Você está na página 1de 93

2

JURANDIR, Dalcídio. Os Habitantes. Rio de Janeiro: Deu uma volta, espiou sorrateira pela porta da cozinha, veio
Artenova, 1976. 160p. devagarinho, veio misteriosa:
— Novidade.., que dá um jornal. Sete que são setecentos.
Primeiro entra. De sereno já chega. Mais jenipapo? Mais?. Trouxeram
em quantidade.
[9] Alfredo, na escada dos fundos, apoiou-se no corrimão.
Alfredo pede para esperar um pouco, esquivava-se, desceu de
Como se tivesse corrido tanto. Porta aberta para o alpendre, a cozinha
novo, D. Dudu seguiu-o.
clareava o quintal molhado. D. Dudu debruçada no parapeito.
— Que que então já perdeste no quintal, rapaz? A cabeça?
Ela sabe, a família ouviu, me esperam. D. Dudu vem avisar-me.
— Me deixe só comigo, D. Dudu, Foi só um instante a em-
Esméia quis ver, não Viu? Sala, alcova, tudo ai só Valeu esta noite
briaguez do jenipapo. Ou sabe que pulamos a janela? Nos adivinhou
pela presença da preta. Fiquem vocês com o entulho, donos. Daí,
na sala? Farejou os jasmins? E que sete cartas são?
agora, só minha mala e adeus.
Franziu a testa, franziu-se todo como se principiasse a descobrir
Desceu num repente de escapar-se pelo portão.
que saltar aquela janela valia um destino, era um alcance, até onde
— As três aí na cozinha atando as sete cartas no gogó do velho.
não sabia. Que fazer desse destino, desse alcance, daquele salto? Que
Era a D. Dudu, ali ao pé, espreitosa, abrindo um jenipapo: deste
farei dele, dos instantes com a Esméia diante do espelho, debaixo do
um toma uma prova. A casca, joga fora.
lustre, diante de tudo que ali lhes foi doado?
Num alívio, sem Indagar das sete cartas, Alfredo com avidez
Quintal escorrendo, as plantas pingavam, rangia o coqueiro.
come com casca e tudo, saboreando Cachoeira, menino entre
— Olha, não me anda rente da cerca que a Graziela, aí, noutra
jenipapos. Escolhia no alguidar o mais molinho. Dos verdes só travor
viagem, passou uma tarde espalhando, espalhou que foi uma
e nódoa até agora. Dos misturados com açúcar saiam pelo soalho as
quantidade de caco de vidro.
sementes que se cobriam de formiga, pingou que pingou tempo no
Alfredo virou-se. D. Dudu explicou baixo, tapando o riso:
vinho com farinha, vozes do verão a amarelar o jenipapeiro e bem
— Pra pé de menino da vizinhança que reine pular a cerca.
debaixo o bom maduro chão enjenipapado onde se aquietavam os
Se andou por aqui, Ana fugiu com o pé cortado, a palma do pé
carneiros do seu Araguaia, sem acordar na moita vizinha aquela bela
sangrando. Eu e ela, ao mesmo tempo, um no outro: que queres de
adormecida a sono solto e o alarma: Danilo, Danilo, a cascavel [10]
mim? Se não cortou o pé, pelos navios mortos anda, a enfiar-se nos
dormindo. Dormindo, dormindo. Não mata a inocente dormindo.
chaminés, espichando o beiço para as mastreações e as bóias acende-
D. Dudu se fechou no banheiro.
apaga do canal. A palma do pé sangrando.
Recostado no parapeito, lambendo os dedos, retardando a sua
— Menino, Olha que tu corta o pé.
entrada na cozinha, Alfredo suspeitou. Ana podia ter saltado o gradil
[11] — Não estou descalço, D. Dudu.
e ali, no escuro, escanchada num ramo pelo quintal, espiava, a
Mas Ana, cuspindo sempre aquela hóstia do orfanato, tirava as
repuxar o beiço.
chinelas sempre. De volta, crivada de caco de vidro, quem sabe
D. Dudu tocou-lhe o ombro, de leve, cochichando:
sangrava na esquina ou num velório, depressa a esticar o pé rueiro no
— A conta de mentiroso. Sete. Tu nem sabes, rapaz.
3

colo da avó e esta a tirarzinho os vidros, a passar ungüento e suas Deus. Consegui na Ordem Terceira o lugar pra Dalila. De servente.
rezas e Ana — chega, vovó, pare com a rezação, ah que a senhora é Tentou levantar-se. Tinha um parto em vista, assim pelas oito e
até por demais — saltando com um só pé, a catar pelas panelas, nove da manhã. Levantou-se, veio devagarinho, abriu [12]
batendo carapanã, então me arme, me arme a rede vovô, que este pé devagarinho a janela, passou um bonde. Da rua lhe deram boa-noite.
não me ajuda, ah se a senhora soubesse o que eu sei, o que foi que — Amanhã é o seu colégio, meu filho. Amanhã é o seu colégio.
peguei agorinha-agorinha, agorinha de noite, o cinema que apreciei, Alfredo pediu bença. Colégio. Colégio, dizia ela com tanto
tenho que me rir muito, um que eu sei que a senhora sabe, saltando a respeito, delicadeza, confiança. Também para mandá-lo logo embora.
janela com aquela preta-preta, na horinha que chega a família-dona... Colégio. Do colégio restava esta noite ao meio. Este ir e vir, quase
Aquela casa? Aquela vai virar casa mal-assistida. apanhado saltando a janela, e essa sua mentira, vã.
Farejou c rastro de Ana, aquele passo de vadiagem e patrulha, No meio da rua, parou no trilho. Na cocheira defronte os zebus
deu com um caminho de formiga rodeando o pilão. Carapanã no dormiam. E foi que se abriu a janela do lado, do quarto das filhas do
ouvido, carapanã no rosto, tentou abanar-se com uma folha de proprietário, e as duas irmãs, que nunca falavam com ninguém, um
mamoeiro. instante apareceram. Dois rapazes pulam a cerca e entram. A janela
Bom ir depressa até Ana, com ela tirar a limpo, se viu não viu, fechou-se. As meninas ricas do bairro! Voltavam do Colégio Santo
que sabia, que espiou dele e da Esméia no sutil assalto. Pode a D. Antônio carregadas de deveres e vernizes, num nem te ligo na janela,
Graziela sentir falta no “importante mobiliário em pau marfim, na no bonde, na missa. Quando os fazendeiros iam ver os zebus, elas
maravilhosa coleção de ricos e antigos objetos de arte e gosto”, como ficavam de longe, de pé, direitas, prontas para falar francês, e tudo
se lê nos anúncios de leilão. Ana, então, virá acusar-me. Dois ladrões etc, e tal como mandavam as Irmãs do Santo Antônio. D. Dudu
que não furtaram nada, ao contrário deixam ai dentro um primeiro gabava-lhes o bom termo, sim que um tanto, ou demais, bestonas, por
calor. se saberem filhas de que pai, dono de zebu de Minas, vacaria no Pará
Saiu correndo, bateu na porta da avó. Esta, a grenha de bruxa e quinta na Beira, O pai com a D. Izaltina sangue tupinambá deu
velha, veio abrir com o dedo do silêncio, não fizesse ruído, que as aquela raça, beiço da tribo e olhos dalém mar, transpirando urucu e
duas ferravam no sono. azeite doce, nascidas na mão da velha parteira. Rangeu o cata-vento.
Pelo rosto e voz da velha, via que das duas nem sonho. Levou-a Os zebus dormiam. Espalhou-se um ar de estrume. A vacaria
para a rede. Ela sempre a lhe pedir silêncio, o dedo ao lábio. As mãos proliferava.
dela tremiam um pouco. Tão firmes de leveza e exatas no partejar, No capinzal que dá passagem para a José Pio, cuidou ter visto
agora cediam a um temor, a uma expectativa, a uma aflição. Ana, Ana, Ana, chamou por entre as toiças molhadas, chamou baixo,
Cochichava: não passasse no quarto dos fundos onde as duas um tanto suplicante, deu-lhe uma pressa, quis gritar, se via num
dormiam. Não falasse alto. Miudinha na rede, gemia como se fosse cavalo volteando o laço atrás da rês fugida. Lá embaixo, na escuridão
perdendo a voz. do encharcado, descendo para o estaleiro e o rio, a luzinha, um pavio
— Descanse, sossegue um pouco, eu já vou sim. aceso. Quarto a defunto? Os sapos — olha ele, Ana, olha ele, Ana —
— Chegaram já faz que tempo. Sabe? Graças a Deus. Graças a davam o alarmar. Anda na pinguela que espirra lama e faz saltar um
4

cururu, zunem os carapanãs. São Longuinho, São Longuinho, faz que Juruenas. No baile dos Juruenas.
eu ache Ana, São Longuinho, Aproxima-se da barraca. A luz se — Agora é algum ladrão que viste?
apagou. E agora, Santa Clara? Voltou tateando sobre a estiva, cai- — Vou no baile dos Juruenas.
não-cai, debaixo dos carapanãs e da vergonha. Lá no quarteirão, a — Teu baile! Teu baile! Dá cá um cheirinho de tua graça...
única lâmpada na parada do bonde, canto da Brasiliana. Por isso, Fugindo dos donos da casa, menino?
naquele alumeio que lhe parecia longe, o sótão da moura ganhava — Ao contrário, sempre atrás da dona verdadeira.
feição de torre de onde jorravam os contrabandos e os amantes. D. Dudu pirrônica. Tire seu bico desta minha solidão, destes
Vence a pinguela, rompe o [13] capim, dá com o casal que pula da meus sustos, não me indague mais nada nem as novidades me diga,
fornicação, cada qual para seu lado, sumiram-se. Os sapos saltavam. minha senhora, Para onde ia a caravana? Para o baile dos Juruenas.
Ana, não, não é. Ë não. Essa aqui era um tanto escura, corpo de tatu, Cava, cava, formigueiro, até esta outra casa vir abaixo com cristaleira
pixaim em pé. e tudo. A pé-cortado, coxa Inflamada de formiga, Ana, a esta hora
Chegou ao portão, esperou, sem esperança. Entro cínico ou roga: que o valão da José Pio bem debaixo vá estourar bem debaixo
culpado? do palacete delas, com aquele zebu mal-assombrado cobrindo as
Entrou. donas, fazendo raça, titias vacas, aquelas tetéias! Arre que a preta
No corrimão do alpendre, o queixo sobre o quintal, a D. Dudu. enxugou o sovaco nas alvuras da família.
Essa aí me espia como se dissesse: te tenho aqui na chave da mão, [14] — Se algum rumor ouviste, pequeno, só se é mucura. E
meu tratante. mucura. Vem, faz as honras. É o compadre do teu pai chegando com
Matando formiga, bate o pé com a mordida na perna, espalha as as excelentíssimas. Tenho é que te contar. Tenho é que te contar.
folhas do chão, desmancha a caravana. Domina a impaciência — todas as matérias do Ginásio cruas —
— Tá vendo? lá vendo? Assanhaste as formigas, acudiu D. vou faltar amanhã. Amanhã, desenho, sacode o limoeiro que borrifa,
Dudu, terrosa, espichada na sombra, sacudindo a saia. afasta-se, viu a D. Dudu apanhar a saia, girar:
— Alfredo, seu cerimonioso, já que achaste a cabeça no meio — Pra te contar, aquele-menino, só mesmo no muito muito
das formigas, sobe, vem fazer sala, salvar os donos da casa que sossegado. Mas anda vem fazer presença. Olha, cuidado que senão as
chegaram. Tira do gogó do réu o laço das sete cartas. formigas te carregam.
E rindo, numa satisfação, inclinava a cabeça: — Para o baile dos Juruenas?
— Ao menos abre um intervalo na reunião. Rente da barba dele Na porta da cozinha, Nini gritou: titia, titia, a chocolateira lhe
o facho das três aceso, Entra a tempo de aparar a cinza. chamando! Já ferve. Côo? D. Dudu, atrás da chinela que lhe fugira do
Nini gritando do parapeito,: as formigas? Foi as formigas? pé — É o fogo das tuas primas que ferve a água, avexada? — foi
Alfredinho! Alfredinho! fez o rapaz estremecer como se ouvisse o entrando na cozinha.
chamado de Lucíola no campo. Lá está a órfã saindo do choco, Alfredo protegeu-se entre as plantas, na folhagem, no terreno
murmurou, a perna ardendo de formiga. Onde elas guardam o celeiro? minado. Aqui, à espera dos inocentes da vizinhança, os cacos de
No baile dos Juruenas? Avançou para os fundos. No baile dos vidro. Lá pelos fundos se agitavam os açaizeiros. Fazia lembrar
5

aquele passeio com as duas casadas Pedreira a dentro: D. Abigail, corredor, apanhando aquele vento, pela casa, de viagem, campo e
tempo de moça, saindo com as outras do banho de priprioca e orisa curral, carnes salgadas, jenipapo, couros, chegando com a família. Era
nuinhas pelo escuro debaixo do açaizal, lá fora São João, foguetinho como se estivesse no Jandiá, este a ferver suas águas no verão, a
pela calçada, Belém pulando fogueira. ausente a cavalo entre o alarido dos tetéus e a virar na lama as aningas
Ana, quis chamar. Cortaste o pé, te escondestes nos açaizeiros, em flor. A loção de Graziela não protegia as senhoras nem a casa. A
onde te agachaste, onde teu beiço empolado de ofensa e nojo? família trazia os odores da condenada. Neste jenipapo que se abre,
Lá na cozinha, cercada de jenipapo, quem sabe, a família naquele couro de maracajá, no beiju grosso, é o chão, o igarapé, os
deliberava, também a cobrar de D. Dudu a casa surpreendida na mão cavalos, a grossa tarde de urro e fogo, a ferra no curral, a moça em
de um par que pulou a janela, os dois na sala, na cadeira de embalo, cima da tranca anotando as reses ferradas. Luciana brandia a marca
mergulham no jazigo conjugal e daí saltam a um rumor de porta do ferro em brasa, marcava a testa de cada um da família. O. Dudu
abrindo. A preta os seus encantos destilava, aqui rente da cerca, aqui coava o café. Alfredo olhou para os rostos à mesa, cada vez mais se
na veia, nesta ansiedade, neste sobressalto, espremia os seus jasmins, desentendiam em silêncio. Na cabeceira, ainda de paletó, gravata e
a figa, sua colação de grau e noivado, seus navios passando no broche, o nosso Imperador não ocultava um ar surpreendido, confuso,
Guajará, Esméia em toda a louça, mobília, cortinado, caramboleando pilhado, num esforço para readquirir a chefia, a barba como úmida,
no Centro da mesa, roçou a anca na barba do nosso Imperador, gasta, cuspida. A esquerda, a mãe de Luciana no seu traje de
pendura no braçalete a lâmpada elétrica agora acesa pela família na desembarque, o colar, a travessa no cabelo a dizer sombriamente o
cozinha. seu preço. Calcava a sua dureza e escureza, o todo acusador e
Ao parapeito, a apertar a barriga rasa, Nini ria ou soluçava? Os sumário, numa reserva tímida, mãos no colo, as mãos que
açaizeiros se agitavam, os cachos mais altos, na [15] luz da porta desnudaram a filha, salgaram o corpo da filha, mãos no colo, Como se
vizinha, balançavam como lustres. Daqui, pelos fundos, desemboco descansasse um peso, armas do desagravo e do castigo, e a boca, tal
na Manoel Evaristo, acudo o pé de Ana, atravesso as jacas e a nudez qual como dizia a velha parteira, costurada lacrada. As duas filhas
de Zuzu, alcanço o estaleiro, pulo numa proa, fujo-me e logo do fingiam excluir-se, embora se notasse em Graziela, carão bambo, colo
bailéu — comandante manda, marinheiro faz — me aparecendo a tampa de baú, gola fechada no pescoço, a astuciosa participante, a
Ana. D. Dudu chamava. mão de rapina sobre a mesa, dedos abertos, o dorso cru de garra que
Em torno da mesa, na cozinha, a família sentada, rostos de minou o terreno das crianças, o fugitivo dente de ouro, agora, num rir
viagem, em silêncio, inchados de desentendimento. Em vez do aperto de banda. A irmã, baixinha [16] e perda, um rosto puído e
de mão, o nosso Imperador dá o delabençoe. Mini riu-se: ele não está contrariado, apertava os olhos pisca-pisca, a torcer o focinho roxo, e
lhe tomando a bença, titio, O nosso Imperador levantou as sua voz, na pergunta que fez a Nini sobre sacos de papel, escorreu
sobrancelhas, enseã, enseã, em que se desculpava ou mais se impaciente e rouca.
embaraçava. D. Dudu levantou o queixo contra a sobrinha. Alfredo D. Dudu olhava para ela com simpatia de prima, uma vaga
apertou a mão de D. Jovita, das duas filhas, todas poupando cumplicidade a que a outra se fazia alheia. Nini trouxe a bandeja de
movimento e voz. Decidiam a expulsão do hóspede? Espiou o café, distribuiu as xícaras. Graziela levantou-se, tesa de barriga e
6

bunda, tira do bolso da saia o molho de chaves, vai, abriu o armário, requeijão, mais café bebeu. Um instante olhou: Cercando o velho, as
retira as xícaras grandes, desenrola da f olha de bananeira os beijus três mulheres à mesa [17] vol|tavam ao debate sem palavras,
duros. Nessa ocasião, D. Dudu, ao virar as costas para guardar o riso, dominado pela D. Jovita, mais fechada, as mãos no colo. O marido,
olhou fino para Alfredo. A irmã de Graziela falou nas coalhadas. barba na mão, destrancou um pouco a cara ao provar do requeijão,
Graziela cortou. pediu outro café.
— Não, Felipa, aquelas são sagradas. Virou-se:
Em três latas de querosene, seguiriam para a casa do Doutor — O meu compadre, á aquele-menino, o seu pai, está me
Gurgel, o advogado da Questã, para o ex-Governador, compadre da devendo uma visita lá na fazenda. Estou que você pode ir. Nas férias.
família, e para o Arcebispo. Alfredo não respondeu, confuso um pouco e um pouco tentado
D. Felipa, como se lembrando, chamou, meio cansada: a uma imprudência: leu minhas três cartas, seu Braulino? Agora,
— Floremundo, Floremundo, vem. depois da chave entregue àquela, que desapareceu, e da visita da
A pessoa não vinha. Esméia, o seu protesto mudava, longe a primeira aula de química, o
— Floremundo!... chamou a Graziela numa espécie de ralho. trote, a manhã de latim, o mestre que sabia Horácio contra os roceiros
A pessoa não aparecia. do Guamá. As três cartas acabavam letra morta. Agora Luciana não
D. Dudu foi ao primeiro quarto, bateu, chamou. gera o ingênuo protesto mas um quase tranqüilo juízo contra a
Veio então aquele um alto, o longo rosto chupado, bigode família, torna-o tolerante com as duas netas, ladrão de par com a
murcho, a boca triste, a mão pelo cangote cabeludo, o ombro Esméia. De certo modo, com Certa pena pelo que acontece ao seu
arriando, o paletó curto de tio bimba, caído o laço da gravata Braulino.
bolorenta, fofo e descido o colarinho. Em toda a figura se podia ver Em pé, recostado no peitoril da janela, seu Floremundo parecia
compridez, muito osso, silêncio, paciência, as fibras da mão abolir-se, os olhos na lâmpada e nos mosquitos em volta. Nini,
ressequida, o meio encandeado, a voz padecente, como está o senhor, bandeja debaixo do braço, meteu-se entre os dois que se entreolhavam
moço. Notícia de sua mãe? Do seu pai? numa cortesia antiga, o com acanhamento.
tristonho senhor já bebendo gluteglute o café no pires. Alfredo apanha — Já conhecia aqui o meu tio Floremundo, hein, Alfredo? Raro
da bandeja a xícara fumegante, agora convencido: o pai, no chalé, vem na cidade, ele. Esse meu tio, não é por estar na presença dele mas
tinha as suas razões, sim. Bebe o que café queimando a goela, como é o que corre, não é, tio Floremundo?
coisa que só assim do sobressalto se livrava, das suposições e receio — Como sei lhe dizer, se não sei o que corre?
pelo que consentiu na sala, o pulo, a invasão dos jasmins, o entrar — Sabe, Alfredo, meu tio Floremundo, de bom que tanto só
pelo portão, D. Dudu à espreita... Seu Floremundo, embaraçado, com agrava o que come.
um Deus lhe acrescente, repõe a xícara na bandeja, recusa o beiju, o — Ah mas assim não, assim também não. Tire a diferença.
requeijão, passando o indicador devagarinho pela boca. Alfredo — Não sou eu que diz, é mea tia, é mea avô, quem conheça o
aceitou o requeijão, feito por D. Felipa na fazenda. Consentiu num senhor.
beiju, lhe deu de repente uma fome, outro beiju, outro pedaço de — Agora isso não. Coisas que já agravei neste mundo é peso.
7

— O senhor, titio, faz as suas visitas, este ano, agora? Sempre, Seu Floremundo fez que sim, o dedo pelos beiços, quase numa
quando vem, o meu tio Floremundo vai no Tucunduba visitar os contrariedade, que a Alfredo não escapou. o estudante deu um olhar
doentes da pele. É ou não é? para Nini que parasse.
— Desmentir não lhe desminto.. É, sim, senhora. É ginasiano, o ginasiano da rua. O nosso soldadinho de
— É. Tenho um conhecido no Tucunduba e outro no Domingos chumbo. A D. Marta deu aula de francês pra ele, ano passado, O meu
Freire. A boa obrigação é ir. Já foi? tio vai ver o nosso ginasianozinho fardado. Fala, fala, fala aí francês
[18] Vergou o pescoço, virado para o estudante que hesitou, fez pro meu tio ver, anda, anda.
um aceno que já voltava e foi ao banheiro. Voltou. Rindo e insistindo Nini exibia as suas intimidades com o
— No Tucunduba? Foi? ginasiano e com a professora, a representar um pouco diante do
Um domingo, com um grupo, domingo, sim, em Tucunduba. público ali reunido. Tinha perdido o sono que tanto precisava para
Trazia dali aquela hortênsia ou nunca tinha visto antes uma hortênsia? não cochilar durante o dia na fabriquinha de sacos de papel.
A hortênsia na janela de um lázaro. Veio um rosto, e outro, e entre os — Amanhã, só para o Anil das Lavadeiras, é um milheiro.
dois a flor no jarro de barro. Procurou por lá — não viu, nunca mais [19] Milheiro que lhe fazia doer as costas, fazendo aquele sacos,
viu — o santo da esquina da Inocentes, a cujos pés desceu a bola e o Não por se gabar mas ali, na fábrica, melhor acaba mento na colagem,
assombro geral naquela tarde de futebol. dobragem, acondicionamento, quem, que melhor que ela?
— Viu no Tucunduba alguma hortênsia? Perguntassem a seu Camilo, ao Catu; sim, que duas colegas, ali suas
— Das vezes que tenho ido lá, não. Não reparei. E o senhor? amigas, veja! suas amigas, andavam no disse-não-me-disse tudo por
Dos lázaros trazia para sempre aquela hortênsia, tão sã, tão causa de quem ali era a primeira Ela, titia está aí pra ver, se mais
viva, tão feliz de estar ali na janela entre eles. cabeça tivesse mais caprichava As prendas de berço nem todos
Nini insistia: traziam.
— Então, Alfredo, já conhecia esse meu tio? Mais testuda, mais escorrida, mais solteirona antes do tempo,
Seu Floremundo adianta-se: Da órfã, só faltava o uniforme.
— Eh desde que tempo. Conheci ele bem menino em Alfredo guardava-se no receio de parecer bastante reconhecido a
Cachoeira. Vi o senhor recitando um discurso no salão da ela, à sua afeição e desvelo, Via surgindo na cara de Nini a sombra de
Intendência, mas bem mesmo, eu tanto soube apreciar. Agora que Lucíola Precisava conter os fervores de Nini.
esticou um pedaço, não espanta que me estranhe. — Nini, te vejo mais no orfanato que na fábrica, menina.
— Não, seu Floremundo, não lhe estranhei. Do senhor? Me Nini fez um ar de desconsolo, afinando a voz:
lembro bem. — Ah quem me dera eu no orfanato, Ah quem me dera ainda lá,
— Sim, senhor, sim, senhor, então se o senhor se lembra, Mas assim por assim, estou com titia, Aqui também eu crio juízo.
estamos entendidos. Nosso conhecimento é já antigo. — Nunca mais foi tomar bença da irmã Gelsomina?
Nini não se cansava: — Ela me abençoa de longe. Viste, Alfredo, lá no quarto, como
— Sabe que já é do Ginásio? está que é uma jóia o teu Outro uniforme? Adivinha quem passou?
8

Adivinha, adivinha. Pérola, colega dos sacos:


Alfredo fingia ocupar-se com uns papéis do bolso. — Já pedi que Alfredo, esse mexelão de moça, copie numa
— Adivinha. carta para as tantas fiteiras dele, pois vá lá, meu tio, oiça e me diga: a
Nini indicava o alpendre: D. Dudu catava o que fazer para chuva cai. Longamente oiço o sussurro das rajadas e o tanger de um
melhor disfarçar a sua atenção à mesa onde jazia, surda, a guerra. sino. Quem sois, indago, alucinado. A mesma voz me responde: é a
— D. Dudu não costurou, esta noite, Nini? esperança. Que o senhor acha, meu tio?
Acabou a encomenda da loja, Hoje serviço dela foi o teu — Ah mea sobrinha logo eu... Eu quem sou eu achar... na mea
uniforme, soldadinho de chumbo. fraca opinião. .. bem, me carece competência.
— Mas não era preciso... Não era preciso... — Agora és tu, Alfredinho, anda te desacanha. O Ponto Final,
— Meu tio Floremundo em breve esse aí, esse moreninho, está anda. O Tudo Acabado Entre Nós Dois. Anda, que amanhã te trago da
com um canudo na mão atado com uma fita cor de rosa. fábrica o teu horóscopo, seu dificultoso. Então aquele que tanto lês:
— Nini... Regula a mola, Nini. há dois mil anos te mandei meu grito. Não é? Pensa que já não te ouvi
A órfã a festejá-lo: aí da janela da frente recitando para uma pessoa debaixo do
— Te mandei um passarinho pingadinho de amarelo, Te mandei jasmineiro ouvir? Senão não te trago o que dizem os astros de ti.
um passarinho pingadinho de amarelo... Alfredo puxou a moça para o lado — licença, seu Floremundo
E repentino agarrando-lhe o peito da blusa: — e lhe falou ao ouvido. Nini desconsertou-se um pouco, sem deixar
— Mas Alfredo! Te abotoaste errado, rapaz. Onde então que tu de rir com seus dentes grandes — a tua valência, a tua valência é o
anda com essa cabeça, rapaz. Espera, Olha, eu preciso ler o teu meu tio aqui presente, senão, senão! Te respondia em cima da fivela.
horóscopo. Em cima da fivela. Mas eu te pego na primeira de copas, deixa-te-
[20] Deixando-se abotoar direito, Alfredo piscou para o seu está, deixa-te-está!
Floremundo numa súbita familiaridade com aquele compassivo — Engoliste ovo cru de japiín [sic] pra que ficasses falando
membro da família, um tanto jogado no ostracismo, sem voto nem tanto?
voz naquela reunião. Seu Floremundo, sempre de pé, sorria atencioso, — O ovo que tu me deste, tiraste do choco dos teus japiíns.
braços cruzados, como com frio. Nini não parava. Deixa-te-está, deixa-te-está, pensa que não escrevo [21] pra tua mãe
— Meu tio, peça pra ele ler pro senhor uma passagem daquele contando uns tantos sucedidos aqui em Belém por parte do anjinho
livro de capa verde, do homem que roubou um pão o suspendeu filho dela? Duvida!
sozinho a carroça, peça. Não se faça rogado que é feio. A pessoa não — Seu Floremundo, Nini cedo é da Fábrica Paraense de
bate a porta da escola pra sair mais orelhudo. Ele que sempre anda: Chapéus de Palha, a maior do Norte do Brasil. É ou não é, Nini?
meu nobre perdigueiro, vem comigo, vamos a sós, meu corajoso Nini se fez prudente, logo ansiosa:
amigo, pelos ermos vagar... Anda. — Assim espero em Deus, assim espero em Deus. A Virgem de
Deu uma batidinha na testa a lembrar-se, a lembrar-se. Sabia de Nazaré vai ter minha promessa no seu Carro dos Milagres nem que
cor o pedaço tirado de O Colibri, de Abaeté, cópia que lhe deu a seja noutro ano. Mas ainda espero neste. Não só acompanho o Círio
9

de pé no chão, como vou no trajeto desfiando o terço. Titia se dia. De [22] uniforme as moças da Fábrica de Chapéus faziam mais
empenha. figura que as piramutabas da Escola Normal. Estas, coitadas, com
— É a titia ou a Virgem de Nazaré, Nini? Qual das duas? todo o metidismo delas, olha a blusinha esgarçada, o cotovelo saindo,
Nini avançou para Alfredo com a mão fechada: a saia puída. As chapeleiras da Quintino, não. Era do regulamento,
— Não duvida, que te dou um godeme, herege. Teu mal é só aquele trinque delas, chovesse ou fizesse sol. Das meninas do
debicar. Mexe com santo, mexe... Ginásio, conhecia pouco. Alfredo que dissesse.
— Estou debicando, seu Floremundo? — Deixas então a Utopia?
— Sim, que o senhor só fez foi perguntar. — Que queres dizer com isso? Vê lá. Teu enigma não é comigo.
— Até meu tio, até meu tio! Utopia que nome é esse? Ou é verde?
— Vais subir de graduação, sim, Nini. Te pega também com o — Verde, Nini? Verde, por quê? Por que verde?
velho São Pedro lá de Santana. Está um porteiro sossegado, gordão, a — Então desenrola o carretel, enigmático.
costa do pé meio cavada de tanto lhe beijarem, um pouco enjoado — Sou um homem, não sou uma esfinge, aquela-menina.
com o cheiro de doce que vem da Palmeira ali defronte entrando pela — Tua cara é, é daquela que me mostraste no livro de
igreja, subindo pelos altares. Nini, a chapeleira, de fardamento geografia, sim. Esfinge, esfinge!
marrom, chapéu etc., e tal. Que tal, seu Floremundo? Alfredo calou-se, receoso, sabendo até onde Utopia era o Catu,
— Faço voto. o tipógrafo, que compunha e imprimia na fabriquinha os rótulos dos
— Tua promessa para o Carro dos Milagres? Qual? Um chapéu sacos de papel. A toda hora, em casa, era Nini com o nome dele, e o
de cera? Um saco? Uma cabeça? que Catu sabia da rua, das tipografias, do querer, jurado, ter uma
— Pensa que os santos não estão te escutando? Tuas palavras oficina, dono dela um dia. Alfredo se chegava: Nini, bem que Catu
sendo anotadas lá no livro? Duvida, que não vou te trazer um chapéu podia ficar com aquela tipografia de Cachoeira, anos fechada, um dia
no dia do teu aniversário, seu ferino? E ofereço um pro meu tio. Sim, roubada inteira. Durante anos, os ratos ali imprimiam seus jornais de
meu tio? telhado, os morcegos compunham pasquins mal-assombrando a vila.
— Como? Uma madrugada, chega o dono da tipografia, mete a chave, vira,
— Um chapéu de palhinha? custou, sacudiu a porta, abre, e nada encontra senão um rato podre e
Nini contou o empenho da tia para metê-la na Fábrica de as letras B e S no cimento. Parte para o chalé, indaga do Major, o
Chapéus Para Homens, ali era mais assim-assim, menos mal pago, e Major num espanto, tudo sumiu? Correu que tinha sido Edgar
por quinzena. Sim que a pé, para chegar lá três quarteirões do Menezes, e só Rodolfo, o tipógrafo no chalé, lastimava aquele fim.
Esquadrão até a Quintino, passando o Igarapé das Almas. Deixava Era um patrimônio cachoeirense. Embora fechada, esperando anos,
aquela biboca dos sacos de papel com saudade, mas que remédio? havia de um dia abrir para lançar aquele jornal da era nova tanto
Entre saqueira de papel e chapeleira, embora não de atelier, sempre esperada tanto adiada. Não era o sumiço que os assombrava, era
tinha um grau. Esperava ser chamada, hoje ou amanhã, para o ninguém ter sabido em Cachoeira nem Rodolfo. Por isso, o tipógrafo,
aprendizado, No que aprendeu, conforme Deus, a vestimenta de todo pela madrugada, colou na porta da D. Duduca, amanheceu: aqui já
10

não se sabe nada da vida alheia. A modista mudou de ofício. que até cópia de modinha já deste a ela? Insensato! Nosso dente
— Vamos, rapazinho, a Utopia, antes que o rato te roa a virasse serrote, serrada já estava aquela jaqueira, diziam as moças do
palavra. seu Camilo. Mas ontem, no que chegou, a Pérola gaguejou a
Nini sentia-se adivinhada, Alfredo malinou: novidade: Catu de namoro agarrado com uma sarapeca da Goela da
— Olha, olha, Nini, que eu digo... Morte, uma tal de Batista, da Fábrica de Cordas, boca tamanhona voz
— Da parte que me toca.., disse ela fingindo indiferença. de pomba rola, atracador amarelo no pixaim curtinho, de tão curto o
[23] — Seu Floremundo, já viu os sacos de papel da fabri- vestido já lá em cima, todo sábado, pão de festa nos Estivadores.
quinha? — Que Utopia é essa, seu cabuloso?
— Não apreciei ainda a fabricação. Espero ver. — Onde mais? A fábrica do seu Camilo, onde te aturam, Nini.
— Digo por que estás na berlinda, Nini? Digo? — Batizou de Utopia? Que eu soubesse...
— Por mim sã não querendo. — Ouvi dizer que o teu patrão, lá na Espanha, era...
Via a impaciência dela, o aborrecer-se, ela encrespou o rosto. — Aí se falou que seu Camilo, sim, foi contra o Rei.
Adivinhava: Catu. Nini não queria saber porque estava na berlinda. [24] — E aqui?
De homem, na fabriquinha, além do patrão, só havia um, o Catu. — Aqui não é república?
Trazia para as moças um feixe de modinhas, estórias da seca, Batista, beiço feroz, ela ria, os dentes te comiam. Pobre Catu,
saudades e desconsolações do Ceará, torrão de sua família. Nini, ressequido, minado pelo chumbo, falta de sangue, no beiço, no dente
colando saco, fazia que não escutava, rabo de olho nas outras, daquela piraíba.
guardando a sua astúcia, De todas ali, se via a menos preferida, a mais — Não é mais contra o rei?
no canto, E um cerol cortava a linha de Nini quando, em volta de — Penso eu que não. Indaga de quem sabe.
Catu, empinava a sua ilusão: Zuzu debaixo da jaqueira, por um fio a — Ouvi falar que não era só contra o rei. Que também contra
desnudez. Catu passava: boa-tarde, Zuzu, suspendeu a chuva, não? Deus.
Boa-tarde, Catu, sem hora nem demora a chuva eivém. E assim das — O excomungado te soprou?
lacas da Zuzu, prova um gomo, levava um pedaço, uma inteira, Era — Quem?
entrar na fabriquinha, as moças lhe arrancavam a jaca, atirada na vala — Quem lá trabalha e traz pra fora os ocultos da casa.
da rua. Catu não parasse na jaqueira. Não chega o que aconteceu ao — Ouvi falar que ele freqüentava sessões de idéias em Belém.
patrão? A seu Camilo ao pé da jaqueira? Torna, torna, torna a parar, e Parece colega do seu Lúcio, um parente meu. De uma religião social.
vê o que te acontece. Catu sã escutando, curvado sobre a impressora, — Conversa sério, rapaz! Onde foste desencavar toda essa
que a impressora, o compor, o imprimir, o cuidar pela nitidez dos maçonaria, limpa-poço? Já sei quem é o poço, poço, não, trombeta. A
rótulos, não era mais cuidado, fervor. serpente que seu Camilo tem em casa!
Ou Nini, indo para a Chapéus, só assim vai chamar a atenção do — Serpente que imprime os rótulos?
Catu, que ela tanto, e tão secretamente, queria, quer, “corto minha — Então é ele mesmo que te conta?
língua mas não digo?” Catu passava pela jaqueira. Não nos vai dizer — Onde escutei não vos cabe saber.
11

— Que religião social essa? Falando pondo na berlinda? passa pela jaqueira com algodão no ouvido e olhos só para o canto da
Ouviste na Brasiliana? rua ver se inda pega o bonde que vem dobrando lá do Curro. E Zuzu
— Catu nunca te diz nada? espalha. Zuzu que te disse que seu Camilo é contra Deus?
— Que é que queres dizer com isso? Na fábrica, cuidamos só — Por que seu Camilo não cobre a vergonha dela colocando a
do serviço. Seu Camilo não é mal obedecido. moça na fábrica?
— Ouvi dizer que cultiva idéias. — Mas cadê, cadê vaga? Nem uma nem uma. Zuzu é por
— Seu Camilo, o que ele é, não esconde. Religião social só se é demais metida quanto é por demais falada. E era só Zuzu entrar, todas
no teu repertório. Me diz! nós: seu Camilo, faça nossas contas. Onde a sapa inchada foi buscar
Seu Floremundo ouvia como desinteressado ou fingia. aquela soberbia, não sei. Bicha!
— Pra que te diga, esse fundamento o dicionário que guarde. — É que debaixo daqueles trapos vocês enxergam a filha do rei.
Mas isso não é só contra o rei? Nem me atrevo indagar do seu — Axi!
Camilo. É um homem muito do silencioso. — Zuzu? Melhor que Zuzu, quem?
— Ele tem santo em casa? — Muito me admira, muito me admira que coloques na lagalhé
Lá pra dentro onde ele e a família dele moram, nos fundos, um tal diadema. Seu Camilo nunca se apresentou, numa palavra que
quando a gente passa pra ir no quintal, se vê uma Nossa Senhora na fosse, com uma de nós, operárias dele. Agora ela, na jaqueira, a bem
parede do corredor. Que os dois filhos estejam batizados, a Nini, esta dizer, com licença da palavra, meu tio...
aqui, ignora. Mas nunca ouvi da boca dele contra santo istozinho Nini debruçou-se, falou baixo, fazendo cruz na boca:
assim que fosse. — Uma boa da sem-vergonha.
Nini mostrava a unha do minguinho. — Com uma semana fazendo saco de papel, Zuzu pode
— Pelo menos contra os padres? comprar um vestido.
— Estou lhe prestando declarações, senhor subprefeito? — Aquela? Lá na fábrica? Em que ela se fia?
Quando uma tarde entrou uma senhora com um registro de [25] santo — Ah correu com o D. Juan?
e um papel de subscrição, ele só deu, não assinou. Deu um cruzado, Nini enrouquecia:
que eu vi. Missa, Círio, nunca vi a mulher dele ir. Mas não sou — Alfredo, Alfredo... D. Juan, D. Juan, nesta infeliz rua, se um
testemunha. tivesse, quem, senão vossa senhoria. Ou pensa que sou cega?
— Seu Lícío, que tem as idéias do dicionário, contra os padres, — Lá na reunião das idéias, seu Camilo quer vestir os nus. Aqui
bufa. No que passa pelo arcebispado, diz adeus de mão fechada. É fora ao passar pela jaqueira, quer tirar da maltrapilha o último
esse, o teu patrão? molambo. A fabriquinha lhe dá direito?
— Conosco só falando de serviço. [26] — Seu Camilo, bom homem até que é. Não crê em Deus?
— As idéias do homem lindas no dicionário. Aqui fora ao pé da Mentira! Nos paga demais pouco porque o negócio dele também dá
Zuzu... um nada. Agora Zuzu, aí, sim, ali debaixo da jaqueira, não vem me
— Mas que mentira! Aleive da Zuzu. Zuzu! Zuzu! Seu Camilo dizer que não é contra Deus.
12

— Ao contrário, Nini, ao contrário. terreno, derruba a jaqueira, adeus o ponto da encantadora, Ai é que te
Nini temperava a goela: pergunto: onde vais entronizar a filha do rei? Me vais é andar de
— Ela te contratou pra anjo da guarda dela? Quanto o carocinho no pescoço. A vovó te prepara. Não sabia, tio Floremundo?
ordenado? Dá a tua farda, veste ela com a tua farda. [27] Seu Floremundo só fez um aceno, não se sabia se sim se
— Seu Camilo, ao passar pela jaqueira, podia atirar em cima não.
dela trêszinhos [sic] metros de chita. — Num instante, vais ficar cego ao passar pela jaqueira e surdo
— Pois só por soberbia, Zuzu cuspia no pano. Logo agora que de nunca mais ouvir aquelas vozes.
era cospe quando o seu Camilo passa. O vestir dela é se despir, isto — Vozes?
que sim. — Dela, sim, ela entoa. A mãe é do reino das almas. Te mete
— Zuzu distribui jaca, não caco de vidro, entre os meninos. nas sessões dela, te mete! Quanto fluido já te deram? .Já estás de
Debaixo da jaqueira, ela não minou o chão. espírito encostado? Minha avó vai te puxar do poço das jacas, seu
— Mais baixo que a mea tia Graziela pode ouvir... Ouvindo a atraído, à força daquela oração no oco do carocinho. Atrás da jaqueira
cantoria daquela sereia? deixa-te-está que a mea avô Santa vai já, a tem um poço onde ela atrai e some os convidados.
meu pedido, te fazer uma reza, te pendurar no pescoço um caroço de Nini se deu conta do que disse, se calou, se benzeu.
tucumã brocado com uma oração dentro, seu enfeitiçado. Entre sério e divertido — enfeitiçado, enfeitiçado — Alfredo
Alfredo sorriu, se lembrando da mãe, do tio, da Sabá numa indagação. Zuzu, o poço, era? Não. Zuzu provocava a ira das
Manjerona, da tapuinha que dizia: mas se asserene mas se asserene, moças na José Pio por tão soberba tão pobre, tão nua tão séria, por
noite dos maracujás, São Pedro quebrando pratos no céu. Enfeitiçado. muito melhor vestida quanto mais maltrapilha.
Agora, em vez na palma da mão, subindo e descendo, o coquinho — Do caroço com a oração dentro, quem mais precisa é ela,
brocado, com uma oração dentro, pendura no pescoço. Nini. Contra a tamanha carecência, os riscos que corre, contra a
— Um carocinho de tucumã oco oco, Nini? Pede, que eu quero. calúnia. E o manto de Nossa Senhora em cima dela.
A tua vó sabe? — Blasfemo! Estás no livro das Ocorrências! Deixa-te-está!
— No pescoço, a reza dentro. Vou te pôr coleira, chamador de — Nini, pra te dizer mais, Zuzu é pura.
mau tempo. — Está ouvindo, tio Floremundo, o sacrílego? Ouvindo, tio
— Tens a letra da oração? Floremundo?
— Seu adiantado! Não te convém saber. Se eu, que sou eu, Aqui o alvo de Nini não é Zuzu, é a Batista, da Goela da Morte,
nunca li, jamais tu. Leva ela dentro do caroço pendurado sem saber se Zuzu tira das jacas o grude que passa no corpo. Da Batista o grude é
principia com A ou acaba com B. Pendurada. Dentro do oco do do beiço. As duas do mesmo fogareiro, da mesma ordinareza com o
caroço, O carocinho já te espera. Brocadinho todo por dentro feito um Catu no meio.
cofre das palavras que vão te desenfeitiçar, enfeitiçado. Torna, torna a — Pureza é andar — com licença do meu tio — tão...
comer jaca daquela jaqueira, torna a te pôr debaixo da jaqueira! Que o — Por isso mesmo, por isso mesmo!
seu Camilo, logo que prospere, depressa compra dos Lobões aquele — É o que te ensinam no Ginásio?
13

Aqui Alfredo segredou: noite. Contra o rei e contra Deus. Estava no dicionário. De um beco
— E ali na mesa, cá entre nós, naquele tão silêncio, que júri é? da Cidade Velha, enxugando o gogó e as saudades da Mãe Ciana, seu
Ah desculpe! Lício entrava na Sé para ler, com beatitude, os boletins da Anarquia
Deu com o seu Floremundo tão de cabeça baixa. Seu que chegavam da Espanha. Ou o manto de Nossa Senhora, em vez de
Floremundo, parte da mesa, membro da família, servente daquela cobrir, ia, aí, sim, despir Zuzu? Deus? Deus?
justiça. Nini espalmou a mão num: tu! tu! Seu Floremundo riu, curta Seu Floremundo se aproxima do estudante:
risada, assim como um bom respirar, tudo nele um momentinho se — As horas? O senhor sabe?
alumiou. No mesmo que riu, voltou a entristecer. Quase um susto para Alfredo a idéia das horas. Foi à varanda, o
— Mas bem, não mude de assunto. É o que te ensinam no carrilhão parado. Na alcova — imprudente, mostrando-te, em
Ginásio, Alfredo? presença da família, assim tão íntimo da casa! — viu, entre as
[28] — Infelizmente não. Zuzu me ensina muito mais. floreiras, na mesa de mármore e pau marfim, o relógio francês
— Alfredo, ao menos respeita o tio Floremundo. Está vendo, madeira e bronze. Parado. D. Dudu não dava corda nem naquele
meu tio, o que tanto aturo? Não estamos sós, Alfredo. quanto mais nesse, para a família não falar depois, sobretudo a
— Seu Floremundo, lhe desrespeitando? Graziela, que ela, Dudu, andava usufruindo, gastando o alheio.
Seu Floremundo espichou-se no silêncio, sorriu. Alfredo só Alfredo foi até a sala. Não ousou acender o lustre e tudo ali sentiu
consigo: ali na mesa é um pouco, em ponto pequeno, mal comparado, como à espera do leilão. Sala e alcova tinham servido o essencial,
o célebre quadro, a lição de anatomia. Tudo ali na família se vê, para uma noite só, aquela, em que recebiam a suposta visitante. Ela
menos a barba imperial, a barba do pai que desabençoou a filha, a [29] entra, saiu, ou nunca entrou ou saiu, real ou de mentira, não
barba que presidia o Conselho Municipal, a interinidade, a barba em importava. Não devolveu a chave. Sinal de que não era Luciana a
que se dependura a questã. Nisto, a D. Dudu chama a sobrinha que mulher da janela à tarde olhando a casa perdida. Ou era. Certamente.
hesitou, sem saber se dava outra resposta a Alfredo ou se atendia. Pode vir a qualquer noite. Debaixo do travesseiro ou da rede, da
Alfredo, a roer-se, já se debruçava sobre o poço, pendurava no ansiedade e da irresolução, a chave está. Restara a chave, abria a casa
pescoço da Zuzu o carocinho oco. Contra o rei e contra Deus. Duns na palma da mão e era tudo. D. Graziela sabe quantas chaves tem?
tempos para cá, Deus se cobria de um tal gelo. Daqueles três, o Deus Mas a Esméia, Ismênia, Ismênia, esta de Vera visitou, sim. Aqui esta
do pai, o da mãe, o Deus da nhá Lucíola, que o agitavam em menino, coluna de ébano ganhou da preta a graça que lhe faltava. Nesta salva,
iam restando cacos, como os de vidro da D. Graziela no quintal, a das mãos da preta, ficou este pouco jasmim murcho — que D.
cicatriz, aquele arrepio este bafo gelado. Então ao menos contra o rei. Graziela descubra, fareje, indague, acuse — sem isto de que vale a
Não, que reis no Brasil é só esse, à cabeceira dessa mesa, assinando a 1 salva? E esse bronze bobo, Caçada Inglesa, no toque da assaltante
abdicação. Mas aquela república? Aquela, do Largo da Pólvora, de negra, impregnou-se de aventura, torna a caçada, agora, verdadeira.
facão, com as mães de Belém ao pé, enxotando de cima de seus No silêncio do relógio francês ressoa o minuto do salto. O minuto só
defuntinhos a mosca que cobre a cidade? que Vai levar para o seu Floremundo. Voltou.
Lembrou-se do aragonês, de que falavam as senhoras daquela Também não sabia dar conta à conversa com o seu Floremundo.
14

