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PREFÁCIO

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Uma Vez Num Sonho
Milhões de criaturas espirituais andam na Terra
Invisíveis, tanto quando estamos acordados
como quando dormindo
JOHN MILTON
Paraíso Perdido

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Tive uma visão de duas em um outro lugar... era tão lindo Nhiladee.
Quando olhei para cima você estava me encarando debaixo de uma luz azul
esverdeada tão intensa que se não fosse sua sombra em meus olhos eu não veria nada.
Estava deitada em seu colo observando seu rosto preocupado e cheio de cicatrizes –
sinais de seu esforço –, enquanto uma neblina esbranquiçada e fria nos encobria.
Escutei sua risada doce vividamente quando pedi que você massageasse minha cabeça.
Foi meu primeiro pedido para você, e você me olhou com uma sobrancelha erguida,
me chamando de folgada, sem verbalizar. É assim que nos comunicamos, afinal. Você
parecia feliz e seu sorriso foi suficiente para fazer eu mesma perder a compostura e rir
junto com você, sentindo meu coração se aquecer assim que seus dedos tocaram meus
cabelos delicadamente...
Quando acordei, estava presa no Baluarte da Contenda, no cativeiro onde você me
encontrou pela primeira vez. Meu pai jogou água com um cheiro tão forte em meu
rosto que ele nem mesmo precisava jogá-la em mim para me acordar, mas jogou
mesmo assim. Ele me encarava furioso, fazendo perguntas que eu jamais responderia.
Sua mãe realmente tem poder sobre ele. Enquanto fazia perguntas, Nolge me
ameaçou, dizendo que se eu não cooperasse ele me trataria como a escrava que
sempre fui, pela primeira vez. Eu realmente nunca acreditei nas declarações de amor
dele, e o toque gélido e delicado de sua mão em meu rosto enquanto ele as repetia
para tentar me convencer apenas confirmou minhas suspeitas, principalmente após ele
me chamar pelo nome esquecido da minha mãe. Finalmente entendo como ele me vê
e o que ele quer dizer quando me chama de “meu amor”.
Consegui fugir antes que as coisas escalassem, mas cometi um enorme erro. Sua mãe
finalmente encontrou um proposito para meu sangue e quer se aproveitar dele o
quanto antes. Ela está atrás de mim, veio me buscar... e eu espero que você também
venha.
Seu amor, Kahlista “Worho’ul”

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Os Primeiros Nós

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UM
A REALIDADE BEM À MINHA FRENTE

“Por cada ponto mais amaldiçoado —


Em cada recanto mais abandonado, —
Lá, o viajante encontra, horrorizado,
Todas as memórias do passado —
Envolto em formas que acendem e desaparecem
Embora os viajantes, entre eles passem —
Vestidos de branco como amigos esquecidos
Na terra e no paraíso, — eternamente banidos.”

Dream-Land — Edgar Allan Poe (1844)

E
nquanto na escuridão e solidão da Umbraeterna, sempre mergulhei
em pensamentos e sonhos profundos que questionavam a injustiça
de minha própria vida, sonhando com uma liberdade inalcançável
para minha condição. Muitas vezes é difícil nos lembrarmos qual é nossa
primeira recordação ou, neste caso, quando foi a primeira vez que percebi
esse fato. Talvez tenha sido logo em meu nascimento, quando meu pai me
arrancou do ventre de sua escrava predileta e imediatamente transferiu todo

A REALIDADE BEM À MINHA FRENTE

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o amor que conhecia para mim. Ele era um bom pai. Lembro que durante
meus primeiros anos de vida, ele fazia questão de me dizer o quanto eu era
útil, o quanto eu era fácil de lidar, o quanto eu era importante e o quanto ele
me amava. E eu o amava igualmente, mesmo sem saber exatamente o que
aquilo queria dizer, afinal, onde eu estava, não havia nenhuma demonstração
desse sentimento para que eu pudesse tomar como exemplo ou, pelo menos,
conseguir distinguir o que era, de fato, amor.
Lembro-me de que, enquanto aprendia a dar meus primeiros passos
e a formar minhas primeiras frases, meu pai sempre esteve presente. Ele foi
o único presente em minha vida por muito mais tempo depois disso. Minha
casa era um lugar úmido e geralmente frio, com paredes altas e grossas de
pedra enegrecida que faziam os sons do lado de fora ficarem abafados e quase
inaudíveis; porém, gritavam guturalmente em desespero e medo se eu
encostasse minhas orelhas nelas ou simplesmente ficasse em silêncio por
tempo o suficiente para ouvi-las. Os gritos sempre me deram medo, então eu
os evitava, assim como evitava a porta pesada de metal pela qual meu pai
entrava e saía diariamente, em momentos diferentes, trazendo-me comida,
água e sua curta companhia. Eu era feliz, meus dias passavam lentamente, e
eu adorava brincar sozinha. Conhecia cada detalhe dos quatro cantos daquele
cômodo como minha própria mente.
A parede à esquerda da porta era especialmente úmida, com uma
parte que, devido à umidade excedente, estava coberta por lodo. Lembro-me
de usá-la para desenhar figuras para passar o tempo quando os gritos não
eram tão altos, mas quase sempre fazia o contorno da minha própria mão
porque gostava de ver o quão maiores elas ficavam a cada dia que eu passava
ali. O canto à direita da porta era onde ficava meu banheiro; um buraco no

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chão, nada interessante ali. Eu evitava ficar perto desse canto devido ao mau
cheiro, que se espalhava por toda a casa. Logo à frente do banheiro, do lado
oposto da porta, havia uma parede com uma enorme rachadura, era a única
abertura daquele cubo de pedra. Nas noites mais frias, fazia o cômodo inteiro
congelar, e nos dias mais quentes, era o único lugar onde o ar fresco conseguia
entrar. Por fim, ao lado da parede quebrada, ficava o meu canto especial,
onde eu dormia, em cima de um saco de linho rasgado, mas estufado de
palha e sujeira macia. Não era confortável, nada era, mas servia para que eu
não dormisse no chão, e era o suficiente. Minha rotina em casa era simples:
eu acordava, me limpava, comia, dormia e repetia. Isso mudava durante as
visitas do meu pai, já que com ele eu conseguia conversar ou realmente me
distrair. Mesmo com suas regras rígidas em nossa interação — como proibir
alguns assuntos —, eu me sentia feliz com o que tinha, afinal, não conhecia
nada além daquela realidade.
Essa foi minha vida por dez longos anos. No meu décimo primeiro
aniversário, eu ouvi uma voz diferente da do meu pai, da minha ou dos gritos
desesperados das paredes pela primeira vez. Meu pai havia prometido me
encontrar com uma surpresa e eu finalmente o ouvi se referir a alguém além
de mim através da enorme porta de metal.
“Por aqui, Grande Mãe Worho’ul.” jamais esquecerei da entonação
submissa do meu pai.
Quando abriram a porta, eu já estava de pé, vestida com as roupas que
ele havia me entregue um dia antes, ansiosa, curiosa e com um calafrio
inidentificável percorrendo minha espinha. É difícil saber qual é nossa
primeira recordação, principalmente quando grande parte delas sua mente
tenta reprimir. Mas eu sempre tive uma ótima memória. Gosto de me

A REALIDADE BEM À MINHA FRENTE

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enganar e dizer para mim mesma que desde meu nascimento soube da minha
condição ou que minha vida quando criança era boa e que eu gostava de
todos os aspectos dela. Mas, a realidade é que sempre estive alheia a tudo, e
só entendi minha real condição após ouvir aquele tom de voz incisivo falando
com meu pai.
A drow esguia, vestida com longas vestes de seda negra destacadas por
realces vermelhos e delicados bordados prateados, empunhava uma espécie
de chibata de couro e bambu negro em uma das mãos. Ela me encarava com
desdém, enquanto seu diadema, adornado com pedras esverdeadas delicadas
— as mesmas que também enfeitavam seu colar no pescoço —, brilhavam na
meia-luz do calabouço imundo. Meu pai estaria aos seus pés, ajoelhado em
uma posição humilhante, deixando sua testa firmemente apoiada ao chão.

“A mestiça vai servir.” foram as primeiras palavras da drow direcionadas


a mim. Ditas com a boca e o nariz cobertos porque eu e minha “casa”
fedíamos. “E depois, você já sabe o que fazer com Nhiladee.”
Ela diria para meu pai e eu o escuto confirmar e agradecer a tal “Grande
Mãe Worho’ul” mais uma vez, se levantando apenas depois da mulher
autorizar, sem retirar os olhos dele do chão ou olhar para mim, mesmo que
eu desesperadamente procurasse seu olhar para se encontrar com os meus.
Meus olhos eram a única forma dele saber o que eu sentia, e ele sabia
disso, por isso os evitava. Então, a pomposa drow puxaria pelo braço uma
garota de longos cabelos castanhos e olhos vermelhos intensos — assim como
os dela —, que se escondia covardemente em suas costas para não ser notada.
Era Nhiladee.

A REALIDADE BEM À MINHA FRENTE

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“Esse vai ser meu maior presente para você. Lembre-se disso.” a mulher
disse para sua filha, a empurrando para mais perto de mim. “Vamos, a
nomeie! Tenho certeza de que ela não recebeu esse direito ainda.”
A matrona ordenou animada e Nhiladee finalmente me encarou,
brevemente, apática de expressão, mas eu conseguia perceber o quanto ela
estava com medo.
“Kahlista...” Foi a primeira vez que ouvi a voz de Nhiladee. Ela me
batizou com um nome inventado na hora, sem cuidado ou significado algum.
Seu olhar desfocado e desinteressado não durou tempo suficiente para ela
pensar em nenhuma dessas coisas.
Ela também evitava meu olhar, mas por motivos diferentes do meu pai.
Ela estava apavorada. Sua voz era tão tremula quanto a minha quando ouvia
os gritos do outro lado das paredes de meu cativeiro e tão rapidamente
quanto ela foi empurrada para frente, ela retornaria para as costas de sua mãe,
procurando uma proteção que, mesmo com a nossa curta interação, eu tinha
certeza de que a mulher jamais daria.
Lembro de ter ficado tão confusa que nem ao menos entendi que “Kahlista”
seria meu nome pelo resto da minha vida.

A REALIDADE BEM À MINHA FRENTE

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DOIS
UM NOVO LUGAR PARA CHAMAR DE MEU

“Por um caminho solitário e obscuro,


Assombrado por um anjo impuro,
Onde um Eidolon chamado NOITE ETERNA,
Em seu trono escuro, incólume, governa.
Naquelas terras, tão breve vislumbrei além
Da indomável Thule — terra de ninguém —
De clima estranho, selvagem, a espraiar no campo...
... Além do ESPAÇO — Além do TEMPO!”

Dream-Land — Edgar Allan Poe (1844)

N
hiladee e eu nos entendíamos surpreendentemente bem,
considerando que, desde que a conheci, ela me instruía sobre como
servi-la da melhor forma. Apesar de ser uma merdinha com
habilidades sociais piores que as minhas — que foi mantida em cativeiro por
muito tempo —, ela se afeiçoou a mim, por eu ser o primeiro presente que

UM NOVO LUGAR PARA CHAMAR DE MEU

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sua mãe já lhe deu. Ela era patética. Felizmente, nunca achei suas intenções
maliciosas, o que era uma surpresa, e me dava espaço suficiente para pelo
menos não a detestar, já que nossos momentos juntas não se resumiam a
apenas ela me ordenar de um lado a outro para cumprir tarefas fúteis como
qualquer outro escravo. Com pouco tempo ao lado da Herdeira Worho’ul,
aprendi a ler, escrever e conheci partes do Matriarcado muito além do
cativeiro que passei grande parte da minha infância. A “Grande Mãe
Worho’ul” ou “Vik’sen Worho’ul” como agora eu também a conhecia, havia
me escolhido pessoalmente para servir sua própria filha enquanto meu pai a
doutrinava. Durante meus anos presa, nunca imaginei que meu pai fosse uma
criatura tão cruel.
Os gritos que sempre ouvi do outro lado das paredes de pedra de meu
cativeiro, nada mais eram que meu pai fazendo seu trabalho, torturando e
marcando pessoas como rebanho com seus conhecimentos necromânticos,
para vendê-las ou usá-las posteriormente, a depender da vontade dos
Worho’ul. Quando meu pai terminava seu trabalho, os miseráveis e infelizes
que tiveram o prazer de conhecê-lo já não eram os mesmos, transformando-
se em marionetes capazes apenas de seguir as ordens de seus senhores, nunca
se voltando contra eles, pois as linhas que meu pai amarrava em seus
pescoços, braços e pernas, e colocava nas mãos daqueles tiranos, eram
irrompíveis. Devido a esse trabalho, os escravos Worho’ul eram fenomenais.
E por acaso eu era um deles, apenas com a graça de não ter sido marcada
pela Runa Escravocrata, pois sempre fui uma garota útil, fácil de lidar e
importante para a pessoa que os marcava. Para minha sorte, Nolge, meu pai,
me amava.

