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Sobre a obra:
Sobre nós:
TRADUÇÃOJoséGeraldo Couto
Para Andrea
Agora sei caminhar; não poderei aprender nunca mais.
W. BENJAMIN
Passaramoutros cinco homens nos meses seguintes pela casa deRaúl eemtodas as vezes
Claudia semostrou impassível dianteda notícia. Mas sua reação foi muito distinta quando
contei queelehavia hospedado ali uma mulher, enão por uma noite, como era habitual,
mas simpor duas noites seguidas. Talvez tambémvenha do sul, eu disse. Podeser,
respondeu, mas era evidentequeestava surpresa, eatéaborrecida.
Podeser uma paquera. Talvez Raúl já não esteja sozinho, disseeu.
Sim, respondeu, depois deuminstante. Raúl ésolteiro, podeperfeitamenteter uma
paquera.
Detodo modo, mepediu, quero quevocêinvestiguetudo o quepuder sobreessa possível
paquera.
Medeu a impressão dequeseesforçava para não chorar. Fiquei olhando-a deperto,
atéqueela sepôs depé. Vamos entrar no Templo, disse. Molhou os dedos na pia deágua
benta para refrescar o rosto. Ficamos depéjunto a uns enormes candelabros dos quais
caía o espermacetedas velas novas ou daquelas já a ponto deseconsumir queas pessoas
levavampara pedir milagres. Claudia pôs as mãos emcima das chamas, como sefizesse
frio, untou as pontas dos dedos na cera efez gestos divertidos para persignar-secomos
dedos manchados. Não sabia persignar-se. Eu lheensinei.
Sentamos no primeiro banco. Eu olhava comobediência emdireção ao altar,
enquanto Claudia sedetinha nos lados ereconhecia uma a uma as bandeiras que
flanqueavama Virgendel Carmen. Perguntou seeu sabia por queaquelas bandeiras
estavamali. São as bandeiras da América, respondi. Sim, mas por queestão aqui? Não sei,
respondi.
Tomou minha mão emedissequea bandeira mais linda era a da Argentina. Qual éa
mais linda para você, perguntou, eeu ia dizer a dos Estados Unidos, mas por sortefiquei
quieto, pois emseguida ela dissequea bandeira dos Estados Unidos era a mais feia, uma
bandeira verdadeiramentehorrível, eeu acrescentei queestava deacordo, quea bandeira
dos Estados Unidos era mesmo asquerosa.
DURANTESEMANAS ESPEREI, SEMSORTE, QUEAMULHER VOLTASSE. Apareceu, por
fim, numa manhã desábado. Era uma menina, na verdade. Calculei quetivessemais ou
menos dezoito anos. Era difícil quefossenamorada deRaúl.
Passei horas tentando escutar o queela eRaúl conversavam, mas trocavamapenas
algumas frases quenão consegui distinguir. Pensei queficaria para pernoitar, mas ela
partiu na mesma tarde. Eu a segui, absurdamentecamuflado comumbonévermelho. A
mulher caminhava a passo rápido emdireção à parada deônibus, euma vez ali, a seu
lado, eu quis falar comela, mas a voz não mesaiu.
Omicro-ônibus parou etivequedecidir, emquestão desegundos, seeu também
subiria. Àquela altura eu já viajava sozinho demicro-ônibus, mas só o trajeto curto, dedez
minutos, atéo colégio. Subi eviajei duranteumtempo longuíssimo, uma hora emeia de
percurso temerário, grudado no assento imediatamenteatrás do dela.
Nunca tinha ido tão longedecasa ea impressão poderosa quea cidademeproduziu é
dealguma forma a quedevez emquando ressurge: umespaço semforma, aberto mas
tambémenclausurado, compraças imprecisas equasesemprevazias, compessoas
caminhando por calçadas estreitas, concentradas no chão comuma espéciedemudo
fervor, como sesó pudessemsedeslocar à custa deumesforçado anonimato.
Anoitecaía sobreaquelepescoço proibido queeu olhava cada vez mais concentrado,
como sefixar a vista meliberasseda fuga; como seolhar intensamentemeprotegesse.
Àquela altura o micro-ônibus começava a seencher euma senhora meencarou coma
intenção dequeeu lhecedesseo assento, mas eu não podia mearriscar a perder meu lugar.
Decidi fingir os gestos deummenino comretardamento mental, ou o queeu achava que
eramos gestos deummenino comretardamento mental, ummenino queolhava abobado
para a frente, completamenteabsorto nummundo imaginário.
Asuposta namorada deRaúl desceu derepenteeeu quasefiquei dentro do ônibus.
Cheguei à porta comdificuldadeeà força decotoveladas. Ela meesperou emeajudou a
descer. Eu continuava a memover como ummenino retardado, embora ela soubessemuito
bemqueeu não era ummenino retardado esimo vizinho deRaúl, quea seguira, que
parecia decidido a segui-la a tardetoda. Ainda assim, emseu olhar não havia reprovação,
esimuma absoluta serenidade.
Meaventurei, cominútil prudência, por umlabirinto deruas quemepareciamgrandes
eantigas. Devez emquando ela sevirava, mesorria eapertava o passo, como sesetratasse
deumjogo enão deumassunto muito sério. Derepentepassou a andar rápido eem
seguida selançou, semmais nemmenos, a correr, eestivea ponto deperdê-la, mas vi, à
distância, queentrava numa espéciedearmazém. Subi numa árvoreeesperei durante
vários minutos queela por fimsaísseeacreditassequeeu tinha ido embora. Caminhou
então apenas meia quadra atéuma casa quedevia ser a sua. Esperei queentrasseeme
aproximei. Agradeera verdeea fachada, azul, eisso mechamou a atenção, pois nunca
antes tinha visto essa combinação decores. Anotei o endereço emmeu caderno, contentede
ter chegado numdado tão preciso.
Foi bemdifícil retornar à rua ondedevia tomar o micro-ônibus devolta. Mas me
lembrava claramentedo nome: Tobalaba. Voltei para casa à uma da madrugada eo medo
nemsequer mepermitiu esboçar uma explicação convincente. Meus pais tinhamido à
polícia eo acontecimento tinha seespalhado entreos vizinhos. No fim, eu dissequetinha
adormecido numa praça equeacabara deacordar. Acreditaramemmimeatétivequeir
depois a ummédico para queexaminassemeus problemas desono.
Encorajado por minhas descobertas, acudi ao encontro da quinta-feira como firme
propósito decontar a Claudia tudo o quesabia sobrea suposta namorada deRaúl.
MAS AS COISAS SEPASSARAMDEOUTROMODO. CLAUDIACHEGOU ao encontro
atrasada eacompanhada. Comumgesto amável, meapresentou a Esteban, umsujeito de
cabelo comprido elouro. Dissequeeu podia confiar nele, queestava inteirado detudo.
Fiquei surpreso, muito incomodado, semmeatrever a perguntar seera seu namorado ou
primo ou o quê. Tinha seguramentedezesseteou dezoito anos: pouco mais queClaudia,
muito mais queeu.
Estebancomprou três pães eumquarto demortadela no supermercado. Não fomos ao
Templo. Ficamos na praça comendo. Osujeito falava pouco, mas naquela tardefalei ainda
menos. Não contei a Claudia o quetinha averiguado, talvez por vingança, pois não estava
preparado para o queacontecia ali, não era capaz deentender por quealguémpodia se
inteirar do queeu fazia comClaudia, por queera lícito queela compartilhasseo segredo.
Meportei como o menino queera efaltei aos encontros seguintes. Pensei queera isto o
quedeveria fazer: esquecer Claudia. Mas ao cabo dealgumas semanas,
surpreendentemente, recebi uma carta dela. Chamava-mecomurgência, pedia quefosse
vê-la a qualquer hora, dizia quenão importava sesua mãeestivesseemcasa.
Eramquasenoveda noite. Magali abriu a porta eperguntou meu nome, mas era
evidentequejá o sabia. Claudia mecumprimentou comefusão edisseà mãequeeu era o
vizinho deRaúl eela fez gestos exagerados dealegria. Como vocêcresceu, ela medisse, não
tereconheci. Comcerteza fingiamos diálogos deuma apresentação eas perguntas quea
mulher medirigia eramtotalmenteestudadas. Meio aturdido pela situação, perguntei se
ela ainda era professora deinglês, eela respondeu quesim, sorrindo, quenão era fácil
deixar deser, da noitepara o dia, professora deinglês.
Pedi a Claudia quemecontasseo quehavia acontecido: dequemaneira as coisas
tinhammudado para queagora minha presença fossenatural. Équeas coisas estão
mudando pouco a pouco, disseela: muito lentamenteas coisas estão mudando. Já não é
necessário quevocêespioneRaúl, podevir mever quando quiser, mas não émais
necessário quefaça nenhuminforme, insistiu, enão tiveoutro remédio senão ir embora
remoendo umprofundo desconcerto.