E este, esfregando as mãos, paciente, esperava. O estudante foi no De fato, de fato. Comparado ao modelo, de que falava o pai, a
alpendre, foi no quarto, encontra no chão o Francês sem Mestre, o presente cópia não desmentia. Cópia, caricatura, ingênua ou rombuda
segundo volume de Os Miseráveis, a oração de Santa Rita dos imitação, negativo de fotografia, o que fosse, parente, primo, talvez
impossíveis para mandar ao pai, o Castro Alves, as cartas de Raul pela tristeza, o certo é que alguns traços sugeriam a semelhança. O
[sic] — Nini mexeu ou não me lembro se deixei assim desarrumado. filho do meu compadre Delabençoe é ver o D. Quixote, dizia o pai. Já
Sem abrir a luz no quarto, abriu o atlas, abriu na África, aquela costa, de volta dos moinhos, possivelmente. Ainda bem menino,
ali, aqui, de. onde, de onde o brigue que trouxe aquele bisavô e a que vasculhando as duas estantes da saleta, catando estampa, folha de re-
preço? O deserto, o oceano, os leões, a esfinge, pulavam, bêbados, na vista, almanaque, catálogo, dicionário, Alfredo procurava essa figura
lição de geografia. Mas não podia nem rir do mestre pois no chalé, em pessoa, aonde andava? Quem era que servia de modelo ao
quem sabe, ia a mãe, fechada na despensa, enxergando no caibro as descalço, ao calado, ao bem pacífico bem magro senhor
bonecas — que nunca levou de Belém — da filha morta, as bruxas de melancolicíssimo do Mutá, o filho do Interino, chegando de remo na
pano desfeitas pela chuva. Tal suposição, por mais exata, era trair a mão e cigarro apagado atrás da orelha, pescoçudo, pernudo, a voz de
mãe, ofendê-la, expô-la diante de um público, esse, que povoa a quem lá nó fundo do peito ou da tripa guarda uma longa desilusão ou
consciência dele. Abre o caderno e olha com surpresa: que é feito do uma lombriga sem a qual já não pode mais viver? Lá está, psiu psiu,
ginasiano? Quem estuda neste quarto? Estou passando um calote. De lá vai de pé no chão e perneira, chapéu de sol aberto, o nosso
cima do telhado, Luciana o espiava. Os livros o espiavam. Ser é cavaleiro apontava o pai da janela para aquele passarão que amarrava
sentir-se espiado. a canoa no toco da beirada, comia no banco da popa o aracu assado e
Agora no pescoço o tucumã com um contrafeitiço dentro. Deus? chibé e ia, depois de uma consulta no Ribeirão sobre as urinas, trocar
Deus? Nem podia mais catar os cacos de Deus, metê-los no pernas, as suas pernas altas, pelo aterro; dava um tostão para o Bode,
carocinho. Deus? Naquele ano, pela cidade acesa de velórios de anjo, na Rua da Boavista e conversava com o seleiro, ginjeiras do professor
as moscas nasciam do corpo podre do Senhor Morto. A noite, esta, com quem troca duas palavras, e pedindo para ver, mais uma vez, os
encalhou? cadernos de caligrafia, os de letra gótica; um instante na Prisca —
Esquecido do seu Floremundo, foi atando a rede, o Conde taqui, comadre, um agradinho de minha parte, não repare. A senhora
sentia-se fatigado. A Condessa também mal tinha força [30] para nem nunca mais nos aparece... — no caminho fechado pelo capinzal,
pronunciar uma palavra. Rodrigo levantou-se e disse: a revelação que ao cruzar com a Sabá Manjerona, inclina-se, com o seu guarda-sol,
me fizeste, minha mãe, de tal modo me confunde as idéias que sinto dando passagem. A porta do velho compadre do seu pai, o receio de
necessidade de repouso, O seu pedaço de Escrich decorado no balcão entrar, ali no entrar era o viúvo desabado, a fome em torno da mesa
do Saiu. Atou a rede, não se deitou, vai em busca do seu Floremundo. sempre posta é sem um grão de sal ou de farinha, o prato da finada, o
A mesa, debaixo da lâmpada escura de mosquitos, entre copo da finada, o berro contra os [31] advo|gados: nos tomaram tudo!
jenipapos e coalhadas, continuava a família, e ali à margem, remeiro à nos tomaram tudo! Deixava, à porta, na mão do vizinho: tome essa
espera dos viajantes sentados, o seu Floremundo agora nítido na luz, encomenda pro seu Domingão; subia a torre da igreja, ver — o
mais exposto, mais entregue à curiosidade do rapaz. pessoal não estoriava? — o corpo da falecida, aquela que ali, no
15

sagrado. Se deu a um. E sempre o seu Floremundo, de guarda-sol, Quanta vez, se despedindo, seu Floremundo ouvia da D. Amélia
sempre só, triste sempre, aquela figura. Rompia no sol os na porta: dê lembranças. Ele alteava a voz: farei presente, sim,
encharcados, fechando a boiama debaixo de cada pampeiro, sempre senhora. E daqui com os seus dentes a D. [32] Amé|lia: faz presente
ao relento a cabeça e o peito fundo. Mas na sede do município, por coisa nenhuma, que aquelas de mim só querem é lonjura. Eu que me
particular respeito ao senhor seu pai, Presidente do Conselho e dôo? Axi. Que boa maré te leve, passarão, merda pra tuas irmãs e tua
Interino, abria o guarda-sol. É remador do Coronel Braulino? mãe.
perguntou-lhe, à porta do mercado, a D. Duduca, a modista. Não, Alfredo então estranhava. Do Quixote, o pouquinho que sabia
senhora. Filho. Um criado da senhora, raro é eu vir em Cachoeira, por sem nunca vê-lo e do escrito nem uma linha, era que corria o mundo
isso, Um pasmo no mercado aquele fiasco da modista, Na reunião de lança e espada. Aqui esse, nascido no Mutá, em vez da espada
sonolenta onde, por fastio e cansaço, já de ninguém se falava mais, os trazia o remo n’água, em vez da lança, o chapéu de sol, com as suas
velhos despertaram um momento: mas tu. Duduca! Tu! E a compor passadas bem vagarosas, voltando para o Mutá nos favores da maré,
sempre, no chalé, o Cachoeira Nova, sem imprimir por falta sempre lá desembarca, monta no boi mocho, chega na fazenda: sa bença,
de papel, o Rodolfo: coitada, tinha de arquivar a língua para sempre mamãe, bença, papai, este diante do espelho com o pente fino,
aquela que de todos nós sabia tudo. Seu Floremundo, um metro e lambuzado de brilhantina, pela barba de Imperador. A D. Jovita na
oitenta e dois, não podia transpor a porta da Duduca, sem vergar-se, rede, o rosto talhado em pau e silêncio, as mãos no colo, governando
por isso passava de largo, no rumo da Estação de Monta Onde não a casa. Agora em Belém, é a explicação, O nosso cavaleiro nunca se
tinha mais o gado de raça do Ministério nem o diretor estava — foi queixou do sal no café e ignora o nobre apelido. Com um novo alívio
fazer uma palestra na União Espírita em Belém e até hoje. De tudo ali por adiar as apreensões, Alfredo ficou ao pé do cavaleiro, e entrou,
que se inaugurou ao som da banda do Miranda só ficou a Cerca de num desembaraço, a indagar-lhe dos mutuns caçados, das capivaras,
arame, o banheiro carrapaticida com algum cururu pelas noites quantos bois desatolou no verão, se ia ver no Jabuti os zebus de
falando do governo. Da Monta ia ao cemitério velho, em visita a uma Minas.
tia, arrancava capim por capim da sepultura, pondo em pé a cruz, — Então que deu jenipapo, não?
circulava por entre os mortos como um deles. No chalé, um custo — Jenipapo que é imundice.
sentar, de pé, recostado na janela, taciturno, a responder: é, sim, — E pro carnaval, fica?
senhora. É, sim, senhora. Então se deu que a Inocência, servindo no Seu Floremundo — quem era ele pra ficar pro carnaval —
chalé, leva o café pro homem, este bebe, Deus lhe acrescente, nisto a festividade que nunca usufruiu, nunca morou onde sempre se festeja.
um chamado da beira se despediu. Vai, D. Amélia, prova do café Mesmo, por nascença e índole, era bem desanimoso.
temperado no bule: mas, Inocência, trocaste, rapariga! Com que — Carnaval que eu sei, que me lembra, é dum, mas faz é
temperaste o café, criatura de Deus! Só sal, criatura do diabo! A tempo. Foi na boca do lago, chovia que chovia, a água então, olha a
Inocência, já com o bule na mão: não foi, D. Amélia, não foi, veja lá altura. Mesmo assim no jirau rente d’água jogavam a modo dum
se eu quisesse botar o homem pra fora era só pôr a vassoura atrás da entrudo. Eu zinho na boca do toldo eu só que espiava, por um
porta, é que estou com esta cabeça... Inocência padecia de suspensão. desenfado. Era que era fio, Deus o livre, mesmo assim aqueles
16

viventes brincavam. De entrudo já me chega a lida todo dia no repente. Nisto fonfoneia o carro, o dominó — eu sei a febre dela, eu
atoleiro. Meu viver é mais no campo, do campo eu gosto e vivo que sei a febre dela — desceu e só voltou de madrugada. Encontra o
nem cascavel. irmão já de pé, fumando na janela sobre as folhas de zinco onde umas
— Aqui em Belém nem uma só vez, seu Floremundo? roupas serenavam.
Alfredo tinha nos olhos um carnaval em Cachoeira, cordão dos — Olha, Floremundo, não te faz de boca quente.
pretinhos, entrando no chalé: o Major me conhece? Me conhecendo, — O irmão — aqui tem novelo, aqui tem novelo — não
D. Amélia? A fila dos mascarados pelo aterro, como se fossem numa respondia.
procissão, vão entrar na igreja? — Te digo isto não por mim, por mim que não é, vou logo te
— Aqui em Belém nem um, seu Floremundo? dizendo. Mas dizer lá não carece, que eu sei o que estou falando.
Também Alfredo, naquela sexta-feira, espiou a prima Melhor dado por não visto.
ornamentando o Palace para o bal-masquê de sábado. Deu [33] um — Ora, cera! que tenho eu com o teu dominó e tua máscara?
giro pelo terraço do Grande Hotel, já a sociedade se jogava serpentina Sim que lá tu és sempre de sermão no bico. É só a Luciana mexer um
e confete, lá dentro jantavam, a orquestra do salão tocava fúnebre. dedo, não sais de ferro em brasa?
— Nem nem um, seu Floremundo? — Tu pensa que é uma coisa e é outra, Eu? Viro o juízo? Viro?
Seu Floremundo acena com a cabeça e pensa numa noite, nesta É ou não é?
cidade, chegando de repente, vai onde mora a Graziela — ela tratava — Não me compete.
os dentes em Belém — e dá com aquele dominó amarelo, máscara Chega o irmão na fazenda.
com uma tromba, no meio da sala. O dominó não falou, fazendo que — Floremundo, do carnaval, mano, tiraste o teu fiapo?
não conhecia o viajante. Aqui tem novelo, se diz o seu Floremundo. [34] — Junto de mim passou um mascarado. Um dominó
— Deixa que já te conheci, minha irmã. És tu, sim, Graziela. amarelo. Foi num lugar impróprio. Passou tua febre?
Sem tirar a máscara, trombejou: — E a Principala, já botando o dente de ouro?
— Que tu vieste fazer, Floremundo? — Botando.
— Aviar esta receita de um senhor que passou por lá, A uma palavra de Alfredo., seu Floremundo saiu do pé da irmã
aconselhando homeopatia. Vou amanhã no Bacelar. deitada na rede, e veio e admitiu, compassou a voz, batendo o
— Isso de homeopatia eu sei de quem a invenção. Quem doente carapanã pelo cangote:
em casa? Papai? Mamãe? Felipa? — Aqui em Belém, é verdade, me deixe me lembrar, espere...
— Tu sabes quem. Sim, só vi, uma viagem, andavam vendendo no Ver-o-Peso, rente das
— Aquela partiosa? A inventadeira de doença? De novo com as proas, numa enfiada, desconforme de caro, um horror de máscaras.
partes dela? Sim, que no toldo da canoa freteira, a Zéfiro, cobriram de confete o
— Deixei ela com bem febre. piloto que dormia na camarinha. Mas bote confete, tão em
— A febre dela eu bem sei. Eu sei a febre. quantidade. Fantasiaram o dormir do homem.
Luciana dada àquelas febres, a tal tonteira, umas dores de E com um olhar para o alpendre, ganhando uma cautela,
17

chamou o Alfredo para o mais afastado: Faziam dali, penso eu, o arraial delas, de suas folias, penso eu, o
— Vamos nos arretirando mais pra cá um pouquinho pois me terraço do Grande Hotel delas, o largo da Pólvora delas. Então se
deixe ir lhe dizendo. Foi na mesma noite do confete no piloto, assim ouviu deste barco, daquela canoa, do lado do Mercado de Ferro, da
pelas nove, o Utinga não sei se apitando, eu bem na beira do toldo em parte onde sempre é a louçaria de barro, do encosto das geleiras, es-
cima, ralando a onça de tabaco. Me virei: pelas proas, lado do trondou, só o senhor vendo, aquela goela só: Ei cunhado! Ei cunhado!
necrotério, um zunzunzum. Firmei moa vista, era. Era que era então A zona embarcou toda! Larga o cabo! Tira a prancha! A zona
que só visto. Veio vindo. Um bando daquelas umas. Com voz de embarcou foi toda! Suspende o traquete, cunhado! só faltava a maré
mascarados, ver piaçoca no lago. No geral vestidas a caráter. Tinha encher, que a doca estava seca, as quilhas na lama, com siri e tralhoto
então uma, coberta numa plumagem, asa de anjo, escorria dela um lambendo o limo das embarcações. Eu dentro da camarinha, Olho
luzimento, valia ver. Sustentava uma lança, mexia na asa, arpoava a ardendo sem poder abrir, assim mesmo espiava com o outro Olho
lança e eu daqui só te olhando, só te olhando. Até que uma outra de pela porta, pela vigia — o piloto dormindo dormindo debaixo do
cagão preto e penacho em riba das cadeiras, me espirrou certeiro a confete — e cada vez mais lá por cima as donas na danação, espie.
lança-perfume, me bisnagou no meio mesmo do meu olho, Deus o Pena é o senhor não ter, por uma comparação que fosse, Subido num
livre, me caiu o cigarro, até hoje sinto arder, vai espirrar, com licença daqueles sobrados, naquele do seu Antonico Silva, com o holofote da
da palavra, na que te pariu, quis dizer, não disse, viola no saco Marinha em cima dos mastros e dos toldos, só pra tirar uma vista.
escorreguei pra dentro da camarinha. Então que num desatino iam que Que o que se viu por dentro daquele canal foi feioso, foi foi feio.
iam tomando conta dos barcos, das canoas, se enfiando pela Nisto a polícia, crau! a debandada, chega a patrulha, crau! ferra o
mastreação. Pula nesta verga, ali no rolo do cabo, lá estão por cima do pano, rompe a cavalaria quebrando os potes de barro, o mau tempo
velame, roçando no gurupé, aquela na boca da caranguejeira, bateu na em cima delas, gritavam debaixo dos mastros e dos cabos e
barrica d’água, o senhor tire um juízo. Estou lhe dizendo, vira e que aquelazinha com um diadema e Um manto todo de cetim vermelho
mexe, iam passando de convés em convés, bailéu em bailéu, se- que se pôs a gritar? Me dá essa bijarruna, me deixa me esconder
gurando o cordame, gritavam já das popas, olha aquela escanchada na debaixo da bijarruna, meu pai era da Vigia, quem é aí os da Vigia?
cana do leme. Queriam içar as velas, a estripulia, veja! As donas faz Me escondam na bijarruna. Sou da Vigia, meu pai era piloto, me deu
de conta que aquele canoal do Ver-o-Peso era delas, salão de baile que foi uma saudade do meu pai, Minha Nossa Senhora, me
delas. Deixe estar que [35] corria o frasco, penso eu que até aquele arranquem deste manto, me arranquem deste diadema, me levem onde
fumo oculto uns e umas fumavam, não duvide, fedia que fedia a a canoa do meu pai se afundou, inteirou seis anos, eu era inda menina
bebida, quem tinha serpentina jogava, quem não tinha dançava em bem menina, lá na Vigia, eu era, sim, eu juro, eu juro, me cubram
cima do toldo, uma dançante dobrou o espinhaço pela borda quase com a bijarruna, me cubram com a bijarruna. Rasgou-se o manto, o
quase na lama, não fosse a munheca do tripulante. Outra dá uma diadema abaixo, levada pelos soldados, foi no grampo. E foi que
topada na panela do mapará cozido, pulam no porão em cima dos parecia só ficava aquele suplicar dela no Ver-o-Peso, pelo carnaval
sacos de carregamento, invadiram camarinhas, Se amontoam mas oh inteiro, ela só, [36] gri|tando. E eu querendo um poder para guardar a
donas impossíveis, no rebuliço estou que bebiam demais, penso eu. menina na palma desta mea mão.
18

Puxou um fôlego. — Seu Floremundo, tenho em lembrança, não sei direito, era
— No que deu então aquela calmaria, o piloto se acordou em casa em Cachoeira. Dum mutum aparecido, bastante tempo. Sã
cuspindo confete: que foi? que foi? Olhe, até que não era para estar me lembro é dele na varanda voando escuro. Era? O senhor que
lhe contando ao senhor semelhante passagem. Que feder, o Ver-o- levou?
Peso fede, o trabalhar fede, ali a tripulação não larga de mão o canoal [37] Seu Floremundo esfiapou pelo bigode escasso o sorriso, a
carrega descarrega, espera maré, entrando, saindo... Mas naquele escutar com atenção tristonha. Com uma palmada no pé do Ouvido
instante no que botei o nariz de fora da camarinha, com perdão da matou o carapanã. Lia-se nele um repentino, manhoso gosto de só
palavra, que tudo ali fedia a fêmea, com lança-perfume bebida e fumo escutar. Bastante queimado era. Castigado de campo, curral e caça.
ah fedia e corre inda aqui pela entranha o grito daquela menina. — Trouxe o guarda-sol?
Calou-se com muito embaraço e igual reserva. Calou-se. — Havera então de não trazer? Aqui sol dói.
Calado. Está ouvindo o grito da irmã? — Também a chuva?
A modo que foi ontem, a irmã arranca os três dias da folhinha, — O que sei lhe dizer é que a chuva aqui amofina a gente.
vai ao tabocal jogando terra nos bichos de criação: jogar nosso Preferível sempre abrir o chapéu das águas.
confete, senhoras e cavalheiros. É uma batalha. E aquele repente em O cavaleiro arriava o ossudo. ombro, varando a sombra com os
que se enfia no velho fraque do pai, a máscara ela mesma fez, a seus ossos altos. Se distraía um pouco escutando esse zinho trazido
cavalo para o pagode dos Ervedosas, tamanho sábado gordo, no Mutá. para o estudo, esse empinado, mal quebrando o ovo e já se fazendo de
Precisou ir atrás dela, escondido da mãe, esta na fiúza que a filha só galo. Viu ele piquixitinho no braço daquela que, nem por ser de pele
tinha ido desinflamar um pirralho no retiro com garapa de aninga. fechada e esposarana, menos senhora é. Até lhe deu, mais que uma
Flechou o galope atrás da irmã. Desajuízo dela era mais de surpresa, um respeito, uma cerimônia ao vê-la pela primeira vez, na
contrariação que lhe faziam de não poder pôr o pé na cidade? Só? porta do Major. Pode entrar, pode entrar, mas suba, seu Floremundo,
Estava entra-não-entra no pagode, oculta num mirizal, ali agachou-se, casa às ordens. Com a criança no colo, o rosto — cor, boca, voz — de
de fraque e máscara. baunilha feito. Aquele sal no café, tinha certeza, se não procedeu dum
— Mas Luciana! engano, de vasilha, foi por pinima daquela tapuia por certo hoje
O salto que ela deu para o pé do cavalo! O rosto que saiu de espalhando rio abaixo a proeza dela. O chalé era digno de hospedar o
debaixo da máscara! De volta, se agarrou na tranca da porteira, com o Coronel Braulino quando Interino do Município ou presente à
gado preso no curral fazendo aquele pião. Entrar em casa, cadê? Olha assinatura do Orçamento, não as filhas que nunca iam. Pois na
mea mãe, Luciana, olha a mea mãe, ela que já não anda muito Camamoro, aquela preciosidade do Secretário, a pretinha metida a
católica contigo. Ninguém te viu? Ninguém te conheceu tua cara branca que o Major sustenta, a pé rapado que virou família, a
debaixo da máscara? Não se desgarrava da tranca. Brusco, destrancou negrinha de pé tuíra que ele carregou do Muaná na garupa, ouvia
a porteira, deixando o gado sair, e dela iam saindo também as constante das duas irmãs maiores e da mãe sob o silêncio do pai. Da
lágrimas de raiva, lhe tirando o alvaiade do rosto. Numa caveira de caçula, o que escutou só: se eu fosse agora em Cachoeira, mano, casa
boi, espetada na cerca, com os urubus olhando, amanhece a máscara. onde eu só ia, outra não era sótão a casa da D. Amélia. Duvidando?
19

Pois duvida. Quem hospeda o pai, hospeda a filha. tocava. Felipa, das folhas do alecrim tirava um sumo, O vento abre e
Agora é o filho dela, tão dela, sossegado sem sossego, chegando fecha porta abre e fecha janela, debatia-se casa adentro, era rincho,
de uma noite sabia-se lá que noite. Mas palavras do moço a rua bicho piando, aquele soturno dos lavrados, despencou um jenipapo,
latejava, rodando aí pelas horas de Belém a todo vapor. Que trouxe da rangia o tabocal, todas as vozes dela, muitas, muitas, dentro de casa
noite o menino? Um tanto mais sobressaltado que curioso, a indagar soprando por baixo da rede da D. Jovita que não se embalava, o olhar
de mutum, de capivara e de carnaval, por ser da educação, do bom em cima, as mãos no colo, a muxinga ao pé. Depois, nem adeus
acolhimento indagar. Na pele do rapaz, se vê, as baunilhas da mãe, depois, nem forças para um dia procurá-la, flechar um galope até ao
aqui e ali, os ocultos da mãe, principalmente daquela, aquela tarde, na Mutá: ó do barco! ó do barco! está aí, ai no toldo aquela mea irmã?
porta do chalé. Do pai era o rir nos olhos, o puxar assunto, o abrir um Viram? Com efeito, num galope chegou na caiçara e até sentiu a irmã
livro. Também a outra, nesta casa, era de estar em [38] cima de sua embarcada na caiçara, içada no cabo pelos cabelos, descida brusco no
leitura, moça de se dizer: esta sim, também... Também lá uma pessoa porão, rês a outro consumo aqui nesta cidade que tudo come, tudo
criada entre bois, porcos e búfalos no Jandiá, nascida dona desta casa, obra.
cobiçou esta cidade. De sua cobiça nasce esta moradia. Agora? Pelas — Com sono, seu Floremundo?
tripas de Belém correndo, onde todo dia é noite. — Até que não. Pensavazinho um pouco.
— Uma vez, seu Floremundo, levei de Belém um jabuti. Joguei — Então que tal um pulinho pelo quintal?
no rio. Não duvido que desembarcasse no Mutá atrás de ficar entre os — Só não querendo...
seus, seu Floremundo, que eu sei que o senhor cria. [39] Fez ele, obediente, pois fugir daquela mesa de cozinha,
Seu Floremundo pigarreou breve: daqueles quatro engasgados num surdo escândalo, fugir, queria, sim,
— Não, senhor, seu jabuti inda não chegou lá. Chegando lhe depressa. Ele, a vagarosidade em pessoa, tudo num vagar fazendo,
comunico. Será bem recebido. bem do bem vagaroso, a maré que é a maré, enche tão depressa?
Sorriu, tirando o paletó jegue, e toda a ossada do peito apontou devagar no remo, em riba do cavalo, no ir à caça, no preparo de uma
sob a camisa, esta um presente do pai, pelas mãos de Luciana ferra e de um embarque, devagar as suas armas carrega, o mundo não
marcada, foi em dezembro, dia de Nossa Senhora das Candeias, a carecia pressa, e até mesmo desenrolar os novelos de sua família era
acender a vela no oratório, a candeia de azeite na porteira do curral, sem avexame. A Questã anos no Foro, naquele areião guloso que era
numa lonjura de meia légua alastrava um fogo, fogaréu alto, a parição o Advogado, indo pro fundo, papel e boi, quanto mais tempo dure,
daquela égua alvaçoa era por horas. Nesta camisa, a letra marcada, F, mais orgulho dá ao pai, a caçula trazida por um raio ou por um fado,
me rói muito doído. Quando marcou a letra, tinha no braço um fogo de quem se tira esta casa e por quem se acaba o sossego do irmão, O
selvagem. Até imagina, imagina que ela foi, aquele dia, depois, pelo casamento — tudo, menos esperar por Isso — de Felipa de tamanha
raio arrebatada. No que apeou no curral, ele entra em casa, olha para idade, a mais velha. Pois esta semana passada aparece um que vê o
o quarto escancarado, dela restava a sandália virada que desvirou, gado, sabe do dinheirinho dela no Banco, bastante foi o conversar
avança para a mãe sentada na rede, de olhar em cima dele, as mãos no com ela um par de tempo, pediu a triste mão da carcomida Não,
colo, a muxinga em pé. Graziela limpando o bandolim que nunca Felipa, eu podia dizer, disse? Te lembra daquele pastor protestante,
20

olha que era outra apresentação de homem, uma pessoa que se sabia — Parecendo que sim, mamãe. De quem mais. Até que assim
que era, o pastor só faltou foi se rojar diante da caçula — andaram assim a caligrafia.
contando o contrário — e ela com um não e um aperto de mão, — Estou te indagando?
embora andassem espalhando que galopou pela beira do Mutá atrás — Dela, sim, a letra.
do recusado, coisa que se põe em dúvida. Felipa, depois do seu tiro na — Sabes? Quem te disse? A Justiça vai saber.
macaca (tanto tempo já!) ao estranho que chega, acaba em sim, Tudo porque Graziela, vai, enfia a garra no bolso do velho, no
senhor, sim, senhor, a voz pingando: então conforme seu trato, lhe casimira azul marinho trazido, meu Deus, que distração, de
autorizo, O seu Cipriano escrivão trata dos papéis. Também acho que Cachoeira, traje do Interino, feitio do Leônidas, guardado sempre na
pode ser já, luxo não carece, do meu enxoval eu me encarrego. mala grande do chalé do Major Alberto. O velho trouxe a casimira
Parecia até vendendo um dos seus capados, o rosto crespo, piscando, para um casamento no Setepele, ia servir de padrinho, foi adiado,
um argueiro em cada olho, arre que por esperar sentada até que veio deixou a roupa na fazenda. Graziela dá Com as sete cartas de Belém e
um. Não que acesa por marido nunca foi, nem por desesperada, não é ainda no mais aquele retrato, Foi pegar nas cartas, corre, na mão da
do seu calibre, então, então? Fogo no teu juízo, Felipa? O caruncho mãe. Lê, Graziela, que te falta? pra isso te mandei ensinar, Graziela,
que te comichou, sua cega? Viste a Principala se rindo? Viste a ao pé da mãe sentada na esteira, lia, leu, releu, é a que sempre lê, a
Principala só consertando a goela? Viste depois a Principala te cobrar leitora da fazenda, a guardadeira das chaves, documentos e segredos,
aqueles dez contos que estavam na tua mão? Viste a Principala te chocando a voz, meio ralhosa no falar, a Principala.
dizer: daquelas jóias, Felipe, ali juntas, só uma que é tua, tu sabes. E Algum desgosto, umas tantas contrariedades, meias suspeitas,
tu disseste, sem mágoa nem suspeita: é, sim, Graziela, tenho dela, negar não nego, mas não me fere tanto, me fere é o receio
Estuda um pouco o pretendente, Felipa. É ou não é um do que Graziela vem me dando, aqui tem novelo, me arrepia um
Arienga, comércio dele lá fechando as portas, cortados seus pressentir que me faz nascer um grude grosso azedo na saliva.
aviamentos no Antonico Silva do Ver-o-Peso e do Pinto Alves, do O pai repuxava a barba, repuxava a consciência, obrigado a
Porto do Sal? Sobe o Arari atrás de viúva que o [40] livre da falência, escutar, obrigado a esta viagem, arrastado pela família à presença do
chega no Camamoro: ah esta aqui, esse refugo, me serve, eu peço é já. Dr. Gurgel, do ex-Governador, ao peso das sete cartas, por tudo que
Amanhã, Felipa vai ao comércio aviar-se de paramentos que, sucedeu. Pelas sete cartas esquecidas no bolso, lidas alto, uma a uma,
por esperarem tanto, amarelaram na prateleira. E aí nessa mesa, com o endereço no sobrescrito, o pedidinho para tirar — sim, meu
debaixo da luz do inglês, se prolongava o que ouviu e viu na anjo? — no Ferreira Gomes um jogo de louça, a caçarola, e o
Camamoro e durante a viagem na Lima Júnior fretada: é a Chefatura, milheiro [41] de palha para a barraca, o colar e o pano do robe no
é a Justiça com a espada no endereço, la para o endereço com a prestação e o resto a pagar pela imagem de Teresinha de Jesus.
carroça, e arrecadar tudo, ladra! A mãe, a tal palavra, endereço, nunca “Tenho também de botar o pivô, coração”. Estás ouvindo, cachorro?
usou, agora ouvido nas sete cartas. Graziela relia o sobrescrito: rosnava a D. Jovita para o Bogarim, o cão de caça. Escutando, seu
endereço. Travessa da Violeta. A mãe escutava. sem-vergonha? indagava do papagaio que pousava no punho da rede.
— A letra? Dela? A crua analfabeta mandava: Me diz de novo essa passagem. Não me
21

come uma só letra, não me salta um pingo. Me informa das datas. vovô? Lido cru e grosso, como quem reza terço, pela Principala, a voz
— Espere, mamãe, que vou verter água. da amante escorrendo pela casa.
— Inda mais essa. Aproveita me enche meu cachimbo. Seu Floremundo saltou de suas cismas:
Cobriu-se, na rede, com as varandas, a gargarejar de furor. — Era um mutum açu, o que levei pra casa de sua mãe.
Possível que ali nas cartas esteja um rastro da renegada. Casa de seu pai, quis emendar, não emendou, satisfeito.
Em tudo por tudo, o velho, foi, carimbou a sentença contra a Lá da mesa pareceu sair um regougo. Os dois aqui se caiavam.
caçula, sem carregar na mão. Uma palavra, pelo menos, dele, o filho Seu Floremundo pensou: o caminho, quem sabe, que o velho via, ou
não escutou. Conversavam o trivial — gado, obras no retiro, o atrás e dela se aproveitou, ou aproveitado pela amante, para tirar da toca a
o adiante da Questã — bulir no assunto, nem por sonho. E foi, uma perdida.
tarde, subiu no alpendre, fedendo a cavalo: papai, me dê uma opinião, — Seu Floremundo, não me lembro bem. Bem bem, não.
então. Não convém saber o certo? Indagar, cartas na mesa, da caçula — Ah mas já faz bote que tempo. Peso de tempo. Dei também
o que foi visto mesmo? Um investigar? O pai, debruçado no um pro seu Saiu, esse um mutum pinina, com topete senhor topete.
parapeito, aninhava os dedos na barba sem nem dizer estou te Um penacho que o mutum tem, serve pra encastoar em ouro.
ouvindo, meu filho. No balaio da caçula, agora da Graziela, aqueles tantos
D. Jovita — tal como a chamava Luciana quando via a mãe encastoados, o trancelim, a corrente...
nada católica — suspeitava naquela amante do Marco da Légua, — É preto-preto. Lustroso do lustroso.
tirada do bolso do casimira, um caminho em que ia o pai até dar com Meu Deus, da mesma tinta e lustro o cabelo da caçula. Olha,
a filha? Tramóia da perdida? Cartas falsas, escritas de mão esquerda, mano, cor deste meu cabelo e cor do penacho do mutum tirado é da
para varrer da família todo o sossego? Por trás da rapariga do Marco mesminha tinta. Quando num carnaval em Cachoeira, vou enfiar na
da Légua, não estava o sumetume daquela capivara? Com seu rancor minha fantasia um penacho de mutum. Não sacode a cabeça, mano,
e repugnância da cidade, a D. Jovita farejava naquelas cartas um sinal que eu ainda vou, sim, contigo, tu me leva, me fantasio na casa de D.
da amaldiçoada. Até que ponto o pai não sabia da filha? Sim, tinha o Amélia, oh que esse meu irmão! Que triste irmão és! Penduraste a tua
retrato, era um porém. Graziela voltava a ler os documentos. No alegria no pé do urubu?
mesmo quarto onde esteve presa a Luciana, o seu Braulino, só de Também Alfredo via nos tios, um pouco na mãe, a cor do
calça de pijama, a barba escumando sobre o peito de guariba velha, penacho do mutum, lustroso de rosto e sossego no banho, beirada e
abria a janela para o curral, debruça-se, vira-se para apanhar da mão ladainha, no baile de Santana, no leme do barco, no lombo do cavalo.
de Felipa a xicrinha de café, a ouvir a leitura na varanda, desce para o Mutum e tios, da mesma família.
curral e aquela leitura o acompanha, anda por uma distância e sempre Tinha o seu Floremundo parecença com a nunca vista Luciana?
ouvindo a Graziela. Voltava e agora numa sucessão de ecos, meu Do mesmo pai, Luciana e Floremundo? Não podia conceber. Em
velho meu vovô. Se lembre, meu filhinho, de sua filhinha, dos Luciana aquela insubmissão, aquele frenesi para o risco, aquele
carinhos que lhe dei na sua barba linda que só eu sei pentear, meu brusco desajuízo que via, um pouco, em Ana, e por um instante, um
vovozinho. Não é assim que me pede que [42] eu lhe chame, meu instante só, na Esméia ao saltar a janela para dentro da sala.
22

Seu Floremundo muito sossegado: Aqui seu Floremundo vergou-se um pouco mais, estalou os
— Da carne deles, do mutum, nunca provou? do mutum? dedos, coçou-se nas costas, olhou as alturas da noite.
Nunca? — Deixa ar que eu crio, disse ela. Um dia, o macho derrama da
— Ah que o meu tio Sebastião falava... cuia a garapa que a mea irmã fazia da batata da aninga. Ela
— Que era ver carne de peru? costumava levar a batata da aninga no quente das cinzas, depois
— Adivinhou. Peru. lavava, ia espremendo, ia espremendo, até que desse um caldo
[43] O gritinho da Nini: uai, vocês ai conversando com as for- igualzinho garapa de cana, só que sem a doçura. Com isto Luciana...
migas? Enxugando o quintal? Fizeram promessa de levar, sereno? Escapou como um gemido. Há quanto sem soltar o nome.
— Comer mutum, lá em casa, só mesmo uma pessoa lá, este seu Podia? Varrido não foi tudo em casa o que lembrava a caçula? Vem o
criado. Que aquela mea irmã, rá! Nem mesmo o cheiro longe. Dizia: rapaz, esse — as coisas! — me tirando o nome da boca, me espreme
quem come mutum come gente. um pouco aqui por dentro. Pouco é mas tira o tamanho.
— A caçula? [44] Alfredo esperou, apoiando o pé na cerca, o coqueiro
Seu Floremundo disfarçou, mirando as plantas, passou a mão na rangia. Lá dentro a sessão em silêncio. Para entrar no quarto, sem
folha do tajazeiro. nunca ligar a luz elétrica, D. Dudu acendia a sua lamparina. Nini
— Mutum, em casa, foi, par de vez, o meu peru. gargarejava no parapeito.
Trancou-se para lembrar só consigo o aniversário dela, sim, sem — ... com a garapa da batata da aninga até que curava viventes
nem um festejo, assim sempre foi. Aquele assado de peru apareceu na que sempre apareciam na fazenda, inflamação de um, inchaço de
mesa, presente de uma comadre dela do Mutá, trazido de boi, dentro outro. Só indagar da mea tia Santa. Indague, que ela lhe diz.
da panela de barro. Luciana o que só comeu. Mas então comeu! Pois Padecente no cuidado dela, dessa mea tia, padecente que inflama a
era mutum, sua-diz-que-nunca-hã-de-comer-mutum, pois comeu barriga, ela cansa de tratar com aquele caldo. Também quanto a
mutum, falou bem brando o irmão. A irmã tomou aquele sobressalto, qualquer batata agreste, Deus o livre, aquela mea irmã tinha a modo
se enfarruscou, boca não mexeu. Minto. Falou pelos olhos por onde de uma querença. Daquela batata, de que se faz um banho, do vai-e-
mais falava. volta? Bote! Ralava passava pelo corpo do braço. Assim como tu
— Canso eu de comer mutum. vais, tu volta, assim como tu vais, tu volta. Assim.
A voz se tornava compassiva, nem o caçador nem o ferrador de Alfredo: banho do vai-e-volta, vai e volta, ralando a batata no
curral que conversava nem o andante entre os búfalos e as trovoadas, banho.
farejando pelos encobertos, com um pingo de lua em cima do piriá, o — E conhecido.
rastro das onças Alfredo queria escutar nessa voz o perdão a ressoar — O que, seu Floremundo?
longe, até que a desabençoada escutasse. — Estou lhe dizendo da batata do banho. Sua mãe bem que
— Uma vez, beira do rio, vi um casal. O mutum macho fazia sabe.
pitiu, pitiu... pitiu. A fêmea: can... can... Peguei, levei, pedi: cria eles, Alfredo mentiu:
mana? — Mamãe é que usa.
23

Falso banho, enganosa batata, lia nos olhos de seu Flora. estavas que, em nome dos bichos, não trouxeste de volta a ama deles?
mundo. Ninho de japu, nunca chove dentro? Mas aqui em cima de Luciana,
Seu Floremundo disse o pau de que era feita a cerca aos fundos, chove, chuva de Belém, esta, sim, fede, seu Floremundo. Onde o teu
olhou para a laranjeira desfolhada com aquelas quatro laranjas tão remo, cavaleiro do miri e da canarana, para recolher na canoa a moça
maduras lá na ponta do galho mais alto, como se para amadurecê-las pela família vomitada, deixar a irmã onde ao menos alguém dissesse:
tivesse a laranjeira perdido toda a folhagem e o fôlego. D. Dudu não te escasseio o meu jirau. A mãe no chalé poder ficar pode, minha
preferia vê-las podres a apanhá-las. As laranjas deviam estar anotadas filha, que teu juiz não sou — podia recebê-la. Agora, sem o vai-e-
no caderno da Graziela. Seu Floremundo levantou a cabeça: volta, sem o milho e a banana que tanto pediu ao bicho encantador,
— Tem que tem chovido, não? Por lá nem se fala, é chuva que agora, nós dois juntos, seu Floremundo, nesta lamentação disfarçada,
fede. viraste, irmão ossudo e bimba, num japu desassado, sim, sim, já faz
Tirou o lenço, enxugou o rosto, como se ainda estivesse se hora que te espio, que descascas tua ferida, seu triste.
enxugando daquelas chuvas de lá e das saudades de Luciana. Dobrou — O senhor então que de espingarda atira é bem, não? E eu que
o lenço com cautela. nunca um tiro dei.
— Também se criou um japu. Ela criou com gema do ovo. O — O senhor, novinho que é, andando pelo mundo vai sortir
japu pintava! Furtava os óculos do papai, o cachimbo da mea mãe, as repleto a sua memória. Eu, não é por me gabar, boa mira Deus me
pulseiras da Graziela, tudo levando no bico. Ninho dele é como um deu. Mas que tem por aqueles campos e beiragens uma quantidade
balde, no bojo põe o ovo, a boca do ninho que nem boca de cachimbo, melhor que eu eh isso tem eh bote! Peso de gente. Quando der prazer
nunca chove dentro. Bicho que era bicho que tinha em casa! A caçula — mas vá! — de passar um dia por nossa casa, às ordens. Do
era muito xerimbabeira. Os bichos naquele pegadio com ela. Chegou pouquinho que atiro, minha experiência lhe passo, a pontaria é pouca.
de [45] amansar, a bem dizer debaixo do sovaco, um acuatipuru en- Escondeu as mãos, se fez mais descarnado, mais torto, como se
carnado, que estoriam que encanta folha de qualquer mato, virando a sustentar a cabeça lá em cima fosse muito.
folha em pé de milho, em banana. Um assunto de pescaria, um resvalo nas lembranças da irmã, o
Faz um milharal daquele mirizeiro, e já espigando, anda! nome do Major Alberto, se o Leônidas, o alfaiate, voltou a montar sua
ordenava a caçula. Quero agora mesmo desta sororoca um cacho de alfaiataria de bubuia pelo Arari, e veio o caso daquele que matou o
banana inajá, anda! fazendeiro, foi pelos irmãos do morto obrigado a tirar da cova o
Alfredo andou ciscando no terreno minado. Recolhido na defunto...
sombra, aquele-um alto calou-se. Das asas do mutum, do ninho do [46] — Ah é arriscoso conviver com eles. Isto eu sei, é arris-
japu, da garapa da aninga, do banho do vai-e-volta, do acuatipuru coso. Não contesto.
encarnado, safa a irmã do seu Floremundo, encastoada em saudade. — O senhor se dá bem com eles?
Mas, homem, onde é que então estava que não acudiu, não arrancou — Os Menezes lá de cima? Me dar bem, faço parecer, que é
da mãe a castigada, com teus ninhos, com tuas penas, tuas cordas, os meu dever, pois se são parentes.
xerimbabos dela, não armaste a rede onde a tua irmã ficasse? Onde — Os Menezes?
24

— Por parte de mamãe, sim. carece.


