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Fi

"Eu não sou uma pessoa que pode ser amada, tocada, muito menos perdoada. Eu
sou um lugar. O caminho de carne pela qual as almas horrendas transitam afim
de encontrarem seus assentos no circo do inferno."

Adrien Agreste.

Fi
Adrien Agreste por Adrien Agreste.

Hoje, eu vou contar a minha história. Li em um livro que se você


escreve sobre a sua vida ela se torna mais valiosa. Com certeza irei me
arrepender disso, mas não sou do tipo que pensa muito.

No momento, estou me preparando para travar uma guerra contra


o rei do inferno, mas para vocês entenderem como eu, Adrien Agreste,
antes um mero humano imortal, cheguei a isso, vamos ter que voltar
essa história um pouco.

Fi
Eu era aquele tipo de criança que você duvida da capacidade de
falar. Devido aos status da minha família, donos de uma grande rede
de tecnologia aérea, nossa casa quase nunca estava vazia, lembro do
som dos mocassins de couro ressoando pelo assoalho, meu pai era o mel
dos magnatas amantes de dinheiro.

"Que jovenzinho gracioso, parece tanto com a mãe."

Suas esposas diziam enquanto me secavam com aqueles olhares


pregados acima de seus sorrisos falsos, minha mãe lhes servia chá de
camomila enquanto as prendia em conversas tediosas a fim de agradar
o marido. Tenho quase certeza que no fundo de seus gestos elegantes e
conversas intelectuais ela desejava que o chá as deixassem cair em
sono.

Minha irmã, Ravenna Agreste, morava no exterior. Não fiquei


sabendo muito sobre na época por conta de minha idade, mas pelo que
eu entendi, Ravenna era filha de um caso da minha mãe com um de
nossos cozinheiros, quando meu pai descobriu, ficou puto. Minha mãe
até foi boa em esconder, mas os traços asiáticos da menina
entregaram o jogo logo em seu nascimento, e o cozinheiro também. Ouvi

Fi
de umas amigas de minha mãe que Ravenna foi mandada para estudar
no exterior e morar com minha tia a fim de acalmar o meu pai.

Por esta razão, eu raramente a via.

Tá legal, até então você pode pensar que nada disso leva ao demônio
assassino egocêntrico que sou hoje, e você tem razão, por enquanto.

As coisas tomaram um rumo que eu jamais havia imaginado que


poderiam tomar. Era sexta feira, uma noite de Inverno, havíamos
gastado muita grana decorando cada metro quadrado daquela mansão
e ainda assim eu sentia que havia mais clima de natal numa loja de
bugigangas do que naquela casa.

Fi
Eu estava em meus catorze anos e como todo moleque fedorento de
catorze anos já fez, eu estava jogando vídeo game às quase duas da
manhã. Foi quando ouvi um barulho estridente que me fez travar na
cadeira olhando para trás com os olhos arregalados e o mouse
prensado sob meus dedos, minha governanta sempre dizia que se eu
ficasse acordado até tarde, o senhor Hamish roubaria minha coleção
de gibis.

Andei sorrateiramente até a sala sentindo minha respiração


acelerar como que por conta própria, as luzes da árvore de natal
gritavam pela sala inteira me deixando tonto. Parei no corredor ao me
deparar com cacos do vaso em que ficavam as cinzas da vovó.

Droga. Minha mãe vai ficar insana.

Resolvi correr até o quarto dos meus pais para contar o fim que
havia levado a amada urna, antes que eles pensassem que havia sido eu
o responsável.

Estranhamente, a porta já estava aberta, coisa que nunca


presenciei durante todos meus anos de vida. Adentrei o cômodo sendo
quase que imediatamente cortado pelo cheiro metálico e denso que
dominava o ambiente. Senti um arrepio subir pelo meu corpo tomando
meu peito em um toque gélido, mesmo sem nunca ter experienciado algo
do tipo, eu sabia exatamente com o que eu me depararia.

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Se me perguntassem se me arrependo de algo que eu já tenha feito,
certamente, foi ter acendido a porra das luzes.

