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UNIVERSIDADE FEDEDAL DO PARÁ

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO


FACULDADE DE LETRAS – HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Plano de ensino
Fundamentos da Teoria Literária
Profa. Ma. Jeniffer Yara Jesus da Silva

Promessa em Azul e Branco

- Não; esse eu não quero, choramingava a menina.


- Já disse que é esse mesmo. Crança não tem vontade.
Um diálogo banal diante de uma vitrina de roupas para crianças, uma vontade de dizer àquela
mulher:
- Não. Não é assim que se convence uma menina. Quando aprenderão os adultos a falar com
os pequeninos?
E depois um grande desejo de recordar, de buscar no fundo de mim mesma vestidos da
infância, roupinhas da meninice.
Que tenho eu a ver com aquela mão autoritária que não conheço? Por que terei de sofrer com
a pequenina que nunca vi? Por que terei de viver sempre assim, vivendo a vida de outros?
Deixo ambas entregues ao desentendimento e caminho acompanhada pelo desejo, a vontade, a
necessidade de acordar um trecho de meu passado onde haja um ou vários vestidos.
Por que sou capaz de relembrar assim fatos de épocas longínquas? Por que a qualquer
momento uma estória qualquer se presta à ressurreição de atos, vozes, gestos e até mesmo
olhos, narizes, cabelos, mãos, coisas que nenhum retrato guardou e que tomaram parte ativa
na minha vida passada? Por que está tudo assim tão gravado em mim? Nem sequer preciso
fechar os olhos para encontrar figuras de minha infância; nada preciso para recompor hoje -
tantos anos depois - gestos, palavras, comportamentos.
O que relembro hoje é realmente minha infância ou colaboro com minha imaginação atual?
Estou vestindo agora com roupagens novas, minhas velhas lembranças ou estão elas com a
mesma roupa do momento em que ocorreram? Vivi tudo o que relembro?
Aquele diálogo, tão banal, provocou em mim desejo de reviver um trecho de meu passado.
Sim, sim, recordo muito bem; vestia apenas azul-claro e branco e, de início, minha infância
turbulenta e sadia não prestou nenhuma atenção ao fato. Um dia, naturalmente, uma outra
menina ou talvez a governanta ou - quem sabe? - a professora, chamou-me ao conhecimento
dessa prisão. Isso naturalmente deve ter acontecido no momento em que nascia a minha
vaidade. Senti ou mostraram-me que todas as meninas da minha cidade, de meu país e do
mundo usavam roupas de cores diversas e eu não. Por quê? Por quê? Perguntei à minha mãe,
sempre pronta a responder às minhas perguntas:
- Foi uma promessa. Seu pai andou mal, muitoo mal, quase morria e sua avó fez uma
promessa a N. S.ª de Nazaré: se ele sarasse, se vivesse, você, que acababa de nascer - vestiria
até os quinze anos, somente vestidos azul-claros e brancos.
- Até quinze anos? Então quer dizer que vou ficar assim, diferente de todas as meninas, até
ficar velha?
(Sempre se acha, aos seis anos, que ter quinze é estar velha). Só depois, muito mais tarde é
que aprendi que a vida passa dpressa, é curtinha, tão pequenina que nem dá para se viver
plenamente todos os momentos.
Menina criada sem medo, me ensinaram muito cedo que chorar é uma covardia e, além do
ensinamento, havia um soneto de meu avô, dizendo: "porque um soldado não chora / venham
os maltratos embora / seu peito dilacerar." O soneto - também só soube mais tarde - é ruim,
mas quando surgia em qualquer um de nós a vontade de extravasar sentimentos ou manhas
com lágrimas, o soneto ruim vinha com efeitos terapêuticos exigindo dignidade e tanta
coragem que chegamos a odiá-lo. Para não ouvi-lo engolfamos lágrimas, nunca chorávamos,
nunca choramos; antes da lágrima nascer, nós mesmo começávamos a repetir: "porque um
