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Os Pensadorés

Bcrgsoii

"Há uma realidade, ao menos,


que todos apreendemos de dentro, por
intuição e não por simples análise. E
nossa própria pessoa em seu fluir atra­
vés do tempo. É nosso cu que dura. Po­
demos não simpatizar intelectualmen-
le, ou melhor, espiritualmente. com
nenhuma outra coisa. Mas simpatiza­
mos, seguramente, conosco mesmos."
HENRI BERGSON: introdução à Meta­
física.

"A intuição metafísica, embora só


possamos chegar a ela pela força dos
conhecimentos materiais, é coisa total­
mente diferente de um resumo ou de
uma síntese de conhecimento. Deles
se distingue como o impulso motriz se
distingue do caminho percorrido pelo
móvel, como a tensão do elástico se
distingue dos movimentos visíveis do
pêndulo. Neste sentido, a metafísica
nada tem em comum com uma genera­
lização da experiência e, entretanto,
ela se podería definir como a experiên­
cia integrai."
HENRI BERGSON: Introdução à Meta­
física.

"Sob as palavras e sob a frase há


algo de muito mais simples que uma
frase e mesmo que uma palavra: o sen­
tido, que é menos uma coisa pensada
do que um movimento de pensamen­
to, menos um movimento do que uma
direção."
HENRI BERGSON: A intuição filosófi­
ca (em O Pensamento e o .Mownte).

"Somente no homem, sobretudo


nos melhores dentre nós, o movimen­
to vital prossegue sem obstáculo, lan­
çando através desta obra de arte que é
o corpo humano, e que ele criou de
passagem, a corrente indeíinidamente
criadora da vida moral. O homem, le­
vado incessantemente a se apoiar na
totalidade de seu passado para avaliar
tanto mais penetrantemente o seu futu­
ro. é o grande êxito da vida."
HENRI BERGSON: A consciência e a
vida (em A Energia Espiritual).
Os Pensadoiés
CIP*Bra»U Cutalogaçáo-na-Publicaçào
Câmara Brasileira do Livro. SP

B437c. Bergson. Henn. 1859-1941


2.cd. Canas, conferências c outros escritos / Henri Bergson : seleção
de textos de Franklin Leopoldo e Silva ; traduções de Franklin Leopol­
do c Silva. Nathanael Caxeiro. 2. cd. — Sào Paulo Abril
Cultural. 1084
(Os pensadores)

Inclui Vida e obra de Bergson.


Bibliografia.

1. Filosofia e religião 2. Filosofia francesa 3. Intuição 4. Mudança (Fi-


lusulla) 5. Psicologia 1. Silva. Franklin Leopoldo c. 11. Título. III. Série.
CDD 143
-104
■ 116
-150
•200.1

83-1650

índices para catálogo sistemático:


t. Bergsonisnwx filosofia 143
2. Filosofia c religião 200.1
3. Filosofia francesa 104
4. Filósofo» francesas 194
5. Intuição: Filosofia 143
6. Mudança: Filosofia 116
7. Psicologia 150
HENRI BERGSON

CARTAS, CONFERÊNCIAS
E OUTROS ESCRITOS

Seleção de textos de Franklin Leopoldo e Silva


Traduções de Franklin Leopoldo c Silva,
Nathanael Caxciro

1984
EDITOR. VICTOR CIVITA
Títulos originais:
“Lcttrcs a William James” (de Merits er Paroles)
'•Introduction à la Mitaphy<ique”, “LTnoiitiou Mdluwpbiquc”; "La Penséu el
Ic Mouvam — Introduction” (de LaPenséc ct leMvuvunt)
”Lc Cerveau et la Pcnséc”; “La Conscience cl la Vic”; ”L‘Âttie et
Corps'* ide LÈnergiie Sptrituellc)
”Les Directions Divergentes de la Evolution de la Vic — Totpeur.
Intelligence cl Inslinct" (de L'lwltttion Crécdncel
' ’Remarques l inates Mechanique et Mystique-' (de Les Deux
Sources de la Morale et rfr la Religion)

* Copyright dcsia edição, Abril S,A. Culfunil,


S&o Paulo. 1979. — 2? cdiçio 1984

Textos publicados toh licença de Presses Univcrsituinss de France.


Pane (Canas a William James; introdução á Metafísica;
O Cirehro c o Pensamento; A Intuição PHosãfica; A CtHuctfnaa
e a Vida; A Alma e o Corpo c O Pensamento e o Movcnte — introdução)
c de Presses Univrrsitaircs de France. Parise Zahar Editores S.A..
Rio de lunctto <A F.vohtÇiio Criutittro e As Duas Ponte» <tu Moral e da Krílgtdv).
Traduções publicadas sob Ikenya de Zahar Eduunrs S.A.. Kio dc Janeiro
M Evuluçân Cnadora c As Duas Pontes da Moral e da Religião).

Direitos cxclüsivixs sobre as demais traduções deste volume.


Abril S.A. Cultural. Sâo Paulo

Dirtílos exclusivos sobre “Bergson Vida c Obra”.


Abril S.A. Cultural, São Puulo.
BERGSON

VIDA E OBRA

Consultoria: José Américo Motta Pessanha


essência da nio*>oíi<i é o espírito de simplicidade. Quer enca-
/» remos o espírito filosófico nele mesmo ou em suas obras,
quer comparemos a filosofia à ciência ou uma filosofia às demais filo*
sofias, sempre verificamos que a complicação é superficial, a constru­
ção um acessório, a síntese uma aparência: filosofar é um ato sim­
ples." Essa afirmativa de Henri Bergson, numa conferência proferida,
em 1911, sobre a intuição filosófica (incluída depois numa de suas
obras principais, La Pens&j et /c Mouvanft, encerra uma das tei-.es con­
trais do pensamento bergsoniano: a importância c a peculiaridade da
visão filosófica. Numa época em que o avanço e o êxito das investiga­
ções científicas ditas positivas pareciam tornar obsoletas as indaga­
ções e sobretudo a forma de resposta filosóficas, Bergson exalta c ino­
va a metafísica. Ao mesmo tempo, pretende ampliar o domínio da in­
vestigação psicológica, propondo — para além das refinas e dos me­
canismos associativos do "eu superficial" —• a sondagem do "eu pro­
fundo". duração pura e irreversível, permanente mudança qualitati­
va, irrepetição contínua. Contrapondo-se às teses deterministas apoia­
das no cientificismo reinante em seu tempo, apresenta-se como defen­
sor e reformulador do livre-arbítrio humano, apontando o herói c o
místico como modelos de abertura e de liberdade no campo da moral
e da religião. E ao cvolucionismo materialista, que vigorava desde a
segunda metade do século XIX,- responde com uma concepção espiri­
tualista de evolução: a "evolução criadora".

"Cada pessoa é uma especte de criação"

Henri-Louis Bergson nasceu em Paris, a 18 de outubro de 1859.


Iniciou seus estudos no Liceu Condorcet, revelando-se aluno brilhan­
te tanto nas letras como nas ciências. Em 1878, já atraído pela filoso­
fia, ingressa na Escola Normal Superior. Três anos depois, é designa-
VIII BFRGSON

do professor do Liceu de Angers. Em 1883, aceita o convite para le­


cionar filosofia no Liceu de Clermont-Ferrand, onde ponranecc du­
rante cinco anos. Nessa época publica uma seleção de textos de Lu-
crécio (Extraits de Lucrèce), livro destinado ao ensino secundário. Em
1688, conclui suas duas teses — uma francesa e outra latira — c vai
para Paris, lecionar no Liceu Henri IV. A tese latina era sobre a noção
de lugar em Aristóteles (Quid Aristóteles de Loco Senserit): a outra te­
se, denominada Essai sur /es Données Immediate* de la Conscience
(Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência), provocou admira­
ção nos meios filosóficos franceses e garantiu desde logo o prestígio
de Bergson.
Professor cxcepcionalmente brilhante, a dedicação ao magistério
não impediu que Bergson prosseguisse a construção de sua vasta
obra. Assim, em 1897 publica Matière et Mémoire, Essai sur la Rela­
tion du Corps et de 1'Esprit (Matéria e Memória, Ensaio sobre a Rela­
ção entre o Corpo e o Espirito). No ano seguinte, toma-se "mestre de
conferências" da Escola Normal Superior, onde permanece até 1900,
quando passa a ocupar uma cátedra de filosofia no Colégio de Fran­
ça. Nesse mesmo ano, publica Le Rire, Essair sur la Signification du
Comique (O Riso, Ensaio sobro a Significação do Cômico).
Nos primeiros unos do século XX Bergson conhece William Ja­
mes (1842-1910), célebre psicólogo e filósofo de Harvard. Nasce en­
tre os dois uma sólida amizade, apesar das diferenças entre a filosofia
do pensador francês e a do americano. Nessa época, Bergson publica
uma de suas obras principais, involution Créatrico (A Evolução Cria­
dora). Seu prestígio cresce, levando-o a participar dc vários congres­
sos na França e no exterior. Ao mesmo tempo, a intensa atividade in­
telectual iraduz-se em diversos trabalhos que redige para a Revue de
Métaphysiquc et de Morale, para n Rcvue Philosophique, pira o Vu-
cabulaire Philosophique, de André Lalande (1866-1964), e para ou­
tras publicações especializadas, da França e de outros países.
Em 1912, Bergson viaja aos Estados Unidos para proferir um cur­
so sobre "Espiritualidade e Liberdade", na Universidade de Columbia
(Nova York). Em 1914, com a saúde já abalada, afasta-se temporaria­
mente de sua cátedra no Colégio de França, sendo substituído por
Édouard Le Roy (1870-1954). O mesrno Le Roy irá substituí-lo deíiniti-
vamente, quando Bergson, em 1921, renunciar á cátedra, devido ao
agravamento de suas condições físicas.
Apesar da intensa atividade intelectual, Bergson não se deixou fi­
car à margem dos acontecimentos ligados à guerra de 1914/18. Colo­
cou-se a serviço de seu país e recebeu diversas missões na Espanha e
nos Estados Unidos. O ano de 1914 assinalou lambém sua admissão
à Academia Francesa.
A criação da Sociedade das Nações, em 1919, amplia o campo
de interesses e de atividades de Bergson. Passando a colaborar nessa
organização, veio a presidir a Comissão de Cooperação Intelectual.
Ainda em 1919, publica L'Cnergic Spirituelle (A Energia Espiritual), co­
letânea de escritos que focalizam, entre outros, os lemas da consciên­
cia e da vida, a relação corpo e alma, o sonho, a relação entre cére­
bro e pensamento. Anos mais tarde, cm 1922, publica Dutée et Si-
multaneité (Duração e Simultaneidade), obra que revela a repercus­
são em seu espírito das revolucionárias teses de Einstein (1879-1955).
VIDA E OBRA IX

Apesar de enfraquecido pela doença, Bergson não abandona o


trabalho intelectual. Em 1932, publica Le> Deux Sources de la Mora­
le et de la Religion (As Duas Fontes da Moral e da Religião! c, dois
anos mais tarde, La Pensée et le Mouvant (O Pensamento c o Moven-
te), nova coletânea de textos, alguns inéditos. Esses dois livros confir­
maram o prestígio filosófico de Bergson. Mas o reconhecimento de
sua grandeza como filósofo e escritor já havia sido expresso, desde
1928, pelo Prêmio Nobel de Literatura que lhe foi conferido.
Na fase final de sua vida e de sua obra, Bergson manifestou cres­
cente aproximação da doutrina cristã. Sua origem judaica, entretanto,
parece tê-lo impedido de convertor-so publicamente ao catolicismo,
não desejando abandonar seu povo num momento em que este vivia
entre ameaças e perseguições.
Bergson morreu em 1941,

Os fundamentos de um novo espiritualismo

O pensamento filosófico das últimas décadas do século XIX e do


começo do século XX esteve em grande parte dominado pela tendên­
cia positivista e cientificista: somente seria legítimo o conhecimento
construído à semelhança das ciências consideradas positivas; científi­
cos seriam apenas os dados empírica e diretamente observáveis, passí­
veis de mensuração c capazes de serem situados numa cadeia rigoro­
sa de causas c efeitos. O edifício todo da ciência aparecia regido por
férreo determinismo, não dando margem a qualquer arbítrio (divino
ou humano) ou ao imponderável.
Também os fenômenos psíquicos passaram a receber osso trata­
mento objetivista e foram submetidos h medição. Pierre Paul Broca
(1824-1880), cirurgião francês, anunciara a descoberta, no cérebro,
do centro da linguagem articulada. Por outro lado, o psieólego ale­
mão Gustav Theodor Fcchner (1801-1887) publicou, cm I860, seus
Elementos de Psicofoica, onde propunha a quantificação dos fenôme­
nos psicológicos. Fechner, desenvolvendo uma linha de investigação
já explorada por outro psicólogo alemão, Ernst Heinrich Weber
(1795-1878), formulou a lei Weber-Fechner, segundo a qual qual­
quer sensação seria diretamente proporcional ao logaritmo de seu estí­
mulo.
A descoberta de localizações cerebrais para funções psíquicas e
os avanços da psicofísica pareciam definitivamente objetivar o mun­
do subjetivo e materializar as atividades Iradicionalmcnte considera­
das espirituais. O determinismo e o materialismo pareciam ter venci­
do o velho combate com o espiritualismo; clássicas questões metafísi­
cas, como a da relação entre corpo c alma, pareciam agora supera­
das. As reações ao cientificismo triunfante ou assumiram feições irra-
cionalistas — rejeição da razão c da ciência, exaltado fideísmo etc.
—, ou insistiram, como em Émile Boulroux (1845-1921), na impossi­
bilidade de se fazer da psicologia uma ciência da natureza, uma vez
que a introspccçào, a experiência interna, revelaria a liberdade ine­
rente à vida psicológica. E em prosseguimento ao "positivismo espiri­
tualista" de Jules Lachelier (1832-1918) e de Boulroux que pode ser si­
tuado o pensamento bergsoniano. Sua grande originalidade está, de
X BERGSON

saída, etn reabrir o debate com materialistas e deterministas a partir


das noções mesmas que, na época, pareciam dar força às posições
que eles defendiam: a de medida em psicologia c a de redução do
mental ou do espiritual ao cerebral.
Desde sua obra Os Dados Imediatos da Consciência, Bergson
mostra que, se desembaraçamos os dados de nossa experiência inter­
na de todas as construções através das quais os exprimimos tanto na
linguagem corrente quanto na linguagem científica, cies aparecem co­
mo aquilo que verdadeiramente são enquanto dados imediatos, ou se­
ja, como pura qualidade e não como quantidade, não mais como jus­
taposição de unidades homogêneas c quanliíicáveis, mas com o pro­
gresso na heterogeneidade c mutação continua. Na verdade. Bergson
faz muito mais do que repetir o apelo do espiritualismo tradicional à
consciência interior: na linhagem de Berkeley (1685-1753), prega o
retorno ao ‘ imediato". Reconhece os obstáculos que esse retorno
tem de enfrentar, mas não identifica as dificuldades dessa volta ã vida
interior com entraves de natureza moral, como gcralmente faz o espi-
ritualismo corriqueiro e srmplório. Para Bergson — e é o que dá con­
sistência e profundidade à sua posição —, a dificuldade em se apreen­
der a consciência interna enquanto imediata c enquanto pura qualida­
de mutante reside na própria natureza da inteligência. O que a inteli­
gência faz é mt'dir, mas medir supõe a existência de unidades homo­
gêneas c comparáveis, como as do espaço geométrico. Buscando
apreender e explicar os estados de consciência, a inteligência é leva­
da então a espacializar o que 6 puro fluxo qualitativo, pura duração.
A própria linguagem, ao nomear os estados de consciência, permite
que eles sejam figurados como separados, representados como numa
sucessão espacial, seriados ou adicionados como unidades homogê­
neas. A psicofísica de Fechner, mostra Bergson, depende dr elimina­
ção do aspecto qualitativo dos fenômenos psicológicos; somente as­
sim $ igualdade, a adição e a medida desses fenômenos lornam-se
possíveis.

O eu superficial e o eu profundo

Bergson afirma que a inteligência, ao elaborar conceitos e ao tra­


balhar analiticamente, fragmenta, especializa e fixa a realidade que,
nela mesma, é contínua mudança qualitativa, puro tornasse. Mas,
por outro lado, reconhece que essa forma de atividade intelectual, tí­
pica do "eu superficial", é aquela que possibilita a ciência e a pró­
pria sobrevivência do homem: está voltada, portanto, para o útil e o
cômodo, permitindo não apenas a construção de símbolos o cálcu­
los, como também a criação de máquinas c utensílios. A atividade do
intelecto gerador de conceitos é de índole pragmática, fazendo com
que o homem soja o homo faber que domina a natureza e a poo a seu
serviço.
Em contrapartida, o conceito deixa escapar a natureza mesma do
objeto concreto. O conceito — como mostra Bergson na Introdução ã
Metafísica (cm O Pensamento e o Movente) — "só pode simbolizar
uma propriedade especial tornando-a comum a uma infinidade de
Coisas"; assim, cada conceito "retém do objeto apenas o que c co­
VIDA E OBRA XI

mum a esse c a outros objetos". A inteligência que se move no plano


das abstrações está fadada, portanto, a permanecer no nível das re/a-
çóes entre os objetos, sendo incapaz de apreender o que cada objeto
tem de essencial e de próprio. Esse essencial e esse próprio é que inte­
ressariam àquilo que Bergson entende por metafísica: não a tessitura
de abstrações, mas o mergulho — para além da teia dos simbolismos
da linguagem — na intimidade do real concreto, o reino da curação
pura. Para isso torna-se necessário utilizar outra forma de abordagem
o apreensão do real, que comunique diretamente a intimidade do su­
jeito, o "cu profundo" — duração pura — com a intimidade do obje­
to concreto e singular, também pura duração. Essa forma de contato
ou do "simpatia", som mediações, entre sujeito e objeto é o que
Bergson entende por intuição, visão que mal se distingue do objeto
visto, conhecimento que chega à coincidência. Ao contrário da análi­
se, que multiplica indefinidamente 05 pontos de vista tentando c om­
pletar a representação do objeto, a intuição coloca-se no próprio obje­
to. E, ao contrário do conceito que espacializa a duração real c estag­
na o movimento (reduzindo-o ao espaço, à trajetória), a intuição, des­
tituída de motivos utilitários, permitiría a apreensão do que é vida, di­
namismo, mudança qualitativa, duração, criação. Por isso, a metafísi­
ca — que não deve ser vista como mero jogo dc idéias abstratas, mas
como "ocupação séria do espírito" — teria na intutçào sou método
adequado. Bergson reconhece que os conceitos são indispensáveis à
metafísica, na medida em que esta nào pode dispensar as outras ciên­
cias, que todas trabalham com conceitos; mas reconhece também
que a metafísica só é propriamente ela enquanto se liberta dos concei­
tos já prontos c consagrados pelo hábito, para criar "representações
flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se moldar peas for­
mas fugidias da intuição". Assim, a linguagem da metafísica — como
o próprio Bergson exemplificou de modo admirável — nào pode ser
construída com conceitos que espacializam a duração, coagulam o
devir, matam o que ê vivo: a linguagem da metafísica tom dc apelar
necessariamente para o poder sugestivo das metáforas, utilizando o
"literário" de modo a que os jogos e a convergência de imagens pre­
parem e suscitem a intuiçáo.

A memória-hábito e a memória-recordaçáo

Por trás das cristalizações c das aparentes situações descontínuas


do cu superficial, o eu profundo flui como uma unidade em perpétua
mudança. Mas esse progresso na continuidade supõe uma atividade
unificadora: a memória. Bergson chega a dizer que "a duração inte­
rior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no
presente". Considera entretanto fundamental distinguir entre dois ti­
pos dc memória: a mcmória^hàbito e a memória-recordação. A pri­
meira repete e torna presente 0 «‘feito prático do experiências passa­
das (como quando se repete do cor um texto anteriormente lido): a se­
gunda, a mémoire souvenir, reproduz o passado enquanto passado,
revivendo-o (como quando se recorda das circunstâncias em que se
leu aquele texto pela primeira vez). A memória-recordação "registra,
sob a forma de imagcns-lembranças, todos os acontecimentos dc nos-
XII BERGSON

sa vida cotidiana, à medida que des se desenrolam”, sem negligen­


ciar nenhum pormenor, ao contrário, deixando "a cada fato, □ cada
gesto, seu lugar o sua data”. Essa seria a memória verdadeira, que re­
cupera o próprio passado, sem intenção utilitária. Para evocar desse
modo o passado, sob a forma de imagens, é necessário, todavia, abs­
trair-se da ação presente, ”é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso
querer sonhar”, afirma Bergson.
O tema da memória vincula-se a outras questões centrais da psi­
cologia c da metafísica bergsoniana, como a do inconsciente c a do
relacionamento entre corpo c alma (esta, sob a forma de relação en­
tre o mental e o cerebral). Bergson discute a questão das localizações
cerebrais em função dos distúrbios da memória, particulcrment? da
afasia. E conclui que esses distúrbios nào são devidos a lesões no cór-
tex cerebral: a lesão pode prejudicar o mecanismo de ativação das
lembranças, mas nâo atinge as próprias recordações; o espiritu.il ou o
mental ultrapassa o físico ou o cerebral, embora nele se apóic o dele
dependa para se manifestar.
A ação do inconsciente é representada por Bergson através da
imagem do cone: a base do cone — o inconsciente — crescería sem­
pre pela aquisição de novas experiências; já o vértice representaria o
momento presente, de inserção do psiquismo na vida. No interior do
cone os elementos psíquicos apresentam duplo movimento: do vórti­
ce para a base (experiências presentes que passam ao inconsciente) C
da base para o vértice (o inconsciente que emerge, atuando sobre o
plano da consciência). O crescimento incessante do cone significa
que cada qual carrega atrás de si todo o seu passado, que é < onserva-
do integralmente. E. mostra Bergson, o verdadeiro problema relativo
ft memória não é o da conservação do lembranças, mas o do esqueci­
mento daquilo que se conserva por inteiro. Explica então: ustamente
porque o cérebro é órgão de atenção ã vida, ele seleciona a> lembran­
ças, recalcando aquelas que são desnecessárias ao momento presen­
te. Órgão de integração do indivíduo à vida, o cérebro é a>sim, tam­
bém, óqtfo de esquecimento. Quando a atenção à vida se afrouxa,
como nò sono, é que o inconsciente pode aflorar, gerando então os
sonhos.
O contraste entre o eu de superfície — aulnmatizado, pragmáti­
co, espacializado, preso às injunções da sobrevivência e da vida so­
cial - c o cu profundo marca todo o bergsonismo. E permite a
Bergson retomar a questão do livre-arbítrio, formulando a de forma
completamento diferente da concepção clássica. Para Bergson o li­
vre-arbítrio não se encontra no cu superficial, que é de fato totalmen­
te determinado. A liberdade encontrar-sc-ia no ou profundo, no eu
que quer, que se apaixona, que amadurece, que evolui, que crest e
sem cessar, que é puro dinamismo e constitui a verdadeira personali­
dade do indivíduo. Bergson reconhece, porém, que a maiora dos ho­
mens vive apenas no eu de superfície, atravessando a existência sem
jamais experimentar a verdadeira liberdade. Essa liberdade é que
transparece na ação criadora dos reformadores, dos santos, dos místi­
cos, que rompem as barreiras da moral e da religião fechadas, para
criarem, além dos preceitos cristalizados e dos comportamentos roti­
neiros, os horizontes abertos de uma religiosidade e de uma moral
que brotam das vivências profundas do eu.
VIDA COBRA XIII

Cronologia
1859 — Bergson wee em Paris.
1876 — Ingressa na Escola Normal Superior.
1883 — Vai lecionar filosofia no Liceu de Clermont-f errand.
1889 — Defende a test' tetina. sobre Aristóteles, e a francesa, Essai sur les
Donnies Immédiatcs de la Conscience.
1897 — Publica Matíère et Mémoirc.
1898 — Foma-se mestre de conferências na Escola Norma! Superior IParis).
1900 — Ocupa uma cátedra de filosofia no Colégio de França. Publica Le
Riro.
1901 — Passa a pertencer à Academia das Ciências Morais e Políticas da
França.
1907 — Publica Involution Créatnce.
1910 — Morro William James.
1912 — Viaja aos Fstados Unidos paru proferir curso na Universidade de Co­
lômbia (Nova York).
1914 — Começa a Primeira Guerra Mundial. Bergson entra para a Acade­
mia Francesa.
1918 — Termina a Primeira Guerra Mundial.
1919 — Bergson publica L'Énergíe Spirítuelle.
1922 — Pub//caDurévetSÍmuhanéilí*.
1928 — Kecebe a Prêmio Nobel de Literatura.
1932 — Publica Les Deux Sources de la Morale et de la Religion.
1934 —■ Publica La Pensée et le Mouvant.
1939 — Começa a Segunda Guerra Mundial.
1941 — Bergson morre.

Bibliografia

LiRov.E.: Une Philosophic Nouvolle: Henn Bergson, Alcan. Paris, I9U.


BtNiM Le Bergsonisme ou une Philosophic de la Mobifitó, Mercure de Fran­
ce. Paris. 1913.
Maintain J.: La Philosophic Bergsoniunne, Rivièru, Paris, 1913.
Ho»»»ing.H.: La Philosophic de Bergson, Alcan, Paris, 1916.
CHtvAurn.J.. Bergson, Ploti, Paris, 1926.
Jankíiívuch. V.: Bergson, Alcan. Paris. 1930.
Iankfiívtich. V.: Henri Bergson, Presses Universitaírcs de rrance, Paris. 1959,
Pünioo.M. T. L.: La Méthode Intuitive de Bergsun, Paris, 1918.
PtNiDCi. M. T. I.: Dicudans le Bergsonisme, Paris, 1934.
SimuANcrs. R. P.: Henri Bergson et In Catholicism#, Flammarion Pans,
1941.
Bacnhami. G.: La Dialectipue de la Durtv, Presses Universitaircs de France,
Paris, 1936.
CARTAS A WILLIAM JAMES*

Tradução de Franklin Leopoldo c Silva

* Traduzido do original francês Éeríts ei Paroles, I— II. P.U.F., 1957. textos reunidos por Rose Marie
MoSbé Bolide.
Carta de Bergson a William James, de 6 de janeiro de 1903

Caro Confrade

Acabo de ler o livro que tivestes a bondade de me enviar — The Varieties of


Religious Experience — e quero dizer-vos da profunda impressão que esta leitura
me causou. Eu a comecei há uma dezena de dias c. desde então, não posso pensar
cm outra coisa, tão cativante é o livro e. permili-mc dizer-vos. apaixonanle de
ponta a ponta. Lograstes, creio, extrair a própria quintessência da cmoçâo religio­
sa. Sem dúvida sentíamos já que esta emoção é ao mesmo tempo uma alegria sui
generis c a consciência de uma união com uma potência superior: mas qual c a
natureza desta alegria e o que é esta união, c o que não parecia nem analisávcl
nem cxprimívcl. e c entretanto o que vós soubestes analisar e exprimir, graças u
um procedimento novo que consiste em fornecer ao leitor, pouco a pouco, uma
serie de impressões de conjunto que interferem c ao mesmo tempo se fundem
entre si. no espírito. Acabais de abrir um caminho no qual sereis certamcnic
seguido por muitos outros, mas onde já fostes imediatamente tão longe, que se
terá bastante dificuldade para vos ultrapassar e mesmo para vos alcançar.
Sc tivestes ocasião, nestes dez ou doze úliimos anos, de conversar com estu
dantes franceses de passagem por Cambridge, eles ccrtamentc vos terão dito que
eu fui um de vossos primeiros admiradores e que jamais perdí ocasião de exprimir
diante de meu auditório a grande simpatia que tenho por vossas idéias. Quando
cscrcvi meu Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência só conhecia o
vosso artigo sobre o Esforço, mas tinha sido conduzido, através da análise da
idéia de tempo e de uma reflexão acerca da função desta idéia na mecânica, a
uma certa concepção da vida psicológica que é bastante conciliávcl com a de
vossa psicologia (exceto, todavia, pelo fato dc que vejo nas próprias resting-
places os places of flight aos quais o olhar fixo da consciência confere uma
imobilidade aparente). Isto significa dizer que nenhuma aprovação me poderia
ser tão preciosa quanto a que tivestes a bondade de dur às conclusões dc meu
livro Matéria e Memória.
Tentei neste livro — sem sacrificar nenhum dos resultados da fisiologia
cerebral — mostrar como a relação dc consciência com a atividade cerebral é
coisa bem diferente do que supõem os fisiólogos e os filósofos: e vejo que. ainda
neste ponto, seguimos caminhos bem próximos e provavelmente convergentes.
Ao menos é o que se me depreende da leitura da interessantíssima conferência
sobre Human immortality que tivestes a bondade de me enviar. Quanto mais
4 BERGSON

reflito sobre a questão, mais convencido fico de que a vida c. de ponta a ponta,
um fenômeno de atenção. O cérebro é a própria direção desta atenção, ele marca,
delimita c mede a tensão psicológica que é necessária à ação; enfim, cie nào c
nem a duplicata nem o instrumento da vida consciente, ele é o ponto extremo
dela, a pane que se insere nos eventos — algo como a proa na qual o navio sc
estreita para cortar o oceano. Mas. como tão justamente o dizeis, esta concepção
da relação entre cérebro e espirito exige que mantenhamos a distinção ertre alma
e corpo, transcendendo, ao mesmo tempo, o antigo dualismo, e. consequente­
mente. que quebremos muitos quadros nos quais estamos habituados a pensar.
Desejo vivamente que se apresente uma ocasião para conversar convosco
acerca de tudo isto. Posso vos pedir, no caso de que venhais à França, que me
aviseis, a fim de que nos possamos encontrar?
Carla de Bergson a William James, de 25 de março de 1903

Caro Confrade

Fiquei extremamente desapontado quando soube que não virieis provável


mente à Europa e meu desgosto teria sido bem mais vivo sc não tivesse sabido
que ê a melhora de vossa saúde que vos impòe renunciar a esta viagem. Ocscjo
que vos restabeleçais pronta e completamentc da fadiga dc que falastes, e que sc
explica muito bem quando sc pensa na soma de trabalho c dc reflexão que deve
(cr custado vosso último trabalho. The Varieties of Religious Experience.
As dificuldades que me assinalastes cm certas partes de Materia e Memória
são bcm reais, e estou longe de tc-las completamentc superado. Creio entretanto
que. entre estas dificuldades, há as que dizem respeito simplesmente a hábitos
inveterados dc nosso espírito, hábitos que possuem uma origem intciramenie prá­
tica e dos quais devemos nos livrar na especulação. Tal é. por exemplo, a dificul-
dade dc admitir lembranças presentes e inconscientes. Se assimilamos as lem­
branças a coisas, e claro que não há para elas meio-termo entre presença e
ausência: ou sâo realmente presentes cm nosso espírito e. neste sentido, conscien­
tes, ou. se sâo inconscientes, são ausentes dc nosso espírito c não sc deve contá-
las entre as realidades psicológicas atuais.
Mas. no mundo das realidades psicológicas, não creio que haja lugar para
colocar a alternativa to be or not to be (scr ou nao scr) com semelhante rigor.
Quanto mais tento apreender-me a mim mesmo pela consciência, tanto mais me
apercebo como a localização ou o hibegrjff dc meu passado, este passado estando
contraído em vista da ação. “A unidade do cu” dc que falam os filósofos mc apn
rcce como a unidade dc uma ponta ou de um cume, nos quais me concentro a
mim mesmo por um esforço de atenção, esforço que sc prolonga durante a vida
inteira e que. ao que parece, ê a própria essência da vida. Mas, para passar desta
ponta de consciência ou deste cume para a base, isto c. para um estado em que
todas as lembranças de todos os momentos do passado estariam espalhadas c dis
tintas, sinto que teria dc passar do estado normal de concentração a um estado de
dispersão como o de certos sonhos; não havería, pois, nada dc positivo a fazer,
mas simplesmente algo a desfazer, nada a ganhar, nada a acrescentar, mas antes
algo a perder; é neste sentido que todas as minhas lembranças lá estão quando
não as percebo, e que não sc produz nada de realmente novo quando elas reapare­
cem à consciência.
O resumo que livestes a bondade de me enviar, relativo ao curso que minis-
6 BERGSON

trais neste momento, me interessou profundamente. Contém tantos aspectos


novos c originais que não chego ainda a abarcar o conjunto de maneira suficiente,
mas uma idéia principal se destaca para mim desde agora: é a necessidade de
transcender os conceitos, a lógica simples, enfim, os procedimentos dc uma filo*
sofia demasiado sistemática que postula a unidade do todo. É um caminho aná­
logo que trilho, c estou convencido de que. se uma filosofia rcalmcntc positiva c
possível, ela só pode ser encontrada nesta direção.
Caro Confrade

Peço-vos que me desculpeis por tardar tanto cm vos agradecer o envio de


vossos últimos artigos: não necessito dizer-vos que os li — c os reli — assim que
0$ recebi: mas estive sobrecarregado nas últimas semanas e foi mc impossível
escrever-vos mais cedo. Há nestes cinco artigos o esboço dc toda uma filosofia e
espero com impaciência a obra que apresentará seu desenvolvimento completo.
Mas desde já indicais um certo número dc aplicações, todas extremamente
interessantes. Creio que cm muitos pontos concordamos, mas talvez não fosse tão
longe quanto vós no caminho do “empirismo radical'*. A principal diferença con­
cerne provavelmente (embora não tenha ainda certeza) ao papel do inconsciente.
Nào posso impedir-mc dc dar ao inconsciente um lugar de largo dcstacuc. nâo
somente na vida psicológica, mas ainda no universo em geral, uma vez que a exis­
tência da matéria mc parece ser qualquer coisa do gênero de um estado psicoló­
gico nâo consciente. Esta existência de alguma realidade fora de toda consciência
atual não é. sem dúvida, a existência em si dc que falava o antigo substancia-
lismo; e entretanto nâo é o atualmente apresentado a uma consciência, é algo de
intermediário entre os dois, sempre a ponto de tomar se ou dc novamcnlc tornar-
se consciente, qualquer coisa de intimamente mesclado à vida consciente, inter­
woven with it c nâo underlying it, como queria o subslancialismo. Mas c possível
que. mesmo acerca deste ponto, eu esteja mais próximo de vós do que imagino.
Sou muito grato pelas amáveis alusões que fizestes a meus trabalhos em vá­
rios dc vossos artigos. Elas chamarão atenção para a comunidade dc direção
entre o tão considerável movimento dc idéias que criastes na América c este que
ganha cada vez mais terreno entre nós. Desejo que estes esforços convergentes
terminem pela constituição dc uma metafísica positiva, isto é. suscetível dc pro­
gresso indefinido, cm lugar de ser totaltncnie “a pegar ou a largar”, como os anti­
gos sistemas.
Carta dc Bergson a William James, dc 27 de junho de 1907

Can) Professor James

Vossa carta me causa uma grande alegria, c c necessário que eu vos agra­
deça imediatamente. Tendes razão ao dizer que o filósofo ama a lisonja c que
nisto ele sc parece com o comum dos mortais: mas permiti-me dizer que o sufrá­
gio a que eu aspirava partícularmenic era o do pensador que contribuiu cm tão
grande parte para rçmodelar a alma das novas gerações e cuja obra sempre me
inspirou uma admiração tão profunda. Assim, a carta em que mc declarais estar
pronto a aderir às idéias essenciais de meu trabalho, em que as defendeis anteci­
padamente contra os ataques que elas vão seguramente provocar, mc loca profun­
damente. Eu a guardo como uma recompensa dos dez anos dc esforço que me
custou este livro.
Comecei a ler vosso Pragmatism no momento cm que o correio mo remeteu,
c não pude deixá-lo antes de acabar a leitura. £ o programa, admiravelmente tra­
çado. dn filosofia do futuro. Através dc séries de considerações cxlremamente
diversas, que soubestes sempre fazer convergir para um mesmo centro, através dc
sugestões tanto quanto de razões explícitas, nos dais a idéia, sobretudo o senti
mento, da filosofia maleável c flexível que está destinada a tomar o lugar do
intclcctualismo. Nunca mc dei conta dc maneira tão patente da analogia entre
nossos dois pontos dc vista como quando li o capítulo Pragmatism and Huma­
nism. Quando dizeis que/or rationalist reality is readymade and complete from
all eternity, while for pragmatism it is still in the making, forneceis a própria fór­
mula da metafísica à qual estou convencido dc que chegaremos, â qual leriamos
chegado desde muito tempo sc tivéssemos permanecido imunes ao encanto do
idealismo platônico. Chegaria cu a afirmar convosco que truth is mutable? Creio
na mutabilidade da realidade mais do que na da verdade. Se pudéssemos modelar
nossa faculdade de intuição sobre a mobilidade do real, a modelagem nào seria
algo estável, c a verdade — que só pode scr esta própria modelagem —> nào parti­
ciparia desta estabilidade? Mas. antes de chegar até lá. é preciso tatear muito.
Ainda uma vez obrigado, caro Professor James, cumprimentos pela nova obra,
destinada a exercer uma considerável influência.
Carla de Bergson a William James, de 31 dc março dc 1910

Caro James

Espero que tenhais aceito o convite que Boutroux vos levou da pane da
Universidade dc Paris, e que cedo vos vejamos na França. Se. como o desejo, isto
acontecer na primavera ou no outono deste ano. fareis a gentileza de me dar a
conhecer, ao menos aproximadamente, a data de vossa chegada? Faço questão dc
estar cm Paris neste momento.
Ainda não vos disse do prazer que experimentei ao ler vossos dois artigos:
The Moral Equivalem of War c A Sugestion about Mysticism. O primeiro c ccr-
tamente o que foi dito dc mais belo e dc mais persuasivo a respeito da nào-neces-
sidade da guerra, c das condições nas quais poderiamos faze-la desaparecer sem
que a energia humana fosse diminuída. Quanto ao vosso artigo sobre o misti
cismo, ele será, estou certo, o ponto de partida dc muitas observações c novas
pesquisas. Nâo estou certo dc ter alguma vez experimentado um uncovering, mas
talvez houvesse algo deste gcncro no seguinte fato, que mc aconteceu algumas
vezes (raras vezes, aliás) em sonho. Acreditaria assistir a um espetáculo soberbo,
gcralmcnte a visão dc uma paisagem de coloração intensa, através da qual eu via-
jaria a toda velocidade e que mc dava a impressão tào profunda dc realidade, que
cu nào podia acreditar, durante os primeiros instantes após o despertar, que tinha
sido um simples sonho. Ora. durante o brevíssimo tempo que o sonho pareceu
durar (dois ou três segundos apenas), cu havia lido o sentimento muito nítdo que
eslava a ponto de fazer uma experiência perigosa, que dependia dc mim prolon­
ga la c perceber a continuação, mas que algo crescia cada vez. mais cm mim c
acabaria por explodir se cu nâo restabelecesse a ordem, acordando. E. ao desper
tar, experimentei um arrependimento por icr visto intcrromper-se semelhante
sonho c o sentimento bem nítido dc que havia sido eu que quisera interrompc-lo.
Relato-vos esta experiência pelo que cia vale: ela sugere a idéia de uma extensão
momentânea do campo dc consciência, mas devido a um esforço intenso.
Como desejaria que prosseguisseis este estudo do “valor noético dos estados
anormais dc pensamento"! Vosso artigo, mais o que dissestes em Varieties of
Religious Experience, nos abre grandes perspectivas nesta direção.
INTRODUÇÃO A METAFÍSICA

I raduçào de Franklin Leopoldo e Silva

•Kmc cnwiio apnrcceu nn Revue tic Mtiaphyxiqitc et de Morale cm 1903. Dc&dc então. fomos levacos a pre
cix:ir mnis a significação dos (centos inciqflslca c cifncla. Sumos livres para dar às palavras o setíiido que
queiramos, contanto que tomemos o cuidado de defini 1<>: nndfl impcdirin de chamar "ciência" ou "f losofin".
como se fez durante muito tempo, todu espécie de conhecimento. Poderiamos mesmo. com«> diwmos cm
'ouira parte (segunda introdução a "O Pensamento c o Movenie"). englobar tudo na metafísica. Contudo, é
incontestável que o conhecimento tiponta para umu direção bem definida quando dispõe xu objeto cm vista
da medida, c que mm chu cm sentido diferente, inverso mesmo.quando se libera de coda pressuposto de rela
çâo c de comparação. para simpatizar com a realidade. Mostramos que 0 primctfo método conviría no csiu
do da matéria, c o segundo, no do espírito, que liú. aliás, interferência recíproca dos dois objetos c que o» dois
métodos devem prestar se auxilio muntamcnie. No primeiro caso, truumos com o tempo cspactalizado c
com o espaço*, no segundo, com a duração real. Pareceu nos cadtt vez mills ÚÜI. para a clareza dis idc>:is.
chamar “científico*’ o ptímeiro ripo de conhecimento. c “metafísico" o segundo. h então do lado dj metafí
stea que colocaríamos esta “filosofia d» cténcia" ou “metafísica dn ciência" que habita o espirito cos gran
des cientistas, que ê imanente à sua ciência e que é frcqiicntcmcnte » invíuivcl ínspintdora desta cicieis. No
presente artigo, nós n deixnmos ainda do Indo da cicncí.i. pois ela foi praticada, de fato, por pc&qui&udorcs
a quem se concorda gcralmcntc chamar de “ciuntistus** mais do que de “metafísicos** (ver. mais atrás, a pri-
rtieiru introdução » “O Pens.nHcjitu c o Movente**). É preciso não esquecer, por outro Indo. que o presente
ensaio foi escrito numa época cm que o criuctsmo de Kant c o dogmatisms de seus sucessores eram geral
mente basiantc admitidos. senÀn como conclusão, ao menor. com<> ponre> de partida Ju c*p«utiiçào fiiux'i-
ficn.fN.do A.)
Sc compararmos entre si as definições da metafísica c as concepções do
absoluto, percebemos que os filósofos concordam, apesar dc suas divergências
aparentes, cm distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer
uma coisa. A primeira implica que rodeemos u coisa; a segunda, que en.remos
nela. A primeira depende do ponto de vista em que nos colocamos c dos símbolos
pelos quais nos exprimimos. A segunda não se prende a nenhum ponto dc vista e
não se apóia em nenhum símbolo. Acerca da primeira maneira dc conhecer, dire­
mos que ela sc detêm no relativo; quanto à segunda, onde ela e possível. diremos
que ela atinge o absoluto. Seja, por exemplo, o movimento de um objeto no espa­
ço. Eu o percebo de maneira diferente conforme o ponto dc vista, móvel ou imó­
vel. donde o observo. Eu o exprimo diferentemente, conforme o sistema dc eixos
ou de pontos dc referencia aos quais o relaciono, isto é, conforme os símbolos
pelos quais o traduzo. E o chamo relativo por esta dupla razão: tanto num caso
como no outro, coloco-me dc fora do próprio objeto. Quando falo de um movi­
mento absoluto, é que atribuo ao móvel um interior c como que estados dc alma,
c. também, porque simpatizo com os estados e mc insiro neles por um csftrço de
imaginação. Então, conforme o objeto seja móvel ou imóvel, conforme adote um
ou outro movimento, não experimentarei a mesma coisa.1 E o que experimentarei
não dependerá nem do ponto dc vista adotado cm relação ao objeto, pois estarei
no próprio objeto, nem dos símbolos pelos quais podería traduzi-lo, pois terei
renunciado a toda tradução para possuir o original. Em suma, o movimento não
será mais apreendido de fora e. dc alguma forma, a partir dc mim, mas sim dc
deniro, nele mesmo, cm si. Eu possuiría um absoluto.
Seja ainda uma personagem de romance cujas aventuras mc são contadas. O
romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer falar c agir seu herói
tanto quanto queira: tudo isto nâo valerá o sentimento simples c indivisível que
eu experimentaria se coincidisse um instante com a própria personagem. Entào,
as palavras, os gestos c as ações mc pareceríam correr naturalmcnte. como da
fonte. Já nâo seriam acidentes acrescentando sc à idéia que mc fazia da persona­
gem. enriquecendo a sempre mais e mais sem nunca completá-la. A personagem

’ £ necessário duer que dc rrinncira alguma propomos aqui um meio de reconhecer se um movimento c
absoluto ou não. Definimos simplesmente o que remos no espirito quando falamo» dc movimento absoluto,
no sentido mcialtsico da palavra. (N. do A.)
14 BERGSON

mc seria dada dc uma vez, intcgralmcnte. e os mil acidentes que a manifestam, em


lugar dc se acrescentarem à idéia e enriquecê-la. me pareceríam, ao contrário,
então, destacarem-se dela. sem. entretanto, esgotá-la ou empobrecer sua essência.
Tudo o que me é contado acerca da pessoa mc fornece pontos de vista sobre ela.
Todos os traços pelos quais ma descrevem, e que só podem fazer com que eu a
conheça através dc comparações com pessoas ou coisas já conhecidas, são signos
pelos quais a exprimimos mais ou menos simbolicamente. Símbolos c pontos de
vista mc colocam, pois, fora dela: apenas me fazem conhecer dela o que tem cm
comum com outros c que não lhe pertence propriamente. Mas o que é propria­
mente ela. o que constitui sua essência, não podería ser percebido dc fora, pois é.
por definição, interior, nem ser expresso por símbolos, pois é incomensurável com
qualquer outra coisa. Descrição, história e análise mc deixam, pois, no relativo.
Somente a coincidência com a própria pessoa me daria o absoluto.
Ê neste sentido, e neste somente, que absoluto c sinônimo de perfeição.
Todas as fotografias de uma cidade, tomadas dc todos os pontos dc vista possí­
veis. poderão se completar indefinidamente umas às outras, porém não equivale­
rão nunca a este exemplar em relevo que é a cidade por onde caminhamos. Todas
as traduções de um poema cm todas as línguas possíveis poderão acumular nuan­
ces e nuances e. por uma espécie de mútuo retoque, corrigindo-se uma à outra,
dar uma imagem cada vez mais fiel do poema que traduzem: jamais captarão o
sentido interno do original. Uma representação tomada de um certo ponto dc
vista, uma tradução feita com certos símbolos, permanecem sempre imperfeitas
comparadas com o objeto representado, ou que os símbolos tentam exprimir. Mas
o absoluto é perfeito no sentido dc que é pcrfcitamcntc o que c.
É pela mesma razão, sem dúvida, que freqücntementc se identificou o abso­
luto com o infinito. Sc desejo comunicar a alguém que nâo saiba grego a impres-
são simples que me deixa um verso dc Homero, darei a tradução do verso, depois
comentarei minha tradução, depois desenvolverei meu comentário, c. dc explica­
ção em explicação, aproximar mc-ci cada vez mais do que quero cxpnmir; mas
não chegarei jamais a exprimi-lo. Quando levantamos o braço, realizamos um
movimento dc que temos intcríormcntc a percepção simples; mas exteriormente,
para alguém que observa, nosso braço passa por um ponto, depois pO' outro, c
entre estes dois pontos havería ainda outros pontos, dc tal maneira qje, se ele
começar a contar, a operação nao terá fim. Visto dc dentro, um absoluto é. pois,
coisa simples; mas considerado de fora, isto é. rclativamcnte a outra coisa, tor­
na-se. em relação aos signos que o exprimem, a peça de ouro cuja moeda jamais
chegará a equivaler. Ora. o que se presta ao mesmo tempo a uma apreensão indi­
visível c a uma enumeração inesgotável ê. por definição, um infinito.
Decorre daí que um absoluto só poderia ser dado numa intuição, enquanto
todo o restante é objeto dc análise. Chamamos aqui intuição a simpatia acla qual
nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem
de único e, conseqüentemcnie, de inexprimível. Ao contrário, a análise é a Opera­
ção que reduz o objeto a elementos já conhecidos, isto é. comum a este objeto e
a outros. Analisar consiste, pois, cm exprimir uma coisa em função do que não é
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 15

ela. Toda análise é. assim, uma tradução. um desenvolvimento cm símbolo*, uma


representação a partir dos pontos de vista sucessivos, cm que notamos outros tan­
tos contatos entre o objeto novo, que estudamos, e outros, que cremos já conhe­
cer. Em seu desejo etemamente insatisfeito de abarcar o objeto em tomo do qual
ela está condenada a dar voltas, a análise multiplica sem fim os pomos dc vista
para completar a representação sempre incompleta, varia sem cessar os símbolos
para perfazer a tradução sempre imperfeita. Ela se desenvolve, pois, ao infinito.
Mas a intuição, sc ela é possível. é um ato simples.

Isto posto, veremos sem dificuldade que a ciência positiva tem por função
habitual analisar. Ela trabalha, pois, antes de tudo com símbolos. Mesmo as mais
concretas das ciências da natureza, das ciências da vida, se alêm à forma visível
dos seres vivos, dc seus órgãos. dc seus elementos anatômicos. Comparam as for­
mas umas com as outras, reduzem as mais complexas ãs mais simples, enfim,
estudam o funcionamento da vida naquilo que dele é. por assim dizer, o símbolo
visual. Sc existe um meio dc possuir uma realidade absolutamente, em lugar dc a
conhecer rclativamenie. dc colocar-se nela em vez de adotar pontos de vista sobre
ela. dc ter a intuição cm vez dc fazer a análise, enfim, de a apreender fora d: toda
expressão, tradução ou representação simbólica, a metafísica é este meio. A
metafísica é, pois, a ciência que pretende dispensar os símbolos.
Há uma realidade, ao menos, que todos apreendemos de dentro, por intuição
c não por simples análise. É nossa própria pessoa em seu fluir através do tempo,
í’ nosso eu que dura. Podemos não simpatizar intelectualmentc. ou melhor,
espiritualmente, com nenhuma outra coisa. Mas simpatizamos, scguramcnte.
conosco mesmos.
Quando passeio sobre minha pessoa, suposta inativa, o olhar interior de
minha consciência, percebo primeiramente, como uma crosta solidificada na
superfície, todas as percepções que lhe advêm do mundo material. Estas percep­
ções são nítidas, distintas, justapostas ou justaponíveis umas às outras; elas pro­
curam se agrupar cm objetos. Percebo em seguida lembranças mais ou menos
aderentes a estas percepções e que servem para intcrprctâ-las: estas lembranças
como que sc destacam do fundo dc minha pessoa e são atiradas para a periferia
ao encontro das percepções que sc lhes assemelham; sãu postas por mim sem que
sejam absolutamente cu mesmo. E, enfim, sinto manifestarem-sc tendências, hábi­
tos motores, uma multidão de ações virtuais mais ou menos solidamente ligadas
a estas percepções c a estas lembranças. Todos estes elementos de formas bem
definidas mc parecem tanto mais distintos de mim quanto mais distintos são uns
dos outros. Orientados de dentro para fora, constituem, reunidos, a superfície de
uma esfera que tende a expandir se e perder sc no mundo exterior. Mas se me
concentro da periferia pura o centro, se procuro no fundo de mim mesmo o que
é mais uniforme, mais constante, mais durável, eu mesmo encontro algo total­
mente diferente.
É. por sob estes cristais bem recortados e este congelamento superficial, uma
continuidade que se escoa de maneira diferente de tudo o que já vi escoar-$e. É
uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contem
16 BERGSON

O que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem estados múltiplos quando, uma
vez iendo-os ultrapassado, cm me volto para observar-lhes os traços. Enquanto
os experimentava, eles estavam tão solidamente organizados, tão profundamente
animados com uma vida comum, que eu nào teria podido dizer onde qualquer um
deles termina, onde começa o outro. Na realidade, nenhum deles acaba ou come­
ça. mas todos se prolongam uns nos outros.
É. sc se quiser, o desenrolar de um novelo, pois nào há ser vivo que não sc
sinta chegar pouco a pouco ao fim da sua meada: e viver consiste em envelhecer.
Mas é. da mesma maneira, um enrolar-se contínuo, como o de um fio numa bola,
pois nosso passado nos segue, cresce sem cessar a cada presente que incorpora
em seu caminho; c consciência significa memória.
A bem dizer, nào é nem um enrolar-sc nem um desenrolar-se. pois estas duas
imagens evocam a representação dc linhas ou superfícies cujas partes sâo homo­
gêneas entre si e superponiveis umas ás outras. Ora. nào há dois momentos idên­
ticos num ser consciente. Tomemos o sentimento mais simples, suponhamo-lo
constante, absorvamos nele a personalidade inteira: a consciência que acompa­
nhará este sentimento nào poderá permanecer idêntica a si mesma durante dois
momentos consecutivos, pois o momento seguinte contém sempre, além do prece­
dente. a lembrança que este lhe deixou. Uma consciência que possuísse dois
momentos idênticos seria uma consciência sem memória. Ela perecería c renasce­
ría sem cessar. Como representar se de outra forma a inconsciência?
Seria preciso, pois, evocar a imagem dc um espectro com mil nuances, com
degradações insensíveis que fazem com que passemos de um tom a outro. Uma
corrente de sentimento que atravessaria o espectro tingindo se. dc cada vez. com
cada uma das nuances, experimentaria mudanças graduais, cada una anun
ciando a seguinte c resumindo nela as que a precedem. Ainda as nuances sucessi­
vas do espectro permaneceríam sempre exteriores umas ás outras. Elas se justa­
põem. Elas ocupam espaço. Ao contrário, o que é duração pura exclui ioda idéia
de justaposição, de exterioridade recíproca c de extensão.
Imaginemos, pois, um elástico infinitamente pequeno, contraído, se isto
fosse possível, num ponto matemático. Estiquemo-lo progressivamente dc forma
a fazer sair do ponto uma linha que irá sempre se encompridando. Fixemos nossa
atenção não sobre a linha enquanto tal, mas sobre a ação que a traça. Conside­
remos que esta ação, apesar de sua duração, é indivisível, se supomos que cia se
realiza sem sc interromper; pois, se intercalarmos uma parada, faremos duas
ações em lugar dc uma e cada uma dessas ações será então o indivisível dc que
falamos; porque não é a ação de mover que é divisível, mas a linha imóvel que
deixa atrás dc si como um traço no espaço. Descartemos, enfim, o espaço que
subjaz ao movimento para levar cm conta somente o próprio movimento, o ato dc
tensão ou dc extensão, enfim, a mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem
mais fiel dc nosso desenvolvimento na duração.
E, entretanto, esta imagem será aipda incompleta, e toda comparação, aliás,
será insuficiente, pois o desenrolar-se dc nossa duração se assemelha em certos
aspectos à unidade do movimento que progride, em outros, a uma multiplicidade
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 17

dc estados que se espalham, e nenhuma metáfora pode dar conta dc um desses


aspectos sem .sacrificar o ouiro. Se evoco um espectro de mil nuances, tenho dian
le de mim uma coisa complctamente pronta, ao passo que a duração se faz conti-
nuamente. Sc penso num elástico que se alonga, numa mola que se encolhe ou se
distende, esqueço a riqueza dc colorido que è característica da duraçào vivida
para não ver mais que o movimento simples pelo qual a consciência passa de um
tom a outro. A vida interior è tudo isto de uma vez. variedade de qualidades,
continuidade de progresso, unidade dc direção. Não poderiamos representá-la por
imagens.
Mas poderiamos menos ainda reprcsciuà-la por conceitos. isto é. por idéias
abstratas, ou gerais, ou simples. Sem dúvida, nenhuma imagem jamais reprodu
zirá o sentimento original que tenho do escoamento de mim mesmo. Mat nâo é
necessário, também, que tentemos reproduzi-lo. Àquele que não for capaz dc se
dar a intuição da duração constitutiva dc seu ser. nada seria capaz de fazê-lo. e
os conceito* menos ainda que as imagens. O único objetivo do filósofo deve ser
o dc provocar aqui um certo trabalho que tende a entravar, na maior parte dos
homens, os hábitos de espírito mais úteis à vida. Ora. a imagem tem ao menos
csia vantagem: ela nos mantem no concreto. Nenhuma imagem substituirá a
intuição da duraçào. mas muitas imagens diversificadas, emprestadas à ordem
de coisas muito diferentes, poderão, pela convergência dc sua ação, dirigir a cons
ciência para o ponto preciso em que há uma certa intuição a ser apreendida.
Escolhendo imagens tão disparatadas quanto possível, impediremos que utuu
qualquer dentre elas venha usurpar o lugar da intuição que cia está encarregada
dc evocar, pois, neste caso, ela seria imediatamenic expulsa por suas 'ivais.
Fazendo com que todas exijam dc nosso espírito, apesar dc suas diferenças dc
aspecto, a mesma cspccie de atenção e. dc alguma forma, o mesmo grau de ten
são. acostumaremos pouco a pouco a consciência n uma disposição bem particu
lar e bem determinada, prcci.samcnie aquela que deverá adotar para aparecer a si
mesma sem véu.1 Mas ainda será preciso que cia consinta neste esforço. Pois
nadu lhe teremos mostrado. Teremos simplesmente colocado a consciência na ati
lude que deve tomar para lazer o esforço requerido e chegar, cia própria, â intui
çâo. Ao contrário, o inconveniente dos conceáos demasiadamcncc simples, neste
caso, c o de serem verdadeiramenic símbolos, que se substituem ao objeto que
simbolizam, c que não exigem dc nós nenhum esforço. Olhando-os de perto,
veriamos que cada um deles retém do objeto ajxmas o que è comum a este objeto
c a outros. Veriamos que cada um deles cxpiimc. mais ainda do que a imagem,
uma comparação entre o objeto e aqueles que sc lhe assemelham. Mas como a
comparação destacou uma semelhança, como a semelhança é uma propriedade
do objeto, como uma propriedade parece sempre ser uma parte do objeto que a
possui, persuadir nos emos sem dificuldade que justapondo conceitos a conceitos

8 As imuysnx de yuc Ifttanws aqui são aquvhs que se pcxlem apresentar uo c.sprtlu <lt> fllòsolü quaixk) de

quer expor seu pcncnncnio u uuiro. Dcivirnus do lado a ím.-i|tcm. piv.xiru* intuição, dc que u filósofo ixxJc
necessitar píir.l «ú mmo.eqne pcfin.inrce freqilentciiKnlr incxprcxsa. fN. do A.»
IS BERGSON

recomporemos a totalidade do objeto com suas panes, e que obteremos dclc, por
assim dizer, um equivalente intelectual. Ê assim que acreditamos formar uma
representação fiel da duração alinhando os conceitos de unidade, dc multiplici­
dade. de continuidade, dc divisibilidade finita ou infinita, etc. Aí está precisa­
mente a ilusão. Aí está também o perigo. Quanto mais podem as idéias abstratas
prestar serviço à análise, isto é. a um estudo científico do objeto cm suas relações
com todos os outros, tanto mais incapazes são dc substituir a intuição, isto é. a
investigação metafísica do objeto no que cie tem de essencial c próprio. De um
lado, com efeito, os conceitos colocados um a um nos fornecerão sempre apenas
uma recomposição artificial do objeto, do qual só podem simbolizar certos aspec­
tos gerais e dc alguma forma impessoais: será. pois, cm vao que acreditaremos
apreender uma realidade de que eles se limitam a apresentar-nos a sorrbra. Mas.
dc outra parte, ao lado da ilusão há também um perigo muito grave. Pois o con­
ceito generaliza ao mesmo tempo que abstrai. O conceito pode apenas simbolizar
uma propriedade especial tornando-a comum a uma infinidade dc coisas. Ele a
deforma, pois, mais ou menos, devido à extensão que lhe atribui. Entranhada no
objeto metafísico que a possui, uma propriedade coincide com ele. ao menos se
molda sobre ele. adora os mesmos contornos. Extraída do objeto metafísico e
representada em um conceito, ela se alarga indefinidamente. ultrapassa o objeto,
pois deve doravante ser comum a ele e a outros. Os diversos conceitos que forma­
mos das propriedades dc uma coisa desenham, pois, cm torno dela, outros tantos
círculos muito maiores, dos quais nenhum sc aplica exatamente a ela. E. entre­
tanto. na própria coisa, as propriedades coincidiam com ela c coincidiam, por
conseguinte, entre si. Forçoso será. pois, que busquemos algum artifício para
restabelecer a coincidência. Tomaremos qualquer um desses conceitos c tentare­
mos, com ele. ir ao encontro dos outros. Mas. conforme partamos deste ou daque
le. a junção não se operará da mesma forma. Conforme partamos, por exemplo,
da unidade ou da multiplicidade, conceberemos difcrcntcmcnic a unidade múlti­
pla da duração. Tudo dependerá do peso que atribuamos a tal ou qual conceito,
c este peso será sempre arbitrário, pois o conceito, extraído do objeto, nâo tem
peso próprio, sendo apenas a sombra de um corpo. Assim surgirá a multipli­
cidade de sisienias diferentes, tantos quantos pontos dc vista houver, exteriores à
realidade que examinamos, ou tantos quantos círculos forem traçados, maiores
do que a realidade c nos quais ela será encerrada. Os conceitos simples não pos­
suem. pois, somente o inconveniente dc dividir a realidade concreta do objeto em
outras tantas expressões simbólicas: eles dividem também a filosofia cm escolas
distintas, das quais cada uma conserva seu lugar, escolhe seus jogadores e inicia
uma partida que nâo findará jamais. Ou a metafísica é apenas este jogo cc idéias,
ou. se é uma seria ocupação do espírito, é preciso que transcenda os conceitos
para chegar à intuição. Certamente, os conceitos lhe são indispensáveis, pois
iodas as outras ciências trabalham geralmentc com conceitos, e a metafísica nao
pode dispensar as outras ciências. Mas ela só c propriamente ela mesma quando
ultrapassa 0 conceito, ou ao menos, quando se liberta dc conceitos rígidos c pré-
fabricados para criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitual­
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 19

mente, isto é. representações flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se


moldarem sobre as formas fugitivas da intuição. Voltaremos mais tarde a este
importante ponto. É suficiente, por agora, ter mostrado que nossa duração pode
ser-nos apresentada diretamente na intuição, que pode ser sugerida indiretamente
por imagens, mas que nào poderá - se tomamos a palavra conceito cm seu senti­
do próprio se encerrar numa representação conceituai.
Tentemos, por urfi instante, fazer dela uma multiplicidade. Seria preciso
acrescentar que os termos desta multiplicidade, cm lugar dc se distinguirem como
os dc uma multiplicidade qualquer, penetram uns nos outros, que podemos, sem
dúvida, por um esforço de imaginação, solidificar a duração uma vez escoada,
dividi-la então cm pedaços que se justapõem c contar estes pedaços, mas que esta
operação sc realiza sobre a lembrança fixada da duração, sobre o traço imóvel
que a mobilidade da duração deixa atrás dc si. não sobre a duração mesma.
Reconheçamos, pois, se há aqui uma multiplicidade, que esta multiplicidade não
se parece com nenhuma outra. Diremos então que a duração possui unidades?
Sem dúvida, uma continuidade de elementos que se prolongam uns nos outrox
participa da unidade tanto quanto da multiplicidade, mus esta unidade movente.
mutável, colorida, viva, não sc parece dc maneira alguma com a unidade abstra­
ta. imóvel e vazia, que o conceito de unidade pura circunscreve. Concluiremos
daí que a duração deve se definir pela unidade e multiplicidade ao mesmo tempo?
Mas. coisa singular, poderei muito bem manipular os dois conceitos, dcsá-los.
combiná los diversamente, praticar sobre eles as mais sutis operações dc química
mental: nào obterei jamais algo que sc assemelhe à intuição simples que tenho da
duração; cm vez disto, se me coloco nu duração por um esforço dc intuição, per­
cebo tmediatamente como ela c unidade, multiplicidade, e muitas outras coisas
ainda. Estes diversos conceitos seriam, pois, outros tantos pontos de vista exterio­
res acerca da duração. Nem separados, nem reunidos eles nos fazem penetrar na
própria duração.
Aí penetramos, entretanto, c isto só pode scr feito por intuição. Neste senti­
do. um conhecimento interior, absoluto, da duração do eu pelo próprio eu c possí
vd. Mas sc a metafísica reclama c pode obter aqui uma intuição, a ciência nào
necessita menos de uma análise. E é desta confusão entre o pape! da análise c o
da intuição que nascerão as discussões entre escolas c os conflitos entre sisumas.
A psicologia, com efeito, procede por análise como as outras ciências. Ela
dissolve o cu. que lhe foi pnmeirnmcntc dado numa intuição simples, em sensa­
ções. sentimentos, representações, etc., que estuda separadamente. Ela substitui,
pois, ao eu uma série de elementos que são os fatos psicológicos. Mas estes <?/(.’•
ineníox sào panes? Aqui está roda a questão, c ê por tc-ln eludido que se põe
frequentemente o problema da personalidade humana em termo.s insolúveis.
E incontestável que todo estado psicológico, somente pelo Tato dc pertencer
a uma pessoa, reflete o conjunto de uma personalidade. Nào há sentimento, por
mais simples que seja, que não encerre virtualmcntc o passado e o presente do ser
que o experimenta, que possa se separar c constituir um “estado”, «a não ser por
um esforço dc abstração c dc análise. Mas não é menos incontestável qt.e sem
20 BERGSON

este esforço de abstração e de análise não havcria desenvolvimento possível da


ciência psicológica. Ora. em que consiste a operação pela qual o psicólogo desta­
ca um estado psicológico para erigi-lo cm entidade mais ou menos independente?
Ele começa por negligenciar o colorido especial da pessoa, que nâo pederia ser
expresso cm termos conhecidos e comuns. Depois, ele se esforça para isolar, na
pessoa já assim simplificada, tal ou qual aspecto que se presta a um estudo inte­
ressante. 'trata-se. por exemplo, da inclinação? Ele deixará dc lado a inexprimível
nuance que a destaca c que faz com que minha inclinação não seja a sua: depois
ele se aterá ao movimento pelo qual nossa personalidade sc move para um certo
objeto: isolará esta atitude, e é este aspecto especial da pessoa, este ponto de vista
sobre a mobilidade da vida interior, este “esquema*' da inclinação concreta, que
cle erigirá em fato independente. Há aí um trabalho análogo ao de um artista que.
de passagem por Paris, faria, por exemplo, um croquis dc uma torre de Notrc-
Dame. A torre está inscparavelmente ligada ao edifício, que não está menos liga
do à terra, à vizinhança, a Paris inicira. etc. É preciso começar por jcpará-la:
anotaremos apenas um certo aspecto do conjunto, que c esta torre dc Notrc-
Dame. Ainda mais, a torre c constituída, em realidade, pelas pedras, cujo particu­
lar agrupamento c que lhe dá a forma: mas o desenhista não sc interessa pelas
pedras, ele anota apenas a silhueta da torre. Ele substitui, pots, à organização real
e interior da coisa uma reconstituição exterior c esqucmática. De maneira que seu
desenho corresponde, cm suma, a um certo ponto de vista sobre o objeto c à csco
lha dc um certo modo de representação. Ora. c da mesma forma que um psicó­
logo extrai um estudo psicológico do conjunto da pessoa. Este estudo psicológico
isolado è apenas um croquis. um começo dc recomposição artificiai: c o todo
considerado sob um certo aspecto elementar pelo qual nos interessamos especial­
mente e que tivemos o cuidado de anotar. Não c uma parte, mas um elemento. Ele
não foi obtido por fragmentação, mas por análise.
Pois bem. cm todos estes esboços tomados cm Paris, o estrangeiro escreverá,
sem dúvida “Paris", à guisa dc lembrança. E como ele rcalmente viu Paris, pode­
rá. remontando â intuição original do lodo, aí situar os esboços e ligá-los assim
uns aos outros. Mas não há meio de executar a operação inversa; é impossível,
mesmo com uma infinidade de esboços tão exatos quanto possível, mesmo corn a
palavra “Paris" que indica ser necessário ligá los entre si. remontar a uma intui­
ção que não se teve c sc dar a impressão de Paris sc não se viu Paris. É que não
tratamos, aqui, com panes do lodo, mas com notas tomadas do conjunto. Para
escolher um exemplo mais patente, um caso cm que a notação é mais completa
mente simbólica, suponhamos que me são apresentadas, misturadas ao acaso, as
letras que entram na composição de um poema que ignoro. Se as letras fossem
partes do poema, eu podería tentar reconstituí-lo com elas, ensaiando diversos
arranjos possíveis, como faz a criança com as peças de um jogo dc paciência.
Mas nâo pensarei nisto nem por um instante, pois as letras nâo são partes compo­
nentes, mas sim expressões parciais, o que é coisa bem diferente. Esta é a razão
pela qual, sc conheço o poema, ponho imediatamente as letras em seus lugares e
as ligo sem dificuldade por um traço conrínno. enquanto a operação inversa é
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 21

impossível. Mesmo quando creio tentar esta operação inversa, mesmo quando
tomo as letras uma a uma. começo por mc representar uma significação plausí­
vel: eu me dou. pois, uma intuição, e é da intuição que tento descer para os sím­
bolos elementares que reconstituiríam a expressão dela. A própria idéia de
reconstituir a coisa, por via dc operações praticadas sobre elementos simbólicos
unicamente, implica um tal absurdo que ela não viria ao espírito dc ninguém, se
nos déssemos conta que não tratamos com fragmentos da coisa, mas. dc alguma
forma, com fragmentos do símbolo.
Tal é. entretanto, a tentativa dos filósofos que buscam recompor a pessoa
com estados psicológicos, quer eles sc atenham aos próprios estados, quer acres­
centem um fio destinado a ligar estes estados entre si. Empiristas e racionalistas
sào vítimas aqui da mesma ilusão. Uns c outros tomam as notações parciais por
partes reais, confundindo assim o ponto de vista da análise com a intuição, a
ciência com a metafísica.
Os primeiros dizem, com razão, que a análise psicológica não descobre, na
pessoa, nada mais que estados psicológicos. F esta é a função, com efeito, esta é
a própria definição da análise. O psicólogo nada mais pode fazer do que analisar
a pessoa, isto é. anotar estados: quando muito, colocará a rubrica “eu” sobre
estes estados, dizendo que são “estados do eu”, da mesma forma que o desenhista
escreve a palavra “Paris” cm cada um dc seus esboços. No terreno um que o psi­
cólogo sc instala, e onde deve se instalar, o “cu” c apenas um signo pelo qual se
evoca a intuição primitiva (aliás, muito confusa) que forneceu â psicologia seu
objeto: é apenas uma palavra, c o grande erro é crer que poderemos, permane­
cendo no mesmo terreno, encontrar por trás da palavra uma coisa. Tal foi o erro
desses filósofos que não puderam se resignar a ser simplesmente psicólogos em
psicologia. Taine e Stuart Mill, por exemplo. Psicólogos pelo método que apli
cam. permaneceram metafísicos pelo objeto que se propõem. Pretenderíam uma
intuição, e. por uma estranha inconscqücncia. buscavam esta intuição na análise,
sua própria negação. Buscam o eu. e pretendem encontrá-lo nos estados psicoló­
gicos. ao passo que só sc pode obter esta diversidade dc estados psicológicos
transportando-sc para fora do eu para tomar da pessoa uma série dc notas, dc
esboços, dc representações mais ou menos simbólicas e csquemáticas. Assim,
esforçaram-se por justapor estados a estados, multiplicar os contatos, explorar os
interstícios, o cu sempre lhes escapa, se bem que terminam por ver nele apenas
um fantasma. O mesmo seria negar sentido à Itíada, com a alegação dc que sc
buscou cm vão este sentido nos intervalos das letras que a compõem.
O empirismo filosófico nasceu, pois, dc uma confusão entre o ponto de vista
da intuição e o da análise. Consiste em buscar o original na tradução, onde natu-
ralmcntc cie não pode estar, c em negar o original, sob pretexto de que não o
encontramos na tradução. Desemboca necessariamente cm negações; mas. obser­
vando de perto, percebemos que estas negações significam simplesmente que a
análise não é a intuição, o que é a própria evidência. Da intuição original, e aliás
confusa, que fornece à ciência seu objeto, a ciência passa imediatamente ã análi­
se. que multiplica ao infinito os pontos de vista sobre o objeto. Bem depressa ela
22 BERGSON

chega a acreditar que poderia. compondo todos os pontos dc vista, reconstituir o


objeto. É surpreendente que ela veja este objeto fugir diante dela, como a criança
que desejaria fabricar um brinquedo sólido com as sombras que se projetam nas
paredes?
Mas o racionalismo é vitima da mesma ilusão. Ele parte da confusão que o
empirismo cometeu e permanece tão impotente quanto este para atingir a perso­
nalidade. Como o empirismo. ele tem os estados psicológicos por outros tantos
fragmentos separados dc um cu que os reuniría. Como o empirismo. eie busca
ligar estes fragmentos entre si para refazer a unidade da pessoa. Como o empiris­
mo. enfim, ele vê a unidade da pessoa sc furtar indefinidamente, como um fantas­
ma. ao esforço incessancemente renovado para agarrã-la. Mas enquanto o empi­
rismo. cedendo ao cansaço, acaba por declarar que não há nada além da
multiplicidade de estados psicológicos, o racionalismo persiste afirmando a uni­
dade da pessoa. É verdade que. procurando esta unidade no plano dos estados
psicológicos, c obrigado, aliás, a remeter aos estados psicológicos todas as quali­
dades ou determinações que encontra na análise (pois a análise, por definição,
desemboca sempre em estados). nada lhe resta, para a unidade da pessoa, além dc
algo puramente negativo, a ausência de toda determinação. Uma vez que os esta­
dos psicológicos incorporaram, nesta análise, tudo o que apresenta a menor apa­
rência dc materialidade, a “unidade do eu*’ não poderá ser mais do cue uma
forma sem matéria. Será o indeterminado c o vazio absolutos. Aos estados psico
lógicos separados, a estas sombras do cu cuja coleção era. para o empirista. o
equivalente da pessoa, o racionalismo acrescenta, para reconstituir a personali­
dade. algo de mais irreal ainda, o vazio no qual estas sombras se movem, o lugar
das sombras, poderiamos dizer.
Como esta “forma”, que é verdadeiramente informe, poderia caracterizar
uma personalidade viva, ativa, concreta, c distinguir Pedro de Paulo?
£ surpreendente que os filósofos que isolaram esta “forma” da personali­
dade achem na cm seguida impotente para determinar uma pessoa, c sejam assim
levados, gradualmcnte. a fazer deste Eu vazio um recipiente sem fundo que nào
pertence mais a Paulo do que a Pedro, e onde havería lugar, conforme se queira,
para a humanidade inteira, ou para Deus, ou para a existência cm geral? Vejo
aqui entre o empirismo e o racionalismo esta única diferença: o primeiro, procu­
rando a unidade do eu nos interstícios, de alguma forma, dos estados psicoló­
gicos. é levado a preencher os interstícios com outros estados, e assim indefinida­
mente. de maneira que o cu, apertado num intervalo que vai sempre diminuindo,
tende para zero na medida em que sc leva mais longe a análise, enquanto o racio
nalismo. fazendo do eu o lugar cm que os estados se alojam, sc põe em presença
dc um espaço vazio cujo limite não sc tem mais razão para colocar aqui do que
acolá, que ultrapassa todos os limites sucessivos que sc pretende assinalar-lhe. e
que vai sempre sc alargando c tende a perder-se. nào mais no zero, mas no
infinito.

A distância ê. pois, bem menor do que se supõe entre um pretenso “empiris­


mo" como o de Taine c as mais transcendentes especulações de certos pan teístas
INTRODUÇÃO Â METAFÍSICA 23

alemães. O método é análogo nos dois casos: consiste cm raciocinar sobre ele­
mentos da tradução como se fossem panes do original. Mas um empirismo verda
deiro c aquele que se propõe apegar-se o mais possível ao original mesmo,
aprofundar-lhe a vida e. por uma espécie dc auscultaçâo espiritual, sentir oalpítar
sua alma; e este empirismo verdadeiro é a verdadeira metafísica. O trabalho é de
uma dificuldade extrema, pois nenhuma das concepções já feitas dc que $c serve
o pensamento em suas operações cotidianas se presta a isto. Nada mais fácil do
que dizer que o eu é multiplicidade, ou que é unidade, ou que c a síntese de uma
e outra. Unidade e multiplicidade são aqui representações que não temos necessi­
dade dc modelar sobre o objeto, que encontramos já fabricadas e que temos ape­
nas que escolher dentre muitas vestimentas dc confecção, que servirão tanto a
Pedro quanto a Paulo porque não desenham a forma de nenhum dos dois. Mas
um empirismo digno deste nome, um empirismo que só trabalha sub medida, se
vê obrigado a despender um esforço absolutamente novo para cada novo objeto
que estuda. Ele talha para o objeto um conceito apropriado somente ao objeto
conceito dc que sc pode dificilmente dizer que seja ainda um conceito, poi:
somente sc aplica a uma única coisa. Ele não procede por combinação de idéia:
que encontramos à disposição, como no comercio, unidade e multiplicidade, po
exemplo: mas a representação para a qual nos encaminha ê. ao contrário, um:
representação única, simples, que compreendemos muito bem. aliás, uma vez for
mada. porque podemos colocâ Ia nos quadros da unidade, multiplicidade, etc.
todos muitos maiores que ela. Enfim, a filosofia assim definida não consiste cn
escolher entre conceitos e cm tomar partido entre us escolas, mas cm procura
uma intuição única da qual descendemos aos diversos conceitos, pois nos coloca
mos acima das divisões dc escolas.
Que personalidade possua unidade, isto c certo; mas semelhante informação
nada mc ensina sobre a natureza extraordinária desta unidade que c a pessoa.
Que nosso cu seja múltiplo, concordo ainda, mas é uma multiplicidade acerca da
qual é preciso reconhecer que ela nào possui nada cm comum com nenhuma
outra. O que importa verdadeiramente para a filosofia é saber que unidade, que
multiplicidade, que renlidade superior ao uno e ao múltiplo abstratos c a tmidadc
múltipla da pessoa. E cia só o saberá se se rcapoderar da intuição simples do cu
pelo eu. Então, conforme os degraus que escolher para descer deste topo, chegará
à unidade ou à multiplicidade ou a qualquer outro conceito pelos quais tentamos
definir a vida movente da pessoa. Mas nenhuma combinação desses conceitos,
repetimos, dará algo que se assemelhe à pessoa que dura.
Diante de um cone sólido, vejo sem dificuldade como ele se estreita para
cima c tende a se confundir com um ponto matemático, e também como ele sc
alarga na base cm um círculo infinitamente crescente. Mas nem o ponto, nem o
círculo, nem a justaposição dos dois sobre um plano me darão a menor idéia de
um conc. Da mesma forma a multiplicidade c a unidade da vida psicológica, o
Zero e o Infinito para os quais empirismo c racionalismo encaminham a
personalidade.
Os conceitos, como mostraremos alhures, estão ordinariamente cm pares e
24 BERGSON

representam os dois contrários-. Nào há realidade concreta acerca da qual não sc


possa ter dois pontos dc vista opostos c que nào sc submeta, por conscgumte, aos
dois conceitos antagônicos. Dai uma tese e uma antítese que tentaríamos em vào
reconciliar logicamente, pela razão muito simples de que jamais, com conceitos
ou pontos de vista, faremos uma coisa. Mas do objeto, apreendido por intuição,
passamos sem dificuldade, cm muitos casos, aos dois conceitos contrários: e
como, assim, vemos sair da realidade a tese c a antítese, apreendemos ao mesmo
tempo como esta tese e esta antítese se opõem e como elas se reconciliam.
É verdade que. para isto, c preciso proceder a uma inversão no jrabalhv
habitual da inteligência. Pensar consiste, ordinariamente, cm ir dos conceitos às
coisas, e nào das coisas aos conceitos. Conhecer uma realidade é. no sentido
usual da palavra ’‘conhecer”, tomar conceitos já fabricados, dosá-los e combiná-
los até que obtenhamos um equivalente prático do real. Mas c preciso não esque
cer que o trabalho normal da inteligência está longe dc ser um trabalho desinte­
ressado. Não visamos, cm geral, ao conhecer por conhecer, mas conhecer para
tomar partido, para retirar vantagens, enfim, para satisfazer a um interesse.
Pesquisamos até que ponto o objeto a conhecer é isto ou aquilo, cm qual dos gê­
neros conhecidos ele entra, que espécie dc açâo ou de atitude ele deveria nos suge­
rir. Estas diversas ações e atitudes possíveis são outras direções conce;tuais dc
nosso pensamento, determinadas de uma vez por todas: resta apenas segui-las:
nisto consiste prccisamentc a aplicação dos conceitos às coisas. Experimentar um
conceito num objeto c perguntar ao objeto o que podemos fazer dele, o que ele
pode fazer por nós. Colar sobre um objeto a etiqueta de um conceito é marcar em
termos precisos o gcncro dc açâo ou dc atitude que o objeto nos deverá sugerir.
Todo conhecimento propriamente dito é. pois, orientado numa certa direção ou
operado de um certo ponto de vista. É verdade que nosso interesse é frequente­
mente complexo. E esta c a razão por que orientamos cm várias direções sucessi­
vas nosso conhecimento do mesmo objeto c fazemos variar os pontos de vista
sobre ele. Nisto consiste, no sentido usual desses termos, um conhecimento
’’largo” e “compreensivo” do objeto: o objeto é remetido então, nào a um con­
ceito único, mas a vários conceitos nos quais ele é dito “participar”. Como ele
participa de todos estes conceitos dc uma vez? Esta é uma questão irre­
levante para a prática c que não tem que scr colocada. É. pois, natural, legitimo,
que procedamos por justaposições e dosagem de conceitos na vida corrente:
nenhuma dificuldade filosófica nascerá daí. pois, por convenção tácita, nós nos
absteremos dc filosofar. Mas transportar este modus operand! para a filosofia, ir.
também aqui, dos conceitos à coisa, utilizar, para o conhecimento desinteressado
de um objeto que pretendçmos desta vez atingir em si mesmo, uma maneira dc
conhecer que se inspira num interesse determinado e que consiste, por definição,
em um ponto de vista acerca do objeto, tomado exteriormente, é dar as costas ao
objetivo visado, c condenar a filosofia a um eterno conflito entre as escolas, é ins
talar a contradição no próprio coração do objeto e do método. Ou não há filoso­
fia possível c todo conhecimento das coisas é um conhecimento prático orientado
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 25

pelas vantagens que podemos tirar delas, ou filosofar consiste em se colacar no


próprio objeto por um esforço de intuição.
Mas. para compreender a natureza desta intuição, para determinar com pre­
cisão onde a intuição acaba e onde começa a análise, é preciso voltar ao que foi
dito acima acerca do escoamento da duraçào.
Notaremos que os conceitos ou esquemas nos quais desemboca a análise
tèm como característica essencial serem imóveis enquanto os consideramos. Iso­
lei da totalidade da vida interior esta entidade psicológica que chamo uma sensa­
ção simples. Enquanto a estudo, suponho que ela permanece o que ela é. Se
encontrasse alguma mudança, diria que nào há aí uma única sensação, nas sim
várias sensações sucessivas: c seria a cada uma destas sensações sucessivas que
atribuiría então a imutabilidade antes ao conjunto. De qualquer manei­
ra. podería, levando a análise suficicntcmcntc longe, chegar a elementos que teria
por imutáveis. Seria aí. e somente aí. que encontraria a base de operações sólida
que a ciência necessita para seu desenvolvimento próprio.
Entretanto, nào há estado dc alma, por mais simples que seja, que não mude
a cada instante, pois não há consciência sem memória, nào há continuação de um
estado sem adiçào. ao sentimento presente, da lembrança dc momentos passados.
Nisto consiste a duraçào. A duraçào interior c a vida contínua dc uma memória
que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distimamente
a imagem inccssnntemente crescente do passado, seja, mais ainda, porque teste­
munha a carga sempre mais pesada que arrastamos atrás de nós. à medida que
envelhecemos. Sem esta sobrevivência do passado no presente, nào havería dura­
ção. mas somente instantnneidade.
É verdade que. se me censuram o fato de subtrair o estado psicológico à
duraçào somente por annlisá lo. podería mc defender dizendo que cada uni desses
estados psicológicos elementares, nos quais desemboca minha análise, é um csia-
do que ainda ocupa o tempo. Minha análise, diria. realmcnte dissolve a vida inte­
rior em estados, cada um homogêneo consigo mesmo: somente, já que a homoge­
neidade se estende a um número determinado de minutos ou de seguidos, o
estudo psicológico elementar nào cessa de durar, ainda que nào mude.
Mas. quem não vê que o número determinado de minutos c dc segundos que
atribuo ao estado psicológico elementar tem justamente o valor dc um índice des­
tinado a mc lembrar que o estado psicológico, supostamente homogêneo, c na
realidade um estado que muda e que dura? O estado, tomado em si mesmo, está
cm perpétuo devir. Extraí deste devir uma certa média de qualidade que supus
invariável: constituí assim um estado estável e. por isto mesmo, csqucmático.
Extraí, por outro lado, o devir em geral, o devir que nào seria tnenos o devir disto
do que daquilo, e a isto chamei o tempo que este estado ocupa. Observando de
perto, veria que este tempo abstrato c tào imóvel para mim quanto o estado que
nele localizo, que ele só podería se escoar por uma mutação contínua dc qualida­
de. c que. se ele é sem qualidade, simples teatro da mudança, ele torna-se assim
um meio imóvel. Veria que a hipótese deste tempo homogêneo é simplesmente
destinada a facilitar a comparação entre as diversas duraçòes concretas, a permí
26 BERGSON

tir que contemos as simultaneidades e meçamos um escoamento dc duração cm


relação a um outro. E. enfim, compreendería que. unindo à representação de um
estado psicológico elementar a indicação de um número determinado de minutos
e de segundos, limito me a lembrar que este estado foi separado dc um cu que
dura c a delimitar o lugar em que seria preciso recolocá-lo em movimento para
fazê-lo voltar, de simples esquema que se tornou, à forma concreta que possuía
primeiramente. Mas esqueço tudo isto, tenho-o por irrelevante para a análise.
Quer dizer que a análise opera sobre o imóvel, enquanto a intuição se coloca
na mobilidade, ou. o que é a mesma coisa, na duração. Aí está a linha de demar­
cação bem nítida entre intuição c análise. Reconhecemos o real, o ccncreto. o
vivido, na própria variabilidade. Reconhecemos o elemento naquilo que c invariá­
vel. E c invariável por definição, sendo um esquema, uma reconstrução simplifi­
cada. com frequência um simples símbolo, em todo caso um simples aspecto da
realidade que flui.
Mas o erro é acreditar que com estes esquemas recomporíamos o real.
Nunca repetiriamos suficieniementc: da intuição podemos passar à análise, mas
não da análise à intuição.
Com a variabilidade farei tantas variações, tantas qualidades ou modifica­
ções quantas quiser, pois serão outros tantos aspectos imóveis, tomados pela aná
lise. na mobilidade dada na intuição. Mas estas modificações tomadas uma a
uma não produzirão nada que sc assemelhe à variabilidade, pois não eram partes
dela, mas sim elementos, o que c coisa totalmente diversa.
Consideremos, por exemplo, a variabilidade mais vizinha da homogenei­
dade. o movimento no espaço. Posso, ao longo dc todo este movimento, represen-
tar-me paradas possíveis: é o que chamo dc posições do móvel ou dc pontos pelos
quais o móvel passa. Mas com estas posições, mesmo em número infinito, nâo
faria o movimento. Elas não são partes do movimento; são aspectos dele: são
apenas, poderiamos dizer, suposições dc paradas. Jamais o móvel está rcalmente
em qualquer um dos pontos: quando muito podemos dizer que ele passa por eles.
Mas a passagem, que é movimento, não tem nada cm comum com a parada, que
c imobilidade. Um movimento nao podería sobrepor sc a uma imobilidade, pois
então coincidiría com ela. o que seria contraditório. Os pontos não estão no
movimento, como partes, nem mesmo sob o movimento, como lugares do móvel.
Eles são simplesmente projetados por nós sob o movimento, como lugares, onde
estaria, se parasse, um móvel que. por hipótese, não sc detem. Não são. pois,
propriamente falando, posições, mas suposições, aspectos ou pontos dc vista do
espírito. Como, com pontos de vista, construiriamos uma coisa?
Ê isto, entretanto, que tentamos fazer iodas as vezes que raciocinamos sobre
o movimento, e também sobre o tempo do qual o movimento serve como repre
sentaçâo. Por uma ilusão profundamente enraizada cm nosso espírito, e porque
não podemos nos impedir de considerar análise como equivalente à intuição,
começamos por distinguir, ao longo do movimento, um certo número de paradas
possíveis ou de pontos, dos quais fazemos, bem ou mal. partes do movimento.
Diante dc nossa impotência para recompor o movimento com esses pomos, inter-
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 27

calamos outros pontos, acreditando, assim, agarrar com mais firmeza o que hâ de
mobilidade no movimento. Depois, como a mobilidade ainda nos escapa, substi
tuímos a um número finito c fixo dc pontos um número "indefinidamente crescen­
te" — tentando assim, porem em vao. imitar, pelo movimento do nosso pensa­
mento que prossegue indefinidamente a adição de pontos, o movimento real e
indiviso do móvel. Finalmcnte. dizemos que o movimento se compõe de pontos,
mas que ele compreende, além disto, a passagem obscura, misteriosa, dc uma
posição à posição seguinte. Como se a obscuridade não viesse totalmentc de que
supusemos a imobilidade mais clara do que a mobilidade, a parada anterior ao
movimento! Como sc o mistério não proviesse de que pretendemos passar das
paradas ao movimento por via de composição, o que é impossível, ao passo que
passamos sem dificuldade do movimento à lentidão c à imobilidade! Fomos pro
curar a significação do poema na forma das letras que o compõem, acreditamos
que considerando um número crescente de letras apreenderiamos enfim a signifi­
cação sempre fugidia e. em desespero dc causa, vendo que de nada adiantava
curar uma parte do sentido cm cada uma das letras, supusemos que entre cada
letra c a seguinte se alojava o tão procurado fragmento do sentido misterioso!
Mas as letras, digamos ainda uma vez. nào sâo partes da coisa, são elementos do
símbolo. As posições do móvel, tornamos a dizer, não são partes do movimento:
são pontos do espaço que. supostamente, subexiste ao movimento. Este espaço
imóvel e vazio, simplesmente concebido, jamais percebido, tem justamente o
valor dc um símbolo. Como, manipulando símbolos, fabricaríamos realidade?
Mas o símbolo corresponde aqui aos hábitos mais arraigados de nosso
pensamento. Instalamo-nos ordinariamente na imobilidade, onde cncortramos
um ponto dc apoio para a prática, pretendemos recompor a mobilidade com a
imobilidade. Obtemos asssim apenas uma imitação grosseira, um arremedo do
movimento real, mas esta imitação nos é muito mais útil na vida do que o seria
a intuição da própria coisa. Ora. nosso espírito tem uma irresistível tendência
para considerar mais clara a idéia que lhe c frequentemente mais útil. Esta é a
razão por que a imobilidade lhe parece mais clara que a mobilidade, a parada
anterior ao movimento.
As dificuldades que o problema do movimento levantou desde a mais remo
ta antiguidade derivam daí. Provem dc que pretendemos sempre passar do espaço
ao movimento, da trajetória ao trajeto, das posições imóveis à mobilidade, c pas­
sar dc um a outro por via de composição. Mas é 0 movimento que é anterior à
imobilidade, e não há. entre posições e um deslocamento, a relação de partes ao
todo, mas sim a da diversidade dos pontos dc vista possíveis à indivisibilidade
real do objeto.
Muitos outros problemas nasceram da mesma ilusão. O que os pontos imó
veis são para o movimento dc um móvel, os conceitos de qualidades diversas sâo
para a mutação qualitativa dc um objeto. Os conceitos variados nos quais sc dis­
solve uma variação são. pois, outras tantas visões estáveis da instabilidade do
real. E pensar num objeto, no sentido usual da palavra ‘‘pensar", é tomar à mobi­
lidade um ou mais desses aspectos imóveis. É, em suma, perguntar-se. de vez em
28 BERGSON

quando, onde se está. a fim de saber o que se poderia fazer. Nada mais legítimo,
aliás, do que esta maneira de proceder, enquanto sc trata apenas dc um conheci­
mento prático da realidade. O conhecimento, enquanto orientado para a prática,
só tem que enumerar as principais atitudes possíveis da coisa cm rclação a nós.
e nossas melhores atitudes possíveis cm relação a ela. Esta é a função habitual
dos conceitos pré-fabricados, estas estações pelas quais balizamos o fajeto do
devir. Mas querer, com conceitos, penetrar na natureza íntima das coisas é apli
car à mobilidade do real um método feito para fornecer pontos de vista imóveis
sobre ela. É esquecer que. se a metafísica c possível, cia só pode ser um esforço
para inverter o percurso natural do trabalho do pensamento, para sc colocar
imediatamente, por uma dilataçao do espírito, na coisa que sc estuda, enfim, para
ir da realidade aos conceitos e nao mais dos conceitos à realidade. É surpreen­
dente que os filósofos vejam fugir diante deles o objeto que pretendem apreender,
como crianças que desejassem, fechando a mào. segurar a fumaça? Assim sc per­
petuam muitas querelas entre escolas, cada uma censurando a outra por ter deixa­
do o real escapar.
Mas. sc a metafísica deve proceder por intuição, sc a intuição tem por objeto
a mobilidade da duraçào. c se a duração é de essência psicológica, nào vamos
encerrar o filósofo na contemplação exclusiva dc si mesmo? A filosofia nâo vai
consistir em se contemplar viver, simplesmente, “como um pastor sonolento
observa a água correr”? balar assim seria retornar ao erro que não nos cansa­
mos dc assinalar desde o começo deste estudo. Seria menosprezar a natureza sin
guiar da duraçào. e ao mesmo tempo o caráter cssencialmente ativo da intuição
metafísica. Seria nào ver que unicamente o método de que falamos permite ultra­
passar tanto o idealismo quanto o realismo, afirmar a existência dc ob.etos infe­
riores c superiores a nós. embora, num certo sentido, interiores a nós. fazê-los
coexistir, dissipar progressivamente as obscuridades que a análise acumula cm
torno dos grandes problemas. Sem abordar o estudo destes diferentes pontos,
limitemo-nos a mostrar como a intuição dc que falamos nâo é um ato único, mas
uma série indefinida dc atos, iodos, sem dúvida, do mesmo gênero, mas cada um
de uma espécie bem particular, e como esta diversidade de atos corresponde a
todos os graus do ser.
Sc procuro analisar n duraçào. isto é. resolvê-la em conceitos pre fabricados,
sou obrigado, pela própria natureza do conceito c da análise, a formar, acerca da
duraçào cm geral, dois pontos dc vista opostos, com os quais pretendería cm
seguida recompô-la. Esta combinação nâo poderá apresentar nem uma diversi­
dade de graus, nem uma variedade de formas: cia é ou ela nào e. Diria. por exem­
plo. que há. de um lado, uma multiplicidade dc estados dc consciência sucessivos,
c. dc outro, urna unidade que os liga. A duração será a “síntese” desta unidade c
desta multiplicidade, operação misteriosa onde nào vemos, repito, como poderia
comportar nuances ou gradações. Nesta hipótese, só há. só pode haver uma dura­
ção única, aquela em que nossa consciência opera habitualmcntc. Para fixar as
idéias, se tomamos a duração sob o aspecto simples de um movimente rcalizan-
do*se no espaço, e procuramos reduzir a conceitos o movimento considerado
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 29

como representativo do Tempo, teremos, por um lado, um número de pontos dc


trajetória tão grande quanto quisermos, c de outro lado uma unidade abstrata que
os reúne, como um Ho que manteria juntas as pérolas dc um colar. Entre esta
multiplicidade abstrata e esta unidade abstrata, a combinação, uma vez posta
como possível, é coisa singular na qual não encontramos mais nuances do que as
admitidas, em aritmética, por uma adição dc números dados. Mas se. em lugar
dc pretender analisar a duração (isto é. no fundo, fazer dela uma síntese concei­
tuai). instalamo-nos primeiramente nela por um esforço dc intuição, temos o sen­
timento dc uma certa tensão bem determinada, cuja própria determinação apare­
ce como uma escolha entre uma infinidade dc durações possíveis. A partir daí
percebemos durações tào numerosas quanto quisermos, todas bem diferentes
umas das outras, sc bem que cada uma delas, reduzida a conceitos, isto é. consi­
derada do exterior a partir dc dois pontos de vista opostos, nos remeta sempre
para a indcfinível combinação do múltiplo e do um.
Exprimamos a mesma idéia com mais precisão. Sc considero a duração
como uma multiplicidade de momentos ligados uns aos outros por uma unidade
que os atravessaria como um fio. esses momentos, por mais curta que seja a dura­
ção escolhida, são em número ilimitado. Posso supô-los tão próximos quanto
queira: haverá sempre, entre estes pontos matemáticos, outros pontos matemáti­
cos. c assim por diante ao infinito. Considerada sob o aspecto multiplicidade, a
duração se esvai, pois, numa poeira de momentos dos quais nenhum dura, pois
cada um c instantâneo. Sc. por outro lado, considero a unidade que liga estes
momentos, cia nâo pode durar mais do que eles, pois, por hipótese, tudo o que há
dc mutável c dc propriamente durável na duração foi posto do lado da multipli­
cidade dc momentos. Esta unidade, na medida cm que me aprofundo cm sua
essência, me aparecerá, pois, como um substrato imóvel do movente. como nào
sei que essência intcmporal do tempo: é o que chamaria eternidade eternidade
dc morte, pois não c outra coisa que o movimento esvaziado da mobilidade que
constituía sua vida. Examinando as opiniões das escolas antagonistas acerca da
duração, veremos que elas diferem apenas por atribuírem a um ou a outro desses
conceitos uma importância capital. Umas defendem o ponto de vista da multipli­
cidade: erigem em realidade concreta os momentos distintos dc um tempo que
elas, por assim dizer, pulverizaram: tem por muito mais artificial a unidade que
faz dos gràos a poeira. Outras erigem, ao contrário, a unidade da duração em rea­
lidade concreta. Colocam-se no eterno. Mas como sua eternidade pcrmar.ecc da
mesma maneira abstrata, pois é vazia, como é a eternidade de um conceito que
exclui dele, por hipótese, o conceito oposto, nào vemos como esta eternidade per­
mitiría que coexistisse com ela uma multiplicidade indefinida dc momentos. Na
primeira hipótese, temos um mundo suspenso no ar. que deverá acabar c recome
çar a cada instante. No segundo, temos um infinito dc eternidade abstrata acerca
do qual nao compreendemos por que não permanece em si mesmo c como deixa
coexistir consigo as coisas. Mas. nos dois casos, e qualquer que seja a metafísica
adotada, o tempo aparecerá do ponto de vista psicológico como uma mistura dc
30 BERGSON

duas abstrações que nào comportam nem gradações nem nuances. Tanto num sis­
tema quanto no outro, há somente uma duraçào única que leva tudo com cie. rio
sem fundo, sem margens, que corre com uma força incalculada numa direção que
nào podemos definir. Apesar de tudo, ainda é um rio c corre somente porque a
realidade obtém das duas doutrinas este sacrifício, aproveitando-sc dc uma distra­
ção de suas lógicas. No momento em que se recuperam, fixam este escoamento
ou numa imensa cascata sólida, ou numa infinidade de pontas cristalizadas, sem­
pre numa coisa que participa necessariamente da imobilidade de um ponto de
vista.
Tudo sc passa dc maneira diferente se nos instalamos desde logo, por um
esforço de intuição, no escoamento concreto da duração. Certamente nào achare­
mos nenhuma razão lógica para considerar durações múltiplas e diversas. A
rigor, poderia nào existir outra duraçào além da nossa, como poderia nào haver
no mundo outra cor além do alaranjado. por exemplo. Mas. da mesma maneira
que uma consciência à base dc cor. que simpatizaria interiormente com o alaran-
jado em vez dc pcrccbê-lo de fora, se sentiría entre o vermelho e o amarelo, pres­
sentiría mesmo, talvez, por sobre esta última cor. todo um espectro que se pro­
longa naturalmente na continuidade que vai do vermelho ao amarelo, assim
também a intuição de nossa duração, bem longe de deixar-nos suspensos no vazio
como o faria a pura análise, nos põe cm contato com toda uma continuidade de
durações que devemos tentar seguir, seja para baixo, seja para o alto: nos dois
casos podemos nos dilatar indefinidamente por um esforço cada vez mais violen­
to. nos dois casos nós nos transcendemos a nós mesmos. No primeiro, vamos cm
direção a uma duração cada vez mais distendida, cujas palpitações mais rápidas
do que as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem a qualidade cm quan­
tidade: no limite seria o puro homogêneo, a pura repetição pela qual definimos a
materialidade. Na outra direção, encontramos uma duração que sc centrai, se
concentra, sc intensifica cada vez mais: no limite seria a eternidade. Não mais a
eternidade conceituai, que é uma eternidade dc morte, mas uma eternidade dc
vida. Eternidade viva c conscqüentemcnic movente cm que nossa duração sc reen­
contraria em nós como as vibrações na luz. e que seria a concretização dc toda
duração, como a materialidade representa a distensão dela. Entre estes cois limi­
tes extremos sc move a intuição, c este movimento é a própria metafísica.
Nào podemos cogitar aqui em percorrer as diversas etapas desse movimen­
to. Mas. depois de ter apresentado uma vista geral do método c feito uma pri­
meira aplicação dele, não será talvez inútil formular, cm termos os mais precisos
quanto possível, os princípios sobre os quais ele repousa. Das proposições que
vamos enunciar, a maior parte recebeu, no presente trabalho, um começo dc
prova. Esperamos demonstra las mais complctamcnte ao abordarmos outros
problemas.
I. Há uma realidade exterior e, entretanto, dada imediatamente a nosso espí­
rito. O senso comum está com a razão neste ponto frente ao idealismo c ao rea­
lismo dOS filósofos.
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 31

II. Esta realidade c mobilidade.3 Não existem coisas feitas, mas somente
coisas que se fazem, nào estados que se mantêm, mas lào somente estados que
mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo. A consciência
que temos de nossa própria pessoa, em seu contínuo escoamento, nos intreduz no
interior de uma realidade segundo o modelo da qual devemos nos representar as
outras. Toda realidade é. pois, tendência, se conviermos em chamar terdência
uma mudança de direção em estado nascente.
III. Nosso espírito, que procura pontos de apoio sólidos, lem como função
principal, no curso ordinário d:i vida, representar-sc estados e coisas. Ele toma,
dc quando em quando, aspectos quase instantâneos da mobilidade indivisa do
real. Obtém assim sensações e idéias. Através disto substitui ao contínuo o
descontínuo, à mobilidade a estabilidade, à tendência em via dc mudança os pon­
tos fixos que marcam uma direção da mudança e da tendência. Esta substituição
é necessária no senso comum, à linguagem, à vida prática c mesmo, numa certa
medida que trataremos de determinar, â ciência positiva. Nossa inteligência,
quando segue sua marcha natural, procede por percepções sólidas, de um lado, e
por concepções estáveis, dc outro. Ela parte do imóvel, c nào concebe nem expri­
me o movimento senão em função da imobilidade. Ela se instala em conceitos
pré-fabricados, e sc esforça por prender, como numa rede, alguma coisa da reali­
dade que passa. Nào é. sem dúvida, para obter um conhecimento interior c meta­
físico do real. É simplesmente para sc servir dele, cada conceito (como, aliás,
cada sensação) sendo uma questão prática que nossa atividade põe à realidade c
à qual a realidade responderá, como convém neste comércio, por um sim ou por
um nào. Mas assim a inteligência deixa escapar do real o que c a sua própria
essência.
IV. As dificuldades inerentes à metafísica, as antinomias que ela engendra,
as contradições cm que cai. a divisão em escolas antagonistas c as irredutíveis
oposiçôes entre sistemas, vem em grande parte de que aplicamos ao conheci­
mento desinteressado do real os procedimentos dc que nos servimos corrente-
mente corn um objetivo dc utilidade prática. Vêm príncipalmenie dc que nas ins­
talamos no imóvel para surpreender o movente em sua passagem, cm vez de nos
colocar-mos no movenie para airavessar com ele as posições imóveis. Vêm dc
que pretendemos reconstituir a realidade, que é tendência e consequentemente
mobilidade, com as percepções e os conceitos que tem por função imobilizâ-la.
Com paradas, por mais numerosas que sejam, não faremos nunca mobilidade: ao
passo que. se nos damos a mobilidade, podemos tirar dela, pelo pensamento,
todas as paradas que quisermos. Em outros lermos, compreendemos que concei­
tos fixos possam ser extraídos, por nosso pensamento, da realidade móvel; mas
nào há nenhum meio de reconstituir, com a Jixtâez dos conceitos, a mobilidade

’ Ainda uma vez repilamos: nào descartamos dc forma rdpum». por isto « SHpsfdncio. Afír maims.’peto
coiiuárío. a pcrxÍMcnda dn.% existências. E cremos ter facilitado u representação delas. Como SC pode Compa­
rar csr.i doutrina â dc Hcráclito? (N. du A.)
32 BERGSON

do real. O dogmatismo, enquanto construtor de sistemas, sempre tentou, entre­


tanto. esta reconstituição.
V. Devia naturalmcntc fracassar. É esta impotência, e somente esta, que
constatam as doutrinas céticas, idealistas, criticistas. todas aquelas, enfim, que
contestam a nosso espírito o poder dc atingir o absoluto. Mas. do fato de que
fracassamos ao reconstituir a realidade viva com conceitos rígidos e pré-fabri­
cados. não se segue que não possamos apreendê-la de alguma outra maneira.
demonstrações que foram dadas da relatividade de nosso conhecimento estão,
pois, marcadas por um vício original: elas supõem, da mesma forma que o dog­
matismo que atacam, que todo conhecimento deve necessariamente partir de con­
ceitos com contornos definidos para abarcar com eles a realidade que passa.