UM NOVO LUGAR PARA CHAMAR DE MEU

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Nolge tinha um trabalho exaustivo com a minha nova “dona” e o Culto
da Senhora dos Mil Olhos. Nhiladee tinha dificuldade em seguir regras que
não fossem suas próprias e sua mãe havia se cansado de abrir concessões
apenas por parir a garota. Os gritos que sempre ouvi do outro lado da parede,
logo se transformaram nos gritos de Nhiladee, aprendendo da pior forma —
com meu pai — o que sua matrona queria dela, e meu trabalho era estar lá
para lamber suas feridas. Tenho certeza de que se ela ou eu, tivéssemos sido
criadas de outra forma, saberíamos que convivência é uma faca de dois
gumes. Conforme o tempo passava e as punições de Nhiladee pareciam não
ter fim — por ela ser teimosa e insistir em seus erros —, percebi o quão
complacente eu havia me tornado, já que durante todas às vezes que a ajudava
a se recompor de suas sessões disciplinares, comecei a me permitir sentir
compaixão e pena pela drow. E nossos sentimentos uma pela outra logo se
misturaram em algo que nem ela nem eu sabíamos descrever, mas devido à
inexperiência ou apenas à confusão de nossos corpos em desenvolvimento,
tínhamos certeza de que era, de fato, amor.
Pelo menos dessa vez, eu não tinha desculpa do porquê não entender
algo, eu havia aprendido a ler e já não estava mais limitada pelas quatro
paredes de meu cativeiro. Graças a Nhiladee, eu agora tinha acesso a um
novo mundo. Na Umbraeterna, as majestosas torres e espirais rochosas do
Matriarcado de Deireadh se estendiam desde o chão até o teto em uma
cadeia de cavernas colossais com fauna e flora únicas, que criavam uma
paisagem que nem em meus sonhos mais alucinados de quando estava pressa
eu poderia imaginar. Construídas com pedras negras reluzentes e adornadas
com padrões complexos esculpidos com magia, essas estruturas serviam
como residências para a elite drow — como os Worho’ul — e templos

UM NOVO LUGAR PARA CHAMAR DE MEU

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dedicados a Senhora dos Mil Olhos, a Mãe da Escuridão, Deusa dos drows.
Foi entre os drows desse lugar magnifico, magico e excêntrico que procurei
entender o que era “amor”. Lembro que meus resultados foram
surpreendentes e extremamente satisfatórios:

“O amor é uma experiência complexa que envolve a atração


emocional, afetiva e muitas vezes física em relação a um indivíduo,
objeto, conceito ou entidade. O amor pode levar a decisões
irracionais em nome do indivíduo ou objeto amado, o que, por
vezes, pode prejudicar o próprio indivíduo. Portanto, o amor é
uma fraqueza que exige cuidado e atenção para ser gerenciado de
maneira equilibrada.”

Não demorei para aprender que o conceito de amor na minha sociedade


nada mais era do que um sentimento vazio que poderia ser despedaçado e
reconstituído para controlar os infelizes e esperançosos daquela sociedade
cruel. Meu pai o usava para me manter presa em um cativeiro catinguento e
úmido por dez longos anos sem que eu abrisse a boca uma vez sequer para
questioná-lo. Vik’sen o usava para controlar e torturar o psicológico da
própria filha, pois achava que assim ela se fortaleceria o suficiente para um
dia substituí-la. E eu o utilizaria para, enfim, transformar minha vida miserável
e conquistar tudo aquilo que meu coração verdadeiramente desejasse. E
Nhiladee era a chave. Pelo menos foi o que pensei inicialmente, mas a
realidade logo se atirou em minha testa. Nhiladee não era a chave de nada,
para nada. Se ela fosse algo, seria um obstáculo em meu caminho.

UM NOVO LUGAR PARA CHAMAR DE MEU

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Eu sabia de todos os defeitos da Herdeira Worho’ul: sua frieza,
crueldade, egocentrismo e narcisismo, sua incompetência e sua teimosia. O
que eu havia aprendido ao seu lado, nada mais era do que uma consequência
de estar ao lado dela e não uma prova se sua boa vontade. Ela me tratava com
carinho e me valorizava por eu ser uma posse valiosa. O primeiro presente
que sua mãe a havia dado. Apesar disso, eu estava disposta a fechar os olhos
e aceitá-la com todos os seus defeitos, pois, mesmo que ela tentasse ocultar,
eu conseguia enxergá-la verdadeiramente, nos recantos mais profundos de
seu coração e mente. Para além de seus defeitos, eu via todas as suas fraquezas
expostas. Apenas para mim.
Nhiladee não era a chave de nada, para nada, mas todos os seus desejos
mais profundos, tudo o que ela queria conquistar, eu também queria. E
conquistaríamos tudo. Juntas.
Talvez a patética fosse eu, no final das contas.

UM NOVO LUGAR PARA CHAMAR DE MEU

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A Linha do Destino
TRÊS
A LUZ DA MENTE SOMBRIA

“Para os corações cujas desgraças são uma legião


Esta é uma pacífica e tranquila região —
Onde espreita o espírito assombrado
Este — oh, este é o eldorado!
Mas o viajante que através dele vangloria,
Não pode jamais testemunhar a sua glória;
Nunca mais os mistérios serão revelados
Aos fracos olhos humanos maravilhados;
Assim decretou o rei em sua proibição
Erguendo o pórtico de sua guarnição.”

Dream-Land — Edgar Allan Poe (1844)

Q
uando mais jovem, jamais imaginaria que alguém como eu pudesse
alcançar uma posição tão elevada como a que alcancei. Apesar da
maioria das portas terem se fechado para mim durante os primeiros
meses de gestação de minha mãe, sendo um homem do Matriarcado, aprendi
bem cedo que eu deveria me esforçar muito mais para conquistar qualquer

A LUZ DA MENTE SOMBRIA

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coisa, porque não nasci com privilégio de ter um ventre. Nunca fui forte,
habilidoso com armas e muito menos atraente, características que as
mulheres de minha raça valorizavam muito, então tive certa dificuldade para
me destacar, o que muitas vezes me peguei agradecendo, já que o assédio
feminino costumava matar jovens homens drows como eu.
Ainda assim, não queria desperdiçar a Graça da Senhora dos Mil Olhos
de me trazer ao mundo, apenas para ser mais uma mosca em seu ninho
infestado de teias. Eu tinha uma qualidade explorável, afinal, e essa era meu
intelecto.
Como um estudioso e necromante talentoso, consegui me destacar aos
olhos de algumas das mulheres mais bem vistas da família a qual eu servia,
mas quem realmente me cativava era a jovem Vik’sen Worho’ul, minha
senhora. Por muito tempo os Worho’ul foram um símbolo de excelência tão
grande quanto os próprios descendentes de Lythrana Faen'Deireadh, a
Primeira Matriarca de Deireadh, porém, após a morte de Mallev’lence
Worho’ul e a queda de sua primogênita, Terma’ant Worho’ul, sobrou para
Vik’sen recuperar tal excelência, e eu, como um leal servo, a ajudei, com
esperanças de um dia ser recompensado com um lugar ao seu lado. No
entanto, esse dia nunca chegou e tão cedo quanto Vik’sen tomou seu lugar
como a mais nova Matriarca Worho’ul, eu seria jogado novamente para os
calabouços imundos de minha Casa para continuar meu trabalho, sem nem
ao menos ser concedido o direito de agregar o nome Worho’ul ao meu, a
fim de ser considerado parte da família que eu havia ajudado a reerguer e
manter. Fui condenado pela minha própria senhora — que eu tanto venerava
—, a ser apenas Nolge, o doutrinador de escravos, para sempre.

A LUZ DA MENTE SOMBRIA

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O que eu fazia não era ruim ou tedioso, muito pelo contrário, me divertia
e me satisfazia ao descontar minhas frustrações naqueles animais nojentos
trazidos de vilas e cidades de nossos inimigos da superfície ou da própria
Umbraeterna. Em sua maioria eram criaturas inferiores à excelência drow,
mas entre esses, uma mulher se mostrou ser a mais feroz e selvagem das
criaturas que já haviam passado em minhas mãos. Nunca tive dificuldades
para domar meus animais, mas aquela magnifica besta de longos cabelos
ruivos, braços e ombros largos de músculos bem definidos e pele tão clara
quanto a neve de sua terra natal, se agarrava a sua sanidade e humanidade de
uma forma que eu jamais havia visto, e eu me deleitava enquanto arrancava a
força suas esperanças e a despia de cada pedaço daquilo que ela achava ser
importante, até o ponto de ela não resistir mais. Com toda certeza aquela foi
uma de minhas maiores perdas, mas felizmente para mim, aquela criatura tão
magnifica não partiria sem antes me deixar algo para que pudesse me lembrar
dela sempre que eu olhasse: uma pequena meia-drow com os mesmos
cabelos ruivos de sua feroz mãe e olhos tão carmesins quanto os meus.
Criar uma criança mestiça jamais fez parte dos meus planos de vida, no
entanto, Vik’sen tinha planos grandiosos para a pequenina e ao me pedir para
mantê-la viva e longe dos olhos curiosos do Matriarcado, assumi que mais
uma vez a Matriarca Worho’ul estava trabalhando e moldando a fina fibra de
seda do Destino ao seu favor e não demorei para descobrir seus motivos.
Quando ainda era um bebê, a criança era capaz de perceber minha
presença sem nem ao menos me ver ou ouvir, e conseguia fazer seus choros
famintos e necessitados ressaltarem em minha mente como vozes dos meus
próprios pensamentos e desejos. Quando a garota fez seis anos, comecei a
acreditar que meus instintos parentais haviam se aflorado, já que havia me

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acostumado a mimá-la, não só com minha presença diária, como também
com presentes. Nessa época, ela havia me explicado — com uma simplicidade
e inocência infantil —, que seu cativeiro era “chato” e que os monstros que
ela ouvia através das paredes, podiam ser evitados apenas se ela focasse seus
pensamentos em alguma outra coisa, reclamando de seu cativeiro monótono
e dizendo que sua única solução era cantar, mas que sua voz sozinha já não
era mais suficiente para afastar os terríveis sons.
Lembro que naquele momento minha mente se preencheu com uma
necessidade inexplicável de ajudá-la e essa necessidade só se resolveu depois
que entreguei a ela seu primeiro instrumento, uma flauta, que ela aprendeu
rapidamente a tocar. Apesar de ter achado que era algo natural, um instinto
paternal adormecido, com o tempo e convivência com a criança, notei que
se tratava de uma estranha influência, poderosa o suficiente para não ser
facilmente notada e que crescia na mesma velocidade que ela. A criança era
dotada de uma força vital e mental capaz de manifestar seus desejos apenas
com sua força de vontade, seja influenciando as mentes daqueles próximos a
ela... ou o próprio espaço onde ela estivesse inserida.
Em seu décimo aniversário, eu já havia descoberto suas capacidades e
me prevenido contra elas, me resguardando contra sua influência. Ao
perceber isso, a garota finalmente demonstrou instabilidade em seu
emocional geralmente sereno, mostrando que talvez eu tivesse a mimado
demais. Após perceber que não conseguiria arrancar de mim os motivos
exatos de seu confinamento — que nem mesmo eu sabia, já que eram planos
da Grande Mãe Worho’ul —, a garota demonstraria o quanto sua influência
e consciência já haviam se desenvolvido, aumentando uma pequena abertura
em um dos cantos das grossas paredes de pedra enegrecida de seu cativeiro,

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com um único olhar enfurecido e frustrado, em uma tentativa de me
intimidar para conseguir o que queria. Foi a última vez que a visitei; retornei
somente em seu próximo aniversário para informá-la de que, enfim, seus
desejos seriam atendidos. Eu já havia descrito todas as minhas descobertas
para Grande Mãe Worho’ul e ela havia finalmente encontrado uma utilidade
para a criança. Após seu encontro com a Vik’sen, a criança finalmente
receberia um proposito e seria batizada de “Kahlista”, sendo entregue para
Nhiladee Worho’ul, filha da Grande Mãe e minha mais nova pupila, como
um presente, designada para ser sua escrava pessoal.
Em meu tempo como doutrinador, desenvolvi meus próprios métodos
e regras sobre como quebrar e reestruturar a mente de qualquer humanoide
para atender às necessidades da Umbraeterna e dos Worho’ul, nunca gostei
de desorganização, e o modo que eu conduzia meus afazeres sempre se
mostrou o melhor. Minha metodologia organizada e precisa me permitiu
fazer inúmeras descobertas, sendo a mais relevante delas a compreensão de
que, para alguém como eu, a mortalidade é uma âncora que se arrasta na
camada mais profunda da Umbraeterna, lentamente afundando todos para o
Abismo. Por essa razão, comecei a pesquisar maneiras de me livrar dessa
âncora, e justo quando pensava estar no auge do meu estresse, conduzindo
minhas pesquisas e meu trabalho solitariamente, Nhiladee foi entregue a mim
como um presente de minha generosa Matriarca.
Covardes são os melhores torturadores. Os covardes entendem o medo
e podem usá-lo. Heróis, por outro lado, são terríveis torturadores. Eles não
conseguem compreender o que motiva um indivíduo comum. Interpretam
tudo erroneamente. Não conseguem conceber nada pior do que manchar sua
honra. Os covardes, no entanto, amarrariam qualquer um em uma cadeira