soldado não chora"...
Meu pai nunca deixou de dizer:
- Coitado desse avô! Parece que em toda a suua vida fez só esse soneto. E um soneto só é
muito pouco para um avô tão importante.
- Até os quinze anos?
- Escute, meu bem. Você é pequenina, mas temm muita razão de não ficar contente com a
promessa de sua avó. Está naturalmente pensando que ela devia fazer promessas para cumpri-
las pessoalmente e não obrigar outra pessoa a realizá-las. Também penso como você. Jamais
devemos exigir de outros aquilo que não queremos ou não podemos fazer nós mesmos. Tudo
isso é certo, mas tenha paciência. Seu pai andou muito doente, muito mesmo, e que seria de
você sem ele? Não é um bom pai, não é um bom amigo? Você gostaria que ele morresse? Sua
avó é boa, lhe tem muito amor, queria que você crescesse com seu pai vivo. Ela é muito
religiosa e não devemos ofendê-la nem contrariá-la. VAmos fazer uma coisa: não pensar que
existem vestdios verdes, amarelos, vermelhos. Faz de conta que só existem vestidos brancos e
azul-claros. Você os terá todos, muitos, quantos quiser. Esqueça que eles são obrigação e
pense que são amor. Imagine quando você puder vesti-los de outras cores como vai ser bom.
Imagina você com quinze anos, de vestido verde. Não vai ser ótimo? E a coragem, hein? Que
beleza a coragem que você terá, usando apenas azul e branco.
Falou mais, flaou muito, porque minha mãe tinha o dom de falar envolvendo-me em
esperanças e sonhos.
Seis anos, sete, oito e os vestidos azul-claros e brancos, alguns tremendamente brancos
enfileirados nos armários. Que importavam feitios, rendas, fitas se eram sempre brancos,
muito brancos ou azul-claros, um azul morrendo, um leve azul indefinido? E sempre alguém
perguntando::
- Por que ela só usa branco e azul-claro?
E a resposta seca:
- Foi promessa...
Em mim nenhum sofrimento; vida alegre demais, infância demasiadamente bela, correrias,
quedas, patins, saltos de corada, bicicletas, estórias de iara e do boto, livros maravilhosos
feitos na França, falando da Bela Adormecida, do Gato de Botas; o encontro com as letras, a
dignidade conquistada: - Agora eu sei ler; - a descoberta de palavras, sons, o primeiro mapa-
mundi: - Diz onde queres is agora? - África! Eu vou para a Europa.
- Bobos, o melhor mesmo é a Oceania. Ninguémm vai à Oceania!
E o grande mundo, uma bola girando. Hoje nem sei o que mais nos encantava na descoberta:
se estávamos alegres por saber que o mundo era uma bola - nós que tanto amávamos bolas -
ou se nossa alegria era posse daquele globo que girava, ou ainda se ríamos felizes com a
possibilidade de viajar a todo momento procurando lugares pequeninos, perdidos na bola
imensa que girava? Meu irmão queria ir sozinho à Oceania. A bola girando durou pouco. Nela
mexemos demais, viajamos muito, gastamo-la cedo.
Que importava àquela infância tão bela a existência de vestidos verdes, amarelos, vermelhos?
Outros corpos que os vestissem. Para que sofrer?
Quando veio o colégio interno e o uniforme obrigatório, vovó quis protestar. E a promessa?
Mas não foi atendida. Ninguém pensaria em impor condições a um colégio respeitável, com
seus regulamentos próprios.
- Ela continuará vestido só azul e branco paara seus dias de passeio.
Depois, um dia, uma carta contava que vovó morrera. Dormira para nunca mais acordar.
Todos morriam assim naquela família. O coração cansado de amar e de ser bom, parava,
partia morria. Deitavam como se aquela noite fosse igual a todas as noites e não acordavam
no dia seguinte. "Passamos da vida para a morte, serenamente. Apenas passamos", dizia a
carta. Depois outra carta: "Agora que tua avó morreu e estás uma mocinha, podes continuar
