Você está na página 1de 49

SOMENTE AS INCRÍVEIS

INTRODUCAO E MANDINHA

Todos contam a sua vida, porque não hei de contar a minha? As livrarias estão cheias de exemplares de
autobiografias de pessoas famosas, gente simples, gente que teve o que contar. Mas não quero me limitar à
minha vida. Recordarei, além das minhas, as histórias de alguns parentes meus, mais próximos ou remotos.
Não irei me referir a fatos cotidianos, às coisas que acontecem a todo o mundo, mas, unicamente a casos e
coisas inacreditáveis, tristes, simples ou alegres, porém fora do comum, que se tenham passado conosco.

Minha vida sempre foi intensa e movimentada e, agora que vivo mais tranquila, os filhos criados,
casados, me veio esta ideia insistente.

A ideia me pareceu cada vez mais atraente e me levou a ir revisando uma porção de coisas, de fatos
passados com avós, tios, sobrinhos, cunhados, primos, marido, filhos e até mesmo comigo...Haveria, é claro,
o perigo de me tornar indiscreta, trazendo assim à público uma crônica de família e indispondo contra mim
algum parente menos compreensivo, que preferisse o anonimato. Mas, como não pretendo identificar
ninguém e considerando que, mesmo que tais narrativas obtivessem sucesso e fossem publicadas, ninguém
saberia quem as escreveu, resolvi encetar o trabalho. Este não terá sido perdido, pois ao mesmo tempo que
preparo estas crônicas, cuja leitura servirá de passatempo para os meus, vou preenchendo com ele as longas
horas de solidão de funcionária pública viúva, aposentada após 34 anos de serviço.

O título me foi inspirado pelo livro de Álvaro Moreyra, "As amargas, não" 1. Há muitos anos trabalhei,
como tradutora e datilógrafa, numa revista na qual colaboravam ele, Felipe de Oliveira e Vitorio de Castro, o
qual me proporcionou tal trabalho. Muitas vezes, quando levantava a cabeça, via-os aos três, debruçados
sobre o original do romance de capa e espada que eu traduzia e no qual me auxiliavam a encontrar o
verdadeiro sentido de alguma palavra de gíria francesa que o escritor tivesse empregado de maneira mais
popular e inacessível para nós. Lembro-me ainda que de certa vez que traduzimos o termo "curieux" de
maneira literal, isto é, curioso. Tudo foi muito bem no decorrer de algumas páginas que se seguiram. A
palavra adaptava-se bem e as frases tinham sentido. Mas a certo momento, já publicados vários capítulos,
tudo se complicou, desde o instante em que um dos personagens, pegando o "curioso"... pendurou-o a um
gancho na parede! Tratava-se de uma pequena lanterna, ou "curieux".

Após a leitura das "As amargas, não", fiquei cogitando num título que fosse tão sugestivo quanto me
pareceu aquele, para meu próprio livro. Portanto, declaro desde já que Álvaro Moreyra foi quem me
inspirou, tanto o livro quanto a disposição, em parágrafos, que achei ótima para ser utilizada nas minhas
narrativas: "SOMENTE AS INCRÍVEIS" será o nome do livro.

É claro! não pode haver família que não tenha coisas incríveis para contar a seu próprio respeito. Mas,
dentro destas famílias existirá quem tenha coragem de contá-las? E os preconceitos, as caçoadas, as
malquerenças que tais lembranças poderiam suscitar?

1
Livro lançado em 1955 intitulado “As amargas, não... lembranças”
É verdade que, se por algum bambúrrio, os autores das incríveis relatadas se reconhecerem a si mesmos
retratados em tais façanhas, a tranquilidade de minha velhice poderá vir a ser perturbada por algum
telefonema, ou visita de parente indignado. Mas isto será difícil. Todos aqueles que me estão próximos, já
leram os meus rascunhos e se comoveram ou riram com os relatos, dando-me sua irrestrita aprovação. Além
do mais, embora certos fatos pareçam inventados, ou feita por gente "fraca da bola", não existe um sequer,
que não seja absolutamente verídico. E ainda mais, por excêntrico ou maluco que pareça o caso, as pessoas
com quem tais coisas se passaram são todas normais e bastante inteligentes, algumas até demais, motivo pelo
qual, talvez, com elas tenham ocorrido aquelas incríveis!

Nossa família deu muito artista, muito poeta, muita gente genial, que se projetou para além do círculo
familiar. Dentre todas estas personalidades, talvez uma das mais apagadas seja eu. Tenho sido uma simples
mulher, sem mais pretensões que a de ter cumprido, o melhor possível, seus deveres de trabalho, tendo
criado meus filhos e assistindo-os viver. Jamais tive pretensões a me tornar algo que não sou e. como
sempre, é desprovida de qualquer pretensão que vou cedendo a este impulso de contar as incríveis de minha
família, que dou início ao trabalho.

Antes, porém de dar início ao que poderemos chamar de primeiro capítulo, retardo um pouco o
encerramento de prefácio para, desde já, pedir desculpas àqueles a quem as incríveis possam atingir. Alguns
destes são já falecidos, embora restem ainda muitos descendentes vivos que possam pretender contestar a
veracidade delas. Duvido, porém, que o façam porque, como já declarei, tristes ou cômicas, espirituosas ou
lamentáveis, todas elas são pura verdade, aconteceram tal e qual!

NETOS E BISNETOS. MAMÃE N.


Começarei por minha avó paterna, por ser ela a pessoa que tem mais incríveis para se contar. Mulher
bonita, de um moreno claro, olhos azuis, cabelos ondulados, de uma originalidade a toda a prova, mas sem
alarde. Fazia tais incríveis sem que, naturalmente, ninguém se atrevesse a chamar-lhe a atenção, pois tinha
um modo de agir todo especial, completamente diferente do comum, na cidade em que morava. Sendo, por
isto mesmo, o assunto predileto de que a conhecia. Penso ter sido ela o motivo pelo qual desejei escrever
estas incríveis.

Minha avó jamais consentiu que neto algum a chamasse de "Vovó". Mandava sempre que os netos a
chamassem de "Mamãe-N.". Quanto aos bisnetos, deveriam chama-la de "Mandinha". Caso um dos netos a
chamasse de "Vovó", não havia nada que a fizesse responder-lhe. E, caso reclamassem, ela respondia:
"Porque não me chama de "Mãe-Diabo"? É melhor...". O mesmo acontecia com os bisnetos que a
chamassem com si foram netos... E como todos nós gostávamos muito dela, vivíamos sempre atentos e
raramente nos esquecíamos de atender à sua vontade.

SEUS FILHOS E FILHAS


"Mamãe-N." teve oito filhos. Às filhas dava toda a liberdade. Sabia-se que as meninas às vezes levavam
lençóis e iam à noite para o cemitério próximo onde se faziam de assombrações e almas do outro mundo,
causando sustos terríveis aos incautos e aos medrosos. Quanto aos filhos, não tinham sequer licença para sair
de casa. Meu pai, já moço de 18 anos, enquanto ninguém sabia por onde andavam as suas irmãs, era
obrigado a ficar passeando diante da janela de minha avó, que estava sempre a vigia-lo, enquanto ela asseava
de lá para cá, zangado, a torcer o bigode nascente. Quando dela se indagava a causa daquele rigor tão grande
para com os filhos homens, ela respondia: "As meninas a gente não perde...., mas os rapazes se vão....".

QUEIJO FRESCO
Dizia ela gostar imensamente de queijo fresco. Mas nunca ninguém a viu comer um pedaço de queijo
realmente fresco. Porque havendo ainda um pedaço do anterior, ela não permitia que se abrisse o outro que
eventualmente lhe oferecessem com presente. E, como naquele tempo não havia geladeira.....

AS NOVE ÁGUAS E O LEITE


Era de uma minúcia enorme em tudo quanto fazia. Se lavava um copo, o arroz, a verdura, ou uma xícara,
era sempre em nove águas. E, se perdia a conta, recomeçava tudo, isto é, jogava toda a água fora e retomava
o trabalho, pois onde ela morava não haviam torneiras.
Certo dia, tendo ela dito a uma conhecida que a coisa de que mais gostava era de leite de vaca tirado na
hora, aquela senhora convidou-a para ir a sua chácara, bem cedinho, para tomar um leite especial, tirado de
uma vaca de raça cujo leite todos eram unânimes em achar delicioso. "Mamãe-N." ficou no auge da alegria
com o convite. Pela madrugada do dia aprazado já estava pronta quando a amiga mandou busca-la.
Dirigiram-se para o estábulo onde, uma vez tirado o leite, o primeiro copo foi-lhe oferecido. E ela, muito
séria agradeceu e.... recusou! Surpresa geral! "Mas, Dona Naninha, a senhora não veio para tomar leite tirado
na hora?" - "Vim..." - "E não está com vontade de tomar?" - "Estou...." As filhas, aflitas, a amiga muito
desapontada com a desfeita e ela, com um sorriso meio encabulado... Até que atinaram com os motivos da
recusa: as mãos do vaqueiro, o úbere da vaca e o copo inclusive, não tinham sido previamente lavados em
nove águas.

A GEMADA
Pediu a uma conhecida, chegada do interior, moça simples e sem cerimonia que a estava visitando, que
batesse uma gemadinha enquanto se ocupava em qualquer outra coisa. A moça começou a bater as duas
gemas com açúcar. Bateu, bateu, mais ou menos durante uma meia hora, e por fim perguntou: - "Não estará
boa Dona Naninha? " E ela: "Não, minha filha, bata um pouquinho mais, sim?" E assim foi, a moça batendo
e de vez em quando perguntando. Por fim, passadas mais de duas horas, a moça teve um desmaio e caiu por
cima da tigela, que se espatifou no chão!...

AS FORMIGAS
Certa vez, a vi debruçada sobre uma mesa que havia no quintal. Reparei que estava muito atenta ao que
fazia. Dava duas pancadinhas e logo passava a mão sobre o tampo da mesa. Como isso se repetisse durante
vários dias, acabei por aproximar-me, curiosa, perguntando-lhe o que fazia. Mostrou-me mais de cem bandas
de laranja já chupadas e explicou-me que estava...matando formigas. Porque havia ali muitas formigas e,
como ninguém se importava com aquilo, resolvera ela extingui-las. As formigas entravam nas laranjas e ela
com as pancadinhas, as fazia sair e, com a outra mão esfregava-as sobre a mesa, matando-as.
AS RENDAS
Tinha um baú repleto das mais belas rendas. Peças e mais peças de rendas, de todas as larguras e das
mais variadas qualidades. Rendas de bilros, de labirinto, de Veneza, etc. Verdadeira fortuna, das mais raras e
diversas rendas. Nós lhe pedíamos e implorávamos que nos desse alguma! Ela jamais negava, mas também
jamais deu um metro sequer a ninguém. Quando saia, nós abríamos o baú e ficávamos a contemplar e a pegar
nas rendas. Bem que desejávamos ter a coragem de tirar alguns, mesmo às escondidas. Ela jamais o
perceberia. Mas, além de não ousarmos faze-lo também não poderíamos, pois o emaranhado era tal que, ao
puxar-se uma vinham mil outras a elas embaraçadas, numa confusão infinita de padrões e tipos. E embora ela
ali remexesse frequentemente, dizendo que ia dar esta a fulana e aquela outra a sicrana, jamais se viu
qualquer daquelas rendas ser utilizada.

O GALO CAPÃO
Certa vez disse a meu avô: "Se galo capão cria pintos, porque não há de chocar os ovos?" E lá se dispôs
à experiência biológica. Arrumou num cesto 12 ovos, pôs no ninho uma galinha choca até que o ninho
ficasse quente, e deu ordem à criada que pegasse o galo. Vovô só olhava aquilo e ria-se a valer. Trazido o
capão, que relutara bastante em se deixar agarrar, ela colocou-o no ninho e cobriu-o com um outro cesto,
dizendo que erra para ele se acostumar com os ovos. No dia seguintes, quando chegou para ver se o galo se
deitara sobre os ovos, encontrou o bicho de pé sem ter sequer se aproximado deles. Aí teve início uma
renhida luta entre minha avó e o pobre capão. Ela ia duas a três vezes seguidas ao local do ninho e lá
encontrava o capão, sempre de pé. Passaram-se dias e dias. Minha avó chegou até a amarrar o galo ao ninho
para obriga-lo a sentar-se sobre os ovos. Não houve meios. O capão manteve-se invicto e... sempre de pé.
Por fim os ovos se estragaram e minha avó, embora sem reconhecer-se vencida, teve que soltar o capão.
Este, saindo às tontas e cambaleante de sua prisão de muitos dias, caiu num poço que ali havia e morreu
afogado. Minha avó, vendo isso, fez apenas um comentário: "Vejam só no que deu a teimosia do capão".
Quanto ao mais, recordo o comentário de um primo que, ao ouvir esta história exclamou: "Que capão de
brio. Morreu para salvar a honra dos eunucos que Mamãe-N. queria destruir." Ao que todos nós chorávamos
de tanto rir, enquanto ela também sorria, um tanto desapontada.

O PINTO DE ESTIMAÇÃO
Tinha uma verdadeira mania de criar bichos, mas o fazia de maneira inteiramente diversa de qualquer
outra pessoa. Certa vez escolheu, dentre os pintos de uma galinha que aparecera com uma grande ninhada,
um que lhe pareceu mais bonito e mais gordinho. Tomou-se de amores pelo pintainho, levou-o para dentro
de casa e resolveu criá-lo com todo o carinho. O bichinho passava a maior parte do tempo encarapitado na
mão dela como se fora um papagaio. E ela alimentava-o com ..... bifes! Partia a carne muito miudinha e o
pinto a ia devorando, de mistura com alguma verdura. Sua principal alimentação, porém, consistia em carne.
O bichinho durou pouco, penso mesmo que por causa de tantos luxos. Um dia, sem que se soubesse a razão,
adoeceu, começou a definhar e pouco depois morreu, o que deu motivos a muitas lágrimas.

GALO, CABRA E OS PORCOS


Dentre os bichos que minha avó criou assim, dentro de casa, contavam-se também um galo, um porco e
uma cabra. Ela era muito asseada e esses bichos viviam muito limpinhos, lavados e até escovados. Como o
quarto em que os animais dormiam se encontrasse bastante sujo, minha avó decidiu mandar limpa-lo, areja-
lo e também caia-lo. E como não desejasse lança-los de retorno ao quintal, declarou aos filhos que, por estes
poucos dias em que o quarto não ficasse pronto, os bichos iriam dormir no quarto deles. O galo foi levado
para o quarto de meu pai. O porco ficou no quarto de um de meus tios. Quanto a cabra, foi dormir na sala de
jantar. Foi um verdadeiro tormento para os homens da casa, porque de madrugada o galo, empoleirando-se
no punho da rede, punha-se a cantar, enquanto o porco grunhia no quarto e a cabra balia na sala. Afinal,
rebelaram-se todos e cada um enxotou os incômodos companheiros de noite para o quintal. Neste dia porém,
minha avó chorou o dia inteiro.

A CABRA E OS CAJUS
Desses animais, o mais querido, porém, era a cabra. Quando os cajueiros se punham carregai-nos, os
vizinhos e amigos enviavam à minha avó bandejas repletas desse saboroso fruto. Os filhos rodeavam-no
satisfeitos, prontos para a farta distribuição dos cajus. Ela, porém, pedia-lhe desculpas, pois a cabrinha
chegara primeiro e, tão alegre a coitadinha. E por isso colocava a bandeja diante da cabrinha que era quem
colhia as primícias daqueles presentes de caju... O bicho desincumbia-se muito bem da tarefa, pois seu
instinto o levava a escolher sempre os melhores, os mais maduros, os mais doces. Voltando-se, ela procurou
os filhos para dizer-lhes que ia mandar lavar o resto, para que eles comessem à vontade. Mas já não havia
nenhum ali, pois indignados, desistiram dos cajus. Minha avó, embora ficasse desolada, nem por isso se
emendava...

A VELHICE DO AVÔ
Em conversa com ela meu avô se queixava de estar ficando velho. Antes, gostava tanto de ficar até altas
horas, a conversar com os amigos... agora, no entanto, logo lhe vinha o sono. E ela: "Ora, Finelo! Você
trabalha muito. E depois ainda vai visitar amigos... Vai ver que na casa deles tem percevejo! E olhe que
mordida de percevejo na nuca deve dar sono!... é só isso!...". Meu avô riu-se às gargalhadas com tal
explicação.

O SONHO DO COMPADRE
Ambos se davam muito com outro casal muito distinto, seu conterrâneo. Um dia, estava Mamãe-N.
merendando quando chegou esse senhor amigo à procura de vovô, com quem tinha algo a tratar. Como o
marido ainda não chegara, minha avó convidou-o para tomar lanche, o que ele aceitou, embora declarasse
que só poderia permanecer por mais um instantinho. Em meio à refeição, ele, debruçando-se à mesa contou-
lhe que sonhara muito com ela à noite. Ouvindo-o dizer isto, minha avó não hesitou: levantando-se
imediatamente, aplicou-lhe em pleno rosto um valente tabefe. E como ele surpresa exclamasse: "Mas
Naninha, o que é isso!!" respondeu-lhe, severa: "Os amigos de meu marido podem até me apedrejar, mas
sonhar comigo, nunca!"

AGUA DA CHUVA
Minha avó só bebia água de chuva. Para isso havia, no quintal, um enorme pote. Mal começava a
chover, logo providenciava ela para que se descobrisse o pote, de modo a ter sempre garantida a sua provisão
de água para beber.
Também recolhia, em outra vasilha, a água do telhado. Não antes, porém de ter aguardado que a chuva
corresse o suficiente para que a telhas tivessem sido lavadas pelas primeiras águas.
Naquele tempo, nem se falava em radioatividade e a água, certamente, ainda possuía todas as qualidades
de elemento puro.
O fato é que nos parecia deliciosa! Beber daquela água era um verdadeiro privilégio para nós que a
recebíamos diretamente de suas mãos pois ninguém senão ela tinha o direito de desamarrar a alva toalha de
linho com que era coberta a grande vasilha na qual era guardada a pura água dos céus durante o ano todo.

A ENEIDA DE COR
A forte personalidade de minha avó fez com que a memória de meu avô permanecesse como uma
sombra, imprecisa e suave, da qual a gente mal se recorda... Ele era a pessoa mais paciente e compreensiva
que Deus botou no mundo. Culto e boníssimo, amou-a profundamente e com ela foi feliz. Dele só sei que foi
secretário da presidência e diretor da estrada de ferro. Era também poeta e, além de uma infinidade de
poesias clássicas, sabia inteirinha, de cor e em latim, a Eneida de Virgílio. Mais uma incrível, não acham?

O GAMÃO
Gostava imensamente de gamão. Ao terminar o jogo nunca deixava de dizer a quem chamara para jogar:
"Só esse tiquinho?". Uma vez estávamos passando alguns dias num sítio e resolvemos, cerca de umas dez
pessoas, verificar quanto tempo seria ela capaz de aguentar jogando. Às oito horas da manhã, o primeiro de
nós convidou-a para uma partida. Veio contentíssima! Passadas umas duas hora veio o segundo, depois outro
e mais outro, sucessivamente. Batia meia noite quando o último, sentindo-se cansado disse: "Agora chega!
Vamos dormir que já é tarde!" E ela: "Também, se eu soubesse que vocês só iam jogar esse tiquinho, nem
começava!" Passara dezesseis horas diante o tabuleiro de gamão, comendo ali mesmo e tendo se levantado
apenas umas duas vezes, quando muito!

OS BANHOS
Minha avó tinha a mania da água. Nunca tomou um banho de menos de três horas. Quando dizia: "Bom!
Vou tomar banho..." nós todos corríamos para o banheiro antes dela, porque era certo alguém ficar sem seu
próprio banho naquele dia. Às vezes ela consentia que nós o tomássemos primeiro. Mas havia dias em que,
sem qualquer aviso prévio, lá se trancava ela no banheiro. E então era um verdadeiro desastre.
Usava três sabonetes: um para o rosto e pescoço, outro para o busto até a cintura, outro da cintura para
baixo. Quando lhe acontecia de usar um de modo errado, por distração... lá começava todo o ritual
novamente! Aí então o banho durava mais uma ou duas horas. Quando começávamos a bater na porta
chamando-a, ela, ao sair, nos respondia: "Mas minha filha, imagine que usei o sabonete errado e tive que
tomar outro banho!".

