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Intermezzo

Capítulo 1:
O Cheiro das Flores

Mathis sentava-se à sua mesa coberta de cinzas de cigarro naquele forno escuro
de devassidão que era o Clube Baudrillard. Mathis não fumava ópio, mas a densidade
demográfica de fumadores de ópio no Clube era tão grande que não fazia diferença. De
fato, o Clube era primeiramente conhecido como o santuário da papoula, tendo até um
cachimbo de ópio desenhado ao lado das grandes e douradas letras cursivas acima da
entrada.
Então Mathis fingia surpresa com o fato de que haviam fumantes de ópio
deitados por aí no Clube, esparramados em tapetes orientais que desapareciam no
chiaroscuro daquele ambiente como se não existisse chão, como se o próprio Clube
fosse um sonho da papoula e todos estivessem simplesmente flutuando na escuridão
total sem estrelas.
Mathis não fumava ópio, mas aquela névoa penetrava nos seus poros,
massageava seus músculos, fechava seus olhos… Mais de uma vez ele deixou o cigarro
na sua mão queimar até a brasa acordá-lo para a realidade.
Era o ópio ou era a música que o anestesiava? Pois à esquerda dele tocava uma
banda de jazz tão suave que o lembrava de coisas imorais e sensuais, e ele se
perguntava como os músicos conseguiam se manter sóbrios com a névoa inebriante do
lugar. O saxofone, com notas ao mesmo tempo tão perfeitas que pareciam industriais, e
tão apaixonadas e sujas que não deixavam dúvida do elemento humano por trás dele,
essa era a principal canção de ninar do espírito.
Por trás do instrumento, um homem de pele morena abaixo de uma luz castanha
fraca, uma luz que alternava lentamente para uma de um marrom-dourado e de volta
para o castanho. O homem tinha seus olhos fechados o tempo todo que estava no palco,
para ele tudo que existia era o saxofone, tudo que seus dedos tocavam eram as suas
chaves, e nos intervalos de sua música seus dedos deslizavam pelo corpo escuro do
instrumento como pela cintura e os quadris de uma mulher.
Estar ali naquele momento era o que Mathis precisava.
Ele tinha acabado de resolver todos os assuntos da sua vida. “Resolver” não
como em “concluir”, afinal ele nunca em sua vida realmente concluiu algo. Ele sempre
teve o mau hábito de perder o encanto pelas coisas na metade do caminho.
O que ele tinha era dado um fim. Ele encerrou um relacionamento com uma
garota muito mais investida e interessada do que ele, chamada Mariana. Doeu demais
dizer a alguém que realmente gostava dele que ele não sentia o mesmo, mas também o
libertou, e no fundo, não havia outro caminho a se seguir.
Ela disse que havia entendido e prometeu não ficar chateada, mas ele viu as
lágrimas crescendo nos olhos que, antes tão cheios de vida, agora se tornavam pesados
e fitavam o chão. Antes ele havia deixado outra garota por Mariana e na época ele
amaldiçoou o próprio coração, esse que escolhia por ele o seu destino, que moldava a
sua vontade para o menos cômodo e o mais prejudicial.
A outra garota, na época, também não levou muito bem e também seus olhos
pesaram e miraram o chão quando ele explicou-lhe que não era possível seguir em
frente. Também ele havia se sentido mal, mas o que o consolava era a expectativa de
que, com Mariana, seria diferente. Não foi.
Agora, entre as mesas daqueles que tinham nas mãos cigarros ou destilados da
cor das luzes do palco, daqueles que se julgavam sóbrios, mas se entorpeciam
tanto quanto qualquer um, com a única diferença sendo que podiam sair andando
quando acabassem, nessas mesas havia uma mulher.
Ela tinha longos cabelos castanhos em ondas macias e afiadas, ela vestia um
vestido de verão marrom dourado que expunha o pescoço, os ombros e os braços, e por
baixo da mesa suas belas pernas. Sua pele de uma cor extremamente pálida, que a
destacava em meio à escuridão. Ela encarava Mathis com um olhar provocador que
tanto o incomodava quanto o interessava, e lábios rosados e craquelados que ela
mordia não de forma sensual mas compulsivamente, enquanto segurava em sua mão
com unhas tingidas de vermelho-sangue um cigarro recém-aceso.
Mathis pensou que com ela também poderia ser diferente, julgou que ela
poderia ser a sua salvação. Que toda aquela harmonia estética dela poderia de alguma
forma trazer a eudaimonia que ele queria, mas ele não se sentia afim de falar com ela.
Ele agora estava cansado de ser quem ele queria ser, o galanteador extrovertido, e era
inevitavelmente quem ele realmente era, o garoto tímido, assustado.
Ela ali, no entanto, o fez se sentir desconfortável. Algo ali azedou e ele quis ir
tomar um ar. Então ele apagou o cigarro, se levantou e passou por pessoas caídas,
cuidando para não pisar nelas, e atravessou a porta até um corredor comprido, estreito
e escuro com uma outra porta no final. Esta, que uma vez atravessada, levava à Sala das
Flores, onde ele podia ver pelos raios alaranjados do sol que era o fim de tarde.
Ali se ouvia a conversa em alto e bom tom e as pessoas se vestiam de forma
despreocupada e livre com suas togas semi transparentes em suaves cores púrpura,
rosa, laranja, verde e tudo aquilo que agradava aos olhos e acalmava os nervos, e
remetia às flores presentes pra todo lado. O piso da sala era um xadrez preto e branco,
e as paredes e teto, de vidro, uma estufa que abrigava as belas flores até nos piores
invernos.
Sendo esta sala a Sala das Flores, haviam muitas dessas, nas paredes, nas mesas,
e em vasos verticais nas paredes, muitas nos guarda-corpos das sacadas do lado de
fora. Girassóis, amarílis pálidos, crisântemos dourados, tulipas vermelhas, gérberas
laranjas, rosas, e o que mais em explosões de cor e vivacidade. A Sala cheirava à pólen,
vida, coisas boas, lembrava a decência. Os beija-flores frequentavam a sala também,
cumprindo sua função de vaso em vaso, próximos das pessoas, já acostumados com o
elemento humano. A sala era agradável assim justamente para apaziguar os pesadelos
de ópio do Clube. Era um lembrete de que tudo estava bem.
Mathis se sentia um pouco alienado com sua pesada gabardina da cor de mogno
enquanto todos usavam aquelas togas coloridas quase soltas. Ele sentia os olhares das
pessoas particularmente desconfortáveis. Enfiou as mãos nos bolsos e levantou a gola
do casaco, abaixou o chapéu e deixou apenas os seus olhos de fora, se escondendo
como uma tartaruga no casco, como sempre fazia. O casaco ainda tinha o cheiro de
cinzas e colônia barata do seu pai. O casaco: o único presente que Mathis recebeu do
seu velho o tempo todo que ele estava vivo.
Pisando no mármore branco da sacada, tão enfurnado em seu casaco, Mathis
não conseguia sentir o cheiro das flores-de-mel pálidas e resplandecentes diante dele,
ou dos junquilhos rosa nos seus flancos, adjacentes à porta que ele atravessava, ou das
campânulas que plantava-se onde desse, assim espalhadas de forma caótica no
guarda-corpo e nas paredes, disputando seu lugar com as volumosas
lágrimas-de-cristo verdes, pálidas e com partículas de vermelho-sangue e as esparsas
begônias-asa-de-anjo com suas pétalas rosas em formato de coração.