VI. Mas a verdade é que nosso espírito pode seguir o caminho inverso. Ele
pode sc instalar na realidade móvel, adotar a mesma direção incessantemente
mutável, enfim, apreende lo intuitivamente. É preciso, para isto, que ele se violen­
te. que inverta o sentido da operação pela qual pensa habitualmente. que ele ree­
xamine. ou melhor, reforme constantemcntc suas categorias. Mas ele desembo­
cará assim em conceitos fluidos, capazes dc seguir a realidade em todas as suas
sinuosidades c dc adotar o próprio movimento da vida interior das coisas. Somen­
te assim sc constituirá uma filosofia progressiva, liberta das disputas entre csco
Ias. capaz de resolver naturalmcntc os problemas, pois ela se terá livrado dos ler­
mos artificiais que haviam sido escolhidos para formulá-los. Filosofar consiste
em inverter a marcha habitual do trabalho do pensamento.
VII. Esta inversão jamais foi praticada dc maneira metódica: mas uma his­
tória aprofundada do pensamento humano mostraria que lhe devemos tvdo o que
sc fez dc mais grandioso nas ciências, como também o que há dc viável em meta­
física. O mais poderoso método dc investigação de que dispõe o espírito humano,
a análise infinitesimal, nasceu desta inversão.4 A matemática moderna c precisa
mente um esforço para substituir ao completamente feito o que se faz. para seguir
a geração das grandezas, para apreender o movimento, não mais dc fora c cm seu
resultado estabelecido, mas de dentro e em sua tendência para mudar, enfim, para
adotar a continuidade móvel do desenho das coisas. É verdade que ela se além ao
desenho, uma vez que é apenas a ciência das grandezas. £ verdade também que
ela só pôde permitir as aplicações extraordinárias devido à invenção de certos
símbolos. c que. se a intuição de que acabamos de falar está na origem da inven
çao. é apenas o símbolo que intervém na aplicação. Mas a metafísica, que nào
visa a nenhuma aplicação, poderá, e frequentemente deverá, evitar converter a
intuição em símbolo. Dispensada da obrigação de chegar a resultados pratica
mente utilizáveis, ela aumentará indefinidamente o domínio de suas investiga­
ções. O que terá perdido, para a ciência, cm utilidade e cm rigor, tornará a ganhar
cm alcance c cm extensão. Sc a matemática é apenas a ciência das grandezas, sc
os procedimentos matemáticos se aplicam apenas a quantidades, c preciso nào
esquecer, também, que a quantidade é sempre a qualidade em estado nascente: é,

* Sobretudo cm Newton, na sun considerarão das/?wxwí.{N. dp A.)


INTRODUÇÃO À META1ÍSIC A 33

poderiamos dizer, o caso limite da qualidade. É. pois, natural que a metafísica


adote, para estendê-la a todas as qualidades, isto é. à realidade cm geral, a idéia
geradora dc nossa matemática. Ela nâo chegará, de maneira alguma, por isto, à
matemática universal, esta quimera da filosofia moderna. Bem ao contrário,
quanto mais avançar, encontrará objetos mais intraduzíveís em stmbobs. Mas
ela terá, ao menos, começado por tomar contato com a continuidade e a mobili­
dade do real no próprio lugar onde este contato é o mais extraordinariamente
utilizável. Ela se terá contemplado cm um espelho que lhe revelará uma imagem
de si mesma muito limitada- sem dúvida, mas também muito luminosa. Terá visto
com uma clareza superior o que os procedimentos matemáticos emprestam da
realidade concreta, e continuará no sentido da realidade concreta, não no dos
procedimentos matemáticos. Digamos, pois, tendo atenuado antccipadanentc o
que a fórmula possuiría de demasiada modéstia ou de demasiada ambição, que
um dos objetivos da metafísica é operar diferenciações e integrações qualitativas.
VHI. O que faz perder de vista este objetivo, c o que tem podido enganar a
própria ciência acerca da origem dc certos procedimentos que ela emprega, é que
a intuição, uma vez dada, deve encontrar um modo dc expressão e dc aplicação
que seja conforme os hábitos dc nosso pensamento, e que nos forneça, em concei
tos bem definidos, os sólidos pontos dc apoio de que temos lâo grande necessi­
dade. Aí Cslá a condição do que chamamos rigor, precisão c também extensão
indefinida dc um método geral a casos particulares. Ora. esta extensão e este tra
balho dc aperfeiçoamento lógico podem prosseguir durante séculos, enquanto u
ato gerador do método dura apenas um instante. Esta é a razão por que tomamos
tão freqiientcmcnte o aparato lógico da cicncia pela própria ciência. ’ esquecendo
a intuição dc onde saiu tudo o mais.6
Do esquecimento desta intuição procede tudo o que foi dito pelos filósofos,
c pelos próprios cientistas, acerca da ‘’relatividade” do conhecimento científico, É
relativo o conhecimento simbólico por conceitos preexistentes que vai do fixo ao
movente, mas nâo o conhecimento intuitivo que se instala no movente e adota a
própria vida das coisas. Esta intuição atinge um absoluto.
A ciência c a metafísica se encontram, pois, na intuição. Uma filosofia
verdadeiramente intuitiva realizaria a união tào desejada entre metafísica e ciên­
cia. Ao mesmo tempo que constituiría a metafísica como ciência positiva - isto

* Acerca dcMc pomo, como de muitas outras qucstòcs iraludxs no presente ensaio. ver os belos tubalhos de
Lc Roy, Vincent Wilbuis. publicado» na fitivue Mitaphyslque el tie Morale. (N.do A.)
• Cumo explicamos nu início dc nosso segundo ensaio (início da segunda introdução dc "O Pcmamcnto e
o Movente”). hesitamos muito tempo cm nos servir do termo "intuição’': c. quando nos decidímos .i empre
£Í-lo. designamos por esta palavra a função metafísica rir» pensamento: pnncípalmcntc o cunhecimemo ínti
mo do cspritu pelo cnpirito. suhsídinriamcntc n conhecimento. pelo espírito. do que há dc essencial na mate­
ria. uma vez que n inteligência lora feita sobtciudo para manipular a matéria e consequentemente para
conhecê-la, mas não para locar-lhc 0 fundo, í: esta significação que atribuímos i palavra no prcseeie ensaio
(escrito em IW2), mais cspccialmcnle nas últimas pájÀnas. Fomos levados »»»»« uirde. por uma crescente
preocupação dc precisão, a distinguir mais nitidamenie ,-s inteligência da intuição, como também .1 ciência da
metafísica. Mas. dc urna mnncíra geral. □ mudança dc terminologia nào tem inconveniente grave, quando
tomamos o cuidudu dc definir o tcriitu cm sua acepção particular, uu mesmo quando 0 contexto mostra
suficicniemenic seu sentido. (N. do A.)
34 BERGSON

c. progressiva c indcfinidamcntc suscetível de aperfeiçoamento —. levaria as


ciências positivas propriamente ditas a tomar consciência de seu verdadeiro
alcance, frequentemente muito superior ao que elas imaginam. Colocaria mais
ciência na metafísica e mais metafísica na ciência. Teria como resultado restabe­
lecer a continuidade entre as intuiçòes que as diversas ciências positivas obtive­
ram dc quando em quando no curso dc sua história, c apenas às custas da
genialidade.
IX. Os filósofos antigos gcralmenlc pensaram que não há duas maneiras
diferentes de conhecer as coisas a fundo, que as diversas ciências têm suas raízes
na metafísica. Este nâo foi seu erro. O erro consistiu em se inspirar na crença,
nào natural ao espírito humano, dc que uma variação só pode exprimir c desen­
volver invariabilidades. Donde resultava que a Ação era uma Contemplação
enfraquecida, a duração, uma imagem enganosa c móvel da eternidade imóvel, a
Alma, uma queda da idéia. Toda esta filosofia que começa com Platão e desem­
boca cm Plotino é o desenvolvimento de um princípio que formularíamos assim:
“Há mais no imóvel do que no movente. c passamos do estável ao instável por
uma simples diminuição”. Ora. c o contrário que é verdadeiro.
A ciência moderna data do dia cm que sc erigiu a mobilidade cm realidade
independente. Data do dia cm que Galilcu. fazendo rolar uma bola sobre um
plano inclinado, tomou a firme resolução de estudar este movimento dc alto a
baixo por si mesmo, em si mesmo, cm vez dc procurar seu princípio nos conceitos
dc alto c dc baixo, duas imobilidades pelas quais Aristóteles acreditava explicar
suficicntcmcntc a mobilidade. E este nào é um falo isolado na história das ciên­
cias. Estimamos que várias das grandes descobertas, ao menos daquelas que
transformaram as ciências positivas ou que criaram novas ciências, foram outras
tantas sondagens feitas na duração pura- Quanto mais viva fosse a realidade toca­
da. mais profunda teria sido a sondagem.
Mas a sonda lançada ao fundo do mar traz uma massa fluida que o sol rapi­
damente solidifica cm grãos dc arciu descontínuos. E a intuição da duração,
quando a expomos aos raios do entendimento, assume rapidamente também a
forma dc conceitos fixos, distintos, imóveis. Na mobilidade viva das coisas, o
entendimento se põe a situar estações reais ou virtuais, anota as saídas c as che­
gadas: é tudo o que importa ao pensamento do homem quando se exerce natural­
mente. Mas a filosofia deveria ser um esforço para ultrapassar a condição
humana.
Os cientistas detiveram-se a observar muito mais os conceitos com os quais
demarcaram a rota da intuição. Quanto mais consideravam estes resíduos trans-
mutados em símbolos, mais atribuíam a toda ciência um caráter simbóiico.' E

' Para compklar o que expúnhamos na nota precedente (nota 6J. digamos que fomos condu/ídes. Ucsdc u
época cm que escrevemos estas linhas, a rcMríngir o sentido da palavra "ciénciu" c a chamar mai.s particular
mente dc "científico" <> conhecimento da matéria incite pela inteligência pura, f.sta nào nos impediría de
dizer que o conhecimento da vida c do espírito é cienojica cm larga medida — na medida cm que faz apelo
aos mornas métodos dc invcsugaçào que o conhecimento da matéria inerte. Invcrsameme. o conhecimento
da matéria inerte poderá scr dito/t/aw/rco na medida em que utiliza, num certo momento deeis vo de sua
história, a intuição d:t duração puru. Cf. iguaimentea noia I do presente ensaio. (N. du A.)
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 35

quanto mais acreditavam no caráter simbólico da ciência, tanto mais o acentua­


vam c o realizavam. Logo, nào mais fizeram diferença, na ciência positiva, entre
o natural e o artificial, entre os dados da intuição imediata e o imenso trabalho de
análise que o entendimento leva a cabo em torno da intuição. Prepararam assim
o caminho para unia doutrina que afirma a relatividade dc todos os nossos
conhecimentos.
Mas a metafísica nisto trabalhou igualmente.
Como os mestres da filosofia moderna, que foram, ao mesmo tempo que
metafísicos, renovadores da ciência, não tiveram o sentimento da continuidade
móvel do real? Como nào se colocaram no que chamamos dc duração concreta?
Eles o fizeram mais do que acreditaram, e. sobretudo, mais do que disseram. Se
nos esforçamos para ligar, através dc traços comuns, as intuiçòcs em torno das
quais se organizaram os sistemas, encontramos, ao lado de várias outras linhas
convergentes ou divergentes, uma direção bem determinada de pensamento e de
sentimento. Qual é este pensamento latente? Como exprimir este sem mento?
Para emprestar ainda uma vez a linguagem dos platônicos, diremos, despojando
as palavras do sentido psicológico, chamando Idéia uma certa certeza de fácil
inteligibilidade c Alma uma certa inquietude de vida, que uma corrente invisível
leva a filosofia moderna a sobrepor a Alma à Idéia. Através disto ela tende, como
a ciência moderna e até mesmo muito mais do que esta, a caminhar cm sentido
inverso ao do pensamento antigo.
Mas esta metafísica, da mesma maneira que esta ciência, tcccu ao redor dc
sua vida profunda um rico tecido dc símbolos. esquecendo por vezes que. sc n
ciência necessita de símbolos em seu desenvolvimento analítico, a principal razão
dc scr da metafísica é uma ruptura com os símbolos. Ainda aqui o entendimento
prosseguiu seu trabalho de fixação, de divisão, de reconstrução. Ele o prosseguiu,
é verdade, de uma forma bem diferente. Sem insistir cm um ponto que nos propo­
mos a desenvolver alhures, limitemo-nos a dizer que o entendimento, cuja funçào
é operar sobre elementos estáveis, pode procurar a estabilidade quer nas relações.
quer nas coisas. Enquanto trabalha sobre conceitos dc relações, o entendimento
desemboca no simbolismo cientifico. Enquanto opera sobre conceitos de coisas,
desemboca no simbolismo metafísico. Mas tanto num como no outro, c dele que
procede a organização. Dc boa vontade ele se acreditaria independente. Expõe-se
a que vejamos em toda a sua obra apenas o arranjo artificial de símbolo?, muito
mais do que reconheçamos imediatamente o que ele deve à intuição profanda da
realidade. Dc maneira que. se nos detivéssemos na letra do que dizem metafísicos
c cientistas, assim como na materialidade do que fazem, poderiamos crer que os
primeiros cavaram, sob a realidade, um túnel profundo, que os outros cons­
truíram por cima dela uma ponte elegante, mas que o rio movente das coisas
passa entre estas duas obras de arte sem as tocar.
Um dos principais artifícios da critica kantiana consistiu em tomar ao pé da
letra o metafísico c o cientista, cm levar a metafísica e a ciência até o limite extre­
mo do simbolismo a que poderíam chegar, e para onde, aliás, elas se encaminham
por si mesmas quando o entendimento reivindica uma independência plena de
36 BERGSON

perigos. Uma vez negligenciada a ligação da ciência c da metafísica à "imuiçât


intclecutal”. Kant nào tem dificuldade cm mostrar que nossa ciência é totalmcnt-
relativa e nossa metafísica totalmcnte artificial. Como ele exagerou a mdepcn
déncia do entendimento tanto num caso quanto no outro, como alijou a metafí
sica e a ciência da “intuição intclcctuar’ que as lastrava interiormente, a cicnci;
apenas lhe apresenta, com suas relações, uma película dc forma, e a metafísica
com suas coisas, apenas uma película de matéria. É surpreendente que a primeír,
possua, pura clc. apenas quadros encaixados uns nos outros, c a segunda, fantas
masque correm atrás de fantasmas?
Ele desfechou em nossa ciência e em nossa metafísica golpes tão violentos
que elas ainda nào se recuperaram dc seu atordoamento. De boa fe nosso espirito
sc resignaria a ver na ciência apenas um conhecimento totalmcnte relativo, c na
metafísica uma especulação vazia. Parece-nos. ainda hoje, que a crítica kantiana
se aplica a toda metafísica c a toda ciência. Na realidade, cia se aplica sobretudo
à filosofia dos antigos, como também à forma ainda antiga — que os moder­
nos deram frequentemente ao seu pensamento. Ela vale contra uma metafísica
que pretende nos dar um sistema único c totalmcnte pronto das coisas, contra
uma ciência que seria um sistema único de relações, enfim, contra uma ciência c
uma metafísica que sc apresentariam com a simplicidade arquitetônica da teoria
platônica das Idéias, ou de um templo grego. Se a metafísica pretende se consti­
tuir com conceitos que possuiriamos antes dela, se ela consiste num arranjo enge­
nhoso de idéias preexistentes que utilizamos conto materiais de construção para
um edifício, enfim, se ela c outra coisa além da constante dtkitaçào de nosso espí
rito, o esforço sempre renovado para ultrapassar as idéias atuais c. talvez, tam­
bém nossa lógica simples, é bastante evidente que ela sc torna artificial como
iodas as obras do entendimento puro. E, sc a ciência é totalmcnte obra de análise
ou dc representação conceituai, se a experiência deve servir apenas para verifica
ção dc "idéias claras”, se. em lugar de partir de intuiçòcs múltiplas, diversas, que
sc inserem no movimento próprio de cada realidade, mas nào se encaixam sempre
umas nas outras, então ela pretende ser uma imensa matemática, um sistema
único dc relações que aprisiona a totalidade do real numa rede moniada antecipa­
damente. torna-se um conhecimento puramente relativo ao entendimento huma­
no. Se lermos atcntamenie a Crítica da Razão Pura, veremos que é esta cspcçíc dc
matemática universal que é. para Kant, a ciência, c é Cstc platonisino apenas
modificado que é para ele a metafísica. Na verdade, o sonho de uma matemática
universal já é apenas uma sobrevivência do platonismo. A matemática urivcrsal
è o que se torna o mundo das Idéias quando supomos que a Idéia consiste numa
relação-ou numa lei. e nao mais numa coisa. Kant tomou por realidade este sonho
de alguns filósofos modernos:’ainda mais, acreditou que iodo conhecimento cien­
tífico seria apenas um fragmento separado, ou melhor, um sinal antecipador da
matemática universal. A partir daí. a principal tarefa da Crítica consistia cm fun-

* Ver a c<ie respeilo. nos PhlloMphixchc Siuííwh dc Wundi (vol. IX. 1394), um interessante 4f(igo de
Radulescu Motru.“2ur Entwickdung von Krtnfs Thcorieder NaturcausnltuC.fN.do A.)
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 37

dar esta matemática, isto é. em determinar o que deveria ser a inteligência c o que
deveria ser o objeto para que uma matemática ininterrupta pudesse ligá-los um ao
outro. E. necessariamente, se toda experiência possível tem assim garantida sua
entrada nos quadros rígidos e já constituídos de nosso entendimento, c porque (a
menos que suponhamos uma harmonia preestabelccida) nosso entendimento
organiza ele próprio a natureza c nela se reencontra como num espelho. Donde a
possibilidade da ciência, que deverá toda a sua eficácia à sua relatividade, e a
impossibilidade da metafísica, uma vez que esta só poderá parodiar, sobre fantas­
mas de coisas, o trabalho de organização conceituai que a ciência efetua a sério
sobre relações. Em suma, toda a Crítica da Razão Pura termina por estabelecer
que o platonismo, ilegítimo se as Idéias são coisas, torna-se legítimo se as Idéias
são relações, e que a idéia totalmente pronta, uma vez trazida assim do céu à
terra, é de fato, como queria Platão, o fundo comum do pensamento e da nature­
za. Mas toda a Crítica da Razão Pura repousa também sobre o postulado de que
nosso pensamento é incapaz de qualquer outra coisa a não ser platonizar. isto é.
modelar toda experiência possível em moldes preexistentes.
Aí está toda a questão. Sc o conhecimento cientifico é o que Kant pretendeu
que fosse, há uma ciência simples preformada e mesmo preformulada na nature­
za. como acreditava Aristóteles: as grandes descobertas não fazem mais do que
iluminar, nesta lógica imanente às coisas, a linha traçada antecipadamente, como
se ilumina progressivamente. numa noite de festa, o cordão de gás que já dese­
nhava os contornos do monumento. E sc o conhecimento metafísico c o que Kant
pretendeu que fosse, ele se reduz à igualdade de possibilidades entre duas atitudes
opostas do espirito diante dc todos os grandes problemas; suas manifestações são
outras (antas opções arbitrárias, sempre efêmeras, entre duas soluções formula­
das virtualmente desde toda a eternidade: ela vive e morre de antinomias. Mas a
verdade c que nem a ciência dos modernos apresenta esta simplicidade unilinear,
nem a metafísica dos modernos estas oposiçòes irredutíveis.
A cicncia moderna não é nem una nem simples. Ela repousa, c verdade, em
idéias que acabamos por achar claras: mas estas idéias, quando são profundas,
foram esclarecidas progressivamente pelo uso que foi feito delas: devem, então, a
melhor parte de sua luminosidade à luz que lhes foi reenviada, por reflexo, dos
fatos e das aplicações a que foram conduzidas, a clareza de um conceito sendo
apenas, pois, a segurança dc manipulá-lo com proveito. Originalmente. mais dc
uma dessas idéias deve ter parecido obscura, conciliando sc mal com os conceitos
já admitidos na ciência, mesmo roçando o absurdo. Isto quer dizer que a ciência
não procede por encaixe regular dc conceitos que estariam predestinados a sc
inserirem com precisão uns nos outros. As idéias profundas e fecundas sào conta­
tos com as correntes dc realidade que nào convergem necessariamente para um
mesmo ponto. E verdade que os conceitos em que se alojam terminam sempre,
arredondando seus ângulos por um atrito recíproco, por se organizarem bem ou
mal entre si.

Por outro lado, a metafísica dos modernos nào é feita de soluções por tal
modo radicais que possam dar em oposiçòes irredutíveis. Seria assim, sem dúvi-
38 BERGSON

da. se nào houvesse meios de aceitar ao mesmo tempo, c no mesmo terrena, a tese
e a antítese das antinomias. Mas filosofar consiste precisamente em se colocar,
por um esforço dc intuição, no interior desta realidade concreta sobre a qual a
Crítica forma, de fora, os dois pontos de vista opostos, tese c antítese. Nao imagi
narta jamais como branco e negro sc interpenctram se não tivesse visto o cinza,
mas compreendo sem dificuldade, uma vez que haja visto o cinza, como se pode
considerá-lo do duplo ponto de vista do branco e do preto. As doutrinas que pos­
suem um fundo de intuição escapam à crítica kantiana na exata medida em que
são intuitivas: c estas doutrinas sào a totalidade da metafísica, contanto que nào
tomemos a metafísica fixa e morta em teses, mas viva nos filosofou. Certamente,
as divergências sao patentes entre as escolas, isto é. ern suma, entre os grupos dc
discípulos que sc formaram cm torno dc alguns grandes mestres. Mas serão tão
irredutíveis entre os próprios mestres? Alguma coisa domina aqui a diversidade
dos sistemas, alguma coisa, repelimo Io. dc simples e de nítido como a sonda que
sentimos tocar mais ou menos distante o fundo do mesmo oceano, ainda que tra­
zendo à tona, de cada vez. materiais muito diferentes. É sobre estes materiais que
trabalham ordinariamente os discípulos: este é o papel da análise. E o mestre,
enquanto formula, desenvolve, traduz cm idéias abstratas o que traz, é já. dc algu­
ma maneira, um discípulo dc si mesmo. Mas o ato simples que pôs a análise cm
movimento e que se dissimula por trás dela emana dc uma faculdade muito dife­
rente daquela dc analisar. Será, pela própria definição, a intuição.
Digamos, para concluir: esta faculdade nada tem de misterioso. Quem quer
que tenha praticado com êxito a composição literária sabe bem que. quando o
assunto foi longamcnte estudado, todos os documentos recolhidos, iodas as notas
tomadas, é preciso, para abordar o próprio trabalho de composição, alguma coisa
mais, um esforço, frequentemente penoso, para sc colocar de uma vez no próprio
coração do assunto c para ir buscar tào profundamente quanto possível um
impulso pelo qual, depois, basta deixar-se levar. Este impulso, uma vez recebido,
lança o espírito num caminho em que ele reencontra todas as informações que
havia recolhido e Outros detalhes ainda: este impulso se desenvolve, sc analisa a
si mesmo cm termos cuja enumeração prosseguiría infinilumcnw: quanto mais
longe se vai. mais sc descobre: jamais chegaremos a dizer tudo: c entretanto, sc
nos voltamos bruscamentc para o impulso que sentimos atrás dc nós para apreen­
dê-lo. ele escapa: pois nao era uma coisa, mas uma incitação ao movimento c. sc
bem que podendo tornar-se indefinidamente extenso, é a própria simplicicade. A
intuição metafísica parece ser algo do mesmo gênero. Aqui, o que representa as
notas e documentos da composição literária c o conjunto das observações e expe­
riências recolhidas pela ciência positiva c sobretudo por uma reflexão do espírito
sobre o espírito. Pois nào obtemos uma intuição da realidade, isto é. uma simpa­
tia espiritual com o que ela tem dc mais interior, sc nào ganhamos sua confiança
por uma longa camaradagem com suas manifestações superficiais. Nâo $e trata
simplesmente de assimilar os fatos marcantes: é preciso acumular e fundir uma
massa tào grande de fatos quanto for suficiente para que nos asseguremos, nesta
fusão, de neutralizar umas pelas outras todas as idéias preconcebidas ou prema-
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 39

luras que os observadores poderíam ter colocado, malgrado seu. no fundo dc suas
observações. Somente assim se destaca a materialidade bruta dos fatos conheci­
dos. Mesmo no caso simples e privilegiado que nos serviu de exemplo, mesmo
para o contato direto do eu com o eu. o esforço definitivo dc intuição distinta
seria impossível para quem nào tivesse reunido e confrontado um número muito
grande de análises psicológicas. Os mestres da Filosofia moderna foram homens
que assimilaram todo o material da ciência dc seu tempo. E o eclipse parcial da
metafísica de meio século para cá tem sobretudo como causa a extraordinária
dificuldade que o filósofo experimenta atualmente para tomar contato com uma
ciência que sc tornou muito mais diversificada. Mas a intuição metafísica, embo­
ra só possamos chegar a ela pula força dos conhecimentos materiais, c coisa
totalmcnte diferente dc um resumo ou dc uma síntese dc conhecimentos. Deles sc
distingue como o impulso motriz se distingue do caminho percorrido pelo móvel,
como a tensão do elástico se distingue dos movimentos visíveis do pêndulo. Neste
sentido, a metafísica nada tem em comum com uma generalização da experiência
e. entretanto, ela se poderia definir como a experiência integral.
O CÉREBRO E O PENSAMENTO:
UMA ILUSÃO FILOSÓFICA

Traduçâo dc Franklin Lxopoldo e Silva

* Comunicação lida no Congresso da filosofia dc Genebra em 1904 e publicada na Revue dc Métaphysiqur


cl de Morale com o titulo: O paratoglsmo psicofisiològico. (Recolhida na coletânea finergíe Spirüuelle.
1910.)
A idéia dc uma equivalência entre o estado psíquico e o estado cerebral
correspondente permeia uma boa parte da filosofia moderna. Discutiu-se mais
sobre as causas desta equivalência do que sobre a própria equivalência. Para uns,
ela proviria de que o estado cerebral se duplica, cm certos casos, com urra fosfo
resccncia psíquica que lhe ilumina o contorno. Para outros, ela vem do fato dc o
estado cerebral e o estado psicológico entrarem respectivamente em duas séries
de fenômenos que sc correspondem ponto por ponto, sem que seja preciso atribuir
à primeira a criação da segunda. Mas uns e outros admitem a equivalência ou.
como se diz mais frequentemente, o paralelismo das duas séries. Para fixar as
idéias, formularíamos a tese da seguinte maneira: “Sendo dado um estado cere­
bral. segue-se um estado psíquico determinado” Ou ainda: “Uma inteligência
sobre-humana, que assistisse ao movimento dos átomos dc que é feito o cérebro
humano e que tivesse a chave da psicofisiologia, podería ler. num cérebro traba
lhando. tudo u que se passa na consciência correspondente”. Ou enfim: “A cons­
ciência nào diz nada mais do que se passa no ccrebro; ela apenas o exprime numa
outra língua”.
Sobre as origens totalmcnte metafísicas desta lese nào há dúvidas possíveis.
Fia deriva cm linha direta do enrtesianismo. Implicitamente contida (com muitas
restrições, e bem verdade) na filosofia de Descartes, destacada c levada ao extre­
mo por seus sucessores, ela passou, por intermédio dos médicos filósofos do sécu­
lo XVIII. para a psicofisiologia de nosso tempo. E comprccnde-se facilmente que
os fisiologistas a tenham aceitado sem discussão. Antes de tudo, eles nào tinham
escolha, pois o problema lhes vinha da metafísica, e os metafísicos nào lhe ha­
viam dado outra solução. Também, era interessante para a fisiologia ligar-se a
esta tese e proceder como se ela devesse, algum dia. fornecer a tradução fisioló­
gica integral da atividade psicológica: somente nestas condições ela poderia pro
gredir c levar sempre mais longe a análise das condições cerebrais do pensa­
mento. Era, e ainda pode ser, um excelente início dc pesquisa, que significará que
nào devemos nos apressar cm assinalar os limites da fisiologia. como, dc resto, de
nenhuma outra investigação científica. Mas a afirmação dogmática dc parale­
lismo psicofisiológico é coisa totalmcnte diferente. Não é mais uma regra cientí­
fica, é uma hipótese metafísica. Na medida em que é inteligível, ela é a metafísica
de uma ciência nos quadros puramente matemáticos, da ciência tal como era con
44 BERGSON

cebida no tempo de Descartes. Cremos que os fatos, examinados sem pressuposi­


ções de mecanismo matemático, sugerem já uma hipótese mais sutil relativa­
mente à correspondência entre estado psicológico c estado cerebral. Este somente
exprimiría as ações que se encontram preformadas naquele; desenharia as articu
lações motoras dele. Dado um fato psicológico, determinaremos sem dúvida o es­
tado cerebral concomitante. Mas a recíproca nâo é verdadeira, e ao mesmo esta­
do cerebral corresponderíam estados psicológicos muito diversos. Não insisti­
remos nesta soluç.ão exposta num trabalho anterior. A demonstração que vamos
apresentar é. aliás, independente dele. Não nos propomos aqui, com efeito, substi­
tuir a hipótese do paralelismo psicofisiológico por outra, mas estabelecer que
aquela hipótese implica, em sua forma habitual, uma contradição fundamental.
Esta contradição está, aliás, repleta de ensinamentos. Sc a percebermos clara­
mente. adivinharemos em que direção c preciso buscar a solução do problema, ao
mesmo tempo que descobrimos o mecanismo de uma das mais sutis ilusões do
pensamento metafísico. Não faremos, pois, obra puramente crítica ou destrutiva
assinalando tal contradição.
Pretendemos que a tese repousa numa ambiguidade nos termos, que cia nâo
pode ser enunciada corretamcntc sem destruir a si mesma, que a afirmação dog­
mática do paralelismo psicofisiológico implica um artifício dialético pelo qual se
passa sub-rcpticiamente de um certo sistema de notação para o sistema oposto,
sem levar cm conta a substituição. Este sofisma nem c preciso dizer — nada
tem de intencional: ele é sugerido pelos próprios lermos em que a questão é colo­
cada; e ele é tão natural a nosso espírito que o cometeriamos inevitavelmente se
nâo nos tivéssemos obrigado a formular a tese dü paralelismo allertiaúvumenie
nos dois sistemas de notação de que dispõe a filosofia.
Quando falamos de objetos exteriores, podemos escolher, com efeito, entre
dois sistemas de notação. Podemos tratar estes objetos c as mudanças que se ope­
ram neles como coisas ou como representações. E os dois sistemas de notação
são aceitáveis, contanto que se adira estritamente ao escolhido.
Tentemos primeiramente distingui-los com precisão. Quando o realismo fala
de coisas e o idealismo de representações, eles não discutem simplesmente sobre
palavras: são rcalmcnte dois sistemas de notações diferentes, isto c. duas manei­
ras distintas de compreender a análise do real. Para o idealista nada mais há. na
realidade, além do que aparece à minha consciência ou à consciência cm geral.
Seria absurdo falar dc uma propriedade da matéria que nâo sc pudesse tornar ob­
jeto de representação. Não há virtualidadc ou. ao menos, nada de defínitivamente
virtual nas coisas. Tudo o que existe é atual ou poderá lornar-se atual. Em suma,
o idealismo c um sistema de notação implicando que lodo o essencial da matéria
é mostrado ou mostrável na representação que dele temos, c que as articulações
do real são as mesmas de nossas representações. O realismo repousa na hipótese
inversa. Dizer que a matéria existe independentemente dc nossa representação é
pretender que sob nossa representação da matéria há uma causa inacessível desta
representação, que por trás da percepção do atual há poderes c virtualidades
CÉREBRO E PENSAMENTO 45

ocultos: é, enfim, afirmar que as divisões e articulações visíveis em nossa repre­


sentação são puramente relativas à nossa maneira de perceber.
Não duvidamos, por outro lado, de que se possa fornecer definições mais
profundas das tendências realista e idealista, tais como as encontramos na histó­
ria da filosofia. Nós mesmos, em um trabalho anterior, havíamos tomado as pala­
vras 'Tealismo” e “idealismo” num sentido bastante diferente. Nào nos prende­
mos. pois, de forma alguma, às definições que acabamos de enunciar. Elas
caracterizariam sobretudo um idealismo à moda de Berkeley c o realismo que a
cie se opõe. Talvez traduzam com suficiente precisão a idéia que sc faz habitual­
mente das duas tendências, a parte do idealismo se estendendo tão longe quanto
a do rcprcscntávcl. o realismo reivindicando o que ultrapassa a representação.
Mas a demonstração que vamos esboçar c independente de qualquer concepção
histórica do realismo e do idealismo. Àqueles que contestariam a gcncralicadc dc
nossas duas definições, pediriamos que só vissem nas palavras realismo e idea­
lismo termos convencionais pelos quais designaremos, durante o presente estudo,
duas notações do real, das quais uma implica a possibidade c a outra a impossibi­
lidade de identificar as coisas com a representação, desdobrada e articulada no
espaço, que oferecem a uma consciência humana. Todos concordarão que os dois
postulados se excluem, que. consequentemente, é ileptimo aplicar ao mesmo
tempo os dois sistemas dc notação ao mesmo objeto. Ora. não temos necessidade
dc mais nada para a presente demonstração.
Propomo-nos a estabelecer os três pontos seguintes: l.° se optamos pela
notação idealista, a afirmação dc um paralelismo (no sentido dc equivalência)
entre o estado psicológico e o estado cerebral implica contradição: 2.° se ->rcfcri
mos a notação realista, reencontramos, transposta, a mesma contradição: 3.w a
tese do paralelismo somente parece sustentável se empregamos ao mesmo tempo,
na mesma proposição, os dois sistemas dc notação dc uma só vez. Ela só parece
inteligível se. por uma mágica intelectual inconsciente, passamos instantanea­
mente do realismo para o idealismo e do idealismo para o realismo, abandonando
um ou outro no exato momento em que estamos para ser surpreendidos em fla­
grante delito de contradição. Somos, aliás, aqui, naturalmcnte mágicos, pois o
problema cm pauta, sendo a questão psicofisiológica das relações entre o cérebro
c o pensamento. sugere nos. pela sua própria colocação, os dois pontos dc vista
do realismo e do idealismo, uma vez que o termo “cérebro'* nos faz pensar numa
coisa e o termo pensamento, numa representação. Pode-se dizer que o enunciado
da questão já contém, em potência, o equívoco pelo qual ela será respondida.
Coloquemo-nos primeiramente na perspectiva idealista, c consideremos, por
exemplo, a percepção dos objetos que ocupam, num dado momento, o campo
visual. Estes objetos agem, por intermédio da retina c do nervo ótico, sobre os
centros da visão: provocam uma modificação dos agrupamentos atômicos e
moleculares. Qual c a relação entre esta modificação cerebral e os objetos
exteriores?
A tese do paralelismo consistirá em sustentar que podemos, uma vez de
posse do estado cerebral, suprimir por um golpe de mágica todos os objetos per-
46 BERGSON

ccbidos sem que nada mude no que sc passa na consciência, pois é este estado
cerebral causado pelos objetos, c não o próprio objeto, que determina a percepção
consciente. Mas como não ver que uma proposição deste gênero é absurda na
hipótese idealista? Para o idealismo, os objetos exteriores são imagens e o cére­
bro é uma delas. Nada há nas coisas além do que é mostrado ou mostrávcl na
imagem que elas apresentam. Nào há. pois, no movimento dos átomos cerebrais,
nada além do movimento dos átomos. Uma vez que isto c tudo o que supusemos
no ccrcbro. isto c tudo o que encontramos aí e tudo o que podemos tirar dele.
Dizer que a imagem do mundo circundante deriva desta imagem, ou que se expri­
me por esta imagem, ou que surge uma vez dada esta imagem, ou que nos damos
a imagem do mundo circundante ao nos darmos a do cérebro, seria contradizer-
se. pois estas duas imagens, o mundo exterior c o movimento intracerebral, são
supostamente dc mesma natureza, e a segunda imagem é. por hipótese, uma ínfi­
ma parte do campo de representação, enquanto a primeira preenche totalmente o
campo dc representação. O fato dc que a estimulação cerebral contenha virtual­
mente a representação do mundo exterior pode parecer inteligível numa doutrina
que faça do movimento algo dc subjacente à representação que dele temos, um
poder misterioso dc que percebemos apenas o efeito produzido cm nós. Mas isto
aparecería imediatamente como contraditório na doutrina que reduz o movi­
mento a uma representação, pois significa que uma pequena parcela da represen­
tação c a totalidade da representação.
Concebo, na hipótese idealista, que a modificação cerebral seja um efeito da
ação dos objetos exteriores, um movimento recebido pelo organismo c que vai
preparar as reações apropriadas: imagens entre imagens, imagens moventes como
todas as imagens, os centros nervosos apresentam partes móveis que recolhem
certos movimentos exteriores e os prolongam cm movimentos de reação realiza­
dos ou somente iniciados. Mas a função do cérebro sc reduz, então, a sofrer cer­
tos efeitos das outras representações c a esboçar, como dizíamos, as articulações
motoras. É nisto que o cérebro c indispensável ao restante da representação, c
não pode ser lesado sem que uma perturbação mais ou menos geral da represen­
tação aconteça cm seguida. Mas ele não esboça as próprias representações; pois
nâo poderia. sendo ele uma representação, esboçar a totalidade da representação
a nào ser que deixasse de ser uma pane para tornar se a totalidade da representa­
ção. Formulada numa linguagem rigorosamente idealista, a tese do paralelismo
sc resumiría nesta proposição contraditória: a parte ê o todo.
Mas a verdade é que se passa inconscientcmente de um ponto de vista idea­
lista a um ponto de vista pseudo-reaiista. Começou-se por fazer do cérebro uma
representação como as outras, encaixada nas outras representações e inseparável
delas: os movimentos interiores do cérebro, representação entre representações,
nào podem, pois, suscitar outras representações, já que as outras representações
são dadas com eles, cm torno deles. Mas insensivelmente chega-se a erigir o cére­
bro e os movimentos intracercbrais em coisas, isto c, em causas ocultas por trás
de uma certa representação e cujo poder se estende infinitamente mais longe do
que o que é nele representado. Por que este deslizamento do idealismo para o rca-
CÉREBRO E PENSAMENTO 47

lismo? Ele é favorecido por muitas ilusões teóricas: mas não nos deixáramos
levar tão facilmente por elas se não nos créssemos encorajados pelos fatos.
Ao lado da percepção, com efeito, há a memória. Quando rememero os
objetos que foram uma vez percebidos, eles podem nao mais estar presentes. Meu
corpo permanece só: e. entretanto, as outras imagens lornanvse visíveis na forma
de lembranças. É preciso, pois, que meu corpo, ou alguma parte dele, possua o
poder dc evocar as outras imagens. Admitamos que ele não as cria: ao menos é
capaz de .suscitá-las. Como o faria, sc a um estado cerebral determinado não
correspondessem lembranças determinadas, e se não houvesse, exalamente neste
sentido, paralelismo entre o trabalho cerebral e o do pensamento?
Responderemos que. na hipótese idealista, c impossível representar um obje­
to na ausência completa do próprio objeto. Se nada há no objeto presente além do
que c representado, se a presença do objeto coincide com n sua representação,
qualquer parte da representação do objeto será, de alguma forma, uma parle dc
sua presença. A lembrança nâo será mais o próprio objeto, concordo; falter-lhc-
iam para isto muitas coisas. Primeiramente, ela c fragmentária; apenas retem
ordinariamente alguns elementos da percepção primitiva. Depois, cia só existe
para a pessoa que a evoca, enquanto o objeto faz parte de uma experiência
comum. Enfim, quando a rcprcsentaçào-lembrança surge, as modificações conco­
mitantes da rcprcscntaçào-cérebro nâo são mais, como no caso da percepção, os
movimentos bastante fortes para excitar a representação organismo a reagir
imediatamente. O corpo nào se sente mais abalado pelo objeto percebido, e como
e nesta sugestão de atividade que consiste o sentimento da atualidade, o objeto
representado nào aparece mais como atual: é isto que exprimimos dizendo que ele
não é mais presente. A verdade c que. na hipótese idealista, a lembrança sc pode
ser uma película destacada da representação primitiva ou. o que dá no mesmo, do
objeto. Ele está sempre presente, mas a consciência dele desvia sua atenção
enquanto nào tem alguma râzào para considerá-lo. Ela só tem interesse cm pcrcc-
belo quando se sente capaz de utilizá-lo. isto e. quando o estado cerebral pre
sente esboça já algumas das reações motoras nascentes que o objeto real ( sto é.
a representação completa) teria determinado: este começo dc atividade do corpo
confere à representação um começo de atualidade. Mas isto nâo quer dizer que
haja então “paralelismo" ou “equivalência” entre a lembrança c o estado cere­
bral. As reações motoras esboçam, com efeito, alguns dos efeitos possíveis da
representação que vai aparecer, c nâo esta própria representação: e como a
mesma reação motora pode seguir-sc muito bem dc diferentes lembranças, nào e
uma lembrança determinada que será evocada por um estado determinado do
corpo, são. ao contrário, lembranças diversas igualmentc possíveis, entre as quais
a consciência escolherá. Elas somente serão submetidas a uma condição comum:
a de entrar no mesmo quadro motor. Nisto consistirá sua “semelhança", rermo
vago nas teorias correntes dn associação, e que adquire um sentido preciso quan
do o definimos como a identidade das articulações motoras. Nào insistiremos
neste ponto, que foi objeto dc um trabalho anterior. É-nos suficiente dizer que. na
hipótese idealista, os objetos percebidos coincidem com a representação completa
4» BERGSON

e completamente ativa, os objetos rememorados, com a mesma representação


incompleta e incompletamcntc ativa, c que em nenhum dos casos o estado cere­
bral equivale à representação, pois é parte dela. Passemos agora ao realismo, e
vejamos sc a tese do paralelismo psicofisiológico se tornará mais clara.
Eis ainda os objetos que povoam o campo dc minha visão; eis. entre cies,
meu cérebro: eis enfim, nos meus centros sensoriais. deslocamentos de moléculas
e de átomos ocasionados pela ação dos objetos exteriores. Do ponto dc vista idea­
lista. eu não teria o direito de atribuir a estes movimentos internos o misterioso
poder dc se duplicarem em representação das coisas exteriores, pois eles eram
tudo o que era representado c. já que. por hipótese, nós os representavamos como
movimentos de certos átomos do cérebro, eles eram movimentos de átomos do cé
rebro c nada mais. Mas a essência do realismo é supor por trás dc nossas repre­
sentações uma causa diferente delas. Nada impediría, parece, dc considerar as
representações dos objetos exteriores como implicadas nas modificações cere­
brais. Para certos teóricos, estes estados cerebrais serão verdadeiramerte criado­
res da representação, que é apenas o “epifenômeno” deles. Outros suporão, à
maneira cartcsiana. que os movimentos cerebrais ocasionam simplesmente a apa­
rição de percepções conscientes, ou ainda que estas percepções e estes movimen
tos sào apenas aspectos dc uma realidade que não é nem movimento nem percep­
ção. Todos concordarão, todavia, em dizer que a um estado cerebral dcicrminado
corresponde um estado dc consciência determinado, e que os movimentos interio­
res da substância cerebral, considerados separadamente, revelariam, a quem os
soubesse decifrar, o detalhe completo do que sc passa na consciência cor­
respondente.
Mas como nào ver que a pretensão dc considerar separadamente o cérebro,
o movimento de seus átomos, envolve aqui uma verdadeira contradção? Um
idealista tem o direito dc declarar isolávcl o objeto que lhe fornece uma represen­
tação isolada, pois o objeto nào sc distingue, para ele. da representação. Mas o
realismo consiste prccisamcnte em rejeitar esta pretensão, cm considerar artifi­
ciais ou relativas as linhas de separação que nossa representação traça entre as
coisas, cm supor além delas um sistema de ações recíprocas c de virtualidades
emaranhadas, enfim, cm definir o objeto não mais pelo fato dc pertencer à nossa
representação, mas por sua solidariedade com o todo dc uma realidade incognos
cível cm si mesma. Quanto mais a ciência aprofunda na natureza do corpo em
direção à sua "realidade’*, tanto mais ela reduz cada propriedade deste corpo c.
consequentemente, sua própria existência, às relações que ele mantém com o res
tante da matéria capaz de influencia lo. Vcrdadeiramcntc. os termos que sc
influenciam reciprocamente — seja qual for o nome que lhes dermos, átomos,
pontos materiais, centros de força, etc. — sào. a seus olhos, apenas termos provi­
sórios; c a influência recíproca ou interação que constitui para a ciência a reali­
dade definitiva.
Ora. começamos por nos dar um ccrebro que objetos exteriores modificam,
dizemos, de maneira a suscitar representações. Depois fizemos “tábula rasa” des­
tes objetos exteriores ao cérebro e atribuímos à modificação cerebral o poder de
CÉREBRO E PENSAMENTO 49

desenhar, por ela mesma, a representação do objeto. Mas. ao retirar os objetos


que o rodeiam, retiramos também, queiramos ou nào. o estado cerebral que deles
empresta suas propriedades c sua realidade. Somente o conservamos porque pas­
samos sub-repticiamente paru o sistema cie natação idealista onde se coloca como
isolável de direito o que está isolado na representação.
Consideremos nossa hipótese. 0$ objetos exteriores e o cérebro estando pre­
sentes. a representação se produz. Devemos dizer que esta representação não é
função do estado cerebral unicamente, mas do estado cerebral e dos objetos que
o determinam, este estado e estes objetos formando agora um bloco indivisível. A
tese do paralelismo, que consiste em destacar os estados cerebrais e em supor que
eles poderíam criar, ocasionar, ou ao menos exprimir, unicamente por eles mes­
mos. a representação dos objetos, nâo podería ainda desta vez scr enunciada sem
se destruir a si própria. Numa linguagem estritamente realista ela se formularia
assim: uma parte, que deve tudo o que é ao restante da totalidade,pode ser conce­
bida como subsistente quando todo o resto desaparece. Ou ainda, de maneira
mais simples: Uma relação entre dois termos equivale a um deles.
Ou os movimentos dc átomos que se realizam no cérebro são rcalmenle o
que exibem na representação que deles teriamos. ou sào diferentes. Na primeira
hipótese serão tais como os percebemos, e o restante de nossa percepção será
então outra coisa: haverá, entre eles c o restante, uma relação dc conteúdo a
continente. Este é o ponto dc vista idealista. Na segunda hipótese, a realidace ínti­
ma desses movimentos c constituída pela sua solidariedade com todo o mais que
está por trás das outras percepções que temos: c. pelo fato mesmo dc considerar
sua realidade intima, consideramos a totalidade do real com u qual formam um
sistema indivisível: o que quer dizer que o movimento intracerebral, considerado
como um fenômeno isolado, desaparece, e nào podemos mais ter como substrato
de toda a representação um fenômeno que c apenas uma parte dela, e uma parte
recortada artificialmcntc.
Mas a verdade ê que o realismo jamais sc mantem cm estado puro. Podemos
pôr a existência da realidade em geral por trás da representação: quando começa­
mos a falar de uma realidade em particular, queiramos ou nào. fazemos com que
a coisa coincida mais Ou menos com a representação que temos dela. Sobre o
fundo da realidade oculta, onde tudo está necessariamente implicado cm tudo, o
realismo desdobra as representações explícitas que são para o idealista a própria
realidade. Realista ou idealista no momento em que põe a realidade, ele torna-se
idealista quando afirma qualquer coisa sobre ela. pois a notação realista apenas
pode consistir, nas explicações de detalhe, cm inscrever sob cada termo da nota­
ção idealista um sinal que assinala seu caráter provisório. Seja: mas o que disse­
mos acerca do idealismo vai então se aplicar ao realismo que imita o idealismo.
E fazer dos estados cerebrais o equivalente das percepções c das lembranças
consistirá sempre, seja qual for o nome que dermos ao sistema, em afirmar que a
pane é o todo.
Aprofundando os dois sistemas, veriamos que o idealismo tem por essência
0 fato de se deter no que está dado no espaço c nas divisões espaciais, enquanto
50 BERGSON

o realismo tem estes dados por superficiais e estas divisões por artificiais: ele con­
cebe. por trás das representações justapostas, uni sistema de ações reaprocas. c
consequentemente uma implicação das representações umas nas outras. Como,
por outro lado, nosso conhecimento da matéria nào pode derivar inteiramente do
espaço, e como a implicação recíproca de que se trata, por mais profunda que
seja, nào se pode tornar cxtra-cspacial sem tornar-se cxtracienüfica, c realismo
nào pode ultrapassar o idealismo cm suas explicações. Estamos sempre mais ou
menos no idealismo (tal como o definimos) quando somos cientistas: caso contrá­
rio. não pensaríamos sequer em considerar partes isoladas da realidade para
condiciona las umas em relação às outras, o que constitui a pròpria ciência. A
hipótese do realismo não é mais do que um ideal destinado a lembrar-nos que
nunca aprofundaremos suficientcrncme a explicação da realidade, e que devere­
mos estabelecer relações cada vez mais íntimas entre as partes do real que se
justapõem, a nossos olhos, no espaço. Mas o realista não se pode impedir dc
hipostasiar este ideal. Ele o hipostasia nas representações dadas que seriam para
o idealista a própria realidade. Estas representações tornam-se cntào. para ele.
outras coisas. isto é. reservatórios contendo virtualidadcs ocultas: o que lhe per
mitírá considerar os movimentos intraccrebrais (erigidos desta vez cm coisas e
nào mais cm simples representações) como encerrando potencialmentc a totali­
dade da representação. Nisto consistirá sua afirmação do paralelismo psícofísio-
lógico. Ele esquece que havia situado o reservatório fora da representação c nâo
dentro dela, fora do espaço c não no espaço, e que. em todo caso, sua hipótese
consistia cm supor a realidade ou indivisível ou articulada dc forma diferente da
representação. Fazendo corresponder a cada parte da representação uma parte da
realidade, ele articula o real da mesma forma que a representação, ele desdobra a
realidade no espaço, e abandona seu realismo pelo idealismo, em que a relação do
cérebro ao restante da representação é evidentemente a da parte ao todo.
Falava-sc primciramcnie do cérebro tal qual o víamos, tal qual o destaca­
vamos do conjunto de nossa representação: cie era pois apenas uma represen­
tação c estávamos no idealismo. A relação do cérebro ao restante da represen­
tação era então, repetimos. da pane ao todo. Disto passamos bruscamente para
uma realidade que seria subjacente à representação: seja, mas cntào ela é subes-
pacial. o que significa que o cérebro nào é uma entidade independente. Só ha.
agora, a totalidade do real incognoscível cm si. sobre a qual sc estende a totali­
dade dc nossa representação. Estamos no realismo: e. tanto neste realismo como
no idealismo dc há pouco, os estados cerebrais não são o equivalente da represen
tação: é. repetimos, a totalidade dos objetos percebidos que entrará ainda (desta
vez dissimulada) na totalidade dc nossa percepção. Mas eis que. quando se trata
do detalhe do real, continuamos a compô-lo da mesma maneira e segundo as mes­
mas leis da representação, o que equivale a nào mais distingui-los um do outro.
Voltamos, pois, ao idealismo, e deveriamos nele permanecer. Mas não. Conser­
vamos rca Imente o cérebro tal qual é representado, mas esquecemos que. sc o real
está desdobrado na representação, estendido nela c não contraído nela, ele nào
pode mais encerrar as potencialidades c as virtualidadcs de que falava o realismo;
erigimos, cntào. os movimentos ccrcbrais cm equivalentes de toda a representa
çào. Oscilamos, pois, do idealismo ao realismo e do rcalismo ao idealismo, mas
tào rapidamente que nos acreditamos imóveis e, de alguma forma, a cavaleiro dos
dois sistemas reunidos num só. Esta aparente conciliação de duas afirmações
inconciliáveis é a própria essência da tese do paralelismo.
Tentamos dissipar a ilusão. Nào pretendemos tê lo conseguido inteíramente.
tantas sâo as idéias simpáticas à tese do paralelismo que se agrupam em torno
dela para defendê-la. Destas idéias, algumas foram engendradas pela própria tese
do paralelismo: outras, pelo contrário, anteriores a ela. produziram a uniào ilegí­
tima de que a vimos nascer; outras, enfim, sem relações familiares com ela, toma-
ram-na por modelo à força de viver a seu lado. Todas formam atualmente, junto
dela, uma imponente linha dc defesa, a qual se forçamos em um ponto, torna-se
mais resistente em outro. Citemos cm particular:

1. “ A idéia implícita (poderiamos mesmo dizer inconsciente) dc uma alma


cerebral, isto é. uma concentração da representação na substancia cortical. A
representação uma vez deslocando se com o corpo, raciocinamos como sc hou­
vesse. no próprio corpo, o equivalente da representação. Os movimentos cere­
brais seriam estes equivalentes. A consciência, para perceber o universo sem sc
alterar, só tem que se dilatar no espaço restrito da superfície do cérebro, verda­
deira “câmara escura” em que se reproduz em tamanho reduzido o mundo
circundante.

2. " A idéia de que toda causalidade c mecânica, c que nào há nada no uni­
verso que nào seja calculável matematicamente. Então, como nossas ações deri­
vam de nossas representações (tanto passadas quanto presentes), é necessário,
sob pena dc admitir uma derrogação da causalidade mecânica, supor que o cére­
bro de onde parte a açào continha o equivalente da percepção, da lembrança c do
próprio pensamento. Mas a ideia dc que o mundo inteiro, inclusive os seres vivos,
depende da matemática pura, é apenas um ponto de vista a priori do espirito, que
remonta ao cartesianismo. Podemos exprimi-lo dc maneira moderna, traduzi-lo
na linguagem da ciência atual, relacionar-lhc um número crescente de fatos
observados (a que fomos conduzidos por intermédio dele) c atribuir lhe então ori
gens experimentais: nem por isto a parte mensurável do real ficará menos limita
da, c a lei. considerada como absoluta, conserva o caráter dc uma hipótese meta­
física, que cia já possuía no tempo de Descartes.

3. ° A idéia de que para passar do ponto dc vista (idealista) da representação


ao ponto dc vista da coisa em si c .suficiente substituir à nossa representação ima-
gética c pitoresca esta mesma representação reduzida a um contorno sem cor e às
relações matemáticas de suas panes entre st. Hipnotizados, por assim dizer, pelo
vazio que nossa representação acaba dc produzir, aceitamos a sugestão de nào sei
que maravilhosa significação inerente a um simples deslocamento dc pontos
materiais no espaço, isto é. a uma percepção diminuída, ao passo que jamais
pensaríamos em dotar dc tal virtude a imagem concreta, entretanto mais rica, que
encontramos em nossa percepção imediata. A verdade c que c preciso optar entre
uma concepção da realidade que u espalha pelo espaço e. consequentemente, pela
representação, considerando-a totalmente como atual ou atualizávcl, e um siste-
52 BERGSON

ma em que a realidade se toma um reservatório dc potencialidades, estando então


concentrada em si mesma e. consequentemente, sendo cxtra-cspacial. Nenhum
trabalho de abstração, de eliminação, de diminuição enfim, efetuado sobre a pri­
meira concepção nos aproximará da segunda. Tudo o que tivermos dito acerca da
relação do cérebro á representação num idealismo pitoresco, que se detém nas
representações imediatas ainda coloridas e vivas, se aplicará a fortiori a um idea­
lismo científico, cm que as representações estão reduzidas a seu esqueleto mate­
mático. mas onde aparece ainda mais claramcntc. com seu caráter espacial e sua
exterivridade recíproca, a impossibilidade para uma delas de encerrar todas as
outras. Pelo fato de termos feito desaparecer das representações extensas as quali
dades que as diferenciam na percepção, jogando umas contra as outras, não tere­
mos avançado um passo cm direção à realidade supostamente em tensâc. e tanto
mais real, conseqüentemente. quanto mais inextensiva. O mesmo seria imaginar
que uma moeda usada, que perdeu a marca exata dc seu valor, adquiriu um valor
indefinido de compra.
4.° A idéia de que. se duas totalidades são solidárias, cada parte de uma é
solidária de determinada parte da outra. Então, como nào há estado de cons
ciência que não tenha concomitante cerebral, como uma variação do estado cere­
bral não acontece sem uma variação do estado de consciência (embora o inverso
nào seja necessariamente verdadeiro cm todos os casos), como, enfim, uma lesão
da atividade cerebral provoca uma lesão da atividade consciente, concluímos que
a qualquer fração do estado de consciência corresponde uma parte determinada
do estado cerebral, e que os dois termos sao. portanto, interenmbiávcis. Como sc
tivéssemos o direito dc estender ao detalhe das partes, relacionadas uma à outra
o que foi apenas observado ou inferido dc duas totalidades, c converter assim
uma relação de solidariedade em uma relação de equivalente a equivalente! A
presença ou a ausência de um parafuso que pode fazer com que a máquina fun­
cione ou nào: daí sc segue que cada parte do parafuso corresponde a uma parte
da máquina, e que a máquina tenha seu equivalente no parafuso? Ora. a relação
do estado cerebral com a representação podería muito bem ser a do parafuso com
a máquina, isto é. da parte com o todo. Essas quatro idéias implicam um grande
número de outras, que seria interessante analisar por sua vez. pois aí encontra­
ríamos outras tantas harmônicas de alguma forma, cujo som fundamental é dado
pela tese do paralelismo. Procuramos apenas, no presente estudo, destacar a
contradição inerente à própria tese. Prccisamcnte porque as consequências a que
ela conduz c os postulados que ela encerra recobrem, por assim dizer, todo o
domínio da filosofia, parcecu nos que este exame crítico sc impunha, e que ele
podería servir dc ponto dc partida para uma teoria do espírito, considerado em
suas relações com o determinismo da natureza.
CONFERÊNCIAS

Tradução de Franklin Leopoldo c Silva


&
A intuição filosófica’

Gostaria de vos submeter algumas reflexões sobre o espírito filosófico.


Parece-me — e mais de uma comunicação apresentada neste Congresso o teste­
munha — que a metafísica busca neste momento simplificar-se. aproximar-se
mais da vida. Creio que cia tem razão, c que é neste sentido que devemos traba­
lhar. Mas estimo que nào faremos, por islo. nada de revolucionário; limitar-nos-
emos a conferir a forma mais apropriada àquilo que é o fundo de toda filosefia —
isto é. de toda filosofia que tem plcnu consciência dc sua função e dc sua destina-
ção. Pois é preciso que a complicação da letra nào faça perder de vista a simplici­
dade do espírito. Ao ater-nos às doutrinas uma vez. formuladas, à síntese em que
parecem abarcar as conclusões das filosofias anteriores c o conjunto dos conheci­
mentos adquiridos, arriscamo-nos a nào mais perceber o que há dc essencial-
mente espontâneo no pensamento filosófico.
Há uma coisa que todos aqueles dentre nós que ensinam história da filosofia
puderam notar, todos aqueles que têm ocasião dc voltar frequentemente ao estudo
das mesmas doutrinas e aprofunda Ias assim cada vez mais. Um sistema filosó­
fico parece, primeiramente, erguer-se como um edifício completo, de uma sábia
arquitetura, onde tudo está disposto para que possamos alojar comodamente
todos os problemas. Experimentamos, no contemplá-lo assim, uma alegria este
lica reforçada por uma satisfação profissional. Com efeito, não somente encon­
tramos alí a ordem na complicação (uma ordem que. algumas vezes, agrada-nos
completar ao dcscrevê-la). mas temos também o contentamento de dizer-nos que
sabemos dc onde vêm os materiais c como a construção foi efetuada. Nos proble­
mas que o filósofo colocou reconhecemos as questões que eram agitadas cm
torno dele. Nas soluções que ele dá cremos reencontrar, ordenados ou desarran-
jados, mas apenas modificados, os elementos das filosofias anteriores ou contem­
porâneas. Tal ponto dc vista deve ter sido sugerido por esta, tal outro por aquela.
Com o que ele leu. ouviu, aprendeu, poderiamos, sem dúvida, recompor a maior
parte do que ele fez. Pomos, pois, mãos ã obra: remontamos às fontes, pesamos
as influências, extraímos as semelhanças, c acabamos por ver distintamente na
doutrina aquilo que procuravamos: uma síntese mais ou menos original das
idéias em meio às quais o filósofo viveu.

’ Conferência feita no Congresso de Filosnfi.i dc Rnlonhn, cm 10 de abril dc 1911. (Publicada em O Pensa­


mento co Movaue, (922.)
56 BERGSON

Mas um contato frequentemente renovado com o pensamento do mestre


pode nos levar, por uma impregnação gradual, a um sentimento totalmcnte dife­
rente. Nào digo que o trabalho de comparação que antes efetuamos tenha sido
tempo perdido: sem este esforço prévio para recompor uma filosofia com o que
não é ela própria c para ligada ao que existiu em torno dela, nào atingiriamos ja
mais o que é verdadeiramenic ela; pois o espírito humano é feito de tal maneira
que ele só começa a compreender o novo depois dc ter tentado tudo para reduzi-
lo ao antigo. Mas. na medida em que buscamos nos instalar no pensamento do
filósofo cm lugar de dar voltas cm torno dele, vemos a doutrina sc transfigurar.
Primciramcntc a complicação diminui. Depois as partes penetram umas nas
outras. Enfim, tudo sc concentra em um ponto único, do qual sentimos que pode­
riamos nos aproximar pouco a pouco, embora nunca possamos atingi-lo.
Neste ponto está algo de simples, dc infinitamente simples, de tao extraordi­
nariamente simples que o filósofo nào conseguiu jamais exprimi-lo. Esta é a
razão por que falou durante toda a sua vida. Nâo podia formular o que levava no
espírito sem se sentir obrigado a corrigir sua fórmula, depois a corrigir sua corre­
ção: assim, dc teoria em teoria, retificando se quando acreditava completar-se. ele
só fez. através dc uma complicação que atraía a complicação c desenvolvimentos
justapostos a desenvolvimentos, fornecer com aproximação crescente a simplici­
dade de sua intuição original* Toda a complexidade dc sua doutrina, que se esten­
dería ao infinito, c apenas a incomensurabilidade entre sua intuição simples c os
meios dc que dispunha pura exprimi la.
Qual é esta intuição? Sc o filósofo nào pódc formulá-la. não somos nós que
o faremos. Mas o que chegaremos a apreender e fixar é uma certa imagem inter­
mediária entre a simplicidade da intuição concreta c a complexidade das abstra­
ções que a traduzem, imagem fugitiva c csvaecente. que ronda, talvez inapcrcc-
bida. o espírito do filósofo, que o segue como sua sombra por entre os meandros
de seu pensamento, c que. sc nào é a própria intuição, dela se aproxima muito
mais do que a expressão conceituai, necessariamente simbólica, â qual a intuição
tem dc recorrer para fornecer '‘explicações". Observemos bem esta sombra: adivi
nharemos a atitude do corpo que a projeta. E se nos esforçarmos para imitar esta
atitude, ou melhor, para nos inserirmos nela, veremos de novo, na medida do pos­
sível. aquilo que o filósofo viu.
O que caracteriza primeiramente esta imagem é o poder de negação que ela
traz cm si. Todos se lembram de que maneira procedia o demônio de Sócrates: ele
imobilizava a vontade do filósofo num dado momento e o impedia de agir muito
mais do que lhe prescrevia o que devia fazer. Parccc-mc que a intuição se com­
porta frequentemente, na especulação, como o demônio dc Sócrates na vida práti­
ca; é ao menos sob esta forma que ela começa, e sob esta forma também que ela
continua a sc manifestar dc maneira mais nítida: ela proíbe. Diante dc idéias acei­
tas habitualmcnte. diante de teses que pareceríam evidentes, de afirmações que
até então haviam passado por científicas, ela sopra na orelha do filósofo a pala­
vra: Impossível. Impossível, mesmo quando os fatos c as razoes parecem convi­
dar a crer que isto é possível, real c certo. Impossível, porque uma certa experiên-
cia. talvez confusa mas decisiva, te diz por minha voz que ela é incompatível com
os fatos que sc alegam e as razões que sc dào. e que. por isso, estes fatos devem
ter sido mal observados, estes raciocínios devem scr falsos. Força singular, este
poder intuitivo de ncgaçào 1 Como não atraiu mais a atençào dos historiadores da
filosofia? Nào é visível que o primeiro movimento do filosofo, quando seu pensa­
mento está ainda mal assentado e ele nào tem nada de definitivo em sua doutrina,
é. rejeitar certas coisas definitivamerite? Mais tarde ele poderá variar cm saas afir­
mações; jamais variará no que nega. E se ele varia no que afirma, é ainda cm vir
tude do poder dc ncgaçào imanenie à intuição ou à sua imagem. Ele se terta dei­
xado levar pela dedução preguiçosa das consequências segundo as regras de uma
lógica rctilínea; c eis que. dc repente, diante dc sua própria afirmação, experi­
menta o mesmo sentimento dc impossibilidade que lhe icria surgido primeira-
mente diante da afirmação de outro. Com efeito, tendo deixado a curva dc seu
pensamento para seguir de maneira reta a tangente, tornou-se exterior a si
mesmo. Retorna a si quando volta à intuição. Dessas idas c vindas são feitos os
ziguezagues dc uma doutrina “que se desenvolve”, isto c. que se perde, se reen­
contra e sc corrige indcfinidamente a si mesma. Scparemo-nos desta complicação,
remontemos á intuição simples ou ao menos â imagem que a traduz: imediata­
mente vemos a doutrina libertar sc das condições de tempo c dc lugar das quais
ela parecia depender. Sem dúvida, os problemas dc que o filósofo sc ocupou sào
os problemas que sc punham cm seu tempo: a ciência que cie utilizou ou criticou
foi a ciência dc seu tempo; nas teorias que expós poderemos reencontrar, se
procurarmos, as idéias de seus contemporâneos c de seus antecessores. Como
poderia scr dc outra forma? Para fazer com que sc compreenda o novo, é forçoso
exprimi lo em função do antigo: c os problemas jâ colocados, as soluções já
fornecidas, a filosofia e a ciência do tempo em que cie viveu, foram, para todo
grande filósofo, a matéria que ele estava obrigado a utilizar para dar uma forma
concreta a seu pensamento, isto sem contar que é um hábito tradicional, desde a
Antiguidade, apresentar toda filosofia como um sistema completo, que abarca
lodo o conhecido. Mas seria um estranho engano tomar como elemento constitu­
tivo da doutrina o que foi apenas o meio de expressão. Tal ê o primeiro erro ao
qual nos expomos, como dizia, quando abordamos o estudo de um sistema. Tan
tas semelhanças nos chocam, tantas aproximações parecem impor sc. numerosos
apelos, tão prementes, sâo lançados de toda parte à nossa cngcnhosidadC e â
nossa erudição, que por fim somos tentados a recompor o pensamento do mestre
com fragmentos de idéias tomados aqui e ali. prontos a elogiá-lo cm seguida por
ter sabido — como nós mesmos o soubemos — realizar um belo trabalho dc
mosaico. Mas a ilusão nào dura, pois aperccbcmo-nos logo que. mesmo onde o
filósofo parece repetir coisas já ditas, ele as pensa à sua maneira. Renunciamos
cntào a recompor: mas apenas para cairmos, freqiicntcmentc. numa nova ilusão,
sem dúvida menos grave do que a primeira, entretanto, mais tenaz.. Facilmente
nos afiguramos a doutrina — mesmo a dc um mestre — como derivada dc filoso­
fias anteriores c cotno representando "um momento de uma evolução”. Certa
mente, nào erramos inteiramente. pois uma filosofia parece-se mais com um orga-
5» BERGSON

nismo do que coni uma coleção, e c melhor sempre falar dc evolução do que de
composição. Mas esta nova comparação, além dc atribuir à história do pensa­
mento mais continuidade do que ela rcalmcnte possui, tem o inconveniente de
manter nossa atenção presa à complicação exterior do sistema c ao que pode
haver de previsível cm sua forma superficial, em lugar dc nos levar a tocar
concrctamcntc a novidade c a simplicidade, no fundo. Um filósofo digno deste
nome sempre disse uma única coisa: ou melhor, procurou, muito mais, dizê-la do
que a disse rcalmcnte. E ele só disse uma só coisa porque somente soube um
único ponto: ainda que fosse menos urna visão do que um contato; este contato
forneceu um impulso, este impulso um movimento, e se este rhovimemo. que é
como um turbilhão dc uma certa forma particular, só se torna visível aos nossos
olhos pelo que levantou em seu caminho, nào é menos verdade que outras poeiras
poderíam também ter sido levantadas e seria ainda o mesmo lurbilhàc. Assim,
um pensamento que traz ao mundo algo dc novo é obrigado a se manifestar por
meio dc idéias totalmente prontas que encontra diante de si e que arrasta em seu
movimento; ele aparece assim como relativo à cpoca cm que o filósofo viveu;
mas. frequentemente, é apenas uma aparência. O filósofo podería ter vindo vários
séculos antes: defrontar-se-ia com uma outra filosofia e uma outra ciência: ter
se-ia posto outros problemas; ter se ia exprimido dc outra forma; nem um capítu­
lo. talvez, dos livros que teria escrito seria idêntico ao que efetivamente escreveu:
c. entretanto, ele teria dito a mesma coisa.
Permitam me escolher um exemplo. Apelei para suas lembranças profissio
nais: vou. sc me permitem, evocar algumas das minhas. Professor no Colégio de
França, consagro todos os anos um de meus dois cursos ã história da filosofia.
Assim pude, durante vários anos consecutivos, trabalhar longamente Berkeley,
depois Espinosa, praticando assim a experiência que acabo de descrever. Deixarei
dc lado Espinosa: ele nos levaria muito longe. E entretanto nâo sei de nada mais
instrutivo do que o contraste entre a forma e o fundo dc um livro como a Ética:
de um lado essas coisas enormes que se çhamam Substância. Atributo c Modo, e
o formidável aparato de teoremas com o encadeamento de definições, corolários
c cscólios. e esta complicação da maquinaria, este poder esmagador, que fazem
com que o principiante, cm presença da Ética, seja possuído por uma admiração
c um terror análogos ao que experimentaria diante de urn couraçado do tipo
Dreadnought; dc outro, algo de sutil, dc muito leve c de quase volátil, que foge
quando nos aproximamos, mas que não podemos olhar, mesmo de longe, sem nos
tornarmos incapazes dc fixar-nos a todo o restante, seja o que for. mesmo ao que
passa por capital, mesmo à distinção entre a Substância e o Atributo, mesmo à
dualidade entre o Pensamento e a Extensão. É. por sob a pesada massa de concei­
tos aparentados ao cartcsianismo c ao aristotelismo. a intuição que foi a de Espi­
nosa, intuição que nenhuma fórmula, por mais simples que seja, será suficiente­
mente simples para exprimir. Digamos, para nos contentar cem uma
aproximação, que é o sentimento de uma coincidência entre o ato pelo qual nosso
espírito conhece perfeitamente a verdade e a operação pela qual Deus a engendra,
idéia dc que a “conversão" dos Alexandrinos, quando se torna completa, c a
CONFERÊNCIAS 59

mesma coisa que a “proccssão”. c que quando o homem, que saiu da divindade,
chega a reentrar nela, somente percebe um movimento único onde havia visto
primeiramente dois movimentos inversos de ir e de retornar a experiência
moral encarregando se aqui de resolver uma contradição lógica e de fazer, atra­
vés dc uma brusca supressão do Tempo, com que voltar seja um ir. Quanto mais
remontamos a esta intuição original, melhor compreendemos que. se Espinosa
tivesse vivido antes de Descartes, teria. sem dúvida, escrito de maneira diferente
da que escreveu, mas que. Espinosa vivendo e escrevendo, poderiamos estar ccr
tos de encontrar da mesma maneira o espinosismo.
Falo agora de Berkeley, e como é ele que tomo como exemplo, não será fas­
tidioso analisa Io cm detalhe: a brevidade só se obteria aqui às expensas do rigor.
É suficiente lançar um rápido olhar à obra de Berkeley para vê-la dividida
quase como por si mesma — em quatro teses fundamentais. A primeira, qv.e defi­
ne um certo idealismo c à qual se liga a nova teoria da visão (embora o filósofo
lenha julgado mais prudente apresentá-la dc forma independente) sc formularia
assim: "A matéria é um conjunto dc idéias”. A segunda consiste em pretender
que as idéias abstratas e gerais sc reduzem a palavras: é o nominalismo. A ter­
ceira afirma a realidade dos espíritos e os caracteriza através da vontade: diga­
mos que sc trata de espiritualismo c dc voluntarismo. A última, enfim, que pode­
riamos chamar de teísmo. põe a existência dc Deus fundando se principamicntc
na consideração du matéria. Ora, nada seria mais fácil do que reencontrar estas
quatro teses, formuladas quase identicamente, entre os contemporâneos ou prede
ccssorcs de Berkeley. A última se encontra nos teólogos. A terceira cm Duns
Scot: Descartes disse algo semelhante. A segunda alimentou as controvérsias da
Idade Média antes de ser parte integrante da filosofia de llobbes. Quanto à pri­
meira. parcce-sc muito com o “ocasionalismo" dc Malebranche. cuja idéia, e
mesmo a formulação, descobririamos já cm certos textos dc Descartes; aliás, nào
foi preciso esperar por Descartes para notar que o sonho tem a mesma aparência
da realidade e que nào há nada, cm cada uma de nossas percepções tomadas
isoladamente, que nos garanta a existência de alguma coisa exterior a nós. Assim,
com filósofos antigos ou mesmo, sc não sc quiser retroceder muito, com Descar­
tes e Hobbes, aos quais poderiamos acrescentar Lockc. leriamos os elementos
necessários para a reconstituição exterior da filosofia de Berkeley: quando muito
lhe deixaríamos sua teoria da visão, que seria então propriamente obra sua. c cuja
originalidade, recaindo sobre o restante da doutrina, forncccrin ao conjunto seu
aspecto original. Tomemos estes pedaços de filosofia antiga e moderna, coloque­
mo-los no mesmo prato, adicionemos, à guisa de vinagre c dc azeite, ume certa
impaciência agressiva em relação ao dogmarismo matemático c o desejo, natural
num prelado filósofo, de reconciliar a razão com a fc. misturemos conscicnciosa-
mente. espalhemos por cima de tudo, como finas ervas, um certo número de afo-
rismas colhidos entre os ncoplatônicos: teremos — permitam-me a expressão —
uma salada que sc assemelhará suficientemente, de longe, com o que Berkeley fez.
Pois bem. aquele que assim proceder será incapaz de penetrar no pensa
mento de Berkeley. Não falo das dificuldades e das> impossibilidades com que se
M) BERGSON

defrontará nas explicações de detalhe: singular "nominalismo". que acaba por


erigir bom número de idéias gerais cm essências eternas, imanentes à inteligência
divina! Estranha negação da realidade dos corpos, que se exprime por uma teoria
positiva da natureza da matéria, teoria fecunda, lào afastada quanto possível dc
um idealismo estéril que assimilaria a percepção ao sonho! O que quero dizer é
que nos é impossível examinar atcniamcntc a filosofia de Berkeley sem ver.
primeiramente, aproximarcm-sc, depois, sc interpenetrarem as quatro teses que
nela havíamos distinguido. de maneira que cada uma delas parece tornar-se plena
das três outras, destacar sc c se aprofundar, di.stinguindo-se radicalmcnte das teo­
rias anteriores ou contemporâneas com as quais poderiamos fazê-la coincidir
supcrficialmente. Sem dúvida, este segundo ponto de vista, a partir do qual a dou
trina aparece como um organismo e não mais como um amontoado, nào é ainda
o ponto de vista definitivo. Ao menos está mais próximo da verdade. Nào posso
entrar cm todos os detalhes; c preciso, entretanto, indicar, através de unia ou duas
das quatro teses, ao menos, como dela tiraríamos qualquer uma das ouras.

Tomemos o idealismo. Ele não consiste apenas cm dizer que os corpos sào
idéias. Para que serviría isto? Forçoso seria continuar afirmando acerca dessas
idéias tudo o que a experiência nos faz afirmar acerca dos corpos, e leriamos
simplesmente substituído uma palavra por outra; pois Berkeley ccrtamcnte nào
pensa que a materia ccssnr.â de existir quando ele tiver cessado dc viver. O que o
idealismo de Berkeley significa c que a matéria é cocxtcnsiva à nossa representa-
çào; que ela não tem interior, nada sob si: que ela não esconde nada, nào contém
nada: que ela não possui nem potência nem virtualidades dc nenhuma espécie;
que ela é uma superfície espalhada c que ela está totalmcnte. a todo instante, no
que dela nos é dado. A palavra •'idéia*' designa ordinariamente uma existência
deste gênero, isto ê. uma existência complctamente realizada, cujo ser c o mesmo
que o parecer, enquanto a palavra ’‘coisa" nos faz pensar numa realidade que
seria ao mesmo tempo um reservatório de possibilidades; é por esta razno que
Berkeley prefere chamar os corpos dc idéias e nào dc coisas. Mas. se conside­
ramos assim o “idealismo", vemo lo coincidir com o “nominalismo"; pois esta
segunda tese, na medida em que se afirma mais nitidamente no espírito do filóso­
fo. sc restringe dc maneira mais evidente à negação das idéias gerais c abstratas
abstratas, isto c. extraídas da matéria: com efeito, é claro que nào se poderia
extrair alguma coisa do que nada contém, nem consequentemente fazer .sair de
uma percepção algo diferente dela. A cor sendo somente a cor. a resistência sendo
somente a resistência, jamais encontraremos algo de comum entre a resistência c
a cor. jamais tiraremos dos dados fornecidos pela vista um elemento que pertença
também ao tato. Pois se prentendemos abstrair de umas e de outras algo que seja
comum a todas as coisas, perceberemos, ao observá-lo, que se trata apenas de
uma palavra: eis o nominalismo de Berkeley: mas eis. ao mesmo tempo, a “nova
teoria da visão". Se uma extensão que fosse ao mesmo tempo visual e táctil c ape
nas uma palavra, com maior razão isto se aplica a uma extensão que interessaria
a todos os sentidos ao mesmo tempo: eis ainda o nominalismo. mas também a
refutação da teoria cartesiana da matéria. Não falemos mesmo de extensão; cons-
CONFERÊNCIAS 61

tatemos simplesmente que» dado a estrutura da linguagem, as duas expressões:


“tenho esta percepção" e “esta percepção existe" são sinônimas, mas que a
segunda, introduzindo a mesma palavra “existência" na descrição de percepções
totalmcnie diferentes, nos convida a crcr que há qualquer coisa de comum entre
cias e a imaginar que sua diversidade recobre uma unidade fundamental.unida­
de de uma “substância", que nada mais é. na realidade, do que a palavra "exístên-
cia" hipostasiada: aí está todo o idealismo de Berkeley; c este idealismo, como
dizia, é a mesma coisa que seu nominalismo. Passemos agora à teoria de Deus e
dos espíritos. Se um corpo é feito dc “idéias", ou. em outros termos, se ele é intei-
ramente passivo e acabado, desprovido de poderes e dc virtualidadcs. ele nào
poderia agir sobre os outros corpos: c cntào os movimentos dos corpos devem ser
os efeitos de um poder ativo, que produziu estes próprios corpos c que. cm virtude
da ordem que testemunhamos no universo, só pode scf uma causa inteligente. Sc
nos enganamos ao erigir em realidades, sob o nome dc idéias gerais, os numes que
demos a grupos dc objetos ou de percepções que constituímos mais ou menos
artificialmentc no plano da matéria, isto nào acontece quando cremos descobrir,
por trás do plano cm que a matéria se espalha, as intenções divinas: a idéia geral
que existe apenas na superfície c que liga os corpos uns aos outros c. sem dúvida,
apenas uma palavra, mas a idéia geral que existe em profundidade, ligando os
corpos a Deus ou. melhor, descendendo dc Deus aos corpos, c uma realidade: a
assim o nominalismo dc Berkeley implica naturalmcnte o desenvolvimento da
doutrina que encontramos no Siris e que sc considerou erradamente corno uma
fantasia ncoplatônica: em outras palavras, o idealismo de Berkeley é apenas um
aspecto da teoria que põe Deus por trás dc todas as manifestações da matéria.
Enfim, se Deus imprime percepções cm cada um de nós. ou. como diz Rc-keley.
imprime “idéias”, o ser que recolhe estas percepções, ou melhor, que se adianta a
elas, é totalmente o inverso dc uma idéia: c uma vontade, aliás limitada inccssan
temente pela vontade divina. O ponto dc interseção dessas duas vontades ê justa
mente o que chamamos matéria. Se percipi é passividade pura, o percipere c pura
atividade. Espírito humano., matéria, espirito divino, tornam-se pois termos que
só podemos exprimir um cm função do outro. E o espiritualismu de Berkeley fica
sendo assim apenas um aspecto de qualquer uma das outras três teses.-
Assim as diversas partes do sistema sc interpenctram. como num ser vivo.
Mas. como dizíamos no início, o espetáculo desta penetração recíproca nos dá
sem dúvida uma idéia mais exata do corpo da doutrina: nao nos faz ainda apreen
der lhe a alma.
Dela nos aproximaremos se pudermos atingir a imagem mediadora de que
falavamos há pouco — uma imagem que c qua.se matéria, pois se deixa ainda ver.
e quase espírito, pois nâo se deixa tocar —. fantasma que nos ronda enquanto
damos voltas cm torno da doutrina e ao qual é necessário que nos dirijamos para
obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar c do ponto para onde olhar.
A imagem mediadora que sc desenha no espírito do intérprete, na medida em que
avança no estudo da obra, existia já oulTora. tal e qual, no espírito do mestre? Se
não era esta, era uma ouira. que poderia pertencer a uma ordem de percepções
62 BERGSON

diferente c nâo possuir nenhuma semelhança material com aquela, mas que entre­
tanto lhe equivalería. como sc equivalem duas traduções, cm línguas diferentes,
do mesmo original. Talvez estas duas imagens, talvez mesmo outras imagens,
ainda equivalentes, se tivessem apresentado todas de uma só vez. seguindo o filó­
sofo passo a passo, em processão. através da evolução de seu pensamento. Ou tal­
vez. ele nào tenha percebido nenhuma, limitando-se a retomar contato direta
mente, de vez em quando, com esta coisa mais sutil ainda que c a própria
intuição; mas cntào c nos forçoso, a nós intérpretes, restabelecer a imagem inter­
mediária. sob pena de ter de falar de “intuição originária" como de trn pensa­
mento vago e do “espírito da doutrina” como de uma abstração, ao passo que
este espírito é o que há de mais concreto, c esta intuição, o que há de mais preciso
no sistema.
No caso de Berkeley, creio ver duas imagens diferentes, e aquela que rnais
mc impressiona nào c a que se acha completamentc indicada no próprio Berkeley.
Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma^tna película transparente
situada entre o homem c Deus. Ela permanece transparente enquanto os filósofos
não se ocupam dela, e então Deus sc mostra através dela. Mas quando cs metafí­
sicos a tocam, ou mesmo o senso comum enquanto metafísico, imediatamente a
película perde o brilho c sc engrossa, torna sc opaca c forma uma tela, pois pala
vras tais que Substância. Força. Extensão abstrata, ctc.. aderem a ela. deposi-
tam-sc como uma camada dc poeira, e nos impedem dc pcrccbcr Deus por trans­
parência. A imagem c ligeiramente indicada pelo próprio Berkeley, embora ele
tenha dito “que levantamos a poeira c lamcntamo-nos depois dc não mais enxer­
gar". Mas há outra comparação, frequentemente evocada pelo filósofo. c que é
apenas a transposição auditiva da imagem visual que acabo de descrever: a maté­
ria seria uma língua cm que Deus nos fala. As metafísicas da matéria, tornando
espessas cada uma das sílabas, assinalando-lhes um fim. erigindo-a em entidade
independente, desviariam então nossa atenção do sentido para o som c r.os impe­
diríam dc acompanhar a palavra divina. Mas. quer nos atenhamos a uma quer a
outra, nos dois casos trata-se dc uma imagem simples que ê preciso ter diante dos
olhos, pois, se ela nào c a intuição geradora da doutrina, deriva ímediatamente
desta intuição c se lhe aproxima mais do que qualquer das teses tomada; à parte,
mesmo mais do que a combinação delas.
Podemos reapreender a própria intuição? Temos apenas dois meios dc
expressão, o conceito c a imagem, é cm conceitos que o sistema sc desenvolve; é
numa imagem que ele sc concentra quando o fazemos recuar para a in.uiçào de
que descende: porque, se queremos ultrapassar a imagem em direção a algo mais
alto, necessariamente recaímos nos conceitos, c cm conceitos ainda mais vagos,
ainda mais gerais do que aqueles de que havíamos partido cm busca da imagem
e da intuição. Reduzida a esta forma, como água engarrafada ao sair da fonte, a
intuição original parecerá ser o que há dc mais insípido e de mais frio: a própria
banalidade. Se disséssemos, por exemplo, que Berkeley considera a alma humana
como parcialmente unida a Deus c parcialmente independente, que tem cons­
ciência de si mesmo a todo instante, como uma atividade imperfeita que alcança-
ria uma atividade mais alta se nào houvesse, interposta entre as duas, alguma
coisa que é a passividade absoluta, exprimiriamos, da intuição original de Berke­
ley. tudo o que se pode traduzir imediatamente em conceitos, entretanto teríamos
algo abstrato que seria quase vazio. Atcnhamo-nos a estas fórmulas, já que não
podemos fazer mais do que isto, mas tratemos de insuflar-lhes um pouco jc vida.
Tomemos tudo o que o filósofo escreveu, façamos remontar estas idéias espalha
das à imagem de que descendem, elevemo Ias. encerradas agora na imagem, até a
fórmula abstraia que sc enriquecerá de imagens e de idéias, atenhamo nos então
a esta fórmula e veremos — ela já tão simples —- simplificar-se ainda mais, tor-
nar-sc tanto mais simples quanto mais coisas tivermos levado para cia: clcvemo-
nos enfim com ela. subamos ao ponto em que se concentraria cm tensão tudo o
que estava dado cm extensão na doutrina: representar-nos-emos desta vez como,
deste centro de força, aliás inacessível, parte o impulso que dá o clã. isto é. a pró­
pria intuição. As quatro teses dc Berkeley saíram daí. pois este movimento encon­
trou cm seu caminho as idéias e os problemas que interessavam os contempo­
râneos de Berkeley. Em outra época. Berkeley lería sem dúvida formulado outras
teses: mas. o movimento sendo o mesmo, estas teses sc tenant situado da mesma
forma umas cm relação às outras: manteriam a mesma relação entre si. como
novas palavras, de uma nova frase nas quais continua a viver um antigo sentido:
c teria sido a mesma filosofia.
A relação dc uma filosofia às filosofias anteriores c contemporâneas nào c.
pois, o que nos faria supor uma certa concepção da história dos sistemas. O filó­
sofo nào toma idéias pré-existentes para fundi-las numa síntese superior cu para
combiná-las com uma idéia nova. O mesmo seria crer que. para falar, vamos pro­
curar palavras que em seguida costuramos por meio de um pensamento. A verda­
de é que, sob as palavras c sob a frase, há algo dc muito mais simples qve uma
frase c mesmo que uma palavra: o sentido, que é menos uma coisa pensada do
que um movimento dc pensamento, menos um movimento do que uma direção. E.
da mesma forma que o impulso dado à vida embrionária determina a divisão de
uma célula primitiva em células que sc dividem por sua vez até que o organismo
completo esteja formado, também o movimento característico dc todo alo de pen­
samento leva este pensamento, por via dc uma subdivisão crescente de si mesmo,
a esparramar-sc cada vez mais em planos sucessivos do espírito até que a.inja o
da fala. Aí. ele se exprime por uma frase, isto c. por um grupo dc elementos pré
existentes; mas ele pode escolher quase arbitrariamente os primeiros elementos
do grupo, desde que os outros lhes sejam complementares: o mesmo pensamento
sc traduz assim em frases diversamente compostas, em palavras totalmente dife­
rentes. desde que estas palavras guardem entre si a mesma relação. Tal é o pro­
cesso da fala. E tal é também a operação pela qual sc constitui uma filosofia. O
filósofo não parte de idéias pré-existentes; quando muito podemos dizer que ele
chega a elas. F. quando chega, a idéia assim arrastada no movimento de seu espí­
rito, animando-se com uma vida nova como a palavra que recebe da frase o seu
sentido, nào é mais o que era quando fora do turbilhão.
Encontraríamos uma relação do mesmo gênero entre um sistema filosófico e
M BERGSON

o conjunto dos conhecimentos científicos da época cm que o filósofo viveu. Há


uma certa concepção da filosofia que pretende que lodo o esforço da filosofia visa
a abarcar numa grande síntese os resultados das ciências particulares. Certa-
mente, o filósofo foi durante muito tempo aquele que possuía a ciência universal:
c mesmo atualmente, quando a multiplicidade das ciências particulares, a diversi­
dade e a complexidade dos métodos, a massa enorme de fatos recolhidos tornam
impossível a acumulação dc todos os conhecimentos humanos num só espírito, o
filósofo permanece o homem da ciência universal no sentido dc que. se ele não
pode mais saber tudo, não há nada que ele nào deva estar disposto a íprender.
Mas segue sc dai que sua tarefa seja a de apoderar se da ciência feita, levá-la a
graus crescentes dc generalidade, e encaminhar se. de condensação em condensa­
ção. para aquilo a que se chamou unificação do saber? Permitam-mc achar estra­
nho que seja em nome da ciência, por respeito à ciência, que nos c proposta esta
concepção de filosofia: nào conheço nada de mais ofensivo à ciência e de mais
injurioso para o cientista. Como: Eis um homem que longamente praticou um
método científico e conquistou laboriosamente seus resultados, que vem nos
dizer: "A experiência, ajudada pelo raciocínio, conduz até este ponto: o conheci­
mento científico começa aqui e finda acolá: tais sào as minhas conclusões'*: e o
filósofo teria o direito de lhe responder: “Muito bem. deixe comigo, verá o que
posso fazer! O conhecimento incompleto que me traz, eu o completarei. O que
mc apresenta disperso, eu unificarei. Com os mesmos materiais, pois subentende
se que me atcrci aos fatos que vocc observou, com o mesmo genero de trabalho,
pois devo me limitar, da mesma maneira que você, a induzir c a deduzir, farei
mais c melhor do que você fez". Estranha pretensão, em verdade! Como a profis­
são dc filósofo conferiría àquele que a exerce o poder dc avançar mais onge do
que a ciência, na mesma direção? Que certos cientistas sejam mais capazes que
outros de ir mais adiante e de generalizar seus resultados, mais capazes também
de voltar c de criticar seus métodos, que. neste sentido preciso, dizemos que são
filósofos, que. aliás, cada ciência possa c deva ter sua filosofia assim compreen­
dida. sou eu o primeiro a admitir. Mas esta filosofia faz parte ainda da ciência, e
quem a pratica é ainda cientista. Nào sc trata mais, como há pouco, dc crigir a
filosofia cm síntese das ciências positivas c de pretender, unicamente pela virtude
do espírito filosófico. elevar se mais alto que a ciência na generalização dos mes­
mos fatos.
Uma tal concepção do papel da filosofia seria injuriosa para a ciência. Mas
seria mais injuriosa ainda para a filosofia! Nào ê evidente que. se o cientista sc
detém em um determinado ponto do caminho da generalização e da síntese. é por­
que é apenas até aí que a experiência objetiva e o raciocínio certo nos permitem
avançar? E cntào. ao pretender ir mais longe, nào nos colocaríamos sistematica­
mente no arbitrário, ou, ao menos, no hipotético? Fazer da filosofia um conjunto
de generalidades que ultrapassa a generalização científica é querer que a filosofia
se contente com o plausível e que a probabilidade lhe seja suficiente. Sei bem que.
para a maior parte daqueles que seguem dc longe nossas discussões, nosso domí­
nio c. com efeito, o do simples possível, quando muito o do provável: dc bom
grado diríam que a filosofia começa onde acaba a certeza. Mas quem desejaria
semelhante situação para a filosofia? Sem dúvida, tudo nào é igualmente verifi­
cado nem verificável naquilo que uma filosofia nos apresenta, e é da essência do
método filosófico exigir que em muitos momentos, acerca de muitos pontos, o
espírito aceite arriscar-se. Mas o filósofo apenas corre estes riscos parque c e con­
traiu uma segurança, e porque há coisas das quais sente uma certeza inquebran-
tâvcl. Delas ele poderá nos tomar certos, também, na medida em que souber
comunicar nos a intuição donde tira sua força.
A verdade é que a filosofia nào c uma síntese das ciências particulares, c
que. se cia sc coloca frequentemente no terreno da ciência, se ela. algumas vezes,
abarca numa visão mais simples os objetos de que a ciência sc ocupa, nào é inten­
sificando a ciência, nào è levando os resultados da ciência a um grau mais alto de
generalidade. Nào haveria lugar para duas maneiras de conhecer, filosofia e ciên­
cia. se a experiência não se apresentasse a nós sob dois aspectos diferentes, de um
lado sob forma dc fatos que st justapõem a fatos, que quase se repetem, que sc
medem uns pelos outros, que se desenvolvem, enfim, no sentido da multiplicidade
distinta e da cspacialidade: de outro lado, sob a forma de uma penetração recí­
proca que c pura duração, refratária à lei e à medida. Nos dois casos, a expe­
riência significa consciência; mas. no primeiro, a consciência dirige-se para fora,
c se exterioriza cm relação a si mesma na exata medida cm que percebe coisas
exteriores umas às outras: no segundo cia entra cm si mesma, domina-se e apro-
fundasc. Ao sondar assim sua própria profundeza, ela penetra mais no interior
da matéria, da vida, da realidade cm geral? Poderiamos contestar isto, se a cons­
ciência se tivesse acrescentado à matéria como um acidente: mas cremos ter mos­
trado que uma tal hipótese, segundo o lado por que a tomemos, c absurda ou
falsa, contraditória consigo mesma ou contradita pelos fatos. Poderiamos contes*
tá-lo ainda, se a consciência humana, embora aparentada a uma consciência mais
vasta c mais alta, tivesse sido posta dc lado, c se o homem tivesse dc se conservar
num cantu da natureza como um menino de castigo. Mus não I A matéria e a vida
que abundam no mundo estão também em nós: as forças que trabalham cm todas
as coisas, sentimo-las em nós: seja qual for a essência intima do que é c do que
sc faz. nós nela estamos. Desçamos então ao interior de nós mesmos: quanto
mais profundo for o ponto que tocarmos, mais forte será o impulso que nos reen­
viará à superfície. A intuição filosófica é este contato, a filosofia c este elà.
Reconduzidos à superfície por um impulso vindo do fundo, reencontraremos a
ciência na medida em que nosso pensamento desabrochar c sc espalhar. É preci­
so. pois, que a filosofia se possa moldar sobre a ciência, c uma idéia dc origem
pretensamente intuitiva que não chegasse, dividindo-se e subdividindo suas divi­
sões. a recobrir os fatos observados no exterior e as leis pelas quais 11 ciência os
relaciona entre si. que nào fosse capaz dc corrigir, mesmo certas generalizações c
retificar certas observações, seria pura fantasia; nada teria em comum com a
intuição. Mas. por outro lado, a idéia que logre aplicar exatamente aos fatos c às
leis este espalhamento de si mesma não foi obtida pela unificação da experiência
externa, pois o filósofo nào chegou à unidade, cie dela partiu. Falo, bem entendi-
BERGSON

do. de uma unidade restrita e relativa, como a que recorta um ser vivo no con­
junto das coisas. O trabalho pelo qual a filosofia parece assimilar os resultados
da ciência positiva e. da mesma forma, o trabalho pelo qual uma filosofia parece
reunir cm si os fragmentos dc filosofias anteriores, nào é uma síntese, mas uma
análise.