AS VISITAS
Nunca fez visita breve fosse de cortesia ou cerimonia. Quando ia visitar alguém, enviava um empregado
para avisar que estava chegando, infalivelmente às 8 ou 8:30 da manhã e só se despedia à mesma hora, mas
da noite. Se lhe dissessem que ficasse mais um pouquinho, fazia-o. Se estivesse chovendo e lhe dissessem,
por mera cerimonia: "Durma aqui..." ela ficava, para dormir...!
SUA MEMORIA
Tinha uma esplêndida memória! Se saia em companhia de alguém e, ao voltar, a pessoa com quem saíra
contasses qualquer coisa que se houvesse passado com ambas, pedindo-lhe o testemunho, ela movia a cabeça
numa negativa, ou respondia: "Hm! hm!" como quem nega. Surpresa, a pessoa a interpelava: "Mas então
Dona Naninha, acha que eu estou mentindo?!" E ela: "Não...!" "Pois não aconteceu isso assim e assim?
Porque diz que eu estou mentindo?" E ela explicava: "Porque você contou tudo errado. As palavras
foram....tais e quais....". E relatava o caso "Ipsis verbis".

O FILHO MIMADO
Logo que papai se casou, foi morar no interior. Passado certo tempo minha avó foi visita-lo. A visita,
porém, durou mais de um ano! Ela levara o filho mais moço para cursar o Liceu da cidade enquanto ficasse
por lá. Esse filho, muito querido e mimado, era um grande preguiçoso, tendo pouquíssima vontade de
estudar. Um dia, minha avó estava a chamar-lhe a atenção para tal fato e a indagar-lhe porque não queria ir
ao Liceu. Ele explicou-lhe que não ia porque andava fazendo uns cálculos para comprar ferro afim de
construir uns trilhos e, depois destes prontos, instalar um "troley". Os trilhos iriam dar na porta do Liceu...
Todos os alunos que morassem na cidade pagariam para andar neste "troley" e, assim, toda a família tornar-
se-ia rica com tão grande invento! Ninguém precisaria mais trabalhar.
Minha avó ouviu-o com atenção e, no dia seguinte... mandou comprar todo o ferro que havia na cidade,
com a qual fez construir uma espécie de vagão... o qual nunca chegou a ser utilizado, porque o tal Liceu
ficava num morro.

BICHO DA SEDA
De outra vez, o filho (até hoje um grande fantasista), na mesma cidade, indagou de minha avó porque
não criava ela bicho-da-seda, coisa que na época mais dava dinheiro, etc., etc.
Sem que até hoje se saiba como foi, um dia lá apareceu uma pessoa que, indagando de minha se ela
desejava fazer criação de bicho-da-seda, ofereceu-lhe duas insignificantes lagartas. Ela ficou no auge da
alegria! Havia, no quintal, um quarto repleto de livros e móveis usados, embora ainda servissem. Minha avó
chamou um empregado, dando-lhe ordem para que esvaziasse inteiramente o tal quarto. E lá colocou as duas
lagartas e muitos galhos de amoreira. Quanto aos livros e aos móveis, ficaram ao relento.
Quando meu pai chegou, à tarde, chamou minha mãe perguntando-lhe que loucura era aquela. Ela
informou-lhe do intento de Dona Naninha e mostrou-lhe a nova instalação. Dizia minha mãe que ele ficou
até vesgo de tão zangado! Pegou os vermezinhos, jogou-os no chão e esmagou-os com os pés! Desta vez
minha avó não chorou. Mas passou dias e dias sem falar com meu pai, até ele compreender que precisava
pedir-lhe desculpas...

OS BOTÕES
Mamãe-N. era sempre exagerada e desmedida em tudo. Certa vez a empregada disse-lhe que era preciso
comprar botões para prega-los nas roupas das crianças, pois todas estavam precisando muito. Ela
imediatamente vestiu-se para sair e dirigiu-se a um armarinho onde comprou... doze grosas de botões!
A BORDADEIRA
De outra feita, tendo contratado uma bordadeira para bordar-lhes fronhas, lenços, blusas e outras
miudezas, a bordadeira pediu-lhe um tear ou bastidor, pois que assim o bordado sairia mais perfeito.
Minha avó dirigiu-se a um carpinteiro ao qual encomendou um tear, cujas dimensões lhe forneceu.
Quando a encomenda chegou, era tão grande que não foi possível faze-la transpor a porta de entrada.
Zangadíssimo, o carregador teve que voltar ao carpinteiro com a encomenda.

AS VIAGENS
As viagens dela eram um verdadeiro suplício para quem a acompanhava, pois não haviam palavras ou
suplicas que a fizessem prescindir de seus “badulaques”, sem os quais preferia mesmo não viajar. Tendo uma
amiga nossa que vir a Rio, os filhos daqui começaram a pedir-lhe que a trouxessem junto, pois fazia muito
tempo que não a viam. Minha avó aquiesceu em vir, para grande martírio de nossa amiga que, já sabendo o
que iria passar, não tivera coragem de recusar-se.
A cada porto tinha que convencer minha avó a não desembarcar, visto que o navio iria se demorar
pouco. Mamãe-N. ia achando ruim, mas submetia-se. Ao chegar à Bahia, porém, onde o navio demorar-se-ia
mais tempo, resolveu não atender a consideração de espécie alguma porque, dizia, precisava tomar um bom
banho, visto que a água do navio não ser nada boa.
Desceu e dirigiu-se a um hotel. Horas depois, estando o navio para zarpar, ela ainda não retornara, tendo
a amiga que empenhar-se com todos a bordo, até o comandante, implorando-lhe que esperasse um
pouquinho, enquanto se formava uma verdadeira caravana que a foi buscar no hotel e com a qual ela
regressou, muito tranquila e surpresa com tanta pressa.

O GULOSO
Aquele irmão mais moço de meu pai, muito guloso, estava à mesa do almoço, quando trouxeram uma
fritada de camarão. Pegando o prato, serviu-se da fritada, deixando apenas menos da metade dela para as
demais pessoas. Meu pai, o dono da casa, delicadamente chamou-lhe a atenção dizendo: "Mas Fulano, Você
ficou com mais da metade, e nós com quase nada. Isso não se faz!". O menino encabulou e começou a
chorar. Minha avó, levantando-se da mesa, sentou-se na rede e não disse nada. Papai então chamou-a e ela
então respondeu: "Não! o que tiver de ser para mim, pode dar a ele!" E passou uma semana fazendo greve da
fome. Meu pai ficou tão desgostoso que, daí em diante, deixou que o menino fizesse o que bem entendesse.
Pouco tempo depois, porém, ela felizmente precisou retornar para casa.

AS LUVAS
Por essa mesma época, antes de ir-se, minha avó um dia perguntou à mamãe se esta não saberia onde
estava um par de luvas que deixara em tal lugar. Minha mãe respondeu-lhe que nem vira as luvas nem sabia
onde estavam. Mamãe-N. deu então uma risadinha que intrigou minha mãe levando-a a indagar: "A senhor
parece que acha que eu sei!?". Uma nova risadinha de minha avó fez minha mão certificar-se de que sua
sogra suspeitava que ela guardasse consigo as luvas. Mamãe ficou desgostosíssima e disse-o francamente.
Quanto à minha avó, nem confirmou nem desmentiu.
Após uma ausência de vinte anos, ambas reencontraram-se. Ao se abraçarem, minha avó disse-lhe
carinhosamente: "Me perdoe!". Intrigada com aquilo, minha mãe, ao chegarem em casa, estando ambas a
sós, perguntou-lhe o motivo de tal pedido de perdão. E ela explicou: "Lembra-se daquele par de luvas, que
eu pensei que você tivesse roubado? Pois muito tempo depois encontrei-o no bolso de uma saia velha. Desde
aí venho querendo lhe pedir perdão. Mas tinha medo que a carta extraviasse."

ARRUMACOES
Mamãe-N. não consentia que arrumassem seu quarto. Dizia sempre saber onde se achava cada coisa, de
forma que depois de estar viúva, morando com uma filha, o fato de esta dar um jeito no quarto, dava sempre
motivo a grandes desgostos e a uma verdadeira campanha. Isso só acontecia no célebre dia das visitas.
Seu marido jamais a contrariara, achando sempre uma graça enorme em todas aquelas originalidades,
embora muita gente considerasse tudo aquilo como maluquice.
No dia de receber visitas, quando minha avó entrando no quarto o via todo arranjado, começava a
chorar, dizendo que já não sabia onde estavam as suas coisas, que aquilo era o mesmo que achar-se num
lugar desconhecido. Por mais que a filha se esforçasse por lhe demonstrar que cada coisa continuava em seu
lugar, minha avó sempre caía em tristeza profunda!

AO DEITAR-SE
Quando se deitava, caso se cobrisse com colcha e cobertor, não havia quem a fizesse tirar aquelas
cobertas durante a noite por maior calor que fizesse. O mesmo acontecia caso ao deitar-se ela se cobrisse
apenas com o lençol e durante a noite fizesse frio. De forma que às vezes levantava-se pálida e, ao lhe
indagarem a razão, explicava: "Ora, minha filha, cobri-me muito esta noite. Por isso senti um calorão, suei
muito e passei mal." Ou então: "Imagine que me cobri só com um lençol e o frio foi tanto que tremi durante a
noite toda!".

O POTE D’AGUA
Durante uma daquelas suas célebres visitas, tendo ficado para dormir, deram-lhe como companheira de
quarto uma outra hóspede, senhora bastante gorda. Já tarde da noite, ambas sentido sede, combinaram ir as
duas, mesmo no escuro, beber água de um pote que havia no topo da escada, com todo o cuidado para que a
gente da casa não acordasse. Chegando ao pote, a gorda companheira perdeu o equilíbrio e despencou,
escada abaixo. E minha avó, sem perceber que quem rolara fora sua companheira de quarto, só exclamava,
desolada: "Lá se foi o pote. E agora, dona Fulana?!" Mas a Dona Fulana já se achava estatelada nos últimos
degraus da escada. O silêncio da casa fora irremediavelmente quebrado, para o resto da noite.

CASTIGOS MEDIDOS
Sua calma era inalterável. Jamais se permitiu o descontrole de uma alteração de voz. Sua maneira de
educar os filhos tinha algo que a muitos poderia parecer crueldade. Quando uma das crianças cometia uma
travessura maior, ela a chamava e solenemente lhe comunicava: "Amanhã (ou daqui a três dias), às tantas
horas, você vai apanhar tantos bolos de palmatória! " Feito o comunicado, tudo retomava sua marcha normal.
A criança, voltando às suas atividades infantis, rapidamente esquecia o comunicado. Mas Mamãe-N. não. No
dia aprazado, exatamente na hora prevista, chamava o faltoso e, recordando-lhe o que fora decidido,
aplicava-lhe exatamente o número de bolos prometido. embora tal castigo tivesse seu aspecto cruel, vindo
muito depois da falta cometida, tinha a vantagem de levar a mãe a aplica-lo com inteira isenção de ânimo,
sem maiores arrebates de cólera que tornassem o castigo ainda maior que a culpa...

DIZER A VERDADE
Nunca ninguém da família ouviu-a dizer uma inverdade, nem que fosse por brincadeira. Estando ela em
casa de meu tio, chegou um grande amigo deste e, como meu tio estivesse muito em falta com o amigo,
exagerou um pouco na recepção dizendo-lhe: "Mas Fulano, que satisfação você me dá, aparecendo por aqui!
Imagine que hoje mesmo estava dizendo à minha mãe que pretendia ir à sua casa, tão em falta que estou com
você!" O amigo sorriu, expressando dúvida e meu tio, para confirmar o que dissera, dirigiu-se à minha avó
perguntando-lhe: "Não é verdade, minha mãe?" E ela, tranquilamente: "Não sei disso, não!"

PREPÚCIOS AMARRADOS
Quando os filhos eram mais pequenos, ela, para evitar que eles molhassem a cama, inventou um recurso
incrível! Tomando de um fio de seda largo e macio, amarrava-lhes o prepúcio para evitar que eles urinassem
nas fraldas. Com poucos dias de tal prática, os meninos aprendiam a dormir durante umas poucas horas, sem
molhar os panos de bebe. E comentava ela: "Pois é... para os meninos sempre fiz assim e eles logo paravam
de molhar a cama. Para as meninas, nada pude fazer. Mas também, elas urinam muito menos..."

AS QUEIJADINHAS
Fato é que os filhos a adoravam e a respeitavam infinitamente. Eram eles mesmos que contavam,
sorridentes, a história das queijadinhas. Naquela época os doces eram feitos em casa e vendidos em largas
bandejas que as doceiras enviavam à casa de suas freguesas, em mão de um moleque ou de uma negra de
roupas tão alvas e engomadas quanto o pano de linho que cobria os quitutes.
Chegada a doceira, as crianças faziam grande algazarra e pediam insistentemente, mais e mais
queijadinhas. Mamãe-N. comprava dúzias e dúzias dos doces, que repartia fartamente entre os filhos. Caso
lhe oferecessem algum, ela, polidamente recusava, permitindo que eles comessem tudo. Às vezes, porém
dava-se o inverso. Ao chegar a doceira, Mamãe-N. declarava-lhes: "Agora é minha vez!" Comprava enorme
quantidade de queijadinhas e punha-se a come-las, sozinha. As crianças já sabiam. Olhavam-na com olhos
compridos e, após certo tempo, retiravam-se, sabendo perfeitamente que naquele dia mãe não faria concessão
alguma. Quando comprava doces para si. só ela comia. Um dia da caça outro do caçador... Nunca deu uma só
provinha para os filhos. Das suas, nunca sobrou nenhuma.

O ENTRUDO
Naquela época em que não se conhecia serpentina nem confete, festejava-se o Natal com o Entrudo. O
divertido era jogar-se nos amigos os limões de cheiro, feitos de cera, contendo água perfumada. Ou então
tinas d'água que deixavam as pessoas inteiramente ensopadas.
Nem mesmo o delegado era poupado, pois arrastavam-no até a cacimba mais próxima, de onde só o
retiravam depois de vê-lo encharcado.
Nas vésperas do carnaval, Mamãe-N. tomou uma decisão: vender limões de cheiro para fazer dinheiro.
Para isso ocupou todas as negrinhas da casa. Quando meu avô aludia à desordem que andava pela casa, ela
respondia-lhe: "Não se preocupe Finelo (era o apelido que lhe dava). Veja quanto dinheiro fez Dona Fulana
no carnaval passado! Nós vamos ficar ricos, pois o carnaval deste ano promete ser bem animado!"
Assim é que chegou o primeiro dia de carnaval. "Já tem limões para vender Dona Naninha?" - "Não,
minha filha! Preciso fazer mais! Imagine se vendo estes e me pedem mais. Não tenho..." No segundo dia,
mesma pergunta e mesma resposta. A primeira leva de limões de cheiro só foi para a rua as dez horas da
noite do terceiro dia! Os empregados regressaram à meia noite, com o resultado da primeira bandejada, que
também foi a última. Passado o carnaval, ao lhe perguntarem se lucrara com a venda dos limões: "É... deu
para cobrir as despesas... " e disfarçadamente, mudava de assunto.
Em breve a casa retornou à rotina, as negrinhas a seus afazeres e a promessa de riquezas esquecida,
naquela trabalheira de cinco dias que só serviu para ... cobrir as despesas.

CUSCUZ PARA VENDER


O mesmo aconteceu com sua iniciativa de fazer cuscuz para vender. O empregado encarregado de
vendê-los nunca saía na hora apropriada. Atrasando-se, encontrava os fregueses já servidos. Ao voltar, as
crianças é que se deliciavam com os quitutes. Mamãe-N., desapontada com o insucesso, deixava-os comer
tudo. E os atrasos no preparo eram tão frequentes que ela acabou por desistir da ideia de vender qualquer
espécie de guloseima...

A VIAGEM PARA O RIO


Naquela viagem à qual já me referi, em que minha avó foi do Ceará ao Rio com uma amiga, ocorreram
outros fatos igualmente cômicos. À hora de deitar-se, Mamãe-N. tinha por hábito abrir a vigia do camarote
para tomar ar. Diante dela permanecia, imóvel, durante sessenta minutos, inescrupulosamente contados no
relógio. Depois do que, fechava hermeticamente aquela vigia, para deitar-se. Era em vão que a amiga lhe
pedia e implorava que a tornasse a abrir, quando o estreito compartimento se tornava um verdadeiro forno.
Porque minha avó assim argumentava: "Mas meu bem, agora estou tão agasalhada que, se pego um
resfriado, vou-lhe dar ainda maior trabalho!". E não havia jeito de consentir que a outra abrisse a vigia.

A GALINHA
Durante esta hora de respiração de brisa marítima, Mamãe-N. retirava, de um cesto que trouxera, uma
pobre galinha viajora, pois o animal fazia parte das coisas por ela consideradas indispensáveis para que ela
pudesse viajar. (Como poderia ela fazer uma tão grande viagem sem a perspectiva de um ocasional ovinho
fresco para tomar!). Uma vez libertada, a ave, estonteada, passava essa hora a ciscar pelo chão do camarote,
a beliscar as migalhas a ela oferecidas carinhosamente por minha avó. Depois do que, retornava ao cesto
onde fez toda a viagem como passageira clandestina. Se pôs ovos todos os dias é coisa que não sei!

SUA MORTE - DEUS


Estas são as histórias da minha avó de que me lembro. Naturalmente há milhares de outras, mas para
relata-las todas, tonar-se-ia necessários indagar de tantos outros membros da família, o que não seria nada
fácil.
Morreu ela aos 76 anos, aqui no Rio. A razão, nunca se soube. Disse o médico que o coração parou,
embora não houvesse lesão alguma. Ela vivia cantando coisas antigas, com uma vozinha fraca, que causava a
todos uma espécie de aflição. Quando a filha com quem morava lhe pedia que parasse um pouco, fazia-o,
mas, daí a instantes, recomeçava baixinho, o que era bem angustiante.
E assim se extinguiu, dizem que de velhice, pois o médico que deu o atestado de óbito viu-se talvez
atrapalhado, sem saber a razão. Todos acabaram, portanto, por concluir que... fora chagada a hora dela!
Pode-se dizer que morreu cantando, a embalar-se em sua cadeira de balanço. Quando minha tia, que lhe
pedira para calar-se um pouquinho, notou que o silêncio durava muito e foi ao quarto para vê-la, já a
encontrou morta.
E agora, uma última lembrança me vem dela: Jamais escreveu a palavra Deus sem que o fizesse usando
as quatro letras em maiúsculas!...

RELAÇÃO DOS FILHOS

Nome: Anna de Alencar Bomilcar


Filhos: Alfredo, Fenelon, Alvaro, Arthur, Aurelia, Eponina, Isaura, Julia

************************************************************************************
***************************
AVOS MATERNOS - DINDINHA

(Outras personalidades incríveis)

AVÔ MATERNO

Meu avô materno tinha onze filhos! Mas ganhava apenas... 40 mil réis por mes. Tendo sido também
professos de Liceu, muito instruído e preparado, foi ele mesmo que ensinou as filhas a ler, a escrever, a
cantar, dançar e tocar piano. Eram elas consideradas as moças mais cultas da cidade.
Adoravam-no e, sempre que falavam nele, ficavam com os olhos marejados de lágrimas. Essa apurada
educação de muito lhes serviu, a todas e muito especialmente à minha mãe que, enviuvando muito cedo, teve
que tomas a si o encargo de toda a família. O mesmo aconteceu com uma de suas irmãs mais velhas que,
para ajudar aos irmãos, também se viu necessitada de ensinar um pouco de tudo, pois vovô morreu aos 40
anos. No entanto, muito antes dessa idade, já todos os chamavam, carinhosamente, de "Velhinho".

