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CRÓNICA

“Ensinaram-me a ler, a conduzir, a fazer pão,


e não a lidar com a morte do meu avô”
por Inês Moreira dos Santos
23.02.2022

A
morte não se compadece com sonhos, e eu ainda tinha muitos por concretizar com o
meu avô. Na noite em que ele morreu, morreram todos os sonhos que tinha com ele. O
luto não se faz, vai-se fazendo, diz-me uma amiga.

“É o momento mais doloroso da tua vida, não é?”, pergunta-me. É.

A morte já me ganhou muita gente querida, mas o meu avô não era só uma pessoa. O meu avô
era a minha fortaleza. O meu avô educou-me para tudo o que há de bom, para a igualdade. O
meu avô não conhecia sentimentos maus.

A última vez que vi o meu avô com vida foi no dia de anos dele. A fazer-se mais forte do que as
pernas dele aguentavam. A tentar disfarçar a fraqueza, que o coração já demonstrava. Em plena
pandemia, fomos a casa dele, com máscaras e desinfecção até à raiz dos cabelos. Ele estava
estranho. Calado. Mais calado. Na verdade nunca foi de muitas palavras mas, ainda assim,
percebia-se que estava calado.

Ordenou-me que tirasse a máscara, eu recusei. Disse-me que o bicho lhe tinha tirado um ano de
convivência com as bisnetas. Disse-lhe que mais viriam, e o que o importante era não lhe
transmitirmos nada.

Não vieram.

O último ano de vida do meu avô foi passado fechado em casa. E logo ele, que gostava tanto de
liberdade! Disse que me amava, caso raro. Só me lembro de ter dito que me amava três vezes, e
só uma por um motivo positivo: quando acabei o curso. Outra vez quando eu estava à beira da
morte, e outra vez quando ele próprio estava à beira da morte.

Chamou-me ao quarto. Tinha uma coisa para me dar. Começou a remexer no roupeiro. Brinquei
e disse-lhe que me ia dar os lençóis bordados pela minha avó. Tirou livros. Os livros da
clandestinidade e eu chorei. Perguntei-lhe porque mos estava a dar. Disse-me que tinha chegado
a hora. Mas que hora, avô? “Não sei por quanto mais tempo vou poder ver o brilho nos teus
olhos como estou a ver agora.”

A
casa dos meus avós é uma casa
pequena, com todas as divisões
pequenas, com um quintalinho
pequeno. Foi lá que aprendi o que era o amor.
Às vezes vinha sobre a forma de sopa, outras
de pão com tulicreme, outras de ajudar o avô a
caiar o quintal. A casa da minha avó tinha a
dimensão perfeita para caber todo o amor que
uma criança precisa para crescer.

Salvaterra de Magos é uma vila pacata. É uma


terra de pessoas remediadas, onde ninguém,
pelo menos que se saiba, passa fome ou dorme
na rua. A vila une-se para ajudar os mais
carenciados. Todos se conhecem: o filho ou o
neto do X.

Crescer nesta vila foi sensacional. Eu ia


sozinha para a escola, ia almoçar a casa dos
meus avós, normalmente ao virar da esquina já Inês Moreira dos Santos ao colo do avô.
se sentia o cheiro do almoço feito pela minha
avó. Brincar com amigos na Azinhaga. Digo, vezes sem conta, que não queria ter crescido
noutro lugar. O cheiro ao campo é inigualável. Ali, em Salvaterra, onde as flores tinham cores
mais vibrantes, onde se sentia um vento quente, sentada num banquinho muito pequenino que
havia em casa dos meus avós, enquanto via o meu avô a soldar, folheava um livro, dois, três.
Nunca gostei de bonecas. Sempre preferi livros.

U
m dia perguntei ao meu avô: “Avô, não tiveste medo?” Ele parou de soldar, levantou os
olhos e olhou para mim: tive, respondeu-me prontamente, tive medo toda a vida.
Devemos avançar, mesmo com medo, mesmo a tremer de medo. E acreditar que o
nosso objectivo merece o esforço. O objectivo, seja ele qual for. O medo, em maior ou menor
grau. O medo faz parte da vida. O medo impele-nos a fazer melhor, disse-me.