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em chamas e assistiriam em silêncio o fogo consumir a carne e ouviriam
atentamente os gritos ficassem mais fracos, até o pobre desgraçado se
silenciar. Nhiladee era uma covarde. Talvez a maior covarde da
Umbraeterna. Ela temia seus súditos, seus irmãos, sua mãe, mas
principalmente a si mesma. Ser a pessoa que ela era ou poderia se tornar se
cumprisse as exigências de sua mãe a amedrontava, e todos os seus familiares
a odiavam por isso. Para eles, ela representava uma fraqueza entre os
Worho’ul. E meu trabalho era fazê-la ter mais medo, ser mais covarde, mais
cruel, ser mais... ela mesma, como sua mãe queria.
Portanto, quando a jovem Herdeira Worho’ul me implorou para que eu
a ensinasse necromancia e todos os meus métodos, indo contra os supostos
ideais de sua mãe de convertê-la para o Culto da Senhora dos Mil Olhos, não
fiz muito esforço para aceitá-la. Ela seria de grande ajuda para minhas
pesquisas e Vik’sen havia me avisado que Nhiladee teria interesse em
aprender qualquer coisa que fosse contrária as ordens que ela achasse que
sua mãe teria me dado, e que eu deveria demonstrar resistência apenas para
que ela não desconfiasse que aquele era de fato o objetivo de sua mãe. Além
de tudo, Nhiladee era previsível e facilmente manipulável.
Ao contrário de Nhiladee, Kahlista desabrochou como uma corajosa jovem
meia-drow. Infelizmente para ela, sua coragem a levava tão longe quanto
qualquer escravo rebelde que eu tinha o prazer de doutrinar. Felizmente para
ela, essa não era sua única forma de conseguir o que queria. Graças a posição
que a Grande Mãe Worho’ul havia a colocado, Kahlista se misturou com
Nhiladee tão rapidamente quanto a tinta preta se mescla à água cristalina,
absorvendo seus pensamentos e desejos assim como a tinta obscurece a
pureza da água. E tudo o que ela precisou fazer foi oferecer a Nhiladee o que

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ela nunca teve: afeto e um pouco de reconhecimento. Logo, todas as minhas
tentativas de alertar a Herdeira Worho’ul sobre a influência e as capacidades
manipulativas de minha própria filha se tornaram ineficazes e com o passar
do tempo, fui obrigado a assisti-la rapidamente se tornar uma figura
significativa na vida de Nhiladee, mas não só isso.
Apesar de não viver comigo desde que Nhiladee a tomou como sua,
Kahlista ainda me procurava para conversas idênticas as que tínhamos
quando eu a visitava em seu cativeiro, mas dessa vez era ela que me visitava,
talvez por eu ser a única pessoa que ela podia conversar abertamente sobre a
evolução de sua desconhecida influência, sendo um dos únicos que foi capaz
de se resguardar contra ela, ou porque algum sentimentalismo filial havia se
enraizado em sua mente, já que fui eu que a criei. Entre todas as suas
qualidades, sua complacência, era sua maior fraqueza. Em nossas poucas
conversas Kahlista me contou como fui o responsável por seu êxito em aflorar
seus dons musicais, dizendo ter encontrado no som de sua flauta:

“Um jeito de acalmar os gritos desesperados de todas as vítimas


que você torturava, que se prenderam em minha mente mesmo
depois que saí de seu cativeiro, e dar espaço para canalizar minhas
vontades para coisas realmente importantes.”

Seus comentários sobre sua infância para mim sempre eram carregados de
ironia, mas não de mágoa. Como ela havia me perdoado facilmente por tudo
o que eu havia feito e me tratava como se eu fosse aquela pequena criança
presa em um cativeiro, me irritava profundamente, pois eu sabia que, daquela
forma, ela conseguiria me manipular. Como sua influência era inútil em mim,

A LUZ DA MENTE SOMBRIA

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ela usava seu maior defeito para me colocar em seu antigo lugar, agraciando-
me com sua companhia e presenteando-me da mesma forma que eu fazia
quando ela era uma criança, fazendo-me sentir culpado e perdido. Sua
manipulação inconsciente, infelizmente para mim, funcionava, já que ela
conseguia mexer com minha mente sem nem mesmo usar de sua influência,
engatilhando emoções que me deixavam parecer um velho fraco e
sentimental.
Pouco a pouco, a música de Kahlista passou a ser apreciada, a ponto de
fazer os inimigos de Nhiladee, os mesmos que a desprezavam entre os
Worho’ul, suportá-la. A música de Kahlista, apesar de ser melancólica e
reflexiva — o único tipo que parecia acalmar sua mente —, era sombria e
misteriosa o suficiente para atrair a curiosidade e atenção de qualquer drow
que a ouvisse. Seu instrumento era o mesmo que eu havia a presenteado
quando criança, uma longa flauta de Bambu Deireadhano, uma madeira que
devido à falta de luz solar da Umbraeterna se adaptou para sobreviver sem
ela, assim como todos os drows. Por conta de seu material, a flauta era
especialmente intrigante, quase hipnotizante, já que, apesar de ser enegrecida,
tinha uma luminescência própria — típica de plantas da Umbraeterna —, de
cores que variavam de roxo para rosa, dependendo de como aqueles que
ouviam sua música a viam. Sua música e flauta refletiam o magnetismo natural
da mestiça perfeitamente.
Kahlista era um brinquedo caro e valioso que Nhiladee fazia questão de
exibir para distrair todos de seus próprios defeitos. Até mesmo Vik’sen
começou a suportar sua filha às custas de sua cortesã mestiça e, com a atenção
da Matriarca voltada para Kahlista, ela logo aprenderia que deixar seu
brinquedo tão exposto e exibido para todos, não era a coisa mais inteligente

A LUZ DA MENTE SOMBRIA

25
a se fazer, sobretudo se tratando de uma escrava. Era visível que aos poucos,
aquela pequena criança mestiça que eu havia me esforçado tanto para criar,
estava tomando seu próprio espaço entre os Worho’ul, chegando a uma
posição que nem mesmo eu, agora mais velho e experiente, poderia imaginar
alcançar, conseguindo até mesmo algo que eu sempre sonhei para mim
mesmo, mas me foi negado a vida toda. O sobrenome Worho’ul, marcado
como uma runa em sua nuca.

A LUZ DA MENTE SOMBRIA

26
QUATRO
A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

“Pelos lagos que assim transporta


Suas águas solitárias, solitária e morta, —
Suas águas tristes, tristes e enregelam
Com a neve que nos lírios flamulam.
Pelas montanhas — próximas aos rios
Sussurrando fraco, sussurrando gritos, —
Pelas árvores cinzas, — pelo pântano afora
Onde o sapo e a salamandra coaxam nest’hora, —
Pelos abutres que rodeiam grasnando
Para onde os ghouls devoram, profanando.”

Dream-Land — Edgar Allan Poe (1844)

O
passar dos anos ao lado de Nhiladee foi como navegar por águas
traiçoeiras. Eu me via como a capitã de um barco frágil, tentando
navegar pelas tempestades constantes que se formavam em sua

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

27
mente. A cada dia, eu precisava calcular cuidadosamente minhas ações para
não naufragar em seus sentimentos instáveis e nas correntes perigosas de seus
impulsos. A covardia de Nhiladee era um fardo pesado, e eu me esforçava
para diminuir seu peso, explorando sua ousadia e alimentando sua pequena
— mas existente — coragem. Como drows, nosso tempo juntas já havia
superado a longevidade da maioria dos humanos nas nações beligerantes da
superfície, que eram capturadas pela nossa espécie para alimentarem nossos
crescentes números de escravos. No entanto, “juntas” é apenas uma
expressão para dizer que, ao longo dos sessenta e seis anos em que
compartilhamos nossas experiências, finalmente decidimos definir nosso
relacionamento para algo além do que Vik’sen havia imposto em nós duas
quando éramos menores. “Juntas” é a maneira de expressar que Nhiladee e
eu fizemos um pacto, onde da mesma forma que eu sempre fui inteiramente
dela, ela também se tornou minha, em corpo e alma, mesmo quando a
distância nos separava, pois nossos corações e mente permaneceriam unidos.
E a distância realmente havia se tornado um problema para nós duas.
Com meu pai como seu mestre, Nhiladee aprendeu a encarar as vidas e
as emoções alheias com a mesma indiferença de qualquer tarefa rotineira. Os
olhos medrosos e desconfiados de Nhiladee se transformavam durante seus
estudos, perdendo qualquer reflexo de compaixão ou preocupação pelas
vidas que ela segurava em suas magras e frágeis mãos. Ela observava o
sofrimento alheio com uma apatia palpável, e ao conduzir seus experimentos
necromânticos, revelava uma arrogância e violência guardada há muito tempo
no fundo de sua mente tempestuosa. Assim como Nolge, Nhiladee havia
aprendido a descontar suas frustrações em inocentes, tomando suas vidas e
usando seus corpos como fantoches capazes de cumprir o que sua mente

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

28
desejasse, e suas almas como focos arcanos em seus rituais necromânticos,
para fortalecê-la, sem se preocupar com qualquer consequência. A Herdeira
Worho’ul controlava seus escravos mortos assim como sua mãe controlava
os escravos vivos dela. Mesmo com meus esforços, Nhiladee e Vik’sen
ficavam cada vez mais parecidas.

O treinamento de Nhiladee com Nolge também durou tempo suficiente para


que Vik’sen se cansasse novamente da inutilidade de sua filha. Mesmo se
esforçando dia e noite para dominar sua necromancia — tentando alcançar,
de sua maneira teimosa, as expectativas impossíveis de sua mãe —, a Matriarca
Worho’ul achava que sua filha já havia ficado tempo demais pendurada em
suas valiosas tetas, e em um dia qualquer, decidiu que iria casá-la em troca de
uma aliança, com uma casa rival aos Worho’ul que ela desprezava
profundamente. Me lembro do sorriso que tive que enfiar na cara após ouvir
a notícia pela primeira vez, enquanto os Worho’ul jantavam no enorme salão
de festas do Baluarte da Contenda, na Fortaleza Worho’ul, com Nhiladee
paralisada, tentando construir algum argumento inútil que pudesse impedir
seu mais novo destino.
Nhiladee era burra por acreditar que sua mãe não sabia que ela se deitava
todas as noites com a escrava-mestiça-presente que ela mesma havia dado
para sua filha, a mesma que não saía de seu lado e ainda estava fazendo um
excelente trabalho em melhorar sua horrível reputação de indesejada entre
os Worho’ul. Enquanto ouvia sua filha balbuciar planos e desculpas que
pudessem convencê-la a não seguir com suas novas exigências, os profundos
olhos carmesins de Vik’sen me encaravam com uma calma desconcertante,
como se esperasse uma reação significativa de minha parte. A Cadela

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

29
Worho’ul foi tão longe a ponto de me pedir diretamente para “Tocar uma
música com minha maravilhosa flauta” em comemoração ao noivado
repentino de sua filha. Minha vontade era empalar a mulher com a longa e
grossa flauta de bamboo que eu carregava, e pendurá-la nos portões de sua
própria fortaleza, porém, tudo que fiz foi sorrir e assentir para ela antes de
obedecê-la e começar a tocar uma música animada e comemorativa, contrária
a tudo o que eu realmente sentia, incapaz de fazer qualquer coisa a respeito,
já que, assim como em Nolge, minha influência não funcionava em Vik’sen.
E diferente dele, eu não tinha nada que pudesse afetá-la. Além disso,
enquanto me esforçava para fazer a vida de sua filha e a minha melhor,
Vik’sen havia conseguido uma forma de me afetar e não apenas por ser a
Matriarca Worho’ul ou a mãe de Nhiladee.
Desde que Nhiladee se juntou contra a sua vontade ao sujeito que
Vik’sen arrumou para casá-la, fui afastada de dela como uma suposta punição
por ela não entregar o que a Matriarca Worho’ul mais queria, uma herdeira.
Nhiladee era literalmente incapaz de realizar essa exigência. Mesmo que
tentasse a vida inteira, seu corpo não produziria um útero saudável apenas
porque sua mãe queria. E eu tinha a impressão de que Vik’sen sabia disso.
Com seu casamento forçado e sem a minha presença para atenuar as reações
alheias devido a sua péssima personalidade, Nhiladee começou a ser tão
indesejada na casa rival quanto era entre os Worho’ul, e sua vida logo
começou a correr perigo. Sempre imaginei que era exatamente isso que
Vik’sen queria. Afinal, a matriarca não ganharia nada se ela mesma matasse
sua filha inútil. No entanto, se a casa rival fizesse o trabalho por ela,
encontraria na morte de sua filha um motivo para iniciar a guerra que ela

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

30
tanto desejava, com o objetivo de expandir ainda mais seus territórios no
Matriarcado.

