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O DEUS PERDIDO

(título provisório)

AUTOR: João Peixoto


A meus amigos (inserir nomes
aqui) que nunca me deixam
perdido na floresta da vida.

Capítulo 1 – A raiva é minha melhor e única amiga.


Na Rua Belém número 255, morava um jovem com sua mãe.
Considerado baixo para sua idade, os cabelos lisos em
formato de cuia eram tão negros quanto seus olhos. Muitos
dirão que tal menino nunca existira; mas eu lhes digo que
sim, pois eu sou Moacir Anhanguera. E sou tão real
quanto as lendas das quais todos já ouvimos falar.
Ser brasileiro não é fácil. Um país com um tamanho
continental é, no mínimo, algo impressionante. Caso você
pense diferente, é porque não me conheceu, ainda.
Eu sempre penso que devemos cultivar aquilo que é
nosso, preservar o que pode ser preservado. Por isso, nossa
história vai começar com um estágio de final de semana.
Acordo após um pesadelo horrível, eu estava perdido na
floresta, correndo atrás de alguma coisa. Parecia que, seja
lá o que fosse, queria que eu seguisse por uma direção de
árvores enormes, uma mata fechada e assustadora.
- Tudo bem, filho? – minha mãe aparece no quarto e se
aproxima da minha cama, percebendo o lençol enxarcado
com meu suor gerado pelo medo.
- Tudo sim, mãe – minto. – Estou apenas empolgado
para o estágio amanhã.
Eu sei, eu sei. Mentir para mãe é algo feio, e não se deve
fazer. Mas nem eu mesmo sei o que sonhei, não seria justo
preocupa-la sem motivos.
- Sabes que não precisa trabalhar para me ajudar, filho –
mamãe respondeu.
- Estou nos ajudando, mãe – enfatizei.
Eu e ela já debatemos sobre fazer estágios relacionados
ao meio ambiente, ela acha nobre, é claro. Nisso
concordamos. Mas, principalmente, preciso ajuda-la, já
que somos só nós dois. Minha mãe diz que, se for pra
fazer trabalhos, que sejam voluntários, e sempre
argumento que precisamos de dinheiro.
Potira Anhanguera era uma mulher muito jovem e
bonita, ela me teve muito nova. Longos cabelos negros e
lisos, olhos castanhos, mãos calorosas e dona do melhor
abraço do mundo. Seu rosto possuía traços muito bem
definidos, e sobrancelhas finas. A mulher mais dedicada e
esforçada que eu já conhecera.
Minha mãe é a pessoa mais bondosa que conheço.
Apesar de eu não conhecer muito bem sua história, sei que
ela passou por maus bocados e, mesmo assim, consegue
deixar um sorriso no rosto, aquele que contagia tudo e
todos. Ela é indígena, mas veio para a cidade depois que
foi a única sobrevivente da aldeia, não sei muito mais do
que isso. Nem ao menos conheci meu pai e, toda vez que
cito qualquer coisa relacionada a ele, os olhos da minha
mãe se perdem no vazio. Consigo perceber, nessas horas,
que minha mãe esconde um passado sombrio, perigoso,
delicado e triste. Seja lá o que tenha acontecido, sei que
nada fora culpa dela. Bom, pelo menos, é o que eu consigo
deduzir. Ela sempre diz que me contaria quando estivesse
perto de fazer 18 anos, por alguma razão.
Notícia boa, completarei essa idade este mês.
- Quer ir comigo hoje ao cemitério? – ela pergunta.
Mamãe trabalha no cemitério São José Batista, uma
quadra pra frente de casa e eu, de vez em quando, a
acompanho. Geralmente fico fazendo meus deveres de
casa, sentado no chão, ou caminho pelo bairro, procurando
algo para comer ou... - Mas sem brigas, por favor – ela
conclui.
Certo, deixem-me explicar. Mentira, não tenho que
explicar nada. Eu apenas não gosto de ser desrespeitado.
Afinal, quem gosta?
- Vou tentar, mãe – eu digo, meio brincando. Ela me olha
com uma sobrancelha arqueada.
- Moacir...
- Tudo bem – eu reviro os olhos e a abraço, nós caímos
na gargalhada. Mamãe não gosta do fato de eu brigar de
vez em quando por aí, defendendo o que eu acredito, mas
ela sabe que esse é o meu jeito. Eu não posso evitar.
Com 10 anos, tive minha primeira briga.
Eu estava voltando do cemitério, com o peso da mochila
nas costas, imaginando o que precisaria fazer para ajudar
minha mãe quando chegasse em casa. Vi um cachorro
passar de um lado da rua para o outro. Quando o animal
chegou ao outro lado, um carro passou na frente, fazendo
eu perde-lo de vista por dois segundos. Depois que o carro
passou, eu jurei ter visto um fantasma acariciando o
cachorro. Sua forma era diferente de tudo que eu já tinha
visto.
Olhei para trás, assustado, e jurei ter visto um homem
pálido, com cabelos brancos, lisos e longos, e olhos tão
escuros quanto os meus. Parecia um indígena e, embora
minha mãe fosse uma, eu senti medo, bem como raiva.
O homem estava parado entre alguns postes nas ruas e,
como já estava escuro, a fraca iluminação realçava sua
expressão medonha, como se fosse me matar. As folhas
balançavam, emitindo sibilos com o vento de fim de dia.
Por culpa do medo que senti, saí correndo, e acabei
esbarrando em um homem corpulento.
- Olha por onde anda, moleque!
- Se você não estivesse sendo um babaca por aí, ao invés
de estar sendo um imbecil dentro de casa, eu não teria
esbarrado em você, brutamontes! – respondi.
Eu apanhei feio.
Sim, eu sempre tive alguns... problemas em relação a
raiva. Sempre tentei responder de igual para igual. Não me
orgulho muito, mas é quem eu sou.
Depois desse dia, mamãe me colocou em algumas
escolas de luta, e sempre me destaquei. Tive que sair
alguns anos atrás por falta de dinheiro, e por acabar
machucando demais meus companheiros. Eu sempre
sentia uma raiva inexplicável ao lutar, provavelmente
gerada pelo constrangimento de ter apanhado, alguns anos
atrás. Comecei a praticar sozinho desde então.
Sempre tive poucos amigos, pois todos pareciam se
afastar de mim. Eu sempre trazia má sorte por onde
passava, e isso repercute até hoje. Isso parece ser uma
maldição de família, daí vem meu sobrenome
Anhanguera, que significa “mau agouro”.
Nas poucas vezes que conseguia arranjar pessoas para
brincar, nós, garotos, gostávamos de guerrear. Era de
brincadeira, é claro.
Todos escolhiam espadas de plástico ou arminhas de
brinquedo nessas horas. Eu, entretanto, sempre gostava de
escolher um pedaço de madeira, um bastão. Achava mais
divertido e elegante do que uma espada comum, não sei
explicar. Sempre tinha em mente que não devia ir com
força, e me repreendia mentalmente dizendo “vá com
calma”. Mas, sem querer, eu acabava sempre machucando
algum colega, ou destruindo alguma coisa na escola. Já fui
pra diretoria várias vezes por isso.
Culpado por todos por tudo de ruim que acontecia ao
redor de qualquer um, eu não tive escolha a não ser
estudar em casa. Sozinho.
Apesar de eu pregar que devemos cultivar o que é nosso,
eu jamais consegui cultivar qualquer amizade por mais do
que algumas semanas.
E sobre o fantasma e o homem que vi?
- Ainda não, meu filho – minha mãe respondia sempre
que eu tentava conversar. Isso só me causava mais medo.
Outras vezes, a ouvia resmungar baixinho coisas como
“por favor, ainda não” ou “ele é só uma criança, o
combinado era quando ele estivesse pronto”. Ela não sabe
que eu a ouvi dizer tais frases.
Então, como você e eu podemos deduzir, o assunto da
minha conversa com mamãe ao completar 18 anos será
sobre isso. Eu acho, né.

(...)

Quando cheguei ao cemitério com mamãe, ela foi


trabalhar e eu fiz minhas tarefas de casa. Comecei a
lembrar da história do “cachorro e o fantasma” e quase
entrei em pânico. Como já estava meio tarde, resolvi ir
para casa e arrumar minhas coisas para no outro dia eu ir
para o estágio.
No dia seguinte, mamãe veio me acordar.
- Tudo arrumado pra hoje?
- Sim, senhora – respondi.
- Apenas peço uma coisa, Moacir – os olhos dela
ficaram sombrios, como quando eu falo algo relacionado
ao papai.
“Tome cuidado”, ela disse. “O zoológico é seguro, mas
fica muito perto da floresta, e com você nessa idade...”
- Pode deixar – cortei ela. Mamãe estava me assustando
com esse papo de idade, ela acha que eu fugiria? A
princípio, essa é uma atitude típica de um adolescente. Era
a isso que ela estava se referindo, né? Ou que eu sairia
escondido para algum lugar, talvez.
- Lembra daquela conversa que eu teria com você
quando chegasse aos 18 anos? – meu coração gelou, e
depois pulou de felicidade.
- É claro, mãe!
Ela disse que teríamos essa tal conversa quando eu
retornasse. Óbvio que eu fiquei feliz, e com um pouco de
receio devido ao fato que, quando ela disse, seus olhos
castanhos pareciam tristes, quase desesperados.
Entretanto, não precisei me preocupar por algum tempo.
Eu não voltaria a ver minha mãe antes dos dezoito anos.
O trabalho que escolhi fazer por livre e espontânea
vontade foi ser segurança – ou mini segurança, visto que
sou relativamente baixo – de um zoológico pertencente ao
exército. Claro que eles precisam de adolescentes sem
supervisão para defender um lugar cheio de animais como
onças pintadas de seja lá quem fosse burro o suficiente
para invadir.
Brincadeiras à parte, o exército abriu essas vagas de
estágio para que as pessoas saibam o valor de proteger a
natureza. Aproveitaram o dia de hoje, o “dia da mentira”
para chamar crianças e fazerem algumas brincadeiras com
elas. Enquanto para os adolescentes, teremos uma
remuneração, e eu preciso para ajudar minha mãe. Todo
primeiro de abril eles fazem isso.
Esse não é o primeiro trabalho que eu faço.
Particularmente, me considero um grande defensor do
meio ambiente - recolher lixos das ruas, abrigar animais
perdidos ou machucados e até mesmo já cheguei a, sem
que o chefe da mamãe soubesse, ajudar a limpar o
cemitério. Chega a ser estranho as vezes, eu simplesmente
sinto essa vontade inexplicável de defender qualquer
animal ou mata de tudo. É claro que o dinheiro vai ajudar,
então é mais um motivo para eu querer participar desse
estágio.
- Bom trabalho, mãe! Até mais tarde. – O cemitério que
ela trabalha fora o único emprego que conseguira desde
que saíra de sua vila. Nunca fora problema para ela, eu
diria até que ela gosta de estar perto dos mortos, talvez ela
se sinta segura, ou alguma coisa assim.

Capítulo 2 - Um trabalho perigoso, mas voluntário.

O calor natural e abafado da cidade de Manaus é algo que


me assusta ao longo dos meus 17 anos de vida. Estou
acostumado, é claro, mas isso não significa
necessariamente que eu goste de estar em pé, em uma fila
enorme, debaixo de um sol escaldante com um monte de
outros adolescentes eufóricos para um trabalho no
Zoológico de Manaus. Eu sei, fui eu quem escolhi vir, e
com certeza vale à pena, mas eu fico... irritado com uma
quantidade absurda de calor. Sempre preferi a noite, o
escuro.
Um militar aparece depois que todos nos identificamos e
checamos nossos nomes na porta de entrada. Ele dá os
seguintes avisos:
- Bom dia, crianças! Fico muito feliz em ver vocês.
Esperem aqui, em fila, vamos já apresentar o zoológico
para vocês e, em seguida, determinar suas respectivas
tarefas. Estas senhoras que trabalham com a limpeza do
lugar ficarão de olho em vocês enquanto isso.
Ele saiu de perto de nós, nos deixando com duas moças
de uns trinta anos, uma possuía cabelos pretos lisos, e a
outra, cacheado. Essa situação permitiu que algo terrível
acontecesse: avistei, um pouco à minha frente, Vitor, um
menino acima do peso para alguém da sua idade, que vive
implicando comigo por ser filho de indígena e por minha
mãe trabalhar em um cemitério. Já briguei com ele,
algumas vezes, ao ponto de a própria polícia ter de
intervir. O que ele está fazendo aqui?
Vitor olha para trás e me vê. Droga.
- Ah, olha quem está aqui. Veio visitar seus bichos de
estimação? – ele provavelmente está aqui porque seu pai o
obrigou, com certeza o cara preferiria estar em casa
jogando videogame. Por obra do destino, as moças que
estavam “cuidando da gente” não ouviram nada.
Estranhei, Vitor falou em uma altura consideravelmente
alta.
- Cale a boca, idiota! – ouvi uma voz grave dizer, mas
não parecia ser de alguém que estivesse perto. Pelo
contrário, parecia ter vindo do mato.
- Quem disse isso? – Vitor perguntou, olhando para os
lados e com um olhar de quem claramente entraria numa
briga por ter sido chamado de “idiota”.
- Moacir provavelmente está chamando os deuses
indígenas para nos ameaçar! – o amigo de Vitor, riu.
Gabriel é um menino magrelo, com olhos fundos e
travessos, cabelo bem curto e uma cara de “cuidado, pode
te morder”. Bater nele de repente parecia uma ótima ideia,
mas não o fiz.
Obviamente, além das mulheres não terem escutado
tamanho insulto a mim e a todas as culturas indígenas, os
outros comparsas de Vitor se acabaram de rir.
O militar volta com camisetas do zoológico que teremos
que usar e nos conduze pelo local. Do nada os garotos
pararam de rir, e eu estranhei. Olhei para trás e o calor que
fazia outrora já não nos incomodava mais. No lugar onde
deveria estar o sol, nuvens cinza começaram a se formar
de repente.
Ótimo, além de ser mais um motivo para o grupo de
Vitor me zoar, é mais uma coisa que entra para a minha
lista de azares.
Sem querer ser pessimista, mas o tanto de azar que eu
possuo não dá para colocar em palavras! Chega a ser
irritante as vezes. Por mais que eu sempre tente defender a
natureza, parece que ela se volta contra mim. Os deuses
devem me odiar.
Ok, é meio prepotente da minha parte pensar que o
mundo gira em torno de mim, mas é algo a se pensar, não?

(...)

Finalmente adentramos o zoológico propriamente dito, é


um tanto quanto simples, mas lindo. Alguns militares nos
conduzem para vermos onças pintadas (meu animal
favorito em todo o mundo), araras azuis, gaviões reais,
macacos pregos e panteras negras juntamente com aquelas
duas moças. Elas caminhavam todo o tempo me olhando.
Toda vez que as encarava de volta, desviavam o olhar.
Achei que fosse coisa da minha imaginação.
Eu me fascinei com cada um dos animais que vejo, uma
diversidade tão grande de animais. Claro, sinto pena deles,
crescer enjaulado não é, nem de longe, algo agradável. O
zoológico é do CIGS, Centro de Instrução de Guerra na
Selva, um curso para oficiais militares sobre sobrevivência
e combate na selva. Não há lugar melhor do que este,
afinal, estamos dentro da floresta mais importante do
mundo: Floresta Amazônica.
Um tenente do exército brasileiro nos acompanha pela
exposição de cobras, ele explica algumas coisas que minha
mãe sempre me disse desde pequeno. Como por exemplo
sobre como é morar na selva, como lidar quando avistar
uma onça pintada, esse tipo de coisas. Normal, não?
- Talvez ainda existam criaturas que não conhecemos!
Tribos indígenas que sequer foram descobertas! Mas, por
leis, não podemos ir a qualquer lugar que simplesmente
nos dê na telha para dentro da floresta. Poderia ser até
perigoso – o militar nos contou.
As duas mulheres pareciam mais entretidas do que nós,
que escolhemos estar aqui. Elas estão com camisetas “eu
apoio a Amazônia” bordados em verde e preto na
camiseta, que compraram na entrada do lugar. Eu estou
vestindo uma blusa branca com detalhes verdes nas
mangas, o uniforme que nos deram, bem como todos os
meus outros companheiros de trabalho. Além disso, uso
calça jeans e tênis pretos. Nada fora do comum.
Eu estava caminhando normalmente, quando ouvi um
barulho vindo da mata ao meu lado. Me aproximei da
grade que separa o zoológico da floresta amazônica.
- O que foi isso? – perguntei em voz alta.
- Isso o que? – uma das mulheres, a de cabelo liso,
aparece do meu lado depois de, provavelmente, ter surgido
de alguma folha de árvore, me assustando.
- Eu ouvi alguma coisa vindo da mata.
- Ah não, querido – odeio quando qualquer um me
chama assim. – É só o barulho das árvores.
- Moacir está chamando algum animal para nos assustar!
– Vitor gritou de longe.
Elas devem ter algum problema. Digo, primeiro elas não
escutam os insultos que sofri na fila, e agora, praticamente
sou taxado de louco.
Que chatice.

Capítulo 3 – Sou atacado por loucas.

junto de meus companheiros quando


Eu estava voltando para
ouvi um trovão, e depois vi um clarão. Um raio tinha
acabado de cair bem pertinho de nós, colocando fogo em
uma parte pequena de uma árvore.
- TODOS PRA ENTRADA! – O tenente nos deu uma
ordem bem clara. Obviamente, eu continuei parado no
mesmo lugar, próximo à grade que separa a floresta do
zoológico.
“Que ideia tola!”, você deve estar pensando. É claro que
foi! Mas eu fiquei atordoadamente assustado, o raio, por
um momento... parecia ter sido direcionado para mim.
Afastei esse pensamento, era humanamente impossível
que um raio, algo inanimado e sem vida, pudesse ter sido
propositalmente direcionado para alguém, em especial
para mim.
Quando meu cérebro conseguiu enviar a ordem de
“mexam-se!” para meus pés, outro trovão ribombou nos
céus. Minha visão embaçou e eu escorreguei em alguma
coisa. Uma chuva intensa começou a cair sem parar, me
deixando atordoado e com medo.
- Moacir! – ouvi as mulheres gritarem por mim.
- Estou aqui! – respondi.
Tentei me levantar após a queda, mas meus olhos ainda
doíam bem como meu corpo. Parecia ter sido atingido por
três raios simultâneos.
- Levante – ouvi uma forte falar, a mesma voz que
ouvira afrontando Vitor.
Consegui abrir os olhos e, dessa vez, tudo que enxergava
era uma escuridão, em meus ouvidos somente chegavam
barulhos de chuva e, ao fundo, leves sons de trovões
brandiam nos céus negros.
Quando pensei que não podia piorar, adivinhe. Piorou.
A mulher de cabelos lisos, descabelada por culpa do
vento forte e da chuva desgastante, me achou. Sua
expressão não parecia a mesma. Ao seu lado, a sombra da
de cabelos cacheados vinha junto, as duas pareciam querer
me matar, sabia que estava encrencado.
- Ah, querido – disse uma. – Foi você quem fez isto, não
foi?
- Ah, ele fez sim, irmã – a outra respondeu. – Foi ele.
Eu estava confuso demais para perguntar o que havia
feito, cansado demais para me levantar. Fiz um esforço de
outro mundo para me por de pé.
- Foi ele quem colocou fogo naquela árvore! Isto é
inaceitável com nossa floresta! – disse a da direita, com
uma voz diferente da que tinha escutado antes.
- Devemos eliminar esta ameaça – concordou a outra.
O que? Espera, muitas informações. Elas são irmãs?
Como eu seria responsável por colocar fogo em uma
árvore com um raio?
Minha franja do cabelo não parava de cair sobre meus
olhos, mas espero que pelo menos essas mulheres tenham
percebido minha raiva. Crescera em mim uma fúria jamais
sentida antes.
- Olhem, vamos para um lugar seguro – disse eu. –
Vocês só podem estar loucas! Eu devo ter batido a cabeça
quando caí.
- Ah não, queridinho – agora ela tinha me estressado de
verdade. – Você não vai à lugar nenhum.
Como se eu estivesse em um filme, as mulheres
começaram a mudar de forma. Os cabelos que outrora
foram pretos começaram a ganhar um tom forte de
avermelhado, elas que antes eram mais altas que eu,
mudaram de tamanho para a de um anão. Sua mudança
mais assustadora foi a de cor da pele. Ficaram verdes! As
orelhas ganharam pontas, bem como o nariz. O que está
acontecendo?
- Mas o que...? – consegui perguntar.
- Nós somos as caiporas – uma delas respondeu. –
Protetoras das matas e dos animais selvagens! Estamos de
olho em você, jovenzinho.
- E há quanto tempo estamos de olho nele hein, irmã – a
outra complementou.
- Você causou dano a esta mata. Sabíamos que iria fazer
tal coisa em determinado momento. Ele nos avisou.
Agora, nosso trabalho é destruí-lo!
Ok, eu definitivamente bati com a cabeça quando
escorreguei. Caiporas são... mitos, lendas originadas pelos
indígenas Tupi-guarani. Isto é impossível.
- “Ele”, quem? – perguntei às criaturas.
Não tive resposta. Elas começaram a me circundar,
como um tubarão prestes a abocanhar sua presa. Estava
em apuros. As Caiporas mostraram suas unhas afiadas.
Acho que elas não iriam usar para cortarmos um bolo e
comemorar a chuva que caia sobre nós.
Ameacei correr, péssima escolha. Uma das Caiporas
pulou para cima de mim como um pequeno gnomo veloz.
Quando me virei para ela, suas garras quase me
alcançando, ouvi alguém gritar novamente de dentro da
mata.
- SE ABAIXE!
Obedeci, a Caipora foi atingida por um longo bastão
duro, uma vara rígida. Reconheci a arma de ataque como
um Ubiratã, uma lança indígena. Parecia a que eu usava
quando criança. Mas como veio parar aqui e como eu
sabia o que isso era? No momento, não tive tempo para me
importar.
Empunhei o Tacapé (outro nome para Ubiratã) e era
como se uma onda de energia fluísse pelo meu corpo. O
bastão ficava perfeitamente equilibrado na minha mão;
leve mas, ao mesmo tempo, com capacidade de machucar
alguém. Eu sentia isso.
Parti para cima das Caiporas, golpeei uma com a ponta
do bastão e empurrei-a para longe. A outra pulou por cima
da minha cabeça e se instalou presa a meus cabelos,
puxando tufos aqui e ali. Chacoalhei meu corpo todo e ela
escorregou para longe. Girei a arma por entre meus dedos,
fazendo manobras lindas de se ver, o movimento rápido de
girar o bastão fazia parecer que a chuva estava sendo
dispersada, com gotas sendo jogadas para longe. Apesar
de chover forte, não senti em nenhum momento o bastão
escorregar de minhas mãos.
- Última chance – eu entoei. – Me deixem em paz, ou eu
vou, ahm, furar vocês com essa lança!
As monstras sibilaram sons parecidos com árvores se
mexendo e correram em disparada na direção oposta a
mim. Quando estavam longe de alcance, as vi retornar a
forma de humanas. Uma onda de cansaço voltou a tomar
meu corpo, como se toda minha energia fosse sugada de
mim.
Passei a mão atrás do pescoço e depois a olhei. Havia
sangue. Droga! Aquele monstro deve ter me arranhado
quando pulou por cima de mim. Ou quando eu me sacudi,
ela deve ter tentado se segurar e acabou me arranhando
sem perceber.
Senti minha visão ficar embaçada, o bastão ficar mais
pesado. E então desmaiei.

Capítulo 4 – Brinquei com uma aberração.

