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1. A CARTA
- Você pode não acreditar, mas eu vim fazer exatamente isso – disse, enquanto
fiquei de pé. – Caso você não saiba, a vovó me convidou para vir.
- Como se essa fosse a primeira vez que ela te convidou – Giuliano lembrou,
demonstrando não está convencido com a minha resposta. – Você nunca se
interessou pelo bem-estar da vovó. Aliás, você nunca pensou em ninguém que não
fosse você.
- Giuliano, quer saber? Eu não preciso ficar dando satisfação da minha vida
para você – eu estava irritado com insistência dele.
- Foi remorso?
- Remorso? Pelo que? – eu o desafiei a responder. – Se for por causa da vovó,
talvez eu não tenha me sentindo bem mesmo por ter me afastado dos assuntos daqui.
Mas a minha consciência está muito tranquila quanto ao resto.
Nesse momento, por impulso, eu olhei pela janela do quarto, que estava aberta,
e meus olhos avistaram a cajazeira, não sabia que a vista dava para lá, e Giuliano
acompanhou o meu olhar, achando que eu fazia alguma referência subliminar sobre
a árvore.
- Deve ter se sentido poderoso, ao vê-la não é? Eu vi você indo até lá. Eu devia
ter a derrubado há muito tempo. Mas acho que esse é um problema que eu possa
resolver ainda.
- Eu não me senti “poderoso”, - rebati. – Apenas me lembrei do passado. É
disso que você quer falar não é? Desde o momento que me viu aqui, calculou como
deixaria as palavras pesadas para atirar em cima de mim.
- Acha que você ocupa tanto espaço assim na minha cabeça? Pois se enganou
completamente – ele disse batendo no peito, espumando de raiva. Engraçado, que
mesmo naquela situação tensa, era impossível não perceber como ele ficava mais
bonito ainda, quando estava zangado. Parecia um tigre feroz, a aponto de devorar sua
presa. E isso, estranhamente, me excitava.
- Olha, a vovó está doente, e eu não quero causar nem um estresse a ela, então
é melhor...
- Você ir embora! – Giuliano bradou, interrompendo minha fala agressivamente.
- Só porque você quer? – eu ergui uma das sobrancelhas.
- Você nem devia estar aqui. É um completo estranho – ele estava implacável.
Parecia que nada que fosse menos do que um trucidamento de mim, não o
contentava.
- Desiste, eu não vou embora – falei com firmeza. – Mas se o preço para você
me deixar em paz e cuidar da sua vida é dizer tudo queria ter dito há dez anos. Vai
em frente. Me xingue, me esculache, cuspa em mim, vamos! Contanto que você fique
na sua e me deixe na minha, eu libero você para dizer o que sente.
- Eu não tenho nada para te dizer – ele fez menção de sair, mas parou próximo
a porta. – Acho que a sua memória já faz esse trabalho muito bem.
Dei uma gargalhada profunda e sarcástica, o que pareceu fazer o sangue dele
ferver ainda mais. Se ele estava tentando usar chantagem psicológica, iria se
arrepender da tentativa.
- Eu não quis que aquela tarde terminasse daquele jeito! Se eu pudesse...
- Cala a boca! – ele gritou. Giuliano não queria uma reprise do nosso passado
de forma alguma. – Não me fez sentir mais nojo de você, do que eu já sinto.
- Você achava que eu te amava? Aquilo foi só diversão. Nós éramos crianças.
Você era um passatempo de féri...
Não conclui a frase, pois senti uma pancada tão forte no rosto, que achei que
o teto do quarto havia caído sobre a minha cabeça. Mas, não. Fora Giuliano que
desferira um soco em mim, guardado e acumulado por dez anos. Foi um soco de dez
anos de ódio e raiva. E como doía. Eu achei que ele tinha dividido a minha cara em
duas. O sangue brotou do meu nariz feito um veio de água. Chorei muito de dor e
raiva. Ele me observou por alguns instantes, parecia hesitante, passando a impressão
de querer me socorrer, mas se o fizesse, imagino que ele tenha pensado, seria como
se seu ódio fosse uma encenação, que o que aconteceu há dez anos teria sido pouca
coisa diante de alguns espirros de sangue. E vendo que eu estava vivo e consciente,
ele se decidiu por sair do quarto e me deixar, no chão, me contorcendo de dor.
O homem parecia ter reunido toda a sua vontade naquele soco. Era um touro
mesmo.
Reuni forças para me levantar, mas quase não o consegui fazer. Estava muito
tonto e com a visão turva. Mas a minha preocupação, era como eu ia explicar o
machucado para minha avó. Não dava para tentar enrolá-la com papinho de que eu
tinha sofrido uma queda, ou coisa do tipo. Mas, no momento, tinha que me preocupar
em chegar ao banheiro.
Com muito esforço, alcancei a pia, e joguei minha cabeça em baixo da torneira
e a liguei, deixando a água refrescar a minha nuca, que estava em brasa, assim como
o meu rosto. Logo uma cachoeira rubra descia pelo ralo da pia. Ardia muito, mas eu
achava que não tinha quebrado nada. Mas com certeza eu ficaria com a face inchada
e roxa. Havia começado aquela viajem muito bem.
Resolvi tomar logo um banho de vez, para tentar lavar a alma. Mas a água era
muito pouco para aquilo. Enquanto deixava-a me isolar do mundo externo, minha
mente trouxe à tona detalhadamente, os principais eventos do meu passado com
Giuliano.
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Não me lembro direito quando foi a primeira vez que eu vi Giuliano, mas sei
que quando isso aconteceu, as coisas nunca mais voltaram a ser como eram.
Giuliano sempre morou com a vovó Elisa em seu sítio, desde que sua mãe,
minha tia Helena, faleceu em um acidente horrível. O pai dele, pelo que soube, agiu
como um canalha. Assim que soube que tia Helena estava grávida, ele a abandonou,
para nunca mais dar notícias. Nessa época, minha avó já era viúva, e deu todo o apoio
para mãe de Giuliano, assumindo a responsabilidade de cuidar do neto, como se fosse
seu próprio filho. Ele tinha nove anos, quando ficou órfão, e eu oito, na ocasião. Me
lembro vagamente, de ter viajado com os meus pais para a casa da vovó, mesmo
ainda sendo período de aulas. Eu não sabia ao certo porque estávamos fazendo
aquela viagem. Mas sentia que não poderia ser algo para diversão.
Era uma segunda feira sem sol, quando chegamos até o sítio. Uma densa
camada de nuvens, abafava o dia, tornando mais ainda desconfortável, o terno escuro
que eu usava. Foi a primeira vez que eu vi uma pessoa morta. Era estranho. Apesar
de saber que se tratava da minha tia, a imagem que meus olhos captavam, me davam
a ideia de estar vendo algo artificial. Como uma boneca.
O sítio estava tomado por pessoas, e a atmosfera carregada por lamentos e
dor. O cheiro das velas e o choro mútuo, me deixaram um pouco tonto, e com o
estômago bastante ácido. Mas o que mais contribuía para o meu mal-estar, era ver
Giuliano, aos prantos, debruçado sobre o caixão. Aquela cena me fez tomar uma
inciativa, que até hoje me surpreende quando eu lembro, haja visto que era muito
tímido. Me aproximei do meu primo, e passei o braço sobre seu ombro. Por impulso,
ele pegou na minha mão, sem olhar, ainda permanecendo sobre o caixão aos prantos.
Minha avó, então, foi até nós dois, e pediu para que eu fosse com meu primo para o
quarto. Eu nunca tinha a visto tão abalada. Nesse momento, eu apertei bastante a
mão de Giuliano, e curiosamente, ele atendeu ao pedido da vovó, e fomos para o seu
quarto. Era engraçado. Eu me sentia como se conhecesse ele a bastante tempo, e
tinha certeza que o sentimento era recíproco.
Chegando em seu quarto, Giuliano deitou-se em sua cama, e ficou soluçando
bastante. De pé, no meio do quarto, eu apenas o observava, admirado com a
intensidade de seus olhos verdes, brilhantes pelas lágrimas correntes, e seu cabelo
loiro, volumoso e suado. Giuliano também usava um terno, como meu. Fiquei
pensando que continuar com aquela roupa pesada, só o faria mal. Então, fui até ele,
e o fazendo levantar da cama, comecei a retirar peça por peça de sua vestimenta
fúnebre. Ele não fez resistência, mas me surpreendeu, quando também começou a
tirar a minha. Estranhei, mas permiti, pois ele tinha feito o mesmo. Em poucos minutos,
estávamos só de cuecas, ambas brancas. Nem uma palavra havia sido dita, e nem
acho que precisava. Era surreal aquilo. Eu tinha oito e ele nove, mas era uma
intensidade tão grande aquele momento, que talvez por isso, eu agora entendo,
porque sentia o peito arder tanto.
Giuliano me puxou pelo braço, e deitamos em sua cama. Numa concha apenas
desenhada, com pouco contato físico, mas próximos o suficiente para ele colocar seu
braço, em baixo da minha cabeça. Parecia que era eu que precisava de consolo, mas
de alguma forma, ficar daquele jeito com ele, o reconfortava, pois o choro compulsivo,
havia se tornado apenas soluços, que lentamente foram perdendo a força, e
encerrando com um arfar profundo.
Meu primo parecia estar muito exausto, pois em pouco tempo ele dormira. Eu,
no entanto, permaneci acordado durante muito tempo, com o olhar lançado ao nada.
A respiração de Giuliano soprava a minha nuca, como uma brisa quente, que me
arrepiava constantemente. Todas vezes que eu me mexia na cama, ainda que apenas
por alguns centímetros, ele me puxava, mesmo dormindo, para junto do seu corpo, e
pesava seu braço sobre a minha cintura. Era como se o seu corpo não permitisse que
o meu o abandonasse.
Ficamos assim por muito tempo, não me lembro ao certo quanto, até porque
adormeci sem perceber em um determinado momento, e quando despertei, estava
coberto por uma manta, com Giuliano ainda atrás de mim, dessa vez estávamos
completamente colados e suados. Acho que de tanto Giuliano se esfregar nas minhas
costas, metade da minha cueca estava enfiada na minha bunda, o que estava me
incomodando bastante, então resolvi levantar, mesmo tendo que acordá-lo.
Outrossim, não estava confortável com aquela nossa posição. Me senti uma mocinha
dos filmes que a mamãe adorava assistir. E a ideia me incomodou bastante.
Com dificuldade, eu consegui me desvencilhar do meu primo, sem acordá-lo.
Vesti a calça do meu terno, e desci descalço até a sala. Já era noite e a casa estava
extremamente silenciosa, mas não vazia. Ainda havia algumas pessoas mais íntimas
da família sentadas na sala, velando a minha tia morta. Minha vó estava com a cabeça
inclinada, deixando a testa tocar a quina do caixão. Então me aproximei dela, e me
recostei nela.
- Oi, meu amor – ela levantou o rosto para mim, estava completamente
arrasada, com os olhos profundamente vermelhos e inchados. – Está com fome?
- Estou – eu disse, sentindo o meu estômago muito vazio, agora que ela tinha
mencionado. – Onde está a mamãe e o papai?
- Eles voltaram para casa – ela respondeu.
- Como? Eles esqueceram de mim? – perguntei apreensivo, me sentindo
abandonado.
- Claro que eles não esqueceram de você – minha avó passou a mão no meu
rosto. – Pedi para seus pais para que você passasse essa semana aqui conosco, por
causa do Giuliano. Mas caso você não queira, eu providencio sua volta
imediatamente. E então?
Fiquei pensando por um instante, ainda abalado por eles não terem me
perguntado pessoalmente. Porém, algo me fez optar por ficar, até porque a ideia de
passar uma semana sem escola, não soava nem um pouco ruim. Minha surpresa foi
a minha mãe ter permitido aquilo, mas achei por bem não perguntar, e apenas dizer
que aceitava passar aquela semana com Giuliano.
Durante o enterro de tia Helena, no dia seguinte, segurei a mão de Giuliano
durante todo o tempo. Ele apertava a minha mão com força, cada vez mais, à medida
que o caixão descia.
Apesar do clima ser de grande pesar, passamos aquela semana relativamente
bem. Eu e Giuliano não nos desgrudávamos nem por um segundo. E isso parecia
causar muito gosto a minha avó. Mas o que é bom tem um prazo de duração
demasiadamente curto, e logo a semana se esvaiu, e a minha mãe veio me buscar.
Lembro que Giuliano chorou muito quando eu tive que ir, mas prometi a ele que
voltaria nas férias, e sempre que eu pudesse. Também fiquei muito triste em ter que
deixa-lo.
Ainda naquele ano, eu o visitei quatro vezes, e passei todas as minhas férias
no sítio.
Assim foi durante cinco anos. Eu era presença constante no sítio, e quando não
estava lá, ficava contando os dias para as minhas férias chegarem. E foi quando já
era um pouco mais velho, que percebi que a minha mãe ficava muito irritada quando
eu falava de Giuliano e do sítio, ela chegou até a tentar me proibir de ir para lá, mas
meu pai não permitiu que ela fizesse esse absurdo. Então, mesmo com seus
protestos, era só eu arranjar um feriadão, antes das férias, que estava enfiado no sítio,
e sempre fazia um drama para voltar para casa.
Entre os doze e os treze anos, foram quando as coisas começaram a ficar mais
sérias entre nós. Até então eu via Giuliano como um irmão, pelo menos era o que eu
pensava. Como era filho único, e portanto, não sabia como se constituía o amor entre
irmãos, eu achava que o que sentia por ele era isso, apesar de ver alguns dos meus
primos, não demonstrando por seus irmãos nem um quarto do sentimento que eu e
Giuliano tínhamos um pelo outro.
Nas minhas férias no sítio, aos doze anos, conheci Fernando, que havia se
mudado para a vizinhança. Fiquei também muito amigo dele. Mas percebia que isso
incomodava profundamente Giuliano, que até antes de eu chegar, parecia ter se dado
bem com Fernando, mas só foi ele grudar em mim, que meu primo só vivia de cara
emburrada, e me tratando com grosseria. Ficamos um pouco afastado nessas férias.
E nessa brecha, Fernando conseguiu lugar.
- O Giuliano não quis vir? – Fernando me perguntou, quando seguíamos pela
vereda, que levava para o lago do sítio.
- Não. Ele disse que se você estivesse ele não estaria – eu respondi, sentindo
o vento forte de julho, tentar açoitar os meus cabelos curtos. Fernando, que era cheio
de cachinhos, tinha seus cabelos vencidos pelo vento. – Vocês brigaram por acaso?
Por que ele disse que eu tinha que escolher entre os dois. Não gosto disso.
Fernando riu profundamente, inclinando o rosto para trás, disse:
- Seu priminho pensa que é seu dono. Ele não quer que você fale com mais
ninguém que não seja ele. Parece que até o seu namorado. Não vai me dizer que
vocês são namorados. São?
- Ficou maluco!? – eu gritei. Não fiquei ofendido, fiquei assustado, como se
Fernando tivesse descoberto algum segredo que nem mesmo eu sabia.
- Só disse o que eu acho e vejo – Fernando falou com malícia. – Mas que ele
sente ciúmes de você, ele sente.
- Se você não parar com isso, eu vou voltar daqui mesmo – decretei,
ameaçando dar meia volta.
- Não! Não! Não! Eu prometo que não falo mais nada. – ele segurou no meu
braço, me fazendo desistir de ir embora.
Andamos mais um pouco, subindo uma colina, até vislumbrarmos um imenso
lago logo abaixo, rodeado por frondosas. Descemos correndo, parando apenas e uma
pequena ponte de madeira, onde arrancamos nossas roupas com pressa, e pulamos
nas águas escuras do lago, completamente nus. A água estava deliciosa. Mas sentia
falta do Giuliano.
Fernando e eu apostamos quem conseguia ficar mais tempo debaixo da água.
Depois brincamos de pegar, e por fim ficamos apenas flutuando, conversando sobre
desenhos animados. Eu percebi que Fernando sempre tentava passara a mão em
mim, mas eu não dava nem uma condição para ele. O que eu não sabia era que ele
não desistiria.
- Escuta, você já bateu punheta? – ele me perguntou com um sorrisinho, e
começou a se mexer na água de um jeito estranho, que mais tarde eu vim a descobrir
que ele estava na verdade era se masturbando.
- Já vem você de novo com essas conversinhas – disse, ficando muito
vermelho. – Acho melhor irmos.
- Espera – Fernando me segurou, enquanto eu nadava em direção a ponte.
- O que foi? – perguntei com desconfiança.
- Vamos fazer um negócio – ele falou cochichando. – Você me deixa pegar na
sua bunda, e te deixo pegar na minha pica. O que acha?
Não respondi, apenas me soltei dele e nadei o mais rápido possível para a
ponte. Subi rapidamente na mesma, e me abaixei para catar as minhas roupas e voltar
para casa, mas Fernando pulou da água tão rápido, que só sentir algo duro, como
uma salsicha congelada, espetando o meu bumbum. Tentei me soltar dele, mas ele
era mais forte, e prendeu meus braços.
- O que você tá fazendo? Me solta cara! – eu tentava, inutilmente, me
desvencilhar dele.
- Deixa de frescura, Benjamim, eu sei que você gosta – Fernando se esfregava
em mim, mas não conseguia me penetrar. Sentia seus pelos roçarem a minha bunda,
enquanto seu pinto tentava buscar passagem.
- Eu vou gritar – ameacei.
- Grita seu viadinho, que eu te quebro na porrada – Fernando fez força para
baixo, me fazendo cair de joelhos, mas permanecendo preso nas minhas costas.
Eu já estava começando a chorar, e de olhos fechados, não percebi quando eu
fui separado a força de Fernando. Era Giuliano que estava ali, parado, de punho
fechado para dar um soco em Fernando.
- O que você veio fazer aqui Giuliano? – Fernando cambaleou para trás.
- Eu disse para você Benjamim, que ele não era de confiança, mas não, você
disse que era implicância minha. Agora ela quis fazer isso com você. Mas não é seu
“amigo”? Ele não é “legal”? – disse Giuliano com muita raiva. Eu permaneci abaixado,
apenas choramingando.
- A gente só estava brincando! – Fernando se levantou com fúria e veio para
cima de Giuliano, mas levou um soco tão grande no rosto que escorregou para trás,
e rolou para dentro da água.
- Vamos embora! – Giuliano me puxou pelo braço, enquanto eu tentava vestir
a minha cueca.
- Podem fugir suas bichas! Vocês vão me pagar essa! – Fernando bradou de
dentro do lago, com o nariz minando sangue.
Voltamos para a casa da vovó, em silêncio. Ainda agradeci a Giuliano, mas ele
não disse nada. Caminhava com tanta pressa que parecia não me querer perto dele.
Eu apenas fiquei na minha, e respeitei seu espaço.
Já em casa, tomei banho e fui para o meu quarto, ficando lá bem acompanhado
de uma montanha de gibis. Pouco tempo depois Giuliano entrou no meu quarto com
uma bandeja com biscoitos de polvilho, goiabinhas, broas e dois copões de leite com
achocolatado. Ele pôs sobre a cama, me deu um dos copos e ficou com outro, se
servindo do lanche. Fiz o mesmo. Ficamos nos encarando profundamente, por cima
da borda do copo, quando o inclinávamos em nossas bocas.
- Você bate forte para caramba – eu disse, enquanto ele tomava um grande
gole de leite.
Giuliano riu incontrolavelmente, se engasgando com o liquido. Não consegui
resisti também, e cai na risada. Mas estava feliz mais por ter quebrado o gelo que ele
estava me dando, do que pelo seu engasgamento.
- Sou seu primo mais velho, então quando eu disser para você não fazer uma
coisa, não faça – ele disse se referindo ao episódio passado. Giuliano havia me
alertado sobre Fernando, mas achei que era exagero dele.
Apenas abaixei a cabeça, e consenti. Na verdade, o que ele disse havia me
deixado triste: “sou seu primo mais velho”. Eu achava muito pouco esse posto. Ele já
era isso, antes mesmo de ficarmos tão próximos.
- Fernando disse que nós dois parecemos namorados – eu disse, mas não em
tom de revolta, e sim esperando seu posicionamento quanto aquilo.
Ele nada falou, continuando a comer normalmente.
- Disse que você sente ciúmes de mim, Giuliano – eu continuei a falar. Queria
atiça-lo.
- E depois do que ele te fez, você continua dando bola para as besteiras que
ele fala? – Giuliano perguntou.
Nesse momento, apenas o observei em silêncio. Não havia percebido como
meu primo havia crescido tanto e ficado muito mais bonito, desde a última vez que eu
estive ali no sítio. E sentia coisas endurecerem em mim, ao vê-lo usando apenas um
calção de malha fina, sem cueca, deixando parte de sua pele não bronzeada do
bumbum, saltar para fora do cós, bem como algumas penugens de seu púbis.
- Você tem namorada? – perguntei, sem dar importância para última fala de
Giuliano.
- Não. – ele respondeu com tranquilidade, deitando-se na minha cama, após
terminar o seu lanche – Você tem?
- Já tive, mas agora não – respondi, deitando ao seu lado. Nós dois observamos
o teto.
- Tem algumas meninas da escola que dão em cima de mim, mas eu não sinto
nada por elas, sabe? E não quero ficar apenas porque todo mundo fica. – ele
completou.
Hoje, quando me lembro das colocações de Giuliano, percebo como ele teve
uma maturidade precoce. Talvez por ter perdido sua mãe naquelas circunstâncias, e
tão cedo. Sem contar que a ideia de ter sido rejeitado pelo pai, deve ter lhe forjado
uma couraça. Mas ele era especial, pois poderia ter se deixado ser destruído por
aquela série de infortúnios, no entanto, sobreviveu e se tornou um garoto forte.
Percebo agora, o quanto eu era bobinho em relação a ele, ainda mais considerando
que a nossa diferença de idade era de apenas um ano. Bom, meu comportamento e
postura, estavam de acordo com a minha idade na época, Giuliano era que estava
acima da média.
- Você já beijou? – insisti com o assunto.
- Também não – Giuliano disse sem constrangimento.
- Sério? Na sua idade? – eu ri. E não deveria ter feito isso.
- Você fala como todo mundo – Giuliano disse, se levantando da cama, e
fazendo menção de sair. Eu não havia imaginado que aquilo o ofenderia.
- Ei, desculpa! – eu o segurei pelo braço, mas ele se soltou em um sopapo bem
agressivo.
Corri na frente de Giuliano e bloquei a porta. Ele parou, e pôs as mãos na
cintura, então disse:
- Vai sair, ou vou ter que descer a mão em você?
- Você teria coragem de me bater? Pensei que gostava de mim – eu disse com
uma voz teatral.
- Eu também achei o mesmo de você – ele devolveu – Mas você saiu com o
Fernando, mesmo depois de ter lhe dito que ele não era de confiança, e agora está
caçoando de mim só porque eu ainda não dei a droga de um beijo.
- Ah, então você tá bravinho comigo? – eu indaguei, pondo a mão em seu
ombro.
Giuliano levou sua mão até a minha, para removê-la de seu ombro, mas não
prosseguiu com o seu objetivo final, deixando a sua mão sobre a minha. Trêmulo dos
pés à cabeça, com a garganta seca, e o estômago afundado na mais pura tensão.
Caminhei em sua direção, mas ele não recuou, pelo contrário, veio ao meu encontro.
Encostei a minha cabeça na sua testa, e me deixei perder na profundeza de seus
olhos de esmeralda. Meus lábios tocaram os dele. Eram volumosos e macios, tinham
uma firmeza que desconhecia dos beijos que havia dado em algumas garotas. Eu
gostava disso. Ele começou a movimentar, meio sem jeito os dele, e eu tomei as
rédeas, mas durou menos de um minuto, pois quando ele me abraçou, me trazendo
mais para perto de seus domínios, algo em minha consciência disparou, e me dei
conta do que estava fazendo, então o empurrei, e sai do quarto.