Alfredo concentrou-se: Então Luciana é sangue de Menezes? É — Querias sentir? Daqui com pouco vais ver o que é não sentir
Menezes? Oh família por toda a parte! nada. A vista turva? Tonteira?
Seu Floremundo se assoava. [47] — Nem, nem a menor... Vi o bicho se enfiando...
— O senhor visitou o preso? — A modo que desejavas.
— Na última viagem. Era como se eu fosse pedir perdão em — E pálida, estou?
nome do sangue que corre neste meu corpo. — Me deixa então ao menos chupar o lugar da mordição. Dá cá
— Contra cobra, o senhor fechou o corpo? tua perna.
Alfredo puxou por malineza, assim de súbito, sabendo a cobra — Agora tarde é. Me vendo amarela? Ou não estava venenosa?
de que falava. Ou sou fechada de nascença?
— Segurozinho sempre uma pelo pescoço, ela viva. Vezes, fiz. — Se deu onde?
O corpo me fecharam mas não foi no Arari. Se deu numa viagem, lá — Na volta daquele juquirizal.
no Soures, uma viagem, andava me queixando das urinas. — Dá cá, xá ver tua perna, estripulia. Por que que tudo te
— O mestre de Condeixa? acontece?
— Fui bater na porta dum, lá de Condeixa. Tem ouvido? Dum, — Estás vendo? Nem sangue nem um arranho. Doer nem
não. Do. ardume. Como é que nem ardume?
— Mestre Jesuíno. — A modo que desejavas.
— Mas o senhor já me anda bem adiantado como coisa que o — Amarelou meu rosto? Estou uma cera? Meu veneno mais
seu estudo sempre soltazinho um tempo pra saber do que se passa por forte. Eu mesma precisava de uma dose.
aquelas cabeceiras. É. Ali no seu Jesuíno, sempre chegando um povo — Nem que cobra era, nem nada? O dente de jacaré que te dei,
de gente. aquele, algum dia usaste?
Ao pé do açaí coberto pela trepadeira, seu Floremundo — Na hora dei foi um pulo e já que já montei, flechei um
suspirou, a enxugar o rosto agora com a manga da camisa. galope, aqui estou eu. Mas que cobra era, isso era, era. O dente?
— Me curou de cobra, estou lhe dizendo, O nome dele corre. Aquele dente? Ah, meu irmão, mutum comeu.
No silêncio feito, o comprido fugiu, voou até onde era o curral Montou de novo — mutum comeu! mutum comeu! — ga-
da fazenda, aquela tarde, a ver a irmã chegando a pé, puxando o lopeou, galopeou. De com pouco ela se apeia:
cavalo pelo cabresto, se dizendo mordida de cobra. — Te arreda de mim que o que transpiro mata. Agora mim que
— Conheceste a cobra? vou me virar peçonhosa. Quem eu morder, rá! Olha o meu braço
— Não. Mas, mano, não sinto nada-nada. suando do bicho. Empeçonhei meu dente.
— Querias sentir? Vou já-já chamar mea mãe. Pra dentro! Te — Tranca essa tua boca, te recolhe, ou és mesma de nascença?
recolhe, não te roda a cabeça? Ferrada de arraia, chupada de morcego, escouceada de vaca, com
— Não. Chamar mea mãe, não carece. Sinto nada-nada. Não cicatriz de taboca, mordida por piranha, jogada pelo cavalo no
25

atoleiro, não te deram o Ginásio, por que tudo te acontece? Sua fala- deles com caroço de açaí, com fruto de seringueira. Comiam. A
diante-do-espelho, vai, vai, vai falar de novo no espelho, vê o que te moela do mutum mói tudo. Precisava muito dessa moela, dizia a
acontece. Não faz nem ontem era aquela ferida na costa do pé, não minha irmã. Mas bem, voaram. Voaram de casa pra dormir no galho
fosse a casca de ocapurana, não secava. Não está te inchando a perna? baixo da mangueira. Minha irmã saiu gritando. Nessa ocasião batia
Te escurece a vista? um ovo, dava a vida por uma gemada com farinha e açúcar moreno.
— Olha, mano Floremundo, pra nossa mãe, nem um pio. Saiu gritando: Voaram! Voaram!
Inchando? Compara as duas, esta e esta. Está? Seu Floremundo salta o minuto em que via pelas feições da
Bem nascida de perna, as duas lisas sem um senão. irmã uma espécie de culposa ambição ou desabafo, não sabia.
— Me escurecendo a vista? Vez de escuro, vejo é tudo um Voaram. Voaram.
alvume, mas branco-branco que até teu rosto é, criatura, tudo alvo, — Que anoiteceu, ninguém cuidou, Veio a coruja, pois, não
mano! levou a fêmea? Aí foi que foi. Minha irmã, na mesma hora que deu
Descalça pelo curral meteu fundo e a gosto o pé na bosta verde, por falta, foi fechando o rosto, foi me dizendo: te devolvo o macho
girou, deu um salto — a cobra é que a esta hora [48] entre|ga a alma antes que a coruja arranque ele da minha mão. A fêmea não foi voar,
ao diabo — tombou Como desmaiada, O irmão acudiu, ela se fazia perdeu-se? Ela passou o dia no Jundiá, só voltou pela boca da noite
defunta, o pé esverdeado da obra, o cabelo desgrampou-se. Viu que com um feixe de pau saca! na cabeça, encheu água, tomou banho. Foi
ela estava pegando uma feição outra. Pegou a mão dele para levantar- mexer no gramofone velho que não falava, só rodava mudo e ali ficou
se. como se ouvisse música. A fêmea foi voar perdeu-se.
— Passou. Tirou o cigarro, faltou palito, Alfredo lhe trouxe um tição.
Então sem um pingo nas faces, olhando sério para o irmão. — Nossa Senhora das Candeias lhe alumie.
Séria. Aquela — que ele uma vez espiou — a falante diante do Alfredo apagou o tição na terra, escutou:
espelho, olhando o espelho no escuro — menina isso não presta! — Também, com pouco, coisa de uma semana, macho, adeus
Séria, como se daí em diante começasse o veneno, O efeito que foi deu. Como sumiu, não decifro.
mais tarde, foi? No tabocal? No raio? Quando esfolada na surra? [49] — No dia daquele raio, o senhor estava?
Agora em Belém? — Não. Caçava.
Outro assunto de caça, seu Floremundo, voz de folião de santo, — Que raio, não?
ia rezando: — Sim, senhor, foi. Cheguei depois. A faísca partiu o
— ... sempre esfrego pimenta no corpo do braço, na batata da bacurizeiro em duzentos e cinqüenta e dois pedaços pequenos e
perna, no sovaco, passo a ponta da malagueta nos cantos do olho. Pra dezesseis pedaços grandes que dois homens não suspendiam.
dar sorte numa caçada, não tem, Mas bem, como ia lhe dizendo, eles — E antes?
voaram... — Que antes?
— Voaram? — Sim, antes do raio.
— Sim, estorio aquele casal de mutum. Minha irmã tratava Seu Floremundo desatou a gravata, tirou o colarinho, embolou
26

tudo no bolso da calça, pendurou o paletó no braço, deu um trago Montada no jacaré morto, aquela irmã, aquela irmã! Umas tantas
forte, deu um passo até ao limoeiro, Alfredo sentiu que tinha se horas, ia estranhando ela, quem tu és? Comi pouco sal contigo, que é
adiantado. que tem que, te conhecendo tanto, num minuto te desconheço?
Seu Floremundo olhava agora a cozinha de porta aberta para o Arrasta o pirarucu no seco, escoa casco, no igapó atolou-se, distração
alpendre, as cabeças da família boiavam na claridade. dela. Principia a ferra, já ela anotando, tarde inteira, bunda na tranca,
— Japu é como japiín [sic], os machos ficam cantando na exi- testa no sol, o gado de era, a geração do ano, o gado de nossa marca,
bição deles e as fêmeas nos ninhos trabalhando. lápis, papel, a mão sabida. Por mais porca, até dum fofão saindo,
Explicação sem mais nem menos, para encobrir o que lhe sempre limpa parecia. No atoleiro, não no fundo, no raso conforme
grudava a língua, chegava se escurecer por dentro. Meu filho, de tudo ficasse, a cabeça só de fora: é, é urubu, urubu, vem me comer meus
isto chega. Só moela de mutum mói tudo isto. olhos como tu come os do boi atolado! Vêm, seus sem-vergonha!
Neste grude, nesta escurecença quando vejo, é ela. Deus via, onde no mais grosso no mais bruto se encontrasse era
Com ela na garupa, ou no banco da montaria, caçando marreca rasgando seda. Sim, que com a enfiada das marrecas, ou pegando
Debaixo do mururezal, metia-se. Deus o livre, ali sustendo o fôlego, caramujo ou se encharcando na canhapira, no juízo dela estava: ah eu
vigiando as aves. Aquele bando delas descendo na baixa que se em Belém, ah ela em Belém. Ainda conto me sentar lá, naquele sofá
avermelhava. Então, inocentes do caçador e da vigia, começavam a que vi no leilão, ela, esta, quer, Santo Amâncio, dobre essa mea mãe.
comedia delas. Por baixo do boi marrequeiro, com a espingarda que Querer sempre, este é o meu fraco. Embarca os bois, mano, que me
carrega pela boca, boi nem se mexendo o pau falou, o estouro, a pague aquela casa.
nuvem, o marrecal subindo, e saltando da água a Luciana com a A casa. A casa. A vitória contra a Principala. A vitória contra a
embiara, era ver filma no fundo, com aquele dizer só dela mãe. Que o pai, este, sempre escondendo suas preferências pela
toqueestoloque toqueestoloque. caçula e sempre visíveis a toda a família, mansinho ordenou a
Vendo o irmão sair para o campo (um cerco de jacaré ou construção. Relações na sociedade, a Questã, cabia ter casa em
pirarucu num braço), a oferecida: Belém, as posses davam, embora a mãe tosse aquele rancor contra
— Ah até que sonhei, esta noite, que o meu bom do mano ia me Belém, e seu filho, mamãe, também, sim um azedume, já agora mais
levando com ele, agora. Dito e certo, vou? Toqueestoloque. Me um pouco e será mais. A caçula, no que soube, flechou o galope
levando? campo arriba como se já fosse apear na porta de casa e abrir a sala
— Mas te guarda dentro de tua anágua, rapariga. Tu não carece para o baile. Agora, sim, se não era o Ginásio, era Belém, Belém.
de ir, oferecida. Tu és fêmea. Desenha a Caixa D’água, borda o Teatro da Paz, o pavilhão do largo
— Fêmea eu sou, que eu sei, a mãe sabe, toqueestoloque, o de Nazaré, a torre da Sé, a casa do Museu. Uma tarde, trazia no pano
mururé sabe, os fundos, aquela cobra, que me sabendo donzela, não marcado o portão do Bosque. Belém. E a planta da casa, que veio, e o
quis me botar nem um veneno, toqueestoloque Que tem, que tem ser serão em torno das acomodações, fachada, mobiliário, lustre,
fêmea? campainha. Dos jornais chegados, recortava os anúncios de leilão e
[50] Escorrendo tijuco, a ouvir o coaxo: me chamando, cigana? marcava a lápis “importantes peças: arca e biombo chinês” que ela
27

deixou escrito na parede a tinta, depois raspado pela Graziela, e o venham cá, que quero tirar a limpo se um de vós três é o que eu
relógio francês, este, sim, que ali na alcova deve estar. No curral, cismo.
aquele laranjo, Floremundo, essa araçã, escolhia. Animais que fossem — Mas não brinca, não brinca, Luciana, Não brinca que Senão
mais filé, fizessem mais figura no matadouro. Ao piloto do barco: só pelo vento tu acaba prenha.
olhe, seu Levindo, cuidadinho com a criação. Não me deixe a [51] Divino Espírito Santo! o que ele disse! Agora pese.
travessia tirar o peso dessa gente. Eles são a minha casa em Belém. Sempre os dois irmãos, um com o outro, não na vista dos pais,
Quanto custava ao irmão se desapartar das reses, criadas no capim de vergonha não tinham das palavras. Por ser de irmão, leal, nunca
casa, tão debaixo da vista dele. Luciana era aquela volta da caiçara a ofendia. Felipa, essa, a fala, precisava se adivinhar se tinha. Graziela,
se embalar alto no trapézio do alpendre, a se embalar, a se embalar, lá maneirosa, fazendo a muito ajuizada, não se dava a graças, Só a
dentro a Principala, embuchada, limpava o bandolim que só os ratos caçula, ocasião que havia, batia com a língua no dente.
iam tocando. Findo o embarque, desatraca, as varas n’água [52] — Brinca, brinca, abusa das palavras e vê. Depois: que é
empurrando o barco, Luciana tirava o chapéu de pano, acenava: isto na mea barriga?
Adeus, mea família! Gracejo que feria o irmão, saudoso das reses, — Agora isso, Floremundo, agora isso.
com um juízo contra a casa, contra a cidade, aquela, que tanto Os dois juntos, vinha a mãe; que tanto um tem com o outro, pra
enfeitiçava a irmã. Então veio, se espalhou, dos confins nasceu, pra se andarem assim no agarrado? Os dois, os olhos tamanhos para a
outros confins foi, de boca em boca, estoria neste rodeio, escuta na mãe. Uma tarde, a velha vai no Jandiá, vê, os dois tão esquecidos
calçara no acabar o embarque com a lambada da abaeté goela a conversavam. A mãe, de dentro dela a voz de onça: Floremundo! e
dentro, cai no ouvido das mulheres, no Ouvido da Caçula, a falância arrepio na boca, destilava uma ira.. O espanto inchou no filho.
do vaqueiro Talismã. Ver o vaqueiro, ninguém via nem ouvia. Nem Luciana, esta o que fez? Enfia o pé na água, deixou que se deixou
ao menos a poeira do seu cavalo. Seu rasto, no limpo cerrado, seco, mirar no igarapé que ganhava mais sossego fazendo as vontades
alagado, se deixava, só boi seguia. Do seu galope, diziam, um galope daquela todo o tempo se olhando no espelho. Quando a mãe saltou,
longe Ou no meio do trovoadal, na sacudição dos relâmpagos, na sela até deu eco: como coisa que o pai dela é o igarapé, é o que está aí no
do vento, rédea no raio, furando o redemoinho. Um daqueles três de fundo. Pra casa, já, sua coma!
cavalo branco Marajó adentro, travessia de Soure, travessia de No trapézio do alpendre, vem e vai, o sol lavando a Luciana, vai
Chaves, era? O relincho dos três cavalos, por cima do mar, se ouvia e vem e vem e vai, ela ia falando, joelho em cima, joelho embaixo,
na Mexiana, por cima dos mondongos, se ouvia no Araruna. Talismã, aquela ventania no cabelo:
um dos três cavaleiros? — Facilitou facilitou me despenco é já atrás daquele querubim.
— Mano, comigo, toqueestoloque, vou de faca no dente ou Olha que ao redor da Camamoro, o que tem é lonjura. Não digo
desapeio ele ou ele some comigo na garupa. Eu criança já bem taluda, o igapó, o igarapé, par de ilhas, é a lonjura rasa, comendo Os olhos. A
não dormia com a tesoura aberta debaixo da rede? Ensino de uma gente então some. Luciana tinha uma força de sumir, lá nela, que eu
velha sarapeca a minha mãe. Sou ou não sou salva do perigo? que conte. Possível pelo sumiço se encontre o enigma, se aviste o
Aconcheava a mão na boca: O três vaqueiros da outra Banda, coxim, a cilha, a balança, a corda, a crina, os rumos do Talismã. Da
28

Outra Banda não veio uma aragem. Quantos cavalos cansou? As sela, No que sucede o raio, rachou-se o bacurizeiro o quarto
de que seleiro? Que fado é o dele, a galopar, sem corpo, sem tropel, escancara-se. O irmão, que augurou não sabe. A salva do perigo.
entra numa fechação, esparrama os búfalos, revira, sem ser visto, o Toda a viagem na lancha, agora no rolo deste outro, pouco,
laço no meio das contagens, espanta os urubus de cima do bezerro escândalo foi o pensar nela, aqui, esta noite, no sereneio deste quintal
parido agorinha mesmo, vaqueirando sem ordenado sem fazenda sem da casa dela, embarquei os bois que levantaram esta casa, a salva do
fazendeiro? Era conhecido o gado do mato na São Jerônimo, o perigo. Agora de dentro de mim me sai a visão do vaqueiro e dela.
asselvajamento, bicho de pirizal, só pastando à noite, só pegado a tiro, Esta cidade é assim tão trancada que nunca informa? Suas lonjuras
Pois vinha aquele invisível tocando cem reses da São Jerônimo para não deixam um número?
dentro do curral, aí ficaram, de porteira aberta, rum sossego como Chego a pé carregando a sela.
crias de debaixo de jirau. Chegavam os vaqueiros — isso é gado ou Aqui espio, aqui ouço o rapaz do Major Alberto filho daquela
visão? — e vêra! vêra! queriam tocar os bichos pra fora, estou lhe senhora mais que morena, até que abria este meu coração com ela, lhe
dizendo, quem disse? Quem disse que um só se volta, ou raspe o pé dizendo de tudo isto, da finada em vida, isto me dói que me apostema
ou empine o rabo, estira o focinho para a porteira aberta? A modo que inteiro Vejo a família em redor das sete cartas e do retrato da rapariga
a boiada num encandeio a modo viam o aquele-só, pelo faro, pelo do Marco. No meio, a Graziela, o dominó guardado se cobrindo de
aceno oculto: O certo que o curral só se esvaziou a uma ordem dele, seus véus a santinha. D. Jovita minha mãe, mas deixe! Que Arcebispo
de onde? As reses não quebravam o mistério.1 que ex-Governador, que nada! Invenção sua foi essa? Dedo da
[53] Luciana abelhudosa a mãe lhe negando a cidade por uma Graziela? Tanto o que o meu pai já fez, aquele rio atesta, quantia. É o
influência, teima: forte da Carne dele. Soprou no ouvido, a dona do ouvido, adeus, o
— Não me segura Floremundo, que vou espiar mesmo, nariz sopro entrou macio lá dentro, abre e afia o esporão No que Olhou a
com nariz lá fora com esse-um de que tanto contam a fama. Cismo arma, a embiara está é já no pé Caçador Ë que usa aquela barba e a
que sou eu que ele anda atrás, Contrato os serviços dele. descansada voz.
Com ela, aquela noite, no tabocal? Fiz uma profecia? Ou no que [54] Espero lá na frente bater três palmas, apertou a campainha:
viu, foi no rasto dele, Pisou tresvariou? mora aqui um senhor por nome Floremundo? Está aqui um bilhete.
Noites, bastante, acumulou, noites sobre noites, de primeiro, A salva do perigo.
sendo irmão, imaginando, cisma futrica o juízo, laçado pela estória, Em tua intenção, mana, duas marrecas do Jandiá, com a minha
crendo, descrendo o que aconteceu, foi? A mãe, que viu, que deu com pontaria arriei. Arriei, depenei, salguei, de conta que te trouxe. Ah já
ela, do visto não declara, estrompou a filha, joga os pedaços da filha chega! A noite passou? Viraste a que ninguém sabe, te juntaste aos
pelo mundo Graziela, essa, cala-te, boca. O pai só Viu foi a filha três cavaleiros de cavalo branco não mais no Marajó, agora de rédea
encamboada, a mãe batendo, a mãe batendo, a mãe batendo e só se solta pelos lavrados e cerrados desta cidade.
ouvia no quarto a mãe batendo. Seu Floremundo vergou-se sobre o limoeiro, ao peso de seus
A salva do Perigo. A fechada de nascença. mutuns mortos, de seus silêncios e de seus ossos.
Alfredo, esse, lhe deu um espanto: até que altura vai a noite?
1
Cf. Sagarana.
29

Não noite mais? Nunca tão longe foi. Ou mais curta? Esticou, amargura, sua compridez, sua separação da família, seu pensar voltar
encolheu, o tempo? já, já, rumo do cantar do inhambu. Pouco se lhe dá que as três da
Cessavam os açaizeiros. Atrás, na Manoel Evaristo, a padaria mesa arrastem o barbudo culpado até ao Bispo, ao peso de sete cartas
trabalhava. Nunca tão longa noite. Esse homem, neste sobejo da e de um retrato. A mãe, por ter recebido o Bispo na fazenda, vem
noite, por onde andava, que noite a dele, que não disse uma palavra pagar a visita. Viram aquela chegada do Bispo na fazenda? Toda
mais? penteadona, o colo papo de pomba, sapato rangendo, o rosário no
Amanhã, desenho. Liceu, amanhã. Os sem material, rua. Os de pescoço, Graziela a primeira a beijar o anel; a velha, na saia do lilás,
material, desenhar este cubo. emproava a venta nas soberbias, atrás o velho, barba de ermitão, mais
— Seu Floremundo, lavar o rosto? atrás o filho, este — um de perneira e gravata — mas chamem a
— Nem ouvi inambu cantar. Que nem um relógio, inhambu Felipa na cozinha — e eivém ela, enxugando as mãos na barra do
canta nas cinco horas. vestido, no que que vai beijar o anel, o anel a encandeou, a criatura
— Não tem mais em Belém, seu Floremundo. tropeça, caiu de joelho, e o Bispo: te levanta, filha de Deus. O Pastor
— É verdade, menino, os inhambus daqui bateram asa. sorria e logo um, outro, os mais, babando o anel, o alpendre encheu
— Os inhambus aqui apitam, seu Floremundo. com o Mutá inteiro, beirada e campo, berreiro de batismo e crisma, a
— Sim, senhor, tenho visto os bicos do que o senhor apelidou rede armada pela Graziela, D. Jovita com a terrina da coalhada. A
de inhambu, chega de fumaçar. É a cidade, sim, senhor, que é, é, a Igreja ia dormir aquela noite no Camamoro, rezou-se ladainha, Deus
coisa que foi feita não está por fazer. se embalava de rede na varanda — Coronel, Coronel, olhe a capela da
Alfredo não respondeu de súbito alheoso. A cidade. Esta cidade, fazenda, olhe a capela! — enseiã, enseiã. O Bispo benze os currais,
Então aqui debaixo das folhas, bom enterrar a noite, a aventura, os urra a vaca sangrando na faca do Tapajós no meio das salve-rainhas.
professores, tudo que intimida, tudo que contraria, bom enterrar a Os padres devoravam o toucinho e a coalhada. A comitiva embarcou
família, esta aflição por Luciana. Luciana era também a educação do Mutá com um mantimento mede o tamanho do mantimento, o
perdida, o Ginásio que não foi. Mas ao menos encontrá-la, mesmo já vento jogou o chapéu do padre n’água. Agora, com as Sete cartas e o
em ruma, em qualquer passagem, em qualquer batente, ouvi-la, vê-la. retrato, D. Jovita vem cobrar as contas no Arcebispado.
Que isso terá Sido alivio ou a desilusão de toda busca. — Floremundo... Teu chá de pega-pinto, faço?
Lá na cozinha, em torno das sete cartas, as quatro cabeças Que tu sabes do meu casamento? Isso, sim, me devias indagar,
acabavam também a noite. minha irmã Felipa. Teu consolo, daqui em diante, é ler sempre a
Acocorocado, o seu Floremundo riscava o chão com uma tala. infeliz mas sempre a honrada, por lei roubada — não quis a separação
Alfredo se chegou para saber que riscos, podia ser um [55] nome; via de bens — pelo juiz obrigada a pagar os débitos na matriz do aviador,
no rosto do homem a sombra dos inhambus, aquele Outrora da teus bois, adeus, irmã. Ah Silva do perigo, em qualquer condição que
fazenda, ele e a irmã na caça, no curral, na pesca, aqui ela juntando os estiveres, não hás de ter pena, que eu sei teu sentimento, o juízo me
bilros de tucumã, junto ele destrançando as enviras, os dois bem diz, é um perau, se sabe onde neste rio? Ah salva do perigo. De Felipa
irmãos. Mas seu Floremundo risca nada, risca sua solidão, sua casando, rir não vais nem lastimar, sim te lembrando: em coisa que
30

Felipa nunca falou, que se soubesse, foi casar, intensa ao namoro, porco debaixo do soalho. Serafina não desgrudou a boca. O noivo,
talvez por sem sal ou feiosa. Ou foi o [56] tem|po todo pensando, dentro daquela goma, de duro não se mexia. O Juiz já vai? Vai, não
lacrando o que pensava? Ou só agora se modificou? fica para a mesa? Todo o casamento foi deixar o Substituto na cabeça
Da Felipa, Luciana sempre dizia: Conhecer a Felipa, nunca é do trapiche. Levado para a montaria, cambaleou na lama, encarnadão
em salão, varanda, lugar de etc e tal. É debaixo do soalho, sentada na gordo ouro, o inchaço na orelha, resfolegante, a suar, bem cibrado.
canoa velha de barco, ali nos nossos segredos. O caçôo que ela faz do Então voltou o casamento para dentro, os noivos do seu Santos.
mundo, da Principala desafinando o bandolim, do pai de pente fino e Felipa tinha se esquecido, ou disso traída em só olhar a cerimônia, de
espelho adornando a barba, da mãe quando não está católica! cumprimentar os noivos, [57] vai agora. Serafina estava! A mão dela
Descaroça o seu algodão, passandozinho a urtiga não que viu, onde um gelo. A irmã da raiva, a Diquinha, por ter chegado da cidade,
foi. uma viagem, uma visita. . Então sobre casamentos pelo rio Mutá, reclamava contra a pressa do Juiz. Casando com o pai na forca? Nem
Tarumã, Cairu, que presenciou, a urtiga dela arde. Arde muito mais ao menos põe a mão do noivo em cima da mão da noiva? Semelhante
estoriando o casório da Serafina, da mesma idade dela, criadas a bem proceder! Não estava direito Se pagava para isso Pra que que ele
dizer no mesmo peito, o da sia Fuluca, lá do São Sento, mãe de uma então é Juiz? Fez foi nem cumprimentar os noivos, chama o remeiro
quantidade de filho e sempre bem leiteira, hoje em glória. Só me caso dele, põe-se a fresco Também... que Deus me tape a minha, não tira a
depois que tu te cases, era a Serafina para a Felipa. Uai, Serafina, boca á dele, do frasco! Felipa, lhe veio no juízo: mão com mão quem
agora isso... Passou-se, que foi, o tempo. Num relâmpago, a Serafina põe não é o padre? Diquinha com as novidades! Mal o pé no Ver-o-
casando. Felpa. convidada, vai com irmão, lã está o noivo, o Peso. da cidade se lambuza, Os noivos no sofá de seu Santos. Então
semblante cicie esmorecido, meio a modo dizendo: que foi que eu que lá de dentro chamam, tocou rancho, tocou rancho, mas venham,
fiz? de branco, um ramo de flor no paletó — feito pelo seu Leônidas se sirvam — se chegue. seu Leônidas — vão cada um se servindo —
— que era só goma. Da casa do seu Santos, trouxeram para o se chegue D. Prisca — para a mesa cheia de xícaras de chocolate e
cochicholo de seu Cipriano, onde se casavam, aquele que já serviu a duas cornpoteiras com sequilho enfeitadas com flor de papel . No
tanto casamento no estirão, o sofá velho. Serafina num fustão centro aquele alguidar com a planta boiúna subindo num pau de
enchamboado, grinalda e véu, a mancha de cano no rosto, a porção de taboca. Rapazes, gente aí de fora, mas entrem! Chamem quem está no
talco paissandu tapando a idade, pareceu no seu papel. Seu Cipriano. trapiche, nas embarcações, falou o seu Cipriano no mesmo a enxotar
o escrivão, leu corrido a ata. O Substituto o Dr. Campos, de o porco que vira e mexe queria meter-se debaixo cio sofá, fossando o
Cachoeira, sempre bebido, vermelhão, a orelha atorada, resfolegando véu da noiva: te convidaram seu enxerido? Cuche Cuche! Pelo jirau
os declarou marido e mulher. Tão assim depressa. A noiva, como dos fundos, a D. Davina Mateus danava-se com a sobrinha por ter
assustada, e o leque na boca, saber assinar não sabia, o dono do sofá ficado bem junto se roçando no seu Agapito, pessoa baixa, que fez
assinou a rogo, falando: calam idade este nosso não saber ler nem queixa dela num jornal de Belém por via de terreno duns órfãos, que
escrever, mormente neste estirão. A noiva, leque na testa como coisa estes, não demorou, acabaram no relento pois a D. Davina Mateus o
que o ralho nem tosse com ela. E veio de lá de dentro a mãe da sítio deles — semeado, com fruteiras —— ela quis porque quis
desposada, no que abraçou a filha, foge de mãos no rosto, grunhia um procura a lei. dela é. Felipa olhava, sem tirar os olhos, olhava a noiva
31

esfriando o seu chocolate — o irmão soprava no pires E pela meio, mas meu Deus tão calada, tão encolhida debaixo do guarda-
dobrança da maré, la Se vai a amiga de véu e grinalda na montaria chuva. O irmão, no seu remar vagaroso, suspendia o remo para
rumo de casa, a ter que tirar sapato e meia, faz a água no automóvel, enrolar um cigarro e dizer coisa e outra a seu Tapajós que só
lá se vamos com o casamento desembarcando pelo tijuco, a Serafina respondia: hum hum ah isso é, ah isso é... Iam por um estirão
aparamentada e o pé no tijuco, nisto chove, a casa deles nem de chuvoso, gerou um tal silêncio, era ou não era a Felipa no banco do
cumeeira fechada estava, o seu Floremundo, lá dentro junto dos meio, encolhidinha, debaixo do guarda-chuva?
noivos com c guarda-chuva aberto. Feche, feche o guarda-chuva Não Luciana, esta, se falava de casamento, sim, um pouco por
presta. Agoura mãe e pai. Os noivos refugiam-se a um canto em pé, enfeite. Repetia o que escutava dos canoeiros cametauaras, de
borrifados pela chuva. Não tinha mais o sofá do seu Santos. passagem pelo Mutá a oferecer cachaça, farinha e mel de cana:
Luciana, então, brincou: Assim por assim, Felipa, aí no casamento é que nem cacuri. Quem está de fora, quer entrar. Quem
cotovelinho nem um ardume, uma comichão nenhuma? Felipa: agora está dentro, quer sair. O mais era faceirice, quanto mais tamanhona
isso, Com a maciez vem cela, sem um travo sem um cuspe pois só moça por fora, por dentro mais menina. E uma noite: Mas,
passar a sua urtiga, pois só usar de [58] caçoa|gem desejava. Assim Floremundo, o tempo passando e tu nunca te amarrando, rapaz?
fazia crer. Também tudo que dizia, fosse a maior bobagem, era dito Vergonhoso de pedir ali na vizinhança a mão da Mindoca, do Itacuã,
sempre a sério e num ar muito benigno, a sobrancelha lá em cima, senão a irmã dela, a Idália, ou da outra irmã, a Biló, ou da mais velha,
inocente-inocente. Assim por assim, quem ia duvidar? Mas isto é só o a Lelé, se não prefere a minha xera, a Lucica, ou então a caçula, a
que sei dela, repetia a caçula, que Felipa é muito temerosa. É só mais jeitosinha, a Cota? O Itacuã, aquele casão grande com as suas
chegar gente adeus, é a caramuja, fica fazendo só o que tem de fazer, vinte janelas ocupadas por vinte irmãs olhando o rio, está pra cair é
quem tem de conversar sou eu, a diplomata, a fazedeira de sala, mais ao peso de tanta moça, lá, esperando casamento, seu cego.
inventando conversa, pra isso não me deram em criança chá de folha [59] Luciana, coisa de um mês depois, nas suas voltas em riba
quebra-ferro? A Felipa aí no oco do pau. de cavalo, se distanciou, chega ao retirinho onde o irmão fez um tapiri
Sim, mas naquele casamento, já frio o chocolate, Felipa só ali para descansar, guardar teréns de caça e pesca. Encontra aquela
bebia era a Serafina no sofá do seu Santos, da noiva os Olhos não figura de barriga grande bem acendendo fogo no tracuá, o rosto na
tirava. Teu chocolate gelou, Felipa, foi preciso o irmão falar. Ela até fumaça, os olhos lá dentro some-some. No que olhou de cima a baixo
um tantinho assustou-se, o beiço na xícara, rejeita o sequilho, a modo aquela tão de casa, nada mais foi preciso: Jardelina, esse teu por onde
que só passou a língua na espuma de ovo do chocolate. Na viagem me anda? Deixem estar que Luciana se calou, aquele calar dela, que
para levar os casadinhos, dela só se ouviu: ah que este rio hoje está sempre nunca era, o olhar soltando o que ela prendia por dentro.
que só lixo. Dos botões de grinalda distribuídos pela noiva, Felipa Jardelina — Luciana bem que sabia — quando conheci ela, não
disfarçou, fez por não ganhar um, a chamar na beirada o irmão para era mais, sim que inda bem verde. Mas pegou de mim aquela barriga,
pegar a canoa deles, solta da amarração, que fugia. De volta pelo rio desde aí sustento. Luciana, muito segredeira, então que me piscava,
até ao Mutá, de onde a cavalo seguiriam para a fazenda, o irmão até que entre o encilhar o cavalo e o armar o freio, vem, me cochicha:
vinha no remo, com o seu Tapajós pilotando, Felipe ali no banco do eu de madrinha, viu? Boa-tarde, meu compadre, se fêmea, com meu
32

nome. hoje o que eu ouvir caiu no poço, lá fica, No que eu falar, me atore a
Fêmea. Coisa de um mês depois do que se deu com a futura língua.
madrinha. Mas o nome, que era, botei? Cadê a madrinha? Espia na — Mas, Jardelina, um anum? Fazer o que do anum, Jardelina?
canoa velha debaixo do soalho e olha se ela está, está? Esta uma osga. — Olhe, seu Floremundo, não inteirou uma semana, eu soube.
E isto me sulapa, me tira o leme da mão. Até a Jardelina, sempre A quem ela pediu, a quem, quem que caça anum?
assim respeitosa comigo, veio: seu Floremundo, o nome dela — Hum hum, me deixa me calar. Se eu digo quem, o senhor
empestava a criança? Não tinha de ser xera e afilhada? Que a sua logo atrás dele. Me calo.
irmã, em segredo, na ausência do senhor, aqui apeava, em muito me — E balearam? Levaram o anum.. . Pra que serve o anum?
valeu. Estou que tudo ali com ela foi sua mãe ter virado cega. Sua — Se tira o fígado, disque. Afie seu dente neste meu dedo que o
irmã, se não falou, por uma verdade foi. Não digo que só fosse por senhor não sabe..
uma orgulhosidade, uma teima, quem sabe e razão dela? Um — Parece então que já usaste o fígado do anum comigo,
sentimento tenho de nunca mais uma noticia uma-uma que fosse, Jardelina? Então tu ouviste? O fígado?
daquela que deixou de ser a mea Comadre, que tanta que era vontade — Pelo que suspeitou agora, o senhor paga! O fígado lá dele do
dela e a minha e sua também, a sua promessa, o seu trato, seu bicho, seu alevantador de aleive!
Floremundo. A Sebastiana, essa nossa filha, era pra ter o nome Mas torrado, Jardelina, torrado, Jardelina? Tenho escutado por
daquela próxima na pia e no seu Cipriano, penso eu. Não foi, Nosso aí.
Senhor põe na conta, a ele entrego. — O senhor bem sabe o efeito que ele faz torrado, seu
No mesmo seguinte, fazendo no alguidar um vinho de mucajá, a Floremundo.
Jardelina em bom termo me fez ver: que do meu direito não é, eu bem — A Graziela? Eta?
sei, primeiro me deixe lhe dizer. Mas é uma covardice era se eu não — Já não está aqui quem lhe falou, vigie bem. Vigie só. Já
viesse agora lhe falar o que por ai andei pescando com este meu inteirou mês que também escutei que a mea comadre, a sua irmã
ouvido, cera dele eu tiro. Bom fique ciente. Por maldar não lhe digo, caçula, bebeu inocente num chá a raspa de unha ralada, Consiga o
ou como Coisa que estou lhe emprenhando, isto nunca foi meu cos- rastro de sua irmã, seu Floremundo.
tume. É que sua irmã, desculpe a metição do meu bico, eu soube, Graziela, de dominó, cabacinha e bandolim, torrando o ligado
andei sabendo, vento me soprou, a D. Graziela atrás de quem quisesse do anum? O chá virou a cabeça da outra? Ah sangue dos Menezes.
balear pra ela um anum. O salva do perigo, desata este novelo, e eu sei, bem sei, porque
[60] — Se teu costume, Jardelina, é não ouvir falância, jamais do mutum querias a moela que mói tudo. As flechas te flecharam
eu. Até que me admira, tu. dentro de casa, por tuas prendas de nascença, boa cabeça para livro, o
— Então, seu Floremundo, me manda me calar, me calo. fazer tão bem renda, tão fino recebe as pessoas, e aquele dia, com as
— Te mandar calar não te mandei. A boca não é tua? notas da prova escrita de Cachoeira, tão inocente sentaste no trapézio,
O ouvido não é teu? no alpendre da fazenda, te embalando, te embalando, disseste: agora é
— Vou me desacostumar de lhe dizer umas tantas coisas. De o Ginásio. O sonho da casa entornou o alguidar.
33

[61] Já não digo as tuas feições, gerada que foste para os Que fiz que não chamei, mordaça me botei não chamo. não
espelhos. corro nesta cidade, tatu pelos buracos, até pisar no rasto?
Me lembrando véspera do último ano, disseste que ias ficar só Quem que não te proíbe, Felipa? Quem? Teu marido? Lá na
de sombra vestida, tua combinação debaixo daquele teu vestido fazenda, o labioso, todo garboso da família dele, cheirava penico de
branco, assim precisavas entrar o ano. O ano entrava e tu só de barro novo para suas moléstias do coração, e era com meias palavras
sombra pelo quarto e como a tua sombra, um cetim, era rosa, entraste que aprovava o rigor aplicado na caçula. Tenho que ele quis primeiro
o ano rosa. Teu chá de quebra-ferro não te fez falar, não falaste, como a Graziela, o tempo dum [62] embaraço, um minuto, ou calafrio
coisa que a mãe te arrancou a língua, ou te deu o outro chá. Desde diante dela, Graziela se vestia de intocável, guardada para noivo à
aquela noite, escondeste a fala, acordaste de cauda no ar como o altura. Pelos olhos trios, pelo franzir o canto da boca, se via o pique, o
mutum, foi voar, perdeu-se. Tanto feixe de paxiúba me preparaste aborrecer-se das pessoas que é muito dela. Nas artes de uma rabugice
para fachear no lago atrás dos cardumes, agora nem um facho aceso a espertalhona, a unha de fome e a santa se entendem, ganham o
na minha mão atrás do teu passo. mundo.
Felipa, por sua parte, amordaçou a palavra. Sobre a caçula, uma — Floremundo...
opinião não deu, não dá. Uma vez foi sentar no trapézio do alpendre D. Felipa esperava a resposta do irmão. A família levantara-se.
a corda puiu, rebenta, o trapézio no chão. Deixou de Sentar na canoa Graziela sacudia as suas chaves. Seu Floremundo pediu licença, subiu
de borco, caramuja no seu buraco, agora saindo para tirar da forca, para a cozinha. Logo desce a D. Dudu, macilenta feliz na sua galhofa,
enforcando-se. aquele-um lá do Arienga. Se nada sabe, se aprovou, se atrás do Alfredo, cochichando:
também condenou — fiz muito por saber — Felipa se trancou. — Vê se dependura naquela barca as sete cartas e o retrato.
Felipa, ao menos quando a nossa mãe já por demais castigava, Alfredo entrou. Ao pé do fogão, a D. Jovita acendia o
não acudiste? cachimbe. Graziela despencava o cabelo, apanhava os grampos, a
Felipa, sem me olhar, até parecia zuruó, a mão parada na massa examinar a cozinha, se alguma coisa faltava, farejando um risco na
de tapioca que mexia na gurupema. parede, um ralo na cadeira, um roído na mesa. D. Dudu, já de orelha
— Felipa, ao menos ela te escreveu de Belém quando aqueles inchada, fazia fagulhar pelos olhos sua zombaria, seu desdém. Na
dias na casa da nossa tia? Do teu mandaste algum trocado? mesa, entre as xícaras, as sete cartas e um retrato de mulher.
Felipa se voltou: Então que o seu Braulino vem da varanda, se aproveita, apanha
— Queres teu chá de pega-pinto? as cartas, o retrato, vai jogar no fogão aceso, logo a mulher lhe apara
Foi, fez, bebi, os dois esta palavra. o braço sem uma palavra, e sem uma palavra guarda os documentos
E eu, que fiz? Que trocado mandei? Que noticia pedi? Juízo me no bolso da saia. Seu Braulino se meteu na sala, um momento na
diz que esse casamento da Felipa é a modo de um padecimento dela cadeira de embalo, abriu a janela, fechou, tira e não tira o paletó,
pelo que não fez a bem da irmã, ou: agora que estou casada ninguém ensaiou sair, anda pela calçada, entrou, de novo abriu a janela. No
me proíbe de chamar pra mea companhia, no Arienga, aquela corredor, Alfredo e seu Floremundo se entreolhavam.
penitente? — Menino, olha o café. Hoje não tem ginásio? gritou a D. Dudu
34

numa apressada solicitude atrás de Alfredo que varava o portão. mediu-o, vai à porta, chama a inspetora:
— Já venho, D. Dudu. — Por três dias, inspetora. Comunique à Secretaria.
Ocasião que amanhecia. E com bom metal português, no silêncio da aula, curvou-se,
A caminho do Curro. cerimonioso:
Abre-se a janela, a velha parteira abençoa o madrugador e lá vai — Sr. Alfredo Coimbra, o obséquio e as minhas congratulações.
ele até ao quintal, apanha da roseira de Ana, aquela que se abria mais Outros colegas, sem material, iam saindo.
cedo em Belém e no mundo, subiu, bate no quarto das moças: — Obrigado, obrigado pela gentileza, professor.
dormindo? dormindo? Licença para levar a rosa, Ana? Bença, D. Rua. Primeiro desceu ao pátio. Subiu, tentou o Secretário. Pela
Santa? Olhe, seu irmão chegou. Meu pão é hoje esta rosa. gradinha, o Secretário:
Foi desfolhando a rosa, corria um pouco, os zebus saíam do — O senhor falta ao tiro, falta ao desenho, falta à concentração
Jabuti, moças indo para o curtume, a Sabina. Sabina! Ama, afilhada, cívica. Desacatou, ano passado, o lente de latim. Acusado de colar um
dama daquele baile no chalé, agora mãe [63] sol|teira, a mesma rabo no professor de matemática. Entrou, quando não era, na aula de
risonha, a mesma de face aberta e bem dormida, com ela e a bem química. Errou a porta, rapaz, errou a porta. Monte banca de bicho.
dizer ontem, tão meninos, de galo e galinha no galinheiro. Trabalhe de catraieiro. Tão tamanho bigu!
— Mas que te fez essa flor, mano? Ouvia em posição de sentido, olhando o teto, o sentido lá em
Daqui a instante Sabina está metida entre couros verdes, as Cachoeira, ouvindo a mãe:
mãos no tanque de água podre, entre aqueles fedores dia inteiro. [64] — Pois foi, comadre Porcina. Ele passou, está no segundo
— Que te fez essa flor? ano. Me gabar, não me gabo, que de filho ah vê lá que me gabe. A
Os zebus passaram, as moças passaram. Do fim da linha vinha o sorte é que sabe. E comadre, e os seus?
bonde. Sabina ainda virou-se: — Argemiro na tripulação do barco do seu Coutinho, o São
— Quando escrever, lembrança pra madrinha Amélia. Gabriel. O Laércio na fazenda dos Lobatos.
Estudando muito? Aprenda também um pouco por mim. — É assim mesmo, comadre. Meu filho, eu que me gabo? Quis,
Então ele se voltou e deu a ela o que restava da rosa. Olhou para que seja, O que for, soará.
a casa da velha parteira e lá da janela, já na porta, saltando na calçada, As delicadezas da mãe: apagar a diferença entre o seu filho e os
correndo até a esquina, agora no trilho, a Ana, descalça, num galope, de sua comadre. Por isso mesmo, só fazia sobressair. Que tinha
crescendo o olhar e o beiço e nisto o bonde se atravessa entre os dois, perguntar pelos guris da comadre? Já não sabia? Dizendo não se
Alfredo apanha o bonde, salta na José Pio. gabar, por demais que se gabava. Nem o traquete dos Coutinhos nem
Uniformizou-se, não com o bem gomado por D. Dudu que o curral dos Lobatos. Ouvindo debaixo do soalho, rente a escada dos
reclamou atrás dele. fundos onde as duas conversavam, Alfredo se cobria de privilégio e
Presente à aula de desenho, adianta-se: vexame. A mãe, na escada, sentava no degrau de cima, a comadre no
— Professor, entrei sem material. Rua? degrau de baixo, e rente, oculto, sem sossego, o felizardo no Ginásio.
O baixote, parafusando o bigode, bochecha inflamada. espiou-o, Agora diante do Secretário, o que for, soará, Sabe o Secretário que
35

esse aluno é sobrinho de barqueiro e de um andador do mundo? Direito Romano na Faculdade e a banca alta de advocacia. O
Daqui não és, embiara dos Coutinhos, besta de carga dos Lobatos. O Secretario, por unicamente Secretária, parecia mandar mais, muito
Secretário não entende a posição de sentido, a rígida atenção com que inapelável, muito draconiano, como dizia o Pereirinha, grau sete em
é escutado? Ou não nasci eu também dum Secretário? história universal.
Vá. vá, pode ir, podo ir. — Que te fez o Secretário, múmia do Pacoval? Aquilo é um
Deu meia volta, só, muito só. O Secretário chamava-o. carraceiro. Não lhe consinta mais que me dirija a palavra, nunca mais.
— Escreva a seu pai, pedindo material de desenho. Que te fez ele?
— Pois não, Secretário, foi bem lembrar. Agora, se fazia de embaraçado, forçava a frieza, porque o lente,
— Escreveu que falta ao Tiro? por ódio ao Secretário, lhe falava com certa jovialidade, embora
— Escrevi. sempre as patadas. Sabia que o Mestre, fazendo reabrir o Teatro da
— Não precisa essa posição de sentido. Escreveu que desacatou Paz, fechado também meses, se empossou, sexta-feira, na Academia
o mestre de latim? de Letras, com os irmãos Nobres cantando Puccini e Donizetti. A
— Ah é verdade, lembrou bem. Secretário, vou escrever já-já. Folha do Norte publicou, entre o elixir de inhame e a milagrosa
— Olhe a zombaria comigo! Casco-lhe mais três dias. A sua pomada contra comichão e impingem, três sonetos do mestre e um
expulsão, promovo a sua expulsão! Ou duvida? ditirambo, Neste, minuto, dominante de estatura, pasta no sovaco,
Eu, Secretário? digerindo a imortalidade, o mestre contempla o aluno, entre olímpico
Deu meia volta, só, muito só, ouvindo aquela conversação na e benevolente.
escada do chalé. Nisto, de juba, bengala e pasta, o lente de latim. — Como me decoraste, cabeça de passarinho. o fragmento do
— Olá, olá, roceiro! Fora de aula? Rua, novamente? Onde os artigo, aquele, que me obrigou a te suspender. muito bem merecido.
teus roceiros do Guamá que não te acodem? A ti e a eles, esta! Ultimo ratio regum. Me avacalhando em plena aula!
Empunhou a bengala, sempre estrondoso, caiu-lhe a pasta. — Primeiro, baixe a bengala e a voz, professor.
Alfredo não deu um passo, vendo o mestre, soproso, [65] a apanhar os O lente conteve, o acesso, ou fingia, de furor, batendo a bengala
papéis espalhados, o soneto, a tira do artigo contra o padre Dubois, o no soalho, a abrir a boca, como lhe faltando ar.
recibo da água. — Onde soletraste o meu artigo? Como foi que me decoraste?
— E não me ajudaste nem a apanhar a pasta, roceiro. O tempora Onde.?
o mores! Que tu sabes de agricultura, dos direitos da propriedade, — Eu lia em menino a uma senhora da Gentil que pedia a Deus
meu bisonho, meu quadrúpede marajoara? Ou não és marajoara? És que os roceiros viessem no trem e tomassem a cidade. Ela, então, me
do Guamá? dizia: esse contra os bandoleiros vai ser teu mestre de latim.
Alfredo fitava-o, sem traquejo. assim apanhado à queima-roupa, — Como se merecesses! Como se merecesses!
ainda sem costume de lidar’ com semelhantes figurões. O Secretário, [66] Alfredo se fingia respeitoso, medindo-lhe a juba, a bengala,
por exemplo, era mais temido que o Diretor, este sempre rispidamente a pasta.
apressado. com a beiçorra em que pendia o charuto, a cátedra de — Eu tinha a razão por mim. Eu tinha a razão por mim. Negas a
36

