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83-1650
CARTAS, CONFERÊNCIAS
E OUTROS ESCRITOS
1984
EDITOR. VICTOR CIVITA
Títulos originais:
“Lcttrcs a William James” (de Merits er Paroles)
'•Introduction à la Mitaphy<ique”, “LTnoiitiou Mdluwpbiquc”; "La Penséu el
Ic Mouvam — Introduction” (de LaPenséc ct leMvuvunt)
”Lc Cerveau et la Pcnséc”; “La Conscience cl la Vic”; ”L‘Âttie et
Corps'* ide LÈnergiie Sptrituellc)
”Les Directions Divergentes de la Evolution de la Vic — Totpeur.
Intelligence cl Inslinct" (de L'lwltttion Crécdncel
' ’Remarques l inates Mechanique et Mystique-' (de Les Deux
Sources de la Morale et rfr la Religion)
VIDA E OBRA
O eu superficial e o eu profundo
A memória-hábito e a memória-recordaçáo
Cronologia
1859 — Bergson wee em Paris.
1876 — Ingressa na Escola Normal Superior.
1883 — Vai lecionar filosofia no Liceu de Clermont-f errand.
1889 — Defende a test' tetina. sobre Aristóteles, e a francesa, Essai sur les
Donnies Immédiatcs de la Conscience.
1897 — Publica Matíère et Mémoirc.
1898 — Foma-se mestre de conferências na Escola Norma! Superior IParis).
1900 — Ocupa uma cátedra de filosofia no Colégio de França. Publica Le
Riro.
1901 — Passa a pertencer à Academia das Ciências Morais e Políticas da
França.
1907 — Publica Involution Créatnce.
1910 — Morro William James.
1912 — Viaja aos Fstados Unidos paru proferir curso na Universidade de Co
lômbia (Nova York).
1914 — Começa a Primeira Guerra Mundial. Bergson entra para a Acade
mia Francesa.
1918 — Termina a Primeira Guerra Mundial.
1919 — Bergson publica L'Énergíe Spirítuelle.
1922 — Pub//caDurévetSÍmuhanéilí*.
1928 — Kecebe a Prêmio Nobel de Literatura.
1932 — Publica Les Deux Sources de la Morale et de la Religion.
1934 —■ Publica La Pensée et le Mouvant.
1939 — Começa a Segunda Guerra Mundial.
1941 — Bergson morre.
Bibliografia
* Traduzido do original francês Éeríts ei Paroles, I— II. P.U.F., 1957. textos reunidos por Rose Marie
MoSbé Bolide.
Carta de Bergson a William James, de 6 de janeiro de 1903
Caro Confrade
reflito sobre a questão, mais convencido fico de que a vida c. de ponta a ponta,
um fenômeno de atenção. O cérebro é a própria direção desta atenção, ele marca,
delimita c mede a tensão psicológica que é necessária à ação; enfim, cie nào c
nem a duplicata nem o instrumento da vida consciente, ele é o ponto extremo
dela, a pane que se insere nos eventos — algo como a proa na qual o navio sc
estreita para cortar o oceano. Mas. como tão justamente o dizeis, esta concepção
da relação entre cérebro e espirito exige que mantenhamos a distinção ertre alma
e corpo, transcendendo, ao mesmo tempo, o antigo dualismo, e. consequente
mente. que quebremos muitos quadros nos quais estamos habituados a pensar.
Desejo vivamente que se apresente uma ocasião para conversar convosco
acerca de tudo isto. Posso vos pedir, no caso de que venhais à França, que me
aviseis, a fim de que nos possamos encontrar?
Carla de Bergson a William James, de 25 de março de 1903
Caro Confrade
Vossa carta me causa uma grande alegria, c c necessário que eu vos agra
deça imediatamente. Tendes razão ao dizer que o filósofo ama a lisonja c que
nisto ele sc parece com o comum dos mortais: mas permiti-me dizer que o sufrá
gio a que eu aspirava partícularmenic era o do pensador que contribuiu cm tão
grande parte para rçmodelar a alma das novas gerações e cuja obra sempre me
inspirou uma admiração tão profunda. Assim, a carta em que mc declarais estar
pronto a aderir às idéias essenciais de meu trabalho, em que as defendeis anteci
padamente contra os ataques que elas vão seguramente provocar, mc loca profun
damente. Eu a guardo como uma recompensa dos dez anos dc esforço que me
custou este livro.
Comecei a ler vosso Pragmatism no momento cm que o correio mo remeteu,
c não pude deixá-lo antes de acabar a leitura. £ o programa, admiravelmente tra
çado. dn filosofia do futuro. Através dc séries de considerações cxlremamente
diversas, que soubestes sempre fazer convergir para um mesmo centro, através dc
sugestões tanto quanto de razões explícitas, nos dais a idéia, sobretudo o senti
mento, da filosofia maleável c flexível que está destinada a tomar o lugar do
intclcctualismo. Nunca mc dei conta dc maneira tão patente da analogia entre
nossos dois pontos dc vista como quando li o capítulo Pragmatism and Huma
nism. Quando dizeis que/or rationalist reality is readymade and complete from
all eternity, while for pragmatism it is still in the making, forneceis a própria fór
mula da metafísica à qual estou convencido dc que chegaremos, â qual leriamos
chegado desde muito tempo sc tivéssemos permanecido imunes ao encanto do
idealismo platônico. Chegaria cu a afirmar convosco que truth is mutable? Creio
na mutabilidade da realidade mais do que na da verdade. Se pudéssemos modelar
nossa faculdade de intuição sobre a mobilidade do real, a modelagem nào seria
algo estável, c a verdade — que só pode scr esta própria modelagem —> nào parti
ciparia desta estabilidade? Mas. antes de chegar até lá. é preciso tatear muito.
Ainda uma vez obrigado, caro Professor James, cumprimentos pela nova obra,
destinada a exercer uma considerável influência.
Carla de Bergson a William James, de 31 dc março dc 1910
Caro James
Espero que tenhais aceito o convite que Boutroux vos levou da pane da
Universidade dc Paris, e que cedo vos vejamos na França. Se. como o desejo, isto
acontecer na primavera ou no outono deste ano. fareis a gentileza de me dar a
conhecer, ao menos aproximadamente, a data de vossa chegada? Faço questão dc
estar cm Paris neste momento.
Ainda não vos disse do prazer que experimentei ao ler vossos dois artigos:
The Moral Equivalem of War c A Sugestion about Mysticism. O primeiro c ccr-
tamente o que foi dito dc mais belo e dc mais persuasivo a respeito da nào-neces-
sidade da guerra, c das condições nas quais poderiamos faze-la desaparecer sem
que a energia humana fosse diminuída. Quanto ao vosso artigo sobre o misti
cismo, ele será, estou certo, o ponto de partida dc muitas observações c novas
pesquisas. Nâo estou certo dc ter alguma vez experimentado um uncovering, mas
talvez houvesse algo deste gcncro no seguinte fato, que mc aconteceu algumas
vezes (raras vezes, aliás) em sonho. Acreditaria assistir a um espetáculo soberbo,
gcralmcnte a visão dc uma paisagem de coloração intensa, através da qual eu via-
jaria a toda velocidade e que mc dava a impressão tào profunda dc realidade, que
cu nào podia acreditar, durante os primeiros instantes após o despertar, que tinha
sido um simples sonho. Ora. durante o brevíssimo tempo que o sonho pareceu
durar (dois ou três segundos apenas), cu havia lido o sentimento muito nítdo que
eslava a ponto de fazer uma experiência perigosa, que dependia dc mim prolon
ga la c perceber a continuação, mas que algo crescia cada vez. mais cm mim c
acabaria por explodir se cu nâo restabelecesse a ordem, acordando. E. ao desper
tar, experimentei um arrependimento por icr visto intcrromper-se semelhante
sonho c o sentimento bem nítido dc que havia sido eu que quisera interrompc-lo.
Relato-vos esta experiência pelo que cia vale: ela sugere a idéia de uma extensão
momentânea do campo dc consciência, mas devido a um esforço intenso.
Como desejaria que prosseguisseis este estudo do “valor noético dos estados
anormais dc pensamento"! Vosso artigo, mais o que dissestes em Varieties of
Religious Experience, nos abre grandes perspectivas nesta direção.
INTRODUÇÃO A METAFÍSICA
•Kmc cnwiio apnrcceu nn Revue tic Mtiaphyxiqitc et de Morale cm 1903. Dc&dc então. fomos levacos a pre
cix:ir mnis a significação dos (centos inciqflslca c cifncla. Sumos livres para dar às palavras o setíiido que
queiramos, contanto que tomemos o cuidado de defini 1<>: nndfl impcdirin de chamar "ciência" ou "f losofin".
como se fez durante muito tempo, todu espécie de conhecimento. Poderiamos mesmo. com«> diwmos cm
'ouira parte (segunda introdução a "O Pensamento c o Movenie"). englobar tudo na metafísica. Contudo, é
incontestável que o conhecimento tiponta para umu direção bem definida quando dispõe xu objeto cm vista
da medida, c que mm chu cm sentido diferente, inverso mesmo.quando se libera de coda pressuposto de rela
çâo c de comparação. para simpatizar com a realidade. Mostramos que 0 primctfo método conviría no csiu
do da matéria, c o segundo, no do espírito, que liú. aliás, interferência recíproca dos dois objetos c que o» dois
métodos devem prestar se auxilio muntamcnie. No primeiro caso, truumos com o tempo cspactalizado c
com o espaço*, no segundo, com a duração real. Pareceu nos cadtt vez mills ÚÜI. para a clareza dis idc>:is.
chamar “científico*’ o ptímeiro ripo de conhecimento. c “metafísico" o segundo. h então do lado dj metafí
stea que colocaríamos esta “filosofia d» cténcia" ou “metafísica dn ciência" que habita o espirito cos gran
des cientistas, que ê imanente à sua ciência e que é frcqiicntcmcnte » invíuivcl ínspintdora desta cicieis. No
presente artigo, nós n deixnmos ainda do Indo da cicncí.i. pois ela foi praticada, de fato, por pc&qui&udorcs
a quem se concorda gcralmcntc chamar de “ciuntistus** mais do que de “metafísicos** (ver. mais atrás, a pri-
rtieiru introdução » “O Pens.nHcjitu c o Movente**). É preciso não esquecer, por outro Indo. que o presente
ensaio foi escrito numa época cm que o criuctsmo de Kant c o dogmatisms de seus sucessores eram geral
mente basiantc admitidos. senÀn como conclusão, ao menor. com<> ponre> de partida Ju c*p«utiiçào fiiux'i-
ficn.fN.do A.)
Sc compararmos entre si as definições da metafísica c as concepções do
absoluto, percebemos que os filósofos concordam, apesar dc suas divergências
aparentes, cm distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer
uma coisa. A primeira implica que rodeemos u coisa; a segunda, que en.remos
nela. A primeira depende do ponto de vista em que nos colocamos c dos símbolos
pelos quais nos exprimimos. A segunda não se prende a nenhum ponto dc vista e
não se apóia em nenhum símbolo. Acerca da primeira maneira dc conhecer, dire
mos que ela sc detêm no relativo; quanto à segunda, onde ela e possível. diremos
que ela atinge o absoluto. Seja, por exemplo, o movimento de um objeto no espa
ço. Eu o percebo de maneira diferente conforme o ponto dc vista, móvel ou imó
vel. donde o observo. Eu o exprimo diferentemente, conforme o sistema dc eixos
ou de pontos dc referencia aos quais o relaciono, isto é, conforme os símbolos
pelos quais o traduzo. E o chamo relativo por esta dupla razão: tanto num caso
como no outro, coloco-me dc fora do próprio objeto. Quando falo de um movi
mento absoluto, é que atribuo ao móvel um interior c como que estados dc alma,
c. também, porque simpatizo com os estados e mc insiro neles por um csftrço de
imaginação. Então, conforme o objeto seja móvel ou imóvel, conforme adote um
ou outro movimento, não experimentarei a mesma coisa.1 E o que experimentarei
não dependerá nem do ponto dc vista adotado cm relação ao objeto, pois estarei
no próprio objeto, nem dos símbolos pelos quais podería traduzi-lo, pois terei
renunciado a toda tradução para possuir o original. Em suma, o movimento não
será mais apreendido de fora e. dc alguma forma, a partir dc mim, mas sim dc
deniro, nele mesmo, cm si. Eu possuiría um absoluto.
Seja ainda uma personagem de romance cujas aventuras mc são contadas. O
romancista poderá multiplicar os traços de caráter, fazer falar c agir seu herói
tanto quanto queira: tudo isto nâo valerá o sentimento simples c indivisível que
eu experimentaria se coincidisse um instante com a própria personagem. Entào,
as palavras, os gestos c as ações mc pareceríam correr naturalmcnte. como da
fonte. Já nâo seriam acidentes acrescentando sc à idéia que mc fazia da persona
gem. enriquecendo a sempre mais e mais sem nunca completá-la. A personagem
’ £ necessário duer que dc rrinncira alguma propomos aqui um meio de reconhecer se um movimento c
absoluto ou não. Definimos simplesmente o que remos no espirito quando falamo» dc movimento absoluto,
no sentido mcialtsico da palavra. (N. do A.)
14 BERGSON
Isto posto, veremos sem dificuldade que a ciência positiva tem por função
habitual analisar. Ela trabalha, pois, antes de tudo com símbolos. Mesmo as mais
concretas das ciências da natureza, das ciências da vida, se alêm à forma visível
dos seres vivos, dc seus órgãos. dc seus elementos anatômicos. Comparam as for
mas umas com as outras, reduzem as mais complexas ãs mais simples, enfim,
estudam o funcionamento da vida naquilo que dele é. por assim dizer, o símbolo
visual. Sc existe um meio dc possuir uma realidade absolutamente, em lugar dc a
conhecer rclativamenie. dc colocar-se nela em vez de adotar pontos de vista sobre
ela. dc ter a intuição cm vez dc fazer a análise, enfim, de a apreender fora d: toda
expressão, tradução ou representação simbólica, a metafísica é este meio. A
metafísica é, pois, a ciência que pretende dispensar os símbolos.
Há uma realidade, ao menos, que todos apreendemos de dentro, por intuição
c não por simples análise. É nossa própria pessoa em seu fluir através do tempo,
í’ nosso eu que dura. Podemos não simpatizar intelectualmentc. ou melhor,
espiritualmente, com nenhuma outra coisa. Mas simpatizamos, scguramcnte.
conosco mesmos.
Quando passeio sobre minha pessoa, suposta inativa, o olhar interior de
minha consciência, percebo primeiramente, como uma crosta solidificada na
superfície, todas as percepções que lhe advêm do mundo material. Estas percep
ções são nítidas, distintas, justapostas ou justaponíveis umas às outras; elas pro
curam se agrupar cm objetos. Percebo em seguida lembranças mais ou menos
aderentes a estas percepções e que servem para intcrprctâ-las: estas lembranças
como que sc destacam do fundo dc minha pessoa e são atiradas para a periferia
ao encontro das percepções que sc lhes assemelham; sãu postas por mim sem que
sejam absolutamente cu mesmo. E, enfim, sinto manifestarem-sc tendências, hábi
tos motores, uma multidão de ações virtuais mais ou menos solidamente ligadas
a estas percepções c a estas lembranças. Todos estes elementos de formas bem
definidas mc parecem tanto mais distintos de mim quanto mais distintos são uns
dos outros. Orientados de dentro para fora, constituem, reunidos, a superfície de
uma esfera que tende a expandir se e perder sc no mundo exterior. Mas se me
concentro da periferia pura o centro, se procuro no fundo de mim mesmo o que
é mais uniforme, mais constante, mais durável, eu mesmo encontro algo total
mente diferente.
É. por sob estes cristais bem recortados e este congelamento superficial, uma
continuidade que se escoa de maneira diferente de tudo o que já vi escoar-$e. É
uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e contem
16 BERGSON
O que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem estados múltiplos quando, uma
vez iendo-os ultrapassado, cm me volto para observar-lhes os traços. Enquanto
os experimentava, eles estavam tão solidamente organizados, tão profundamente
animados com uma vida comum, que eu nào teria podido dizer onde qualquer um
deles termina, onde começa o outro. Na realidade, nenhum deles acaba ou come
ça. mas todos se prolongam uns nos outros.
É. sc se quiser, o desenrolar de um novelo, pois nào há ser vivo que não sc
sinta chegar pouco a pouco ao fim da sua meada: e viver consiste em envelhecer.
Mas é. da mesma maneira, um enrolar-se contínuo, como o de um fio numa bola,
pois nosso passado nos segue, cresce sem cessar a cada presente que incorpora
em seu caminho; c consciência significa memória.
A bem dizer, nào é nem um enrolar-sc nem um desenrolar-se. pois estas duas
imagens evocam a representação dc linhas ou superfícies cujas partes sâo homo
gêneas entre si e superponiveis umas ás outras. Ora. nào há dois momentos idên
ticos num ser consciente. Tomemos o sentimento mais simples, suponhamo-lo
constante, absorvamos nele a personalidade inteira: a consciência que acompa
nhará este sentimento nào poderá permanecer idêntica a si mesma durante dois
momentos consecutivos, pois o momento seguinte contém sempre, além do prece
dente. a lembrança que este lhe deixou. Uma consciência que possuísse dois
momentos idênticos seria uma consciência sem memória. Ela perecería c renasce
ría sem cessar. Como representar se de outra forma a inconsciência?
Seria preciso, pois, evocar a imagem dc um espectro com mil nuances, com
degradações insensíveis que fazem com que passemos de um tom a outro. Uma
corrente de sentimento que atravessaria o espectro tingindo se. dc cada vez. com
cada uma das nuances, experimentaria mudanças graduais, cada una anun
ciando a seguinte c resumindo nela as que a precedem. Ainda as nuances sucessi
vas do espectro permaneceríam sempre exteriores umas ás outras. Elas se justa
põem. Elas ocupam espaço. Ao contrário, o que é duração pura exclui ioda idéia
de justaposição, de exterioridade recíproca c de extensão.
Imaginemos, pois, um elástico infinitamente pequeno, contraído, se isto
fosse possível, num ponto matemático. Estiquemo-lo progressivamente dc forma
a fazer sair do ponto uma linha que irá sempre se encompridando. Fixemos nossa
atenção não sobre a linha enquanto tal, mas sobre a ação que a traça. Conside
remos que esta ação, apesar de sua duração, é indivisível, se supomos que cia se
realiza sem sc interromper; pois, se intercalarmos uma parada, faremos duas
ações em lugar dc uma e cada uma dessas ações será então o indivisível dc que
falamos; porque não é a ação de mover que é divisível, mas a linha imóvel que
deixa atrás dc si como um traço no espaço. Descartemos, enfim, o espaço que
subjaz ao movimento para levar cm conta somente o próprio movimento, o ato dc
tensão ou dc extensão, enfim, a mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem
mais fiel dc nosso desenvolvimento na duração.
E, entretanto, esta imagem será aipda incompleta, e toda comparação, aliás,
será insuficiente, pois o desenrolar-se dc nossa duração se assemelha em certos
aspectos à unidade do movimento que progride, em outros, a uma multiplicidade
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 17
8 As imuysnx de yuc Ifttanws aqui são aquvhs que se pcxlem apresentar uo c.sprtlu <lt> fllòsolü quaixk) de
quer expor seu pcncnncnio u uuiro. Dcivirnus do lado a ím.-i|tcm. piv.xiru* intuição, dc que u filósofo ixxJc
necessitar píir.l «ú mmo.eqne pcfin.inrce freqilentciiKnlr incxprcxsa. fN. do A.»
IS BERGSON
recomporemos a totalidade do objeto com suas panes, e que obteremos dclc, por
assim dizer, um equivalente intelectual. Ê assim que acreditamos formar uma
representação fiel da duração alinhando os conceitos de unidade, dc multiplici
dade. de continuidade, dc divisibilidade finita ou infinita, etc. Aí está precisa
mente a ilusão. Aí está também o perigo. Quanto mais podem as idéias abstratas
prestar serviço à análise, isto é. a um estudo científico do objeto cm suas relações
com todos os outros, tanto mais incapazes são dc substituir a intuição, isto é. a
investigação metafísica do objeto no que cie tem de essencial c próprio. De um
lado, com efeito, os conceitos colocados um a um nos fornecerão sempre apenas
uma recomposição artificial do objeto, do qual só podem simbolizar certos aspec
tos gerais e dc alguma forma impessoais: será. pois, cm vao que acreditaremos
apreender uma realidade de que eles se limitam a apresentar-nos a sorrbra. Mas.
dc outra parte, ao lado da ilusão há também um perigo muito grave. Pois o con
ceito generaliza ao mesmo tempo que abstrai. O conceito pode apenas simbolizar
uma propriedade especial tornando-a comum a uma infinidade dc coisas. Ele a
deforma, pois, mais ou menos, devido à extensão que lhe atribui. Entranhada no
objeto metafísico que a possui, uma propriedade coincide com ele. ao menos se
molda sobre ele. adora os mesmos contornos. Extraída do objeto metafísico e
representada em um conceito, ela se alarga indefinidamente. ultrapassa o objeto,
pois deve doravante ser comum a ele e a outros. Os diversos conceitos que forma
mos das propriedades dc uma coisa desenham, pois, cm torno dela, outros tantos
círculos muito maiores, dos quais nenhum sc aplica exatamente a ela. E. entre
tanto. na própria coisa, as propriedades coincidiam com ela c coincidiam, por
conseguinte, entre si. Forçoso será. pois, que busquemos algum artifício para
restabelecer a coincidência. Tomaremos qualquer um desses conceitos c tentare
mos, com ele. ir ao encontro dos outros. Mas. conforme partamos deste ou daque
le. a junção não se operará da mesma forma. Conforme partamos, por exemplo,
da unidade ou da multiplicidade, conceberemos difcrcntcmcnic a unidade múlti
pla da duração. Tudo dependerá do peso que atribuamos a tal ou qual conceito,
c este peso será sempre arbitrário, pois o conceito, extraído do objeto, nâo tem
peso próprio, sendo apenas a sombra de um corpo. Assim surgirá a multipli
cidade de sisienias diferentes, tantos quantos pontos dc vista houver, exteriores à
realidade que examinamos, ou tantos quantos círculos forem traçados, maiores
do que a realidade c nos quais ela será encerrada. Os conceitos simples não pos
suem. pois, somente o inconveniente dc dividir a realidade concreta do objeto em
outras tantas expressões simbólicas: eles dividem também a filosofia cm escolas
distintas, das quais cada uma conserva seu lugar, escolhe seus jogadores e inicia
uma partida que nâo findará jamais. Ou a metafísica é apenas este jogo cc idéias,
ou. se é uma seria ocupação do espírito, é preciso que transcenda os conceitos
para chegar à intuição. Certamente, os conceitos lhe são indispensáveis, pois
iodas as outras ciências trabalham geralmentc com conceitos, e a metafísica nao
pode dispensar as outras ciências. Mas ela só c propriamente ela mesma quando
ultrapassa 0 conceito, ou ao menos, quando se liberta dc conceitos rígidos c pré-
fabricados para criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitual
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 19
impossível. Mesmo quando creio tentar esta operação inversa, mesmo quando
tomo as letras uma a uma. começo por mc representar uma significação plausí
vel: eu me dou. pois, uma intuição, e é da intuição que tento descer para os sím
bolos elementares que reconstituiríam a expressão dela. A própria idéia de
reconstituir a coisa, por via dc operações praticadas sobre elementos simbólicos
unicamente, implica um tal absurdo que ela não viria ao espírito dc ninguém, se
nos déssemos conta que não tratamos com fragmentos da coisa, mas. dc alguma
forma, com fragmentos do símbolo.
Tal é. entretanto, a tentativa dos filósofos que buscam recompor a pessoa
com estados psicológicos, quer eles sc atenham aos próprios estados, quer acres
centem um fio destinado a ligar estes estados entre si. Empiristas e racionalistas
sào vítimas aqui da mesma ilusão. Uns c outros tomam as notações parciais por
partes reais, confundindo assim o ponto de vista da análise com a intuição, a
ciência com a metafísica.
Os primeiros dizem, com razão, que a análise psicológica não descobre, na
pessoa, nada mais que estados psicológicos. F esta é a função, com efeito, esta é
a própria definição da análise. O psicólogo nada mais pode fazer do que analisar
a pessoa, isto é. anotar estados: quando muito, colocará a rubrica “eu” sobre
estes estados, dizendo que são “estados do eu”, da mesma forma que o desenhista
escreve a palavra “Paris” cm cada um dc seus esboços. No terreno um que o psi
cólogo sc instala, e onde deve se instalar, o “cu” c apenas um signo pelo qual se
evoca a intuição primitiva (aliás, muito confusa) que forneceu â psicologia seu
objeto: é apenas uma palavra, c o grande erro é crer que poderemos, permane
cendo no mesmo terreno, encontrar por trás da palavra uma coisa. Tal foi o erro
desses filósofos que não puderam se resignar a ser simplesmente psicólogos em
psicologia. Taine e Stuart Mill, por exemplo. Psicólogos pelo método que apli
cam. permaneceram metafísicos pelo objeto que se propõem. Pretenderíam uma
intuição, e. por uma estranha inconscqücncia. buscavam esta intuição na análise,
sua própria negação. Buscam o eu. e pretendem encontrá-lo nos estados psicoló
gicos. ao passo que só sc pode obter esta diversidade dc estados psicológicos
transportando-sc para fora do eu para tomar da pessoa uma série dc notas, dc
esboços, dc representações mais ou menos simbólicas e csquemáticas. Assim,
esforçaram-se por justapor estados a estados, multiplicar os contatos, explorar os
interstícios, o cu sempre lhes escapa, se bem que terminam por ver nele apenas
um fantasma. O mesmo seria negar sentido à Itíada, com a alegação dc que sc
buscou cm vão este sentido nos intervalos das letras que a compõem.
O empirismo filosófico nasceu, pois, dc uma confusão entre o ponto de vista
da intuição e o da análise. Consiste em buscar o original na tradução, onde natu-
ralmcntc cie não pode estar, c em negar o original, sob pretexto de que não o
encontramos na tradução. Desemboca necessariamente cm negações; mas. obser
vando de perto, percebemos que estas negações significam simplesmente que a
análise não é a intuição, o que é a própria evidência. Da intuição original, e aliás
confusa, que fornece à ciência seu objeto, a ciência passa imediatamente ã análi
se. que multiplica ao infinito os pontos de vista sobre o objeto. Bem depressa ela
22 BERGSON
alemães. O método é análogo nos dois casos: consiste cm raciocinar sobre ele
mentos da tradução como se fossem panes do original. Mas um empirismo verda
deiro c aquele que se propõe apegar-se o mais possível ao original mesmo,
aprofundar-lhe a vida e. por uma espécie dc auscultaçâo espiritual, sentir oalpítar
sua alma; e este empirismo verdadeiro é a verdadeira metafísica. O trabalho é de
uma dificuldade extrema, pois nenhuma das concepções já feitas dc que $c serve
o pensamento em suas operações cotidianas se presta a isto. Nada mais fácil do
que dizer que o eu é multiplicidade, ou que é unidade, ou que c a síntese de uma
e outra. Unidade e multiplicidade são aqui representações que não temos necessi
dade dc modelar sobre o objeto, que encontramos já fabricadas e que temos ape
nas que escolher dentre muitas vestimentas dc confecção, que servirão tanto a
Pedro quanto a Paulo porque não desenham a forma de nenhum dos dois. Mas
um empirismo digno deste nome, um empirismo que só trabalha sub medida, se
vê obrigado a despender um esforço absolutamente novo para cada novo objeto
que estuda. Ele talha para o objeto um conceito apropriado somente ao objeto
conceito dc que sc pode dificilmente dizer que seja ainda um conceito, poi:
somente sc aplica a uma única coisa. Ele não procede por combinação de idéia:
que encontramos à disposição, como no comercio, unidade e multiplicidade, po
exemplo: mas a representação para a qual nos encaminha ê. ao contrário, um:
representação única, simples, que compreendemos muito bem. aliás, uma vez for
mada. porque podemos colocâ Ia nos quadros da unidade, multiplicidade, etc.
todos muitos maiores que ela. Enfim, a filosofia assim definida não consiste cn
escolher entre conceitos e cm tomar partido entre us escolas, mas cm procura
uma intuição única da qual descendemos aos diversos conceitos, pois nos coloca
mos acima das divisões dc escolas.
Que personalidade possua unidade, isto c certo; mas semelhante informação
nada mc ensina sobre a natureza extraordinária desta unidade que c a pessoa.
Que nosso cu seja múltiplo, concordo ainda, mas é uma multiplicidade acerca da
qual é preciso reconhecer que ela nào possui nada cm comum com nenhuma
outra. O que importa verdadeiramente para a filosofia é saber que unidade, que
multiplicidade, que renlidade superior ao uno e ao múltiplo abstratos c a tmidadc
múltipla da pessoa. E cia só o saberá se se rcapoderar da intuição simples do cu
pelo eu. Então, conforme os degraus que escolher para descer deste topo, chegará
à unidade ou à multiplicidade ou a qualquer outro conceito pelos quais tentamos
definir a vida movente da pessoa. Mas nenhuma combinação desses conceitos,
repetimos, dará algo que se assemelhe à pessoa que dura.
Diante de um cone sólido, vejo sem dificuldade como ele se estreita para
cima c tende a se confundir com um ponto matemático, e também como ele sc
alarga na base cm um círculo infinitamente crescente. Mas nem o ponto, nem o
círculo, nem a justaposição dos dois sobre um plano me darão a menor idéia de
um conc. Da mesma forma a multiplicidade c a unidade da vida psicológica, o
Zero e o Infinito para os quais empirismo c racionalismo encaminham a
personalidade.
Os conceitos, como mostraremos alhures, estão ordinariamente cm pares e
24 BERGSON
calamos outros pontos, acreditando, assim, agarrar com mais firmeza o que hâ de
mobilidade no movimento. Depois, como a mobilidade ainda nos escapa, substi
tuímos a um número finito c fixo dc pontos um número "indefinidamente crescen
te" — tentando assim, porem em vao. imitar, pelo movimento do nosso pensa
mento que prossegue indefinidamente a adição de pontos, o movimento real e
indiviso do móvel. Finalmcnte. dizemos que o movimento se compõe de pontos,
mas que ele compreende, além disto, a passagem obscura, misteriosa, dc uma
posição à posição seguinte. Como se a obscuridade não viesse totalmentc de que
supusemos a imobilidade mais clara do que a mobilidade, a parada anterior ao
movimento! Como sc o mistério não proviesse de que pretendemos passar das
paradas ao movimento por via de composição, o que é impossível, ao passo que
passamos sem dificuldade do movimento à lentidão c à imobilidade! Fomos pro
curar a significação do poema na forma das letras que o compõem, acreditamos
que considerando um número crescente de letras apreenderiamos enfim a signifi
cação sempre fugidia e. em desespero dc causa, vendo que de nada adiantava
curar uma parte do sentido cm cada uma das letras, supusemos que entre cada
letra c a seguinte se alojava o tão procurado fragmento do sentido misterioso!
Mas as letras, digamos ainda uma vez. nào sâo partes da coisa, são elementos do
símbolo. As posições do móvel, tornamos a dizer, não são partes do movimento:
são pontos do espaço que. supostamente, subexiste ao movimento. Este espaço
imóvel e vazio, simplesmente concebido, jamais percebido, tem justamente o
valor dc um símbolo. Como, manipulando símbolos, fabricaríamos realidade?
Mas o símbolo corresponde aqui aos hábitos mais arraigados de nosso
pensamento. Instalamo-nos ordinariamente na imobilidade, onde cncortramos
um ponto dc apoio para a prática, pretendemos recompor a mobilidade com a
imobilidade. Obtemos asssim apenas uma imitação grosseira, um arremedo do
movimento real, mas esta imitação nos é muito mais útil na vida do que o seria
a intuição da própria coisa. Ora. nosso espírito tem uma irresistível tendência
para considerar mais clara a idéia que lhe c frequentemente mais útil. Esta é a
razão por que a imobilidade lhe parece mais clara que a mobilidade, a parada
anterior ao movimento.
As dificuldades que o problema do movimento levantou desde a mais remo
ta antiguidade derivam daí. Provem dc que pretendemos sempre passar do espaço
ao movimento, da trajetória ao trajeto, das posições imóveis à mobilidade, c pas
sar dc um a outro por via de composição. Mas é 0 movimento que é anterior à
imobilidade, e não há. entre posições e um deslocamento, a relação de partes ao
todo, mas sim a da diversidade dos pontos dc vista possíveis à indivisibilidade
real do objeto.
Muitos outros problemas nasceram da mesma ilusão. O que os pontos imó
veis são para o movimento dc um móvel, os conceitos de qualidades diversas sâo
para a mutação qualitativa dc um objeto. Os conceitos variados nos quais sc dis
solve uma variação são. pois, outras tantas visões estáveis da instabilidade do
real. E pensar num objeto, no sentido usual da palavra ‘‘pensar", é tomar à mobi
lidade um ou mais desses aspectos imóveis. É, em suma, perguntar-se. de vez em
28 BERGSON
quando, onde se está. a fim de saber o que se poderia fazer. Nada mais legítimo,
aliás, do que esta maneira de proceder, enquanto sc trata apenas dc um conheci
mento prático da realidade. O conhecimento, enquanto orientado para a prática,
só tem que enumerar as principais atitudes possíveis da coisa cm rclação a nós.
e nossas melhores atitudes possíveis cm relação a ela. Esta é a função habitual
dos conceitos pré-fabricados, estas estações pelas quais balizamos o fajeto do
devir. Mas querer, com conceitos, penetrar na natureza íntima das coisas é apli
car à mobilidade do real um método feito para fornecer pontos de vista imóveis
sobre ela. É esquecer que. se a metafísica c possível, cia só pode ser um esforço
para inverter o percurso natural do trabalho do pensamento, para sc colocar
imediatamente, por uma dilataçao do espírito, na coisa que sc estuda, enfim, para
ir da realidade aos conceitos e nao mais dos conceitos à realidade. É surpreen
dente que os filósofos vejam fugir diante deles o objeto que pretendem apreender,
como crianças que desejassem, fechando a mào. segurar a fumaça? Assim sc per
petuam muitas querelas entre escolas, cada uma censurando a outra por ter deixa
do o real escapar.
Mas. sc a metafísica deve proceder por intuição, sc a intuição tem por objeto
a mobilidade da duraçào. c se a duração é de essência psicológica, nào vamos
encerrar o filósofo na contemplação exclusiva dc si mesmo? A filosofia nâo vai
consistir em se contemplar viver, simplesmente, “como um pastor sonolento
observa a água correr”? balar assim seria retornar ao erro que não nos cansa
mos dc assinalar desde o começo deste estudo. Seria menosprezar a natureza sin
guiar da duraçào. e ao mesmo tempo o caráter cssencialmente ativo da intuição
metafísica. Seria nào ver que unicamente o método de que falamos permite ultra
passar tanto o idealismo quanto o realismo, afirmar a existência dc ob.etos infe
riores c superiores a nós. embora, num certo sentido, interiores a nós. fazê-los
coexistir, dissipar progressivamente as obscuridades que a análise acumula cm
torno dos grandes problemas. Sem abordar o estudo destes diferentes pontos,
limitemo-nos a mostrar como a intuição dc que falamos nâo é um ato único, mas
uma série indefinida dc atos, iodos, sem dúvida, do mesmo gênero, mas cada um
de uma espécie bem particular, e como esta diversidade de atos corresponde a
todos os graus do ser.
Sc procuro analisar n duraçào. isto é. resolvê-la em conceitos pre fabricados,
sou obrigado, pela própria natureza do conceito c da análise, a formar, acerca da
duraçào cm geral, dois pontos dc vista opostos, com os quais pretendería cm
seguida recompô-la. Esta combinação nâo poderá apresentar nem uma diversi
dade de graus, nem uma variedade de formas: cia é ou ela nào e. Diria. por exem
plo. que há. de um lado, uma multiplicidade dc estados dc consciência sucessivos,
c. dc outro, urna unidade que os liga. A duração será a “síntese” desta unidade c
desta multiplicidade, operação misteriosa onde nào vemos, repito, como poderia
comportar nuances ou gradações. Nesta hipótese, só há. só pode haver uma dura
ção única, aquela em que nossa consciência opera habitualmcntc. Para fixar as
idéias, se tomamos a duração sob o aspecto simples de um movimente rcalizan-
do*se no espaço, e procuramos reduzir a conceitos o movimento considerado
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 29
duas abstrações que nào comportam nem gradações nem nuances. Tanto num sis
tema quanto no outro, há somente uma duraçào única que leva tudo com cie. rio
sem fundo, sem margens, que corre com uma força incalculada numa direção que
nào podemos definir. Apesar de tudo, ainda é um rio c corre somente porque a
realidade obtém das duas doutrinas este sacrifício, aproveitando-sc dc uma distra
ção de suas lógicas. No momento em que se recuperam, fixam este escoamento
ou numa imensa cascata sólida, ou numa infinidade de pontas cristalizadas, sem
pre numa coisa que participa necessariamente da imobilidade de um ponto de
vista.
Tudo sc passa dc maneira diferente se nos instalamos desde logo, por um
esforço de intuição, no escoamento concreto da duração. Certamente nào achare
mos nenhuma razão lógica para considerar durações múltiplas e diversas. A
rigor, poderia nào existir outra duraçào além da nossa, como poderia nào haver
no mundo outra cor além do alaranjado. por exemplo. Mas. da mesma maneira
que uma consciência à base dc cor. que simpatizaria interiormente com o alaran-
jado em vez dc pcrccbê-lo de fora, se sentiría entre o vermelho e o amarelo, pres
sentiría mesmo, talvez, por sobre esta última cor. todo um espectro que se pro
longa naturalmente na continuidade que vai do vermelho ao amarelo, assim
também a intuição de nossa duração, bem longe de deixar-nos suspensos no vazio
como o faria a pura análise, nos põe cm contato com toda uma continuidade de
durações que devemos tentar seguir, seja para baixo, seja para o alto: nos dois
casos podemos nos dilatar indefinidamente por um esforço cada vez mais violen
to. nos dois casos nós nos transcendemos a nós mesmos. No primeiro, vamos cm
direção a uma duração cada vez mais distendida, cujas palpitações mais rápidas
do que as nossas, dividindo nossa sensação simples, diluem a qualidade cm quan
tidade: no limite seria o puro homogêneo, a pura repetição pela qual definimos a
materialidade. Na outra direção, encontramos uma duração que sc centrai, se
concentra, sc intensifica cada vez mais: no limite seria a eternidade. Não mais a
eternidade conceituai, que é uma eternidade dc morte, mas uma eternidade dc
vida. Eternidade viva c conscqüentemcnic movente cm que nossa duração sc reen
contraria em nós como as vibrações na luz. e que seria a concretização dc toda
duração, como a materialidade representa a distensão dela. Entre estes cois limi
tes extremos sc move a intuição, c este movimento é a própria metafísica.
Nào podemos cogitar aqui em percorrer as diversas etapas desse movimen
to. Mas. depois de ter apresentado uma vista geral do método c feito uma pri
meira aplicação dele, não será talvez inútil formular, cm termos os mais precisos
quanto possível, os princípios sobre os quais ele repousa. Das proposições que
vamos enunciar, a maior parte recebeu, no presente trabalho, um começo dc
prova. Esperamos demonstra las mais complctamcnte ao abordarmos outros
problemas.
I. Há uma realidade exterior e, entretanto, dada imediatamente a nosso espí
rito. O senso comum está com a razão neste ponto frente ao idealismo c ao rea
lismo dOS filósofos.
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 31
II. Esta realidade c mobilidade.3 Não existem coisas feitas, mas somente
coisas que se fazem, nào estados que se mantêm, mas lào somente estados que
mudam. O repouso é sempre apenas aparente, ou melhor, relativo. A consciência
que temos de nossa própria pessoa, em seu contínuo escoamento, nos intreduz no
interior de uma realidade segundo o modelo da qual devemos nos representar as
outras. Toda realidade é. pois, tendência, se conviermos em chamar terdência
uma mudança de direção em estado nascente.
III. Nosso espírito, que procura pontos de apoio sólidos, lem como função
principal, no curso ordinário d:i vida, representar-sc estados e coisas. Ele toma,
dc quando em quando, aspectos quase instantâneos da mobilidade indivisa do
real. Obtém assim sensações e idéias. Através disto substitui ao contínuo o
descontínuo, à mobilidade a estabilidade, à tendência em via dc mudança os pon
tos fixos que marcam uma direção da mudança e da tendência. Esta substituição
é necessária no senso comum, à linguagem, à vida prática c mesmo, numa certa
medida que trataremos de determinar, â ciência positiva. Nossa inteligência,
quando segue sua marcha natural, procede por percepções sólidas, de um lado, e
por concepções estáveis, dc outro. Ela parte do imóvel, c nào concebe nem expri
me o movimento senão em função da imobilidade. Ela se instala em conceitos
pré-fabricados, e sc esforça por prender, como numa rede, alguma coisa da reali
dade que passa. Nào é. sem dúvida, para obter um conhecimento interior c meta
físico do real. É simplesmente para sc servir dele, cada conceito (como, aliás,
cada sensação) sendo uma questão prática que nossa atividade põe à realidade c
à qual a realidade responderá, como convém neste comércio, por um sim ou por
um nào. Mas assim a inteligência deixa escapar do real o que c a sua própria
essência.
