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Atalaia, algodão e acetona

Paloma Franco Amorim


30 julho 2018

Uma outra vez caímos no mesmo grupo para fazer um trabalho de


biologia. Minha mãe propôs que reuníssemos em nossa casa pra economizar
dinheiro de traslado, mas eu inventei uma história de que era melhor mesmo
fazer do outro lado da cidade, na casa do Nelson, porque todo mundo morava
pra lá mesmo. Eu tava era com vergonha da nossa casa, dividia o quarto com
minha irmã mais velha. A gaveta de calcinhas, a gente só foi ter uma pra cada
depois da adolescência. 
O apartamento onde a gente morava era do tamanho do closet da Rayana
que eu conheci também numa dessas situações de trabalho de equipe.
Mas lá no Atalaia eu já estava mais velha, tava marcada de guerra, tinha
passado para o front da resistência. Só fui lenta no cutucão do Ícaro, mas depois
a gente achou graça do Éguaaaaaaa que ele soltou quando viu a Ferrari do
Maurinho cortando a praia.
Minha mãe se espocou de rir da nossa cara de pedestre. 
Nunca entendi por que carro podia entrar na praia do Atalaia. Era
esquisito demais, o pessoal transitando com o vidro fechado, ar-condicionado
ligado, pra evitar areia no carpete. Não fazia sentido algum, praia é pra
caminhar, tomar o solzão no topo, sentir o calor, entrar no mar. A gente também
ia de carro, todo mundo ia.  
O Atalaia até hoje é um salão idílico de automóveis.
Esse dia da Ferrari do Maurinho se perdeu no ano de 1986.
No final da tarde, a gente tava indo embora, aconteceu uma gritaria. Eu e
o Ícaro corremos pra olhar, a maré já tava cheia, cresceu rápido ao longo do dia.
Tinha um povo em volta de um negócio grande, vermelho, no meio da água.
Era, isso mesmo, a Ferrari do Maurinho havia sido engolida pelo mar. As
ondas pouco a pouco lambiam o carro inteiro, puxando a ferraria para o cavo do
oceano, lá onde fica o cemitério dos carros condenados pela preamar.
Sei que quando olhei pro lado vi o Maurinho aos prantos porque o pai ia
brigar feio com ele por ter ficado bêbado e deixado a Ferrari virar farelo. Sei que
nessa hora senti que era o momento de ter empatia, silenciando em mim todo e
qualquer desejo que o rapaz estivesse dentro do carro a se afogar, aplacando o
julgamento revanchista sobre a situação. Soou aquele alarme ético para o qual
eu havia sido preparada desde a tenra infância através de rigorosa educação
socialista por entre livros de Lygia Bojunga e manifestações políticas em família
contra o governo do estado. Eu tinha a noção de que deveria ter piedade do
Maurinho, mas como sou escrota mesmo achei foi pouco o que ele passou.

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