Sonhei que estava vendo um homem, não conseguia distingui-


lo, pois estava de costas para ele. Apenas ouvi sua voz – a
mesma voz de antes – dizendo somente uma coisa.
- Nos reencontraremos em breve.
Acordei desorientado, com dor no corpo todo. A chuva
tinha cessado. O barulho dos pássaros era lindo e
completamente natural.
Me sentei e quase tive um infarto. Eu não estava mais no
zoológico. Estava sentado na grama, com árvores ao meu
redor em todas as direções possíveis e imagináveis. Elas
pareciam não ter fim na questão altura. Eram tão altas que
não conseguia ver seu fim, os troncos e galhos eram tão
grossos que poderiam ser facilmente braços de algum
jogador de vôlei. Havia a cor verde para todos os lados.
Plantas, matos, árvores. Pra onde eu olhava tinha a cor
verde. O cheiro de plantas era doce e familiar, trazia uma
sensação de pureza, como se nenhum ser humano jamais
as tivessem tocado.
Tive a reação mais natural e compreensível: entrei em
pânico. O que ia fazer? Onde estou? Onde meu celular foi
parar? Onde eu vim parar?
Parte de mim estava aliviado, a lembrança da luta contra
duas mulheres anãs assassinas poderia ter sido um sonho,
bem como a parte de eu ouvir uma voz vindo da mata.
Afinal, nem a lança que eu havia utilizado parecia estar
por perto.
Decidi me levantar e começar a caminhar. Sei que
quando ficamos perdidos não devemos nos mexer, apenas
ficar parados esperando o resgate, mas eu não estava afim
de virar comida de onça. Verifiquei ao meu redor se nada
mais foi trazido aqui comigo. Nada, nem um simples
telefone-celular. Estava perdido, sozinho no meio da mata.
Resolvi tentar me concentrar em tudo que sabia, era
filho de indígena, conseguiria sair da mata. Se eu não me
acalmar, vou morrer, pensei.
- Vamos ver – disse.
Pelas características que consegui enxergar, estava na
floresta amazônica mesmo. Menos mal, não havia sido
levado para tão longe. A esse ponto, mamãe talvez já tenha
percebido que sumi.
Agora, a pergunta que não conseguiria uma resposta
imediata era: por quanto tempo eu estive apagado e como
vim parar aqui?
Fiz uma oração silenciosa para todos os deuses que
mamãe já havia me contado, pedi para que me ajudassem
a caminhar sem problemas pela floresta. Como ironia do
destino, rapidamente percebi que estava em apuros (além
de que estava perdido e sozinho).
Escutei passos apressados vindo de todas as direções ao
meu redor, folhas se mexiam mais rápido do que eu
conseguia enxergar. Parecia uma manada que
simplesmente tivesse resolvido se transformar nos animais
mais rápidos do mundo e decidiram correr a minha volta.
Não pensei duas vezes, saí correndo. Os passos pareciam
me seguir, o barulho das folhas das árvores se mexendo
estava me assustando cada vez mais. Minha respiração
falhou. Fui olhar para trás e tropecei em um pedaço de
tronco. Olhei para cima. Havia um homem, eu acho, em
cima dos galhos das árvores. Estava agachado, segurando
no tronco da árvore. Ele emitiu um grito semelhante ao de
um caçador quando conquista sua presa.
- MAS O QUE...? – gritei de volta quando vi o resto de
sua forma.
A criatura pulou do galho e aterrissou à minha frente.
Não era um homem, definitivamente. Possuía longos pelos
marrons por todo o seu corpo, mãos e pés gigantes, sua
boca era na altura do umbigo, com dentes afiados, como
os de um vampiro. E o pior, possuía apenas um olho. Um
grande e terrível olho. Sua altura comparada às árvores era
nada. Mas em relação a mim, era uns quatro de mim. Era
muito alto, e muito gordo. Claramente era bem forte.
Será que existe alguma academia na floresta? Esse cara
deve levantar novecentos quilos no supino, certeza. Eu
mal levanto a barra de ferro sem peso nenhum, só a pura
barra é imensamente pesada pra mim.
Tive a atitude mais racional, corri. Corri como se
houvessem me dito que o lanche na hora do recreio fosse
batata frita com refrigerante. Conseguia sentir a respiração
do monstro no meu pescoço, que ficava arrepiado só de
pensar em olhar para tal criatura novamente. Ele urrava e
berrava ferozmente, torci para estar perto de alguma
equipe de busca. Eles provavelmente ouviriam tamanhos
gritos.
Pensei em subir nas árvores, mas lembrei que, na
verdade, o som que ouvira antes de folhas se mexendo era,
provavelmente, o monstro pulando de galho em galho
como um ninja. Estremeci ainda mais pensando nisso.
Então, as caiporas não foram um sonho. Mas onde
estaria a lança que me salvou delas? Não tenho tempo para
hipóteses, pensei, preciso apenas continuar correndo.
Virava a cada árvore que via, torcendo para não estar
correndo em círculos. O monstro, baseado no tamanho dos
seus pés, com toda certeza já teria me alcançado. Estava só
brincando comigo. Me irritei. Estava sendo feito de bobo
por um mito, sabia que já tinha visto uma imagem igual
àquele monstro em algum lugar.
Comecei a correr virando em diferentes direções, para
direita, fazia uma volta, ia para a esquerda, e então seguia
em frente. Isso foi uma tentativa de despistar o monstro.
Se ele queria brincar, faria a melhor partida de esconde-
esconde que alguém já viu.
Pulei pro lado, para atrás de uma árvore imensa, ia dar
uma volta nela, mas o monstro percebeu e tentou me pegar
no contrapé. Isso foi a deixa perfeita para começar a
partida. Corri para a árvore da frente, e cinco segundos
depois o monstro urrou com raiva. Ele percebera que eu
tinha sumido.
Depois de correr mais umas árvores pra frente, arrisquei
olhar pra trás. Perdi o monstro de vista. Me preocupava e
me confortava ao mesmo tempo. Com sorte, ele teria
seguido para outra direção ou se esquecido de mim.
Eu, você, e todos sabemos que isso não aconteceu.
O monstro pareceu sair de dentro da árvore, quando
olhei para frente, prestes a seguir para a próxima árvore, o
vi alguns metros adiante. Ele estava de pé, no meio de
vários tons de verde. Parecia um filme de terror, de
verdade. Ele bufava, provavelmente com raiva porque o
fizera de trouxa. Escarrei tantos palavrões que alguns até
eu mesmo me surpreendi.
Ele começou a caminhar na minha direção, bem devagar.
Emitia berros e tirava de perto folhas e matos que batiam
em seu corpo, como se suas mãos fossem facões pra abrir
a mata. Confesso, nessa hora eu desisti. Fiquei parado. Ele
ia me alcançar, e eu apenas aceitei isso. Me agachei no
tronco de árvore atrás de mim. Percebi que o tronco era
cortado, e eu agachado e encostado formara um encosto de
cadeira perfeito pra mim. Senti raiva, lembrando de todas
as árvores que são desmatadas todos os dias por seres
humanos. Mas, infelizmente, não havia mais nada a ser
feito.
Ou tinha?
O monstro desistiu de caminhar, e começou a correr na
minha direção igual a um gorila. De repente, ele parou.
Um brilho branco refletia nele, como uma grande
lâmpada. A luz parecia vir de trás de mim. Quando me
virei para olhar, algo passou em disparada, quase me
levando junto. Bati a cabeça no chão, mas não desmaiei.
Olhei para direção do monstro, ele estava sendo atacado
por um... veado branco?
Capítulo 5 - Fui salvo.

Ao longo da minha curta vida,


já fui salvo várias vezes.
Barulhos de “hora do intervalo” durante as aulas mais
chatas, por exemplo. Minha própria mãe já me livrara de
várias burradas, como no dia em que eu quase quebrei,
sem querer, um túmulo do cemitério onde ela trabalha.
Mas um veado? É, isso definitivamente nunca tinha
acontecido.
Definitivamente era um veado, só que branco. Longos
pelos brancos, parecia bem cuidado. Chifres imensos e
pontudos, além de lindos olhos que eram vermelhos como
o fogo. Fiquei muito atordoado para fazer ou falar
qualquer coisa.
A briga foi feia, pois as duas criaturas brigavam... bem,
como animais. Urros e gritos animalescos ecoavam alto e
em ótimo som. O barulho chegava a me dar calafrios,
tanto que por um momento desejei ser surdo.
O monstro peludo colocou suas enormes mãos no veado,
uma no pescoço e a outra nas pernas traseiras. Ele o
levantou e arremessou em minha direção, fui obrigado a
rolar para o lado. O animal terminou de destruir o toco de
árvore que antes eu estivera apoiado. Quando voltou a
ficar de pé, ele emitiu um grito para o céu, como se tivesse
ficado com mais ódio do que nunca devido ao fato de ter
destruído uma árvore.
O animal branco como a neve começou a correr tão
rápido que tudo que vi foi um flash de luz branca até o
momento que os dois se chocaram.
O monstro tentou se jogar por cima do animal, mas,
aparentemente, esqueceu-se do fato de o veado tinha
chifres totalmente afiados. Parecia que tinham sido polidos
por um amolador de faca do melhor restaurante do mundo.
Foi nojento. O monstro sangrou muito, um sangue verde,
viscoso e nojento. Em seguida, desfarelou e, depois,
transformou-se em um pequeno brotinho. Ele morreu ou
irá renascer? O que acabou de acontecer? Porque, afinal,
fui salvo? Será que fora proposital ou apenas uma grande
coincidência bizarra?
O lindo animal curvou-se sobre a planta recém formada,
como se o espírito do monstro ainda estivesse lá. Olhou
para os lados e, depois, para mim.
Se eu dissesse que não congelei, estaria mentindo. Tudo
que meu cérebro conseguia processar era... bem, nada. Eu
simplesmente não conseguia pensar em nada, eram muitas
informações de uma vez só. Para alguém de 17 anos
perdida na floresta, acho tal reação bem compreensível,
né?
Sentia saudades de casa. Era humilde, claro. Pequena
comparada a outras do nosso bairro. Mas ainda assim era
meu lar. É meu lar. O cheiro da comida da mamãe... céus.
Eu sinto muita falta dela. Do meu quarto. Queria que ela
me acordasse e dissesse que foi só um pesadelo. Espere,
isso já aconteceu antes. Eu previ o futuro?
Comecei a chorar, agachando-me no chão, ficando de
joelhos. As palmas da minha mão cobriam todo meu rosto.
Meu cabelo, encharcado de suor, caía em meus olhos.
Minha mãe sempre dissera que meus olhos eram iguais
aos do papai, escuros como a noite. Pensar nisso só me fez
ter mais vontade de continuar a derramar lágrimas.
Precisava voltar pra casa, tinha que achar um jeito de sair
da floresta.
Só percebi que estava sozinho quando parei de chorar. O
veado se fora. Mais uma vez, eu estava sozinho.

(...)

Voltei a caminhar, dessa vez a passos lentos. O calor e a


umidade eram a pior sensação. Mosquitos eram meus
piores inimigos, pois estavam me devorando vivo. Fiquei
com medo de encontrar mais alguma coisa estranha,
algum animal ou monstro esquisito que poderia acabar
comigo com um simples peteleco. Além disso, a cada
passo que eu dava sentia que estava sendo observado de
todas as direções.
Depois de tanto andar por uma mata extremamente
fechada, com árvores que não pareciam ter fim e com
mosquitos que possuíam um apetite maior que o meu,
achei um rio. Um rio que parecia bem raso, fácil de
atravessar. Foi a minha salvação, estava morrendo de sede.
Fiquei de quatro, com as mãos apoiadas na borda do rio, e
coloquei a cabeça inteira dentro da água.
Bebi até minha barriga pedir por socorro. Não estava me
importando nem um pouco com o que havia naquela água,
se iria me causar algum mal ou se haviam piranhas ali
dentro prontas para me abocanhar. Eu realmente precisava
disso.
Quando levantei a cabeça para respirar, quase infartei.
Uma onça estava parada do outro lado do rio. Uma onça
de verdade! Não aquelas fofinhas que ficam afastadas do
público em um zoológico, era uma real, da natureza,
selvagem. Respirei fundo, mantendo contato visual. Fiquei
de pé, devagar. Joguei os ombros para trás, tentando
demonstrar à onça que eu não estava com medo.
Como sempre, eu estava. Por um segundo parei para
refletir (sim, eu sei que esse não era o melhor momento,
mas aconteceu) em como eu estava, nessas últimas horas,
sempre com esse sentimento. Me irritei. Odiava ter que
depender de alguém para me resgatar.
A onça estava pronta para atacar, colocando as patas
com garras afiadas na água, bem devagar, uma de cada vez
e sem tirar os olhos de mim. Provavelmente não sou uma
presa muito deliciosa, sou magrinho e baixinho. Com
certeza monstros como aquele que fui salvo devem ser
mais apetitosos.
Fui me afastando para trás, o felino poderia pular dali
mesmo e me alcançaria. Por favor, vá embora, pensei.
Como num passe de mágica, como se a onça pintada –
extremamente linda, por sinal – tivesse escutado meus
pensamentos, ela se foi. Me sentei no chão, encostado em
uma árvore com vários galhos e mais alta do que o Cristo
Redentor.
- Esses mosquitos devem ter me deixado doente mesmo
– reclamei em voz alta.
- Pois então eu acho que vamos ter que abrir você para
descobrir – alguém disse.
Capítulo 6 – Anões de jardins assassinos.

de vez, nas últimas horas já


Achei que já tinha enlouquecido
senti, vi e ouvi muito mais do que qualquer imaginação
humana poderia sentir, ver ou ouvir.
Olhei para cima, por entre os galhos, e vi algumas
figuras que não consegui distinguir. Olhei para o chão,
para a terra ao meu redor, e vi pegadas para todos os lados,
em todas as direções. Me senti confuso na mesma hora,
como se minha mente não soubesse o que fazer, e meu
corpo não soubesse para onde ir.
- Por favor, vão embora – supliquei, apoiando os
cotovelos nos joelhos e enterrando minha cabeça nas
mãos.
- Nós somos quem deveria pedir para você ir embora –
ouvi uma outra voz, vindo da mesma árvore. Quantos
deles será que estão em cima de mim?
Ouvi um estralo nos galhos, e a pessoa continuou.
- Afinal, você está querendo causar dano à floresta. Ele
já havia nos avisado.
Lembrei das mulheres que se autodenominavam
caiporas, elas tinham me dito que “ele” as avisou de
alguém – provavelmente acharam que era eu – estava indo
para floresta para causar algum tipo de mal a ela. Fiquei
mais confuso ainda, quem seria essa pessoa, e por que
acham que sou eu?
Me irritei novamente, com certeza tudo isso foi um mal
entendido. Como justamente eu, que sempre fui defensor
da floresta, estaria planejando algum mal? Me pus de pé, o
corpo tomado pela raiva e adrenalina. Olhei para as
árvores e não vi nada além de vários galhos e folhas.
- Apareçam! – gritei. – Não sei quem vocês acham que
eu sou, mas eu sim sei quem sou! E sei que não quero
causar mal algum à esta floresta. APAREÇAM!
Não sei o que me deu, apenas estava cansado de ser
julgado por pessoas – ou coisas – que nem sabem quem
sou. Quais são meus valores e minhas características não
físicas.
Vi, como se fosse uma chuva de fogo, várias pessoas
pulando dos galhos das árvores como ninjas. Todos
possuíam cabelos vermelhos, alguns mais alaranjados, tipo
fogo. Eram humanos, ao menos pareciam. Os tons de peles
variavam, mas, em geral, eram todos morenos. Usavam
tangas, sem camisetas, parecendo indígenas. Todos
homens.
A única coisa que me assustou não foram nem as lanças,
ou os dentes afiados de todos, nem o fato de terem
estaturas baixíssimas, como crianças de sete anos. Mas
sim, o fato de... seus pés serem invertidos. Eles estavam
virados para o lado contrário!
- Não ouse nos desafiar novamente, caçador. – disse um
deles.
- Vocês... vocês são... – gaguejei.
- Somos Curupiras – interrompeu outro. – Guardiões da
floresta e assassinos de caçadores. E esta parte da floresta
é nosso território.
Gelei, todos com lanças afiadas, bem como os dentes.
Pareciam anões de jardim assassinos. E eu estou sozinho,
desarmado.
- Esperem! – disse rapidamente quando começaram a
caminhar lentamente na minha direção. – Não sou quem
vocês acham que sou.
- Ora, mentiroso – disse o curupira mais alto de todos,
provavelmente o líder. – O próprio Tupã nos avisou de sua
chegada.
Certo, agora enlouqueci de vez. Recorri à todas as
minhas lembranças de aulas de história e contos que
ouvira da mamãe. Ele está falando... do deus Tupã? O
criador de tudo? Deus dos trovões e da tempestade? Não
pode ser sério.
- Como assim? – perguntei
- Vamos, não se faça de bobo. Você será o motivo de a
floresta amazônica ser tomada de vez.
- Não sei do que você está falando. Eu me perdi na
floresta! Nunca destruí uma árvore ou fiz mal a algum
animal! Estão pegando o cara errado.
Todos se entreolharam confusos. O mais alto ergueu a
mão fechada para cima, pedindo silêncio.
- Chefe, este humano parece estar falando a verdade –
disse um.
- Não podemos contrariar a ordem do deus supremo.
Vamos leva-lo, e depois resolvemos o que fazer. Talvez
Tupã volte e nos confirme.
Tentei dar um passo para trás, mas estava de costas para
uma árvore imensa ainda. E também haviam vários
anõezinhos ao meu redor.
- Prenda-o – disse o chefe.
Eles apontaram as lanças afiadas para mim, não tinha
escolha a não ser morrer ou ir com eles. Nenhuma das
opções pareciam atraentes. Quando iam usar cipós para
amarrar meus pulsos, como uma espécie de algemas na
selva, o céu escureceu, mas não como quando uma
tempestade está se formando, era mais como se o mundo
tivesse apertado o interruptor da luz, tudo ficou escuro.
- O que é isso? Que poder é esse? – um curupira falou.
O breu era enorme, não enxergava nem um palmo à
minha frente. Do nada, veio se formando uma luz enorme,
brilhante e branca.
É, você adivinhou. Era o veado branco novamente. Que
droga! Percebi, nessa hora, que o céu estava normal
novamente. Mas os curupiras gritavam que o céu
continuava escuro... o que está acontecendo?
Capítulo 7 – Estou cansado de ser salvo.

Do outro lado do rio, onde antes estivera a onça, agora


estava o veado.
Era o mesmo, com certeza. Os mesmos galhos,
retorcidos nas mesmas direções, ainda com arranhados das
unhas afiadas daquele monstro de um olho só. O mesmo
par de olhos vermelhos alaranjados, além de, obviamente,
a mesma aura branca que emanava de seus pelos.
Definitivamente é um dos animais mais lindos que eu já
vi.
O veado berrou tão alto quanto uma música eletrônica
tocando em um bar domingo à noite. Ensurdeceu todos ao
meu redor, menos eu. Para mim, era como se conhecesse
profundamente aquele veado. Sentia, de fato, uma conexão
com ele. Era como se ele possuísse um apito para cães, só
que, nesse caso, os cães eram apenas os curupiras.
- PARE, POR FAVOR! – implorou um deles. Eu,
entretanto, não conseguia olhar para mais nenhum lugar,
estava hipnotizado pela linda criatura.
Quando os berros cessaram, lembrei que, as vezes, os
veados fazem esse som quando estão prestes a avançar em
algo ou alguém. Me escondi atrás de uma árvore enquanto
os curupiras continuavam coçando seus ouvidos, talvez
como quisessem garantir que suas orelhas ainda estavam
no lugar.
Só ouvi os gritos, me recusei a olhar. Ouvi barulhos
estranhos, os quais terei pesadelos por vários meses. Além
de barulhos de galhos se quebrando, foi quando pensei que
talvez fossem os galhos do meu salvador.
Saí do meu esconderijo e, por coincidência ou não, o
veado estava parado ao redor de várias crianças com pés
ao contrário caídas no chão. Elas começaram a se fundir
com o chão, como sementes sendo plantadas em um solo
extremamente fértil. Imaginei que virariam pequenos
brotinhos, assim como aquele monstro anteriormente
havia se transformado. Naquela ocasião, lembro-me que
tive o mesmo salvador.
- Obrigado... – foi tudo que consegui dizer. O veado
branco emitiu um som que parecia mais como um espirro.
– Se não fosse por você, teria morrido duas vezes. Então,
muito obrigado por me salvar.
Após essas palavras de sinceridade, o animal continuou
parado no mesmo lugar, me examinando com esses olhos
cor de fogo. Me agachei e fiquei com um joelho no chão,
como um sir, um cavalheiro. O veado estufou o peito,
quando percebi isso achei que estava louco. Mas estava
completamente lúcido.
- Você... você me entende? – perguntei. O animal
respondeu com um aceno de cabeça de positivo. Dessa
vez, não corri de medo. Se ele quisesse me machucar, já o
teria feito.
Eu sei, você deve estar pensando coisas do tipo: “Moacir
enlouqueceu” ou “por que confiar em uma criatura
totalmente desconhecida que nunca vira antes?”. Se eu não
tivesse conhecido esse veado, jamais teria sobrevivido.
- Você quer que eu te siga, não quer?
É claro que eu fui junto com ele. Afinal, para onde mais
eu iria? Estava curioso para saber onde íamos. O meu
amigo de quatro patas foi na frente, abrindo caminho com
seus altos galhos por entre a mata fechada enquanto eu ia
alguns passos seguros atrás dele. Já tive experiências não
muito boas com cavalos e coices, e não estava afim de
testar se veados faziam a mesma coisa.
Percebi, nessa caminhada, que seu cheiro não era ruim
como de um animal que vive na floresta. Pelo contrário!
Era um cheiro um tanto quanto amargo, mas não era ruim.
Me lembrava minha mãe. Além disso, seus pelos não eram
emaranhados ou desgastados, o que significava que era
bem cuidado. Será que ele estava indo me deixar em
alguma fazenda? Mas que tipo de fazendeiro criaria um
animal desses? Digo, eu nunca tinha visto um veado
branco como a neve com olhos vermelhos vivos como
labaredas de fogo.

Conforme caminhávamos, a mata foi se tornando mais


fechada – como se fosse possível estar mais do que já
estava. Os caminhos por entre as árvores me deixaram
tonto e confuso, como se eu não devesse estar andando por
essas bandas. Senti, em um determinado momento, alguém
me observar.
“Mais uma vez, não! Chega de monstros!” pensei comigo.
Sabem, ganhei certa experiência nas últimas horas sobre
ter a sensação de estar sendo observado todo o tempo. É
assim que os famosos se sentem em relação à paparazzis?
Que legal, agora estou me achando famoso.
Com todas as minhas horas de experiências em situações
parecidas com essa, continuei caminhando normalmente e,
em um movimento rápido e inimaginável, virei o corpo
com velocidade em trezentos e sessenta graus a fim de
tentar ver algo ou alguém.
Certo, talvez não tenha sido a melhor ideia.
Óbvio que eu não vi ninguém. Mas tive a leve sensação
de ter assustado alguém, pois ouvi um suspiro (talvez de
medo ou susto) abafado por entre as árvores. De qualquer
jeito, não senti mais alguém me observando.
Quando me dei conta, o veado havia sumido. Praguejei
alto, tentando ver se o animal conseguiria me escutar e
voltar para me salvar mais uma vez. Esperei alguns
segundos e nada dele aparecer. Ótimo.
Caminhei em qualquer direção, a mais óbvia e menos
arriscada era a frente, onde provavelmente o veado tinha
seguido. Sem sua ajuda, a mata pareceu ainda pior, com
mais árvores, insetos de todos os tipos e um calor
insuportável. Eu acho que nunca, jamais na minha vida eu
tinha transpirado tanto quanto nessas últimas horas. Ter
tomado aqueles goles de água no rio com toda certeza me
salvaram, mas eu ainda estava com fome.
Bem, eu estou em uma floresta. “Deve ter algum fruto
por aqui”, pensei. Apesar de estar com fome, continuei
andando e procurando alguma árvore que tivesse uma
fruta que gostasse.
Acontece que, por sorte ou não, não precisei subir em
árvore nenhuma, pois eu não iria precisar de comida, eu
iria ser a comida. Uma cobra imensa estava rastejando por
um galho de árvore em cima de mim, e bem rápido.
Eu não sei qual o tamanho normal de uma cobra ou a
velocidade máxima que ela pode atingir ao caçar suas
presas, mas definitivamente essa aqui tomou algum
remédio que alterou seu organismo.
Quando a vi presa entre os galhos das árvores, não parei
para admirá-la, comecei a apertar o passo. Alguns passos
mais para frente, escutei um creck, e então fui arremessado
para uma enorme teia de aranha, onde fiquei preso de
ponta cabeça. Os deuses devem estar me punindo por
todos os pecados humanos mesmo.
Tentei me mexer, em vão. Quando pensei que não podia
piorar, vi cobras, aranhas enormes, um casal de onças
pintadas e vários seres diferentes do folclore brasileiro que
por um segundo pensei estar em uma peça da escola. Vi
curupiras, caiporas, o monstro de um olho só, uma mula
sem cabeça, e alguns lobisomens. Uma legião inteira me
encarando, com os olhos brilhando.
- Agora você não escapa – disse uma caipora, reconheci
a voz como a mesma que estava anteriormente no
zoológico.
Capítulo 8 – Faço uma amiga.

