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A formação do conto em Borges,

Altair Martins
1. Borges leitor de contos: “o outro lado do texto”

Não sei se sou um bom escritor; creio ser um excelente leitor ou, em
todo o caso, um sensível e grato leitor.
Jorge Luis Borges

Nos vários textos em que analisa a obra de contistas, mais do que expor uma teoria do conto, Borges explana
uma teoria pessoal de leitura da narrativa curta. Para o argentino, que se considerava melhor leitor que escritor, a leitura
também deveria ser encarada como produção intelectual.
Nada mais correto, em Borges, do que aceitar a leitura como “escritura”, afinal o autor de O Aleph acabaria
possibilitando inversões radicais nas funções de leitor e de autor, ensinando um jogo ubíquo de responsabilidades na
produção intelectual. Quando o disco de Odin – único objeto terrestre de uma única face visível 1 – não podia ainda ser
visto, e o lado velado e invisível da literatura não parecia acessível, ninguém podia ainda transformar “o outro lado do
texto”. Borges pôde.
Nos textos orais de 1979, sob o fundo de análise da estrutura geral do conto policial, Borges embaralha as
relações entre texto e modo de leitura: segundo ele, seria possível ler D.Quixote como romance policial – o que
logicamente alteraria as impressões de leitura. Discutindo gêneros com Croce, Borges avalia que um gênero literário e a
própria literatura estão intimamente relacionados com as intenções de leitura que lhe dispomos. Nos caso dos contos de
Borges, é obviamente falso dizer que uma primeira leitura de um conto isolado permita impressões dos desvios
intelectuais e estruturais do narrador; mas é igualmente óbvio que uma leitura plural de contos acaba contagiando o
leitor inteligente, capacitando-o para a observação de tais amarras. Borges ensina a ler Borges pela leitura de Borges.
Assim ocorre na “Biblioteca pessoal”: Borges lê contistas, reinterpreta-os e, à sua maneira particular,
“interfere” na concepção estrutural de cada um através tão somente da leitura.
Borges leu e releu Edgar Allan Poe. Tinha pelo americano a admiração por um escritor que, como ele,
transformou uma forma literária. Sobre Poe, disse 2 que “De um só conto seu que data de 1841, ‘Os crimes da Rua
Morgue’, (...) provém todo o gênero policial”. Advinha da técnica do mistério policial o jogo de suspeitas até o
desvendamento derradeiro de toda a trama (ou crime, nesse caso). A “poética do conto” de Poe, com a qual Borges não
concordava, consistia justamente na unidade de efeito que se produziria ao final do relato. Tratava-se, assim, de
procurar um acontecimento especial e desenvolver uma arte de dosar a “excitação” narrativa. Para Poe, “se o conto for
longo ou breve demais, perde-se a excitação” 3. Segundo Charles Kiefer4, na revista El hogar, de 1937, Borges resenhou
o livro de Edward Shanks sobre Poe: primeiramente considerava irônica a dificuldade de um britânico elogiar um
americano, mas encontrava algo incontestável: “A consciência geral de que Poe foi um inventor ou imaginador
prodigioso, mas também um mau executor de suas invenções”. Na análise, Borges deixava entrever admiração por Poe,
mas não influência pessoal na sua escrita. Observava o estilo “oco e retumbante” do americano como elemento de baixo
tom,e destacava em contrapartida as atmosferas fantásticas e a ubiqüidade narrativa.
Borges não se reduziria à concepção um tanto matemática do conto: entendia os percalços da “filosofia da
composição” de Poe, mas aceitava o sugestivo e aberto na construção da narrativa curta. Em outras palavras, Borges
concebia a “excitação” sem a gradação subentendida na contística de Poe, com força narrativa no desfecho. A narrativa
de “O Aleph” basta para entrever que o desfecho deixa a irremediável sensação de termos sido enganados no labirinto
de realidades do texto – e talvez aí resida outro aspecto da concepção do conto em Borges: o desfecho não tem a suma
importância que Poe lhe dera, e os percalços narrativos que nos conduzem de uma “realidade de leitura” a outra se
prestam de modo mais eficaz ao prazer do moderno leitor de contos. Em verdade, a leitura dos contos de Borges
permite afirmar que ele desvia de Poe, “desviando do fim”, na medida em que a teoria do americano (famosa resenha
aos textos de Nataniel Hawthorne) aponta para um elemento catalisador de todo o processo contístico: o desfecho. Os

1
No conto O disco, de O livro de areia, Borges apresenta o disco de Odin, único objeto de apenas uma face visível; a face velada caberia apenas aos
homens “capazes de vê-lo”. A mesma ocorrência se dá com o martelo mijolnir, pertencente a Thor, filho de Odin: somente uma pessoa nobre de
atitudes poderia erguê-lo.
2
Edgar Allan Poe. Contos In: Biblioteca Pessoal. Prólogos (1988).
3
May, Charles E., ed. Short story theories. Ohio Univ. Press, 1976. Apud Nádia Battella Gotlib.
4
A poética do conto (2004).
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contos de Borges, “circulares”, labirínticos”, usam uma espécie de retórica da despretensão, apreendida talvez em
Kafka, de desviar de um plano a outro – o que permite refutar tal procedimento.
Sobre Kafka5, Borges destaca os relatos breves que alcançaram “transmudar as circunstâncias e as agonias em
fábulas. Escreveu sórdidos pesadelos em estilo límpido”. Assim, destaca – ou descobre borgianamente – uma
característica que boiava à tona dos contos de “Um artista da fome”: a duplicidade sem pontes evidentes entre forma e
conteúdo. É dizer que Borges encontra a segunda linha da poética do conto de Borges, uma espécie de “teoria do efeito
de estranheza” na qual o estilo deve atuar como coadjuvante das cenas agônicas, sob pena de se vulgarizar o efeito de
desconforto. Com Kafka, Borges descobrirá o efeito dos desvios narrativos através das falsas pistas e da desfaçatez dos
comentários aparentemente estranhos ao enredo.
A estranheza de Borges também pode ser lida em Cortázar, nos contos de Bestiário ou através do leitor Borges.
Em Cortázar6, Borges aponta a organização do texto a fim de que sutilmente adentremos “o caos“, a sensação de
estranheza dos contos. Cortázar chamará esse efeito, para que a concentração de elementos era fundamental, de
“esfericidade7”. Borges destacava a capacidade do contista de atrair o leitor – via sutileza de linguagem – para uma
realidade abismal:

Quando Dante Gabriel Rossetti leu o romance O morro dos ventos uivantes, escreveu a um amigo: “A
ação transcorre no inferno, mas os lugares, não sei por quê, têm nomes ingleses”. Algo análogo ocorre
com a obra de Cortázar. Os personagens da fábula são deliberadamente triviais. Rege-os uma rotina
de casuais amores e casuais discórdias. Movem-se entre coisas triviais: marcas de cigarro, vitrines,
bares, uísque, farmácias, aeroportos e plataformas de estações. Resignam-se aos jornais e ao rádio. A
topografia corresponde a Buenos Aires ou a Paris, e de início podemos pensar que se trata de meras
crônicas. Pouco a pouco sentimos que não é assim. Muito sutilmente o narrador atraiu-nos a seu
terrível mundo, onde a felicidade é impossível. É um mundo poroso, em que os seres se entrelaçam; a
consciência de um homem pode entrar na de um animal ou a de um animal na de um homem.
Também se joga com a matéria de que somos feitos, o tempo. Em algumas narrativas fluem e se
confundem duas séries temporais. O estilo não parece cuidado, mas cada palavra foi escolhida.
Ninguém pode contar o argumento de um texto de Cortázar; cada texto consta de determinadas
palavras em determinada ordem. Se tentamos resumi-lo, comprovamos que algo precioso se perdeu. 8

