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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
FORMAS
DE VOLTAR
PARA CASA
ALEJANDRO ZAMBRA

TRADUÇÃOJoséGeraldo Couto
Para Andrea
Agora sei caminhar; não poderei aprender nunca mais.
W. BENJAMIN

Em vez de gritar, escrevo livros.


R. GARY
1.
PERSONAGENS SECUNDÁRIOS
UMAVEZ MEPERDI. TINHASEIS OU SETEANOS. VINHADISTRAÍDOederepentenão vi
mais meus pais. Meassustei, mas logo retomei o caminho echeguei emcasa antes deles –
continuavammeprocurando, desesperados, mas naquela tardeachei quetinhamse
perdido. Queeu sabia voltar para casa eeles não.
Vocêtomou outro caminho, dizia minha mãe, depois, comos olhos ainda chorosos.
Foramvocês quetomaramoutro caminho, pensava eu, mas não dizia.
Meu pai, na poltrona, olhava tranquilamente. Às vezes acho quesempreestevelargado
ali, pensando. Mas talvez não pensasseemnada. Talvez só fechasseos olhos erecebesseo
presentecomcalma ou resignação. Naquela noite, no entanto, falou –isso ébom, medisse,
vocêsuperou a adversidade. Minha mãeo fitava comreceio, mas eleseguia alinhavando
umconfuso discurso sobrea adversidade.
Merecostei na poltrona emfrenteefiz quedormia. Escutei-os brigar, no estilo de
sempre. Ela dizia cinco frases eelerespondia comuma única palavra. Às vezes dizia,
cortante: não. Às vezes dizia, à beira deumgrito: mentira. Eàs vezes, inclusive, como os
policiais: negativo.
Naquela noiteminha mãemecarregou atéa cama emedisse, talvez sabendo queeu
fingia dormir, quea escutava comatenção, comcuriosidade: seu pai temrazão. Agora
sabemos quevocênão seperderá. Quesabeandar sozinho pelas ruas. Mas vocêdeveria se
concentrar mais no caminho. Deveria caminhar mais rápido.
Obedeci. Desdeentão caminhei mais rápido. Defato, dois anos mais tarde, na primeira
vez quefalei comClaudia, ela meperguntou por queeu andava tão rápido. Levava dias me
seguindo, meespiando. Tínhamos nos conhecido havia pouco, na noitedo terremoto, 3 de
março de1985, mas na ocasião não havíamos conversado.
Claudia tinha dozeanos eeu, nove, razão pela qual nossa amizadeera impossível. Mas
fomos amigos ou algo assim. Conversávamos muito. Às vezes penso queescrevo estelivro
só para recordar aquelas conversas.
NANOITEDOTERREMOTOEU TINHAMEDO, MAS TAMBÉMMEagradava, dealguma
forma, o queestava acontecendo.
No jardimda frentedeuma das casas os adultos montaramduas barracas para que
nós, crianças, dormíssemos ali. No começo foi uma confusão, porquetodo mundo queria
dormir na deestilo iglu, queera então uma novidade, mas ela foi dada às meninas. Nos
fechamos para brigar emsilêncio, queera o quefazíamos quando estávamos sozinhos:
golpear uns aos outros alegreefuriosamente. Mas o nariz do ruivo sangrou quando
tínhamos acabado decomeçar etivemos queprocurar outra brincadeira.
Alguémtevea ideia defazer testamentos edeinício nos pareceu uma boa, mas logo
descobrimos queisso não tinha sentido, pois seviesseumterremoto mais forteo mundo se
acabaria enão haveria ninguéma quemdeixar nossas coisas. Depois imaginamos quea
Terra era como umcachorro sesacudindo equeas pessoas caíamcomo pulgas no espaço e
pensamos tanto nessa imagemquenos deu umacesso deriso etambémnos deu sono.
Só queeu não queria dormir. Estava cansado como nunca, mas era umcansaço novo,
quefazia os olhos arderem. Decidi quepassaria a noiteemclaro etentei meinfiltrar no iglu
para continuar conversando comas meninas, poréma filha do carabineiro meexpulsou
dizendo queeu queria violá-las. Naquela época eu não sabia bemo queera umviolador,
mas detodo modo jurei quenão queria violá-las, quesó queria olhá-las, eela riu
zombeteiramenteerespondeu queisso era o quesemprediziamos violadores. Tivequeficar
defora, escutando-as brincar, dizendo queas bonecas eramas únicas sobreviventes –
chacoalhavamsuas donas ecaíamemprantos ao comprovar queestavammortas,
embora uma delas achassemelhor assim, porquea raça humana semprelheparecera
pestilenta. No final disputavamentresi o poder e, ainda quea discussão parecesselonga,
foi resolvida rapidamente, pois detodas as bonecas só havia uma barbieoriginal. Esta
ganhou.
Encontrei uma cadeira depraia entreos escombros emeaproximei comtimidez da
fogueira dos adultos. Era estranho ver os vizinhos, talvez pela primeira vez, reunidos.
Enfrentavamo medo comuns goles devinho elongos olhares decumplicidade. Alguém
trouxeuma velha mesa demadeira ea pôs no fogo, semmais nemmenos –sevocêquiser, eu
jogo tambémo violão, dissemeu pai, etodos riram, inclusiveeu, queestava umpouco
desconcertado, porquenão era habitual quemeu pai fizessepiadas. Nisso voltou Raúl, o
vizinho, comMagali eClaudia. Estas são minha irmã eminha sobrinha, disse. Tinha ido
buscá-las depois do terremoto eregressava agora, visivelmentealiviado.
RAÚL ERAOÚNICONAVILAQUEMORAVASOZINHO. PARAMIMera difícil entender que
alguémmorassesozinho. Pensava queestar sozinho era uma espéciedecastigo ou de
doença.
Na manhã emqueelechegou comumcolchão amarrado ao teto deseu Fiat 500,
perguntei a minha mãequando viria o resto da família deleeela merespondeu docemente
quenemtodo mundo tinha família. Então pensei quedevíamos ajudá-lo, mas empouco
tempo entendi, comsurpresa, quea meus pais não interessava ajudar Raúl, quenão
julgavamquefossenecessário, queatémesmo sentiamcerta reticência quanto àquele
homemmagro esilencioso. Éramos vizinhos, compartilhávamos ummuro euma fileira de
alfenas, mas uma distância enormenos separava.
Na vila sedizia queRaúl era democrata-cristão eisso meparecia interessante. Édifícil
explicar agora por quea ummenino denoveanos podia então parecer interessanteque
alguémfossedemocrata-cristão. Talvez eu acreditassequehavia alguma conexão entreo
fato deser democrata-cristão ea situação tristedemorar sozinho. Nunca tinha visto meu
pai conversar comRaúl, por isso meimpressionou quenaquela noiteeles
compartilhassemuns cigarros. Achei quefalavamsobrea solidão, quemeu pai dava ao
vizinho conselhos para superar a solidão, embora devessesaber muito pouco sobrea
solidão.
Magali, enquanto isso, estava abraçada a Claudia numcanto distantedo grupo.
Pareciampouco à vontade. Por cortesia, mas talvez comuma ponta demaldade, uma
vizinha perguntou a Magali emqueela trabalhava eela respondeu deimediato, como sejá
esperassea pergunta, queera professora deinglês.
Já era muito tardeememandaramir dormir. Tivequeabrir umespaço para mim, a
contragosto, na barraca. Estava commedo deadormecer, mas medistraí escutando
aquelas vozes perdidas na noite. Como começarama falar das mulheres, entendi queRaúl
tinha seafastado para junto delas. Alguémdissequea menina era estranha. Não tinha
parecido estranha para mim. Tinha parecido bonita. Ea mulher, disseminha mãe, não
tinha cara deprofessora deinglês –tinha cara dedona decasa, nada mais, acrescentou
outro vizinho, eesticarama piada por umtempo.
Eu pensei na cara deuma professora deinglês, emcomo devia ser a cara deuma
professora deinglês. Pensei emminha mãe, emmeu pai. Pensei: meus pais têmcara dequê?
Mas nossos pais nunca têmcara realmente. Nunca aprendemos a olhá-los bem.
ACHAVAQUEPASSARÍAMOS SEMANAS EMESMOMESES ÀINTEMPÉRIE, à espera de
algumremoto caminhão comalimentos ecobertores, eatémeimaginava falando para a
televisão, agradecendo a ajuda detodos os chilenos, como nos temporais –pensava
naquelas chuvas terríveis deoutros anos, quando não dava para sair eera quase
obrigatório ficar dianteda tela olhando as pessoas quetinhamperdido tudo.
Mas não foi assim. Acalma voltou quasedeimediato. Naquelerecanto perdido a oeste
deSantiago o terremoto não tinha sido mais do queumenormesusto. Umas tantas
muretas foramderrubadas, mas não houvegrandes estragos nemmortos. Atevêmostrava
o porto deSanAntonio destruído ealgumas ruas queeu tinha visto ou julgava ter visto nas
escassas viagens ao centro deSantiago. Intuía confusamentequeaquela era a dor
verdadeira.
Sehavia algo a aprender, não aprendemos. Agora penso queébomperder a confiança
no solo, queénecessário saber quedeummomento para outro tudo podevir abaixo. Mas
na época voltamos, semmais, à vida desempre.
Papai comprovou, satisfeito, queos prejuízos erampoucos: nada alémdealgumas
rachaduras nas paredes euma vidraça despedaçada. Minha mãesó lamentou a perda dos
copos zodiacais. Quebraram-seoito, incluídos o dela (peixes), o demeu pai (leão) eo quea
vovó usava quando vinha nos ver (escorpião) –não temproblema, temos outros copos, não
necessitamos demais, dissemeu pai, eela respondeu, semolhar para ele, olhando para
mim: só o teu sesalvou. Emseguida foi buscar o copo do signo libra, quemeentregou com
gesto solene, epassou os dias seguintes umpouco deprimida, pensando empresentear os
outros copos a alguémdegêmeos, alguémdevirgem, alguémdeaquário.
Aboa notícia era quenão voltaríamos imediatamenteao colégio. Oantigo edifício
havia sofrido danos importantes equemo tinha visto dizia queera ummontederuínas. Era
difícil imaginar o colégio destruído, embora não fossetristeza o queeu sentia. Sentia
apenas curiosidade. Melembrava, emespecial, do trecho baldio no final do terreno onde
brincávamos nas horas livres eo muro rabiscado pelos meninos do ensino médio. Pensava
emtodas aquelas mensagens voando empedaços, espalhados nas cinzas do solo –recados
jocosos, frases a favor ou contra o Colo-Colo, a favor ou contra Pinochet. Uma fraseem
especial medivertia muito: Pinochet gosta depica.
Na época eu estava esempreestiveesempreestarei a favor do Colo-Colo. Quanto a
Pinochet, para mimera umpersonagemda televisão queconduzia umprograma sem
horário fixo, eeu o odiava por isso, pelos aborrecidos pronunciamentos emcadeia
nacional queinterrompiama programação nas melhores partes. Tempos depois o odiei
por ser filho da puta, por ser assassino, mas na época o odiava somentepor aqueles
intempestivos shows quemeu pai olhava semdizer palavra, semconceder mais gestos que
uma tragada mais intensa no cigarro quelevava sempregrudado na boca.
OPAIDORUIVOVIAJOU, POR AQUELAÉPOCA, AMIAMI, EVOLTOU comumtaco euma
luva debeisebol para seu filho. Opresenteproduziu uma inesperada ruptura emnossos
costumes. Duranteuns dias trocamos o futebol por aqueleesportelento eumpouco
estúpido quemesmo assimhipnotizava meus amigos. Anossa praça devia ser a única do
país ondeos meninos jogavambeisebol emvez defutebol. Eu tinha muita dificuldadede
acertar a bola ou lançá-la bem, razão pela qual passei rapidamentepara a reserva. Oruivo
setornou popular efoi assimque, por culpa do beisebol, fiquei semamigos.
Pelas tardes, resignado à solidão, eu saía, como sediz, para mecansar: caminhava
ensaiando trajetos cada vez mais longos, embora quasesemprerespeitasseuma certa
geometria decírculos. Examinava os traços, as quadras, registrando novas paisagens,
apesar dequeo mundo não variava muito: as mesmas casas novas, construídas derepente,
como queobedecendo a uma urgência, enão obstantesólidas, resistentes. Empoucas
semanas, a maioria dos muros tinha sido restaurada ereforçada. Era difícil suspeitar que
acabava deocorrer umterremoto.
Agora não entendo bema liberdadedequegozávamos na época. Vivíamos numa
ditadura, falava-sedecrimes eatentados, deestado desítio etoquederecolher, emesmo
assimnada meimpedia depassar o dia vagando longedecasa. As ruas deMaipú não
eram, então, perigosas? Denoitesim, ededia também, mas, comarrogância ou com
inocência, ou comuma mescla dearrogância einocência, os adultos brincavamdeignorar
o perigo: brincavamdepensar queo descontentamento era coisa depobres eo poder,
assunto dos ricos, eninguémera pobrenemrico, pelo menos não ainda, naquelas ruas,
naquela época.
Numa daquelas tardes topei coma sobrinha deRaúl, mas não soubesedevia
cumprimentá-la, evoltei a vê-la nos dias seguintes. Não medei conta dequeela, na verdade,
meseguia –équeeu gosto decaminhar rápido, respondi quando falou comigo, edepois
veio umsilêncio longo queela rompeu perguntando seeu estava perdido. Respondi que
não, quesabia perfeitamentevoltar para casa. Era brincadeira, quero falar comvocê,
vamos nos encontrar na próxima segunda-feira, às cinco, na confeitaria do supermercado
–disseisso assim, numa só frase, esefoi.
NODIASEGUINTEMEACORDARAMCEDOPORQUEPASSARÍAMOS o fimdesemana na
represa Lo Ovalle. Minha mãenão queria ir etardava os preparativos confiando quelogo
chegaria a hora do almoço eseria preciso mudar os planos. Meu pai decidiu, entretanto,
quealmoçaríamos numrestaurante, epartimos logo. Na época, comer fora era um
verdadeiro luxo. No assento traseiro do carro, fui pensando no queescolheria, eao final
pedi bistec a lo pobre –meu pai meadvertiu queera umprato muito grande, queeu não
seria capaz decomê-lo, mas nessas escassas saídas era permitido pedir semlimitações.
Derepentereinou aqueleclima pesado emquesó sepodeconversar sobrea demora da
comida. Opedido demorava tanto quemeu pai decidiu queiríamos embora quando
chegassemos pratos. Protestei, ou quis protestar, ou agora penso quedeveria ter
protestado. Seépara ir, vamos já, disseminha mãecomresignação, mas meu pai nos
explicou quedaquelemodo os donos do restauranteperderiama comida, o queera umato
dejustiça, devingança.
Seguimos viagem, mal-humorados efamintos. Na verdade, eu não gostava deir à
represa. Não permitiamquemeafastassemuito, eeu meaborrecia ummonte, mas mesmo
assimtentava meentreter nadando umpouco, fugindo dos ratos queviviamentreas
pedras, observando os vermes comeremserragemeos peixes agonizaremna margem. Meu
pai seinstalava para ficar o dia inteiro pescando eminha mãepassava o dia olhando para
eleeeu via o meu pai pescar evia minha mãeolhando para eleeera muito difícil entender
queeles sedivertissemassim.
Na manhã dedomingo fingi estar resfriado porquequeria dormir umpouco mais. Eles
forampara as pedras depois demefazer incontáveis recomendações. Empouco tempo me
levantei eliguei o sompara escutar Raphael enquanto preparava o caféda manhã. Era
uma fita cassetecomsuas melhores canções queminha mãetinha gravado do rádio. Por
azar, numdescuido, apertei Recduranteuns segundos. Arruinei a fita justo no estribilho da
canção “Quésabenadie”.
Medesesperei. Depois depensar umpouco, julguei quea única solução era cantar por
cima do coro, emepus a praticar a fraseimpostando a voz deuma forma quepareceu
convincente. Finalmentedecidi gravar eescutei a fita várias vezes, achando, com
indulgência, queo resultado era adequado, embora mepreocupassea falta demúsica
naqueles segundos.
Meu pai dava bronca mas não batia. Nunca mebateu, não era seu estilo, preferia a
grandiloquência dealgumas frases quedeinício impressionavam, pois as dizia com
absoluta seriedade, como seatuasseno último capítulo deuma telenovela: vocême
decepcionou como filho, nunca vou perdoar o queacaba defazer, teu comportamento é
inaceitável etcétera.
Eu alimentava, mesmo assim, a ilusão dequealguma vez meespancaria atéquaseme
matar. Uma lembrança habitual deinfância éa iminência dessa surra quenunca chegou. A
viagemdevolta foi, por isso, angustiante. Logo quepartimos deregresso a Santiago eu
dissequeestava cansado deRaphael, queera melhor escutarmos Adamo ou JoséLuis
Rodríguez. Pensei quevocêgostassedeRaphael, respondeu minha mãe. As letras de
Adamo são melhores, disseeu, mas o resultado fugiu do meu controle, pois
involuntariamentedei lugar a uma discussão sobreseAdamo era melhor queRaphael, na
qual sechegou a mencionar Julio Iglesias, o queera absurdo sob todos os aspectos, porque
ninguémna minha família gostava deJulio Iglesias.
Para demonstrar a qualidadevocal deRaphael, meu pai decidiu colocar a fita eao
chegar a “Quésabenadie” tivequeimprovisar umdesesperado plano Bqueconsistia em
cantar muito alto desdeo começo da canção, calculando queao chegar ao refrão minha
voz soaria mais alto. Merepreenderamporqueeu cantava aos gritos, mas não
descobrirama adulteração da fita. Uma vez emcasa, porém, quando eu cavava uma
pequena cova junto à roseira para enterrar a fita cassete, medescobriram. Não tiveoutro
remédio senão contar-lhes toda a história. Rirammuito eescutarama canção várias vezes.
Ànoite, entretanto, apareceramno meu quarto para dizer quemecastigariamcom
uma semana semsair. Por quemecastigaramseriramtanto, perguntei, indignado.
Porquevocêmentiu, dissemeu pai.
NÃOPUDE, ENTÃO, COMPARECER AOENCONTROCOMCLAUDIA, mas no fimdas
contas foi melhor, porquequando lhecontei essa história ela deu tanta risada quepude
contemplá-la semcomplexos, esquecendo, dealgummodo, o vínculo estranho que
começava a nos unir.
Não consigo lembrar direito, porém, das circunstâncias emquevoltamos a nos ver.
Segundo Claudia foi ela quemeprocurou, mas eu melembro tambémdeter vagado longas
horas esperando vê-la. Seja como for, derepenteestávamos caminhando juntos denovo e
ela mepediu quea acompanhasseatésua casa. Dobramos várias esquinas eatémesmo
ela, na metadedeuma passagem, medissequevoltássemos atrás, como senão soubesse
ondemorava.
Chegamos, por fim, a uma vila desó duas ruas, a travessa Neftalí Reyes Basoalto ea
travessa Lucila Godoy Alcayaga. Parecepiada, mas éverdade. Boa partedas ruas deMaipú
tinha, ainda tem, esses nomes absurdos: meus primos, por exemplo, moravamna travessa
Primeira Sinfonia, contígua à Segunda eà Terceira Sinfonia, perpendiculares à CalleEl
Concierto, epróximas às travessas Opus Uno, Opus Dos, Opus Tres etcétera. Ou a própria
travessa ondeeu vivia, Aladino, quecruzava coma Odínea Ramayana eera paralela à
Lemuria –vê-sequeno final dos anos setenta havia gentequesedivertia muito escolhendo
os nomes das travessas ondedepois viriammorar nossas famílias, as famílias novas, as
famílias semhistória, dispostas ou talvez resignadas a habitar aquelemundo defantasia.
Moro na vila dos homens reais, disseClaudia naquela tardedo reencontro, fitando-me
nos olhos comseriedade. Moro na vila dos homens reais, dissedenovo, como seprecisasse
recomeçar a frasepara continuá-la: Lucila Godoy Alcayaga éo verdadeiro nomede
Gabriela Mistral, explicou, eNeftalí Reyes Basoalto, o nomereal dePablo Neruda.
Sobreveio umlongo silêncio querompi dizendo a primeira coisa quemeocorreu: morar
aqui deveser muito melhor queviver na travessa Aladino.
Enquanto dizia essa fraseidiota comlentidão, pudever suas espinhas, sua cara branca
eavermelhada, seus ombros pontudos, o lugar ondedeviamestar os peitos, mas no qual
por enquanto não havia nada, eseu cabelo quenão seguia a moda, pois não era curto,
ondulado ecastanho, esimcomprido, liso enegro.
JÁFAZIAUMTEMPOQUEESTÁVAMOS CONVERSANDOJUNTOÀgradequando ela me
convidou a entrar. Eu não esperava, porquenaquela época ninguémesperava isso. Cada
casa era uma espéciedefortaleza emminiatura, umreduto inexpugnável. Eu mesmo não
podia convidar amigos, porqueminha mãesempredizia queestava tudo sujo. Não era
verdade, porquea casa reluzia, mas eu pensava quetalvez houvessecerto tipo desujeira que
simplesmenteeu não distinguia, quequando fossegrandequemsabevissecamadas depó
ondeagora não via mais queo piso encerado emadeiras lustrosas.
Acasa deClaudia separecia bastantecoma minha: os mesmos horrendos cisnes de
ráfia, dois ou três chapeuzinhos mexicanos, várias vasilhas minúsculas deargila epanos
tecidos emcrochê. Aprimeira coisa quefiz foi perguntar ondeera o banheiro edescobri,
comassombro, quenaquela casa havia dois banheiros. Nunca tinha estado antes numa
casa ondehouvessedois banheiros. Minha ideia da riqueza era justamenteessa:
imaginava queos milionários tinhamcasas comtrês banheiros, comcinco banheiros, até.
Claudia medissequenão sabia ao certo sesua mãeiria gostar demever ali eeu
perguntei seera por causa do pó. Ela deinício não entendeu, mas escutou minha explicação
eentão preferiu meresponder quesim, quesua mãetambémnão gostava queela
convidasseamigos porqueachava quea casa estava sempresuja. Perguntei, então, sem
pensar muito, por seu pai. Meu pai não viveconosco, disse. Estão separados, eleviveem
outra cidade. Perguntei seela sentia falta dele. Claro quesim, medisse. Émeu pai.
Na minha sala deaula havia apenas umfilho depais separados, o quepara mimera
umestigma, a situação mais tristequeeu podia imaginar. Talvez voltema viver juntos
algumdia, disseeu, para consolá-la. Podeser, disseela. Mas não tenho vontadedefalar
sobreisso. Quero quea gentefaledeoutra coisa.
Tirou as sandálias, foi à cozinha evoltou comuma travessa cheia decachos deuva
preta, verdeerosada, o queachei estranho, pois emcasa nunca compravamuva detantas
variedades. Aproveitei para provar todas e, enquanto comparava os sabores, Claudia
matizava o silêncio comperguntas decortesia, muito gerais. Preciso tepedir uma coisa,
dissepor fim, mas vamos almoçar primeiro. Sequiser, teajudo a preparar a comida,
ofereci, embora nunca na vida tivessecozinhado ou ajudado a cozinhar. Já estamos
almoçando, disseClaudia, muito séria: estas uvas são o almoço.
Custava-lhechegar ao ponto. Derepenteparecia falar comdesenvoltura, com
naturalidade, mas tambémhavia emsuas palavras umbalbucio quetornava difícil
entendê-la. Realmentequeria ficar calada. Agora penso quemaldizia ter quefalar para que
eu entendesseo quequeria mepedir.
PRECISOQUEVOCÊCUIDEDELE, DISSEDEREPENTE, ESQUECENDOtoda estratégia.
Dequem?
Do meu tio. Necessito quevocêcuidedele–tá, respondi deimediato, muito diligente, e
numdécimo desegundo imaginei queRaúl padecia deuma doença gravíssima, uma
doença talvez mais gravequea solidão, equeeu devia ser uma espéciedeenfermeiro. Mevi
passeando pela vila, ajudando-o coma cadeira derodas, elogiado por essa conduta
solidária. Mas não era isso o queClaudia mepedia. Despejou a história deuma vez,
encarando-mefixamente, eeu assenti rápido mas demodo inoportuno –assenti rápido
demais, como queconfiando emquemais tardecompreenderia defato o queClaudia tinha
mepedido.
Oquepor fimentendi foi queClaudia esua mãenão podiamou não deviamvisitar
Raúl, ao menos não comfrequência. Era aí queeu entrava: tinha quevigiar Raúl –não
cuidar dele, mas estar atento às suas atividades eanotar numcaderno cada coisa queme
parecessesuspeita. Nos reuniríamos todas as quintas-feiras, às cinco da tarde, no
caprichoso ponto deencontro queela havia decidido, a confeitaria do supermercado, para
queeu entregassea Claudia o informeeconversassetambémsobrequalquer coisa, pois me
interessa muito saber como vocêestá, disseela, eeu sorri comuma satisfação na qual
tambémrespiravamo medo eo desejo.
COMECEILOGOAESPIAR RAÚL. ERAUMTRABALHOFÁCIL ECHATO, ou talvez muito
difícil, porqueeu procurava às cegas. Apartir deminhas conversas comClaudia eu
esperava vagamentequeaparecessemhomens silenciosos deóculos escuros, chegando em
automóveis estranhos, à meia-noite, mas nada disso acontecia na casa deRaúl. Sua rotina
não havia mudado: saía evoltava emhoras fixas, atendo-seaos horários comerciais, e
cumprimentava comumrígido eamável gesto decabeça queexcluía toda possibilidadede
diálogo. Eu não queria, emtodo caso, falar comele. Só esperava quefizessealguma coisa
anormal, alguma coisa queeu pudessecontar à sua sobrinha.
Eu chegava a tempo eatéadiantado aos encontros comClaudia, mas ela sempreestava
ali, dianteda vitrinedos bolos. Era como sepassasseo dia todo olhando aqueles bolos.
Parecia temer quenos vissemjuntos epor isso toda vez fingia queo encontro era casual.
Caminhávamos pelo supermercado olhando os produtos comatenção, como serealmente
estivéssemos fazendo compras, esaíamos apenas comdois iogurtes queabríamos ao fim
deuma rota ziguezagueantequecomeçava na praça eseguia por ruas secundárias atéo
Templo deMaipú. Só quando nos sentávamos na grandeescadaria do templo ela sesentia
segura. Os poucos fiéis queapareciamàquela hora passavamcoma cabeça baixa, como
queseantecipando às rezas ou às confissões.
Mais deuma vez eu quis saber por quetínhamos quenos esconder eClaudia selimitava
a dizer quedevíamos ser cuidadosos, queas coisas poderiamdar errado. Claro queeu não
sabia o queera quepodia dar errado, mas àquela altura já estava acostumado às
respostas imprecisas.
Uma tarde, porém, levado por umimpulso, eu lhedissequesabia a verdade: quesabia
queos problemas deRaúl estavamrelacionados como fato deeleser democrata-cristão, e
ela soltou uma gargalhada longuíssima, excessiva. Arrependeu-seemseguida. Chegou
perto, pôs as mãos cerimoniosamentesobremeus ombros eatépensei quefossemebeijar,
mas não era isso, óbvio –meu tio não édemocrata-cristão, disseela, comvoz tranquila e
lenta.
Então perguntei seeleera comunista eela guardou umsilêncio pesado. Não posso te
dizer mais nada, respondeu por fim. Não temimportância. Vocênão precisa saber tudo
para fazer bemo seu trabalho –decidiu, derepente, seguir por essa linha, efalou muito e
commuita rapidez: dissequeela entenderia seeu não quisesseajudá-la equeseria melhor
quedeixássemos denos ver. Como supliquei quecontinuássemos, ela pediu quedali em
dianteeu meconcentrassesimplesmenteemobservar Raúl.
PARAMIMUMCOMUNISTAERAALGUÉMQUELIAOJORNAL ERECEBIAemsilêncio a
zombaria dos outros –pensava emmeu avô, pai do meu pai, quesempreestava lendo o
jornal. Uma vez lheperguntei seo lia inteiro eo velho respondeu quesim, queo jornal era
para ser lido inteiro.
Tinha tambémuma cena violenta na memória, umdiálogo, numferiado nacional, na
casa dos meus avós. Estavameles eseus cinco filhos à mesa principal eeu commeus primos
à chamada mesa dos pequenos, quando meu pai dissea meu avô, ao final deuma
discussão, quasegritando, cale-sevocê, velho comunista, edeinício todos ficaramquietos,
mas pouco depois começarama rir. Atéa vovó eminha mãe, eatéumdos meus primos, que
comcerteza não entendia a situação, tambémriram. Não só riamcomo repetiam, em
franco tomdezombaria: velho comunista.
Achei quemeu avô tambémriria; queera umdaqueles momentos libertadores emque
todo mundo seentregava às gargalhadas. Mas o velho semantevemuito sério, emsilêncio.
Não disseuma palavra. Tratavam-no mal ena época eu não sabia ao certo seelemerecia
isso.
Anos mais tardeeu soubequeelenão tinha sido umbompai. Passou a vida perdendo
no jogo todo o seu ordenado deoperário evivia do trabalho desua mulher, quevendia
verduras, lavava ecosturava. Meu pai cresceu coma obrigação deir buscá-lo nos cortiços,
deperguntar por elesabendo que, no melhor dos casos, o encontraria abraçado a uma
garrafa.
VOLTAMOS ÀS AULAS ETINHAMTROCADOAPROFESSORACHEFE, a senhorita
Carmen, o queagradeci detodo coração. Tínhamos passado três anos comela, eagora
penso quenão era má pessoa, mas meodiava. Meodiava por causa da palavra agulha,
quepara ela não existia. Para ela a palavra correta era algulha. Não sei muito bempor
que, umdia meaproximei como dicionário edemonstrei queela estava equivocada. Me
encarou compânico, engoliu saliva eassentiu, mas a partir deentão deixou degostar de
mim, eeu dela. Não deveríamos odiar a pessoa quenos ensinou, bemou mal, a ler. Mas eu
a odiava, ou melhor, odiava o fato deela meodiar.
Oprofessor Morales, emcompensação, gostou demimdesdeo começo, eeu confiava
neleo bastantepara perguntar numa manhã, enquanto caminhávamos atéo ginásio para
a aula deeducação física, seera muito graveser comunista.
Por quevocêestá meperguntando isso, disseele. Acha queeu sou comunista?
Não, respondi. Tenho certeza dequeo senhor não écomunista.
Evocêécomunista?
Eu sou ummenino, disseeu.
Mas seteu pai fossecomunista talvez vocêtambémfosse.
Não acho, porquemeu avô écomunista emeu pai não.
Eo queéo teu pai?
Meu pai não énada, respondi comfirmeza.
Não ébomquevocêfalesobreessas coisas, eledissedepois demefitar por umtempo.
Só o queposso tedizer équevivemos nummomento emquenão ébomfalar sobreessas
coisas. Mas algumdia poderemos falar disso edetudo.
Quando a ditadura terminar, disseeu, como quecompletando uma frasenumcontrole
deleitura.
Olhou para mimrindo, fez umafago no meu cabelo. Começamos comdez voltas na
quadra, eledissenumgrito, emepus a trotar bemdevagar enquanto pensava
confusamenteemRaúl.
COMOTÍNHAMOS QUERECUPERAR OS DIAS PERDIDOS PELOTERREMOTO, a jornada
deaulas era longuíssima. Eu voltava para casa só meia hora antes deRaúl, razão pela
qual a espionagemsetornava perigosamenteinútil. Decidi quedevia entrar, quedevia me
aventurar commais decisão, fazer melhor o meu trabalho.
Uma noitepassei pela mureta ecaí sobreas alfenas. Foi umtombo terrível. Raúl saiu
emseguida, muito assustado. Ao mever ali meajudou emedissequeeu não devia fazer
aquilo, mas queentendia, queera culpa sua. Permaneci firme, semsaber do queeleestava
falando, mas logo voltou comuma bola detênis. Seeu soubessequeera tua, teria jogado
no teu jardimda frente, medisse, eagradeci.
Pouco tempo depois escutei, comnitidez, queRaúl conversava comoutro homem. As
vozes soavampróximas, deviamestar no cômodo contíguo ao meu quarto. Nunca havia
ruídos naquelecômodo, embora eu costumasse, por pura rotina, colar a orelha a umcopo
eficar à escuta. Não consegui entender o quefalavam. Só notei quefalavampouco. Não era
uma conversa fluente. Era o tipo deconversa quesedá entregentequeseconhecemuito ou
muito pouco. Gentequeestá acostumada a conviver ou quenão seconhece.
Na manhã seguintemelevantei às cinco emeia eesperei compaciência atécomprovar
queo visitantecontinuava lá. OFiat 500 deRaúl arrancou na hora desempre. Trepei
temerariamentena janela para comprovar queeleia sozinho. Fingi uma dor deestômago e
medeixaramficar emcasa. Escutei o silêncio por umas duas horas atéquepercebi os
encanamentos. Ohomemdevia estar no chuveiro. Decidi mearriscar. Mevesti, joguei a
bola na casa deRaúl etoquei a campainha várias vezes, mas o homemnão saiu. Fiquei
esperando, já semchamar. Vi quando elesaía, seembrenhava pela Odín, demodo que
corri pela Aladino para dar a volta eencontrá-lo defrente. Eu o detiveedissequeestava
perdido, quepor favor meajudassea voltar para casa.
Ohomemmeolhou contendo o aborrecimento, mas meacompanhou. Quando
chegamos, não fez alusão ao fato deter passado a noitena casa deRaúl. Agradeci enão tive
mais escolha: perguntei seeleconhecia Raúl eelemerespondeu queera seu primo, que
morava emPuerto Montt, quehavia sehospedado ali porquetinha quefazer uns trâmites
emSantiago. Sou o vizinho do Raúl, eu disse. Atélogo, vizinho do Raúl, medisseo homem,
epartiu muito depressa, quasecorrendo.
ÉPOSSÍVEL, DISSECLAUDIA, PARAMINHASURPRESA, QUANDOlhecontei sobrea
presença daqueleestranho. Era possível queRaúl tivesseumprimo emPuerto Montt? Nesse
caso, esseprimo não seria parentedeClaudia?
Éuma família muito grandea nossa, disseClaudia, ehá muitos tios no sul queeu não
conheço. Mudou deassunto tranquilamente.