Lembra da garota que falei que foi chutada pro exterior? Pois é, ela
voltou. Ainda lembro da feição estampada em seu rosto ao me analisar
de cima a baixo, ela cheirava a perfume caro misturado com o mirtilo
de seu chiclete. Não demorou muito para que ela passasse por mim
batendo suas botas de couro pelo piso, seguida de dois homens
gigantescos que carregavam suas dezenas de malas como se fossem
nada.

Fi
Ravenna ficou com a minha guarda assim que completou dezoito
anos. Ela estudava e trabalhava, então não nos víamos com muita
frequência, mas até que nos dávamos bem. Seu gosto horrível para
séries e meu gosto péssimo para lanches deixaram juntos nossas noites
muito mais divertidas. Eu cheguei a lhe dizer para parar de trabalhar
pois isso a estava desgastando desnecessariamente, nós tínhamos uma
fortuna daquela família em nosso nome que duraria até nosso último fio
de cabelo branco cair. Então ela se virou para mim, dizendo com essas
exatas palavras: "Um dia Adrien, você irá entender que pessoas como
eu apenas ganham o esquecimento."

Ravenna era forte, não penso duas vezes ao dizer isso. Por outro
lado, eu estava sendo completamente o oposto do que ela vinha sendo.

Na verdade, eu estava prestes a foder com tudo.

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Como havia dito, eu não era muito de falar, e isso me rendeu exatos
nenhum amigo, nenhum interesse romântico, na maior parte da minha
adolescência. O que eu não imaginava, é que num dia eu era apenas um
filhinho de papai que não tinham lá muito interesse no que eu fazia ou
deixava de fazer, no outro eu era um fenômeno, filho de um casal
assassinado misteriosamente com grandes nomes na lista de suspeitos,
além de que eu iria ser o dono de todos os negócios do meu pai assim que
alcançasse a maioridade.

A escola inteira desejava falar comigo, eu recebia perguntas até


quando estava no mictório. Quando não na escola, era cercado nas
ruas pelas luzes dos repórteres. Cheguei a ter um ataque de pânico uma
vez, lembro que corri pra biblioteca, e me encontrei em um dos
corredores frente a menina mais linda que já havia visto na minha
vida.

Bianca Furler.

Cara, eu fiquei tão perdido nela. Porém, devo dizer que a Bianca
entrará em cena mais a frente. Antes dela, eu fiz meus primeiros
amigos, eles eram populares na escola pelos rumores de se meterem com
coisas consideravelmente contras a lei. Eu, particularmente, gostava

Fi
da paz que eu obtinha ao andar com eles, ninguém ousava entrar no
caminho de: Harry Miller, Freddie Hill, e Mason Scott.

E agora, no do mais novo integrante, Adrien Estúpido Agreste.

Esses caras eram malucos por festas, todo tipo de festa, a gente
pisava em cada casa que tivesse ao menos duas garotas dispostas a
ficar nuas e um caixote de cerveja.

Eu gostava de sair com eles, não, eu amava sair com eles. Pela
primeira vez eu havia conseguido esquecer a morte dos meus pais, era
como se tudo que existisse fosse apenas eu, o copo de cerveja na minha
mão e a garota gata que estivesse no meu colo. E falando em garota
gata que estivesse no meu colo, eu estava tão bêbado na minha
primeira vez que não lembro de nenhum detalhe de como foi.

Na verdade... Tenho quase certeza que a bunda dela era enorme.

Até aí você pode considerar consideravelmente normal para um


adolescente. Eu só não percebi que eu estava aumentando a frequência
com que bebia.

Fi
Depois das festas, eu sempre me deparava comigo mesmo, sozinho,
sentado em minha cama naquela casa fria, tudo voltava à realidade.
Beber em casa me levava de volta à sensação insana que era estar
rodeado de pessoas rindo do que eu dizia, sorrindo para mim, com
aqueles olhares que refletiam o quanto me achavam o máximo, eu
odiava os momentos em que não estava submerso naquela sensação
viciante. Então eu bebi.

E bebi.

E bebi.

E bebi, mais uma vez.

Ravenna me chamou para conversar, dizendo que eu vinha agindo


estranho, eu não passava mais as "noites de irmãos" com ela, andava
calado e não comia direito. Toda vez que ela abria a boca eu sentia meu
sangue esquentar, ela não entendia, eu precisava daquilo, me fazia
sentir vivo.