Borges foi o primeiro editor de Cortázar. E foi, também, o primeiro a considerar a “estranheza” uma virtude,
contanto que a teia narrativa a ela nos conduzisse com naturalidade. A variante que Cortázar habilmente trouxe de
Kafka e distendeu a seu modo, sob a imagem de uma “esfera” cuja sensação de leitura, como bem afirmou Borges, é de
um impacto produzido pelo conjunto de cada palavra “escolhida”, ampliou-se em Borges, para quem o impacto do
conto pode ser mais sentido fora da esfera, quando a sensação se multiplica através da relativização de realidades
produzida pela leitura do conto. No caso de Borges, a esfera não encerra, pois ele nos adverte da possibilidade de
sempre haver uma esfera além da esfera. O efeito acaba labiríntico, como se o lado externo da esfera nos colocasse
diante do Livro de Areia; ao abri-lo, retornamos ao miolo da esfera, ou adentramos a Biblioteca de Babel. É assim que
Borges avança na sua poética velada de conto – fazendo com que a estranheza se encontre tanto dentro quanto fora da
esfera.
Ainda em seus Prólogos, Borges analisa os contos de Kipling, considerando-os os contos do escritor britânico
(como Quiroga9) “obras-primas”: “Ao longo de minha longa vida terei lido e relido uma centena de vezes as obras aqui
escolhidas”. Sobre os contos, Borges destaca as falsas pistas, num esquema racional de estabelecer um desencontro
entre escrita e efeito: “Em todos eles, o autor, com sábia inocência, narra a fábula como se não chegasse a entendê-la
por completo e acrescenta comentários convencionais para que o leitor esteja em desacordo.” 10

O “desacordo” produzido no leitor será transformado por Borges numa religião: nos seus contos, ganharão vida
autônoma os comentários não-convencionais, de desvio, com uso das antinomias para que o leitor esteja de acordo não
com a essência subterrânea do conto, mas com os elementos de desvio. A mão traiçoeira de Borges ensina o leitor a
seguir quem está perdido. Desenvolve, sem que tenha teorizado, uma verdadeira teoria de desfaçatez da narrativa,
espectro sensível, mas que dificilmente alcança delimitação em seus contos. Um ponto de partida para o efeito
armadilha nos contos de Borges estará na alegoria por desvio.

5
América. Relatos breves. In: Biblioteca Pessoal. Prólogos (1988).
6
Julio Cortázar. Contos. In: Biblioteca Pessoal. Prólogos (1988).
7
CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio (1974).
8
Borges, Obras completas. In: Biblioteca Pessoal. Prólogos (1988), p. 521.
9
QUIROGA, Horácio. Decálogo do perfeito contista. Org. Sérgio Faraco. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 1999.
10
Obra citada p.584.
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Em Outras inquisições (1952), Borges analisa Nathaniel Hawthorne, curiosamente o mesmo autor-alvo usado
por Poe para a chamada “primeira teoria moderna do conto”. No longo ensaio sobre Hawthorne, Borges analisa o
processo narrativo por alegoria, partindo da opinião de Poe, que havia acusado os usos desse processo na narrativa de
Howthorne como “indefensáveis”:

Hawthorne leu aos seis anos o Pilgrim's Progress; o primeiro livro que ele comprou com o próprio
dinheiro foi The Faerie Queen: duas alegorias. Também, embora seus biógrafos não o digam, a
Bíblia; talvez a mesma que o primeiro Hawthorne, William Hawthorne de Wilton, trouxera da
Inglaterra junto com uma espada, em 1630. Acabei de pronunciar a palavra alegorias; essa palavra é
importante e, em se tratando da obra de Hawthorne, talvez imprudente ou indiscreta. Sabe-se que
Edgar Allan Põe acusou Hawthorne de alegorizar e que aquele opinava serem tal atividade e gênero
indefensáveis. Duas tarefas nos deparam: a primeira, indagar se o gênero alegórico é, de fato, ilícito; a
segunda, indagar se Nathaniel Hawthorne incorreu nesse gênero. Que eu saiba, a melhor refutação das
alegorias é a de Croce; a melhor vindicação, a de Chesterton. Croce acusa a alegoria de ser um
enfadonho pleonasmo, um jogo de vãs repetições, que primeiro nos mostra (digamos) Dante guiado
por Virgílio e Beatriz para depois explicar, ou dar a entender, que Dante é a alma, Virgílio a filosofia,
ou a razão, ou a luz natural, e Beatriz a teologia ou a graça. Segundo Croce, segundo o argumento de
Croce (o exemplo não é dele), Dante primeiro teria pensado: "A razão e a fé operam a salvação das
almas" ou "A filosofia e a teologia nos conduzem ao céu" e depois, onde pensou razão ou filosofia,
pôs Virgílio e, onde pensou teologia ou fé, pôs Beatriz, o que seria uma espécie de mascarada. A
alegoria, segundo essa interpretação desdenhosa, viria a ser uma adivinhação, mais extensa, mais
lenta e muito mais incômoda que as outras. Seria um gênero bárbaro ou infantil, uma distração da
estética.11

Borges aceita a alegoria por acreditar, como Chesterton, que a operação não se baseia numa mera combinação
binária na qual um elemento “mascara o outro”. E com razão, diria o leitor de Borges: qual elemento mascara e qual é
mascarado? Seus contos dão prova de que a realidade é plural e infinita, bastando o deslocamento do olho para a
multiplicação do mundo. Se assim crê o leitor de Borges, concordará que entre alegoria e realidade não há mentira e
verdade, e a postulação de uma alegoria é, também, a postulação de uma outra categoria de verdade. E, se o leitor de
Borges for também um leitor de Pierre Menard, concordará que os conceitos de original e cópia são alegorias de si
mesmos. Ele observa que Chesterton

Argumenta que a realidade é de uma interminável riqueza e que a linguagem dos homens não esgota
esse vertiginoso caudal. Escreve: "O homem sabe que há na alma matizes mais desconcertantes, mais
inumeráveis e mais anônimos que as cores de um bosque outonal... Crê, no entanto, que esses
matizes, em todas as suas fusões e conversões, podem ser representados com precisão por meio de um
mecanismo arbitrário de grunhidos e chiados. Crê que mesmo de dentro de um corretor da Bolsa
realmente saem ruídos que significam todos os mistérios da memória e todas as agonias do desejo...".
Daí infere Chesterton a possibilidade de haver diversas linguagens que de algum modo correspondam
à inapreensível realidade; entre muitas outras, a das alegorias e das fábulas. (...) Não sei se a tese de
Chesterton é válida; sei que, quanto menos urna alegoria for redutível a um esquema, a um frio jogo
de abstrações, melhor ela será.12

Borges põe a salvo a boa alegoria, aquela capaz de fundar uma realidade e não somente mascarar uma verdade.
Por isso, coerente com sua posição antimatemática do conto, evita os esquemas pobres, cuja linearidade conduz mais ao
enfado que à novidade, erro que identifica em Hawthorne:

Hawthorne era um homem de contínua e curiosa imaginação; mas refratário, digamos assim, ao
pensamento. Não digo que pensava por meio de imagens, de intuições, como costumem pensar as
mulheres, não por meio de mecanismo dialético. Foi prejudicado por um erro estético: o desejo
puritano de fazer de cada imaginação uma fábula levava Hawthorne a acrescentar-lhes moralidades e,
às vezes, a falseá-las e a deformá-las. Conservaram-se os cadernos onde ele concisamente tomava
nota de seus argumentos. Em um deles, de 1836, está escrito: "Uma serpente é admitida no estômago
de um homem e alimentada por ele, dos quinze aos trinta e cinco anos, atormentando-o
terrivelmente". Isso já basta, mas Hawthorne se vê na obrigação de completar: "Poderia ser um
emblema da inveja ou de outra paixão maligna". Outro exemplo, este de 1838: "Que ocorram fatos
estranhos, misteriosos e atrozes que destruam a felicidade de uma pessoa. Que essa pessoa os impute

11
Jorge Luis Borges, obra citada, p.53.
12
Jorge Luis Borges, obra citada, p.54.
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a inimigos secretos e que, por fim, descubra que ela é a única culpada e a causa. Moral: a felicidade
está em nós mesmos".13

Aceitando a alegoria sem as correspondências óbvias, Borges salienta sua preferência pelos desvios, sem
indicações de caminhos a se seguir. Nele, a alegoria conhece a vereda e a ubiqüidade, encontrando nos desvios as
alterações de eixos de significado, as hipálages entre realidades, usando exemplos ainda de Hawthorne:

(...) Citarei mais dois esboços, bastante curiosos, cujo tema (não ignorado por Pirandello nem por
André Gide) é a coincidência ou a confusão do plano estético e do plano comum, da realidade e da
arte. Eis aqui o primeiro: "Duas pessoas encontram-se na rua, à espera de um acontecimento e da
aparição dos principais atores. O acontecimento já está ocorrendo, e são elas mesmas os atores". O
outro é mais complexo: "Que um homem escreva um conto e constate que este se desenrola contra
suas intenções; que os personagens não se comportem como ele queria; que ocorram fatos não
previstos por ele e que se aproxime uma catástrofe que ele tentará, em vão, evitar. Esse conto poderia
prefigurar seu próprio destino, e um dos personagens ser ele mesmo". Tais jogos, tais momentâneas
confluências do mundo imaginário e do mundo real – do mundo que no decorrer da leitura fingimos
ser real – são, ou parecem-nos, modernos. Sua origem, sua antiga origem, talvez esteja naquela
passagem da Ilíada em que Helena de Tróia tece seu tapete, e o que ela tece são batalhas e
desventuras da própria guerra de Tróia. Esse aspecto deve ter impressionado Virgílio, pois na Eneida
consta que Enéias, guerreiro da guerra de Tróia, chegou ao porto de Cartago e viu cenas dessa guer ra
esculpidas no mármore de um templo e, entre tantas imagens de guerreiros, também sua própria
imagem. Hawthorne gostava desses contatos entre o imaginário e o real, como reflexos e duplicações
da arte; também se nota, nos esboços que citei, que ele propendia a noção panteísta de que um homem
é os outros, de que um homem é todos os homens.14

2. Borges e as ubiquidades

Conheci, quando menino, o horror daquilo que repete ou multiplica


espectralmente a realidade, mas eu o ressenti diante dos grandes
espelhos. Seu funcionamento infalível e contínuo, sua maneira de
perseguir meus atos, sua pantomima cósmica, eram então
sobrenaturais, assim que a noite caía.
Jorge Luis Borges

No texto “A postulação da realidade”, de Discussão (1932), Borges foca o embate entre o método romântico e
o método clássico de se chegar à realidade (como em Nietzsche 15, que recorre aos elementos da cultura grega para
polarizar dois momentos básicos na criação artística: Apolo e Dionísio. A etapa apolínea da construção artística consiste
na captação “iluminada” das formas em seu estado o mais puro possível, sabendo distinguir os limites essenciais entre
um elemento e os outros a que se liga. Sob Apolo estão as questões de individuação; desse princípio depende o
equilíbrio estético. Ao domínio dionisíaco, por outro lado, obedecem as forças desmedidas e recônditas, talvez fruto das
experiências sensíveis de mundo. Como uma embriaguez que transgride, a força ilimitada de Dionísio conduz o artista a
experimentar os elementos captados de um mundo aparentemente organizado e a remontá-lo à sua ordem nas instâncias
ficcionais. Em Apolo está o ato de abrir o olho para o mundo; em Dionísio, o olho deve se fechar para que um mundo se
monte). Para Borges, o método impreciso, dionisíaco, atende às sugestões instantâneas. Por isso, haveria uma espécie de
sintaxe sutil em cada ação humana e, conseqüentemente, também uma lógica natural em cada desvio súbito de
pensamento ou de ação:

Eu aconselharia esta hipótese: a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura, porque sempre


tendemos a ela na realidade. A simplificação conceitual de estados complexos é muitas vezes uma
operação instantânea. O próprio fato de perceber, de levar em conta, é de ordem seletiva: toda
atenção, toda fixação de nossa consciência, comporta uma omissão deliberada do não interessante.
Vemos e ouvimos por meio de lembranças, de temores, de previsões. No corporal, a inconsciência é
necessidade dos atos físicos. Nosso corpo sabe articular esse difícil parágrafo, sabe lidar com escadas,
com nós, com passagens de nível, com cidades, com rios correntosos, com cães, sabe atravessar uma
13
Idem, p.54-55.
14
Jorge Luis Borges, obra citada, p.55-56.
15
NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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rua sem que o trânsito nos aniquile, sabe engendrar, sabe respirar, sabe dormir, sabe, talvez, matar:
nosso corpo, não nossa inteligência. Nosso viver é uma série de adaptações, vale dizer, uma educação
do esquecimento. É admirável que a primeira notícia que Thomas Moore nos dá sobre Utopia seja sua
perplexa ignorância da "verdadeira" extensão de uma de suas pontes...16

Para se chegar à realidade, o melhor método Borges recolhe da quebra das simetrias simbólicas, cujo travo
clássico, regido pela ordem e pelo equilíbrio, seria o de estabelecer eixos binários de mesma natureza na relação
simbólica. Daí a possibilidade de a alegoria se dar por metáfora (simbologia no mesmo eixo de natureza) ou por
metonímia (com quebra do eixo de natureza). No último caso, observa-se uma ruptura na sintaxe da simbologia,
possibilitando a invenção circunstancial, de onde se entrevê o gosto de Borges pelas hipálages entre a realidade e a
fantasia, entre autoria e cópia, homem e mundo:

O terceiro método, o mais difícil e eficiente de todos, exerce a invenção circunstancial. Sirva-nos de
exemplo certo memorabilíssimo traço de La Gloria de Don Ramiro: aquele aparatoso "caldo de
toicinho, que era servido numa sopeira com cadeado para defendê-lo da voracidade dos pajens", tão
insinuativo da miséria decente, da fileira de criados, do casarão cheio de escadas e voltas e de luzes
diversas. Dei um exemplo curto, linear, mas sei de obras extensas – os rigorosos romances
imaginativos de Wells, os exasperadamente verossímeis de Daniel Defoe – que não utilizam outro
recurso senão o desenvolvimento ou a série desses pormenores lacônicos de longa projeção. Afirmo o
mesmo dos romances cinematográficos de Josef von Sternberg, feitos também de momentos
significativos. É método admirável e difícil, mas sua aplicabilidade geral o torna menos estritamente
literário do que os dois anteriores, e, em particular, do que o segundo. Isto costuma funcionar pela
pura sintaxe, pela pura perícia verbal. Prova disso são os versos de Moore:

Je suis ton amant, et la blonde


Gorge tremble sous mon baiser,

cuja virtude está na transição do pronome possessivo ao artigo definido, no emprego surpreendente do
la. Seu inverso simétrico está na seguinte linha de Kipling:

Little they trust to sparrow – dust that stop the seal in his sea!

Naturalmente, his está regido por seal. Que detêm a foca em seu mar.17

No texto “A perpétua corrida de Aquiles e a tartaruga”, também de Discussão (1932), Borges analisa o 2º
paradoxo de Zenão – uma tartaruga parte com 10m de vantagem; Aquiles corre atrás com velocidade dez vezes superior
e, ainda assim, nunca a alcançará. Borges considera o paradoxo um sofisma, mas aceitá-lo é considerar as regras do
jogo estabelecido, no caso, dos paradoxos e antinomias. A mesma retórica do leitor Borges pode ser posta em jogo no
contista Borges: é preciso aceitar as rupturas da ordem de mundo usual para que se entendam os elementos de uma nova
ordem, pela ficção. Em Borges é possível dizer que o mundo de ruptura intelectual criado no conto explica as fraturas
da ordem do mundo usual, quase de maneira volteriana, quando o conto tinha uma função próxima da didática.
Em “Os avatares da tartaruga”, Borges brinca com conceitos paradoxais e sofismáticos entre elementos
paralelos. Para Borges, as verdades, como nos paradoxos de Zenão, são fantasias com palavras, cujas regras não são as
do universo. Brincando com a regra do jogo, as fantasias são possibilidades não visíveis da realidade que lhe permitem
negar intelectualmente um fato óbvio dentro da realidade fenomenológica. Por isso Borges confia nas antinomias de
Kant:

A arte – sempre – requer irrealidades visíveis. Limito-me a citar uma: a dicção metafórica ou
numerosa ou cuidadosamente casual dos interlocutores de um drama... Admitamos o que todos os
idealistas admitem: o caráter alucinatório do mundo. Façamos o que nenhum idealista fez: busquemos
irrealidades que confirmem esse caráter. Nós as encontraremos, creio, nas antinomias de Kant e na
dialética de Zenão. "O maior feiticeiro" (escreve memoravelmente Novalis) "seria o que se
enfeitiçasse até o ponto de ver suas próprias fantasmagorias como aparições autônomas. Não seria
esse o nosso caso?" Presumo que sim. Nós (a indivisa divindade que opera em nós) sonhamos o
mundo. Nós o sonhamos – resistente, misterioso, visível, ubíquo no espaço e firme no tempo; mas
aceitamos em sua arquitetura tênues e eternos interstícios de desrazão para saber que é falso. 18

16
Borges, A postulação da realidade. In: Discussão (1932), p.232.
17
Idem, p.234.
18
Borges, Os avatares da tartaruga. In: Discussão (1932), p.278.
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Borges mescla o caráter fantasioso de conto (de contar, de puro cuento, “conversa furada”, com o tom sóbrio
do relato biográfico, deslocando elementos de uma ordem para a outra. Como narrador, o efeito é o de confundir os
narradores da tipologia de Benjamin19: o marinheiro mercante – cuja experiência advém da vantagem que obtém
“horizontalmente”, de mundos conhecidos apesar de distantes no espaço – com o agricultor sedentário, cuja memória
lhe permite contar o que ninguém viu, o mundo distante “verticalmente”, porque no tempo de ontem, da ordem do
vivido. Os saltos de uma ordem a outra, com transferências simbólicas, atestam o gosto de Borges pela antinomia,
segundo Kathrin Rosenfield20:

Rademacher afirma que, em Borges, o mundo metafísico torna-se labirinto e que esse labirinto (ruínas
circulares e outros dispositivos que os leitores de Borges conhecem bem) pertence a um limbo, a uma
zona cinzenta do pensamento racional que os filósofos designam como paradoxo ou antinomia.

A postura ambígua de Borges entre dois deuses – a invenção de Dioniso e a necessidade de razão de Apolo –
mostram que suas construções são capazes de imbricar as fantasias mais estranhas a uma forma racional e sóbria,
unindo espírito fantástico a espírito crítico. Para ele, a sensibilidade e o pensamento formam um labirinto, o verdadeiro
Jardim de veredas que se bifurcam, no qual, por hipálage, pensador e fazedor brincam um com a máscara do outro,
produzindo a arte da dúvida no leitor:

Borges é a quinta essência desta duplicidade cética-e-cândida, que caracteriza aqueles que não
ignoram o além e a eternidade, mas, ao mesmo tempo, prezam sobremaneira a realidade sensível, o
conhecimento preciso, a ciência e, por isso, não admitem passagens demasiadamente crédulas (e
ilusórias) entre uma e outra realidade.21

Assumindo a postura de fazedor e refutando a de intelectual, Borges amplia, por desfaçatez, justamente o efeito
intelectual do conto, porque desarma o leitor. Como em literatura, sobretudo no conto, a arte consiste em surpreender,
mostrando as incongruências do espírito humano, o efeito acaba arrebatador: “Construir cenas impossíveis, mas que,
apesar disso, parecem ser mais verossímeis, convincentes e profundas do que os acontecimentos banalmente prováveis
– eis a ‘arte’ do fazedor.”22

A hipálage permite a Borges trabalhar com inúmeras narrativas ao mesmo tempo, imbricando também sistemas
diversos, como o comentário, a vinheta, o discurso filosófico e a mera impressão plástica de mundo:

(...) a hipálage, isto é, a metonímia que transfere certa qualidade (física ou intelectual) intrínseca a um
objeto a um próximo (...) Graças a essa discreção, a reflexão sobre a essência do fazer poético
acompanha a narrativa, que se torna, assim, uma meta-narrativa que se explica sobre a arte, sobre o
fazer do fazedor: sobre os processos de transposição e permuta que sustentam o trabalho
imaginativo.23

3. Borges fazedor de contos: a hipálage como uma estrutura possível


Seguindo a trilha de outro argentino, Ricardo Piglia 24, um conto sempre conta duas histórias. O conto clássico
(Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato ele mesmo, substancial, visível) e constrói em segredo a
história 2 (o relato subterrâneo, sensível). “A arte do contista consiste em saber cifrar a história 2 nos interstícios da
história 1”. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário. O efeito de
surpresa se produz quando a história secreta se entrelaça com a da superfície:

O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que
depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmático. A
estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto
se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto. Segunda tese: a
história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.
19
BENJAMIN, Walter. O narrador. Rio de Janeiro: Abril, s/d. (Col. Pensadores)

20
ROSENFIELD, Kathrin H. Borges e a filosofia. Porto Alegre: Cadernos do I.L. da UFRGS, números 28-29, 2004, p. 137.
21
Idem, p.137.
22
Idem, p.143.
23
Idem, p.143-144.
24
PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p. 24.
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Assim, cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias significa
trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas
lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira
diferente em cada uma das duas histórias. Nos interstícios ou pontos de cruzamento estão as possibilidades de
construção de um diferencial estrutural para os contos.
Ricardo Piglia destaca Borges como homem capaz de modular de maneira ímpar os interstícios: “Para Borges a
história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história
secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos
com esse procedimento.” Para demonstrar o efeito borgiano, Piglia usa como exemplo o conto La muerte e la brújula:

No início de "La Muerte y la Brújula", um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali porque
é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red
Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada
mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a
história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contigüidade com o assassinato de
Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. "Um desses lojistas que descobriram que
qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da "Historia
Secreta de los Hasidim". O que é supérfluo numa história é básico na outra. O livro do lojista é um
exemplo (como o volume das "Mil e Uma Noites" em "El Sur"; como a cicatriz em "La Forma de la
Espada") da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

