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Crônicas

Maria Judite de Carvalho (1921-1998)

Perplexidade

A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos
outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não
percebo», disse.
Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de
olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o
jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o
écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha
idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente,
com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não
perceber. «Não percebo», repetiu.
«O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira,
aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava
alguém com requintes de malvadez.
«Isto, por exemplo.»
«Isto o quê»
«Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a
filha de oito anos, tão subitamente.
Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de
aritmética e os outros.
«Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
«Não percebo.»
«Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar,
para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão...Nos
filmes, nos anúncios...Como é a vida, afinal?»
A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se
prepara para uma corrida difícil.
«Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração. «A vida...»
Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que
ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.
«A vida...», repetiu.
As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas
cortadas.

Maria Judite de Carvalho in «O Jornal», 2-10-81

Muito grande é o mar

Estava o rapazinho a olhar para o mar com todo o seu olhar deslumbrado de
primeira vez, quando «a voz» lhe perguntou quando é que iam ao banho. O
rapazinho não queria dar parte de fraco — fraquezas nunca tinham sido com ele
— mas estava francamente assustado e também, é certo, possesso de um
deslumbramento sem limites que era quase doloroso interromper. Ele não sabia
que era deslumbramento o que sentia, não sabia muitas coisas, sabia mesmo
poucas, e então pensava coisas à sua medida como «Isto é grande como tudo.
Isto é maior do que todos os rios juntos. Muito grande é o mar».
O outro riu com um riso amalandrado: «Olha para aquela, ali. Olha que vale a
pena». Ele desviou o olhar para a rapariga que passava, mas o olhar não se lhe
deteve muito tempo nela, ultrapassou-a, transformou-a em ser transparente,
voltou a abarcar aquele mar quase rio de praia popular, mas que a ele lhe parecia
terrivelmente agitado e perigoso. Havia uma onda a fazer espuma, sempre ali, no
mesmo sítio, porquê?
«Aquela onda, pá.»
«E então?» riu o outro, cheio de experiência porque já estava em Lisboa havia
dois anos e fora duas ou três vezes à praia.
«Porque é que ela faz aquilo, pá?»
«Sei lá. Rebenta, pronto. Quero é ir tomar banho. Estou com um destes calores.
Anda daí.»
«Achas que não há perigo?»
A voz riu, troçou, rebolou-se, no gozo. «Tens cada uma! Não vês aquela gaja?»
«Sabe nadar.»
«Qual! Ali há pé. Mexe os braços a fingir, é o que eu faço. Mas um dia destes vou
aprender, olá se vou. Não é só levar batatas e feijões a casa das freguesas. Uma
pessoa tem que viver. Não achas que uma pessoa tem que viver?»
O rapazinho não sabia bem o que era viver. Então não vivia, ele? Comia, dormia,
viera da terra há um mês para a loja do sr. Firmino, trabalhava portanto, sempre a
subir e a descer escadas. Mas o outro dizia viver, como quem sabe que viver é
outra coisa. Então...
«Vamos?»
«Está bem...» (Com reticências, sem grande vontade. Com um certo ou até um
grande receio.) «Está bem, pá.»

O corpo apareceu dias depois. Ninguém o chorou verdadeiramente, porque era


órfão, e ninguém já se lembra do seu rostinho melancólico até porque isto
aconteceu há já alguns anos. Quantos, não sei.