Mesmo afastadas, durante todo esse tempo, cumpri minha parte de nosso
pacto e assim como quando éramos menores, sempre encontrei uma forma
de lamber as profundas feridas de Nhiladee, tanto as físicas — que haviam se
tornado recorrentes devido aos inúmeros atentados que ela sofria e
milagrosamente sobrevivia —, quanto as emocionais, mesmo que essas
estivessem evoluindo para cicatrizes permanentes. Nhiladee havia se tornado
progressivamente estoica, depressiva e paranoica. E eu não a culpava. Em seu
lugar, eu provavelmente já teria desistido de continuar tentando agradar a mãe
que nunca me achou digna de sua aprovação e teria dado as costas para a
mulher e sua ninhada a muito tempo, mesmo que isso significasse deixar de
ser sua filha ou morrer. As histórias que rodeavam os Worho’ul e Vik’sen,
afinal, não eram muito diferentes disso.
Bardos contam que Vik’sen havia feito de sua própria mãe um sacrifício
para sua Deusa, a Senhora dos Mil Olhos, transformando a mulher em uma
Drider morta-viva com um ritual drow milenar e supostamente esquecido.
Terma’ant Worho’ul, mãe de Vik’sen e antiga Matriarca Worho’ul, tomou o
lugar de protetora eterna da Fortaleza Worho’ul como uma punição cruel,
imposta por sua Deusa, por supostamente ter sido uma Matriarca medíocre,
logo após ser assassinada por sua própria filha. Nhiladee poderia muito bem
seguir os passos de sua mãe e repetir seus feitos, tomando tudo o que era dela
a força, porém, além de temer sua mãe e ser consideravelmente mais fraca
que ela, Nhiladee tinha um motivo único para continuar sendo apenas a filha
rebelde, difícil de lidar e inútil de Vik’sen.

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

31
Quando eu era menor, Nolge havia feito a concessão de não me marcar como
o rebanho de escravos Worho’ul com a Runa Escravocrata, por ser sua filha
e estar sob o controle do ambiente fechado de seu cativeiro. No entanto,
conforme eu crescia e minha influência se desabrochava — tanto a mental,
que havia nascido comigo, quanto a social, que adquiri entre os Worho’ul
graças a Nhiladee e minha música —, Vik’sen se viu obrigada a me controlar
de alguma forma. A Runa a muito tempo já não passava de uma cicatriz de
queimadura profunda em minha nuca, imperceptível e esquecível como uma
marca de nascença, pelo menos até o momento de a Matriarca Worho’ul
decidir não ser. Devido a Runa Escravocrata, Vik’sen detinha o poder de me
controlar, e se realmente quisesse, me matar, sem qualquer esforço.
Nhiladee, além de saber disso, escolheu conscientemente seguir qualquer
caminho que sua mãe a colocasse, mesmo os mais absurdos, para preservar
sua posse mais valiosa. Eu.
Assim como minha influência, conforme fiquei mais velha, minha
compreensão sobre quem eu era se desabrochou, e com o tempo entendi
que minha complacência, exaltada pelos Worho’ul como minha maior
qualidade, como escrava, era também meu maior defeito. Essa era, afinal, a
verdadeira herança de meu sangue mestiço, já que, além de meus fios de
cabelo da cor de um pôr-do-sol que eu apenas ouvi histórias sobre minha
capacidade de me colocar dentro da mente de outras pessoas e entendê-las,
é acompanhada com a maldição do impulso de querer ajudá-las ou agradá-
las. E mesmo passando a vida inteira procurando maneiras de controlar esse
impulso e tendo algum sucesso, Nhiladee ainda era a única pessoa capaz de
me fazer perder o controle desse impulso.

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

32
O fracasso acompanhava a Herdeira Worho’ul como se o Destino
houvesse punido sua mãe pessoalmente. Vik’sen é considerada uma das
drows mais bem sucedidas do Matriarcado, sendo uma das Nove Matriarcas
— as Matriarcas que controlam as principais famílias de Deireadh e que
possuem os maiores territórios do Matriarcado —, e mesmo assim, foi ela que
deu vida a drow mais miserável do Matriarcado. Apelidada por seus próprios
familiares de “Nhil”, uma abreviação de seu nome, que é também um jogo
de palavras, já que sua pronúncia também significava: Nulo, Zero ou Nada,
em algum idioma da superfície, Nhiladee era a drow mais infeliz que conheci
no matriarcado, porque apesar de ser a que mais necessitava de ajuda, era
também a que jamais verbalizaria seus constantes pedidos de socorro. Sendo
eu, parte de um dos motivos dela sequer ter que gritá-los.
Incapaz de ultrapassar as limitações de seu próprio ego e se mostrar
vulnerável, mesmo com todas as suas fraquezas aparentes, talvez Nhiladee
fosse sim um fracasso para sua raça e família, no entanto, minha convivência
com ela me permitiu perceber que apesar de seus defeitos, ela é a drow mais
obstinada do Matriarcado, capaz de não se abalar com seus inúmeros
fracassos e insistir em suas tentativas de superar qualquer dificuldade que sua
mãe, ou ela mesma, colocassem em seu caminho. Conseguindo se manter
focada para conquistar o que queria, mesmo com o desprezo de todos os que
a viram crescer. E para a surpresa desses – e talvez até dela mesma –, tudo o
que Nhiladee queria era me proteger. Eu era sua posse mais valiosa, afinal.
Mas não por ser uma escrava e ela ser literalmente minha dona, mas porque
Nhiladee percebeu que não precisava gritar para ninguém por socorro,
porque a única pessoa que se importava e que realmente podia a entender,

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

33
era também a única capaz de ouvir todos os gritos e pensamentos, mesmo
que esses jamais saíssem de sua mente.
Sendo assim, apesar de todo meu controle e da piora abrupta e
totalmente justificável dos defeitos de Nhiladee, eu me esforçava para curá-la
de toda a amargura e tristeza de seu coração e mente. Porque sabia que ela
havia se deixado ser controlada por minha causa, e ela o fazia sem demostrar
sua dor para ninguém ou exigir nada de mim. Seu único preço sendo a minha
presença eventual ao seu lado, para que pudesse me usar como um lago que
ela poderia preencher com seus desabafos, em um show privado de
sofrimento e dor em sua própria cabeça.
Porém, escolher ficar ao lado uma da outra logo se mostrou como a
decisão mais imbecil que tomamos na vida. Nós duas sabíamos disso, mas já
era tarde demais para fazermos qualquer coisa a respeito.

A VERDADE POR TRÁS DE SUA ESCURIDÃO

34
CINCO
MISERÁVEL

“Vales abissais e dilúvios babilônicos


E abismos, e cavernas, e bosques titânicos,
Cujas formas homem algum terá como arte!
Pelas lágrimas que gotejam por toda parte;
Onde as montanhas afundam eternamente
Para os mares bravios, sem continente;
Mares de voragens uivantes,
que se ascende até os céus flamejantes!
Lagos que ao infinito transporta
suas águas solitárias — solitária e morta, —
suas águas estagnadas — estagnada e enregelam
Com a neve que nos lírios flamulam.”

Dream-Land — Edgar Allan Poe (1844)

C
omo amantes, Kahlista e eu nos encontrávamos em bordéis e
tavernas das partes mais pobres de Lugri’Hion, o território da minha
família, localizado no centro-sul do Matriarcado de Deireadh, para
que ninguém pudesse me reconhecer. Desde que fui forçada a me juntar à

MISERÁVEL

35
casa que minha mãe escolheu se aliar temporariamente, sou obrigada a
atravessar o Matriarcado só para me encontrar com Kahlista, arriscando ser
descoberta e acabar sentenciando nós duas a um destino horrível. Não por
meu adultério, já que em nossa cultura, mulheres drows, como eu, não são
restritas ou limitadas a apenas um parceiro, mas sim porque graças a minha
mãe, Vik’sen Worho’ul, eu estava sendo feita de prisioneira em um
relacionamento que nunca quis, para especificamente satisfazer seus desejos
mesquinhos. E se ela soubesse que estou me desviando, mais uma vez, de
seus objetivos, Kahlista seria uma mulher morta.

Já fazia quase cinco anos desde que fui forçada a acatar as ordens de minha
Matrona pelo bem-estar de Kahlista, e os anos se passaram lentamente
enquanto continuei servindo aos propósitos de minha Matrona fielmente,
fazendo meu papel como esposa, mesmo incapaz de concluir minha principal
tarefa — dar a Vik’sen uma herdeira —, porque meu corpo e o Plano Negativo,
de onde fui ensinada a canalizar toda a energia negativa que uso em minha
necromancia, tem as mesmas chances de gerar e desenvolver uma vida.
Embora fossem arriscados, os encontros com Kahlista se tornaram a
única âncora capaz de deixar minha sanidade em declínio, estável, dentro da
tempestade de emoções sombrias e tortuosas que eu havia me tornado. Saber
que Kahlista estava bem, sentir seu perfume, ouvir sua voz, poder tocá-la e
me aproveitar de nossos momentos sozinhas para tomar seu tempo e
paciência — que durante os anos juntas se tornaram indispensáveis —, para
simplesmente reclamar de nossa realidade, era o único impulso que me
mantinha firme diante dos planos ridículos de minha mãe.

MISERÁVEL

36
Lugri’Hion é uma região conhecida em Deireadh por suas rotas
comerciais seguras e livres de monstruosidades das profundezas da
Umbraeterna. Espalhadas por toda Teia — o imenso sistema de cavernas
naturais parcialmente escavadas pelas monstruosidades que habitavam a
região antes da chegada de Lythrana e seus elfos refugiados —, essas rotas
foram exploradas e limpas de todos os perigos para a passagem dos
refugiados com a ajuda de minha família, em sua descida para a
Umbraeterna, enquanto auxiliavam Lythrana Faen'Deireadh, a Primeira
Matriarca e Alta Sacerdotisa de Deireadh. Anos depois, a Casa Worho’ul
usaria desses túneis explorados, caracterizados por imensos salões rochosos,
estalactites e estalagmites com formações geológicas e biológicas exóticas,
para estabelecer não só suas rotas comerciais — por onde distribuíam seus
valiosos escravos para o restante do Matriarcado e alguns locais da superfície
em segurança —, como também seu território central, de onde sua Primeira
Matriarca, Mallev'lence Worho'ul, minha descendente, os lideraria.