AVÓ MATERNA

Minha avó materna, porém, não nos estimava e, por nossa vez, pouca atenção prestávamos ao que fazia.
Apenas notávamos que passa às vezes até duas semanas sem dizer palavra. Mas, voltando a si de suas
divagações, falava tanto e tão seguidamente, contava tanta anedota imoral, que todos dela fugíamos, para não
ouvi-las.
Morto meu avô, casou-se pela segunda vez e, desse casamento nasceu-lhe um filho. O segundo marido
era inglês, muito ruim e beberrão. vend0-se por fim desprezada por ele, tomou-se ela de uma dedicação
quase obsessiva por este último filho, por ele desprezando todos os outros. Incrível!

DINDINHA – BISAVO MATERNA – A LADAINHA


Embora me desagrade falar de minha avó materna, tenho, em compensação, vários fatos incríveis a
relatar, com referencia à minha bisavó materna.
Todos a chamavam de "Dindinha". Era uma velhinha baixota e muito gorda. Pesava mais de cem quilos!
Criava uma infinidade de negrinhas, as quais não lhe saiam do quarto, o dia inteiro, afim de atendê-la a
qualquer momento.
Acordava muito cedo e chamava-as todas, para ajudarem a "tirar" o terço. Durante muito tempo ouvia-se
apenas a sua voz, ríspida, ralhando, até que todas se pusessem de joelhos. E então principiava as orações, que
prosseguiam mais ou menos do seguinte modo:
"Ave Maria cheia de graça... mas já se viu, esta peste, cochilando! ... o Senhor é convosco, bendita
sois... sua cachorrinha, sai daí... entre as mulheres (e aplicava um cascudo n'uma) Santa Maria... Maria do
diabo! Se você cochilar mais uma vez lhe jogo este chinelo... rogai por nós pecadores... (lá voava a
chinela) ... agora e na hora de nossa morte, Amém! Eu não lhe avisei, sua atrevida, que lhe batia!?"
Assim se sucediam as Ave-Marias e se tirava o terço. À tarde, repetia-se a mesma cena, já então com a
participação de todos os filhos e demais parentes. Aos xingos e beliscões, aliavam-se as risadinhas causadas
pelos intermináveis qui-pró-quós resultantes de tais rezas.

A VACA BRAVA
De vez em quando, Dindinha se decidia a sair com as negrinhas, para passear na mata existente nas
proximidades da casa. Tinha lá o seu caminhozinho predileto, ao longo do qual seguiam as negrinhas, a rir e
a pular, brincando enquanto ela, lenta e pesada, vinha andando aos passinhos miúdos, deixando-se ficar para
traz.
Certa vez, durante um desses passeios, estridulou um grito: "Olha a vaca brava que se soltou! “as
negrinhas debandaram para as mais diversas direções, completamente olvidadas de Dindinha!
Passado o perigo retornaram, encabuladas, à sua procura, pois, apesar dos beliscões, todas as estimavam
muito.
Foram encontra-la encarapitada n'uma copada árvore, sem que ninguém atinasse como conseguira ela
chegar até ali, visto que sua enorme gordura lhe causava dificuldades até para andar. O fato é que, para tira-
la de lá, foi preciso a ajuda de três camaradas! E um deles, irritado com a trabalheira, exclamou: "Vamos
botar lá em cima uma cobra, bem brava, que a dona desce logo!"

NO LOMBO DO PORCO
De outra vez aconteceu cousa semelhante, mas a causa foi uma porcada que passou desembestada pelo
caminho que seguiam. A debandada foi a mesma. Mas como um grande porco se embarafustasse pelas
pernas de Dindinha, esta sobre ele caiu sentada sendo lançada ao chão lá adiante. Estatelando-se, sua própria
gordura serviu-lhe de proteção para que não se ferisse muito. mas mesmo assim teve que ser transportada
para casa numa rede e ali passou dias e dias sem poder se mexer, com o corpo todo dolorido por tão grande
cavalgada!

CONFORTO...
Em seus últimos anos de vida, os filhos já todos casados e mornado separados dela, viu-se sozinha com
as negrinhas, crias da casa. Estas, talvez para terem um pouco de sossego, pois a velha não lhes dava muita
folga, habituaram-na a beber vinho do Porto e ela, já com oitenta anos, longe da família, viciou-se de
verdade.
Passou-se o tempo e então o vinho do porto foi sendo substituído mesmo por aguardente. Aos que a
visitavam, causava pena ouvi-la exclamar, sem descanso: "Quero conforto! Quero conforto!" O conforto era
o cálice de pinga que as negras lhe davam quando ela não conseguia dormir...

MORTE
A morte de Dindinha constitui-se, em si mesma, uma incrível:
Estávamos todos passando uns tempos em casa de meu tio, dentista, e às vésperas de uma grande festa
de aniversário. Minha mãe e a irmã estavam na cozinha quando meu tio recebeu um telegrama. Naquele
tempo telegrama era coisa muito rara e receber-se um telegrama era um verdadeiro acontecimento. Aberto
este, meu tio virou-se para nós e para seus dez filhos exclamando: "Pronto, acabou-se a festa! Dindinha
morreu!" Ficamos nós as crianças, desoladas. Não pela morte dela pois mal a conhecêramos. mas pela festa
que já não mais se realizaria. Juntos nos dirigimos para a cozinha, meu tio e nós, para sabermos o desfecho.
Minha mãe e minha tia, pegando o telegrama com as mãos ainda cheias de massa, leram-no e ficaram
quietas. Depois, olhando para nossas fisionomias embasbacadas, apreensivas e tão ansiosas... não resistiram
e puseram-se a rir. Quanto mais espantados ficávamos, mais elas riam! E então começamos a pular, a gritar e
a dançar de alegria. Pois se elas riram é porque haveria festa. E assim foi que a noticia da morte de Dindinha
foi recebida com enorme alegria...

T’ISMAEL – O INFERNO
Meu padrinho era também meu tio-avô. Homem respeitabilíssimo, no lugar onde morava, era além do
mais muito simpático e afável. Tinha cinco filhos: três mulheres e dois homens. Mas era enormemente
temido como herege pela mania de colocar nomes heréticos em sua propriedade e seus animais. Seu sítio se
chamava inferno e seu cavalo, Diabo. Não era religioso, mas também não era ateu. Às vezes, no melhor da
conversa, despedia-se dizendo: - “Bem! Preciso ir para o Inferno pois estão precisando de mim lá!” Ou então
chamava o criado e lhe ordenava: “- Pedro, vá para o Inferno e me traga de lá o diabo!” Daí a instantes
voltava Pedro e lhe comunicava: “Pronto patrão! O Diabo já está aí na porta.” Tudo isto dito e feito com a
maior naturalidade. Os parentes e amigos até achavam graça. Mas nunca ninguém se atreveu a reclamar,
embora a todos escandalizasse aquela grande heresia.

T’ISMAEL – O TERÇO

Um dia passava ele diante da igreja quando viu uma de suas filhas que, à porta, conversava com uma
pessoa conhecida enquanto fazia seu terço girar em volta do indicador da mão direita.
Homem de poucas palavras, esperou-a chegar em casa e então aplicou às mãos da jovem um sem
número de bolos de palmatória dizendo-lhe que aquilo lhe serviria para lembrar-se de que igreja é lugar de
reza e que com rosário não se deve brincar!... A jovem filha, indignada pela humilhação de ter apanhado,
como qualquer criança a despeito de já se encontrar moça feita, ajoelhou-se e solenemente fez o ardente
pedido de que o pai nunca mais pudesse levantar o braço direito enquanto não se tivesse arrependido da
injustiça cometida. E o fato incrível é que meu padrinho não mais conseguiu erguer aquele braço.

MÃE A ANTIGA

Um dia meu padrinho, já casado e com filhos foi chamado pela mão já velhinha. Atendendo
prontamente ao chamado, declarou-lhe ela muito severamente, que a nora se queixara de que ele andava
olhando muito, com ares de namoro, para uma dona que chegara da capital. Portanto, que ele se ajoelhasse
para ser castigado, pois aquilo não era comportamento de homem casado e pai de família. Meu padrinho pôs-
se de joelhos e ela, tomando de um chicote bateu-lhe tanto que por fim copiosas lágrimas escorriam ao longo
das bem cuidadas barbas de meu padrinho. Filho respeitador, aceitou submisso a surra que a mãe velhinha
lhe aplicava a qual, a despeito de seus oitenta anos, ainda era bem vigorosa. Incrível, não!
O OLHO DO CHICÃO

De um outro meu tio avô, a quem chamávamos de tio Chicão, contam que certo dia estava ele brincando
com um punhal quando repentinamente exclamou: “Pra que a gente quer dois olhos! Dois olhos é vício!”
Dito o que, tranquilamente tomou do punhal e com ele arrancou, da própria órbita, o olho direito.

OUTRO TIO AVO

Esta deu-se com outro tio. Sua mãe herdara grande fortuna. Duzentos contos naquela época, era dinheiro
a dar com o pé. Como no lugarejo em que vivessem não houvesse banco, ela resolveu guardar a fortuna num
baú enquanto esperava a ocasião de ir à cidade depositar a fortuna em lugar seguro. Passados meses,
conseguiu tempo para viajar. Preparou tudo e dirigiu-se ao baú para recolher a fortuna. Mas lá... não
encontrou um só tostão. O filho, rapaz estroina e irresponsável, dera um jeito de abrir o baú fazendo-lhe um
buraco no fundo, e dali fora sorrateiramente extraindo o dinheiro. Essa pobre senhora tinha oito filhos, dos
quais este era justamente o mais velho, que conseguira gastar mais de duzentos contos em menos de um ano.

TIO-AVO MAROTA

Uma de minhas tias-avós ficou viúva e, tendo-lhe também morrido a filha casada, passou a viver com
seus três netos. Trabalhavam muitíssimo pois além destes três netos tinha ainda cinco filhos pequenos. O
genro, quase não a ajudava, revelando-se ao contrário um boa-vida. O arrimo com o qual ela realmente
contava era o de uns compadres ricos que lhe tinham muita amizade e pena.
A despeito de todo o sofrimento, essa tia era sempre muito brincalhona, jamais tendo sabido resistir a
seu espirito trocista.
Vejamos o resultado de uma destas brincadeiras:
Um belo domingo, o compadre foi almoçar com ela porque sua mulher fora fazer uma visita que não lhe
agradava. Depois do almoço, sentindo-se ele cansado, deitou-se a uma rede da varanda onde ferrou no sono.
Minha tia, lidando com as crianças, atendeu a uma delas, justamente o menino que era afilhado deste
homem. Enquanto o menino estava sentado no pinico, ocorreu a minha tia uma diabólica travessura! E se
bem pensou, melhor o fez: molhando a pontinha de um palito nas fezes da criança que terminara o serviço,
dirigiu-se a rede onde dormia o compadre e, muito de mansinho, passou-o sobre os vastos bigodes do senhor
adormecido.
Pouco depois ele acordava e punha-se a conversar. Mas a cada instante estacava ele no meio da conversa
e exclamava: “Hum! Comadre, você não está sentindo um cheiro horrível?!” e logo depois: “Mas está
terrível! Comadre, como é possível que só eu sinta este mau cheiro?! Devo estar doente, dizem que isso é
fígado...Amanhã mesmo vou ao médico, sem falta!” E ela, muito sonsa, respondia mansamente: “Não
compadre, não estou sentindo cheiro nenhum... “Até que, não mais resistindo, pôs-se a rir. Ele cada vez mais
desconfiado e ela rindo-se até mais não poder. La pelas tantas o compadre acabou tirando suas conclusões!
E, de cara fechada, pôs o chapéu na cabeça, partindo sem se despedir. Também, nunca mais voltou lá nem
sequer a cumprimentou, além de proibir a toda a família de frequentar a casa dela. Titia desolou-se! Mas, a
cada vez que recordava a cena, embora se arrependesse de ter perdido tão bons amigos, desatava a rir
pensando na cara do compadre. E tanto se ria que nos levava a fazer o mesmo.

LEITE DE PEITO

Mas era mesmo incorrigível! De outra vez, a vitima foi um outro velho conhecido da família de seu
marido. Esse senhor visitava-os sempre. Certa ocasião em conversa, declarou à minha tia (que então estava
amamentando um de seus muitos filhos) que não havia nada que lhe inspirasse maior nojo e repugnância que
o leite humano.
Daí a pouco minha tia foi a cozinha fazer café e de lá retornou com uma bandeja com pãezinhos, café e
leite. Ao servi-lo perguntou-lhe se queria café puro ou com leite e ele preferiu com leite. Ele tomou, e
repetiu. Terminada a pequena refeição perguntou-lhe ela; “Gostou do café com leite?” E ele: “Sim estava
muito gostoso! Porque?” “Porque o leite é de peito que o senhor disse que é tão ruim...” O visitante perdeu a
cabeça, empunhou uma garrucha e queria mata-la! Foi um deus nos acuda!
Essa tia, apesar de suas irreverentes brincadeiras, criou os três netos e os cinco filhos educando-os a
todos muito bem. Um desses netos tornou-se jurisconsulto no Rio de Janeiro onde morreu ainda moço. Outro
tornou-se muito bom médico, casado com a filha de um grande republicano.

TIO AVO PATERNO DIAGNOSTICO

Outro tio-avô meu era negociante, mas vivia dizendo que dava mesmo era para medicina. Não fora o pai
ter-lhe contrariado a vocação teria dado, estava certíssimo, um bom médico, etc., etc.
Vivia ele em uma cidadezinha onde era muito estimado e tinha muitos amigos. Um deles, indo visita-lo,
encontrou-o bastante preocupado com o caso de um certo conhecido que o mandara chamar para dar um
diagnóstico e para receitar-lhe alguma coisa a esposa doente. Meu tio acorrera imediatamente ao chamado,
pois em cidade pequena uma pessoa com um certo preparo sempre consegue causar sensação quando lança
mão de algumas palavras empoladas e difíceis.
Chegado o amigo, encontrou-o justamente a receitar algo para o tal doente que nem sequer conhecia a
razão de seu mal. Curioso o amigo indagou-lhe qual seria este... E meu tio-avô, imperturbável lhe responde,
com toda a empáfia: “Trata-se de um caso de séptica globosa, quase granulosa. Se tornar-se escabotética,
então não terá mais remédio!” e acrescentou: “E o pior é que a esposa dele também está com zerbinati
increspolite.”
Este amigo quase sufocou de tanto rir.
Tinha ainda uma verdadeira coleção de tais diagnósticos. Eu mesma sabia vários deles e, quando moça
repetia-os para as minhas colegas de repartição, as quais neles achavam muita graça. Ali a coisa se espalhou
e passou a ser relatada como anedota. Mas o fato é verídico.
O que não posso saber é se o tal doente e sua esposa conseguiram restabelecer-se após a receita.
PROMESSSAS A NOSSA SENHORA

Outro tio meu tinha que viajar para o norte várias vezes ao ano. Como tivesse um terrível medo de viajar
por mar, fazia promessa a Nossa Senhora de que, quando chegasse a terra, haveria de mandar rezar duas
missas, assistindo-as. Depois começou a prometer dez missas de cada vez que chegasse de forma que já se
achava devendo mais de trezentas sem que jamais chegasse o dia de celebrá-las.
Ao ser inquirido sobre as promessas dizia ele: “Nossa Senhora está sempre a espera dessas missas! ...
Mas aqui para nós, não vejo jeito de cumprir tal promessa. Em todo o caso ela sabe que não sou nenhum
mentiroso e que a intenção é que vale...”

O PASSARO NO JOGO

Este tio foi uma das pessoas mais engraçadas e espirituosas que já conheci. Na capital em que morava,
quando se passasse por algum lugar e ali se ouvisse uma estrondosa gargalhada, podia-se contar que ali
estaria ele a contar uma das suas. Gostava imensamente de jogar e contavam que certa vez, achava-se ele a
jogar as quatro horas da madrugada num botequim cujo dono seu parceiro estava completamente nu. E isso
porque, explicava meu tio, o tal homem jogava com muita inteligência mas era danado para roubar. De
forma que meu tio só podia jogar com este homem estando ele nu... Pois bem, apesar disso meu tio assim
mesmo ia perdendo e, sentindo-se profundamente irritado, pediu que lhe vendessem um sabia que ali se
achava a cantar desabaladamente na própria sala de jogo. Pagando duzentos mil réis pelo bichinho,
imediatamente torceu-lhe o pescoço e desembestou a ganhar.
Contava isso meio desapontado mas desculpava-se dizendo: “Mas não era mesmo o sabiá que estava me
dando caguira ?!”
Homem de coração boníssimo, sempre tive a impressão de que sentia grande remorso pela maldade
cometida contra a avezinha quando alguém se referia ao caso tempos depois.

VO RUBENS E OS GALOS

Meu sogro, (que era também meu tio e meu primo) foi coronel do exército. Inteligente, tendo o dom da
palavra fácil, narrador conhecido, após ter passado dois dias e três noites a fazer cálculos matemáticos,
tombou vítima de um ataque cerebral. Desde então passou o resto da vida a usar apenas três palavras: normal
disso, e supremo disso. Com estes três vocábulos assim combinados ou por meio de gestos entendíamos
quase tudo o que ele queria dizer. Mudou-se para o interior e ali dedicava-se a criar pássaros e galinhas.
Fomos visita-lo nas férias e ele nos convidou para ver como era bonita a capoeira. Abrindo a porta do
terreiro gritou para as galinhas: “Normal disso!” E as galinhas começaram a sair vagarosamente uma a uma.
Quando estavam todas fora ele gritou: “Supremo disso!” e todas se foram enfileirando e dirigindo-se para o
quintal e depois para uma picada feita no mato da imensa chácara. E nós seguindo-as. Iam todas ciscar e
beber água num córrego a uns 200 metros de distância da casa. Pois acreditem ou não, era só uma sair da fila
para ciscar fora da faixa da picada e ele logo exclamava: “Normal disso! “ao que elas voltavam todas,
ligeiras, a enfileirar-se de novo, indiferentes às nossas gargalhadas. Chegadas ao córrego e à voz de “Normal
disso” dispersavam-se alegremente bebendo água ou mariscando por ali até que ele gritasse: “Supremo
disso!” Então vinham todas postar-se à sua volta e regressavam em fila. Penso que nunca mais voltarei a ver
coisa igual, nem mesmo em um circo. Quanto aos filhos dele, que eram dez, nunca souberam o que fosse tal
disciplina.

NUMEROS QUADRADOS

Pois esse homem deixou um livro importantíssimo, o “MÉTODO DOS MÍNIMOS QUADRADOS
“ IMPRESSO NA Alemanha porque aqui não se encontrou editor. Certo escritor nosso conhecido e amigo
disse que quando esteve naquele país, andou indagando e perguntando sobre tal livro. Lá disseram que
jamais se pensara que no Brasil houvesse home com tal capacidade de cálculo! Quando os tais livros chegara
da Alemanha, meu sogro já havia falecido de forma que ficaram rolando e se estragaram dentro dos caixotes.
Hoje nem creio que deles exista mais um só exemplar.

DEDO EM RISTE (TOMAS)

Outro tio meu, já morto, foi médico em uma cidade do interior. Tem diversos filhos no Rio e em São
Paulo. O que mais nos impressionava quando crianças, era a força que ele possuía nos dedos. As vezes
cutucava-nos dizendo “Saia do caminho! “ou coisa semelhante. A gente sentia tanta dor que quase chorava!
Uma vez uma tia solteira, morando em casa dele começou a dizer-lhe enquanto varria a casa: “Estou com
vontade de dar-lhe com esta vassoura na cabeça!” E ele, sentado a escrivaninha, lendo, nada dizia enquanto
minha tia insistia: “Estou com tanta vontade de dar-lhe com esta vassoura na cabeça!..” até que não mais se
contendo, deu-lhe mesmo a tal pancada. Ele então levantando-se da escrivaninha sacudiu-lhe o braço e logo
saiu para dizer algo à mulher. Dez minutos depois, com ela retornando à sala deram ambos com a moça a
levantar-se do chão, profundamente pálida, pois a violência da dor a fizera cair em um desmaio do qual
retornava naquele mesmo instante. Ele ficou muito aflito pois não fizera aquilo de propósito.