pecha que lhes dei de bandoleiros? Fui vê-los, sim, no pátio da receia o salão escuro; as estantes, pelas janelas, lhe dizem: não, não
Central, mais de cem, do Guamá, o pátio à cunha. Eu tinha a razão entra. Aí fora é sol e tem. nos tabuleiros multa pupunha cozida. Não
por mim. Pois numa terra opulenta como esta, a bradar... Stultorum está vendo, lá embaixo desta Campos SaIes, o rio?
infinitus est numerus, rapaz! Pela escada alta, tanto degrau, ao peso de seus volumes debaixo
Partiu batendo as botas para agredir o terceiro ano que que o do braço e da epopéia que há longos anos escreve [67] sobre os fastos
esperava. Alfredo via no ar a dentadura postiça da D. Inácia, a nacionais, sobrecasaca e cavanhaque, vem descendo o
Madrinha-Mãe, a rir: Te disse não? e disse não? E logo o rosto, o Desembargador Jeremias.
cabelo desmanchado, o colo na Gentil, e Antônio quebrando a Agora pode entrar na Agência Martins, é um rapaz, já não se
lâmpada em Nazaré. A dentadura virava trem, um trem de Capanema, lembram do menino que aqui arrancou a capa da Cena Muda: trazia o
um trem cabano. herói da fita em série O FURACÃO.
Do Guamá, agora, só a notícia do Intendente chegando, com o Mas por que Ana? Do bonde, pôde ainda perceber a pequena
retrato a vinte mil na primeira página de A Imprensa, do seu agachando-se pelo trilho, a apanhar as pétalas pisadas pelos zebus,
Laudelino. Das roças e dos roceiros nada mais se sabia. Nem daqueles será? Apanhava? Foi pela rosa, pelo salto na janela, pela Sabina?
noivos, ocultos da polícia, levados pelo seu Lício, véspera do Círio, Entrou.
àquela canoa amiga, deles nem uma lembrança. Onde os teus roceiros — D. Santa está?
que não te acodem? Guardar esta pergunta. E nem um filho deles Ana fechou a mão, inclinou-se na cadeira, olhando a parede,
aqui, nesta escada, subindo ou descendo. Apenas eu, bicho de Marajó, espicha o beiço, os braços largados.
ainda arisco, carregado de mim e dos meus, carregado de Andreza e — Eh Ana! D. Santa?
Luciana. Espantou-se: entrava, catarroso e miudinho, o lente de Derrubando a cadeira, Ana enfiou-se no quarto pisando tábuas
História. A disparar os raios de sua carreira eclesiástica, descia o da soltas, a sarrapilheira esburacada feito porta, a fresta de sol lá dentro
Instrução Moral e Cívica, o Monsenhor Compêndio. Atrasado, numa em que descia-subia aquele ar, Uns fios de teia de aranha, o cinto na
afobação, talvez em jejum, também subia o Pereirinha, de pasta nova. corda.
Conseguira um papel de desenho, o lápis, com uma tia da travessa da — Ana, me diz. O. Santa?
Angustura. Não iam deixá-lo mais entrar. Para descer na cozinha de chão, tinha um degrau. Alfredo
Rua. A praça, desenhar esta praça. Os sobradinhos, abrindo as desceu: estava úmido, pegajoso, dois pintinhos piavam, amarrada ao
janelas, até que riam, desenhar os sobradinhos rindo. Vai convidar o pé do fogão a marreca assustosa, as moscas donas da casa. Voltou.
seu Floremundo prum giro pela cidade. Desce a Manoel Barata, passa — Ana, ou foi a rosa? Queres quanto pela rosa? Em troca
por Santana — como vai de saúde, São Pedro? Me ceda a chave. Da espanto as moscas, dou milho pra marreca, tiro a cinza do fogão.
calçada defronte fica olhando a fábrica de roupa: no térreo de portas Meteu os dedos pelos buracos da sarrapilheira, parado é porta
abertas, as moças costurando. Aquela, sua acompanhante a pé pelas do quarto.
manhãs? Qual? Lá está, lá está, lhe faz adeus e todas olharam, as — Ana, Ana, saíste pela fresta de sol?
máquinas pararam, as moças olhando. Rumou para a Biblioteca, Ana pulou do quarto, sarrapilheira abaixo, pisa o pintinho, voou
37

porta fora. No susto, soltou-se a marrequinha correndo pelo quintal. — Só não querendo. Estás sem sorte no estudo? Queres eu
Alfredo juntou aqui o machucado, lhe deu água, agasalhou o pinto na contrato. Queres?
palma da mão, chamou a marreca escondida entre as bananeiras. — Vocês não estão matando a galope a avó de vocês, Dalila?
Cresceu-lhe uma incompreensão, uma culpa obscura, toda a noite sem — Agora isso. Matando está é aquela, a filha dela, de boca no
um cochilo, acordado, acordado, três dias suspenso, o Liceu no ar, da mundo contra nós, Que tem a tia Dudu com nós duas pra querer nos
mãe nem uma linha, do tio nem sombra. Sabina, sobre o tanque dos meter fechadura? A toda hora nos intimando a ir no Médico Legal
couros, a vê-lo sobre os livros. O pintinho sossegava. Corre atrás da tirar a limpo se somos ou não somos? A fechadura? Naquela tetéia
marreca apanha-a e amarra a bichinha ao pé do fogão, acariciando-lhe dela, na Nini! Em mim, eras! A rédea dela para outra égua, pra esta,
a cabeça. Esperou. Com a sarrapilheira bateu que bateu mosca, arreda daí!
cansou-se, desistiu. Dalila entrava com uma talhada de melancia. — Quando começas no hospital?
— Fez promessa? — Lavar pereba alheia? Carregar bacia de tifo alheio? Olha
[68] — Como? meu nariz, achatado, não é? Um toco de nariz, não é? De tanto cheirar
— De bater mosca? sim-senhor de freira. Chega! Chega! Chegou! Daquele asilo tenho
— D. Santa? ainda a marca das corubas. Antes na cavalaria lavando cavalo.
— A avó, o pé é dela pra mim saber aonde ela anda. Quem te — Cavalaria? Agora um da cavalaria?
pôs de castigo batendo mosca? — Pra vós saber, maninho, mete um requerimento selado.
— Ana ficou braba por via da rosa? Alfredo tentava comparar as duas irmãs. Ana, na sua insolência
— Não tenho a boca de Ana pra te responder. Olha vou sair, andadeira, concentrava-se. Possível em Ana uma danação, guardada,
Fica ou me deixa trancar a porta? freada.. Dalila era rasa como a sua anca, [69] na tina do pajé, tomando
— E a melancia? Dá uma prova? banho de cuia. Soltava-se no vestido sem cinto, a abrir o cós coçando-
— É pra meu cabelo, aquele menino, Ver se tiro a lisura do se em todo lugar. Estava em pleno desalinho, suada, como saboreando
bicho, uma praga de tão liso, escorre demais. Ah que Deus me dê um a coceira.
tifo! Depois do tifo, sim, nasce ondulado. — E agora, tua vó, Dalila?
— E a melancia ondula? — No oficio dela. Ela quer que eu me empregue no hospital?
— Assim me imbuíram, Mas ah! Eu quero é um tifo. Vá lá, a Dalila faz de conta que vai, faz que vai. não vai, que jeito?
— Que é, que te coças tanto? Estás com cavaquinho? Que outra, não eu. limpe as pústulas, não eu. Trancas a porta? Não?
— Já-começa da braba. Sai que pega, rapaz. Vou ao banho. Espertar a mãe do corpo.
— O Hidroterápico, um banho no Hidroterápico. Alfredo na rua olhou a vacaria, assobiou chamando vento para
— Hidroterápico? Hidroterápico é a Pedreira, o mocó, as ervas rodar o moinho d’água. Na mesma janela que abriam, tarde da noite,
do caruana. Num instante a urucubaca diz adeus. Me meto na tina das para os rapazes, as duas irmãs apareceram. Cotovelos na almofada,
ervas com o pajé me dando de cuia. sempre no não te ligo, muito mais donas de seus zebus, de sua
— Me leva? educação no Santo Antônio. Ao vê-lo, lhe deram as costas, uma de
38

tranças. a outra muito bem cacheada. Aos poucos se voltavam, abriam casco novo, aqui se faz um barco, um barco nascendo, quero uma
a pasta de desenho cheia de laços e a caixa de lápis. Assim faziam que vaga nessa construção. Dobrou pela Podrona, lugar de bucho,
desenhavam. Alfredo tornou a assobiar pelo vento. Bateram-lhe a precisão e lama e onde estão moças as meninas vindas da seca, agora
janela, sumiram-se. Tornavam agora, com um tamanho Atlas que neste lixo lindas; esta, por exemplo e aquela que põe o rosto na
folheavam. Alfredo temperou a goela, caminhando. Breve, casando a janelita e abre o cabelo e chama pela vizinha: Marizô, um palmo de
galope estariam chamando a velha parteira para pegar os de sete fio do teu novelo, tem não?
meses. O estábulo fazia trescalar os seus estrumes. E elas, soberbas, Desembocou defronte da penitenciária. Lá em cima, na janela,
sobre o Atlas, já cobertas, ruminando no pasto. santo do flagelo, aquele cego e escaveirado retirante. A esta hora o
Do pasto ao curtume onde Sabina trabalhava, menos dum pajé dá banho na Dalila, Dalila lhe pedindo um tifo. No carrinho do
instante, A metade da rosa no cabelo? No peitilho? Guardada no canto, o bucheiro pesa um quilo de livro e tripa. Com uma banda de
balainho, Ou atirada nos caldos de couro verde. Parece entender porco às costas, passa um tipo gritando para dentro da vila.
porque lhe deu a rosa, a metade da rosa, que a outra metade, pisada de Ana o espiava, onde? Pelos olhos do cego flagelado, lá da
zebu, Ana colheu da rua, pétala a pétala. Artes de menino com a janela?
menina, E esta, nos olhos da operária, lhe pedia uma rosa, Alfredo Olhou para o cego lá de cima que o condenava. Veio saltando
saiu do trilho para deixar passar o bonde e esperou que só ficasse, as poças do Una, entra na José Pio, passa pela jaqueira.
neste sol. o silêncio do capinzal da vacaria marginando a rua. E via — Olhe, moço, olhe, moço, entre aqui dentro, entre aqui dentro,
que o capinzal se cobria de flor, flor de algodoeiro brabo, aquele que sim?
amanhecia beirando o rio, defronte do chalé. colhida pelos carneiros e A mãe da Zuzu, aquela senhora, alta e cafusa, que ia no
as vacas por ali errantes, Saíam ele e Sabina marido e mulher do espiritismo, distribuía fluidos pela vizinhança. Debaixo da jaqueira, o
galinheiro, e se viam entre uma fartura de flor, flor do algodoal brabo. chão de tão alvo um trigo.
Com efeito, não só abriam na beirada entre as patas do gado, com as — Olhe, não repare, estou lhe chamando é por uma precisão,
formigas de fogo ao pé. Na cerca de casa, do lado onde era o gali- por uma esperança, espero que o senhor possa. Me dá um
nheiro e a sentina, o banheiro, o poço, o ingá, só flor, variando a roxo, acanhamento.
a violeta, vá ver que azul e róseo, e ninguém, [70] a não ser o menino, Alfredo segurou o pescoço onde ainda não pendurava o
ou um e outro carneiro, dava por isso. Sabina, correndo atrás da carocinho, um pouco vexado e já apressado de servir à mãe da Zuzu.
picota, nem via. Mas agora salta dos olhos dela a beirada em flor, a — O senhor sabe. Já tanto que queria... Zuzu, essa moa filha,
cerca, o campo, vacas e carneiros pastando roxo. No chalé, telhado, sempre me dizendo: Como é que a senhora vai agora tirar o tempo do
janelas, a mãe, o rosto lilás, pilando café, a cachorra, a borboleta, a moço, mamãe? Lhe chamei agora, [71] me deu que foi uma coragem.
picota no jirau, é só flor de algodoeiro brabo. É o que está vendo nos Zuzu! Zuzu! Vem cá! Me tira deste atrapalho.
olhos da outrora dama daquele baile, Sabina, a braçal do curtume. A filha não aparecia.
Na beirada, espiando pelos navios velhos, o estaleiro, aquela — Pode, pode dizer. Sem cerimônia.
barca portuguesa vai virando moradia de terra; lá está a armação do — Zuzu! Onde que essa menina se meteu? Zuzu!
39

Alfredo esperava, a pendurar no galho da jaqueira o carocinho — Em que livro está seu filho?
prometido pela Nini. — Eh avalie! Nem da primeira folha do primeiro livro passou.
— A senhora tem poço aí atrás? Tal está. É ou não é, Zuzu? Ora... como é a sua graça?
— Ter, tem, mas falta limpar. Água, a gente tira daí do vizinho. [72] Alfredo, mamãe. Alfredo.
Limpar o poço, quede pessoal? Quede posse? O rapaz virou-se para a moça. Ela deu de ombro, o ombro nu
A mulher foi aos fundos, chamando a filha. Voltou. com uma tira, digna, do outrora vestido.
— Tão que aprecio o senhor de ver o senhor todo dia indo para — Pois olhe, seu Alfredo, quando zinho puder ter um tempo
sua escota, sabendo que o senhor aproveita que aproveita o estudo, mas só quando o senhor tiver, que eu sei que o seu estudo ocupa é
ora bobo se não souber aproveitar. Ouço que o senhor é do Marajó. horas. Olhe, vá pondo de parte umas tantas coisas. Mãe, por via de
Que fazenda é a de sua família? filho, não mede. Agora que sei que o senhor é pobre nem esconde que
— Fazenda? Não, senhora. Fazenda? é, já me sinto mais... o senhor me tirou do apuro. O livro, tem, já
— Como então... Língua do pessoal espalhando que a sua ajudou a desasnar conte nos dedos a quanta gente. De mão em mão,
família tem. Ë então pobre? Ah bem... Pobre, hein, aprendendo? Olhe cede pra este, pra aquele. Meu falecido no comprar disse; este, pra
lá... quando chegar idade de filho desasnar. O senhor me creia que até pro
Ficou um tanto pensativa. Chamou pela filha. Virou-se: fundo já foi. Ah não lhe conto nada. Pois se deu numa viagem, suco!
— É então pobre. essa ar xixitinha, A gente se alagou, a canoa então não emborcou? Lá
Ganhou um desembaraço. confronte o Outeiro, escuro, cada banzeirão, a embarcação maneira,
— Entre, mas entre! Zuzu! veio um rabo de refega. E eu e a mea falecida mãe e essa ainda gita,
Dos fundos, silenciosa, nos seus molambos, braços e joelhos de santa misericórdia, segurando no que ia boiando, até que o corpo da
fora, nudez iminente, Zuzu chegava. gente encalhou naquele beiço de lama de uma ilhinha me lembro que
— Ah se o senhor pudessezinho ensinar meu filho, o caçula. essa mea filha até se assustou mais foi com os siris pulando no
Que o senhor acha? escuro. A noite ventosa, mas Deus era que tinha estrela. Pois bem,
— Mamãe! atrás de nós, não é o bauzinho bem de bubuia? Benzinho de bubuia, a
— Zuzu, faz pouco eu te chamava, agora te mando embora, dizer: vim com vocês com vocês vou sem vocês não fico. Dentro do
corta-conversa! bauzinho, o livro, que já pode contar que, esteve numa alagação, viu
Zuzu corrigia os trapos numa compostura, a olhar para a mie e por dentro d’água. Se as letras falassem até que então contava. Correu
para o rapaz, como a dizer-lhe: não repare na mamãe. de mão em mão, nesta, não demora naquela, pobre só tira, quando
— Até que botei esse meu filho numa oficina praticando, mas poder pode, um fiapo das letras e pronto. Zuzu soletrou nele. Está que
ler é sempre uma precisão, assim acho. Estou pelejando que ele é um bacalhau mas ainda dá um caldo. Vai Zuzu buscar.
aprenda. O senhor pode? Do que eu tiver lhe pago que agora não — Zuzu num jeito de que não queria ir, foi, trouxe. Ela e livro, até
mas olhe que eu lhe pago! — que pagar semelhante trabalho por que se pareciam, tirante o corpo dela, que desabrochava.
maior pagamento que fosse quem disse que se paga.
40

— Agrado nenhum que lhe dê, tenho. Zuzu, escolhe uma das — Então vai haver o diabo?
maduras. O senhor mesmo escolhe. Gosta de jaca? — Com roupa-de-ver-a-Deus. Gruda a boca. Espera que ainda
Tudo recendia jaca, Zuzu, a mãe, o livro. No terreiro, a jaqueira vou lustrar os borzeguins do meu tio. Coitado, ele que tão carece.
pejada. Alfredo folheava o bacalhau. Faltava a folha 3. Zuzu, muito — Nini, olha o que eu te trouxe. Ali. Ali rio pilão, no alpendre.
princesa nos seus trapos, como se o intimasse. Fardado, a ponto de Nini, fazendo figa, atira a jaca sobre os cacos de vidro do
continência, o ginasiano combina o dia, aceita a jaca, pesada, que quintal da Principala.
carrega no ombro. — Deixa-te está! Hoje mesmo vou pedir da vovó o teu talismã.
No que olha o portão da Esméia, um rosto fugiu-lhe por entre os Mas lê, lê o teu horóscopo. Escuta o que ele diz. Vejo que tu não tens
ramos do jasmineiro, o olhar na jaca que ele trazia no ombro. Ao fim dó da tua mãe. Nem de ti mesmo. Tua mãe vai tornar conhecimento
da rua baixa, no rio de maré alta, [73] passava um gaiola: apitou o dessa jaca, deixa-te está!
curtume, iam saindo as mulheres. Sabina com a metade da flor? Alfredo dobrou o horóscopo.
Aqui na varanda dos Boaventuras a mãe e a filha entonavam-se — Um girinho pela cidade, aceita, seu Floremundo? Está aqui
para levar ao Arcebispo, ao Advogado e ao Ex-Governador os sele no meu horóscopo. Só que o senhor paga o bonde.
documentos e o retrato. No corredor, na porta da sala, mais gordo a — Só não querendo. É só o senhor se adispor. Querendo, às
mar; suado, coro o pacote de jornais debaixo do braço, o seu ordens, mas primeiro se abanque, se sirva, vá desvirando o prato, se
Laudelino de A Imprensa, à espera do fazendeiro. Vinha ajustar a sirva.
noticia nos recém-chegados. Estirado no jazigo conjugal, — Uai! E quem vai levar nós?
suspensórios descidos, mão na barba, o nosso Imperador chamou o É a D. Jovita, fechando a testa, ao pé da mesa.
estudante: [74] Alfredo amassa o horóscopo: desta casa vou é me embora,
— Me faça este favor, disse, baixo diga ao seu Laudelino, que é já. Vai levantar-se, o seu Floremundo o apanha — se sente se sirva
sim, publique o total dos nomes, com o meu retrato. Aqui os nomes, — continuando a comer, com vagar e melancolia. Já a Graziela, de
entregue a ele este envelope. Que me desculpe não aparecer, de tanta chapéu, cintada a rigor, o almofadado colo, cheia de penduricalhos, se
dor de cabeça que estou. Peça aí dentro um cafezinho pra ele. aproxima, pondo um sossego na voz:
Na varanda, a D. Jovita, num traje de viúva enfiava-se nos seus — Mamãe, dispense o Floremundo. Lá, ele a boca não vai abrir
colares. Graziela, no quarto, punha c chapéu, sem usar os espelhos da uma só vez que eu sei. Nós só que vamos. Custa ir só nós duas?
alcova e da sala. Felipa e D. Dudu tinham ido às compras nupciais. — Nós duas? Era se fosse! A audiência é nas barbas dele.
Cheiravam os jenipapos. Pelos fundos, na corda sobre as plantas, as D. Graziela, alagada de loção, veio, roçou na mesa:
carnes un sol. Nini chega da fábrica, pega Alfredo pelo braço, vão à — Despachaste as coalhadas, Floremundo? Já?
cozinha onde o seu Floremundo, mais vergado, mais sozinho, mais — Sobrou uma, por acaso, por cima da mesa? Estás vendo?
triste, comia. Na escada do alpendre, Nini, entregando o horóscopo, — Também as carnes? Os couros? Os jenipapos?
soprou: D. Jovita deu um olhar para Alfredo que cismou: também
— A velha vai sair com roupa-de-ver-a-Deus. ouviu, por boca de Graziela, as três cartas que ele escreveu ao velho a
41

favor daquela a cujo nome se faz cruz? O certo é que Luciana não se — Aula de desenho. Desenhei um mutum. Não acertei foi o
desencarnava deles, da mãe, irmãos, pai, ou tirava deles tudo, bico.
esvaziava-os. O. Jovita, porte morubixaba, estofada de roxo, arriou-se — Me mostre, que conforme for, eu vou lhe dizendo o feitio.
na cadeira, as mãos no colo, guardando o olhar. E era como se Eu lhe dizendo, o senhor com o lápis na mão, não Custa fazer
Luciana lhe pusesse um ferrolho na boca, retorcesse nos dedos da semelhável.
velha os anéis honrados e com o dente pelas costas lhe arrancasse a — Deixei lá no Ginásio ah não vale a pena.
roupa-de-ver-a-Deus. — Desenhar até que é um saber que muito me admira, Penso
D. Graziela tinha mudado o chapéu, tirado no guarda-roupa da eu, eu lhe digo. Olhe, por uma comparação, quando é um desenho de
alcova aquele mesmo que Esméia usou. Na preta uma soberania, uma planta de moradia, de um barco, de uma letra marcada na roupa.
agora, na fazendeira, menos que um chapelinho. Seu Floremundo: D. Jovita elevou a voz:
— Pois bem, mamãe, eu vou. Não carece isso tanto. Ajusto com — Pois bem, Floremundo, te dispenso. Olha, dá cá, me enche e
o moço um outro dia. Sim que só tenho amanhã só, que assim que a acende o meu cachimbo. A visita, tua obrigação não é. Não és tu. Dá
lancha volte, me ponho. Só me esperem eu comerzinho este sobejo, cá o cachimbo. Não és tu.
que comida no prato é impróprio deixar. Ah me deixem também fazer A mãe cachimbou fundo e grosso, sombria na sua cadeira. No
companhia ao moço, pra ele não ficar comendo só. Mas se sirva, jazigo conjugal, debaixo da intimação, o nosso Imperador espirrou no
menino. travesseiro.
— Não, pode ir, pode ir. Estou me servindo. — Mamãe, a senhora, mea mãe, se quisesse uma opinião...
— Suas lições, hoje? Quero crer que o sono lhe tirou a visão do — Te pedi?
estudo. Ou não? D. Jovita tinha ficado de pé, costas para o filho, cachimbando.
Alfredo parou o garfo: esse homem está falando comigo ou com Nini chegava do alpendre machucando com açúcar um jenipapo para
a irmã que chega do Ginásio? No olhar dele, estou eu ou ela? o Alfredo que se levantou. Seu Floremundo limpou a boca na ponta
— De olho aberto a noite inteira... Ou aboliu o sono? da toalha, apanha delicadamente do chão uns bagos de farinha, lançou
[75] — E o senhor, que também não dormiu? peia janela. Fez vagaroso o pelo-sinal, desvergou-se com a sua
O seu Floremundo guardou o suspiro. compridez e seus ossos, no que ficou de pé. Alfredo, ali defronte da
— Eu, moço? Lá em casa? Durmo feito um acuatipuru. Nestes máquina de costura da D. Dudu, .quis armá-lo cavaleiro.
dias que não. Uma cuíra... Mas seu Floremundo aqui já não está e sim no quarto dele, lá na
Vieste, com a tua cuíra, indagar de mim se sou a tua irmã no fazenda onde a irmã deixou, coberta pela esteira, suspensa na parede,
Ginásio ou um saltador de janela? aquela folhinha parada no exato dia, 16 do outubro, semana, mês,
— Não vem me dando apetite de dormir. E a sua aula de hoje? ano, século, eternidade. Na fazenda, o ponteiro não andou mais. A
Assim querias, quando chegasses da fazenda, ouvir da Irmã mãe ateou fogo no tabocal e [76] até hoje é cinza no ar. Passa o dedo
ginasiana. no rosto, sai cinzento, passa a mão por dentro da família e vê a cinza
que dá. Come-se ali com o gosto daquela cinza, com a cinza tempera-
42

se o café e se faz a coalhada do Advogado, do ex-Governador e do adornos de sepultura. Seu Floremundo, rejeitando os copos da mesa,
Arcebispo. Queimado o tabocal, bosque onde a bela adormecia, uma procurava uma cuia no alpendre.
quentura soprou para dentro de casa, um bafo, acabou-se a sombra e — Não quer experimentar um da cristaleira, seu Floremundo?
os ventos que passavam pelo tabocal. Meu tabocal é me chamando, [77] — Se quisesse, cadê a chave? No que acabo deste meu
dizia ela, quando as tabocas rangiam pela noite. Vou precisar gole d’água, vamos. Vou me vestir.
daquelas tabocas pra fazer um jirau, respondeu a Principala, aquela — Vá assim mesmo, seu Floremundo. Belém não é de ce-
taboca chama raio. Quem te chama não são elas que eu sei... A rimônia. O senhor não prefere cuia a copo?
caçula, como num acalanto, desafiava: Principala, Principala, as Alfredo Olhou os sapatos remontados, a perneira pedia um
tabocas me chamando... lustro. Faltou ao Tiro, à concentração cívica... Faltou mas foi espiar, a
Certo é que ainda rangem, quando ele, Floremundo, chega pela paisana, no campo do Paissandu, os grupos escolares em ginástica ao
madrugada, moído do campo, da caça e do mais que só ele sabe. sol das onze, uma menina desmaiou, as bandas substituíam a merenda
De todos nós, nesta casa, só o rosto do moço parece lavado. Ou escolar pelos dobrados cívicos; bebendo guaraná, entre ramalhetes de
também não? Que é que o aflige? Agora, me espia oculto, como flores, bandeirinhas e damas da São Jerônimo, as autoridades na
sabendo de tudo ou como também culpado? tribuna de honra forrada pelos pavilhões do Brasil e do Pará. Como na
Veio a D. Graziela: corrida grega dos archotes, o que é necessário é que o facho simbólico
— Mamãe, papai já na porta. Vamos? Primeiro onde? chegue ao templo divino que se perde lá longe no Impreciso da
— Já não te disse? distância, falava o orador, entre o Governador, o Comandante da
— No Arcebispado, então? Região, o Arcebispo e os Cônsules, tudo saiu no jornal, toca o hino,
— Não falo duas vezes. desmaiou outra mofina, eivém o carro do Arcebispo salpicando lama
No peitoril ficou o cachimbo e a cinza. Alfredo vê um cachimbo nos olhos do pequerrucho aqui fora, pé no chão, costela varando a
enorme, feroz. Seu Floremundo vê a cinza só a cinza, só. pele — olha o tamanho da barriga -— que olhava, dedinho no beiço,
Agora no uniforme passado a capricho por D. Dudu, quepe na para o tabuleiro de cocada cheio do moscas. Na linha, os bondes
mão, mirando-se no vidro da cristaleira, Alfredo indagou alto: reservados esperavam os grupos escolares, os colégios, o Ginásio, a
— Não pode sair assim, seu Floremundo? Em manga de Escola Normal. Alfredo tentou reconhecer professoras do seu Barão.
camisa? Diabo! Já nem mais pareciam, de tão usadas, com aquele tanto suar
Sem resposta, pôs-se a indagar de si mesmo: que vai me pedir debaixo do braço, e toca atrás dos alunos que apanhavam o bonde no
que não me pediu ainda? Me leva no caminho da irmã, vai falar de risco de desmaiarem em massa. Resfolegando, esfalfado, desculpe o
minhas cartas? Me pede guia para correr as trinta mil portas da atraso, desculpe o atraso, desculpe o atraso, chegava o trem de
cidade? Bragança. Seu maquinista, jogue daí uma rapadura! Me atire um
Diante da cristaleira, penteou-se; porta da cristaleira, vira camarão seco! gritavam os meninos. Passou no auto oficial o orador e
espelho mágico, espelho mágico. Não. Ai dentro as louças são seus archotes. Pendurando no charuto a data cívica, entra o Diretor do
Liceu no landau do Comendador, este com os seus oito anéis de
43

banqueiro, presidente do Conselho e benemérito da Santa Casa de — Mas depois de comer? Me rogando que eu estupore?
Misericórdia. A pé, de guarda-chuva, alagado de suor cívico, saía Vagarosamente, seu Floremundo entrou na alcova, espiou nos
pelo portão o Secretário. Atrás, sempre maneta e de casimira, o móveis, no relógio francês, enfia a cabeça pelo cortinado do leito,
porteiro do Barão, que guerreou em Canudos, Já lá se vão em silêncio diacho, a modo que cheira a jasmim? Do pai velho que não é.
as bandas, O pequerrucho na poça d’água apanhava a tampinha de Jasmim. É da cama ou do jasmineiro vizinho ou rocei nas folhas dele
guaraná. lá fora, não acerto. Vamos que a mãe fareje. Do velho? Não. É do ar,
— Vá a você, seu Floremundo. Na cidade, quem repara? Lhe uma corrente do jasmineiro das pretas. Mas por onde entrou, as
Sirvo de ordenança. janelas fechadas, a porta? E jasmineiro, para recender assim, só de
Seu Floremundo bebendo água, bebendo ficou. Bebia de Cuia noite, no calmo, os cachos no escuro. Vamos cheirar de novo. É.
num saborear de boi velho, gole a gole, devagaroso. Enxugou na Jasmim.
manga a boca satisfeita [78] Na sala, arriscou um dedo pela palhinha do sofá, na perna da
— Ah menino. Des dessa noite esta sede, que até me esqueci de coluna, o lustro parecia despencar. Voltou ao leito, soprou, sacudiu a
lhe dizer antes se era servido. A educação, fique desde já sabendo, é colcha, o cortinado, virou o travesseiro. Do pai não era. Dudu
do que mais careço. cheirava a calça de homem que faz para a loja, a ferro de engomar. O
— E a barba? Faz? Não precisa? pai, agora, só cheirava a viagem, a sarro daquele cachimbo, e
Seu Floremundo espreguiçou-se, emborcou a cuia na palma da embirrava com jasmim, agora se lembra, embirrava. E então?
mão, tamborilou na cuja, fez um fôlego, espiou pela janela: Assustou-se, era Alfredo a seu lado:
— Perigoso... — Poeira na cama, seu Floremundo?
— O que então, seu Floremundo? — Até que não. Só apreciando.
O vagaroso estirou o beiço para o quintal [79] Ficaram em silêncio, à espreita, apurando o faro.
— O tempo, seu Floremundo? — Tenho de ir.
— Quem mais? Falou o seu Floremundo, como se lembrando. Passaram-se para
O tempo? A cidade? O tempo até que consentia, afofando a a varanda. Alfredo entrou no quarto, quis apanhar a loção da Nini e
tarde de sossegadas nuvens caseiras, a aragem pelas folhas do quintal. respingar no jazigo. O vidro na mala fechada a chave. Aproveitou a
Pelo vizinho, um gulugulu. Hora da vá da Esméia abancar no lado do breve ausência do seu Floremundo, correu, cheirou o travesseiro: era,
portão, com o seu tacacá. Com pouco, chegavam as duas freguesas de sim, Será que o cheiro aumenta, vai impregnar toda a casa, agora? Ou
toda tarde, as moças da cocheira que vendia zebu de Minas, como seu Floremundo astuciou abrir o travesseiro onde a O. Dudu escondia
sempre nem boa-tarde a ninguém, bebendo tacacá no cupim de suas aquelas cartas?
soberbias. Os rapazes do Aston Vila iam bater bola. O intérprete do Já o seu Floremundo olhava a cristaleira atulhada. Uma igual a
Hildebrand subia rumo de Manaus. Subitamente invadindo o essa, Jardelina algum dia viu? Nem-nem por sonho. Jardelina. Outra
alpendre, largo e breve cantou a galinha nanica da Nini. ocasião te levo na cidade, rapariga, disse a ela, uma tarde, por dizer
— O tempo sossegou, seu Floremundo. Vai fazer a barba? Jardelina escutou, depenava a marreca. Jardelina ah pessoa sossegada.
44

Seu Floremundo se amaciou por dentro, aquele sossego dela é minha enfeitosa aquela rapariga Bom que ela nunca serviu a branco.
melhor sustância. Vigie Jardelina olhando essa cristaleira. Lá na Jardelina. a família dela? Tivesse anotação de família, olhe idade! a
palhoça do retiro, lugar das tigelas, duas de barro, duas de folha, primeira linha escrita ia principiar lá dentro da maloca, tempo em que
xícara, prato, bule, era na tábua mesmo, o pote d’água com o caneco aquele rio era, de ninguém mais, dos seus bisavós Que ele vivendo
na boca ao pé do esteio onde a Jardelina grudou, tirada de uma com ela, branco não se considerava meio branco, branquicento, vá lá,
revista, a pintura italiana. Olhando essa cristaleira, então que os olhos mais para a parte do índio, Diabo é a raça dos Menezes escorrendo na
de Jardelina ficariam inocentes, lá do fundo a matuta olhando, bem família Nos olhos da Graziela — só não vê quem não quer —
menina, logo disfarçando, a procurar pela casa um serviço, Sossegada prevalecia o olhar menez. Deles vazou também para a filha que ele
que é mas sempre atrás de uma ocupação. Nem ao menos sabe que tem com Jardelina?
existe louça assim, em tão tamanha quantidade, só de se ver, de A pergunta de Alfredo, respondeu com brandura:
servir-se, deixa-te-está, te serve delas com os olhos. Desejo da — Estou de navalha cega
Jardelina — menos de boca, mais no juízo — era a máquina de Alfredo escarafunchava aquela resposta. Me deixe que afio
costura, me dá assim mesmo usada, já de muita mão, caraquenta, De afiar navalha, gostava. Afiou a do Leônidas. afiou a do seu
semelhante uma que viu, virada a um canto, no Pindobal, espólio do pai, e ainda não tinha a sua, que barba dele, a malpenugem, o barbeiro
finado Duó Serra, reclamado por seis herdeiros. Era só pedir a seu tirava se rindo: Mas, meu filho, já querendo tão sem tempo? Pra se ter
Mocinho para armar, azeitou, encorreiou, e tinha com que costurar barba, bote... Aproveite de grande a cara enquanto é lisa. Plantio de
um pano. Jardelina era sabedora que em casa, na Camamoro, duas barba quem faz é o mundo, meu penugento. Cada fio é uma aflição.
máquinas, tinha. Duas. A velha, da mãe dele, de serventia diária, e a — Seu Floremundo, eu afio.
nova, da Graziela. Fazendo par com o bandolim, a nova só só era lim- Como se lhe dissesse: barbeie suas aflições.
pa, encapada, sempre chegando da fábrica. Pois outra ocasião, vou — Agora, não, não presta. Também me deu foi um fastio de
negociar, Jardelina, o ferro velho dos seis herdeiros, assim que me fazei... Uai! Nem a navalha eu trouxe... disse o seu Floremundo
desembaraçar das tantas obrigações, embarque de gado, esta cidade, tirando do bolso o colarinho, a gravata, o maço de dinheiro.
casamento da Felipa, bicheira dando nuns bezerros, tira certidão em — Olhe, seu Alfredo, o favor que lhe pedi, só no meio da
Cachoeira para os autos, que já medem légua e meia, da Questã. E viagem, lhe vou explicando qual. Mas menino o senhor já não é, que
não esqueça que tem ainda de esperar a sentença do juiz sobre o eu sei, taludo que ficou, tamanho! Confio no homem que já vejo no
espólio. Seu [80] Leô|nidas vem servindo, de perito. A esta hora o senhor, que eu sei. Então me espere, paciência, é o tico de tempo em
alfaiate anda pelo Anajás. longe, atrás de quem lhe encomende uma que mudo esta camisa, é só mudar.
roupa. Seu Leônidas, de volta, chega ao Mutá, avalia, e avalia reto, Alfredo, pela varanda e por dentro de si mesmo, deu de novo
nasceu conhecedor. com o cachimbo, o sarro e a ferocidade da D. Jovita.
Pois não, outra ocasião, compro. O mais, Jardelina não Que homem é que vê em mim? Indagação quase assustada, um
ambiciona. Por exemplo, essa lixaria aqui toda, de tudo isso um e ter de descobrir quem sou, que não ia longe. [81] Com|parou o seu
outro enfeite, Jardelina podia pendurar pela parede, nunca soube ser Floremundo aos professores do Ginásio, Esse-um fedendo a boi,
45

sangrando com a ausência da irmã, dele vem uma voz. É dos descubra o homem que tem dentro do filho. Das lições que me dás,
professores? teu silêncio é o que mais dói.
O convite do seu Floremundo era correr Belém até encontrar Uma esperança, chegou o momento, bom escrever-lhe. Trio
aquela a quem os dois, por todos, devem pedir perdão? linhas, enquanto espero o seu Floremundo.
Ou sou eu que estou, pela primeira vez, encontrando um Experimentou a caneta. A pena cega. Destampa o tinteiro,
homem? Em Cachoeira, o pai, os tios e os Outros assumiam, de certo molha, e escreve, arranhando o papel, letra a letra: Mamãe, só agora,
modo, um parentesco tal que não podia julgá-los, considerá-los parte me sinto... Enxugou o borrão com giz, vendo no ar a cena quando ele
do homem, esse que é o alheio desta cidade, o seu Camilo entre a caiu no poço trazido no mesmo [82] ins|tante pela mãe, que lhe dizia:
Anarquia e a fábrica, o pastor da Ponte do Galo entre a Dadá e o disto não diga nada a ninguém. Dito agora assim: tome esta vida que
barco do Maranhão, o Professor Moquém entre as decaídas do lhe dou de novo e não diga nada a ninguém. Agora nesta carta, nesta
subúrbio e o sobrinho tomando o hábito em Roma, já melado no pena aberta, de repente pede: me ponha na palma da mão o que tanto
Cuspe da Antonieta. Nega que Lucíola foi, com efeito, também mãe guarda. Ouvia a Areinha falando dela, de mal sem medir o mal, de
dele, que foi também nascido daquela solidão, noivado e morte? bem sem medir o bem, e tudo na mês era aquela, ação para trazê-lo a
Aquele repentino defunto no xadrez, que velou durante a noite ao Belém. Que a mãe, embora muito do chalé — ou não? — tinha as
lado da mãe, da grávida e do carcereiro, aquele, por exemplo, era já suas fraquezas pela cidade, tinha. Aquela barraca na Bernal do Couto
de sua família, tragicamente no chalé. E a filha, que agora pariu do que ela, em 1918, tanto tanto quis comprar? Por que não a vê, de
pai morto, irmã talqual, vai dizer que não? Escreveu para o chalé que novo, no Teatro da Paz, a luz do palco sobre o rosto negro, o silêncio
valessem a criatura, sabendo embora que tal mie e tal filho, a canoa dela, ao lado do Major, ouvindo a ópera? Perdida ópera do pai e da
que tomam é da linha de Belém. Assim por toda a noite e no entrar mãe. Arias que nunca ouviu nem ouvirá mais, árias ao preço da
desta tarde, Alfredo encontra nesse seu Floremundo o homem que lhe borracha, tempo do padrinho Barbosa com o ganso ouvindo
vem confiar o segredo. Pela primeira vez, de homem para homem. gramofone e a menina no tapete.
Não lhe vem cobrar a entrada do pagode, como o Capoeira. É ocasião Guardou o papel, guardou aquelas palavras para um dia.
pera lembrar o que se passou com ele, ainda do Barão, morando na Seu Floremundo demorava. A esta hora a mãe dele, pai e irmã,
Inocentes, ele e o seu Antonino Emiliano, marido de D. Celeste. caminham para o Arcebispado.
Quando lhe revela que desmanchou em Muaná o sobrado da mulher, Correu até a porta da rua, espiou o campo, o canto, a jaqueira, a
para vender os azulejos, o seu Antonino diz por garimpagem pura, já Penitenciária. Voltou: que é que faço do Ginásio? Ou o que é que o
o juízo lá no Oiapoque, aqui a perder o menino? Só agora se sente Ginásio faz de mim?
crescido? Ou mais exatamente, só agora se comunica? Seu Floremundo voltou sem ter mudado roupa, o mesmo
Logo ressentia-se: a mãe, negando-se teimosamente a confiar conviva de quintal, tornou à cuia d’água.
nele, a abrir-se. Escancare a porta da despensa, mãe, que veja a — Foi o sal da carne, o não dormir resseca.
senhora, oiça a mulher que tem dentro da senhora e a senhora Volta do fogão onde acendeu o cigarro.
46

— Meu pai não ia aprovar que eu saísse pela cidade em manga Abriu. Miudinha letra, o dizer sarapeca, o que tinha de feia e de
de camisa. Por mim que não. Esqueci de lhe dizer que Belém me reboleado no corpo, tinha de inocente, triste-triste no escrever.
repugna. Já a Bina voltava do canto, reboleando nos seus cetins que lhe
Fez uma careta, fez que cuspia não cuspiu, espichado e soturno. davam um ar de uma do mundo e não era. O que parecia não era.
— Ouvi dizer que escureceu de mosca na cidade, quase comem Bina, passando, falou ceará puro:
a população. Que deu nas crianças uma tal peste. Que só de anjo que — Estou brincando não. Estou brincando não.
foi, São Pedro teve de dizer: por ora, chega. Que passou de muda uma Alfredo arrepiou-se. Ficava um eco de malefício. Aquela
tulha de tucano. Que era só abrir a boca, olha, bote mosca dentro da Inocente e feia transpirava paixão e praga. Lá vai dobrando a rua
goela. Foi? Como foi? debaixo da chuva miúda. Alfredo ouvia o chamado do seu
— Quando eu ia saber direitinho, meus tios me levaram. Me Floremundo.
lavei das moscas lá no rio. — O senhor com pressa, não?
— Aquelezinho nosso rio, que até que aceia, isto é exato. Este — Não, não. Espero.
da cidade nem o salobro do mar que às vezes entra e vem cortar as — Não tem lição pra estudar agora?
tantas fezes. Tudo aqui é o bastante pra uma peste. — Hoje só é o seu passeio.
[83] — Os tucanos não deixaram peste. Acho que até levaram. — Me admira que com tanta mosca na cidade, aqui nesta casa,
Limparam um pouco a cidade. que demais podia ter, não tem. Não tem tanta.
— Olhe, olhe... O senhor fique aí de vigia. Vigie e me escreva. Não lhe disse que foram os tucanos? D. Dudu zelou bem.
— Ficar, fico, tenho de ficar. — Muita coisa aqui nesta casa fede. Repare com o seu nariz.
— Mas tratezinho de saber como ficar. Até puxo que essa mea Aquela carne na corda. Aquele mobiliário, não sei por que, mas é. E
sobrinha lhe pendure quanto antes o caroço de tucumã no pescoço. os mais cheiros. As moscas não tiveram noticia?
Grite socorro antes do risco. — Aqui a casa é em cima dum cemitério de bailes, seu
— Já não vou me fiando em talismã, seu Floremundo. Floremundo.
— Só de boca, que o Senhor diz. Só de boca. Eu que estou aqui [84] Seu Floremundo olhou o cachimbo da mãe. Andando sem
pra lhe dizer. sossego, Alfredo amarrotou a carta, pulou para o quintal. As formigas
Alfredo voltou à porta da rua, espiou, e lá noutro lado, no tinham restabelecido os seus comboios. Atrás da cerca, alguns
capinzal — pois não era? — a Ana de branco. Acenou-lhe. Ana lhe meninos espiavam. De repente atiraram pedra. Caiu-lhe aos pés um
deu as costas. No sol-com-chuva da tarde, ela caminhou para a linha caroço de manga. Os meninos assobiavam. Alfredo, na cerca, acenou:
do bonde, de chinelas, via-se. Sumiu D. João adentro. Em que que — Algum de vocês entrou se cortou no vidro?
Ana mudava? Antes correndo, poldra solta, o pé andeiro, obrigatória Os meninos apedrejavam.
em quarto de defunto. Entrou, com uma pressa, uma coisa que devia ter feito sempre,
Esperou. Passou a Bina, a feia perfeita, num cetim colado, em menino, apedrejar. Até em mangueira apedrejou pouco. Tão
lhe atirou uma carta, a terceira no mês.
47

pouco. Agora os meninos da Manoel Evaristo para dentro do quintal — Até que fiquei pensando que Ana bem que podia passar um
tome pedra. mês lá na fazenda bebendozinho um leite... Que tu acha?
— Respeito as praxes do meu pai. Assim é também em — É só a senhora falar...
Cachoeira se vou na ocasião que ele comparece no Conselho e — Com a peça de tua mãe? Agora isso... ah!
assume. D. Santa, num gesto aborrecido, sossegou-se na cadeira, ali num
Assume, Alfredo escutou como se visse o velho Delabençoe, no descanso. Com as seis rosas no braço, Alfredo foi espiar no quintal:
gabinete do Intendente, assinando pela mão do Major os ofícios, uma e outra pedra. A velha se levantava:
rubricando os talões, visando os papéis da professora. Assume, — Bem, gente, já me Indo. Agorinha-agorinha venho saindo
repetiu o seu Floremundo, com circunspecção filial. dum parto. De noitinha, conforme for, é outro.
— E assim, quando é isso, tenho de me enfarpelar. — Seu Floremundo, vamos deixar primeiro a D. Santa em casa?
Cerimonioso, resignado, deixa que Alfredo lhe tire as — Isso que não, meu filho. Daqui inda sigo... vou atar um
abotoaduras. cordão na barriga duma pra a criança dela não subir pro peito. E mais,
Três palmas na porta da rua, a velha parteira entrando com um tenho de ver mea neta na Ordem Terceira. Hoje primeiro dia dela, ah
embrulho. Sentou-se na varanda, seu Floremundo lhe pedindo a graças a Deus.
bença. Alfredo lhe deu um gole d’água. A velha abriu o embrulho, Alfredo deixou as rosas, apanhou-as, tornou a deixá-las.
papel de loja, seis rosas para o Alfredo. — Deixe numa cuia d’água.
— Mas D. Santa! Alfredo via a Dalila na tina, o pajé lhe dando banho.
Seu Floremundo se aproxima: — D. Santa, não é já tarde e longe pra senhora ir no hospital?
— Raça de rosa assim é raro. — Pra mim? Nem ir no bonde careço. Antes vou amarrar a
Alfredo, sangue no rosto, que vai fazer com as rosas? Que dizer barriga da Sofia Arantes na D. Januária. Depois vejo a Dalila.
à velha? Seis rosas diante delas o rostinho murcho-murcho da parteira, A velha desceu o batente, arqueada, consumida, levava de volta
rosto de pau roído, a voz desbotada. o papel de embrulho, dobradinho.
— D. Santa, a rosa que apanhei, aquela, hoje... Ana ficou — D. Santa, foi a Ana mesmo?
braba? — As rosas? que que havera de te mentir? Agora se ela sabe
— Cismo que não. Ana é braba de nascença. Está bordando. que eu soltei a língua. Ela não te escasseou aquela rosa, meu filho. A
— Agora? prova não é as seis rosas que ai estão? O mais na Ana é mimo.
— Na casa de uma comadre dela na Soares Carneiro. Algum Alfredo entrou, ajeitou as rosas na cuia d’água, voltou ao
mal ter apanhado a rosa? alpendre: as pedras cessaram.
— Era de Ana. — Certo que a mea tia carrega uma cruz com as duas netas, seu
— A prova é que te mandou essas ai me intimando que eu não Alfredo? A Dudu me jogou umas amostras, é? O senhor que
dissesse que foi ela. Floremundo, e tu? Demoras? testemunha, é?
[85] — Demorar, mea tia? Eu nesta cidade demorando? Alfredo olhava as rosas na cuia e a Dalila nas mãos do pajé.
48

