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A

Multiplicação
Dramática

EDITORA
HUCITEC
APRESENTA ÇAO

UAND0 fui convidado pela editora deste


livro no Brasil, a HUCITEC, para fazer a apresen-
tação dele, me recordei que em 1971 (com 22 anos)
comecei a estudar psicodrama. Lio livro Psicodrama,
cuando e por que dramatizar e alguns anos mais
tarde Psicodrama Psicanoalítico en Grupos e Clínica
Grupal, todos de Pavlovsky, Moccio e Bouquet. Estes
livros são importantes referências. Um início de ca-
minho juvenil e apaixonado.
Hoje, em 1991, estou na posição de um "aluno"
apresentando o "mestre". Um sacrilégio, ousadia.
Assumir uma posição de autoridade.
Este é oprimeiro livro de Pavlovsky e Kesselman
traduzido para o
portuguës.
Lendo no livro a cena descrita por Tato, e acel1
lando o convite para que o leitor também muliplt-
m e Ocorreu a seguinte cena: eu tenho dois
nos, estou brincando ao redor de um velho poçO
Qe
agua, junto irmão. Caio no poço e
com meu
Eu pa, que estava lavando o carro, atende aos
Chamados de meu irmão tira da água.
ne
salvar. Um helicóptero que
e me
ve
lança uma bóia sal
Va-vida atrás da
rebentação na praa.
10 APRESENTAÇÃO

Fiquei pensando, a partir desse escrito, oue


sumir umaposição de pai (autoridad) as-

remunciar à espera de um salvador, deixar de também


ser
náufrago (começo a enirar no milo
familiar que, au.
como os autores falam, são máquinas reprodutoras
dos desejos inerentes ao binömio
Messias e náu.
frago). Meu nau-frágio, minha fragilidade. Que me.
do de obrigatoriamente ser uma autoridade que

pode naufragar (não posso mais brincar no
poço).
Demorei muito para perceber que aceitar minha
fragilidade não era nau-frágio, ao contrário, isto
me levou a descobrir minha potência.
Os autores vieran da
psicanálise para o psico-
drama, eu comecei pelo psicodrama e depois me
aproximei da psicanálise e de outras teorias da sub
jetividade. Talvez por isso, tenho algumas referên-
cias distintas em relação à multiplicação
dramática
No sétimo Congresso de Psicodrama da Fede-
ração Brasileira de Psicodrama, em 1990, apre
sentei um trabalho sobre a caracterização do psi-
codrama e do sociodrama e fiz referências a uma
forma de psico-sócio-drama - que vivenciei em
alguns laboratórios com Pavlovsky-a mulupl-
cação dramática. Weste artigo escrevo que vejo a
multiplicação dramática como um sharing morent
no em alo. A ressonância enfatiza um determinado
aspecto do sharing além do participar junto, ao
compartilhar.
ao
ajirma que a cura se dá pelo literal alr
Vessamento do paciente pelo estado esponlune
Crtalivo do
grupo. Quando isso se dá simulianea
mente entre dois
membros do grupo, eu a
APRESENTAÇÃO 11

nheco o conceito de tele do Moreno (a qual também

pode se propagar por contágio).


Descobrir a concepção grupal da multiplicação
dramática instrumentou bastante meu trabalho. Nos
manicômios enconiro pouco espaço para esse mo-
vimento imaginário necessário para, como a crian-
ca, aprender a curar-se brincando. O manicômio,
que é o espaço de confinamento da loucura, é sem
espaço de expressão da iluso como brincadeira.
Sem alegria, sem di-versão (outra versão) como diz
Kesselman e como queria Moreno (introduzir a ale-
gria na psiquiatria).
Multiplicar, com todos os códigos, nos manicó-
mios é um desafio e um aprendizado de descons-
trução manicomial.
Em vez do dilema que Kesselman expressou: do-
brar-se ou romper-se, descobri, com ele mesmo, o
des-dobrar-se na multi(m)plicação.