Maria Judite de Carvalho, A Janela Fingida

VOO NOCTURNO

Passa todas as noites à mesma hora. Nem sempre o ouço, ou porque estou a
dormir ou porque o vento arrasta o som para longe da minha janela. Às vezes
fico atenta, penso: faltam dois minutos, falta um minuto, vai passar. Para onde?
Não sei nem nunca procurei sabê-lo. No entanto, nada mais fácil. Marcava um
número, ouvia uma voz definitiva e serena, atenciosa, dizer: «Informações, bom
dia (ou boa tarde, ou boa noite).» Eu fazia então a minha pergunta: «Pode dizer-
me, por favor, para onde vai o avião que passa todas as noites às tantas horas em
frente da minha janela?» Mas perguntar para quê? Se soubesse era capaz de nunca
mais o ouvir, de ele se transformar, muito simplesmente, num dos muitos ruídos
das noites silenciosas. Assim, ouço-o aproximando-se e logo a afastar-se para
onde vai, para qualquer lado.
Quantas pessoas dentro dele partem para sempre, para um sonho que até pode
ser, quem sabe, um mau sonho? Neste momento, porém, hoje, agora, elas vão
triunfar, vão a caminho da esperança e a sua viagem é verde. Vão ser felizes. Vão
ganhar melhor esta coisa difícil que é a vida. Vão ver, muito simplesmente,
mundo. Talvez seja aquela a sua primeira viagem aérea. Talvez seja aquela a sua
última viagem. Talvez vão para não voltar. Talvez voltem um dia destes.
Não, nunca perguntarei. Vou ouvi-lo passar quase todas as noites, quando não
durmo ou o vento não lhe arrasta para longe o som. E vou partir também. Não
sei para onde, claro está.

Maria Judite de Carvalho em «O Homem no Arame», Bertrand 1979


PESSOAS DE VERBO COMPLICADO

Até podem não ser nada complicadas a falar nem na sua maneira de ser. Até é
possível que sejam pessoas extremamente simpáticas e de trato agradável. Mas aí
está. Por qualquer razão que pode ser simplesmente o desempenharem um cargo
importante, o usarem um nome ilustre, o terem uma fortuna considerável, as
referências que são feitas trazem o tal verbo complicado. E então o senhor
Fulano não vai, desloca-se; o senhor Cicrano não fala, usa da palavra; o senhor
Beltrano não estuda um assunto, debruça-se sobre ele.
Se observarmos com atenção estas frases poderemos verificar que o «deslocar-se»
uma pessoa tem, de facto muito mais dignidade do que o «ir» puro e simples.
Uma pessoa desloca-se, isto é, sai do lugar confortável onde se encontrava, e isso
é um esforço, um favor que faz a alguém, é como se arrastasse atrás de si um
manto, sente-se tudo isto no verbo, não é verdade? Agora «usar da palavra».
Notem como é bela esta expressão. Nada de falar, qual! Falar está ao alcance de
qualquer pessoa, todos nós falamos, é só abrir a boca e lá vai disto, agora usar da
palavra poucos são capazes. É necessário pegar nas palavras, escolher as
melhores, as de ressonância mais perfeita, manejá-las com arte, usá-las por fim. E
«debruçar-se » sobre um assunto? Estudar implica necessidade de trabalho, isto é,
confessa ignorância sobre o referido assunto. Debruçar-se, inclinar-se, enfim, dar
uma breve vista de olhos, que diferença! A pessoa curva um pouco a cabeça, ao
de leve, claro está, e abrange tudo, recorda tudo, sente-se logo capaz de falar
horas e horas sobre o caso.
Vendo bem, pensando melhor, creio que as pessoas, algumas, enfim, continuarão
deslocar-se daqui para ali, a usar da palavra, a debruçar-se sobre os assuntos.
Porque não haviam de continuar? É bom não esquecer que nascemos na terra do
V. Exª e sua Exª Família.

