A avó conta uma história assustadora sobre a noite em que seu marido morreu. Ela diz que viu o espírito dele na porta da casa, ensanguentado e mutilado, segurando um lampião roxo e dizendo que estava feliz por estar morto para não ter que ver mais a esposa e os filhos. Os outros parentes também dizem ter sonhado com o pai naquela noite.
A avó conta uma história assustadora sobre a noite em que seu marido morreu. Ela diz que viu o espírito dele na porta da casa, ensanguentado e mutilado, segurando um lampião roxo e dizendo que estava feliz por estar morto para não ter que ver mais a esposa e os filhos. Os outros parentes também dizem ter sonhado com o pai naquela noite.
A avó conta uma história assustadora sobre a noite em que seu marido morreu. Ela diz que viu o espírito dele na porta da casa, ensanguentado e mutilado, segurando um lampião roxo e dizendo que estava feliz por estar morto para não ter que ver mais a esposa e os filhos. Os outros parentes também dizem ter sonhado com o pai naquela noite.
“Será meu amor por você como mais um segredo sórdido
que levarei para o túmulo?” Anônimo.
Há uma pequena comunidade rural perto dos pântanos escuros, cercada
pelas florestas densas de pinheiros altos e escuros que estão ali desde antes dos habitantes mais velhos. Nesse lugar, se não chove, garoa, então não há a vontade de sair de casa, ou sair da cama. A vida acaba por ser simples. Tão simples que ninguém se preocupa muito sobre ela. Eles se preocupam com portas de celeiro que não fecham e se angustiam com colheitas tardias ou adiantadas, se angustiam com a reprodução. Dos carneiros e a colheita dos ovos e com a ordenha das vacas. Se essas coisas não estão dando errado, então eles não se preocupam. Eles todos têm os mesmos hábitos, terminam o que têm que fazer, talvez capinar ou construir uma cerca, e então voltam para dentro antes que a chuva cause uma pneumonia. Voltar para dentro para perto do fogo e dos ovos fritos no fogão à lenha, para o chá com mel, para as cobertas e os cães mestiços. Nada além disso. Nada para se preocupar. Mas às vezes há um sinal. Atrás do véu da falta de importância, algo toca naquela parte do cérebro responsável pelas dúvidas que menos nos dizem respeito e mais nos atormentam. Seguindo um sinal, alguém pode acabar levantando o véu, espiando o que há por trás, mas nunca por muito tempo. O confronto com o desconhecido atua como um choque elétrico, te faz recuar independente do quão mente aberta você pense que é. Eu estava ali uma vez quando o véu foi erguido. Era um dia chuvoso e um dia extremamente frio, e a família toda, meus pais, meus tios e tias, meus seis primos, e minha Vó sentávamos próximos da mesa em nossas conversas paralelas, comendo do pão que ela havia assado por conta da chegada minha e dos meus pais. A Vó estava um pouco afastada, mais próxima do fogo, descascando batata. Ela tinha um olhar baixo e melancólico, algo que eu nunca vi nela. Foram raras as vezes que eu a vi sem um sorriso. “Hoje é o aniversário de morte do meu marido.” Ela murmurou. Ao instante que ela disse isso, a chuva aumentou o calibre e o vento aumentou a pancada, raios iluminaram o sítio desolado que com aquele tempo parecia a superfície de outro planeta, e trovões tremeram as xícaras em cima da mesa. Enquanto meus tios em pânico fechavam a janela, eu pude ver o que Van Gogh viu no vento, espirais graciosas e brutais de uma força indiferente à vontade humana. Todos disseram ter esquecido da data, outros revelaram que apesar de tentarem, não tinham esquecido. Eu era um dos que tinha esquecido, mas lembrei na hora das histórias que minha mãe contou de novo e de novo sobre a morte do meu avô. Minha mãe nunca foi uma boa contadora de histórias, sempre se perdendo e se confundindo nas suas narrativas, misturando personagens e eventos, mas não com essa história. Por causa dessa história eu tive minha parcela de luto por um avô que nunca conheci. Era impossível não beber da fonte da mágoa da minha mãe ao escutá-la falar sobre o pai dela que ela tanto amava, morto de uma hora pra outra por um acidente banal na fazenda, e no mesmo dia velado com um lençol roxo. Ao escutar essa história pela primeira vez, mesmo em minha mente infantil alheia aos sofrimentos dos outros, eu pude