A meu ver, contudo, a variante fundamental do conto de Borges foi usar a duplicidade característica do conto
de maneira não metafórica, como nas histórias óbvias, nem metonímica (figura que ele admirava e descobriu em
Milton), mas através do uso da hipálage, da antiga retórica, na concepção estrutural dos contos, produzindo gradações
entre verdade e ficção. Por isso os contos de Borges elaboram o desvio de realidades e lógicas, desdobramentos de
tempo e espaço, transferências e dissimulações de sentido: 3º e 1º mundo (no caso, ser argentino e ser tradição, como no
texto “Os escritores argentinos e a tradição”, do livro de 1932, Discussão), passado e presente, autoria e plágio,
precursor e sucessor, referências apócrifas – tudo, em Borges, passa a depender do ângulo (da chave) como se lê na
história narrativa as outras histórias intercaladas.
Se um conto se estabelece como um instantâneo, daí suas semelhanças com a música e a pintura, podemos
falar da estrutura dupla (ou múltipla, caleidoscópica) como fundo e figura, harmonia e melodia, o que, em Borges,
justificaria a sensação de estar lendo um todo sólido, cujas partes não podem ser desmembradas sem que “as chaves se
distanciem das portas”. Nele, os problemas da forma de narrar são elementos constitutivos da história 2, sutilmente em
primeiro plano, emoldurando a narrativa. Ocorre que, na estrutura por hipálage, a hierarquia e a linearidade, sofismas do
mundo das realidades aparentes, são apenas artifícios, falácias do lugar-comum, aceitas, provavelmente por comodismo
intelectual. São os fojos da realidade que acabam constituindo desvios na percepção do mundo ficcional – por isso o
narrador de “Funes, o memorioso” encontra preceitos científicos e filosóficos com que mascara pontos de realidade
narrativa falsa e em seguida os confunde com elementos de óbvia comprovação física. O resultado é que a noção de
valores se esmaece e, quando buscamos a explicação lógica, só a encontramos no mundo ficcional, cujo desfecho nos
devolve à lógica real – como se uma realidade necessitasse das incógnitas de outra.
Desse modo, o escritor de “O livro de areia” age perversamente, visto que nos dá as chaves argumentativas e,
ainda assim, acreditando na “máquina do conto”, nos prende no labirinto. No caso, a hipálage contística de Borges
consiste em nos dar as chaves falsas, como se o conto se abrisse com a chave de uma dentre infinitas portas.
Há ainda de se abordar o modo como Borges elabora um movimento dialético ficcional em seus contos: o
aspecto teórico do conto, os pressupostos e considerações de caráter universal (elementos tradicionalmente pertencentes
à história 2) são dissimulados num primeiro plano; a história 1, de base narrativa, Borges a retém, usando de desfaçatez
para emaranhar, aos poucos ou ao final, numa história única.
Ilustremos com o conto “O Zahir”, de O Aleph (1949): usando a primeira pessoa, Borges embaralha as funções
de autor, de narrador e de personagem, além de incorporar a função didática do pensador. O estilo também varia, ora
pendendo para um relato puramente pessoal – a morte de uma socialite com quem se envolvera –, ora para o discurso
informativo – acerca do Zahir – ora para o texto de desvio, à moda de “puro cuento”. Contudo a trama encerra um jogo
de hipálages no qual nenhuma das linhas narrativas se completa, e do cruzamento de seus elementos, algo sólido
significativamente se realiza. Sirva de exemplo a figura do Zahir, palavra que estaria entre um dos noventa e nove
nomes de Deus, cuja figuração varia em todas as partes do mundo, no tempo, e que, no entanto, aparece representada
numa moeda velha de vinte centavos argentinos. Numa ruptura súbita, Borges recorda um acontecimento, ocorrido um
dia antes de conhecer o Zahir, o que abre o leque narrativo: “em seis de junho morreu Teodelina Villar”. Ressalte-se
que nome da mulher contém um dos nomes de Deus (Teo), e sua figura será caracterizada como a de uma pessoa
preocupada “menos com a beleza que com a perfeição”. Os hábitos de Teodelina eram, nas palavras desse Borges,
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ortodoxos. Ocorre que, sob a aparência de ortodoxia, e posto que em seu nome haja o reflexo de Deus, a mulher acabou
vítima do tempo e das circunstâncias, afogando-se em futilidade e capricho, “o absoluto no momentâneo”. Com a crise
econômica de seu pai, o Doutor Villar, “ele teve de mudar-se para a Rua Aráoz e o retrato de sua filha decorou anúncios
de cremes e de automóveis. (Os cremes que fartamente se aplicava, os automóveis que já não possuía!”). Acabou
morrendo no bairro Sul, e Borges, afetado pela “mais sincera das paixões argentinas”, o esnobismo, abalou-se, pois
estava apaixonado por Teodelina Villar. “Ébrio de uma piedade quase impessoal”, reflexo da impessoalidade do Zahir,
simples moeda de vinte centavos, Borges saiu para caminhar entre as ruas e terminou por tomar uma canha num bar, um
oxímoro, segundo ele, pelo contraste com o mundo fabuloso no qual Teodelina fingiu viver. De troco, recebeu o Zahir,
retrato o mais curioso da contradição em Teodelina, e uma falsa pista, uma hipálage, senão vejamos: a moeda, como o
escudo de Aquiles, concentra em si o que Teodelina buscava, “o absoluto no momentâneo”. Entre a mulher e a moeda
estão os elementos sensíveis que Borges, como intelectual, não confessa, mas entrelaça, deixando-nos, nos interstícios,
a paixão doentia por coisa absolutamente vulgar. Com a moeda de pouco valor, ele andou em círculos e voltou ao bar.
De fato, Borges não poderá esquecer nem se livrar dessa moeda, a moeda e suas múltiplas possibilidades de ser algo
precioso e trivial ubiqüamente (Teodelina). Usa do artifício de escrever um conto fantástico, como emplasto para
esquecer o Zahir. Ocorre que, dentro do conto, a tentativa de escrever outro conto desvia, mas, como hipálage,
aproxima cada vez mais o Zahir de Teodelina, porque fornece a pista do entrecruzamento das histórias. Em seguida a
escritura do conto, como a história de Teodelina e do Zahir, é cortada bruscamente por outro relato que se intercala, ao
final do qual Borges já se sentia absolutamente curado, tanto que podia lembrar-se de o Zahir só para crer que poderia
esquecê-lo. As possibilidades de que sua vida pudesse ter continuidade estariam numa outra mulher e, como já
mesclamos o Zahir e Teodelina, Borges se dedica a admirar uma libra esterlina como quem corteja uma mulher inglesa.
Foi quando percebeu que não havia esquecido, de todo, a “paixão pelo Zahir”. Consultou um psiquiatra. Pesquisou as
razões do Zahir: descobriu mitos de alucinações no contato com o Zahir pela história, como a loucura de um pintor que
pintava tigres que saíam de tigres, infinitamente; soube também que o Todo-poderoso evitava o Zahir na Terra, porque
encerrava a possibilidade de uma coisa ser todas ao mesmo tempo, e um só Zahir poderia fascinar multidões. Embora
vulgar, a moeda (a mulher?) tinham para ele essa capacidade não-confessa de fascinação. Num salto abrupto, Borges
retorna a Teodelina depois de longa incursão de desvendamento dos porquês da moeda. Descobriu que a irmã de
Teodelina acabou louca, como ocorrera com o pintor dos tigres infinitos. Realmente, o tempo, que atenuava as
recordações comuns, agravava as do Zahir. Borges encerra o conto temendo o mal do Zahir: “quando todos os homens
da terra pensarem, dia e noite, no Zahir, qual será um sonho e qual uma realidade, a Terra ou o Zahir?”. A hipálage nos
mostra que, como ocorreu no contato com o Zahir, Borges não esqueceu a socialite falecida, mas é “muito argentino”
para afirmá-lo ou confessá-lo abertamente. Teodelina e moeda são, no conto, elementos que não se completam em suas
histórias, mas que formam um todo complexo na imbricação simbólica da narrativa, como se, a grosso modo, o desvio
de uma narrativa explicasse o desvio da outra sem que se definam completamente.
Tais são os mundos de Borges. Por isso ele considerava o gênero policial como fantástico pela rigidez com que
seus sistemas se apegavam à realidade. Trata-se de uma profissão de fé do leitor Borges para o leitor de Borges, cujo
postulado poderia grosseiramente se resumir assim: o real e o perfeito são falsos e, conseqüentemente, fantásticos.
Assim, o conto de Borges inverte o processo científico: na ficção de autores como Bradbury, uma “realidade ficcional”
é criada para forçar a teoria que se pretende comprovar. Não em Borges: nele o escritor subverte o cientista, como o
“fazedor” subverte o “pensador” ou “filósofo”. O contista, no caso, não se limita a analisar uma realidade determinada,
como o homem de ciência, mas a criar uma teoria e uma ilustração: ele constrói um “artifício” para encontrar algo de
verdadeiro no que estava oculto. É dizer que a realidade se apresenta caótica, mas o olho sabe lê-la por vivência; logo, o
mundo seria um conjunto aleatório de símbolos cujas significações vêm sendo construídas ao longo da história do
homem, através de choques radicais ou de experiências imperceptíveis, porque conhecemos os elementos de seu
conjunto, mas não percebemos a totalidade de suas combinações possíveis, material do baralho de Borges. O conto,
nesse caso, constitui-se no veículo de possível ilustração, usado como tradição oral entre o real e o fictício para
construir uma experiência duplamente nova: suas teorias permitem mostrar, além da realidade superficial e “física”, as
possíveis verdades secretas do mundo “metafísico”.
O procedimento, diga-se, tem origens remotas, embora os “precursores” não tenham feito da narrativa ubíqüa
um jogo tão embaralhado. Voltaire produziu uma série de contos que, no dizer de Joaquim Maria Aguirre Romero 25,
representam a necessidade de escolha do conto como veículo quase didático de expor variáveis filosóficas:

Podemos estudiar la transformación del cuento en ese período a través de tres modelos representativos de
la intencionalidad que tras ellos anida. Estos tres modelos representan formas diferentes y específicas de
plantearse la escritura respecto a su finalidad. Los vamos a denominar modelos “vehicular o volteriano”,
“romántico” y “literario”.
El primero de ellos, al que denominamos volteriano, supone la utilización del cuento como vehículo de
introducción de ideas en el pueblo. Voltaire escoge la forma del cuento para exponer sus ideas filosóficas.
25
ROMERO, Joaquín Mª Aguirre. Universidad Complutense de Madrid, Dpto. Periodismo III, 2002.
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Ante él se presentan una serie de opciones literarias entre las que debe escoger la más adecuada a sus
objetivos. Voltaire no es un escritor de cuentos; es un intelectual, un filósofo, por ser más ajustados a sus
propias formas de reconocimiento, que tiene un objetivo: hacer que sus ideas ilustradas lleguen al mayor
número posible de personas. El cuento, para él, no es un género literario que elija por cuestiones estéticas,
sino una opción comunicativa. Es una narrativización de ideas filosóficas, políticas, etc. El ejemplo más
evidente lo tenemos en su Diccionario filosófico, obra en la que, bajo ese modo de organización, cada
entrada está desarrollada bajo la forma de narraciones breves que ejemplifican la idea central.
Lo que le anima a escoger esa forma literaria es el atractivo que pueda tener la anécdota frente a la
abstracción, la historia frente al razonamiento. Bajo la forma del cuento, Voltaire busca introducirse entre
los lectores que constituyen el público general, ampliando el círculo de los lectores especializados en
otros tipos de textos. Son cuentos filosóficos, sí; pero sería más correcto decir que es filosofía
narrativizada que busca el vehículo más popular.
Sin embargo, no debemos considerar que por el calificativo de “volteriano” se refiere tan solo al relato
filosófico. Es, más bien, la intención pedagógica la que prima; es decir, es una forma narrativa que busca
modificar un estado exterior. De ahí ese carácter de vehículo antes señalado.

Por fim, como um dos Borges afirmaria, que “um grande escritor cria seus precursores”, sua modalidade de
conto é tão nova quanto velha, e seu trato com o mundo pode saltar do trivial para o metafísico. Kafka pode ter se
lembrado de Borges sem que o tenha lido, e Borges pode ter esquecido o Quixote, ainda que tenha lido tanto o de
Cervantes quanto o de Menard. Segundo Charles Kiefer 26, “se em Edgar Allan Poe o núcleo da poética do conto é a
unidade de efeito, e em Julio Cortázar a esfericidade, em Jorge Luis Borges é a duplicação da fábula, que reproduz a
tese de Platão, de um mundo inteligível e outro sensível”.

4. Referências
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.
CRESSOT, Marcel. Le Style et ses techniques: Précis d’analyse stylistique. Cópia xerográfica, 1974.     
GIARDINELLI, Mempo. Assim se escreve um conto. Trad. Charles Kiefer. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1994.
GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1985
KIEFER, Charles. A poética do conto. Porto Alegre: Nova Prova, 2004.
NIETZSCHE, Friederich. O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
PIGLIA, Ricardo. O Laboratório do Escritor. São Paulo: Iluminuras, 1994.
_______, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais, Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p. 24.
ROMERO, Joaquín Mª Aguirre. Universidad Complutense de Madrid, Dpto. Periodismo III, 2002.
ROSENFIELD, Kathrin H. Borges e a filosofia. Porto Alegre: Cadernos do I.L. da UFRGS, números 28-29,
2004.
QUIROGA, Horácio. Decálogo do perfeito contista. Org. Sérgio Faraco. São Leopoldo: Editora da Unisinos,
1999.

Leitura Panorâmica
O livro de areia, Jorge Luís Borges
A linha consta de um número infinito de pontos, o plano, de um número infinito de linhas; o volume, de um
número infinito de planos, o hipervolume, de um número infinito de volumes... Não, decididamente não é este, more
geométrico, o melhor modo de iniciar meu relato. 
Afirmar que é verídico é, agora, uma convenção de todo relato fantástico; o meu, no entanto, é verídico.  
Vivo só, num quarto andar da Rua Belgrano. Faz alguns meses, ao entardecer ouvi uma batida na porta. Abri e entrou
um desconhecido. Era um homem alto, de traços mal conformados. Talvez minha miopia os visse assim. Todo seu
aspecto era de uma pobreza decente. Estava de cinza e trazia uma valise cinza na mão. Logo senti que era estrangeiro. A
princípio achei-o velho; logo percebi que seu escasso cabelo ruivo, quase branco, à maneira escandinava, me havia
enganado. No decorrer de nossa conversa, que não duraria uma hora, soube que procedia das Orcadas. 
Apontei-lhe uma cadeira. O homem demorou um pouco a falar. Exalava melancolia, como eu agora.
- Vendo bíblias - disse. 
Não sem pedantismo respondi-lhe: 

26
KIEFER, Charles. A poética do conto. Porto Alegre: Nova Prova, 2004, p.123.

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- Nesta casa há algumas bíblias inglesas, inclusive a primeira, a de John Wiclif. Tenho também a de Cipriano
de Valera, a de Lutero, que literariamente é a pior, e um exemplar latino da Vulgata. Como o senhor vê, não são
precisamente bíblias o que me falta. 
Ao fim de um silêncio respondeu: 
- Não vendo apenas bíblias. Posso mostrar-lhe um livro sagrado que talvez lhe interesse. Eu o adquiri nos
confins de Bikanir. 
Abriu a valise e o deixou sobre a mesa. Era um volume em oitavo, encadernado em pano. Sem dúvida, havia
passado por muitas mãos. Examinei-o; seu peso inusitado me surpreendeu. Na lombada dizia Hali Writ e, abaixo,
Bombay. 
- Será do século dezenove - observei. 
- Não sei. Não soube nunca - foi a resposta. 
Abri-o ao acaso. Os caracteres me eram estranhos. As páginas, que me pareceram gastas e de pobre tipografia,
estavam impressas em duas colunas, como uma bíblia. O texto era apertado e estava ordenado em versículos. No ângulo
superior das páginas, havia cifras arábicas. Chamou-me a atenção que a página par levasse o número (digamos) 40.514
e a ímpar, a seguinte, 999. Virei-a; o dorso estava numerado com outra cifra. Trazia uma pequena ilustração, como é de
uso nos dicionários: uma âncora desenhada à pena, como pela desajeitada mão de um menino. 
Foi então que o desconhecido disse: 
- Olhe-a bem. Já não a verá nunca mais. 
Havia uma ameaça na afirmação, mas não na voz. 
Fixei-me no lugar e fechei o volume. Imediatamente o abri. Em vão busquei a figura da âncora, folha por
folha.Para ocultar meu desconcerto, disse: 
- Trata-se de uma versão da Escritura em alguma língua indostânica, não é verdade? 
- Não - replicou. 
Logo baixou a voz como que para me confiar um segredo: 
- Adquiri-o em uma povoação da planície, em troca de algumas rupias e da Bíblia. Seu possuidor não sabia ler.
Suspeito que no Livro dos Livros viu um amuleto. Era da casta mais baixa; as pessoas não podiam pisar sua sombra
sem contaminação. Disse que seu livro se chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princípio ou
fim. 
Pediu-me que procurasse a primeira folha. 
Apoiei a mão esquerda sobre a portada e abri com o dedo polegar quase pegado ao indicador. Tudo foi inútil:
sempre se interpunham várias folhas entre a portada e a mão. Era como se brotassem do livro. 
- Agora procure o final. 
Também fracassei; apenas consegui balbuciar com uma voz que não era minha: 
- Isto não pode ser. 
Sempre em voz baixa o vendedor de bíblias me disse: 
- Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira;
nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário. Talvez para dar a entender que os termos de
uma série infinita admitem qualquer número. 
Depois, como se pensasse em voz alta: 
- Se o espaço é infinito, estamos em qualquer ponto do espaço. Se o tempo é infinito, estamos em qualquer
ponto do tempo. 
Suas considerações me irritaram. Perguntei: 
- O senhor é religioso, sem dúvida? 
- Sim, sou presbiteriano. Minha consciência está limpa. Estou seguro de não ter ludibriado o nativo quando lhe
dei a Palavra do Senhor em troca de seu livro diabólico. 
Assegurei-lhe que nada tinha a se recriminar e perguntei-lhe se estava de passagem por estas terras. Respondeu
que dentro de alguns dias pensava em regressar à sua pátria. Foi então que soube que era escocês, das ilhas Orcadas.
Disse-lhe que a Escócia eu estimava pessoalmente por amor de Stevenson e de Hume. 
- E de Robbie Burns - corrigiu. 
Enquanto falávamos eu continuava explorando o livro infinito. Com falsa indiferença perguntei: 
- O senhor se propõe a oferecer este curioso espécime ao Museu Britânico? 
- Não. Ofereço-o ao senhor - replicou e fixou uma soma elevada. 
Respondi, com toda a verdade, que essa soma era inacessível para mim e fiquei pensando. Ao fim de poucos
minutos, havia urdido meu plano. 
- Proponho-lhe uma troca - disse. O senhor obteve este volume por algumas rupias e pela Escritura Sagrada; eu
lhe ofereço o montante de minha aposentadoria que acabo de cobrar, e a Bíblia de Wiclif em letras góticas. Herdei-a de
meus pais. 
- A black letter Wiclif! - murmurou. 
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Fui ao meu dormitório e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as páginas e estudou a capa com fervor de
bibliófilo. 
- Trato feito - disse. 
Assombrou-me que não regateasse. Só depois compreenderia que havia entrado em minha casa com a decisão
de vender o livro. Não contou as notas e guardou-as.
Falamos da Índia, das Orcadas e dos Jarls noruegueses que as governaram. Era noite quando o homem se foi.
Não voltei a vê-lo nem sei o seu nome. 
Pensei em guardar o Livro de Areia no vão que havia deixado o Wiclif, mas optei finalmente por escondê-lo
atrás de uns volumes desemparelhados de As mil e uma Noites. 
Deitei-me e não dormi. Às três ou quatro da manhã, acendi a luz. Procurei o livro impossível e virei suas
folhas. Em uma delas vi gravada uma máscara. O ângulo levava uma cifra, já não sei qual, elevada à nona potência. 
Não mostrei a ninguém meu tesouro. À ventura de possuí-lo se agregou o temor de que o roubassem e, depois,
o receio de que não fosse verdadeiramente infinito. Estas duas preocupações agravaram minha já velha misantropia.
Restavam-me alguns amigos; deixei de vê-los. Prisioneiro do Livro, quase não saía à rua. Examinei com uma lupa a
lombada gasta e as capas e rechacei a possibilidade de algum artifício. Comprovei que as pequenas ilustrações distavam
duas mil páginas uma da outra. Fui anotando-as em uma caderneta alfabética, que não demorei a encher. Nunca se
repetiram. De noite, nos escassos intervalos que a insônia me concedia, sonhava com o livro. 
O verão declinava e compreendi que o livro era monstruoso. De nada me serviu considerar que não menos
monstruoso era eu, que o percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que era um objeto de
pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia a realidade. 
Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta
de fumaça. 
Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha é um bosque. Antes de me aposentar trabalhava
na Biblioteca Nacional, que guarda novecentos mil livros; sei que à mão direita do vestíbulo, uma escada curva se some
no sótão, onde estão os periódicos e os mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder o Livro de Areia
em uma das úmidas prateleiras. Tratei de não me fixar em que altura, nem a que distância da porta. 
Sinto um pouco de alívio, mas não quero nem passar pela Rua México. 