— Que eu saiba, seu Floremundo... Alfredo acendeu-se: é agora. Agora que vou saber. Não é o
— Já não está aqui quem lhe perguntou. retrato, a própria. Mas intimamente culpado por não dizer à velha
— Entreolharam-se, rindo, e logo Alfredo: parteira que Dalila estava no pajé. Ao menos acompanhar a avó até o
— Ir no hospital a esta hora, a esta hora! hospital, trazê-la de volta. Seu Floremundo fechou a mala.
[86] — Cisma que a neta... É? Seu Floremundo atravessado por um repentino mau agouro; a
— É o cansaço da velha, olhe que cansa. Questã. Por que não vai, não desengasga no focinho do advogado
— Sim, que muito cansa, é. Do senhor que não é a culpa. umas tantas verdades? Pela consulta sobre as sete cartas e o retrato, o
Seu Floremundo entrou no quarto, abriu a mala, parou, meio dr. Gurjel não vai se Contentar com as coalhadas. É mais uma soma
suspenso, meio contrariado. Esta repugnância pela cidade devo na conta da Questã. E embarque boi, prepare boiada, tira certidão,
guardar só comigo. Foi ruim dizer ao. moço. Vi o olhar dele. Deve ter paga o agrimensor -e sofra embargos. Em Cachoeira, seu [87] Domin|
tomado como uma ofensa. Vi o olhar dele para a velha parteira. Mas o gão não se cansa de gritar no meio da casa: nos roubaram tudo. Os
estudo dele, esse, eu respeito, é o que talvez se salve nesta cidade. advogados! Nos tomaram tudo! É o seu urro, todo dia, do viúvo e
Mudava de camisa? Era como se obscuramente dissesse: mudaria de esbulhado. Foi a sua Questã e ali está com açúcar no sangue, a mesa
família? A camisa parecia menos suja que empapada de toda a posta sem um bago de farinha e o nos roubaram tudo.
viagem e de todo o serão passado. Despiu-se dela, vagaroso, se Também no correr que vai nessa Questã, acabamos na beirada,
despindo da noite, aquela, do quintal, mais do quintal que do céu. pedindo passagem no rio e ninguém escutando. Ninguém, ninguém. E
Custou a achar na mala outra camisa não marcada pela irmã. No adeus o Advogado e o Arcebispo nunca mais.
mesmo que vestia, empinou-se, atento: não disse? A chuvinha lá fora, Com esse temor, contou o seu dinheiro.
chuva da cidade, pingando a sua imundície, o que mais doeu no seu Alfredo, no alpendre, atento aos fundos da cerca, impacientou-
Floremundo, já num repente de fechar a mala e sair-se, sem nada se. Os meninos voltavam a apedrejar. Desceu e viu, atrás dos
explicar, mas depressa — contrariando seus hábitos — depressa no meninos, de branco, a Ana, que mandava apedrejar. Quis afastar uma
Arari, depressa, entrando no retiro: estaca e sair pelos fundos, impossível, e tome pedra, Ana tinha
— Jardelina, tempo não tive de trazer tua encomenda. Outra desaparecido.
ocasião, te trago. As pedras cessaram. Alfredo esperou. Espiou. Ana entre os
— Seu Floremundo, isto já nem me coça, deixe que lhe diga, meninos, debaixo do açaizal. Ela agora no meio da rua, da Manoel
tenha paciência, mas o senhor é sempre da outra ocasião. Acaba o Evaristo. De crer que seguia para a baixa, dobrando, sem dúvida, para
senhor.., acaba gente por ai lhe botando o apelido de Outra Ocasião. o estaleiro. Os meninos debandaram.
Entra o Alfredo, curioso da mala aberta: retrato de Luciana? Foi ao portão, batiam bola no campo, gente em volta do tacacá
Seu Floremundo tão vagarosamente se vestia, bem verdade que debaixo do jasmineiro. Olhou a Penitenciária. Bina ali entrava se
apressado por dentro. despindo do cetim e do rebolado, devolvida aos seus daquela seca, ali
— O senhor vai me guardar silêncio. O senhor sabe... desde que tempo. E as roupas dela, de quem? Não era da fábrica nem
do mundo nem tinha zebu. Presente da madrinha, a madrinha de uma
49

das casas altas da Travessa do Curro? Os sobejos do cetim e do fustão Não é bem como montar, seu Floremundo? Quando me leva lá
da madrinha lhe colavam no corpo, a feia passava pela Mu- na sua bela fazenda? Me põe em cima dum búfalo, quando, seu
nicipalidade e José Pio, na última moda, se por fora escandalosa, por Floremundo? Não põe? Me ponha!
dentro castamente apaixonada. Os rapazes a esperavam no canto e ela — Este-um aqui é mais na .feição da senhora. Sacode, sim, mas
fechava a cara, a sacudir-se, asperamente fiel a Alfredo que dela se não derruba nem assa. Mas dizer que dele não me arreceio, isso não
escondia. Agora é a carta aqui na mão, carta de mal-amparo, que te digo. Não é o fogo que faz o bicho andar?
pede o que fio tens. — Olhe que fico esperando o seu convite, seu Floremundo.
Ana, pelo estaleiro, chamada a bater a quilha do barco. Espero em Deus que um dia vou ser convidada, Que aquele seu pai,
Aqui no jasmineiro, Ismênia não se expõe. de tanta promessa dele, criei calo na memória.
— Pronto, me enroupei, às ordens, falou o seu Floremundo, — Não tiro a razão da senhora, quem promete...
paletó e guarda-chuva, num passo jururu. — Seu Floremundo, vá, marque data, me prometa então, que a
Ao passarem pela taberna, sai por entre o peixe de salmoura e o sua palavra é um tiro.
toucinho sob as moscas, numa aragem de perfume, a D. Brasiliana, D. Brasiliana esticou o braço cheio de pulseiras, recendeu mais,
chapéu, sombrinha, bolsa. enfiou a mão pelo joelho adentro, era o nó da meia, a liga? Alfredo
— Sua família, seu Floremundo, viajou de auto. O carro deles não sabia. Qual das duas agora? A taberneira, a contrabandista? Nem
chamei pelo telefone. Um para o senhor? uma nem outra. Era a que fala ao telefone, a que anda de auto, agora
[88] Estou vendo as tuas artes, Malazarta, cismou Alfredo se apropriando da cidade, dama do alto comércio e das profissões
olhando a rua sem sinal de bonde. Seu Floremundo — mas se eu liberais.
nunca troquei duas com essa criatura — cumprimentou a dona, Como então que seu pai? Que foi que deu no seu pai, na cachola
banhado de espanto e perfume. do seu pai? Fazer a senhora dele desarmar a rede branca dela lá na
— É só chamar. Chamo, seu Floremundo? fazenda, deixar lá o leite à toa coalhando e arriscar-se a tamanha
Seu Floremundo, tentando abrir o guarda-chuva, olhou para o viagem? Neste tempo! Não é festa de Nazaré não é nada! E ter de ir
Alfredo que espiava se vinha o bonde, olhou’ para no Arcebispo e ter de ir no Advogado...
D. Brasiliana que levava o jacamim para debaixo do balcão e já — Como?
no rumo do telefone. Fingia não ver o ginasiano, este rio meio do — Não meta rolha na conversa, seu Floremundo, que de tudo
trilho, torcendo pelo bonde que não veia. um pouco o ar me enche os ouvidos. Meu outro telefone é sem fio. Só
Seguiam de carro até ao Ver-o-Peso. Ela, entre os dois, teimava cortando a foice a barbona do seu [89] pai! Onde estavam as cautelas
não ver o ginasiano, sempre voltada para o seu Floremundo e seu do vosso galante e digno genitor?
Floremundo atarantado. O carro sacolejava, a dona ralhando: mas que D. Brasiliana escapou um risinho, logo se fechou, ensaiou um
tanto sacolejo é esse, seu Marituba? bocejo.
— O senhor, que é filho dele, não atalhou a tempo? Não
preveniu? Como seu pai... Procedendo feito um menino.
50

D. Brasiliana mexeu o ombro para o lado do estudante. Seu [90] Deu-lhe um beliscão na coxa, temperou a goela, agora com
Floremundo se assoou, pesado e desentendido. o sacolejo do carro fez foi saltar os braceletes, colares, o peito, e mais
— Seu Floremundo, uma palavra, homem! perfume e fitas do chapéu e cada vez mais Senhora no comércio.
Seu Floremundo até assustou-se, o toque dela no braço, no — Primeiro aqui, pare.
receio dele, no nojo, na sufocação, peso de perfume e ombro, aquele Subiu no dentista, desceu.
rosto em cima; roçava-se nele a mulher, sacudia os braceletes, da —. Marquei hora, meu senhor. Este pivô, não me dou com ele.
cabeça aos pés vestida de contrabando e já por dentro da família com Nunca foi no dentista, seu Floremundo?
todo o seu telefone. Alfredo agora se admirava. Como D. Brasiliana Alfredo riu, um rir alto.
soube? O velho? Ou entre o Marco da Légua e a taberna corre uma Ela com um talho de boas maneiras engraudava os olhos no
passagem secreta? Alfredo assobiou, impaciente. Ela sem vê-lo, a estudante que pôs as mãos na boca, enchia as mãos com o riso, abria
desconhecê-lo, voltada para o seu Floremundo. Antes de sair na as mãos para fora, como para contagiar a cidade, fazer a rua rir, as
Quinze de Agosto mandou parar. Entrou na casa defronte, rápido. portas, o bonde parado, a carroça que atravancava. O carro sacoleja,
— Vamos, é melhor pelo Bulevar. Quero uma paradinha na pára defronte da Alfândega, a moura saltou. Alfredo espiou a grade da
Alfândega. capatazia, o paredão: o velho Alcântara. Dele nem lembrança?
Uma quadra, e de novo salta, entra no sobrado, não demorou Esperaram. Com pouco a D. Brasiliana:
saiu, dando adeus às senhoras que se debruçavam na Janela. — Agora defronte da Recebedoria.
— Bem, agora a Alfândega. Ah. Mesmo nesta chuvinha ti calor. Entrou sob os cumprimentos e alas da Portaria, fiscais e
Ah. guaritas. Os dois, no fundo do carro. Já a senhora descia,
Da bolsa tirou o leque azul de pontas douradas, abanou-se e acompanhada de oficiais da repartição.
então fez que deu com o ginasiano, olhou de revés, indagou do Dobraram pelo Ver-o-Peso.
Ginásio, numa voz protetora. Alfredo, sem responder, encarou-a. Ela — Espere.
interpõe o leque, logo abana-se, examina a farda do estudante, os Examinou no botequim os violões pendurados. Entre os
sapatos, muito madrinha. Espichou o beiço, fechou o leque, ar de canoeiros, como sempre, grande dama, muito dada. Andou até às
quem fala a menino: proas de caranguejo e peixe, indagou preços, reclamou contra os
— Então? atravessadores, o adeusinho ao capitão da Força Pública, chuviscou,
— Então o que, D. Brasiliana? abriu a sombrinha, a maré subia na calçada. O carro foi parar defronte
— Quantas? da Intendência.
— Quantas? — Fico aqui no Foro. Tenho de ir na Câmara. Pena não
— Levo nesta bolsa a petição ao diretor dos Correios para botar acompanhar o senhor, seu Floremundo, na sua viagem. Outra ocasião,
na nossa bela rua uma caixa postal. Só assim. Satisfeito? sim?
— Boiei, D. Brasiliana. E cochichou:
— Quem não te conhece que Sarepeca.
51

— A esta hora a sua família despachando altos papéis com o Alfredo não via o tempo da corrida mas o da passageiro no
Arcebispo. Como então que esse seu pai?! Mas tudo acaba em boa carro. E só agora ia principiar a viagem, talvez a busca ou outros
amizade e boa paz, se Deus quiser, minha oração é forte. Não convém desígnios (tu me pagas, taberneira), puxou do bolso o horóscopo.
susto. Por isso, não. Nossa Senhora de Nazaré põe uma pedra em — Vamos, seu Floremundo?
cima. — Agora é nisto até lá.
Olhou o céu, benzendo-se, sem se virar para o ginasiano, logo Alfredo ouviu, ouvindo aquela rouquidão, aquele resmungo. Lá
acolhida por dois senhores de pasta e anel de doutor. Um deles, da Câmara desciam os ares da O. Brasiliana. Alta, penteado torre-de-
Alfredo reconhece mas veja aquele ex-noivo da D. Emília Alcântara, pisa na janela, a dama parecia fazer inclinar o velho caçarão, todas as
o Dr. Viriatinho, todo no H. J., cravo [91] na botoeira, boas banhas, janelas se enchiam de sua figura, seus cabelos de repente imensos
enxugando o cangote próspero. ondulavam sobre a Intendência e o largo, labaredas de um Incêndio
O Porca Prenha. Alfredo quis saltar. escuro.
— O plenário está no meio, dr. Viriato? perguntou ela, franzida — Até lá, seu Floremundo?
a testa, tocando com o leque a aba do Porca Prenha que lhe tomou o Seu Floremundo piscou muito, destemperado, deitou no colo o
leque e se abanou jovialmente suado. Entraram no Palácio. Alfredo guarda-chuva, Alfredo endireitou-lhe a gravata.
quis segui-los mas esperou que o seu Floremundo despachasse o — Ah que o senhor se arma de uma paciência comigo... Lhe
carro. O alto espichou-se para o chofer: agradecer nem sei.
— Meu senhor, deixe ver a quantia. Olhou as janelas, ganhou um ânimo:
— Até aqui? Só-só até aqui? Nonada. O carro às ordens. Até — O senhor aí da frente, aí no piloto, faça favor, viaje.
aonde desejava ir? [92] Agora o piloto tem que virar a manivela, uma duas três
Laçado pela cidade, carregando o seu asco contra a cidade, seu pegou. Alfredo olhava para as janelas.
Floremundo virou-se para o estudante: — Depois lhe digo onde parar. Viaje até lá.
— Que o senhor diz? — Até lá? tornou Alfredo.
Alfredo queria o plenário, um pulo na galeria, espiar. — Lá no Marco, é. Lá se sabe a rua e o número.
— Pague, pague. A rua e o número, repetiu Alfredo consigo, a rua e o número.
Mordeu o beiço, enfiado, com a sua pressa, conteve-se, os olhos Voa, voa, piloto. A rua e ao número. João Alfredo, Quinze de Agosto,
lá em cima naquelas janelas do plenário. Luciana não tinha onde. O Largo da Pólvora, Estrada de Nazaré, agora na Independência,
Porca Prenha! Seu Floremundo afunda-se no carro, mais barbado, calados, a rua e o número, olha o Museu debaixo da chuva, os velhos
mais sombrio. bichos gritando com fome, também viajavam os perfumes, soavam os
— Agora, seu moço, tão tarde que já é... braceletes e os colares, o ombro da moura nos ossos do seu Floremun-
— Do Curro até que foi um instante, patrão, atalhou o chofer. do, o beliscão na coxa, carro da moura entre os violões e os
caranguejos, entrando pelas janelas da Câmara, voa que adiante é a
rua e o número, clareou o tempo, estamos no Marco. Seu Floremundo
52

tirou do bolso a rua e o número, deu a Alfredo, o carro saltou nas — Assim então... murmurou o seu Floremundo, se de-
poças, aos solavancos, dobrou na Vilota, parou no oitenta e três, senroscando, debaixo dos olhos da meninada, a D. Jovita chega a
assustando um galo suro que pulou para o meio da rua encharcada. tempo de só reaver o pé do amor-crescido.
Custou a abrir a porta do carro. O ginasiano apeou-se, saltou a Deu a nota de dois mil réis aos meninos que foram correndo
vala, batendo palma. Barraca fechada, porta verde, janelita escassa, trocar no canto. A perna-inchada mostrava a planta no paneirinho.
bateu bateu. Espiou pelo buraquinho, escuro, escuro. Veio a vizinha, Dois ovos conseguiu o motorista. Alfredo apanhou o dinheiro das
uma de perna inchada, tirando espuma de sabão dos braços, titingosa: mãos do seu Floremundo, pagou o carro que ao sair da rua se atolava
— A vizinha dai? Desocupou não faz nem hora. Desalugou. É a rodeado de menino.
chave ou é só com a ausente? Os dois seguiram a pé Vilota adentro, silenciosos, seu
Alfredo, deu-lhe um suor, sem responder. A ausente, a ausente. Floremundo respirando o seu alivio.
Começou a chegar vizinho. A quadra amontoou-se em volta do carro. — Olhe ali um pé de loucura, correu Alfredo para o cercado em
Os meninos espiavam aquele-um alto ali dentro do carro, encolhido, flor. Lá dentro, a moça, socando café no pilão, ..piava-o. Seu
rosto esguio, muito só ele, a mão no guarda-chuva. Floremundo se chegou, vagaroso, bem mais alto, recortado na
— Mudou num caminhão. Mudou num caminhão, exclamava a iluminação da tarde. Queria andar um pouco mais.
vizinha. — Desanferruja a perna e o juízo. Ah que aqui tem por demais
— Num caminhão, foi, repetiam as outras, lama.
— Ela, a D. Joinha, no que recebeu um recado de um senhor — Daí em diante é só baixa, olhe que vai atolar.
gordo que veio de caminhão, um senhor com um maço de jornal, foi Pararam. Contra carapanã — olha nuvem — seu Floremundo
tudo num instante. levantava o guarda-chuva.
Ao pé da cerca, o motorista indagando por ovos, queria meia — Então aquele seu Laudelino. Veja só o senhor, veja só o
dúzia. Alfredo olhava o número da porta verde, o oito em preto, o seis senhor.
em vermelho — que dizia o horóscopo? De onde esse cheiro de E ouvindo o apito das seis:
abricó? A perna-inchada: — Ah, mas aqui se mora é feio.
[93] — Duma hora pra outra. De caminhão. Pra Onde, não Já os sapos fabricavam a noite.
disse. Dela o que ficou, me pediu que eu agasalhasse comigo, foi um Voltaram em silêncio. Viram outro carro no oitenta e seis, nova
pé de amor-crescido no paneirinho. aglomeração, a perna-inchada explicando. Alfredo e Floremundo, no
Alfredo enfiou a cabeça no carro. escuro, espiavam. O carro fez a manobra, atolou-se na esquina.
— Seu Floremundo, D. Joinha voou. — Levam o pé do amor-crescido? perguntou o seu Floremundo
D. Joinha. Seu Laudelino de A Imprensa. As astúcias do nosso numa zombaria triste. Esperaram que o carro se desatolasse. Ouviu-se
Imperador. A filha, esta, que a cidade devorasse. um trem. Os dois apanharam o bonde.
Ao descerem na José Pio, D. Brasiliana, num robe de florão,
com o jacamim ao lado, pesava um sal.
53

[94] — Passearam bem de carro, seu Floremundo? O telefone Apoiada no velho consolo, Graziela respondia, pausando as
às ordens. palavras, debaixo dos olhos do padre, e de novo o padre, dando à
No Arcebispado, a família esperou que esperou e foi o seu velha santinhos, beiçudamente explicava, cabeluda mão de
espanto: o Arcebispo estava em retiro, por muitos dias. esmurrador, inchando os músculos debaixo da batina, Como se
D. Jovita — pois até aí só ela a filha que falava — então falou: estivesse remando numa iole do Clube do Remo na Guajará. Ficaram
— Mas as coalhadas? em silêncio em torno da mesa do Centro sob o olhar dos bispos e dos
— As coalhadas, minha senhora? papas. Noutra sala, acendeu-se a luz, apagou-se, veio correndo a gata,
— O cônego Jesualdo? desceu [95] a escada com arrebatamento e súplica. O padre cruza e
— O cônego? descruza as mãos, a inclinar-se para a D. Jovita fincada na busca do
As coalhadas que recebeu. Não mandaram para o retiro? desagravo conjugal. Tocou a campainha lá embaixo. Velo um rapaz,
O sacerdote meneou a cabeça, tomou uma nota. No retrato da sacristão ou fazendo as vezes de porteiro, cabeça à escovinha, olhou o
parede, o Papa Benedito se fazia muito atento. padre, murmurou, desceu — passa o tabuleiro de alface e vinagreira
— Nem por um instante, reverendo, ele pode suspender as — a gata miava subindo descendo a escada, o rapaz a enxotou para a
orações? rua. O padre chamou o rapaz que não entendia o recado, o padre
O padre abria os braços numa consternação sem apelo. impacientou-se, o rapaz desceu. Fez-se um recolhimento em todo o
— Olhe só que é um só instante, um particular só com ele e só velho Arcebispado. A família, ali de pé, a modo que ia ficar para
ele pode me dizer a palavra que tanto quero ouvir. sempre, parte do mobiliário, dos ladrilhos, dos lentos, bispos e papas.
Nunca falou tanto na cidade, sobretudo num salão de bispo, e Graziela foi até a janela olhar a rua, olhar a gata que sumiu. Virou-se
falou brusco, surdamente, quase no ouvido do padre que os atendia para o salão, circulava os olhos até que viessem pousar nas mãos
com uma atenção familiar, inclinado, macio de explicações, as mãos cabeludas, no beiço do padre. O coronel esperava, barba tranqüila, as
cruzadas, atlético, a mão cabeluda, um tanto beiçudo, observava a sobrancelhas pacientes. D. Jovita, rígida, na sua roupa dever-a-Deus.
Graziela a quem o reverendo olhava com um repente de cobiça, O padre não sabia como despedi-los e os três, como despedir-se. Toca
reparou o Coronel Braulino, este concordando em tudo, enseiã, a campainha lá embaixo, Irrompe lima vara de seminaristas,
enseiã, corretamente culpado, a passear a barba pelo salão. Bispos e escureceu o salão, o Coronel intimidou-se, a D. Jovita estende a mão
papas da parede o fitavam, benignos. Benze-se diante das imagens, ao padre, e este dá a mui para o beijo da Graziela, e os dois, marido e
tomado de uma Contrição protocolar em que suava muito. filha, seguem a senhora pelas escadas do Arcebispado.
D. Jovita teimava junto do padre: D. Graziela trazia no beiço a mão cabeluda, no ouvido os apelos
— Mas as coalhadas? da gata. D. Jovita, o passo enfurecido, espalhava a sua roupa-de-ver-
Voltou-se para a filha: a-Deus e as suas iras pelos sobradinhos velhos que acordavam de
— Ou aquele descansado, aquele poço do descanso, não repente e se perfilavam à sua passagem, com andorinhas nos beirais.
mandou entregar certo e a tempo, hein, Graziela? No reboque, marido e filha, sem trocar palavra, lentos, como se
esperassem — vai desembocar desta esquina — a procissão do
54

Senhor dos Pessoa. Passavam pela Sé onde o seu Lício, lá dentro, dos colares e braceletes, a D. Brasiliana descia da Câmara, em
frente ao altar, usando as velas, lia beatificamente o seu Kroptkine companhia do Procurador Fiscal da Fazenda e do Porca Prenha.
agora encadernado. A porta da igreja, a velha cafusa, balaio no braço, — Ah, minha senhora, o Dr. Gurjel? Agora de todo impossível.
tão desejosa de ali entrar, temia entrar e esperava. A família não Está com a palavra. Não é, Coronel? Está com a palavra. É a Defesa
conhecia a Mãe Ciana. Bateu bonacheirão o sino de Santo Alexandre. falando, D. Jovita.
D. Jovita abriu a bolsa onde guardava as sete cartas e o retrato. Virando-se para a filha, D. Jovita:
Guardou os santinhos. Parou, a esperar pela filha, olhou por uma — Mas as coalhadas? O poço do descanso mandou certo e a
porta de parede grossa que abria fundo para um escuro em que se tempo?
entocavam os bicheiros, petrificados atrás da banca. Sala dali um ar Tentava desviar-se de tal mulher que apresenta à família o
de mofo, presságio e morcego. Os três emparelharam e entram no Porca Prenha — quem que não conhece o Coronel? De muito nome
largo do Palácio a caminho do escritório do Dr. Gurjel na Manoel no Foro. Como anda a Questão? — e aquele Procurador Fiscal,
Barata, passando pelo Foro. Era uma tarde de Júri. gordurento, de ventarola. A moura, com um doutor de cada lado e de
[96] — Mamãe, espere, espere. Essa voz... Aí no Júri, mamãe. braço, fazia grande sala.
É ele mesmo, mamãe. No escritório, não está, que eu sei. Está com a — A família dele? Mas não sabia? No Mosqueiro.
palavra. D. Brasiliana olhou repentino para o Coronel, como a dizer-lhe:
Os três entraram no Palácio da Intendência, na sala térrea, o ah, bicho velho, ah, meu barba do Imperador, só a~ minhas coalhadas
Júri, onde bradava o Dr. Gurjel. não me mandas. Sem perder o ar contrito é culpado, o Coronel ouvia
Tinha nome no Crime, o tal que era o tal na tribuna,, a quebrar a Defesa.
vidraça e coração de jurado, fulminando a Promotoria. Coronel — Bem Imagino a quanto já lá vão os honorários do Gurjel,
Braulino ficou na ponta dos pés a ouvi-lo. E sempre na lapela do Coronel, murmurava o Porca Prenha, o olhar ávido.
orador o feixe de jasmim lilás. Era o advogado quem sustentava, nas [97] — Já marcado o casamento da D. Felipa, D. Jovita? indaga
baixas e altas instâncias, a Questã. D. Jovita, a custo, rompeu o a D. Brasiliana.
aperto, entra na sala do Júri e apanhou um, talvez oficial de justiça, e — Que faz o Gurjel que não mete um recurso... Ora, comigo,
lhe pediu levasse o recado até lá, até aquele reboar que abalava a sala Coronel...
quente, à cunha, com aglomeração na rua olhando pelas grades. Uma rajada sacudiu a sala, todos se espremiam na direção da
— Mas agora, minha senhora? Agora? De todo impossível. Isso tribuna de onde despencou o volume do Código Penal, as rajadas
aí enfia pela noite, enfia pela madrugada. sucediam-se, trovoava a Defesa, o Porca Prenha tentava puxar o
D. Jovita avançou, recuou, chocando-se na barreira de gente e Coronel para o pátio. Um súbito silêncio, a Defesa bebia água. D.
sobretudo da voz que o possesso despejava, esbracejando, entre o Brasiliana, leque em cima de D. Jovita, insistia no ouvido da senhora:
copo d’água e a pilha dos livros na tribuna. Nisto, no ombro da — Aqui em Belém o enlace ou lá na fazenda? Ela está
senhora, o toque, e os perfumes e o roçagar de roupas e o chocalho comércio, nas compras? Podiam me falar.
55

D. Jovita lhe fez um vago aceno, na birra de varar de novo o D. Graziela.


aperto e chegar até ao pé daquele silêncio; logo reboa a Defesa. O. O Coronel agradecia, inclinado, chapéu na mão, querendo ainda
Brasiliana recoloca-se na sua altura, torce breve o beiço para aquela escutar a Defesa, só pôde escutar:
babacuara — babacuara! Empinou-se entre os dois doutores, agora — Mendo, meu filho, ora me deixa fazer um papel na tua
toda ouvidos, musa da Câmara e do Júri, esperando que a qualquer revista deste ano, negro.
minuto o olhar da Defesa colhesse dela a atenuante mais ao feitio e o Já lá estavam na calçada o Porca Prenha e o Procurador Fiscal à
sentimento que arrancasse dos jurados a absolvição. A mesa, no espera da vistosa. Coronel Braulino seguia mulher e filha, apetece
centro, chocando a sentença, sob as rajadas da Defesa. Os jurados uma garapa no Batista, a mulher: não. O nosso Imperador ia apanhar
suavam, rostos pingando, pareciam fumegantes. No estrado, na o bonde Jurunas, a filha o retém pelo braço:
cadeira de espaldar, embuçado na toga e na irremovibilidade, o Juiz — Que é isso, papai? O nosso é o Circular.
cochilava, com o Cristo na parede cai-não-cai rodeado de osga e D. Jovita distanciou-se, carregada de suas afrontas, só,
mofo. E aqui entre os dois praças de cáqui desbotado e puído, o réu: sustentando o olhar contra os olhares do bonde que parou com um
matou um no Murutucu e fazia ali o Dr. Gurjel se cobrir de glória rio jornaleiro gritando no estribo. Veio o Circular. Desceram na esquina
Crime. Agitando as mangas da toga e sua desatenção à Defesa, da Dois de Dezembro com a Gentil. Passava a carroça da Vacaria
afrouxando a gola, levantava-se a Promotoria para o café e tomar Aurora e revoavam os passarinhos sobre o quintal das fruteiras
fresco. proibidas, defronte do Grupo Escolar, No portão do ex-Governador, a
O. Jovita veio arfar um pouco na porta do Foro, seguida pela D. empregada os acolheu:
Brasiliana, deixando o Coronel preso à Defesa. Graziela meio — Ah a família? Em Peixe Boi. Cedinho, hoje, sim, senhora.
aturdida, Pai e filha embaraçavam-se à procura de D. Jovita que aqui — Sabe se recebeu as coalhadas?
fora parecia sufocada. A voz da Defesa escoava-se na praça. Pai e — Que fosse na mea mão, não, senhora. Pode que tenha sido
filha puderam respirar, alcançando a senhora. Do ponto dos com a outra moa colega. Com licença, sim?
automóveis, correram os choferes para o Coronel, disputando a Entrou: Anésia! Anésia! Onde tu estás? Anésia? ó aquela
corrida. O Coronel despachou-os, D. Brasiliana, como pessoa do menina!
Foro, intima do Legislativo e do Judiciário, conduzia a D. Jovita até a Sumiu-se pelos fundos, voltou correndo com um pinto pelado
esquina, acenando com o leque para os dois, o Porca Prenha e o na mão.
Procurador Fiscal, que ficavam à porta do Palácio. — Ah a outra empregada saiu. Até que nem me lembrava que
[98] — Aqui vos deixo,. disse a O. Brasiliana já ao encontro do tinha saído. Ela foi no canto e já vem. Desculpe, sim?
Mendo, um que escrevia revistas para a festa de Nazaré, agora os dois — E do Peixe Boi, quando?
num longo abraço. — Ah isso é só eles lá, a senhora sabe... Quando, não disseram.
— Mas, Mendo! Me andavas falecido? Pode que a outra empregada de mais idade na família tenha
E de braço com o Mendo, leque no ar: conhecimento. Ela foi ali já volta, sim?
— Telefone às ordens, Coronel, às ordens, D. Jovita,
56

Recolhido na sua Granja, no Peixe Boi, o ex-Governador. O O Coronel olhava de soslaio a perna da cabocla que ia e vinha
Coronel Braulino dirigiu a barba para os lados de São Brás [99] de com a folha do portão rangedor, o pinto sumia pelo canteiro, dos
onde o trem saía rumo de Peixe Boi. Também em Peixe Boi tem fundos um cantar de picota. Chegava a Anésia trazendo o bicho que
coalhada, o ar corre fama, as laranjas um mel, e o apito do trem soa, deu. Trem? A máquina quebrou-se, E mão em concha no ouvido da
na Granja, já tão antigo, Com as sete cartas na bolsa e as trevas do seu colega:
rosto, D. Jovita olhava o trilho do trem. O Coronel descobria no — Pois o burro, mea mana!
jardim do seu compadre um pé de jamaracaru. Já o pintinho pelado Chuviscou. O Coronel abriu o guarda-chuva para a Graziela
beliscava as violetas. E o pavão? Também tinha o pavão. Ficava pela cobrir a mãe, esta a caminho do canto, os três se abrigaram na
manhã em cima do muro. Pavões de Portugal. Era o pavão no muro e mercearia.
o bronze Amphytrite no meio da sala, recordando a visita do Virgínia Que chegou no largo de Nazaré, D. Jovita se emparelhou com o
a Belém, o iate dos milionários americanos em passeio pela marido num regougo:
Amazônia o dono do Virgínia, o Mr. Benedict, da E. C. Benedict — — Mas que é já que tu daqui vai até lá comigo ah tu vai, seu
N. Y., na hora do champanhe em Palácio, oferece o bronze ao sem...
Governador e à esposa de S. Excia. um álbum de vistas de Nova Afastou-se, a modo sufocada, balançou a bolsa, o marido vira-
York, tão folheado pelas visitantes quando a família franqueia a sala, se, vai falar, ela lhe deu as costas.
abrindo as três janelas envidraçadas do palacete. E na coluna aquele — E é já. Seu sem, sem!
estojo, que o Lampreia me deu a custo, como dizia o ex-Governador, Numa tranqüila submissão, sem ar de vexame, o Coronel cobria
íntimo do embaixador de Portugal, também visitante do Pará. a barba com a mão direita, como para protegê-la, e escutando: Seu
Tocaram os sinos da Basílica. Sem, Sem! Graziela fingia esperar o bonde, entregue àquela mão
— Pois já-já num trem pra Peixe Boi, ah! cabeluda, ao beiço, grosso, no Arcebispado, corria-lhe pela espinha
— Agora, mamãe? aquele miado degraus abaixo e logo outra voz, que reconheceu na
— Quem me proíbe? Defesa, agora tão reboante, mas tão abafada às três da tarde na José
— Ah logo agora hoje... Não tem trem. Cadê trem? acudia a Pio, faz um ano, o doutor entrando, de jasmim lilás na lapela: tem
empregada indo e vindo com o pé na folha do portão que rangia. noticia do seu pai? Está só? Sozinha? Preciso juntar aos autos um
— Trem nem depois de amanhã. A máquina quebrou. documento que só o tabelião de Cachoeira. Só o tabelião de
Os três ali em pé, em silêncio, na calçada do .ex-Governador. Cachoeira. Você está só? Só? A prima? O ginasiano? Só? Só? de
— E o pavão? Também em Peixe Boi? indagou o Coronel com pasta, o cacho de jasmim lilás e uni bigode sobre ela, de repente
a barba nos ferros do gradil, espiando o muro. apanhada bem debaixo do lustre — só? — de repente debaixo do
— Ah morreu. Fazendo mês, O que tem lá pelos fundos é só cortinado. Mas doutor.. mas doutor.
um, um papa-mosca. — Mamãe, vamos de bonde?
— E o dinamarquês? Na corrente? D. Jovita não respondia ou não escutava, O velho, com o olhar
— Então não? Deus o livre! nas torres da Basílica, um pouco a crer, quem sabe, que a sua barba
57

lembrava aquele algodão das sumaumeiras avós de Nazaré, ali — Cala que é, a tua boca, rapariga. Chama.
devotadas ao largo e à Nossa Senhora. Da garapeira, que passava a — O bonde? O bonde, mamãe?
rodar, o cheiro de garapa azeda. Um caldo, o Coronel pediu, com uma — Tu já viste então Se chamar bonde? Variaste?
velha saudade, vendo lá no Itacuã uns tão antigos canaviais com os Graziela chamou o carro. O pai abriu a portinhola para e. Jovita
escravos no meio, o engenho moendo à força d’água, foi um pouco que cuspiu antes de entrar.
antes da Abolição. Hoje o canavial só é dentro da casa-grande: — Marco, diz a Graziela.
aquelas moças amadurecendo nas janelas, à espera que o rio lhes D. Dudu apanha o Alfredo no alpendre, os dois no quintal,
traga marido, a avó delas se embalando: espero em Deus que depois sumiram pelo escuro.
de casadas, o rio carregue pro fundo este casarão comigo. Ouve o — Sujeito mais espora! Pois meu dinheiro de costura, renda de
resmungo: seu Sem. Sem. A descer das sumaumeiras, dos coretos, bilro e croché, uma economia pro conserto da casa do Curro!
bonde passando, garapeira moendo. Seu Sem. Sem. Roxa, obstinada, Deu a volta pelo escuro, quebrou um talo de mamoeiro,
solitária, O. Jovita mirava o tempo. andando mal nas suas botas do comércio, botas que há um ano não
— Bem azedinho esse seu caldo. Ë de cana? Me tempere ele calçava e calçou a pedido da Felipa para as compras do enxoval.
com açúcar, o Coronel fez sua graça e olhou, precavido, para a — Pois a senhora dona Felipa, noutra viagem, me tira da mala o
mulher de venta em cima. Respingou garapa pela barba. Seu Sem. meu pé de meia, emprestou ao lunfa a troco de uma nota disque
Sem. Muita banda ouviu nesses coretos, incluindo aquelazinha da promissória. Eu vendo, vendo o meu dinheiro sair: este? Adeus.
Vigia, a banda vigilenga. Só em [101] agos|to, no lugar de costume, o Daquele escrivão de policia — que ele é escrivão de polícia — que se
circo dos cavalinhos. Agosto. Longe está. Mendo, na sua revista do podia esperar senão a velhacada? Desfechei hoje o gatilho nos
ano, vai dar um papel àquela? Quis aproximar-se da D. Jovita, dizer- predicados dele.
lhe: Jovita, mas Jovita. Desatreveu-se. A máquina não quebrou? Lá Alfredo ouvia o cochichar dela no escuro, a proeza irradiando
está na porta da farmácia o seu Godinho fazendo sinais para defronte do olhar dela.
onde entre bilhetes de loteria, pendem máscaras e rolos de serpentina. — Com quem é traquejado, traquejo e meio. Nem suspeitou que
O. Jovita distancia-se, deu com o velho lambe-lambe e sua máquina e uma qualquer cose-manga de camisa e barguilha de homem ia lhe
suas mortalhas. Uma fotografia? Uma fotografia? D. Jovita ferrou no abotoar o peito, ali na venta dos obedientes [102] dele. Juízo me
velho a sua raiva, foi passando. Graziela esperava com a mão do cutucou por dentro: é hoje, Dudu o teu dia, que vais abecar
padre no colo, o beiço do padre, inchando: as coalhadas? as semelhante autoridade, está de plantão e permanência, mandando
coalhadas? Contemplando a Basílica, o nosso Imperador tirou o ladrão de galinha pra solitária. Fui.
chapéu. Meu velho, à vontade, diziam as sumaumeiras. Arregaçou as mangas:
— Mamãe, de bonde? — Já eu danada, danada com os termos — quem esperava? —
D. Jovita abriu a bolsa, tirou o lenço, enxugou o rosto, fez um da Felipa no comércio, já com a canela da perna me doendo, falei:
bico, restou imóvel entre a Basílica e o marido. Felipa, tu tem paciência, fizeste o teu papel, agora é o meu, quero
— Mamãe... fazer aqui um interrogamento a meu jeito, agora fica aizinho na porta
58

da polícia e espera. Senão, vem, serve de testemunha. Não? Pois [103] Felipa lá na porta esperando, nariz torcido para o
espera. Entrei. Fui que fui entrando, no que o meu pé subia, me subia comércio dos enxovais. Então que ela, pela demora, me imaginando
a ira, me subia um asco, subi, me aparece um soldado. E eu: seu já no xilindró, entrou: chega, já chega, Dudu, ficando um tanto tarde,
soldado, olhe, o senhor dá licença para se for preciso dar na Cara disse. Sai mas de peito lavado.
daquele seu superior? O superior tinha se levantado do seu plantão, já — E o cobre, adeus, D. Dudu?
com a minha primeira bala lhe queimando a orelha, a sala assim de — Não sai de peito lavado? Não sal com o nome do sujeito
partes, culpados e queixosos, ele ainda de caneta na mão, deu um debaixo da sola do meu sapato? Não desfechei em cima dos
passo mostrando o dente para o meu lado: mas muito bem aparecida, predicados dele o meu gatilho? Os praças e as partes não ficaram
O. Dudu. Continuou? Lhe tapando a boca, eu já desembainhei a sabendo quem era a vasilha? Com o que me devia, compre creolina
minha língua. pros podres dele. Compre o urubu que vá acabar de lhe comer o resto
Arregaçou mais as mangas, puxou o cós. do fígado. Prefiro os amigos na praça. Já disse também que o meu
— Cobrar não era, aquele-menino, que eu sabia nunca mais enxoval, 1á encomendei. O noivo casa comigo no rumo do Santa
reaver o que tanto poupei de minha costura, bilro e agulha e meu Isabel. A lua-de-mel debaixo dos sete palmos.
dormir. Era só pra lhe dizer ali na bucha. Cuspi no chão e disse: esta é — E D. Felipa? Que diz? Fica por isso?
tua mãe e aqui a minha, cospe e pisa. Ah que o sangue do escrivão — As primas? São finas. Já inteirou um ano.
escoou foi tudo, a cara transpirou verde, teve um soldado que virou a D. Dudu puxou um fôlego no escuro. Olhou para o alpendre: a
costa, os outros, mede o tamanho do espanto deles, e eu me finquei na cabeça da Graziela. Na escada, alto, poço do descanso, o seu
frente do etc e tal, com licença do nome, coberto de merda. Pois meu Floremundo pitava. Falando mais baixo, a costureira, como
cobrinho! Era pra consertar a barraca do Curro, se bem que aquele apaziguada, foi para mais junto de Alfredo.
infeliz telhado cubra duas que só são janela e rua. Comprar um — Achas que te contei uma proeza. De mim uma tal ação se
terreninho só meu onde finque um esteio de que se diga: esse é da espera. Mas tira uma linha da Felipa esta santa tarde no comércio,
Dudu. E te dar os materiais do Ginásio, continuar o teu francês, o que tira.
precisares. D. Dudu fez um ar malino em roda de Alfredo, esmagando caco
— Ora, D. Dudu! de vidro e formiga com as suas botas de solteirona. Pois a Felipa? Os
— Depois teu pai paga, aquele-menino! Ou depois quando te termos da Felipa no comércio! o proceder dela numa loja! A surpresa,
formares, Só sei que foi na sala do escrivão o trinhinlin e eu o espanto, a impaciência, o vexame, a raiva então que Felipa foi lhe
descascando. Adeus foi meu boró tão um a um juntado, quem encheu dando, entra, sai, sai, entra, na modista, te desconheço, criatura donde
o papo não foi esta galinha. Mas que o bicho ouviu, que ouviu, ouviu. saiu essa? Era uma vez a Felipa do costuminho, a de juízo tão
O que nunca esperava de ouvir, ouviu, Inchei a orelha dele, no que ele sentado, a nem carne nem peixe, a sempre come-mosca, aquela abana
podia ter de mais sagrado escarrei dentro. Foi que nem um estampido. fogão, a fosse o que Deus quisesse, quem esperava a Felipa de
Ali na fuça dos soldados, das partes, o canalha, o fígado pela boca, aliança, a de uma hora pra outra noiva, sem mais pra quê, casa este
numa amarelidão! A língua metida no rabo, põe no juízo o que foi.
59

mês, carregando o noivado por cima do comércio? Pois loja nem agradar de nada, veja a experiente, olhe a aborrecida, o desagrado em
uma! pessoa, soprando o seu fastio em cima dos caixeiros, coitados.
— Loja nem uma? Asneira, Dudu, que aqui, esta, eras! vê lá, nem de graça, com pouco
— Nem! Nem uma! vomito. A insatisfeita que ficou de repente, aquele-menino! Ontem o
— Não entrou em nem uma? tiro na macaca e agora em Belém — em Belém! — onde o enxoval
— Entrou em todas, uma a uma e nem uma! para a princesa?
D. Dudu esperou de mão na ilharga, os dentes no escuro. Lá no D. Dudu se agitava entre as folhagens. Alfredo seguia no escuro
alpendre os passos de Graziela. De onde vinha aquela voz de aquela busca pelo comércio e casas de modas, João Alfredo, Santo
gramofone? Alfredo, quieto, meio desfeito no escurume; deu um Antônio, subiram na Madame Suzy, foram até a Peruana (porta da
ventinho nos açaizeiros, tocou o sino de São [104] Rai|mundo. D. frente os manequins de corte e chapéus, pelos fundos o reposteiro do
Dudu veio de mão no nariz dele: conhecia a Felipa de Cor e salteado, randevu) e D. Felipa revirando o beiço e D. Felipa retorcendo o nariz,
direito e avesso, correndo os anos. Felipa Boaventura? A mais sem e tudo — o mais na moda, o mais bem acabado, o mais no trinque —
nem uma ilusão neste mundo. Das vaidades, dos luxos, da ambição, aborrece, reprova, desdenha, refugo, detesta, condena, devolve, joga
Felipa a légua e meia. Foi enfiar a aliança, vamos comprar o enxoval, de lado, só falta cuspir em cima, tão incontentada que com o tanto
entra na primeira loja... Eras, Felipa! Tu que nunca tiveste ou disseste escolher nunca escolhia. Pensa que alteava a voz? A mesminha voz
tua preferência. Tu que nunca escolheste, que nunca te coube cansada, a mesma sossegada e parda feiúra, o [105] mesmo ombro
escolher, nada te cheirava nem fedia. De salão e passeio nunca foste, encolhido. Da outra, a inesperada, só era o franzir da testa, e o beiço,
figurino nem olhavas, fosse um sobejo a parte que te cabia pegavas, e e o nariz, e sem um ar de se lazer rogada e requestada. Aquela Felipa
agora, rapariga? Durante o bonde, ias tão no que for será, sem metida no canto? Aquela de debaixo do soalho cerzindo as velhas
nenhuma exigência, ir por ir era o teu ar. E agora, rapariga? Pra quem anáguas de pano-da-américa? Aquela que fazia saia de saco de trigo?
é, bacalhau já não basta? Loja por loja, modista a modista, esvazia Aquela limpando tripa de porco no jirau? A que se agradava — qual-
prateleira, atocha o balcão, saindo, entrando, do lado esquerdo, do quer uma servia — com as chitinhas de ramagem do Mercado de
lado direito, que nem fiscal cobrando, que nem santo tirando esmola, Ferro ou do tequeteque. Toma este trancelim de 1$500 e aceitando
uai, que é que tu queres, descontente? Que é que te apetece, sua como se aceitasse um brilhante? A tão sem sal, a tão tia bimba! Vai
fastiosa? Tudo, seja o fora de uso, seja a última novidade, nunca é o pensando! Saía dela uma, uma, tanto, tempo oculta, reservada para
que procuras? Nada nada que te cubra da prata e do ouro que só tens esta ocasião, prendada em fazer desfeita, só ela e mais ninguém no
nas minas? Nada que te faça ao menos dizer: vá lá, por já ser tão cobiçar o melhor. Que cravo branco vai preferir, que alecrim, pra
tarde, a Dudu já cansou a canela, Só erazinho axi... que uso isso, axi, formar o seu buquê? Então, Felipa, criatura de Deus, agora só na
que vou me cobrir com isso. Este semelhante linho? Este filó? Esta França. O teu enxoval só na França, filha do Rei. Manda teu pai pedir
cambraia? Este cetim? Mirava, remirava, apalpa, só transpira enjôo, no ex-Governador, que é casado com uma artista, que te encomende o
mas, Figura! Onde foi buscar tão depressa tão caprichado tamanho traje lá na França.
fino conhecimento, só presta o que não tem? Veja o esmero em não se Alfredo agachou-se no escuro.
60