Me disseram, uma vez,que quando a situação estivesse


ruim, para que eu tentasse enxergar as coisas de outro
ângulo.
Bom, não sei o sentido dessa frase. Tudo que percebi, de
cabeça para baixo ou não, é que eu ia morrer. E não há
outra forma de ver essa situação.
Desculpa descrever o que aconteceu a seguir, mas é
necessário. Eu não vou ficar com essa lembrança somente
para mim.
De cima de algum lugar, vi uma aranha enorme descer
por uma linha de teia até ficar cara a cara comigo. Ela
tinha o triplo da minha altura e o quíntuplo do meu peso,
suas presas nojentas estavam se mexendo freneticamente,
como se eu fosse a melhor refeição no último milênio para
ela. Seus vários olhos vermelhos me analisavam
rapidamente, como um açougueiro que não sabe ao certo
qual parte da carne cortar primeiro. Seu odor era
tenebroso, fedia a excrementos, os pelos das suas pernas
me causaram arrepios. Estar tão perto assim de uma
aranha gigante sem poder me mexer quase fez com que eu
surtasse.
Eu queria gritar por ajuda, talvez o veado viesse me
salvar novamente, talvez eu conseguisse fazer a aranha
ficar surda com um grito agudo. Qualquer coisa! Eu
simplesmente não conseguia mais estar nessa situação,
assim tão perto de um aracnídeo. “Mas não era você o
defensor dos animais e das florestas?” Sim, meu caro. Mas
você realmente acha que essa aranha pensa o mesmo dos
humanos?
Senti o resto dos animais e monstros se aproximando,
felizes por uma presa ter pisado em uma armadilha. Pensei
que iam fazer churrasquinho de Moacir, me colocar
amarrado em um grande tronco de árvore e me assar em
uma grande fogueira, girando o tronco como se fosse um
enorme espetinho. Por sorte, ou não, eu estava enganado.
Senti um lobisomem me cheirar e passar suas garras
afiadas nas minhas costas. Um pouco da teia se soltou.
Aparentemente ninguém mais percebeu.
A aranha voltou a ser a anfitriã. Abriu suas presas cheias
de gosma nojenta e sibilou sons de aranha, quase
desmaiei.
Eu já sentia seu bafo quente quando fui salvo pelo
gongo.
- EI, FEIOSOS! – uma voz aguda gritou.
Houveram gritos, uivos, berros, sibilos e xingamentos
em seguida. Quando a aranha saiu da minha frente, tive a
visão de uma garota. Uma garota linda, por sinal.
Cabelos lisos castanhos escuros soltos, o rosto perfeito,
olhos tão negros quantos os meus. Mas, diferente de mim,
era bronzeada levemente. Já eu sempre fui pálido, branco,
da cor da neve (era o que minha mãe costumava dizer).
Ela era claramente uma indígena, pois seu busto estava nu,
em suas bochechas haviam três linhas pintadas na
horizontal. Três linhas azuis em cada lado, enquanto no
centro havia uma enorme linha vermelha na horizontal,
que saia de seu couro cabeludo, passava pelo nariz e
terminava no queixo. Usava uma tanga de folhas verdes na
parte de baixo, e uma bolsa improvisada completamente
suja. Uma bolsa de couro, surrada e velha. Parecia ter mais
ou menos a minha idade.
Ela lutava graciosamente, me perdi em seus movimentos
certeiros. Ela estava em cima de uma pedra, de modo que
tinha perfeita visão de tudo e todos. Lá de cima, usava seu
arco e flecha para distribuir uma chuva de dor em cima
das criaturas.
Enquanto os monstros tentavam subir na pedra
consideravelmente alta em que estava, ela me olhou
incrédula.
- Vai ajudar ou quer um convite especial?
Saí do transe, como raios ela gostaria que eu ajudasse?
- Não sei se você percebeu, moça. Mas eu estou preso
aqui nesta teia de aranhas.
- ONDE ESTÁ A LANÇA QUE VOCÊ USOU
ANTES? – ela gritou. – ONDE A GUARDOU?
- Não está comigo! – respondi. – Eu a perdi.

- Claro que não, eu vi você guardar – Ela disse


calmamente enquanto esvaziava sua aljava.
- Como eu guardei aquela lança imensa? – respondi com
tom irônico.
- Não sei! É por isso que vim até você, mas não sabia
como te abordar. Você fez magia! – Agora sim fiquei
louco.
- Como? – Arqueei as sobrancelhas.
- NÃO SEI! – Ela gritou e disparou uma flecha contra
mim. Jurei que havia me acertado, mas percebi em seguida
que minha mão direita estava livre. A garota disparou para
soltar minha mão! Que alívio – SE VIRA!
Estendi minha mão, tentando tocar o chão. Como estava
de cabeça para baixo, não queria cair caso ela atirasse
outras flechas em mim. O sol estava forte acima de nós,
mesmo com a sombra das árvores. Por causa disso, havia
uma sombra do meu corpo abaixo de mim. Quando estava
quase tocando o chão, algo novo aconteceu.
- MAS O QUE...? – Gritei com medo, mas deixei o
braço estendido com a mão aberta como se eu fosse o
Darth Vader usando a força em alguém.
A lança que eu havia usado para lutar contra as caiporas
estava saindo do chão. Saindo da sombra, saindo da
escuridão. Como um zumbi saindo da terra, aos poucos.
Todo seu comprimento terminou de sair da minha sombra
no chão e fixou-se em minha mão.
Com a lança afiada presente em um dos lados do bastão,
cortei a resistente teia de aranha que me deixou preso. Não
sei o que está acontecendo, mas sei que agora não possuo
mais aquele medo incessante que outrora me incomodava.
Me pus de pé com o bastão empunhado. Era como eu me
lembrava, feito de madeira de árvore com certeza. Além
de, na ponta, um lindo pedaço de metal afiado como uma
faca de espinhos. Era mais afiado do que qualquer coisa
que eu já tenha visto.
Olhei para baixo, girei o bastão nos dedos e golpeei uma
árvore, produzindo um alto som.
- Quem quer me ajudar a testar meu novo brinquedinho?
– falei.
Capítulo 9 - CONHEÇO UMA ALDEIA

Eu parecia um demônio,lutava, rodava e girava o bastão


com tanta velocidade que se eu o colocasse para cima,
provavelmente sairia voando como um helicóptero. Nunca
imaginei que conseguisse fazer esses movimentos assim,
de graça. Sem treinamentos prévios ou avisos de
segurança. Exceto, é claro, os anos de aulas de luta e de
brincadeiras entre meninos.
Monstros e animais da floresta vinham de todos os
lados, inclusive de baixo e de cima. Lembro-me de ter que
jogar longe uma onça pintada que tentou pular por cima de
mim e me matar com suas garras. Como eu tive força para
fazer isso? Outra aranha surgiu de baixo do chão e tentou
me rasgar com suas presas, passei a lâmina do bastão por
elas e a aranha saiu desdentada, emitindo sons estranhos
de dor.
Particularmente, não queria matar os animais da floresta.
Infelizmente tive que tomar medidas drásticas com
aqueles que eu não tinha outra escolha. A maioria eu usei a
ponta inversa do bastão – a sem a lâmina – para
arremessa-los para longe e, assim, abrir caminho para que
eu chegasse perto da minha salvadora.
Saí rodopiando e me livrando dos monstros e animais,
alguns lobisomens ricocheteavam nas árvores e voltaram
com mais raiva para cima de mim. Os que matei viraram
pequenos brotinhos de plantas. Quando matei por acidente
uma caipora, um trovão fortíssimo ribombou nos céus.
Estranhei pois o céu estava nitidamente limpo.
- VAMOS! MINHAS FLECHAS ESTÃO
ACABANDO! – A menina indagou.
- ME DESCULPE! – respondi enquanto me livrava de
alguns macacos que tentavam entrar pelas minhas roupas,
me sacudindo. – ATÉ ALGUMAS HORAS ATRÁS EU
NEM SABIA COMO MANUSEAR UM BASTÃO OU
QUE CRIATURAS COMO LOBISOMENS EXISTIAM!
QUANTOS MACACOS SÃO, AFINAL?
- NORMALMENTE ELES NÃO ATACAM ASSIM –
ela disse – MAS NOS ÚLTIMOS TEMPOS...
Comecei a subir a pedra, tendo como cobertura as
flechas certeiras da garota desnuda. Percebi que sua aljava
estava quase no fim, e tantos monstros assim não seriam
suficientes para algumas flechas.
- DEPOIS VOCÊ ME CONTA – disse como uma
ordem, mas não queria soar grosseiro.
- COMO SE EU FOSSE! – ela gritou mais alto ainda. –
EU MAL LHE CONHEÇO, KAJAÍBA!
Ignorei essa última palavra, sabia que significava
alguma coisa na língua indígena, mas no momento eu não
tinha muito tempo para parar e analisar.
- ELES SÃO MUITOS! – gritei enquanto girava a lança
com a parte afiada apontada para os monstros.
- ESSA É A ÚLTIMA FLECHA – ela anunciou.
- ENTÃO TEMOS QUE CORRER – disse.
- MAS ANTES... – ela apontou sua última flecha e a
disparou contra uma árvore que anteriormente tinha sido
colidida com um lobisomem, ela já estava meio bamba
antes. A flecha atingiu em uma parte que fez com que ela
terminasse de cair, fazendo subir uma poeira que cobriu os
olhos de todos, além de um barulho ensurdecedor.
- BEM PENSADO – elogiei e comecei a correr atrás
dela, que disparava a toda velocidade para a descida da
pedra alta.

(...)

Ela definitivamente conhecia a floresta. Afinal, é


claramente uma indígena.
Corria por entre as árvores com uma facilidade, virava
de repente, me causando náuseas. Conseguia escutar
rugidos, gritos e uivos atrás de nós. Estava com fome,
cansado, suado, perdido e sem nenhuma expectativa de
conseguir sair vivo dessa situação.

- TEMOS QUE CHEGAR À ALDEIA – ela gritou à


minha frente. – ELA TEM PROTEÇÃO MÁGICA
CONTRA MONSTROS, E PODEMOS PEDIR AJUDA
CONTRA TANTOS BICHOS – sua expressão era clara,
estava apavorada.
Assenti e continuei correndo, torcendo para que ela não
dissesse algo como “você não pode vir comigo” ou
“preciso que você seja o sacrifício para que eu consiga
chegar viva”. Não estava afim de ser deixado abandonado
novamente.
- EU NUNCA VI UMA MOBILIZAÇÃO TÃO
GRANDE ASSIM! – disse a garota.
- E EU NUNCA TINHA VISTO SE QUER UM ÚNICO
LOBISOMEM – respondi.
- TÍPICO KAJAÍBA.
Ignorei-a novamente e continuamos a corrida da morte.
Pouco tempo depois da mata ter se tornado ainda mais
fechada – como se fosse para que ninguém que não
conhecesse o caminho conseguisse chegar até determinado
lugar – chegamos a um lugar lindo, um campo aberto com
pequenas árvores aqui e ali, além de uma enorme que se
destacava das demais bem ao meio. Haviam ocas de
nativos, plantações pequenas e uma oca que também se
destacava. Não consegui parar para reparar muita coisa
nessa hora, mas lembro-me de atravessar uma água gelada,
um rio extremamente raso, com água até os tornozelos,
que parecia circular a vila perfeitamente, e então
adentramos a aldeia propriamente dita.
- PREPARAR PARA BATALHA – a minha salvadora
gritou.
De dentro das ocas, indígenas parecidos com ela
começaram a se mexer em todas as direções. Pegando
lanças de todos os tamanhos, além de arcos e flechas.
Escondiam bebês e colocavam quem estivesse em
disposição para batalha na linha de frente. Quando me
viram, apontaram as armas para mim.
- ACALMEM-SE – ouvi uma voz grave, uma voz nova
– O MENINO NÃO É, NESTE MOMENTO, O
PROBLEMA!
De trás do mini exército de nativos, um mais velho saiu
com mais tinta no corpo e menos fôlego em minha
direção. Eu observava tudo, incrédulo. Minha recém
amiga estava posicionada ao meu lado.
- Ó, cacique Aimberê. Este menino não é uma ameaça.
Eu o salvei de monstros, que agora estão tentando chegar
ao nosso lar – disse a menina.
- VOCÊ OS TROUXE PARA CÁ? – gritou um indígena
com um arco e flecha.
- Infelizmente, sim – respondeu – Precisava salva-lo,
cacique.
- Quantos você trouxe, filha? – perguntou o mais velho.
- Todos eles...
CAPÍTULO 10 - FINALMENTE CONHEÇO MINHA
SALVADORA

Sabem aqueles filmes de guerra,


quando tudo fica em câmera
lenta para o protagonista, mas para os figurantes está uma
confusão total? Então, eu era o figurante nessa situação. O
Cacique Aimberê ficou atordoado, e tudo ao redor estava
um caos. Por um momento, achei que o senhor idoso fosse
ter um tipo de parada cardíaca.
Mais uma vez, eu estava enganado. Felizmente, o que eu
achei que fosse um princípio de parada cardíaca era, na
verdade, uma mente brilhante trabalhando. Mas eu só
saberia que esse homem tem uma mente incrível bem mais
tarde.
- Acalmem-se todos! – ele disse e instalou-se um
silêncio mortal.
- O que faremos? – eu perguntei.
- Acho que você já nos trouxe muitos problemas,
rapazinho – ele me encarou e, por um momento, achei que
fosse me matar ali mesmo.
- Senhor, com todo respeito... – a garota tentou falar
algo, mas foi interrompida pelo velho.
- Basta! – ele disse, rispidamente – Os dois, para dentro
de minha oca! Conversaremos mais tarde. Eu mesmo
entrarei na batalha.
- Mas o senhor não está em condições...
- EU DISSE – ele gritou. – PARA DENTRO DE
MINHA OCA!
Minha companhia bateu o pé, frustrada. Saiu na frente e
eu a segui, torcendo para que nenhum de nós levasse uma
flechada pelas costas no caminho. Todos nos olhavam com
uma raiva imensurável, especialmente para ela. Acho que
não era a primeira vez que levava uma bronca do cacique
Aimberê.
- PROTEJAM AS BARREIRAS DA ALDEIA! – ouvi o
velho gritar atrás de nós. – VAMOS FICAR BEM!
ARQUEIROS DE PRONTIDÃO, AO MEU SINAL...
- Senhor, há vários deles. Estão vindo de todos os
lados... – ouvi outro dizer e, depois, uma saraivada de
flechas zuniu nos céus.
Continuei caminhando até uma oca que se destacava das
demais, era enorme. Possuía grandes palhas, mas era mais
formada por madeira rígida do que por outra coisa. Pensei
em como seria se houvesse um incêndio aqui.
Por dentro, a oca era espaçosa. Possuía vários pertences
do cacique. Folhas enormes e verdes espalhadas pelo chão.
Eu e a menina nos sentamos em uma que estava mais no
canto.
- Temos de ficar aqui agora, de castigo – ela disse.
- Poderemos, então, colocar nosso papo em dia, não? –
perguntei
- Papo? Que tipo de palavra é essa?
- Quis dizer que poderemos conversar, dialogar sobre...
ahm, certas dúvidas que eu possuo – tentei ser o mais
formal possível
- Ah, sim. Me chamo Eçauna Araripe – ela disse. – E
você?
- Moacir Anhanguera.
Ela estremeceu. Seus olhos ficaram arregalados, e sua
pele que outrora fora morena agora possuía um tom
doentio de verde.
- Está tudo bem? – perguntei, preocupado.
- Você... – ela não terminou a frase.
Um grito muito alto a tirou de seus pensamentos,
estabelecendo um silêncio desagradável ao nosso redor.
Eu e Eçauna ficamos nos encarando e depois olhando ao
redor. Quando foi que minha lança se foi novamente?
Ela pareceu perceber que eu a estava procurando, pois
nossa conversa seguiu:
- Traga-o de volta – ela pediu
- Não sei bem como fazer – admiti
- Tente – implorou ela
- Você é surda? – bradei e ela se encolheu.
Suspirei alto e devagar, meus problemas de raiva deviam
ser controlados o mais rápido possível, já perdi muita
gente. Além disso, a garota havia me salvado de vários
monstros.
- Me desculpe – eu pedi.
Ela voltou a relaxar, seus ombros que antes estavam
tensos agora estavam de volta ao normal.
- Por favor, tente fazer magia novamente – ela pediu.
- Vou tentar...
Estendi o braço à lateral do corpo, onde uma frecha das
luzes do dia entravam na oca grande do cacique, a qual
não possuía uma porta e, com o tempo, o bastão foi
surgindo da minha sombra. Esquisito.
- Eu... não sei como fiz isso – admiti novamente.
- Só sei que acho melhor não contarmos para ninguém,
ainda – Eçauna respondeu. – Minha aldeia não é muito
receptiva com magia.
Assenti e ela continuou falando.
- Já ouvi falar sobre Ubiratãs, mas nunca os tinha visto
de perto. Aqui na aldeia só usamos lanças para pescar.
Mais alguns segundos de silêncio.
- Como você...?
- Como eu te achei? Eu costumo sair da aldeia de vez em
quando para observar os Kajaíbas, como você. Estava
querendo ver os animais que vocês mantêm presos no
zoológico quando vi que estava em apuros – ela disse
- Cajá o quê? – perguntei
- Kajaíbas, pessoas que não são indígenas – contou.
Pensei em dizer que eu não era isso aí que fui chamado.
Bem, é verdade que não cresci numa aldeia como ela. Mas
minha mãe é indígena. Avaliei a situação e decidi não falar
sobre minha vida pessoal, ainda.
Veja bem, é verdade que ela me salvou, pelo que pude
perceber. Mas isso não quer dizer que eu deveria confiar
cegamente nessa menina. Apesar dela demonstrar
hiperatividade, aparentar ser muito feliz e um tanto quanto
inocente, percebi, por experiência própria, que ela também
guardava muita coisa para si mesma. Talvez muita
pressão.
- Seu avô quem te ensinou a usar o arco e flecha? –
perguntei.
Ela assentiu.
- Desde que eu consigo me lembrar... devo tudo que sei a
ele.
Por mais que ela demonstrasse, agora, estar bem, percebi
que a garota estava mais afastada de mim. Ela ficou uns
centímetros a mais longe de mim desde que eu dissera a
ela meu nome. O que eu fiz que não estou sabendo?
Ficamos por muitos minutos conversando e trocando
ideias, enquanto escutávamos os barulhos absurdos da
batalha. Guardei, dessa vez propositalmente, meu Ubiratã
dentro das sombras, me corroendo por não estar na luta.
Ouvia gritos, uivos e outros mesmos sons que vinha
ouvindo nessas horas perdido na floresta. Não parecia
justo estar sentado batendo um papo legal enquanto outros
estavam correndo perigo.
- ELES INVADIRAM A ALDEIA! – ouvimos um
indígena gritar.

CAPÍTULO 11 - A BATALHA NA ALDEIA

Já ouvi várias frases perturbadoras,


até mesmo sons
desagradáveis. Mas, quando escutei alguém gritar que os
monstros haviam invadido as barreiras que o cacique jurou
proteger, eu congelei, bem como Eçauna.
Ela levantou as sobrancelhas, com o pânico claro em
seus olhos. Mesmo tendo me defendido de todos esses
monstros anteriormente, parece que, ao invadirem seu lar,
a garota percebeu a gravidade da situação – mesmo nem
eu sabendo da gravidade dos fatos, estou mais perdido do
que qualquer outra pessoa no mundo.
Como eu cheguei aqui? A ignorância é uma benção,
afinal de contas.
Enquanto ouvimos correrias, sons de lanças se chocando
e flechas zunindo nos céus, eu tentava me acalmar.
Embora sempre tivesse morado em Manaus, nunca vi um
assalto ou até mesmo tiroteio... muito menos uma batalha
onde os monstros fazem fila para invadir uma aldeia
indígena como se fosse uma fila para uma rave de
monstros mitológicos.
Eçauna, como eu esperava, não conseguiu ficar parada
dentro da oca do cacique. Agachada por detrás dos
pertences do cacique – armas, mesas de madeira contendo
papéis, líquidos coloridos, um lindo arco grande que
brilhava da cor cinza e várias folhas de árvore que eu
honestamente não tenho vontade de saber o porquê – ela
finalmente ela chegou à entrada, e seus olhos se
arregalaram ainda mais.
- Que caos... – ela murmurou
Fui até perto dela, espiei para o lado de fora da oca e
quase desmaiei. Uma verdadeira guerra, caiporas à minha
frente com suas garras afiadas neutralizavam indígenas
que estavam correndo por todos os lados buscando repor
equipamentos, não sei se eles estavam mortos ou apenas
desmaiados, mas não queria descobrir. Lobisomens
abocanhavam as flechas dos arqueiros sem dó nem
piedade à minha esquerda. À direita, o próprio cacique
Aimberê rodopiava como um demônio, matando curupiras
e outros monstros que não reconheci.
O velho recebeu uma pancada forte, como se tivesse
sido atropelado por um touro. Ao invés de ser realmente
um touro, era o mesmo monstro que me atacou na floresta.
Gigante, a boca na altura da barriga, os pelos marrons, pés
e mãos com garras afiadas e um único olho no meio.
- É UM MAPINGUARI! – Eçauna gritou. – NÃO
FAÇAM NENHUM BARULHO.
Seria o mesmo se não houvesse dito nada. Uma criança
indígena gritou, horrorizada, da frente de sua oca. O
monstro urrou em ódio e partiu como um búfalo para cima
da pobrezinha.
- NÃO! – Gritei e comecei a correr na direção da
criança. Ela estava longe de mim, nunca a alcançaria.
Eu não percebi o que aconteceu em seguida. Estava a
talvez uns dez metros de distância da menininha e, no
segundo seguinte, estava a poucos centímetros. Nem o
Mapinguari nem eu tivemos tempo de perceber o que eu
havia feito. Ele continuou avançando como um trem bala,
enquanto eu peguei a criança no colo e corri com ela para
o mais longe possível, na direção contrária de Eçauna e da
oca do cacique Aimberê.
A criança não parava de chorar e chamar por sua mãe.
Para ser sincero, acho que ela ficou com mais medo de
mim do que do monstro de um olho só.
- MOACIR! – ouvi Eçauna me chamar.
Entendi o que ela queria dizer, eu estava indo na direção
de um grupo de mulas sem cabeça, que estava perto do rio
infestado de piranhas. Como mulas sem cabeça, que tem
chamas no pescoço, conseguem ficar perto da água?
De qualquer forma, não poderia parar para pensar. O
monstro continuava correndo, enquanto eu estava parado,
com a menina nos meus braços. Não podia ir para trás,
onde estava com mulas sem cabeça, muito menos para
frente, onde estava o Mapinguari. Estava cercado.

Visualizei Eçauna perto da entrada da oca, onde eu


estava há alguns minutos atrás. Não sei o que me deu, mas
eu fiz novamente. Em um segundo eu estava de cara com
o monstro quase me abocanhando, e no outro, eu estava
cara a cara com Eçauna. Antes que eu pudesse perceber o
que havia acontecido, ouvi um tchibum vindo do rio. O
gigante caíra em cima de todas as piranhas, sobrando nada
apenas a cor da água tingida de verde – o sangue dele.
Cobri os olhos da criança antes que ela pudesse perceber
o assassinato do monstro.
- NÃO! – ela gritou. – ESCURIDÃO DE NOVO NÃO!
MAMÃE, ONDE ESTÁ?
Virei-me para o lado oposto ao rio e tirei a palma da
minha mão dos olhos da menina. Sua mãe chegou logo em
seguida.
- Muito obrigada! – me agradeceu e saiu correndo para
algum lugar seguro.
Eu e Eçauna nos entreolhamos.
- Como você...? – perguntou
- O que?
- Como fizestes isso?
- Isso o que? – estava genuinamente confuso. Ia
perguntar novamente a ela, mas ouvi Aimberê gritar.
- TRAGAM-ME MEU ARCO, AGORA!
- Conversamos mais tarde, será nosso segredinho –
Eçauna me prometeu.
Saímos correndo em direção ao arco prateado do
cacique, mas uma onda de monstros apareceu novamente
para um segundo round.
- Você pega o arco, eu vou ajudar! – eu disse à Eçauna e
ela concordou.
Invoquei minha lança, que saiu da minha sombra
novamente diretamente para minhas mãos. Um longo
bastão de madeira com uma parte de metal afiada nas
pontas. Usei-a como se fosse salto em distância e saltei no
combate.
Nem pensava direito. Simplesmente investia, me defendia
e rodava o bastão com uma naturalidade tão grande quanto
respirar. Os inimigos continuavam a vir, sem parar. Logo
estaríamos dominados. Tentei conversar com algum aliado
meu, mas os indígenas não pareciam ter condições de falar
e lutar ao mesmo tempo como eu.
- ONDE ESTÁ MEU ARCO? – Aimberê gritou
Olhei para trás e vi Eçauna dominada por dois
lobisomens, um com as garras no pescoço dela, e o outro
com os dentes em suas pernas, imobilizando-a.
- NÃO! – gritei e, em seguida, girei o bastão tão rápido
que jurei que iria sair voando. Com toda a força do
mundo, finquei a parte afiada de minha arma no chão,
emitindo um barulho ensurdecedor.
Por conta da altura do barulho, os dois lobisomens me
encararam. Eu fervia em ódio, como eles haviam chegado
ali sem que eu visse? Eçauna estava de costas para mim,
sem poder se mexer.
E então, aconteceu mais uma situação estranha. Eu senti
meus olhos arderem, pareciam que estavam fervendo com
lava de um vulcão em erupção. Segundos depois, os
lobisomens enlouqueceram. Saíram uivando e chorando,
desesperados. Evitaram me olhar e, quando o faziam,
pediam perdão
- Perdão, senhor! Perdão! – eles disseram.
O campo de batalha, porém, continuava um caos.
Mesmo embora o cacique me olhasse aterrorizado. O que
aconteceu?
Vi mais mortes e destruições de ocas, me senti culpado.
Era culpa minha os monstros terem invadido, eu tinha que
acabar com isso.
- AAAAAHHH! – Gritei e girei o bastão novamente,
finquei a parte de metal afiada no chão. E então eu caí,
esgotado, no chão.
Antes de desmaiar, vi meu bastão voltar para as
sombras, desaparecendo. Monstros que não haviam sido
desintegrados ou transformados em plantas saíram em
pânico. Fechei os olhos, que estavam com as pálpebras
pesadas, e desmaiei.
Em meus sonhos, vi mais vários quilômetros quadrados
de verde e mata fechada. Vastos lotes de floresta ao longo
do território.
De relances, jurei ter visto uma praia. Estranhei, não
existem praias – a não ser de rios – no estado do
Amazonas. Era linda e vazia, o mar se estendia até a o
infinito, com luzes brancas sendo refletidas nas cristas das
ondas pelo sol.
A areia fumegava com o calor insaciável, de modo que
nem as longas rajadas de vento eram capazes de desfazer.
Além disso, uma voz: “Estarei lhe esperando”.
CAPÍTULO 12 - SOU UM CAOS AMBULANTE?