Passaramoutros cinco homens nos meses seguintes pela casa deRaúl eemtodas as vezes
Claudia semostrou impassível dianteda notícia. Mas sua reação foi muito distinta quando
contei queelehavia hospedado ali uma mulher, enão por uma noite, como era habitual,
mas simpor duas noites seguidas. Talvez tambémvenha do sul, eu disse. Podeser,
respondeu, mas era evidentequeestava surpresa, eatéaborrecida.
Podeser uma paquera. Talvez Raúl já não esteja sozinho, disseeu.
Sim, respondeu, depois deuminstante. Raúl ésolteiro, podeperfeitamenteter uma
paquera.
Detodo modo, mepediu, quero quevocêinvestiguetudo o quepuder sobreessa possível
paquera.
Medeu a impressão dequeseesforçava para não chorar. Fiquei olhando-a deperto,
atéqueela sepôs depé. Vamos entrar no Templo, disse. Molhou os dedos na pia deágua
benta para refrescar o rosto. Ficamos depéjunto a uns enormes candelabros dos quais
caía o espermacetedas velas novas ou daquelas já a ponto deseconsumir queas pessoas
levavampara pedir milagres. Claudia pôs as mãos emcima das chamas, como sefizesse
frio, untou as pontas dos dedos na cera efez gestos divertidos para persignar-secomos
dedos manchados. Não sabia persignar-se. Eu lheensinei.
Sentamos no primeiro banco. Eu olhava comobediência emdireção ao altar,
enquanto Claudia sedetinha nos lados ereconhecia uma a uma as bandeiras que
flanqueavama Virgendel Carmen. Perguntou seeu sabia por queaquelas bandeiras
estavamali. São as bandeiras da América, respondi. Sim, mas por queestão aqui? Não sei,
respondi.
Tomou minha mão emedissequea bandeira mais linda era a da Argentina. Qual éa
mais linda para você, perguntou, eeu ia dizer a dos Estados Unidos, mas por sortefiquei
quieto, pois emseguida ela dissequea bandeira dos Estados Unidos era a mais feia, uma
bandeira verdadeiramentehorrível, eeu acrescentei queestava deacordo, quea bandeira
dos Estados Unidos era mesmo asquerosa.
DURANTESEMANAS ESPEREI, SEMSORTE, QUEAMULHER VOLTASSE. Apareceu, por
fim, numa manhã desábado. Era uma menina, na verdade. Calculei quetivessemais ou
menos dezoito anos. Era difícil quefossenamorada deRaúl.
Passei horas tentando escutar o queela eRaúl conversavam, mas trocavamapenas
algumas frases quenão consegui distinguir. Pensei queficaria para pernoitar, mas ela
partiu na mesma tarde. Eu a segui, absurdamentecamuflado comumbonévermelho. A
mulher caminhava a passo rápido emdireção à parada deônibus, euma vez ali, a seu
lado, eu quis falar comela, mas a voz não mesaiu.
Omicro-ônibus parou etivequedecidir, emquestão desegundos, seeu também
subiria. Àquela altura eu já viajava sozinho demicro-ônibus, mas só o trajeto curto, dedez
minutos, atéo colégio. Subi eviajei duranteumtempo longuíssimo, uma hora emeia de
percurso temerário, grudado no assento imediatamenteatrás do dela.
Nunca tinha ido tão longedecasa ea impressão poderosa quea cidademeproduziu é
dealguma forma a quedevez emquando ressurge: umespaço semforma, aberto mas
tambémenclausurado, compraças imprecisas equasesemprevazias, compessoas
caminhando por calçadas estreitas, concentradas no chão comuma espéciedemudo
fervor, como sesó pudessemsedeslocar à custa deumesforçado anonimato.
Anoitecaía sobreaquelepescoço proibido queeu olhava cada vez mais concentrado,
como sefixar a vista meliberasseda fuga; como seolhar intensamentemeprotegesse.
Àquela altura o micro-ônibus começava a seencher euma senhora meencarou coma
intenção dequeeu lhecedesseo assento, mas eu não podia mearriscar a perder meu lugar.
Decidi fingir os gestos deummenino comretardamento mental, ou o queeu achava que
eramos gestos deummenino comretardamento mental, ummenino queolhava abobado
para a frente, completamenteabsorto nummundo imaginário.
Asuposta namorada deRaúl desceu derepenteeeu quasefiquei dentro do ônibus.
Cheguei à porta comdificuldadeeà força decotoveladas. Ela meesperou emeajudou a
descer. Eu continuava a memover como ummenino retardado, embora ela soubessemuito
bemqueeu não era ummenino retardado esimo vizinho deRaúl, quea seguira, que
parecia decidido a segui-la a tardetoda. Ainda assim, emseu olhar não havia reprovação,
esimuma absoluta serenidade.
Meaventurei, cominútil prudência, por umlabirinto deruas quemepareciamgrandes
eantigas. Devez emquando ela sevirava, mesorria eapertava o passo, como sesetratasse
deumjogo enão deumassunto muito sério. Derepentepassou a andar rápido eem
seguida selançou, semmais nemmenos, a correr, eestivea ponto deperdê-la, mas vi, à
distância, queentrava numa espéciedearmazém. Subi numa árvoreeesperei durante
vários minutos queela por fimsaísseeacreditassequeeu tinha ido embora. Caminhou
então apenas meia quadra atéuma casa quedevia ser a sua. Esperei queentrasseeme
aproximei. Agradeera verdeea fachada, azul, eisso mechamou a atenção, pois nunca
antes tinha visto essa combinação decores. Anotei o endereço emmeu caderno, contentede
ter chegado numdado tão preciso.
Foi bemdifícil retornar à rua ondedevia tomar o micro-ônibus devolta. Mas me
lembrava claramentedo nome: Tobalaba. Voltei para casa à uma da madrugada eo medo
nemsequer mepermitiu esboçar uma explicação convincente. Meus pais tinhamido à
polícia eo acontecimento tinha seespalhado entreos vizinhos. No fim, eu dissequetinha
adormecido numa praça equeacabara deacordar. Acreditaramemmimeatétivequeir
depois a ummédico para queexaminassemeus problemas desono.
Encorajado por minhas descobertas, acudi ao encontro da quinta-feira como firme
propósito decontar a Claudia tudo o quesabia sobrea suposta namorada deRaúl.
MAS AS COISAS SEPASSARAMDEOUTROMODO. CLAUDIACHEGOU ao encontro
atrasada eacompanhada. Comumgesto amável, meapresentou a Esteban, umsujeito de
cabelo comprido elouro. Dissequeeu podia confiar nele, queestava inteirado detudo.
Fiquei surpreso, muito incomodado, semmeatrever a perguntar seera seu namorado ou
primo ou o quê. Tinha seguramentedezesseteou dezoito anos: pouco mais queClaudia,
muito mais queeu.
Estebancomprou três pães eumquarto demortadela no supermercado. Não fomos ao
Templo. Ficamos na praça comendo. Osujeito falava pouco, mas naquela tardefalei ainda
menos. Não contei a Claudia o quetinha averiguado, talvez por vingança, pois não estava
preparado para o queacontecia ali, não era capaz deentender por quealguémpodia se
inteirar do queeu fazia comClaudia, por queera lícito queela compartilhasseo segredo.
Meportei como o menino queera efaltei aos encontros seguintes. Pensei queera isto o
quedeveria fazer: esquecer Claudia. Mas ao cabo dealgumas semanas,
surpreendentemente, recebi uma carta dela. Chamava-mecomurgência, pedia quefosse
vê-la a qualquer hora, dizia quenão importava sesua mãeestivesseemcasa.
Eramquasenoveda noite. Magali abriu a porta eperguntou meu nome, mas era
evidentequejá o sabia. Claudia mecumprimentou comefusão edisseà mãequeeu era o
vizinho deRaúl eela fez gestos exagerados dealegria. Como vocêcresceu, ela medisse, não
tereconheci. Comcerteza fingiamos diálogos deuma apresentação eas perguntas quea
mulher medirigia eramtotalmenteestudadas. Meio aturdido pela situação, perguntei se
ela ainda era professora deinglês, eela respondeu quesim, sorrindo, quenão era fácil
deixar deser, da noitepara o dia, professora deinglês.
Pedi a Claudia quemecontasseo quehavia acontecido: dequemaneira as coisas
tinhammudado para queagora minha presença fossenatural. Équeas coisas estão
mudando pouco a pouco, disseela: muito lentamenteas coisas estão mudando. Já não é
necessário quevocêespioneRaúl, podevir mever quando quiser, mas não émais
necessário quefaça nenhuminforme, insistiu, enão tiveoutro remédio senão ir embora
remoendo umprofundo desconcerto.
FUIMAIS UMAOU DUAS VEZES, MAS VOLTEIATOPAR COMESTEBAN. Nunca soubese
era ou não o namorado deClaudia, mas detodas as maneiras eu o detestava. Eentão deixei
deir eos dias passaramcomo uma rajada devento. Durantemeses ou talvez duranteum
ano meesqueci deClaudia. Atéqueuma manhã vi Raúl carregando uma caminhonete
branca comdezenas decaixas.
Foi tudo muito rápido. Meaproximei, perguntei para ondeeleia, eelenão me
respondeu: meolhou comumgesto neutro eevasivo. Fui correndo à casa deClaudia.
Queria avisá-la eenquanto corria descobri quetambémqueria queela meperdoasse. Mas
Claudia já não estava. Foramembora faz uns dias, dissea vizinha. Não sei para onde,
como vou saber?, disse. Para outra vila, suponho.
2.
A LITERATURA DOS PAIS
POUCOAPOUCOAVANÇONOROMANCE. PASSOOTEMPOPENSANDOemClaudia
como seela existisse, como seela tivesseexistido. No começo eu duvidava atédo seu nome.
Mas éo nomedenoventa por cento das mulheres da minha geração. Faz todo sentido quese
chameassim. Alémdo mais, temumsomagradável. Claudia.
Gosto muito quemeus personagens não tenhamsobrenomes. Éumalívio.