TIA CAPRICHOSA - DESMEIO

Uma outra tia, esta já casada, estando a passar em casa deles, começou com a mesma besteira: “Estou
com uma vontade danada de lhe jogar este copo na cabeça...” Ele quieto... Subitamente minha tia acabou por
jogar o copo. Foi só o tempo de ele se abaixar e o copo foi espatifar-se de encontro a parede. Ele então
tomando de um garfo que estava à cabeceira da mesa, atirou-o contra ela. Só que o garfo atingiu o alvo e
ficou a balançar-se espetado em seu seio!.
A brincadeira acabou em muito choro, tendo ele ainda que receitar um remédio necessário para o
ferimento. Só o relato destas coisas já me parece incríveis.

OS LONGOS BIGODES

Esse mesmo tio deixou os bigodes crescerem “à Kaiser”, de longuíssimas pontas. Um dia, enquanto o
marido dormia na rede, minha tia cortou-lhe uma pontinha dos bigodes. Uma pontinha que nem chegava a
meio centímetro... Pois bem, ele achou ruim e por isso, indo ao barbeiro, mandou não somente que lhe
raspassem os bigodes como também o cabelo e até as sobrancelhas! Médico muito benquisto na cidade,
aquilo causou enorme espanto e o fato tornou-se assunto geral das conversas durante alguns dias. Quanto à
minha tia... chorou, chorou muito.

CIUMES

Uma vez, sentindo-se enciumado porque um amigo dissera uma graçola a pessoa que ele muito gostava,
montou a cavalo e foi à fazenda deste amigo. Lá chegando e vindo recebe-lo, muito afável e contente, a
esposa do amigo. Ele, na porta mesmo, a agarrou e despegou-lhe valentes beijos! A senhora, de espanto,
desmaiou. Quanto ao amigo, segundo se dizia, andou vários dias à sua procura. O que alias não devia ter
feito com muita convicção visto não ter meu tio saído da cidade nem deixado de ir, diariamente, a seu
consultório.

O GORRO DO MEDICO

Tempos depois, porém, mudou-se de cidade. Um dia, saindo ele da Santa Casa em companhia de um
amigo, este, por distração, saiu com o gorro branco habitualmente usado pelos médicos de hospital.
Tomando um bonde foram até a casa do amigo, conversando acaloradamente. Ao chegarem, a filha daquele
médico ao recebe-los exclamou: “Papai, como é que você veio na rua assim, com esse gorro! “ Ao que ele,
virando-se para meu tio, reclamou: “Mas Dr. F. como é que o senhor me deixou fazer uma coisa dessas sem
me prevenir?!” Ao que meu tio respondeu, com sua habitual tranquilidade: “Ora, pois se eu também nem
sequer notei!”

A VISITA

Além de ser boníssimo e muito bem quisto, era também distraidíssimo, tendo, entre outras
originalidades, a mania de jamais perguntar a ninguém a respeito de informação que necessitasse, quanto a
lugares ou ruas. Certa vez, retornando de uma viagem que fizera ao Ceará, resolveu ir à minha casa nos
visitar. Telefonando-me, avisou que iria ver-nos à tardinha. Nós esperamos até tarde, atrasando o jantar, e
ele, nada! Só nos apareceu por volta de dez horas da noite, dizendo ter ido três vezes da cidade ao Cosme
Velho, sem que houvesse meios de descobrir a rua em que morávamos, só descobrindo da última vez quando
já retornava à cidade. Ao lhe perguntarmos porque não indagara de alguém, respondeu-nos erguendo os
ombros: “Para que?!” Era a calma personificada.

AFOGAMENTO

Também minha tia casada com tal médico era de uma calma a toda a prova. Posso citar vários exemplos
disso: Certa vez, quando passávamos um tempo no Guarujá, ela deu um mergulho e foi emergir muito longe,
tendo caído num beiral, ou arrastada pela correnteza. Não sabendo nadar, mas apenas mergulhar e boiar, nem
por isso se alarmou. Não gritou mas limitou-se apenas a fazer sinal para os filhos pois sentia que cada vez se
afastava mais, arrastada pela correnteza. Estes, que por essa época eram dez, puseram-se a gritas pedindo
socorro. O fato é que tiveram tempo de ir buscar num posto de banhistas bem mais distante, pessoas que
soubessem nadar, as quais acorreram trazendo cordas, enquanto ela continuava sendo arrastada para mais e
mais longe, enquanto via o amontoado de filhos e demais pessoas agrupadas na praia. Não fora a sua
extraordinária presença de espirito e jamais se teria salvo. Ao vê-la sorrir depois que as pessoas que a
socorreram a trouxeram para a praia, um dos homens exclamou: “Puxa! E a senhora ainda consegue rir!
Assim também não! Como é corajosa!”

TIA M – O BANHO

Noutra ocasião estávamos todos tomando banho numa cascatinha que havia no fundo de nossa chácara.
A água caia de uma grande pedra, precipitando-se numa espécie de poço. Pois quando estávamos no melhor
do banho, lá de cima caiu uma cobra que se enrolou em seu pescoço. Demos um enorme grito e ela, foi só o
tempo de pegar a cobra pela cabeça e atira-la no poço. Já estava grávida de uns seis meses e, ao atirar a cobra
no poço perdeu o equilíbrio lá caindo ela também no poço. Enquanto nós fazíamos grande escândalo com
nossos gritos de pavor, era ela que no acalmava dizendo-nos: “Mas que é isso! Porque gritam tanto se não
me aconteceu nada?! Incrível!!

PIANO NA NOITE

Essa tia era aquela mesma que sustentou os irmãos com suas aulas de piano. Tinha 12 filhos, de maneira
que jamais encontrava tempo para poder estudar durante o dia. À noite, porém, depois de os filhos todos já
estarem dormindo, sentava-se ao piano, às vezes muito depois da meia noite, e tocava, e praticava até as duas
ou três da manhã. Um famoso poeta brasileiros, de quem eram muito amigos, costumava dizer: “Não há
divertimento no mundo que eu deseje trocar pelo ouvir Dona F. tocando piano de pois da meia noite!” As
duas famílias eram vizinhas. E note-se que esta minha tia, habitualmente, às seis da manhã já estava de pé!

OUTRA TIA – QUE QUEIRA BEM


Minha tia e sogra era lindíssima, e bastante infantil, quando se casou. Já com dois filhos,
respectivamente de dois e três anos, por qualquer motivo lhes dizia: “Ah, é assim? Pois não gosto mais de
você!” Saí começava uma gritaria informal. Eles a andarem atrás dela pedindo: “Me queira bem, Mamãe!
Me queira bem!” E ela|: “Não quero! Não quero! Não quero!” Levavam horas e hora nesse berreiro, até que
um se desse por vencido, ou então que alguém da família interviesse em favor das crianças, para não
enlouquecer com o infindável diálogo. Isso porém só aconteceu com os primeiros filhos. Apesar de tudo ela
era mãe extremosa, com os 8 filhos que teve. Meu marido foi um desses dois primeiros do “me queira bem!”

INCRIVEL PARTO
Aqui no Rio, estando ela grávida do 8º filho, e sentindo-se bem mal, teve que recorrer a um médico que
constatou, além da gravidez, estava ela com um fibroma em cada ovário. Quiseram tirar a criança mas ela
não permitiu. Levada a termo a gravidez, ela deu à luz uma criança de três quilos e de cada ovário lhe foi
extirpado um tumor respectivamente de onze e cinco quilos. Total: 19 quilos! Incrível!!
TIA ALICE
Uma outra tia casou-se com um fazendeiro. Foi um caso de amor à primeira vista. Ele porém, grande e
inveterado jogador, logo no terceiro dia da lua de mel só apareceu em casa pela manhã. Pois essa minha tia
chorava a noite toda, dizendo que nunca mais falaria com marido, que não iria mais se importar, que ia
deixa-lo morrer tuberculoso, etc., etc. (porque ele já tinha tido várias hemoptises). Declarava até mesmo que
ia se divorciar, e mais isso e mais aquilo.
Lembro-me de ter sido eu, várias vezes, a pessoa escalada para lhe fazer companhia nas noites de
solidão. E recordo quanto achava bom tudo o que ela declarava que ia fazer, de represália.
Mas era só ela botar a chave na fechadura, lá para as cinco ou seis horas da manhã, e ela logo se
levantava indo recebe-lo dizendo: “Mas F., meu filhinho, meu bem, a essas horas! Espere que vou lhe
prepara uma coisinha quente, um mingau para você, pois não é possível você passar tanto tempo em pé sem
se alimentar direito!” ... e uma porção de outras coisas no mesmo teor. A ponto de u voltar para casa enjoada
de ver uma pessoa tão boa para com um marido dessa espécie.
O fato é que esse homem não só se curou completamente como também deixou de jogar e (coisa bem
rara!) acabou por reconhecer a bondade infinita daquela criatura. Hoje eu também concordo que ela é que
tinha razão, pois não só conseguiu, com sua paciência, salvar o homem que até já estava meio condenado
pelos médicos como também torná-lo um homem forte, sadio e cumpridor de seus deveres, além de ótimo
pai. Ambos já estão mortos.....

TIA AURELIA – A ROSA

Esta agora é uma tia paterna. Casada. Teve um filho e, vinte anos depois, uma filha. Com 14 anos o filho
afastou-se de casa e partiu para o norte, onde constituiu família. Escreviam-se duas ou ter vezes por semana.
Anos depois tendo ela guardado todos os envelopes das cartas dele, mandou, com eles, forrar o próprio
quarto. Mulher inteligente e culta, profundamente fantasista. Quando gostava de alguém, era de um exagero
a toda prova.
Não sendo rica um dia enviou, como presente de aniversário a uma amiga, uma linda rosa cujo cabo ia
muito bem enrolado m papel de seda. Enrolada nesse papel achava-se uma nota de 200 mil réis! A amiga
porém, retirando o papel, nem sequer notou a cédula e lançou-a ao lixo, de mistura com o papel. Só muito
mais tarde é que veio a saber do grande e verdadeiro presente que se ocultava na rosa.

RIO ARTHUR - ALEMANHA


Tio, escritor, naquele tempo repórter do Jornal do Comércio. Ouvindo a história de uma doidivana,
alemã teve-lhe tanta pena que... resolveu leva-la de volta à partia querida. ... Para tal foi pedir a irmã dois
contos e setecentos, pois necessitava de três contos para a viajem e só possuía, de seu, trezentos mil réis....
tanto pediu que conseguiu completar a quantia. Levou a alemã para a terra dela mas, passados nove meses,
escreve-lhe a moça para dizer-lhe que...ele era pai. Como homenagem pusera o nome dele no filho. Mas
acontece que o nome não era o dele e sim de meu avô!
TIA EPONINA – O REMEDIO
Essa irmã que lhe emprestara o dinheiro, casara-se muito bem aqui no Rio de Janeiro. Seis anos depois,
porém morreu-lhe o marido de febre tifoide. Um médico amigo já conseguira pô-lo bom e fora de perigo. Já
ia ele até começar a trabalhar, quando o referido médico disse-lhe que só faltava ministrar-lhe um remedinho
, para acabar com os últimos resquícios da moléstia. E receitou-lhe um purgante, remédio antiquíssimo,
chamado “Vilas-Cabras”. No dia seguinte o marido de minha tia estava morto!

O INGLES
Viúva ela casou-se pela segunda vez, com um inglês que diziam muito rico, o que, por sua vez, ouvira
dizer dela a mesma coisa. Poucos dias depois do casamento, ele fez com que ela assinasse permissão de
venda de uma casa para pagar as despesas tidas com a festa de casamento e, apesar de terem se casado com
separação de bens, Ele lhe foi tirando tudo o que ela possuía. Por fim, largou-a e foi morar nos Estados
Unidos. Ela, coitada, passou a viver da caridade de alguns parentes, de amigos e, principalmente, de um dos
irmãos. Passou vinte anos sem poder andar por ter quebrado uma perna, que foi mal encanada. Esta também
já morreu!!

O BOTAO DO COLETE

Esta história é de uma prima-irmã. Gostava muito de um rapaz, um médico, preparado, inteligente, etc.
Conversavam muito e todos achavam que aquilo fosse dar em casamento. Um dia fomos convidados a jantar
na casa dele. Foi muito agradável, com boa conversa, boa comida etc. Mas ele, ainda à mesa, teve a
infelicidade de, disfarçadamente, desabotoar dois botões do colete. Desde então ela perdeu todo o interesse
pelo rapaz, dizendo que nunca vira uma pessoa gostar tanto de outra e comer tanto a ponto de desabotoar os
botões do colete.

TIA ISAURA E OS ANJINHOS


Uma das minhas tias paternas, pessoa muito inteligente e de boa prosa, não gostava nada de crianças. A
tal ponto que, havendo crianças por perto ela se sentia disposta a duas coisas: A cair num inquebrantável
silêncio, ou então (o que preferia) ir-se embora. Gostava de dizes:” Deus me livre de ir para o céu!” e ao lhe
indagarem a razão de tal frase, lá explicava: “Tem tanto anjinho!!!...”

TUTU.... PROSAICO
Mas, voltemos àquela prima irmã; Agradou-se de um rapaz muito simpático, de boa família, gente-bem,
como diria i Ibrahim... Foram a um piquenique onde, ao perguntarem ao rapaz o que desejava comer,
respondeu ele: “Quero tutu...!”. Foi a conta: desinteressou-se por completo do moço. Mais tarde, no entanto,
muito mais tarde, casou-se com um velho, com quem aliás viveu muito bem, mas eu, pensando naquela velha
história, não sei... pareceu-me tão mais prosaico...!

POMPILIO
No entanto, só mesmo eu poderia compreender bem aquelas atitudes dessa prima, em sua
juventude pois eu também gostei de um rapaz forte, bonitão, o qual tinha até um automóvel (num
tempo em que ter automóvel era bem mais raro e de importância bem mais capital...). Como não
lhe sabia o nome, chamava-o de Príncipe! Quando chegava em casa tendo-o visto, dizia á minha
mãe, entusiasmadíssima: “Hoje estou feliz! Vi o Príncipe!”. Certo dia ia passando pela avenida
Rio Branco, em companhia de uma amiga, quando ele, parando, cumprimentou-a, pois ambos se
conheciam. E então veio a apresentação: “G. est aqui é um amigo nosso o...Pompilio!’ Foi o
mesmo que água na fervura! Nunca mais quis saber de ver nem de ouvir falar no tal Príncipe.
Nem de longe! Com esse nome? Credo.

PRIMO INTELIGENTE
Um outro primo, profundamente inteligente, era tido como louco porque, morando em um lugar em que
nem sequer havia escola, tinha mania de estudar e sabia muitas línguas, especialmente latim. Um dia
resolveu escrever a todos os parentes que morassem em cidades grandes, a fim de pedir-lhes que lhe
enviassem uma gramática grega, visto não haver encontrado um só exemplar de tal livro, na capital do
Estado em que vivia..
Minha mãe que estava aqui no Rio encontrou uma, bastante deficiente, mas assim mesmo apressou-se
em envia-la. Pouco depois recebia ela uma carta de agradecimento, já toda redigida em Grego.
Sua memória extraordinária fazia o divertimento de seus amigos que viviam pondo-a a prova.
Enquanto ele escutava, liam-lhe duas ou três páginas de um livro qualquer, até que ele dissesse: “Chega!”
e então passavam a acompanhar a repetição integral do texto que ele fazia oralmente, sem hesitar, tim tim
por tim tim sem que faltasse uma só vírgula! Incrível!

A FOLHINHA ERRADA
Minha mãe, que gostava muito de tais provas, costumava perguntar-lhe em que dia cairia uma
determinada data, bem distante, por ela escolhida no momento. Exemplo: "Em que dia vai cair a segunda
quinta-feira do mês de novembro de tal ano?” Ele sempre respondia com absoluta precisão. Certa vez
porém, tendo ela nas mãos uma folhinha do ano de 1878, fez-lhe tal pergunta e ele respondeu, no mesmo
instante. Ela porém comunicou-lhe que ele estava errado, ao que retrucou ele: “É a folhinha que está
errada!” Foram verificar e, realmente, houvera um erro na folhinha! O homem era mesmo um prodígio!!

SERMOES
Também um irmão desse primo tinha uma memória igualmente prodigiosa. Naquele tempo, quando
os padres apareciam por aquelas cidades, em missões, costumavam reza hinos imensos! Mas este,
bastava que ouvisse uma única vez para que os gravasse todinhos de cor. Certa vez aconteceu que, tendo
os padres cantado um hino com umas cinquenta estrofes, repetiu-o integralmente sem falhar nenhuma,
naquela mesma igreja que costumava frequentar.

PREGUIÇA
Esse, porém, era realmente maluco, ...De vez enquanto dizia-se atacado pela preguiça à qual era-lhe
impossível vencer. E onde lhe viesse esse ataque, ali ficava, sem que houvesse meios de arranca-lo do
ensimesmamento em que caía. Um dia, como minha mãe lhe pedisses para comprar-lhe algo, ali pertinho,
na venda, ele consentiu, embora indagando: “Mas...e se me der a preguiça? Que faço?” Mamãe afirmou-
lhe que não dava não, etc. e lá se foi ele. Já de retorno, porém, cheio de embrulhos, sentou-se ele na
calçada, já pertinho de casa e só teve tempo de gritar: “F...! Lá me deu a preguiça!” E embora chovesse a
cântaros, minha mãe teve que ir tomar-lhe os embrulhos, antes que as compras ficassem encharcadas.
Pois dali ele não se arredou, apesar do aguaceiro.

*******
Meu Pai, homem culto de rara inteligência e (sem corujismo) muito bonito, pois o que digo agora
sempre foi confirmado por quanto o conheceram, é dono de inúmeras incríveis.
Uma delas foi a de ter-se apaixonado por uma menina de apenas nove anos! Minha mãe!. Entrando
ela na sala de visitas para transmitir um recado para o Vovô, vinha dançando e cantando com um cravo na
mão. Meu pai, que fora falar com quem era seu professor do Liceu esqueceu-se a contempla-la. Ela
encabulou, pois ignorava que houvesse visitas na sala. Desde então papai não pensou em outra pessoa!
Tinha então 19 anos. Saía de casa à escondidas, pulando a janela após a meia noite, só para passar em
frente da casa onde ela morava, na esperança de poder dar-lhe, de longe, um adeusinho! E muitas vezes
esse adeus nem sequer era visto pela namorada e sim por uma de suas irmãs, que por ela ficava de vigia,
só para tal fim! Em vista da oposição dos pais, que achavam aquilo um absurdo, pois queriam que ele
estudasse, ele foi para o Recife. De lá, mandava `menina cartas de 45 folhas de papel almaço, cobertas
dos dois lados por uma letra caprichada e miúda. Verdadeiro romance!
Alá, quando mamãe morreu, nós, atendendo-lhe a um insistente pedido, colocamos sob sua cabeça
todas essas cartas...

*******

Uma de suas incríveis consistiu no fato de jamais ter pegado em qualquer instrumento de música que
não soubesse tocar, assim é que mesmo sem aprender, sabia tocar violão, piano, bandolim, flauta, etc. Um
privilegiado! Aprendeu música a fundo sem nunca ter tido um único professor.

*******
Estando meio alegre em uma festa, pegou um por um dos instrumentos da banda e não deixou de tocar
algo em cada um deles, inclusive no bumbo. Doutra feita, aparecendo na cidade um homem que fazia
prodígios tocando num dedal, meu pai, homem muito conhecido na terra, pediu licença ao tal homem para
experimentar se tocaria algo. O resultado é que, para desaponto do sujeito, tocou melhor que aquele... foi
uma risadaria geral.

