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Manuel António Pina

CRÓNICA, SAUDADE
DA LITERATURA
1984-2012
antologia

selecção de crónicas de
Sousa Dias

ASSÍRIO & ALVIM


ENTRE JORNALISMO E LITERATURA:
AS CRÓNICAS DE MANUEL ANTÓNIO PINA

Poucas anedotas ligadas ao cinema — e não é estultícia evo-


car o cinema num texto sobre um autor que, poucos o sabem, era
um cinéfilo assumido — são tão famosas como esta. Passa-se em
Hollywood, no ano de 1947. Durante o funeral de Ernst Lubitsch,
dois outros grandes cineastas daquela época, William Wyler e Billy
Wilder, conversam entre si até que Wilder suspira: «acabou-se o
Lubitsch…». «Pior do que isso», responde Wyler, «acabaram-se os
filmes de Lubitsch!». Também para a imensa maioria dos leitores
e admiradores de Manuel António Pina, e estamos a falar aqui de
alguns largos milhares de pessoas, o desaparecimento do escritor
significou sobretudo uma espécie de súbita orfandade, de falta irre-
parável, com o fim das pequenas crónicas diárias que ele publicava
há vários anos na última página do Jornal de Notícias (JN).
Sem dúvida que o reconhecimento do estatuto de Manuel
António Pina como nome de primeiríssimo plano nas letras portu-
guesas, em particular na poesia e na literatura infantil, cresceu e se
consolidou cada vez mais nos anos deste século, por coincidência
ou não os anos Assírio & Alvim, chancela editorial para a qual se
transferiu em 1999. A prova desse reconhecimento, da entrada em
vida para o panteão dos escritores de língua portuguesa, na qual
ele suspeitou no entanto uma premonição («quando atribuem um
prémio destes às pessoas é sinal de que vão morrer», comentou

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logo na primeira hora com a família), veio com a atribuição do
Prémio Camões em 2011, um dos mais consensuais de sempre
quer por parte do júri quer por parte da crítica e do público. Mas o
sucesso «pré-póstumo», como diria Musil, do escritor não explica
a sua enorme popularidade que chegava a surpreendê-lo, e que de-
corria evidentemente das suas crónicas e das características críticas
e textuais delas, ímpares no nosso jornalismo.
A modéstia levava-o a (des)considerar as crónicas como uma
servidão diária que afirmava com humor só aceitar para alimentar
a legião de gatos que tinha em casa e que só serviriam, como tudo
o que é jornal e como diziam os velhos tipógrafos do JN num dito
que ele tantas vezes citava, para embrulhar peixe no dia seguinte.
Ou seja: segundo ele as crónicas, até pelo seu registo diarístico (jor-
nalístico) ou de opinião sobre factos passageiros, não possuiriam
nenhum valor literário, seriam feitas como tudo o mais mas mais
do que tudo «da matéria da morte e do esquecimento», anacróni-
cas fora da sua efémera duração, e como tal constituiriam uma
dimensão menor, extraliterária, da sua obra. E no entanto, pelas
suas características, essas crónicas fazem plenamente parte, de ple-
no direito, da obra literária de Manuel António Pina. Certo que
elas, expectavelmente bastante desiguais pelo ritmo forçado da sua
produção («espontaneamente, se calhar nem uma vez por ano te-
nho opinião. Mas sou obrigado (pagam-me para isso) a ter opinião
todos os dias»), não são o melhor dessa obra, e que não seria nunca
apenas por elas que o autor ficaria, como cremos que fica, muito
para lá do seu desaparecimento. Mas as crónicas de Manuel An-
tónio Pina, como qualquer leitor delas sabe, não são textos de um
jornalista mas de um escritor, e de um grande escritor, ou do grande