Funes, o Memorioso, Jorge Luis Borges


Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e tal
homem está morto) com uma obscura passiflórea na mão, vendo-a como ninguém jamais a vira, ainda que a
contemplasse do crepúsculo do dia até o da noite, uma vida inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e
singularmente remoto, por trás do cigarro. Recordo (creio) suas mãos delicadas de trançador. Recordo próximo dessas
mãos um mate, com as armas da Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com uma vaga paisagem
lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos de
agora. Mais de três vezes não o vi; a última, em 1887... Parece-me muito feliz o projeto de que todos aqueles que o
conheceram escrevam sobre ele; meu testemunho será por certo o mais breve e sem dúvida o mais pobre, porém não o
menos imparcial do volume que vós editareis. A minha deplorável condição de argentino impedir-me-á de incorrer no
ditirambo - gênero obrigatório no Uruguai; quando o tema é um uruguaio. Literato, cajetilla, porteño. Funes não disse
essas palavras injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava para ele tais desventuras. Pedro
Leandro Ipuche escreveu que Funes era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrón e vernáculo"; não o
discuto, mas não se deve esquecer que era também natural de Fray Bentos, com certas limitações incuráveis.
A minha primeira lembrança de Funes é muito clara. Vejo-o em um entardecer de Março ou Fevereiro do ano de
1884. Meu pai, nesse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava com meu primo Bernardo Haedo da estância de
San Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância da minha felicidade. Após um dia
abafado, uma enorme tempestade cor cinza escura havia escondido o céu. Alentava-me o vento Sul, já enlouqueciam-se
as árvores; eu tinha o temor (a esperança) de que nos surpreenderia em um descampado a água elemental. Apostamos
uma espécie de corrida com a tempestade. Entramos em um desfiladeiro que se aprofundava entre duas veredas
altíssimas de tijolo. Escurecera repentinamente; ouvi passos rápidos e quase secretos no alto; levantei os olhos e vi um
rapaz que corria pela vereda estreita e esburacada como que por uma parede estreita e esburacada. Recordo a bombacha,
as alpargatas, recordo o cigarro no rosto duro, contra a densa nuvem já sem limites. Bernardo gritou-lhe
imprevisivelmente: Que horas são, Ireneo? Sem consultar o céu, sem deter-se, o outro respondeu: Faltam quatro
minutos para as oito, jovem Bernardo Juan Francisco. A voz era aguda, zombeteira.
Sou tão distraído que o diálogo a que acabo de me referir não teria chamado a minha atenção se não o tivesse
enfatizado o meu primo, a quem estimulavam (creio) certo orgulho local, e o desejo de mostrar-se indiferente à réplica
tripartite do outro.