IV. As dificuldades inerentes à metafísica, as antinomias que ela engendra,
as contradições cm que cai. a divisão em escolas antagonistas c as irredutíveis
oposiçôes entre sistemas, vem em grande parte de que aplicamos ao conheci
mento desinteressado do real os procedimentos dc que nos servimos corrente-
mente corn um objetivo dc utilidade prática. Vêm príncipalmenie dc que nas ins
talamos no imóvel para surpreender o movente em sua passagem, cm vez de nos
colocar-mos no movenie para airavessar com ele as posições imóveis. Vêm dc
que pretendemos reconstituir a realidade, que é tendência e consequentemente
mobilidade, com as percepções e os conceitos que tem por função imobilizâ-la.
Com paradas, por mais numerosas que sejam, não faremos nunca mobilidade: ao
passo que. se nos damos a mobilidade, podemos tirar dela, pelo pensamento,
todas as paradas que quisermos. Em outros lermos, compreendemos que concei
tos fixos possam ser extraídos, por nosso pensamento, da realidade móvel; mas
nào há nenhum meio de reconstituir, com a Jixtâez dos conceitos, a mobilidade
’ Ainda uma vez repilamos: nào descartamos dc forma rdpum». por isto « SHpsfdncio. Afír maims.’peto
coiiuárío. a pcrxÍMcnda dn.% existências. E cremos ter facilitado u representação delas. Como SC pode Compa
rar csr.i doutrina â dc Hcráclito? (N. du A.)
32 BERGSON
VI. Mas a verdade é que nosso espírito pode seguir o caminho inverso. Ele
pode sc instalar na realidade móvel, adotar a mesma direção incessantemente
mutável, enfim, apreende lo intuitivamente. É preciso, para isto, que ele se violen
te. que inverta o sentido da operação pela qual pensa habitualmente. que ele ree
xamine. ou melhor, reforme constantemcntc suas categorias. Mas ele desembo
cará assim em conceitos fluidos, capazes dc seguir a realidade em todas as suas
sinuosidades c dc adotar o próprio movimento da vida interior das coisas. Somen
te assim sc constituirá uma filosofia progressiva, liberta das disputas entre csco
Ias. capaz de resolver naturalmcntc os problemas, pois ela se terá livrado dos ler
mos artificiais que haviam sido escolhidos para formulá-los. Filosofar consiste
em inverter a marcha habitual do trabalho do pensamento.
VII. Esta inversão jamais foi praticada dc maneira metódica: mas uma his
tória aprofundada do pensamento humano mostraria que lhe devemos tvdo o que
sc fez dc mais grandioso nas ciências, como também o que há dc viável em meta
física. O mais poderoso método dc investigação de que dispõe o espírito humano,
a análise infinitesimal, nasceu desta inversão.4 A matemática moderna c precisa
mente um esforço para substituir ao completamente feito o que se faz. para seguir
a geração das grandezas, para apreender o movimento, não mais dc fora c cm seu
resultado estabelecido, mas de dentro e em sua tendência para mudar, enfim, para
adotar a continuidade móvel do desenho das coisas. É verdade que ela se além ao
desenho, uma vez que é apenas a ciência das grandezas. £ verdade também que
ela só pôde permitir as aplicações extraordinárias devido à invenção de certos
símbolos. c que. se a intuição de que acabamos de falar está na origem da inven
çao. é apenas o símbolo que intervém na aplicação. Mas a metafísica, que nào
visa a nenhuma aplicação, poderá, e frequentemente deverá, evitar converter a
intuição em símbolo. Dispensada da obrigação de chegar a resultados pratica
mente utilizáveis, ela aumentará indefinidamente o domínio de suas investiga
ções. O que terá perdido, para a ciência, cm utilidade e cm rigor, tornará a ganhar
cm alcance c cm extensão. Sc a matemática é apenas a ciência das grandezas, sc
os procedimentos matemáticos se aplicam apenas a quantidades, c preciso nào
esquecer, também, que a quantidade é sempre a qualidade em estado nascente: é,
* Acerca dcMc pomo, como de muitas outras qucstòcs iraludxs no presente ensaio. ver os belos tubalhos de
Lc Roy, Vincent Wilbuis. publicado» na fitivue Mitaphyslque el tie Morale. (N.do A.)
• Cumo explicamos nu início dc nosso segundo ensaio (início da segunda introdução dc "O Pcmamcnto e
o Movente”). hesitamos muito tempo cm nos servir do termo "intuição’': c. quando nos decidímos .i empre
£Í-lo. designamos por esta palavra a função metafísica rir» pensamento: pnncípalmcntc o cunhecimemo ínti
mo do cspritu pelo cnpirito. suhsídinriamcntc n conhecimento. pelo espírito. do que há dc essencial na mate
ria. uma vez que n inteligência lora feita sobtciudo para manipular a matéria e consequentemente para
conhecê-la, mas não para locar-lhc 0 fundo, í: esta significação que atribuímos i palavra no prcseeie ensaio
(escrito em IW2), mais cspccialmcnle nas últimas pájÀnas. Fomos levados »»»»« uirde. por uma crescente
preocupação dc precisão, a distinguir mais nitidamenie ,-s inteligência da intuição, como também .1 ciência da
metafísica. Mas. dc urna mnncíra geral. □ mudança dc terminologia nào tem inconveniente grave, quando
tomamos o cuidudu dc definir o tcriitu cm sua acepção particular, uu mesmo quando 0 contexto mostra
suficicniemenic seu sentido. (N. do A.)
34 BERGSON
' Para compklar o que expúnhamos na nota precedente (nota 6J. digamos que fomos condu/ídes. Ucsdc u
época cm que escrevemos estas linhas, a rcMríngir o sentido da palavra "ciénciu" c a chamar mai.s particular
mente dc "científico" <> conhecimento da matéria incite pela inteligência pura, f.sta nào nos impediría de
dizer que o conhecimento da vida c do espírito é cienojica cm larga medida — na medida cm que faz apelo
aos mornas métodos dc invcsugaçào que o conhecimento da matéria inerte. Invcrsameme. o conhecimento
da matéria inerte poderá scr dito/t/aw/rco na medida em que utiliza, num certo momento deeis vo de sua
história, a intuição d:t duração puru. Cf. iguaimentea noia I do presente ensaio. (N. du A.)
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 35
* Ver a c<ie respeilo. nos PhlloMphixchc Siuííwh dc Wundi (vol. IX. 1394), um interessante 4f(igo de
Radulescu Motru.“2ur Entwickdung von Krtnfs Thcorieder NaturcausnltuC.fN.do A.)
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 37
dar esta matemática, isto é. em determinar o que deveria ser a inteligência c o que
deveria ser o objeto para que uma matemática ininterrupta pudesse ligá-los um ao
outro. E. necessariamente, se toda experiência possível tem assim garantida sua
entrada nos quadros rígidos e já constituídos de nosso entendimento, c porque (a
menos que suponhamos uma harmonia preestabelccida) nosso entendimento
organiza ele próprio a natureza c nela se reencontra como num espelho. Donde a
possibilidade da ciência, que deverá toda a sua eficácia à sua relatividade, e a
impossibilidade da metafísica, uma vez que esta só poderá parodiar, sobre fantas
mas de coisas, o trabalho de organização conceituai que a ciência efetua a sério
sobre relações. Em suma, toda a Crítica da Razão Pura termina por estabelecer
que o platonismo, ilegítimo se as Idéias são coisas, torna-se legítimo se as Idéias
são relações, e que a idéia totalmente pronta, uma vez trazida assim do céu à
terra, é de fato, como queria Platão, o fundo comum do pensamento e da nature
za. Mas toda a Crítica da Razão Pura repousa também sobre o postulado de que
nosso pensamento é incapaz de qualquer outra coisa a não ser platonizar. isto é.
modelar toda experiência possível em moldes preexistentes.
Aí está toda a questão. Sc o conhecimento cientifico é o que Kant pretendeu
que fosse, há uma ciência simples preformada e mesmo preformulada na nature
za. como acreditava Aristóteles: as grandes descobertas não fazem mais do que
iluminar, nesta lógica imanente às coisas, a linha traçada antecipadamente, como
se ilumina progressivamente. numa noite de festa, o cordão de gás que já dese
nhava os contornos do monumento. E sc o conhecimento metafísico c o que Kant
pretendeu que fosse, ele se reduz à igualdade de possibilidades entre duas atitudes
opostas do espirito diante dc todos os grandes problemas; suas manifestações são
outras (antas opções arbitrárias, sempre efêmeras, entre duas soluções formula
das virtualmente desde toda a eternidade: ela vive e morre de antinomias. Mas a
verdade c que nem a ciência dos modernos apresenta esta simplicidade unilinear,
nem a metafísica dos modernos estas oposiçòes irredutíveis.
A cicncia moderna não é nem una nem simples. Ela repousa, c verdade, em
idéias que acabamos por achar claras: mas estas idéias, quando são profundas,
foram esclarecidas progressivamente pelo uso que foi feito delas: devem, então, a
melhor parte de sua luminosidade à luz que lhes foi reenviada, por reflexo, dos
fatos e das aplicações a que foram conduzidas, a clareza de um conceito sendo
apenas, pois, a segurança dc manipulá-lo com proveito. Originalmente. mais dc
uma dessas idéias deve ter parecido obscura, conciliando sc mal com os conceitos
já admitidos na ciência, mesmo roçando o absurdo. Isto quer dizer que a ciência
não procede por encaixe regular dc conceitos que estariam predestinados a sc
inserirem com precisão uns nos outros. As idéias profundas e fecundas sào conta
tos com as correntes dc realidade que nào convergem necessariamente para um
mesmo ponto. E verdade que os conceitos em que se alojam terminam sempre,
arredondando seus ângulos por um atrito recíproco, por se organizarem bem ou
mal entre si.
Por outro lado, a metafísica dos modernos nào é feita de soluções por tal
modo radicais que possam dar em oposiçòes irredutíveis. Seria assim, sem dúvi-
38 BERGSON
da. se nào houvesse meios de aceitar ao mesmo tempo, c no mesmo terrena, a tese
e a antítese das antinomias. Mas filosofar consiste precisamente em se colocar,
por um esforço dc intuição, no interior desta realidade concreta sobre a qual a
Crítica forma, de fora, os dois pontos de vista opostos, tese c antítese. Nao imagi
narta jamais como branco e negro sc interpenctram se não tivesse visto o cinza,
mas compreendo sem dificuldade, uma vez que haja visto o cinza, como se pode
considerá-lo do duplo ponto de vista do branco e do preto. As doutrinas que pos
suem um fundo de intuição escapam à crítica kantiana na exata medida em que
são intuitivas: c estas doutrinas sào a totalidade da metafísica, contanto que nào
tomemos a metafísica fixa e morta em teses, mas viva nos filosofou. Certamente,
as divergências sao patentes entre as escolas, isto é. ern suma, entre os grupos dc
discípulos que sc formaram cm torno dc alguns grandes mestres. Mas serão tão
irredutíveis entre os próprios mestres? Alguma coisa domina aqui a diversidade
dos sistemas, alguma coisa, repelimo Io. dc simples e de nítido como a sonda que
sentimos tocar mais ou menos distante o fundo do mesmo oceano, ainda que tra
zendo à tona, de cada vez. materiais muito diferentes. É sobre estes materiais que
trabalham ordinariamente os discípulos: este é o papel da análise. E o mestre,
enquanto formula, desenvolve, traduz cm idéias abstratas o que traz, é já. dc algu
ma maneira, um discípulo dc si mesmo. Mas o ato simples que pôs a análise cm
movimento e que se dissimula por trás dela emana dc uma faculdade muito dife
rente daquela dc analisar. Será, pela própria definição, a intuição.
Digamos, para concluir: esta faculdade nada tem de misterioso. Quem quer
que tenha praticado com êxito a composição literária sabe bem que. quando o
assunto foi longamcnte estudado, todos os documentos recolhidos, iodas as notas
tomadas, é preciso, para abordar o próprio trabalho de composição, alguma coisa
mais, um esforço, frequentemente penoso, para sc colocar de uma vez no próprio
coração do assunto c para ir buscar tào profundamente quanto possível um
impulso pelo qual, depois, basta deixar-se levar. Este impulso, uma vez recebido,
lança o espírito num caminho em que ele reencontra todas as informações que
havia recolhido e Outros detalhes ainda: este impulso se desenvolve, sc analisa a
si mesmo cm termos cuja enumeração prosseguiría infinilumcnw: quanto mais
longe se vai. mais sc descobre: jamais chegaremos a dizer tudo: c entretanto, sc
nos voltamos bruscamentc para o impulso que sentimos atrás dc nós para apreen
dê-lo. ele escapa: pois nao era uma coisa, mas uma incitação ao movimento c. sc
bem que podendo tornar-se indefinidamente extenso, é a própria simplicicade. A
intuição metafísica parece ser algo do mesmo gênero. Aqui, o que representa as
notas e documentos da composição literária c o conjunto das observações e expe
riências recolhidas pela ciência positiva c sobretudo por uma reflexão do espírito
sobre o espírito. Pois nào obtemos uma intuição da realidade, isto é. uma simpa
tia espiritual com o que ela tem dc mais interior, sc nào ganhamos sua confiança
por uma longa camaradagem com suas manifestações superficiais. Nâo $e trata
simplesmente de assimilar os fatos marcantes: é preciso acumular e fundir uma
massa tào grande de fatos quanto for suficiente para que nos asseguremos, nesta
fusão, de neutralizar umas pelas outras todas as idéias preconcebidas ou prema-
INTRODUÇÃO À METAFÍSICA 39
luras que os observadores poderíam ter colocado, malgrado seu. no fundo dc suas
observações. Somente assim se destaca a materialidade bruta dos fatos conheci
dos. Mesmo no caso simples e privilegiado que nos serviu de exemplo, mesmo
para o contato direto do eu com o eu. o esforço definitivo dc intuição distinta
seria impossível para quem nào tivesse reunido e confrontado um número muito
grande de análises psicológicas. Os mestres da Filosofia moderna foram homens
que assimilaram todo o material da ciência dc seu tempo. E o eclipse parcial da
metafísica de meio século para cá tem sobretudo como causa a extraordinária
dificuldade que o filósofo experimenta atualmente para tomar contato com uma
ciência que sc tornou muito mais diversificada. Mas a intuição metafísica, embo
ra só possamos chegar a ela pula força dos conhecimentos materiais, c coisa
totalmcnte diferente dc um resumo ou dc uma síntese dc conhecimentos. Deles sc
distingue como o impulso motriz se distingue do caminho percorrido pelo móvel,
como a tensão do elástico se distingue dos movimentos visíveis do pêndulo. Neste
sentido, a metafísica nada tem em comum com uma generalização da experiência
e. entretanto, ela se poderia definir como a experiência integral.
O CÉREBRO E O PENSAMENTO:
UMA ILUSÃO FILOSÓFICA
ccbidos sem que nada mude no que sc passa na consciência, pois é este estado
cerebral causado pelos objetos, c não o próprio objeto, que determina a percepção
consciente. Mas como não ver que uma proposição deste gênero é absurda na
hipótese idealista? Para o idealismo, os objetos exteriores são imagens e o cére
bro é uma delas. Nada há nas coisas além do que é mostrado ou mostrávcl na
imagem que elas apresentam. Nào há. pois, no movimento dos átomos cerebrais,
nada além do movimento dos átomos. Uma vez que isto c tudo o que supusemos
no ccrcbro. isto c tudo o que encontramos aí e tudo o que podemos tirar dele.
Dizer que a imagem do mundo circundante deriva desta imagem, ou que se expri
me por esta imagem, ou que surge uma vez dada esta imagem, ou que nos damos
a imagem do mundo circundante ao nos darmos a do cérebro, seria contradizer-
se. pois estas duas imagens, o mundo exterior c o movimento intracerebral, são
supostamente dc mesma natureza, e a segunda imagem é. por hipótese, uma ínfi
ma parte do campo de representação, enquanto a primeira preenche totalmente o
campo dc representação. O fato dc que a estimulação cerebral contenha virtual
mente a representação do mundo exterior pode parecer inteligível numa doutrina
que faça do movimento algo dc subjacente à representação que dele temos, um
poder misterioso dc que percebemos apenas o efeito produzido cm nós. Mas isto
aparecería imediatamente como contraditório na doutrina que reduz o movi
mento a uma representação, pois significa que uma pequena parcela da represen
tação c a totalidade da representação.
Concebo, na hipótese idealista, que a modificação cerebral seja um efeito da
ação dos objetos exteriores, um movimento recebido pelo organismo c que vai
preparar as reações apropriadas: imagens entre imagens, imagens moventes como
todas as imagens, os centros nervosos apresentam partes móveis que recolhem
certos movimentos exteriores e os prolongam cm movimentos de reação realiza
dos ou somente iniciados. Mas a função do cérebro sc reduz, então, a sofrer cer
tos efeitos das outras representações c a esboçar, como dizíamos, as articulações
motoras. É nisto que o cérebro c indispensável ao restante da representação, c
não pode ser lesado sem que uma perturbação mais ou menos geral da represen
tação aconteça cm seguida. Mas ele não esboça as próprias representações; pois
nâo poderia. sendo ele uma representação, esboçar a totalidade da representação
a nào ser que deixasse de ser uma pane para tornar se a totalidade da representa
ção. Formulada numa linguagem rigorosamente idealista, a tese do paralelismo
sc resumiría nesta proposição contraditória: a parte ê o todo.
Mas a verdade é que se passa inconscientcmente de um ponto de vista idea
lista a um ponto de vista pseudo-reaiista. Começou-se por fazer do cérebro uma
representação como as outras, encaixada nas outras representações e inseparável
delas: os movimentos interiores do cérebro, representação entre representações,
nào podem, pois, suscitar outras representações, já que as outras representações
são dadas com eles, cm torno deles. Mas insensivelmente chega-se a erigir o cére
bro e os movimentos intracercbrais em coisas, isto c, em causas ocultas por trás
de uma certa representação e cujo poder se estende infinitamente mais longe do
que o que é nele representado. Por que este deslizamento do idealismo para o rca-
CÉREBRO E PENSAMENTO 47
lismo? Ele é favorecido por muitas ilusões teóricas: mas não nos deixáramos
levar tão facilmente por elas se não nos créssemos encorajados pelos fatos.
Ao lado da percepção, com efeito, há a memória. Quando rememero os
objetos que foram uma vez percebidos, eles podem nao mais estar presentes. Meu
corpo permanece só: e. entretanto, as outras imagens lornanvse visíveis na forma
de lembranças. É preciso, pois, que meu corpo, ou alguma parte dele, possua o
poder dc evocar as outras imagens. Admitamos que ele não as cria: ao menos é
capaz de .suscitá-las. Como o faria, sc a um estado cerebral determinado não
correspondessem lembranças determinadas, e se não houvesse, exalamente neste
sentido, paralelismo entre o trabalho cerebral e o do pensamento?
Responderemos que. na hipótese idealista, c impossível representar um obje
to na ausência completa do próprio objeto. Se nada há no objeto presente além do
que c representado, se a presença do objeto coincide com n sua representação,
qualquer parte da representação do objeto será, de alguma forma, uma parle dc
sua presença. A lembrança nâo será mais o próprio objeto, concordo; falter-lhc-
iam para isto muitas coisas. Primeiramente, ela c fragmentária; apenas retem
ordinariamente alguns elementos da percepção primitiva. Depois, cia só existe
para a pessoa que a evoca, enquanto o objeto faz parte de uma experiência
comum. Enfim, quando a rcprcsentaçào-lembrança surge, as modificações conco
mitantes da rcprcscntaçào-cérebro nâo são mais, como no caso da percepção, os
movimentos bastante fortes para excitar a representação organismo a reagir
imediatamente. O corpo nào se sente mais abalado pelo objeto percebido, e como
e nesta sugestão de atividade que consiste o sentimento da atualidade, o objeto
representado nào aparece mais como atual: é isto que exprimimos dizendo que ele
não é mais presente. A verdade c que. na hipótese idealista, a lembrança sc pode
ser uma película destacada da representação primitiva ou. o que dá no mesmo, do
objeto. Ele está sempre presente, mas a consciência dele desvia sua atenção
enquanto nào tem alguma râzào para considerá-lo. Ela só tem interesse cm pcrcc-
belo quando se sente capaz de utilizá-lo. isto e. quando o estado cerebral pre
sente esboça já algumas das reações motoras nascentes que o objeto real ( sto é.
a representação completa) teria determinado: este começo dc atividade do corpo
confere à representação um começo de atualidade. Mas isto nâo quer dizer que
haja então “paralelismo" ou “equivalência” entre a lembrança c o estado cere
bral. As reações motoras esboçam, com efeito, alguns dos efeitos possíveis da
representação que vai aparecer, c nâo esta própria representação: e como a
mesma reação motora pode seguir-sc muito bem dc diferentes lembranças, nào e
uma lembrança determinada que será evocada por um estado determinado do
corpo, são. ao contrário, lembranças diversas igualmentc possíveis, entre as quais
a consciência escolherá. Elas somente serão submetidas a uma condição comum:
a de entrar no mesmo quadro motor. Nisto consistirá sua “semelhança", rermo
vago nas teorias correntes dn associação, e que adquire um sentido preciso quan
do o definimos como a identidade das articulações motoras. Nào insistiremos
neste ponto, que foi objeto dc um trabalho anterior. É-nos suficiente dizer que. na
hipótese idealista, os objetos percebidos coincidem com a representação completa
4» BERGSON
o realismo tem estes dados por superficiais e estas divisões por artificiais: ele con
cebe. por trás das representações justapostas, uni sistema de ações reaprocas. c
consequentemente uma implicação das representações umas nas outras. Como,
por outro lado, nosso conhecimento da matéria nào pode derivar inteiramente do
espaço, e como a implicação recíproca de que se trata, por mais profunda que
seja, nào se pode tornar cxtra-cspacial sem tornar-se cxtracienüfica, c realismo
nào pode ultrapassar o idealismo cm suas explicações. Estamos sempre mais ou
menos no idealismo (tal como o definimos) quando somos cientistas: caso contrá
rio. não pensaríamos sequer em considerar partes isoladas da realidade para
condiciona las umas em relação às outras, o que constitui a pròpria ciência. A
hipótese do realismo não é mais do que um ideal destinado a lembrar-nos que
nunca aprofundaremos suficientcrncme a explicação da realidade, e que devere
mos estabelecer relações cada vez mais íntimas entre as partes do real que se
justapõem, a nossos olhos, no espaço. Mas o realista não se pode impedir dc
hipostasiar este ideal. Ele o hipostasia nas representações dadas que seriam para
o idealista a própria realidade. Estas representações tornam-se cntào. para ele.
outras coisas. isto é. reservatórios contendo virtualidadcs ocultas: o que lhe per
mitírá considerar os movimentos intraccrebrais (erigidos desta vez cm coisas e
nào mais cm simples representações) como encerrando potencialmentc a totali
dade da representação. Nisto consistirá sua afirmação do paralelismo psícofísio-
lógico. Ele esquece que havia situado o reservatório fora da representação c nâo
dentro dela, fora do espaço c não no espaço, e que. em todo caso, sua hipótese
consistia cm supor a realidade ou indivisível ou articulada dc forma diferente da
representação. Fazendo corresponder a cada parte da representação uma parte da
realidade, ele articula o real da mesma forma que a representação, ele desdobra a
realidade no espaço, e abandona seu realismo pelo idealismo, em que a relação do
cérebro ao restante da representação é evidentemente a da parte ao todo.
Falava-sc primciramcnie do cérebro tal qual o víamos, tal qual o destaca
vamos do conjunto de nossa representação: cie era pois apenas uma represen
tação c estávamos no idealismo. A relação do cérebro ao restante da represen
tação era então, repetimos. da pane ao todo. Disto passamos bruscamente para
uma realidade que seria subjacente à representação: seja, mas cntào ela é subes-
pacial. o que significa que o cérebro nào é uma entidade independente. Só ha.
agora, a totalidade do real incognoscível cm si. sobre a qual sc estende a totali
dade dc nossa representação. Estamos no realismo: e. tanto neste realismo como
no idealismo dc há pouco, os estados cerebrais não são o equivalente da represen
tação: é. repetimos, a totalidade dos objetos percebidos que entrará ainda (desta
vez dissimulada) na totalidade dc nossa percepção. Mas eis que. quando se trata
do detalhe do real, continuamos a compô-lo da mesma maneira e segundo as mes
mas leis da representação, o que equivale a nào mais distingui-los um do outro.
Voltamos, pois, ao idealismo, e deveriamos nele permanecer. Mas não. Conser
vamos rca Imente o cérebro tal qual é representado, mas esquecemos que. sc o real
está desdobrado na representação, estendido nela c não contraído nela, ele nào
pode mais encerrar as potencialidades c as virtualidadcs de que falava o realismo;
erigimos, cntào. os movimentos ccrcbrais cm equivalentes de toda a representa
çào. Oscilamos, pois, do idealismo ao realismo e do rcalismo ao idealismo, mas
tào rapidamente que nos acreditamos imóveis e, de alguma forma, a cavaleiro dos
dois sistemas reunidos num só. Esta aparente conciliação de duas afirmações
inconciliáveis é a própria essência da tese do paralelismo.
Tentamos dissipar a ilusão. Nào pretendemos tê lo conseguido inteíramente.
tantas sâo as idéias simpáticas à tese do paralelismo que se agrupam em torno
dela para defendê-la. Destas idéias, algumas foram engendradas pela própria tese
do paralelismo: outras, pelo contrário, anteriores a ela. produziram a uniào ilegí
tima de que a vimos nascer; outras, enfim, sem relações familiares com ela, toma-
ram-na por modelo à força de viver a seu lado. Todas formam atualmente, junto
dela, uma imponente linha dc defesa, a qual se forçamos em um ponto, torna-se
mais resistente em outro. Citemos cm particular:
2. " A idéia de que toda causalidade c mecânica, c que nào há nada no uni
verso que nào seja calculável matematicamente. Então, como nossas ações deri
vam de nossas representações (tanto passadas quanto presentes), é necessário,
sob pena dc admitir uma derrogação da causalidade mecânica, supor que o cére
bro de onde parte a açào continha o equivalente da percepção, da lembrança c do
próprio pensamento. Mas a ideia dc que o mundo inteiro, inclusive os seres vivos,
depende da matemática pura, é apenas um ponto de vista a priori do espirito, que
remonta ao cartesianismo. Podemos exprimi-lo dc maneira moderna, traduzi-lo
na linguagem da ciência atual, relacionar-lhc um número crescente de fatos
observados (a que fomos conduzidos por intermédio dele) c atribuir lhe então ori
gens experimentais: nem por isto a parte mensurável do real ficará menos limita
da, c a lei. considerada como absoluta, conserva o caráter dc uma hipótese meta
física, que cia já possuía no tempo de Descartes.
nismo do que coni uma coleção, e c melhor sempre falar dc evolução do que de
composição. Mas esta nova comparação, além dc atribuir à história do pensa
mento mais continuidade do que ela rcalmcnte possui, tem o inconveniente de
manter nossa atenção presa à complicação exterior do sistema c ao que pode
haver de previsível cm sua forma superficial, em lugar dc nos levar a tocar
concrctamcntc a novidade c a simplicidade, no fundo. Um filósofo digno deste
nome sempre disse uma única coisa: ou melhor, procurou, muito mais, dizê-la do
que a disse rcalmcnte. E ele só disse uma só coisa porque somente soube um
único ponto: ainda que fosse menos urna visão do que um contato; este contato
forneceu um impulso, este impulso um movimento, e se este rhovimemo. que é
como um turbilhão dc uma certa forma particular, só se torna visível aos nossos
olhos pelo que levantou em seu caminho, nào é menos verdade que outras poeiras
poderíam também ter sido levantadas e seria ainda o mesmo lurbilhàc. Assim,
um pensamento que traz ao mundo algo dc novo é obrigado a se manifestar por
meio dc idéias totalmente prontas que encontra diante de si e que arrasta em seu
movimento; ele aparece assim como relativo à cpoca cm que o filósofo viveu;
mas. frequentemente, é apenas uma aparência. O filósofo podería ter vindo vários
séculos antes: defrontar-se-ia com uma outra filosofia e uma outra ciência: ter
se-ia posto outros problemas; ter se ia exprimido dc outra forma; nem um capítu
lo. talvez, dos livros que teria escrito seria idêntico ao que efetivamente escreveu:
c. entretanto, ele teria dito a mesma coisa.
Permitam me escolher um exemplo. Apelei para suas lembranças profissio
nais: vou. sc me permitem, evocar algumas das minhas. Professor no Colégio de
França, consagro todos os anos um de meus dois cursos ã história da filosofia.
Assim pude, durante vários anos consecutivos, trabalhar longamente Berkeley,
depois Espinosa, praticando assim a experiência que acabo de descrever. Deixarei
dc lado Espinosa: ele nos levaria muito longe. E entretanto nâo sei de nada mais
instrutivo do que o contraste entre a forma e o fundo dc um livro como a Ética:
de um lado essas coisas enormes que se çhamam Substância. Atributo c Modo, e
o formidável aparato de teoremas com o encadeamento de definições, corolários
c cscólios. e esta complicação da maquinaria, este poder esmagador, que fazem
com que o principiante, cm presença da Ética, seja possuído por uma admiração
c um terror análogos ao que experimentaria diante de urn couraçado do tipo
Dreadnought; dc outro, algo de sutil, dc muito leve c de quase volátil, que foge
quando nos aproximamos, mas que não podemos olhar, mesmo de longe, sem nos
tornarmos incapazes dc fixar-nos a todo o restante, seja o que for. mesmo ao que
passa por capital, mesmo à distinção entre a Substância e o Atributo, mesmo à
dualidade entre o Pensamento e a Extensão. É. por sob a pesada massa de concei
tos aparentados ao cartcsianismo c ao aristotelismo. a intuição que foi a de Espi
nosa, intuição que nenhuma fórmula, por mais simples que seja, será suficiente
mente simples para exprimir. Digamos, para nos contentar cem uma
aproximação, que é o sentimento de uma coincidência entre o ato pelo qual nosso
espírito conhece perfeitamente a verdade e a operação pela qual Deus a engendra,
idéia dc que a “conversão" dos Alexandrinos, quando se torna completa, c a
CONFERÊNCIAS 59
mesma coisa que a “proccssão”. c que quando o homem, que saiu da divindade,
chega a reentrar nela, somente percebe um movimento único onde havia visto
primeiramente dois movimentos inversos de ir e de retornar a experiência
moral encarregando se aqui de resolver uma contradição lógica e de fazer, atra
vés dc uma brusca supressão do Tempo, com que voltar seja um ir. Quanto mais
remontamos a esta intuição original, melhor compreendemos que. se Espinosa
tivesse vivido antes de Descartes, teria. sem dúvida, escrito de maneira diferente
da que escreveu, mas que. Espinosa vivendo e escrevendo, poderiamos estar ccr
tos de encontrar da mesma maneira o espinosismo.
Falo agora de Berkeley, e como é ele que tomo como exemplo, não será fas
tidioso analisa Io cm detalhe: a brevidade só se obteria aqui às expensas do rigor.
É suficiente lançar um rápido olhar à obra de Berkeley para vê-la dividida
quase como por si mesma — em quatro teses fundamentais. A primeira, qv.e defi
ne um certo idealismo c à qual se liga a nova teoria da visão (embora o filósofo
lenha julgado mais prudente apresentá-la dc forma independente) sc formularia
assim: "A matéria é um conjunto dc idéias”. A segunda consiste em pretender
que as idéias abstratas e gerais sc reduzem a palavras: é o nominalismo. A ter
ceira afirma a realidade dos espíritos e os caracteriza através da vontade: diga
mos que sc trata de espiritualismo c dc voluntarismo. A última, enfim, que pode
riamos chamar de teísmo. põe a existência dc Deus fundando se principamicntc
na consideração du matéria. Ora, nada seria mais fácil do que reencontrar estas
quatro teses, formuladas quase identicamente, entre os contemporâneos ou prede
ccssorcs de Berkeley. A última se encontra nos teólogos. A terceira cm Duns
Scot: Descartes disse algo semelhante. A segunda alimentou as controvérsias da
Idade Média antes de ser parte integrante da filosofia de llobbes. Quanto à pri
meira. parcce-sc muito com o “ocasionalismo" dc Malebranche. cuja idéia, e
mesmo a formulação, descobririamos já cm certos textos dc Descartes; aliás, nào
foi preciso esperar por Descartes para notar que o sonho tem a mesma aparência
da realidade e que nào há nada, cm cada uma de nossas percepções tomadas
isoladamente, que nos garanta a existência de alguma coisa exterior a nós. Assim,
com filósofos antigos ou mesmo, sc não sc quiser retroceder muito, com Descar
tes e Hobbes, aos quais poderiamos acrescentar Lockc. leriamos os elementos
necessários para a reconstituição exterior da filosofia de Berkeley: quando muito
lhe deixaríamos sua teoria da visão, que seria então propriamente obra sua. c cuja
originalidade, recaindo sobre o restante da doutrina, forncccrin ao conjunto seu
aspecto original. Tomemos estes pedaços de filosofia antiga e moderna, coloque
mo-los no mesmo prato, adicionemos, à guisa de vinagre c dc azeite, ume certa
impaciência agressiva em relação ao dogmarismo matemático c o desejo, natural
num prelado filósofo, de reconciliar a razão com a fc. misturemos conscicnciosa-
mente. espalhemos por cima de tudo, como finas ervas, um certo número de afo-
rismas colhidos entre os ncoplatônicos: teremos — permitam-me a expressão —
uma salada que sc assemelhará suficientemente, de longe, com o que Berkeley fez.
Pois bem. aquele que assim proceder será incapaz de penetrar no pensa
mento de Berkeley. Não falo das dificuldades e das> impossibilidades com que se
M) BERGSON
Tomemos o idealismo. Ele não consiste apenas cm dizer que os corpos sào
idéias. Para que serviría isto? Forçoso seria continuar afirmando acerca dessas
idéias tudo o que a experiência nos faz afirmar acerca dos corpos, e leriamos
simplesmente substituído uma palavra por outra; pois Berkeley ccrtamcnte nào
pensa que a materia ccssnr.â de existir quando ele tiver cessado dc viver. O que o
idealismo de Berkeley significa c que a matéria é cocxtcnsiva à nossa representa-
çào; que ela não tem interior, nada sob si: que ela não esconde nada, nào contém
nada: que ela não possui nem potência nem virtualidades dc nenhuma espécie;
que ela é uma superfície espalhada c que ela está totalmcnte. a todo instante, no
que dela nos é dado. A palavra •'idéia*' designa ordinariamente uma existência
deste gênero, isto ê. uma existência complctamente realizada, cujo ser c o mesmo
que o parecer, enquanto a palavra ’‘coisa" nos faz pensar numa realidade que
seria ao mesmo tempo um reservatório de possibilidades; é por esta razno que
Berkeley prefere chamar os corpos dc idéias e nào dc coisas. Mas. se conside
ramos assim o “idealismo", vemo lo coincidir com o “nominalismo"; pois esta
segunda tese, na medida em que se afirma mais nitidamente no espírito do filóso
fo. sc restringe dc maneira mais evidente à negação das idéias gerais c abstratas
abstratas, isto c. extraídas da matéria: com efeito, é claro que nào se poderia
extrair alguma coisa do que nada contém, nem consequentemente fazer .sair de
uma percepção algo diferente dela. A cor sendo somente a cor. a resistência sendo
somente a resistência, jamais encontraremos algo de comum entre a resistência c
a cor. jamais tiraremos dos dados fornecidos pela vista um elemento que pertença
também ao tato. Pois se prentendemos abstrair de umas e de outras algo que seja
comum a todas as coisas, perceberemos, ao observá-lo, que se trata apenas de
uma palavra: eis o nominalismo de Berkeley: mas eis. ao mesmo tempo, a “nova
teoria da visão". Se uma extensão que fosse ao mesmo tempo visual e táctil c ape
nas uma palavra, com maior razão isto se aplica a uma extensão que interessaria
a todos os sentidos ao mesmo tempo: eis ainda o nominalismo. mas também a
refutação da teoria cartesiana da matéria. Não falemos mesmo de extensão; cons-
CONFERÊNCIAS 61
diferente c nâo possuir nenhuma semelhança material com aquela, mas que entre
tanto lhe equivalería. como sc equivalem duas traduções, cm línguas diferentes,
do mesmo original. Talvez estas duas imagens, talvez mesmo outras imagens,
ainda equivalentes, se tivessem apresentado todas de uma só vez. seguindo o filó
sofo passo a passo, em processão. através da evolução de seu pensamento. Ou tal
vez. ele nào tenha percebido nenhuma, limitando-se a retomar contato direta
mente, de vez em quando, com esta coisa mais sutil ainda que c a própria
intuição; mas cntào c nos forçoso, a nós intérpretes, restabelecer a imagem inter
mediária. sob pena de ter de falar de “intuição originária" como de trn pensa
mento vago e do “espírito da doutrina” como de uma abstração, ao passo que
este espírito é o que há de mais concreto, c esta intuição, o que há de mais preciso
no sistema.
No caso de Berkeley, creio ver duas imagens diferentes, e aquela que rnais
mc impressiona nào c a que se acha completamentc indicada no próprio Berkeley.
Parece-me que Berkeley percebe a matéria como uma^tna película transparente
situada entre o homem c Deus. Ela permanece transparente enquanto os filósofos
não se ocupam dela, e então Deus sc mostra através dela. Mas quando cs metafí
sicos a tocam, ou mesmo o senso comum enquanto metafísico, imediatamente a
película perde o brilho c sc engrossa, torna sc opaca c forma uma tela, pois pala
vras tais que Substância. Força. Extensão abstrata, ctc.. aderem a ela. deposi-
tam-sc como uma camada dc poeira, e nos impedem dc pcrccbcr Deus por trans
parência. A imagem c ligeiramente indicada pelo próprio Berkeley, embora ele
tenha dito “que levantamos a poeira c lamcntamo-nos depois dc não mais enxer
gar". Mas há outra comparação, frequentemente evocada pelo filósofo. c que é
apenas a transposição auditiva da imagem visual que acabo de descrever: a maté
ria seria uma língua cm que Deus nos fala. As metafísicas da matéria, tornando
espessas cada uma das sílabas, assinalando-lhes um fim. erigindo-a em entidade
independente, desviariam então nossa atenção do sentido para o som c r.os impe
diríam dc acompanhar a palavra divina. Mas. quer nos atenhamos a uma quer a
outra, nos dois casos trata-se dc uma imagem simples que ê preciso ter diante dos
olhos, pois, se ela nào c a intuição geradora da doutrina, deriva ímediatamente
desta intuição c se lhe aproxima mais do que qualquer das teses tomada; à parte,
mesmo mais do que a combinação delas.
Podemos reapreender a própria intuição? Temos apenas dois meios dc
expressão, o conceito c a imagem, é cm conceitos que o sistema sc desenvolve; é
numa imagem que ele sc concentra quando o fazemos recuar para a in.uiçào de
que descende: porque, se queremos ultrapassar a imagem em direção a algo mais
alto, necessariamente recaímos nos conceitos, c cm conceitos ainda mais vagos,
ainda mais gerais do que aqueles de que havíamos partido cm busca da imagem
e da intuição. Reduzida a esta forma, como água engarrafada ao sair da fonte, a
intuição original parecerá ser o que há dc mais insípido e de mais frio: a própria
banalidade. Se disséssemos, por exemplo, que Berkeley considera a alma humana
como parcialmente unida a Deus c parcialmente independente, que tem cons
ciência de si mesmo a todo instante, como uma atividade imperfeita que alcança-
ria uma atividade mais alta se nào houvesse, interposta entre as duas, alguma
coisa que é a passividade absoluta, exprimiriamos, da intuição original de Berke
ley. tudo o que se pode traduzir imediatamente em conceitos, entretanto teríamos
algo abstrato que seria quase vazio. Atcnhamo-nos a estas fórmulas, já que não
podemos fazer mais do que isto, mas tratemos de insuflar-lhes um pouco jc vida.
Tomemos tudo o que o filósofo escreveu, façamos remontar estas idéias espalha
das à imagem de que descendem, elevemo Ias. encerradas agora na imagem, até a
fórmula abstraia que sc enriquecerá de imagens e de idéias, atenhamo nos então
a esta fórmula e veremos — ela já tão simples —- simplificar-se ainda mais, tor-
nar-sc tanto mais simples quanto mais coisas tivermos levado para cia: clcvemo-
nos enfim com ela. subamos ao ponto em que se concentraria cm tensão tudo o
que estava dado cm extensão na doutrina: representar-nos-emos desta vez como,
deste centro de força, aliás inacessível, parte o impulso que dá o clã. isto é. a pró
pria intuição. As quatro teses dc Berkeley saíram daí. pois este movimento encon
trou cm seu caminho as idéias e os problemas que interessavam os contempo
râneos de Berkeley. Em outra época. Berkeley lería sem dúvida formulado outras
teses: mas. o movimento sendo o mesmo, estas teses sc tenant situado da mesma
forma umas cm relação às outras: manteriam a mesma relação entre si. como
novas palavras, de uma nova frase nas quais continua a viver um antigo sentido:
c teria sido a mesma filosofia.
