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Eu não achei que ela fosse chorar quando essa hora chegasse. Talvez seja
um choro falso… Mas não parece.
Deixo meus olhos — olhos de morto, frios, pesados, não muito diferentes
dos que eu costumava ter quando estava vivo — vagarem por ela por mais
alguns instantes. Não parece falso. Se alguém me contasse que minha mãe
estaria chorando ao lado do meu caixão, eu diria que era fingimento. Mas eu
estou aqui. Não há nada falso na forma como ela segura o terço com força
entre os dedos, ou como não desvia a atenção do meu corpo cada vez mais
gelado.
Há poucas pessoas em minha volta. Acho que consigo contar todas sem
me perder, mas não o faço. Não tem porquê.
— Ele era tão jovem. — minha tia Olinda, irmã mais velha de minha
mãe, murmura. É a terceira vez em uma hora que diz isso. Em nenhuma das
vezes ela estava realmente olhando para mim. Será que ainda tem nojo de
mim? Ela olha para as flores que colocaram em minhas mãos. Não a culpo:
são mais bonitas que eu. — Mas Deus sabe o que faz.
Não acho que Deus saiba o que faça. Na verdade, acho que sequer exista
um Deus, mas não digo nada. Nem poderia, também. Estou morto.
Mortíssimo. Possivelmente prestes a dar de cara com anjinhos tocando harpa
ou com um cara vermelho com chifres na cabeça. Pessoalmente, aposto no
segundo, mas vai saber, né.
Não sei porque ela insiste nisso. Eu tinha vinte e três, podia ser mais
jovem.
Não sei porquê estou tão calmo. Eu não costumava ser assim quando
estava vivo. Eu era ansioso pra cacete. É como se tivessem me dopado com
remédios para cavalo. É bom, de certa forma.
Mas sei que ela jamais iria ver além da maconha e do tal demônio do
homossexualismo que o padre Geraldo disse pra ela que habitava em mim
desde que eu tinha treze anos.
Eu sinto um toque distante ao lado de meu corpo. Tudo fica cada vez
mais distante…
É meu pai.
Meu pai.
Meu pai não diz nada. Nem precisa, na verdade. Você colheu o que
plantou. Ele iria dizer isso. Sei que sim. Mas eu não plantei nada, pai! Só
torci para colher coisas, não plantei nada. Você me impediu de plantar
qualquer coisa…
Mesmo com meu corpo fedendo a formol, ele ainda consegue olhar com
desprezo para mim. Ah, se eu pudesse dar um soco nesse velho…
Átila caminha até mim, devagar. Sim, meu amor! Eu sempre gostei de
como ele caminha devagar. Um foda-se na cara de todo mundo. Foda-se esse
seu tempo, foda-se essas suas regras, foda-se tudo. O mundo é meu!
Meus pais viram Átila apenas uma vez na vida. Uma noite que terminou
com minha mãe gritando versos aleatórios e sem nexo da bíblia e meu pai
com um nariz sangrando porque Átila nunca deixou ninguém apontar o dedo
para mim e me chamar de perdedor.
Nós dois somos bichas, mas Átila sempre foi uma bicha muito mais forte
e corajosa do que eu.
Por um momento penso que meu pai vai tentar pular em cima de Átila,
mas ele apenas fica parado. Quem é o frangote agora, hein, hein, hein?
Minha mãe apenas aperta ainda mais a merda do terço. Não sei o que a
velha acha que está fazendo.
Um girassol.
Átila se afasta. Quero gritar para que fique, mas não posso. Minha
garganta não funciona, meus pulmões não funcionam, nada em mim
funciona. Sou um saco de carne e ossos inútil, semelhante a quando eu era
vivo, mas agora mais inútil ainda, incapacitado de sequer me levantar e dar
um último adeus.
Penso que há pelo menos uma coisa boa em tudo isso: serei enterrado,
servirei de adubo para o girassol que irá nascer e crescer bem na carcaça de
meu peito, onde costumava bater um coração.
Antes de cair no sono eu menti para mim mesmo que estava planejando ir
para o quarto e dormir na cama como um ser humano funcional, mas o sofá
tem sido muito mais confortável, emocionalmente falando.