Maria Judite de Carvalho, 1975

Uma Mulher

Tinha nesse tempo, contou, sete ou oito anos. Uma pessoazinha calada, metida
consigo sempre em quarto lugar porque havia três irmãos que seriam homens um
dia, e que eram, por isso mesmo, muito mais importantes, é normal. Os pais,
gente do povo, ainda não se tinham lembrado – lembrar-se-iam algum dia? – de a
mandar à escola. Coisas que acontecem quando há muito trabalho, pouco
dinheiro e muita ignorância. Ela, porém, aos sete – ou oito - anos, já sabia o que
queria, qual o caminho a tomar. Não o mais fácil nem o mais divertido, o mais
inteligente. E uma manhã de Outubro arranjou-se, vestiu-se, e, sem dizer nada
em casa, ei-la à porta da escola. Perguntaram-lhe ao que vinha, respondeu que
queria estudar. Se estava matriculada. Não estava. Acharam-lhe graça, decerto,
disseram-lhe que as coisas não se faziam assim e que era preciso levar a cédula
pessoal e não sei que mais. A mãe que aparecesse. Ela respondeu logo que a mão
não podia aparecer, tinha muito trabalho, e depois foi a correr buscar a cédula e
não sei que mais. Enfim, aos sete, oito anos, matriculou-se. E não foi um gesto
irreflectido de criança, logo esquecido no dia seguinte. Fez a quarta classe e com
a melhor classificação. Não lhe compraram os livros, mas uma das professoras,
que era católica, achava-lhe graça e conversava às vezes com ela. Soube assim que
não era baptizada. Baptizou-se pois e a professora foi sua madrinha. Foi ela quem
a convidou. Essa madrinha ajudou-a muito dando-lhe os livros, uns novos,
outros em segunda mão. Mas serviam e ela foi sempre a melhor da aula. Quando
chegava a casa tinha de ajudar a mãe, mas depois agarrava-se aos livros e aos
cadernos com entusiasmo.
Feito o exame nem se lhe pôs a hipótese de continuar, como poderia ser? Havia
ali por perto uma costureira e ela foi oferecer-se para ajudar. Mas com um certo
amargo de boca. Mais tarde casou, enviuvou, teve dificuldades, grandes
dificuldades.
Às vezes vendo-a trabalhar, ouvindo-a falar, penso que talvez de futuro as
pessoas possam ser aquilo que valem e não aquilo que vale o cofre ou o
ordenado dos pais. E que um homem, seja qual for o seu valor pessoal, não seja
sempre mais importante do que uma mulher.”

28 de Novembro de 1971

Gaiola é um eufemismo. Dizemos gaiola para não nos sentirmos mal com a
nossa consciência. É bonito ter um pássaro numa gaiola. É decorativo. É alegre.
Uma gaiola luxuosa, de sala, ou modesta, de fora-da-janela. Os pássaros cantam,
que é a sua maneira de existir. Mas sabemos lá se estão alegres ou se morrem de
tristeza. Decidimos que cantam, pronto. Eis-nos de consciência tranquila.
Mas gaiola: pequena clausura para aves, diz-me este dicionário que tenho à mão.
Clausura, sim. Chamemos-lhe, porém, gaiola e pintemo-la de doirado e demos à
pequena ave de asas desnecessárias comida com fartura e água fresca.
Quem, senão os mal-intencionados, irá pensar que aquilo é uma terrível prisão
perpétua?

Maria Judite de Carvalho, "Diários de Emília Bravo" (Organização de Ruth


Navas), Lisboa, Caminho, 2002, p. 185.
21 de julho de 1971

DOMINGO. É silencioso e macio, atento, aproxima-se com largos vagares de


tigre, como se visse, nos pés das cadeiras e nos das mesas, troncos de uma
antiquíssima floresta cheia de perigos. Um ruído, muito leve, e ei-lo alerta, pronto
para a fuga desavorgonhada ou para o ataque. Sabe - sente - o que lhe convém
fazer. Não tem brio nem se sente na necessidade de ajudar alguém em apuros.
Também, verdade seja, não conta com o auxílio de ninguém. A floresta com
tecto onde habita pertence-lhe, e vai buscar a comida onde a encontra, e o
descanso onde ele é mais apetecível. Tudo lhe é dado e a gratidão não é o seu
forte. Aquela é a sua casa-floresta, e já faz muito consentindo em a compartilhar
com os humanos. Mas talvez esse consentimento seja egoísta e ele goste de os
sentir por perto. São seres que acendem lumes, cozinham, abrem janelas por
onde entra o sol. Seres, enfim, muito úteis a um gato.