Tivemos uma briga feia, e ficamos sem nos falar por algumas
semanas.

Fi
Hoje posso ver como ela tentou, ao seu alcance, me ajudar, mas ela
era tão jovem e quebrada quanto eu. Tínhamos tantos machucados que
os adultos fingiam não ver.

Eu vinha me sentindo um lixo naqueles dias, quando ouvi aquela doce


voz ser dirigida a mim nos corredores da escola, Bianca.

Bianca.

Ela era diferente de tudo que eu já havia visto, sua companhia me


dava paz, sorrisos. Em exatamente uma semana estávamos
namorando. Éramos o casal mais comentado pela escola, arrisco dizer
até pelos professores. Vivíamos juntos, fazíamos tudo juntos, diminuí
consideravelmente a frequência com que bebia, tudo o que eu precisava
era ela, seu cheiro, seu cabelo, seu toque, eu amava aquela garota.

Eu era obcecado por aquela garota.

Fi
Tudo estava perfeito, eu sabia que com a Bianca, não haveria nada
que pudesse me abalar. Nos derrubar. Nada.

Exceto quando ela terminou comigo.

Vocês terão que me perdoar, mas prefiro não detalhar aqui o


momento em que nos separamos. Quando penso nesse dia, sinto meu
peito apertar como se pudesse parar de bater a qualquer momento. Eu
não estava preparado para aquilo. Eu nunca havia me preparado para
a possibilidade de perder o amor da minha vida.

Bem, pode ser que só tenhamos namorado por três meses, mas
foda-se, eu amava ela pra caralho.

Fi
E como se não pudesse piorar, piorou, eu me apeguei ao álcool como
nunca antes. E não era pela felicidade, risos, olhares e toda essa
baboseira, era por raiva, raiva que eu sentia por mim, por ela, e por
toda essa merda que estava acontecendo.

Ravenna, mais uma vez tentou falar comigo, e mais uma vez, eu a
afastei, não estava com cabeça para ouvir minha irmã dizer que eu
estava cavando minha própria cova. E eu estava mesmo, mas não
queria ouvir.

Às vezes me pergunto se eu não estava depressivo nesta época, não


sei, não passou pela minha cabeça a possibilidade.

Mas é o que o ditado diz, nada está tão ruim que não possa piorar.

Eu conheci a Jennifer.

Vocês terão que me perdoar mais uma vez, porque esta é a fase que
menos lembro da minha vida, tudo que lembro foi que essa puta,
desgraçada, vagabunda, filhote de jegue, ferrou completamente comigo.

Fi
Jeniffer era uma sociopata completamente obcecada por mim, suas
intenções são algo que eu nunca desvendei e jamais irei. Numa hora ela
parecia me amar, e em outra, querer me matar. Enquanto a Bianca me
fez largar o álcool, Jennifer fez o completo oposto, ela sempre reforçava
o quanto eu precisava beber, o quanto isso seria bom e faria me sentir
melhor.

Lembro vagamente do dia que dei uma festa em casa ao seu pedido,
eu estava completamente drogado por algo que ela colocou em meu copo,
ela me desafiou a subir no telhado da casa e me jogar, mas Ravenna
nos viu e me fez descer antes que eu fizesse aquela merda. Não sei bem
o que aconteceu desde então, só sei que depois daquela noite nunca

Fi
mais vi a Jennifer. Ravenna sempre foge do assunto, mas tenho quase
certeza que ela está envolvida nisso.

Pouco tempo depois de todo o furacão Jeniffer, as aulas acabaram,


enfim eu havia sobrevivido ao ensino médio. Meus amigos haviam
parado de falar comigo desde a festa na minha casa, eu fiquei com a
fama de "garoto suicida", mas até que eu estava gostando do tempo
sozinho.

Eu, TV e cerveja.

Foi assim por alguns dias, até Ravenna desaparecer.

Sim, minha irmã simplesmente foi embora.

Ela deixou um pedaço de papel dizendo que havia encontrado algo


importante e precisava ir atrás sem previsão de volta, e logo abaixo
uma bala grampeada.

Eu ainda mato essa garota.