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poeta que é o que prima facies ele é. Se ele definia a sua poesia, por
complexas razões de poética que não cabe aqui explicar, como «sau-
dade da prosa», as suas crónicas jornalísticas podem definir-se, de
certo modo determinante da sua popularidade, como saudade da
literatura. Ele próprio o admitia, ainda que por considerar a escrita
cronística como um subgénero, mais do que jornalismo e menos do
que literatura, a meio caminho entre ambos: «jornalismo com sau-
dades da literatura, ou literatura com remorsos de ser jornalismo».
Em todo o caso é o singular fulgor literário dessa escrita que, qual-
quer que seja o assunto de cada crónica, resgata a generalidade delas
da sua efemeridade ou passagem e faz que o seu passar seja «o seu
essencial e contraditório modo de permanecer» (palavras do autor
no preâmbulo de O Anacronista).
Como no caso da sua poesia, as crónicas de Manuel António
Pina, enquanto textos de crítica social «saudosos da literatura»,
não se inscrevem numa tradição, numa linhagem preexistente.
Entre nós sempre houve e continua a haver escritores que publi-
cam regularmente crónicas em jornais ou revistas, mas sempre
com feições distintas, como breves exercícios literários ou como
crítica cultural. Se fosse obrigatório indicar «precursores» do cro-
nista, teríamos talvez de recuar mais de um século, até ao Rama-
lho Ortigão de As Farpas e ao Eça de Uma campanha alegre. Por
outro lado, num certo sentido que as aproxima de facto dessas
páginas queirozianas, as crónicas sociais do poeta, apesar da sua
óbvia intenção crítica, nunca eram críticas, nunca argumenta-
tivas: ironizavam ou humorizavam. Isto é: ridicularizavam pela
linguagem (ironia) ou produziam pela linguagem a auto-irrisão
(humor) do seu objecto. Mas as mais belas das crónicas, aquelas

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em que o número de caracteres e o ritmo quinzenal permitiram uma
maior respiração literária, são as que escreveu para revistas, para a
Visão primeiro e para a Notícias Magazine (NM) nos últimos anos.
Nelas surge o poeta de corpo inteiro, por exemplo a traçar com
muito poucas palavras um retrato de Fiama Hasse que no-la res-
titui mais fotograficamente do que uma fotografia propriamente
dita: «o sorriso caminhava à sua frente, transportando-a mal to-
cando o chão».
As palavras dessas crónicas, e sobretudo o espírito dessas pala-
vras que uma multidão de seguidores fazia suas nas suas anónimas
indignações sociais, ficarão durante muito tempo a reverberar na
memória dos leitores agora desamparados dessa voz. Vamos todos
sentir a falta dessa voz que cada manhã nos trazia a sua gaia ciên-
cia crítica, uma referência ética num tempo de ignomínias, assim
como a indizível beleza do seu dizer, desse dizer em que, sempre
«por outras palavras» de que só ele tinha o segredo, o poeta cro-
nista dizia o que as nossas palavras nunca alcançariam. Mas, até
por isso mesmo, mais do que nos lamentarmos por ele ter partido,
devemos estar gratos por ele nos ter existido.

As crónicas de Manuel António Pina conheceram já duas


antologias, O Anacronista (Ed. Afrontamento, Porto, 1994, orga-
nizada pelo autor) e Por outras palavras & mais crónicas de jornal
(Modo de Ler, Porto, 2010, organizada por nós a pedido do au-
tor). A morte do escritor, tornando bruscamente completa uma
obra que permanecia aberta nas suas várias vertentes, deu razão
de ser à organização da presente antologia, que se propõe como
definitiva, da generalidade das crónicas do escritor.