— Só na França, D. Dudu? D. Felipa. D. Felipa queria um que vingasse a longa espera? Um


— Tu que aprendes francês, tu me entendes. A Felipa? Pegou o enxoval que não tinha na praça. Nunca o comércio trabalhou tanto,
bastão, viu-se a viloa. Quem te disse que é a mesma? puxou pelos sortimentos, caprichando nas gentilezas, oferecendo os
— Onde é esse gramofone tocando, D. Dudu? É um fox. últimos gritos e em vão para servir à noiva e a noiva nem um grampo.
— É da casa das Ouro, lá atrás, aquele-menino. Um Ouro Criatura, chega de romaria. O navio inglês está no porto. Te apressa e
navega para a América. embarca, parte e corre as Europas atrás de enxoval do teu agrado.
Alheia ao fox, D. Dudu espiava o alpendre, repetindo as — Até me fio, por isso, que a Felipa desmanche.
peripécias da prima. Casamento, não veio a tempo, adeus. Mas o teu, — Perde os vinte pacotes?
Felipa, veio, já criando caraca, sim, mas veio, valendo os vinte paus — Enxoval tem que preste? Tem figurino? Costureira do gosto
que o teu noivo precisa para não quebrar o balcão, porém veio. Pois te dela?
agarra, mas te agarra antes que o forasteiro, te tomando os vinte, te — Então só a senhora, D. Dudu. Faça, então, a senhora.
deixe esperando sentada. Faz da sarrapilheira o teu véu, da corda do — Meu filho, não acabei de te contar, não me atora a palavra.
balde a tua grinalda, e o sim berra três vezes ao Juiz, depressa, e estás — Agora só a senhora.
casada, mulher. Não vai nada, não vai nada, era o que só escorria da — Menino, costurar, costuro mas pra homem e algum enxoval
boca da Felipa no correr as lojas, no sair das modistas, cada seda! pois que tenho feito mal e porcamente fiz com pano da praça para noiva
nem pra limpar o pé servia, olhe esta, quem sabe aquela, desta a sem titi de galinha. Noiva que vesti foi sem mimo. Fosse um saco, um
senhora do Moreira Gomes levou um corte, nem esta luva, Felipa? No balão, um alinhavado, a sem mimo vestia.
atelier, então! Folheia o primeiro figurino, o segundo, faz desfilar os — Desencordoa a língua, rapaz, escuta, que não acabei te
moldes, mas olhe que este figurino chegou ontem, senhorinha! Senho- contar. Pois Felipa, agorinha ao descer do bonde, pá!
rinha! Felipa? Quais... Apanha o outro, quem te disse? As modistas, a — D. Dudu, a caçula tinha mimo?
mão na cabeça, o rosto entre as mãos, pasmas. Até que principiaram a — D. Dudu ia falar, gaguejou, e Alfredo até adivinhava: quem
ser naquela feiúra impertinente a noiva Ideal que desejariam vestir e sabe a D. Felipa usando os dengos de Luciana? Aquela, sim. Fosse
assim, por brio, deboche e pena, [106] tudo faziam por agradar ou com ela, dava gosto acompanhá-la, a ouvir da acompanhada: esta
vergar a D. Felipa, desespero delas, perdido o tempo e a freguesa. gaze, não quero. Deste cretone não gosto. Nunca tem o que prefiro.
Nem no Paris na América nem na Maison Blanche. Nem uma toalha Chegava, mas em Felipa, a vez de Luciana? Não entrou pela noiva
uma anágua uma liga. A noiva D. Felipa saia bocejando da João incontentável um sopro da escorraçada? Escolhe, escolhe, mana
Alfredo, os enxovais atrás dela pela sarjeta. D. Dudu não escondia Felipa, o enxoval que era o meu, que só eu podia vestir.
mais o espanto, a inexplicação; na Carrapatoso, um sapato que ela — Mas, D. Dudu, minha prima da Rui Barbosa costura para as
dissesse: bem, este, vá lá. Meias? Onde? Nem uma fita. A tudo, via, de São Jerônimo. Ornamenta o Palace no carnaval. Quem sabe...
mede o tamanho do beiço, repara no nariz. De voz cansada, o olhar [107]
miudinho, só dizendo: não. Não gosto, não gosto, já as portas se
fechavam, já as lojas, se telefonavam, Belém não tinha enxoval para a — D. Dudu
61

Eu, meu tio? E o senhor? Não foi o senhor? dizendo: Dudu, te guarda, deixa me fechar meu olho, pra não
encandear com as pompas ali sem selo. E tira um retrato da Felipa,
entra na Brasiliana? Foi subindo com a Brasiliana, a Brasiliana tira a chapa: como bem habituada, vira, revira... Com uma sandália de
abrindo as arcas, estirou as maravilhas dela. Eu até que parei na porta marroquim ficou? Com um perfume? Um lenço? A Brasiliana, cada
me dizendo: Dudu, te guarda, deixa me fechar meu olho, pra não bago de olho! Felipa? Todo o comércio, todo o contrabando ao pé
encandear com as pompas ali sem selo. E tira um retrato da Felipa, dela e tudo ao pé dela virando lixo.
tira a chapa: como bem habituada, vira, revira... Com uma sandália de Calaram-se no escuro, ao som do gramofone. Alfredo:
marroquim ficou? Com um perfume? Um lenço? A Brasiliana, cada Não estou eu com o meu noivado com as humanidades, imi-
bago de olho! Felipa? Todo o comércio, todo o contrabando ao pé tando a D. Felipa? Do alpendre a voz da Graziela:
dela e tudo ao pé dela virando lixo. — Mas, mamãe, então quer e a paciência, então quebre a
Calaram-se no escuro, ao som do gramofone. Alfredo: paciência. A máquina não quebrou? Lã no retiro o Bispo está rezando
Não estou eu com o meu noivado co4ll as humanidades imi- por nós. A senhora já não foi? Não fez o que devia?
tando a D. Felipa? Do alpendre a voz da Graziela: Não se ouvia o regougo da agravada. Alfredo espiou:
— Mas, mamãe, então quef fe a paciência, então quebre a Agora, no alpendre, aparecia o velho. Arrastou a espregui-
paciência. A máquina não quebrou? Lá no retiro o Bispo está rezando çadeira, deitou-se, soltando um alivio. Lá dentro foi que foi um
por nós. A senhora já não foi? Não fez o que devia? barulho de coisa quebrando. O velho não se mexeu. Chega no
Não se ouvia o regougo da agravada. Alfredo espiou: alpendre a D. Graziela.
Agora, no alpendre, aparecia o velho. Arrastou a espregui- — Mamãe, lá no quarto perdendo a cabeça.
çadeira, deitou-se, soltando um alívio. Lá dentro foi que foi um — Deixa, deixa. Antes quebrar que...
barulho de coisa quebrando. O velho não se mexeu. Chega no — Mas também papai, o senhor que crie juízo.
alpendre a D. Graziela. — Sossega, sossega, disse abafadamente o velho, levantando-
— Mamãe, já no quarto perdendo a cabeça. se. Desceu, veio até onde estavam os dois no quintal.
— Deixa, deixa. Antes quebrar que... — Dudu, acode a tua tia. Indaga dela se... Contigo ela bebe um
— Mas também papai, o senhor que crie juízo. pouco de carmelitana ao menos.
— Sossega, sossega, disse abafadamente o velho, levantando- — Eu, meu tio? E o senhor? Não foi o senhor?
se. Desceu, veio até onde estavam os dois no quintal. O velho espiou pela cerca, a barba acesa no escuro,
— Dudu, acode a tua tia. Indaga dela se... Contigo ela bebe um — Tudo fiz para que ela não viajasse, não saísse do sossego
pouco de carmelitana ao menos. dela. Já não basta? Já não basta? Já não basta o luto da família?
[107] — Desencordoa a língua, rapaz, escuta, que não acabei de — Luto? indagou Alfredo, sem conter-se.
te contar. Pois Felipa, agorinha ao descer do bonde, pá! não entra na O velho não respondeu, subindo para o alpendre.
Brasiliana? Foi subindo com a Brasiliana, a Brasiliana abrindo as D. Dudu e Alfredo entraram. Mas as rosas? Alfredo procurava.
arcas, estirou as maravilhas dela. Eu até que parei na porta me D. Dudu batia na porta do quarto onde a D. Felipa se fechava.
62

Alfredo: quem me atirou as rosas nesse lixo? D. Graziela, no quarto Alfredo apalpava as rosas no bolso; no silêncio, lá no quarto, a
da mãe, apanhava as coisas partidas. D. Dudu ia dormir no Curro. ezipla da D. Felipa. D. Graziela se retira um momento e volta:
Cochichou: — Ela lhe mandou dizer pro senhor desculpar, que é a ezipla.
[108] — Nem os sonhos no sono vão contentar aquela insatis- Se não fosse... Só mesmo amanhã.
feita. Nem no sono. — Mas amanhã? Amanhã?
Nem no sono, repetia Alfredo, metendo as rosas no bolso. D. Graziela sorria agradável, bem empoada, voz benevolente, O
D. Dudu voltou ao quarto: Coronel acode, suspensórios arriados, barba acolhedora.
— Felipa, já vou. Amanhã, de novo? [109] — Mas o senhor se sente, se sente, está em casa. Cha-
Entrou. D. Felipa embalava-se, com um emplasto na cabeça. maste a tua irmã, Graziela?
Embaixo da rede, recortes de jornais com leilões marcados a tinta. — Já, papai. Mas é que é a ezipla.
Apaga e luz, é o fio de voz da noiva. — Então, seu Severiano, se sente mais um bocadinho. Mas o
Chegava o noivo, recebido por D. Graziela que o levou à sala, senhor... se sentindo mal?
acendendo o lustre, abrindo as janelas. Chamou o Alfredo na varanda: Não, não... É. É. É isto, é isto!
— Me faça um instantinho sala para o seu Severiano, sim? É só — Um pingo de carmelitana pra ele, Graziela, que alivia.
o tempo de chamar a Felipa lá no quarto. Obrigadinho. Chegamos não faz pouco do comércio. Ah que o tempo, em Belém,
Alfredo foi à janela: lá embaixo, no vizinho, o jasmineiro voa.
aparava o clarão da sala, Só via o pé da oculta, aquela, que logo O noivo ofegava, bebeu a carmelitana, o lenço pelo rosto.
recolheu, bateu o portão, o jasmineiro borrifou. Três pirralhos, lá fora, Arriou-se na cadeira de balanço. Alfredo foi até a porta da O. Felipa,
bem em frente, ficavam que ficavam olhando o lustre. Veio a D. escutou o embalo, desceu para a porta da rua. Lá do meio do largo os
Graziela: três pirralhos espiando.
— Mas que estão fazendo aí? Nunca viram? Sumiço! Sumiço! Seu Severiano, então deixe, me deixe ver, concordou a
Alfredo cismou: pertenciam ao bando dos fundos? vá ver vem D. Graziela voltando ao quarto da irmã.
pedra. D. Graziela: Veio com um envelope de ofício, timbre da Intendência
— Seu Severiano, Felipa manda lhe dizer que está com um Municipal de Cachoeira.
principio de ezipla. Que hoje falar com o senhor ela não pode. Mas Alfredo, na calçada, olhava para o jasmineiro, imaginou
espere o café, seu Severiano, que tanta pressa? Espere o café, é que é, Luciana doutro lado contemplando a casa, o lustre aceso em que ardia
a ezipla não pega, seu Severiano, espere, sim? a sua ausência. Grau! o sapo atirado na sala pelos pirralhos, seu
Seu Severiano, pálido, cai-lhe o guarda-chuva, abate-se na Severiano deu um pulo, o sapo saltando para a alcova — joga sal!
cadeira de embalo, logo se levanta, vai à janela, tossindo, volta-se, joga sal! — mandava a D. Graziela, caçado debaixo do leito. Rindo.
senta-se, fica de pé, estalando os dedos, dirige-se ao corredor, D. Dudu se despedia. Alfredo quer acompanhá-la, mudar-se de uma
retrocede: vez, cochichando:
— Ezipla? Essa agora! Essa agora!
63

—Ficar aqui? D. Graziela só me pegar dormindo é já que me A costureira fez um ar de ralho, engoliu o riso. Alguém bateu o
joga sal, portão do jasmineiro, passou um carrinho de bucho, nisto a sala
— Mas aquele-menino! Eu sã te tiro uma linha. O jantar ai te apaga-se, fecham as janelas, escurece aqui embaixo o jasmineiro,
espera. Graziela matou o sapo com sal? vinha o noivo entre o Coronel e a D. Graziela. D. Dudu fugia.
Alfredo olhava longe para o chalé cercado de água debaixo da — Meu tio, na mesa. Meu tio, venha. Alfredo, comer. Tio
chuva, o silêncio da mãe em Cachoeira. Na saleta, sozinho, com o Floremundo.
velho candeeiro diminuído, o pai bem se embalando; pela porta da Era a Nini no corredor, trouxa na mão, espevitada para seguir a
frente, saltando da noite entra um cururu, se esconde atrás da tia. Alfredo subiu, subiu o pai e a filha. D. Graziela — ia se
chapeleira. — Amélia, Amélia, faz café que tem visita, mulher. esquecendo — volta para pôr a tranca pesada na porta. Aqueles
— Que que te deu neste repente, menino, que te turvou a sarapecas da Penitenciária? Receava, sim. Podiam reinar, uma noite.
cabeça? Te doendo o sal no sapo? Não digo? Não digo? lu que tens é Sonho dela era, depois das nove, eletrificar a casa.
verme. — Eles só de lá, só de lá das janelas, um monte deles, sempre
Curumim do chalé, o pé n’água, Alfredo não respondia. espiando. Uma noite, uma noite! Não viu o sapo que atiraram?
— Te falta é um bom suco de mastruço, esmorecido. — Ande, seu Alfredo, passarzinho mal neste de-comer, que já
— D. Dudu, então de novo na sua barraca, hein? está bem tarde, com este tempo voando, disse o Coronel Braulino
— Emenda a língua, rapaz. Barraca da minha mãe, é dela. Meu, numa voz resignada, e chamou:
só é o lugar, e isso por uns anos, lá no Santa Isabel onde vai ser meu — Jovita, Jovita, jantar, criatura, que senão esfria.
casamento. E a barraca, lá no Curro, sem dono [110] está uma hora — Papai, cale essa sua boca. Não chame, que é pior.
dessa. Sozinha-sozinha que está, os ratos lavram a escritura de posse. — Nini, me chama a Jovita, me faz este favor.
As duas Comas na rua espremendo a cana, e a avó atrás de recolher o — Papai!
bagaço. Pensa que não sei que ela foi no hospital ver quem ali nunca — Me passa então aquele arroz, moa filha. Se sirva, seu
pôs o pé? Pensa? Onde a tua cabeça, quem anda te aluando? Alfredo. O senhor e o Floremundo se distraíram?
Alfredo olhava a mãe se mudando para aquela barraquinha da — Andamos pela tarde, foi.
Bernal do Couto que tanto desejou; ali debaixo de suas palhas, o filho [111] — Floremundo visitou os lázaros? Visitou os fracos do
chegando do Ginásio, a jogar os livros por cima de tudo, senhor do pulmão?
seu palácio. D. Dudu deu um passo atrás, espichando o rosto: — Hora não tivemos, meu pai. Foi só o tempo de uma espiada
— E de toda a romaria, porta do Bispo, porta do advogado, aqui, ali, não se foi longe. Quando se viu, noite era.
porta de Sua Excia. o Ex, a coronel ultrajada, o que lhe sobra é Olhe o seu passeio lá, meu amigo, lá na nossa fazenda.
encastoar as sete cartas e botar no caixilho a imagem da rival. Ela, na Jovita faz questão.
fazenda, o trono é dela. Aqui, na cidade, é do marido. Aquele barba- — Muita coalhada?
sonsa! — Enseiã, enseiã, Jovita é a mãe das coalhadas.
— Nossa Senhora está pondo uma pedra em cima, D. Dudu. — Mas papai!
64

D. Graziela levantou-se, apagou a luz do corredor, a luz da O remédio é levantar-se, diz Alfredo a si mesmo, sentindo-se
Varanda, a luz do alpendre. demais na mesa. O. Graziela com a lingüiça no garfo. As pedras
— Tenho que espalhar caco de garrafa aí rente do gradil e atiradas no quintal se cobriam de formiga. Desfolhou as rosas no
espetar as pontas contra os pés de veludo. É preciso. Este ano dando bolso. D. Graziela com a lingüiça no garfo. Ou é o sapo salgado?
ladrão que é safra. Dali, de lá, daquelas janelas, só estão de espia. — Servido, Alfredo?
Alfredo olhava o monte de flagelados assaltando a casa, com a Alfredo olhou para a barba do Coronel Braulino, a barba
Bina no meio, o colo atulhado de cartas de amor. Era preciso ver a restituía-se, dona da mesa, do seu dono. Lá no quarto a D. Jovita
velha parteira, caçar as duas órfãs pelos quartos de defunto. Consultar escarrava grosso.
a prima da Rui Barbosa sobre o enxoval da D. Felipa. Seu — Seu Alfredo, amanhã um obséquio de sua parte eu queria lhe
Floremundo veio se aproximando, cheirava a banho, tomou a bença pedir, não vá reparando, disse o seu Floremundo, a colher na mão.
do pai. Delabençoe. Delabençoe. Alfredo ia saindo, o Coronel chamou-o:
— Vai primeiro chamar tua mãe, Floremundo Que está em — Me faça, me faça o favor, me leve esta encomenda lá no
tempo dela suspender a tanta dieta. Curro, sim?
Seu Floremundo foi ao quarto da mãe, foi ao quarto da D. — Pra sua irmã?
Felipa. O silêncio dos dois quartos cobriu o corredor, a cozinha, a — Sendo que esta cédula é pras ervas que ela sabe.
mesa em que jantavam, terrina de sopa fumegante, recendia no pires o Abriu a porta do quarto; D. Jovita, cabelo solto, as iras na. boca
molho de pimenta de cheiro Seu Floremundo sentou-se, comia triste, roxa, as cartas na mão e os pedaços do retrato pele soalho.
só, a escutar agora o gramofone vizinho que se coava pelos açaizeiros — As tuas ervas! As tuas ervas!
adormecidos. A boca do fogão, D. Graziela assava a lingüiça. Das D. Graziela acudiu, a velha avançou para o alpendre.
brasas salta o beiço reverendo, aquela mão cabeluda. Vira a lingüiça e Entrou na porta-e-janela do Curro. D. Dudu na velha máquina.
da lingüiça tostando pula o doutor do Júri. Subindo da cozinha, sabe Deus, gemendo nas juntas, a velha parteira
— Aquele envelope Graziela? pergunta o pai, a mão na barba. o abençoou, apoiada a um cabo de vassoura. A marrequinha cantava.
— Felipa, respondeu a filha, a cara suando, a avermelhada pelas O Santo Antônio, o São Francisco, a Nossa Senhora do Rosário, na
brasas. mesa de jantar, junto dos pratos e do bule, se distraíam com as
— Ia no envelope? formigas que cobriam o açúcar destampado.
— Onde então mais? — As ervas dele sim, vou ver. Dalila não vai por via do serviço
— O ajustado? dela.
— Ou o senhor queria que não fosse? — A senhora viu, falou com ela no hospital, mamãe?
— E que ezipla é essa? — Como não havera de falar com era? Se eu fui lá. No que
[112] — Ezipla de noivado, papai, ora, papai, o senhor com os entrei, ela passava com a bandeja de um doente, o tempo só de me
seus assados, cale que é essa sua boca. pedir a bença e eu: vai, vai, mea netinha, não deixa esfriar a comida
do doente.
65

D. Dudu, bem na luz da lamparina, olhou para o Alfredo, rodou No mocho, a um canto escurinho da alcova rasgada para a sala
a máquina ligeiro, cantarolou, parou, cortou a linha nos dentes, o onde a filha costurava, D. Santa dobra a cabeça no peito. Alfredo
vento apaga a lamparina. vem, vira-se para a janela: da rua ao clarão da sala um cabelo, Ana, o
— Alfredo me acompanha até o fogão que vou acender o olhar de Ana flechou nele e adeus; rente da janela Passa um tabuleiro,
candeeiro. a luz chamava para dentro os bichinhos da noite. No pé e na mão da
[113] Na Cozinha, Cochichou: O. Dudu a costura correndo. Ouvia-se a Dalila lavando a vasilha no
— Guardei esta ocasião pra te dizer que tempo inda tive de alguidar do jirau, olha, que te torço o pescoço, marreca, não me
saber lá no hospital se a bicha foi. Tu foste? Tu foste? Indaga da belisca meu pé, te arranco o bico, filha da mãe, ah, por que não nasci
Felipa. Tu foste? de cu virado pra lua, meu Deus! Põe o atracador no cabelo, o pelo-
D. Dudu vem dos fundos com o candeeiro aceso, espalhando a sinal passando pelos santos, joga na boca um torrão de açúcar, vã, vou
sua sombra pelos santos, teto e paredes, e Alfredo dá com a velhinha ali cumprir uma [114] promessa, mas já venho, é já-já, sim? A avó
embrulhada a um canto, foi vê-la, virou o rosto, velha avô! quis levantai-se, chamá-la. Dalila voava. D. Dudu virou que virou a
— Se deite, D. Santa, sim? máquina, parou, riu, voltou a virar, saltou da roda a correia. Vou
— Nem ouvi apitar as nove. Apitou? salgar a boca. Vou salgar a boca. E ria, benzendo. a boca. Alfredo
— Quer? lhe levo pra rede. tentava recolocar a correia. Então bateram na porta: depressa, D.
— Me deixa morrerzinho aqui neste canto, meu filho, não dá Santa.
canseira. No Una, Alfredo acompanha a velha parteira:
Dalila chegava. Ou já que tempo, debaixo da janela, escutando? — Aqui neste alagado é melhor eu carregar a senhora.
— Vá, mas vã! Mas que hospital mais do diabo a senhora foi — Mas, meu filho!
me arranjar, vã! Queria que a Senhora visse, vó, nem pense em ver. — Ah, que a senhora é até demais leve, D. Santa.
Arre! Bença, vã? Bença, tia Dudu? — Se velhice e padecimento pesasse, quando .que tu podia
Cabelo escorrido, o rosto arisco, piscou para o Alfredo que a via assim me carregar, carregador!
saindo daquele banho, deste mundo lavada. Formiga da peste! ela — Chegam num cochicholo espremido entre duas barracas,
gritou ao meter o dedo no açucareiro — nem o santo já respeitam! — atrás de uma touceira de açaí. É um buraco, aqui no chão o cachorro
Fazia mímica para Alfredo, estoriando o banho, a tina cheia, o se comendo o que a menina vomitava; junto, a bonequinha de pano,
despir, o entrar na tina, destampa a garrafa das ervas, os sumos pelo degolada. No vizinho, o velhote sem camisa, violão no braço.
corpo, a cuia na mão do pajé que abre a toalha e a enxuga, lhe dá um — Já dando nela as dores, moço?
copo. Um copo? Um púcaro? Bebeu. A coceira, adeus. — Não ouço.
— E teu banho que te abra a cabeça? Quando queres, vais — Nem nas dores?
Comigo? Só me falta é o tifo pro cabelo. Pra encrespar, o trio. O velho tirou uma nota, emborcou o violão, numa impaciência,
Dalila acende a vela pros santos, um papel na vela e fogo nas foi urinar atrás da touceira. Voltou, de violão no ombro:
formigas. Suspirou: ai que este foi um dia... — O senhor é parente?
66

— Sou, disse Alfredo que entrou. A menina se deixava lamber Girou pelo prado, seguiu pelo Telégrafo, pára na estação do
pelo cachorro. Debaixo do banco a cabeça da boneca. Carregado de Sem Fio que trabalhava. Quero falar com o mundo ou comigo, torre.
embrulhos, fedendo a borracha, carão de carvoeiro, entra o dono da Liga aqui no meu peito, Sem Fio.
casa. Ouve-se um ai rouco lá dentro, rosnou o cachorro. Alfredo saiu. Dá com o Bahiano, o marinheiro do Arsenal, vizinho da Zuzu,
Por onde sumiu Ana, a some-some, já não importa. E estes dias com seu xarão de prata debaixo do braço.
sem ir ao ginásio. De repente se esvazia este afã, aquelas viagens da — Que fazer, meu filho, isto é já uma profissão. Em casa, já
mie, O tudo o mais? Assim escorre no pátio, minando o Ginásio, o nem apago a fornalha esperando desatracar. Toda semana é um
banho de Dalila. próximo atrás do xarão, Se não é pra aniversário, é batizado. Se não é
Caminhou. Parar, mas em que esquina? pra casamento, é posse de diretoria, é colação de grau, é ladainha, é
Neste ponto de mingau, não. Debaixo dessa mesa aí na quarto, conforme os teres da família do finado. Já saiu até em dia de
quitanda, onde jogam dominó, impossível. Vamos espiar ai no rezes. E com ele infalivelmente vai o dono, que o xarão? só eu
barbeiro de porta entreaberta. Bebiam mas sem ela. carrego. Sim que de prata é, de lei, toque, experimente o timbre.
pôs a cabeça no quarto-a-defunto, três mulheres na sala morna. Vendo o metal no escuro? Prata das minhas viagens, dos meus mares,
— Desculpe mas conhecem uma moça por nome Ana? das minhas escalas, meu menino. Daquela navegação toda, ficou este
— Ana, por nome Ana? Ana? Ana, Ana, conheço três Anas. quilate. É o que me deu a Marinha. Me requisitam o xarão? Pois não.
Uma delas é essa a que aqui velamos. Retiro o penhor do baú. Venho que venho bordejando por este litoral,
[115] — Ah, a neta da parteira? A irmã da Dalila? Ah, costuma lá vai o Bahiano com o xarão que já não é mais dele, é de todos. Por
vir por estas bandas, sim. Hoje que inda não veio. Mas que vem, vem. Ser de prata? Pois não. Não me nego. E quanto mais serve, mais prata
A finada era xera dela. Pode que cheguezinho mais tarde, primeiro é soa. Vamos, meu xarão. Olhe, quando tiver uma data, não se acanhe,
por aí puxando brincadeira nalgum quarto de anjo, que anjo nunca bata no Bahiano, xarão às ordens. Agora é a data ali dum meu
escasseia. Mas vem. Olhe, a porta é franca, queira entrar, se sentar, compadre, um carpina. Quer vir conosco. Tome o navio. Mas venha!
não molhe o sereno pra não dizer o contrário, faça a fineza, e espere Na volta, me traga a velha parteira no xarão de prata, seu
sim? Espere ao menos até que chegue outro homem neste quarto, Bahiano.
sim? Tudo aqui, defunto e vivente, é só fêmeo. [116] No sótão da moura a janelita acesa. Quis logo entrar em
— Misericórdia, Filuca! Olha que é um estranho. casa, voltar a bater rua atrás de Ana, Dalila, do próprio sono, esperar a
— Estranho que ele não é, que eu sei, abom! avô, ou sacudir o jasmineiro chamando Esméia. Ninguém nos
D. Filuca, alta e seca, fez muxoxo, abanando por cima do portões. Dos rapazes do canto nem sombra. A Penitenciária no
caixão. Muita mosca em tão pouca flor, em tão zinho defunto. escuro. Por certo, Bina no cubículo, de bruços na esteira — Apaga já
Alfredo esperava. Ouviu, de lá de dentro: dá é já um chá do ipeca. essa lamparina. O restinho do querosene, gasta não — Bina arranha
Chega, espirrando, um rapaz bastante Constipado com um embrulho outra carta.
de café. Alfredo fugiu.
67

Melhor volver ao Prado, tirar do xarão do seu Bahiano a xicra


de chocolate, o dom que o xarão tem. Pega na minha mão, Dalila, me
leva onde é o teu banho.
Mas lá em cima, no sótão, a janelita acesa. É a luz do abajur,
sim, de cabeceira, luz de vigia na cerração, não apagava, não apaga?
Corre até a calçada da taberna, foi parando, descia da janela,
agora apagada, o cabo — ou xarão de prata? — a apanhá-lo. No que
ia subindo, caíam-lhe do bolso as rosas de Ana, a carta de Bina.

[117] Quantos aqui, daquele bando, cortaram o pé? indagava a


D. Graziela, rente da cerca.
De que valiam suas armas, aquela porção-porção de vidro
quebrado minando o quintal Contra o pé dos vadias que pulavam a
cerca. Pisa os Cacos, agacha-se a examiná-los debaixo desta folhagem
de onde escorre um luar de limo, lá fora lá em cima um dia.
Espiou por entre as estacas a rua que era só lama e luar
descendo para um cariazal danado. De moleque nem um só assobio.
Mas veja como estragaram as plantas, esta pimenteira pelada, a
laranjeira, mas veja! os botões comidos, levaram o mamão verde, aqui
obraram, ali tamanho sapo morto e toda a espichada linha de guerra
das formigas, formiga, formiga, formiga. Nem as formigas mordem o
pé deles.
Apanhou a garrafa, juntou folha de jornal, salpica querosene no
caminho das formigas, foi queimando as guerreiras. O fogo lhe
aquece o Colo entreaberto, os dedos crispam-se. Misantanha, lhe dizia
aquela demoniosa quando a via contando, na fazenda, um a um, os
alfinetes da almofada, os botões no balaio, até dum grampo dava
falta. Misantanha. E aqui nenhum dos diabos Cortou o pé. Ninguém
caiu da cerca, nem um de boca em cima deste caco pontudo, este, por
exemplo, afiado e ensinado para entrar fundo. Ia pedir no
68

Acampamento uns filhos de cascavel, criá-los nesta cerca, [118] dos cacos de vidro, espiando a rua lamacenta. As plantas roçam-lhe as
senão um dia o bando entra na despensa, roubam a bateria de nádegas: cachorra. Foi o que escutou, o raio derruba o taperebazeiro,
alumínio, arrombam a cristaleira, arrancam o cortinado, vão de janela mata dezesseis porcos, escancara a porta: cachorra! que só ela ouviu,
empinar seus papagaios, abrir o chafariz deles sobre o passeio. Tanto, desabava a trovoada.
tanto que pediu à Dudu: olho no quintal, que moleque é o que só dá Nesta sombra, neste quintal nem um caco de vidro faiscou para
nessa rua do fundo. Olhou? O menos que ela fez foi fechar o olho, o lhe dizer que sangrou um pé de menino. Os cacos correm é aqui por
quintal virou pasto de moleque, agora eu que torça a orelha, avaliando dentro, pelo peito, roem a garganta ah, [119] pudesse ah, pudesse com
o prejuízo. Agora a zeladora cisca de casa, arrastando consigo a o meu ferro de cova, com o punhal de cabo de ouro da mamãe, retirar
sobrinha do peito e o adotivo, aquele tamanho cairão, ai que este até debaixo dos sete palmos aquela voz que lhe cuspiu, o sussurro:
francês aprendeu aqui em casa, nesta casa. (Entra, D. Marta. Alfredo, cachorra, debaixo do raio, do trovão, com os porcos mortos, o
chegou a professora.) E o quintal no pé dos demônios. Serviu caco de taperebazeiro abatido, a porta escancarada. Então que deu pelos
vidro? Preferível cobra. Dudu, de ferro e goma nos uniformes do campos uma tal noite. Lá no Jandiá a ofensa de bubuia, a água bem
adotivo, ou atrás de saber Onde as duas sobrinhas perderam o de cada dormindo, amanheceu de bubuia, pendurou-se no arco-íris é um dos
uma delas, deu as costas ao quintal que virou latrina deles. Também pedaços do taperebazeiro, abre um dos porcos mortos é a ofensa
cismo que a vizinha da esquerda, a pretinha, essa esfogueteada do saindo da tripa, o pica-pau pregando o eco, e arriscou ver no quarto,
portão, pule a cerca e limpe a laranjeira. Se assem, se assem aí na no selim, os salpicos do sangue, o feitio daquele corpo suado,
labareda, formiga do cão, que se pudesse ser em mim mesma ia chicoteado, fêmea que só ela, que quanto mais a mãe batia mais o
queimando onde me corre este exaspero, esta espera. Que agora o corpo se ostentava, rosto, peito, barriga, bunda, o feitio bem gerado
vapor ainda manobra e o outro homem, o que se diz tão bem casado, — que é só meu, que tu igual não tens, cachorra. Era o que vinha do
está em Peixe Boi, ali rumina. selim, a danada já sem pele, cada uma roxidão escurecendo as costas,
A nuvem comeu a lua. Escureceu aqui embaixo, escureceu o pé a pisa do relho da mãe. Mas debaixo da surra saltava a mesma
da D. Graziela, o fogo apagou-se, só um resto de papel crepitava, D. menina, aquela, de repente sabendo ler, escrever e contar, respondia
Graziela quebrou a garrafa, espalhou os cacos, pisou no papel tudo na bucha, desembaraço que só visto oh, memória! Num instante
queimado, vou montar uma armadilha. Esperou que clareasse mas fez colegas, mestra, gente grande, vissem nela a de mais cabeça. O
ficou uma escurecência úmida e nem um ar no ar. As plantas escurão que me deu por dentro, com a unha arranhando a parede, a
transpiravam. Melhor fechar Com um muro de pedra e pontas de ouvir os gabas e ter de dizer: sou irmã dela. E a menina, ciente do seu
vidro em cima. A casa ali na sua mão, deserta, escura, atulhada de dom, então que tomou conta, se fez farsola, tome altura, tome altura,
móveis, louça, daquelas vozes que principiaram surdamente, agora juntando cada astúcia, a arteirice em tudo, na pontinha da língua o
saindo de toda parte, vozes: cachorra! cachorra! E era só isto: ca- recitativo e o Substantivo, pinta a saracura, quando se vê lá está a
chorra! Deixou eco pelos tabocais, campos, igarapé, relincho e tropel demônia já tirando os nove na pedra. Em pêlo, nas férias, olha ela na
de éguas, aquela voz, quem não reconhece? Não era da casa fluo era chuva, agarrada ao rabo da bezerra, os cavalos olhando. Vai e volta
da rua nem da cova nem de Camamoro mas desta solidão por cima pelo campo já eivém: o murucizeiro florou! o murucizeiro florou!
69

como se fosse dentro dela; pegava os uruás no chão, um no outro, outra, Uai! Dobra a razão da mãe. Só o ginásio é capaz de arrancar da
cochichando: quem que quer fazer uruá? Quem que quer fazer uruá? mão de Luci o malho. E devagar, um a um, cada um na sua linha,
Sempre muito espiosa das coisas, catando o avesso e o não Felipa ia pontuando a relação:
consentido, atravessa o rio num nadar de lontra, fazendo-se afogada o cabresto
no meio da aninga ou num choramingo assustado: candiru me furou. a espingarda
Candiru me furou. E logo: agora isso... vê lá! Este meu aqui Nosso otrapézio
Senhor lacrou. Se cobria com o couro de Jacaré: jacaré me comendo. a mão do pilão
Jacaré me comendo. Dessa comida gera um. Remava em seco na obabar-se pela cidade
canoa em Seco: adeus, pessoal, que vou que vou me embora pra lá isso tudo o Liceu tira, sim. Desgruda o pé dela do Jandiá.
pras pedras do Moirim onde dorme a pororoca, com os três pretinhos Felipa, a fusca, Felipa, aquela maria xen xen, hoje viúva
no colo, de repente estoura e ali dá peixe que só mina. E no assento donzela. Comendo, comendo coco. Engolia o logro? Soprando o
do balanço, lá em cima cá embaixo, toda escanchada, lá em cima caminho para a princesa, já arrumandinho a mala da viagem. Era só
[120] cá embaixo, desfolhando as coxas. Noite pra o dia o pulo olhar para a princesa: a proa dela em cima da Port Of, o enxoval de
daqueles peitos e a mãe: não sei onde estou que não esfrego nesses interna, solta na cidade, o sete que ia pintar.
teus bicos um caroço de tucumã em brasa que bem precisavas, tu? Tu Não, papai, não atice. Soltar essa lá, Braulino? ralhou a mie, O
és do igapó, tu nasceu de bicho. Era a mãe que resmungava, pai lá fora, no alpendre, embala-se, embala-se, vem a fina, lhe dá a
trombuda. Foi fervendo na mãe a quizília contra a caçula, um cuia de vinho de tucumã, que ela fez (socou, espremeu, peneirou),
rancume, e a caçula, esta, por pago, então que mais malcriada, mais trouxe na cuia para o pai, o [121] vinho até que vermelhudo, doce,
rabo de foguete, já na desasa, pixota, tira o certificado em Cachoeira, que em tudo carregava na doçura, também no sal, salgava ou
eivém para o pé do pai: agora, o Ginásio. apimentava tudo. Uma voz — não foi? — me esfregou malagueta no
Não! me saiu num pigarro, de mim que espiava a peça. Saiu nariz só porque lhe mandei um nome. Fomos tirar a teima atrás do
deste peito, desta goela, destas tripas. Escureci: não! que me tirava a curral. Do dente dela, até hoje, não me saiu a marca aqui do pé do
cabeça, me revolvia aquela secreta, amarga admiração e raiva que eu umbigo. Sim que ela mesma me fechou a ferida pingando leite de
tive sempre pela irmã caçula. Por outro lado era o meu pouco de pião.
desprezo e vexame pela nossa mais velha, a Felipa, a mais fechada de Seca pela cidade, roxura por Belém, um fogo no juízo. Ardendo
cor, muito pele de cavalo, a pixuna da família, cria de fogão, a cercar por um luiz quinze pelas calçadas de Belém, dinheiro haja para a
a caçula de pipo, caribé, chá de apií, almofada e dengo, no seu andar contemplada, que a carne é dela e o osso pra Graziela. Até acabar
de cabra atrás da caçula, ali obediente dela. Luciana? Até mamote — (Como acabou), tirando aquele diploma à sua feição, o saber que lhe
foi pegar da mão do irmão o malho — castrou. coube. Ginásio coisa nenhuma! Mira o rosto da encadeada sobre o
Queria o Ginásio. A mim lograva? Mas deixa estar que eivém álbum de Belém, tira uma linha dela quando abre o jornal e vai direito
Felipa, chuleando a fronha: que mal faz, Graziela, a outra ir e nos cinemas, moda e leilões. O pai, na alpendre, com a cuia do vinho.
saberzinho um pouco? A vez não foi minha nem tua, deixa ser da Não beba, papai, que o que ela temperou no vinho vai amolecer o
70

senhor. Era o que me bulia na goela, digo não digo, o pai mundiado, o rejeita, não sei, nunca fui malfalante. Fosse o pai dela o vaqueiro
vinho ali na cuja adoçado pela ambiciosa, as mãos dela ainda Talismã?
amarelas de tucumã, os caroços joga pros porcos léco! léco! léco! Me diz se espiaste, se me viste saindo e entrando, por demais
léco! como quem diz: olhem, seus capados, quando eu voltar do espiona, perversa no reparar tão miudinho, esmiuçar, quem sabe, teu
Ginásio, quero comer um de vocês com três dedos de toucinho. Do vício, tua ordinareza. Viste? Cada movimento meu, instante por
tucumã lá dentro do alguidar, só a Felipa provou um gole, submissa. instante, vendo quem me fazia de égua debaixo do tabocal, aquelas
O resto azedou, que ninguém mais bebeu. noites de Camamoro, a visagem de cabelo solto pelo curral? A espora
Pois com o não da mãe, o pai levantou da rede: o que tua mãe me entrava no rim. O garanhão levando para as Minas aquela mulher
disse é lei. Saiu ela fugindo para o curral, atrás o Floremundo, o asa dele, um poço de doença, estiveram na Serra de Guaramiranga,
arriada, um selim na mão, o restinho de sol na barba do pai pendurado chegam a Belém, virou, mexeu, e o passo dele e seu galope no rumo
na tranca, o Floremundo escuro, até mais alto, com o selim no ombro. de Camamoro, tão depressa, foi um mês — era um vento no tabocal!
Tirar a caçula de dentro do tabocal naquela noite, ali acuada? Só A museu de cera, lá dele, passando em Belém o carmim na cara e que
o Floremundo a peso de rogo, mas suplicou! A rede dela no quarto só não disfarça a defunta. Por sem vergonha e desespero, corri para a
deixou de embalar tamanho dia quando a Contrariada saltou para o cidade, à tarde puxando o cordão no sobrado. O primo com a sem-
curral, selou o cavalo, aquele retinto, coração na testa, lá se vai pelo sangue em Soure. E foi então o Outro: Estás só? Estás só? O doutor
rastro do diabo, como se fosse desembestando no rumo de Belém, de jasmim lilás. Na mesma hora, de cima do cortinado: Cachorra! Foi
pelo Ginásio adentro. Precisou de novo o Floremundo atrás, a que facilitar, lá debaixo do tabocal, a caçula espiou. Só podia ter sido.
horas! Subiu o alpendre, a cabeça longe, olhando o tabocal: pegava
Era ou não era o meu o pai dela? Igarapé? Bicho? O que a mãe fogo, ateado pela mãe. Agora toda a crepitação, toda a cinza dentro
é, é Menezes, rio e campo conhecem a marca da família. Daquelas dela, o tabocal ardia no quarto, arde aqui no alpendre, o tabocal que
coisas que escutei no alpendre me ficou o causo da D. Adélia no foi mais meu que da outra, ali ardeu meu cadeado. Lembrava aquela
tronco, nua na vista de todo o baile, amarrada pelo marido, um noite, noite seca, a casa dormia, o velho presidia em Cachoeira,
Menezes, o Capitão Edgar. Mas essa, essa mãe, que é minha mãe, Floremundo no retiro (Floremundo suspeitava?). O primo apeia de
Menezes é, é de amarrar [122] marido e ficar diante do marido baeta vermelha, apeia longe, vem vindo, entra no tabocal, trazia es-
grudada no amante, os dois na rede, com o marido no tronco, poras. Aqui, aqui, que é mais agasalhado, mas vá-se embora,
encamboado, castrado. A mãe: te geraste de bicho. mandado do cão, vá-se embora, um relincho me arrepiava, xô,
Mas que bicho, quando? Que desforra, ou culpa, fez nascer a acuraua oh, praga de tanta coruja junta. Talismã, o invisível, nos arma
birra e desestima da mãe contra a mal concebida, que podrice é, o laço?
desate, mãe, abra a janela, isso já é aversão. Suspeita me arrepiou [123] Culpa, culpa aquele dezembro em Muaná, o cão manda o
sempre, ouvindo a mãe falar de bicho, do Jandiá onde a Luciana se primo, que chega, par com ela numa volta pelo largo, os dois pegados
escondia, ali tardes, ali fincada, até chegarem as onças. Tu não és para padrinhos num batismo, era em companhia das moças do Itacuã,
filha de meu pai, que teu semblante diz. A mãe fechou-se, por isso te atrás de casamento, fita faziam muito arraial e baile toda noite,
71