De volta à realidade, ainda meio tonto e talvez


imaginando frases, jurei escutar algumas palavras como
“Sumé” ou “Ubiratã” e até mesmo “Kajaíba” novamente.
Esse último parecia vir da voz de Eçauna, provavelmente
praguejando.
Ainda não estava totalmente desperto, acordava e
voltava a dormir. Minhas energias estavam completamente
esgotadas. Escutava cada vez mais frases sem sentido,
palavras em línguas desconhecidas e mais outras que
sequer tentei compreender.
Quando finalmente acordei de uma vez por todas, estava
em uma pilha de folhas frescas e confortáveis que parecia
uma espécie de cama. Aimberê estava de costas para mim,
e uma fumaça colorida iluminava todo o lugar. Percebi que
estava em sua oca, vários dos frascos que outrora vi em
cima das mesas já não possuíam seus líquidos neles.
Provavelmente o cacique utilizou-as para realizar tais
fumaças.
Tentei me por de pé. Pior decisão que tomei desde que
quis participar de um certo trabalho voluntário.
Quando pus meus pés no chão, senti minhas pernas
bambas como gelatina, quase fui de encontro ao chão, se
não fosse por um dos ajudantes do velho.
- Cuidado, Moacir– disse Aimberê. – Ainda não está
recuperado totalmente.
- É, eu percebi – respondi friamente
- Não se sinta mal, criança. Não quis dizer por mal
quando você trouxe aqueles monstros para minha aldeia,
até então intocada por tais criaturas. Inclusive por pessoas
como você.
Com certeza fiquei vermelho de raiva.
- Pessoas como eu? – esbravejei. – Eu posso até ter
trazido os monstros, mas fui eu quem os pôs para correr!
Um dos indígenas que me ajudaram a ficar de pé disse:
- Cuidado, Kajaíba! – me repreendeu com o nariz
franzido.
- Deixe-o, Caramuru – respondeu o velho. – Ele está
confuso, provavelmente perdido e sozinho na floresta.
Encarei o cacique quando este se virou na minha
direção. Consegui perceber de onde saía a fumaça, era de
uma simples fogueira. Dela, emanava um fogo de várias
cores. Haviam imagens que nem eu mesmo compreendi
saindo dela.
- Não olhe, garoto! – Aimberê me repreendeu
novamente.
Olhei, atônito, para o senhor à minha frente. O velho
deve ter percebido minha expressão de espanto, pois ele
me disse:
- Desculpe-me, Moacir– desculpou-se. – Sabes o que
significa o nome Aimberê?
- Receio que não – respondi
- Bom, a tradução pode ser “duro” ou até mesmo
“rígido”. Creio que meus pais me deram este nome depois
de terem visto meu comportamento um tanto quanto...
forte.
- Faz todo sentido – comentei.
O cacique me repreendeu com um olhar assertivo.
Compreendi a mensagem: nada de brincadeiras.
- É evidente que você é um mau presságio – ele disse. –
Isso geralmente acontece quando os deuses, ou nós,
indígenas, estamos em perigo. E você tem causado muito
dano.
- É meio o que significa “mau presságio” – murmurei
baixinho; não quis ser ouvido.
- Um anhanguera, na nossa língua nativa – ele se virou,
encarando-me com seus olhos castanhos e desgastados
pelo tempo.
Senti como se houvesse levado uma facada, mesmo sem
entender totalmente o motivo. Era como se Aimberê
esperasse que eu confessasse algo. Para azar dele, eu não
sabia de nada.
Eu sei que costumo ser impulsivo, mas o que eu
perguntei a seguir fez com que eu me superasse.
- Desculpe-me, senhor. Mas, se vocês falam outra
língua, por quê estão falando a minha?
Imediatamente me arrependi. O cacique me estudou
como se eu estivesse louco, talvez eu estivesse, afinal de
contas. Ele segurou minha cabeça com suas mãos
enrugadas, como se quisesse amassa-la.
- Quer mesmo saber, filho? – perguntou. Me senti
estranho, até onde eu saiba, não era filho dele. A menos
que ser cacique meio que esteja incluso adotar todos que
estejam presentes em seu território.
Assenti com os olhos. Senti que, se eu falasse qualquer
coisa, iria ser morto ali mesmo.
- Conhece a história de Bartolomeu? Bartolomeu Bueno
da Silva? – ele aumentou o tom de voz.
- Sinto muito... não – minha voz saiu mais como um
sussurro, nunca me ensinaram isto nas aulas de história.
- Pois sente-se, vou lhe mostrar.
O velho me conduziu à fogueira colorida, era – por
exceção da cor – uma fogueira normal. Sentei-me
totalmente ao lado oposto ao cacique, de modo que ficava
de frente para ele. Não gostaria de estar por perto em mais
um de seus surtos de raiva. Onde estaria Eçauna para me
salvar novamente?
O cacique Aimberê jogou algumas gotas dos líquidos
coloridos que outrora estavam nos tubos em cima de sua
mesa. Sentado no chão, este idoso senhor parecia muito
mais aterrorizante. Além disso, não gostava muito da visão
de vê-lo sem camisa, pintado pelo corpo todo – inclusive
em partes onde sua tanga feita de folhas deveria cobrir.
As chamas da fogueira ficaram mais intensas, de modo
que eu não conseguia mais – graças aos deuses – ver o
cacique do lado oposto. E então ele entoou.
- Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera – ele
remexeu os braços freneticamente, pude ver por cima das
labaredas. Ao ouvir a última palavra, eu estremeci.
E então, do meio da lareira, surgiu um homem. Era
como uma TV em alta resolução que eu conseguia ver
dentro do fogo.
Era um homem de idade avançada, com uma túnica
cheia de medalhas, daquelas antigas, e um cinto brilhante
com uma espada presa a ele. Uma calça de couro, suja
com pelos de cavalo, e culotes nos pés. Nas mãos com
luvas sujas, uma espingarda. Estremeci, seus olhos por
baixo dos óculos circulares não demonstravam uma pessoa
agradável. Seu bigode grisalho balançava conforme ele
gritava com... indígenas.
Ele sacou um prato com aguardente, e ateou fogo. Os
nativos ficaram, naturalmente, assustados. Em seguida, ele
apontou para um rio, metros e metros atrás dele.
- Mas o que...? – gaguejei.
Os nativos se ajoelhavam, afastados dele, como se
pedissem perdão. Este homem com bigodes era,
claramente, um bandeirante. Isso sim eu havia estudado
nas aulas de história. Um nativo de idade avançada muito
familiar apontou para uma direção, e o bandeirante seguiu
seu rumo, deixando várias famílias para trás, assustadas.
O fogo baixou, e o crepitar da fogueira de repente não
era mais tão aconchegante quanto antes.
- Entende agora, filho? – o cacique perguntou,
evidentemente com a mesma quantidade de raiva que eu.
- Mais ou menos – admiti. – Vocês falam nossa língua
porque foram invadidos, violados. Certo?
- Então tu não és tão ignorante quanto pensei... vou lhe
contar.
Ajustei-me ao chão, senti que viria uma longa história
sobre este tal Bartolomeu.
- Em 1682, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva
comandou uma expedição ao interior do Brasil. Nessa
época, obviamente, haviam muito mais indígenas morando
nas regiões até então intocadas pelos homens brancos.
Bem como ouro! Nós, nativos, sempre soubemos os locais
precisos das enormes minas. E isto era o que agradava
eles, o dinheiro... – seus olhos pesaram, e eu senti uma
vontade enorme de abraça-lo, mas não o fiz.
- Eu sinto muito... eu – tentei dizer.
- Não me interrompa! – ele falou firmemente.
- Desculpa. Prossiga, por favor.
- Quando os bandeirantes chegaram ao atual estado de
Goiás, maravilharam-se ao saber que era uma região que
ainda havia ouro, bem como o atual estado de Minas
Gerais, que recebe este nome por razões óbvias.
Assenti lentamente, encorajando-o a continuar, sempre
amei história.
- Eles sabiam que nós possuíamos as localizações das
minas, e nos forçaram a dizer... Bartolomeu Bueno possuía
o mesmo nome de seu pai, Bartolomeu. Os dois receberam
os primeiros apelidos de “Anhanguera”, pois eram
considerados “diabos velhos”.
- Daí então que vem o nome do deus Anhangá? O deus
do submundo? – perguntei, já esperando o grito, mas fui
pego de surpresa.
- É o contrário, meu jovem. A palavra anhanguera vem
do deus Anhangá. Este deus é considerado, dependendo da
história, como bom ou ruim, ele e seus demônios, os
Juruparis, na nossa língua, eram as vezes protetores, e as
vezes... não.
- Sinto muito.
- Voltando. Quando Bartolomeu filho soube que os
indígenas conheciam muito bem a região, obrigou-nos a
contar-lhe. Torturou-nos, e com uma garrafa de pinga, pôs
fogo em um prato. Disse que, se não lhe contássemos onde
estavam as minas, ele atearia fogo nos rios. Nós, que já
estávamos assustados com a simples demonstração de
poder sobre o fogo no prato, não tivemos escolha a não ser
contar. Tínhamos que proteger nossos filhos! – seus olhos
continham lágrimas.
Por um momento, passou pela minha cabeça um
pensamento completamente inusitado. Aimberê fala com
tanta convicção... como se ele tivesse passado por isso!
Ele não poderia ser tão velho, podia?
- E o que aconteceu depois? – perguntei, mas já sabia a
resposta.
- Ora, o que achas? Ele ateou fogo em alguns rios
mesmo assim! Além de ter promovido fortes migrações
para a região por volta de 1700. Invadiram nossas terras,
tiraram o que era nosso! Aventureiros não paravam de
chegar, e algumas tribos foram extintas desde então. Essa
aldeia, por exemplo, é constituída de vários nativos de
diferentes tribos. Por isso falamos português, uma língua
para todos nós, apesar de as vezes ser possível escutar
palavras indígenas. Falamos português por culpa de vocês!
– ele cuspiu as palavras.
- Se me conhecesse, não diria que eu sou igual a eles –
murmurei, não queria discutir com Aimberê nessas
circunstâncias.
Ele se pôs de pé, e apontou o dedo indicador à minha
face.
- Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, é seu
antepassado, Moacir Anhanguera. E você não vai mais
causar danos a esta floresta, como seu parente fez com
minha aldeia antiga.
Eu fiquei em choque. O tempo pareceu estar mais lento.
Os sons da floresta estavam mais distantes, como se eu
jamais houvesse saído do zoológico.
- O que? Está brincando comigo, não está?
Aimberê ficou ainda mais rígido, suas rugas ao redor do
rosto se contorciam enquanto ele expunha sua raiva.
- Não banque o bobo, kajaíba! – ele gritou.
As lágrimas apareceram como um reflexo em meu rosto.
Mamãe nunca me contara isso. O que está acontecendo?
O cacique continuou.
- E agora, você está tentando destruir a floresta, já que
seu antepassado não conseguiu.
- Não... não. Eu juro... – eu tentei dizer por entre
soluços.
Percebi que a entrada de sua oca estava trancada. Eles
estavam me tratando como um prisioneiro. Eu não
conseguia ver o lado de fora.
- Nem pense em fugir, garoto. Até porque não
conseguiria – disse um dos guardas que outrora Aimberê
chamara de Caramuru.
Os monstros disseram as mesmas coisas. Mas como eu
posso estar tentando destruir a floresta, sendo que eu nem
sei como eu vim parar dentro da floresta?
O velho me disse que, depois que eu desmaiei, Eçauna
disse-lhe meu sobrenome, e assim ele descobrira o motivo
do ataque à aldeia. Era minha culpa, os monstros estavam
atrás de mim.
- Eu devia ter deixado que o comessem – Aimberê
resmungou.
Passei o que pareceu uma eternidade chorando, enquanto
encarava o cacique que estava com uma expressão de ódio
puro. Eu poderia muito bem socar ele, é claro. Mas os
guardas estavam com lanças.
Espera, eu também tenho uma, pensei.
Quando ia esticar minha mão para alguma sombra, um
trovão ribombou. Um estrondo alto e forte, seguido de
gritos vindos do lado de fora da oca.
Ouvi passos vindo em direção a oca do cacique. À frente
das grades, surgira uma mulher.
Era uma nativa. Os cabelos ondulados e volumosos
caíam-lhe depois dos ombros. Sua franja era cortada reta,
e no meio dela havia uma pena azul. Logo abaixo vinham
seus olhos cinzas, envoltos por uma tinta vermelha e
grossa em formato de retângulo. Seus seios não possuíam
mamilos, e seus lábios eram carnudos.
Na parte de baixo, havia uma tanga feita de palha. Suas
pernas eram delicadas e lindas, e seus pés eram bem
cuidados.
Vi, de relance, todos os indígenas – dentro e fora da oca
– se curvarem, mas não entendi até a mulher falar.
- Eu sou Ceuci, filha de Tupã, deusa das lavouras e das
moradias indígenas. Posso entrar?

Capítulo 13 – A deusa: amiga ou inimiga?


Depois do choque inicial, o cacique se levantou com
dificuldade, e pediu que seus guardas tirassem a cerca de
metal. A deusa caminhou a passos calmos em minha
direção.
- Olá, Moacir.
Não soube o que responder. Olá, oi, ou “e aí”? Pediria
clemência ou pediria desculpas? Acho que, mesmo se eu
conseguisse decidir o que iria falar, o som não sairia das
minhas cordas vocais. Eu estava paralisado, não sei se de
medo, ou admiração. Talvez os dois.
Percebi que estava de boca aberta quando a deusa se
agachou e fechou minha boca com a mão. Sua pele era
quente e macia, como da minha mãe. Seu cheiro era de
folhas frescas, como uma leve brisa que traz paz.
Ela me levantou do chão junto com ela.
- Precisamos conversar – anunciou.
A deusa disse isso para ninguém em específico, como se
todos fossem entender. É claro que eu, da aldeia inteira,
fui o único que não compreendi.
Todos os indígenas saíram de suas ocas, postando-se em
um círculo tumultuado ao redor da mulher e de mim. Só
depois fui reparar que ela me carregava com um dos
braços apoiados no meu ombro, como se fosse uma mãe
cuidando de sua cria. O cacique caminhava, com medo,
perto de nós. Ceuci se posicionou bem no centro do
enorme círculo de nativos, e entoou:
- Povo comandado pelo cacique Aimberê, eu sou Ceuci.
Precisam entender que este menino que chegou em sua
aldeia não é o culpado pelos desastres ao longo da
floresta! Ele se provou forte e corajoso chegando até aqui
praticamente sozinho. Meu pai e eu discordamos acerca da
índole deste humano. Tenho a convicção de que ele é um
ser bom. Compreenderam isso?
Todos ao redor balançavam suas cabeças, concordando
euforicamente. Até mesmo Aimberê. Por mais pálido que
estivesse, como se temesse que esse dia chegasse.
- Então, ó Mãe do Pranto – disse o cacique. – Quem és o
demônio que pretende destruir a mata?
A mulher se voltou para o mais velho com um olhar de
pena. Acho que eles já se viram antes.
- Tantos anos de vida, Aimberê, e mesmo assim não
consegues perceber que a hora chegou?
O velho estremeceu. Seus olhos pareciam saltar das
órbitas, e o resto da aldeia pareceu irrequieta. Crianças
choravam e mães acudiam. Senti mais saudade ainda da
minha mãe, queria que ela me ninhasse em seus braços e
me dissesse que estava tudo bem.
Eu, entretanto, observava a conversa totalmente confuso.
Estava sentindo raiva e tristeza, uma combinação pra lá de
perigosa. Não poderia deixar transparecer, ou as coisas
poderiam ficar feias perto da deusa.
Comecei, então, a me lembrar da história de Ceuci.
Nunca soube direito sua origem, mas sabia que ela era
filha de Tupã, o deus supremo. Ele, inclusive, foi quem a
matou com um raio. Estremeci só de pensar no que Tupã
poderia fazer comigo, um simples garoto, já que ele
próprio matou sua filha.
Eu pigarreei.
- Com licença, senhores. Não quero interromper seja lá o
que estiverem discutindo. Mas, Ceuci, se seu pai discorda
quanto à minha índole, quer dizer que ele acha que eu
estou causando algum mal à floresta?
- Perfeitamente – a mulher respondeu. – Tupã crê
firmemente que vós estais prestes a destruir todos os
deuses. Há um homem, no extremo da floresta ao leste,
que pretende explodir uma bomba que arrasará a mata. –
Todos ficaram chocados, inclusive eu.
“Tupã está com medo” prosseguiu Ceuci. “Ele está
tentando se livrar do menino a qualquer custo. Mas eu lhes
digo: o menino não é a ameaça. Há outro homem, como já
vos disse, este sim é o verdadeiro perigo. Por carregar o
mesmo sobrenome que Moacir, meu pai quer acabar com
todos de sua família.”
Automaticamente pensei em minha mãe, mas a deusa
me lançou um olhar tranquilizante e disse que “minha mãe
está a salvo, pois meu pai a está protegendo”. Isso,
sinceramente, me deixou mais atordoado ainda.
- Meu pai? A senhora o conhece? – perguntei.
- É claro! – ela respondeu. – E Tupã também.
Ceuci se virou para Aimberê, e disse “chegou a hora”. O
círculo se desfez, e nós três voltamos em direção a oca do
cacique. Eçauna quis vir junto, mas Aimberê não permitiu.
Dentro da oca, sentados em folhas verdes e grandes,
Ceuci parecia mais calma do que nunca. Totalmente o
oposto de mim, devo acrescentar. Talvez seja por ela ser
deusa das moradias indígenas, supus.
- Explique a ele, Aimberê – Ceuci pediu.
- Muito bem, kajaíba – ele disse, claramente
contrariado.
Ceuci se levantou, satisfeita, e disse “meu trabalho aqui
está feito, agora terei que me esconder de meu pai até que
ele perceba que você, Moacir, não é uma ameaça. Boa
sorte.”
Um vento forte tomou conta de nós dentro da oca, e
Ceuci se dissolveu em várias folhas verdes de uma árvore
qualquer.
- Eu vou confiar em Ceuci – disse Aimberê. – Mas não
signifique que eu confie totalmente em você.