*******
Aqui no Rio encontrávamos muitas vezes com um grande amigo dele, emérito tocador de violão,
apreciadíssimo pelo nosso grande Villa-Lobos. Esse artista, que na época era bastante conhecido e popular,
sabia, de ouvido, algumas composições de meu pai e também uma série de acordes especiais. Quando esse
amigo, já velho, tomava do violão para tocar tais acordes, chorava tanto que as lágrimas escorriam, violão
abaixo...E nós (tias, primas, minha mãe, eu, e até mesmo pessoas que não conheceram papai) chorávamos
também, e ele tinha que parar de tocar. Esse violonista nunca conseguiu tocar outra coisa em minha casa,
embora soubéssemos o grande virtuose que ele era. Quanto a mim ainda toco algumas das composições
humorísticas de meu pai, dentre as quais me recordo “Marido e Mulher” e “A risada do Mauricio!, um
rapaz de quem ele teve ciúmes. Essa ´última ele compôs unicamente para aperrear minha mãe, que acabava
por chorar quando ele tocava. Mas como naquele tempo não se conheciam esses fáceis processos de
impressão ou grã vacão de músicas, tudo se perdeu...

*******
Depois de casado tornou-se mulherengo. Bonito, inteligente e admirado, tinha verdadeira chusma de
mulheres atrás dele. Pintava o sete, mas quando minha mãe se queixava, dizia-lhe: “Porque você se
importa? Não sabe que é a única coisa que existe, para mim? Deixe que eu me divirta! Amo-a muito, para
que você se dê ao trabalho de ter ciúmes!” E ela, acreditando piamente, chegava ao ponto de, às vezes, até
ajudá-lo em algum namoro!...

*******

Residiram em vários municípios (num dos quais eu nasci). Mais tarde viemos para o sul para uma cidade
da qual ele se tornou juiz. Apesar de satisfeitíssimo com sua melhoria de posição, não chegou a desfruta-la
integralmente. Em dia de intenso frio, pediu à minha mãe que lhe trouxesse um cálice de vinho do Porto,
enquanto calçava suas meias de lã, pois tinha reunião do júri. Eram onze horas da manhã.
Ela dirigiu-se à sala, onde também tomou um cálice do gostoso vinho e retornou após tê-lo enchido de
novo para o marido. De volta ao quarto encontrou-o caído de bruços na cama. Como ele costumava brincar
com ela, mamãe, que sempre ficava aflita com a brincadeira, nunca o demonstrava. Por isso, sacudiu-o e
disse-lhe: “Deixe de brincadeira e tome o seu vinho.!” Desta vez porém a tragédia consumara-se. Papai
sofrera uma apoplexia fulminante, tendo morrido enquanto ela fora buscar lhe o vinho! O médico que
morava perto, ao chegar 5 minutos depois, tirou-lhe a ultimas esperanças. Papai morreu extremamente moço,
com apenas 33 anos deixando mamãe com 22 anos e cinco filhos pequenos!

*******
Fora enormemente benquisto, inclusive pelos presos, com quem gostava de conversar e aos quais,
morando perto da cadeia, mandava distribuir café com pão e as vezes até almoço. Quando saiu o enterro, os
presos, agarrados às grades, choravam dizendo: “Vai-se em borá o nosso pai!”

*******

Quanto à minha mãe, seu desespero foi tão grande que muitos temiam pela vida dela. Reunindo os filhos
mais velhos, transtornada como estava, expressou sua revolta declarando que preferia ter perdido os cinco
filhos a perdê-lo! Coitada, sempre foi boa mãe mas a tragédia cegava-a a qualquer outro amor. Além de
viúva, achava-se sem recurso algum. O incrível nisso tudo é que meu pai, ainda na véspera, submetera-se a
todas as exigências requeridas para um bom seguro faltando-lhe apenas apor a sua assinatura ao contrato,
Dez minutos após a sua morte chegava o agente para que ele assim o fizesse. Vendo aquela desolação na
casa, debruçou-se ele na janela e chorava como um menino, recriminando-se por não ter vindo antes...
*******

O desgosto de minha mãe foi a coisa mais incrível que se possa imaginar! Trancou-se num quarto e
depois soubemos que só não se suicidou por nossa causa. Estava amamentando meu irmão mais moço. Mas
esqueceu-o por completo e ele acabou sendo levado para a casa de um casal de amigos, sem filhos, o qual
passou a cuida-lo com todo o luxo. Somente uns três meses após a morte de papai é que mamãe perguntou
pelo filho pequeno.. E por mais que o casal implorasse permissão para adota-lo, ela não consentiu.

*******

Continuou ainda por muitos meses encerrada no quarto. Só saindo para o imprescindível, sem dirigir a
palavra a ninguém, e muito menos a nós. Mas acabou por reagir, apercebendo-se aos poucos que estávamos
ao “Deus-Dará”, tendo por guarda apenas uma preta velha, sustentados por uma tia cujo marido, recém-
chegado ao lugar, ganhava muito pouco.

*******
Moça, habilidosa, culta e educada, enxergando mais longe que as mulheres de sua idade, naquele tempo,
decidiu a principio ensinar costura, coisa que naquele tempo rendia muito pouco, depois ensinou música,
dança, canto... mas nada disso era suficiente par nosso sustento. Afinal, lecionando as matérias de liceu, ou
mesmo de curso primário, conseguiu alguma coisa. Até que a Câmara, por intermédio de pessoas influente,
contratou-a como professora para lecionar no município. Mas aquilo rendia tão pouco que nós passávamos
fome, enquanto ela emagrecia a olhos vistos. Por causa disso o médico ordenou-lhe que comesse manteiga e
ela viu-se obrigada a comprar 250 gramas de manteiga... por mês! No principio do mês, ela passava um
pouquinho de manteiga em nosso pão, pelo que ficávamos radiantes. Mas do dia 15 em diante, ficava só para
ela, que jamais se habituara a comer pão puro, preferindo não comê-lo pelo que se sentia mal.... Ao fim do
mês, novo banquete de manteiga para nós quando nos dava a raspar os restos da lata...

*******
Lembro-me que certa vez meu tio médico chegando `nossa casa na hora do café e vendo-nos passar o pão na lata,
ficou indignado e ...cuspiu dentro da lata, estragando assim aquela manteiga que ainda daria para três vezes. Mais tarde,
enviou-lhe outra lata, causando-nos enorme alegria.
Lembro-me também que a coisa que mais desejávamos era termos a possiblidade de comer pão à vontade.
Mamãe acordava bem cedinho e a primeira coisa que fazia era dividir o pão de uns 30-35 cm em seis pedaços
exatamente iguais, um para cada um de nós. Quanto a nós, a primeira coisa que fazíamos era correr à mesa para medir
os pedaços e... escolher o maior. Com o café e o leite, era a mesma coisa. Nossa principal preocupação era escolher a
caneca maior, apesar de não haver repetição, pois era um litro para cinco crianças.

*******
Um dia, estando mamãe na farmácia, onde fora comprar um remédio, o ajudante do farmacêutico deixou
cair no chão um pequeno vidro de minúsculas pílulas brancas. O farmacêutico, aflitíssimo, exigiu que todas
aquelas pílulas fossem contadas para ver se não faltava nenhuma. Tratava-se de cianureto. Mamãe até pediu
para seu E. que lhe vendesse uma. Inquirida sobre as razões de tal pedido, disse-lhe ela que se um dia se
visse na total impossibilidade de sustentar os filhos, preferiria dar-lhes o veneno no leite, para que
morressem todos junto com ela. A conversa prosseguiu, mudando de rumo logo depois. Mamãe nem se
apercebeu do espanto e do medo que se apoderava de minha irmã mais velha, pouco menos criança que nós a
qual a acompanhara farmácia e, desapercebida, ouvira toda a conversa.

*******
Meses depois, tendo mamãe apenas dois mil réis por toda a fortuna, sem quaisquer perspectivas de
ganhar mais, resolveu dar uma alegria aos filhos. Mandou comprar grande fartura de pão, leite e de manteiga,
gastando nisso tudo o que tinha. Depois, arrumando a mesa, chamou os filhos dizendo-lhes que comessem à
vontade, tudo o que quisessem. O regozijo e a algazarra foram enormes, mas só até o instante em que minha
irmã mais velha, de olhos arregalados e pálida de susto repeliu a xícara de leite e o pedaço de pão que já
haviam sido servidos e afastando-se da mesa recusou-se terminantemente a comer o que quer que fosse.
Mamãe a insistir e ela a recusar, até que nós todos nós fomos afastando da mesa, muito
ressabiados...Subitamente, mamãe, olhando-nos pôs-se a rir, a rir e depois a chorar!. E minha irmã também e
nós sem mesmo saber o porquê. Então mamãe, tomando a mão de minha irmã, levou-a ao quarto de onde
logo voltaram, minha irmã já então radiante, trazendo na mão uma caixinha com uma pequena pílula
branca....
Acompanhada de todos nós, dirigiu-se para o fundo do quintal, onde, todos juntos, enterramos
solenemente a terrível e ameaçadora cápsula de cianureto. Com isso também enterrávamos a espantosa
suspeita de minha irmã. Porque, a despeito das aparências, a cápsula permanecia intacta em sua caixinha,
quando fora servido o banquete.
Somente então nós atacamos valentemente a fartura de pão, leite e manteiga, tudo ainda intacto sobre a
mesa.
Quanto `minha mãe, chorando trancou-se no quarto onde permaneceu por dias e dias, sem querer ver
ninguém

*******

Nós lhe respeitávamos muito esses refúgios de tristeza. Andávamos pela casa sem fazer o menor rumor
só íamos procura-la para o indispensável. Em tais ocasiões ela oscilava entre crises de choro e crises de riso.
Foi uma crise de riso que desta vez a levou a abandonar o quarto. Meu irmão mais moço estava a brincar lá
fora e nas suas folias levou um tombo que lhe escalavrou nas canelas. Estava mamãe na rede quendo0 ele
entrou de mansinho no quarto, gemendo baixinho para pedir-lhe auxílio. Ela, com os olhos inchados de
tanto chorar, na rede ficou, mas lhe indagou como fora o tombo. A certo ponto ela lhe indagou: “Mas Dona
F. não estava ali perto? O que é que ela fez?”
E meu irmão ainda choramingando respondeu: “Ela neeeemmmm!!!!!....”. com uma vozinha muito fina
e aguda. Aí mamãe começou a rir, a rir, a rir... Levantou-se e foi tratar do menino. Mas durante muito tempo
tínhamos todo o cuidado em evitar que ela o visse porque a cada vez... lá vinha novo acesso de riso!!

*******
Esse meu irmão, em viajem ao norte teve uma febre que em cinco dia o levou. Tinha ele 19 anos quando
morreu. Era um rapaz lindo, com imensos olhos azuis. Quando os ´médicos atinaram com o diagnóstico, já
nada puderam fazer para salva-lo. Era Febre Amarela..

*******

Logo após a morte de meu pai, os habitantes da cidade em que vivíamos, fizeram uma subscrição e compraram par
nós uma pequena chácara. Foi grandioso! Infelizmente porém ali permanecemos por pouco tempo. Nada se podia
plantar ou criar ali. Sabendo que não havia homens ali, mas apenas cinco crianças e sua mãe, nos roubavam tudo! Até
vasos de planta, até uma vaca que um dos fazendeiros havia dado de presente `minha irmã! Essa chácara era um pouco
distante da cidade e nós ali permanecemos por uns seis meses, enquanto minha mãe ali se deixava estar indiferente a
tudo, a não ser ao chorar a morte de papai.

*******
Afinal, depois de muitos vexames e desgostos, tivemos que sair de lá, após uma noite de aflição em que
começaram a experimentar as portas da casa, uma por uma. Minha mãe indagava quem era, oque queriam, e
vozes respondiam que queriam entrar. Desesperados, nós e aquela empregada velha que tomava conta de
nós, pusemos a boca no mundo, a gritar por um tal Seu Duque, que morava ali perto o qual, por mero acaso
ouviu-nos os gritos e acorreu, armado e acompanhado por várias outras pessoas. Deram busca nos arredores
da casa mas só descobriram vestígios. Jamais conseguiram identificar os assaltantes. Por isso no mudamos
daquela chácara que fazia a alegria de nossos dias e o terror de nossas noites, a qual deixamos alugada por
uma insignificância.

*******
Dificilmente se encontrará pelo mundo alguém que tenha chorado tanto quanto minha mãe. Nunca
vimos passar um dia em que ela não chorasse. O mais interessante porém, é que só nós sabíamos disso...pois
ela não chorava na frente de mais ninguém.
No entanto era engraçada e espirituosa. Nunca contou a mesma anedota do mesmo modo, de forma que
nós, crianças, tudo fazíamos para ouvi-la contar uma história duas, três e mais vezes, porque muito
admirávamos o espírito de inventiva que a levava a modifica-las a cada vez. Mais tarde, quando se fez
professora de grupo escolar, nossos colegas faziam o mesmo que nós.

*******
Durante mais de dez anos guardou luto, mas não um luto comum sim um todo seu. Tinha um imenso
chalé preto que usava por cima do vestido também preto, nele se envolvendo inteiramente. Por isso
chamavam-na "A Defunta" e ela muito se orgulhava de tal apelido. Quando ouvíamos alguém dizer: "Lá vem
a Defunta!”, entristecíamos, pois era como se ela já estivesse morta ou já fosse morrer...

*******
Passados mais d dez anos, conseguimos que ela pusesse um vestido preto porém crivado de minúsculas
pintinhas brancas. Mas ela chorava tanto que quase desistimos! De outra vez, após insistirmos muito para
que ela nos levasse a umas famosas touradas ela, muito a contragosto acabou por consentir em levar-nos,
para nos dar uma satisfação. E agora, eis mais uma incrível: O toureiro principal, ao vê-la assim envolta
naquele imenso chalé preto por ela se apaixonou a ponto de no dia seguinte enviar alguém para ... pedi-la em
casamento. Mulher espirituosa, teve ela um verdadeiro acesso de riso... mas nunca mais quis saber de
acompanhar os filhos a divertimento algum. Nesse dia ela passou a noite chorando.

*******
Depois de longos anos de luta para ganhar –nos o sustento, pessoas amigas conseguiram, com o
presidente da Câmara, que lhe fosse aumentado o salário. Até muito pouco tempo atrás eu jamais ouvira falar
no que era o método analítico. Mas constatei que n´s mesmos aprendemos a ler por esse método, que era o
dela...Aluno de mamãe não sabia soletrar, mas logo aprendia a ler. Ela lecionava numa sala enorme, cheia de
alunos que não paravam um só instante sentados! Aproximando-nos dela perguntávamos: “Que é isso?” E
ela explicando-nos o que escrevera na lousa, dizia: “QUEM VEM LÁ?”. Nós comtemplávamos as palavras
que não conhecíamos. E o mesmo processo continuava: “E isso?” explicando ela: “É MEU PAI!!” e a
seguir: “DEU NO BOI”, “NÃO FEZ BEM”, “EU CÃO JÁ VAI”.... Assim é que chegávamos ao fim do livro
sabendo ler, sem ter dificuldades e sem termos sidos obrigados a soletrar. Penso que a palavra mágica por ela
invariavelmente repetida a cada nova sentença: “Prestem atenção! ...QUEM VEM LÁ. Prestem atenção! É
MEU PAI. Prestem atenção! DEU NO BOI. Prestem atenção! NÃO FEZ BEM. Prestem atenção! SEU CÃO
JÁ VAI...
Hoje em dia se me perguntam a ordem das letras no alfabeto, ainda hesito em pensar qual a letra que
vem antes do J, ou antes do G por exemplo, o que constantemente dá motivos a boas risadas.

*******
O resultado de tal método foi que a ela acorreu verdadeiro aluvião de alunos, o que deu motivo a muito
despeito por parte de outros professores...
Além de todo o trabalho com todos aqueles alunos, promovia ainda festas de encerramento de aulas,
durante as quais as crianças dançavam, cantavam e representavam pequenos “sketches” num palco
improvisado por ela e por minha tia que para lá mandava levar o piano que ela tocava muito bem. Numa
dessas festas eu mesma, uma garotinha de seus sete para oito anos, fui chamada ao palco dez vezes, para
repetir uma cançoneta que eu cantava em francês! Das ultimas vezes eu, que representava um papel de um
fanático de vinhos, já vinha quase carregada, já bêbada, mas de sono, chorando pois não queria mais cantar.
O povo porém ria porque pensava que eu ainda estava representando.

*******
Por economia a Câmara teve que suprimir vás escolas. E como a da mamãe fosse a mais recente, foi
também a primeira a se suprimida, à despeito dos protestos dos habitantes do município.
Assim é que minha mãe, de uma hora para outra viu-se novamente sem nada.! Como muito se falava do
adiantamento de São Paulo, no setor de educação, mamãe resolveu tentar a sorte e mudar-se para lá. Assim é
que deixamos a cidadezinha no sul de Minas onde até então vivêramos. Eu, que era a filha do meio, tinha 8
anos. Acima de mim tinha duas irmãs mais velhas e abaixo de mim dois irmãos mais moços. Saímos todos
de carro de boi, junto com uma tia essa que era casada com um médico o qual fora convidado para ir clinicar
em outro município.. Éramos ao todo 12 pessoas. Dez crianças e duas mulheres a dirigirem-se para a tal
cidade que se achava a umas 14 ou 15 léguas. Viajem exaustiva mas que iniciávamos satisfeitos. Já `noite,
depois de umas 8 horas de carro de boi, fomos pedir pousada a uma fazenda mais abandonada pois ali não se
divisava sinal de vida. Depois de muito batermos à porta da casa, surgiu um casal de velhos que, declarando-
nos nada haver ali para comer, pediu-nos que acendêssemos fogão. Nem lenha se encontrou. Depois de nos
lançarmos ao quintal em busca de lenha, conseguiu-se esquentar um pouco de arroz que levávamos. E nós
estávamos tão esfomeados que comemos tudo o que leváramos: pão duro, linguiça, uns restos de tutu de
feijão, bananas, tudo.
Incrível porém é que mamãe e titia haviam convidado para comer os donos da casa. Tendo-se sentado à
mesa conosco, eles devoraram avidamente tudo que de nosso farnel lhes foi servido. Mas, terminada a
refeição, ainda nos pediram desculpas pelo fato da comida ter sido tão escassa.
Mais tarde viemos a saber que aquele casal de velhos era um par de avarentos famoso e riquíssimos, e
que a fazenda vivia ao abandono porque eles se negavam a pagar empregados...

*******
Passamos 4 dias viajando, a dormir onde podíamos onde houvesse lugar para arranchar. Ao chegarmos,
com grande tristeza nos despedimos do carreiro que nos lavara sem nada cobrar, pois todos os seus filhos
haviam sido alunos de mamãe.! O bom homem nos abraçava a chorar, muito emocionado.

*******
A casa já havia sido alugada previamente, por pessoa conhecida que para lá viajara com esse encargo.
Ali permanecemos por mais ou menos um mês antes que mamãe conseguisse qualquer espécie de trabalho
ou emprego. Ela porém já havia juntado pequena quantia, com aulas extras, de canto e piano, justamente
prevendo aquela hipótese. Enquanto nada se conseguia, lá continuava mamãe a chorar, como sempre.

*******
Foi por esta ocasião que aconteceu o incidente do cianureto que antes relatei.
À noite deste mesmo dia em que minha mãe liquidara os seus últimos tostões, meu irmão foi passear na
estação como era hábito de gente jovem nas cidadezinhas do interior. Com sete anos muito prosa e bem
falante viu dois velhos conversando. Ouvindo-os, ficou informado de que um deles, se dirigira àquela cidade
em busca de uma professora para suas filhas, mas que tudo falhara, vendo-se ele obrigado a retornar sem
sucesso para a sua fazenda, distante dois dias dali,. Meu irmão então, aproximando-se pediu licença e
informou-o de que minha mãe era professora e estava procurando onde lecionar, porque a escola fora
suprimida, etc., etc. O velho então tomou-lhe a mão dizendo-lhe: “Pois menino, vamos lá falar com sua
mãe!” Chegando `nossa casa. Pôs-se a conversar, satisfeito com as informações resolveu contrata-la, apesar
de seus cinco filhos, que ele também se dispôs a abrigar na fazenda. No dia seguinte embarcamos todos. Era
a nossa primeira viagem de trem.