Fi
Mas devo agradecer à Ravenna, que como um giro na chave, me fez
perceber algo que eu tinha de fazer. Eu sabia que meus avós haviam
deixado um imenso Castelo em meu nome. Peguei meu laptop pesquisando
pelo endereço do lugar, as fotos eram bem bizarras, tudo bem, mas eu
tinha mais que o suficiente para querer ir lá. Não estou falando só do
castelo, meus avós eram guardiões de grandes relíquias que não podiam
vir a público nos museus do país, era nessa tralha que eu estava
interessado.

Além do mais, que tipo de coisa seriam essas que não podem vir a
público?

Até aqui, você deve ter concluído que tudo para o que a minha vida
colaborou foi para que eu fosse no máximo... Fodido. No entanto, é
agora que as coisas ficam de fato interessantes.

Fi
Quem é Adrien?

O sol parecia despencar ainda mais rápido, particularmente


naquela tarde. Desci de minha moto ainda pensando na possibilidade
de ter sido seguido, pode até ser que eu tenha pego a estrada mais
inóspita possível e ido para o lugar mais distante ainda com sinais de
vida. Eu estava literalmente no meio do mato, beleza. Porém, quando se
é herdeiro de uma enorme empresa da qual cada ação mexe diretamente
nos bolsos de muita gente perigosa, sumir é a última coisa que eles
querem de você.

Ergui a cabeça até meu pescoço dizer basta. Uau, era ainda maior
pessoalmente. Se eu conseguisse achar o caminho de volta já estaria
fora do esperado. Adentrei os portões enferrujados fitando com certa
agonia todo aquele mato que parecia ligar as enormes paredes ao chão.
Devo dizer que a cor vermelha da velha tinta me chamou atenção, uma
escolha interessante.

Felizmente, a chave ainda conseguia abrir aquilo que imagino que


deveria ser uma tranca. Os móveis estavam atolados em poeira e o
chão irritantemente rangia a cada passo meu, tudo estava tão em seu
devido lugar, nada coberto, parecia até que as pessoas daqui haviam
deixado o imóvel com intenções de voltar.

Fi
Andei lentamente arrastando as pontas de meus dedos pelas
velharias admissivelmente bonitas que ali se encontravam. O que mais
me chamou atenção, foi a quantidade absurda de livros que preenchiam
todas as prateleiras, haviam duas escadas para que alcançassem seus
pontos mais altos.

É, eu não esperei tempo antes de puxar algum dos livros para


minhas mãos. Sempre li bastante quando meus pais não estavam em

Fi
casa, aprendi russo, alemão, francês e japonês pelas ordens de meu
pai. No entanto, aquela língua ali eu não fazia ideia do que queria dizer,
certamente era latim. Pela capa, me pareceu algo como um conto de
lobisomens, um pouco assustador demais para um livro infantil. De
qualquer forma, o joguei para o lado para logo puxar outro.

A capa era rústica, couro, talvez? Folheei as páginas amareladas


parando em uma da qual seu desenho me chamou a atenção.

É sério isso? Só porque esses livros possuem símbolos demoníacos


eles os escondem da população. Ri altamente da tolice do governo de se
afugentar por desenhos toscos, fechei o livro com força, pelo qual me
arrependi logo em seguida quando uma nuvem de poeira se apossou do
meu rosto, espirrei fortemente, o que me fez perder o equilíbrio e bater
as costas na estante.

Tudo o que me lembro, foi de em um segundo olhar para cima e ver


centenas de livros caindo, no outro, tudo se tornou escuro.

Fi
Acordei em um salto, para logo depois levar a mão à cabeça que
fora tomada por uma forte dor. Porra, tem que ser muito idiota para
desmaiar com livros.

Levantei lentamente recuperando a consciência e o foco pelo o que


eu de fato estava de fato fazendo ali, dei uma olhada ao meu redor a
fim de ver o tamanho do estrago que fiz.

É, até que estava maneiro. Se eu ateasse fogo ali agora mesmo


estaria dentro de uma cena de Fahrenheit 451.

Estava a sair quando parei de repente, olhei para trás tendo


minha visão capturada por algo deveras interessante, um dos livros
parecia estar... Brilhando?