Maria Judite de Carvalho, "Diários de Emília Bravo", Lisboa, Caminho, 2002, pp.
118-119. (Crónica publicada no suplemento 'Mulher' do "Diário de Lisboa")

A CRIANÇA E O BARCO

O Quim é um garotinho sem paraíso para viver nem para sonhar, porque mesmo
para sonhar paraísos é necessário um mínimo de prática ou até de teoria. Os pais
do Quim também não tiveram paraíso. Todos os elos com a aldeia natal se
haviam quebrado ou gasto no passado, e ei-los pobres na cidade e seus
prisioneiros para a vida. A gente humilde, recém-chegada das aldeias, sonha com
umas férias no Verão. Viaja de camioneta ou de comboio apinhados, mas lá
diante está o ar puro, a água boa, as coisas da terra. Mas os pobres sem nada
senão isto?
O Quim tem um barco de plástico que alguém lhe deu no ano passado pelo
Natal. Com receio de que se partisse, colocou-o em cima do armário, à espera de
uma grande oportunidade que não chegou, a de uma ida à praia. Aqui há dois
anos foi umas vezes, com o pai, mas nessa altura ainda não tinha o barco e este
Verão não pode ser porque a vida está cada vez mais cara, dizem lá em casa
todos os dias, e o pai, coitado, trabalha ao domingo.
Numa manhã de sol resolveu-se. Foi buscar o barco e meteu-se a caminho de um
jardim seu conhecido que tem ao centro um lago redondinho com um repuxo e
com peixes. Estava frio e talvez por isso não havia ninguém. O menino, muito ao
de leve, colocou o barco sobre a água, e, sem largar o cordel, ei-lo a bordo em
plena aventura. O repuxo central agitava o mar mediterrânico, e pelas
profundidades submarinas passavam inquietantes tubarões avermelhados. O
Quim esteve ali mais de uma hora e, entretanto, viu as cataratas de um Niagara
qualquer encontrado numa história de quadrinhos, sonhou um barco pirata,
avistou - ia jurar que sim - a serpente dos mares. Depois começou a chover e o
barco (caravela talvez, iate nem pensar nisso) ia naufragando sem glória.
Pegou nele e regressou a casa. Chegou molhado, constipado e feliz. Coisas de
menino.

(Crónica publicada no suplemento "Mulher" do "Diário de Lisboa", em 22 de


novembro de 1972. Fonte: "Diários de Emília Bravo" (organização de Ruth
Navas), Lisboa, Caminho, 2002, p. 260-261).

Crónica de 21 de março de 1972.


A TÁBUA QUE PASSA

Estamos, ignorantes, em plena corrente, e agarramo-nos à tábua que passa sem


termos consciência de que também ela é uma simples coisa sem raízes à
superfície das águas. Desejamos os pés no chão e não acreditamos que este
simulacro de chão nos foi emprestado para um brevíssimo passeio que um dia
destes terá o seu fim. E então segurança é a palavra-fada. Todos a desejamos,
fazemos tudo por a conseguir mesmo antes de sabermos o que ela significava,
disso se encarregaram os nossos pais. Estudamos, pois. Empregamo-nos. Somos
seguros, só dizemos o que queremos. Somos seguros, só gastamos o
indispensável. Há mulheres que casam "bem" para se encontrarem a salvo na
floresta. Seguras. E fazem-se seguros de vida a pensar no dia de amanhã dos
nossos. E fazem-se seguros contra acidentes a pensar no nosso dia de amanhã.
Seguramos a casa e o carro. Há quem segure a voz ou as pernas ou as mãos
porque ganha a vida a cantar, a tocar, a dançar. Há quem tenha uma renda
vitalícia. E se ninguém sonha com a reforma é porque ela não significa (longe
disso) segurança, ficou quieta, lá longe e o custo de vida pulou. Lutamos corpo a
corpo, traímos, matamos senão com obras pelo menos com palavras, e tudo isso
para nos sentirmos seguros. E procuramos o psiquiatra ou o padre para ficarmos
mais seguros ainda.

Tudo isto e nós em plena corrente e o rio a arrastar-nos para o mar e nada nada a
fazer.