*******

O velho era casado com uma mulher feia e muito irritável. Tinha nove filhas, todas criadas com muito
luxo, muito mimadas. Embora tivéssemos sido recebidos relativamente bem, em breve a mulher do
fazendeiro começou a achar que éramos muita gente e resolveu que fossemos morar no arraial ali perto
porque, dizia ela, assim minha mãe poderia também ensinar aos filhos dos outros fazendeiros da redondeza,
os quais lhe pagariam bem. A casa foi alugada no arraial, e para lá partimos todos, acompanhados pelas seis
filhas mais velhas do casal.

*******
Esse velho fazendeiro não era lá muito benquisto pois diziam que era muito mau e até mesmo cruel com
os colonos. A primeira condição imposta à mamãe foi de que ela não fizesse amizade com o irmão dele que
era médico do arraial! Boca, para que falaste?!! Mamãe veio a conhecer esse irmão e sua mulher, ambos
boníssimos. Tinham duas filhas e um filho moço. Em breve nos tornávamos todos amigos. Enquanto as
filhas do fazendeiro estavam lá, nós não os visitávamos. Mas aos sábados e domingos vinha da fazenda um
carro de bois para busca-las e nós então corríamos para a casa do médico, convidados para almoçar, para
jantar ou mesmo para passarmos na casa dele o dia inteiro. Passado certo tempo o velho fazendeiro
desconfiou de tal amizade e advertiu mamãe de que se esta continuasse ele não mais se sentiria com qualquer
obrigação para com ela. Mamãe chorava e tinha medo, embora considerasse aquilo tudo um despotismo!
Mas nós, apesar de tudo, não desistíamos da nova amizade. Ainda mais porque era aquela a única família
com a qual se podia ter uma amizade mais chegada, quanto aos demais habitantes, eram todos italianos, e
caboclos colonos com os quais nos dávamos muito bem, mas que não se tinha muito o que
conversar...Quando o médico veio a saber das ameaças do irmão fazendeiro empenhou-se junto a amigos
influentes o município e conseguiu, da Câmara, outra cadeira de professora para minha mãe. O velho achou
tudo muito ruim mas não retirou as suas seis filhas que eram alunas da mamãe, mesmo porque elas gostavam
muito de nós e, morando conosco durante a semana, não queriam sair da escola. Certo dia porém as coisas
culminaram! O fazendeiro veio a saber que minha mãe todos os sábados comparecia à igrejinha do lugar para
ensinar os hinos que deveriam se cantados no próximo mês de Maria. Ele era protestante e essa nova rebeldia
de mamãe precipitou tudo. Conduzindo ele próprio um carro de bois, lá chegou durante a semana e lá deu
ordens para que as filhas o acompanhassem de retorno à fazenda. Pagando o que devia retirou-se com suas
filhas, todas muito chorosas e nós nunca mais os vimos

*******
Ali naquele arraial nós vivemos durante dois anos. O clima ali era, porém, inquietante. De vez em
quando alguém era misteriosamente assassinado. Em tempo de eleições, nós quase não dormíamos tal a
gritaria, os tiros e as correrias nas ruas. Uma politicagem medonha! O chefe político, mandão e autoritário,
era o principal mandatário daqueles distúrbios todos. Havia noites em que tínhamos que ir dormir em casa do
médico onde as vezes passávamos a noite inteira rezando, tais os palavrões e as barbaridades cometidas na
escuridão da noite. Este chefe político acabou por desentender-se com o médico e, como fora por intermédio
deste ultimo que mamãe obtivera sua cadeira de professora, acabou por supri-la por represália.

*******
Novamente nos vimos com as malas às costas, pois o arraial não proporcionava quaisquer outras
oportunidades. Este mesmo médico conseguiu por intermédio de outros amigos, uma escola isolada (Era esse
o tipo de escola) na cidade mais próxima, dose léguas distante, porém bem mais adiantada, com luz elétrica
servida por estrada de ferro, água encanada, etc. Ali aconteceu o mesmo que na cidade do sul de Minas. Uma
chusma de alunos, muita inveja e muita intriga por parte das demais professoras que se viram preteridas
pelos atrativos da escola da mamãe, com teatrinho, canto e dança, recitativos e demais festas no fim do ano,
etc. Lembro-me de que, nessa cidade, passadas as festas de fim de ano foram pedir a mamãe que ela
promovesse outro espetáculo infantil em benefício de uma instituição de caridade. O espetáculo produziu
enorme renda e ela, que ao fim de cada ano letiva mal se tinha em pé, acabou, desta vez, por cai doente por
excesso de trabalho!

*******
Para ela as férias consistiam em ficar deitada a ler, dias e dias, levantando-se quase exclusivamente para
o imprescindível. Os olhos, sempre inchados de chorar.
Essas porém foram, também as nossas últimas férias naquela cidade. A escola-isolada, que mamãe
dirigia foi, como as outras, suprimida...

*******
A despeito daquela penca de filhos, mamãe foi pedida em casamento cinco vezes! Ela porém jamais nos
quis dar um padrasto, afirmando sempre que seria preciso muita coragem para fazê-lo. Era bonita, pequenina
(tinha 1,52 m de altura) os grandes olhos muito azuis,, traços regulares e finos. Por incrível que pareça era
alegre, afável e espirituosa sempre que não estava pensando no papai... Dele conservava um total de 45
cartas, cada uma com cerca de trinta ou quarenta páginas, numa escrita muito igual e miudinha. Sabia-as
todas de cor, de tanto rele-las.
No dia em que acordasse com vontade de revê-las, nós já sabíamos que seria inutilizado pela sua
tristeza. Às vezes permitia que nós, já moças e até casadas, lêssemos algumas passagens delas, o que nos
deixava radiantes. Nunca pudemos, porém, lê-las sossegadamente e por muito tempo, porque ela não saía de
perto de nós e até parecia experimentar muito ciúme com a nossa leitura. Logo começava a dizer: “Não se
esqueçam! Quando eu morrer, quero que me ponham essas cartas por travesseiros! Se não o fizerem , não
lhes darei paz!”
Quando ela morreu, fizemos-lhe a vontade. Mas até hoje me arrependo de não ter conservado uma delas
sequer. Mesmo ouvindo-a afirmar seguidamente que depois de morta ainda seria capaz de vir em busca
daquelas que faltassem... Eram tão lindas!!

*******
Quando se sentia mais disposta e menos triste, reunia-nos para comentar fatos passados, histórias de
parentes, amigos, etc. Nunca porém abordava o lado mau de qualquer história porque, dizia ela, não queria
que ficássemos pensando mal ou ressentidas com ninguém. Por isso é que não fomo como as demais crianças
que quase nada sabem sobre os parentes, tios, primos e ascendentes. Para nós não existia nada mais
agradável que nos sentarmos para conversar tranquilamente com ela desde que a isso nos convidasse.
De suas muitas história havia as que preferíamos às demais. Era a história de uma pessoa chamada Seu
Setevinho, homem que conhecia muito bem os papagaios da mata, na terra dela. Esse tal homem mentia
muito e contava que certa vez, enquanto ia tirando papagaios do ninho e deixando-os no chão ouviu uma
vozinha a chama-lo:” Seu Estevinho! Seu Estevinho !” Sozinho na mata toca ele a procurar de onde vinha
aquela voz, até descobrir que era a de um dos filhotes da ninhada a avisa-lo “Tire seu jumentinho daqui
senão ele me pisa!” Perguntávamos mil coisas a respeito desse Seu Estevinho, às quais ela jamais deixava
sem resposta. Isso, enquanto éramos pequenos, porque depois de grandes as histórias eram mais sérias e
ainda mais bonitas. Ficávamos encantados!.

*******
Na cidade em que fomos morar, apareceu um circo de cavalinhos. O diretor da Companhia, pai de
numerosa família, alugou uma casa perto da nossa. Em breve eu me tornava amiga de uma das principais
artistas, menina de mais ou menos a minha idade, que fazia prodígios de malabarismos. Em breve ela se
oferecia a me ensinar as coisas que sabia fazer e eu logo aprendi a fazer contorções, a dar saltos mortais, a
faze roda de fogo e a me pendurar pelos pés a uma barra, ficando de cabeça para baixo.
Pouco tempo depois estava tão perita nas ginásticas que o pai da menina começou a prestar mais atenção
em mim...Quando eles se preparavam para deixar a cidade, minha mãe veio a saber, pela empregada, que já
tinham planejado tudo para me carregarem com eles, e isso com meu pleno consentimento ...
*******
Casada a primeira filha, com apenas 15 anos, fomos morar com ela em outra cidade, onde mamãe foi
nomeada para o grupo escolar como professora substituta, porque efetiva não podia ser, por não ter diploma.
Tempos depois, estando na janela com seu primeiro neto ao colo, ela comprou de um vendedor de bilhetes,
um gasparino. O bilhete foi premiado com dez contos.! Naquele tempo era uma verdadeira fortuna. A
primeira coisa que fez foi me mandar para um colégio em São Paulo. Por essa época, minha outra irmã
também se casara e ali estava morando. Mamãe então, com cinco contos daquele prêmio, comprou uma casa
naquela capital. Mais tarde vendeu-a ao genro, por dez contos. E meu cunhado acabou vendendo-a depois
por trinta! Essa casa, até bem pouco tempo ainda existia...

*******
Por essa ocasião, meu irmão mais moço morrera de febre amarela e o outro já partira para o Amazonas.
Com apenas 14 anos. Lá viria ele a casar-se por lá permaneceu por muito tempo. Quando regressou trazia
consigo 12 filhos além da mulher, e a firme disposição de tudo começar outra vez... Mas isso foi depois,
muito depois!
Depois de cursar um bom colégio em São Paulo, voltei a morar com a mamãe em São Paulo de São
Paulo, viemos a bater no Rio, graças ao nosso conhecimento com o então ministro da Agricultura. Graças a
este conhecimento conseguimos em 1910, uma colocação neste ministério. Assim é que me tornei uma das
primeiras funcionárias federais, ganhando duzentos mil réis por mês. Fomos morar numa casa bem boazinha,
na Rua da Passagem, pela qual pagávamos oitenta mil réis de aluguel. Foi por esta época que fui trabalhar
também naquela revista à qual já me referi no principio destas Incríveis.

*******
No ano seguinte mamãe também conseguiu um emprego no recenseamento, lá é que que conheceu a
noiva eterna de Bilac. Terminado expediente, em vez de saírem, ficavam as duas a conversar, às vezes até as
seis da tarde, quando os serventes vinham avisar que iam fechar o prédio. A noiva eterna mostrava-lhe as
maravilhosas cartas de seu poeta e minha mãe a ela mostrava as de meu pai. Quanto a mim às vezes ia
procurar e perguntar-lhe se estavam ficando malucas.... E elas, rindo, ainda deixavam eu lhes percebesse os
olhos molhados de lágrimas!
(A propósito,: que fim terão levado aquelas cartas de O. Bilac? Porque não teria a família da Noiva
Eterna providenciado a sua publicação? Eram tão belas!. Ou por acaso teriam elas encontrado o mesmo
destino que tiveram as cartas de meu pai?)

*******
Após certo tempo mamãe adoeceu por causa de uma ulcera gástrica. Tratava-se com o Dr. Miguel
Couto, que a cuidava com imensa bondade. Ultimamente até recusava a cobrar-lhe as consultas. Ela, em três
meses, emagrecera vinte quilos! Por causa disso fomos passar nossas férias na Fortaleza de São João, em
casa de meu futuro sogro, que era também meu tio e oficial do exército. Lá, um dos oficiais amigos
aconselhou-a a pedir remédio a um espírita muito conhecido, o Seu Inácio. Ela foi e, desde essa mesma noite
não sentiu mais dor alguma. Contou isso ao Dr. Miguel Couto o qual achou muita graça, afirmando-lhe que
ela fizera muito bem, já que ficara curada... Lembro-me que muito tempo estive muito apreensiva, sabendo
que o espirita se limitara a recomendar-lhe que não bebesse mais nem uma gota a mais de leite,
prescrevendo-lhe apenas um insignificante remedinho...
A verdade porém, é que mamãe ainda viveu dez anos sem nunca mais sentir qualquer dor de estomago.
Veio a morrer, quando estava com 53 anos de idade, de febre tifoide,

*******
Acabo de ler, no Diário de Notícias, uma crônica de Joel da Silveira sobre assombrações e lembrei-me
de contar alguns fatos semelhantes passados conosco. Após uma ausência de vinte anos, mamãe, já viúva
voltamos à nossa terra para rever nossa família e especialmente àquela minha avó original de quem já contei
tantas histórias. O Presidente do Estado daquela época era compadre de meus pais e ofereceu-nos sua casa
para passarmos a temporada na serra. Casa muito confortável, além da perspectiva de banhos numa piscina
natura, formada por uma cascatinha que caía numa cova larga e funda, formando um remanso d’água
transparente, verdadeira maravilha da natureza! De vez em quanto as famílias amigas do presidente iam
passar dia neste sítio, por causa do banho delicioso!
Passados alguns dias porém. Esfriava-lhe o entusiasmo porque, diziam, por ali apareciam almas do outro
mundo. Contava-se que até mesmo o dono da casa, achando-se em casa, à hora do jantar, encetou amistosa
conversa com alguém que já se sentara mesa, a seu lado.
Era ele bastante míope, razão pela qual a esposa, ao entrar na sala, perguntou-lhe com quem pensava ele
estar conversando... E ele retrucando: “Pois esse senhor não é seu conhecido?!” No mesmo dia o casal
desceu para a cidade e ninguém mais soube que lá tivessem retornado...

*******

Nós sabemos de todas estas lendas mas, quem iria acreditar em histórias de assombração? Informadas
de beleza do lugar, fui eu a primeira a insistir para que fôssemos logo. E assim. Lá fomos serra acima,
quatorze pessoas, incluindo três empregadas. Todos radiantes! Banho em plena floresta,, clima puro e
agradabilíssimo, íamos antegozando todas as delicias do lugar. Na primeira noite, cansados como estávamos,
dormimos muito bem e nem pensamos em coisa alguma de extraordinário. A única coisa que extranhei oi
verificas que uma porta do meu quarto, que dava para o quintal, se achava escancarada. Quando acordei,
lembrando-me bem que a fechara, voltei a levantar-me e fechei-a de novo. Deitei-me e tornei a dormir. Mas,
abrindo os olhos mais tarde, vi-a outra vez escancarada. Daí em diante foram se sucedendo os suplícios e
sustos. A porta, que tinha quatro ferrolhos, nós jamais conseguimos conserva-la fechada. Quanto às nossas
redes, eram incansavelmente balançadas. Um dos meus tios sentia um estilete a cutucá-lo
Por baixo da rede em que se escondia de medo, e nós podíamos ouvi-lo gemer no seu quart: “ui! ui!
ai!”.
Uma de minhas primas queixava-se de que quando ia dormindo sentia como se uma pessoa a erguesse
até bem alto firmando as costas por baixo de seu corpo deitado na rede. A principio olhava depressa,
pensando que aquilo fosse brincadeira do marido e pretendo surpreendê-lo em flagrante. Mas logo
apercebeu-se que ele também se achava agarrado ao punho da própria rede, de olhos arregalados, a chama-la,
assustadíssimo!
Passamos a dormir durante o dia, ao passo que passávamos a noite a rir-nos com os contratempos e
surpresas, pelas quais passavam todos os hospedes da casa. Mas as empregadas acordavam pálidas de susto,
extremamente enjoadas por causa dos grandes e infindáveis embalos noturnos de suas respectivas redes e
acabaram por vir declarar-nos que não mais permaneceriam ali de modo algum. Nós que tínhamos ido com a
intenção de passarmos ali uns quinze dias, tivemos que regressar ao fim de apenas oito dias de estadia!
Tenho que confessas que à ultima noite de estadia ali, estávamos realmente amedrontados e nenhum de nós
passava de um quarto a outro sem que todos os demais o acompanhassem. E assim mesmo, o medo de ficar
por último no quarto que deixávamos era tamanho que isso só vinha dar motivo a novas risadas, visto que
nos amontoávamos à porta num grande jogo de empurra para passarmos primeiro... Ríamos até as lágrimas.

*******
Minha avó Naninha foi a única que ficou desolada ao lhe comunicarmos a nossa decisão de partir
imediatamente!: “Imaginem que sou balançada a noite inteira. Acho tão bom... Haverá de quem me balança
poder voltar comigo... gosto tanto!! Vamos ficar só mais uns diazinhos! Vocês são tão bobos, para que esse
medo, eles só fazem é balançar a gente o que é tão bom!!”
Mal sabia ela que tal resposta fora a que resolvera definitivamente o nosso abandono do sítio! Histórias
de assombração...dirão!

*******

Memória puxa memória, lembrança sugere lembrança e eu, que sempre me queixei da falta de memória
e de não me importar com recordações, aqui estou, profundamente admirada de quantas coisa vai surgindo
enquanto vou escrevendo...

*******
Estas agora são de meu irmão. Ainda menino, empregou-se em uma sapataria par ajudar minha mãe,
dizia ele. Tinha apenas 10 anos. Ela que quase não contrariava esse filho, consentiu, pois sendo pobre seria
bem difícil proporciona-lhe uma educação mais apurada. Isso antes que tivéssemos tirado aquela sorte
grande. F. era mais moço que eu dois anos. Muito vivo e inteligente, fazia discursos em festas cívicas, a
convite! Lembro-me bem da primeira vez em que o vi fazer um desses discursos: “livros, livros a mãos
cheias que façam o povo pensar”, etc. (Guerra Junqueiro) . Foi aplaudidíssimo! Mas quem redigira o
discurso, for minha mãe!... Daí por diante, tornara-se ele imprescindível em tudo quanto era festa porque,
faça-se lhe justiça, sabia também ele improvisar. E muito bem para tão pouca idade.

*******
Mais tarde empregou-se numa loja numa loja de cidade mais adiantada a umas quatro horas de trem
daquela em que morávamos. Jamais deixou, sequer uma vez, de enviar a mesadinha da mamãe. Um dia,
aparecendo-nos em casa de surpresa, pediu-lhe o consentimento para partir para o Acre.! Naquele tempo, tal
ideia era o mesmo que dizer: “vou à procura da morte!” Muito sociável, bem-falante e inteligente, conhecera
um senhor que ia para lá a mando do governo, o que, por brincadeira, o convidara a acompanha-lo., com
passagem paga, etc. Já com quatorze ano, além do natural espírito de aventura comum a tal idade, não houve
nada que o demovesses da tal ideia. Depois ele nos contou que o tal enviado do governo ficou admiradíssimo
de vê-lo aceitar a proposta, nas não se negou a cumprir o prometido. E assim, contando unicamente com essa
passagem de graça, quase sem dinheiro algum, lá se foi o meu irmão, muito contente, para aquelas brenhas.
Quanto a minha mãe, continuava sempre chorando, mas desta vez com a maior razão!

*******
Já no Amazonas, estando ele a bordo de um navio gaiola, e como houvesse gente querendo jogar sem
encontrar parceiro, começar a insistir com ele para tomar o lugar Vago na mesa do jogo. Ele, naturalmente,
se negava dizendo que se perdesse, iria até passar fome!. Mas tanto fizeram e tanto insistiram que ele impôs
uma condição: Se ganhasse até determinada hora, não jogaria mais, fosse o que fosse que houvesse ganho!
Os parceiros aceitaram a condição estabelecida e ele pôs-se a jogar. Ao fim do prazo estipulado ele ganhara
novecentos mil réis, verdadeira fortuna naquele tempo. Com esse dinheiro, disse ele, sustentou-se por mais
de um mês até conseguir um emprego!