Não nos falamos mais no resto daquela tarde, e nem durante a noite. A minha
avó percebeu o afastamento repentino, e quis saber o que tinha acontecido, eu falei
apenas que tínhamos discutido, mas que era algo passageiro, ela aceitou, mas ficou
com um ar de desconfiança, o que me deixou muito nervoso. Mas não vieram mais
perguntas de sua parte, para o meu alívio.
No dia seguinte, eu voltei a falar com Giuliano com normalidade de sempre, ele
retribuiu da mesma forma. Não falamos sobre o beijo. Era como se nunca tivesse
acontecido, apesar de continuar a pensar nele constantemente.
O restante das férias, nos divertimos bastante, mas sem a presença de
Fernando. Sempre que ele tentava se aproximar, nos afastávamos. E quando ele
insistia, voltávamos para dentro de casa, sem dar-lhe uma palavra, mesmo ele nos
xingando de casal de viadinhos. Lembro-me, que durante um desses xingamentos,
em outra ocasião, Giuliano revidou de uma forma bem, surpreendente.
- Lá vai o casalzinho de viadinhos, dar o cuzinho lá no lago. Giuliano é o marido
e Benjamim é a mulher – Fernando cantarolava, quando nos via passar.
- E se formos namorados, o que você tem com isso? – meu primo disse.
Fernando nos olhou espantado, tanto como eu, por alguns instantes, depois
voltou a cantar mais alto:
- Lá vai o casalzinho de viadinhos, dar o cuzinho lá no lago. Giuliano é o marido
e Benjamim é a mulher.
Quando acabou as minhas férias, tive que voltar para casa, e mais uma vez
passamos pelo sofrimento da separação.
- Eu vou voltar no final do ano – disse para Giuliano, tentando consolá-lo.
- Vou marcar no calendário os dias se passarem até chegar ao final do ano –
meu primo respondeu, me dando um abraço forte. Estávamos no meu quarto.
- Eu também – afirmei, lhe dando um selinho longo. Giuliano me agarrou com
força e enfiou a língua na minha boca. Ele estava beijando bem agora. Tão bem, que
pensei que ia cair, tamanha foi a intensidade do seu beijo.
- Ensaiei com as laranjas – ele sussurrou no meu ouvido, após encerrar o beijo.
- Aprendeu bem – eu sorri nervoso. – Não conte a ninguém.
- Eu juro, meu namorado. – ele garantiu.
Rimos juntos do “meu namorado”.
Nunca tinha passado por um semestre tão demorado. Queria ficar de férias o
quanto antes para voltar ao sítio. Até tentei convencer a minha mãe de ir em um final
de semana para lá, mas nem teve negociação com ela. Apelei para o meu pai, mas
ele disse que era melhor eu esperar até o final do ano, pois ele teria como defender a
minha causa, porém, se eu ficasse insistindo em querer ir antes disso, irritaria a minha
mãe e isso dificultaria minha ida futura. Mesmo assim, não parava de falar em Giuliano
e como era divertido estar lá. Isso enfurecia a minha mãe, que não sabia por que
razão, detestava quando eu falava na vovó, no sítio e principalmente no nome do meu
primo. Ela até levantou a hipótese de irmos viajar para o exterior, mas eu fiquei louco
com a ideia, disse que não ia nem arrastado. Por fim, achei melhor não tocar mais no
assunto, para que ela esquecesse. E assim o fiz.
No meu aniversário de treze anos, minha mãe preparou uma megafesta. Mas
eu não estava nem aí para o bolo enorme, os presentes caros e muito menos os
convidados chatos. Queria que Giuliano estivesse ali, mas a minha mãe nem permitiu
que concluísse a ideia de trazê-lo. Ela disse que ele era um jeca, e que ia fazer a
família passar vergonha. Mas mesmos assim mandei o convite, e ele respondeu
dizendo que não fazia muito a dele, mas que tinha preparado um presente para mim.
Aí é que enlouqueci mesmo. Queria entrar de férias ontem, para já estar lá no sítio.
Durante a minha festa de aniversário, a minha mãe não parava de forçar uma
amizade entre mim e a filha de um dos clientes do nosso escritório, Tatiana.
Estudávamos juntos, e ela não saía da minha cola, mas eu não estava nem aí para
Tatiana, e nem para ninguém. Minha cabeça só trabalhava em direção a Giuliano e o
beijo que trocamos antes da minha volta para casa.
Finalmente as aulas se encerraram, e eu explodia de felicidade ante a minha
tão próxima viagem. Mas para a minha grande decepção, no dia da partida, recebi
uma notícia terrível: meus pais também iriam. Isso era uma tragédia. Minha mãe iria
me policiar o tempo todo. Não teria nem um centésimo da liberdade que a vovó dava
para mim e Giuliano. Tentei dissuadi-los da ideia, mas foi inútil. Meu pai também
tentou fazer o mesmo, até sugeriu para a minha mãe que eles só fossem depois, na
semana do natal, mas a minha mãe não aceitou de forma alguma. Ou iríamos todos
juntos, ou ninguém iria. Como não teve jeito, resolvi aceitar a terrível condição. E ela
parecia se satisfazer com a minha cara de decepção. E numa manhã de sábado
estávamos rumando para o sítio, com papai no volante do carro.
- Por que está com essa cara azeda? Por acaso você estava fazendo alguma
coisa naquele sítio, que eu não posso saber, Benjamim? Vindo daquele moleque,
nada me surpreenderia. Quem nasce aos seus não degenera.
- Não enche o saco – eu bravejei.
- Olha como fala comigo, garoto – minha mãe me deu beliscão. Doeu eu
bastante, mas eu não demonstrei que havia sentido, pois sabia que a minha mãe
odiava quando alguém não se envergava diante dela. – Deve ser aquele projeto de
marginalzinho que está te dando o mau exemplo.
- O nome dele é Giuliano, e ele não é um marginal! – gritei com ela. – Ele é
meu amigo, e eu gosto muito dele.
- Se você aumentar o tom de voz pela terceira vez, eu te dou uma surra aqui
mesmo dentro do carro – minha mãe disse, me dando um beliscão mais forte. Meus
olhos lacrimejaram da dor, mas eu me fiz de forte.
- Pois se você machucar o Benjamim novamente, Laura, o problema passa a
ser meu – disse meu pai em minha defesa.
- O que é que é, Roberto? Vai me desautorizar na frente do meu filho?
- Do nosso filho! – meu pai falou com raiva – E é você que vivi o aborrecendo.
O que tem de errado com o Giuliano? Eu adoro o garoto, e acho que ele é uma ótima
amizade para o Ben, muito melhor que esses riquinhos mimados e chatos que você
empurra dentro da nossa casa.
- São negócios, Roberto.
- Então faça o seu jogo sem me envolver e muito menos o Benjamim – meu pai
decretou. – Eu não sei medir afeto com cifras.
- Você é mesmo um romântico incurável – ela riu – Eu não sei como eu...
- Casou comigo? – papai completou. – Podemos resolver isso com muita
facilidade.
- Olha, quer saber? Cansei disso! Faça o retorno que nós vamos voltar – minha
mãe ordenou.
- O máximo que eu vou fazer é parar o carro e te deixar no meio da estrada
sozinha – meu pai revidou. – Se o nosso filho quer passar as férias com a avó e o
primo, ele vai passar. E eu desafio você, a tentar o contrário. Aliás, eu desafio você a
não calar a boca!
Minha mãe se encolheu completamente no banco. As brigas entre eles já eram
muito constantes naquela época. Eu não entendia porque, assim como não entendia
o que a minha mãe tinha contra o Giuliano.
Aquela viagem seria inesquecível. Mal sabia eu, que aquele começo
desastroso era um mau presságio do que estava por vir.
Quando chegamos no sítio, vovó já me esperava ao lado de Giuliano. Pelo vidro
do carro, eu via que ele não se continha de tanta alegria. Pulei do carro, e corri em
sua direção. Nos abraçamos apertadamente, e tão demoradamente, que minha avó
observou:
- Será que sobra um pouquinho de Benjamim, para mim também? – eu pulei
em seu colo, ela me agarrou com precisão. – Mas olha o tamanhão desse rapaz? A
vovó quase não pode mais levantar.
Meus pais vieram cumprimentar a todos também. Papai caloroso e gentil como
sempre, a minha mãe um bloco de gelo. Esta deu um abraço rápido na vovó, ignorou
Giuliano completamente, mesmo ele lhe pedindo a benção, e entrou dentro de casa,
depois de dar ordem para o caseiro, para que ele pegasse as malas no carro. Papai,
no entanto, abraçou Giuliano com muito afeto, bagunçando seu cabelo loiro, e
elogiando a robustez do seu corpo. De fato, ele tinha catorze anos, mas poderia se
passar por dezesseis tranquilamente. Estava enorme, mais forte, e muito, muito mais
bonito, desde a última vez que nos vimos.
- O que a vovó Elisa está te dando, em moleque, fermento? – papai brincou
com ele.
- Tô forte, não é tio Roberto? – Giuliano enrijeceu o braço, deixando os
músculos aparecerem.
- Tá assim, mas e a escola? – meu pai perguntou. – Não quero saber de
sobrinho cochilando nos estudos não, rapaz.
- Sou o primeiro da turma, pode perguntar para a vovó – Giuliano disse com
orgulho. Eu também estava explodindo de orgulho dele.
- Maravilha! – meu pai ainda fez um carinho nele.
- Vamos entrar – minha avó chamou. – Estou surpresa em vocês terem ficado.
- Viemos passar as festas de final de ano com vocês, espero que não seja
incômodo – meu pai disse.
- Incômodo? Vai ser uma imensa alegria meu filho, tê-los aqui... – vovó foi
falando, enquanto entrou no sobrado ao lado de papai, me deixando sozinho com
Giuliano.
- Vamos dar umas voltas por aí? – eu sugeri a Giuliano.
- Mas será que a sua mãe não vai se importar? Já percebeu que ela não vai
muito com a minha cara, não é?
- Não torra com isso – eu disse com descontração. – Ela não manda em mim
aqui. Vou só trocar de roupa e já volto.
Corri para o quarto em que eu sempre ficava, arrancando a roupa ainda no
corredor. Entrei no quarto, pulando em uma perna só, tentando arrancar os sapatos
dos meus pés. Levei um susto ao ver a minha mãe sentada na minha cama, mas nem
dei atenção para ela. Arranquei toda a minha roupa e fucei a mala com pressa, até
puxar um calção de lá de dentro. Em um segundo já estava deixando o quarto, mas a
minha mãe interrompeu a minha saída.
- Já vai se enfiar com aquele menino no meio do mato?
- Se está falando do Giuliano, sim, nós vamos nos enfiar no meio do mato, e
sem hora de voltar– falei, e saí correndo sem dar chance para que ela argumentasse.
Eu também estava me sentindo muito seguro, tendo o papai ali. Duvidava muito
que mamãe tentasse qualquer coisa com a presença dele. Se ela fizesse pelas suas
costas, eu ia bancar o dedo-duro, sim.
Passei o dia inteiro com Giuliano, enfiado no meio do mato, caçando
passarinhos, comendo manga, brincando de aventuras, tomando banho no lago,
subindo em árvores. Só voltávamos para as refeições. Minha mãe estava a ponto de
explodir com aquela minha indisciplina, e eu birrava cada vez mais, confiado no apoio
que meu pai me dava.
No fim do nosso primeiro dia de férias, Giuliano me levou até uma cajazeira,
isolada das outras árvores, e me mostrou o tal presente do qual ele me falara por
telefone. As iniciais dos nossos nomes estavam gravadas no tronco da árvore: G&B.
Fiquei tão emocionado, que chapei um beijo na boca dela, sem me importar em estar
em campo aberto. Giuliano me empurrou até a cajazeira, e prendeu os meus braços,
cruzando-os acima da minha cabeça, então me beijou com força e sede. Ele estava
um profissional no assunto. Muito melhor do que eu. Aquilo sim era um presente de
verdade. Só esperava que ele continuasse só treinando com as laranjas, os beijos.
Deitamos na grama, que circundava a cajazeira, e ficamos admirando o céu
azul e limpo. Giuliano me falou sobre um baile de formatura da sua escola que teria,
mas que ele não estava afim de ir, pois queria me levar, mas como se esperava que
cada garoto tivesse como um par uma garota, ele resolveu que não iria. Mas eu o
incentivei a ir, pois a festa, como sendo um rito de passagem para o ensino médio,
era muito importante para ele. Ele relutou, mas no final acabei o convencendo de que
era o melhor a se fazer, sem deixar de me sentir muito lisonjeado em ser sua primeira
opção de par. Como era de se esperar, ele não teve a menor dificuldade de arranjar
uma garota em cima da hora. Deveria ser o garoto mais desejado da sua escola.
A noite, um Giuliano lindíssimo, usando um blazer azul-claro, sobrepondo uma
camisa clara e calça branca, foi para o baile de formatura de sua escola. Minha
vontade era de entrar na nesse baile de mãos dadas com ele, mas me contive em
apenas o admirar. Todos os elogiaram, menos a minha mãe, que se escondeu atrás
de um livro, acho eu, para não cair na tentação de reconhecer o quão lindo era seu
sobrinho. Isso seria auto ofensa para ela.
Quando Giuliano voltou do baile, eu ainda estava acordado no meu quarto, mas
meus pais já haviam ido dormir. Minha avó só ficou acordada até ele chegar, então se
recolheu também. Alguns minutos depois, a porta do meu quarto se abriu, e vi a
cabeça de Giuliano aparecendo pela fresta. Ele gesticulou com a mão, me chamando.
Obedeci imediatamente, e o segui. Fomos para o seu quarto, e ele trancou a porta.
- Como foi o baile? – perguntei.
- Não sei, pois ainda não começou – ele sussurrou.
- Como assim? – fiquei sem entender aquela sua resposta maluca.
Sem dizer nada, Giuliano foi até um som que tinha em seu quarto e pôs um
CD. Começou a tocar “Every Breath You Take”, do The Police. Ele colocou em um
volume razoável, para não acordar a casa. Giuliano me pegou pelo braço, e
começamos a dançar. Um bailava pior do que o outro, mas eu adorei a surpresa. Ele
apagou as luzes, e as luzinhas coloridas do som, deram um efeito legal no breu. Nos
beijamos muito naquela noite, quase sem parar. Ele não queria largar a minha boca,
e eu tão pouco a dele. Sentia meus lábios incharem, mas não dava trégua. As mãos
de Giuliano desciam pelas minhas costas com força e desejo, mas sempre paravam
na minha cintura. Ele não tentava nada mais audacioso, e eu o adorava mais ainda
por isso.
Começamos o nosso baile particular as 23:00 horas e fomos até as 03:00 da
manhã, namorando muito. No final, antes de deixar Giuliano, ele retirou do bolso um
pequeno arco, delicadamente trançado. Parecia ter sido feito através de um trabalho
artesanal bem engenhoso. Giuliano havia feito dois anéis de capim dourado. Um ele
me deu, e ficou com o outro. Pus no dedo, e lhe dei mais um beijo.
- Agora somos namorados – ele me disse.
- Sim – o abracei, e dei um beijo de despedida.
Não consegui dormir o resto da madrugada. Estava em êxtase com tudo que
havia acontecido.
Mesmo com a minha mãe de olho em mim, minhas férias corriam
maravilhosamente bem. Cada dia estava mais feliz e mais tostado do sol, que levava.
Nem a bunda estava mais branca, pois só vivia no lago, nu, com Giuliano. Mas o
desfecho daquela história, estava próximo.
Tudo começou quando meu primo me chamou para irmos nos aventurar para
além do lago, em um lugar que eu não conhecia. Em uma manhã de quarta-feira,
caminhamos por mais tempo do que o normal, e por mais que eu perguntasse para
ele para onde iríamos, Giuliano fazia mistério e repetia, que eu ia saber quando
chegássemos lá.
Nos afastámos bastante do lago, até chegarmos diante de um comprido
casarão, feito de alvenaria, e com a tinta branca, já bastante descascada e amarelada.
- Nossa! Que casa enorme – eu fiquei espantando com aquela construção ali,
no meio do mato.
- Ninguém sabe quem era os antigos donos – disse Giuliano. – Mas a minha
avó disse que era para conservá-la do jeito que estar.
- Podemos entrar? – perguntei com curiosidade.
- É para isso que estamos aqui – ele disse, me puxando até a porta principal,
que estava semiaberta.
Havia um enorme corredor, cheio de portas para todos os lados. O chão estava
coberto por um tapete de folhas, e recostados nas paredes, haviam muitos espelhos
quebrados, expondo pontas pontiagudas e muito cortantes.
Giuliano correu na minha frente, batendo de leve na minha bunda.
- Você me paga seu safado, vou te pegar! – eu gritei, enquanto corria atrás
dele.
- Benjamim, não é de nada, corre feito uma menina. Não me pega! Não me
pega! Não me pega! - Giuliano corria de costas, zombando da minha cara, que estava
vermelha de tanto correr.
Ele entrou em dos cômodos, e fui atrás dele. Quando entrei no quarto, não
avistei ninguém. Senti apenas alguém me agarrando por trás e roçando o nariz no
meu pescoço.
- Quem pegou quem agora, hein? – ele me apertou.
Sorrindo, tentei me soltar dele, mas Giuliano me segurava sem dificuldades, só
que de tanto eu me sacudir, acabamos caindo no chão, amortecidos pela densa
camada de folhas, que acolchoava o piso. Giuliano girou o meu corpo, me pondo de
frente para ele, e sentou sobre as minhas pernas, mergulhando seus lábios nos meus.
Me beijou por um instante, e parou para tirar a camisa, depois voltou ao trabalho. Os
beijos estavam diferentes. Mais macios, mais molhados. Giuliano estava diferente.
Seus olhos emitiam um brilho que eu ainda não tinha visto.
De repente, quando me dei conta, já estávamos pelados, friccionando a pica
um no outro. Giuliano mordia meu peito o deixando todo vermelho. Em um impulso,
ele me virou de uma vez, me deixando de bruços, e começou a beijar a minha bunda,
babando toda a minha entradinha. Eu contraía os glúteos, espasmando, a cada toque
da sua língua quente e muito úmida. Em pouco tempo estava todo molhado e
vulnerável. Giuliano se deitou sobre mim, e sua pica dura, pressionou o meu cu, me
fazendo sentir uma dor horrível. Parecia que algo estava me queimando.
- Tá doendo, é melhor a gente parar – eu disse, tentando me mexer, mas ele
usava seu peso para me conter embaixo dele. – Vai pelo menos devagar, caramba,
eu nunca fiz isso.
- Desculpa, eu vou fazer devagar. – ele retirou um pouco de sua pica de dentro
de mim, e ficou se movimentando lentamente, me dando muitos beijos na nuca.
Dessa forma eu comecei a gostar da situação, e percebendo isso, ele me
penetrou novamente, e começou a me comer de verdade. Ora eu sentia prazer, ora
eu sentia dor, mas no fim, deixei tudo rolar. Não sei por quanto tempo ficamos ali, mas
foi por bastante tempo. Ele parecia insaciável, sempre querendo mais, e cada vez com
mais força. O que amenizava mais a dor, era as besteirinhas que ele me dizia no meu
ouvido, essas eu fico apenas comigo, caro leitor.
Nós dois gozamos, eu primeiro que ele. E naquele momento, eu senti um prazer
indescritível, gutural. Mas, depois que a sensação da ejaculação passou, me bateu
um profundo sentimento de remorso e nojo. Nojo de mim, e nojo dele. Tudo piorou,
quando percebi que eu havia sangrado consideravelmente, o que não me admirou,
haja visto a ardência que senti. Me ver sangrando, só para satisfazer o desejo dele,
me bateu um ódio profundo. Giuliano tentou me abraçar, me puxar para a posição de
conchinha, mas eu me levantei, recusando o seu carinho.
- Ei? O que foi? Desculpa seu eu te machuquei... É que na hora me deu uma
coisa...
Não disse nada, apenas tirei as folhas que estavam coladas no meu peito
suado, e me vesti o mais rápido possível. Naquele momento, até a voz dele me
incomodava. Me senti usado, menos homem, inferior. Enquanto Giuliano estava
satisfeito, pousando de macho. Pelo menos era o que se passava na minha cabeça
confusa, na época.
Saí andando rápido de lá, e deixei Giuliano. Mas ele me seguiu, ainda sem
roupa, me segurando pelo braço. Quando senti sua mão tocar em mim, fervi de raiva.
Girei o corpo e dei um soco em sua cara, com toda raiva e ódio desse mundo. Giuliano
caiu para trás, sobre um dos espelhos que estavam quebrados. Ele soltou um grito
horrível. Sua coxa esquerda havia sido cortada profundamente por um pedaço
pontiagudo de espelho. Logo sua perna estava totalmente coberta de sangue, e seu
rosto de lágrimas.
Eu deveria tê-lo ajudado. Era a minha obrigação. Era o que eu esperava que
fizesse. Era o que ele tinha certeza que eu faria. Mas eu fugi, e o deixei ali, agonizando
de dor.
Fiz o caminho reverso, e a adrenalina fez com que eu corresse o mais rápido
que o normal. Cheguei na casa da minha avó, e ela estava sentada na varanda,
sozinha.
- Onde está o Giuliano? – ela me perguntou preocupada, me vendo chorar.
- No casarão! – respondi, correndo para o meu quarto e me trancando lá.
Arranquei a minha roupa, sentindo asco do meu corpo, e me enfiei no banheiro,
onde fiquei por minutos a fio, debaixo da água corrente, e me esfregando com muito
sabonete, para retirar todo aquele cheiro de sexo de mim. Estava com a bunda muito
ardida, e fazia careta quando a espuma escorria pelo meu cu recém-desvirginado.
Chorei tanto nesse banho, como nunca havia chorado desde então, não só pelo sexo,
mas por o ter abandonado. Era um misto de sentimentos que explodiam no peito, que
eu achava que não iria resistir aquilo.
Depois da chuveirada, pus uma roupa leve e me joguei na cama, tapando os
meus ouvido com um travesseiro. Não queria sair dali nunca mais.
Passou-se muito tempo, até que alguém bateu na minha porta. Não quis abrir,
mas quando ouvi a voz da minha vó, séria, ordenando que eu o fizesse, obedeci. Ela
entrou com uma bandeja, trazendo o meu almoço, pôs em cima da cama, e caminhou
até a porta novamente, mas antes de sair disse:
- Seus pais foram até a cidade ver uns conhecidos antigos – vovó estava muito
carrancuda, nunca tinha a visto daquele jeito. – E caso você queira saber, “ele” está
bem. Tenha a consideração de ir pedir desculpas, ao menos. – ela por fim me deixou.
Quase não comi. Tomei apenas o suco de cajá que acompanhava o prato.
Estava com raiva agora de mim. Por que eu tinha feito aquilo? Afinal eu também quis
que aquilo acontecesse, senão teria insistido para que Giuliano não continuasse, e sei
que ele teria parado, vendo que eu estava falando sério.
Passei a tarde trancado no meu quarto. Não tinha coragem para encarar a
minha avó e muito menos ele. Também estava muito preocupado se Giuliano havia
contado tudo que acontecera. Se meus pais soubessem não sabia o que ia acontecer
comigo. No mínimo minha mãe me mataria. E dessa vez nem o meu pai poderia
intervir.
No final do dia, tomei coragem, aproveitando que meus pais ainda não haviam
chegado, e fui falar com Giuliano. Abri a porta de seu quarto, que estava apenas
recostada, e entrei lentamente. Ele estava só de cueca, deitado em sua cama, com a
coxa enfaixada. Quando me viu, virou o rosto e enxugou os olhos. Ele estava chorando
por minha causa. Fui até a sua cama, e sentei na borda, fiquei olhando para sua coxa
semiatlética, enfaixada.
- Pode ficar tranquilo, eu não contei nada para ninguém – ele disse, sem me
olhar. Sua voz era grave, sem o menor resquício de doçura, como dantes sobrava.