A ciência è a auxiliar da açâo. E a ação visa a um resultado. A inteligência


científica pergunta, pois, o que deverá ser feito para que um certo resultado dese­
jado seja obtido, ou. mais geralmente, que condições sào necessárias para que um
certo fenômeno sc produza. Ela vai de uma arranjo de coisas a um rearranjo. de
uma simultancidadc a uma simuhaneidade. Necessariamente ela negligencia o
que se passa no intervalo: ou. se disto se ocupa, é para aí considerar outros arran­
jos. simultaneidades ainda. Com métodos destinados a apreender o feito, ela nào
sabería, em geral, peneirar no que sc faz. seguir o movimento, adotar o devir que
é a vida das coisas. Esta tarefa pertence à filosofia. Enquanto o cientista, cons­
trangido a tomar do movimento aspectos imóveis c a colher repetições ao longo
do que não sc repete, pronto para dividir comodamente a realidade sobre planos
sucessivos em que ela sc desenvolve a fim dc submetê-la à ação do homem, é obri­
gado a astuciar com a natureza, a adotar em relação a ela uma atitude de descon­
fiança e de luta, o filósofo a trata como camarada. A regra da ciência é aquela
posta por Bacon: obedecer para comandar. O filósofo não obcdccc nen coman
da: ele procura simpatizar.
Ainda deste ponto dc vista, a essência da filosofia é o espírito de simplici­
dade. Quer consideremos o espírito filosófico cm si mesmo ou cm suas obras,
quer comparemos a filosofia â ciência ou uma filosofia a outras filosofias, sempre
vemos que a complicação c superficial, a construção um acessório, a síntese uma
aparência: filosofar é um ato simples.
Quanto mais nos penetrarmos desta verdade, mais inclinados estaremos a
fazer com que a filosofia deixe a escola c sc aproxime da vida. Sem dúv.da, a ati­
tude do pensamento comum, tal como resulta da estrutura dos sentidos, da inteli­
gência e da linguagem, c mais próxima da atitude da ciência do que da atitude da
filosofia. Entendo por isto nào somente que as categorias gerais do nosso pensa­
mento sào as mesmas da ciência, que as grandes rotas traçadas por nossos senti­
dos através da continuidade do real são aquelas por onde passará a ciência, que
a percepção é uma ciência nascente, a ciência uma percepção adulta, e que o
conhecimento usual c o conhecimento científico, ambos destinados a preparar
nossa açào sobre as coisas, sào necessariamente duas visões do mesmo gênero,
embora de precisão c alcance desiguais; o que quero sobretudo dizer é que o
conhecimento usual está constrangido, assim como o conhecimento científico,
pelas mesmas razões, a tomar as coisas num tempo pulverizado em que um ins­
tante sem duração sucede a um instante que nào dura mais do que esse. O movi­
mento ê para ele uma serie de posições, a mudança uma série de qualidades, o
devir cm geral uma série de estados. Ele parte da imobilidade (como sc a imobili­
dade pudesse ser algo mais que uma aparência, comparada ao efeito especial que
um móvel produz sobre outro móvel, quando estão regulados um pelo outro), e
por via dc um engenhoso arranjo de imobilidades recompõe uma imitação do
movimento que substitui ao próprio movimento: operação praticamente cômoda
mas teoricamente absurda, que contém todas as contradições, todos os falsos pro­
blemas com que a Metafísica e a Crítica se defrontam.
Mas. justamente porque c aí que o senso comum dá as costas para a filoso­
fia. será suficiente que obtenhamos dele que volte o rosto neste ponto para que o
recoloquemos na direção do pensamento filosófico. Sem dúvida, a intuição com­
porta muitos graus de intensidade e a filosofia muitos graus de profundidade; mas
o espírito que tivermos reconduzido â duração real viverá já uma vida intuitiva e
seu conhecimento das coisas já será filosofia, fim lugar dc uma descontinuidade
de momentos que se substituiríam num tempo infinitamente divisível, ele percebe­
rá a fiuidez contínua do tempo real que corre indivisível. Em lugar de estados
superficiais que viríam um de cada vez recobrir uma coisa indiferente c çue man-
teriam com cia uma misteriosa relação de fenômeno a substância, ele apreenderá
uma só e mesma mudança que vai sempre sc prolongando, como numa melodia
onde tudo é devir mas onde o devir, sendo substancial, não necessita dc suporte.
Não mais estados inertes, coisas mortas: nada que nâo seja a mobilidade dc que
ê feita a estabilidade da vida. Uma visão deste gênero, cm que a realidade aparece
como continua c indivisível, está no caminho que leva à intuição filosófica.
Pois nào é necessário, para chegar à intuição, transportar-se para fora do
domínio dos sentidos c da consciência. Acreditá-lo foi o erro dc Kant. Depois de
ter provado com argumentos decisivos que nenhum esforço dialético nos introdu
ziria jamais no supra-sensível e que uma metafísica eficaz seria necessariamente
uma metafísica intuitiva, ele acrescentou que esta intuição nos falta e que esta
metafísica é impossível.
Ela o seria, com efeito, se não existissem outro tempo c outra mudança além
daqueles que Kant percebeu c com os quais, aliás, temos de nos relacionar: pois
nossa percepção usual não poderia sair do tempo nem apreender outra co sa além
da mudança. Mas o tempo em que estamos naturalmcntc colocados, a mudança
cujo espetáculo presenciamos ordinariamente, são um tempo c uma mudança que
nossos sentidos c nossa consciência reduziram à poeira para facilitar nossa ação
sobre as coisas. Desfaçamos o que eles fizeram, rcconduzamos nossa percepção
às suas origens, e possuiremos um conhecimento dc um novo gênero sem ter
necessidade dc recorrer a novas faculdades.
Se este conhecimento sc generaliza, não c somente a especulação que se
beneficiará. A vida cotidiana poderá ser rcanimada e iluminada. Poiso mundo
em que nossos sentidos c nossa consciência nos introduzem habitualmente é ape­
nas a sombra dc si mesmo: e c frio como a morte. Tudo aí está organizado para
nossa maior comodidade, mas tudo aí está em um presente que parece recomeçar
sem cessar: c nós mesmos, afeiçoados artificialmentc à imagem de um universo
nào menos artificial, apercebemo nos na instantaneidade. falamos do passado
como de algo abolido, vemos na lembrança um fato estranho ou. cm todo caso,
estrangeiro, um auxílio que a matéria presta ao espírito. Reaprccndanio-nos. ao
contrário, tais quais somos, num presente espessa e. ademais, elástico, que pode-
68 BERGSON

mos dilatar indefinidamente para trás, recuando cada vez mais a tela qie nos
oculta a nós mesmos; reapreendamos o mundo exterior como ele é. não somente
na superfície, no momento atual, mas em profundidade, com o passado irr.cdiato
que o pressiona e que lhe imprime seu elà: habituemo-nos. numa palavra, a ver
todas as coisas sub specie durationis: imcdiatamcnte o que estava entorpecido se
distende, o adormecido acorda, o morto ressuscita em nossa percepção galvani­
zada. As satisfações que a arte somente fornecerá a privilegiados pela natureza e
pela fortuna, e apenas de vez em quando, a filosofia assim entendida oferecerá a
todos, em todos os momentos, reinsufiando a vida nos fantasmas que nos
rodeiam e revivendo a nós mesmos. E assim eia se tomará complementar à ciên­
cia tanto na prática quanto na especulação. Com suas aplicações que visam ape­
nas à comodidade da existência, a ciência nos promete o bem-estar, até mesmo o
prazer. Mas a filosofia podería já nos dar a alegria.
A consciência c a vida2

Quando a conferência que devemos fazer c dedicada á memória dc um


sábio, podemos nos sentir embaraçados pela obrigação de [ralar de um assunto
que o tivesse mais ou menos interessado. Nao experimento nenhum embaraço
deste gênero diante do nome dc Huxley. A dificuldade maior seria encontrar
algum problema que tivesse deixado indiferente este grande espirito, um cos mais
vastos que a Inglaterra produziu no último século. Pareceu-me. todavia, que a tri
plice questão da consciência, da vida c de suas relações deveria ter-se imposto
com particular intensidade à reflexão dc um naturalista que fosse filósofo; c
como, dc minha parte, não conheço nenhuma que seja mais importante, foi ela
que escolhí.
Mas. no momento dc atacar o problema, nào ouso contar muito com o apoio
dos sistemas filosóficos. O que é perturbador, angustiante, apaixonante para a
maior parte dos homens nem sempre é o que ocupa o primeiro lugar nas especula
çòcs dos metafísicos. Dc onde viemos? que somos? para onde vamos? Eis ques­
tões vitais, diante das quais nos colocaríamos imcdiatamente sc filosofássemos
sem passar pelos sistemas. Mas. entre estas questões e nós. uma filosofia
demasindamenie sistemática interpõe outros problemas. “Antes de procurar a
solução”, diz cia. “nào é preciso saber como a procuraremos? Estudemos o
mecanismo de nosso pensamento, discutamos nosso conhecimento e critiquemos
nossa crítica: quando estivermos seguros do valor do instrumento, então nos scr
viremos dele.” Pois sim! Este momento não virá jamais. Só vejo um meio de
saber até onde podemos ir: é colocar sc cm marcha. Sc o conhecimento que pro­
curamos ê realmeme instrutivo, deve dilatar nosso pensamento, c qualquer aná­
lise prévia do mecanismo do pensamento só poderá nos mostrar a impossibi­
lidade de ir tão longe, pois teríamos estudado nosso pensamento antes da
dilataçâo que devemos obter dele. Uma reflexão prematura do espírito sobre si
mesmo o desencorajará de avançar, ao passo que. avançando pura c simples­
mente. ele se aproximará da meta e se aperceberá, ainda, de que os obstáculos

* Conferência liuxlcy feita na Universidade de Birmingham, «m 29 dc muio dc 1911. lista conferência foi
pronunciada cm inglês. F.la aparece», ncsia língua, sob o otulo dc “Life and Consciounsess" nc Hibbert
Journal de auiuhro dc 1911; foi reproduzida no volume Huxley .Memorial Lectures publicado cm 1914. O
texto apresentado aqui é a tradução c o desenvolvimento da conferência. (Recolhido em /. Ênergie Spin'
ludle. 1919.)
70 BERGSON

assinalados eram em sua maior parte efeitos de miragens. Mas suponhamos que
o metafísico nào abandone a filosofia pela crítica, o fim pelos meios. Frequente­
mente. quando chega diante do problema da origem, da natureza e do destino do
homem, ele passa ao largo para se dirigir a questões que julga mais importantes
c das quais dependería a solução daquelas: ele especula sobre a existência em
geral, sobre o possível c o real, sobre o tempo c sobre o espaço, sobre a espiritua­
lidade c a materialidade: depois ele descende, de grau em grau, para a consciência
c a vida, na essência das quais desejaria penetrar. Mas quem nào vê que suas
especulações sào entào puramente abstratas e que sc referem nào às próprias coi
sas. mas às idéias demasiadamentu simples que ele sc faz delas, antes dc lê-las
estudado cmpiricamenic? Nâo explicaríamos o apego de tal ou qual filósofo a um
método tão estranho sc este método não possuísse a tríplice vantagem dc satisfa­
zer a seu amor-próprio, facilitar seu trabalho c dar-lhe a ilusão do conhecimento
definitivo. Como ele o conduz a uma teoria muito geral, a uma idéia quase vazia,
o filósofo poderá sempre, mais tarde, colocar retrospcctivamentc na idéia tudo o
que a experiência lhe tiver ensinado sobre a coisa: ele pretenderá então ler anteei
pado a experiência somente pela força do raciocínio, ter antecipadamente abar­
cado numa concepção mais vasta as concepções mais restritas, com efeito, mas
as únicas difíceis de formar e úteis dc conservar, às quais chegamos pelo aprofun­
damento dos fatos. Como, por outro lado, nada é mais fácil do que raciocinar
geometricamente sobre idéias abstratas, ele constrói sem dificuldade uma dou­
trina em que tudo se mantém, e que parece se impor pelo rigor. Mas este rigor de­
riva apenas dc que sc operou sobre uma idéia csqucmática rígida, cm vez dc se­
guir os contornos sinuosos e móveis da realidade. Como seria preferível uma
filosofia mais modesta, que iria dirctamcnte ao objeto sem sc inquietar corn os
princípios dc que ele parece depender! Fia não mais ambicionaria uma certeza
imediata, que só pode ser efemera. Ela nào se apressaria. Seria uma ascensão gra­
dual para a luz. Levados por uma experiência cada vez mais vasta para probabili­
dades cada vez mais altas, tenderiamos para a certeza definitiva como para um
limite.
Penso, de minha parte, que nào há princípio de que pudéssemos deduzir
matematicamente a solução dos grandes problemas. Ü verdade que nâo vejo tam­
bém um fato decisivo que resolva a questão, como acontece na física ou na quími­
ca. Apenas, nas diversas regiões da experiência, creio perceber diferentes grupos
de fatos dos quai.s cada um, sem forncccr-nos o conhecimento desejado, nos mos­
tra uma direção para encontrá-lo. Ora. já c alguma coisa ter uma direção. É
muito mais ter muitas, pois estas direções devem convergir para um mesmo
ponto, c este ponto c justamente o que buscamos. Em suma, possuímos desde já
um certo número de linhas de fatos, que não vão tâo longe quanto seria cescjávcl.
mas que podemos prolongar hipoteticamente. Desejaria seguir algumas dessas
linhas. Cada uma. tomada separadamente, nos conduzirá a uma conclusão
simplesmente provável; mas todas juntas, pela sua convergência, nos colocarão
em presença de uma tal acumulação de probabilidades que nos sentiremos, espe­
ro. no caminho da certeza. Dela nas aproximaremos, aliás, indefinídamente. pelo
CONFERÊNCIAS 71

esforço comum de boas vontades associadas. Pois a filosofia nao será mais então
uma construção. obra sistemática de um único pensador. Fia comportará, ela ela
mará sem cessar por adições, correções, retoques. Ela progredirá como a ciência
positiva. E será feita, também, em colaboração.
Eis a primeira direção que seguiremos. Quem diz espírito diz. antes de tudo,
consciência. Mas o que é a consciência? É claro que nâo vou definir algo tão con­
creto. tão constantemente presente à cxpericncia de cada um de nós. Mas sem dar
da consciência uma definição que seria menos clara do que ela própria, posso
caracterizá-la pelo seu traço mais aparente: consciência significa primeíramente
memória. À memória pode faltar amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte
ínfima do passado: ela pode reter apenas o que acaba de acontecer: mas a memó­
ria existe, ou então não existe consciência. Uma consciência que nào conservasse
nada dc seu passado, que se esquecesse sem cessar dc si própria, peieceria c
renascería a cada instante: como definir dc outra forma a inconsciência? Quando
Leibniz dizia que a matéria ê “um espírito instantâneo”, não a declarava, bem ou
mal. insensível? Toda consciência é. pois, memória - conservação c acumula­
ção do passado no presente.
Mas toda consciência ê antecipação do futuro. Consideremos a direção de
nosso espírito a qualquer momento: veremos que ele se ocupa do que cie é. mas
sobretudo cm vista do que ele vai ser. A atenção é uma expectativa, e nâo há
consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro lá está: ele nos chama, ou
melhor, ele nos puxa: esta tração ininterrupta, que nos faz avançar na rota do
tempo, é também a causa dc que ajamos contiuuadamcntc. Toda ação c um pene­
trar no futuro.
Reter o que já não c. antecipar o que ainda nào é. eis a primeira função da
consciência. Nào havería para ela o presente se este se reduzisse ao instante mate­
mático. Este instante c apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado
do futuro: ele pode u rigor ser concebido, nào c jamais percebido: quande cremos
surpreendê-lo. ele já está longe dc nós. O que percebemos de fato é uma certa
espessura dc duração que sc compuc de duas parles: nosso passado imediato e
nosso futuro iminente. Sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos
debruçamos; apoiar-sc c dubruçar-se desiti maneira é o que é próprio de um ser
consciente. Digamos, pois, que u consciência é o traço dc união entre o que foi e
o que será, uma ponte entre o passado c o futuro. Mas para que serve esta ponte,
c qual a função que a consciência é chamada a desempenhar?
Para responder a esta questão, pcrgunlcmo nos quais são os seres cons­
cientes c ate onde se estende o domínio da consciência na natureza. Mas nào exi
jamos aqui a evidência completa, rigorosa, matemática; nada obteriamos assim.
Para saber com plena certeza se um ser ê consciente, seria preciso penetrar nele,
coincidir com ele, scr ele. Eu os desafio a provar, por experiência ou por raciocí­
nio. que cu, que lhes falo neste momento, sou um ser consciente. Eu poceria scr
um autômato engenhosamente construído pela natureza, indo, vindo, falando; as
próprias palavras pelas quais me declaro consciente poderíam ser pronunciadas
inconscientemente. Todavia, sc a coisa nào é totalmentc impossível, conceder-
72 BERGSON

me-ão que ela não c dc forma alguma provável. Entre vocês e eu há uma seme­
lhança exterior evidente: c desta semelhança exterior concluirão, por analogia,
uma semelhança interna. O raciocínio por analogia nào dá jamais algo além da
probabilidade: mas há muitíssimos casos cm que esta probabilidade é suficiente-
mente alta para equivaler praticamcntc à certeza. Sigamos, pois, o fio da analogia
c procuremos ver até onde se estende a consciência, em que ponto ela se detém.
Costuma se dizer às vezes: “Em nós. a consciência está ligada a um cérebro:
por isto, é preciso atribuir a consciência aos seres vivos que possuem um cérebro,
c rccu.sá-la aos outros". Mas pcrcebe-se ímediatamente o vício desta argumenta­
ção. Raciocinando da mesma maneira, diriamos também: “A digestão está ligada
cm nós a um estômago: por isto os seres vivos que possuem estômago digerem, os
outros nào digerem". Ora. nos enganaríamos gravemente. pois nâo é necessário
possuir estômago, nem mesmo órgãos, para digerir: uma ameba digere, embora
seja uma massa protoplasmática apenas diferenciada. Somente que. na medida
em que o corpo vivo se complica e sc aperfeiçoa, o trabalho se divide: funções
diversas são assinaladas a órgãos diferentes: c a faculdade de digerir se localiza
no estômago c mais gcralmente num aparelho digestivo que cumpre melhor a fun­
ção. uma ve? que é só o que tem a fazer. Da mesma forma, a consciência está, no
homem, incontestavelmente ligada ao cérebro: mas nào se segue daí que um cére­
bro seja indispensável à consciência. Quanto mais descemos na serie animal,
mais os centros nervosos sc simplificam e se separam uns dos outros: finalmentc.
os elementos nervosos desaparecem, confundidos na massa de um organismo
menos diferenciado: não devemos supor que se. no topo da escala dos seres vivos,
a consciência se fixava cm centros nervosos muito complicados, ela acompanha
o sistema nervoso ao longo desse descenso, e que. quando a substância nervosa
enfim se funde numa matéria viva ainda indifcrcnciada. a própria consciência aí
se espalha, difusa e confusa, reduzida a pouca coisa, mas não reduzida a nada?
Então, a rigor, tudo o que é vivo poderia scr consciente: em princípio, a cons
ciência c cocxtensiva à vida. Mas ela o ú de fato? Nào lhe acontece csvair-sc ou
adormecer? É provável, c eis aqui uma segunda linha dc fatos que nos encami­
nhará a esta conclusão.
No scr consciente que melhor conhecemos, é por intermédio do cérebro que
a consciência trabalha. Lancemos, pois, um olhar sobre o cérebro humano, c
vejamos como ele funciona. O cérebro faz parte de um sistema nervoso que
compreende, além do próprio ccrebro. uma moela. nervos, etc. Na moela estão
montados mecanismos, dos quais cada um contém, pronta a se desencadear, tal
ou qual ação complicada que o corpo realizará quando desejar: assim tanbém os
rolos de papel perfurado que colocamos em um piano mecânico desenham anteci­
padamente os sons que o instrumento emitirá. Cada um desses mecanismos pode
ser desencadeado diretamente por uma causa exterior: o corpo executa então,
imcdiatamente. como resposta à excitação recebida, um conjunto dc movimentos
coordenados entre sí. Mas há caso.s cm que :i excitação, em lugar dc obter imcdia­
tamente uma reação mais ou menos complicada do corpo dirigindo-sc à moela.
sobe primeiramente ao ccrebro. depois desce novamente, e somente faz funcionar
CONFERÊNCIAS 73

o mecanismo da mocla depois de tomar o cérebro como intermediário. Por que


este desvio? Para que a intervenção do cérebro? Adivinharemos isto sem dificul­
dade se considerarmos a estrutura geral do sistema nervoso. O cérebro está cm
relação com os mecanismos da mocla em geral, e nâo somente com tal ou qual
dentre eles; recebe também excitações dc toda espécie, c nâo apenas tal ou tal gê­
nero de excitação. É. pois, uma encruzilhada, onde a estimulação vinda por qual­
quer via sensorial pode seguir por qualquer via motora. É um comutador que per
mite lançar a corrente recebida de um ponto do organismo na direção de um
aparato de movimento esboçado à vontade. Então, o que a excitação vai requerer
do cérebro quando cia faz seu desvio é evídentemcnie acionar um mecanismo
motor que tenha sido escolhido, e nâo mais simplesmente sofrido. A moela conti­
nha um grande número dc respostas prontas à questão que as circunstâncias
poderíam colocar: a intervenção do cérebro faz funcionar a mais apropriada den­
tre todas. O cérebro é um órgão de escolha.
Ora. à medida que baixamos ao longo da série animal, encontramos uma
separação cada vez menos nítida entre as funções da medula e as do cérebro. A
faculdade de escolher, localizada primeiramente no cérebro, sc estende progres­
sivamente para a medula que. por sua vez, constrói um número menor de meca­
nismos c os monta, sem dúvida, com menos precisão. Finalmcnte. onde o siste­
ma nervoso é rudimentar, com mais razão onde já nâo há elementos nervosos
distintos, automatismo e escolha se confundem: a reação se simplifica o suficien­
te para parecer quase mecânica: entretanto, ela hesita e tateia ainda, como sc
permanecesse voluntária. Lembremos a ameba, de que falavamos há pouco. Na
presença de uma substância que lhe pode servir dc alimento, ela lança para fora
filamentos capazes dc apreender c agarrar corpos estranhos. Estes pseudópodos
são verdadeiros órgãos e. consequentemente, mecanismos: mas são órgàos
temporários, criados pelas circunstâncias, c que já manifestam, parece, um rudi­
mento de escolha. Em suma, de alto a baixo na escala da vida animal vemos sc
exercer, embora sob uma forma cada vez mais vaga na medida em que conside­
ramos os graus mais baixos, a faculdade de escolher, isto é. de responder a uma
excitação determinada por movimentos mais ou menos imprevistos. É isto que
encontramos cm nossa segunda linha de fatos. Assim sc completa a conclusão a
que chegáramos antes; pois se. como dizíamos, a consciência retém o passado e
antecipa o futuro, é prccisamcnte. sem dúvida, porque ela é chamada a efetuar
uma escolha: para escolher, é preciso pensar no que se poderá fazer c lembrar as
consequências, vantajosas ou prejudiciais, do que já foi feito; é preciso prever e
recordar. Mas, por outro lado, nossa conclusão, ao se completar, nos fornece uma
resposta plausível para a questão que havíamos colocado: todos os seres vivos
são seres conscientes, ou a consciência recobra apenas uma parte do domínio da
vida?
Sc. com efeito, consciência significa escolha, c se a função da consciência é
decidir, é duvidoso que encontremos consciência nos organismos que não sc
movem espontaneamente e que não têm que tomar decisões. Na verdade, não há
ser vivo que pareça totalmcntc incapaz dc movimento espontâneo. Mesmo no
74 BERGSON

mundo vegetal, onde o organismo está gcralmcnic fixado no solo, a faculdade dc


se mover está mais adormecida do que ausente: ela desperta quando pode se tor
nar útil. Creio que todos os seres vivos, plantas e animais, possuem de direito a
faculdade dc sc mover espontaneamente: mas muitos deles renunciam & ela dc
fato — muitos animais, primeiramente, sobretudo entre os que vivem como para­
sitas de outros organismos e nào têm necessidade de sc deslocarem para encon­
trar alimento, cm seguida a maior parte dos vegetais: não sào estes, como já se
disse, parasitas da terra? Parece-me. pois, verossímil que a consciência, original­
mente imanente a tudo o que vive, se entorpece quando nao há mais movimento
espontâneo c se exalta quando a vida se apóia na atividade livre.
Cada um dc nós pôde, aliás, verificar esta lei em si mesmo. Que acontece
quando uma dc nossas açòcs cessa de ser espontânea para tomar sc automática?
A consciência se retira dela. Na aprendizagem dc um exercício, por exemplo,
começamos por ser conscientes dc cada um dos movimentos que executamos,
pois eles vêm de nós. resultam de uma decisão e implicam uma escolha: depois,
à medida que estes movimentos se encadeiam entre si e se determinam mais
mecanicamente uns aos outros, dispensando nos assim dc decidir e escolher, a
consciência que temos deles diminui e desaparece. Quais sâo. por outro lado, os
momentos cm que nossa consciência atinge maior vivacidade? Não são os
momentos dc crise interior, cm que hesitamos entre duas ou várias opções, quan­
do sentimos que nosso futuro será o que dele tivermos feito? As variações dc
intensidade dc nossa consciência parecem, pois, corresponder à quantidade mais
ou menos considerável dc escolha ou. se sc quiser, dc criação, que distribuímos
sobre nossa conduta. Tudo leva a crer que é assim para a consciência cm geral.
Sc consciência significa memória c antecipação, c porque consciência c sinônimo
de escolha.
Rcprcscntemo nos então a malêriu viva cm sua forma elementar, tal como
ela teria podido oferecer-se primordialmentc. É uma simples massa de geléia
protoplasmática. como a da ameba; ela é deformávcl à vontade, cia c. pois, vaga
mente consciente. Agora, para que ela cresça c evolua, dois caminhos sc abrem
diante dela, Ela pode orientar-se no sentido do movimento e da ação — movi­
mento cada vez mais eficaz, ação cada vez mais livre: é o risco e a aventura, mas
é também a consciência, com seus graus crescentes de profundidade c intensi­
dade. Ela pode, por outro lado, abandonar a faculdade dc agir e dc escolher, dc
que traz cm si o esboço, arranjar-se de modo a obter sem mover-se tudo o que lhe
for necessário, em vez de ir procurar: c a existência assegurada, tranquila, bur­
guesa. mas ê lambem o torpor, primeiro efeito da imobilidade: logo é o entorpeci­
mento definitivo, a inconsciência. Tais são os dois caminhos que sc ofereciam à
evolução da vida. A matéria viva tomou cm parte por um. cm parte por outro. O
primeiro assinala grosso modo a direção do mundo animal (digo grosso modo
porque muitas espécies animais renunciam ao movimento, e. por isto, sem dúvi­
da. à consciência): a segunda representa grosso modo a direção do mundo vegetal
(digo ainda grosso modo porque a mobilidade e provavelmente também a cons­
ciência podem despertar cm certas ocasiões na planta).
Ora. se consideramos deste ângulo a vida no seu aparecimento no mundo,
vcmo-la trazer com cia algo que sc opõe à matéria bruta. O mundo, abandonado
a si mesmo, obedece a leis falais. Em condições determinadas, a matéria $c com­
porta de maneira determinada, nada do que faz é imprevisível: sc nossa ciência
fosse completa c nosso poder de calcular infinito, saberiamos antecipacamente
tudo o que se passará no universo material inorganizado. em sua massa e em seus
elementos, como provemos um eclipse do sol ou da lua. Em suma, a matéria é
inércia, geometria, necessidade. Mas com a vida aparece o movimento imprevi­
sível e livre. O ser vivo escolhe ou tende a escolher. Sua função é criar. Num
mundo cm que todo o restante está determinado, uma zona de indeterminaçào ro­
deia o ser vivo. Como, pura criar o futuro, c preciso que algo dele seja preparado
no presente, como a preparação do que será só pode ser efetuada utilizando o que
já foi. a vida se empenha desde o começo cm conservar o passado c antecipar o
futuro numa duração cm que passado, presente c futuro penetram um no outro e
formam uma continuidade indivisa: esta memória e esta antecipação são. como
vimos, a própria consciência. E esta é a razão, dc direito, sc nào de fato.de que
a consciência seja cocxtensiva à vida.
Consciência c materialidade sc apresentam, pois, como duas formas de exis­
tência radicalmcntc diferentes c mesmo antagonistas, que adotam um modus
vivendi e se arranjam bem ou mal entre si. A matéria c necessidade, a consciência
c liberdade; mas. por mais que elas se oponham uma à outra, a vida encontra
meio de reconcilia las. É que a vida consiste precisamcntc na liberdade inserin-
do-sc na necessidade e utilizando a cm seu benefício. Ela seria impossível sc o
determinismo ao qual a matéria obedece não pudesse relaxar seu rigor. Mas supo­
nhamos que em certos momentos, sobre certos pontos, a matéria ofereça uma
certa elasticidade: aí sc instalará a consciência. Ela aí sc instalará fazendo-se
cxtrcmamcnic pequena: depois, uma vez neste lugar, ela se dilatará, ela se expan­
dirá c acabará por obter tudo, porque ela dispõe dc tempo e porque a mai* ligeira
quantidade dc indcterminaçào. acrescentando-se indefinidamente a si mesma,
resultará em tanta liberdade quanto sc queira. Mas reencontraremos esta mesma
conclusão seguindo novas linhas dc fatos que no-Ia apresentarão com mais rigor.
Sc procuramos saber, com efeito, como um corpo vivo executa movimentos,
vemos que o método é sempre o mesmo. Consiste cm utilizar certas substâncias
que poderiamos chamar explosivas c que. como a pólvora no canhão, só esperam
uma faísca para detonar. Falo dos alimentos, mais particularmcnte das substân­
cias ternárias — hidratos dc carbono e gorduras. Uma considerável soma de
energia potencial aí está acumulada, pronta para se converter em movimento.
Esta energia foi leniamenie. gradualmcntc. assimilada do sol pelas plantas; e o
animal que sc alimenta de uma planta, ou dc um animal que se alimentou de uma
planta, ou de um animal que sc alimentou dc um animal que se alimentou dc uma
planta, etc., faz simplesmente com que passe para seu corpo um explosivo que a
vida fabricou armazenando a energia solar. Quando ele executa um movimento,
libera a energia aprisionada dessa maneira: só tem. para isso, que locar no gati­
lho de uma pistola, provocar a faísca: o explosivo detona e o movimento se rcali
76 BERGSON

za na direção escolhida. Se o.s primeiros seres vivos oscilaram entre a vica vegetal
e a animal, é porque a vida, em seus prímórdios. se encarregava ao mesmo tempo
de fabricar o explosivo c dc uülizá-lo para os movimentos. Na medida cm que
vegetais e animais se diferenciaram, a vida se cindiu cm dois reinos, separando
assim as duas funções primitivamente reunidas. Num ela se preocupava sobre­
tudo cm fabricar o explosivo, noutro, cm faze lo detonar. Mas. quer a conside­
remos no início ou no término dc sua evolução, a vida, em seu conjunto.é sempre
um duplo trabalho de acumulação gradual e despesa brusca: iraia-se. para ela. de
fazer com que a matéria, por uma operação lenta c difícil, armazene uma energia
dc potência que se tomará repentinamente energia de movimento. Ora. como pro­
cedería dc outra maneira uma causa livre, incapaz de escapar à necessidade à
qual a maléria está submetida, porém capaz dc infleti-la, e que desejaria, com a
influencia extremamente pequena de que dispõe sobre a matéria, obter dela, numa
direção cada vez mais escolhida, movimentos cada vez mais potentes? Ela se
comportaria precisamcnte dessa maneira. Ela procuraria nada mais ter a fazer
senão tocar num gatilho ou fornecer uma faísca, utilizar instantaneamente uma
energia que a matéria teria acumulado durante iodo o tempo que fosse necessário.
Mas chegaríamos à mesma conclusão seguindo ainda uma terceira linha dc
fatos, considerando, no ser vivo, n representação que precede o ato e não mais a
própria ação. Através dc que signo reconhecemos ordinariamente o homem dc
ação, aquele que deixa sua marca sobre eventos nos quais a sorte o envolve? Nâo
é pelo fato dc que ele abarca uma sucessão mais ou menos longa numa visão
instantânea? Quanto maior a porção de passado que adere a seu presente. tanto
mais pesada será a massa que ele joga no futuro para comprimir as eventuali­
dades que se preparam: sua ação, semelhante a uma flecha, dispara com tanto
mais força para a frente quanto mais sua representação estava vergada para trás.
Ora. vejamos como nossa consciência se comporta diante da matéria que pcrcc
bc: justamente. cm um só dc seus instantes, cia abarca milhões dc estimulações
que são sucessivas para a matéria inerte, c das quais a primeira aparecería à últi­
ma como um passado inllnitamcnte longínquo, sc a matéría pudesse recordar.
Quando abro os olhos para fechá-los cm seguida, a sensação dc luz que experi­
mento. e que se dá em um dc meus momentos, é a condensação de uma história
extraordinariamente longa que sc desenrola no mundo exterior. Lá estão, suce-
dendo-se umas às outras, trilhões dc oscilações, isto é. uma serie de eventos tal
que. sc a quissesse contar, mesmo com a maior economia de tempo possível, leva­
ria milhões de anos. Mas estes eventos monótonos c desinteressantes, que precn
cheriam trinta séculos de uma matéria que se tomasse consciente de s' própria,
ocupam apenas um instante de minha consciência, capaz de contraí-los em uma
sensação pitoresca de luz. Diriamos o mesmo de todas as outras sensações. Colo­
cada na confluência da consciência c da matéria, a sensação condensa na dura­
ção que nos é própria, e que caracteriza nossa consciência, imensos períodos do
que poderiamos chamar, por extensão, a duração das coisas. Não devemos crer,
então, que. se nossa percepção contrai assim os eventos da maléria. é para que
nossa ação os domine? Suponhamos, por exemplo, que a necessidade inerente à
CONFERÊNCIAS 77

matéria só possa scr forçada, cm cada um dc seus instantes, dentro dc limites


extremamente restritos: como procedería uma consciência que desejasse contudo
inserir no mundo material uma ação livre, ao menos aquela que fosse necessária
para tocar num gatilho ou para orientar um movimento? Nào procedería precisa­
mente dessa maneira? Não deveriamos esperar encontrar, entre sua duração c a
das coisas, uma diferença dc tensão tal que inumeráveis instantes do mundo
material possam caber num único instante da vida consciente, dc maneira que a
ação desejada, efetuada pela consciência em um de seus momentos, pudesse sc
repartir entre um número enorme dc momentos da matéria e somar assim as
determinações quase infinitesimals que cada um deles comporta? Em outros ler­
mos. a tensão da duração de um scr consciente nào mediria prccisarrcntc seu
poder dc agir, a quantidade de atividade livre e criadora que ele pode introduzir
no mundo? Eu o creio, mas não insistirei nisso no momento. Tudo o que quero
dizer é que esta nova linha de fatos nos conduz ao mesmo ponto que a precedente.
Quer consideremos o ato decretado pela consciência, quer a percepção que o pre­
para. nos dois casos a consciência nos aparece como uma força que se inseriría
na matéria para apoderar se dela e utilizá-la cm seu proveito. Ela opera através
de dois métodos complementares: de um lado, por uma ação explosiva que libera
instantaneamente, na direção escolhida, uma energia que a matéria acumulou
durante longo tempo: de outro, por um trabalho dc contração que concentra neste
instante único o número incalculável de pequenos eventos que a matéria realiza,
e que resume numa palavra a imensidade de sua história.
Coloqucmo-nos. pois, no ponto em que convergem estas diversas linhas dc
fatos. Dc um lado, vemos uma matéria submetida à necessidade, desprovida dc
memória, ou possuindo-a na exata medida em que é necessária para ligar dois dc
seus instantes, cada um podendo scr deduzido do precedente c nada acrcsccn
tando ao que já havia no mundo. De outro lado, a consciência, isto é. a memória
com a liberdade, enfim, uma continuidade de criação numa duração cm que há
vcrdadciramcntc crescimento duração que sc estira. cm que o passado sc con­
serva indivisível e cresce como uma planta mágica que reinventaria a cada
momento sua forma com o desenho dc suas folhas c dc suas flores. Que aliás,
estas duas existências — matéria c consciência — derivam de uma fonte comum,
isto mc parece fora de dúvida. Tentei mostrar, há algum tempo, que. se a primeira
é o inverso da segunda, se a consciência c ação que incessantemente sc cria e sc
enriquece enquanto a matéria é ação que se desfaz e que sc perde, nem a matéria
nem a consciência se explicam por elas mesmas. Não vou retomar o tema: limi-
to-mc a dizer que vejo na evolução total da vida em nosso planeta a matéria
sendo atravessada pela consciência criadora, um esforço para liberar, à força de
engenhosidade e dc invenção, algo que permanece aprisionado no animal e que se
liberta definitivamente no homem.
É inútil entrar nos detalhes das observações que. desde Lamarck c Darwin,
vieram cada vez mais confirmar n idéia de uma evolução das espécies, isto c. da
geração umas pelas outras desde as formas organizadas mais simples. Não pode­
mos recusar nossa adesão a uma hipótese que tem a seu favor o triplo testemunho
78 BERGSON

da anatomia comparada, da embriologia e da paleontologia. A ciência, aliás,


mostrou por quais efeitos sc traduz, ao longo da evolução da vida, a necessidade
dos seres vivos de se adaptarem às condições que lhes são prescritas. Mas esta
necessidade parece explicar por que a vida se detém cm tais c tais formas determi­
nadas. e nào o movimento que leva a organização a avançar cada vez mais. Um
organismo rudimentar está tão bem adaptado quanto o nosso ás suas condições
dc existência, já que ele consegue viver sob elas: por que. cntào. a vida se foi
complicando, c sc complicando cada vez mais perigosamente? Tal forma viva,
que observamos atualmente, existia desde os tempos mais recuados da era paleo-
zóica: ela persistiu, imutável, através das épocas: não scria. pois, imposávcl para
a vida deter-se numa forma definitiva. Por que ela nào se limitou a fazê-lo. sem
pre que isto era possível? por que continuou o caminho? por que se cia não
fosse arrastada por um elã. através dos riscos cada vez mais graves, cm direção
a uma eficácia cada vez maior?
Ê difícil considerar a evolução da vida sem ter o sentimento de que esta
compulsão interior é uma realidade. Mas nâo é preciso crer que cia lançou a
matéria viva numa direção única, nem que as diversas espécies representam eta­
pas ao longo dc um só caminho, nem que o trajeto tenha sido feito sem acidentes.
É visível que esse esforço encontrou resistências na matéria que utilizava: teve
que se dividir a meio caminho, partilhar entre linhas dc evolução diferentes as
tendências que trazia em si: teve que desviar, retroceder: por vezes teve que parar.
Somente em duas linhas alcançou um êxito incontestável, êxito parcial num caso,
relativamente total no outro: falo dos artrópodes c dos vertebrados. Ac fim da
primeira linha encontramos os instintos do inseto: ao fim da segunda a inteli­
gência humana. Estamos, pois, autorizados n crer que n força que evolui trazia
origínalmcntc em si. mas confudidos. ou melhor, implicados, um no ouiro. ins­
tinto e inteligência.
Em suma, as coisas se passam como sc uma imensa corrente de consciência,
cm que sc intcrpcnctruriam virtualidadcs dc todo gênero, houvesse atravessado a
matéria para conduzi-la à organização e para fazer dela, que é a própria necessi­
dade. um instrumento dc liberdade. Mas a consciência teve que cair na armadi
lha. A matéria a rodeia, a prende cm seu próprio automatismo. a entorpece em
sua inconsciência. Em certas linhas da evolução, particularmentc as do mundo
vegetal, automatismo e inconsciência constituem a regra; a liberdade imenente à
força evolutiva ainda se manifesta, é verdade, pela criação de formas imprevistas
que são verdadeiras obras de arte: mas estas formas imprevisíveis, uma vez cria­
das. sc repetem maquinalmcntc: o indivíduo não escolhe. Em outras linhas, a
consciência chega a se liberar o suficiente para que o indivíduo encontre algum
sentimento e. consequentemente, alguma latitude dc escolha; mas as nccosidades
da existência lá estão para transformar o poder dc escolha num simples auxiliar
da necessidade de viver. Assim, dc alto a baixo na escala da vida, a liberdade está
indissoluvelmente ligada a uma cadeia que ela tenta, todavia, alongar. Somente
no caso do homem efetua-se um salto brusco: a cadeia se rompe. 0 cérebro do
homem po.de parecer sé. com efeito, com o do animal: ele tem de particular o fato
CONFERÊNCIAS 7V

de fornecer o meio de opor a cada hábito contraído um outro hábito e a todo


automatismo um automatismo contrário. A liberdade, recobrando-se enquanto a
necessidade está às voltas consigo mesma, reduz a matéria ao estado de instru­
mento. É como se ela houvesse dividido para reinar.
É provável que o esforço combinado da física e da química chegue um dia
a fabricar uma matéria que se assemelhe à maléria viva: a vida procede por insi­
nuação. c a força que arrasta a matéria para além do puro mccanismc nào se
exercerá nesta matéria sc ela nào tiver primeíramente adotado este mecanismo:
assim, a agulha da via férrea se cola ao trilho do qual ela vai desviar o trem. Em
outros termos, a vida sc instala, cm seus prímórdios. num certo gênero de maléria
que começaria ou que teria podido começar a se fabricar sem ela. Mas a matéria
teria sc detido ai se fosse abandonada a si mesma: c aí se deteria também.sem dú­
vida. o trabalho de fabricação dc nossos laboratórios. Imitar-se-á certas earactc
risticas da maléria viva: não se lhe imprimirá o elà pelo qual ela sc reproduz e. no
sentido transformista da palavra, evolui. Ora. esta reprodução c esta evolução sâo
a própria vida. Uma e outra manifestam um impulso interior, a dupla necessidade
de crescer cm número e em riqucz.a pela multiplicação no espaço e pela complica­
ção no tempo, enfim. os dois instintos que aparecem com a vida e que serão mais
tarde os dois grandes motores da atividade humana: o amor e a ambição. Visivel­
mente. uma força trabalha diante dc nós. procurando sc libertar dos obstáculos e
ultrapassar sc a si mesma, procurando tirar de si primeiramente tudo o que tem.
c depois, mais do que tem: como definir de outra forma o espírito? e por que a
força espiritual se distinguiria das outras, se ela existe, senão pela faculdade dc
tirar dc si mesma mais do que contém? Mas é preciso levar cm conta os obstá­
culos de toda espécie que esta força encontra cm seu caminho. A evolução da
vida, desde suas origens até o homem, evoca para nós a imagem dc uma corrente
de consciência que penetraria na matéria para abrir uma passagem subterrânea,
faria tentativas dc todos os lados, progrediría um pouco, chocar se-ia com a
rocha a maior parte do tempo, e. entretanto, ao menos numa direção lograria
exito e reencontraria a luz. Esta direção é a linha dc evolução que termina no
homem.
Mas por que o espírito se lançou nesta empresa? que interesse tinha ele cm
furar um túnel? Seria o caso dc seguir novamente várias linhas dc fatos, que
veriamos ainda convergirem para o mesmo ponto. Mas seria preciso entrar em
tais detalhes acerca da vida psicológica, da relação psicofisiológica, do ideal
moral e do progresso social, que faremos melhor indo direto à conclusão. Colo­
quemos. pois, matéria c consciência cni presença uma da outra: veremos que a
matéria é primeiramente o que divide c o que precisa. Um pensamento, abando­
nado a si mesmo, oferece uma implicação recíproca de elementos dos quais não
podemos dizer se são váriosou um só: c uma continuidade, em toda continuidade
há confusão. Para que o pensamento se torne distinto é preciso que ele se coloque
em palavras: só nos damos bem conta do que temos no espírito quando tomamos
uma folha de papel e alinhamos uns ao lado dos outros termos que se interpenc-
travam. Assim a matéria distingue, separa, dissolve em individualidades e final-
80 BERGSON

mcntc cm personalidades as tendências antes confundidas no cla original da vida.


Por outro lado, a matéria provoca c torna possível o esforço. O pensamento que
c apenas pensamento, a obra dc arte que é apenas concebida, o poema apenas
sonhado, não custam muito; c a realização material do poema em palavras, da
concepção artística num quadro ou numa estátua que demandam esforço. O
esforço é penoso, mas é também precioso, mais precioso do que a obra que resul­
ta dele, porque, graças a ele. tiramos de nós mais do que tínhamos, clevamo-nos
acima de nós mesmos. Ora. este esforço não seria possível sem a matéria: pela
resistência que eh opõe e pela docilidade a que podemos conduzi-la. ela é ao
mesmo tempo obstáculo, instrumento e estímulo; ela experimenta nossa força,
conserva-lhe a marca c provoca a intensificação.
Os filósofos que especularam sobre a significação da vida e sobre o destino
do homem nào notaram suficientemente que a natureza deu se ao traballio de nos
informar por si própria acerca disso. Ela nos adverte, por um signo preciso, que
nosso destino foi atingido. Este signo c a alegria. Digo alegria, não digo prazer.
O prazer c apenas um artifício imaginado pela natureza para obter do ser vivo a
conservação da vida: nào indica a direção cm que a vida se lançou. Mas a alegria
anuncia sempre que a vida triunfou, que ela ganhou terreno, que cia alcançou
uma vitória: toda alegria verdadeira possui um acento triunfal. Ora. sc levamos
cm conta esta indicação e seguimos esta nova linha de fatos, vemos que sempre
que há alegria há criação: quanto mais rica for a criação, mais profunda será a
alegria. A mãe que olha seu filho experimenta alegria, pois tem a consciência dc
haver criado, física e moralmentc. O comerciante que ve prosperar seus negócios,
o gerente que vê prosperar sua indústria, experimentam alegria cm razão do
dinheiro que ganham c da notoriedade que adquirem? Riqueza e consideração
importam bastante, evidentemente. mas trazem mais prazer do que alegria, c o
que eles gozam da alegria verdadeira é o sentimento dc ter montado uma empresa
que prospera, dc ter chamado alguma coisa à vida. Tomemos alegrias excepcio­
nais. a do artista que realizou seu pensamento, a do cientista que descobriu ou
inventou. Ouvimos dizer que estes homens trabalham pela glória e que extraem
suas mais vivas alegrias da admiração que inspiram. Profundo erro! Atcmo-nos
aos elogios e às honras na exata medida cm que não estamos certos de ter triunfa­
do. Há modéstia no fundo da vaidade. É para obter segurança que buscamos a
aprovação, e é para sustentar a vitalidade talvez insuficiente da obra que deseja­
ríamos rodeá-la da fervorosa admiração dos homens, como colocamos na estufa
a criança que nasceu prematuramente. Mas aquele que está certo, absolutamcntc
certo, de ter produzido uma obra viável e durável, este não tem mais nada a fazer
com os elogios c sente-se acima da glória, porque é criador, porque o sabe c por­
que a alegria que experimenta c uma alegria divina. Se. pois, cm todos os domí­
nios. o triunfo da vida é a criação, não devemos supor que a vida humana tem sua
razão dc scr numa criação que pode, diversamente da do artista e do sábio, pros­
seguir em todos os momentos em todos os homens: a criação de si por si. o
engrandccimento da personalidade por um esforço que tira muito do pouco, algu­
ma coisa do nada, aumenta incessantcmcnte o que havia de riqueza no mtndo?
CONFERÊNCIAS RI

Vista dc fora, a natureza aparece como um imenso florescimento de imprevi­


sível novidade: a força que a anima parece criar com amor, por nada, por prazer,
a variedade sem fim das espécies vegetais e animais; a cada uma ela confere o
valor absoluto dc uma grande obra de arte: diriamos que ela sc empenha da
mesma maneira nas formas mais primitivas tanto quanto nas outras, tanto quanto
no homem. Mas a forma de um vivente. uma vez esboçada, repete sc indefinida­
mente: mas os atos desce vivente. uma vez efetuados, tendem a imitarem-se a si
mesmos e a recomeçarem automaticamente: automatismo e repetição, que domi­
nam por toda parte, exceto no homem, deveríam nos advertir que estamos bem
alio, c que a estagnação em que vivemos nào é o próprio movimento da vida. O
ponto de vista do artista c. pois, importante, mas nào definitivo. A riqueza c a
originalidade das formas marcam bastante bem o desabrochar da vida; mas nesta
manifesiação. cuja beleza significa poder, a vida manifesta também uma imobili-
z.açào de seu elà c uma momentânea impotência para ir mais longe, como a crian
ça que termina com uma volta graciosa a escorregadela.
Superior c o ponto dc vista do moralista. Somente no homem, sobretudo nos
melhores dentre nós. o movimento vital prossegue sem obstáculo, lançando atra­
vés desta obra de arte que é o corpo humano, e que ele criou dc passagem, a cor
rente indefinidamente criadora da vida moral. O homem, levado incessantemente
a sc apoiar na totalidade dc seu passado para avaliar tanto mais pcnctranteiiente
o seu futuro, é o grande exito da vida. Contudo, criador por excelência c aquele
cuja açào. ela própria intensa, é capaz de intensificar também a ação de outros
homens, e generosamente iluminar núcleos de generosidade. Os grandes homens
dc bem. e mais particularmente aqueles cujo heroísmo inventivo e simples abriu
novos caminhos para a virtude, são reveladores de verdade metafísica. Eles
podem estar no pomo culminante da evolução, nem por isto eles cscào menos
perto das origens, e tornam sensível para nós o impulso que vem do fundo. Consi-
dcremo-los atentamente. tratemos de experimentar simpaticamente o que cies
experimentam, sc queremos penetrar por um ato de intuição até o próprio princí­
pio da vida. Para penetrar nos mistérios das profundezas, é preciso por vezes
visar aos cimos. O fogo que está no centro da terra só uparccc no cume dos
vulcões.
Nestas duas grandes rotas que o clã vital encontrou abertas diante dc si. ao
longo da série dos artrópodes e dos vertebrados, se desenvolveram cm direções
diferentes, dizíamos, o instinto e a inteligência. primeiramente confundidos um no
outro. No ponto culminante da primeira evolução estão os insetos himcnóplcros.
na extremidade da segunda está o homem: dc um lado e de outro, apesar da dife­
rença radical das formas atingidas e a separação crescente dos caminhos percor­
ridos, é à vida social que chega a evolução, como se a necessidade desta meta se
fizesse sentir desde o começo, ou melhor, como sc alguma aspiração original e
essencial da vida somente pudesse encontrar na sociedade sua plena satisfação. A
sociedade, que consiste em tornar comuns as energias individuais, benefeia os
esforços dc iodos c torna a cada um o esforço mais fácil. Ela nào pode subsistir
sem subordinar o indivíduo, ela só pode progredir se este permite que u faça:
H2 BERGSON

exigências opostas, que seria preciso reconciliar. No inseto, somente & primeira
condição é satisfeita. As sociedades de formigas e de abelhas sâo admiravelmente
disciplinadas e unidas, mas lixadas numa rotina imutável. Se o indivíduo se
esquece de si mesmo, a sociedade também esquece sua deslinação; un e outra,
cm estado dc sonarnbulismo. fazem c refazem indefinidamente a volta do mesmo
círculo, cm lugar dc marchar diretamente para a frente, para uma maicr eficácia
social e uma liberdade individual mais completa. Somente as sociedades humanas
mantem diante dos olhos as duas metas a serem atingidas. Em luta consigo mes­
mas e em guerra umas com as outras, elas buscam visivelmente, pelo atrito c pelo
choque, arredondar os ângulos, diminuir os antagonismos, eliminar as contradi­
ções. fazer com que as vontades individuais se insiram sem se deformarem na
vontade social c que as diversas sociedades entrem por sua vez. sem perderem sua
originalidade nem sua independência, numa sociedade mais vasta: espetáculo
inquietante e confortador, que não podemos contemplar sem dizer que ainda
aqui, cm meio a um sem-número de obstáculos, a vida trabalha para individua­
lizar c para integrar, para obter a maior quantidade, a variedade mais rica, as
mais altas qualidades de invenção e de esforço.
Sc agora abandonamos esta última linha de fatos para voltar à precedente,
se levamos cm conta que a atividade mental do homem ultrapassa sua atividade
cerebral, que o ccrebro armazena hábitos motores mas nào lembranças, que as
outras funções do pensamento sào ainda mais independentes do cérebro do que a
memória, que a conservação e mesmo a intensificação da personalidade sâo
então possíveis e mesmo prováveis depois da desintegração do corpo, não suspei­
taremos que. cm sua passagem através da matéria, a consciência se tempera
como o aço c se prepara para uma ação mais eficaz, para uma vida mais intensa?
Esta vida, cu a represento ainda como uma vida de luta e como uma exigência de
invenção, como uma evolução criadora: cada um dc nós viria. aí. ocupar, somen­
te pelo jogo das forças naturais, o plano moral em que já virtualmentc o coloca­
vam aqui embaixo a quantidade e a qualidade dc seu esforço, como o balão lan­
çado da terra adota o nível assinalado pela sua densidade. É apenas, reconheço,
uma hipótese. Estávamos há pouco na região do provável; eis-nos náquela do
simples possível. Confessemos nossa ignorância, mas nào nos resignemos a crc-la
definitiva. Se há para a consciência um além, nào vejo por que nào descobri­
riamos o meio de explora lo. Nada do que concerne ao homem poderia estar
definitivamente fora do alcance do homem. Por vezes ensinamentos que nos figu
ramos muito longe, no infinito, estão ao nosso lado, esperando que resolvamos
colhe los. Lembremo-nos do que sc passou em relação a um outro além, o dos
espaços interplanetários. Augusto Comte declarou que a composição química
dos corpos celestes seria para sempre desconhecida. Alguns anos depois, inven-
tou-se a análise espectral, c hoje sabemos, melhor do que se lá tivéssemos ido, dc
que sao feitas a.s estrelas.
A alma c o corpo3

O título desta conferência c “A Alma e o Corpo”, isto é. a materia co cspí


rito, isto é. tudo o que existe c mesmo, se crermos numa filosofia de que falaremos
dentro em pouco, também algo que não existiría. Mas tranqü'dizcm-sc. Nào c
nossa intenção aprofundar a natureza da matéria, nem a natureza do espírito.
Podemos distinguir duas coisas uma da outra, determinar até certo ponto suas
relações, sem para isto conhecer a natureza dc cada uma delas. É impossível para
mim. neste momento, conhecer todas as pessoas que me rodeiam: entretanto,
distingo-me delas, e vejo lambem que situação cias ocupam em rulaçào a mim.
Assim também no que concerne ao corpo e à alma: definir a essência de um e de
outra c empresa que nos levaria bem longe: mas é mais fácil saber o que os une
e o que os separa, pois esta união c esta separação são fatos de experiência.
Primciramcntu. o que diz acerca deste ponto a experiência imediata e ingê­
nua do senso comum? Cada um de nós ê um corpo, submetido às mesmas leis de
todas as outras partes da matéria. Se o impulsionamos, ele avança; sc o puxamos,
ele recua: sc o levantamos c o largamos, cai. Mas. ao lado destes movimentos que
são provocados mecanicamente por uma causa exterior, existem outros que pare­
cem provir do interior c que diferem dos precedentes por seu caráter imprevisto:
chamamo-los “voluntários”. Qual é a sua causa? É aquilo que cada um dc nós
designa pela palavra “cu”. h que c o “eu”? Algo que parece, com ou sem razão,
ultrapassar todas as partes do corpo a que está ligado, ultrapassar tanto no espa­
ço quanto no tempo. Primeiramente no espaço, pois nosso corpo se detém preei
samente nos contornos que o limitam, enquanto pela nossa faculdade de perceber,
e mais partieularmente. de ver. alcançamos o que está bem distante de nosso
corpo: vamos até as estrelas. Em seguida, no tempo, pois o corpo é maléria, a
maléria está no presente e, sc c verdade que o passado aí deixa seus iraços. são
traços dc passado apenas para uma consciência que os percebe c interpreta o que
percebe à luz do que cla recorda: a consciência, ela sim, retém o passado, enrola-
o sobre si própria na medida em que o tempo passa c prepara com ele um futuro
que ela contribuirá para criar. Mesmo o ato voluntário de que falavamos há
pouco nào ê outra coisa senão um conjunto de movimentos aprendidos cm expe-

’ r.siu conferência apareceu, juiiuiniemc oom outros estudos de diversos autores, no volume intitulado O
MaiMallsmn Atual da Biblioteca dc Filosofia Científica. publicado sob n direção do Dr. Gustav: t.c Bon
(Editora Flummarion).
84 BERGSON

ricncias anteriores c inHetidos numa direção sempre nova por esta força cons­
ciente cuja função parece scr a dc acrescentar incessantemente algo dc novo no
mundo. Sim, cia cria o novo em tomo dela, já que desenha no espaço movimentos
imprevistos, imprevisíveis. E cia cria o novo também no interior dc si mesma,
pois a ação voluntária reage sobre quem a realiza, modifica numa certa medida
o caráter da pessoa dc quem emana e realiza. por uma espécie de milagre, esta
criação dc si por si que parece ser o próprio objetivo da vida humana. Resumin­
do. pois, ao lado do corpo que está confinado ao momento presente no tempo e
limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se conduz como autômato e reage
mecanicamente às exigências exteriores, apreendemos algo que sc estende muito
mais longe que o corpo no espaço t que dura através do tempo, algo qu: solicita
ou impõe ao corpo movimentos nào mais automáticos e previstos, mas imprevi­
síveis e livres: isto, que ultrapassa o corpo por todos os lados e que cria atos ao
se criar continuamente a si mesmo, é o “cu*’. c a “alma", e o espírito — o espírito
sendo precisamcntc uma força que pode tirar dc si mesma mais do que contem,
devolver mais do que recebe, dar mais do que possui. Eis o que cremor ver. Tal
é a aparência.
Dizem-nos: “Muito bem. mas isto é apenas uma aparência. Olhcnos mais
dc perto. E ouçamos a ciência. Primeiramcntc. reconheceremos que esta ’alma* ja­
mais opera sem um corpo. Seu corpo a acompanha desde o nascimento até a
morte c. supondo-se que cia seja rcalmente distinta do corpo, tudo sc passa como
se ela estivesse rcalmente ligada a ele inscparavelmcnte. Nossa consciência se
esvai se respiramos clorofórmio: cxalla-sc se bebemos álcool ou café. Uma ligeira
intoxicação pode ocasionar perturbações profundas na inteligência, na sensibili­
dade c na vontade. Uma intoxicação durável, como as deixadas pelas doenças
infecciosas, produzirá a alienação. Sc é verdade que não encontramos sempre, na
autópsia, lesões do cérebro nos alienados, ao menos encontramo-las frequente
mente; c. quando não há alteração visível, foi sem dúvida uma alteração química
dos tecidos que causou a doença. Além do mais, a ciência localiza an certas
circunvoluçôes precisas do cérebro certas funções determinadas do espírito, como
a faculdade dc efetuar movimentos voluntários, dc que sc falou há pouco. Lesões
cm tal ou tal ponto da zona rolândica. entre o lóbulo frontal c o parietal, acarre­
tam a perda de movimentos do braço, da perna, do rosto, da língua. Mesmo a
memória, que é lida como função essencial do espírito, pôde scr localizada em
parte: junto à terceira circunvoluçào frontal esquerda estão as lembranças dos
movimentos de articulação da fala: numa região que compreende a primeira e a
segunda circunvoluçôes temporais esquerdas conservam-se as lembranças do som
das palavras; na parte posterior da segunda circunvoluçào parietal esquerda
estão depositadas as imagens visuais das palavras e das letras, etc. Vanos mais
longe. Foi dito que. tanto no espaço quanto no tempo, a alma ultrapassa o corpo
ao qual está ligada. Vejamos em relação ao espaço. E verdade que a vista e o ou­
vido ultrapassam os limites do corpo; mas por que? Porque ns vibrações vindas
de longe impressionaram o olho c o ouvido, foram transmitidas ao cérebro: no cé­
rebro. a excitação tornou-se sensação auditiva ou visual: a percepçâo ê, pois, inte
CONFERÊNCIAS 85

rior ao corpo e nao se alarga. Vejamos em relação ao tempo. Prctcndcu-sc que o


espírito abarca o passado, ao passo que o corpo está confinado num presente que
recomeça sem cessar. Mas lembramos o passado apenas porque nosso corpo con­
serva ainda presentes os traços dele. As impressões que os objetos imprimem no
cérebro aí permanecem como imagens numa placa sensível ou fonogramas em
discos Ibnográlicos: da mesma forma que o disco repete a melodia quando faze­
mos funcionar o aparelho, assim também o cérebro ressuscita a lembrança quan­
do a estimulação desejada se produz no ponto em que a impressão está deposi­
tada. Logo, a ’alma’ nào ultrapassa o corpo nem no espaço nem no tempo. . .
Mas há realmente uma alma distinta do corpo? Acabamos de ver que no cérebro
produzem sc inccssantemenie mudanças ou. para falar mais prccisamcntc. deslo­
camentos e agrupamentos novos de moléculas c dc átomos. Há os que sí tradu­
zem pelo que denominamos sensações, outros, por lembranças; há. sem dúvida
alguma, os que correspondem a todos os fatos intelectuais, sensíveis c voluntá
rios: a consciência a eles sc acrescenta como uma fosforescéncia: ela se asseme­
lha ao traço luminoso que segue c desenha o movimento de um fósforo que risca­
mos numa parede, na obscuridade. Esta fosforescéncia. iluminando-se. por assim
dizer, a si mesma, cria singulares ilusões de ótica interior: é assim que a cons
ciência se imagina modificar, dirigir, produzir movimentos dos quais cia é apenas
o resultado: nisto consiste a crença numa vontade livre. A verdade é que se
pudéssemos, através do crânio, ver o que sc passa no cérebro que trabalha, sc
dispuséssemos, para observar o interior do cérebro, de instrumentos capazes dc
aumentar milhões c milhões dc vezes mais do que nossos melhores microscópios,
se assistíssemos assim à dança de moléculas, átomos c elétrons de que é feita a
substância cerebral, e sc. por outro lado, possuíssemos a tábua dc correspon­
dência entre o cerebral c o mental, isto c. um dicionário que permitisse traduzir
cada figura da dança na linguagem do pensamento c do sentimento, saberiamos
táo bem quanto a pretensa ’alma' tudo o que ela pensa, sente c quer, tuco o que
ela acredita fazer livremente enquanto o faz mecanicamente. Nós o saberiamos
mesmo muito melhor do que ela. pois esta pretensa alma consciente apenas acla­
ra uma pequena parte da dança intracerebral, cia c apenas o conjunto dc fogos-fá
tuos que volteiam sobre tais e tais agrupamentos privilegiados de átomos, ao
passo que nós assistiriamos a todos os agrupamentos de todos os átomos, à totali­
dade da dança intracerebral. A ’alma consciente* c. quando muito, um efeito que
percebe efeitos: nós veriamos as causas”.
Eis o que sc diz às vcz.es cm nome da ciência. Mas nâo c evidente que. sc
chamamos •'científico” o que ê observado ou observável, demonstrado ou
dcmonstrávcl. uma conclusão como a que acabamos de apresentar nada tem de
científico. pois, no estado atual da ciência, nem mesmo entrevemos a possibili
dade de verificá-la. Alcga-se que a lei de conservação de energia se opõe a que se.
crie no universo a menor parcela dc força ou dc movimento c que. sc as coisas
não se passassem mecanicamente, como acabamos de descrever, sc uma vontade
eficaz inierviesse para realizar atos livres, a lei de conservaçào da energia seria
violada. Mas raciocinar assim c simplesmente admitir o que está em questão; pois
«6 BERGSON

a lei dc conservação da energia, como iodas as leis tísicas, é apenas o resumo de


observações feitas acerca dos fenômenos físicos; ela exprime o que se passa num
domínio em que ninguém jamais sustentou que houvesse capricho, escolha ou
liberdade; e trata-se de saber se eia ainda se verifica nos casos em que a cons­
ciência (que. ao cabo, é uma faculdade dc observação e experimenta à sua manei­
ra) sente-se cm presença de uma atividade livre. Tudo o que se oferece direta­
mente aos sentidos ou à consciência, tudo o que é objeto de experiência, seja
interior ou exterior, deve ser tido por real enquanto não se demonstrar que é uma
simples aparência. Ora. é indubitável que nos sentimos livres, que ia. é nossa
impressão imediata. Àqueles que sustentam que este sentimento é ilusório incum­
be. pois, a obrigação da prova. E eles não provam nada dc semelhante, pois ape­
nas estendem arbitrariamenie às ações voluntárias uma lei verificada em casos
onde a vontade não intervém. Por outro lado, c bem possível que. sc a vontade é
capaz dc criar energia, a quantidade de energia criada seja muito fraca para afe­
tar sensivelmente nossos instrumentos de medida: o efeito poderá, nào obstante,
ser enorme, como o da faísca que faz saltar um barril de pólvora. Nào entrarei no
exame aprofundado deste ponto. Que me seja suficiente dizer que. se conside­
ramos o mecanismo do movimento voluntário cm particular, o funcionamento do
sistema nervoso cm geral, a própria vida, enlim. no que ela tem de essencial, che­
gamos à conclusão de que o artifício constante da consciência, desde suas mais
modestas origens nas mais elementares formas vivas, é converter para seus fins o
determinismo lísico, ou melhor, infletir a lei de conservação da energia, obtendo
da matéria uma fabricação sempre mais intensa de explosivos cada vez mais utili­
záveis: ê suficiente então uma ação extremamente fraca, como a dc um dedo que
pressionaria sem esforço o gatilho dc uma pistola, para libertar no momento dese­
jado. na direção escolhida, uma soma tno grande quanto possível dc energia acu­
mulada. O glicogênio depositado nos músculos é. com efeito, um verdadeiro
explosivo: através dele sc realiza o movimento voluntário: fabricar e utilizar
explosivos deste gênero parece ser a preocupação contínua c essencial da vida,
desde sua primeira aparição nas massas protuplasmâiicas deformáveis à vontade
até sua completa realização nos organismos capazes dc ações livres. Mas. ainda
uma vez. nào quero insistir num ponto dc que mc ocupei longamcnic outras
vezes. Fecho, pois, o parentesís que podería me ter dispensado dc abrir, e retorno
ao que dizia antes, â impossibilidade de chamar científica uma tese que nào é nem
demonstrada nem sugerida pela experiência.
Com efeito, que nos diz a experiência? Ela nos mostra que a vida da alma
ou. sc se quiser, a vida da consciência, está ligada à vida do corpo, que há solida­
riedade entre eles e nada mais. Mas este ponto jamais foi contestado, c há uma
grande distância entre isto e a afirmação de que o cerebral e o equivalente do
mental, que poderiamos ter no ccrcbro tudo o que se passa na consciência corres­
pondente. Uma vestimenta é solidária do botão que a prende; ela cai se arranca
mos os botões; oscila se o botão se move: rasga-se no caso de o horâo ser
demasiadamente pontudo; disto nào sc segue que cada detalhe do botão corres­
ponda a um detalhe da roupa, nem que o botão seja o equivalente da roupa; ainda
CONFERÊNCIAS 87

menos. que a roupa c o botão sejam a mesma coisa. Assim, a consciência está
inconrestavelmentc acoplada a um ccrebro. mas nâo resulta de nenhum modo
disto que o cérebro desenhe todos os detalhes da consciência, nem que a cons­
ciência seja uma função do ccrebro. Tudo o que a observação, a experiência e.
consequentemente, a ciência nos permitem afirmar é a existência dc uma certa
relação entre o cérebro e a consciência.
Qual é esta relaçào? É aqui que podemos perguntar se a filosofia nos deu o
que tínhamos o direito de esperar dela. À filosofia pertence a tarefa de estudar a
vida da alma cm todas as suas manifestações. Exercítando-sc na observação inte-
rior. o filósofo deveria descer até o fundo de si mesmo, depois, retornando à
superfície, seguir o movimento gradual pelo qual a consciência se distende, se
estende, prepara-sc para evoluir no espaço. Assistindo a esta materialização
progressiva, espiando as maneiras pelas quais a consciência se exterioriza. ele
obleria ao menos uma intuição vaga do que pode scr a inserção do espírito na
matéria, a relação entre o corpo e a alma. Seria apenas, sem dúvida, um primeiro
clarão, nada mais. Mas este foco de hiz nos dirigiría por entre os inumeráveis
fatos de que dispõem a psicologia e a patologia. Estes fatos, por sua vez. corri­
gindo c completando o que a experiência interna poderia ter de defeituoso ou dc
insuficiente, retificariam o método dc observação interior. Assim, pelas idas e
vindas entre dois centros dc observação, um interior, outro exterior, obtenamos
uma solução cada vez mais aproximada do problema — jamais perfeita, como
pretendem ser frequentemente as soluções do metafísico, mas sempre aperfei-
çoávcl. como as do cientista. £ verdade que do interior teria vindo o primeiro
impulso, à visão interior teríamos pedido o principal esclarecimento: e esta é a
razão pela qual o problema permanecería o que ele deve ser. um problema de
filosofia.
Mas o metafísico nào desce facilmente das alturas cm que gosta dc sc man­
ter. Platão convidava-o a voltar-se para o mundo das Idéias. £ aí que ele sc insta­
la dc boa vontade, frequentando os puros conceitos, levando-os a concessões recí­
procas. conciliando-os hem ou mal entre si. exercendo neste meio distinto uma
sábia diplomacia. Ele hesita em entrar em contato com os fatos, sejam quais
forem, com maior razão os fatos tais como doenças mentais: acreditaria sujar as
mãos. Em suma, a teoria que a ciência tinha o direito de esperar da filosofia —
teoria flexível, perfective!, calçada no conjunto dos fatos conhecidos —. a filoso­
fia nâo quis ou nào soube lhe dar.
Entào. muito naturalmeinc. o cientista sc disse: "Já que a filosofia não me
solicita, com fatos e razões cm apoio, que limite de tal ou tal maneira determi­
nada. cm tais e tais pontos determinados, a suposta correspondência entre o men­
tal e o cerebral, agirei provisoriamente como se a correspondência fosse perfeita
e como se houvesse equivalência ou mesmo identidade. Eu. fisiologista. com os
meios dc que disponho — observação e experimentação puramente exteriores —.
apenas vejo o cérebro e apenas posso apreender o ccrcbro; vou cmâo proceder

como se o pensamento nào fosse mais do que uma função do cérebro; assim,
avançarei com mais audácia, terei mais chances de chegar mais longe. Quando
8ft BERGSON

nào conhecemos os limites de nosso direito, supomo-lo primeiramenie sem limi*


tes: sempre haverá tempo para voltar atrás’*. Eis o que diz o cientista: e ele pode­
ria contentar-se com isto sc pudesse passar sem a filosofia.
Mas nào sc pode passar sem a filosofia: c. esperando que os filósofos lhe
fornecessem a teoria maleável, modelávcl sobre a dupla experiência do interior e
du cxicrior. que a ciência necessitava, era natural que o cientista aceitasse, das
mãos da antiga metafísica, a doutrina complctamentc pronta, construída com
todas as peças, que melhor concordasse com o método que ele tinha julgado van­
tajoso seguir. Aliás, ele não tinha escolha. A única hipótese precisa que a metafí­
sica dos três últimos séculos nos legou sobre este ponto é justamente a dc um
paralelismo rigoroso entre a alma e o corpo, a alma exprimindo certos estados do
corpo, ou o corpo exprimindo a alma, ou corpo c alma sendo duas tradcçòcs. cm
línguas diferentes, de um original que nâo seria nem um nem outro: nos três
casos, o cerebral equivalería exatamente ao mental. Como a filosofia do scculo
XVII foi conduzida a esta hipótese? Certamcntc nào foi pela anatomia c fisiolo
gia do ccrcbro. ciências que mal existiam: também nào foi pelo estudo da estrutu­
ra. das funções c das lesões do espírito. Não. esta hipótese foi nuturalmcntc dedu­
zida dos princípios gerais de uma metafísica que era concebida, ao menos cm
grande parte, para dar corpo às esperanças da física moderna. As descobertas que
sc seguiram ao Renascimento * principalmentc as de Kepler c Galileu — ha­
viam revelado a possibilidade de reduzir os problemas astronômicos c físicos a
problemas de mecânica. Daí derivou a idéia geral dc se representar a totalidade
do universo material, inorganizado c organizado, como uma imensa máquina,
submetida às leis matemáticas. A partir disto os corpos vivos cm geral, o corpo
do homem cm particular, deveríam sc encadear na máquina como engrenagens
num mecanismo dc relógio: nada sc poderia fa/cr que nào fosse determinado
antecipadamente, matematicamente calculado. A alma humana tornava se assim
incapaz de criar: era preciso, se ela existia, que seus estados sucessivos sc limitas­
sem a traduzir cm linguagem dc pensamento c dc sentimento as mesmas coisas
que $eu corpo exprimia cm extensão c em movimento. È bem verdade que Des­
cartes nào ía tão longe: com o sentido da realidade que possuía, cie preferia, a
despeito do rigor da doutrina, deixar algum lugar paru a vontade livre. E sc com
Espinosa c Leibniz esta restrição desaparece, varrida pela lógica do sistema, se
estes dois filósofos formularam em todo o seu rigor a hipótese de um paralelismo
constante entre os estados do corpo e os da alma, ao menos se abstiveram de
fazer da alma um simples reflexo do corpo: leríam dito que o corpo era jm refle­
xo da alma. Mas eles prepararam o caminho dc um cartesianismo diminuído,
estreito, segundo o qual a vida mental seria apenas um aspecto da vida cerebral,
c a pretensa “alma" sc reduziría ao conjunto de certos fenômenos cerebrais aos
quais a consciência se acrescentaria como uma fosforescéncia. Dc fato, através
de todo o século XV11I podemos seguir os-traços desta simplificação progressiva
da metafísica cartesiana. Na medida em que ela sc estreita, mais se infiltra numa
fisiologia que. naturalmcntc, encontra nela uma filosofia muito apropriada para
lhe dar a confiança em si própria de que ela necessita. E c assim que filósofos
CONFERÊNCIAS 89

como Lamcttric. Helvétius. Charles Bonnet. Cabanis. cujas ligações com o carte-
sianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do século XIX c que ela
podería melhor utilizar da metafísica do século XVII. Então, comprcendc-sc que
os cientistas que atualmente filosofam acerca da relação entre o psíquico e o físi­
co adiram à hipótese do paralelismo: os metafísicos nâo lhes forneceram outra
coisa. Admito ainda que eles prefiram a doutrina paralclista a todas aquelas que
se podería obter pelo mesmo método de construção a priori: encontram nesta filo­
sofia o encorajamento para ir adiante. Mas que algum dentre eles nos venha dizer
que se trata de ciência, que c a experiência que nos revela um paralelismo rigo­
roso c completo entre a vida cerebral c a vida mental, isto não! nós o deteremos
e lhe responderemos: você pode, sem dúvida, você, cientista, sustentar esta tese,
como o metafísico a sustenta, mas não é mais o cientista que fala, ê o metafísico.
Vocc nos devolve simplesmente o que lhe havíamos emprestado. A doutrina que
vocè traz, nós a conhecemos: fomos nós que a fabricamos: e é uma mercadoria
bem velha. Ela nào vale menos por isto, c claro; mas também nào sc torna
melhor. Tomemo Ia pelo que ela é. e nào a façamos passar por um resultado da
ciência, por uma teoria modelada nos fatos c capaz de se remodelar sobre cies
uma doutrina que. antes mesmo da cclosào de nossa psicologia c dc nossa fisiolo
gia. tomou a forma perfeita c definitiva pela qual sc reconhece uma construção
metafísica.
Tentaremos, então, formular a relação entre a atividade mental e a cerebral
tal qual ela aparecería se descartássemos toda idéia preconcebida para levar em
conta apenas os fatos conhecidos? Uma fórmula deste gênero, necessariamente
provisória, só poderá pretender a uma probabilidade mais ou menos alta. Ao
menus a probabilidade será suscetível dc crescimento, c a fórmula, dc tornar-se
cada vez mais precisa na medida em que se estender o conhecimento dos fatos.
Direi, pois, que um exame atento da vida do espirito c dc seu acompanha­
mento fisiológico me leva a crer que o senso comum tem razão, c que há infinita­
mente mais, numa consciência humana, do que no cérebro correspondente. Eis
grosso modo, a conclusão a que chego. * Quem pudesse observar o interior dc um
cérebro em plena atividade, seguir o vaivém dos átomos a interpretar tudo o que
eles fazem, saberia sem dúvida alguma coisa do que se passa no espínio. mas
sabería pouca coisa. Conhecería justamente o que é cxprimtvel em gestos, atitu
des e movimentos do corpo, o que o estado de alma contém de ação em vias dc
realização, ou simplesmente nascente: o restante lhe escaparia. Ele estaria, diante
dos pensamentos e dos sentimentos que se desenrolam no interior da consciência,
na situação do espectador que ve distintamente tudo o que os atores fgzem em
cena, mas não ouve uma palavra do que dizem. Sem dúvida, o vaivém dos atores,
seus gestos c suas atitudes, têm sua razão de ser na peça que interpretam: c sc
conhecéssemos o texto, poderiamos quase prever o gesto: mas a recíproca nào é
verdadeira, e o conhecimento dos gestos apenas nos informa muito pouco sobre

■* Para u descnvolvimeiuo deste pomo, ver noxso livro Aíaiièrc ei Mémoirc, Paris. 1896 (principalmeme o
segundoe lerccirn c.tpítiiln<).
90 BERGSON

a peça, por que há muito mais, numa fina comédia, do que os movimemos pelos
quais a escandimos. Assim, creio que se nossa ciência do mecanismo cerebral
fosse perfeita, e perfeita também nossa psicologia, poderiamos adivinhar o que se
passa no ccrebro através dc um estado de alma determinado: mas a operação
inversa seria impossível, pois teríamos que escolher, para um mesmo estado do
ccrcbro. entre uma multidão de estados dc alma, igualmente apropriados.8 Nâo
digo, notem bem, que um estado de alma qualquer poderia corresponder a um
dado estado cerebral: numa moldura, nâo sc pode colocar qualquer quadro: a
moldura determina alguma coisa do quadro, eliminando antecipadamente todos
aqueles que nào possuem a mesma forma e a mesma dimensão; mas. satisfeitas as
condições de forma c dimensão, o quadro caberá na moldura. Da mesma forma
em relação ao cérebro e à consciência. Contanto que as ações rclativamcnte sim­
ples — gestos, atitudes, movimentos — nas quais se degradaria um estado de
alma complexo sejam justamente as que o cérebro prepara, o estado mental se
inserirá exatamente no estado cerebral: mas há uma grande quantidade dc qua­
dros diferentes que caberíam muito bem na moldura: c. consequentemente, o ccre­
bro nào determina o pensamento; c. consequentemente o pensamento, ao menos
cm larga medida, é independente do ccrebro.
O estudo dos fatos permitirá descrever com uma precisão crescente este
aspecto particular da vida mental que é apenas esboçado, pensamos, na atividade
cerebral. Trata-se da faculdade de perceber e de sentir? Nosso corpo, inserido no
mundo material, recebe excitações às quais deve responder por movimentos apro­
priados; o cérebro c, aliás, o sistema cércbro espinhal em geral preparam estes
movimentos; mas a percepção é coisa totalmcnte diferente.® Trata-se da facul­
dade dc querer? O corpo executa movimentos voluntários graças a certos meca­
nismos, totalmcnte montados no sistema nervoso, que só esperam um sinal para
sc desencadearem; o cérebro c o ponto de onde parte este sinal e mesmo o desen-
cadeamento. A zona rolândiea. onde sc localizou o movimento voluntário, é. com
efeito, comparável à alavanca da agulha dc onde o manobrista lança cm tal ou tal
direção o trem que chega; ou ainda c um comulador, pelo qual uma dada excita­
ção exterior pode ser posta cm comunicação com um dispositivo motor à vonta­
de; mas. ao lado dos órgãos do movimento e do órgão de escolha, hâ outra coisa,
há a própria escolha. Trata-se enfim do pensamento? Quando pensamos, é raro
que não falemos conosco mesmos: esquematizamos ou preparamos, sc nâo os
executamos cfctivamcntc. os movimentos dc articulação pelos quais se exprimiría
nosso pensamento: e qualquer coisa deve desenhar-sc já no cérebro. Mas nào se
limita a isto, cremos, o mecanismo cerebral do pensamento: por trás dos movi­
mentos interiores de articulação, que aliás nào sao indispensáveis, há qualquer
coisa de mais sutil, que é essencial. Falo dos movimentos nascentes que indicam
simbolicamente todas as direções sucessivas do espírito. Notemos que o pensa

* Ainda assim estes estados só poderíam scr representados vagamente. grOMciramenie. uma vez que iodo es
indo dc alma determinado de uma pessoa é. em seu conjunto. algo dc imprevisível e de novo.
“ Ver. acerca deste ponto. Malièrc et Mèmatre. capítulo primeiro.
CONFERÊNCIAS 91

mento real, concreto, vivo, c coisa dc que os psicólogos têm falado muito pouco
até aqui, porque ele dificilmente se presta à observação interior. O que se estuda
ordinariamente sob este nome c menos o pensamento cm si mesmo do que uma
imitação artificial obtida pela composição de imagens e de idéias. Mas com ima­
gens. e mesmo com idéias, não reconstituiremos o pensamento, da mesma forma
que nào constituiremos o movimento com um conjunto dc posições. A idéia é
uma imobilizaçào do pensamento; ela nasce quando o pensamento, cm vez de
continuar seu caminho, faz uma pausa c volta-se sobre si mesmo: da mesma
forma, o calor surge na bala que encontra um obstáculo. Mas. assim como o
calor não preexistia na bala, a idéia tampouco fazia parte integrante do pensa­
mento. Tentemos, por exemplo, colocando lado a lado as idéias de calor, de pro­
dução, de bala, e ai intercalando as idéias de tnierioridade c dc reflexão implica
das nas palavras “na” e “se”, reconstituir o pensamento que acabo de exprimir
por esta frase: “O calor sc produz na bala”. Veremos que isto c impossível, que
o pensamento era um movimento indivisível, c que as idéias correspondentes a
cada uma das palavras sào simplesmente representações que surgiriam no espí­
rito a cada instante do movimento do pensamento se o pensamento sc imobili­
zasse; mas ele nào sc imobiliza. Deixemos de lado. pois, as reconstruções artifi­
ciais do pensamento; consideremos o próprio pensamento; encontraremos nele
menos estados do que direções, e veremos que ele c essencialmente uma mudança
contínua de direção interior, a qual tende sem cessar a sc traduzir por mudanças
de direção exterior, isto c. por ações e gestos capazes dc desenhar no espaço c dc
exprimir metaforicamente, dc alguma forma, as idas c vindas do espírito.
Frequentemente não percebemos estes movimentos esboçados, ou inesmo
simplesmente preparados, porque nào temos nenhum interesse cm conhece los;
mas c forçoso que os notemos quando seguimos de perto nosso pensamento para
apreendê-lo totalmcnte vivo e para faze-lo passar, vivo ainda, para a alma dc
outrem. As palavras, cntào, poderão ser bem escolhidas, elas nào dirão o que que­
remos que digam se o ritmo, a pontuação e toda a coreografia do discurso não as
ajudarem a obter do leitor, guiado então por uma série de movimentos nascentes,
que ele descreva uma curva de pensamento c dc sentimento análoga àquela que
nós mesmos descrevemos. Aí está toda a arte dc escrever. É semelhante à arte do
músico; mas nào acreditemos que a música dc que sc trata aqui seja dirigida
simplesmente ao ouvido, como se imagina ordinariamente. Um ouvido estran
geiro. por mais habituado que esteja à música, nào fará diferença entre a prosa
francesa que achamos musical c a que não o c. entre o que está perfeitamente
escrito cm francês e o que o está apenas aproximativamente: prova evidente de
que se trata dc coisa totalmcnte diferente de uma harmonia material de sons. Na
realidade, a arte do escritor consiste sobretudo cm nos fazer esquecer que ele
emprega palavras. A harmonia que ele busca é uma certa correspondência entre
as idas e vindas dc seu espírito e as de seu discurso, correspondência tão perfeita
que. levadas pela frase, as ondulações de seu pensamento se comunicam ao nosso
c, então, cada uma das palavras, tomadas individualmente, não mais importa: há
somente o sentido movente que atravessa as palavras, somente dois espíritos que
92 BERGSON

parecem vibrar diretamente, sem intermediário. cm uníssono. O ritmo da palavra


não tem. pois, outro objetivo além de reproduzir o ritmo do pensamento: c o que
pode ser o ritmo do pensamento senão aquele de movimentos nascentes, apenas
conscientes, que o acompanham? Estes movimentos, pelos quais o pensamento sc
exteriorizaria cm ações. devem ser preparados e como que preformados no cére
bro. É este acompanhamento motor do pensamento que perceberiamos sem dúvi
da. se pudéssemos peneirar num cérebro que trabalha, c nào o próprio
pensamento.
Em outros termos, o pensamento é orientado para a ação: e. quando nâo
desemboca numa ação geral, ele esboça urna ou várias ações virtuais, simples­
mente possíveis. Estas ações reais ou virtuais, que são a projeção diminuída e
simplificada do pensamento no espaço e que marcam as articulações motoras do
pensamento, são o que é desenhado na substância cerebral. A relação do cérebro
ao pensamento é. pois, complexa e sutil. Se mc pedissem para expressa-la numa
fórmula simples, necessariamente grosseira, diria que o cérebro é um órgão dc
pantomima, e somente de pantomima. Sua função é mimetizar (mimar) a, vida do
espírito, mimetizar também as situações exteriores às quais o espírito deve sc
adaptar. A atividade cerebral está para □ atividade mental assim como os moví
memos da batuta do regente de orquestra estão para a sinfonia. A sinfonia ultra
passa inteiramente os movimentos que a escandem: a vida do espírito ultrapassa
da mesma forma a vida cerebral. Mas o cérebro, justamente porque extrai da vida
do espírito tudo que ela tem dc suscetível de se lornar movimento e tudo o que ela
tem dc matcrializável. justamente porque ele constitui assim o ponto dc inserção
do espírito na matéria, assegura a todo instante a adaptação do espírito às
circunstâncias, mantém inccssantementc o espírito cm contato com realidades.
Ele não é. pois, falando propriamente, órgão de pensamento, ou de sentimento, ou
de consciência: mas ele faz com que consciência, sentimento c pensamento per­
maneçam tensos em relação à vida real e. consequentemente, capazes dc ação efi­
caz. Digamos, se quiserem, que o cérebro é o órgão dc atenção à vida.
Esta é a razao de que baste uma ligeira modificação da substância cerebral
para que a totalidade do cspíriio pareça atingida. Falavamos do efeito de certos
tóxicos sobre a consciência, e mais geralmcntc da influência da doença cerebral
sobre a vida mental. Neste caso, é o próprio espírito que sc desarranja, ou nâo
seria antes o mecanismo da inserção do espírito nas coisas? Quando um louco
delira, seu raciocínio pode seguir as regras da mais estrita lógica: diriamos, ao
ouvir tal ou tal indivíduo com complexo dc perseguição, que ele peca por excesso
de lógica. Seu erro não é o dc raciocinar mal. mas o dc raciocinar fora da realida­
de. como um homem que sonha. Suponhamos que. como parece provável, a doen­
ça seja causada por uma intoxicação da substância cerebral. Não é necessário
crer que o veneno tenha ido procurar o raciocínio em tais ou quais células do cé­
rebro. nem. por conseguinte, que haja, em tais ou quais pontos do cérebro, movi­
mentos de átomos que correspondem ao raciocínio. Não. é provável que o cére­
bro inteiro seja atingido, da mesma forma que é a corda inteira que se distende,
e nào algumas de suas partes, quando o nó foi mal feito. Mas. da mesma maneira
que basta uni pequeno alargamento da amarra para que o barco se ponha a
balançar, assim também uma modificação, mesmo ligeira, da substância cerebral
em sua totalidade poderá fazer com que o espírito, perdendo contato corr. o con­
junto das coisas materiais nas quais está ordinariamente apoiado, sinta a reali­
dade fugir de si. titubeie c seja tomado dc vertigem. Com efeito, é bem um senti­
mento comparável ao dc vertigem que está no início da loucura, cm muitos casos.
O doente está desorientado. Ele nos dirá que os objetos materiais nào possuem
mais, para ele. a solidez, o relevo, a realidade que possuíam outrora. Um relaxa­
mento da tcnsào. ou melhor, da atenção, pela qual o espírito se fixava na parte do
mundo material com que se relacionava, cis. com efeito, o único resultado direto
do desarranjo cerebral ■— o cérebro sendo o conjunto de dispositivos que permi­
tem ao espírito responder à ação das coisas por reações motoras, efetuadas ou
simplesmente nascentes, cuja justeza assegura a perfeita inserção do espírito na
realidade.
Esta seria, a traços largos, a relação do espírito ao corpo. É-me impossível
enumerar aqui os fatos c as razões sobre os quais sc funda esta concepjào. E.
entretanto, não posso pedir-lhes que mc creiam sob palavra. Como fazer? Have
ria primeiramente um meio, parece, dc acabar rapidamente com a teoria que com­
bato: seria mostrando que a hipótese de uma equivalência entre o cerebral e o
mental é contraditória consigo mesma quando a tomamos em todo o seu rigor,
que ela nos convida ao mesmo tempo a adotar dois pontos dc vista opostos c
empregar simultaneamente dois sistemas dc notações que sc excluem. Tentei esta
demonstração cm outra ocasião; mas. embora ela seja bem simples, exige certas
considerações preliminares sobre o realismo e o idealismo, cuja exposição nos
levaria muito longe.7 Reconheço, por outro lado, que se pode fazer com que a
teoria da equivalência ganhe uma aparência dc inteligibilidade. desde que se deixe
dc aprofundá-la no sentido materialista. Em contrapartida, sc o raciocínio puro
basta para nos mostrar que devemos rejeitar esta teoria, ele nào nos diz, ele nào
pode nos dizer o que é necessário colocar em seu lugar. De maneira que. definiu
vamente. é à experiência que devemos nos dirigir, como fazíamos preve'. Mas
como passar cm revista os estados normais c patológicos que precisaríamos levar
em conta? Examinar todos é impossível; aprofundar alguns dentre eles já seria
demasiado longo. Só vejo um meio dc sair do embaraço; c tomar, dentre lodosos
fatos conhecidos. o& que parecem ser os mais favoráveis à tese paralclisia — os
únicos, para dizer a verdade, cm que a lese pareceu encontrar um começo de veri­
ficação —, os fatos da memória. Se pudéssemos então indicar em duas pa avras.
mesmo dc uma maneira imperfeita c grosseira, como um exame aprofundado des­
tes fatos terminaria por refutar a teoria que os invoca c confirmar aquela que pro­
pomos. seria já alguma coisa. Nào teríamos a demonstração completa, mas sabe
ríamos ao menos onde é necessário buscá-la. É o que vamos fazer.
A única função do pensamento à qual se pôde assinalar utn lugar no cérebro
é. com efeito, a memória —• mais prcçisamentc a memória das palavras. Lcmbra-