•••

Umdia desses essa casa não vai mais mereceber. Queria habitá-la denovo, ordenar os
livros, mudar os móveis delugar, arrumar umpouco o jardim. Nada disso foi possível.
Mas meajudam, agora, vários dedos demescal.
Àtardefalei, pela segunda vez emmuito tempo, comEme. Perguntamos pelos amigos
emcomum, eemseguida, mais deumano depois da separação, falamos dos livros queela
levou edos queesqueceu semquerer. Achei doloroso repassar, demaneira tão civilizada, a
lista deperdas, mas no final atémeanimei a pedir devolta os livros deHebeUhart ede
Josefina Vicens dequetanto sinto falta. Eu os li, contou. Por umsegundo pensei queela
mentia, apesar denunca ter mentido sobreessas coisas, nunca mentiu sobrenada, na
verdade. Nosso problema foi justamenteesse, quenão mentíamos. Fracassamos pelo
desejo deser honestos sempre.
Depois mecontou sobrea casa emquemora –umcasarão, na realidade, a umas vinte
quadras daqui, quedividecomduas amigas. Vocênão as conhece, medisse, ena verdade
não são amigas íntimas, mas fazemos umbomgrupo: mulheres detrinta falando
alegrementesobresuas frustrações. Eu lhedissequepodia ir vê-la elevar os livros deque
precisava. Respondeu quenão. Prefiro ir eu, umdia desses, depois do Natal. Assimvocême
serveumchá econversamos, disse.
Desdequenos separamos, acrescentou derepente, forçando ou buscando umtom
natural –desdequenos separamos fui para a cama comdois homens. Eu não estivecom
nenhum, respondi, fazendo graça. Então vocênão mudou muito, disseela, rindo. Mas
estivecomduas mulheres, disseeu. Averdadeéquefoi só uma. Menti, talvez para empatar.
Eno entanto não pudelevar o jogo adiante. Só a ideia deteimaginar comalguémé
insuportável, disseeu, efoi complicado, depois, preencher aquelesilêncio.
Eu melembro dequando ela sefoi. Supõe-sequeseja o homema deixar a casa.
Enquanto ela chorava eempacotava suas coisas, a única coisa quemeocorreu dizer foi esta
fraseabsurda: Supõe-sequeseja o homema deixar a casa. Dealguma maneira sinto,
ainda, queesteespaço édela. Por isso para mimétão difícil viver aqui.
Voltar a falar comela foi bometalvez necessário. Contei sobreo novo romance. Disse
queno começo avançava a passo firme, mas queaos poucos tinha perdido o ritmo ou a
precisão. Por quenão o escrevedeuma vez?, meaconselhou, como senão meconhecesse,
como senão tivesseestado comigo ao longo detantas noites deescrita. Não sei, respondi. E
na verdadenão sei mesmo.
Oqueacontece, Eme, penso agora, umpouquinho bêbado, équeespero uma voz. Uma
voz quenão éa minha. Uma voz antiga, romanesca, firme.
Ou então équeeu gosto deestar no livro. Équeeu prefiro escrever a já ter escrito. Prefiro
permanecer, habitar essetempo, conviver comesses anos, perseguir longamenteimagens
esquivas eexaminá-las comcuidado. Vê-las mal, mas vê-las. Ficar ali, olhando.

•••

Como era deesperar, passei o dia todo pensando emEme. Graças a ela encontrei a história
para esteromance. Deveter sido há cinco anos, morávamos havia pouco nesta casa.
Falávamos, ainda na cama, ao meio-dia, sobreanedotas deinfância, como fazemos
amantes quequeremsaber tudo, quebuscamminuciosamentena memória histórias
antigas para poder permutá-las, para queo outro tambémprocure: para encontrar-sena
ilusão dedomínio, deentrega.
Tinha ela seteou oito anos, estava no pátio comoutras meninas, brincando deesconde-
esconde. Estava ficando tarde, já era hora deentrar emcasa, os adultos as chamavam, as
meninas respondiamquejá iam–a brincadeira sealongava, os chamados eramcada vez
mais enérgicos, mas elas riamecontinuavambrincando.
Derepentesederamconta dequefazia umtempo quetinhamparado dechamá-las e
quejá era noitefechada. Acharamqueas estavamobservando, quequeriamlhes dar uma
lição, queagora eramos adultos quebrincavamdeseesconder. Mas não. Ao entrar na
casa, Emeviu queos amigos deseu pai choravamequesua mãe, afundada na poltrona,
olhava para umlugar indefinido. Escutavamas notícias no rádio. Falavamdeuma
operação policial-militar. Falavamdemortos emais mortos.
Muitas vezes aconteceu isso, medisseEmeaquela vez, há cinco anos. Nós, crianças,
entendíamos subitamentequenão éramos tão importantes. Quehavia coisas insondáveis
quenão podíamos saber nemcompreender.
Oromanceera o romancedos pais, pensei então, penso agora. Crescemos acreditando
nisso, queo romanceera dos pais. Maldizendo-nos etambémnos refugiando, aliviados,
nessa penumbra. Enquanto os adultos matavamou erammortos, nós fazíamos desenhos
numcanto. Enquanto o país sefazia empedaços, nós aprendíamos a falar, a andar, a
dobrar os guardanapos emforma debarcos, deaviões. Enquanto o romanceacontecia,
nós brincávamos deesconder, dedesaparecer.

•••

Emvez deescrever, passei a manhã tomando cerveja elendo Madame Bovary. Agora
penso queo melhor quefiz nestes anos foi beber muitíssima cerveja ereler alguns livros com
devoção, comestranha fidelidade, como seneles pulsassealgo próprio, uma pista sobreo
destino. Deresto, ler morosamente, ficar deitado na cama por longas horas sem
solucionar nunca a ardência nos olhos, éa desculpa perfeita para esperar a chegada da
noite. Eéisso o queespero, nada mais: quea noitecheguelogo.
Ainda melembro da tardeemquea professora sevoltou para o quadro negro e
escreveu as palavras prova, próxima, sexta-feira, Madame, Bovary, Gustave,
Flaubert, francês. Acada letra crescia o silêncio eno final só seouvia o tristechiado do giz.
Àquela altura já tínhamos lido romances longos, quasetão longos quanto Madame
Bovary, mas daquela vez o prazo era impossível: tínhamos menos deuma semana para
enfrentar quatrocentas páginas. Começávamos a nos acostumar a essas surpresas,
porém: acabávamos deentrar no Instituto Nacional, tínhamos onzeou dozeanos, ejá
sabíamos quedali emdiantetodos os livros seriamlongos.
Tenho certeza dequeaqueles professores não queriamnos entusiasmar, esimnos
desiludir, nos afastar para sempredos livros. Não gastavamsaliva falando sobreo prazer
da leitura, talvez porqueeles tivessemperdido esseprazer, ou nunca o tivessemsentido
realmente. Supõe-sequeerambons professores, mas na época ser bomera pouco mais do
queconhecer os manuais.
Naqueletempo já conhecíamos os truques, transmitidos degeração emgeração.
Ensinavam-nos a ser malandros eaprendíamos rápido. Emtodas as provas havia umitem
deidentificação depersonagens, queincluía meros personagens secundários: quanto
menos relevantefosse, maior a possibilidadedequenos perguntassempor ele, demodo
quememorizávamos os nomes comresignação etambémcoma alegria decultivar uma
pontuação segura. Era importantesaber queo jovemcoxo derecados sechamava
Hippolyteea criada, Félicité, equeo nomeda filha deEmma era BertheBovary.
Havia certa beleza no gesto, pois éramos então justamenteisso, personagens
secundários, centenas demeninos quecruzavama cidademal equilibrando as bolsas de
lona. Os moradores do bairro experimentavamo peso efaziamsemprea mesma piada:
parecequevocêleva pedras na mochila. Ocentro deSantiago nos recebia combombas de
gás lacrimogêneo, mas não levávamos pedras esimtijolos deBaldor ou Villeou Flaubert.
Madame Bovary era umdos poucos romances quehavia emcasa, demodo que
comecei a lê-lo naquela mesma noite, mas não tivepaciência comas descrições. Aprosa de
Flaubert simplesmentemefazia cabecear desono. Tivequeaplicar o método deurgência
quemeu pai tinha meensinado: ler as primeiras páginas eemseguida as últimas, esó
então, só depois desaber o começo eo final do romance, seguir lendo depressa. Sevocênão
consegueterminar, pelo menos sabequemera o assassino, dizia meu pai, queao que
parecesó tinha lido livros emquehavia umassassino.
Então a primeira coisa queeu soubedeMadame Bovary foi queo menino tímido ealto
do capítulo inicial morreria por fimequesua filha terminaria como operária numa
fábrica dealgodão. Sobreo suicídio deEmma eu já sabia, pois alguns pais alegaramqueo
tema do suicídio era fortedemais para meninos dedozeanos, ao quea professora
respondeu quenão, queo suicídio deuma mulher acossada pelas dívidas era umtema
muito atual, perfeitamentecompreensível por meninos dedozeanos.
Não avancei muito mais na leitura. Estudei umpouco comos resumos quemeu colega
decarteira tinha feito eno dia anterior à prova encontrei uma cópia do filmeno videoclube
deMaipú. Minha mãetentou seopor a queeu o visse, pois achava quenão era adequado
para minha idade, eeu tambémpensava, ou melhor, esperava isso, porqueMadame
Bovary mesoava como pornô, tudo o queera francês mesoava como pornô.
Ofilmeera, nessesentido, decepcionante, mas o vi duas vezes eenchi duas folhas de
papel ofício, frenteeverso. Mesmo assim, tirei 3,6, demaneira quedurantealgumtempo
associei Madame Bovary a esse3,6 eao nomedo diretor do filme, quea professora
escreveu entrepontos deexclamação junto à nota ruim: ¡Vincente Minnelli!

Agora procuro Bertheno romance. Recordava apenas o momento, no capítulo cinco da


segunda parte, emqueEmma olha Bertheepensa, perplexa: “Como essa criança éfeia”. Ea
terrível mortedeCharles, quando Berthepensa queseu pai está brincando: “Achando que
elequeria brincar, ela o empurrou suavemente. Elecaiu no chão. Estava morto”.
Gosto deimaginar Berthevagando pelo pátio enquanto sua mãeestá na cama,
convalescente–Emma escuta, deseu quarto, o ruído deuma carruagemeseaproxima com
esforço da janela para olhar a rua já deserta.
Gosto depensar emBertheaprendendo a ler. Primeiro éEmma quetenta ensiná-la.
Depois desua grandedesilusão, decidiu voltar à vida econverter-senuma mulher entregue
a ocupações piedosas. Bertheéainda muito pequena edecerto não entendeas lições. Mas
duranteaqueles dias ou semanas ou meses, sua mãetemtoda a paciência do mundo:
ensina sua filha a ler, remenda roupa para os pobres eatéconsulta obras religiosas.
Umtempo depois, Charles leva Berthepara dar umpasseio etenta ensiná-la a ler com
umlivro demedicina. Mas a menina não temo hábito do estudo, razão pela qual se
entristeceepõe-sea chorar.
Há uma passagememqueCharles pensa no futuro deBertheesemdúvida seequivoca
muito ao imaginá-la aos quinzeanos, passeando no verão comumgrandechapéu de
palha, tão bela como sua mãe. Vistas delongepareceriamirmãs, pensa Charles, satisfeito.

•••

Emeveio, por fim. Como presentedeNatal, medeu umpotedeímãs comcentenas de


palavras eminglês. Armamos juntos a primeira frase, quefoi, dealguma maneira,
oportuna:

only love & noise

Ela memostrou seus desenhos recentes eno entanto não aceitou queeu lessepara ela as
primeiras páginas do meu livro. Meolhou comumgesto novo, umgesto quenão sou capaz
deprecisar.
Éimpressionantecomo o rosto deuma pessoa amada –o rosto dealguémcomquemjá
vivemos, a quemjulgamos conhecer, talvez o único rosto queseríamos capazes de
descrever, quecontemplamos duranteanos, desdeuma distância mínima –ébonito, ede
certo modo, éterrível saber queatéesserosto podeliberar derepente, inesperadamente,
gestos novos. Gestos quetalvez nunca voltemos a ver.

•••

Na época não sabíamos os nomes das árvores ou dos pássaros. Não era necessário.
Vivíamos compoucas palavras eera possível responder a todas as perguntas dizendo: não
sei. Não achávamos queisso fosseignorância. Chamávamos dehonestidade. Depois
aprendemos, pouco a pouco, os matizes. Os nomes das árvores, dos pássaros, dos rios. E
decidimos quequalquer fraseera melhor queo silêncio.
Mas sou contra a nostalgia.
Não, não éverdade. Eu gostaria deser contra a nostalgia. Para ondequer queeu olhe
há alguémrenovando votos como passado. Recordamos canções quena verdadenunca
nos agradaram, voltamos a ver as primeiras namoradas, colegas decurso por quemnão
tínhamos simpatia, saudamos debraços abertos gentequerepudiávamos.
Meassombra a facilidadecomqueesquecemos o quesentíamos, o quequeríamos. A
rapidez comqueassumimos queagora desejamos ou sentimos algo diferente. Eao mesmo
tempo queremos rir das mesmas piadas. Queremos, julgamos ser denovo os meninos
abençoados pela penumbra.
Estou nessa armadilha, no romance. Ontemescrevi a cena do reencontro, quasevinte
anos depois. Gostei do resultado, mas às vezes penso queos personagens não deveriam
voltar a sever. Quedeveriampassar ao largo muitas vezes, caminhar pelas mesmas ruas,
talvez falar umcomo outro semsereconhecer, deumlado a outro do balcão.
Reconhecemos deverdadealguémvinteanos depois? Reconhecemos agora, a partir de
umindício luminoso, os traços definitivos, irremediavelmenteadultos, deuma cara
remota? Passei a tardepensando nisso, decidindo sobreisso.
Acho bonito quenão seencontrem. Seguir simplesmentesuas vidas, tão distintas, atéo
presente, eaproximá-las aos poucos: dois trajetos paralelos quenão chegama sejuntar.
Mas esseromancedevia ser escrito por outra pessoa. Eu gostaria delê-lo. Porqueno
romancequequero escrever eles seencontram. Necessito queseencontrem.

•••

Eles seapaixonam? Éuma história deamor?


Emepergunta eeu apenas sorrio. Chegou no meio da tarde, tomamos várias xícaras de
chá eescutamos umdisco inteiro dos Kinks. Pedi quemedeixasseler emvoz alta algumas
páginas do manuscrito edenovo ela não quis. Prefiro lê-las mais tarde, disseela. Estou
escrevendo sobrevocê, a protagonista temmuito devocê, disseeu, temerariamente. Mais
ummotivo, respondeu, sorrindo: prefiro lê-las mais tarde. Mas fico muitíssimo contente
quevocêtenha voltado a escrever, acrescentou. Gosto do queteacontecequando escreve.
Escrever tefaz bem, teprotege.
Meprotegedequê?
As palavras teprotegem. Vocêprocura frases, procura palavras, isso ésuperbom, disse
ela.
Depois mepediu mais detalhes sobrea história. Contei-lhemuito pouco, o mínimo. Ao
falar sobreClaudia voltei a duvidar deseu nome.
Ela meperguntou depois, meio debrincadeira, seos personagens ficamjuntos por
toda a vida. Não pudeevitar umsinal deaborrecimento. Respondi quenão: quevoltama se
ver já adultos eseenredampor umas semanas, talvez alguns meses, mas quedenenhuma
maneira ficamjuntos. Dissequenão poderia ser assim, quenunca éassim–nunca éassim
nos romances bons, mas nos ruins tudo épossível, disseEme, prendendo o cabelo com
nervosismo eafetação.
Fitei seus lábios partidos, suas bochechas, seus cílios curtos. Parecia imersa num
pensamento profundo. Depois foi embora. Não queria queela fosseainda. Mas foi. Levou a
sério a precaução. Estou deacordo. Tambémacho quenão ébomquevoltemos a morar
juntos, por ora. Queprecisamos detempo.
Tentei depois continuar escrevendo. Não sei muito bempor ondeavançar. Não quero
falar deinocência nemdeculpa: não quero mais do queiluminar alguns recantos, os
recantos ondeestávamos. Mas não estou seguro defazer isso bem. Sinto-mepróximo
demais daquilo queconto. Abusei dealgumas lembranças, saqueei a memória, etambém,
decerto modo, inventei demais. Estou denovo embranco, como uma caricatura do escritor
quecontempla impotentea tela do computador.
Eu não dissea Emeo muito quemecusta escrever semela. Melembro da sua cara de
sono, quando meaproximava dela tardeda noitepara ler apenas umparágrafo ou uma
frase. Ela escutava eassentia, ou então opinava, comprecisão: isto não seria assim, este
personagemnão responderia comestas palavras. Essetipo deobservação valiosa,
essencial.
Agora vou escrever comela denovo, penso. Esinto felicidade.

•••

Caminhei ontemà noitedurantehoras. Era como sequisessemeperder por alguma rua


nova. Meperder absoluta ealegremente. Mas há momentos emquenão podemos, não
sabemos nos perder. Ainda quetomemos sempreas direções erradas. Ainda quepercamos
todos os pontos dereferência. Ainda quesefaça tardeesintamos o peso do amanhecer
enquanto avançamos. Há temporadas emque, por mais quetentemos, descobrimos que
não sabemos, quenão podemos nos perder. Etalvez tenhamos saudadedo tempo emque
podíamos nos perder. Otempo emquetodas as ruas eramnovas.
Passo vários dias recordando a paisagemdeMaipú, comparando a imagemdaquele
mundo decasas geminadas, tijolos vazados episo laminado, comestas velhas ruas onde
moro há anos, estas casas tão diversas umas das outras –o tijolinho à vista, o parquê, a
aparência destas ruas nobres quenão mepertencemequeno entanto percorro com
familiaridade. Ruas comnomes depessoas, delugares reais, debatalhas perdidas e
vencidas, enão aquelas travessas defantasia, aquelemundo dementira emquecrescemos
rapidamente.

•••

Esta manhã vi, numbanco do ParqueIntercomunal, uma mulher lendo. Sentei defronte
para ver sua cara efoi impossível. Olivro absorvia o seu olhar epor instantes achei queela
sabia. Queerguer o livro daquela maneira –à estrita altura dos olhos, comambas as
mãos, comos cotovelos apoiados numa mesa imaginária –era sua forma deseesconder.
Vi sua testa branca eo cabelo quaselouro, mas nunca seus olhos. Olivro era seu
disfarce, sua prezada máscara.
Seus dedos longos sustentavamo livro como ramos delgados evigorosos. Me
aproximei por ummomento o bastantepara ver atémesmo suas unhas cortadas semrigor,
como seela tivesseacabado deroê-las.
Tenho certeza dequesentia minha presença, mas não baixou o livro. Seguiu
sustentando-o como quemsustenta o olhar.
Ler écobrir a cara, pensei.
Ler écobrir a cara. Eescrever émostrá-la.

•••

Hojevi La batalla de Chile, o documentário dePatricio Guzmán. Eu só conhecia uns


fragmentos, sobretudo da segunda parte, quepassaramuma vez, no colégio, já na
democracia. Melembro queo presidentedo Grêmio estudantil comentava as cenas ea cada
certo tempo parava a fita para nos dizer quever aquelas imagens era mais importanteque
aprender a tabuada.
Entendíamos, claro, o queo dirigentequeria nos dizer, mas detodo modo nos parecia
estranho o exemplo, pois seestávamos naquelecolégio era justamenteporquejá fazia
muitos anos quesabíamos a tabuada. Da última fileira do auditório alguéminterrompeu
para perguntar sever aquelas imagens era mais importantequeaprender a dividir com
decimais, eemseguida alguémperguntou seemvez dememorizar a tabela periódica
podíamos assistir muitas vezes àquelas imagens tão importantes. Ninguémriu, porém. O
dirigentenão quis responder, mas nos olhou comuma mistura detristeza eironia. Então
interveio umdelegado estudantil edisse: há coisas sobreas quais não sepodefazer piada.
Seentendemisso, podemcontinuar na sala.
Eu não melembrava ou não tinha visto a longa sequência deLa batalla de Chile quese
passa nos campos deMaipú. Operários ecamponeses defendemas terras ediscutem
rispidamentecomumrepresentantedo governo deSalvador Allende. Pensei queaquelas
podiammuito bemser as terras da travessa Aladino. As terras emquedepois apareceram
aquelas vilas comnomes defantasia ondevivemos nós, as famílias novas, semhistória, do
ChiledePinochet.

•••

Ocolégio mudou muito quando a democracia voltou. Na época eu acabava defazer treze
anos ecomeçava tardiamentea conhecer meus companheiros: filhos degenteassassinada,
torturada edesaparecida. Filhos dehomicidas também. Meninos ricos, pobres, bons,
maus. Ricos bons, ricos maus, pobres bons, pobres maus. Éabsurdo descrever as coisas
assim, mas melembro deter pensado mais ou menos dessa maneira. Lembro deter
pensado, semorgulho esemautocompaixão, queeu não era nemrico nempobre, quenão
era bomnemmau. Mas era difícil ser isso: nembomnemmau. Meparecia queisso, no
fundo, era ser mau.
Lembro deumprofessor dehistória, umdequemeu não gostava nemumpouco, no
terceiro ano do segundo grau, aos dezesseis anos. Certa manhã três ladrões quefugiamda
polícia serefugiaramno estacionamento do colégio eos policiais os seguirame
dispararamdois tiros para o alto. Assustados, deitamos no chão, porémuma vez passado
o perigo, ficamos surpresos ao ver queo professor chorava debaixo da mesa, comos olhos
apertados eas mãos nos ouvidos. Fomos buscar água etentamos fazer comqueele
bebesse, mas no final tivemos quejogá-la na sua cara. Eleconseguiu seacalmar aos
poucos enquanto lheexplicávamos quenão, queos milicos não tinhamvoltado. Quepodia
continuar a aula –não quero estar aqui, nunca quis estar aqui, dizia o professor, gritando.
Então sefez umsilêncio completo, solidário. Umsilêncio bonito ereparador.
Encontrei o professor dias depois, numrecreio. Perguntei-lhecomo estava, eele
agradeceu o gesto. Percebe-sequevocêsabeo queeu vivi, disseele, emsinal de
cumplicidade. Claro quesabia, todos sabíamos; tinha sido torturado eseu primo era
desaparecido político. Não acredito nesta democracia, disseele, o Chileéecontinuará
sendo umcampo debatalha. Perguntou seeu militava, respondi quenão. Perguntou por
minha família, eu dissequedurantea ditadura meus pais tinhamsemantido à margem. O
professor meencarou comcuriosidadeou comdesprezo –meencarou comcuriosidade,
mas senti queemseu olhar havia tambémdesprezo.

•••

Não escrevi nemli nada emPunta Arenas. Passei a semana inteira medefendendo do clima
econversando comnovos amigos. No avião devolta acabei viajando junto a duas senhoras
quemecontaramemdetalhes suas vidas. Tudo ia bematéqueperguntaramemqueeu
trabalhava. Nunca sei o queresponder. Antes dizia queera professor, o quegeralmenteme
conduzia a longos econfusos diálogos sobrea criseda educação no Chile. Por isso agora
digo quesou escritor, equando meperguntamquetipo delivros escrevo, respondo, para
evitar uma sériedeexplicações vacilantes, queescrevo romances deação, o quenão é
necessariamentementira, pois emtodos os romances, inclusivenos meus, acontecem
coisas.
Emvez demeperguntar quetipo delivros eu escrevo, porém, a mulher queia a meu lado
quis saber qual era meu pseudônimo. Respondi quenão tinha pseudônimo. Quejá fazia
muitos anos queos escritores não usavampseudônimos. Meencarou comceticismo ea
partir deentão seu interesseemmimfoi decaindo. Ao nos despedirmos medissequeeu não
mepreocupasse, quetalvez logo meocorresseumbompseudônimo.