entender por que minha mãe passou mal quando eu mostrei um desenho que eu tinha feito pra ela. Naquele dia, eu decidi usar só o giz de cera roxo. A história básica dos meus avós é que eles se casaram por conveniência, sem se amarem, e então se seguiu uma clássica história e já estereotipada de marido alegre/mulher briguenta. Minha mãe sempre disse que ele era o melhor pai que se podia imaginar, que fazia o máximo da escassez pra dar conforto aos filhos. Que era brincalhão, bem-humorado, que nunca viu ele chorar ou reclamar, e que trabalhava que nem um cavalo, que era carinhoso e nunca foi além de um aviso verbal quando precisava chamar a atenção dos filhos. Que apesar da indiferença da esposa, sempre fazia essas demonstrações de amor pra ela. Minha mãe dizia que eu teria adorado conhecer ele. Da minha Vó, a única coisa boa que a minha mãe disse é que ela insistiu que os filhos fossem pra escola, o que não era comum no interior. De resto, ela condenou tudo. Condenou a mente pequena dela, o sadismo que ela executava, sempre surrando os filhos por nenhum motivo. A má-vontade, o mau-humor, o mau temperamento. Às vezes parecia que ela nunca tinha feito algo de bom por eles. Às vezes parecia que ela nunca tinha amado meu Avô, afinal todos mencionam que ela nunca ficou enlutada, mais preocupada com as contas pra pagar do que com o marido morto. “Eu nunca contei, mas aconteceu algo na noite da morte do Tônio.” A minha Vó disse, agora fitando todos da sala com os olhos bem abertos dela. “Algo que eu nunca contei porque vocês eram tudo criança’, e eu não queria deixar vocês com medo.” A sala inteira parou com quaisquer conversas e uma tensão cresceu de baixo pra cima como uma névoa, naquele cômodo mal iluminado pelo amarelo de uma lâmpada incandescente. Aqueles filhos que haviam perdoado a Vó pela infância que ela os deu temeram as próximas palavras dela; aqueles que não haviam esquecido as surras sem motivo, destes a minha mãe era a que mais guardava rancor, ferveram insultos em suas gargantas, e o que quer que minha Vó falasse faria aquele vapor quente cair sobre ela. “Escutem bem.” Ela disse, apontando para todos na sala. Colocando a batata e a faca em cima da mesa. “Eu ‘tava sentada bem aqui. E o Tônio gostava de aprontar comigo. Às vezes quando eu tava aqui de noite, costurando lençol, ele chegava de fininho da roça, e me assustava. Uma vez ele soltou um tatu vivo aqui dentro e quase que me matou do coração. Mas naquele dia, o Tônio tinha morrido. E eu não sabia o que fazer depois, eu ainda tinha lençol pra fazer, então eu pus a fazer os lençol, bem de noite. Vocês ‘tavam tudo dormindo naquela hora.” “Há de dormir.” Disse a minha mãe. “Como que nós ia dormir com o pai morto no me’mo dia? Só a mãe mesmo pra conseguir fazer as coisa da casa com o Tônio morto.” Minha Vó ficou em silêncio por algum tempo, ela nunca pareceu aceitar os comentários dos outros sobre ela muito bem, nunca pareceu ouvi-los. Ela só os deixava passar. “Eu ‘tava terminando um lençol.” Continuou ela. “E eu ficava olhando por cima do ombro, tinha só um lampiãozinho iluminando a cozinha aqui. Ficava vendo se o Tônio não ia aparecer, mas daí eu me lembrei. Bateu uma tristeza daí, eu vi que ia sentir falta até dele sendo bocó comigo. Então eu terminei o lençol, dobrei ele, e fui levar pra casa do lençol lá fora. Mas quando eu fui abrir a porta eu vi por baixo dela que tinha uma luz acesa na área. Eu não tinha deixado nada aceso lá fora, nem ia precisar, num tinha ninguém lá. Se fosse uma das criança’ que levantou e acendeu lá fora, eu tinha visto também, eu tava do lado da porta. Mas o pior é que eu vi que a luz era de um roxo, mas um roxo, aí começou a me dar um medo, um ruim assim. Mas daí, eu abri a porta, e quando eu abri, eu vi ele ali. Eu vi o Antônio de pé, sorrindo, segurando um lampião entre os dedo’ ensanguentado dele. E o lampião brilhava roxo, com um fogo roxo que eu nunca vi.” Nessa hora, eu imaginava que qualquer um, principalmente minha mãe, podia dar o maior sermão na minha Vó pelo que ela falava, mas todo mundo ficou quieto. Mais do que isso, todo mundo tinha uma expressão, uma expressão como se alguém os dissesse o que fizeram quando acharam que ninguém tava olhando. “Naquela noite.” Disse o meu Tio