1 A demonstração está feita no cnwúo "A Consciência <• a V»Ja".


94 BERGSON

va, no início desta conferência, como o estudo das moléstias da linguagem levou
a localizar cm tais ou quais circunvoluçôes do cérebro tais ou quais formas da
memória verbal. Desde Broca, que havia mostrado como o esquecimento dos
movimentos dc articulação da palavra podia resultar de uma lesão da terceira
circunvoluçào frontal esquerda, uma teoria cada vez mais complicada da afasia c
dc suas condições cerebrais sc cdificou laboriosamente. Aliás, teríamos muito a
dizer acerca desta teoria. Cientistas dc indiscutível competência combatcm-na
atualmente, apoiando-se numa observação mais atenta das lesões cerebrais que
acompanham as moléstias da linguagem. Nós mesmos, há ccrca dc vinte anos (se
lembramos o fato, nào é para tirar vantagem, é para mostrar que a observação
interior pode sobrepujar métodos que se acredila sejam mais eficazes), havíamos
sustentado que a doutrina, então tida por intocável, tinha ao menos necessidade
de ser remanejada. Mas pouco importa! Há um ponto acerca do qual todos estão
de acordo: as doenças da memória das palavras são causadas por lesões do cére­
bro mais ou menos nitidamente localiz.áveis. Vejamos, pois, como este -csultado
é interpretado pela doutrina que faz do pensamento uma função do cérebro, e
mais gcralmente por aqueles que creem num paralelismo ou numa equivalência
entre o trabalho do cérebro e o do pensamento.
Nada mais simples que sua explicação. As lembranças lá estão, acumuladas
no cérebro soh forma dc modificações impressas num grupo de elementos anatô­
micos: se elas desaparecem da memória, c porque os elementos anatômicos cm
que repousavam foram alterados ou destruídos. Falavamos há pouco d: clichês,
de fonogramas: tais sào as comparações que encontramos cm todas as explica­
ções cerebrais da memória; as impressões feitas pelos objetos exteriores subsisti­
ríam no cérebro, como na placa sensibilizada ou no disco fonográfico. Obser­
vando dc perto, veriamos quanto estas comparações são enganosas. Se
verdadeiramente minha lembrança visual dc um objeto, por exemplo, fosse uma
impressão deixada por este objeto cm meu cérebro, nào teria jamais a lembrança
de um objeto, mas dc milhares, dc milhões: pois o objeto mais simples c mais
estável muda de forma, de dimensão, de nuance, conforme o ponto do qual o per
ccbo: a menos que mc condene a uma absoluta fixidez ao olhá-lo. a menos que
meu olho se imobilize cm sua órbita, imagens inumeráveis, dc forma alguma
sobreponíveis. sc desenharão alternativamente em minha retina e serào transmi­
tidas ao meu ccrebro. Que acontecerá, sc sc trata da imagem visual de uma pes­
soa. cuja fisionomia muda, cujo corpo é móvel, cuja vestimenta e o meio são dife­
rentes cada vez que a vejo? E, entretanto, é incontestável que minha consciência
me apresenta uma imagem única, ou quase isto, uma lembrança praiicamcntc
invariável do objeto ou da pessoa; prova evidente de que ocorreu coisa totalmcnte
diferente dc um registro mecânico. Diría o mesmo de uma lembrança auditiva. A
mesma palavra articulada, por pessoas diferentes, ou pela mesma psssoa em
momentos diferentes, em frases diferentes, produz fonogramas que nào coincidem
entre si: como a lembrança, relativamcntc invariável e única, do som da palavra
seria comparável a um fonograma? Somente esta consideração bastaria para
fazer com que suspeitássemos da teoria que atribui as moléstias da memória das
CONFERÊNCIAS 95

palavras a uma alteração ou a uma destruição das próprias lembranças regis­


tradas automaticamente pela substância cerebral.
Mas vejamos o que se passa nessas moléstias. No caso em que a lesão cere
bral c grave, e cm que a memória das palavras é profundamente atingida, acon­
tece que uma excitação mais ou menos forte, uma emoção, por exemplo, traga de
volta repentinamente a lembrança que parecia perdida para sempre. Isto seria
possível, se a lembrança tivesse sido depositada na matéria cerebral alterada ou
destruída? As coisas se passam como se o cérebro servisse para evocar a lem­
brança. e não para conservá-la. O afásico torna se incapaz de encontrar a palavra
quando tem necessidade dela: parece rodeá-la por todos os lados, não possuir a
força requerida para atingir o ponto preciso que seria necessário locar: no domí­
nio psicológico, com efeito, o signo exterior da força é sempre a precisão. Mas a
lembrança parece estar lá: por vezes, tendo substituído por pcrífrascs a palavra
que acreditava desaparecida, o afásico fará entrar em uma delas a própria pala­
vra. O que falta aqui é o ajustamento à situação que o mecanismo cerebral deve
assegurar. Mais cspecialmente. o que está atingido é a faculdade de tornar a lem
brança consciente esboçando antecipadamente os movimentos pelos quais a lem­
brança. se estivesse consciente, se prolongaria cm ato. Quando esquecemos um
nome próprio, como fazemos para lembrá-lo? Tentamos todas as letras do alfabe­
to. uma depois da outra: pronunciamo-las antes interiormente: depois, sc isto não
for suficiente, nós as articulamos cm voz alta; colocamo-nos. pois, de cada vez.
cm todas as várias disposições motoras entre as quais será preciso escolher; uma
vez que a atitude requerida é encontrada, o som da palavra procurada aí sc ajusta
como numa moldura preparada para rcccbê-lo. É esta mímica real ou virtual, efe­
tuada ou esboçada, que o mecanismo cerebral deve assegurar. E c cia. sem dúvi­
da. que a doença atinge.
Reflitamos agora acerca do que sc observa na afasia progressiva, isto é. nos
casos cm que o esquecimento das palavras vai sempre se agravando. Em geral, as
palavras desaparecem então numa ordem determinada, como se a doença conhe
cesse gramática: primeiro desaparecem os nomes próprios, depois os substantivos
comuns, cm seguida os adjetivos, enfim OS verbos. Eis o que parecería, num pri­
meiro momento, dar razão à hipótese dc uma acumulação de lembranças na subs­
tância cerebral. Os nomes próprios, os substantivos comuns, os adjetivos, os ver­
bos, constituiríam camadas sobrepostas, por assim dizer, e a lesão atingiría essas
camadas uma após outra. Sim. mas a doença pode provir das causas mais diver­
sas. tomar as mais variadas formas, começar em qualquer ponto da rcgiâo cere­
bral interessada e progredir cm qualquer direção: a ordem de desapariçào das
lembranças permanece a mesma. Isto seria possível, se a doença atacasse as pró­
prias lembranças? O fato deve, pois, ser explicado de outra maneira. Eis a inter­
pretação extremamente simples que proponho. Primciramentc. sc os norres pró­
prios desaparecem antes dos substantivos comuns, estes antes dos adjetivos, os
adjetivos antes dos verbos, é porque c mais difícil lembrar um nome próprio do
que um substantivo comum, um substantivo comum mais do que um adjetivo,
este mais do que um verbo: a função de lembrar, à qual o cêrcbro presta evidente-
96 BERGSON

menie seu auxílio, deverá, pois, se limitar a casos cada vez mais fáceis à medida
que sc agravar a lesão do ccrcbro. Mas de que provém a maior ou menor dificul­
dade de lembrar? E por que sao os verbos, dentre todas as palavras, aquelas que
recordamos mais facilmente? É simplesmente porque os verbos exprimem ações
e uma ação pode ser mimetizada. O verbo ê mimetizável dirctamcnic, o adjetivo
só o é por intermédio do verbo que envolve, o substantivo pelo duplo intermédio
do adjetivo que exprime um dc seus atributos e do verbo implicado no adjetivo:
o nome próprio exige três intermediários, o substantivo comum, o adjetivo e
ainda o verbo; assim, pois, à medida que vamos do verbo ao nome próprio, afas-
lamo-nos mais da ação imediatamente imitávcl. rcpresentável pelo corpo: um
artificio cada vez mais complicado torna-se necessário para simbolizar com
movimento a idéia expressa pela palavra que procuramos: e como c ao ccrcbro
que incumbe a tarefa de preparar esses movimentos, como seu funcionamento
fica tanto mais diminuído, reduzido, simplificado neste ponto, quanto mais
profundamente lesada houver sido a região interessada, nada há de surpreendente
em que uma alteração ou uma destruição de tecidos, que toma impossível a evo­
cação de nomes próprios ou substantivos comuns, deixe subsistir a do verbo.
Aqui, como alhures, os fatos nos convidam a ver na atividade cerebral um extrato
mimetizado da atividade mental, e não um equivalente desta atividade.
Mas. sc a lembrança não foi armazenada no cérebro, onde se conserva? Na
verdade, nào estou certo dc que a questão “onde” possua ainda um sentido quan
do nào sc fala mais dc corpos. Clichês fotográficos sc conservam numa caixa, dis­
cos fonográficos num armário; mas por que lembranças, que nào são coisas visí­
veis c tungiveis, necessitariam um recipiente, c como poderíam tê-lo? Aceitaria,
sc se insiste nisto, mas tomando a num sentido puramente metafórico, a idéia de
um recipiente onde as lembranças seriam alojadas, e diria cntào. muilu simples­
mente, que elas estão no espírito. Não faço hipótese, nuo evoco uma entidade
misteriosa, atenho-mc à observação, pois não há nada de mais imed atamente
dado, nada dc mais evidcnicmcntc real do que a consciência, c o espírito humano
é a própria consciência. Ora. consciência significa antes de tudo memória. Neste
momento eu converso com os senhores, pronuncio a palavra “conversação”. É
claro que minha consciência representa esta palavra dc uma só vez; caso contrá­
rio. ela náo veria aí uma palavra única, ela nào lhe atribuiría um sentido. Entre
tanto, quando articulo a última sílaba da palavra, as ires primeiras já furam arti­
culadas; elas estão no passado em relação à última, que deveria entãc estar no
presente. Mas esta última sílaba “ção”, nâo a pronuncio instantaneamente; o
tempo, por mais curto que seja, durante o qual eu a emiti, é decomponível cm par­
les. e estas panes estão no passado cm relação à última delas, que estaria no pre­
sente definitivo, se nâo fosse por sua vez decomponível: de maneira que. por mais
que tentemos, não podemos traçar uma linha dc demarcação entre o passado e o
presente, nem. consequentemente, entre a memória e a consciência. Na verdade,
quando articulo a palavra “conversação” tenho presente no espírito nào somente
o começo, o meio e o fim da palavra, mas ainda as palavras que a precederam,
mas ainda tudo o que já pronunciei na frase: caso contrário, teria perdido o fio de
CONFERÊNCIAS 97

meu discurso. Agora, sc a pontuação do discurso tivesse sido diferente, minha


frase teria podido começar antes: ela teria englobado, por exemplo, a frase prece­
dente. c meu “presente'* se teria dilatado mais ainda no passado. Levemos este
raciocínio até o fim: suponhamos que meu discurso durasse anos, desde o pri­
meiro despertar de minha consciência, que ele sc constituísse dc uma frase única,
c que minha consciência fosse suficientcmcnic independente do futuro, suficiente­
mente desinteressada da açâo para empregar-se toda exciusivamente em abarcar
o sentido da frase: nào buscaria mais explicações, cntào, para a conservação inte­
gral desta frasc. do que para a conservação das tres primeiras sílabas da palavra
“conversação” quando pronuncio a última. Ora. creio que a totalidade de nossa
vida interior é algo euniu uma única frase começada com o primeiro despertar da
consciência, frase semeada dc vírgulas. mas em nenhuma parte cortada por pon­
tos finais. E creio também, por conseguinte, que lodo o nosso passado Ia está,
subconsciente — isto é. presente a nós dc tal maneira que nossa consciência, para
revclá-lo. nào necessita sair de si mesma nem acrescentar-se algo estranho: ela só
precisa, para perceber distintamente tudo o que ela contém, ou melhor, tudo o que
ela è. afastar um obstáculo, levantar um véu. Extraordinário obstáculo, aliás I véu
infinitarncnic precioso! É o cérebro que nos presta o serviço dc manter nossa
atenção fixada na vida; e a vida. ela. olha para a frente; ela somente sc volta para
trás na medida cm que o passado pode auxiliar a csclarcccr e a preparar o futuro.
Viver, para o espírito, c cssencialmcnte concentrar-se no ato a ser realizado. É
pois, inserir-se nas coisas por intermédio de um mecanismo que extrairá da cons­
ciência tudo o que for utilizável para a ação, pronto a obscurccer a maior parte
do resto. Tal é a função do ccrebro nu operação da memória: ele nâo serve para
conservar o passado, mas primeiramente para velá-lo. depois para deixar transpa
rcccr o que c praticamente útil. E esta c a função do cérebro frente ao espirito cm
geral. Destacando do espírito o que é exteriorizávcl em movimentos, inserindo o
espírito neste quadro motor, ele o leva, u mais frequentemente, a limitar sua
visão, mas também a tornar sua ação eficaz. Isto significa dizer que o espírito
ultrapassa o cérebro por todos os lados, c que a atividade cerebral >omente
corresponde a uma ínfima parte da atividade mental.
Mas significa dizer também que a vida do espirito nào pode scr um efeito da
vida do corpo, que tudo se passa, ao contrário, como sc o corpo fosse simples­
mente utilizado pelo espírito c que'a partir daí nào temos nenhuma razào para
supor que corpo e espírito estejam inseparavelmente ligados um ao outro. É claro
que nào vou tratar, sem estar preparado, c durante este meio minuto que rr.c resta,
do mais grave problema que a humanidade pode se colocar. Mas nâo quero elu
di lo. De onde viemos? Que fazemos aqui? Para onde vamos? Se verdadeira­
mente a filosofia nada tivesse a responder a essas perguntas dc interesse vital, ou
se nào fosse incapaz de elucidá-las progressivamente como se elucida im pro
blema dc biologia ou dc história, se ela não pudesse fazer com que tais questões
se beneficiassem de uma experiência cada vez mais aprofundada, dc uma visão
cada vez mais aguda da realidade, sc ela devesse se limitar a proporcionar o com­
bate entre os que afirmam e os que negam a imortalidade da alma por razòcs lira-
98 BERGSON

das da essência hipotética da alma e do corpo, seria quase o caso de dizermos,


desviando de seu sentido a frase de Pascal, que toda a filosofia não vale uma hora
dc esforço. Ccrtamcntc a própria imortalidade não pode ser provada experimen­
talmente: toda experiência sc dá numa duração limitada; e quando a religião fala
de imortalidade, faz apelo à revelação. Mas seria alguma coisa, seria muita coisa,
poder estabelecer, no terreno da experiência, a possibilidade e mesmo a probabili­
dade da sobrevivência por um tempo x: deixaríamos fora do domínio da filosofia
a questão dc saber sc este tempo é ou não é ilimitado. Ora. reduzide a estas
proporções mais modestas, o problema filosófico do destino da alma nào me apa­
rece absolutamente como insolúvel. Eis um cérebro que trabalha. Eis uma cons­
ciência que sente, que pensa c que quer. Sc o trabalho do cérebro correspondesse
à totalidade da consciência, se houvesse equivalência entre o cerebral e o mental,
a consciência podería seguir o destino do cérebro c a morte ser o fim dc tudo: ao
menos a experiência nâo diría o contrário, e o filósofo que afirma a sobrevivência
da alma estaria reduzido a apoiar sua tese em alguma construção metafísica —
coisa gcralmcntc frágil. Mas se. como tentamos mostrar, a vida mental ultrapassa
a vida cerebral, se o cérebro se limita a traduzir em movimentos uma pequena
parte do que sc passa na consciência, então a sobrevivência torna sc tâo provável
que a obrigação da prova incumbirá àquele que a nega, bem mais do qtc àquele
que a afirma; pois a única razão para crer numa extinção da consciência depois
da morte c o espetáculo do corpo se desorganizando, e esta razão não mais tem
valor se a independência da quase totalidade da consciência em relação ao corpo
é um fato também constatávcl. Tratando dessa maneira o problema da sobrevi­
vência. fazendo-o descer das alturas em que a metafísica tradicional o tinha colo­
cado. transportando-o para o campo da experiência, renunciamos sem dúvida a
obter de uma vez a solução radical; mas o que queremos? É preciso optar, cm
filosofia, entre o puro raciocínio que visa a um resultado definitivo, imperfcctível
pois é suposto perfeito, c uma observação paciente que fornece apenas resultados
aproximativos. capazes dc ser corrigidos e completados indefinidamente. O pri­
meiro método, por ter pretendido nos trazer de uma vez e imediatamente a certe­
za. nos condena a permanecer sempre no simples provável, ou melhor, no puro
possível. pois c raro que ele nào possa servir para demonstrar indifcrcntemcntc
duas teses opostas, igualmcntc coerentes, igualmcntc plausíveis. O segundo visa
primeiramente apenas á probabilidade; mas como cie opera num terreno cm que
a probabilidade pode crescer sem cessar, ele nos leva pouco a pouco a um estado
que equivale praticamente à certeza. Entre estas duas maneiras de filosofar,
minha escolha jâ está feita. Ficaria feliz se pudesse contribuir, ao menos um
pouco, para orientar a sua.
O PENSAMENTO E O MOVENTE

IINTRODUÇÃO)

Traduçao de Franklin Leopoldo e Silva


Primeira Parte

O que mais tem faltado à filosofia c a precisão. Os sistemas filosóficos nào


se ajustam à realidade em que vivemos. Sào demasiadamente vastos. Examine-se
algum dentre eles, convenientcmcnte escolhido: ver sc á que sc aplicaria fácil
mente a um mundo em que não houvesse plantas ou animais: ou mesmo homens:
onde os homens poderíam não comer c nào beber: onde nasceríam velhos c mor­
reríam bebês: onde não dormiríam, nem sonhariam, nem divagariam: onde a
energia poderia inverter a escala da degradação; onde tudo aconteceria dc manei­
ra inversa. A razão disto c que um verdadeiro sistema é um conjunto dc concep­
ções tão abstratas, e consequentemente, tâo vasta.s. que nele caberíam .odos os
possíveis, c mesmo o impossível. ao lado do real. A explicação que devemos con­
siderar satisfatória c a que adere ao seu objeto: nenhum vazio, nenhum interstício
onde uma outra explicação se pudesse alojar: ela convém somente àquele objeto:
este sc presta apenas àquela explicação. Isto pode scr dito da explicação cientí
fica. Ela comporta a precisão absoluta e uma evidência completa e c'cscente.
Mas pode-se dizer o mesmo com relação às teorias filosóficas?
Uma doutrina, outrora. pareceu nos constituir exceção c foi provavelmente
por este motivo que a ela nos ligamos cm nossa primeira juventude. A filosofia dc
Spencer visava a modelar sc sobre as coisas, sobre o detalhe dos fatos. Sem dúvi
da. ela ainda procurava um ponto de apoio em generalidades vagas. Sentíamos
bcm a fraqueza dos Primeiros Princípios. Mus esta fraqueza parecia-nos provir
dc que o autor, insuficientemente preparado, não havia podido aprofundar as
“idéias últimas” da mecânica. Nós nos propúnhamos a retomar esta par.e de sua
obra, completá-la e consolida la. E assim tentamos fazer, na medida dc nossas
forças. Dessa maneira ê que fomos conduzidos à idéia de Tempo. Aqui, uma sur­
presa nos aguardava.
Com efeito, chocou-nos bastante ver que o tempo real, que desempenha
papel de destaque cm toda filosofia da evolução, escapa às matemáticas. Sua
essência consistindo em passar, nenhuma dc suas partes pode permanecer ainda,
quando outra se apresenta. A sobreposição das partes em vista da medida c. pois,
impossível, inimaginável, inconcebível. Sem dúvida, em toda medida entra um
elemento dc convenção, e é raro que duas grandezas ditas iguais sejam dircta-
mente sobrepostas. A sobreposição é possível através de um de seus aspectos ou
de seus efeitos, que conserve alguma coisa das grandezas: c este aspecto, este efei-
102 BERGSON

to. então, que medimos. Mas. no caso do tempo, a idéia de sobreposição implica
ria um absurdo, porque lodo efeito da duração que seria sobreposto a si mesmo,
e consequentemente mensurável, teria como essência a propriedade de não durar.
Sabíamos bem. desde os anos dc colégio, que a duração se mede pela trajetória de
um móvel c que o tempo matemático c uma linha: mas não havíamos ainda nota­
do que esta operação decide radicalmcntc acerca de todas as outras operações dc
medida, porque ela não se realiza sobre um aspecto ou sobre um efeito represen­
tativo daquilo que se quer medir, mas sobre algo que o exclui. A linha que medi­
mos é imóvel, o tempo ê mobilidade. A linha c o feito, o tempo c o que se faz e
mesmo o que faz com que tudo se faça. Jamais a medida do tempo sc relaciona
à duração enquanto tal: contamos somente um certo número de extremidades de
intervalos ou de momentos, quer dizer, em suma, de paradas virtuais do tempo.
Dizer que um evento sc produzirá ao fím dc um tempo t c simplesmente exprimir
que teremos contado, daqui até lá. um número t de simultaneidadcs dc um mesmo
gênero. Entre as simullancidadcs se passará tudo o que quisermos. O tempo pode
râ acelerar-sc enormemente, c mesmo infinitamente: nada terá mudado para o
matemático, para o físico, para o astrônomo. Entretanto, seria profunda a dife­
rença para o olhar de uma consciência (digo, naturalmcnic. dc uma consciência
que não seria solidária dos movimentos intraecrebrais): nao havería mais para
cia. do dia para a noite, de uma hora para a seguinte, a mesma fadiga da espera.
Desta espera determinada, e de sua causa exterior, a ciência não pode dar conta:
mesmo quando ela sc relaciona ao tempo que sc desenrola ou que sc desenrolará,
ela o traw como se ele já tivesse passado. E isto, aliás, c natural. Sua função é
prever. Ela extrai e retém do mundo material o que c suscetível de se repetir c de
ser calculado, consequentemente, o que não dura. E assim, ela nào faz mais do
que seguir a direção do senso comum, que já c um começo dc ciência: quando
falamos do (empo, comumente. pensamos na medida da duração c nào na dura­
ção mesma. Mas esta duração, que a ciência elimina, que c difícil dc conceber e
de exprimir, nós a sentimos c vivemos. Se procurarmos saber o que da é, como
aparecería a uma consciência que desejaria apenas vê-la — c nao mcdi-la, que a
agarraria sem imobilizá Ia. que sc tomaria a si mesma por objeto, c que, cxpcctu
dora e atriz, espontânea e refletida, aproximaria até fazer coincidir a atenção que
sc fixa c o tempo que escapa?
Tal era a questão. Através dela penetramos no dominio da vida interior, no
qual ate então nào estávamos interessados. Bem depressa reconhecemos a insufi­
ciência da concepção associacionista do espírito. Esta concepção, na época
comum à maior parte dos psicólogos e dos filósofos, era o efeito de uma recom­
posição artificial da vida consciente. O que nos daria uma visão direta, imediata,
sem a intcrposiçào dc preconceitos? Longa série de reflexões e análises nos fez
descartar um a um todos os preconceitos, abandonar muitas idéias que havíamos
aceito sem critica*, finalmente cremos reencontrar a duração interior cm sua pure­
za. continuidade que não é nem unidade nem multiplicidade, e que não entra cm
nenhum dc nossos quadros. Que a ciência positiva não se tenha interessado por
esta duração era algo bem natural, pensavamos. Sua função é precisamente, tal­
0 PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 103

vez. apresentar-nos um mundo cm que possamos, pela comodidade da ação, esca­


motear os efeitos do tempo. Mas como a filosofia de Spencer, doutrina da evolu­
ção. feita para seguir o real na sua mobilidade, seu progresso, sua maturação
interior, tinha podido fechar os olhos àquilo que era a própria mudança?
Esta questão deveria levar-nos. mais tarde, a retomar o problema da evolu­
ção da vida tendo em conta o tempo real: veriamos então que o “evolucionismo”
dc Spcnccr deveria ser quase totalmente refeito. No momento, era a v^são da
duração o que nos absorvia. Passando em revista os sistemas, constatamos que os
filósofos não se haviam ocupado dela. Ao longo de toda a história da filosofia,
tempo e espaço são colocados juntos c tratados como coisas do mesmo gênero.
Estuda-se então o espaço, determina-se sua natureza c função, depois transporta-
se para o tempo as conclusões obtidas. As teorias do espaço e as do tempo são.
assim, paralelas. Para passar de uma à outra foi suficiente mudar uma palavra:
substiluiu-sc “justaposição'* por “sucessão**. Dcsviou-sc sistematicamente da
duração real. Por que? A ciência tem suas razoes para fazê-lo; mas a metafísica,
que precedeu a ciência, já operava desta maneira, e nào possuía as mesmas
razões. Examinando as doutrinas, parcccu-nos que a linguagem havia desempe­
nhado aí um importante papel. A duração se exprime sempre em extensão. Os ter­
mos que designam o tempo são tomados à linguagem do espaço. Quando evoca­
mos o tempo, c o espaço que responde ao chamado. A metafísica teve dc se
conformar aos hábitos dc linguagem, os quais se regram pelo senso comum.
Mas sc a ciência c o senso comum estâo dc acordo, sc a inteligência, espon­
tânea ou refletida, descarta o tempo real, não seria porque a destinação dc nosso
entendimento o exige? Foi bem o que cremos perceber estudando a estrutura do
entendimento humano. Pareceu-nos que uma de suas funções era justamente mas­
carar a duração, seja no movimento, seja na mudança.
Trata-se do movimento? A inteligência retem apenas uma serie dc posições:
um ponto primeiramente atingido, depois outro, depois outro. Objeta sc ao enten­
dimento que entre esses pontos se passa qualquer coisa? Ele intercala novas posi
çoes. c assim indefinidamente. Ele desvia o olhar da transição. Se insistimos, ele
faz com que a mobilidade, apertada cm intervalos cada vez menores ã medida
que aumenta o número dc posições consideradas, recue, fuja, desapareça no infi-
nitamente pequeno. Nada dc mais natural, se a inteligência c destinada sobretudo
a preparar c aclarar nossas ações sobre as coisas. Nossa ação apenas se exerce
comodamente sobre pontos fixos; e. então, a fixidez que nossa inteligência busca;
ela sc pergunta onde o móvel está, onde o móvel estará, onde o móvel passa.
Mesmo se ela nota o momento da passagem, mesmo sc ela parece entâo interes­
sar sc pela duração, limita sc a constatar a simultancidade dc duas paradas vir­
tuais: parada do móvel que ela considera e parada de um outro móvel cujo curso,
supõe-se. seja o do tempo. Mas é sempre a imobilidades, reais ou possíveis, que
ela se relaciona. Abandonemos esta representação intelectual do movimento, que
o desenha com uma série de posições. Vamos direto a ele. consideremo Io sem
conceitos interpostos: nós o vemos simples c uno. Avancemos mais; façamos
com que ele coincida com um desses movimentos incontestavelmente reais, abso-
104 BERGSON

lutos. que nós mesmos produzimos. Desta vez temos a mobilidade cm sua essên­
cia, e sentimos que ela sc confunde com um esforço cuja duração c uma continui­
dade indivisível. Mas como um certo espaço terá sido transposto, nossa
inteligência, que busca por toda parte a fixidez. supõe ao cabo que o movimento
se aplicou a este espaço (como sc ele pudesse coincidir — ele. movimento — com
a imobilidade!) e que o móvel está, de cada vez. cm cada um dos pontos da linha
que ele percorre. Quando muito pode-se dizer que ele teria estado se tivesse para­
do antes, sc tivéssemos feito, cm vista dc um movimento mais curto, um esforço
totalmcnte diferente. Para se chegar a ver no movimento uma série dc posições
basta um passo; a duração do movimento se decomporá então cm “momentos"
correspondentes a cada uma das posições. Mas os momentos do tempo e as posi­
ções do móvel são apenas instântaneos tomados por nosso entendimento na
continuidade do movimento c da duração. Com essas visões justapostas lcm-sc
um sucedâneo prático do tempo c do movimento que serve às exigências da lin
guagem c que se espera que sirva ás do cálculo; mas nada mais se tem do que
uma recomposição artificial. O tempo e o movimento são outra coisa.1
Diremos o mesmo da mudança. O entendimento a decompõe cm estados
sucessivos c distintos, supostamente invariáveis. Considere-se de mais perto cada
um desses estados, pcrcebcr-se-á que eles variam; como poderíam durar sc nào
mudassem, perguntamos? O entendimento os substitui por uma série dc estados
menores, que se decomporão por sua vez, sc necessário, c assim indefinidamente.
Como, entretanto, não ver que a essência da duração está cm fluir, c qcc com o
estável acoplado ao estável nâo sc fará jamais algo que dure? O real não sâo os
“estados", simples instantâneos tomados por nós, ainda uma vez, ao longo da
mudança: é. ao contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança cia
mesma. Esta mudança é indivisível, e mesmo substancial. Sc nossa inteligência sc
obstina em tê-la por inconsistente, a ajuntarlhe nào sei que suporte, é porque a
substituímos por uma serie dc estados justapostos: mas esta multiplicidade c arti
ficial. c artificial também a unidade que aí restabelecemos. O que há é um pro­
gresso ininterrupto de mudança — uma mudança sempre aderente a s- mesma
numa duração que sc alonga sem fim.
Essas reflexões faziam nascer cm nosso espirito muitas dúvidas e ao mesmo
tempo grandes esperanças. Dizíamo-nos que os problemas metafísicos haviam
sido, talvez, mal formulados, mas que. precisamente por esta razão, nào havia
mais por que tê los como “eternos", isto c. insolúveis. A metafísica nasceu no dia
cm que Zenào de Eléia assinalou as contradições inerentes ao movimento e à
mudança, tais como nossa inteligência os representa. Ultrapassar, contornar, por
um trabalho intelectual mais e mais sutil, essas dificuldades levantadas pela
representação intelectual do movimento c da mudança, tal foi o principal esforço
dos filósofos antigos c modernos. Assim, a metafísica foi levada a procurar a rea-

' Sc o cinemíiipgrálico nos mosira cm movimento, na ich. vistas i moveis justapostas no filme, é sob a condi-
çào Jc projetar ncsia tela, por assim dúcr. wm csias pioprias vistas imóveis, o movimento que está no apa-
tellw.tN.do A.)
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 105

lidade das coisas acima do tempo, além do que sc move, do que muda,
consequentemente, fora daquilo que nossos sentidos c nossa consciência perce­
bem. Desde então, ela não podería ser mais do que um cncadeamento mais ou
menos artificial de conceitos, uma construção hipotética. Pretendia ultrapassar a
experiência: na realidade, apenas substituía à experiência móvel e plena, susce­
tível de um aprofundamento crescente, repleta, por isto, dc revelações, um extrato
fixo. scco. vazio, um sistema de idéias gerais abstratas, tiradas desta mesma expe­
riência. ou antes, de suas camadas mais superficiais. Seria o mesmo que cissertar
sobre o invólucro donde sairá a borboleta, c pretender que a borboleta voando,
transformando-se. vivendo, tenha sua razão de ser c sua perfeição na imutabili­
dade daquela película. Afastemos, ao cuntrário. o invólucro. Libertemos a crisá
lida. Rcsütuamos ao movimento sua mobilidade, à mudança sua fluidez. ao
(empo sua duração. Quem sabe se os “grandes problemas” insolúveis não ficarão
na película? Eles nào diziam respeito nem ao movimento, nem à mudança, nem
ao tempo, mas somente ao invólucro conceituai com o qual falsamcntc os confun
díamos ou tomavamos por equivalente. A metafísica tornar-.sc-á então a própria
experiência. A duração revelar sc â criação continua, ininterrupto jorro de
novidade.
Pois é isto que nossa representação habitual do movimento e da mudança
nos impede de ver. Se o movimento é uma série de posições e a mudança uma
série de estados, o tempo c leito de partes distintas c justapostas. Sem dúvida,
dizemos ainda que elas sc sucedem, mas esta sucessão é semelhante à das ima
gens de um filme cinematográfico: o filme podería passar dez. cem. mi( vezes
mais depressa sem que nada fosse modificado: sc cie sc desenrolasse a uma velo
cidade infinita, se o desenrolar (desta vez fora do aparelho) sc tornasse instantâ­
neo. seriam ainda as mesmas imagens. A sucessão assim entendida não acres
centa nada; uo contrário, ela suprime alguma coisa: marca um deficit; traduz
uma deficiência de nossa percepção, condenada a detalhar o filme, imagem por
imagem, cin vez. dc aprccndc lo globalmcntc. Em suma, o tempo assim conside­
rado não é mais do que um espaço ideal onde supomos alinhados iodos os
acontecimentos passados, presentes c futuros, que estão, ainda mais, impedidos
dc aparecer-nos cm bloco: o fluir da duração seria esta própria imperfeição, a
adição de uma quantidade negativa.
Assim pensa, consciente ou inconscientcmcnte, a maior pane dos filósofos,
cm conformidade, aliás, com as exigências do entendimento, as necessidades da
linguagem e o simbolismo da ciência. Nenhum deles buscou, com referência ao
tempo, atributos positivos. Tratam a sucessão como uma coexistência falhada, e
a duração como uma privação de eternidade. É por isto que nào conseguem
nunca, por mais que tentem, rcprcscntar-sc a novidade radical, a imprevisibi-
lidade. Nào falo apenas dos filósofos que acreditavam num cncadeamento tâo
rigoroso dos fenômenos c dos eventos que os efeitos deveriam ser deduzidos das
causas: estes imaginaram que o futuro está dado no presente, que ele c teorica­
mente visível, que, consequentemente, não trará nada de novo. Mas mesmo aque­
les. cm número muito reduzido, que creram no livre arbítrio, reduziram no a uma
106 BERGSON

simples “escolha” entre duas ou entre várias opções, como se estas fessem os
“possíveis” que se mostrassem antecipadamente, e como se a vontade se limitasse
a “realizar” um deles. Admitem ainda, pois, mesmo que disto não se deem conta,
que tudo está dado. Parecem, portanto, não fazer idéia alguma de uma ação que
fosse inteiramente nova (ao menos interiormente) e que não preexistisse de forma
alguma, nem mesmo como puro possível, à sua realização. E tal é, entretanto, a
ação livre. Mas para percebê-la assim, como dc resto para figurar qualquer cria­
ção, novidade ou imprevisibilidade. é preciso recolocar se no plano da pura
duração.
Tentemos, com efeito, representar-nos hoje a ação que realizaremos ama­
nhã. sabendo, mesmo, tudo o que temos a fazer. Nossa imaginação evoca talvez
o movimento a executar: mas acerca do que pensaremos e sentiremos ao exccu
tá Io nada podemos saber hoje, porque nosso estado de espírito conterá, amanhã,
tudo o que tivermos vivido até lá. c mais o que será acrescentado por aquele
momento em particular. Para preencher antecipadamente este estado com o con­
teúdo que ele deve ter. nos seria preciso exatamente o tempo que separa hoje de
amanhã, porque não podemos diminuir um só segundo da vida psicológica, sem
modificar-lhe o conteúdo. Podemos diminuir a duração dc uma melodia sem alte­
rá-la? A vida interior é esta melodia. Assim, pois, mesmo supondo o que faremos
amanhã, apenas podemos prefigurar da ação a sua configuração exterior. Todo
esforço para imaginá-la interiormente ocupará uma duração que, progressiva­
mente alongada, nos conduzirá até o momento da realização do ato. c aí não sc
trata mais dc previsão. Como será, então, no caso dc uma ação verdadeiramente
livre, quer dizer, totalmente criada, tanto cm seus contornos exteriores quanto na
sua coloração interna, nu momento cm que se realiza?
A diferença c, pois, radical entre uma evolução cm que as fases contínuas sc
interpenetram por uma espécie de crescimento interior, c um desenvolvimento cm
que partes distintas se justapõem. O leque que sc desdobra poderá abrir-se cada
vez mais depressa, e mesmo instantaneamente; ele mostrará sempre o mesmo
desenho, já inscrito na seda. Mas uma evolução real, por pouco que se acelere ou
se abrande seu ritmo, modifica sc totalmcntc. interiormente. A velocidade dc seu
ritmo ê justamente essa modificação interna. Seu conteúdo e sua duração são
uma e u mesma coisa. É bem verdade que. ao lado da consciência que vive esta
duração irreversível, há os sistemas materiais sobre os quais o tempo apenas des­
liza. Dos fenômenos que neles sucedem podemos realmente dizer que são o
abrir-se de um leque, ou melhor, o desenrolar de um filme cinematográfico.
Calculáveis antecipadamente, eles preexistem, sob a forma de possíveis, à sua
realização. Tais são os sistemas estudados pela astronomia, pela física e pela quí­
mica. O universo material, em seu conjunto, forma um sistema desse gênero?
Quando nossa ciência o supõe, ela deixa simplesmente de lado, no universo, tudo
o que não ê calculável. Mas o filósofo, que nada quer deixar de lado, é obrigado
a constatar que os estados do mundo material são contemporâneos da história dc
nossa consciência. Ecomo esta dura, c necessário que os estados do mundo mate­
rial se relacionem de alguma forma à duração real. Em teoria, o filme no qual
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 107

estão impressos os estados sucessivos dc um sistema iniciramente calculável


poder se-ia desenrolar a qualquer velocidade, sem que nada fosse modificado. Dc
fato, esta velocidade é determinada, já que o desenrolar do filme corresponde a
uma certa duração de nossa vida interior - - e não a qualquer outra. O filme que
se desenrola está. pois, provavelmente relacionado à consciência que dura e que
lhe regula o movimento. Quando preparamos um copo de água açucarada, dizía­
mos. c forçoso esperar que o açúcar se dissolva. Esta necessidade de esperar é o
fato significativo. Ele mostra que. se podemos determinar no universo sistemas
para os quais o tempo é apenas uma abstração, uma relação, um número, o uni­
verso cm si mesmo é bem outra coisa. Se pudéssemos abarcá-lo em seu conjunto
inorgânico, porem entretccido dc seres orgânicos, vc lo-íamos Lomar a todo ins­
tante aspectos tão novos, tão originais, lão imprevisíveis quanto nossos estados
de consciência.
Mas nos c dc tal modo difícil distinguir a sucessão na verdadeira duração da
justaposição num tempo especializado, a evolução de um desenrolar, a novidade
radical de um novo arranjo dc elementos preexistentes, enfim, a criação da sim­
ples escolha, que nunca poderiamos esclarecer esta distinção, cm todas as suas
facetas. Digamos que, na duração, vista como uma evolução criadora, há criação
perpétua de possibilidade c nào apenas dc realidade. Muitos se recusarão a admi­
tir isto, porque pensarão sempre que um evento não se realizaria sc nào tivesse
podido realizar-se: dc maneira que. considerando melhor, veremos que “possibili
dade” significa duas coisas totalmente diferentes c que. a maior parte do tempo,
oscilamos dc uma a outra, jogando involuntariamente com o sentido da palavra.
Quando um músico compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes dc scr real?
Sim. sc entendermos por isto que não havia obstáculos intransponíveis à sua
realização. Mas deste sentido negativo da palavra passamos, sem percebe*, para
um sentido positivo; admitimos que tudo o que se produz podia scr antecipada­
mente percebido por um espírito suficicntcmcntc informado, preexistindo assim,
sob forma dc idéia, à realização: concepção absurda no caso de uma obra dc arte,
pois, desde o momento cm que o músico possui a idéia precisa e completa da sin­
fonia que cie fará, sua sinfonia está pronta. Nem no pensamento do artistt, nem.
e com maior razão, cm nenhum outro pensamento comparável ao nosso, mesmo
impessoal, mesmo virtual, estava a sinfonia na qualidade dc possível, antes dc scr
real. Mas nào podemos dizer o mesmo dc um estado qualquer do universo, com
todos os seres conscientes e viventes? Não c ele mais rico em novidade, em impre-
visibílidade radical, que a sinfonia do maior mestre?
Entretanto, sempre persiste a convicção de que. mesmo que nào tivesse sido
concebida antes dc sc produzir, podería ler sido, c que, neste sentido ela figura,
desde toda a eternidade, como possível, cm alguma inteligência real ou virtual.
Aprofundando esta ilusão, veremos que ela está arraigada na essência de nosso
entendimento. As coisas c os eventos se produzem em momentos determinados; o
juízo que constata a aparição da coisa ou do evento só pode se dar depois deles:
tem, pois, uma data. Mas esta data logo sc anuvia, devido ao princípio, profunda­
mente gravado em nossa inteligência, de que toda verdade é eterna. Se o juízo é
108 BERGSON

verdadeiro no presente, ele deve» pensamos, tê-lo sido sempre. Poderia não estar
formulado dc fato: estava pelo menos de direito. Atribuímos, desse modo, a toda
afirmação verdadeira um efeito retroativo; ou. mais exatamente, imprimimos-lhe
um movimento retroativo. Como se um juízo pudesse preexistir nos termos que o
compõem! Como sc esses termos não datassem da aparição dos objetos que
representam I Como $e a coisa e a idéia da coisa, sua realidade e sua possibili­
dade. nâo fossem criadas ao mesmo tempo quando se trata de uma forma verda
deiramente nova, inventada pela arte ou pela natureza!
Inumeráveis sao as consequências desta ilusão. Nossa apreciação dos ho­
mens c dos acontecimentos está totalmente impregnada da crença no valor retros­
pectivo do juízo verdadeiro, num movimento retroativo que a verdade executaria
no tempo, uma vez estabelecida. Somenre pelo fato de sc realizar, o aconteci­
mento projeta atrás dc si uma sombra no passado indefinidamente longínquo:
parece, assim, haver preexistido. sob a forma de possível, á sua própria realiza­
ção. Daí vem o erro que vicia nossa concepção do passado; c daí vem. ainda, a
nossa pretensão de antecipar, cm todas as ocasiões, o futuro. Perguntamo-nos.
por exemplo, o que serão a arte, a literatura, a civilização de amanhã: figuramo-
nos. grosso modo, a curva de evolução da$ sociedades: predizemos até mesmo o
detalhe dos acontecimentos. Ccrtamcnte. podemos sempre relacionar os eventos,
uma vez acontecidos, àqueles que os precederam e às circunstâncias cm que se
deram, mas um outro acontecimento (nâo qualquer outro, c verdade) poderia
também ter sido relacionado às mesmas circunstâncias e aos mesmos fatos prece
dentes, tomados de outro ângulo. Dir-sc-á entào que. considerando iodos os
aspectos do presente para prolongá-lo cm todas as direções, ccríamos. desde logo,
todos os possíveis entre os quais o futuro escolhería, supondo-se que o futuro
escolhesse? Mas estes mesmos prolongamentos poderíam representar a adição dc
qualidades novas, inteiramente criadas, absolutamente imprevisíveis: e. além
disto, um “aspecto" do presente só existe como “aspecto" depois que nossa aten­
ção o isolou, recortando assim, de uma certa maneira, o conjunto dc circuns­
tâncias atuais: como entào existiríam “todos os aspectos'' do presente, antes que
tenham sido criadas, pelos eventos ultcriorcs. as formas originais dos recortes que
a atenção pode praticar? Esses aspectos somente rctrospcetivamcntc pertencem
ao presente dc outrora. isto é. ao passado: e eles não teriam mais realidade neste
presente, quando ele era ainda presente, do que tem. cm nosso presente atual, as
sinfonias dos músicos futuros. Para tomar um exemplo simples, nada nos impede
hoje de relacionar o romantismo do século XIX ao que havia dc romântico nos
clássicos. Mas o aspecto romântico do classicismo apenas se desprendeu, por
efeito retroativo, do romantismo uma vez aparecido. Se não houvessem existido
Rousseau. Chateaubriand. Vigny, Victor Hugo, nào somente nào teríamos perce­
bido. mas nào teria havido rcabnente romantismo nos clássicos, porque este
romantismo dos clássicos só existe devido à seleção de certos aspectos nas suas
obras, e essa seleção, na sua forma particular, nâo existia na literatura clássica
antes da aparição do romantismo, como não existe, na nuvem que passa, o dese­
nho que um artista nela perceberá, organizando a massa amorfa ao sabor dc sua
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 109

fantasia. O romantismo operou retroativamcntc sobre o classicismo. da mesma


forma que o desenho do artista sobre a nuvem. Rctroativamcnte. ele criou sua
própria prcfiguraçào no passado c uma explicação dc si mesmo por seus
antecedentes.
Queremos dizer que c preciso um feliz acaso, uma oportunidade excepcio­
nal. para que notemos justamente, na realidade presente, o que terá mais interesse
para u historiador futuro. Quando este historiador considerar nosso presente para
nós. ele aí procurará, sobretudo, a explicação de seu presente, para ele. c, mais
particularmenlc. daquilo que seu presente conterá de novidade. Desta novidade,
nâo podemos ter nenhuma idéia hoje, se ela deve ser criação. Como então nos
orientaríamos atualmente por cia para escolher entre os fatos aqueles que í preci­
so registrar, ou antes, para fabricar fatos recortando segundo essa indicação a
realidade presente? O acontecimento capital dos tempos modernos é o advento da
democracia. Ê incontestável que. no passado, tal como foi descrito pelos contem­
porâneos. encontramos signos precursores da democracia: mas talvez, as .ndica-
çôcs mais interessantes só tivessem sido anotadas sc eles soubessem que a huma­
nidade marchava nesta direção: ora. esta direção não era. então, mais visível do
que outras, ou talvez nem existisse ainda, tendo sido criada pelo próprio trajeto,
isto é. pela marcha de homens que progressivamente conceberam e realizaram a
democracia. Os signos indicadores só sào para nós signos porque agora ccnhecc
mos o caminho, porque o caminho foi percorrido. Nem a marcha, nem sua dire­
ção. nem. conseqíicntcmcnlc. o desfecho estavam dados quando esses fatos se
produziram: esses fatos nào eram ainda, pois, signos. Ainda mais. Dizíamos que
os fatos mais importantes podem ter sido relegados a segundo plano pelos
contemporâneos. Mas a verdade é que n maior parte desses fatos nâo existia
ainda como fatos: eles existiríam reirospcciivamcnic para nós sc pudéssemos
agora ressuscitar intcgralmcntc a época, c passear sobre o bloco indiviso da reali
dade dc então o foco luminoso de forma bem particular a que chamamcs idéia
democrática: as partes assim iluminadas, recortadas no todo cm contornos tão
originais c imprevisíveis quanto um desenho de um grande mestre, seriam os fatos
preparatórios da democracia. Enfim, paru legar a nossos descendentes a explica­
ção. pelos antecedentes, do acontecimento essencial de seu tempo, seria preciso
que este acontecimento estivesse já sob nossos olhos, c que nào tivesse duração
real. Transmitimos às gerações futuras aquilo que nos interessa, o que nossa aten
ção fixa à luz de nossa evolução passada, mas nâo o que o futuro terá ornado
interessante para eles, através da criação de um interesse novo, de uma nova dire­
ção imprimida à sua atenção. Em outros termos, enfim, as origens históricas do
presente, no que ele tem de mais importante, nào poderíam ser complctamente
elucidadas, pois nao as reconstituiriamos intcgralmcntc. a menos que o passado
pudesse ter sido expresso pelos contemporâneos em função de um futuro indeter­
minado que era, por isto mesmo, imprevisível.
Tomemos uma cor como o alaranjado.2 Como conhecemos também o ver

’ O prciente ciludo foi «xriio antes dc nowo livro t j Duas Fonie* da Mora! c da Religião, cm que «hen
volvemos a mew comparação. (N. do A.)
no BERGSON

melho e o amarelo, podemos considerar o alaranjado como vermelho cm um sen­


tido, amarelo cm outro, c dizer que è um composto de amarelo e vermelho. Mas
suponhamos que. embora existindo o alaranjado, nào existissem no mundo nem
o vermelho nem o amarelo: o alaranjado seria então um composto destas duas
cores? Evidentemente nào. A sensação do vermelho e a sensação do amarelo,
implicando todo um mecanismo nervoso c cerebral ao mesmo tempo que certas
disposições especiais da consciência, sào criações da vida, que se produziram,
mas que poderíam não se ter produzido; e se nào houvesse existido jamais, nem
cm nosso planeta, nem em outro qualquer, seres que experimentassem aquelas
duas sensações, a sensação do alaranjado teria sido uma sensação simples: nunca
teriam figurado como componentes ou como aspectos as sensações do vermelho
e do amarelo. Reconheço que nossa lógica habitual protesta. Ela diz: “Desde o
momento em que as sensações do amarelo c do vermelho entram atualmente na
composição da sensação do alaranjado. elas aí entrariam sempre, mesmo sc
houve um tempo em que nenhuma delas existia efetivamente: elas aí estavam
virtualmentc’'. Mas é que nossa lógica habitual c uma lógica de retrospcççào. Ela
tem que remeter ao passado, no estado dc possibilidade ou de virtualidade. as rea­
lidades atuais, dc tal forma que o que é hoje composto deve, a seus olhos, tê-lo
sido sempre. Ela nào admite que um estado simples possa, permanecendo o
mesmo, tornar-se composto unicamente porque a evolução terá criado novos
pontos dc vista para considera Io c. por isto, elementos múltiplos nos quais sc
pode analisâ-lo idealmente. Ela não deseja crer que. sc esses elementos não tives­
sem surgido como realidades, nào teriam existido anteriormente como possibili­
dades. porque a possibilidade de uma coisa nào c mais do que a miragem (salvo
no caso cm que esta coisa é um arranjo inteiramente mecânico de elementos
preexistentes), no passado indefinido, da realidade uma vez aparecida. Se ela
rejeita para o passado, sob a forma de possível, a realidade que surge no presente,
é justamente porque nào quer admitir que algo surja, que alguma coisa seja cria­
da. que o tempo seja eficaz. Seja cm relação a uma forma ou a uma qualidade
novas, ela somente admite um novo arranjo, nada dc absolutamente novo. Toda
multiplicidade se resolve, para ela, num número definido dc unidades. Ela nào
aceita a idéia de uma multiplicidade indistinta e mesmo indivisa. puramente
intensiva ou qualitativa, que, embora permanecendo tal qual é. compreendería um
número indefinidamente crescente dc elementos, à medida que aparecessem no
mundo novos pontos de vista a partir dos quais se pudesse considcrá-la. Nào se
trata certamente dc renunciar a esta lógica nem dc sc insurgir contra ela. Mas c
preciso alargá-la. torná-la flexível, adapta Ia a uma duração cm que a novidade
brota sem cessar c cm que a evolução c criadora.
Tal foi a direção que assumimos. Muitas outras se abriram diante de nós, ao
nosso redor, a partir do centro em que nos havíamos instalado para apossar-nos
da duração pura. Entretanto, preferimos aquela, porque havíamos escolhido
primeiramente, para experimentar o nosso método, o problema da liberdade.
Assim nos colocaríamos no fluxo da vida interior, do qual a filosofia parecia ape­
nas reter, frequentemente, não mais do que a camada superficial, congelada. O
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 111

romancista c o moralista não tinham avançado, nessa direção, mais longe que o
filósofo? Talvez: mas apenas parcialmente, sob a pressão da necessidade, é que
haviam transposto o obstáculo; nenhum deles se linha proposto a ir metodica­
mente "em busca do tempo perdido'*. Seja como for, demos apenas indicações a
este respeito em nosso primeiro livro e limilamo-nos a alusões no segundo, quan­
do comparamos o plano da ação — onde o passado sc contrai no presente — ao
plano do sonho, onde sc desdobra, indivisível e indestrutível, a totalidade do pas­
sado. Mas. se é função da literatura empreender dessa forma o estudo da alma no
plano do concreto, sobre exemplos individuais, o dever da filosofia nos parecia
ser o de estabelecer as condições gerais da observação direta, imediata, de si para
si. Esta observação interna é falseada pelos hábitos que adquirimos. A alteração
principal ê. sem dúvida, aquela que criou o problema da liberdade — um pseudo-
problcma oriundo da confusão entre a duração e a extensão. Mas outros teriam a
mesma origem: nossos estados de alma nos parecem suscetíveis dc serem conta
dos; alguns dentre eles, assim dissociados, possuiríam uma intensidade mensurá­
vel: a cada um c a todos cremos poder substituir as palavras que os designam c
que passariam a recobri-los: atribuímos-lhes entào a fixidez. a descontinuicade. a
generalidade das próprias palavras. É este o invólucro que é preciso recuperar,
para rasgá-lo. Mas só o recuperaremos considerando primeiramcnlc sua figura c
sua estrutura, c também compreendendo sua destinaçào. Ele é de natureza espa­
cial c tem uma utilidade social. A cspacialidade. então, e. num sentido todo espe­
cial. a sociabilidade, sào as verdadeiras causas dc relatividade de nosso conheci­
mento. Afastando este vcu. reencontramos o imediato c tocamos um absoluto.
Dessas primeiras reflexões resultaram conclusões que fclizmcntc sc torna­
ram já quase banais, mas que entào pareceram temerárias. Elas exigiam da psico­
logia o rompimento com o associacionismo. que era universalmcnte admitido,
scnào como doutrina, ao menos como método. Reclamavam ainda uma outra
ruptura, que apenas entrevíamos. Ao lado do associacionismo havia o Kantismo.
cuja influencia, aliás frequentemente combinada com a do primeiro, era nao
menos forte e nào menos geral. Aqueles que repudiavam o positivismo dc um
Comic ou o agnosticismo de um Spencer nao ousavam chegar u contestação da
concepção kantiana da relatividade do conhecimento. Kant estabelecera, dizia-se»
que nosso pensamento se exerce sobre uma maléria previamente dispersa no Es­
paço c no Tempo, e assim preparada cspccialmcntc para o homem: a “coisa cm
si” nos escapa: seria preciso, para atingi-la. uma faculdade intuitiva que nào
possuímos. Rcsultava dc nossa análise, ao contrário, que ao menos uma parte da
realidade, nossa pessoa, pode ser atingida em sua pureza natural. Aqui, em todo
caso, os materiais de nosso conhecimento não foram criados, ou triturados, c
deformados por nào sei qual gênio maligno, que teria em seguida jogado num
recipiente artificial, como a nossa consciência por exemplo, uma poeira psicoló­
gica. Nossa pessoa nos aparece tal qual é "em si”, desde que abandonemos os há­
bitos contraídos para nossa melhor comodidade. Mas nào seria assim em relaçào
a outras realidades, talvez mesmo em relaçào a todas? A ‘‘relatividade do conhe­
cimento”. que retardava o progresso da metafísica, seria algo de original cessen
112 BERGSON

ciai? Nâo seria, ao contrário, acidental c adquirida? Nào derivaria apenas do fato
dc que a inteligência adquiriu hábitos necessários à vida prática: tais hábitos,
transportados para o domínio da especulação, nos mostram uma realidade defor­
mada ou reformada, cm todo caso “organizada”, mas este arranjo não se impõe
inclutavelmente a nós: ele vem de nós: sc o fizemos, podemos dcsfazc-lo: c entra­
mos então cm contato direto com a realidade. Não era. pois, uma teoria psicoló­
gica. o associacionismo. que abandonavamos, era também, por uma razão análo­
ga. uma filosofia geral, o kantismo. c tudo o que a isto se relacionava. Um e
outro» então quase univcrsalmente aceitos em suas grandes linhas, pareciam-nos
“impedimenta” que atrasavam a marcha da filosofia c da psicologia.
Restava, pois, marchar. Não era suficiente afastar o obstáculo. Empreen­
demos então estudos de funções psicológicas, depois da relação psicofisiológica,
em seguida, da vida cm geral, buscando sempre a visão direta, suprimindo assim
problemas que não diziam respeito às coisas mesmas, mas â sua tradução em
conceitos artificiais. Não retomaremos aqui uma história cujo primeiro resultado
seria mostrar a extrema complicação de um método aparentemente tão simples;
voltaremos a isto, aliás brevemente. no próximo capítulo. Mas já que ccmeçamos
por dizer que buscavamos antes de tudo a precisão, acabamos fazendo notar que
a precisão, a nosso ver. nâo poderia ser obtida com nenhum outro método. Por­
que a imprecisão c. ordinariamente, a inclusão dc alguma coisa num gênero
demasiadamente vasto, coisas e gêneros correspondendo, aliás, a palavras
preexistentes. Mas se começamos por afastar os conceitos já prontos, se nos
proporcionamos uma visão direta do real, se subdividimos então esta realidade,
levando em conta suas articulações, os conceitos novos, que deveremos formar
para nos exprimir, serão desta vez talhados na exata medida do objeto: a impreci­
são só poderá nascer dc sua extensão a outros objetos, que eles abarcariam igual­
mente em sua generalidade, mas que deverão scr escudados neles mesmos, fora
desses conceitos, quando quisermos conhecê-los por sua vez.
Segunda Parte

Da posição dos problemas

Essas considerações sobre a duração pareciam-nos decisivas. Gradualmente


elas nos levaram a fazer da intuição o método filosófico. “Intuição” é. aliás, uma
palavra diante da qual hesitamos muito tempo. Entretanto, de todos os termos
que designam um modo de conhecimento, é o mais apropriado: e ainda assim sc
presta à confusão. Porque um Schelling, um Schopenhauer c outros tinham já
apelado para a intuição, porque opuseram mais ou menos a intuição â inteli­
gência. poder-se-ia crer que aplicavamos o mesmo método. Como sc a intuição
deles nào fosse a busca imediata do eterno! Como se nào se tratasse, para nós. ao
contrário, de reencontrar, antes, a verdadeira duração. Muitos são os filósofos
que sentiram a insuficiência do pensamento conceptual para atingir o fundo do
espírito. Muitos, por consequência, os que falaram dc uma faculdade supra-inte-
lectual de intuição. Mas como acreditavam que a inteligência operava no tempo,
concluíram que ultrapassar a inteligência consistia cm abandonar o tempo. Nào
percebiam que o tempo intelectualizado c espaço, que a inteligência trabalha com
o fantasma da duração c nào com a própria duração, que a eliminação do tempo
c o ato habitual, normal, banal, de entendimento, que a relatividade do nosso
conhecimento do espirito deriva precisamcntc disto, c que. neste caso, pura passar
da intelccçào à visão, do relativo ao absoluto, nào é preciso abandonar o tempo
(já o abandonamos): é necessário, isto sim. que nos recoloquemos na duração e
que recuperemos a realidade cm sua essência, que c a mobilidade. Uma intuição
que pretende transportar-se imediatamente para o eterno está ligada à nteli-
gencia. Substitui simplesmente os conceitos fornecidos pela inteligência por um
conceito único que os resume a todos c que é. consequentemente, sempre o
mesmo, seja qual for o nome que lhe dermos: a Substância, o Eu. a Idéia, a Von­
tade. A filosofia assim entendida, necessariamente panteísta. nno encontrará difi­
culdade para explicar dedutivamente todas as coisas, pois ela se terá dado anteci­
padamente. num princípio que é o conceito dos conceitos, todo o real c todo o
possível. Mas esta explicação será vaga c hipotética, esta unidade será artificial,
e esta filosofia seria também aplicável a um mundo totalmcnie diferente do nosso.
Como seria mais instrutiva uma metafísica verdadeiramente intuitiva que
seguisse todas as ondulações do real! Ela nào mais abarcaria de uma só vez a
totalidade das coisas; mas dc cada uma cia daria uma explicação que se adapta­
ria cxatamcntc. cxclusivamente .1 ela. Nào começaria por definir ou descrever a
114 BERGSON

unidade sistemática do mundo: quem sabe se o mundo c cfetivamentc uno?


Somente a experiência poderá dizé-lo. c a unidade, se ela existe, aparecerá ao
termo da pesquisa como um resultado; impossível colocá-lo no início como um
princípio. Será então uma continuidade rica c plena, a unidade de uma continui­
dade. a unidade dc nossa realidade, e não esta unidade abstrata e vazia, derivada
de uma generalização suprema, que seria a unidade dc qualquer mundo possível.
É verdade que então a filosofia exigirá um novo esforço para cada nevo proble­
ma. Nenhuma solução se deduzirá geometricamente dc uma outra. Nenhuma ver­
dade importante será obtida pelo prolongamento de uma verdade já adquirida.
Será preciso renunciar a possuir a cicncia universal virtualmemc num princípio.
A intuição de que falamos refere-se sobretudo à duração interior. Eia aprende
uma sucessão que não é justaposição, um crescimento por dentro, o prolonga­
mento ininterrupto do passado num presente que penetra no futuro. É a visão di­
reta do espírito pelo espírito. Mais nada interposto: nenhuma refração através do
prisma cujas faces são o espaço c a linguagem. Em lugar de estados contíguos a
estados, que se tornarão palavras justapostas a palavras, eis a continuidade indi­
visível. c por isso substancial, do fluxo da vida interior. Intuição significa, pois,
primeiramente consciência, mas consciência imediata, visão que quase não se dis­
tingue do objeto visto, conhecimento que é contado c mesmo coincidência. Ê tam
bém consciência alargada, pressionando a borda do inconsciente que cede e que
resiste, que se desvenda e que sc oculta: por via de rápidas alternâncias de obscu­
ridade c dc luz. cia nos faz constatar que o inconsciente lá está: contra a lógica
escrita ela afirma que. embora o psicológico seja o consciente, existe entretanto
um inconsciente psicológico. Não vai ainda mais longe? Que é ela senão a intui
ção dc nós mesmos? Entre nossa consciência e as outras consciências a separa­
ção é menos rígida do que entre o nosso corpo c os outros corpos, porque é no es­
paço que as divisões são bem marcadas. A simpatia e a antipatia irrefietidas, tão
frequentemente proféticas, sào um testemunho da interpcnctraçâo possível das
consciências humanas. Havería. pois, fenômenos de endosmose psicológica. A
intuição nos introduziría na consciência cm geral. Mas simpatizamos apenas com
consciências? Se todo ser vivo nasce, desenvolve-se e morre; se a vida c uma evo­
lução e sc a duração é uma realidade, não existe uma intuição do vital c,
consequentemente, uma metafísica da vida, que prolongaria a cicncia do vivente?
Sem dúvida, a ciência nos dará cada vez melhor a físico-química da matéria orga­
nizada: mas a causa profunda da organização, que — vemos bem — nâo entra
nem no quadro do puro mecanismo nem no da finalidade propriamente dita, nao
é nem unidade pura nem multiplicidade distinta; nosso entendimento sc podendo
caracterizá-la através de simples negações, nào a atingiremos rcinstaiando-nos
pela consciência no clã dc vida que existe cm nós? Vamos ainda mais longe. Para
além da organização, a matéria inorganizada nos aparece, sem dúvida, como
decomponível em sistemas sobre os quais o tempo desliza sem penetrar, sistemas
que sào objetos da ciência e aos quais o entendimento sc aplica. Mas o universo
material, cm seu conjunto, faz nossa consciência esperar. Ele mesmo espera.
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 115

Ou cie dura, ou é solidário da nossa duraçào. Quer ele se relacione ao espí­


rito por suas origens ou por suas funções, tanto num caso quanto no outro ele tem
a ver com a intuição por tudo o que contém de mudança e de movimento reais.
Cremos, precisamente, que a idéia de diferencial, ou melhor, de fluxào. foi suge­
rida à ciência por uma visão semelhante. Metafísica cm suas origens, tomcu-sc
científica na medida em que sc tomava rigorosa, isto é. exprimível em termos
estáticos. Enfim, a mudança pura, a duraçào real, é algo espiritual ou impregnado
de espiritualidade. A intuição é o que atinge o espírito, a duraçào. a mudança
pura. Sendo o espírito seu domínio próprio, ela desejaria ver nas coisas, mesmo
materiais, sua participação na espiritualidade — diriamos na divindade, senào
soubéssemos tudo o que de humano ainda se mescla à nossa consciência, mesmo
purificada c espiritualizada. Essa mistura de humanidade é o que faz com que o
esforço dc intuiçàu possa sc realizar cm níveis diferentes, sobre pontos diferentes,
c dar em diversas filosofias diversos resultados que não coincidem entre si. embo­
ra nào sejam de forma alguma inconciliáveis.
Que nào nos seja pedida, pois, uma definição simples c geométrica da intui­
ção. Seria fácil mostrar que tomamos a palavra em acepções que nâo se deduzem
matematicamente uma da outra. Um eminente filósofo norueguês assinalou qua
tro. Poderiamos achar mais.3 Daquilo que não é abstraio e convencional, mas
real e concreto, com mais razão daquilo que não pode scr reconstruído com
componentes conhecidos, da coisa que não foi scccionada no todo da realidade
pelo entendimento, nem pelo senso comum, nem pela linguagem, nào poderiamos
dar idéia a não ser abordando-a de múltiplos ponto de vista, complementares e
não equivalentes. Deus nos guarde de comparar o pequeno ao grande, nosso
esforço ao dos mestres I Mas a variedade das funções c aspectos da intuição, tal
como a descrevemos, nào é nada ao lado da multiplidade de significações que
assumem as palavras essência c existência cm Espinosa, ou os lermos forma,
potência c ato, etc., cm Aristóteles. Percorra sc a lista dc sentidos da palavra
Eidos no Index Aristotelians: ver-se á como diferem. Considerando-se dois que
estejam suficicntcmcntc afastados um do outro, tcr-sc-ia a impressão dc que
quase sc excluem. Eles nào se excluem porque a cadeia dc sentidos intermediários
os liga. Com o esforço necessário para abraçar o conjunto, perceberemos que
estamos no real, c nào diante dc uma essência matemática que poderia caber —
ela sim — numa fórmula simples.

Há, entretanto, um sentido fundamental: pensar intuitivamente é pensar na


duração. A inteligência parle ordinariamente do imóvel c rcconstrói bem ou mal
o movimento com imobilidades justapostas. A intuição parte do movimento,
coloca, ou melhor, percebe-o como a realidade mesma, c nâo\vc na imobilidade
mais que um movimento abstrato, um instantâneo tomado por nosso espírito na
mobilidade. A inteligência sc dá ordinariamente coisas, entendendo por isso o

' Sem, cnlreíuntu. incluir. tais quais. a$ quatro accpçòcs que dc acrcdnnu perceher. Aludimos aqui a ' laraM
Hoft'dinf.. íN.do A.)
116 BERGSON

estável, c faz da mudança um acidente que se acrescentaria à estabilidade.


Para a intuição o essencial é a mudança: quanto à coisa, tal como a inteligência
a entende, é um corte praticado no meio do devir e erigido por nosso espírito em
substituto da totalidade. O pensamento sc representa geralmente o novo como um
novo arranjo de elementos preexistentes: para ele nada se perde, nada se cria. A
intuição, ligada a uma duração que c crescimento, aí percebe uma continuidade
ininterrupta dc novidade imprevisível; ela vc. ela sabe que o espírito lira de si
mais do que contém, que a espiritualidade consiste precisamente nisto, e que a
realidade, impregnada dc espírito, é criação. O trabalho habitual do pensamento
é fácil de se prolongar tanto quanto quisermos. A intuição é penosa c difícil dc
prolongar. Na intelecçào, o pensamento utiliza, sem dúvida, sempre a linguagem:
e a intuição, como todo pensamento, acaba por se alojar em conceitos: duração,
multiplicidade qualitativa ou heterogênea, inconsciente - diferencial até. se
tomarmos a noção tal como era a princípio. Mas o conceito de origem intelectual
é imediatamente claro, ao menos para um espírito que pode esforçar se o sufi­
ciente. enquanto a idéia saída da intuição começa ordinariamente por scr obscu­
ra. seja qual for nosso esforço de pensamento. É que existem duas espécies dc
clareza.
Uma idéia nova pode ser clara porque nos apresenta, simplesmente numa
nova ordem, idéias elementares que jâ possuíamos. Nossa inteligência, não
encontrando no novo mais do que o antigo, scntc-sc cm terra conhecida: cia está
â vontade; cia “compreende”. Tal c a clareza que procuramos, que desejamos c
que acolhemos sempre de boa vontade. Há uma outra, a que nos submetemos, e
que somente sc impõe, aliás, a longo prazo. É a clareza da idéia radicalmcntc
nova c absolutamente simples, que capta mais ou menos uma intuição. Como não
a podemos reconstruir com elementos preexistentes, porque ela nào tem elemen­
tos. e como, por outro lado, compreender sem esforço consiste cm recompor o
novo como o antigo, nosso primeiro movimento é taxá-la de incompreensível.
Mas aceitemo-la provisoriamente, passeemos com ela pelos diversos departa­
mentos dc nosso conhecimento: nós a veremos, a ela. obscura, dissiparas obscu­
ridades. Através dela, problemas que julgamos insolúveis vão sc resolver, ou
antes, sc dissolver, seja para desaparecer definitivamente, seja para sc colocarem
de outra maneira. E cia se beneficiará do que tiver feito por estes problemas.
Cada um deles, intelectual, lhe comunicará um pouco dc sua intelectualidade.
Assim intelectualizada, ela poderá scr apontada novamente para os problemas
que a servirão, depois de se terem servido dela: dissipará, ainda mais, e obscuri­
dade que os envolvia, e tvrnar-se-á ela própria mais clara. íi preciso, pois, distin­
guir entre as idéias que guardam para si a sua luz. fazendo-a penetrar imediata­
mente até as partes mais profundas, c aquelas cuja luminosidade é exterior,
iluminando toda uma região de pensamento. Estas podem começar por ser inte-
riormente obscuras: mas a luz que projetam ao redor volta lhes por reflexão,
penetra-as cada vez mais proíundamente; e elas possuem então o duplo poder de
aclarar em torno delas e aclarar-se a si mesmas.
Entretanto, è preciso dar-lhes tempo. O filósofo nem sempre tem essa
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 117

paciência. Quão mais simples é prender-sc às noções armazenadas na linguagem!


Estas idéias foram forjadas pela inteligência de acordo com suas necessidades.
Correspondem a um recoric da realidade segundo as linhas que é preciso seguir
para agir comodamente sobre ela. O mais das vezes elas distribuem os objetos e
os fatos de acordo com a vantagem que possamos tirar deles, jogando arbitraria­
mente num só compartimento intelectual tudo o que atende à mesma necessidade.
Quando reagimos de modo idêntico a percepções diferentes, dizemos que estamos
diante de objetos “do mesmo gênero”. Quando reagimos cm sentidos contrários,
repartimos os objetos cm dois “gêneros opostos”. Será claro, pois, por definição,
o que sc puder alojar em generalidades assim, obtidas, obscuro o que aí não se
encaixar. Isto explica a inferioridade flagrante do ponto dc vista intuitivo na
controvérsia filosófica. Ouçamos a discussão dc dois filósofos dos quais um se
atém ao determinismo c outro à liberdade: é sempre o determinista que parece
estar com a razão. Ele pode ser novato, c seu adversário experimentado. Ele pode
defender displicentemente sua causa enquanto o outro sua sangue. Diremos sem­
pre do determinista que ele c simples, que ele c claro, que ele c verdadeiro. E ele
o é fácil c naturalmcntc. pois não tem mais que recolher pensamentos prontos e
frases feitas: ciência, linguagem, senso comum, a inteligência inteira está a seu
serviço. A critica dc uma filosofia intuitiva é tão fácil e sempre tào bem escolhida,
que ele sempre tentará o iniciante. Mais tarde poderá vir o arrependimento — a
menos, é claro, que haja uma incompreensão vasta e. por despeito, ressentimento
pessoal cm relação a tudo o que c propriamente espírito, a tudo o que não c redu-
tívc! à letra. Isto acontece porque a filosofia também tem seus escribas c seus
fariseus.
Assinalamos, pois, à metafísica um objeto limitado, principalmente o espíri­
to. e um método especial, antes de tudo a intuição. Assim distinguimos nitida­
mente a metafísica da cicncia. Mas assim também lhes atribuímos um icêntico
valor. Cremos que elas podem, uma e outra, tocar o fundo da realidade. Rejeita­
mos as teses, austentadas pelos filósofos, aceitas pelos cientistas, acerca da relati­
vidade do conhecimento c da impossibilidade de atingir o absoluto.
Com efeito, a ciência positiva sc dirige à observação sensível. Ela obtém
assim materiais cuja elaboração confia ã faculdade dc abstrair c dc generalizar,
ao juízo c ao raciocínio, à inteligência. Tendo partido, no passado, das matemá­
ticas puras, ela continuou através da mecânica, depois da física e da química:
chegou lardiamcntc à biologia. Seu domínio primitivo, que permaneceu como o
preferido, é o da matéria inerte. Ela está menos à vontade no mundo organizado,
onde somente caminha com passo seguro apoiando-se na física e na química: ela
prcndc-$e ao que há de físico-químico nos fenômenos da vida mais do que ao que
é propriamente vital no vivente. Mas seu embaraço é grande quando chega ao
espírito. Isto não quer dizer que ela nào possa obter aí algum conhecimento: mas
este conhecimento torna-se tanto mais vago quanto mais ela se distancia da fron­
teira comum ao espírito c à matéria. Neste novo terreno não sc avança, ccmo no
antigo, fiando-se unicamente na força de lógica. Sem cessar é preciso passar do
“esprit geométrique” ao “esprit dc finesse”: ainda resta algo de metafórico nas
lift BERGSON

fórmulas, por mais abstratas que sejam, que utilizamos, como se a inteligência
fosse obrigada a transpor o psíquico no físico para compreendê-lo e exprimi-lo.
Ao contrário, quando retoma à matéria inerte, a ciência que procede da pura inte­
ligência sente-se novamente “cm casa”. Isto nada tem de espantoso/ Nossa inteli­
gência é o prolongamento dos nossos sentidos. Antes de especular, c preciso
viver, e a vida exige que tiremos partido da matéria, seja com nossos órgãos, que
sâo utensílios naturais, seja com utensílios propriamente ditos, que sâo órgãos
artificiais. Bem antes que existisse uma filosofia e uma ciência, o papel da inteli­
gência jã era o dc fabricar instrumentos e guiar a ação do nosso corpo sobre os
corpos que nos circundam. A ciência levou este trabalho da inteligência muito
mais longe, mas não mudou a direção. Ela visa, antes dc tudo a nos torrar senho
res da matéria. Mesmo quando especula, ela se preocupa ainda com agir, sendo
o valor das teorias científicas sempre medido pela solidez do domínio da reali­
dade que nos proporcionam. Mas nào está aí. precisamente, o que nos deve inspi­
rar plena confiança na ciência positiva c também na inteligência, seu ins­
trumento? Se a inteligência c feita para utilizar a matéria, sua estrutura, sem dúvi
da. está modelada pela da matéria. Esta ê. ao menos, a hipótese mais simples e
mais provável. Devemos ater-nos a ela enquanto não nos for demonstrado que a
inteligência deforma, transforma, constrói seu objeto, ou atinge apenas a superff
cie. a aparência do objeto. Ora. sempre sc invocou, para esta demonstração, as
dificuldades insolúveis em que tomba a filosofia, a contradição da inteligência
consigo mesma, quando esta especula sobre o conjunto das coisas: dificuldades c
contradições a que c natural que cheguemos, com efeito, se a inteligência é espe-
cialmcnte destinada ao estudo dc uma parte, c sc pretendemos aplicá-la no conhe­
cimento do todo. Mas isto nào ê tudo. É impossível considerar o mecanismo dc
nossa inteligência, c também o progresso de nossa ciência, sem concluir que entre
a inteligência c a matéria há efetivamente simetria, concordância, correspon­
dência. Dc um lado, cada vez mais a materia sc resolve, aos olhos do cientista,
em relações matemáticas, e. de outro, as faculdades essenciais dc nossa inteli­
gência somente funcionam com precisão absoluta quando se aplicam à geome­
tria. Sem dúvida, a ciência matemática, cm sua origem, poderia nào ter romado a
forma que lhe deram os gregos. Sem dúvida também, ela deve sc restringir, seja
qual for a forma que adote, ao emprego dc signos artificiais. Mas anteriormente
a esta matemática formulada, que encerra uma grande parte de convenção, há
uma outra, virtual ou implícita, que é natural no espírito humano. Sc a necessi­
dade de operar com certos signos toma as matemáticas, num primeiro momento,
difíceis para muitos de nós. em troca, uma vez ultrapassado este obstáculo, o
espírito se move neste domínio com uma facilidade que ele nào tem em nenhum
outro, pois a evidência aqui c imediata c teoricamente instantânea, o esforço dc
compreensão existindo o mais das vezes de fato, mas nào de direito: em todas as
outras ordens dc conhecimento, ao contrário, c preciso, para compreender, um
trabalho de maturação do pensamento que permanece, de alguma forma, aderente
ao resultado, corresponde cssencialmcntc a uma duração, e nào poderia ser con­
cebido. mesmo teoricamente, como instantâneo. Em suma, poderiamos crer numa
separação entre a matéria e a inteligência, sc considerássemos, no que se refere à
matéria, apenas as impressões superficiais deixadas cm nossos sentidos, e se
O PENSAMENTO E O MOVENTE(INTRODUÇÃO) 119

concedéssemos à inteligência apenas a forma vaga e vaporosa que ela possui cm


suas operações cotidianas. Mas quando devolvemos à inteligência seus contornos
precisos c quando aprofundamos suficientemente nossas impressões sensíveis
para que a matéria comccc a nos mostrar o interior de sua estrutura, vemos que
as articulações da inteligência vêm aplicar-se exatamcnlc sobre as da matéria.
Nao vemos, pois, por que a ciência da matéria não atingiría um absoluto. Ela se
atribui instintivamente este alcance, e toda crença natural deve ser tida por verda­
deira, toda aparência por realidade, enquanto nao for estabelecido o caráter ilusó­
rio desta crença ou desta aparência. Àqueles que declaram nossa ciência relativa,
àqueles que pretendem que nosso conhecimento deforma ou constrói seu objeto,
a esses incumbe, pois, o ônus da prova. E disso nào poderíam sc dcsincumbir.
porque a doutrina da relatividade da ciência nào encontra mais onde se alojar
quando ciência c metafísica cstào cm seu verdadeiro terreno, aquele onde as
recolocamos. *

* Nem i preciso cíizcr que .1 rclarividadc dc que falamos aqui para excluí-la da ciência considerada nc limite,
isto é. para dcsc.nn.ir um erro acerca da direção do progresM» científico, nada tem 3 ver com a dc lunstein.
O método emsteiniano eondste csscncialmcntc cm procurai uma representação matemática da* coisas que
seja independente do pomo dc vímu do observador (ou. mai* precisamente, do sisicma dc referência) c que
constitua. çunwqucnicmcnic, um cunjuiilo dc rcla\va absuluiaí. Nada dc mais contrario à rclativicadc t3l
como a entendem 0$ filósofos quando lèm por relativo nosso conhecimento do mundo exterior. A expressão
“Teoria da Relatividade" lent o inconveniente dc sugerir aos filósofos o inverso do que se quer aqui exprimir.
Acrescentemos, a respeito da teoria dn Rclniividade. quv nào se podería invoçà In nem contra nem a favor
da nichifisica cxposin cm nossos ii,rcreniv. trabalho*. metafísica que tem como centro a experiência da dura
çãu com u cunsiuuçào dc uma cena rviaçào entre esso duração c o espaço empregado pura medili. Para
colocar um problema, o físico, relativist» 011 não, toma sua* medida* nesse tempo, que é o nosso, que c u dc
lodo mundo. Sc ele resolve o problema, e nesse mesmo Tempo, no Tempo dc todo inundo, que ele verificará
sua solução Quanto ao tempo amnlpamndo com o espaço, quarta dimensão de um 1'xpaço Temps*, m» tem
s'xisicnci;i n<> intervalo entre a posição do problema c sua solução, isto c. nu cálculo, sobre a papel, enfim.
Nçm por isto a concepção rclativista deixa dc icr utnu impen tânci.i capilal. pelo reforço que cia tra/ ;i tísica
matemática. Mas pur.-tmrnir nutiemàtic.i c a realidade dc seu Espaço Tempo, e não poderiamos crigi Io em
realidade mctnlísica. ou cm "renlidade" simplesmente, sem atribuir » eslti última palavra uma significação
nova
Com efeito, designa sc cunt este nome, a mais frcqiícntemcniç. o que c d.ido numa experiência. uu o que
poderio sc Io: c real o que c constatado ou consl.uávcl. Ora. c dn essência mesma do Kspaço-Tcmpo o nào
poder ser percebido. Nào poderiamos aí *er colocados, ou nos colocarmos, pois o sistema dc rcfeièn.*i:c que
sc udoia. ê. i»ir definição, uni sistema imóvel. pois neste sistema Espaço c Tempo são distinto*, c o físico
cfciivamcnte existente, cfehvmmmiv medido, ê o que ocupa c>tc iiiccma: todos <>* outros stxtemn* rúo *ào
mais do que físico* imaginado* por dc. Há algum tempi’ consagramos um hvro â demonstração doses dtfc
rentes pontos.
Nào podemos resumi Io numa simples nota. Mas como o livro foi frequentemente mal compreendido, cremos
reproduzo aqui a pu>*agcm tóscncml dc um artigo cm que damos a razão desta incompreensão, E.s aqui,
com efeito, o ponto que ordinal iumcntvcicapj àquele* que. uanspeirtundei-sc da física para 3 mctalisica.cn
gem em realidade, isto c. cm coisa percebida ou perceptive), existindo nntes e depois do cálculo, um misto de
Espaço c dc Temps* que m» existe durante o calculo c que. fora do cálculo, renunciaria à sua essência no iox
tante mesmo em que se pretendería constatar sua existência.
Sena preciso, com efeito, dizíamos, começar por compreender por que. na hipolcsc dn Relatividade, e impôs
nível relacionar, ao mesmo tempo, dois observadores "vivos e conscientes" n vários sistemas diferentes, por
que um só sistema — aquele que e efeiivnmcntc adulado como sistema dc referencia - contem físiccs reais,
por que sobretudo a distinção entre u físico real c 0 físico representado como real toma uma imputlància
capital na interpretação filosófica desta teoria, ao passo que até aqui u filuxifiu não .sc tinha visto na contin­
gência dc sc preocupar com tal coisa na interpretação da fisica. A razão, entretanto, c muito simples.
Do ponto Jc vista da física ncwtoniuna. por exemplo, há um sistema dc rcfercnciu absolutamcntc privilc
120 BERGSON

Reconhecemos, aliás, que os quadros dc inteligência possuem uma certa


elasticidade, seus contornos alguma leveza, e que sua indecisão é justamente o
que lhe permite aplicar-se em certa rnedida às coisas do espírito. Matéria e espí
rito apresentam um lado comum, porque certos movimentos superficiais dc maté­
ria vèm exprimir-se em nosso espírito, superficialmente, em forma de sensações:
por outro lado, o espírito, para agir sobre o corpo, deve dcsccr gradativamcnlc na

giadv. um repouso absoluto e movimentos absolutos. O universo aC vumpòe. entào. a uxlo instante. dc pon
tos maierimj. dos quais uns são imóveis c outros animados fx»r movimentos perfeitamente detenrmados. Este
universo possui. pois, cm si mesmo, no Espaço c no Tempo, uma figura concreta que nào deperde do pomo
de viwa em que o físico sc coloca: todos O$ lísicos. seja qual for o sistema <k referenda móvel ao qu.il pcricn
çam. sc reportam pelo pensamento ao sistema dc referência privilegiado e atribuem ao universo a figura que
dele veriamos percebendo o assim no absoluto. Sc. |k>ís. u físico por cxçclcticta é aquele que habita o sisiema
privilegiado, não ê t» caso aqui dc sc estabelecer um:i distinção radical entre esle lísico c os outros. pois os
outros procedem como se estivessem cm seu lugar.
Mas. na Teuriu da Rchtiividadc. nào há mais sistema privilegitidu. Todos os sistemas valem igunlmcntc.
Qualquer um dentre eles se pode erigir cm sistema de referência, portanto imóvel. Em relação a este sistema
dc referenda. iodos os pontos materiais do univcrxi estarão uns imóveis, outros .-mimados por moviiitcnlux
determinado» mas xrá apenas cm relaçào a este sistema. Adote sc ouiro: u imóvel p.tssará a sc mover, o
movimento sc imobihza ou muda dc velocidade*, a figura concreta do universo mudará rndiciibsentc. Entic
tanto. o universo nào poderia (cr a nossos alhos estas duas figuras simultaneamente: o mesmo p*mo material
nào pode ser imaginado ou concebido no mesmo tempo imóvel c movetite f preciso escolher: c 10 momento
cm que sc tiver escolhido alguma figura dcicniuuuda. erigir &e ú cm físico vivo c consciente. percebendo rc.il
mente, o lísico ligado ao xtsicma de referência a partir do qual o universo assume esta figura: os outros fisi
eus. tais como aparecem na figura do universo assim escolhida, sào entào físicos virtuais, stmpksmcnic con
eebidos como físicos pelo físico real. Sc conferirmos u um deles (enquanto fisico) uma rc.-didaile. sc i»
supormos percebendo. agindo, medindo, wu mmchui c um sistema dc referência núo mais vírtuil. nào mais
simplesmente concebido como podendo tornar x um sistemn real, mas sim como mn sistema de tcferêncw
real; ele c entào imóvel, c uma nova figura do mundo se desenha; c u físico real dc que fnlãvam.x há pouco
nâo v mais do que um lísico representado.
I.cngcvin exprimiu cm termos definitivos .1 própria essência da Teoria d.n Relatividade quando escreveu que
“o pnncipio dn Relatividade. sob :> forma ivsirim ou sub a forma geral, não c nuns, no fundo, d» que d ufn
maçào da cxistcncia de uma rcahdudc independente dos sistemas dc referênem, n pai tit dos quais observa-
mus suas perspectivas mutáveis. liste universo jxzsvui leis às quais o emprego dc coordenadas permite dur
um» futnr.i analítica independente do sistema dc referencia, sc bem que ux coordenadas individuais dc cadn
sistema dependam dele, mas é possível exprimir sob forma intrínseca, como u geometria o faz cn iclaçâu ao
espaço, ginças ã introdução dc elementos invariances e à constituição dc uma linguagem apropriada". l:m
outros termos, o universo Un Relatividade è um universo táo real, tão independente dc íiusmi espirito. t;io
ubsidutiimenic existente qu.inio o de Newton c o do omiuui di>» liuincns; somente que. enquanto para a
comum dos homens c mcsfflu para Newton este universo c um conjunto de coitas (mesmo se a fiúca se limita
a estudar 11 relação entre essas coisas), o universo dr l-invicin é apenas um conjunto dc relações (K demon
tos invariants que «e têm aqui por constituintes da realidade sào expressões em que entium parâmetros que
uo lidos como o que se quiser, quemío icpiesentum inuis o Tempoco Espaço do que nâo importa o que:
pois c a cciaçàu entre eles que existe uniemnente. aos olhos da ciência, pois nào há mats Tempo icm Espaço
sc nào há mais çuúax. -se o universo nâo tem figura. P.-irn restabelecer u& coisas. c. conwqiicntcmcnie. o
Tempo e o Espaço (como 0 fazemos necessariamente cada vez que queremos nos informar acerca dc um
evento Rsico determinado, percebido cm pontos determinados do l-.spaço c do Tempo, e furçox restituir ao
mundo uma liyuruç mus. entào. é aí que escolhemos um ponto dc vista, adotamos um sistema d: referencia.
O sistcmn que tivermos escolhido torna-se. por isto mesmo, o sistema central. .A Teoria da Relatividade tem
prccisamcntc |xi< essência o fino dc nos garantir que u expressão matemática do mundo que temos a partir
dcslc ponto dc vista arhtttariatnentc escolhido será idêntica, xc nos conformarmos às regras per eh postas,
aquela que leriamos colocando nos em qualquer outro ponto de vista. Nâo 1 ciemos inub do que esta expres­
são matemática. nâo há muis lempo. Hcxi.nirrmas o Tempo, c resiuticlccci ciiiux ;■» coisas, mas tacmos caco
Ihidü um sistema dc referencia c ü fisícu u de tigudo. Nào pode haver outro no momento, embera qualquer
ouuo pudesse ler sido c»'vllndu.(N. do A.)
diruçào da matéria c cspacializar-se. Segue-se daí que a inteligência, embora vol­
tada para as coisas exteriores, pode ainda exercer-se nas coisas interiores, con­
tanto que não pretenda aí penetrar muito profundamente.
Mas é grande a tentação de levar até o fundo do espírito a aplicação dc mc
todos que se mostram eficientes ainda um pouco além da superfície. Se nos dei­
xarmos levar nesta via. obteremos muito simplesmente uma física do espírito, cal­
cada na do corpo. Juntas, essas duas físicas constituirão um sistema completo da
realidade, o que chamamos, às vezes, uma metafísica. Como nào ver que uma
metafísica assim entendida despreza o que o espírito tem dc propriamente espiri
tual. não sendo mais do que a extensão ao espírito do que pertence à matéria? E
como nào ver que. para tornar esta extensão possível, devemos tomar os quadros
da inteligência num estado de imprecisão tal que lhes permita aplicar-se ainda
aos fenômenos superficiais da alma, mas que lhes condena a seguir de menos
perto os fatos do mundo exterior? Ê surpreendente que uma tal metafísica, abar­
cando dc uma vez a matéria c o espírito, mostre-sc um conhecimento quase vazio
c em lodo caso vago — quase vazio do lado do espírito, pois ela nào pode reter
da alma senão os fenômenos superficiais, sistematicamente vago no que sc refere
à matéria, pois a inteligência do metafísico teve de afrouxar seus liames. deixar
um espaço dc jogo suficiente para poder trabalhar indifcrcntcmcntc na superfície
da matéria c na superfície do espírito?
Bem diferente é a metafísica que colocamos ao lado da ciência. Reconhe­
cendo à ciência o poder dc se aprofundar nu matéria somente pela força da inteli­
gência. ela se reserva o espirito. Neste terreno, que lhe é próprio, cia tentaria
desenvolver novas funções do pensamento. Todos já tiveram ocasião dc notar que
é mais difícil avançar no conhecimento de si do que no do mundo exterior. Fora
de si. o esforço para aprender c natural: nós o praticamos com uma facilidade
crescente: aplicamos regras. Em relação ao interior, a atenção deve permanecer
tensa e o progresso torna-se cada vez mais penoso: quase acreditaríamos ir con­
tra a natureza. Não há nisto algo dc surpreendente? Somos interiores a nós mes­
mos e nossa personalidade é o que deveriamos conhecer melhor. Nada disso;
nosso espírito movc-sc aí como cm terra estrangeira, enquanto a matéria lhe c
familiar c nela ele sc sente em casa. Mas acontece que uma certa ignorância de si
talvez seja útil a um ser que deve exteriorizar-se para agir: responde a uma neces­
sidade da vida. Nossa açao se exerce sobre a matéria, c ela é tanto mais eficaz
quanto levemos o conhecimento da matéria mais longe. Sem dúvida, é vantajoso,
para agir corrctamcnte. pensar no que sc vai fazer, compreender o que sc faz.
representar sc o que se poderia ter feito: a natureza a isto nos convida: é um dos
traços que distinguem o homem do animal, este voltado inteiramente para a
impressão do momento. Mas a natureza nào nos pede mais do que uma olhadela
ao interior de nós mesmos: percebemos cnlão o espírito, mas o espírito preparan
do-sc para agir sobre a matéria, adaptando-sc antecipadamente a cia. dando-se
não sei que de espacial, de geométrico, dc intelectual. Um cohhecimenlo do espí­
rito. no que ele tem de propriamente espiritual, nos afastaria do objetivo. Aproxi-
122 BERGSON

mamo-nos. ao contrário, quando estudamos a estrutura das coisas. Assim a natu­


reza desvia o espírito do espírito, empurra-o na direção da matéria. Mas por aí
vemos como poderemos, se quisermos, alargar. aprofundar, intensificar indefini­
damente a visão do espírito que nos foi concedida. Já que a insuficiência dessa
visão vem primeiramente de que ela se dá em relação a um espírito já “espaciali-
zado” e distribuído cm compartimentos intelectuais em que a matéria se vai inse­
rir. libertemos o espírito do espaço que o aprisiona, da materialidade que ele se dá
para agir .sobre a matéria: nós o devolveremos a si mesmo e nós o apreenderemos
imediatamente. Esta visão direta do espírito pelo espírito c a função principal da
intuição tal como a compreendemos.
A intuição, aliás, somente será comunicada através da inteligência. Ela é
mais que idéia, ela deverá, todavia, para lograr transmitir-sc. cavalgar algumas
idéias. Ao menos, ela se dirigirá dc preferência às idéias mais concretas, rodeadas
ainda por uma franja de imagens. Comparações e metáforas sugerirão aqui o que
não poderemos chegar a exprimir. Não será um desvio: não faremos mais do que
ir direto ao objetivo. Sc falássemos constantemente uma linguagem abstrata, isto
é. “científica”, somente danamos ao espírito sua imitação pela matéria, porque as
idéia abstratas foram tiradas do mundo exterior c implicam sempre uma represen­
tação espacial: c. entretanto, acreditaríamos ter analisado o espírito. As idéias
abstratas por elas mesmas nos fariam representar o espírito segundo o modelo da
matéria c pensâ lo por transposição, isto é. tio sentido preciso da palavra, por
metáfora. Nâo sejamos enganados pelas aparências: há casos cm que c a lingua­
gem imagelica que fala conscientemente com propriedade e a linguagem abstrata
que fala inconscientcmcntc dc maneira figurada. Quando abordamos o mundo
espiritual, a imagem, se ela não faz mais do que sugerir, pode dar-nos a visão
direta, enquanto o termo abstraio, que c dc origem espacial c que pretende expri
mir. deixa-nos frcqücntcmcntc no domínio da metáfora.
Para resumir, queremos uma diferença dc método, não admitimos uma dife­
rença de valor entre a metafísica e a ciência. Menos modestos em relação à ciên­
cia do que o foi a maior parte dos cientistas, estimamos que uma ciência fundada
na experiência, tal como os modernos a entendem, pode atingir a essência do real.
Sem dúvida, ela abarca somente uma parte da realidade; mas desta parte cia
poderá um dia chegar ao fundo; cm todo caso, ela sc aproximará indefinidamente
dele. Ela cumpre, então, metade do programa da velha metafísica: metafísica ela
se poderia chamar, se nào preferisse conservar o nome ciência. Resta a outra
metade. Esta nos parece pertencer de direito a uma metafísica que pane igual­
mente da experiência, c que pode, também, atingir o absoluto: nós a chamaríamos
ciência, se a ciência não preferisse limitar-se ao restante da realidade. A metafí
sica não é superior à ciência positiva; cia não vem. depois da ciência, considerar
o mesmo objeto e obter um conhecimento mais alto. Supor entre elas esta relação,
como o faz a maior parle dos filósofos, c scr infiel a uma e a outra: à ciência
condenando-a à relatividade: à metafísica, tornando-a um conhecimento hipoté­
tico c vago, já que a ciência terá necessariamente conhecido o objeto, antecipada­
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 123

mente, de maneira precisa e certa. Bem diferente é a relação que estabelecemos


entre metafísica c ciência. Cremos que elas sào. ou que elas podem tomar-se.
igualmentc precisas e certas. Uma e outra referem-se à própria realidade. Mas
cada uma retém a metade do real, de modo que poderiamos ver nelas, á escolha,
duas subdivisões da ciência ou dois departamentos de metafísica, se elas nào mar­
cassem duas direções divergentes da atividade do pensamento.
Justamente porque cias estão no mesmo nível, têm pontos em comum e
podem, cm relação a esses pontos, verificarem-se uma pela outra. Estabelecer
entre a ciência e a metafísica uma diferença de dignidade, assinalar-lhes o mesmo
objeto, isto é, o conjunto das coisas, estipulando que uma olhará dc baixo e outra
do alto, é excluir a ajuda mútua e o controle recíproco: a metafísica torna sc
então necessariamente — a menos que perca todo contato com a realidade — um
extrato condensado de uma extensão hipotética da ciência. Deixemos-lhes, ao
contrário, objetos diferentes. à ciência a matéria e â metafísica o espírito: como
espírito e matéria se tocam, metafísica e ciência vào poder, ao longo da face
comum, pôr-se mutuamente à prova, esperando que o contato sc tome fecunda
çào. Os resultados obtidos nos dois domínios deverão se encontrar, da mesma
forma que a matéria encontra o espírito. Se a inserção não é perfeita, será porque
há algo a corrigir na nossa ciência, ou na nossa metafísica, ou nas duas. A metafí­
sica exercerá, assim, através dc sua parte periférica, uma influencia salutar sobre
a ciência. Inversamente, a ciência comunicará à metafísica hábitos de precisão
que sc propagarão, na metafísica, da periferia para o centro. Ainda que seja por­
que suas extremidades deverão se aplicar exatamente sobre as da ciência positiva,
nossa metafísica será aquela do mundo cm que vivemos, e não dc todos os mun
dos possíveis. Ela abraçará as realidades.
Quer dizer que ciência e metafísica sc diferenciarão pelo objeto c pelo méto
do. mas sc comunicarão na experiência. Uma c outra terão descartado o conheci­
mento vago que é armazenado nos conceitos usuais e transmitido pelas palavras.
Que exigimos da metafísica, senão o que já foi obtido pela ciência? Durante
longo tempo o caminho das ciências foi barrado pela pretensão dc reconstituir a
realidade com conceitos depositados na linguagem. O “baixo" c o “alto'*, o “pe
sado” e o “leve”, o “seco** c o “úmido”, eram os elementos dc que sc servia para
explicar os fenômenos da natureza: pesavam-sc. dosavam se, combinavam-sc os
conceitos: era, à guisa de física, uma química intelectual. Quando descartou os
conceitos para olhar as coisas, a ciência parece • - também ela — insurgir-se
contra a inteligência: o “intelectualismo” de então recompunha o objeto material.
a priori, com idéias elementares. Na realidade, esta ciência tornou-se mais
intclectualísta do que a má física que cia substituiu. Ela o devia tornar-se se cia
era verdadeira, pois matéria e inteligência estão modeladas uma pela cutra. e
numa ciência que desenha a configuração exata da matéria nossa inteligência
reencontra necessariamente sua própria imagem. A forma matemática que a físi­
ca tomou c. assim, ao mesmo tempo, aquela que responde melhor à reakdade e
aquela que mais satisfaz a nosso entendimento. Bem menos cômoda será a posi-
124 BERGSON