A relação dc uma filosofia às filosofias anteriores c contemporâneas nào c.
pois, o que nos faria supor uma certa concepção da história dos sistemas. O filó
sofo nào toma idéias pré-existentes para fundi-las numa síntese superior cu para
combiná-las com uma idéia nova. O mesmo seria crer que. para falar, vamos pro
curar palavras que em seguida costuramos por meio de um pensamento. A verda
de é que, sob as palavras c sob a frase, há algo dc muito mais simples qve uma
frase c mesmo que uma palavra: o sentido, que é menos uma coisa pensada do
que um movimento dc pensamento, menos um movimento do que uma direção. E.
da mesma forma que o impulso dado à vida embrionária determina a divisão de
uma célula primitiva em células que sc dividem por sua vez até que o organismo
completo esteja formado, também o movimento característico dc todo alo de pen
samento leva este pensamento, por via dc uma subdivisão crescente de si mesmo,
a esparramar-sc cada vez mais em planos sucessivos do espírito até que a.inja o
da fala. Aí. ele se exprime por uma frase, isto c. por um grupo dc elementos pré
existentes; mas ele pode escolher quase arbitrariamente os primeiros elementos
do grupo, desde que os outros lhes sejam complementares: o mesmo pensamento
sc traduz assim em frases diversamente compostas, em palavras totalmente dife
rentes. desde que estas palavras guardem entre si a mesma relação. Tal é o pro
cesso da fala. E tal é também a operação pela qual sc constitui uma filosofia. O
filósofo não parte de idéias pré-existentes; quando muito podemos dizer que ele
chega a elas. F. quando chega, a idéia assim arrastada no movimento de seu espí
rito, animando-se com uma vida nova como a palavra que recebe da frase o seu
sentido, nào é mais o que era quando fora do turbilhão.
Encontraríamos uma relação do mesmo gênero entre um sistema filosófico e
M BERGSON
do. de uma unidade restrita e relativa, como a que recorta um ser vivo no con
junto das coisas. O trabalho pelo qual a filosofia parece assimilar os resultados
da ciência positiva e. da mesma forma, o trabalho pelo qual uma filosofia parece
reunir cm si os fragmentos dc filosofias anteriores, nào é uma síntese, mas uma
análise.
mos dilatar indefinidamente para trás, recuando cada vez mais a tela qie nos
oculta a nós mesmos; reapreendamos o mundo exterior como ele é. não somente
na superfície, no momento atual, mas em profundidade, com o passado irr.cdiato
que o pressiona e que lhe imprime seu elà: habituemo-nos. numa palavra, a ver
todas as coisas sub specie durationis: imcdiatamcnte o que estava entorpecido se
distende, o adormecido acorda, o morto ressuscita em nossa percepção galvani
zada. As satisfações que a arte somente fornecerá a privilegiados pela natureza e
pela fortuna, e apenas de vez em quando, a filosofia assim entendida oferecerá a
todos, em todos os momentos, reinsufiando a vida nos fantasmas que nos
rodeiam e revivendo a nós mesmos. E assim eia se tomará complementar à ciên
cia tanto na prática quanto na especulação. Com suas aplicações que visam ape
nas à comodidade da existência, a ciência nos promete o bem-estar, até mesmo o
prazer. Mas a filosofia podería já nos dar a alegria.
A consciência c a vida2
* Conferência liuxlcy feita na Universidade de Birmingham, «m 29 dc muio dc 1911. lista conferência foi
pronunciada cm inglês. F.la aparece», ncsia língua, sob o otulo dc “Life and Consciounsess" nc Hibbert
Journal de auiuhro dc 1911; foi reproduzida no volume Huxley .Memorial Lectures publicado cm 1914. O
texto apresentado aqui é a tradução c o desenvolvimento da conferência. (Recolhido em /. Ênergie Spin'
ludle. 1919.)
70 BERGSON
assinalados eram em sua maior parte efeitos de miragens. Mas suponhamos que
o metafísico nào abandone a filosofia pela crítica, o fim pelos meios. Frequente
mente. quando chega diante do problema da origem, da natureza e do destino do
homem, ele passa ao largo para se dirigir a questões que julga mais importantes
c das quais dependería a solução daquelas: ele especula sobre a existência em
geral, sobre o possível c o real, sobre o tempo c sobre o espaço, sobre a espiritua
lidade c a materialidade: depois ele descende, de grau em grau, para a consciência
c a vida, na essência das quais desejaria penetrar. Mas quem nào vê que suas
especulações sào entào puramente abstratas e que sc referem nào às próprias coi
sas. mas às idéias demasiadamentu simples que ele sc faz delas, antes dc lê-las
estudado cmpiricamenic? Nâo explicaríamos o apego de tal ou qual filósofo a um
método tão estranho sc este método não possuísse a tríplice vantagem dc satisfa
zer a seu amor-próprio, facilitar seu trabalho c dar-lhe a ilusão do conhecimento
definitivo. Como ele o conduz a uma teoria muito geral, a uma idéia quase vazia,
o filósofo poderá sempre, mais tarde, colocar retrospcctivamentc na idéia tudo o
que a experiência lhe tiver ensinado sobre a coisa: ele pretenderá então ler anteei
pado a experiência somente pela força do raciocínio, ter antecipadamente abar
cado numa concepção mais vasta as concepções mais restritas, com efeito, mas
as únicas difíceis de formar e úteis dc conservar, às quais chegamos pelo aprofun
damento dos fatos. Como, por outro lado, nada é mais fácil do que raciocinar
geometricamente sobre idéias abstratas, ele constrói sem dificuldade uma dou
trina em que tudo se mantém, e que parece se impor pelo rigor. Mas este rigor de
riva apenas dc que sc operou sobre uma idéia csqucmática rígida, cm vez dc se
guir os contornos sinuosos e móveis da realidade. Como seria preferível uma
filosofia mais modesta, que iria dirctamcnte ao objeto sem sc inquietar corn os
princípios dc que ele parece depender! Fia não mais ambicionaria uma certeza
imediata, que só pode ser efemera. Ela nào se apressaria. Seria uma ascensão gra
dual para a luz. Levados por uma experiência cada vez mais vasta para probabili
dades cada vez mais altas, tenderiamos para a certeza definitiva como para um
limite.
Penso, de minha parte, que nào há princípio de que pudéssemos deduzir
matematicamente a solução dos grandes problemas. Ü verdade que nâo vejo tam
bém um fato decisivo que resolva a questão, como acontece na física ou na quími
ca. Apenas, nas diversas regiões da experiência, creio perceber diferentes grupos
de fatos dos quai.s cada um, sem forncccr-nos o conhecimento desejado, nos mos
tra uma direção para encontrá-lo. Ora. já c alguma coisa ter uma direção. É
muito mais ter muitas, pois estas direções devem convergir para um mesmo
ponto, c este ponto c justamente o que buscamos. Em suma, possuímos desde já
um certo número de linhas de fatos, que não vão tâo longe quanto seria cescjávcl.
mas que podemos prolongar hipoteticamente. Desejaria seguir algumas dessas
linhas. Cada uma. tomada separadamente, nos conduzirá a uma conclusão
simplesmente provável; mas todas juntas, pela sua convergência, nos colocarão
em presença de uma tal acumulação de probabilidades que nos sentiremos, espe
ro. no caminho da certeza. Dela nas aproximaremos, aliás, indefinídamente. pelo
CONFERÊNCIAS 71
esforço comum de boas vontades associadas. Pois a filosofia nao será mais então
uma construção. obra sistemática de um único pensador. Fia comportará, ela ela
mará sem cessar por adições, correções, retoques. Ela progredirá como a ciência
positiva. E será feita, também, em colaboração.
Eis a primeira direção que seguiremos. Quem diz espírito diz. antes de tudo,
consciência. Mas o que é a consciência? É claro que nâo vou definir algo tão con
creto. tão constantemente presente à cxpericncia de cada um de nós. Mas sem dar
da consciência uma definição que seria menos clara do que ela própria, posso
caracterizá-la pelo seu traço mais aparente: consciência significa primeíramente
memória. À memória pode faltar amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte
ínfima do passado: ela pode reter apenas o que acaba de acontecer: mas a memó
ria existe, ou então não existe consciência. Uma consciência que nào conservasse
nada dc seu passado, que se esquecesse sem cessar dc si própria, peieceria c
renascería a cada instante: como definir dc outra forma a inconsciência? Quando
Leibniz dizia que a matéria ê “um espírito instantâneo”, não a declarava, bem ou
mal. insensível? Toda consciência é. pois, memória - conservação c acumula
ção do passado no presente.
Mas toda consciência ê antecipação do futuro. Consideremos a direção de
nosso espírito a qualquer momento: veremos que ele se ocupa do que cie é. mas
sobretudo cm vista do que ele vai ser. A atenção é uma expectativa, e nâo há
consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro lá está: ele nos chama, ou
melhor, ele nos puxa: esta tração ininterrupta, que nos faz avançar na rota do
tempo, é também a causa dc que ajamos contiuuadamcntc. Toda ação c um pene
trar no futuro.
Reter o que já não c. antecipar o que ainda nào é. eis a primeira função da
consciência. Nào havería para ela o presente se este se reduzisse ao instante mate
mático. Este instante c apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado
do futuro: ele pode u rigor ser concebido, nào c jamais percebido: quande cremos
surpreendê-lo. ele já está longe dc nós. O que percebemos de fato é uma certa
espessura dc duração que sc compuc de duas parles: nosso passado imediato e
nosso futuro iminente. Sobre este passado nos apoiamos, sobre este futuro nos
debruçamos; apoiar-sc c dubruçar-se desiti maneira é o que é próprio de um ser
consciente. Digamos, pois, que u consciência é o traço dc união entre o que foi e
o que será, uma ponte entre o passado c o futuro. Mas para que serve esta ponte,
c qual a função que a consciência é chamada a desempenhar?
Para responder a esta questão, pcrgunlcmo nos quais são os seres cons
cientes c ate onde se estende o domínio da consciência na natureza. Mas nào exi
jamos aqui a evidência completa, rigorosa, matemática; nada obteriamos assim.
Para saber com plena certeza se um ser ê consciente, seria preciso penetrar nele,
coincidir com ele, scr ele. Eu os desafio a provar, por experiência ou por raciocí
nio. que cu, que lhes falo neste momento, sou um ser consciente. Eu poceria scr
um autômato engenhosamente construído pela natureza, indo, vindo, falando; as
próprias palavras pelas quais me declaro consciente poderíam ser pronunciadas
inconscientemente. Todavia, sc a coisa nào é totalmentc impossível, conceder-
72 BERGSON
me-ão que ela não c dc forma alguma provável. Entre vocês e eu há uma seme
lhança exterior evidente: c desta semelhança exterior concluirão, por analogia,
uma semelhança interna. O raciocínio por analogia nào dá jamais algo além da
probabilidade: mas há muitíssimos casos cm que esta probabilidade é suficiente-
mente alta para equivaler praticamcntc à certeza. Sigamos, pois, o fio da analogia
c procuremos ver até onde se estende a consciência, em que ponto ela se detém.
Costuma se dizer às vezes: “Em nós. a consciência está ligada a um cérebro:
por isto, é preciso atribuir a consciência aos seres vivos que possuem um cérebro,
c rccu.sá-la aos outros". Mas pcrcebe-se ímediatamente o vício desta argumenta
ção. Raciocinando da mesma maneira, diriamos também: “A digestão está ligada
cm nós a um estômago: por isto os seres vivos que possuem estômago digerem, os
outros nào digerem". Ora. nos enganaríamos gravemente. pois nâo é necessário
possuir estômago, nem mesmo órgãos, para digerir: uma ameba digere, embora
seja uma massa protoplasmática apenas diferenciada. Somente que. na medida
em que o corpo vivo se complica e sc aperfeiçoa, o trabalho se divide: funções
diversas são assinaladas a órgãos diferentes: c a faculdade de digerir se localiza
no estômago c mais gcralmente num aparelho digestivo que cumpre melhor a fun
ção. uma ve? que é só o que tem a fazer. Da mesma forma, a consciência está, no
homem, incontestavelmente ligada ao cérebro: mas nào se segue daí que um cére
bro seja indispensável à consciência. Quanto mais descemos na serie animal,
mais os centros nervosos sc simplificam e se separam uns dos outros: finalmentc.
os elementos nervosos desaparecem, confundidos na massa de um organismo
menos diferenciado: não devemos supor que se. no topo da escala dos seres vivos,
a consciência se fixava cm centros nervosos muito complicados, ela acompanha
o sistema nervoso ao longo desse descenso, e que. quando a substância nervosa
enfim se funde numa matéria viva ainda indifcrcnciada. a própria consciência aí
se espalha, difusa e confusa, reduzida a pouca coisa, mas não reduzida a nada?
Então, a rigor, tudo o que é vivo poderia scr consciente: em princípio, a cons
ciência c cocxtensiva à vida. Mas ela o ú de fato? Nào lhe acontece csvair-sc ou
adormecer? É provável, c eis aqui uma segunda linha dc fatos que nos encami
nhará a esta conclusão.
No scr consciente que melhor conhecemos, é por intermédio do cérebro que
a consciência trabalha. Lancemos, pois, um olhar sobre o cérebro humano, c
vejamos como ele funciona. O cérebro faz parte de um sistema nervoso que
compreende, além do próprio ccrebro. uma moela. nervos, etc. Na moela estão
montados mecanismos, dos quais cada um contém, pronta a se desencadear, tal
ou qual ação complicada que o corpo realizará quando desejar: assim tanbém os
rolos de papel perfurado que colocamos em um piano mecânico desenham anteci
padamente os sons que o instrumento emitirá. Cada um desses mecanismos pode
ser desencadeado diretamente por uma causa exterior: o corpo executa então,
imcdiatamente. como resposta à excitação recebida, um conjunto dc movimentos
coordenados entre sí. Mas há caso.s cm que :i excitação, em lugar dc obter imcdia
tamente uma reação mais ou menos complicada do corpo dirigindo-sc à moela.
sobe primeiramente ao ccrebro. depois desce novamente, e somente faz funcionar
CONFERÊNCIAS 73
za na direção escolhida. Se o.s primeiros seres vivos oscilaram entre a vica vegetal
e a animal, é porque a vida, em seus prímórdios. se encarregava ao mesmo tempo
de fabricar o explosivo c dc uülizá-lo para os movimentos. Na medida cm que
vegetais e animais se diferenciaram, a vida se cindiu cm dois reinos, separando
assim as duas funções primitivamente reunidas. Num ela se preocupava sobre
tudo cm fabricar o explosivo, noutro, cm faze lo detonar. Mas. quer a conside
remos no início ou no término dc sua evolução, a vida, em seu conjunto.é sempre
um duplo trabalho de acumulação gradual e despesa brusca: iraia-se. para ela. de
fazer com que a matéria, por uma operação lenta c difícil, armazene uma energia
dc potência que se tomará repentinamente energia de movimento. Ora. como pro
cedería dc outra maneira uma causa livre, incapaz de escapar à necessidade à
qual a maléria está submetida, porém capaz dc infleti-la, e que desejaria, com a
influencia extremamente pequena de que dispõe sobre a matéria, obter dela, numa
direção cada vez mais escolhida, movimentos cada vez mais potentes? Ela se
comportaria precisamcnte dessa maneira. Ela procuraria nada mais ter a fazer
senão tocar num gatilho ou fornecer uma faísca, utilizar instantaneamente uma
energia que a matéria teria acumulado durante iodo o tempo que fosse necessário.
Mas chegaríamos à mesma conclusão seguindo ainda uma terceira linha dc
fatos, considerando, no ser vivo, n representação que precede o ato e não mais a
própria ação. Através dc que signo reconhecemos ordinariamente o homem dc
ação, aquele que deixa sua marca sobre eventos nos quais a sorte o envolve? Nâo
é pelo fato dc que ele abarca uma sucessão mais ou menos longa numa visão
instantânea? Quanto maior a porção de passado que adere a seu presente. tanto
mais pesada será a massa que ele joga no futuro para comprimir as eventuali
dades que se preparam: sua ação, semelhante a uma flecha, dispara com tanto
mais força para a frente quanto mais sua representação estava vergada para trás.
Ora. vejamos como nossa consciência se comporta diante da matéria que pcrcc
bc: justamente. cm um só dc seus instantes, cia abarca milhões dc estimulações
que são sucessivas para a matéria inerte, c das quais a primeira aparecería à últi
ma como um passado inllnitamcnte longínquo, sc a matéría pudesse recordar.
Quando abro os olhos para fechá-los cm seguida, a sensação dc luz que experi
mento. e que se dá em um dc meus momentos, é a condensação de uma história
extraordinariamente longa que sc desenrola no mundo exterior. Lá estão, suce-
dendo-se umas às outras, trilhões dc oscilações, isto é. uma serie de eventos tal
que. sc a quissesse contar, mesmo com a maior economia de tempo possível, leva
ria milhões de anos. Mas estes eventos monótonos c desinteressantes, que precn
cheriam trinta séculos de uma matéria que se tomasse consciente de s' própria,
ocupam apenas um instante de minha consciência, capaz de contraí-los em uma
sensação pitoresca de luz. Diriamos o mesmo de todas as outras sensações. Colo
cada na confluência da consciência c da matéria, a sensação condensa na dura
ção que nos é própria, e que caracteriza nossa consciência, imensos períodos do
que poderiamos chamar, por extensão, a duração das coisas. Não devemos crer,
então, que. se nossa percepção contrai assim os eventos da maléria. é para que
nossa ação os domine? Suponhamos, por exemplo, que a necessidade inerente à
CONFERÊNCIAS 77
exigências opostas, que seria preciso reconciliar. No inseto, somente & primeira
condição é satisfeita. As sociedades de formigas e de abelhas sâo admiravelmente
disciplinadas e unidas, mas lixadas numa rotina imutável. Se o indivíduo se
esquece de si mesmo, a sociedade também esquece sua deslinação; un e outra,
cm estado dc sonarnbulismo. fazem c refazem indefinidamente a volta do mesmo
círculo, cm lugar dc marchar diretamente para a frente, para uma maicr eficácia
social e uma liberdade individual mais completa. Somente as sociedades humanas
mantem diante dos olhos as duas metas a serem atingidas. Em luta consigo mes
mas e em guerra umas com as outras, elas buscam visivelmente, pelo atrito c pelo
choque, arredondar os ângulos, diminuir os antagonismos, eliminar as contradi
ções. fazer com que as vontades individuais se insiram sem se deformarem na
vontade social c que as diversas sociedades entrem por sua vez. sem perderem sua
originalidade nem sua independência, numa sociedade mais vasta: espetáculo
inquietante e confortador, que não podemos contemplar sem dizer que ainda
aqui, cm meio a um sem-número de obstáculos, a vida trabalha para individua
lizar c para integrar, para obter a maior quantidade, a variedade mais rica, as
mais altas qualidades de invenção e de esforço.
Sc agora abandonamos esta última linha de fatos para voltar à precedente,
se levamos cm conta que a atividade mental do homem ultrapassa sua atividade
cerebral, que o ccrebro armazena hábitos motores mas nào lembranças, que as
outras funções do pensamento sào ainda mais independentes do cérebro do que a
memória, que a conservação e mesmo a intensificação da personalidade sâo
então possíveis e mesmo prováveis depois da desintegração do corpo, não suspei
taremos que. cm sua passagem através da matéria, a consciência se tempera
como o aço c se prepara para uma ação mais eficaz, para uma vida mais intensa?
Esta vida, cu a represento ainda como uma vida de luta e como uma exigência de
invenção, como uma evolução criadora: cada um dc nós viria. aí. ocupar, somen
te pelo jogo das forças naturais, o plano moral em que já virtualmentc o coloca
vam aqui embaixo a quantidade e a qualidade dc seu esforço, como o balão lan
çado da terra adota o nível assinalado pela sua densidade. É apenas, reconheço,
uma hipótese. Estávamos há pouco na região do provável; eis-nos náquela do
simples possível. Confessemos nossa ignorância, mas nào nos resignemos a crc-la
definitiva. Se há para a consciência um além, nào vejo por que nào descobri
riamos o meio de explora lo. Nada do que concerne ao homem poderia estar
definitivamente fora do alcance do homem. Por vezes ensinamentos que nos figu
ramos muito longe, no infinito, estão ao nosso lado, esperando que resolvamos
colhe los. Lembremo-nos do que sc passou em relação a um outro além, o dos
espaços interplanetários. Augusto Comte declarou que a composição química
dos corpos celestes seria para sempre desconhecida. Alguns anos depois, inven-
tou-se a análise espectral, c hoje sabemos, melhor do que se lá tivéssemos ido, dc
que sao feitas a.s estrelas.
A alma c o corpo3
’ r.siu conferência apareceu, juiiuiniemc oom outros estudos de diversos autores, no volume intitulado O
MaiMallsmn Atual da Biblioteca dc Filosofia Científica. publicado sob n direção do Dr. Gustav: t.c Bon
(Editora Flummarion).
84 BERGSON
ricncias anteriores c inHetidos numa direção sempre nova por esta força cons
ciente cuja função parece scr a dc acrescentar incessantemente algo dc novo no
mundo. Sim, cia cria o novo em tomo dela, já que desenha no espaço movimentos
imprevistos, imprevisíveis. E cia cria o novo também no interior dc si mesma,
pois a ação voluntária reage sobre quem a realiza, modifica numa certa medida
o caráter da pessoa dc quem emana e realiza. por uma espécie de milagre, esta
criação dc si por si que parece ser o próprio objetivo da vida humana. Resumin
do. pois, ao lado do corpo que está confinado ao momento presente no tempo e
limitado ao lugar que ocupa no espaço, que se conduz como autômato e reage
mecanicamente às exigências exteriores, apreendemos algo que sc estende muito
mais longe que o corpo no espaço t que dura através do tempo, algo qu: solicita
ou impõe ao corpo movimentos nào mais automáticos e previstos, mas imprevi
síveis e livres: isto, que ultrapassa o corpo por todos os lados e que cria atos ao
se criar continuamente a si mesmo, é o “cu*’. c a “alma", e o espírito — o espírito
sendo precisamcntc uma força que pode tirar dc si mesma mais do que contem,
devolver mais do que recebe, dar mais do que possui. Eis o que cremor ver. Tal
é a aparência.
Dizem-nos: “Muito bem. mas isto é apenas uma aparência. Olhcnos mais
dc perto. E ouçamos a ciência. Primeiramcntc. reconheceremos que esta ’alma* ja
mais opera sem um corpo. Seu corpo a acompanha desde o nascimento até a
morte c. supondo-se que cia seja rcalmente distinta do corpo, tudo sc passa como
se ela estivesse rcalmente ligada a ele inscparavelmcnte. Nossa consciência se
esvai se respiramos clorofórmio: cxalla-sc se bebemos álcool ou café. Uma ligeira
intoxicação pode ocasionar perturbações profundas na inteligência, na sensibili
dade c na vontade. Uma intoxicação durável, como as deixadas pelas doenças
infecciosas, produzirá a alienação. Sc é verdade que não encontramos sempre, na
autópsia, lesões do cérebro nos alienados, ao menos encontramo-las frequente
mente; c. quando não há alteração visível, foi sem dúvida uma alteração química
dos tecidos que causou a doença. Além do mais, a ciência localiza an certas
circunvoluçôes precisas do cérebro certas funções determinadas do espírito, como
a faculdade dc efetuar movimentos voluntários, dc que sc falou há pouco. Lesões
cm tal ou tal ponto da zona rolândica. entre o lóbulo frontal c o parietal, acarre
tam a perda de movimentos do braço, da perna, do rosto, da língua. Mesmo a
memória, que é lida como função essencial do espírito, pôde scr localizada em
parte: junto à terceira circunvoluçào frontal esquerda estão as lembranças dos
movimentos de articulação da fala: numa região que compreende a primeira e a
segunda circunvoluçôes temporais esquerdas conservam-se as lembranças do som
das palavras; na parte posterior da segunda circunvoluçào parietal esquerda
estão depositadas as imagens visuais das palavras e das letras, etc. Vanos mais
longe. Foi dito que. tanto no espaço quanto no tempo, a alma ultrapassa o corpo
ao qual está ligada. Vejamos em relação ao espaço. E verdade que a vista e o ou
vido ultrapassam os limites do corpo; mas por que? Porque ns vibrações vindas
de longe impressionaram o olho c o ouvido, foram transmitidas ao cérebro: no cé
rebro. a excitação tornou-se sensação auditiva ou visual: a percepçâo ê, pois, inte
CONFERÊNCIAS 85
menos. que a roupa c o botão sejam a mesma coisa. Assim, a consciência está
inconrestavelmentc acoplada a um ccrebro. mas nâo resulta de nenhum modo
disto que o cérebro desenhe todos os detalhes da consciência, nem que a cons
ciência seja uma função do ccrebro. Tudo o que a observação, a experiência e.
consequentemente, a ciência nos permitem afirmar é a existência dc uma certa
relação entre o cérebro e a consciência.
Qual é esta relaçào? É aqui que podemos perguntar se a filosofia nos deu o
que tínhamos o direito de esperar dela. À filosofia pertence a tarefa de estudar a
vida da alma cm todas as suas manifestações. Exercítando-sc na observação inte-
rior. o filósofo deveria descer até o fundo de si mesmo, depois, retornando à
superfície, seguir o movimento gradual pelo qual a consciência se distende, se
estende, prepara-sc para evoluir no espaço. Assistindo a esta materialização
progressiva, espiando as maneiras pelas quais a consciência se exterioriza. ele
obleria ao menos uma intuição vaga do que pode scr a inserção do espírito na
matéria, a relação entre o corpo e a alma. Seria apenas, sem dúvida, um primeiro
clarão, nada mais. Mas este foco de hiz nos dirigiría por entre os inumeráveis
fatos de que dispõem a psicologia e a patologia. Estes fatos, por sua vez. corri
gindo c completando o que a experiência interna poderia ter de defeituoso ou dc
insuficiente, retificariam o método dc observação interior. Assim, pelas idas e
vindas entre dois centros dc observação, um interior, outro exterior, obtenamos
uma solução cada vez mais aproximada do problema — jamais perfeita, como
pretendem ser frequentemente as soluções do metafísico, mas sempre aperfei-
çoávcl. como as do cientista. £ verdade que do interior teria vindo o primeiro
impulso, à visão interior teríamos pedido o principal esclarecimento: e esta é a
razão pela qual o problema permanecería o que ele deve ser. um problema de
filosofia.
Mas o metafísico nào desce facilmente das alturas cm que gosta dc sc man
ter. Platão convidava-o a voltar-se para o mundo das Idéias. £ aí que ele sc insta
la dc boa vontade, frequentando os puros conceitos, levando-os a concessões recí
procas. conciliando-os hem ou mal entre si. exercendo neste meio distinto uma
sábia diplomacia. Ele hesita em entrar em contato com os fatos, sejam quais
forem, com maior razão os fatos tais como doenças mentais: acreditaria sujar as
mãos. Em suma, a teoria que a ciência tinha o direito de esperar da filosofia —
teoria flexível, perfective!, calçada no conjunto dos fatos conhecidos —. a filoso
fia nâo quis ou nào soube lhe dar.
Entào. muito naturalmeinc. o cientista sc disse: "Já que a filosofia não me
solicita, com fatos e razões cm apoio, que limite de tal ou tal maneira determi
nada. cm tais e tais pontos determinados, a suposta correspondência entre o men
tal e o cerebral, agirei provisoriamente como se a correspondência fosse perfeita
e como se houvesse equivalência ou mesmo identidade. Eu. fisiologista. com os
meios dc que disponho — observação e experimentação puramente exteriores —.
apenas vejo o cérebro e apenas posso apreender o ccrcbro; vou cmâo proceder
como se o pensamento nào fosse mais do que uma função do cérebro; assim,
avançarei com mais audácia, terei mais chances de chegar mais longe. Quando
8ft BERGSON
como Lamcttric. Helvétius. Charles Bonnet. Cabanis. cujas ligações com o carte-
sianismo são bem conhecidas, trouxeram para a ciência do século XIX c que ela
podería melhor utilizar da metafísica do século XVII. Então, comprcendc-sc que
os cientistas que atualmente filosofam acerca da relação entre o psíquico e o físi
co adiram à hipótese do paralelismo: os metafísicos nâo lhes forneceram outra
coisa. Admito ainda que eles prefiram a doutrina paralclista a todas aquelas que
se podería obter pelo mesmo método de construção a priori: encontram nesta filo
sofia o encorajamento para ir adiante. Mas que algum dentre eles nos venha dizer
que se trata de ciência, que c a experiência que nos revela um paralelismo rigo
roso c completo entre a vida cerebral c a vida mental, isto não! nós o deteremos
e lhe responderemos: você pode, sem dúvida, você, cientista, sustentar esta tese,
como o metafísico a sustenta, mas não é mais o cientista que fala, ê o metafísico.
Vocc nos devolve simplesmente o que lhe havíamos emprestado. A doutrina que
vocè traz, nós a conhecemos: fomos nós que a fabricamos: e é uma mercadoria
bem velha. Ela nào vale menos por isto, c claro; mas também nào sc torna
melhor. Tomemo Ia pelo que ela é. e nào a façamos passar por um resultado da
ciência, por uma teoria modelada nos fatos c capaz de se remodelar sobre cies
uma doutrina que. antes mesmo da cclosào de nossa psicologia c dc nossa fisiolo
gia. tomou a forma perfeita c definitiva pela qual sc reconhece uma construção
metafísica.
Tentaremos, então, formular a relação entre a atividade mental e a cerebral
tal qual ela aparecería se descartássemos toda idéia preconcebida para levar em
conta apenas os fatos conhecidos? Uma fórmula deste gênero, necessariamente
provisória, só poderá pretender a uma probabilidade mais ou menos alta. Ao
menus a probabilidade será suscetível dc crescimento, c a fórmula, dc tornar-se
cada vez mais precisa na medida em que se estender o conhecimento dos fatos.
Direi, pois, que um exame atento da vida do espirito c dc seu acompanha
mento fisiológico me leva a crer que o senso comum tem razão, c que há infinita
mente mais, numa consciência humana, do que no cérebro correspondente. Eis
grosso modo, a conclusão a que chego. * Quem pudesse observar o interior dc um
cérebro em plena atividade, seguir o vaivém dos átomos a interpretar tudo o que
eles fazem, saberia sem dúvida alguma coisa do que se passa no espínio. mas
sabería pouca coisa. Conhecería justamente o que é cxprimtvel em gestos, atitu
des e movimentos do corpo, o que o estado de alma contém de ação em vias dc
realização, ou simplesmente nascente: o restante lhe escaparia. Ele estaria, diante
dos pensamentos e dos sentimentos que se desenrolam no interior da consciência,
na situação do espectador que ve distintamente tudo o que os atores fgzem em
cena, mas não ouve uma palavra do que dizem. Sem dúvida, o vaivém dos atores,
seus gestos c suas atitudes, têm sua razão de ser na peça que interpretam: c sc
conhecéssemos o texto, poderiamos quase prever o gesto: mas a recíproca nào é
verdadeira, e o conhecimento dos gestos apenas nos informa muito pouco sobre
■* Para u descnvolvimeiuo deste pomo, ver noxso livro Aíaiièrc ei Mémoirc, Paris. 1896 (principalmeme o
segundoe lerccirn c.tpítiiln<).
90 BERGSON
a peça, por que há muito mais, numa fina comédia, do que os movimemos pelos
quais a escandimos. Assim, creio que se nossa ciência do mecanismo cerebral
fosse perfeita, e perfeita também nossa psicologia, poderiamos adivinhar o que se
passa no ccrebro através dc um estado de alma determinado: mas a operação
inversa seria impossível, pois teríamos que escolher, para um mesmo estado do
ccrcbro. entre uma multidão de estados dc alma, igualmente apropriados.8 Nâo
digo, notem bem, que um estado de alma qualquer poderia corresponder a um
dado estado cerebral: numa moldura, nâo sc pode colocar qualquer quadro: a
moldura determina alguma coisa do quadro, eliminando antecipadamente todos
aqueles que nào possuem a mesma forma e a mesma dimensão; mas. satisfeitas as
condições de forma c dimensão, o quadro caberá na moldura. Da mesma forma
em relação ao cérebro e à consciência. Contanto que as ações rclativamcnte sim
ples — gestos, atitudes, movimentos — nas quais se degradaria um estado de
alma complexo sejam justamente as que o cérebro prepara, o estado mental se
inserirá exatamente no estado cerebral: mas há uma grande quantidade dc qua
dros diferentes que caberíam muito bem na moldura: c. consequentemente, o ccre
bro nào determina o pensamento; c. consequentemente o pensamento, ao menos
cm larga medida, é independente do ccrebro.
O estudo dos fatos permitirá descrever com uma precisão crescente este
aspecto particular da vida mental que é apenas esboçado, pensamos, na atividade
cerebral. Trata-se da faculdade de perceber e de sentir? Nosso corpo, inserido no
mundo material, recebe excitações às quais deve responder por movimentos apro
priados; o cérebro c, aliás, o sistema cércbro espinhal em geral preparam estes
movimentos; mas a percepção é coisa totalmcnte diferente.® Trata-se da facul
dade dc querer? O corpo executa movimentos voluntários graças a certos meca
nismos, totalmcnte montados no sistema nervoso, que só esperam um sinal para
sc desencadearem; o cérebro c o ponto de onde parte este sinal e mesmo o desen-
cadeamento. A zona rolândiea. onde sc localizou o movimento voluntário, é. com
efeito, comparável à alavanca da agulha dc onde o manobrista lança cm tal ou tal
direção o trem que chega; ou ainda c um comulador, pelo qual uma dada excita
ção exterior pode ser posta cm comunicação com um dispositivo motor à vonta
de; mas. ao lado dos órgãos do movimento e do órgão de escolha, hâ outra coisa,
há a própria escolha. Trata-se enfim do pensamento? Quando pensamos, é raro
que não falemos conosco mesmos: esquematizamos ou preparamos, sc nâo os
executamos cfctivamcntc. os movimentos dc articulação pelos quais se exprimiría
nosso pensamento: e qualquer coisa deve desenhar-sc já no cérebro. Mas nào se
limita a isto, cremos, o mecanismo cerebral do pensamento: por trás dos movi
mentos interiores de articulação, que aliás nào sao indispensáveis, há qualquer
coisa de mais sutil, que é essencial. Falo dos movimentos nascentes que indicam
simbolicamente todas as direções sucessivas do espírito. Notemos que o pensa
* Ainda assim estes estados só poderíam scr representados vagamente. grOMciramenie. uma vez que iodo es
indo dc alma determinado de uma pessoa é. em seu conjunto. algo dc imprevisível e de novo.
“ Ver. acerca deste ponto. Malièrc et Mèmatre. capítulo primeiro.
CONFERÊNCIAS 91
mento real, concreto, vivo, c coisa dc que os psicólogos têm falado muito pouco
até aqui, porque ele dificilmente se presta à observação interior. O que se estuda
ordinariamente sob este nome c menos o pensamento cm si mesmo do que uma
imitação artificial obtida pela composição de imagens e de idéias. Mas com ima
gens. e mesmo com idéias, não reconstituiremos o pensamento, da mesma forma
que nào constituiremos o movimento com um conjunto dc posições. A idéia é
uma imobilizaçào do pensamento; ela nasce quando o pensamento, cm vez de
continuar seu caminho, faz uma pausa c volta-se sobre si mesmo: da mesma
forma, o calor surge na bala que encontra um obstáculo. Mas. assim como o
calor não preexistia na bala, a idéia tampouco fazia parte integrante do pensa
mento. Tentemos, por exemplo, colocando lado a lado as idéias de calor, de pro
dução, de bala, e ai intercalando as idéias de tnierioridade c dc reflexão implica
das nas palavras “na” e “se”, reconstituir o pensamento que acabo de exprimir
por esta frase: “O calor sc produz na bala”. Veremos que isto c impossível, que
o pensamento era um movimento indivisível, c que as idéias correspondentes a
cada uma das palavras sào simplesmente representações que surgiriam no espí
rito a cada instante do movimento do pensamento se o pensamento sc imobili
zasse; mas ele nào sc imobiliza. Deixemos de lado. pois, as reconstruções artifi
ciais do pensamento; consideremos o próprio pensamento; encontraremos nele
menos estados do que direções, e veremos que ele c essencialmente uma mudança
contínua de direção interior, a qual tende sem cessar a sc traduzir por mudanças
de direção exterior, isto c. por ações e gestos capazes dc desenhar no espaço c dc
exprimir metaforicamente, dc alguma forma, as idas c vindas do espírito.
Frequentemente não percebemos estes movimentos esboçados, ou inesmo
simplesmente preparados, porque nào temos nenhum interesse cm conhece los;
mas c forçoso que os notemos quando seguimos de perto nosso pensamento para
apreendê-lo totalmcnte vivo e para faze-lo passar, vivo ainda, para a alma dc
outrem. As palavras, cntào, poderão ser bem escolhidas, elas nào dirão o que que
remos que digam se o ritmo, a pontuação e toda a coreografia do discurso não as
ajudarem a obter do leitor, guiado então por uma série de movimentos nascentes,
que ele descreva uma curva de pensamento c dc sentimento análoga àquela que
nós mesmos descrevemos. Aí está toda a arte dc escrever. É semelhante à arte do
músico; mas nào acreditemos que a música dc que sc trata aqui seja dirigida
simplesmente ao ouvido, como se imagina ordinariamente. Um ouvido estran
geiro. por mais habituado que esteja à música, nào fará diferença entre a prosa
francesa que achamos musical c a que não o c. entre o que está perfeitamente
escrito cm francês e o que o está apenas aproximativamente: prova evidente de
que se trata dc coisa totalmcnte diferente de uma harmonia material de sons. Na
realidade, a arte do escritor consiste sobretudo cm nos fazer esquecer que ele
emprega palavras. A harmonia que ele busca é uma certa correspondência entre
as idas e vindas dc seu espírito e as de seu discurso, correspondência tão perfeita
que. levadas pela frase, as ondulações de seu pensamento se comunicam ao nosso
c, então, cada uma das palavras, tomadas individualmente, não mais importa: há
somente o sentido movente que atravessa as palavras, somente dois espíritos que
92 BERGSON
va, no início desta conferência, como o estudo das moléstias da linguagem levou
a localizar cm tais ou quais circunvoluçôes do cérebro tais ou quais formas da
memória verbal. Desde Broca, que havia mostrado como o esquecimento dos
movimentos dc articulação da palavra podia resultar de uma lesão da terceira
circunvoluçào frontal esquerda, uma teoria cada vez mais complicada da afasia c
dc suas condições cerebrais sc cdificou laboriosamente. Aliás, teríamos muito a
dizer acerca desta teoria. Cientistas dc indiscutível competência combatcm-na
atualmente, apoiando-se numa observação mais atenta das lesões cerebrais que
acompanham as moléstias da linguagem. Nós mesmos, há ccrca dc vinte anos (se
lembramos o fato, nào é para tirar vantagem, é para mostrar que a observação
interior pode sobrepujar métodos que se acredila sejam mais eficazes), havíamos
sustentado que a doutrina, então tida por intocável, tinha ao menos necessidade
de ser remanejada. Mas pouco importa! Há um ponto acerca do qual todos estão
de acordo: as doenças da memória das palavras são causadas por lesões do cére
bro mais ou menos nitidamente localiz.áveis. Vejamos, pois, como este -csultado
é interpretado pela doutrina que faz do pensamento uma função do cérebro, e
mais gcralmente por aqueles que creem num paralelismo ou numa equivalência
entre o trabalho do cérebro e o do pensamento.
Nada mais simples que sua explicação. As lembranças lá estão, acumuladas
no cérebro soh forma dc modificações impressas num grupo de elementos anatô
micos: se elas desaparecem da memória, c porque os elementos anatômicos cm
que repousavam foram alterados ou destruídos. Falavamos há pouco d: clichês,
de fonogramas: tais sào as comparações que encontramos cm todas as explica
ções cerebrais da memória; as impressões feitas pelos objetos exteriores subsisti
ríam no cérebro, como na placa sensibilizada ou no disco fonográfico. Obser
vando dc perto, veriamos quanto estas comparações são enganosas. Se
verdadeiramente minha lembrança visual dc um objeto, por exemplo, fosse uma
impressão deixada por este objeto cm meu cérebro, nào teria jamais a lembrança
de um objeto, mas dc milhares, dc milhões: pois o objeto mais simples c mais
estável muda de forma, de dimensão, de nuance, conforme o ponto do qual o per
ccbo: a menos que mc condene a uma absoluta fixidez ao olhá-lo. a menos que
meu olho se imobilize cm sua órbita, imagens inumeráveis, dc forma alguma
sobreponíveis. sc desenharão alternativamente em minha retina e serào transmi
tidas ao meu ccrebro. Que acontecerá, sc sc trata da imagem visual de uma pes
soa. cuja fisionomia muda, cujo corpo é móvel, cuja vestimenta e o meio são dife
rentes cada vez que a vejo? E, entretanto, é incontestável que minha consciência
me apresenta uma imagem única, ou quase isto, uma lembrança praiicamcntc
invariável do objeto ou da pessoa; prova evidente de que ocorreu coisa totalmcnte
diferente dc um registro mecânico. Diría o mesmo de uma lembrança auditiva. A
mesma palavra articulada, por pessoas diferentes, ou pela mesma psssoa em
momentos diferentes, em frases diferentes, produz fonogramas que nào coincidem
entre si: como a lembrança, relativamcntc invariável e única, do som da palavra
seria comparável a um fonograma? Somente esta consideração bastaria para
fazer com que suspeitássemos da teoria que atribui as moléstias da memória das
CONFERÊNCIAS 95
menie seu auxílio, deverá, pois, se limitar a casos cada vez mais fáceis à medida
que sc agravar a lesão do ccrcbro. Mas de que provém a maior ou menor dificul
dade de lembrar? E por que sao os verbos, dentre todas as palavras, aquelas que
recordamos mais facilmente? É simplesmente porque os verbos exprimem ações
e uma ação pode ser mimetizada. O verbo ê mimetizável dirctamcnic, o adjetivo
só o é por intermédio do verbo que envolve, o substantivo pelo duplo intermédio
do adjetivo que exprime um dc seus atributos e do verbo implicado no adjetivo:
o nome próprio exige três intermediários, o substantivo comum, o adjetivo e
ainda o verbo; assim, pois, à medida que vamos do verbo ao nome próprio, afas-
lamo-nos mais da ação imediatamente imitávcl. rcpresentável pelo corpo: um
artificio cada vez mais complicado torna-se necessário para simbolizar com
movimento a idéia expressa pela palavra que procuramos: e como c ao ccrcbro
que incumbe a tarefa de preparar esses movimentos, como seu funcionamento
fica tanto mais diminuído, reduzido, simplificado neste ponto, quanto mais
profundamente lesada houver sido a região interessada, nada há de surpreendente
em que uma alteração ou uma destruição de tecidos, que toma impossível a evo
cação de nomes próprios ou substantivos comuns, deixe subsistir a do verbo.