•••

Faz algumtempo o poeta Rodrigo Olavarría veio mever. Nos conhecemos pouco, mas nos
uneuma espéciedeconfiança prévia erecíproca. Gosto queelemedêconselhos. Agora que
penso no assunto, houveumtempo emquetodo mundo dava conselhos. Avida consistia em
dar ereceber conselhos. Mas derepenteninguémquis mais conselhos. Era tardedemais,
tínhamos nos enamorado do fracasso, eas feridas eramtroféus, igual a quando éramos
crianças, depois debrincar entreas árvores. Mas Rodrigo dá conselhos. Eos escuta, os
pede. Está apaixonado pelo fracasso, mas também, ainda, por essas formas antigas e
nobres da amizade.
Passamos a tardeescutando Bill CallahaneEmmy theGreat. Foi divertido. Depois
contei a eleo diálogo no avião. Ficamos denos reunir umdia desses para escolher
pseudônimos. Vocêvai ver queencontraremos pseudônimos excelentes, disseele.
Rodrigo não selembra exatamentequando viu La batalla de Chile pela primeira vez,
mas conhecedecor o documentário, porqueemmeados dos anos oitenta, emPuerto Montt,
seus pais comercializavamcópias piratas para financiar atividades do Partido
Comunista. Aos oito ou noveanos, Rodrigo era o encarregado detrocar as fitas VHS e
encher decópias novas uma caixa depapelão. Eu passava a tardeinteira, disse, fazendo as
tarefas escolares eao mesmo tempo copiando o documentário, comquatro aparelhos de
vídeo edois televisores. As únicas pausas erampara ver Robotechno Canal 13.

•••

Muito resfriado, na cama há dias. Matizo a enfermidadecomaltas doses detelevisão. As


visitas deEmemeparecemsemprebreves demais. Voltei a lhepedir queescutasseas
primeiras páginas do romanceeela voltou a responder quenão. Sua desculpa foi pobree
realista: vocêestá resfriado, disse. Faz pouco tempo insisti eela voltou a senegar. Éóbvio
quenão quer lê-las, talvez porqueprefira não reatar esselado da nossa relação.
Enfim. Faz umtempo vi Bom dia, o belíssimo filmedeOzu. Quealegria enormesaber
queexisteessefilme, queposso vê-lo muitas vezes, queposso vê-lo sempre.

•••

Pela manhã meentreguei à estúpida tarefa deesconder meus cigarros pelos cantos da casa.
Eu os encontro, claro, mas fumo pouco, fumo menos, faço esforços para melhorar deuma
vez. Adoença, mesmo assim, está durando demais, edequando emquando penso que
peguei a gripesuína. Só está faltando a febre, sebemqueacabo deler na internet que
alguns enfermos não apresentamfebreentreos sintomas.
Ontemà noite, a sala deemergência da Clínica Indisa estava cheia dedoentes reais e
imaginários, mas espantosamentemeatenderamdeimediato. Havia uma explicação. Um
médico jovemedecabelo grisalho apareceu emedisse, apontando a etiqueta de
identificação emseu jaleco: somos família. Na verdadeéprovável quesejamos parentes em
algumgrau. Comprei teus livros, disseele, mas não os li –desculpou-sedeuma maneira
denegridora ou simplesmentecômica: não tenho tempo para ler nemsequer livros curtos
como os quevocêescreve, disse. Mas umano atrás falei devocêa meus parentes emCareno.
Perguntei ao doutor, para maravilhá-lo comminha ignorância, ondeficava Careno.
Fica na Itália, no norteda Itália, respondeu, escandalizado. Depois baixou os olhos,
como quemeperdoando. Perguntou o nomedemeu pai, demeu avô, demeu bisavô.
Respondi passivamentemas logo depois mecansei detanta pergunta elhedissequeaquela
conversa não tinha sentido –semdúvida minha família provémdealgumfilho bastardo,
disseeu: somos filhos dealgumpatrão quenão assumiu. Eu lhedissequeemminha família
somos todos morenos –eleémuito branco emais para o feio, comaquela brancura
higiênica queemalgumas pessoas meparecemeio irreal. Resignado a não encontrar em
mimsinais deboas origens, o doutor mecontou queviaja todos os anos a Careno, ondehá
muitíssima gentecomnosso sobrenome, pois historicamentea família foi bastante
endogâmica. Há muitos casamentos entreirmãos eentreprimos, razão pela qual a
genética não émuito boa, afirmou.
Nós não temos esseproblema, disseeu. No meu ramo da família respeitamos as
primas.
Eleriu ou tentou rir. Tivevontade, não sei por que, demedesculpar. Mas antes queeu
pudessedizer a frasequetentava formular, o doutor meperguntou pelos sintomas. Agora
tinha pressa. Dedicou apenas dois minutos à minha indisposição, negando
redondamente, como quemerepreendendo só por imaginar isso, queeu tivessea gripe
suína. Nemsequer mepassou sermão pela quantidadedecigarros quefumo.
Voltei para casa umpouco humilhado, comos antigripais desempre, pensando
naquelas famílias, na distanteCareno, emcomo seria meu rosto branco, descarado, ou no
desejo distante, umdia, deestudar medicina. Imagino aquelemesmo doutor, mais velho
queeu, na escola deMedicina respondendo comênfase, comenfado: não, não somos
parentes.
•••

Os pais abandonamos filhos. Os filhos abandonamos pais. Os pais protegemou


desprotegem, mas sempredesprotegem. Os filhos ficamou partem, mas semprepartem. E
tudo éinjusto, sobretudo o rumor das frases, porquea linguagemnos agrada enos
confunde, porqueno fundo queríamos cantar ou pelo menos assobiar uma melodia,
caminhar por umlado do palco assobiando uma melodia. Queremos ser atores que
esperamcompaciência o momento deentrar no palco. Eo público foi embora faz tempo.

•••

Hojeinventei esta piada:


Quando crescer vou ser umpersonagemsecundário, diz ummenino ao seu pai.
Por quê?
Por queo quê?
Por quevocêquer ser umpersonagemsecundário?
Porqueo romanceéteu.

•••

Escrevo na casa demeus pais. Fazia tempo queeu não vinha. Prefiro vê-los no centro, na
hora do almoço. Mas desta vez quis assistir commeu pai à partida entreChileeParaguai,
pensando tambémemrefrescar alguns detalhes do relato. Éa viagemdo romance, a
viagemdevolta queo protagonista faz, assustado, ao fimdaquela longa tardeemque
seguea suposta namorada deRaúl. Escrevi essa passagempensando numa viagemreal,
mais ou menos naquela idade.
Uma tarde, depois dealmoçar, eu ia sair quando meu pai medissequenão, queeu
devia ficar emcasa estudando inglês. Perguntei para quê, setinha boas notas eminglês.
Porquenão éprudentequevocêsaia tanto –usou essa palavra, prudente, lembro com
precisão. Eporquesou teu pai evocêdevemeobedecer, disse.
Achei aquilo brutal, mas estudei ou fingi queestudava. Ànoite, antes dedormir, ainda
aborrecido, dissea meu pai quetinha raiva deser criança eter quepedir permissão para
tudo, queseria melhor ser órfão. Disseisso só para chateá-lo, mas elemeolhou
dissimuladamenteefoi falar comminha mãe. Pelos gestos queela fazia enquanto se
aproximavamentendi quenão estavamdeacordo quanto à medida queiammeanunciar,
mas quedetodo modo eu teria quecumpri-la.
Antes defalaremcomigo chamaramminha irmã para quepresenciassea cena. Meu
pai sedirigiu a ela primeiro. Dissequetinhamseequivocado. Queatéentão tinham
acreditado queela era a irmã mais velha, mas queacabaramdedescobrir quenão. Por
isso vamos dar ao teu irmão as chaves da casa –vocêpoderá sair eentrar a hora quequiser,
a partir dehojevocêmanda emsi mesmo, dissepara mim, olhando nos meus olhos.
Ninguémvai teperguntar aondevai, nemsetemtarefas, nemnada.
Eassimfoi. Durantealgumas semanas desfrutei desses privilégios. Metratavamcomo
a umadulto, comapenas alguns traços deironia. Fui ficando desesperado. Dissea minha
mãequeumdia eu iria para muito longeeela merespondeu quenão esquecessedelevar
uma mala. Não levei uma mala, mas uma tardesimplesmentesubi nummicro-ônibus
qualquer, disposto a chegar ao fimdo itinerário, semplanos, muito angustiado.
Não cheguei ao final do trajeto, mas simbemperto do bairro ondemoro hoje. Aviagem
durou mais deuma hora e, ao voltar, merepreenderamduramente. Era o queeu queria.
Estava feliz derecuperar meus pais. Etambémtinha descoberto ummundo novo. Um
mundo do qual eu não gostava, mas queera novo.
Já não existemais essa linha demicro-ônibus. Viajei demetrô edeônibus echeguei a
Maipú via Pajaritos. Sempremesurpreendea quantidadederestaurantes chineses quehá
na avenida. Já faz tempo queMaipú éuma pequena grandecidadeeas lojas queeu visitava
quando criança agora são sucursais debancos ou franquias decadeias defast-food.
Antes dechegar fiz umrodeio para passar pela Lucila Godoy Alcayaga. Arua estava
fechada comumvistoso portão eletrônico, a exemplo da travessa Neftalí Reyes Basoalto.
Não tivevontadedepedir às pessoas quecirculavampara medeixar entrar. Queria ver a
casa deClaudia, quena verdadefoi, duranteumtempo, a casa deminha amiga Carla
Andreu. Medirigi então para a Aladino. Avila seencheu demansardas, desegundos pisos
quereluzemdemodo aberrante, detelhados ostentosos. Não émais o sonho deigualdade.
Ao contrário. Há muitas casas maltratadas eoutras luxuosas. Há algumas queparecem
desabitadas.
Tambémhavia mudanças na casa demeus pais. Fiquei impressionado sobretudo ao
ver na sala ummóvel novo para livros. Reconheci a enciclopédia do automóvel, o curso de
inglês da BBC eos velhos livros da revista Ercilla comsuas coleções deliteratura chilena,
espanhola euniversal. Na fileira do centro havia tambémuma sériederomances deIsabel
Allende, HernánRivera Letelier, Marcela Serrano, JohnGrisham, Barbara Wood, Carla
GuelfenbeinePablo Simonetti, emais perto do chão alguns livros queli quando criança,
para o colégio: O anel dos Löwensköld, deSelma Lagerlöf, Alsino, dePedro Prado,
Miguel Strogoff, deJulio Verne, El último grumete de la Baquedano, deFrancisco
Coloane, Fermina Márquez, deValéry Larbaud, emsuma. Eu gostaria detê-los
conservado, mas seguramenteos esqueci emalguma caixa quemeus pais encontraramno
sótão.
Foi inquietantever aqueles livros ali, ordenados às pressas nummóvel vermelho de
melamina, flanqueado por cartazes comcenas decaça ou deauroras euma surrada
reprodução deAs meninas queestá emcasa desdesempreequemeu pai ainda mostra às
visitas comorgulho: esteéo pintor, Velázquez, o pintor pintou a si mesmo, diz.
Graças a esta biblioteca tua mãesepôs a ler eeu também, embora vocêsaiba que
prefiro ver filmes, dissemeu pai, eligou a televisão bema tempo dever a partida.
Comemoramos os gols deMati Fernández eHumberto Suazo comuma jarra grandede
pisco sour eumpar degarrafas devinho. Bebi muito mais quemeu pai. Nunca o vi bêbado,
pensei e, não sei porquê, disseisso a ele. Eu sim, vi meu pai bêbado muitas vezes, respondeu,
derepente, comuma mal contida expressão detristeza.
Fiqueaqui, amanhã tua irmã vemalmoçar, disseminha mãe–vocênão podedirigir
nesseestado, acrescentou, elembrei-a do queela sempreesquece: quenão tenho carro. Ah,
disseela, éverdade, mais ummotivo para vocênão dirigir, riu. Gosto da risada dela,
sobretudo quando vemderepente, quando aconteceimprevistamente. Éserena edoceao
mesmo tempo.

Saí decasa há quinzeanos emesmo assimainda sinto uma espéciedepontada estranha ao


entrar nestecômodo queera meu eagora éuma espéciededespensa. No fundo há uma
estantecheia deDVDs eos álbuns defotos encurralados contra meus livros, os livros que
publiquei. Acho bonito queestejamaqui, junto às lembranças familiares.

•••

Umtempo depois, às duas da manhã, levantei para preparar caféemesurpreendi ao ver


minha mãena sala, bebendo matecomo jeito gracioso dos novatos. Éo quefaço agora
quando sinto vontadedefumar, disseela, comumsorriso. Fuma muito pouco, cinco
cigarros por dia, mas desdequemeu pai parou não permitemais queela fumedentro de
casa efaz frio demais para abrir a janela. Eu vou fumar, falei, vamos fumar. Meu pai não
podeimpedi-la defumar, já estão muito velhos para isso, disseeu.
Elemeproíbesomenteo cigarro. Eu lheproíbo muitas coisas, as gorduras saturadas,
o excesso deaçúcar. Éjusto.
Afinal eu a convenci enos encerramos numa espéciedecômodo pequeno que
construírampara instalar uma imensa máquina delavar nova. Fumou como gesto de
sempre, tão acentuadamentefeminino: o cigarro voltado para baixo, a mão mostrando a
palma, muito perto da boca.
Oqueéqueeu faço, dissederepente, seamanhã teu pai seder conta dequefumamos?
Diga quenão fumamos. Quesetemcheiro éporqueeu fumo muito. Tenho cheiro de
cigarro. Diga isso. Edepois desviea conversa, diga queestá preocupada porqueacha que
estou fumando muito, quevou morrer decâncer.
Mas seria mentira, disseela –não seria mentira, respondi, porquemais cedo ou mais
tardevou morrer decâncer mesmo.
Minha mãesoltou umsuspiro profundo emoveu a cabeça lentamente. Então medisse
algo queachei espantoso: nunca na vida alguémmefez rir tanto quanto você. Vocêéa
pessoa mais divertida queconheci, disse. Mas tambémésério eisso medesconcertava, me
desconcerta. Vocêfoi embora muito cedo eeu às vezes penso como seria a vida setivesse
ficado emcasa. Há filhos da sua idadequeainda moramcomos pais. Vejo-os passar de
repenteepenso emvocê.
Avida teria sido pior, disseeu. Eesses marmanjos são uns bebezões.
Sim. Éverdade. Evocêtemrazão. Avida seria pior comvocêaqui. Antes devocêir
embora eu eteu pai brigávamos muito. Mas desdequevocêsefoi não brigamos tanto. Já
quasenão brigamos.
Eu não esperava essesúbito momento dehonestidade. Fiquei pensando, abatido, mas
emseguida ela meperguntou, como seviesseao caso: vocêgosta deCarla Guelfenbein?
Não soubeo queresponder. Eu a acho bonita, sairia comela, mas não a levaria para a
cama, disseeu. Talvez lhedesseumbeijo, mas não iria para a cama comela, ou talvez fosse
para a cama comela, mas não a beijaria. Minha mãesefez deescandalizada. Ficava
bonita comessear.
Estou perguntando segosta do modo como ela escreve.
Não, mamãe. Não gosto.
Mas eu gostei do romancedela, El revés del corazón.
El revés del alma, corrigi.
Isso, El revés del alma. Meidentifiquei comos personagens, meemocionei.
Ecomo épossível queseidentifiquecompersonagens deoutra classesocial, com
conflitos quenão são, quenão poderiamser os conflitos da sua vida, mamãe?
Eu falava sério, demasiado sério. Sabia quenão precisava falar tão sério, mas não
podia evitar. Ela meencarou comummisto deirritação ecompaixão. Comumpouco de
enfado. Vocêseengana, medisse, por fim: talvez aquela não seja minha classesocial,
concordo, mas as classes sociais mudarammuito, todo mundo diz isso, eao ler esse
romanceeu senti quesim, queaqueles erammeus problemas. Entendo queteincomodeque
eu diga isso, mas vocêdeveria ser umpouco mais tolerante.
Achei estranhíssimo queminha mãeusasseessa palavra, tolerante. Fui dormir coma
voz deminha mãena cabeça, medizendo: vocêdeveria ser umpouco mais tolerante.

•••

Depois do almoço minha irmã insistiu emmetrazer para casa. Tirou a carteira há umano,
mas não faz mais deummês queaprendeu defato a dirigir. Mesmo assim, não parecia
nervosa. Onervoso era eu. Preferi meentregar, fechar os olhos eabri-los só quando o carro
pigarreava demais na mudança demarchas. Nos momentos desilêncio minha irmã
acelerava equando a conversa ganhava ritmo ela diminuía a velocidadea tal ponto queos
outros carros nos cobriamdebuzinadas.
Lamento o quesepassou comseu casamento, ela mediz umpouco antes desair da
estrada.
Isso aconteceu faz tempo, respondo.
Mas eu ainda não tinha dito.
Faz pouco tempo reatamos –minha irmã meolha entreincrédula efeliz. Explico que
por enquanto tudo éfrágil, tateante, mas quemesinto bem. Quequeremos fazer as coisas
melhor queantes. Quenão moraremos juntos ainda. Ela mepergunta por quenão contei a
meus pais. Por isso mesmo, respondo, ainda écedo para dizer a eles.
Depois mepergunta sevou escrever mais livros. Gosto da forma da pergunta, pois cabe
a possibilidadederesponder simplesmentequenão, quejá ésuficiente, eacredito nisso, às
vezes, ao final dealguma noiteruim: quederepentevou deixar deescrever, assimsemmais,
queemalgummomento recordarei como distanteo tempo emqueescrevia livros, do
mesmo modo queoutros recordama temporada emqueforamtaxistas ou venderam
dólares no Paseo Ahumada.
Mas respondo quesimeela mepedequelhecontedequetrata o livro novo. Não quero
responder, ela percebeevolta a perguntar. Digo quedeMaipú, do terremoto de1985, da
infância. Ela pedemais detalhes, eu os dou. Chegamos emcasa, eu a convido a entrar, ela
não quer, mas tampouco quer queeu desça. Sei muito bemo quevai meperguntar.
Eu apareço no seu livro?, diz, por fim.
Não.
Por quê?

Pensei nisso. Claro quepensei. Pensei muito nisso. Minha resposta éhonesta:
Para teproteger, digo.
Ela meolha descrente, magoada. Meolha comcara demenina.
Émelhor não ser personagemdeninguém, digo. Émelhor não aparecer emnenhum
livro.
Evocê, apareceno livro?
Sim. Mais ou menos. Mas o livro émeu. Não poderia deixar deaparecer. Ainda queme
atribuísseoutros traços euma vida muito distinta da minha, do mesmo jeito eu estaria no
livro. Já tomei a decisão denão meproteger.
Eestão nossos pais?
Sim. Há personagens parecidos comnossos pais.
Epor quevocênão protege, também, nossos pais?

Para essa pergunta não tenho resposta alguma. Suponho queeles simplesmentetêmque
comparecer. Receber menos do quederam, assistir a umbailedemáscaras sementender
muito bempor queestão ali. Nada disso sou capaz dedizer à minha irmã.
Não sei, éficção, digo a ela. Tenho queir, irmã. Não a chamo por seu nome. Chamo-a
deirmã, dou-lheumbeijo na bochecha edesço do carro.
Já emcasa fico muito tempo pensando emminha irmã, minha irmã mais velha.
Recordo estepoema deEnriqueLihn:

Ofilho único seria o mais velho dos irmãos


Eeleemsua orfandadetemumpouco
Disso queseentendepor mais velho
Como setambémeles tivessemmorrido
Seus impossíveis irmãos mais moços.
Ao escrever nos comportamos como filhos únicos. Como sesempretivéssemos sido
sozinhos. Às vezes odeio esta história, esteofício do qual já não posso sair. Do qual não vou
mais sair.

•••

Semprepensei quenão tinha verdadeiras lembranças deinfância. Queminha história


cabia numas poucas linhas. Emuma página, talvez. Eemletra grande. Já não penso isso.
Ofimdesemana emfamília meestragou o ânimo. Encontro consolo numa carta que
Kawabata escreveu a seu amigo Yukio Mishima em1962: “Diga sua mãeo quedisser, você
temuma escrita magnífica”.

Faz algumtempo tentei escrever umpoema, mas só consegui estes poucos versos:

Quando crescesseeu ia ser uma lembrança


Mas já estou cansado deseguir
Buscando erebuscando a beleza
Numa árvoremutilada pelo vento.

Oúnico verso quemeagrada éo primeiro:

Quando crescesseeu ia ser uma lembrança.


