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Vida e memórias de Odilon Menegucci

Correspondências. Foto: Acervo Pessoal

É no bater incessante das asas de um beija-flor que vejo meu avô. Ou


quando olho para o meu braço, as linhas finas marcadas em minha pele se
encontrando para formar o desenho de um beija-flor são uma mera tentativa de
eternizá-lo. Confesso que tenho buscado algumas maneiras de fazer isso, dentre
elas a possibilidade de juntar em um livro todas as suas anotações registradas em
um caderninho durante anos. Confesso também que ainda não executei nenhum de
meus planos, diferente dele, que quando queria algo não sossegava até
consegui-lo. É assim que me lembro do meu avô: ativo, teimoso e insaciável.
Seus últimos desejos eram fazer com que aquelas duas únicas goiabeiras em
seu terreno se tornassem uma plantação que desse tantos frutos que ele teria de
recorrer à venda. Isso aos 92 anos. Perseguido por dores incessantes no braço
esquerdo, herança da maldita herpes Zóster e caminhando com a ajuda de um
andador. Sua mente, a de um jovem de pouco mais de vinte anos. Perguntou-me na
última vez que estive em sua presença, onde eu gostaria de fazer a tatuagem que
estava planejando fazer. Um beija-flor, pois me lembrava minha infância, época
doce como a groselha que meu avô colocava nos bebedouros para atrair os
bichinhos famintos. Disse-lhe que gostaria de fazer no braço, meu avô aprovou e
alertou-me, dizendo para escolher bem o artista que marcaria minha pele pra
sempre. Concordei e deixei-o ir depois de um tempo, afinal semana que vem estaria
de volta para vê-lo. Meu avô não esperou minha volta.
Nascido no município de Amália, próximo de Santa Rosa de Viterbo, Odilon
Menegucci não teve de esperar muito até que seu espírito levado e curioso, que
manteve até seu último dia, o guiasse para aventuras. Ele me dizia, como forma de
lição, não faça igual seu avô que começou a fumar e beber aos treze anos de idade.
Eu definitivamente não cheguei nem perto disso nesta idade. Mas sempre me
mantive atenta às suas histórias.
Seu pai, meu bisavô que nunca conheci, era um homem italiano carrancudo e
soturno que veio ao Brasil durante os primeiros anos de sua infância. Meu avô
mencionara algumas vezes o fato de “nunca ter visto seu pai sorrir”. Estranho
pensar que foi de um homem tão sério que veio uma das pessoas mais sorridentes
que conheci. Meu avô ria de suas próprias histórias, ansiando aqueles que sabiam
que aquilo era indício de que as aventuras narradas seriam promissoras. Ria
também de suas netas, eu e minhas duas primas. Ria do meu pai e de todos que
cruzassem seu caminho.
Meu avô definitivamente não passava despercebido, quando jovem exibia
uma fisionomia forte, fruto do trabalho árduo na fazenda e um ar de
responsabilidade que carregava no franzir de suas sobrancelhas grossas. Ele seria
facilmente um personagem da novela “Pantanal”. Com o passar dos anos, sua
postura foi se encurvado e os cabelos caindo e deixando à mostra sua calvície, por
vezes coberta por bonés de aba curva. Meu avô, no entanto, nunca deixou que a
idade abalasse sua vaidade e mantinha barba feita e os cabelos pintados sempre
que podia. Minha mãe dizia que ele era um verdadeiro galã e eu comecei a
suspeitar que isso era verdade depois de ouvir suas histórias sobre a juventude.
Quando jovem levava uma vida boêmia, a pinga que começou a tomar aos treze
anos o acompanhou pelos seus vinte, trinta, quarenta anos e por aí vai…
Juventude, isso foi algo que meu avô nunca superou, o fato de seu corpo não
acompanhar o trabalhar incessável da sua mente tirava as suas noites de sono.
Noites de sono, outra vilã na vida de meu avô, que por muito tempo sofria com
pesadelos e devaneios. Estes e outros aborrecimentos eram registrados em seu
caderninho de anotações, competindo espaço com lista de compras e lembretes de
contas a pagar. Destes registros, muitos eram sobre a morte, algo que meu avô
sempre teve medo por acreditar tão fielmente que não seria biologicamente possível
a existência de um pós-vida. Quem lê seus pensamentos céticos pode pensar que
meu avô era desafeto à religião e ele realmente dizia ser. Porém, nunca jantava até
que escutasse a Ave Maria no rádio exatamente às 18:15 todos os dias.
Meu avô também dizia ser burro como uma porta, mas eu e todos ao seu
redor viam-no como um homem sábio. Um dia rebati seus comentários
depreciativos com uma fala que ele concordou e sempre repetiu desde então “Vô, o
senhor pode não ser inteligente, mas certamente é muito curioso” e isto era algo
que ele era, inegavelmente. Meu avô lia pilhas e pilhas de jornais que acabavam
misteriosamente nas mãos perambulantes minhas e de minha prima. Além das
leituras, meu avô amava a natureza e observava os pássaros, provavelmente
aguçado pelas nostalgias do passado na fazenda. Ele queria aprender a mexer no
celular para escutar o cantar dos pássaros no YouTube, e tentou. Prometeu que
tentaria estabelecer uma rotina de aprendizado, no entanto, nunca aprendeu.
Preferia escrever em seu caderno.
Caderninho de anotações. Foto: Acervo Pessoal