- Eu confio em você – disse, deslizando a ponta do meu dedo, levemente, por
cima do ferimento enfaixado.
- Então o que veio fazer aqui, Benjamim?
- Vim te pedir perdão – eu disse, ficando de joelhos. – Eu não sei explicar o que
aconteceu.
- Tá perdoado, agora pode ir embora – ele disse, ainda sem me olhar, mas
agora não escondia suas lágrimas.
Beijei sua coxa com suavidade, como se quisesse curar seu ferimento. Mas ele
era bem mais profundo do que o corte em sua carne.
- Acha que é só vir aqui, me pedir perdão e beijar a minha perna, para eu
esquecer? – ele se sentou na cama, interrompendo o meu carinho. – Pois errou.
- Tudo bem, você pode me castigar o quanto quiser – eu disse com uma
humildade canina. – Só não me deixa sair do seu lado, Giuliano. Eu gosto tanto de
você. Eu fiquei assustado com o que aconteceu. Não sabia como agir, então fiz aquela
burrada. Mas foi coisa de momento.
- Eu te amo, e você sabe disso, por isso faz de mim o que quer – Giuliano disse,
pondo a mão no meu rosto.
- Mas namorados discutem, certo? – eu perguntei, com um risinho.
- É verdade – ele retribuiu o riso. – E quando fazem as pazes sempre é melhor.
Ele me puxou para um beijo maravilhoso.
- QUE É ISSO?! – ouvi o grito da minha mãe na porta do quarto de Giuliano. –
O QUE VOCÊ TÁ FAZENDO COM O MEU FILHO SEU PERVERTIDO???
- Mãe!!! – eu fiquei apavorado, e empurrei Giuliano para longe de mim.
- Nós somos namorados – Giuliano disse.
Minha mãe voou em cima dele, e lhe deu um tapa com força no rosto.
- Nunca mais repita isso seu demônio! – ela tremia de ódio.
- Diz para ela, Benjamim! Diz para ela! – Giuliano chorava, implorando. Mas eu
fiquei apenas em silêncio, choramingando de cabeça baixa, pousando de vítima.
- Não se dirija ao meu filho seu delinquente. Eu sabia que você não prestava!
Eu sabia que você sendo filho daquela vagabunda, não podia sair algo bom!
- Não fala da minha mãe! – ele gritou.
- Vagabunda! Vagabunda! Vagabunda! – minha mãe bradou com força.
Giuliano avançou sobre ela, mas minha mãe lhe deu mais um tapa no rosto,
fazendo-o cair, e arrebentar o ferimento da coxa. Nesse instante minha avó e meu pai
subiram as escadas, e entraram no quarto.
- O que está acontecendo, pelo amor de Deus? – minha avó foi socorrer o
Giuliano.
- Esse marginal, bastardo, que sua filhinha predileta jogou nas suas costas,
molestou o meu filho! Eu devei colocá-lo na cadeia, seu bandido! – minha mãe bufava
raivosa. – Eu disse que esse garoto não prestava, Roberto! – ela se voltou para o meu
pai. – Eu vou pegar o meu filho, e nós vamos embora desse lugar nojento, para nunca
mais voltarmos. Se você quiser pode ficar.
Minha mãe me arrastou para fora do quarto. Então olhei pela última vez para
Giuliano, o que vi foi um garoto profundamente arrasado, ferido de morte.
5. O CIÚME É INOXIDÁVEL
Meu rosto estava queimando em brasa. Não sei como me mantive acordado
depois daquela porrada, acho que a tensão do momento me garantiu uma resistência
extra, mas com a redução de adrenalina, e o relaxamento dos músculos, causado pela
água do banho que estava tomando, me fizeram sentir a extensão da força de
Giuliano. Doía pra caramba, eu não podia negar, mas estranhamente, a minha
consciência parecia mais tranquila, como se eu tivesse acabado de saudar um débito
com o cosmo, ou pelo menos ter dado uma entrada generosa, reduzindo assim o valor
das demais prestações.
Terminei o banho e fui fazer um inventário dos danos. Felizmente meu rosto se
mostrou mais resistente do que eu presumia. O lado do soco estava vermelho, e o
canto esquerdo da minha boca, bem com o início da extremidade do lábio superior,
estavam inchados, e prenunciando uma mudança para o tom de roxo, mas nada que
pudesse pôr uma dúvida, uma prevista desculpa de que eu sofri um acidente
doméstico.
Depois de tomar um relaxante muscular e passar um gel anti contusão no rosto,
fui deitar um pouco, mas não consegui dormir nem um por um segundo. Meu rosto
latejava e formigava, se concentrando em uma unidade de dor, mas isso não era o
que mais me incomodava. As memórias envolvendo a mim e a Giuliano, eram que me
perseguiam como um espectro. Há dez anos, meu primo jamais me bateria, pelo
contrário, era ele que sempre aguentava as minhas pancadas. Me sentia
completamente protegido e amado, quando estava ao seu lado, e essa segurança e
alento, eram praticamente desconhecidos pelo meu coração, e a ausência de ambos,
era o agente patológico que tanto me causava enfermidade. Enfermidade da alma.
Essa é difícil de curar.
Ainda na minha cama, conseguia ouvir movimentos no quarto de Giuliano.
Percebi quando ele trancou a porta do seu quarto pelo lado de fora, e pelo cheiro forte
e maravilhoso que invadia o meu quarto, com certeza ele estava vestido para sair. Por
um momento tive a impressão de senti-lo parado em frente à minha porta. A maçaneta
da porta se moveu levemente, mas depois voltou para o seu estado inicial, e a
sensação de ter alguém parado ali, passou. Acredito que ele queria ver como eu
estava, mas desistiu em seguida. Isso fez me sentir bem, pois, afinal, ele ainda se
preocupava comigo, mesmo que apenas um pouco, isso significava que eu não era
um total defunto em sua vida.
Mais ou menos, uma meia hora depois, resolvi descer. Antes me olhei mais
uma vez no espelho, e constatei que o inchado estava mais acentuado. Vovó estava
sozinha na varanda, lendo um livro tão concentradamente, que nem percebeu minha
aproximação sorrateira. Só depois que me sentei ao seu lado, é que ela perguntou,
sem olhar para mim.
- Achei que você ia sair com o Giuliano?
- Não creio que era do desejo dele que eu fosse – respondi, abaixando a cabeça
e estudando o tapete sob os meus pés.
- É possível... – ela disse, ainda sem erguer os olhos. – Mas não me lembro
desse Benjamim que acata ordens, quando na verdade quer fazer exatamente o
contrário daquilo que lhe exigem, principalmente se tratando de alguém que não
exerce nem um tipo de autoridade sobre ele.
- As pessoas mudam, certo?
- Algumas, sim – vovó respondeu. – “Mudar” é uma necessidade de
sobrevivência. Giuliano mudou, porque essa era única forma dele sobreviver... – ela
parou e olhou para mim. Sua reação inicial foi de espanto, ao me ver com o rosto
daquela forma, mas não disse nada.
- Eu devia esse soco a ele – respondi, sentindo sua pergunta no olhar.
Minha vó fechou o livro, e o pôs de lado e veio me dá colo. Deitei minha cabeça
em suas pernas, enquanto ela fazia um carinho no meu cabelo. Ficamos em silêncio
durante um bom tempo, até que ela começou a me contar:
- Não tenho dúvida de que você sofreu muito depois daquela tarde infeliz, há
dez anos, mas garanto que Giuliano foi destroçado, quase à morte. E foi isso que eu
achei que ia acontecer. Seu primo foi sugado por uma depressão tão profunda e
obscura, maior do que todo o sofrimento que já vi. Seus olhos foram tomados por um
imenso e silencioso vazio. Ele parou de comer, de sorrir, de brincar, de viver. Muitas
situações me levaram a esconder todas as facas da casa, ou outro qualquer objeto
cortante. Perdi as contas de quantas vezes tive que embalá-lo, para que conseguisse
dormir.
- E como ele superou tudo? – perguntei um pouco sem graça, como se a
pergunta denunciasse a minha culpa.
- Se dedicou muito aos estudos – minha avó responde, pausando antes de
continuar: – Logo na sequência do que aconteceu, ele se assumiu para mim. E fiquei
muito feliz pela sua franqueza. Mas nunca foi mais o mesmo. Cursou Veterinária e
montou um consultório e uma loja pet, que tem prosperado muito rápido até, a julgar
pelo pouco tempo de funcionamento. Mas no campo do coração, acho que ele só teve
um namorado sério. Henrique era o nome dele, se não me falhe a memória. Pareciam
se dar muito bem, achei que até resultaria em casamento.
Já não simpatizei desse Henrique, só pelo nome. Devia ser um “tipinho” como
o tal do Sandrinho, que estava no colo do Giuliano.
- E por que o relacionamento não perdurou? – perguntei, muito curioso.
- O Henrique foi embora, pois ganhou uma bolsa de estudo na Irlanda, então o
Giuliano achou que um relacionamento a distância não seria uma boa coisa.
- E... Ele sofreu muito, com essa separação? – perguntei, fingindo total
despretensão.
- Qual o sentindo da sua pergunta? Não vai me dizer que sente ciúmes do seu
primo, depois de dez anos? – minha avó me fuzilou com um olhar malicioso.
- Ciúmes?! Que ideia mais sem sentido, vó – eu falei com raiva. – Caso a
senhora não saiba, eu estou noivo.
- Verdade? Meus parabéns! E qual o nome dele?
- Não é ele, é ela, isso é óbvio – respondi altamente ofendido.
- Ah, certo – ela fez um ar de quem ia engolir o que ouvira, pois não queria
discutir aquele assunto.
- Bom, eu acho que vou dormir um pouco – disse me levantando.
- Achei que você ia sair – observou minha avó.
- Eu até pensei, mas não acredito que seja uma boa ideia, dada as atuais
circunstâncias – mal terminei de dizer a frase, dois faróis apontaram na curva da
estrada, e uma S10 azul surgiu, entrando pelo portão que estava aberto. Era
Fernando.
- Benjamim, ainda não está pronto? – ele gritou através da janela do carro,
buzinando de forma bastante incômoda.
- Não estou muito no pique – eu disse.
- Ah, corta essa! Não vai me dizer que o Giuliano te proibiu de sair? – ele era
bom nesse jogo.
- Só não estou, afim! – decretei já irritado.
- Definitivamente eu não aceito um não como resposta, quando estou muito
interessado em algo – Fernando disse, buzinando o carro sem parar.
- Não vai me vencer com essa tática – eu disse, cruzando os braços.
- Vou continuar buzinando, mesmo assim – Fernando afirmou. – Só não se
esquece, que no estado de saúde da sua avó, esse barulho pode incomodar ainda
mais. Mas ela é sua avó e não minha, então é você quem sabe.
E as buzinadas continuaram, cada vez mais infernal. Percebi que a minha avó
realmente estava muito incomodada aquilo. Não tinha jeito mesmo, sabia que
Fernando ia continuar com aquela pressão. Ele era desses tipos de garoto bem
birrentos.
- Tudo bem! Você venceu! Eu vou! Agora para com esse inferno sonoro – disse,
entrando para dentro de casa para me trocar.
Já que era para sair à noite, e provavelmente encontrar com o Giuliano, eu
resolvi provocar. Pus uma calça jeans clara, muito colada (quando digo colada, quero
dizer tipo segunda pele), que fazia minhas coxas parecerem o dobro mais torneadas,
e a bunda ficar bem talhada, uma blusa creme, sobreposta por um blazer escuro, bem
moderninho. A minha mãe me deixaria nu, se me visse vestido naquela calça.
- Henrique, hein? Aposto que ele não chega aos meus pés – disse para mim
mesmo, enquanto analisava o meu reflexo no espelho do quarto.
Saí do quarto, ainda ouvindo a buzina do carro de Fernando, que berrava
agudamente, exigindo que eu me presentasse o quanto antes.
- Tá bom! Não precisa continuar com esse escândalo! – repreendi Fernando,
assim que surgi na porta outra vez. Ele estampou um sorriso sacana no rosto, assim
que me viu.
- Tchau, vó – me despedi dela com o beijo na testa.
- Tchau meu filho, pensa bem sobre tudo que conversamos – ela me disse,
antes de entrar.
Apenas confirmei com a cabeça, descendo o pequeno lance de escadas, e
rumando em direção a Fernando, que ainda preservava o mesmo sorriso malicioso.
- Bem, vendo você vestido desse jeito, não posso cometer o pecado de não de
propor uma nova rota – ele desceu do carro, pondo a mão no queixo enquanto me
esquadrinhava. – Eu conheço um motelzinho aqui perto que é...
- Motelzinho? Se você não parar com isso, a nova rota que eu vou tomar, é a
do meu quarto, sozinho, é claro – disse bem prepotente, e paguei caro por isso, pois
uma resposta que eu não esperava, veio em seguida.
- Não vai me dizer que você está todo gostosinho assim para o Giuliano? Fala
sério! Achei que vocês já tinham superado aquela criancice. Mas se bem que
pensando agora, não me lembro de ter visto ele tão irritado, antes de você chegar.
- Olha, se for para ficar conversando idiotices, eu prefiro ir dormir – eu disse,
dando meia-volta, mas Fernando me segurou pelo braço, detendo-me.
- Calma tigrinho. Se prefere que a gente não fale no chato do Giuliano, nós não
falamos – Fernando fez um carinho na minha bochecha.
- Tigrinho? – indaguei revirando os olhos – É melhor eu entrar nesse carro antes
que ouça mais uma asneira.
Dei a volta e entrei no lado do carona. Fernando me acompanhou com os olhos
até eu bater à porta do carro, então assoviou e comentou:
- Comissão de trás: 10
- Imbecil – resmunguei.
- Ei, amorzinho, que foi isso no seu rosto? – Fernando perguntou o inevitável.
Apesar de eu ter atenuado com uma cobertura transparente, o inchaço ainda era
visível.
- Eu escorreguei e bati com o rosto na porta do banheiro.
- Uma porta bem forte e de cabelo loiro, né? – Fernando disse. – Você e seu
primo ainda são os mesmos moleques de sempre.
***
Parecia ter voltado duas décadas atrás, quando vi surgir diante de mim, uma
casa com decoração que lembrava um pouco o country e a época de ouro do rock.
Dava uma sensação de aconchego e nostalgia. Um letreiro florescente nomeava o
lugar: ESPARTA.
- Parece ser bacana? – eu disse, correndo os olhos pela fachada. Notei que
havia muitos carros estacionados ali, e que risos, conversas e muita música se
misturavam em uma sintonia caótica e inebriante.
- Nossos orgulho municipal – Fernando desceu do carro, apontando para o
lugar chamado ESPARTA, como se tivesse me apresentando a um amigo seu muito
achegado. – O que estamos esperando? Vamos!
Desci do carro e o acompanhei casa a dentro. Um ambiente era
propositalmente mal iluminado. Decoração rústica, mas bem bolada, com algumas
mesas de sinuca espalhadas pelos cantos, sofás bem aconchegantes dispersos por
outros, jogos de luzes, que nos intervalos de claridade, revelavam que a casa estava
bem cheia.
- Quer beber alguma coisa? – Fernando me perguntou, de uma forma bem
gentil.
- Não seria uma má ideia – eu respondi, abrindo um leve riso – Só não vai
batizar, hein? – fiz piada quando ele saiu para buscar a bebida.
- É melhor não me dá ideia, Benjamim – Fernando olhou para trás, lambendo
os lábios.
“Cretino”, pensei.
Tocava “Creep” do RadioHead, quando os meus olhos inconvenientes,
encontraram o Giuliano, em uma das mesas de sinuca, exalando toda sua
testosterona, em uma regata preta, que parecia ter sido sobreposta por uma camiseta
xadrez, que agora amarrava sua cintura, por cima de um jeans. Sandrinho estava ao
seu lado, pulando feito uma perereca drogada, a cada bola encaçapada. Devia estar
fantasiando o Giuliano o encaçapando.
- Olha aqui sua bebida – Fernando me acordou do transe, entregando-me uma
caneca com chope.
- Ah, obrigado – recebi a bebida, um pouco desconcertado. Tentei fingir que
não estivera secando o outro, mas foi impossível, pois ele devia ter visto tudo. Mas
em vez de se chatear, Fernando fez uma coisa completamente inesperada: fui puxado
por ele, como se tivesse sido arrastado por um gancho, para um beijo molhado e
profundo. Ele parecia ter invertido a polaridade de seus lábios, para criar uma adesão
tão perfeita.
Talvez por causa da minha carência, somada à qualidade do beijo do
Fernando, não o interrompi o nosso amasso, até finalizarmos em longos selinhos.
Instintivamente, assim que desgrudei os meus lábios dos de Fernando, corri os meus
olhos na direção de Giuliano novamente, e dessa vez o flagrei me encarando como
uma águia diante de uma presa. Mesmo sendo pego pelos meus olhos, meu primo
não desviou o olhar, o preservou em desafio.
- Por que você fez isso? – perguntei para Fernando, sem olhar para ele, quase
silabando as palavras.
- Não me incomodo que você ainda esteja afim do idiota do Giuliano, mas eu
preciso te ensinar alguns truques de sedução, e fazer ciúmes está no topo do manual.
- Não seja ridículo! – olhei para Fernando finalmente. – Não quero nada com
Giuliano!
- Que tal a gente pular essa parte? – Fernando se mostrou impaciente. – Odeio
quando subestimam a minha inteligência.
- Eu não devia ter vindo aqui – fiz menção de sair, mas Fernando,
disfarçadamente, se interpôs no meu caminho.
- Se sair agora, vai parecer que o fato do Giuliano ter visto o nosso beijo, te
causou arrependimento de tê-lo feito, deixando o seu priminho certo de que você ainda
é caidinho por ele, e isso você não quer, ou quer?
- Por que você acha que tudo que eu faço ou penso em fazer, diz respeito ao
Giuliano? – indaguei rispidamente. Se tem uma coisa que não suporto, é ser visto
como um dependente emocional.
- E não é? – Fernando deu um gole em sua bebida, depois de dizer.
Por mais que eu quisesse ter respondido incisivamente que não, a resposta
não veio tão fácil como deveria. Fiquei encarando Fernando, com um olhar que se
fosse uma arma, teria o alvejado sem qualquer chance de defesa.
- Esse papo de Giuliano está azedando a nossa noite, vamos deixar o metido
a machinho para lá, e curtir. – dizendo isso, Fernando me puxou pela cintura, mas
antes dele repetir o beijo, eu dei um gole na minha bebida, ocupando a minha boca.
- Não vai rolar – declarei para Fernando, retirando suas mãos da minha cintura.
O mesmo mostrou resistência no começo, como se esperasse que eu pensasse duas
vezes e no final não conseguisse resistir à tentação de beijá-lo novamente. Contudo,
ao perceber que eu falara realmente sério, ele largou a minha cintura e se afastou,
sem retirar os olhos de mim. Olhos cheios de convite para mais tarde, caso eu
mudasse de ideia.
Olhei de esguelha para direção de Giuliano e percebi que ele acompanhara
toda cena, com uma atenção canina. Por alguma insanidade, decidi ir até ele, e pela
mudança de expressão que seu rosto sofrera instantaneamente, meu primo não
imaginara que eu teria a ousadia de me juntar a ele.
- Boa noite – disse, ficando bem próximo da mesa de sinuca. Alguns murmúrios,
responderam a minha chegada, sem dar tanta importância à minha presença.
Sandrinho me olhou com um misto de incômodo e desconfiança.
- O seu namorado te deixou sozinho? – Giuliano sussurrou no meu ouvido,
enquanto passava por trás de mim, à procura de um ângulo melhor para mirar na bola.
- O que você disse? – fingir não ter entendido.
- Ah, é verdade, você não é do tipo que namora – Giuliano completou,
temperando as palavras como muita malícia.
- Qual o seu problema? – falei alto – Só vim aqui a título de gentileza.
- Pôs enfia sua gentileza...
- Giuliano! Me ensina a encaçapar a bola – esganiçou Sandrinho, pulando na
minha frente, quase fui esmagado pelos seus pés frenéticos.
- Claro! – Giuliano e se colocou atrás da “coisinha”, colando os seus corpos
perfeitamente, enquanto inclinava ambos para frente, ajeitando Sandrinho na posição
certa. Eu só não sabia se era a posição para jogar ou foder. Ele fazia tudo isso, me
encarando. Como se quisesse esfregar na minha cara tudo que eu estava perdendo.
Fiquei apenas observando, imitando um semblante de quem não estava sendo
incomodado com aquela situação. Por dentro eu era um Vesúvio, e desejava que
Giuliano e “a” Sandrinho fossem Pompéia.
- Xi, que joguinho mais morno esse de vocês – Fernando chegou por trás de
mim, trazendo duas canecas de chope. – Toma, Ben – ele me entregou.
- Obrigado – mal agradeci, já havia empurrado metade garganta a dentro. Era
daquilo que eu precisava.
- Então, gatinhas, que tal colocarmos pimenta nisso – Fernando disse,
enquanto passava a mão pela minha cintura com toda propriedade.
Quase cortei a ousadia do abusado, mas me detive ao ver a cara de raiva com
que Giuliano olhou para a mão de Fernando me possuindo, como um macho que
delimita seu território. Podia ver seu ciúme estampado nas veias que saltavam dos
seus braços, enquanto o meu primo contraía os músculos e enrijecia mais ainda o
maxilar.
- Vamos jogar em dupla – propôs Fernando. – Giuliano e Sandrinho e eu com
Benjamim.
- E qual o prêmio estaremos disputando? – o tal Sandrinho perguntou dando
pulinhos.
Fernando esfregou as mãos antes de responder:
- O vencedor escolhe um castigo para os perdedores.
- Para mim fechou – disse Giuliano, apertando a mão de Fernando, mas o seu
olhar de lobo-mau estava fixo em mim.
- Mas eu não estou a fim de participar de algo estúpido como isso – eu protestei,
já girando os calcanhares para me afastar dali.
- Não poderia esperar outra coisa sua, que não fosse “covardia” – Giuliano deu
muita ênfase à última palavra.
Ainda pude ouvir uns risinhos da coisinha que o acompanhava, antes de me
virar e dizer com firmeza e convicção falsas:
- Disputa aceita!
- Assim é que eu gosto! – Fernando me deu um beijo na bochecha.
Fernando começou a disputa encaçapando de primeira. Sua empolgação foi
tão grande, que ele tascou um beijo repentino na minha boca. Não tive nem tempo de
reagir diante daquilo, fiquei apenas em choque.
- Dá para continuarmos! – Giuliano bradou.
Quando consegui desgrudar a minha boca da de Fernando, olhei
imediatamente para o meu primo. O que vi foi o mais profundo desprezo em seus
olhos. A partir daí Giuliano virou uma máquina da sinuca.
Fomos massacrados.
- Então, agora que vocês tiveram essa perda vergonhosa, o que vamos exigir
como castigo, hein? – Sandrinho nos olhava com malícia. – Podíamos pedir para
vocês fazerem um strip-tease. O que acham?
- Por mim, sem problemas. – Fernando se antecipou.
- Ficou maluco? É claro que eu não aceitaria – fui firme em dizer.
- Tentando esconder alguma visão desinteressante? – Sandrinho disse me
olhando com superioridade.
- Se na sua casa tiver muitos espelhos, você deve ser um perito em visões
desinteressantes – respondi.
A bicha má apenas me olhou com a cara de quem chupou um cacete azedo.
- Vamos fazer o seguinte então, a próxima música que tocar, eu e Benjamim
vamos cantar – Fernando propôs, apontando para um canto onde se encontrava um
karaokê.
- Vocês façam o que quiser – Giuliano largou o taco. – Não me interessa – ele
nos deu as costas e saiu em direção ao bar, a cadelinha dele correu atrás.
Que visão linda foi vê-lo pelas costas, andando, com aquele bundão empinado,
bem talhado pelo jeans claro surrado. Os braços reluzentes de suor, desnudos.