(publicado no suplemento "Mulher" do "Diário de Lisboa"; fonte: "Diários de


Emília Bravo", (organização de Ruth Navas), Lisboa, Caminho, 2002, p. 230-
231)
História sem palavras

Desço a rua, entro no metropolitano, estendo à menina muda as moedas


necessárias, aceito o rectangulozinho que ela me oferece em troca, desço a
escada, espero, paciente, que se aproxime o olho mágico da carruagem
subterrânea. Ela chega, pára, parte. Lá dentro, o silêncio do mar encapelado, isto
é, o de toda aquela ferragem barulhenta, som de não dizer nada. Na minha
paragem saio, subo as escadas do formigueiro ou do túnel de toupeiras por onde
andei. E sigo pela rua fora – outra rua –, entro numa loja. De cesto metálico na
mão (estamos na era do metal) escolho caixas, latas e latinhas, sacos. Tudo
aquilo é bonito, bem arranjado, atraente, higiénico, impessoal. A menina da
máquina registadora recebe a nota, dá-me o troco. Ausente, abstracta. Verá
sequer as caras que desfilam diante de si? Apetece-me dizer qualquer coisa, que o
troco não está certo, por exemplo. Que me deu dinheiro a mais. Ou a menos.
Mas não digo nada. As máquinas sabem o que fazem. As meninas das máquinas
também.
Tenho, de repente, saudades do bilhete de não sei quantos tostões que dentro de
alguns anos deixará de se pedir em eléctricos e autocarros a um funcionário com
cara de poucos amigos, do merceeiro que não nos perguntará mais como estamos
nós de saúde, e a família, pois claro. Saudades do tempo das palavras, às vezes
insignificativas, de acordo, mas palavras.
Volto a casa com as minhas compras, higiénicas, atraentes e silenciosas. Sinto-me
no futuro. Não gosto.

Diário de Lisboa, 22 de julho de 1971 / Este Tempo - Crónicas (antologia


organizada por José Manuel Esteves e Ruth Navas), Lisboa, Caminho, 1991

NA FEIRA DE S. PEDRO

Conheci-a uma tarde há cinco ou seis anos, na Feira de S. Pedro de Sintra. Olhei-
a e fiquei parada, não podia deixar de contemplá-la. Depois dei uma volta e
tornei ao mesmo sítio, com medo de já não a encontrar. Lá estava entre o castiçal
de bronze e a taça chinesa, mas o homem não cedia um milímetro no preço
inicial. Dei outra volta. Cedeu meio milímetro. Trouxe-a comigo embrulhada
num velho jornal.
Deitei fora o jornal que a embrulhava e coloquei-a sobre a cómoda, com
veneração. Era linda mas estava extremamente suja. As cores, os dourados mal se
viam sob a espessa camada de sujidade. Tinha, no entanto, receio de que a água a
estragasse ou a modificasse muito, e eu gostava dela assim, com o seu grande
rosto pálido e balofo, aquelas pregas castanhas do vestido, as mãozinhas
minúsculas postas com unção. Não era uma imagem, talvez uma simples beata
imobilizada para todo sempre, assim, de pé e a orar.
À noite, aquele ruído. Levantei-me, fui ver. Era nela. Um bicho da madeira sem
importância, mas que a habitava. A verdade, porém, é que o ruído era tão forte
que não nos deixava dormir.
Pensei em tirá-la do quarto mas gostava de a ver antes de adormecer, de a olhar
quando acordava. Depois durante o dia parecia extremamente tranquila, incapaz
de todo aquele reboliço nocturno.
Um dia peguei nela, estudei-a, risquei-a ao de leve com a unha. Deus do céu, tão
suja! Resolvi lavá-la mas, quando a água estava já negra, notei que a madeira
perdera a sua lisura inicial, tinha saliências e reentrâncias, parecia cortiça. Limpei-
a à pressa. Estava mais linda e mais frágil. Levei-a de novo para a cómoda e nessa
noite esteve silenciosa porque o bicho da madeira morrera.
Há cinco ou seis anos que se mantém calada e serena, de mãozinhas postas. Com
o tempo deixei mesmo de a ver.