Naquela noite, Kahlista havia escolhido me encontrar em um bordel em uma


das várias cidades de Lugri’Hion, era sempre ela que escolhia onde
deveríamos nos encontrar e como. Bordeis já haviam se tornado um costume,
mas aquela noite aparentava ser especial. As cafetinas haviam organizado uma
celebração para comemorar as bênçãos da Senhora dos Mil Olhos, já que
algumas de suas prostitutas e gigolôs haviam conseguido enganar, roubar e
matar a matriarca e as sacerdotisas de uma pequena família nobre, tomando
assim seu lugar de importância. A impiedade da Deusa drow corria também
no sangue de todos os que a veneravam. As donas do bordel haviam
construído uma enorme pira para pendurar os corpos já sem vida das

MISERÁVEL

37
sacerdotisas que tinham derrotado, não só como uma forma de humilhação,
mas também como uma precaução para que ninguém jamais conseguisse
trazê-las de volta a vida. Era assim que as mulheres de minha raça eram
tratadas quando não eram capazes de sustentar sua posição dentro do
Matriarcado. Já os homens, eram normalmente colocados em criptas para
que necromantes, como eu, pudessem usar de seus corpos vazios de qualquer
consciência ou vida, nos momentos que achassem mais oportunos, os
obrigando a servidão até mesmo após a morte. A pira e seus vários corpos
pendurados era uma visão bonita, apesar de macabra. Era fascinante como
meu lar — voltado a adorar uma única entidade de caos e poder —, assim
como as chamas daquela enorme pira, conseguiam transformar a crueldade
em combustível para sobreviver e crescer.
A fogueira arcana iluminava grande parte do pátio externo, onde estava
centralizada. O cheiro de carne e cabelo queimados preenchia todo o seu
entorno, e seu calor já aquecia minhas bochechas, nariz e orelhas. Com o
cansaço dos movimentos repetidos e combinados da dança alcançando meu
limite e começando a me esgotar, meus movimentos tornavam-se mais
desleixados e menos bonitos. Jamais admitiria, mas estava fraca. Minhas mãos
suavam com o nervosismo de ter pessoas me observando, e meus dedos, hora
ou outra, escorregavam das mãos que tentavam mantê-los cada vez mais
firmes no ar, a cada troca de passos, enquanto acompanhávamos a música
dos bardos.
Kahlista e eu dançávamos com a mão esquerda nas costas enquanto
segurávamos a direita uma da outra no ar, girando e trocando de mão
conforme o ritmo da música mudava, nos afastando e nos aproximando cada
vez que terminávamos uma sequência de passos, antes de repetir o ciclo da

MISERÁVEL

38
dança. A meia-drow de longos cabelos rubros ainda estampava o sorriso que
surgiu em seu rosto assim que finalmente cedi à sua insistência e aceitei seu
convite para dançar, há quase quarenta minutos atrás. Sua pele acinzentada é
iluminada pela luz azulada e roxa da fogueira, que agora estava muito maior
do que quando começamos a dançar. Era como se sua chama estivesse no
ápice, queimando mais fervorosamente na alta torre de madeira negra
trançada à nossa frente, juntamente com os corpos, agora quase
carbonizados, que foram pendurados em seu topo.
Naquele momento, eu não sabia o que ardia mais em chamas: meu rosto,
aquecido pelo calor da fogueira e da dança; ou meu coração, ao ver aquele
sorriso que aprendi a apreciar, orgulhoso por finalmente conseguir o que
queria.
“Nunca imaginei que conseguiria me acompanhar em uma dança. É
quase como se eu estivesse te conhecendo novamente.” Kahlista diz um tanto
ofegante, um tanto enciumada, após perceber que eu estava a encarando
fixamente há cinco minutos, em silêncio.
“Eu não me humilho dessa forma para mais ninguém. Estou aqui porque
você que pediu.”
“Eu sei! Não pense que não estou feliz, só nunca imaginei que você
houvesse tirado tempo dos seus preciosos estudos ou de suas... tarefas...”
percebo ela ponderar antes de falar “… para aprender a dançar como uma
verdadeira dama.”
“Dançar poderia ser meu talento natural, não acha?” digo sem jeito, mas
com um leve sorriso no rosto, erguendo minha sobrancelha direita enquanto
encaro seus brilhantes olhos vermelhos, que refletiam as chamas dançantes
da fogueira. Minha voz, assim como a dela, já estava com dificuldade de soar

MISERÁVEL

39
clara pelo cansaço da dança, fazendo meu tom de voz sair um pouco mais
aveludado do que eu tinha intenção. Já fazia tempo desde que eu havia me
exercitado de alguma forma e aparentemente, ela também.
“Você? Com um talento natural? Chamem a Grande Mãe Worho’ul!
Ela vai ficar aliviada ao descobrir que você finalmente tem, sim, algo que ela
possa explorar.” seu deboche é inocente, sem nem perceber o quanto aquilo
me ofendia também e eu não consigo segurar o riso.
A coragem dela ao falar de mim e de minha família, apesar de sua
posição de escrava, me divertia. Não eram todos que tinham essa coragem.
“Fale mais alto, tenho certeza de que seu pai e meus irmãos adorariam
ouvir sua bravata em relação a minha mãe.” eu a provoco, apenas para
desfrutar mais dessa coragem que eu tanto invejava.
“Pois podem vir todos! Nolge come em minha mão e desde que sejam
apenas os gêmeos, eu os encaro! Do mesmo jeito que encaro voc–”
Minha provocação surte efeito demais e por instinto ou medo, coloco
minhas mãos em sua boca tão rápido que ela não consegue se desviar. “Acho
que já chega.” digo preocupada, a interrompo abruptamente antes que fosse
tarde.
Por um instante me deixei levar pelo calor da fogueira, a dança, o toque
de nossas mãos juntas e a música descontraída que tocava em meio aos gritos
eufóricos de todos os presentes, mas logo volto a realidade.

É verdade que me divirto com a coragem dela ao falar da minha família, mas
é diferente quando estávamos em público. Não gosto nem de imaginar a
possibilidade de Nolge ou meus irmãos, Dolch e Blat Worho’ul, ouvirem
uma escrava se dirigir a eles daquela forma. Eu não poderia defendê-la e só

MISERÁVEL

40
imaginar o que aconteceria com Kahlista nesse caso, me deixava com uma
sensação agônica quase insuportável no peito.
Kahlista sempre teve muita facilidade em saber o que se passa em minha
mente. Para ela, eu era como um livro de histórias infantis, escritos com
poemas cantados para que todas as crianças tomassem interesse pela leitura.
Eu não preciso nem mesmo verbalizar tudo o que sinto para ela quando
estamos juntas, pois de uma forma inexplicável ela sabe o que se passa em
minha cabeça. Minha expressão muda e logo volto a me fechar novamente,
volto a ser eu mesma, do jeito que estava quando cheguei no bordel.
Apavorada, com as mãos tremulas e olhar sem foco.
Antes que eu continuasse a falar qualquer coisa, sinto a mão de Kahlista
me agarrar firme na cintura, me puxando para mais perto com força, fazendo
a dança parar e eu me afundar em seu peito num abraço apertado e atencioso.

“Você não carrega o peso do mundo nas costas sozinha.” seu aviso era
para me relaxar. “Apesar de estarmos em público, você garantiu que esse era
um lugar seguro para nós duas, lembra? Eu confio que você fez um bom
trabalho.”
Kahlista passa a mão em minha cabeça delicadamente, deslizando seu
toque entre minha nuca e meu pescoço, me parabenizando por algo que
provavelmente não merecia, sua gentileza normalmente me acalmava, mas
dessa vez não foi o suficiente. Mesmo afundada em seu abraço, ouço vozes
dizendo meu nome em meio as prostitutas e gigolôs e tenho a impressão de
estar sendo observada por algo escondido nas sombras que a luz da enorme
pira não iluminava.

MISERÁVEL

41
“Você sabe que dizer o nome dela audivelmente e em público é idiotice.
Sabe que todos a conhecem, mesmo aqui nesse fim de mundo nojento.”
minha voz estava sendo abafada pelo seu aperto, mas por algum motivo sinto
a necessidade de enfatizar o quão nojento era o lugar que estávamos. “Sabe
que se alguém me reconhecer, a notícia sobre a audácia da escrava que, além
de se deitar com sua filha, rebaixa seus preciosos gêmeos, não demoraria para
chegar em seus ouvidos.”
Digo sem realmente pensar, me arrependendo logo em seguida ao ouvir
o coração de Kahlista acelerar e perceber seu lábio se abrir e fechar,
hesitando dizer alguma coisa.
“Ela não sabe que você está aqui, outro trabalho bem-feito da nossa
parte!” o tom dela ainda é doce, insistindo em seu agrado mesmo contra sua
vontade. Sua complacência sempre foi um problema.
“Ela ainda não sabe… E se tiver alguém nos observando? Algum aliado
dela pode estar próximo, pronto para me entregar, ou ela poderia
simplesmente pagar e torturar alguém para falar sobre minhas viagens
recorrentes para nos encontrarmos… Apesar de nossas precauções, ainda
estamos em evidência. Eu só quero que... tenha cuidado, tudo bem?” eu
suplico, deixando meus medos tomarem conta de minhas palavras mais uma
vez. A esse ponto, eu já perdi as contas de quantas vezes isso já aconteceu.
Em minha cabeça eu havia sido razoável, pedir para tomarmos cuidado não
era grande coisa.

MISERÁVEL

42
No entanto, consigo ver a mágoa no rosto de Kahlista antes dela me soltar
imediatamente após eu terminar de falar. Ela vira as costas para mim e me
deixa sozinha, com meus pensamentos tempestuosos, mesmo sabendo o
quanto eu odiava ser deixada com eles. No entanto, ao invés de ficar brava
por ser abandonada por algo tão ridículo, eu tento entender sua frustração.
Eu cresci com medo das consequências das minhas escolhas e das escolhas
de Vik’sen, e isso já estava enraizado tão profundamente em minha mente,
que Kahlista me pedir para ignorar, era o mesmo que Vik’sen me dar
qualquer uma de suas ordens impossíveis. Meu medo não era um sentimento
que eu poderia apenas me acostumar ou ignorar, já que, pelo menos até
aquele momento, eu ainda não havia me acostumado com ele. Kahlista nunca
teve medo, se tivesse, o controlava muito bem. E essa era a característica que
eu mais invejava dela.
Apesar de ser uma escrava mestiça, Kahlista é ambiciosa, assim como
qualquer outro drow puro-sangue da Umbraeterna, e quer conquistar seu
lugar na sociedade em que cresceu. Infelizmente, ela sabia que apesar da
minha posição como Herdeira Worho’ul, estou longe de ser a chave que
resolverá seus problemas ou dará o reconhecimento que ela acha que
merece. Mesmo que eu tente muito. Ainda assim, ela escolheu ficar ao meu
lado e não passa um dia em que eu não pense que essa foi a decisão mais
imbecil que ela tomou na vida, já que, devido as minhas tentativas de atender
o seu desejo impossível, de me usar para se tornar alguém relevante entre os
Worho’ul, ela agora carregava a Runa com o nome de minha família em sua
nuca. A mesma runa que Nolge, seu pai e meu mestre, tinha prazer de marcar
em nossos rebanhos cruelmente disciplinados de escravos. A mesma runa

MISERÁVEL

43
que Vik’sen tinha prazer em ativar para torturar e matar qualquer escravo que
não cumprisse com suas exigências.
Enquanto fico parada, sozinha, observo Kahlista caminhar para longe
com um aperto no peito. O ardor das chamas que antes o preenchia, havia
sumido no momento que ela me soltou de seu abraço, ficando frio como se
nunca tivesse se aquecido antes. Tudo o que restava era a sensação de culpa
e das chamas queimando minhas costas e o desejo de ser um daqueles corpos
pendurados que serviam de combustível para mantê-la acesa. Mas por causa
das minhas partes contraditórias, eu não consigo fazer nada a respeito.
Orgulhosa demais para morrer, teimosa demais para me entregar aos meus
medos — por achar que minha existência deveria ter um proposito além de
servir Vik’sen — e egoísta demais para abandonar Kahlista, mesmo sabendo
que ela ficaria melhor sem mim. E eu me odeio por isso.
Fico como um esqueleto sem ordens em frente a fogueira, observando-
a de longe enquanto outros casais dançam ao redor da fogueira como em um
ritual. Eles passam por mim animados e sorridentes enquanto minha cabeça
se imunda de pensamentos desagradáveis. Não sei que tipo de expressão eu
mostrava no rosto, mas quando Kahlista encontra um lugar para se sentar e
olhar para a fogueira de longe, ao voltar sua atenção para mim, parada em
meio a gigolôs se vendendo e levando seus clientes para os becos não
iluminados pela fogueira, sua expressão de frustração e mágoa imediatamente
se transformam em pena. O motivo dela ter feito a decisão mais estúpida da
vida dela. Mesmo sabendo disso, eu já havia me conformado de que se sua
pena era única coisa que a prendia a mim, eu me agarraria em sua
misericórdia, aceitaria sua complacência e me aproveitaria de sua gentileza e
pena sem remorso.