Vendo-o o tão distante de mim, e frio, me bateu uma vontade louca de chorar com
desespero. Lembrava-me como era bom ser protegido e cuidado por ele na nossa
infância e início da adolescência. Como teria sido se eu não tivesse sido tão covarde?
Enganei-me quando achei que não era mais carente daquele amor.
Despertei das minhas conjecturas, ao ser puxado abruptamente por Fernando.
Deixei-me ser levado, enquanto olhava o meu amor de infância recostado no balcão
do bar. Nem percebi que Fernando estava obstinado com aquela ideia maluca de
cantar no karaokê.
- Pega, Ben – ele me entregou um microfone. Recebi no automático. – Se liga
que a música que está acabando. A próxima nós vamos cantar.
Parecia brincadeira, mas não era. Foi “Every Breath You Take”, do The Police
que começou a tocar. As pessoas pararam o que estavam fazendo, e pasaram a
prestar atenção em mim e Fernando.
Quando comecei a cantar as primeiras palavras música, Giuliano girou
abruptamente, e com os olhos arregalados ficou como se estivesse hipnotizado. Isso
me deu ânimo para cantar com mais força. Ignorava completamente se Fernando
estava me acompanhando ou não. Eu tinha certeza que Giuliano estava lembrando
que dançamos aquela música no dia do seu baile de escola. E que naquela mesma
noite ele me deu a aliança de capim e ficamos namorados oficialmente. Eu via em
seus olhos que aquela música ainda mexia com ele, como mexia comigo. Mas de
repente, ele largou o copo de chope e saiu da “Esparta”. Por alguns segundos vacilei
na letra da música, por conta da atitude de meu primo, mas concertei o erro e continuei
a cantar normalmente.
Fomos muito aplaudidos. As pessoas pediram mais, e se dependesse de
Fernando continuaríamos cantando, mas eu resolvi que era hora de ir embora. Ele
tentou me dissuadir da ideia, mas quando disse que ia mesmo sem ele, Fernando
resolveu ceder. Disse que se ele desviasse do caminho da minha vó eu faria o carro
derrapar. Ele acreditou e me trouxe de volta para a casa, sem tentar nenhuma
gracinha.
Entrei em casa, e fui mergulhado no mais profundo silêncio. Quase todas as
luzes estavam apagadas. E eu sabia que Giuliano estava em casa, pois passei por
seu carro, parado na frente do sobrado. Só torcia para que ele não tivesse trazido
aquele sujeitinho. Não sei se suportaria ouvir Giuliano comer ele ali ao lado. E tenho
certeza que ele não faria a menor cerimônia por saber que eu estava tão próximo de
seu quarto, pelo contrário.
Tirei os sapatos e fui direto para o meu quarto, mas antes de entrar me
aproximei da porta do quarto do meu primo, aguçando os ouvidos ao máximo para
tentar ouvir qualquer coisa. Nada. O quarto estava com as luzes apagadas e
absolutamente silencioso. Menos mal, pensei. E com esse pensamento consolador,
entrei em meus aposentos e tomei um banho demorado. Ainda de toalha fui até a
cozinha tentar desencavar alguma sobra de gostosura da Rosa. Quando entrei na
cozinha, parei de chofre. Giuliano estava apenas de cueca boxer azul-marinho, com
linhas brancas nas laterais. Encostado na pia, ele comia uma banana com voracidade.
- Ah, desculpa – eu fiquei desconcertado, tanto diante de tanta exuberância,
como pelo fato de estarmos sozinhos ali. A última vez eu terminei com o rosto
detonado.
- Não quis esticar com seu namorado? – Giuliano me perguntou a seco, para a
minha incredulidade.
- Entre mim e Fernando não existe e nem vai existir nada – respondi abrindo a
geladeira e me servindo de água.
- Ah, esqueci que você é “hétero” – Giuliano se esforçou no tom irônico. – Mas
aqui não tem ninguém que possa de comprometer.
- Giuliano, eu estou cansado desse joguinho! – falei bem sério.
- Tá, é? – ele jogou a casca da banana na pia, com força e veio para cima de
mim, parando bem próximo do meu rosto. Senti uma intensa descarga no corpo, ao
experimentar de seu hálito quente. – Então vai embora – ele continuou, de forma
grosseira.
- Não vou! Já disse!
- Olha, como fala comigo, moleque – ele ergueu a mão para mim.
- Bate! Mas dessa vez de verdade – desafiei. – Não é o que você quer?
- Minha vontade é de te matar – ele espumou. – Acha que seu “showzinho”
ridículo me comoveu. O que estava pensando ao cantar aquela música estúpida.
- Eu não planejei, mas também não me arrependo – eu disse mais calmo. –
Mas me arrependo de não ter sido corajoso para enfrentar a minha mãe. Me arrependo
de ter traído todo o nosso amor. E ele ainda queima no meu peito. Mais forte do que
nunca.
- Cala boca! Sai daqui! – Giuliano me empurrou.
Afastei-me, mas antes de sair da cozinha ainda disse:
- Saiba que eu também queria me matar.
Quando cheguei ao corredor dos quartos, Giuliano surgiu atrás de mim. Eu já
podia imaginar a dor que seria aquela surra, que eu suspeitava que ele estava prestes
a me dar. Mas meu primo, em vez disso, me jogou contra a parede com força, sacou
a minha toalha fora, e engoliu a minha boca em um beijo com o cumulativo de dez
anos.
6. O PASSADO SEMPRE VOLTA
- Ah, meu Deus, vó! – Às lágrimas brotavam dos meus olhos em um fluxo
contínuo. Por um breve instante fiquei inerte, segurando o corpo desfalecido da minha
avó.
Ela não me respondia, por mais que eu balançasse seu corpo e a chamasse.
- O que foi, isso? Ah, meu Deus dona Elisa – Rosa entrou no quarto e acudiu a
minha avó.
- Es-es-távamos conversando e ela de repente desmaiou – balbuciei essas
palavras. – Ela estava triste porque o tio Hélio e a minha mãe não atenderam ao seu
pedido de virem para cá... Rosa, precisamos de uma ambulância agora!
- Sim.. – Rosa saiu atropelando os móveis.
Fiquei abraçado com a minha avó, ninando ela no meu colo. Um aperto tomou
conta do meu peito, tapando a minha respiração. Minha avó não podia morrer. Não
desse jeito, com o coração cheio de desgosto.
Em meia-hora dois enfermeiros e um médico-socorrista entraram no quarto
com uma maca. Colocaram a minha avó em cima, enquanto me faziam algumas
perguntas sobre ocorrido. Expliquei da melhor e mais rápida forma. Descemos todos
juntos, e ao cruzar com Rosa desesperada lá embaixo, pedi que ela pegasse os
documentos de vovó Elisa o mais depressa possível, e fosse para o hospital logo em
seguida, pois eu iria com a minha avó na ambulância.
- Ela vai ficar bem, não vai? – perguntei para o médico-socorrista que tentava
reanimá-la, mas sem êxito.
- Você precisa estar preparado – ele me disse sério. – O quadro de câncer dela
é irreversível, e ela está extremamente debilitada.
O percurso do sítio até o hospital não era tão longo, mas a estrada estava
péssima por conta das chuvas, o que atrasou bastante a nossa chegada.
Levaram a minha avó para o CTI e não me deixaram entrar. Eu caminhava de
um lado para o outro com as mãos postas na cabeça, completamente sem rumo.
Sentia-me de mãos atadas, desejoso de fazer alguma coisa que pudesse ajudar na
situação, contudo, fora a questão burocrática, coisa alguma estava ao meu alcance.
Fui para uma salinha de espera, reservada para os parentes dos internados.
Não demorou muito e Rosa chegou acompanhada de Fernando, que naquele
momento foi um alívio para mim. Corri para seus braços, e ele me recebeu
calorosamente. Naquele momento nenhuma cafajestagem dele, cometida no
passado, importava mais. O fato dele está ali, me bastava.
- Meu filho, aqui tá todos os documentos de dona Elisa, junto com os últimos
exames que ela fez – Rosa me entrou uma pasta, mal conseguindo segurar. Suas
mãos tremiam muito, e seus olhos, já molhados, ameaçam despencar um choro
volumoso, mas ela se mantinha forte, e estava certa; aquele não era o momento para
perdermos a razão.
Corri com os documentos da minha avó e cuidei de toda à burocracia, ao lado
de Fernando, que ficou firme junto a mim.
- Como você soube? – perguntei para ele, com a voz um pouco presa.
- Vi o movimento de ambulância, e corri para o sítio da tia Elisa – Fernando
falava segurando a minha mão suada. – Só que quando cheguei lá, você já tinha saído
com sua avó. Encontrei apenas Rosa, alvoroçada. Ela me contou o que tinha
acontecido, e eu disse que ia acompanha-la até aqui.
- Obrigado, Fê – eu dei um beijo carinhoso em sua bochecha.
- Na bochecha? Bem que podia ter sido na boca – ele cochichou no meu ouvido,
dando um sorrisinho, mas não malicioso.
- O quê?!
- Relaxa, Benjamim – Fernando bagunçou o meu cabelo. – Só estou curtindo
com sua cara. Não que eu não queira um beijo seu na boca. Mas hoje só quero
amenizar o clima.
- Nem o seu humor incurável, vai conseguir hoje – deitei a minha cabeça em
se ombro.
Rosa estava tão absorta no terço que ela rezava, que mesmo sentada ao nosso
lado, não deu sinais que de que estava prestando atenção ao que nós falávamos.
- E o Giuliano? – Fernando perguntou. – Aonde ele está?
- Meu Deus, eu havia me esquecido dele! – eu exclamei, pegando o celular
rápido no meu bolso.
O celular chamou até a ligação cair. Liguei uma segunda vez, aconteceu a
mesma coisa. Tentei pela terceira vez, e o celular chamou umas quatro vezes e a
ligação foi rejeitada.
- Ele desligou – disse para o Fernando.
- Acho que não, tenta mais uma vez – Fernando pediu.
Fiz. O celular chamou duas vezes e finalmente foi atendido, por alguém que
berrou:
- O que você quer?!!!
Até Fernando se assustou com o tom grosseiro e irritado da voz que atendeu o
celular, por isso aproximou o seu ouvido para escutar.
- Giuliano? – perguntei.
- Não é o Giuliano, é o namorado dele – Henrique disse.
- Henrique, não é o momento – eu falei com a voz vencida. – Chama o Giuliano,
que é urgente.
- Sei... – Henrique desdenhou de mim. – Benjamim, cai na real, porque está
ficando ridículo para você, ficar se metendo entre mim e o Giuliano. Ainda não ficou
claro que ele não quer mais nada com você?
- Vai para o inferno, Henrique! – explodi, mas sem gritar. Não era o local e eu
não queria abalar a Rosa.
- Eu estou com a nossa avó no hospital entre e a vida e a morte. – as lágrimas
desciam pelo meu rosto, profusas.
- É sério?! – a voz de Henrique soou preocupada.
- É sim... – solucei, trocando o tom da minha a voz também. – Ela passou muito
mal e...
Uma gargalhada estridente ecoou do outro lado da linha, interrompendo a
minha frase. Fiquei assustado com aquela reação de Henrique.
- Lamento interromper o que seria uma historinha bem engendrada – ele me
disse. – Você achou mesmo que eu ia cai nessa sua mentira. Não me subestime seu
viadinho.
- Não é mentira – tentei argumentar com aflição e raiva. – A vovó pode nem
passar de hoje.
- Que coisa feia, que golpe baixo, Benjamim – agora Henrique era sarcástico.
– Usar a própria avó para tentar conseguir mais uma trepada com Giuliano. Desista!
Você perdeu!
Fernando arrancou o celular da minha mão e falou em um tom muito alterado.
- Oh, seu escroto do caralho! O Benjamim está falando a verdade, onde está a
porra do Giuliano?
- E ainda tem cúmplices – ouvi Henrique dizer, antes de desligar na cara de
Fernando.
- Desgraçado! – Fernando apertou o celular com força, talvez imaginando suas
mãos no pescoço de Henrique. – O Giuliano ainda te trocou por essa tranqueira. Eu
sempre disse que esse Henrique não prestava. Sempre deu em cima de mim, só não
passei a pica nele por que não quis.
- O que foi isso? – Rosa quis saber.
- O queridinho Henrique de vocês, mostrando quem de fato ele é – respondi. –
Liguei para o Giuliano, e o “namorado” dele atendeu. Mas não quis passar para o meu
primo.
- O Henrique? Não pode ser – Rosa me decepcionava com sua incredulidade.
- Até você, Rosa? – falei irritado. – Será que a minha palavra não tem valor
nenhum, mesmo?
Antes que ela me dissesse mais alguma coisa, o médico da vovó Elisa veio nos
procurar.
- Os familiares de Elisa Lira Cardoso? – o médico chamou.
- Sou eu – levantei-me. – Sou o neto dela.
- Você pode me acompanhar? – ele me chamou, e foi saindo da sala.
Segui-o até sua sala, junto com Fernando, que diferente de Giuliano, estava ali
para me amparar no que eu precisasse. Pude ver que ele tinha uma atitude bem
diferente, quando era necessário.
- Eu sou o doutor Lázaro Bernard – o médico, de meia-idade, se apresentou
me estendendo a mão.
- Prazer, doutor, meu nome é Benjamim, e esse é Fernando, amigo da família
– disse, recebendo o cumprimento do médico.
- Bom, Benjamim, eu sou médico que conduz o tratamento da sua vó, e acredito
que você saiba em que estágio o câncer dela se encontra – doutor Lázaro falou em
um tom calmo.
- Sim, eu sei... – balbuciei, enquanto as lágrimas caíam, inevitavelmente. – Eu
não moro com ela, mas vim justamente por causa do seu estado.
- Imaginei – o médico coçou o queixo. – Dona Elisa estava plenamente ciente
de que ficar em sua casa, sem toda assistência médica e aparatos hospitalares, era
de extremo risco. Mas sua decisão foi de não permanecer internada.
- E o tratamento? – perguntei.
- Nós o interrompemos, pois ela já não mais reagia a ele – o médico afirmou. –
Nessa fase, nossa preocupação em manter o paciente confortável, o máximo que
pudermos dentro de suas possibilidades.
- E como ela está, douto?
- Sua avó ainda precisa fazer mais alguns exames, mas sua situação piorou
muito – o médico disse sem emoção. – O corpo está entrando em colapso. Mesmo
diante de um quadro irreversível, ela demonstrou uma força não esperada. Se você
quiser vê-la, ela já recobrou a consciência.
- Quero muito! – eu disse
- Tudo bem – o doutor Lázaro concordou. – Mas é importante que você
entenda, que o mínimo de emoção pode ser definitivo para ela. A debilitação de sua
avó atingiu um estado crítico, qualquer alteração de humor terá efeitos
desproporcionais.
- Eu entendo perfeitamente – assenti com a cabeça.
- Certo! Venha comigo – O médico só permitiu que eu fosse.
Fernando voltou para o junto de Rosa, mas antes me abraçou bem forte e me
beijou na bochecha, gesticulando com a boca: “eu estou aqui”. Senti-me renovado
com aquela frase, mas como eu queria que ela tivesse sido proferida pela a boca de
Giuliano.
Entrei no leito em que a minha avó estava, e já pelo vidro, vendo-a a respirar
com a ajuda de aparelhos, me deu um aperto forte no coração, uma angústia que me
adoecia, mas reunir forças do impossível, me lembrando das recomendações médicas
sobre o emocional esgarçado dela.
Fui até a cabeceira de sua cama, e me abaixei, fazendo um carinho em seus
cabelos. Ela me olhou, esgotada, e forçou um sorriso. Não sei como aguentei controlar
as minhas lágrimas.
- Queria que o Giuliano estivesse aqui com você? – ela falou com a voz em
miséria.
- Xiiii – pus o dedo em sua boca, delicadamente. – Ele já está vindo – sussurrei
em seu ouvido.
- Que bom... – ela disse, dando mais força ao seu sorriso. – Quero ir para casa.
- Não, vovó, é melhor a senhora ficar aqui – argumentei. – No hospital a
senhora vai ter todos os cuidados.
- Vou recuperar um pouco de forças e você e Giuliano vão me levar para casa,
é lá que eu quero estar quando acabar. – vovó aumentou um pouquinho o tom de voz.
Não podia contrariá-la naquele estado, então concordei com a cabeça,
deixando-a a mais tranquila. Eu entendi sua exigência, apesar de ficar com o coração
na mão diante dela.
- Agora descanse – pedi, ainda acariciando seus lindos cabelos brancos.
Ela, acredito que por conta dos remédios, adormeceu serenamente, segurando
a minha mão sem forças. Eu queria ficar com ela daquele jeito pelo tempo que fosse
necessário, mas logo o médico veio me chamar, dizendo que meu tempo já havia
acabado. Atendi a sua ordem, e dei um beijo na testa da minha avó, antes de deixar
o leito.
- Então, como ela está? – Rosa deu um pulo da cadeira assim que me viu entrar
na sala de espera.
- Fraca, mas consciente – eu respondi. – Os médicos se surpreendem com sua
força. Contudo, o quadro piorou muito. O ideal é que ela ficasse no hospital, mas
minha vó se recusa a todo custo.
- Não posso vê-la? – Rosa insistiu.
- Ainda não, Rosa – eu respondi dando um abraço forte nela, que a fez chorar.
– Apesar de o melhor, do ponto de vista médico, seja deixa-la aqui, eu vou atender a
seu pedido de voltar para casa. Ela está resoluta nesta questão
- Eu apoio você – Fernando se juntou ao braço, formando uma coletividade.
Já a noite convenci Rosa de ir para casa, pois era melhor ter alguém para avisar
Giuliano, que provavelmente já deveria estar voltando. Ela resistiu no início, mas se
deu por vencida, percebendo que era o melhor a fazer mesmo. Fernando se ofereceu
para leva-la de carro de volta ao sítio, mas prometeu que voltaria para ficar comigo,
em seguida. Eu disse que não precisava, porém ele se recusou a agir diferente. No
fundo eu queria que ele voltasse mesmo. Ficar sozinho com os meus pensamentos
naquela saleta, noite adentro, não soava nem um pouco convidativo.
Prometido e cumprido. Meia hora depois que ele saíra com Rosa, meu agora
querido amigo, estava de volta, trazendo um copo de café preto. Era o que me bastava
naquele momento, cafeína e sua companhia.
- Minha vida está um caos – eu disse mais para mim do que para Fernando,
que me observava com atenção, a tomar o café. – Tive a oportunidade de acertar,
mas fiz todas as escolhas erradas.
Fernando me olhava, enquanto detinha seu copo de café preso entre as duas
mãos. Parecia não ter a intenção de bebê-lo durante a minha fala. E me ouvia, sem
demonstrar que dariam um parecer sobre o que eu dizia. Isso me deixava confortável,
para o meu meio-monólogo.
- Nunca procurei Giuliano, depois da infame tarde em nos afastamos –
continuei a me lamentar. – Ignorei a minha avó, fingi ser uma pessoa com sentimentos
que não tenho, fiquei noivo de uma mulher, sendo eu gay. E o pior de tudo: deixei a
minha mãe tomar as rédeas da minha vida. Abri mão da liberdade, pelo conforto de
não ter que tomar minhas próprias decisões, e porventura arcar com suas
consequências.
- Meu sempre me dizia que toda escolha resulta em perdas e ganhos, mas no
final, o que importa é o que tivemos que abrir mão e o que alcançamos com a decisão
tomada – Fernando usou de uma sabedoria que eu jamais esperaria dele. – Mas negar
quem somos, nunca pode resultar em algo bom.
- Eu poderia me apaixonar por você, sabia? – eu disse apertando sua mão.
- Sei disso – ele deu seu primeiro risinho malicioso. – Não há quem resista ao
meu charme, principalmente quando me comporto como um filósofo sexy.
- Gosto desse Fernando, também – eu confessei. – Mesmo tendo que vigiar
suas mãos bobas o tempo todo.
Rimos juntos, quebrando o clima pesado por um instante.
- Não daria certo – ele suspirou. – Eu sou uma puta, Benjamim, e por mais que
eu deseje muito você, não poderia te dar no dia seguinte um lugar para você chamar
de seu. O amor é muito complicado, e eu não quero esse tipo de perturbação para
minha vida.
- Entendo – disse, sentindo um misto de tristeza e respeito pelas palavras dele.
Conversamos mais sobre algumas amenidades. Ele me contou o que teve de
fazer para levar alguns carinhas difíceis na queda, para cama. Era cada história
escrota, que não tinha como não rir. Contudo, sempre que eu estava em meio a uma
gargalhada mais descontraída, era pego de surpreso pela lembrança da situação da
minha avó, e um travo de amargura tomava conta da minha boca, contraindo o meu
estômago numa dor profunda. Fernando percebia, mas não falava nada, contava mais
alguma coisa, as vezes fazia um carinho no meu rosto ou no cabelo. Era a forma dele
de soprar a ferida, e torcer para que o ardor sumisse.
A noite se arrastava com lentidão, mas o cansaço e a exaustão emocional se
apressavam em tomar posse dos meus sentidos. Em meio as conversas, eu e
Fernando já repousávamos o corpo um no outro, eu mais que ele. De repete me dei
conta de que estava com a cabeça deitada em seu colo, com o peito voltado para
cima, de forma a poder mirar bem os seus olhos.
Meus olhos pesados e inchados me venceram. Fechei os olhos e caí em um
sono profundo, mas não tranquilo. Tinhas espasmos o tempo todo, enquanto sonhava
despencando em abismos, imergindo em águas profundas e escuras. Via também o
tempo todo, imagens esgarçadas da minha vó, passando, emolduradas por retratos
antigos, que se deformavam como fumaça.
Acordei de um susto, e me vi sozinho sem Fernando na sala de espera. Ele me
deixara com a cabeça deitada em seu assento, e saíra. Natural que ele tenha ido para
casa, pensei, afinal devia estar muito cansado, e por alguém que nem era de sua
família. Tudo que ele já tinha feito era digno de imensa gratidão.
- Bom dia – uma voz conhecida me desejou.
- Bom dia – respondi, vendo Fernando entrar com mais dois copos de café, e
lhe ofereci um sorriso caloroso. – Que horas são?
- 6 da manhã – ele respondeu entregando o copo com café – Se você tiver com
fome, trago um lanche para você.
- Não, obrigado – eu bebi o café fumegante. – Eu devo estar horrível – percebi
que Fernando me encarava com uma certa pena.
- Eu ainda te comeria mesmo assim – ele riu, passando a mão no queixo, como
se avaliasse o meu valor.
- Bestão! – falei rindo. Ele tinha créditos o suficiente comigo, para abusar com
suas piadinhas.
Fernando sentou ao meu lado, deu uma arrumadinha no meu cabelo, que
estava só uma farofa de cachos, antes de dizer:
- Você chamou muito pelo nome do Giuliano, enquanto dormia.
- Inutilmente – respondi sem graça. – Quando ele souber o que aconteceu com
nossa avó, ele vai arranjar um jeito de me culpar. Essa sua especialidade. Tudo de
ruim que acontece no mundo, por alguma razão está ligado a mim, para ele.
- O Giuliano é marrento e cabeça dura, mas eu tenho certeza que ele ainda te
ama muito – Fernando comentou. – Só é idiota demais para deixar essa mágoa toda
de lado, e ser feliz contigo.
- Ele não vê as coisas com tanta praticidade – retruquei. – Não quero também
mais falar dele.
Assim que me calei, o médico da vovó da Elisa entrou na sala, mas para
conversar com outro familiar de paciente internado. Interceptei ele, antes que que
fosse embora.
- Doutor, e a minha avó Elisa? – perguntei.
- Acabei de vir do quarto dela, e ela está estabilizada – ele disse me
tranquilizando – Os exames também atestaram uma estagnação do seu quadro. A
essa altura isso é uma boa notícia.