Dentro do casaco, ele não sentia o cheiro e mal podia ver as belas flores que para
qualquer um era claro como o sol que se punha que eram a visão mais pura e bela que
se encontraria em toda Carolinovna, que naquela hora das seis da tarde já assumia nas
ruas abaixo cheias de pedestres os seus tons azulados noturnos e o amarelo
aconchegante das lâmpadas incandescentes nas janelas das casas e nas vitrines das
lojas. Carolinovna, cujos gatos de rua deitados tão em paz aproveitavam a última luz do
sol nos telhados antes de saírem miar por comida.
Mathis não via nada disso.
“Qu'y a-t-il, tortue ?” Disse uma mulher, tocando nas costas de Mathis.
Ele virou-se 180 graus mais rápido do que teria piscado, e sua mão direita
passou por um rombo no bolso e agarrou o coldre de um revólver. Ele não deixou de
apontá-lo furtivamente para a pessoa que o havia tocado nem quando viu que ela era a
mulher do Clube, com seu vestido de sol marrom-dourado que balançava de forma tão
graciosa com a brisa suave daquela altitude.
“Desculpa, acho que você me confundiu.” Ele disse.
“Não, tortue. Tartaruga. Foi assim que minha irmã te chamou.” Ela se aproximou,
com um sorriso e um olhar que o deixou extremamente nervoso, e ele deu alguns
passos pra trás. As mãos dela, com as unhas vermelho-sangue tocaram na gola da
gabardina e então desceram-na, expondo seu rosto quase adolescente. “Uau, entendi
por que você se esconde. Cansado de todo mundo dando em cima de você, né?”
O comentário dela o remetia a algo que uma tia o diria em alguma reunião de
família, e aliado com os gestos que careciam da intimidade necessária, fora impossível
para Mathis não corar como um garoto. Algo que provocou uma leve contração de
risada nos lábios rosados dela.
“Desculpa, mas o que você quer, moça?” Ele disse.
“Sua ajuda. Você ainda é freelance, né?”
“Ainda tenho que ganhar o pão de cada dia, então sim.”
“Ok, é um negócio bem simples.”
Ela foi em direção ao guarda-corpo, e cheirou as flores-de-mel, se inclinando na
ponta dos pés, abrindo os olhos, ela observou as pessoas lá embaixo. Ela era baixinha,
mas ele tinha a estranha sensação de que ela era uma presença enorme.
“Eu tô ouvindo.” Ele disse.
“Meu ex rompeu comigo ontem.” Ela encostou-se no guarda-corpo que batia nas
costas dela. “Ele levou quase tudo que não é dele, mas eu ia tá pouco me lixando se não
fosse por algo em especial que ele levou, meu gato. Miauphomet.” Ela tirou do meio dos
seios um polaróide que mostrava um gato preto, com olhos amarelos e um pingente
prateado de pentagrama pendendo no pescoço. Mathis segurou o polaróide entre o
polegar e o indicador e tentou ignorar que o objeto estava bem quente.
“Qual é o nome desse seu ex? Onde ele mora?”
“Jean. Ele mora atrás de uma padaria na Saint-Sebastien 25, mas ele frequenta
bastante um clube aqui perto, Crianças da Revolução.”
“Onde é mais provável que ele esteja?”
“Onde o pessoal toma anfetamina como se fosse aspirina.”
Mathis franziu a testa, qualquer um dos dois era plausível.
“No clube.” Ela disse.
“Você acha que ele tá lá agora?”
“Acho, e eu também acho que ele não vai voltar até o nascer do sol.”
“Você tem a chave da casa dele?”
“Tinha, mas ele trocou as fechaduras. Tem uma porta nos fundos, em um
pequeno pátio, mais fácil de entrar do que pela padaria.”
“Certo, você tem telefone ou alguma coisa pra eu te contatar quando eu fizer o
serviço?”
Ela sorriu como se o pegasse fazendo algo que não devia.
“Não vai perguntar meu nome?” Ela disse.
“O pessoal que me contrata normalmente prefere não envolver nome.”
“Margot.” Ela disse, estendendo a mão. Mathis não estendeu a dele, ele não
conseguia tocar em ninguém, seja um mendigo ou o Rei Cristof. Ela pareceu aceitar isso
e recolheu a mão, simplesmente dizendo: “E você eu já sei, você é o tortue.”
“Na verdade, meu nome é…”
“Tortue.” Ela interrompeu.
“Por que Tortue?”
“Você é que nem uma tartaruga, sempre no seu casco. Minha irmã que disse
isso, ela foi quem pediu pra você recuperar a encomenda dela que tinham
interceptado.”
Ah sim, o único serviço que ele recebeu nos últimos dois meses.
“Ah, eu lembro dela. Nunca tinha apontado uma arma pra alguém por causa de
um livro de romance barato.”
“Espero que você não tenha que apontar nada pra ninguém dessa vez.” Ela deu
um tapinha menos do que bem-vindo no ombro de Mathis, o que fez com que ele
recuasse um pouco. “Enfim, agora que a gente se conhece, tá aqui o meu contato.”
Ela tirou dos seios um cartão púrpura laminado, que dizia “Margot Richmond,
Planejamento de Interiores” e um número de telefone logo depois. Mathis se perguntou
por que ela só não arrumava uma bolsa ou algo assim, devia ser bem desconfortável
andar com coisas nos seus seios.
Então, ela olhou para Mathis sem olhar para ele, como se visse algo atrás dele.
Seu sorriso se desintegrou e suas pálpebras relaxadas se arregalaram.
“Enfim, boa sorte no trabalho, Tortue!” Ela deu as costas e saiu apressada.
“Espera, e o pagamento?” Ele disse, em um tom que já era baixo demais para ela
escutar quando ela cruzava a metade do salão, quem dirá de quando ela passou pela
porta em direção ao Clube Baudrillard.
Aquilo tinha sido estranho. Mathis olhou pra onde ele achou que ela tinha
olhado e ele viu mais alguém ali que não se integrava na estética árcade de togas e
amor livre. Encostado no guarda-corpo estava um homem vestindo um terno azul claro
com listras azul-marinho. No bolso do paletó, um lenço branco, e uma camisa da
mesma cor por baixo.
O homem tinha óculos escuros que impossibilitaram determinar a cor dos seus
olhos, e em seu rosto haviam inúmeras cicatrizes e alguns cortes recentes. A maioria
das pessoas com esse tipo de marca deixa crescer o cabelo e a barba, mas este homem
tinha cabelo curto, meio pompadour e um bigode fino que nada escondia. O homem
olhou para Mathis com a testa franzida e os dentes rangentes, como se finalmente
identificasse o homem responsável por defecar em seus sapatos, e então seguiu pela
porta até o Clube.
Mathis achou estranho, mas não era como se ele fosse lá questionar quem era
esse cara ou qual era a ligação dele com a cliente. O trabalho dele era achar um gato.
“O trabalho.” Mathis pensou, apoiando-se no guarda-corpo e finalmente
sentindo o cheiro agradável das flores-de-mel. “O trabalho é só pegar um gato.”
Mas ele não podia evitar de achar que algo cheirava mal, como os sapatos
hipotéticos daquele homem estranho. Mathis não podia perder uma oportunidade de se
comparar com o que ele realmente queria ser, o detetive durão com um coração de
ouro, que vivia grandes aventuras nas margens da sociedade. Se ele fosse esse tipo de
freelancer, ele não teria aceitado esse trabalho entregue de forma tão desleixada, tão
desrespeitosa com o seu ofício.
Mas ele não era. Qualquer trabalho era mais uns dias na pensão, e um passo pra
longe da rua, entre os sem-teto e os animais de rua, nutrindo-se da incerteza do dia
seguinte, onde todo mundo sempre disse que ele pertencia, todo mundo dos pais aos
professores.
“Merda.” Ele disse em voz alta. “Merda, merda, merda.”
Capítulo 2:
Violência Policial, Arrombamento e Outros
Passatempos