Aqui, como alhures, os fatos nos convidam a ver na atividade cerebral um extrato
mimetizado da atividade mental, e não um equivalente desta atividade.
Mas. sc a lembrança não foi armazenada no cérebro, onde se conserva? Na
verdade, nào estou certo dc que a questão “onde” possua ainda um sentido quan
do nào sc fala mais dc corpos. Clichês fotográficos sc conservam numa caixa, dis
cos fonográficos num armário; mas por que lembranças, que nào são coisas visí
veis c tungiveis, necessitariam um recipiente, c como poderíam tê-lo? Aceitaria,
sc se insiste nisto, mas tomando a num sentido puramente metafórico, a idéia de
um recipiente onde as lembranças seriam alojadas, e diria cntào. muilu simples
mente, que elas estão no espírito. Não faço hipótese, nuo evoco uma entidade
misteriosa, atenho-mc à observação, pois não há nada de mais imed atamente
dado, nada dc mais evidcnicmcntc real do que a consciência, c o espírito humano
é a própria consciência. Ora. consciência significa antes de tudo memória. Neste
momento eu converso com os senhores, pronuncio a palavra “conversação”. É
claro que minha consciência representa esta palavra dc uma só vez; caso contrá
rio. ela náo veria aí uma palavra única, ela nào lhe atribuiría um sentido. Entre
tanto, quando articulo a última sílaba da palavra, as ires primeiras já furam arti
culadas; elas estão no passado em relação à última, que deveria entãc estar no
presente. Mas esta última sílaba “ção”, nâo a pronuncio instantaneamente; o
tempo, por mais curto que seja, durante o qual eu a emiti, é decomponível cm par
les. e estas panes estão no passado cm relação à última delas, que estaria no pre
sente definitivo, se nâo fosse por sua vez decomponível: de maneira que. por mais
que tentemos, não podemos traçar uma linha dc demarcação entre o passado e o
presente, nem. consequentemente, entre a memória e a consciência. Na verdade,
quando articulo a palavra “conversação” tenho presente no espírito nào somente
o começo, o meio e o fim da palavra, mas ainda as palavras que a precederam,
mas ainda tudo o que já pronunciei na frase: caso contrário, teria perdido o fio de
CONFERÊNCIAS 97
IINTRODUÇÃO)
to. então, que medimos. Mas. no caso do tempo, a idéia de sobreposição implica
ria um absurdo, porque lodo efeito da duração que seria sobreposto a si mesmo,
e consequentemente mensurável, teria como essência a propriedade de não durar.
Sabíamos bem. desde os anos dc colégio, que a duração se mede pela trajetória de
um móvel c que o tempo matemático c uma linha: mas não havíamos ainda nota
do que esta operação decide radicalmcntc acerca de todas as outras operações dc
medida, porque ela não se realiza sobre um aspecto ou sobre um efeito represen
tativo daquilo que se quer medir, mas sobre algo que o exclui. A linha que medi
mos é imóvel, o tempo ê mobilidade. A linha c o feito, o tempo c o que se faz e
mesmo o que faz com que tudo se faça. Jamais a medida do tempo sc relaciona
à duração enquanto tal: contamos somente um certo número de extremidades de
intervalos ou de momentos, quer dizer, em suma, de paradas virtuais do tempo.
Dizer que um evento sc produzirá ao fím dc um tempo t c simplesmente exprimir
que teremos contado, daqui até lá. um número t de simultaneidadcs dc um mesmo
gênero. Entre as simullancidadcs se passará tudo o que quisermos. O tempo pode
râ acelerar-sc enormemente, c mesmo infinitamente: nada terá mudado para o
matemático, para o físico, para o astrônomo. Entretanto, seria profunda a dife
rença para o olhar de uma consciência (digo, naturalmcnic. dc uma consciência
que não seria solidária dos movimentos intraecrebrais): nao havería mais para
cia. do dia para a noite, de uma hora para a seguinte, a mesma fadiga da espera.
Desta espera determinada, e de sua causa exterior, a ciência não pode dar conta:
mesmo quando ela sc relaciona ao tempo que sc desenrola ou que sc desenrolará,
ela o traw como se ele já tivesse passado. E isto, aliás, c natural. Sua função é
prever. Ela extrai e retém do mundo material o que c suscetível de se repetir c de
ser calculado, consequentemente, o que não dura. E assim, ela nào faz mais do
que seguir a direção do senso comum, que já c um começo dc ciência: quando
falamos do (empo, comumente. pensamos na medida da duração c nào na dura
ção mesma. Mas esta duração, que a ciência elimina, que c difícil dc conceber e
de exprimir, nós a sentimos c vivemos. Se procurarmos saber o que da é, como
aparecería a uma consciência que desejaria apenas vê-la — c nao mcdi-la, que a
agarraria sem imobilizá Ia. que sc tomaria a si mesma por objeto, c que, cxpcctu
dora e atriz, espontânea e refletida, aproximaria até fazer coincidir a atenção que
sc fixa c o tempo que escapa?
Tal era a questão. Através dela penetramos no dominio da vida interior, no
qual ate então nào estávamos interessados. Bem depressa reconhecemos a insufi
ciência da concepção associacionista do espírito. Esta concepção, na época
comum à maior parte dos psicólogos e dos filósofos, era o efeito de uma recom
posição artificial da vida consciente. O que nos daria uma visão direta, imediata,
sem a intcrposiçào dc preconceitos? Longa série de reflexões e análises nos fez
descartar um a um todos os preconceitos, abandonar muitas idéias que havíamos
aceito sem critica*, finalmente cremos reencontrar a duração interior cm sua pure
za. continuidade que não é nem unidade nem multiplicidade, e que não entra cm
nenhum dc nossos quadros. Que a ciência positiva não se tenha interessado por
esta duração era algo bem natural, pensavamos. Sua função é precisamente, tal
0 PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 103
lutos. que nós mesmos produzimos. Desta vez temos a mobilidade cm sua essên
cia, e sentimos que ela sc confunde com um esforço cuja duração c uma continui
dade indivisível. Mas como um certo espaço terá sido transposto, nossa
inteligência, que busca por toda parte a fixidez. supõe ao cabo que o movimento
se aplicou a este espaço (como sc ele pudesse coincidir — ele. movimento — com
a imobilidade!) e que o móvel está, de cada vez. cm cada um dos pontos da linha
que ele percorre. Quando muito pode-se dizer que ele teria estado se tivesse para
do antes, sc tivéssemos feito, cm vista dc um movimento mais curto, um esforço
totalmcnte diferente. Para se chegar a ver no movimento uma série dc posições
basta um passo; a duração do movimento se decomporá então cm “momentos"
correspondentes a cada uma das posições. Mas os momentos do tempo e as posi
ções do móvel são apenas instântaneos tomados por nosso entendimento na
continuidade do movimento c da duração. Com essas visões justapostas lcm-sc
um sucedâneo prático do tempo c do movimento que serve às exigências da lin
guagem c que se espera que sirva ás do cálculo; mas nada mais se tem do que
uma recomposição artificial. O tempo e o movimento são outra coisa.1
Diremos o mesmo da mudança. O entendimento a decompõe cm estados
sucessivos c distintos, supostamente invariáveis. Considere-se de mais perto cada
um desses estados, pcrcebcr-se-á que eles variam; como poderíam durar sc nào
mudassem, perguntamos? O entendimento os substitui por uma série dc estados
menores, que se decomporão por sua vez, sc necessário, c assim indefinidamente.
Como, entretanto, não ver que a essência da duração está cm fluir, c qcc com o
estável acoplado ao estável nâo sc fará jamais algo que dure? O real não sâo os
“estados", simples instantâneos tomados por nós, ainda uma vez, ao longo da
mudança: é. ao contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança cia
mesma. Esta mudança é indivisível, e mesmo substancial. Sc nossa inteligência sc
obstina em tê-la por inconsistente, a ajuntarlhe nào sei que suporte, é porque a
substituímos por uma serie dc estados justapostos: mas esta multiplicidade c arti
ficial. c artificial também a unidade que aí restabelecemos. O que há é um pro
gresso ininterrupto de mudança — uma mudança sempre aderente a s- mesma
numa duração que sc alonga sem fim.
Essas reflexões faziam nascer cm nosso espirito muitas dúvidas e ao mesmo
tempo grandes esperanças. Dizíamo-nos que os problemas metafísicos haviam
sido, talvez, mal formulados, mas que. precisamente por esta razão, nào havia
mais por que tê los como “eternos", isto c. insolúveis. A metafísica nasceu no dia
cm que Zenào de Eléia assinalou as contradições inerentes ao movimento e à
mudança, tais como nossa inteligência os representa. Ultrapassar, contornar, por
um trabalho intelectual mais e mais sutil, essas dificuldades levantadas pela
representação intelectual do movimento c da mudança, tal foi o principal esforço
dos filósofos antigos c modernos. Assim, a metafísica foi levada a procurar a rea-
' Sc o cinemíiipgrálico nos mosira cm movimento, na ich. vistas i moveis justapostas no filme, é sob a condi-
çào Jc projetar ncsia tela, por assim dúcr. wm csias pioprias vistas imóveis, o movimento que está no apa-
tellw.tN.do A.)
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 105
lidade das coisas acima do tempo, além do que sc move, do que muda,
consequentemente, fora daquilo que nossos sentidos c nossa consciência perce
bem. Desde então, ela não podería ser mais do que um cncadeamento mais ou
menos artificial de conceitos, uma construção hipotética. Pretendia ultrapassar a
experiência: na realidade, apenas substituía à experiência móvel e plena, susce
tível de um aprofundamento crescente, repleta, por isto, dc revelações, um extrato
fixo. scco. vazio, um sistema de idéias gerais abstratas, tiradas desta mesma expe
riência. ou antes, de suas camadas mais superficiais. Seria o mesmo que cissertar
sobre o invólucro donde sairá a borboleta, c pretender que a borboleta voando,
transformando-se. vivendo, tenha sua razão de ser c sua perfeição na imutabili
dade daquela película. Afastemos, ao cuntrário. o invólucro. Libertemos a crisá
lida. Rcsütuamos ao movimento sua mobilidade, à mudança sua fluidez. ao
(empo sua duração. Quem sabe se os “grandes problemas” insolúveis não ficarão
na película? Eles nào diziam respeito nem ao movimento, nem à mudança, nem
ao tempo, mas somente ao invólucro conceituai com o qual falsamcntc os confun
díamos ou tomavamos por equivalente. A metafísica tornar-.sc-á então a própria
experiência. A duração revelar sc â criação continua, ininterrupto jorro de
novidade.
Pois é isto que nossa representação habitual do movimento e da mudança
nos impede de ver. Se o movimento é uma série de posições e a mudança uma
série de estados, o tempo c leito de partes distintas c justapostas. Sem dúvida,
dizemos ainda que elas sc sucedem, mas esta sucessão é semelhante à das ima
gens de um filme cinematográfico: o filme podería passar dez. cem. mi( vezes
mais depressa sem que nada fosse modificado: sc cie sc desenrolasse a uma velo
cidade infinita, se o desenrolar (desta vez fora do aparelho) sc tornasse instantâ
neo. seriam ainda as mesmas imagens. A sucessão assim entendida não acres
centa nada; uo contrário, ela suprime alguma coisa: marca um deficit; traduz
uma deficiência de nossa percepção, condenada a detalhar o filme, imagem por
imagem, cin vez. dc aprccndc lo globalmcntc. Em suma, o tempo assim conside
rado não é mais do que um espaço ideal onde supomos alinhados iodos os
acontecimentos passados, presentes c futuros, que estão, ainda mais, impedidos
dc aparecer-nos cm bloco: o fluir da duração seria esta própria imperfeição, a
adição de uma quantidade negativa.
Assim pensa, consciente ou inconscientcmcnte, a maior pane dos filósofos,
cm conformidade, aliás, com as exigências do entendimento, as necessidades da
linguagem e o simbolismo da ciência. Nenhum deles buscou, com referência ao
tempo, atributos positivos. Tratam a sucessão como uma coexistência falhada, e
a duração como uma privação de eternidade. É por isto que nào conseguem
nunca, por mais que tentem, rcprcscntar-sc a novidade radical, a imprevisibi-
lidade. Nào falo apenas dos filósofos que acreditavam num cncadeamento tâo
rigoroso dos fenômenos c dos eventos que os efeitos deveriam ser deduzidos das
causas: estes imaginaram que o futuro está dado no presente, que ele c teorica
mente visível, que, consequentemente, não trará nada de novo. Mas mesmo aque
les. cm número muito reduzido, que creram no livre arbítrio, reduziram no a uma
106 BERGSON
simples “escolha” entre duas ou entre várias opções, como se estas fessem os
“possíveis” que se mostrassem antecipadamente, e como se a vontade se limitasse
a “realizar” um deles. Admitem ainda, pois, mesmo que disto não se deem conta,
que tudo está dado. Parecem, portanto, não fazer idéia alguma de uma ação que
fosse inteiramente nova (ao menos interiormente) e que não preexistisse de forma
alguma, nem mesmo como puro possível, à sua realização. E tal é, entretanto, a
ação livre. Mas para percebê-la assim, como dc resto para figurar qualquer cria
ção, novidade ou imprevisibilidade. é preciso recolocar se no plano da pura
duração.
Tentemos, com efeito, representar-nos hoje a ação que realizaremos ama
nhã. sabendo, mesmo, tudo o que temos a fazer. Nossa imaginação evoca talvez
o movimento a executar: mas acerca do que pensaremos e sentiremos ao exccu
tá Io nada podemos saber hoje, porque nosso estado de espírito conterá, amanhã,
tudo o que tivermos vivido até lá. c mais o que será acrescentado por aquele
momento em particular. Para preencher antecipadamente este estado com o con
teúdo que ele deve ter. nos seria preciso exatamente o tempo que separa hoje de
amanhã, porque não podemos diminuir um só segundo da vida psicológica, sem
modificar-lhe o conteúdo. Podemos diminuir a duração dc uma melodia sem alte
rá-la? A vida interior é esta melodia. Assim, pois, mesmo supondo o que faremos
amanhã, apenas podemos prefigurar da ação a sua configuração exterior. Todo
esforço para imaginá-la interiormente ocupará uma duração que, progressiva
mente alongada, nos conduzirá até o momento da realização do ato. c aí não sc
trata mais dc previsão. Como será, então, no caso dc uma ação verdadeiramente
livre, quer dizer, totalmente criada, tanto cm seus contornos exteriores quanto na
sua coloração interna, nu momento cm que se realiza?
A diferença c, pois, radical entre uma evolução cm que as fases contínuas sc
interpenetram por uma espécie de crescimento interior, c um desenvolvimento cm
que partes distintas se justapõem. O leque que sc desdobra poderá abrir-se cada
vez mais depressa, e mesmo instantaneamente; ele mostrará sempre o mesmo
desenho, já inscrito na seda. Mas uma evolução real, por pouco que se acelere ou
se abrande seu ritmo, modifica sc totalmcntc. interiormente. A velocidade dc seu
ritmo ê justamente essa modificação interna. Seu conteúdo e sua duração são
uma e u mesma coisa. É bem verdade que. ao lado da consciência que vive esta
duração irreversível, há os sistemas materiais sobre os quais o tempo apenas des
liza. Dos fenômenos que neles sucedem podemos realmente dizer que são o
abrir-se de um leque, ou melhor, o desenrolar de um filme cinematográfico.
Calculáveis antecipadamente, eles preexistem, sob a forma de possíveis, à sua
realização. Tais são os sistemas estudados pela astronomia, pela física e pela quí
mica. O universo material, em seu conjunto, forma um sistema desse gênero?
Quando nossa ciência o supõe, ela deixa simplesmente de lado, no universo, tudo
o que não ê calculável. Mas o filósofo, que nada quer deixar de lado, é obrigado
a constatar que os estados do mundo material são contemporâneos da história dc
nossa consciência. Ecomo esta dura, c necessário que os estados do mundo mate
rial se relacionem de alguma forma à duração real. Em teoria, o filme no qual
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 107
verdadeiro no presente, ele deve» pensamos, tê-lo sido sempre. Poderia não estar
formulado dc fato: estava pelo menos de direito. Atribuímos, desse modo, a toda
afirmação verdadeira um efeito retroativo; ou. mais exatamente, imprimimos-lhe
um movimento retroativo. Como se um juízo pudesse preexistir nos termos que o
compõem! Como sc esses termos não datassem da aparição dos objetos que
representam I Como $e a coisa e a idéia da coisa, sua realidade e sua possibili
dade. nâo fossem criadas ao mesmo tempo quando se trata de uma forma verda
deiramente nova, inventada pela arte ou pela natureza!
Inumeráveis sao as consequências desta ilusão. Nossa apreciação dos ho
mens c dos acontecimentos está totalmente impregnada da crença no valor retros
pectivo do juízo verdadeiro, num movimento retroativo que a verdade executaria
no tempo, uma vez estabelecida. Somenre pelo fato de sc realizar, o aconteci
mento projeta atrás dc si uma sombra no passado indefinidamente longínquo:
parece, assim, haver preexistido. sob a forma de possível, á sua própria realiza
ção. Daí vem o erro que vicia nossa concepção do passado; c daí vem. ainda, a
nossa pretensão de antecipar, cm todas as ocasiões, o futuro. Perguntamo-nos.
por exemplo, o que serão a arte, a literatura, a civilização de amanhã: figuramo-
nos. grosso modo, a curva de evolução da$ sociedades: predizemos até mesmo o
detalhe dos acontecimentos. Ccrtamcnte. podemos sempre relacionar os eventos,
uma vez acontecidos, àqueles que os precederam e às circunstâncias cm que se
deram, mas um outro acontecimento (nâo qualquer outro, c verdade) poderia
também ter sido relacionado às mesmas circunstâncias e aos mesmos fatos prece
dentes, tomados de outro ângulo. Dir-sc-á entào que. considerando iodos os
aspectos do presente para prolongá-lo cm todas as direções, ccríamos. desde logo,
todos os possíveis entre os quais o futuro escolhería, supondo-se que o futuro
escolhesse? Mas estes mesmos prolongamentos poderíam representar a adição dc
qualidades novas, inteiramente criadas, absolutamente imprevisíveis: e. além
disto, um “aspecto" do presente só existe como “aspecto" depois que nossa aten
ção o isolou, recortando assim, de uma certa maneira, o conjunto dc circuns
tâncias atuais: como entào existiríam “todos os aspectos'' do presente, antes que
tenham sido criadas, pelos eventos ultcriorcs. as formas originais dos recortes que
a atenção pode praticar? Esses aspectos somente rctrospcetivamcntc pertencem
ao presente dc outrora. isto é. ao passado: e eles não teriam mais realidade neste
presente, quando ele era ainda presente, do que tem. cm nosso presente atual, as
sinfonias dos músicos futuros. Para tomar um exemplo simples, nada nos impede
hoje de relacionar o romantismo do século XIX ao que havia dc romântico nos
clássicos. Mas o aspecto romântico do classicismo apenas se desprendeu, por
efeito retroativo, do romantismo uma vez aparecido. Se não houvessem existido
Rousseau. Chateaubriand. Vigny, Victor Hugo, nào somente nào teríamos perce
bido. mas nào teria havido rcabnente romantismo nos clássicos, porque este
romantismo dos clássicos só existe devido à seleção de certos aspectos nas suas
obras, e essa seleção, na sua forma particular, nâo existia na literatura clássica
antes da aparição do romantismo, como não existe, na nuvem que passa, o dese
nho que um artista nela perceberá, organizando a massa amorfa ao sabor dc sua
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 109
’ O prciente ciludo foi «xriio antes dc nowo livro t j Duas Fonie* da Mora! c da Religião, cm que «hen
volvemos a mew comparação. (N. do A.)
no BERGSON
romancista c o moralista não tinham avançado, nessa direção, mais longe que o
filósofo? Talvez: mas apenas parcialmente, sob a pressão da necessidade, é que
haviam transposto o obstáculo; nenhum deles se linha proposto a ir metodica
mente "em busca do tempo perdido'*. Seja como for, demos apenas indicações a
este respeito em nosso primeiro livro e limilamo-nos a alusões no segundo, quan
do comparamos o plano da ação — onde o passado sc contrai no presente — ao
plano do sonho, onde sc desdobra, indivisível e indestrutível, a totalidade do pas
sado. Mas. se é função da literatura empreender dessa forma o estudo da alma no
plano do concreto, sobre exemplos individuais, o dever da filosofia nos parecia
ser o de estabelecer as condições gerais da observação direta, imediata, de si para
si. Esta observação interna é falseada pelos hábitos que adquirimos. A alteração
principal ê. sem dúvida, aquela que criou o problema da liberdade — um pseudo-
problcma oriundo da confusão entre a duração e a extensão. Mas outros teriam a
mesma origem: nossos estados de alma nos parecem suscetíveis dc serem conta
dos; alguns dentre eles, assim dissociados, possuiríam uma intensidade mensurá
vel: a cada um c a todos cremos poder substituir as palavras que os designam c
que passariam a recobri-los: atribuímos-lhes entào a fixidez. a descontinuicade. a
generalidade das próprias palavras. É este o invólucro que é preciso recuperar,
para rasgá-lo. Mas só o recuperaremos considerando primeiramcnlc sua figura c
sua estrutura, c também compreendendo sua destinaçào. Ele é de natureza espa
cial c tem uma utilidade social. A cspacialidade. então, e. num sentido todo espe
cial. a sociabilidade, sào as verdadeiras causas dc relatividade de nosso conheci
mento. Afastando este vcu. reencontramos o imediato c tocamos um absoluto.
Dessas primeiras reflexões resultaram conclusões que fclizmcntc sc torna
ram já quase banais, mas que entào pareceram temerárias. Elas exigiam da psico
logia o rompimento com o associacionismo. que era universalmcnte admitido,
scnào como doutrina, ao menos como método. Reclamavam ainda uma outra
ruptura, que apenas entrevíamos. Ao lado do associacionismo havia o Kantismo.
cuja influencia, aliás frequentemente combinada com a do primeiro, era nao
menos forte e nào menos geral. Aqueles que repudiavam o positivismo dc um
Comic ou o agnosticismo de um Spencer nao ousavam chegar u contestação da
concepção kantiana da relatividade do conhecimento. Kant estabelecera, dizia-se»
que nosso pensamento se exerce sobre uma maléria previamente dispersa no Es
paço c no Tempo, e assim preparada cspccialmcntc para o homem: a “coisa cm
si” nos escapa: seria preciso, para atingi-la. uma faculdade intuitiva que nào
possuímos. Rcsultava dc nossa análise, ao contrário, que ao menos uma parte da
realidade, nossa pessoa, pode ser atingida em sua pureza natural. Aqui, em todo
caso, os materiais de nosso conhecimento não foram criados, ou triturados, c
deformados por nào sei qual gênio maligno, que teria em seguida jogado num
recipiente artificial, como a nossa consciência por exemplo, uma poeira psicoló
gica. Nossa pessoa nos aparece tal qual é "em si”, desde que abandonemos os há
bitos contraídos para nossa melhor comodidade. Mas nào seria assim em relaçào
a outras realidades, talvez mesmo em relaçào a todas? A ‘‘relatividade do conhe
cimento”. que retardava o progresso da metafísica, seria algo de original cessen
112 BERGSON
ciai? Nâo seria, ao contrário, acidental c adquirida? Nào derivaria apenas do fato
dc que a inteligência adquiriu hábitos necessários à vida prática: tais hábitos,
transportados para o domínio da especulação, nos mostram uma realidade defor
mada ou reformada, cm todo caso “organizada”, mas este arranjo não se impõe
inclutavelmente a nós: ele vem de nós: sc o fizemos, podemos dcsfazc-lo: c entra
mos então cm contato direto com a realidade. Não era. pois, uma teoria psicoló
gica. o associacionismo. que abandonavamos, era também, por uma razão análo
ga. uma filosofia geral, o kantismo. c tudo o que a isto se relacionava. Um e
outro» então quase univcrsalmente aceitos em suas grandes linhas, pareciam-nos
“impedimenta” que atrasavam a marcha da filosofia c da psicologia.
Restava, pois, marchar. Não era suficiente afastar o obstáculo. Empreen
demos então estudos de funções psicológicas, depois da relação psicofisiológica,
em seguida, da vida cm geral, buscando sempre a visão direta, suprimindo assim
problemas que não diziam respeito às coisas mesmas, mas â sua tradução em
conceitos artificiais. Não retomaremos aqui uma história cujo primeiro resultado
seria mostrar a extrema complicação de um método aparentemente tão simples;
voltaremos a isto, aliás brevemente. no próximo capítulo. Mas já que ccmeçamos
por dizer que buscavamos antes de tudo a precisão, acabamos fazendo notar que
a precisão, a nosso ver. nâo poderia ser obtida com nenhum outro método. Por
que a imprecisão c. ordinariamente, a inclusão dc alguma coisa num gênero
demasiadamente vasto, coisas e gêneros correspondendo, aliás, a palavras
preexistentes. Mas se começamos por afastar os conceitos já prontos, se nos
proporcionamos uma visão direta do real, se subdividimos então esta realidade,
levando em conta suas articulações, os conceitos novos, que deveremos formar
para nos exprimir, serão desta vez talhados na exata medida do objeto: a impreci
são só poderá nascer dc sua extensão a outros objetos, que eles abarcariam igual
mente em sua generalidade, mas que deverão scr escudados neles mesmos, fora
desses conceitos, quando quisermos conhecê-los por sua vez.
Segunda Parte
' Sem, cnlreíuntu. incluir. tais quais. a$ quatro accpçòcs que dc acrcdnnu perceher. Aludimos aqui a ' laraM
Hoft'dinf.. íN.do A.)
116 BERGSON
fórmulas, por mais abstratas que sejam, que utilizamos, como se a inteligência
fosse obrigada a transpor o psíquico no físico para compreendê-lo e exprimi-lo.
Ao contrário, quando retoma à matéria inerte, a ciência que procede da pura inte
ligência sente-se novamente “cm casa”. Isto nada tem de espantoso/ Nossa inteli
gência é o prolongamento dos nossos sentidos. Antes de especular, c preciso
viver, e a vida exige que tiremos partido da matéria, seja com nossos órgãos, que
sâo utensílios naturais, seja com utensílios propriamente ditos, que sâo órgãos
artificiais. Bem antes que existisse uma filosofia e uma ciência, o papel da inteli
gência jã era o dc fabricar instrumentos e guiar a ação do nosso corpo sobre os
corpos que nos circundam. A ciência levou este trabalho da inteligência muito
mais longe, mas não mudou a direção. Ela visa, antes dc tudo a nos torrar senho
res da matéria. Mesmo quando especula, ela se preocupa ainda com agir, sendo
o valor das teorias científicas sempre medido pela solidez do domínio da reali
dade que nos proporcionam. Mas nào está aí. precisamente, o que nos deve inspi
rar plena confiança na ciência positiva c também na inteligência, seu ins
trumento? Se a inteligência c feita para utilizar a matéria, sua estrutura, sem dúvi
da. está modelada pela da matéria. Esta ê. ao menos, a hipótese mais simples e
mais provável. Devemos ater-nos a ela enquanto não nos for demonstrado que a
inteligência deforma, transforma, constrói seu objeto, ou atinge apenas a superff
cie. a aparência do objeto. Ora. sempre sc invocou, para esta demonstração, as
dificuldades insolúveis em que tomba a filosofia, a contradição da inteligência
consigo mesma, quando esta especula sobre o conjunto das coisas: dificuldades c
contradições a que c natural que cheguemos, com efeito, se a inteligência é espe-
cialmcnte destinada ao estudo dc uma parte, c sc pretendemos aplicá-la no conhe
cimento do todo. Mas isto nào ê tudo. É impossível considerar o mecanismo dc
nossa inteligência, c também o progresso de nossa ciência, sem concluir que entre
a inteligência c a matéria há efetivamente simetria, concordância, correspon
dência. Dc um lado, cada vez mais a materia sc resolve, aos olhos do cientista,
em relações matemáticas, e. de outro, as faculdades essenciais dc nossa inteli
gência somente funcionam com precisão absoluta quando se aplicam à geome
tria. Sem dúvida, a ciência matemática, cm sua origem, poderia nào ter romado a
forma que lhe deram os gregos. Sem dúvida também, ela deve sc restringir, seja
qual for a forma que adote, ao emprego dc signos artificiais. Mas anteriormente
a esta matemática formulada, que encerra uma grande parte de convenção, há
uma outra, virtual ou implícita, que é natural no espírito humano. Sc a necessi
dade de operar com certos signos toma as matemáticas, num primeiro momento,
difíceis para muitos de nós. em troca, uma vez ultrapassado este obstáculo, o
espírito se move neste domínio com uma facilidade que ele nào tem em nenhum
outro, pois a evidência aqui c imediata c teoricamente instantânea, o esforço dc
compreensão existindo o mais das vezes de fato, mas nào de direito: em todas as
outras ordens dc conhecimento, ao contrário, c preciso, para compreender, um
trabalho de maturação do pensamento que permanece, de alguma forma, aderente
ao resultado, corresponde cssencialmcntc a uma duração, e nào poderia ser con
cebido. mesmo teoricamente, como instantâneo. Em suma, poderiamos crer numa
separação entre a matéria e a inteligência, sc considerássemos, no que se refere à
matéria, apenas as impressões superficiais deixadas cm nossos sentidos, e se
O PENSAMENTO E O MOVENTE(INTRODUÇÃO) 119
* Nem i preciso cíizcr que .1 rclarividadc dc que falamos aqui para excluí-la da ciência considerada nc limite,
isto é. para dcsc.nn.ir um erro acerca da direção do progresM» científico, nada tem 3 ver com a dc lunstein.
O método emsteiniano eondste csscncialmcntc cm procurai uma representação matemática da* coisas que
seja independente do pomo dc vímu do observador (ou. mai* precisamente, do sisicma dc referência) c que
constitua. çunwqucnicmcnic, um cunjuiilo dc rcla\va absuluiaí. Nada dc mais contrario à rclativicadc t3l
como a entendem 0$ filósofos quando lèm por relativo nosso conhecimento do mundo exterior. A expressão
“Teoria da Relatividade" lent o inconveniente dc sugerir aos filósofos o inverso do que se quer aqui exprimir.
Acrescentemos, a respeito da teoria dn Rclniividade. quv nào se podería invoçà In nem contra nem a favor
da nichifisica cxposin cm nossos ii,rcreniv. trabalho*. metafísica que tem como centro a experiência da dura
çãu com u cunsiuuçào dc uma cena rviaçào entre esso duração c o espaço empregado pura medili. Para
colocar um problema, o físico, relativist» 011 não, toma sua* medida* nesse tempo, que é o nosso, que c u dc
lodo mundo. Sc ele resolve o problema, e nesse mesmo Tempo, no Tempo dc todo inundo, que ele verificará
sua solução Quanto ao tempo amnlpamndo com o espaço, quarta dimensão de um 1'xpaço Temps*, m» tem
s'xisicnci;i n<> intervalo entre a posição do problema c sua solução, isto c. nu cálculo, sobre a papel, enfim.
Nçm por isto a concepção rclativista deixa dc icr utnu impen tânci.i capilal. pelo reforço que cia tra/ ;i tísica
matemática. Mas pur.-tmrnir nutiemàtic.i c a realidade dc seu Espaço Tempo, e não poderiamos crigi Io em
realidade mctnlísica. ou cm "renlidade" simplesmente, sem atribuir » eslti última palavra uma significação
nova
Com efeito, designa sc cunt este nome, a mais frcqiícntemcniç. o que c d.ido numa experiência. uu o que
poderio sc Io: c real o que c constatado ou consl.uávcl. Ora. c dn essência mesma do Kspaço-Tcmpo o nào
poder ser percebido. Nào poderiamos aí *er colocados, ou nos colocarmos, pois o sistema dc rcfeièn.*i:c que
sc udoia. ê. i»ir definição, uni sistema imóvel. pois neste sistema Espaço c Tempo são distinto*, c o físico
cfciivamcnte existente, cfehvmmmiv medido, ê o que ocupa c>tc iiiccma: todos <>* outros stxtemn* rúo *ào
mais do que físico* imaginado* por dc. Há algum tempi’ consagramos um hvro â demonstração doses dtfc
rentes pontos.
Nào podemos resumi Io numa simples nota. Mas como o livro foi frequentemente mal compreendido, cremos
reproduzo aqui a pu>*agcm tóscncml dc um artigo cm que damos a razão desta incompreensão, E.s aqui,
com efeito, o ponto que ordinal iumcntvcicapj àquele* que. uanspeirtundei-sc da física para 3 mctalisica.cn
gem em realidade, isto c. cm coisa percebida ou perceptive), existindo nntes e depois do cálculo, um misto de
Espaço c dc Temps* que m» existe durante o calculo c que. fora do cálculo, renunciaria à sua essência no iox
tante mesmo em que se pretendería constatar sua existência.
Sena preciso, com efeito, dizíamos, começar por compreender por que. na hipolcsc dn Relatividade, e impôs
nível relacionar, ao mesmo tempo, dois observadores "vivos e conscientes" n vários sistemas diferentes, por
que um só sistema — aquele que e efeiivnmcntc adulado como sistema dc referencia - contem físiccs reais,
por que sobretudo a distinção entre u físico real c 0 físico representado como real toma uma imputlància
capital na interpretação filosófica desta teoria, ao passo que até aqui u filuxifiu não .sc tinha visto na contin
gência dc sc preocupar com tal coisa na interpretação da fisica. A razão, entretanto, c muito simples.
Do ponto Jc vista da física ncwtoniuna. por exemplo, há um sistema dc rcfercnciu absolutamcntc privilc
120 BERGSON
giadv. um repouso absoluto e movimentos absolutos. O universo aC vumpòe. entào. a uxlo instante. dc pon
tos maierimj. dos quais uns são imóveis c outros animados fx»r movimentos perfeitamente detenrmados. Este
universo possui. pois, cm si mesmo, no Espaço c no Tempo, uma figura concreta que nào deperde do pomo
de viwa em que o físico sc coloca: todos O$ lísicos. seja qual for o sistema <k referenda móvel ao qu.il pcricn
çam. sc reportam pelo pensamento ao sistema dc referência privilegiado e atribuem ao universo a figura que
dele veriamos percebendo o assim no absoluto. Sc. |k>ís. u físico por cxçclcticta é aquele que habita o sisiema
privilegiado, não ê t» caso aqui dc sc estabelecer um:i distinção radical entre esle lísico c os outros. pois os
outros procedem como se estivessem cm seu lugar.
Mas. na Teuriu da Rchtiividadc. nào há mais sistema privilegitidu. Todos os sistemas valem igunlmcntc.
Qualquer um dentre eles se pode erigir cm sistema de referência, portanto imóvel. Em relação a este sistema
dc referenda. iodos os pontos materiais do univcrxi estarão uns imóveis, outros .-mimados por moviiitcnlux
determinado» mas xrá apenas cm relaçào a este sistema. Adote sc ouiro: u imóvel p.tssará a sc mover, o
movimento sc imobihza ou muda dc velocidade*, a figura concreta do universo mudará rndiciibsentc. Entic
tanto. o universo nào poderia (cr a nossos alhos estas duas figuras simultaneamente: o mesmo p*mo material
nào pode ser imaginado ou concebido no mesmo tempo imóvel c movetite f preciso escolher: c 10 momento
cm que sc tiver escolhido alguma figura dcicniuuuda. erigir &e ú cm físico vivo c consciente. percebendo rc.il
mente, o lísico ligado ao xtsicma de referência a partir do qual o universo assume esta figura: os outros fisi
eus. tais como aparecem na figura do universo assim escolhida, sào entào físicos virtuais, stmpksmcnic con
eebidos como físicos pelo físico real. Sc conferirmos u um deles (enquanto fisico) uma rc.-didaile. sc i»
supormos percebendo. agindo, medindo, wu mmchui c um sistema dc referência núo mais vírtuil. nào mais
simplesmente concebido como podendo tornar x um sistemn real, mas sim como mn sistema de tcferêncw
real; ele c entào imóvel, c uma nova figura do mundo se desenha; c u físico real dc que fnlãvam.x há pouco
nâo v mais do que um lísico representado.
I.cngcvin exprimiu cm termos definitivos .1 própria essência da Teoria d.n Relatividade quando escreveu que
“o pnncipio dn Relatividade. sob :> forma ivsirim ou sub a forma geral, não c nuns, no fundo, d» que d ufn
maçào da cxistcncia de uma rcahdudc independente dos sistemas dc referênem, n pai tit dos quais observa-
mus suas perspectivas mutáveis. liste universo jxzsvui leis às quais o emprego dc coordenadas permite dur
um» futnr.i analítica independente do sistema dc referencia, sc bem que ux coordenadas individuais dc cadn
sistema dependam dele, mas é possível exprimir sob forma intrínseca, como u geometria o faz cn iclaçâu ao
espaço, ginças ã introdução dc elementos invariances e à constituição dc uma linguagem apropriada". l:m
outros termos, o universo Un Relatividade è um universo táo real, tão independente dc íiusmi espirito. t;io
ubsidutiimenic existente qu.inio o de Newton c o do omiuui di>» liuincns; somente que. enquanto para a
comum dos homens c mcsfflu para Newton este universo c um conjunto de coitas (mesmo se a fiúca se limita
a estudar 11 relação entre essas coisas), o universo dr l-invicin é apenas um conjunto dc relações (K demon
tos invariants que «e têm aqui por constituintes da realidade sào expressões em que entium parâmetros que
uo lidos como o que se quiser, quemío icpiesentum inuis o Tempoco Espaço do que nâo importa o que:
pois c a cciaçàu entre eles que existe uniemnente. aos olhos da ciência, pois nào há mats Tempo icm Espaço
sc nào há mais çuúax. -se o universo nâo tem figura. P.-irn restabelecer u& coisas. c. conwqiicntcmcnie. o
Tempo e o Espaço (como 0 fazemos necessariamente cada vez que queremos nos informar acerca dc um
evento Rsico determinado, percebido cm pontos determinados do l-.spaço c do Tempo, e furçox restituir ao
mundo uma liyuruç mus. entào. é aí que escolhemos um ponto dc vista, adotamos um sistema d: referencia.
O sistcmn que tivermos escolhido torna-se. por isto mesmo, o sistema central. .A Teoria da Relatividade tem
prccisamcntc |xi< essência o fino dc nos garantir que u expressão matemática do mundo que temos a partir
dcslc ponto dc vista arhtttariatnentc escolhido será idêntica, xc nos conformarmos às regras per eh postas,
aquela que leriamos colocando nos em qualquer outro ponto de vista. Nâo 1 ciemos inub do que esta expres
são matemática. nâo há muis lempo. Hcxi.nirrmas o Tempo, c resiuticlccci ciiiux ;■» coisas, mas tacmos caco
Ihidü um sistema dc referencia c ü fisícu u de tigudo. Nào pode haver outro no momento, embera qualquer
ouuo pudesse ler sido c»'vllndu.(N. do A.)
diruçào da matéria c cspacializar-se. Segue-se daí que a inteligência, embora vol
tada para as coisas exteriores, pode ainda exercer-se nas coisas interiores, con
tanto que não pretenda aí penetrar muito profundamente.
Mas é grande a tentação de levar até o fundo do espírito a aplicação dc mc
todos que se mostram eficientes ainda um pouco além da superfície. Se nos dei
xarmos levar nesta via. obteremos muito simplesmente uma física do espírito, cal
cada na do corpo. Juntas, essas duas físicas constituirão um sistema completo da
realidade, o que chamamos, às vezes, uma metafísica. Como nào ver que uma
metafísica assim entendida despreza o que o espírito tem dc propriamente espiri
tual. não sendo mais do que a extensão ao espírito do que pertence à matéria? E
como nào ver que. para tornar esta extensão possível, devemos tomar os quadros
da inteligência num estado de imprecisão tal que lhes permita aplicar-se ainda
aos fenômenos superficiais da alma, mas que lhes condena a seguir de menos
perto os fatos do mundo exterior? Ê surpreendente que uma tal metafísica, abar
cando dc uma vez a matéria c o espírito, mostre-sc um conhecimento quase vazio
c em lodo caso vago — quase vazio do lado do espírito, pois ela nào pode reter
da alma senão os fenômenos superficiais, sistematicamente vago no que sc refere
à matéria, pois a inteligência do metafísico teve de afrouxar seus liames. deixar
um espaço dc jogo suficiente para poder trabalhar indifcrcntcmcntc na superfície
da matéria c na superfície do espírito?