O peguei com as duas mãos analisando suas linhas atentamente,


não era latim, na verdade, era algum tipo de letra que eu jamais havia
visto, e não era por isso que eu estava surpreso, e sim porque raios eu
estava entendendo!

A cada palavra lida podia sentir a energia do livro fluindo pela


minha pele, inexplicavelmente, eu sentia que precisava daquele livro.

Fi
Eram instruções, instruções de como realizar o ritual Desejo do
Coração de Sangue. O ritual do desejo consiste em invocar um ser das
profundezas, um poderoso, o invocador deve lhe emprestar o corpo para
que ele vague sobre a terra por uma noite, e sob o alvorecer da manhã
seguinte, um desejo deve de ser concedido pelo ser das sombras.

Fechei o livro com força cessando o fluxo ou que quer que seja que
estava acontecendo. Meus olhos ficaram vidrados naquele pedaço de
papel em minhas mãos. Se aquilo era verdade, então tudo acabara de
ficar diferente.

Eu podia salvar meus pais.

O que posso dizer hoje, é que eu realmente acreditava que todas


minhas ações eram movidas apenas para o bem da minha família, mas
a verdade é que eu sempre estivesse pensando apenas em mim, eu não
queria meus pais de volta, eu queria que as coisas voltassem a ser como
eram, antes do assassinato, antes do álcool, antes da Bianca, antes
da Jeniffer, antes da Ravenna partir, antes de eu me tornar quem sou
hoje.

Eu queria ser aquele garoto que apenas se importava de passar a


perna na governanta para jogar vídeo game até tarde.

Fi
Não preciso falar muito para que você saiba que fui atrás de
realizar o ritual, os materiais necessários me desprenderam semanas,
tive que passar pela cidade sorrateiramente algumas vezes para
comprar comida e remédios. Eu vinha me alimentando bem e até
dormindo regularmente para o que costumo fazer, mas por alguma
razão não parava de sentir tonturas todos os dias.

Foi questão de tempo para que o tão esperado dia chegasse. O ritual
estava pronto para ser iniciado.
Adrien, eu realmente queria entender quanta bosta tinha que ter em
sua cabeça para ter topado com uma coisa daquelas.

Observei pela janela o céu tornar-se alaranjado, minhas mãos


estavam trêmulas, tinha que dar certo, mas no fundo eu também tinha
medo de que desse.

Me desloquei ao local designado para que tudo ocorresse. Acendi


vela por vela, pus o manto sobre meus ombros e me ajoelhei frente ao
círculo de sal vermelho. Com o livro em mãos recitei as palavras do
encantamento que em fração de segundos, fizeram surgir uma mistura
de sombras, escuridão, dentes e raiva na forma de uma criatura
gigantesca, bem na minha frente. Caí para trás com o susto, aquela
coisa parecia tudo, menos com alguém que iria querer me ajudar.

Fi
- É-é... Eu, e-eu sou o... A-Adrien. - ajeitei minha postura a fim de
mostrar um pouco mais de seriedade - Vi no livro que você realiza
desejos em troca de uma possessão temporária.

O monstro pareceu me analisar com o que imagino serem os olhos, e


depois de um longo silêncio perturbador, por fim ele disse algo:

- Sim, eu faço. - Mais silêncio se estalou pelo ambiente, até eu ter sido
mais humilhado do que jamais fui na minha vida inteira. - Só não
contava com o ser humano mais fraco e burro que já vi, fosse ter a
cara de pau de me invocar, sem contar que você parece um filhote. Com
esse corpo deve no máximo sair da rua até que seus membros de merda
entrem em colapso e explodam.

É, ele disso isso. E sabe o pior? Ele estava certo.

- B-Bem, é, eu não sou o mais forte nem nada do tipo, mas acredite,
você vai ter que esperar bons anos até que outro maluco ache o livro e
te liberte. - Eu estava a suar frio, tinha que convencê-lo, não tive esse
trabalho todo só para ser rejeitado.

- Me diga o seu nome. - Parecia sério. - Completo. - A cada vez que ele
falava, mais o cômodo se tornava frio.

-Adrien Graham Agreste. - Pareceu surpreso por um instante.

Fi
- Oras, por que não me disse logo que possuía sangue da família
Graham? - Eu deveria? - Ou você não sabe sobre sua família, ou é mais
idiota do que pensei.