çào da verdadeira metafísica. Ela também começará por expulsar os conceitos


“feitos”: ela também apelará para a expcricncia. Mas a experiência interior nunca
encontrará uma linguagem estritamente apropriada para eia. Forçosamente terá
que retornar ao conceito, ajuntando-lhe então uma imagem. Mas para isto será
preciso que cia alargue o conceito, que ela o torne flexível, que ela anuncie, pela
franja colorida com que o rodeará, que ali nào está contida toda a experiência.
Nào será menos verdadeiro, por isto, que a metafísica terá realizado em seu
domínio a reforma que a física levou a cabo no seu.
Que não sc espere desta metafísica conclusões simples ou soluções radicais.
Isto seria pedir lhe que se aiivesse ainda a uma manipulação dc conceitos. Seria
também deixá Ia na regiào do puro possível. No terreno da experiência, ao
contrário, com soluções incompletas c conclusões provisórias, ela atingirá uma
probabilidade crescente que poderá equivaler finalmcntc à certeza. Tomemos um
problema que colocaremos nos termos da metafísica tradicional: a alma sobre­
vive ao corpo? Ê fácil trabalhá-lo raciocinando com puros conceitos. Definir-sc-á
então alma. Diremos, com Platão, que ela é simples. Concluiremos que ela não
poderá desaparecer. Logo, cia c imortal. Nada mais simples. Apenas, a conclusão
só vale para quem aceita a definição, quer dizer, a construção. Ela está subordi­
nada a esta hipótese. Ela é hipotética. Mas renunciemos a construir a .deia dc
alma como construímos a idéia de triângulo. Estudemos os fatos. Se a experiência
estabelece, como o cremos, que somente uma pequena parte da vida consciente c
condicionada pelo cérebro, daí sc seguirá que a supressão do cérebro deixa
aparentemente sobreviver a vida consciente. Ao menos o ônus da prova incumbi­
rá agora a quem nega a sobrevivência, muito mais do que àquele que afirma.
Tratar-sc-á apenas de sobrevivência; concordo: seria preciso outras razões. tira­
das desta vez da religião, para sc chegar a uma precisão maior e para atribuir a
esta sobrevivência uma duraçào sem fim. Mas, mesmo do ponto de vista pura-
mente filosófico, não havería mais o se: afirmaríamos categoricamente — isto é,
sem subordinação a uma hipótese metafísica o que afirmamos, mesmo que o
afirmássemos como provável. A primeira tese linha a beleza do definitivo, mas
estava suspensa no ar, na região do simples possível. A outra é inacabada, mas
tem sólidas raízes no real.
Uma ciência nascente está sempre pronta a dogmatizar. Dispondo dc uma
experiência restrita, ela opera menos sobre fatos do que sobre algumas idéias sim­
ples. sugeridas ou não pelos fatos, as quais ela trata então dedutivamenx*. Mais
do que nenhuma outra ciência, a metafísica estaria exposta a este perigo. É preci­
so todo um trabalho dc desobstrução para abrir os caminhos da experiência inter­
na. A faculdade de intuição existe em cada um de nós. mas recoberta por funções
mais úteis à vida. O metafísico trabalha então, a priori, com conceitos antecipa
damente depositados na linguagem, como se. descidos do céu. eles revelassem ao
espírito uma realidade supra-sensível. Assim nasceu a teoria platônica das idéias.
Levada pelas asas do arisioiclismo e do neoplatonismo, ela atravessou a Idade
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 125

Média: inspirou, por vezes contra a vontade deles, os filósofos modernas. Estes
eram frequentemente matemáticos, c seus hábitos de espírito os inclinavam a ver
na metafísica apenas uma matemática mais vasta, abarcando a qualidade ao
mesmo tempo que a quantidade. Assim se explicam a simplicidade geométrica e
a unidade da maior parte das filosofias, sistemas completos dc problemas definili
vamente postos, integralmente resolvidos. Mas nào é esta a única razão. É preciso
levar em conta que a metafísica moderna sc propôs um objeto análogo ao da reli
giào. Ela partiu dc uma concepção da divindade. Quer confirmasse ou contra­
riasse o dogma, ela acreditava-se na obrigação de dogmatizar. Ela linha, embora
fundada apenas na razão, a segurança dc julgamento que o teólogo tem. fundado
na revelação. Podemos perguntar, é verdade, por que ela escolheu este ponto de
parlida. Mas é que nào dependia dela escolher outro. Como ela trabalhava fora
da experiência, sobre puros conceitos, forçosamente tinha de apoiar-sc num con­
ceito do qual se pudesse deduzir tudo e que contivesse tudo. Tal era justamente a
idéia que ela sc fazia a respeito de Deus.
Mas por que a metafísica fazia esta idéia dc Deus? Que Aristóteles tenha
chegado a fundir todos os conceitos num só. e a colocar como princípio dc cxpli
cação universal um Pensamento do Pensamento, parente próximo da Idéia platô­
nica do Bem. que a filosofia moderna, continuadora da dc Aristóteles, lenha
seguido um caminho análogo, isto a rigor sc compreende. O que sc compreende
menos é que sc tenha chamado deus a um princípio que nada tem em comum com
o que a humanidade sempre designou com esta palavra. O deus da mitologia anti­
ga e o Deus do Cristianismo certamcntc não sc parecem, sem dúvida, mas a um
e outro são dirigidas preces, um e outro se interessam pelo homem: estatica ou
dinâmica, a religião tem este ponto corno fundamental. E. entretanto, a filosofia
chama Deus, um Scr cuja essência o condenaria a nào levar cm nenhuma conta
as invocações humanas, como sc. abarcando teoricamente todas as coisas, ele
fosse, dc fato, cego para nossos sofrimentos e surdo às nossas preces. Aprofun
dando este ponto, encontraríamos a confusão, natural ao espírito humano, entre
uma idéia explicativa c um princípio agente. As coisas remetidas aos seusconcci
tos, os conceitos organizados entre si. chega se finalmcntc a uma idéia das idéias,
pela qual se imagina que tudo sc explica. Na verdade, cia nào explica muita coisa,
primeirameate porque aceita a subdivisão e a repartição do real cm conceitos que
a sociedade consignou na linguagem, o que foi feito na maior parte das vezes
visando simplesmente à comodidade; cm segundo lugar porque a síntese que esta
idéia das idéias opera dc seus conceitos é vazia de matéria e puramente verbal.
Pergunta-se como este ponto essencial escapou a filósofos profundos, e como
puderam eles crer que caracterizavam, fosse no que fosse, o princípio erigido por
eles em explicação do mundo, embora sc limitassem a representa lo convencio-
nalmcnte por um signo. Dizíamos mais acima: qualquer que seja o nome que
demos à “coisa em si", quer a chamemos a Substância de Espinosa, o Eu de Fich
w. o Absoluto de Schelling, a ideia de Hegel, ou a Vontade de Schopenhauer, a
palavra sc apresentará sempre com a significação bem definida: ela a perdera, ela
126 BERGSON

$e esvaziará de toda significação, se a aplicarmos à totalidade das coisas. Para


nào falar senão da última dessas “sínteses”, nào c evidente que uma vontade só é
vontade com a condição de se referir àquilo que nào quer (que nào tem vontade)?
Como então o espírito sc referirá à matéria, sc a própria matéria c vontade? Pôr
a vontade em tudo equivale a nào deixá-la em lugar algum, porque significa iden­
tificar a essência do que eu sinto em mim — duração, jorro impetuoso, criação
contínua — com a essência do que percebo nas coisas, onde ê evidente que há
repetição, previsibilidade, necessidade. Pouco mc importa que se diga “Tudo c
mecanismo” ou “Tudo é Vontade”: nos dois casos confunde-se tudo. Nos dois
casos, “mecanismo” c “vontade” tomam-se sinônimos de “ser” e. por conse-
qiiência. sinônimos um do outro. Aí está o vício inicial dos sistemas filosóficos.
Eles crêem nos informar acerca do absoluto dando-lhe um nome. Mas. ainda uma
vez. uma palavra pode ter um sentido definido quando ela designa uma coisa; ela
o perde quando a queremos aplicar a todas as coisas. Ainda uma vez., eu sei o que
c vontade sc entender por isto minha faculdade dc querer, ou a dos seres que são
semelhantes a mim. ou mesmo o impulso vital dos seres organizados, suposto
então como análogo ao meu elà dc consciência. Mas quanto mais sc aumentar a
extensão do termo, menor será a compreensão. Sc englobarmos em sua extensão
a matéria, esvaziaremos sua compreensão dos caracteres positivos pelos quais a
espontaneidade sc relaciona com o mecanismo, e a liberdade com a necessidade.
Quando, por fim. a palavra passa a designar o que existe, ela não significa mais
do que a existência. Que ganhamos cntào ao dizer que o mundo c vontade, cm
lugar de constatar simplesmente que ele existe?
Entretanto, o conceito de conteúdo indeterminado, ou melhor, sem conteú
do. que sc atingiu dessa maneira, e que não c mais nada, deseja se que ele seja
tudo. Faz-se então apelo ao deus da religião, que é a determinação mesma c. ade­
mais, essencialmente agente. Ele está no mais alto grau do ser: fazsc coincidir
com ele o que se toma, bem indevidamente, pelo mais alto grau do conhecimento.
Alguma coisa da adoração c do respeito que a humanidade dispensa a esse deus
passa então ao princípio que decoramos com o seu nome. F. daí vem. em grande
parte, o dogmatismo da filosofia moderna.
A verdade é que uma existência só pode scr dada numa experiência. Esta
experiência se chamará visão ou contato, percepção exterior cm geral, se se trata
de um objeto material: ela tomará o nome de intuição quando se tratar do espíri­
to. Até onde vai a intuição? Somente cia mesma poderá dizer. Ela descobriu um
fio: cabe a ela saber se este fio chega até o céu ou somente até alguma distância
da terra. No primeiro caso, a experiência metafísica se aproximará daquela dos
grandes místicos: cremos constatar, por nossa pane, que aí se encontra a verdade.
No segundo caso, elas permanecerão isoladas uma da outra, sem por isto sc
repugnarem mutuamente. Dc qualquer maneira, a filosofia nos terá elevado
acima da condição humana.
Eia nos liberta, já. de uma certa servidão especulativa quando pôs o pro­
blema do espírito em termos de espírito e não mais de matéria, quando, de uma
maneira geral, nos dispensa de empregar conceitos num trabalho para o qual a
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 127

maior parte deles não foi feita. Estes conceitos estão inclusos nas palavras. Eles
foram, frequentemente, elaborados pelo organismo social em vista dc um objeto
que nada tem de metafísico. Para formá-los. a sociedade recortou o real segundo
suas necessidades. Por que a filosofia aceitaria uma divisão que tem toda proba­
bilidade de nao corresponder às articulações do real? Entretanto, ela a aceita
ordinariamente. Ela aceita o probicma tal qual ele é posto pela linguagem. Por
isto cia sc condena antecipadamente a receber uma solução pré fabricada, ou
melhor, a escolher simplesmente entre duas ou três soluções, as únicas possíveis,
que são coextensivas a esta posição do problema. Seria o mesmo dizer que toda
verdade é já virtualmcntc conhecida, que o modelo está depositado nos cartões
administrativos da cidade, c que a filosofia é um quebra-cabeça, cm que se trata
de reconstituir, com as peças que a sociedade nos fornece, o desenho que ela nào
nos quer mostrar. O mesmo seria dizer que o filósofo faz o papel do aluno, que
busca a solução pensando que uma olhadela indiscreta lha mostraria, anotada
junto ao enunciado, no caderno do professor. Mas a verdade c que sc trata, em
filosofia c mesmo alhures, de encontrar o problema c consequentemente de colo­
cado. mais do que dc rcsolvc-lo. Pois um problema especulativo está resolvido no
momento em que for bem enunciado. Quero dizer que a solução está então perto,
sc bem que ela possa permanecer velada c. por assim dizer, coberta: restaria ape­
nas descobri-la. Entretanto, enunciar o problema não é somente descobrir, é
inventar. A descoberta relaciona se ao que jã existe, atual ou virtualmenw. ccrta-
mente ela viria cedo ou tarde. A invenção doa o ser ao que nào era. ela poderia
nào vir jamais. Já nas matemáticas, com mais razão cm metafísica, o esforço de
invenção consiste frequentemente em suscitar o problema, em criar os termos nos
quais ele se colocará. Posição e solução do problema estão aqui bem próximos de
se equivaler: os problemas verdadeiramente grandes nào são postos senão quan­
do são resolvidos. Mus muitos problemas pequenos estão no mesmo caso. Tome­
mos um tratado elementar de filosofia. Um dos primeiros capítulos trata do pra­
zer c da dor. Coloca-se ao aluno uma questão como esta: ”0 prazer é ou não é
a felicidade?” Mas seria preciso primeiramente saber sc prazer c felicidade são
gêneros correspondentes a uma divisão natural das coisas. Rigorosamente, a
frase poderia significar apenas isto: ‘'Dado o sentido habitual dos termos prazer
c felicidade, deve-se dizer que ao prazer segue sc a felicidade?” Então, c uma
questão dc léxico que se coloca; nào será resolvida senão pesquisando como as
palavras ’’prazer” e ’‘felicidade” foram empregadas pelos escritores que melhor
manejaram a língua. Será um trabalho útil: ter-se-á uma melhor definição dc dois
termos usuais, quer dizer, dois hábitos sociais. Mas. sc pretendemos fazer mais do
que isto, compreender realidades e nào esclarecer convenções, por que queremos
que termos, talvez, artificiais (nào sabemos se são ou nào. pois ainda nao se estu­
dou o objeto) põem um problema que concerne à natureza das coisas? Suponha­
mos que examinando os estados agrupados sob o nome de prazer nao descu­
bramos entre eles nada de comum, a não ser serem estados desejados pelo
homem: a humanidade terá classificado coisas muito diferentes num mesmo gc
ncro. porque encontrava nelas o mesmo interesse prático e reagia a todas da
12» BERGSON

mesma maneira. Suponhamos, por outro lado, que obtemos um resultado análogo
analisando a idéia de felicidade. Imcdiatamcntc o problema desaparece, ou
melhor, se dissolve em problemas inteiramente novos dos quais nada poderemos
saber e dos quais nào possuiremos nem mesmo os termos antes de ter estudado
nela mesma a atividade humana em relação à qual a sociedade teria tomado —
para formar as idéias gerais dc prazer e de felicidade - aspectos talvez artifi­
ciais. E ainda será preciso saber antes sc o conceito de “atividade humana'*
corresponde a uma divisão natural. Nesta desarticulação do real, segundo suas
tendências próprias, aloja se a dificuldade principal, quando deixamos o domínio
da matéria pelo do espírito.
isto quer dizer que a questão da origem c do valor das idéias gerais sc põe
por ocasião dc todo problema filosófico, c reclama cm cada caso uma solução
particular. As discussões efetuadas em torno dessa questão ocupam toda a histó­
ria da filosofia. Talvez fosse o caso de se perguntar, antes dc qualquer discussão,
sc essas idéias constituem rcalmcntc um gênero, e se nào seria precisamente ao
falar de idéias gerais que deveriamos ser prudentes com as generalidades. Sem dú­
vida. podcr-sc-á. sem dificuldade, conservar a idéia geral da idéia geral, se a tiver­
mos. Será suficiente dizer que convencionou-se chamar dc idéia geral uma repre­
sentação que agrupa um número indefinido dc coisas sob o mesmo nomeia maior
parte das palavras corresponderá assim a uma idéia geral. Mas a questão impor­
tante para o filósofo é saber através dc que operação, devido a que razão, e sobre­
tudo cm virtude de que estrutura do real as coisas podem ser assim agrupadas, e
esta questão nào comporta uma solução única e simples.
Digamos logo que a psicologia nos parece comprcmctcr-se aventurosamente
cm pesquisas desta ordem sc ela nao possui um fio condutor. Por trás do trabalho
do espírito, que é o ato. há a função. Por trás das idéias gerais, há a faculdade dc
conceber ou<lc perceber generalidades. Seria preciso determinar primeiramente a
significação vital desta faculdade. No labirinto dos atos, estados e faculdades do
espírito, o guia que nào devemos jamais dispensar é o que nos fornece a biologia.
Sríntum r/rere.Memória. imaginação, concepção, enfim, generalizações rão estão
ai gratuiiamcntc. Seria de crer, ouvindo alguns teóricos, que o espírito caiu do céu
com uma subdivisão cm funções psicológicas das quais ele tem simplesmente que
constatar a existência: porque estas funções sào tais, elas serão utilizadas de tal
maneira. Nós cremos, ao contrário, que é porque elas sào úteis, porque elas sào
necessárias à vida, que elas sào o que sào: é preciso referir-se às exigencies funda­
mentais da vida para explicar sua presença c para justificá-las se for o caso, isto
é. para saber se a subdivisão ordinária de tais e tais faculdades c artificial ou
natural, sc conseqüentemente devemos mantc-la ou modifica-la: todas as nossas
observações sobre a função serão falseadas sc a recortarmos incorretamente na
continuidade da tessitura psicológica. Dir se á que as exigências de vida são aná­
logas nos homens, nos animais e mesmo nas plantas, que nosso método se arris­
ca, portanto, a negligenciar o que há de propriamente humano no homem? Sem
dúvida alguma: uma vez seccionada e distribuída a vida psicológica, nào está
tudo acabado: resta acompanhar o crescimento e mesmo a transfiguração dc
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 129

cada faculdade no homem. Mas leremos, pelo menos, a probabilidade de não ter
traçado divisões arbitrárias na atividade do espírito, da mesma forma que nâo
fracassaríamos em desembaraçar as plantas de galhos e folhas embaraçados se
cortássemos até as raizes.
Apliquemos este método ao problema das idéias gerais: veremos que todo
ser vivo, talvez mesmo todo órgão, todo tecido do ser vivo, generaliza, isto é.
classifica, pois sabe recolher no meio onde vive, das substâncias ou objetos os
mais diversos. a$ partes ou elementos que poderão satisfazer a determinadas
necessidades suas, negligenciando o resto. Logo, ele isola a característica que o
interessa, vai direto a uma propriedade comum: cm outros termos, ele classifica,
e. consequentemente, abstrai e generaliza. Sem dúvida, na quase totalidade dos
casos e provavelmente em todos os animais, exceto o homem, abstração e
generalização são vividas e nào pensadas. Entretanto, mesmo no animal, encon
tramos representações às quais somente falta reflexão e algum desinteresse para
que sejam plenatnentc idéias gerais: senão, por que uma vaca que conduzimos
pára diante dc um capim, nâo importa qual, simplesmente porque ele entra na
categoria que chamamos erva ou capim? E como um cavalo distinguiria uma
estrebaria de uma granja, uma estrada de um campo, o feno da aveia? Conceber,
ou melhor, perceber assim a generalidade é. aliás, próprio do homem enquanto
animal, com instintos c necessidades. Sem que a reflexão ou mesmo a consciência
intervenham. é possível extrair a semelhança de objetos os mais diferentes, atra
vés dc uma tendência; ela classificará esses objetos num gênero c criará uma idéia
geral, vivida mais do que pensada. F.ssas generalidades automaticamente extraí­
das sào mesmo bem mais numerosas no homem, que acrescenta ao instinto hábi­
tos mais ou menos capazes de imitar o ato instintivo. Sc passarmos agora u idéia
geral completa, isto ê. consciente, refletida, intcncionalinenic criada, encontra
remos frequentemente cm sua base esta extração automática dc semelhanças que
é o essencial da generalização. Num certo sentido, nada c semelhante, visto que
todos os objetos diferem. Num outro sentido, tudo se parucc. pois encontraremos
sempre, elevando nos bastante alto na escala das generalidades, algum gênero
artificial cm que dois objetos diferentes, tomados ao acaso, poderão entrar. Mas
entre a generalização impossível e a generalização inútil existe a que c provocada,
por prefiguraçào. pelas tendências, hábitos, gestos e atitudes, complexos de movi­
mentos automáticos realizados ou esboçados, que eslào na origem da maior parte
das idéias gerais propriamente humanas. A semelhança entre coisas ou estados
que declaramos perceber c. antes de mais nada, a propriedade, comum a estes
estados ou a estas coisas, dc obter de nosso corpo a mesma rcaçào. de fazê-lo
esboçar a mesma atitude on começar os mesmos movimentos. O corpo extrai do
meio material ou moral o que pode influenciá-lo. o que o interessa: é a identidade
de reação a ações diferentes que, voltnndo-se sobre elas, introduz a semelhança
ou a faz aparecer. Assim, uma campainha emitirá, a partir dos excitantes mais
diversos — pressão com o dedo, vento, corrente elétrica -. sempre o mesmo
som. os converterá assim em toques de campainha e os fará semelhantes entre si.
indivíduos constitutivos dc um gênero, simplesmente porque cia permanece a
130 BERGSON

mesma: campainha e nada mais que isto, ela nào pode fazer outra coisa, ao rea­
gir. senào soar. Nem é preciso dizer que. quando a reflexão tiver alçado ao estado
de pensamento puro, as representações que não eram mais do que a inserção da
consciência num quadro material, atitudes e movimentos, ela formarà voluntaria­
mente, diretamente. por imitação, idéias gerais que não serão mais do que idéias.
E nisto a reflexão será poderosamente ajudada pela palavra, que ainda fornecerá
à representação um quadro, desta vez mais espiritual que corporal, err. que sc
inserir. Não é menos verdadeiro, por isto, que, para dar conta da verdadeira natu­
reza dos conceitos, para abordar com alguma probabilidade de êxito os proble­
mas relativos às idéias gerais, é sempre à interação do pensamento com as atitu­
des ou os hábitos motores que teremos de nos referir, uma vez que a
generalização não é. originariamente. mais do que o hábito elevando-se do campo
da ação para o do pensamento.
Mas. uma vez assim determinadas a origem e a estrutura da idéia geral, uma
vez estabelecida a necessidade de sua aparição, uma vez constatada a imitação da
natureza pela construção artificial de idéias gerais, resta saber como as idéias
naturais que servem de modelo às outras são possíveis, por que a experiência nos
apresenta semelhanças que nos resta apenas traduzir em generalidades. Entre
estas semelhanças, algumas, sem dúvida, correspondem à essência das coisas.
Estas farão nascer idéias gerais que serão ainda relativas, em certa medida, à
comodidade do indivíduo e da sociedade, mas cm rclnçno às quais a ciência e a
filosofia nào precisarão fazer mais do que extrair esta ganga para obter uma
visão mais ou menos aproximativa dc algum aspecto da realidade. Elas são
pouco numerosas, c a imensa maioria das idéias gerais c constituída por aquelas
que a sociedade preparou para a linguagem cm vista da conversação e da ação.
Mesmo entre estas últimas, porém, às quais sobretudo aludimos neste ensaio,
encontraremos muitas que sc ligam, por uma série de intermediários, ao preço dc
toda sorte de manipulações, dc simplificações, de deformações, ao pequeno nú­
mero dc idéias que traduzem semelhanças essenciais: será freqüentemente instru­
tivo percorrer novamente, com elas, através de um desvio mais ou menos longo,
o caminho que leva à semelhança â qual elas se ligam. Não será, portanto. inútil
aqui um parêntese para tratar do que poderiamos chamar generalidades objetivas,
inerentes à própria realidade. Por mais restrito que seja seu número, cias são
importantes por elas mesmas e pela confiança que irradiam ao seu redor, empres­
tando um pouco dc sua solidez a gêneros loiahncntc artificiais. É assim que ccdu
las emitidas cm número exagerado devem o pouco valor que lhes resta à quanti­
dade dc ouro que se encontraria ainda cm reserva.
Aprofundando este ponto pcrceber-sc-ia, cremos, que as semelhanças se
repartem em três grupos, dos quais o segundo deverá provavelmente se subdividir
por sua vez acompanhando o progresso da cicncia positiva. Os primeiros sào de
essência biológica: provêm de que a vida trabalha como se ela própria possuísse
idéias gerais, dc gcncro c espécie, como se ela seguisse planos de estru.uras cm
número limitado, como se cia houvesse instituído propriedades gerais, enfim e
sobretudo como se ela houvesse desejado, pelo duplo efeito da transmissão here-
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 13)

ditaria (pelo que c inato) e da transformação mais ou menos lenta, dispor os seres
vivos em série hierárquica, ao longo de uma escala em que as semelhanças entre
indivíduos sào tanto mais numerosas quanto mais alto nos elevarmos na escala.
Quer nos exprimamos assim em termos de finalidade, quer atribuamos à matéria
viva propriedades especiais, imitadoras da inteligência, ou nos vinculemos a algu
ma hipótese intermediária, sempre será na realidade mesma, em princípio (mesmo
se nossa classificação é inexata dc fato), que estarão fundadas nossas subcivisòes
em espécies, gêneros, etc. — generalidades que traduzimos em idéias gerais. E
estarão também fundamentadas de direito aquelas que correspondem a órgãos,
tecidos, células, “comportamentos” mesmo, dos seres vivos. — Agora, sc passa
mos do organizado ao inorganizado, da matéria viva à matéria inerte e airda não
informada pelo homem, encontraremos gêneros reais, mas de características
totalmente diferentes: qualidades, como as cores, sabores, odores; elementos ou
combinações, como o oxigênio, o hidrogênio, a água: enfim, forças físicas como
o peso, o calor, a eletricidade. Mas aqui o que aproxima os indivíduos agrupados
sob a idéia geral c bem outra coisa. Sem entrar em detalhes, sem complicar nossa
exposição com nuances, atenuando, aliás, antecipadamente o que nossa distin­
ção poderá ter dc excessivo, convindo, enfim, em dar à palavra “semelhança** seu
sentido mais preciso, porém também o mais estreito, diremos que no primeiro
caso o princípio dc agrupamento c a semelhança propriamente dita, c no segundo
a identidade. Um certo tom de vermelho pode ser idêntico a si mesmo en todos
os objetos em que estiver. Diremos o mesmo dc duas notas da mesma altura,
mesma intensidade c mesmo timbre. Ademais, seja como for. sentimo-nos aproxi­
mar dc elementos ou de eventos idênticos à medida que aprofundamos a matéria
e que resolvemos o químico cm físico, o físico no matemático. Ora. embora uma
lógica simples possa pretender que a semelhança é uma identidade parcial c a
identidade uma semelhança completa, a experiência nos diz outra coisa. Sc deixa­
mos dc dar à palavra "semelhança” o sentido vago c de alguma maneira popular
em que a tomamos de início, se tentamos precisar o sentido de “semelhança”
atravésdc uma comparação com “identidade”, concluiremos, creio, que a identi­
dade refere-se ao geométrico e a semelhança ao vital. A primeira tem a ver com
a medida, a outra está mais no domínio da arte: frequentemente, é um sentimento
todo ele estético que leva o biólogo evolucionista a supor parentes formas entre as
quais ele é o primeiro a perceber a semelhança: os próprios desenhos que elabora
revelam por vezes a mão c sobretudo o olho do artista. Mas, se o idêntico se refe­
re assim ao semelhante, haveria de procurar saber, acerca desta nova categoria de
idéias gerais, como também para a outra, o que a corna possível.
Tal pesquisa só teria probabilidade de êxito num estágio mais avançado de
nosso conhecimento da matéria. Limitcmo-nos a dizer alguma coisa sobre a hipó­
tese à qual seríamos conduzidos por um aprofundamento da vida. Se há o verde
que é em mil lugares diferentes o mesmo verde (ao menos para nosso olho, ao
menos aproximadamente), se isto acontece com as outras cores, e se as diferenças
dc cor provem da maior ou menor frcqücncia dc eventos físicos elementares que
condensamos em percepção de cor. a possibilidade para essas frequências de nos
132 RERGSON

apresentarem em todo tempo e lugar algumas cores determinadas vem dc que cm


toda parte e sempre são realizadas todas as frequências possíveis (entre certos
limites, sem dúvida): entào. necessariamente, aquelas que correspondem, às nos­
sas diversas cores produzir-se-ào entre as outras, qualquer que seja o momento,
ou lugar: a repetição do idêntico, que permite aqui constituir os gêneros, não tem
outra origem. Na medida em que a física moderna nos revela cada vez melhor
diferenças dc número por trás de nossas distinções de qualidade, uma explicação
como essa vale provavelmente para todos os gcncros c para todas as generali­
dades elementares (capazes de serem combinadas por nós para formar outras)
que encontramos no mundo da matéria inerte. A explicação não seria plcnamcntc
satisfatória, c verdade, se não mostrasse porque nossa percepção recolhe no
campo imenso das frequências, essas determinadas frequências qtíe serão as
diversas cores — primeiramente por que cia recolhe, depois porque ela recolhe
essas e não outras. A esta questão especial já respondemos uma vez definindo o
ser vivo por uma certa capacidade dc agir quantitativa e qualitativamer.te deter­
minada: c esta ação virtual que extrai da matéria nossas percepções reais, infor­
mações dc que temos necessidade para nos guiar, condensações, num instante dc
nossa duraçào, dc milhares, de milhões, dc trilhões dc eventos que se rea izam na
duração, incrivelmente menos tensa, das coisas: esta diferença dc tcnsào mede
precisamente o intervalo entre o determinismo físico e a liberdade humana, ao
mesmo tempo que explica sua dualidade e sua coexistência. 6 Sc. como cremos, a
aparição do homem, ou dc qualquer ser de mesma essência, c a razão dc scr da
vida sobre nosso planeta, será necessário dizer que todas as categorias dc percep­
ções. nâo somente dos homens, mas também dos animais e mesmo das plantas (as
quais podem comportar-.se como se tivessem percepções), correspondem global­
mente à escolha dc uma certa ordem de grandeza pura a condensação. É uma
simples hipótese. mas ela nos parccc derivar naturalmente das especulações da fí
sica sobre a estrutura da matéria. O que sc tornaria a mesa na qual eu escrevo
neste momento se minha percepção, e consequentemente minha ação, sc dessem
segundo a ordem de grandeza à qual correspondem os elementos, ou melhor, os
eventos constitutivos dc sua materialidade? Minha açâo seria dissolvida. Minha
percepção abarcaria, no lugar onde vejo minha mesa c durante o curto momento
cm que a olho, um universo imenso e uma não menos interminável história. Scr-
me ia impossível compreender como esta imensidão movente sc pôde tornar, para
que eu agisse sobre ela. um simples retângulo imóvel c sólido. Seria o mesmo
para todas as coisas c todos os eventos: o mundo onde vivemos, com as ações c

* Pode se. pois. e mcsnii» deve-w. falar ainda de determinismo físico. mesmo que se postule. cnm a física
mais recente, o indetcrmmi.-.mn d»»s evento* elementares dc que sc vompôc u futu físico. Porque este fato físi­
co ê percebido por nós como xuhmctúlo a um determinismo inflexível, e disiínpuc sc radicalmen c. poi isto,
dos atos que reuluanH» quando nos scniimcti livres. Como sugerimos acima, pode w perguntar se nào c
prccisamcntc |xir "coar" a mnreria neste determinismo, por uhier. nos lenômcnos que nos rocciam. uma
regularidade dc sucessão que nos permite »j>.ir sohre eles. que nossa percepção se detêm num certo grau parti­
cular dc condensação dos eventos elementares. Mats gcralmcntc. a atividade do ser vivo se apoiaria na neces
sídatk- v sc mediría pela necMsidade que vem servir de suporte ãu coisas. jk»i mim condvmaiç.-io de »uti durn
çào. (N. di> A.>
O PENSAMENTO E O MOVENTE(INTRODUÇÃO) 133

reações dc suas partes umas sobre as outras, é o que é cm virtude dc uma certa
escolha na escala das grandezas, escolha ela mesma determinada pela nossa
capacidade dc agir. Nada impediría que outros mundos, correspondendo a uma
outra escolha, existissem com ele. no mesmo lugar c ao mesmo tempo: assim,
vinte postos de emissão diferentes emitem simultaneamente vinte concertes dife­
rentes. que coexistem sem que nenhum deles misture seu som à música do outro,
cada um sendo ouvido integralmente — e somente ele — no aparelho que esco­
lheu para recepção o comprimento da onda dc um determinado posto dc emissão.
Mas não insistamos mais numa questão cm que tocamos simplesmente dc passa­
gem. Nào é absolutamente necessário nenhuma hipótese sobre a estrutura intima
da matéria para constatar que as concepções derivadas das percepções, as idéias
gerais correspondendo às propriedades c ações da matéria, somente são possíveis
ou somente são o que são em virtude da matemática ímanente às coisas. É tudo
o que gostaríamos dc salientar para justificar uma classificação das idéias que
põe dc um lado o geométrico e. de outro, o vital, este trazendo com ele a seme­
lhança. aquele a identidade.
Devemos agora passar à terceira categoria que havíamos anunciado, às
idéias gerais criadas inteiramente pela especulação c pela ação humanas. O
homem c csscncialmente “fabricante”. A natureza, recusando-lhe os instrumentos
acabados como os dos insetos, por exemplo, deu-lhe a inteligência, isto é. o poder
dc inventar c dc construir um número indefinido de utensílios. Ora. par mais sim­
ples que seja a fabricação, ela se dá segundo um modelo, percebido ou imagina
do: é real o gênero que define o próprio modelo ou o esquema dc sua cons:rução.
Toda a nossa civilização repousa assim sobre um certo número de idéias gerais
dc que conhecemos adcqnadamenie o conteúdo, pois fomos nós que as eabora-
mos e cujo valor c eminente, pois nào poderiamos viver sem elas. A crença na
realidade absoluta das idéias cm geral, talvez mesmo cm sua divindade deriva em
parte dai. Sabc-se que papel ela desempenha na filosofia antiga c mesmo na
nossa. Todas as idéias gerais sc beneficiam da objetividade de algumas delas.
Acrescentemos que a fabricação humana não se dá somente cm relação ã maté­
ria. Uma vez dc posse das três espécies dc idéias gerais que enumeramos, sobre­
tudo da última, nossa inteligência tem o que chamamos idéia geral da idéia geral.
Ela pode então construir idéias gerais ao seu bcC prazer. Ela começa naturalmcnte
pelas que podem melhor favorecer a vida social: ou simplesmente, que se referem
ã vida social; depois virão aquelas que interessam à especulação pura: c. enfim,
aquelas que sc constroem para nada, graluitamcnte. Mas, em relação z quase
todos os conceitos que não pertencem às nossas duas primeiras categories, quer
dizer, à imensa maioria das idéias gerais, é o interesse da sociedade c o dob indiví­
duos. são as exigências da conversação e da ação que presidem ao seu
nascimento.
fechemos este longo parêntese, que tivemos que abrir para mostrar em que
medida é preciso reformar c, às vezes, descartar o pensamento conceptual para
chegar a uma filosofia mais intuitiva. Esta filosofia, dizíamos, desviar-sc-á
frequentemente da visão social do objeto “feito”: ela nos convidará a participar
134 BERGSON

em espirito do ato que o faz. Ela nos recolocará entào, relativamente a este ponto
particular, na direção do divino. Com efeito, é propriamente humano o trabalho
de um pensamento individual que aceita, tal qual, sua inserção no pensamento
social, c que utiliza as idéias preexistentes como outro utensílio fornecido pela
comunidade. Mas já existe qualquer coisa de quase divino no esforço, por mais
insignificante que seja, de um espírito que sc re-inscrc no elà vital, gerador das
sociedades que sao geradoras dc idéias.
Este esforço exorcizará alguns fantasmas de problemas que obcecam o
metafísico, isto c, cada um dc nós. Falo desses problemas angustiantes c insolú­
veis que nào dizem respeito ao que é. que sc referem mais ao que nào é. Tal é o
problema da origem do ser: ’‘Como é possível que qualquer coisa exista — maté­
ria. espírito. ou Deus? Foi preciso uma causa, c uma causa da causa, c assim
indefinidamente". Remontamos então de causa em causa: c se nos deumos em
qualquer parte, nào é porque nossa inteligência nada mais busca para além, é que
nossa imaginação acaba por fechar os olhos, como sobre um abismo, para esca­
par à vertigem. Assim é também o problema da ordem cm geral: “Por que uma
realidade ordenada, cm que nosso pensamento se reencontra como num espelho?
Por que o mundo nâo é incoerente?" Digo que estes problemas sc referem ao que
nâo é muito mais do que ao que ê. Com efeito, jamais nos espantaríamos com o
fato dc existir alguma coisa - matéria, espírito. Deus — sc nâo admitíssemos
implicitamente que nada poderia existir. Figuramo-nos. ou melhor, acreditamos
nos figurar, que o ser veio preencher um vazio c que o nada preexisliria logica­
mente ao scr: a realidade primordial — quer a chamemos matéria, espírito ou
Deus viria por acréscimo, e isto é incompreensível. Do mesmo modo, nào
perguntaríamos por que a ordem existe se nâo créssemos conceber uma desordem
que sc teria sujeitado à ordem c que, conseqüentemente. a precedería, ao menos
ideahnentc. Havería entào necessidade dc que a ordem fosse explicada, enquanto
a desordem, sendo dc direito, não precisaria dc explicação. É este o ponto de vista
cm que nos arriscamos a permanecer, se buscamos somente compreender. Mas
tentemos, por outro Lado, engendrar (só o podemos fazer, cvidentemcnlc, pelo
pensamento). Â medida que dilatamos nossa vontade, que tendemos a reabsorver
nosso pensamento c que simpatizamos mais c mais com o esforço que engendra
as coisas, esses terríveis problemas recuam, diminuem, desaparecem. Porque sen­
timos que uma vontade ou um pensamento divinamente criador é denasiada-
mente pleno dc si mesmo, cm sua imensa realidade, para que a idéia dc uma falta
de ordem ou de uma deficiência de scr possa apenas roçá Io. Representar sc a
possibilidade da desordem absoluta, ou mais ainda, do nada, seria para esse pen
sarnento dizer-se que ele poderia nào scr integralmcnte. e isto seria uma fraqueza
incompatível com sua natureza, que é força. Quanto mais nos voltamos para ele.
mais as dúvidas que atormentam o homem normal e são nos parecem anormais
c mórbidas. Lembremo-nos daqueles que fecham uma janela, depois retornam
para verificar a fechadura, depois voltam para verificar a verificação, assim por
diante. Se lhe perguntamos seus motivos, ele nos dirá que teria podido reabrir a
janela cada vez que tratava dc fechá-la melhor. E se ele é filósofo, ele intelectua­
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 13S

lizará a hesitação de sua conduta neste enunciado de problemas: “Como estar


certo, definitivamente certo, que fizemos o que queríamos fazer**? Mas a verdade
c que sua capacidade de agir está lesada, e c este o mal dc que sofre: ele nào tinha
mais do que uma “meia vontade*’ de realizar o ato. e esta é a razào por que o ato.
uma vez realizado, deixa lhe apenas uma meia-ccrtcza. Pois bem. o problema que
este homem se põe. nós o resolvemos? Evidcntcmentc nào. mas nós não o coloca­
mos: aí está nossa superioridade. À primeira vista, poder-se-ia crer que há nele
mais do que em mim. pois um c outro fechamos a janela c ele levanta, ainda, uma
questão filosófica, enquanto eu nào. Mas a questão que se acrescenta, nele, à tare­
fa realizada representa somente o negativo; não se trata do mais e sim do menos;
é um déficit da vomade. Este c exatamente o efeito que produzem cm nós alguns
“grandes problemas”, quando nos recolocamos no sentido do pensamento gera­
dor. Eles tendem para zero à medida que nos aproximamos deles, nào sendo mais
do que a distância entre eles e nós. Descobrimos então a ilusão dos que creem
fazer mais colocando-os do que não os colocando. O mesmo seria imaginar que
há mais numa garrafa pela metade do que numa complctamcntc cheia, porque
esta contém apenas o vinho, enquanto a outra contém o vinho e. além disto, o
vazio.
Mas. desde que percebemos intuitivamente o verdadeiro, nossa inteligência
sc apruma, se corrige, formula intclcctualmcntc seu erro. Ela recebeu a sugestão:
ela fornece o controle. Assim como o mergulhador vai tocar no fundo das águas
os destroços que o aviador assinalou do alto, a inteligência imersa no conceptual
verificará ponto por ponto, por contato, analiticamenic. o que já foi objeto dc
uma visão sintética c supra intelectual. Sem uma advertência vinda de fora o pen­
samento de uma ilusão possível não teria nem mesmo aparecido, já que sua ilusão
fazia parte dc sua natureza. Despertado dc seu sono, o pensamento analisará as
idéias de desordem, de nada c suas congêneres. Reconhecerá — mesmo que seja
por um instante, a ilusão reaparecendo imcdiatamcnic após ter sido expu'sa —
que nào se pode suprimir um arranjo sem que outro o substitua, fazer desaparecer
a matéria sem que uma outra matéria a substitua. “Desordem” c “nada” desig
nam. pois, rcalmente uma presença — a presença dc uma ordem ou de uma coisa
que nâo nos interessa, que decepciona nosso esforço ou nossa atenção: é a nossa
decepção que exprimimos quando chamamos a esta presença uma ausência. Des­
tarte. falar de ausência, dc ordem c de coisas, isto é. da desordem absoluta c do
nada absoluto, c pronunciar palavras vazias de sentido, flatus voeis, pois uma
supressão nada mais é do que uma simples substituição considerada apenas por
uma de suas faces, e a abolição de toda ordem c de todas as coisas seria uma
substituição de uma única face — idéia que tem tanta existência quanto a dc um
quadrado redondo. Quando o filósofo fala de caos e de nada, ele só faz trans­
portar para a ordem dc especulação — elevadas ao absoluto c esvaziadas por isto
dc todo sentido, dc todo conteúdo efetivo duas idéias feitas para a prática c
que sc referiam então a uma espécie determinada dc matéria ou de ordem, mas
nao a toda ordem, nao a toda matéria. A partir daí, o que acontece com cs dois
problemas, dn origem dn ordem, da origem do ser? Desaparecem, já que eles só
136 BERGSON

se pôem sc nos representamos o scr c a ordem como “sobrevindo", c consequen­


temente o nada e a desordem como possíveis ou ao menos como concebíveis; ora,
nâo sào mais do que palavras, miragens dc idéias.
Uma vez penetrado por esta convicção, libertado desta obsessão, imediata
mente o pensamento humano respira. Não se embaraça mais com questões que
retardariam sua marcha.6 Ve desaparecerem as dificuldades levantadas, por
exemplo, pelo ceticismo antigo e pelo críticismo moderno. O pensamento pode,
assim, muito bem passar ao largo da filosofia kantiana e das “teorias do conheci­
mento" derivadas do kantismo: nào sc deterá aí. Todo o objetivo da Crítica da
Razão Pura é. com efeito, explicar como uma ordem definida se vem ajuntar a
materiais supostamente incoerentes. E sabemos o preço que ela nos faz pagar por
esta explicação: o espirito humano imporia sua forma a uma “diversidi.de sens
vd" vinda nào sc sabe de onde: a ordem que encontramos nas coisas seria aquela
que nós aí colocamos. De modo que a ciência seria legítima, mas relativa à nossa
faculdade de conhecer, c a metafísica impossível, pois nào havería conhecimento
fora da ciência. O espírito humano está assim relegado a um canto, como um
aluno dc castigo: proibiu-se lhe voltar a cabeça para ver a realidade lalqual ela
ê. Nada de mais natural, desde que nào sc note que a idéia dc desordem absoluta
é contraditória, ou melhor, inexistente, simples palavra pela qual designamos
uma oscilação do espírito entre duas ordens diferentes: a partir daí é absurdo
supor que a desordem precede lógica ou cronologicamente a ordem. O mérito do
kantismo foi ter desenvolvido cm todas as suas consequências e aprcsen.ar sob a
forma mais sistemática uma ilusão natural. Mas ele a conservou: repousa mesmo
sobre ela. Dissipemos a ilusão: restituímos imcdiatamente no espírito humano,
pela ciência e pela metafísica, o conhecimento do absoluto.
Voltamos, pois, ao nosso ponto de partida. Dizíamos que c preciso levar a
filosofia a uma maior precisão, colocá-la cm condições de resolver problemas
mais especiais, fnzer dela a auxiliar e. se for preciso, a rçformadora da ciência
positiva. Nada do grande sistema que abarca todo o possível c. às vezes, também
o impossível! Contentemo nos com o real, matéria e espírito. Mas exijamos de
nossa teoria que o abrace tào estreitamente que entre eles nenhuma outra inter­
pretação sc possa insinuar. Só haverá então uma filosofia, como só há uma ciên­
cia. Uma e outra se faraó através dc um esforço coletivo e progressivo. É verdade
que um aperfeiçoamento do método filosófico-se imporá. simétrico e comple­
mentar ao que recebeu outrora a ciência positiva.

* Quando icoorricfid.imoi um estado dc alma cm que Os problemas desaparecem. nós o fazemos. hem enten
dido, apenas cm relação aos problemas que nos cauüam vertigem porque nos pòcm diante do vazio. Uma
cois.-i é a condição quase animal dc uni ser que nào « põe nenhuma questão. outra coisa o estado Kimdivino
dc um espírito que n:«> conhece n tcntuçâo dc evocai, (H>r um cfcik» de fraque/a hutuaua. problemas artifi
ciais. Parn esle pensamento privilegiado, o pioblctna csui sempre .1 poulu dc surgir, mas sempre detido, no
que icrn dc propriamente intelectual, pela coinrapariuí.i miclectu.il que lhe suscita a intuição. A ilusão nào
c analisada, não c dissipada, porque ela nào se declara: mas ela o seria se sc declarasse-, cestas duispossibi­
lidades antagonistas, que sâo dc ordem intelectual, sc anulam intclcctuolmcnic para Só deixar lupar â intui­
ção do real. Nos dois caso* que citamos, é a análise da$ idéia» dc dcsurdcni c dc nada que fornece a contra­
partida intelectual da ilusão mickctuaUsia. (N. di> A.)
137
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO)

Tal c a doutrina que alguns julgaram aientar contra a cicncia e a inteli­


gência. Era um duplo erro. Mas o erro foi instrutivo e será útil analisá-lo.
Para começar pelo primeiro ponto, notemos que não sào geralmcnte os
verdadeiros cientistas que nos acusaram de atentar contra a cicncia. Alguns den­
tre eles terão podido criticar algumas dc nossas idéias: é precisamente porque a
consideravam científica. porque havíamos transposto para o terreno da ciência,
onde eles sc sentiam competentes, um problema de filosofia pura. Ainda uma vez.
desejaríamos uma filosofia que sc submetesse ao controle da ciência c que pudes­
se assim fazc-la avançar. E achamos que Tomos bem sucedidos, porque a psicolo
gia. a neurologia, a patologia, a biologia, aceitam cada vez mais as nossas idéias,
julgadas, a princípio, paradoxais. Mas. mesmo que fossem paradoxais, essas
idéias não seriam jamais anticicntíficas. Elas testemunhariam sempre um esforço
para construir uma metafísica que tivesse com a ciência uma fronteira comum e
podendo entào. em numerosos pontos, prestar-sc a uma verificação. Não tivés­
semos caminhado ao longo dessa fronteira, tivéssemos simplesmente assinalado
sua existência c notado que metafísica c ciência poderíam assim sc tocar, e já
seria suficiente para mostrar o lugar que damos á cicncia positiva: nenhuma filo
sofia. dizíamos, nem mesmo o positivismo. colocou-a tão alto: à cicncia e à meta­
física atribuímos o poder de atingir um absoluto. Exigimos da ciência apenas que
se mantenha científica, e que não se renda a uma metafísica inconsciente, que sc
apresenta aos ignorantes ou aos meio-sábios com a máscara da cicncia. Djrantc
mais de meio século o “cicntificismo" se atravessou no caminho da metafísica.
Todo esforço dc intuição era antecipadamente desencorajado: ehocava-sg com
negações que se acreditava scrcrn científicas. É verdade que. cm mais de um caso,
elas provinham dc verdadeiros cientistas. Estes estavam, com efeito, enganados
pela má metafísica que sc linha pretendido tirar da cicncia e que. ricochcicando
e voltando para a ciência, falseava a em muitos pomos. Chegava a falsear a
observação, interpondo sc. cm certos casos, entre o observador c os fatos. Foi 0
que tentamos demonstrar, hâ algum tempo, cm relação a exemplos precisos, as
afasias cm particular, para o maior bem da ciência c ao mesmo tempo da filoso­
fia. Mas suponhamos que nào se queira scr nem suficicntemcntc metafísico nem
suficicnlcmcnte cientista para entrar nessas considerações, que nos desinteres­
semos do conteúdo dc doutrina, que ignoremos o método: uma simples olhadela
às aplicações mostra o trabalho preparatório do ponto dc vista científico que é
exigido antes dc sc considerar o menor problema. Nao é preciso mais para ver O
lugar que reservamos à cicncia. Na realidade, é aí que reside a principal dificul­
dade da pesquisa filosófica tal como a compreendemos. Raciocinar com idéias
abstratas é fácil: a construção metafísica não é mais que um jogo, por menos que
sc esteja predisposto para isso. Aprofundar intuitivamente o espírito é talvez mais
penoso, mas nenhum filósofo trabalhará nisto concinuadamente: ele pexeberá
depressa, dc cada vez. o que ele pode perceber. Em troca, sc aceitamos o nosso
método, nunca se terá feito suficientes estudos preparatórios, jamais aprendido o
suficiente. Eís um problema filosófico. Não o escolhemos, encontramo-ío. Ele nos
barra o caminho e então c preciso transpor o obstáculo ou não mais filosofar. Ne-
138 BERGSON

nhum subterfúgio possível: adeus ao artifício dialético que distrai a atenção e dá,
em sonho, a ilusão de avançar. A dificuldade deve ser resolvida e o problema ana­
lisado em seus elementos. A que seremos conduzidos? Não se sabe. Ninguém
pode mesmo dizer qual é a ciência que poderá tratar os novos problemas. Poderá
ser uma ciência à qual somos totalmente estranhos. Ainda mais. Não será sufi­
ciente familiarizarmo-nos com eh. nem mesmo aprofundarmo-nos: será preciso,
por vezes, reformar alguns procedimentos, alguns hábitos, algumas teorias,
guiando-sc justamente pelos fatos c razões que suscitaram as questões novas.
Seja: iniciemo-no,s na ciência que ignoramos, aprofundemo-nos nela, se for preci­
so rcformemo-la. E sc forem necessários meses ou anos? Consagraremos a isto o
tempo que for preciso. Uma vida não é suficiente? Muitas vidas sc succccrão; ne­
nhum filósofo está obrigado a construir toda a filosofia. Esta a linguagem que
reservamos para o filósofo. Este o método que lhe propomos. Ele exige qjc esteja­
mos sempre prontos, seja qual for a idade, a nos tornarmos novamente
estudantes.
Para dizer a verdade, a filosofia está bem perto disto. A mudança já se ope­
rou em alguns pontos. Sc nossas idéias foram cm geral julgadas paradoxais, algu­
mas delas são hoje banais; outras estão próximas de se tornarem tal. Reconhe­
cemos que elas nào podiam ser aceitas imediatamente. Teria sido preciso
desligar-se dc hábitos profundamente enraizados, verdadeiros prolongamentos da
natureza. Todas as maneiras de falar, de pensar, de perceber, implicam, com efei­
to. que a imobilidade c a imutabilidade são dc direito, que o movimento e a
mudança vem-se acrescentar, como acidentes, a coisas que por elas mesmas nào
sc movem c nelas mesmas nào mudam. A representação da mudança é a dc quali
dade ou estados que se sucederíam numa substância. Cada uma das qualidades,
cada um dos estados, seria estável, a mudança sendo nada mais do que wcessão
deles: quanto à substância, cuja função é suportar os estados e as qualidades que
sc sucedem, seria a própria estabilidade. Esta é a lógica imanente às nessas lin
guas. c formulada dc uma vez por todas por Aristóteles: a essência da inteligência
c julgar, e o julgamento (juízo) sc opera através dc atribuição dc um predicado a
um sujeito. O sujeito, uma vez apenas nomeado, ê definido como invariável; a
variação consistirá na diversidade dc estados que afirmaremos dele, passo a
passo. Procedendo assim pela aposição dc um predicado a um sujeito, o estável
ao estável, seguimos a inclinação de nossa inteligência, conformamo-nos às
exigências de nossa língua, c. para dizer tudo, obedecemos à natureza. Porque a
natureza predestinou o homem para a vida social, para o trabalho em comum; e
este trabalho será possível sc colocarmos de um lado a estabilidade absoluta-
.mente definitiva do sujeito, dc outro, as cstabilidades provisoriamente definitivas
das qualidades c dos estados, que sc tornam então atributos. Enunciando o sujei­
to. escoramos nossa comunicação num conhecimento que o interlocutor já pos­
suí, pois a substância é suposta invariável; ele sabe então sobre que ponto dirigir
a atenção: virá então a informação que queremos fornecer, na expectativa da qual
nós o colocamos ao introduzir a substância, c que o atributo vem completar. Mas
não c somente formando-nos para a vida social, dando-nos as coordenadas para
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 139

a organização da sociedade, tornando de tal maneira necessária a linguagem, que


a natureza nos predestinou a ver. no movimento e na mudança, acidentes, a erigir
a imutabilidade e a imobilidade em essências ou substâncias, cm suportes. E pre­
ciso também acrescentar que nossa percepção proccdc também de acordo com
esta filosofia. Ela recorta, na continuidade dc extensão, corpos escolhidos prcci-
samcnlc de tal maneira que possam ser tratados como invariáveis durante o
tempo cm que os considerarmos. Quando a variação c demasiadamente fone e se
impõe, dizemos que o estado ao qual nos relacionavamos cedeu lugar a um outro,
que não variará por sua vez. Aqui é ainda a natureza, preparadora da ação indivi­
dual c social, que traçou as grandes linhas de nossa linguagem e de nosso pensa­
mento, sem fazê-los todavia coincidir, deixando assím larga margem para a
contingência c a variabilidade. Será suficiente, para que nos convençamos disto,
comparar à nossa duração o que poderiamos chamar a duração das coisas: dois
ritmos bem diferentes, calculados dc tal maneira que no menor intervalo pcrccp
tível de nosso tempo ocorrem trilhões dc oscilações, ou. mais gcralmente, de even­
tos exteriores que se repetem: esta imensa história, que levaríamos centenas dc sé­
culos para desentranhar, nós a aprendemos numa síntese indivisível. Assim é que
a percepção, o pensamento, a linguagem, todas as atividades individuais c sociais
do espírito contribuem para nos pôr cm presença de objetos que podemos tomar
por invariáveis c imóveis durante o tempo em que os considerarmos, como tam­
bém cm presença dc pessoas, ai incluída a nossa, que se tornarão aos nossos
olhos objetos e. por isto mesmo, substâncias invariáveis. Como desenraizar uma
inclinação tào profunda? Como levar o espírito humano a inverter o sentido habi­
tual dc sua operação, a partir da mudança e do movimento, considerados como
a realidade mesma, e n ver no estável e nos estados apenas instantâneos tomados
do movente? Seria preciso mostrar-lhe que. sc a marcha habitual do pensamento
é praticamente útil, cômoda para a conversação, a cooperação, a ação, c a con­
duz a problemas filosóficos que sào c que permanecerão insolúveis, porqus estão
inversamenie colocados, boi precisamente porque eles eram vistos como insolú­
veis c nào como mal formulados que sc concluiu a relatividade dc todo conheci­
mento c a impossibilidade dc atingir o absoluto. O êxito do positivismo c co kan
tismo. atitudes mais ou menos gerais quando começavamos a filosofar, deriva
principalmcntc daí. Dcvcr-sc-ia renunciar pouco a pouco à atitude humilhada, à
medida que se fosse percebendo a verdadeira causa das antinomias irredutíveis.
Elas eram de fabricação humana. Elas nâo vinham do fundo das coisas, iras sim
dc um transporte automático, para a especulação, de hábitos adquiridos na ação.
O que a inteligência espontaneamente havia feito, um esforço da inteligência
poderia desfazer. E serià. para o espírito humano, uma liberação.
Aprcsscmo-nos, no entanto, cm dizer: um método proposto não pode ser
compreendido a menos que o apliquemos a um exemplo. No caso presente, o
exemplo estava diante dc nós. Tratava-se de recuperar a vida interior, para além
da justaposição de nossos estados, efetuada num tempo espacializado. A expe­
riência estava ao alcance de todos: e os que quiseram fazê-la nào tiveram difieul-
140 BERGSON

dade em se representar a substancialidade do EU como sua própria duração. É.


dizíamos, a continuidade indivisível e indestrutível de uma melodia em que o pas­
sado entra no presente e forma com ele um todo indiviso. que permanece indiviso
e mesmo indivisível apesar do que aí sc acrescenta a cada instante, ou melhor,
graças ao que se acrescenta. Disso temos a intuição: mas quando buscanos uma
representação intelectual, alinhamos uns ao lado dos outros estados então distin­
tos como as pérolas de um colar e necessitando, para que se mantenham juntos,
de um fio que nào é nem isto nem aquilo, nada de semelhante às pérolas, nada de
semelhante ao que quer que seja, entidade vazia, simples palavra. A intuição nos
dá a coisa dc que a inteligência só apreende a transposição espacial, a tradução
metafórica.
Eis o que é claro em relação à nossa própria substância. Que pensar da subs­
tância das coisas? Quando começavamos a escrever, a física não havia ainda rea­
lizado os progressos decisivos que deveríam renovar suas idéias acerca da estru­
tura da matéria. Mas. convencidos, desde então, de que a imobilidade e a
invariabilidade nâo eram mais do que instantâneos tomados ao movente e ao
mutável, não poderiamos crcr que a matéria, cuja imagem sólida havia sido obti­
da pelas imobilizaçòcs da mudança, percebidas como qualidades, fosse composta
de elementos sólidos como cia. Evitava-sc. seguramente. qualquer representação
imagctica do átomo, do corpúsculo, do elemento último, fosse qual fosse: era.
entretanto, uma coisa servindo de suporte a movimentos e a mudanças, c.
consequentemente, nela mesma, não mudando, não sc movendo por ela mesma.
Cedo ou tarde, pensavamos, será preciso renunciar à idéia dc suporte. Dissemos
alguma coisa sobre isto cm nosso primeiro livro: c a “movimentos de movimen
tos” que chegamos, sem poder, aliás, precisar melhor nosso pensamento.7 Procu­
ramos uma maior aproximação no trabalho seguinte.8 Fomos ainda msis longe
cm nossas conferências sobre “a percepção da mudança.”8 A mesma razão que
mais tarde nos faria escrever que “a evolução nào pode ser reconstituída com
fragmentos do evoluído” nos levava a pensar que o sólido deve sc resolver cm
algo diverso do sólido. A inevitável propensão de nosso espirito para represen
lar-sc o elemento fixo era legítima em outros domínios, pois é uma exigência dc
ação: justamente por isso, a especulação deveria aqui evitar tal inclinação. Mas
nào podíamos fazer mais do que chamar a atenção sobre este ponto. Cedo ou
tarde, pensávamos. a física será levada a ver na fixidez do elemento uma forma
da mobilidade. Neste dia. é verdade, a ciência renunciará provavelmente a procu
rar uma representação imagctica. pois a imagem do movimento é sempre a de um
ponto (isto c. sempre de um minúsculo sólido) que sc inove. Com efeito, as gran­
des descobertas teóricas desses últimos anos levaram os físicos a supor uma espé­
cie de fusão entre a onda c o corpúsculo — diriamos, entre a substância e o

' Exsaísuriex i)nn net's Inuncdtatcs dc la Conscience. Paris. ISS9. p. t<6. (N.<1o A.)
• Matícrc rt Memoir?. Paris. iKOú. sub»cíuda as pp. 221 22K. Cf. hxh» v capitulo IV, c cm pai jculur .1 p
223. (N. do A.)
9 l.n Perception do ChnnijenwiM. Oxford. 1911 (M. do A.)
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 141

movimento.’0 Uni pensador profundo, vindo das matemáticas para a filosofia,


verá um pedaço de ferro como uma “continuidade melódica”.11
Longa seria a lista dos “paradoxos”, mais ou menos aparentados ac nosso
“paradoxo” fundamental, que venceram, assim, pouco a pouco, a distância da
improbabilidade à probabilidade, para entrarem, talvez, no domínio da banali­
dade. Ainda uma vez. insistimos, poderiamos ter partido de uma experiência dire­
ta. mas os resultados desta experiência não poderíam ser adotados se o progresso
da experiência exterior, e se todos os procedimentos de raciocínio a cia ligados,
não impusessem a adoção. Nós mesmos estaríamos lá (na experiência direta):
essa consequência dc nossas primeiras reflexões só foi claramcnte percebida c
definitivamente aceita por nós quando a cia fomos levados por caminho bem
diferente.
Citaremos como exemplo nossa concepção da relação psicofisíclógica.
Quando nos colocamos o problema da ação recíproca do corpo e do espírito um
sobre o outro, foi unicamente porque u havíamos encontrado em nosso estudo
sobre Os Dados hnediuíos da Consciência. A liberdade aparecera nos então
como um fato: c. por outro lado, a afirmação do determinismo universal, que era
posta pelos cientistas como uma regra metódica, era geralmctnc aceita pelos filó­
sofos como um dogma científico. A liberdade humana era compatível com o
determinismo da natureza? Como a liberdade sc tornara para nós um fato indubi•
túvcl. consideramo-la quase que unicamente cm nosso primeiro trabalho: o deter­
minismo deveria arranjar-se com cia como pudesse*, ele se arranjaria, ccrtamentc.
pois nenhuma teoria pode resistir muito tempo diante de um fato. Mas o pro­
blema descartado ao longo de nosso primeiro trabalho apresentava-se-nos agora
dc maneira inelutável. Fiéis a nosso método, exigimos-lhe que sc pusesse em ter
mos menos gerais c mesmo, sc fosse possível, que tomasse uma forma concreta,
que adquirisse os contornos dc alguns fatos sobre os quais sc pudesse fazer uma
observação direta. Inútil lembrar aqui como o problema tradicional da “relaçào
entre o corpo c o espírito” sc condensou diante dc nós até o ponto dc nào scr mais
do que o problema da localização cerebral da memória, e como esta questão,
muito menos vasta, veio pouco a pouco a concernir apenas à memória das pala­
vras. mais espccialmcntc ainda, às doenças desta memória particular, às ufasias.
O estudo das diversas afasias, empreendido com o único fito dc apreender os
fatos em estado puro, mostruu-nos que entre a consciência c o organismo havería
uma relaçào que nenhum raciocínio teria podido construir a priori, uma corres­
pondência que nào era nem o paralelismo nem o epifenomenismo. nem nada de
parecido. O papel do cérebro seria <> dc escolher a todo momento, entre as
lembranças, aquelas que poderíam melhor aclarar a ação começada, e excluir as
outras. Retornariam à cpnciência. então, as lembranças capazes de sc inserir no

’• Ver, a csw respeito. Bachelard. Naumènr et Microphysiquc, pp. 55 56 du coletânea Ri-cheeches Phiteso
phiipiev, Paris. NJ I 1932. <N. Jo A.)
1 ’ Sobre as idéias de Whilehead, e o parcnicwx) cun> nossas, ver J. Wnhl. /.«» Philosophic Speculative <if
Whílehcad, pp. 145 J55.em Kvs !c Cftncrci, Parts. 1932. (N. do A.)
142 BERGSON

esquema motor, constantemente mutável, mas sempre preparado: as restantes


permaneceríam no inconsciente. A função do corpo seria assim a dc mimetizar a
vida do espírito, acentuar-lhe as articulações motoras, como faz o macs'.ro com
uma partitura musical; o cérebro nào teria por função pensar, mas sim impedir o
pensamento de se perder no sonho: seria o órgão de atenção à vida. Esta seria a
conclusão a que seríamos conduzidos pelo minucioso estudo dos fatos normais e
patológicos, dc uma maneira geral, ou pela observação externa. Mas naquela
época apercebemo-nos somente de que a experiência interna em estado puro, dan-
do-nos uma substância cuja essência ê durar c. consequentemente, prolongar sem
cessar no presente um passado indestrutível, nos dispensaria ou mesmo nos inter
diría de procurar onde a lembrança é conservada. Ela se conserva por si mesma,
como o admitimos quando pronunciamos uma palavra, por exemplo. Para
pronunciá-la. é preciso, com efeito, que nos lembremos da primeira metade ao
pronunciar a segunda. Ninguém pensará, por isto, que a primeira metade tenha
sido depositada numa gaveta, cerebral ou outra qualquer, para que a consciência
aí venha procurá-la no instante seguinte. Mas se isto é verdade para a primeira
metade dc nossa palavra, sê-lo-á também para a palavra precedente, que a ela se
liga pelo som e pelo sentido: será a mesma coisa para o começo da frase, e para
a frase anterior, e para lodo o discurso que poderiamos tomar muito longo,
indefinidamente longo, se quiséssemos. Ora. toda a nossa vida, desde o primeiro
despertar de nossa consciência, é qualquer coisa como este discurso indefinida­
mente prolongado. Sua duraçào é substancial, indivisível enquanto duraçào pura.
Assim teríamos podido, a rigor, economizar muitos anos dc pesquisa. Mas como
nossa inteligência não era diferente da dos outros homens, a força de convicção
que acompanhava nossa intuição de duraçào quando nos voltavamos para a vida
interior não sc estendia muito mais longe. Sobretudo nâo teríamos podido, com o
que havíamos descoberto a respeito da vida interior em nosso primeiro livro,
aprofundar como fomos levados a fazer as diversas funções intelectuais, memó­
ria. associação de idéias, abstração, generalização, interpretação, atenção. A
psicofisiologia de um lado, a psicopatologia dc outro, dirigiram o olhar dc nossa
consciência para mais de um problema de que teríamos. sem isso, negligenciado
o estudo, c cujo estudo nos fez formula los de outra maneira. Os resultados assim
obtidos nâo deixaram dc influenciar por sua vez a psicofisiologia e a psicopato-
logia. Para atermo nos a esta última ciência, mencionaremos simplesmente a
importância crescente que nela tomaram pouco a pouco a consideração da tensão
psicológica, de atenção à vida, e tudo o que envolve o conceito de esquizofrenia.
Sem falar de nossa ideia dc uma conservação integral do passado que encontrou
cada vez mais sua verificação empírica no vasto conjunto dc experiências insti­
tuído pelos discípulos de Ereud.
De aceitação bem mais lenta sào as idéias situadas no ponto de conver­
gência de três especulações diferentes, e nâo já somente de duas. Estas sào de
ordem metafísica. Referem se à apresentação da matéria pelo espírito c deveríam
pôr um fim à amiga querela entre realismo e idealismo, deslocando a linha de
demarcação emre sujeito c objeto, entre espírito e matéria. Aqui ainda o pro-
0 PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 143

blema se resolve colocando-se de outra maneira. A análise psicológica havia nos


mostrado na memória planos dc consciência sucessivos, desde o “plano do
sonho", o mais distendido dc todos, no qual sc esparrama, como sobre a base de
uma pirâmide, todo o passado da pessoa, até o ponto, comparável ao topo, em
que a memória nào é mais do que a percepção do atual com as ações nascentes
que a prolongam. Esta percepção de todos os corpos circundantes repousa no
corpo organizado? Acreditava-se geralmentc que sim. A ação dos corpos
circundantes sc exercería sobre o cérebro por intermédio dos órgãos dos sentidos;
no cérebro se elaborariam as sensações e as percepções inextensas - estas
percepções seriam projetadas para fora pela consciência e viríam dc alguma
forma recobrir os objetos exteriores. Mas a comparação dos dados da psicologia
com os da fisiologia mostrava-nos coisa bem diferente. A hipótese de uma proje­
ção excêntrica das sensações nos aparecia como falsa quando a consideravamos
supcrficialmente. cada vez menos inteligível à medida que a aprofundavamos,
muito natural, entretanto, quando se levava cm conta a direção que a psicologia
c a filosofia haviam tomado e a inevitável ilusão em que se caía quando sc rccor
tava a realidade dc uma certa maneira para formular em certos termos os proble­
mas. Era obrigado a imaginar no cérebro nào sei que representação reduzida, nào
sei que miniatura do mundo exterior, a qual sc reduzia mais ainda c tomava-se
mesmo inextensa para passar à consciência: esta, munida do Espaço como dc
uma “forma”, restituía a extensão ao inextenso c reencontrava, através dc uma
reconstrução, o mundo exterior. Todas estas teorias tombavam, juntamente com
a ilusão que lhes havia originado. Não ê cm nós. c neles que percebemos os obje­
tos: é ao menos neles que os perceberiamos se nossa percepção fosse “pura”. Esta
era nossa conclusão. No fundo, voltavamos .simplesmente à idéia do senso
comum. Espantaríamos bastante, escrevêramos, um homem estranho às especula­
ções filosóficas dizendo-lhe que o objeto que ele tem diante de si. que ele vc e que
ele toca, só existe em seu espírito c para o seu espírito, ou mesmo, mais geral­
mente. só existe para um espírito, como o queria Berkeley. . . Mas. por outro
lado, surpreenderiamos da mesma maneira este interlocutor dizendo-lhe que o ob­
jeto é totalmente diferente do que ele percebe. . . Logo, para o senso comum, o
objeto existe cm si mesmo c. por outro lado, o objeto é. nele mesmo, pitoresco
como o percebemos: è uma imagem, mas uma imagem que existe cm si.'2 Como
uma doutrina que sc punha assim no ponto de vista do senso comum pode pare­
cer tão estranha? Explica-se isso facilmente quando seguimos o desenvolvimento
da filosofia moderna c quando vemos como ela sc orientou desde o início para o
idealismo, cedendo a um impulso que era o mesmo da ciência nascida de pouco.
O realismo sc colocou da mesma maneira: ele sc definiu por oposição ao idea­
lismo utilizando os mesmos termos que este: de modo que se criaram entre os
filósofos certos hábitos dc espírito cm virtude dos quais o “objetivo” c o “subjeti­
vo” eram divididos quase da mesma maneira para todos, qualquer que fosse a
relação estabelecida entre os dois termos e a escola filosófica a que sc estivesse

” Maiière e/ Mímoirc. prólo^c» â cétima edição. p. tl.(N. do A.l


I4J BERGSON

ligado. Renunciar a estes hábitos era algo extremamente difícil; apercctcmo-nos


disto pelo esforço quase doloroso, sempre recomeçado, que nós próprios tivemos
dc fazer para retornar a um ponto de vista tào semelhante ao do senso comum. O
primeiro capítulo de Matéria <? Memória, cm que consubstanciamos o resultado
de nossas reflexões sobre as ‘'imagens”, foi julgado obscuro por todos aqueles que
tinham algum hábito de especulação filosófica, e em raz.no deste próprio hábito.
Não sei sc a obscuridade se dissipou: o certo é que as teorias do conhecimento
aparecidas nestes últimos tempos, sobretudo no estrangeiro, parecem deixar de
lado os termos cm que kantianos e antikantianos concordavam cm pôr o proble­
ma. Retorna-sc ao imcdiatamente dado c pcrmanece-se ai.
Isto em relação à Ciência c à acusação, que nos foi feita, de combate-la.
Quanto à Inteligência, nâo havia necessidade de tanta agitação por sua causa.
Por que nào a consultaram antes? Sendo inteligência, e por conseguinte tudo
compreendendo, cia teria compreendido que só queríamos para ela o melhor. Na
realidade, o que opunham contra nós era um racionalismo seco, feito sobretudo
de negações, e do qual eliminamos a parte negativa pelo único fato dc propor cer­
tas soluções: era também, c talvez principalmentc. um verbalismo que ainda vicia
boa parte do conhecimento c que gostaríamos de eliminar definitivamente.
Com efeito, o que c a inteligência? A maneira humana dc pensar. Ela nos foi
dada, como o instinto à abelha, para dirigir nossa conduta. Uma vez que a natu­
reza nos destinou a utilizar e a dominar a matéria, a inteligência só evolui com
facilidade no espaço c só se sente à vontade no domínio do inorganizada. Origi-
nalmcnie. cia destina-se à fabricação: manifesta-sc por uma atividade que prefi-
gura a arlc mecânica c por uma linguagem que anuncia a ciência tudo mais na
mentalidade primitiva é crença e tradição. O desenvolvimento normal da inteli
géncia efetua sc. pois, na direção da ciência c da técnica. Uma mecânica ainda
grosseira suscita uma matemática ainda imprecisa: esta, tornando se cicnufica e
fazendo surgir em torno dela outras ciências, aperfeiçoa indefinidamen.e a arte
mecânica. Ciência c arte nos intríxluzem assim na intimidade dc uma matéria que
uma pensa e outra manipula. Por este lado a inteligência terminaria, cm princí­
pio. por atingir um absoluto. Ela seria, então, vomplviamcntc ela mesma. A prin­
cípio vaga, por nào ser mais que pressentimento da matéria, desenha tanto mais
nitidamente seus próprios contornos quanto mais precisamente conhece a maté­
ria. Como então, o espírito seria ainda inteligência quando sc volta sobre si
mesmo? Pode-se dar às coisas o nome que se quiser, e eu nào vejo grande incon
veniente. repito, em que o conhecimento do espírito pelo espírito sc chame ainda
inteligência, se se insiste nisto. Mas seria preciso então especificar que há duas
funções intelectuais, inversas, já que o espírito somente pensa o espírito perfa
zendo cm sentido inverso a escala dos hábitos mentais contraídos em contato
com a matéria, e estes hábitos sào o que se chama comumente por tendências
intelectuais. Nào valcria mais a pena então designar por outro nome uma função
que nào é certamcnte o que chamamos ordinariamente dc inteligência? Nós dize­
mos que c a intuição. Ela representa a atenção que o espírito presta a si mesmo,
por acréscimo, enquanto se fixa na matéria, seu objeto. Esta atenção suplementar
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 145

pode ser metodicamente cultivada e desenvolvida. Assim se constituirá uma ciên­


cia do espírito, uma verdadeira metafísica, que definirá o espírito positivamente
em lugar de negar simplesmente a seu respeito tudo o que sabemos da matéria.
Compreendendo assim a metafísica, deixando à intuição o conhecimento do espí­
rito. não retiramos nada da inteligência, pois pretendemos que a metafísica que
era obra da inteligência pura eliminava o tempo e a partir disto negava o espirito
ou o definia por negações: este conhecimento inteiramente negativo do espírito,
deixamo-lo à inteligência, se ela o quer: pretendemos somente que há um outro
conhecimento. Em nenhum ponto, pois, diminuímos a inteligência, nào a expulsa­
mos de nenhum dos territórios que cia ocupava até o presente: e, onde ela mais
verdadeiramente sc exerce, atribuímos lhe um poder que a filosofia moderna lhe
tem geralmente contestado. Somente, ao lado dela, constatamos a existência de
uma outra faculdade, capaz de outra espécie de conhecimento. Temos assim, de
um lado, a ciência e a arte mecânica, que são do domínio da inteligência pura; dc
outro, a metafísica, que apela para a intuição. Entre estas duas extremidades
virão colocar-se as ciências da vida moral, da vida social, c mesmo da vida orgâ­
nica. estas mais intelectuais, aquelas mais intuitivas. Mas. intuitivo ou intelectual,
o conhecimento será marcado com o selo da precisão.
Nada há de preciso, ao contrário, na conversação, que é a fonte mais
comum da “crítica". Donde vêm as idéias que aí sc trocam? Qual a importância
das palavras? Nào é o caso dc sc acreditar que a vida social seja um hábito
adquirido c transmitido. O homem é organizado paru a cidade como a formiga
para o formigueiro, com a diferença, entretanto, que a formiga possui ce uma
maneira definitiva os meios dc atingir o objetivo, enquanto nós acrescentamos o
que c preciso para reinventa los c consequentemente variar a forma. Cada pala­
vra dc nossa língua pode muito bem ser convencional, mas a linguagem nâo ê
uma convenção, c c tào natural ao homem falar quanto andar. Qual ê a função
primitiva da linguagem? É estabelecer uma comunicação cm vista de uma coope­
ração. A linguagem transmite ordens ou advertências. Prescreve ou decreta. No
primeiro caso, é um apelo à ação imediata: no segundo, assinala a coisa oj algu
mas dc suas propriedades, cm vista dc uma ação futura. Mas. tanto num caso
quanto no outro, a função é industrial, comercial, militar, sempre social. As coi
sas que a linguagem descreve foram recortadas na realidade pela percepção hu­
mana em vista do trabalho humano. As propriedades que ela assinala são apelos
da coisa a uma atividade humana. A palavra será, pois, a mesma, como dizíamos,
quando a ação sugerida for a mesma, e nosso espírito atribuirá a coisas diversas
a mesma propriedade, rcprcscntâ-las-á da mesma maneira, enfim, agrupá-las-á
sob a mesma idéia, todas as vezes em que a sugestão da mesma vantagem, da
mesma ação a executar, suscitar a mesma palavra. Tais são as origens da palavra
e da idéia... Uma e outra, sem dúvida, evoluíram. Nào são mais tào grosseira­
mente utilitárias. Mas permanecem utilitárias. O pensamento social nào pode dei­
xar de conservar sua estrutura original. Ele c inteligência ou intuição? Concordo
que a intuição faça filtrar sua luz através da inteligência: não há pensamento sem
'‘esprit de finesse", c o “esprit de finesse" c o reflexo da intuição na inteligência.
146 BERGSON

Concordo também que esta pequena parte de intuição sc tenha alargado, dando
origem à poesia, depois à prosa, convertendo cm instrumentos de arte as palavras
que dantes nào eram mais do que sinais: através dos gregos principalmcnte foi
que este milagre sc realizou. Nào é menos verdade, por isso, que pensamento c
linguagem, originariamente destinados a organizar o trabalho dos homens no
espaço, são dc essência intelectual. Mas é necessariamente uma intelectualidade
vaga — adaptação muito geral do espirito à matéria — que a sociedade deve uti­
lizar. Que a filosofia sc lenha, no princípio. contentado com isso e que ela lenha
começado por scr dialética pura, nada de mais natural. Ela nào dispunha de outra
coisa. Um Platão, um Aristóteles adotam o recorte da realidade que eles encon­
tram na linguagem: “dialética**, que deriva de diatégein. dialêgeslhai, significa ao
mesmo tempo “diálogo" e “distribuição": uma dialética como a dc Platão era, ao
mesmo tempo, uma conversação em que sc procurava pôr sc dc acordo com o
sentido de uma palavra e uma repartição das coisas segundo indicações da lin­
guagem. Mas. cedo ou tarde, o sistema dc idéias calcadas sobre palavras devia
ceder lugar a um conhecimento exato representado por signos mais precisos: a
ciência se constituiría, então, tomando cxplicitamcntc por objeto a matéria, tendo
por meio a experimentação, por ideal a matemática: a inteligência chegaria,
assim, ao completo aprofundamento da materialidade e. consequentemente, lam­
bem dela mesma. Do mesmo modo, cedo ou tarde, dcsenvolver-sc-ia uma filoso­
fia que se libertaria por sua vez da palavra, mas desta vez para ir cm sentido
inverso ao da matemática c para acentuar, no conhecimento primitivo c social, o
intuitivo cm lugar do intelectual. Entre a intuição e a inteligência assim intensifi­
cadas. n linguagem deveria, entretanto, permanecer. Ela permanece, com efeito, o
que ela sempre foi. Carregada dc mais ciência, dc mais filosofia, ainda assim ela
continua a cumprir sua função. A inteligência, que dantes se confundia com a lin­
guagem c participava de sua imprecisão, sc precisou constituindo-se em ciência:
apodcrou-sc da matéria. A intuição que a fazia sentir sua influencia querería alar­
gar se cm filosofia c tornar-se coexicnsiva ao espírito. Entre elas, entretanto, entre
estas duas formas do pensamento solitário, subsiste o pensamento comum, que
foi originariamente todo o pensamento humano. É este que a linguagem continua
a exprimir. Ela lastreou sc dc ciência, concordo: mas o espírito científico exige
que tudo seja posto cm questão a todo instante, c a linguagem necessita de estabi­
lidade. Ela é aberta à filosofia: mas o espírito filosófico simpatiza com a renova­
ção c a reinvençào sem fim que estão no fundo das coisas, c as palavras possuem
um sentido definido, um valor convencional rclativamente fixo: não podem expri­
mir o novo scn.no como uma reorganização do antigo. Chama-sc correntemente e.
talvez, imprudcntcmenie de “razão” esta lógica conservadora que rege o pensa
mento cm comum — conversação parece muito com conservação. Ela aí sente-se
em casa. E exerce uma autoridade legítima. Teoricamente, com efeito, a conver­
sação deveria versar apenas sobre as coisas da vida social. E o objetivo essencial
da sociedade é inscrir uma certa fixidez na mobilidade universal. Tantas socieda­
des, tantas ilhas consolidadas, aqui e ali. no oceano do devir. Esta consclidaçào
será tanto mais perfeita quanto mais inteligente for 3 atividade social. À inteli
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇ/XO) 147

gência geral, faculdade de organizar '‘razoavelmente” o$ conceitos e rranejar


convcnicntcmente as palavras, deve contribuir para a vida social, como a inteli
gcncia. no sentido mais estrito, funçào matemática do espírito, preside ao conhe­
cimento da matéria. É no primeiro desses dois sentidos, sobretudo, que pcr.samos
quando dizemos de um homem que ele é inteligente. Entcndc-sc. por isto, que ele
tem a habilidade e a facilidade de juntar conceitos usuais para lirar conclusões
prováveis. Só sc pode, aliás, louvá-lo por isto, desde que ele se atenha às coisas da
vida cotidiana, para a qual foram feitos estes conceitos. Mas não se admitiría que
um homem simplesmente inteligente sc pusesse a rcsolvcr questões científicas. cm
que a inteligência precisada em ciência torna-se espírito matemático, físico, bioló­
gico. e substitui às palavras signus mais apropriados. Com maior razão, dever-
se-ia proibir que falasse dc filosofia, onde as questões postas não sc referem ape­
nas à inteligência. Mas não. entende-se que o homem inteligente ê, neste domínio,
um homem competente. É contra isto que protestamos primciramente. Coloca­
mos bem alto a inteligência. Mas temos cm medíocre conta o ‘'homem inlcligcn
lc". hábil cm falar com verossimilhança dc todas as coisas.
Hábil cm falar, pronto para criticar. Quem quer que sc tenha afastado das
palavras para ir em direção às coisas, para reencontrar suas articulações natu­
rais. para aprofundar expcrimcntalmcnic um problema, bem sabe que o espírito
marcha, então, dc surpresa cm surpresa. Fora do domínio propriamente humano,
isto c. social, o verossimilhante quase nunca é verdadeiro. A natureza nào se
importa com facilitar nossa conversação. Entre a realidade concreta c a que leria­
mos reconstruído a priori, que distância! Entretanto, um espírito apenas crítico
atém-se a esta reconstrução, pois sua função nào c trabalhar sobre a coisa, mas
avaliar o que alguém falou. E como fará esta avaliação, senão comparando a
solução que lhe c oferecida, extraída da coisa, àquela que ele comporia com as
idéias correntes, isto é. com as palavras depositárias do pensamento social? E que
significará seu julgamento, senao que não sc tem mais necessidade de pesquisar,
que isto altera a sociedade, que é preciso passar um traço sob os conhecimentos
vagos armazenados na linguagem, fazer a soma c atcr-sc a isto? “Nós sabemos
tudo", tal é o postulado deste método. Ninguém ousaria mais aplicá-lo à critica
dc teorias físicas ou astronômicas. Mas. cm filosofia, comumente se procede
assim. Àquele que trabalhou, lutou, penou para descartar as idéias pré-fabricadas
e tomar contato com a coisa, opòc-se a solução que sc pretende “razoável”. O
verdadeiro pesquisador deveria protestar. A ele cabería mostrar que a faculdade
de criticar, assim entendida, é o mesmo que tomar o partido da ignorância, e que
a única crítica aceitável seria um novo estudo, mais profundo mas igualmcntc
direto, da coisa mesma. Infclizmcntc. ele é levado a criticar em todas as ocasiões,
embora não tenha podido aprofundar efetivamente mais do que dois ou três pro­
blemas. Contestants) à pura “inteligência” o poder de apreciar o que ele faz»
privar-sc-ia cie mesmo do dircilo dc julgar cm casos em que nào ê mais nem filó­
sofo netn cientista, mas simplesmente “inteligente’*. Ele acha melhor, então, ado­
tar a ilusão comum. E a isto tudo o encoraja. Comumente sc consulta sobre uma
questão difícil homens incompetentes, porque ele.s adquiriram notoriedade pela
t48 BERGSON

competência em domínios totalmente diferentes. Assim sào lisonjeados c sobre­


tudo se fortifica no espírito do público a idéia dc que existe uma faculdade geral
de conhecer as coisas sem tê-las estudado, uma “inteligência” que nào é nem
simplesmente o hábito dc manejar na conversação conceitos úteis à vida social,
nem a função matemática do espírito, mas uma certa capacidade de obter dos
conceitos sociais o conhecimento do real combinando-os jeitosamente uns com os
outros. Esta agilidade superior seria o que faz a superioridade do espírito. Como
se a verdadeira superioridade pudesse scr outra coisa qué uma maior força dc
atenção! Como sc esta atenção nào fosse necessariamente especializada, isto é.
inclinada pela natureza ou o hábito mais para certos objetos do que para outros!
Como se ela não fosse visão direta, visão que atravessa o véu das palavras, e
como se nào fosse a própria ignorância das coisas o que permite tanta facilidade
para se falar delas! Quanto a nós. prezamos o conhecimento científico c a compc
tcncia técnica tanto quanto a visão intuitiva. Cremos que é da essência do homem
criar material c moralmentc. fabricar coisas e fabricar-.se a si mesmo. Homo faber
é a definição que propomos. O Homo sapiens nascido da reflexão do Homo faber
sobre sua atividade parccc-nos digno dc apreço enquanto resolve pela pura inteli­
gência os problemas que dependem apenas dela: na escolha desses problemas, um
filósofo pode se enganar, um ouiro dissipará o engano: os dois terão dado o me­
lhor de si: os dois poderão merecer nosso reconhecimento c nossa aemiração.
Homo faber, Homo sapiens, diante dc um c diante de outro, que. aliás, tendem a
se confundir, inclinamo-nos. O único que nos c antipático é o Homo loquax, cujo
pensamento, quando ele pensa, nào c mais do que uma reflexão sobre o que fala.
A formá-lo e a aperfeiçoá-lo tendiam, outrora, os métodos de ensino. E nâo
tendem um pouco ainda hoje? Certamcntc. o defeito c menos grave ent e nós do
que em outros países. Em nenhum lugar, mais do que na França, o professor pro­
voca tanto a iniciativa do aluno. Entretanto, ainda nos resta muito a fazer. Nào
vou falar aqui do trabalho manual, da função que ele poderia desempenhar na
escola. Somos levados facilmente a ver nele apenas um passatempo. Esquecemos
que a inteligência é esscncialmentc a faculdade dc manipular a matéria, que ela
no menos começou assim, que tal era a intenção da natureza. Como entào nao sc
beneficiaria a inteligência da educação da mão? Vamos mais longe. A mão da
criança tenta naturalmente construir. Ajudando-a nisto, fomeccndo-lhe. ao
menos, ocasiões, obtcr-sc-ia mais tarde do adulto um rendimento superior: faría­
mos singularmentc crescer o que há de inventividade no mundo. Cm saber
imediatamente livrcsco comprime e suprime atividades que querem apenas desen­
volver-se. Exerçamos a criança no trabalho manual, c não abandonemos este en­
sino a pessoas nào especializadas. Apelemos para um verdadeiro mestre, para
que aperfeiçoe o tocar a ponto dc tomá-lo um lato: a inteligência clevar-se-á das
mãos à cabeça. Mas nao insisto nisto. Em qualquer matéria, letras ou ciências,
nosso ensinamento permaneceu muito verbal. Jà se foi o tempo em que era sufi­
ciente ser homem do mundo e saber discorrer sobre as coisas. Trata-sc dc cicn­
cia? Expõcm-$e ao aluno, sobretudo, os resultados. Nâo seria melhor iniciá-lo
nos métodos? Faríamos com que praticasse imediatamente: convidá-lo-íamos a
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 149

observar, a experimentar, a reinventar. Como seriámos ouvidos! Como seríamos


entendidos! Pois a criança quer procurar e inventar, sempre à espreita da novida­
de, impaciente com a regra, enfim, mais perto da natureza que o adulto. Mas este
é essencialmente um scr sociável, c c ele quem ensina: necessariamente, dá mais
valor a todo o conjunto de resultados de que se compõe o patrimônio social, do
qual ele Icgitimamente se orgulha. E. entretanto, por mais enciclopédico que seja
o programa, o que o aluno poderá assimilar da ciência acabada reduzir-se-á a
pouca coisa, e será freqüentemente estudado sem gosto, e sempre esquecido
depressa. Ninguém duvida de que cada um dos resultados adquiridos pela huma­
nidade seja precioso: mas isto pertence ao saber adulto, e o adulto o achará quan­
do for necessário, sc simplesmente aprendeu a procurar. Cultivemos mais na
criança um saber “infantil” e guardemo nos de abafar sob uma acumulação de
galhos e folhas secas, produtos de vegetações antigas, a planta nova que só quer
crescer.
Nào encontraríamos defeitos do mesmo gênero em nosso ensino literário
(tão superior, todavia, ao de outros países)? Poderá ser útil dissertar sobre a obra
dc um grande escritor; far-se-á. assim, com que seja melhor compreendida c mais
apreciada. Ê preciso, para isto, que o aluno tenha começado a apreciá-la.
conseqüentcmente, a compreende la. Isto quer dizer que a criança deverá, primei-
ramente. rcinvcntá-Ia ou. cm outros termos, apropriar sc até certo ponto da inspi
raçào do autor. Como o fará senão espelhando-se nele, adotando seus gestos, sua
atitude, sua conduta? Isto tudo é em que consiste ler bem cm voz alta. A inteli­
gência virá mais tarde aí colocar nuances. Mas nuance c cor nada são bem um
delineamento. Antes da intelecçào propriamente dita, há a percepção da estrutura
e do movimento: há. na página que sc lê. a pontuação c o ritmo. ” Mcrcá-los
corrctamcntc. levar em conta as relações temporais entre as diversas frases do
parágrafo e os diversos membros da frase, seguir sem interrupção o crescendo do
sentimento c do pensamento aié o ponto musicalmcnte notado como culminante,
nisto, antes de mais nada, consiste a arte da dicção. Erra sc ao tratá-la como
divertimento. Em lugar de vir ao fim dos estudos, como um ornamento, ela deve­
ria estar no começo e em todos, como um suporte. Sobre ela ergueriamos todo o
resto, sc não sucumbíssemos aqui à ilusão dc que o principal c discorrer sobre as
coisas c que as conhecemos suficientcmcntc quando sabemos falar delas. Mas só
se compreende, só sc conhece o que se pode cm alguma medida reinventar. Seja
dito dc passagem, há uma certa analogia entre a arte dc leitura, tal como acaba­
mos de defini-la, e a intuição que recomendamos ao filósofo. Na página que esco-

13 Acerca do fato dc que o ritmo esboça o sentido da frase vcrdadciramcntc escrita. que ele pode nos
proporcionar a comunicação dircm com o pensamento do escritor antes que o estudo das palavras venha ai
colocar n cor c a nuance, cxplicamo-nos uma ourra vez. notoriamente numa conferência feita cm 1912 sobre
"A Alma ç o Corpo" (cí. nossa coletânea L Energie Spírituelle. p. .12). Límitamonos. aliás, a fcproJixzir uma
aula dada no Colégio dc França. Kcstn auln havíamos tomado como rxemplo umn págínu ou duas do Dis
curso do Método, e tentamos mostra: como as idas c vindas do pensamenio dc Descartes, cada uma com
diieçâu determinada, passam do cspüitu dc Descartes para u nosso somente pelo efeito do ritmo tal como a
pontuação o indica, tal como indica sobretudo uma leitura correta cm voz aha. (N. do A.)
150 BERGSON

lheu do grande livro do mundo, a intuição querería reencontrar o movimento c o


ritmo da composição, reviver a evolução criadora nela inscrindo-se simpatica­
mente. Mas abrimos um parêntese demasiadamente longo. É tempo de fechá-lo.
Não temos que elaborar um programa dc educação. Queríamos someme assina­
lar certos hábitos de espírito que achamos prejudiciais c que a escola frequente­
mente encoraja de fato, conquanto os repudie cm princípio. Queríamos, sobretu­
do. protestar uma vez mais contra a substituição das coisas pelos conceitos, e
contra o que chamaríamos a socialização da verdade. Ela se impunha ras socie­
dades primitivas. Ela é natural ao espírito humano, porque este nào é destinado
à ciência pura, ainda menos à filosofia. Mas ê preciso reservar esta socialização
para as verdades de ordem prática, para as quais ela é feita. Ela nada tem a fazer
no domínio do conhecimento puro, ciência ou filosofia. Repudiamos, po s. a faci­
lidade. Recomendamos uma certa maneira difícil dc pensar. Prezamos acima dc
tudo o esforço. Como alguns puderam sc enganar? Não diremos nada dos que
queriam que nossa “intuição” fosse instinto ou sentimento. Nenhuma linha do
que escrevemos se presta a tal interpretação. E em tudo o que escrevemos há a
afirmação contrária: nossa intuição é reflexão. Mas porque chamamos r. atenção
para a mobilidade que está no fundo das coisas, preicndcu-sc que encorajavamos
nâo sei que relaxamento do espírito. E porque a permanência da substância era.
a nossos olhos, uma continuidade dc mudança, viram cm nossa doutrina uma
justificação da instabilidade. O mesmo seria imaginar que o microbiologista nos
recomenda as doenças quando nos mostra por toda parte micróbios, ou que o físi­
co nos prescreve o exercício do balanço quando remete os fenômenos da natureza
a oscilações. Uma coisa é um princípio dc explicação, outra coisa uma máxima
dc conduta. Poderiamos dizer que o filósofo que encontra a mobilidade em toda
parte c o único que nào pode recomendá-la. uma vez que ele a ve como inevitável,
uma vez que a descobre no que sc convencionou chamar dc imobilidade. Mas n
verdade é que ele teve que sc representar a estabilidade como uma complexidade
de mudança, ou como um aspecto particular da mudança: ele teve, nâo importa
como, dc resolver a estabilidade cm mudança. E para ele. como para todo mundo,
sc colocará a questão de saber em que medida ê a aparência especial dita estabili­
dade. em que medida c a mudança para o simples o que se deve aconselhar às
sociedades humanas. Sua análise da mudança deixa esta questão intata. Por
menos bom senso que tenha, ele achará necessário, como todo mundo, uma certa
permanência do que c. Ele dirá que as instituições devem fornecer um quadro
relativamente invariável à diversidade e á mobilidade dos desejos individuais. E
compreenderá, talvez, melhor que os outros o papel dessas instituições. Elas nào
continuam no domínio da ação, colocando imperativos, a obra dc estabilização
que os sentidos e o entendimento realizam quando condensam ern percepção as
oscilações de materia, c cm conceitos o fluxo das coisas? Sem dúvida, no quadro
rígido das instituições, sustentada por esta própria rigidez, a sociedade evolui. O
dever mesmo do homem dc Estado ê seguir essas variações e modificar a institui
çào quando for oportuno: sobre dez erros políticos, nove consistem em acreditar
verdadeiro o que já não o é. Mas o décimo, que poderá ser o mais grave, consiste
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 151

cm nào crer mais verdadeiro aquilo que. entretanto, ainda é. De maneira geral, a
ação exige um ponto de apoio sólido, e o ser vivo tende csscncialmente para a
ação eficaz. Isto explica por que vimos numa certa estabilização das coisas a fun­
ção primordial da consciência. Instalada na mobilidade universal, dizíamos, a*
consciência contrai, numa visão quase instantânea, uma história imensamente
longa que se desenrola perante ela. Quanto mais alta a consciência, mais forte
será esta tensão dc sua duração em relação à duração das coisas.
Tensão, concentração, tais são as palavras pelas quais caracterizaríamos um
método que requer do espírito, para cada novo problema, um esforço inteira
mente novo. Não poderiamos jamais ter tirado de nosso livro Matéria e Mamária.
que precedeu .4 Evolução Criadora, uma verdadeira doutrina da evolução (seria
no máximo uma aparência): nem de nosso Ensaio sobre os Dados Imediatos da
Consciência uma teoria das relações da alma com o corpo como aquela que
expusemos em seguida cm Matéria e Memória (leriamos apenas uma construção
hipotética), nem da pseudofilosofia à qual estávamos ligados antes dos Dados
Imediatos isto é. as noções gerais armazenadas na linguagem — as conclu­
sões acerca da duração e da vida interior que apresentamos em nosso primeiro
trabalho. Nossa iniciação no verdadeiro método filosófico data do dia cm que
rejeitamos as soluções verbais, tendo encontrado na vida interior um primeiro
campo de experiência. Todo o progresso posterior foi um alargamento desse
campo. Estender logicamente uma conclusão, aplica la a outros objetos sem ler
realmente alargado o círculo de suas investigações, é uma inclinação natural do
espirito humano, mas â qual c preciso nào ceder nunca. A isto sc abandona inge­
nuamente a filosofia quando ela c dialética pura, isto c. tentativa para construir
uma metafísica com os conhecimentos rudimentares que se encontram armaze­
nados na linguagem. Ela continua a fazê lo quando erige conclusões tiradas de
certos fatos cm “princípios gerais” aplicáveis ao resto das coisas. Toda a nossa
atividade foi um protesto contra essa maneira dc filosofar. Tivemos, assim, dc
deixar dc Indo questões importantes, às quais teríamos facilmente dado um simu
lacro dc resposta prolongando até elas os resultados dc nossos trabalhos prece­
dentes. Só respondemos a cada uma sc nos sào concedidos o tempo c a força de
resolvê-la nela mesma, por ela mesma. Senão, reconhecidos ao nosso método por
nos ter dado o que cremos scr a solução precisa de alguns problemas, consta­
tando que não podemos ir mais longe, ficamos por aí. Nunca nos empenhamos
em escrever um livro.