FUIMAIS UMAOU DUAS VEZES, MAS VOLTEIATOPAR COMESTEBAN. Nunca soubese
era ou não o namorado deClaudia, mas detodas as maneiras eu o detestava. Eentão deixei
deir eos dias passaramcomo uma rajada devento. Durantemeses ou talvez duranteum
ano meesqueci deClaudia. Atéqueuma manhã vi Raúl carregando uma caminhonete
branca comdezenas decaixas.
Foi tudo muito rápido. Meaproximei, perguntei para ondeeleia, eelenão me
respondeu: meolhou comumgesto neutro eevasivo. Fui correndo à casa deClaudia.
Queria avisá-la eenquanto corria descobri quetambémqueria queela meperdoasse. Mas
Claudia já não estava. Foramembora faz uns dias, dissea vizinha. Não sei para onde,
como vou saber?, disse. Para outra vila, suponho.
2.
A LITERATURA DOS PAIS
POUCOAPOUCOAVANÇONOROMANCE. PASSOOTEMPOPENSANDOemClaudia
como seela existisse, como seela tivesseexistido. No começo eu duvidava atédo seu nome.
Mas éo nomedenoventa por cento das mulheres da minha geração. Faz todo sentido quese
chameassim. Alémdo mais, temumsomagradável. Claudia.
Gosto muito quemeus personagens não tenhamsobrenomes. Éumalívio.
•••
Umdia desses essa casa não vai mais mereceber. Queria habitá-la denovo, ordenar os
livros, mudar os móveis delugar, arrumar umpouco o jardim. Nada disso foi possível.
Mas meajudam, agora, vários dedos demescal.
Àtardefalei, pela segunda vez emmuito tempo, comEme. Perguntamos pelos amigos
emcomum, eemseguida, mais deumano depois da separação, falamos dos livros queela
levou edos queesqueceu semquerer. Achei doloroso repassar, demaneira tão civilizada, a
lista deperdas, mas no final atémeanimei a pedir devolta os livros deHebeUhart ede
Josefina Vicens dequetanto sinto falta. Eu os li, contou. Por umsegundo pensei queela
mentia, apesar denunca ter mentido sobreessas coisas, nunca mentiu sobrenada, na
verdade. Nosso problema foi justamenteesse, quenão mentíamos. Fracassamos pelo
desejo deser honestos sempre.
Depois mecontou sobrea casa emquemora –umcasarão, na realidade, a umas vinte
quadras daqui, quedividecomduas amigas. Vocênão as conhece, medisse, ena verdade
não são amigas íntimas, mas fazemos umbomgrupo: mulheres detrinta falando
alegrementesobresuas frustrações. Eu lhedissequepodia ir vê-la elevar os livros deque
precisava. Respondeu quenão. Prefiro ir eu, umdia desses, depois do Natal. Assimvocême
serveumchá econversamos, disse.
Desdequenos separamos, acrescentou derepente, forçando ou buscando umtom
natural –desdequenos separamos fui para a cama comdois homens. Eu não estivecom
nenhum, respondi, fazendo graça. Então vocênão mudou muito, disseela, rindo. Mas
estivecomduas mulheres, disseeu. Averdadeéquefoi só uma. Menti, talvez para empatar.
Eno entanto não pudelevar o jogo adiante. Só a ideia deteimaginar comalguémé
insuportável, disseeu, efoi complicado, depois, preencher aquelesilêncio.
Eu melembro dequando ela sefoi. Supõe-sequeseja o homema deixar a casa.
Enquanto ela chorava eempacotava suas coisas, a única coisa quemeocorreu dizer foi esta
fraseabsurda: Supõe-sequeseja o homema deixar a casa. Dealguma maneira sinto,
ainda, queesteespaço édela. Por isso para mimétão difícil viver aqui.
Voltar a falar comela foi bometalvez necessário. Contei sobreo novo romance. Disse
queno começo avançava a passo firme, mas queaos poucos tinha perdido o ritmo ou a
precisão. Por quenão o escrevedeuma vez?, meaconselhou, como senão meconhecesse,
como senão tivesseestado comigo ao longo detantas noites deescrita. Não sei, respondi. E
na verdadenão sei mesmo.
Oqueacontece, Eme, penso agora, umpouquinho bêbado, équeespero uma voz. Uma
voz quenão éa minha. Uma voz antiga, romanesca, firme.
Ou então équeeu gosto deestar no livro. Équeeu prefiro escrever a já ter escrito. Prefiro
permanecer, habitar essetempo, conviver comesses anos, perseguir longamenteimagens
esquivas eexaminá-las comcuidado. Vê-las mal, mas vê-las. Ficar ali, olhando.
•••
Como era deesperar, passei o dia todo pensando emEme. Graças a ela encontrei a história
para esteromance. Deveter sido há cinco anos, morávamos havia pouco nesta casa.
Falávamos, ainda na cama, ao meio-dia, sobreanedotas deinfância, como fazemos
amantes quequeremsaber tudo, quebuscamminuciosamentena memória histórias
antigas para poder permutá-las, para queo outro tambémprocure: para encontrar-sena
ilusão dedomínio, deentrega.
Tinha ela seteou oito anos, estava no pátio comoutras meninas, brincando deesconde-
esconde. Estava ficando tarde, já era hora deentrar emcasa, os adultos as chamavam, as
meninas respondiamquejá iam–a brincadeira sealongava, os chamados eramcada vez
mais enérgicos, mas elas riamecontinuavambrincando.
Derepentesederamconta dequefazia umtempo quetinhamparado dechamá-las e
quejá era noitefechada. Acharamqueas estavamobservando, quequeriamlhes dar uma
lição, queagora eramos adultos quebrincavamdeseesconder. Mas não. Ao entrar na
casa, Emeviu queos amigos deseu pai choravamequesua mãe, afundada na poltrona,
olhava para umlugar indefinido. Escutavamas notícias no rádio. Falavamdeuma
operação policial-militar. Falavamdemortos emais mortos.
Muitas vezes aconteceu isso, medisseEmeaquela vez, há cinco anos. Nós, crianças,
entendíamos subitamentequenão éramos tão importantes. Quehavia coisas insondáveis
quenão podíamos saber nemcompreender.
Oromanceera o romancedos pais, pensei então, penso agora. Crescemos acreditando
nisso, queo romanceera dos pais. Maldizendo-nos etambémnos refugiando, aliviados,
nessa penumbra. Enquanto os adultos matavamou erammortos, nós fazíamos desenhos
numcanto. Enquanto o país sefazia empedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a
dobrar os guardanapos emforma debarcos, deaviões. Enquanto o romanceacontecia,
nós brincávamos deesconder, dedesaparecer.
•••
Emvez deescrever, passei a manhã tomando cerveja elendo Madame Bovary. Agora
penso queo melhor quefiz nestes anos foi beber muitíssima cerveja ereler alguns livros com
devoção, comestranha fidelidade, como seneles pulsassealgo próprio, uma pista sobreo
destino. Deresto, ler morosamente, ficar deitado na cama por longas horas sem
solucionar nunca a ardência nos olhos, éa desculpa perfeita para esperar a chegada da
noite. Eéisso o queespero, nada mais: quea noitecheguelogo.
Ainda melembro da tardeemquea professora sevoltou para o quadro negro e
escreveu as palavras prova, próxima, sexta-feira, Madame, Bovary, Gustave,
Flaubert, francês. Acada letra crescia o silêncio eno final só seouvia o tristechiado do giz.
Àquela altura já tínhamos lido romances longos, quasetão longos quanto Madame
Bovary, mas daquela vez o prazo era impossível: tínhamos menos deuma semana para
enfrentar quatrocentas páginas. Começávamos a nos acostumar a essas surpresas,
porém: acabávamos deentrar no Instituto Nacional, tínhamos onzeou dozeanos, ejá
sabíamos quedali emdiantetodos os livros seriamlongos.
Tenho certeza dequeaqueles professores não queriamnos entusiasmar, esimnos
desiludir, nos afastar para sempredos livros. Não gastavamsaliva falando sobreo prazer
da leitura, talvez porqueeles tivessemperdido esseprazer, ou nunca o tivessemsentido
realmente. Supõe-sequeerambons professores, mas na época ser bomera pouco mais do
queconhecer os manuais.
Naqueletempo já conhecíamos os truques, transmitidos degeração emgeração.