*******
Aos dezoito anos nos escreveu contando que estava noivo de uma menina de quatorze! Minha mãe,
impossibilitada de qualquer outra providencia, continuava a chorar cada vez mais. Ele casou-se e alguns anos
depois veio à cidade grande para trazer a filha mais velha para aqui para estudar e ser educada pela avó. Lá
no Acre deixara mais seis. E lá se foi de retorno ao acre onde teve não sei quantos empregos, ali trabalhando
como seringueiro, como escrivão, como regatão, e até como juiz! O que não conseguiu foi juntar dinheiro
porque, sendo de impecável honradez e carregado de filhos sempre se recusara a negócios mais rendosos que
dele exigissem menores escrúpulos ou certas abstrações de consciência...

*******
Para encurtar a história, vou direto ao fim: certo dia, chegando eu da repartição, vejo ao terraço de
minha casa, um bandão de crianças, a maioria delas loirinhas e de olhos azuis. Pensei que tivessem deixado o
portão aberto e já ia zangar com a empregada, quando dou com meu irão escondido atrás da porta do meu
quarto! Chegara ele inesperadamente trazendo seus filhos e a mulher! Vinha disposto a tentar novamente a
sorte aqui ou em São Paulo.!

*******
Não conseguindo nada no Rio foi para São Paulo onde, por intermédio de parentes, amigos e
conhecidos, conseguiu uma nomeação para uma Recebedoria daquela capital. Criou os filhos além de mais
dois que nasceram em S. Paulo. Suas nove filhas hoje estão todas casadas. Dos quatro filhos, um morreu
ainda novinho, e os outros três também se casaram. Estando todos bem arrumados na vida.
Quando a ele morreu de paralisia progressiva resultante do beribéri que ele contraíra quando se
encontrava no Acre. Nunca foi religioso mas quando, por insistência da família chamou-se um padre para
confessa-lo, este saiu do quarto a chorar, dizendo que confessara um santo. Após a saída do padre ele
chamou os filhos um por um,, a Cada um tendo um conselho. Depois do que expirou serenamente. Não sei se
feliz ou infelizmente, minha mãe já havia falecido. A incrível deste irmão consiste em ter ele lutado tanto
para morrer tão moço. Tinha apenas quarenta anos!!
*******
Não sou poetisa, nunca fiz versos, mas gosto muito de bons poetas, principalmente dos antigos! De
modo que o que me ocorre à mente é uma poesia de Lamartine, em que ele diz: “Mas que fatal encanto me
leva agora às cenas do passado? / Gema o vento e desprenda magoado o mar de meus lamentos! / Vinde, Oh!
Vinde, tristes pensamentos! / Eu quero o meu enleio, e não o pranto! /” Incrível, em meio de uma narrativa...
*******
Quanto ao ultimo irmão, aquele que fora esquecido por minha mãe quando meu pai morreu, tornara-se um rapagão
bonito de grandes olhos azuis. Com 18 anos quis também seguir para o Acre, antes do outro vir, enquanto estávamos de
visita àquela avó. Ao sabermos, por telegrama, que iria passar na cidade do norte onde nós estávamos, fomos espera-lo,
e conseguimos que ele descesse do navio para passar uns dias conosco. Antes não tivéssemos feito, porque foi atacado
de febre amarela e em apenas 5 dias estava morto. Incrível!
*******
De minhas duas irmãs não me lembro de nenhuma incrível. Penso que por terem sido elas muitos normais, boas
donas de casa e boas mães de família sem história... Mas de um de meus cunhados, casado com minha segunda irmã sei
de umas incríveis bem originais. Ele lutou muito na sua carreira de advogado, embora a princípio exercesse apenas o
cargo de professor de grupo escolar. Teve seis filhos. Cansado de tanta pobreza resolveu pedir demissão do magistério e
dedicar-se ... ao plantio de arroz! Arrendou um sítio e foi para lá com a família. O plantio de arroz quase não dava para
ele viver. Seus filhos eram todos pequenos. Lembro-me de ter ido para lá, já casada, com uma filha pequena. Meu
marido dava-se maravilhosamente bem com esse cunhado. Costumava ir para o mato com as crianças e ali se ocupar em
laçar cobras venenosas que abundavam no lugar, situado no vale do Paraíba. Essas cobras, guardadas em caixas
especiais eram remetidas e vendidas ao Instituto Butantã de São Paulo.

*******
Por esse tempo estava eu grávida de meu segundo filho. Tendo feito uma longa viagem de carro de boi, durante a
qual eu caíra tendo ao colo minha filha mais velha, o menino veio ao mundo com uma lesão de coração. Bonito, forte,
ele durou apenas três meses e veio a morrer exatamente no dia em que minha filha completava dois anos de idade..

*******
Estando eu passando uns dias no sitio deste cunhado, já bastante pesada desta segunda gravidez, dirigia-
me ao quarto, com minha filha adormecida em meus braços, quando percebi que da janela aberta, alguns
empregados do lado de fora faziam sinais silenciosos para que me mantivesse quieta. Surpresa com aqueles
homens agrupados tão perto da janela baixinha, parei à porta do quarto. E subitamente percebi a razão de
todas aquelas precauções: adormecida à janela estava enroscada uma enorme cascavel. Morta a perigosa
cobra, todos se espantaram com minha calma. Quanto a min., só sei de uma coisa: Se fosse uma barata eu
teria gritado e até deixado cair a menina ao chão...

*******
De outra vez, estando meu marido cercado de meus sobrinhos eu, que era muito míope, indaguei de um
deles onde conseguira o bonito colar que trazia ao pescoço. Meu marido voltando-se para ver, descobriu que
o tal colar era nada mais nada menos que uma cobra coral que se pendurara ao pescoço do
menino...Ordenando-lhe que ficasse quietinho, meu marido conseguiu retirar a cobra do pescoço do garoto e
guarda-la com as demais cobras vivas que eram enviadas ao Butantã.

*******
Um dia, minha irmã queixava-se das enormes ratazanas que assolavam a sua casa, declarando estar com
medo de uma que lhe entrara pela cozinha a dentro. Meu Cunhado, rindo-se, caçoava dos temores tão pueris
comuns a toda a mulher e dispondo-se a expulsar da cozinha a tal ratazana. Para tal muniu-se de um cacete e
trancou-se na cozinha, enquanto resto da família ficava do lado de fora, disposta já a aplaudir a valentia do
pai. De repente fez-se um estardalhaço danado dentro do cômodo fechado. Panelas caindo, além dos berros
de meu cunhado a gritar: “Sai!! Rato desgraçado!” e novos estardalhaços de louça caindo e de coisas a
despencar das prateleiras...Afinal não resistimos mais e abrimos a porta...Lá dentro estava meu cunhado,
empunhando seu cacete, subido em um banco de madeira, enquanto a ratazana, furiosa, investia contra ele
com espantosa ferocidade. Debelado o perigo iminente, não mais se ouviu naquela casa, quaisquer ironias
referentes ao pueril temor feminino...

*******
O estágio deles naquele sitio durou pouco. O que ganhava com o plantio de arroz mal dava para cobrir
as dívidas contraídas. Se contar que os alimentos da família eram cada vez mais racionados e difíceis de
conseguir. Meu marido às vezes saía com os meninos para alguma caça e era uma festa quando eles
voltavam trazendo algum animalzinho para o assado domingueiro. Por fim eles ficaram reduzidos a comer
somente arroz! A esse ponto um cunhado retornou à cidade onde conseguiu retomar seu lugar no magistério.
Mais tarde porém foi nomeado juiz da localidade e daí por diante a família progrediu. Tornou-se uma
pessoa muito conceituada tanto ali como em demais lugares para onde foi nomeado. Muito estudioso,
escreveu vários livros e, ao morrer, já haviam sido esquecidas aquelas dificuldades dos primeiros tempos.

*******

Uma das etapas mais difíceis nessas incríveis é a que se refere a uma parente minha bem chegada por
que sei que vai ficar zangadíssima quando souber o que vou contar sobre sua pessoa, seu modo de ser, suas
originalidades, etc. E isso, mesmo que não me venha coragem suficiente para relatar tantas outras, bem
interessantes e bem conhecidas por todos da família....

*******

Criança ainda, com apenas onze meses de idade, embora não soubesse andar e nem falar direito, já
cantava tudo quanto era modinha da época. Muitas vezes ao passar de bonde na praia de Botafogo, vinda da
repartição, via uma preta que trazia uma menina aos braços. As vezes eu me aproximava na certeza de que
era ela a cantar papagaio louro ou qualquer outra música, acompanhada pelos jovens que a iam
acompanhando a bater palmas...Era afinadíssima e as palavras que cantava se reduziam a uma única sílaba
“lê-la lá lia-la-....”

*******
Com apenas dois anos e algumas meses, chegou à minha casa o piano de minha sogra que se mudara
para o interior e o deixara para mim. Vendo-o ela sentou-se ao banquinho e... começou a tocar, sem o menor
erro uma cantiga conhecida: “minha rolinha, sinhá, sinhô...”. Entusiasmada relatei o fato à vizinha, que
gostava muito dela. Hermes Fontes que se achava em visita a essa senhora, pediu-lhe que mandasse buscar a
criança, o que foi feito. Ao ouvi-la tocar muitas outras coisas além dessa, cumprimentou a mãe dizendo-lhe
de seu entusiasmo por ter assistido a tal revelação. Aos cinco anos tornou-se aluna de uma filha de Henrique
Oswaldo a qual nunca quis cobrar pelas lições que lhe dava. O mesmo aconteceu com todos os professores
que a dirigiram enquanto solteira. E mesmo depois de casa, na continuação de sua carreira.

*******
Aos sete anos entrou para o grupo escolar, mas nunca chegou a completar o curso primário. Como não
era possível fazê-la cursar o ginásio, visto que as nossas condições de vida não o permitissem, diversas
colegas de repartição se ofereceram para dar-lhe lições. E foi aprendendo assim por etapas. Para encurtar a
história, a incrível em tudo isso é que hoje sabe não somente o português como ainda fala inglês, francês,
espanhol, italiano e até... russo. É escritora e poetisa, estando agora ocupada em traduzir líricas gregas” E
para autenticar o que digo, segue-se uma dessas líricas traduzidas que lhe roubei:
“ALCMENA”: Dormem os cimos dos montes
Dormem os cimos dos montes
e os vales em torno
e barrancos e declives

Dormem os repteis todos cujas raças


a negra terra alenta
e as feras selvagens, miríades de abelhas,
e os escuros monstros do sombrio mar.
Dormem inteiras legiões de pássaros,
asas infinitas,
Quanto aos versos de sua própria lavra, não consegui roubar nenhum...

*******
Com onze anos deu um concerto no Instituto Nacional de música e, logo depois outro em Vitória. Os
quais renderam, saldadas as despesas, setecentos contos e tanto. Com essa quantia, comprei-lhe um piano
Steinway que, quando comecei a escrever estas incríveis, já estava custando mais de cem mil cruzeiros.
Incrível, não?

*******
Ficou satisfeitíssima com o novo piano e, um ano após, chamou a mãe e, tomando papel e lápis, disse-
lhe: “agora você vai escrever quantas musicas eu sei de cor ...”. Só nesse dia tocou 280, sendo que os 25
prelúdios de Chopin, ela contou como uma música só. No dia seguinte tocou outras tantas, mas aí a mãe,
ocupada em seus afazeres já não pode continuar anotando...

*******
Não entrou para o Instituto porque, sendo aluna de Guanabarino, este não consentia que ela o fizesse,
visto viver em eterna quizília com aquele estabelecimento de ensino. De todas as suas alunas era a única que
se atrevia a afronta-lo estudando Villa Lobos, de quem sempre gostou muito. Afrontava-o ainda por outras
maneiras pois quando ele se sentava ao piano para caçoar das músicas de Villa passando os cotovelos sobre
as teclas e dizendo que aquela cacofonia era a ultima musica de Villa Lobos, intitulada “Maria, limpa o
piano!”, ela a seguir tocava alguma ciranda e, interpelando-o exclamava; “mas você não enxerga que Villa
Lobos será um dos mais famosos compositores que o Brasil já deu!?”. A mãe ficava aflitíssima de que ele se
zangasse, mas isso felizmente nunca aconteceu. Ele respeitava a menina, por seu talento, e por sua
independência e acabava por sorrir e deixa-la tocar.

*******
Por essa época fora convidada para tocar na Associação Feminina, instituição cultural sita à Rua
Senador Vergueiro. Enquanto ela tocava, desabou sobre a cidade forte tempestade tendo se todas as luzes se
apagado, tanto as da rua quanto as da sala em que tocava. Ela porém não interrompeu o0 concerto.
Continuou a tocar sem que ninguém saísse de seu lugar para buscar velas ou para qualquer outra coisa. Não a
queriam atrapalhar. E o mais interessante foi que ao dar a elas os últimos acordes da música que encerrava a
primeira parte do recital, todas as luzes se acenderam!

*******
Certa vez, sendo ela já casada e aluna de grandes professores da escola pianista de Chiaferelli, em São
Paulo, foi convidada para tocar com Rubinstein. Ela frequentava muito a casa desse professor á qual a
acorriam vários dos grandes artistas em trânsito por São Paulo. Nessa casa havia um grande salão com dois
ótimos Steinway de cauda. Sob um desses pianos costumava deitar-se um galgo muito manso, cachorro do
Qual ela muito gostava. Nesse dia, convidada pelo artista a dirigir-se ao piano e escolher a música que
desejasse tocar para ele ouvir, a jovem, para esconder o natural nervoso de tocar para tão grande artista,
resolveu acariciar a cabeça do galgo adormecido. O animal, despertando de repente, assustou-se e fechou-lhe
a mão direita na boca. Foi grande o corre-corre. E o próprio Rubinstein, foi quem se encarregou de prestar-
lhe os primeiros socorros, fazendo-a mergulhar a mão em água com sal, enquanto se surpreendia com as
marcas que os dentes do animal tinham deixado na pele. Felizmente sua mão não sangrara. Daí a pouco ela
punha-se a tocar com o grande pianista, o qual, terminada a audição declarou-lhe que ela estava pronta.
Restava-lhe tocar para conquistar seu público.

*******
Um dia fomos assistir juntas uma fita que achei uma verdadeira maravilha: Sonhos de Uma noite de
Verão”. Dias depois convidei-a para assistir novamente aquela obra de arte. Ela aceitou e, ao sairmos do
cinema, deixou-me impressionada, pondo-se a discorrer e a explicar a psicologia e o sentido da peça de |
Shakespeare. Olhando para aquela menina, que ainda não completara quinze anos, fazer comentários tão
profundos, é que comecei a me interessar pelo sentido oculto ou psicológico das coisas. Desde então, sempre
que queria saber algo a este respeito, tenho que confessar, meio encabulada, que era a ela que eu recorria. De
outra vez aconteceu quase o mesmo com uma fita chamada: ”Dentro da Noite”, ficando até quase meia noite
a conversar numa confeitaria muito bem frequentada que havia ainda ali na Cinelândia. Ela a me explicar
uma série de coisas que eu não havia compreendido e se entusiasmando tanto a ponto de até chorar durante
as explicações , com grande admiração da minha parte.

*******
Em minha família havia o velho costume de se perguntar aos filhos “quando é que vocês vão colocar os
seus pais no colégio?”. Um primo nosso muito brincalhão, que se encontrava as visitar-nos, perguntou à mãe
dela: “Então a E. já providenciou colégio para você?” Ao que minha mãe respondeu:” Ainda não, pois é com
ela mesma que eu estou estudando...” O primo riu-se a valer! Parecia graça mas era pura verdade!
*******
Outra de suas esquisitices consistia em jamais quere ela tocar a música que se lhe pedisse. Até hoje é
assim. Quando era pequena, a mãe segurava-a pelos cabelos, sacudia-a, mas era tudo em vão, Só toca o que
bem quer e entende.! Não há mãe, nem marido, nem professor, ninguém que consiga dissuadi-la. Não faz
exceção quando planifica os programas de seus recitais. Só então aceita sugestões.

*******
Ao completar quinze anos, foi pedida em casamento por um primo, professor de matemática em São
Paulo o qual já um ano havia solicitado que assumisse compromisso com ele. Ela, naturalmente não quis pois
era muito criança. Da segunda vez, porém, vendo-se aceito, o primo voltou para São Paulo radiante. Quanto
a ela, estando bastante fraca e necessitando de repouso, seguiu com uma prima que a convidara para uma
temporada em sua casa, numa cidade do nordeste. Ao votar já não queria mais casar-se, dizendo que tinha
agora novos ideais Tais ideais haviam-lhe sido incutidos por esses primos, muito cultos e inteligentes, que
moravam naquela cidade e que a adoravam! Ao chegar, escreveu aos primos de São Paulo desmanchando o
compromisso, que aliás ficara apenas entre eles, embora eu tivesse conhecimento de tudo.

*******
A mãe, funcionária publica, trabalhava fora mas um dia, tendo por qualquer motivo permanecido em
casa, foi chamada ao telefone de uma vizinha. Atendendo, ouviu alguém dizer; “Alô, é você fulana? (dizendo
o nome da filha)” Como ambos tivessem a voz muito parecida, ela respondeu por aquela. Tratava-se de um
dos tais primos que telefonava á jovem para marcar com ela um encontro a fim de irem ambos a um comício
da Juventude Comunista! Estarrecida, sem coragem de tomar a responsabilidade de quaisquer medidas
cabíveis no caso, acabou por decidir-se a tudo relatar ao marido, embora muito lhe temesse o temperamento
violento e arrebatado do mesmo. O pai da menina ouviu todo o relatório que lhe fez a mulher, prometendo-
lhe que tudo arranjaria com calma, sem alardes. A mãe, embora mais sossegada, continuou, porém vigilante.
Horas depois vê regressar o marido que ela esperava ansiosamente sem saber o que estava se passando ,
lançando sobre a secretária um desses chicotes de jóquei bastante contorcido declarando-lhe que,
surpreendendo o jovem as espera da jovem idealista no consultório de um dentista, em plena Rua
Uruguaiana, dera-lhe uma tremenda surra, correndo-lhe ao encalço escada abaixo até a rua, Dalí saindo,
voltara a encontra-lo, por mero acaso, à esquina da Rua Gonçalves Dias, onde a cena se repetiu. Quanto ao
jovem, nada podia fazer por achar-se com os documentos comprometedores que não lhe permitiam arriscar-
se a enfrentar uma briga que pudesse lava-lo a uma ocasional prisão.
O pior de tudo isso, porém, é que o pai desse rapaz, meu tio casado com uma irmã já falecida, achava-se
por aquela ocasião hospedado em nossa própria casa! E eu tive que contar-lhe tudo o que se passara!

*******
Quanto à menina, ficou durante seis meses prisioneira em seu quarto, de onde só tinha licença para sair
acompanhada pela mãe, para ir ao médico. Por causa de seus estudos de piano, exagerados e sem método,
pusera-se a tossir muito e, quanto se tirou uma radiografia, já os dois pulmões estavam afetados pela
tuberculose,. Tudo isso se passara em Santa Tereza, para aonde havíamos nos mudado a conselho do médico,
em vias do estado dela. Além de ficar seis meses no quarto, sem licença para descer até mesmo para as
refeições, estava proibida de tocar piano e o médico mandara retirar o piano da casa, pois ela, na ausência da
mãe, acabava sempre por descobrir lhe a chave e abri-lo para tocar.
O pai, chorando, implorou-lhe que renunciasse a tais ideais políticos,, mas ela recusou-se a isso.
Proibida pelo médico de fazer qualquer esforço, passou a estudar violão e a ler tudo o que lhe permitissem
ler, mesmo que fosse tudo a horas contadas. Depois, em protesto, resolver fazer greve de fome. Em vista do
que, obteve certas regalias, embora por muito tempo se mantivesse de mal com o pai, sem se falarem.
Quanto a este andava com permissão da polícia para reagir contra comunistas “da maneira que bem
entendesse!”

