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(título provisório)
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CAPÍTULO 25 – IARA
Desejei ter morrido. Desejei ter fechado os olhos para
nunca mais acordar, que tudo tivesse sido um terrível
sonho e, ao bater na superfície da água salgada, eu tivesse
morrido e, na verdade, estava delirando no meu próprio
subconsciente.
Infelizmente, eu acordei.
- Bem vindo novamente a terra da consciência, kajaíba –
ouvi Eçauna dizer.
Minhas pálpebras demoraram a se abrir, meu olho ainda
se acostumava a luz intensa de um céu sem chuva. O sol
estava queimando minha pele extremamente branca.
Com um pulo, me levantei.
- Onde ela está? – esbravejei.
Eçauna não pareceu confusa. Pelo contrário, ela sabia
exatamente do que eu estava falando. De quem eu estava
falando.
- Moacir, ela te salvou. Relaxe.
Mas eu estava muito confuso para responder, quem ela
era? E o que queria?
Só então percebi onde estávamos. Ainda no ferry boat,
mas ancorados no que imaginei ser o Porto de Belém, na
Baía de Guarajá. Várias fábricas, contêiners, barcos de
todos os tipos e tamanhos rodeavam o local. O ar tinha um
cheiro forte de poluição, estava úmido e sem nenhum
vento. Me senti em casa por um instante.
Estava na ponta do barco Lindinha. Havia uma cama
improvisada por uma toalha de Eçauna no chão, onde eu
estava deitado. Minha amiga estava nas mãos com um
pano úmido. E então me dei conta de que ela
provavelmente veio cuidando de mim o resto da viagem
toda.
Não vou mentir, ao olhar para Eçauna, eu corei. Foi
recíproco. Sua franja já não mais tão reta cobria-lhe um
olho, de modo que, para ajudar a disfarçar, ela colocou a
mecha presa a orelha. Consegui notar que suas bochechas
estavam vermelhas.
- Moacir, precisamos conversar – Lindinha vinha saindo
de dentro da água da baía. Seu corpo metade peixe se
transformou em um par de pernas quando ela pisou dentro
do barco.
- Quem é você? – arrisquei.
- Eu sou Iara, senhora das águas.
Eçauna baixou a cabeça ao fazer uma reverência. Eu,
entretanto, permaneci de pé, pronto para invocar minha
lança que, com sorte, teria voltado às sombras no
momento em que o Ipupiara o jogou ao mar.
- Não há necessidade disso – Iara disse, percebendo o
que eu pretendia fazer. – Eu os ajudei a chegar mais
rapidamente à Belém, e protegi vocês.
- Por qual razão? – foi a vez de Eçauna perguntar.
- Eu sou a deusa das águas, e estou cansada de esconder
Sumé sob meus domínios. Já passou da hora daquele velho
voltar a ensinar. Sem ele, sem sua sabedoria, estamos
perdidos no escuro.
- Achei que seus domínios fossem somente dentro das
águas do Rio Amazonas – disse, me lembrando das lendas
que mamãe contava a mim.
- Meus poderes são mais fortes nessa área, por isso
consegui trazer vocês com mais rapidez à Belém e, por
isso, também, que não adiantaria de nada eu os levar até
São Luís já que meus poderes não servirão de grande
ajuda tão longe do Rio Amazonas. Entretanto, Sumé pediu
minha ajuda para se sair caminhando sob as águas quando
partiu. Isso, é claro, me exigiu muita força, já que ele
partiu longe de meus domínios principais.
“Apesar de Tupã ter tentado atrasar-nos, eu consegui
manter o curso das águas em um ritmo acelerado, visto
que demoramos apenas um dia para realizar a travessia.
Claro, teríamos chegado bem antes sem a aparição do
Ipupiara e da queda de Moacir”.
- Eu não caí de propósito! – esbravejei.
- É claro que não – concordou Eçauna.
Iara prosseguiu.
“Apesar de tudo, eu os ajudei. E quero que me retribuam
a ajuda trazendo Sumé de volta. E, por favor, desativem
aquela bomba”.
E então ela olhou bem nos meus olhos, e disse “eu ainda
salvei-o, Moacir. Havia uma criatura lá em baixo que acho
que não notastes, mas eu o afugentei. Não precisarão se
preocupar mais com ele”.
Depois dessas palavras de afeto e nada diretas, ela deu
um salto mortal de costas e voltou para dentro da água.
Vimos sua sombra dentro d’água deslizar rapidamente
para longe do barco.
Havia realmente, então, mais algum ser vivo lá em
baixo. Quantas outras criaturas desconhecidas habitam o
território humano dominado pelas águas? Claro que Iara
conhece todos os seres vivos, eu acho, já que é a “senhora
das águas”.
- Não achou ela muito estranha? – perguntei.
- Mas não era você quem a tinha achado muito bonita? –
Eçauna respondeu sem olhar-me nos olhos. – Vamos,
kajaíba. Recolha suas coisas e vamos achar um jeito de
seguir viagem.
Descemos no cais de Belém em silêncio depois dessa
resposta da minha amiga. Seu tivesse o mínimo de
segurança pessoal, diria que ela estava com ciúmes. Mas,
além de eu não ter nenhuma segurança pessoal –
mentalmente falando –, não possuo também nenhuma
segurança física pessoal contra Eçauna, e não estou afim
de levar um chute nas minhas partes baixas se eu falar isso
em voz alta.
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