3.
A LITERATURA DOS FILHOS
SAÍDECASANOFINAL DE1995, POUCODEPOIS DEFAZER VINTEanos, mas desdea
adolescência desejava abandonar aquelas calçadas limpas demais, aquelas ruelas
tediosas demais emqueeu havia crescido. Buscava uma vida plena eperigosa ou talvez
simplesmentequisesseo quealguns filhos queremdesdesempre: uma vida sempais.
Morei empensões ou quartos pequenos etrabalhei emqualquer coisa enquanto
terminava a faculdade. Equando terminei a faculdadecontinuei trabalhando emqualquer
coisa, porqueestudei literatura, queéo queestudamas pessoas queterminam
trabalhando emqualquer coisa.
Anos depois, entretanto, já perto dos trinta, consegui umposto como professor e
consegui decerto modo meestabelecer. Ensaiava uma vida plácida edigna: passava as
tardes lendo romances ou vendo televisão durantehoras, fumando tabaco ou maconha,
bebendo cerveja ou vinho barato, escutando música ou não escutando nada, porqueàs
vezes permanecia longo tempo emsilêncio, como seesperassealgo, como seesperasse
alguém.
Foi então quecheguei, queregressei. Não esperava ninguém, não procurava nada,
mas uma noitedeverão, uma noitequalquer emquecaminhava a passos largos eseguros,
vi a fachada azul, a gradeverdeea pequena praça depasto ressecado bememfrente. É
aqui, pensei. Éaqui queeu estive. Disseisso emvoz alta, entremaravilhado eabsorto, eme
lembrei da cena comprecisão: a viagemdemicro-ônibus, o pescoço da mulher, o
armazém, a árvore, a angustianteviagemdevolta, tudo.
Pensei então emClaudia etambémemRaúl eemMagali; imaginei ou tentei imaginar
suas vidas, seus destinos. Mas derepenteas lembranças seapagaram. Por umsegundo,
semsaber por que, pensei quetodos estavammortos. Por umsegundo, semsaber por que,
mesenti imensamentesozinho.
Nos dias seguintes voltei ao lugar deforma quaseobsessiva. Premeditada ou
inconscientementedirigia meus passos emdireção à casa e, sentado na grama,
contemplava a fachada enquanto caía a noite. Acendiam-seprimeiro as luzes da rua emais
tarde, passadas as dez, iluminava-seuma janela pequena no segundo andar. Durantedias
o único sinal devida naquela casa era a luz levequeaparecia no segundo andar.
Uma tardevi uma mulher queabria o portão epunha para fora os sacos delixo. Me
pareceu umrosto familiar edeinício pensei quefosseClaudia, ainda quea imagemqueeu
conservava fossetão remota quea partir daquela lembrança era possível projetar muitos
rostos. Amulher tinha as maçãs do rosto deuma pessoa magra, mas havia engordado de
uma maneira talvez irremediável. Seu cabelo vermelho formava uma tela dura e
resplandecente, como setivesseacabado deser tingido. Eapesar desseaspecto chamativo
parecia incomodar-secomo mero fato dealguémolhar para ela. Caminhava como se
fixasseo olhar nas emendas do cimento.
Esperei vê-la denovo. Emalgumas tardes levava comigo umromance, mas preferia os
livros depoemas, porquemepermitiammais pausas para espiar. Sentia pudor, mas
tambémmedava vontadederir o fato devoltar a ser umespião. Umespião que, denovo,
não sabia bemo quequeria encontrar.
UMATARDEDECIDITOCAR ACAMPAINHA. AOVER AMULHER SEaproximar pensei, em
pânico, queeu não tinha umplano, quenemsequer sabia como meapresentar. Aos
balbucios, dissea ela quehavia perdido umgato. Ela meperguntou o nomedo gato, eu não
soubeo queresponder. Meperguntou como eleera. Eu dissequebranco, preto ecafé.
Então égata, dissea mulher.
Égato, respondi.
Seédetrês cores não podeser gato. Os gatos detrês cores são fêmeas, disseela. E
acrescentou quedequalquer maneira não tinha visto gatos perdidos no bairro
ultimamente.
Amulher ia seafastar quando eu disse, quasegritando: Claudia.
Quemévocê?, respondeu.
Eu disse. Dissequenos havíamos conhecido emMaipú. Quetínhamos sido amigos.
Ela meolhou demoradamente. Eu medeixei olhar. Éestranhíssima essa sensação. Ade
esperar ser reconhecido. Por fimela falou: já sei quemvocêé. Eu não sou Claudia. Sou
Ximena, a irmã deClaudia. Evocêéo menino quemeseguiu aquela tarde, Aladino. Assimte
chamava Claudia, ríamos muito quando ela selembrava devocê. Aladino.
Eu não sabia o quedizer. Entendia precariamentequesim, queXimena era a mulher
queeu havia seguido tantos anos atrás. Asuposta namorada deRaúl. Mas Claudia nunca
medissequetinha uma irmã. Sentia o peso, a necessidadedeencontrar alguma frase
adequada. Gostaria dever Claudia, disse, compouca voz.
Pensei quevocêestivesseprocurando umgato. Uma gata.
Sim, respondi. Mas pensei muitas vezes, nestes anos, naqueletempo emMaipú. Eeu
gostaria dever Claudia.
No olhar deXimena havia hostilidade. Ficou calada. Falei, improvisando
nervosamente, sobreo passado, sobreo desejo derecuperar o passado.
Não sei para quequer ver Claudia, disseXimena. Não creio quevocêcheguea entender
uma história como a nossa. Naqueletempo as pessoas procuravamoutras pessoas,
procuravamcorpos depessoas quehaviamdesaparecido. Comcerteza naqueles anos você
procurava gatinhos ou cachorrinhos, como agora.
Não entendi sua crueldade, mepareceu excessiva, desnecessária. Detodo modo,
Ximena anotou meu telefone. Quando ela vier, passo para ela, disse.
Equando vocêacha queela virá?
Aqualquer momento, respondeu. Meu pai está à beira da morte. Quando morrer,
minha irmã viajará desdea Ianquilândia para chorar sobreo cadáver deleepedir sua
parteda herança.
Mepareceu ridículo, falsamentejuvenil, isso dechamar os Estados Unidos de
Ianquilândia, eno mesmo momento pensei naquelediálogo comClaudia, no Templo de
Maipú, sobreas bandeiras. No fimdas contas seu destino estava naquelepaís que, quando
menina, ela desprezava, pensei, epensei tambémquedevia ir embora, mas não pudeevitar
uma última pergunta degentileza:
Como está o senhor Raúl?, perguntei.
Não sei como está o senhor Raúl. Deveestar bem. Mas meu pai está morrendo. Tchau,
Aladino, disseela. Vocênão entende, nunca vai entender nada, seu bocó.
VOLTEIACAMINHAR PELOBAIRROVÁRIAS VEZES, MAS OLHAVAAcasa delonge, não me
atrevia a chegar perto. Pensava comfrequência naquelediálogo amargo comXimena.
Suas palavras dealguma forma meperseguiam. Uma noitesonhei quemeencontrava com
ela no supermercado. Eu trabalhava promovendo uma cerveja nova. Ela passava como
carrinho cheio decomida para gatos. Meolhava deesguelha. Mereconhecia só queevitava
mecumprimentar.
Pensava tambémemClaudia, mas como sepensa numfantasma, como sepensa em
alguémquedealguma maneira, deuma forma irracional eno entanto muito concreta, nos
acompanha. Não esperava sua ligação. Era difícil imaginar sua irmã lhedando meu
número, contando sobreaquela visita intempestiva, sobrea estranha aparição deAladino.
Mas assimfoi: alguns meses depois daquela conversa comXimena, uma manhã bemcedo,
pouco antes das nove, Claudia metelefonou. Foi muito amável. Acho divertido que
voltemos a nos ver, disse.
Nos encontramos numa tardedenovembro, no Starbucks deLa Reina. Eu gostaria de
melembrar agora, comabsoluta precisão, decada uma desuas palavras eanotá-las neste
caderno, semmaiores comentários. Gostaria deimitar sua voz, aproximar uma câmera
dos gestos quefazia quando penetrava, semmedo, no passado. Gostaria queoutra pessoa
escrevesseestelivro. Queela, por exemplo, o escrevesse. Queestivesseagora mesmo, na
minha casa, escrevendo. Mas eu équedevo escrevê-lo eaqui estou. Eaqui vou ficar.
NÃOFOIDIFÍCIL TERECONHECER, DIZ CLAUDIA–PARAMIMtambémnão, respondo,
mas durantelongos minutos medistraio buscando o rosto quetenho na memória. Não o
encontro. Sea tivessevisto na rua não a teria reconhecido.
Vamos atéo balcão pegar o café. Não costumo ir ao Starbucks, fico surpreso ao ver
meu nomerabiscado no copo. Olho o copo dela, o nomedela. Não está morta, penso de
repente, comalegria: não está morta.
Ocabelo deClaudia agora écurto ea cara muito magra. Seus peitos seguemsendo
escassos esua voz parecea deuma fumante, embora fumesó no Chile–parecequenos
Estados Unidos já não permitemfumar empartealguma, digo eu, derepentecontentequea
conversa seja simplesmentesocial, rotineira.
Não éisso. Éestranho. EmVermont não medá vontadedefumar, mas chego no Chilee
fumo como uma louca, diz Claudia. Écomo seo Chiletivesseficado incompreensível ou
intolerável semfumar.
Écomo seo Chiletivessesetornado intragável para você, digo, brincando.
Sim, diz Claudia, semrir. Ri depois. Dez segundos depois entendea piada.
Deinício o diálogo segueo rumo tímido deumencontro às cegas, mas às vezes Claudia
acelera ecomeça a falar emfrases longas. Atrama derepenteseesclarece: Raúl era meu
pai, diz, semmais preâmbulos. Mas sechamava Roberto. Ohomemquemorreu há três
semanas, meu pai, sechamava Roberto.
Eu a encaro espantado, mas não éumespanto emestado puro. Recebo a história como
sea esperasse. Porquea espero, decerto modo. Éa história da minha geração.
NASCICINCODIAS DEPOIS DOGOLPE, EM16 DESETEMBRODE1973, diz Claudia,
numa espéciedeestalo. Asombra deuma árvorecai caprichosamentesobresua boca, não
vejo o movimento deseus lábios. Isso meinquieta. Sinto quequemfala comigo éuma foto.
Recordo aquelebelo poema, “Os olhos desta dama morta mefalam”. Mas ela moveas
mãos ea vida volta a seu corpo. Não está morta, penso denovo, edenovo sinto uma alegria
imensa.
Magali eRoberto tiveramXimena quando eleacabava deentrar no curso deDireito na
Universidadedo Chile. Viveramseparados atéqueela ficou denovo grávida eentão, no
começo de1973, casaram-seedecidirammorar emLa Reina enquanto procuravamum
lugar próprio. Magali era mais velha. Tinha estudado inglês na licenciatura eera
partidária deAllende, mas não participava deummodo ativo. Roberto, ao contrário, era
ummilitantedisciplinado, embora tampouco estivesseemsituação derisco.
Os primeiros anos deditadura eles passaramapavorados eencerrados naquela casa
deLa Reina. Mas no final de1981 Roberto sereconectou: voltou a circular por alguns
lugares queatéentão havia evitado erapidamenteassumiu responsabilidades, deinício
muito menores, como informante. Acada manhã esperava seus contatos na escadaria da
Biblioteca Nacional, numbanco da Plaza deArmas eatéalgumas vezes no zoológico, e
depois voltava a trabalhar numescritório pequeno na CalleMoneda.
Pouco depois Magali alugou a casa emMaipú efoi morar ali comas meninas. Era a
melhor maneira deprotegê-las, longedetudo, longedo mundo. Roberto, enquanto isso,
corria riscos, mas mudava deaparência constantemente. No início de1984 convenceu seu
cunhado Raúl para quepartisseedeixassepara elesua identidade. Raúl saiu do Chilepela
cordilheira, para Mendoza, semumplano definido, mas comalgumdinheiro para
começar uma vida nova.
Foi então queRoberto conseguiu aquela casa na travessa Aladino. Denovo Maipú
aparecia como umlugar seguro, ondeera possível não despertar suspeitas. Morava muito
perto desua mulher edesuas filhas ea nova identidadelhepermitia vê-las mais amiúde,
mas era preciso cautela. As meninas quasenão viamo pai eClaudia nemsequer sabia que
elemorava perto. Soubenaquela noite, a noitedo terremoto.
APRENDER ACONTAR SUAHISTÓRIACOMOSENÃODOESSE. ISSOfoi, para Claudia,
crescer: aprender a contar sua história comprecisão, comcrueza. Mas éuma armadilha
colocar a coisa dessemodo, como seo processo terminasseumdia. Somenteagora sinto
queposso fazê-lo, diz Claudia. Tentei durantemuito tempo. Mas agora encontrei uma
espéciedelegitimidade. Umimpulso. Agora quero quealguém, quequalquer pessoa me
pergunte, do nada: quemévocê?
Eu sou o quepergunta, penso. Odesconhecido quepergunta. Esperava umencontro
carregado desilêncios, uma sériedefrases soltas quedepois, como fazia quando criança,
sozinho, teria quejuntar edecifrar. Mas não, pelo contrário: Claudia quer falar. Quando
vinha no avião, diz, contemplei as nuvens por umlongo tempo. Parecia queformavamum
desenho frágil edesconcertante, mas ao mesmo tempo reconhecível. Pensei nos esboços de
ummenino rabiscando uma folha ou nos desenhos queminha mãefazia enquanto falava
ao telefone. Não sei seaconteceu uma vez ou muitas vezes, mas tenho essa imagemdeminha
mãerabiscando papéis enquanto falava ao telefone.
Olhei depois, diz Claudia, as aeromoças quealisavamsuas saias enquanto
conversavameriamno fundo do corredor eo desconhecido quedormitava a meu lado com
umlivro deautoajuda aberto no peito. Eentão pensei quejá fazia dez anos queminha mãe
tinha morrido, quemeu pai acabava demorrer, eemvez dehonrar silenciosamenteesses
mortos eu experimentava a necessidadeimperiosa defalar. Odesejo dedizer: eu. Ovago, o
estranho prazer, até, deresponder: eu mechamo Claudia etenho trinta etrês anos.
Oqueela mais queria duranteaquela longa viagematéSantiago era queo
desconhecido queviajava a seu lado despertasseeperguntasse: quemévocê, como se
chama? Queria lheresponder comalegria leveerápida, coquetementeaté: Eu mechamo
Claudia etenho trinta etrês anos. Queria dizer, como nos romances: Eu mechamo
Claudia, tenho trinta etrês anos eesta éa minha história. Ecomeçar a contá-la, por fim,
como senão doesse.
Já énoite, continuamos sentados no terraço do café. Vocêestá cansado demeescutar,
ela diz derepente. Nego terminantementecoma cabeça. Mas depois sou eu quevou escutar
você, diz ela. Eprometo quequando estiver aborrecida deteescutar vocênemvai perceber.
Fingirei muito bem, diz ela, sorrindo.
CLAUDIACHEGOU QUANDOOVELÓRIOESTAVAAPONTODECOMEÇAR. Recebeu as
condolências comumtanto detédio: preferia os abraços silenciosos, semaquelas terríveis
frases deocasião. Depois do funeral desfez as malas naquelequeuma vez foi seu quarto.
Pensou quechegava emcasa, ao fimeao cabo; queo único espaço emquedefato havia se
sentido cômoda era aquelequartinho na casa deLa Reina, embora aquela estabilidade
tenha durado pouco tempo, apenas alguns anos, no final dos oitenta, quando sua avó, sua
mãeeseu pai estavamvivos.
Como seadivinhassecruelmenteaqueles pensamentos, como selevassemuito tempo
esperando para pronunciar essas frases, Ximena entrou derepenteedisse: Esta não émais
tua casa. Podeficar algumas semanas, mas não seacostumedemais. Eu cuidei demeu pai,
portanto a casa éminha, não vou vendê-la, nempensenisso. Eseria muito melhor sevocê
ficassenumhotel.
Claudia assentiu acreditando quecomos dias sua irmã recuperaria a calma, a
sensatez. Deitou na cama esepôs a ler umromance, queria esquecer aquelediálogo ácido,
queria deixar-selevar pela trama, mas era impossível, porqueo livro falava depais que
abandonamseus filhos ou defilhos queabandonamseus pais. Ultimamentetodos os livros
falamdisso, pensou.
Foi atéa sala, Ximena via televisão, sentou-sea seu lado. Gregory Housedizia alguma
coisa à doutora Cuddy, alguma brutalidade, eClaudia selembra queriram, emuníssono.
Então preparou chá eofereceu uma xícara a Ximena. Achou quesua irmã tinha a cara de
alguémquetinha sofrido não umdia ou uma semana, mas a vida toda. Perdão, disse
Ximena ao receber o chá: podeficar o tempo quequiser, mas não mepeça para vender a
casa. Éa única coisa quetenho, quetemos.
Claudia estevea ponto dedizer alguma fraseapropriada evazia: temos uma à outra,
vamos superar isso juntas, algo assim. Mas seconteve. Não teria sido verdade. Fazia muito
tempo quelhes custava conviver semseagredir. Depois falamos sobrea casa, disse.
CAMINHAMOS SEMRUMO, MAS SEILÁ, SIMPLESMENTEACOMPANHOClaudia
pensando quevamos a alguma parte. Já émuito tarde, o cinema está fechado, paramos
para olhar os cartazes dos filmes como sefôssemos umcasal embusca dediversão.
Ébommorar perto deumcinema, diz ela, enos entusiasmamos falando sobrefilmes –
descobrimos coincidências queno entanto, ainda bem, nos devolvemà vida, à juventude, à
infância. Porquejá não podemos, já não sabemos falar sobreumfilmeou sobreumlivro;
chegou o tempo emquenão importamos filmes nemos romances esimo momento emque
os vimos, os lemos: ondeestávamos, o quefazíamos, queméramos então.
Enquanto caminhamos emsilêncio penso naqueles nomes: Roberto, Magali, Ximena,
Claudia. Pergunto o nomedesua avó. Mercedes, respondeClaudia. Penso quesão nomes
sérios. AtéClaudia meparecederepenteumnomesério. Belo, simples esério. Pergunto em
queano morreu sua avó. Em1995, umano antes queminha mãe, diz Claudia. Efala
tambémdeoutro morto, alguémimportante, alguéma quemnunca conheceu: o primo de
seu pai, Nacho, o médico. Nacho foi preso enunca mais voltou. Roberto eMagali falavam
delecomo seestivessevivo, mas estava morto.
Contavam-lhe, quando menina, edepois, muitos anos depois, continuavamlhe
contando a história da febre, quenemsequer era propriamenteuma história –era um
momento, nada mais, o último, ainda queninguémsoubessequeseria o último: em1974,
quando Claudia tinha onzemeses devida, Nacho foi vê-la porquea menina estava doente
havia muitas horas. Afebrebaixou deimediato. Éummilagre, disseramos adultos, rindo,
naquela tarde. Eassimficou, como ummilagreligeiro, intranscendente: baixar a febrede
uma menina, nada mais, naquela tardeemqueo viramcomvida pela última vez –e
tampouco o virammorto, porqueseu corpo nunca apareceu.
Emminha família não há mortos, digo eu. Ninguémmorreu. Nemmeus avós, nem
meus pais, nemmeus primos, ninguém.
Vocênunca vai ao cemitério?
Não, nunca vou ao cemitério, respondo emuma frasecompleta –como seaprendessea
falar uma língua estrangeira emeexigissemcompletar a frase.
Tenho queir, prefiro voltar cedo à casa do meu pai –umgesto emseus lábios a desdiz
emseguida: não émais a casa deseu pai, agora édela edeXimena. Acompanho-a
desejando quemeconvidea umcafé, mas ela sedespedeno portão comumsorriso límpido
eumabraço.
No caminho devolta recordo uma cena na faculdade, uma tardeemquefumávamos
erva etomávamos umpegajoso vinho commelão. Eu tinha passado a tardejunto a um
grupo decompanheiros decurso trocando relatos familiares nos quais a morteaparecia
cominsistência opressiva. Detodos os presentes eu era o único queprovinha deuma
família semmortos, eessa constatação meencheu deuma estranha amargura: meus
amigos tinhamcrescido lendo os livros queseus pais ou seus irmãos mortos tinham
deixado emcasa. Mas na minha família não havia mortos nemhavia livros.
Sou o filho deuma família semmortos, pensei enquanto meus companheiros
contavamsuas histórias deinfância. Então melembrei intensamentedeClaudia, mas não
queria ou não meatrevia a contar sua história. Não era minha. Sabia pouco, mas pelo
menos sabia isto: queninguémfala pelos outros. Que, mesmo quequeiramos contar
histórias alheias, terminamos semprecontando nossa própria história.
QUERODEIXAR PASSAR UNS DIAS ANTES DECHAMÁ-LAEPROPOR-LHEquevoltemos a
nos ver. Mas estou impacienteelhetelefono logo. Ela não parecesurpresa. Ficamos denos
encontrar na manhã seguinte, no ParqueIntercomunal. Chego cedo, mas a vejo ao longe,
sentada numbanco, lendo. Está bonita. Vesteuma saia dejeans leveeuma velha camiseta
preta quediz emletras grandes eazuis: Love sucks.
Alguns colegiais queestão cabulando aula seaproximampara nos pedir fogo. Com
essa idadeeu não fumava, mediz Claudia. Eu sim, respondo. Conto quecomecei a fumar
aos dozeanos. Às vezes caminhava commeu pai eeleacendia umcigarro eeu lhedizia queo
apagasse, dizia quefazia mal, queia morrer decâncer. Fazia isso para despistar, para que
não suspeitassequeeu tambémfumava, eelemeolhava desculpando-seemeexplicava que
fumar era umvício, equeos vícios demonstravama fraqueza dos seres humanos. Eu me
lembro disso, era bomvê-lo derepenteconfessar-sefraco, vulnerável.
Quanto a mim, só vi meu pai fumar uma vez, diz Claudia enquanto nos perdemos pelo
parque. Umdia cheguei mais cedo do colégio eeleestava na sala conversando comminha
mãe. Mealegrei muito devê-lo. Vivia esperando vê-lo. Meu pai meabraçou etalvez o abraço
tenha sido longo, mas senti queelemesoltava rápido, como seaquelecontato fosse
tambémilícito. Então medei conta dequeeletinha umcigarro na mão direita. Isso me
desconcertou. Mepareceu quena verdadeera outra pessoa. Quenão era Roberto que
fumava, queera Raúl.
Tambémfumou na noitedo terremoto, commeu pai, relembro a ela. Acho quemeu pai
ofereceu umcigarro ao teu efumaramjuntos, conversando.
Sério?, pergunta Claudia, incrédula, enquanto arruma o cabelo. Não melembro
disso. Mas melembro devocê, diz.
Na verdade, vocêestava procurando alguémpara espiar seu pai, não é?
Não, diz ela. Eu não sabia quemeu pai morava ali. Asituação foi muito confusa. Na
noitedo terremoto eu estava sozinha comminha mãe, porqueXimena tinha ido para a casa
da minha avó. Na época Ximena passava muito tempo comminha avó, praticamente
morava comela. Uma mureta caiu eo janelão sequebrou, não podíamos dormir ali;
lembro quenos desesperamos, saímos andando eeu não sabia queprocurávamos o meu
pai equeeletambémnos procurava. Não sei setomamos caminhos diferentes ou se
passamos por perto. Quando por fimo vimos numa esquina, não pudeacreditar. Eu levava
uma lanterna pequena, debrinquedo, quetinhammedado depresenteuns anos antes. Me
lembro queiluminei a cara deleevi seus olhos umpouco úmidos. Nos abraçou enos levou
atéa fogueira. Antes deamanhecer partimos os três para a casa deLa Reina, no carro dele.
OFiat 500, digo eu.
OFiat 500, sim, responde.
Claudia seimpressionou muito ao descobrir queseu pai morava perto. Estava farta