Ensinavam-nos a ser malandros eaprendíamos rápido. Emtodas as provas havia umitem
deidentificação depersonagens, queincluía meros personagens secundários: quanto
menos relevantefosse, maior a possibilidadedequenos perguntassempor ele, demodo
quememorizávamos os nomes comresignação etambémcoma alegria decultivar uma
pontuação segura. Era importantesaber queo jovemcoxo derecados sechamava
Hippolyteea criada, Félicité, equeo nomeda filha deEmma era BertheBovary.
Havia certa beleza no gesto, pois éramos então justamenteisso, personagens
secundários, centenas demeninos quecruzavama cidademal equilibrando as bolsas de
lona. Os moradores do bairro experimentavamo peso efaziamsemprea mesma piada:
parecequevocêleva pedras na mochila. Ocentro deSantiago nos recebia combombas de
gás lacrimogêneo, mas não levávamos pedras esimtijolos deBaldor ou Villeou Flaubert.
Madame Bovary era umdos poucos romances quehavia emcasa, demodo que
comecei a lê-lo naquela mesma noite, mas não tivepaciência comas descrições. Aprosa de
Flaubert simplesmentemefazia cabecear desono. Tivequeaplicar o método deurgência
quemeu pai tinha meensinado: ler as primeiras páginas eemseguida as últimas, esó
então, só depois desaber o começo eo final do romance, seguir lendo depressa. Sevocênão
consegueterminar, pelo menos sabequemera o assassino, dizia meu pai, queao que
parecesó tinha lido livros emquehavia umassassino.
Então a primeira coisa queeu soubedeMadame Bovary foi queo menino tímido ealto
do capítulo inicial morreria por fimequesua filha terminaria como operária numa
fábrica dealgodão. Sobreo suicídio deEmma eu já sabia, pois alguns pais alegaramqueo
tema do suicídio era fortedemais para meninos dedozeanos, ao quea professora
respondeu quenão, queo suicídio deuma mulher acossada pelas dívidas era umtema
muito atual, perfeitamentecompreensível por meninos dedozeanos.
Não avancei muito mais na leitura. Estudei umpouco comos resumos quemeu colega
decarteira tinha feito eno dia anterior à prova encontrei uma cópia do filmeno videoclube
deMaipú. Minha mãetentou seopor a queeu o visse, pois achava quenão era adequado
para minha idade, eeu tambémpensava, ou melhor, esperava isso, porqueMadame
Bovary mesoava como pornô, tudo o queera francês mesoava como pornô.
Ofilmeera, nessesentido, decepcionante, mas o vi duas vezes eenchi duas folhas de
papel ofício, frenteeverso. Mesmo assim, tirei 3,6, demaneira quedurantealgumtempo
associei Madame Bovary a esse3,6 eao nomedo diretor do filme, quea professora
escreveu entrepontos deexclamação junto à nota ruim: ¡Vincente Minnelli!
•••
Ela memostrou seus desenhos recentes eno entanto não aceitou queeu lessepara ela as
primeiras páginas do meu livro. Meolhou comumgesto novo, umgesto quenão sou capaz
deprecisar.
Éimpressionantecomo o rosto deuma pessoa amada –o rosto dealguémcomquemjá
vivemos, a quemjulgamos conhecer, talvez o único rosto queseríamos capazes de
descrever, quecontemplamos duranteanos, desdeuma distância mínima –ébonito, ede
certo modo, éterrível saber queatéesserosto podeliberar derepente, inesperadamente,
gestos novos. Gestos quetalvez nunca voltemos a ver.
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Na época não sabíamos os nomes das árvores ou dos pássaros. Não era necessário.
Vivíamos compoucas palavras eera possível responder a todas as perguntas dizendo: não
sei. Não achávamos queisso fosseignorância. Chamávamos dehonestidade. Depois
aprendemos, pouco a pouco, os matizes. Os nomes das árvores, dos pássaros, dos rios. E
decidimos quequalquer fraseera melhor queo silêncio.
Mas sou contra a nostalgia.
Não, não éverdade. Eu gostaria deser contra a nostalgia. Para ondequer queeu olhe
há alguémrenovando votos como passado. Recordamos canções quena verdadenunca
nos agradaram, voltamos a ver as primeiras namoradas, colegas decurso por quemnão
tínhamos simpatia, saudamos debraços abertos gentequerepudiávamos.
Meassombra a facilidadecomqueesquecemos o quesentíamos, o quequeríamos. A
rapidez comqueassumimos queagora desejamos ou sentimos algo diferente. Eao mesmo
tempo queremos rir das mesmas piadas. Queremos, julgamos ser denovo os meninos
abençoados pela penumbra.
Estou nessa armadilha, no romance. Ontemescrevi a cena do reencontro, quasevinte
anos depois. Gostei do resultado, mas às vezes penso queos personagens não deveriam
voltar a sever. Quedeveriampassar ao largo muitas vezes, caminhar pelas mesmas ruas,
talvez falar umcomo outro semsereconhecer, deumlado a outro do balcão.
Reconhecemos deverdadealguémvinteanos depois? Reconhecemos agora, a partir de
umindício luminoso, os traços definitivos, irremediavelmenteadultos, deuma cara
remota? Passei a tardepensando nisso, decidindo sobreisso.
Acho bonito quenão seencontrem. Seguir simplesmentesuas vidas, tão distintas, atéo
presente, eaproximá-las aos poucos: dois trajetos paralelos quenão chegama sejuntar.
Mas esseromancedevia ser escrito por outra pessoa. Eu gostaria delê-lo. Porqueno
romancequequero escrever eles seencontram. Necessito queseencontrem.
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Esta manhã vi, numbanco do ParqueIntercomunal, uma mulher lendo. Sentei defronte
para ver sua cara efoi impossível. Olivro absorvia o seu olhar epor instantes achei queela
sabia. Queerguer o livro daquela maneira –à estrita altura dos olhos, comambas as
mãos, comos cotovelos apoiados numa mesa imaginária –era sua forma deseesconder.
Vi sua testa branca eo cabelo quaselouro, mas nunca seus olhos. Olivro era seu
disfarce, sua prezada máscara.
Seus dedos longos sustentavamo livro como ramos delgados evigorosos. Me
aproximei por ummomento o bastantepara ver atémesmo suas unhas cortadas semrigor,
como seela tivesseacabado deroê-las.
Tenho certeza dequesentia minha presença, mas não baixou o livro. Seguiu
sustentando-o como quemsustenta o olhar.
Ler écobrir a cara, pensei.
Ler écobrir a cara. Eescrever émostrá-la.
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Ocolégio mudou muito quando a democracia voltou. Na época eu acabava defazer treze
anos ecomeçava tardiamentea conhecer meus companheiros: filhos degenteassassinada,
torturada edesaparecida. Filhos dehomicidas também. Meninos ricos, pobres, bons,
maus. Ricos bons, ricos maus, pobres bons, pobres maus. Éabsurdo descrever as coisas
assim, mas melembro deter pensado mais ou menos dessa maneira. Lembro deter
pensado, semorgulho esemautocompaixão, queeu não era nemrico nempobre, quenão
era bomnemmau. Mas era difícil ser isso: nembomnemmau. Meparecia queisso, no
fundo, era ser mau.
Lembro deumprofessor dehistória, umdequemeu não gostava nemumpouco, no
terceiro ano do segundo grau, aos dezesseis anos. Certa manhã três ladrões quefugiamda
polícia serefugiaramno estacionamento do colégio eos policiais os seguirame
dispararamdois tiros para o alto. Assustados, deitamos no chão, porémuma vez passado
o perigo, ficamos surpresos ao ver queo professor chorava debaixo da mesa, comos olhos
apertados eas mãos nos ouvidos. Fomos buscar água etentamos fazer comqueele
bebesse, mas no final tivemos quejogá-la na sua cara. Eleconseguiu seacalmar aos
poucos enquanto lheexplicávamos quenão, queos milicos não tinhamvoltado. Quepodia
continuar a aula –não quero estar aqui, nunca quis estar aqui, dizia o professor, gritando.
Então sefez umsilêncio completo, solidário. Umsilêncio bonito ereparador.
Encontrei o professor dias depois, numrecreio. Perguntei-lhecomo estava, eele
agradeceu o gesto. Percebe-sequevocêsabeo queeu vivi, disseele, emsinal de
cumplicidade. Claro quesabia, todos sabíamos; tinha sido torturado eseu primo era
desaparecido político. Não acredito nesta democracia, disseele, o Chileéecontinuará
sendo umcampo debatalha. Perguntou seeu militava, respondi quenão. Perguntou por
minha família, eu dissequedurantea ditadura meus pais tinhamsemantido à margem. O
professor meencarou comcuriosidadeou comdesprezo –meencarou comcuriosidade,
mas senti queemseu olhar havia tambémdesprezo.