Maria Judite de Carvalho in «A janela Fingida»

LIVROS ENCADERNADOS

Os livros vestidos de bom cabedal claro ou escuro, com doirados e até muitos
doirados, lembram-me sempre gente com roupas agressivamente caras, pelos por
exemplo, e jóias, e fatos de corte inglês e etiqueta de uma rua qualquer londrina,
muito categorizada. São livros frios e distantes, que ignoram os outros, isolados
em si próprios por aquele traje que usam. Livros para guardar e não para ler,
móveis-imóveis que já ninguém se lembra de tirar da estante porque quase
perderam a sua velha qualidade de livros. São é objectos para vista, objectos mais
ou menos belos que enfeitam uma casa. Pouco mais.
Eu gosto é dos livros que foram envelhecendo connosco, que foram perdendo
connosco as suas bonitas cores de outrora, a sua actualidade. Livros vivos,
embora às vezes doentes. Pegamos num deles e pensamos: como esta capa
murchou...como é diferente a moda actual...Mas há ao mesmo tempo os jovens
que vão chegando pelo correio ou que vamos trazendo da livraria, gritantes e
entusiásticos como os jovens de todo o mundo, outros discretos, suavemente
coloridos. Têm as costeiras bem firmes (depois +e que se vão curvando um
pouco), e nas folhas recém-abertas de alguns aquela leve franja de papel que com
o tempo desaparecerá. São assim os livros que me agradam (exteriormente,
entenda-se, interiormente é outra história). Vejo-os melhor, sei melhor o que
contêm, vestem-se como lhes apetece, nunca uma farda anodina como os outros,
os tais bem encadernados, em eterna posição de sentido nas suas estantes. São
livros com quem não faço cerimónia, trato-os por tu, conheço-os como as
minhas mãos, sei sempre que estão ali e não além.

Maria Judite de Carvalho in «A janela Fingida»

BOAS TARDES

Eis umas tantas figuras de cera, perfeitíssimas, sentadas em volta da sala. Uma
delas representa um funcionário reformado, outra uma senhora-forte-já-não-
muito-nova, a terceira uma teen ager cuidadosamente despenteada, a quarta uma
mãe orgulhosa, fazendo um casaquinho às riscas, a quinta um talvez-
universitário, a sexta um jovem tecnocrata. Enfim, se não são isso imitam muito
bem. Há quem finja ler o jornal, quem tenha um livro aberto entre as mãos,
quem tricote (será de cera, o casaquinho?), quem olhe cientificamente para a
parede em frente. Uma mosca passa, ouve-se-lhe de repente o zumbido. Veio
pela janela aberta, por ela saiu. O ambiente não atrai nenhum ser vivo, mesmo
mosca.
De súbito abre-se a porta do museu e entra um homem. Aposto que nasceu
algures, no campo, e nunca se habituou- talvez nunca se habitue - às pessoas
fechadas, incomunicáveis e estanques que matam os outros, os que não
conhecem, os que, portanto, não existem. Ignora que entrar, mesmo só por uma
curta frase amável, é malvisto pelas pessoas-mundo. Por isso abre a porta e diz:
«Boa tarde.»
Ninguém responde. NInguém move, sequer, os lábios.
E a voz do homem põe-se a durar muito, ali, naquela sala de espera, de repente
insolúvel, logo envergonhada. E ele, o dono da voz, envergonhado também
momentaneamente, dirige-se para a janela e fica a olhar lá para fora.
Se fosse mosca teria partido, como a outra, há bocado.