Eu não sabia se era assim, era pequena demais para perceber o que ele dizia, mas naquele
momento prometi a mim mesma anotar estes pensamentos do meu avô. A vida só faz sentido
assim, dizia-me o meu avô, de que serve parar porque existe medo? Onde é que isso nos tinha
trazido? Achas que o Salgueiro Maia não teve medo? Achas que os resistentes antifascistas não
tiveram medo? Medo de sair de casa para não mais entrar? Medo de levar um tiro e morrer?
Achas que não tinham medo de ir para as prisões do Estado Novo, comer o pão que o diabo
amassou? Achas que o Álvaro Cunhal – aponta para o livro que tinha pousado no meu colo –
não teve medo no momento em que percebeu que ia ser preso?

O medo está presente sempre, mas se queremos mudança temos de enfrentar o medo! “Eu tive
medo toda a minha vida, mas se não tivesse enfrentado o medo agora não estava a ter esta
conversa contigo.” Penso nas vezes em que esta ideia lhe veio à cabeça durante os seus 83 anos
de vida. “Vai lá fazer a mesma pergunta à tua avó.”

A minha avó não tinha muito tempo para pensar nestas questões, pensava eu para os meus
botões. Tinha sempre qualquer coisa para fazer em casa e eu, todo o tempo que passei lá em
casa, 18 anos, contrapunha com a vida da minha avó paterna, enfermeira. Aliás, sempre fiz este
paralelismo entre os meus avós maternos e os paternos, uns pobres e outros ricos. Dava uma
tese!

“Avó, não tiveste medo?” Só tinha medo quando, durante a ditadura, o teu avô saía de casa para
ir sabe-se lá para onde e eu não sabia se ele voltava. Medos semelhantes, pensava eu para os
mesmos botões. “Não são conversas para ter com uma criança.” Serei sempre uma criança.
Nunca crescerei o suficiente para esta avó. Creio que é o fenómeno mais giro da minha vida.
Quando passo a porta da casa dela fico outra vez com 4 anos.

Os meus avós tiveram um relacionamento de 60 anos, só interrompido pela morte do meu avô.
A minha avó tinha um amor pelo meu avô, uma paixão, uma coisa que não vejo em mais lado
nenhum.. O meu avô tinha-lhe uma gratidão imensa. “Salva-me a vida todos os dias, desde que
a conheci.” Foi por ela que enfrentei o medo, vezes sem conta. Romanciarei toda a vida o amor
destes dois.

N
inguém quer ter este embate com a morte, mesmo quando esse desfecho está à nossa
frente, tendemos a fechar os olhos. António Lobo Antunes escreveu que chega uma
altura em que se começa a conviver com a morte como se fosse uma amizade antiga. E
uma amiga próxima.
Talvez me faça falta a fé, aquela que nunca tive. Se fecho os olhos, a imagem do meu avô, a
sorrir e a fazer-me festinhas no cabelo, aparece. Se os tenho abertos, pesam-me as horas, neste
luto interminável que será sempre o deste homem que me deu tudo o que tinha. Deu o mais que
podia, o mais importante, deu o que nunca lhe deram a ele: amor. E os valores. Ele, que teve de
se construir sozinho. Pequenino, a trabalhar. Sozinho.

Tantas e tantas vezes me dizia que eu era uma felizarda por ter tudo. E era. E sou. Tive um avô
que foi o obreiro de mim e dele e de todos quanto partilhavam a mesa com ele.

Caramba, o que ele não teria sido se tivesse nascido com possibilidade de estudar! Que mundos
ele mudaria se tivesse oportunidade de estudar? Nunca saberei. E são estas condicionantes que
lhe moldaram a vida. Que mudaram para sempre a minha, sem nunca ter passado fome, cedo
decidi que iria tornar o meu privilégio em luta. Quem disse que se nascia em berço de ouro
podia estudar e quem nascia sem berço tinha de ir pegar numa rebarbadora aos 9 anos? O meu
avô com tantos princípios, tanta coisa boa para ensinar, tanta história para contar! Mas não
nasceu em berço de ouro. É de uma injustiça tremenda, esta desigualdade. Ensinou, pelo
exemplo, que a vida tem de ser de todos e não só dos que conseguem pagar as suas contas.

A
morte dói. E custa. E cansa. No silêncio da minha cama penso, várias vezes, como era
bom se ele fosse eterno. Mas não foi. Ninguém é. Sê-lo-á na memória das minhas
filhas. Nas memórias que tenho dele. Nos 36 anos de memória que ele construiu em
mim. Só de amor. Qual fortaleza. Qual enciclopédia.