MISERÁVEL

44
Mesmo após ter me largado, não consigo esconder a excitação que é ver
Kahlista acenar em minha direção, me chamando para me juntar a ela
novamente, e eu corro para ela logo após seu aceno, como um animal
treinado que estava apenas esperando o comando de seu mestre.
“Não foi minha intenção te magoar.” digo meio arrependida, me
sentando ao lado dela novamente.
“E mesmo assim você insistiu até conseguir, Nhiladee.” consigo ouvir a
frustração em sua voz ainda. “Não precisa se desculpar, você sabe que não
vai mudar nada e eu sei que você não está tão arrependida assim.” fico sem
argumentos para me defender. Ela estava certa.
Nós duas ficamos em silêncio, fitando a fogueira à distância enquanto os
corpos pendurados se desfaziam em cinzas. Consigo imaginar o que passa na
cabeça dela, mas não como ela sabe o que passa na minha. Nunca tive que
confessar o meu amor com palavras, mas se os olhos falam, o último dos
idiotas poderia confirmar que eu estava completamente apaixonada.
“Eu odeio que me lembre que sou apenas uma escrava.” Kahlista quebra
o silêncio, mas eu continuo quieta, fixando meus olhos no chão e dando
espaço para ela desabafar. Era o mínimo que eu podia fazer depois de magoá-
la.
“Existem várias coisas que eu odeio. Odeio ter nascido uma escrava.
Odeio não poder ter você ao meu lado. Odeio não poder falar sequer um
nome. Mas acima de tudo, odeio que você me lembre que sou apenas uma
escrava.” consigo perceber o asco que ela tem de si mesma por sequer
reconhecer aquele fato. “Tenho a impressão de que às vezes você faz questão
de me lembrar disso, para me colocar no meu lugar. Quando você diz que
sou apenas a escrava que se deita com a Herdeira Worho’ul, você soa

MISERÁVEL

45
exatamente como sua mãe e tudo que sinto é repulsa ao pensar em como
vocês conseguem ser parecidas. Basta apenas tomar distância suficiente para
notar isso.”
Sinto repulsa de mim mesma após ouvir aquela comparação. Ela estava
sendo injusta, mas eu também fui, então assim como ela fez antes, apenas
engulo minhas palavras. “Desculpa…” eu consigo murmurar, mas logo sou
interrompida.
“Eu não quero ouvir suas desculpas.” ela aponta para minha cara, furiosa,
e então continua. “Eu sei que não é sua intenção. Sei também que você não
entende. E é por isso que estou te falando como me sinto, para você
entender.”
Kahlista já havia se virado para mim e mesmo que eu estivesse olhando
para o chão, pude sentir seu olhar atravessando meu rosto, esperando alguma
reação, mas mantenho minha cabeça abaixada, sem conseguir encará-la,
envergonhada da minha própria fraqueza.
“Hoje fazem sessenta e seis anos que nos conhecemos, Nhiladee.” seu
tom é firme e assertivo. Eu já sabia o que ela ia dizer, e talvez eu merecesse
ouvir.
“Demoramos meses para conseguir nos encontrar novamente desde que
sua mãe fez questão de me afastar de você. Seu...” ela pausa, tomando força
para empurrar a palavra de sua boca. E ela sai com desgosto. “... marido... só
sai de cima de você para comer e cagar. Te monopolizando há quatro anos
por estar tão desesperado por um herdeiro quanto Vik’sen. Ele tomou meu
lugar ao seu lado. E tudo que posso fazer é engolir o fato de dividi-la com ele
como uma das prostitutas desse bordel desprezível, e sim, nojento!” ela
enfatiza, usando minhas próprias palavras. “Você não pode nem contar que

MISERÁVEL

46
jamais dará o que sua mãe quer pelo risco de ser morta... Eu sei de seu
esforço, Nhiladee. Mas quando acho que vamos poder esquecer de nossos
problemas, ao menos por um dia, você sempre abre sua boca enorme para
falar merda. Reconheça os meus esforços, Nhiladee.” Ela súplica. “Eu
entendo suas preocupações, seus medos e suas paranoias, mas da próxima
vez, se não conseguir confiar no que você faz ou no que eu faço, por favor,
cale a boca. Você não carrega o peso de nosso mundo sozinha.” seu tom de
voz diminui e a ouço respirar fundo.
Às vezes, penso em livrar Kahlista das correntes que a prendiam e foram
colocadas em minhas mãos desde pequena, como alguém que abandona um
brinquedo querido porque já é velho demais para brincar com ele. Porém,
eu não podia fazer isso, já era tarde demais. Fazer qualquer coisa parecida
agora só serviria para evidenciar que meu amor por ela não ultrapassou meu
senso de realidade. Chutá-la de minha presença, como eu faço com qualquer
escravo inconveniente, poderia ser a maior gentileza que eu poderia conceder
a ela, embora também fosse a maior crueldade. Mesmo que geralmente eu
não ligasse para o quão cruel eu conseguia ser, quando se tratava dela, essa
não era uma opção, pois além de eu precisar de Kahlista, ela precisava de
mim.

Enquanto eu a ouvia, me permito apenas concordar com a cabeça, já que


além dela ter razão sobre meus medos sempre atrapalharem nossos
encontros, percebo que durante seu sermão, ela não fala nenhuma vez sobre
suas reais frustrações como escrava ou a não realização de suas ambições
dentro do Matriarcado. Percebo que em seu desabafo, o que ela coloca para
fora é relacionado a mim e a nossa relação. Ela me queria por perto, tanto

MISERÁVEL

47
quanto eu a queria perto de mim, porque ela é mais eu do que eu mesma.
Seja lá do que nossas almas sejam feitas, a dela e a minha são a mesma coisa.
Então, como eu havia prometido a mim mesma, me aproveito da gentileza
de Kahlista mais uma vez, sem remorso, e me aproximo dela para recostar
minha cabeça em seu ombro, não dizendo nada porque sabia que ela já estava
em minha mente, vendo tudo. Apenas me seguro para não repetir nenhuma
desculpa e finalmente tomo força para encará-la, de baixo para cima. Kahlista
era mais alta que eu, sempre foi, e eu adorava quando ela me envolvia em
seus braços compridos.
“Se eu ouvir você pedir desculpas de novo, eu juro pela Mãe das Trevas
que te jogo naquela fogueira.” ela diz em um tom mais sério, mas jocoso,
passando seu braço por trás das minhas costas, satisfazendo meu desejo sem
que eu verbalizasse.
“Sei que não estou sozinha. Só não acho justo que eu dependa tanto de
você. Até mesmo para confiar em mim mesma…” digo decepcionada, não
com ela, mas sim comigo. “Só espero que saiba o quão importante você é
para mim…”
“Eu sei. Não há um dia que passe comigo ainda respirando sem que eu
me lembre disso. Você não vive sem mim e eu sinto o mesmo.” Kahlista diz
com uma doçura que apenas ela tinha em sua voz, recostando sua cabeça na
minha.
“Agora me diga…” Kahlista encarava a enorme chama a nossa frente.
Nossos olhares estavam no mesmo lugar, assim como nossos sentimentos.
“Como aprendeu a dançar?”
...

MISERÁVEL

48
O Romper da Seda
SEIS
DA ÚLTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

“Por um caminho solitário e obscuro,


Assombrado por um anjo impuro,
Onde um Eidolon chamado noite eterna,
Em seu trono escuro, incólume, governa.
Eu caminhei para o lar, mas foi por um instante
Dessa indomável Thule, um mundo distante.”

Dream-land — Edgar Allan Poe (1844)

D
esde que Nhiladee se juntou a outra casa contra sua vontade, apesar
de reconhecer seus motivos e estar ciente de que eu era uma das
razões para ela ter aceitado as demandas de Vik’sen, não pude
evitar me sentir deixada de lado, afinal, Nhiladee e eu havíamos crescido
juntas. Eu estava acostumada com a presença dela ao meu lado, com seus
murmúrios ininteligíveis enquanto estudava, suas extensas reclamações
enquanto eu cuidava das feridas de seu treinamento, com o toque curioso e

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

50
hesitante, mas terno e ansioso que ela guardava apenas para mim e até seu
veneno odioso frequentemente destilado com suas palavras, naqueles que
nem ao menos mereciam. Mesmo que Nhiladee achasse que eu queria algo
grandioso, para além da minha escravidão, há muito tempo eu já havia me
acomodado com o que eu tinha ao lado dela; eu só era incapaz de perceber
e admitir esse fato para mim mesma por achar que seria o mesmo que admitir
minha derrota.
Porém, graças à Mãe das Trevas e à Vik’sen, nossa separação forçada
serviu para esfregar a realidade em meus olhos tingidos de rosa. Substituindo
minha visão colorida devido a presença de Nhiladee e meu amor por ela,
com o vermelho enegrecido da realidade drow.
Lembro de passar os primeiros meses sem Nhiladee planejando e
estudando formas que poderiam trazê-la de volta para mim, para nunca mais
nos separarmos. No entanto, lembro também que não demorei para me
frustrar com cada resultado dos planos que minha mente desolada criava. Eu
achava que, no final das contas, Nhiladee e eu não passávamos de duas
moscas desesperadas, presas em finas e grudentas teias tecidas por Vik’sen,
incapazes de mudar nosso destino ou fazer algo por nós mesmas. Lembro
que nos primeiros anos de nossa separação, culpei Nhiladee por não
enfrentar sua mãe, por não ser a pessoa teimosa e egoísta que eu sabia que
ela era, e mais ainda por ela ter se resignado à própria desgraça. O fato de
Nhiladee não ter se erguido e enfrentado sua mãe por si mesma, e por mim,
me irritava profundamente. Sua apatia e racionalidade diante dos abusos de
Vik’sen já tinham esgotado minha paciência, o suficiente para eu começar a
tratá-la da mesma forma que seus familiares, mas pior. Eu sabia de todos os
pontos fracos de Nhiladee e nas primeiras vezes que nos encontramos, depois

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

51
de sua cerimônia, não hesitava em atacá-los. Ela, por outro lado, apenas
absorvia o que eu dizia em silêncio, o que me irritava ainda mais, mas devido
a isso, com o passar do tempo, entendi que nossas brigas não levariam a lugar
algum e tratar Nhiladee com desprezo não a faria voltar para mim. Felizmente
essa não foi a única coisa que aprendi com os Worho’ul.
Entre todos os sermões e ensinamentos de Vik’sen para Nhiladee, um
sempre me deixou mais curiosa, a Grande Mãe Worho’ul sempre dizia para
sua filha que:

“Não há opção, você deve jogar o jogo da alta sociedade para


poder sobreviver. O outro caminho é a rendição ao poder de
outros, e a rendição, e a morte, no Matriarcado, andam lado a
lado.”

Nhiladee nunca foi capaz de absorver esse ensinamento, escolhendo se


debater nas teias grudentas tecidas por sua mãe sem muito esforço,
aguardando seu destino supostamente inevitável. Mas eu já estava farta de
meu conformismo e de ser apenas mais uma mosca.
Ao longo dos anos longe de Nhiladee, compreendi que eu também
deveria aceitar as regras do jogo, escolher minhas batalhas e entender que,
diferente do que Nhiladee fazia, havia o momento e o jeito certo de me
debater para finalmente me libertar. Foi uma lição difícil, mas necessária para
a minha sobrevivência sem a Herdeira Worho’ul ao meu lado. Minha mágoa
por Nhiladee deu lugar a uma compreensão mais profunda de suas
limitações. Percebi que ela não era uma prisioneira apenas de Vik’sen, mas
assim como eu — que, diferente dela, é uma escrava mestiça sem direito

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

52
algum entre a nobreza drow —, vivia sob o jugo de uma sociedade implacável.
Ambas éramos criaturas enredadas na enorme teia de poder e tradição do
Matriarcado de Deireadh, tecida pela própria Senhora dos Mil Olhos.
Nhiladee havia chegado a essa conclusão antes que eu, e já tinha aceitado isso
há muito tempo. Então, enquanto ela fingia que cumpria as exigências
impossíveis de sua mãe do outro lado do Matriarcado, decidi que, ao invés
de culpá-la ou cansar minha mente com planos falíveis, me aproveitaria da
pequena influência de ser sua cortesã em Lugri’Hion e sua ausência, para
começar a construir minha própria forma de sobrevivência, jogando o jogo
que Vik’sen já dominava há séculos, para proteger tanto Nhiladee quanto a
mim mesma.
A submissão não era uma opção, mas eu também não podia ignorar a
realidade de nosso lar. Lembro que, quando era mais jovem, tive a ideia de
usar o amor de Nhiladee para meus próprios objetivos. No entanto, me
recordo que não demorei para chegar à conclusão de que, naquela época, ela
não era a chave para minhas conquistas. Porém, à medida que convivíamos,
enquanto eu lambia suas feridas, tentava agradá-la ou ajudava a melhorar sua
relação com sua própria família, eu inconscientemente a moldei para ser
exatamente o que eu precisava. Agora, finalmente, eu poderia usar a chave
que forjei durante todos esses anos para abrir todas as portas que eu desejasse.
Ter construído uma base sólida de aliados para Nhiladee e ter sido
reconhecida como algo valioso para a Herdeira Worho’ul me ajudaram a
conquistar uma posição de destaque rapidamente, mesmo que o preço tenha
sido minha única chance de um dia ser livre, não só como uma escrava, mas
do Matriarcado em si. Após anos sob a proteção de Nolge, eu finalmente fui
marcada como uma propriedade dos Worho’ul, mas pelo menos agora, com

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

53
a Runa Escravocrata em minha nuca e a garantia de que eu estava sob o
controle de Vik’sen, me esgueirar entre os Worho’ul e me aproveitar de seus
membros mais tolos se tornou um desafio manejável. Me colocar à venda
para a nobreza de Lugri’Hion como a preciosa posse da Herdeira Worho’ul
foi a forma mais rápida que encontrei de obter as peças essenciais do jogo de
tabuleiro do Matriarcado: contatos, informações, uma rede de apoio e o mais
importante, a discrição. Foi entre os inimigos que queriam vingar-se de
alguma forma da filha rebelde, difícil de lidar e inútil da Grande Mãe
Worho’ul, e dos aliados que só começaram a suportá-la porque tinham
alguma curiosidade sobre a habilidade guardada entre as pernas da mestiça
que a havia a domado, que conheci meus principais aliados.