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Disse-me que o rapaz do desfiladeiro era um tal Ireneo Funes, conhecido por algumas peculiaridades como a de
não se dar com ninguém e a de saber sempre a hora, como um relógio. Complementou dizendo que era filho de uma
passadeira do povo, Maria Clementina Funes, e que alguns diziam que seu pai era um médico de saladeiro, um inglês
O’Connor, e outros um domador ou rastreador do departamento de Salto. Vivia com a sua mãe, na curva da quinta dos
Laureles.
Nos anos de 1885 e 1886 veraneamos na cidade de Montevideo. Em 1887 voltei a Fray Bentos. Perguntei, como é
natural, por todos os conhecidos e, finalmente, pelo "cronométrico Funes". Responderam-me que um redomão o havia
derrubado na estância de San Francisco, e que havia se tornado paralítico, sem esperança. Recordo a sensação de
incômoda magia que a notícia despertou-me: a única vez que eu o vi, vínhamos a cavalo de San Francisco e ele andava
em um lugar alto; o fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado com elementos anteriores.
Disseram-me que não se movia da cama, os olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao
entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a arrogância ao ponto de simular que era benéfico o
golpe que o havia fulminado... Duas vezes o vi atrás da relha, que toscamente enfatizava a sua condição de eterno
prisioneiro; uma, imóvel, com os olhos cerrados; outra, imóvel também, absorto na contemplação de um aromático galho
de santonina.
Não sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo metódico do latim. A minha mala incluía o De
viris illustribus de Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentários de Júlio César e um volume ímpar da Naturalis
historia de Plínio, que excedia (e continua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se propaga em um
povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, não tardou em enteirar-se da chegada desses livros anômalos. Dirigiu-me
uma carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro, desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884",
ponderava os gloriosos serviços que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse mesmo ano, "havia prestado às duas
pátrias na valorosa jornada de Ituzaingó", e me solicitava o empréstimo de qualquer dos volumes, acompanhado de um
dicionário "para a boa intelecção do texto original, pois todavia ignoro o latim". Prometia devolvê-los em bom estado,
quase imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo que Andrés Bello preconizou: i por y, j
por g. A princípio, suspeitei naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram que não, que eram coisas
de Ireneo. Não sabia se atribuía ao atrevimento, à ignorância ou à estupidez a idéia de que o árduo latim não requeresse
mais instrumento do que um dicionário; para desencorajá-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de
Quicherat e a obra de Plínio.
No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires que voltasse imediatamente, pois meu pai não estava
"nada bem". Deus me perdõe; o prestígio de ser o destinatário de um telegrama urgente, o desejo de comunicar a toda
Fray Bentos a contradição entre a forma negativa da notícia e o peremptório advérbio, a tentação de dramatizar a minha
dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraíram-me de toda a possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me
faltavam o Gradus e o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" zarpava no dia seguinte, pela manhã; essa noite,
depois da janta, dirigi-me à casa de Funes. Assombrou-me que a noite fora não menos pesada que o dia.
No humilde rancho, a mãe de Funes recebeu-me.
Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que não me estranhasse encontrá-lo às escuras, pois Ireneo
preferia passar as horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o pátio de lajota, o pequeno corredor; cheguei ao segundo
pátio. Havia uma parreira; a escuridão pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira de Ireneo. Essa voz
falava em latim; essa voz (que vinha das trevas) articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento.
Ressoavam as sílabas romanas no pátio de terra; o meu temor as tomava por indecifráveis, intermináveis; depois, no
enorme diálogo dessa noite, soube que formavam o primeiro parágrafo do 24 o capítulo do 7o livro da Naturalis historia.
O tema desse capítulo é a memória: as últimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudança de voz, Ireneo disse-me o que se passara. Estava na cama, fumando. Parece-me que não vi
o seu rosto até a aurora; creio lembrar-me da brasa momentânea do cigarro. O quarto exalava um vago odor de umidade.
Sentei-me, repeti a história do telegrama e da enfermidade de meu pai.
Chego, agora, ao ponto mais difícil do meu relato. Este (é bem verdade que já o sabe o leitor) não tem outro
argumento senão esse diálogo de há já meio século. Não tratarei de reproduzir as suas palavras, irrecuperáveis agora.
Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto é remoto e débil; eu sei que
sacrifico a eficácia do meu relato; que os meus leitores imaginem os períodos entrecortados que me abrumaram essa
noite.
Ireneo começou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de memória prodigiosa registrados pela Naturalis
historia: Ciro, rei dos persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus exércitos; Metríadates e Eupator,
que administrava a justiça dos 22 idiomas de seu império; Simónides, inventor da mnemotecnia; Metrodoro, que
professava a arte de repetir com fidelidade o escutado de uma só vez. Com evidente boa fé maravilhou-se de que tais
casos maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o azulego o derrubou, ele havia sido o que são
todos os cristãos; um cego, um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a percepção exata do tempo, a
sua memória de nomes próprios; não me fez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver,
ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair, perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era
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quase intolerável de tão rico e tão nítido, e também as memórias mais antigas e mais triviais. Pouco depois averiguou
que estava paralítico. O fato pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preço mínimo. Agora a sua
percepção e sua memória eram infalíveis.
Num rápido olhar, nós percebemos três taças em uma mesa; Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se
encontravam em uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta de abril de 1882 e podia
compará-los na lembrança às dobras de um livro em pasta espanhola que só havia olhado uma vez e às linhas da espuma
que um remo levantou no Rio Negro na véspera da ação de Quebrado. Essas lembranças não eram simples; cada imagem
visual estava ligada a sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos.
Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro, não havia jamais duvidado, mas cada reconstrução havia requerido
um dia inteiro. Disse-me: Mais lembranças tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o mundo é mundo. E
também: Meus sonhos são como a vossa vigília. E também, até a aurora; Minha memória, senhor, é como depósito de
lixo. Uma circunferência em um quadro-negro, um triângulo-retângulo; um losango, são formas que podemos intuir
plenamente; o mesmo se passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma ponta de gado em um
coxilha, com o fogo mutante e com a cinza inumerável, com as muitas faces de um morto em um grande velório. Não sei
quantas estrelas via no céu.
Essas coisas me disse; nem então nem depois coloquei-as em dúvida. Naquele tempo não havia cinematógrafos
nem fonógrafos; é, no entanto, verossímil e até incrível que ninguém fizera um experimento com Funes. O certo é que
vivemos postergando todo o postergável; talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que mais cedo ou
mais tarde, todo homem fará todas as coisas e saberá tudo.
A voz de Funes, vinda da escuridão, seguia falando.
Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de numeração e que em muito poucos dias havia
ultrapassado vinte e quatro mil. Não o havia escrito, porque o pensado uma só vez já não podia desvanecer-lhe. Seu
primeiro estímulo, creio, foi o descontentamento de que os trinta e três uruguaios requeressem dois signos e três
palavras, em lugar de uma só palavra e um só signo. Aplicou logo esse desparatado princípio aos outros números. Em
lugar de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Máximo Pérez; em lugar de sete mil e catorze, A Ferrovia; outros números
eram Luis Melián Lafinur, Olivar, enxofre, os rústicos, a baleia, o gás, a caldeira, Napoleão, Agustín de Vedia. Em
lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra tinha um signo particular, uma espécie de marca; as últimas eram muito
complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsódia de vozes desconexas era precisamente o contrário de um
sistema de numeração. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer três centenas, seis dezenas, cinco unidades; análise que
não existe nos "números". O Negro Timoteo a manta de carne. Funes não me entendeu ou não quis me entender.
Locke, no século XVII, postulou (ou reprovou) um idioma impossível no qual cada coisa individual, cada pedra,
cada pássaro e cada ramo tivesse um nome próprio; Funes projetou alguma vez um idioma análogo, mas o desejou por
parecer-lhe demasiado geral, demasiado ambígüo. De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de
cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas
jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças, que definiria logo por cifras. Dissuadiram-no duas considerações: a
consciência de que a tarefa era interminável, a consciência de que era inútil. Pensou que na hora da morte não havia
acabado ainda de classificar todas as lembranças da infância.
Os dois projetos que foi indicado (um vocabulário infinito para a série natural dos números, um inútil catálogo
mental de todas as imagens da lembrança) são insensatos, mas revelam certa balbuciante grandeza. Nos deixam
vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de Funes. Este, não o esqueçamos, era quase incapaz de idéias gerais,
platônicas. Não apenas lhe custava compreender que o símbolo genérico cão abarcava tantos indivíduos díspares de
diversos tamanhos e diversa forma; perturbava-lhe que o cão das três e catorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome
que o cão das três e quatro (visto de frente). Sua própria face no espelho, suas próprias mãos, surpreendiam-no cada vez.
Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento do ponteiro dos minutos; Funes discernia
continuamente os avanços tranqüilos da corrupção, das cáries, da fatiga. Notava os progressos da morte, da umidade. Era
o solitário e lúcido espectador de um mundo multiforme, instantâneo e quase intolerantemente preciso. Babilônia,
Londres e Nova York têm preenchido com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas torres
populosas ou em suas avenidas urgentes, sentira o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a que dia e
noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre subúrbio sulamericano. Era-lhe muito difícil dormir. Dormir é
distrair-se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si mesmo cada rachadura e cada moldura das
casas distintas que o redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranças era mais minucioso e mais vivo
que nossa percepção de um gozo físico ou de um tormento físico). Em direção ao leste, em um trecho não pavimentado,
havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava negras, compactas, feitas de treva homogênea; nessa direção
virava o rosto para dormir. Também era seu costume imaginar-se no fundo do rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz
de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes,
quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo pátio de terra.
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Então vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-
me tão monumental como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior às profecias e às pirâmides. Pensei que cada uma
das minhas palavras (que cada um dos meus gestos) perduraria em sua implacável memória; entorpeceu-me o temor de
multiplicar trejeitos inúteis.
Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congestão pulmonar.
 

Proposta (11) de conto em hipálage: imagine uma história em que a desfecho seja apenas revelado
por coisas paralelas, sem importância central. Exemplo: um marido contrata um pistoleiro para
matar sua mulher. O pistoleiro, porém, descobre, pela fotografia que o homem lhe apresenta, que a
provável vítima fora sua paixão de infância e adolescência. Não revele o desfecho - desvie para
algum objeto, alguma palavra forte no diálogo entre eles ou um acontecimento paralelo. Exemplo:
um acidente de motocicleta na qual um motociclista desvia de uma mulher e se choca com um
homem na calçada (nesse caso o pistoleiro decidirá matar o marido).

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