Mathis caminhava pelas ruas crepusculares com um folheto nas mãos. Em letras
garrafais, dizia: “TODOS OS HOMENS SÃO IGUAIS, REVOLTEM-SE CONTRA A COROA
QUE DIZ O CONTRÁRIO! REFORMA JÁ!” Havia então um desenho especialmente
devasso da família real que acusava a infidelidade da rainha e a decadência do
Segundo-Estado em geral.
Mathis pensou que as ideias por trás daquele panfleto inflamatório eram bem
razoáveis. Ele não se sentia particularmente oprimido pela família real, os
Bandersnatch, mas pensava, como muitos, que o Terceiro-Estado que ele fazia parte
merecia também alguns daqueles privilégios da nobreza como atendimento médico
gratuito, assistência social e aposentadoria. No momento, os plebeus só bancavam
esses e outros direitos através de impostos abusivos que nenhum nobre nunca teve que
ver senão em sua própria conta bancária.
Sim, uma reforma parecia bem razoável.
Ao menos até ele passar pela Praça da Primavera e ver ao lado da enorme
estátua verde oxidada do falecido Rei Emanuel II e seu fiel Rocinante, um cidadão
qualquer levando uma surra desgraçada de um enorme e cartunesco garoto dentuço e
sardento com uma cabeça desproporcionalmente grande, vestindo camisa branca com
suspensórios vermelhos e calças azuis curtas, com enormes sapatos como os de
palhaço.
“FILHO DA PUTA! FALA! Fala mais uma vez que você quer VOTAR!” Dizia o
grande garoto, descendo o cassetete em um cidadão em posição fetal que cobria a
própria cabeça.
Aquele que espancava era nada mais, nada menos que a figura folclórica de João
Castanheira. Não era realmente ele, apenas uma representação. Um guarda vestido
como o personagem mais conhecido de todo o Império da Glorimória, o protagonista
de uma grande história de esforço pessoal e empreendedorismo.
A história era mais ou menos o seguinte:

“A mãe de João estava terminando de assar um bolo e queria que ele


comprasse umas castanhas para adicionar na cobertura. Ela deu a João alguns
poucos trocados e ele foi em direção ao mercado, mas o dinheiro só serviu para
comprar uma única castanha. No caminho de volta, no entanto, ele foi pensando
em como uma castanha não passa da semente de uma castanheira, e então teve
uma ideia. Bem do lado de casa, plantou a castanha que havia comprado.
Ele sabia que sua mãe iria querer desenterrar a castanha caso soubesse da
ideia, pois a vontade dela de ter castanha na cobertura do bolo naquela tarde era
demais. Então, João precisava mentir. João sabia que mentir era errado, mas não
quando se trata de investimentos que irão melhorar a vida da maioria. Então, ele
pensou em dizer que perdeu o dinheiro e por isso não comprou castanha nenhuma,
mas ele temia que sua mãe fosse ficar brava com ele. Então, ele pensou em outro
plano: dizer que roubaram-no violentamente o dinheiro da castanha. Essa
mentira, no entanto, precisava de provas que a corroborassem. João, então, deu a
maior surra em si mesmo. Alguns amigos que passavam por perto viram-no
desferindo socos e chutes em si mesmo como louco, e estes não falaram mais com
ele. Não havia problema, João sabia que aqueles que não respeitam a livre
iniciativa não eram seus amigos de verdade.
No fim, a mãe de João acreditou nele e perdoou-o pelas castanhas que
faltavam, e meses depois, com muito cuidado, uma castanheira brotou. Quando a
mãe de João viu aquela bela árvore, ele teve de finalmente confessar a mentira.
Porque havia tantas castanhas, era um momento de muita felicidade, e por isso a
mãe de João perdoou-o, pois os fins sempre justificam os meios. No fim, aqueles
amigos que o haviam desprezado reconheceram sua grande capacidade de
antevisão e quiseram comprar as suas castanhas. Ele as vendeu e investiu em mais
castanheiras, que dariam mais castanhas, e um dia ele comprou um título de
nobreza. Por seu vasto comércio de castanhas, chamaram-no João Castanheira, e
assim ele foi chamado até o tempo em que ele era velhinho e tinha uma bela barba
branca.
A moral da história é: Quem é plebeu, é porque quer. Se foi fácil para João se
tornar nobre, por que não pode ser pra você?”

A história mudava um pouco aqui e ali. João era basicamente um vilão nas partes
mais distantes do Império. Agora, em nenhuma das histórias João Castanheira dava
uma surra em um cara qualquer. Em nenhuma das histórias ele tinha uma boca tão suja
ou sua cabeça de papel machê quase caía quanto mais ele se debruçava sobre a vítima
do seu cacetete.
Mathis deu uma boa olhada pro folheto em suas mãos, material ilegal. Então o
mais rápido possível, amassou-o, e jogou em uma grande lixeira de metal perto. O papel
quicou na borda da lixeira e caiu no chão. Imediatamente o João Castanheira encarou-o
com seus olhos azuis do tamanho de maçãs, e seu bizarro sorriso dentuço, e apertou o
cassetete com a enorme luva branca enquanto sua respiração cresceu para um tom
quase erótico. Jogar lixo em uma praça pública poderia ser considerado vandalismo e
era passível de punição física, uma que o Guarda Castanheira gostaria bastante de
aplicar em Mathis.
Uma família passava por perto. O garotinho no colo da mãe arregalou os olhos
quando viu a figura na Praça.
“Catanhera!” Ele balbuciou. Sua mãe cobriu-lhe os olhos e então apressaram o
passo, caminhando para bem longe.
Com medo de fazer movimentos bruscos, Mathis se abaixou lentamente e pegou
o papel, e então jogou-o bem no buraco da lixeira. O João Castanheira exalou toda a
expectativa que ele havia criado de distribuir uma surra, e então retornou à sua vítima
original. Mas acontece que nessa pequena distração, o cidadão conseguiu rastejar
sorrateiramente como um lagarto para longe do guarda e assim que estava livre,
disparar em uma corrida pela própria vida.
Correndo atrás dele, o João estava prestes a aplicar duas ou três punições
físicas, mas o perdeu nas vielas. Voltando à Praça com agora duas surras roubadas dele,
o guarda estava bem desanimado, mas ele ficou ainda mais desanimado com seu
superior, com quem ele esbarrou enquanto este examinava a enorme estátua. O
superior quando viu-o fora do posto, fez questão de remover o seu capacete de João
Castanheira (revelando um homem barbudo e calvo por baixo) e então desferiu um tapa
avassalador em sua bochecha fofa, tão forte que espantou alguns dos pombos por
perto.
Apesar de ganhar um entendimento psicológico muito mais aprofundado do
guarda, Mathis sabia que permanecer ali o faria a próxima vítima no ciclo de abuso,
então deu no pé em direção ao pátio que Margot havia mencionado.

Já era bem de noite quando ele perambulava por ruas escuras e banhadas por
uma fina, porém sempre presente garoa. Sem a iluminação dos grandes postes no
centro, a rua tinha de se contentar com a luz pálida da lua e a luz amarela e vacilante
das lâmpadas e velas que emanava pelas frestas das portas e das janelas. As ruas do
centro provavelmente estavam movimentadas com os cafés que iam até às cinco da
manhã, mas em um bairro pobre como esse, a maior preocupação das pessoas era se
trancar dentro de casa e rezar por uma noite segura.
Mathis tinha que confessar que ele estava um pouco perdido, ele não sabia se
estava na rua Saint-Sebastien, ou se esta era a Dame-und-Chevalier. Ele havia seguido
o mapa do bondinho que estava há 5 anos desatualizado, e foi complementando as
direções com alguns conselhos que os sem-teto ofereciam em troca de bebida barata.
Suas dúvidas foram esclarecidas quando ele enfiou o pé em uma poça, e olhando para
baixo, xingando em nome de todos os deuses, viu a placa azul com escritos brancos:
“Rua Saint-Sebastien”, completamente submersa, tendo ela caído em algum momento
de um poste de metal ainda de pé ao lado.
Agora, Mathis sacava sua lanterna e mirava a luz nos muros das casas,
procurando pelos números. A maioria não tinha número algum, e muito o assustou
quando uma tinha e dizia “340”, bem longe do “25” que ele procurava.
Ele estava com frio e seu pé molhado estava ficando dormente quando ele
decidiu que ia voltar pra casa, que mais valia a pena evitar uma pneumonia do que ficar
lutando pra fazer um serviço que foi passado de forma tão porca que ele não fazia ideia
do que ganharia em troca. Então ele desligou a lanterna e caminhou com as mãos
dentro dos bolsos, tremendo, com suas bochechas recebendo aquela garoa tão pouco
bem vinda, e uma nuvem de vapor saindo por cima da gola da gabardina sempre que ele
exalava transformando-o em uma grande chaleira.
Mas foi então que seu nariz capturou um odor tão agradável que ele sentiu um
frio na barriga, como se recebesse pela primeira vez o toque da amante. Cheiro da
cozinha de sua mãe aos domingos. Vinha de uma grande fachada de loja com uma
vitrine que expunha todo tipo de torta, croissant, pãozinho, bolo, e qualquer outra
massa que pudesse ser assada em um forno. Em letras garrafais acima da vitrine,
iluminada por diversas lâmpadas amarelas como letreiro de cinema, dizia: “Boulangerie
Gaston”.
Ele não tinha feito nenhuma volta em nenhuma esquina, o que significava que
ainda estava na Saint-Sebastien. Essa poderia muito bem ser “A” Padaria, mas isso não
foi a primeira coisa que lhe veio à mente. A primeira coisa que veio à mente foi que ele
gostaria bastante de comer algo.
Ele passou então pela porta que tinha um pequeno sino pendendo logo acima
dela, que tocou assim que entrou, e pisou no tapete que dizia “Pão Dia, Broa Tarde e
Boule Noite”. O padeiro, um homem um tanto gordo e um tanto calvo, vestindo uma
camisa bege com listras marrons, uma calça jeans e botas da cor da jaqueta de Mathis,
com um avental branco delineando a ampla curva da sua barriga, mostrou a palma da
mão para Mathis.
“Arrêté!” Disse ele, tomando um gole de seu café. “Não precisa entrar com esse
sapato. O que o monsieur quer?”
“Hãã…” Mathis não sabia muito bem, ele então se inclinou em um ângulo de 45
graus e deu uma boa olhada na vitrine, sem dar mais um passo para dentro da padaria.
“Quanto tá o Croissant?”
“Recheado ou tradicional?”
“Recheado.”
“4 florinóis.”
Mathis procurou nos bolsos, afastou o revólver que mantinha ali, e pescou umas
cinco moedas. Juntas elas somavam a quantia de 3 Florinóis e 5 centavos.
“Quanto tá o tradicional?”
Alguns minutos depois, Mathis saía com um croissant quentinho nas mãos. A
massa era boa e não esfarelava tanto, e por dentro, apesar de não ter recheio, era feito
na manteiga, então o lanche não ficava seco. Mathis ficou tão distraído com o seu
lanche glorioso que ele não percebeu que após o fechamento da porta, um intruso saiu
detrás da padaria e surpreendeu o padeiro, dando-lhe uma coronhada na careca e
derrubando-o no chão, atrás do balcão.
Ignorante a tudo isso, Mathis começou a olhar em volta procurando um ponto
de bonde, mas seus olhos capturaram os dígitos duplos próximos à porta da padaria:
“25.” Por pura falta de atenção, ele não reparou que o estabelecimento estava agora
completamente deserto, ou que uma xícara de café rolava no chão em frente ao balcão.
Como qualquer homem simples, a mente de Mathis funcionava pelo caminho de
menor resistência. Nesse momento, o trabalho estava bem mais perto dele do que a sua
volta pra casa. “Merda.” Ele pensou consigo mesmo, infelizmente ele entendia seus
próprios padrões de pensamento.
Ele estava na metade do croissant quando dava a volta pela padaria e via um
enorme portão duplo de ferro fechando um pátio, com várias portas-de-trás de
estabelecimentos e as fachadas de pequenos apartamentos todos amontoados. A
estrutura toda formava um bloco horizontal caótico e ininterrupto de portas e janelas,
que subia verticalmente até onde os olhos podiam ver, e então disparava a fumaça de
fogões nos céus de Carolinovna. O lugar onde Mathis morava não era muito diferente.
Escalar o portão poderia render um par de calças a menos, haviam espinhos de
ferro compridos e pontudos como lanças, prestes a abocanhar qualquer invasor.
Arrombar era mais seguro. No entanto, quando Mathis empurrou a primeira gazua na
fechadura, ele viu que o portão cedia. Então ele só empurrou com a mão, e viu que ele
estava destrancado, o que era bem estranho pra uma vizinhança como essa.
Então o cérebro paranóico de Mathis começou a funcionar. E se alguém
houvesse chegado antes dele? E se esse gato fosse mais importante do que se pensava?
Mathis então sacou o revólver que quase cabia inteiramente em sua mão, e
empurrou com cuidado o portão, logo avistando a porta de trás da padaria que
teoricamente levaria à uma acomodação onde morava o ex de Margot, entreaberta.
Ele respirou fundo e andou lentamente até a porta, a cada passo com o pé
direito fazendo um barulho como jogar um pano molhado no chão duro. Ele apontou o
revólver para a escuridão, e então terminou de abrir a porta com um chute. Primeiro
ele não conseguia ver nada, até que algo se deixou ser visto por ele.
Saindo daquela parede de sombras que remetia ao Clube Baudrillard: o cano
duplo de uma escopeta apontando diretamente para a sua testa. O choque foi tanto que
ele nem conseguiu entrar em pânico.
Capítulo 3:
Você não pode ser bom em tudo