Pedro Mascarenhas
que importa quem
fala disse alguém -

fala
que importa quem
Samuel Beckett
INTRODUÇÃO

ESTE livro é outro elo de uma cadecia que


se iniciou com Escenas
Temidas del Coordinador
de grupos (escrito em Buenos Aires em 1975 após
uma experiência compartilhada com Luís Frydlews-
ky). Nele relatávamos as cenas conflitivas dos pro-
fissionais que decidiram estudar-se com nossa ajuda,
vidas como
nos desejos e temores pessoais de suas

coordenadores de grupo, como terapeutas. Conti-


em outros países da Europa onde
nuou na Espanha e
de Multiplicação Dramática
e
conduzimos oficinas
cursos regulares de Análise Didática Grupal. Aí que
de outra cul-
riamos indagar, com colegas europeus,
assinalavam
Tura, as experiências vitais pessoais que a
um livro que
a matriz do criativo. E desta época

Sintetiza: Espacios y Creatividad


Argentina retomamos coorde a
NOvamente na
fruto dela é este livro que
dao compartilhada e
io
nova experienCla
nao é
apenas a síntese de uma
uma
mas também expressão de
a
Iniciado, em ugar
Odalidade de trabalho: a de multiplicar
de reduzir.
sobre o mnd
elaboração
qui se transmite nossa
em Buenos
erial do seminário começamos
que
16 INTRODUÇÃO

Aires em 1988 e que chamamoS: Umberto Eco ea


Multiplicação Dramática. Nova experiência com
psicoterapeutas argentinos de desatar seus imaginá-
rios criativos contribuiram para a gestação de uma
nova corrente em Psicoterapia: "C gozo estético na
arte de curar". Queremos mencionar nosso reco-
nhecimento aos colegas que interviram na experiên-
cia. São eles: Sacha Altaraz, Adriana Arias, Alicia
de Dios, Susana Evans, Nelly Fatala, Edith Gallegos,
Viviana Gatkin, Susana de Kesselman, María Elena
de Kischner, Ana Kleiner, Buby
Navedo, Juan Car-
los Rabovich, Adriana Ricca, Ana
Romerstein, Elia
Sánchez, Hebe San Martín, Marta Scarlatto, Nora
Simkim, René Smolovich.

Buenos Aires, maio de 1989.


SOBRE UMA CENA
PESSOAL*

COMO Se poderiam articular as idéias de


Guattari-Deleuze e os afazeres clínicos?
"Eu vinha estudando Deleuze e Guattari há muito
tempo e então me ocorreu que se poderia juntar o
corpo teórico deles e tratar de pensar uma metodo-
logia técnica, para elaborar "algo" que sejustificasse
a partir da
potência teórica de Deleuze e Guattari
e a
partir da riqueza técnica artesanal com as quais
atravessei algumas experiências: Psicodrama more-
niano, analítico, freudiano, bioenergética,
listas de grupo especia-
etc.
primário, os que seguem Lapassade
e
imagino que a
multiplicação dramática que
vocês instrumentam na clínica e na
formação com
Kesselman.
Ainda que a
pontuação deste texto resulte às vezes ambígua, e
contraditória, quanto ao
manejo de maiúsculas, minúsculas e pontos,
gulas,
de
elc. tem sentido para aquele que escreve como
fraturas do relato. muliplicidaae
. Na Análise Didática Grupal
que realizamos em Madri
ou)
ae
com Kesselman nosso
objetivo tinha algumas
(1978-79 e
Baremblitt, em relação a uma analogias com a proposta
PEulas caracterizada pela integraçãoexperiência de formação de
da teoria e técnica psicotera-
aCionais, com as contribuições do psicanalfticas tra-
a1onio social, transacional, gestalte psicodrama e técnicas de
ação, labo-
a abordagem procura bioenergética. Só
Essa é sua acoplar a riqueza teórica de que Baremblitt
Deleuze
em
diferença e singularidade. O
e Guatlarn.
esquizodrama.
18 SoBRE UMA CENA PESSOAL