CAPÍTULO 14- RECEBO UMA MISSÃO

Aimberê me fez algumas perguntas, do tipo “quantos anos


você tem?” até “seus pais sabem onde está?”
- Tenho 17 anos – respondi. – E não sei se minha mãe
sabe onde estou.
- Garanto a você que ela não sabe onde estás. Essa vila
só pode ser achada por aqueles que sabem que ela existe, é
praticamente impossível achar por conta própria. Você, por
exemplo, só chegou aqui porque Eçauna o trouxe. E os
monstros chegaram aqui poque seguiram vocês.
- Certo, vocês podem me ajudar a sair da floresta, então?
– perguntei, esperançoso.
- Receio que não, filho. Nós raramente saímos da aldeia,
com exceção de Eçauna – ele ficou ligeiramente vermelho
de raiva.
- Qual o problema de sair da vila? – perguntei e,
imediatamente, me arrependi.
- Você já sabe a resposta. Afinal, você acabou de lutar
contra eles... sabe o que fizestes para dispersar todos eles
para longe daqui?
- Não faço a menor ideia, simplesmente senti uma raiva
enorme – admiti.
Ele assentiu, como se soubesse a resposta que eu daria.
- Escute, filho. Eu sou muito mais velho do que
aparento, já vi vários indivíduos parecidos ou iguais à
Bartolomeu com meus próprios olhos – ele disse e eu me
lembrei daquela minha suposição.
- Você estava lá, não estava? Quando Bartolomeu
ameaçou os indígenas.
Os olhos do cacique se fecharam, assentindo lentamente.
- Eu acreditei nele. Ele disse que, se contássemos as
localizações das minas, nos deixariam em paz... eu deveria
saber que era mentira.
- Eu sinto muito – disse novamente.
- Depois disso, por conta da raiva, eu fiz uma promessa
que custou toda minha família – seu corpo, que até então
estava divinamente com a postura correta, se curvou.
Decidi não perguntar sobre isso, afinal, eu sabia mais ou
menos uma história triste. Minha mãe havia perdido todos
de sua aldeia. Não sei o porquê, mas decidi não contar isso
ao cacique.
- Além disso, nós todos fomos punidos – ele disse.
- Punidos? Mais do que invasão de suas terras? –
perguntei, incrédulo.
- Muito mais... o próprio deus Sumé apareceu para nós –
lembrei que havia escutado este nome enquanto estava
semiconsciente.
- E o senhor acha que eu tenho alguma coisa haver com
Sumé? – deduzi
Ele assentiu.
- Filho, seu aparecimento, os monstros encontrando a
vila, minha aldeia sendo ameaçada novamente... não pode
ser coincidência. Eu sinto muito poder em você, e por
nossas regras, somente eu sou permitido de usar magias,
eu vi o que fizeste no campo de batalha, claramente usou
magia! Ouso dizer que você nunca conheceu seu pai, não
é?
Seria mais fácil ele ter me dado um chute no estômago.
- Bom, seu pai provavelmente é... – Ele foi interrompido
por uma Eçauna eufórica, os olhos negros com tons de
preocupação.
- Onde ele está? – perguntou.
- Oi para você também – respondi.
- Graças aos deuses! Vovô me disse que vamos sair em
uma missão! – ela disse, empolgada. – Finalmente!
Sempre quis sair, legalmente falando, daqui. Sei que
posso.
- Espera, quem? Vovô? – perguntei mais confuso ainda.
- Filha, acalme-se – Aimberê respondeu. – Eu ia contar-
lhe neste momento.
- Desculpe, vô – ela disse, mas sua euforia ainda estava
ali presente.
- Moacir, suponho que seu pai seja Sumé – ele disparou.
- O quê? – perguntei, atônito.
- Sumé é o deus das leis e da sabedoria. Ele é o
responsável por transmitir uma série de conhecimentos.
Por culpa da desobediência dos indígenas, Sumé um dia
partiu... saiu caminhando sobre o oceano atlântico,
prometendo voltar para disciplinar os indígenas – Eçauna
respondeu, completamente feliz.
- E isso explicaria o fato de você usar magia. Além de
ser filho de um deus, somente Sumé poderia mudar as leis
para fazer com que outro indivíduo use magia. E eu
acredito, por meio de visões que tive, que ele está voltando
– Aimberê disse, indiferente. – Tupã está muito bravo com
Sumé, por todos os seus anos de desaparecimento e,
consequentemente, de desinformação. Ele está bravo com
seu pai, e com você.
Minha cabeça girava, era muita informação para
processar.
- Além disso, você é tão branco quanto ele – completou
o cacique.
- Sumé puniu vocês depois que Bartolomeu achou o
ouro, não foi? – deduzi.
- Sim, Moacir. Ele nos puniu da pior forma, ele
desapareceu. Nos deixou desamparados, por isso é mais do
que importante o fato de você achar ele, e traze-lo de volta
ao coração da floresta Amazônica – Aimberê respondeu.
- Coração da floresta? – perguntei.
- Não viu a enorme árvore que está no centro da aldeia?
– Eçauna perguntou.
- É claro, mas...
- Ela é a Buriti – respondeu Eçauna. – Traduzindo para o
português, significa “árvore da vida”. Estamos no centro
de tudo, no centro da floresta.
- Claro, como não pensei nisso? – respondi, irônico.
Levantei-me do chão, assim como Aimberê e Eçauna.
Isso tudo é loucura! Achar um deus perdido? Eu não tenho
nem 18 anos direito!
- Baependi? – perguntei na sua língua. Havia aprendido
com a mamãe, significa “o que queres?”
- Eu já vos disse. Achai o deus perdido, seu pai. Não há
pessoa melhor para acha-lo do que seu próprio filho.
Como deus da sabedoria, devias saber disso. E Eçauna o
acompanhará! Eis a minha ordem.
- Vovô... ainda há mais uma tarefa no meio disso, não? –
a garota perguntou.
- Sim... é claro – respondeu o velho. – Escutem, vocês
dois. Há um homem, que não sabemos quem é, que jurou
de todas as formas que iria destruir a floresta. Devem
acabar com esta ameaça também. Quanto mais a floresta é
destruída, mais a essência dos deuses é consumida, visto
que foram eles que criaram a floresta e, portanto, esta é
sua fonte vital. Não podemos arriscar perder nem um
único deus sequer. E temos um prazo.
- Prazo? – minha voz se afinou.
- Dezenove de Abril – Aimberê falou e arqueou uma
sobrancelha. Ele sabe. – Significa algo para você, Moacir?
- É meu aniversário. Completarei 18 anos – murmurei,
cabisbaixo.
- Santo Tupã... é pior do que eu pensava. Vocês precisam
achar Sumé antes que seja tarde demais. Moacir, tem que
achar seu pai antes de fazer aniversário – disse o cacique.
- Mas isso é daqui a mais ou menos duas semanas –
respondi – Como vamos achar um deus perdido nesse
pouco tempo?
- Na verdade, Moacir – interveio Eçauna – É daqui a
cinco dias. Hoje é dia quatorze de abril.
- Mas eu...
- Os monstros que encontrou na floresta conseguem
afetar o tempo, se assim quiserem.
- Eu passei duas semanas na floresta sem perceber?
Como eu não morri de exaustão?
Então me lembrei de uma pergunta que eu havia feito
para mim mesmo, logo depois de acordar. Por quanto
tempo eu estive inconsciente?
- Você é filho de um deus indígena, Moacir – disse
Aimberê. – Consegue sobreviver muito tempo dentro da
floresta.
- Meus deuses... e o que acontece se não conseguirmos
achar Sumé e deter esse homem até esse dia?
- Então os deuses deixarão de existir, e nunca mais
veremos Sumé. O mundo selvagem entrará em ruínas, e
todos nós morreremos – Aimberê disse, simplesmente.
- Isso é demais pra mim.
Eçauna dava pulinhos de felicidade, embora controlados.
Apesar de ser durona, percebia que somente o combate
iminente lhe causava felicidade extrema.
- Mas os monstros devem estar lá fora, nos esperando! –
disse
- Sabiamente – Aimberê piscou para mim. – Eles não
querem que Sumé volte, e acham, por algum motivo, que
você causará algum mal a esta floresta.
- Umas caiporas me disseram isso algumas vezes... –
respondi
- Mais um motivo para você ir! Consertar as coisas com
eles. Apesar de serem monstros, normalmente eles não
atacam sem motivo, somente quando se sentem
ameaçados. Tragam Sumé de volta, e Moacir poderá
provar que não quer causar nenhum mal a esta floresta.
Provará para eles... e para mim.
- Por isso colocou Eçana para vir comigo, né? – disparei
– Para me vigiar.
- Também, mas ela acha que o que diz é verdade.
- E por que os monstros acham que eu irei causar algum
mal ao lar deles? Logo eu... – me lamentei, de repente.
- Isso eu não sei dizer, filho. Mas vou dar-lhe uma
chance de se provar. Com tantos desmatamentos e
invasões de terras indígenas... somente Sumé poderá nos
ajudar! Por isso é imprescindível que vocês o tragam de
volta.
- E por onde começamos a procurar? – disse Eçauna.
- Isso você já deveria saber, filha – o cacique respondeu.
– Sumé partiu caminhando por cima do oceano atlântico,
onde a floresta amazônica se encontra, em seu limite, com
o mar.
- E onde é isso? Suponho que seja na direção nordeste
do Brasil... – disse eu, tentando me lembrar das aulas de
geografia.
- Muito bem! – se alegrou o velho. – Vocês deverão ir ao
Maranhão.
- Maranhão?
- Sim, é claro! É o limite da Floresta Amazônica, ao
leste do país. Não me restam dúvidas de que Sumé foi para
lá! - Aimberê parecia empolgado até demais. – Além
disso, o homem que citei está por lá também. Ele jurou
destruir a floresta de uma extremidade a outra. Acho que
tudo está conectado.
- Será que as criaturas, os monstros, me confundiram
com este homem? – eu disse – Por isso, talvez, tenham me
confundido.
- É possível – o cacique parecia mais relaxado, como se
suas suspeitas sobre mim estivessem diminuindo. – Vocês
devem partir o quanto antes.
- Não, apenas não – respondi. – Só chegaremos lá dentro
desse prazo se formos de avião.
- O que é um avião? – respondeu Eçauna.
- Vocês irão por terra, sem sair da floresta. É o mais
seguro para vocês e para os kajaíbas caso monstros
encontrem vocês – disse o velho.
- Mas por que esse dia, exatamente? – perguntei.
- É considerado o “dia do índio”, no Brasil – respondeu
o cacique. – Tenho motivos fortes para acreditar que o
homem encarregado destes crimes irá explodir uma bomba
na floresta. Derrubando muitas árvores, matando talvez
aldeias indígenas e, consequentemente, os deuses.
- Como ele mataria deuses?
- Pense, Moacir. Se todos esquecessem de você algum
dia, iria querer continuar existindo?
- Faz sentido.
- Vocês precisam ir, já!
- Mas por que nós?
- Você faz perguntas demais – disse Eçauna.

CAPÍTULO 15- CONVERSA PARTICULAR

que estava há muito tempo


Depois de Eçauna dizer
esperando para sair da vila, e que sempre soube que estava
destinada a coisas grandes, ela saiu para “terminar de
arrumar suas coisas”, seja lá o que significasse, eu decidi
chamar Aimberê para conversar em particular.
- Senhor, podemos conversar?
- Claro, Moacir.
- Mas... sem seus seguranças, ou seja lá o que eles
forem.
Os dois indígenas que seguravam lanças atrás do velho
avançaram para minha frente. Ia ser decapitado se não
fosse por Aimberê.
- Basta! – ordenou. – Moacir, saiba que, se fizer
qualquer coisa comigo, não sairá vivo. Compreende isto,
certo?
- Senhor, quantas vezes preciso dizer-lhe que não quero
causar mal algum?
- Bartolomeu me disse exatamente a mesma coisa... –
respondeu secamente.
- Por favor, é importante – supliquei.
- Espero que saiba o que está fazendo – ele olhou para os
seus guardas, e eles saíram da oca. Deixando-me sozinho
com o velho.
Sentamo-nos novamente, mas dessa vez nas folhas
surpreendentemente verdes no chão.
- E então, sobre o que queres conversar? – perguntou o
velho.
- Eu não estou dizendo que o senhor é louco, mas essa
missão parece meio... desesperada – disse, pausadamente.
- Escute, filho. A floresta está em perigo, e se as
criaturas estão dizendo que tu és um perigo... é algo a se
pensar. Como eu disse, elas raramente atacam sem motivo.
- Eu percebi, cacique. Eu tive um sonho enquanto estava
desacordado...
- Eu sabia! Eu vi em minhas visões na fogueira. Por
acaso sonhastes com uma voz dizendo que “se
reencontrariam em breve” ou com uma espécie de praia? –
ele me interrompeu, sem nem ao menos respirar para falar.
E então, contei meus sonhos para ele. Apesar de
eufórico, ele era um ótimo ouvinte. Acho que, depois de
tantos anos, ele estava crente de que iria rever o deus
Sumé, provavelmente ia lhe pedir desculpas por
Bartolomeu, pois claramente o cacique se culpa até hoje
por tanta destruição.
Como se lesse meus pensamentos, ele disse.
- Como deves imaginar, a promessa que eu fiz após a
destruição causada por Bartolomeu foi... escapar da morte.
Eu prometi que nunca, jamais eu iria deixar ser enganado
novamente, e então eu fugi para o Amazonas. Usei magia
para evitar morrer, e Anhangá me puniu fortemente. Já que
eu não posso morrer, ele destruiu, mais uma vez, minha
aldeia. E então eu fundei esta aldeia com todos aqueles
que sobreviveram de tribos desgastadas, tendo como
minha única descendente minha neta, Eçauna. E assim nós
nos escondemos dos deuses e de suas punições
- Vocês... temem seus próprios deuses? – perguntei,
atônito.
- Temer, não. Respeitamos eles, os deuses sabem o que
fazem e, por mais que eu sofra com a perda de quase toda
minha família, eu confio neles.
- E o senhor quer que eu e Eçauna tragamos Sumé de
volta, para que o senhor se desculpe por confiar em
Bartolomeu, e para que o deus ensine vocês a como se
manter vivos dentro de tanta destruição na floresta
amazônica?
- Exatamente. Escute, filho, a floresta corre grande
perigo, e eu já estou muito velho para aventuras. Eu vejo
muito poder em você, como já lhe disse. Mas vejo que
tens alguma descendência indígena também. Por acaso sua
mãe seria uma indígena? – fui pego de surpresa.
Evitei responder, agradeci pela conversa e,
apressadamente, fui a encontro de Eçauna. Se fossemos
atrás de um deus, seria bom que ele me ajudasse, de uma
vez por todas, a voltar para minha mãe. Mas, antes de sair
definitivamente da oca, perguntei.
- Por que não vem conosco, então? – ele já havia me
dito, mas eu quis algo a mais que soube que estava
faltando.
- Além do que já lhe disse, eu simplesmente não posso
sair da aldeia. Não consigo, as barreiras mágicas me
mandam de volta para cá... e estou demasiadamente velho.
- Essa história está muito mal contada – disparei.
- Eu apenas sei que dará tudo certo. Vi em minha
fogueira. Eu sou velho, mas não sou louco.
- É exatamente o que um louco diria – murmurei
- Vá, Moacir! Salve o Brasil, salve a floresta amazônica!
Você e Eçauna são a única chance de encontrar Sumé e
trazer a sabedoria eterna de uma vez por todas! – ele disse,
como se estivéssemos em um filme de ação super maneiro.
E então, com essas palavras encorajadoras, finalmente
saí da oca.
Eçauna estava de pé bem à minha frente, com sua bolsa
de couro desgastada pendurada por uma alça que passava
pelo seu pescoço desnudo. Obviamente, eu evitava olhar
para sua barriga. Apesar de minha mãe ser indígena, ela
nunca andava, nem mesmo dentro de casa, coberta
somente por algumas folhas nas partes baixas.
Acho que ela percebeu meu nervosismo, porque
começou a rir. Eu devo ter corado, com certeza.
- Venha, Kajaíba. Vamos achar um deus perdido e te
tirar dessa floresta.
CAPÍTULO 16 - NOSSA JORNADA COMEÇA

Aimberê nos conduziu pela aldeia.


Aparentemente, todos
estavam felizes e cientes de que duas crianças precisavam
salvar toda a floresta. Com a quantidade de
desmatamentos, somente Sumé poderia acabar com essa
guerra: sabedoria e estratégia.
Pude reparar melhor nas ocas enquanto caminhávamos,
agora sem monstros por perto. Oferendas para a deusa
Ceuci estavam presentes em todas as casas feitas de palha,
madeira, folhas e tudo que se pode imaginar. Todos
pareciam muito contentes, mesmo embora uma deusa
acabasse de dar um ultimato para todos nós.
Ao longo dos anos, existiram inúmeras leis para
proteção da floresta. No Brasil, isso nunca foi muito
eficiente. Portanto, os indígenas acreditam que somente
um deus poderia restaurar a paz. Foi isso que Eçauna me
disse.
A aldeia era simples. Uma linda plantação dos mais
variados vegetais e legumes estavam próximos ao rio que,
além de circular a aldeia, era parte das barreiras mágicas
que protegiam o lugar. Ocas de diferentes tamanhos e
formas eram dispostas desordenadamente pelo vasto
campo verde. Era lindo, e todos estavam em festa.
- Boa sorte, Eçauna - alguém disse.
E foi assim por todo o caminho, com o cacique nos
acompanhando. Seus longos cabelos grisalhos balançavam
conforme andava, bem como sua barba. Possuía várias
pinturas de diversas cores no corpo. Não consegui
descrever nada disso porque, bem, estava ou lutando pela
minha sobrevivência ou desacordado.
Eçauna estava radiante. Apesar de sair da vila -
ilegalmente - de vez em quando, parecia genuinamente
feliz em ser reconhecida para sair, dessa vez legalmente,
em uma missão. Ao contrário de mim, ela demonstrava
segurança e confiança. Achei isso estranho, claro.
Tínhamos, aparentemente, a mesma idade. Decidi fazer
umas perguntinhas à ela mais tarde.
Depois desse pequeno passeio, Aimberê nos deixou a
beira do rio. Nos deu sua benção, e disse em que reconheci
ser língua tupi.
- 'Y, abra-se! – reconheci que a palavra “´Y” significava
“rio”, embora não soubesse como.
A princípio, nada aconteceu. Nos segundos seguintes,
também. Mas o velho nos disse que estávamos livres para
iniciar nossa jornada. Pisei na água gelada e rasa, e
atravessei o rio. Eçauna veio logo atrás.
Quando chegamos a margem oposta, olhei para trás e,
magicamente, não havia nada a não ser árvores gigantes.
Uma vasta extensão de verde, sem ser visível seu final.
- O que...? - perguntei.
- Proteção mágica, Moacir- ela disse, indiferente.
- Claro, como pude me esquecer?
Seguimos caminhando, Eçauna segurava um pequeno
mapa nas mãos, provavelmente só para garantir que não
iria andar em círculos, ou caminhar na direção oposta. Não
sei como ela conseguiria se achar no meio de tantas
árvores iguais, mas ela continuava muito decidida. Sua
bolsa pesava um pouco, provavelmente estava levando as
mesmas coisas que eu. Alguns potes de água, umas folhas
grandes que provavelmente usaríamos para dormir, e
flechas reservas para seu arco. Por garantia, eu pedi ao
cacique umas notas de dinheiro, mas ele não quis me dar.
Segundo ele, não devemos sair da floresta.
- Quantos anos você tem? - perguntei, de repente.
- Nós não contamos a idade como vocês – respondeu. -
Mas, se fosse o caso, teria mais ou menos 18 anos. Por
que?
- Temos a mesma idade, praticamente - disse.
- Não havia percebido antes? Era meio óbvio, não?
- Mas... onde estão seus pais?
- Não é da sua conta - sua expressão azedou.
- Ah, me desculpe. Só pensei que, se vamos viajar
juntos, devia conhecer você melhor.
- Você quer saber como eu escapava da aldeia
ilegalmente - ela alegou, certamente.
- É, você me pegou - admiti - E essa bolsa de couro?
- Achei perdida na floresta.
Ela estava à minha frente, sem se quer olhar para trás.
Tantas peças faltando nesse quebra cabeça, e eu sei que
Eçauna sabe bem mais do que está disposta a me contar.
- Quanto tempo será que vai levar para chegarmos ao
Maranhão? - perguntei.
- São quase 3500 quilômetros até São Luís, a capital -
ela respondeu.
- O QUÊ? Como assim?
- Dão mais ou menos 690 horas, o equivalente a 29 dias
de caminhada - ela continuou, e eu seriamente pensava em
desmaiar e acordar quando a floresta inteira estivesse
consumida pela destruição.
- Nunca vamos conseguir.
- Isso são pelas medidas daqueles que não conseguem
fazer magia. Como bem sabes tu, não é o caso - ela se
virou, finalmente, e piscou para mim.
- Eu não sei como me desloquei rapidamente, lá na
aldeia - admiti.
- Eu sei que não. Mas tem algumas coisas que você não
sabe sobre mim, ainda. Não queria saber? - ela perguntou.
- Como achas que eu saía da aldeia, passando pelas
barreiras mágicas?
- Não havia pensado nisso.
- Claro que não. Vocês, ao contrário de nós, não pensam
em mais nada além de vocês mesmos. Afinal, olhe o
estado alarmante que a floresta se encontra.
As palavras me atingiram em cheio. Agora eu entendia o
porque ela não me contara sobre ela... eu não havia
contado tudo sobre mim.
- Eu sou filho de indígena - disparei, sem pensar.
- Isso eu já sabia.
- Como?
- Ora, o vovô disse que tu és filho de um deus indígena,
eles só se relacionariam com indígenas. O que eu não
entendo, é como tu não fostes criado em alguma aldeia.
Tens cheiro das cidades, cheias de poluição. Sua mãe
renunciou os indígenas para viver como uma... uma
Kajaíba!
- Não fale assim da minha mãe! - talvez eu tenha
elevado um pouco meu tom de voz - Ela não teve escolha!
Sua família inteira morreu! - acabei falando sem pensar,
mesmo que nem eu conhecesse a história da minha própria
mãe.
- O que...? - ela pareceu chocada, mais do que com o
fato de eu ter falado sobre a família morta.
- É tudo que eu sei. Nunca conheci meu pai, e ela nunca
me disse sobre sua história. Ela me disse que me contaria
quando...
- Completasse uma certa idade - ela terminou minha
frase.
- Como você? - perguntei.
- Vovô me dizia a mesma coisa, eu fui criada por ele.
Nunca conheci minha mãe, meu irmão mais novo foi
assassinado, e meu pai morreu quando eu era pequena.
- Ah, eu sinto muito.
- Tudo bem – ela respondeu – Nesse quesito, somos
parecidos. De certa forma.
E então continuamos nossa longa caminhada.

CAPÍTULO 17- TEMOS UMA IDEIA DO QUE FAZER

Continuamos nossa caminhada de forma tranquila. Com


exceção dos mosquitos.
Eram muitos, infinitos. Eçauna parecia não se
incomodar, provavelmente acostumada. Já eu estava com
medo de pegar alguma doença, e me irritei por não ter
perguntado à Aimberê se ele não tinha algum repelente
sobrando.
Acho que a resposta dele seria “não”, mas pelo menos eu
teria tentado.
Decidi me concentrar em outra coisa, afim de esquecer o
fato de estar sendo devorado vivo por esses insetos.
- E então, como chegaremos ao Maranhão antes que esse
determinado homem, que por sinal não sabemos
absolutamente nada sobre, ative essa bomba e destrua toda
a natureza? – perguntei.
- Paciência, Moacir– respondeu a garota.
- Escute, até alguns dias atrás eu nem sabia que monstros
existiam, ou que eu sabia lutar. Não me venha pedir
paciência. Isto é loucura!
- Acredite, eu concordo com você. Nunca pensei que as
coisas chegassem a esse nível.
- O que o seu avô disse é verdade? Se a floresta
continuar a ser derrubada, os deuses podem deixar de
existir?
- Sim, é claro. Aos poucos, mas sim. Com a derrubada
da floresta, vários animais são mortos no processo, tudo
aquilo que os deuses protegem vai indo embora.
- Então, se eles são tão poderosos, por que eles mesmos
não vêm à Terra e destroem esses criminosos?
- Eu bem que gostaria de saber, Moacir– admitiu ela –
Mas só estou cumprindo ordens. Meu avô disse que teve
umas visões. Apenas estou obedecendo.
- Mas você não faz nenhuma ideia? – o rosto dela se
contraiu – Ah, você só não quer me contar.
- Não é isso, mas é que não é nada confirmado – ela
gaguejou – Eu ouvi dizer, em uma dessas minhas saídas
pela floresta, que os deuses estão sim combatendo os
criminosos em todos os cantos, com exceção de Tupã. Ele
só fica na dele, enviando seus monstrinhos e criados para
fazerem seu serviço.
Um trovão ecoou no céu claro.
- Melhor tomarmos cuidado com as palavras – sugeri
- Concordo totalmente – respondeu Eçauna.
Após alguns passos pelo meio da mata, decidi puxar
outro assunto mais tranquilo.
- O cacique me disse que o nome dele tinha um
significado. O seu nome possui algum?
Depois dela olhar para mim com uma cara de “o que
pensa que está fazendo?” e eu jurar que vou levar um
soco, ela diz:
- “Aquela que possui olhos negros”. E o seu?
- Nossa, que lindo! – eu disse – Tem tudo a ver com
você. O meu nome, Moacir, significa “dolorido,
magoado”. Mamãe sempre disse que foi meu pai quem
escolheu.
- Isso é... triste. Eu sinto muito – ela disse.
- Está tudo bem, só não entendo porque um deus da
sabedoria iria colocar meu nome com este significado.
Não há apenas esse significado, claro. Existem outros, mas
todos são negativos, tristes, sombrios. Até onde eu saiba.
- Escute, Moacir – disse Eçauna – Eu sinto uma aura de
poder muito forte em você, claramente és filho de um deus
indígena. Por isto conseguiste compreender algumas
palavras indígenas, e lutar como um. Não é à toa que os...
espere, achei que teríamos problemas ao sair da aldeia.
Só então me dei conta, não tivemos nenhuma batalha
desde que saímos. Que estranho.
- Bom, finalmente um pouco de sorte – disse.
- Espero que esteja certo. Temos um longo caminho.
Mesmo depois dessa conversa, ainda não acho que Sumé
seja meu pai. Pelo que o cacique me contou, só temos a
cor de pele em comum. Mamãe sempre me disse que eu
era igualzinho ao meu pai. Ela sempre deixou claro que
meus olhos e os dele pareciam um só, de tão iguais. Cara,
eu sinto tanta falta da mamãe.
Decidi deixar esse pensamento de lado, por agora. Tenho
que me concentrar na missão, pensei.
Mas quem eu quero enganar? Eu ainda nem acredito
direito nessa história toda, estou aqui, agora, caminhando,
simplesmente porque mandaram. Eu sequer sei o que
fazer, ou como fazer.
- Mas então, você não me disse como vamos chegar lá
rapidamente – voltei a este assunto.
- Eu já lhe disse, usando magia.
- Certo, mas poderíamos usar logo? Os mosquitos estão
sugando todo meu sangue aqui.
- Não sou eu quem vai fazer a magia – disse Eçauna –
Vamos pedir ajuda.
- A quem?
- A um deus, é claro. Só eles possuem essa capacidade
de deslocamento rápido, especialmente Polo, o deus dos
ventos.
- O deus mensageiro? – perguntei, incrédulo.
- Exatamente.
- Mas ele não é, tipo, o mensageiro de Tupã?
- É, por que?
- Espero que Tupã esteja de bom humor comigo. Não te
lembras? – perguntei
- De que? – Eçauna se virou.
- Eu não lhe contei que uns curupiras disseram que Tupã
os havia enviado para me matar?
Seus olhos arregalaram-se.
- Como não me contastes isto anteriormente? – eu
conseguia ver as engrenagens funcionando na sua cabeça,
pensando em um plano. – Não temos escolha, só o deus
dos ventos poderá nos levar tão rapidamente. Você pode
aproveitar para pedir uma chance, talvez ele não te mate.
- Que reconfortante – ironizei. – Mas, por acaso você
sabe onde ele está?
- Polo? É claro, estamos seguindo esse casal de araras
desde que saímos da aldeia. Não percebestes ainda? – e
então ela apontou para o céu, onde uma arara azul e uma
arara vermelha deslizavam sobre as rajadas de vento
gostosas que faziam vários metros acima de nossas
cabeças.
- Elas são lindas... – eu disse.
- São mesmo – concordou Eçauna. – Nas lendas, é
contado que Polo anda acompanhado sempre por araras
azuis e araras vermelhas. Então, tudo que temos que fazer
é segui-las, e uma hora vamos acabar dando de cara com o
deus.
- Mas e se elas estiverem indo dar um passeio, e só daqui
a vários dias voltem para perto de Polo? – perguntei.
- O vento é um dos elementos mais imprevisíveis, jovem
criança – uma voz grave ecoou pelas árvores. –
Aproximem-se, viajantes. Eu sou Polo, o deus dos ventos.

