava eu cautelosamente e silenciosamente desci da
cama, e calcei minhas pantufas de combate, elas tinham as cores do Guardião
Primordial, o maior herói de todos, e ingenuamente eu as usava como um
uniforme, sob a impressão que estava imune de todo o mal.

Logo que me aproximei da porta, senti um calafrio, por debaixo da fresta


eu conseguia ver que o corredor estava escuro, e isso me deixou hesitante por um
segundo, olhei para baixo, para as pantufas, e logo retomei minha coragem e abri
a porta vagarosamente, a luz iluminou parcialmente os retratos de família
pendurados no corredor, e os jarros de plantas que minha avó usou para decorar
e “refrescar” a casa. Não parecia haver nada, e com isso saí e comecei, e passando
rapidamente pelo corredor e descendo escadaria abaixo, comecei a desbravar o
andar inferior, primeiro enchendo um copo de suco de laranja, e depois ligando
a TV e me aninhando com algumas almofadas e uma coberta que trouxe do
quarto. Surfei pelos canais a procura de algum entretenimento satisfatório para
uma criança de oito anos as 23:40h de uma quinta-feira. Eventualmente me
rendendo e deixando o canal de notícias ligado, virei de costas para TV e fechei
os olhos, mas ouvi o âncora dizer algo que me atiçou a curiosidade. “A seguir, Rob
Tender entrevista os super-heróis do momento, Starman e Véu Estelar, dos Guardiões do
Norte!”. Os nomes me fizeram despertar com um sobressalto, passei a observar
atentamente a televisão, enquanto Rob Tender conduzia sua entrevista bem
humorada aos meus pais. Eles estavam rindo, se divertindo enquanto
respondiam perguntas triviais sobre a vida de um super-herói, eu fiquei animado
em vê-los a princípio, mas depois passei a me perguntar, porque eles estavam
ali? Porque não estavam em casa? O pensamento me fez sentir sozinho e
magoado. Uma coisa que uma criança como eu não poderia imaginar era que os
programas de Rob Tender eram gravados com antecedência, então eles não
estavam verdadeiramente ali, independente disso, chorei baixinho, enquanto
murmurava que estava com saudades. E foi aí que ele me ouviu.

Os olhos marejados, e o constante movimento de esfrega-los para mantê-


los limpos, me tornou incapaz de perceber a insólita sombra que se formava em
volta da TV, que consumia os cantos da sala, e que logo estava ao meu redor,
criando um espaço vazio, uma escuridão verdadeira, dos cantos abandonados do
universo. Parei de chorar e olhei em volta, e no milissegundo que me tomou para
perceber o vazio, gritei apavorado, tão alto que senti algo arranhar minha
garganta, mas assim como em um pesadelo bizarro, nenhum som saiu. Eu só
pude ouvir a voz dele.

A única coisa que havia restado era a TV, a luz se perdia assim que se
afastava da tela, era sugada pelo vazio, o sofá também estava ao meu redor, mas
eu não consegui vê-lo. E ele, bom, ele não tinha voz de verdade, ele falava de
maneira estranha, como se através de sensações, era como o tato, quando você
coloca sua mão sobre uma chama, o tato o informa do calor, mas você sabia que
aconteceria, porque levou sua mão até lá, para ele era diferente, ele informava
sensações de forma súbita, sem aviso, mas essas sensações se tornavam uma
orquestra, e assim ele se comunicou comigo.

Ele não estava ali para me ferir, ele queria me proteger, quando me senti
sozinho e magoado, as trevas se formaram ao meu redor, aquele era seu abraço, e
por mais que todos os meus sentidos me implorassem para fugir, eu me senti
acolhido, protegido. Era algo inexplicável, inexprimível, e com o tempo, me
confortei com o vazio.