- Ah, que bom ouvir isso – comemorei – Doutor, ela não quer ficar no hospital.
- O melhor para ela, é que fique – ele recomendou.
- Vovó Elisa sabe que não vai melhorar, e ficar longe do aconchego da casa só
a aborrece – eu disse. – Pode parecer irresponsabilidade da minha parte concordar
com ela, mas o senhor mesmo disse que ela não pode sofrer abalos emocionais, e ter
que fiar aqui esperando a... Enfim, isso vai acabar com o seu restinho de garra.
Podemos preparar a casa para recebe-la da melhor forma, com enfermeiros e técnicos
de enfermagem.
- Tudo bem – ele acabou concordando. – Mas qualquer alteração que ela sofrer,
não pense duas vezes em trasladá-la para o hospital.
- Farei isso, sem dúvidas.
- Se ela recuperar bem suas forças, hoje à tarde poderá voltar para a casa, mas
com todos os cuidados e exigências médicas.
- Perfeito – disse por fim, me despedindo dele e indo comemorar com
Fernando, que nos ouvia.
Perto do meio-dia Fernando foi até o sitio pegar umas coisas para mim e para
vovó Elisa, e dar notícias para Rosa. Nesse tempo, eu resolvi tentar entrar em contato
com Giuliano. Como até aquela hora ele não havia aparecido no hospital, com certeza
não voltara de viagem ainda.
O celular chamou duas vezes e a mesma voz indesejada atendeu.
- Vem cá, o Giuliano te deu o celular dele presente, foi? – perguntei irritado,
ouvindo seu risinho. – Eu exijo que você passe para ele agora, rapaz!
- Você não exige nada – Henrique disse.
- Pelo amor de Deus, a vovó Elisa está hospitalizada, ela quer ver o Giuliano –
apelei. – Ele precisa estar aqui.
- Benjamim, muda de historinha, que essa está velha, amor – Henrique estava
mais insuportável, do que o habitual. – Que tal dizer que você já vai enterrar a vovó,
parece mais dramático, não acha?
- O que você disse, seu maldito?!!! – perdi a noção de que eu estava em um
hospital e fui repreendido por uma enfermeira.
- De qualquer forma, eu Giuliano só voltamos à noite, da nossa pequena lua-
de-mel – ele disse soletrando a última palavra. – Chegamos numa cidadezinha com
turismo aquático e resolvemos aproveitar para relaxar, já que Giuliano está cansado
de atender tantas fazendas. Bom, é claro que não serão as cachoeiras que o farão
relaxar, se é que você em entende. Agora para de incomodar! Eu vou desligar o celular
dele, e tão não adianta ligar mais.
- Henrique, espera... – ele desligou o celular. Vi que não tinha jeito mesmo, eu
teria que mentir para a vovó Elisa sobre Giuliano, caso ela perguntasse.
Fernando voltou, de banho tomado e roupa limpa e com a aparência bem
descansada. Me deu notícias de que Giuliano ainda não havia voltado para o sítio,
então contei para ele que já sabia, e como foi minha última tentativa de falar com o
meu primo.
O finalzinho da tarde chegou, e a vovó Elisa recebeu alta. Pelo menos sua
alegria parecia ter sido restaurada. Conforme o médico exigiu, um enfermeiro bem
instruído foi escalado para voltar para casa conosco, recebendo muito bem pelos seus
serviços particulares.
Em casa, Rosa e seu Inácio já nos esperavam no portão. Eu vim na ambulância
com minha avó, e Fernando nos seguiu de carro. Rosa começou a chorar ao ver sua
amiga sentada em uma cadeira de rodas, envolta por uma grossa manta e gorro, mas
vovó Elisa fez uma cara de repreensão, para que ela contivesses as lágrimas.
- E Giuliano? Por que ele não está aqui comigo? – foi a primeira coisa que vovó
Elisa perguntou, assim que cruzamos a soleira da porta.
- Ele não voltou da vacinação do gado contra a febre aftosa – comecei a falar,
salivando muito. – Tentei ligar para o celular dele, mas só dá na caixa postal.
- Provavelmente ele está em um local sem sinal – Fernando completou. – É
muito comum nessas pequenas fazendas mais afastadas.
Minha engoliu a desculpa com um pouco de desconfiança, mas não questionou
mais. A levamos para o seu quarto e instalamos o enfermeiro em dos de hóspedes.
Ele verificou a pressão e a pulsação dela e a medicou, como prescrito. Logo Rosa
trouxe uma canja nutritiva e ela tomou sem reclamar.
Ficamos só eu e Fernando conversando com ela, durante um determinado
momento. Então contei para ela o anjo que ele foi nas horas mais necessárias. Vovó
Elisa o encheu de beijos e agradeceu muito, o que deixou o safado mais vaidoso do
que ele já era.
Lá pelas oito da noite, quando o enfermeiro que se chamava Jonas, pediu para
deixarmos vovó descansar, um tigre esbaforido invadiu o quarto subitamente, quase
sacando a porta fora. Giuliano atravessou o quarto e se jogou de joelhos, ao lado da
cama da vovó Elisa, afundando seu rosto no colo dela e caindo em um choro profuso.
- Graças a Deus, que você está bem – ele soluçava – Rosa acabou de me dizer
o que havia acontecido. Eu não devia ter deixado a senhora sozinha. Eu falhei! Tinha
que estar aqui.
- Calma, meu filho, vovó é dura na queda – vovó Elisa fazia um carinho nos
cabelos de Giuliano, que não parava de chorar. – Benjamim me socorreu e fez tudo
que devia ter sido feito.
Assim que nossa avó falou o meu nome, Giuliano lembrou que eu estava ali e
olhou para mim, com um olhar de poucos amigos:
- Por que você não me ligou?
- Eu liguei para você, mas... – olhei para Henrique, que estava apavorado,
vendo que eu não mentia, e perto de ser desmascarado, porém olhei para minha avó,
tão frágil e debilitada. Dizer o que realmente havia acontecido faria com que uma briga
se armasse, e ela não ia aguentar.
- Mas o quê? – Giuliano perguntou com grosseria.
- Só dava caixa postal o tempo todo, acho que você estava em uma área sem
cobertura – só Deus sabe o quanto de esforço tive que empregar para não jogar a
verdade na cara de todos.
- Mentira! Meu celular passou o tempo inteiro com área – ele disse. – Você não
ligou, porque não quis. Fez de propósito. Usar uma situação como essa para me
atingir, só faz eu sentir nojo de você.
Giuliano conseguiu dessa vez me triturar até o pó.
9. QUEM TEM MEDO DA VERDADE?
- Giuliano, é melhor você calar boca, porque não sabe do que está falando –
Fernando disse, olhando para Henrique, que mudava de cor o tempo todo.
- O que você tem a ver com isso, Fernando? – Giuliano voltou sua truculência
para o outro. – Aliás, eu nem sei o que você está fazendo aqui.
- Giuliano! – minha avó falou com voz cheia de autoridade. Todo o meu esforço
em aguentar as grosserias e injustiças do meu primo, caíram por terra, pois o que eu
menos queria era que a vovó Elisa fosse abalada.
- Vó... – meu primo baixou o topete.
- Eu não vou admitir que você destrate o Fernando e o seu primo! – ela estava
resoluta. – Se não fosse pelos os dois, essa noite você estaria velando o meu corpo.
O Fernando deveria estar recebendo os seus mais sinceros agradecimentos.
Giuliano coçou a cabeça, e olhou para a minha avó tentando contrariá-la, mas
o semblante da minha avó era mais poderoso do que o dele, então meu primo e
recuou, e com muito esforço disse:
- Valeu, Fernando – dizendo isso, ele saiu do quarto junto com Henrique.
O enfermeiro chegou e reclamou conosco por termos exposto vovó Elisa a uma
situação de estresse, e nos ameaçou de reportar ao hospital, caso voltássemos a
descumprir com as exigências médicas, para que a minha vó pudesse ficar em casa.
- Ei, não fiquem deliberando sobre a minha saúde na minha frente, como se eu
estivesse senil.
- Mas ele está certo, vovó – eu fui até a sua cama e sentei-me a seu lado. – Eu
e Giuliano não podemos ficar nos pegando feito cão e gato na sua frente.
- Não quero que se tratem bem por mim, acredite, isso não me faria bem
também, saber que tudo é teatro.
- Bom, não depende mais de mim – eu disse com tristeza.
- Sei disso – ela segurou na minha mão – Vejo todo o seu esforço, e Giuliano
vai ter que ver também. Ele já está extrapolando.
- Vovó, vamos deixar esse assunto para lá – falei, enquanto olhava para o
enfermeiro que me encarava, ainda com a ameaça feita nos olhos.
- De forma, alguma – minha vó insistia no alto de sua teimosia.
- Tudo bem, mas por hoje já chega, a senhora precisa descansar, por favor.
- Certo – ela cedeu. – Amanhã vamos ter mais uma conversinha.
- Amanhã é amanhã, e agora é hora de dormir, e sem discussão – falei em tom
de ordem.
Felizmente ela foi descansar, depois de dar um beijo em Fernando e agradecer
por tudo que ele fez.
Levei Fernando até a cozinha, para comermos alguma coisa, ele aceitou. Havia
meia torta de morango na geladeira servir para nós dois e ficamos conversando um
pouco.
- Por que você não disse a verdade para o Giuliano? – ele me perguntou, no
intervalo de um pedaço de torta e outro.
- E potencializar a briga? De jeito nenhum – disse com convicção – Aguentar
as acusações de Giuliano é muito difícil para mim, mas a minha vó vem em primeiro
lugar.
- Você é demais, Benjamim – Fernando me puxou para um abraço, e acabei
tropeçando no pé da cadeira e sentando no seu colo.
- Desculpa – eu pedi, sentindo minhas bochechas arderem.
- Por quê? Sua bunda é do tipo que eu gosto – Fernando fez piada.
Começamos a rir junto tão distraídos, que nem notamos que Giuliano entrar na
cozinha, e por um milagre, sem sua cadelinha vadia farreando seus pés.
- Perdão, não sabia que a cozinha estava ocupada – ele foi até a geladeira
pegou uma garrafa com água, e se foi até pia pegar um copo, e lá permaneceu de
costas para nós.
Levantei das pernas de Fernando, e o mesmo levantou da cadeira, mas sem
demonstrar qualquer constrangimento ou vergonha.
- Já está tarde, é melhor eu ir para casa Bem – Fernando me abraçou
calorosamente, e me deu um beijo na bochecha, estalado – Não deixa ele te humilhar
– ele sussurrou no meu ouvido.
Vi Giuliano nos observando disfarçadamente, de esguelha. Tive a impressão
que ele queria conferir aonde o Fernando me beijaria.
- Boa noite, Giuliano – Fernando se despediu do meu primo, que apenas
acenou com a mão sem virar-se.
Era possível cortar o ar com uma faca, de tão denso que ele estava, assim que
Fernando me deixou sozinho com Giuliano. Enquanto meu primo tomava sua água a
goles muitos lentos, eu juntava os pratos da torta e arrumava a mesa. Comecei a lavar
os pratos, com Giuliano ainda recostado na pia.
- Você ainda não me respondeu porque não me avisou que a minha avó havia
passado mal – ele me disse.
- Respondi sim, você que não quis acreditar – falei sem olhar para os seus
olhos, ele, porém me encarava.
- Eu chequei as chamadas do meu celular e não havia nenhuma sua.
- Via ver alguém deletou – disse sem firmeza.
- Aposto que você já vai acusar o Henrique.
- Olha, Giuliano, quer saber? Cansei de você! – bati com força na pia. – Eu
venho tentando conviver em paz com você, mas parece que seu maior prazer é me
ferir.
- E o seu é inventar mentiras.
- Já havia decidido que não ia mexer nessa história, mas você está pedindo –
falei pondo o dedo em riste. – Eu liguei, e o Henrique atendeu todas as vezes. Me
disse um monte de barbaridades, não quis passar o celular para você, afirmou que eu
estava usando a doença da minha avó como armadilha para te atrair..
- Para, Benjamim! – Giuliano me segurou firme pelos ombros. – Não acredito
em você.
Tirei seus braços dos meus ombros e enfiei a mão no bolso, buscando o meu
celular. Abri o histórico de ligações e mostrei para ele. Giuliano pode ver, pelo tempo
da ligação, que alguém atendeu suas chamadas, justamente no horário em que nossa
avó estava no hospital.
- Se não acredita que foi seu Henrique-o-perfeito, então uma terceira pessoa
pegou seu celular e ficou batendo um papo comigo, o que faz muito mais sentido na
sua cabeça, com certeza.
Consegui pela primeira calar Giuliano. Não acredito que ele estava convencido
que Henrique estivesse por trás disso, mas pelo menos não seria mais acusado de
não o ter avisado sobre a hospitalização de vovó Elisa. Uma a menos.
- Você e Fernando estão juntos? – ele perguntou com resistência na voz, como
se uma força maior o impelisse a fazer aquela pergunta.
Olhei bem no fundo de seus olhos por alguns segundos, dei um sorriso que
dizia não estar acreditando na sua cara-de-pau de me fazer aquela pergunta, e apenas
ofereci mais do meu silêncio para ele.
- Eu te fiz uma pergunta, você não ouviu?
- Ouvi sim, mas não pensei que eu estava coagido a responder – disse.
- Beleza, então não responde – ele falou com irritação. – Ele deve ser bem o
seu tipo mesmo, não é?
- Companheiro, gentil, amigo e amoroso? Sim, é esse o meu tipo mesmo, você
acertou.
Giuliano soltou o copo na pia e rumou para porta da cozinha, segurei seu braço
antes que ele saísse.
- Por favor, vamos dar uma trégua, eu te imploro – apelei. – A vovó não pode
passar por um pingo de aborrecimento. Já basta a decepção com os filhos.
- Tudo bem – ele falou de forma relaxada, o que era um milagre. – Eu vou
controlar as minhas explosões, por ela.
- Não sabe o quanto isso me deixa aliviado – apertei o seu braço.
Desejamos boa noite uma para outro e nos recolhemos. Despenquei feito uma
pedra na cama, de forma que a noite não passou mais do que um borrão, quando
tomei consciência, o dia já havia amanhecido. Meu doía, e minhas pernas pareciam
moídas. Era como se eu tivesse passado a noite inteira, subindo uma montanha
carregando uma grande carga nas costas. Todas as vezes que eu passava por
situações demasiadas estressantes, tinha aquela sensação.
Levantei, fiz minha higiene rapidamente, e fui direto para o quarto da minha
avó. Ela estava tomando um mingau de aveia, enquanto o enfermeiro falava com o
médico pelo celular, informando sobe o estado dela. Rosa, também presente no
quarto, a observava comer com detida atenção, garantindo que a minha ingeriria até
a última gota do alimento nutritivo.
- Bom dia, menina linda – disse para ela, indo enchê-las de beijinhos. Vovó
Elisa me abraçou, depois de entregar a tigela, já vazia, para Rosa.
- Passou a noite bem? – ela me perguntou.
- Dormir feito uma pedra – informei –, mas era eu que deveria fazer essa
pergunta.
- Eu também tive uma noite tranquila, principalmente depois de saber, pela
boca de um neto turrão, que houve um armistício entre ele e o primo o mais novo.
Apenas ri, abaixando a cabeça, sem dar mais detalhes do que aquilo significava
para mim.
- Amanhã é véspera de Natal – vovó soltou um suspiro e ficou a me encarar,
esperando que sua frase solta ascendesse algum alerta em mim.
- Como a senhora está com uma excelente aparência...
- Não sou a aparência – o enfermeiro me interrompeu. – Sua vó continua bem
estável.
- Melhor ainda! – exclamei – vamos poder fazer uma ceia de Natal bem gostosa.
- Vou pedir para o Inácio pegar o melhor peru do quintal – Rosa se
entusiasmou.
- Ah, que maravilha – Vovó Elisa bateu palmas, marejando os olhos. Era aquele
brilho que eu gostava de ver nela, que eu lembrava da infância.
Ficamos conversando mais um pouquinho, mas não tocamos no nome de
Giuliano, o que foi um alívio para mim. A situação já era desgastante por si só. O que
mais queria era paz, principalmente durante a ceia, que afinal, era um dos motivos
para eu ter vindo para sítio, ainda que secundário.
Deixei minha avó sozinha com Rosa, que lhe daria banho, e fui preparar um
agradecimento especial para a pessoa que mais me apoiou nos últimos dias. Fiz uma
sexta de piquenique bem sortida e peguei uma coberta felpuda.
- Alô, Fernando? – liguei para ele.
- Oi, Ben, já sentiu saudades de mim? – ele gargalhou.
- Na verdade, sim – dei vitória para o ego do safado. – Quero vê-lo agora, pode
ser?
- Hum, mandão, adoro desse jeito! – ele não perdia nunca uma piadinha. –
Claro que eu posso. Tô indo aí agora.
- Não. Não venha aqui para a casa, me encontra naquela cajazeira, próxima do
lado – eu disse.
- Nossa, Ben, você gosta de uma coisa selvagem, é?
- Você não para nunca?
- Nem quando pedem – Fernando riu mais. – Mas tudo bem, te encontro lá em
20 minutos.
- Perfeito! – eu disse, desligando o celular em seguida.
Terminei de arrumar as coisas, dei um grito avisando a Rosa que passearia um
pouco pelo terreno, e saí. O carro de Giuliano estava estacionado na frente da casa,
mas eu não o havia visto naquela manhã, já o Henrique, foi o primeiro rosto que dei
de cara, assim que deixei a casa.
Trocamos um rápido olhar, mas não dissemos nada um para outro. Não pude
deixar de notar que seu semblante perdera o ar de vitória, que parecia permanente.
Os olhos pareciam inchados, se não fosse mera impressão. Quando dei as costas
para ele, senti que ele me acompanhou com o olhar. Seja o que tenha acontecido,
parecia que a noite dele não foi das melhores, o que me deixou feliz, não propriamente
por um sentimento de vingança, mas porque com espírito quebrado, ele me deixaria
em paz. Mal eu sabia que descobriria o quanto estava equivocado.
Cheguei a cajazeira primeiro que Fernando. Não havia capim ao pé da árvore,
apenas um tapete de folhas secas, que forrava o chão. Joguei estendi a manta, e
comecei a postar as coisas que eu havia trazido na sexta, deixando tudo bem
arrumado. Assim que ergui os olhos, o vi andando em minha direção. Fernando estava
lindo, com uma regata preta bem cavada nas laterais, uma bermuda rosa e gorro
cinza. Ele abriu um sorriso e acenou com a mão, quando me viu já a sua espera.
- Piquenique? Benjamim, Benjamim, sua tentativa romântica de conquistar o
meu coração pode dar certo, e você depois não vai poder reverter – ele já havia
começado. – Quer me prender pelo estômago.
- Bom, aí então você teria que se apaixonar pela Rosa, pois tudo que tem aqui
dentro eu furtei da cozinha dela.
- Por ela eu já sou apaixonado – Fernando veio sentar-se ao meu lado,
encostado a cabeça no tronco da cajazeira.
A árvore frondejava majestosa, deixando o clima sob ela muito agradável.
Fernando e eu não perdemos tempo, e devoramos as delícias que eu havia preparado.
Entre uma mordida e outra muitos gracejos da parte dele. Estava sendo uma manhã
muito agradável, a brisa fresca beijava nossos rostos e soprava da minha cabeça
todos os problemas que lá na casa habitavam, até que Fernando tocou novamente no
assunto, que eu tentava esquecer:
- E você e o Giuliano?
- O que tem a gente? – perguntei, enquanto comia um morango.
- O clima, a relação...
- Bom, levantamos bandeira branca ontem à noite, e eu espero que dessa vez
seja para valer – disse. – Ele perguntou se nós estávamos namorando.
- O que você respondeu, Ben?
- Não respondi na verdade, o que deixou ele puto para caralho – eu falei,
recostando as minhas costas no tronco da árvore.
- É mais do que escancarado que ele te ama – Fernando observou. – E acho
que você também ainda o ama, ou não?
- Amo sim, Nando – confessei. – Apesar de tudo, não consigo arrancar esse
sentimento de mim. Todas as vezes que eu vejo ele, até em situações de briga, eu
fico nervoso, meu corpo e treme, e sinto uma vontade avassaladora de abraça-lo e
beijá-lo. Queria tanto sentir o coração do antigo Giuliano, batendo contra o meu peito,
a sua voz doce e preocupada. Mas parece que essa versão do meu primo está morta.
Fernando ficou em silêncio, apenas me abraçou, fazendo o meu rosto afundar
em seu peito. As lágrimas vieram à tona.
- Ah, não acredito – Fernando desencostou do tronco, fazendo com que eu
saísse de seu abraço.
- O que foi Fê? – perguntei olhando para ele.
Fernando apenas apontou para frente, e segui seu dedo até os meus olhos
encontrarem a figura de Henrique, caminhando em passos pesados em nossa
direção. O vento jogava seus cabelos para trás, e ele o enfrentava com resignação.
Ficamos eu e Fernando de pé, mas sem mover um passo.
- Casal perfeito! – Henrique disse, fazendo um enquadramento de nós dois com
os dedos. – Por que maldição então, você quer empatar a minha relação com o
Giuliano?!
- Você está louco – eu disse com desprezo. – Eu e Fernando somos apenas
amigos, e eu não estou empatando a sua vida com Giuliano, você é que está se
afundando nos seus golpes baixos.
- Então você confessa, que foi bater a língua para o Giuliano, sobre a nossa
conversinha ao telefone?
- Falei, sim! E quer saber? Eu devia ter feito isso na primeira oportunidade.
- Cara, vaza daqui, ou eu vou te encher de porrada – Fernando se interpôs
entre Henrique e eu, mas o passei para trás, tomando a frente novamente.
- Sua tentativa de minar a minha relação com Giuliano deu errada – ele
comemorou de forma insana. – Neguei tudo, e dei a minha versão dos fatos. É claro
que ele acreditou, pois, a minha palavra vale muito para o seu primo, bem diferente
da sua.
- Ele acreditou, porque é um idiota! – Fernando falou, cerrando os punhos.
- Eu fui bonzinho demais com você, primo do Giuliano – Henrique estava com
os olhos vermelhos. – Agora basta!
Quando ele disse isso, ouvimos um barulho de um corpo pesado se movendo
pelos galhos da árvore, seguido de um baque surdo no chão. Giuliano surgiu
subitamente, para o espanto de nós três. Ele estava esse tempo todo no alto da
árvore, e nós não notamos por conta das folhagens e dos muitos galhos grossos.
- Basta mesmo, Henrique! – ele espumava.
- Giuliano... – Henrique falou com uma voz manhosa, ameaçando um choro.
10. ENTRE TAPAS E BEIJOS...
- Você mentiu para mim esse tempo todo? – Giuliano tomou espaço na frente
de mim e Fernando. – O que aconteceu com aquele Henrique que eu conheci anos
atrás, e que foi fundamental para o momento de tristeza que estava vivendo?
- Simplesmente nuca existiu – Fernando respondeu, antecipando óbvio.
Giuliano fingiu não ter ouvido a resposta do amigo e continuou a pressionar
Henrique:
- Não posso acreditar que tudo aquilo foi teatro?
- Claro que não, Giuliano! – Henrique tentou abraça-lo, mas ele o afastou.
- Fala a verdade, porra! – Giuliano explodiu, assustando até a mim.
- Tudo que aconteceu entre a gente foi real, eu apenas vacilei com essa história
do telefonema, mas foi um erro contra uma montanha de acertos. – ele argumentou.
- Não foi “um erro” comum. Você brincou com saúde da minha avó.
- Eu pensei que o seu primo estava apelando, então decidi resolver isso por
você – Fernando só piorava sua defesa.
- E quem foi que te encarregou de tomar decisões por mim? Você sabe que eu
odeio isso, Henrique.