CAPÍTULO 18 - PEDIMOS CARONA À UM DEUS

Olhei para o lado e tudo


que conseguia ver eram folhas, mas
Eçauna parecia chocada. Ela abriu caminho com as mãos
por uma série de folhas de árvores. E então eu vi.
Um homem, com aspecto de jovem, por volta de uns 25
anos, moreno, vestido como indígena. O rosto estava
pintado com listras pretas e vermelhas, o cabelo longo
trançado, uma coroa de palha e penas como a de um
cacique, formando um triângulo com a ponta para cima.
Estava sem blusa, com uma pintura vermelha que ia da
base do pescoço ao peitoral. Parecia um cropped. O busto
estava nu, bem como os quadris, exceto por mais umas
pinturas pretas e vermelhas, formando uma espécie de
bermuda desenhada. Nos antebraços possuía mais pinturas
da mesma coloração. Haviam penas incrivelmente brancas
presas em seus tornozelos, correntes penduradas no
pescoço que iam até suas axilas, como uma bolsa de luxo.
Ele estava flutuando poucos centímetros acima do chão.
Atrás dele havia um trono enorme de folhas tão verdes
quanto das árvores, e em um dos braços do trono havia
uma arara azul. No antebraço esquerdo do deus havia uma
arara vermelha, apoiada como uma águia. Com a mão
direita Polo fazia carinho em seu bico.
Eçauna ajoelhou-se, e eu decidi fazer o mesmo.
- Ora, não há tais necessidades – o deus disse.
- Olá, senhor Polo. Eu me chamo Eçauna, e este é...
- Moacir – o deus interrompeu. Seu rosto ficou
carrancudo, claramente estava com raiva.
Eu congelei na hora. Se ele sabia meu nome e não o de
Eçauna, eu estaria muito encrencado.
- Olá – cumprimentei, tentando esconder o medo.
- Não precisam ter medo, crianças. Estão seguras
comigo – Polo falou, mas eu não me sentia seguro.
- Senhor Polo, precisamos de ajuda – Eçauna foi direto
ao assunto. – Antes que os monstros nos alcancem.
- Ah, quanto aos monstros – disse ele. – Não se
preocupem. Tupã mandou que eles aguardassem, por
enquanto.
- Aguardar o que? – perguntei.
- Aguardar para ter certeza se você, Moacir, é uma
ameaça a esta floresta ou não – ele respondeu.
- Como assim? – Eçauna questionou.
- Vejam, eu sou, além de deus dos ventos, o deus das
mensagens. É meu dever manter o grande deus Tupã
informado de tudo. Eu sou o mais rápido. E, como deus do
vento e das mensagens, faço com que, através dos ventos,
as mensagens cheguem a mim com o triplo da velocidade.
- Não compreendo – disse eu.
- Eu informei Tupã de que haveria um homem disposto a
destruir a floresta. Mas ele não me ouviu. Quando a
destruição aumentou e Tupã tomou conhecimento, achou
que seria sua culpa, Moacir.
Fiz expressão de espanto, por impulso, pois polo
continuou.
- Por causa do seu pai, é claro! – ele disse, como se fosse
óbvio.
- Meu pai? – perguntei.
- Ah, vocês não sabem – deduziu o deus, com um sorriso
travesso nos lábios finos e delicados. – Bom, de qualquer
forma, quando Tupã percebeu que a ameaça maior era
outra pessoa, pediu-me que avisasse aos monstros que
aguardassem para ver se Moacir realmente está
trabalhando com aqueles criminosos, que no momento
estão na parte leste da floresta.
- No Maranhão – disse Eçauna.
- Correto! – confirmou o deus. – Mas não contem com a
sorte, eles somente pararam de caçar vocês agora. Depois
que nossa conversa acabar, eles voltarão a atacar vocês.
- Mas... o que quis dizer com... – eu tentei perguntar,
mas fui interrompido.
- Esqueçam isto – interrompeu-me Polo. – Já sei o que
querem. Ouvi sua conversa, alguns quilômetros atrás.
Como eu disse, o vento trás tudo para mim.
- Poderá nos ajudar, então? – perguntou, esperançosa,
Eçauna.
- Não do jeito que vocês imaginam – respondeu. –
Poderei leva-los até próximo o suficiente da batalha, de
modo que chegarão lá com o prazo no limite.
- Prazo de que? – eu e minha amiga perguntamos em
uníssono.
- De toda a floresta deixar de existir – respondeu,
sombrio, o deus.
- Como assim? – indaguei.
- Tupã ainda não confia totalmente em você, Moacir. E,
além disso, eu os mandarei pelos ares, que é domínio de
Tupã. Torça para que ele não o pulverize com seus raios.
- Você é alguma espécie de Hermes, da mitologia grega?
– perguntei, aleatoriamente. Já contei pra vocês que as
vezes eu realizo certas atitudes por impulso?
O deus, obviamente, pareceu confuso.
- Garanto que não há nenhum outro ser igual a mim,
criança. Eu sou tão poderoso, por causa da minha
velocidade, que somente Tupã poderia me vencer em uma
batalha – ele respondeu com o cenho franzido.
- Tupã, então, seria uma espécie de Zeus? – perguntei,
todo feliz, mas logo me arrependi.
- Sumam daqui, antes que eu mesmo os destrua! – o
deus agitou as mãos e nós saímos voando, literalmente,
pelos céus.
CAPÍTULO 19- POUSO FORÇADO

Ainda estava muito confuso.


Não saberia dizer se minha
cabeça girava no sentido figurado ou literal, pois eu só
conseguia sentir as rajadas firmes de vento me carregando
pelos céus do estado do Amazonas.
De relance, às vezes, eu via as milhares de árvores, e por
outras vezes, via o enorme céu azul. Jurei ter visto um
grupo de criaturas mitológicas que desejo nunca enfrentar.
E vi Eçauna.
Ela planava com uma graça inigualável. Parecia estar
deitada em uma cama invisível, aproveitando a viagem.
- Será que dá pra parar de chamar atenção? – ela
perguntou, com desdém.
- Se eu soubesse como parar, eu pararia! – gritei,
fazendo-me ouvir por cima das rajadas de vento.
- Apenas estenda os braços e as pernas. Kajaíba.
Fiz o que ela pediu. E fiquei com a barriga virada para o
longo céu azul. Foi uma decisão horrível.
Um raio deslizou pelo céu, como uma faca super afiada
cortando a carne. Me virei de barriga para o chão, para as
árvores, para o piso. Tupã claramente não estava satisfeito
com o fato de eu estar em seus domínios.
- O que será que Polo quis dizer com o fato de Tupã
estar irritado comigo por causa de meu pai? – perguntei.
Os ventos aumentaram, fazendo-nos sacudir.
- Melhor não falar sobre isso agora – Eçauna respondeu.
- Até onde vamos viajar, então? – mudei de assunto.
- Não sei – admitiu a garota.
Estávamos a uma velocidade extremamente absurda.
Tudo parecia um borrão. Em um determinado momento,
eu jurei ter visto uma civilização.
- Aquilo são...? – Eçauna não conseguiu terminar a
frase.
Começamos a cair, os ventos cessaram de repente. Vou
morrer, pensei.
Antes fosse.
Aterrissamos no asfalto, abrindo diversos machucados
por nossos corpos. Claro que Tupã não nos deixaria andar
em seu território de graça.
Após vários minutos no chão, agonizando de dor,
percebi que não estava no meio da floresta, pois não
haviam estradas ou carros no meio de um monte de
árvores.
- Nós estamos... em um estacionamento? – eu perguntei,
ainda deitado no chão quente.
- Aparentemente, sim – confirmou minha amiga.
Nós dois estávamos deitados no piso, quando ouvimos
um som nos céus. Mas não era trovão, parecia mais
como...
- Um avião? – eu indaguei, sentando no chão e
esquecendo-me da dor excruciante.
- O que é um avião? – Eçauna possuía uma expressão de
pânico, como se “avião” fosse mais um monstro.
- Não se preocupe, não irá nos machucar – eu disse.
Quando me pus de pé, quase não acreditei no que via.
Vários carros estavam postos em fileiras, e percebi que era
um estacionamento comum. Um estacionamento de
aeroporto.
Quão irônico isso seria? Depois de uma viagem aérea –
literalmente – nós aterrissamos em um aeroporto. Polo
deve estar se matando de rir com sua piada nesse
momento.
- Onde estamos? – minha amiga perguntou.
- Nas suas saídas da aldeia, nunca descobriu o que eram
aeroportos?
- Não – admitiu.
- Bem, para descobrirmos onde estamos, teremos que
chegar mais perto, posso aproveitar para lhe mostrar – eu
disse. – Mas, hm, teremos que trocar de roupas.
De fato, minhas roupas estavam todas rasgadas. A
camisa que ainda usava do zoológico estava imunda e,
agora, rasgada. Minha calça jeans estava com tantos furos
que se minha mãe me visse, diria que estou “inventando
moda”.
Mas o problema maior era Eçauna. Ela estava com os
seios a mostra. Não poderíamos entrar no aeroporto desse
jeito. Sua saia feita de folhas possuía algumas brechas
também.
- Vamos fazer o seguinte – eu disse. – Você fica aqui, e
eu vou lá dentro... você está me ouvindo?
- Nós... saímos da floresta? – ela parecia realmente
assustada.
- Infelizmente, sim. O cacique havia nos dito para não
irmos pela civilização, né?
- Exatamente. Se o que Polo nos disse é verdade, os
monstros estão vindo atrás de nós. Não podemos deixar
que os Kajaíbas os vejam, ou pior...
Ela nem precisou terminar a frase. Os resultados não
seriam bons se os dois mundos se encontrassem.
- Eis o meu plano: você ficará aqui, atrás desse carro –
apontei para uma caminhonete preta, com suspensão tão
alta capaz de esconder um jogador de basquete – enquanto
eu vou até o aeroporto com roupas novas. Depois, vamos
bolar algum plano.
Ela concordou e se escondeu atrás do carro. E eu
comecei a caminhar na direção do aeroporto.
O estacionamento estava com vários carros. Torci para
que ninguém visse Eçauna. O lugar era bem em frente à
entrada, com apenas duas passagens. “Embarque” do lado
esquerdo, e “desembarque” do lado direito escritas com
letras amarelas em um fundo azul. No meio das duas
entradas, estava escrito com letras pretas “Aeroporto
Internacional Alberto Alcolumbre”. Era um lugar
pequeno, comparado a outros aeroportos espalhados pelo
Brasil e pelo mundo.
Os carros eram separados do aeroporto apenas por uma
faixa de pedestres. As pessoas que passavam por mim
pareciam não me notar, mesmo eu estando fedido, acabado
e com as roupas rasgadas. Estava cansado, com fome e
com medo. Percebi que já era fim de tarde naquele
momento, com o céu em um tom alaranjado por conta do
por do sol. Iria escurecer logo, logo.
Dentro do lugar, confirmei minha suposição. O espaço
era pequeno, minúsculo. Como iria roubar algo? As
chances de alguém me pegar eram altas. Concentre-se,
pensei. Qualquer coisa, eu saio correndo.
Para piorar minha situação, só havia um pequeno
comércio de loja de roupa dentro do aeroporto. Não tinha
escolha.
Sabia que roubar era errado, mas não podia deixar
Eçauna andar pelas ruas de uma civilização problemática e
assediadora daquele jeito.
A loja estava quase vazia, exceto pelas vendedoras e
uma senhorinha de idade. Ela provavelmente estava
esperando sua família vir visita-la para alguma
comemoração, talvez seu aniversário? Não havia como
saber.
Aproveitei para perguntar a senhorinha onde estávamos.
Ela me olhou como se eu fosse louco, parecia ligeiramente
com raiva, mas respondeu.
- Macapá, capital do Amapá, é claro!
Tentei esconder o pânico que sentia. Os ventos do deus
Polo nos trouxeram para outro estado? Como? Em tão
pouco tempo! Afastei esse pensamento, precisava me
concentrar. Agradeci pela informação e saí de perto, mas
ela continuava me olhando, estranhamente.
Esperei que um avião decolasse, emitindo um barulho
alto, e aproveitei para pegar duas camisas largas, para mim
e Eçauna. No minuto seguinte, fiz o mesmo, mas com
calças. Por precaução, peguei também uns sapatos para
ela, queria evitar perguntas. Os meus tênis estavam cheios
de lama, grama e sujeira, mas davam para usar.
Enfiei tudo na minha mochila e, quando ia sair da loja,
uma mão segurou meu ombro.
- Crianças desobedientes, deveriam ser mais inteligentes
– uma voz rouca e trêmula sussurrou no meu ouvido. Era a
senhorinha que estava andando pela loja.
Olhei, devagar, para meu ombro esquerdo. Uma mão
branca, com unhas mal cuidadas que mais pareciam garras
estava presente ali.
- Muito bem, jovenzinho – ela disse. – Não se vire,
ainda. Não faça escândalo. Sabe por que será punido?
- Por estar sendo importunado por uma velha esquisita?
- Não, seu bobinho, mas sim por estar tentando destruir a
floresta! Você e aquela sua amiguinha não vão se
encontrar com o outro destruidor de florestas. Vão pegar
um voo de volta para Manaus agora mesmo!
Ela começou a me empurrar na direção da porta de
embarque. Na fila dessa porta, eu vi Eçauna. Ela estava
acompanhada de outra senhora idêntica a que eu vira
antes, a que agora estava me guiando. Sua expressão era
de espanto. Todos a encaravam por estar com poucas
vestes, os seios a mostra. Isso me deixou com mais raiva
ainda.
Virei-me para olhar o rosto da senhora e, no impulso, me
afastei de suas garras. Com a distância, consegui ver todo
seu corpo. Era uma mulher muito velha, com a pele toda
enrugada, era magra e corcunda. Devia ter uma escoliose
há tantos anos que nem cirurgia consertaria tal
monstruosidade. Trajava um vestido colorido que era
evidentemente uns três tamanhos acima do dela. Na sua
cabeça, havia um lenço. Mas isso não me impedia de ver
seus cabelos oleosos, nem sua horrenda face. Nessa, havia
um nariz gordo e grande, uma boca com vários dentes
faltando, olhos esbugalhados e orelhas pontudas. Parecia
uma bruxa!
Meus olhos encontraram-se, de repente, com os de
Eçauna. Em uma conversa silenciosa, compreendemos que
as duas velhas que estavam à nossa frente eram monstros.
Contamos, silenciosamente, até três, e saímos correndo
para o mais longe delas e desse aeroporto. Claro que as
velhas nos seguiram.
CAPÍTULO 20 - CORRE, NENÉM! QUE A CUCA VEM
PEGAR.

Por alguma razão, aparentemente ninguém achou estranho


dois jovens correndo para longe de duas senhoras.
Provavelmente não perceberam que elas eram monstros,
mas eu e minha amiga tínhamos outras percepções.
- Voltem aqui, crianças levadas! – ouvimos uma gritar.
Disparávamos em direção ao estacionamento, e tive uma
única ideia.
- E se nós nos escondêssemos atrás dos carros? –
perguntei à Eçauna.
- Elas nos farejariam – disse, francamente -, não vistes o
tamanho dos narizes?
- Como elas nos farejariam? – indaguei, de repente. –
Nós temos cheiro de que?
- Quer parar pra perguntar a elas, ou correr por sua vida?
A segunda opção me parecia mais agradável.
Quando chegamos ao estacionamento, já estava
completamente escuro. As estrelas brilhavam na
imensidão escura, de modo que preenchiam quase todo o
céu. Alguns barulhos de turbinas de avião permaneciam
ali, mas eu sinceramente estava preocupado com outras
coisas nessa hora.
Ficamos pouquíssimo tempo lá dentro, como já estava
escuro dessa forma?
Em determinado momento da nossa corrida, um carro
preto simplesmente parou bem à nossa frente. Percebi que
se tratava da mesma caminhonete preta com suspensão
elevada. Eçauna freou bruscamente, evitando o contato
contra o metal rígido do veículo. Eu não obtive a mesma
sorte. Vai deixar uma marca de farol enorme na minha
bochecha, pensei.
De dentro do automóvel, saiu mais uma senhora. Ela,
diferente das outras duas, segurava uma espécie de cajado
em uma das mãos. Era maior que ela, com uma bola
branca na extremidade voltada para cima. O resto de seu
comprimento era cor de madeira, mas duvido que era a
mesma madeira do meu Ubiratã. Parecia ser uma madeira
muito mais antiga, provavelmente de uma árvore que já
não existe mais.
- Ora, ora, ora – a senhora disse. – Vejam o que temos
aqui, é óbvio que as imprestáveis das minhas irmãs não
conseguiram segurar vocês. Mas eu sou a mais velha das
Cucas. De mim, vocês não escaparão.
As duas outras senhoras horríveis apareceram,
ofegantes, atrás de nós. Estávamos cercados.
- Trouxemos elas a você, como pedido – uma das velhas
disse, atrás de mim.
- Não sou nenhuma idiota! – a mais velha gritou. – Sei
que elas escaparam de vocês, imprestáveis. Mas não
importa, agora poderemos sequestrá-las e come-las. Como
nos velhos tempos.
- Como nos velhos tempos... – as outras duas disseram
em uníssono.
Procurei em minhas lembranças todas as informações
que já ouvira sobre cucas quando criança. Eu morria de
medo daquela canção de ninar, começava a chorar
compulsivamente sempre que mamãe começava a canta-la
para mim. Como iria me safar dessa?
Eçauna parecia completamente assustada. A cara de
espanto estava nítida em seu rosto.
- Você... – ela disse.
- Vocês se conhecem? – perguntei.
- Ah, ela deve estar me confundindo com minha irmã
mais velha. Ela por acaso sequestrou algum filho seu,
menina?
- Você levou meu meio-irmão embora! – ela gritou.
- Não fui eu, menina! Foi minha irmã mais velha,
provavelmente. A primeira de todas as cucas, ela era
incrível! Sequestrava as melhores crianças. Uma pena que
um deus a puniu, e ela se desfez em pó bem na minha
frente.
Eçauna deixou de demonstrar espanto. Agora, ela
transbordava ódio. Estávamos cercados por uma cuca e
seu carro à nossa frente, duas cucas atrás, e carros
estacionados dos dois lados. O que fazer?
Eu e minha amiga nos entreolhamos novamente, e
soubemos exatamente o que fazer. Eçauna pulou em cima
do capô do carro mais próximo, fazendo ecoar o barulho
de alarme do veículo. Eu ergui a mão sobre o chão. Como
estava de noite, qualquer lugar era sombra. Minha arma de
combate, minha lança, surgiu em minhas mãos.
Quando as cucas perceberam o que ia acontecer, já era
tarde demais. Uma tentou me abocanhar pelas costas, mas
eu pressenti seus movimentos e, de costas para ela,
defendi minha retaguarda com meu Ubiratã, fazendo os
dentes afiados dela produzirem um som seco contra a
madeira de minha lança. Eçauna puxou seu arco de um
lado das costas e, do outro, uma flecha de sua aljava.
Disparou sem nem pensar duas vezes na mesma cuca atrás
de mim. Só ouvi o som de suas entranhas se
transformando em folhas, sendo levadas, em seguida, pela
calma brisa da noite. A outra cuca gritou para os céus,
furiosa. Eu, entretanto, não tirava meus olhos da cuca mais
velha. Não que eu curta muito crianças, mas mexeram
com a família da minha amiga. Isso eu não iria aceitar.
Além disso, nada justifica o assassinato de uma criança
indefesa.
Eçauna preparou mais uma flecha em seu arco, apontada
para a cuca atrás de mim, a mais velha das senhoras
apontou o cajado para minha amiga, e eu apontei minha
lança para o cajado da cuca mais velha.
- Então... um impasse, eu amo isso! – a cuca falou.
- Deixe-nos ir, dona Cuca – eu disse, pausadamente.
- Infelizmente, não podemos deixar – a cuca atrás de
mim desandou a falar. – Recebemos ordens que vocês
seriam mandados para cá. Cuidar de crianças é nossa
especialidade!
- Quieta, imprestável! – a mais velha irritou-se. – Pare
de falar e coma logo ele!
- Nem pensar! – foi a vez de Eçauna falar, ouvi do meu
lado direito a corda de seu arco sendo puxada com mais
força, a flecha estava pronta para ser disparada.
Provavelmente mirada no centro da testa do monstro atrás
de mim.
Percebi, nesse momento, que eu confiava
suficientemente em Eçauna a ponto de deixar a segurança
da minha retaguarda com ela. No meu conceito de
amizade, isso significa que ela já não me odiava mais
tanto assim.
Ficamos todos parados, até o momento que minha lança
vibrou em minhas mãos, como se dissesse “ei! Onde está
a ação? Me chamou até aqui para ficar fazendo pose?”.
- Como quiser... – falei em voz alta, deixando as três ao
meu redor, confusas.
Rodei o Tacapé por entre meus dedos e, com um
movimento rápido e certeiro, me virei de frente para a
cuca menor, e cravei minha lança no seu estômago. Ela
urrou de dor e se desfez em folhas.
Antes que você diga “foi muito fácil”, preste atenção.
Senti meu ombro arder em chamas, olhei a ponto de ver
os dentes afiados da cuca cravados ali. Ela os retirou
rapidamente e voltou a sua posição inicial. Para meu azar,
foi meu ombro direito. A dor foi o suficiente para me fazer
soltar minha lança, e me deixar agonizando no chão, ainda
quente por causa da quantidade de sol recebida durante o
dia.
Consegui me virar de barriga para cima, de modo que
conseguia ver a briga entre Eçauna e a cuca mais velha.
Minha amiga disparava sem parar flechas atrás de flechas,
que eram destruídas pelo cajado e pelos dentes da senhora
horrorosa.
O cajado, pensei, é a fonte de força dela. Essa bola
branca deve significar algo, ou não? Preciso tentar.
Com a força que juntei com meu outro ombro, segurei
minha lança. A cuca não percebeu pois estava ocupada se
defendendo e, a passos curtos, se aproximando de Eçauna,
que ia se afastando cada vez mais para o teto do carro.
Tomara que o dono depois não nos cobre pelos amassados
e riscos.
Me escorei para o lado de um carro, e fiz seu para-
choque dianteiro como apoio para minhas costas, que
estavam raladas por conta do asfalto. A cuca já estava com
os dentes quase no rosto de Eçauna, quando eu gritei para
chamar sua atenção.
- Espere! – minha voz não saiu mais alta que um
sussurro, mas ela me ouviu. – Me coma primeiro, e então
poderá fazer o que quiser com ela.
- Muito espertinho, criança. Mas eu não vou cair nessa –
ela respondeu.
Eçauna percebeu, novamente, o meu plano – eu sou tão
previsível assim? -, pois ela entrou na conversa.
- Se comer ele primeiro, eu deixo você fazer o que
quiser comigo.
- Está bem – o monstro caiu.
Ela se virou de costas para minha amiga, e começou a
caminhar na minha direção. Aprontei minha lança, com a
intenção de jogar a parte afiada bem na bola branca de seu
cajado.
Nem foi necessário, Eçauna disparou uma flecha
certeira, fazendo a bola parecer uma maçã. Era só mais
uma brincadeira de “tiro ao alvo” para minha amiga
indígena.
- Maldição! Fui enganada! – a cuca gritou, desesperada.
- Está esperando algo, Moacir? Vai! – Eçauna gritou.
Entendi o que ela queria dizer, ainda estava com o
Ubiratã empunhado, como uma lança. Arremessei bem na
altura do peito da cuca, que se desfez em folhas.
- Ufa! – Eçauna disse. – Achei que você não iria mata-la
nunca!
- Muito engraçadinha... aí! Meu ombro...
Olhei para ele, estava saindo sangue e... fumaça?
- Fique calmo, vai ficar tudo bem – Eçauna disse. –
Apenas temos que ir para o mais longe possível.
- Nós estamos em...
- Macapá, eu sei. É onde as cucas vivem. Precisamos ter
cuidado, agora que matamos a mais velha. Polo nos
enganou, nos trouxe direto para uma armadilha.

CAPÍTULO 21 - UM PLANO QUASE SEGURO

- Como você sabia? - perguntei à Eçauna.


- Sabia o que?
- Onde estávamos. Mesmo antes de eu te falar, você já
sabia.
- As cucas, normalmente, depois que sequestram as
crianças, vão para lugares isolados. Considerando a
direção que os ventos de Polo nos levaram, apenas deduzi
que aqui seria um dos vários esconderijos das cucas.
Demos o azar de encontrar pessoalmente a cuca viva mais
forte de todas.
- E como elas viajam por tantos quilômetros até aqui?
Ou até outro acampamento ou sei lá?
- Magia, Moacir. Magia – ela disse, com desdém.
Depois dessa breve aula sobre as cucas, Eçauna me
ajudou a ficar de pé, e a caminhar para o mais longe desse
aeroporto. Antes que o dono do carro amassado
aparecesse, mas antes, nós trocamos nossas roupas
rasgadas pelas novas que eu havia pego sem autorização.
Eçauna agora estava com uma camiseta folgada com uma
estampa do mapa do estado do Amapá, calças jeans e tênis
pretos de uma marca qualquer. Já eu continuava com a
mesma calça jeans, mas troquei a camiseta. Quando tirei a
que estava desde o zoológico, percebi os olhos da minha
amiga pelo meu corpo magrelo. Com certeza eu corei.
Depois de vestido, estava com uma camiseta de tamanho
certo para mim, tendo como estampa uma onça pintada
muito bonita. Mantive os mesmos tênis.
Não me entendam mal, eu nunca, em sã consciência,
tentaria mudar o “estilo” e a vida de Eçauna, mas depois
dos olhares que ela recebeu...
Além disso, ela disse que “as roupas eram incríveis,
apesar de não estar acostumada”.
Ela percebeu meu olhar triste de culpa, e disse que
estava tudo bem e que precisávamos nos mexer, rápido.