Na escuridão da sociedade da Senhora dos Mil Olhos, existe a cultura e a


regra não dita do "O que não testemunhamos não aconteceu". A prostituição
é rodeada de segredos, e por meio de nossa regra não dita, ela prospera
silenciosamente dentro dos enclaves do Matriarcado. Embora permaneça
uma prática clandestina.
Neste mesmo mundo encoberto, há também o terror da rejeição social,
e esse é tão intenso quanto as sombras da Umbraeterna, impedindo que
mulheres drow respeitáveis se entreguem publicamente a atos considerados
"profanos", por medo de serem banidas, perderem suas posições ou serem
punidas por sua própria Deusa. A Senhora dos Mil Olhos é implacável,
afinal. Ao mesmo tempo, esse terror serve como solo fértil, recém adubado
com a carne apodrecida das que morreram por se entregar a seus desejos
“profanos”, para proliferar ideias e desejos nefastos, assim como os fungos
que crescem na escuridão da Umbraeterna. Algumas mulheres drow, presas

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

54
por nossas tradições, escondem desejos proibidos que não podem ser
expressos abertamente – como fetiches por raças específicas –, e encontram
nos lugares que oferecem este tipo de serviço, um lugar seguro e confortável
para satisfazê-los. Por esse motivo, em sua maioria, a prostituição em
Deireadh é composta ou de homens, ou de não-drows, e sexo – pago ou não
– com não-drows é mantido em segredo.
Apesar de minha relação intima com a Nhiladee ser diferente, aos olhos
da nobreza drow, ela era idêntica à prostituição. Para eles eu era a puta da
Herdeira Worho’ul, mas nossa relação nunca foi confrontada ou
ridicularizada, pois, qualquer alusão ou rumor de que Nhiladee se deitava
com uma escrava mestiça e profanava seu corpo drow puro, seria um
desrespeito e um grave insulto para a própria Grande Mãe Worho’ul, já que
uma mulher drow respeitável, com o sangue de Vik’sen, jamais profanaria o
seu corpo com o toque de uma mestiça, certo? A Matriarca Worho’ul com
toda certeza não pouparia esforços para esfolar qualquer desgraçado que
ousasse dizer o contrário ou espalhasse esses rumores de seu próprio sangue.
Então, mesmo que minha relação com Nhiladee fosse terrivelmente óbvia,
havia uma proteção velada, concedida pelo medo que todos sentiam de
Vik’sen. Agora sem Nhiladee ao meu lado, esse fato me trouxe a peça que
eu mais precisava para me inserir no jogo da alta sociedade como uma
mestiça: discrição.
Mesmo vendendo meu corpo, eu jamais deixaria alguém além de mim
mesma e Nhiladee me tocar, no entanto, ao me comprarem, eu fazia questão
de fazer meus clientes da alta sociedade acharem que suas fantasias haviam
se realizado, tomando informações e favores como meu preço. Dissuadir a
mente débil e pervertida dos aliados e inimigos Worho’ul era como mover

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

55
as figuras de um teatro de sombras na frente da luz projetada na tela, criando
sombras e ilusões para contar uma história próxima da realidade, mas que
jamais existiu para a audiência. Com a minha capacidade de entrar na mente
das pessoas ao meu redor, entender suas necessidades e saber a melhor
forma de supri-las, graças à minha amaldiçoada influência e complacência –
características do meu sangue desde o nascimento –, eu controlava as figuras,
as sombras, a luz e a percepção do público – os aliados e inimigos Worho’ul–
, deixando-os satisfeitos e acreditando que haviam realizado todas as suas
fantasias, quando, na verdade, nunca sequer conseguiram me tocar.
Devido a Runa Escravocrata, fui incapaz de atravessar qualquer fronteira
do território Worho’ul, a marca em minha nuca funcionava como uma
coleira invisível com grilhões presos a Fortaleza de Vik’sen, no centro de
Lugri’Hion. Sendo assim, fui obrigada a ancorar minhas ambições à minha
terra natal e talhar com minhas próprias mãos a última peça para me inserir
no jogo de tabuleiro da alta sociedade do Matriarcado. Uma rede de aliados,
ou melhor, aliadas.

Na Umbraeterna há uma família curiosa e exótica de aranhas – como a


maioria das coisas na escuridão do subterrâneo. As Eresidae são uma família
de aracnídeos cuja algumas de suas espécies são desconsideradas pelos drows
por ter um comportamento incomum. Ao contrário da esmagadora maioria
das espécies de aranhas, que assim como as drows do matriarcado, são
solitárias e extremamente agressivas com suas iguais, algumas espécies de
Eresidae são sociais, e são capazes de cooperar entre si, dividindo tarefas e
até mesmo seu ninho. Com a ajuda das líderes dos principais bordeis
espalhados pela Capital Worho’ul e o auxílio de alguns de meus clientes mais

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

56
influentes do próprio círculo de Vik’sen, criei um enclave no território da
Grande Mãe Worho’ul, composto desde escravas como eu, até matriarcas de
famílias menores. Nos nominávamos “O Enclave das Eresidae”, em
homenagem a essas aranhas desprezadas, mas geniais.
O Enclave das Eresidae se tornou uma peça valiosa para meu jogo. Elas
se tornaram meus olhos, ouvidos, presas e pernas dentro de Lugri’Hion,
espalhando não só minha influência, mas também me protegendo das moscas
mais ingênuas da nobreza que, após se enrolarem nossas teias, ainda eram
capazes de se debater para tentar se libertar. Em nossa crescente teia,
espalhávamos o medo como um feromônio poderoso capaz de incitar o
desespero em todos os que o captavam. Através de sussurros carregados de
meias verdades, chantagens eficazes o suficiente para comprar o silencio de
qualquer um e eventuais assassinatos onde minhas irmãs devoravam aqueles
corajosos o suficiente para nos enfrentar, as Eresidae e eu mantínhamos
nossas moscas mais influentes sob nosso controle, nos escondendo na
barreira densa de seus próprios medos para garantir nossa proteção e o êxito
de nossos propósitos. E o único preço que as Eresidae precisavam pagar para
isso era encobrir sua líder.
Se mostrando aliadas fiéis, muitas das Eresidae sacrificaram suas próprias
vidas para manter minha identidade como sua líder oculta, pois reconheciam
as oportunidades e recompensas que eu podia oferecer se estivesse sob a
proteção de suas nebulosas teias ao mesmo tempo que me mantivesse ao lado
dos Worho’ul, servindo a todos com minha “complacência” ou meus talentos
musicais. Graças aos seus esforços, nunca fui envolvida ou relacionada com
os feitos de minhas irmãs, ou como nos chamávamos: Aurishalees, Irmãs de
Pecado na língua Deireadhiana. Com qualquer atenção indesejada voltada

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

57
para as Eresidae, fui capaz de me manter ao lado de Vik’sen como sua caixa
de música pessoal, encarregada de entreter ela e sua corte durante os mais
variados eventos, eu era sua posse antes de ser de sua filha, afinal, e esse fato
me permitia acompanhá-la de perto, aprendendo tudo o que Nhiladee havia
se recusado a aprender, ao mesmo tempo que reunia informações valiosas
para mim e minhas irmãs que sonhavam melhorar suas vidas, mas não só
isso.
Ficar tão próxima de Matriarca Worho’ul me permitiu abrir os olhos
para a verdade não dita de Lugri’Hion. Vik’sen é tão bem-sucedida, que seus
inimigos e até mesmo alguns aliados já haviam se cansado de sua presença e
controle, sendo tão detestada quanto sua filha, mas por motivos diferentes e
de forma muito menos escancarada, afinal, todos a temiam. A Grande Mãe
Worho’ul colecionava não só décadas de experiência e tiraníssimo no
comando de sua Casa, mas também uma quantidade impressionante de
olhares invejosos e traiçoeiros, que apenas aguardavam o menor erro de sua
matrona para agirem contra ela, espreitando nas sombras como bodaks que
aguardavam o momento mais oportuno para atacar. No entanto, Vik’sen é
inteligente o suficiente para evitar traidores, mantendo a maioria de seus
agregados e possíveis inimigos sob as rédeas curtas de seus rituais de controle,
combinados agora com seu mais novo brinquedo, capaz de ler as intenções e
desejos ocultos nas mentes de todos a sua volta e de esconder essa poderosa
influência nas composições de sua “maravilhosa flauta”. Eu me tornei o
sussurro mais importante nos ouvidos de Vik’sen, e devido a eles, a Matriarca
conseguiu se aproveitar ainda mais do caos de nossa sociedade – apreciado
por sua deusa e por ela mesma – para se manter no topo enquanto eu me

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

58
aproveitava dessa nova posição para fornecer minhas irmãs com todas as
informações necessárias para a conclusão de nossos objetivos.
Por causa dessa posição, descobri, por exemplo, que a Matriarca
Worho’ul já havia sido avisada que um grupo de mulheres – matronas e
escravas – havia se juntado para aterrorizar sua “nobreza mais pobre”. Vik’sen
sabia das Eresidae, mas deliberadamente não fazia nada a respeito delas ou
ajudava aqueles que caiam em seus golpes porque as mulheres espalhavam o
caos em sua capital e haviam começado a eliminar as famílias e matriarcas
mais fracas e insignificantes de Lugri’Hion, movimentando a disputa
incessante – mas necessária – entre essas famílias ao tomar seus lugares, ao
mesmo tempo que limpavam a escória de fracos de sua capital. Com o passar
dos anos, as Eresidae ocuparam cada vez mais espaço, entrelaçando suas teias
à nobreza decadente de Lugri’Hion, se tornando uma ameaça constante para
eles ao tomar seus lugares e conquistar seus objetivos. Como líder das
Eresidae e com a proximidade de Vik’sen, conquistei uma liberdade
diferente da que eu sonhava quando ainda era uma criança presa no cativeiro
escuro e fedorento da fortaleza Worho’ul. Apesar de ainda ser uma escrava,
marcada pela macula de minha matrona, minhas liberdades não se
comparavam a de nenhum outro escravo, graças as minhas aliadas e minha
posição ao lado dos meus donos. E assim como minhas irmãs, conquistei
uma parte do meu objetivo principal. Trazer Nhiladee para mim.

Já fazia dois anos desde que Nhiladee começou a me visitar em Lugri’Hion


em segredo e quase cinco desde que ela se casou e foi obrigada a se juntar a
Casa rival para cumprir os caprichos de sua mãe. Desde que ela começou a
me visitar, eu fui a responsável por fazer nossos encontros serem possíveis,

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

59
fazendo acordos e comprando o silencio daqueles que a vigiavam a todo
momento em nome de Vik’sen, usando minha influência entre os Worho’ul
e as Eresidae. Naquela noite específica, escolhi um dos bordeis mais afastados
do centro de Lugri’Hion, nas partes mais pobres da capital, controlado por
uma de minhas Aurishalees. Comemorávamos mais uma conquista das
Eresidae com uma enorme fogueira arcana azulada que consumia a carne de
nossos inimigos como combustível para se manter altiva. Minhas irmãs
haviam subjugado e tomado o lugar de mais uma família decadente de
Lugri’Hion. Os gritos eufóricos das prostitutas e gigolôs dançando em volta
da fogueira preenchiam o lugar junto da música aminada tocada pelos bardos
ao mesmo tempo que distraiam todos do verdadeiro motivo de estarem ali,
eu.
Apesar da atmosfera festiva, Nhiladee havia chegado preocupada e
inquieta. Era obvio para mim que ela estava deixando seus medos tomarem
conta de sua mente, seus olhos avermelhados, agora com o brilho azulado da
fogueira, não paravam em um único lugar e procuravam nas partes mais
escuras, onde a luz da chama não alcançava, inimigos do passado, presente e
até mesmo do futuro. Ela achava que havia sido seguida em seu caminho para
me encontrar, apesar de ter feito esse mesmo caminho outras diversas vezes,
sem ser descoberta por ninguém. Era uma besteira, talvez prova de sua
crescente paranoia, mas nem mesmo minhas palavras ou a bebida eram
capazes de acalmá-la. Eu tinha certeza de que ela havia tomado todas as
precauções para não ser encontrada, e mesmo que não tivesse, tentei deixar
claro que não dependíamos apenas disso, já que todas às vezes que Nhiladee
me visitava, mesmo que ela não soubesse, quem realmente garantia sua
segurança era eu, até mesmo quando ela estava longe de Lugri’Hion e de

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

60
mim. Não me perdoaria se algo de ruim acontecesse com ela. Porém, mesmo
com todo meu esforço durante os anos, minha complacência deixou
Nhiladee presunçosa e ela cometeu o erro de me rebaixar a seu brinquedinho
favorito. Como fazia quando éramos mais jovens. E apesar de seu medo e
paranoia a cegarem o suficiente para não perceber que eu havia mudado,
minha paciência já estava esgotada e em menos de uma hora desde que ela
chegou, acabamos discutindo.
Após vomitar todas as minhas frustrações em Nhiladee e ver o seu estado
miserável depois de ouvir tudo aquilo, não consegui manter a pose de
zangada por muito mais tempo. Nhiladee era a única exceção para o controle
da minha complacência.
...
“Como aprendeu a dançar?” perguntei a abraçando, aliviando a tensão
que eu mesma havia criado.
Ela jamais verbalizaria, mas Nhiladee implorava por aquele abraço, e ao
ver sua mente, fico feliz em descobrir que mesmo depois de todos aqueles
anos, os únicos braços que ela realmente desejava que a envolvessem eram
os meus.
“Ergui um esqueleto e o usei como parceiro de dança. Pensei em me
preparar para agradá-la com algo além de minha presença quando soube que
era uma comemoração.” Nhiladee murmurou.
Era um ato idiota, mas que teve efeito significativo, tanto para mim
quanto para ela. Pelo menos até ela abrir a boca para ser desnecessária.