Custa-me que me tenham ensinado a disparar, a conduzir, a ler, a fazer pão, e não me tenham
ensinado a lidar com a morte do meu avô. Prepararam-me para tudo, menos para esta partida.
Ninguém queria falar disto. Nem mesmo quando ele adoeceu. Nem mesmo no Natal passado,
quando preferiu ficar em casa.

Os meses mais difíceis da minha vida são, precisamente, estes. Uma noite gelada que será
eterna. O desnorte. Sabia lá eu que era capaz de fazer a viagem para Salvaterra de olhos tão
cheios de lágrimas que não viam a estrada. Sabia lá eu a dor que era capaz de aguentar. A morte
tem uma cara feia, assustadora, gelada, assusta. Sabia lá eu o que era parar em frente à casa que
me fez tão feliz, qual barco num mar tempestuoso, e ficar bloqueada, as minhas pernas não
andavam, os meus braços não mexiam se não fosse para dar um abraço que nunca mais darei.
Um abraço carregado de liberdade. A liberdade que ele abraçou sempre.

Andei sempre pela mão do meu avô. Até ao dia em que levava na mão as suas cinzas e as
enterrei. Fui eu, claro, que lhe tinha prometido que cumpria a sua vontade. E cumpri. E doeu.
Conseguia ser irritante com essa conversa. Eu não sabia o que era a morte, para agora ter,
violentamente, de conviver com ela. “Promete-me que me mandas queimar, independentemente
da vontade da tua avó.”

“Queimar”, pensava eu. Queimar! Como se fosse um cigarro! Um bocado de palha! Andei tanto
pela mão do meu avô, kms e kms de amor sem fim, que esta promessa foi a única que cumpri
contrariada. Todas as outras que lhe fiz, cumpri. E esta, porque afinal não era eterno, também. E
eu tenho medo. Mas vou seguir.

B
arco parado não faz viagem, dizia-me o meu avô naquela vez em que fomos a Lisboa,
sem ninguém saber, fugidos, para uma tarde só nossa, celebrar a liberdade, metemo-
nos no carro e saímos em surdina, os dois, e fomos ao sítio mais bonito de Lisboa: o
Largo do Carmo. O Largo do Carmo tinha sido o palco da Revolução de Abril, tão importante
para a vida dos portugueses. Tão importante para a vida do meu avô. E, assim, tão importante
para a minha vida.

Foto: Arquivo Municipal de Lisboa/DN

Às vezes confundo os dois, porque os desejos para a sociedade são os mesmos, os desejos para a
igualdade são os mesmos, os desejos para a justiça social são os mesmos. Tinha sido ali que
Salgueiro Maia tinha mandado um regime abaixo. Uma ditadura. Imaginem uma criança na
noite de Natal: era assim que eu via o meu avô quando estávamos naquele espaço. Ele, que
nunca teve Natal quando era criança, que nunca teve perú, que nunca teve prendas.

O dia mais feliz vinha-lhe à memória sempre que ali ia. O meu avô contava-me histórias do dia
mais feliz de Portugal, sempre com gratidão no olhar. Contava-me essas histórias dessa
gratidão, sempre com felicidade no olhar.

No largo do Carmo, o Sol brilhava de maneira diferente, brilha para todos, e continuará a
brilhar. E eu tenho uma viagem para continuar.

* Nascida e criada no Ribatejo, rumou a Lisboa, e por lá se licenciou em Psicologia. Lisboa


acolheu-a, como se de sua terra natal se tratasse. Ruas e ruelas, como se a tivessem visto
crescer. Fez d´O Segundo Sexo o seu livro de cabeceira e do avô o seu herói. Mãe de 3, ativista
a tempo inteiro, colunista. Fascinada pelo mundo e pelas pessoas que nele habitam.

Juanna Canaima
26.02.2022 em 12:00 am

Revi a minha relação com o meu avô em quase todas as palavras. Deixou-me com a garganta presa e a sensação do
buraco no peito que ele me deixou, voltou ao de cima. Apaziguar-se-á novamente, mas nunca passará. Meu avô, meu
herói, meu norte, meu tudo. E vive bem vivo na memória da filha, neta e bisnetas. Estará algures de mão dada com a
minha avó, juntos, sempre juntos, para sempre juntos.

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