(...)

A noite estava linda, era bem tarde da noite, quase de


madrugada. Havia uma leve brisa emanando da orla, que
mesmo com alguns quilômetros de distância conseguiam
nos refrescar. Então, eu tive uma ideia.
- Já foi à uma praia? - perguntei à Eçauna.
- O que é uma... praia? - ela teve dificuldade ao falar a
última palavra.
- É um lugar onde há areia, e uma imensidão de água -
tentei explicar.
- Ah, então eu já fui sim! - ela alegrou-se. - Em Manaus
há algumas dessas.
- Não, Eçauna - não pude deixar de rir - Praias, em geral,
são maiores, a água presente é salgada. Água do mar!
Seus olhos brilharam com a possibilidade de descobrir
coisas novas. Ela saiu à minha frente, depois de eu falar
que era só seguir a direção de onde o vento estava vindo.
Passamos por alguns quarteirões, todos com coisas tão
comuns que, depois de tanto tempo na floresta, me
surpreendi. Faculdades, farmácias, praças. Apesar de não
ter ninguém nas ruas, por conta do horário, fiquei muito
feliz em saber que o mundo não era só deuses e
possibilidades de morrer a cada esquina.
Meu ombro ainda doía, mas não importava. Eçauna
saltitava, maravilhada. Tentava ler as coisas que havia
aprendido nas suas saídas clandestinas da aldeia. Era
muito engraçado a ver tentando pronunciar o nome de
algumas faculdades ou lojas.
Em certos momentos, jurei ter visto alguns lobisomens
nos espionando, mas não queria acabar com a felicidade
da minha amiga. Isso poderia esperar.
Chegando na praia, minha barriga emitiu um som tão
alto que, se houvessem monstros por perto, saberiam até
em qual grão de areia eu estava pisando.
Eçauna riu.
- Não se preocupe. Trouxe algumas frutas da floresta
para nós.
- Graças aos deuses - suspirei.
Sentamo-nos na areia da praia. O vento era agradável, e
fazia nossos cabelos ficarem como um ninho de
passarinhos, mas não nos importávamos. Estávamos vivos
e, por enquanto, isso bastava.
A garota tirou da mochila algumas maçãs, e alguns
legumes que vi na horta da aldeia. Era irritantemente
saudável para meu apetite, mas comi muito. Só percebi
que não me importava de a comida ser saudável ou não
depois que já havia devorado maçãs o suficiente para fazer
sumir um pomar do mapa.
O som das ondas me acalmava, e parecia surtir o mesmo
efeito em Eçauna. Olhando aquela vasta imensidão de
água escura, me ocorreu uma ideia.
- Se seguíssemos reto, nessa direção - apontei para
frente, para o mar -, onde iríamos chegar?
Eçauna estudou o mapa, e seus olhos se arregalaram.
- Em Belém do Pará! Moacir, és um gênio!
- Então poderemos ir pela água? Isso é incrível.
Pouparíamos tempo, não iríamos por terra, e não
arriscaríamos a vida de pessoas comuns.
- Mas como vamos passar por toda essa água? - Eçauna
perguntou.
Verifiquei em volta, e avistei uma placa, alguns metros
antes da areia da praia.
- Fique aqui, já volto.
Fui até a placa, verifiquei, e voltei muito feliz para perto
de minha amiga.
- Boas notícias! Há uma balsa que sai de manhã cedinho,
daqui de Macapá, até Belém. Contornando algumas ilhas.
O trajeto dura um dia inteiro de viagem. Então, se sairmos
amanhã de manhã, chegaremos amanhã de noite!
- E como faremos para ir de Belém até São Luís?
- Ah, nós daremos um jeito. Não se preocupe – eu disse,
como se fosse fácil.
E então, tínhamos um plano. Agora era só esperar o
amanhecer.

(...)

Acordei com os respingos de uma chuva que ainda era


fraca, mas eu sabia que pioraria mais tarde. Eçauna estava
agarrada ao seu arco e flecha, junto com a aljava. Sua
bolsa de couro estava sendo usada como um cobertor.
Tento me levantar, mas percebo que estou com uma dor
absurda por toda a extensão do meu corpo, menos no meu
ombro mordido. Olhei para ele e vi uma espécie de
curativo ali. Percebi que Eçauna fizera enquanto eu já
estava dormindo... certo, talvez eu esteja corado, mas não
vá dizer a ela!
Agora, à luz do dia, conseguia ver a praia com mais
clareza. Apesar do dia estar nublado e com respingos de
uma chuva que se tornará forte, ela é muito bonita. As
ondas estão mais agitadas do que ontem a noite,
evidentemente por causa da chuva. A areia dura e
compacta solta farelos que, com a ajuda do vento forte,
pinicam minha pele. É meio desconfortável, mas nada que
eu não consiga suportar. Cá entre nós, desde o início dessa
jornada, eu já sofrera muito mais.
As coisas estão relativamente calmas, mas eu sabia que
essa chuva não era apenas uma chuva comum. Conseguia
sentir Tupã me olhando de cima das nuvens, avaliando se
eu valia a pena ser morto por um de seus raios. Acho que
ele e Polo só não me mataram até agora pois Eçauna, uma
indígena, está comigo todo este tempo. É inegável que o
deus do raio tentara me matar antes mesmo de eu conhecer
a garota, mas, por sorte – ou não –, ele não conseguiu. Não
sei como um deus todo-poderoso conseguiria errar um
alvo tão fácil como eu.
Lembrei-me do que minha mãe dissera a mim antes de eu
sair de casa.
O zoológico é seguro, mas fica muito perto da floresta, e
com você nessa idade... ah, mamãe...
Ela tentara me avisar, só não teve a oportunidade. Eu
estava tão empolgado para ir para o zoológico. Em parte,
queria sair de casa. Não me entenda errado, eu tenho tudo
que preciso e sou muito grato por tudo que a minha mãe
faz por mim, mas me incomoda um pouco o fato dela
passar mais tempo no trabalho, com os mortos, do que
comigo, estando vivo. Toda vez que ela volta do trabalho,
ela parece abalada. Eu sei que tem haver com seu passado,
mas se ir ao cemitério a faz se sentir mal, por que repetir
isso todos os dias? Várias pessoas morrem todos os dias, é
fato, mas minha mãe é, por acaso, a única funcionária
daquele lugar? Eu duvido muito.
É, o meu azar parece não ter fim. Tenho até medo de
acabar descobrindo esse passado sombrio da mamãe,
tenho medo do que aconteceria se eu descobrisse, seja lá o
que for.
Só depois de eu espirrar extremamente alto eu me dou
conta de que estava parado há tempos encarando o nada,
com o rosto enxarcado de água da chuva... e talvez de
lágrimas, não saberia dizer e, se Eçauna visse, eu
obviamente negaria.
Por falar nesse meu espirro e na minha amiga, o barulho
foi o suficiente para acordá-la.
- Como você não acorda com a chuva, mas acorda com
um espirro? – perguntei.
- É porque com a chuva estou acostumada. Com você
atrapalhando meu sono, não.
Seguimos a orla, procurando o lugar de onde o barco
sairia com destino Belém. Sinceramente, meus pés já
doíam o suficiente só de caminhar. Pelo menos, não fazia
calor. Pontos para Tupã.
- Fico feliz em contornar a ilha de Marajó, Moacir –
disse Eçauna.
- Eu também, meus pés agradecem.
Ela riu, isso é algo bom?
- Não, Kajaíba. Não gosto de ver o que os homens
fazem com a natureza. Essa ilha foi tomada pelos turistas,
como quase toda a natureza atualmente.
É, ela sabe como acabar com a alegria de qualquer um.
- Eu também não gosto – admiti. – Mas por que essa
confissão de repente? Seria você puxando assunto, ou algo
que queira me contar?
- Nas primeiras horas de viagem, estaremos no rio
Amazonas, Moacir – ela disse, sombria. – Somente depois
vamos entrar em outro rio.
- Sim, e qual o problema?
- Eu me esqueço as vezes que não crescestes em uma
aldeia. Você tem ideia dos enormes perigos que estão
nesse rio? Quantas lendas indígenas você já não ouviu
sobre o rio, Moacir?
Ah, deuses. Ela estava certa. Pela minha expressão, ela
percebeu meu medo.
- Santo Anhangá, estamos mortos – ela disse.

CAPÍTULO 22- UMA EMBARCAÇÃO ELEGANTE


Chegando ao cais, tudo que víamos era um barco
relativamente grande. Não ao ponto de parecer um navio
de cruzeiro, muito pelo contrário. Comparado a um
cruzeiro, era só um barco salva vidas.
O barco tinha três andares. O deck principal, com o
convés, e várias cabines estreitas. No casco, com adesivos
azuis, o nome do navio: “Lindinha – Travessia”. O
segundo andar, apenas com cabines, e o terceiro andar.
Esse último parecia mais um quadrado posto no topo do
navio, mas sugeri que era onde o capitão ficava. Haviam
sacadas ao redor do navio, de modo que eu me sentia
prestes a participar de um “cruzeiro para pobres”.
E com esse pensamento, me veio outro em seguida: e o
dinheiro?
- Eçauna, nós não temos dinheiro – falei.
- Acabei de me tocar, também – ela baixou o olhar, com
vergonha. – Vamos ter que invadir. Podemos falar para
quem estiver controlando a entrada que nossos pais estão
lá dentro e... espera. Onde estão as pessoas que vão pegar
a balsa?
De fato, não havia movimentação nenhuma no cais.
- Será que é a chuva? – perguntei.
- Não pode ser, não há ninguém aqui nem para receber
os possíveis viajantes.
Como em um passe de mágica, uma mulher saiu de uma
das cabines do navio. Cabelo preto, liso e brilhante, sua
franja cortada de maneira extremamente reta quase lhe
cobria olhos saltados como os de um peixe. Uma moça
definitivamente bonita. Usava uma roupa de marinheira,
como uma aeromoça só que... de um navio. Maritmoça?
Marmoça? Aquamoça?
- Nos aproximamos? – perguntei, mantendo contato
visual com a mulher de cabelo bagunçado. Ela já havia
visto-nos, e estava com as mãos pousadas nos quadris, nos
estudando, à distância.
- Temos outra opção? –Eçauna respondeu.
Ao chegarmos perto, percebi que a mulher fedia a peixe.
Morto. Ela tinha cheiro de peixes mortos. Ela deve ter
dormido usando um peixe morto como travesseiro. Mas o
peixe devia estar com problemas de intestino.
- Bom dia, posso ajuda-los, crianças? – ela perguntou,
visivelmente disposta a ajudar. Sempre desconfiei de
pessoas muito felizes. Não, não é porque eu tenho muito
azar e invejo pessoas felizes. É só... essa mulher é tão
bonita...
- Precisamos ir à Belém – falei sem pensar, e acabei
recebendo olhares críticos de Eçauna.
- Ora, pois terão que esperar mais alguns dias – a mulher
respondeu. Ela não encarava Eçauna, como se ela não
fosse importante. Seus lindos olhos negros estavam
totalmente fixados em mim. Eram hipnotizantes.
- E por que? – Eçauna colocou a mão para trás, de modo
que segurava seu arco. Se a mulher estranhou o fato de ver
uma criança com roupas rasgadas segurando um arco e
flecha, não demonstrou.
- Nós saímos daqui de Macapá para Belém somente às
quartas e domingos – ela respondeu, sua voz era calma e
agradável, eu poderia ficar o dia inteiro ouvindo-a falar.
Apesar disso, senti meus pés vacilarem, não podíamos
perder tempo. Hoje é dia quinze de abril, temos quatro
dias até que tudo acabe de vez. Temos um dia inteiro de
viagem pelas águas, e depois não sei mais quantos dias até
São Luís, não vai dar tempo!
- A senhora pode nos esperar aqui, rapidinho? – disse
Eçauna. – Eu e meu amigo temos que discutir algo.
- Claro! Estarei bem aqui – a mulher respondeu.
Nos afastamos da Maritmoça – decidi que vou usar esse
nome – até que ela não conseguisse nos ouvir. Ela me dava
acenos educados e carinhosos de longe, com certeza eu
corei várias vezes.
Com toda a calma do mundo, Eçauna esbravejou.
- Como vamos chegar à Belém? – ela viu que eu não
parava de encarar a linda mulher – Está me escutando? –
gritou.
- Eu esperava que você nos diria a resposta – respondi,
atordoado.
- Estamos sem dinheiro, sem tempo e sem carona... – ela
segurou os próprios cabelos, como se tivesse medo que
eles saíssem do lugar.
- Podemos... roubar o barco? – sugeri.
- Está louco? E colocar todos os kajaíbas atrás de nós?
Somente Tupã sabe quais monstros enfrentaremos no
trajeto até Belém.
Um trovão ecoou nos céus, engrossando a chuva.
- Santa boca! – Eçauna xingou.
Passados alguns segundos, eu tive uma hipótese.
- Será que esse deus, que não posso citar, mandou esta
chuva para nos atrasar? Olhe quanto a água está agitada.
Eçauna encarou as ondas abaixo do píer de madeira.
Parecia compreender meu raciocínio.
- Isso não é importante, Moacir – respondeu. – De um
jeito ou de outro, teremos que pegar essa balsa.
- Eba – comemorei, e Eçauna me olhou com uma
sobrancelha arqueada. – Digo, tudo bem então.
Voltamos para perto da fedida. Seu impecável sorriso
não combinava com seu cheiro. Definitivamente havia
algo de errado com essa mulher – além do cheiro. Mas,
não sei o motivo, eu já não me preocupava mais tanto
assim. Talvez minhas narinas tenham se adaptado.
- E então, posso ajuda-los com mais alguma coisa? –
seus dentes perfeitamente alinhados eram tão brancos que
me cegavam, mas eu não conseguia deixar de olhar.
- Escute, senhora – eu disse. – Nós precisamos chegar à
São Luís nos próximos dias, o quanto antes. Não pode
fazer algo?
- São Luís!? – a mulher pareceu surpresa, levemente
feliz e com medo. – Por que não me disseram antes?
Ela estudou a mim e Eçauna. E então pareceu mais
surpresa ainda.
- Vocês são indígenas?
Eu e Eçauna nos entreolhamos. Nosso silêncio foi o
suficiente para confirmar as suspeitas da mulher.
- Compreensível – murmurou. Ela deve ter achado que
eu não ouvira.
- O que disse? – eu perguntei, e ela se espantou quando
percebeu que havia dito em voz alta.
- Nada – respondeu. – Nesse caso, vou lhes contar um
segredinho.
- Pois diga – Eçauna estava, novamente, com as mãos
para trás, pronta para pegar seu arco.
- Eu consigo fazer vocês chegarem em Belém com a
metade do tempo – ela sussurrou, como se contasse o
segredo mais bem guardado do país.
Eçauna sacou o arco, e eu invoquei minha lança com um
reflexo tão rápido que eu mesmo me assustei com a
velocidade que minha arma saiu da sombra parcial do
barco sobre a água. Metade do tempo? Ou ela estava
louca, ou era um monstro.
A mulher arquejou.
- Não se preocupem. Não quero machucá-los! –
assegurou, calmamente.
Entretanto, eu e minha amiga continuamos com as armas
em punho.
- Exigimos falar com seu capitão! – disse minha amiga.
- Pois podem falar. Eu sou a capitã desta embarcação. E
não gosto da forma que estão me tratando! – ela disse
firmemente, porém calma, como uma rainha. – Acho que
começamos com o pé esquerdo. Podem me chamar de
Lindinha
Eu e Eçauna, apesar de desconfiados, instintivamente
relaxamos as armas. A garota guardou seu arco nas costas,
de modo que parecia mais uma mochila do que uma arma
de combate, enquanto eu deixei minha lança voltar para as
sombras. Ainda me pergunto como eu consigo fazer isso.
- Melhor assim – a capitã da embarcação disse.
Eu estava impressionado com a tranquilidade da mulher
à minha frente. Ela não se mostrou surpresa em nenhum
momento desde que ela nos viu no cais debaixo da chuva.
É óbvio que tem algo errado com ela – além do fato do
cheiro quase insuportável de peixe.
- O seu nome é o mesmo do barco? – perguntei.
- Ah, não. É apenas um apelido, bonitão – ela respondeu,
me deixando sem palavras e, consequentemente, dando
fim a esta conversa.
Sinceramente, não sei o motivo de achar essa mulher tão
linda. Seriam os meus hormônios adolescentes, ou eu
apenas passei muito tempo andando em baixo do sol?
De qualquer forma, Eçauna parece cada vez mais
irritada comigo, visto que eu não paro de encarar nossa
anfitriã, e só me dou conta quanto esta se dirige a mim,
mais uma vez ignorando minha amiga.
- E então? – ela perguntou, mas, como disse, eu não
estava prestando atenção.
- Moacir, a decisão é sua – Eçauna disse.
Desculpei-me, analisei ao meu redor e, em seguida, pedi
que repetisse a pergunta.
- Vocês aceitam embarcar agora mesmo para Belém? –
propôs Lindinha – Consigo levar vocês mais rápido do que
qualquer outro barco jamais conseguiria. Vamos, lindo.
Ela se curvou graciosamente, de modo que seus cabelos
lisos e pretos pareciam ondas no mar.
- Aceitamos, é claro! – eu respondi sem hesitar.
Eçauna não pareceu gostar, é claro. Mas, afinal, que
outra escolha tínhamos? O prazo final é em poucos dias, e
ainda temos vários quilômetros de viagem pela frente
antes de uma bomba ser ativada e, possivelmente, destruir
grande parte do mundo selvagem. Isso geraria um colapso
na natureza.
- Ótimo. Todos a bordo! – Lindinha disse, animada. Vê-
la sorrir me deixou feliz de uma maneira que nunca havia
sentido.
Ela se virou de costas para nós, e a seguimos para dentro
da embarcação.
CAPÍTULO 23 – Se a canoa não virar, olê, olê, olá, eu chego lá.
Estar navegando em uma embarcação, ao invés de estar
cercado de uma mata fechada, como eu estava alguns dias
atrás, me causou uma sensação de alívio tão grande que eu
nem consigo explicar. Digo isso pois, quando estava
perdido e sozinho na floresta, eu senti como se nunca mais
fosse ver um lugar aberto, me senti em um labirinto sem
saída. Graças aos deuses eu estava errado.
Sentir a brisa da água batendo no meu rosto era a melhor
sensação que eu já experimentara em vários dias. Até
mesmo em Manaus, fazia tempo que eu não me sentia tão
livre desse jeito.
É claro, ajudar excessivamente minha mãe tem me
desgastado muito. E não estou reclamando, não! Só
estou... expressando o fato de eu me sentir um tanto
quanto preso. De certa forma, acho que essa aventura –
tirando os fatos perigosos – foi uma boa jogada do destino.
Variar um pouco as coisas, né?
Apesar de conseguir ver as ilhas ao redor do ferry boat –
fora assim que Lindinha chamara o navio -, eu me sentia
livre. Parecia que eu estava em mar aberto.
Eçauna estava sentada ao meu lado, enquanto eu estava
debruçado na amurada a estibordo. Lindinha estava lá no
topo da embarcação, guiando o navio. Conseguia enxerga-
la através dos vidros, e ela estava radiante sorrindo para
mim.
- Pare de encara-la! – balbuciou Eçauna.
- Me parece que vossa senhoria está com ciúmes –
retruquei, provocando.
- Kajaíba! – ela me repreendeu – Você é tão burro que
não percebe a magia que ela tá usando?
Percebi, nesse momento, que Eçauna estava parando de
falar tão formalmente quanto falava em sua aldeia. É claro
que eu fiquei feliz, apesar de eu mesmo falar formalmente
quando necessário, sempre odiei ter que falar assim em
uma conversa que é claramente informal.
Comentei isso com minha amiga, e ela revirou os olhos.
- Só... toma cuidado, tá bom? Sei que tem algo de
errado.
Estranhamente, eu também conseguia sentir que algo
ruim estava se aproximando.
Ainda não sabia como Lindinha iria nos levar tão rápido
para o outro lado da Ilha de Marajó. Eu vi, em algum
lugar, que essa travessia durava, se não o dia todo, quase
trinta horas de viagem. Talvez pela embarcação ir lotada
de veículos e pessoas, e por isso a velocidade ser menos.
Agora que somos somente três pessoas, sem automóveis
ou bagagens, o barco parecia ir cada vez mais rápido,
como se a água estivesse literalmente nos empurrando.
Eu não conseguia deixar de encarar a capitã, que era
absurdamente linda. Seu nome combinava totalmente com
ela, ao contrário da embarcação, que mais devia se chamar
“Sujinha”; pois o barco fedia muito, e juro que não era eu!
Entretanto, o cheiro de peixe ainda me incomodava. Eu
sentia que havia algo de errado.
Olhei para Eçauna. Ela já não era a mesma garota que
conheci na floresta, seminua e formal. A pintura que vira
em seu rosto já se havia ido há tempos. As roupas que
arranjamos na loja, apesar de rasgadas, sujas e meladas,
não deviam ser tão confortáveis quanto estar seminu, é
uma mudança um tanto quanto radical. Mas ela parecia
bem.
O arco com sua aljava e a mochila de couro desgastada
pareciam ser o único conforto da minha amiga. Ela estava
encostada na amurada, sentada no chão, com a cabeça
apoiada na bolsa. Sua arma pendia no colo, como um
cobertor.
Percebi que a estava encarando por muito tempo tarde
demais.
- O que foi?
- Hm, nada – desviei o olhar.
É claro que ela é bonita. Nem nos meus pensamentos
mais secretos eu negaria isso. Os olhos negros eram
hipnotizantes, o cabelo da mesma cor balançava
graciosamente ao vento. Ela é mais baixa que eu, não que
isso importe muita coisa, claro. Nem o cabelo. É,
definitivamente o cabelo não me chama nada a atenção.
Nem os olhos. Nem o rosto perfeito, com traços delicados,
ao contrário da sua expressão sempre rígida, de um jeito
mandona. Não que eu fique reparando nisso.
Talvez eu estivesse reparando, pois Eçauna levantou de
sua soneca e ficou de frente para mim.
- Desembucha, kajaíba – devo confessar que eu
defjnitivamente não me derretia todo quando a ouvia me
chamar assim, como se fosse um apelido romântico. Não,
eu não me derretia. Não parecia que ia surtar quando ela
falava assim comigo, de jeito nenhum.
- O que?
- Você não para de me encarar pelos últimos dez
minutos! O que deu em você? Quer me contar algo?
Dez minutos?! Certo, ela está exagerando. Eu jamais
encararia tanto alguém assim.
- Nada, eu ju...
Não consegui terminar a frase. Nesse momento, o barco
começou a se remexer, como se um furacão estivesse
agitando o mar ao nosso redor. A chuva engrossou de
repente, e eu imaginei que Tupã estivesse somente
mandando essa tempestade absurda para nos impedir.
Antes fosse.
Eçauna escorregou pelo convés enquanto tentava se
manter em pé. A capitã, lá do alto, segurava firmemente o
leme do barco. Parecia que ela estava segurando os seus
gases, devido a sua expressão engraçada, mas isso não era
importante no momento.
- Mas o que é isso? – eu gritei por cima do barulho do
mar e da chuva.
- Eu não sei! Parece que algo está batendo nos cascos,
veja! – Eçauna se aproximou da beirada do barco, e
apontou com o indicador para uma sombra gigante dentro
da água.
De fato, o que quer que fosse, parecia estar se chocando
propositalmente contra nosso barco. Parecia estar tentando
vira-lo! A sombra batia com tudo no casco, dava meia
volta, e repetia. Quando aparentava estar satisfeita, dava a
volta por baixo do navio e começava o mesmo processo do
outro lado.
Senti medo dos cascos fracos do barco cederem às
pancadas. Se isso acontecesse, o navio afundaria. E nós
morreríamos antes mesmo da bomba ser explodida.
Eu não conseguia distinguir a forma da sombra gigante
que deslizava abaixo de nós. O balanço do barco, da água
e a chuva tornavam impossível sua identificação. Só sei
que era grande, muito grande. Por que um peixe gigante se
irritaria desse jeito?
Enquanto eu pensava, surgiu uma onda de cerca de cinco
metros de altura sobre o convés. Eu e Eçauna fomos
arremessados para o bico do navio. Quando a água baixou,
um sujeito esquisito estava bem atrás de nós. Ele emitiu
um som estranho, como uma foca sendo enforcada.
Me virei para ver, e eu tive certeza de que já estava no
mundo inferior.
CAPÍTULO 24 – O IPUPIARA
O monstro possuía cerca de três metros e meio de
comprimento. Haviam pelos por toda sua extensão,
afiados como os de uma perna recém raspada. Tinha
também um focinho de foca, e nele estavam umas sedas
muito grandes como bigodes. Seus olhos esbugalhados
como os de um peixe deixavam-no com uma feição como
se estivesse em pânico, embora isso claramente fosse
irreal. A criatura irradiava fúria, e fome.
Ia parar para pensar em como sabia disso, mas o resto de
seu corpo me deixou boquiaberto. Da altura de seu peito
até o chão ele possuía uma cauda!
Ele estava em pé, sua cauda como de uma sereia o
deixava ereto. Como? Eu não sabia, e nem queria
perguntar. Possuía um par de seios avantajados, de modo
que era comicamente engraçado, e eu reprimi um riso
nessa hora, confesso.
Mas o sorriso foi embora tão rápido quanto viera. Suas
garras, seus dentes e suas orelhas eram tão pontudas
quanto seus pelos espalhados pelo imenso corpo.
E, no centro de sua barriga, um corte cicatrizado. Como
um pão cortado por uma faca.
- É um Ipupiara! – A capitã gritou lá do alto. – Fiquem
longe do alcance das garras dele!
- Falar é fácil, Lindinha – resmunguei enquanto me
esquivava de um lado para o outro.
Eçauna conseguiu se por de pé tão rápido que fiquei
atordoado. Claramente viver no meio do mato a deu
algumas habilidades a mais. Eu, entretanto, jazia no chão,
cambaleando, a procura de uma amurada para usar de
apoio.
Minha amiga sacou seu arco, enquanto a capitã, lá do
alto, girava o leme de um lado para o outro,
provavelmente tentando fazer com que o monstro
escorregasse e caísse de volta para o mar. Devo dizer,
contudo, que tal intenção fora horrível! Mais nos
atrapalhava do que ajudava.
Invoquei minha lança de algum lugar que não consegui
ver por causa da tempestade. Finquei a lâmina em formato
de triângulo no casco do barco e usei para me por de pé.
Claro, não foi uma boa ideia.
No piso de madeira úmida abriu-se uma fenda. Não pude
ver se havia água entrando no barco, já que a chuva
embaçava minha visão. O monstro, no entanto, não
parecia se incomodar com isso.
Eçauna disparava flechas de seu arco, que
ricocheteavam na rígida casca do monstro. Eram inúteis. A
capitã, Lindinha, gritou novamente:
- Moacir, acerte e lança na ferida dele! É seu ponto
fraco!
Novamente, Lindinha, falar é fácil. Tenho que acertar
seu único ponto fraco e me livrar de suas garras. Moleza.
Girei minha arma por entre os dedos, fazendo pose e ao
mesmo tempo ganhando tempo. Tenho de pensar em
alguma coisa. Como meu pai, o deus da sabedoria, faria?
Ao pensar nisso, me veio uma lembrança inadequado
para o momento: pensei em mamãe. Como ela faria?
Pensar nas saudades me gerou ódio. Raiva por estar
longe de casa, de ter sido arrancado da minha vida antiga,
de estar longe sem ter notícias da minha mãe. O que ela
estaria fazendo agora?
O Ipupiara avançou aos pulos, era rápido, porém
desengonçado. Como um peixe fora d’água, literalmente
(me perdoem, não poderia deixar de fazer essa piada).
Seus braços vieram estendidos na minha direção, como
se quisesse dizer “bu!”. Nessa hora, consegui avistar seu
ponto fraco, um corte cicatrizado onde em nós, humanos,
estaria nosso umbigo.
Investi contra a criatura. O bastão de madeira bateu
inutilmente em sua cabeça, fazendo seus olhos saltarem
mais ainda. Ela urrou, furiosa, e tentou me cortar com suas
garras ao estilo de um Wolverine. Usei o bastão para me
ajudar a ir para trás mais rápido, como um salto com vara
ao contrário. Sinceramente, eu parecia mais estar fazendo
uma apresentação de circo do que lutando pela minha
vida, mas desde que eu estivesse vivo, não me importava.
Eçauna continuava a lançar flechas inúteis contra o
monstro. Cada flecha que ricocheteava por seu corpo
parecia fazer aumentar mais ainda o ódio da criatura por
mim. Minha amiga não estava ajudando.
A cada passo do Ipupiara eu sentia sua raiva aumentar,
como uma aura vermelha que se espalhava pelo navio. Eu
queria decepa-lo e assa-lo em um churrasco. Conseguia
sentir a raiva dele e a minha crescendo, era como um
dispositivo sobrenatural implantado no meu cérebro. Por
sorte, ao modo que a raiva do monstro crescia em um
ritmo normal, a minha crescia três vezes mais.
Girei o bastão por entre os dedos novamente, com a
intenção de faze-lo recuar, pois, quando me dei conta,
estava na ponta da frente do navio. Eu tinha consciência
do mar agitado tão próximo de mim. Estar encurralado me
deixava mais forte, com mais raiva.
Como se minha arma fosse uma mosca, o monstro, com
as costas das mãos, jogou-o ao mar. Enquanto ele
testemunhava o bastão afundar, dei-lhe um chute na
barriga, empurrando-o para longe do bico do barco.
Sem baixar a guarda, olhei para Eçauna. Por sorte, ela
compreendeu.
- Espero que dê certo. É minha última flecha! – minha
amiga grita, fazendo-se ouvir acima do barulho da chuva e
do mar agitado.
Assim que o Ipupiara pôs-se de pé, Eçauna cravou a sua
última flecha bem no meio de sua cicatriz – o único lugar
onde podíamos machucar de verdade o monstro.
Sangue verde saía de sua barriga e misturava-se com a
água da chuva. Meus cabelos estavam grudados na testa, e
os de Eçauna estavam grudados em seu corpo todo, por
conta de seu cabelo longo.
- Pare de olhar para mim – Eçauna disse. – Acabe com
ele!
Como se eu estivesse saindo de um transe, avancei na
direção do monstro e, antes que ele pudesse colocar suas
garras em mim, uni toda a minha força e meu ódio e – não
faço a menor ideia como – eu consegui jogá-lo ao mar
novamente. Puxei-o pela haste da flecha e enquanto ele se
levantava no ar, a flecha fez-se de faca e abriu novamente
seu corte cicatrizado.
Antes que ele sumisse na água escura e baldeada, o vi se
desfazer em folhas, seu sangue verde se espalhava sobre a
água.
E então, ouviu-se um trovão nos céus. Ele sacudiu o
barco e, com um relâmpago, eu fui atirado para longe do
barco “Lindinha – Travessia”.