namoravam que enjoava, casavam? E toca, de novo, a cambada das caldo, e aquela avó, toda no tafetá e volta de ouro, na [124] cal|deira
moças para o Itacuã, aquele mofo o ano inteiro nas vinte janelas de de embalo, cabeceando deste e daquele sono. Dançada ou velório,
semente convento, quiririm-quiririm, maré vaza, maré enche, ai! Graziela? Com efeito, a qualquer momentinho, se podia ouvir: acode,
sossega de gemer tanto, inhambu, que te dou um tiro, morcego caindo tragam a cera, depressa, para a nossa vó. No cotoco da estearina
na rede — te lembra da tia Artemis que morreu de uma mordida de derretendo-se no castiçal, o Floremundo acendia o seu mata-rato e ia
morcego no dedo minguinho? — a esgoelação dos cururus, arriou-se tragar na janela ou ver no trapiche o amarradio da sua montaria. Flo-
o forro da capela, um sucuriju saindo de dentro do forno velho, com remundo, pede licença, tira a tua beca, é bom da gente ir. Era a
tanta mutuca e maroim quem que pode? Gente, então só uma Graziela atrás dele, com um grude por dentro da boca, desatando a
dançada. Então inventaram uma dançada. Arma o gramofone, põe a fita do cabelo, tira o pé do sapato. Que foi? A velha bateu o pacau?
manivela, sopra os discos velhos, chama o violão, o seu Xavico do gracejou ele. Não, aquela avô só dá o café quando o mulheral de casa
Mutazinho que sempre dizia: não toco, alejo. Manda no Araquiçaua se casar, uma a uma. Então que sim, te bota abaixo, casa grande,
atrás da requinta e aqui dando corda e dando corda no casa edison, rio comigo dentro, o rio que nos enguia. Então, Graziela, te despede. Lua
de janeiro, está com gogo, lixa a agulha, mas os pares? A muito custo, está sai não sai. la acabar, marcava 11,35 no relojão encardido da
três, e um desimpedido. Quede o bandolim, aquele teu, Graziela? Só varanda que levava horas batendo a hora, quando apitou a Guilherme.
três cavalheiros? Vasqueiro de rapaz este nosso estirão. Que fazer Correm as damas para as janelas — faz sinal com o farol! Faz sinal
com tanta dama? E o Alderico Calandrini, do Ajuruteua, e o Lavico com o farol! — desembarcavam dois doutores da profilaxia que iam
Portal, e o Vitinho do Menino Jesus, sarado numa valsa, e os dois catar cerâmica no lago Arari, um enfermeiro, o piloto, o maquinista,
Bulhosas do Porto Santo? Por carecer de aviso que não foi. Recado, todos papei queimado. O último a subir e a entrar de bota alta e a
carta, empenho, tanto que prometeram, cadê? Não bastante, ainda garrafa de genebra na mão, indagando se podia dançar de gola
chamaram a Graziela. Bem que não veio a outra, a caçula, a come esporte, o primo, aquele bem-te-vi de igreja. Recomeça o cerco de
com os olhos, peiada pela mãe. Bem que também não vieram Feias do Muaná, o mesmo que, tamanho casado, ia esperar as moças saírem da
Cururu, sim que tocavam flauta, mas era então que ficava atulhado de novena, aquele bem-te-vi de igreja. Floremundo, com toda a sua beca,
dama. Floremundo, esse, na sua beca de dia de eleição, se servindo de foi cochilar na montaria. A avô, pra se lazer de sentinela, se embalava
café com beiju de tapioca, conversava com a avó das meninas, vez e que se embalava, rezando.
outra iam tirá-lo, quem disse? Uma delas, a Cota, a do beiço rachado, Do baile para a tabocal foi só o tempo dele ir a Belém, volve no
muito séria: só se aqueles dali do nosso lugarzinho certo. Vamos? Lobato, outra vez desce na Guilherme, pára, de baeta, espora, coça o
Aqueles... Aqueles de lundum chorado quadrilha madrugada adentro cavalo do Mutá a Camamoro, amarra longe, e vem a pé. Até que um
engenho monarquia escravos, o Barão do Arari subindo no trapiche, o noite: já de volta do tabocal, Graziela viu aquela alma fugindo,
padre embuchado num prato de tartaruga, carne de peixe-boi alvaçã, cabelo solto, trepa na porteira, prende o cabelo, Solta o
pendurada na vara ah, aquele tempo, que sim! Vamos no cemitério cabelo, vagueia, igual garça, pelo campo, já está ali no pé do
convidar os cavalheiros? Dançavam umas com as outras, chegou a Jenipapeiro. Qual das duas, agora, entra primeiro em casa? Do primo
requinta, cessa o gramofone, os três cavalheiros já não davam um nem mais distância. Ficou vigiando. Esperou que a alvaçã entrasse. A
72

diaba espiou? De manhã, como não tivesse acontecido. Nem de Papai, bisa o vinho? Mais? Por não ter, que não, que tem.
palavra, olhar, gesto, da Luciana, arisca, nem sinal. Disfarçava, ausentou-se, deu comigo, me pegou bebendo chá de
Numa tarde, levando a cuia de vinho de taperebá para o pai, o buchinha, me olhou certeira mas benfazeja. Sabendo que eu carregava
rosto tão maneiro ela fazia! Deu a cuia, recostou-se na janela: quer no chá de buchinha por crua cisma, aqui, por dentro, a cisma de estar,
que adoce mais? Mais doce? Assim carregada de açúcar. Mas, papai... por obra do primo, gerando um? Fechada estou na mão dela, O pai
Refugou as outras palavras, abriu uma janela, rodou, estalou dedo, repetiu o vinho, faceiro de poder fazer a casa, dizer: tua será, que
abriu a outra janela, [125] vem para o pé do pai, volve para os fundos, todos apreciem teu semblante na janela, Luciana, pois formosura não
receosa da mie, tornou ao velho, então senta-se no soalho, descansa a te falta.
mio no joelho do pai, pensou um pouco, um pouco, então que se — Braulino, que vinho foi esse que te subiu? Haver temos tanto
explica sobre ter coes em Belém. Era ou não era tempo? Escutando no para casa na cidade? Fazer casa lá não é como armar um jirau.
quarto, Graziela sobressalta-se, quis cortar-lhe a palavra, da rede não A caçula entrou, toda inocente. No seu avesso eu lia: a casa,
se mexeu. Lá fora a mãe mandava assinalar os porcos no cercado. Principala, por meu silêncio, olha, olha! E que tu [126] vás passando
Felipa fazia filhós, a caçula aqui dentro só usando astúcia. O pai bem sempre por donzela, por mim... Vai tomando teu chá de buchinha.
que apreciava o vinho, cuidadoso de não manchar a barba, em Entrei e ouvi:
silêncio, inclinado, debaixo da mão dela o joelho e o juízo. A voz de — E tu, que tu acha, Graziela?
Luciana ponteando o seu assunto. Assim num meio segredo, — O senhor que sabe, papai, o senhor que sabe.
incutindo: onde o pai fica quando tem de ir a Belém? Tão que tão mal O que maldei de dizer, não disse, embuchada. Ela se
acomodado pela casa alheia, é ou não é? Gastando em hotel rios. Ou aproveitava, me amordaçava, e até que ela comigo se fazia mais
na barraquinha do Curro, é ou não é? Naquele ovo da tia, poder nem delicada e me doía mais que o bastante.
esticar o braço para enfiar o paletó, me diga que não. Hora de fazer Já na barba do pai pendurava a casa.
casa, enquanto a Questã... Esta casa.
— A Questã se ganha, sim, Isso afianço. Dure anos. A planta, a caçula desenrolou no soalho, corrigia as divisões da
— Impede a casa? Proíbe? Dificulta? O senhor precisa de casa, tão que tão entendida, e isto e aquilo, dona-dona. Só estou que a
representação, Isso não carece? Já tão assim como se era, já hoje já mãe fechasse tão os olhos, Só uma vez deu coice: chega! E enrolou a
não somos? Prosperou-se, não? planta. Toma, Braultino, faz já.
Graziela desgrudou-se da rede, quis gritar: olha que estou te Por mim, foi deixando, fui limpar o meu bandolim.
escutando, cantadeira. Saiu. A mãe subia com a sua tromba, O pai, Esta casa.
mão na barba, arrisca a conversa. A trombuda só esticou o beiço, Por que o Alfredo fala que foi feita em cima dos bailes quando
respondeu atravessado, empertigou-se com a instante visão da casa o alicerce, agora, é aquela sepultura?
em Belém, como aquela, em Batista Campos, dos Taveiras, aquela, Mas sempre me dei respeito, O traquejo, nunca perdi. Vivendo
em São Jerônimo, do Coutinho, a outra, em Nazaré, do Coronel trivial, ninguém me acusa de uma inconveniência pública. Nem em
Cazuza. A caçula: Muaná nem no baile deixei rabo de palha. Sem mais nem menos,
73

rente do tabocal, aquele guarda-noturno de saia. Ou não foi? Ou não Abriu as janelas do corredor Quem no tabocal com Luciana? Vá
era? Era, que aquela palavra — cachorra — tinha um alvo. ver que o primo? Não duvidar. Capaz. Ou cegueira da mãe, na
A caçula? Preferiu o espalhafato? Cobiçou o desamparo, regale- invenção do impossível; a calorenta, entre as tabocas, ai que está
se. Era aquela queda pelo proibido, para ir embora, feita para o quente, de supetão tira a roupa e nisto a mãe? A mãe não desengasga.
desafio, ou fui eu que lhe aticei o mundo, n 0 que me viu ali descobre o E a outra, riscada da família, nunca mais em nossas bocas, É assim
caminho, quem sabe encontrada com um porco, um macho de onça, tão funda esta Cidade? Aqui estou na casa dela, incutindo respeito,
um amansador de poldra? Parece que a todo momento a mãe esperava sobre os sete palmos de silêncio. Dudu, se gabando de ver que as duas
o acontecido, se bem que a trouxesse debaixo da rédea, lhe rezando o Sobrinhas cumprem a profecia, sai de casa, e com a Nini e com o
padre-nosso. A mãe? Juro que deu graças. A espúria carregava-lhe a Alfredo — os olhos deste em cima de mim! ou eram os meus? E
consciência, era de bicho, de igapó, do homem que um dia — Nossa assim sem ninguém fico, sozinha, os moleques pela cerca, ali pela
Senhora não me arranque a língua, que não sei ao certo — dentista ou frente os flagelados. Vou contratar uma dúzia de cascavéis, eletrifico
não, passa pela fazenda, pernoita, o pai na cidade, e gera-se assim de o quintal. Recebo, sim, de lustre aceso, as visitas, e dos dois um: o
supetão a caçula, noutro dia, bem cedo, o diabo nem adeus. Ai mundo advogado da família comendo as boiadas, agora em Peixe Boi. Ou o
mundo quem não sabe nadar vai ao fundo. comandante, ainda no cais, primeiro vai adorar aquela santa, a sua
Quando o raio arromba a porta, Luciana aparece nascida de senhora, senhora de uma tal santidade que serve a um batalhão,
novo, assim alta, assim insolente, dizendo: cachorra, bem baixo. A Depois apanha o Curro e vem, vem esta noite?
mãe rezava no oratório, os porcos fulminados. Do corpo de Luciana, Não Sou desta casa, diz a Felipa. Desta casa não quero nem
tão batido, saía um clareúme, sabe lá, da hora, daquele minuto, uma perna manca, quero o meu retiro, falou o Floremundo, depois do
daquela vertigem. E uma inocência [127] em toda ela transpirou, sim, papel que fez no Foro. Felipa, pobre pixuna. Tanto virou, mexeu, pelo
Acuei-me no quarto, embuçada no medo, tira de dentro da mala o comércio e sem nada a seu gosto; que entrou errado na loja dos anjos,
terço, o beiço tremia, como se a pique de correr e ajoelhar-me diante só roupa pra anjo, asa, túnica, sandália, enfeite, para os anjos de
da irmã ali com carne viva, no selim. Não lhe dei um gole d’água. pastorinha, missa e procissão, entrou, se deu conta? foi olhando, a
Passa a trovoada, o céu descansa, escorria a chuva, os bezerros se sobrancelha alta, atrás do seu enxoval.
escouceavam no atoleiro, Nem a casa abaixo nem a família reduzida a — De anjo, Felipa? indagou a Dudu.
cinza, Luciana, essa, pulou no mundo. [128] Virou-se a noiva, trancando a Cara, compra um par de
Sinal que Deus me aprovou, falou a mãe sobre o raio. O braço asas e sai porta afora, guardou as asas na cômoda. Do enxoval só as
do Satanás salvou-a do raio, Pensou Graziela. E nesse raio aquela voz asas de anjo. Ou queria ser noiva pelas duas, ela e a caçula, atrás do
que a surrava: cachorra. A noite é um espelho em que os rostos enxoval que era da outra? Chegava das lojas, depois do quarto dia,
vêm e vão, o primo ao pé da pia, o doutor no Júri, o rabecão à porta Dudu com ela, quando recebe o aviso. O noivo, no hospital, por um
do necrotério, o comandante na casa, o padre no Arcebispado atrás da fio.
gata pelos degraus desvairada. — D. Felipa chega de escolher enxoval, que agora o pano que
lhe peço que lhe cubra é preto, por mim. Me chame um padre, o
74

escrivão, o dr. Gurjel. Se case, já, comigo, lhe peço, quero ir Esfolada no selim, mas rainha. Baixo, bem baixo, num escarro, aquela
sossegado. palavra, ali comendo relho, gloriosa no selim. Provável, noites e
Felipa enviuvava, donzela-donzela, com aquela ferida na perna noites acompanhava aquele meu cinema no tabocal. Sentada na
que sempre escondia debaixo da folha do amor-crescido, a meia por tranca, de branco, tão no ar ao pé das vacas que os garrotes cobriam,
cima. Uns dias andou meia variada, abriu a cômoda, tirou as asas, no que viu, foi, quem duvida? atalha no campo o cavalheiro e este
folheou figurino, duas alianças comprou e enfiou. A mais lhe deu um num estonteio e ela se cobrindo com a baeta, pelo coice do caim
dordolho. Bens do marido, agora dela, só umas roças no Japiim no derrubada, no mesmo arpão? Com certeza, com certeza... Não? Até
Arienga. Dela? Cadê escritura? Roçado no puro devoluto, feito. num que combinaram no tabocal também, que Deus não me castigue.
sertão. Uns sacos, a balança, pesos, o metro, um resto de calomelano, Duvidam? Então, então, assim supondo, ou decerto, quem sabe? a
um e outro rato, foi o que Felipa encontrou na Casa Comercial Divina velha pega, e puxa a caça a relho pelo chão, vápote! vápote! sem sair
Providência com três cachorros ganindo de pulga e fome, o soalho da um ai, só o resfolego da velha, som um só gemido, só o resfolego da
cozinha arriando sobre a maré. E mais: seis contos e seiscentos e velha, qual que doía na castigada! Se toda era daquele exato momento
oitenta que o em que usufruía, e muito mais que eu, o dito instante, juro, o fervor
J. J. Pires, da 15 de Novembro, lhe cobrou no sétimo dia. Viúva. nela quando arpoada era ou não era mais? Que descanse a sua alma.
Agora em Camamoro, está de viagem para o Japiim, ver o que faz das Fecha as janelas, espia pela varanda, entra na alcova, abre o
roças. cortinado, estira-se na cama. Jasmim, neste travesseiro? Porém é o
O Comandante? Ainda manobra o navio, atracou, primeiro vai cochicho, o soprar das noites já antigo: só aqui, prima, debaixo destas
na mulher, vem a que horas? tabocas, em cima desta palha? Nisto em que um pio, um vaga-lume,
E aqui esta, ainda hoje, ou até hoje, e para sempre, é mais à um maroim, tudo assusta mais? Te aguardo em Belém, parente, lá,
espera do cavalheiro do Itacuã; a esta hora, na São Jerônimo, a dele, a sim, num sobradinho da Doutor Assis, te digo qual, vais? Do Mutá a
casada, escorre as suas ceras diante do oratório, suplicando cor para a este tabocal olha que é um cansa cavalo, não contando o risco, teu
cara, sangue para as veias. O marido cova-se noutra, que desta, deste nome de moça, minha responsabilidade, e tanta cobra. Lá em Belém é
cocho no tabocal saiu farto, com outra acostelou-se. mais cristão, não erra, só descer do Curro, atravessa o largo do
Tudo fiz para não perder a bença, não perdi. Na bença, quem Palácio, é o 48, puxa o cordão da porta embaixo, abre. Fingi ali um
cuspiu, eu? Cautelas valem um tesouro. Pois foi tua sorte, beldade, escritório de marchantaria, lá cima, atrás do escritório, com
agora Deus te salve, tudo não indicava? Assanhou-se, não se deu reposteiro, pia, os paramentos, é a cama.
cobro? Comeu galinha choca, fome canina te deu, pelo mundo, por — Está muito enganado, agora isso... Por quem me toma?
esta cidade. Entra no relho, ensangüenta o selim, roda no redemoinho, Sempre a embaraçada, a envergonhada, guardando conveniê-
a velha de tanto te surrar fartou-se. A surrada, sem fartar-se, ncia, ouvia desouvia, fazendo cerimônia, aquele escritório serve a
saboreando a esfolação. Tudo não indicava? O mundo te engoliu os outra que só lhe sirva de costela a tanto a hora, estava muito do
assanhos. Lá vai o rabecão, de quem a culpa? Aquilo me disseste, enganado, agora isso... axi. Um instante suou para ofender-se ou
baixo, a goela seca, em vez de água, me cochichas: [129] cachor|ra. chorar, só suou, fez uns muxoxos, cumpra tudo com suada indolência,
75

ali chocha, morna, de joelho em cima, montada pelo cavalo, que da carne, dança com a amarelona dele, agora mais opada, um rosto
esperava? Um pouco dar-se por frouxidão ou desvalia, as mamas que é só sebo, no Pará Clube. Dele só o convite para a Doutor Assis,
pingando suor, ouvindo: Doutor Assis. No escritório o bronze Sonho o chatô. Dele o coice que a varava e nem se debatia, fofa, ronceira,
de Ícaro, a pia, a estampa da Esfinge, aquelas fotografias imorais na servida, era só chegar na sua rede rezava. Porém uma quarta-feira,
[130] gaveta da cômoda. (Em menina, em Cachoeira, tocou recreio desce do bonde, primeiro se benzeu nas Mercês, ficou parada, parada
eivém a Alzirinha Pantoja tirando de dentro do peito uns postais. Mas na rua e eis se voltou para o homem que carregava um espelho no
ah! quem te deu? quem te trouxe ah! correm as duas para a sentina, e qual se via subitamente de corpo inteiro, ali descoberta, ali refletido o
via, revia, se regalava, a outra sobressaltada, anda anda, Graziela, que mais íntimo dela, valei-me, entrou no largo do Palácio, faz um rodeio,
eivém gente). Por onde andavam aqueles postais arrancados da mão estanca; pendurada nos badalos velhos da igreja, a donzela seca da
pelo Chico Ervelhosa? E postais de Paris, o primo andou na França, Santa Alexandre soprava o pó dos santos, a Sé ainda na [131] sesta,
frases sabia de cor: Paris... Paris a santa, Paris a pecadora, ah tes agora a barata passeia pelo reposteiro, vão cobrir-se os dois de muito
sourires d’août, tes magasins, tes arbres... o primo cochichava, mofo. Sino, mosca, morcego, mormaço. Está muito enganado. Puxou
carregado de viagens, esteve na Terra Santa. Na Doutor Assis te o cordão, puxou, puxou, não abre, e lá da janela a voz do marchante
mostro os meus postais, te dou Paris. Aqui neste tabocal por toda a apressada: vá-se embora, vê-se embora. Estava em conferência, em
vida, não. Aqui neste bafo morno de estrume e cocho, em pleno pasto, reunião, embora, embora, e a varrida entrou na Sé, dobrou-se de
vá ver a jararaca pelos nós da vara, te apaga, vaga-lume, o tabocal joelho, lho doía a barriga, quis vomitar, lá do altar-mor era o espelho,
vergando maciço sobre as palhas, eivém os porcos, dá formiga, dá aquele, que o homem carregava. Foi saltar, de lua, por cima da corda
caba, dá rastro de onça, Santa Bárbara, como relampeia. Olha aí fora que amarrava o cavalo, um mal peguei? Ou também com o meu
o longe, lá fora, vem pampeiro. As esporas batiam. Parece que incômodo passei por cima do embuá. Será? Que mal peguei?
acenderam uma luz na cozinha? Vá embora? Eu, esta? Pois o primo há de vir correndo a meus
Que café ele me deu que foi beber, caí? E contam, contavam pés, raso e cego. Teu castigo, espera um pouco. Corre, apanha o cacau
que ele, menino, batendo com o pé, quero ser padre, quero ser padre, maduro, bateu bateu os bagos, faz geléia, e espera que chegue de
me mandem já-já pro seminário, era só o que dizia. Mandaram. Quis Marajó o compadre Apolinário com a encomenda. Não custou,
ser padre, quis? E dele faltava sempre o que ela não sabia pedir ou chegou. Se fechou no quarto, finca a agulha no miolo do boto, e só o
provocar, faltou que fosse assim um passarzinho a mão pela ponta do que resta do miolo no ouvido da agulha é o bastante para o tempero
queixo, a coceira, mas bem devagarinho, atrás da orelha, só o mal da geléia. Despacha o presente para o primo.
passar, saindo de um sentimento miúdo miúdo que fosse, alisasse, Comeu da geléia? Ou foi só a mulher dele?
sossegasse, como quem diz: dormezinho um pouco. Não esse saltar Ou a dose foi de menos? Demais não foi que senão desvairava o
em cima da galinha, esse dente no beiço, o beliscão — seu malino! — homem. Queria ele a seu pé mas não desvairado.
essa unha na espinha — mas seu bruto... — esse descer do cavalo — Ou o compadre Apolinário, em vez do miolo próprio, trouxe um
eivém, meu Deus — já em pêlo. Não demora salta correndo, monta, de boi? Arrancada do pente fino (cisma de lêndea) quede tempo de
flecha o galope, amanhece na cidade, sai no jornal discutindo preços enrolar o cabelo? a modo de um azeite pelo corpo, e entrou ele, por
76

um descuido a porta da rua estava só encostada, entrou ele, aquele — Não me vá algum estudantinho deste subúrbio limpar o
manga-de-arminho no Júri, o dedo no ar em nome do P.R.F. na boneco dele nesta colcha. Deixe de cerimônia. Que tal o ginasiano?
Câmara, grão-mestre da maçonaria, de opa nas procissões, orador no Não te tenta?
banquete ao Bispo, manda chamar a Magá da Rui Barbosa para fazer — Doutor, olhe lá, não tire graça.
a tartaruga em honra do cônsul da França. Estás só? — Aqui passou novilho, minha flor.
O nosso advogado. — Doutor, a nossa Questão. Pelo amor que o senhor tem na sua
Solto na alcova, rola na língua: Yo soy como el pobre cysne que senhora, me diga, quando?
canta quando se muere. Chegou ver no Teatro da Paz a Pavlova. E Aqui o advogado se empina no propósito de dizer: não é lugar
tudo foi despencando e o viu levantar-se, içou a cabeça, conserta o nem vez de tocar no nome da minha senhora.
colarinho, a sua autoridade: já fio eras mais? como logrado. Não eras — Então é por isso... Por isso que o teu irmão... E eu comendo
mais? Encoberta? E num ar de Júri: quem? Um olhar de escândalo, milho. Até aquele teu irmão! Aquele Mané Xen Xen. A atrever-se, a
ferido o brio e a esperteza. Não eras? Desde quando? Disfarça o rego- pedir explicação. Instigado pela irmã? Foste tu? Como se a Questã
zijo, enxugando o cachaço. Como foi? Gomo se fosse denunciar ao não fosse do pai.
pai dela. Quem? O riso dele, o sinal de cumplicidade, o espelho — Mas meu irmão é que sabe o gado que embarca, doutor.
gravava, os dentes cortavam o espelho. Apanhou a pasta, mal não é — Que tenho eu com o gado que embarca? Não é teu pai que
que faça parte dos honorários, [132] uma e outra tarde, vale. Ocasião sustenta a Questã no Foro de Belém? Não é teu pai que recorre a um
que houvesse, voltava, galo rouco de jasmim lilás, charuto e pasta, advogado para defender seus direitos, ou pelo menos, o que julga
babando nos travesseiros da alcova. como direitos? Ora essa! Instigou, não foi? E quem, quem que
Agora está no Peixe Boi jogando trinta-e-um com a consorte instiga...
que arma o busto da virtude, a cinta matrimonial com que ele sugiga a — Então, doutor, chega. Enterrou-se o assunto.
gordura dela. Dali corre para o banho, troca de jasmim lilás e assim — Pois o teu irmão! Pois o seu Floremundo Mané Xen Xen!
de pasta e guarda-chuva, assalta esta alcova e cobra nos meus quartos Aquele caxingô de colarinho. Dei-lhe um grito. Ele avançou ou fez
um dos seus honorários. que avançou de guarda-chuva, no que dei um passo ao encontro dele,
— E a Questão, doutor? o escrivão me agarra pelas cosias — que é isso, doutor — e todo o
— Questão, não. Questã. Indo. Foro acode... Esperem, digo [133] eu. Quero ver até onde chega a
— Mas só indo, doutor? Não chega? fanfarra. Capabode, não toque no homem, leve o homem por bem...
— Minha filha, isto é momento? Eu e teu pai nos entendemos. Aquele Mané Xen Xen! Como se de tantos inventários grandes não
— Mas quantos anos, doutor! tenha sido ou o advogado!
— Um cheirinho nesta cama, de jasmim... Quem sabe... Quem — Mas o nosso não é inventário, o doutor sabe. Estamos ainda
sabe... Confessa? vivos. Meu pai, graças a Deus...
— Quando decide a questão, doutor? — Vivo? Morrendo agarrado ao cós das raparigas? A barba do
imperador na entreperna delas?
77

— Doutor! o pomboca, tira uma guia pra ele entrar no Alienados, O Capabode
— Sabia que aquela zinha das cartas não escrevia as cartas? Era acomodou a sua nobre mercadoria na mão do seu secretário, um
outra que escrevia, fazia os pedidos por conta própria e cobrava da barrigudinho, a verminose em pessoa, e foi levando a jeito o
amante dele, pedindo uma repartição dos regalos. Até as palhas da malcriado, sempre por bem, até deixá-lo no Ver-o-Peso. Para isso o
barraca. Um milheiro para a escrivã. Capabode é bem mandado. Não conhece? Um que anda por lá, pelo
— Não quero saber, doutor. O senhor está é falando muito. pátio e corredores, vendendo revistas imorais, anedotas de Bocage e a
Adivinhando chuva? Bíblia. Pajeia a amante do juiz Alvim e é, tempo de São João, caçador
— Pois o Mané Xen Xen! Avançasse com o guarda-chuva. Era do Rouxinol. O nosso Capabode levou o rebelado e depositou a carga
com esta pedra, esta do anel que ele quis injuriar, este rubi, sim, que no convés de uma canoa do Arari. Voltou me dizendo da figura dele,
lhe deixaria marca no nariz, um rombinho para lembrar-lhe a o queixo por cima da doca num ar de quem rogava monstra praga a
imunidade de um deputado, a reputação de um advogado. O seu pai, esta cidade. O Capabode passou a contar pelo Foro, subiu na Câmara,
coitado, certo dos seus compromissos comigo, no que sabe, derrete-se contando das cartas da rapariga do teu pai, da ida de vocês no
todo, corre a mandar aquele secretário lá de Cachoeira, o Major Arcebispado, a diligência do Laudelino mudando do Marco a toque
Alberto, a me pedir desculpas num ofício em que se arrasta a meus de caixa a costela do nosso Imperador, carregando com ela para a
pés. Tem gramática aquele Major. Com este rubi! barraca de um compadre dele lá nas baixas da Cremação. Ou da
Fazia correr o rubi pela anca da estatelada, ora o Floremundo Castelo Branco, não me lembrando bem. Teu pai! Teu pai! Cada fio
Mané Xen Xen! A Questã? O tempo que exigia, o tempo que exigia! daquela barba está na conta do diabo. Chamei o Capabode: cala-te
E de repente aquele de gogó mole lhe aparecendo de agravado, que te casso o comércio. Cuida da tua mercadoria. Bons fregueses
tentando um escândalo em pleno Foro. dele são os juizes, os desembargadores, todo o Legislativo. Muitas
— Só estou é o meu desbrio, doutor, o meu... vezes, de dentro da Escritura Sagrada, tira postais obscenos,
O doutor esfregou o rubi num sinal dela: explicando: postais do Rei Salomão. A Brasiliana comprou dele uma
— Chamei a polícia? Foi bem defronte do quarto oficio. Bíblia mas daquelas revistas nunca, nem daqueles cartões. Em minha
Mandei atuá-lo? Me prevaleci? Ó Capabode, leva esse homem pra casa, porquera semelhante não entra, disse ela, levando um pacote de
debaixo das mangueiras, leva. Capabode, depois, veio me contar que contrabando para o Presidente da Câmara. Capabode é também
o suposto agravado ficou lá em cima dum toldo de canoa no Ver-o-- especialista em arranjar ovo choco quando queremos, por política,
Peso, ali espichado, só, de guarda-chuva, gravata embalada na mão, jogar num juiz, num jornalista, num qualquer contrário. Ele é bem
feito um Antônio Conselheiro, tirada a barba. Varia um pouco aquele digno de nosso Foro, aquele cano de esgoto, aquele pardieiro infecto.
teu irmão? Varia? Costuma beber? O casarão dá idéia mesma da nossa justiça: todo aluído, todo
Graziela, enterrada no travesseiro, o rubi pelas cadeiras, bate o esburacado, o chão mosaicado coberto de pó e pira. Lá em cima é o
pé contra as moscas, valei-me, Nossa Senhora da Cabeça. gabinete do Intendente repleto de pedintes de emprego e aduladores a
— Sou de bom bofe. Não me prevaleci para desagravar-me do olharem o Maestro Carlos Gomes morrendo no quadro. Também lá a
desacato. Fiz foi chamar o Capabode: me faz este serviço, me carrega Limpeza Pública onde só limpo é o Diretor, o lavares, que é aquela
78

estampa, empoado, estratado, sempre de branco. O resto do chiqueiro De pé, chapéu na cabeça, guarda-chuva, pasta e pigarro que o
é a Câmara e o Tribunal. Um dia lá todos nós desabamos. restitui à decência, um pouco ofegante. Fecha O jaquetão, assoa-se,
Graziela, inerte, ouve o cochicho: cachorra. reassumindo austeridade, contempla esta vagabunda na cama, atolada
[135] — E sobre aquilo... Também adverti o Capabode, Rá! rios panos, pé de fora, o calo seco do calcanhar amarelo, o grampo
Não me digas, minha filha, que estás te ofendendo. Tua família? fugindo pela ponta do lençol, virada no chão a chinela ordinária.
Primeiro vocês deviam ser mais cristãos no caso da caçula. Foi — Não se incomoda que lhe traga uma sandália?
atirada às feras, às feras, A Questã vale mais. Que o que fizeram com A de bruços não se mexia, suando nos lençóis.
a pequena, que diabo, tem paciência! — Uma sandália chic. Essa que usa, sua unha-de-fome, jogue
— O senhor aprovou a nossa decisão. no valão da esquina, aquele abismo, de que fala a Madame Brasiliana.
— Como advogado da família, tinha eu outra conduta? Nada Uma sandália. Me deixe tomar a medida do pé.
mais fiz que pôr o carimbo, os fatos consumados, a velha rangia os A de bruços nem se mexia.
dentes... Mas que diabo! — O Capabode será o portador.
O rir dele, o rubi, ela esquiva-se, revolve-se nos panos. [136] Cachorra, e vinha a confidência de baixo, debaixo do
— Doutor, me faça uma caridade, por amor de sua senhora, se soalho, o cochicho, e ouvia o baforar aqui em cima, o ofego do doutor
vista e vá. que dá agora uma volta pela alcova, tossindo sobre a janela da
— Tanto que te dói? varanda. Cachorra, O cochicho corre-lhe aqui debaixo dos panos,
Revira o travesseiro: no Júri, Maçonaria, Associação Comercial, pelas tripas, mosca por dentro zumbindo. Bateram.
sessão do Tribunal, jantar na fragata inglesa, aula da Faculdade, Era o cobrador da farmácia, o filho do seu Josias, magriço,
parada militar, é aquele mesmo de arminho, condecoração, fita de espinhento, de bicicleta, cobrando duro a todo minuto pelo bairro.
irmandade, casaca e jasmim lilás. Mas aqui dentro vomitando Foro, — Me deixa soprar nas tuas costas a cinza deste meu charuto
Política, Igreja, família, consideração pública. Esta hora bebe leite em pra te livrar da visagem. Ela veio na sola do meu sapato. A caçula te
Peixe-Boi, joga o trinta e um com aquela, a dele, Deus me perdoe, espia cá debaixo da cama. Mas a sandália, que tal?
que foi nada mais do que a mais marafona da Cristal. Ao Júri vou — O senhor aqui ainda? Não foi?
ainda, sim, pelos meus réus pobres mas também para prestigiar a — Tive que te passar um telegrama.
instituição. Já escasseiam oradores. E dos lençóis, do travesseiro o “saia”, “saia”, sufocado.
Fica o vômito no leito, por cima de mim, escorrendo pelos Enxugou-se, o corpo a modo fumegava, pareciam que andavam
móveis, Tem que chamar os portugueses para baldear o soalho, no telhado? Menino atrás de papagaio? Cachorra, repetia-se. Até que
desinfetar a latrina — saia, saia já daqui, doutor, saia já, me deixe o saltasse do forro, descesse pelo cortinado, espantando as moscas,
quanto antes senão vai me abrir por todo o corpo uma bexiga, só de aquele rosto, o sol lambendo-lhe a nuca, como no trapézio, vai em
me roçar no senhor, no seu rubi, que mais imunda do que estou já é cima vai em baixo (pára com esse trapézio, varada!). A mesma do
impossível. selim atravessando o raio, cuspindo: cachorra.
— Doutor, se suma, mea cabeça roda.
79

Debaixo dos panos, de barriga, como afogado no fundo. de, D. Brasiliana, eu sei a minha cor, a sacudir-se, parecendo mais
— É verdade, a barriga? Nunca? Ou aquela sua tia, ar de negra no crepom canário. D. Brasiliana atira-lhe a serpentina, dá boa-
santinha, que anda tombando pela rua atrás das notas, aquela é que tarde ao homem que vem tocando os zebus; parados defronte da
tece teus anjinhos? Te tece? Aquela sua tiat A tia? Tudo em família? taberna, os três carros buzinavam. É a vala! É a vala! Nem um carro
É? passa! Cuidado com os zebus! Ninguém nem Deus entope a vala!
Debaixo do travesseiro, o punhal de cabo de ouro da nossa mãe. Esta aqui engole tudo, um dia se despencou goela adentro um zebu!
A mosca. O riso do primo na marchantaria. O fio de voz da parteira — Fingiam horror os mascarados em cima da capota, os zebus
no escuro atrás das netas. passavam alvejados pelas lança-perfumes. O intérprete assesta o binó-
— É? culo para o sótão. E daquele — um alto — cuidado com o cesto,
— Sou castrada, me castraram. Capabode! — de quimono, cabeça de dragão, sai do carro, dá ordem,
Ouve o doutor acender o fósforo, o sopro, o assoar-se. logo todos a pé para aquele número da José Pio, assaltam a casa a
— Que o Diabo te encubra sempre, galharda. Bato a porta? peso de rufo, confete, pistão, trombone e uns pratos. Olha só o Cesto
Galharda, a palavra dele, a invenção dele, galharda, quando se das bebidas, credo, cochichava a Esméia no portão debaixo do
impacientava, galharda. Que que então deu no Floremundo para jasmineiro, o Alfredo na calçada. Lá dentro o Coronel é apanhado de
atrever-se, que tinha de cobrar a Questã, de meter o bico no Foro, pijama, tremia a cristaleira. — Jovita, o Dr. Gurjel, sai do quarto,
puxar escândalo? Mais por desespero, por não encontrar a irmã caçula agrada os festejantes. Felipa escapou-se pela cerca onde, ao pé do
que ocultamente procurava, com quem queria se ligar escondido, formigueiro, se refugiou o seu Floremundo bebendo seu chá de
aposto, aquele [137] murcho enrabichado pela mana, era a Nossa solidônia. O assustado varou casa, as damas enfiam a Graziela na
Senhora de Nazaré no Céu e a caçula na terra, então que o anzol te cobrinha. Aqui está a sua sandália, calce. Entra, entra, menina! o
fisgue, bicho besta. quimono, cabeça de dragão, atracou a cintura da embaraçada: posso
No que rompe aquele carnaval, a mãe se tranca no quarto com lhe atestar, Graziela, que o que trouxe aqui pra sua casa é só moça, só
as cartas da outra, aparecem de capota aberta os três carros defronte moça, de três vinténs inteiros, cochichava-lhe, espirrando-lhe lança-
da taberna. Brasiliana, de Rainha de Sabá, debruça-se na janelinha do perfume no pescoço e colo, calce a sandália, [138] tudo aqui é
sótão, sobre a calçada onde recitava inglês com uma garrafa na mão, família. Tudo aqui é do Governo. Graziela regougando: por que não
binóculo no bolso, o intérprete do Hildebrand. Os carros abertos. Os são suas filhas? Por que não é a sua senhora? E quem jurava que não
carros daqueles senhores, pelo visto, só pessoas do Governo. Carros fosse, pela mão do doutor, aquela de mau viver, exato aqui entrando
com foliões para um assustado mas onde? Neste perímetro? Na de máscara? Afinal quem são, nem Uma vez tiram a máscara e
Brasiliana? Cantando numa boca de gramofone, um arlequim de sempre nesses termos? Todos num vozerio trombone no meio, qual
máscara roxa. Alfredo espiava na esquina: na Brasiliana? Eivém a delas ela? colombina? sultana? dragoa? Abre o conhaque, Capabode.
Esméia para ver os carros, estofada de crepom, o carmim queimando- Lá fora o sereninho debaixo do chuvisco, os obrigados da
lhe o rosto, ventarola, a figa da avó. — Tás a miss da José Pio, Penitenciária com as suas máscaras e fantasias de doença, fome e
morena — Esméia espichou-se para o sótão: se diz morena, me ofen- flagelo, apanhavam bagana e miravam o lustre cheio de serpentina.
80

Alfredo entrou num instante: o Coronel Braulino num paletó sobre o — Meu filho já vai zinho enxergando as letras, professor? O
pijama, apreciava, bem menino nos olhos, muito homenageado, fa- senhor não estranha que eu estejazinho lhe pedindo uma daquelas
ceiro na barba salpicada de confete. Foi dar dez horas acaba a garrafas vazias da festa, do assustado? É para o meu fluido, professor.
pantomima. No que todos saíram ficou diante da casa aquele mefisto Eivém do sono, nos seus trapos, que ganham agora, no
bêbedo berrando contra o Dr. Gurjel: vai deixar o senhor, Coronel, amanhecer, um luxo, a quase desnuda, um pouco ainda adormecida,
roendo penico ao pé da aninga! me deve um parecer! Nunca entendeu nascendo da jaqueira, veio, abriu uma jaca para ele. Ao menos as asas
de hermenêutica! Um bucéfalo’ Ratazana do Foro! Graziela fechava a de anjo da D. Felipa nesse ombro, cobrindo-lhe o colo. As asas de
casa. Esméia, debaixo do jasmineiro, puxava as serpentinas que anjo da O. Felipa. Ou quatro e quinhentos para os três metros de chita
ficavam na sacada. Alfredo corre a acudir o mefisto. Porca Prenha! no Tufi do Reduto, Quatro e quinhentos. Aqui no bolso só mil e
alguém gritou. Alfredo reconhece o gritador: era o Caralonge, da trezentos. E olhe que chitinha da bem ordinária. Dá na altura de Zuzu
Passagem dos Inocentes, instigando os meninos que traziam na ponta o manto, aquele, da Nossa Senhora da Sé? A jaca sabe ao sono dela,
da vara um sapo morto. Mefisto vomitava na porta dos Boaventura, gomo a gomo. Lá fora no azul bem leve o verde da jaqueira
Porca Prenha! Porca Prenha! Alfredo levou o Porca Prenha até a carregada. Alfredo corre e traz de casa duas garrafas para o fluido. A
taberna, ali o deixa sobre uns sacos, mefisto enxovalhado, a Rainha quase desnuda, agora atrás do jirau tapado pelas palhas de inajá, toma
de Sabá passando por cima dele para vender no balcão um elixir banho de cuia. Lá na corda de envira os trapos no sol pareciam um
paregórico. Da taberna a Rainha não saía, se fantasiou por simples bordado, Com pouco açúcar este chá, depois daquele Reino lá no
fantasiar-se nem serenou o assustado, lança-perfume, o tubo intacto sótão guardado pelo tajazeiro.
nem abriu o saco de confete, o sótão com uns balõezinhos chineses e Alfredo! Era a Nini, já de uniforme da Chapéu de Palha, bem ao
os tajás guardando a janela, O português dela atirara-se com uma pé dele, Ana e Dalila tinham voltado de repente na barraca do Curro,
tropa num caminhão chispando por entre as cobras do Acampamento tão dia, atrás da avó que já não estava. Cochicharam para Nini, esta
para um tudo-nu na Pedreira. De madrugada, descendo do sótão, passou a D. Dudu que ficou sem palavra, logo as duas saíram, Dalila
Alfredo encontra a D. Graziela assoando-se no alpendre, sandália no para o Almirante Wandenkolk, Ana para o Una, Nini atrás de
pé, o cabelo cheio de confete. Alfredo,
— Sem sono, D. Graziela? Do seu banho, abrindo a fresta nas palhas, Zuzu vigiava, Chia
Ela se volveu, a ele abraçou-se, Alfredo debaixo daqueles na mão, água do corpo escorrendo no paneirinho da japana. Mamãe,
soluços, o avantajado Colo indo e vindo. Tirou-a do alpendre, foi repare aí que o professor a modo que soube uma triste notícia.
levando-a, a D. Graziela dava por falta de objetos na sala, sumiu a Ana, passando na jaqueira, deu com o Alfredo, no que foi vista
estatueta e a salva, aqui vomitaram, também dentro da jarra de cristal desembestou pelos buracos do Una, apitava o curtume, entrou no
lavrado a ouro. Alfredo fugiu. curtume, pediu um lugar, não tinha, foi chupando camapu até ao
[139] Entrou na jaqueira. A mãe da Zuzu, por não ter café, fazia trapiche do estaleiro, Ali ficou no degrau rente d’água, o pé na maré
chá de capim marinho. que subia, Viu levantarem o mastro, passou um gaiola, quem sabe no
leme não vai aquele que entra na casa dos Boaventuras, o lustre acen-
81

de, visita de cerimônia, vai ficando tarde, apitou as nove, o lustre arma, que se passou para a dona da espingarda. Anu coroca. Por que
apaga, fecharam as janelas, saiu pelos fundos? que o comandante... Cera! Por que telefona para a Brasiliana? Esta,
Por onde a vó anda? Tia Dudu ouviu ficou tão séria, Nini de sem demora, eivém, a figurona, apertando a campainha, nunca
amarela passou a verde. Tia Graziela só vai saber noutro [140] ano, mandada entrar:
vão saber lá na fazenda noutro ano, ninguém lê o registro fúnebre, D. Graziela, telefone pra senhora, às ordens. Ora, incomodando
ninguém vai contar do rabecão, a avó vai ao Santa Isabel atrás do a senhora, D. Brasiliana. Num embaraço, saia preta, blusa branca, não
número, aqui na casa alta a honrada tia acende o lustre para as visitas emparelha com a taberneira, ou esta na frente, ou atrás, de Igual na
de cerimônia. Ali agarrado, no meio das lacas, aquele outro, esvaído rua que não, a apressada, entrando na taberna, apanha o telefone: mas
de tanto subir naquele cabo e desta assim entre as jacas nua. Não sei é o senhor? Mas que cabeça a sua... D. Brasiliana, num ar de quem
onde ‘que não espicho a canela também nesta maré, dou cabo do nada [141] entende, olha enviesado, escuta a outra engolindo as pala-
canastro, salto desta cabeça de trapiche, era uma vez, o rio levou, vras, o sim sim sem dizer mais nada, sim sim e de lá doutro lado, no
pronto. Noutro domingo, por uma comparação, batiam a quilha do cais, debaixo do barulho do guincho (tinha um cargueiro alemão) o
barco, e de mim nem sombra, a maré subindo muito satisfeita. De rebocador apitando, aqui o carrinho de mão deu uma topada no
afogada nem sombra a não ser se de fato vá sair de mim um espírito a paralelepípedo solto, buzinou um carro. O comandante telefona
correr pelo rio, pelo trapiche, desembarcando, carregado de barro, olhando o Guajará, a maré dobrava, desatraca a lancha na escadinha,
bem tipitinga e puf! na goela deles, na goela deles, e cá te espero passou o Conqueror, lá fora o sol moqueava as velas, a mata, ferviam
debaixo da jaqueira, seu agarrado nessa papa-jaca ou te apanhando as lonjuras.
quando a sobejo do galego te iça para o poleiro. Ou de repente, D. Brasiliana revirava o pirarucu ardido, enxotando as moscas.
amanhã, Ana, esta que sou eu, bolou de cabeça roçando no esteio do Quem que telefonava do cais? E o sim, sim sim deste lado, querendo
trapiche e aí, correndo da jaqueira ou descendo pela corda, chega o acabar a conversa, uma voz de velha, cerimoniosa, o colo, nem por
compadecido, tão compadecido, morda pra tua compaixão. isso, até que um porte no peito, a perna — não lavou em criança com
A maré cobriu o degrau. Volto para espiar, de novo, na cipó de tracuá — um tanto torta, os olhos nunca na gente e uma boca
jaqueira? De tia se bota luto? bem ordinária.
D. Graziela se levanta da cama, vai no alpendre. Teria fechado Vai a pé pelo Bulevar, fura a Ocidental do Mercado, apanha o
bem as janelas? Daquele casarão na mão dos sara-pecas, daquela Batista Campos. Em casa, tudo rigorosamente à sua espera e ao seu
escuridão ali no largo, podem descer os ratos, aquela fome canina dos dispor, objetos, roupa, bichos do quintal, caramanchão, suas
flagelados. Já lá estão levantando também a hospedaria dos japoneses, espingardas, a patroa. Josefina lhe trouxe os chinelos. Vai ao banho,
daqui a pouco, fugindo do vulcão e do terremoto, chegam ninhadas de está gordo, cresce-lhe a papada, é um banho de choque, morno do sol,
amarelos; aqui a nossa casa, debaixo do risco, precisava de bons ali na tina os cheiros da senhora. Josefina a toalha! gritou a arara na
cachorros, boas cascavéis, fazer armadilha, pagar um guarda-noturno. beira do telhado. Erra um cheiro de sapotilha e abricó, um jabuti se
Foi no quarto, apanhou a espingarda, um dia pois não matou um aproxima da porta do banheiro. De chinelo e com espuma no queixo,
anu coroca? Desde aí nunca mais acertou num alvo, deu caninga ria o comandante olha o quintal. A espera, na mesa, sem ainda cortar o
82