Sei que ter vomitado meus sentimentos aos pés de Nhiladee – como se o
álcool, que eu já havia bebido a algum tempo, tivesse tomado conta de meu

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

61
corpo e estivesse tentando expulsar o que me fazia mal –, em um momento
que deveríamos ter apenas conversas agradáveis ou aproveitar a presença uma
da outra foi um erro. Explicar meus sentimentos para ela era inútil e eu sabia.
Além dela ser incapaz de se colocar em meu lugar – simplesmente por não
saber o que é empatia –, falar como estava encarando nossa nova relação
serviria apenas para alimentar ainda mais todas as suas paranoias. Mas assim
como já era tarde demais para evitar a ressaca do dia seguinte, já era tarde
demais para me arrepender. Eu estava cansada de esconder minhas
frustrações apenas para agradá-la. No entanto, após ser pega de surpresa com
sua resposta inocente, rio sem controle, baixo, para não a envergonhar ainda
mais, porém, igual uma imbecil apaixonada, esquecendo meus problemas
com Nhiladee logo após imaginar ela dançando com um esqueleto enquanto
pensava em mim.
Após um breve suspiro, mantenho o sorriso no rosto, mas me acalmo,
levando minha mão para acariciar o rosto de Nhiladee gentilmente, fazendo-
a erguê-lo levemente em minha direção enquanto carregava uma mecha de
seu cabelo entre meus dedos, prendendo-o atrás de sua orelha antes de beijá-
la carinhosamente no canto da boca, em cima de uma de suas várias cicatrizes
– de pele mais fina e em revelo – que se desfaz assim que encosto meus lábios
nela.
“Obrigada por vir.” digo ao passar meu polegar com força onde acabei
de beijá-la, sua pele drow lisa e firme se abre com uma pequena ferida, feita
com minha unha, no mesmo lugar da cicatriz que acabei de curar. Ela
contorce o rosto pela ardência de seu lábio que se sujava com uma fina linha
de sangue até eu me inclinar para realmente beijá-la e limpá-la.

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

62
Nhiladee retribui meu beijo aliviada. Tanto pelo meu perdão, quanto
por livrá-la de outra de suas inúmeras cicatrizes, substituindo as feridas feitas
em sua pele por alguém que ela desprezava, com uma feita por mim, assim
como fazíamos quando éramos menores.
Passamos aquela noite juntas, matando a saudade e desejo de nossos
corações num dos melhores quartos daquele bordel nojento. Esquecendo
brevemente o mundo afora enquanto nos entrelaçávamos e nos entregávamos
uma à outra, sem nem mesmo imaginar que aquela seria a última vez.

DA ULTIMA VEZ QUE ME LEMBRO

63
SETE
EU VI VOCÊ
...

M
eus pulsos e calcanhares ainda estavam com as grossas faixas
avermelhadas deixadas pelos grilhões apertados que consegui
quebrar e minha cabeça doía como se algo estivesse tentando sair
de dentro dela. Um pulsar tão intenso que por um momento realmente
acreditei que meu cérebro não passava de uma criatura prestes a despontar
de meu crânio, protegido pelos meus cabelos como um ovo de aranha
envolto em seda. Subi as escadas do calabouço da fortaleza em desespero,
me batendo contra todas as paredes antes de sair do cativeiro que passei dez
anos de minha infância, com a intenção de nunca mais retornar. Encharcada,
descalça, com as solas dos pés encardidos – assim como minhas roupas e
rosto –, e carregando o cheiro da água podre que foi jogada em mim como
um rastro de um animal amedrontado prestes a ser abatido, corri o mais
rápido que podia pelos corredores de pedra negra da Fortaleza Worho’ul.
Deixei o corpo ainda quente, mas sem vida de Nolge para trás, na mesma
prisão que ele me manteve cativa até Nhiladee aparecer e me tomar como
sua. Ele não faria mais nenhuma vítima e eu finalmente poderia deixar de
chamá-lo de pai.
Lagrimas ardentes escorriam de meus olhos, queimando meu rosto
como ácido enquanto eu passava pelas inúmeras portas de madeira e ferro

...

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que eu havia me acostumado a abrir e fechar enquanto servia Nhiladee e os
Worho’ul enquanto crescia. O labirinto daquela fortaleza nunca foi um
problema para mim, mas no momento em que eu mais precisava chegar em
seu fim e encontrar a saída, eu parecia apenas ficar cada vez mais perdida e
sem rumo. Demorei para entender que a dor estridente em minha cabeça e
a confusão mental tinham uma origem, escondida em minha nuca por meus
cabelos despenteados e sujos. A Runa Escravocrata de Vik’sen estava fazendo
seu trabalho, me impedindo de seguir com meu caminho para a liberdade.

Tudo o que fiz até aquele ponto da minha vida foi tentar evitar ser uma
simples mosca presa na teia de Vik’sen, mas naquele momento, percebi que
apesar de meus esforços, nunca deixei de ser apenas isso. Uma mosca se
debatendo por sua vida. Colada a uma linha grudenta enquanto espera sua
maior inimiga vir devorá-la. A presença de Vik’sen dentro da escuridão
daquela fortaleza era tão intensa que eu poderia simplesmente assumir que
ela e a escuridão eram uma só entidade, preenchendo cada espaço vazio
daquele lugar, desde a menor rachadura nas paredes de pedra, até o próprio
ar que eu desesperadamente inspirava para dentro de meu corpo ofegante e
cansado. Não tinha para onde eu correr. Não tinha para onde eu me
esconder. Não tinha o que eu pudesse fazer a não ser finalmente me entregar.
A última coisa que fiz ao contemplar minha derrota, foi me lembrar de
um sonho que tive logo após dormir com Nhiladee em meus braços. Jamais
teria a oportunidade de contar a ela a maravilha que vi, então antes de tudo a
minha volta se apagar novamente e de me ajoelhar diante daquela escuridão,
escrevi uma carta para Nhiladee e a escondi em minha boca.

...

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Tive uma visão de duas em um outro lugar... era tão lindo Nhiladee.
Quando olhei para cima você estava me encarando debaixo de uma luz azul esverdeada tão intensa
que se não fosse sua sombra em meus olhos eu não veria nada. Estava deitada em seu colo
observando seu rosto preocupado e cheio de cicatrizes – sinais de seu esforço –, enquanto uma
neblina esbranquiçada e fria nos encobria. Escutei sua risada doce vividamente quando pedi que você
massageasse minha cabeça. Foi meu primeiro pedido para você, e você me olhou com uma
sobrancelha erguida, me chamando de folgada, sem verbalizar. É assim que nos comunicamos, afinal.
Você parecia feliz e seu sorriso foi suficiente para fazer eu mesma perder a compostura e rir junto
com você, sentindo meu coração se aquecer assim que seus dedos tocaram meus cabelos
delicadamente...
Quando acordei, estava presa no Baluarte da Contenda, no cativeiro onde você me encontrou pela
primeira vez. Meu pai jogou água com um cheiro tão forte em meu rosto que ele nem mesmo
precisava jogá-la em mim para me acordar, mas jogou mesmo assim. Ele me encarava furioso,
fazendo perguntas que eu jamais responderia. Sua mãe realmente tem poder sobre ele. Enquanto
fazia perguntas, Nolge me ameaçou, dizendo que se eu não cooperasse ele me trataria como a escrava
que sempre fui, pela primeira vez. Eu realmente nunca acreditei nas declarações de amor dele, e o
toque gélido e delicado de sua mão em meu rosto enquanto ele as repetia para tentar me convencer
apenas confirmou minhas suspeitas, principalmente após ele me chamar pelo nome esquecido da
minha mãe. Finalmente entendo como ele me vê e o que ele quer dizer quando me chama de “meu
amor”.
Consegui fugir antes que as coisas escalassem, mas cometi um enorme erro. Sua mãe finalmente
encontrou um proposito para meu sangue e quer se aproveitar dele o quanto antes. Ela está atrás de
mim, veio me buscar... e eu espero que você também venha.
Seu amor, Kahlista “Worho’ul”

Ao retomar a consciência, ainda sem forças para sequer abrir os olhos, com
dificuldade para inspirar qualquer quantidade de ar para meu pulmão e com
a cabeça pulsando ainda mais intensamente, escutei uma voz familiar entoar
o que parecia ser uma oração à Senhora dos Mil Olhos. Estava mais frio que
antes, como se eu houvesse sido despida não apenas de minhas roupas, mas

...

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também de todo o calor do meu corpo, enquanto um ar congelante me
soprava ainda molhada.

“Ó Escultora da Carne; que teceu o mundo e nos criou a partir


da argila mais obscura, girando nela uma teia vermelha de veias e
artérias. No fundo de meu âmago sinto sua fome, ó Senhora dos
Mil Olhos, e por isso hoje eu humildemente lhe alimento.
Oferecendo a ti esta carne, fresca, macia e ainda quente. Come
desta, a refeição que lhe consagro, e neste dia, me garanta a graça
de ser ouvida.”

A voz de ecoava como nunca antes, como se falasse em uma enorme catedral
vazia e sussurrasse em meu ouvido ao mesmo tempo, não dando espaço para
que meus próprios pensamentos e conclusões se construíssem em minha
mente. Juntando o pouco de força que me restava, abri os olhos lentamente,
ficando horrorizada tanto com minha atual situação, quanto com a cena que
se revelaria a minha frente.

“Grande Deusa, Mãe das Trevas, tua fome é a mesma que a de


sua filha. Dai-me o sangue dos meus inimigos de beber e os seus
corações ainda pulsantes de comer. Dai-me os gritos de seus
filhotes como canção, dai-me a infertilidade de suas sacerdotisas
como punição e dai-me a riqueza de suas Casas para minha
satisfação. Com este sacrifício valioso eu a honro, Rainha das
Aranhas, e rogo a ti pela força para destruir os meus inimigos.”

...

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Eu estava suspensa de ponta cabeça, presa a um sautor pendurado por
correntes logo acima de um enorme abismo que soprava meus cabelos com
um vento cortante em minha direção. Não conseguia gritar, mas o terror fez
com que uma súbita adrenalina corresse pelo meu corpo, me dando forçar
para realmente olhar em volta, procurando uma forma de sair dali. Vik’sen
estava a alguns metros de distância, de olhos fechados enquanto murmurava
sua tenebrosa oração em Deireadhano, com uma tranquilidade
desconcertante, sem medo algum daquele vento intenso empurra-la ao ficar
parada nos últimos degraus da longa escadaria que terminava na borda do
abismo logo abaixo de mim, enquanto eu me debatia desesperadamente para
tentar me libertar, furiosa com o sadismo da mulher, que havia aberto um
leve sorriso ao ouvir as correntes do sautor balançarem e frustrada com minha
fraqueza ao sentir meu suor escorrer em minha testa.
Vik’sen mantinha suas mãos unidas como garras uma sobre a outra, com
as palmas viradas para cima, à frente de seus seios. Sobre elas, a mulher
apoiava uma estranha adaga rústica de cristal enegrecido e opaco, adornada
em ouro polido, com um sutil brilho avermelhado, capaz de fazer a sombra
de suas mãos projetarem uma aranha no chão mal iluminado do grandioso
santuário. Ela estava ajoelhada, livre de toda a sua pomposidade como
matrona de uma das casas mais poderosas do Matriarcado de Deireadh,
vestindo apenas uma camisola de seda de aranha transparente que deixava
todo seu corpo magro e acinzentado à mostra. Se apresentando da forma
mais humilde possível para Deusa a qual ela orava. Eu sei o que ela está
prestes a fazer. Eu sei o que eu sou para ela naquele momento e a consciência
disso me deixa em um estado de pânico profundo.

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Enquanto a voz de Vik’sen ressoava pelo gigantesco salão, o ambiente ao
meu redor começou a ganhar contornos, revelando sombras dançantes que
se moviam conforme a voz de Vik’sen entoava sua oração.

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