Janeiro de 1922
A EVOLUÇÃO CRIADORA

(CAP II)

Tradução de Nathanael Caxeiro


Capítulo II

AS DIREÇÕES DIVERGENTES
DA EVOLUÇÃO DA VIDA

TORPOR. INTELIGÊNCIA E INSTINTO

O movimento evolutivo seria coisa simples, e logo poderiamos determinar


sua dircçàu. se a vida descrevesse uma trajetória única, comparável à parábola
de uma granada lançada por um canhão. Mas. no caso, estamos tratando de
uma granada que imediatamente explodiu cm fragmentos, os quais, sendo por
sua vez espécies de granadas, explodiram cm fragmentos destinados a explodir
dc novo, c assim por diante durante muito tempo. Só percebemos o que está
mais perto de nós. os movimentos espalhados dos estilhaços pulverizados. Ê par
lindo deles que devemos voltar, paulatinamcntc. até ao movimento original
Quando a granada explode, sua fragmentação particular se explica imedia
tamente pela força explosiva da pólvora que ela encerra e pela resistência do
metal que a ela opõe. O mesmo acontece com a fragmentação da vida em indiví
duos c cm cspccics. Isso sc dá. segundo cremos, cm vístu dc duas séries de causas:
a resistência que a vida experimenta da parle da matéria bruta, c a força cxplosi
va — devida a um equilíbrio instável de tendências — que a vida traz em si.
A resistência da matéria bruta é o obstáculo que foi primeiro preciso supe­
rar. A vida parece havê Io conseguido à força dc humildade, fazendo sc muito
pequena c muito insinuante. dissimulando com as forças físicas c químicas, con­
sentindo mesmo cm fazer com elas uma parte do caminho, como o desvio da
via férrea quando adota por alguns instantes a direção do trilho, do qual quer
sc destacar. Não sc pode dizer dos fenômenos observados nus formas mais ele
mentares da vida sc sào físicos ou químicos ou se sao já vitais. Seria orecíso
que a vida entrasse assim nos hábitos da matéria bruta, para arrastar aos poucos
por outra via essa matéria magnelizadu. As formas animadas que primeiro apare
ccram foram pois dc uma simplicidade extrema. Eram sem dúvida pequenas mas
sas de protoplasma escassamente diferenciado, comparadas pelo aspecto externo
às amebas que hoje observamos, mas tendo, ademais, o formidável impulso inte­
rior que devia alçá-las até as formas superiores da vida. Parcccnus provável que
em virtude desse impulso os organismos tenham procurado crescer o mais possí
vel: mas a matéria organizada tem um limite de expansão logo atingido. Além
156 BERGSON

de certo ponto cia sc desdobra em vez de crescer. Foram necessários, sem dúvida,
séculos de esforço c prodígios de sutileza para que a vida contornasse esse novo
obstáculo. Ela conseguiu que permanecessem unidos elementos cm número cres­
cente e cm vias de se desdobrar. Pela divisão de trabalho cia estabeleceu entre
eles um vínculo indissolúvel. O organismo complexo e quase descontínuo funcio­
na assim como o teria feito certa massa contínua, que houvesse tão-somente au­
mentado.
Mas as causas verdadeiras e profundas de divisão eram aquelas que a vida
trazia cm si. Porque a vida c tendência c a essência de uma tendência é dcsenvol-
ver-se cm forma de feixe, criando, tão-só pelo fato de seu crescimento, direções
divergentes entre as quais se distribuirá seu impulso. Isso é o que observamos
em nós mesmos na evolução dessa tendência especial a que chamamos nosso
caráter. Cada um de nós. passando em revista retrospectiva a nossa história,
irá verificar que nossa personalidade de criança, embora indivisível, englobava
em si pessoas diversas que podiam manter-se fundidas juntas porque estavam
cm estado nascente: essa indecisão plena dc promessas é inclusive um dos gran­
des encantos da infância. Mas as personalidades que se interpcnctram tornam-se
incompatíveis ao crescerem, e. como cada um de nós tem uma só vida, somos
forçados a fazer uma opção. Na realidade, estamos incessantemente fazendo es­
colhas. e sem cessar também deixamos dc lado muitas coisas. O itinerário que
percorremos no tempo está juncado dos resíduos de tudo o que começavamos
a ser. dc tudo o que poderiamos ter vindo a scr. Mas a natureza, que dispõe
de um número incalculável de vias, de modo algum se restringe a serrelhantes
sacrifícios. Ela conserva as diversas tendências que bifurcaram ao crescer. Ela
cria, com elas, séries divergentes de espécies que evoluirão distintamente.
Essas séries poderão, aliás, ser de importância desigual. O autor que começa
uma novela atribui ao seu personagem um sem-número dc coisas a que c obriga­
do a renunciar à medida que a obra avança. Talvez as retome mais tarde em
outros livros, para compor com cias personagens novos, que aparecerão como
extratos ou então como complementos do primeiro, mas quase sempre estes últí
mos terão algo dc estreito em comparação com o personagem original. O mesmo
acontece com a evolução da vida. As bifurcações, durante o trajeto, foram nume
rosas, mas houve um sem-número dc dilemas à margem de duas ou trés grandes
estradas; c dessas estradas, por sua vez. uma só. a que subc ao longo dos verte­
brados até ao homem, foi bastante ampla para deixar passar livremente o grande
alento da vida. Temos essa impressão quando comparamos as sociedades de abe­
lhas ou de formigas, por exemplo, com as sociedades humanas. As primeiras
são admiravelmente disciplinadas e unidas, mas estagnadas: as outras são aber
ias a todo progresso, porém divididas e cm luta incessante entre si. O ideal seria
uma sociedade sempre em marcha e sempre cm equilíbrio, mas esse ideal talvez
nao seja realizável: as duas características que quisessem completar-sc mutua­
mente. que chegam mesmo a se completar cm estado embrionário, ternam sc
incompatíveis ao se acentuarem. Se pudéssemos falar a não ser por metáforas
dc um impulso para a vida social, deveriamos dizer que o grosso do impulso
A EVOLUÇÃO CRIADORA 157

deu-se ao longo da linha de evolução que culmina no homem, c que o resto


foi recolhido na via que conduz aos himenópteros: as sociedades de formigas
c abelhas apresentariam assim o aspecto complementar das nossas. Mas isso
nào seria senão um modo de dizer. Não houve impulso particular para a vida
social. Há simplesmente o movimento geral da vida, o qual cria, cm linhas diver­
gentes. formas sempre novas. Sc devem aparecer sociedades nessas linhas, elas
deverão manifestar a divergência das vias ao mesmo tempo que a comunidade
do impulso. Elas revelarão assim duas séries dc características, que verificaremos
vagamente complementares uma da outra.
O estudo do movimento evolutivo consistirá pois cm deslindar certo número
de direções divergentes, em avaliar a importância do que ocorreu em cada uma
delas: em suma, em determinar a natureza das tendências dissociadas e avaliar
sua dosagem. Combinando entào essas tendências entre si. obteremos uma apro
ximação ou antes uma imitação do indivisível princípio motor dc onde adveio
seu impulso. Isto equivale a dizer que veremos na evolução coisa intciramcnic
diversa de uma série dc adaptações às circunstâncias, como o pretende o mccani
cismo, coisa totalmente diferente também da realização de um plano de ccnjunto.
como o pretendería a doutrina da finalidade.
Nào contestamos, absolutamente, que a condição necessária da evolução
seja a adaptação ao meio. É por demais evidente que uma espécie desapareça
quando não sc curve às condições dc existência que lhe sào dadas. Mas uma
coisa c reconhecer que as circunstâncias externas são forças com as quais a evo­
lução deve contar, c outra coisa c sustentar que elas são as causas diretrizes
da evolução. Esta última tese é a do mccanicismo. Ela exclui dc modo absoluto
a hipótese de um impulso original, quero dizer.de um arranco interior que levasse
a vida, através dc formas cada vez mais complexas, a destinos cada vez mais
elevados. No entanto, esse impulso é perceptível, c um simples olhar lançado
às espécies fósseis nos mostra que a vida teria podido não sc desenvolver, ou
só evoluir dentro dc limites estreitíssimos, sc ela tivesse tomado partido, muito
mais cômodo para ela. de sc anquilosar em suas formas primitivas. Certos fora
miníferos nào variaram desde a época siluriana. Impassíveis testemunhas das
revoluções inumeráveis que agitaram nosso planeta, os lingulados são atualmente
o que já eram nos mais remotus tempos da era palcozóica.
A verdade é que a adaptação explica as sinuosidades do movimento evoluti
vo, mas dc modo nenhum as direções gerais do movimento, e muito menos o
próprio movimento.’ A estrada que leva à cidade é forçada a subir encostas c
descer ladeiras c se adapta aos acidentes do terreno: mas os acidentes do terreno
nào são causa da estrada c muito menos lhe imprimiram sua direção. A cada
momento eles lhe fornecem o indispensável, o próprio solo sobre o qual ela
se estende: mas se considerarmos o todo da estrada e não mais cada uma de
suas partes, os acidentes dc terreno nào mais aparecerão a nào scr como obslácu

' Esse ponto de vista sobre a adaptação foi assinalado por F. Marin, cm notável artigo sobre u Origem
da* Espécies (Revue tcienfi/ique. novembro dc 1901. p. 5S0).
15X BERGSON

los ou causas dc atraso, pois a estrada tinha em vista tão-somente a cidade e


bem que gostaria de scr uma linha reta. O mesmo acontece com a evolução da
vida e com as circunstâncias que ela atravessa, com a diferença, todavia, de que
a evolução não projeta uma estrada única, e que cia envereda por direções sem
no entanto visar a alvos, e que. finalmente, ela continua inventiva até cm suas
adaptações.
Mas. se a evolução da vida é coisa diferente de uma série de adaptações
a circunstâncias casuais, também não é a concretização de um plano. Um plano
é dado dc antemão. É representado, ou pelo menos representável, antes do porme­
nor dc sua realização. A execução completa dele pode scr adiada para um futuro
distante, até mesmo recuada ao infinito: nem por isso a idéia dele é menus formu-
lávcl desde já. cm termos atualmente dados. Pelo contrário, sc a evolução é uma
criação incessantcmcntc renovada, ela criou, paulatínamcnte. não só as formas
da vida, mas também as idéias que permitiríam a uma inteligência corr preen dê-
la. e os termos que serviríam para exprimi Ia. Isto equivale a dizer que seu futuro
transborda seu presente e nào poderia esboçar-se nele numa idéia.
Nisso consiste o primeiro «rro do finalismo. Esse erro arrasta consigo um
outro, mais grave ainda.
Sc a vida concretiza um plano, ela deverá manifestar uma harmonia mais
elevada á medida que avance mais além. Como a casa que exibe cada vez melhor
a idéia do arquiteto à medida que as pedras se empilham sobre as outras. Pelo
contrário, se a unidade da vida estiver inteiramente no impulso que a impele
na rota do tempo, a harmonia não está na frente, mas atrás. A unidade vem
dc um vis a ler go: ela é dada no início como um arranco: nào está situada no
termo como uma atração. O impulso sc divide cada vez mais ao se comunicar.
A vida, gradativamente com o seu progresso, difunde-se cm manifestações que
deverão sem dúvida à comunidade dc sua origem scr complementares umas das
outras sob certos aspectos, mas que nao deixarão der ser antagônicas e incom
patíveis entre si. Assim é que a desarmonia entre as espécies irá se acentuando.
Só assinalamos até agora a sua causa essencial. Havíamos suposto, para simplifi
car. que cada espécie recebia o impulso para o transmitir a outras, c que, cm
todos os sentidos cm que a vida evolui, a propagação sc efetuava cm linha reta.
Dc fato, há espécies que sc detêm, e há entre elas as que retrocedem em meio
ao caminho. A evolução nào c apenas movimento para frente; em muitos casos
observa-se um patinar no mesmo lugar, c não raro também um desvio ou retro­
cesso. Impòe-sc que assim seja, como o mostraremos mais adiante, e as mesmas
causas que cindem o movimento evolutivo fazem com que a vida, ac evoluir,
se desvie nào poucas vez.es de si mesma, hipnotizada na forma que acaba de
produzir. Mas resulta disso uma desordem crescente. Sem dúvida há progresso,
se entendermos por progresso a marcha continuada na direção geral que uma
impulsào prévia imprima, mas esse progresso só se realiza em duas ou três linhas
gerais de evolução em que sc esboçam formas cada vez mais complexas e cada
vez mais elevadas: entre essas linhas correm um sem número de vias secundárias
onde sc multiplicam pelo contrário os atalhos, as paradas e os recuos. O filósofo.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 159

que havia começado por estabelecer como princípio que cada pormenor se rela­
ciona a certo plano de conjunto, vai de decepção em decepção quando enfoca
o exame dos fatos: c como tudo colocara na mesma categoria, ocorre-lhe agora,
por não ter reservado lugar ao acaso, acreditar que tudo c casual. Impõe-se come­
çar. pelo contrário, admitindo o papel do acaso, que é muito grande. É preciso
reconhecer que nem tudo é coerente na natureza. Com isso seremos levados a
determinar os centros cm tomo dos quais se cristaliza a incoerência. E essa cris­
talização por sua vez esclarecerá o resto: as grandes direções aparecerão, onde
a vida se move desenvolvendo o arranco original. Não sc presenciará, é verdade,
a realização pormenorizada dc um plano. Há mais e melhor no caso que um
plano que sc realize. Plano é um ponto final imposto a uma tarefa: ele bloqueia
o futuro cuja forma projeta. Pelo contrário, diante da evolução da vida as portas
do futuro permanecem escancaradas. Trata-se de uma criação que se efetua infm
davclmente em virtude dc um movimento inicial. Esse movimento constitui a
unidade do mundo organizado, unidade fecunda, dc uma riqueza infinita, supe­
rior a qualquer uma que a inteligência pudesse sonhar, dado que a inteligência
não passa de um dc seus aspectos ou de seus produtos.
É mais fácil, porém, definir o mclodo do que aplica Io. A interpretação com
pleta do movimento evolutivo no passado, tal como o concebemos, só seria possí­
vel se a história do mundo organizado estivesse completa. Longe estamos dc
tal resultado. Sâo problemáticas, no mais das vezes, as genealogias que nos pro­
põem das diversas espécies. Elas variam com os autores, com as perspectivas
teóricas em que se inspiram, e suscitam polemicas que o atual estado da ciência
nau permite dirimir. Mas. comparando diversas soluções entre si. veremos que
a controvérsia recai antes sobre o pormenor que sobre as linhas gerais. Acompa­
nhando essas linhas tâo perto quanto possível. estaremos portanto seguros de
não nos extraviar. Só elas nos importam, aliás, porque não visamos, como o
naturalista, a encontrar a ordem de sucessão das diversas espécies, mas apenas
definir as direções principais dc sua evolução. Nem todas essas direções têm
<» mesmo interesse: é da via que conduz ao homem que devemos sobretudo nos
ocupar. Não perderemos pois de vista, ao acompanhar umas e outras, que sc
trata sobretudo de determinar a relação do homem para com o conjunto do reino
animal, e o lugar do reino animal por sua vez no conjunto do mundo organizado.
Para começar pelo segundo tópico, digamos que nenhuma característica ri­
gorosa distingue a planta do animal. As tentativas feitas para definir rigorosa­
mente os dois reinos fracassaram sempre. Não são poucas as propriedades da
vida vegetal que se encontram, em certo grau, cm determinados animais e nâo
há um só traço característico do animal que não sc possa observar em certas
espécies, ou cm certos momentos, no mundo vegetal. Comprecndc-sc pois que
biólogos empenhados em rigor tenham tomado por artificial a distinção entre
os dois reinos. Tcriam razão, se a definição devesse fazer-se aqui como nas ciên­
cias matemáticas ou físicas, por certos predicados estáticos que o objeto definido
possui e que os demais nâo possuem. A nosso ver. bem diferente é o gencro
dc definição que convém às ciências da vida. Não há manifestação da vida que
160 BERGSON

não contenha em estado rudimentar, ou latente, ou virtual, as caracter.sticas es­


senciais da maioria das demais manifestações. A diferença está nas pr.iporçÕes.
Mas essa diferença de proporção bastará para definir o grupo cm que cia se
encontra, se pudermos estabelecer que ela nào é acidental e que o grupo, à medi
da que evolui, tendia cada vez mais a dar ênfase a essas características particula­
res. Em suma, o grupo não mais se definirá pela posse de certas características,
mas por sua tendência a acentuá-las. Se nos colocarmos desse ponto de vista,
sc tivermos menos em consideração os estados do que as tendências, verificare­
mos que vegetais e animais podem definir se e distinguir se de modo rigoroso,
c que correspondem bem a dois desenvolvimentos divergentes da vida.
Essa divergência assinala-se primeiramente no modo de alimentação. Sabe
sc que o vegetal toma diretamente ao ar. à água c à terra os elementos necessários
para a manutenção da vida, sobretudo o carbono c o nitrogênio: ele os toma
sob sua forma mineral. Pelo contrário, o animal só pode apoderar-se desses mes
mos elementos sc eles estiverem já fixados para ele nas substâncias orgânicas
pelas plantas ou pelos animais que. direta ou indiretamente, os devem a plantas,
dc modo que cm última análise c o vegetal que alimenta o animal. É verdade que
essa lei sofre muitas exceções entre os vegetais. Não sc hesita cm classificar entre
os vegetais a dróscra. a dionéia. a pinguícola, que sào plantas insetívoras. Por
outro lado, os cogumelos, que ocupam um lugar tào considerável no mundo vege­
tal. alimentam-se como animais: é de substâncias orgânicas já constituídas que
eles tomam sua alimentação, sejam elas fermentos. saprófitas ou parasitas. Nào
sc poderia portanto extrair dessa diferença uma definição estática que resolva
automaticamente, cm qualquer caso, a questão dc saber sc lidamos com uma
planta ou um animal. Mas essa diferença pode fornecer um começo dc definição
dinâmica dos dois reinos, naquilo que ela assinala as duas direções divergentes
cm que vegetais c animais obtiveram seu impulso. É notável que os cogumelos,
espalhados na natureza com tào extraordinária abundância, não tenham podido
evoluir. Eles nào sc devam organicamente acima dos tecidos que. nos vegetais
superiores, sc formam no saco embrionário do óvulo e precedem o desenvolvi­
mento germinuciw do novo indivíduo.7 Poder-se-ia dizer que sc trata dc abortos
do mundo vegetal. Suas diversas espécies constituem tantos impasses, como se.
ao renunciar ao mudo dc alimentação comum dos vegetais, cies houvessem para­
do no trajeto da evolução vegetal. Quanto às dróscras. às dionéias. às plantas
insetívoras em geral, cias se alimentam como as demais plantas através das raí­
zes, fixando também, por suas partes verdes, o carbono c o ácido carbônico conti
do na atmosfera. A faculdade dc capturar insetos, de os absorver e os digerir
deve ter surgido entre elas tardiamente, cm casos tolalmentc excepcionais, nos
lugares onde o solo, demasiado pubre, nao lhes fornecesse uma alimentação sufi
ciente. De um modo geral, se nos ativermos menos à presença das características
do que a sua tendência a se desenvolver, e sc tivermos por essencial a tendência
ao longo da qual a evolução conseguiu continuar indefinidamente, dir se-á que

3 Dc Sapina c Morron, LUvolutiun des Crypítjgames. [881.p. 37.


A EVOLUÇÃO CRIADORA 161

os vegetais sc distinguem dos animais pelo poder de criar matéria orgànica às


custas de elementos minerais que extraem dirciamcnie da atmosfera, da terra
e da água. Mas a essa diferença liga sc uma outra, já mais profunda.
O animai, como nâo pode fixar diretamente o carbono e o nitrogênio que
estão presentes cm toda parte, c obrigado a procurar, para alimentar sc. os vege­
tais que já fixaram esses elementos ou os animais que por sua vez os tomaram
ao reino vegetal. O animal é. pois, necessariamente móvel. Desde a ameba. que
lança ao acaso seus pscudópodcs para captar as matérias orgânicas esparsas nu­
ma gota d'água. até os animais superiores, que possuem órgãos sensoriais para
reconhecer sua presa, órgãos locomotores para ir à sua cata, um sistema nervoso
para coordenar seus movimentos «a suas sensações. a vida animal é caracterizada,
cm sua direção geral, pela mobilidade no espaço. Sob sua forma mais rudimentar,
o animal aprcscnta-sc como pequenina massa de protoplasma envolvido, no má
ximu. por uma fina película albuminóide que lhe dá plena liberdade para sc defor­
mar e se mover. Pelo contrário, a célula vegetal envolve se com uma membrana
dc celulose que a condena à imobilidade. E. de baixo a cima do reino vegetal,
sào os mesmos hábitos sedentários cada vez. mais acentuados, nâo tendo a planta
necessidade dc se incomodar e encontrando à sua volta, na atmosfera, na água
c na terra cm que está situada, os elementos minerais de que sc apropria direta­
mente. É certo que se observam também nas plantas determinados fenômenos
de movimento. Darwin escreveu um belo livro sobre os movimentos das plantas
trepadeiras. Estudou as manobras de certas plantas insetívoras. tais como a dró
sera e a dionéia. para capturar sua presa. Sào conhecidos os movimentos das
folhas da acácia, da sensitiva, etc. Dc resto, o vaivém do protoplasma vegetal
no interior de seu invólucro aí está para atestar seu parentesco com o protoplas
ma dos animais. Invcrsamcntc. notaríamos num scm-númcro dc espécies animais
(em geral parasitas) fenômenos de fixação análogos aos dos vegetais.3 Também
no caso nos enganaríamos sc pretendéssemos fazer da fixidez e da mobilidade
duas características que permitam concluir, por simples inspeção, sc estamos
diante dc uma planta ou de um animal. Mas n fixidez. no animal, aparece no
mais das vezes como um torpor cm que tivesse caído a espécie, como uma recusa
cm evoluir mais além em certa direção: ele é parente próximo do parasítismo.
c acompanha-se de características que lembram as da vida vegetal. Por outro
lado, os movimentos dos vegetais nâo têm a frequência nem a variedade que
se observa nos movimentos dos animais. Eles implicam, cm geral, apenas parte
do organismo, c quase nunca sc estendem ao organismo todo. Nos casos excep
cionais em que uma vaga espontaneidade nele se manifesta, parece que assistimos
ao despertar casual de uma atividade via de regra adormecida. Em suma, sc
a mobilidade c a fixidez coexistem no mundo vegetal como no mundo animal,
o equilíbrio é manifestamente rompido em favor da fixidez num caso e da mobili
dade no outro. Essas duas tendências opostas sào lào evidentemente diretrizes

aSobre a fixaçãv c ü parasiiismo cm geral, veja-sc a obra dc Houssay. l.a forme rí la vie, Paris. 1900.
pp. 721 807.
162 BERGSON

das duas evoluções que sc poderia já definir mediante elas os dois reinos. Mas
fixidez e mobilidade, por sua vez. não passam dc indícios superficiais dc tendên­
cias mais profundas ainda.
Entre a mobilidade c a consciência há uma relação evidente. Certamente,
a consciência dos organismos superiores parece solidária com certos dispositivos
cerebrais. Quanto mais sc desenvolve o sistema nervoso, mais numerosos e preei
sos se tornam os movimentos entre os quais ele tem a escolha e mais luminosa
c também a consciência que os acompanha. Mas nem essa mobilidade, nem essa
escolha, nem. por conseguinte. essa consciência tem por condição necessária a
presença dc um sistema nervoso: esse nada mais faz que canalizar em sentidos
determinados, e levar, a mais alto grau dc intensidade, uma atividade rudimentar
e vaga, difusa na massa da substância organizada. Quanto mais se desce na série
animal, mais os centros nervosos se simplificam e se separam também uns dos
outros; por fim. os elementos nervosos desaparecem, mergulhados no conjunto
dc um organismo menos diferenciado. Mas o mesmo acontece com todos os de
mais aparelhos e todos os demais elementos anatômicos; e seria também absurdo
recusar a consciência a um animal, porque não tenha cérebro, tanto quanto decla
rá-lo incapaz de nutrir-sc por nào ter estômago. A verdade c que o sistema nervo
so nasceu, como os demais sistemas, de uma divisão de trabalho. Ele nào cria
a função; ele apenas a eleva a grau mais aho de intensidade c prccisào ao lhe
dar a dupla forma de atividade reflexa c de atividade voluntária. Para efetuar
um verdadeiro movimento reflexo, é preciso um mecanismo completo montado
na medula ou no bulbo. Para escolher voluntariamente entre diversos desempe­
nhos determinados, impòe-sc haver centros cerebrais, isto é. encruzilhadas dc
onde partam estradas conduccntcs a mecanismos motores dc configuração diver
sa e dc igual precisão. Mas no caso cm que nao sc tenha produzido ainda uma
canalização cm elementos nervosos, muito menos uma concentração dos elemen
tos nervosos em um sistema, alguma coisa há de onde sairão, pela via co desdo
bramento. tanto o reflexo corno o voluntário, algo que nem tem a prccisào mccâ
nica do primeiro nem as hesitações inteligentes do segundo, mas que, participan­
do cm dose infinitesimal de um c dc outro, c uma reação simplesmente indecisa
c por conseguinte já vagamente consciente. Significará isso que o organismo mais
humilde c consciente na medida em que sc move livremente. Em relação ao movi
mento, será a consciência nesse caso o efeito ou a causa? Em certo sentido é
a causa, dado que sua função c dirigir a locomoção. Mas em outro sentido ela
é efeito, porque é a atividade motora que a mantém, e. uma vez que essa atividade
desapareça, u consciência sc atrofia ou então adormece. Em crustáceos como
os rizocéfalos. que devem ter apresentado antigamente uma estrutura mais dife­
renciada. a fixidez e o parasitismo acompanham a degcnerescência c o quase
desaparecimento do sistema nervoso: como, em caso semelhante, o progresso
da organização havia localizado em centros nervosos toda a atividade consciente,
pode conjccturar sc que a consciência é mais frágil ainda nos animais desse gêne­
ro do que em organismos muito menos diferenciados, que jamais possuíram cen­
tros nervosos mas que permaneceram imóveis.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 163

Como, entào, a planta, que se fixou à terra e que encontra seu a.imento
no local, teria podido desenvolver-se no sentido da atividade consciente? A mem­
brana dc celulose, de que se envolve o protoplasma, ao mesmo tempo que imobili­
za o organismo vegetal mais simples, o exclui, cm grande parte, dessas excitações
externas que atuam sobre o animal como irritantes da sensibilidade e o impedem
de adormecer.4 A planta é. pois, em geral inconsciente. Também nesse caso deve
mos ter cautela com as distinções radicais. Inconsciência e consciência não sào
rótulos que sc possam colar maquinalmcntc. um sobre toda célula vegetal c o
outro sobre todos os animais. Sc a consciência adormece no animal que degenc
rou como parasila imóvel, inversamente cia desperta, sem dúvida, no vegetal que
reconquistou a liberdade de seus movimentos, c ela desperta na exata medida
cm que o vegetal reconquista essa liberdade. Consciência e inconsciência também
assinalam as direções cm que se desenvolveram os dois reinos, no sentido que.
para encontrar os melhores ©specimens da consciência no animal, c preciso subir
até os representantes mais allos da série, ao passo que. para descobrir casos
prováveis dc consciência vegetal, c preciso descer o mais baixo possível na escala
das plantas, chegar aos zoósporos das algas, por exemplo, e. dc um modo mais
geral, a esses organismos unicelularcs dos quais sc pode dizer que hesitam entre
a forma vegetal e a animalidade. Desse ponto dc vista, c nessa medida, cefínirc
mos o animal pela sensibilidade c consciência desperta, c o vegetal pela consciên­
cia adormecida c insensibilidade.
Em suma, o vegetal fabrica dirctamcntc substâncias orgânicas com stibstân
cias minerais: essa capacidade o exime cm geral de se mover c. por isso mesmo,
de sentir. Os animais, obrigados a ir cm busca de seu alimento, evoluíram no
sentido da atividade locomotora e. por conseguinte, dc uma consciência cada
vez mais ampla, cada vez mais distinta.
Ora. não nos parece dubitável que a célula animal c a célula vegetal decor
ram dc uma estirpe comum, que os primeiros organismos vivos tenham oscilado
entre a forma vegetal c a forma animal, participando dc uma e dc outra ao mesmo
tempo. Com efeito, acabamos de ver que as tendências características da evolu­
ção dos dois reinos, embora divergentes, coexistem ainda atualmente, tanto na
planta como no animal. Só difere a proporção. Via dc regra, uma das duas ten
dências encobre ou esmaga a outra, mas. cm circunstâncias excepcionais, esta
se separa e reconquista o lugar perdido. A mobilidade c a consciência da célula
vegetal nào estão adormecidas a tal ponto que nâo possam despertar quando
as circunstâncias o permitem ou o exigem. E, por outro lado, a evolução do
reino animal foi sem cessar retardada, detida, ou arrastada para trás pela tendên­
cia que conservou à vida vegetativa. Por mais plena, por mais transbordante
que possa de fato parecer a atividade de uma espécie animal, o torpor e a incons­
ciência a espreitam. Ela só mantem seu papel por um esforço, ao preço de um
cansaço. Ao longo do caminho no qual o animal evoluiu, ocorreram fraquezas
sem número, fracassos que sc devem na maior parle a hábitos parasitários: sào

4 Cope.op.cú., p. 76.
164 BERGSON

como os desvios ferroviários na vida vegetativa. Assim, tudo nos faz supor que
0 vegetal e o animal descendem de um antepassado comum que reunia, no estado
nascente, as tendências de um e do outro.
Mas as duas tendências que se implicavam rcciprocamente sob essa forma
rudimentar dissociaram-se ao crescer. Disso decorreram o mundo das plantas,
com sua fixidez e sua insensibilidade, tanto quanto os animais, com sua mobilida
de e sua consciência. Não há. pois, necessidade absolutamente alguma dc recor
rcr a uma força misteriosa para explicar esse desdobramento. Basta observar
que o ser vivo tende naturalmcnte ao que lhe c mais cômodo, e que vegetais
e animais optaram, cada qual por seu lado, por dois gêneros diferentes dc como­
didade no modo dc se abastecerem do carbono e do nitrogênio de que tinham
necessidade. Os primeiros, de modo pertinaz e maquinalmcnle. extraem esses ele­
mentos dc um meio que os fornece sem cessar. Os segundos, mediante ação des
contínua, concentrada cm alguns instantes, c consciente, vão procurar esses cor­
pos cm organismos que os já lixaram. Trata-se de duas maneiras diferentes dc
compreender o trabalho ou. sc preferirmos, a preguiça. Parece-nos também dubi-
tável que se revelem algum dia na planta elementos nervosos, por mais rudimen­
tares que sc possa imaginar. O que corresponde nela à vontade que dirige o ani
mal é. segundo cremos, a direção pura onde ela desvia a energia da radiação
solar quando dela se serve para romper as amarras do carbono com o oxigênio
no ácido carbônico. O que corresponde, nela, à sensibilidade do animal é a im
pressionabilidade cspecialíssima de sua clorofila à luz. Ora. sendo o sistema ncr
voso, antes dc tudo, um mecanismo que serve de intermediário entre sensações
c voliçôcs. o verdadeiro “sistema nervoso” da planta parecc-nos scr o mecanismo
ou antes o quimismo sui generis que serve dc intermediário entre a impressionabi-
lidade de sua clorofila à luz c a produção do amido. Significa que a planta não
deve possuir elementos nervosos, c que o mesmo impulso que levou o animal
a adquirir nervos e centros nervosos deve ter culminado, na planta, na função
clorofiliana*
Essa primeira inspeção no mundo organizado irá permitir-nos a determina
ção cm termos precisos do que une os dois reinos, bem como aquilo que OS
separa.
Suponhamos, como deixamos entrever no capítulo precedente, que haja no
fundo da vida um esforço para enxertar, na necessidade das forças físicas, a
maior soma possível dc indetcrminaçào. Esse esforço não pode chegar a criar
energia, ou. sc criar, a quantidade criada não pertence à ordem de grandeza cap-
távcl por nossos sentidos ou instrumentos de medida, nossa experiência e nossa
ciência. Tudo se passará, pois, como se o esforço visasse simplesmente â utilizar

9 Assim como a planta, cm certos casos, recobra a faculdade dc sc mover ativamente que nela adormece,
lambem u anima) pode, em circunsuncia» excepcionai», situar se nas condições da vida vcgelatira e revelar
cm si um equivalente da função cluruííiica. ParcCc resultar, Com efeito, das recentes experiences do Maria
von Linden que as crisálidas c as lagarias de diversos lepidõpteros. sob a influência da luz. fixam o carbono
do ácido carbônico contido na atmosfera (M. von Linden. L'Assimilation <lc 1'acide carboniçue par les
chrysalides dr Lépidopleros. C. R de la Soc. de Biologic, 1905.pp. 692 ss.),
A EVOLUÇÃOCRiADORA 165

da melhor maneira a seu alcance uma energia preexistente, que encontre à sua
disposição. Só há um meio de chegar a isso: é obter da matéria tal acúmulo
de energia potencial que ela possa, cm dado momento, fazendo disparar um me­
canismo. obter o trabalho de que necessita para agir. Por sua vez. ele só possui
esse poder dc desencadear. Mas o trabalho de destravamento. embora sempre
o mesmo e sempre mais fraco que qualquer quantidade dada, será tanto mais
eficaz quanto faça cair de mais alto um peso mais pesado, ou. cm outras pala­
vras, que a soma de energia potencial acumulada c disponível seja mais conside­
rável. De fato, a fonte principal da energia utilizável na superfície de nosse plane­
ta é o Sol. O problema era pois este: obter do Sol que aqui e ali. na superfície
da Terra, ele interrompesse parcial e provisoriamente seu fornecimento incessante
de energia utilizável, que cie armazenasse parte dela, sob forma dc energia nào
ainda utilizada, em reservatórios apropriados dc onde ela pudesse depois fluir
no momento desejado, para o lugar desejado, na direção desejada. As substâncias
de que o animal se alimenta são. precisamente. reservatórios desse gcncro. Cons­
tituídas dc moléculas muito complexas que encerram, em estado potencial, uma
soma considerável dc energia química, elas constituem espécies dc explosivos,
que só esperam uma centelha para libertar a forma armazenada. Ora. é provável
que a vida tendesse primeiro a obter, dc uma só vez. tanto a fabricação do expio
sivo como a explosão que o utiliza. Nesse caso, o mesmo organismo que tivesse
armazenado dirctamcntc a energia da radiação solar a teria despendido em movi­
mentos livres no espaço. Por isso, devemos presumir que os primeiros seres vivos
tenham procurado, por um lado, acumular pcrtinazmcntc energia tirada do Sol
c. por outro, despendê-la dc modo descontínuo c explosivo por movimentos de
locomoção: os infusórios cloroHlados. as cuglcnoidinas simbolizam talvez ainda
hoje, mas sob uma forma reduzida c incapaz de evoluir, essa tendência primor
dial da vida. Corresponderá o desenvolvimento divergente dos dois remos ao
que se poderia chamar metaforicamente de esquecimento, por parte dc cada rei­
no. dc uma das duas metades do programa? Ou então, o que é mais provável,
a própria natureza da matéria que a vida achava diante dc si cm nosso planeta
teria sc oposto a que as duas tendências pudessem evoluir juntas cm um mesmo
organismo? O que é certo é que o vegetal tendeu sobretudo ao primeiro sentido
e o animal, ao segundo. Mas, se desde o início, a fabricação do explosivo tivesse
por alvo a explosão, a evolução do animal, muito mais que a do vegetal, é que
indica, cm suma, a orientação fundamental da vida.
A “harmonia” dos dois reinos, as características complementares que eles
apresentam, viriam. pois, enfim do fato dc que eles revelam duas tendências pri­
meiro fundidas numa única. Quanto mais a tendência original c única aumenta,
tanto mais acha difícil manter unidos no mesmo ser vivo os dois elemen’.os que.
em estado rudimentar, estão implicados um no outro. Daí um desdobramento,
daí duas evoluções divergentes: daí também duas séries de características que
sc opõem cm certos pontos, sc completam cm outros, mas que, ou se completando
ou se opondo, conservam sempre entre eles um aspecto de parentesco. Ã medida
que o animal evoluía, não sem acidentes, ao longo do trajeto, no sentido de uma
166 BERGSON

liberação cada vez mais livre dc energia descontínua, a planta aperfeiçoava seu
sistema de acumulação no mesmo lugar. Nào insistiremos quanto a essa segunda
questão. Digamos apenas que a planta valeu-se. por sua ve?, dc um novo desdo­
bramento. análogo ao que sc produziu entre a planta e os animais. Se a célula
vegetal primitiva teve, por si só. que fixar o carbono e seu nitrogênio, póde quase
que renunciar à segunda dessas duas funções quando vegetais microscópicos ten
deram exclusivamentc a esse sentido, especializando-se aliás diversamente nesse
trabalho ainda complicado. Os micróbios que fixam o nitrogênio da atmosfera
e os que, alternadamcntc. convertem os compostos amoniacais em compostos
nitrosos e estes em nitratos, prestam ao conjunto do mundo vegetal, pela mesma
dissociação de uma tendência primitivamcnic única, o mesmo gênero de serviço
que o.s vegetais em geral prestam aos animais. Se criássemos para esses vegetais
microscópicos um reino especial, poderiamos dizer que os micróbios do solo,
os vegetais e os animais apresentam nos a análise, operada pela matéria que a
vida linha à sua disposição em nosso planeta, de tudo o que a vida continha
a princípio cm estado de implicação recíproca. Será isso, rigorosamente falando,
uma “divisão do trabalho'*? Essas palavras nào dariam uma idéia exata da evolu
ção. tal como representamos. No caso cm que haja divisão do trabalho, há asso­
ciação c há também convergência dc esforço. Pelo contrário, a evolução dc que
falamos jamais sc realiza no sentido dc uma associação, mas de uma dissociação,
jamats no sentido da convergência, mas divergência de esforços. A harmonia
entre termos que sc completam cm certos pontos não sc produz, a nosso ver.
durante o trajeto por uma adaptação recíproca; pelo contrário, ela é cabalmcntc
completa apenas no ponto dc partida. Ela decorre dc uma identidade original.
Ela advem dc que o processo evolutivo, que sc expande cm forma de feixe, separa
uns dos outros, durante o seu crescimento simultâneo, termos a princípio tào
complementares a ponto de terem estado confundidos.
Importa, aliás, que os elementos nos quais uma tendência se dissocia tenham
todos a mesma importância, c sobretudo a mesma potência de evoluir. Acabamos
dc distinguir três reinos diferentes, se assim podemos exprimir-nos. no mundo
organizado. Enquanto o primeiro abrange apenas microorganismos manados cm
estado rudimentar, animais e vegetais assumiram impulso para altíssimos êxitos.
Ora. eis um fato que sc produz comumente quando uma tendência se dissocia.
Entre os desenvolvimentos divergentes aos quais cia dá origem, uns continuam
indefinidamente. outros chegam mais ou menos depressa ao extremo de suas pos­
sibilidades. Estes últimos nào provem dirctamcntc da tendência primitiva, mas
de um dos elementos nos quais ela sc dividiu: trata-se de desenvolvimentos resi­
duais. efetuados e depositados a meio caminho, por algumas tendências verdadeí-
ramente elementares: elas trazem, segundo cremos, uma característica pela qual
as reconhecemos.
Essa característica é como o traço, ainda visível cm cada uma delas, do
que a tendência original encerrava c dc que elas representam as direções elemen
lares. Com efeito, os elementos de uma tendência nào são comparáveis a objetos
justapostos no espaço c exclusivos uns dos outros, mas. isto sim, a estados psico­
A EVOLUÇÃO CRIADORA 167

lógicos, cada um dos quais, embora seja a principio ele mesmo, participa no
entanto dos demais e encerra assim virtualmcntc toda a personalidade à qual
pertence. Não há manifestação essencial da vida, dizíamos, que não nos apresen­
te. em estado rudimentar ou virtual, as características das outras manifestações.
Reciprocamente, quando nos deparamos com a reminiscência. por assim dizer,
cm uma linha dc evolução, do que se desenvolve ao longo de outras linhas, deve­
mos concluir que estamos diante de elementos dissociados dc uma mesma tendèn
cia original. Nesse sentido, vegetais e animais representam bem os dois grandes
desenvolvimentos divergentes .da vida. Sc a planta sc distingue do animal pela
fixidez e insensibilidade, movimento e consciência adormecem nela como lem
branças que podem despertar. De resto, ao lado dessas lembranças norrnalmcnte
adormecidas, há lambem as que são despertas c atuantes. Sào aquelas cuja ativi
dade não prejudica o desenvolvimento da própria tendência elementar. Poderia­
mos enunciar esta lei: Quando uma tendência se dcscompõe ao desenvolver se,
cada unia das tendências particulares que nascem assim querería conservar e
desenvolver, da tendência primitiva, tudo o que nào é incompatível com o traba
Iho no qual ela se especializou. Com isso sc explicaria precisamente o fato sobre
o qual nos alongamos no capitulo precedente, isto é. a formação dc mecanismos
complexos idênticosem linhas de evolução independentes. Certas analogias profun
das entre o vegetal c o animal nào tem. provavelmente, outra causa: a geração
sexuada nào passa, talvez, de um luxo para a planta, mas era preciso que o
animal proviesse dela, e a planta deve ter sido levada a ela pelo mesmo impulso
que levou o animal à rcprcxluçào sexuada — impulso primitivo, original, anterior
ao desdobramento dos dois reinos. Diremos o mesmo da tendência do vegetal
a uma complexidade crescente. Essa tendência é essencial ao reino animal, que
a necessidade dc uma açâo cada vez mais extensa c eficaz trabalha. Mas cs vege
tais, que se condenaram à insensibilidade e à imobilidade, só apresentam a mes­
ma tendência porque receberam, no inicio, o mesmo impulso. Experiências recen­
tes mostram nos os vegetais variando num sentido qualquer quando chega o pc
ríodo de “mutação"; ao passo que o animal deve ter evoluído, segundo cremos,
cm sentidos muito mais determinados. Mas nào insistiremos muito nesse desdo­
bramento original da vida. Chegamos à evolução dos animais, o que nos interessa
mais cspccialmcntc.
O que constitui a animalidade, dizíamos, c a faculdade dc utilizar um meca
nismo dcscncadcador para converter em ações “explosivas" a maior soma possí
ve! dc energia potencial acumulada. No início, a explosão sc faz ao aca^o, sem
poder escolher sua direção: assim é que a ameba lança em todos os sentidos
ao mesmo tempo seus prolongamentos pseudopódicos. Mas. à medida que nos
elevamos na série animai, vemos a própria forma do corpo esboçar certo número
dc direções bem determinadas, ao longo do qual caminhará a energia. Essas dire
çòcs são assinaladas pelas respectivas cadeias dc elementos nervosos situadas
de ponta a ponta. Ora. o elemento destacou-se aos poucos da massa mal diferen­
ciada du tecido organizado. Pode-se pois conjtclurar que nele e em seus anexos
é que sc concentra, desde o aparecimento, a faculdade dc liberar bruscamente
168 BERGSON

a energia acumulada. Na verdade. Ioda célula viva despende, incessantemente,


energia para se manter em equilíbrio. A célula vegetal, entorpecida desde o inicio,
absorve-sc inteiramente nesse trabalho de conservação, como se assumisse por
fim o que a princípio só devia ser um meio. Mas. no animal, tudo converge à
ação, isto é. à utilização de energia para movimentos de translação. Sem dúvida,
cada célula animal despende para viver boa parte da energia de que dispõe, não
raro até mesmo de toda essa energia: mas o conjunto do organismo quereria
atrair dela o mais possível cm pontos onde sc realizam os movimento» dc loco­
moção. De modo que. onde exista um sistema nervoso com os órgãos sensoriais
e os aparelhos motores que lhe servem de apêndices, tudo deve passar-se como
se o restante do corpo tivesse por função essencial preparar para cies, a fim de
lhes transmitir, no momento desejado, a força que liberarão por Uma espécie dc
explosão.
O papel do alimento nos animais superiores ê. dc fato, extremamente com
plexo. File serve primeiro para restaurar os tecidos. Em seguida, fornece ao ani
mal o calor dc que cie precisa para ficar tão independente quanto possível das
variações da temperatura externa. Com isso, dc conserva, mantém e sustenta
o organismo em que 0 sistema nervoso está inserido c no qual os elementos ner­
vosos devem viver. Mas esses elementos nervosos nâo teriam razão alguma dc
ser sc esse organismo não lhes transmitisse, a eles mesmos c sobretudo aos mús­
culos que acionam, certa energia a despender, e pode-se mesmo conjccturar que
nisso se resume, afinal, o destino essencial e definitivo do alimento. Isso nâo
quer dizer que a parte mais considerável do alimento emprega-se para esse traba
Iho. Um Estado pode ter que fazer despesas enormes para garantir a arrecadação
de impostos; a soma dc que disporá» com exceção das despesas dc cobrança,
será talvez mínima: nem por isso ela é a razão dc ser do imposto c dc tudo
o que se gastou para obter o seu recebimento. O mesmo acontece com a energia
que o animal busca nas substâncias alimentares.
Muitos fatos parecem indicar que os elementos nervosos e musculares ocu­
pam esse lugar em relação ao restante do organismo. Examinemos primeiro a
distribuição das substâncias alimentares entre os diversos elementos do corpo
vivo. Essas substâncias dividein-sc em duas categorias: umas, quaternárias ou
albuminóides. c as outras, temárias. compreendendo os hidratos de carbono e
as gorduras. As primeiras são propriamente plásticas, destinadas a restaurar os
tecidos — embora possam, cm razão do carbono que contêm, tornar-se energéti­
cas quando preciso. Mas a função energética é mais cspecialmcntc própria às
segundas: estas, depositando sc na célula mais que incorporando-sc à sua subs­
tância. Içvam-lhe, sob forma de potencial químico, uma energia dc força que
se converterá dirclamcnte em movimento ou em calor. Em suma, as primeiras
tem por função principal restaurar a máquina, e as segundas lhe fornecem a ener­
gia. É natural que as primeiras não tenham lugar de escolha privilegiado, dado
que todas as peças da máquina precisam ser mantidas. Mas não acontece o mes­
mo com as segundas. Os hidratos de carbono distribuem-se muito desigualmente,
e essa desigualdade de distribuição nos parece instrutiva no grau mais elevado.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 169

Transportadas pelo sangue arterial sob forma de glicose, essas substâncias


sc depositam, de fato, sob forma dc glicogênio, nas diversas células que cansti
tuem os tecidos. Sabe-sc que uma das principais funções do fígado ê manter cons­
tante o teor de glicose no sangue, graças às reservas de glicogênio que a célula
hepática elabora. Ora, nessa circulação dc glicose c nessa acumulação dc glicogc-
nio, c fácil ver. tudo se passa como se lodo o esforço do organismo fosse empre­
gado para prover dc energia potencial os elementos de um tecido muscular c
também os do tecido nervoso. Ele sc conduz diversamente nos dois casos, mas
culmina no mesmo resultado. No primeiro, ele assegura à célula uma reserva
considerável, depositada nela de antemão: a quantidade de glicogênio que os
músculos encerram é enorme, dc fato, em comparação com a que encontra nos
demais tecidos. Pelo contrário, no tecido nervoso, a reserva c fraca (os elementos
nervosos, cuja função é simplesmente liberar a energia potencial armazenada no
músculo, jamais tem. aliás, necessidade de fornecer muito trabalho ao mesmo
tempo): mas, o que é notável, essa reserva é reconstituída pelo sangue no momen­
to mesmo em que ela sc gasta, dc modo que o nervo se recarrega dc energia
potencial instantaneamente. Tecido muscular c tecido nervoso sào pois bem privt
legiados, um no que é aprovisionado dc uma reserva considerável dc energia,
c o outro no que é sempre servido no momento em que tem necessidade, c na
exata medida em que precisa de energia.
De um modo mais particular, c do sistema sensório-motor que vem no caso
o apelo dc glicogênio, isto c. de energia potencial, como sc o restante do organis
mo se destinasse a passar força ao sistema nervoso c aos músculos que acionam
os nervos. Certamcntc. quando sc imagina o papel que desempenha o sistema
nervoso (mesmo sensório motor) como regulador da vida orgânica, pode-se inda
gar se nesse intercâmbio dc bons procedimentos entre ele e o restante do corpo
ele ê vcrdadeiramcnlc um senhor que seria servido pelo corpo. A hipótese já
seria sedutora se considerarmos, cm estado estático, por assim dizer, a distribui­
ção da energia potencial entre os tecidos; c (cria plena adesão, segundo cremos,
se refletíssemos sobre as condições nas quais a energia se gasta c sc reconstitui.
Suponhamos, com efeito, que o sistema sensório-motor seja um sistema como
os demais, da mesma categoria que os outros. Levado pelo conjunto do organis
mo. ele esperará que um excedente dc potencial químico lhe tenha sido fornecido
para realizar trabalho. Em outros lermos, a produção do glicogênio é que regula­
rá o consumo que dclc fazem os nervos e músculos. Suponhamos, pelo contrário,
que o sistema sensório-motor seja verdadeiramente dominador. A duração e ex
tensão dc sua ação serão independentes, em certa medida pelo menos, da reserva
de glicogênio que ele encerra, e mesmo daquela que o conjunto do organismo
contêm. Ele fornecerá trabalho, c os demais tecidos deverão que se haver como
puderem para lhe levar a energia potencial. Ora, as coisas se passam justamente
assim, como o mostram sobretudo as experiências dc Morat c Dufourt.* Sc a
função glicogenica do fígadu depende da ação dos nervos excitadore.s que a go

8 Arehiwx dc physwlogie. 1X92.


170 BERGSON

vcrnam, a atividade desses últimos nervos está subordinada ã dos nervos que
abalam os músculos locomotores. no sentido em que estes começam por gastar
a esmo» consumindo assim glicogénio, empobrecendo de glicose o sangue, c de­
terminando finalmcnte o fígado, que deverá despejar no sangue empobrecido uma
parte de sua reserva de glicogênio. para fabricar dc novo glicose. F.m suma: c.
a rigor, do sistema sensório-motor que tudo começa c è a ele que tudo converge;
pode-se dizer, sem metáfora, que o restante do organismo está a seu serviço.
Meditemos ainda no que sc passa no caso do jejum prolongado. Éfato nutá
vel que. nos animais que tenham morrido de fome, cnconire-se o cérebro quase
intacto, ao passo que os demais órgãos perderam uma parte mais ou menos gran­
de dc seu peso c que suas células tenham sofrido alterações profundas.7 Tcm-sc
a impressão de que o resto do corpo sustentou o sistema nervoso até o limite
extremo, tratando-se a si mesmo como simples meio dc que este seria o fim.
Em suma, se concordarmos, para abreviar, em chamar dc “sistema sensório
motor'* o sistema nervoso cêrcbro-espinhal com. ademais, os aparelhos jcnsoriais
nos quais ele sc estende e os músculos locomotorcs que ele governa, poderemos
dizer que um organismo superior ê constituído csscncialmente dc um sistema
sensório-motor instalado em aparelhos de digestão, respiração, circulação, secre­
ção. etc., que têm por função restaura lo. limpá-lo, protege lo. criar para ele um
meio interno constante, enfim, e sobretudo, transmitir lhe a energia potencial a
ser convertida cm movimento dc locomoção.’ E verdade que. quanto mais a fun
çao nervosa sc aperfeiçoa, tanto mais as funções destinadas a mante )a devem
desenvolver sc c se tornam por conseguinte exigentes por si mesmas. À medida
que a atividade nervosa emergiu da massa protoplasmatic» cm que eslava mergu­
lhada. teve que convocar atividades dc todo gênero sobre as quais apoiar-se:
estas só se poderíam desenvolver com base em outras atividades, por sua vez
implicando outras, c assim por diante. ?\sstrn é que a complicação do fjnciona-
mento dos organismos superiores vai ao infinito. O estudo dc um desses organis­
mos nos faz, pois, girar num círculo, como sc tudo nele servisse dc meio a tudo.
Esse círculo ê também um centro, que ê o sistema dc elementos nervosos estendí
do entre os órgãos scnsoriai.s c o aparelho de locomoção.
Nâo nos alongaremos aqui sobre um tópico que já desenvolvemos longa­
mente cm trabalho anterior.* lembremos apenas que o progresso do sistema ncr-

’ Pc Manacéuk*. "Alguma* observações experimentai* «»l»rc a influência du inwniu absuluia" 'Arch. ital.
de bitdngie, i XXI. 1894. pp. 322 Rcecntcmcntc, observações unúloga.s foram feitas num homem mtwio
dc inanição apôs um jejum dc 35 dias. Veja sc sobre essç assunto o Annéc htoingiquc de 18^8. p. J38.
o resumo dc um trabalho (cm russo) de TamkcMcb c Sichasny.
* Cuvier já dizia: "O sistema nervoso i, no fundo, o animal todo; ik demuib sistemas m» cjísicjii nele
pura o servir'*. (Sobre nova comparação a scr feiia entre as classe* i^uc compõem o reino anima. Archívei
du Muxeum d'histoire naiurelle. Paris. 1812. p. 73 84.) A esta fórmula cabería. naturalmcnte. um tem núme­
ro de restrições: considerar se. por exemplo, caso» dc degradação c regressão cm Que o sistema nervocn
passa a plano subalterno. E, sobretudo, impôc se juntar ao sistema nervoso os aparelhos scnsoriais, por
um fedo, c maiores, por outro, entre os quais dc serve dc intermediário. Cf. Foster. Art. Fisiolugia da
Encyclopaedia Brtianníeu, Edinburg, 1885. p. 17.

■ Matter?et memoir?. (N. do 1.)


A EVOLUÇÃO CRIADORA 171

voso efetuou sc. imcdiatamcntc c ao mesmo tempo, no sentido de uma adaptação


mais rigorosa dos movimentos c no sentido de maior margem deixada ao ser
vivo para escolher entre eles. Essas duas tendências podem parecer antagônicas,
e cias o sào de fato. Uma corrente nervosa, mesmo sob sua forma das mais
rudimentares, chega no entanto a conciliá-las. Por um lado, com efeito, ela dese
nha uma linha bem determinada entre um ponto c outro da periferia, aquele sen­
sorial e este motor. Ela portanto canalizou uma atividade primeiramente difusa
na massa protoplasmálica. Mas. por outro lado, os elementos que a compõem
sào provavelmente descontínuos: seja como for. admitindo sc que se anastomo
sem entre si. eles apresentam uma descontinuidade funcional, porque cada um
deles termina por uma cspccic dc encruzilhada onde, sem dúvida, o influxo nervo­
so pode escolher seu caminho. f>a mnis humilde moncra. passando pelos insetos
mais bem dotados e até os vertebrados mais inteligentes, o progresso realizado
foi sobretudo um progresso do sistema nervoso, cm cada grau, corn todas as
criações e complicações dc peças que esse progresso exigia. Como o demos a
entender desde o inicio deste trabalho, a função da vida ê inserir indcterminaçào
na matéria, indeterminadas quero dizer, imprevisíveis — sào as formas que
cia cria paulalinamcntc durante sua evolução. Cada vez mais indeterminada tam­
bém -- quero dizer, cada vez mais livre — ca atividade à qual essas formas
devem servir de veicula. Um sistema nervoso, com neurônios situados de ponta
a ponta dc tal modo que na extremidade dc cada utn deles sc abram vias multi
pias onde outras tantas questões sc apresentem, é um verdadeiro rcxerxatórin
dc indetcrmlntiçào. Uma simples inspeção no conjunto do mundo organizado
parece mostrar-nos que o essencial do impulso vital tenha sc dado para a criação
dc aparelhos desse gênero. Mas impõem-se como indispensáveis alguns esclarecí
mentos sobre esse impulso mesmo da vida.
Não devemos esquecer que a força que evolui através do mundo organizado
c uma força limitada, que procura sempre ultrapassar a si mesma, e que permane­
ce sempre inadequada à obra que tende a produzir. O desconhecimento dessa
questão engendrou os erros c as puerilidades do finalismo radical. O finalismo
radical imaginou o conjunto do mundo vivo como uma construção, c como uma
construção análoga às nossas. Iodas as peças dele estariam dispostas cm vista
do melhor funcionamento possível da máquina. Cada espécie lería sua razão de
ser. sua função, seu destino. Juntas elas dariam um grande concerto sinfônico,
em que as dissonâncias aparentes só serviríam para dar ênfase â harmonia funda
mental. Em suma, tudo sc passaria na natureza como nas obras da inspiração
humana, em que o resultado obtido pode ser mínimo, mas onde há pelo menos
adequação perfeita entre o objeto fabricado c o trabalho de fabricação.
Nada de semelhante a isso existe na evolução da vida. Nela, a desproporção
entre o trabalho e o resultado ú manifesta. For toda parte do mundo organizado
há sempre utn único c grande esforço; mas. no mais das vezes, esse esforço dc
tém-se, ora paralisado por forças contrárias, ora desviado do que deve fazer pelo
que faz. absorvido pela forma que sc ocupou cm assumir, hipnotizado por ela
como por um espelho. Até cm suas obras mais perfeitas, quando parece haver
172 BERGSON

triunfado sobre resistências externas c também da sua própria, ele está à mercê
da materialidade a que teve dc se dar. É o que cada um de nós pode vivenciar
em si mesmo. Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais ela se afir
ma. cria os hábitos nascentes que a sufocarão se ela nào se renovar por um
esforço constante: o automatismo a espreita. O pensamento mais vivo sc congela
rá nu fórmula que o exprime. A palavra volta-se contra a idéia. A letra mata
o espírito. E nosso mais ardente entusiasmo, quando se exterioriza cm ação, cris-
lalíza-sc às vezes tào naturalmente cm frio cálculo de interesse ou vaidade, c
um adota tào facilmente a forma do outro, que até poderiamos confundi-los.
duvidar de nossa sinceridade, negar a bondade c o amor, sc nao soubéssemos
que a morte conserva ainda por algum tempo os vestígios do ser vivo.
A causa profunda dessas dissonâncias juz numa irremediável diferença de
ritmo. A vida cm geral é a própria mobilidade: as manifestações particulares
da vida só aceitam essa mobilidade com pesar, c constantemente sc atrasam em
relaçào a ela. A vida vai sempre cm frente, mas suas manifestações particulares
dc bom grado ficariam marcando passo no mesmo lugar. A evolução cm geral
sc faria, tanto quanto possível, cm linha reta;cada evolução especial é um proces
so circular. Como turbilhões dc poeira levantados pelo vento que passa, os vivos
giram sobre si mesmos, pendentes do grande alento da vida. Eles sào. pois, rclati
vamente estáveis, e chegam a imitar tão bem a imobilidade ao ponto dc os tratar­
mos como coisas mais que como progressos. esquecendo que a própria perma
ncncia de sua forma nào passa de um projeto dc movimento. Por vezes, no entan
to. maierializa-sc diante de nossos olhos, numa fugidia aparição, o alento invisí
vel que os anima. Temos essa iluminação súbita diante dc certas formas do amor
materno, tão flagrante, tào comovente também na maior parte dos animais, ob­
servável até mesmo na solicitude da planta para com sua semente. Esse amor,
no qual alguns viram o grande mistério da vida, talvez nos revelasse o segredo
dela. Ele nos mostra cada geração voltada para aquela que a seguirá. Ele nos
deixa entrever que o scr vivo c sobretudo um lugar dc passagem, e que o essencial
da vida reside no movimento que a transmite.
Esse contraste entre a vida cm geral e as formas em que ela se manifesta
apresenta por toda parle o mesmo caráter. Poder se ia dizer que a vida tende
a agir o mais possível, mas que cada espécie prefere contribuir com a mínima
parcela possível dc esforço. Encarada no que é sua própria essência, isto c. como
uma transição dc espécie a espécie, a vida é uma ação sempre crescente. Mas
cada uma das espécies, através das quais a vida passa, visa tào-somente sua
comodidade. Ela segue no sentido do que exige a mínima dificuldade. Absorvcn
do se na forma que irá assumir, ela entra numa sonolência, em que ignora quase
iodo o resto da vida: modula-se a st mesma em vista da exploração mais fácil
possível do seu círculo imediato. Assim o ato pelo qual a vida se encaminha
para a criação de uma forma nova, o ato pelo qual essa forma sc desenha sào
dois movimentos diferentes e não raro antagônicos. O primeiro se prolonga no
segundo, mas não pode se prolongar sem se desviar dc sua direção, como aconte-
A EVOLUÇÃO CRIADORA 173

ceria a um atleta que. para vencer v obstáculo, fosse obrigado a desviar os olhos
do obstáculo e olhar para si mesmo.
As formas vivas são. pela própria definição, formas viáveis. Seja como for
que sc explique a adaptação do organismo às suas condições dc existência, essa
adaptação c. necessariamente, suficiente a partir do momento que a espécie sub*
sista. Nesse sentido, cada uma das espécies que se sucederam na história da vida,
c que a zoologia c a paleontologia descrevem, foi um êxito feliz alcançado pela
vida. Mas as coisas assumem aspecto totalmcntc diverso quando comparamos
cada espécie ao movimento que a colocou em seu caminho, e não mais às condi
çòes em que ela se inseriu. Nào raro esse movimento desviou-se. c nào raro tam­
bém ele estancou; o que deveria ser tão-somente um lugar de passagem conver­
teu-se no ponto final. Dessa nova perspectiva, o fracasso aparece como a regra,
o bom êxito como excepcional e sempre imperfeito. Veremos, no devido tempo,
que das quatro grandes direções pelas quais enveredou a vida animal, duas condu
ziram a becos sem saída, e que em duas outras, o esforço foi de modo geral
desproporcionado ao resultado.
Escassciam-nos documentos para reconstituir os pormenores dessa história.
Contudo, podemos dcslindar-lhe as linhas gerais. Dizíamos pouco antes qce ani
mais c vegetais tiveram de scparar-sc muito depressa de sua estirpe comum: o
vegetal adormecendo em sua imobilidade e o animal, pelo contrário, despertando
sempre mais e avançando sempre cada ve? mais à conquista dc um sistema ner­
voso. É provável que o esforço do reino animal culmine na criaçao dc organismos
simples, mas dotados dc certa mobilidade, e sobretudo dc forma bastante :ncon
clusiva. de molde a prestar sc a todas as determinações futuras. Esses animais
poderíam parecer-se com certos vermes por nós conhecidos, com a diferença,
no entanto, dc que os vermes atualmente vivos com os quais os comparássemos
sào os exemplares esvaziados c cstratificados das formas infinitamente maleáveis,
prenhes de futuro indefinido, que foram o antepassado comum dos equinodermos.
dos moluscos, dos artrópodes c dos vertebrados.
Um perigo os espreitava, um obstáculo que sc impunha sem dúvida a deter
o impulso da vida animal. Ha uma particularidade que nào pode deixar dc nos
impressionar quando lançamos um olhar sobre a fauna dos tempos primevos.
C o aprisionamento do animal num invólucro mais ou menos rígido, que devia
prejudicar e mesmo nào raro paralisar seus movimentos. A princípio, os molus­
cos eram dotados dc uma concha com muito mais frequência do que os moluscos
atuais. Os artrópodes cm geral eram providos de uma carapaça: eram crustáceos.
Os peixes mais remotos possuíam um invólucro ósseo, de extrema rigidez.9 A
explicação desse fato geral deve ser procurada, segundo cremos, numa tendência
dos organismos flácidos a sc defenderem uns contra os outros, tornando-se inde-
voráveis tanto quanto possível. Cada espécie, no ato pelo qual se constitui, segue

9 Vçja w. jubre cwas dííerciiics qucuòcs. a ubru dc Guudry: lie paletintuloRie physique, Pans, 1896,
pp. 1416c 7S 79.
174 BERGSON

no sentido do que lhe é mais cômodo. Do mesmo modo que. entre os organismos
primitivos, alguns se orientaram no sentido da animalidade ao renmeiarem a
fabricar o orgânico com o inorgânico e tomando as substâncias orgânicas já
totalmente constituídas aos organismos já desviados na vida vegeta^ também,
entre as próprias espécies animais, muitas se acomodaram para viver às custas
dos outros animais. Um organismo que seja animal, isto c. capaz dc bcomover-
sc. poderá dc fato valer se de sua mobilidade para ir à procura de animais indefe
sos c deles se alimentar, tanto quanto dc vegetais. Desse modo, quanto mais
as espécies se faziam móveis, tanto mais, sem dúvida, sc tornavam vorazes c
perigosas umas para as outras. Disso deve ter resultado uma brusca parada do
mundo animal inteiro no progresso que o levava a uma mobilidade cada vez
maior, porque a pele dura e a crosta calcária do equinodermo. a concha do mo
lusco. a carapaça do crustáceo c a couraça ganóide dos antigos peixes provavel­
mente tiveram por origem comum um esforço das espécies animais no sentido
de se protegerem contra as espécies inimigas. Mas essa couraça, por trás da qual
o animal se abrigava, prejudicava o em seus movimentos e nào raro o imobiliza
va. Se o vegetal renunciou à consciência ao se envolver numa membrana dc cclu
lose, o animal que se enclausurou numa cidadela ou numa armadura condena-se
a uma sonolência. Nesse torpor é que vivem ainda hoje os equinodermos c mes­
mo os moluscos. Os artrópodes c os vertebrados também sofreram ameaça como
essa. Escaparam dela: a essa feliz circunstância dcvc-sc o atual desabrochar das
mais elevadas formas da vida.
Com efeito, cm duas direções vemos o impulso da vida ao movimento levar
vantagem. Os peixes trocam sua couraça ganóide por escamas. Muito ’.empo an­
tes. os insetos, por sua vez, apareceram desembaraçados da couraça que protege­
ra seus antepassados. Para compensar a insuficiência que lhes permitia escapar
a seus inimigos e lambem assumir a ofensiva, escolhendo o lugar e o momento
do combate. Progresso do mesmo gênero c que observamos nu evolução do equi­
pamento humano. O primeiro movimento é o de ir em busca de abrigo; o segun
do. que é o melhor, consiste cm tornar se o mais maleável possível para a fuga
c sobretudo para o ataque — sendo ainda o aiaque o meio mais eficaz de defen­
der sc. Assim c que o pesado hoplita veio a ser suplantado pelo legi mário: o
cavaleiro, e seu cavalo, com armadura e couraça dc malhas metálicas (eve dc
ceder o lugar ao infante livre em seus movimentos, c, de modo geral, na evolução
do conjunto da vida, como na evolução das sociedades humanas, como também
na evolução dos destinos individuais, os mais retumbantes êxitos couberam ãque
lesque aceitaram os maiores riscos.
Evidentemente, o interesse do animal era o dc tornar-se mais móvel. Como
o dissemos a propósito da adaptação em geral, sempre se poderá explicar a trans­
formação das espécies por seu interesse particular. Ter-se-á tão-somente a causa
mais .superficial. A causa profunda é o impulso que lançou a vida no mundo,
que a fez bifurcar sc entre vegetais e animais, que desviou a animalidade no senti­
do da maleabilidade da forma, e que, em dado momento, no reino animal amea
A EVOLUÇÃO CRIADORA 175

çado dc entorpecimento, obteve, pelo menos em alguns pontos, que houvesse um


despenar e que se fosse avante.
Nas duas vias em que evoluíram distintamente os vertebrados e os art*ópo
des, o desenvolvimento (com abstração dos recuos relacionados com o parasitis-
mo ou a qualquer outra causa) consistiu sobretudo de um progresso do sistema
nervoso sensório-motor. Procura se a mobilidade, procura se a maleabilidade,
procura-se — por meio de tentativas e erros inumeráveis, e não sem haver dado
primeiro num exagero da massa e da força brutal a variedade dos movimcn
tos. Mas essa procura, por sua vez, é feita cm sentidos divergentes. Uma olhadela
sobre o sistema nervoso dos artrópodes c dos vertebrados esclarece-nos quanto
às diferenças. Nos primeiros, o corpo é constituído dc uma série mais ou menos
extensa de anéis justapostos: a atividade motora sc divide então entre um número
variável, por vezes considerável, de apêndices: cada um dos quais tem sua espe­
cialidade. Nos outros, a atividade concentra se em dois pares dc membranas ape­
nas. c esses órgãos realizam funções que dependem muito menos estritamente
dc sua forma.10 A independência torna se completa no homem, cuja mão pode
executar qualquer trabalho, seja ele qual for.
Pelo menos, o que expusemos até aqui é o que se vê. Por trás do que vemos
há agora o que se adivinha: duas potências imanentes à vida c primeiro confundi­
das. que sc dissociaram ao crescer.
Para definir essas potências, impoc-se considerar, na evolução dos artrópo
des e dos vertebrados, as espécies que assinalam, cada uma por sua vez. o ponto
culminante. Como determinar esse ponto? Tambcm nesse caso estaremos enga­
nados sc pretendermos o rigor geométrico. Nào existe o indício peculiar c simples
pelo qual sc possa reconhecer que uma espécie ê mais avançada que outra numa
mesma linha dc evolução. Há características múltiplas, que devemos comparar
entre si c ponderar em cada caso particular, para saber até que ponto são essen
ciais ou acidentais, e cm que medida será válido tomà-las cm consideração.
Nào c contestável, por exemplo, que o sucesso seja o critério mais geral
da superioridade, sendo os dois termos, aié certo ponto, sinônimos um do outro.
Devemos entender por sucesso, quando sc tratar do ser vivo, uma aptidão
para sc desenvolver nos ambientes mais diversos, através da maior variedade
possível de obstáculos, dc molde a abranger a mais vasta extensão possível dc
terreno. Uma espécie que reivindique lodo o planeta por domínio será verdadeira­
mente uma espécie dominadora c. por conseguinte, superior. Assim e a espécie
humana, que representará o ponto culminante da evolução dos vertebrados. Mas
assim são também, na série dos animais cujo esqueleto é dividido cm segmentos
- os articulados . os insetos c em especial certos himenópteros. Já sc disse
que as formigas são as senhoras do subsolo da terra, como o homem c o senhor
do solo.
Por outro lado, um grupo de espécies aparecido mais tarde pode ser um

’8 Sobre o assunta, veja-se Shalcr, The individual. Nova York. J 000, pp. 11X-12$.
176 BERGSON

grupo de degenerados, mas é preciso para isso que uma causa de regressão lenha
interferido. De direito, esse grupo seria superior ao grupo de que e.e decorre,
dado que correspondería a um estágio mais avançado da evolução. Ora. o ho
mem c provavelmente o mais recente dos vertebrados.11 E. na série dos msetos.
só os lepidópteros são posteriores aos himenópteros. isto c. sem dúvida, uma
espécie degenerada, verdadeira parasita das plantas dotadas de flores.
Dessa maneira, por caminhos diferentes, somos levados a mesma conclusão.
A evolução dos anrópodes teria atingido seu ponto culminante com o inseto,
e cm particular com os himenópteros. assim como a evolução dos vertebrados
chegou ao máximo com o homem. Ora, sc tomarmos cm consideração que em
parte alguma o instinto se desenvolveu tanto quanto no mundo dos insetos, e
que em nenhum grupo de insetos cie c tão maravilhoso quanto nos himenópteros.
poderemos dizer que toda a evolução do reino animal, com abstração dos regres­
sos à vida vegetativa, realizou sc cm duas vias divergentes, uma das quais seguia
em direção ao instinto c a outra em direção à inteligência.
Torpor vegetativo, instinto e inteligência, eis pois, finalmentc. os elementos
que coincidiam no impulso vital comum às plantas c aos animais, c que. no
curso dc um desenvolvimento cm que manifestaram nas mais imprevistas formas,
dissociaram-se puramente devido ao falo dc seu crescimento. O erro capital, erro
que. transmitindo-se desde Aristóteles, viciou a maior parte das filosofias da na­
tureza, consiste em ver na vida vegetativa, na vida instintiva e na vida racionai
três graus sucessivos de uma mesma tendência que se desenvolve, quando se trata
dc três direções divergentes de uma atividade que se cindiu ao crescer. A difercn
ça entre cias nào c dc intensidade, nem. dc um modo mais geral, de grau, mas
diferença dc natureza.
Forçoso è aprofundar essa questão. Vimos como se completam c como con
trasiam a vida vegetal c a vida animal. Trata sc agora dc mostrar que a inteligên­
cia c o instinto, por sua vez. sc opõem e sc completam. Mas digamos- primeiro
por que se é lentado u ver na inteligência c no instinto atividades desiguais, a
primeira sendo superior à segunda, havendo assim superposição dc uma à outra.
Ora. na realidade não sc trata dc coisas da mesma ordem, nem sc pode dizer
que uma tenha sucedido n outra, nem às quais se possa atríhuir categorias de
superioridade e inferioridade.
O fato é que inteligência c instinto, tendo começado por inierpenetrar-se.
conservam algo dc sua origem cm comum. Nem uma nem outro jamais se encon
tram em estado puro. Dissemos, páginas airás. que na planta, podem despertar
a consciência e a mobilidade do animal que nela adormecem, c que o animal
vive sob constante ameaça dc um desvio para a vida vegetativa. As duas tendên-

'1 Hssa questão c contestada por René Quinton, que consider;i os mattiiícros carnívoro» c rumiaanles ssstm
como certos pássaros, como posteriores ao homem IR. Quinton. l.‘eau de mer milieu orgaaiquc. Paris.
1904. p. 435). Diga sc dc passagem que nossas conclusões gerais, embora muito diferentes das de Quinton,
nada tetn dc inconcdsávcis Cvm cias; porque se a evolução foi precisamente como a reprcxtiumo». os
vertebrados tiveram que fazer um esforço para « manter nas condições de ação mais favoráveis, aquelas
mesmas condições em que a vida a principio se situou.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 177

cias. tanto da planta como do animal, peneiravam .sc reciprocamcnte tao bem
a principio que jamais houve completa ruptura entre elas: uma continua pairando
sobre a outra: por toda parte a.s encontramos misturadas; a proporção é que
difere. O mesmo acontece com a inteligência c o instinto. Nào há inteligência
onde não se descubra vestígios de instinto, nem instinto, sobretudo, que nào esteja
envolto numa franja dc inteligência. Esta franja de inteligência é que foi causa
de tantos enganos. Pelo falo dc que o instinto é sempre mais ou menos inteligente,
concluiu-se que inteligência e instinto sejam coisas da mesma ordem, c que nào
há entre eles scnâo uma diferença de complexidade ou dc perfeição, c sobretudo
que um dos dois seja exprimível em termos do outro. Na realidade, eles só sc
acompanham porque sc completam, c só se completam porque sào diferentes:
o que há de instintivo no instinto é de sentido oposto ao que há de inteligente
na inteligência.

Que nâo haja espanto por insistirmos nessa questão. Temo-la por capital.
Digamos, primeiro, que as distinções que iremos fazer serão demasiado níti­
das. justamente porque queremos definir do instinto o que ele tem de instintivo
c da inteligência o que ela tem de inteligente, enquanto todo instinto concreto
c misto dc inteligência, como toda inteligência real é penetrada dc instinto. Além
do mais, nem inteligência nem instinto sc prestam □ definições rígidas: trata-se
dc tendências c nào dc coisas feitas. Por fim. nâo deveremos esquecer que. no
presente capítulo, consideramos a inteligência e o instinto ao sair da vida que
deposita ambos ao longo dc seu percurso. Ora. a vida manifestada por um orga
nísmo c. a nosso ver, certo esforço para obter determinadas coisas da matéria
bruta. Nâo deve surpreender, pois, se ê a diversidade desse esforço que nos im
pressiona no instinto e na inteligência, c se vemos nessas duas formas da alivida
dc psíquica, antes dc tudo, dois métodos diferentes de ação sobre a matéria inerte.
Essa maneira um tanto estreita dc cncará los lerá a vantagem dc rios fornecer
um meio objetivo de os distinguir. Por outro lado, esse modo dc enfocá los só
nos dará da inteligência cm geral, c do instinto cm geral, a posição média acima
c abaixo da qual um c outro oscilam consianlcmcnlc. Essa a razão pela qual
sc deva entender o que sc segue tão-somente como um esboço esqucmálico, em

que os contornos respectivos da inteligência e do instinto estarão mais assinala


dos do que o necessário, c onde leremos desprezado os matizes dc claro e escuro
que decorrem, ao mesmo tempo, da indecisão de cada um deles c de seu encaixa
mento recíproco um no outro. Em tema tão nebuloso, nâo se poderia pretender
o exilo completo no empenho de esclarecimento. Será sempre fácil tornar depois
menos rígidas as formas, corrigir o que o desenho tivesse de demasiado geométri­
co. enfim, substituir a rigidez de um esquema pela plasticidade da vida.

A que época recuamos o aparecimento do homem sobre a Terra? Atribuí


mos seu aparecimento ao tempo cm que sc fabricaram a.s primeiras armas, os
primeiros instrumentos. Nào sc esqueceu n polemica memorável que surgiu em
tomo do descobrimento de Boucher de Perthes na pedreira de Moulin-Quignon.
A qucstào girava quanto a saber sc estávamos diante dc machados verdadeiros
178 BERGSON

ou dc fragmentos dc sílex quebrados ao acaso. Mas do que ninguém duvidava


é que sc fossem machados dc mão estávamos curtamcntc diante de uma inteligên­
cia. e mais espccialmentc da inteligência humana. Por outro lado, abramos uma
coletânea de relatos sobre a inteligência dos animais. Veremos que. ao lado de
muitos atos explicáveis pela imitação, ou pela associação automática de imagens,
há condutas que não hesitamos cm declarar inteligentes; em relevo figuram as
atividades que atestam um pensamento de fabricação, seja que o animal chegue
a modelar por si mesmo um instrumento tosco, seja que ele utilize
em seu proveito um objeto fabricado pelo homem. Os animais classificados
logo após o homem do ponto dc vista da inteligência, a saber, os macacos c
os elefantes, são os que sabem empregar, quando necessário, um instrumento
artificial. Abaixo deles, mas nào muito longe, serão classificados os que reconhe
cem um objeto fabricado: por exemplo, a raposa, que sabe muito bem que uma
armadilha é armadilha. Sem dúvida, há inteligência sempre onde houver inferên
cia; mas a inferência, que consiste no aproveitamento da experiência passada
no sentido da experiência presente, ê já um começo dc invenção. A invenção
torna-se completa quando se concretiza num instrumento fabricado. A isso c
que tende a inteligência dos animais, como a um ideal. E sc. como c comum,
ela nao chega ainda a modelar objetos artificiais c sçrvtr-sc deles, ela se prepara
para esse fim mediante as próprias variações que executa sobre os instintos forne­
cidos pela natureza. No que se refere à inteligência humana, nào sc observou
suficientemente que a invenção mecânica foi primeiro o seu empenho essencial,
c que hoje ainda nossa vida social gravita cm torno da fabricação c utilização
dc instrumentos artificiais, c que as invenções que balizam o caminho do progrçs
so também lhe traçaram a direção. Temos dificuldades cm perceber isso, porque
as modificações du humanidade se dão mais lentamentc. em geral, que as trans
formações do seu instrumental. Nossos hábitos individuais e mesmo sociais so
brevivem por muito tempo às circunstâncias para as quais foram feitos, dc modo
que os efeitos profundos de uma invenção sc fazem observar quando já perdemos
de vista a sua novidade. Já decorreu um século desde a invenção da máquina
a vapor, e mal começamos □ perceber o profundo abalo que essa invenção nos
ocasionou. A revolução que ela operou na indústria também transtornou as rela­
ções entre os homens. Novas idéias surgem. Sentimentos novos estão cm vias
de eclodir. Dentro de milhares de anos, quando a perspectiva remota do passado
só deixe perceber as linhas gerais, nossas guerras c revoluções significarão pou
quíssimo. a supor que ainda sc tenha lembrança delas: mas da máquina a
vapor, com as invenções dc toda a espécie que são o seu cortejo, há-de falar-se
ainda, talvez, como falamos da idade do bronze ou da idade da pedra lascada:
a máquina a vapor servirá para definir uma idade da história.’2 Sc pudéssemos
nos despir dc todo orgulho, sc, para definir nossa espécie, nos ativássemos estrita­
mente ao que a história e a pré história nos apresentam como a característica

Paul Lacombe ressaltou a mtlucncta capúal que as grandes invenções exercem sohrc a evolução da
humanidade (P. Lacombe, Dc COnsídéréc eomme frímer, ParK I8*M. sohwuJu pp. U8 2-Vb.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 179

constante do homem e da inteligência, talvez não disséssemos Homo sapiens,


mas Homo faber. Em conclusão, a inteligência, encarada no que parece ser o
seu empenho original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais, sobretudo fer
ramentas para fazer ferramentas e de diversificar ao infinito a fabricação delas.
Ora, acaso um animal nào-inteligente também possui ferramentas ou máqui­
nas? Certamente que sim, mas no caso o instrumento faz parte do corpo que
utiliza. E, correspondendo a esse instrumento, há um instinto que sabe servir-se
dele. Sem dúvida, carece que todos os instintos consistam numa faculdade natu­
ral de ulilizar um mecanismo inato. Tal definição não se aplicaria aos instintos
que Romanos chamou dc ‘•secundários”, e mais dc um instinto “primário" esca­
paria a ela. Mas essa definição do instinto, como a que damos provisoriamente
da inteligência, determina pelo menos o limite ideal a que se encaminham as
formas muito numerosas do objeto definido. Não poucas vezes se observou que
a maior parte dos instintos constitui o prolongamento, ou melhor, o acabamento,
do próprio trabalho dc organização. Onde começa a atividade do instinto? Onde
acaba a da natureza? Nào se poderia dizê-lo. Nas metamorfoses da larva em
ninfa e em inseto perfeito, metamorfoses essas que exigem nâo raro, da parte
da larva, desempenho apropriado e uma espécie dc iniciativa, nào há linha nítida
de demarcação entre o instinto do animal e o trabalho organizador da matéria
viva. Podcr-sc-á dizer, à vontade, que o instinto organiza os instrumentos de que
sc vai utilizar, ou que a organização sc prolonga no instinto que deve utilizar
o órgão. Os mais maravilhosos instintos do inseto nada mais fazem que reVclar
em movimentos sua estrutura especial, a tal ponto que, no caso cm que a vida
social divide o trabalho entre os indivíduos c lhes impõe assim instintos diferen­
tes. observa se uma diferença correspondente dc estrutura: é conhecido o poli
morfismo das formigas, das abelhas, das vespas e de certos pscudoncuróotcros.
Dessa maneira, para só considerar os casos limites cm que sc presencia o triunfo
completo da inteligência c do instinto, verificamos entre ambos uma diferença
essencial: o instinto acabado é uma faculdade de utilizar e mesmo de construir
instrumentos organizados; a inteligência acabada é a faculdade de fabricar c em
pregar instrumentos inorganizados.
As vantagens c os inconvenientes desses dois modos dc atividades saltam
à vista. O instinto acha a seu alcance o instrumento apropriado: esse instrumento,
que se fabrica c se restaura a si mesmo, que apresenta, como todas as obras
da natureza, uma complexidade infinita dc pormenor c uma simplicidade dc fun
cionamento maravilhosa, faz imediatamente, no momento desejado, sem dificul­
dade. com uma perfeição freqüentemente admirável, o que é destinado a fazer.
Por outro lado, ele conserva uma estrutura quase invariável, dado que sua modifi­
cação não se dá sem uma modificação da espécie. O instinto c pois necessaria­
mente especializado, nada mais sendo que a utilização de um instrumento deter
minado por um objeto determinado. Pelo contrário, o instrumento fabricado de
modo inteligente é um instrumento imperfeito. Ele só sc obtém ao preço dc um
esforço. E quase sempre é de manejo penoso. Mas, como é feito de certa matéria
inorganizada, ele pode assumir uma forma qualquer, servir a qualquer fim. livrar
180 BERGSON

O ser vivo de qualquer dificuldade nova que surja c lhe conferir uma quantidade
ilimitada dc poderes. Inferior ao instrumento natural para a satisfação das neces­
sidades imediatas, ele leva vantagem sobre este quanto menos a necessidade for
premente. Sobretudo, ele reage sobre a natureza do ser que o fabricou* porque,
chamando-o a exercer uma nova função, ele lhe confere, por assim dizer, uma
organização mais rica, sendo um órgão artificial que prolonga o organismo natu­
ral. Para cada necessidade que ele satisfaz, ele cria uma necessidade nova, c,
desse modo, em vez de fechar, como o instinto, o círculo de ação em que o
animal vai se mover automaticamente, ele abre a essa atividade um campo infini­
to onde a impele cada vez mais além e a torna cada vez mais livre. Mas essa
vantagem da inteligência sobre o instinto só aparece tarde, c quando a inteligên­
cia. tendo levado a fabricação a seu grau superior dc potência, fabrica já máqui­
nas de fabricar. No início, as vantagens e os inconvenientes do instrumento fabri­
cado c do instrumento natural se equilibram tão bem que é difícil dizer qual
dos dois garantirá ao ser vivo um império maior sobre a natureza.
É lícito conjecturar que cies começaram por estar implicados um no outro,
que a atividade psíquica original participasse dos dois ao mesmo tempo, c que,
se recuarmos o suficiente no passado, encontraríamos instintos mais aparentados
da inteligência que os instintos dos insetos dc hoje, uma inteligência mais vizinha
do instinto do que a que verificamos nos vertebrados atuais: inteligência e instin­
to elementares, dc resto, prisioneiros de certa matéria que nào chegam a dominar.
Se a força imanente à vida fosse uma força ilimitada, talvez tivesse desenvolvido
infinitamente nos mesmos organismos o instinto e a inteligência. Mas tudo parece
indicar que essa força c finita, c que cia se exaure muito depressa ao sc manifes
tar. E lhe difícil ir longe em várias direções ao mesmo tempo. £ pr.xiso que
cia escolha. Ora, cia tem a opção entre duas maneiras dc atuar sobre a matéria
bruta. Ela pode fornecer essa ação imediatamente criando para si um instrumento
organizado com o qual trabalhará; ou então ela pode dar mediatanwnte essa
atuação num organismo que. em vez dc possuir naturalmente o instrumento exigí
do. ela mesma o fabricará ao modelar a matéria inorgânica. Dai a in eligcncia
e o instinto, que divergem cada vez mais ao sc desenvolverem, mas que jamais
sc separam compleiamenie um do outro. Por um lado, com efeito, o mais perfeito
instinto do inseto se acompanha dc alguns lampejos dc inteligência, já nâo fosse
na escolha do local, do momento e dos materiais da construção: quando, como
acontece raramente, abelhas fazem ninhos ao ar livre, elas inventam dispositivos
novos e verdadeiramente inteligentes para adaptar-se às novas condições.’51 Mas.
por outro lado, a inteligência tem ainda mais necessidade do instinto do que
o instinto da inteligência, porque dar forma à matéria bruta pressupõe já no ani
mal um grau superior de organização a que só se pôde elevar com as asas do
instinto. Também, enquanto a natureza evoluiu francamente cm direção ao instin

13Bouvirr. "A eonMruçuu dc ninho das abelha* ao ar livre” (C. K. dc I'Acad. des sciences. 7 dc maio
dc I9O6>.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 181

to nos artrópodcs. presenciamos, em quase todos os vertebrados, a procura mais


que o desabrochar da inteligência. É ainda o instinto que constitui o substrato
de sua atividade psíquica, mas a inteligência lá está presente, aspirando a suplan­
ta 1o. Ela nào chega ao ponto de inventar instrumentos: pelo menos o tenta, exe
cutando o máximo de variações possíveis sobre o instinto, do qual gostaria de
sc livrar. Ela só assume posse completa dc si mesma no homem, c esse triunfo
afirma-se pela própria insuficiência dos meios naturais dc que o homem dispõe
para se defender contra seus inimigos, contra o frio c a fome. Essa insuficiência,
quando lhe procuramos deslindar o sentido, adquire o valor de um documento
pré histórico: é a dispensa definitiva que o instinto recebe da inteligência. Nào
menos certo c que a natureza hesitou entre dois modos dc atividade psíquica:
um. certo do êxito imediato, mas limitado cm seus efeitos: o outro, aleatório,
mas cujas conquistas, se ele chegasse à independência, poderíam eslender-se ao
infinito. O maior êxito foi conquistado, de resto, ainda neste caso, do laco em
que estava o maior risco. Instinto e inteligência representam pois duas soluções
divergentes, igualmente elegantes, de um único e mesmo problema.
Daí. c verdade, diferenças profundas dc estrutura interna entre o instinto
c a inteligência. Só insistiremos quanto às que interessam a nosso presente estu­
do. Dizemos pois que a inteligência e o instinto implicam duas espécies dc conhe­
cimento radicalmente diferentes. Tornam se necessários, porém, alguns esclareci­
mentos preliminares quanto à consciência em geral.
Já sc indagou ate que ponto o instinto c consciente. Responderemos que
há no caso um sem número dc graus, que o instinto c mais ou menos consciente
em certos casos, inconsciente cm outros. A planta, como o veremos, tem instin
(os: é dubitávcl que esses instintos se façam acompanhar, nela, dc sentimento.
Mesmo no animal, quando nào sc encontra instinto complexo que não seja in
consciente em certa parte pelo menos de seus desempenhos. Mas impòc-se assina­
lar aqui uma diferença pouquíssimo observada, entre duas espécies dc inconsciên­
cia: a que consiste cm uma consciência nula e a que provem de uma consciência
anulada. Consciência nula e consciência anulada sâo ambas iguais a zero: mas
o primeiro zero exprime que nada há. c o segundo significa que estamos diante
de duas quantidades iguais e de sentido contrário que se compensam c neutrali­
zam. A inconsciência de uma pedra que cai é uma consciência nula: a pedra
não tem sentimento algum de sua queda. Acontecerá o mesmo com a inconsciên­
cia do instinto, nos casos extremos em que o instinto c inconsciente? Quando
realizamos maquinalmcntc uma atividade habitual, quando o sonâmbulo anda
automaticamente cm seu sonho, a inconsciência pode ser absoluta: mas. no caso,
deve-se a que a representação do ato é impedida pela execução do próprio ato,
o qual c tão perfeitamente semelhante á representação c nela sc insere tâo exata
mente que nenhuma consciência pode mais transbordar. A representação s obs­
truída pela ação. A prova disso é que se a realização do ato c detida ou entravada
por certo obstáculo, a consciência pode surgir. Ela estava presente, pois, mas
neutralizada pela ação que ocupava o lugar da representação. O obstáculo nada
182 BERGSON

criou de positivo: ele simplesmente fez um vácuo, realizou uma desobstrução.