cabelo na moda, a senhora recendendo a banho de São João. Pousa as varanda, riu a uma graça de Josefina, voltou trazendo no rosto o sabor
mãos no encosto da cadeira, as mãos tranqüilas, assim de pé parece da risada. Ele não a encarava, sempre para se dizerem algo que nunca
mirar-se num espelho, feliz de sua figura alta. O comandante ralha diziam, O marido levantou-se, calçou-se, apanha os cigarros e o
com a arara, vem para a mesa. Olha a senhora: um pouco pálida paletó. A senhora na janela a vê-lo apanhar o bonde. Apagou a sala,
talvez, ou efeito do calor, da luz, das rosas na mesa, o anel de aliança, foi embalar-se na varanda, escutando o cantar de Josefina que lavava
como sempre. O que usa, o único, a ele fiel. Lá dentro outros anéis se a louça.
amontoam. E agora nesta ausência? Indagação sem sentido, um coçar Subiu a Quinze de Agosto, espiou no Café da Paz, hesitou
velha ferida, pedra que volta a carregar logo que chega ao cais, chega diante do bilhar, volta pegando o Curro.
em casa, e deixa a pedra na porta da rua ao sair para a viagem. Sozinho no banco do meio, se via menino no Tocantins, a mãe
Andou pelo caramanchão. Na saleta abriu a escrivaninha, já viúva, Brincava na burrica, bebia vinho de caju, esperando na beira
mexeu à toa em papéis. Aqui o espelho grande a conhece tão bem da praia os lanceadores de camarão. Secavam no jirau os feixes de
mas não tanto como a rua, os carros da praça, o vapor do Mosqueiro, gergelim e ao pé o velho Fileto de volta do rio, dizendo: gente, vai
as areias do Ariramba. Josefina, a velha empregada, feição cada vez encher feio este ano. O uruá botou ovo no pau multo em cima.
mais de pajé velha, vem com a travessa dos caranguejos. A Encheu. Lá se vai a nossa moradia pelas águas, levanta mais atrás a
extravagância dele: comer caranguejo com talher. De garfo e faca, vai casa nova, o araçazeiro roçando o dormitório das galinhas, os ubuçus
abrindo o bicho, [142] solenemente, numa lenta, cautelosa operação. em roda, aquela noite os gritos: trapiche arriando! trapiche arriando!
Não pega uma unha, partir o casco nem com o cabo do garfo, Peso de correnteza ou a mãe do rio? Já bem soturno, com as
trinchando, sem pressa, obstinado. Atrás das rosas, do saleiro alto, e inhambus gemendo, os foliões do São Francisco das Chagas do
de todas as viagens, dos longos anos perdidos, o rosto da senhora Miritipucu saltavam na beiragem; lá dentro, no copiar, fazendo sabão
sobre o prato. Vinha a torta de camarão, o pirarucu desfiado, o doce de cacau, as agregadas, tinha um sangue gavião. No mato, os poucos
de bacuri. Aquele gesto dela de levar à boca o guardanapo, tanto ele homens tirando, uns a madeira, outros o sernambi. A família comia
conhecia. O café na varandinha aberta sobre o quintal onde lia os [143] pare|dões de conserva, sardinhas de Portugal, e o dia em Alco-
jornais, acolhia o gato, escutando o vento nos abieiros. A senhora baça quando viu um caiapó debaixo do jupatizeiro, o caiapó. Veio o
ficava um pouco diante da penteadeira na alcova. Vinha, sentava-se cavalo e o índio se assustou. E que estrondo esse Pelos castanhais?
em silêncio, ouvia-se ranger a cadeira de embalo. Foguete para espantar as araras que comem a flor das castanheiras.
— A viagem? Foste até lá em cima? Com arara solta no castanhal, não tinha safra. E o bloqueio do mapará
Ele desdobrou o jornal, foge-lhe do pé a chinela. Aquela voz, no rio, o encontro com o cardume, eivém pelo fundo, eivém pelo
aquela mesma, que o arrastara, e aqui o deixara nesta varanda, com o fundo, joga as redes de pari, faz o cerco, o bem menino na montaria
quintal de bicho e fruteira. Também foi assim pela primeira vez: do espiador que espia e escuta o peixe no fundo, avisa quando o peixe
— Que tal a viagem? vem, o instante em que Sondou o cardume, o menino na montaria,
Agora, pesado da digestão e de um vago horror de sua vida, a Rio, cardume, peixe se debatendo, risada dos pescadores, o caiapó e o
mesma pergunta. A senhora, que não estranhou o silêncio dele, foi à cavalo, esse bem menino, tempo comeu. Na varanda a festinha das
83

agregadas, a mãe assistia de rede, com a coruja branca no punho, no imediato. Segue o gaiola carregado de castanha e da visão daquela
vigiando na sombra, Batia-se no pilão o cacau torrado para o alta, descarrega a castanha mas não a visão, vai subindo o Xingu,
chocolate. Cacau gordo, gordura esta aqui em volta do coração desce do Xingu a sete milhas, chega a Breves. Imediato, um
grosso, com aquele sal da salga do mapará, a coruja alva na sombra. telegrama para o senhor. Prancheia em Belém. No cais, de chapéu
O verde que fez pelo rio na manhã, chegando o motor das cachoeiras. com pluma, a alta de Tocantins: recebeu meu telegrama? Que tal foi a
A arraia de Itaboca (mora debaixo da pedra com toda a cachoeira por viagem? Para encurtar: em maio, à noite, o carro os leva a Batista
cima) andou esta vez mais braba contra os motores? Fez tremer mais Campos, descem de guarda-chuva, da grinalda sobrou um botão para
a terra? Sonhou que arpoava a arraia, trazida de bubuia até ao cais de a tia Carlinda, está escuro, chovendo, a casa de Batista Campos é
Cametá. Talvez por isso o cais adeus. A arraia de Itaboca, no grande, quintal molhado e escuro, aquela roseira monte-cristo abrindo
adivinhar o sonho, se vingou no cais, O cais arriou-se, com ele se foi os botões ao pé da janela, os passos faziam um barulho por toda a
o adolescente. Aquela sumaumeira pajureba que serviu — bote tem- casa. Muito do tempo, era bem rapaz, passou pelo Furo do Pajé, no
po! — de encosto da tropa contra o ataque dos cabanos? O rio Limoeiro, saindo para Oeiras, ali jogou presentes para o caruana do
também comeu, Aquele cacaual antigo? O rio também comeu. A fundo. Quem que por ali passa, não joga presente, vá ver o que lhe
aranha caranguejeira, que lhe ferrou o pé, ferra agora muito mais aqui acontece. Não lhe agradaram meus presentes, caruana? No cabo duns
por dentro, mais peluda, mais doendo. A flecha caiapó, que matou um meses, apressando a volta do Xingu, entra em casa, olhou para
lá em cima, guarda sempre a bordo, embebida daquela morte. Josefina e esta num sobressalto para a jovem senhora que colocava os
Cunhatãs de pé no chão, vestidinho ralo esgarçado em cima da pele, brincos, aquela fugindo para a cozinha, e esta: vamos hoje no Remo?
chega o vapor, lá estão no trapiche, principalmente aquela de Um sábado, a dama diante do espelho, diante do espelho, a alta entra
Ituquara, lisa-lisa de cabelo e corpo — ande mas ande, seu imediato, no clube. Ele ficou no bar, por onde a senhora? Não danças? disse ela,
ara me leve na sua bagagem, me leve com o senhor, um dia? Me bote voltando do salão, logo apanhada para o salão. Ele continuou
dentro da barrica de bolacha e tampe até chegar lá, sim? bebendo, uma e outra vez entrevia o ombro, o braço, o giro, com
Então senão me esconda atrás da lenha, me esconde? Um dia, certeza dela, não sabia, já não estava no escaler e nem bebia o tacacá
sim? A modo que melava os braços, a barriga da perna, com manteiga nem no cais de chapéu e pluma. Dessa noite em diante, escolhe
de cacau. O seu Cabelo aqui nesta mão, lisinho, cheirando a andiroba, aquele quarto pegado da despensa, ali guardou-se, sem que ela
agora nele chorar um pouco, só um pouco, meio esconder o rosto, só indagasse, lhe pedisse a razão, tacitamente desentendidos, O certo é
um pouco mas Inês é morta, Chega o vapor da festa cívica, também que, voltando da viagem, encontrava a casa perfeita, aquela boa
seu [144] navio apitando, também embandeirado, era imediato. Então ordem, a mulher a tudo acode com silenciosa exatidão e distante natu-
aquela alta aparece, a banda tocava, o Bispo abençoava, foguetes pelo ralidade, e o que ele preferia, caranguejo, pirarucu desfiado, o açaí no
estirão, a alta se aproxima: que tal foi a viagem? Lá se vai à crisma na gelo, na varanda, roupa marcada, chinelo no lugar, tudo a tempo e
Matriz, sai festa no gaiola, tira retrato dela junto ao leme, do chaminé, hora. Encontrava a mesma mulher serena e serviçal, sabendo pelos
sentada no escaler, a cuia de tacacá na D. Miguelina ali na beira, a olhos de Josefina, pelos olhos da senhora, pelos olhos da rua, o que
alta apanhava o jambu com os dentes no sol, a cuia na mão, os olhos que acontecia, Debaixo dessa, tão ciosa, e constante, de seus deveres
84

de casa, aquela sem [145] remédio. E sem nunca deixá-la, sem nunca entre as taperas da borracha, marés de paludismo e trapiches de lenha
procurá-la, como se uma obscura compaixão o fizesse permanecer com banzeiro sobre os ralos seres humanos se movendo miudinho nos
naquele quarto de onde ouvia o vento nos abieiros. Em toda viagem estirões. Dentro do camarote a moça de Muaná. Atraca no Curralinho,
fugia dela, vinha chegando flagelado só para vê-la. E a encontrava faz descer da prateleira o vestido mandado vir da França, que a dona
assim, como nesta noite, mas tão sossegada, dona de casa mais do que nunca vestiu, ali novo e antigo para sempre. A dama do camarote
ninguém. Então, aquele ano, vai a Muaná, dá o baile a bordo; precisa trocar o vestido do baile, e entra no Aturiá, vai pelo Vira-saia,
subindo, apressada ou assustada, ou corrida, pela prancha vem a filha é a beiragem mal-assombrada das fluas dentro d’água, estão supli-
do Juiz, apanha-lhe o braço, lá se vão no giro da valsa, tranca a dama cando roupa, pois não é que a dama do camarote joga os dois [146]
no camarote. vestidos para as suplicantes? Lá ficavam, o da França e o do baile.
O bonde parou no Reduto, Quis saltar, não saltou. Agora, quando passa pelo furo, se chega para a roda do leme olhando
Retira a prancha, toca a sineta, a hélice puxa, apitou, tão de aquela beiragem soturna a ponto de se ouvir o cantar das nuas, ali
repente. Aquela moça do baile a bordo, ali no camarote, o navio ficou a dama da borracha e a dama do baile a bordo. Era um rumo?
fugindo, roubei a moça ou a moça roubou o navio? Ali estava, quem Um porto? Rumo esse que só foi a brusca manobra pelos Estreitos, a
sabia? o que não pudera alcançar no Amazonas, Peru, Bolívia, moça com quarenta graus, o delírio, o noivo no cais.
contrabando, rio acima rio abaixo, a colcha de lhama para a noiva, Agora neste bonde, gordo no rumo da José Pio, vai ali lançar o
casamento, caucho, ah bolivianas! rio afora, rio adentro, que fazer cabo, já sem vapor, pensando em Batista Campos, na estranha que se
deste imprevisto? Que fazer desta filha alheia? A um canto do embala na varanda, tão íntima, aquela desconhecida de tantos anos, e
camarote, aquela tão entregue, variando entre curiosa, aturdida, que tão bem conhecia. Vem de lá pelo escuro o sabor da risada.
sucumbida, fascinada, Voltava para a proa, embaraçado com a
tripulação, tentava explicar ao imediato, esperando que o dia
avançasse para devolvê-la, ou dar-se a ela, rumo do Madeira, Desde
aquele casamento, estava em busca do ser ativo, desembaraçado,
sólido, que fora antes. Custoso agora de estar só, de proa a popa, no
meio da guarnição, o passadiço cheio, à cabeceira da mesa, atraca, os
trapiches cheios, e mais só, sem salva-vida, sem socorro, de rio a rio,
navio carregado de inflamáveis e crianças, Belém-Manaus, Manaus-
Belém, carrega castanha no Alenquer, quase levando o diabo no
Tapajós, encalha no Purus, num subir descer até que um dia chegue
àquele porto; agora nestes e a bordo não encontrava senão sua
sordidez, a flecha caiapó no camarote, o rosto da ausente lá da janela
de Batista Campos, queimada do Ariramba ou saindo de Nazaré, da
missa, véu no braço, hóstia engolida. Sobe, desce nos navios da lama,
85

A idade.
A doença.
— Mamãe! Mamãe! Chegue só um instantinho aqui ao pé das
palhas, um instantinho, só um instantinho!
Calou-se o banho, a mãe longe. Zuzu, com a vara, colhe da
corda o seu molambo que parecia um bordado. Ana [148] pas|sou.
Resta o nome, a idade, a doença ali no jornal, com a Brasiliana entre o
camarão no coto e a caixa registradora.
Alfredo vai sair e se vê com Zuzu na frente, o braço dela
vedando-lhe a passagem. A mal enxuta, tiras pendentes do ombro, o
arrepiado cabelo escorrendo, a intimação mansa:
— Primeiro primeiro me diga, vá me dizendo, sim? Soube? Foi
triste?
— O que que triste?
— A notícia que aquela outra lhe trouxe. Foi? Que que então se
3 deu, que só de ouvir, vergou-se, vergou-se, chega transparece.
Olhou para o calado, precipita-se:
[147] Soube? Zuzu no banho. A mãe: e eu que sei, mea filha? — Sim, seu sentimento. Tão na vista!
Indaga dele. — O banho lhe fez adivinha? Que que eu soube que não sei
A mãe saiu. nada?
Aqui o indagado nem se mexe sem boca nem ouvido, a seu pé a — Até sua voz transparece. Tempere a goela. Puxe um ar.
isca aberta, gomos no chão, o realejo deixado pela Nini: pois ontem Arriou a campainha?
pela Santa Casa. Pois ontem pela Santa Casa... Pela Santa Casa de Zuzu baixou o rosto, sem baixar o braço direito, com o
Misericórdia. Vinha do banho o Soube? Soube? que lhe gelava o esquerdo espremia a ponta do cabelo. Alfredo sentou-se entre os
espanto e a inércia. Pois ontem pela Santa Casa. Pela Santa Casa. gomos no chão. Ela deu um vagar nas palavras:
A cuia de banho atrás das palhas, o som do banho no silêncio, a — Então bem feito pra ti, sua intrometida. Saída franca, passa
manhã banhava-se, a jaqueira, a rua. Menos este enfurnado espanto, por baixo deste meu braço, que não molha, passe, vá. Da sua aflição,
esta inércia aqui entre os gomos, pois ontem pela Santa Casa. Pela faça bom proveito. Corta tua volta, convencida... Quem que eu era, já,
Santa Casa. Capaz sair hoje na Folha nome idade doença. Só pedir ali pra querer saber, não é? Se abaixe, passe, ou não presta passar por
no balcão o jornal da Brasiliana, corre os olhos pelo registro, na lista baixo de um braço? Lhe soprozinho primeiro no seu ouvido para um
dos morridos... Pela Santa Casa. seu alento, sopro? Mas ao menos mexa ai esse seu pé, professor, O
O nome.
86

senhor transpira. Esse seu suor? É do que escutou, que eu sei, sim. A erva são caetano se enroscava pelos esteios, caibros e vigas
Tira uma prova, é fel. podres da puxada em ruína.
Alfredo o pé não mexeu, a jaca era aquele pegajoso desperdício. — Tome esse mochinho que eu mesma armei, uma tarde, por
Zuzu, sacudindo o cabelo, respingava o chão, os gomos. Entra uma não ter o que fazer, feito pela mea mão. Não repare o feitio. Dou pra
borboleta, lá fora a jaqueira mexia-se, pesadona, resfolegante. carpinteira? Se abanque, primeiro sossegue. Quem sabe mais um
Dela o semblante só me diz: daqui só me sais quando eu te golinho de capim marinho, o chá, sim?
soprar lá dentro o meu alento. Olhem o seu braço estirado, a Eivém o chá, agora amargoso, um gole só, enquanto ela remove
verruguinha, a penugem do sovaco, a gotinha do banho no pescoço, os a laca para o terreiro, os gomos fogem-lhe do braço, volveu depressa.
trapos entrefecham o peito, colantes. A borboleta vem e vai em torno — Bebo o resto do seu chá só pra saber seu segredo, sim? ah
dela como se lhe fizesse um vestido, suas cores, sua renda, irisando- mas tão amargoso. Até que tem ainda um restinho de mel no fundo do
lhe os trapos. Pela Santa Casa. E esse indagar molhado do banho, pote, nem me lembrava nem me lembrei senão temperava. Quer?
adivinhoso, a súbita voz de intimidade, o braço de novo em cima, é só Quis mesmo assim amargoso? Ah professor, que ferroada foi, que nos
tocar nele despenca, maduro, no meu? Ir, retirar a mala, finque o olhos dele só se enxerga é o seu por dentro doendo? Doendo? Se o
bandolim e sua tarde de carnaval naquela sepultura, D. [149] seu natural não é esse, pelo que sei, pelo que oiço... Se é um
Graziela, ou a sua roupa-de-ver-a-Deus, D. Jovita, cuspir no batente, e desespero, escapula o motivo. Está que está perigoso. Deu que foi um
agarrar pela barba aquele coronel até onde é o nome, a doença, a mistério por dentro do senhor! Mas olhe, olhe! Não se feche tanto que
idade. Pela Santa Casa. Pela Santa Casa. lhe abro uma passagem por dentro do senhor, estou ou não
— O senhor que aqui chegando parecia tão demais satisfeito adivinhando? Estou? Quente ou frio? Pois lhe rogo uma atenção,
embora um tanto mal dormido... e já-já que viro triste? Triste ou deste tamanhinho que seja, sim? Olhe, sem nenhuma mentira, eu
maltratado. Foi só a boca, aquela, lhe encostar no ouvido? Que foi? o enchi a cuia d’água ia derramar na cabeça quando olhei na cuia, na
senhor está que está perigoso. A menos puxe um fôlego. mea mão, cheia, cheinha, sem um [150] cisco. Aquela água na cuja?
Baixou o braço, exalando seu banho, sobressaída como nunca Aquela água? Pois não era que nela aparecia o seu rosto escrito-
era, o olhar perguntador, e seus trapos nesse minuto pareciam enxugá- escrito me dizendo o que agora, o senhor em pessoa, teima de não me
la e guardá-la. dizer? Então peguei, derramei aquela água por cima de mim com o
— E sua mãe? rosto do senhor e tudo. Entrou no meu ouvido, ficou chocalhando,
— Buscar fluido. Não foi o senhor que trouxe as duas garrafas? sacudi, sacudi, e ainda não escorreu.
— Onde? Sacudiu-se, fingindo água no ouvido, apanhou o pote de mel,
— Que onde? emborcou, um pingo no dedo oferece ao seu conviva. Este, não,
— O fluido? lembrando-se daquela viagem com a mãe, o ponto do rio, já desta
— Ah mamãe só volta já de tardinha? Daqui só que chegue lá... banda de Belém, onde afundou o veleiro com quarenta potes de mel,
as penas do senhor passam. quarenta potes de mel. Zuzu lambia o dedo, voltou ao pote, quebrou-
87

o, lambeu o fundo: que fim levou aquela nossa borboleta? O beiço — Olhe que eu por mim não tinha nem um cuí de paciência que
amarelou, veio: o senhor vem tendo para abrir aquela cabeça, daquele rude-rude de
— Ah pra que quebrei o pote da mamãe! Dê cá seu lenço. entendimento que é o bom do meu irmãozinho. Nem lhe conto o meu
— Raro eu usar lenço. vexame com a mamãe lhe chamando, os rogos dela, era só tirar um
— Não é pra limpar meu mel da boca. Tire coisas da sua fiapo rente de seus olhos o senhor caçoava. Não faltei vez (o senhor
cabeça. Pra enxugar, isto, sim, sua testa, o senhor, eu, não, o cantinho a! bem puxando pelo cabeçudo) que espiei pela brechinha do quarto,
de seu olho, abom! ver se o senhor malinava com ele, sim, corrigir, carece, razão não lhe
Assim de cabeça baixa, Alfredo seguia os passos dela, o pé tiro, um professor pode e deve usar da sujeição, aprovar, aprovo. Pois
descalço, a bolha na barriga da perna, o joelho que lego ela cobria bem ali dentro esta espiona se metia, vamos ver se esse um do tal do
com a mão, puxando os farrapos, o molambo se delia. Aqui por Ginásio zomba do coitado do meu irmão. Se é que não faz é pouco da
dentro deste espanto e desta inércia a morta da Santa Casa e aí fora a nossa família, sabe lá, se não está se rindo, sã se rindo de semelhante
viva deste terreiro, sem sossego no calcanhar. Parou de mexer-se a cabeça dura que nem pau de taperebazeiro. Quem sabe lá no seu
jaqueira. Rodava pela Independência entre os carros alegóricos o estudo, porfiando na caçoagem com os outros, o senhor: ah pessoal, lá
rabecão da Santa Casa e aqui o intimado numa paralisia, quantos num pé de jaqueira, faço que desasno um mas que um! Me morda
mortos que não sabemos nos atravessam ou se penduram em nós. aqui se não é verdade. Pois o senhor, antes do senhor ser professor,
Do fundão, que é este silêncio, o indagar tranqüilo: estudante é. Estudante sendo.
— Que sucedimento foi, aí nesse seu susto embutido... Um Alfredo escuta, escuta, seguindo a velha parteira, aqui na Santa
assim que lhe diga é já que já se sente tanto? Mas, Deus o livre, Casa, ali ao pé do rabecão, já no rumo do Santa Isabel o lugar o
morreu seu pai? Sua mãe, Nossa Senhora! mal? Uma sua irmã? Um número — é meu sangue, mea sobrinha, foi filha família, mando rezar
peixinho lá do seu rio que o senhor tanto estimava? Por ser a Bina — missa nos frades, levantar a cruz pago com meus partos e benzições.
ah tão babada pelo senhor — tão escandalosa mas só pro senhor, — Ou a moça — sua parenta? — da Chapéus de Palha veio lhe
quanto mais enfeitada mais tão feia? Bonita cada vez, mais lhe proibir, sopra no seu ouvido que etc, e tal não convém... que não vale
parece? Por não lhe ter escrito inda hoje? Se não responde, é porque a pena, olhe o risco... espere, me deixe lhe explicar... excusa do
é. Febre? Me deixe apalpar seu pulso. Um padecimento de nascença senhor freqüentar certos lugares... Este terreiro debaixo desta
como coisa que lhe dá e o senhor não explica? Pegou mau olhado? jaqueira. Por via do abuso dos rapazes, aqueles vagabundos de toda
Mau olhado? noite, corre a má fama. Se aqui o senhor vem, culpa é da mea mãe, ela
Tirava as talas do paneiro velho. um dia lhe paga. O senhor prejudica o seu estudo sentando em nosso
Alfredo quis sair, não se levantava. Ela se adiantou com um banco. Aqui daquela nossa família só é mamãe, meus irmãos, o
surdo espanto na voz: terreno é dos Lobos. A jaqueira é deles. O resto é essa cumeeira um
[151] — Mas fora de brincadeira, é? Disque os pombos daquele dia caindo em cima da nossa costa visto que nada se tem a não ser um
telhado já estoriam... O senhor é um deles? retalho de vergonha, bem esta é o trivial da gente, como diz mamãe.
Alfredo nem se mexeu. Tapou a boca, enxotou o pinto.
88

— O senhor é livre de ser professor do meu mano. Jaca deixa espiarzinho o seu desgosto, sim? Que foi que lhe pingaram nos
nódoa? Xô, pinto, tu és alheio, depois vão dizer que te comi de ouvidos?
espeto. Avançou sobre ele, de olhos fechados, abrindo-os para
[152] — Menina, não é nada. Estava é remoendo uma aula na surpreender-lhe o segredo e indagou:
cabeça, O mais é sonolento desta noite. — O senhor já andou um dia no trem? Pois eu não. Entra muita
— Outra é a sua tabuada, O senhor se riu agora mas eu bem sei faísca? Ah, o senhor está aqui e não está, é o mesmo. Embarcou no
o que tem por detrás do seu rir. Se levantou? trem?
Tocou-lhe com a tala do paneiro, entre ofendida e mangona, Rabecão da Santa Casa. Pela Santa Casa. Capela da Santa Casa.
apontou-lhe o mocho, intimou-o, com um espichar de beiço, a sentar- Capela só dos falecidos pensionistas; o bonde dobra e dá subitamente
se, cruzou os braços num ar sisudo. com o pano de luto na porta da capela, como se o defunto quisesse
— Estudante? Na frente da academia, na Santa Luzia, os saltar de lá para o banco ao nosso lado. Mas só os pensionistas. Os
acadêmicos pintam! Uma tarde eu passava, um deles tocando à moda outros fedem no gavetão [153] ou vão para a aula, ali retalhados ou
de uma flauta, tocava numa canela de defunto se chegando pro meu escapolem pelos fundos, envergonhados de sua morte.
lado... De noite, olhe eu em casa rezando, tirando aquela porção de — Pra a ferida desse feitio, só sei dum ungüento... Me deixe
tanta salve-rainha e ave-maria em tenção do dono ou dona daquela lavar antes que feda.
canela que padecia na mão de semelhante flautista. Nisso que eu Cravou os olhos nela. Ferida. Feridento, lhe dizia a mãe, no
rezava esgarçou-se, abriu-se o fundo de minha rede, de tão novinha chalé, quando as pernas sangravam. Feridento, rum! lhe dizia
que ela era, tive de me ajeitar muito jeitosinha pra não varar pro chão. Andreza, apertando o nariz.
Amanheci só numa banda da rede, a outra dependurada. Ou foi o peso — Que é que está tão me olhando? Sim, a sua mágoa. Quer, eu
daquela alma? Está aí a rede, coitada, que não me deixa mentir.. vou buscar o espelhinho lá do quarto pra lhe mostrar os avessos do
Recompôs os farrapos, espantou com um xô zangado os senhor saindo na sua feição.
pássaros da jaqueira, dizendo agora quase em segredo, os olhos lá no Correu — por onde tu te meteste, meu compadre espelho, lindo
caibro; olhe, olhe, comadre aranha, mea bordadeira, só quero saber o espelho de nossa casa, anda, anda, te desencanta — limpou o espelho
dia que me entrega tudo pronto os meus bordados, sua boa da na tira do peito, fez beiço, espichou a língua, espremeu a espinha, e se
preguiçosa, e tornou, de surpresa: chegou para Alfredo, o espelho na palma da mão, um espelhinho sem
— Agora me diga se o senhor não sopra flauta em canela de forro, embaciado.
defunto? Ou o senhor só sopra em canela viva? Deixa está que eu — Mire, se remire, estude sua figura. Não fuja com os olhos
morrendo, descubro por onde o senhor anda e lhe deixo bem embaixo que o senhor nem é tão feio. Da feiúra, aquela sua, a D. Bina, ficou
de sua rede Como herança a minha canela esquerda, é tudo por pago com todo o sortimento, se deu uma sobra foi pra mim, aquela
da instrução que o senhor a peso de pua mete no coquinho do meu somítica. Tire no espelho só uma linha da sua feição, se veja não se
irmão. Faça dela uma flauta. Fora de brincadeira, me deixa assuste.
89

Alfredo no que mal olhou, nem um instante, e ela correndo com e jaca, a outra, lá onde? fedia. Mas a visão da outra não se rompe,
o espelho para o quarto e de lá: inteiriça, amortalhando a fazenda, o liceu, a casa, torna em pó o raio,
— Sua feição? Seu segredo? Fechei no baú. Mesminho que tirar aquela barba imperial. Seca de vez o Jandiá de onde estoura sobre o
uma fotografia. Eu com o medo que com o tanto sofrimento no seu silêncio das derradeiras garças e derradeiro bando de marrecas. Pelo
rosto o espelho se quebre. Quebrando, o senhor me emenda? O senhor extremo da culpa e perdição a que Luciana se entregara, ele agora lhe
irou-se? queria o extremo da inocência e salvação que toda morte reclama.
Agora, mãos nos quadris, examinava, à distância, o seu Ou aqui enfeitiçado, como pensa Nini? Ana, por acaso, não
paciente, cantarolando: veleja por ai atrás, consumida de velório e raiva? E quebrava o seu
impulso, deixava-se levar no cativeiro mágico, deixava-se, não
Sereno da madrugada resignado, acumulando repentes, inerme, Ali ficavam os dois, quase
Sereno da madrugada estranhos, embora a qualquer instante ela sugerisse uma brincadeira
Eu caio eu caio eu caio que os fazia tão irmãos e tão amantes. Empoou o rosto com tapioca:
Sereno da madrugada. — Espalhei bem? Quer passar a mão?
Ele ia atender, ela um salto atrás:
— Ai ai eu bem menininha fazendo roda! Já se passou cem — Eras! Agora isso... Altona e chapeluda não sou, Nem tão
anos. pretinha grudada no portão. Nem seguideira de rastro saindo do
Entre aquela visão que sempre foi Luciana e esta de carne e orfanato. Nem tão assim de semblante que espante mosca, pra o
água de cheiro que é Zuzu, Alfredo flutuava. senhor... Ou misturou as quatro peças cismando que sou eu? Pra lá,
— O senhor já sabe que meu irmão, seu aprendiz, não só Santa Clara sopre nos olhos dele. Sopre, mea Santa Clara.
aprende com o senhor e na oficina, já arranha na rabeca? Veio espiar rente os olhos dele:
Aqui graceja, dali acena, franze a testa num súbito desdém. — Agora a modo que sim, que Santa Clara soprou. Limpou
volve atenciosa, adiante fingindo cautela, um faceiro temor, afasta-se, seus olhos? Agora lhe dou licença, sim. Da minha parte...
por que desconfiada? e eivém confiante, [154] sor|rateira, ou Alfredo roça-lhe no rosto a costa da mão, ela saltou de banda,
embaraçada ou distraída, pega a velha tesoura, corta a unha do pé, soltou um pasmo, batendo o pó nas faces.
passa goma nas folhas soltas da cartilha do irmão, “que aviso foi — Mas o senhor! Foi que nem uma bofetada. Se desforrando
aquela borboleta?” 56 saber que o meu mano já pode tocar numa em mim?
festa, vou de cara lisa na D. Brasiliana: olhe, dona, me encomende lá Bordejava em torno dele, prevenida, no provocar fugia, um
do seu estrangeiro, dos seus navios, lá donde não se sabe, um bom momento ao fogão destampou a panela, aquela fumaça no rosto,
violino que meu irmão vai pagando conforme as festas que tocar. O tossiu e veio com um tição, rosto lustroso:
senhor que acha? [155] — Me deixe então lhe queimar com esta brasa a sua
Vinha da jaqueira a necessária solidão em que os dois se postema, num instante o senhor sai já daqui com ela seca-seca.
encerravam. A momentos, Alfredo sobressalta-se: esta recende banho
90

Soprava o tição, fez-se impaciente, foi tapou a panela. Alfredo que me espreita? O mito acaba? Zuzu destampa a panela e corre a
coçava a cicatriz da perna, o dedo em cima, por que culpado da culpa cercá-lo.
alheia? Em que que sou responsável ou comprometido? E a — Quem que lhe autorizou o senhor ir fugindo? la? Dando já as
absolvição? Ou a absolvição é essa presença, tampa e destampa onze no vizinho, Olhe até onde já chegou a sombra da jaqueira, onze.
panela, tição em punho, a filha da jaqueira? No preparo dos seus Coma comigo. Tem um peixe, uma bucha com [156] água e sal, aí na
encantos, Zuzu se fazia mais vagarosa, muito tranqüila por muito panela. Não come com pobre? Olhe: as onze, o curtume confirmando.
dona de suas artes, Mas no chegar ao ponto, desfazia a teia e vai, Coma comigo.
recomeça o labirinto, voltando ao giro, “o senhor acha que fico bem Retirou uns teréns da mesa, fez que pôs a toalha, que não tinha,
de postinha?”, convida para furarem juntos os bilros da almofada, trouxe os dois pratos de barro, a cuia de farinha d’água, o Cozido de
Guardou-se no quarto, reaparece se espreguiçando: piramutaba, gordo e fumegante.
— Aquela esteira velha ali na parede? Desenrole e se deite. — Não tem é garfo, aquele-menino. Peixe se come mesmo é
Desenrolou a esteira no chão. com a nossa mão. Como aqui da parte da cabeça. Não repare o mau
— Descanse seus ossinhos desse banco de minha fabricação tão passar. É mulher ingrata, piramutaba salgada, se não dá sustento,
duro. embucha, se dá secura, morra de beber água sendo o senhor magro, ao
E riu, riu porque ia dizendo: bem que sua bunda deve estar já menos o senhor incha. Olhe eu. Não sou opada? Pode comer sem
bem doída, limpou a goela, riu, tapou a boca, enfiou um papel de susto que quem tratou não fui eu, foi mamãe. Até adivinhando que ia
jornal na cara, fez um olho no meio, a esteira estalou a seus pôs, agora ter um convidado, coitada da mamãe. Uma pimetinha? Tenha, tenha
ajeitou os trapos, suava um pouco nos braços, foi ao pote d’água. fome. Guarde o fastio pra quando debaixo da terra. Com fome a gente
— Um gole? Nojo da nossa água? come o mundo. Desentristeça a barriga. Faça um pirão. Ou prefere
Alfredo olhava-a como se escutasse: vês? Estou tão só contigo caldo?
que até nossos anjos da guarda bateram suas asas embora e nada me Desfiou uma banda de peixe no prato dele, derramou farinha,
dá medo, que a tua aflição me protege, abriu a palma da mão, no meio estava a pimenta de cheiro, amarela,
Pela Santa Casa. Pela Santa Casa. Como a gente ignora tudo, guardando o seu fogo. Saboreava o embaraço dele.
Mas onde e como procurá-la? Deu tempo para meter-se entre aquelas — Penando, não? Sobremesa é que é! Só jaca, já enjoa. Deixe
do assustado, ali de máscara entrando — a sua casa — encara a irmã, estar que quando o cacho daquele açaizeiro ali nos fundos pintar, lhe
a cristaleira, o lustre? Assim tão trançada é Belém, tão sem fundo, que amasso um açaí bem grossinho pro senhor, Deus queira um domingo.
ele não pudesse acudi-la? Ao menos no hospital, nos porões da Pra o que que quebrei o pote e lambi o fundo do mel? Mais?
indigência, era, pelo menos, uma graça, um perdão, se a visse Comendo tão desgostoso tão desenganado! Achando bom? Que
morrendo, fechava-lhe os olhos que nunca soube, a boca, não, que em remédio... Acha, sim, do dente pra fora, a delicadeza obriga.
vida selou sempre. E seguiria, só, e a pé o tardo rabecão. Ou será que Achando?
o tempo... Agora nos olhos desta, da agreste maltrapilha, é a morta
91

Fingiu um desapontamento: café. Café é que não se tem. Aqui é — Estire a mão, apare que eu derramo, vire a mão, olhe! olhe!
casa do não se tem. Tudo nunca-nunca tem. Chá? Mas vamos fazer de um M escritinho na palma de sua mão. Sabão, queria? Faltando. Ah
conta. que aqui tudo falta. Enxugar que são elas.
Trouxe duas xicrinhas de folha num prato de barro. Com uma folha de bananeira enxugou as mãos dele, passou as
— Tive agorinha me lembrando: pedir emprestado do seu mãos dele na tira do que foi a barra do outrora vestido.
Bahiano aqui pra nossa festinha aquele xarão dele. Ando atrás de uma — Agora sestar. Não disse que está sonolento? Na sua noite em
desculpa para poder emprestar dele aquela jóia preciosa. Só falar, o claro não me meto. Use o sono. Tire um cochilo, um tantinho, um
seu Bahiano é já de chapéu na cabeça e xarão debaixo do braço, rumo tantão, se desassuste que não vou cobrir de tapioca o rosto do senhor,
da casa alheia. É festa, é ladainha, um luto. Mas aqui na nossa família o senhor dormindo. Durma a quantidade de sono conforme vós
nada sucede nem o meu intera-ano. Hoje, com o nosso professor queira, conforme o corpo peça, até que o alívio venha, bata palma,
fazendo sala, o xarão fazendo uma falta... Mas só estava esperando diga: licença para entrar? Aqui neste tapete real, como se diz na
que eu fosse no seu Bahiano, pro o senhor se escapulir de vez, não? pastorinha, se abolete. Se estire, se espiche, está ouvindo o galo? É o
Pra, não demora, falando no Ginásio que está arrotando choco por via galo lá doutra banda lhe dizendo: professor, quebre a cabeça do sono.
da mulher Ingrata que comeu no cocho do seu aprendiz, hein? Deixo Esta esteira malafubeca foi pertence de um canoeiro conhecido velho
pra só servir o senhor com o xarão do [157] seu Bahiano na tarde do da mea mãe. Ele tinha a esteira dentro da camarinha da canoa dele, ali
açaí amassado por mim. É o trato. Olhe que é trato. se esparralhava, ponteando violão. Violão foi esse, violão foi esse,
Aconcheou a mão ao canto da boca: estás me ouvindo, que acabaram lhe tomando a embarcação. O que ele pôde salvar —
açaizeiro? Trato é trato. Me escutando? Capricha esse teu cacho, que nem o violão — só foi a esteira velha, já meio largando os pedaços.
eu com ele tenho um compromisso. E chegou-se para Alfredo: — Me guarde, comadre, que quando a senhora me dê um
— Eu, o senhor e aquele açaizeiro, de palavra dada. O tempo agasalho na sua casa, eu me deite nessa esteira de arumã e fique então
vai dizer quem não cumpre. me lembrando daquela que foi mea canoa ah por Deus... Eu, Zuzu,
Estendeu-lhe o prato com as duas xicrinhas. andei me esticando umas par de [158] vezes em cima dela, depois ah
— Pegue a sua, não seja desfeiteiro. A do beiço roído, não, essa me aborreci. Desenrolei hoje em sua homenagem, o senhor não é
outra, faça de conta que é seu café. Visita? Se arroje.
Ela, com a do beiço roído, fazia que derramava no pires, É tarde — será que ela escapou do rio em Breves, escapou do
soprava — quente de tirar pele do beiço! — bebia devagarinho, os fundo onde aquelas nuas, pela meia-noite, bolam suplicando roupa
olhos nele, acenando que também bebesse. aos viajantes e por muita roupa que ganhem, sempre é pouca? escorre
— Carece de mais açúcar? um azul quente pela jaqueira que cabeceia de sono. Zuzu agacha-se a
Terminado, recolheu as xicras e logo volveu, receando Os um canto, descansando os braços no colo. Alfredo deu com aquele sol
movimentos dele, agora assustadiça, alisando os seus trapos, os olhos desvairado na rua e olhou para onde Zuzu, ajoelhada, se cobria de
deste tamanho em cima dele, muito enfermeira. repouso.
Trouxe água na cuja: — Por que ajoelhada?
92

— Por gosto. Ralar um pouco meu joelho. O senhor não é o [159] Já aqui na rua escaldante, nesta topada reencontra a
meu santo? vergonha, medo que apareça a Bina atirando-lhe mais uma carta. Ou
Ele sorriu, ela pulou: Ana. Entrou pelo portão de ferro dos Boaventuras, boa-tarde, D.
— Aliviou? Supurou a raiva? Graziela.
Ela foi recuando, de novo de joelhos, apanha a agulha — Mas pra onde então vai levando essa sua mala, menino?
— deixe lhe pregar esse seu botão da blusa que está cai não cai Dudu tem conhecimento disso?
— cortou a linha nos dentes. Arrasta a mala e seus castigos, sua pressa, o rosto da mãe na
— Arrotando choco, já? boca do toldo, o rabecão carrega a sua mudança, cuspir neste batente,
Ameaçou espetar-lhe com a agulha: caminhar, salta da cova, a cavalo atravessa o Jandiá, vai aos três
— Se espiche ai na esteira do compadre da moa mãe, se pegar pretinhos da pororoca no Moirim encantados; está na hora, rebenta a
sarna, do canoeiro não é, é minha. Olhe que depois de comer, o maré, me dá um gole do teu banzeiro, o cavalo flecha o rastro do
senhor sair nesse sol, o senhor estupora. Talismã, este agora e ela, o par, lavradão acima.
Então ele se decidiu sair e veio para junto dela, pegou-lhe a E aqui na rua ouvindo os galopes.
mão, ela fez: Deus lhe abençoe, e esquivou-se. Alfredo avançou, ela Pára neste portão:
recuava, sem fugir, até que esbarrou de costas na parede, frente um do
outro. ALUGA-SE TRATAR NA JOÃO BALBY 234
— Olhe, professor, que daqui não tem mais pra onde recuar.
Varar a parede não se pode, o meu espírito não pode carregar com o — É mesmo para o senhor? Sua família? Onde o senhor
meu corpo atravessando a parede, o senhor meça, assim também não trabalha? Tem fiador?
é vantagem. — Meu pai é um major. A senhora me entrega a chave que vou
Cruzou os braços, tapando o busto, séria, muito nos olhos dele, saber se a casa satisfaz,
parecendo mais curiosa que surpreendida. Virou o rosto, Os lábios Abre a 86, José Pio, portão, cerrado de capim, porta e duas
dele puderam roçar o lombinho da orelha, resvalaram, bastante um janelas, rótulas, água encanada, pode-se ligar a luz? Agora dono,
puxão e era toda desnudez. dono, uma noite, desta casa, por mobília esta mala, por família esta
— Direitinho. Direitinho, professor. Terminho, Terminho. vergonha, Arma a rede, a luz cortada, o quintal meio encharcado,
Alfredo deu uma volta, deu um passo atrás dela que seguia abrir as janelas, anoiteceu: de lá de cima uma e outra estrela arrisca
ensaiando uma valsa até o fogão, viu-a soprar as cinzas. um olho. Mexe nos trincos, pendura neste prego o quepe e o mundo,
Rodeou a esteira, foi saindo devagar, lá está a caveira de boi Pisa forte no soalho, esta tábua me anda solta. Aqui é a senhora
guardando a puxada. Esperava que Zuzu voltasse das cinzas, o caseando o vestido de cretone, D. Amélia. Ali a folha de lilás lembra
chamasse, viesse cercá-lo, iremos juntos em busca da sepultura ou no Maninha, Como pingentes do lustre os caroços de tucumã repletos
trem abrir caranguejo em Boiuçucanga. daquele menino. Nesta austríaca de embalo a visitante por nome
Andreza. E ai, é voz do telhado, façam boa vizinhança, colegas, me
93

cedam uma lamparina, em troca vos dou um daqueles queijos (e o sua escolha. Velar de janela aberta, mais o peito que a janela,
ganso?) do padrinho Barbosa. Zuzu bolava no caldo da piramutaba. arrotando choco e profundamente sobre a inteira Belém e a honra da
Uma vertigem de ir até a quase desnuda e beijar-lhe possível o pé família.
poeirento, trazê-la, sim, cobrir desta vez, sim, o seu. ombro com o O Utinga apitando. Está para passar, de volta do matadouro, o
necessário manto. Ou arrebatar da D. Brasiliana os penhoares que ali velho magarefe. Desta janela quero-lhe dar boa-noite.
têm dúzias, aquela esgalga crioula de régio penteado, [160]
escancarando os seus roupões de Caiena e Iquitos e todo aquele
enxoval ilícito e secreto, corsária de sótão e moringa, o pente de
Paramaribo e o dela entre os acetinados, renda, pucarinha, frascos de
perfume, fantasia de Rainha de Sabá espalhada no soalho, violão na
penteadeira, defronte a Virgem Maria dá mama ao Menino, a cegonha
da folhinha, as caixas de baralho, a dama de paus, a súbita boneca de
cabelo cacheado adormecida ao pé do urinol de louça, o escudo do
Clube do Remo coberto de serpentinas, os suspensórios do taberneiro,
o irrigador, a pomada contra espinha, a folha de mucuracaá para dor
de cabeça. Sobre os peitos ver donzela o sinal da cruz e as contas
soltas do colar partido, a aragem tufa o lençol — gemeram os pombos
do vizinho? — as fronhas se despencam, atrás da cortina as arcas sob
o oleado, sinuosa e crespa pompadur suada deslizando dos
travesseiros, jibóia na escuma de onde avistava os proibidos
desembarques, o farol clandestino, o fugitivo litoral com o Porca
Prenha, lê embaixo, na taberna, a gritar que abrissem a porta. E a alta,
fechando-se no roupão, vai, abre. Não demora eivém. O Porca de
Belzebu.
— Posto fora do céu?
— Desse inferno aí embaixo, meu anjo. Inda pegou o Cristo, o
último bonde da noite.
Dono desta casa, esta noite, fecho a porta a chave? Ana espia?
Adivinha? Farejando? Ana? Nesta casa, tem o senhor toda licença,
senhor ladrão, que sou eu mesmo, toda licença. Aqui nem o bandolim
nem a roupa-de-ver-a-Deus. Agora, bem escuro, é o seu velório,
morta da Santa Casa, lhe descubro o rosto, morte, esquife e enterro à

Você também pode gostar