dos segredos, eao mesmo tempo intuía perigos numerosos, perigos enormes eimprecisos.
Gostou demever ali, comos adultos, ao redor da fogueira –vocêestava quieto, observava.
Eu tambémera assim, silenciosa. Comecei a teseguir semumpropósito claro eaos poucos
fui construindo umplano.
Claudia tampouco sabia comprecisão o queespiava, o quequeria saber. Mas quando
seinteirou, por meu intermédio, dequeRoberto escondia gentena casa, não se
surpreendeu.
Evocêachava queseu pai tinha uma amante?
Não sabia o queachar. Quando conversamos perdi o controle, a verdadeéquesabia
muito pouco sobremeu pai. Depois achei quefosseXimena. Não calculei quevocêia segui-
la daquela maneira, mas medeu raiva saber queela via meu pai mais do queeu. Quehavia
umvínculo novo ediferenteentreeles. Ela emeu pai, dizíamos depois, meio na brincadeira,
eramos revolucionários. Minha mãeeeu, ao contrário, éramos as reacionárias.
Podíamos fazer graça comisso, mas detodo modo medoía eacho quemedói atéagora.
Quando Ximena viu queummenino, queeu a seguia, não tevedúvida dequeera sua
irmã quememandava. Claudia seviu obrigada a confessar queera ela quetinha me
pedido queespionasseseu pai. Repreenderam-na primeiro enfática edepois
amorosamente. Começou uma discussão na qual seculpavamuns aos outros. Eu não
queria ser a responsável por aqueles gritos, mas era, diz Claudia, eentão faz uma pausa
longa eno entanto vacilante. Durantedez minutos parecequeestá a ponto defalar enão se
decide. Diz, por fim: tenho muita vontadedetomar umsorvetedechocolate.
PASSAMOS UMASEMANASEMNOS VER, MAS TELEFONOPARAELAdiariamenteetenho
a impressão dequeClaudia espera por essas ligações. Uma noite, muito tarde, éela quem
meliga. Estou aqui fora, diz. Ximena meexpulsou. Diz quea casa édela. Quesou uma
estrangeira euma puta.
Claudia chora como semblanteexato dealguémqueseesforça por evitar o choro. Eu a
abraço, ofereço umchá eescutamos música enquanto penso nos motivos queXimena pôde
ter para chamá-la deputa. Quasepergunto isso mas prefiro mecalar. Digo-lhequepode
ficar comigo, quesó há uma cama mas posso dormir na poltrona. Será por uma noite, me
responde. Mas quero quedurmamos juntos. Assimminha irmã terá razão, serei uma puta.
Os olhos deClaudia seiluminam: recupera o riso, a beleza. Ofereço-lheuns pedaços de
queijo eabro uma garrafa devinho. Falamos ebebemos durantehoras. Gosto do modo
como semovepela casa. Ocupa o espaço como seo estivessereconhecendo. Muda
frequentementedecadeira, põe-seempé, derepentesenta no chão efica umtempo comas
mãos nos tornozelos.
Digo quemepareceinacreditável queXimena a tenha expulsado.
Não meexpulsou, na verdade, responde. Tivemos uma fortediscussão, mas eu poderia
ter ficado emcasa. Preferi sair, porquepara mimémuito difícil conviver comela.
Pergunto seXimena semprefoi assim. Mediz quenão. Quea doença deseu pai a
transformou. Quenos últimos anos abandonou tudo para cuidar dele. Agora quemeu pai
não está mais aqui ela não sabeo quefazer, não sabecomo viver. Mas suponho queseja
mais complexo do queisso, diz Claudia, eolha fixamentea lâmpada da sala, como se
seguisseo movimento deuma mariposa.
Pergunto por quefoi morar nos Estados Unidos. Não sei, responde. Queria ir embora,
queria sair. Meu pai tambémqueria queeu fosse, já estava doentena época, mas preferia
queeu fosse, diz Claudia, retomando o tomdeuma confissão. Elemeapoiava, acima de
tudo, diantedos ataques deXimena. Mas Ximena tambémqueria queeu fosseembora. De
alguma maneira fantasiava estefinal: ela cuidando demeu pai atéo último momento eeu
voltando às pressas, cheia deculpa, para o enterro.
Não sei emquemomento, anos atrás, acrescenta Claudia, Ximena construiu essa
versão emqueeu era a irmã má quequeria tirar tudo dela. Etalvez já seja tardedemais
para fazer as pazes. Porquealguma razão Ximena tem. Ela ficou porquequis ficar. Mas
ficou, diz Claudia. Dealguma forma meu pai tevequeescolher dequal desuas filhas iria
foder a vida. Eescolheu a ela. Eeu mesalvei.
Pergunto sena verdadenão está cheia deculpa.
Não sinto culpa, responde. Mas sinto essa falta deculpa como sefosseculpa.
Vai voltar para os Estados Unidos?
Há duas semanas, na tardeemquevoltamos a nos encontrar, Claudia mecontou que
tinha terminado ummestrado emDireito Ambiental emVermont, quepreferia procurar
trabalho lá, quejá fazia algumtempo quemorava comumnamorado argentino. Mas
agora demora a responder.
Às vezes duvido, diz, por fim. Às vezes penso quedevo regressar definitivamenteao
Chile, diz. Acho quenão sabebempor quediz isso. Não acredito nela. Acho queClaudia
não considera a sério a possibilidadedeficar. Acho queClaudia procura algo, apenas, e
assimqueencontrar regressará aos Estados Unidos.
Pareceao mesmo tempo cansada ealiviada. Eestá meio bêbada. Enquanto trepamos
ela sorri mostrando umpouco os dentes. Éumgesto bonito eestranho. Penso quevou me
lembrar dessegesto. Quevou sentir saudades dele.
Dormimos pouco, duas ou três horas. Começa o ruído decarros, devozes. As pessoas
partempara o trabalho, para o colégio. Preparamos suco delaranja eenquanto tomamos
o caféda manhã ela verifica sua caixa dee-mails no computador. Encontra uma mensagem
deXimena. Não vou vender a casa, não incista, diz, eClaudia não podeacreditar: ela diz
incista, comc, defato. Por ummilésimo desegundo pensa queéterrível queXimena cometa
essetipo deerro eemseguida seenvergonha, porqueéainda pior que, nessas
circunstâncias, importe-secomalgo tão estúpido como uma falha deortografia.
Acasa não está à venda, prossegueXimena. Éminha casa agora. Agora mais do que
nunca, diz.
Não vou insistir, pensa Claudia: não temsentido insistir. No fundo entendequeXimena
seaferreà casa. Acredita queseja melhor vendê-la erepartir o dinheiro, acredita quenão
faz bema ninguémtanta proximidadecomo passado. Queo passado nunca deixa dedoer,
mas podemos ajudá-lo a encontrar umlugar diferente.
Mas talvez seja cedo demais para falar dedor, mediz, enquanto olho o rastro devinho
emseus lábios. Derepentemeparecemuito jovem: vinteecinco, vinteeseis anos, nunca
mais detrinta.
VOU ÀUNIVERSIDADE, DOU UMAAULANÃOMUITOBOA, VOLTO. Tinha imaginado a
cena, mas detodo modo mesurpreendeabrir a porta ever Claudia estendida numa
poltrona. Sua beleza mefaz bem, eu lhedigo, sempensar muito. Ela meolha comcautela e
emseguida solta uma risadinha, mas seaproxima, meabraça eterminamos trepando em
pé, numcanto da cozinha.
Depois fazemos talharimebolamos ummolho comumpouco decremeecebolinhas. O
molho fica umpouco seco ea verdadeéquenenhumdos dois temfome.
Às vezes, ao olhar a comida no prato, diz Claudia, melembro da expressão, a resposta
queminha mãeeminha avó medavamtodo tempo: comeecala. Tinhamcozinhado uma
coisa nova, umguisado desconhecido quenão tinha bomaspecto eClaudia queria saber o
queera. Sua mãeesua avó respondiamemcoro: comeecala.
Era uma brincadeira, claro, uma brincadeira sábia até. Mas eis o quesentia Claudia
quando pequena: queaconteciamcoisas estranhas, queconviviamcoma dor, que
guardavamcomdificuldadeuma tristeza longa eimprecisa, eno entanto era melhor não
fazer perguntas, porqueperguntar era arriscar-sea ouvir tambémcomo resposta: comee
cala.
Depois veio o tempo das perguntas. Adécada denoventa foi o tempo das perguntas,
pensa Claudia, eemseguida diz desculpa, não quero soar como esses sociólogos meio
charlatães queàs vezes aparecemna televisão, mas foramassimaqueles anos: eu me
sentava durantehoras a falar commeus pais, perguntava-lhes detalhes, obrigava-os a
recordar, erepetia depois essas lembranças como sefossempróprias; deuma forma
terrível esecreta, procurava seu lugar naquela história.
Não perguntávamos para saber, mediz Claudia enquanto juntamos os pratos e
tiramos a mesa: perguntávamos para preencher umvazio.
ÀS VEZES XIMENAMELEMBRAMINHAMÃE, DIZ CLAUDIAENQUANTOtomamos chá.
Não éuma semelhança física, defato. Éa voz, o timbreda voz, diz.
Pensa naqueles momentos emquenão restava a sua mãeoutro remédio senão falar.
Buscava as meninas, demorava-senas palavras, como quesintonizando aos poucos um
tomdoceecalmo, umtomcuidadoso, artificial. Então, como numa cerimônia, falava
claro. Olhava nos olhos.
Numa tardede1984 falou comelas emseparado. Chamou primeiro Ximena à cozinha
efechou a porta. Era estranho quea conversa tivesselugar na cozinha. Perguntou-lhesobre
isso pouco antes deela morrer. Por quenaquela tardevocêquis falar coma gentena
cozinha? Não sei, dissea mãe. Talvez porqueestivessenervosa.
Aconversa comXimena durou pouco. Ela saiu rapidamente, correu para o pátio,
Claudia não pôdever sua cara. Àluz das circunstâncias, os cinco anos dediferença entreas
irmãs seconvertiamnuma distância intransponível. Ximena era conflituosa eirascível,
mas no final sempreficava do lado dos adultos, enquanto Claudia entendia tudo pela
metade.
Emseguida foi minha vez, diz Claudia, efaz uma pausa queparecedramática. Penso
queestá a ponto desequebrar, mas não, precisa dessa pausa, nada mais. Não merecordo
bemdesuas palavras, prossegue. Suponho quemedissea verdadeou alguma coisa
parecida à verdade. Entendi quehavia genteboa egenteruim. Quenós éramos genteboa.
Quea genteboa às vezes era perseguida por pensar diferente. Por suas ideias. Não sei sena
época eu sabia o queera uma ideia, mas dealguma maneira naquela tardeeu soube.
Sua mãelhefalou comuma ênfasesuave, generosa: por umtempo vocênão vai poder
chamar seu papai depapai. Elevai cortar o cabelo como o tio Raúl, vai tirar a barba para
separecer umpouco mais como tio Raúl. Claudia não entendia, mas sabia quedevia
entender. Sabia quetodos os outros, inclusivesua irmã, entendiammais queela. Elhedoía
ter queaceitar. Perguntou à mãequanto tempo devia ficar semchamar seu pai depapai.
Não sei. Talvez pouco tempo. Talvez muito. Mas prometo quevocêvai poder chamá-lo de
novo depapai.
Jura?, disseClaudia, inesperadamente. Nas famílias católicas sejura, nós só
prometemos, dissea mãe. Mas teprometo. Quero quevocêmejure, dissea menina. Está
bem, eu juro, concedeu a mãe. Eacrescentou queela sempresaberia queaquelehomema
quemchamava detio era seu pai. Queisso bastava. Queisso era o importante.
NOINÍCIODE1988 OPAIDECLAUDIARECUPEROU SUAIDENTIDADE. Foi uma decisão
do partido. Deolho no plebiscito, precisavamdemilitantes comprometidos publicamente
nas tarefas práticas. Magali foi comsuas duas filhas ao aeroporto. Asituação era
absurda. Uma semana antes Roberto tinha partido para Buenos Aires coma identidadede
Raúl eregressava agora convertido emRoberto. Havia aparado umpouco o cabelo eas
costeletas esevestia sobriamente, comcalça jeans euma camisa branca. Sorria muito eem
algummomento Claudia pensou queparecia umhomemnovo.
Não era necessário quefingissemtanto, mas sua mãeinsistia: do mesmo modo que
antes a olhava comreprovação quando o chamava depapai, agora a instava, deforma
quaseridícula, a chamá-lo depapai. No avião vinha gentequetinha estado exilada de
verdade. Claudia selembra deter sentido certa amargura ao vê-los abraçar suas famílias,
chorar naqueles longos abraços, legítimos. Por ummomento pensou, mas searrependeu
emseguida dessepensamento, queos outros tambémfingiam. Queo queeles recuperavam
não eramas pessoas, esimos nomes. Desfaziam, por fim, aquela distância entreos corpos
eos nomes. Mas não. Havia ao redor emoções verdadeiras. Edevolta para casa pensou que
sua emoção tambémera verdadeira.
Éuma história terrível, digo eu, eela meolha surpresa. Não, responde, ediz meu nome
várias vezes, como seeu estivessedormindo há muito tempo eela quisessemedespertar aos
poucos: minha história não éterrível. Éisso queXimena não entende: quenossa história
não éterrível. Quehouvedor, quenunca esqueceremos essa dor, mas tampouco podemos
esquecer a dor dos outros. Porqueestávamos protegidas, enfim; porquehouveoutros que
sofrerammais, quesofremmais.
Caminhamos pela avenida Grécia, passamos pela FaculdadedeFilosofia eentão me
lembro dealguma história ou centenas dehistórias sobreaqueletempo, mas mesinto um
pouco bobo, parecequetudo o queposso contar éirrelevante. Chegamos ao Estádio
Nacional. Omaior centro dedetenção em1973 semprefoi, para mim, nada mais queum
campo defutebol. Minhas primeiras lembranças são meramenteesportivas ealegres. Sem
dúvida foi ali, nas arquibancadas desseestádio, quetomei meus primeiros sorvetes.
Aprimeira lembrança deClaudia tambéméalegre. Em1977 anunciou-seque
Chespirito, o comediantemexicano, viria comtodo o elenco deseu programa para dar um
espetáculo no Estádio Nacional. Claudia tinha então quatro anos, via o programa e
gostava muito.
Seus pais senegaram, emprincípio, a levá-la, mas no final cederam. Foramos quatro e
Claudia eXimena sedivertirambastante. Muitos anos mais tardeClaudia soubeque
aqueledia tinha sido, para seus pais, umsuplício. Quea cada minuto pensaramno
absurdo queera ver o estádio cheio degenterindo. Quedurantetodo o espetáculo eles
tinhampensado apenas, obsessivamente, nos mortos.
DEVEZ EMQUANDOCLAUDIAPROPÕEPROCURAR UMHOTEL ou recorrer a alguma
amiga, mas eu insisto emretê-la. Não tenho muito queoferecer, mas desejo a todo custo que
estetempo continue. Há dias menos bons, confusos, mas costuma acontecer uma certa
rotina agradável. Pela manhã vou à faculdadeenquanto Claudia sai para caminhar ou
fica emcasa pensando, sobretudo no futuro. Àtardetrepamos ou vemos filmes ea noitenos
surpreendeconversando erindo.
Às vezes acho queela sentevontadedeficar, dequea vida consista nisso, nada mais. Éo
queeu quero. Quero fazê-la desejar uma vida aqui. Quero enredá-la denovo no mundo do
qual ela fugiu. Quero fazê-la acreditar quefugiu, queforçou sua história para seperder nas
convenções deuma vida cômoda esupostamentefeliz. Quero fazê-la odiar essefuturo
plácido emVermont. Mecomporto, emresumo, como umimbecil.
Émelhor entender estetempo como seentendeumanúncio brevena programação da
tevêa cabo: depois devinteanos, dois amigos deinfância sereencontrampor acaso ese
apaixonam. Mas não somos amigos. Enão há amor, na verdade. Dormimos juntos,
trepamos maravilhosamentebemenunca vou esquecer seu corpo moreno, cálido efirme.
Mas não éamor o quenos une. Ou éamor, mas amor à lembrança.
Oquenos uneéo desejo derecuperar as cenas dos personagens secundários. Cenas
razoavelmentedescartadas, desnecessárias, queno entanto colecionamos semcessar.
CLAUDIAINSISTEPARAIRMOS AMAIPÚ. DIZ QUEQUER CONHECER meus pais. Que
quer caminhar por aquelas ruas denovo. Não acho queseja uma boa ideia, mas aceito,
por fim.
Na praça ela reconhecealguns monumentos, algumas árvores, a longa escadaria que
conduz à piscina pública, mas não muito mais. Ondeantes estava o supermercado agora
há umedifício municipal ou algo assim.
Rumamos agora para a vila ondeela morava. Fecharamas travessas comumvistoso
portão eletrônico. ALucila Godoy Alcayaga ea Neftalí Reyes Basoalto parecemagora
condomínios mais exclusivos ou pelo menos o suficientepara compartilhar a paranoia
sobrea delinquência. Veem-semuitos carros estacionados no interior.
Conseguimos nos infiltrar na rabeira deuns meninos queentramdebicicleta. Claudia
olha a casa emsilêncio por uminstante, mas logo toca a campainha. Estamos procurando
umgato, diz a umhomemquesai coma camisa fora da calça, como seestivessesedespindo
quando a campainha tocou. Claudia explica queéumgato branco epreto. Ohomema
olha comcuriosidade, comcerteza a considera desejável. Não vi umgato embranco e
preto, eu vejo emcores, disse, epenso quehá muitos anos eu não escutava uma piada tão
semgraça. Detodo modo rimos, nervosos.
Acasa éagora deuma estranha cor damasco eemvez depersianas há umas horríveis
cortinas floridas. Mas nunca foi uma casa bonita; nemsequer foi uma verdadeira casa, diz
Claudia, comuma tristeza serena.
Decidimos ir embora, mas não podemos sair. Oportão eletrônico está fechado,
chamamos pelo interfone, mas o homemnão responde. Por umtempo ficamos ali, como
melancólicos presos acariciando as barras deferro. Enquanto isso telefono a meus pais.
Eles meesperam. Nos esperam.
FICOSURPRESOAOVER NASALAUMMÓVEL PARALIVROS. ESTÁrepleto. Graças a esta
estantesua mãecomeçou a ler eeu também, embora vocêsaiba queeu prefiro ver filmes, diz
meu pai. Não olha para Claudia, mas ésumamentecortês, atencioso.
Atardeescorrenuma conversa lenta quepor momentos, ao compasso do pisco sour,
tendea ganhar forma. Queremos ir embora, mas minha mãecomeça a preparar umjantar
compedaços decarne, batatas duquesa euma alternativa vegetariana. Não sou
vegetariana, diz Claudia quando minha mãepergunta a respeito. Queestranho, meu filho
sempregostou das vegetarianas, diz mamãe. Isso meperturba, mas deixo passar, porque
Claudia ri comnaturalidade, comcalor.
Apesar dessa brincadeira, meus pais evitamperguntar detalhes da relação. Eu disse
por telefonesimplesmentequeiria acompanhado. Suponho queeles tenhamachado
curioso ou agradável queeu quisesselhes apresentar uma namorada. Meincomoda quea
situação possa ser vista assim: o filho apresentando uma namorada. Não éisso, não
viemos para isso. Tambémnão sei para queviemos, mas não viemos para isso.
Falamos deuma sériederoubos recentes na vila. Há rumores dequeo ladrão viveno
bairro. Queéumdos meninos quecresceramaqui. Umquenão prosperou. Umquesempre
foi meio ladrão. Eu nunca roubei, diz meu pai, derepente. Nemsequer quando criança.
Éramos muito pobres, eu vendia verduras na feira –olha para Claudia, conscientedeque
contou mil vezes a história desua infância. Diz quenemsequer no máximo estado de
desespero roubaria. Quena época tinha amigos queroubavam–erammeus amigos, eu os
amava, mas espero quetenhamterminado na prisão, diz. Deoutro modo a sociedadenão
funciona.
Emquemomento, penso, meu pai mudou tanto. Ao pensar, duvido: não sei se
realmentemudou ou sesemprefoi assim. Eu roubei, roubei muito, digo, para contrariá-lo.
No início meu pai ri. Claro, vocêmetirava dinheiro da carteira, mas isso não éroubar.
Isso éroubar, respondo sério, sentencioso. Roubar o pai tambéméroubar. Ealém
disso roubei livros. Numa semana cheguei a roubar dezoito livros –digo dezoito para que
soeexcessivo eao mesmo tempo verossímil, mas foramsó três emesenti tão culpado que
nunca mais voltei a entrar naquela livraria. Mas mantenho o dito, não meretrato, emeu
pai meencara comseveridade. Meencara como umpai encararia umfilho ladrão –um
filho já perdido, na cadeia, no dia devisitas.
Minha mãetenta descontrair o ambiente. Quemnão roubou alguma vez?, diz, edesliza
uma anedota qualquer deinfância, olhando para Claudia. Pergunta sejá roubou. Ela
respondequenão, mas queseestivessedesesperada talvez o fizesse.
Claudia diz queestá comdor decabeça. Peço-lhequesedeite. Vamos ao quarto queera
meu quando criança. Armo o sofá-cama, abraço Claudia, ela seestendeefecha os olhos,
suas pálpebras trememdeleve. Eu a beijo, prometo quequando sesentir melhor iremos
embora. Não quero quea gentevá, diz ela, inesperadamente. Quero ficar aqui, acho
necessário quea gentedurma esta noiteaqui, não meperguntepor quê, diz. Descubro
então quenão está indisposta. Fico confuso.
Vou atéo móvel pequeno ondeestão os velhos álbuns defotografias da família. Para
isso servemesses álbuns, penso: para nos fazer acreditar quefomos felizes quando
crianças. Para nos demonstrar quenão queremos aceitar o quanto fomos felizes. Viro as
páginas lentamente. Mostro a Claudia uma foto muito antiga emquemeu pai descedeum
avião, como cabelo bemmais comprido eumas lentes muito grossas nublando seus olhos.
Volta para o jantar, mediz, mepedeClaudia: quero ficar sozinha algumas horas. Não
diz ummomento ou umpouco. Diz quequer estar sozinha algumas horas.
MINHAMÃEREQUENTAACOMIDANOMICRO-ONDAS ENQUANTOmeu pai sintoniza o
rádio embusca deuma estação demúsica clássica –nunca gostou demúsica clássica, eno
entanto elejulga queéa música adequada para jantar. Fica ali, movendo o dial, está
aborrecido, não quer olhar para mim. Sente-se, papai, estamos conversando, digo com
repentina autoridade.
Enquanto jantamos pergunto a meus pais serecordama noitedo terremoto de1985, se
acaso selembramdo vizinho Raúl. Minha mãeconfundeos vizinhos, as famílias, enquanto
meu pai selembra deRaúl comprecisão. Pelo quesei era democrata-cristão, diz, embora
tambémsecomentassequeera algo mais queisso.
Como assim?
Não sei, parecequeera socialista, ou comunista, até.
Comunista como meu avô?
Meu pai não era comunista. Meu pai era umoperário, nada mais. Raúl deveter sido
mais perigoso. Mas não, não sei. Parecia pacífico. Dequalquer maneira, sePiñera ganhar
as eleições, vai acabar coma festa. Raúl deveser umdesses quelevaramvida boa comesses
governos corruptos edesordenados.
Diz isso para meprovocar. Eu o deixo falar. Deixo quediga umas quantas frases
rudimentares eácidas. Meterama mão no nosso bolso esses anos todos, diz. Os da
Concertaciónsão umbando deladrões, diz. Não faria mal a estepaís umpouco deordem,
diz. Efinalmentevema frasetemida eesperada, o limitequenão posso, quenão vou tolerar:
Pinochet foi umditador etudo mais, matou algumas pessoas, mas pelo menos naquele
tempo havia ordem.