Eu odeio cada passo que dou até ali. Odeio que em cada passo meu
cérebro traga uma memória diferente que vivi com ele naquele espaço. Eu
odeio sentir a falta dele tão desesperadamente. Eu odeio sentir que cada
pedaço de minha pele parece sentir falta da pele dele. Mesmo assim, me
obrigo a me vestir adequadamente e a não colocar a mesma camiseta pelo
quarto dia seguido. Me obrigo a ir até a cozinha e a comer uma maçã inteira
antes de parar na frente da porta do nos— do meu quarto.
Parte de mim sabe que o quarto vai estar vazio, mas parte de mim espera
encontrar Sebastian dormindo embaixo das cobertas.
Eu queria que alguém tivesse me dito que a pior parte de perder alguém é
os momentos que se tornam absurdamente surreais não ver a pessoa ali,
mesmo que não exista nada de mais real nisso.
Tudo bem que na situação política atual está difícil ser gay e feliz ao
mesmo tempo, mas isso é possível, inferno. Essa é a lição que precisa ficar.
Uma voz em minha mente diz para não responder. Posso ficar ali e
simplesmente esperar a pessoa ir embora, mas então ouço o som novamente,
apago o cigarro e meus pés simplesmente me guiam até quem quer que esteja
ali.
Assim que abro a porta, vejo o mesmo tom de cabelo de Sebastian, quase
o mesmo tom de pele, porém mais bronzeado, o mesmo tom de olhos e quase
a mesma expressão de quem está absurdamente perdido que Sebastian tinha
anos atrás.
Ele sempre foi tão parecido com a mãe, mas tão diferente do pai.
A mãe de Sebastian me encara. Eu, com uma xícara na mão direita e ela
segurando uma sacola preta com as duas mãos.
Eu namorei o filho dela por três anos e ela mal sabe o meu nome.
Na última vez (e única) em que nos vimos, acabei deixando o marido dela
com o nariz sangrando.
Tento não ficar com a cara emburrada — Sebastian dizia que eu vivia
com a cara emburrada e isso assustava as pessoas.
‘Não te afastou.’
Isso era novidade. Sebastian nunca me contou nada disso, mas talvez ele
simplesmente não quisesse que eu soubesse que tinha fracassado em mais
uma tentativa de fazer as pazes com a mãe.
— Eu posso entrar?
Nós dois ficamos ali, no meio da sala, como se fossemos móveis novos
decorando a casa.
Eu não me movo.
É tudo surreal.
Tudo parece estar ali esperando para que Sebastian me mande organizar
tudo ou para que eu peça para ele ler alguma poesia que escrevi.
Será que Sebastian ficava triste todas às vezes em que nós íamos visitar
meu pai e ele recebia nós dois com um abraço e não com um monte de
palavras sujas igual ao pai dele?
Que merda, tudo o que me sobrou foi chá morno e uma visita estranha.
— Eu… Eu...
— Eu limpei o quarto dele ontem à noite. As coisas que ele deixou para
trás quando… Veio para cá. Entende? Achei que talvez gostasse de ficar com
isso.
Figlia di puttana.
Simplesmente surreal.
— Obrigado. Acho que você foi… Foi muito bom pra ele.
A voz dela está pesada, a garganta falhando. Acho que entendo como
deve ser difícil para ela dizer isso. Talvez seja tão difícil quanto é para eu
dizer qualquer coisa no momento.
— Eu… — Olga não está olhando para mim, mas para meus pés
enquanto fala. — Eu gostaria de que nós pudéssemos ter alguma relação.
Sebastian queria isso.
Eu pisco.
— Ele sempre dizia que gostaria que nós dois fôssemos próximos.
Surreal.
Eu aceno.
Sei disso.
Mas duvido que ela irá me suportar sem o filho por perto. Da mesma
forma que duvido que eu possa suportar ela se não for para fazer Sebastian
feliz.
Olga olha para mim e leva uma das mãos até o próprio pescoço, para o
pingente de Jesus Cristo sendo crucificado. Ela assente.
O terceiro é: fottiti.
Abraço a sacola.