Bem diferente é a metafísica que colocamos ao lado da ciência. Reconhe
cendo à ciência o poder dc se aprofundar nu matéria somente pela força da inteli
gência. ela se reserva o espirito. Neste terreno, que lhe é próprio, cia tentaria
desenvolver novas funções do pensamento. Todos já tiveram ocasião dc notar que
é mais difícil avançar no conhecimento de si do que no do mundo exterior. Fora
de si. o esforço para aprender c natural: nós o praticamos com uma facilidade
crescente: aplicamos regras. Em relação ao interior, a atenção deve permanecer
tensa e o progresso torna-se cada vez mais penoso: quase acreditaríamos ir con
tra a natureza. Não há nisto algo dc surpreendente? Somos interiores a nós mes
mos e nossa personalidade é o que deveriamos conhecer melhor. Nada disso;
nosso espírito movc-sc aí como cm terra estrangeira, enquanto a matéria lhe c
familiar c nela ele sc sente em casa. Mas acontece que uma certa ignorância de si
talvez seja útil a um ser que deve exteriorizar-se para agir: responde a uma neces
sidade da vida. Nossa açao se exerce sobre a matéria, c ela é tanto mais eficaz
quanto levemos o conhecimento da matéria mais longe. Sem dúvida, é vantajoso,
para agir corrctamcnte. pensar no que sc vai fazer, compreender o que sc faz.
representar sc o que se poderia ter feito: a natureza a isto nos convida: é um dos
traços que distinguem o homem do animal, este voltado inteiramente para a
impressão do momento. Mas a natureza nào nos pede mais do que uma olhadela
ao interior de nós mesmos: percebemos cnlão o espírito, mas o espírito preparan
do-sc para agir sobre a matéria, adaptando-sc antecipadamente a cia. dando-se
não sei que de espacial, de geométrico, dc intelectual. Um cohhecimenlo do espí
rito. no que ele tem de propriamente espiritual, nos afastaria do objetivo. Aproxi-
122 BERGSON
Média: inspirou, por vezes contra a vontade deles, os filósofos modernas. Estes
eram frequentemente matemáticos, c seus hábitos de espírito os inclinavam a ver
na metafísica apenas uma matemática mais vasta, abarcando a qualidade ao
mesmo tempo que a quantidade. Assim se explicam a simplicidade geométrica e
a unidade da maior parte das filosofias, sistemas completos dc problemas definili
vamente postos, integralmente resolvidos. Mas nào é esta a única razão. É preciso
levar em conta que a metafísica moderna sc propôs um objeto análogo ao da reli
giào. Ela partiu dc uma concepção da divindade. Quer confirmasse ou contra
riasse o dogma, ela acreditava-se na obrigação de dogmatizar. Ela linha, embora
fundada apenas na razão, a segurança dc julgamento que o teólogo tem. fundado
na revelação. Podemos perguntar, é verdade, por que ela escolheu este ponto de
parlida. Mas é que nào dependia dela escolher outro. Como ela trabalhava fora
da experiência, sobre puros conceitos, forçosamente tinha de apoiar-sc num con
ceito do qual se pudesse deduzir tudo e que contivesse tudo. Tal era justamente a
idéia que ela sc fazia a respeito de Deus.
Mas por que a metafísica fazia esta idéia dc Deus? Que Aristóteles tenha
chegado a fundir todos os conceitos num só. e a colocar como princípio dc cxpli
cação universal um Pensamento do Pensamento, parente próximo da Idéia platô
nica do Bem. que a filosofia moderna, continuadora da dc Aristóteles, lenha
seguido um caminho análogo, isto a rigor sc compreende. O que sc compreende
menos é que sc tenha chamado deus a um princípio que nada tem em comum com
o que a humanidade sempre designou com esta palavra. O deus da mitologia anti
ga e o Deus do Cristianismo certamcntc não sc parecem, sem dúvida, mas a um
e outro são dirigidas preces, um e outro se interessam pelo homem: estatica ou
dinâmica, a religião tem este ponto corno fundamental. E. entretanto, a filosofia
chama Deus, um Scr cuja essência o condenaria a nào levar cm nenhuma conta
as invocações humanas, como sc. abarcando teoricamente todas as coisas, ele
fosse, dc fato, cego para nossos sofrimentos e surdo às nossas preces. Aprofun
dando este ponto, encontraríamos a confusão, natural ao espírito humano, entre
uma idéia explicativa c um princípio agente. As coisas remetidas aos seusconcci
tos, os conceitos organizados entre si. chega se finalmcntc a uma idéia das idéias,
pela qual se imagina que tudo sc explica. Na verdade, cia nào explica muita coisa,
primeirameate porque aceita a subdivisão e a repartição do real cm conceitos que
a sociedade consignou na linguagem, o que foi feito na maior parte das vezes
visando simplesmente à comodidade; cm segundo lugar porque a síntese que esta
idéia das idéias opera dc seus conceitos é vazia de matéria e puramente verbal.
Pergunta-se como este ponto essencial escapou a filósofos profundos, e como
puderam eles crer que caracterizavam, fosse no que fosse, o princípio erigido por
eles em explicação do mundo, embora sc limitassem a representa lo convencio-
nalmcnte por um signo. Dizíamos mais acima: qualquer que seja o nome que
demos à “coisa em si", quer a chamemos a Substância de Espinosa, o Eu de Fich
w. o Absoluto de Schelling, a ideia de Hegel, ou a Vontade de Schopenhauer, a
palavra sc apresentará sempre com a significação bem definida: ela a perdera, ela
126 BERGSON
maior parte deles não foi feita. Estes conceitos estão inclusos nas palavras. Eles
foram, frequentemente, elaborados pelo organismo social em vista dc um objeto
que nada tem de metafísico. Para formá-los. a sociedade recortou o real segundo
suas necessidades. Por que a filosofia aceitaria uma divisão que tem toda proba
bilidade de nao corresponder às articulações do real? Entretanto, ela a aceita
ordinariamente. Ela aceita o probicma tal qual ele é posto pela linguagem. Por
isto cia sc condena antecipadamente a receber uma solução pré fabricada, ou
melhor, a escolher simplesmente entre duas ou três soluções, as únicas possíveis,
que são coextensivas a esta posição do problema. Seria o mesmo dizer que toda
verdade é já virtualmcntc conhecida, que o modelo está depositado nos cartões
administrativos da cidade, c que a filosofia é um quebra-cabeça, cm que se trata
de reconstituir, com as peças que a sociedade nos fornece, o desenho que ela nào
nos quer mostrar. O mesmo seria dizer que o filósofo faz o papel do aluno, que
busca a solução pensando que uma olhadela indiscreta lha mostraria, anotada
junto ao enunciado, no caderno do professor. Mas a verdade c que sc trata, em
filosofia c mesmo alhures, de encontrar o problema c consequentemente de colo
cado. mais do que dc rcsolvc-lo. Pois um problema especulativo está resolvido no
momento em que for bem enunciado. Quero dizer que a solução está então perto,
sc bem que ela possa permanecer velada c. por assim dizer, coberta: restaria ape
nas descobri-la. Entretanto, enunciar o problema não é somente descobrir, é
inventar. A descoberta relaciona se ao que jã existe, atual ou virtualmenw. ccrta-
mente ela viria cedo ou tarde. A invenção doa o ser ao que nào era. ela poderia
nào vir jamais. Já nas matemáticas, com mais razão cm metafísica, o esforço de
invenção consiste frequentemente em suscitar o problema, em criar os termos nos
quais ele se colocará. Posição e solução do problema estão aqui bem próximos de
se equivaler: os problemas verdadeiramente grandes nào são postos senão quan
do são resolvidos. Mus muitos problemas pequenos estão no mesmo caso. Tome
mos um tratado elementar de filosofia. Um dos primeiros capítulos trata do pra
zer c da dor. Coloca-se ao aluno uma questão como esta: ”0 prazer é ou não é
a felicidade?” Mas seria preciso primeiramente saber sc prazer c felicidade são
gêneros correspondentes a uma divisão natural das coisas. Rigorosamente, a
frase poderia significar apenas isto: ‘'Dado o sentido habitual dos termos prazer
c felicidade, deve-se dizer que ao prazer segue sc a felicidade?” Então, c uma
questão dc léxico que se coloca; nào será resolvida senão pesquisando como as
palavras ’’prazer” e ’‘felicidade” foram empregadas pelos escritores que melhor
manejaram a língua. Será um trabalho útil: ter-se-á uma melhor definição dc dois
termos usuais, quer dizer, dois hábitos sociais. Mas. sc pretendemos fazer mais do
que isto, compreender realidades e nào esclarecer convenções, por que queremos
que termos, talvez, artificiais (nào sabemos se são ou nào. pois ainda nao se estu
dou o objeto) põem um problema que concerne à natureza das coisas? Suponha
mos que examinando os estados agrupados sob o nome de prazer nao descu
bramos entre eles nada de comum, a não ser serem estados desejados pelo
homem: a humanidade terá classificado coisas muito diferentes num mesmo gc
ncro. porque encontrava nelas o mesmo interesse prático e reagia a todas da
12» BERGSON
mesma maneira. Suponhamos, por outro lado, que obtemos um resultado análogo
analisando a idéia de felicidade. Imcdiatamcntc o problema desaparece, ou
melhor, se dissolve em problemas inteiramente novos dos quais nada poderemos
saber e dos quais nào possuiremos nem mesmo os termos antes de ter estudado
nela mesma a atividade humana em relação à qual a sociedade teria tomado —
para formar as idéias gerais dc prazer e de felicidade - aspectos talvez artifi
ciais. E ainda será preciso saber antes sc o conceito de “atividade humana'*
corresponde a uma divisão natural. Nesta desarticulação do real, segundo suas
tendências próprias, aloja se a dificuldade principal, quando deixamos o domínio
da matéria pelo do espírito.
isto quer dizer que a questão da origem c do valor das idéias gerais sc põe
por ocasião dc todo problema filosófico, c reclama cm cada caso uma solução
particular. As discussões efetuadas em torno dessa questão ocupam toda a histó
ria da filosofia. Talvez fosse o caso de se perguntar, antes dc qualquer discussão,
sc essas idéias constituem rcalmcntc um gênero, e se nào seria precisamente ao
falar de idéias gerais que deveriamos ser prudentes com as generalidades. Sem dú
vida. podcr-sc-á. sem dificuldade, conservar a idéia geral da idéia geral, se a tiver
mos. Será suficiente dizer que convencionou-se chamar dc idéia geral uma repre
sentação que agrupa um número indefinido dc coisas sob o mesmo nomeia maior
parte das palavras corresponderá assim a uma idéia geral. Mas a questão impor
tante para o filósofo é saber através dc que operação, devido a que razão, e sobre
tudo cm virtude de que estrutura do real as coisas podem ser assim agrupadas, e
esta questão nào comporta uma solução única e simples.
Digamos logo que a psicologia nos parece comprcmctcr-se aventurosamente
cm pesquisas desta ordem sc ela nao possui um fio condutor. Por trás do trabalho
do espírito, que é o ato. há a função. Por trás das idéias gerais, há a faculdade dc
conceber ou<lc perceber generalidades. Seria preciso determinar primeiramente a
significação vital desta faculdade. No labirinto dos atos, estados e faculdades do
espírito, o guia que nào devemos jamais dispensar é o que nos fornece a biologia.
Sríntum r/rere.Memória. imaginação, concepção, enfim, generalizações rão estão
ai gratuiiamcntc. Seria de crer, ouvindo alguns teóricos, que o espírito caiu do céu
com uma subdivisão cm funções psicológicas das quais ele tem simplesmente que
constatar a existência: porque estas funções sào tais, elas serão utilizadas de tal
maneira. Nós cremos, ao contrário, que é porque elas sào úteis, porque elas sào
necessárias à vida, que elas sào o que sào: é preciso referir-se às exigencies funda
mentais da vida para explicar sua presença c para justificá-las se for o caso, isto
é. para saber se a subdivisão ordinária de tais e tais faculdades c artificial ou
natural, sc conseqüentemente devemos mantc-la ou modifica-la: todas as nossas
observações sobre a função serão falseadas sc a recortarmos incorretamente na
continuidade da tessitura psicológica. Dir se á que as exigências de vida são aná
logas nos homens, nos animais e mesmo nas plantas, que nosso método se arris
ca, portanto, a negligenciar o que há de propriamente humano no homem? Sem
dúvida alguma: uma vez seccionada e distribuída a vida psicológica, nào está
tudo acabado: resta acompanhar o crescimento e mesmo a transfiguração dc
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 129
cada faculdade no homem. Mas leremos, pelo menos, a probabilidade de não ter
traçado divisões arbitrárias na atividade do espírito, da mesma forma que nâo
fracassaríamos em desembaraçar as plantas de galhos e folhas embaraçados se
cortássemos até as raizes.
Apliquemos este método ao problema das idéias gerais: veremos que todo
ser vivo, talvez mesmo todo órgão, todo tecido do ser vivo, generaliza, isto é.
classifica, pois sabe recolher no meio onde vive, das substâncias ou objetos os
mais diversos. a$ partes ou elementos que poderão satisfazer a determinadas
necessidades suas, negligenciando o resto. Logo, ele isola a característica que o
interessa, vai direto a uma propriedade comum: cm outros termos, ele classifica,
e. consequentemente, abstrai e generaliza. Sem dúvida, na quase totalidade dos
casos e provavelmente em todos os animais, exceto o homem, abstração e
generalização são vividas e nào pensadas. Entretanto, mesmo no animal, encon
tramos representações às quais somente falta reflexão e algum desinteresse para
que sejam plenatnentc idéias gerais: senão, por que uma vaca que conduzimos
pára diante dc um capim, nâo importa qual, simplesmente porque ele entra na
categoria que chamamos erva ou capim? E como um cavalo distinguiria uma
estrebaria de uma granja, uma estrada de um campo, o feno da aveia? Conceber,
ou melhor, perceber assim a generalidade é. aliás, próprio do homem enquanto
animal, com instintos c necessidades. Sem que a reflexão ou mesmo a consciência
intervenham. é possível extrair a semelhança de objetos os mais diferentes, atra
vés dc uma tendência; ela classificará esses objetos num gênero c criará uma idéia
geral, vivida mais do que pensada. F.ssas generalidades automaticamente extraí
das sào mesmo bem mais numerosas no homem, que acrescenta ao instinto hábi
tos mais ou menos capazes de imitar o ato instintivo. Sc passarmos agora u idéia
geral completa, isto ê. consciente, refletida, intcncionalinenic criada, encontra
remos frequentemente cm sua base esta extração automática dc semelhanças que
é o essencial da generalização. Num certo sentido, nada c semelhante, visto que
todos os objetos diferem. Num outro sentido, tudo se parucc. pois encontraremos
sempre, elevando nos bastante alto na escala das generalidades, algum gênero
artificial cm que dois objetos diferentes, tomados ao acaso, poderão entrar. Mas
entre a generalização impossível e a generalização inútil existe a que c provocada,
por prefiguraçào. pelas tendências, hábitos, gestos e atitudes, complexos de movi
mentos automáticos realizados ou esboçados, que eslào na origem da maior parte
das idéias gerais propriamente humanas. A semelhança entre coisas ou estados
que declaramos perceber c. antes de mais nada, a propriedade, comum a estes
estados ou a estas coisas, dc obter de nosso corpo a mesma rcaçào. de fazê-lo
esboçar a mesma atitude on começar os mesmos movimentos. O corpo extrai do
meio material ou moral o que pode influenciá-lo. o que o interessa: é a identidade
de reação a ações diferentes que, voltnndo-se sobre elas, introduz a semelhança
ou a faz aparecer. Assim, uma campainha emitirá, a partir dos excitantes mais
diversos — pressão com o dedo, vento, corrente elétrica -. sempre o mesmo
som. os converterá assim em toques de campainha e os fará semelhantes entre si.
indivíduos constitutivos dc um gênero, simplesmente porque cia permanece a
130 BERGSON
mesma: campainha e nada mais que isto, ela nào pode fazer outra coisa, ao rea
gir. senào soar. Nem é preciso dizer que. quando a reflexão tiver alçado ao estado
de pensamento puro, as representações que não eram mais do que a inserção da
consciência num quadro material, atitudes e movimentos, ela formarà voluntaria
mente, diretamente. por imitação, idéias gerais que não serão mais do que idéias.
E nisto a reflexão será poderosamente ajudada pela palavra, que ainda fornecerá
à representação um quadro, desta vez mais espiritual que corporal, err. que sc
inserir. Não é menos verdadeiro, por isto, que, para dar conta da verdadeira natu
reza dos conceitos, para abordar com alguma probabilidade de êxito os proble
mas relativos às idéias gerais, é sempre à interação do pensamento com as atitu
des ou os hábitos motores que teremos de nos referir, uma vez que a
generalização não é. originariamente. mais do que o hábito elevando-se do campo
da ação para o do pensamento.
Mas. uma vez assim determinadas a origem e a estrutura da idéia geral, uma
vez estabelecida a necessidade de sua aparição, uma vez constatada a imitação da
natureza pela construção artificial de idéias gerais, resta saber como as idéias
naturais que servem de modelo às outras são possíveis, por que a experiência nos
apresenta semelhanças que nos resta apenas traduzir em generalidades. Entre
estas semelhanças, algumas, sem dúvida, correspondem à essência das coisas.
Estas farão nascer idéias gerais que serão ainda relativas, em certa medida, à
comodidade do indivíduo e da sociedade, mas cm rclnçno às quais a ciência e a
filosofia nào precisarão fazer mais do que extrair esta ganga para obter uma
visão mais ou menos aproximativa dc algum aspecto da realidade. Elas são
pouco numerosas, c a imensa maioria das idéias gerais c constituída por aquelas
que a sociedade preparou para a linguagem cm vista da conversação e da ação.
Mesmo entre estas últimas, porém, às quais sobretudo aludimos neste ensaio,
encontraremos muitas que sc ligam, por uma série de intermediários, ao preço dc
toda sorte de manipulações, dc simplificações, de deformações, ao pequeno nú
mero dc idéias que traduzem semelhanças essenciais: será freqüentemente instru
tivo percorrer novamente, com elas, através de um desvio mais ou menos longo,
o caminho que leva à semelhança â qual elas se ligam. Não será, portanto. inútil
aqui um parêntese para tratar do que poderiamos chamar generalidades objetivas,
inerentes à própria realidade. Por mais restrito que seja seu número, cias são
importantes por elas mesmas e pela confiança que irradiam ao seu redor, empres
tando um pouco dc sua solidez a gêneros loiahncntc artificiais. É assim que ccdu
las emitidas cm número exagerado devem o pouco valor que lhes resta à quanti
dade dc ouro que se encontraria ainda cm reserva.
Aprofundando este ponto pcrceber-sc-ia, cremos, que as semelhanças se
repartem em três grupos, dos quais o segundo deverá provavelmente se subdividir
por sua vez acompanhando o progresso da cicncia positiva. Os primeiros sào de
essência biológica: provêm de que a vida trabalha como se ela própria possuísse
idéias gerais, dc gcncro c espécie, como se ela seguisse planos de estru.uras cm
número limitado, como se cia houvesse instituído propriedades gerais, enfim e
sobretudo como se ela houvesse desejado, pelo duplo efeito da transmissão here-
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 13)
ditaria (pelo que c inato) e da transformação mais ou menos lenta, dispor os seres
vivos em série hierárquica, ao longo de uma escala em que as semelhanças entre
indivíduos sào tanto mais numerosas quanto mais alto nos elevarmos na escala.
Quer nos exprimamos assim em termos de finalidade, quer atribuamos à matéria
viva propriedades especiais, imitadoras da inteligência, ou nos vinculemos a algu
ma hipótese intermediária, sempre será na realidade mesma, em princípio (mesmo
se nossa classificação é inexata dc fato), que estarão fundadas nossas subcivisòes
em espécies, gêneros, etc. — generalidades que traduzimos em idéias gerais. E
estarão também fundamentadas de direito aquelas que correspondem a órgãos,
tecidos, células, “comportamentos” mesmo, dos seres vivos. — Agora, sc passa
mos do organizado ao inorganizado, da matéria viva à matéria inerte e airda não
informada pelo homem, encontraremos gêneros reais, mas de características
totalmente diferentes: qualidades, como as cores, sabores, odores; elementos ou
combinações, como o oxigênio, o hidrogênio, a água: enfim, forças físicas como
o peso, o calor, a eletricidade. Mas aqui o que aproxima os indivíduos agrupados
sob a idéia geral c bem outra coisa. Sem entrar em detalhes, sem complicar nossa
exposição com nuances, atenuando, aliás, antecipadamente o que nossa distin
ção poderá ter dc excessivo, convindo, enfim, em dar à palavra “semelhança** seu
sentido mais preciso, porém também o mais estreito, diremos que no primeiro
caso o princípio dc agrupamento c a semelhança propriamente dita, c no segundo
a identidade. Um certo tom de vermelho pode ser idêntico a si mesmo en todos
os objetos em que estiver. Diremos o mesmo dc duas notas da mesma altura,
mesma intensidade c mesmo timbre. Ademais, seja como for. sentimo-nos aproxi
mar dc elementos ou de eventos idênticos à medida que aprofundamos a matéria
e que resolvemos o químico cm físico, o físico no matemático. Ora. embora uma
lógica simples possa pretender que a semelhança é uma identidade parcial c a
identidade uma semelhança completa, a experiência nos diz outra coisa. Sc deixa
mos dc dar à palavra "semelhança” o sentido vago c de alguma maneira popular
em que a tomamos de início, se tentamos precisar o sentido de “semelhança”
atravésdc uma comparação com “identidade”, concluiremos, creio, que a identi
dade refere-se ao geométrico e a semelhança ao vital. A primeira tem a ver com
a medida, a outra está mais no domínio da arte: frequentemente, é um sentimento
todo ele estético que leva o biólogo evolucionista a supor parentes formas entre as
quais ele é o primeiro a perceber a semelhança: os próprios desenhos que elabora
revelam por vezes a mão c sobretudo o olho do artista. Mas, se o idêntico se refe
re assim ao semelhante, haveria de procurar saber, acerca desta nova categoria de
idéias gerais, como também para a outra, o que a corna possível.
Tal pesquisa só teria probabilidade de êxito num estágio mais avançado de
nosso conhecimento da matéria. Limitcmo-nos a dizer alguma coisa sobre a hipó
tese à qual seríamos conduzidos por um aprofundamento da vida. Se há o verde
que é em mil lugares diferentes o mesmo verde (ao menos para nosso olho, ao
menos aproximadamente), se isto acontece com as outras cores, e se as diferenças
dc cor provem da maior ou menor frcqücncia dc eventos físicos elementares que
condensamos em percepção de cor. a possibilidade para essas frequências de nos
132 RERGSON
* Pode se. pois. e mcsnii» deve-w. falar ainda de determinismo físico. mesmo que se postule. cnm a física
mais recente, o indetcrmmi.-.mn d»»s evento* elementares dc que sc vompôc u futu físico. Porque este fato físi
co ê percebido por nós como xuhmctúlo a um determinismo inflexível, e disiínpuc sc radicalmen c. poi isto,
dos atos que reuluanH» quando nos scniimcti livres. Como sugerimos acima, pode w perguntar se nào c
prccisamcntc |xir "coar" a mnreria neste determinismo, por uhier. nos lenômcnos que nos rocciam. uma
regularidade dc sucessão que nos permite »j>.ir sohre eles. que nossa percepção se detêm num certo grau parti
cular dc condensação dos eventos elementares. Mats gcralmcntc. a atividade do ser vivo se apoiaria na neces
sídatk- v sc mediría pela necMsidade que vem servir de suporte ãu coisas. jk»i mim condvmaiç.-io de »uti durn
çào. (N. di> A.>
O PENSAMENTO E O MOVENTE(INTRODUÇÃO) 133
reações dc suas partes umas sobre as outras, é o que é cm virtude dc uma certa
escolha na escala das grandezas, escolha ela mesma determinada pela nossa
capacidade dc agir. Nada impediría que outros mundos, correspondendo a uma
outra escolha, existissem com ele. no mesmo lugar c ao mesmo tempo: assim,
vinte postos de emissão diferentes emitem simultaneamente vinte concertes dife
rentes. que coexistem sem que nenhum deles misture seu som à música do outro,
cada um sendo ouvido integralmente — e somente ele — no aparelho que esco
lheu para recepção o comprimento da onda dc um determinado posto dc emissão.
Mas não insistamos mais numa questão cm que tocamos simplesmente dc passa
gem. Nào é absolutamente necessário nenhuma hipótese sobre a estrutura intima
da matéria para constatar que as concepções derivadas das percepções, as idéias
gerais correspondendo às propriedades c ações da matéria, somente são possíveis
ou somente são o que são em virtude da matemática ímanente às coisas. É tudo
o que gostaríamos dc salientar para justificar uma classificação das idéias que
põe dc um lado o geométrico e. de outro, o vital, este trazendo com ele a seme
lhança. aquele a identidade.
Devemos agora passar à terceira categoria que havíamos anunciado, às
idéias gerais criadas inteiramente pela especulação c pela ação humanas. O
homem c csscncialmente “fabricante”. A natureza, recusando-lhe os instrumentos
acabados como os dos insetos, por exemplo, deu-lhe a inteligência, isto é. o poder
dc inventar c dc construir um número indefinido de utensílios. Ora. par mais sim
ples que seja a fabricação, ela se dá segundo um modelo, percebido ou imagina
do: é real o gênero que define o próprio modelo ou o esquema dc sua cons:rução.
Toda a nossa civilização repousa assim sobre um certo número de idéias gerais
dc que conhecemos adcqnadamenie o conteúdo, pois fomos nós que as eabora-
mos e cujo valor c eminente, pois nào poderiamos viver sem elas. A crença na
realidade absoluta das idéias cm geral, talvez mesmo cm sua divindade deriva em
parte dai. Sabc-se que papel ela desempenha na filosofia antiga c mesmo na
nossa. Todas as idéias gerais sc beneficiam da objetividade de algumas delas.
Acrescentemos que a fabricação humana não se dá somente cm relação ã maté
ria. Uma vez dc posse das três espécies dc idéias gerais que enumeramos, sobre
tudo da última, nossa inteligência tem o que chamamos idéia geral da idéia geral.
Ela pode então construir idéias gerais ao seu bcC prazer. Ela começa naturalmcnte
pelas que podem melhor favorecer a vida social: ou simplesmente, que se referem
ã vida social; depois virão aquelas que interessam à especulação pura: c. enfim,
aquelas que sc constroem para nada, graluitamcnte. Mas, em relação z quase
todos os conceitos que não pertencem às nossas duas primeiras categories, quer
dizer, à imensa maioria das idéias gerais, é o interesse da sociedade c o dob indiví
duos. são as exigências da conversação e da ação que presidem ao seu
nascimento.
fechemos este longo parêntese, que tivemos que abrir para mostrar em que
medida é preciso reformar c, às vezes, descartar o pensamento conceptual para
chegar a uma filosofia mais intuitiva. Esta filosofia, dizíamos, desviar-sc-á
frequentemente da visão social do objeto “feito”: ela nos convidará a participar
134 BERGSON
em espirito do ato que o faz. Ela nos recolocará entào, relativamente a este ponto
particular, na direção do divino. Com efeito, é propriamente humano o trabalho
de um pensamento individual que aceita, tal qual, sua inserção no pensamento
social, c que utiliza as idéias preexistentes como outro utensílio fornecido pela
comunidade. Mas já existe qualquer coisa de quase divino no esforço, por mais
insignificante que seja, de um espírito que sc re-inscrc no elà vital, gerador das
sociedades que sao geradoras dc idéias.
Este esforço exorcizará alguns fantasmas de problemas que obcecam o
metafísico, isto c, cada um dc nós. Falo desses problemas angustiantes c insolú
veis que nào dizem respeito ao que é. que sc referem mais ao que nào é. Tal é o
problema da origem do ser: ’‘Como é possível que qualquer coisa exista — maté
ria. espírito. ou Deus? Foi preciso uma causa, c uma causa da causa, c assim
indefinidamente". Remontamos então de causa em causa: c se nos deumos em
qualquer parte, nào é porque nossa inteligência nada mais busca para além, é que
nossa imaginação acaba por fechar os olhos, como sobre um abismo, para esca
par à vertigem. Assim é também o problema da ordem cm geral: “Por que uma
realidade ordenada, cm que nosso pensamento se reencontra como num espelho?
Por que o mundo nâo é incoerente?" Digo que estes problemas sc referem ao que
nâo é muito mais do que ao que ê. Com efeito, jamais nos espantaríamos com o
fato dc existir alguma coisa - matéria, espírito. Deus — sc nâo admitíssemos
implicitamente que nada poderia existir. Figuramo-nos. ou melhor, acreditamos
nos figurar, que o ser veio preencher um vazio c que o nada preexisliria logica
mente ao scr: a realidade primordial — quer a chamemos matéria, espírito ou
Deus viria por acréscimo, e isto é incompreensível. Do mesmo modo, nào
perguntaríamos por que a ordem existe se nâo créssemos conceber uma desordem
que sc teria sujeitado à ordem c que, conseqüentemente. a precedería, ao menos
ideahnentc. Havería entào necessidade dc que a ordem fosse explicada, enquanto
a desordem, sendo dc direito, não precisaria dc explicação. É este o ponto de vista
cm que nos arriscamos a permanecer, se buscamos somente compreender. Mas
tentemos, por outro Lado, engendrar (só o podemos fazer, cvidentemcnlc, pelo
pensamento). Â medida que dilatamos nossa vontade, que tendemos a reabsorver
nosso pensamento c que simpatizamos mais c mais com o esforço que engendra
as coisas, esses terríveis problemas recuam, diminuem, desaparecem. Porque sen
timos que uma vontade ou um pensamento divinamente criador é denasiada-
mente pleno dc si mesmo, cm sua imensa realidade, para que a idéia dc uma falta
de ordem ou de uma deficiência de scr possa apenas roçá Io. Representar sc a
possibilidade da desordem absoluta, ou mais ainda, do nada, seria para esse pen
sarnento dizer-se que ele poderia nào scr integralmcnte. e isto seria uma fraqueza
incompatível com sua natureza, que é força. Quanto mais nos voltamos para ele.
mais as dúvidas que atormentam o homem normal e são nos parecem anormais
c mórbidas. Lembremo-nos daqueles que fecham uma janela, depois retornam
para verificar a fechadura, depois voltam para verificar a verificação, assim por
diante. Se lhe perguntamos seus motivos, ele nos dirá que teria podido reabrir a
janela cada vez que tratava dc fechá-la melhor. E se ele é filósofo, ele intelectua
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 13S
* Quando icoorricfid.imoi um estado dc alma cm que Os problemas desaparecem. nós o fazemos. hem enten
dido, apenas cm relação aos problemas que nos cauüam vertigem porque nos pòcm diante do vazio. Uma
cois.-i é a condição quase animal dc uni ser que nào « põe nenhuma questão. outra coisa o estado Kimdivino
dc um espírito que n:«> conhece n tcntuçâo dc evocai, (H>r um cfcik» de fraque/a hutuaua. problemas artifi
ciais. Parn esle pensamento privilegiado, o pioblctna csui sempre .1 poulu dc surgir, mas sempre detido, no
que icrn dc propriamente intelectual, pela coinrapariuí.i miclectu.il que lhe suscita a intuição. A ilusão nào
c analisada, não c dissipada, porque ela nào se declara: mas ela o seria se sc declarasse-, cestas duispossibi
lidades antagonistas, que sâo dc ordem intelectual, sc anulam intclcctuolmcnic para Só deixar lupar â intui
ção do real. Nos dois caso* que citamos, é a análise da$ idéia» dc dcsurdcni c dc nada que fornece a contra
partida intelectual da ilusão mickctuaUsia. (N. di> A.)
137
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO)
nhum subterfúgio possível: adeus ao artifício dialético que distrai a atenção e dá,
em sonho, a ilusão de avançar. A dificuldade deve ser resolvida e o problema ana
lisado em seus elementos. A que seremos conduzidos? Não se sabe. Ninguém
pode mesmo dizer qual é a ciência que poderá tratar os novos problemas. Poderá
ser uma ciência à qual somos totalmente estranhos. Ainda mais. Não será sufi
ciente familiarizarmo-nos com eh. nem mesmo aprofundarmo-nos: será preciso,
por vezes, reformar alguns procedimentos, alguns hábitos, algumas teorias,
guiando-sc justamente pelos fatos c razões que suscitaram as questões novas.
Seja: iniciemo-no,s na ciência que ignoramos, aprofundemo-nos nela, se for preci
so rcformemo-la. E sc forem necessários meses ou anos? Consagraremos a isto o
tempo que for preciso. Uma vida não é suficiente? Muitas vidas sc succccrão; ne
nhum filósofo está obrigado a construir toda a filosofia. Esta a linguagem que
reservamos para o filósofo. Este o método que lhe propomos. Ele exige qjc esteja
mos sempre prontos, seja qual for a idade, a nos tornarmos novamente
estudantes.
Para dizer a verdade, a filosofia está bem perto disto. A mudança já se ope
rou em alguns pontos. Sc nossas idéias foram cm geral julgadas paradoxais, algu
mas delas são hoje banais; outras estão próximas de se tornarem tal. Reconhe
cemos que elas nào podiam ser aceitas imediatamente. Teria sido preciso
desligar-se dc hábitos profundamente enraizados, verdadeiros prolongamentos da
natureza. Todas as maneiras de falar, de pensar, de perceber, implicam, com efei
to. que a imobilidade c a imutabilidade são dc direito, que o movimento e a
mudança vem-se acrescentar, como acidentes, a coisas que por elas mesmas nào
sc movem c nelas mesmas nào mudam. A representação da mudança é a dc quali
dade ou estados que se sucederíam numa substância. Cada uma das qualidades,
cada um dos estados, seria estável, a mudança sendo nada mais do que wcessão
deles: quanto à substância, cuja função é suportar os estados e as qualidades que
sc sucedem, seria a própria estabilidade. Esta é a lógica imanente às nessas lin
guas. c formulada dc uma vez por todas por Aristóteles: a essência da inteligência
c julgar, e o julgamento (juízo) sc opera através dc atribuição dc um predicado a
um sujeito. O sujeito, uma vez apenas nomeado, ê definido como invariável; a
variação consistirá na diversidade dc estados que afirmaremos dele, passo a
passo. Procedendo assim pela aposição dc um predicado a um sujeito, o estável
ao estável, seguimos a inclinação de nossa inteligência, conformamo-nos às
exigências de nossa língua, c. para dizer tudo, obedecemos à natureza. Porque a
natureza predestinou o homem para a vida social, para o trabalho em comum; e
este trabalho será possível sc colocarmos de um lado a estabilidade absoluta-
.mente definitiva do sujeito, dc outro, as cstabilidades provisoriamente definitivas
das qualidades c dos estados, que sc tornam então atributos. Enunciando o sujei
to. escoramos nossa comunicação num conhecimento que o interlocutor já pos
suí, pois a substância é suposta invariável; ele sabe então sobre que ponto dirigir
a atenção: virá então a informação que queremos fornecer, na expectativa da qual
nós o colocamos ao introduzir a substância, c que o atributo vem completar. Mas
não c somente formando-nos para a vida social, dando-nos as coordenadas para
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 139
' Exsaísuriex i)nn net's Inuncdtatcs dc la Conscience. Paris. ISS9. p. t<6. (N.<1o A.)
• Matícrc rt Memoir?. Paris. iKOú. sub»cíuda as pp. 221 22K. Cf. hxh» v capitulo IV, c cm pai jculur .1 p
223. (N. do A.)
9 l.n Perception do ChnnijenwiM. Oxford. 1911 (M. do A.)
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇÃO) 141
’• Ver, a csw respeito. Bachelard. Naumènr et Microphysiquc, pp. 55 56 du coletânea Ri-cheeches Phiteso
phiipiev, Paris. NJ I 1932. <N. Jo A.)
1 ’ Sobre as idéias de Whilehead, e o parcnicwx) cun> nossas, ver J. Wnhl. /.«» Philosophic Speculative <if
Whílehcad, pp. 145 J55.em Kvs !c Cftncrci, Parts. 1932. (N. do A.)
142 BERGSON
Concordo também que esta pequena parte de intuição sc tenha alargado, dando
origem à poesia, depois à prosa, convertendo cm instrumentos de arte as palavras
que dantes nào eram mais do que sinais: através dos gregos principalmcnte foi
que este milagre sc realizou. Nào é menos verdade, por isso, que pensamento c
linguagem, originariamente destinados a organizar o trabalho dos homens no
espaço, são dc essência intelectual. Mas é necessariamente uma intelectualidade
vaga — adaptação muito geral do espirito à matéria — que a sociedade deve uti
lizar. Que a filosofia sc lenha, no princípio. contentado com isso e que ela lenha
começado por scr dialética pura, nada de mais natural. Ela nào dispunha de outra
coisa. Um Platão, um Aristóteles adotam o recorte da realidade que eles encon
tram na linguagem: “dialética**, que deriva de diatégein. dialêgeslhai, significa ao
mesmo tempo “diálogo" e “distribuição": uma dialética como a dc Platão era, ao
mesmo tempo, uma conversação em que sc procurava pôr sc dc acordo com o
sentido de uma palavra e uma repartição das coisas segundo indicações da lin
guagem. Mas. cedo ou tarde, o sistema dc idéias calcadas sobre palavras devia
ceder lugar a um conhecimento exato representado por signos mais precisos: a
ciência se constituiría, então, tomando cxplicitamcntc por objeto a matéria, tendo
por meio a experimentação, por ideal a matemática: a inteligência chegaria,
assim, ao completo aprofundamento da materialidade e. consequentemente, lam
bem dela mesma. Do mesmo modo, cedo ou tarde, dcsenvolver-sc-ia uma filoso
fia que se libertaria por sua vez da palavra, mas desta vez para ir cm sentido
inverso ao da matemática c para acentuar, no conhecimento primitivo c social, o
intuitivo cm lugar do intelectual. Entre a intuição e a inteligência assim intensifi
cadas. n linguagem deveria, entretanto, permanecer. Ela permanece, com efeito, o
que ela sempre foi. Carregada dc mais ciência, dc mais filosofia, ainda assim ela
continua a cumprir sua função. A inteligência, que dantes se confundia com a lin
guagem c participava de sua imprecisão, sc precisou constituindo-se em ciência:
apodcrou-sc da matéria. A intuição que a fazia sentir sua influencia querería alar
gar se cm filosofia c tornar-se coexicnsiva ao espírito. Entre elas, entretanto, entre
estas duas formas do pensamento solitário, subsiste o pensamento comum, que
foi originariamente todo o pensamento humano. É este que a linguagem continua
a exprimir. Ela lastreou sc dc ciência, concordo: mas o espírito científico exige
que tudo seja posto cm questão a todo instante, c a linguagem necessita de estabi
lidade. Ela é aberta à filosofia: mas o espírito filosófico simpatiza com a renova
ção c a reinvençào sem fim que estão no fundo das coisas, c as palavras possuem
um sentido definido, um valor convencional rclativamente fixo: não podem expri
mir o novo scn.no como uma reorganização do antigo. Chama-sc correntemente e.
talvez, imprudcntcmenie de “razão” esta lógica conservadora que rege o pensa
mento cm comum — conversação parece muito com conservação. Ela aí sente-se
em casa. E exerce uma autoridade legítima. Teoricamente, com efeito, a conver
sação deveria versar apenas sobre as coisas da vida social. E o objetivo essencial
da sociedade é inscrir uma certa fixidez na mobilidade universal. Tantas socieda
des, tantas ilhas consolidadas, aqui e ali. no oceano do devir. Esta consclidaçào
será tanto mais perfeita quanto mais inteligente for 3 atividade social. À inteli
O PENSAMENTO E O MOVENTE (INTRODUÇ/XO) 147
13 Acerca do fato dc que o ritmo esboça o sentido da frase vcrdadciramcntc escrita. que ele pode nos
proporcionar a comunicação dircm com o pensamento do escritor antes que o estudo das palavras venha ai
colocar n cor c a nuance, cxplicamo-nos uma ourra vez. notoriamente numa conferência feita cm 1912 sobre
"A Alma ç o Corpo" (cí. nossa coletânea L Energie Spírituelle. p. .12). Límitamonos. aliás, a fcproJixzir uma
aula dada no Colégio dc França. Kcstn auln havíamos tomado como rxemplo umn págínu ou duas do Dis
curso do Método, e tentamos mostra: como as idas c vindas do pensamenio dc Descartes, cada uma com
diieçâu determinada, passam do cspüitu dc Descartes para u nosso somente pelo efeito do ritmo tal como a
pontuação o indica, tal como indica sobretudo uma leitura correta cm voz aha. (N. do A.)