Também Artaud influiu muito, um


iluminado
que propôs uma revolução no teatro, ainda não ca.
pitalizada e muito menos na prática terapêutica. A
tudo isso talvez se poderia chamar Esquizodrama,
Trata-se de um afazer e de um saber. Porque
não meparece que deva chamar-se nem teoria
nem técnica, porque não é uma
disciplina, porque
não é uma ciência, porque não é uma especifici-
dade e isto é importante justamente porque esta
orientaço é crítica da cientificidade e da especi-
ficidade."
(Da fala de Gregorio Baremblitt sobre "Esqui-
zodrama" no Centro de Psicodrama Psicana-
litico Grupal, 1986.)

Para escrever sobre a multiplicação dramática nos


grupos tenho escolhido uma cena pessoal, que levei
a um grupo de treinamento que coordenamos com
H. Kesselman, onde se trabalhou com multiplicação
dramática.
Kesselman, lendo meu material, tratará de orde-
na-lo na segunda parte deste ensaio.
Se sou fiel a
que acredito ser a multiplicação dramática, somente
poderei expor muito de caos e de desordem, na i -
lidade exponho uma
cena pessoal a um grupo Pa
Sua investigação através da multiplicação drane
ática

etalvez o texto será então


atravessado por iu
cortes, filums e rizomas
Esse foi o
deleuzianos.
pacto com Kesselman. a
Eimportante esclarecer que não o n s i d e r a m o s

mulliplicação dramática uma técnica, mas Umas uma nova

forma de
"pensar" o dispositivo grupa.
SOBRE UMA CENA PESSOAL 19

Para quc exista multiplicação dramática são ne-


cessárias: a) a cena de um protagonista e b) as im-
provisações quc cada integrante do grupo realizará
em forma de cenas pelo efeito de ressonância que
a cena inicial produz em cada integrante.
"Para que uma coisa tenha um sentido é preciso
uma cena c para que exista uma cena, é precisoo
uma ilusão, um mínimo de ilusão, de movimento
imaginário de desafio ao real, que nos arraste que
nos seduza que nos rebele.
"Sem esta dimensão propriamente estética, mí-
tica, lúdica, nem sequer existe cena do político
na qual ALGO possa constituir um acontecimento
e esta ilusão mínima tem desaparecido hoje para
nós.
"Temos uma super-representação deles na Mídia
mas nenhuma imaginação verdadeira.
"Tudo é obsceno, dado que através da Mídia tudo
está feito para ser visto sem ser contemplado, alu-
cinado nas entrelinhas, absorvido como o sexo ab-
sorve o voyeur: à distância. Nem cspectadores, nem
atores: somos uns voyeurs sem ilusão". (Jean Bau-
drillard, " As estratégias fatais".)

Eu tinha aproximadamente nove anos, recém-


chegado ao novo bairro em Palermo, havia chegado
em casa chorando
porquc uns meninos a várias qua-
dras de minha casa tinham me batido, humilhado e
envergonhado ao sair da padaria.
Deram-me pontapés
traseiro durante um per-
no
curso de duas
quadras recordo que os meninos per-
lenciam a uma classe social inferior à minha.
20 sOBRE UMA CENA PESSOAL

Eu sofria nem tanto peclos pontapés no


que não eram tao 1ortes ou melhor
traseiro
pareciam"
mulados" em sua força o
importante era a humi
lhação segundo me
parece recordar. O que real.
mente me fazia sofrer era a cena que
imaginava
iria ocorrer em minha casa quando contasse a pa-
pai o que havia acontecido. Lembro que um dos
meninos tinha bigodes. Eram quatro. Me bateram
durante duas quadras.