•••
Não escrevi nemli nada emPunta Arenas. Passei a semana inteira medefendendo do clima
econversando comnovos amigos. No avião devolta acabei viajando junto a duas senhoras
quemecontaramemdetalhes suas vidas. Tudo ia bematéqueperguntaramemqueeu
trabalhava. Nunca sei o queresponder. Antes dizia queera professor, o quegeralmenteme
conduzia a longos econfusos diálogos sobrea criseda educação no Chile. Por isso agora
digo quesou escritor, equando meperguntamquetipo delivros escrevo, respondo, para
evitar uma sériedeexplicações vacilantes, queescrevo romances deação, o quenão é
necessariamentementira, pois emtodos os romances, inclusivenos meus, acontecem
coisas.
Emvez demeperguntar quetipo delivros eu escrevo, porém, a mulher queia a meu lado
quis saber qual era meu pseudônimo. Respondi quenão tinha pseudônimo. Quejá fazia
muitos anos queos escritores não usavampseudônimos. Meencarou comceticismo ea
partir deentão seu interesseemmimfoi decaindo. Ao nos despedirmos medissequeeu não
mepreocupasse, quetalvez logo meocorresseumbompseudônimo.
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Faz algumtempo o poeta Rodrigo Olavarría veio mever. Nos conhecemos pouco, mas nos
uneuma espéciedeconfiança prévia erecíproca. Gosto queelemedêconselhos. Agora que
penso no assunto, houveumtempo emquetodo mundo dava conselhos. Avida consistia em
dar ereceber conselhos. Mas derepenteninguémquis mais conselhos. Era tardedemais,
tínhamos nos enamorado do fracasso, eas feridas eramtroféus, igual a quando éramos
crianças, depois debrincar entreas árvores. Mas Rodrigo dá conselhos. Eos escuta, os
pede. Está apaixonado pelo fracasso, mas também, ainda, por essas formas antigas e
nobres da amizade.
Passamos a tardeescutando Bill CallahaneEmmy theGreat. Foi divertido. Depois
contei a eleo diálogo no avião. Ficamos denos reunir umdia desses para escolher
pseudônimos. Vocêvai ver queencontraremos pseudônimos excelentes, disseele.
Rodrigo não selembra exatamentequando viu La batalla de Chile pela primeira vez,
mas conhecedecor o documentário, porqueemmeados dos anos oitenta, emPuerto Montt,
seus pais comercializavamcópias piratas para financiar atividades do Partido
Comunista. Aos oito ou noveanos, Rodrigo era o encarregado detrocar as fitas VHS e
encher decópias novas uma caixa depapelão. Eu passava a tardeinteira, disse, fazendo as
tarefas escolares eao mesmo tempo copiando o documentário, comquatro aparelhos de
vídeo edois televisores. As únicas pausas erampara ver Robotechno Canal 13.
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Pela manhã meentreguei à estúpida tarefa deesconder meus cigarros pelos cantos da casa.
Eu os encontro, claro, mas fumo pouco, fumo menos, faço esforços para melhorar deuma
vez. Adoença, mesmo assim, está durando demais, edequando emquando penso que
peguei a gripesuína. Só está faltando a febre, sebemqueacabo deler na internet que
alguns enfermos não apresentamfebreentreos sintomas.
Ontemà noite, a sala deemergência da Clínica Indisa estava cheia dedoentes reais e
imaginários, mas espantosamentemeatenderamdeimediato. Havia uma explicação. Um
médico jovemedecabelo grisalho apareceu emedisse, apontando a etiqueta de
identificação emseu jaleco: somos família. Na verdadeéprovável quesejamos parentes em
algumgrau. Comprei teus livros, disseele, mas não os li –desculpou-sedeuma maneira
denegridora ou simplesmentecômica: não tenho tempo para ler nemsequer livros curtos
como os quevocêescreve, disse. Mas umano atrás falei devocêa meus parentes emCareno.
Perguntei ao doutor, para maravilhá-lo comminha ignorância, ondeficava Careno.
Fica na Itália, no norteda Itália, respondeu, escandalizado. Depois baixou os olhos,
como quemeperdoando. Perguntou o nomedemeu pai, demeu avô, demeu bisavô.
Respondi passivamentemas logo depois mecansei detanta pergunta elhedissequeaquela
conversa não tinha sentido –semdúvida minha família provémdealgumfilho bastardo,
disseeu: somos filhos dealgumpatrão quenão assumiu. Eu lhedissequeemminha família
somos todos morenos –eleémuito branco emais para o feio, comaquela brancura
higiênica queemalgumas pessoas meparecemeio irreal. Resignado a não encontrar em
mimsinais deboas origens, o doutor mecontou queviaja todos os anos a Careno, ondehá
muitíssima gentecomnosso sobrenome, pois historicamentea família foi bastante
endogâmica. Há muitos casamentos entreirmãos eentreprimos, razão pela qual a
genética não émuito boa, afirmou.
Nós não temos esseproblema, disseeu. No meu ramo da família respeitamos as
primas.
Eleriu ou tentou rir. Tivevontade, não sei por que, demedesculpar. Mas antes queeu
pudessedizer a frasequetentava formular, o doutor meperguntou pelos sintomas. Agora
tinha pressa. Dedicou apenas dois minutos à minha indisposição, negando
redondamente, como quemerepreendendo só por imaginar isso, queeu tivessea gripe
suína. Nemsequer mepassou sermão pela quantidadedecigarros quefumo.
Voltei para casa umpouco humilhado, comos antigripais desempre, pensando
naquelas famílias, na distanteCareno, emcomo seria meu rosto branco, descarado, ou no
desejo distante, umdia, deestudar medicina. Imagino aquelemesmo doutor, mais velho
queeu, na escola deMedicina respondendo comênfase, comenfado: não, não somos
parentes.
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Escrevo na casa demeus pais. Fazia tempo queeu não vinha. Prefiro vê-los no centro, na
hora do almoço. Mas desta vez quis assistir commeu pai à partida entreChileeParaguai,
pensando tambémemrefrescar alguns detalhes do relato. Éa viagemdo romance, a
viagemdevolta queo protagonista faz, assustado, ao fimdaquela longa tardeemque
seguea suposta namorada deRaúl. Escrevi essa passagempensando numa viagemreal,
mais ou menos naquela idade.
Uma tarde, depois dealmoçar, eu ia sair quando meu pai medissequenão, queeu
devia ficar emcasa estudando inglês. Perguntei para quê, setinha boas notas eminglês.
Porquenão éprudentequevocêsaia tanto –usou essa palavra, prudente, lembro com
precisão. Eporquesou teu pai evocêdevemeobedecer, disse.
Achei aquilo brutal, mas estudei ou fingi queestudava. Ànoite, antes dedormir, ainda
aborrecido, dissea meu pai quetinha raiva deser criança eter quepedir permissão para
tudo, queseria melhor ser órfão. Disseisso só para chateá-lo, mas elemeolhou
dissimuladamenteefoi falar comminha mãe. Pelos gestos queela fazia enquanto se
aproximavamentendi quenão estavamdeacordo quanto à medida queiammeanunciar,
mas quedetodo modo eu teria quecumpri-la.
Antes defalaremcomigo chamaramminha irmã para quepresenciassea cena. Meu
pai sedirigiu a ela primeiro. Dissequetinhamseequivocado. Queatéentão tinham
acreditado queela era a irmã mais velha, mas queacabaramdedescobrir quenão. Por
isso vamos dar ao teu irmão as chaves da casa –vocêpoderá sair eentrar a hora quequiser,
a partir dehojevocêmanda emsi mesmo, dissepara mim, olhando nos meus olhos.
Ninguémvai teperguntar aondevai, nemsetemtarefas, nemnada.
Eassimfoi. Durantealgumas semanas desfrutei desses privilégios. Metratavamcomo
a umadulto, comapenas alguns traços deironia. Fui ficando desesperado. Dissea minha
mãequeumdia eu iria para muito longeeela merespondeu quenão esquecessedelevar
uma mala. Não levei uma mala, mas uma tardesimplesmentesubi nummicro-ônibus
qualquer, disposto a chegar ao fimdo itinerário, semplanos, muito angustiado.
Não cheguei ao final do trajeto, mas simbemperto do bairro ondemoro hoje. Aviagem
durou mais deuma hora e, ao voltar, merepreenderamduramente. Era o queeu queria.
Estava feliz derecuperar meus pais. Etambémtinha descoberto ummundo novo. Um
mundo do qual eu não gostava, mas queera novo.
Já não existemais essa linha demicro-ônibus. Viajei demetrô edeônibus echeguei a
Maipú via Pajaritos. Sempremesurpreendea quantidadederestaurantes chineses quehá
na avenida. Já faz tempo queMaipú éuma pequena grandecidadeeas lojas queeu visitava
quando criança agora são sucursais debancos ou franquias decadeias defast-food.