150 BERGSON
cm nào crer mais verdadeiro aquilo que. entretanto, ainda é. De maneira geral, a
ação exige um ponto de apoio sólido, e o ser vivo tende csscncialmente para a
ação eficaz. Isto explica por que vimos numa certa estabilização das coisas a fun
ção primordial da consciência. Instalada na mobilidade universal, dizíamos, a*
consciência contrai, numa visão quase instantânea, uma história imensamente
longa que se desenrola perante ela. Quanto mais alta a consciência, mais forte
será esta tensão dc sua duração em relação à duração das coisas.
Tensão, concentração, tais são as palavras pelas quais caracterizaríamos um
método que requer do espírito, para cada novo problema, um esforço inteira
mente novo. Não poderiamos jamais ter tirado de nosso livro Matéria e Mamária.
que precedeu .4 Evolução Criadora, uma verdadeira doutrina da evolução (seria
no máximo uma aparência): nem de nosso Ensaio sobre os Dados Imediatos da
Consciência uma teoria das relações da alma com o corpo como aquela que
expusemos em seguida cm Matéria e Memória (leriamos apenas uma construção
hipotética), nem da pseudofilosofia à qual estávamos ligados antes dos Dados
Imediatos isto é. as noções gerais armazenadas na linguagem — as conclu
sões acerca da duração e da vida interior que apresentamos em nosso primeiro
trabalho. Nossa iniciação no verdadeiro método filosófico data do dia cm que
rejeitamos as soluções verbais, tendo encontrado na vida interior um primeiro
campo de experiência. Todo o progresso posterior foi um alargamento desse
campo. Estender logicamente uma conclusão, aplica la a outros objetos sem ler
realmente alargado o círculo de suas investigações, é uma inclinação natural do
espirito humano, mas â qual c preciso nào ceder nunca. A isto sc abandona inge
nuamente a filosofia quando ela c dialética pura, isto c. tentativa para construir
uma metafísica com os conhecimentos rudimentares que se encontram armaze
nados na linguagem. Ela continua a fazê lo quando erige conclusões tiradas de
certos fatos cm “princípios gerais” aplicáveis ao resto das coisas. Toda a nossa
atividade foi um protesto contra essa maneira dc filosofar. Tivemos, assim, dc
deixar dc Indo questões importantes, às quais teríamos facilmente dado um simu
lacro dc resposta prolongando até elas os resultados dc nossos trabalhos prece
dentes. Só respondemos a cada uma sc nos sào concedidos o tempo c a força de
resolvê-la nela mesma, por ela mesma. Senão, reconhecidos ao nosso método por
nos ter dado o que cremos scr a solução precisa de alguns problemas, consta
tando que não podemos ir mais longe, ficamos por aí. Nunca nos empenhamos
em escrever um livro.
Janeiro de 1922
A EVOLUÇÃO CRIADORA
(CAP II)
AS DIREÇÕES DIVERGENTES
DA EVOLUÇÃO DA VIDA
de certo ponto cia sc desdobra em vez de crescer. Foram necessários, sem dúvida,
séculos de esforço c prodígios de sutileza para que a vida contornasse esse novo
obstáculo. Ela conseguiu que permanecessem unidos elementos cm número cres
cente e cm vias de se desdobrar. Pela divisão de trabalho cia estabeleceu entre
eles um vínculo indissolúvel. O organismo complexo e quase descontínuo funcio
na assim como o teria feito certa massa contínua, que houvesse tão-somente au
mentado.
Mas as causas verdadeiras e profundas de divisão eram aquelas que a vida
trazia cm si. Porque a vida c tendência c a essência de uma tendência é dcsenvol-
ver-se cm forma de feixe, criando, tão-só pelo fato de seu crescimento, direções
divergentes entre as quais se distribuirá seu impulso. Isso é o que observamos
em nós mesmos na evolução dessa tendência especial a que chamamos nosso
caráter. Cada um de nós. passando em revista retrospectiva a nossa história,
irá verificar que nossa personalidade de criança, embora indivisível, englobava
em si pessoas diversas que podiam manter-se fundidas juntas porque estavam
cm estado nascente: essa indecisão plena dc promessas é inclusive um dos gran
des encantos da infância. Mas as personalidades que se interpcnctram tornam-se
incompatíveis ao crescerem, e. como cada um de nós tem uma só vida, somos
forçados a fazer uma opção. Na realidade, estamos incessantemente fazendo es
colhas. e sem cessar também deixamos dc lado muitas coisas. O itinerário que
percorremos no tempo está juncado dos resíduos de tudo o que começavamos
a ser. dc tudo o que poderiamos ter vindo a scr. Mas a natureza, que dispõe
de um número incalculável de vias, de modo algum se restringe a serrelhantes
sacrifícios. Ela conserva as diversas tendências que bifurcaram ao crescer. Ela
cria, com elas, séries divergentes de espécies que evoluirão distintamente.
Essas séries poderão, aliás, ser de importância desigual. O autor que começa
uma novela atribui ao seu personagem um sem-número dc coisas a que c obriga
do a renunciar à medida que a obra avança. Talvez as retome mais tarde em
outros livros, para compor com cias personagens novos, que aparecerão como
extratos ou então como complementos do primeiro, mas quase sempre estes últí
mos terão algo dc estreito em comparação com o personagem original. O mesmo
acontece com a evolução da vida. As bifurcações, durante o trajeto, foram nume
rosas, mas houve um sem-número dc dilemas à margem de duas ou trés grandes
estradas; c dessas estradas, por sua vez. uma só. a que subc ao longo dos verte
brados até ao homem, foi bastante ampla para deixar passar livremente o grande
alento da vida. Temos essa impressão quando comparamos as sociedades de abe
lhas ou de formigas, por exemplo, com as sociedades humanas. As primeiras
são admiravelmente disciplinadas e unidas, mas estagnadas: as outras são aber
ias a todo progresso, porém divididas e cm luta incessante entre si. O ideal seria
uma sociedade sempre em marcha e sempre cm equilíbrio, mas esse ideal talvez
nao seja realizável: as duas características que quisessem completar-sc mutua
mente. que chegam mesmo a se completar cm estado embrionário, ternam sc
incompatíveis ao se acentuarem. Se pudéssemos falar a não ser por metáforas
dc um impulso para a vida social, deveriamos dizer que o grosso do impulso
A EVOLUÇÃO CRIADORA 157
' Esse ponto de vista sobre a adaptação foi assinalado por F. Marin, cm notável artigo sobre u Origem
da* Espécies (Revue tcienfi/ique. novembro dc 1901. p. 5S0).
15X BERGSON
que havia começado por estabelecer como princípio que cada pormenor se rela
ciona a certo plano de conjunto, vai de decepção em decepção quando enfoca
o exame dos fatos: c como tudo colocara na mesma categoria, ocorre-lhe agora,
por não ter reservado lugar ao acaso, acreditar que tudo c casual. Impõe-se come
çar. pelo contrário, admitindo o papel do acaso, que é muito grande. É preciso
reconhecer que nem tudo é coerente na natureza. Com isso seremos levados a
determinar os centros cm tomo dos quais se cristaliza a incoerência. E essa cris
talização por sua vez esclarecerá o resto: as grandes direções aparecerão, onde
a vida se move desenvolvendo o arranco original. Não sc presenciará, é verdade,
a realização pormenorizada dc um plano. Há mais e melhor no caso que um
plano que sc realize. Plano é um ponto final imposto a uma tarefa: ele bloqueia
o futuro cuja forma projeta. Pelo contrário, diante da evolução da vida as portas
do futuro permanecem escancaradas. Trata-se de uma criação que se efetua infm
davclmente em virtude dc um movimento inicial. Esse movimento constitui a
unidade do mundo organizado, unidade fecunda, dc uma riqueza infinita, supe
rior a qualquer uma que a inteligência pudesse sonhar, dado que a inteligência
não passa de um dc seus aspectos ou de seus produtos.
É mais fácil, porém, definir o mclodo do que aplica Io. A interpretação com
pleta do movimento evolutivo no passado, tal como o concebemos, só seria possí
vel se a história do mundo organizado estivesse completa. Longe estamos dc
tal resultado. Sâo problemáticas, no mais das vezes, as genealogias que nos pro
põem das diversas espécies. Elas variam com os autores, com as perspectivas
teóricas em que se inspiram, e suscitam polemicas que o atual estado da ciência
nau permite dirimir. Mas. comparando diversas soluções entre si. veremos que
a controvérsia recai antes sobre o pormenor que sobre as linhas gerais. Acompa
nhando essas linhas tâo perto quanto possível. estaremos portanto seguros de
não nos extraviar. Só elas nos importam, aliás, porque não visamos, como o
naturalista, a encontrar a ordem de sucessão das diversas espécies, mas apenas
definir as direções principais dc sua evolução. Nem todas essas direções têm
<» mesmo interesse: é da via que conduz ao homem que devemos sobretudo nos
ocupar. Não perderemos pois de vista, ao acompanhar umas e outras, que sc
trata sobretudo de determinar a relação do homem para com o conjunto do reino
animal, e o lugar do reino animal por sua vez no conjunto do mundo organizado.
Para começar pelo segundo tópico, digamos que nenhuma característica ri
gorosa distingue a planta do animal. As tentativas feitas para definir rigorosa
mente os dois reinos fracassaram sempre. Não são poucas as propriedades da
vida vegetal que se encontram, em certo grau, cm determinados animais e nâo
há um só traço característico do animal que não sc possa observar em certas
espécies, ou cm certos momentos, no mundo vegetal. Comprecndc-sc pois que
biólogos empenhados em rigor tenham tomado por artificial a distinção entre
os dois reinos. Tcriam razão, se a definição devesse fazer-se aqui como nas ciên
cias matemáticas ou físicas, por certos predicados estáticos que o objeto definido
possui e que os demais nâo possuem. A nosso ver. bem diferente é o gencro
dc definição que convém às ciências da vida. Não há manifestação da vida que
160 BERGSON
aSobre a fixaçãv c ü parasiiismo cm geral, veja-sc a obra dc Houssay. l.a forme rí la vie, Paris. 1900.
pp. 721 807.
162 BERGSON
das duas evoluções que sc poderia já definir mediante elas os dois reinos. Mas
fixidez e mobilidade, por sua vez. não passam dc indícios superficiais dc tendên
cias mais profundas ainda.
Entre a mobilidade c a consciência há uma relação evidente. Certamente,
a consciência dos organismos superiores parece solidária com certos dispositivos
cerebrais. Quanto mais sc desenvolve o sistema nervoso, mais numerosos e preei
sos se tornam os movimentos entre os quais ele tem a escolha e mais luminosa
c também a consciência que os acompanha. Mas nem essa mobilidade, nem essa
escolha, nem. por conseguinte. essa consciência tem por condição necessária a
presença dc um sistema nervoso: esse nada mais faz que canalizar em sentidos
determinados, e levar, a mais alto grau dc intensidade, uma atividade rudimentar
e vaga, difusa na massa da substância organizada. Quanto mais se desce na série
animal, mais os centros nervosos se simplificam e se separam também uns dos
outros; por fim. os elementos nervosos desaparecem, mergulhados no conjunto
dc um organismo menos diferenciado. Mas o mesmo acontece com todos os de
mais aparelhos e todos os demais elementos anatômicos; e seria também absurdo
recusar a consciência a um animal, porque não tenha cérebro, tanto quanto decla
rá-lo incapaz de nutrir-sc por nào ter estômago. A verdade c que o sistema nervo
so nasceu, como os demais sistemas, de uma divisão de trabalho. Ele nào cria
a função; ele apenas a eleva a grau mais aho de intensidade c prccisào ao lhe
dar a dupla forma de atividade reflexa c de atividade voluntária. Para efetuar
um verdadeiro movimento reflexo, é preciso um mecanismo completo montado
na medula ou no bulbo. Para escolher voluntariamente entre diversos desempe
nhos determinados, impòe-sc haver centros cerebrais, isto é. encruzilhadas dc
onde partam estradas conduccntcs a mecanismos motores dc configuração diver
sa e dc igual precisão. Mas no caso cm que nao sc tenha produzido ainda uma
canalização cm elementos nervosos, muito menos uma concentração dos elemen
tos nervosos em um sistema, alguma coisa há de onde sairão, pela via co desdo
bramento. tanto o reflexo corno o voluntário, algo que nem tem a prccisào mccâ
nica do primeiro nem as hesitações inteligentes do segundo, mas que, participan
do cm dose infinitesimal de um c dc outro, c uma reação simplesmente indecisa
c por conseguinte já vagamente consciente. Significará isso que o organismo mais
humilde c consciente na medida em que sc move livremente. Em relação ao movi
mento, será a consciência nesse caso o efeito ou a causa? Em certo sentido é
a causa, dado que sua função c dirigir a locomoção. Mas em outro sentido ela
é efeito, porque é a atividade motora que a mantém, e. uma vez que essa atividade
desapareça, u consciência sc atrofia ou então adormece. Em crustáceos como
os rizocéfalos. que devem ter apresentado antigamente uma estrutura mais dife
renciada. a fixidez e o parasitismo acompanham a degcnerescência c o quase
desaparecimento do sistema nervoso: como, em caso semelhante, o progresso
da organização havia localizado em centros nervosos toda a atividade consciente,
pode conjccturar sc que a consciência é mais frágil ainda nos animais desse gêne
ro do que em organismos muito menos diferenciados, que jamais possuíram cen
tros nervosos mas que permaneceram imóveis.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 163
Como, entào, a planta, que se fixou à terra e que encontra seu a.imento
no local, teria podido desenvolver-se no sentido da atividade consciente? A mem
brana dc celulose, de que se envolve o protoplasma, ao mesmo tempo que imobili
za o organismo vegetal mais simples, o exclui, cm grande parte, dessas excitações
externas que atuam sobre o animal como irritantes da sensibilidade e o impedem
de adormecer.4 A planta é. pois, em geral inconsciente. Também nesse caso deve
mos ter cautela com as distinções radicais. Inconsciência e consciência não sào
rótulos que sc possam colar maquinalmcntc. um sobre toda célula vegetal c o
outro sobre todos os animais. Sc a consciência adormece no animal que degenc
rou como parasila imóvel, inversamente cia desperta, sem dúvida, no vegetal que
reconquistou a liberdade de seus movimentos, c ela desperta na exata medida
cm que o vegetal reconquista essa liberdade. Consciência e inconsciência também
assinalam as direções cm que se desenvolveram os dois reinos, no sentido que.
para encontrar os melhores ©specimens da consciência no animal, c preciso subir
até os representantes mais allos da série, ao passo que. para descobrir casos
prováveis dc consciência vegetal, c preciso descer o mais baixo possível na escala
das plantas, chegar aos zoósporos das algas, por exemplo, e. dc um modo mais
geral, a esses organismos unicelularcs dos quais sc pode dizer que hesitam entre
a forma vegetal e a animalidade. Desse ponto dc vista, c nessa medida, cefínirc
mos o animal pela sensibilidade c consciência desperta, c o vegetal pela consciên
cia adormecida c insensibilidade.
Em suma, o vegetal fabrica dirctamcntc substâncias orgânicas com stibstân
cias minerais: essa capacidade o exime cm geral de se mover c. por isso mesmo,
de sentir. Os animais, obrigados a ir cm busca de seu alimento, evoluíram no
sentido da atividade locomotora e. por conseguinte, dc uma consciência cada
vez mais ampla, cada vez mais distinta.
Ora. não nos parece dubitável que a célula animal c a célula vegetal decor
ram dc uma estirpe comum, que os primeiros organismos vivos tenham oscilado
entre a forma vegetal c a forma animal, participando dc uma e dc outra ao mesmo
tempo. Com efeito, acabamos de ver que as tendências características da evolu
ção dos dois reinos, embora divergentes, coexistem ainda atualmente, tanto na
planta como no animal. Só difere a proporção. Via dc regra, uma das duas ten
dências encobre ou esmaga a outra, mas. cm circunstâncias excepcionais, esta
se separa e reconquista o lugar perdido. A mobilidade c a consciência da célula
vegetal nào estão adormecidas a tal ponto que nâo possam despertar quando
as circunstâncias o permitem ou o exigem. E, por outro lado, a evolução do
reino animal foi sem cessar retardada, detida, ou arrastada para trás pela tendên
cia que conservou à vida vegetativa. Por mais plena, por mais transbordante
que possa de fato parecer a atividade de uma espécie animal, o torpor e a incons
ciência a espreitam. Ela só mantem seu papel por um esforço, ao preço de um
cansaço. Ao longo do caminho no qual o animal evoluiu, ocorreram fraquezas
sem número, fracassos que sc devem na maior parle a hábitos parasitários: sào
4 Cope.op.cú., p. 76.
164 BERGSON
como os desvios ferroviários na vida vegetativa. Assim, tudo nos faz supor que
0 vegetal e o animal descendem de um antepassado comum que reunia, no estado
nascente, as tendências de um e do outro.
Mas as duas tendências que se implicavam rcciprocamente sob essa forma
rudimentar dissociaram-se ao crescer. Disso decorreram o mundo das plantas,
com sua fixidez e sua insensibilidade, tanto quanto os animais, com sua mobilida
de e sua consciência. Não há. pois, necessidade absolutamente alguma dc recor
rcr a uma força misteriosa para explicar esse desdobramento. Basta observar
que o ser vivo tende naturalmcnte ao que lhe c mais cômodo, e que vegetais
e animais optaram, cada qual por seu lado, por dois gêneros diferentes dc como
didade no modo dc se abastecerem do carbono e do nitrogênio de que tinham
necessidade. Os primeiros, de modo pertinaz e maquinalmcnle. extraem esses ele
mentos dc um meio que os fornece sem cessar. Os segundos, mediante ação des
contínua, concentrada cm alguns instantes, c consciente, vão procurar esses cor
pos cm organismos que os já lixaram. Trata-se de duas maneiras diferentes dc
compreender o trabalho ou. sc preferirmos, a preguiça. Parece-nos também dubi-
tável que se revelem algum dia na planta elementos nervosos, por mais rudimen
tares que sc possa imaginar. O que corresponde nela à vontade que dirige o ani
mal é. segundo cremos, a direção pura onde ela desvia a energia da radiação
solar quando dela se serve para romper as amarras do carbono com o oxigênio
no ácido carbônico. O que corresponde, nela, à sensibilidade do animal é a im
pressionabilidade cspecialíssima de sua clorofila à luz. Ora. sendo o sistema ncr
voso, antes dc tudo, um mecanismo que serve de intermediário entre sensações
c voliçôcs. o verdadeiro “sistema nervoso” da planta parecc-nos scr o mecanismo
ou antes o quimismo sui generis que serve dc intermediário entre a impressionabi-
lidade de sua clorofila à luz c a produção do amido. Significa que a planta não
deve possuir elementos nervosos, c que o mesmo impulso que levou o animal
a adquirir nervos e centros nervosos deve ter culminado, na planta, na função
clorofiliana*
Essa primeira inspeção no mundo organizado irá permitir-nos a determina
ção cm termos precisos do que une os dois reinos, bem como aquilo que OS
separa.
Suponhamos, como deixamos entrever no capítulo precedente, que haja no
fundo da vida um esforço para enxertar, na necessidade das forças físicas, a
maior soma possível dc indetcrminaçào. Esse esforço não pode chegar a criar
energia, ou. sc criar, a quantidade criada não pertence à ordem de grandeza cap-
távcl por nossos sentidos ou instrumentos de medida, nossa experiência e nossa
ciência. Tudo se passará, pois, como se o esforço visasse simplesmente â utilizar
9 Assim como a planta, cm certos casos, recobra a faculdade dc sc mover ativamente que nela adormece,
lambem u anima) pode, em circunsuncia» excepcionai», situar se nas condições da vida vcgelatira e revelar
cm si um equivalente da função cluruííiica. ParcCc resultar, Com efeito, das recentes experiences do Maria
von Linden que as crisálidas c as lagarias de diversos lepidõpteros. sob a influência da luz. fixam o carbono
do ácido carbônico contido na atmosfera (M. von Linden. L'Assimilation <lc 1'acide carboniçue par les
chrysalides dr Lépidopleros. C. R de la Soc. de Biologic, 1905.pp. 692 ss.),
A EVOLUÇÃOCRiADORA 165
da melhor maneira a seu alcance uma energia preexistente, que encontre à sua
disposição. Só há um meio de chegar a isso: é obter da matéria tal acúmulo
de energia potencial que ela possa, cm dado momento, fazendo disparar um me
canismo. obter o trabalho de que necessita para agir. Por sua vez. ele só possui
esse poder dc desencadear. Mas o trabalho de destravamento. embora sempre
o mesmo e sempre mais fraco que qualquer quantidade dada, será tanto mais
eficaz quanto faça cair de mais alto um peso mais pesado, ou. cm outras pala
vras, que a soma de energia potencial acumulada c disponível seja mais conside
rável. De fato, a fonte principal da energia utilizável na superfície de nosse plane
ta é o Sol. O problema era pois este: obter do Sol que aqui e ali. na superfície
da Terra, ele interrompesse parcial e provisoriamente seu fornecimento incessante
de energia utilizável, que cie armazenasse parte dela, sob forma dc energia nào
ainda utilizada, em reservatórios apropriados dc onde ela pudesse depois fluir
no momento desejado, para o lugar desejado, na direção desejada. As substâncias
de que o animal se alimenta são. precisamente. reservatórios desse gcncro. Cons
tituídas dc moléculas muito complexas que encerram, em estado potencial, uma
soma considerável dc energia química, elas constituem espécies dc explosivos,
que só esperam uma centelha para libertar a forma armazenada. Ora. é provável
que a vida tendesse primeiro a obter, dc uma só vez. tanto a fabricação do expio
sivo como a explosão que o utiliza. Nesse caso, o mesmo organismo que tivesse
armazenado dirctamcntc a energia da radiação solar a teria despendido em movi
mentos livres no espaço. Por isso, devemos presumir que os primeiros seres vivos
tenham procurado, por um lado, acumular pcrtinazmcntc energia tirada do Sol
c. por outro, despendê-la dc modo descontínuo c explosivo por movimentos de
locomoção: os infusórios cloroHlados. as cuglcnoidinas simbolizam talvez ainda
hoje, mas sob uma forma reduzida c incapaz de evoluir, essa tendência primor
dial da vida. Corresponderá o desenvolvimento divergente dos dois remos ao
que se poderia chamar metaforicamente de esquecimento, por parte dc cada rei
no. dc uma das duas metades do programa? Ou então, o que é mais provável,
a própria natureza da matéria que a vida achava diante dc si cm nosso planeta
teria sc oposto a que as duas tendências pudessem evoluir juntas cm um mesmo
organismo? O que é certo é que o vegetal tendeu sobretudo ao primeiro sentido
e o animal, ao segundo. Mas, se desde o início, a fabricação do explosivo tivesse
por alvo a explosão, a evolução do animal, muito mais que a do vegetal, é que
indica, cm suma, a orientação fundamental da vida.
A “harmonia” dos dois reinos, as características complementares que eles
apresentam, viriam. pois, enfim do fato dc que eles revelam duas tendências pri
meiro fundidas numa única. Quanto mais a tendência original c única aumenta,
tanto mais acha difícil manter unidos no mesmo ser vivo os dois elemen’.os que.
em estado rudimentar, estão implicados um no outro. Daí um desdobramento,
daí duas evoluções divergentes: daí também duas séries de características que
sc opõem cm certos pontos, sc completam cm outros, mas que, ou se completando
ou se opondo, conservam sempre entre eles um aspecto de parentesco. Ã medida
que o animal evoluía, não sem acidentes, ao longo do trajeto, no sentido de uma
166 BERGSON
liberação cada vez mais livre dc energia descontínua, a planta aperfeiçoava seu
sistema de acumulação no mesmo lugar. Nào insistiremos quanto a essa segunda
questão. Digamos apenas que a planta valeu-se. por sua ve?, dc um novo desdo
bramento. análogo ao que sc produziu entre a planta e os animais. Se a célula
vegetal primitiva teve, por si só. que fixar o carbono e seu nitrogênio, póde quase
que renunciar à segunda dessas duas funções quando vegetais microscópicos ten
deram exclusivamentc a esse sentido, especializando-se aliás diversamente nesse
trabalho ainda complicado. Os micróbios que fixam o nitrogênio da atmosfera
e os que, alternadamcntc. convertem os compostos amoniacais em compostos
nitrosos e estes em nitratos, prestam ao conjunto do mundo vegetal, pela mesma
dissociação de uma tendência primitivamcnic única, o mesmo gênero de serviço
que o.s vegetais em geral prestam aos animais. Se criássemos para esses vegetais
microscópicos um reino especial, poderiamos dizer que os micróbios do solo,
os vegetais e os animais apresentam nos a análise, operada pela matéria que a
vida linha à sua disposição em nosso planeta, de tudo o que a vida continha
a princípio cm estado de implicação recíproca. Será isso, rigorosamente falando,
uma “divisão do trabalho'*? Essas palavras nào dariam uma idéia exata da evolu
ção. tal como representamos. No caso cm que haja divisão do trabalho, há asso
ciação c há também convergência dc esforço. Pelo contrário, a evolução dc que
falamos jamais sc realiza no sentido dc uma associação, mas de uma dissociação,
jamats no sentido da convergência, mas divergência de esforços. A harmonia
entre termos que sc completam cm certos pontos não sc produz, a nosso ver.
durante o trajeto por uma adaptação recíproca; pelo contrário, ela é cabalmcntc
completa apenas no ponto dc partida. Ela decorre dc uma identidade original.
Ela advem dc que o processo evolutivo, que sc expande cm forma de feixe, separa
uns dos outros, durante o seu crescimento simultâneo, termos a princípio tào
complementares a ponto de terem estado confundidos.
Importa, aliás, que os elementos nos quais uma tendência se dissocia tenham
todos a mesma importância, c sobretudo a mesma potência de evoluir. Acabamos
dc distinguir três reinos diferentes, se assim podemos exprimir-nos. no mundo
organizado. Enquanto o primeiro abrange apenas microorganismos manados cm
estado rudimentar, animais e vegetais assumiram impulso para altíssimos êxitos.
Ora. eis um fato que sc produz comumente quando uma tendência se dissocia.
Entre os desenvolvimentos divergentes aos quais cia dá origem, uns continuam
indefinidamente. outros chegam mais ou menos depressa ao extremo de suas pos
sibilidades. Estes últimos nào provem dirctamcntc da tendência primitiva, mas
de um dos elementos nos quais ela sc dividiu: trata-se de desenvolvimentos resi
duais. efetuados e depositados a meio caminho, por algumas tendências verdadeí-
ramente elementares: elas trazem, segundo cremos, uma característica pela qual
as reconhecemos.
Essa característica é como o traço, ainda visível cm cada uma delas, do
que a tendência original encerrava c dc que elas representam as direções elemen
lares. Com efeito, os elementos de uma tendência nào são comparáveis a objetos
justapostos no espaço c exclusivos uns dos outros, mas. isto sim, a estados psico
A EVOLUÇÃO CRIADORA 167
lógicos, cada um dos quais, embora seja a principio ele mesmo, participa no
entanto dos demais e encerra assim virtualmcntc toda a personalidade à qual
pertence. Não há manifestação essencial da vida, dizíamos, que não nos apresen
te. em estado rudimentar ou virtual, as características das outras manifestações.
Reciprocamente, quando nos deparamos com a reminiscência. por assim dizer,
cm uma linha dc evolução, do que se desenvolve ao longo de outras linhas, deve
mos concluir que estamos diante de elementos dissociados dc uma mesma tendèn
cia original. Nesse sentido, vegetais e animais representam bem os dois grandes
desenvolvimentos divergentes .da vida. Sc a planta sc distingue do animal pela
fixidez e insensibilidade, movimento e consciência adormecem nela como lem
branças que podem despertar. De resto, ao lado dessas lembranças norrnalmcnte
adormecidas, há lambem as que são despertas c atuantes. Sào aquelas cuja ativi
dade não prejudica o desenvolvimento da própria tendência elementar. Poderia
mos enunciar esta lei: Quando uma tendência se dcscompõe ao desenvolver se,
cada unia das tendências particulares que nascem assim querería conservar e
desenvolver, da tendência primitiva, tudo o que nào é incompatível com o traba
Iho no qual ela se especializou. Com isso sc explicaria precisamente o fato sobre
o qual nos alongamos no capitulo precedente, isto é. a formação dc mecanismos
complexos idênticosem linhas de evolução independentes. Certas analogias profun
das entre o vegetal c o animal nào tem. provavelmente, outra causa: a geração
sexuada nào passa, talvez, de um luxo para a planta, mas era preciso que o
animal proviesse dela, e a planta deve ter sido levada a ela pelo mesmo impulso
que levou o animal à rcprcxluçào sexuada — impulso primitivo, original, anterior
ao desdobramento dos dois reinos. Diremos o mesmo da tendência do vegetal
a uma complexidade crescente. Essa tendência é essencial ao reino animal, que
a necessidade dc uma açâo cada vez mais extensa c eficaz trabalha. Mas cs vege
tais, que se condenaram à insensibilidade e à imobilidade, só apresentam a mes
ma tendência porque receberam, no inicio, o mesmo impulso. Experiências recen
tes mostram nos os vegetais variando num sentido qualquer quando chega o pc
ríodo de “mutação"; ao passo que o animal deve ter evoluído, segundo cremos,
cm sentidos muito mais determinados. Mas nào insistiremos muito nesse desdo
bramento original da vida. Chegamos à evolução dos animais, o que nos interessa
mais cspccialmcntc.
O que constitui a animalidade, dizíamos, c a faculdade dc utilizar um meca
nismo dcscncadcador para converter em ações “explosivas" a maior soma possí
ve! dc energia potencial acumulada. No início, a explosão sc faz ao aca^o, sem
poder escolher sua direção: assim é que a ameba lança em todos os sentidos
ao mesmo tempo seus prolongamentos pseudopódicos. Mas. à medida que nos
elevamos na série animai, vemos a própria forma do corpo esboçar certo número
dc direções bem determinadas, ao longo do qual caminhará a energia. Essas dire
çòcs são assinaladas pelas respectivas cadeias dc elementos nervosos situadas
de ponta a ponta. Ora. o elemento destacou-se aos poucos da massa mal diferen
ciada du tecido organizado. Pode-se pois conjtclurar que nele e em seus anexos
é que sc concentra, desde o aparecimento, a faculdade dc liberar bruscamente
168 BERGSON
vcrnam, a atividade desses últimos nervos está subordinada ã dos nervos que
abalam os músculos locomotores. no sentido em que estes começam por gastar
a esmo» consumindo assim glicogénio, empobrecendo de glicose o sangue, c de
terminando finalmcnte o fígado, que deverá despejar no sangue empobrecido uma
parte de sua reserva de glicogênio. para fabricar dc novo glicose. F.m suma: c.
a rigor, do sistema sensório-motor que tudo começa c è a ele que tudo converge;
pode-se dizer, sem metáfora, que o restante do organismo está a seu serviço.
Meditemos ainda no que sc passa no caso do jejum prolongado. Éfato nutá
vel que. nos animais que tenham morrido de fome, cnconire-se o cérebro quase
intacto, ao passo que os demais órgãos perderam uma parte mais ou menos gran
de dc seu peso c que suas células tenham sofrido alterações profundas.7 Tcm-sc
a impressão de que o resto do corpo sustentou o sistema nervoso até o limite
extremo, tratando-se a si mesmo como simples meio dc que este seria o fim.
Em suma, se concordarmos, para abreviar, em chamar dc “sistema sensório
motor'* o sistema nervoso cêrcbro-espinhal com. ademais, os aparelhos jcnsoriais
nos quais ele sc estende e os músculos locomotorcs que ele governa, poderemos
dizer que um organismo superior ê constituído csscncialmente dc um sistema
sensório-motor instalado em aparelhos de digestão, respiração, circulação, secre
ção. etc., que têm por função restaura lo. limpá-lo, protege lo. criar para ele um
meio interno constante, enfim, e sobretudo, transmitir lhe a energia potencial a
ser convertida cm movimento dc locomoção.’ E verdade que. quanto mais a fun
çao nervosa sc aperfeiçoa, tanto mais as funções destinadas a mante )a devem
desenvolver sc c se tornam por conseguinte exigentes por si mesmas. À medida
que a atividade nervosa emergiu da massa protoplasmatic» cm que eslava mergu
lhada. teve que convocar atividades dc todo gênero sobre as quais apoiar-se:
estas só se poderíam desenvolver com base em outras atividades, por sua vez
implicando outras, c assim por diante. ?\sstrn é que a complicação do fjnciona-
mento dos organismos superiores vai ao infinito. O estudo dc um desses organis
mos nos faz, pois, girar num círculo, como sc tudo nele servisse dc meio a tudo.
Esse círculo ê também um centro, que ê o sistema dc elementos nervosos estendí
do entre os órgãos scnsoriai.s c o aparelho de locomoção.
Nâo nos alongaremos aqui sobre um tópico que já desenvolvemos longa
mente cm trabalho anterior.* lembremos apenas que o progresso do sistema ncr-
’ Pc Manacéuk*. "Alguma* observações experimentai* «»l»rc a influência du inwniu absuluia" 'Arch. ital.
de bitdngie, i XXI. 1894. pp. 322 Rcecntcmcntc, observações unúloga.s foram feitas num homem mtwio
dc inanição apôs um jejum dc 35 dias. Veja sc sobre essç assunto o Annéc htoingiquc de 18^8. p. J38.
o resumo dc um trabalho (cm russo) de TamkcMcb c Sichasny.
* Cuvier já dizia: "O sistema nervoso i, no fundo, o animal todo; ik demuib sistemas m» cjísicjii nele
pura o servir'*. (Sobre nova comparação a scr feiia entre as classe* i^uc compõem o reino anima. Archívei
du Muxeum d'histoire naiurelle. Paris. 1812. p. 73 84.) A esta fórmula cabería. naturalmcnte. um tem núme
ro de restrições: considerar se. por exemplo, caso» dc degradação c regressão cm Que o sistema nervocn
passa a plano subalterno. E, sobretudo, impôc se juntar ao sistema nervoso os aparelhos scnsoriais, por
um fedo, c maiores, por outro, entre os quais dc serve dc intermediário. Cf. Foster. Art. Fisiolugia da
Encyclopaedia Brtianníeu, Edinburg, 1885. p. 17.
triunfado sobre resistências externas c também da sua própria, ele está à mercê
da materialidade a que teve dc se dar. É o que cada um de nós pode vivenciar
em si mesmo. Nossa liberdade, nos próprios movimentos pelos quais ela se afir
ma. cria os hábitos nascentes que a sufocarão se ela nào se renovar por um
esforço constante: o automatismo a espreita. O pensamento mais vivo sc congela
rá nu fórmula que o exprime. A palavra volta-se contra a idéia. A letra mata
o espírito. E nosso mais ardente entusiasmo, quando se exterioriza cm ação, cris-
lalíza-sc às vezes tào naturalmente cm frio cálculo de interesse ou vaidade, c
um adota tào facilmente a forma do outro, que até poderiamos confundi-los.
duvidar de nossa sinceridade, negar a bondade c o amor, sc nao soubéssemos
que a morte conserva ainda por algum tempo os vestígios do ser vivo.
A causa profunda dessas dissonâncias juz numa irremediável diferença de
ritmo. A vida cm geral é a própria mobilidade: as manifestações particulares
da vida só aceitam essa mobilidade com pesar, c constantemente sc atrasam em
relaçào a ela. A vida vai sempre cm frente, mas suas manifestações particulares
dc bom grado ficariam marcando passo no mesmo lugar. A evolução cm geral
sc faria, tanto quanto possível, cm linha reta;cada evolução especial é um proces
so circular. Como turbilhões dc poeira levantados pelo vento que passa, os vivos
giram sobre si mesmos, pendentes do grande alento da vida. Eles sào. pois, rclati
vamente estáveis, e chegam a imitar tão bem a imobilidade ao ponto dc os tratar
mos como coisas mais que como progressos. esquecendo que a própria perma
ncncia de sua forma nào passa de um projeto dc movimento. Por vezes, no entan
to. maierializa-sc diante de nossos olhos, numa fugidia aparição, o alento invisí
vel que os anima. Temos essa iluminação súbita diante dc certas formas do amor
materno, tão flagrante, tào comovente também na maior parte dos animais, ob
servável até mesmo na solicitude da planta para com sua semente. Esse amor,
no qual alguns viram o grande mistério da vida, talvez nos revelasse o segredo
dela. Ele nos mostra cada geração voltada para aquela que a seguirá. Ele nos
deixa entrever que o scr vivo c sobretudo um lugar dc passagem, e que o essencial
da vida reside no movimento que a transmite.
Esse contraste entre a vida cm geral e as formas em que ela se manifesta
apresenta por toda parle o mesmo caráter. Poder se ia dizer que a vida tende
a agir o mais possível, mas que cada espécie prefere contribuir com a mínima
parcela possível dc esforço. Encarada no que é sua própria essência, isto c. como
uma transição dc espécie a espécie, a vida é uma ação sempre crescente. Mas
cada uma das espécies, através das quais a vida passa, visa tào-somente sua
comodidade. Ela segue no sentido do que exige a mínima dificuldade. Absorvcn
do se na forma que irá assumir, ela entra numa sonolência, em que ignora quase
iodo o resto da vida: modula-se a st mesma em vista da exploração mais fácil
possível do seu círculo imediato. Assim o ato pelo qual a vida se encaminha
para a criação de uma forma nova, o ato pelo qual essa forma sc desenha sào
dois movimentos diferentes e não raro antagônicos. O primeiro se prolonga no
segundo, mas não pode se prolongar sem se desviar dc sua direção, como aconte-
A EVOLUÇÃO CRIADORA 173
ceria a um atleta que. para vencer v obstáculo, fosse obrigado a desviar os olhos
do obstáculo e olhar para si mesmo.
As formas vivas são. pela própria definição, formas viáveis. Seja como for
que sc explique a adaptação do organismo às suas condições dc existência, essa
adaptação c. necessariamente, suficiente a partir do momento que a espécie sub*
sista. Nesse sentido, cada uma das espécies que se sucederam na história da vida,
c que a zoologia c a paleontologia descrevem, foi um êxito feliz alcançado pela
vida. Mas as coisas assumem aspecto totalmcntc diverso quando comparamos
cada espécie ao movimento que a colocou em seu caminho, e não mais às condi
çòes em que ela se inseriu. Nào raro esse movimento desviou-se. c nào raro tam
bém ele estancou; o que deveria ser tão-somente um lugar de passagem conver
teu-se no ponto final. Dessa nova perspectiva, o fracasso aparece como a regra,
o bom êxito como excepcional e sempre imperfeito. Veremos, no devido tempo,
que das quatro grandes direções pelas quais enveredou a vida animal, duas condu
ziram a becos sem saída, e que em duas outras, o esforço foi de modo geral
desproporcionado ao resultado.
Escassciam-nos documentos para reconstituir os pormenores dessa história.
Contudo, podemos dcslindar-lhe as linhas gerais. Dizíamos pouco antes qce ani
mais c vegetais tiveram de scparar-sc muito depressa de sua estirpe comum: o
vegetal adormecendo em sua imobilidade e o animal, pelo contrário, despertando
sempre mais e avançando sempre cada ve? mais à conquista dc um sistema ner
voso. É provável que o esforço do reino animal culmine na criaçao dc organismos
simples, mas dotados dc certa mobilidade, e sobretudo dc forma bastante :ncon
clusiva. de molde a prestar sc a todas as determinações futuras. Esses animais
poderíam parecer-se com certos vermes por nós conhecidos, com a diferença,
no entanto, dc que os vermes atualmente vivos com os quais os comparássemos
sào os exemplares esvaziados c cstratificados das formas infinitamente maleáveis,
prenhes de futuro indefinido, que foram o antepassado comum dos equinodermos.
dos moluscos, dos artrópodes c dos vertebrados.
Um perigo os espreitava, um obstáculo que sc impunha sem dúvida a deter
o impulso da vida animal. Ha uma particularidade que nào pode deixar dc nos
impressionar quando lançamos um olhar sobre a fauna dos tempos primevos.
C o aprisionamento do animal num invólucro mais ou menos rígido, que devia
prejudicar e mesmo nào raro paralisar seus movimentos. A princípio, os molus
cos eram dotados dc uma concha com muito mais frequência do que os moluscos
atuais. Os artrópodes cm geral eram providos de uma carapaça: eram crustáceos.
Os peixes mais remotos possuíam um invólucro ósseo, de extrema rigidez.9 A
explicação desse fato geral deve ser procurada, segundo cremos, numa tendência
dos organismos flácidos a sc defenderem uns contra os outros, tornando-se inde-
voráveis tanto quanto possível. Cada espécie, no ato pelo qual se constitui, segue
9 Vçja w. jubre cwas dííerciiics qucuòcs. a ubru dc Guudry: lie paletintuloRie physique, Pans, 1896,
pp. 1416c 7S 79.