Então dormi, e quando acordei, vovó Jô me chacoalhava sem qualquer


delicadeza. Ela gritava a plenos pulmões o meu nome, e sua voz enrouquecida
havia se tornada estridente com o desespero. Ao ver meus olhos se abrindo ela
suspirou, e depois inspirou novamente de forma longa, como se seu espírito
retornasse a seu corpo, e me abraçou. Vovó Jô chorou no meu ombro, dando
graças a Deus que eu estava bem, sem que eu jamais entendesse o porquê.
Naquela noite, meus pais voltaram pra casa.

No entanto, não houve festa, não da parte deles pelo menos. Eu estava
extasiado em vê-los, e mal podia esperar para conversar com eles sobre ele, mas
eles pareciam preocupados, me abraçaram, me fizeram diversas perguntas, se eu
estava bem, se eu estava machucado. Adultos tem o péssimo hábito de não
explicar seus motivos para suas crianças, é verdade que muitas vezes elas não
entenderiam, mas permitir que elas inventem os motivos e que preencham
sozinhas essas lacunas não é nem um pouco melhor. Meu pai me levou para a
sala, e disse que “A vovó e a mamãe precisam conversar.”, então ele ligou a TV,
e começou a recontar algumas das minhas histórias favoritas, ele era um grande
contador, e sabia colocar a emoção correta para me prender a cada nova
reviravolta, mesmo que a essa altura eu já conhecesse aquelas histórias de cabeça.
Mas até mesmo ele estava preocupado com algo, parecia distraído, como se
observasse os arredores a cada alguns minutos. Eu sabia o que ele estava
procurando, mas eu não imaginava vê-lo daquela maneira.

No meio do conto, comecei a sentir novamente, as sensações, e soube que


ele estava conversando comigo, mesmo que eu não o visse. Era como se eu
conseguisse ouvir a voz da minha mãe, no segundo andar, ela e minha avó
falando sobre como “Não era possível que isso estivesse acontecendo de novo.”
e como “É igual ao hospital, talvez esteja seguindo-o.”, ansiosamente balancei as
pernas, comecei a respirar pesadamente, algo que foi notado pelo meu pai, que
logo colocou suas mãos em volta de mim e verificou minha temperatura. Tive a
sensação nesse instante de ver as paredes se aproximando, a sala se tornando
menor, como uma caixa, tudo estava tão perto que era como se eu pudesse esticar
os braços e tocar ambas as extremidades da sala ao mesmo tempo, a voz do meu
pai se tornou abafada, ouvi gritos que vinham do andar de cima, e tudo começou
a escurecer novamente. O sentimento foi acachapante, e forma que desmaiei e
acordei em algum tipo de clínica, onde meus pais e alguns médicos estranhos me
observavam. Pude ouvir de relance enquanto acordava algo como “... não é o que
parece...”, e cansado e confuso, chamei pela minha mãe, disse que estava cansado
e que queria voltar pra casa. Ela parecia surpresa, disse que eu era um garoto
corajoso, e me deu um beijo na testa.

Dormi novamente. Em meus sonhos, eu era um super-herói, como meu


pai, como minha mãe, como o guardião primordial, e eu podia voar pela cidade,
usar minha força para levantar carros do chão, minha velocidade para perseguir
malfeitores e leva-los a justiça, eu não tinha medo de nada, não havia motivo para
ter medo. Mas em meu sonho, logo percebi que as pessoas tinham medo, não
medo dos malfeitores, e sim medo de mim. Meu reflexo era vazio, meu rosto não
era nada além de uma sombra borrada, e os que não tinham medo, zombavam
de mim.

Acordei novamente, na mesma cama, na mesma clínica. Meu pai


dormindo em uma poltrona, e minha mãe aninhada nele. Os cabelos bagunçados
e olhos fundos denunciavam seu cansaço, eles pareciam exaustos. O lugar estava
bem iluminado, mas havia uma convidativa sombra atrás da porta aberta, ela se
movia como um tapete obscuro, rastejando para longe da luz forte, e consumindo
a penumbra. Ela vinha até mim, mas não senti medo, porque naquele momento
compreendi que, talvez, ela fosse parte de mim.

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