- E o que é que eu poderia não saber sobre minha família? - Ele


pareceu sorrir.

- Seus avós eram de uma linhagem de exorcistas, graças à capacidade


de ver, entender e invocar os demônios. - A cada palavra que ele dizia,
mais eu me arrependia de onde estava metendo o nariz. - Só me
surpreende você estar fazendo o completo oposto do que seus
antepassados faziam, sabia garoto?

Tudo bem, com certeza isso era algo que eu gostaria que tivesse sido
mencionado antes. Seu sorriso ia de canto a canto e já posso me ver
tendo pesadelos com essa imagem. Continuou:

- Porém, devo concordar que não tenho muitas opções, e seu corpo deve
suportar uma noite sem explodir. - A criatura se aproximou ao ponto
de sua respiração balançar o meu cabelo. - Trato feito.

Antes que eu pudesse sequer reagir ou dizer algo, senti uma dor
latejante subir pelo meu corpo até que tudo se tornasse escuro, como se

Fi
houvesse apenas piscando, abri os olhos me deparando com um lugar
completamente diferente.

Eu estava no meio da floresta praticamente nu, ofegante, e muito,


muito enjoado.

- Mas que porra?!

Olhei para trás avistando o castelo ao longe, então olhei para


baixo ainda em transe, encontrando meu corpo coberto de sangue e
terra. Não sabia se o sangue era meu ou de outra coisa. O sol
começava a cobrir minha cabeça e isso me deixou ainda mais irritado.

Voltei para o castelo procurando pelo "demônio" do qual eu nem


sabia o nome. E o desgraçado não estava em lugar nenhum.

Fi
Inesperadamente, ele voltou.

Na noite seguinte, acordei com sussurros nos meus ouvidos, era a


criatura.

- Foi divertido, não foi Agreste?

- Onde você estava? Nós tínhamos um acordo. - Não podia vê-lo


graças à escuridão, mas podia senti-lo e saber exatamente onde
estava, coisa que eu não fazia antes.

- Acordo? Não, Pacto. - Duas palavras para a mesma coisa: Ele estava
me enganando. - Sinto muito ter que lhe dizer garoto, mas não sou eu o
demônio que você busca.

Era só o que me faltava.

- Mas do que diabos você está falando..? - Eu estava com tanto sono
que nem percebi o trocadilho.

- Você não entendeu o quê o livro realmente estava tentando lhe dizer,
desejo não é uma ação direta a ser concedida, desejo é o que você possui
no seu coração, você saiba ou não. Eu sou Belfegor, o demônio da
Preguiça, e o seu desejo? Não sou capaz de realizá-lo.

Fi
- Sabe o que eu penso? Que você é realmente preguiçoso e quis me
passar a perna. - Passei a mão pelo cabelo tentando raciocinar um
pouco, se o que ele estava dizendo era verdade, quer dizer que...

- Você terá que nos invocar até conseguir encontrar o demônio que é
capaz de conceder-lhe.

É, as coisas estavam dificultando pro meu lado.

Mas acho que agora é a hora ideal para dizer que enfim você deve
ter entendido como eu caí no meio disso tudo. Acontece que eu era
jovem e ingênuo demais para entender que com demônios, não se
brinca, mas relaxa, já já eu vou aprender isso, mesmo que da pior
maneira possível.

Fi
Era o ano de 2017. Se eu já não era maluco, agora eu estava
fazendo de tudo para ser. Todas as noites um demônio era invocado, e
todas as noites eu era possuído pelo mesmo, saia pelas ruas e o mesmo
se repetia dia após dia.

Fui descobrir depois de algumas semanas o que eu de fato fazia


quando estava "inconsciente". Vi no jornal de uma cafeteria da cidade
vizinha, algum tipo de criatura vinha matando pessoas durante as
noites, e sabe quem sempre volta cheio de sangue para casa ao
amanhecer? Exatamente, eu.

As imagens passavam mostrando corpos destroçados sob a


censura. Senti meu corpo gelar. Meu coração acelerou. Estava enojado
comigo mesmo.

- Belial! - Gritei ao mesmo tempo que abria as portas com força. Belial
é um demônio de quinta categoria.