174 BERGSON
no sentido do que lhe é mais cômodo. Do mesmo modo que. entre os organismos
primitivos, alguns se orientaram no sentido da animalidade ao renmeiarem a
fabricar o orgânico com o inorgânico e tomando as substâncias orgânicas já
totalmente constituídas aos organismos já desviados na vida vegeta^ também,
entre as próprias espécies animais, muitas se acomodaram para viver às custas
dos outros animais. Um organismo que seja animal, isto c. capaz dc bcomover-
sc. poderá dc fato valer se de sua mobilidade para ir à procura de animais indefe
sos c deles se alimentar, tanto quanto dc vegetais. Desse modo, quanto mais
as espécies se faziam móveis, tanto mais, sem dúvida, sc tornavam vorazes c
perigosas umas para as outras. Disso deve ter resultado uma brusca parada do
mundo animal inteiro no progresso que o levava a uma mobilidade cada vez
maior, porque a pele dura e a crosta calcária do equinodermo. a concha do mo
lusco. a carapaça do crustáceo c a couraça ganóide dos antigos peixes provavel
mente tiveram por origem comum um esforço das espécies animais no sentido
de se protegerem contra as espécies inimigas. Mas essa couraça, por trás da qual
o animal se abrigava, prejudicava o em seus movimentos e nào raro o imobiliza
va. Se o vegetal renunciou à consciência ao se envolver numa membrana dc cclu
lose, o animal que se enclausurou numa cidadela ou numa armadura condena-se
a uma sonolência. Nesse torpor é que vivem ainda hoje os equinodermos c mes
mo os moluscos. Os artrópodes c os vertebrados também sofreram ameaça como
essa. Escaparam dela: a essa feliz circunstância dcvc-sc o atual desabrochar das
mais elevadas formas da vida.
Com efeito, cm duas direções vemos o impulso da vida ao movimento levar
vantagem. Os peixes trocam sua couraça ganóide por escamas. Muito ’.empo an
tes. os insetos, por sua vez, apareceram desembaraçados da couraça que protege
ra seus antepassados. Para compensar a insuficiência que lhes permitia escapar
a seus inimigos e lambem assumir a ofensiva, escolhendo o lugar e o momento
do combate. Progresso do mesmo gênero c que observamos nu evolução do equi
pamento humano. O primeiro movimento é o de ir em busca de abrigo; o segun
do. que é o melhor, consiste cm tornar se o mais maleável possível para a fuga
c sobretudo para o ataque — sendo ainda o aiaque o meio mais eficaz de defen
der sc. Assim c que o pesado hoplita veio a ser suplantado pelo legi mário: o
cavaleiro, e seu cavalo, com armadura e couraça dc malhas metálicas (eve dc
ceder o lugar ao infante livre em seus movimentos, c, de modo geral, na evolução
do conjunto da vida, como na evolução das sociedades humanas, como também
na evolução dos destinos individuais, os mais retumbantes êxitos couberam ãque
lesque aceitaram os maiores riscos.
Evidentemente, o interesse do animal era o dc tornar-se mais móvel. Como
o dissemos a propósito da adaptação em geral, sempre se poderá explicar a trans
formação das espécies por seu interesse particular. Ter-se-á tão-somente a causa
mais .superficial. A causa profunda é o impulso que lançou a vida no mundo,
que a fez bifurcar sc entre vegetais e animais, que desviou a animalidade no senti
do da maleabilidade da forma, e que, em dado momento, no reino animal amea
A EVOLUÇÃO CRIADORA 175
’8 Sobre o assunta, veja-se Shalcr, The individual. Nova York. J 000, pp. 11X-12$.
176 BERGSON
grupo de degenerados, mas é preciso para isso que uma causa de regressão lenha
interferido. De direito, esse grupo seria superior ao grupo de que e.e decorre,
dado que correspondería a um estágio mais avançado da evolução. Ora. o ho
mem c provavelmente o mais recente dos vertebrados.11 E. na série dos msetos.
só os lepidópteros são posteriores aos himenópteros. isto c. sem dúvida, uma
espécie degenerada, verdadeira parasita das plantas dotadas de flores.
Dessa maneira, por caminhos diferentes, somos levados a mesma conclusão.
A evolução dos anrópodes teria atingido seu ponto culminante com o inseto,
e cm particular com os himenópteros. assim como a evolução dos vertebrados
chegou ao máximo com o homem. Ora, sc tomarmos cm consideração que em
parte alguma o instinto se desenvolveu tanto quanto no mundo dos insetos, e
que em nenhum grupo de insetos cie c tão maravilhoso quanto nos himenópteros.
poderemos dizer que toda a evolução do reino animal, com abstração dos regres
sos à vida vegetativa, realizou sc cm duas vias divergentes, uma das quais seguia
em direção ao instinto c a outra em direção à inteligência.
Torpor vegetativo, instinto e inteligência, eis pois, finalmentc. os elementos
que coincidiam no impulso vital comum às plantas c aos animais, c que. no
curso dc um desenvolvimento cm que manifestaram nas mais imprevistas formas,
dissociaram-se puramente devido ao falo dc seu crescimento. O erro capital, erro
que. transmitindo-se desde Aristóteles, viciou a maior parte das filosofias da na
tureza, consiste em ver na vida vegetativa, na vida instintiva e na vida racionai
três graus sucessivos de uma mesma tendência que se desenvolve, quando se trata
dc três direções divergentes de uma atividade que se cindiu ao crescer. A difercn
ça entre cias nào c dc intensidade, nem. dc um modo mais geral, de grau, mas
diferença dc natureza.
Forçoso è aprofundar essa questão. Vimos como se completam c como con
trasiam a vida vegetal c a vida animal. Trata sc agora dc mostrar que a inteligên
cia c o instinto, por sua vez. sc opõem e sc completam. Mas digamos- primeiro
por que se é lentado u ver na inteligência c no instinto atividades desiguais, a
primeira sendo superior à segunda, havendo assim superposição dc uma à outra.
Ora. na realidade não sc trata dc coisas da mesma ordem, nem sc pode dizer
que uma tenha sucedido n outra, nem às quais se possa atríhuir categorias de
superioridade e inferioridade.
O fato é que inteligência c instinto, tendo começado por inierpenetrar-se.
conservam algo dc sua origem cm comum. Nem uma nem outro jamais se encon
tram em estado puro. Dissemos, páginas airás. que na planta, podem despertar
a consciência e a mobilidade do animal que nela adormecem, c que o animal
vive sob constante ameaça dc um desvio para a vida vegetativa. As duas tendên-
'1 Hssa questão c contestada por René Quinton, que consider;i os mattiiícros carnívoro» c rumiaanles ssstm
como certos pássaros, como posteriores ao homem IR. Quinton. l.‘eau de mer milieu orgaaiquc. Paris.
1904. p. 435). Diga sc dc passagem que nossas conclusões gerais, embora muito diferentes das de Quinton,
nada tetn dc inconcdsávcis Cvm cias; porque se a evolução foi precisamente como a reprcxtiumo». os
vertebrados tiveram que fazer um esforço para « manter nas condições de ação mais favoráveis, aquelas
mesmas condições em que a vida a principio se situou.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 177
cias. tanto da planta como do animal, peneiravam .sc reciprocamcnte tao bem
a principio que jamais houve completa ruptura entre elas: uma continua pairando
sobre a outra: por toda parte a.s encontramos misturadas; a proporção é que
difere. O mesmo acontece com a inteligência c o instinto. Nào há inteligência
onde não se descubra vestígios de instinto, nem instinto, sobretudo, que nào esteja
envolto numa franja dc inteligência. Esta franja de inteligência é que foi causa
de tantos enganos. Pelo falo dc que o instinto é sempre mais ou menos inteligente,
concluiu-se que inteligência e instinto sejam coisas da mesma ordem, c que nào
há entre eles scnâo uma diferença de complexidade ou dc perfeição, c sobretudo
que um dos dois seja exprimível em termos do outro. Na realidade, eles só sc
acompanham porque sc completam, c só se completam porque sào diferentes:
o que há de instintivo no instinto é de sentido oposto ao que há de inteligente
na inteligência.
Que nâo haja espanto por insistirmos nessa questão. Temo-la por capital.
Digamos, primeiro, que as distinções que iremos fazer serão demasiado níti
das. justamente porque queremos definir do instinto o que ele tem de instintivo
c da inteligência o que ela tem de inteligente, enquanto todo instinto concreto
c misto dc inteligência, como toda inteligência real é penetrada dc instinto. Além
do mais, nem inteligência nem instinto sc prestam □ definições rígidas: trata-se
dc tendências c nào dc coisas feitas. Por fim. nâo deveremos esquecer que. no
presente capítulo, consideramos a inteligência e o instinto ao sair da vida que
deposita ambos ao longo dc seu percurso. Ora. a vida manifestada por um orga
nísmo c. a nosso ver, certo esforço para obter determinadas coisas da matéria
bruta. Nâo deve surpreender, pois, se ê a diversidade desse esforço que nos im
pressiona no instinto e na inteligência, c se vemos nessas duas formas da alivida
dc psíquica, antes dc tudo, dois métodos diferentes de ação sobre a matéria inerte.
Essa maneira um tanto estreita dc cncará los lerá a vantagem dc rios fornecer
um meio objetivo de os distinguir. Por outro lado, esse modo dc enfocá los só
nos dará da inteligência cm geral, c do instinto cm geral, a posição média acima
c abaixo da qual um c outro oscilam consianlcmcnlc. Essa a razão pela qual
sc deva entender o que sc segue tão-somente como um esboço esqucmálico, em
Paul Lacombe ressaltou a mtlucncta capúal que as grandes invenções exercem sohrc a evolução da
humanidade (P. Lacombe, Dc COnsídéréc eomme frímer, ParK I8*M. sohwuJu pp. U8 2-Vb.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 179
O ser vivo de qualquer dificuldade nova que surja c lhe conferir uma quantidade
ilimitada dc poderes. Inferior ao instrumento natural para a satisfação das neces
sidades imediatas, ele leva vantagem sobre este quanto menos a necessidade for
premente. Sobretudo, ele reage sobre a natureza do ser que o fabricou* porque,
chamando-o a exercer uma nova função, ele lhe confere, por assim dizer, uma
organização mais rica, sendo um órgão artificial que prolonga o organismo natu
ral. Para cada necessidade que ele satisfaz, ele cria uma necessidade nova, c,
desse modo, em vez de fechar, como o instinto, o círculo de ação em que o
animal vai se mover automaticamente, ele abre a essa atividade um campo infini
to onde a impele cada vez mais além e a torna cada vez mais livre. Mas essa
vantagem da inteligência sobre o instinto só aparece tarde, c quando a inteligên
cia. tendo levado a fabricação a seu grau superior dc potência, fabrica já máqui
nas de fabricar. No início, as vantagens e os inconvenientes do instrumento fabri
cado c do instrumento natural se equilibram tão bem que é difícil dizer qual
dos dois garantirá ao ser vivo um império maior sobre a natureza.
É lícito conjecturar que cies começaram por estar implicados um no outro,
que a atividade psíquica original participasse dos dois ao mesmo tempo, c que,
se recuarmos o suficiente no passado, encontraríamos instintos mais aparentados
da inteligência que os instintos dos insetos dc hoje, uma inteligência mais vizinha
do instinto do que a que verificamos nos vertebrados atuais: inteligência e instin
to elementares, dc resto, prisioneiros de certa matéria que nào chegam a dominar.
Se a força imanente à vida fosse uma força ilimitada, talvez tivesse desenvolvido
infinitamente nos mesmos organismos o instinto e a inteligência. Mas tudo parece
indicar que essa força c finita, c que cia se exaure muito depressa ao sc manifes
tar. E lhe difícil ir longe em várias direções ao mesmo tempo. £ pr.xiso que
cia escolha. Ora, cia tem a opção entre duas maneiras dc atuar sobre a matéria
bruta. Ela pode fornecer essa ação imediatamente criando para si um instrumento
organizado com o qual trabalhará; ou então ela pode dar mediatanwnte essa
atuação num organismo que. em vez dc possuir naturalmente o instrumento exigí
do. ela mesma o fabricará ao modelar a matéria inorgânica. Dai a in eligcncia
e o instinto, que divergem cada vez mais ao sc desenvolverem, mas que jamais
sc separam compleiamenie um do outro. Por um lado, com efeito, o mais perfeito
instinto do inseto se acompanha dc alguns lampejos dc inteligência, já nâo fosse
na escolha do local, do momento e dos materiais da construção: quando, como
acontece raramente, abelhas fazem ninhos ao ar livre, elas inventam dispositivos
novos e verdadeiramente inteligentes para adaptar-se às novas condições.’51 Mas.
por outro lado, a inteligência tem ainda mais necessidade do instinto do que
o instinto da inteligência, porque dar forma à matéria bruta pressupõe já no ani
mal um grau superior de organização a que só se pôde elevar com as asas do
instinto. Também, enquanto a natureza evoluiu francamente cm direção ao instin
13Bouvirr. "A eonMruçuu dc ninho das abelha* ao ar livre” (C. K. dc I'Acad. des sciences. 7 dc maio
dc I9O6>.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 181
que para nada servem. Assim é que um conhecimento formal não se limita ao
que é útil na prática, não obstante seja em vista da utilidade prática que ele
surge no mundo. Um ser inteligente traz em si aquilo com que ultrapassar a
si mesmo.
Contudo, ele sc ultrapassará menos que o queira, menos também que imagi
na fazê-lo. O caráter puramente formal da inteligência priva-a do lastro de que
ela teria necessidade para situar-se em objetos que fossem do maior interesse
para a especulação. O instinto, pelo contrário, teria a materialidade desejada,
mas ele é incapaz de ir à procura de seu objeto tào longe: ele nào especula.
Atingimos aqui o ponto que mais interessa ao nosso presente estudo. A diferença
que iremos ressaltar entre o instinto e a inteligência c aquela que toda a nossa
análise tendia a extrair. Nós a formularíamos desse modo: Há coisas que só
a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si mesma, jamais encontrará.
Essas coisas, SÓ o instinto as encontraria: mas ele jamais irá procurá-las.
Impòc-se. a esta altura, entrar em alguns pormenores provisórios sobre o
mecanismo da inteligência. Dissemos antes que a inteligência linha per função
estabelecer relações. Determinemos agora mais rigorosamente a natureza das rc
lações que a inteligência estabelece. Quanto a esta questão, continua-sc ainda
em meio a nebulosidade ou no arbitrário desde que sc veja na inteligência uma
faculdade destinada à especulação pura. Fica-se reduzido, então, a toma* os qua
dros gerais do entendimento por algo de absoluto, irredutível c inexplicável. O
entendimento teria caído do céu Com sua forma, do mesmo modo como cada
um de nós nasce com seu rosto. Define-se essa forma, sem dúvida, mas é tudo
o que se pode fazer, e não há como procurar por que ela c o que c c não outra
coisa diferente. Desse modo, há-de cn.sínar-se que a inteligência é essendalmcnte
unificação, que todas as suas operações tem por objeto comum introduzir certa
unidade na diversidade dos fenômenos etc. Mas. cm primeiro lugar, “unificação"
é um termo vago, menos claro que o termo “relação", ou mesmo que o de “pensa
mento". e que nada lhe acrescente. Além do mais, poder sc-ia indagar sc a inteli
gência nào teria por função dividir, dc preferência a unir. Finalmente. se a inteli
gência se comporta como o faz porque quer unir, c sc ela procura a unificação
simplesmente porque tem necessidade dela, nosso conhecimento torna sc relativo
a certas exigências do espírito que poderíam ter sido, sem dúvida, inteiramente
diferentes do que o são. Para uma inteligência constituída dc outro modo, outro
teria sido o conhecimento. Nào sendo a inteligência dependente dc coisa alguma,
tudo então depende dela. E dessa maneira, por ter-se situado o entendimento
demasiado alto, chega-se ao ponto dc situar demasiado baixo o conhecimento
que ele nos dá. Esse conhecimento torna-se relativo, a partir do momento que
a inteligência seja uma espécie de absoluto. Pelo contrário, admitimos a inteligên
cia como relativa às necessidades da ação. Estabelecei a ação, e a propria forma
da inteligência dela se deduz. Essa forma, portanto, nem é irredutível nem inexpli
cável. E prccisamcntc pelo fato de nào ser independente, não mais sc pode dizer
que o conhecimento depende dela. O conhecimento deixa de ser um produto de
inteligência para converter se, em certo sentido, em pane integrante da realidade.
A EVOLUÇÃO CRIADORA 187
são de forma variável e, além do mais, cada indivíduo deve aprender seu papel,
nào estando predestinado a ele por sua estrutura. É necessário, pois, uma lingua*
gem que permita, a todo instante, passar do que se sabe ao que se ignora. Impõe-
se uma linguagem cujos signos que nào podem ser em número infinito -
sejam extensíveis a uma infinidade de coisas. Essa tendência do signo a sc trans
ladar de um objeto a outro é característica da linguagem humana. É observável
na criancinha, desde o dia em que ela começa a falar. Imediatamente, e de modo
natural, a criança estende o sentido das palavras que aprende, valerdo-se da
aproximação casual que seja, ou da mais remota analogia possível para destacar
e transportar para outra parte o signo que diante dela se atribuiu a outro objeto.
"Pouco importa designar o que quer que seja com o que quer que seja”. tal é
o princípio latente da linguagem infantil. Cometcu-se o engano dc confundir essa
tendência com a faculdade dc generalizar. Os próprios animais generalizam, c
de resto, um signo, mesmo que instintivo, representa sempre, mais ou menos,
um gênero. O que caracteriza os signos da linguagem humana nào é tanto sua
generalidade quanto sua mobilidade. O signo instintivo c um signo que adere:
o signo inteligente é um signo móvel.
Ora. essa mobilidade das palavras, constituída para que sigam dc uma coisa
a outra, lhes permitiu estender coisas às idéias. Certamcntc. a linguagem não
lería dado a faculdade dc refletir a uma inteligência inteiramente exteriorizada.
incapaz de sc dobrar sobre si mesma. A inteligência que reflete é uma inteligência
que possuía, afora o esforço praticamcntc útil, um excedente dc força a despen
der. É uma consciência que já, virtualmente, readquiriu-se por si mesma. Mas
é preciso ainda que a virtualidadc passe ao ato. dc presumir-se qus. sem a
linguagem, a inteligência sc teria cravado inarredavelmente aos objetos materiais
que ela mantinha interesse em considerar. Ela teria vivido num estado de sonam
bulismo. exteriormente a ela mesma, hipnotizada por seu trabalho. A linguagem
muito contribuiu para a sua libertação. A palavra, feita para ir de uma coisa
a outra, é. dc fato, cssencialmente. dcslocàvcl c livre. Ela poderá pois esicnder-se
nao apenas de uma coisa percebida a outra coisa percebida, mas ainda da coisa
percebida à lembrança dessa coisa, da lembrança precisa a uma imagem mais
fugidia, dc uma imagem fugidia, contudo representada ainda, à representação
do ato pelo qual sc a representa, isto é. à idéia. Desse modo, vai abrir-sc aos
olhos da inteligência, que olhava de fora, um mundo interior, o espetáculo de
suas próprias operações. Dc resto, ela só esperava essa ocasião. Ela se vale do
fato de scr a palavra, por sua vez. uma coisa para peneirar, levada po' ela. ao
interior dc seu próprio trabalho. Dcbaldc sua primeira função fora fabricar ins
trumentos; essa fabricação só é possível mediante emprego dc certos meios que
não são talhados à medida exata dc seu objeto, que o ultrapassam, c que permi
tem assim à inteligência um trabalho suplementar, isto é. desinteressado. A partir
do dia cm que a inteligência, refletindo sobre seus desempenhos, a si mesma
se pcrccbe como criadora de idéias, como faculdade dc representação cm geral,
nào há objeto de que nào queira ter a idéia, mesmo que ela nào tenha relação
direta com a atividade prática. Essa a razão pela qual dizíamos que há coisas
A EVOLUÇÃO CRIADORA !91
que só a inteligência pode procurar. Ela só, com efeito, ocupa se com teoria.
E sua teoria a tudo pretendería abranger, não apenas a matéria bruta, sobre a
qual ela tem domínio de modo natural, mas ainda a vida c o pensamento.
Podemos adivinhar com que meios, que instrumentos, que método ela trata
rá desses problemas. Originariamente, ela sc adaptou à forma da matéria bruta.
A própria linguagem, que lhe permitiu estender seu campo dc operações, é feita
para designar coisas c nada mais que coisas: só pelo fato de que a palavra é
móvel, porque caminha dc uma coisa a outra, c que a inteligência devia cedo
ou tarde tomá-la como caminho, enquanto ela nào repousava em nada, para apli-
cá-la a um objeto que nào c coisa e que. dissimulado até então, esperava o socor
ro da palavra para passar da sombra à luz. Mas a palavra, ao cobrir esse objeto,
o converte ainda cm coisa. Desse modo, a inteligência, mesmo quando cia nâo
mais atua sobre a matéria bruta, segue os hábitos que adquiriu nessa operação:
ela aplica formas que são aquelas mesmas da maléria inorganizada. Ela c feita
para esse gênero dc trabalho. Por si só. esse gcncro dc trabalho a satisfaz plena
mente. Eco que ela exprime ao dizer que só assim ela chega à distinção e
â clareza.
Ela deverá, pois, para pensar clara e distintamente sobre si mesma, perceber
se sob forma de descontinuidadc. Os conceitos são. dc fato, exteriores uns aos
outros, assim como os objetos no espaço. E têm a mesma estabilidade que os
objetos, no modelo dos quais foram criados. Eles constituem, reunidos, um “mun
do inteligível'' que sc assemelha por suas características essenciais ao mundo
dos sólidos, mas cujos elementos sào mais leves, mais diáfanos, mais fáceis de
manipular pela inteligência do que a imagem pura e simples das coisas concretas;
eles nào mais suo. dc fato, a própria percepção das coisas mas a representação
do ato pelo qual a inteligência sc fixa neles. Assim, não são mais imagens, porém
símbolos. Nossa lógica c o conjunto das regras que se impõe cumprir na manipu
lação dos símbolos. Como esses símbolos decorrem da consideração dos sólidos,
como as regras da composição desses símbolos entre si nada mais fazem senão
traduzir as relações mais gerais entre sólidos, nossa lógica triunfa na ciência
que assume a solidez dos corpos por objeto, isto é. na geometria. Ilógica egeome
tria cngcndram-sc reciprocamcntv uma à outra, como o veremos pouco mais
adiante. E da extensão dc ccrtn geometria natural, sugerida pelas propriedades
gerais c imediatamente percebidas dos sólidos, que surgiu a lógica natural. Por
sua vez, dessa lógica natural é que saiu a geometria científica, que estende infini-
lamente o conhecimento das propriedades exteriores dos sólidos?6 Geometria
c lógica sào rigorosameme aplicáveis â maléria. Na matéria elas estão à vontade,
c nela podem transitar inieiramentc sós. Mas, fora desse domínio, o raciocínio
puro precisa scr vigiado pelo bom senso.que é coisa totalmcnte diferente.
Dessa maneira, todas as forças elementares da inteligência tendem a trans
formar a matéria em instrumento dc ação, isto é. no sentido etímológico da pala
vra, cm órgão. A vida, nào satisfeita cm produzir organismos, pretendería dar-
veis. c assim por dianic ao infinito. No caso ainda, pensar consiste em reconsti
tuir. e. naturalmcnte. é com elementos dados, com elementos estáveis por conse
guinte. que nós reconstituímos. De modo que cm vâo faremos, debaldc imitare
mos. pelo progresso infinito de nossa adição, a mobilidade do vir-a-scr. mas o
próprio vir a scr escorregará entre nossos dedos quando acreditarmos tê-lo nas
mãos.
Precisamente porque procura sempre reconstituir, c reconstituir com a dado,
a inteligência deixa escapar o que há dc itnvo a cada momento de uma história.
Ela nàu admite o imprevisível. Ela rejeita toda criação. O que satisfaz 3 nossa
inteligência são antecedentes determinados conduccntes a um consequente deter
minado. calculável este cm função daqueles. Compreendemos também qu2 deter
minado fim suscite meios determinados pura u atingir. Nos dois casos, tratamos
do conhecido que se compÒc do conhecido c. cm suma, do antigo que se repete.
Nisso senic-sc ã vontade nossa inteligência. EL. seja qual for o objeto, ela irá
abstrair, separar, eliminar, dc modo a substituir o objeto cm si. sc for o caso,
por um equivalente aproximado em que as coisas aconteçam dessa maneira. Mas
que cada instante seja um acréscimo, que o novo rebrote sem cessar, que uma
forma surja da qual se diga sem dúvida, uma vez produzida, que seja um efeito
determinado por suas causas, mas dc que era impossível supor previsto o que
cia seria, dado que no caso as causas, únicas em seu gênero, fazem parte do
efeito, assumiram corpo ao mesmo tempo que ele. c sâo determinadas por ele
tanto quanto elas o determinam; eis algo que podemos sentir em nós e adivinhar
por comunhão fora dc nós. mas não podemos exprimir cm lermos de puro enten
dimento nem. no sentido estrito da palavra, pensar. Não nos surpreenderemos
com isso sc imaginarmos a finalidade de nosso entendimento. A causalidade que
ele procura c encontra cm toda parle exprime o próprio mecanismo dc nossa
atividade, na qual recomiximos infinilamcnte a mesma coisa com os mesmos
elementos, em que repetímos os mesmos movimentos para obter o mesmo 'esulla-
do. A finalidade por excelência, para nosso entendimento, é a de nossa indústria,
na qual se trabalha com base num modelo dado prcviamenic. isto é. antigo ou
composto de ingredientes conhecidos. Quanto á invenção propriamente dita, que
c no entanto o ponto dc partida da própria atividade, brotar, isto ê. naquilo que
ela tem dc indivisível, nem em sua genialidade, isto é. naquilo que ela tem de
criador. Explicar a invenção consiste sempre em reduzi-la. ela que é imprevisível
c nova, cm elementos conhecidos ou amigos, dispostos numa ordem diferente.
A inteligência não admite a novidade completa tanto quanto não admite o vir a
ser radical. O que equivale também a dizer que mais uma ve/ ela deixa escapar
um aspecto essencial da vida, como sc ela não fosse feita absolutamente para
pensar tal objeto.
Todas as nossas análises conduzem-nos a essa conclusão. Mas não c absolu-
tamente necessário entrar em tão longos pormenores sobre o mecanismo do ira
balho intelectual: bastaria considerar os resultados dele. Veriamos que a inteli
gência, tao hábil cm manipular o inerte, exibe sua impcrícía quando atinge o
ser vivo. Quer se trate dc cuidar da vida do corpo ou do espírito, cia age com
194 BERGSON
Ora. num caso como no outro, quer se trate dos instintos do animal ou
das propriedades vitais da célula, a mesma ciência c a mesma ignorância sc mani
festam. As coisas ocorrem como se a célula conhecesse das outras células o que
interessa, o animal conhecesse dos outros animais o que possa utilizar, tudo o
mais permanecendo na sombra. Tem-se a impressão de que a vida, desde que
sc contraiu numa espécie determinada, perde contato com o restante dela mesma,
exceto no entanto um ou dois pontos que interessam à espécie que acaba dc
nascer. Como nâo perceber que a vida age no caso como a consciência cm geral,
como a memória? Arrastamos atrás dc nós. sem disso nos apercebermos, a totali
dade de nosso passado: mas. nossa memória só derrama no presente duas ou
três lembranças que completarão por algum aspecto nossa situação atual. O co
nhecimento instintivo que uma espécie possui dc outra espécie sobre certo ponto
particular tem pois sua raiz na própria unidade da vida, que é. para empregar
a expressão de um filósofo antigo, “um todo comungante de si mesmo”. É impossí
vel considerar certos instintos especiais do animal e da planta, cvidentcmcntc
nascidos em circunstâncias extraordinárias, sem os aproximar dessas lembran
ças, cm aparência esquecidas, que jorram subitamente sob a pressão dc uma nc
cessidadc premente.
Nào há dúvida de que um sem-número de instintos secundários c muitas
modalidades do instinto primário comportam uma explicação cientifica. Entre
tanto. é dubitável que a ciência, com seus processos de explicação atuais, chegue
algum dia a analisar complctamcnte o instinto. A razão disso é que instinto c
inteligência sào dois desenvolvimentos divergentes dc um mesmo princípio que.
num caso, continua interior a si mesmo, e no outro caso sc exterioriza c sc absor
ve na utilização da matéria bruta: essa divergência contínua atesta uma incompa
libilidade radical c uma impossibilidade para a inteligência dc assimilar o instin
to. O que há de essencial no instinto não poderia exprimir-se cm termos intelec
tuais. nem por conseguinte sc analisar.
Um cego dc nascença que tenha vivido entre cegos dc nascença nào admiti
ria que fosse possível perceber um objeto distante sem ter passado pela percepção
dc todos os objetos intermediários. No entanto, a visão opera esse milagre. Podcr-
sc-á, é verdade, dar razão ao cego dc nascimento c dizer que a visão, lendo sua
origem no abalo da retina pelas vibrações da luz. nada mais é. absolutamente,
que um tato rctiniano. Nisso reside, admito, a explicação científica, por que o
papel da ciência c precisamente o dc traduzir toda percepção em termos de tato:
mas já mostramos em outra parte que a explicação Í1 losófica da percepção devia
196 BERGSON
scr de outra natureza, a supor que se possa ainda falar no caso de explicação.16
Ora. o instinto, por sua vez. é um conhecimento a distância. Ele esiá para a
inteligência como a visão está para o talo. A ciência nào poderá fazer outra
coisa senão traduzi lo cm termos dc inteligência; ela. porém, construirá assim
uma imitação do instinto cm vez de penetrar no instinto em si mesmo.
Nós nos convenceremos disso ao estudarmos, aqui, as engenhosas teorias
da biologia evolucionista. Elas se reduzem a dois tipos, que interferem, de resto,
nâo raro uma na outra. Segundo-os princípios do neodarwinismo. ora se vê no
instinto uma soma dc diferenças acidentais, conservadas pela seleção: td ou qual
desempenho útil, naturalmcntc realizado pelo indivíduo cm virtude dc uma pre
disposição casual do germe, sc teria transmitido de germe a germe até que o
acaso viesse juntar-lhe. pelo mesmo processo, novos aperfeiçoamentos: ou entào
sc faz do instinto uma inteligência degradada: a ação considerada útil pela espé
cie ou por alguns dc seus representantes teria engendrado um hábito, e o hábito,
hereditariamente transmitido, sc convertería cm instinto. 'Desses dois sistemas,
o primeiro tem a vantagem de poder falar da transmissão hereditária, sem susci
tar objeçôes graves, porque a modificação casual que ele pôc na origem do instin
to nào seria adquirida pelo indivíduo, mas inerente ao germe. Em contrapartida,
é lotalmentc incapaz de explicar instintos tão sábios como os da maioria dos
insetos. Sem dúvida, esses instintos não devem ter atingido subitamente o grau
dc complexidade que hoje possuem; evoluíram, provavelmente. Mas. numa hipó
tese como a dos ncodarwinistas. a evolução do instinto só sc teria feito por adição
progressiva dc novas peças, dc algum modo, que acasos felizes viessem entrosar
nos antigos. Ora. c evidente que. na maioria dos casos, nào é pela via de simples
acréscimo que o instinto pôde aperfeiçoar sc: cada peça nova exigia, com efeito,
sob pena dc tudo estragar, um remanejo completo do conjunto. Como esperar
do acaso semelhante remanejamento? Concordo cm que uma modificação casual
do germe sc transmita hereditariamente c possa esperar, de algum modo, que
novas modificações casuais venham complicá-la. Concordo também em que a
seleção natural elimine todas aquelas formas das mais complicadas que nào ve
nham a ser viáveis. Mesmo assim, será necessário, para que a vida do instinto
evolua, que complicações viáveis se produzam. Ora. cias só sc produzirão, em
certos casos, sc 3 adição de um elemento novo ocasione a mudança correlata
dc todos os elementos antigas. Ninguém sustentará que o acaso possa realizar
semelhante milagre. Seja sob que forma for, apelar-se á para a inteligência. Supo
remos que é por um esforço mais ou menos consciente que o ser vivo desenvolve
em si um instinto superior. Mas será preciso admitir, entào. que um hábito adqui
rido pode tornar-se hereditário, e que ele o faça dc modo bastante regular dc
modo a garantir uma evolução. A coisa é duvidosa, para nào dizer mais. Mesmo
que pudéssemos relacionar a um hábito hereditariamente transmitido c inteligen
temente adquirido os instintos dos animais, nào percebemos como esse modo
dc explicação pudesse estender-se ao mundo vegetal, em que o esforço jamais
*’ Vcjum *e as duas obras Darwin: Ley plantes grimpantes Mi plantas trepadeiras). trad Gordon,
Pans, 1890, c La fecundation des Orchidées par ies Insects (X fecundação das Orquídeas pelo» Insetos).
trad. Rénolle, Paris, 1892.
’• BuucJ Rccpcn. "Die phylogeneúsche Entstdmnfc des Rienenstaatcs (Bio. Ccntralblalí. XXlll. 1903). p.
108 sobretudo,
198 BERGSON
cionados. Ê muito mais admissível que estejamos diante de certo terna musicai
que a si mesmo se tenha transposto, cabalmcnte. cm certo número dc tonalidades,
e sobre o qual, também cabalmente, se tivessem executado depois variações di
versas, umas simplíssimas e outras infinitamente eruditas. Quanto ao tema origi
nal. cie está em toda parte e em parte nenhuma. É debaldc que se pretendesse
anotá-lo em lermos de representação: trata se. na origem, mais do domínio do
sentido que do pensado. Tem-se a mesma impressão ao verificar o instinto parali
sador dc certas vespas. É sabido que as diversas espécies dc himenópteros parali-
sadores depositam seus ovos cm aranhas, escaravelhos, lagartas que continuam
a viver imóveis durante certo número dc dias, e que servirão assim de alimento
fresco às larvas, tendo antes sido submetidos pela vespa a uma sábia intervenção
cirúrgica. Na picada que dão nos centros nervosos de sua vítima para imobilizá-
la sem matá-la. essas diversas espécies de himenópteros regem-se com base nas
diversas espécies dc presas com que lidam respectivamente. A escólia. que ataca
a larva de cctònia, pica-a num só ponto, mas nesse ponto se acham concentrados
os gânglios motores, e só esses gânglios, pois a picada em outros gânglios poderia
ocasionar a morte e a putrefação, que sc trata de evitar.19 O esfex de asas amare
las. que escolheu por vítima o grilo, sabe que o grilo tem ires centros nervosos
que movem seus três pares de patas, ou pelo menos age como se o soubesse.
Ele pica o inseto primeiro debaixo do pescoço, c depois atrás do protórax. e
finalmcnte na base do abdômen?0 A amófila encrcspada dá nove golpes dc fer
rão sucessivos em nove centros nervosos dc sua lagarta, e por fim lhe abocanha
a cabeça e a mastiga Icntamentc, prccisamcnte o suficiente para determinar a
paralisia sem causar a morte?1 O tema geral é “a necessidade de paralisar sem
matar": as variações estão subordinadas á estrutura do sujeito sobre o qual sc
opera. Sem dúvida, nem sempre a operação c executada com perfeição. Mostrou-
se. ultimamente, que acontece ao esfex amófilo matar a lagarta cm vez de parali
sá-la. c que também ás vezes ele sô a paralise pela metade?2 Mas, do fato dc
que o instinto seja falível como a inteligência, c que cie também seja suscetível
dc apresentar diferenças individuais, não se segue absolulamente que o instinto
do esfex tenha sido adquirido, como se o pretendeu, por tentativas e erros inteli
gentes. A supor que, com o correr do tempo, o esfex tenha chegado a reconhecer
um a um, por tateio, os pontos dc sua vítima que deve picar para a imobilizar,
c o tratamento especial que é preciso dar ao cérebro para que a paralisia sc
dè sem ocasionar a morte, como supor que os elementos tào especiais dc um
conhecimento tão rigoroso se tenham transmitido regularmente, um a um, por
hereditariedade? Sc houvesse, em toda nossa experiência atual, um único exem
plo indiscutível de transmissão desse gênero, a hereditariedade dos caracteres
adquiridos não seria contestada por ninguém. Em realidade, a transmissão here-
’ Svmpathía. cm grego. referia se à suposta correspondência entre duas coisas. A evolução .semântica mostra
que o termo original passou a exprimir afinidade, depois atração. No Romantismo, simpatia era designa (iva
da tendência natural que atrai duas pesbuas. No contexto (icigMíiiianu, Symputhie assume vcrdadciramcntc
o significado de comunhão. (N. du T.)
200 BERGSON
à teoria aristotéiica da natureza? Sem dúvida seria preferível voltar a essa teoria
do que deler-se puramente diante do instinto, como diante dc um mistério inson-
dável. Mas, pelo fato de não ser do domínio da inteligência, o instinto nào está
situado fora dos limites do espírito. Em fenômenos dc sentimento, em simpatias
c antipatias irrefletidas, sentimos em nós mesmos, sob forma muito mais vaga,
e demasiado penetrada também dc inteligência, algo daquilo que deve ocorrer
na consciência dc um inseto que age por instinto. A evolução simplesmente sepa
rou um do outro, para os desenvolver ao extremo, elementos que sc interpcnctra-
vam na origem. Mais precisamente, a inteligência é, antes dc tudo, a faculdade
de relacionar um pomo do espaço a outro ponto do espaço, um objeto material
a outro objeto material; cia se aplica a todas as coisas, mas permanecendo fora
delas, e de uma causa profunda só percebe sempre sua difusão em efeitos justa
postos. Seja qual for a força que sc traduz na gênese do sistema nervoso da
lagarta, nào temos condições dc atingi-la. com nossos olhos e nossa inteligência,
a nao ser como uma justaposição de nervos e centros nervosos. É verdade que
assim atingimos todo o seu efeito exterior. Quanto ao esfex. sem dúvida ele
apreende pouca coisa, prccisamcntc o que lhe interessa; mas. pelo menos, o
apreende por dentro, de modo inteiramente diverso do que um processo dc conhe
cimento: por uma intuição (vivida mais que representada) que se assemelha sem
dúvida ao que chamamos dc comunhão adivinhadora.*
É fato notável o vaivém das teorias científicas do instinto entre o inteligente
e simplesmente inteligível, quero dizer, entre a assimilação do instinto a uma
inteligência “decaída” c a redução do instinto a um puro mecanismo.23 Cada
um desses dois sistemas dc explicação triunfa na crítica que faz do outro: o pri
meiro quando nos mostra que o instinto nao pode ser puro reflexo, c o segundo
quando afirma que é coisa diferente da inteligência, mesmo decaída na incons
ciência. Que dizer no caso, senão que se trata dc dois simbolismos igjalmcnte
aceitáveis por certos aspectos c. por outros, igualmentc inadequados a seu obje
to? A explicação concreta, não mais científica, mas metafísica, deve ser procura
da cm trilha totalmente diversa, nào mais no sentido da inteligência, mas no
da “comunhão".
Instinto é comunhão. Sc essa comunhão pudesse estender seu objeto c tam
bém refletir sobre si mesma, ela nos daria a chave das operações vitais — assim
como a inteligência, desenvolvida e reformada, nos introduz na matéria. Porque,
nunca será demais repelir, a inteligência c o instinto estão voltados a dois senti
dos opostos: a inteligência, no sentido da matéria inerte: o instinto, no sentido
da vida. A inteligência, por intermédio da ciência que é sua obra, acabará por
nos revelar paulatinamentc o segredo das operações físicas; da vida ela nào nos
dá. nem aliás pretende nos dar, senão uma tradução cm termos de inércia. Ela
gira cm volta, tomando, de fora, o maior número possível dc ângulos desse objeto
que ela atrai para si. em vez de entrar nele. Mas ao próprio interior da vida
c que nos conduziría a intuição, quero dizer, o instinto que se tornou desprendido,
consciente de si mesmo, capaz de refletir seu objeto c dc o ampliar infinitamente.
Um esforço desse gênero nào é impossível, como o demonstra a existência,
no homem, dc uma faculdade cstclica ao lado da percepção normal. Nosso olho
percebe os traços do scr vivo, mas justapostos uns aos outros c não organizados
entre si. A intenção da vida, o movimento simples que corre atraves das linhas,
que as liga umas às outras e lhes dá uma significação, escapa lhe. Essa intenção
é que o artista visa captar, colocando-se no interior do objeto por uma espécie
de comunhão, abaixando, por um esforço de intuição, a barreira que o espaço
interpõe entre ele c o modelo. É verdade que essa intuição estética, como de
resto a percepção exterior, só atinge o individual. Mas pode conceber se uma
pesquisa orientada no mesmo sentido que a arte c que assumiría por objeto a
vida cm geral, assim como a ciência física, acompanhando até o extremo a dire
ção assinalada pela percepção exterior, estende em leis gerais os fatos individuais.
Sem dúvida, essa filosofia jamais obterá de seu objeto um conhecimento compa
rável uo que u ciência tem do seu. A inteligência continua o núcleo luminoso
cm torno do qual o instinto, mesmo ampliado c aprimorado como intuição, cons
titui apenas uma vaga nebulosidade. Mas. na falta dc conhecimento propriamente
dito, reservado à pura inteligência, a intuição poderá fazer-nos captar o que os
dados da inteligência tem no caso dc insuficiente e deixar-nos entrever o meio
de os completar. Por um lado, dc falo, cia utilizará o mecanismo mesmo da
inteligência para mostrar como os esquemas intelectuais nâo encontraram mais
aqui sua exata aplicação, c. por outro, por seu trabalho próprio, ela nos irá suge
rir pelo menos o sentimento vago do que c preciso pôr cm lugar dos esquemas
intelectuais. Desse modo, ela poderá levar a inteligência a reconhecer que a vida
nào entra complctamentc nem nas categorias do múltiplo nem na do uno. que
nem a causalidade mecânica nem a finalidade dão do processo vital uma tradu
çao suficiente. Depois, pela comunicação comungantc que cia estabelecerá entre
nós c o restante dos seres vivos, pela dilataçao que obterá dc nossa consciência,
ela nos introduzirá no domínio próprio da vida, que é interpcnelraçào recíproca,
criação infinitamente continuada. Mas sc, com isso, cia ultrapassa a inteligência,
da inteligência terá vindo o arranco que a terá feito subir ao ponto cm que ela
sc encontra. Sem a inteligência, ela teria permanecido, sob forma de instinto,
cravada ao objeto especial que a interessa na prática, e exteriorizada por ele
cm movimentos de locomoção.