ou não respeitando a promessa da cor de teus vestidos. Teus quinze anos não chegaram, mas
isso não importa; teus raciocínios já estão em condições de te fazer resolver sozinha. Pedi que
cumprisses a promessa, com a qual não estavas de acordo, para que ela não sofresse - sofrera
tanto a probrezinha, enviuvara cedo, cheia de filhos, era tão bela, tão ingênua, tão boa - mas
agora estás livre. Podes usar a cor que quiseres."
Talvez não tenham sido precisamente essas as palavras. O tom, sim, o tom posso garantir que
foi esse, porque foi o tom e a forma de todas as nossas conversas. Possuí durante muito tempo
essas cartas de minha mãe, escritas para o internato onde eu crescia. Sempre as escondi, amei-
as com um exagerado ciúme, o mesmo ciúme que tenho dos meus livros, dos retratos, das
cartas de meus amigos. Andavam comigo empalidecendo numa caixa de macacaúba rajada.
Possuí essas cartas muito tempo, até que um dia - outro dia de há vinte anos - a polícia
invadiu minha casa. Queria papéis importantes, muito importantes, que eu devia possuir.
Havia resolvido fazer-me heroína à força. Papéis importantes, planos de subversão da ordem
(que ordem?) não existiam, naturalmente. Então, na fúria que marca os homens da polícia
sempre, levaram aquelas cartas que eu guardava com tanto amor, que escondia com cuidado,
muito cuidado, que reli muitas vezes sentindo sempre, como da primeira vez que o fizera, um
nó na garganta, um bater apressado de coração enquanto uma voz repetia: "porque um
soldado não chora"...
(Soldado, soldado, que tenho sido além disso?)
As palavras não seriam essas, mas assegurando o tom, também posso afirmar que naquelas
cartas havia ordens, e desta vez era: - Vamos! Aprenda a resolver sozinha seus próprios
problemas. Comece a usar seu raciocínio. Coragem! Tenha opiniões e saiba defendê-las!
Foi então que encontrei numa vitrina um vestido azul-marinho de tafetá com uma golinha de
guipura. Escrevi a minha mãe: "Tens razão, pensei muito e ontem encontrei um vestido
maravihoso. Poder ficar certa de que é um vestido de menina." Descrevê-lo hoje não sou
capaz, mas devo ter mandado nessa carta uma minuciosa narrativa da desejada roupa. Hoje,
sou mesmo incapaz de descrever qualquer vestido.
Mas era azul-marinho de tafetá com golinha de renda de guipura, essa a única roupa que
relembro na minha infância. Quando voltei para fazer a seu lado quinze anos, no guarda-roupa
se enfileiravam vestidos de várias cores.
Nunca mais ela e eu falamos na promessa.
Depois, sempre depois, a vida veio vindo, dias correndo, corpo mocinho crescendo, outros
vestidos, outros desejos, uma época de grande vaidade, o abandono desta, amarelos, verdes,
vermelhos, pretos, roxos, multidões de cores, vestidos, vestidos, nenhum lembrando nada.
Como se não tivessem cor.
Se alguém pensar que vim pela vida envelhecendo contra vestidos claros, brancos ou azuis, se
engana. Sempre amei muito essas cores, que encontrei depois em alguns gestos e muitas
noites. Gosto muito de branco e do azul-claro, muito claro.
A meninazinha que encontrei desesperada em frente daquela vitrina não querendo aquele
vestido que sua mãe lhe impunha, onde estará agora? Vestida naquela roupa que odiou antes
de possuir?
Minha senhora - fico murmurando baixinho - não é assim que se convence uma criança.
Quando os adultos aprenderão a conhecer o mundo dos pequeninos?
Como foram bonitos os meus dias vestidos de branco, parecidos com os dedos longos e
rosados de minha mãe apontando caminhos! Com aquele vestido azul-marinho começou uma
outra etapa de minha vida; nascera minha vaidade.

ENEIDA DE MORAES

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