Da colectânea «O HOMEM NO ARAME», Bertrand, 1979

O rapaz e o livro

«Só está contente a ler», dizia a mãe do rapazinho. «Trabalho não é com ele». No
seu espírito, leitor e mandrião identificavam-se, via-se à distância. E estava na
razão, na sua razão. Ali, um homem não pode perder tempo com leituras. E ali é
que ela e o filho-pastor, já sem pai, viviam e lutavam para subsistir. Isto passava-
se há coisa de catorze anos.
Quando vim para Lisboa resolvi mandar-lhe livros com a indicação «para ler ao
domingo». Esperava poupá-lo assim às iras familiares. Fui à estante dos «restos» e
fiz uma escolha que julguei criteriosa. Uns livros «para rapazes», dois ou três de
Emílio Salgari que ali tinham ancorado não sei como, alguns policiais. Óptimo. E
se lhe mandasse um bom livro? À tarde passei pela livraria e comprei-lhe um
volume acabado de sair e de que eu tinha gostado muito. E mandei o embrulho
para o correio.
Nada de resposta, o que era natural. Quem lhes ensinou que se deve agradecer
um presente, mesmo pequeno? E o caso caiu no esquecimento.
No ano seguinte voltei à quinta pelo Natal.
O rapazinho ainda por lá andava a guardar ovelhas. Veio ter comigo, todo
risonho, de pelico e bordão.
«Muito obrigado pelos livros», disse. «Gostei muito, então de um deles gostei
mesmo muito. Já o li três vezes».
«Ah sim? Então de qual?»
«O nome não me lembro, mas era de um senhor Cristina Alves».
«Alves?»
«Alves, pois. Um livro muito bonito.»
Devia ser qualquer livro que eu metera no embrulho e de que me esquecera. «Era
então muito bom, dizes tu?»
«É que nunca li nada tão bonito.» E os olhos do rapazinho brilhavam. «Os outros
que a senhora mandou, deve haver quem goste mas eu confesso que não gostei
assim muito. Agora o livro do senhor Alves...Eram histórias, sabe a
senhora...Havia uma então...Ah agora me lembro como se chama: «Olhos de
água».
Alves Redol, pronto. O tal livro de que eu gostara muito. Senti-me de repente
envergonhada pelos outros que lhe tinha mandado como quem os deita fora,
muito envergonhada. É uma estupidez pensar que um rapazinho lá porque tem
só a 4ª classe, lá porque guarda ovelhas no fim do mundo não pode ter já o seu
gosto e esse gosto não pode ser certo.
Lembrei-me desta história sem história há alguns dias, durante uma conversa
sobre «teatro para o povo». O que deve dar-se-lhe? havia quem perguntasse.
Teatro difícil? Teatro fácil» Nem uma coisa nem outra talvez. Teatro bom e não
importa que lhe chamem bonito, é um modo de dizer»

Maria Judite de Carvalho em «A Janela Fingida».


Seta despedida

"Todas as pessoas foram morrendo, mais tarde ou mais cedo, de mortes


diferentes que podem ter sido a chamada morte ou a chamada vida, e acabaram
por desaparecer dentro de uma cova e cobertas de flores, ou talvez à superfície,
na outra ponta da cidade ou do outro lado do mar. Foram-se tornando vagos
habitantes de uma mente desmemoriada, como eram, que vozes tinham? Quanto
à menina, às meninas, também se foram apagando, apagaram-se quase por
completo, nunca totalmente, claro, delas só ficou quem nesse instante teve uma
espécie de vislumbre, antes de o nevoeiro descer de novo sobre a superfície dos
dias.

'Fui aquela, esta, esta ainda', gosta de pensar. Entre uma e outra nunca houve
uma transição lenta, suave e imperceptível como são as transições, mas uma
espécie de dilúvio universal, e todos desapareceram debaixo das águas revoltas e
das terras e das coisas que elas arrastavam consigo. Só ficou a casa-arca, boiando
mal ou bem, mais ou menos à deriva, e dentro dela a mulher, à espera sabe lá de
quê, à espera de coisa nenhuma. Como seria? De vez em quando há uma resposta
à pergunta que faz. Nesses momentos surge entre nada e nada, bem nítida, quase
viva, mas são breves instantes e tudo foge.
Esquece-se em frente dos espelhos, principalmente do grande, do 'hall'. Vai
avançando devagar, estaca como se não pudesse dar mais um passo ou como se
dá-lo fosse perigoso, portanto desaconselhável. O espelho é, de súbito, um lago
imóvel e a sua imagem reflecte-se com nitidez na água de vidro. A luz é fraca e
isso ajuda a profundidade dos pegos. E ela boia à superfície, desfaz-se, refaz-se."

Maria Judite de Carvalho, 'Seta Despedida', in "Seta Despedida" (2ª ed.),


Publicações Europa-América, 1995, pp. 11-13.