Tentaremos mostrar um pouco mais adiante como a teoria do conhecimento
deve tomar em consideração essas duas faculdades — inteligência e intuição
— e como também, na falta de estabelecer entre intuição c inteligência uma dis
tinção bastante nítida, ela envereda por inextríncáveís dificuldades, criando fan
tasmas de idéias aos quais se agarrarão fantasmas de problemas. Veremos que
o problema do conhecimento, tomado desse ângulo, identifica sc com o problema
metafísico, e que um c outro dependem então da experiência. Por um lado, de
202 BERGSON
fato, se a inteligência afina com a matéria e a intuição com a vida, será preciso
espremer uma e outra para extrair delas a quintessência dc seu objeto: a metafísi
ca dependerá pois da teoria do conhecimento. Mas. por outro lado, se a conscicn
cia está assim cindida em intuição e inteligência, se dá pela necessidade de sc
aplicar à matéria ao mesmo tempo que acompanhar a corrente da vida. O desdo
bramento da consciência decorrerá assim da dupla forma do real, c a teoria do
conhecimento deveria depender da metafísica. Na verdade, cada uma dessas duas
procuras conduz à outra: elas fazem um círcuio. e o círculo só pode ter por
centro o estudo empírico da evolução. Somente observando a consciência correr
através da matéria, nela sc perder c sc reencontrar, dividir-se e reconstituir-sc.
só assim formaremos uma idéia da oposição dos dois lermos entre si. como tal
vez. também, de sua origem comum. Mas. por outro lado, com apoio nessa oposi
ção dos dois elementos e nessa comunidade de origem, destacaremos sem dúvida
mais claramentc o sentido da própria evolução.
Tal será o assunto dc nosso próximo capitulo. Mas os fatos que acabamos
de passar em revista nos sugeriríam a idéia de relacionar a vida ou à própria
consciência ou a alguma coisa que a ela sc assemelhe.
Como o dissemos. em toda a extensão do reino animal a consciência apare
ce como proporcional à capacidade dc escolha de que dispõe o scr vivo. Ela
ilumina a zona de virtualidades que envolve o ato. Ela mede a distância entre
o que se faz e o que se poderia fazer. Enfocando a dc fora, poderiamos, pois,
tomá Ia por simples auxiliar da ação, por uma luz que ilumina a açào. centelha
fugidia que jorrasse do atrito da ação real contra as ações possíveis. Mas impõe
sc observar que as coisas sc passariam exatamente do mesmo modo sc a cons
ciência, em vez dc efeito, fosse causa. Poder-scia supor que. mesmo nc animal
mais rudimentar, a consciência abrange, de direito, um campo enorme, mas que
ela está comprimida, dc fato, numa espécie dc torno dc bancada: cada progresso
dos centros nervosos, dando ao organismo a escolha entre um número maior
de ações. lançaria urn apelo às virtualidades capazes de envolver o real, desaper
taria assim o torno, e deixaria mais livremente passar a consciência. Nessa segun
da hipótese, como na primeira, a consciência seria muito bem o instrumento da
ação; mas seria ainda mais correto dizer que a açào é o instrumento da consciên
cia. porque a complicação da açào consigo mesma e os embaraços da ação com
a açào seriam, para a consciência aprisionada, o único meio possível dc se liber
tar. Como escolher entre as duas hipóteses? Sc a primeira fosse verdadeira, a
consciência reproduziría exatamente. a cada instante, o estado do cérebro; o pa
ralelismo (na medida cm que c inteligível) seria rigoroso entre o estado psicológi
co e O estado cerebral. Pelo contrário, na segunda hipótese, havería, isto sim.
solidariedade e interdependência entre o cérebro c a consciência, mas nào parale
lismo: quanto mais o cérebro sc complique, aumentando desse modo a quantida
de dc ações possíveis entre as quais o organismo tem a escolha, tanto mais a
consciência deverá transbordar seu concomitante físico. Dessa maneira, a lem
brança dc um mesmo espetáculo ao qual tenham assistido modificará provável
mente do mesmo modo um cérebro de cão c um cérebro de homem, sc a perccp-
A EVOLUÇÃO CRIADORA 203
çào fosse a mesma; no entanto, a lembrança deverá ser coisa intciramenie diversa
numa consciência humana e numa consciência canina. No cachorro, a lembrança
permanecerá cativa da percepção: nào despertará senão quando uma percepção
análoga venha recordá-la reproduzindo o mesmo espetáculo, c se manifestará
então pelo reconhecimento, mais desempenhado do que pensado, da percepção
atual muito mais que por um renascimento verdadeiro da própria lembrança.
O homem, pelo contrário, é capaz de evocar a lembrança a seu prazer, seja em
que momento for. independentemente da percepção atual. Ele não sc limita a
desempenhar sua vida passada, mas representa a a si mesmo e a sonha. Sendo
a mesma, dc uma parte c de outra, a modificação local do cérebro a que está
relacionada a lembrança, a diferença psicológica entre as duas lembranças não
poderá ter sua razào em tal ou qual diferença de pormenor entre os dois mecanis
mos cerebrais, mas na diferença entre os dois cérebros tomados globalmcntc:
o mais complexo dos dois, conflitando maior quantidade dc mecanismos entre
si. terá permitido à consciência escapar do aperto de uns e outros, c chegar à
independência. Que as coisas sc passam exatamente assim, que a segunda das
hipóteses seja aquela pela qual se impõe optar, foi o que tentamos provar, cm
trabalho anterior, mediante o estudo dos fatos que melhor põem cm relevo a
relação entre o estudo consciente e o estado cerebral, os fatos de reconhecimento
normal e patológico, cm particular as afasias. 34 Mas isso o raciocínio poderia
lambem ter previsto. Mostramos cm que postulado aulocontradilório. em que
confusão de dois simbolismos incompatíveis entre si. repousa a hipótese de uma
* *9 &
equivalência entre o estado cerebral e o estado psicologico.
A evolução da vida, encarada desse aspecto, assume um sentido mais nítido,
embora nào sc possa submetê-la a um gênero ou espécie, ou melhor, não sc possa
enquadrar a noção que dela sc tem num conceito ou numa categoria do entendi
mento. Tudo se passa como sc vasta corrente de consciência houvesse penetrado
a matéria, carregada, como toda consciência, dc uma multiplicidade enorme dc
virtualidades que sc interpenetrassem. Essa corrente arrastou a matéria à organi
zação, mas seu movimento nela foi ao mesmo tempo infinitamente ralentado e
infinitamente dividido. Por um lado, com efeito, a consciência teve de adormecer,
como a crisálida no invólucro onde prepara suas asas, e por outro, as tendências
múltiplas que ela encerrava dividiram sc entre series divergentes de organismos,
que aliás exteriorizavam essas tendências cm movimentos em vez dc as interiori
zarem cm representações. No curso dessa evolução, enquanto uns adormeciam
cada vez mais profundamente, os outros despertavam cada vez mais completa
mente, e o torpor de uns servia â atividade dos outros. Mas o despertar podia
dar sc dc dois modos diferentes. A vida, isto é, a consciência lançada através
da matéria, fixava sua atenção ou em seu próprio movimento, ou na matéria
que ela atravessava. Ela se orientava, assim, quer no sentido da intuição, quer
no da inteligência. À primeira vista, a intuição parece preferível à inteligência.
de poderem cunfliiar com outros mecanismos, como, por exemplo, aqueles que
correspondem às próprias coisas, ou ainda conflitar uns com os outros: djrante
esse tempo, a consciência, que foi arrastada à realização do ato nele mergulhada,
recobra-se e sc liberta.2*
A diferença deve. pois, scr mais radical do que o faria crer um exame super
ficial. Ela é a que verificaríamos entre um mecanismo que absorve a atenção e
um mecanismo de que se pode desviar. A primitiva máquina a vapor, tal como
a concebeu Newcomen, exigia a presença dc uma pessoa exclusivamente encarre
gada de manobrar as torneiras, suja para introduzir o vapor no cilindro, seja
para nele lançar a chuva fria destinada à condensação. Conta-se que um nenino
empregado nesse trabalho, muito entediado com a obrigação dc o fazer, teve
a idéia dc ligar as manivclas das torneiras, por cordões, ao pêndulo da máquina.
Desde entào. a máquina abria e fechava por si mesma as suas torneiras: ela
funcionava sozinha. Ora. um observador que comparasse a estrutura dessa se
gunda máquina com a da primeira, sem se ocupar dos dois meninos encarregados
da vigilância, só teria verificado entre elas uma ligeira diferença dc complicação.
É tudo o que sc pode perceber, com efeito, quando só sc olham as máquinas.
Mas se dermos uma olhadela nos meninos, veremos que um está absorvido por
sua vigilância, c que o outro está livre para divcrtir-.se à vontade, e que. por
esse aspecto, a diferença entre as duas máquinas c radical, a primeira mantendo
a atenção prisioneira, a segunda lhe dando livre trânsito. Diferença do mesmo
gcncro. segundo cremos, é u que sç verificaria entre o cérebro do animal e o
cérebro do homem.
Em suma, se quiséssemos nos exprimir cm termos dc finalidade, deveriamos
dizer que a consciência, após ter sido obrigada, para libertar-se a si mesma, a
cindir a organização cm duas partes complementares, vegetais dc um lado c ani
mais de outro, procurou uma saída na dupla direção do instinto e da inteligência:
cia nào a encontrou com o instinto, c nao a obteve, do lado da inteligência,
senão por um salto brusco do animal cm direção ao homem. Dc modo que cm
última análise o homem seria a razão de scr dc toda a organização da vida em
nosso planeta. Mas isso seria apenas um modo de dizer. Na realidade, há tão-su*
mente uma corrente dc existência c a corrente antagônica; daí toda a evolução
da vida. Devemos agora nos acercar mais dc perto da oposição dessas duas cor
rentes. Talvez desse modo lhes descubramos uma fonte comum. Com isso pene
traremos sem dúvida nas mais obscuras regiões da metafísica. Mas, como as
duas direções que temos dc acompanhar encontram-se assinaladas na inteligên
cia, por um lado, e por outro no instinto c na intuição, nao receamos extraviar-
nos. O espetáculo da evolução da vida sugere-nos certa concepção do conheci
mento c também certa metafísica que sc implicam recíprocamente. Uma vez des
tacadas, essa metafísica e essa crítica poderão derramar alguma luz, por sua
ve?, sobre o conjunto da evolução.
2<Um gcóíügu que jú livutnos ensejo dc citar. N. S. Shuler, di? de modo excelente: “Quando checamos
ao homem, c como se livêssemos abolido a antiga sujciçio do espirito ao corpo, e as panes htelcctuais
desenvolvem-sc com unia rapidr? extraordinária. a estrutura do corpo permanecendo idêntica no que tem
de essenciar (Shaler. The Interpretation of Nature, Boston. 1899, p. 187).
AS DUAS FONTES
DA MORAL E DA RELIGIÃO
(CAP IV]
OBSERVAÇÕES FINAIS
MECÂNICA E MÍSTICA
to. em dada sociedade. Fla fixou-se nos costumes, nas idéias, nas instituições:
seu caráter de obrigatoriedade reduz-se. cm úítima análise, à exigência pela natu
reza. da vida cm comum. Há. por outro lado, uma moral dinâmica, que c impul
so. e que se liga à vida em geral, criadora da natureza que criou a exigência so
ciai. A primeira obrigação, na medida cm que pressão, é infra-racional. A segun
da. na medida em que aspiração, c supra-racional. Mas sobrevêm a inteligência.
Ela procura o motivo de cada uma das prescrições, isto é. seu conteúdo intelec
tual: c como c sistemática, crc que o problema c reduzir todos os motivos morais
a um único. De resto, sõ tem o obstáculo da opção: interesse geral, interesse
pessoal, amor próprio, solidariedade. piedade, coerência racional etc. Nâo há
qualquer principio de ação de que nào sc possa deduzir quase a moral cm geral
aceita. É verdade que a facilidade da operação, e o caráter simplesmente tproxi
mativo do resultado que ela proporciona deveríam nos precaver contra cia. Sc
é possível extrair regras dc conduta quase idênticas, bem ou mal. dc princípios
tão diferentes, isso se deve a que talvez nenhum desses princípios lenha sido
tomado no que tenha de específico. O filósofo fora levado a colher no meio so
ciai, onde tudo se interpenctra. onde o egoísmo c a vaidade se lastreiam dc socia
bilidade: nâo admira, pois, que ele encontre cm cada um deles a moral que ado
tou ou refugou. Mas a moral por sua vez fica incxplicada. dado que teria sido
necessário perserutar a própria vida social enquanto disciplina exigida pela natu
reza, ç perserutar a própria natureza enquanto criada pela vida cm geral. Teria
mos chegado assim à própria raiz da moral, que o puro intelectualismo procura
em vão: o puro intelectualismo só pode aconselhar, alegar razões, que nada nos
impedirá de combater mediante outras razões. Na verdade, ele subentende sempre
que o motivo invocado por ele é ••preferível” aos demais, e que há entre os moti
vos diferenças dc valor, que existe um ideal geral a que relacionar u real. Ele
procura, pois, um abrigo na teoria platônica, com uma Idéia do Bem que domina
todas as demais: as razões dc agir sc hicrarquizariam abaixo da Idéia do Bem.
sendo as melhores aquelas que mais sc aproximam dela. O atrativo do Bem seria
<» princípio da obrigação. Mas ficamos então muito embaraçados para dizer me
diante que sinal reconhecemos que uma conduta esteja menos ou mais próxima
do Bem ideal: sc o soubéssemos, o sinal seria o essencial c a Idéia do Hem se
tornaria inútil. Ter-sc-ía igual dificuldade para explicar como esse ideal cria uma
obrigação imperiosa, sobretudo a obrigação mais estrita dc todas, a que se rela
ciona com os costumes nas sociedades primitivas csscncialmcnte fcchacas. A
verdade é que um ideal só sc p<xle tornar obrigatório se já for atuante: e cntào
nào c sua idéia que obriga, mas sua ação. Ou antes, ele nào passa da palavra
que empregamos para designar o efeito supostamente último dessa ação, percebi
da como contínua, o termo hipotético do movimento que já nos abala. No fundo
de codas as teorias verificamos, pois, as duas ilusões que já muitas vezes denun
ciamos. A primeira, muito geral, consiste em imaginar o movimento como a di
minuição gradual de um intervalo entre a posição do móvel, que é uma imobilida
de. e seu termo supostamente atingido, que é também imobilidade, ao passo que
as posições nào passam dc opiniões do espírito sobre o movimento indivisível:
212 BERGSON
Dizemou "quase”. porque cumpre icr em coniti variaçòcs que <> scr vivo executa, de atgun modo,
sobre o tema fornecido por seus progenitores. Mas essas variações, sendo acidentais c sc produzindo seja
cm que sentido for. nào podem adicionai sc coin o correr do tempo para modificar a espécie. Sobre a
tese da transmíssibihdade dos caracteres adquiridos, c sohrc um evolucwnismo que se fundasse snhee ela.
veja-sc /t Evolução Criadora, capitulo I.
Acrescentemos, como já o observamos, que o salto hrusco dado pela espécie humana pode ter sido
tentado cm mais de um ponto do espaço c do tempo com um exito incompleto, chegando assim 3 "homens’*
que assim sc podem designar sc quisermos, mas que nào sâo necessariamente nossos antepassados.
214 BERGSON
confundir uma com a outra! O homem c inteligente e lívrc. Mas c preciso sempre
ter em mente que a vida social estava compreendida no plano dc estrutura da
espécie humana como no da abelha, que ela era necessária, que a natureza nào
pôde confiar exclusivamente cm nossas vontades livres, e que por isso ela teve
de fazer com que um único ou alguns mandem, e que outros obedeçam. No mun
do dos insetos, a diversidade das funções sociais está ligada a uma diferença
dç organização; há ’’polimorfismo”. Diremos então que nas speiedades humanas
há "dimorfismo". nào mais físico e psíquico ao mesmo tempo como no inseto,
mas apenas psíquico? Acreditamo-lo sob condição entretanto dc que fique claro
que esse dimorfismo não separa os homens em duas categorias irredutíveis, uns
nascendo chefes e outros subordinados. O erro dc Nietzsche foi acreditar numa
distinção desse gênero: de um lado os “escravos" e dc outro os ‘‘senhores". O
fato é que o dimorfismo faz nào raro dc cada um de nós. ao mesmo tempo,
um chefe que tem o instinto dc mandar e um subordinado que está pronto a
obedecer, embora a segunda tendência o leve ao ponto de manifestar-sc só na
maioria dos homens. É comparável ao dos insetos no que implica duas organiza
ções. dois sistemas indivisíveis de qualidades (algumas das quais seriam defeitos
ao ver do moralista): optamos por um ou por outro sistema, não cm pormenor,
como aconteceria se sc tratasse de contrair hábitos, mas dc uma só vez. dc modo
cnlídoscópico. assim como deve resultar dc um dimorfismo natural, inteiramente
comparável ao do embrião que tem a escolha entre os dois sexos. Disso temos
a visão clara cm tempos dc revolução. Cidadãos modestos. humildes c obedien
tes. até então, despertam certa manhã com a pretensão dc serem condutores de
homens. O calidoscópio. que estivera fixo, girou um grau, e houve metamorfose.
Algumas vezes o resultado é bom: grandes homens de ação revelaram-se que
nem mesmo a si próprios conheciam. Mas cm geral o resultado nào é bom. Em
seres honestos e dóceis surge dc repente uma personalidade baixa, feroz, que
é â dc um chefe frustrado. E então aparece um traço característico dc “animal
político" que é o homem.
Nào iremos com efeito ao ponto dc dizer que um dos predicados do chefe
que existe adormecido dentro dc nós seja a ferocidade. Mas c certo que a nature
za. massacradora dos indivíduos ao mesmo tempo que geradora das espécies,
quis o chefe impiedoso sc previu chefes. Toda a história atesta isso. Hecatombes
inauditas, precedidas dos piores suplícios, foram ordenadas com inteiro sangue-
frio por homens que pessoalmcnte nos deixaram o registro do fato, gravado em
pedra. Dir-scia que coisas como essas se passaram em tempos muito recuados.
Mas sc a forma mudou, sc o cristianismo pôs fim a certos crimes ou pe;o menos
conseguiu que não fossem alardeados, o crime continuou nào poucas vezes a
ratio ultima, quando nào a prima, da política. Monstruosidade, sem dúvida, mas
da qual a natureza c tão responsável quanto o homem. A natureza nào recorre
de fato nem à prisão nem ao exílio; ela só conhece a condenação à morte. Permi
tam-nos mencionar uma recordação. Aconrcceu-nos ver nobres estrangeiros, vin
dos dc longe, mas vestidos como nós, falando nossa língua, andar livremente,
afetuosos c amistosos, na nossa comunidade. Pouco tempo depois soubemos por
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 217
as guerras da atualidade. Cada vez menos se tem cm vista conquistar por con
quistar. Nâo mais sc guerreia pelo amor-próprio ferido, pelo prestígio, pela gló
ria. Guerreia se para não sc morrer dc fome, dizem — em verdade para manter-se
cm certo nível de vida abaixo do qual, acredita-se. nào valería a pena viver. Nào
há mais delegação a número restrito de soldados encarregados dc representar
a naçào. Nada mais que sc assemelhe a um duelo. É preciso que todos guerreiem
contra todos, como o fizeram as hordas dos primórdios do mundo. Só que a
guerra é feita com as armas forjadas por nossa civilização, c o morticínio é de
um horror que os antigos nào poderíam sequer imaginar. No ritmo cm que vai
a ciência, dia virá cm que um dos adversários, possuidor de um segredo que
manterá oculto, terá o meio dc suprimir o outro. Talvez nào reste vestígio do
vencido na face da Terra.
Mas as coisas continuarão como estào indo? Atravessaram no caminho,
felizmente, homens que nào hesitamos cm classificar entre os benfeitores da hu
manidade. Como todos os otimistas, eles começaram por supor resolvido o pro
blema a resolver. Fundaram a Sociedade das Nações. Achamos que os resultados
obtidos ultrapassem já o que se podia esperar. Porque a dificuldade dc eliminar
as guerras é maior ainda do que o imaginam cm geral os que não acreditam
na sua supressão. Pessimistas coincidem com os otimistas cm considera' o caso
dc dois povos que vão guerrear como semelhante a dois indivíduos que tèm uma
discussão: acham apenas que os povos não poderão jamais, como as pessoas,
ser obrigados materialmentc a levar o litígio perante os tribunais e aceitar-lhes
as decisões. A diferença é no entanto radical. Mesmo que a Sociedade das Na
ções dispusesse dc uma força armada aparentemente suficiente (mesmo assim
o rccalcitrantc teria sempre sobre ela a vantagem do impulso: o imprevisto da
invenção científica tornaria cada vez mais imprevisível a natureza da resistência
que a Sociedade deveria preparar), cia depararia com o instinto profundo dc gucr
ra que envolve a civilização; ao passo que os indivíduos que recorrem acsjuizes
encarregados dc resolver uma disputa sào estimulados a isso obscuramcntc pelo
instinto de disciplina tmanente ã sociedade fechada: uma disputa os afastara ca
sualmente da posição normal, que era uma exata inserção na sociedade; a ela
retornam, como o pêndulo retorna à posição vertical. Bem mais grave c. pois,
a dificuldade. Será dcbaldc. no entanto, que sc procure superá-la?
Achamos que nâo. Este livro teve por objeto procurar as origens da moral
e da religião. Chegamos a certas conclusões. Poderiamos ficar no ponto a que
chegamos. Dado, porem, que no fundo de nossas conclusões havia uma distinção
radical entre a sociedade fechada e a sociedade aberta, dado que as tendências
da sociedade fechada pareceram nos persistir, inerradicãveis. na sociedade que
sc abre, dado que todos esses instintos de disciplina convergiam primitivamente
no instinto dc guerra, devemos indagar em que medida o instinto original poderá
ser reprimido ou ativado, c responder por algumas considerações adicionais a
uma questão que se nos apresenta muito naturalmente.
Nào sc encontrará o instinto guerreiro em estado puro, pois a ele aderem
motivos racionais. A história nos ensina que esses motivos foram variadíssimos.
222 BERGSON
Eles sc reduzem cada vez mais» à medida que as guerras se tornam mais terríveis.
A última guerra, juntamente com as que sc prcvêem para o futuro, caso por
infelicidade ainda devamos ter guerras, está relacionada com o caráter industrial
de nossa civilização. Se quisermos uma imagem esquemática. simplificada c esti
lizada dos conflitos dc hoje, devemos primeiro imaginar a.s nações como popula
ções puramente agrícolas. Vivem dos produtos dc suas terras. Suponhamos que
cias tenham exatamente o suficiente para nutrir se. Crescerão na medida cm que
obtenham da lerra um rendimento melhor. Até aí tudo vai bem. Mas sc houver
uma explosão demográfica, e sc nào quiser extravasar seu território, ou sc nào
o puder porque o estrangeiro lhe fecha as portas, onde encontrará seu alimento?
A indústria cuidará das coisas. A população excedente se tornará operária. Se
o pais nào possuir energia para acionar máquinas, ferro para as construir, maté
rias primas para a indústria, cuidará dc buscá-los no estrangeiro. Pagará sua
dívida e receberá a mais o alimento que nào lem cm seu solo, devolvendo ao
estrangeiro os produtos manufaturados. Os operários se verão assim como “emi
grades no interior'*. O estrangeiro os emprega como teria feito em seu país: prefe
re deixá-los — ou talvez eles prefiram ficar - onde estão; mas é do estrangeiro
que dependem. Estarão condenados a morrer de fome sc o estrangeiro nào mais
aceitar seus produtos ou se não fornecer os meios para os fabricar. A menos
que nào sc decidam a isso, arrastam com eles seu país para ir buscar o que
se lhes recusa. Será a guerra. Desnecessário dizer que as coisas nunca se dão
dc modo tão simples. Sem estar rigorosamente ameaçado de morrer de fome,
acha-se que a vida é desinteressante se não se tem conforto, recreação, requinte;
considera-se a indústria nacional insuficiente se produz apenas a subsistência,
se nào proporciona riqueza: um pais julga-se incompleto sc nào possui bons
portos, colônias etc. Dc tudo isso pode surgir a guerra. Mas o esquema que aca
bamos de traçar assinala suficientementc as causas essenciais: crescimento demo
gráfico, perda dc mercados, privação de combustível c de matérias-prima..
A tarefa primordial de um organismo internacional que vise à eliminação
da guerra consistirá cm eliminar essas causas ou atenuar-lhes os efeitos. O pro
blcma dc maior gravidade é o do superpovoamento. Em país de baixo índice
de natalidade como a França, o Estado deve sem dúyida estimular o crescimento
demográfico: certo economista, apesar de grande inimigo do ’’estatismo**, sugeria
que as famílias tivessem direito a um bônus para cada novo filho a partir do
terceiro. Não sc poderia. então, inversamente. nos países de população excessiva,
onerar com impostos mais ou menos pesados a familia que lenha filhos cm exces
so? O Estado teria direito dc intervir, procurar a paternidade, a fim dc tomar
medidas que cm outros casos seriam inquisitoriais, dado que è com ele que sc
conta tacitnmente para garantir a subsistência do país ç, por Conseguirle. a da
criança que se trouxe à vida. Reconhecemos a dificuldade de atribuir administra-
tivamente um limite à população, mesmo que se dé cena maleabilidade aos índi
ces. Se esboçamos uma solução, é simplesmente para assinalar que o problema
nào nos parece insolúvel: outros mais competentes que nós proporcionarão solu
ção melhor. O que c certo, porem, c que a Europa está superpovoada. que o
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 223
gundo certas leis. quero dizer, em virtude de cenas forças, é impossível Que a
evolução psicológica do homem individual e social renuncie inicirameme a esses
hábitos da vida. Ora. já mostramos em outro lugar que a essência de uma tendên
cia vital c a de se desenvolver cm forma dc feixe, criando, só pelo fato dc seu
crescimento, direções divergentes entre as quais o impulso se dividirá. Atrescen
lávamos que essa lei nada tem dc misteriosa. Ela exprime simplesmente o fato
dc que uma tendência é o impulso dc uma multiplicidade indistinta, que. dc resto,
só é indistinta e só é multiplicidade se a considerarmos relrospectivamenie, quan
do perspectivas diversas tomadas depois de sua indivisâo passada a compõem
com elementos que foram em realidade criados por seu desenvolvimento. Imagi
nemos que o alaranjado seja a única cor que já lenha aparecido no mundo: seria
já composto dc amarelo c vermelho? Nào. evideniemente. Mas terá sido compos
to de amarelo e vermelho quando essas duas cores existirem por sua vez: o ala
ranjado primitivo poderá ser encarado então do duplo ponto dc vista do vermelho
e do amarelo; e sc supuséssemos, por mera fantasia, que o amarelo c o vermelho
surgiram dc uma intensificação dc alaranjado. (criamos um exemplo mui:o sim
pies do que acabamos de chamar de crescimento cm forma dc feixe. Mas não
há necessidade ahsolutamcnte alguma dc fantasia ou dc comparação. Basta con
templar a vida, sem preconceito de síntese artificial. Há quem considere o ato
voluntário um reflexo composto, c há quem veja no reflexo uma degradação do
voluntário. A verdade é que reflexo e voluntário concretizam duas tomadas possí
veis dc uma atividade primordial, indivisível, que nào era uma nem outra, mas
que sc tornam retroativamente. por ambos, as duas coisas ao mesmo tempo. O
mesmo diriamos do instinto c da inteligência, da vida animal e da vida vegetal,
de muitos outros pares de tendências divergentes c complementares. Apenas, na
evolução geral da vida, as tendências assim criadas por via dc dicotomia se de
senvolvem no mais das vezes em espécies distintas; elas vão. cada uma por seu
lado, cm busca da sorte no mundo; a materialidade que adquiriram as impede
de virem amalgamar sc dc novo para restabelecer mais forte, mais complexa,
mais evoluída, a tendência original. Nào acontece o mesmo na evolução ca vida
psicológica e social, h no mesmo individuo. ou na mesma sociedade que evoluem
no caso as tendências que se constituíram por dissociação. E elas só Modern nor
malmcnte se desenvolver sucessivamcnte. Sc sào duas, como acontece o mais
das vezes, a uma delas sobretudo c que se aderirá primeiro; com ela sc irá mais
ou menos longe, cm geral o mais longe possível; depois, com o que se lenha
ganho no curso dessa evolução, se voltará a procurar o que sc deixou atrás.
Por sua vez, esta será desenvolvida, desprezando agora a primeira, e esse novo
esforço se prolongará até que. reforçado por novas aquisições, sc possa retomar
este c o impelir para mais longe ainda. Como, durante a operação, se está inicira
mente numa das duas tendências, como é ela só que vale, dc bom grado se diria
que só ela c positiva c que a outra lhe é lão-só a negação: se apraz estabelecer
as coisas dessa forma, a outra ê efetivamente o contrário. Irã verificar se -
c será mais ou menos verdade segundo os casos — que o progresso sc fez por
uma oscilação entre os dois contrários, nào sendo, dc resto, a situação a mesma
226 BERGSON
disposição, ao passo que me sinto muito mais certo de conservar sempre a minha.
Ele teve as duas experiências; eu tive apenas uma. Sua repugnância se intensifica
quando sua atenção se fixa sobre ela, enquanto minha satisfação se caracteriza
pela discrição, c se empalidece com a luz; creio que esvaneceria se experiências
decisivas viessem provar, o que nao c impossível, que sc envenena cspecificamcn-
ic. Icntamente, quem coma carne.6 Ensinavam nos na escola que a composição
das substâncias alimentares era conhecida, do mesmo modo que as exigências
do nosso organismo, e que sc podia deduzir disso o que c preciso e suficiente
como ração dc manutenção. Seria surpreendente saber que a análise química
deixava escapar as '‘vitaminas'*, cuja presença cm nossa alimentação é indispen
sável à saúde. Irá pcrccbcr-se sem dúvida que mais de uma doença, hoje rebelde
aos esforços da medicina, tem sua origem remota nas “carências" que nào supo
mos. O único meio seguro de absorver tudo o de que necessitamos seria nào
submeter os alimentos a elaboração alguma, talvez mesmo (quem sabe) a nào
os cozer. Também neste caso a crença na hereditariedade do adquirido causou
muito mal. Costuma-se dizer que o estômago humano está desabituado. que não
mais poderiamos nos alimentar como o homem primitivo. Tem-se razão sc se
entender por isso que deixamos dormir desde nossa infância disposições naturais
e que seria difícil desperta Ias cm certa idade. Mas c pouco provável que nasça
mos modificados: a supor que nosso estômago difira do de nossos antepassados
pré históricos, a diferença nào se deve a simples hábitos contraídos na sequência
dos tempos. A ciência nào tardará a nos esclarecer sobre o conjunto dessas ques
tões. Suponhamos que ela o faça no sentido que prevemos: só a reforma de nossa
alimentação já teria repercussões incontáveis em nossa indústria, nosso comer
cio, nossa agricultura, no sentido dc consideráveis simplificações. Que dizer das
nossas demais necessidades? As exigências do sentido genético são imperiosas,
mas logo acabaríamos com elas sc nos ativéssemos à natureza. Só que. em torno
de uma sensação forte, mas pobre, tomada como nota fundamental, a humanida
de fez surgir sem cessar um número crescente de harmônicos; extraiu dela uma
tão rica variedade de timbres que. seja qual for o objeto, locado por qualquer
lado, dá agora o som que sc tornou obsessivo. É um apelo constante ao sentido
por intermédio da imaginação. Toda a nossa civilização é afrodisíaca. No caso
também a ciência tem o que diz.cr. c ela o dirá um dia tâo claramcntc que será
preciso ouvi-la. Não haverá mais tanto prazer cm amar o prazer. A mulher apres
sará a chegada dessa hora na medida em que queira realmentc. sinceramente,
tornar se igual ao homem, cm vez dc continuar o instrumento que é agora, espe
rando vibrar sob o arco do músico. Opere-se transformação: nossa vida será
mais séria ao mesmo tempo que mais simples. O que a mulher exige de luxo
para agradar ao homem c, por ressonância, para agradar a si mesma tornar-se-á
em grande parte inútil. Haverá menos desperdício, e também menos inveja. —
Luxo, prazer e bem-estar maniem-se próximos sem, entretanto, lerem entre si
Apresscmonos em afirmar que nao lemos qualquer esclarecimento particular wbre essa quCitãu.
colhemos o exemplo da enrne como poderiamos ter Peito com qualquer alimento habitual.
230 BERGSON
Não houve, pois, como sc seria levado a crer, uma exigência da cicncia
impondo aos homens, pelo simples latu de seu desenvolvimento, necessidades
cada vez mais artificiais. Sc fosse assim, a humanidade seria votada a uma mate
rialidade crescente, porque o progresso da cicncia nâo sc dclerá. Mas n verdade
e que a ciência deu o que se lhe pediu c que nào tomou a iniciativa: o espirito
dc invenção é que nem sempre se exerceu no melhor dos interesses da humanida
de. Ele criou uma multidão dc necessidades novas: não se preocupou o bastante
em assegurar ao maior número, a todos sc fosse possível, a satisfação das nccessi
dades antigas. Em resumo c de modo mais simples: sem desprezar o necessário,
ele pensou cm demasia no supérfluo. Dir-sc á que esses dois termos são difíceis
de definir, que o luxo para uns é uma necessidade para outros. Sem dúvida:
perder-nos-íamos aqui em distinções sutis. Mas há casos em que se deve ver
por alto. Milhões de homens nào têm o que comer quando tem fome. Muitos
morrem dc fome. Se a terra produzisse muito mais, havería muito menos probabi
lidade dc sc passar fome? de se morrer de fome. Alega-se que faltam braços
à terra. E possível: mas por que exigiría ela mais esforço aos braços do que
Recomendamos ainda o bck> livro dc Girui Lombrcno. Cf. Monioux. Lu révfíluiwn induxtricifi' uu
dix-huilièmc siècle.
* Há sem dúvida crises dc •••superprodução*’ que w estendem aos produtos agrícolas. c que podem mes
mo começar por des. Mas não se devem a que haja demasiada alimentação para 3 humanidade Dcvc-se
simplesmente a flue, nào sendo a prnduçâa cm Reral organizada, nao há como efetuar a troca dos produtos.
232 BERGSON
• l-alium» no sentido (i^urado. cvidentcmcnte. O carvào era jã bem conhecido niuiio antes que a máqui
na a vapor n convertesse cm tesouro.
Sentido que consideramos aqui apenas cm parte, cvmo o fazemos também quanto a palavra -imperia
lismo"
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 235
Em outra ocasião demos as razões disso. Mencionamos por que o estudo científi
co da matéria havia precedido o do espírito. Era preciso ir ao mais urgente.
A geometria já existia; ela fora levada bastante longe pelos antigos; devia sc
começar por tirar da matemática tudo o que ela podia dar para a explicação
do mundo em que vivemos. Não çra desejável que se começasse pela ciência
do espirito: eia não chegara por si mesma à precisão, ao rigor, à preocupação
da prova, que se propagaram da geometria à física. à química e â biologia até
refluir nela. Por outro lado, entretanto, ela nào deixou dc sofrer por ter vindo
tão tarde. A inteligência humana conseguiu fazer legitimar, no intervalo, pela
ciência c investir assim dc uma autoridade incontestável seu hábito dc tudo ver
no espaço, de tudo explicar pela matéria. Acaso ela trata da alma? Ela imagina
uma representação espacial da vida interior; ela estende a seu novo objeto a
imagem que conservou do antigo: donde os erros dc uma psicologia atomística.
que nâo leva em conta a penetração recíproca dos estados de consciência: donde
os inúteis esforços dc uma filosofia que pretende atingir o espirito sem o procurar
na duração. Tratar-se-á de uma relação da alma com o corpo? A confusão é
ainda mais grave. Ela não apenas pôs a metafísica numa pista falsa; eh desviou
a ciência da observação dc certos fatos, ou antes impediu u nascimento dc certas
ciências, excomungadas dc antemão cm nome dc um dogma qualquer. Ficou en
tendido com efeito que o concomitante material da atividade mental lhe era o
equivalente: como toda realidade deve ter uma base espacial, nada sc deve encon
trar a mais nu espírito a nâo ser o que um fisiólogo sobre-humano leia no cérebro
correspondente. Observemos que essa leseé pura hipótese metafísica, interpreta
çào arbitrária dos fatos. Mas não menos arbitrária c a metafísica espiritualista
que a cia sc contrapõe, e segundo a qual cada estado de alma utilizaria um estado
cerebral que lhe sirva simplesmente de instrumento; para cia. ainda, a atividade
mental seria coextensiva à atividade cerebral c a ela correspondería ponto por
ponto na vida presente. A segunda teoria c de resto influenciada pela primeira,
da qual sempre sofreu o fascínio. Tentamos estabelecer, separando as idéias pre
concebidas que se aceitam dos dois lados, chegando o mais perto possível do
contorno dos fatos, que o papel do corpo c inteiramente diverso. A atividade
do espírito tem de fato um concomitante material, mas que só lhe esboça uma
parte; o resto permanece no inconsciente. O corpo certamentc é para nós um
meio de agir, mas é também um impedimento dc perceber. Seu papel è realizar
cm toda ocasião o empreendimento útil; precisamcnte por isso, ele deve afastar
da consciência, com as lembranças que nào esclareçam a situação presente, a
percepção «de objetos sobre os quais nào tenhamos domínio algum." Ê como
se queira, um filtro ou uma (ela. Ele mantém no estado virtual tudo o que poderia
prejudicar a ação ao se tornar atual. Ele nos ajuda a ver diante de nós, nn interes
se do que temos a fazer; por outro lado, impede-nos de olhar à direita e à esquer
da. a nosso bcl prazer. Colhe-nos uma vida psicológica real no campo imenso
Mostramos pó^ínaS ames como um sentido como íl viStâ Icv.-l mais lonyc. porqur <icu iantrutiKtito
torno cisa cxtcnsau mcvitávcí. <Cf. (amhcm Matiere et mêmnirc. todo o primeiro capitulo.)
AS DUAS FONTES DA MORAL E DA RELIGIÃO 237
viva e atuante uma crença no além que parece enconirar-se na maioria dos ho
mens, mas que permanece o mais das vezes verbal, abstrata, ineficaz. Para saber
cm que medida ela significa, basta considerar como nos arrojamos ao prazer:
nào ficaríamos nesse ponto se não víssemos nele tanto domínio sobre o nada,
um meio de desafiar a morte. Na verdade, se estivéssemos certos, absolutamcnte
certos de sobreviver, não mais poderiamos pensar em outra coisa. Os prazeres
continuariam, mas pálidos c descoloridos. porque sua intensidade seria tào-so-
mente a atenção que fixamos neles. Eles cmpalidcceriarn como a luz de nossas
lâmpadas ao sol da .manhã. O prazer seria eclipsado pelo gozo.
Gozo seria de fato a simplicidade dc vida que uma intuição mística propa
gasse no mundo: gozo ainda o que acompanhasse automaticamente uma visão
do além numa experiência científica ampliada. Na falta de uma reforma moral
tão completa, será preciso recorrer a expedientes, submeter-sc a uma “regulamen
tação” cada vez mais dominante, derrubar um por um os obstáculos que nossa
natureza ergue contra nossa civilização. Mas. quer optemos pelos grandes meios
ou pelos pequenos, uma decisão se impoe. A humanidade geme, meio esmagada
sob o peso do progresso que conseguiu. Ela não sabe o suficiente que seu futuro
depende dela. Cabe lhe primeiro ver se quer continuar a viver. Cabe-lhe indagar
depois sc quer viver, apenas, ou fazer um esforço a mais para que se realize,
çm nosso planeta refratário, a função essencial do universo, que é uma máquina
dc fazer deuses.
INDICE
CONFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 53
A Intuição Filosófica ............................................................................................................... 55
A Consciência e a Vida ............................................................................................................ 69
A Alma e o Corpo .................................................................................................................. 83
VOLTAIRE
MARX
ARISTÓTELES
SARTRE
ROUSSEAU
NIETZSCHE
KEYNES
ADORNO
SAUSSURE
PRÉ-SOCRÁTICOS
GALILEU
PIAGET
KANT
BACHELARD
DURKHEIM
LOCKE
platAo
DESCARTES
MERLEAU-PONTY
WITTGENSTEIN
HEIDEGGER
BERGSON
STO TOMÁS DE AQUINO
HOBBES
ESPINOSA
ADAM SMITH
SCHOPENHAUER
VICO
KIERKEGAARD
PASCAL
MAQUIAVÊL
HEGEL
E OUTROS
Xcsíc xoluiiie