Essa inadequação do ato à representação é precisamcnte no caso o que chama
mos de consciência.
Aprofundando essa questão, verificaríamos que a consciência é a luz ima-
nente à zona dc ações possíveis ou de atividade virtual que envolve a ação efetiva-
mente realizada pelo ser vivo. Ela significa hesitação ou escolha. No caso cm
que muitas ações igualmcntc possíveis se desenham sem qualquer açào real (co­
mo numa deliberação que não conclui), a consciência é interna. No caso cm
que a açào real é a única ação possível (como na atividade do gênero sonambúli-
co ou dc modo mais geral automática), a consciência lorna-sc nula. Representa­
ção e conhecimento também não existem nesse último caso, se é certo que verifi­
camos aí um conjunto dc movimentos sistematizados, o último dos quais está
já pré-formado no primeiro, e que a consciência poderá aliás sair dele ao choque
dc um obstáculo. Desse ponto de vista, definiriamos a consciência do ser vivo
como uma diferença aritmética entre a atividade virtual c a atividade reaL Ela
mede a distância entre a representação e a ação.
Pode se, por conseguinte, presumir que a inteligência será antes orientada
no sentido da consciência, ao passo que o instinto tende à inconsciência. Porque,
no caso cm que o instrumento a manejar é organizado pela natureza, o ponto
dc aplicação fornecido pela natureza, o resultado a obter pretendido pela nature
za. certa parte fraca c deixada à escolha: a consciência inerente à representação
será pois compensada, à medida, e paulatinamente. que tenda a se desligar, pela
consecução do ato. idêntico à representação, que lhe serve dc contrapeso. Onde
quer que ela apareça, ilumina menos o próprio instinto que as contrariedades
às quais o instinto está sujeito: c o déficit do instinto, a distância do ato à idéia,
que sc tornará consciência; e a consciência não passará então dc acaso. Ela só
pòc em relevo esscncialmcnte o desempenho inicial do instinto, aquele que desen
cadeia toda a série dos movimentos automáticos. Pelo contrário, o déficit c o
estado normal da inteligência. Sofrer contrariedades é sua própria essência. Ten
do por função primitiva o fabricar instrumentos inorganizados. cia deve, atraves­
sando mi) dificuldades, escolher para esse trabalho o local e o momento, a forma
e a matéria. E ela não pode saiisfazcr-sc plcnamentc. porque toda satisfação nova
cria novas necessidades. Em suma, sc o instinto c a inteligência envolvem, ambos,
conhecimentos, o conhecimento é antes desempenhado e inconsciente no caso
do instinto, c mais pensado e consciente no caso da inteligência. Mas trata-se
nu caso mais de uma diferença de grau que de natureza. À medida que prestemos
atenção apenas à consciência, fechamos os olhos ao que c. do ponto dc vista
psicológico, a diferença capital entre a inteligência e o instinto.
Para chegar à diferença essencial é preciso, sem sc deter a luz mais ou me­
nos viva que ilumina essas duas formas da atividade interior, ir dirctanienic aos
dois objetos, profundamente distintos um do outro, que lhe sao os pontos dc
aplicação.
Quando a mosca do cavalo deposita seus ovos nas pernas ou cspáduas do
animal, age como se soubesse que sua larva deve desenvolver-se no estômago
A EVOLUÇÃO CRIADORA 183

do cavalo, e que o cavalo, ao se lamber, transportará a larva nascente para seu


tubo digestivo. Quando um himcnóptero paralisador vai ferir sua vítima nos pon­
tos precisos onde se acham os centros nervosos, dc modo a imobiliza Ia sem
a matar, age como o faria um sábio entomologists, ao mesmo tempo que hábil
cirurgião. Mas que conhecimento não deve ter o sítaris.* o pequeno escaravelho
cuja história é tão conhecida? Esse colcóptero deposita seus ovos na citrada
das galerias subterrâneas que uma espécie de abelha, a antófora. cava. A larva
do sítaris, após longa espera, espreita a antófora macho ao sair da galena, agar­
ra-se a ele, fica aferrada a ele até o “vôo nupcial’*: nessa oportunidade, ela apro­
veita para passar do macho à femea, e espera tranquilamente que esta ponha
seus ovos. Salta entào sobre o ovo. que lhe vai servir de sustento no mel. devora
o ovo em alguns dias, e, instalada na concha, sofre a primeira metamorfose.
Organizada agora para flutuar sobre o mel. ela consome esse suprimento dc ali­
mentação e torna-se ninfa, depois inseto perfeito. Tudo acontece como se a larva
do sítaris. desde sua eclosão, soubesse que a antófora macho sairia da galeria
primeiro, que o vóo nupcial lhe fornecería o meio dc sc transportar para a lemea.
que esta a conduziría a um depósito de mel capaz de alimentá-la quando se trans­
formasse. c que, ale essa transformação, ela tivesse devorado aos poucos o ovo
da antófora. dc modo a se nutrir, a se sustentar na superfície do mel, c também
eliminar o rival que tenha saído do ovo. E tudo acontece lambem como se o
próprio sítaris soubesse que sua larva saberá todas essas coisas. O conhecimento,
sc c que há conhecimento no caso, está apenas implícito. F.lc se exterioriza em
desempenhos precisos cm vez de sc interiorizar em consciência. Nâo menos ccrlo
é que a conduta do inseto esboça a representação de coisas determinadas, existen­
tes ou se produzindo cm pontos precisos do espaço c do tempo, que o inseto
conhece sem os haver aprendido.
Ora. sc encararmos do mesmo ponto de vista a inteligência, verificamos
que cia também conhece certas coisas sem as ter aprendido. Mas trata-se dc
conhecimentos dc ordem muito diferente. Nào é nossa intenção aqui reacender
n velha polêmica dos filósofos sobre o inulismo. Limitamo-nos pois a registrar
o ponto sobre o qual todos estão acordes, a saber, que a criancinha compreende
imediatamenie coisas que o animal jamais compreenderá, c que nesse sentido
a inteligência, como o instinto, é uma função hereditária, e por conseguinte inala.
Mas essa inteligência inala, conquanto seja uma faculdade dc conhecer, não co­
nhece qualquer objeto em particular. Quando o recém-nascido procura pela pri­
meira vez o seio de sua màe, atesta desse modo que tem o conhecimento (incons
ciente, sem dúvida) de uma coisa que jamais viu. dir-se-á, precisamente porque
o conhecimento inato é, no caso, o de objeto determinado, c que sc irata de
instinto c nào de inteligência. A inteligência nào traz, pois, o conhecimento inato
dc objeto algum. E no entanto, se cia nada conhecesse naiuralmentc, nada lería
de inato. Portanto, o que ela pode conhecer, ela que ignora tudo? — Ao lado
das coisas, há as relações. A criança que acaba de nascer nào conhece objetos

• Sílaris muraiis. (N. dí> Tj


184 BERGSON

determinados, nem certa propriedade definida de objeto nenhum: mas. no dia


em que se aplique diante dela uma propriedade a certo objeto, um epílclo a certo
substantivo, ela compreenderá imediatamente o que isso quer dizer. A relação
do predicado ao sujeito c portanto apreendida por ela naturalmcnte. E o mesmo
se diria da relação geral que o verbo exprime, relação tão imediatamente conccbi
da pelo espírito que a linguagem a pode subentender, como acontece nas línguas
rudimentares que não possuem verbo. A inteligência utiliza, pois, naturalmcnte.
relações de equivalente a equivalente, de conteúdo a continente, de causa a efeito,
etc., que toda oração implica quando há sujeito, predicado, verbo, expressos ou
subentendidos. Poder-se á dizer que a inteligência tenha o conhecimento inalo
dc cada uma dessas relações em particular? Cabe aos cultores da lógica averi­
guar se há no caso outras tantas relações irredutíveis, ou sc nào se as poderia
resumir em relações ainda mais gerais. Seja como for. porém, que sc efetue a
análise do pensamento, chegar-sc-á sempre a um ou diversos quadros gerais, dos
quais o espírito possui o conhecimento inato, dado que os utiliza dc modo natu
ral. Afirmamos, pois, que se encararmos no instinto e na inteligência o que ambos
encerram de conhecimento inato, verificamos que esse conhecimento inato recai
sobre as coisas, no primeiro caso, e. no segundo, sobre as relações.
Os filósofos fazem distinção entre a matéria dc nosso conhecimento e sua
forma. A matéria c aquilo que c dado pelas faculdades dc percepção, tomadas
cm estado bruto. A forma é o conjunto das relações que se estabelecem entre
esses materiais para constituir um conhecimento sistemático. A forma, sem maté­
ria. acaso poderá ser já objeto dc conhecimento? Sim. sem dúvida, sob condição
dc que esse conhecimento se pareça menos a uma coisa possuída do que a um
hábito contraído, menos a um estado que a uma direção: tratar-se-á. sco quiser­
mos. dc certo voltar-sc natural da atenção. O estudante, que sabe que sc lhe
vai ditar uma fração, traça uma barra, antes de saber qual será o numerador
e o denominador: ele tem. pois, presente no espírito a relação geral entre os dois
termos, embora não conheça nenhum dos dois; cie conhece a forma sem matéria.
O mesmo ocorre com os quadros, anteriores a qualquer experiência, em que nos
sa experiência vem sc inserir. Assim, adotemos aqui as palavras consagradas
pelo uso. Daremos da distinção entre a inteligência c o instinto essa fórmula
mais rigorosa: a inteligência, no que tem de inato, é o conhecimento dc uma
forma; o instinto implica o conhecimento de certa matéria.
Desse segundo ponto dc vista, que é o do conhecimento c não mais da ação,
a força imanente à vida cm geral aparece-nos ainda como um princípio limitado,
no qual coexistem c sc incerpenctram reciprocamcntc, no início, duas maneiras
diferentes, e mesmo divergentes, dc conhecer. A primeira atinge imediatamente
objetos determinados, cm sua própria materialidade. Diz ela: “eis o çue é". A
segunda nao atinge objeto algum em particular; cia nada mais é que uma poten
cia natural dc relacionar um objeto a outro, ou uma parte a outra, ou ainda
um aspecto a outro aspecto, enfim, uma capacidade de tirar conclusões quando
se possuem premissas, e de ir do que sc aprendeu àquilo que se ignora. Ela não
diz mais “isto é“; diz tão-somente que se as condições forem tais, tal será o
A EVOLUÇÃO CRIADORA 185

condicionado. Em suma, o primeiro conhecimento, de natureza instintiva, sc for


mularia no que os fisósofos chamam de proposições categóricas, ao passo que
o segundo, de natureza intelectual exprime-se sempre de modo hipotético. Enire
essas faculdades, a primeira parece a princípio muito preferível à outra. E ela
o seria, de fato, se abrangesse um número infinito de objetos. Mas. de fato, ela
sempre se aplica tào somente a determinado objeto, c mesmo a certa parte restrita
desse objeto. Pelo menos disso ela tem conhecimento interior e pleno, nao explíci­
to. mas implicado na ação realizada. A segunda, pelo contrário, só possui natu-
ralmcnte um conhecimento exterior c vazio: mas. por isso mesmo, tem a vanta
gem de contribuir com um quadro em que uma infinidade de objetos poderão
encontrar lugar alternadamcnic. Tudo acontece como sc a força que evolui atra­
vés das formas vivas, sendo uma força limitada, tivesse a escolha, no domínio
do conhecimento natural ou inato, entre duas espécies de limitação, uma referin­
do-se à extensão do conhecimento, c a outra sobre sua compreensão. No primeiro
caso, o conhecimento poderá ser abundante e pleno, mas estará então adstrito
a um objeto determinado; no segundo, ele não mais limita seu objeto, mas isso
se deve a que nada mais contém, não passando dc forma sem matéria. As duas
tendências, primeiro implicadas uma na outra, tiveram que separar-se para cres­
cer. Foram ambas, cada uma por seu lado, à procura da sorte no mundo. E
culminaram no instinto e na inteligência.
Tais são. pois, os dois modos divergentes de conhecimento pelos quais a
inteligência c o instinto deverão definir sc, caso nos coloquemos no ponto dc
vista do conhecimento, e nào mais da açào. Mas conhecimento c ação no caso
são apenas dois aspectos dc uma única e mesma faculdade. É fácil ver, com
efeito, que a segunda definição nada mais é que uma nova forma da primeira.
Se o instinto é. por excelência, a faculdade de utilizar um instrumento orga
nizado natural, deve envolver o conhecimento inato (virtual ou inconsciente, é
verdade) c tanto desse instrumento como do objeto a que se aplica. O instinto
é, pois, o conhecimento inato de uma coisa. Mas a inteligência c a faculdade
dc fabricar instrumentos inorganizados. isto é. artificiais. Sc. através dela, a natu
reza nega-se a dotar o ser vivo do instrumento que lhe servirá, é para que o
scr vivo possa, dc acordo com as circunstâncias, diversificar sua fabricação. A
função essencial da inteligência será, pois, de deslindar, em quaisquer circunstân­
cias, o meio de sair de dificuldades. Ela irá procurar o que melhor lhe possa
atender, isto é. inserir-se no quadro proposto. Ela recairá cssencialmentc sobre
as relações entre a situação dada e os meios dc a utilizar. O que ela :iver de
inalo, pois, é a tendência a estabelecer relações, c essa tendência implica c conhe­
cimento natural dc certas relações muito gerais, verdadeiro tecido que a atividade
própria a cada inteligência tecerá em relações mais particulares. No caso em
que a atividade for orientada no sentido da fabricação, o conhecimento recai
necessariamente sobre relações. Mas esse conhecimento inteiramente formal da
inteligência tem uma incalculável vantagem sobre o conhecimento material do
instinto. Uma forma, precisamente pelo fato de scr vazia, pode ser preenchida
altemadamente. à vontade, por um número infinito de coisas, inclusive por coisas
186 BERGSON

que para nada servem. Assim é que um conhecimento formal não se limita ao
que é útil na prática, não obstante seja em vista da utilidade prática que ele
surge no mundo. Um ser inteligente traz em si aquilo com que ultrapassar a
si mesmo.
Contudo, ele sc ultrapassará menos que o queira, menos também que imagi­
na fazê-lo. O caráter puramente formal da inteligência priva-a do lastro de que
ela teria necessidade para situar-se em objetos que fossem do maior interesse
para a especulação. O instinto, pelo contrário, teria a materialidade desejada,
mas ele é incapaz de ir à procura de seu objeto tào longe: ele nào especula.
Atingimos aqui o ponto que mais interessa ao nosso presente estudo. A diferença
que iremos ressaltar entre o instinto e a inteligência c aquela que toda a nossa
análise tendia a extrair. Nós a formularíamos desse modo: Há coisas que só
a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si mesma, jamais encontrará.
Essas coisas, SÓ o instinto as encontraria: mas ele jamais irá procurá-las.
Impòc-se. a esta altura, entrar em alguns pormenores provisórios sobre o
mecanismo da inteligência. Dissemos antes que a inteligência linha per função
estabelecer relações. Determinemos agora mais rigorosamente a natureza das rc
lações que a inteligência estabelece. Quanto a esta questão, continua-sc ainda
em meio a nebulosidade ou no arbitrário desde que sc veja na inteligência uma
faculdade destinada à especulação pura. Fica-se reduzido, então, a toma* os qua­
dros gerais do entendimento por algo de absoluto, irredutível c inexplicável. O
entendimento teria caído do céu Com sua forma, do mesmo modo como cada
um de nós nasce com seu rosto. Define-se essa forma, sem dúvida, mas é tudo
o que se pode fazer, e não há como procurar por que ela c o que c c não outra
coisa diferente. Desse modo, há-de cn.sínar-se que a inteligência é essendalmcnte
unificação, que todas as suas operações tem por objeto comum introduzir certa
unidade na diversidade dos fenômenos etc. Mas. cm primeiro lugar, “unificação"
é um termo vago, menos claro que o termo “relação", ou mesmo que o de “pensa­
mento". e que nada lhe acrescente. Além do mais, poder sc-ia indagar sc a inteli­
gência nào teria por função dividir, dc preferência a unir. Finalmente. se a inteli­
gência se comporta como o faz porque quer unir, c sc ela procura a unificação
simplesmente porque tem necessidade dela, nosso conhecimento torna sc relativo
a certas exigências do espírito que poderíam ter sido, sem dúvida, inteiramente
diferentes do que o são. Para uma inteligência constituída dc outro modo, outro
teria sido o conhecimento. Nào sendo a inteligência dependente dc coisa alguma,
tudo então depende dela. E dessa maneira, por ter-se situado o entendimento
demasiado alto, chega-se ao ponto dc situar demasiado baixo o conhecimento
que ele nos dá. Esse conhecimento torna-se relativo, a partir do momento que
a inteligência seja uma espécie de absoluto. Pelo contrário, admitimos a inteligên­
cia como relativa às necessidades da ação. Estabelecei a ação, e a propria forma
da inteligência dela se deduz. Essa forma, portanto, nem é irredutível nem inexpli­
cável. E prccisamcntc pelo fato de nào ser independente, não mais sc pode dizer
que o conhecimento depende dela. O conhecimento deixa de ser um produto de
inteligência para converter se, em certo sentido, em pane integrante da realidade.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 187

Os filósofos replicarão que a ação realiza-sc cm um mundo ordenado, que


essa ordem é já do pensamento, e que incorremos cm petição dc princípio ao
explicar a inteligência por meio da ação, que a pressupõe. Teriam razão nisso,
sc o ponto de vista do qual nos colocamos neste capítulo devesse scr definitivo.
Estaríamos sendo vítimas de uma ilusão como a de Spencer. que acreditou estar
a inteligência suficicntcmenle explicada quando a reduzia à impressão deixada
em nós pelas características gerais da matéria: como sc a ordem inerente à maté­
ria não fosse a própria inteligência! Mas deixamos para o capítulo seguinte a
questão dc saber até que ponto, c com que método, a filosofia poderia tentar
uma gênese verdadeira da inteligência ao mesmo tempo que da matéria. Por ora.
0 problema que nos preocupa é de ordem psicológica. Indagamos quanto a que
porção do mpndo material a que nossa inteligência está cspccialmcnlc adaptada.
Ora. para responder a essa questão, não é absolutamentc necessário optar por
um sistema dc filosofia. Basta-nos colocarmo-nos no ponto de vista do senso
comum.
Parlamos, pois, da ação, e estabeleçamos como principio que a inteligência
visa primeiramente fabricar. A fabricação se exerce cxclusivamcntc sobre a maté­
ria bruta, no sentido de que. mesmo que ela empregue materiais organizados,
ela os trata como objetos inertes, sem sc preocupar com a vida que os informou.
Da matéria bruta cm si ela só retém o sólido: o resto sc esquiva por sua p*ôpria
fiuidez. Assim, sc a inteligência tende a fabricar, pode se prever que o cx stente
dc fluido no real lhe escapará cm parte, c o que há dc propriamente vital no
scr vivo lhe escapará completamente. Nossa inteligência, tal como sai das mãos
da natureza, tem por objeto principal o sólido inorganizado.
Se passássemos cm revista as faculdades intelectuais, veriamos que a inteli
gcncia não sc sente à vontade, que nào está plenamentc em sua casa, a não ser
quando atua sobre a matéria bruta, e em particular sobre os sólidos. Qual é
a propriedade mais geral da matéria bruta? Ela c extensa, ela nos apresenta obje
tos exteriores a outros objetos c, nesses objetos, partes exteriores a parte. Sem
dúvida nos c útil, cm vista dc nossas manipulaçòr« uheriores, con.sidcrar cada
objeto como divisível cm partes arbitrariamente destacadas, sendo, cada parte,
divisível ainda ao nosso capricho, e assim por diante, ao infinito. Mas, para a
manipulação presente, é-nos necessário, antes de tudo, tomar o objeto real com
o que lidamos, ou os elementos reais nos quais o reduzimos, por provisoriamente
definitivos e os tratar como unidades. Fazemos alusão à possibilidade de dccom
por a matéria o quanto queiramos e a quanto nos agrade quando falamos da
continuidade da extensão material; mas essa continuidade, como sc percebe, re­
duz-se para nós à faculdade que a matéria nos deixa dc escolher o modo de
descontinuidade que nós lhe encontraremos: é sempre, cm suma, o modo ce des-
continuidade uma vez escolhido que nos aparece como efetivamente real e que
fixa nossa atenção, porque é sobre ele que se rege nossa ação presente. Assim,
a descontinuidade é pensada por si mesma, c pcnsável nela mesma, e nós não
a representamos por ato positivo de nosso espirito, ao passo que a representação
intelectual da continuidade c antes negativa, não sendo, no fundo, mais que a
188 BERGSON

recusa de nosso espírito, perante qualquer sistema de decomposição aiualmcnie


dado, de o tomar por único possível. A inteligência só se representa claramente
o descontínuo.
Por outro lado, os objetos sobre os quais se exerce nossa ação, sem dúvida
alguma, sào objetos móveis. Mas o que nos importa é saber aonde vai o móvel.
onde ele está num momento qualquer dc seu trajeto. Em outras palavras, apega
mo-nos antes de tudo às suas posições atuais ou futuras, c nào ao progresso
pelo qual ele passa de uma posição a outra, progresso que é o próprio movimen­
to. Nas ações que realizamos, c que sào movimentos sistematizados, é no alvo
ou na significação do movimento, cm seu desenho de conjunto, numa palavra,
no plano dc execução imóvel que fixamos nosso espírito. O que há dc movente
na açào só nos interessa na medida em que o todo lhe pudesse scr avançado,
retardado ou impedido por tal ou qual incidente ocorrido durante o transcurso.
Nossa inteligência desvia-sc da mobilidade em si. porque nào tem interesse algum
cm sc ocupar dela. Sc cia fosse destinada â teoria pura, no movimento é que
ela se instalaria, porque o movimento é sem dúvida a própria realidade, e a imo­
bilidade é sempre aparente ou relativa. Mas a inteligência destina-se a coisa total­
men tc diversa. A menos que violente-sc a si mesma, ela segue o caminho inverso:
é da imobilidade que ela parte sempre, como se ela fosse n realidade última ou
o elemento; quando ela quer sc representar o movimento, ela o reconstrói com
imobílidades que ela justapõe. Essa operação, da qual mostraremos a ikgitimida
de c o perigo na ordem especulativa (ela conduz a dilemas c cria artificialmcntc
problemas filosóficos insolúveis), justifica-sc sem dificuldade quando nos volta­
mos à sua destinaçào. A inteligência, no estado natural, visa um objetivo pratica
mente útil. Quando ela substitui o movimento por imobilidades justapostas. nào
pretende reconstituir o movimento tal qual ele é; clu simplesmente o substitui
por um equivalente prático. Os filósofos se enganam quando extrapolam para
o domínio da especulação um método dc pensar que é feito para a açào. Mas
c nossa intenção voltar a esse assunto. Limitamo-nos a dizer por ora que o estável
c o imutável são aquilo a que sc liga nossa inteligência cm virtude dc sua consti
luíçào natural. Nossa inteligência só se representa elaramente a imobilidade.
Ora. fabricar consiste cm talhar cm certa matéria a forma de um dado obje­
to. O que importa, sobretudo, é a forma a obter. Quanto ã matéria, cscolhc-sc
aquela que melhor convém; mas. para a sua escolha, isto é. para ir à sua procura
entre muitas outras, é preciso ter-se tentado, pelo menos cm imaginação, toda
espécie dc matéria da forma do objeto concebido. Em outras palavras, uma inteli­
gência que vise fabricar c uma inteligência que nào se atém jamais à forma atual
das coisas, que não a considera como definitiva, que admite toda maléria. pelo
contrário, como modelávcl à vontade. Platão compara o bom dialético ao cozi­
nheiro competente, que cscarna o animal sem lhe quebrar os ossos, acompanhan­
do as articulações desenhadas pela natureza.14 Uma inteligência que sempre
agisse desse modo seria, de fato, uma inteligência voltada â especulação. Mas

'4 Platão. f-edro. 265 R.


A EVOLUÇÃO CRIADORA 189

a ação, c cm particular a fabricação, exige a tendência inversa do espírito. Ela


quer que consideremos toda forma atual das coisas, inclusive naturais, cono arti­
ficial e provisória, que nosso pensamento apague do objeto percebido, seja cie
organizado e vivo, as linhas que lhe assinalam de fora a estrutura interna, enfim,
que tomemos sua matéria por indiferente à sua forma. O conjunto da matéria
deverá poís aparecer ao nosso pensamento como um imenso tecido com o qual
trabalhemos como quisermos, para o recoscr como for de nosso gosto. Notemo-lo
dc passagem: esse poder c o que afirmamos quando dizemos que há um espaço,
isto é. um meio homogêneo e vazio, infinito c infinitamente divisível, que se pres­
ta indifcrcntcmcnte seja a que modo for de decomposição. Um meio desse gênero
jamais é percebido: só pode ser concebido. O que é percebido c a extensão mati
zada. resistente, dividida conforme as linhas que os contornos dos corpos reais
desenham ou dc suas partes reais elementares. Mas quando nos representamos
nosso poder sobre essa matéria, isto é, nossa faculdade de a decompor como
nos agrade, projetamos, em bloco, todas essas decomposições e recomposições
possíveis por trás da extensão real, sob forma de um espaço homogêneo, vazio
e indiferente, que a reduzisse. Esse espaço é. pois, antes de tudo, o esquema de
nossa ação possível sobre as coisas, nào obstante as coisas tenham uma tenden
cia natural, como o explicaremos mais adiante, a entrar num esquema desse gêne­
ro: c uma vista do espírito. O animal nào tem talvez idéia alguma dela, mesmo
quando ele percebe como nós as coisas extensas. Trata-se dc uma representação
que simboliza a tendência fabricadora de inteligência humana. Mas nào nos deic-
remos nessa questão, por ora. Basta nos dizer que a inteligência é caracterizada
pela capacidade infinita de decompor dc acordo com qualquer lei e de recompor
em qualquer sistema.
Acabamos de enumerar alguns dos traços essenciais da inteligência humana.
Mas tomamos o indivíduo em estado isolado, sem considerar a vida social. Em
realidade, o homem é um ser que vive cm sociedade. Sc é verdade que a inteligen
cia humana tem por fim fabricar, c preciso acrescentar que ela se associa, para
isso c para tudo o mais, a outras inteligências. Ora. é difícil imaginar uma socie­
dade cujos membros não se comuniquem entre si por sinais. As sociedades dc
insetos têm, sem dúvida, uma linguagem, e essa linguagem deve ser adaptada,
como a do homem, às necessidades da vida cm comum. A linguagem faz com
que uma ação comum se tome possível. Mas essas necessidades de ação comum
nào são absolutamente as mesmas para um formigueiro e para uma sociedade
humana. Nas sociedades de insetos, há em geral um polimorfismo, a divisão do
trabalho é natural, e cada indivíduo é cravado indissoluvclmente por sua estrutu­
ra à função que desempenha. Seja como for. essas sociedades repousam no instin­
to e. por conseguinte, em certas ações ou fabricações que estão mais ou menos
relacionadas com a forma dos órgãos dos indivíduos. Assim, se as formigas,
pOr exemplo, têm uma língua, os sinais que compõem essa língua devem ser
em número bem definido, e cada um deles continuar invariavelmente ligado,
uma vez constituída a espécie, a certo objeto ou a certa operação. O signo adere
à coisa significada. Pelo contrário, numa sociedade humana, fabricação e ação
190 BERGSON

são de forma variável e, além do mais, cada indivíduo deve aprender seu papel,
nào estando predestinado a ele por sua estrutura. É necessário, pois, uma lingua*
gem que permita, a todo instante, passar do que se sabe ao que se ignora. Impõe-
se uma linguagem cujos signos que nào podem ser em número infinito -
sejam extensíveis a uma infinidade de coisas. Essa tendência do signo a sc trans­
ladar de um objeto a outro é característica da linguagem humana. É observável
na criancinha, desde o dia em que ela começa a falar. Imediatamente, e de modo
natural, a criança estende o sentido das palavras que aprende, valerdo-se da
aproximação casual que seja, ou da mais remota analogia possível para destacar
e transportar para outra parte o signo que diante dela se atribuiu a outro objeto.
"Pouco importa designar o que quer que seja com o que quer que seja”. tal é
o princípio latente da linguagem infantil. Cometcu-se o engano dc confundir essa
tendência com a faculdade dc generalizar. Os próprios animais generalizam, c
de resto, um signo, mesmo que instintivo, representa sempre, mais ou menos,
um gênero. O que caracteriza os signos da linguagem humana nào é tanto sua
generalidade quanto sua mobilidade. O signo instintivo c um signo que adere:
o signo inteligente é um signo móvel.
Ora. essa mobilidade das palavras, constituída para que sigam dc uma coisa
a outra, lhes permitiu estender coisas às idéias. Certamcntc. a linguagem não
lería dado a faculdade dc refletir a uma inteligência inteiramente exteriorizada.
incapaz de sc dobrar sobre si mesma. A inteligência que reflete é uma inteligência
que possuía, afora o esforço praticamcntc útil, um excedente dc força a despen
der. É uma consciência que já, virtualmente, readquiriu-se por si mesma. Mas
é preciso ainda que a virtualidadc passe ao ato. dc presumir-se qus. sem a
linguagem, a inteligência sc teria cravado inarredavelmente aos objetos materiais
que ela mantinha interesse em considerar. Ela teria vivido num estado de sonam
bulismo. exteriormente a ela mesma, hipnotizada por seu trabalho. A linguagem
muito contribuiu para a sua libertação. A palavra, feita para ir de uma coisa
a outra, é. dc fato, cssencialmente. dcslocàvcl c livre. Ela poderá pois esicnder-se
nao apenas de uma coisa percebida a outra coisa percebida, mas ainda da coisa
percebida à lembrança dessa coisa, da lembrança precisa a uma imagem mais
fugidia, dc uma imagem fugidia, contudo representada ainda, à representação
do ato pelo qual sc a representa, isto é. à idéia. Desse modo, vai abrir-sc aos
olhos da inteligência, que olhava de fora, um mundo interior, o espetáculo de
suas próprias operações. Dc resto, ela só esperava essa ocasião. Ela se vale do
fato de scr a palavra, por sua vez. uma coisa para peneirar, levada po' ela. ao
interior dc seu próprio trabalho. Dcbaldc sua primeira função fora fabricar ins­
trumentos; essa fabricação só é possível mediante emprego dc certos meios que
não são talhados à medida exata dc seu objeto, que o ultrapassam, c que permi
tem assim à inteligência um trabalho suplementar, isto é. desinteressado. A partir
do dia cm que a inteligência, refletindo sobre seus desempenhos, a si mesma
se pcrccbe como criadora de idéias, como faculdade dc representação cm geral,
nào há objeto de que nào queira ter a idéia, mesmo que ela nào tenha relação
direta com a atividade prática. Essa a razão pela qual dizíamos que há coisas
A EVOLUÇÃO CRIADORA !91

que só a inteligência pode procurar. Ela só, com efeito, ocupa se com teoria.
E sua teoria a tudo pretendería abranger, não apenas a matéria bruta, sobre a
qual ela tem domínio de modo natural, mas ainda a vida c o pensamento.
Podemos adivinhar com que meios, que instrumentos, que método ela trata­
rá desses problemas. Originariamente, ela sc adaptou à forma da matéria bruta.
A própria linguagem, que lhe permitiu estender seu campo dc operações, é feita
para designar coisas c nada mais que coisas: só pelo fato de que a palavra é
móvel, porque caminha dc uma coisa a outra, c que a inteligência devia cedo
ou tarde tomá-la como caminho, enquanto ela nào repousava em nada, para apli-
cá-la a um objeto que nào c coisa e que. dissimulado até então, esperava o socor­
ro da palavra para passar da sombra à luz. Mas a palavra, ao cobrir esse objeto,
o converte ainda cm coisa. Desse modo, a inteligência, mesmo quando cia nâo
mais atua sobre a matéria bruta, segue os hábitos que adquiriu nessa operação:
ela aplica formas que são aquelas mesmas da maléria inorganizada. Ela c feita
para esse gênero dc trabalho. Por si só. esse gcncro dc trabalho a satisfaz plena
mente. Eco que ela exprime ao dizer que só assim ela chega à distinção e
â clareza.
Ela deverá, pois, para pensar clara e distintamente sobre si mesma, perceber
se sob forma de descontinuidadc. Os conceitos são. dc fato, exteriores uns aos
outros, assim como os objetos no espaço. E têm a mesma estabilidade que os
objetos, no modelo dos quais foram criados. Eles constituem, reunidos, um “mun­
do inteligível'' que sc assemelha por suas características essenciais ao mundo
dos sólidos, mas cujos elementos sào mais leves, mais diáfanos, mais fáceis de
manipular pela inteligência do que a imagem pura e simples das coisas concretas;
eles nào mais suo. dc fato, a própria percepção das coisas mas a representação
do ato pelo qual a inteligência sc fixa neles. Assim, não são mais imagens, porém
símbolos. Nossa lógica c o conjunto das regras que se impõe cumprir na manipu
lação dos símbolos. Como esses símbolos decorrem da consideração dos sólidos,
como as regras da composição desses símbolos entre si nada mais fazem senão
traduzir as relações mais gerais entre sólidos, nossa lógica triunfa na ciência
que assume a solidez dos corpos por objeto, isto é. na geometria. Ilógica egeome
tria cngcndram-sc reciprocamcntv uma à outra, como o veremos pouco mais
adiante. E da extensão dc ccrtn geometria natural, sugerida pelas propriedades
gerais c imediatamente percebidas dos sólidos, que surgiu a lógica natural. Por
sua vez, dessa lógica natural é que saiu a geometria científica, que estende infini-
lamente o conhecimento das propriedades exteriores dos sólidos?6 Geometria
c lógica sào rigorosameme aplicáveis â maléria. Na matéria elas estão à vontade,
c nela podem transitar inieiramentc sós. Mas, fora desse domínio, o raciocínio
puro precisa scr vigiado pelo bom senso.que é coisa totalmcnte diferente.
Dessa maneira, todas as forças elementares da inteligência tendem a trans­
formar a matéria em instrumento dc ação, isto é. no sentido etímológico da pala
vra, cm órgão. A vida, nào satisfeita cm produzir organismos, pretendería dar-

‘ • Voltaremos a todos esses tópicos no capitulo seguinte.


192 BERGSON

lhes como apêndice a própria matéria inorgânica, convertida cm imen>o órgão


pelo dinamismo do ser vivo. Essa c a tarefa que ela atribui primeiro á inteligên­
cia. Por essa razão é que a inteligência se porta invariavelmente ainda como
se estivesse fascinada pela contemplação da matéria inerte. Ela é a vida contem­
plando de fora, exteriorizando-se em relação a si mesma, adotando como princí­
pio os desempenhos da natureza inorganizada para os dirigir de fato. Daí seu
espanto quando cia se volta para o ser vivo e se encontra diante da organização.
Seja o que for que ela faça então, ela reduz o organizado a inorganizado. porque
ela nào poderia. sem inverter sua direção natural e sem se torcer sobre si mesma,
pensar a continuidade verdadeira, a mobilidade real, a interpcnetraçào mútua
c. numa palavra, essa evolução criadora que é a vida.
Acaso sc trata da continuidade? O aspecto da vida que é acessível à nossa
inteligência, como dc resto aos sentidos que nossa inteligência prolonga, c aquele
que permite nossa ação. É preciso, para que possamos modificar um objeto, que
o percebamos divisível e descontínuo. Do ponto de vista da ciência positiva, um
progresso incomparável foi realizado a partir do dia em que sc reduziu a células
os tecidos organizados. O estudo da célula, por sua vez. revelou nela um organis­
mo cuja complexidade parece aumentar á medida que mais sc o aprofunda.
Quanto mais a ciência avança, tanto mais ela ve crescer o número dos elementos
heterogêneos que sc justapõem, exteriores uns aos outros, paru constituir um scr
vivo. Estará desse modo se acercando mais dc perto da vida? Ou. pelo contrário,
o que há dc propriamente vital no scr vivo nào parecerá recuar paulatinamente
à medida que sc leve mais além o pormenor das partes justapostas? Manifesta-se
já entre os cientistas uma tendência a considerar a substância do organismo co­
mo contínua, c a célula como uma entidade artificial. Mas. admitindo-se que
esse modo de ver acabe por prevalecer, só poderá culminar, ao se aprofundar,
num outro modo dc análise do scr vivo, e por conseguinte numa descontmuidade
nova — embora menos distanciada, talvez, de continuidade real da vida. A ver­
dade é que essa continuidade nào poderia scr pensada por uma inteligência que
sc entregue a seu movimento natural. Ela implica, ao mesmo tempt), a mjltiplici-
dade dos elementos c a penetração recíproca dc todos por todos, duas proprieda­
des que não mais se podem conciliar no terreno cm que se exerce nossa atividade,
e, por conseguinte, também nossa inteligência.
Assim como separamos no espaço, fixamos no tempo. A inteligência nào
foi feita para pensar a evolução, no sentido próprio da palavra, isto é. a continui­
dade de uma transformação que fosse mobilidade pura. Nâo insistiremos aqui
quanto 3 esta questão, que pretendemos aprofundar num capítulo especial. Diga
mos apenas que a inteligência se representa o transformar-se como una série
dc estados, cada um dos quais homogêneo consigo mesmo, e por conseguinte
nào se transforma. Acaso nossa atenção é chamada para a transformação interna
dc um desses estados? Logo decompomos essa transformação numa outra série
de estados que constituirão, reunidos, sua modificação interior. Esses novos esta­
dos por sua vez serão — cada um - invariáveis, ou então sua transformação
interna, sc a percebermos, logo se reduzirá a uma serie nova de estados invariá
A EVOLUÇÃO CRIADORA 193

veis. c assim por dianic ao infinito. No caso ainda, pensar consiste em reconsti­
tuir. e. naturalmcnte. é com elementos dados, com elementos estáveis por conse­
guinte. que nós reconstituímos. De modo que cm vâo faremos, debaldc imitare­
mos. pelo progresso infinito de nossa adição, a mobilidade do vir-a-scr. mas o
próprio vir a scr escorregará entre nossos dedos quando acreditarmos tê-lo nas
mãos.
Precisamente porque procura sempre reconstituir, c reconstituir com a dado,
a inteligência deixa escapar o que há dc itnvo a cada momento de uma história.
Ela nàu admite o imprevisível. Ela rejeita toda criação. O que satisfaz 3 nossa
inteligência são antecedentes determinados conduccntes a um consequente deter­
minado. calculável este cm função daqueles. Compreendemos também qu2 deter
minado fim suscite meios determinados pura u atingir. Nos dois casos, tratamos
do conhecido que se compÒc do conhecido c. cm suma, do antigo que se repete.
Nisso senic-sc ã vontade nossa inteligência. EL. seja qual for o objeto, ela irá
abstrair, separar, eliminar, dc modo a substituir o objeto cm si. sc for o caso,
por um equivalente aproximado em que as coisas aconteçam dessa maneira. Mas
que cada instante seja um acréscimo, que o novo rebrote sem cessar, que uma
forma surja da qual se diga sem dúvida, uma vez produzida, que seja um efeito
determinado por suas causas, mas dc que era impossível supor previsto o que
cia seria, dado que no caso as causas, únicas em seu gênero, fazem parte do
efeito, assumiram corpo ao mesmo tempo que ele. c sâo determinadas por ele
tanto quanto elas o determinam; eis algo que podemos sentir em nós e adivinhar
por comunhão fora dc nós. mas não podemos exprimir cm lermos de puro enten
dimento nem. no sentido estrito da palavra, pensar. Não nos surpreenderemos
com isso sc imaginarmos a finalidade de nosso entendimento. A causalidade que
ele procura c encontra cm toda parle exprime o próprio mecanismo dc nossa
atividade, na qual recomiximos infinilamcnte a mesma coisa com os mesmos
elementos, em que repetímos os mesmos movimentos para obter o mesmo 'esulla-
do. A finalidade por excelência, para nosso entendimento, é a de nossa indústria,
na qual se trabalha com base num modelo dado prcviamenic. isto é. antigo ou
composto de ingredientes conhecidos. Quanto á invenção propriamente dita, que
c no entanto o ponto dc partida da própria atividade, brotar, isto ê. naquilo que
ela tem dc indivisível, nem em sua genialidade, isto é. naquilo que ela tem de
criador. Explicar a invenção consiste sempre em reduzi-la. ela que é imprevisível
c nova, cm elementos conhecidos ou amigos, dispostos numa ordem diferente.
A inteligência não admite a novidade completa tanto quanto não admite o vir a
ser radical. O que equivale também a dizer que mais uma ve/ ela deixa escapar
um aspecto essencial da vida, como sc ela não fosse feita absolutamente para
pensar tal objeto.
Todas as nossas análises conduzem-nos a essa conclusão. Mas não c absolu-
tamente necessário entrar em tão longos pormenores sobre o mecanismo do ira
balho intelectual: bastaria considerar os resultados dele. Veriamos que a inteli­
gência, tao hábil cm manipular o inerte, exibe sua impcrícía quando atinge o
ser vivo. Quer se trate dc cuidar da vida do corpo ou do espírito, cia age com
194 BERGSON

o rigor, a rigidez e a rusticidade de um instrumento que não havia sido destinado


a semelhante uso. A história da higiene e da pedagogia muito teriam a ilustrar
quanto a isso. Quando imaginamos o interesse capital, premente e constante que
temos em conservar nossos corpos e em educar nossas almas, nas facilidades
especiais que sào dadas aqui a cada um para experimentar sem cessar em si
mesmo e em outrem, no dano palpável pelo qual se manifesta e se adquire a
característica defeituosa dc uma prática médica ou pedagógica, fica-se confundi­
do com a grosseria e sobretudo com a persistência dos erros. Facilmente desco­
bririamos a origem deles em nossa obstinação em tratar o ser vivo como sc trata
o inerte e cm pensar toda realidade, por mais fluida que seja, sob forma de sólido
definitivamentc parado. Só nos sentimos à vontade no descontínuo, no imóvel,
no que está morto. A inteligência é caracterizada por uma incompreensão natural
da vida.
Pelo contrário, no próprio molde da vida é que se formou o instinto. En
quanto a inteligência trata todas as coisas mecanicamente, o instinto age. se as­
sim podemos falar, organicamente. Se a consciência que adormece nele desper­
tasse. se ele sc interiorizasse em conhecimento cm vez de se exteriorizar cm ação,
se soubéssemos interrogá-lo e sc ele pudesse responder, ele nos revelaria os segre­
dos mais íntimos da vida. Porque ele apenas continua o trabalho pdo qual a
vida organiza a matéria, a tal ponto que nào poderiamos dizer, comojá se mos­
trou não poucas vezes, onde acaba a organização e onde começa o instinto.
Quando o pintainho quebra sua casca com uma bicada, age por instinto, c no
entanto limita se a acompanhar o movimento que o levou através da vida embrio­
nária. Inversamentc. no curso da própria vida embrionária (sobretudo quando
o embrião vive livremente sob forma de larva), realizam-se muitos esforços que
se devem relacionar ao instinto. Os mais essenciais dentre os instintos primários
sào. pois, real mente processos vitais. A consciência virtual que os acompanha
só sc atualiza no mais das vezes na fase inicial do ato c deixa o restante do
processo realizar-se sozinho. Ela só terá que expandir-sc mais amplamcntc, de­
pois aprofundar-se complctamenic. para coincidir com a força geradora da vida.
Quando vemos, num corpo vivo, milhares dc células trabalharem juntas pa
ra um objetivo comum, dividirem entre si a tarefa, viverem cada uma para si
ao mesmo tempo que para as outras, conscrvarem-sc. nutrirem-se, reproduzirem-
sc, reagirem às ameaças de perigo por reações defensivas apropriadas, como não
pensar em outros tantos instintos? E no entanto trata-se, no caso, dc funções
naturais da célula, os elementos constitutivos dc sua vitalidade. Reciprocamente,
quando vemos as abelhas dc uma colmeia constituírem um sistema tào estrita
mente organizado a ponto dc que nenhum dos indivíduos possa viver isolado
além dc certo tempo, mesmo que se lhe forneça o abrigo e o alimento, como
nao reconhecer que a colmeia é rcalmcntc, c nào metaforicamente, um organismo
único, cada abelha do qual é uma célula unida às demais por laços invisíveis?
O instinto que anima a abelha confunde-se. pois, com a força de que a célula
é animada, ou apenas a estende. Em casos extremos como este, o instinto coinci­
de com o trabalho de organização.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 195

Ccriamcnic, há muitos graus dc perfeição no mesmo instinto. Entre o zan­


gão c a abelha, por exemplo, a distância é grande, e passaríamos dc um a outro
por um sem-número de intermediários, que correspondem a tantas outras compli­
cações da vida social. Mas a mesma diversidade se encontraria no funcionamento
de elementos histológicos pertencentes a tecidos diferentes, mais ou menos apa­
rentados uns aos outros. Nos dois casos, há múltiplas variações executadas sobre
um mesmo tema. A constância do tema é também manifesta, e as variações só
o adaptam à diversidade das circunstâncias.

Ora. num caso como no outro, quer se trate dos instintos do animal ou
das propriedades vitais da célula, a mesma ciência c a mesma ignorância sc mani
festam. As coisas ocorrem como se a célula conhecesse das outras células o que
interessa, o animal conhecesse dos outros animais o que possa utilizar, tudo o
mais permanecendo na sombra. Tem-se a impressão de que a vida, desde que
sc contraiu numa espécie determinada, perde contato com o restante dela mesma,
exceto no entanto um ou dois pontos que interessam à espécie que acaba dc
nascer. Como nâo perceber que a vida age no caso como a consciência cm geral,
como a memória? Arrastamos atrás dc nós. sem disso nos apercebermos, a totali
dade de nosso passado: mas. nossa memória só derrama no presente duas ou
três lembranças que completarão por algum aspecto nossa situação atual. O co­
nhecimento instintivo que uma espécie possui dc outra espécie sobre certo ponto
particular tem pois sua raiz na própria unidade da vida, que é. para empregar
a expressão de um filósofo antigo, “um todo comungante de si mesmo”. É impossí
vel considerar certos instintos especiais do animal e da planta, cvidentcmcntc
nascidos em circunstâncias extraordinárias, sem os aproximar dessas lembran
ças, cm aparência esquecidas, que jorram subitamente sob a pressão dc uma nc
cessidadc premente.
Nào há dúvida de que um sem-número de instintos secundários c muitas
modalidades do instinto primário comportam uma explicação cientifica. Entre­
tanto. é dubitável que a ciência, com seus processos de explicação atuais, chegue
algum dia a analisar complctamcnte o instinto. A razão disso é que instinto c
inteligência sào dois desenvolvimentos divergentes dc um mesmo princípio que.
num caso, continua interior a si mesmo, e no outro caso sc exterioriza c sc absor
ve na utilização da matéria bruta: essa divergência contínua atesta uma incompa
libilidade radical c uma impossibilidade para a inteligência dc assimilar o instin­
to. O que há de essencial no instinto não poderia exprimir-se cm termos intelec­
tuais. nem por conseguinte sc analisar.
Um cego dc nascença que tenha vivido entre cegos dc nascença nào admiti
ria que fosse possível perceber um objeto distante sem ter passado pela percepção
dc todos os objetos intermediários. No entanto, a visão opera esse milagre. Podcr-
sc-á, é verdade, dar razão ao cego dc nascimento c dizer que a visão, lendo sua
origem no abalo da retina pelas vibrações da luz. nada mais é. absolutamente,
que um tato rctiniano. Nisso reside, admito, a explicação científica, por que o
papel da ciência c precisamente o dc traduzir toda percepção em termos de tato:
mas já mostramos em outra parte que a explicação Í1 losófica da percepção devia
196 BERGSON

scr de outra natureza, a supor que se possa ainda falar no caso de explicação.16
Ora. o instinto, por sua vez. é um conhecimento a distância. Ele esiá para a
inteligência como a visão está para o talo. A ciência nào poderá fazer outra
coisa senão traduzi lo cm termos dc inteligência; ela. porém, construirá assim
uma imitação do instinto cm vez de penetrar no instinto em si mesmo.
Nós nos convenceremos disso ao estudarmos, aqui, as engenhosas teorias
da biologia evolucionista. Elas se reduzem a dois tipos, que interferem, de resto,
nâo raro uma na outra. Segundo-os princípios do neodarwinismo. ora se vê no
instinto uma soma dc diferenças acidentais, conservadas pela seleção: td ou qual
desempenho útil, naturalmcntc realizado pelo indivíduo cm virtude dc uma pre­
disposição casual do germe, sc teria transmitido de germe a germe até que o
acaso viesse juntar-lhe. pelo mesmo processo, novos aperfeiçoamentos: ou entào
sc faz do instinto uma inteligência degradada: a ação considerada útil pela espé­
cie ou por alguns dc seus representantes teria engendrado um hábito, e o hábito,
hereditariamente transmitido, sc convertería cm instinto. 'Desses dois sistemas,
o primeiro tem a vantagem de poder falar da transmissão hereditária, sem susci
tar objeçôes graves, porque a modificação casual que ele pôc na origem do instin
to nào seria adquirida pelo indivíduo, mas inerente ao germe. Em contrapartida,
é lotalmentc incapaz de explicar instintos tão sábios como os da maioria dos
insetos. Sem dúvida, esses instintos não devem ter atingido subitamente o grau
dc complexidade que hoje possuem; evoluíram, provavelmente. Mas. numa hipó­
tese como a dos ncodarwinistas. a evolução do instinto só sc teria feito por adição
progressiva dc novas peças, dc algum modo, que acasos felizes viessem entrosar
nos antigos. Ora. c evidente que. na maioria dos casos, nào é pela via de simples
acréscimo que o instinto pôde aperfeiçoar sc: cada peça nova exigia, com efeito,
sob pena dc tudo estragar, um remanejo completo do conjunto. Como esperar
do acaso semelhante remanejamento? Concordo cm que uma modificação casual
do germe sc transmita hereditariamente c possa esperar, de algum modo, que
novas modificações casuais venham complicá-la. Concordo também em que a
seleção natural elimine todas aquelas formas das mais complicadas que nào ve­
nham a ser viáveis. Mesmo assim, será necessário, para que a vida do instinto
evolua, que complicações viáveis se produzam. Ora. cias só sc produzirão, em
certos casos, sc 3 adição de um elemento novo ocasione a mudança correlata
dc todos os elementos antigas. Ninguém sustentará que o acaso possa realizar
semelhante milagre. Seja sob que forma for, apelar-se á para a inteligência. Supo­
remos que é por um esforço mais ou menos consciente que o ser vivo desenvolve
em si um instinto superior. Mas será preciso admitir, entào. que um hábito adqui­
rido pode tornar-se hereditário, e que ele o faça dc modo bastante regular dc
modo a garantir uma evolução. A coisa é duvidosa, para nào dizer mais. Mesmo
que pudéssemos relacionar a um hábito hereditariamente transmitido c inteligen
temente adquirido os instintos dos animais, nào percebemos como esse modo
dc explicação pudesse estender-se ao mundo vegetal, em que o esforço jamais

* * Malière ei Mèmoire, Cap. I.


A EVOLUÇÃO CRIADOR A 197

c inteligente, a supor que seja evcntualmentc consciente, h no entanto, ao ver


com que certeza e que precisão as plantas trepadeiras utilizam suas gavinhas.
que manobras maravilhosamente combinadas as orquídeas executam para sc fa­
zerem fecundar pelos insetos,17 como nào pensar cm outros tantos instintos?
Isso não quer dizer que devemos recusar inteiramente a tese dos neodarwi
nistas. nem a dos ncolamarckistas. Os primeiros têm razão, sem dúvida, quando
querem que a evolução se faça de germe a germe mais que dc indivíduo a indivi
duo; os segundos, quando dizem que na base do instinto há um esforço (enbora
seja ele coisa inteiramente diversa, segundo cremos, de esforço inteligente). Mas
os ncodarwinistas estarão provavelmente errados quando fazem da evolução do
instinto uma evolução acidental, e os ncolamarckistas quando veem no esforço
donde provém o instinto um esforço individual. O esforço pelo qual uma espécie
modifica seus instintos c também sc modifica por sua vez deve ser coisa bem
mais profunda, e que não depende unicamente das circunstancias nem dos indiví­
duos. Não depende unicamente da iniciativa dos indivíduos, embora os indiví
duos contribuam para isso, e nào é puramente acidental, embora o acaso desem­
penhe grande papel.
Dc fato, comparemos entre si as diversas formas do mesmo instinto em
diversas espécies dc himenópteros. A impressão que temos nem sempre c aquela
que nos desse uma complexidade crescente obtida por elementos juntados suces
sivamente uns aos outros, ou uma série ascendente dc dispositivos escalonados,
por assim dizer, ao longo de uma escala. Pensamos dc preferência, pelo menos
em muitos casos, numa circunferência, dos diversos pontos da qual essas diversas
variedades teriam partido, todas olhando o mesmo centro, todas fazendo esforço
nessa direção, mas cada uma delas só sc aproximando deles na medida dc seus
meios, na medida também cm que se esclareça para ela o ponto central. Em
outras palavras, o instinto é completo em toda parle, porém c mais ou menos
simplificado, e sobretudo é simplificado diversamente. Por outro lado, no caso
cm que sc observe uma gradação regular, complicando-sc por sua vez o instinto
num único e mesmo sentido, como se subisse degraus dc uma escada, as espécies
que seu instinto classifica assim cm serie linear longe estão dc ter sempre entre
elas relações dc parentesco. Assim, o estudo comparado que sc fez. nesses últi­
mos anos, do instinto social entre os diversos ápidas estabeleceu que o instinto
dos meliponas é intermediário, quanto à complexidade, entre a tendência ainda
rudimentar dos bombinas e a ciência consumada das abelhas: no entanto, entre
as abelhas e os meliponas não pode haver uma relação de filiação.18 Com muita
probabilidade, a complicação maior ou menor dessas diversas sociedades não
tenha a ver com uma quantidade mais ou menos considerável de elements adi-

*’ Vcjum *e as duas obras Darwin: Ley plantes grimpantes Mi plantas trepadeiras). trad Gordon,
Pans, 1890, c La fecundation des Orchidées par ies Insects (X fecundação das Orquídeas pelo» Insetos).
trad. Rénolle, Paris, 1892.
’• BuucJ Rccpcn. "Die phylogeneúsche Entstdmnfc des Rienenstaatcs (Bio. Ccntralblalí. XXlll. 1903). p.
108 sobretudo,
198 BERGSON

cionados. Ê muito mais admissível que estejamos diante de certo terna musicai
que a si mesmo se tenha transposto, cabalmcnte. cm certo número dc tonalidades,
e sobre o qual, também cabalmente, se tivessem executado depois variações di­
versas, umas simplíssimas e outras infinitamente eruditas. Quanto ao tema origi­
nal. cie está em toda parte e em parte nenhuma. É debaldc que se pretendesse
anotá-lo em lermos de representação: trata se. na origem, mais do domínio do
sentido que do pensado. Tem-se a mesma impressão ao verificar o instinto parali
sador dc certas vespas. É sabido que as diversas espécies dc himenópteros parali-
sadores depositam seus ovos cm aranhas, escaravelhos, lagartas que continuam
a viver imóveis durante certo número dc dias, e que servirão assim de alimento
fresco às larvas, tendo antes sido submetidos pela vespa a uma sábia intervenção
cirúrgica. Na picada que dão nos centros nervosos de sua vítima para imobilizá-
la sem matá-la. essas diversas espécies de himenópteros regem-se com base nas
diversas espécies dc presas com que lidam respectivamente. A escólia. que ataca
a larva de cctònia, pica-a num só ponto, mas nesse ponto se acham concentrados
os gânglios motores, e só esses gânglios, pois a picada em outros gânglios poderia
ocasionar a morte e a putrefação, que sc trata de evitar.19 O esfex de asas amare­
las. que escolheu por vítima o grilo, sabe que o grilo tem ires centros nervosos
que movem seus três pares de patas, ou pelo menos age como se o soubesse.
Ele pica o inseto primeiro debaixo do pescoço, c depois atrás do protórax. e
finalmcnte na base do abdômen?0 A amófila encrcspada dá nove golpes dc fer­
rão sucessivos em nove centros nervosos dc sua lagarta, e por fim lhe abocanha
a cabeça e a mastiga Icntamentc, prccisamcnte o suficiente para determinar a
paralisia sem causar a morte?1 O tema geral é “a necessidade de paralisar sem
matar": as variações estão subordinadas á estrutura do sujeito sobre o qual sc
opera. Sem dúvida, nem sempre a operação c executada com perfeição. Mostrou-
se. ultimamente, que acontece ao esfex amófilo matar a lagarta cm vez de parali­
sá-la. c que também ás vezes ele sô a paralise pela metade?2 Mas, do fato dc
que o instinto seja falível como a inteligência, c que cie também seja suscetível
dc apresentar diferenças individuais, não se segue absolulamente que o instinto
do esfex tenha sido adquirido, como se o pretendeu, por tentativas e erros inteli­
gentes. A supor que, com o correr do tempo, o esfex tenha chegado a reconhecer
um a um, por tateio, os pontos dc sua vítima que deve picar para a imobilizar,
c o tratamento especial que é preciso dar ao cérebro para que a paralisia sc
dè sem ocasionar a morte, como supor que os elementos tào especiais dc um
conhecimento tão rigoroso se tenham transmitido regularmente, um a um, por
hereditariedade? Sc houvesse, em toda nossa experiência atual, um único exem­
plo indiscutível de transmissão desse gênero, a hereditariedade dos caracteres
adquiridos não seria contestada por ninguém. Em realidade, a transmissão here-

'* Fabre,Souvenirs eiwmolügiqurs, 3.“ sene. Par»’;. 1890. pp. I W.


,0 Fabre. Souvenirseniomologiques. J? «eric. 3." edição, Paris, 1894. pp. 93 s$.
21 Fahre. Sfouveaux souvenirs entomoiogiques, Paris. (882. pp. 14 sv
Peckham. Wasps. solitary and social. Westminster. 1905. pp. 28 sv
A EVOLUÇÃO CRIADORA 199

diiária do hábito adquirido efctua-sc dc modo impreciso e irregular, a supor que


alguma vez sc faça verdadeiramente.
Mas toda a dificuldade decorre de que queremos traduzir a ciência do hime-
nóplcro cm termos de inteligência. Forçoso nos é, então, assemelhar o esfex ao
entomologista. que conhece a lagarta, como conhece tudo o mais das coisas,
isto é, de fora, sem ter, desse lado, um interesse especial c vital. O esfex teria.
pois, que aprender uma por uma. como o entomologista, as posições dos centros
nervosos da lagarta — adquirir pelo menos o conhecimento prático dessas posi­
ções mediante experimentação dos efeitos dc sua picada. Mas não seria a mesma
coisa se admitíssemos entre o esfex e sua vítima uma simpatia (no sentido etimo-
lógico* da palavra) que o informasse por dentro, por assim dizer, sobre a vulnera­
bilidade da lagarta. Esse sentimento de vulnerabilidade poderia nada dever à per­
cepção exterior, c resultar tão-somente do defrontar-se do esfex c da lagarta, con­
siderados nâo mais como dels organismos, mas como duas atividades. Elccxprt
miria sob uma forma concreta a relação de um para com outro. É certo que
uma teoria científica nào pode recorrer a considerações desse gcncro. Ela não
deve situar a ação antes da organização, a comunhão antes da percepção e do
conhecimento. Mas. ainda uma vez. ou a filosofia nada tem a ver nesse caso,
ou seu papel começa onde acaba o da ciência.

A cicncia, quer faça do instinto um "reflexo composto”, ou um hábito inteli


gentemente adquirido e que sc tornou automatismo. ou uma soma de pequenas
vantagens casuais acumuladas e fixadas pela seleção, cm todos os casos pretende
reduzir completamcntc o instinto seja a empenhos inteligentes, seja cm mecanis­
mos construídos peça por peça, como os que a nossa inteligência monta combi
nando partes. Concordo que a cicncia esteja em seu papel nesse caso. Ela nos
dará, à falta de uma análise do objeto, uma tradução desse objeto em lermos
dc inteligência. Mas como nâo perceber que a própria ciência convida a filosofia
a tomar as coisas a partir dc outro ângulo? Sc nossa.biologia fosse ainda a dc
Aristóteles, se tomasse a serie dos seres vivos por unilinear, sc nos mostrasse
toda a vida evoluindo no sentido da inteligência e passando, por isso, pela sensi­
bilidade e pelo instinto, teríamos o direito, nós. seres inteligentes, de volvermos
às manifestações anteriores e por conseguinte inferiores da vida, e pretender fazê-
las entrar, sem se deformarem, nos quadros de nossa inteligência. Mas um dos
resultados mais patentes da biologia foi o de mostrar que a evolução sc fez segun
do linhas divergentes. Na extremidade dc duas dessas' linhas - as duas princi­
pais — c que encontramos a inteligência c o instinto sob suas formas quase
puras. Por que entào o instinto seria redutível a elementos inteligentes? Por que
o seria até mesmo a termos inteiramente inteligíveis? Acaso não sc percebe que
pensar, nesse caso, sobre o inteligente, ou no absolutamcntc inteligível, c retornar

’ Svmpathía. cm grego. referia se à suposta correspondência entre duas coisas. A evolução .semântica mostra
que o termo original passou a exprimir afinidade, depois atração. No Romantismo, simpatia era designa (iva
da tendência natural que atrai duas pesbuas. No contexto (icigMíiiianu, Symputhie assume vcrdadciramcntc
o significado de comunhão. (N. du T.)
200 BERGSON

à teoria aristotéiica da natureza? Sem dúvida seria preferível voltar a essa teoria
do que deler-se puramente diante do instinto, como diante dc um mistério inson-
dável. Mas, pelo fato de não ser do domínio da inteligência, o instinto nào está
situado fora dos limites do espírito. Em fenômenos dc sentimento, em simpatias
c antipatias irrefletidas, sentimos em nós mesmos, sob forma muito mais vaga,
e demasiado penetrada também dc inteligência, algo daquilo que deve ocorrer
na consciência dc um inseto que age por instinto. A evolução simplesmente sepa
rou um do outro, para os desenvolver ao extremo, elementos que sc interpcnctra-
vam na origem. Mais precisamente, a inteligência é, antes dc tudo, a faculdade
de relacionar um pomo do espaço a outro ponto do espaço, um objeto material
a outro objeto material; cia se aplica a todas as coisas, mas permanecendo fora
delas, e de uma causa profunda só percebe sempre sua difusão em efeitos justa­
postos. Seja qual for a força que sc traduz na gênese do sistema nervoso da
lagarta, nào temos condições dc atingi-la. com nossos olhos e nossa inteligência,
a nao ser como uma justaposição de nervos e centros nervosos. É verdade que
assim atingimos todo o seu efeito exterior. Quanto ao esfex. sem dúvida ele
apreende pouca coisa, prccisamcntc o que lhe interessa; mas. pelo menos, o
apreende por dentro, de modo inteiramente diverso do que um processo dc conhe­
cimento: por uma intuição (vivida mais que representada) que se assemelha sem
dúvida ao que chamamos dc comunhão adivinhadora.*
É fato notável o vaivém das teorias científicas do instinto entre o inteligente
e simplesmente inteligível, quero dizer, entre a assimilação do instinto a uma
inteligência “decaída” c a redução do instinto a um puro mecanismo.23 Cada
um desses dois sistemas dc explicação triunfa na crítica que faz do outro: o pri
meiro quando nos mostra que o instinto nao pode ser puro reflexo, c o segundo
quando afirma que é coisa diferente da inteligência, mesmo decaída na incons­
ciência. Que dizer no caso, senão que se trata dc dois simbolismos igjalmcnte
aceitáveis por certos aspectos c. por outros, igualmentc inadequados a seu obje­
to? A explicação concreta, não mais científica, mas metafísica, deve ser procura
da cm trilha totalmente diversa, nào mais no sentido da inteligência, mas no
da “comunhão".
Instinto é comunhão. Sc essa comunhão pudesse estender seu objeto c tam­
bém refletir sobre si mesma, ela nos daria a chave das operações vitais — assim
como a inteligência, desenvolvida e reformada, nos introduz na matéria. Porque,
nunca será demais repelir, a inteligência c o instinto estão voltados a dois senti­
dos opostos: a inteligência, no sentido da matéria inerte: o instinto, no sentido
da vida. A inteligência, por intermédio da ciência que é sua obra, acabará por
nos revelar paulatinamentc o segredo das operações físicas; da vida ela nào nos
dá. nem aliás pretende nos dar, senão uma tradução cm termos de inércia. Ela

• Sympathie divinaírice, no original. (N. do T.)


?íVcja ic. sobretudo. entre os trabalho» recentes: Bethc, "Dürlen wir den Amei."*n und Bícncn asychischc
Qualitaicn zuschrciben?'‘f/4reh./ d. ges. Phyxiolngir, 1898) c Forel. "Un aperçu de psychologic comparèe"
(Année pxycholagique. IÃ95).
A EVOLUÇÃO CRIADORA 201

gira cm volta, tomando, de fora, o maior número possível dc ângulos desse objeto
que ela atrai para si. em vez de entrar nele. Mas ao próprio interior da vida
c que nos conduziría a intuição, quero dizer, o instinto que se tornou desprendido,
consciente de si mesmo, capaz de refletir seu objeto c dc o ampliar infinitamente.
Um esforço desse gênero nào é impossível, como o demonstra a existência,
no homem, dc uma faculdade cstclica ao lado da percepção normal. Nosso olho
percebe os traços do scr vivo, mas justapostos uns aos outros c não organizados
entre si. A intenção da vida, o movimento simples que corre atraves das linhas,
que as liga umas às outras e lhes dá uma significação, escapa lhe. Essa intenção
é que o artista visa captar, colocando-se no interior do objeto por uma espécie
de comunhão, abaixando, por um esforço de intuição, a barreira que o espaço
interpõe entre ele c o modelo. É verdade que essa intuição estética, como de
resto a percepção exterior, só atinge o individual. Mas pode conceber se uma
pesquisa orientada no mesmo sentido que a arte c que assumiría por objeto a
vida cm geral, assim como a ciência física, acompanhando até o extremo a dire­
ção assinalada pela percepção exterior, estende em leis gerais os fatos individuais.
Sem dúvida, essa filosofia jamais obterá de seu objeto um conhecimento compa­
rável uo que u ciência tem do seu. A inteligência continua o núcleo luminoso
cm torno do qual o instinto, mesmo ampliado c aprimorado como intuição, cons­
titui apenas uma vaga nebulosidade. Mas. na falta dc conhecimento propriamente
dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá fazer-nos captar o que os
dados da inteligência tem no caso dc insuficiente e deixar-nos entrever o meio
de os completar. Por um lado, dc falo, cia utilizará o mecanismo mesmo da
inteligência para mostrar como os esquemas intelectuais nâo encontraram mais
aqui sua exata aplicação, c. por outro, por seu trabalho próprio, ela nos irá suge­
rir pelo menos o sentimento vago do que c preciso pôr cm lugar dos esquemas
intelectuais. Desse modo, ela poderá levar a inteligência a reconhecer que a vida
nào entra complctamentc nem nas categorias do múltiplo nem na do uno. que
nem a causalidade mecânica nem a finalidade dão do processo vital uma tradu
çao suficiente. Depois, pela comunicação comungantc que cia estabelecerá entre
nós c o restante dos seres vivos, pela dilataçao que obterá dc nossa consciência,
ela nos introduzirá no domínio próprio da vida, que é interpcnelraçào recíproca,
criação infinitamente continuada. Mas sc, com isso, cia ultrapassa a inteligência,
da inteligência terá vindo o arranco que a terá feito subir ao ponto cm que ela
sc encontra. Sem a inteligência, ela teria permanecido, sob forma de instinto,
cravada ao objeto especial que a interessa na prática, e exteriorizada por ele
cm movimentos de locomoção.
Tentaremos mostrar um pouco mais adiante como a teoria do conhecimento
deve tomar em consideração essas duas faculdades — inteligência e intuição
— e como também, na falta de estabelecer entre intuição c inteligência uma dis­
tinção bastante nítida, ela envereda por inextríncáveís dificuldades, criando fan­
tasmas de idéias aos quais se agarrarão fantasmas de problemas. Veremos que
o problema do conhecimento, tomado desse ângulo, identifica sc com o problema
metafísico, e que um c outro dependem então da experiência. Por um lado, de
202 BERGSON

fato, se a inteligência afina com a matéria e a intuição com a vida, será preciso
espremer uma e outra para extrair delas a quintessência dc seu objeto: a metafísi
ca dependerá pois da teoria do conhecimento. Mas. por outro lado, se a conscicn
cia está assim cindida em intuição e inteligência, se dá pela necessidade de sc
aplicar à matéria ao mesmo tempo que acompanhar a corrente da vida. O desdo
bramento da consciência decorrerá assim da dupla forma do real, c a teoria do
conhecimento deveria depender da metafísica. Na verdade, cada uma dessas duas
procuras conduz à outra: elas fazem um círcuio. e o círculo só pode ter por
centro o estudo empírico da evolução. Somente observando a consciência correr
através da matéria, nela sc perder c sc reencontrar, dividir-se e reconstituir-sc.
só assim formaremos uma idéia da oposição dos dois lermos entre si. como tal­
vez. também, de sua origem comum. Mas. por outro lado, com apoio nessa oposi­
ção dos dois elementos e nessa comunidade de origem, destacaremos sem dúvida
mais claramentc o sentido da própria evolução.
Tal será o assunto dc nosso próximo capitulo. Mas os fatos que acabamos
de passar em revista nos sugeriríam a idéia de relacionar a vida ou à própria
consciência ou a alguma coisa que a ela sc assemelhe.
Como o dissemos. em toda a extensão do reino animal a consciência apare­
ce como proporcional à capacidade dc escolha de que dispõe o scr vivo. Ela
ilumina a zona de virtualidades que envolve o ato. Ela mede a distância entre
o que se faz e o que se poderia fazer. Enfocando a dc fora, poderiamos, pois,
tomá Ia por simples auxiliar da ação, por uma luz que ilumina a açào. centelha
fugidia que jorrasse do atrito da ação real contra as ações possíveis. Mas impõe
sc observar que as coisas sc passariam exatamente do mesmo modo sc a cons
ciência, em vez dc efeito, fosse causa. Poder-scia supor que. mesmo nc animal
mais rudimentar, a consciência abrange, de direito, um campo enorme, mas que
ela está comprimida, dc fato, numa espécie dc torno dc bancada: cada progresso
dos centros nervosos, dando ao organismo a escolha entre um número maior
de ações. lançaria urn apelo às virtualidades capazes de envolver o real, desaper
taria assim o torno, e deixaria mais livremente passar a consciência. Nessa segun­
da hipótese, como na primeira, a consciência seria muito bem o instrumento da
ação; mas seria ainda mais correto dizer que a açào é o instrumento da consciên­
cia. porque a complicação da açào consigo mesma e os embaraços da ação com
a açào seriam, para a consciência aprisionada, o único meio possível dc se liber
tar. Como escolher entre as duas hipóteses? Sc a primeira fosse verdadeira, a
consciência reproduziría exatamente. a cada instante, o estado do cérebro; o pa
ralelismo (na medida cm que c inteligível) seria rigoroso entre o estado psicológi
co e O estado cerebral. Pelo contrário, na segunda hipótese, havería, isto sim.
solidariedade e interdependência entre o cérebro c a consciência, mas nào parale­
lismo: quanto mais o cérebro sc complique, aumentando desse modo a quantida­
de dc ações possíveis entre as quais o organismo tem a escolha, tanto mais a
consciência deverá transbordar seu concomitante físico. Dessa maneira, a lem­
brança dc um mesmo espetáculo ao qual tenham assistido modificará provável
mente do mesmo modo um cérebro de cão c um cérebro de homem, sc a perccp-
A EVOLUÇÃO CRIADORA 203

çào fosse a mesma; no entanto, a lembrança deverá ser coisa intciramenie diversa
numa consciência humana e numa consciência canina. No cachorro, a lembrança
permanecerá cativa da percepção: nào despertará senão quando uma percepção
análoga venha recordá-la reproduzindo o mesmo espetáculo, c se manifestará
então pelo reconhecimento, mais desempenhado do que pensado, da percepção
atual muito mais que por um renascimento verdadeiro da própria lembrança.
O homem, pelo contrário, é capaz de evocar a lembrança a seu prazer, seja em
que momento for. independentemente da percepção atual. Ele não sc limita a
desempenhar sua vida passada, mas representa a a si mesmo e a sonha. Sendo
a mesma, dc uma parte c de outra, a modificação local do cérebro a que está
relacionada a lembrança, a diferença psicológica entre as duas lembranças não
poderá ter sua razào em tal ou qual diferença de pormenor entre os dois mecanis­
mos cerebrais, mas na diferença entre os dois cérebros tomados globalmcntc:
o mais complexo dos dois, conflitando maior quantidade dc mecanismos entre
si. terá permitido à consciência escapar do aperto de uns e outros, c chegar à
independência. Que as coisas sc passam exatamente assim, que a segunda das
hipóteses seja aquela pela qual se impõe optar, foi o que tentamos provar, cm
trabalho anterior, mediante o estudo dos fatos que melhor põem cm relevo a
relação entre o estudo consciente e o estado cerebral, os fatos de reconhecimento
normal e patológico, cm particular as afasias. 34 Mas isso o raciocínio poderia
lambem ter previsto. Mostramos cm que postulado aulocontradilório. em que
confusão de dois simbolismos incompatíveis entre si. repousa a hipótese de uma
* *9 &
equivalência entre o estado cerebral e o estado psicologico.
A evolução da vida, encarada desse aspecto, assume um sentido mais nítido,
embora nào sc possa submetê-la a um gênero ou espécie, ou melhor, não sc possa
enquadrar a noção que dela sc tem num conceito ou numa categoria do entendi­
mento. Tudo se passa como sc vasta corrente de consciência houvesse penetrado
a matéria, carregada, como toda consciência, dc uma multiplicidade enorme dc
virtualidades que sc interpenetrassem. Essa corrente arrastou a matéria à organi­
zação, mas seu movimento nela foi ao mesmo tempo infinitamente ralentado e
infinitamente dividido. Por um lado, com efeito, a consciência teve de adormecer,
como a crisálida no invólucro onde prepara suas asas, e por outro, as tendências
múltiplas que ela encerrava dividiram sc entre series divergentes de organismos,
que aliás exteriorizavam essas tendências cm movimentos em vez dc as interiori­
zarem cm representações. No curso dessa evolução, enquanto uns adormeciam
cada vez mais profundamente, os outros despertavam cada vez mais completa­
mente, e o torpor de uns servia â atividade dos outros. Mas o despertar podia
dar sc dc dois modos diferentes. A vida, isto é, a consciência lançada através
da matéria, fixava sua atenção ou em seu próprio movimento, ou na matéria
que ela atravessava. Ela se orientava, assim, quer no sentido da intuição, quer
no da inteligência. À primeira vista, a intuição parece preferível à inteligência.

24 Malière ei Mémoire, Caps. II e III.

* ® “O paralopísmo psicofítiológico” /Revue de •nétaphyiitjue. novembru de 1904).


204 BERGSON

visto que a vida e a consciência nela permanecem interiores a si mesmas. Mas


o espetáculo da evolução dos seres vivos mostra-nos que ela nào podia ir muito
além. Do lado da intuição, a consciência achou-se a tal ponto comprimida por
seu invólucro que teve de amexquinhar a intuição em instinto, isto é. só abranger
a mínima parcela de vida que a interessava — embora a abranja na sombra,
tocando-a sem quase a ver. Desse lado, o horizonte depressa sc fechou. Pelo
contrário, a consciência, determinando-sc como inteligência, isto c. concentran­
do se primeiro na matéria, parece desse modo exteriorizar-se em reação a si
mesma: mas. precisamente pelo fato de que sc adapta aos objetos dc fora, ela
chega a circular no meio deles, a contornar as barreiras que eles lhe opõem,
a dilatar infinitamente seu domínio. Uma vez liberada, ela pode aliás voltar-se
para o interior, e despertar as virtualidades dc intuição que ainda adormecem
nela.
Dessa perspectiva, nào somente a consciência aparece como o princípio mo­
tor da evolução, como ainda, entre os próprios seres conscientes, o homem vem
ocupar um lugar privilegiado. Entre os animais c ele, não há mais uma diferença
de grau, mas de natureza. Até que essa conclusão seja tirada de nosso próximo
capítulo, mostraremos como nossas análises precedentes a sugerem.
É fato digno de nota a extraordinária desproporção entre as consequências
dc uma invenção e a própria invenção. Dissemos que a inteligência c modelada
sobre a matéria e que da visa primeiramente a fabricação. Mas fabricará por
fabricar, ou acaso nào procurará, involuntária c mesmo inconscicntemcnte. algo
inteiramente diverso? Fabricar consiste cm dar forma à matéria, torná-la plástica
c dobrá-la. converte la cm instrumento a Em de ter domínio sobre ela. Esse domí­
nio é que aproveita à humanidade, muito mais ainda que o resultado material
da própria invenção. Sc colhemos uma vantagem imediata do objeto fabricado,
como o poderia fazer um animal inteligente, sc mesmo essa vantagem fosse tudo
o que o inventor procurasse, pouco significaria cm comparação com idéias novas,
sentimentos novos que a invenção pode fazer surgir sob todos os aspectos, como
sc tivesse por efeito essencial elevar-nos acima dc nós mesmos c. com isso, am­
pliar nosso horizonte. Entre o efeito c a causa, a desproporção, no caso, c tão
grande que ê difícil tomar a causa por ocasionadora dc seu efeito. Ela o desenca
deia, atribuindo lhe, c ccrtu, sua direção. Tudo sc passa, enfim, como se o domí­
nio da inteligência sobre a matéria tivesse por principal objeto deixar passar algu­
ma coisa que a matéria prende.
A mesma impressão destaca se de uma comparação entre o cérebio do ho­
mem e o dos animais. A diferença parece primeiro ser tão-somente uma desigual
dade de volume c dc complexidade. Mas deve haver ainda outra coisa, a julgar
pelo funcionamento deles. No animal, os mecanismos motores que o cérebro che
ga a montar, ou, em outras palavras, os hábitos que sua vontade adquire, nào
têm outro objeto e outro efeito senão realizar movimentos esboçados nesses hábi
tos. armazenados desses mecanismos. Mas, no homem, o hábito motor pode ter
um segundo resultado, ineomensurável com o primeiro. Ele pode impedir outros
hábitos motores e, com isso, disciplinando o automatismo. pór em liberdade a
consciência. Sabe-se que vastos territórios a língua ocupa no cérebro humano.
Os mecanismos cerebrais que correspondem às palavras têm de particular o fato
A EVOLUÇÃO CRIADORA 205

de poderem cunfliiar com outros mecanismos, como, por exemplo, aqueles que
correspondem às próprias coisas, ou ainda conflitar uns com os outros: djrante
esse tempo, a consciência, que foi arrastada à realização do ato nele mergulhada,
recobra-se e sc liberta.2*
A diferença deve. pois, scr mais radical do que o faria crer um exame super
ficial. Ela é a que verificaríamos entre um mecanismo que absorve a atenção e
um mecanismo de que se pode desviar. A primitiva máquina a vapor, tal como
a concebeu Newcomen, exigia a presença dc uma pessoa exclusivamente encarre­
gada de manobrar as torneiras, suja para introduzir o vapor no cilindro, seja
para nele lançar a chuva fria destinada à condensação. Conta-se que um nenino
empregado nesse trabalho, muito entediado com a obrigação dc o fazer, teve
a idéia dc ligar as manivclas das torneiras, por cordões, ao pêndulo da máquina.
Desde entào. a máquina abria e fechava por si mesma as suas torneiras: ela
funcionava sozinha. Ora. um observador que comparasse a estrutura dessa se­
gunda máquina com a da primeira, sem se ocupar dos dois meninos encarregados
da vigilância, só teria verificado entre elas uma ligeira diferença dc complicação.
É tudo o que sc pode perceber, com efeito, quando só sc olham as máquinas.
Mas se dermos uma olhadela nos meninos, veremos que um está absorvido por
sua vigilância, c que o outro está livre para divcrtir-.se à vontade, e que. por
esse aspecto, a diferença entre as duas máquinas c radical, a primeira mantendo
a atenção prisioneira, a segunda lhe dando livre trânsito. Diferença do mesmo
gcncro. segundo cremos, é u que sç verificaria entre o cérebro do animal e o
cérebro do homem.
Em suma, se quiséssemos nos exprimir cm termos dc finalidade, deveriamos
dizer que a consciência, após ter sido obrigada, para libertar-se a si mesma, a
cindir a organização cm duas partes complementares, vegetais dc um lado c ani­
mais de outro, procurou uma saída na dupla direção do instinto e da inteligência:
cia nào a encontrou com o instinto, c nao a obteve, do lado da inteligência,
senão por um salto brusco do animal cm direção ao homem. Dc modo que cm
última análise o homem seria a razão de scr dc toda a organização da vida em
nosso planeta. Mas isso seria apenas um modo de dizer. Na realidade, há tão-su*
mente uma corrente dc existência c a corrente antagônica; daí toda a evolução
da vida. Devemos agora nos acercar mais dc perto da oposição dessas duas cor
rentes. Talvez desse modo lhes descubramos uma fonte comum. Com isso pene­
traremos sem dúvida nas mais obscuras regiões da metafísica. Mas, como as
duas direções que temos dc acompanhar encontram-se assinaladas na inteligên­
cia, por um lado, e por outro no instinto c na intuição, nao receamos extraviar-
nos. O espetáculo da evolução da vida sugere-nos certa concepção do conheci­
mento c também certa metafísica que sc implicam recíprocamente. Uma vez des­
tacadas, essa metafísica e essa crítica poderão derramar alguma luz, por sua
ve?, sobre o conjunto da evolução.