Antes dechegar fiz umrodeio para passar pela Lucila Godoy Alcayaga. Arua estava
fechada comumvistoso portão eletrônico, a exemplo da travessa Neftalí Reyes Basoalto.
Não tivevontadedepedir às pessoas quecirculavampara medeixar entrar. Queria ver a
casa deClaudia, quena verdadefoi, duranteumtempo, a casa deminha amiga Carla
Andreu. Medirigi então para a Aladino. Avila seencheu demansardas, desegundos pisos
quereluzemdemodo aberrante, detelhados ostentosos. Não émais o sonho deigualdade.
Ao contrário. Há muitas casas maltratadas eoutras luxuosas. Há algumas queparecem
desabitadas.
Tambémhavia mudanças na casa demeus pais. Fiquei impressionado sobretudo ao
ver na sala ummóvel novo para livros. Reconheci a enciclopédia do automóvel, o curso de
inglês da BBC eos velhos livros da revista Ercilla comsuas coleções deliteratura chilena,
espanhola euniversal. Na fileira do centro havia tambémuma sériederomances deIsabel
Allende, HernánRivera Letelier, Marcela Serrano, JohnGrisham, Barbara Wood, Carla
GuelfenbeinePablo Simonetti, emais perto do chão alguns livros queli quando criança,
para o colégio: O anel dos Löwensköld, deSelma Lagerlöf, Alsino, dePedro Prado,
Miguel Strogoff, deJulio Verne, El último grumete de la Baquedano, deFrancisco
Coloane, Fermina Márquez, deValéry Larbaud, emsuma. Eu gostaria detê-los
conservado, mas seguramenteos esqueci emalguma caixa quemeus pais encontraramno
sótão.
Foi inquietantever aqueles livros ali, ordenados às pressas nummóvel vermelho de
melamina, flanqueado por cartazes comcenas decaça ou deauroras euma surrada
reprodução deAs meninas queestá emcasa desdesempreequemeu pai ainda mostra às
visitas comorgulho: esteéo pintor, Velázquez, o pintor pintou a si mesmo, diz.
Graças a esta biblioteca tua mãesepôs a ler eeu também, embora vocêsaiba que
prefiro ver filmes, dissemeu pai, eligou a televisão bema tempo dever a partida.
Comemoramos os gols deMati Fernández eHumberto Suazo comuma jarra grandede
pisco sour eumpar degarrafas devinho. Bebi muito mais quemeu pai. Nunca o vi bêbado,
pensei e, não sei porquê, disseisso a ele. Eu sim, vi meu pai bêbado muitas vezes, respondeu,
derepente, comuma mal contida expressão detristeza.
Fiqueaqui, amanhã tua irmã vemalmoçar, disseminha mãe–vocênão podedirigir
nesseestado, acrescentou, elembrei-a do queela sempreesquece: quenão tenho carro. Ah,
disseela, éverdade, mais ummotivo para vocênão dirigir, riu. Gosto da risada dela,
sobretudo quando vemderepente, quando aconteceimprevistamente. Éserena edoceao
mesmo tempo.
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Depois do almoço minha irmã insistiu emmetrazer para casa. Tirou a carteira há umano,
mas não faz mais deummês queaprendeu defato a dirigir. Mesmo assim, não parecia
nervosa. Onervoso era eu. Preferi meentregar, fechar os olhos eabri-los só quando o carro
pigarreava demais na mudança demarchas. Nos momentos desilêncio minha irmã
acelerava equando a conversa ganhava ritmo ela diminuía a velocidadea tal ponto queos
outros carros nos cobriamdebuzinadas.
Lamento o quesepassou comseu casamento, ela mediz umpouco antes desair da
estrada.
Isso aconteceu faz tempo, respondo.
Mas eu ainda não tinha dito.
Faz pouco tempo reatamos –minha irmã meolha entreincrédula efeliz. Explico que
por enquanto tudo éfrágil, tateante, mas quemesinto bem. Quequeremos fazer as coisas
melhor queantes. Quenão moraremos juntos ainda. Ela mepergunta por quenão contei a
meus pais. Por isso mesmo, respondo, ainda écedo para dizer a eles.
Depois mepergunta sevou escrever mais livros. Gosto da forma da pergunta, pois cabe
a possibilidadederesponder simplesmentequenão, quejá ésuficiente, eacredito nisso, às
vezes, ao final dealguma noiteruim: quederepentevou deixar deescrever, assimsemmais,
queemalgummomento recordarei como distanteo tempo emqueescrevia livros, do
mesmo modo queoutros recordama temporada emqueforamtaxistas ou venderam
dólares no Paseo Ahumada.
Mas respondo quesimeela mepedequelhecontedequetrata o livro novo. Não quero
responder, ela percebeevolta a perguntar. Digo quedeMaipú, do terremoto de1985, da
infância. Ela pedemais detalhes, eu os dou. Chegamos emcasa, eu a convido a entrar, ela
não quer, mas tampouco quer queeu desça. Sei muito bemo quevai meperguntar.
Eu apareço no seu livro?, diz, por fim.
Não.
Por quê?
Pensei nisso. Claro quepensei. Pensei muito nisso. Minha resposta éhonesta:
Para teproteger, digo.
Ela meolha descrente, magoada. Meolha comcara demenina.
Émelhor não ser personagemdeninguém, digo. Émelhor não aparecer emnenhum
livro.
Evocê, apareceno livro?
Sim. Mais ou menos. Mas o livro émeu. Não poderia deixar deaparecer. Ainda queme
atribuísseoutros traços euma vida muito distinta da minha, do mesmo jeito eu estaria no
livro. Já tomei a decisão denão meproteger.
Eestão nossos pais?
Sim. Há personagens parecidos comnossos pais.
Epor quevocênão protege, também, nossos pais?
Para essa pergunta não tenho resposta alguma. Suponho queeles simplesmentetêmque
comparecer. Receber menos do quederam, assistir a umbailedemáscaras sementender
muito bempor queestão ali. Nada disso sou capaz dedizer à minha irmã.
Não sei, éficção, digo a ela. Tenho queir, irmã. Não a chamo por seu nome. Chamo-a
deirmã, dou-lheumbeijo na bochecha edesço do carro.
Já emcasa fico muito tempo pensando emminha irmã, minha irmã mais velha.
Recordo estepoema deEnriqueLihn:
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Faz algumtempo tentei escrever umpoema, mas só consegui estes poucos versos:
Encaro-o nos olhos. Emquemomento, penso, emquemomento meu pai seconverteu nisso.
Ou semprefoi assim? Semprefoi assim? Penso nisso comforça, comuma dramaticidade
severa edolorosa: semprefoi assim?
Minha mãenão está deacordo como quedissemeu pai. Na verdadeestá mais ou
menos deacordo, mas quer fazer algo para evitar quea noitada searruíne. Estemundo é
muito melhor, diz. As coisas estão bem. Ea Michellefaz o melhor quepode.
Não posso evitar perguntar a meu pai senaqueles anos eleera ou não pinochetista. Eu
perguntei isso centenas devezes, desdea adolescência, équaseuma pergunta retórica, mas
elenunca admitiu –por quenão admitir, penso, por quenegar durantetantos anos, por
quecontinuar negando?
Meu pai guarda umsilêncio áspero eprofundo. Finalmentediz quenão, quenão era
pinochetista, queaprendeu desdemenino queninguémia salvá-los.
Nos salvar dequê?
Nos salvar. Nos dar decomer.
Mas o senhor tinha o quecomer. Nós tínhamos o quecomer.
Não setrata disso, diz.
Éuma história enrolada mas muito boa, diz meu pai, depois deumsilêncio não tão longo.
Está megozando? Uma boa história? Éuma história dolorosa.
Éuma história dolorosa, mas já passou. Claudia está viva. Os pais dela estão vivos.
Os pais estão mortos, digo.
Aditadura os matou?
Não.
Emorreramdequê?
Amãemorreu deumderramecerebral eo pai decâncer.
Coitadinha da Claudia, diz minha mãe.
Mas não morrerampor razões políticas, diz meu pai.
Mas estão mortos.
Mas vocêestá vivo, diz ele. Eaposto quevai contar esta história tão boa numlivro.
Não vou escrever umlivro sobreeles. Vou escrever umlivro sobrevocês, digo, comum
sorriso estranho desenhado na boca. Não posso acreditar no queacaba deacontecer. Me
incomoda ser o filho quevolta a recriminar, uma eoutra vez, seus pais. Mas não posso
evitar.