Encaro-o nos olhos. Emquemomento, penso, emquemomento meu pai seconverteu nisso.
Ou semprefoi assim? Semprefoi assim? Penso nisso comforça, comuma dramaticidade
severa edolorosa: semprefoi assim?
Minha mãenão está deacordo como quedissemeu pai. Na verdadeestá mais ou
menos deacordo, mas quer fazer algo para evitar quea noitada searruíne. Estemundo é
muito melhor, diz. As coisas estão bem. Ea Michellefaz o melhor quepode.
Não posso evitar perguntar a meu pai senaqueles anos eleera ou não pinochetista. Eu
perguntei isso centenas devezes, desdea adolescência, équaseuma pergunta retórica, mas
elenunca admitiu –por quenão admitir, penso, por quenegar durantetantos anos, por
quecontinuar negando?
Meu pai guarda umsilêncio áspero eprofundo. Finalmentediz quenão, quenão era
pinochetista, queaprendeu desdemenino queninguémia salvá-los.
Nos salvar dequê?
Nos salvar. Nos dar decomer.
Mas o senhor tinha o quecomer. Nós tínhamos o quecomer.
Não setrata disso, diz.

Aconversa setorna insustentável. Levanto para ir aondeestá Claudia. Observo-a com


intensidade, mas continua virando as páginas como senão percebesseminha presença. Já
examinou metadedos álbuns. Seu olhar absorve, devora as imagens. Às vezes sorri, às
vezes seu rosto setorna tão sério quea tristeza meinvade. Não, não sinto tristeza: sinto
medo.
Volto à mesa do jantar, o sorvetedebaunilha sederreteno meu prato. Conto a eles em
voz baixa, mas muito rápido, queClaudia era filha deRaúl, mas queduranteanos teveque
fingir queera sua sobrinha. QueRaúl sechamava, na verdade, Roberto. Não sei o que
espero ao contar-lhes isso. Porquealguma coisa espero, alguma coisa procuro.

Éuma história enrolada mas muito boa, diz meu pai, depois deumsilêncio não tão longo.
Está megozando? Uma boa história? Éuma história dolorosa.
Éuma história dolorosa, mas já passou. Claudia está viva. Os pais dela estão vivos.
Os pais estão mortos, digo.
Aditadura os matou?
Não.
Emorreramdequê?
Amãemorreu deumderramecerebral eo pai decâncer.
Coitadinha da Claudia, diz minha mãe.
Mas não morrerampor razões políticas, diz meu pai.
Mas estão mortos.
Mas vocêestá vivo, diz ele. Eaposto quevai contar esta história tão boa numlivro.
Não vou escrever umlivro sobreeles. Vou escrever umlivro sobrevocês, digo, comum
sorriso estranho desenhado na boca. Não posso acreditar no queacaba deacontecer. Me
incomoda ser o filho quevolta a recriminar, uma eoutra vez, seus pais. Mas não posso
evitar.
Encaro meu pai eeledesvia o rosto. Então vejo emseu perfil o brilho deuma lentede
contato eo olho direito levementeirritado. Melembro da cena, repetida incontáveis vezes
durantea infância: meu pai decócoras procurando desesperado uma lentedecontato que
acaba decair. Todos o ajudávamos a procurar, mas elequeria encontrá-la por si mesmo e
aquilo lhecustava uma enormidade.
TAL COMOCLAUDIAQUERIA, NOS HOSPEDAMOS NACASADEMEUS pais. Às duas da
madrugada eu melevanto para preparar café. Minha mãeestá na sala, tomando mate. Me
oferece, aceito. Acho quenunca na vida tomei matecomela. Não gosto do sabor de
adoçantemas sorvo forte, mequeimo umpouco.
Elemedava medo, diz minha mãe.
Quem?
Ricardo. Rodolfo.
Roberto.
Isso, Roberto. Eu intuía queestava metido empolítica.
Todos estavammetidos empolítica, mamãe. Vocêtambém. Vocês. Ao não participar,
apoiavama ditadura –sinto queemminha linguagemhá ecos, há vazios. Mesinto como se
falassesegundo ummanual decomportamento.
Mas nunca, nemseu pai nemeu, estivemos a favor ou contra Allende, a favor ou contra
Pinochet.
Por queRoberto lhedava medo?
Bom, não sei semedo. Mas agora vocêmeconta queera umterrorista.
Não era umterrorista. Escondia pessoas, ajudava pessoas quecorriamperigo. E
ajudava tambéma passar informações.
Evocêacha pouco?
Acho o mínimo quepodia fazer.
Mas essas pessoas queeleescondia eramterroristas. Punhambombas. Planejavam
atentados. Émotivo suficientepara ter medo.
Bom, mamãe, mas as ditaduras não caempor conta própria. Aquela luta era
necessária.
Queéquevocêsabedessas coisas? Nemtinha nascido na época deAllende. Era uma
criança naqueles anos.

Muitas vezes escutei essa frase. Vocênemsequer tinha nascido. Desta vez, no entanto, não
medói. Decerto modo medá vontadederir. Emseguida minha mãemepergunta, como se
viesseao caso:
Vocêgosta deCarla Guelfenbein?
Não sei o queresponder. Respondo quenão. Não gosto desses livros, dessetipo de
livros.
Bom, não gostamos dos mesmos livros. Gostei do romancedela, El revés del alma. Me
identifiquei comos personagens, meemocionei.
Ecomo épossível queseidentifiquecompersonagens deoutra classesocial, com
conflitos quenão são, quenão poderiamser os conflitos desua vida, mamãe?
Falo sério, muito sério. Sinto quenão deveria falar tão sério. Quenão convém. Quenão
vou solucionar nada repreendendo meus pais pelo passado. Quenão vou ganhar nada
tirando deminha mãeo direito deopinar comliberdadesobreumlivro. Ela meolha com
uma mistura deirritação ecompaixão. Comumpouco deenfado.
Vocêseengana, diz, talvez aquela não seja minha classesocial, concordo, mas as
classes sociais mudarammuito, todo mundo diz isso. Eao ler esseromanceeu senti que
sim, queaqueles erammeus problemas. Entendo queteincomodequeeu diga isso, mas
vocêdeveria ser umpouco mais tolerante.
Eu dissesomentequenão gostava daqueleromance. Equeera estranho quesesentisse
identificada compersonagens deoutra classesocial.
EClaudia?
OquetemClaudia?
Claudia édequeclassesocial? Dequeclassevocêéagora? Ela morou emMaipú, mas
não édaqui. Vê-sequeémais refinada. Vocêtambémparecemais refinado quenós.
Ninguémdiria queémeu filho.
Desculpa, diz minha mãeantes queeu possa responder a essa pergunta que, detodo
modo, não saberia responder. Meservemais mateeacendedois cigarros coma mesma
chama. Vamos fumar aqui dentro, mesmo queseu pai não goste. Mepassa um.
Não éculpa sua, mediz. Vocêera muito jovemquando saiu decasa, aos vinteedois
anos.
Aos vinte, mamãe.
Aos vinte, aos vinteedois, dá no mesmo. Muito jovem. Às vezes penso como seria a vida
sevocêtivesseficado emcasa. Alguns ficaram. Omenino ladrão, por exemplo. Eleficou
aqui esetornou umladrão. Outros tambémficarameagora são engenheiros. Assiméa
vida: vocêsetorna ladrão ou engenheiro. Mas não sei muito bemo quevocêsetornou.
Eu tambémnão sei o quemeu pai setornou, digo eu, deforma meio involuntária.
Seu pai semprefoi umhomemqueama a família. Foi eé.
Ecomo teria sido a vida seeu tivesseficado, mamãe?
Não sei.
Teria sido pior, respondo.
Minha mãeconcorda. Talvez seja bomestarmos menos próximos, diz. Gosto devocê
como é. Gosto quedefenda suas ideias. Egosto dessa menina, Claudia, para você, ainda
quenão seja da sua classesocial.
Apaga a bituca cuidadosamenteelava o cinzeiro antes deir deitar. Fico na sala,
fumando, por mais umtempinho. Abro a porta emesento na soleira. Quero contemplar a
noite, procurar a lua, terminar emlongos goles o uísquequeacabo demeservir. Meapoio
no carro demeus pais, uma caminhonetenova Hyundai. Soa o alarme, meu pai selevanta.
Acho comoventevê-lo depijama. Mepergunta seestou bêbado. Umpouco, respondo, coma
voz apagada: só umpouco.
Émuito tarde, cinco da manhã. Vou para o quarto. Claudia dorme, meestendo a seu
lado, memovimento querendo despertá-la. Não ésó umpouco: estou bêbado. Aescuridão é
quasecompleta emesmo assimsinto seu olhar emminha fronteeemmeu peito. Meacaricia
o pescoço, mordo-lheumombro. Não podemos perder a oportunidade, diz ela, defazer
amor na casa dos seus pais. Seu corpo semovena escuridão enquanto amanhece.
ÀS OITODAMANHÃDECIDIMOS PARTIR. VOU AOQUARTODEmeus pais para me
despedir. Vejo-os dormir abraçados. Aimagemmepareceforte. Sinto pudor, alegria e
desassossego. Penso quesão os belos sobreviventes deummundo perdido, deummundo
impossível. Meu pai acorda emepedequeespere. Quer medar umas camisas quenão usa
mais. São seis, não parecemvelhas, deduzo queficarão pequenas, mas as recebo assim
mesmo.
Voltamos para casa eécomo seregressássemos deuma guerra, mas deuma guerra
quenão terminou. Penso quenos convertemos emdesertores. Penso quenos convertemos
emcorrespondentes, emturistas. Éisso o quesomos, penso: turistas quealguma vez
chegaramcomsuas mochilas, suas câmeras eseus cadernos, dispostos a passar muito
tempo fatigando os olhos, mas quederepentedecidiramvoltar eenquanto voltam
respiramumlongo alívio.
Umalívio longo, mas passageiro. Porquenessesentimento há inocência ehá culpa, e
embora não possamos, embora não saibamos falar deinocência ou deculpa, dedicamos
os dias a repassar uma longa lista queenumera o queentão, quando crianças,
desconhecíamos. Écomo setivéssemos presenciado umcrime. Não o cometemos, somente
passávamos pelo lugar, mas arrancamos dali porquesabemos quesenos encontrassem
nos culpariam. Nos julgamos inocentes, nos julgamos culpados: não sabemos.
Devolta emcasa Claudia olha as camisas quemeu pai mepresenteou. Durantemuitos
anos não tiveroupa, diz derepente: primeiro usava as coisas queXimena deixava edepois
os vestidos da minha mãe. Quando ela morreu brigamos atéo último trapo eagora que
penso nisso vejo quetalvez tenha sido naquelemomento quenossa relação seestropiou
definitivamente. Os ternos demeu pai, ao contrário, continuamno guarda-roupa do
quarto, intactos, diz.
GUARDEIAS CAMISAS DEMEU PAINUMAGAVETADURANTEMESES. Desdeentão
acontecerammuitas coisas. Desdeentão Claudia sefoi eeu comecei a escrever estelivro.
Olho agora essas camisas, estendo-as sobrea cama. Gosto deuma emespecial, cor
azul petróleo. Acabo deprová-la, definitivamentefica pequena emmim. Olho-meno
espelho epenso quea roupa dos pais deveria sempreficar grandeemnós. Mas penso
tambémqueprecisava disso; queàs vezes precisamos nos vestir coma roupa dos pais enos
olhar demoradamenteno espelho.
Nunca falamos comsinceridadesobreessa viagema Maipú. Muitas vezes eu quis saber
o queClaudia tinha sentido, por quetinha desejado quenos hospedássemos lá, mas cada
vez queeu perguntava ela merespondia comevasivas ou comfrases feitas. Vieramdepois
uns dias silenciosos elongos. Claudia semostrava concentrada, atarefada eumpouco
tensa. Eu não deveria ter mesurpreendido quando ela meanunciou sua decisão. Supõe-se
queeu esperava o desenlace, supõe-sequenão havia outro desenlacepossível.
Voltei a ver Ximena, ela medisseprimeiro, comalegria. Ainda não aceitava que
vendessema casa, mas tinhamreatado a relação epara Claudia isso importava muito
mais quea herança. Contou queconversaramdurantehoras, semagressões denenhuma
espécie. Faz anos, faz muitos anos, medissedepois, mudando o tomdeuma maneira que
mepareceu dolorosa, faz anos descobri quequeria uma vida normal. Quequeria,
sobretudo, estar tranquila. Já vivi as emoções, todas as emoções. Quero uma vida
tranquila, simples. Uma vida compasseios no parque.
Pensei nessa frasemeio casual, involuntária: a vida compasseios no parque. Pensei
quetambémminha vida era dealguma forma uma vida compasseios no parque. Mas
entendi o queela queria dizer. Procurava uma paisagemprópria, umparquenovo. Uma
vida emquenão fossemais a filha ou a irmã dealguém. Insisti, não sei porquê, não sei para
quê. Nesta viagemvocêrecuperou seu passado, eu disse.
Não sei. Mas aproveitei para tecontar. Voltei à infância numa viagemquetalvez
necessitasse. Mas não ébomquenos enganemos. Naqueletempo, quando crianças, você
espionava meu pai porquequeria estar comigo. Agora éigual. Vocêmeescutou só para me
ver. Sei quevocêseimporta coma minha história, mas o quemais teimporta étua própria
história.
Achei queela estava sendo dura, queestava sendo injusta. Quedizia palavras
desnecessárias. Derepentesenti raiva, senti atéuma ponta derancor. Vocêémuito
arrogante, disse.
Sim, respondeu. Evocêtambém. Quer queeu teapoie, quetenha a mesma opinião que
você, como dois adolescentes queforçamcoincidências para estar juntos eesticamo olhar e
mentem.
Recebi o golpe, talvez o merecesse. Entendo quevocêvá embora, disseeu. Santiago é
mais fortequevocê. Eo Chileéumpaís demerda queserá governado por umricaço bronco
quevai fazer discursos emais discursos celebrando o bicentenário.
Não vou embora por causa disso, disse, taxativa.
Vai embora porqueestá apaixonada por outro, repliquei, como sefosseumjogo de
adivinhação. Pensei emseu namorado argentino epensei tambémemEsteban, o jovem
louro quea acompanhava naqueletempo, emMaipú. Nunca lheperguntei seera seu
namorado. Quis perguntar agora, fora dehora, demodo torpe, infantil. Mas antes que
pudessefazê-lo ela respondeu, comênfase: não estou apaixonada por outro. Tomou um
golelongo decaféenquanto pensava no queia dizer. Não estou apaixonada por ninguém,
na verdade. Setenho certeza dealguma coisa, disse, édequenão estou apaixonada por
ninguém.
Mas talvez seja melhor quevocêentenda assim, acrescentou depois, numtom
indefinível. Émais fácil entender assim. Émelhor pensar quetudo isso foi uma história de
amor.
4.
ESTAMOS BEM
ESTATARDEEMEACEITOU, POR FIM, CONHECER OMANUSCRITO. Não quis queeu
lessepara ela emvoz alta, como antes. Pediu queeu imprimisseas páginas ecobriu-secom
o lençol para lê-las na cama, mas derepentemudou deideia ecomeçou a sevestir. Prefiro ir
para minha casa, disse. Já faz muito tempo queestou aqui, quero dormir na minha cama
esta noite.
Imagino-a lendo, agora, naquela sua casa para a qual nunca meconvidou. Naquela
cama quenão conheço. Minha cama tambémédela, nós a escolhemos juntos. Eos lençóis,
as mantas, o colchão. Eu disseisso antes queela saísse, mas não esperava sua resposta:
para queisto funcione, disseela, às vezes vocêdevepensar queacabamos denos conhecer.
Quenunca antes compartilhamos nada.
Meimpressionou a moderação umpouco forçada desua voz. Mefalou como sefala a
umhomemquereclama injustamentena fila do supermercado. Todos temos pressa,
senhor. Seja paciente, esperesua vez.
Espero minha vez, então, sentimental, civilizadamente.

•••

Aos vinteanos, quando tinha acabado desair decasa, trabalhei por umtempo contando
automóveis. Era umemprego simples emal pago, mas dealguma forma eu gostava de
ficar na esquina designada eanotar na planilha a quantidadedecarros, caminhonetes e
ônibus quepassavama cada hora. Eu gostava, sobretudo, decumprir o turno da noite,
embora às vezes mebatesseo sono ecomcerteza a imagemfosseabsurda: umtipo jovem,
concentrado ecomolheiras, numa esquina da avenida Vicuña Mackenna, esperando
nada, olhando desoslaio outros jovens quevoltavampara casa alardeando a bebedeira.
Énoiteeeu escrevo. Émeu trabalho agora, ou algo assim. Mas enquanto escrevo
passamautomóveis pela avenida Echeñiqueeàs vezes medistraio ecomeço a contá-los.
Nos últimos dez minutos passaramcatorzecarros, três caminhonetes euma moto. Não
consigo saber sedobrama esquina seguinteou seguememfrente. Deummodo vago e
melancólico penso quegostaria desaber.
Penso no antigo Peugeot 404. Meu pai costumava dedicar os fins desemana a ajustá-
lo, embora na verdadeo carro nunca falhasse–elemesmo dizia, comesseamor quesó os
homens podemsentir pelos carros, queseportava bem, quedava poucos problemas, eno
entanto elepassava a vida regulando-o, trocando as velas, ou lendo atétardealgum
capítulo deApunto, la enciclopedia del automóvil. Nunca vi alguémtão concentrado
como meu pai naquelas noites deleitura.
Parecia-meridículo queelededicassetanto tempo ao carro. Alémdo mais eu era
obrigado a ajudá-lo –ajudá-lo consistia emesperar, comuma paciência infinita, quepor
fimeledissesse: mepassa a chaveinglesa. Depois devia aguardar quea devolvesseeainda
por cima escutar longas explicações sobremecânica quenão meinteressavamnemum
pouco. Descobri então certo prazer no fato defingir queescutava meu pai ou outros
adultos. Emconcordar coma cabeça sustentando o meio sorriso dequemsabeestar
pensando emoutra coisa.
Odestino daquelePeugeot foi horrível. Umvelho caminhão queentrou na contramão
bateu neleemeu pai quasemorreu. Ainda melembro dequando memostrou a marca queo
cinto desegurança lhedeixou no peito. Mefalou então sobreprudência, sobreo sentido das
normas. Derepenteabriu a camisa para memostrar a marca vermelha desenhada com
precisão emseu peito moreno. Seeu não tivesseposto o cinto desegurança, estaria morto,
disseele.
OPeugeot ficou empedaços efoi preciso vendê-lo como sucata. Acompanhei meu pai ao
depósito decarros. Desdeentão, cada vez quevejo umPeugeot 404 relembro essa imagem
ingrata. Ea cicatriz demeu pai, também, quando íamos à piscina ou à praia. Eu não
gostava devê-lo emtrajedebanho. Não gostava dever aquela marca riscando-lheo peito,
aquela evidência, aquela faixa horrível queficou emseu corpo para sempre.

•••

Éestranho, étolo pretender umrelato genuíno sobrealgo, sobrealguém, sobrequalquer


um, atémesmo sobresi próprio. Mas énecessário também.
São quatro da madrugada, não consigo dormir. Aguento a insônia contando
automóveis eformando novas frases na geladeira:

our perfect whisper


another white prostitute
understand strange picture
almost black mouth
how imagine howl
naked girl long rhythm

Esta émuito linda: naked girl long rhythm.

•••

Cheguei meia hora antes, sentei no terraço epedi uma taça devinho. Queria ler enquanto
esperava Eme, mas uns meninos corriamperigosamenteao redor eera difícil me
concentrar. Deveriamestar na escola, pensei, mas lembrei queera sábado. Emseguida vi
suas mães na mesa ao lado, entretidas numbate-papo superficial.
Chegou tarde. Notei queestava nervosa, porquemedeu uma longa explicação pela
demora, como senunca antes tivessechegado tarde. Deduzi quenão queria falar do
romance. Então decidi perguntar, semmais, o quetinha achado. Procurou o tompor um
bomtempo. Balbuciou. Tentou alguma piada quenão entendi. Oromanceestá bom, disse
ela, por fim. Éumromance.
Como?
Isso, queéumromance. Gostei.
Mas não está terminado.
Mas vocêvai terminá-lo eficará bom.
Eu queria lhepedir precisões, perguntar por algumas passagens, por alguns
personagens, mas não foi possível, porqueuma das mulheres da mesa ao lado se
aproximou ecumprimentou Emeefusivamente. Sou a Pepi, disseela, eseabraçaram. Não
sei sedissePepi ou Pepa ou Pupi ou Papo, mas era umapelido dessetipo. Apresentou-nos
seus filhos, queeramos mais espevitados do grupo. Emepodia cortar a conversa nesse
ponto, mas quis continuar comentando comsua antiga companheira a enorme
coincidência deseencontraremnaquelerestaurante. Não mepareceu tão grandea
coincidência. Pepi ou Pupi ou Papi mora emLa Reina, assimcomo Eme. Oestranho éque
não tivessemseencontrado antes.
Fiquei mal. Achei queEmealongava intencionalmentea conversa. Queagradecia
aqueleencontro porquelhepermitia adiar o momento emquedevia medar uma opinião
real sobreo manuscrito. Depois sedesculpou emedissequetinha queir embora. Voltei
para casa frustrado, chateado. Tentei continuar escrevendo, mas não consegui.

•••

Quando criança eu gostava da palavra apagão. Minha mãenos buscava, nos levava à
sala. Antigamentenão havia luz elétrica, dizia enquanto acendia as velas. Eu custava a
imaginar ummundo semlâmpadas, seminterruptores nas paredes.
Aquelas noites nos permitiamficar umtempo conversando eminha mãecostumava
contar a piada da vela inapagável. Era longa esemgraça, mas gostávamos muito: a
família tentava apagar uma vela para ir dormir mas todos tinhama boca torta. No final a
avó, quetambémtinha a boca torta, apagava a vela molhando os dedos comsaliva.
Meu pai tambémexaltava a piada. Estavamali para quenão tivéssemos medo. Mas
não tínhamos medo. Erameles quetinhammedo.
Disso quero falar. Dessetipo delembrança.

•••

Hojetelefonou meu amigo Pablo para meler esta frasequeencontrou numlivro deTim
O’Brien: “Oqueadereà memória são esses pequenos fragmentos estranhos quenão têm
princípio nemfim”.
Fiquei pensando nisso eperdi o sono. Éverdade. Recordamos, mais propriamente, os
ruídos das imagens. Eàs vezes, ao escrever, limpamos tudo, como sedessemodo
avançássemos para algumlado. Deveríamos simplesmentedescrever esses ruídos, essas
manchas na memória. Essa seleção arbitrária, nada mais. Por isso mentimos tanto,
afinal. Por isso umlivro ésempreo reverso deoutro livro imenso eestranho. Umlivro
ilegível egenuíno quetraduzimos, quetraímos pelo hábito deuma prosa passável.
Penso no belíssimo começo deLéxico familiar, o romancedeNatalia Ginzburg: “Neste
livro, lugares, fatos epessoas são reais. Não inventei nada: etoda vez que, nas pegadas do
meu velho costumederomancista, inventava, logo mesentia impelida a destruir tudo o que
inventara”. Eu haveria deser capaz disso. Ou deficar calado, simplesmente.