2<Um gcóíügu que jú livutnos ensejo dc citar. N. S. Shuler, di? de modo excelente: “Quando checamos
ao homem, c como se livêssemos abolido a antiga sujciçio do espirito ao corpo, e as panes htelcctuais
desenvolvem-sc com unia rapidr? extraordinária. a estrutura do corpo permanecendo idêntica no que tem
de essenciar (Shaler. The Interpretation of Nature, Boston. 1899, p. 187).
AS DUAS FONTES
DA MORAL E DA RELIGIÃO
(CAP IV]

Tradução de Nathanael Caxeiro


Capítulo IV

OBSERVAÇÕES FINAIS
MECÂNICA E MÍSTICA

Um dos resultados de nossa análise foi distinguir profundamente o fechado


e o aberto no domínio social. A sociedade fechada é aquela cujos membros se
entrosam mutuamente, indiferente ao restante dos homens, sempre prontos a ata­
car ou defender sc. restritos cm suma a uma atitude dc combate. Assim é a socic
dade humana quando sai das màos da natureza. O homem fora feito para ela.
como a formiga para o formigueiro. Nào sc deveria forçar a analogia: devemos
no entanto observar que as comunidades de himenópteros estão no extremo de
uma das duas principais linhas da evolução animal, como as sociedades humanas
na extremidade da outra, c que nesse sentido sào simétricas. Sem dúvida as pri
meiras tem uma forma estereotipada ao passo que «is outras variam: aquelas
obedecem ao instinto, e estas, à inteligência. Mas sc a natureza, precisamcntc
porque nos fez inteligentes, nos deixou livres para escolher ate certo ponto nosso
tipo de organização social, não obstante nos impôs o viver cm sociedade Uma
força dc sentido constante, que está paru a alma como o peso para o corpo,
assegura a coesão do grupo, inclinando a um mesmo sentido as vontades ndivi
duais. Assim é a obrigação moral. Mostramos que ela pode ampliar-se nu socie­
dade que sc abre, mas que foi feita para uma sociedade fechada. E mostramos
também como uma sociedade fechada só pode viver, resistir a certa ação dissol­
vente da inteligência, conservar e comunicar a cada um de seus membros a con
fiança indispensável, mediante uma religião surgida da função fabuladora. Essa
religião, a que chamamos estática, c essa obrigação, que consiste numa pressão,
sào constitutivas da sociedade fechada.
Da sociedade fechada à sociedade aberta, da comunidade à humaridade.
jamais sc passará pela via da ampliação. Elas nâo sào de mesma essência. A
sociedade aberta é aquela que abrangesse em principio a humanidade inteira.
Sonhada, vez por outra, por almas dc cscol. ela realiza, cada vez. algo dela mes­
ma nas criações, cada uma das quais, por uma transformação mais ou menos
profunda do homem, permite superar dificuldades ate então insuperáveis. Mas.
após cada uma. também sc fecha o círculo momentaneamente aberto. Parte do
novo insinuou se no molde do antigo: a aspiração individual tornou-se pressão
social: a obrigação abrange o todo. Mas esses progressos sc farão na mesma
direção? Estará claro que n direção é a mesma, desde que se concordou cm afir
mar que se trata de progressos. Cada um deles se definirá dc fato então por
210 BERGSON

um passo à frente. Mas isso nào passa dc metáfora, c se houvesse rcalmcnie


uma direção preexistente ao longo da qual nos contentássemos em avançar, as
renovações morais seriam previsíveis', não havería necessidade absolutamente al­
guma de um esforço criador para cada urna delas. A verdade é que se pode
sempre tomar a última, definida por um conceito, e dizer que as denais cvnti
nham uma quantidade maior ou menor daquilo que seu conceito encerra, e que
todas cram por conseguinte um encaminhamento a ela. Mas as cois<.s só assu­
mem essa forma rctrospcctivamenic: as transformações eram qualitativas c nào
quantitativas: desafiavam qualquer previsão. Por um aspecto, entretanto, essas
transformações apresentavam em si mesmas, e nào apenas em sua tradução wn
ccptual. alguma coisa de comum. Todos queriam abrir o que estava fechado:
o grupo, que desde a precedente abertura se dobrava subre si mesmo, era sempre
reconduzido à humanidade. Sigamos mais além: esses esforços sucessivos nào
eram precisamente a realização progressiva dc um ideal, dado que nenhuma
idéia, forjada por antecipação, podia representar um conjunto dc aquisições, cada
um:» das quais, ao sc criar, criava sua própria idéia: e. no entanto, a diversidade
dos esforços se resumiría bem cm «alguma coisa única: um impulso, que dera
sociedades fechadas porque não mais podia arrastar a matéria, mas que vai em
seguida procurar e retomar, na falta da espécie. esta ou aquela individualidade
privilegiada. Esse impulso continua assim, por intermédio de certos homens, cada
um dos quais se verifica constituir uma espécie composta de um só ndivíduo.
Sc o indivíduo tem plena consciência disso, se a franja dc intuição que envolve
sua inteligência se amplia o suficiente para aplicar-sc a todo o seu objeto, é a
vida mística. A religião dinâmica que assim surge contrapõe se à rclig âo estáti
ca. saída da função fabuladora. como a sociedade aberta à sociedade fechada.
Mas do mesmo modo que a aspiração moral nova só adquire corpo tomando
à sociedade fechada sua forma natural, que e a obrigação, também d religião
dinâmica só sc propaga por imagens e símbolos que a funçào fabuladora fornece.
Mas é desnecessário voltar a essas diferentes questões. Nossa intenção era sim
plcsmentc dar ênfase à distinção que fizêramos entre a sociedade aberta c a fe
chada.
Concentrcmo-nos nessa distinção, c veremos grandes problemas se desvane
ccrcm e outros se apresentarem em termos nuvos. Quando se faz a crítica ou
a apologia da religião. icr sc-á sempre cm consideração o que a religião tem
dc espccificamentc religioso? Ou acatamos ou maçamos contextos de que clu
talvez tenha necessidade para obter urn estado de alma que sc propaga: mas
a religião é essencialmente esse próprio estado. Discutem-sc as definições que
cia estabelece e as teorias que expõe: ela se valeu dc fato de uma metafísica
para «adquirir corpo: mas poderia a rigor ter assumido outro, c mesmo nenhum
corpo. O erro consiste cm crer que sc passe, por acréscimo ou aperfeiçoamento,
do estático ao dinâmico, da demonstração ou da fabulaçào. mesmo verídica, à
intuição. Confunde-se assim n coisa com a sua expressão ou seu símbolo. Esse
é o erro comum dc um intclectualismo radical. Verificamo-lo quando passamos
da religião à moral. Há uma moral estática, que existe de fato, em dado momen-
AS DIJAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 211

to. em dada sociedade. Fla fixou-se nos costumes, nas idéias, nas instituições:
seu caráter de obrigatoriedade reduz-se. cm úítima análise, à exigência pela natu­
reza. da vida cm comum. Há. por outro lado, uma moral dinâmica, que c impul­
so. e que se liga à vida em geral, criadora da natureza que criou a exigência so
ciai. A primeira obrigação, na medida cm que pressão, é infra-racional. A segun­
da. na medida em que aspiração, c supra-racional. Mas sobrevêm a inteligência.
Ela procura o motivo de cada uma das prescrições, isto é. seu conteúdo intelec­
tual: c como c sistemática, crc que o problema c reduzir todos os motivos morais
a um único. De resto, sõ tem o obstáculo da opção: interesse geral, interesse
pessoal, amor próprio, solidariedade. piedade, coerência racional etc. Nâo há
qualquer principio de ação de que nào sc possa deduzir quase a moral cm geral
aceita. É verdade que a facilidade da operação, e o caráter simplesmente tproxi
mativo do resultado que ela proporciona deveríam nos precaver contra cia. Sc
é possível extrair regras dc conduta quase idênticas, bem ou mal. dc princípios
tão diferentes, isso se deve a que talvez nenhum desses princípios lenha sido
tomado no que tenha de específico. O filósofo fora levado a colher no meio so
ciai, onde tudo se interpenctra. onde o egoísmo c a vaidade se lastreiam dc socia­
bilidade: nâo admira, pois, que ele encontre cm cada um deles a moral que ado­
tou ou refugou. Mas a moral por sua vez fica incxplicada. dado que teria sido
necessário perserutar a própria vida social enquanto disciplina exigida pela natu
reza, ç perserutar a própria natureza enquanto criada pela vida cm geral. Teria
mos chegado assim à própria raiz da moral, que o puro intelectualismo procura
em vão: o puro intelectualismo só pode aconselhar, alegar razões, que nada nos
impedirá de combater mediante outras razões. Na verdade, ele subentende sempre
que o motivo invocado por ele é ••preferível” aos demais, e que há entre os moti­
vos diferenças dc valor, que existe um ideal geral a que relacionar u real. Ele
procura, pois, um abrigo na teoria platônica, com uma Idéia do Bem que domina
todas as demais: as razões dc agir sc hicrarquizariam abaixo da Idéia do Bem.
sendo as melhores aquelas que mais sc aproximam dela. O atrativo do Bem seria
<» princípio da obrigação. Mas ficamos então muito embaraçados para dizer me­
diante que sinal reconhecemos que uma conduta esteja menos ou mais próxima
do Bem ideal: sc o soubéssemos, o sinal seria o essencial c a Idéia do Hem se
tornaria inútil. Ter-sc-ía igual dificuldade para explicar como esse ideal cria uma
obrigação imperiosa, sobretudo a obrigação mais estrita dc todas, a que se rela
ciona com os costumes nas sociedades primitivas csscncialmcnte fcchacas. A
verdade é que um ideal só sc p<xle tornar obrigatório se já for atuante: e cntào
nào c sua idéia que obriga, mas sua ação. Ou antes, ele nào passa da palavra
que empregamos para designar o efeito supostamente último dessa ação, percebi­
da como contínua, o termo hipotético do movimento que já nos abala. No fundo
de codas as teorias verificamos, pois, as duas ilusões que já muitas vezes denun­
ciamos. A primeira, muito geral, consiste em imaginar o movimento como a di
minuição gradual de um intervalo entre a posição do móvel, que é uma imobilida­
de. e seu termo supostamente atingido, que é também imobilidade, ao passo que
as posições nào passam dc opiniões do espírito sobre o movimento indivisível:
212 BERGSON

donde a impossibilidade de restabelecer a mobilidade verdadeira, isto c. no caso


as aspirações c as pressões que constituem indireta ou diretamenie a obrigação.
A segunda diz respeito mais espccificamcntc à evolução da vida. Porque dado
processo evolutivo foi observado a partir dc certo ponto, quer-se que esse ponto
tenha sido atingido pelo mesmo processo evolutivo, enquanto a evolução anterior
possa ter sido diferente, enquanto possa nem mesmo ter havido evolução até
entào. Dado que verificamos um enriquecimento paulatino da moral, queremos
que nao tenha havido moral primitiva, irredutível, surgida com o homem. No
entanto é preciso estabelecer essa moral original ao mesmo tempo que a espécie
humana, c admitir no início uma sociedade fechada.
Ora. poderá ter utilidade prática para nós a distinção entre o fechado e
o aberto, necessária para resolver ou suprimir os problemas teóricos? Ela nào
teria grande utilidade, sc a sociedade fechada nào se tivesse sempre constituído
ao se fechar após tcr-sc momentaneamente aberto. Seria inútil recuar entào infini
lamente ao passado, pois jamais se chegaria ao primitivo: o natural nân passaria
dc consolidação do adquirido. Mas. como acabamos dc diz.cr, a verdade é inteira­
mente outra. Há uma natureza fundamental, e há aquisições que. superpondo se
à natureza, imítam-na sem sc confundir com cia. Por aproximações sjeessivas
nos transportaríamos a uma sociedade fechada original, cujo plano geral sc junta­
ria ao desígnio dc nossa espécie como o formigueiro à formiga, com a diferença,
entretanto, de que no segundo caso o pormenor da organização social é que sc
dá de antemão, ao passo que no outro há somente algumas grandes linbas. algu
mas diretrizes, precisamcntc o bastante dc prcfiguraçào natural para garantir dc
imediato aos indivíduos um meio social apropriado. O conhecimento desse plano
oferecería hoje sem dúvida apenas um interesse histórico se as disposições hou­
vessem sido eliminadas por outras. Mas a natureza c indestrutível. Errou-se ao
dizer “expulsai o natural, e ele voltará correndo”, porque o natural nào sc deixa
expulsar. Ele está sempre presente. Sabemos o que se deve pensar quanto à trans-
missibilidade dos caracteres adquiridos. É pouco provável que algum hábito aca­
so sc transmita: se o fato sc produz, dcvc-sc â convergência casual dc tão grande
número dc condições favoráveis que ele nào se repetirá com certeza muitas vczxs
de modo a implantar o hábito na espécie. É nos costumes, nas instituições, na
própria linguagem que se depositam as aquisições morais: elas sc comunicam
em seguida por uma educação de todos os instantes: assim passam de geração
em geração hábitos que acabaram por sc acreditar hereditários. Mas tudo conspi­
ra para corroborar a interpretação falsa: um amor-próprio deslocado, um otimis­
mo superficial, um desconhecimento da verdadeira natureza do progresso, enfim,
e sobretudo. uma confusão muito generalizada entre a tendência inata, que è
transmissível de fato de pais a filhos, e o hábito adquirido, que nào raro se enxer­
tou na tendência natural. Nâo é dc duvidar que essa crença tenha pesado sobre
a ciência positiva, que a aceitou do senso comum nào obstante o número restrito
e o caráter discutível dos fatos invocados cm seu apoio, e que a devolveu depois
ao senso comum com o reforço de sua autoridade indiscutível. Nada mais instru­
tivo a esse respeito que a obra biológica e psicológica de Herbert Spencer. Ela
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 213

repousa quase inteiramente na idéia da transmissão hereditária dos caracteres


adquiridos. E impregnou, enquanto gozou dc popularidade, o evolucionismo dos
cientistas. Ora. em Spencer ela nào passava da generalização dc uma tese, apre­
sentada cm seus primeiros trabalhos, sobre o progresso social: a princípio ele
se preocupara cxclusívamcnte com o estudo das sociedades: só mais tarde trata­
ria dos problemas da vida. De modo que uma sociologia que imagina tomar
à biologia a idéia de uma transmissão hereditária do adquirido nada fez senão
tomar de volta o que emprestou. A tese filosófica não-demonstrada adquiriu um
falso aspecto de garantia científica ao passar pela ciência, mas continua filosofia,
c está mais longe do que nunca dc scr demonstrada. Atcnhamo nos. pois, aos
fatos que sc verificam e às probabilidades que sugerem: achamos que se sc elimi­
nasse do homem atual o que uma educação permanente depositou nele, vé Io
emos idêntico, ou quase, a seus antepassados mais distantes.1
Que conclusão tirar disso? Dado que as disposições da espécie se conser
vam. imutáveis, no fundo de cada um de nós. é impossível que o moralista c
o sociólogo não as levem cm consideração. Certamcntc. a poucas pessoas foi
dado perserutar primeiro sob o adquirido, depois sob a natureza, c rccolccar-se
no próprio impulso da vida. Se tal esforço pudesse generalizar sc. não é na espé­
cie humana, nem. por conseguinte, numa sociedade fechada, que o impulso se
teria estancado como por um impasse. Nào menos verdade c que esses privilegia­
dos quereríam arrastar com eles a humanidade: não podendo comunicar a todos
seu estado dc alma no que ele tem dc profundo, eles o transpõem supcrficialmcn
te: procuram uma tradução do dinâmico cm estático, que a sociedade esteja cm
condições dc aceitar e de tornar definitiva pela educação. Ora. eles só terão êxito
nisso na medida cm que tenham levado cm consideração a natureza. Essa r.uturc
za. a humanidade no seu todo não a poderia forçar. Mas pode aperfeiçoar. E
só o fará sc lhe conhecer a configuração. A tarefa seria incômoda, sc fosse preei
so para isso enveredar pelo estudo da psicologia cm geral. Trata-se. porém, ape­
nas dc um ponto particular: a natureza humana, na medida em que predisposta
a cena forma social. Dizemos que há uma sociedade humana natural, vagamente
prefigurada cm nós. que a natureza cuidou dc nos fornecer dc antemão o seu
esquema, deixando amplo espaço à nossa inteligência e à nossa vontade para
seguir a indicação. Esse esquema vago c incompleto correspondería, no domínio
da atividade racional c livre, ao que é o desígnio, este sim rigoroso, do formiguei
ro ou da colmcía no caso do instinto, no outro termo da evolução. Havería,
pois, apenas um esquema simples a encontrar.
Mas como cncontrá-lo. dado que o adquirido encobre o natural? Ficaríamos

Dizemou "quase”. porque cumpre icr em coniti variaçòcs que <> scr vivo executa, de atgun modo,
sobre o tema fornecido por seus progenitores. Mas essas variações, sendo acidentais c sc produzindo seja
cm que sentido for. nào podem adicionai sc coin o correr do tempo para modificar a espécie. Sobre a
tese da transmíssibihdade dos caracteres adquiridos, c sohrc um evolucwnismo que se fundasse snhee ela.
veja-sc /t Evolução Criadora, capitulo I.
Acrescentemos, como já o observamos, que o salto hrusco dado pela espécie humana pode ter sido
tentado cm mais de um ponto do espaço c do tempo com um exito incompleto, chegando assim 3 "homens’*
que assim sc podem designar sc quisermos, mas que nào sâo necessariamente nossos antepassados.
214 BERGSON

cm dificuldade para responder, se devéssemos fornecer um meio dc pesquisa apli­


cável automaticamente. A verdade é que se impõe proceder por tateio e aproxi­
mação. praticar ao mesmo tempo diversos métodos, cada um dos quais levaria
apenas a possibilidades ou probabilidades: interferindo entre si. os resultados
se neutralizarão ou sc reforçarão muiuamcnte: haverá comprovação e correção
reciprocas. Desse modo, ter-se-á explicação dos "primitivos", sem esquecer que
uma camada dc aquisições também lhes encobre a natureza, ainda que seja talvez
menos espessa que cm nós. Irào observar-sc as crianças, sem esquecer que a
natureza cuidou nas diferenças dc idade, e que o natural infantil nào c rcccssaria
mente o natural humano: sobretudo, a criança c imitadora. e o que nela nos
parece espontâneo c nào raro efeito de uma educação que lhe damos sem prestar
atenção. Mas a fonte de informação por excelência será a introspecçâo. Deverc
mos ir à procura desse fundo dc sociabilidade, c também de insociabilidadc. que
aparecería à nossa consciência sc a sociedade constituída nào houvesse introduzí ,
do em nós os hábitos c disposições que nos adaptam a ela. Só temos a revelação
dela vez por outra, num relâmpago. Será preciso recordá-la e fixá-la.
Digamos de início que o homem fora feito para pequeníssimas sociedades.
Admite se cm geral que assim tenham sido as sociedades primitivas. Mas deve sc
acrescentar que o antigo estado dc alma subsiste, dissimulado sob hábitos sem
os quais nào havería civilização. Reprimido, impotente, ele permanece no entanto
nas profundezas da consciência. Sc ele nâo vai ao ponto dc obter atos, nanifesta-
sc por falas. Numa grande nação, comunas podem scr administradas a contento
geral: mas qual é o Governo que os governados decidirão declarar bom? Acredi­
tarão louvá-lo suficicntementc quando disserem que é o menos mau dc todos,
e nesse sentido apenas o melhor. É que no caso o descontentamento é congênito.
Observemos que a arte dc governar um grande povo c a única para a qual nào
tem havido técnica preparatória, nern educação eficaz, sobretudo cm se tratando
dos cargos mais elevados. A extrema escassez de políticos de alguma envergadu­
ra deve-se a que eles devem resolver a lodo momento, no pormenor, um problema
que a extensão assumida pelas sociedades talvez tornou insolúvel. Examinai a
história das grandes nações modernas: encontrareis numerosos cientistas dc reno-
mc. grandes artistas, grandes soldados, grandes especialistas cm todos os setores
• mas quantos grandes homens de Estado?
A natureza, que quis sociedades pequenas, no entanto abriu a po-ta a que
cias crescessem. Porque ela quis também a guerra, ou pelo menos dotou o homem
das condições de vida que tornaram a guerra inevitável. Ora. ameaças dc guerra
podem fazer com que várias sociedades pequenas se decidam a unir-sc para en­
frentar o perigo comum. F verdade que essas uniões sào raramente duráveis.
Chegam em todo o caso a uma reunião de sociedades que c da mesma ordem
dc grandeza que cada uma delas. P antes cm outro sentido que a guerra está
na base dos impérios. Eles nasceram da conquista. Mesmo que a guerra não
visasse à conquista, dc início, a uma conquista é que cia chegou, na medida
em que o vencedor julgue cômodo apropriar-se das terras do vencido, c mesmo
das populações, para tirar vantagem de seu trabalho. Assim se constituíram ou-
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 215

trora os grandes impérios asiáticos. Todos eles caíram em decomposição, sub


influências diversas, em realidade porque eram demasiado grandes para viverem.
Quando o vencedor concede às populações subjugadas uma aparência de inde­
pendência. a reunião dura por mais tempo. Tal o caso do Império Romano. Mas
nào é dubitávcl que o instinto primitivo subsista, que ele exerça uma açào desa
gregadora. Basta deixá Io às soltas c a construção política sc esboroa. Foi assim
que o feudalismo surgiu em países diferentes, em consequência dc acontecimentos
diferentes, em condições diferentes: só houve de comum a supressão da força
que impedia a sociedade dc deslocar sc: a deslocaçào fez sc então por si mesma.
Se grandes nações puderam constituir-sc solidamente em termos modernos, deve
se a que a coerção. que sc cxcrcc dc fora c do alio sobre o conjunto, cedeu
aos poucos o lugar a um princípio dc união que sobe do fundo de cada uma
das sociedades elementares reunidas, isiu c. da própria região das forças desagre-
gadoras.às quais tem de contrapor uma resistência ininterrupta. Esse prheípiu.
único capaz de neutralizar a tendência â desagregação, c o patriotismo. Os anti­
gos o conheceram bem: adoravam u pátria, e um dc seus poetas disse que era
doce morrer por ela.3 Mas grande é a diferença entre esse apego à comunidade,
grupamento posto ainda sob a invocação do deus que a protegerá nas guerras,
c o patriotismo, que c uma virtude dc paz tanto quanto dc guerra, que pode
tingir-sc dc misticismo, mas que nâo mistura â sua religião cálculo algum, que
abrange um grande país c comove uma nação, que aspira para ele o que há
dc melhor nas almas, enfim, que sc formou lentamcntc. religiosamente, com lem
branças c esperanças, com poesia c amor, çom um pouco de rodas as belezas
morais que estão sob o céu. como o mel com as flores. Era preciso um sentimento
tào elevado, imitador do estado místico, para haver razão de um sentimento tão
profundo quanto o egoísmo da tribo.
Ora. qual é o regime de uma sociedade que sai das mãos da natureza? É
possível que a humanidade tenha começado dc fato por grupamentos fam.liares,
dispersos c isolados. Mas nâo passavam dc sociedades embrionárias, c o filósofo
nâo deve procurar nelas tendências essenciais da vida social tanlo quanto o natu­
ralista nào se informaria sobre os hábitos de uma espécie indo estudá los nu
embrião. íi preciso tomar a sociedade no momento cm que ela está completa,
isto c. capaz dc se defender, c. por conseguinte, por pequena que seja, organizada
para a guerra. Qual será pois, nesse sentido preciso, seu regime natural? Se nào
fosse profanar as palavras gregas por aplicá-las a uma barbaria, diriamos que
ê monárquico ou oligárquico. c quiçá os doís ao mesmo tempo. No estado rudi
mentar esses regimes se confundem: ê preciso um chefe, e nào há comunidade
sem privilegiados que tomem ao chefe algu dc seu prestigio, ou que lhe déem.
ou antes que o mantenham, com ele. alguma força sobrenatural. O mando é abso­
luto por um lado, e a obediência é absoluta por outro. Já dissemos muitas vezes
que as sociedades humanas c as sociedades dc himenópteros ocupavam as extre­
midades das duas linhas principais da evolução biológica. Deus nos livre dc as

* Dulce ei decorum ext pro painamorí (J torneio). ÍN. chi T4


216 BERGSON

confundir uma com a outra! O homem c inteligente e lívrc. Mas c preciso sempre
ter em mente que a vida social estava compreendida no plano dc estrutura da
espécie humana como no da abelha, que ela era necessária, que a natureza nào
pôde confiar exclusivamente cm nossas vontades livres, e que por isso ela teve
de fazer com que um único ou alguns mandem, e que outros obedeçam. No mun
do dos insetos, a diversidade das funções sociais está ligada a uma diferença
dç organização; há ’’polimorfismo”. Diremos então que nas speiedades humanas
há "dimorfismo". nào mais físico e psíquico ao mesmo tempo como no inseto,
mas apenas psíquico? Acreditamo-lo sob condição entretanto dc que fique claro
que esse dimorfismo não separa os homens em duas categorias irredutíveis, uns
nascendo chefes e outros subordinados. O erro dc Nietzsche foi acreditar numa
distinção desse gênero: de um lado os “escravos" e dc outro os ‘‘senhores". O
fato é que o dimorfismo faz nào raro dc cada um de nós. ao mesmo tempo,
um chefe que tem o instinto dc mandar e um subordinado que está pronto a
obedecer, embora a segunda tendência o leve ao ponto de manifestar-sc só na
maioria dos homens. É comparável ao dos insetos no que implica duas organiza­
ções. dois sistemas indivisíveis de qualidades (algumas das quais seriam defeitos
ao ver do moralista): optamos por um ou por outro sistema, não cm pormenor,
como aconteceria se sc tratasse de contrair hábitos, mas dc uma só vez. dc modo
cnlídoscópico. assim como deve resultar dc um dimorfismo natural, inteiramente
comparável ao do embrião que tem a escolha entre os dois sexos. Disso temos
a visão clara cm tempos dc revolução. Cidadãos modestos. humildes c obedien­
tes. até então, despertam certa manhã com a pretensão dc serem condutores de
homens. O calidoscópio. que estivera fixo, girou um grau, e houve metamorfose.
Algumas vezes o resultado é bom: grandes homens de ação revelaram-se que
nem mesmo a si próprios conheciam. Mas cm geral o resultado nào é bom. Em
seres honestos e dóceis surge dc repente uma personalidade baixa, feroz, que
é â dc um chefe frustrado. E então aparece um traço característico dc “animal
político" que é o homem.
Nào iremos com efeito ao ponto dc dizer que um dos predicados do chefe
que existe adormecido dentro dc nós seja a ferocidade. Mas c certo que a nature
za. massacradora dos indivíduos ao mesmo tempo que geradora das espécies,
quis o chefe impiedoso sc previu chefes. Toda a história atesta isso. Hecatombes
inauditas, precedidas dos piores suplícios, foram ordenadas com inteiro sangue-
frio por homens que pessoalmcnte nos deixaram o registro do fato, gravado em
pedra. Dir-scia que coisas como essas se passaram em tempos muito recuados.
Mas sc a forma mudou, sc o cristianismo pôs fim a certos crimes ou pe;o menos
conseguiu que não fossem alardeados, o crime continuou nào poucas vezes a
ratio ultima, quando nào a prima, da política. Monstruosidade, sem dúvida, mas
da qual a natureza c tão responsável quanto o homem. A natureza nào recorre
de fato nem à prisão nem ao exílio; ela só conhece a condenação à morte. Permi
tam-nos mencionar uma recordação. Aconrcceu-nos ver nobres estrangeiros, vin
dos dc longe, mas vestidos como nós, falando nossa língua, andar livremente,
afetuosos c amistosos, na nossa comunidade. Pouco tempo depois soubemos por
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 217

um jornal que. retornando a seus países e filiados a partidos diferentes, um dos


dois mandou enforcar o outro. Com todo o aparato da justiça. Simplesmente
para sc dcsvcnçilhar de um adversário incômodo- Ao relato juntava-se a fotogra­
fia do patíbulo. O correto cidadão do mundo, seminu. balançava aos o.hos da
multidão. Visão de horror! Estávamos entre “civilizados", mas o instinto político
original fez saltar a civilização pelos ares para permitir a passagem da natureza.
Homens que se acreditaria sensatos para castigar na proporção do delito cometi
do. caso tivessem dc julgar um culpado, vão dirctamcnte à condenação à morte
do inocente quando a política fala mais alto. Còmo as abelhas operárias ferroam
os machos quando julgam que a colmeia não precisa mais deles.
Mas deixemos de lado o temperamento do “chefe”. e consideremos os senti­
mentos respectivos dos dirigentes e dos dirigidos. Esses sentimentos serão mais
nítidos quando a linha dc demarcação for mais visível, numa sociedade já grande
mas que tenha crescido sem modificação radical da “sociedade natural”. A classe
dirigente, na qual incluímos o rei. caso haja um rei. pode ter sido recrutada no
curso histórico por métodos diferentes: mas sempre se cre dc estirpe superior.
Isso nada tem de surpreendente. O que mais nos espantaria, sc não estivéssemos
cientes do dimorfísmo do homem social, é que o próprio povo esteja persuadido
dessa superioridade inata. Sem dúvida a oligarquia aplica se a cultivar o senti­
mento dela. Sc ela deve sua origem à guerra, acreditará e fará crer em virtudes
militares que nela seriam congênitas, e que sc transmitam hcrcdilariamer.tc. Ela
conserva, aliás, uma real superioridade de força, graças ã disciplina a que se
submete, c às medidas que toma para impedir a classe inferior dc por sua vez
se organizar. A experiência deveria no entanto mostrar em tais casos aos dirigi­
dos que os dirigentes sào feitos como eles. Mas o instinto resiste. F.le só começa
a ceder quando a classe superior a isso convida. Ora ela o faz involuntariamente,
por uma incapacidade evidente, ora por abusos tào gritantes que desestimula
a fé nela depositada. Ou entào a incitação c voluntária, estes ou aqueles membros
seus voltando-se contra ela, nào raro por ambição pessoal, às vezes por um senti
mento dc justiça: voltados à classe inferior, eles dissipam entào a ilusão que
mantinha a distancia. Assim foi como os nobres colaboraram para a Revolução
dc 1789. que aboliu o privilégio de nascimento. Dc modo geral, a iniciativa dos
combales contra a desigualdade — justificada ou não — veio sobretudo de cima,
do meio dos mais abastados, e nâo de baixo, como era de supor, admitindo se
que sc esteja apenas diante dc interesses dc classe. Assim é que foram burgueses,
e nào operários, que desempenharam o papel preponderante nas revoluções dc
1830 e 1848. dirigidos (a segunda principalmente) contra o privilégio da riqueza.
Mais tarde foram homens da classe cultivada que exigiram instrução para todos.
A verdade é que. sc uma aristocracia crê naturalmcntc. religiosamente, cm sua
superioridade nativa, o respeito que inspira c nâo menos religioso e nào menos
natural.
Compreende se. pois, que a humanidade só tenha chegado à democracia
tardiamente (dado que foram falsas democracias as comunidades antigas, erigi­
das sobre a escravidão, aliviadas por essa iniquidade fundamental dos maiores
218 BERGSON

e mais angustiantes problemas). De todas as concepções políticas e a de fato


é a mais distanciada da natureza, a única que transcende, em intenção pelo me­
nos. as condições da “sociedade fechada". Ela atribui ao homem direitos inviolá­
veis. Esses direitos, para continuarem inviolados. exigem da parte de todos uma
fidelidade inalterável ao dever. Ela toma por matéria um homem ideal, respeitoso
dos outros como dc si mesmo. in$erindo-sc cm obrigações que admite por absolu­
tas. coincidindo tão bem com esse absoluto que nào mais sc pode dizer se é
o dever que confere o direito ou u direito que impõe o dever. O cidacào assim
definido e ao mesmo tempo “legislador e súdito", para falar como Kant. O con
junto dos cidadãos, isto c. o povo, c pois soberano. Assim é a democracia teórica.
Ela proclama a liberdade, exige a igualdade, e reconcilia essas duas irmãs inimi
gas lembrando-lhcs que elas sào irmãs, e colocando acima dc tudo a fraternidade.
Tome-se desse ponto dc vista o lema republicano e se verá que o terceiro termo
leva a contradição tantas vezes assinada entre os dois outros, e que a fraternidade
é o essencial: o que permitiría dizer que a democracia é de essência evangélica,
e que tem por motor o amor. Iremos descobrir suas origens sentimentais na alma
de Rousseau, os princípios filosóficos na obra dc Kant. o fundo religioso em
Kant c em Rousseau ao mesmo tempo: c sabido o que Kant deve ao seu pietismo
c Rousseau a um protestantismo e um catolicismo que concorreram jjntos na
sua formação. A Declaração Americana de Independência (1776). que serviu de
modelo à Declaração dos Direitos do Homem em 1791. cem. aliás, ressonâncias
puritanas: “Admitimos por evidente. . . que todos os homens foram dotados por
seu Criador dc certos direitos inalienáveis. . . etc." As objeçòcs tiradas do vago
da fórmula democrática vêm dc que sc desconheceu o caráter originariamente
religioso dela. Como exigir uma definição rigorosa da liberdade c da igualdade,
quando o futuro deve continuar aberto a todo progresso, sobretudo para a cria
çào de condições novas sob as quais sc tornem possíveis formas de liberdade
c de igualdade hoje irrcalizávcis, talvez inconcebíveis? Podemos no máximo es­
boçar quadros, e cies sc preencherão cada vez melhor se a fraternidade cuidar
disso. Ama, et fac quoii \>is.J A fórmula de uma sociedade não-dcmucrática.
que quisesse que sua divisa correspondesse, literalmcntc, com a da democracia,
seria: “Autoridade, hierarquia, fixismo". Eis. pois, a democracia cm sua essência.
É desnecessário dizer que sc deve ver nisso apenas um ideal, ou antes uma dire
çào apontada no caminho da humanidade. Primeiro, foi sobretudo como protesto
que ela sc introduziu no mundo. Cada uma das frases da Declaração dos Direitos
do Homem é um desafio lançado a determinado abuso. Trata-se de acabar com
sofrimentos intoleráveis. Resumindo as representações feitas nas pautas dos Esta­
dos Gerais. Émile Faguct escreveu certa vez que a Revolução nâo fora feita pela
liberdade e igualdade, mas tão somente “porque sc morria dc fome". Admitindo-
se que seja exato, seria preciso explicar por que a partir de dado momento é
que nào mais sc quis “morrer de fome". Nào menos verdade c que. se a Revolu­
ção formulou o que devia scr. foi para banir o que era. Ora. acontece que a
intenção com a qual uma idéia foi lançada permanece invisivelmente agregada

J "Ama. c (aze u que quiseres.'* (N. do T.)


a cia. como a flecha c sua direção. As fórmulas democráticas, enunciadas primei­
ro num pensamento de protesto, resscntiram-sc de sua origem. Sao consideradas
cômodas para impedir, para rejeitar. para inverter: c menos fácil dc extrair dela
a indicação positiva do que sc deve fazer. Sobretudo, elas só sào aplicáveis se
transpostas, absolutas c quase evangélicas, em termos de moralidade puramente
relativa, ou antes, dc interesse geral*, c a transposição corre quase sempre o risco
de causar um desvio no sentido dos interesses particulares. Mas é inútil enumerar
as objeções à democracia c as respostas que se lhes dào. Quisemos apenas mos­
trar no estado de alma democrático um grande empenho no sentido inverso da
natureza.
Acabamos de indicar apenas alguns traços da sociedade natural. Eles se
agregam, c lhe constituem uma fisionomia que se pode interpretar sem dificulda­
de. Interesse pessoal, coesão, hierarquia, autoridade absoluta do chefe, tudo isso
significa disciplina, espírito de guerra. Acaso a natureza lerá querido a guerra?
Reiteremos, uma vez mais, que a natureza nada quis, sc entendermos por vontade
uma faculdade dc tomar decisões particulares. Ela. porém, não pode criar uma
espécie animal sem esboçar implicitamente as atitudes c movimentos que resul­
tam dc sua estrutura c que são prolongamentos dela. Nesse sentido c que da
os quis. Ela dotou o homem dc uma inteligência fabricadora. Em vez de lhe
fornecer instrumentos, como o fez para grande quantidade dc espécies animais,
ela preferiu que cie mesmo os construísse. Ora. o homem tem necessariamente
a propriedade dc seus instrumentos, pelo menos enquanto se serve deles. Mas.
dado que são destacados dele, podem ser-lhes tomados*, tomá-los já feitos é mais
fácil que os fazer. Sobretudo, eles devem agir sobre certa matéria, servir se de
armas dc caça ou de pesca, por exemplo: o grupo do qual é membro terá mostra'
do preferência por certa floresta, lago ou rio; e esse lugar, por sua vez, outro
grupo poderá julgar mais cômodo de nele se instalar do que procurar outro. Daí
a necessidade de guerrearem. Falamos dc uma floresta onde se cace, dc um lago
onde se pesque: poderá tratar-se também de terras a cultivar, dc mulheres a rap­
tar. dc escravos a sujeitar. Como também por variadas razões é que se justificará
o que for feito. Mas pouco importam a coisa que se tome c o motivo que se
invoque: a origem da guerra é a propriedade, individual ou coletiva, c como a
humanidade é predestinada à propriedade por sua estrutura, a guerra é natural.
O instinto de guerra é tão forte que é o primeiro a aparecer quando sc esquadri­
nha a civilização para cncuntrar a natureza. É sabido como as criancinhas gos
tam dc brigar. Receberão golpes, mas terão tido a satisfação dc os dar também.
Já se disse corn razão que os brinquedos infantis eram os exercícios preparatórios
aos quais a natureza induz a criança com vistas às tarefas que incumbem ao
homem adulto. Mas pode-se ir mais além, c ver exercícios preparatórios ou ativi
dades lúdicas na maioria das guerras registradas pela história. Quando sc const
dera a futilidade dos motivos que provocaram bom número delas, pensa-se nos
duelisias de Marion Delorme, que se matavam “por nada, por prazer”. ou ainda
no irlandês citado por Lorde Bryce, que não podia ver dois homens trocando
murros na rua sem perguntar: “Será assunto particular, ou sc pode tomar parti­
do?” Em reciproca, sc colocamos ao lado das disputas acidentais as guerras deci
220 BERGSON

si vas, que acabaram na aniquilação de um povo, compreenderemos que estas


foram as razoes dc ser daquelas: era preciso um instinto dc guerra, c porque
ele existia cm vista de guerras cruéis a que se poderia chamar naturais, deram se
multidões de guerras acidentais, simplesmente para impedir que as armas se en­
ferrujassem. Imagine-sc a euforia dos povos no início de uma guerra 1 Sem dúvida
há nisso uma reação defensiva conira o medo, uma estimulação automática das
coragens. Mas há também o sentimento de que se foi feito para uma vida de
perigo e aventura, como sc a paz nào fosse mais que uma pawsà entre duas guer­
ras. A euforia acaba logo, porque o sofrimento é grande. Mas com exccçào da
última guerra.4 cujo horror ultrapassou as raias do imaginável, é curioso ver
como os sofrimentos de guerra se esquecem depressa durante a paz. Há quem
afirme que há na mulher mecanismos especiais de esquecimento para as dores
do parto: uma recordação demasiado vivida a impediría de querer mais filhos.
Certo dispositivo desse gênero parece funcionar quanto aos horrores da guerra,
sobretudo nos povos jovens. — Quanto a esse aspecto, a natureza também tomou
certas precauções. Ela interpôs entre os estrangeiros c nós um véu habilidosamen
te tecido de desinformações, prevenções e preconceitos. Nada há dc surpreenden­
te que nào sc conheça um país aonde jamais se lenha ido. Mas que o julguemos
sem conhecê-lo e que o julgamento seja quase sempre desfavorável — cis um
fato que exige explicação. Quem tenha vivido fora dc seu pais, c de retorno queira
esclarecer seus compatriotas quanto ao que chamamos uma "mentalidade” es­
trangeira. teve ensejo de verificar uma resistência Instintiva por parte do ouvinte.
A resistência nào é mais forte cm sc tratando dc país mais distante. Muito pelo
contrário, irá variar, isto sim. na-razão inversa da distância. Aqueles que mais
probabilidade temos dc encontrar sào os que menos queremos conhecer. A natu
reza não agiu difcrcntcmcntc ao fazer dc todo estrangeiro um inimige virtual,
porque sc um perfeito conhecimento recíproco nâo é necessariamente solidarieda­
de. pelo menos exclui o ódio. Pudemos verificar isso na última guerra. Certo
professor alemão era tào bom patriota como qualquer outro francês, tào disposto
a dar sua vida, e tào "irado” como qualquer francês contra a própria Alemanha.
Mas não era a mesma coisa. Havia um canto reservado. Quem conheça a fundo
a língua c a literatura de um povo não pode scr complctamcnte seu inimigo.
Dever se ia pensar nisso quando sc exige a educação para preparar um acordo
entre nações. O domínio de uma língua estrangeira, tornando possível certa im­
pregnação do espírito pela literatura c civilização correspondentes, pode fazer
cair dc uma só vez a prevenção pretendida pela natureza contra o estrangeiro
em geral. Mas não nos cabe numerar todos os efeitos externos visíveis da preven
çâo oculta. Dizemos apenas que as duas máximas apostas Homo hommi deus
c Homo homini lupus conciliam sc facilmente. Quando formulamos a primeira,
pensamos cm algum compatriota. A outra aplica se aos estrangeiros.
Acabamos dc dizer que ao lado das guerras acidentais existem as essenciais,
pura as quais parece ler sido feito o instinto guerreiro. Entre as últimas comam sc

4 A Primara Guerra Mundial. < N. do T.)


AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 221

as guerras da atualidade. Cada vez menos se tem cm vista conquistar por con
quistar. Nâo mais sc guerreia pelo amor-próprio ferido, pelo prestígio, pela gló
ria. Guerreia se para não sc morrer dc fome, dizem — em verdade para manter-se
cm certo nível de vida abaixo do qual, acredita-se. nào valería a pena viver. Nào
há mais delegação a número restrito de soldados encarregados dc representar
a naçào. Nada mais que sc assemelhe a um duelo. É preciso que todos guerreiem
contra todos, como o fizeram as hordas dos primórdios do mundo. Só que a
guerra é feita com as armas forjadas por nossa civilização, c o morticínio é de
um horror que os antigos nào poderíam sequer imaginar. No ritmo cm que vai
a ciência, dia virá cm que um dos adversários, possuidor de um segredo que
manterá oculto, terá o meio dc suprimir o outro. Talvez nào reste vestígio do
vencido na face da Terra.
Mas as coisas continuarão como estào indo? Atravessaram no caminho,
felizmente, homens que nào hesitamos cm classificar entre os benfeitores da hu­
manidade. Como todos os otimistas, eles começaram por supor resolvido o pro
blema a resolver. Fundaram a Sociedade das Nações. Achamos que os resultados
obtidos ultrapassem já o que se podia esperar. Porque a dificuldade dc eliminar
as guerras é maior ainda do que o imaginam cm geral os que não acreditam
na sua supressão. Pessimistas coincidem com os otimistas cm considera' o caso
dc dois povos que vão guerrear como semelhante a dois indivíduos que tèm uma
discussão: acham apenas que os povos não poderão jamais, como as pessoas,
ser obrigados materialmentc a levar o litígio perante os tribunais e aceitar-lhes
as decisões. A diferença é no entanto radical. Mesmo que a Sociedade das Na­
ções dispusesse dc uma força armada aparentemente suficiente (mesmo assim
o rccalcitrantc teria sempre sobre ela a vantagem do impulso: o imprevisto da
invenção científica tornaria cada vez mais imprevisível a natureza da resistência
que a Sociedade deveria preparar), cia depararia com o instinto profundo dc gucr
ra que envolve a civilização; ao passo que os indivíduos que recorrem acsjuizes
encarregados dc resolver uma disputa sào estimulados a isso obscuramcntc pelo
instinto de disciplina tmanente ã sociedade fechada: uma disputa os afastara ca­
sualmente da posição normal, que era uma exata inserção na sociedade; a ela
retornam, como o pêndulo retorna à posição vertical. Bem mais grave c. pois,
a dificuldade. Será dcbaldc. no entanto, que sc procure superá-la?
Achamos que nâo. Este livro teve por objeto procurar as origens da moral
e da religião. Chegamos a certas conclusões. Poderiamos ficar no ponto a que
chegamos. Dado, porem, que no fundo de nossas conclusões havia uma distinção
radical entre a sociedade fechada e a sociedade aberta, dado que as tendências
da sociedade fechada pareceram nos persistir, inerradicãveis. na sociedade que
sc abre, dado que todos esses instintos de disciplina convergiam primitivamente
no instinto dc guerra, devemos indagar em que medida o instinto original poderá
ser reprimido ou ativado, c responder por algumas considerações adicionais a
uma questão que se nos apresenta muito naturalmente.
Nào sc encontrará o instinto guerreiro em estado puro, pois a ele aderem
motivos racionais. A história nos ensina que esses motivos foram variadíssimos.
222 BERGSON

Eles sc reduzem cada vez mais» à medida que as guerras se tornam mais terríveis.
A última guerra, juntamente com as que sc prcvêem para o futuro, caso por
infelicidade ainda devamos ter guerras, está relacionada com o caráter industrial
de nossa civilização. Se quisermos uma imagem esquemática. simplificada c esti­
lizada dos conflitos dc hoje, devemos primeiro imaginar a.s nações como popula­
ções puramente agrícolas. Vivem dos produtos dc suas terras. Suponhamos que
cias tenham exatamente o suficiente para nutrir se. Crescerão na medida cm que
obtenham da lerra um rendimento melhor. Até aí tudo vai bem. Mas sc houver
uma explosão demográfica, e sc nào quiser extravasar seu território, ou sc nào
o puder porque o estrangeiro lhe fecha as portas, onde encontrará seu alimento?
A indústria cuidará das coisas. A população excedente se tornará operária. Se
o pais nào possuir energia para acionar máquinas, ferro para as construir, maté
rias primas para a indústria, cuidará dc buscá-los no estrangeiro. Pagará sua
dívida e receberá a mais o alimento que nào lem cm seu solo, devolvendo ao
estrangeiro os produtos manufaturados. Os operários se verão assim como “emi
grades no interior'*. O estrangeiro os emprega como teria feito em seu país: prefe
re deixá-los — ou talvez eles prefiram ficar - onde estão; mas é do estrangeiro
que dependem. Estarão condenados a morrer de fome sc o estrangeiro nào mais
aceitar seus produtos ou se não fornecer os meios para os fabricar. A menos
que nào sc decidam a isso, arrastam com eles seu país para ir buscar o que
se lhes recusa. Será a guerra. Desnecessário dizer que as coisas nunca se dão
dc modo tão simples. Sem estar rigorosamente ameaçado de morrer de fome,
acha-se que a vida é desinteressante se não se tem conforto, recreação, requinte;
considera-se a indústria nacional insuficiente se produz apenas a subsistência,
se nào proporciona riqueza: um pais julga-se incompleto sc nào possui bons
portos, colônias etc. Dc tudo isso pode surgir a guerra. Mas o esquema que aca
bamos de traçar assinala suficientementc as causas essenciais: crescimento demo
gráfico, perda dc mercados, privação de combustível c de matérias-prima..
A tarefa primordial de um organismo internacional que vise à eliminação
da guerra consistirá cm eliminar essas causas ou atenuar-lhes os efeitos. O pro
blcma dc maior gravidade é o do superpovoamento. Em país de baixo índice
de natalidade como a França, o Estado deve sem dúyida estimular o crescimento
demográfico: certo economista, apesar de grande inimigo do ’’estatismo**, sugeria
que as famílias tivessem direito a um bônus para cada novo filho a partir do
terceiro. Não sc poderia. então, inversamente. nos países de população excessiva,
onerar com impostos mais ou menos pesados a familia que lenha filhos cm exces
so? O Estado teria direito dc intervir, procurar a paternidade, a fim dc tomar
medidas que cm outros casos seriam inquisitoriais, dado que è com ele que sc
conta tacitnmente para garantir a subsistência do país ç, por Conseguirle. a da
criança que se trouxe à vida. Reconhecemos a dificuldade de atribuir administra-
tivamente um limite à população, mesmo que se dé cena maleabilidade aos índi­
ces. Se esboçamos uma solução, é simplesmente para assinalar que o problema
nào nos parece insolúvel: outros mais competentes que nós proporcionarão solu
ção melhor. O que c certo, porem, c que a Europa está superpovoada. que o
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 223

mundo 0 será muito em breve, e teremos a guerra sc nào “racionalizarmos" a


produção do próprio homem como sc começa a fazé Io quanto ao seu trabalho.
Em nenhum caso é tào perigoso como esse o recorrer sc ao instinto. A mitologia
antiga compreendeu bem isso, quando associava a deusa do amor com o deus
das guerras. Deixai livre Venus, c cia vos levará a Marte. Não evitareis a regula­
mentação (palavra feia, mas que exprime bem o que sc quer dizer, quanto a que
introduz imperio.samcnte extensões à regra e ao regulamento). Que acontecerá,
quando vierem problemas quase tào graves: o da distribuição das maicrias-pri
mas. o da circulação mais ou menos livre dos produtos, e. de modo mais geral,
o da justiça nas pretensões antagônicas conquanto vitais dos países? Constitui
erro perigoso acreditar que um organismo internacional venha a conseguir a paz
definitiva sem interferir, com autoridade, na legislação dos diversos países e tal­
vez mesmo cm seu governo. Mantenha se o princípio da soberania, .sc quiserem:
ele cederá necessariamente em sua aplicação nos casos particulares. Rcpitamo
Io: nenhuma dessas dificuldades é insuperável sc uma parcela suficiente da huma­
nidade estiver decidida □ superá-la. Mas c preciso olhar as dificuldades de frente,
e saber em que se consente quando se pede a supressão das guerras.
Ora. nâo sc poderia abreviar o caminho a percorrer, talvez até dirimir de
uma só vez as dificuldades em vez de cuidar dc uma por uma? Deixemos dc
lado a questão principal, a demográfica, que por si mesma se resolverá, seja
o que for que aconteça. As demais devem sc sobretudo ao sentido que nossa
existência adquiriu desde o grande desenvolvimento da indústria. Exigimos o
conforto, o bem estar, o luxo. Queremos divertir nos. Que aconteceria se nossa
vido sc tornasse mais austera? Incontestavclmcntc o misticismo é a base das
grandes transformações morais. A humanidade parece mais longe dele que ja­
mais. sem dúvida. Mas quem sabe? Em nosso último capítulo, acreditamos ler
vislumbrado uma relaçào entre o misticismo do Ocidente c sua civilização indus­
trial. Deveriamos examinar as coisas mais atcnciosamcnte. Todos percebem que
o futuro imediato irá depender cm grande parte da organização da indústria,
das condições que ela venha a impor ou que venha a aceitar. Acabamos de ver
que desse problema depende a paz entre as nações. O da paz interna .ambém
depende disso em igual proporção. Deve se temer, deve-sc esperar? Por muito
tempo se acreditou que industrialismo e mecanização proporcionariam a rclicida

de do gênero humano. Hoje sc lhes atribuiríam dc bom grado os males dc que


padecemos. Costuma-sc dizer que jamais a humanidade esteve mais sedenta de
prazer, dc luxo e riqueza. Uma força irresistível parece impeli-la cada vez mais
violcntamcntc á satisfação de seus desejos mais grosseiros. E possível, mas suba
mos ao impulso que esteve na origem. Sc ele fosse enérgico, poderia ter sofrido
um desvio ligeiro no início para produzir um afastamento cada vez maisconside
rável entre o alvo visado e o objeto atingido. Nesse caso, não se deveria ter
em conta tanto o afastamento quanto o impulso. Sem dúvida, as coisas jamais
se dão isoladamente. A humanidade só sc modificará sc quiser sc modificar. Mas
talvez ela já esteja suprida dos meios de o fazer. Talvez esteja mais perto do
alvo do que ela mesma supõe. Vejamos, pois, o que ocorre. Uma vez que trouxe-
224 BERGSON

mos à discussão o empenho industrial, examinemos mais dc perto sua significa


çào. Será a conclusão deste livro.
Não poucas vezes falou-se das alternâncias de fluxo e retluxo que se obser
vam em história. Toda ação prolongada num sentido acarretaria uma reação
em sentido contrário. Em seguida cia recomeçaria, e o pêndulo oscilaria infinita­
mente. Ê verdade que. no caso, o pêndulo é dotado de memória, e que nào é
mais o mesmo na volta o que fora na ida. tendo sc enchido da experiência inter­
mediária. Eis por que a imagem de um movimento em espiral, que algumas vezes
já se mencionou, seria mais precisa que a da oscilação pendular. Na verdade,
há causas psicológicas e sociais das quais sc poderia declarar a priori que produ­
zam efeitos desse gêncro. O desfrute ininterrupto dc uma vantagem que se tenha
procurado engendra a indolência ou a indiferença; raramente ele dá tudo o que
insinuava; ele se acompanha dc inconvenientes que nào sc previu; acaba por
ressaltar o aspecto vantajoso que sc abandonou e por dar a vontade de voltar
a ele. Sobretudo às gerações novas que nào tiveram a experiência dos antigos
males, que nào sofreram para safar-se deles. Enquanto os pais sc congratulam
pelo estado presente como por aquisição pela qual recordam ter pago caro, os
filhos nào pensam nisso, tanto quanto no ar que respiram: em recíproca, serão
sensíveis aos pesares que nada mais são que u inverso das vantagens dolorosa­
mente conseguidas por eles. Desse modo surgirão as veleidades dc voltar atrás.
Essas idas u vindas sào características do Estado moderno, nào em virtude de
alguma fatalidade histórica, mas devido a que o regime parlamentar precisamente
foi concebido, em grande parte, para canalizar o descontentamento. Os Governos
só recebem elogios moderados pelo que fazem dc bom: eles existem para o faze­
rem: mas as mínimas faltas têm significação; iodas sc conservam, até que seu
peso acumulado acarrete a queda do Governo. Se apenas dois partidos adversa
rios sc defrontam, e dois apenas, o jogo terá continuidade com uma regularidade
perfeita. Cada uma das agremiações voltará ao poder com o prestígio dado por
princípios mantidos aparentemente intactos durante o tempo cm que nào haja
responsabilidade a assumir: os princípios residem na oposição. Em realidade cia
se terá beneficiado, sc for inteligente, da experiência que tiver deixado fazer pela
outra: terá modificado mais ou menos o conteúdo dc suas idéias e por conseguin­
te a significação de seus princípios. Assim, torna-sc possível o progresso, nào
obstante a oscilação ou antes graças a ela, desde que haja preocupação com
ele. Mas. cm casos de guerra, as idas e vindas entre os dois contrários resultam
de certos dispositivos muito simples montados pelo homem social ou de certos
arranjos muito visíveis do homem individual. Elas não manifestam uma necessi­
dade que domine as causas particulares de alternância e que se imponha de modo
geral aos acontecimentos humanos. Haverá tais causas?
Nào cremos na fatalidade em história. Não há obstáculo que vontades sufi-
cicntcmentc fortes não possam vencer, sc exercidas a tempo. Não há, pois, lei
histórica inelutável. Mas há leis biológicas; e as sociedades humanas, na medida
cm que desejadas de certo aspecto pela natureza, estão na dependência da biolo­
gia sobre esse aspecto particular. Sc a evolução do mundo organizado se dá se-
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 225

gundo certas leis. quero dizer, em virtude de cenas forças, é impossível Que a
evolução psicológica do homem individual e social renuncie inicirameme a esses
hábitos da vida. Ora. já mostramos em outro lugar que a essência de uma tendên­
cia vital c a de se desenvolver cm forma dc feixe, criando, só pelo fato dc seu
crescimento, direções divergentes entre as quais o impulso se dividirá. Atrescen
lávamos que essa lei nada tem dc misteriosa. Ela exprime simplesmente o fato
dc que uma tendência é o impulso dc uma multiplicidade indistinta, que. dc resto,
só é indistinta e só é multiplicidade se a considerarmos relrospectivamenie, quan
do perspectivas diversas tomadas depois de sua indivisâo passada a compõem
com elementos que foram em realidade criados por seu desenvolvimento. Imagi
nemos que o alaranjado seja a única cor que já lenha aparecido no mundo: seria
já composto dc amarelo c vermelho? Nào. evideniemente. Mas terá sido compos­
to de amarelo e vermelho quando essas duas cores existirem por sua vez: o ala
ranjado primitivo poderá ser encarado então do duplo ponto dc vista do vermelho
e do amarelo; e sc supuséssemos, por mera fantasia, que o amarelo c o vermelho
surgiram dc uma intensificação dc alaranjado. (criamos um exemplo mui:o sim
pies do que acabamos de chamar de crescimento cm forma dc feixe. Mas não
há necessidade ahsolutamcnte alguma dc fantasia ou dc comparação. Basta con­
templar a vida, sem preconceito de síntese artificial. Há quem considere o ato
voluntário um reflexo composto, c há quem veja no reflexo uma degradação do
voluntário. A verdade é que reflexo e voluntário concretizam duas tomadas possí­
veis dc uma atividade primordial, indivisível, que nào era uma nem outra, mas
que sc tornam retroativamente. por ambos, as duas coisas ao mesmo tempo. O
mesmo diriamos do instinto c da inteligência, da vida animal e da vida vegetal,
de muitos outros pares de tendências divergentes c complementares. Apenas, na
evolução geral da vida, as tendências assim criadas por via dc dicotomia se de­
senvolvem no mais das vezes em espécies distintas; elas vão. cada uma por seu
lado, cm busca da sorte no mundo; a materialidade que adquiriram as impede
de virem amalgamar sc dc novo para restabelecer mais forte, mais complexa,
mais evoluída, a tendência original. Nào acontece o mesmo na evolução ca vida
psicológica e social, h no mesmo individuo. ou na mesma sociedade que evoluem
no caso as tendências que se constituíram por dissociação. E elas só Modern nor
malmcnte se desenvolver sucessivamcnte. Sc sào duas, como acontece o mais
das vezes, a uma delas sobretudo c que se aderirá primeiro; com ela sc irá mais
ou menos longe, cm geral o mais longe possível; depois, com o que se lenha
ganho no curso dessa evolução, se voltará a procurar o que sc deixou atrás.
Por sua vez, esta será desenvolvida, desprezando agora a primeira, e esse novo
esforço se prolongará até que. reforçado por novas aquisições, sc possa retomar
este c o impelir para mais longe ainda. Como, durante a operação, se está inicira
mente numa das duas tendências, como é ela só que vale, dc bom grado se diria
que só ela c positiva c que a outra lhe é lão-só a negação: se apraz estabelecer
as coisas dessa forma, a outra ê efetivamente o contrário. Irã verificar se -
c será mais ou menos verdade segundo os casos — que o progresso sc fez por
uma oscilação entre os dois contrários, nào sendo, dc resto, a situação a mesma
226 BERGSON

e tendo realizado um ganho quando o pêndulo voltar a seu ponto de partida.


Acontece no entanto que a expressão seja rigorosamente justa. e que se, a precisa-
mentc entre contrários que tenha havido oscilação. Ê quando uma tendência,
vantajosa em si mesma, é incapaz dc se moderar de outro modo a nào ser pela
ação de uma tendência antagônica, que se verifique ser também vantajosa. Parece
que a sabedoria aconselha então uma cooperação das duas tendências, intervindo
a primeira quando as circunstâncias exigirem, e a outra a freando no momento
que vai ultrapassar a medida. Infelizmente. ê difícil dizer onde começa o exagero
e o perigo. /\s vezes, o simples fato de impulsionar mais longe do que pareça
razoável leva a certo meio novo, cria uma situação nova, que suprime o perigo
ao mesmo tempo que acentua a vantagem. Assim acontece sobretudo com ten
dências muito gerais que determinam a orientação de uma sociedade e cujo de­
senvolvimento sc divide necessariamente por número mais ou menos considerável
dc gerações. Uma inteligência, mesmo sobre-humana, não poderia dizer aonde
seremos levados, dado que a açào em andamento cria seu próprio itinerário, cria
cm grande parte as condições em que se realizará e impede assim o cálculo.
Impelir se-á, pois, cada vez mais além; só sc deterá. no mais das vezes, diante
da iminência dc uma catástrofe. A tendência antagônica assume entào o lugar
vago; sozinha por sua vez. ela irá tão longe quanto lhe seja possível ir. Ela
será reação, se a outra for chamada açào. Como as duas tendências, sc houves­
sem caminhado juntas, houvessem moderado uma à outra, como sua interpene
tração numa tendência primitiva indivisa é isso mesmo pelo que deve definir-se
a moderação, só o fato de assumir todo o lugar comunica a cada uma delas
um impulso que pode ir ate ao arrebatamento à medida que caem os obstáculos:
ela tem algo dc frenético. Nào abusemos da palavra "lei" num dominio que c
o da liberdade, mas empreguemos esse termo cômodo quando nos encontrarmos
diante dc grandes fatos que apresentem regularidade suficiente: chamaremos lei
de dicoiomia àquela que pareça provocar a realização, tão-só por sua dissocia­
ção, de tendências que a princípio foram apenas aspectos diferentes tomados de
uma tendência simples. E proporemos então chamar dc lei de duplo frenesi a
exigência, imanente a cada uma das duas tendências uma vez realizada por sua
separação, dc scr acompanhada ate o extremo — como se houvesse um extremo!
Rcpitamo Io: c difícil deixar de indagar sc a tendência simples não teria feito
melhor que crescer sem sc desdobrar, mantida na justa medida pela coincidência
mesma da força de impulsào com um poder de detenção que nâo passaria entào
virtualmentc dc uma força de impulsào diferente. Nào nos leriamos arriscado
a cair no absurdo, ter nus íamos garantido contra a catástrofe. Sim. mas nào
leriamos obtido o máximo dc criação cm quantidade e cm qualidade. Impôc-sc
que enveredemos a fundo numa das direções para saber o que ela dará: quando
nào mais pudermos avançar, voltaremos, com lodo o adquirido, a nos lançar
na direção desprezada ou abandonada. Sem dúvida, olhando de fora essas idas
c vindas, só vemos o antagonismo das duas tendências, às vãs tentativa^ dc uma
para contrariar o progresso da outra, o fracasso final desta c a vingança da pri­
meira: a humanidade ama o drama: de bom grado ela colhe no conjunto de uma
história mais ou menos longa os traços que lhe imprimem a forma de uma lula
entre dois partidos, ou duas sociedades, ou dois princípios; cada um deles, alter-
nadamente, terá conquistado a vitória. Mas a lula, no caso, é apenas aspecto
superficial dc um progresso. A verdade é que uma tendência sobre a qual sào
possíveis duas perspectivas diferentes só pode dar seu máximo, cm quantidade
e qualidade, se ela materializar essas duas possibilidades cm realidades móveis,
cada uma das quais se lance à frente e açambarque o lugar, ao passo que a
outra a espreite sem cessar para saber se sua vez chegou. Assim se desenvolverá
o conteúdo da tendência original, caso se possa falar de conteúdo enquanto nin­
guém. nem mesmo a própria tendência que sc tenha tornado consciente, possa
dizer o que sairá dela. Ela dá o esforço, e o resultado c uma surpresa. Assim
opera a natureza: a.s lulas cujo espetáculo ela nos oferece não sc decidem tanto
em hostilidade quanto em curiosidades. E é precisamcnic quando ela imiia a
natureza, quando sc deixa ir ao impulso primitivamente recebido, que a marcha
da humanidade assume certa regularidade c se submete, muito imperfeitamente
aliás, a leis como as que acabamos de enunciar. Mas chegou o momento de
fechar nosso longo parêntese. Mostremos apenas como sc aplicariam nossas duas
leis no caso que no-lo fez abrir.
Trata se dc uma preocupação dc conforto c luxo que parece ter-se tornado
o interesse principal da humanidade. A ver como isso desenvolveu o espírito
de invenção, como muitas invenções são aplicações dc nossa ciência, como a
ciência se destina a aumentar intcrminavclmcnte, seriamos tentados a crer que
haverá progresso infinito no mesmo sentido. Com efeito, jamais as satisfações
que invenções novas proporcionam a antigas necessidades fazem com que a hu­
manidade se detenha; surgem novas necessidades, por sua vez também imperio­
sas. cada vez. mais numerosas. Viu-se a corrida ao hem estar ir se acelerando,
numa pista cm que multidões cada vez mais compactas se precipitavam. Hoje,
ê uma escalada. Mas esse próprio frenesi nào nos deveria abrir os olhos? Não
haveria outro frenesi, do qual este fosse a continuidade, e que desenvolvesse em
senlido oposto uma atividade que lhe seja o complemento? De fato, a partir dos
séculos XV ou XVI é que os homens parecem aspirar a uma ampliação da vida
material. Durante toda a Idade Média predominara um ideal de ascetismo. C
preciso lembrar os exageros a que ele conduziu; já houvera frenesi. Dir-sc-á que
esse ascetismo foi dc poucos, c se terâ razão. Mas assim como o misticismo,
privilégio dc alguns, foi vulgarizado pela religião, assim o ascetismo concentrado,
que foi sem dúvida excepcional, sc diluiu para o comum dos homens numa indife
rença geral nas condições da existência cotidiana. Era, de modo geral, uma falta
dc conforto que nos surpreende. Ricos e pobres passavam sem os supérfljos que
tomamos por necessidades. Já sc observou que o senhor feudal vivia mclnor que
o camponês; entenda sc por isso que ele sc alimentava melhor.® Quanto ao mais,
a diferença era pouca. Encontramo-nos. pois, aqui diante dc duas tendências
divergentes que se sucederam c que se comportaram, uma e outra, freneticamente.

4 Veja *>c a obra dc Giriu Lombrow». Aa Kançon Ju .\faeh>ni\nie. Paris. 1010,


228 BERGSON

F. lícito presumir se que elas correspondem a duas perspectivas opostas tomadas


de uma tendência primordial, que teria assim encontrado meio dc tirar de si mes
ma. em quantidade e cm qualidade, tudo o que podia e mesmo o que nào tinha,
enveredando por duas vias altcrnadamentc, colocando-se numa das direções com
tudo o que fora acumulado ao longo da outra. I laveria. pois, oscilação c progres­
so. progresso por oscilação. E seria preciso prever, depois da complicação sem
cessar crescente da vida, um retorno à simplicidade. Evidcnlcmente. esse retorno
não é certo: o futuro da humanidade continua indeterminado, porque depende
dela. Mas sc. do lado do futuro, só há possibilidades ou probabilidades, que logo
a seguir examinaremos, o mesmo nào acontece com o passado: os dois dcsenvol
vimentos upostos que acabamos dc assinalar sào precisamente os dc uma única
tendência original.
A própria história das idéias atesta isso. A partir do pensamento socrático.
seguido cm dois sentidos contrários que em Sócrates eram complementares, saí­
ram as doutrinas cirenaica c cínica: uma queria que sc pedisse à vida o maior
número possível dc satisfações; a outra, que se aprendesse a dispensa las. Essas
doutrinas estenderam se no cpicurismo c no estoicismo com seus dois princípios
opostos: relaxamento e tensão. Se houvesse dúvida quanto â essência comum
desses dois estados dc alma a que correspondem esses princípios, bastaria obser­
var que na própria escola epicurista. ao lado do epicurismo popular que era a
busca não raro desenfreada do prazer, houve o epicurismo de Epicure, segundo
o qual o prazer supremo consistia em nâo ter necessidade de prazeres. A verdade
é que os dois princípios sào o núcleo da idéia que sempre sc fez da feicidade.
Designu-sc por felicidade algo dc complexo e confuso, um desses conceitos que
a humanidade quis deixar no vago para que cada um o determinasse a seu modo.
Mas. em qualquer sentido que a entendemos, nào há felicidade sem segurança,
quero dizer sem perspectiva dc duração para um estado cm que estejamos acomo­
dados. Essa segurança, podemos obtê-la ou num domínio sobre as coisas, ou
no*autodom>nio que torne independente das coisas. Em ambos os casos desfruta­
mos sua força, seja que a percebamos de dentro, seja que ela se exiba de fora;
estamos no caminho do orgulho ou no da vaidade. Mas simplificação e complica
çào da vida resultam precisamente de uma •'dicoiomia'’, sào muito suscetíveis
dc sc desenvolver em "duplo frenesi*’, c têm finalmente o que é prccisn para
sc sucederem periodicamente.
Nessas condições, como dissemos mais acima, um retorno â simplicidade
nada tem dc improvável. A própria cicncia poderia nos mostrar o caminho dela.
Enquanto física e química nos ajudam a satisfazer c nos convidam assim a multi
plicar nossas necessidades, pode-se prever que a íisiologia e a medicina nos reve
lem cada vez melhor o que há de perigoso nessas multiplicações, e dc decepcio­
nante na maioria dc nossas satisfações. Aprecio uma iguaria de carne: certo vege­
tariano. que noutra época também a apreciava tanto quanto eu, não pode hoje
ver a carne sem ser acometido dc desprazer. Dir sc-á que ambos temos razão,
c que gostos e cores não se discutem. Talvez: mas nào posso deixar de consignar
a certeza inabalável em que está o vegetariano de jamais voltar à sua amiga
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 229

disposição, ao passo que me sinto muito mais certo de conservar sempre a minha.
Ele teve as duas experiências; eu tive apenas uma. Sua repugnância se intensifica
quando sua atenção se fixa sobre ela, enquanto minha satisfação se caracteriza
pela discrição, c se empalidece com a luz; creio que esvaneceria se experiências
decisivas viessem provar, o que nao c impossível, que sc envenena cspecificamcn-
ic. Icntamente, quem coma carne.6 Ensinavam nos na escola que a composição
das substâncias alimentares era conhecida, do mesmo modo que as exigências
do nosso organismo, e que sc podia deduzir disso o que c preciso e suficiente
como ração dc manutenção. Seria surpreendente saber que a análise química
deixava escapar as '‘vitaminas'*, cuja presença cm nossa alimentação é indispen­
sável à saúde. Irá pcrccbcr-se sem dúvida que mais de uma doença, hoje rebelde
aos esforços da medicina, tem sua origem remota nas “carências" que nào supo­
mos. O único meio seguro de absorver tudo o de que necessitamos seria nào
submeter os alimentos a elaboração alguma, talvez mesmo (quem sabe) a nào
os cozer. Também neste caso a crença na hereditariedade do adquirido causou
muito mal. Costuma-se dizer que o estômago humano está desabituado. que não
mais poderiamos nos alimentar como o homem primitivo. Tem-se razão sc se
entender por isso que deixamos dormir desde nossa infância disposições naturais
e que seria difícil desperta Ias cm certa idade. Mas c pouco provável que nasça­
mos modificados: a supor que nosso estômago difira do de nossos antepassados
pré históricos, a diferença nào se deve a simples hábitos contraídos na sequência
dos tempos. A ciência nào tardará a nos esclarecer sobre o conjunto dessas ques­
tões. Suponhamos que ela o faça no sentido que prevemos: só a reforma de nossa
alimentação já teria repercussões incontáveis em nossa indústria, nosso comer
cio, nossa agricultura, no sentido dc consideráveis simplificações. Que dizer das
nossas demais necessidades? As exigências do sentido genético são imperiosas,
mas logo acabaríamos com elas sc nos ativéssemos à natureza. Só que. em torno
de uma sensação forte, mas pobre, tomada como nota fundamental, a humanida­
de fez surgir sem cessar um número crescente de harmônicos; extraiu dela uma
tão rica variedade de timbres que. seja qual for o objeto, locado por qualquer
lado, dá agora o som que sc tornou obsessivo. É um apelo constante ao sentido
por intermédio da imaginação. Toda a nossa civilização é afrodisíaca. No caso
também a ciência tem o que diz.cr. c ela o dirá um dia tâo claramcntc que será
preciso ouvi-la. Não haverá mais tanto prazer cm amar o prazer. A mulher apres­
sará a chegada dessa hora na medida em que queira realmentc. sinceramente,
tornar se igual ao homem, cm vez dc continuar o instrumento que é agora, espe­
rando vibrar sob o arco do músico. Opere-se transformação: nossa vida será
mais séria ao mesmo tempo que mais simples. O que a mulher exige de luxo
para agradar ao homem c, por ressonância, para agradar a si mesma tornar-se-á
em grande parte inútil. Haverá menos desperdício, e também menos inveja. —
Luxo, prazer e bem-estar maniem-se próximos sem, entretanto, lerem entre si

Apresscmonos em afirmar que nao lemos qualquer esclarecimento particular wbre essa quCitãu.
colhemos o exemplo da enrne como poderiamos ter Peito com qualquer alimento habitual.
230 BERGSON

a relação que em geral se imagina. São dispostos ao longo de uma escala: do


bem estar ao luxo sc passaria por gradação ascendente: quando tivermos garanti
do o bem-estar, haveremos de querer superpor a de o prazer; depois viría o amor
ao luxo. Mas isso é uma psicologia puramente intelectualista que acrecita poder
calcar nossos estados de alma cm seus objetos. Dado que o luxo custa mais
caro que o simples agrado, c o prazer que o bem-estar, imagina se o crescimento
progressivo dc qualquer desejo correspondente. A verdade é que no mais das
vezes é por amor do luxo que sc deseja o bem eslar. porque o bem-estar que
não se tem aparece como um luxo, e que sc quer imitar, igualar, aqueles que
estão cm condições de o ter. No princípio estava a vaidade. Quantas iguarias
não sào procuradas porque onerosas! Durante muitos anos os povos civilizados
despenderam boa parte de seu esforço para abastecer-sc de especiarias. Fica-se
aturdido ao ver que esse foi o objetivo supremo das grandes navegações, na época
tão arriscadas: que milhares de homens empenharam nisso suas vidas; que a
coragem, a energia c o espirito dc aventura de onde por acaso saiu a descoberta
da América empregaram-se csscncialmcntc na procura do gengibre c do cravo,
da pimenta c da canela. Quem sc interessa por arómatas por tanto tempo delicio­
sos desde que os podemos obter por alguns centavos no quitandeiro da esquina?
Coisas como essas levam a entristecer o moralista. Reflitamos, porem, nisso
e teremos razões para ter esperança. A necessidade sempre crescente dc hem-cs
tar. a sede de diversões, o gosto desenfreado pelo requinte, tudo o que nos inspira
tão grande inquietação quanto ao futuro da humanidade porque ela dá a impres
sào de encontrar nisso satisfações sólidas, tudo isso parecerá como uma bola
que sc encha furiosamente dc ar e que sc esvaziará também de repente. Sabemos
que uma loucura chama a loucura antagônica. Mais particularmente, a compara
çào dos fatos aluais com os dc antigamente nos convida a tomar por transitórios
os gostos que parecem definitivos. E. dado que a posse dc um automóvel c hoje
para tantos homens a suprema ambição, reconheçamos os serviços incompará
veis que o automóvel presta, admiremos essa maravilha da mecânica, desejemos
que ela se multiplique c sc difunda por toda a parte onde haja necessidade dela.
ma's digamos que. por simples agrado ou prazer de exibir luxo, ela poderia nào
mais scr tão desejada dentro cm pouco - sem entretanto scr esquecida, espere
mos. como o .são hoje o cravo e a canela.
Atingimos o ponto essencial de nossa discussão. Acabamos dc citar uma
satisfação de luxo oriunda dc uma invenção mecânica. Muitos acham que foi
a invenção mecânica em geral que desenvolveu o gosto do luxo, como, de resto,
do simples bem estar. Mesmo se admitirmos comumcnlc que nossas necessidades
continuem em crescendo e sc exasperando, é porque não sc vc razão pela qual
a humanidade abandone a via da invenção mecânica, uma vez que entrou nela.
Acrescentemos que. quanto mais avança a ciência, mais suas descobertas suge
rem invenções; e. como a ciência não poderia deter .se, parece que. com efeito,
não deva ter fim a satisfação de nossas antigas necessidades, a criação de necessi
dades novas. Mas seria preciso primeiro indagar se o espirito de invenção suscita
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 231

necessariamente necessidades artificiais, ou se nâo seria a necessidade artificial


que teria orientado no caso o espírito dc invenção.

A segunda hipótese é muito mais provável. Ela é confirmada por pesquisas


recentes sobre as origens do maquinismo.7 Lembrou-.se que o homem sempre
inventou maquinas, que a Antiguidade conheceu exemplares notáveis delas, que
dispositivos engenhosos foram inventados muito antes do advento da ciência mo­
derna c depois, no mais das vezes, independentemente dela: hoje, simples operá
rios, sem cultura científica, descobrem aperfeiçoamentos nos quais sábios enge
nheiros nâo haviam pensado. A invenção mecânica c um dom natural. Sem dúvi­
da ela foi limitada em seus efeitos na medida cm que sc limitou a utilizar energias
atuais c. dc algum modo visíveis: o esforço muscular, a força do vento ou queda
d’agua. A máquina só proporcionou o rendimento máximo quando soubemos
colocá-la a nosso serviço, por simples dcscncadcamento das energias potenciais
armazenadas durante milhões de anos, extraídas do sol. distribuídas na hulha,
no petróleo etc. Mas esse dia foi o da invenção da máquina a vapor, c sabe se
que cia nào partiu de considerações teóricas. Apresscmo-nos em acrescentar que
o progresso, a principio lento, efetuou-se a passo de gigante quando a jiência
entrou cm cena. Também é certo que o espirito de invenção mecânica, cue flui
num leito estreito quando deixado a si mesmo, que sc alarga infinitamente quan
do encontra a cicncia. permanece distinto dela c poderia. a rigor, dela separar-sc.
Como o Ródano. que enlra no lago dc Genebra e parece confundir suas águas
nele, e mostra na saída que conservara sua independência.

Não houve, pois, como sc seria levado a crer, uma exigência da cicncia
impondo aos homens, pelo simples latu de seu desenvolvimento, necessidades
cada vez mais artificiais. Sc fosse assim, a humanidade seria votada a uma mate­
rialidade crescente, porque o progresso da cicncia nâo sc dclerá. Mas n verdade
e que a ciência deu o que se lhe pediu c que nào tomou a iniciativa: o espirito
dc invenção é que nem sempre se exerceu no melhor dos interesses da humanida­
de. Ele criou uma multidão dc necessidades novas: não se preocupou o bastante
em assegurar ao maior número, a todos sc fosse possível, a satisfação das nccessi
dades antigas. Em resumo c de modo mais simples: sem desprezar o necessário,
ele pensou cm demasia no supérfluo. Dir-sc á que esses dois termos são difíceis
de definir, que o luxo para uns é uma necessidade para outros. Sem dúvida:
perder-nos-íamos aqui em distinções sutis. Mas há casos em que se deve ver
por alto. Milhões de homens nào têm o que comer quando tem fome. Muitos
morrem dc fome. Se a terra produzisse muito mais, havería muito menos probabi­
lidade dc sc passar fome? de se morrer de fome. Alega-se que faltam braços
à terra. E possível: mas por que exigiría ela mais esforço aos braços do que

Recomendamos ainda o bck> livro dc Girui Lombrcno. Cf. Monioux. Lu révfíluiwn induxtricifi' uu
dix-huilièmc siècle.
* Há sem dúvida crises dc •••superprodução*’ que w estendem aos produtos agrícolas. c que podem mes
mo começar por des. Mas não se devem a que haja demasiada alimentação para 3 humanidade Dcvc-se
simplesmente a flue, nào sendo a prnduçâa cm Reral organizada, nao há como efetuar a troca dos produtos.
232 BERGSON

cics deveríam dar? Se há um erro quanto ao maquinismo. é o de nào ser emprega­


do suficientemente para ajudar o homem nesse trabalho tão árduo. Dir-se-á que
há máquinas agrícolas, e que o emprego delas está agora muito difundido. Estou
de acordo, mas o que a máquina fez no caso para aliviar o fardo do homem,
o que a ciência fez por seu lado para aumentar o rendimento da terra, é compara­
tivamente restrito. Percebemos bem que a agricultura, que alimenta o homem,
deveria dominar o restante, ou pelo menos scr a primeira preocupação da própria
indústria. De modo geral, a indústria não se ocupou bastante da importância
mais ou menos grande das necessidades a satisfazer. De bom grado ela acompa
nhou a moda, fabricando sem pensar cm outra coisa senão vender. Seria de dese­
jar. nesse caso como em outros, um pensamento central, organizador, que coor­
denasse a indústria com a agricultura e atribuísse ás máquinas seu lugar racional,
o lugar em que elas possam prestar mais serviços à humanidade. Quando se
julga o maquinismo. despreza-se a queixa essencial. Acusam-no primeiro dc redu­
zir o operário ao estado dc máquina, c depois de chegar a uma uniformidade
dc produção que choca o senso artístico. Mas se a máquina proporciora ao ope­
rário um número maior dc horas dc repouso, e sc o trabalhador emprega esse
acréscimo dc lazer a outra coisa além dos pretensos divertimentos, que um indus-
trialismo mal dirigido pós ao alcance de todos, ele dará à sua inteligência o dc
senvolvímento que tiver escolhido, cm vez de limitar-se ao que lhe foi imposto,
cm limites sempre restritos, o retorno (dc resto impossível) á ferramenta. depois
da supressão da máquina. Quanto à uniformidade do produto, o inconveniente
será insignificante se a economia do tempo e do trabalho, realizada assim pelo
lodo da nação, permitir impelir mais além a cultura intelectual e desenvolver
as verdadeiras originalidades. Ccnsurou-sc aos americanos o terem todos o mes
mo chapéu. Mas a cabeça deve passar antes do chapéu. Fazei com que cu possa
cobrir minha cabeça a meu próprio gosto, e aceitarei para ela o chapéu que todos
têm. Não reside nisso nossa queixa contra o maquinismo. Sem contestar os servi­
ços que ele prestou aos homens ao desenvolver amplamentc os meios de satisfa­
zer necessidades reais, nós lhe censuraremos o ter estimulado cm demasia o con­
sumo supérfluo, o ter incrementado o luxo, o ter favorecido as cidades cm detri­
mento dos campos, enfim, o ter aumentado a distância e transformado as relações
entre patrão e empregado, entre o capital c o trabalho. Todos esses efeitos pode­
ríam aliás scr corrigidos; a máquina seria então a grande benfeitora. Seria preciso
que a humanidade se esforçasse por simplificar sua existência com tanto ardor
quanto ela empregou em complicá-la. A iniciativa só pode vir dela, perque ela.
c nào a pretensa força das coisas, e ainda menos uma fatalidade inerente à máqui
na, e que lançou em certa direção o espírito dc invenção.
Ela, porém, o terá querido inteiramente? O impulso que ela deu no início
iria exatamente na direção que o industrialismo tomou? O que no princípio c
apenas um desvio imperceptível torna-se um afastamento considerável na chega
da sc andamos na reta exata e se o caminho foi longo. Ora, nào é de duvidar
que os primeiros delineamcntos do que devia ser mais tarde o maquinismo se
tenham esboçado ao mesmo tempo que as primeiras aspirações à democracia.
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 233

O parentesco entre as duas tendências torna-se plcnamentc visível no século


XVIII. É flagrante nos enciclopedistas. Nào deveremos entào supor que Foi um
alento democrático que levou adiante o espírito de invenção, tâo velho quanto
a humanidade, mas insuficientemente ativo na medida em que nào se lhe deu
oportunidade bastante? Ccrtamcntc não sc pensou no luxo para todos; mas para
todos podia-se desejar a existência material assegurada, a dignidade na seguran­
ça. Seria consciente o desejo? Nào acreditamos na inconsciência em história:
as grandes correntes subterrâneas de pensamento, de que tanto já se falou, devem
se a oue massas de homens foram arrastadas por um ou vários deles. Estes sa­
biam o que faziam, mas não previram todas as conseqücncias dc seus atos. Nós.
que sabemos o que se seguiu, não podemos deixar dc recuar a imagem até a
origem: o presente, percebido no passado por um efeito de miragem, c então
o que chamamos o inconsciente dc outrora. A retroativídade do presente está
na base de muitas das ilusões filosóficas. Evitaremos, pois, atribuir aos séculos
XV, XVI c XVIII (menos ainda ao XVII, tão diferente, e que se considerou
um parêntese sublime) preocupações democráticas comparáveis às nossas. Nào
lhe atribuiremos também a visão do que o espírito de invenção encerrava cm
si de potência. Também c verdade que a Reforma, o Renascimento c os primeiros
sintomas ou pródromos do impulso inventivo são da mesma época. Nào é im­
possível que tenha havido três reações, aparentadas entre si, contra a fortna que
adquirira até então o ideal cristão. Esse ideal também persistia, mas aparecia
como um astro que sempre mostrasse a mesma face à humanidade: comecava-sc
a entrever a outra, sem nem sempre perceber que se tratava do mesmo astro.
Não é dubitável que o misticismo implique o ascetismo. Um e outro serão sempre
privilegio de poucos. Mas nào é menos certo que o misticismo verdadeiro, com­
pleto. atuante aspire a sc difundir, cm virtude da caridade que c sua essência.
Como se propagaria ele. mesmo diluído e atenuado como o será necessariamente,
numa humanidade absorvida pelo medo de nào ter o que comer? O homem não
se elevará acima da terra a menos que um instrumental poderoso lhe forneça
o ponto dc apoio. Ele deverá forçar a matéria sc sc quiser desligar dela. Em
outras palavras, a mística chama a mecânica. Nào o observamos o suficiente,
porque a mecânica, por um acaso dc orientação na via férrea, foi lançada num
caminho em cujo extremo estavam o bem-estar exagerado c o luxo para alguns,
mais que a libertação para todos. Somos vítimas do resultado acidental, nào
vemos o maquinismo no que ele devia ser, no que lhe c a essência. Sigamos
mais além. Se nossos órgãos são instrumentos naturais, nossos instrumentos são
por isso mesmo órgãos artificiais. A ferramenta do operário prolonga seu braço:
o instrumental da humanidade c, pois, um prolongamento de seu corpo. A nature­
za, ao nos dotar de uma inteligência csscncialmcnte fabricadora, preparara desse
modo certo crescimento. Porém, máquinas que funcionam a petróleo, a carvão,
a hulha branca, e que convertem cm movimento energias potenciais acumuladas
durante milhões de anos, vieram dar ao nosso organismo uma extensão tão vasta
c uma potência tão formidável, tão desproporcional à sua dimensão e força que
ccrtamente nada disso havia sido previsto no plano estrutural de nossa espécie:
234 BERGSON

foi um acaso único, a maior conquista material do homem no planeta. Um impul­


so espiritual talvez se imprimisse no início: a extensão se fez automaticamente,
amparada pelo golpe de picareta acidental que deparou debaixo da terra com
um tesouro miraculoso. * Ora. nesse corpo desmesuradamentcaumcntaco. a alma
continua o que era. demasiado pequena agora para o encher, muito frágil para
o dirigir. Daí o vácuo entre o corpo e a alma. Daí os terríveis problemas sociais,
políticos, internacionais, quç são outras tantas definições desse vaz.io eque. para
cnchc-lo, provocam hoje tantos esforços desordenados c ineficazes: para isso se­
riam necessárias novas reservas de energia potencial, mas agora dc natureza mo­
ral. Limitamo-nos, pois, a dizer, como o fazíamos há pouco, que a mística chama
a mecânica. Acrescentemos que o corpo ampliado espera um suplemento dc al­
ma, c que a mecânica exigiría uma mística. As origens dessa mecânica são talvez
mais místicas do que se pensa: cia nào encontrará sua direção verdadeira, não
prestará serviços proporcionais à sua potência, a meno.s que a humanidade que
cia curvou ainda mais à terra chegue por ela a sc aprumar, c a contemplar o
céu.
Numa obra dc incxccdivçl profundidade e vigor. Frncst Seillicre mostra co­
mo as ambições nacionais avocam a si missões divinas: o “imperial smo” se
faz comumcntc “misticismo”. Sc dermos a esta última palavra o sentido que tem
em Ernest Seillière.10 c que uma longa série dc obras definiu suficientemente,
o fato c incontestável: ao constatá-lo, ao relaciona Io a >uas causas c ao acompa­
nhá-lo cm seus efeitos, o autor dá uma contribuição inestimável à filosofia da
história. Mas talvez cie mesmo julgasse que o misticismo assim entendido, assim
compreendido de resto pelo imperialismo tal qual o apresenta, nada mais c que
contrafação do misticismo verdadeiro» du “religião dinâmica” que estudamos em
nosso último capítulo. Acreditamos perceber o mecanismo dessa contrafação.
Foi algo que sc tomou à “religião estática** dos antigos, que sc demarcou e que
se deixou cm sua forma estática sob o rótulo novo que a religião dinâmica fornc
cia. A contrafação não tinha aliás qualquer intenção delituosa: ma! foi pretendí
da. Lembremos, com efeito, que □ “religião estática*' é natural para o homem,
e que a natureza humana nào muda. As crenças inatas a nossos antepassados
conscrvam-sc no mais profundo dc nós mesmos; cias reaparecem, desde que não
sejam reprimidas por forças antagônicas. Ora. um dos traços essenciais das reli­
giões antigas era a idéia de um vínculo entre os grupamentos humanos e as divin
dades ligadas a cada um deles. Os deuses da comunidade combatiam por ela.
com ela. Essa crença ê incompatível com o misticismo verdadeiro, quero dizer,
com o sentimento que têm certas almas dc ser os instrumentos dc um-Dcus que
ama a todos os homens com igual amor, c que lhes pede que se amem uns aos
outros. Mas, subindo das profundezas obscuras da alma à .superfície da consciên
cia. c ali deparando a imagem do misticismo verdadeiro tal como os místicos

• l-alium» no sentido (i^urado. cvidentcmcnte. O carvào era jã bem conhecido niuiio antes que a máqui
na a vapor n convertesse cm tesouro.
Sentido que consideramos aqui apenas cm parte, cvmo o fazemos também quanto a palavra -imperia
lismo"
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 235

modernos apresentaram ao mundo, instintivamente ela se veste de modo ridículo:


ela atribui ao deus do místico moderno o nacionalismo dos antigos deuses. É
nesse sentido que o imperialismo sc faz misticismo. Porque, sc nos ativcrmos
ao misticismo verdadeiro, julgá-lo-emos incompatível com o imperialismo. No
máximo se dirá, como acabamos dc o fazer, que o misticismo nào poderia diluo
dir-se sem estimular uma “vontade de potência" muito particular. Tratar-sc-á
de um império a exercer, nào sobre os homens, mas sobre as coisas, precisamente
para que o homem nào o exerça tanto sobre o homem.
Que surja um gênio místico: ele arrastará após si uma humanidade dc corpo
já imensamente aumentado, dc alma por cie transfigurada. Ele quererá fazer dela
uma espccic nova, ou antes livra Ia da necessidade dc scr uma espécie: quem
diz espécie diz parada coletiva, e a existência completa mobilidade na individuali­
dade. O grande alento dc vida que passa por nosso planeta impelira a organiza­
ção tão longe quanto o permitia uma natureza ao mesmo tempo dócil c rebelde.
É sabido que designamos por esta última expressão o conjunto das complacên-
cias c resistências que a vida encontra na matéria bruta conjunto que (rata
mos, a exemplo do biólogo, como se se pudesse atribuir-lhe intenções. Um corpo
que comportasse a inteligência fabricadora. tendo uma franja de intuição em tor­
no dela, foi o que a natureza pôde fazer dc mais completo. Tal foi o corpo huma­
no. Ali se deteve a evolução da vida. Mas eis que a inteligência, elevando a
fabricação dc seus instrumentos a um grau de complicação c perfeição que a
natureza (tão incapaz para a construção mecânica) nem mesmo previra. despe­
jando nessas máquinas reservas dc energia nas quais a natureza (tão ignorante
da economia) nem mesmo pensara, dotou nos dc potências ao lado das quais
a do nosso corpo mal aparece: elas serão ilimitadas, quando a ciência souber
liberar a força que representa, condensada, a minima parcela dc matéria pondera
vcl. O obstáculo material está quase derrubado. Amanhã o caminho estará livre,
na própria direção do alento que conduzirá a vida ao ponto cm que cia deveria
ter-se detido. Vem então o chamado do herói: nem todos o seguiremos, mas todos
nós sentiremos que o deveriamos fazer, e conheceremos o caminho, que alargare­
mos sc por ele passarmos. Imcdiatamenic se esclarecerá para toda filosofia o
mistério da obrigação suprema: uma viagem começara c foi preciso interrompe
la; ao retomar a caminhada, qucr-sc ainda apenas o que já sc queria. É sempre
a parada que exige uma exnlicaçào. c nào o movimento.
Nao contemos demasiado com o aparecimento de uma grande alma privile­
giada. Na ausência dela, outras influencias poderíam desviar nossa atenção dos
brinquedos que nos divertem e das miragens em torno das quais guerreamos.
Viu-se. com efeito, como o talento dc invenção, ajudado pela cicncia. pusera
à disposição do homem energias insuspeitadas. Tratava-sc dc energias fisico-quí
micas c dc uma ciência que recaía sobre a maléria. Mas c quanto ao espírito?
Terá sido aprofundado cicntificamcnte tanto quanto poderia Le-lo sido? Acaso
se sabe o que tal aprofundamento poderia produzir? A ciência ligou-se pr’mciro
à matéria; durante três séculos ela nào teve outro objeto: hoje, ainda, quando
não se junta à palavra um adjetivo, entende-se que sc fala da ciência da matéria.
236 BERGSON

Em outra ocasião demos as razões disso. Mencionamos por que o estudo científi­
co da matéria havia precedido o do espírito. Era preciso ir ao mais urgente.
A geometria já existia; ela fora levada bastante longe pelos antigos; devia sc
começar por tirar da matemática tudo o que ela podia dar para a explicação
do mundo em que vivemos. Não çra desejável que se começasse pela ciência
do espirito: eia não chegara por si mesma à precisão, ao rigor, à preocupação
da prova, que se propagaram da geometria à física. à química e â biologia até
refluir nela. Por outro lado, entretanto, ela nào deixou dc sofrer por ter vindo
tão tarde. A inteligência humana conseguiu fazer legitimar, no intervalo, pela
ciência c investir assim dc uma autoridade incontestável seu hábito dc tudo ver
no espaço, de tudo explicar pela matéria. Acaso ela trata da alma? Ela imagina
uma representação espacial da vida interior; ela estende a seu novo objeto a
imagem que conservou do antigo: donde os erros dc uma psicologia atomística.
que nâo leva em conta a penetração recíproca dos estados de consciência: donde
os inúteis esforços dc uma filosofia que pretende atingir o espirito sem o procurar
na duração. Tratar-se-á de uma relação da alma com o corpo? A confusão é
ainda mais grave. Ela não apenas pôs a metafísica numa pista falsa; eh desviou
a ciência da observação dc certos fatos, ou antes impediu u nascimento dc certas
ciências, excomungadas dc antemão cm nome dc um dogma qualquer. Ficou en­
tendido com efeito que o concomitante material da atividade mental lhe era o
equivalente: como toda realidade deve ter uma base espacial, nada sc deve encon­
trar a mais nu espírito a nâo ser o que um fisiólogo sobre-humano leia no cérebro
correspondente. Observemos que essa leseé pura hipótese metafísica, interpreta
çào arbitrária dos fatos. Mas não menos arbitrária c a metafísica espiritualista
que a cia sc contrapõe, e segundo a qual cada estado de alma utilizaria um estado
cerebral que lhe sirva simplesmente de instrumento; para cia. ainda, a atividade
mental seria coextensiva à atividade cerebral c a ela correspondería ponto por
ponto na vida presente. A segunda teoria c de resto influenciada pela primeira,
da qual sempre sofreu o fascínio. Tentamos estabelecer, separando as idéias pre­
concebidas que se aceitam dos dois lados, chegando o mais perto possível do
contorno dos fatos, que o papel do corpo c inteiramente diverso. A atividade
do espírito tem de fato um concomitante material, mas que só lhe esboça uma
parte; o resto permanece no inconsciente. O corpo certamentc é para nós um
meio de agir, mas é também um impedimento dc perceber. Seu papel è realizar
cm toda ocasião o empreendimento útil; precisamcnte por isso, ele deve afastar
da consciência, com as lembranças que nào esclareçam a situação presente, a
percepção «de objetos sobre os quais nào tenhamos domínio algum." Ê como
se queira, um filtro ou uma (ela. Ele mantém no estado virtual tudo o que poderia
prejudicar a ação ao se tornar atual. Ele nos ajuda a ver diante de nós, nn interes­
se do que temos a fazer; por outro lado, impede-nos de olhar à direita e à esquer­
da. a nosso bcl prazer. Colhe-nos uma vida psicológica real no campo imenso

Mostramos pó^ínaS ames como um sentido como íl viStâ Icv.-l mais lonyc. porqur <icu iantrutiKtito
torno cisa cxtcnsau mcvitávcí. <Cf. (amhcm Matiere et mêmnirc. todo o primeiro capitulo.)
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 237

do sonho. Em suma. nosso cérebro nem c criador nem conservador de nossa


representação; de a limita simplesmente, de modo a tornar atuante. É o órgão
da atenção à vida. Mas resulta disso que deve haver, ou no corpo ou na consciên­
cia que ele limita, dispositivos especiais cuja função é afastar da percepção huma­
na os objetos subtraídos por sua natureza à açào do homem. Desarranjem-se
esses mecanismos c a porta que eles mantêm fechada se entreabre: alguma coisa
passa de um “dc fora” que é talvez um “além”. Dessas percepções anormais
é que se ocupa a “ciência psíquica”. Explicam-se em certo grau as resistências
que ela encontra. Ela sc apóia no testemunho humano, sempre sujeito a cuidado.
O tipo do cientista c para nós o físico: sua' atitude de legítima confiança para
com uma matéria que nào sc diverte evidentemente a enganá-lo tornou-se para
nós característica de toda ciência. Temos dificuldade em tratar ainda dc científica
uma pesquisa que exige pesquisadores que pressentem por toda a parte a mistifi­
cação. Sua desconfiança causa nos mal estar, c sua confiança ainda mais: sabe­
mos que sc desabitua depressa dc estar precavido; a rampa que vaí da curiosidade
â credulidade é deslizante. Repitamo Io: explicam-sc assim certas repugnãncias.
Mas não se compreendería o fim de nao acolher que verdadeiros cientistas opõem
ã “pesquisa psíquica” a nào ser que antes de tudo eles tomem os fatos relatados,
por “improváveis”; eles diríam “impossíveis” sc nào soubessem que nào existe
modo algum concebível de estabelecer a impossibilidade de um fato: estào. po
rem, convencidos, no fundo, dessa impossibilidade. E no entanto estào convenci­
dos dela porque julgam incontestável, definitivamente provada, certa relaçào en­
tre o organismo e a consciência, entre o corpo e o espirito. Acabamos dc ver
que essa relaçào é puramente hipotética, que ela nào é demonstrada pela ciência,
mas exigida por certa metafísica. Os fatos sugerem hipótese muito diferente: c.
se admitida, os fenômenos assinalados pela “ciência psíquica”, ou pelo menos
alguns deles, tornam-se dc tal modo prováveis que antes nos espantaríamos do
tempo que foi preciso esperar para que se empreendesse o seu estudo. Não volta­
remos aqui a um estudo que fizemos cm outro livro. Limitamo-nos a dizer, para
só falar do que nos parece mais bem estabelecido, que sc pusermos cm dúvida
a realidade das •‘manifestações telepáticas"., por exemplo, depois <fc millurcs dc
depoimentos concordamos sobre eles, é o testemunho humano cm geral que será
preciso declarar inexistente aos olhos da ciência: que nâo virá a ser a história?
A verdade c que há uma escolha a fazer entre os resultados que a cicncia psíquica
nos apresenta: ela mesma está longe dc os colocar a todos na mesma categoria;
ela distingue entre o que lhe parece certo e o que é simplesmente provável ou
pelo menos possível. Mas, mesmo que se retenha apenas parte do que ela ceclara
como certo, resta muito para que adivinhemos a imensidade da terra incognita
cuja exploração ela mal começa. Suponhamos que um lampejo desse mundo des­
conhecido nos chegue, visível aos olhos do corpo. Que transformação nãc have­
ría numa humanidade em geral habituada, não importa o que diga, a só aceitar
por existente o que se ve e toca! A informação que nos viesse assim talvez só
se referisse ao que há de inferior nas almas, o último grau da espiritualidade.
Mus nào seria preciso muito mais espiritualidade para converter em reclidade
238 BERGSON

viva e atuante uma crença no além que parece enconirar-se na maioria dos ho
mens, mas que permanece o mais das vezes verbal, abstrata, ineficaz. Para saber
cm que medida ela significa, basta considerar como nos arrojamos ao prazer:
nào ficaríamos nesse ponto se não víssemos nele tanto domínio sobre o nada,
um meio de desafiar a morte. Na verdade, se estivéssemos certos, absolutamcnte
certos de sobreviver, não mais poderiamos pensar em outra coisa. Os prazeres
continuariam, mas pálidos c descoloridos. porque sua intensidade seria tào-so-
mente a atenção que fixamos neles. Eles cmpalidcceriarn como a luz de nossas
lâmpadas ao sol da .manhã. O prazer seria eclipsado pelo gozo.
Gozo seria de fato a simplicidade dc vida que uma intuição mística propa
gasse no mundo: gozo ainda o que acompanhasse automaticamente uma visão
do além numa experiência científica ampliada. Na falta de uma reforma moral
tão completa, será preciso recorrer a expedientes, submeter-sc a uma “regulamen­
tação” cada vez mais dominante, derrubar um por um os obstáculos que nossa
natureza ergue contra nossa civilização. Mas. quer optemos pelos grandes meios
ou pelos pequenos, uma decisão se impoe. A humanidade geme, meio esmagada
sob o peso do progresso que conseguiu. Ela não sabe o suficiente que seu futuro
depende dela. Cabe lhe primeiro ver se quer continuar a viver. Cabe-lhe indagar
depois sc quer viver, apenas, ou fazer um esforço a mais para que se realize,
çm nosso planeta refratário, a função essencial do universo, que é uma máquina
dc fazer deuses.
INDICE

BERGSON — Vida cobra .................................................................................................................... V


Cronologia.............................................................................................................................. XIII
Bibliografia ............................................................................................................................ XIII

CARTAS A WILLIAM JAMES ................................................................................................................. I


Carta dc Bergson a William James, de 6 dc janeiro de 1903 .... 3
Carta de Bergson a William James, dc 25 dc março de 1903 ... 5
Carta de Bergson a William James, dc 15 de fevereiro dc 190S 7
Carta de Bergson a William James, de 27 de junho dc 1907 .... 8
Cana de Bergson a William James, dc 31 de março dc 1910 . 9

INTRODUÇÃO Ã METAFÍSICA ........................................................................................................... 11

O CÉREBRO E O PENSAMENTO: UMA ILUSÃO FILOSÓFICA 41

CONFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 53
A Intuição Filosófica ............................................................................................................... 55
A Consciência e a Vida ............................................................................................................ 69
A Alma e o Corpo .................................................................................................................. 83

O PENSAMENTO E O MOVENTE ........................................................................................................ 99


Introdução (Primeira Parle) .................................................................................................. 101
Introdução (Segunda Parte)................................................................................................... 112

A EVOLUÇÃO CRIADORA ................................................................................................................ 153


Cap. II - As direções divergentes da evolução da vida — Torpor.
Inteligência e Instinto ........................................................................................... 155

AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO ....................................... 207


Cap. IV — Observações finais — Mecânica e Mística ............................................................. 209
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DURKHEIM
LOCKE
platAo
DESCARTES
MERLEAU-PONTY
WITTGENSTEIN
HEIDEGGER
BERGSON
STO TOMÁS DE AQUINO
HOBBES
ESPINOSA
ADAM SMITH
SCHOPENHAUER
VICO
KIERKEGAARD
PASCAL
MAQUIAVÊL
HEGEL

E OUTROS
Xcsíc xoluiiie

CARTAS A WILLIAM JAMES <1903/05/07/10)


Nas cartas endereçadas ao filósofo norte-americano. Bergson
aborda temas de seu próprio pensamento e do pensamento de lames,
admitindo pontos comuns entre sua filosofia e a pragmática.

INTRODUÇÃO À METAFÍSICA (1903)


Aparecido pela primeira vez na Revue de Méiaphystque et de Morale.
este importante ensaio foi depois incluído na obra La Penséeet
leMouvant. Trata de temas centrais da filosofia bergsoniana,
como a distinção entre ciência e filosofia, a intuição,
a concepção de metafísica enquanto uma "experiência integral".

O CÉREBRO E O PENSAMENTO: UMA ILUSÃO HLOSÓFICA (1904)


Publicado inicialmente na Revue de Métaphysfque et de Morale.
este ensaio passou a integrar o livro (.‘énergie Spirituelle (1919).
Discute e rejeita a tese do paralelismo entre o psíquico e o cerebral.

A INTUIÇÃO FILOSÓFICA (1911)


Conferência feita em Bolonha e publicada em La Pensée et !e Mouvant.
Apresenta reflexões sobre o espírito filosófico, realizadas
sobretudo a partir da análise de pensamento de George Berkeley.

A CONSCIÊNCIA E A VIDA (1911)


Pronunciada em inglês, esta conferência foi depois traduzida
e ampliada por Bergson, sendo inserida em L‘tnergie
Spirituelle. Mostra que a consciência é basicamente
memória, "conservação e acumulação do passado no presente".

A ALMA E O CORPO (1919)


Incluída em CÉnergie Spirituelle, esta conferência trata das
relações entre o espírito e o corpo. Bergson afirma:
"a atividade cerebral está para a atividade mental como os
movimentos da batuta do regente estão para a sinfonia”.

O PENSAMENTO E O MOVENTE (Introdução) (1934)


Apresentação de temas fundamentais do pensamento bergsomano:
diferença entre filosofia e ciência positiva; a duração;
a intuição como método adequado â apreensão da mudança, do
espiritual e da duração pura; a metafísica baseada na experiência.

A EVOLUÇÃO CRIADORA (cap. II) (1907)


No processo evolutivo que atravessa toda a natureza, Bergson
focaliza duas linhas divergentes: a da inteligência e a do instinto.

AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO (cap. IV) (1932)


O exame da religião conduz à discussão das relações entre
misticismo e industrialism©, entre mística e mecânica.

Seleção de textos: Frank/in Leopoldo e Silva


Tradução de: Franklin Leopoldo e Silva e Nathanael Caxeiro
Consultor da Introdução: José Américo Motta Pessanha

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