Encaro meu pai eeledesvia o rosto. Então vejo emseu perfil o brilho deuma lentede
contato eo olho direito levementeirritado. Melembro da cena, repetida incontáveis vezes
durantea infância: meu pai decócoras procurando desesperado uma lentedecontato que
acaba decair. Todos o ajudávamos a procurar, mas elequeria encontrá-la por si mesmo e
aquilo lhecustava uma enormidade.
TAL COMOCLAUDIAQUERIA, NOS HOSPEDAMOS NACASADEMEUS pais. Às duas da
madrugada eu melevanto para preparar café. Minha mãeestá na sala, tomando mate. Me
oferece, aceito. Acho quenunca na vida tomei matecomela. Não gosto do sabor de
adoçantemas sorvo forte, mequeimo umpouco.
Elemedava medo, diz minha mãe.
Quem?
Ricardo. Rodolfo.
Roberto.
Isso, Roberto. Eu intuía queestava metido empolítica.
Todos estavammetidos empolítica, mamãe. Vocêtambém. Vocês. Ao não participar,
apoiavama ditadura –sinto queemminha linguagemhá ecos, há vazios. Mesinto como se
falassesegundo ummanual decomportamento.
Mas nunca, nemseu pai nemeu, estivemos a favor ou contra Allende, a favor ou contra
Pinochet.
Por queRoberto lhedava medo?
Bom, não sei semedo. Mas agora vocêmeconta queera umterrorista.
Não era umterrorista. Escondia pessoas, ajudava pessoas quecorriamperigo. E
ajudava tambéma passar informações.
Evocêacha pouco?
Acho o mínimo quepodia fazer.
Mas essas pessoas queeleescondia eramterroristas. Punhambombas. Planejavam
atentados. Émotivo suficientepara ter medo.
Bom, mamãe, mas as ditaduras não caempor conta própria. Aquela luta era
necessária.
Queéquevocêsabedessas coisas? Nemtinha nascido na época deAllende. Era uma
criança naqueles anos.
Muitas vezes escutei essa frase. Vocênemsequer tinha nascido. Desta vez, no entanto, não
medói. Decerto modo medá vontadederir. Emseguida minha mãemepergunta, como se
viesseao caso:
Vocêgosta deCarla Guelfenbein?
Não sei o queresponder. Respondo quenão. Não gosto desses livros, dessetipo de
livros.
Bom, não gostamos dos mesmos livros. Gostei do romancedela, El revés del alma. Me
identifiquei comos personagens, meemocionei.
Ecomo épossível queseidentifiquecompersonagens deoutra classesocial, com
conflitos quenão são, quenão poderiamser os conflitos desua vida, mamãe?
Falo sério, muito sério. Sinto quenão deveria falar tão sério. Quenão convém. Quenão
vou solucionar nada repreendendo meus pais pelo passado. Quenão vou ganhar nada
tirando deminha mãeo direito deopinar comliberdadesobreumlivro. Ela meolha com
uma mistura deirritação ecompaixão. Comumpouco deenfado.
Vocêseengana, diz, talvez aquela não seja minha classesocial, concordo, mas as
classes sociais mudarammuito, todo mundo diz isso. Eao ler esseromanceeu senti que
sim, queaqueles erammeus problemas. Entendo queteincomodequeeu diga isso, mas
vocêdeveria ser umpouco mais tolerante.
Eu dissesomentequenão gostava daqueleromance. Equeera estranho quesesentisse
identificada compersonagens deoutra classesocial.
EClaudia?
OquetemClaudia?
Claudia édequeclassesocial? Dequeclassevocêéagora? Ela morou emMaipú, mas
não édaqui. Vê-sequeémais refinada. Vocêtambémparecemais refinado quenós.
Ninguémdiria queémeu filho.
Desculpa, diz minha mãeantes queeu possa responder a essa pergunta que, detodo
modo, não saberia responder. Meservemais mateeacendedois cigarros coma mesma
chama. Vamos fumar aqui dentro, mesmo queseu pai não goste. Mepassa um.
Não éculpa sua, mediz. Vocêera muito jovemquando saiu decasa, aos vinteedois
anos.
Aos vinte, mamãe.
Aos vinte, aos vinteedois, dá no mesmo. Muito jovem. Às vezes penso como seria a vida
sevocêtivesseficado emcasa. Alguns ficaram. Omenino ladrão, por exemplo. Eleficou
aqui esetornou umladrão. Outros tambémficarameagora são engenheiros. Assiméa
vida: vocêsetorna ladrão ou engenheiro. Mas não sei muito bemo quevocêsetornou.
Eu tambémnão sei o quemeu pai setornou, digo eu, deforma meio involuntária.
Seu pai semprefoi umhomemqueama a família. Foi eé.
Ecomo teria sido a vida seeu tivesseficado, mamãe?
Não sei.
Teria sido pior, respondo.
Minha mãeconcorda. Talvez seja bomestarmos menos próximos, diz. Gosto devocê
como é. Gosto quedefenda suas ideias. Egosto dessa menina, Claudia, para você, ainda
quenão seja da sua classesocial.
Apaga a bituca cuidadosamenteelava o cinzeiro antes deir deitar. Fico na sala,
fumando, por mais umtempinho. Abro a porta emesento na soleira. Quero contemplar a
noite, procurar a lua, terminar emlongos goles o uísquequeacabo demeservir. Meapoio
no carro demeus pais, uma caminhonetenova Hyundai. Soa o alarme, meu pai selevanta.
Acho comoventevê-lo depijama. Mepergunta seestou bêbado. Umpouco, respondo, coma
voz apagada: só umpouco.
Émuito tarde, cinco da manhã. Vou para o quarto. Claudia dorme, meestendo a seu
lado, memovimento querendo despertá-la. Não ésó umpouco: estou bêbado. Aescuridão é
quasecompleta emesmo assimsinto seu olhar emminha fronteeemmeu peito. Meacaricia
o pescoço, mordo-lheumombro. Não podemos perder a oportunidade, diz ela, defazer
amor na casa dos seus pais. Seu corpo semovena escuridão enquanto amanhece.
ÀS OITODAMANHÃDECIDIMOS PARTIR. VOU AOQUARTODEmeus pais para me
despedir. Vejo-os dormir abraçados. Aimagemmepareceforte. Sinto pudor, alegria e
desassossego. Penso quesão os belos sobreviventes deummundo perdido, deummundo
impossível. Meu pai acorda emepedequeespere. Quer medar umas camisas quenão usa
mais. São seis, não parecemvelhas, deduzo queficarão pequenas, mas as recebo assim
mesmo.
Voltamos para casa eécomo seregressássemos deuma guerra, mas deuma guerra
quenão terminou. Penso quenos convertemos emdesertores. Penso quenos convertemos
emcorrespondentes, emturistas. Éisso o quesomos, penso: turistas quealguma vez
chegaramcomsuas mochilas, suas câmeras eseus cadernos, dispostos a passar muito
tempo fatigando os olhos, mas quederepentedecidiramvoltar eenquanto voltam
respiramumlongo alívio.
Umalívio longo, mas passageiro. Porquenessesentimento há inocência ehá culpa, e
embora não possamos, embora não saibamos falar deinocência ou deculpa, dedicamos
os dias a repassar uma longa lista queenumera o queentão, quando crianças,
desconhecíamos. Écomo setivéssemos presenciado umcrime. Não o cometemos, somente
passávamos pelo lugar, mas arrancamos dali porquesabemos quesenos encontrassem
nos culpariam. Nos julgamos inocentes, nos julgamos culpados: não sabemos.
Devolta emcasa Claudia olha as camisas quemeu pai mepresenteou. Durantemuitos
anos não tiveroupa, diz derepente: primeiro usava as coisas queXimena deixava edepois
os vestidos da minha mãe. Quando ela morreu brigamos atéo último trapo eagora que
penso nisso vejo quetalvez tenha sido naquelemomento quenossa relação seestropiou
definitivamente. Os ternos demeu pai, ao contrário, continuamno guarda-roupa do
quarto, intactos, diz.
GUARDEIAS CAMISAS DEMEU PAINUMAGAVETADURANTEMESES. Desdeentão
acontecerammuitas coisas. Desdeentão Claudia sefoi eeu comecei a escrever estelivro.
Olho agora essas camisas, estendo-as sobrea cama. Gosto deuma emespecial, cor
azul petróleo. Acabo deprová-la, definitivamentefica pequena emmim. Olho-meno
espelho epenso quea roupa dos pais deveria sempreficar grandeemnós. Mas penso
tambémqueprecisava disso; queàs vezes precisamos nos vestir coma roupa dos pais enos
olhar demoradamenteno espelho.