Mathis apontava um revólver pequeno bastante para esconder dentro do bolso,


enquanto a escopeta na escuridão, se colocada em uso, exigiria para o funeral de
Mathis um caixão fechado ou cremação. Tendo ele um pouco de juízo, Mathis decidiu
se render:
“Ok, calminha…” Ele abaixou lentamente o revólver, então levantou as mãos
acima da cabeça e mostrou as palmas ao estranho. “Pronto. Eu não posso te fazer mal
agora, posso? Então por que você não abaixa isso, cara?”
Como que em resposta, a arma mergulhou de volta na escuridão e, por alguns
segundos, Mathis podia estar encarando a porta para o Érebo, a total incapacidade de
enxergar algo dentro dando a impressão de um monolito escuro maciço. Então, aquele
nada vomitou uma coronhada tão forte que quando foi ao encontro do rosto de Mathis,
mandou-o alguns anos no passado. Por alguma razão, antes de perder a consciência, ele
pensou em jazz.
Ele acordou deitado em sua cama, e sabia que sua mãe assava algum bolo no
forno assim que o cheiro encontrou-o. Seu pai escutava o rádio, bem alto.
Espera, seu pai odiava o programa noturno do Tadeus Marigold. Ele nunca
conseguia achar nenhuma graça nas piadas, nos jogos, nas anedotas, nas histórias
tristes que sempre arrancavam lágrimas da mãe de Mathis. Enquanto seu pai afiava as
facas que enfiaria na garganta de algum infeliz na manhã seguinte, ele costumava
reclamar para desligar o rádio.
Não era seu pai então.
Por que o colchão estava tão, tão duro? Parecia uma única tábua lisa em que ele
deitava, sentindo com a dobra dos seus dedos como ela estava morna. E ele tinha
dormido em cima das suas mãos, elas estavam tão dormentes que ele não conseguia
separá-las, tirá-las debaixo do peso das suas costas.
Abrindo os olhos, o que se provou uma tarefa mais difícil que o normal pois os
sentia inchados e dormentes, ele viu que estava em algum tipo de despensa. À sua
frente, uma enorme porta metálica com um fecho simples, provavelmente um
frigorífico. Atrás dele, fornos extinguidos e muita farinha. À esquerda, um vão de porta
que mostrava parte de uma padaria, com pés que calçavam botas cor de mogno
mostrando suas solas à Mathis. À direita, uma porta entreaberta.
“Quem é você? Segurança ou alguma coisa?” Disse o homem por trás da
escopeta. “RESPONDE!” O cano frio tocou na bochecha de Mathis.
“Espera, espera!” Mathis piscou algumas vezes, sua visão estava embaçada e suas
pálpebras estavam pesadas. “Só me diz primeiro… Que dia é hoje?”
A escopeta recuou, o homem por trás dela franziu o cenho.
“É sério.” Mathis se explicou. “Você não pode me dar uma porrada dessas e
esperar que eu esteja 100%.”
“Segunda-feira.”
“Ok, se hoje é segunda-feira, ontem eu fui no cinema e hoje eu fui no
Baudrillard…”
O outro congelou, ele voltou a apontar a escopeta para Mathis, e ele não sabia
exatamente porque à princípio, mas então o medo do outro confirmou:
“Sax! Você toca sax no Clube Baudrillard!” Mathis percebeu.
“Merda… Caralho!” Ele se aproximou com passos pesados.
Mathis pensou que tinha falado a coisa errada, pensou que era agora. Finalmente
agora, as previsões de sua mãe seriam confirmadas: “Não me vá seguir o caminho do
seu pai, arrume um trabalho digno, que não me faça te achar morto na esquina!”, mas se
esse era o caso, ainda valia a pena tentar uma última carta no truque, algo que seu pai
ensinou-o em uma das muitas vezes que ele teve que remover balas alojadas no corpo
dele. Pode não ter funcionado para o seu velho, mas…
“Cara, você já apontou essa arma umas dez vezes pra mim. Se você for atirar,
atira logo. Senão, larga isso e vamos conversar.” Mathis sorriu, e em suas calças a urina
correu quente. Era estranho como o calor era agradável, mas o líquido não.
O homem por trás da escopeta vacilou, então deu um passo pra trás, abriu a
ação de caixa da arma e mostrou como nenhum dos canos estava carregado.
“Eu sou ladrão, mas não sou assassino.” Ele disse, e fechou a ação.
“Amém.” Disse Mathis.
O Saxofonista, que há apenas algumas horas cumpria a sua função legal, era um
homem moreno enorme, com músculos que muito explicavam como ele nocauteava
pessoas tão facilmente. Seu cabelo era curto, escuro e crespo, e seu maxilar tornava-se
retangular por conta de um barba bem aparada. Ele parecia um cara legal, apesar das
circunstâncias.
“Mas ainda não sei o que fazer com você.” Ele disse.
“Cara, minha palavra, cada um com seu negócio. Eu não sou segurança e nem
vou te dedar pra guarda nenhum. Eu só tô atrás de um gato.”
“Que?” O homem pareceu genuinamente confuso.
“Um gato. Um gato de uma ex-namorada do cara que mora no quarto dos
fundos.”
“Esse gato vale dinheiro?”
“Oi?”
“Ele vale dinheiro? É tipo, uma raça cara? Dá pra fazer uma grana?”
“Acho que não, pareceu como qualquer gato que você vê nos telhados, é mais um
valor de estimação.”
“Hum.” O homem ficou em silêncio por alguns segundos, então tirou do bolso a
gazua de Mathis. “Isso é seu? Você sabe usar isso?”
“Melhor que muita gente, o melhor da região, consigo arrombar qualquer coisa,
com as mãos nas costas.”
“Eu preciso que você abra uma coisa pra mim.”
O homem veio até Mathis e levantou-o de pé com apenas uma das mãos, ele viu
então a mancha escura em suas calças.
“Você… Se mijou?”
“Cara… O que você esperava?”
Alguns segundos depois, Mathis estava sendo empurrado para dentro do que ele
assumia ser o quarto do ex, a porta tendo sido aberta com um golpe preciso na
fechadura que deixava lascas de madeira pelo chão todo. Ele via tudo aberto, jogado,
revirado, mas nenhum sinal de um gato, nem mesmo pêlos soltos por aí. Havia um cofre
cinzento fechado, em cima do criado-mudo, ao lado da cama.
“Não consigo abrir, ou pelo menos é melhor tentar do jeito sutil.” O Saxofonista
disse.
“Saquei. Então me desamarra que eu abro pra ti e daí…”
“Não.”
“Hã?”
“As amarras ficam. Você é o melhor da região, não? Não consegue fazer com a
mão nas costas?”
Mathis ficou bravo pelo fato de que o homem tinha razão. Então se colocou ao
trabalho, encostou o traseiro no cofre e imediatamente sentiu um calor bem forte
emanando dele, como de uma xícara de café fresco. Ele então introduziu a gazua e foi
tentando os pinos. Era uma fechadura sofisticada.
“Então, é… Posso te perguntar qual a história?” Mathis perguntou.
“Que história?”
“Por que você tá fazendo isso, sendo que você toca sax muito bem e tals…”
“Quanto você acha que um saxofonista ganha?”
“Caramba…” Mathis imaginou a cotação de um instrumentista talentoso como o
seu sequestrador, tudo sem interromper o serviço na fechadura. “250 florinóis por
noite, no mínimo.”
O outro deu uma risada, uma risada quente como de um tio que você gosta
muito e que te deixa beber cerveja, mas logo se tornou um tom sarcástico, zombando
de Mathis.
“Moleque, certos lugares eu tenho que pagar pra tocar. Não dá nem um pouco
pra viver só do sax, mas eu também não consigo viver sem ele. Isso aqui é o que sobra
pra eu fazer, completar o orçamento.”
“Sério? Achei que você já tivesse algum LP circulando. Eu adoro o seu material.”
“É, mas o resto das pessoas não.”
O comentário caiu como cai um piano em algum desavisado nos filmes mudos, e
a sala foi preenchida pelo silêncio até o estalo de uma tranca quebrá-lo. A porta
lentamente se abriu, e revelou dentro do cofre um gatinho preto, magro, deitado e
respirando pesado, parecendo ter dificuldade pra tragar o ar. Suas costelas bem à vista,
parecendo bem desnutrido.
Era uma visão de dar muita pena. Mathis imediatamente pegou o pequenino
abaixo das axilas felinas e levantou-o como seu filho primogênito. Ele sentiu um
estranho e forte calor quando introduziu as mãos no cofre, como se estivesse enfiando
as suas mãos em um forno.
“Tadinho, quem colocou você aí?” O animalzinho estava bem quente. Quando
tocava em seu focinho, então, Mathis sentia um calor que quase queimava o seu dedo.
“Meus deuses, eu nunca vi um bicho com uma febre assim.”
A coisinha abriu seus olhos amarelos enormes, encarou Mathis. Nos olhos do
gato, ele começou a enxergar algo, uma forma. Viu seu pai quebrando uma garrafa na
sua cabeça, chamando-o de bastardo, acusando a sua mãe.
Ele lançou o gato ao alto e caiu sentado na cama, atordoado. A criatura caiu
sentada no criado mudo, e apenas o Saxofonista viu como as costelas do animal foram
deixando de ser tão visíveis. O gato foi ficando mais forte, saudável, e vivaz. O
Saxofonista tentou tocar no animal, e este reagiu mal. Saltando com um miado agudo, o
gato sacou as suas unhas e arranhou o Saxofonista no pescoço. Imediatamente este foi
mandado para um estado de pânico, agarrando o corte. Em toda a confusão, o gato
passou pela porta e fugiu.
“O que foi, o que foi?” Mathis perguntou, vendo o outro de olhos arregalados,
gritando em pânico. Então, viu-o assoprar a sua própria mão e ficar tranquilo.
“Nada, eu só… Só achei que tinha sido pior.”
“Certo.” Houve um longo silêncio, até que Mathis disse: “Ok, eu abri o seu cofre,
eu perdi o meu gato. Eu posso ir?”
“Ah, Claro.” O homem se aproximou, virou Mathis de costas e desfez os nós. Era
um sentimento muito bom finalmente ter as mãos livres.
“Então… A gente se vê por aí.” Mathis disse, sacando um cigarro, levando-o aos
lábios, acendendo.
“Não. Se eu te ver no Clube Baudrillard de novo, eu vou te matar. Agora vai
embora, eu não suporto cigarro.”
A primeira tragada do cigarro foi divina após tanto desconforto, Mathis só
concordou com a cabeça e seguiu pra fora. Pisando na pátio e vendo o céu um pouco
mais azulado sinalizando a manhã se aproximando, ele também viu a cabeça preta do
gato que era o objetivo dele, observando-o acima de um telhado.
“Miauphomet! Pss! Pss! A Margot quer ver você, Miauphomet! Desce aqui!
Depois você brinca com os seus amiguinhos!” Ele tirou do bolso o saquinho do croissant
que ainda tinha um cheiro marcante.
O gato desceu do telhado para um telhado mais baixo, e então deu um salto de
alguns metros e aterrissou em pé. Timidamente, ele veio até Mathis, que lhe mostrou o
saquinho. O gato ignorou, afastando-o com a cabeça.
“Às vezes migalhas é tudo que você pode ter, Miauphomet. Agora vamos pra casa
e eu vou ligar pra sua dona te buscar.”
Ele pegou o gato no colo, e se perguntou se o animal tinha o seguido por ele o
ter chamado pelo nome, ou porque ele mencionou Margot, sua dona. De qualquer
forma, a criatura parecia confiar nele.
Capítulo 4: Lar Temporário