Acredito que não mencionei que meu avô era o mais próximo de um
alquimista moderno que consigo imaginar. Ele acreditava cegamente que havia
curado a Psoríase da minha avó com um raro ingrediente: óleo de soja. Era rotina
toda vez que o visitávamos ele mencionar orgulhosamente sobre sua participação
essencial na melhora de minha avó. Mas ela não era sua maior cobaia, meu avô
testava seus experimentos em si mesmo. Acredito que todo esse esforço surgiu na
tentativa de fazer com que a dor em seu braço esquerdo sumisse, principalmente
depois de sessões de bloqueio e acupuntura frustradas. Em uma das últimas visitas
em sua casa, ele havia me dito que tinha bolado algo que realmente poderia ser
eficaz, mas manteria segredo até que confirmasse o contrário. Nunca fiquei
sabendo de seu milagre.
Meu avô raramente demonstrava algum afeto físico, herdando o lato rígido de
meu bisavô. Suas ações eram, na verdade, a sua maior demonstração de carinho e
cuidado. Sempre que podia, ou sempre que insistíamos até que cedesse, meu avô
levava suas netas à lojinha de um real para comprar bugigangas que durariam
alguns dias. Minha avó costumava dizer que ele era nosso maior puxa saco e talvez
eu concorde. Era nítido o carinho que ela tinha por mim e minha prima; sua neta
mais nova veio apenas nos últimos anos de sua vida. Lembro-me das noites em que
dormia lá e nosso passatempo favorito era ouvir suas histórias sobre a fazenda ou
algum outro passado distante que na sua narração se tornava tão palpável. Meu avô
era o melhor contador de histórias que eu conhecia. Ele era o meu personagem
favorito, o melhor herói e talvez por vezes, o melhor anti-herói.
Uma de suas histórias, àquelas que ele antecedia com uma longa risada, era
sobre como um dia foi em um velório de um primo, situação que ele nunca gostou
pois tinha ligação com a infame morte, e entrou na sala errada. Por estar com os
olhos semiabertos e querendo ir embora logo, meu avô perambulou para dentro de
uma sala onde outro homem estava sendo velado. Ele foi até o caixão e beijou a
testa do morto e foi só neste momento que percebeu que era o morto errado. Saiu
às pessoas e creio que desde então passou a desgostar ainda mais de velórios.
Minha tentativa até agora foi demonstrar o quanto meu avô era excepcional,
uma peça rara cuja vivacidade faz falta no dia das pessoas que conviviam com ele.
Ele não era esquecido por quem cruzava seu caminho, certamente era uma
daquelas pessoas que causava um impacto irreparável. Mas nada do que eu disser
chegará aos pés do privilégio que foi conviver com ele por tantos anos da minha
vida. Às vezes me pego pensando o quanto gostaria de ter desfrutado mais de sua
sabedoria ou de ter perguntado mais uma vez sobre algum causo de épocas
passadas.
Não falamos muito sobre meu avô agora, a proximidade do ocorrido cria uma
barreira invisível que ainda não nos permite relembrá-lo abertamente com
frequência. Mas, sei que ele se mantém aceso dentro daqueles que mantinha por
perto. Suas histórias são relembradas diariamente e suas manias fazem falta. Seu
maior legado são os ensinamentos e reflexões que deixou acesos em cada um.
Assim como em um de seus poemas anotados no caderninho e recitado tantas
vezes, a memória de meu avô “nasce na Aurora, morre no poente, mas ressuscita
todos os dias.”

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