- Olha, não vejo razão para eu e o Fernando assistirmos a essa cena
deplorável, então nós vamos deixar vocês se entenderem sozinhos.
- Benjamim, espera! – Giuliano segurou no meu braço, e me olhou com uma
cara confusa. Havia muito o que ser dito, porém, ao mesmo tempo, tudo estava um
caos.
- É melhor não – arranquei o meu braço de suas mãos e saí com Fernando.
Assim que passei por Henrique, senti uma mão puxar o meu ombro
bruscamente, e quando me virei a vista escureceu, e uma panca forte no meu rosto
ecoou. Cambaleei para trás, sentindo o nariz queimar e o sangue escorrer pelo meu
rosto. Do chão, olhei para frente e vi Henrique com os punhos fechados: ele havia me
dado um soco com toda a sua raiva, que não era pouca. Só não era maior do que a
minha.
Meu sangue ferveu mil graus e o coração disparou inchando as veias da testa.
Levantei de com um pulo, e limpei o rosto.
- O seu azar é que daqui a minha avó não vai ouvir nenhum grito, seu
desgraçado! – disse isso para ele, dando um soco tão forte quanto eu podia.
Henrique voou e caiu nos pés de Giuliano, que não se moveu para ajudá-lo.
Corri em sua e puxei pelas pernas, afastando ele do meu primo. Henrique tentou se
levantar, mas pulei em cima dele, prendendo seus braços com as pernas, e a chuva
de porrada começou.
- Desgraçado! Maldito! Infeliz! Bicha do demônio – eu gritava socando ele cada
vez mais forte.
- Chega, Benjamim! – Giuliano me arrancou de cima de Henrique, que já estava
quase inconsciente.
Soltei-me do meu primo, girei um soco na sua cara também, o mais forte que
eu poderia ter dado. Giuliano caiu no chão com o nariz sangrando, e me olhou
assustado. Duvido que ele imaginava que eu faria aquilo. Mas ele estava merecendo
tanto, quanto o outro. Fernando só nos olhava com os olhos arregalados, porém não
interviu, pois ele sabia que os dois estavam me devendo aquilo. Esperei que Giuliano
viesse para cima de mim, contudo, ele não veio. Em vez disso me ofereceu um olhar
de quem entendia que aquele soco não fora injusto.
- Presta bem atenção, Henrique – me aproximei do outro, que gemia no chão
com o rosto coberto de sangue, e com alguns dentes quebrados, com certeza. – Você
vai pegar suas coisas lá de casa, e vai dá o fora em se despedir de ninguém, ou eu
termino o serviço, filha da puta!
- Se eu fosse você não contrariava o homem – Fernando ainda achou espaço
para as deles.
- Vamos, Fernando – puxei o meu amigo pelo braço, que não se arriscou a me
contrariar.
Voltamos em direção a casa, sem olhar uma única vez para trás. Que se
danasse Giuliano e Henrique. Fernando só me observava, mas não fazia nenhum
comentário, durante o nosso curto percurso. Chegando no sobrado, eu entrei sem me
despedir dele e fui direto para o meu quarto, sem encontrar ninguém da casa pelo
caminho, no que fiquei muito grato.
Ainda sentia meu sangue ferver, mesmo depois de ter extravasado tudo.
Arranquei minha roupa com urgência e me enfiei debaixo do chuveiro, aonde
permaneci por muito tempo, deixando a água quente relaxar os meus músculos e
aliviar a dor das mãos e do rosto; ambos roxos.
Depois da água, veio a dor. Sem adrenalina no sangue, contusões latejavam.
Minhas mãos estavam horríveis, então eu podia imaginar que a cara de Henrique
devias estar detonada. Ri maleficamente pensando nisso, e também do meu nariz que
estava parecendo um tomate. Cuidei de todos os meus ferimentos, pus uma roupa
confortável, me entupi de analgésicos e anti-inflamatórios e fui descansar um pouco.
Tinha certeza que os meus sonhos não seriam desagradáveis.
Quando acordei já passava das quatro horas da tarde. O rosto não doía tanto,
mas as minhas mãos estavam em desgraça. Parecia que todos os ossos dos dedos
haviam sido quebrados. Ignorei a dor, pois o meu espírito ia muito bem. Fui então ver
a minha avó, que deveria estar preocupada por conta do meu sumiço.
Entrei em seu quarto e vi Giuliano conversando com ela, meio cabisbaixo. Os
dois estavam sozinhos.
- Eu volto depois – disse, assim que eles me notaram minha presença pela
fresta da porta.
- De forma alguma – minha avó me contrariou. – Estávamos precisando falar
com você, mesmo?
Meu coração gelou, pois eu sabia que viria coisa ruim. Minha vó ia me dar um
sermão daqueles, e provavelmente me faria pedir perdão a Henrique. Isso eu não ia
aguentar fazer.
- Sim – fiquei parado perto dois.
Minha avó estudou com atenção minhas mãos machucadas e rosto inchado, e
disse o seguinte, com a voz suave.
- Nossa dispensa não tem quase nada para a ceia de Natal – ela falava
naturalmente. – Quero que você vá com Giuliano até a cidade e compre tudo que
estiver na lista que eu e Rosa fizemos, eu o mandaria sozinho, mas ele detesta fazer
compras, então você vai junto. Alguma objeção – ela arqueou a sobrancelha em
desafio.
- Claro que não... – gaguejei, não ousando dizer uma palavra contrária aquilo.
Sabia que a minha concordância seria o preço pela absolvição e o enterro dos últimos
acontecimentos. E de fato, ela não tocou mais no assunto.
Fui para o meu quarto trocar de roupa, pus apenas bermuda, camiseta e
chinelos. Giuliano estava também com um figurino parecido, e tão gato quanto eu não
imaginei que ele ficaria. É que depois as nuvens de tempestade passam a gente volta
a ver a beleza do céu.
Quarenta minutos após o ultimato da minha avó, estávamos eu meu primo em
seu carro rumo ás compras. Eu ainda estava ferido, e sabia que ele também, então
resolvi não ficar remoendo as coisas. Não que eu estava pronto para voar em seus
braços e beijá-lo desesperadamente, mas se isso ia acontecer algum dia, teria
abertura da minha parte. No momento, era bom que nós deixássemos as feridas
sararem em seu tempo.
- Deixei ele no hospital junto com a bagagem – disse Giuliano, quebrando o
silêncio que se formara desde que nós entramos em seu carro. Meu primo exibia um
curativo no nariz assim como eu.
- Fico aliviado que as coisas terminaram assim – disse em resposta, enquanto
me concentrava na paisagem.
- Não sei nem por onde começar – Giuliano soltou um suspiro profundo. – Eu
fui tão estúpido, tão cruel com você. Extrapolei todos os limites.
- Pode começar com pedidos de desculpas, e é bom nomear cada um deles –
falei, olhando bem no fundo dos seus olhos. Ele ficava lindo quando a barba começava
a nascer, fazendo uma sombra em seu maxilar.
- Desculpa por ter agido como moleque, por não ter acreditado em você, por
não ter facilitado a sua vida lá em casa, por aquela transa horrível...
Ele me pediu desculpas por coisas que eu nem sabia que ele tinha feito por
mim. O efeito não foi automático, mas muitas camadas de mágoa foram removidas.
Eu não pedi desculpas pelo soco que eu dei nele, pois não estava arrependido.
- Mas tem uma coisa que eu não posso me perdoar – ele disse.
- O quê? – perguntei com muita curiosidade.
- Ter perdido você para o Fernando – ele me respondeu com a voz pesada.
- Não estou com Fernando – esclareci sem alardes – Somos apenas bons
amigos, agora.
- Eu achei que...
- Você achou errado – o interrompi. – Agora vamos tocar a bola para frente, e
também sermos amigos?
- Claro... – ele respondeu com resistência.
Fomos ao supermercado e compramos tudo que a lista exigia. Foi até divertido,
controlar Giuliano para que ele não enchesse o nosso carrinho com tanto doce.
- Ah, gordo desgraçado, já não disse para você não colocar tantos saquinhos
de gota de chocolate – eu fingia irritação.
- Então vai ter que me pegar primeiro, se quiser tomar meus chocolates – ele
passou correndo na minha frente com carrinho, depois de dar um tapa na minha
bunda.
Corri atrás dele pelos corredores do supermercado, mas ele parecia um
maratonista. Já havíamos vivido uma cena parecida com aquela. Começávamos muito
felizes, mas o desfecho foi o terrível.
Acabamos nossa brincadeira pagando um absurdo no caixa. Ainda bem que
ele era um veterinário bem requisitado, para bancar sua gula. Voltamos então para
casa com uma montanha de coisas. Parecia que a cidade inteira iria cear no sítio.
Chegamos em casa aos risos, para a surpresa e a felicidade da minha avó, que
estava na cozinha, auxiliando Rosa, claro, fazendo o mínimo de esforço. Rosa já
estava com o peru enorme, limpo, sendo temperado com especiarias bem aromáticas.
- Que supermercado animado, hein? – vovó comentou.
- Culpa do gordo do seu neto, viciado em chocolate – eu disse.
- Bom, não entendi nada, mas não importa – vovó Elisa, apesar de estar em
cadeira de rodas, não perdia seu aspecto solar.
- Olha, você para de me chamar de gordo, seu magrelo – Giuliano me agarrou
me fazendo cócegas, passando a mão na minha barriga. – Eu estou muito bem, quer
conferir – ele levantou a camisa, mostrando o abdômen lindo, que ele sempre teve.
- Não quero olhar, deixa para suas vacas – eu dei as costas para ele. Tudo
estava bem, mas eu não queria também apressar nada.
- Ah, falando em vacas, é bom eu fazer umas bandagens nas suas mãos para
conter o inchaço.
- Você me chamou de vaca? – deu um soco sem forças no peito duro de
Giuliano, mas que sentiu fui eu. – Ai, minha mão!
- Você não acha que já me bateu o suficiente por hoje?
- Olha, Rosa, parecem duas crianças – vovó Elisa enchia os olhos de gosto, ao
nos ver daquele jeito, como se fôssemos um quadro antigo pintado há dez anos.
Giuliano me levou para o seu quarto, para tratar das minhas mãos. Enfaixava
elas com paciência e ternura, olhando e rindo as vezes para mim.
- Qual a graça? – falei um pouco irritado.
- Não é que seja engraçado, é bom – ele disse rindo mais.
- Você bebeu? Não está falando coisa com coisa – disse para o meu primo.
- Não bebi, mas me sinto como se eu tivesse bêbado – ele me disse,
acariciando minha mão depois de enfaixá-la.
- E por que isso?
- Ah, Benjamim, havia uma crosta que me envolvia e me impedia de sentir
certas coisas – ele falava, ainda acariciando as minhas mãos. – Sinto vontade fazer
coisas. Minha cabeça parece trabalhar com o coração, pela primeira vez, em tempos.
- O que você tem vontade de fazer agora? – perguntei sentindo um
estremecimento por dentro, quase arrependido da pergunta.
Ele deslizou seu polegar pelos meus lábios, refazendo o contorno. Tocou a
minha bochecha com delicadeza, o que me fez levantar de súbito, mas Giuliano foi
mais rápido e me beijou.
11. ASSIM FALOU O CORAÇÃO
Ninguém ousava dizer absolutamente nada, até eu me senti freado com o que
acabara de proferir. O rosto da minha mãe era uma máscara sem expressão,
enquanto o meu pai balançava lentamente a cabeça em apoio a minha atitude.
Tatiana, por outro lado, tremia os lábios, prestes a entrar em erupção, derramando,
eu supunha, toda a sua revolta. Eu não poderia culpa-la, pois não agi como homem
para com ela, era um dos meus muitos erros, provenientes do erro matriz: seguir os
passos que a minha mãe determinava, sem nem um tipo de reflexão.
- Como você diz isso na frente de todo mundo? Isso é uma pegadinha, não é?
Porque só pode ser. – minha ex-noiva disse isso, com a voz entalada.
- Todo mundo aqui presente, à sua exceção, sabe ou suspeita da minha relação
com Giuliano.
Parei um pouco para respirar, pois as frases estavam saindo entrecortadas, e
parte da voz bloqueada pela minha garganta, que se fechava em um nó.
- Não ia fazer diferença falar com você em particular – completei.
- Como você pode ser um viado, se a gente já teve intimidade algumas vezes?
– ela continuava incrédula.
- Isto foi uma das farsas que eu construí – respondi, cabisbaixo. – Nunca senti
nada em nossas relações, você deve lembrar o quanto era difícil, não por sua causa,
mas por minha causa. Tatiana, eu passei a vida inteira fingindo ser uma pessoa que
não existe, e hoje, eu tomei coragem para pôr esse castelo de areia abaixo, que mais
cedo ou mais tarde, teria sua derrocada, por conta de sua própria fragilidade.
- Que estupendo! O que você quer, Benjamim? Quer que eu comemore a sua
saída do armário? Ou que sejamos bons amigos e apadrinhe seu casamento com seu
primo? – Tatiana começou a perceber a realidades das coisas.
- Quero o seu perdão, mesmo sabendo que não sou digno dele – disse com o
mais humilde dos espíritos.
- Devia saber pelo menos uma coisa sobre mim; depois de tanto tempo de
convivência – sua face endureceu. – Não é da minha natureza perdoar.
- Você tem todo o direito de me odiar – eu disse com sinceridade.
Mal fechei a boca, levei um tapa bem estalado no rosto. Ela tinha a mão bem
pesada, pois o meu rosto ficou marcado e ardendo muito, mas eu aceitei a agressão,
como pequena parcela do castigo por ter arrastado a farsa de seu noivado.
- Se está pensando que o meu ódio é a única coisa que vai ter de mim, está
muito enganado sua bicha nojenta. – Tatiana apontou o dedo no meu rosto. – Seria
muito cômodo para você. Enquanto me descabelaria te amaldiçoando, você estaria
dando para o seu primo, sem sentir qualquer efeito da minha fúria. Eu vou acabar com
a sua família, Benjamim. Aquele escritoriozinho de vocês, que dependia desse
casamento para não afundar de vez, está com seus dias contados.
- Se já disse tudo que você tinha para dizer, garota, pega suas coisas dá o fora
daqui – Giuliano se meteu na conversa.
- Que o inferno seja pouco para você, desgraçado – Tatiana me disse por fim,
transfigurando os olhos em dois demônios.
Minha ex-noiva empurrou-me para o lado, e subiu as escadas com passos
pesados. Dona Laura passou por nós feito um foguete, indo atrás de Tatiana. As duas
sumiram corredor a dentro, e eu parecia que havia retirado o mundo das costas. Estive
vivendo como Atlas durante muito tempo.
- Estou tão orgulhoso de você – Giuliano me pegou nos braços e me beijou
com muita vontade, sem se importar com a plateia que nos assistia. – Agora tudo vai
ficar bem.
Vovó Elisa e meu pai também vieram nos abraçar, e disseram algo parecido à
fala de Giuliano, todavia, algo ainda me amargurava por dentro, como uma incerteza
de que as coisas não estavam terminadas, pelo contrário, ainda nem havíamos
chegado ao olho do furacão, porém, era dele que estávamos perigosamente próximos.
Tatiana desceu as escadas, arrastando suas malas, tendo minha mãe correndo
logo atrás, feito um cãozinho bem domesticado.
- Minha filha, não faça isso! Não se precipite! Benjamim está fora de si, ele vai
reconsiderar tudo que disse, posso garantir para você – dona Laura gritava, enquanto
Tatiana caminhava firme rumo ao seu carro. – Vocês se amam de verdade!
Podíamos ouvir, de dentro de casa, as súplicas de dona Laura que, do lado de
fora da casa, tentava dissuadir Tatiana, mas ela estava completamente decidida.
- Para com isso, Laura! – a ex-nora de minha mãe berrou com violência. – Está
sendo ridícula, mas do que de costume. Essa sua humilhação só aumenta o meu
desprezo por você.
- Querida, como você pode falar isso de mim? – a voz da minha mãe havia
perdido toda a sua autoridade.
- Não me chama de querida – Tatiana repeliu. – Eu sempre soube que você me
via como uma tábua de salvação para os seus negócios falidos, e somente por gostar
de seu filho, é que eu fingia não perceber o quanto você forçava a barra. Eu quero ver
a sua família na lama.
Ouvi a batida da porta do carro, seguido de seu arranque. Tatiana estava
deixando o sítio, e eu já podia imaginar em que estado a minha mãe entraria dentro
de casa.
O barulho do carro sumiu estrada a fora, e depois de alguns minutos, uma
Laura, descabelada, suada, com a roupa totalmente desarrumada, andando sobre os
saltos, como se fosse a primeira vez, cruzou a porta da sala, ficando parada uns dois
metros após a soleira. Não pude ver o seu rosto, pois sua cabeça estava abaixada,
em sinal de derrota, assim como os braços, que estendidos displicentemente, revelava
o seu cansaço. Nunca havia visto minha mãe com o espírito alquebrado.
Eu, papai, Giuliano, vovó Elisa e Rosa, a observamos de longe, como se ela
fosse um animal feroz ferido, que por causa do golpe, se tornara ainda mais perigoso.
No entanto, eu tomei a iniciativa de me aproximar dela, pronto para ouvir seu berros
e gritos, me mandando correr atrás de Tatiana e me arrastar pelo chão, suplicando as
migalhas de seu perdão, e explicando que eu havia tido um surto, decorrente do
nervosismo de véspera de matrimônio.
- Mãe, a senhora precisa entender, que de qualquer jeito não daria certo – eu
comecei a dizer. – Esse casamento não ia durar quase nada, e eu acabaria traindo a
Tatiana, e ela, por abandono meu, faria o mesmo.
Dona Laura, continuava na mesma posição, a cabeça completamente abaixada
e braços estendidos.
- O pai da Tatiana não é burro, ele com certeza iria preparar um contrato pré-
nupcial, para evitar que a nossa família tivesse acesso a herança dela – continuei
explicando. – E eu duvido muito que ele quisesse salvar o escritório, o máximo que
faria, era comprar e nos pôr como seus funcionários.
Minha mãe continuava imóvel.
- Eu prometo que vou dar o meu suor e o meu sangue pelo escritório, e vamos
reergue-lo novamente – disse em tom amistoso. – Não vamos ganhar nada
começando uma guerra agora.
Como ela não reagia a nada que dizia, fiquei em silêncio, triste por aquele
desfecho que ela teve. Apesar de discordar de seus métodos e de suas motivações,
meu coração se condoía pelo seu estado. Era evidente sua desolação.
- Mãe...
- DESGRAÇADO!!! – ela surtou, agarrando o meu pescoço com as duas mãos
e me sufocando. – Você acabou com a nossa família.
Cai no chão com ela por cima de mim, e em segundos suas unhas já tinham
rasgado as mangas da minha camisa, e agora retalhava a minha carne. Papai e
Giuliano correram em nossa direção, e os dois tentaram tirá-la de cima de mim, mas
ela estava tomada por uma força sobrenatural. Ela arranhava o meu rosto, meu peito
e os meus braços, alternando por puxadas de cabelo e tapas no rosto. Eu também
tentava controlar suas mãos, porém ela era uma leoa, só que diferente de tal, não
usava sua ferocidade para defender a cria, e sim ataca-la.
- Larga ele, sua louca! – meu pai finalmente conseguiu retirá-la de cima de mim,
e Giuliano logo me levantou.
Eu fora esfolado por ela. Haviam manchas de sangue na minha camisa branca,
e tufos do meu cabelo, entremeados nos dedos da minha mãe.
- Eu te amaldiçoo, Benjamim, eu te amaldiçoo até uma vida cheia de desgraças
e sofrimento – ela praguejava com um sorriso insano. – Que você perca tudo que mais
preza vida. Eu rogo uma praga nesse seu envolvimento aberrante com o bastardinho
da vaca da minha irmã.
- Cala a sua boca, Laura! – meu pai a sacudiu.
- Solte-me, seu grande imbecil – dona Laura conseguiu se desvencilhar do meu
pai. – Você sempre foi uma trouxa mesmo, Roberto. Tão tolo, tão fácil de ser levado.
Um cachorrinho, que responde a qualquer pedaço de osso que lhe for oferecido.
- Isso, mesmo, tira a máscara! Mostra toda a sua face – meu pai explodiu.
- Você é patético – ela ria anormalmente. – Nunca me satisfez como
profissional, e muito menos como marido. Eu só senti tédio ao seu lado. Tédio! Tédio!
Tédio!
- Deus sabe, o quanto me dói dizer isso – minha avó se aproximou da minha
mãe, enquanto seu rosto estava encharcado por lágrimas profusas. – Mas quero que
vá embora daqui, e que não volte, a menos que tenha se arrependido das coisas que
fez. Eu sinto vergonha de ser sua mãe.
- O sentimento é recíproco, dona Elisa – minha mãe cuspiu no chão. – A ruína
que a minha vida se tornou hoje, grande parte da culpa foi sua. Pensa que eu não sei
que foi com seu apoio que esses dois sodomitas caíram em imundice? Você foi uma
péssima mãe, eu preferiria ter sido mandada para um orfanato, do que ter sido criada
por você.
Minha avó levou a mão à barriga e começou a gemer de dor, desfalecendo o
corpo. Giuliano a pegou nos braços antes que ela tombasse.
- Vó! – eu e Giuliano gritamos ao mesmo tempo.
Vovó Elisa estava imóvel, e sua respiração enfraquecia gradativamente.
- Precisamos de uma ambulância urgentemente – eu falei desesperado,
pegando o celular com as mãos trêmulas.
- Deixa que eu faço isso – meu pai pegou o celular da minha mão. – Tentem
reanimá-la.
- Não devíamos ter dispensado o enfermeiro – Giuliano chorava muito. – O
médico disse que ela não poderia passar por nenhum tipo de abalo emocional.
Giuliano olhou para a minha mãe com profundo ódio, cheio de acusações no
olhar. Ele não estava errado, pois o baque emocional que vovó Elisa sofrera, veio das
palavras da minha mãe e de todo o escândalo que ela armou.
Meu pai ligou para a ambulância e para o enfermeiro da vovó, conforme eu
instruíra. Só restava esperar, e essa era a pior parte, porque os segundo se
arrastavam como dias.
- Vovó Elisa, a senhora não pode me deixar – Giuliano soluçava em um choro
compulsivo. – Preciso tanto da senhora aqui comigo, do seu amor.
Sem palavras para dizer, apenas segurei firme em seus ombros, enquanto ele
mantinha nossa avó em seus braços. Minha mãe, apenas se afastou, silenciosa. Não
exibia culpa, mas pude sentir, que no fundo do seu coração, havia uma mancha de
remorso.
Depois do que nos pareceu uma eternidade, a ambulância chegou ao sítio,
trazendo o enfermeiro particular da vovó junto com a equipe de socorristas.
- Eu sabia que não daria certo essa minha dispensa – o enfermeiro lamentava,
dividindo parte da culpa entre a família e ele. – No estado em que ela estava, qualquer
mudança de humor pode ser fatal.
- Houve uma discussão entre família, tentamos evitar ao máximo... – meu pai
tentava explicar, enquanto eles faziam a remoção da minha avó.
- Vou com ela na ambulância, e vocês podem vir atrás – disse Giuliano,
acompanhado a maca.
Fui com papai em seu carro, seguindo a ambulância de perto. Deixamos Rosa
aos prantos, e mamãe jogada em sua própria solidão e amargura. Mesmo sabendo
que vovó Elisa já estava em fase final, não sei se perdoaria dona Laura por dar uma
morte tão desgostosa a sua mãe.
- Eu me sinto profundamente culpado – eu falei deixando o choro escoar.
- Não diga isso, Benjamim – meu pai falou.
- Pai, eu não podia ter exposto a vovó a uma situação terrível, como foi essa –
eu justifiquei. – Ela estava vulnerável demais.
- Sua avó queria vê-los juntos, tenho certeza disso – meu pai afirmou.
- Não quero que ela parta, não dessa forma – pus a mão no rosto, e fiquei
fungando.