Porque "Este tempo" é cada vez mais o nosso

"E conforme vamos subindo os lentos, difíceis degraus que nos levarão a um
andar baixo ou um pouco mais alto, cada vez com mais sol e ar menos poluído -
há quem suba de elevador e só pare nos píncaros do arranha-céu, onde se respira
ar de montanha, mas isso acontece sempre aos outros -, damos connosco já não
gente (onde isso ficou!) mas peçazinha de máquina, parafuso, prego, roda
dentada, sei lá, um desses pequenos objectos sem importância que ninguém vê.
Subitamente fazemos parte de um todo e não podemos libertar-nos, voltar atrás,
ao tempo de coisas simples, naturais e tranquilas que vivemos ou conhecemos de
ouvir contar. É que não podemos fugir, estamos para todo o sempre presos na
engrenagem. Tinha seus contras, o tempo que passou, mas nele não havia
necessidade de consumir tanto e tão depressa, de trabalhar tantas horas ou tão
velozmente. Era um tempo de estrelas à noite (agora fugiram todas para dentro
dos telescópios), água fresca (não gelada), nesga de terra que às vezes era nossa.
Aqui, agora, não possuímos nada. Tudo é alugado a alguém ou pago a prestações.
Quando elas, as prestações, acabam, começam logo outras porque o que
comprámos está velho e bom para a sucata.
É assim este tempo em que vivemos."

Crónica de Maria Judite de Carvalho publicada no Diário de Lisboa em 2 de


outubro de 1971.

Sobreviventes

Sobrevivem de uma pensão ou de uns papéis de crédito. Vivem muitas vezes de


esmolas, pois claro, embora não as pensem assim por autodefesa. São solteiras ou
enviuvaram há tantos anos que a memória, já senil, faz com que voltem mais
facilmente do seu tempo-fada de raparigas prendadas, treinadas para mães de
família. Para boas donas de casa que não deixaram totalmente de ser.
Estão neste mundo mas não o conhecem. Estarão mesmo neste mundo? E não
estão. Vivem num tempo incerto, dentro de uma pequena e velha casa de paredes
já sem cor, de tapetes já sem lã, ignorantes de tudo o que se passa, se passou,
talvez venha a passar-se lá fora, na vida. Não compreendem. Não há quem lhes
explique. De resto, já seria tarde e não compreenderia mesmo que lho
explicassem. Os seus problemas são outros, desprezíveis e tão importantes, vitais.
O terror, por exemplo, de que um dia o senhorio se lembre, ou o deixem
lembrar-se, de que aquela renda ficou fossilizada, e ela paga uma miséria que é ao
mesmo tempo uma fortuna. O medo de que a sobrinha ou o afilhado deixem um
dia de lhes dar aquela mensalidade de fome, mas enfim, não têm obrigação, e eu
disse esmola porque a sobrinha e o afilhado não têm mesmo obrigação, e a
amizade que sentem não é muita, já não é muita. Que pode dar-lhes, em troca,
aquela mulher tão velha, à beira da morte? Têm um gato, têm uma gaiola com um
pássaro que lhes cortam a solidão, têm um vaso com uma planta que não se
esquecem de regar. Não sabem de guerras acabadas nem de guerras começadas,
nem de razões ou desrazões. Não lêem o jornal. Nunca o leram, talvez
preferissem bordar, fazer renda, mas agora nunca o comprariam até porque
aqueles escudos diários seriam um rombo no seu magro orçamento. Não deixam
uma luz acesa quando isso é desnecessário, mas não porque as autoridades
pedem para se poupar energia. Porque sempre pouparam, só isso. Desde quando
esse sempre? Já o esqueceram.
Maria Judite de Carvalho em «O homem no Arame» (Textos publicados no
Diário de Lisboa entre 1970 e 1975).
Para ler na aula:
https://outrovalormaisalto.files.wordpress.com/2015/02/1-c2ba-teste-versc3a3o-a.pdf

https://ov.portalpsi.net/EXAMES_NACIONAIS/2017/9ano_Portugues_2fase.pdf

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