No mesmo ritmo em que a cidade acordava, Mathis adormecia. Entre seus


passos ele fechava os olhos e sonhava, até acordar por medo de esbarrar em alguém ou
alguma coisa. Era engraçado como o sono vinha tão sorrateiramente que ele nem
percebia. Ele conseguia até manter o seu fluxo de pensamentos intacto enquanto
sonhava, ele conseguia formular frases e pensar em pessoas. Por alguma razão, ele
pensava bastante em Margot.
No horizonte pálido-azulado, o sol se erguia e lançava seus raios dourados pela
paisagem, tingindo as nuvens e aquecendo os telhados cinzentos onde os gatos já se
amontoavam. Alguns gatos estavam fartos, tendo conquistado a pena de quem quer que
tivesse um sanduíche de atum nas mãos. Outros gatos esquálidos, aqueles faltando um
olho ou uma pata, os que não faziam capa de revista, estes permaneciam famintos.
Um gato ainda tinha suas patas no chão e este era Miauphomet. Ao ouvir o nome
de sua dona, o gato havia acompanhado o desconhecido Mathis de bom grado. No
entanto, todas as tentativas de segurar, afagar, ou mesmo tocar no pelo felpudo negro
de Miauphomet foram recebidas com arranhões, miados estridentes e recusas em
geral. Ainda assim, o animal o seguia de uma certa distância, quase fugindo, mas
sempre permanecendo na mesma órbita ao redor de Mathis. Ele andava com a cabeça
erguida, como um nobre pomposo.
Quando Mathis achou a primeira cabine telefônica, a cidade já começava a se
espreguiçar. As lojas abriam, pessoas saíam das casas e partiam para suas jornadas de
trabalho depois de dar tchau para os seus maridos e suas esposas. Um mendigo
encostava-se na parede de tijolos ao lado da porta de uma relojoaria, de olhos fechados,
roncando, segurando uma garrafa fosca na mão. Dois cães que deitavam com ele,
abriram os olhos e com os rabos balançando lamberam o rosto dele. Ele abriu os olhos,
piscando várias vezes, bocejando e se espreguiçando. Vendo o fluxo de pessoas pela
calçada, ele tirou o chapéu e ofereceu-o às pessoas para que lhe dessem trocados, ou
qualquer coisa. “Meus cachorros.” Ele disse. “Se não por mim, pelos cachorros.”
Mathis via seus próprios olhos cansados no reflexo semi transparente no vidro
da cabine telefônica, seu nariz estava inchado, vermelho e torto como se ele fosse uma
caricatura. Havia em especial um ferimento manchado de sangue seco onde a coronha
o tinha atingido. Enquanto ele enfiava umas moedas na caixa do telefone, ele fuçava os
bolsos procurando um band-aid. Era só pra pegar um gato e o nariz dele acabou todo
ferrado. “Já chega.” Ele pensou. “De agora em diante, eu não acredito mais nesse
negócio de ‘serviço simples’, só ‘entrar e sair’. Filhas da puta…”
A ligação chamava. Ele havia discado o número exatamente como constava no
cartão, mas ele tinha a apreensão de ter discado errado ou não ter ninguém em casa.
Eram suas últimas moedas, se houvesse cometido um erro, demoraria um bom tempo
para fazer outra ligação. Como se brincasse com suas ansiedades, o telefone foi
atendido pouco antes de Mathis xingar Margot mentalmente.
“Tortue?” A voz feminina do outro lado perguntou, um tanto rouca, como quem
há alguns segundos atrás estava chorando, ou estava engasgada.
“Margot?”
“Ela. Achou meu gato?” A voz clareou, e não surgiu nenhum indício de que havia
alguém do outro lado da linha senão aquela pessoa sedutora e sardônica.
“Eu tô com ele entre as minhas pernas nesse momento.” Houve um pequeno
silêncio. “Quer dizer, ele tá aqui são e salvo, inquieto. Dando voltas entre as minhas
pernas.”
Margot riu, então disse:
“Perfeito. Agora olha, eu não tenho dinheiro pra te pagar nesse momento…”
Mathis ficou tenso, um mau trabalho, mal recompensado. Só o que faltava. “Mas tenho
algo que vale muito, muito dinheiro. O que acha de uma de… Um título de nobreza?
Assinado por um pessoal importante do segundo-estado, só falta o campo ‘nome’. E aí?”
“Você vai me dar isso por um gato?”
“É um gato especial.”
“Se você tem algo assim, por que não usa você mesma? Por que vive no Distrito
Plebeu.”
“Primeiro, eu não vivo em lugar nenhum, só fico por uns dias. Segundo, o
Distrito Plebeu é o mais divertido de todos, mas enfim, eu só não preciso usar o título
pra dar uma passada no Distrito Nobre. Eu coleciono os privilégios deste mundo como
a sua vovózinha colecionava caixas de biscoito.”
“Você é uma nobre então? De nascença?”
“Às vezes. E eu sou uma plebeia de nascença quando me convém e às vezes eu
sou só eu mesma. Agora, você aceita ou não?”
“Eu aceito quase qualquer coisa ultimamente.”
“Ai, quanta pena de si mesmo.” Ela pareceu genuinamente frustrada. “Tá bom,
pega um papel e anota aí o endereço do nosso rendezvous.”
Mathis inclinava a cabeça e segurava o telefone entre o ombro e a orelha,
terminava de colocar o band-aid na ponte do nariz e doía como pouca coisa doeu nos
últimos meses. Ele então tirou uma caneta do bolso e afastou a manga da gabardina,
revelando um braço pálido com cicatrizes caóticas, não era uma tela em que ele queria
escrever. Ele então cobriu de volta o braço, e escreveu nas costas da mão o que Margot
ditou:
“Tá com o papel? Ok, Edifício Moonchild, Andar 66, sala 55. Moonchild. Ême,
dois ós, êne, cê-agá, í, éle, dê. Me encontra lá hoje às seis da tarde.”
“Seis da tarde? E o que eu faço com o gato até lá?”
“Sei lá. Cuida dele. Até mais, Tortue.” Ela desligou o telefone.
Quando Mathis olhou para os olhos amarelos de Miauphomet, ele não pôde
sentir uma mútua má vontade de conviver juntos, mesmo que fosse só por doze horas.
Quando ele saiu da cabine, os cafés e as padarias tinham aberto, e aquele cheiro
de café fresco e de pães, salgados e tortas que acabavam de sair do forno permeou a
rua toda. As pessoas já formavam também seus fluxos de caminhada maciços e
tumultuados como as ondas do mar em tempestade, andando, se empurrando, se
xingando. Vários sentavam-se às mesas das calçadas e entre goladas de café quente
discutiam todo tipo de assunto, de política à moda, de poesia à religião, discutiam tudo
com igual ignorância. Em algum lugar, alguém começou a tocar um acordeão e assim
formava-se a paisagem habitual do Vernice d’Oro, o bairro mais rico do Distrito Plebeu.
Mesmo com os aspectos rudes da sociedade plebeia, ainda havia para Mathis um
grande conforto em se encontrar naquele cenário. O Distrito Plebeu não era a melhor
casa onde ele poderia ter nascido, mas era o que ele conhecia por casa. Ele não tinha
certeza se no Distrito Nobre as coisas também eram assim tão caseiras, ou se os nobres
eram como todos diziam, babacas frios, mas ele apostava na segunda opção.
Então ele viu o bonde cruzando a esquina, quase chegando no ponto. Ele teve de
sair correndo e Miauphomet sofreu para acompanhá-lo. Desviando da maioria dos
transeuntes, esbarrando em alguns e sendo xingado por todos, ele alcançou o bonde
que se preparava para sair. Ele pulou na escada e se agarrou, respirando forte pela
maratona sem aquecimento que acabara de correr. Ofereceu ao cobrador os seus
últimos centavos, e sentou-se. Miauphomet sentou-se ao seu lado, e observou pela
janela as ruas e as pessoas que passavam para trás.
Eles agora estavam em uma parte mais pobre do Distrito, chamada Sudore e
Polvere cuja paisagem era sempre o hortifruti exposto em carrinhos de mão; a carne
sendo cortada em cima das mesas de madeira ensanguentadas; a roupa secando em
varais pouco acima da cabeça dos pedestres; as carroças puxadas por cavalos com
sérios problemas de incontinência e a poeira da terra, poeira levantada a cada passo, a
cada suspiro. Pessoas empoeiradas, vestindo retalhos, com olhos vazios que as pessoas
acusavam de distantes, mas seus olhos eram tudo menos distantes. O problema era que
eles não enxergavam além do agora, além da situação dura, empoeirada e seca em que
se encontravam, mas Mathis enxergava. Sempre enxergou os céus, com seus palácios
dourados.
‘Se eu fosse nobre, eu teria algo melhor pra o que olhar e não ia ter que respirar
poeira. Ia ter uma carruagem também, e com certeza eu não ia ter que correr atrás
dela.’ Mathis pensou consigo mesmo, porém ele ainda não conseguia negar que nesse
fim do mundo do Distrito Plebeu aquela sensação de pertencimento era mais forte do
que nunca. Fora em S&P que ele nasceu e cresceu, e ele nunca acharia lugar igual.