É, acho que eu devia ter explicado esta parte. Graças aos inúmeros
rituais e o ambiente que fora preparado diversas vezes, o castelo estava
sendo tomado por energias infernais o suficiente para que os demônios
mais fracos conseguissem vagar pelos arredores sem efeitos colaterais.
Graças a isso, cerca de oito demônios não foram embora e resolveram
ficar perturbando meus ouvidos vinte e quatro horas por dia.

Fi
- Eu já disse que não fui eu quem roubou o seu canivete.

O quê? Roubaram meu canivete? -

- Não, não, esquece isso, não é sobre isso que preciso falar. - Andava
em círculos pensando no que eu faria se aquilo fosse verdade.

- Então o que é?

- Vocês estão matando pessoas com o meu corpo?! A porra de pessoas


inocentes?!

- Aí, fica calmo Adri-

- NÃO ME MANDA FICAR CALMO!

Belial se afastou e eu percebi que havia perdido o controle de novo,


desde que tudo isso começou, tenho sentido raiva fora do normal com
coisas pequenas.

- Só... Só me diz se é verdade. -Peguei uma garrafa de vinho que estava


pela metade sobre a bancada da cozinha a fim de esfriar a cabeça um
pouco.

Fi
- Tá, é verdade. Mas eu achei que você tivesse ideia, sei lá, você
literalmente vomita pedaços dessas pessoas. - Espirrei o vinho da boca
totalmente incrédulo.

- Eu achei que fossem cervos! Têm vários na floresta! - Isso só pode


ser brincadeira.

- Cervos? Está achando que somos o quê, lobisomens? Nossa fome é


por carne e sangue que contenham alma, animais não possuem almas,
seu bocó. - Joguei a cabeça para trás respirando fundo, Belial parecia
estar se divertindo com tudo isso. - E vamos lá, você quer os seus pais,
não é?

- Que se foda. - Sai em passos rápidos o deixando para trás. Ele


estava certo, eu quero os meus pais de volta não importa o quê, e o que
eles fazem ou deixam de fazer, não é da minha conta.

Fazia quase um ano que vinha estando naquele castelo, dos


demônios de mais alta hierarquia, invoquei Belfegor e Azazel,
respectivamente demônios da preguiça e da ira. Por causa deles tenho
me enfurecido com qualquer coisa e não tenho a menor vontade de
cuidar do Castelo ou tentar beber menos. Porém, o que realmente me

Fi
causava arrepios eram os demônios de segunda hierarquia que tive o
desprazer de ser marionete:

Carreau: endurece o coração dos homens.


Carnivean: provoca a obscenidade.
Olivier: ligado à crueldade.

Eu estava me tornando pior do que imaginei que alguém poderia ser,


e sabe o mais engraçado? Isso era divertido pra caralho.

Dos demônios que conviviam comigo, o pior era o Ralph. Ele sempre
encontrava um jeito de me tirar do sério, e eu já vinha tendo
dificuldade o suficiente com isso. Ele conseguia ver o que eu pensava e

Fi
sentia, não havia nada que ele não soubesse sobre mim, e sabia
exatamente como usar isto ao seu favor.

Não havia nada que Ralph mandasse que eu não obedecesse, os


outros demônios não ousavam mexer comigo porque sabiam que já não
eram tão fortes, mas Ralph me vencia mentalmente, ele era do pior
tipo.

Dois anos, dois anos que eu estava vivendo no meu próprio inferno
que criei na terra. Percebi que algo não estava correndo como previsto,
eu vinha sentindo mais dores insuportáveis, tive febres muito altas,
quando achava que estava para morrer, acordava na manhã seguin
ainda mais forte.

Fi
Eu andava pelos corredores não sentindo nenhum membro do meu
corpo, chifres estavam aparecendo e o meu cabelo crescia bem mais
rápido, haviam outras mudanças também como na parte de trás que
prefiro não mencionar em pró da minha dignidade. (As asas foram a
parte mais maneira, mas vieram bem depois)

Eles riam me vendo passar, zombavam do meu estado. Todos sabiam


que isso ia acontecer, exceto o próprio, enfim me tornei o completo
fracasso pelo qual eles torciam. Era uma diversão pra eles. Um garoto
idiota que achou que podia salvar os pais mexendo com o sobrenatural.