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Manuel António Pina publicou a primeira crónica, «Crónica
com um homem a dormir de pé», no JN de 09.03.1971 (pouco após
ter iniciado, no mesmo ano, a sua actividade profissional como jor-
nalista, que exerceria sempre no JN, e antes de iniciar a sua carreira
literária com o livro de literatura infantil O país das pessoas de pernas
para o ar de 1973 e o livro de poesia Ainda não é o fim nem o princípio
do mundo calma é apenas um pouco tarde de 1974) e a última, «Vêm
aí os turbomédicos», em 03.08.2012 no mesmo jornal. Entre uma
e outra, portanto, mais de quatro décadas de actividade cronística,
dividida todavia em duas fases reflectidas nas duas partes desta anto-
logia. Na primeira fase (1971-1997) essa actividade manifesta-se de
maneira irregular, intermitente, ou então praticada, nas páginas do
JN e também de outros jornais e revistas, por períodos regulares mas
mais ou menos breves e interrompidos por períodos mais ou menos
longos sem escrita de crónicas. São desta primeira fase as crónicas
seleccionadas e coligidas pelo próprio autor em O Anacronista (que
reúne crónicas de 1984 a 1993) como as suas melhores dessa fase e
que aqui de novo se recolhem, não todas mas as que no seu natural
«anacronismo» se obstinam em resistir à prova do tempo. Aliás, e
para falar com rigor, é em 1992 que se fecha essa fase cronística
inicial, a que juntámos nesta colectânea as duas únicas crónicas, de
1996 e 1997, escritas para a revista Tempos livres, publicadas pelo
escritor durante o hiato de quase dez anos entre as duas fases. Só
na segunda fase (2001-2012) é que as crónicas de Manuel António
Pina, esse género jornalístico «com saudades da literatura», passariam
a ser regulares, a princípio com as crónicas quinzenais na revista
Visão (2001-2007) e depois, e até ao fim, desde 01.09.2005, com
as crónicas diárias de segunda a sexta-feira na última página do JN,

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com o título genérico «Por outras palavras», assim como a partir de
2007, e paralelamente, com as crónicas de periodicidade quinzenal
na revista Notícias Magazine (com o título genérico «A Terra vista da
Lua»). Recai sobre essa derradeira fase, mais regular, da publicação
de crónicas pelo escritor a colectânea Por outras palavras & mais
crónicas de jornal, cujo horizonte antológico cessava em 31.12.2009.
Em contrapartida, nesta nova antologia, foi considerado o con-
junto, imenso, das crónicas produzidas pelo autor nas suas duas fases.
Na escolha aqui apresentada restitui-se essas crónicas, aquém de qual-
quer arrumação por afinidades temáticas ou de genealogias e identi-
dades como nas prévias antologias parciais, à sua sucessão cronoló-
gica arbitrária, tematicamente anárquica, quantas vezes repetitivas e
recorrentes nos assuntos, mas devolvidas assim à história quotidiana
de um olhar — e que olhar! — crítico e poético. Por outro lado, em-
bora ciente da subjectividade dos critérios de selecção desta antologia
(como subjectivos seriam quaisquer critérios alternativos), ciente pois
de ter excluído crónicas que outros compiladores talvez acolhessem,
acreditamos ter reunido neste volume, expurgadas das raras distracções
ortográficas do cronista e das ainda mais raras confusões de nomes
(estas últimas assinaladas com asterisco no fundo da página), todas
as «melhores das melhores» ou as mais «intempestivas», em acepção
nietzschiana, dentre as crónicas jornalísticas de sempre do autor.
A presente antologia, só exequível em tão breve tempo pelo
apoio e colaboração da família de Manuel António Pina e do João
Duarte, constitui a homenagem póstuma, e um testemunho pú-
blico de gratidão, do antologista ao sublime Amigo e Irmão.

Sousa Dias

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O MUNDO REAL ESTRAGA TUDO

A notícia veio em vários jornais de Los Angeles e foi reprodu-


zida, com fotos, nos espanhóis El País e El Mundo (não sei se terá
saído em algum jornal português; pelo menos não a encontrei nas
edições «online» que frequento): o Rato Mickey, o Pato Donald,
a Branca de Neve, a Gata Borralheira, a Fada Sininho, Peter Pan
e outros dos meus melancólicos heróis infantis foram detidos pela
Polícia à porta da Disneylândia, em Anheim, e metidos na cadeia
como se fossem (eles, os bons) irmãos Metralha. Parece que se ma-
nifestavam exigindo melhores condições de trabalho e terão desobe-
decido às ordens do Coronel Cintra (ou, visto que a coisa se passou
na Califórnia, do Chief O’Hara) para destroçarem. Pelos vistos, as
coisas correm mal até no reino da fantasia. Os sindicatos acusam a
Disneylândia de querer impor salários que impedirão a maior parte
dos seus 21 mil trabalhadores de pagar os seguros de saúde. Procurei
o Pateta entre os manifestantes e não dei com ele. Aposto que não
está sindicalizado; ou então que foi na habitual conversa do Tio
Patinhas de que «não pode pagar mais» e furou a greve.

JN, 18/08/2008

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