Assim que entrou pela porta aberta da pensão, Mathis escutou vozes exaltadas
na esquina do corredor. Apressando os passos pelas tábuas rangentes do chão, Mathis
viu cerca de cinco caras em diferentes estágios de desnudamento, cercando um outro,
menor e acovardado, contra a porta.
“Vocês não podem deixar pra tomar banho depois?” Dizia este. “Eu acabei de
colocar umas fotos pra revelar.”
“Que revelar o quê, a gente passou a noite inteira trabalhando no esgoto,
caralho. A gente quer tomar banho.” Disse o maior deles, que vestia só toalha e tomava a
dianteira.
De fato os homens estavam cobertos de certas manchas escuras, e cheiravam
como o ralo cheirava logo após de ligar o chuveiro. Se alguém precisava de um banho,
eram eles. Mathis não estava muito diferente, suas calças carregavam urina quase seca
e de forma alguma ele retornaria ao quarto desse jeito.
“Ei. Deixa ele.” Mathis disse, do fim do corredor. A luz que vinha da porta aberta
à rua às suas costas o transformava em uma grande silhueta escura quase mítica, um
nobre cavaleiro com seu fiel escudeiro Miauphomet aos seus pés. “Deixa o Tiago revelar
as fotos, e depois vocês tomam banho.”
O de toalha deu uma boa olhada nos olhos de Tiago, que não só era mais baixo e
mais esguio, como também se encolhia de medo do maior.
“Quanto tempo demora essa merda?” Perguntou o maior.
“Umas… duashoras.” Ele sussurrou, e então foi forçado a repetir. “Duas horas.”
“Ah não…”
O maior pegou Tiago pelos ombros e ia tirá-lo do caminho quando Mathis
gritou:
“Ei!” Quando todos olharam, ele tinha a mão direita no bolso. “Eu não quero ter
que atirar em vocês, mas se eu atirasse, eu acho que eu podia muito bem argumentar
que foi em defesa do meu amigo. Além do mais, quem se importa com o que acontece
nesse bairro?” Todos recuaram, menos o de toalha, ele permaneceu parado e sorrindo.
“Sei, todo mundo sabe que você anda com uma peça no bolso. A gente viu como
você mostra ela por aí como se fosse o seu pau.” O maior riu. “Mas eu só não sei se você
tá com ela agora. E então? Por que não tira minhas dúvidas.”
“Fritz…” Mathis chamou o valentão pelo nome. “Eu só tiro isso aqui do bolso se
eu precisar usar.” Mathis afastou a mão do bolso até mostrar o pulso. “Você quer que eu
te mostre ela? Porque eu mostro.”
Os olhos de Fritz se tornaram frenéticos, indo de um lado pro outro, procurando
apoio nos amigos, e não achando nenhum. Finalmente, o instinto de autopreservação
superou a sua necessidade das coisas acontecerem como ele queria, quando ele queria,
e ele soltou:
“Merda. Tá bom, o banheiro é seu.” Ele deu um soco no ombro de Tiago, como
um irmão que implica com o outro, mas sem o amor fraterno envolvido.
Aquela turba saiu e atravessou até o refeitório. Após atravessarem, a porta dupla
fechou-se atrás deles, e eles não mais existiam no microcosmo entre o corredor
principal e o banheiro.
“Valeu, Mathis.” Tiago disse. “Você não faz ideia, essas fotos que eu tirei, ficaram
lindas. Eu não perderia elas por nada.”
“Eu preciso usar o banheiro.”
Houve um impenetrável silêncio, nem mesmo os sabiás do lado de fora
cantaram. E então a Terra resumiu a sua rotação e Tiago perguntou:
“Mas… Você não pode esperar?”
“Tiago.” Mathis deu um passo pra frente. Tiago estava contra a porta mais uma
vez. “Você já esteve muito, muito apertado? Acho que já, mas não acho que só porque
você tava apertado, você se mijou. Você segurou. Pensa essa força do seu aparelho
urinário, de simplesmente dizer ‘não’, de fechar as comportas. Agora imagina algo tão
assustador que essa força, esse aliado, simplesmente diz ‘fui!’ e você se mija todo.
Então, essa foi a minha noite. Então, por favor me deixa tomar um banho e esquecer
tudo isso.”
“Ok.” Tiago disse. “Mas tem como você fazer isso com a luz apagada?”
Mathis concordou com a cabeça, Tiago se afastou e o freelancer entrou no
banheiro.

Mathis deitava na sua cama, a de baixo no beliche, quando Tiago entrou pela
porta. Ele carregava uma caixa de papelão que quase se desmantelava. Dentro, várias e
vários papéis espessos com um brilho próprio, imagens em tons monocromáticos de
azul, cinza e vermelho.
“Deixa eu ver o que você fez.” Mathis disse, sentando-se na cama, amarrando o
velho roupão que usava após o banho. Ele pegou uma das fotos reveladas, era a da Praça
da Primavera. Em primeiro plano, havia o João Castanheira, de costas curvadas,
segurando um cassetete com vontade. Tudo em tons de vermelho. “Ei, eu vi esse cara
hoje! Que horas você tirou essa foto?”
“Um pouco depois do meio-dia. Morri de medo de ele me ver, mas era perfeito,
sabe, tipo: um conto-de-fadas que vem assombrar a gente.”
“Sei. Toma cuidado.” Ele deu um soquinho no ombro de Tiago, desta vez com
bastante amor fraternal. “Eu passei por lá depois, um cara apanhou desse psicopata,
não parecia que tinha feito nada. Quase que sobrou pra mim.”
Tiago arregalou seus grandes olhos, seus lábios cheios se separaram e os seus
dentes brancos, com uma fenda entre os de cima, revelaram-se. Ele tinha os dentes
mais brancos e os maiores olhos, que em contraste com sua pele cor de carvão se
destacavam ainda mais. Ele parecia, baseado em suas feições, alguém gentil, que não
seria capaz de machucar nem uma mosca. Nesse caso, as aparências não enganavam.
“Mas o que você fez?” Ele perguntou.
“Como assim o que eu fiz?”
“Você ajudou o cara de alguma forma?”
“Não. O que eu ia fazer? Eu não queria apanhar.”
“Ele tinha um cassetete. Você tinha uma arma.”
Mathis se encolheu.
“Ah, deixa pra lá, vai.” Ele disse. “Eu só queria fazer o meu trabalho.”
Tiago estalou a língua. “Quer dizer, isso aqui? Esse aqui é o trabalho?” Ele abriu
um sorriso capaz de derreter o coração de um tirano, e tentou segurar Miauphomet.
“Vem aqui, gatinho, gatinho…”
Péssima ideia. Ele foi recebido com um arranhão na mão, que rapidamente
começou a sangrar finas linhas de sangue vermelho. Primeiro, Tiago grunhiu de dor, e
então pegou a sua câmera, aproximou-a do próprio rosto e, com um dos olhos
fechados, tirou uma foto que continha o gato arrepiado com olhar feroz em segundo
plano, e em primeiro plano, as costas de sua mão com três linhas irregulares de sangue
vermelho.
“Vai sobrar papel de foto e pó de café pra revelar isso?”
“Não, já acabou tudo.” Tiago sentou-se com as costas na cama de Mathis,
abrindo a gaveta do criado mudo e tirando um band-aid, retirando-o da bandagem e
colando no ferimento. “Mas eu posso emprestar.”
“Por que você faz isso?”
“Como assim?” Tiago olhou com olhos curiosos.
“Sei lá, você às vezes pula uma refeição pra comprar mais filme. Você tá sempre
devendo pra todo mundo, você… Eu quero dizer, você é inteligente. Você podia arrumar
um emprego em alguma repartição por aí, trabalhar atrás de uma mesa e fazer o
bastante pra comprar todo o filme que quiser sem ter que sacrificar o almoço.”
“Bom, mas aí eu não teria tempo pra tirar fotos.”
“Você teria intervalos, você também teria tempo antes do trabalho e o depois do
trabalho. Quando todo mundo tá fumando um cigarro você poderia ao invés,
fotografar.”
“De manhã eu tenho muito sono pra fotografar. Eu tô tão cansado que eu não
consigo achar nada de único no mundo.”
“E de noite?”
“Eu acho Carolinovna a mais linda de noite. Eu vejo tantas coisas belas, tantas
coisas que valem a pena imortalizar pra sempre. Mas se eu trabalhasse atrás de uma
mesa, eu imagino que nesse horário eu não ia pensar nos cafés cheios de homens, nos
homens cheios de histórias ou nos padeiros e açougueiros sempre ocupados, suprindo
a nossa sociedade com os cento e cinquenta tipos de salgado que a gente têm. Se eu
trabalhasse atrás de uma mesa, eu só ia querer chegar em casa e dormir.”
“Mas…” De repente Mathis se sentiu muito triste, não sabia exatamente o
porquê. Em outras circunstâncias, ele não teria vocalizado o pensamento seguinte dele:
“...Mas desse jeito você não vai a lugar algum. Vai sempre viver na pensão, vai morrer
aqui pobre e magro…”
“Fazendo o que eu gosto. Isso que importa.” Tiago então abriu um sorriso e
bagunçou o cabelo de Mathis, como se ele se tornasse o irmão mais velho por um
instante. Sempre foi assim com eles. Sem laços de sangue entre eles, eles revezavam
suas posições entre amigos, irmãos… Algumas vezes entre pai e filho.
Os dois se conheciam desde que Mathis tinha 15 anos e o outro 13. Os dois
vieram de lares que não eram lares coisa alguma. Os dois entendiam o que era não ser
amado, os dois entendiam o que era ser tratado como menos que gente. E desde os
tempos que Mathis não conseguia proteger nem ele mesmo, ele protegia Tiago, e
debaixo das asas dele, Tiago conseguia às vezes sacar a sua câmera e tirar umas fotos
sem Fritz quebrar ela por pura diversão.
“Eu queria entender isso.” Mathis disse, olhando o teto mofado. “Eu não consigo
me imaginar desse jeito pro resto da minha vida. Não consigo imaginar os gatos de rua
e os narizes quebrados e… Sabe, eu tenho uma chance de mudar isso agora. Por esse
gato, a cliente vai me dar um título de nobreza.”
“Um título de nobreza? Tem certeza?” Tiago tirou os olhos do filme não revelado.
“Isso não cresce em árvore.”
“Eu tenho minhas dúvidas, mas ela é nobre pelo jeito. Ela não precisa de outro
título de nobreza. No fim, um título desses só tem esse valor absurdo pra quem é
plebeu. Pra eles é realmente inútil.”
“Bom, é uma pena então que você vai ter que morar no Distrito Nobre. Vou ter
que achar outro colega de quarto.”
“Relaxa.” Mathis sorriu. “Quando eu estiver do lado de lá eu mexo uns pauzinhos
pra te conseguir um lugar também.”
“Não sei se eu sou bem material de propaganda da nobreza.”
“Uai, eles precisam de tons mais escuros lá. Muito branco na paisagem cansa a
vista.”
“Nah, não sei. Você tem mais cara de nobre. Eu não ia me dar bem com o pessoal
lá. Eu já recebo olhares quando eu vou pro Vernice. Imagina lá.”
“Eu estaria do seu lado. Como sempre. Te defendendo dos nobres babacas.”
“Tudo bem então.” Tiago sorriu. “Mas você pensou também em vender isso por
aí? Imagino que valha um bom, bom preço, talvez dê pra você comprar um belo
escritório de detetive particular, ou freelancer, como você quiser chamar.”
“Nah, eu nunca quis esse trabalho pra mim. Isso era a paixão do meu pai, não a
minha. Além do mais, eu acho que eu tô pagando por todas as fraturas que meu pai
infringiu nos outros.”
“Então, se não freelancer… O que você gostaria de ser?”
“Não sei. Qualquer coisa, qualquer emprego normal.”
“Certeza? Conheço um cara, ganha um bom salário, trabalha em uma empresa
de impressão. Ele é miserável.”
“É. Mas aposto que ele não precisa de rinoplastia.”
“Justo.” Tiago se levantou. “Aí, o Marcos arrumou uma tevê, vai passar a
Cerimônia da Conquista daqui a pouco, você quer ver?”
“Beleza.”
Ninguém questionou como o Marcos “arrumou” uma TV nova de 16 polegadas,
mas dava pra ver que tinha alguns cacos de vidro ainda caindo dela. Como ninguém era
de julgar, os três simplesmente sentaram-se no velho sofá tão remendado que
levantaria questionamentos filosóficos sobre ainda ser o mesmo sofá de quando foi
comprado, abriram cada um uma cerveja e sintonizaram no canal do governo. Marcos
era louco por gatos, então ele serviu um pouco da ração dos dele pra Miauphomet, que
prontamente recusou. Logo a abertura do governo de Glorimória consumiu todos os
canais da TV.
A bandeira de Glorimória consumiu a tela toda. Duas linhas azuis diagonais
consumiam o canto superior esquerdo e o inferior direito, uma linha branca no meio
era marcada por vários raios azul-escuro estilizados que partiam de um mesmo centro,
formando um círculo. Abaixo, lia-se: “Ad astra”.
“Bom dia, caros cidadãos, e bem-vindos à centésima-quarta celebração da
Cerimônia da Conquista, realizada este ano aqui mesmo em Carolinovna, Glorimória.
Vemos agora o Palácio Devereaux, erguido em tempo recorde ao longo da segunda metade
do ano passado e o começo deste. Ele é lindo, com um ar de classicismo misturado com o
rococó. Aqui vemos a Guarda Real soltando mil pombas brancas em homenagem aos
trabalhadores perdidos…”
A Cerimônia prosseguiu, e então entrou em um intervalo que anunciou
aparelhos de barba, pastas de dente e graxas pra sapato. Quando retornou, a
transmissão mostrava uma fila de veículos prosseguindo lentamente até o Palácio, com
centenas de guardas em volta e a banda marcial de Glorimória dando o
acompanhamento musical. Ali era visto o pináculo das castas sociais, os governantes de
cada nação. Alguns vestindo ternos caros e bem cortados, outros trajes reais de seda,
fios de ouro, cheios de jóias e pedras preciosas, com enormes coroas sobre as cabeças.
“Aqui vemos os chefes de estado do Concerto de Arcádia, a orquestra filarmônica
dos maiores líderes do mundo que ressoa as suas melodias de ordem, disciplina e progresso
para todos que precisam ouvi-la. Vemos uma fila de quilômetros e quilômetros, com um
esforço conjunto das guardas que ocupam um raio de trezentos metros ao redor de cada
líder de estado, garantindo a segurança daqueles que garantem a nossa segurança. O
primeiro a entrar no palácio, em um rolls-royce é o patrono da liberdade e da…
Tiago de repente saltou e virou a roda do volume até o zero, ele então pegou um
rádio por perto e começou a tentar sintonizar em alguma estação específica. Marcos
ficou de pé também:
“Cara! O que você tá fazendo?”
“Eu não aguento essa babação de ovo do Estado…” E então a frequência foi
encontrada, e da voz de uma garota jovem ouviu-se:

“A Coligação dos Nove é um monstro


Com uma cabeça movida à Diesel
Guiando todo o corpo
Apontando o mau caminho
Com a mão invisível
Do mercado impassível
Enquanto fareja a presa diurna
Em seus lábios mortos, ela diz
“Prazer, meu nome é Columbia.”

Em seu carro sem cavalos,


o Presidente e a Primeira-Dama sorriem e acenam”

“Que merda é essa?” Marcos perguntou.


“Rádio pirata da Causa Revolucionária.” Tiago disse, e sentou-se. “Prefiro a
narração deles do que esse vendido do Tadeus Marigold.”
“Mas isso é anti-coligação. Isso é ilegal!”
“Sabe o que mais é ilegal, Marcos?” Mathis disse. “Roubar uma TV.”
Marcos provavelmente ia dizer algo, mas se calou então.
Então a fila seguiu. Depois de Columbia, a república sem reis e sem deuses,
movida pela mão invisível do mercado, veio Solaria, a monarquia que nos tempos
antigos preferiu retornar ao básico: o Rei controla tudo, e a vontade dele é divina.

“As escamas bem-cuidadas do monstro


seu bigode branco aparado
o monóculo sobre o olho estático
te fazem pensar que ele tem um rosto
mas não é de rostos que vive esse monstro
mas sim de máscaras para esconder
aquilo de mais primal e horrendo
que o monstro jura combater

em sua carruagem enorme,


O Rei e a Rainha e o seu Herdeiro sorriem e acenam."

Era tanta riqueza, mesmo através da tela em preto e branco se via as cores
douradas, escarlates e esmeraldas incrustadas em todas as roupas, em todos os
adereços. As coroas por si só eram como novos sóis. Não só na Família Real brilhavam
as pedras preciosas, como em todos os cortesãos e guardas ao redor. Em um momento,
a plateia em volta jogou louros à carruagem Real, e eles sorriam com dentes brancos.

“O rabo do monstro balança


ao som de tambores, maracás e trombetas.
Veronezza sem deuses,
Apenas com seus homens nobres
E seus homens comuns
E com as festas que ambos frequentam

Em cima do mundo,
O Rei zomba de nós.”

Arlequins, dançarinos, instrumentistas, tocando o ritmo de festa e jogando


confete aos céus. Homens e mulheres acima de carruagens, vestindo roupas libertinas
demais até para a progressiva Glorimória. Um espetáculo de cores vibrantes, e acima de
um carro alegórico imitando o marfim pálido estava o Rei pintado de ouro, com uma
máscara que o transformava em um Adônis. Para Mathis, parecia mais um homem
vestido de Rei.

“A Montanha-Negra Kuroyama
Ergue-se em fileira de
Aços-negros de mesmo rosto.
Rosto esculpido no metal,
Não é de água que esse povo tem sede
Mas de sangue quente derramado
Nunca pelas costas
Sempre pela frente

À frente e no centro de uma fileira uniforme,


o Imperador destaca-se, o único aço-escarlate”

Os guerreiros de Kuroyama, uma nação que treinava os seus desde os 8 anos


para superar condições impossíveis e matar com destreza, estes marchavam em seis
fileiras, trajando espessas armaduras negras produzidas da liga metálica do ferro,
bauxita e Kasaiyama, um minério encontrado no Monte Kuroyama. Esse “Aço-Negro”
resultante era considerado o material mais resistente do mundo, e não decepcionava
em sua leveza e manuseio quando usado em espadas. Todos os ferreiros de Kuroyama
prometiam também que a única coisa capaz de dobrar ou lascar as extremidades do
Aço-Negro era o fogo da própria Kuroyama, tornando-o inviável de exportar para
outras nações. Por um lado, uma desvantagem, pois a economia de Kuroyama sofria
com a falta de um mercado onde ela teria monopólio. Por outro lado, nenhuma espada
corta tanto quanto a dos Guerreiros Aço-Negro.

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