(...)

Depois de ter visto tudo que eu já vi nesses últimos dias,


posso me considerar o próximo paciente do manicômio
mais próximo. Até esse momento, pensava que nada mais
poderia me surpreender ainda mais.
Pela centésima vez, neste relato, eu estava enganado.
Afundando cada vez mais com destino ao vazio escuro e
turbulento que era o mar que me encontrava, senti a água
se remexer com mais intensidade, como se algo ou algum
animal estivesse me rondando.
Com os olhos fechados e depois de um monte de
monstros mitológicos, senti mais medo ao perceber que a
criatura estava com raiva, e fome. Não sei como sabia,
mas eu sabia. Do mesmo jeito que fora com o Ipupiara.
Seria ele novamente? Não, eu mesmo o vi se desintegrar.
Em uma tentativa desesperada de abrir os olhos, percebi
que minhas pálpebras já não conseguiam se abrir. Eu
estava me afogando.
Meus pulmões ardiam, meu corpo agonizava e, ao
mesmo tempo, eu não conseguia mexe-lo. Meu cérebro
estava à beira de um colapso, enviando ordens para um
corpo que já não obedecia. Meu nariz e meus ouvidos já
estavam entupidos com a pressão, e minha boca já quase
estava se abrindo, involuntariamente, para deixar a água
entrar e acabar com o serviço.
Eçauna. Foi tudo que eu consegui pensar. Se ela
conseguisse chegar à terra firme em segurança, então
minha missão estava completa.
“Me perdoe, mãe...” eu tentei dizer debaixo d’água, mas,
ao fazê-lo, a água salgada entrou como um furacão na
minha garganta, me fazendo afundar mais rápido. Acabou,
é assim que vou morrer, pensei. Só tomara que Eçauna
consiga desativar a bomba antes dela explodir.
Sempre pensei que, enquanto estivesse morrendo, me
lembraria de minha mãe. Contudo, estou, sinceramente,
mais preocupado com minha amiga. Não faço a menor
ideia do motivo, talvez seja Tupã mexendo com meus
pensamentos.
- Não desista ainda, Moacir – ouvi uma voz linda dizer,
como se estivesse cantando. De repente, meus olhos se
abriram, e vi um peixe enorme nadar, balançando sua
cauda imensa para se deslocar cada vez mais rápido.
Espera, não é um peixe. É uma mulher.
Quer dizer, eu acho. Da cintura para cima era uma
mulher, da cintura para baixo era um peixe com uma
cauda gigante, parecida com a do Ipupiara. Ela cantava
lindamente, me hipnotizando.
Uma sereia.
Quando ela me tomou nos seus braços, minha visão
clareou por alguns instantes. Seu cabelo era preto, liso e
mais brilhoso ainda dentro d’água. Era Lindinha.
Quando me dei conta, eu percebi que todo meu oxigênio
havia-se ido do meu corpo, em especial do meu cérebro, e
desmaiei.

CAPÍTULO 25 – IARA
Desejei ter morrido. Desejei ter fechado os olhos para
nunca mais acordar, que tudo tivesse sido um terrível
sonho e, ao bater na superfície da água salgada, eu tivesse
morrido e, na verdade, estava delirando no meu próprio
subconsciente.
Infelizmente, eu acordei.
- Bem vindo novamente a terra da consciência, kajaíba –
ouvi Eçauna dizer.
Minhas pálpebras demoraram a se abrir, meu olho ainda
se acostumava a luz intensa de um céu sem chuva. O sol
estava queimando minha pele extremamente branca.
Com um pulo, me levantei.
- Onde ela está? – esbravejei.
Eçauna não pareceu confusa. Pelo contrário, ela sabia
exatamente do que eu estava falando. De quem eu estava
falando.
- Moacir, ela te salvou. Relaxe.
Mas eu estava muito confuso para responder, quem ela
era? E o que queria?
Só então percebi onde estávamos. Ainda no ferry boat,
mas ancorados no que imaginei ser o Porto de Belém, na
Baía de Guarajá. Várias fábricas, contêiners, barcos de
todos os tipos e tamanhos rodeavam o local. O ar tinha um
cheiro forte de poluição, estava úmido e sem nenhum
vento. Me senti em casa por um instante.
Estava na ponta do barco Lindinha. Havia uma cama
improvisada por uma toalha de Eçauna no chão, onde eu
estava deitado. Minha amiga estava nas mãos com um
pano úmido. E então me dei conta de que ela
provavelmente veio cuidando de mim o resto da viagem
toda.
Não vou mentir, ao olhar para Eçauna, eu corei. Foi
recíproco. Sua franja já não mais tão reta cobria-lhe um
olho, de modo que, para ajudar a disfarçar, ela colocou a
mecha presa a orelha. Consegui notar que suas bochechas
estavam vermelhas.
- Moacir, precisamos conversar – Lindinha vinha saindo
de dentro da água da baía. Seu corpo metade peixe se
transformou em um par de pernas quando ela pisou dentro
do barco.
- Quem é você? – arrisquei.
- Eu sou Iara, senhora das águas.
Eçauna baixou a cabeça ao fazer uma reverência. Eu,
entretanto, permaneci de pé, pronto para invocar minha
lança que, com sorte, teria voltado às sombras no
momento em que o Ipupiara o jogou ao mar.
- Não há necessidade disso – Iara disse, percebendo o
que eu pretendia fazer. – Eu os ajudei a chegar mais
rapidamente à Belém, e protegi vocês.
- Por qual razão? – foi a vez de Eçauna perguntar.
- Eu sou a deusa das águas, e estou cansada de esconder
Sumé sob meus domínios. Já passou da hora daquele velho
voltar a ensinar. Sem ele, sem sua sabedoria, estamos
perdidos no escuro.
- Achei que seus domínios fossem somente dentro das
águas do Rio Amazonas – disse, me lembrando das lendas
que mamãe contava a mim.
- Meus poderes são mais fortes nessa área, por isso
consegui trazer vocês com mais rapidez à Belém e, por
isso, também, que não adiantaria de nada eu os levar até
São Luís já que meus poderes não servirão de grande
ajuda tão longe do Rio Amazonas. Entretanto, Sumé pediu
minha ajuda para se sair caminhando sob as águas quando
partiu. Isso, é claro, me exigiu muita força, já que ele
partiu longe de meus domínios principais.
“Apesar de Tupã ter tentado atrasar-nos, eu consegui
manter o curso das águas em um ritmo acelerado, visto
que demoramos apenas um dia para realizar a travessia.
Claro, teríamos chegado bem antes sem a aparição do
Ipupiara e da queda de Moacir”.
- Eu não caí de propósito! – esbravejei.
- É claro que não – concordou Eçauna.
Iara prosseguiu.
“Apesar de tudo, eu os ajudei. E quero que me retribuam
a ajuda trazendo Sumé de volta. E, por favor, desativem
aquela bomba”.
E então ela olhou bem nos meus olhos, e disse “eu ainda
salvei-o, Moacir. Havia uma criatura lá em baixo que acho
que não notastes, mas eu o afugentei. Não precisarão se
preocupar mais com ele”.
Depois dessas palavras de afeto e nada diretas, ela deu
um salto mortal de costas e voltou para dentro da água.
Vimos sua sombra dentro d’água deslizar rapidamente
para longe do barco.
Havia realmente, então, mais algum ser vivo lá em
baixo. Quantas outras criaturas desconhecidas habitam o
território humano dominado pelas águas? Claro que Iara
conhece todos os seres vivos, eu acho, já que é a “senhora
das águas”.
- Não achou ela muito estranha? – perguntei.
- Mas não era você quem a tinha achado muito bonita? –
Eçauna respondeu sem olhar-me nos olhos. – Vamos,
kajaíba. Recolha suas coisas e vamos achar um jeito de
seguir viagem.
Descemos no cais de Belém em silêncio depois dessa
resposta da minha amiga. Seu tivesse o mínimo de
segurança pessoal, diria que ela estava com ciúmes. Mas,
além de eu não ter nenhuma segurança pessoal –
mentalmente falando –, não possuo também nenhuma
segurança física pessoal contra Eçauna, e não estou afim
de levar um chute nas minhas partes baixas se eu falar isso
em voz alta.
(...)

A cidade de Belém era muito parecida com Manaus, nas


minhas primeiras impressões. O cheiro da umidade no ar
me era familiar, a sensação de estar molhado de suor
devido ao calor já não me incomodava desde meus 5 anos
de idade. Pelo que pude notar, hoje já é dia dezesseis de
abril, temos três dias antes que o mundo indígena como
conhecemos acabe e, junto com ele, a civilização brasileira
que conhecemos.
Apesar do Brasil ser uma miscigenação de vários povos,
os mais antigos são, não é mistério, os povos indígenas: os
tabajaras, os marajoaras, os sambaquis. Estes, dentre
vários outros, habitavam nosso território bem antes de
1500, quando os portugueses chegaram e se auto
denominaram colonizadores ou descobridores do Brasil. E
o resto da história todos nós já sabemos – escravidão,
tentativa de catequização, chantagens e enganos.
Por isso, eu e Eçauna temos que desativar essa bomba o
quanto antes.
Percebi que a bolsa da minha amiga estava mais cheia
do que antes.
- Iara te deu alguma coisa?
Ela assentiu.
- Roupas secas, comida e dinheiro.
- Dinheiro? Para que?
- Parece que você gosta de ser zoado, né?
- Está certo, senhora das matas, você quer comprar
comida com esse dinheiro?
Ela bufou e revirou os olhos.
- Só pensa com o estômago. Não, kajaíba, nós vamos de
ônibus para São Luís.
Eu estremeci. O cacique nos havia dado ordens bem
claras de não nos misturarmos com o resto da população,
isso nos traria problemas, com certeza. Principalmente
depois de descobrirmos que alguns deuses estariam
tentando nos matar, junto com alguns monstros.
Além disso, algo mais me incomodava nessa missão de
resgatar meu suposto pai.
- Eçauna – eu chamei, fazendo-a parar no meio da
calçada de uma rua vazia.
- Sim? Alguma outra pergunta idiota?
- Talvez – admiti.
Ela revirou os olhos mais uma vez.
- Sabe, não é muita coincidência meu sobrenome ser o
mesmo de um deus indígena? Como eu poderia ser filho
de Sumé, o deus da sabedoria, tendo Anhanguera como
sobrenome?
- Você é burro ou se faz? – ela respondeu com raiva.
- O que quer dizer? – arregalei os olhos perante tanta
fúria.
- É claro que ele não é seu pai, seu burro. Olhe para suas
habilidades, e olhe para as minhas...
- Não estou entendendo – admiti.
As mãos de Eçauna tremiam, ela parecia à beira de uma
crise de ansiedade, seus olhos já estavam com lágrimas
prontas para sair, e sua respiração parecia cada vez mais
forte, rápida e pesada. Apesar disso, ela estava mais linda
do que jamais vira.
- Moacir, Sumé não é o seu pai... ele é meu pai.
CAPÍTULO 26 - REVELAÇÕES
Meu mundo caiu. O tempo pareceu parar. Minha
respiração conseguiu ficar pior que a de Eçauna. Droga,
uma crise de ansiedade agora não é o ideal.
A raiva começou a crescer dentro de mim. Será que ela
sabia esse tempo todo? O cacique sabia? Se ele sabia, por
que me enviou para essa missão?
Cada segundo que passava, mais a minha raiva
aumentava, meu corpo esquentava como se um fogão
cinco bocas estivesse ligado com o botijão de gás a todo
vapor. Eçauna me chamava, em vão; eu não conseguia
prestar atenção em mais nada.
- Preciso me sentar – sussurrei.
- Moacir... me desculpe. Eu achei que você fosse
perceber sozinho...
Eu não queria ouvir ela falar mais nada. Todos esses dias
com minha cabeça sendo forçada a acreditar que eu
precisava resgatar meu pai, isso sem contar que eu
finalmente pude provar que deuses e monstros realmente
existem. Isso tudo em poucos dias, e agora não tenho mais
nada. Quem é meu pai então? Minha mãe saberia
responder? Santo Tupã...
Por qual razão eu estou aqui então?
- Moacir... – Eçauna chorava mais do que eu. Depois de
alguns segundos, ela se afastou depressa, e de início eu
não compreendi o motivo.
Foi quando eu olhei para minhas mãos.
- Mas que mer...
Não consegui terminar o xingamento. Minhas mãos
estavam envoltas em labaredas laranja-avermelhadas.
Chamas dançavam totalmente envolta das minhas mãos,
cobrindo-as por completo.
Minhas mãos estavam pegando fogo. E sabem o pior?
Não estava doendo nadinha. Era uma sensação calorosa,
como um abraço de um ente querido... meu pai.
Um trovão ribombou nos céus. E então tudo fez sentido.
Eu também sou filho de um deus, e esteve sempre na
minha cara. Era tão óbvio que eu não percebi.
- Santo Anhangá... – Eçauna disse.
- É, é meu pai... – meus olhos estavam com mais
lágrimas do que nunca.
Agora tudo fazia sentido: Minha lança saindo sempre da
escuridão, dos domínios de Anhangá.
Uma vez eu li que os olhos de Anhangá causavam
alucinações em suas vítimas, deve ter sido isso que eu fiz
com aqueles lobisomens na aldeia, quando estavam quase
matando Eçauna. Eu os fiz sair correndo pedindo
desculpas.
Meus olhos estavam arregalados de medo, de surpresa.
Eçauna tinha razão, eu sou mesmo um burro. Eu chorava
ao ponto de soluçar.
Conforme as lágrimas caíam, as labaredas foram
abaixando, até se extinguirem.
- Moacir... – Eçauna foi chegando perto, se agachando
até ficar à minha frente, de joelhos. Nossos rostos se
encontravam à mesma altura.
Ela, então, fez algo inesperado: ela segurou minhas
mãos. Ela respirou fundo, como se torcesse para que elas
não começassem a pegar fogo novamente.
- Se acalme. Eu posso explicar. Isso é o que faz todo o
sentido.
Nós nos sentamos na canaleta da rua, e então ela
desabafou.
- Eu percebi isso quando Polo nos disse sobre a
rivalidade do seu pai com Tupã. Sumé é enviado de Tupã,
então não faria sentido os dois estarem em guerra. Foi
então que, ao analisar suas habilidades... anormais, que eu
percebi tudo.
- E por qual motivo não me contou? – eu funguei o
nariz.
- Eu não sabia se podia confiar em você ainda. Além
disso, eu precisava ter certeza absoluta. Eu sabia que você
iria reagir dessa forma, você é impulsivo – minha cara se
fechou.
- E o que mudou isso? – eu disse, talvez com um pouco
de raiva.
- Eu passei a confiar em você, Moacir – ao ouvir isso, eu
senti uma sensação esquisita no meu coração e no meu
estômago. Era como se mil borboletas tivessem resolvido
dançar e voar dentro da minha barriga.
- Quero que saiba que eu também confio em você,
Senhora da Natureza – brinquei.
Ela riu. Seus dentes tão retos e perfeitos quanto seus
cabelos causavam em mim uma sensação que eu jamais
havia sequer pensado em sentir. O que está acontecendo
aqui dentro?
- Eu sei que sim, Kajaíba. Depois de você ter me
salvado várias vezes, como eu poderia não confiar?
- Talvez você se arrependa disso.
- Se eu tivesse a certeza que iria me arrepender, eu não
te falaria essas coisas – ela sorriu novamente.
- Então quer dizer que você não tem certeza? – levantei
uma das sobrancelhas.
Ela deu de ombros.
- Talvez.
Quando olhei para baixo, nossas mãos ainda estavam
juntas. Eçauna reprimiu um grito e tirou rapidamente suas
mãos das minhas, que agora estavam mais geladas que um
iceberg.
- É... hm, precisamos continuar – ela disse.
Eu concordei e me levantei depressa, ajudando-a logo
em seguida. Isso a fez sorrir novamente, e eu soube que
meu dia estava completo só com esses sorrisos.
Depois de alguns passos, eu percebi outra coisa.
- Eçauna, você lembra do que eu fiz para salvar aquela
garotinha na aldeia?
- Do Mapinguari? Lembro... – seus olhos pesaram, como
se temesse minha pergunta.
- Você tem ideia do que eu fiz? Será que é alguma outra
habilidade do meu pai?
Ela coçou a cabeça.
- Talvez, eu não sei. Eu sei que Anhangá viaja pelas
sombras quando não quer se transformar em algum
animal, mas geralmente ele viaja vários quilômetros de
uma vez... não alguns passos.
- Eu devo não saber ainda como... viajar pelas sombras –
essas palavras soavam estranhas na minha boca.
- Como eu disse: eu não sei. Vamos ter que treinar com o
tempo, acho que teremos tempo de sobra para conversar
na viagem.
Eçauna nos conduziu até a porta da rodoviária.
Estávamos na fila para comprar nossas passagens para São
Luís no primeiro ônibus que fosse sair. Não tínhamos
muitas bagagens, muito menos tanto tempo livre. Serão
dez horas dentro de um ônibus, tomara que o cacique não
nos mate depois.
- Aliás, Eçauna – chamei.
- Sim?
- O cacique então...
- Não é meu avô – ela completou.
Meu sangue gelou.
- Ele mentiu para nós dois?
- Eu não sei.
Foi quando eu ouvi uma explosão vindo da porta da
rodoviária.
Um homem alto, com os cabelos curtos em formato de
cuia, expondo seu peitoral e abdômen perfeitos, usando
somente uma saia de folhas laranjas claras, com os pés
descalços apareceu.
Seu rosto possuía duas listras brancas finas na
horizontal, perto dos olhos levemente puxados. O nariz era
bem definido e levemente pontudo. Usava um colar em
formato de sol, e segurava um cajado de madeira com um
círculo enorme na ponta.
Finalmente, eu percebi quem era pela coroa semicircular
de folhas das mesmas cores de sua tanga.
- Todos saúdem Guaraci, o deus Sol. Filho de Tupã,
guardião do dia. Ajoelhem-se, filhos das trevas.
Entretanto, os outros ao redor de nós não pareciam
perceber sua presença. Eçauna me olhou com o pânico
presente em seus olhos: ela não estava com forças para
lutar, muito menos eu. Teríamos que enrolá-lo e tentar
conseguir informações.
- Filhos das trevas? – Eu perguntei, me fingindo de
ofendido.
- Isso foi rude – continuou Eçauna.
O deus tossiu com raiva, e apontou o cajado para nós.
- Eçauna Araripe, seu pai ficará desapontado ao voltar
de seu exílio e descobrir que está ajudando o filho das
trevas a explodir aquela bomba!
Foi então que minha ficha caiu. Meu pai, o arqui-
inimigo de Tupã... é ele quem está em São Luís esperando
para detonar a bomba e acabar com toda a natureza
indígena.

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