Eu cheguei chorando, papai me perguntou que


idade tinham
Os meninos que tinham me batido...
disse a ele que eram maiores que eu
me disse que queria vê-los...
me prometeu que não iria se meter
que só queria vê-los
fomos juntos caminhado à praça onde normalmente
OS meninos se reuniam. Os meninos estavam al
Não nos viram. Papai me pediu que Ihe mostrasse
o menino que havia me batido primeiro, indiquei
um deles, para mimo maior, o de bigodes
e esse babaca te bateu? vá brigar com ele agora
nenhum
ou.
mesmo, eu não vou deixar que
menino se meta,
c só..
anda vá dizer que você veio brigar com
Cu olhei o garoto de bigodes vi-o maior do que
que
nunca, tive uma sensação física de fraquea oronava

me invadia
todo o corpo, sentia que des
que tremia de medo...

No
original "boludo". (N.T.)
sOBRE UMA CENA PESSOAL 21

você tem quc brigar, vá brigar com ele, o moleque

de bigodes estava jogando bilboquê. Não nos via


papai se impacientava com minha covardia, anda
com ele
logo não seja cagão vá, brigue
aterrorizava
e quanto mais insistia mais eu me

não tinha forças


vá lá e diga-lhe que quer
agora é o momento,
vai ver
brigar apenas com ele, sem os amigos,
eu não deixo
como afina é certo que ele afina,

os meninos se metam.
que
Eu não saía do terror, tinha a impressão de que
era muito maior e mais forte que eu (era?).
eterna.
Para mim a cena foi longuíssima,
Sei que em um momento disse a meu pai
não me animo a brigar
quero voltar para casa,
com ele
é claro que você não se anima.
Recordo os olhos de papai expressão intrépida
frustração infinita.
Seu filho era um covardee
não me maior que eu
animo, é
anima não engane
nao é maior que você não se
a si mesmo
vamos pra casa! e voltamos caminhando juntos
em silêncio
até chegar em casa.

meu pai nunca ab-


sempre sensação de que
ve a
IVCu eSsa cena de covardia... cena que permaneceu
e cúmplice
U a entre
nós.. vergonhosa, silenciada
mesmo tempo
em uma pegada
dnslormando-se ao
Onde transitou parte de nossa história secrela..
22 SOBRE UMA CENA PESSOAL

A cena dramática é coordenada por


Nclly nae
po 2 gru-
São escolhidos no grupo os papéis dos
do bairro" de meu
"meninos
meninos
c o
"pal. Eu assumo o "meu
eu
papel aos dez anos de idade.
Dramatiza-se a cena tal qual surgiu em minha
lembrança.
Rcaliza-se primciro a cena dos golpes no traseiro
c dahumilhação quando cu saí da padaria.
Pedem-me um solilóquio, enquanto os meninos
me batem;
"Tenho raiva, medo, tenlho que escapar"
Não recordava do meu desejo de
escapar quan-
do relatci a cena no começo da
sessão, mas agora
sim me lembrei dele
quando na cena dramática
me sinto "surrado e
humilhado", me pergunto ago-
ra (cnquanto escrevo) por que não escapei deixei
que me batessem durante duas quadras. Desde es-
se momento associo qual éo meu limite aos golpes
recebidos sem escapar antes, quantas vezes fiquel
mais
tempo que necessário podendo ter saido
o
antes. Associo que só saí do país em 1978, quando
vieram buscar e escapei milagrosamente.
me
vez de ter
"escapado" milagrosamente, poderia l
Cscapado" antes. És Capado? (esta última ass
Claçaosurgiu recentemente e creio que é chav
Porque não fiz qualquer movimento de ar
cS
Cnquanto me batiam só6 agora me dei cona aao
dramatizar
deria
a cena, no
solilóquio. Na realidade 0
ter saído correndo.
2.
Nelly Etala, condutora de
psicodrama.

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