Eu estava me tornando um monstro. Não, eu era um monstro.

Acredito que qualquer um teria pensado em parar com aquela merda


toda, mas eu fiquei ainda mais motivado a continuar, eu ia mostrar
pra eles que eu não era mais o cara que entrou aqui pela primeira vez.
E sinceramente, eu não tinha mais nada a perder.

Fi
Evoluí o suficiente para que eu pudesse invocar os demônios sem
precisar ser possuído, eles disseram que eu estava me tornando uma
espécie de híbrido e por isso já não era mais um corpo habitável. Por
outro lado, eu estava começando a sentir uma fome avassaladora por
algo que eu não fazia ideia do que fosse. Havia vezes que meu corpo
rejeitava a comida e eu colocava tudo para fora.

- Você sabe que está na hora de se alimentar de verdade, não sabe? -


Ouvi a voz de Baltazar pelas minhas costas enquanto eu estava apoiado
sobre o vaso sanitário.

- Do que você tá falando..? - Perguntei com a voz embargada, estava


me sentindo atropelado por um trator.

- Cara, você precisa comer pessoas, você tem que comer pessoas.

Ri.

- Eu não vou comer pessoas.

- Então já pode se despedir dessa terra imunda. - Baltazar


desapareceu no ar me deixando ali, tenso.

Fi
Após acordar no meio daquela mesma noite com a fome
insuportável novamente seguido de um pesadelo. resolvi que não custava
nada ir descobrir se Baltazar estava certo.

Saí pelas ruas agasalhado, o inverno se aproximava, esta época do


ano em particular me faz lembrar de como era estar em casa, na noite
em que meus pais, vocês sabem.

Caminhava olhando para meus pés, estava mais refletindo do que


realmente em busca de comer alguma coisa.

Fi
Foi quando avistei um carro parar no posto de gasolina mais a
frente, uma mulher desceu para abrir o tanque, parecia sozinha.

Isso parecia extremamente errado, e era, mas resolvi me aproximar


sem muitas intenções, na verdade, eu não fazia ideia do que queria até
ter conseguido.

- Boa noite. - Me apoiei na porta dianteira.

Ela me olhou sendo pega de surpresa. Seu cachecol era preto e parecia
feito à mão.

- Boa noite. - Virou os pés voltando sua atenção para o tanque que
estava enchendo.

- Precisa de ajuda?- insisti.

- Eu sei encher um tanque sozinha, senhor. - Revirou os olhos. A


observei mais um pouco, era o tipo de garota que eu consideraria ficar
um tempo atrás, mas graças ao Carreau, meu interesse em mulheres é
inexistente agora. Idiota.

- Não sei, talvez eu possa te ajudar em sei lá... Outra coisa. - Ela virou
seu rosto para mim agora parecendo me analisar pela primeira vez,
sorriu.

Fi
- É, acho que você não é de se jogar fora.

De um segundo pro outro estávamos em seu carro, seus lábios


devorando os meus e minhas mãos deslizavam pelo seu corpo, me lembro
perfeitamente deste momento, porque foi quando eu percebi pela
primeira vez, que eu jamais voltaria a ser quem eu era.

- Nossa, seus dentes são afiados. - Ela riu. A afastei bruscamente


olhando em seus olhos. - Por que está me olhando assim, está me
assustando.

Seu sorriso se transformou em gritos no momento que abocanhei


seu pescoço, senti o sangue quente preencher minha boca, o sabor era
vivo, delicioso, viciante.

Fi
A cada pedaço que lhe arrancava, eu sentia meu corpo recuperar as
forças, não só isso, eu me sentia vivo, ela era tão deliciosa, tão doce
quanto sua voz.

Caminhei lentamente de volta para o castelo, carregava seu


cachecol preto em minhas mãos, minhas roupas carregavam o seu
sangue, seu cheiro.

E como um choque de realidade, tudo pela primeira vez parecia estar


fazendo sentido. Acho melhor que esta cidade esteja preparada para
me conhecer, porque o inferno vai começar a ficar quente.

Adrien Agreste.

Fi
Fim.

Fim? Até parece.

Fi
Fi

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