Nunca falamos comsinceridadesobreessa viagema Maipú. Muitas vezes eu quis saber
o queClaudia tinha sentido, por quetinha desejado quenos hospedássemos lá, mas cada
vez queeu perguntava ela merespondia comevasivas ou comfrases feitas. Vieramdepois
uns dias silenciosos elongos. Claudia semostrava concentrada, atarefada eumpouco
tensa. Eu não deveria ter mesurpreendido quando ela meanunciou sua decisão. Supõe-se
queeu esperava o desenlace, supõe-sequenão havia outro desenlacepossível.
Voltei a ver Ximena, ela medisseprimeiro, comalegria. Ainda não aceitava que
vendessema casa, mas tinhamreatado a relação epara Claudia isso importava muito
mais quea herança. Contou queconversaramdurantehoras, semagressões denenhuma
espécie. Faz anos, faz muitos anos, medissedepois, mudando o tomdeuma maneira que
mepareceu dolorosa, faz anos descobri quequeria uma vida normal. Quequeria,
sobretudo, estar tranquila. Já vivi as emoções, todas as emoções. Quero uma vida
tranquila, simples. Uma vida compasseios no parque.
Pensei nessa frasemeio casual, involuntária: a vida compasseios no parque. Pensei
quetambémminha vida era dealguma forma uma vida compasseios no parque. Mas
entendi o queela queria dizer. Procurava uma paisagemprópria, umparquenovo. Uma
vida emquenão fossemais a filha ou a irmã dealguém. Insisti, não sei porquê, não sei para
quê. Nesta viagemvocêrecuperou seu passado, eu disse.
Não sei. Mas aproveitei para tecontar. Voltei à infância numa viagemquetalvez
necessitasse. Mas não ébomquenos enganemos. Naqueletempo, quando crianças, você
espionava meu pai porquequeria estar comigo. Agora éigual. Vocêmeescutou só para me
ver. Sei quevocêseimporta coma minha história, mas o quemais teimporta étua própria
história.
Achei queela estava sendo dura, queestava sendo injusta. Quedizia palavras
desnecessárias. Derepentesenti raiva, senti atéuma ponta derancor. Vocêémuito
arrogante, disse.
Sim, respondeu. Evocêtambém. Quer queeu teapoie, quetenha a mesma opinião que
você, como dois adolescentes queforçamcoincidências para estar juntos eesticamo olhar e
mentem.
Recebi o golpe, talvez o merecesse. Entendo quevocêvá embora, disseeu. Santiago é
mais fortequevocê. Eo Chileéumpaís demerda queserá governado por umricaço bronco
quevai fazer discursos emais discursos celebrando o bicentenário.
Não vou embora por causa disso, disse, taxativa.
Vai embora porqueestá apaixonada por outro, repliquei, como sefosseumjogo de
adivinhação. Pensei emseu namorado argentino epensei tambémemEsteban, o jovem
louro quea acompanhava naqueletempo, emMaipú. Nunca lheperguntei seera seu
namorado. Quis perguntar agora, fora dehora, demodo torpe, infantil. Mas antes que
pudessefazê-lo ela respondeu, comênfase: não estou apaixonada por outro. Tomou um
golelongo decaféenquanto pensava no queia dizer. Não estou apaixonada por ninguém,
na verdade. Setenho certeza dealguma coisa, disse, édequenão estou apaixonada por
ninguém.
Mas talvez seja melhor quevocêentenda assim, acrescentou depois, numtom
indefinível. Émais fácil entender assim. Émelhor pensar quetudo isso foi uma história de
amor.
4.
ESTAMOS BEM
ESTATARDEEMEACEITOU, POR FIM, CONHECER OMANUSCRITO. Não quis queeu
lessepara ela emvoz alta, como antes. Pediu queeu imprimisseas páginas ecobriu-secom
o lençol para lê-las na cama, mas derepentemudou deideia ecomeçou a sevestir. Prefiro ir
para minha casa, disse. Já faz muito tempo queestou aqui, quero dormir na minha cama
esta noite.
Imagino-a lendo, agora, naquela sua casa para a qual nunca meconvidou. Naquela
cama quenão conheço. Minha cama tambémédela, nós a escolhemos juntos. Eos lençóis,
as mantas, o colchão. Eu disseisso antes queela saísse, mas não esperava sua resposta:
para queisto funcione, disseela, às vezes vocêdevepensar queacabamos denos conhecer.
Quenunca antes compartilhamos nada.
Meimpressionou a moderação umpouco forçada desua voz. Mefalou como sefala a
umhomemquereclama injustamentena fila do supermercado. Todos temos pressa,
senhor. Seja paciente, esperesua vez.
Espero minha vez, então, sentimental, civilizadamente.
•••
Aos vinteanos, quando tinha acabado desair decasa, trabalhei por umtempo contando
automóveis. Era umemprego simples emal pago, mas dealguma forma eu gostava de
ficar na esquina designada eanotar na planilha a quantidadedecarros, caminhonetes e
ônibus quepassavama cada hora. Eu gostava, sobretudo, decumprir o turno da noite,
embora às vezes mebatesseo sono ecomcerteza a imagemfosseabsurda: umtipo jovem,
concentrado ecomolheiras, numa esquina da avenida Vicuña Mackenna, esperando
nada, olhando desoslaio outros jovens quevoltavampara casa alardeando a bebedeira.
Énoiteeeu escrevo. Émeu trabalho agora, ou algo assim. Mas enquanto escrevo
passamautomóveis pela avenida Echeñiqueeàs vezes medistraio ecomeço a contá-los.
Nos últimos dez minutos passaramcatorzecarros, três caminhonetes euma moto. Não
consigo saber sedobrama esquina seguinteou seguememfrente. Deummodo vago e
melancólico penso quegostaria desaber.
Penso no antigo Peugeot 404. Meu pai costumava dedicar os fins desemana a ajustá-
lo, embora na verdadeo carro nunca falhasse–elemesmo dizia, comesseamor quesó os
homens podemsentir pelos carros, queseportava bem, quedava poucos problemas, eno
entanto elepassava a vida regulando-o, trocando as velas, ou lendo atétardealgum
capítulo deApunto, la enciclopedia del automóvil. Nunca vi alguémtão concentrado
como meu pai naquelas noites deleitura.
Parecia-meridículo queelededicassetanto tempo ao carro. Alémdo mais eu era
obrigado a ajudá-lo –ajudá-lo consistia emesperar, comuma paciência infinita, quepor
fimeledissesse: mepassa a chaveinglesa. Depois devia aguardar quea devolvesseeainda
por cima escutar longas explicações sobremecânica quenão meinteressavamnemum
pouco. Descobri então certo prazer no fato defingir queescutava meu pai ou outros
adultos. Emconcordar coma cabeça sustentando o meio sorriso dequemsabeestar
pensando emoutra coisa.
Odestino daquelePeugeot foi horrível. Umvelho caminhão queentrou na contramão
bateu neleemeu pai quasemorreu. Ainda melembro dequando memostrou a marca queo
cinto desegurança lhedeixou no peito. Mefalou então sobreprudência, sobreo sentido das
normas. Derepenteabriu a camisa para memostrar a marca vermelha desenhada com
precisão emseu peito moreno. Seeu não tivesseposto o cinto desegurança, estaria morto,
disseele.
OPeugeot ficou empedaços efoi preciso vendê-lo como sucata. Acompanhei meu pai ao
depósito decarros. Desdeentão, cada vez quevejo umPeugeot 404 relembro essa imagem
ingrata. Ea cicatriz demeu pai, também, quando íamos à piscina ou à praia. Eu não
gostava devê-lo emtrajedebanho. Não gostava dever aquela marca riscando-lheo peito,
aquela evidência, aquela faixa horrível queficou emseu corpo para sempre.
•••
•••
Cheguei meia hora antes, sentei no terraço epedi uma taça devinho. Queria ler enquanto
esperava Eme, mas uns meninos corriamperigosamenteao redor eera difícil me
concentrar. Deveriamestar na escola, pensei, mas lembrei queera sábado. Emseguida vi
suas mães na mesa ao lado, entretidas numbate-papo superficial.
Chegou tarde. Notei queestava nervosa, porquemedeu uma longa explicação pela
demora, como senunca antes tivessechegado tarde. Deduzi quenão queria falar do
romance. Então decidi perguntar, semmais, o quetinha achado. Procurou o tompor um
bomtempo. Balbuciou. Tentou alguma piada quenão entendi. Oromanceestá bom, disse
ela, por fim. Éumromance.
Como?
Isso, queéumromance. Gostei.
Mas não está terminado.
Mas vocêvai terminá-lo eficará bom.