•••

Estou emLas Cruces, desfrutando a praia vazia, comEme.


Pela manhã, estendido na areia, li A promessa da aurora, o livro deRomainGary
ondeapareceesteparágrafo preciso, oportuno: “Não sei falar do mar. Aúnica coisa quesei
équeo mar melivra imediatamentedetodas as minhas obrigações. Cada vez queo
contemplo meconverto numafogado feliz”.
Eu tampouco sei falar do mar, embora sesuponha quefoi minha primeira paisagem.
Quando eu tinha apenas dois meses devida, meu pai aceitou umtrabalho emValparaíso e
ficamos emCerro Alegrepor três anos. Mas minha primeira lembrança do mar émuito
mais tardia, comseis anos talvez, quando já morávamos emMaipú. Lembro-medehaver
pensado, aflito efeliz, queera umespaço semlimites, queo mar era umlugar que
continuava, queprosseguia.
Faz algumtempo tentei escrever umpoema chamado “Afogados felizes”. Não saiu.

•••

Voltamos numcarro queemprestarama Eme. Dirigi comtanta cautela queacho queela


estava a ponto deseexasperar. Depois a acompanhei, pela primeira vez, a sua casa. Fiquei
impressionado ao ver suas coisas arranjadas deoutra maneira. Reconhecíveis. Não sei se
gostei dedormir comela lá. Estiveo tempo todo oprimido pelo desejo deregistrar cada
detalhe.
Pela manhã tomamos chá comsuas amigas. Era tal como Ememehavia descrito. A
casa éna verdadeumimenso ateliê. Enquanto Emedesenha, suas companheiras –falou
seus nomes muitas vezes, mas nunca consegui guardá-los –fazemroupas eartesanatos.
Quando eu estava prestes a ir embora Ememeperguntou seestava escrevendo. Não
soubeo queresponder.
Seja como for, na noitepassada escrevi estes versos:

Émelhor não sair emnenhumlivro


As frases quenão nos queiramabrigar
Uma vida semmúsica esemletra
Eumcéu semessas nuvens quehá agora.
•••

Aprosa sai estranha. Não encontro o humor, a textura. Mas solto alguns versos ederepente
medeixo invadir por esseritmo. Movo os versos, confirmo etransgrido a cadência, passo
horas trabalhando no poema. Leio, emvoz alta:

Émelhor não sair emnenhumlivro


As frases quenão nos queiramabrigar
Uma vida semmúsica esemletra
Eumcéu semessas nuvens queagora
Vocênão sabeseestão indo ou vindo
Essas nuvens quando mudamtantas vezes
Deforma queainda parecemos estar
Morando no lugar queabandonamos
Quando ainda não sabíamos os nomes das árvores
Quando não sabíamos os nomes dos pássaros
Quando o medo era o medo enão existia
Oamor pelo medo
Nemo medo pelo medo
Ea dor era umlivro interminável
Queumdia folheamos só para ver
Seno final apareciamnossos nomes.

•••

Sonhei queestava bêbado edançava uma canção deLos Ángeles Negros, “El trenhacia el
olvido”. Derepenteaparecia Alejandra Costamagna –vocêestá tão mamado, medizia,
melhor eu televar para casa, medá o endereço. Mas eu tinha esquecido meu endereço e
continuava dançando enquanto tentava lembrá-lo. No sonho eu tomava piscola; no sonho
eu gostava depiscola.
Alejandra dançava comigo, mas era antes uma maneira demeajudar; eu cambaleava
indignamente, estava a ponto decair no meio da pista. Mas não era a pista deuma
discoteca, era a sala da casa dealguém.
Não somos amigos, eu dizia a Alejandra, no sonho. Por quevocêestá meajudando se
não somos amigos?
Porquesomos amigos, respondia ela. Vocêestá sonhando eno sonho pensa quenão
somos amigos. Mas somos amigos. Tenteacordar, medizia. Eu tentava, mas continuava
no sonho ecomeçava a meangustiar.
Finalmentedespertei. Emedormia a meu lado. Reconheci, na televisão, as cenas finais
deAmores expressos. Achei absurdo quetivéssemos adormecido vendo umfilmetão bom
como Amores expressos.
Liguei para Alejandra, contei-lheo sonho, ela riu. Eu gosto de“El trenhacia el olvido”,
disseela. Eu também, mas gosto muito mais de“El rey y yo”, respondi. Perguntou como iam
as coisas comEme. Não sei, respondi, instintivamente. Eéverdade, penso agora: não sei.

•••

Há dor mas tambémhá felicidadeao abandonar umlivro. Comigo aconteceu assim, pelo
menos: primeiro o melodrama deter perdido tantas noites numa paixão inútil. Mas depois,
como passar dos dias, prevaleceumligeiro vento favorável. Voltamos a nos sentir
cômodos nessequarto emqueescrevemos semgrandes planos, sempropósitos precisos.
Abandonamos umlivro quando compreendemos quenão era para nós. Detanto
querer lê-lo acreditamos quenos cabia escrevê-lo. Estávamos cansados deesperar que
alguémescrevesseo livro quequeríamos ler.
Não penso emabandonar meu romance, no entanto. Osilêncio deEmemefereeo
entendo. Eu a obriguei a ler o manuscrito eagora quero obrigá-la a aceitá-lo. Eo peso de
sua possível desaprovação mefaz desejar não tê-lo escrito ou abandoná-lo. Mas não. Não
vou abandoná-lo.

•••

Penso emalmoçar commeus pais, mas a perspectiva devê-los celebrando o triunfo de


Piñera medesalenta. Telefono para eles edigo quenão irei votar. No ônibus escuto canções
muito boas, mas derepentea música, qualquer música, mesoa insuportável. Guardo os
fones deouvido eretomo a leitura deA promessa da aurora. Fico pregado nesta frase: “Em
vez degritar, escrevo livros”.
Voto comumsentimento depesar, compouquíssima esperança. Sei queSebastián
Piñera ganhará o primeiro turno ecomcerteza tambémo segundo. Acho isso horrível. Já se
vêqueperdemos a memória. Entregaremos plácida, candidamenteo país a Piñera eao
Opus Dei eaos Legionários deCristo.
Depois devotar, ligo para meu amigo Diego. Espero umbomtempo por ele, sentado no
gramado da praça, perto do espelho d’água. Fazemos a caminhada atéo Templo de
Maipú, passamos pelo local ondeantigamenteficava o supermercado Toqui. Diego éde
Iquiquemas mora emMaipú há dez anos. Era boa a carneea confeitaria, digo, edescrevo
comdetalhes o supermercado. Elemeescuta respeitosamente, mas talvez pensequemeu
interesseéabsurdo, porquetodos os supermercados são iguais.
Nunca tinha vindo ao Templo, diz Diego. Entramos no meio deuma das tantas missas
do domingo. Não há muita gente. Sentamos perto do altar. Olho as bandeirinhas, conto-
as. Sentamos, depois, na escadaria da entrada, escuta-sea música pelos alto-falantes e
conversamos enquanto alguns meninos jogambola ea todo momento a lançamperto de
nós. Meapresso emdevolvê-la, mas derepenteumdeles chuta forteeacerta Diego na cara.
Esperamos quesedesculpemou ao menos sorriamcomo sesedesculpassem. Não o fazem.
Fico coma bola, os meninos seaproximam, tiram-na das minhas mãos. Tenho raiva.
Tenho vontadedelhes dar uma bronca. Delhes dar uma lição.
Falamos sobreMaipú, sobrea ideia chilena devila, tão distinta do queseentendena
Argentina ou na Espanha. Osonho da classemédia, mas deuma classemédia semritos,
semenraizamento. Pergunto seelelembra deuma sériedo Canal 13 quesechamava Villa
Nápoli. Diego não selembra. Às vezes esqueço queémuito mais jovemqueeu.
Falamos sobremeu romance, mas tambémsobreo romancequeDiego publicou há
pouco tempo equeli semanas atrás. Digo quemeagrada, tento precisar o quemeagrada.
Penso numa cena emespecial. Oprotagonista viaja a Buenos Aires comseu pai elhepede
umlivro. Opai o compra e, à maneira deaprovação, abre-o ediz “éresistente”.
Isso vocênão inventou, digo eu. Essas coisas não seinventam. Diego ri, movendo a
cabeça como sedançasseheavy metal. Não, não inventei, diz.
Depois vamos ao apartamento ondeDiego mora comsua mãe, na avenida Sur. Sua
mãesechama Cinthya. Comentamos os resultados, quea esta hora da tardejá são claros.
Segundo turno, comenormevantagempara Piñera.
Diego prepara o abacateecoloca azeite. Digo quenão énecessário botar azeite. Meu
pai sempremedava bronca por isso, diz, eri. Pelo menos nisso seu pai tinha razão,
respondo, erio também.

•••

Pensei quevocêestava brincando quando falou queescrevia sobremim, medisseEme, no


restaurante. Meolhou como seprocurasseo meu rosto. Senti queescolhia comcuidado as
palavras. Quesedispunha a falar. Mas sedetevenumsorriso.
Fomos comer sushi no lugar desempre. Opedido demorava demais emelembrei da
cena do almoço, quando criança –a angústia deirmos embora comos pratos servidos. É
como no romance, eu ia dizer, mas ela meolhou comapagada curiosidade. Agora penso
quemeolhou comcompaixão. Então achei quecomeçava o momento da espera emquesó é
possível falar da espera. Mas ela começou outra conversa, comumtomqueparecia ter
pensado, quecomcerteza tinha ensaiado longamentenaqueles dias.
Eu não mudei tanto, disseela. Evocêmuito menos. Faz umas semanas tedisseque
devíamos fingir queacabávamos denos conhecer. Não entendo muito bemo queeu quis
dizer. Acho quenestes meses temos rido do queéramos. Mas éfalso. Continuamos sendo o
queéramos. Agora entendemos tudo. Mas sabemos pouco. Sabemos menos queantes –
isso ébom, disseeu, temeroso: ébomnão saber, esperar apenas.
Não. Não ébom. Seria bomsefosseverdadeiro. Queremos estar juntos epara isso
estamos atédispostos a fingir. Não mudamos tanto a ponto depoder estar juntos denovo.
Eeu mepergunto sevamos mudar.
Compreendi o queestava por vir emepreparei. Nas discussões eu costumava me
refugiar numcerto otimismo, mas ela fechava a cara edepois atéo corpo para meexpulsar.
Sempremelembro dessa dor, uma noite, há anos: emplena discussão começamos a nos
acariciar eela sepôs emcima demim, mas no meio da penetração não pôdecontrolar a
raiva quesentia efechou a vagina por completo.
Derepente, semqueeu esperasse, Emecomeçou a falar sobreo romance. Tinha
gostado, mas durantetoda a leitura não tevecomo evitar uma sensação ambígua, uma
vacilação. Vocêcontou minha história, disseela, eeu deveria teagradecer por isso, mas
acho quenão, quepreferiria queninguémcontasseessa história. Expliquei quenão era
exatamentesua vida, queapenas tinha tomado algumas imagens, algumas lembranças
quetínhamos dividido. Não dêdesculpas, disseela: vocêdeixou algumas notas no cofre,
mas detodo modo roubou o banco, disse. Achei essa uma metáfora tola, vulgar.
Chegou o sushi, finalmente. Meconcentrei no sashimi desalmão –comi com
voracidade, untei cada pedaço comshoyu emexcesso eos pedaços degengibreea
abundanteraiz-fortemeincendiavama boca. Era como seeu quisessemeaplicar um
castigo absurdo enquanto pensava queamava aquela mulher, queera umamor pleno,
não uma forma desgastada deamor. Queela não era para mimumhábito, umvício difícil
deabandonar. Eno entanto, àquela altura, eu já não estava, já não estou, disposto a lutar.
Comi o sushi, os pedaços quemecorrespondiametambémos dela, equando a
bandeja ficou vazia Ememedisse, comaspereza, vamos parar por aqui. Nisso chegou o
gerenteecomeçou umprolongado pedido dedesculpas quenenhumdenós dois queria
escutar. Ofereceu-nos caféesobremesa grátis, por conta da casa, para compensar a
demora. Escutamos demodo ausente. Respondemos mecanicamentequenão tinha
importância, quenão sepreocupasse. Efomos embora, cada umpara o seu lado.
Ao chegar emcasa pensei nas palavras deEme. Achei queela estava certa. Quesabemos
pouco. Queantes sabíamos mais, porqueestávamos cheios deconvicções, dedogmas, de
regras. Queamávamos essas regras. Quea única coisa quetínhamos amado deverdade
era essepunhado absurdo deregras. Eagora entendemos tudo. Entendemos, emespecial,
o fracasso.
Alone again (naturally). Oquemais medói éo naturally. Vamos então, vocêeeu, cada
umpara o seu lado.

•••

Faz alguns dias Emedeixou comos vizinhos uma caixa para mim. Só hojemeatrevi a abri-
la. Havia dois coletes, umcachecol, meus filmes deKaurismäki eWes Anderson, meus
discos deTomWaits eWu-Tang Clan, alémdealguns livros queduranteesses meses lhe
emprestei. Entreeles estava tambémo exemplar deEm louvor da sombra, o ensaio de
Tanizaki quelhedei depresentehá anos. Não sei sepor crueldadeou por descuido, ela o
incluiu na caixa.
Ela nunca medisseseo havia lido, por isso mesurpreendeu reconhecer, agora, no
livro, as marcas deumgrosso marca-texto amarelo. Costumava importuná-la por isso:
seus livros ficavamfeios depois dessa espéciedebatalha queera a leitura. Pode-sedizer que
ela lia coma ansiedadedequemmemoriza datas para umexame, mas não, havia se
acostumado, simplesmente, a marcar dessa maneira as frases das quais gostava.
Falo deEmeno passado. Étristeefácil: já não está. Mas tambémdeveria aprender a
falar demimmesmo no passado.

•••

Voltei ao romance. Ensaio mudanças. Da primeira para a terceira pessoa, da terceira para
a primeira, atépara a segunda.
Distancio eaproximo o narrador. Enão avanço. Não vou avançar. Mudo decenários.
Apago. Apago muitíssimo. Vinte, trinta páginas. Esqueço esselivro. Meembriago aos
poucos, adormeço.
Edepois, ao despertar, escrevo versos edescubro queisso era tudo: recordar as
imagens emplenitude, semcomposições delugar, semmaiores cenários. Conseguir uma
música genuína. Nada deromances, nada dedesculpas.
Ensaio apagar tudo edeixar queprevaleça somenteesteritmo, estas palavras:

Amesa consumida pelo fogo


Essas marcas no corpo demeu pai
Arápida confiança nos escombros
As frases na parededa infância
Orumor demeus dedos hesitantes
Tua roupa nas gavetas deoutra casa
Orumor interminável dos carros
Aesperança ardentedevoltar
Sempassos nemcaminho dememória
Alarga convicção dequeesperamos
Queninguémreconheça emnosso rosto
Orosto quejá há tempo perdemos.

•••

Semanas semescrever nestediário. Overão inteiro, quase.


Estava acordado, semsono, escutando TheMagneticFields, quando começou o
terremoto. Sentei na soleira epensei, comcalma, comestranha serenidade, queera o fimdo
mundo. Élongo, pensei também. Cheguei a pensar muitas vezes: foi longo.
Quando por fimterminou, meaproximei dos vizinhos, umcasal esua filha pequena,
quecontinuavamabraçados, tiritando. Como estão?, perguntei. Bem, respondeu o
vizinho, umpouco assustados, nada mais –ecomo estão vocês, meperguntou. Respondi,
sorrindo: estamos bem.
Faz dois anos quemoro sozinho eo vizinho não sedá conta, pensei. Pensei tambémque
agora era eu o vizinho solitário, agora eu era Raúl, eu era Roberto. Lembrei-me, então, do
romance. Acreditei, alarmado, quea história terminaria destemodo: comaquela casa de
Maipú, a casa deminha infância, destruída. Oquemehavia levado a narrar o terremoto de
1985? Eu não sabia, não sei. Sei, no entanto, queduranteaquela noitetão distantepensei
pela primeira vez na morte.
Amorteera então invisível para os meninos como eu, quesaíamos, quecorríamos sem
medo por aquelas travessas defantasia, a salvo da história. Anoitedo terremoto foi a
primeira vez quepensei quetudo poderia vir abaixo. Agora creio queébomsaber disso.
Queénecessário lembrar a cada instante.
Passadas as cinco da manhã saí para percorrer o bairro. Caminhei muito lentamente,
esperando a ajuda dos fachos das lanternas queiamemdesordemdesdeo chão atéas
copas das árvores edas luzes dos carros queenchiamderepenteo espaço. As crianças
dormiamou tentavamdormir deitadas na calçada. Avoz deumhomemassegurava, de
uma esquina a outra, como ummantra: estamos bem, estamos bem.
Liguei o rádio no celular. Ainformação ainda era escassa. Começava aos poucos o
inventário demortes. Os locutores vacilavameumdeles atédisseesta fraseque, emtais
circunstâncias, era cômica: definitivamenteisto foi umterremoto.
Cheguei, por fim, perto da casa deEme, efiquei na calçada à espera dealgumsinal. De
repenteescutei sua voz. Falava comsuas amigas, mepareceu quefumavamno jardimda
frente. Ia meaproximar mas refleti quebastava aquilo, saber queestava a salvo. Eu a sentia
muito próxima, a poucos passos, mas preferi ir embora logo. Estamos bem, pensei, com
umestranho esboço dealegria.
Voltei para casa ao amanhecer. Fiquei impressionado coma imagem, ao entrar. Dias
antes tinha organizado os livros. Agora configuravamuma generosa ruína no chão. O
mesmo ocorria comos pratos edois vitrais. Acasa resistiu, detodo modo.
Pensei empartir deimediato a Maipú, mas pouco antes das noveda manhã consegui
mecomunicar comminha mãe. Estamos bem, disseela, emepediu quenão fossevê-los, que
era muito perigoso o deslocamento. Fiqueorganizando seus livros, disseela. Não se
preocupeconosco.

Mas irei. Amanhã cedo vou vê-los, vou acompanhá-los.

Étarde. Escrevo. Acidadeconvalescemas retoma aos poucos o movimento deuma noite


qualquer, o fimdo verão. Penso ingenuamente, intensamentena dor. Nas pessoas que
morreramhoje, no sul. Nos mortos deontem, deamanhã. Enesteofício estranho, humilde
ealtivo, necessário einsuficiente: passar a vida olhando, escrevendo.

Depois do Peugeot 404 meu pai teveum504 azul pálido eemseguida um505 prateado.
Nenhumdesses modelos circula agora pela avenida.
Observo os carros, conto os carros. Meparecetristepensar quenos assentos traseiros
vão meninos dormindo, equecada umdesses meninos recordará, alguma vez, o antigo
carro emqueanos atrás viajava comseus pais.

Santiago, fevereiro de 2010


ALEJANDROZAMBRAnasceu emSantiago, no Chile, em1975. Formas de voltar para
casa (2011), seu terceiro romance, foi traduzido para o inglês, o italiano, o francês, o
alemão eo holandês, entreoutros idiomas. Emseu país, o livro conquistou o Prêmio
Altazor eo Prêmio do Conselho Nacional do Livro. Os romances anteriores do autor,
Bonsai eA vida privada das árvores, foramlançados pela CosacNaify em2012 e2013,
respectivamente. Zambra escreveu ainda dois volumes depoesia, Bahía inútil (1998) e
Mudanza (2003), alémda coletânea deensaios No leer (2010). Eleito pela revista britânica
Granta como umdos 22 melhores jovens escritores hispano-americanos, Zambra é
tambémcrítico eprofessor deliteratura.
OUTROS
TÍTULOS
DO AUTOR
Bonsai éa história deum
amor, o deJulio eEmilia,
eéa história do fimdesse
amor. Étambémuma
história sobrea
consciência do fim. Enão
apenas para Emilia e
Julio, “jovens tristes que
leemromances juntos,
queacordamcomlivros
perdidos entreas
cobertas”, mas também
para nós, leitores, quena
primeira linha desta
história falsamente
simples recebemos a
notícia: “No final ela
morreeelefica sozinho”.
Resta o cultivo obsessivo
debonsais ea literatura,
fraturada, comsuas
mentiras doces, livros
apócrifos eirônica
metalinguagem.
Romancedeestreia do
escritor chileno, o livro
foi adaptado para o cinema.
[ed. impressa] | [ed. eletrônica]

Segundo livro do escritor chileno Alejandro Zambra, Avida privada das árvores éa
história deuma espera. Julián, umprofessor deliteratura easpirantea escritor, aguarda a
chegada deVerónica, sua mulher. Mas ela não chega ea espera sealonga. Junto coma
enteada, a pequena Daniela, Juliándistrai as horas contando histórias deárvores para a
menina. Enquanto a mulher não chega, Juliánrecompõena memória seu passado e, na
imaginação, inventa umfuturo possível no qual sua companheira já não existe.
[ed. impressa] | [ed. eletrônica]
©CosacNaify, 2014, e-book, 2014
©Alejandro Zambra, 2011

Originalmentepublicado emespanhol por Editorial Anagrama S. A.

Coordenação editorial MARTAGARCIA


Preparação eassistência editorial LIVIADEORSOLA
Projeto gráfico original FLÁVIACASTANHEIRA
Composição MÁRIOFERRAZ JR.
Revisão THIAGOLINS, PEDROPAULODASILVA
Adaptação ecoordenação digital ANTONIOHERMIDA
Produção deePub JOANADECONTI

Aeditora agradecea colaboração deJosely Vianna Baptista na revisão dos poemas.

1ªedição eletrônica, 2014

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


Dados Internacionais deCatalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Zambra, Alejandro [1975-]


Formas devoltar para casa: Alejandro Zambra
Título original: Formas de volver a casa
Tradução: JoséGeraldo Couto
São Paulo: CosacNaify, 2014

ISBN978-85-405-0805-7

1. Ficção chilena
2. Literatura latino-americana
I. Couto, JoséGeraldo II. Título.

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção: literatura chilena: 863.83
COSAC NAIFY
rua General Jardim, 770, 2° andar
01223-010 São Paulo SP
cosacnaify.com.br [11] 3218 1444
atendimento ao professor [11] 3823 6560
professor@cosacnaify.com.br
Estee-book foi projetado edesenvolvido emjunho de2014, combasena 1ª
edição impressa, de2014.

FONTES ArnhemeSangBleu
SOFTWARELibreOfficeeWriter2ePub deLuca Calcinai

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