- Se ela for agora, seu coração estará descansado quanto a você e Giuliano –
disse meu pai. – Ela tinha essa meta como missão final, meu filho.
Por mais que meu pai tentasse me dizer coisas lógicas, a razão não é uma
consoladora. Ela serve para constatação, mas a dor permanece intacta. Não podia
ser diferente, é claro, eu amava a minha avó demais, imagino que o amor Giuliano era
incomensurável.
Chegamos no hospital, e a minha avó já havia sido levada para ala da
oncologia. Na sala de espera, o meu Giuliano estava a ponto de enlouquecer. Fiz
então a única coisa que estava ao meu alcance: lhe dei colo.
- Eu não quero que ela vá, Benjamim, não posso suportar sua partida – ele
fungava no meu peito, e repetia isso sem parar.
- Estou aqui meu amor, e daqui não sairei – eu apertei o seu corpo contra o
seu, tentando acalmar o seu coração abalado, mas era em vão, pois não conseguia
fazer isso nem com o meu.
Giuliano estava vulnerável como no dia da morte do velório de sua mãe, quando
nos conhecemos pela primeira vez. Eu segurava a sua mão com tanto carinho e
proteção, e não sentia vontade de deixa-lo nunca mais. Mesmo sem saber, fora ali
que eu comecei a amar o meu primo. Que um calor diferente começou a percorrer o
meu corpo, e que aquela artéria invisível, mas tão poderosa, conectou os nossos
corações de uma forma única. Nenhuma experiência fora parecida com aquela.
Ali, diante de mim, necessitando dos meus cuidados, ele era novamente o
pequeno Giuliano. A vida parecia não cansar de testar sua resistência dele, todos que
ele amava tanto. Mas eu iria brigar com a vida, se ela tentasse nos separar
novamente.
Quando meu primo já estava um pouco mais calmo, e sua respiração menos
incontrolável, o médico da vovó Elisa entrou na sala de espera. Giuliano pulou da
cadeira, e foi ao encontro dele, nutrindo uma esperança de boas notícias, que eu já
sabia que era vã.
- Infelizmente, não podemos fazer mais nada por ela, além de amenizar suas
dores – o médico disse.
- Não! Não! Não! Não! Não! É mentira – Giuliano pegou agarrou o médico pelo
jaleco e o sacudiu.
- Giuliano, se controle – meu pai o retirou de cima do médico.
- Está tudo bem – o médico não se ofendeu com a reação agressiva do meu
primo. – Ela está consciente e pediu para ver os netos.
Atendendo ao pedido de nossa vó, fomos apenas eu e Giuliano vê-la. Foi
horrível, ter com ela naquelas circunstâncias. Todas aquelas máquinas emitindo sons
funesto, prolongando por alguns instantes uma vida que chegara ao fim de forma tão
trágica.
- Venham cá, meus lindo meninos – vovó Elisa nos chamou, com uma voz
quase inaudível. – Quero ver os rostos de vocês, antes de ir ter com o Pai.
Nos aproximamos, de mãos dadas, de sua cama, nos esvaindo de lágrimas.
- Não chorem, por favor – ela pediu abrindo um pálido sorriso. – Guardem a
compaixão de vocês para quem fica, nesse momento preciso de um beijo.
Beijamo-la demoradamente, e depois pegamos, cada um, em uma de suas
mãos.
- Meu coração está cheio de alegria – ela disse, tentando apertar nossas mãos,
mas quase não havia mais força. – O mundo é um lugar muito cruel com aquilo que é
diferente. O amor ainda não foi vivido e nem sentido por todos, mas há alguns que
são privilegiados com essa graça divina, por terem se permitido receber o amor. Não
há erro, falha ou pecado no que vocês sentem um por outro. É tão belo que só pode
ter sido feito por Deus. Eu vou, mas deixo a minha benção para união de vocês. Que
o amor, possa salvar sua mãe, Benjamim. Diga a ela, que apesar de tudo, não posso
não a amar, é mais forte do que qualquer falha grave – ela ficou em silêncio.
- Vovó Elisa? Vovó Elisa? – Giuliano a chamava.
- Ela não vai mais responder, Giuliano – foi a frase mais difícil que eu já disse.
Tudo pareceu entrar em câmara lenta. Apesar do pio contínuo dos aparelhos,
o quarto mergulhou-se em um silêncio fúnebre. Um minuto era pior do que outro. Uma
dor imensa, que não cabe em palavras, mas que queimava vividamente o nosso peito
e esmagava alma.
Minha avó morreu com um sorriso no rosto.
14. LEMBRANÇAS DE VOVÓ ELISA (Narrado por Giuliano)
Eu era apenas um moleque, mas essa lembrança sempre foi um archote que
iluminava um átimo das memórias esquecidas na infância.
O dia era domingo, precisamente as seis da tarde. Eu já estava jantando, pois
era costume naquela época, as crianças fazerem as refeições noturnas bem cedo.
Vovó Elisa preparava seu prato para juntar-se a mim, à mesa do jantar. Estávamos
vivendo uma fase muito tranquila; eu, minha mãe e minha avó.
- Quer mais um pouco de batatas, Giuliano? – vovó Elisa indagou, estendendo
em minha direção, uma pequena tigela com o nutritivo alimento.
- Obrigado, mas estou satisfeito – respondi rindo para ela, antes de levar mais
uma garfada a boca.
- Não está dizendo isso só para passar logo para a sobremesa? – Vovó Elisa
perguntou desconfiada.
- É verdade, vovó, as batatas estão deliciosas, mas não quero mais – disse,
empurrando o prato vazio para frente.
Vovó Elisa, não podia ter de mim, menos do que a metade do amor filial, que
normalmente eu daria na íntegra para a minha mãe Helena.
Entretanto, naquele domingo, que deveria ter sido igual a todos, a minha mãe
não estava conosco. Ela era enfermeira e treinada para realizar partos normais
domiciliares, e teve que sair para atender a um chamado de uma grávida, que estava
a iminência de dar à luz.
Nunca me preocupei com essas saídas repentinas de mamãe Helena, todavia,
contrário as outras vezes, uma sensação ruim, que me roubava parte do fôlego, se
infiltrava progressivamente no meu coração. Pude atestar que não era o único que
provava o amargor do sentimento, pois percebi que vovó Elisa, esforçando-se em ser
discreta, olhava constantemente pela janela da cozinha, em direção à porteira do sítio,
e sempre tocava sua medalhinha de São Bento, presa ao um delicado cordão de ouro,
pendurado em seu pescoço.
Em uma de suas inúmeras olhadas pela janela, vovó Elisa viu alguém
chegando, e seus olhos se arregalaram instantaneamente, enquanto a mão pesou
sobre a medalhinha, pressionando-a com força.
Esbaforido como um cavalo que percorrera longo caminho até o destino
desejado, Inácio invadiu a cozinha, com meia-língua posta para fora, e lançou um
olhar funesto para vovó Elisa, em seguida o velho olhou para mim e abaixou a cabeça.
Vovó Elisa acompanhou os olhos de Inácio, guiados em minha direção, e
engolindo um nó, que eu vi se formar em sua garganta, ordenou com firmeza, porém
com doçura:
- Giuliano, vá para o seu quarto!
- Ainda não terminei o meu jantar, vovó.
- Obedeça, depois eu levo um lanche para você – ela disse, firmando as mãos
no tampo da mesa, dando sinais de uma tontura súbita.
Atendi a sua ordem, certo de que eu precisava ouvir o que Inácio queria dizer
a ela em minha ausência. Corri para o quarto, mas parei no corredor e fui fazendo o
caminho reverso de gatinhas, até está em um lugar próximo para ouvir a conversa,
sem que eu fosse flagrado.
- O que aconteceu com a minha filha, Inácio? – vovó Elisa perguntou ao velho,
tapando a boca antes que um grito escapasse.
- Dona Elisa... – o velho começou a derramar lágrimas. – Foi um caminhoneiro
bêbado...
- Como está a minha filha? Para que hospital a levaram? – vovó perguntou,
mas já com uma infausta certeza de qual resposta obteria.
- O infeliz vinha em alta velocidade, e invadiu o acostamento... – ele se entalou
com o choro. – A pancada foi muito forte, não tinha como ela...
Tudo se tornou um borrão diante dos meus olhos. As palavras de seu Inácio
resvalavam na minha incompreensão. Comecei a gritar, e nada podia atenuar a minha
dor. Era demais para as lágrimas, só os urros podiam escoar o que eu estava sentido.
Ao me ver em pânico, vovó Elisa correu ao meu encontro e tentou me segurar
em seus braços, mas eu me debatia gritando pela minha mãe, não desejava ser
consolado, ansiava ouvir que tudo que seu Inácio dissera não passara de uma
brincadeira de mau-gosto. Mas não era isso que a reação da minha avó dizia.
Isolei-me no quarto e só quis que o mundo acabasse naquele instante, porém,
nada passava. A realidade me chamava para um beijo de escorpião.
Terno preto, cabelos exageradamente penteados e domados por cera, uma
gravata apertada no pescoço e um sapato preto lustroso. Mas eu não estava indo a
nenhum baile, casamento, formatura ou qualquer festa de pompa. Guardada para
sempre em uma caixa de madeira, estava a minha mãe. Eu não pude vê-la, pois
devido à gravidade do acidente, o velório fora feito com tampa fechada. Custava-me
crer que seu corpo ali repousava, sem vida, sem riso, ou até lágrimas. Custava-me
aceitar que ela não ia mais fechar os botões da minha camisa, tirar aquele pequeno
amarrotado da roupa, verificar se eu tinha tomado banho direito.
Estava só, nu, na escuridão, sem perspectiva de ver a luz.
- “Você vai ficar comigo, vou te dar todo o amor de que precisa, Giuliano” –
minha vó me disse, assim que eu me aproximei do caixão. Ela cumpriu sua promessa.
Ela se esforçava para não chorar na minha frente, por outro lado, me deixava
desaguar sem nenhuma restrição, sem dizer já chega. Vovó Elisa me salvou de todas
as formas possíveis. Me fez acreditar que existia alguém no mundo que se importava
de verdade comigo, e sua casa seria sempre o meu lar, e o lugar que eu pudesse
voltar depois de longo e cansativo voo.
No dia da morte da minha mãe, eu também conheci Benjamim. Ele foi mais
uma luz que se acendeu, e aqueceu meus dias frios. Começamos uma amizade
profunda, talvez por ter tido um prefácio de tragédia: a morte da minha mãe.
Queria sempre estar com o meu primo Benjamim, isso significava cuidar dele,
protege-lo, abraça-lo, misturar a minha pele bronzeada do sol à sua tão sensível e
clara. Não queria que ele nunca fosse embora, e quando ia, ficava eu, parado em cima
da porteira, observando a estrada serpentear, até se esconder da minha vista,
imaginando quão bom seria quando ele regressasse.
Sempre soube, que o que eu sentia por Benjamim, era diferente daquilo que
sentia pelos meus amigos da escola. Mas no começo, pensei que fosse efeito do
nosso laço sanguíneo. Não era. Os meus lábios queriam sentir o gosto dos dele, tão
bonitos como rosas recém-abertas, ainda orvalhadas e com um frescor no bojo.
Quando nos beijamos pela primeira vez, tive duas certezas: que não queria outros
lábios, e que não queria apenas beijos.
O sentimento aumentou, a ponto de trocarmos alianças feitas de capim-
dourado. Mas dizem, que do outro lado da moeda do amor, está a fragilidade. É tão
fácil machucar e ser machucado quando se ama. É como andar descalço sobre rosas;
as pétalas são lindas e românticas, mas a haste guarda espinhos afiados. Sangrei,
não só literalmente por essa caminhada. Quando provei de seu verdadeiro gosto, e
penetrei em suas carnes macias e rosadas, sentindo-me homem, fazendo-me o
homem dele, e querendo que ele fosse meu, só meu. Benjamim, não entendeu, e agiu
como se eu tivesse o ofendido. O seu ato desencadeou a nossa desgraça, e por dez
anos não soube mais nada do meu primo. Não foram dez anos fáceis. Por muitas
vezes, olhava para cordas e objetos cortantes, e sentia um impulso para usá-los contra
mim, mas ela, minha vó Elisa, estava lá, e delicadamente, afastava o inimigo de perto
de mim.
Eu olhava para porteira, e para o caminho serpenteante, ainda esperançoso,
tal qual como a raposa das 4 horas da tarde, de que aquele carro conhecido
apontasse, e como uma carruagem real, dele saltasse, o meu pequeno príncipe.
- “Quando ele volta, vovó Elisa?” – repetia essa pergunta inúmeras vezes.
Minha avó apenas me pegava no colo me aconchegava em seus braços.
Logo eu estava sentado na porteira, à espera de um regresso que nunca
aconteceu.
Vovó Elisa fora uma concha para mim, e eu, ferido, lacrimejei nácar, fiquei
sólido e tornei a minha dor trampolim para o meu crescimento. Mas ela já não estava
mais comigo, como uma guia de meus passos, uma bússola para que nunca me
esquecesse de como voltar para casa. O farol da minha vida estava apagado.
***
Benjamim não soltava a minha mão nem por um instante. Eu as apertava,
sentindo o medo de uma turbulência em uma viagem de avião. Meus olhos se
fecharam, e não queriam encarar o ataúde funesto, deitado em minha frente,
guardando mais uma vez a minha mãe. Na dor, todas as vezes são como a primeira,
não há como se acostumar, nem é isso que queremos. Mas a minha maturidade,
parecia mostrar-me nuances muito mais escuras naquele segundo luto.
Meus olhos ardiam profundamente. Inchados e vermelhos, escondiam-se no
peito do meu primo, já bastante molhado pelas minhas lágrimas.
- Por que isso foi acontecer, Benjamim? – perguntei para o meu primo, mas
não precisava de sua resposta, e sim de sua promessa de que ficaria ao meu lado.
A casa estava cheia de pessoas, e eu só queria que todas fossem embora, que
parassem de me dizer coisas imbecis como: “Foi porque Deus quis dessa forma”, “O
Pai chama primeiro os bons”, “Ela agora está em um bom lugar”. Não queria parar de
chorar, e um ódio sinistro tomava conta de mim, quando alguém sugeria que eu devia
me acalmar e procurar aceitar. Só ele me entendia. Só Benjamim me deixava sentir a
dor correspondente ao amor da minha avó.
Logo os rituais fúnebres começaram a ser celebrado pelo padre, que veio até
nossa residência. Eu não demonstrava nenhum tipo de disposição para aquilo, e
Benjamim me acompanhava nisso. Minha avó poderia ser mais uma pessoa falecida
para toda aquela gente, mas para mim sempre seria o farol da minha vida. A estrela,
cuja luz não se apagou, mesmo depois de ter morrido.
Tio Hélio e a esposa vieram para o velório, mas eu não dei a menor atenção
para os dois, ou fiz qualquer tipo de recepção, tudo isso ficou a cargo de Rosa. Sentia
uma indignação, pois o meu tio não dera a menor bola para o convite de festejar as
festas de fim de ano, que vovó Elisa o enviara, e agora veio pousar de filho enlutado.
Na certa farejava alguma herança.
A mãe de Benjamim se trancou no quarto em que estava hospedada, e de lá
se recusou sair. É fato que eu não queria tê-la por perto, mas não tinha forças para
desperdiçar com aquela víbora.
Uma cerimônia simples conduziu o enterro da minha avó, mas ver o seu caixão
ser totalmente selado por cimento e concreto, não foi nada simples. Eu sabia que
jamais seria o mesmo de novo, e que sempre que estivesse em um momento muito
feliz, a lembrança dela, e, principalmente sua ausência, travaria a minha boca com o
gosto de amargor.
Após o sepultamento, eu, Rosa, Benjamim e Roberto voltamos imediatamente
para casa, avisando antes que não receberíamos ninguém. Tio Hélio e a esposa
retornaram para seu destino de origem, como percebera que era o meu desejo. Já em
casa, Benjamim quis me acompanhar até o meu quarto, mas eu recusei. Não que o
desejo de estar com ele fosse inexistente, pelo contrário. Só queria ficar apenas com
os meus pensamentos, e deixar que o silêncio e a solidão cuidassem de mim, ainda
que, naquele momento, não fossem os companheiros mais indicados.
A noite de se arrastou, férrea, carrasca e dolorosa. Meus olhos fixos no teto,
custavam até piscar. Eles se incomodavam apenas com a ardência que o excesso de
lágrimas lhes provocavam. Consegui o silêncio e a solidão que pretendia, mas longe
de acalmar meus pensamentos turvos, eles me esmagaram.
Depois de uma noite que parecia eterna, um dia abafado com o céu cerrado
por nuvens acinzentadas, despertou. Relutei em levantar, ainda alimentando a
esperança de que tudo que acontecera no dia anterior, não havia passado de um
sonho ruim, mas logo a minha memória esvaiu esse devaneio.
Desci até a sala de estar, enquanto era golpeado por cada pedaço daquela
casa, cheio de tanta ausência da minha vó. Era o silêncio mais insuportável em que
eu estivera mergulhado, por isso tentei escapar o mais rápido possível, cruzando a
sala, sem nem reparar que Rosa estava na cozinha, e indo direto para o alpendre. Lá
sentei-me, lançando um olhar vazio para qualquer lugar.
Alguns minutos passados, e um cheiro delicioso de café encorpado chegou até
mim. Era Rosa trazendo uma xícara bem generosa, ao lado dela vinha Benjamim.
Trocamos olhares, mas nenhuma palavra foi dita. Cada um sentou no canto, sorvendo
o café e admirando o nada. Tudo estava sendo dito ali, mesmo que nossas bocas não
pronunciassem uma só palavra.
- Benjamim? – uma voz desagradavelmente conhecida, o chamou.
- Mãe? – meu primo atendeu interrogativo, acompanhando tia Laura se
aproximar de nós, arrastando uma mala de viagem, enquanto o pai de Benjamim trazia
o resto.
- Não há mais nenhum motivo para você continuar com essa história – ela
falava com exaustão e derrota na voz. – Vamos voltar e implorar o perdão da sua
noiva, tenho certeza que ela ainda gosta de você.
- É uma tristeza ver que a senhora parece ter jeito mesmo – Benjamim
respondeu, dando as costas para sua mãe.
- O que você espera ganhar aqui? – ela jogou as mãos na cabeça. – Acabou!
Ela está morta!
Mal a mãe de Benjamim concluiu sua última frase, recebeu um tapa forte de
Rosa, na cara, que a fez quase tombar para atrás.
- Cala a boca! Cala sua maldita boca! – nunca havia visto Rosa com tanta raiva.
A dona Elisa não merecia ter um castigo como você.
- Como ousa, sua empregadinha – Laura ainda juntou um restinho de sua
arrogância.
- Dá o fora de uma vez daqui, antes que eu esqueça que você tem o meu
sangue.
- Vocês vão se arrependerem! – ela ainda esbravejou, enquanto se arrastava
até o carro em que viera com seu marido.
- Desculpe, por tudo mesmo – Roberto tentava assumir a culpa pela insanidade
da esposa.
- Tenho muita consideração por você, Roberto, como se fosse um tio, mas por
ela: só desprezo – eu disse.
- Giuliano, eu entendo perfeitamente o seu posicionamento, por isso estou indo
com ela, mas espero voltar aqui para vê-lo. – Roberto disse envergonhado.
- E será muito bem recebido, mas ela não. – eu fui claro.
Roberto confirmou com a cabeça, virando-se, em seguida, para Benjamim e
dizendo:
- Em casa conversamos melhor, meu filho.
O pai de Benjamim partiu com sua esposa, deixando para trás um ar pesado
entre mim e seu filho. Sua última frase me acertou em cheio, e mal podia acreditar
que fosse verdade.
Rosa nos deixou, assim que percebeu que precisávamos conversarmos a sós.
Antes que qualquer palavra fosse proferida, um longo silêncio se fez presente entre
nós. Olhávamos paralelamente para um ponto desconhecido na paisagem, e quando
ao clima abafado parecia que ia nos sufocar de vez, as nuvens acinzentadas do céu,
despencaram uma chuva forte, combatendo o calor daquela manhã.
- Você vai me deixar mais uma vez? – perguntei para Benjamim, sem disfarçar
o embargo na minha voz, ou as lágrimas que já precipitavam tão profusas como
aquela chuva.
- Não vou deixá-lo! – ele me corrigiu com preocupação. – Mais cedo ou mais
tarde eu teria que voltar, para resolver a vida que deixei para trás. Só assim posso
voltar para você de vez. E isto é o que eu mais quero.
Olhei para Benjamim, relutante, mas compreensivo. Nos levantamos
abruptamente, lançando-nos um no pescoço do outro, antes de nos beijarmos com
brutalidade. Ao som da chuva, nos amávamos naquele beijo. Fora sempre o maior
desejo de vovó Elisa.
A tarde Benjamim viajou, e antes mesmo de nossa despedida, eu já estava
morrendo de saudades.
15. AMOR DE PRIMO É PARA SEMPRE.
- E então?
- Não consigo falar com Giuliano, desde que saí do sítio – eu respondi para
meu pai.
- Bom, parece preocupante, Benjamim. Quero dizer, depois de uma semana
distantes, ele não te ligar e nem mesmo não te atender.
- Não é que ele não me atenda, a chamada vai direto para a caixa- postal – eu
argumentei junto ao meu pai. – Não quero encarar isso como um sinal negativo,
apenas tento pensar que ele quer um tempo para o luto, e quer me dar um tempo para
resolver tudo com tranquilidade.
- Hum... – meu pai me olhou desconfiado, enquanto levava uma porção de torta
de banana à boca. – Talvez não haja mesmo motivos para se preocupar, afinal, depois
de tudo que vocês passaram nos últimos tempos, não posso imaginar desfecho que
contrarie o sentimento dos dois.
- Precisava ouvir isso do senhor, papai – eu disse apertando a mão dele por
cima da mesa do restaurante, no qual almoçávamos.
- E você pretende voltar para o sítio antes do réveillon? – Seu Roberto me
perguntou.
- Voltarei amanhã, na véspera de Ano Novo – respondi com uma calma
aparente. – O meu desligamento do escritório é fato consumado, e a venda dos dois
apartamentos que vovó Diana me deixou de herança, já está com as negociações
praticamente fechadas.
- Sei que a minha mãe ficaria muito feliz, em ver que a herança que deixou para
você, vai ajuda-lo nessa nova vida que irá começar com Giuliano. – meu pai me
encorajou.
- Eu sei... – respondi cabisbaixo.
- O que foi, Benjamim? Por que ficou tão triste assim?
- Lembrei da vovó Elisa, papai – respondi sem olhar para ele. – Só agora me
dei conta que não tenho mais nenhuma das minhas avós.
- Bom, é melhor pensar que você foi um neto muito amado.
- O senhor sempre dizer as palavras mais apropriadas, né meu velho? – apertei
novamente suas mãos por cima da mesa.
- Mas nenhuma de minhas palavras serviram para me dar coragem tão cedo,
quanto a que você teve para enfrentar a sua mãe, em nome de sua felicidade. – ele
contra-argumentou. – Gastei um grande pedaço da minha vida alimentando um
casamento, que já havia sido sepultado há tanto tempo. Demorei demais para dar um
basta naquela situação. Apesar de estar separado da sua mãe por alguns dias,
apenas, o que sinto não é felicidade, mas sim alívio. E falando nela, como foi sua
conversa como dona Laura?
- Muito diferente do que supus, pois achei que haveria muita gritaria,
xingamentos, objetos lançados em minha direção, mas... – fechei os olhos, lembrando
de cada detalhe da conversa que tive com minha mãe.
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Só a procurei dois dias depois da minha vinda do sítio, pois queria estar pronto para
dizer adeus, sem que houvesse qualquer tentativa de me fazer mudar de ideia, por
isso tratei primeiro do meu desligamento do escritório, abrindo mão totalmente da
minha participação na sociedade.