Eu queria lhepedir precisões, perguntar por algumas passagens, por alguns
personagens, mas não foi possível, porqueuma das mulheres da mesa ao lado se
aproximou ecumprimentou Emeefusivamente. Sou a Pepi, disseela, eseabraçaram. Não
sei sedissePepi ou Pepa ou Pupi ou Papo, mas era umapelido dessetipo. Apresentou-nos
seus filhos, queeramos mais espevitados do grupo. Emepodia cortar a conversa nesse
ponto, mas quis continuar comentando comsua antiga companheira a enorme
coincidência deseencontraremnaquelerestaurante. Não mepareceu tão grandea
coincidência. Pepi ou Pupi ou Papi mora emLa Reina, assimcomo Eme. Oestranho éque
não tivessemseencontrado antes.
Fiquei mal. Achei queEmealongava intencionalmentea conversa. Queagradecia
aqueleencontro porquelhepermitia adiar o momento emquedevia medar uma opinião
real sobreo manuscrito. Depois sedesculpou emedissequetinha queir embora. Voltei
para casa frustrado, chateado. Tentei continuar escrevendo, mas não consegui.
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Quando criança eu gostava da palavra apagão. Minha mãenos buscava, nos levava à
sala. Antigamentenão havia luz elétrica, dizia enquanto acendia as velas. Eu custava a
imaginar ummundo semlâmpadas, seminterruptores nas paredes.
Aquelas noites nos permitiamficar umtempo conversando eminha mãecostumava
contar a piada da vela inapagável. Era longa esemgraça, mas gostávamos muito: a
família tentava apagar uma vela para ir dormir mas todos tinhama boca torta. No final a
avó, quetambémtinha a boca torta, apagava a vela molhando os dedos comsaliva.
Meu pai tambémexaltava a piada. Estavamali para quenão tivéssemos medo. Mas
não tínhamos medo. Erameles quetinhammedo.
Disso quero falar. Dessetipo delembrança.
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Hojetelefonou meu amigo Pablo para meler esta frasequeencontrou numlivro deTim
O’Brien: “Oqueadereà memória são esses pequenos fragmentos estranhos quenão têm
princípio nemfim”.
Fiquei pensando nisso eperdi o sono. Éverdade. Recordamos, mais propriamente, os
ruídos das imagens. Eàs vezes, ao escrever, limpamos tudo, como sedessemodo
avançássemos para algumlado. Deveríamos simplesmentedescrever esses ruídos, essas
manchas na memória. Essa seleção arbitrária, nada mais. Por isso mentimos tanto,
afinal. Por isso umlivro ésempreo reverso deoutro livro imenso eestranho. Umlivro
ilegível egenuíno quetraduzimos, quetraímos pelo hábito deuma prosa passável.
Penso no belíssimo começo deLéxico familiar, o romancedeNatalia Ginzburg: “Neste
livro, lugares, fatos epessoas são reais. Não inventei nada: etoda vez que, nas pegadas do
meu velho costumederomancista, inventava, logo mesentia impelida a destruir tudo o que
inventara”. Eu haveria deser capaz disso. Ou deficar calado, simplesmente.
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Aprosa sai estranha. Não encontro o humor, a textura. Mas solto alguns versos ederepente
medeixo invadir por esseritmo. Movo os versos, confirmo etransgrido a cadência, passo
horas trabalhando no poema. Leio, emvoz alta:
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Sonhei queestava bêbado edançava uma canção deLos Ángeles Negros, “El trenhacia el
olvido”. Derepenteaparecia Alejandra Costamagna –vocêestá tão mamado, medizia,
melhor eu televar para casa, medá o endereço. Mas eu tinha esquecido meu endereço e
continuava dançando enquanto tentava lembrá-lo. No sonho eu tomava piscola; no sonho
eu gostava depiscola.
Alejandra dançava comigo, mas era antes uma maneira demeajudar; eu cambaleava
indignamente, estava a ponto decair no meio da pista. Mas não era a pista deuma
discoteca, era a sala da casa dealguém.
Não somos amigos, eu dizia a Alejandra, no sonho. Por quevocêestá meajudando se
não somos amigos?
Porquesomos amigos, respondia ela. Vocêestá sonhando eno sonho pensa quenão
somos amigos. Mas somos amigos. Tenteacordar, medizia. Eu tentava, mas continuava
no sonho ecomeçava a meangustiar.
Finalmentedespertei. Emedormia a meu lado. Reconheci, na televisão, as cenas finais
deAmores expressos. Achei absurdo quetivéssemos adormecido vendo umfilmetão bom
como Amores expressos.
Liguei para Alejandra, contei-lheo sonho, ela riu. Eu gosto de“El trenhacia el olvido”,
disseela. Eu também, mas gosto muito mais de“El rey y yo”, respondi. Perguntou como iam
as coisas comEme. Não sei, respondi, instintivamente. Eéverdade, penso agora: não sei.
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Há dor mas tambémhá felicidadeao abandonar umlivro. Comigo aconteceu assim, pelo
menos: primeiro o melodrama deter perdido tantas noites numa paixão inútil. Mas depois,
como passar dos dias, prevaleceumligeiro vento favorável. Voltamos a nos sentir
cômodos nessequarto emqueescrevemos semgrandes planos, sempropósitos precisos.
Abandonamos umlivro quando compreendemos quenão era para nós. Detanto
querer lê-lo acreditamos quenos cabia escrevê-lo. Estávamos cansados deesperar que
alguémescrevesseo livro quequeríamos ler.
Não penso emabandonar meu romance, no entanto. Osilêncio deEmemefereeo
entendo. Eu a obriguei a ler o manuscrito eagora quero obrigá-la a aceitá-lo. Eo peso de
sua possível desaprovação mefaz desejar não tê-lo escrito ou abandoná-lo. Mas não. Não
vou abandoná-lo.
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Faz alguns dias Emedeixou comos vizinhos uma caixa para mim. Só hojemeatrevi a abri-
la. Havia dois coletes, umcachecol, meus filmes deKaurismäki eWes Anderson, meus
discos deTomWaits eWu-Tang Clan, alémdealguns livros queduranteesses meses lhe
emprestei. Entreeles estava tambémo exemplar deEm louvor da sombra, o ensaio de
Tanizaki quelhedei depresentehá anos. Não sei sepor crueldadeou por descuido, ela o
incluiu na caixa.
Ela nunca medisseseo havia lido, por isso mesurpreendeu reconhecer, agora, no
livro, as marcas deumgrosso marca-texto amarelo. Costumava importuná-la por isso:
seus livros ficavamfeios depois dessa espéciedebatalha queera a leitura. Pode-sedizer que
ela lia coma ansiedadedequemmemoriza datas para umexame, mas não, havia se
acostumado, simplesmente, a marcar dessa maneira as frases das quais gostava.
Falo deEmeno passado. Étristeefácil: já não está. Mas tambémdeveria aprender a
falar demimmesmo no passado.
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Voltei ao romance. Ensaio mudanças. Da primeira para a terceira pessoa, da terceira para
a primeira, atépara a segunda.
Distancio eaproximo o narrador. Enão avanço. Não vou avançar. Mudo decenários.
Apago. Apago muitíssimo. Vinte, trinta páginas. Esqueço esselivro. Meembriago aos
poucos, adormeço.
Edepois, ao despertar, escrevo versos edescubro queisso era tudo: recordar as
imagens emplenitude, semcomposições delugar, semmaiores cenários. Conseguir uma
música genuína. Nada deromances, nada dedesculpas.
Ensaio apagar tudo edeixar queprevaleça somenteesteritmo, estas palavras:
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Depois do Peugeot 404 meu pai teveum504 azul pálido eemseguida um505 prateado.
Nenhumdesses modelos circula agora pela avenida.
Observo os carros, conto os carros. Meparecetristepensar quenos assentos traseiros
vão meninos dormindo, equecada umdesses meninos recordará, alguma vez, o antigo
carro emqueanos atrás viajava comseus pais.
Segundo livro do escritor chileno Alejandro Zambra, Avida privada das árvores éa
história deuma espera. Julián, umprofessor deliteratura easpirantea escritor, aguarda a
chegada deVerónica, sua mulher. Mas ela não chega ea espera sealonga. Junto coma
enteada, a pequena Daniela, Juliándistrai as horas contando histórias deárvores para a
menina. Enquanto a mulher não chega, Juliánrecompõena memória seu passado e, na
imaginação, inventa umfuturo possível no qual sua companheira já não existe.
[ed. impressa] | [ed. eletrônica]
©CosacNaify, 2014, e-book, 2014
©Alejandro Zambra, 2011
ISBN978-85-405-0805-7
1. Ficção chilena
2. Literatura latino-americana
I. Couto, JoséGeraldo II. Título.
FONTES ArnhemeSangBleu
SOFTWARELibreOfficeeWriter2ePub deLuca Calcinai