Elias. “Eu tive um sonho que eu ‘tava deitado na cama, e acendiam uma luz fraca na minha cara, tipo uma luz negra assim, mas na época não tinha essas coisa, e daí eu abria os olhos e era o pai na janela, segurando o lampião e dando risada. Um sorriso feio, assim.” Um arrepio percorreu a sala, havia a mesma expressão nos meus tios. “Eu vi na tua janela.” Disse minha mãe. “Mas não vi muito bem, eu tinha chorado tanto aquele dia, os olho' 'tava cansado. Achei que tava sonhando também.” “Pois bem.” Disse a minha Vó. “Eu vi ele, e ele não tava bonito. Ele tava que nem quando encontraram ele. Ele tava tão mutilado que eu não sei como ele tava de pé, mal tinha sobrado das perna’ dele. E o pior era que eu não me assustei muito, nem quis gritar, só me preocupei com o sangue sujando a área. Mas então ele, com aquele sorriso largo dele que ele tinha, me chamou: ‘Maria, vim dá uma passada aqui’. E quando ele falou comigo é que eu comecei a fazer o sinal da cruz, a reza’ o pai nosso e a ave maria, a fechar os olho’ e rezar. E de olho fechado eu vi que ele tava vindo, eu vi pelo som. Várias vezes ele chegou em casa com as butina’ até em cima de barro, e eu tive que brigar com ele. Agora fazia o mesmo barulho, os passo’ dele. Um barulho molhado assim, que nem se desse com o esfregão molhado no chão. E quando eu abri o olho de novo, eu vi que não era barro que tava transbordando da butina. Era um sangue feio, um sangue escuro, grosso. Caía e um pouco grudava que nem uma meleca assim na butina branca. E daí ele, pertinho de mim, eu sentia o cheiro de sangue e um cheiro ruim, um cheiro doce de carne podre. Ele disse pra mim, com aquele lampião pertinho mas sem fazer calor nem nada: ‘Só vim aqui passa’ pra dizê’ que eu tô muito bem aonde eu tô. Que aquela que tava pra casá’ comigo, antes de você aparecê, a Ana Heloísa, morreu esses dia’ também e tá lá comigo, e nós não tem filho pra atrapalhá’. Amo ela mil vezes mais que já te amei. Se eu soubesse que era bom assim morrê’, tinha morrido antes. Pra não ter que vê você e essa criançada’ que eu não suporto, que eu nunca gostei.’ Bem assim ele me disse, e daí eu fechei os olhos, rezei, rezei, chamei, chamei Jesus, e quando eu abri os olho’, ele sumiu. Mas eu sentia o cheiro ainda, dava ânsia o cheiro.” A minha família sempre manteve os sentimentos bem abaixo da superfície, mas ao olhar ao redor, eu não via alguém sem chorar senão as crianças pequenas, que não entendiam o que acontecia. Ninguém mais falou sobre nada naquela noite, nem ninguém dormiu direito. A partir do dia seguinte, fingiram que nada tinha acontecido. Fingiram também que eu achei que tinha sonhado, mas no almoço tinha carne com batata, as mesmas batatas que a minha Vó estava descascando na noite anterior. Ao longo dia eu fiquei ponderando sobre o que minha Vó falou, haviam duas reviravoltas nas minhas concepções até então. A primeira era sobre meu vô Tônio, pelo que me contaram ele era um pai herói, ele trabalhou duro, ele cuidou dos filhos, ele era bem-humorado e apaixonado pela minha Vó. Aquilo que ela contou dele, se inventado, era o pior coisa que se poderia inventar sobre ele. Ia contra tudo permaneceu na memória dos filhos dele. A segunda reviravolta, era sobre histórias de fantasmas, sobre o véu. Eu tinha escutado histórias como essas, de acontecimentos que implicavam um agente paranormal, mas essas histórias eram para me assustar, eram passadas como contrabando, de mão em mão, em círculos fechados, nunca de adultos. Adultos eram a razão em pessoa, e deles vinha todo o meu conhecimento sobre o mundo, e no que eles diziam, eu confiava a minha vida. Mas eu descobri que adultos podem também não saber nada, podem estar tão confusos que preferem a ignorância do que a dúvida. Eu descobri que, naqueles momentos que eu os contava alguma coisa inacreditável, eles deixavam de lado como “coisa de criança” não porque eu não era confiável, mas porque eles preferiam não confiar em mim pra não haver, nem um por segundo, a dúvida de que havia algo além do mundo de adulto deles. Mas às vezes o véu era levantado, e quando era levantado, era baixado novamente e pregado no chão. Não se falava mais nisso, se tornava menos que um segredo, se tornava um sonho vulgar. Era algo que se levava para o túmulo.