Com tudo pronto, resolvi então que era chegada a hora de decidir, pelo menos
temporariamente, qual seria o futuro da minha relação com dona Laura. Tentei falar,
neste meio tempo com Giuliano, porém sem sucesso.
Quando fui vê-la em nossa casa, encontrei um ambiente de penumbra,
adequado ao profundo silêncio que se alastrava por cada cômodo. Por alguns
instantes, fiquei parado na sala de estar, tentando ouvir qualquer ruído que indicasse
a presença de alguém ali. Não consegui ouvir nenhum barulho interno, então
aproveitei para arrumar todas as minhas coisas, seria melhor já estar de malas
prontas, do que prepará-las depois de nossa conversa estrondosa, que eu imaginava
que seria. Foi o que eu fiz; enchi três malas grandes, apenas com aquilo que julgava
essencial, muitas trivialidades ficaram para trás, as quais eu não voltaria para pegar.
De malas prontas, desci primeiro com duas, levando-as para o meu carro, e
depois voltei para pegar a terceira. Na descida, de volta para a sala de estar, me
deparei com uma figura petrificada, postada no meio da sala, me encarando de nariz
em riste, um cavalo indomável, segurando um copo de uísque na mão direita.
- Se espremendo pelas paredes, sorrateiro, se escondendo na escuridão como
um gatuno – dona Laura me disse. – Seu olhar havia se renovado da arrogância de
antes, já não era mais aquela mulher derrotada, que eu encarar no sítio de vovó Elisa,
nos nossos últimos confrontos.
- Vim com a intenção de conversar com a senhora – falei, voltando a descer as
escadas, me aproximando dela.
- Conversar?! Conversar sobre o quê? Que finalmente seu pai pode ser feliz
longe da megera que sou eu? Ou sobre o seu desligamento do escritório? Não, quem
sabe você veio me pedir que eu ajude na decoração do seu casamento com o.... – ela
bebeu um gole de seu uísque, evitando pronunciar o nome do meu primo, como se
isso lhe custasse muito.
- Eu realmente não vim aqui para travar uma batalha sem o menor sentido –
disse, soltando a bolsa e cruzando os braços. – Tenho sim minha parcela de culpa na
forma como as coisas aconteceram. Não nego que minha responsabilidade é tão
grande quanto a sua, talvez até maior, se considerar que foi como minha conivência
que chegamos a esse ponto. Não devia ter permitido que você conduzisse a minha
vida, como seu eu fosse um caso jurídico lucrativo para o escritório. Sempre soube
que eu era gay, e você também. Mas todos os seus esforços foram para que eu
recusasse a minha sexualidade, ainda que isso resultasse numa vida infeliz e cheia
de traições. E nem adianta argumentar que o casamento com a Tatiana só seria de
faixada, pois eu vou rebater dizendo, que diferente de você, eu desisti das máscaras
de hipocrisia. Lamento por seu amor por mim ser totalmente condicional, mas eu vou
ficar com o Giuliano, nem que isso signifique que tenhamos que romper para sempre.
Ela ouviu cada palavra com detida atenção, contudo, impassível, sempre dando
breves goles na bebida, semelhante a como fazia, quando tinha que ouvir uma
conversa desinteressante de um cliente do escritório.
- Não há nada que queira me dizer? – indaguei, pondo a mão no puxador da
mala.
Mamãe bebeu o restante do uísque em um único gole, pôs o copo sobre uma
mesinha com flores que estava à sua esquerda e virou as costas para mim, dizendo
depois de um breve silêncio.
- Saia por aquela porta, e esqueça tudo o que você está deixando aqui dentro
– sua voz tinha um quase imperceptível fundo de tristeza. – Quando perguntarem pela
sua mãe, diga que morreu quando era criança, e que nem chegou a conhecê-la. Seu
pai, um cara bacana e de mente muito aberta para as transformações do mundo, o
criou com todo amor.
- Por quê tem que ser assim? – as lágrimas desciam pelo meu rosto.
- Porque quando me perguntarem se tenho filhos, direi que tive apenas um,
mas ele morreu assim que nasceu – ela continuava de costas. – Meu marido não
suportou a perda e me abandonou.
- Jamais farei isso! – disse com um pouco de exaltação. – Eu vou embora sim,
mas ainda tenho esperança de que um dia a senhora perceberá o seu erro.
- Não gaste suas expectativas com algo impossível – ela respondeu. – Esta
conversa termina aqui. Saia.
- Mãe...
- SAIA! – ela se virou para mim abruptamente, apontando para porta. Seu rosto
também estava molhado por lágrimas.
Peguei minha bolsa e fiz o que ela me pedia; deixei minha antiga casa com o
sabor amargo do pior desfecho que nossa relação poderia ter. Creio, que o
rompimento materno é o mais doloroso de todos, talvez pelo intenso vínculo entre mãe
e filho cultivado desde a gestação; pelas canções de dormir, bem guardadas no
subconsciente; a amamentação, o carinho e, principalmente, o amor acima de
qualquer coisa, pelo menos é o que deveria ser.
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Meu pai ouviu todo o relato, reflexivo, porém não emitiu nem um juízo de valor,
em vez disso, garantiu que enfrentaria o que fosse para que eu e Giuliano
pudéssemos ficar juntos.
- Não houve conversa entre mim e sua mãe, pois ela se recusou a tratar o
divórcio de forma direta, exigindo a intermediação de advogados – meu pai resumiu.
– Também me desliguei do escritório, como já deve ter imaginado que eu o faria.
- E seus planos? – perguntei.
- Pretendo voltar a dar aulas no curso de Direito, que foi o que eu sempre gostei
de fazer – ele respondeu com muita satisfação.
- Torço muito para que tudo saia de acordo com seu desejo, pois o senhor
merece muito que as coisas deem certo, ao menos dessa vez.
- Falando assim, parece até que transpareço que sou arrependido de ter me
casado com sua mãe, o que não é verdade. Tivemos nosso momento de glória, e o
seu nascimento foi o clímax de nossos anos dourados. O que sempre pesa é continuar
uma história depois do seu fim.
- Ou terminá-la antes dele – completei.
- Também é verdade – papai concordou. – Então ouça o meu conselho: se está
decidido a voltar para o sítio amanhã, volte! Mas sem planos de deixá-lo novamente.
Não fique preocupado com coisa alguma que ficou para trás. Irei vê-los, assim que as
coisas estiverem melhores.
- Farei isso sim papai! – rimos um para o outro, e só assim, mais aliviado, pude
comer meu primeiro prato de sobremesa, enquanto o meu pai já devorava o terceiro.
Depois daquele almoço de despedida, voltei para o hotel em que eu estava
hospedado, desde que viera do sítio. Resolvi não ligar mais para Giuliano, ignorando
o fato de que dessa vez ele poderia me atender. Percebi que a resposta que ele queria
de mim era o meu retorno definitivo, em vez de uma simples ligação. Estávamos há
muito tempo parados naquela encruzilhada, medindo e pesando riscos e danos. Uma
meditação que para mim, definitivamente, merecia um término urgente. Nunca havia
me sentindo tão resoluto sobre algo, do que retornar para os braços do meu primo e
ser feliz até que o último grão de areia de nosso tempo de vida escorresse.
Um amor assim só acontecesse uma vez na vida, quando acontece. Somente
os tolos talvez não percebam algo tão escancarado diante dos seus olhos. Eu fui um
tolo durante tanto tempo, e só agora me dou conta de que Giuliano sempre preencheu
cada canto dos meus pensamentos, e que tudo que eu fazia era condicionado ao meu
amor por ele, de forma torta às vezes, era verdade, mas só por meio de Giuliano
conseguia enxergar a minha alma, por mais que a negasse e a reprimisse. Mas um
amor tão antigo assim, um amor de primos não acaba tão fácil, ainda mais quando o
que as palavras dizem, traem o que o coração sente.
Nas primeiras horas do raiar do sol, eu já estava na estrada, rumo ao sítio, rumo
a ele. A ansiedade era incontrolável, me entorpecia, enfraquecendo, por breves
instantes os meus sentidos, fazendo minhas mãos, comprimidas contra o volante,
estremecerem de emoção.
Percorri cada quilômetro com a obstinação de um atleta frente a uma iminente
vitória, a diferença é que a minha corrida envolvia muito mais perdas ou ganhos, o
que me deixava bastante nervoso. Frente ao medo de não encontrar um Giuliano
receptivo ao meu amor, eu começava a me culpar por ter deixado o sítio, mesmo
considerando que eu não podia simplesmente ignorar a vida que eu havia deixado
para trás, antes de ter atendido ao convite da minha falecida vovó Elisa. Agora, porém,
a hora já estava bem adiantada para que eu permitisse que os fantasmas das
suposições me amedrontassem. Por anos primei pelo temor das coisas darem errado,
privando-me de arriscar escolhas, assumindo os riscos consequentes da
autodeterminação. Já não havia mais desculpas; minha mãe, minha noiva ou os
dilemas da minha sexualidade.
Quando cheguei à estrada de terra serpenteante, que levava para o sítio de
vovó Elisa, eram quase quatro horas da tarde. O sol estava empalidecido e algumas
nuvens carregadas se formavam no céu, intencionando uma não demorada pancada
de chuva. Segui com certa rapidez pelo caminho, lembrando-me das vezes que fiz
aquele trajeto com os meus pais, quando ia passar as férias com meu primo Giuliano,
e de como a minha ansiedade ficava maior a cada vez que me aproximava do sítio,
em mais um retorno. Podia ver o meu primo, só de calção, sentado no alto da porteira,
balançando as pernas com impaciência, como se cada movimento contabilizasse um
interminável segundo. E quando o nosso carro apontava na curva, ele esticava o
pescoço, tentando me localizar no banco do carro, e assim que eu colocava a cabeça
para fora da janela, um sorriso alvorecido tomava conta de seu rosto bronzeado, e
Giuliano saltava da porteira, e ia correndo ao meu encontro.
À medida que eu fazia a última curva, antes de avistar a entrada do sítio, as
nuvens despencaram em uma chuva grossa e rápida, mas ainda na presença do sol
– lembro que vovó Elisa sempre nos contava que quando chovia à luz do sol,
significava que uma raposa estava casando; eu e Giuliano saíamos explorando a mata
a procura desse casamento tão secreto. – Meus olhos se arregalaram ao avistar meu
primo, apenas de calça de jeans, sentando no alto da porteira do sítio, balançando as
pernas impacientemente, como se cada movimento correspondesse a um segundo,
interminável, contado.
Parei o carro, distando uns vinte metros dele e fiquei observando-o, tomado por
um efeito hipnótico. Aqueles mesmos sentimentos que tinham durante o nosso amor
adolescente, na mesma textura e cor, despertavam no meu coração, e serei incapaz
de descrever o que só o espírito entenderia.
Giuliano esticou o pescoço e perscrutou o carro, tentando enxergar através do
vidro embaçado pela chuva e pelo o movimento dos para-brisas. Desci do carro um
pouco hesitante, e pude ver um assomo de espanto indefinido, redesenhar o cenho
do meu primo. A chuva caía volumosa, me deixando rapidamente encharcado, mas
parecia que o tempo e o espaço haviam sumidos, e toda a vida que existia ali estava
concentrada nos nossos olhares.
Ele saltou da porteira e eu corri em sua direção, lançando-me em seu pescoço.
Os braços fortes e desnudos de Giuliano, acolheram-me junto ao seu peito, enquanto
uma de suas mãos me acariciava dos cabelos à nuca. Nos abraçamos cheios de
saudades e esperanças, de que a nossa história teria um rumo definitivo e feliz dali
para frente.
- Estou aqui meu amor, e é aqui que estarei sempre – disse para ele, segurando
seu rosto bem próximo do meu.
- Esperava você, mas tinha medo que desistisse do nosso amor – Giuliano
sussurrou, contornando os meus lábios com o seu polegar.
- Sinto muito por fazê-lo esperar tanto, mas agora estou pronto para te amar
como você merece.
Giuliano me ergueu alguns centímetros do chão, e enquanto nossos lábios,
magnetizados, selaram aquele momento com um beijo profundo de movimentos
longos, porém intensos. A água da chuva só tornava o beijo mais suculento.
De lento e profundo, nosso o beijo passou a ser voraz, urgente e necessário.
- Meu pequeno Benjamim – Giuliano sussurrou no meu ouvido, mordendo o
lóbulo da minha orelha. Apertei sua bunda dura e empinada, coisa que ele já fazia
com a minha, desde que nos abraçámos.
- Vamos entrar! – eu o puxei, e corremos para dentro de casa.
Ainda na sala, ele arrancou a minha camisa indo em seguida com sua boca até
o meu peitoral. Primeiro ele deslizou sua língua lentamente por toda extensão dos
meus peitos, me fazendo gemer muito, já totalmente incendiado pelo desejo. Depois
sua boca se ocupou de chupar os meus mamilos com força, mas sem deixar os dentes
me machucarem.
- Isso delícia! – eu prendia os seus cabelos. Giuliano olhou para mim, deu um
sorrisinho sacana e me empurrou sobre o sofá que estava atrás de nós.
Mal a minha bunda sentou no estofado, ele veio para cima de mim e
desabotoou a minha calça, puxando-a de uma vez só até os joelhos, junto com a
cueca, ambas molhadas de água e meladas de líquido pré-gozo. Ele agarrou,
possessivamente, o meu pau pelo meio, me fazendo ter um choque, e expelir um
pouco mais de líquido. Contorci-me imediatamente, e, sem esperar, meu primo
engoliu metade do meu pau de uma vez só. Quase pulo no teto, mas em vez disso,
abri as minhas pernas ao máximo que a calça, presa nos joelhos, me permitiam, e
lancei-me no encosto do sofá, deixando meu primão ordenhar meu menino a vontade.
- Ah, isso mesmo safado, engole tudo! – eu segurava firme sua cabeça,
forçando-a levemente para baixo.
- Quero saborear seu leitinho, Benzinho – Giuliano disse durante um brevíssimo
intervalo que esteve sem meu pau em sua boca.
Com toda aquela sucção feita por aquele macho gostoso, não tive como
segurar meu gozo por muito tempo, inundando a boca sedenta do meu primo. Era
tanto prazer que chegava até a doer, além do mais, o corpo concentrava toda a sua
adrenalina em um único ponto.
Um pouco do esperma, que meu primo não conseguiu conter na boca, escorreu
pela base do meu pau indo para o meu saco, mas Giuliano logo tratou de lamber o
líquido fujão, aproveitando para estender sua exploração até o meu cuzinho. Meu
primo suspendeu as minhas pernas, terminando de tirar a minha calça e a atirando
em qualquer lugar. Logo a língua de Giuliano forçava entrada do meu cu, me dando
um beijo grego permeado de tesão.
- Assim você vai me matar! – eu falei com a voz entrecortada.
- De forma alguma – ele se levantou, me fazendo ficar de pé também. – Quero
você bem vivinho para o que vem em seguida.
Fui virado de costas com certa brutalidade e empurrado para sofá, caindo de
joelhos, pronto para ser arrebentado pelo meu touro furioso. Giuliano se despiu
completamente também, e vasculhou no bolso de sua calça um preservativo,
guardado na carteira empapada pela chuva. Encapou o seu pau com uma destreza
profissional e começou a pincelar o meu cu, já lubrificado por suas caprichadas
lambidas bem salivada.
- Eu sou seu homem e agora vou te comer do jeito que você merece – Giuliano
me disse com uma voz rouca, me dando um tapa forte na bunda, que só me fez querer
que ele me preenchesse sem demora.
Giuliano foi empurrando a cabeça do seu pau com cuidado, mas não tão lento.
Sentia sua tora de carne veiúda abrir passagem com obstinação. Era como se ele me
dividisse ao meio, mas a dor não era maior do que o prazer e muito menos do que o
amor, que prevalecia naquele momento, não sendo afetado pela animalidade do
nosso sexo.
Meu primo montou sobre mim, fazendo do meu queixo, que ele puxava para
trás, sua rédea. Giuliano erguia seu quadril um pouco e voltava a sentar sobre mim, o
suficiente para tirar o pau até o início da cabeça e depois afundá-lo dentro de mim até
o saco. Meus gemidos eram cortados rapidamente pela respiração apressada, que os
movimentos me faziam ter. Giuliano praticamente cavalgava sobre mim, socando com
muita força, enquanto eu rebolava contra o seu pau. O cheiro do suor, do sexo, os
gemidos guturais, a soma de tudo nos envolveu em uma onda de prazer, apressando
o gozo de Giuliano.
- Ah...isso mesmo! Assim, assim, assim, ah.... – meu primo balbuciou antes de
dar uma última estocada. Seu corpo tremeu e ele desmontou sobre o sofá, me
puxando para os seus braços.
Ficamos os dois completamente suados, muito ofegantes, rindo e chorando
feito bobos. Tudo era bom demais, e o melhor, era verdade. Não tinha medo de
acordar daquele sonho, pois eu sabia que o homem da minha vida estaria ali ao me
lado.
Depois de nosso sangue se acalmar, fomos para o quarto e tomamos banho
junto na banheira de Giuliano. A chuva lá fora só aumentava, melhorando ainda mais
o clima de romance da casa.
- Lembra quando eu torci o seu braço sem querer, e a vovó Elisa me mandou
te ajudar a tomar banho? – Giuliano perguntou, enquanto massageava o shampoo no
meu cabelo, sem pressa e com muito carinho.
- Claro que eu lembro, seu tarado! Você ficava passando a mão ensaboada na
minha bunda por um tempo desnecessário.
- É que naquela época você já era um magrinho bundudo delicioso.
- E você um pervertido – eu bati no seu ombro, me fazendo de vítima.
- Confessa que adorava quando eu fazia isso – meu primo disse, enquanto
cheirava o meu pescoço.
- Lógico! Ou você não percebia que eu reclamava, mas nunca te proibia de me
tocar?
Ele riu, me beijando suavemente. Ficamos namorando na banheira sem pressa
e dando atenção para cada pedacinho do corpo um do outro, pois passado o torpor
do desejo acumulado de muitos anos, a tranquilidade do amor sereno era o que nos
enlaçava agora.
- Feliz Ano Novo, meu amor – eu desejei para o meu primo.
- Feliz vida nova! – ele respondeu.
Após o banho fomos direto para cama, nos entregando rapidamente ao sono
dos amantes e à calidez da vontade de estarmos juntos. A noite se tornou apenas um
borrão sem forma.
Lentamente meus olhos foram se abrindo, acostumando-se com a
luminosidade do ambiente. O dia já havia amanhecido e Giuliano não estava mais ao
meu lado, no entanto, ainda sentia seu cheiro, marcando o lado que ele dormira na
cama. Pus apenas uma cueca, pois eu estava pelado, e desci a procura do meu
homem. Fui conduzido pelo cheiro do café da manhã que vinha da cozinha.
- ...foi por isso que achei que você não voltaria – ouvi a voz de Giuliano vindo
do lado de fora da casa. Segui na mesma direção, deparando-me com ele coberto por
um roupão, conversando com o Sandrinho, a figura patética que tive o desprazer de
conhecer nos primeiros dias da minha estadia no sítio.
- Bom dia meu amor – fui logo pulando nos braços de Giuliano e lhe tascando
um beijo sem pressa de acabar, ignorando a criatura que nos assistia.
- Oi, Zezinho, quanto tempo! – o cumprimentei do alto da minha falsidade. –
Você sumiu, hein?
- É Sandrinho! – ele me corrigiu com irritação, vendo que tudo entre mim e
Giuliano corria às mil maravilhas.
- Sandrinho estava me dizendo que... – interrompi Giuliano com mais um beijo.
- Deve ser uma história muito interessante, mas estou morrendo de fome, amor
– me fiz de dengoso. – Vamos logo tomar café.
- Ah, é uma boa ideia, pois cheguei de viagem agora e ainda não pus nada na
boca. – Sandrinho disse, lançando um olhar de desafio para mim.
- Desculpa, Serginho, mas estamos em lua-de-mel, então seria muita grosseria
da nossa parte ficarmos fingindo interesse nas suas aventuras, enquanto que no fundo
desejaríamos que você fosse embora logo, para podermos namorar com
tranquilidade. – disse com toda sensibilidade. – Quem sabe nas bodas de ouro?
Puxei Giuliano pelo braço para dentro de casa, fechando a porta logo em
seguida na cara do tal Sandrinho.
- Seu danadinho ciumento, não precisava ser tão cruel – Giuliano tentava
disfarçar o riso.
- Só estou marcando o meu território – disse por fim, o beijando mais e mais. –
Agora vamos comer, fui sincero quanto a estar sentindo fome.
Assim que tomamos nosso café, nos vestimos e fomos visitar um lugar muito
especial, localizado dentro das imediações do sítio. Depois do lago, num pequeno vale
de capim dourado, estava o túmulo de vovó Elisa. Eu e meu primo trocamos as flores,
e rezamos individualmente.
- A senhora tanto fez que conseguiu, não é dona Elisa? – Giuliano falava com
lágrimas nos olhos. – E estamos os dois aqui, juntos, unidos pelo seu amor também.
- Vovó Elisa sempre será o terceiro fio do nosso tríplice cordão, Giuliano – eu
disse abraçando-o de lado.
Ele me deu um sorrisinho maroto, se afastando por alguns metros. Meu primo
retirou dois fios do capim dourado, de uma moita a qual se aproximara, os enrolou
com uma tremenda habilidade artesã, dando-lhes a forma de duas alianças.
- Benjamim, o homem da minha vida, você quer se casar comigo?
- É o que mais quero, Giuliano, o homem da minha vida – o beijei, antes de
trocarmos as alianças de capim dourado.
De onde quer que ela estivesse, vovó Elisa estava testemunhando aquele
momento, que sabíamos ser uma das grandes vontades dela. Certamente estava tão
feliz como seus netos.
Um mês após o pedido de Giuliano, nos casamos em uma cerimônia bem
simples, tendo como padrinho Fernando, que foi tão importante nos momentos mais
difíceis de nossa jornada. Papai veio para o casamento com sua namorada, que
também era professora universitária e uma mulher muito bacana.
Rosa acabou tomando para si o cargo de mãe postiça, nos fazendo filhos
mimados, sua presença no cotidiano da minha vida conjugal com Giuliano, era
fundamental. Sem contar que ela nos dava puxões de orelha quando discutíamos por
bobagem.
Meu pai quase nunca me dava notícias da minha mãe, por não as ter. Ele
apenas sabia que ela havia sido contratada por um grande escritório de advocacia em
Curitiba, depois que o nosso fechou as portas.
Eu me realizei profissionalmente ao passar em um concurso para defensoria
pública, e fui trabalhar em uma cidade vizinha, perto o suficiente para voltar para casa
todos os dias. Giuliano reduziu o número de clientes do consultório de veterinária que
ele tinha. Decidimos que jamais deixaríamos o trabalho sufocar nossa vida pessoal,
mesmo que isso custasse uma vida mais luxuosa. Não nos importávamos com
detalhes supérfluos.
Após um ano de casados, em uma viagem de férias, eu e Giuliano conhecemos
Miguel e Conrado, um casal que fazia um trabalho de apoio a jovens gays, através de
palestras pelo Brasil inteiro, patrocinados pelo hospital cujo o dono era o pai de
Conrado. Acabamos nos envolvendo na causa também, e até conseguimos engajar
Fernando. Mas o safado nos acompanhava nas viagens apenas para conhecer novas
aventuras sexuais – ele continuava o mesmo.
Até hoje tento falar com minha mãe, mas ainda não obtive sucesso. Espero
sinceramente que possamos nos reconciliar, e que nossas diferenças sejam deixadas
de lado. Mas o que eu espero com mais entusiasmo ainda, é que você que
acompanhou a nossa história até aqui lute contra o medo e a vergonha de assumir
quem é de verdade. Jamais permita que os outros decidam por você sobre qualquer
coisa. Guimarães Rosa disse no Grande Sertão:
“O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem”.
FIM.