*******
Um dia pediu-me para lhe arranjar um pouco de barro para modelagem. Já aí passara-se quase um ano,
depois dos tais acontecimentos que relatei. Conseguida a tal argila, ficou satisfeitíssima! Haviam em casa
umas colunas de madeira, próprias para vasos de flor. Ela tomou uma dessas colunas, um pouco altas,
dizendo ser exatamente o que precisava. E pôs-se a modelar uma coisa que não deixava ninguém ver, nem
mesmo eu. Alegava que quando estivesse pronta ela mostraria o trabalho. Não a contrariei, deixando-a fazer
o trabalho, pois sentia bastante pena dela! Uns quinze dias depois ela me disse que agora eu poderia ver o
que ela fizera com o barro. Descobri a figura e tornei a ficar estarrecida. Principalmente com o que iria fazer
o pai dela. A menina esculpira, em tamanho natural, a cabeça de Lenine. A escultura de tão bem feita e de
tão parecida, causava admiração! Mai uma vez vi-me levada a relatar tudo a meu marido pedindo-lhe que,
pelo amor de Deus, nada fizesse contra ela. Ele ficou quieto e disse que queria ver a figura quando ela não
estivesse por perto. No momento em que ela entrou no banho, chamei-o, e ele, descobrindo a cabeça
esculpida, pôs-se a olha-la e considera-la por muito tempo. Depois, recobrindo o trabalho, disse: “tenho que
confessar que é uma escultura muito bem-feita! E muito parecida!” Quanto a mim, respirei descansada!

*******
O incrível, naquele grave incidente com o primo subversivo, foi que embora a correria se tivesse
alastrado por três ruas tão movimentadas do Rio, não houvesse sido testemunhado por algum repórter em
busca de novidades que o levasse aos jornais. Felizmente tal não aconteceu! Dias após aquela ocorrência, o
tal primo apareceu lá por casa à noite. Chegava com alguns curativos no corpo e dizendo que queria falar
com a jovem. Por maiores descomposturas que a mãe dela lhe passasse, proibindo-lhe que se aproximasse da
menina, etc. esta despencou pela escada e veio falar-lhe. Ele explicou-lhe que não se defendera por achar-se
com uma enorme lista no bolso, lista esta que, se apreendida, poderia comprometer seriamente várias
pessoas. Afinal conseguimos que ele se fosse embora, pois estando ele armado, tínhamos medo de que
alguma tragédia mais séria acontecesse. Quando o pai soube que o rapaz estivera à procura da jovem,
empenhou-se, desde então, a perseguir aquele primo e o irmão. Onde quer que os visse, mandava prendê-los.
Perseguia-os de tal maneira que ambos acabaram por se verem obrigados a sair do Rio por muito tempo.
Depois, nada mais se soube deles. Só muito mais tarde voltei a encontra-los, ambos muito bem casados, com
família, e bem empregados. Já então meu marido morrera e minha filha, já casada, morava em S. Paulo.

*******
Passado mais tempo, estando a moça com dezoito anos, minha tia e a mãe dela diziam-lhe que
rompendo o compromisso com aquele primo de S. Paulo, perdera ela o único homem com quem poderia ser
feliz. E realmente achavam ambas, ser difícil de encontrar-se homem tão calmo, inteligente compreensivo
como aquele. Ela ouvia tudo quieta, até que um dia pediu à mãe que pusesse no correio uma carta que
escrevera. A mãe, vendo a quem era endereçada a tal carta, perguntou-lhe admirada, que nova maluquice
seria aquela, ao que a filha respondeu que se quisesse poderia ler. Abrindo a carta, a mãe viu que a filha
declarava ao rapaz que se arrependera do que fizera e que achava que agora estava gostando dele. “Onde se
viu uma moça perguntar a um rapaz se ele que ficar noivo dela!” Ao que a filha respondeu: “Nunca, mas eu
sou a primeira! Sei que ele gosta de mim!” A mãe declarou recusar-se a por a tal cata no correio e a moça
respondeu que ela mesma o faria. À vista disso, a carta foi mesmo enviada, pois não havia jeito. Pouco
tempo depois veio a resposta do rapaz dizendo que preferia manter as coisas como simples amizade. Ao que
a jovem respondeu dizendo que só amizade, não queria receber, especialmente de que vinha! Que para ela
seria tudo ou nada!
Tempos depois, fomos passar umas férias em S. Paulo. Durante os primeiros dias ele nem apareceu
na casa de minha irmã onde estávamos hospedados. Até que certa noite, enquanto ela tocava em casa de
outros primos, notei que ele chegara. Ao nos despedir, falou com ele. Eu sai na frente conversando com
minha irmã, quando lá chegam os dois, de mãos dizendo que estavam noivos! A mãe, a primeira coisa que
fez foi rir-se e... manda-los a um certo lugar cujo nome feio não cabe aqui nestas Incríveis. Acabou-se tudo
em boas risadas.

*******

Depois de aceito o pedido formal de casamento, por meu marido que estimava e respeitava muito toda a
família do rapaz, filho daquele tio medico a quem me referi no principio dessas Incríveis, a mãe a costurar, a
cerzir meias, a pregar botão, cozinhar, etc. E indagou-lhe como iria fazer para aprender todas essas cousas
que ninguém lhe ensinara, visto que só aprendera mesmo era a tocar piano... Quando o noivo apareceu para
visita-la, a moca perguntou-lhe: “Fulano, você sabe cerzir meias, pregar botões e remendar sua roupa?” Ele,
que vivera sozinho muito tempo em São Paulo, como estudante, riu-se respondendo-lhe que sim. E ela então,
virando-se para a mãe exclamou: “Pronto, Mamãe! Ele sabe todas essas cousas que você não gosta e que não
me ensinou. Portanto, posso me casar sem aprendê-las!”

*******

Um outro primo, oficial doe exército, perguntou-lhe um dia se ela já havia sido beijada. E ela, com toda
a naturalidade, respondeu-lhe que sim! A mãe, meio zangada, perguntou-lhe: “Mas minha filha, se isso e
verdade, porque você nunca me contou?! E ela respondeu: “Mas... se você nunca me perguntou!...”

*******

Naquela época em que esculpia a cabeça de Lenine, ela foi convidada para tocar numa festa da qual só
ela Procópio e uma poetisa israelita fariam parte. A mãe, saindo para o trabalho pela manha e só retornando à
tardinha, via-a estudar e, ignorando qual o verdadeiro caráter da festa, não se opunha a sua participação. Ate
que as vésperas da exibição, que se realizaria em teatro que existia a frente do atual Passeio Publico, ouviu
de sua sogra a descrição de uma espécie de ensaio prévio, que se dera ali mesmo em casa, enquanto ela
estava na repartição. Ali haviam aparecido diversas pessoas, inclusive a poetisa e declamadora. Durante as
conversas, as pessoas, tendo ouvido o programa que seria tocado, pediram a pianista que tocasse também,
antes de mais nada, os primeiros compassos da... Internacional! A mãe ficou horrorizada pois havia afirmado
ao marido que, sendo com Procópio, seria coisa séria. O jeito que achou foi dirigir-se ao teatro e comunicar
que a filha adoecera e não mais poderia comparecer a festa. Foi um grande choque, pois a festa fora
fartamente anunciada, com retratos pelas vitrines, etc.
*******

O casamento efetuou-se na pretoria, pois o noivo, ateu convicto, recusava-se a cerimonia religiosa, no
que meu marido concordou. O casal fazia grande contraste com os demais que ali se achavam. Mulatos,
negros e portugueses humildes faziam-lhe companhia, pois os noivos eram chamados aos grupos de seis,
para sentarem-se em volta da longa mesa a cuja cabeceira se achava o juiz de paz. Este fez uma certa
distinção aos dois, conversando um pouco com eles e depois cumprimentando-os, embora a moca estivesse
distraída, olhando para outro lado, quando o juiz lhe fez a pergunta de praxe! Naquele tempo, casar-se assim
simplesmente, na pretoria ainda dava motivo a certo escândalo... O pai nunca perdoou tal fato, mas nada se
podia fazer, desde que ele concordara cm a negativa do noivo em casar-se no religioso.

*******

Desenhou Einstein para o marido, uma cabeça de Jesus para a mãe e uma mascara de Beethoven para
ela. Cada qual mais apreciado, mais parecido e bem feito. O retrato de Einstein tornou-se verdadeira
preciosidade, pois traz o autografo do grande sábio! Depois disso, nunca mais se interessou em fazer outros
desenhos.

*******

Três anos depois de casados, nasceu-lhes o primeiro filho. Na maternidade, todos achavam-na bastante
nervosa, embora ninguém atinasse com as verdadeiras causas disso. Havia cortado os cabelos bem curtos e
estava com a fisionomia completamente mudada, o que nos intrigava bastante. Um mês e dez dias após o
parto, tendo ela ido ao medico com o marido, enquanto sua mãe permanecia em casa, a tomar conta do neto,
surge alguém a porta, a perguntar por ela. Dizem-lhe que ela saíra para ir ao medico e então, virando a gola
do casaco, mostra o distintivo da policia, sem que a mãe nem por isso compreenda o significado da visita.
Em todo o caso, convidou o visitante a entrar. Meia hora depois, aparece outro homem, e outro, e mais outro,
e assim sucessivamente, seis homens foram entrando, sempre bem recebidos pela mãe que lhes oferecia um
cafezinho... Os tais homens, embora admiradíssimos com aquelas inusitadas gentilezas, aceitavam e
agradeciam. Ao perguntar-lhes a mãe a que vinham, eles não respondiam, dando-lhes alguma desculpa. Por
ultimo, chegou o mais importante de todos, o ultimo a ganhar cafezinho...

Dez minutos após, lá vem ela entrando, de braço com o marido. Ao entrar e deparar-se com todos
aqueles homens, estacou indignada a olha-los, ate que, reconhecendo um deles, àquele se dirigiu,
exclamando: “Foi você, seu delator!” Ele, encabulado, respondeu-lhe: “Mas... dona Fulana, a minha
profissão é esta!” Ao que ela retrucou: “Não podia ter arranjado uma menos suja, menos vergonhosa?!”

Só aí é que a mãe compreendeu tudo. Tratava-se de investigadores que a vinham prender, por motivos
políticos. Dai mesmo, começaram os interrogatórios. E o mais engraçado e que os homens se achavam muito
mais nervosos que ela! Quanto ao chefe, suava em bicas. E sempre a temeu enormemente, ate muitos anos
depois quando viu-a recusar-lhe, diante de todos, a mão que lhe estendia, a qual ela se recusou a apertar...
“para não sujar” a sua...

O resultado de tudo e que ela ficou presa em casa, isso porque um deputado na câmara já protestara,
contra a prisão de “uma senhora que acabara de dar à luz!” Para onde quer que fosse, era acompanhada por
um daqueles “tiras” fosse ao medico, ou a costureira, etc. Embora muitas vezes se divertisse em iludir a
vigilância de seus guardas, saindo do local ao qual se dirigia por outra porta, ou tomando um taxi que lhe
parasse bem pertinho. Alguns dos investigadores chegavam mesmo a pedir-lhe desculpas de se verem
obrigados a segui-la... Mas essa mansidão toda deles, era também porque a família em peso lhe dera toda a
solidariedade, empenhando-se junto a amigos influentes, visitando-a e prestigiando-a ao máximo. Afinal, ela
conseguiu licença para ir para Campos do Jordao, onde ficou em tratamento num Sanatório, ate que.
Vigilância foi sendo relaxada. Quanto ao cafezinho, durante muito tempo foi motivo de risadaria geral na
família.

*******

Doze anos depois, aconteceu algo de semelhante, mas ai a família não mais lhe prestou qualquer
solidariedade e ela teve mesmo que passar a noite na prisão, com um frio de dois graus. Felizmente estava
bem agasalhada. Ao ser solta, no dia seguinte, dirigiu-se diretamente a uma estação de radio onde passou a
relatar os horrores a que assistira na policia. Gravadas suas declarações, eram irradiadas a cada dez minutos,
durante dois dias. Quase morremos de susto, e a todo instante esperávamos que a prendessem novamente!
Mas pouco tempo depois, essa fase politica se extinguiu, não antes porem de ter o casal ganho um processo
contra a policia politica de São Paulo... por apropriação indébita de objetos roubados da casa, que ela lhes
invadira.

*******

Aqui no Rio, seu professor de composição mostrou a um famoso maestro alemão uma das composições
dela, para orquestra. Pouco depois era convidada para ir estudar regência de orquestra com ele, em Veneza.
Foi para a Itália, num grupo de estudantes dirigido por esse professor. La participou do tal curso de regência.
Tocou em Veneza, em Milão, na Suíça. Participou de um Congresso de Musica Dodecafônica. Pouco tempo
depois recebeu um prêmio da Sociedade Internacional de Musica Contemporânea, como compositora.
Aquele famoso maestro tornou-se muito seu amigo e foi quem apresentou, na Europa, sua primeira obra
orquestral. Obteve os maiores elogios da critica mas o que menos a preocupou foi o fazer publicidade em
torno de tais glorias, de forma que pouca gente por aqui sabe disso. O incrível de tudo isso e que tendo ido
para passar apenas três meses, por lá ficou quase um ano! Não queria voltar, apesar de quase ter-se visto na
iminência de passar fome por lá. Quando foi nomeada pianista oficial daquele Congresso de musica
moderna, caiu doente e teve que regressar. Não fosse por isso, teria sido difícil traze-la de volta, pois apesar
de aqui ter deixado marido, filhos e mãe, ate hoje afirma que lá e que se vive! Quando recebeu o tal prêmio
europeu, recebeu um cartão assinado por alguns dos mais notáveis musicistas europeus, o que provocou
muita lagrima e muita saudade, visto que todos lamentavam a ausência dela...

*******
Indo eu de viagem para São Paulo com uma sobrinha, começamos a conversa r a respeito dela, pois essa
sobrinha a considera... um gênio. Ia ela comentando comigo o fato dessa artista saber tudo quanto seja
possível saber, desde que nisso se empenhe. E eu concordando... Dias depois, chegada a casa dela, contei-lhe
que um sobrinho meu aprendera a dar passes e que eu pretendia aceitar o convite dele para ir a uma sessão
destinada a esses passes, os quais talvez me curassem de certo mal-estar que eu andava sentindo... E ela
então, com toda a naturalidade, se ofereceu: “Se você quiser... eu também sei dar passes espiritas!” Comecei
a rir pois jamais pensei que ela soubesse o que quer que fosse de espiritismo. Ao que ela se apressou em me
explicar como e que se fazia, etc. Ainda a rir-me, telefonei para aquela sobrinha para dizer-lhe: “Olhe, ela
também sabe dar passes na gente!” E juntas nos pusemos a rir, de tantas habilidades.

*******
Estando de férias, aqui no Rio, foi com o filho, tomar banho de mar no Castelinho. Estava na água,
quando percebeu que um sujeito mergulhado lhe passava juntinho as pernas. Dai a pouco, o fato se repetia, o
mesmo sujeito, ainda mergulhado, com um maio amarelo... Da terceira vez, alarmou-se e só teve um
pensamento. Levar para a terra aquele corpo que as ondas insistiam em trazer-lhe. E foi o que fez. Agarrou o
pé do sujeito e foi arrastando para a praia. Ainda tentou pedir ajuda a uma moca ali perto, mas esta, ouvindo
falar em afogado, quase desmaiou! Afinal, chamou o filho que imediatamente a ajudou, agarrando o homem
pelo outro pe. Já na beirinha da praia, pediu a um senhor de cabelos brancos que arrastasse o corpo mais para
a areia seca. O senhor logo a atendeu e correu em busca do corpo de salvamento, enquanto ela se mantinha
afastada do reboliço dos curiosos. A ambulância chegou. Tentaram respiração artificial mas, foi tudo inútil.
Ela só se retirou quando viu que não havia mais remédio... Levou três dias impressionada, sem poder direito,
pois logo que ia adormecendo, sentia a sensação daquele pé cadavérico, a enregelar lhe a mão... Tudo isso
porque achou que era seu dever trazer a praia aquele corpo que o mar lhe confiava.

*******

Agora, anda metida nos candomblés da Bahia, onde passou diversas temporadas, a fazer pesquisas.
Entusiasmadíssima! Diz que tudo aquilo e relacionado a antiga Grécia e sua mitologia. Ate os deuses se
assemelham. Sabe quase tudo sobre as musicas e toques, tendo mais de cinquenta musicas anotadas, com as
letras em nagô, etc. Já apresentou varias, em coral por ela formado, para o Grêmio da Faculdade de Filosofia,
em São Paulo. Cantigas para os doze orixás, dirigidas por ela, enquanto um dos filhos toca atabaque.

*******

Ainda teria muita coisa a contar sobre ela, ruim ou boa. Mas si o fosse fazer, levaria muito tempo. Por
isso desculpo-me por ter estendido tanto, como se fosse coruja, o que absolutamente não sou. Essa bisneta se
parece muito com àquela avó do principio. Só que as incríveis desta são de outro gênero...
Quanto aos filhos, o que tem a irmã de extrovertida, tem eles de introvertidos, de forma que tenho muito
pouca coisa a contar de ambos, estando eles, graças a Deus, bem contentes por isso, pois na certa vão
escandalizar-se quando souberem de tudo isso que escrevi sobre a irmã.

*******

Ocorre-me uma incrível do mais velho, engenheiro, arquiteto e escultor. Ele faz murais e tinha em casa a
maquete de um, a qual vista por um conhecido, despertou grande admiração. Essa pessoa encomendou logo
um tal mural mas, ao ver o esquema, resolveu pedir um abatimento e logo a seguir, pediu também que ele
fizesse uma pequena modificação, etc. Meu filho levou os esboços para casa e, depois de tudo pronto, ao
entregar a encomenda, declarou ao comprador que o trabalho iria ficar pelo dobro. Este ficou
desapontadíssimo e teve que desistir do mural ficando apenas com o esboço já pronto, pelo qual meu filho
cobrou apenas o suficiente para cobrir as despesas que tivera com o material... inquirido pela mulher porque
fizera aquilo respondeu: “Ora, e para ele não chatear mais, pedindo para mudar aqui, mudar ali!..”

*******

Tinha ele apenas 4 anos, quando em nossa casa esteve hospedado um tio dele, irmão de meu marido.
Este cunhado era estudante da Escola militar e, por passatempo, passava horas conversando com o menino
ao qual ensinou, por brincadeira, as leis de Lavoisier, de Arquimedes, de Newton, etc. isso nas vésperas de
partir para Minas. Enunciava a lei e fazia o garoto repetir. Pouco depois, arrumou as malas e foi-se embora.
Como o menino falava muito lentamente, ninguém tinha muita paciência para ouvi-lo repetir as frases, e meu
cunhado se divertia exatamente por isso. Na semana seguinte, porem, já de regresso, chamou o menino e
perguntou-lhe: “Então, vamos ver se você sabe. Qual a lei de Lavoisier?” E para seu grande esperanto, o
menino repetiu exatamente as leis solicitadas com toda a naturalidade. Ate meu marido que era meio
casmurro e não fava muita atenção aos filhos, ficou boquiaberto. O que era realmente incrível, para uma
criança de apenas quatro anos!

*******

Do outro irmão, lembro-me de uma incrível que ocorreu depois dele casado. Quando a mulher deu a luz
a ele, que esperava ansiosamente um menino, ficou desapontado quando nasceu uma menina. A qual foi
recebida com bastante frieza... Estava eu na maternidade quando ele chegou e ficou a olhar para a filha, sem
dizer palavra. Eu então interpelei-o dizendo: “Porque você não pega logo sua filha e põe no colo, em lugar de
ficar ai parado como se ela fosse uma estranha?” Ao que ele respondeu: “E agora? Só sei educar menino;
como irei educar essa menina? Vai ser muito difícil!”
Tetravó: Anna de Alencar Bomilcar (Mamae-N)
Tetravô: Fenelon Bomilcar da Cunha

Trisavós:
Filhos: Alfredo, Fenelón, Alvaro, Arthur, Aurelia, Eponina Isaura, Julia

Você também pode gostar